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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO – UERJ

CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS – CCS


INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS – IFCH
DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS

CATÓLICAS PELO DIREITO DE DECIDIR – CDD/BR


DEMANDAS DA MODERNIDADE FRENTE AO RETORNO AO
CONSERVADORISMO

Maurício Marques Soares Filho

Rio de Janeiro / RJ
2016
2

MAURÍCIO MARQUES SOARES FILHO

CATÓLICAS PELO DIREITO DE DECIDIR – CDD/BR


DEMANDAS DA MODERNIDADE FRENTE AO RETORNO AO
CONSERVADORISMO

Monografia apresentada como


exigência para conclusão do
curso de graduação em Ciências
Sociais, pelo Departamento de
Ciências Sociais do Instituto de
Filosofia e Ciências Humanas –
IFCH/UERJ, sob a orientação da
Professora Cecília Loreto Mariz.

Rio de Janeiro / RJ
2016
3

Dedicatória

Dedico humildemente este trabalho a todas as mulheres em situação de violência


e restrição de direitos. Não se pretende tomar sua voz aqui, apenas repercuti-la, e dentro
das limitações deste homem.

Não posso deixar de lembrar dos e das religiosos e religiosas, leigos e leigas,
que, ligados à denominação que for, assumiram e assumem para si o fardo das lutas e
demandas populares e minoritárias: a prática da doação pessoal (e me refiro aqui ao
outro, não à sua instituição ou a si mesmo), necessário reconhecer, é para muito poucos.

Não posso deixar de mencionar aqui o nome de Arídia Rosa Gomes, que, sem
mesmo que o autor se desse conta, foi a inspiração primeira para este trabalho.
4

Agradecimentos

À ideia de Deus, sem a qual, literalmente, este trabalho não teria sido escrito.
Desnecessário dizer, é completamente irrelevante crer para que se compreenda
minimamente e se respeite a importância histórico-social, e também psicológica e
pessoal, do conceito de divino.

Agradeço todos os mestres e mestras que encontrei nesta Universidade do


Estado do Rio de Janeiro e em outros espaços, detentores ou não de diplomas ou títulos,
estejam ligados à função ou assumam o papel social que for: desculpem-me se não os
cito nominalmente – seria necessária outra monografia para pormenorizar o que e como
aprendi com cada um.

Devo um agradecimento especial à minha orientadora, pelo suporte, paciência e


interesse – todo posicionamento que hoje ou um dia possa ser considerado inadequado,
e quaisquer equívocos teórico, metodológico ou imprecisão que aqui tenham
permanecido é falta inteiramente minha.

À minha família, em especial a Ivane Rosa Gomes Soares e a Gisele Vieira


Rocha, por acreditarem sem reservas em mim, e pelo apoio que sei ter sido por vezes
difícil.
5

“(...) Universidade como espaço possível de aprofundamento da reflexão sobre uma


prática comprometida com as lutas libertárias das classes populares.”
Maria José Rosado Fontenelas Nunes

“Esquecer é uma necessidade. A vida é uma lousa, em que o destino, para escrever um
novo caso, precisa de apagar o caso escrito.”
Joaquim Maria Machado de Assis
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Resumo

A presente monografia pretende estudar a relação entre igreja formal e


movimento leigo através da atuação de uma Organização Não-Governamental, sem fins
lucrativos, que se conecta por meio de sua história à Igreja Católica Apostólica Romana,
além de procurar estabelecer possíveis interpretações para esses vínculos. As Católicas
pelo Direito de Decidir – CDD sustentam com sua agenda pública a proposta de debate
de temas da modernidade articulados a alternativas para a renovação das práticas da
Igreja, além de demandas sobre limites de ingerência das religiões sobre o Estado,
ecumenismo e garantia de Direitos Humanos, mas com ênfase numa prática e discurso
feministas.

Palavras-Chave: Catolicismo, Movimentos Sociais, ONG, Feminismo, Direitos


Reprodutivos.

SOARES FILHO, Maurício Marques. Católicas Pelo Direito de Decidir – CDD/BR:


Demandas da Modernidade Frente ao Retorno ao Conservadorismo. Rio de Janeiro / RJ,
CCS/IFHC/UERJ. 2016. Monografia. Graduação em Ciências Sociais. Orientadora:
Professora Doutora Cecília Loreto Mariz.
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Abstract

This thesis aims to study the relationship between formal religion and lay
movement through the action of a non-governmental nonprofit organization, which
connects through its own history to the Roman Catholic Church, and seek to establish
possible interpretations for these bonds. The Católicas pelo Direito de Decidir - CDD
supports with its public agenda the proposed discussion themes articulated modern
alternatives to the renewal of the Church's practices, and demands on limits of
interference of religion over the state, ecumenism and guarantee human rights, but with
a focus on practice and feminist discourse.

Keywords: Catholicism, Social Movements, NGOs, Feminism, Reproductive Rights.

SOARES FILHO, Maurício Marques. Católicas Pelo Direito de Decidir – CDD/BR:


Demandas da Modernidade Frente ao Retorno ao Conservadorismo. Rio de Janeiro / RJ,
CCS/IFHC / UERJ. 2016. Monograph. Degree in Social Sciences. Advisor: Professor
Cecilia Loreto Mariz.
8

Sumário

Introdução ...................................................................................................................... 11

Capítulo 1 – Breve Cronologia do Catolicismo no Brasil ............................................. 14

1.1.A Igreja Católica no Brasil até a Década da Proclamação da República .......... 15


1.2.A Igreja Católica no Brasil até a Década de 1930 ............................................. 19
1.3.A Igreja Católica no Brasil até o início da Década 1960 ................................... 20

Capítulo 2 – As Décadas de 1960 a 1980 ...................................................................... 25

2.1. Entremeios, 1961 a 1968 .................................................................................. 27


2.1.1. Movimento Marcha da Família com Deus Pela Liberdade .................... 38
2.2. Os Anos de 1969 a 1978 ................................................................................... 47
2.3. A Vida Religiosa nos Meios Populares ............................................................ 57
2.3.1. Pastoral ................................................................................................... 59
2.4. A Abertura Política e o Retorno à Democracia ................................................ 62

Capítulo 3 – A Década de 1990 ..................................................................................... 68

3.1. Centralização da Igreja Católica e Ascensão de Outros Atores ....................... 69


3.1.1. O Retorno ao Conservadorismo e Centralização Católicos ................... 69
3.1.2. A ICAR Brasileira Perde Fiéis ............................................................... 74
3.2. O Movimento Social Após a Queda do Muro .................................................. 75
3.2.1. A Situação Político-Econômica Brasileira na década de 1990 .............. 76
3.2.2. Reação da Sociedade Civil ao Declínio da Democracia ........................ 82
3.2.3. Globalização, Movimentos Populares e ONGs ...................................... 86
3.2.4. Bases Legais para a Sociedade Civil Organizada .................................. 90

Capítulo 4 – Influências às Católicas Brasileiras .......................................................... 92

4.1. Direito Canônico e o Aborto ............................................................................ 93


4.2. Discussão Secular do Aborto no Mundo Moderno ........................................ 108
4.3. Fundação da Catholics For Free Choice – CFFC ......................................... 110
4.4. Red Latinoamericana de Católicas por el Derecho de Decidir ..................... 118
4.5. O Feminismo no Brasil ................................................................................... 119
4.5.1. Até 1889 ............................................................................................... 120
9

4.5.2. Entre 1890 e 1930 ................................................................................ 122


4.5.3. Entre 1930 e o Golpe ........................................................................... 130
4.5.4. Ditadura Militar: Entre 1964 e 1978 .................................................... 132
4.5.5. Ditadura Militar: Entre 1979 e 1985 .................................................... 135
4.5.6. Retorno à Democracia e a Consolidação de um Novo Modelo ........... 138

Capítulo 5 – As Católicas Pelo Direito de Decidir – CDD/BR .................................. 143

5.1. Formação das Católicas Pelo Direito de Decidir Brasil ................................ 148
5.2. Objetivos e Panorama de Atuação .................................................................. 151
5.2.1. Religião ................................................................................................ 151
5.2.2. Sexo, Gênero e Identidade de Gênero .................................................. 152
5.2.3. Direitos Reprodutivos e Juventude ...................................................... 154
5.3. Posicionamento da Igreja Católica Brasileira ................................................. 156

Capítulo 6 – Formas de Ação das CDD/BR Hoje ........................................................ 158

6.1. Ações de Advocacy ......................................................................................... 158


6.2. Ações nas Redes Sociais ................................................................................ 162
6.3. Ações de Conscientização Direta e Publicações ............................................ 163
6.3.1. Ações Diretas ....................................................................................... 163
6.3.2. Artigos e Publicações Disponíveis na Rede ......................................... 164
6.4. Financiamento de suas Atividades – as CDD/BR enquanto ONG ................. 175
6.4.1. Convênios com a União ....................................................................... 177
6.5. Uma Questão sobre Modelos ......................................................................... 181

Conclusão .................................................................................................................... 183

Porque Católicas? ............................................................................................ 183


Considerações Finais ....................................................................................... 184

Referências .................................................................................................................. 187


10

Apêndices

I. Cessão de Valores às Católicas pelo Direito de Decidir Sociedade Civil pela União
através de Convênios ............................................................................................. 197
II. Aborto:
Problema de Segurança Pública ou Competência da Saúde Pública? ................... 208
III. Nosso Vizinho ao Sul, O Uruguai ......................................................................... 217
11

Introdução

O Catolicismo no Brasil apresentou um dinamismo notório na segunda parte do


século XX. Entre as muitas causas que poderiam ser citadas, temos as externas, como as
características do papado de João XXIII (1958 – 1963) – que alarmaram alguns dos
católicos romanos mais puristas e certamente a todos os intolerantes –, as determinações
do Concílio Vaticano II (1962 – 1965), e as Conferências Episcopais Latino Americanas
de Medellín (1968) e de Puebla (1979). Entre as influências internas, a Ditadura Militar
(1964 – 1985), e o posterior processo de redemocratização, que em sua maior parte foi
perfeitamente alinhado às opções econômicas, políticas e sociais características do
período posterior às crises capitalistas da década de 1980 e do pós Guerra Fria – a
adoção do chamado paradigma econômico Neoliberal e a retração da agência do Estado
também como promotor de projetos de inclusão social efetiva, e a quase alienação de
seu papel como principal elemento de diálogo ou mediação com o Movimento Social.

A proposta de uma Igreja Católica aberta ao povo, que tornasse parte de sua
agenda a inclusão social e as lutas populares – o que se materializou nas Comunidades
Eclesiais de Base – CEB e na Teologia da Libertação dos anos de 1970 e 80,
principalmente – foi progressivamente negada como política oficial, algumas vezes dura
e abruptamente, durante o papado João Pulo II (1978 – 2005). Conforme será visto em
breve, a opção pelos pobres foi uma alternativa também para a organização popular
durante o período de restrições brutais a qualquer oposição oficial ao Regime de
Exceção. A iniciativa democrática e inovadora foi desarticulada ou minorada pelo poder
de Roma, que optou pelo retorno ao conservadorismo intestino, ao centralismo, e adotou
técnicas de propaganda e ações políticas visando manter sua ascendência sobre o
pluralismo e opções religiosas em crescimento, além de sua importância geopolítica.

As pastorais e a opção pelas causas sociais não morreram de fato com a


reavaliação da linha a seguir pela cúpula da Igreja Católica, nem mesmo dentro de sua
estrutura. Houve silêncios obsequiosos, houve afastamento e condenação de líderes,
houve realinhamento: mas os homens e mulheres, leigos e eclesiásticos, que cresceram
nas CEBs, que pensaram suas próprias escolhas e vidas a partir da Teologia da
Libertação, muitos deles ingressaram em movimentos sociais que de fato colaboraram
para reorganizar a sociedade civil na abertura política, e quando da opção pelo Novo
Paradigma Econômico, para adotar novos modelos de ação voltados à mudança.
12

Católicas Pelo Direito de Decidir: Organização Não Governamental. Se pensada


sob uma ótica purista, não deveria figurar estritamente entre os movimentos sociais de
origem ou cunho meramente religioso: existem organismos laicos católicos,
reconhecidos ou não pela Santa Sé, que vêm crescendo em número e importância no
Brasil, e o estudo de algum deles seria mais própria nesse caso. Contudo, conforme se
conhece suas prioridades e a insistência com que procura fazer notar sua ligação muito
específica com a Igreja Católica Romana, afigura-se válido abordar as CDD, não como
uma tendência entre as multíplices faces do cristianismo contemporâneo, mas sim como
um elemento representativo de organização secular que congrega múltiplas demandas
elementares da modernidade e que subjazem aos diversos modos de ser cristão ou cristã.

As CDD mantêm ou procuram manter diálogo (que muitas vezes é constituído


de monólogos das partes) especialmente com a Igreja Católica, mas também com as
diversas denominações cristãs e outras religiões. Apresenta relevante papel diante de
questões de sexo e gênero, em especial uma que se afigura mais pungente entre
mulheres jovens: direitos sexuais e reprodutivos – e o assunto de discussão sempre mais
controverso: a desmistificação, discussão e legalização do aborto.

Na introdução do artigo de Alcilene Cavalcante de Oliveira [DE OLIVEIRA,


2009], percebe-se a relevância histórica da Igreja Católica Apostólica Romana – ICAR
na formação cultural das populações da América Latina, e como aquela organização
infundiu nessas sociedades papéis sociais arquetípicos da mulher como mães e esposas
ou, como é logicamente esperado que toda definição carregue em si mesma seu oposto e
contrário, da Eva caída. Herança direta foi e ainda é a manutenção das mulheres como
cidadãs de segunda classe, com reduzida possibilidade de agência, ou até mesmo
coisificadas em sociedades eminentemente machistas. Em paralelo, temos que qualquer
mudança social efetiva precise dialogar com as diversas religiões: no Censo de 2010,
menos de dez por cento da população declara-se sem religião ou não crente – a despeito
da prática e observação efetiva ou não dos ritos e regras solenes pelos demais, infere-se
uma necessidade ou tradição de identidade com, ou pertencimento a, aquelas religiões
ao menos por costume. Resulta disso que oportunidade de transformação prática
depende diretamente do diálogo com as religiões, além de um esforço contínuo para a
observância do caráter laico das diversas esferas e poderes estatais, de campanhas de
valoração das mulheres e dos novos papéis sociais que elas vêm assumindo, além da
conscientização da sociedade em sentido amplo.
13

No presente trabalho buscamos conhecer a história das CDD no Brasil, e


delinear suas diretrizes e formas de trabalho e atuação sobre a sociedade, os tópicos que
abordam, seus principais objetivos, quem são os atores sociais que as constituem e a
elas se alinham. Devemos por necessidade criar molduras para guiar nossa visão, que
serão oportunamente apresentadas, mas que sempre se basearão nos tópicos
centralmente valorizados no discurso das Católicas. Por fim, tentaremos encontrar
respostas a algumas questões fundamentais, como das possíveis motivações imediatas
que levaram a opção por uma composição em Organização Não-Governamental (ao
invés de movimento laico católico, por exemplo), a temática central de defesa de
direitos sexuais e reprodutivos (com ênfase na possível opção – o que imprime um
caráter decisão pessoal e agência feminina – pela interrupção de uma gravidez), e a
insistência na manutenção de um vínculo especial e com o Catolicismo. A evolução do
movimento deverá ser necessariamente observada, como a progressiva agregação de
metas, o convite ao ecumenismo e as técnicas de divulgação com a ascensão da internet.

Entende-se como necessário traçar um quadro, ainda que com matiz de poucas
cores, sobre a religiosidade brasileira após o Concílio Vaticano II (1962 – 1965) até
meados da década de 1990. De forma semelhantemente sucinta, se pretende observar a
opção por um novo modelo sócio-político-econômico que caracteriza o que chamam de
pós-modernidade, modernidade líquida, Neoliberalismo, prevalência do Capitalismo
Financeiro e retorno à autogestão do Mercado, ou o nome com o qual se queira batizá-
lo, e suas influências sobre as alternativas para a organização de movimentos populares,
ou do agora “Terceiro Setor” ou “Sociedade Civil”, em torno de objetivos determinados.

Desnecessário dizer, por se tratar de um projeto científico, não se pretende falar


aqui pelas Católicas pelo Direito de Decidir, e sim sobre as mesmas. Igualmente, as
colocações e afirmações a respeito principalmente da Igreja Católica Apostólica
Romana, sua organização e posicionamentos passados e atuais, serão baseados em
análises da literatura reconhecida e em seus próprios documentos oficiais. Contudo, é
necessário afirmar que não se poderá, por questões óbvias que limitam o espectro da
experiência pessoal do autor, dizer que este é um trabalho de caráter feminista –
contudo, desde já se deve salientar um compromisso que aqui inevitavelmente será
refletido com a garantia da dignidade e dos direitos individuais, e em se reconhecer que
somente a atenção às necessidades diferentes pode garantir a igualdade.
14

Capítulo 1 – Breve Cronologia do Catolicismo no Brasil

O primeiro ato oficial da Igreja Católica Apostólica Romana em terras


continentais do que viria a se chamar Brasil ocorreu em 26 de abril de 1500, numa praia
do sul do atual estado da Bahia, Coroa Vermelha. Uma das duas potências irmãs e
verdadeiramente mundiais da Idade Moderna fixou seus estandartes apropriando-se da
terra, e Pero Vaz de Caminha informava em sua Carta destinada ao Rei Manuel I que “o
melhor fruto que dela se pode tirar parece-me que será salvar esta gente”. Portugal e
Espanha eram as coroas europeias defensoras da fé católica (embora o projeto daquele
como Estado Nação entrasse em conflito velado com Roma, em termos políticos e
simbólicos, a separação entre Igreja e Estado deu-se oficialmente só em 19111), e o
catolicismo esteve desde o início de nossa formação ligado ao poder oficial do Estado.

Regressa-se tanto no tempo somente para que se possam firmar duas


características principais da Igreja Católica no Brasil entre os séculos XVII e XIX: sua
conexão inevitável com o Estado – este age como elemento mediador de sua ação na, e
garantia de sua relação de ascendência sobre a, sociedade civil –, e sua relativa
independência de Roma2, e como esses fatores se refletiram na formação de uma Vida
Religiosa Tradicional [NUNES, 1985]. O objetivo da ICAR sempre pode ser designado
universalista, e na Península Ibérica e colônias tratava-se de um projeto de Cristandade,
que seja definida como ação social da Igreja mediada pelo Estado, e foi preponderante
nessas terras até meados do século XX quando é inevitavelmente substituído por um
projeto de Igreja, onde a interferência sobre o corpo da sociedade passa ser direta.

A proximidade com o Estado não perde seu fator atrativo até o presente: são
óbvias as prerrogativas de uma instituição que adquire influência sobre os Poderes
Constituídos e, como consequência, sobre todo o edifício social – ou mesmo que estreite
laços com uma condição de classe específica, mas que detenha certo nível de
“ascendência” no imaginário social (médicos e advogados, por exemplo). No caso de
maior impacto, pode-se impor direta ou indiretamente sobre a sociedade sua própria
visão de mundo, seu conjunto de valores éticos e morais, seu simbolismo, sua estética –

1
Decreto com Força de Lei de Separação dos Estados e das Igrejas, de 20 de abril de 1911, parte das
reformas associadas à Proclamação da República Portuguesa, em 05 de outubro de 1910.
2
Afirmar que a distância era impeditivo crucial é equivocado: é certo que os Institutos de Vida
Consagrada não tinham condições de reportarem-se à Santa Sé com periodicidade constante, mas a Bula
Papal que reconhecia oficialmente a Ordem ou Congregação e fixava sua carta de princípios equivalia a
um nihil obstat para sua ação ordinária. A ingerência do Estado Português, e depois do poder Imperial
Brasileiro sobre o catolicismo no Brasil, valendo-se do Direito de Padroado, foi o que se fez sentir.
15

e garantir sua replicação dentro dos quadros sociais, a sobrevivência ou adaptação de


sua estrutura e, por conseguinte a manutenção de seus poderes de influência. Da mesma
forma que a associação formal entre a Igreja Católica e o Império do Brasil garantia sua
prevalência, hoje a associação entre igrejas e política na esfera do Congresso Nacional
(a chamada “Bancada da Bíblia”, ou mesmo “Bancada Evangélica”) intervêm na vida
comunitária brasileira, à medida que angaria poder para aprovar ou barrar medidas que
julgam de acordo com seus interesses ou valores comuns [VITAL et al., 2012].

Os tópicos dessa seção são baseados na obra de Maria José Fontelas Rosado
Nunes, fundadora das Católicas Pelo Direito de Decidir no Brasil, “Vida Religiosa nos
Meios Populares”, que apresenta uma leitura da realidade pautada no Materialismo
Histórico. Citações serão feitas somente quanto a contribuição vier de outro autor.

1.1. A Igreja Católica no Brasil até a década da Proclamação da República

A formação de uma Nação Católica passava então necessariamente pela adoção


estatal do catolicismo como religião oficial. “Tolerância [religiosa] é fruto da
indiferença. E a indiferença, fruto da ação política”, como afirma Christopher Hill em
seu tomo Origens Intelectuais da Revolução Inglesa (São Paulo: Martins Fontes, 1992)
e não poderia haver por princípio tolerância franca no Reino Português, bastião que se
tornou (junto à Espanha e depois França) para a Igreja de Roma durante o período
turbulento da Reforma e Contra Reforma: os interesses de ambos estavam
irremediavelmente ligados pelo Direito de Padroado3 instituído ainda no século XIII.

A atuação doutrinária principal nas terras a leste da linha realmente imaginária


do Tratado de Tordesilhas (firmado entre as Coroas Ibéricas, e validado pelo Papa Júlio
II em 1506, tornando sem efeito a Bula Inter Coetera de 1493, subscrita pelo Papa
Alexandre VI4) foi, senão de facto ao menos consta como verdade absoluta nos livros
didáticos de nossas escolas elementares, levada a cabo inicialmente pela Companhia de
Jesus: uma estrutura eclesiástica formalmente reconhecida em 1540 através de Bula
Papal Regimini Militantis Ecclesiae por Paulo III – o mesmo que convocou o Concílio

3
Para definição concisa do conceito, vide Glossário “Navegando na História da Educação Brasileira”,
online, mantido pelo Grupo de Estudos e Pesquisas “História, Sociedade e Educação no Brasil”
(HISTEDBR) da UNICAMP, verbete “Padroado” elaborado por Ana Cristina Pereira Lage, disponível no
sítio: http://www.histedbr.fe.unicamp.br/navegando/glossario/verb_c_padroado1.htm.
4
A ICAR desempenhava um papel de “árbitro isento” em questões diplomáticas e políticas entre reinos e
os nascentes estados nacionais – essa era uma tradição jurídica medieval, tal e qual o Direito Divino dos
Reis, que, além de quase imposta pela condição de “grande feudatária da Europa”, era prevista em
documentos oficiais da própria Igreja: sustentava-se a si mesma.
16

de Trento (1545-63) sendo, portanto, o “idealizador” da Reforma Católica. A


Companhia de Jesus foi fundada por Íñigo López, membro da nobreza rural nascido no
Castelo de Loyola na região basca de Azpeitia, (ou Inácio de Loyola, 1491 – 1556,
canonizado em 12 de março de 1622) que, treinado como guerreiro e gravemente ferido
na perna em batalha, retirou-se para uma vida ascética, contemplativa, de estudos
teológicos e exercícios espirituais, dando início a uma congregação a princípio de seis
membros em torno de sua figura carismática (nos termos desse período de reafirmação
da ortodoxia e de obediência à Sé), que assumiram votos de pobreza e castidade.
Enquanto instituição, a Companhia possui caráter missionário, e o fato de não serem
uma ordem monástica permite relativa mobilidade a seus membros – somando-se à
sujeição total ao Papado estabelecida em seus estatutos, a SJ tornou-se ferramenta ideal
para a disseminação da fé, do Catecismo e dos Decretos Papais (base do Direito
Canônico de então até 1917) da Contra Reforma, “ad majorem Dei gloriam".

Esses homens afeitos à disciplina e à obediência assumiram muitas tarefas


dentro da estrutura da ICAR ao longo do tempo – inegavelmente seus principais
serviços a ela enquanto Ordem Missionária foram em o de converter à fé católica,
doutrinar (“catequizar”), e educar (nas letras latinas, costumes europeus e teologia e
moral católicas). Hoje a Societas Jesu está presente em cerca de cento e trinta países.

Aquele que se refere à educação é o ponto em que precisamos nos deter. Entre
1549 e 1759 foram fundadas “escolas de ler e escrever em quase todas as povoações e
aldeias; (...) 18 estabelecimentos de ensino secundário, entre colégios e seminários, nos
principais pontos do Brasil, entre eles: Bahia, São Vicente, Rio de Janeiro, Olinda,
Espírito Santo, São Luís, Ilhéus, Recife, Santos, Porto Seguro, Paranaguá, Alcântara,
Vigia, Pará, Colônia do Sacramento, Florianópolis e Paraíba”. Merece notoriamente
também seu papel ativo na fundação da aldeia de Piratininga, que viria a ser o núcleo de
formação da cidade de São Paulo/SP, e ponta de lança para o povoamento do “sertão”.
Tal referência é feita, pois o monopólio na prática do ensino certamente foi usado como
uma das principais ferramentas de doutrinação para a nascente elite colonial masculina.
Os colégios e professores jesuítas eram a mais comum, senão única, maneira de acesso a
um ensino mínimo, ainda que voltado a uma formação cristã humanista, preterindo a
fabricação do cidadão burguês, que se tornou o objetivo pedagógico português do
século XVIII, numa tentativa de adequar o Estado Nação à já estabelecida lógica
econômica europeia [SHIGUNOV NETO, 2008].
17

Um elemento valorizado na discussão da autora em pauta é papel social dos


Conventos no período anterior à República. Sua potencialidade para serem espaços de
fuga à tirania do Patriarcalismo “clássico”, que era a norma da sociedade colonial e foi
herdada pelo Império, é frustrada: são ferramentas para ameaçar, controlar, conter,
manter a respeitabilidade da família extensa. Importante que seja dito: sob certo aspecto
o convento (e mesmo que – ou mesmo porque – suas regras pudessem ser relaxadas5)
pode ser encarado como um microcosmo reflexo da normativa social vigente, pois a ela
apela para a definição dos papéis dentro da sua hierarquia assumidos por essas
religiosas, definindo primeiramente quais mulheres estariam “aptas” à vida conventual.
Ordens e Congregações acolhiam em suas casas filhas ou agregadas da elite social – não
era a vocação o determinante para viabilizar a conversão à vida religiosa durante o
período colonial ou imperial, mas o prestígio associado ao nome de família, fatores
econômicos e políticos. Após a reforma conventual de meados do século XIX e início
do XX, ainda de acordo com o texto de Nunes, esse padrão classista se repete, contudo
de forma menos explícita: a aceitação não se restringe mais a membros da elite, mas
agora são as letradas, aquelas que “tem estudo” ou “são educadas” que desenvolvem
tarefas relacionadas à educação e administração, enquanto às que apresentam carências
nesses tópicos é relegado trabalho mais pesado, na cozinha, lavanderia ou faxina – o
espaço social do convento reflete, ainda que no âmbito informal ou de maneira não
inteiramente propositada, uma realidade de oportunidade de classes, estabelecendo uma
hierarquia tácita não só entre os serviços, mas entre as pessoas que os desempenham, e
determinando as oportunidades que virão a ter.

O prestígio da vida conventual e monástica decresce a partir da segunda metade


do século XVIII. Em 1759, o Marques de Pombal determina a expulsão dos jesuítas das
terras da colônia: era um grupo disciplinado, coordenado, influente, detinha direitos
sobre terras, e fiel às determinações de Roma. As demais Ordens e Congregações
instaladas – Franciscanos, Carmelitas, Beneditinos, Mercedários e Capuchinhos –,
vistas como elementos estrangeiros, possuidores de poder econômico e propriedades,
perderão espaço principalmente entre 1827 e a proclamação da República, devido a um
conjunto de regras que visava reduzir sua capacidade de angariar e formar o noviciado.

5
A autora menciona que em alguns conventos as regras de clausura e normativas quanto a vestimentas,
uso de jóias, ou mesmo a alimentação ou possibilidade de criados e escravos pessoais eram ignoradas “em
nome de uma compensação dada pela família à enclausurada” – daí estabelecer que ainda que as regras e
necessidades da família patriarcal as tenham enviado para a “clausura”, essa poderia ser lassa.
18

Com a Independência, a Igreja Católica é declarada religião oficial do império


brasileiro – o fato de Dom Pedro I, e seu sucessor Dom Pedro II, continuarem
desempenhando o papel de “Patrono da Igreja”, detendo poder sobre a nomeação de
cargos eclesiásticos (cujos salários eram pagos pelos cofres públicos) e sobre a validade
de ordenações Papais dentro do território da coroa é característico de um afastamento ou
independência relativa da Sé Romana, mas fonte de desagregação interna6. Embora não
se possa o afirmar impunemente, devemos tomá-lo como axioma de pesquisa: a
Religião Católica no Brasil precisava do Estado Nacional como parceiro para
estabelecer-se como credo (senão único, ao menos oficial) de forma a atingir sua meta
basilar: simplesmente a “cobertura de todo o território nacional”, conforme Nunes.
Ainda que pudesse estar institucionalmente enfraquecida, detinha monopólio sobre
responsabilidades civis, que eram paralelas e complementares às estatais como, por
exemplo, o cadastro de nascimentos através do batismo, a validação de casamentos –
era detentora ainda de autoridade formal. Tal estratégia de vinculação ao Estado de
Direito simplesmente não dava espaço para a ascensão de outras religiões a não ser
como prática privada (conforme o atesta o artigo 5º da Constituição Política do Império
do Brazil, de 25 de março de 1824): a Igreja Católica era, ao contrário, validada como
pública – incontestável, pois elemento anexo estatal. Suas atribuições adentravam a
esfera do poder formal constituído, eram parte dele. Havia ascendência da Igreja sobre a
população: suas atribuições civis e certo poder político garantiam-na.

Essa é a lógica de uma Religião de Estado. Depois de fé oficial do Império


Português, continuou sendo a do Império do Brasil. Essa histórica e quase inevitável
estratégia de ação institucional cobrou sua contrapartida: no final do século XIX a Igreja
Católica brasileira tinha sua preponderância irremediavelmente conectada à Coroa, e a
seus vínculos com as elites agrárias tradicionais e nobiliárquicas, alguns bastantes
locais, mas mantidos principalmente através da educação. Parte considerável de seu
poder e influência estavam garantidos pelo Império Brasileiro, e este cessa de existir em
1889.

6
O ápice dos atritos entre Roma e o Império Brasileiro dar-se-á na chamada Questão Religiosa, 1870-5.
19

1.2. Igreja Católica no Brasil até a década de 1930

Quando da proclamação da República, em 1889, as atribuições civis da Igreja


são progressiva ou abruptamente retomadas pelo agora Estado Político [Marx, 1843]. A
Igreja Católica perde o benefício da inabalável prioridade quando o Estado se admite
laico. “A relação da Igreja com a sociedade civil havia sido sempre mediada pela
sociedade política, em cujo centro estava o Estado”: cabe agora a criação de novas
possibilidades de inserção social da ICAR.

Continua-se com o objetivo de prevalência em todo o território, a formação de


uma Cristandade, e configura-se decisivo a preservação da ordem institucional: mas
como uma organização desagregada internamente e agora sem o apadrinhamento formal
do Estado tornaria tal possível? A Igreja também busca nas novas classes dominantes, a
burguesia rural em ascensão que vêm a substituir a antiga oligarquia nobiliárquica
agrária, as garantias de manutenção de seu poder político e doações para sua
manutenção enquanto instituição e para a realização de suas obras – é inevitável que
venha a adaptar sua ideologia e seu discurso, inclusive o educacional, à nova realidade.

A despeito do aparente paradoxo, a desvinculação formal do Estado permitiu


que processos de renovação da Vida Religiosa que já estavam em curso desde a metade
do século XIX se intensificassem no Brasil: no período da Velha República e posterior,
maior número de Ordens e Congregações (muitas delas de caridade e não tanto
enclausuradas – o que já implica maior aproximação com “o mundo”, mas não da
forma e intensidade que assumiria após a década de 1950) de origem estrangeiras
migram ou enviam agentes para fundar representações no Brasil – a despeito da
distância em relação à Europa, sede da maioria dessas instituições, e de um histórico
afastamento de Roma, é com esses polos que a Igreja Católica brasileira passa a se
corresponder, passando deles também a receber recursos.

A romanização permite que a Igreja se articule agora como poder civil e político
independente do Estado. As novas Ordens e Congregações revitalizam a Vida Religiosa,
que deixa de ser somente de reclusão e contemplação (e regalias), e toma rumos
apostólicos e certa atividade social no sentido educacional e de assistência aos
necessitados (órfãos, velhos, acidentados que não podiam trabalhar, indigentes –
aqueles que permaneciam à margem, senão fora, da ordem socioeconômica instituída),
essa entendida como a “insubstituível função social” da Igreja, que foi reforçada no
20

período entre o final formal da ordem escravocrata e a admissão na ordem capitalista


ocidental após a Revolução de 1930. Nesse interstício, a ICAR assume no Brasil
funções assistencialistas e paliativas em relação às necessidades das populações pobres
ou marginalizadas, em caráter de “suplência do Estado”. Havia uma compreensão
oficial rasa e acrítica da estrutura política, econômica, social como fonte do problema: o
compromisso era para com a solidariedade em relação às “vítimas de uma situação”, e
não com a mudança dessa: “(...) administrar a pobreza”.

Outro ponto a ser salientado é a busca por se disciplinar o catolicismo popular:


os movimentos milenaristas do final do século XIX e início do XX, além de marcarem a
transição de uma lógica social baseada no patriarcalismo para uma burguesa agrária,
salientam a ignorância popular acerca das bases teológicas do Catolicismo. Os bispos e
clérigos reformadores vão tentar instruir as massas populares “contra a ignorância, o
fanatismo, as superstições, as crenças atrasadas e as práticas imorais”, simultaneamente
em que contribuem para a aceitação do novo status quo. As escolas administradas pela
Igreja que prestavam serviços para os “menos favorecidos” eram levadas à frente às
custas de doações e em geral por Ordens Caritativas, mormente femininas. Interessante
observar que esse é um elemento que contribuiu para uma formação cultural básica para
mulheres, principalmente nas cidades, e para um “alargamento dos horizontes culturais”
dessas.

1.3. A Igreja Católica no Brasil até o início da década 1960

A articulação com as elites civis teria papel fundamental no Programa de Estado


da Era Vargas. Após a Revolução de 1930 e da interrupção das práticas políticas
adotadas na República Velha, motivada entre outros fatores pela Crise Capitalista
Mundial de 1929 (que causa impacto considerável sobre as oligarquias agrário-
exportadoras e fortalece uma incipiente tendência ao capitalismo industrial e a um
Estado burguês) o governo buscará na Igreja apoio para o avanço de seu programa
populista. A Igreja novamente estabelece um intermediário do poder constituído entre
ela e a sociedade: o estudo de Religião passa a ser novamente obrigatório em 1931 nas
escolas públicas, e é generalizado na Constituição de 1934; em dez anos à frente, a
Igreja Católica possuirá cerca de 60% das instituições de ensino secundário brasileiras.

A guisa de exemplo dessa inevitável aproximação do Estado com a Igreja


Católica, fortalecida entre as novas elites e com ascendência sobre as massas
21

trabalhadoras nesse período, podemos citar a fundação do Cristo Redentor. Embora


fosse ideia acalentada desde 1920 pelo Círculo Católico Brasileiro, foi inaugurado em
1931 como “homenagem ao cristianismo brasileiro”, não sem oposição das Igrejas
Batistas, por exemplo, que viam na construção da estátua idolatria, apontando que o
dinheiro público empregado na construção poderia ser de melhor uso em obras sociais –
como podemos observar no topo do Morro do Corcovado, determinado simbolismo e
ideia de cristianismo nacional foi vitorioso [LIBANIO, 1982].

Linhas de governo de populista e nacionalista durante os períodos Vargas, a


populista e internacionalista durante o governo JK – de um ou outro modo, a religião
configura-se parceiro notável para um consenso interno sobre “o rumo a seguir”, esse
caminho sinuoso que resulta num capitalismo dependente, centrado na esfera do dólar.
A Religião Católica foi declarada seguida por 99% e 94% da população segundo os
censos dos anos 1890 e 1960, respectivamente, e havia ainda seu predomínio sobre o
ensino, principalmente o designado como “de qualidade” ou “tradicional” – contudo
houvesse instituições de ensino de base protestante, e que eram requisitadas pelos
membros dos novos estamentos sociais por se dedicarem a um currículo mormente
voltado a tópicos essenciais ao comércio e à indústria, além da malha escolar privada
secular e a pública (essa principalmente conforme a retração econômica pós-guerra
demande ensino gratuito, e em casos específicos como ensino técnico voltado à
indústria). A ICAR mantinha seu ideário institucional alinhado às elites burguesas
rurais, e só assume o em definitivo o projeto desenvolvimentista proposto pelos
governos da Nova República a partir de meados da década de 1950, quando passa a
endossar “as reformas do Estado perante as classes dominantes”. Mas as primeiras
pastorais voltadas aos interesses das classes populares já despontam no início dessa
década (a despeito de não incluir necessariamente representantes delas).

O populismo termina por deixar um “saldo [social] positivo” (a despeito de suas


intrínsecas deformidades enquanto programa político-ideológico para a gestão de uma
“sociedade madura”): politização das classes trabalhadoras e amplo direito ao voto,
organização sindical rural e urbana legalizadas, participação popular em campanhas de
impacto nacional, debates sobre reformas de base institucionais, proposição e aprovação
de uma Consolidação das Leis Trabalhistas – o proletariado urbano cresce em
importância como ator social, seguindo inevitavelmente os passos da burguesia
22

industrial. O Brasil se insere efetivamente na ordem capitalista internacional como um


dos caricaturalmente eternos “país[es] em desenvolvimento”.

A Igreja Católica possui dois elementos que são complementares e que se


alternam em importância com o tempo: o Institucional e o Carismático (ou Carismático
Profético). O primeiro se refere à manutenção e ampliação da estrutura da Igreja, o
segundo “é tratado como componentes transcendentais ligados à conteúdos de fé”: cada
um é predominante conforme as condições sociais se tornam propícias.

Entre 1930 e meados de 1950 a predominância é do aspecto institucional da


Igreja Católica, que busca firmar sua associação junto ao Estado e estabelecer um vetor
de crescimento e de renovação de suas atividades, enfrentando o desafio de abranger
novos setores sociais e de adequar seu discurso às novas elites – há, portanto, uma
rotinização do carisma, nos termos weberianos [WEBER, 2007]. O aparecimento de
novos atores no cenário macro que poderiam ser associados a mudanças sociais
drásticas, como o Liberalismo e o Comunismo, e a ascensão de novas religiões e o
laicismo, também contribuíram para a opção pelo fortalecimento da autoridade e da
disciplina.

A despeito da chamada Reforma (“moralizante”) dos Conventos e Monastérios


efetivamente entre metade do século XIX e início do XX, e o estabelecimento de
diversas Ordens e Congregações nesse mesmo período, a vida no âmbito dessas
instituições segue o padrão da Instituição Total7. Existe a delimitação de um espaço
delimitado de atuação para cada aspecto da rotina, e o controle estrito dos religiosos. O
espaço delimitado por excelência é a clausura. O controle mais evidente é o temporal:
cada evento dá-se segundo uma rotina rígida. A adaptação do indivíduo a esse padrão
passa necessariamente por um processo de despersonificação que elimina as
características dissonantes, e uma reestruturação da pessoa de forma a se ajustar ao
modelo padrão. Essas etapas em geral envolvem diversos rituais de iniciação, desde
mudança de roupas à adoção de um novo nome, seguidos de uma legitimação da
violência sobre a pessoa: o indivíduo deve estar preparado para acatar a ordem
instaurada e as normas internas – o final ideal do processo é aquele em que o

7
Erving Goffman caracterizou-as: uma instituição Total pode ser definida como um local de residência e
trabalho onde um grande número de indivíduos com situação semelhante separados da sociedade mais
Ampla por considerar o período de tempo leva uma vida fechada e formalmente administrada:
“Manicômios, Prisões e Conventos”, 1961.
23

subjugado crê ter conseguido seguir o exemplo da humildade de Cristo. Então, para
atingir tão elevado fim, qualquer violência e repressão legitimam-se a si mesmas, e o
discurso ideológico se replica, fechando o ciclo: o noviço ou noviça agora está apto a
contrair os votos, que são “contratos” dele com a divindade, mas que, conforme Nunes,
reiteram a dicotomia entre o mundo puro dentro dos muros, e o pecado para além da
porta – através da manutenção dos votos o religioso carrega também a perfeição dentro
de si. Se o adepto se rebela ou não consegue atingir o fim desejado, a estrutura deve
garantir que ele é o culpado por sua falha, pois em caso contrário a legitimidade de todo
o discurso é contestada. Se me demorei aqui, é porque o tema é tão válido para a vida
em clausura como para determinadas realidades corporativas.

Percebem-se os mecanismos que mantêm e replicam a hierarquia e a unidade


ideológica, garantem a dicotomia que legitimam a existência de uma “aristocracia
espiritual” a qual parte dos mais humildes servos do senhor e segue em patamares
crescentes até o Papa, que é a “voz de Deus na Terra” e portanto, inconteste. Segundo as
entrevistas compiladas pela autora, as antigas membros dessa Vida Religiosa
Tradicional – VTR consideravam-se alienadas da realidade do mundo, presas numa
rotina repetitiva e de obediência votiva cega, onde o paradoxo entre seus votos de
pobreza diante da inexistência do espectro desta no ambiente controlado (trata-se então
de um voto de não-posse) era rotineiro a ponto de não ser percebido, possuindo suas
condições de religiosas mas em um ambiente onde os papéis femininos são fixados e
impõe subserviência a homens alheios ao próprio serviço.

O Concílio Vaticano II – CVII, dado entre 1961 e 1965, foi uma tentativa de
conceber normas e instrumentalizar a ICAR para sua adaptação à Modernidade. As
sociedades vinham se tornando mais complexas desde a adoção do modelo capitalista –
o Estado laico por princípio, a secularização do mundo (que contesta uma compreensão
da esfera comum como lugar do pecado), o desenvolvimento de direitos e do próprio
conceito de individualismo, uma estrutura pública de bem-estar social, o pluralismo:
esses elementos e tantos outros punham em destaque a defasagem entre a Igreja e a
Modernidade, a sua situação anômica. O aggiornamento (atualização, numa tradução
livre) e a renovação adaptativa das instituições são as propostas, e a atuação no mundo
uma saída possível para a retração dos quadros sacerdotais e votivos – a liturgia é
atualizada e adaptada; normas da Vida Religiosa são abrandadas: dá-se mais espaço
decisório e participativo à pessoa do religioso e da religiosa, além de certa liberdade de
24

movimento e atitudes – como profissionalizar-se, por exemplo; criam-se alternativas que


valorizam o caráter verdadeiramente comunitário e personalista (no sentido da
realização pessoal proporcionada) da ação (são as Pequenas Comunidades, que
contestam a estrutura total da VRT); o engajamento pastoral reforça-se.
25

Capítulo 2 – As Décadas de 1960 a 1980

No presente capítulo tem-se o objetivo de traçar um quadro geral da atuação da


Igreja Católica no Brasil junto à sua população (principalmente sob o ponto de vista de
seus setores ligados às CEBs e à Teologia da Libertação), além de suas transformações
institucionais, e os reflexos dessas no país, entre o Concílio Vaticano II até meados do
Papado de João Paulo II (de nome Karol Józef Wojtyła, polonês, 1920 – 2005).

Ademais, se tentará obter, neste e no seguinte, uma perspectiva sócio, política e


econômica plausível do cenário brasileiro no que se refere a Movimento Social, seja do
ponto de vista da política interna a partir de 1964, seja como reflexo da mudança de
paradigma geopolítico que tem início em 1985 – com a aproximação dos Blocos
Antagônicos – e que continua em 1989-91, período de desagregação do designado
“Socialismo Real” e da perda de referência a uma alternativa ao Capitalismo.

Na Introdução deste trabalho, foi referenciada a mudança qualitativa que houve


após as diretrizes do CVII na Vida Religiosa, especialmente no Brasil: do fuga mundi
para a atuação no mundo, evangelizando e atuando em causas escolhidas, promovendo
a caridade – contudo sem especificarmos as propostas ou iniciativas específicas das
Congregações, da Conferência dos Religiosos do Brasil – CRB8 (a cúpula de diretores
das Congregações, fundada em 1954, contando hoje com mais de 550 Instituições de
Vida Consagrada associadas), e da Congregação Nacional de Bispos do Brasil – CNBB9
(fundada ainda em 1952). O impacto foi certamente mais intenso na população de Vida
Religiosa feminina, que foi historicamente submetida com maior rigor a regras de
conduta e restrições de movimentação. Obviamente, a “abertura” não se deu igualmente
em todas as instituições de vida consagrada, e mesmo diante do maior contato com o
mundo, não havia necessariamente compreensão profunda dos acontecimentos sociais e
políticos brasileiros: o Golpe Civil Militar de 1964 pode ter sido ignorado num primeiro
momento por muitos religiosos e religiosas, devido ainda à alienação da vida política e
mesmo por negligência ou por influência dos veículos de informação católicos, através
dos quais muitas das Comunidades que se informavam.

8
Para histórico de atuação e deliberações da instituição, vide em especial a entrada “Sobre a CBR
Nacional” no sítio on-line <http://www.crbnacional.org.br/site/>, acessado em 6 de agosto de 2015.
9
As Congregações Nacionais de Bispos são reconhecidas e têm suas instâncias de atuação e decisórias
delimitadas na Parte II, Livro II, Seção II, Título II, Capítulo IV do Código de Direito Canônico de 1983.
Para a visão institucional da CNBB e de sua atuação, vide sítio on-line <http://www.cnbb.org.br/>,
acessado em 6 de agosto de 2015.
26

As Segunda e Terceira Conferências Gerais do Episcopado Latino-Americano,


realizadas respectivamente em 1968 em Medellín10 (possuindo por tema “A Igreja na
Atual Transformação da América Latina à Luz do Concílio”), Colômbia, e em 1979 em
Puebla11 (com a temática proposta “Evangelização no Presente e no Futuro da América
Latina”), México, também foram determinantes na formação de uma Vida Religiosa dos
Meios Populares: elas oferecem uma concepção realista da situação geopolítica dos
países da América Latina, seu “papel designado” no cenário internacional, e os desafios
a serem superados: a “salvação” (ou evangelização) aliada a uma concepção de
“desenvolvimento” (socioeconômico, visando à melhoria de condições de vida de uma
população ou comunidade).

Embora elemento central nos apelos a uma intervenção militar que afastasse o
“fantasma do comunismo” representado pela Presidência João Goulart, a ICAR
dissocia-se ao menos formalmente do Regime a partir de 1968-69, quando o mesmo
tende a recrudescer-se12 – até então, supunha-se uma “situação de exceção” para “se
manter a ordem”. Passa-se novamente de uma Igreja de Estado para a atuação direta
sobre a sociedade civil – há uma tendência a uma opção pelas classes não hegemônicas,
as populares. Essa é uma alteração do foco de ação na sociedade da ICAR marcante,
pois até então era voltado prioritariamente às elites sociais e/ou ao governo – a busca de
sustentação na base da sociedade, no Brasil e em grande parte da América Latina,
reflete ao contrário a atuação da Ditadura sobre os trabalhadores urbanos e campesinos:
essa pretende esmagar as precedentes formas de organização político-sociais e
ideológicas herdadas do período desenvolvimentista, como possíveis fontes de crítica ao
sistema vigente ou à opção deste por um capitalismo submisso aos interesses “do
centro” e extremamente dependente.

Nas palavras de Nunes, a ICAR, ao se comprometer com os movimentos


populares urbanos e do campo, “(...) deixa de ser legitimadora das práticas de
dominação das classes dominantes, para apoiar a práxis revolucionária dos dominados”
(NUNES, 1985).

10
Vide <http://www.celam.org/doc_conferencias/Documento_Conclusivo_Medellin.pdf>, acessado em 6
de agosto de 2015.
11
Vide <http://www.celam.org/doc_conferencias/Documento_Conclusivo_Puebla.pdf>, acessado em 6
de agosto de 2015.
12
O então Presidente formal da República, General Artur Costa e Silva (1899 – 1969) aplica o “Segundo
Golpe” com a promulgação do Ato Institucional nº 5, AI-5, redigido em 13 de dezembro de 1968, que
recrudesce as práticas de perseguição e contenção, em nome da “Segurança Nacional” e da “Ordem”.
Vide texto no sítio on-line < http://legis.senado.gov.br/legislacao/ListaPublicacoes.action?id=194620>.
27

2.1. Entremeios, 1961 a 1968

É imperativo debruçar-se sobre a atuação da ICAR no período diretamente


anterior e posterior ao Golpe: as informações trazidas a público pela Comissão Nacional
da Verdade – CNV, e as conclusões a que chegaram seus Grupos de Trabalho impedem
qualquer interpretação simplista ou binária da influência da ICAR e outras
denominações cristãs nesse processo da história brasileira, que tem por fundo um
anticomunismo que reúne em torno de si diversos atores sociais13.

A política desenvolvimentista mostra-se esgotada ao fim do governo de


Juscelino Kubitschek de Oliveira (1902 – 1976), em 1960. JK, eleito sob o Partido
Social Democrático – PSD e pode-se dizer representante de forças políticas associadas
ao getulismo, assume a presidência do Brasil em 1956 (deve-se mencionar, graças a um
“contra-golpe ‘preventivo’ para se garantir a legitimidade democrática” executado pelo
recém resignado, mas que retornará a esse cargo durante a transição, Ministro da Guerra
do governo Café Filho, General do Exército Henrique Batista Duffles Teixeira Lott
(1894 – 1984), sobre setores das Forças Armadas anti-getulistas alinhados aos interesses
da União Democrática Nacional – UDN, de base social e ideológica conservadora,
contudo internacionalista e partidária de um certo modelo de liberalismo econômico)
herdando déficit fiscal dos períodos anteriores, e balança comercial em declínio também
graças ao histórico de quedas nos preços do café. Contudo, o político dos “50 anos em
5” vai insistir no modelo de desenvolvimento rápido, implementar seu “Plano de Metas”
(baseado em estudos internacionais sobre o país e os pontos frágeis de sua economia, e
cujas ações deveriam ser realizadas em cadeia, na qual as anteriores estimulariam as
seguintes) diante de perspectiva de inflação e certeza de aumento da dívida pública,
além das greves sindicais advindas desses, e consenso político delicado. Encerra seu
mandato tendo estabelecido a prevalência da indústria automobilística, e com uma
trigésima primeira meta, a construção de uma cidade planejada no Planalto Central, a
nova capital do país, inaugurada em 21 de abril de 1960.

13
Vide texto de Celso Castro, “O Anticomunismo nas Forças Armadas”, disponível no sítio on-line
<http://cpdoc.fgv.br/producao/dossies/Jango/artigos/AConjunturaRadicalizacao/O_anticomunismo_nas_F
FAA>, acessado em 6 de agosto de 2015. Deve ser mencionado que os personagens, fatos históricos e
cronologias para o período 1956 – 1989 aqui referidos foram baseados em verbetes do Dicionário
Histórico-Biográfico Brasileiro da Fundação Getúlio Vargas – DHBB/FGV, disponível on-line no sítio
<http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/arquivo> (consultas a vários verbetes em diversas datas). Citações
pormenorizadas se afiguram irrealistas dado o volume de dados, e o conhecimento franco da maior parte
deles.
28

JK lidou também com as pressões de aliados internacionais no sentido de


permitir observadores do Serviço de Inteligência dos EUA in loco (o que veio a se
tornar prática comum e que perdura), e dar uma direção e sentido particulares à
economia produtiva brasileira (o que o indispôs com o FMI – posteriormente os EUA
vão garantir que as relações sejam normalizadas, e o Fundo fornecerá amplo
empréstimo para viabilizar várias das metas de JK). Propõe uma iniciativa chamada
Operação Pan-Americana – OPA, que assumidamente pretendia promover, como
alternativa a possíveis levantes comunistas e atritos com os EUA, uma série de reformas
“(...) práticas, eficazes e positivas (...)” visando o bem estar social e agindo na
promoção de um desenvolvimento econômico planejado para comunidades da América
Latina: o Presidente dos Estados Unidos eleito para dois mandatos entre 1953 e 1961,
Dwight David “Ike” Eisenhower (1890 – 1969) adota a proposta 14 ; John Fitzgerald
Kennedy (1917 – 1963), Presidente entre 1961 e a data de seu assassinato, diante do
precedente da Revolução Cubana de 1959, se apropria da ideia básica da OPA sob o
nome Alliance for Progress, e que assume um caráter assistencialista e financiador (sob
critérios duvidosos) de governos simpáticos, além de prever facilidades econômicas
para empresas que se instalem na área [BATALHA et al., 2009; VIZENTINI, 1993].

Jânio Quadros da Silva (1917 – 1992) assume em 1961, sob o Partido


Trabalhista Nacional – PTN, a Presidência de um Brasil mais urbano, com setores
médios relevantes que não se viam mais tanto representados dentro da lógica binária
getulismo versus anti-getulismo, atingidos pelo processo inflacionário e ansiosos pelo
saneamento da res publica. Seu vice-presidente foi o getulista reeleito João Goulart
(1919 – 1976), o Jango, do Partido Trabalhista Brasileiro – PTB. Jânio, que era
formalmente apoiado pela UDN, conquistou determinada autonomia das bases
partidárias, manifestando-se ainda em campanha a favor da reforma agrária, de uma
política externa plural e mais independente dos EUA, do fortalecimento da indústria
nacional e de companhias estatais, do controle da remessa de fundos para o exterior, da
“moralização” das práticas públicas e reparação das dívidas e da inflação brasileiras.

14
O Banco Interamericano de Desenvolvimento – BID, instituição supranacional não pertencente à
estrutura do Fundo Monetário Internacional – FMI ou do Banco Mundial, foi criado em 1959
nominalmente com o propósito de financiar iniciativas relacionadas aos objetivos nominais da OPA.
Analistas indicam que o peso do voto dos EUA dentro do Conselho do BID prejudica a equidade
decisória ou forma tendências quanto a políticas a serem implementadas. Fonte, sítio on-line
<http://www.gpeari.min-financas.pt/relacoes-internacionais/relacoes-multilaterais/instituicoes-
financeiras-internacionais/bancos-regionais-de-desenvolvimento/bid/o-que-e-o-bid>, consulta em 06 de
agosto de 2015.
29

Em aproximadamente sete meses, Jânio desenvolveu um projeto de política


nacional e internacional independentes, objetivando uma reestruturação administrativa,
e flertava com mudanças econômico-estruturais que se prometiam de impacto. Se se
tem dele um ícone do “sujeito desajeitado”, “mistura de Lênin com Carlitos”, se as
“reformas moralizantes” de início de mandato se aproximam do cômico sob olhos
atuais, deve-se lembrar de que Quadros falava a uma audiência que ansiava pelo
inusitado, pelo inovador e pelo novo (ela própria recente, em vários sentidos, mas
herdeira de determinadas tradições), e prometia como seu carro chefe a transformação
do modus operandi de toda uma classe de profissionais afeitos ao clientelismo,
politicagem e acostumados à condição de privilegiados sociais. Quando acenam que as
pretensões desse político (que chegou num período de quinze anos de vereador à
presidente, sem nem mesmo manifestar claro alinhamento formal às potências
internacionais ou às famílias políticas tradicionais, além de manter relações dúbias com
os movimentos sociais) podem ir além de reformas superficiais ou “controláveis”, há
uma crise institucional. Dissenso com o Congresso – aventaram um possível plano do
presidente para submeter as casas do Legislativo: atribuem a ele a pecha de golpista.
Quem conduziria o processo é o “nobre” jornalista, político e assassino de reputações
profissional preferido da UDN, Carlos Frederico Werneck de Lacerda (1914 – 1977).

Jânio Quadros, em ato de repúdio, apresenta Carta-Renúncia em 25 de agosto de


1961, dia seguinte às acusações proferidas no espaço de mídia cativo e de alcance
nacional à disposição de Lacerda. São inúmeras as interpretações do ato: que contava
que a Carta nunca seria entregue ao, ou considerada documento válido pelo Legislativo;
que esperava formar um núcleo de apoio coeso ao anunciá-la; que contaria com a
mobilização das Forças Armadas para garantir a legalidade de seu mandato; que a
população, dada sua suposta popularidade, o reconduziria à presidência através da
mobilização – em todos os possíveis casos, angariaria maior liberdade de ação, e até
talvez objetivasse a retração ou dissolução do Congresso, exceto se a inércia desses
setores e os interesses políticos tradicionais fossem determinantes. E foi o que houve.

Refugia-se na vida privada proclamando que (as sempre presentes) “forças


terríveis” e a falta de consenso político possível sob sua chefia do Executivo
inviabilizavam seu programa de governo. Supostamente teria optado por sacrificar seu
mandato, concedido pelo povo, em nome da “garantia do processo democrático”.
30

Jânio será um dos três presidentes cujos direitos políticos serão cassados na
instauração do Regime (acompanham-no JK e Jango). Retorna à vida pública
surpreendendo ao eleger-se Prefeito de São Paulo/SP em 1985, dessa vez pelo PTB, mas
que agora tinha contornos conservadores e elitistas inconfundíveis. As medidas
“chamativas” de caráter duvidoso, mas também repressivas e autoritárias, somadas a
dissensões com o funcionalismo público, marcam seu governo (houve também
iniciativas de reestruturação e modernização urbana). Encerra o mandato com baixa
aprovação popular e sob acusações de corrupção. Apoia Collor (cujas práticas identifica
com as suas próprias) em 1989, e retira-se permanentemente da vida pública em 1990.

Após a renúncia de Jânio Quadros, a normalidade da democracia brasileira é


mais uma vez perturbada por quadros “salvadores da pátria”. Jango passou quase a
integridade de seus dois mandatos de vice-presidente no período pós-Vargas (governos
JK e Quadros, de 1956 a 1961) em missões diplomáticas no exterior, manobra
necessária para se apaziguar possíveis elementos de contraposição: sua presença era
fonte constante de atrito com as Forças Armadas e camadas conservadoras desde a
época de Ministro do Trabalho de Vargas em 1953 – 1954 (ou mesmo antes, quando
envolvido em escândalo de financiamento peronista à candidatura Vargas15 em 1950),
que na ocasião articulou-se com quadros do Partido Comunista e sindicatos para
fomentar uma política trabalhista-nacionalista (sua proposta para a duplicação do salário
mínimo causou alvoroço entre o alto comando do Exército, que via nela, ao menos
assim o foi declarado no Manifesto ou Memorial dos Coronéis de 1954, possível causa e
motivo dos cortes no orçamento e contingente dessa Força, então e no futuro imediato).
Encontrava-se em missão político-comercial ao Leste Europeu e República Popular da
China em 1961, enquanto no Brasil elementos militares e da UDN traçavam planos para
evitar sua chegada à Presidência: os então ministros das Forças Armadas, Marechal
Odílio Denys (1892 – 1985), Almirante Sílvio Heck (1905 – 1988) e Brigadeiro Gabriel
Grün Moss (1904 – 1989), posicionaram-se imediata e formalmente contrários à posse.

15
A título de curiosidade, manchete de 16 de agosto de 1956 do Jornal Tribuna da Imprensa (sítio on-
line visitado em 31 de dezembro de 2015), associado à UDN através da pessoa de Carlos Lacerda:
<http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=154083_01&PagFis=29884&Pesq=>, consulta
em 6 de agosto de 2015.
31

O General Lott, no dia seguinte à renúncia, subscreve manifesto público (“às


forças vivas da nação, às forças da produção e do pensamento, aos estudantes e aos
intelectuais, aos operários e ao povo em geral”16) em defesa da legalidade constitucional
- no que se segue foi preso sob a autoridade do Exército. Imediatamente após a vacância
da Presidência e posicionamento dos Ministros Militares, setores das Forças Armadas,
políticos (principalmente do PTB) e populares, com base prática no Rio Grande do Sul e
capitaneados pelo então governador desse estado e cunhado de Jango, Leonel de Moura
Brizola (1922 – 2004), articularam-se numa Campanha da Legalidade e pressionaram
fortemente o Congresso Nacional no sentido de manter a normalidade sucessória.

E assim foi feito, não sem ressalvas: Jango, filiado ao PTB17, ao invés de ter a
aeronave que o trazia da China abatida em voo (como foi proposto na chamada
Operação Mosquito), é empossado em 08 de setembro de 1961 sob os termos da
Medida Provisória nº 04 de 02 de setembro desse ano, que estabelecia um regime
parlamentarista de governo. Esse deveria durar até plebiscito agendado para o início de
1965. Contudo, a UDN e o PSD tinham sofrido retração no número de parlamentares ou
de apoiadores, sendo a maior parte das Casas formada por alinhados ao PTB.

O objetivo de Goulart, dada sua base forte no Parlamento, foi adiantar a votação
pela volta ao Presidencialismo: uma campanha com esse objetivo teve início já em
1962. O resultado da ação dos diferentes apoiadores (e.g., Lott prestou declaração
favorável ao retorno ao regime Presidencialista ao Jornal do Brasil em setembro de
1962) foi a realização da consulta pública já em seis de janeiro de 1963, quando 90% da

16
Citação, a partir do documento original, disponível no sítio <http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/
dicionarios/verbete-biografico/henrique-batista-duffles-teixeira-lott>, acessado em 31 de dezembro de
2015.
17
O Partido Trabalhista Brasileiro – PTB foi criado em 15 de maio 1945 ante a queda do Estado Novo
para cooptar as então nascentes forças sócio-políticas que provinham das fábricas e aquelas geradas pelo
crescimento econômico e que não se sentiam representadas pelas outras duas principais legendas, o
Partido Social Democrático – PSD e a União Democrática Nacional – UDN, mas permaneciam
fortemente ligadas à imagem de “pai dos pobres” e “benemérito dos trabalhadores” de Vargas. Tratava-se
groso modo de uma “linha de defesa” dos poderes políticos vigentes contra o fortalecimento do Partido
Comunista, que voltara então à legalidade, e como um veículo “privilegiado” para as petições dos
trabalhadores e sindicatos. Getúlio Vargas permanece ligado ao PTB até sua morte, e o PTB permanece
ligado à figura de Getúlio até sua extinção pelo Regime Militar, em 1965. João Goulart, “considerado
protegido de Vargas”, ocupa a presidência do PTB de 1952 até o Golpe de 1964: durante esse período
reorganiza o partido (então fragmentado por dissensões internas), busca ativamente apoio e base nos
sindicatos, e chega a tentar empreender a organização formal e programática de um trabalhismo
brasileiro, que chegou a proclamar objetivos nucleares liberais em termos sociais e nacionalistas no
quesito econômico (algumas propostas, é necessário salientar, até a atualidade aguardando implementação
– como uma Reforma Agrária com planejamento sério, por exemplo, e outras eternas Reformas de Base).
Fonte: sítio on-line <http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-tematico/partido-trabalhista-
brasileiro-1945-1965>, acessado em 31 de dezembro de 2015.
32

população votante anui à volta de uma República Presidencialista. Até o final desse
período de República Parlamentarista, houve de fato três Gabinetes que tiveram por
Primeiros Ministros: Tancredo Neves (filiado ao PSD, que renuncia em junho de 1962
por ser contrário ao programa de governo), Francisco de Paula Brochado da Rocha
(vinculado ao PTB, renuncia em setembro de 1962 diante da negativa do Congresso de
votar as Reformas de Base), e Hermes Lima (também representante do PTB, sua gestão
perdura até, e garante a, realização do plebiscito de 1963). O processo de escolha era
por indicação por parte da Presidência de um nome, que em seguida era submetido pelo
ao Congresso para votação – certamente permitiu maior controle do Executivo pelas
Casas Legislativas, mas só enquanto setores de oposição nelas foram maioria ou bem
articulados.

Ainda em maio de 1962, Jango já havia oficializado como programáticas de seu


governo medidas menos “conciliatórias” interpartidárias (como as iniciais, que
incluíram ampla divisão das pastas ministeriais entre os diversos partidos, de certa
forma em detrimento ao PTB), e fortemente voltadas a reformas de base social (a ala
radical do PTB era representada por Brizola, que teve papel de destaque na mudança de
rumo do governo Goulart). Nas eleições de outubro de 1962, para governadores e
renovação de parte do Congresso, a UDN foi a grande perdedora, saindo fortalecido em
números o PTB. Contudo, o PSD e a UDN buscaram formar alianças, e juntos
garantiam 54% do Congresso e os governos dos principais Estados. Com o retorno do
Presidencialismo, Goulart reforça o papel do PTB dentro do governo, buscando um
consenso junto ao PSD que não prejudicasse o protagonismo do primeiro. Contudo, na
prática da política fazendária, as dissidências internas do Partido Trabalhista Brasileiro
se acentuavam: todo um grupo de ministros caiu devido a medidas francamente
alinhadas a interesses estrangeiros sob denúncia de Brizola, que crescia como figura e
representava o PTB radical. Jango, temeroso ou previdente, retorna a uma política de
alianças com o PSD, provocando embates com o próprio partido.

Congressistas dão novo fôlego à Frente Parlamentar Nacionalista – FPN


(multipartidária, foi criada em 1956 para denunciar medidas que favorecessem o capital
estrangeiro em detrimento do Brasil, ou que fossem contra o interesse do país ou
entendidas como antinacionalista), e a Ação Democrática Parlamentar – ADP (fundada
em 1961 durante o governo Quadros) prossegue suas ações em defesa dos interesses da
UDN e setores do PSD. Surgem as Frente de Mobilização Popular – FMP (movimento
33

fundado em 1962 por Leonel Brizola que se dedicava a arregimentar forças sociais e
políticas para pressionar ativamente pelas Reformas de Base) e a Frente Progressista de
Apoio às Reformas de Base (organizada em 1963 pelo ex-Ministro da Fazenda de
Jango, San Thiago Dantas, era composta por elementos moderados e voltada a garantir a
legitimidade das ações dos poder constituído e prevenir atentados a esse por opositores):
ambas disputavam posições de poder ou o apoio da Presidência, causando inevitáveis
fricções dentro do PTB.

Brizola, que se tornava figura notável, e as dissensões internas do PTB poderiam


ameaçar a posição de Goulart dentro do partido e mesmo a governabilidade, já
comprometida pela situação de recessão econômica e inflação crescente que herdou e
ainda não havia logrado sanear – contudo, conforme o programa assumido e dada a
proeminência que a ala radical manifestou, o Presidente decide empenhar-se na
reorganização de sua base fragmentada nos setores de esquerda e populares, através de
comícios e anunciando ações de real impacto. Para tanto implementa medidas, já
aprovadas pelo Congresso, de cunho nacionalista ou voltadas à distribuição de renda,
como a regulamentação da Lei de Remessas de Lucros para o Exterior e projetos para a
Reforma Agrária. As soluções de compromisso com o PSD foram se deteriorando, e
mesmo a união das diversas frentes do PTB, movimentos sociais e populares em torno
da figura de Jango não seria suficiente para conter um intento que que crescia,
organizava-se e tomava corpo abertamente ainda em 1963 entre seus opositores.

Numa sexta feira 13 de março de 1964, participa do chamado Comício da


Central do Brasil, na Guanabara. Esse teve ampla divulgação pública e na mídia
televisiva, e reuniu no palanque políticos, militares e personalidades alinhadas, e sob ele
lideranças sindicais, de entidades de classe e de movimentos sociais de relevo,
trabalhadores, estudantes, servidores públicos civis e militares. Reitera seu
compromisso com as Reformas de Base 18 , com um Estado democrático, com a
liberdade sindical, a concessão plena de direitos políticos (votar e se candidatar a cargos

18
São as reformas agrária, bancária, administrativa, universitária e eleitoral, que Goulart pretendia levar a
cabo no Congresso ainda naquele ano de 1964. Durante o Comício, por ocasião da fala de outros
convidados, assina no Palácio da Guanabara um Decreto criando a Superintendência da Reforma Agrária
(SUPRA), limite constitucional para suas ações nesse sentido, mas franca demonstração de compromisso.
Pode-se “contrapô-las” às reformas modernizantes que eram o objetivo das novas classes empresariais,
ortodoxas mas não tradicionais, e fortemente comprometidas com o capital internacional. Vide
<http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-tematico/comicio-das-reformas>, acesso em 31 de
dezembro de 2015.
34

públicos) a analfabetos e militares de baixa patente, anistia a civis e militares que


estivessem respondendo a processos por crimes políticos ou por atividades sindicais.
Embora outros estivessem programados, a importância desse comício era crucial: a
abertura dos trabalhos do Legislativo Nacional dar-se-ia dali a três dias – elementos do
Congresso vinham desde o início de seu mandato impondo dificuldades às votações
propostas, e uma demonstração de amplo apoio era necessária para convencê-los a fazer
concessões: ademais, em seu discurso salienta a ação de democratas de uma anti-
democracia que impediam o progresso das medidas reformadoras e nacionalistas. Essa
era uma figura a qual certamente muitos parlamentares não gostariam de se ver
associados.

Uma série de movimentações, legais e ilegais, simbólicas ou efetivas, populares


ou de grupos específicos, espontâneas ou articuladas com antecedência, tomam corpo
durante março de 1964. No dia 26 desse mês o governo se abstém de punir centenas de
marinheiros que participaram de um levante contramedidas restritivas de associação
impostas pela Força e se refugiaram no Sindicato dos Metalúrgicos do Rio de Janeiro.
Em 30 de março, discursa Goulart no Automóvel Clube no evento de comemoração do
aniversário de criação da Associação de Subtenentes e Sargentos da Polícia – ASSP:
abre-se uma brecha para o convencimento de que Jango se tratava de um “subversivo”,
que Goulart havia cooptado os seguimentos subalternos das Forças Armadas, que estava
em andamento a instauração de uma “ditadura comunista”, e outras conjecturas mais
imaginativas.

O levante militar, que consistiu na movimentação de tropas e articulação entre


comandos, ocorre entre 31 de março e 1º de abril, essa data formalmente designada
como do Golpe de Estado, pois consiste na declaração do Congresso de vacância da
Presidência, e manifestação de reconhecimento e apoio dos EUA ao novo governo.

João Goulart abandona a Capital Federal e segue para o Rio Grande do Sul. A
despeito de ter angariado a adesão de diversos setores (entre os militares havia diversos
comandos legalistas) e possuir base para ação no sul do país, Goulart prevê que sua
resistência desencadearia uma guerra civil – manifestações e greve geral em seu nome
não surtiram efeito prático. De Porto Alegre – RS, parte para asilo político no Uruguai,
onde chega em 4 de abril. Falece na Argentina, em 6 de dezembro de 1976, vitimado
por um ataque cardíaco conforme a versão oficial. Em ambos países se dedicou à
35

criação de gado (sua família era de estancieiros do Rio Grande do Sul), e foi convidado
a prestar consulta em assuntos político-econômicos a seus respectivos governos, mas
permanecia em articulação com grupos no Brasil19. Encerrou a vida acreditando que
brevemente retornaria ao país. Seus restos mortais foram sepultados em São Borja – RS,
sem as honrarias costumeiramente atribuídas, sob censura da imprensa, mas com a
presença de simpatizantes e antagonistas.

O Golpe foi em sua superfície uma resposta à aproximação do governo a grupos


que representariam o “perigo vermelho” (que caracteristicamente parecia amedrontar de
modo mais vigoroso os setores médios tradicionalistas) e a propostas de políticas
econômicas socializantes (embora, se nomeadas em voz alta, dificilmente se distingam
de medidas de caráter perfeitamente liberal voltadas ao dinamismo da economia
doméstica, e de protecionismo econômico nacionalista).

A sublevação, que presumivelmente “colocaria ordem na casa” restituindo os


poderes aos órgãos de direito tão logo que possível, transforma-se em um Regime
Ditatorial que promoveu a suspensão das garantias constitucionais de liberdade
individual e durou mais de duas décadas, imprimindo marcas complexas nas gerações
que vivenciaram esse período – de amplo espectro, da apatia e despolitização à luta
armada, passando por diversos níveis de doutrinação / confrontação.

Francamente alinhados ao capital estrangeiro, os planos econômicos do novo


regime eliminam também as medidas protecionistas, e a tendência já quase consolidada
no país de uma política externa com certa independência é “domada” – ao final do
regime, o endividamento externo havia se multiplicado (devido à soma de capitação
direta de capital estrangeiro e crises mundiais com consequente elevação dos juros
cobrados), a classe empresarial média era opaca e dependente (salvo raras exceções,
cuja maior parte foi devidamente desestimuladas), e a inflação e uma recessão gestada

19
“Frente Ampla”: fundada por Carlos Lacerda, inicialmente ferrenho defensor e articulador civil para a
Intervenção, por ocasião do progressivo recrudescimento do Regime (e que também não correspondeu “a
contento” às suas pretensões) – participavam ainda dela JK e Goulart (ambos exilados), e os políticos que
se mantiveram coligados aos três, além de militares legalistas e outros. Propunha a volta da Democracia
constitucional, e criada em 28 de outubro de 1966, foi extinta pelo ministro da Justiça Luís Antônio da
Gama e Silva (1913 – 1979, jurista redator do AI5), através da Portaria nº 177, de 5 de abril de 1968.
36

em anos de crescimento fátuo à base de obras faraônicas e planos de incentivo ao


consumo financiadas por recursos emprestados batiam vigorosamente à porta.

Quando do 1º de abril de 1964, o General Lott novamente torna pública


indignação com os companheiros de armas que se insurgiam contra o poder legalmente
constituído: contudo, chegou a tentar a Presidência da Guanabara pela coligação PTB-
PSD nas tumultuadas eleições de 1965, mas sua rejeição era unanime entre a elite
política e setores militares – retira-se da vida pública nesse mesmo ano. A importância
de citar o nome de Henrique Batista Lott não se limita a seus posicionamentos
associados à legalidade democrática: foi também um dos elementos que, dada sua
projeção dentro das Forças Armadas e na história política do país (ainda que sua figura
nunca tenha obtido unanimidade dentro do PTB, partido pelo qual candidatou-se à
presidência em 1960), corrobora com o processo de reabertura e em 1979 declara “a
necessidade e a importância da anistia”. Precisa-se dizer, afirmar que o processo que
culmina na Anistia de 1979 beneficiou a “ambos os lados” é ignorar as características
do poder nominalmente constituído e seu monopólio legal sobre o uso da violência e a
amplitude de seu acesso à informação, o que ensejou durante o Regime atentados aos
Direitos Humanos individuais e crimes de guerra e contra a humanidade praticados
(como extermínio de grupos indígenas com armas químicas20, por exemplo). Embora a
história dê contínuas chances de se revisar e reinterpretar o passado, os arquivos
criteriosamente destruídos, os suicídios forjados, os crimes ignorados, as pessoas
simplesmente “desaparecidas” (que levam com elas suas memórias) formam a fumaça
que impede a visão da figura do monstro em sua totalidade.

Em nota datada de 12 de novembro de 201321, a Comissão Nacional da Verdade


– CNV reafirma a legitimidade constitucional do mandato do Presidente João Goulart e
a aprovação deste pela maior parte da sociedade. Estabelece como verdade histórica que
o mesmo foi deposto por uma conspiração da qual participaram elementos civis e
militares, e que essa se buscava se legitimar através de uma “ideologia de segurança
nacional”. Confirma que Jango, parentes e afiliados estiveram sob vigilância de órgãos

20
Vide o Texto Quinto do “Relatório da CNV Volume II – Textos Temáticos”. Os relatórios produzidos
pela CNV estão repletos de levantamentos semelhantes, sendo recomendável sua leitura atenta por parte
de qualquer brasileiro que cogite a existência de “intervenção militar constitucional”, “Revolução Cívico-
Militar” e outras falácias do gênero – podem ser encontrados para download gratuito em
<http://www.cnv.gov.br/>.
21
Vide sítio on-line <http://www.cnv.gov.br/textos-do-colegiado/593-jango-era-majoritariamente-
apoiado-pela-popula%C3%A7%C3%A3o.html>, acessado em 31 de dezembro de 2015.
37

de inteligência e repressão do novo regime brasileiro, e daqueles de governo de países


colaboracionistas. Relata que se deve trabalhar para “o esclarecimento das reais
circunstâncias de sua morte” (assunto de Grupo de Trabalho da CNV em conjunto com
a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República – SDH/PR, mas cujo
resultado foi inconclusivo diante do tempo entre sepultamento e exumação e perícia22).
Numa quinta-feira, dia 14 de novembro de 2013, recebe finalmente honras fúnebres de
Chefe de Estado, o que foi negado à sua memória durante o período de exceção. Os
restos mortais de João Marques Belchior Goulart (1919 – 1976), após cuidadosa
exumação executada por legistas de diversas nacionalidades no cemitério Jardim da Paz
de São Borja - RS, onde jazia, foram levados à capita nacional e carregados em ombros
de militares das três Forças quando da cerimônia em sua honra, da qual participou a
Presidente da República Dilma Rousseff23.

Permite-se aqui afirmar, sem perspectiva de consenso, que as altas patentes das
Forças Armadas do Brasil “padeceram” (se questiona se por inépcia dos legisladores e
administradores, oportunismo, corporativismo ou certo “entusiasmo de caserna”
consolidado em teorias geopolíticas na Escola Superior de Guerra – ESG) e durante
muito tempo, do equívoco de “(...) defender a Pátria (...)” também dentro das fronteiras
(políticas, no sentido geográfico e social da palavra) do Estado Nacional. Embora tanto
24
a Proclamação da República como o Golpe Militar de 1964 possam ser
compreendidos (vexata quaestio) segundo a ação ou influência (direta ou indireta) de
interesses e forças políticas (internas e externas) e socioeconômicas poderosas (existe
aqui a tentação inevitável de mencionar-se o termo forças ocultas que as interpretações
sobre as Cartas-Testamento de Getúlio Vargas popularizaram), podendo ter sido a ação
de membros oportunistas (ou mesmo títeres) das classes militares, era a essas

22
Vide sítio on-line <http://www.cnv.gov.br/images/documentos/Capitulo2/Nota%204300092_003341
_2014_69.pdf>, acessado em 31 de dezembro de 2015.
23
Vide sítio on-line <http://blog.planalto.gov.br/corpo-de-joao-goulart-recebe-honras-de-chefe-de-
estado/>, acessado em 31 de dezembro de 2015.
24
Poder-se-ia citar como exemplos de organizações criadas com a intenção clara de influenciar o rumo do
quadro político nacional segundo interesses específicos após 1954: o Instituto de Pesquisas Sociais –
IPÊS, fundado em 1961 por representantes do empresariado e que possuía suas próprias concepções de
medidas econômicas modernizantes; membros do recém dissolvido – após uma Comissão Parlamentar de
Inquérito – Instituto Brasileiro de Ação Democrática – IBAD, nascido em 1959 da união de interesses de
elementos nacionais e internacionais, com grande influxo de recursos desses últimos, descontentes com as
políticas de JK; Conselho Superior das Classes Produtoras – CONCLAP, e organizações classistas
equivalentes. Já se passou também o tempo da “negação polida” sobre a influência e auxílio diretos de
representantes de interesses geopolíticos dos EUA nos episódios que antecederam e sucederam 1964.
Vide sítio on-line <http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-tematico/revolucao-de-1964>,
acessado em 31 de dezembro de 2015.
38

instituições associada uma herança simbólico-ideológica e uma práxis antiquada que


literalmente impedia que o Estado Nacional possuísse uma estrutura de defesa moderna,
eficiente e politicamente neutra. Membros das FA foram atores políticos costumeiros
nos períodos republicanos anteriores à Nova República: na República Velha ou
Primeira República, as Armas são utilizadas para suprimir revoltas populares;
padeceram de “crises de identidade” marcantes no Tenentismo e com a aproximação de
militares às ideais comunistas; na Era Vargas, intervêm para o fim do Estado Novo; na
República Populista postam-se costumeiramente contra do avanço das correntes
getulistas e do “espectro vermelho”. Em 1964, assumem o protagonismo formal da
História, à semelhança de outras Ditaduras que vieram ou viriam a se instalar na
América Latina.

2.1.1. Movimento Marcha da Família com Deus Pela Liberdade25

Patrick Peyton (1909 – 2002) – o sacerdote da “Cruzada do Rosário em


Família”, dispositivo criado em 1942 e que ainda possui representações pelo mundo,
fomentado pela Inteligência dos EUA (principalmente entre 1948 e 198526) para afastar
famílias católicas de ideologias de esquerda – chegou ao Brasil em fins de 1963:
adaptado às culturas latino americanas, o movimento “Family Rosary Cruzade” ou
“Holy Cross Family Ministries” foi como parte do pacote de auxílio aos grupos
descontentes com as medidas propostas pelo governo Goulart e suas políticas interna e
externa. Na ocasião, segundo o Censo de 1960, mais de 90% da população era Católica
e Peyton, “padre hollywoodiano”, já era acostumado ao espetáculo, ao mass media, a
táticas de propaganda, contando por vezes com a presença de astros e estrelas em suas
pregações e do grande empresariado agindo em seu apoio.

É interessante que se observe que a cúpula da ICAR brasileira era alinhada às


propostas sociais de Goulart, e nisso deve-se incluir o Núncio Apostólico do Vaticano,
Dom Armando Lombardi, que seguia a linha de libertação e igualdade social propostas
pelo Papa João XXIII. O Secretário Geral da CNBB, Dom Hélder Câmara (1909 –
1999), e a maioria do corpo de Bispos e Arcebispos possuía o mesmo ponto de vista,
reforçado pelo Arcebispo de São Paulo/SP, Cardeal Carlos Carmelo de Vasconcelos

25
Fonte, sítios on-line <http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-tematico/cruzada-do-rosario-
em-familia> e <http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-tematico/marcha-da-familia-com-
deus-pela-liberdade>, acessados em 7 de janeiro de 2016.
26
Vide artigo on-line <http://www.snh2011.anpuh.org/resources/anais/14/1308095151_ARQUIVO_
ArtigoAnderson.pdf>, acessado em 7 de janeiro de 2016.
39

Motta (1890 – 1982), o que impedia a formação de um grupo coeso anti-Goulart.


Obviamente, setores mais conservadores, tradicionalistas, integralistas ou patrocinados
por interesses específicos eram fortemente contrários ao governo: a situação interna da
ICAR replicava a da política.

A Cruzada foi elemento de mobilização para os católicos descontentes,


formados por grupos sociais tradicionais, empresariado ou classe média, e teve especial
apelo junto a certas organizações de mulheres – o então Arcebispo do Rio de Janeiro (e
também do Ordinariato Militar do Brasil) Dom Jaime de Barros Câmara (1894 – 1971)
começou a propalar os “milagres pela fé” de Padre Peyton, que em seguida já estava em
exercício no Rio, fomentando sua campanha junto aos meios de comunicação através
dos recursos financeiros de que dispunha. Deu novo alento à Campanha da Mulher pela
Democracia – CAMDE, movimento criado em 1962 pelo IPÊS no Rio de Janeiro e com
relevante financiamento internacional que tinha por objetivo arregimentar mulheres
católicas segundo as propostas daquela organização e instituir um “padrão de bondade”
para as classes abastadas baseado numa “caridade de espetáculo” (visita a favelas,
campanhas de arrecadação de agasalhos, alimentos) que visava, além imprimir
determinados pontos-de-vista aos “necessitados”, dispensar qualquer compromisso com
mudanças efetivas – entre outras mobilizações convidou que as mulheres de família
acendessem velas às janelas junto às vias por onde passaria João Goulart a caminho do
Comício da Central, e foi elemento ativo nas organizações das Marchas. Entidade
análoga à CAMDE era a União Cívica Feminina de São Paulo – UCF/SP, igualmente
constituída em 1962, formada por esposas do empresariado e militares. Pode-se citar
também a Liga da Mulher Democrata – LIMDE de Belo Horizonte/MG (suas
participantes impediram um comício de Leonel Brizola em Belo Horizonte/MG), criada
por articuladores do IPÊS em 1963 [SESTINI, 2007]. Após a consolidação do Regime
Militar, essas organizações leigas (estudantis, femininas, de classe), formadas sobre as
mesmas bases e com objetivos semelhantes ao redor do Brasil, desvanecem.

As Cruzadas deram o início às suas manifestações em forma de passeata


partindo da Igreja da Candelária até o Ministério da Guerra, na Guanabara, com adesão
entusiástica dos bispos ligados à ortodoxia (como os organizadores do Movimento
Sociedade, Tradição, Família e Propriedade) e apoio dos “piedosos” grupos adversos
ao governo: em pouco tempo, já se havia organizado comitês locais que repetiam o
40

mote “família que reza unida permanece unida”, a fidelidade mariana de Peyton e suas
exclamações contra o “comunismo ateu”.

Passeatas e manifestações conclamadas por membros do clero católico, setores


sociopolíticos, entidades femininas (notavelmente a CAMDE, a UCF/SP e análogas) e
outros movimentos sociais adversos ao governo após o Comício da Central tiveram
início em 19 de março de 196427, na cidade de São Paulo/SP28: diante da necessidade de
uma denominação aproveitou-se do mote já fixado e do “espírito” anticomunista, e
chamaram-na Marcha da Família com Deus pela Liberdade, contando com a
participação de 300 a 600 mil pessoas. O fenômeno se repetiu em várias capitais e
cidades brasileiras. A Marcha de 2 de abril de 1964 na Guanabara, com cerca de um
milhão de pessoas, foi chamada Marcha da Vitória, e assim foram denominadas as
seguintes. Foram ao todo 69 Marchas em capitais e grandes cidades brasileiras [idem].

Após a consolidação do novo governo, os serviços do padre Patrick Peyton não


eram mais necessários nem interessantes ao clero tradicionalista, e a Cruzada arrefeceu
– nas vezes que veio ao Brasil durante o Regime, seja como padre ou agente de
inteligência dos EUA, foi bem recebido.

Não consta em seus arquivos disponibilizados na rede que a CNBB tenha


emitido nota ou documento conjunto oficial de apoio ao Regime. Contudo, depoimentos
asseguram que membros da Congregação apoiaram não só as Marchas, como foram
compassivos para com o Golpe, exaltando-o como salvaguarda dos “valores do
cristianismo” e enfrentamento da “ameaça comunista” 29 , o que beneficiou em um
primeiro momento principalmente determinados setores interessados em “manter a
ordem” entre a população, e em viabilizar certo modelo de projeto econômico-social.

Os elementos da ICAR no Brasil que se identificavam com a esquerda política –


membros da Igreja Católica que eram profundamente ligados a questões operárias,
campesinas, indígenas, educacional, de desenvolvimento humano, cultural e econômico
– não escaparam às diversas formas de ataques engendrados pelos órgãos de inteligência

27
Dia de São José, padroeiro da família e dos trabalhadores no Catolicismo.
28
À frente (literalmente e como organizadora) da primeira Marcha estava Dona Leonor Mendes de
Barros (1905 – 1922), conhecida por sua obra assistencialista e por ser a esposa do então governador
desse estado, Adhemar Pereira de Barros (1901 – 1969). Os direitos políticos desse seriam caçados em
1966, pelo Regime cuja ascensão apoiou: Adhemar morreu em Paris, em 1969, durante seu exílio.
29
Vide nota no sítio on-line <http://www.cnbb.org.br/outros/dom-aloisio-roque-oppermann/13986-a-
igreja-na-revolucao-civico-militarn>, acessado em 6 de agosto de 2015.
41

ou grupos pertencentes ou associados ao governo ditatorial: esses incluíam desde


difamação pessoal, espionagem e/ou invasão de casas e propriedades do clero ou da
Igreja, processos, intimações, censuras e proibições (desde para publicações acadêmicas
a funções pastorais), interrogatórios, detenções e prisões, sequestros, torturas, expulsões
do país e mesmo assassinatos. Nesse sentido, valiosa e específica análise foi levada a
cabo pela Comissão Nacional da Verdade – CNV e encontra-se disponível em forma de
documento particular30.

Entre os anos de 1964 a 1969 há o recrudescimento do Regime, tendo por marco


característico o Ato Institucional nº 5, de 13 de dezembro de 1968, que na prática
extingue as liberdades políticas e individuais de qualquer certo, provável ou mesmo
possível atual, passado ou futuro opositor ao Sistema. O AI-5 torna o elemento de
ilegalidade no uso da força pelo Estado, legal: sequestros transformam-se em prisões
preventivas, torturas em interrogatórios, assassinatos em suicídios, crimes contra a
humanidade em políticas públicas, vítimas em algozes. Os dotes mágicos desse Ato
foram devidamente investigados pela CNV, criada pela Lei 12.528, de 18 de novembro
de 2011, e instituída em 16 de maio de 2012, que produziu ao longo de dois anos e sete
meses de atividade milhares de páginas e reuniu outros milhares de documentos, mas
que só atingiram a superfície do que foi o período de exceção brasileiro31.

Ranieri Mazzilli (1910 – 1975) assume interinamente a presidência entre 2 e 15


de abril de 1964 – assim como o fez durante a crise sucessória de Quadros, entre 25 de
agosto e 7 de setembro de 1961. Mazzilli, político paulistano eleito deputado federal em
1959 pelo PSD era o então presidente da Câmara dos Deputados (permaneceu na
presidência da Casa entre 1959 e 1965, exercendo mandato de deputado federal entre
1951 a 1966, após ter ocupado uma série de caros públicos de destaque no Estado da
Guanabara, então Capital da República, tais como presidente da Caixa Econômica
Federal – 1947 –, do Banco da Prefeitura do Distrito Federal – 1948 – e Chefe de
Gabinete do Ministro da Fazenda no governo de Eurico Gaspar Dutra – 1949 a 1951). É

30
Vide <http://www.cnv.gov.br/images/pdf/relatorio/Volume%202%20-%20Texto%204.pdf>, acessado
em 7 de janeiro de 2016.
31
Todos os documentos produzidos pela Comissão Nacional da Verdade podem ser acessados através do
sítio on-line <http://www.cnv.gov.br/>.
42

em 9 de abril de 1964 que é assinado o Ato Institucional 32 , depois chamado Ato


Institucional Número Um ou AI-1: a despeito de seu cargo formal, Mazzilli teve pouca
ou nenhuma influência no Ato, que foi iniciativa e subscrito pela junta militar dos
Comandantes em Chefe das três Forças Armadas, composta pelos General do Exército
Artur da Costa e Silva (1899 – 1969), Tenente-Brigadeiro da Aeronáutica Francisco de
Assis Correia de Melo (1903 – 1971) e Vice-Almirante Augusto Hamann Rademaker
Grünewald (1905 – 1985), representando a Marinha. Os objetivos do AI-1, primeiro dos
dezessete outorgados entre 1964 e 1967, eram, entre outros:

 Estabelecer que o Brasil vivia um período pós-revolucionário, e que à


"Revolução Vitoriosa" cabia papel legislativo, apoiada na “Autoridade do
Povo”, contrário à “bolchevização” do Brasil. A nota que se deseja passar no
documento é que a normalidade democrática vigorará tão logo se drene o
“bolsão comunista” que se instalou nas altas esferas administrativas;
 Garantir a vigência das Constituições Federal e Estaduais, mediante
modificações;
 Estabelecer eleições indiretas para a Presidência e Vice para mandado
complementar a ocorrer em dois dias (úteis) após a publicação do Ato. Datar a
próxima eleição para Presidente e Vice (estabelecida para 31 de janeiro de
1966);
 Dar nova disciplina ao envio de Emendas à Constituição e Projetos de Lei ao
Congresso pela Presidência (aumenta os poderes de legislar do Executivo,
especialmente sobre a despesa pública);
 Estabelecer precedentes legais para a instauração de “estado de sítio”;
 Suspende por seis meses a vitaliciedade e estabilidade de cargos públicos de
todas as esferas: medida necessária a se expulsar os elementos
"contrarrevolucionários" civis ou militares – da mesma forma a junta que
subscreve reserva-se a prerrogativa de suspender os direitos políticos individuais

32
Para a redação original dos Atos Institucionais, vide sítio on-line <http://www4.planalto.gov.br/
legislacao/legislacao-historica/atos-institucionais>, acessado em 07 de janeiro de 2016. Os assim
chamados Atos Institucionais e Atos Complementares (esses últimos utilizados em conjunto ou associados
com AIs ou Decretos-Lei, em matérias de interesse da “segurança nacional”) foram ferramentas de
legislar do Executivo Nacional, sem qualquer interferência do das Casas do Congresso e “imunes ao
controle do Poder Judiciário” – vide Parecer de 1969 de Carlos Medeiros Silva, Ministro aposentado do
Superior Tribunal Federal, disponível em sítio on-line <http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/
rda/article/view/32163>, acessado em 07 de janeiro de 2016.
43

ou caçar mandatos de todas as esferas e poderes, sem qualquer tipo de


“apreciação judicial desses atos”.

O Marechal do Exército Humberto de Alencar Castelo Branco (1897 – 1967) foi


Presidente do Brasil entre 15 de abril de 1694 e 15 de março de 1967, tendo por Vice
José Maria Alkimin (jurista e político mineiro pertencente à esfera de influência da JK e
favorável ao Golpe, 1901 – 1974), ambos eleitos pelo Congresso em 11 de abril de 1964
para terminar o período presidencial em vigor. Castelo Branco elimina o registro dos
partidos políticos de então com o Ato Institucional número Dois, AI-2, de 27 de outubro
de 1965 (Os ditames do AI-2 e AI-4 estabelecem na prática o bipartidarismo, dado que
somente os estatutos de dois partidos são convalidados. Agrupam aqueles que ainda não
tiveram seus direitos políticos suspensos a Aliança Nacional Libertadora – ARENA,
partido da situação, e o Movimento Democrático Brasileiro – MDB, uma “oposição
moderada”). Além disso, o AI-2 estende a competência de tribunais militares para julgar
civis em caso de “(...) crimes contra a segurança nacional ou as instituições militares”.
Como era de praxe fixar período para as determinações dos AIs vigorarem, o AI-2
reedita alguns artigos e colocações do anterior, e agenda as eleições seguintes "em data
a ser fixada" que não ultrapasse 6 de outubro de 1966, estabelecendo a inelegibilidade
do presente chefe do Executivo Nacional (medida necessária para se estabelecer a
diferença entre ditadura personalista e o “Governo Revolucionário” brasileiro, ou
regime ditatorial classista).

O Artigo Institucional Número Três, AI-3, de 5 de fevereiro de 1966, estendendo


aos Executivos estaduais o sistema de eleições indiretas estipulado no AI-2, com as
devidas adaptações: o Legislativo de cada estado deve deliberar sobre chapas conjuntas
(governador e vice, indissociavelmente) e eleger uma delas. Os nomes dos prefeitos das
capitais seriam escolhidos e submetidos pelo governador eleito à Assembleia
Legislativa – “a anuência é recomendável”. Prefeitos das demais cidades seriam
escolhidos via eleições diretas com maioria simples. O AI-3 também dá novas datas
para eleições em diversos níveis.

O Ato Institucional Número Quatro – AI-4, de 12 de dezembro de 1966,


convoca o Congresso Nacional (fechado desde outubro desse ano) para “discussão,
votação e promulgação do projeto de Constituição apresentado pelo Presidente da
República” (ou seja, dá aos membros das Casas status de Assembleia Constituinte): a
44

Constituição de 1946 “já não atende às exigências nacionais” e urge ter-se uma que
“represente a institucionalização dos ideais e princípios da Revolução”. A convocação
resultou na promulgação pelas Mesas das Casas do Congresso Nacional da Constituição
da República Federativa do Brasil de 1967, em 24 de janeiro de 1967, que vigorou entre
15 de março daquele ano (anda que modificada pela Emenda Constitucional nº 1, de 17
de outubro de 1969, e outras) até a Constituinte de 1988.

Na ocasião da “quase outorga” da Constituição de 1967, o Congresso já se


encontrava livre de oposição real, dado que a prática de suspensão de direitos políticos e
cassação de mandatos vigorava, e a organização “bipartidária” favorecia ao governo.
Convocá-lo foi manobra que serviu puramente para dar-se ares de legalidade
republicana à nova constituição e ao Regime. Castelo Branco ainda promulgou
ferramentas essenciais ao prosseguimento da Ditadura, como a Lei de Imprensa (Lei nº
5.250, de 9 de fevereiro de 1967, que “Regula a liberdade [sic] de manifestação do
pensamento e de informação”) e a primeira versão do Regime para a Lei de Segurança
Nacional, o Decreto-Lei nº 314, de 13 de março de 1967. Por ocasião da posse do
próximo presidente, os AIs já teriam perdido efeito, mas todo um aparato jurídico já
havia sido organizado para dar sustentação às pretensões “revolucionárias” – além
disso, as mudanças nos trâmites judiciários, que permitiam à Justiça Militar julgar e
penalizar civis por crimes específicos, e os condicionamentos sociais (demissões
sumárias de servidores públicos, perda da garantia de estabilidade empregatícia no setor
privado, fechamento de organizações trabalhistas, estudantis, acadêmicas, intervenções
em sindicatos e organizações de classe), e a cassação de mandatos e direitos políticos
“em massa” completavam um quadro “favorável” ao novo governo.

Ainda durante o governo Castelo Branco pode-se observar a prevalência do


modelo automotivo, que priorizava a construção de grandes extensões de rodovias
(como a maior parte das obras de porte dos Governos Militares, levadas a cabo com
capital estrangeiro – Banco Interamericano de Desenvolvimento – BID, que possui
vínculo não formal com a Organização dos Estados Americanos – OEA, órgão a que se
atribui responsabilidade durante o período por um disciplinamento das economias da
América Latina; Banco Mundial; Fundo Monetário Internacional – FMI; iniciativa
privada: grande capital nacional e internacional – o que aponta também para a
internacionalização da economia), facilidades fiscais e tributárias para fabricantes (no
geral grandes montadoras internacionais), e linhas de crédito para o consumo (que se
45

estendia a automóveis, eletrodomésticos e outros itens) viabilizadas principalmente para


a classe média.

Aproximando-se o final do primeiro governo presidencial-militar, há uma


disputa interna nas Forças Armadas sobre o caminho a seguir. O “Grupo Sorbonne” da
Escola Superior de Guerra (alusão ao alto nível dessa unidade) – dos quais muitos dos
seus oficiais se especializaram durante a II Guerra Mundial em Fort Leavenworth War
School, EUA – havia desde o início sido dividido em forças favoráveis à uma
intervenção “estabilizadora”, e a chamada “Linha Dura”. O Ministro da Guerra de
Castelo Branco de 1964 a 1967 era o representante dessa última facção no governo, e
assume ele próprio a faixa em 15 de março de 1967, eleito com 294 votos da ARENA, e
abstenção total do MDB. Humberto Castelo Branco havia iniciado conversações
visando o arrefecimento do regime, mas falece em acidente aéreo pouco convencional
em 18 de julho de 1967.

O Marechal do Exército Arthur da Costa e Silva é o segundo Presidente do


período de exceção, tendo por vice Pedro Aleixo (jurista e político mineiro, 1901 –
1975). As esperanças de redemocratização cresceram tanto quanto os atritos populares e
de políticos civis com os militares. Márcio Moreira Alves (1936 – 2009), então
deputado federal pelo MDB (eleito em 1966 pelo estado da Guanabara, inicialmente
favorável ao golpe, afasta-se do Regime com o AI-1), discursa no plenário do
Congresso Nacional no início de setembro de 1968 convidando à sociedade ao boicote
às paradas militares da “Semana da Pátria” e solicitando às jovens que se negassem a
dançar com cadetes em protesto ao Regime. Isso foi motivo suficiente para que a
Presidência, na pessoa do Ministro da Justiça Luís Antônio da Gama e Silva33 (1913 –
1979), solicitasse autorização às Casas para processar o deputado (a Constituição de
1967 preservava direito ao Parlamento de julgar a procedência de acusações a seus
membros), o que foi negado em 11 de dezembro de 1968 – o ditador em exercício
estabeleceu o recesso da Câmara, e Moreira Alves achou por bem exilar-se. Em 13 de
dezembro de 1968 é assinado o Ato Institucional Número Cinco, o AI-5. O AI-5 (e a
posterior Emenda de 1969 à Constituição de 1967) marca o recrudescimento do regime.
Dispõe sobre os poderes do Presidente da República de:

33
Jurista e professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo – USP, também principal
redator do AI-5. Utilizou sua influência no Regime Militar para denunciar como “esquerdistas” e
perseguir colegas e outros professores e alunos da USP.
46

 decretar estado de sítio, nos casos previstos na Constituição Federal de 1967;


 decretar intervenção federal nos estados e municípios, sem os limites
constitucionais;
 decretar recesso do Congresso Nacional, das Assembleias Legislativas e das
Câmaras de Vereadores;
 suspender direitos políticos por dez anos, e restrição ao exercício de qualquer
direito público ou privado;
 caçar de mandatos eletivos de todas as esferas;
 suspender prerrogativas de funcionários públicos civis e militares, de quaisquer
esferas executivas e militares;
 suspender a garantia do habeas corpus para determinados crimes;
 excluir da apreciação judicial atos praticados de acordo com suas normas e Atos
Complementares decorrentes.

O AI-5 não estabelece prazo de sua própria vigência, diferente dos anteriores. Ao
assinar-se o documento, assume-se que o Brasil não é de jure e de facto um país com
garantias constitucionais vigentes.

Costa e Silva admite a redação de uma Emenda Constitucional que terminaria a


vigência do AI-5 e retornaria o Brasil a uma república de direito, prevista para setembro
de 1969: é afastado do exercício da presidência por motivo de doença (possivelmente
um acidente vascular cerebral) em 31 de agosto desse ano (faleceria no 17 de
dezembro). O Vice, civil e declaradamente favorável à revogação do AI-5 e ao retorno
do regime constitucional, é impedido de assumir a Presidência por uma junta militar.
47

2.2. Os Anos de 1969 a 1978

A anuência ao novo governo e seus métodos entre os bispos nunca foi uma
certeza, e degrada-se com o tempo, mesmo diante da opinião pública34. Enfrentando a
realidade inegável da situação político social, a CNBB se posiciona oficialmente,
através de diversas notas em apoio aos presos políticos e denunciando arbitrariedades35:
o projeto oficial de uma Cristandade brasileira vai se esvaindo e dando lugar a uma
Igreja para os Pobres, que tem por princípio a defesa dos Direitos do Homem. Os
Planos Pastorais Conjuntos previstos para os períodos 1966 – 1970, 1971 – 1974
(reformulação do anterior segundo os posicionamentos do CVII e das Reuniões da
Conferência Episcopal Latino-Americana – CELAM), e Diretrizes Gerais para a Ação
Pastoral para os interstícios 1975 – 1978, 1979 – 1984 são igualmente marcados por
diretivas para voltadas para a missão, a inclusão, a uma evangelização atuante e
aculturada.

No primeiro dia de setembro 1969 assume a chamada “Junta Governativa


Provisória de 1969”, conhecida por “Segunda Junta Militar”, que permaneceu guiando o
Executivo Nacional até 30 de outubro do mesmo ano. Era formada pelos Ministros das
Forças Armadas do governo Costa e Silva, a saber, General de Exército Aurélio de Lira
Tavares (1905 – 1998, ex-Comandante da Escola Superior de Guerra que usada o
pseudônimo “Adelita” para escrever poesias, foi eleito membro da Academia Brasileira
de Letras em 1970), Vice-Almirante da Marinha Augusto Grünewald (veterano da II
Guerra, fez suas especializações militares nos EUA), e Tenente-Brigadeiro da
Aeronáutica Márcio de Sousa Melo (1906 – 1991) – nunca foram eleitos ou tomaram
posse: foram encarregados da Presidência mediante alteração das “regras do jogo”
levada a cabo através do Ato Institucional Número Doze36 – AI-12, de 1º de setembro

34
Vide nota no sítio on-line <http://www.cnbb.org.br/artigos-dos-bispos-1/dom-zanoni-demettino-castro-
1/13893-50-anos-de-luta-pela-democracia>, visitado em 6 de agosto de 2015.
35
Vide Declaração oficial no sítio on-line <http://www.cnbb.org.br/imprensa-1/noticias/13944-
declaracao-por-tempos-novos-com-liberdade-e-democracia>. Especificamente, vide o documento
aprovado pela XV Assembleia Geral da CNBB, “Exigências Cristãs de uma Ordem Política” (1977),
disponível no sítio on-line <http://www.cnbb.org.br/imprensa-1/noticias/13944-declaracao-por-tempos-
novos-com-liberdade-e-democracia>, e as citações deste, visitados em 6 de agosto de 2015.
36
Os Atos Institucionais de números Seis a Onze foram editados na vigência do governo Costa e Silva e
trataram de "assuntos menores", como alterações à Constituição de 1967, questões administrativas da
esfera dos Executivos estaduais e municipais, e retificação ou ratificação de medidas anteriores. O AI-10,
de 16 de maio de 1969 é talvez aquele que desperte maior interesse ao tratar do agravamento de penas, ou
penalizações acessórias, para aqueles que perderiam direitos políticos ou teriam mandatos caçados,
representando a disposição do Regime em não retroceder realmente.
48

de 1969, que delegava aos mesmos poderes temporários para governança no


impedimento do Presidente, anulando o papel do Vice.

Sob os auspícios do AI-12, a Segunda Junta Militar outorgará os Atos


Institucionais de números Treze a Dezessete (os últimos atos de legislação pelo
Executivo que tomaram esse nome), e nova redação à Constituição de 1967 através da
Emenda Constitucional nº 1, de 17 de outubro de 1969 (na prática uma nova
Constituição, que dispensou a aparência de democracia republicana para entrar em
vigência):

 AI-13, de 5 de setembro de 1969. Conforme seu preambulo, “Institui a pena de


banimento do Território Nacional para o brasileiro que se tornar inconveniente,
nocivo ou perigoso à Segurança Nacional (...)” que seria estabelecida pelo Poder
Executivo Nacional mediante solicitação do Ministro da Justiça ou Ministros das
Forças Armadas. É editado também devido à ação paramilitar do Grupo
Revolucionário 8 de Outubro – MR8, que obteve sucesso no sequestro do
embaixador americano Charles Burke Elbrick (1908 – 1983) e sua troca por
quinze presos políticos, aos quais em seguida foi aplicada a pena de banimento;
 AI-14, de 5 de setembro de 1969. Complementa o anterior ao promover
alteração no parágrafo onze do artigo 150 da Constituição de 1967, que passa a
ser, in verbis:
“§ 11 - Não haverá pena de morte, de prisão perpétua, de
banimento, ou confisco, salvo nos casos de guerra externa
psicológica adversa, ou revolucionária ou subversiva nos
termos que a lei determinar. Esta disporá também, sobre o
perdimento de bens por danos causados ao Erário, ou no
caso de enriquecimento ilícito no exercício de cargo,
função ou emprego na Administração Pública, Direta ou
Indireta”
e dá outras providências;
 AI-15, de 11 de setembro de 1969. Estipula novas datas para as eleições
municipais – é interessante observar-se o disposto em seu artigo quarto:
“Excluem-se de qualquer apreciação judicial todos os atos praticados de acordo
com este Ato Institucional e Atos Complementares dele decorrentes, bem como
os respectivos efeitos” – artigo semelhante consta em todos os AIs e marca a
completa ação legislativa e judiciária a nível do Executivo Nacional: os demais
Poderes são literalmente espoliados de suas atribuições;
49

 AI-16, de 14 de outubro de 1969. Declara vaga a Presidência, Vice-Presidência,


agenda e disciplina novas eleições indiretas. Dispõe que a Chefia do Executivo
Federal continuará a ser exercida, até a nova eleição, pelos Ministros Militares.
Importante salientar que não havia impedimento a priori para a posse do Vice
até então;
 AI-17, de 14 de outubro de 1969. De acordo com seu preâmbulo, “Autoriza o
Presidente da República a transferir para reserva, por período determinado, os
militares que hajam atentado ou venham a atentar contra a coesão das Fôrças
Armadas” – ao fim do período, que ocorreria sem perda de vencimentos ou
gratificações e vantagens, o militar seria reincorporado ou definitivamente
enviado à reserva.

Em 30 de outubro de 1969 assume a Presidência da República o General de


Exército Emílio Garrastazu Médici (1905 - 1985). Ex-adido militar em Washington
(1964 – 1966) e delegado brasileiro na Junta Interamericana de Defesa e na Comissão
Mista de Defesa Brasil-Estados Unidos, por insistência de Costa e Silva de “tê-lo por
perto”, aceitou a Chefia do Serviço Nacional de Informações – SNI, o qual assumiu em
17 de março de 1967 (embora a equiparação do cargo às funções de Ministro só fosse
ocorrer em 1974, o detentor já possuía à época assento no Conselho de Segurança
Nacional – CSN). O SNI atuava na captação de dados sobre “ação subversiva” e
corrupção, e Médici ampliou seu espectro para sondagem de opinião pública, ação
investigativa e processamento da informação, passando a agir também como órgão
consultivo da Presidência. À frente do SNI Médici, embora não se torne conhecido entre
os futuros governados, obtém posição de notoriedade entre os membros do Exército.

Ainda em 1968 houve aumento nas atividades armadas contra o Regime. A isso
respondeu a Ditadura assumindo a Operação Bandeirantes (Oban) de São Paulo como
exemplo para a criação de aparelhos repressivos, os Centros de Operação para Defesa
Interna – CODI, que tinham por função coordenar os demais órgãos de “repressão à
subversão e ao terrorismo”, assumindo papel administrativo, de planejamento
estratégico e análise de informações. Seus braços executivos eram os Departamentos de
Operações Internas – DOI. Havia articulação entre esses e os órgãos de inteligência das
Forças Armadas, e todos davam suporte ao SNI. Uma campanha internacional e da
ICAR para o fim da tortura a presos políticos, mortes e desaparecimentos teve início, ao
50

qual o governo respondeu com motes ufanistas (“Brasil, ame-o ou deixe-o”) e acusando
opositores de ingerência nos negócios nacionais ou tentativas de enfraquecer o governo.

Em 1968 setores sociais (estudantes, operários, intelectuais, liberais, religiosos,


populares) já demonstravam através de manifestações, passeatas e ensaiavam greves.
Em 26 de junho daquele ano realizou-se a Passeata dos Cem Mil, com palavras de
ordem condenando a violência policial e reivindicando o retorno à normalidade
democrática. Em 4 de julho, a Passeata dos Cinquenta Mil marca a negativa do governo
em apreciar as reivindicações do movimento. A situação social vai se acirrar, com a
invasão de Universidades (Universidade de Brasília – UNB e Universidade Federal de
Minas Gerais – UFMG) por forças policiais em busca de “foragidos da justiça”,
apontadas pelo deputado Márcio Moreira Alves como ordens vindas do governo em seu
já citado discurso. O AI-5 é editado logo em seguida, 13 de dezembro de 1968, e o Ato
Complementar nº 38 decreta o recesso por tempo indeterminado do Congresso.

O Ato Complementar nº 73, de 15 de outubro de 1969, convoca o Congresso de


seu longo recesso para confirmar o nome indicado como candidato à Presidência, o
general de exército Garrastazu Médici, tendo na vice-presidência o almirante Augusto
Rademaker. Em 25 de outubro desse ano, é eleito Presidente com 239 votos favoráveis
e 76 abstenções, todas de políticos do MDB.

Redemocratização ainda não teria vez: Garrastazu vai fazer um governo


centralizado e forte, favorecendo politicamente a ARENA. O MDB e os movimentos
sociais esperavam a descontinuidade dos AIs, mas o governo não acena com essa
possibilidade. Médici definiu em discurso à ESG a meta de seu governo como sendo
“manter o desenvolvimento, com segurança”, e isso envolvia afastar o liberalismo
político, e manter os poderes excepcionais do Executivo Federal obtidos através dos AIs
e Atos Complementares, sendo que se comprometeu a utilizá-los somente “quando
necessário”. Procedia à escolha dos candidatos aos governos do estado segundo critérios
de “compromisso com a revolução”, e buscava o “apolítico, o técnico”.

O Decreto-Lei que estabelecia a censura prévia a livros e periódicos é


homologado pelo Congresso em 29 de abril de 1970 - crítica a seu governo era também
em matéria de legislar por decretos, que era hábito garantido pela maioria “arenista”37 –

37
A ARENA era invariavelmente maioria em qualquer “eleição” do período: a máquina pública estava a
seu serviço, e o AI-5 e a Lei de Imprensa e a de Segurança Nacional, além da censura prévia, impedia
51

o Congresso estava alijado de suas funções principais, restando-lhe prestar um ocasional


nihil obstat.

A conquista da Copa do Mundo de Futebol em junho de 1970 no México pela


seleção brasileira foi palanque oficial da ARENA, aparecendo em discursos em
conjunto com outras “conquistas” dos governos militares. Em 8 de julho de 1970
encerra-se o processo de escolha dos governadores, todos apontados pelo Executivo
conforme conveniência junto aos partidos, já em flagrante contrariedade aos Atos que
estabeleciam eleições indiretas pelos Legislativos estaduais. No mesmo mês, a Câmara
dos Deputados apresentou relatório de CPI sobre a internacionalização da economia:
capitais estrangeiros sobrepujavam com folga investimentos nacionais em todos os
setores – dizia-se muito sobre nacionalismo, na prática a quebra na política de envio de
lucros ao exterior e o fomento de indústrias estrangeiras cobrava seu preço.

Contudo, o período de 1968 a 1974 costumava ser designado “o milagre


brasileiro”, devido às altas taxas de crescimento da economia aliadas ao controle da
inflação. Esses bons resultados eram também fruto de empréstimos junto ao BID e ao
Banco Mundial para investimentos na indústria de base, setor energético, estradas e
portos, o que impulsionou a dívida externa. O “sucesso” da economia era seguido por
uma superlativa concentração de renda, dando margem aos setores governistas forjarem
a metáfora do “bolo”: assegurar o crescimento para depois preocupar-se com
mecanismos de divisão de renda.

Ernesto Geisel (1907 – 1996), General de Exército, é elevado à Presidência do


Brasil em 15 de março de 1974. Como antigo Chefe do Gabinete Militar de Castelo
Branco, Ministro do Superior Tribunal Militar (1967 – 1969), e presidente da estatal
Petrobras de 1969 a 1973, já tinha sido especulado na mídia do exterior (uma vez que a
brasileira estava sob censura) que seu nome seria o ideal sucessor de Médici, mas foi
oficializado por esse somente em 18 de junho de 1973. Em 15 de janeiro de 1974 o
colégio eleitoral formado endossou (por ampla margem de votos: 400 para sua chapa,
76 para a dos adversários e 21 abstenções, ambos do MDB) o nome de Ernesto Geisel e
do general Adalberto Pereira dos Santos (1905 – 1984), contra Ulisses Guimarães e seu

qualquer manifestação em contrário mais “ousada” do MDB. Para aumentar-se a impressão de ditadura de
partido único - justamente o que o Golpe objetivava evitar - o cadastro de uma nova legende, o Partido
Democrático-Republicano capitaneado pelo ex-vice-presidente Pedro Aleixo, foi negado em fins de 1971.
52

vice Alexandre Barbosa Lima Sobrinho (1897 – 2000, advogado, jornalista, político,
literato), “anticandidatos” do MDB.

Geisel propunha um projeto liberalizante, uma “distensão lenta, gradual e


segura” visando à restauração da Democracia, e a manutenção de “máximo de
desenvolvimento possível com o mínimo de segurança indispensável”. Dispunha-se
restringir o recurso aos Atos Institucionais e objetivava declará-los inválidos até o final
de seu mandato. Contudo, agiu por vias indiretas para garantir suas disposições
políticas: solicitou ao Procurador-Geral da União que apresentasse queixa junto ao
Superior Tribunal Federal – STF contra o deputado federal do MDB pela Bahia
Francisco José Pinto dos Santos (1930 – 2008) com base na Lei de Segurança Nacional
– LSN, por esse ter ofendido em discurso em rádio o general Augusto Pinochet (1915 –
2006), ditador chileno, então em visita ao Brasil para assistir à posse do novo governo.
O indiciado terminou condenado a seis meses de prisão. A reafirmação de sua
autoridade, e de seu controle sobre a política de abertura, seria frequente.

Para as eleições diretas de 1974, houve disposição inédita por parte do governo
de viabilizar acesso aos meios de comunicação à propaganda política da oposição: como
resultado da liberdade relativa de discurso, da exaustão do “Milagre” e de mudança de
tática da oposição (que deixou de lado o protesto através do voto nulo), o MDB
conseguiu importantes resultados – o número de cadeiras da ARENA no Senado caiu de
59 para 46, e na Câmara de 223 para 199; o MDB atingiu 20 no primeiro e foi de 87
para 165 representantes na última.

Os rumos sociopolíticos adotados e a convalidação da conquista de espaço pela


oposição não significaram retrocessos na pressão sobre os “subversivos”: os órgãos de
segurança centraram sua atuação especialmente sobre o PCB: em 1974 quatorze
dirigentes “desapareceram”, em 1975 uma gráfica do partido na clandestinidade foi
desmantelada. A opinião geral era de que esses e outros desaparecidos e presos políticos
estavam mortos. O governo dá prosseguimento a sua lenta distensão suspendendo a
censura prévia ao O Estado de São Paulo, medida que foi estendida mais tarde à
imprensa alternativa.

O texto do AI-5 foi utilizado pelo Executivo Nacional somente em abril de 1975,
quando de crise na eleição indireta para prefeito em Rio Branco, Acre, o que gerou
intervenção direta no município. No mesmo período, foi utilizado para punir-se um juiz,
53

escrivão e tenente da Aeronáutica envolvidos em corrupção no estado de Rondônia.


Ainda em 1975, a presidência voltaria a utilizar-se desse instrumento: para cassar o
mandato e direitos políticos do senador por Pernambuco, da ARENA, Wilson de
Queirós Campos (1924 – 2001) que estava sob acusação de corrupção (1º de julho); e
para confiscar bens do grupo J. J. Abdala por irregularidades administrativas e acúmulo
de dívidas (em 15 de setembro).

O setor econômico foi marcado pela crise: o II Projeto Nacional de


Desenvolvimento não logrou atingir suas metas e repetir o “Milagre Brasileiro” do
período anterior, devido à queda na taxa de crescimento econômico, os reflexos da crise
internacional do petróleo, aumento na dívida externa, desequilíbrio na balança de
pagamentos, e investimentos públicos comprometidos na manutenção de obras de
infraestrutura – essas causas não estavam necessariamente desvinculadas entre si, foram
resultado de opções geopolíticas e econômicas. Em 9 de outubro de 1975 Geisel faz
discurso à nação anunciando formação de contratos de risco com empresas
multinacionais e a Petrobras para a prospecção de petróleo na plataforma continental
brasileira – foi seguido de nota oficial do MDB contrária às medidas econômicas
adotadas e especialmente à quebra do monopólio, e de ordem por parte do Executivo
Federal aos governadores para coibirem manifestações.

No final de 1975 as crises com a “Linha Dura” tornam-se palpáveis, com a


morte do jornalista e militante do Partido Comunista Brasileiro Vladimir Herzog (1937
– 1975) dentro das dependências do DOI-CODI de São Paulo, e as repercussões dessa
na mídia e na sociedade. O nome de Silvio Couto Coelho da Frota (1910 – 1996),
general de exército e Ministro do Exército do governo que intentava ser o próximo
Presidente, surge como fomentador das manobras e atividades dos órgãos de repressão
política, que aparecem como contestadores da “distensão”. Um ato ecumênico foi
organizado no sétimo dia de morte de Herzog (de família judia) na Catedral da Sé de
São Paulo/SP, tendo missa ministrada pelo Cardeal-Arcebispo dessa cidade Dom Paulo
Evaristo Arns (além da presença de nomes ilustres da ICAR – Dom Hélder Câmara,
arcebispo de Olinda e Recife – e outras religiões – Henry Isaac Sobel, Rabino da
Confederação Israelita Paulista, e Reverendo Jaime Nelson Wright, pastor
presbiteriano), reuniu milhares de pessoas e tornou-se a primeira grande manifestação
contrária ao governo após o AI-5 (o ato tem múltiplos significados – além da
manifestação pública e social em si, carrega uma negativa da informação oficial: existe
54

uma série de restrições a atos religiosos por suicidas tanto no catolicismo quanto no
judaísmo – em ambos os casos elas foram ignoradas, franca contestação a versão
oficial).

Caso semelhante ocorreu em 19 de janeiro de 1976: o operário José Manuel Fiel


Filho foi encontrado “morto por enforcamento” nas mesmas dependências do DOI-
CODI do II Exército, tendo seu atestado de óbito sido assinado pelo mesmo médico,
Harry Shibata, que seria depois punido por falsidade ideológica pelo Conselho de
Medicina de São Paulo (perdeu o direito de exercer a medicina por decisão posterior do
Conselho Federal de Medicina – CFM). Nessa ocasião, Geisel viajou a São Paulo e
promoveu uma “reforma” na estrutura de comando do II Exército, colocando em
posições de mando oficiais ligados a seu grupo. O general Silvio da Frota seria
exonerado em 12 de outubro de 1977.

O AI-5 prosseguiu sendo utilizado em 1976, para a cassação do mandato e


suspensão de direitos políticos de parlamentares acusados de colaborarem ou
pertencerem ao PCB, ou servidores públicos acusados de corrupção – ainda assim
Geisel discursa por ocasião da abertura dos trabalhos do Legislativo Nacional,
garantindo a realizações das eleições municipais previstas para 15 de novembro, e
reafirmando a validade de seu projeto de “distensão” político-social. Contudo, diante da
derrota da ARENA nas últimas eleições diretas, a propaganda eleitoral ampla foi
impedida pela Lei nº 6.339, 1º de julho de 1976, chamada “Lei Falcão” (em referência
ao Ministro da Justiça de Geisel, Armando Ribeiro Severo Falcão), que pretendia
determinar um sistema de apresentação dos candidatos mais igualitário, padronizado e
menos personalista no rádio e televisão. Quando o pleito se aproximou, Geisel se
empenhou em pessoa no apoio aos candidatos da ARENA, viajando por 45 municípios
de 16 estados: o MDB mantém alta receptividade nos grandes centros urbanos, e a
ARENA vence nos municípios de menor porte.

As relações com a ICAR se deterioram no final de 1976: em 2 de setembro, há o


sequestro de Dom Adriano Mandarino Hypólito (1918 – 1996), bispo de Nova
Iguaçu/RJ – apoiador das Comunidades Eclesiais de Base – CEBs e apoiador de
movimentos populares – que foi atribuído a órgão de repressão oficiais. Em 12 de
outubro, o padre João Bosco Penido Burnier (1917 – 1976), primo do Arcebispo Dom
Geraldo Maria de Marais Penido (1918 – 2002) de Juiz de Fora/MG, foi assassinado por
55

um membro da guarnição da Polícia Militar de Ribeirão Preto/MT – a CNBB divulga


nota exigindo a investigação do assassinato. Geisel viaja a Juiz de Fora para conversa
com o Arcebispo, demonstrando disposição para encerrar as práticas desumanas pelos
agentes do governo.

Através do Ato Complementar nº 102, de 1º de abril de 1977, Geisel decreta o


recesso do Congresso Nacional. A medida foi resultado da não aprovação da Reforma
do Poder Judiciário proposta pelo governo (era necessário a maioria ampla: dois terços
das Casas). Oposição e a Ordem dos Advogados do Brasil – OAB manifestaram sua
contrariedade frente ao ato. Geisel promulga um conjunto de medidas que ficou
conhecido como o “Pacote de Abril”: além da Reforma pretendida, aumenta para seis
anos o mandato do próximo presidente, dispõe sobre eleições em diversos níveis,
garante meios para aumentar a bancada arenista, estipula maioria simples para a
aprovação de medidas provisórias, entre outras. Para Geisel, a democracia brasileira era
“relativa” – e em caso se concretizasse, não poderia ser semelhante à dos EUA, França
ou Inglaterra, “pois os níveis de desenvolvimento econômico e social eram diferentes”.

A primeira metade do ano de 1977 foi de intensa ação popular organizada pró
anistia e por liberdades democráticas – o episódio da ocupação da UNB leva novamente
a atritos entre a presidência e os representantes da “Linha Dura”. A questão sucessória
foi motivo de debate nesse período: o ainda Ministro do Exército, general Silvio Frota, e
articuladores favoráveis a ele angariavam apoio na facção mais intransigente das Forças
Armadas e mesmo no MDB, ameaçando uma crise na unidade militar se o Presidente
levasse adiante seu projeto sucessório já definido.

A crise pessoal e institucional com Frota vai se aprofundar ao longo dos meses:
por ocasião da expulsão do até então asilado político Leonel Brizola do Uruguai em
final de setembro, o Ministro do Exército vai, sem consulta prévia à presidência,
articular uma força tarefa do III Exército de forma a impedir a entrada de Brizola por
terra no Brasil – Geisel havia entrado em conversações para permitir a permanência do
político no país, desde que em área circunscrita: na reunião seguinte ao episódio do Alto
Comando do Exército, a ação de Frota foi endossada pela maioria dos generais de
quatro estrelas. Em outubro, Geisel obtém informações sobre as movimentações de
Silvio Frota e seus apoiadores, no sentido de angariar manifestações públicas positivas
de ex-ministros então na reserva, além de denunciar a partir de relatório do Centro de
56

Informações do Exército – CIEx a existência de 97 pessoas tidas como subversivas


ocupando cargos de confiança da administração pública, o que demonstraria os
“perigos” da distensão – a decisão do então Presidente foi a demissão de Frota, que foi
providenciada com os cuidados e antecedência necessários para que o mesmo não
conseguisse articular base de apoio no Alto Comando ou conseguisse impor sua
candidatura através de maior mobilização. O general Fernando Belfort Bethlem (1914 –
2001), comandante do III Exército e também considerado representante da “Linha
Dura”, assume a pasta.

Em 1º de dezembro de 1977, Geisel reafirma diante das principais lideranças da


Arena sua intenção de dar prosseguimento a seu projeto político, inclusive com a
substituição dos AIs por dispositivos constitucionais – oficializou a negociação com
setores representativos da sociedade (Congregação Nacional dos Bispos do Brasil –
CNBB, Ordem dos Advogados do Brasil – OAB, Associação Brasileira de Imprensa –
ABI, sindicatos de empregados e empregadores) através do Presidente do Senado,
Petrônio Portela (daí ser conhecida como Missão Portela), para depois tratar com o
MDB.

A definição formal do sucessor de Geisel foi complexa, e envolveu inclusive a


alteração da lista normal de promoções a general-de-exército, mas a candidatura da
chapa de sua escolha foi homologada pela ARENA em 8 de abril de 1978.

Em paralelo aos atritos internos do governo, crescem as manifestações de


diversos setores sociais, e em diversos campos, como a luta pela anistia e o movimento
operário. O que se convenciona chamar de “Novo Sindicalismo” toma forma, e em maio
a primeira greve de metalúrgicos desde 1964 ocorre em São Bernardo do Campo/SP,
tornando Luís Inácio da Silva figura de liderança no cenário brasileiro.

O governo continua a propor uma abertura em seus próprios termos. Em junho


envia pacote de medidas ao Congresso visando a normalização constitucional. Em 29 de
dezembro, o Itamaraty é instruído a facilitar a concessão de títulos de nacionalidade a
brasileiros que viviam no exterior por motivos políticos, e embora Geisel tenha
revogado atos de banimento, cassações de direitos políticos, e reduzido a lista de
“brasileiros indesejáveis”, a anistia requerida por entidades civis de peso não foi
concedida. Em 31 de dezembro de 1978 o governo decreta a extinção do AI-5, sendo
esse o último ato de peso de Geisel à frente da presidência.
57

2.3. A Vida Religiosa nos Meios Populares

Existiam movimentos de atuação laica católica, ou que contavam com elementos


católicos, antes de 1964 – são esses que já então afirmavam uma “necessidade de ação
política, em conformidade com os princípios da fé”; no decorrer da vigência do Regime
de Exceção, são em outros movimentos de leigos da ICAR “(...) que o movimento
popular encontra a mediação para sua ligação com a Igreja” [NUNES, 1985]: nesse
contexto as Comunidades Eclesiais de Base vão emergir como interface privilegiada. A
Ação Católica Brasileira – ACB38 nasce ainda em 1935, como organismo do laicato
para uma maior organização e proximidade à hierarquia da ICAR, ou organização de
apostolado leigo. Entre todos os elementos essenciais da ACB, se destaca a Juventude
Católica Brasileira (que congregava jovens dos 14 aos 30 anos), que compreendia os
ramos Juventude Estudantil Católica – JEC (formada por jovens “secundaristas”),
Juventude Universitária Católica – JUC (para universitários), Juventude Operária
Católica (de trabalhadores do meio operário), Juventude Agrária Católica – JAC
(análoga no meio agrário), Juventude Independente Católica – JIC. Há especial atenção
por parte de membros da JEC e JUC em atuar junto ao Movimento de Educação de
Base – MEB, criado pelo governo em 1961 com o objetivo de “desenvolver um
programa de alfabetização e de conscientização das camadas populares” – esse tipo de
ação vai se multiplicar nos estados, envolvendo ativamente membros da Juventude
Católica com iniciativa de mudança social. O crescente envolvimento do movimento
estudantil na discussão dos problemas nacionais e das chamadas “reformas de base”
anteriores ao Golpe, acabou por engendrar a criação de uma organização política
desvinculada da Igreja: a Ação Popular – AP, constituída principalmente por membros
dissidentes da JUC, em junho de 1962. Quando do Golpe, a AP será declarada
clandestina. A CNBB, dividida internamente, termina por impor um maior controle
eclesiástico à ACB e seu afastamento de assuntos temporais, e essa vai se desarticular e
esvaziar a partir de 1966, não sem deixar influências.

Os Regimes Militares que emergiram na América Latina nesse período vêm


ajustar sua economia a um modelo de capitalismo dependente a ela “reservado”, grosso
modo, na lógica geopolítica em que estavam inscritas. O processo geral não é diferente

38
Consulta bibliográfica ao verbete “Ação Católica Brasileira” do Dicionário Histórico-Biográfico
Brasileiro da Fundação Getúlio Vargas – FGV, disponível no sítio on-line <http://www.fgv.br/cpdoc/
acervo/dicionarios/verbete-tematico/acao-catolica-brasileira-acb>, acessado em 31 de dezembro de 2015.
58

no Brasil, e envolve necessariamente a anulação de “vozes contrárias” que pudessem


impedir ou atrasá-lo: sindicatos e organizações políticas, que fizeram às vezes de voz
dos estratos de base no período anterior ou não coadunam com o projeto sociopolítico,
devem ser eliminados. É esse um ponto essencial dessa argumentação: a Igreja, dada
sua posição de relativa “imunidade frente ao Estado repressor”, vai se constituir em
novo ambiente privilegiado para a gestação das demandas populares.

Trata-se de uma renovação adaptativa, carismática e profética (entendida como


crítica ou renovação profundas da ordem vigente) da ICAR no Brasil. São processos
emergentes (resultados complexos de uma sucessão de fatores históricos internos e
externos), coletivos (ou voltados à coletividade), e que não trazem necessariamente “a
ruptura automática com a instituição” [idem]. O carisma no sentido weberiano sempre
esteve presente (ao menos de maneira rotinizada) na vida congregacional, na figura do
fundador ou fundadora, a “pessoa extraordinária” – contudo, devemos reinterpretá-lo,
como Bourdieu, no sentido de “pessoas em situações extraordinárias”, como foram os
membros dos diversos movimentos que desafiaram, ou tentaram alternativas dentro de,
uma ordem totalitária violenta e com franca preferência de classe.

A essa renovação segue uma inovação criativa: trata-se de uma “substancial


modificação da postura católica frente ao mundo” – o mundo que deixa de ser o lugar
de pecado para ser o novo palco da atuação da religiosa e do religioso, ação
evangelizadora, apostólica, mas também que se pretende modificadora da realidade. Os
membros das instituições de vida consagrada, mesmo quando guiados por sua direção
ou mesmo Roma, precisavam encontrar alternativas que viabilizassem sua agência fora
dos muros. Começa-se a priorizar as pequenas comunidades, mormente femininas, e a
coordenar ações não tanto ou tão somente a nível da Ordem, mas diretamente com
Paróquias e Dioceses, tornando a ação mais local e personalizada, e tendo por alvo um
público à margem do Sistema: passa-se a perceber “os pobres” não mais como alvos
passivos da ação caritativa viabilizada pelo fiel e devoto rico burguês, mas como
elementos dentro de uma lógica cada vez mais palpável de exclusão e expropriação,
sujeitos a quem são impostos papéis de agência limitados.

Para muitos religiosos e religiosas que optaram pelas comunidades de inserção,


a morada junto, a partilha das condições de vida, do trabalho secular, uma percepção
mais apurada da lógica socioeconômica: a “opção pelos pobres”, pelos trabalhadores do
59

campo e da cidade, pelas populações marginalizadas, passa necessariamente por um


compromisso com a mudança efetiva das condições de vida dessas e atendimento de
suas necessidades, à “superação de sua condição de classe dominada” [ibidem]. Essa
progressão da clausura para a sociabilidade, e depois para a ação organizada se dá
principalmente entre as décadas de 1960 e 70 e segue pela década de 80. Desnecessário
dizer, é assumida por uma minoria de instituições de vida consagrada, e dentro dessas,
comumente, por outra minoria de irmãs e sacerdotes.

Há de se notar a estrutura horizontal desses grupos: além dos e das religiosas


(agora sem tanto o peso de uma autoridade superiora “sempre presente”, ou de
“autoridade indiscutível”, como na clausura) o povo é convidado ou convida-se a
participar dos processos de decisão pastorais ou comunitários. Tarefas antes restritas
passam a ser comunais ou perdem seu aspecto inerentemente hierarquizante: a
administração financeira, por exemplo. Existe a flexibilização de horários, e no geral é
abolida a divisão de tarefas. O hábito, símbolo de distinção entre o religioso e a gente
comum, muitas vezes passa a ser de uso opcional ou limitado a determinadas situações
ou circunstâncias. Relacionamentos interpessoais são complexificados, o que induz a
certo amadurecimento pessoal e a uma compreensão contextualizada da vida votiva. A
missão impõe-se como o norte da nova concepção de Vida Religiosa e também como
“elemento catalisador” para a mudança e resolução de divergências.

2.3.1. Pastoral

“A pastoral é a Igreja em marcha. É sua face prática. (...) é o agir da Igreja no


mundo” – assim o define João Batista Libanio [LIBANIO, 1982]. O objetivo desta
seção é observar a atividade Católica entre as camadas populares, a chamada “Vida
Religiosa nos meios populares” por Rosado Nunes, ou a “Pastoral Moderna” de
Libanio. As diversas contradições criadas entre a Igreja Católica enquanto instituição
global e as realidades locais e da modernidade acumulam-se: não é mais viável, para a
manutenção institucional e de sua missão proposta, a manutenção das práticas
tradicionais que conduziam inevitavelmente a um afastamento do público laico – não se
podia pressupor o apoio incondicional dos Estados seculares, não se podia ignorar as
demandas de populações externas às elites como “solúveis pela caridade”. A realidade
política internacional, o avanço de um sistema fundamentalmente ateísta, a percepção
do afastamento tanto das camadas populares paralelo ao poder político que essas haviam
60

conquistado vão desaguar no Concílio Vaticano II, este é mais um (embora o principal)
de uma estratégia de atuação que vinha há muito se desgastando sob suas próprias
incoerências acumuladas, senão falida. “O profeta é menos o ‘homem extraordinário’ de
que falava Weber, do que o homem de situações ‘extraordinárias’” – Bourdieu assinala
o “contexto propício” a que se refere Nunes para a formação de comunidades baseadas
no Carisma – a crise.

Comunidade Eclesial de Base – CEB: no evangelismo missionário católico


latino-americano que nasce no período pós conciliar (década de 1960), a CEB é o
núcleo para tornar a esperança de libertação numa prática eficaz de transformação da
história de um grupo específico [BETTO, 1984]. Para Frei Betto, a Igreja só realizaria
sua missão enquanto houvesse comprometimento com as classes populares, “o que
implica em ruptura com os interesses e privilégios das classes dominantes” por
continuidade lógica. Esse é o mote das Comunidades, uma Igreja Popular, que ama e
liberta da opressão, das carências e alienações, em um contexto econômico, político e
social.

Estruturalmente, as CEBs são grupos, em geral pequenos, organizados em torno


de um centro eclesial (paróquia quando na cidade, capela no campo), por iniciativa de
leigos ou sacerdotes – possuem “natureza religiosa e caráter pastoral”, o que não
implica na ignorância de outros aspectos da vida: ao contrário, a Comunidade o é
porque reúne pessoas com afinidades (religiosas, de localidade, de ocupação, de faixa
de renda) para também discutirem os problemas e desafios comuns; é Eclesial pois se
congregam em torno da igreja ou de um agente pastoral; é de Base numa referência aos
seus integrantes, que tanto são de classes populares como possuem as mesmas
características socioeconômicas (operários, moradores da periferia, trabalhadores rurais,
indígenas, e todo um espectro de ocupações e condições de vida que vão da dona-de-
casa urbana ao pequeno proprietário rural). Os agentes pastorais são figuras que
animam as CEBs e tratam para que o povo seja “sujeito de sua história” – sejam eles
religiosos, religiosas ou leigos, há a condição do viver junto, do compartilhar com a
comunidade suas condições de vida e problemas: essa é essencial para que se escape de
um “colonialismo” de buscar impor suas categorias prévias aos membros com quem se
busca a comunhão. Nessas iniciativas e durante o processo de trocas, é comum uma
aculturação dos ritos que, contudo, não os invalida: a produção local de cânticos,
festejos que trazem o sagrado para o meio comum (“plantio”, “colheita”, “greve”, etc.),
61

ostentação dentro do espaço eclesiástico das ferramentas de trabalho e ofício ao lado


dos ornamentos litúrgicos, personalização dos atos de fé (novenas, terços, grupos de
oração) sem pôr a perder suas características essenciais.

Frei Betto ressalta uma certa liberdade de que gozava a ICAR durante o período
de exceção: diferente das instituições dos poderes públicos, sobre os quais a Ditadura
tinha poder de ação relativamente livre, a Igreja Católica era uma instituição que não
estava mais formalmente ligada ao Estado. Embora cada leigo ou religioso,
individualmente, estivesse sob as legislações postas em prática pelo governo, a ICAR
tinha suas próprias hierarquias e normativas, sobre as quais o governo não poderia
interferir a menos que suprimisse também a liberdade de culto: em um exemplo
característico, diz que “Os militares não tinham como decretar a destituição de D. Paulo
Evaristo Arns, como arcebispo de São Paulo (...)”. Essa situação de “externa aos limites
de ingerência” em que se encontrava a ICAR contribuiu, muito mais que a
conscientização política ou a congregação em comunidades coesas, para uma ação ativa
de oposição popular ao Regime dentro das CEBs e entre seus membros. A partir do
Concílio Vaticano II membros da cúpula da ICAR buscam se aproximar das bases, e
esse movimento vai se intensificar com a Segunda Conferência Geral do Conselho
Episcopal Latino Americano em Medellín/Colômbia em 1968, enquanto o Estado traça
o caminho oposto – no Brasil, e graças a uma crescente organização dos opositores à
Ditadura em altos cargos na hierarquia eclesial, isso se refletirá em denúncias por parte
da Igreja contra violações dos Direitos Humanos e do terror repressivo, que muitas
vezes recaía sobre suas próprias fileiras: a ICAR tornou-se aqui “espaço de organização
e mobilização”.

O autor traça três etapas interligadas pelas quais passariam (não necessariamente
todas) as CEBs: a primeira, a formação da Comunidade em si, sua experiência local
ligada a evangelização para a mudança; na segunda, membros da CEB em contato com
membros de outras religiões com a mesma opção pelos pobres reorganizam movimentos
populares autônomos temáticos locais e regionais, a partir de suas próprias experiências
de vida e reflexões sobre seus problemas; a terceira etapa é o fortalecimento dos
movimentos sindicais como verdadeiros órgãos de classe – por ocasião da produção de
seu texto, Frei Betto testemunhava a extinção do bipartidarismo e da formação de um
partido de base sindical, o Partido dos Trabalhadores – PT, também influenciado por
grupos pastorais e CEBs da região do ABC do estado de São Paulo, daí apontar como
62

uma “quarta etapa”, “a busca de novos canais de expressão política para a sociedade
civil brasileira” [idem]. Quando as iniciativas que nasceram dentro das CEBs
transpunham muros e passavam a interessar a todos que possuem posicionamentos
comuns, independente da religião, havia o fortalecimento do movimento popular
autônomo em relação à Igreja e ao Estado. Menciona-se o potencial para a mudança
que um grupo de organizações independentes, mesmo que grande parte seja
despolitizada, coordenadas em rede possui quando mobilizadas por uma causa, por
sentimento de justiça ou consciência dos direitos do povo.

2.4. A Abertura Política e o Retorno à Democracia

O General de Exército João Batista de Oliveira Figueiredo (1918 – 1999) é eleito


Presidente da República numa disputa indireta com 355 votos favoráveis contra 226 da
oposição, e assume o cargo em 15 de março de 1979, tendo por Vice-Presidente
Antônio Aureliano Chaves de Mendonça (1929 – 2003). Figueiredo foi chefe do SNI
durante o governo Geisel (após uma longa carreira vinculada a esse órgão) e esteve
próximo ao centro de poder enquanto se definiam os rumos da distensão. Embora o AI-
5 tenha deixado de vigorar, a presidência contava com as chamadas “salvaguardas
constitucionais” que entre outros dispositivos que “controlavam” o âmbito do processo
de abertura, permitia instituir-se “estado de emergência”, à revelia do Congresso, para
controlar focos de “subversão” – Figueiredo toma posse em 15 de março de 1979
afirmando sua intenção de “fazer desse país uma democracia”.

A Lei nº 6.683, de 28 de agosto de 1979, anistia todos os cidadãos punidos por


atos de exceção desde a promulgação do AI-1: a chamada Lei da Anistia beneficiou
cerca de 4.650 pessoas (entre os casos a serem deliberados estavam a reintegração de
servidores civis e militares a seus cargos, e a extensão do benefício aqueles que
cometeram os chamados “crimes de sangue”, relacionados à luta armada).

Em 10 de outubro de 1979 é enviado ao Congresso texto da nova Lei Orgânica


de Partidos, que findaria o bipartidarismo, extinguiria a ARENA e o MDB, entre outras
providências – a mesma é aprovada em novembro. A ARENA divide-se em Partido
Popular – PP, ao qual pertencia Tancredo Neves, e Partido Democrático Social – PDS
(com membros do antigo MDB), tendo à frente José Sarney. A maior parte dos
membros do MDB filiam-se ao Partido do Movimento Democrático Brasileiro –
PMDB, sob a presidência de Ulisses Guimarães. A sigla do Partido Trabalhista
63

Brasileiro – PTB é motivo de disputa entre Leonel Brizola e Ivete Vargas (Cândida
Ivete Vargas Tatsch, filha da sobrinha de Getúlio Vargas, jornalista e política, última
presidente do PTB paulistano até sua extinção pela Ditadura, 1927 – 1984), sendo que a
última é favorecida por decisão do Tribunal Superior Eleitoral – TSE, e Brizola funda o
Partido Democrático Trabalhista – PDT. O Partido dos Trabalhadores – PT, tendo à
frente Luís Inácio da Silva, o Lula, líder do “Novo Sindicalismo”, é fundado com o
apoio de intelectuais, grupos socialistas e correntes ligadas às Comunidades Eclesiais de
Base da ICAR.

Em janeiro de 1980 tem início uma onda de atentados cujo objetivo aparente é
desestabilizar a transição democrática e atacar a nova esquerda. Foram cerca de 25
atentados a bomba sem vítimas, na maior parte das vezes explosões de contra bancas de
jornais que vendiam periódicos da imprensa alternativa. Contudo, em 27 e 28 de agosto
cartas bomba explodem no gabinete de um vereador do Rio de Janeiro e do presidente
da OAB, matando a secretária deste último – diante do fato, há comoção entre setores
sociais de peso contra os atos terroristas, o que é coadunado pela presidência. Em 1981
houve, além de outros, o episódio das bombas no Riocentro: na noite de 30 de abril,
durante um show de música em comemoração ao Dia do Trabalho promovido pelo
Centro Brasil Democrático – CEBRADE. Uma de duas bombas explodiu dentro de um
carro particular, matando o sargento Guilherme Pereira do Rosário, e ferindo
gravemente o motorista, capitão Wilson Luís Chaves Machados, os dois pertencentes
aos quadros do CODI do I Exército – o general do I Exército, Gentil Marcondes Filho
(1916 – 1983), nega o envolvimento de seus comandados, mas a imprensa (inclusive
internacional que cobria o evento) levanta suspeitas sobre os militares. A contenda entre
o governo e a “Linha Dura” se resolve por concessões mútuas: o I Exército conduz uma
investigação que conclui que a bomba foi plantada no carro dos militares, que
executavam uma missão de rotina, e a partir daí não há mais atentados.

Após o episódio, e alegando “divergências irreconciliáveis”, Golbery do Couto e


Silva (1911 – 1987, general-de-divisão do Exército na reserva, um dos formadores da
política de segurança nacional desenvolvida na década de 1950 na ESG, dirigente do
IPÊS de sua criação em 1961 até o Golpe Militar, idealizador do Serviço Nacional de
Informações – SNI em 1964 e seu primeiro chefe, Ministro do Tribunal de Contas da
União de 1967 a 1969, articulador político e militar, além de ter ocupado posições de
destaque na iniciativa privada) pede demissão da chefia do Gabinete Civil, cargo que
64

ocupava desde o início do governo Geisel, e onde aparecia como principal articulador
do processo de distensão política – a imprensa especula sua disposição em contrário em
relação ao caso do Riocentro e quanto à solução encontrada pelo governo para gerir os
déficits do Sistema Previdenciário, aumentos nos descontos salariais em favor da
Previdência Pública.

Mudanças que reduziam o poder do Executivo sobre as Casas do Legislativo


Nacional prosseguiram em 1982. Nas eleições de 15 de novembro desse ano para o
Congresso e Executivos estaduais, a oposição conquista maioria na Câmara, mas o PDS,
novo partido governista, manteve o controle sobre o senado, e ganha 12 das 22 posições
de governos estaduais, garantindo ainda a maioria no Colégio Eleitoral que escolheria o
próximo presidente, segundo nova legislação eleitoral, contudo e obviamente ainda por
via indireta.

Em 1983, com o agravamento da crise econômica, os trabalhadores que vinham


de um processo de reorganização sindical e greves desde 1978 (embora as legislações
sobre sindicatos não tenham mudado, a exceção dos Atos Institucionais, o processo de
distensão e novas lideranças imprimiram ânimo novo no movimento sindical) iniciaram
greves contra as seguidas mudanças na política salarial, além de reinvindicações
políticas, pelo rompimento com o FMI e pela decretação da moratória internacional – a
greve geral de julho gerou mais de oitocentas prisões só na Grande São Paulo, e
intervenção nos sindicatos dos bancários e metroviários. Em agosto desse ano
representantes do movimento sindical se reuniram em São Bernardo do Campo/SP para
o I Congresso Nacional da Classe Trabalhadora – CONCLAT. Nesse que contou com a
participação de movimentos sindicais urbanos, rurais, e outras denominações, decidiu-
se pela fundação da Central Única dos Trabalhadores – CUT como alternativa para a
congregação e diálogo de organizações de trabalhadores, e que congregou cerca de
quinhentas entidades sindicais, havendo seu crescimento considerável nos anos
seguintes e tendo dirigido as principais campanhas do movimento sindical de então.

No período de quatro meses a partir de janeiro de 1984 (em menor proporções,


desde março do ano anterior), têm lugar grande número de comícios em favor de
eleições diretas em todos os níveis, inclusive para a Presidência da República. Essa
campanha de movimentos civis e políticos, que conseguiu ampla penetração social –
seus articuladores contabilizam trinta milhões de brasileiros mobilizados durante todo o
65

período – e que ficou conhecida por “Diretas Já!” estava atrelada à votação de uma
Proposta de Emenda Constitucional, a PEC nº 05/198, submetida ao Congresso
Nacional em 2 de março de 1983 pelo deputado do PMDB Dante Martins de Oliveira
(1952 – 2006), por isso chamada “Emenda Dante de Oliveira”, que inclusive marcava
para 15 de novembro de 1984 a eleição direta para presidente. A influência e destaque
que ganhou a campanha produziu reação negativa por parte do governo: para evitar que
as manifestações conseguissem eco junto aos membros menos fiéis ou submissos da
bancada governista, e como demonstração de força visando intimidar os políticos do
Congresso, o governo federal decreta estado de emergência em Brasília e dez
municípios de Goiás, tendo por justificativa oficial defender os parlamentares de uma
“coação popular” – o Congresso Nacional foi cercado, manifestações debeladas,
barreiras em estradas de acesso à capital federal montadas por agentes da força policial
sob o comando do general Newton de Araújo Oliveira e Cruz (1924, então chefe do
Comando Militar do Planalto), na véspera da votação da PEC na câmara, dia 24 de abril.
No dia seguinte, a Emenda Dante de Oliveira foi posta em votação em um plenário
esvaziado pelo bloco governista – não pode continuar sua tramitação ao Senado por
falta de 22 votos para se obter os dois terços de aprovação necessários.

Definida a forma da eleição, houve uma crise político-institucional envolvendo o


partido governista, o PDS – José Sarney, contrariado pela ação do governo em prol de
Paulo Salim Maluf (1931) e do destaque que esse angariava nos quadros do partido,
renuncia à presidência do PDS – a partir daí cria-se uma indisposição entre políticos
profissionais e os quadros de apoio das forças armadas, que inviabilizam o continuísmo
através do candidato oficialmente escolhido pela presidência. A possibilidade de uma
ação militar repressiva, com o objetivo seja de impedir ou deslegitimar a escolha do
Congresso, seja para garantir uma extensão do mandato de Figueiredo, era relatada na
imprensa. Em 5 de dezembro de 1984, em pronunciamento diante de mais de setenta
oficiais-generais das três forças, Figueiredo acalma a opinião pública, o meio político e
os diversos setores sociais interessados no retorno à uma normalidade democrática, ao
conclamar seus pares ao respeito ao resultado das eleições presidenciais.

O fim de um ciclo de vinte e um anos de sucessivos presidentes militares ocorreu


em 15 de janeiro de 1985, quando o Colégio Eleitoral decidiu pela vitória do candidato
da oposição, Tancredo Neves, por 480 votos contra 180 do candidato governista, Paulo
Maluf, havendo 17 abstenções e nove ausências.
66

Tancredo de Almeida Neves (jurista, empresário e político mineiro, 1910 –


1985), filiado ao PMDB mas representando um movimento político que se intitula
Aliança Democrática, falece em 21 de abril de 1985. Seu Vice, José Sarney, que havia
comparecido frente ao Congresso 39 para a posse em 15 de março representando-o,
assume definitivamente a Presidência com aval do Legislativo.

José de Ribamar Ferreira de Araújo Costa (1930), conhecido como José Sarney
(em homenagem ao pai, Sarney de Araújo Costa) tem o mandato marcado por uma série
de medidas para se conter a inflação como o "Plano Cruzado" – foram em sucessão
quatro “Planos” que envolviam congelamento de preços, abonos salariais e mesmo a
moratória da dívida pública com o objetivo de fugir-se à recessão e reduzir a inflação.
Contudo, o mandato Sarney é notável pelos esforços de redemocratização política: a
convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte é um enorme passo adiante nesse
processo. Seria formada por membros do Congresso eleitos por voto direto em 1986, e
por senadores em atividade: políticos antes impedidos de exercer seus cargos e outros
exilados fariam parte da comissão, partidos políticos que estavam na clandestinidade já
tinham sido legalizados. A Constituinte é instalada em 1º de fevereiro de 1987 e termina
com a promulgação da “Constituição Cidadã” em 5 de outubro de 1988.

As primeiras eleições diretas têm por candidato eleito, em dois turnos, Fernando
Affonso Collor de Mello (1949), do Partido da Reconstrução Nacional – PRN,
Presidente mais jovem da história do Brasil ao assumir o cargo em 15 de março de
1990. Seu impedimento, e condenação à perda de direitos políticos por oito anos
ocorreriam em 29 de dezembro de 1992, sendo fruto de ampla e livre cobertura da
imprensa sobre denúncias de irregularidades fiscais e corrupção, conjugada a uma
mobilização emergente de grupos sociais e políticos – ocorreu segundo os trâmites
legalmente estabelecidos, sem aceno de qualquer tipo de intervenção salvacionista por
parte das forças militares.

39
Tancredo Neves vinha sentindo dores abdominais desde 8 de março. No dia 13 desse mês, diante da
insistência de seu médico para que se internasse, recusa usando como motivo a necessidade de o máximo
de normalidade e transparência necessárias à transmissão do cargo, de modo a não haver quaisquer
questionamentos políticos ou técnicos possíveis. Na madrugada do dia 15 sofre a primeira de seis
cirurgias. Houve dúvidas sobre a legalidade e a pertinência de Sarney assumir o papel do Presidente eleito
na cerimônia de posse: Ulysses Guimarães, então presidente do PMDB e da Câmara, seria o sucessor
óbvio neste caso – contudo, mesmo diante da pressão por parte de grupos de seu partido, declina em favor
do Vice, compreendendo a importância de legitimar-se a decisão do Colégio Eleitoral; Figueiredo, que
havia sido contrariado por Sarney durante as prévias do PSD, poderia causar um impasse, mas esse é
contornado ao decidir-se que não haveria cerimônia de transmissão do cargo. Na posse, José Sarney lê o
discurso preparado para Neves, e as escolhas para os cargos ministeriais desse são mantidas.
67

O apostolado do polonês Karol Józef Wojtyła (1920 – 2005), o Papa João Paulo
II, tem início em de 16 de outubro de 1978. Unia-se a necessidade de renovação dos
quadros do Catolicismo Apostólico Romano, a doutrinação segundo as recentes
determinações da Igreja, com a política de (re)popularização da fé católica empreendida
por este sumo pontífice, que promoveu o maior número de beatificações e canonizações
dentre os papas, além de viajar com assiduidade e procurar lidar aberta e
frequentemente com líderes e representantes de outras religiões, mesmo não cristãs.

Wojtyła tinha apelo inaudito devido à sua história pessoal (viveu e frequentou
um seminário clandestino numa Polônia ocupada pelas forças nazistas, depois cooptada
pelo bloco da URSS), seu carisma e habilidade em discursos e junto à imprensa, sua
juventude (eleito com apenas 58 anos) e hábitos sui generis para alguém de sua
posição: escrevia poesia e para o teatro, praticava esportes. Contudo, João Paulo II foi
também um conservador afeito à ortodoxia e ao centralismo romano em muitas facetas
de seus posicionamentos formais e atuação, seja quanto à ordenação de mulheres e seu
papel na sociedade, seja quanto à Teologia da Libertação (por seu apelo marxista,
classista: o envolvimento geopolítico da ICAR e o contra-comunismo foram palavra de
ordem em seu período), entre outros pontos. A figura e obra desse “Papa para a
Juventude” ainda são tanto motivo de fascínio quanto de controvérsias.

Nunes salienta em sua obra de 1985 as mudanças que se faziam sentir na ICAR
brasileira, e que essas não eram endógenas de forma alguma à esfera institucional: havia
um diálogo franco com a nova conjuntura sociopolítica nacional. Pode-se propor que
um dos méritos de Nunes está em perceber que, diante das “condições internas geradas
pelo posicionamento divergente entre diversos segmentos”, a Igreja Católica no Brasil
poderia optar por um discurso modernizante em consonância aos dos movimentos
inovadores e de reforma social (em diversos graus de compromisso, do formal ao
radical), ou retroceder para sua base no tradicionalismo. A Igreja no país estava dividida
e seus membros participavam “de uma ampla gama de posições ideológicas brasileiras”.
Nos anos seguintes esse quadro será submetido às pretensões de Roma no contexto de
um novo quadro geopolítico: os caminhos a seguir seriam ditados a partir de então pela
Santa Sé, que influencia diligentemente a reforma dos quadros da CNBB, e “preme
paternalmente” os elementos em desalinho a abandonarem condutas divergentes.
68

Capítulo 3 – A Década de 1990

A Igreja Católica é uma instituição que se pretende ideologicamente homogênea


e apresenta forte estrutura organizacional-hierárquica, o que não é de causar estranheza
numa organização que atravessou quase dezessete séculos da História, Cismas e
movimentos “heréticos”, as Inquisições, a Reforma e sua Contra Reforma, e chega ao
século XXI professada por mais de um sexto da humanidade, detendo ainda poderes de
Estado (a ICAR tem sede de muitos de seus organismos na Cidade do Vaticano,
território soberano e “menor país do mundo”, mas é na pessoa de direito internacional
distinta da Santa Sé que possui assento como Estado Observador Permanente, Não-
Membro, da ONU desde 1964 [RANGEL, 2012]: ainda que sob uma série de restrições
em relação a membros permanentes – e.g., não possui direito a propor matérias, ou a
voto –, é uma prerrogativa única entre representantes exclusivamente de religiões). A
resistência à mudança efetiva pelos quadros dirigentes, salvo em situações limite, é a
resposta tradicional: daí propostas proféticas40 serem rechaçadas ou circunscritas aos
“limites de tolerância” em voga, transformando-se de potencialmente revolucionárias
em formalmente adaptativas.

Ocorre hoje com as declarações a ações de Bergoglio acerca da plenitude de


pessoas LGBTIs como irmãos em Cristo, mas não como indivíduos, católicos, livres
para exercerem sua sexualidade sem entrarem em pecado. Trata-se de afirmação de um
discurso novo, mas que não é seguido de práticas inovadoras – longe de ser vazio de
significado, contudo, peca pela deliberada restrição de seu potencial libertador absoluto.
Idem para os divorciados: aqui, contudo, afigura-se um posicionamento firme contra a
exclusão dessas pessoas da comunidade, e a determinação formal que se permita terem
seus filhos de casamentos civis posteriores ao matrimônio batizados em seu nome (há
declarações que acenam com a possibilidade da anulação de um primeiro casamento
religioso sob certas circunstâncias, o que concederia liberdade de participarem
plenamente do sacramento da comunhão, centro da vida católica – o que é impossível, a
partir da interpretação atual dos dogmas católicos, pois estariam incorrendo no pecado
do adultério). A orientação papal para que o pecado do aborto possa ser perdoado por
qualquer sacerdote (como se trata de pecado sujeito à excomunhão segundo o Direito
Canônico, somente certos elementos superiores na hierarquia seriam autorizados a

40
Compreendidas como críticas a uma ordem preestabelecida.
69

orientar o sacramento de penitência e reconciliação dos envolvidos) no Ano Jubilar


Extraordinário da Misericórdia 41 foi celebrada por fiéis católicos que aguardam
mudanças, recebida com ceticismo pelas CDD (“Afinal, [merecemos perdão] só no Ano
Jubilar?”), e desprezo por muitas entidades feministas (“Quem Precisa de Perdão?”).

A “adaptação” aconteceu no passado propostas de vanguarda e que chamavam à


uma mudança efetiva, no âmbito das diversas teologias nascentes (notoriamente a
Teologia da Libertação e a Feminista), da amplitude de ação das CEBs e Pastorais.
Escrever sobre essa retração católica é escrever sobre as demandas da Modernidade
que não foram contempladas, as “metas” do CVII e as determinações posteriores que
não foram atingidas. É também falar sobre as contestações fundamentais das Católicas
pelo Direito de Decidir – CDD e de outros grupos leigos ou de elementos da própria
hierarquia oficial, e entendê-las como propostas que possuem sua própria história.

3.1. Centralização da Igreja Católica e Ascensão de Outros Atores


3.1.1. O Retorno ao Conservadorismo e Centralização Católicos

Clodovis Boff42 [LESBAUPIN et all., 1996] coloca a ordem de importância dos


problemas da ICAR, segundo seus elementos mistéricos e empíricos, por ocasião do
final do século passado, no Papado João Paulo II:

 Problemas Espirituais: compreensão através da interpretação trinitária;


 Problemas Pastorais: “Povo de Deus”;
 Problemas Organizacionais: “Organização Hierárquica”.

Proceder à análise de conjuntura da ICAR é tarefa intricada devido à antiguidade


da instituição e sua complexidade. Outro elemento que impõe dificuldade é o bias
subjetivo do analista devido às suas “opções (...) tanto religiosas como políticas”.
Ambos os fatores contribuem para a morosidade quase inerte de qualquer reforma ou
revisão efetiva no pensamento da Igreja.

41
Vide no sítio on-line <http://w2.vatican.va/content/francesco/pt/letters/2015/documents/papa-francesco
_20150901_lettera-indulgenza-giubileo-misericordia.html>, visitado em 15 de dezembro de 2015.
42
Frei Clodovis Boff (1944) é Doutor em Teologia, filósofo, professor universitário, escritor e frade da
Ordem dos Servos de Maria. Como o irmão, foi adepto da TL – ao contrário de Leonardo Boff (1938),
optou por rever seus princípios depois de punições brandas da ICAR, e hoje se alinha a uma “opção pelos
pobres atuante, evangélica e missionária, mas sem instrumentalização da fé pela política”. A presente
secção é baseada em seu artigo “Uma Análise de Conjuntura da Igreja Católica no Final do Milênio”
presente em [LESBAUPIN et al., 1996] – citações serão feitas somente quando a contribuição vier de
outro autor.
70

O autor aponta que a situação da ICAR era de “certa inércia no norte


[desvitalização] e dinamismo [criatividade pastoral e perspectiva histórica] no sul”,
principalmente após o Concílio Vaticano II. Elemento a ser pensado é a questão do
individualismo na religião, constitutivo da modernidade. Esse “individualismo” não é
exatamente ou tão só a vivência pessoal da crença pelo fiel, mas refere-se à liberdade
litúrgica e autogestão paroquial, comunitária, como também à adoção de estatutos e
práticas de caráter democrático, que permitam um efetivo debate acerca de tópicos
constitutivos da práxis e dos códigos do Catecismo.

A Igreja Católica ainda é construída numa estrutura rígida e burocrática que


determina os aspectos principais da doutrina e acessórios, de organização funcional à
litúrgica – não é uma rede que se adapta, mas que na maior parte das vezes, constrange.
A essa característica se contrapõe a “força propulsiva” das “múltiplas demandas
pastorais do mundo moderno”.

Entre os “processos dinâmicos” que ocorreram no “sul” (refere-se aqui ao “sul


econômico”, o Terceiro Mundo ou “Países em Desenvolvimento”) o autor destaca os
seguintes: vários modelos de CEBs; a atividade de Movimentos Leigos; “presença
social ativa”; muito maior número de vocacionados e vocacionadas; teologias
diferenciadas (étnicas ou locais, com franco diálogo com aspectos sociais como as da
Libertação, Feminista, Ecológica); uma “espiritualidade pessoal”, por força das
diferentes experiências religiosas disponíveis.

Boff nos diz que, diante desses quadros diferenciados, o papado do final do
milênio optou por uma Igreja focada na Autoridade e Obediência, em detrimento das
facetas de Comunhão e Participação. Devem-se apresentar essas distintas propostas, e
seus efeitos sobre as dinâmicas internas e externas da instituição.

O Projeto de Igreja adotado pela Santa Sé com ênfase na Cúria Romana e nos
círculos próximos ao Papa, além do próprio, teve duas frentes: a interna, centralista, e a
externa, com “presença social forte”. Por dispares que possam parecer, trata-se de
elementos complementares – uma autoridade calcada na hierarquia, e que impõe (ou
conquista) obediência às suas bases. Não é só a busca por uma restauração ou
imposição de uma “ordem cristã” aos elementos internos, mas também por uma
reconquista do espaço social através de uma Igreja de Poder. A proposta alternativa
propõe o diálogo interno e a missão para o mundo – poderia ser designada como Igreja
71

Companheira. Houve uma migração do último para o primeiro projeto ao longo da


segunda metade do século XX, após o Concílio Vaticano II: entre aproximadamente
1965 a 1986 predomina o paradigma da Igreja Companheira. Daí em diante temos
cerca de dez anos até a “hegemonia tranquila” do projeto centralizador.

Segundo o autor, trata-se da opção que houve por uma dinamização cultural mas
que não foi “institucionalizada” – o projeto participativo se torna viável a curto prazo,
mas não se estabelece como paradigmático: diante da retração numérica de fiéis, do
cenário geopolítico e do novo paradigma para economias periféricas, o papado de
Wojtyła migra para uma solução conservadora (busca anular atividades com possíveis
conotações marxistas, e perdem espaço as iniciativas de valoração de comunidades
minoritárias 43 ) mas que encontra apelo entre os fiéis (principalmente devido à bem
estruturada imagem relacionada ao Papa), e busca principalmente revitalizar os quadros
católicos através de propostas voltadas para a juventude.

O autor aponta esse retorno ao padrão centralizador como uma “maré alta” no
processo de romanização – uma tendência histórica, não transitória, que poderia ter
suas origens fixadas ainda no início do segundo milênio. As características do projeto
concentrar-se-iam da absorção (e “releitura”) pelas estruturas centrais de conjunturas
globais de caráter transformador que, portanto, são marcadas por precariedade e que
não efetivam sua potencialidade no tempo. Restam “ilhas de participação” locais –
paróquias, dioceses, comunidades – sempre sob olhares atentos dos bispos alinhados.

Coloca-se no artigo de Clodovis que a ideia de poder não era dissociada da de


hierarquia – o autoritarismo objetivava a manutenção de uma ordem eclesial interna,
associada à “oportuna intervenção social [externa]”: estratégia de reconquista de espaço
geopolítico e fiéis junto a uma reafirmação da ortodoxia, ou “paternalismo benevolente”
intervencionista defensor dos excluídos? Remete-se a parágrafo anterior, depende do
bias do intérprete. De toda a forma, “alternativas viáveis” concentravam-se num
aumento da participação (trata-se da eclesial em primeiro lugar, e não em um regime
democrático: a participação social tornou-se secundária) em detrimento a iniciativas
progressistas institucionais: não se pode colocar em dúvida a hegemonia decisória das
estruturas superiores romanas.

43
Como todo projeto social, também os de fundo religioso que adotavam abertamente posicionamentos à
esquerda foram atingidos pela lógica hegemônica do Neoliberalismo no final da década de 1980 e ao
longo da década posterior, acompanhada ou não da ação da ortodoxia central.
72

O papado de João Paulo II seria um “autoritarismo esclarecido”: à imagem de


Igreja Universal buscou-se associar a uma de “tutora dos interesses da pessoa humana”.
Houve um profundo esforço de caráter geopolítico e ecumênico: estabeleceram-se
relações diplomáticas ao redor do mundo; combateu-se abertamente o Comunismo, mas
pôs-se nominalmente contra o Capitalismo Neoliberal e Imperialista; advogou-se pela
“paz entre as nações”, mas se praticou uma “ingerência humanitária” que seria a
designação para intromissão em assuntos domésticos nacionais através de
representações internas ou se valendo de organismos supranacionais; pediu-se formal e
abertamente perdão por erros cometidos ou endossados no passado (conivência para
com o tráfico de africanos escravizados, o extermínio de culturas indígenas, o
desrespeito à mulher), mas posicionou-se contra orientações da ONU, “(...) como nas
cúpulas do Cairo (1994) quanto à questão da natalidade, e de Pequim (1995) a respeito
dos direitos da mulher”. O papado tinha à frente um líder indubitavelmente carismático,
mas a Santa Sé assumia um autoritarismo conservador monolítico que beirava o
totalitarismo, como se fez sentir na intransigência quando à ordenação feminina
(oportunidade de real modernização, inclusiva e libertadora, mas negada ainda hoje, por
Francisco I) – só a Roma é dado discutir os Grandes Assuntos.

A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB ocupa seu lugar na


Conferência de Santo Domingo, 1992, do Conselho Episcopal Latino Americano –
CELAM: foi o chamado Sínodo Romano na América Latina, que assinala
categoricamente o alinhamento da Igreja do continente à autoridade de Roma.

As mudanças no quadro da CNBB em 1995 inibiram definitivamente as opções


libertadoras e promoveram maior controle sobre o projeto participativo, contudo a
Confederação continua a manter uma estrutura pastoral (inovou e obteve resultados
favoráveis junto à conversão de jovens, aos chamados católicos “afastados”, e na das
crianças auxiliou no combate à mortalidade infantil; as CEBs passaram por revisão e
retração), e certo incentivo aos chamados Movimentos Leigos. Seu caráter junto ao
governo teve os contornos redefinidos com a fundação em 1991 de sua “Assessoria
Política Permanente”, e passa a tratar de assuntos sociais ou de forma “institucionaliza”
(abraçam causas populares, mas afastam-nas dos meios populares), ou por meio de
declarações, denúncias, e orientações públicas em ocasiões especiais, mas “sem grande
repercussão na mídia, alinhada hoje ao Neoliberalismo”, conforme o autor.
73

Alternativamente, a CNBB prosseguiu com as Campanhas da Fraternidade,


reafirmou a opção pelos pobres, a adaptação do discurso evangelizador, a dignidade
feminina (V Congresso Missionário Latino Americano – COMLA, Belo Horizonte/MG,
1995) – mas as missas inculturadas (cuja linguagem era francamente adaptada para
atender a certo grupo social, estabelecidas em 1979 pelo Diretório para Missas com
Grupos Populares da CNBB) foram suprimidas por ordem da Santa Sé, ainda no início
do papado João Paulo II (1982): pode-se mencionar a “Missa da Terra Sem Males”
(voltada a aspectos das culturas indígenas) e a “Missa os Quilombos” (cultura afro-
brasileira). No que se refere à faceta institucional, temos esforços voltado na construção
de uma rede de mídias: fundação de estações de rádios e canal de televisão. Replicou a
estrutura de concentração de poder da Santa Sé, priorizou o projeto, a meta, ao invés do
processo, do método: opta-se pela norma ao diálogo.

As mudanças na Conferência foram levadas a cabo através de nomeações bispais


ad nutum et placitum, “por vontade e agrado” de Roma. Essa opção, além de selecionar
uma cepa de autoridades eclesiásticas neoconservadoras, dispostas ao combate
ideológico com os “adversários da Igreja [e da ortodoxia]” e leais ao Centro (e que
replicarão a opção nos níveis inferiores da hierarquia), promove o controle da
importância e da liberdade das Conferências Episcopais e das próprias Sés: bispos
inexpressivos são designados para metrópoles importantes (de forma a não se criar
lideranças locais fortes e com condições de independência), as nomeações são feitas a
despeito das expectativas das paróquias locais, e “rebeldes” são “enquadrados”. Os
movimentos descritos aqui foram estratégia do Vaticano não exclusiva do Brasil, mas
espalhada pelo Globo – as determinações foram mais abruptas e duras na África, por
exemplo, que teve seu Sínodo realizado na própria Roma.

Aos membros eclesiásticos dedicados aos estudos teológicos, estabeleceu-se


disciplina limitativa: o documento da Congregação para a Doutrina da Fé “Vocação
Eclesial do Teólogo” (julho de 1990) proíbe o dissenso teológico, instituindo na prática
uma produção limitada segundo a hierarquia. Tornou-se requisito aos professores de
teologia “a exigência canônica da ‘profissão de fé’ e do ‘juramento de fidelidade’”.
Propõe-se que os estudos de seminaristas e leigos ou leigas sejam conduzidos
separadamente. Propostas teológicas inovadoras são limitadas a algumas instituições
que guardaram certa autonomia através de seu prestígio, ou rechaçadas.
74

Aos religiosos ordenados solicitou-se mudança na opção de Superiores (a maioria


das Ordens adotou diversos regimes de eleição autônomos, seja ela democrática ou
representativa de seus Superiores), e nos estatutos das Ordens exigiu-se cláusula
explícita de Obediência ao Papado. Aos seminaristas determinou-se o retorno ao
regime de internato, e a exclusão de membros leigos. O autor aponta que se reforçou
uma imagem para os estudantes do sacerdote aparte da sociedade, “homem do sagrado”.
Contestações quanto ao celibato foram suprimidas.

Em resumo, o período de João Paulo II à frente da ICAR caracterizou-se pela


opção de se constituir “uma Igreja de autoridade/obediência e não a de uma Igreja
comunhão/participação”. Pergunta-se se esta não foi opção deliberada, de forma a
fortalecer seu caráter e prerrogativas enquanto ator político numa realidade globalizada.

3.1.2. A ICAR Brasileira Perde Fiéis

Segundo os censos dos anos de 1960 a 2010, é indiscutível a retração na


magnitude percentual da comunidade brasileira auto declarada católica, além da
redução na taxa de conversão ou “reposição” de fiéis (ou seja, há tendência à queda na
parcela da população católica, e mesmo uma redução em números absolutos: o que de
fato ocorre entre 2000-10). Outros atores sociais no campo da religião ganharam seu
espaço – o censo de 1991 mostra o retrato de uma sociedade em que os “sem religião”
podem se tornar parcela expressiva (cerca de 5% em 1991, crescem para mais de 8% em
2010). O grupo designado como “espírita” mantêm uma taxa de crescimento oscilante,
mas positiva no intervalo entre os censos 2000 e 2010 – é o maior índice de crescimento
positivo da série: em termos absolutos, sua população manteve-se sempre crescente. Os
diversos ramos do protestantismo, designados genericamente pelo IBGE como
“evangélicos”, tem uma taxa de crescimento positiva, mas de magnitude decrescente
com o tempo até o Censo 1980. A partir daí sua taxa de crescimento percentual evolui
de maneira crescente até o último levantamento, quando representam mais de 20% dos
brasileiros. Em termos absolutos, sua população sempre teve crescimento positivo
(desde o início da série de dados, em 1872 – 1890), quase que dobrando a cada
levantamento até o Censo 201044.

44
Fonte dos dados, Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, Séries Históricas e Estatísticas:
“População por Religião”. Disponível on-line em <http://seriesestatisticas.ibge.gov.br/series.aspx?
no=10&op=0&vcodigo=POP60&t=populacao-religiao-populacao-presente-residente>.
Consulta feita em 06 de setembro de 2015.
75

3.2. O Movimento Social Após a Queda do Muro

Nesta seção deve-se fazer um retrospecto sobre a adoção de um novo paradigma


econômico pelo governo brasileiro oficialmente em meados da década de 1990, seu
histórico de implementação e impacto imediato. Esta é contextualização para a seguinte,
que discorre sobre a alteração dos modelos de atuação da sociedade civil organizada: a
ascensão de OSCIPs como representantes profissionais de causas sociais e/ou
minoritárias, e a abertura pelo Estado de brechas, em seu papel de promotor e garantidor
de políticas de inclusão social e direitos, à atuação de atores particulares.

A queda do Sistema Soviético leva com ele a principal referência de alternativa


ao capitalismo ocidental – está-se propondo uma visão geopolítica um tanto rasa, e
ignorando os particularismos e a diacronia do chamado Socialismo Real, contudo é
inegável que sua concepção mesmo que idealizada serviu como base para a formação
de muitos Movimentos Sociais ou sua manutenção [GOHN, 2007].

Na data em que este é escrito, passa-se por um momento histórico de “negação


da esquerda” e uma “vontade de um retorno” a um conservadorismo por parte de alguns
setores sociais, notavelmente os médios, cujo mote é justamente o “vai para Cuba”,
associado ao “vou para Miami” – não é necessário ser cientista social para identificar
quem são, no imaginário defasado em relação à realidade econômica e política dos
participantes desses grupos de facebook, os “Blocos Contrapostos”. Ainda que a
referência tenha perdido muito de sua validade diante das políticas de assistência social
propostas pelo Presidente dos Estados Unidos, e da reaproximação entre os EUA e o
Estado cubano que no momento é empreendida pelos governos de ambos os países (até
mesmo com a proposta de supressão do embargo comercial à ilha, datado ainda de
1962), serve-nos como indicativo que no imaginário de uma parcela consistente dos
brasileiros, o atual Governo Federal (formado por uma teia complexa de alianças da
qual o partido formalmente de governo é quase refém, além desse desgastar sua imagem
pública com “carguismos” e denúncias de improbidades) seria alinhado a uma “agenda
da esquerda marxista revolucionária”, “bolivariana”, e não a uma perfeitamente
identificável lógica financeira internacional, com relações entre Mercado e Estado
focadas no “crescimento”, economia estatal “obcecada” por números, e que acena até
com sensíveis retrações nas políticas sociais conquistadas em anos anteriores,
notavelmente aquelas relacionadas à educação.
76

3.2.1 A Situação Político-Econômica Brasileira na década de 199045

O chamado Consenso de Washington é um conjunto de instruções e medidas, de


caráter econômico e político, a serem implementadas por economias periféricas e/ou em
crise de forma a ajustá-las a uma lógica global que pode ser chamada Neoliberal: a
despeito das críticas quanto a um uso “abusivo” do termo o fato é que, diante da crise
das crises do capitalismo global de meados da década de 1970 e 1980, com ênfase
especial na América Latina, e a migração para um capitalismo financeiro dolarizado,
houve espaço para propostas alternativas ao Paradigma Keynesiano ou do Estado de
Bem-Estar Social popular desde a crise de 1929 [CORSI, 2010].

Esse “programa de estabilização e reforma econômica” foi influenciado pelo


trabalho do economista John Williamson 46 , membro do Institute for International
Economics dos EUA (que se define como instituição privada, sem fins lucrativos,
dedicada ao estudo da política econômica internacional), e foi adaptado pelos quadros
do Fundo Monetário Internacional – FMI e do Banco Internacional para Reconstrução e
Desenvolvimento – BIRD (instituição do Banco Mundial), sendo o pacote de ações
padrão para os países em desenvolvimento – em meados da década de 1990, mais de
sessenta países seguiam essas medidas.

Acatar as instruções do CW implica certamente em promover uma estratégia de


“homogeneização das políticas econômicas nacionais”, que deve preferencialmente ser
posta em prática por membros das equipes técnicas de bancos mundiais, economistas
vinculados a essa doutrina macroeconômica e technopols. O trabalho de Williamson que
deu origem ao CW foi o Search of a Manual for a Technopols, e as recomendações do
Consenso são ineficazes sem a presença dessa figura.

Um technopol possui dois objetivos principais: vencer a eleição para o mais alto
cargo executivo da nação e implementar as recomendações do Novo Paradigma. A
vitória nas eleições (ou equivalente) não é um simples exercício de desejo de poder pelo

45
A principal referência para esta seção é o texto “Os Moedeiros Falsos”, de José Luís Fiori [FIORI,
1995], e sua discussão – e de outras fontes – nas aulas do Professor Dilson Motta, “Jovens Pesquisadores
– Uma Abordagem Metodológica”, oferecida no segundo semestre de 2014. Quaisquer equívocos
conceituais e todas as colocações são de responsabilidade tão só e unicamente do autor deste texto.
46
John Willianson, inglês nascido em 1937, é economista de formação que se tornou especialista em
política monetária internacional. Foi, entre outros, consultor econômico do Tesouro britânico, conselheiro
do FMI, e ocupou cargo de destaque no Banco Mundial. Em paralelo, cultivou carreira acadêmica que o
trouxe à PUC-RJ, onde foi colega de Pedro Malan, Ministro da Fazenda durante os dois mandatos FHC, e
professor de Armínio Fraga, presidente do Banco Central brasileiro entre 1999 e 2003.
77

poder, mas uma etapa a ser galgada para a concretização do segundo objetivo,
compromisso verdadeiro do agente – e como as demandas dessa agenda são amplas e
requerem tempo, manter-se no poder e angariar maioria no que se refere a apoio
político são seus objetivos secundários: sem a manutenção das posições do Consenso
não há vitória real para o technopol. Fiori nos diz que eles são “economistas capazes de
somar ao perfeito manejo de seu mainstream (evidentemente neoclássico e ortodoxo) à
capacidade política de implementar nos seus países a mesma agenda política do
consensus”.

José Luis Fiori organiza o programa a ser implementado de acordo com as


recomendações do Consenso em três fases paradigmáticas, que aqui enumeramos:

1º. Estabilização Macroeconômica, etapa na qual se deve priorizar o superávit


fiscal primário 47 . Também são elementos característicos a “revisão das
relações fiscais intergovernamentais” (assunção de dívidas externas e
renovação do compromisso de continuar arcando com as mesmas) e a
“reestruturação dos sistemas de previdência pública” (esta é reiteradamente
apontada como vilã para uma “economia saudável”);
2º. Reformas Estruturais: aqui temos talvez a etapa que foi mais notória para a
população brasileira, devido a um de seus elementos centrais: a privatização
de empresas nacionais. Ademais, inclui-se neste passo a liberação
financeira e comercial, e a desregulação dos mercados, que significam um
decréscimo na relevância do Estado na esfera econômica, e um aumento
inevitável na importância de atores nacionais e internacionais do setor
financeiro, e a dolarização da economia;
3º. Retomada dos Investimentos e do Crescimento Econômico. Essa fase, como
compreendido, se baseia profundamente na atração de capitais financeiros de
alta rotatividade e de investimentos mais sólidos através de uma propaganda
fundada em resultados absolutos: “índices”, “números”, que traduziam a
sanidade da economia do país.

47
Superávit Fiscal Primário: grosso modo, trata-se do montante que o governo “economiza” - ou seja, a
arrecadação efetiva minorada das despesas públicas. O índice tornou-se medida de confiabilidade nos
governos FHC, pois financiava o pagamento dos juros da dívida pública e demais compromissos
assumidos.
78

Antevemos o elemento que se torna chave para o technopol: garantir a


credibilidade daquela economia dentro do cenário global buscado pelos investidores, a
capacidade daquela nação de assumir e arcar com as dívidas e contratos.

O “fator político” e a propaganda revelam-se cruciais por motivos que são até
certo ponto previsíveis: o programa, por ser extremamente austero, mesmo que ignora
pretensões de realização na área do social e até resulta em efeitos perversos à maior
parte da população. Ocorre que em regimes democráticos a permanência do, e apoio ao,
governo dos technopols depende da aprovação dos eleitores – aqueles devem, portanto
usar de habilidades midiáticas para convencer a esses de que os ônus quanto às
realizações sociais é passageiro, e que o quadro econômico e social interno será
normalizado ou otimizado em longo prazo. Justamente por essa característica da
agenda, ela é mais facilmente implementada em sociedades que estão passando ou
recentemente atravessaram grande estresse social (como guerra ou hiperinflação), ou
seja, cuja população não se encontra predisposta a opor resistência, sobretudo a um
regime econômico propalado como “salvador” e que apresentaria resultados
miraculosos em curto prazo. Assim como era o Brasil de 1994.

Fiori deixa claro que o Plano Real é representante legítimo desta classe de
Planos de Estabilização, e FHC um technopol exemplar. Primeiramente, o Real
apresenta as características padrão aludidas no CW – ajuste fiscal, reforma monetária,
reformas liberalizantes, desestatizações (por vezes irresponsáveis para com o Erário,
como foi o caso da Companhia Vale do Rio Doce). Vai além e inverte o esperado, mas
que se torna óbvio dentro da lógica do Consenso: não é o Real a ferramenta que serviu
para alavancar a eleição de Fernando Henrique, mas a pessoa pública de FHC que foi
formulada para dar tornar viável o Plano Real, e gerar uma coalizão de poderes
(reinfundir ânimo nas antigas oligarquias que se encontravam segmentadas) capaz de
por em prática e sustentar o programa de reformas planejado. Até mesmo a reeleição,
matéria de destaque do último biênio do primeiro mandato FHC é, como visto,
procedimento padrão para gerar a estabilidade prolongada de poder necessária.

O próprio FHC aponta Fiori como um de seus críticos mais lúcidos, embora
negue veementemente qualquer subserviência à programática do Consenso
[CARDOSO, 1995]. Nega explicitamente que haveria uma política de clientelismo para
com velhas oligarquias, e prefere conceber seu (então possível) futuro mandato como a
79

tentativa de efetivar uma proposta de destino para o Brasil através de alianças que
possam realmente concretizá-las. Procura compreender o período de transição em que o
país vivia quando foi Ministro da Fazenda como “uma tentativa para assegurar
condições de governabilidade e para permitir que o país chegue às eleições”. Aponta
suas propostas como uma resposta não neoliberal, mas sim socialdemocrata aos desafios
que se impõe (como os interesses corporativos – que teriam inundado a máquina pública
–, o “atraso” do empresariado industrial brasileiro e a dependência crônica do
capitalismo nacional dos equivalentes estrangeiros).

Os termos do Consenso resolvem o dilema das economias periféricas quando


pretendem ingressar na realidade global, da melhor forma para a última. O impacto
dentro dos Estados leva a uma reorganização de papéis, poderes e coalizões – o Brasil
apresentava antigas elites regionalizadas, um empresariado que via de regra se sentia à
vontade no (histórico) papel de coadjuvante quanto aos ditames do investidor
estrangeiro, uma máquina estatal em falida e a economia em crise após o governo
Collor. FHC abandona qualquer projeto de reforma profunda e procura congregar essas
elites antiquadas e autoritárias, e também a grande imprensa (seus “amigos”, como
declarou recentemente sobre as propostas de regulação da mídia). Surge como guia
perfeito desse empresariado nacional médio inerte. Apresenta projetos de reformas do
papel do Estado na economia que livrariam a sociedade do peso de “empresas estatais
onerosas”. Estabelece quando ainda Ministro da Fazenda do Presidente Itamar Franco, e
como sendo de sua concepção, esse conjunto de medidas a seguir para a recuperação
econômica, e que vêm a ser um “sucesso instantâneo”: o Plano Real, regido pela cartilha
do FMI e BIRD.

FHC é eleito sob uma bandeira de centro-direita, com apoio de setores sociais
retrógrados e autoritários. Sua Modernização Neoliberal contribui para maior
estabilidade da economia em relação aos períodos anteriores, contudo tornando-a
extremamente dependente do capital estrangeiro (e de eventuais crises mundiais) e
impondo um regime de juros básicos altos que atrai investidores, mas que multiplica a
dívida externa (essa é atualizada pelo índice de juros local). Efetivada em um país
continental e profundamente desigual como o Brasil, e caracterizada por relegar
questões sociais a enésimo plano, é difícil não conjecturar que contribuiu para o
recrudescimento real de diferenças regionais e para uma efetiva concentração de renda.
80

Num universo econômico de capitais fugidios, que obedecem a uma lógica de


otimização de ganhos em escala global, potencializada por um aparato tecnológico que
suscita a comunicação e as operações em tempo real, os tecnopols e as medidas e
instruções do Consenso de Washington se revelam plenamente viáveis: uma economia
fixada em números, em propaganda política, sempre “absoluta”, que afasta os fantasmas
da desestabilização e das moratórias – diante dela e por causa dela todos os elementos
“acessórios” podem e devem (de acordo com a posição no ranking de PIBs e a
“capacidade de arcar com a dívida”) ser sacrificados. Não é uma política
socioeconômica que se pauta por atender às necessidades sociais – essas devem ser
mantidas em suspenso, sempre até que “o bolo cresça”.

Mostrou-se que os governos FHC compreenderam em sentido literal o "papel


mínimo do Estado na economia" (inclusive a industrial pesada e de base) diante das
sucessivas privatizações de empresas públicas e abertura de capital de outras, e da
redução em importância do, e apoio ao, investidor interno: dinamizou-se o mercado,
mas a burocracia estatal, despreparada e com vícios antigos, não logrou cumprir seu
papel como juiz das novas parcerias diante das necessidades da sociedade. Outra face
desse governo foi o oposto – no que tange o sistema financeiro, o Estado atuante como
provedor de bancos: não há meio para investidores sem o aparelho bancário, e a
sanidade desse é também lastro para a economia.

Percebemos então que é uma política econômica centrada, "viciada" mesmo, em


números, em índices, no Superávit Fiscal Primário, na capacidade de arcar com a dívida
interna e (principalmente) com os juros da externa, na habilidade de manter ganhos
sobre papéis do tesouro e outros investimentos atraentes, na perspectiva de crescimento
(sendo que esta ignora completamente avanços socioeconômicos nacionais e locais que
não sejam imediatamente traduzidos em números). Sua face social é muitas vezes
limitada a um esforço de propaganda e convencimento – reeleição é a pauta importante,
já que as mudanças profundas que a agenda demanda dificilmente conseguem ser
resumidas a quatro anos de mandato; há verdadeiramente também a necessidade de se
criar um sentimento ilusório na população que faça-a crer no binômio “crescimento –
melhoria de qualidade de vida”. Esse não é de maneira alguma verdadeiro para a maior
parte dela, mas sim uma “miragem” que deve vigorar para que haja boa a recepção das
(ou ao menos a tolerância às) medidas, uma vez que essas serão financiadas em todo ou
grande parte pelos impostos a que está submetida.
81

Outro item que considero notório é o impacto sobre os elementos produtivos


locais da concorrência estrangeira. Sendo essa política uma opção de interferência
estatal mínima, além de câmbio flutuante (com moeda lastreada pela entrada e trânsito
de moeda estrangeira), as indústrias de pequeno e médio portes nacionais não devem ser
favorecidas, excetuando-se alguns casos exemplares; já as indústrias de grande porte e
aquelas que encarnam a "verdadeira vocação" do país (movimentam capital o suficiente
para se tornarem atores políticos) serão beneficiam-se – a soja, o minério, a construção
civil de grande porte. A atração à indústria mundial se dá por isenção de impostos e
outras facilidades – e.g., a automotiva, para a qual as facilidades não foram poupadas a
título de visar “geração de empregos” e redução do custo de venda de seus produtos.

Os tecnopols têm por único objetivo real criar uma ilha de prosperidade para o
capital financeiro internacional, enquanto paralelamente se perpetuam a si e seus aliados
no poder político, muito mais através de manobras de propaganda e medidas que
possibilitem reeleições sucessivas e alianças majoritárias do que por ganhos reais para o
maior seguimento da população. É de fato um jogo em que alguém tem de pagar pelas
medidas de “austeridade”, de atração de capitais externos, de otimização do superávit
fiscal que será alocado para pagar dívidas e efetuar a manutenção da política financeira,
como num ciclo que alimenta a si mesmo: ganhos sociais efetivos não são a prioridade,
e podem até a serem empecilhos aos termos do Novo Paradigma.

Novamente: na lógica econômica que nos foi apresentada não existe prioridade,
muitas vezes sequer lugar, para medidas voltadas para o bem-estar social. Ela é
composta de soluções padrão e homogeneizadas visando à manutenção de uma
economia global, calcada no dólar, e que atende prioritariamente aos interesses de
analistas financeiros e grandes investidores e manipuladores de capital.

Mercado, Estado, Sociedade Civil. É no Brasil globalizado da década de 1990


que há espaço para a uma “resposta” da SC baseada em redes de colaboração (a nível
internacional), mobilização civil, pressão política, agência de profissionais, centrada em
pautas como garantia de direitos e inclusão sociais, pluralidade. Essa abordagem possui
maior “desenvoltura” nos ambientes acadêmico, partidário e de mídias. Os Movimentos
Sociais que seguiam padrões clássicos das décadas de 1970 e 1980 (salvando-se
exceções como o MST, que se fizeram presentes na mídia através de ações organizadas
de seus membros) passaram a ocupar papel secundário, ou adaptaram-se.
82

3.2.2. Reação da Sociedade Civil ao Declínio da Democracia

Ivo Lesbaupin 48 traça um breve quadro sobre o diálogo entre o processo


hegemônico do Capitalismo Neoliberal com a Democracia, e como este levou ao
declínio de um paradigma de ação da Sociedade Civil, e sua eventual substituição.

Segundo palavras do autor, Neoliberalismo equivaleria à “submissão total ao


mercado globalizado” por parte não de uma economia, mas de todo um sistema
sociopolítico nacional. Entre outros implicaria em influência direta e costumeira no
sistema político de atores financeiros e empresariais (através de meios legais dúbios –
doações monetárias para partidos ou candidatos –, ou mesmo ilegais – ameaça, suborno,
tráfico de influência –, um “eclipse da ética política”: a plataforma do candidato ou
candidata é a ditada pelas necessidades de seus parceiros, ele ou ela passa a representar
interesses particulares, travestidos de sociais) o que seria uma “restrição nas instituições
e regras democráticas”; ameaça franca aos direitos sociais, que poderiam ser
sacrificados em nome de otimização ou desoneração de setores econômicos (retrocesso
ou desregulamentação das leis trabalhistas e de previdência social, sucateamento e
privatização de serviços e empresas estatais essenciais ou estratégicos); geração de um
exército de excluídos que, incapazes de atender às exigências do mercado diante da
ausência estatal (seja prestando serviços básicos gratuitos e de qualidade, como a
educação, seja como mediador entre necessidades sociais e pretensões de grupos
particulares – enfraquecimento no papel das organizações trabalhistas, como a estrutura
sindical) no melhor quadro se refugiariam na informalidade.

Já foi mencionado que o Sistema Neoliberal (alternativa ao Estado de Bem Estar


Social, 1945 – 1973, cujas crises implicaram numa queda constante nos lucros
capitalistas) exige que o único regulador econômico deva ser o próprio Mercado: o
Estado deve abster-se de suas prerrogativas de controle da Economia e de garantidor de
políticas sociais. Supõe-se que o centro das crises é um Estado oneroso e deficitário – a
solução seria “distribuir responsabilidades”: econômicas para o Mercado, sociais para
os próprios indivíduos (“autogestão do Terceiro Setor”).

48
Ivo Lesbaupin é professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ. É mestre em Sociologia
pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro – IUPERJ, e doutor em Sociologia pela
Université de Toulouse-Le-Mirail, França. É coordenador da ONG ISER Assessoria, do Rio de Janeiro, e
membro da Direção Executiva da Associação Brasileira de ONGs – ABONG. A presente secção é
baseada em seu artigo “Hegemonia Neoliberal, Democracia em Declínio e Reação da Sociedade Civil”
presente em [LESBAUPIN et al., 1996] – citações serão feitas somente quando a contribuição vier de
outro autor.
83

O Neoliberalismo poderia ser designado como, ou sintoma de, uma crise


identitária do Estado Nação Moderno. O processo de produção, comercialização e
prestação de serviços é vigorosamente internacionalizado (busca-se otimizar o lucro em
cada faceta), os capitais financeiros mundiais são dominantes e fugidios, migram
conforme indicadores de viabilidade e confiabilidade econômicas e perspectiva de
retorno: fronteiras políticas perdem importância diante de fronteiras econômicas – nos
casos de “sucesso” do Paradigma, o sistema de governo local se torna incapaz de gerir
ampla e diretamente a economia nacional, concentrando-se em viabilizar condições para
a atração de capital financeiro (taxas de retorno – juros – atrativas, boa recomendação
por avaliadores internacionais, muitas vezes francamente tendenciosos).

As perspectivas de uma economia de concorrência selvagem é a eliminação de


empresas de menor porte dentro de um mesmo nicho (principalmente aqueles que
exigem grandes investimentos iniciais ou intervalo de tempo para se garantir condições
competitivas, e os especializados: financeiro, indústria pesada, aviação, informática),
levando a uma inevitável tendência à monopolização ou cartelização. Outro resultado
lógico é a supressão de vagas e postos de trabalho, e exigência de formações super
específicas e voláteis conforme a situação em voga: aumento do desemprego e ausência
de garantias de emprego, diminuição na remunerações de cargos não essenciais,
“necessidade” de flexibilização de relações trabalhistas para redução de encargos (e.g.,
terceirização de serviços), aumento das atividades informais e trabalho familiar49 (onde
não se tem garantia de direitos trabalhistas e seguridade social). Os advogados do
paradigma afirmam que esses elementos terminariam por aumentarem a estabilidade das
empresas, gerar maior produtividade, melhorar as condições de trabalho e contribuir
para a geração de empregos em longo prazo: julgam ser Toyotismo.

O crescimento no índice de pessoas desocupadas ou sem ocupação possível


(permanentemente desempregadas), a concentração inevitável de renda e o acréscimo
no contingente abaixo da linha de pobreza, todos são elementos que podem induzir a um
aumento nos casos de violência e à ampliação da população carcerária – diante do
despreparo estatal para se promover a inclusão social ou lidar com a defasagem das
instituições de reabilitação, a eliminação física de “indivíduos-problema” pode se tornar
aceitável ou ignorável pelos setores sociais que atingiram determinada estabilidade.

49
Designadas como economias informais ou subterrâneas.
84

A existência da perspectiva de ameaça constante à segurança individual


também geraria oportunidades empresarias, desde segurança privada e vigilância,
indústrias de armas de uso pessoal, até cessão à gestão particular do sistema prisional. O
reforço junto à população pelo setor de mídias (ele mesmo um dos mais bem-sucedidos
monopolistas), ressaltando a inaptidão estatal para a gerência, ou falência, de
determinadas iniciativas econômicas de base e sociais, em colaboração com acadêmicos
alinhados e políticos compromissados “com a causa”, promoveriam a aceitação passiva
de grande parte da população de outras “privatizações modernizantes”. O caso Vale do
Rio Doce, agora Vale SA agora empresa privada administrada em sociedade por um
cartel profissional, ainda é motivo de debate: ressalta a possibilidade de perda de
influência nacional direta sobre setores estratégicos, ônus para os cofres públicos devido
a operações no mínimo tendenciosas e suspeitas, o sempre possível beneficiamento
através de vias públicas de “parceiros políticos” da iniciativa privada, e levanta a
possibilidade da quebra de monopólios estatais servirem a uma redução de encargos
sem necessariamente trazer dinamismo à vida econômica.

“Não falo mal de amigos”, disse Fernando Henrique Cardoso em 2014, a


respeito de propostas de regulação e quebra de monopólios da mídia. Um discurso
unificado instantâneo sobre a “versão oficial”, e a imagem de “consenso nacional” em
torno do projeto são essenciais para se minorar ou eliminar resistências e disputas
internas. A eventual oposição que se erga no percurso precisa ser ativamente
desacreditada e eliminada, o que pode ser feito via distorção ou seleção das informações
que alimentarão o público. Todos esses fatores pervertem o (ou são providos pela
perversão do) real papel da mídia (informar o que seja mais próximo dos fatos: esse
platonismo sobre o Quarto Poder é ainda assim preferível a uma deliberada ação
enquanto partido político informal, que objetiva principalmente à manutenção dos
próprios privilégios e monopólios) e prejudicam o debate democrático, “desqualificado
como alarmista, catastrofismo ou teoria da conspiração”.

Prosseguindo nessa perspectiva de Democracia em Declínio, tem-se por


característica um “inchaço” nas atribuições do Poder Executivo Federal, que passa na
prática a legislar através de Medidas Provisórias50. A anuência do Poder Legislativo –
Congresso Nacional: Câmara dos Deputados e Senado – é garantida “mediante compra

50
Ato com força de Lei, conforme definição e normas explícitas no art. 62, Constituição da República
Federativa do Brasil de 1988.
85

de votos e fisiologismo”. O Poder Judiciário no geral submete-se, diante das


prerrogativas econômico-sociais que seus elementos possuem e angariam, e o Superior
Tribunal de Justiça – STJ, cujos membros são indicados pela Presidência e sabatinados
pelo Congresso, manifesta uma tendência ímpar para a “colaboração”. Organismos
internacionais que não respondem à ONU (Fundo Monetário Internacional – FMI,
Grupo Banco Mundial, Organização Mundial do Comércio – OMC, compromissados
com os interesses das Nações Centrais quanto a certo modelo de estabilidade
econômica mundial) tornam-se livres para propor medidas, cobrar mudanças, e
instaurar sanções em caso de desacordo em relação à Soberania do Capital.

Nesse quadro emerge o protagonismo de Organizações Não-Governamentais


como atores político-sociais no Brasil. Até o fim da Ditadura, sob essa denominação ou
equivalentes, agiam entidades pequenas, cuja maior parte dos membros era originário de
igrejas ou militância das esquerdas – atuavam na educação e organização populares51.
São citadas pela mídia convencional a partir do início dos anos 1990 – as temáticas das
abordagens muitas vezes rondaram a probidade de suas captações de recursos e de suas
agendas. Quando da II Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e
Desenvolvimento – CNUMAD, junho de 1992, Rio de Janeiro/RJ, a ECO 92, chegaram
ao público amplo iniciativas de ONGs que apresentavam resultados positivos em
desenvolvimento sustentável e erradicação da fome a partir de investimentos inferiores
ao do setor público. A opinião pública sobre ONGs passa a partir daí a ser favorável.

Lesbaupin pertence à direção executiva da OBONG, entidade com 250 membros


classificados hoje sob o termo (Organizações da) Sociedade Civil. Advoga que a
conscientização, organização e mobilização do Terceiro Setor pode representar
melhoria efetiva na qualidade de vida de populações e nos serviços públicos através de
pressão, e exigência de criação e aprimoramento de órgãos governamentais de
prestação de contas, como também como de controle e fiscalização independentes.
Tratar-se-ia de uma experiência de reconquista e aprofundamento do processo
democrático, aumento do controle popular sobre a Administração Pública e construção
de uma sociedade mais justa. Ressalta que, para tanto, é fundamental o acesso
generalizado e correto à informação (que começa com o saneamento dos meios de
comunicação) aliado à garantia do direito à livre expressão e respeito à pluralidade.

51
Segundo o autor, em 1988, havia atuando no Brasil 1288 ONGs, além de 402 entidades ecológicas.
86

2.2.2 Globalização, Movimentos Populares e ONGs

Carlos Alberto Steil52, ao discorrer sobre o tema da “(...) participação das classes
populares no processo sociopolítico do país e a sua luta pela conquista da cidadania
(...)” chama a atenção ao leitor da necessidade de contextualizar esse processo no maior
que pode ser designado como vigência da Ideologia Neoliberal no Ocidente aliada à
Globalização (que pode compreendida, grosso modo, como intensificação mundial e
sem paralelo de trocas econômicas, culturais, tráfego de capitais, mercadorias, serviços,
pessoas, informação, ideias, mas também de efeitos de decisões políticas locais).

Como já foi referenciado, o novo paradigma econômico “desmembra” o corpo


social em três elementos mais ou menos independentes (em teoria), com esferas de
atuação próprias, mas que mantêm relações entre si: o Estado, o Mercado, o Terceiro
Setor ou Sociedade Civil. Dessa última categoria fazem parte ONGs e demais
Organizações Sem Fins Lucrativos, Movimentos Populares, Igrejas, etc..

A decadência do paradigma econômico-social keynesiano do Estado de Bem


Estar Social tem seu “ponto alto” na Crise da Bolsa de Londres, quando membros da
Organização dos Países Exportadores de Petróleo – OPEP produzem um aumento
artificial e (praticamente) inesperado no valor do galão, através de restrições às
exportações ou à produção. A ação foi uma resposta econômica dos membros árabes da
OPEP (que já haviam se organizado como um grupo coeso dentro da Organização em
1968, após a Guerra dos Seis Dias, conflito de ataque preventivo que tomou caráter
expansionista de Israel, que atingiu Egito, Jordânia e Síria, em 1967) à Guerra do Yom
Kippur, ou Guerra Árabe-Israelense de 1973, que teve início com ataque surpresa de
Egito e Síria sobre Israel (durante o feriado do “Dia do Perdão”, Yom Kippur em
hebraico, um dos mais importantes do calendário do Judaísmo). Apesar das vitórias
iniciais, a coalizão militar árabe é esmagada pelas forças israelenses: quando da
intervenção explícita das duas superpotências mundiais e ONU, Israel já havia
novamente acrescido territórios ao seu próprio.

52
Carlos Alberto Steil é professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, mestre em
Teologia pela PUC-RJ, mestre em Filosofia da Educação pela FGV-RJ e doutor em Antropologia Social
pelo Museu Nacional/UFRJ, Pós-Doutor pela Universidade da Califórnia, San Diego, EUA. A presente
secção é baseada em seu artigo “Movimento Popular e ONGs em Tempos de Globalização” presente em
[LESBAUPIN et al., 1996] – citações serão feitas somente quando a contribuição vier de outro autor.
87

O petróleo a baixo preço era um dos elementos centrais a alimentar o projeto


desenvolvimentista das nações ocidentais. A Organização dos Países Árabes
Exportadores de Petróleo – OPAEP decide suspender exportações de petróleo
produzido em seus países membros (promover um embargo) aos EUA, Europa
Ocidental e Japão em resposta ao apoio dos EUA e aliados a Israel e a uma política de
preços inflacionados de bens de exportação que as nações alvo vinham conduzindo
sobre países árabes. O Terceiro Mundo sofreu as piores consequências econômicas da
repentina queda na oferta da commodity – de forma a minimizarem os efeitos dessa
Crise do Petróleo, o Primeiro Mundo organiza e efetiva planos contingenciais visando à
redução do preço e/ou aumento da extração de petróleo nos estados produtores “em
desenvolvimento” alinhados. Associa-se a essa medida uma política de Balança
Comercial mais favorável (incentivo às exportações de produtos beneficiados e serviços
de suas empresas a preços ascendentes), e renegociações para o pagamento de juros das
dívidas nacionais (que cresciam, inevitavelmente, em ritmo acelerado). Uma série de
crises financeiras e estagnação econômica inundaram a América Latina a partir daí, e se
estenderiam até pelo menos a década de 198053.

A União das Repúblicas Socialistas Soviéticas – URSS desmembra-se entre o


final dos anos de 1980 e início de 1990, depois de uma tentativa de abertura,
modernização e dinamização socioeconômica que não logrou os sucessos prometidos:
encerra-se a experiência do Socialismo Real com um sabor amargo de derrota.

Steil aponta ambos os fatores para a crise da esquerda da década de 1990: falta
de eixo de sustentação para se estabelecer ou dar continuidade ao princípio do Pleno
Emprego, aliado à queda do Bloco Socialista54 – há perda momentânea de referenciais,
credibilidade, e precedentes incontestes para se suster uma luta política que proponha
alternativa ao sistema socioeconômico e produtivo vigente.

53
Vide texto “América Latina: Sacrifício Inútil”, análise de Dércio Garcia Munhoz, Economista,
Professor Titular do Departamento de Economia da Universidade de Brasília – UnB até 1996. Ex-
Presidente do Conselho Federal de Economia – COFECON e do Conselho Nacional da Previdência
Social – CNPS/MPS. Disponível no sítio on-line <http://revistas.fee.tche.br/index.php/indicadores/article/
viewFile/714/962>, consultado em 15 de setembro de 2015.
54
A China, nominalmente também um Estado Comunista, hoje ator internacional de relevo, buscou
alternativa à URSS quando de desentendimentos ideológicos e práticos (parceria bélica, questões
fronteiriças) com a União, ocasionalmente entre 1950 a 1970. Além de travar contatos amistosos com os
EUA (e.g., visita dos Presidentes dos EUA Richard Nixon, 1972, e Ronald Reagan, 1984), estabeleceu
precedentes que incentivavam uma economia tipo mista – “Socialismo de Mercado” (sic) – em sua
Constituição de 1982. Configura-se difícil compreendê-la como âncora de uma proposta verdadeiramente
alternativa ao Capitalismo.
Fonte de dados e datas para a argumentação: Wikipédia, diversos verbetes, acesso em datas variadas.
88

Somado a essa crise de sustentação prática e ideológica, o autor menciona a


quebra de continuidade entre as pretensões/identidade dos/entre militantes e das/as
massas empobrecidas do Terceiro Mundo.

O paradigma de Movimento Social Popular – MS ou MSP – brasileiro herdado


da década de 1970 é de ideologia marxista centrado em fatores socioeconômicos: busca
um projeto político estratégico unificado de ação e experiência coletivas e organizadas,
voltado à transformação social efetiva – concentra-se nas dicotomias, contradições,
lutas, e objetiva agir no sentido de uma formação de consciência de classe coesa: as
classes populares devem ser, em seu conjunto, o sujeito histórico de mudança [GHON,
2007].

Ao longo dos anos de 1980, o Movimento Social sofreria reflexos das diferentes
identidades dos grupos que formam suas bases – o Novo Movimento Social (NMS) vai
questionar as categorias de agregação anteriores (sistema de ideias, classe, partido),
“(...) as ideologias pragmáticas do trabalho popular (...)”, e solapar a ideia de unificação
popular estratégica voltada a uma mudança coletiva num sentido único: as diversas
identidades autônomas (gênero, sexo, etnia, ecologia, etc.), “novos sujeitos históricos”,
constroem demandas próprias centradas em fatores culturais e sócio-políticos. Tais
petições não se traduzem necessariamente em um projeto unificado de transformação. O
enfrentamento passa a ser majoritariamente uma construção simbólica. Tópicos como
exclusão social, e a construção e garantia de cidadanias coletivas convertem-se no
objetivo central de sua agência política [idem].

Segundo a proposta realista do autor, o MSP foi sitiado por uma cultura
massificada pelos veículos da mídia tradicional (eles próprios representantes dos
interesses das classes dominantes, que passaram há muito tempo a serem os seus
próprios) que deslegitimam as lutas populares, como também buscam negar (ou
estipular uma margem “aceitável”) para seu alcance. Já a “proposta realista” propalada
pelos meios de comunicação social dominantes para o público é de uma “utopia
realizada”: “o consenso foi atingido” e embasa a sociedade – negam-se conflitos dentro
do universo político, mas principalmente as contradições sociais fundamentais. Uma
idealizada cooperação entre os três setores da sociedade no paradigma Neoliberal – a
Sociedade Civil, o Mercado, e o Estado – mascara quaisquer forças em conflito.
89

Essa nova conjuntura, aliada ao potencial já mencionado da Globalização, trás


atores antes secundários no Mercado e na Sociedade Civil ao centro do palco social, que
agora vai além do território do país: Instituições Internacionais, Transnacionais e
Nacionais, e ONGs.

Estas surgiram no Brasil principalmente como elementos acessórios aos MP e


NMP, em geral formadas por indivíduos que não pertenciam aos quadros de base do
movimento e via de regra com o objetivo de capacitar educacionalmente o, e dar o apoio
técnico-logístico ao, agente popular. Em paralelo à “perda de eficiência” ou de
“irradiação” daqueles, as ONGs se adaptam à nova realidade a exemplo (e muitas com
auxílio técnico e financeiro) de equivalentes estrangeiros, e algumas buscam, para além
de afirmarem sua autonomia em relação aos Movimentos, tomarem para si o “papel de
atores sociais interlocutores da sociedade civil junto ao Estado e organizações
internacionais que representam o Mercado” (grifo nosso): inverte-se o quadro, passam
elas a articularem as ações e apreendem a dimensão das práticas das lutas populares dos
diversos movimentos. Formam estruturas de ajuda mútua e em rede, com compromissos
sociais e/ou políticos comuns (organização coletiva), articulam-se internacionalmente,
profissionalizam e/ou especializam seus membros, buscam influenciar a partir da
comoção da opinião pública e de dentro do sistema (ação coletiva).

No quadro globalizado e de forte influência da mídia corporativa sobre a


apreensão social da “realidade”, segundo a nova concepção de “ação democrática”
emergente, nos anos de 1990 no Brasil ONGs se revelam atores “melhores preparados”
(ágeis, versáteis, articulados nacional e internacionalmente, com corpo técnico
especializado, possuidores de estrutura decisória em geral baseada em cadeia de
comando ou pequenos comitês ao invés de grandes assembleias, adeptos da advocacy
política e de parcerias com elementos privados) que os MP e NMP para levarem à frente
algumas demandas clássicas e as recém-descobertas da Sociedade Civil.

Felizmente, nem tudo é consenso: tensões no modelo é condição para mudança.


Setores dentro da estrutura de determinadas e mesmo algumas ONGs advogam pela
reapropriação do, e reafirmam o, protagonismo dos MP e dos atores “naturais” desses:
se compreendem como facilitadoras das, elementos que potencializam as, ações dos
Movimentos – trata-se de uma proposta de devolver o exercício ativo da cidadania aos
“(...) espaços doméstico, da produção e das relações internacionais”.
90

3.2.4 Bases Legais para a Sociedade Civil Organizada

O ano de 1999, primeiro do segundo mandato do Presidente Fernando Henrique


Cardoso, foi aquele da formalização do apoio estatal às chamadas hoje Sociedades
Civis55: foi sancionada a Lei nº 9.790, de 23 de março de 1999, conhecida como “Marco
Legal de Criação das OSCIPs” e cujo preâmbulo é, in verbis,

“Dispõe sobre a qualificação de pessoas jurídicas de


direito privado, sem fins lucrativos, como Organizações
da Sociedade Civil de Interesse Público, institui e
disciplina o Termo de Parceria, e dá outras
providências.”
Em seu artigo terceiro, delimita as áreas de atuação dessas organizações – que
são de amplo espectro, da promoção de direitos e políticas de assistência social, a
proteção ao meio ambiente e projetos de estudos e pesquisas em novas tecnologias.
Essa lei foi regulamentada pelo Decreto nº 3.100, de 30 de junho de 1999, que
estabelece as regras em que se dariam os convênios e termos de parceria, e o repasse de
verbas estatais para as OSCIPs.

Hoje as chamadas Organizações da Sociedades Civis – OCS (enquanto pessoas


jurídicas, dotadas de CNPJ) são o modelo estabelecido de organização e atuação da
chamada Sociedade Civil Organizada junto ao Estado. Os movimentos sociais de
moldes clássicos (como também a estrutura sindical), embora possa parecer uma
idealização, poderiam ser caracterizados pelo contato direto e diálogo de seus
representantes e dirigentes com as instâncias e poderes estatais, e também pelo
protagonismo dos francamente interessados. As OSC são intermediárias entre
necessidades coletivas por ela representadas e apresentadas e o Estado, que entra como
financiador e, com a natural evolução da legislação frente a francos processos de fraude
e desvios de conduta, aprimora seu papel de juiz de prestações de contas. Hoje o
Tribunal de Contas da União – TCU é responsável por averiguar em última instância a
pertinência de convênios estabelecidos e das prestações de contas praticadas pelos
convenentes.

55
Com o avanço da prática, chama-se genericamente e para fins de convênio e termos de acordo com o
Estado de OSC – Organização da Sociedade Civil as organizações que atendam às especificações da Lei
nº 9790/99 e legislação correlata, quer as mesmas se intitulem OSC, SC, OSCIP, ONG, etc..
91

Hoje, após iniciativas de transparência nas contas públicas56 levadas a cabo até
com determinada diligência na última década, o acesso às informações sobre os valores
cedidos e características dos convênios é aberto a todo cidadão, através do Portal da
Transparência dos Recursos Públicos Federais. Contudo, como os critérios para a
efetivação de Convênios e os muito populares Termos de Parceria entre a União e
OSCIPs são bem inferiores aos padrões para contratação de serviços57, por exemplo,
segue existindo margem para, se não irregularidades perante a Lei, vícios diante da
Sociedade, que em última instância é quem custeia e quem deve perceber a ação dessas
organizações.

Não se trata de estabelecer juízo de mérito prático ou prevalência moral entre


ambos os modelos, mesmo porque tanto os Movimentos Sociais clássicos como as
Organizações da Sociedade Civil podem receber doações públicas ou particulares,
envolveram-se ou envolvem-se em escândalos de lavagem e desvio de dinheiro, podem
possuir quadros dirigentes oportunistas que os utilizam como ferramenta para angariar
poder de persuasão e barganha, influência política, capital social, status e por que não,
fundos irregulares. Trata-se neste de fazer patente uma nova realidade da representação
da Sociedade Civil. Embora se alegue uma pretensamente ampla diminuição do papel
do Estado quando no modelo Neoliberal, o “Marco Legal de Criação das OSCIPs” o
reduz principalmente enquanto pessoa de diálogo direto. Passa a assumir às vezes de
financiador de iniciativas apresentadas e avaliadas como de interesse público ou no de
comunidades particulares, e muitas vezes levadas a cabo por um corpo de profissionais
que agem numa estrutura administrativa quase empresarial, já que são nominalmente
sem fins lucrativos.

A legislação correlata ao tema está listada no Anexo I deste.

56
A Lei de Acesso à Informação, Lei nº 12.527, de 18 de novembro de 2011, e seu Ato regulatório, o
Decreto nº 7.724, de 16 de maio de 2012, são os mecanismos centrais neste sentido.
57
Esses últimos são estabelecidos pela Lei das Licitações, Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993, e
(ampla) legislação correlata.
92

Capítulo 4 – Influências às Católicas Brasileiras

Seria um exercício tolo aqui, ou de sobre-humana força de vontade e capacidade


intelectual em uma obra específica, traçar-se uma história pormenorizada do aborto
dados os diferentes matizes que o assunto assume quando é trazido a escrutínio público,
seja em termos legais ou de costumes consagrados pela tradição. No passado pré-
Moderno, a discussão social do caráter explícito (como observar ocorrências privadas
quando permanecem nessa esfera?) da prática só pôde ou foi de interesse ser aventada
em casos específicos, e desnecessário é salientar que as determinações nunca prezaram
pela unanimidade mesmo entre instituições do mesmo corpo social, tendo o tema
assumido diversos significados segundo a cultura e o tempo. Só quando uma sociedade
adota de maneira ampla a prática da medicina pública ou institucionalizada, quando a
figura do médico torna as alternativas a esse, senão estranhas, ao menos secundárias na
lógica formal, poderíamos falar efetivamente em controle, seja da sexualidade ou da
reprodução – e esse último com as devidas reservas [FOUCAULT, 1984].

Entre diversas as culturas que influenciaram o que se convenciona designar


como “Civilização Ocidental”, comumente a continuidade ou interrupção da gravidez
estaria submetida à autorização do homem que tivesse “ascendência” sobre aquela
mulher – seu pai, esposo ou senhor: era o princípio da subtração da prole (ou da
propriedade), que poderia ser invocado para anular-se uma união ou requerer
indenização, por exemplo. A prática também foi (e é) amplamente condenada por
alguns povos, que relegavam a gestante e mesmo seus parentes ao ostracismo e até à
execução pública. O assunto poderia ser compreendido de caráter pessoal ou domiciliar
em certas épocas e lugares (principalmente quando a gravidez fosse evidência de
intercurso fora da normativa social – infidelidade ou “desonras”), desde que não
atingisse terceiros ou o interesse público, e até mesmo apontado como alternativa para
se conter o aumento populacional ou praticar deliberadamente a “eugenia”. A despeito
de recomendações morais ou legislações chinesa, mesopotâmica, israelita, egípcia,
helênicas, assíria, persa, romana, etc., via de regra (e desde que não envolvesse interesse
material), até o século XVIII o útero era domínio feminino – não é difícil imaginar que
mulheres auxiliavam mulheres quanto à decisão de levar à frente ou interromper uma
gestação, quando parteiras e figuras femininas mais experientes eram a autoridade a ser
naturalmente consultadas, e em caráter particular [TORRES, 2012].
93

4.1. Direito Canônico e o Aborto

A ICAR teve posicionamentos explícitos ou compreensões, senão divergentes,


ao menos alternativos ao logo de sua história. Nos seis primeiros séculos da religião
cristã, seus discursos eram marcados pela contraposição a possíveis ameaças e
divergências: o cristianismo primitivo demandava a conversão e o crescimento efetivo
no contingente de fiéis; o gnosticismo dos primeiros séculos e outras heresias que
pregavam o extremo dualismo corpo e alma e desestimulavam a vida marital – havia
nesse sentido nelas um desestímulo aberto à contracepção; métodos de interrupção da
gravidez poderiam ocultar adultérios e infrações às regras da castidade. Contudo, os
primeiros teólogos não são unânimes quanto ao caráter a ser atribuído ao aborto:
Tertuliano (circa 160 a circa 220), nascido na província romana de Cartago, norte da
África, equivalia o aborto ao homicídio em seu Apologeticum dado que presumia a
hominização a partir da concepção; Santo Agostinho, que veio a ser bispo de Hipona
(354 – 430) e também nascido nessa mesma província romana do norte africano,
defendia a chamada hominização posterior e dissociava o aborto antes dessa fase da
gestação do pecado de homicídio, considerando-o perversão (e essa era a compreensão
da maioria) – a hominização (a recepção da alma racional pelo corpo natural com
potência de vida58) do feto poderia ser entendida de várias formas: enquanto Agostinho
replicava o pensamento aristotélico que a mesma se dava ao quadragésimo dia (a partir
da percepção da gravidez) para embriões masculinos e no octogésimo para fetos
femininos, havia pensamento alternativo que defendia que essa só vinha a ser com a
percepção de movimentos do feto no ventre. Em tempo: as ideias sobre a natureza do
feminino e o papel da mulher na escolástica de Santo Agostinho (cuja compreensão
também é influenciada intérpretes e contendedor), francamente baseadas em Aristóteles,
ainda desempenham papel no simbolismo formal da Igreja Católica [HURST, 2006].

No período que vai do sexto século à Reforma Protestante e (Contra) Reforma


Católica – materializada por excelência no Concílio de Trento (1545-63) – no século
XVI, houve franco desenvolvimento da chamada Literatura Penitencial (que poderia
ser tanto assumir o caráter de orientações formais quanto de manuais utilitários ao

58
Todas são concepções levantadas por Aristóteles, filósofo do século IV A.C., aluno de Platão e
preceptor de Alexandre da Macedônia, fundador do Liceu ateniense. Em seu De Anima, “Da Alma”,
estabelece a existência de três variedades de almas, em franca alegoria para com seus estudos biológicos:
vegetal (responsável pela nutrição), animal (sensação e movimento) e humano-racional (distinção entre o
belo e o feio) – essas se fixariam em sucessão no embrião ou feto, o corpo natural.
94

confessor) e codificações do Direito Canônico, com a oportunidade de múltiplas


opiniões teológicas e práticas sobre o aborto.

O Sacramento da Confissão ou Sacramento da Penitência é um dos Sete


Sacramentos 59 fundamentais do catolicismo romano, e trata-se da oportunidade de
perdão (remissão total e completa, “diante dos olhos de Deus”, reconciliação com Ele e
com a Igreja) ao pecador sinceramente contrito de sua falta, quando essa é apresentada
espontânea e detalhadamente a um sacerdote (pode-se requisitar que seja algum
específico na hierarquia – como o bispo ou mesmo a Santa Sé – conforme a gravidade
do pecado e o status do pecador), único capacitado (tanto ética como tecnicamente, e
conforme a doutrina estabelecida) para receber tal conhecimento e silenciar sobre ele,
julgar sua pertinência e gravidade conforme o cânone em vigor, e sugerir condutas e
estipular atos que visam complementar ou reforçar a compreensão do próprio
arrependimento do católico. É dom dado aos Apóstolos, como no Livro de João,
Capítulo 20, Versículos 22 e 23, “Recebei o Espírito Santo; àqueles a quem perdoardes
os pecados, ser-lhes-ão perdoados; àqueles a quem os retiverdes, ser-lhes-ão retidos”.

Conforme o lugar e o tempo, levando-se em consideração o afastamento de


Roma e a liberdade ou unidade interpretativa da doutrina, essa prática recebeu
diferentes tratamentos: entre os primeiros cristãos e na região do mediterrâneo,
participar da chamada Ordem dos Penitentes equivalia a estar em um estado prático e
público de excomunhão até a Reconciliação com a Igreja, que poderia ocorrer somente
uma vez na vida do penitente, e também era ato comunitário. No cristianismo que se
desenvolvia no arquipélago britânico, por vezes chamado cristianismo celta ou irlandês,
o sacramento desenvolveu suas características reservadas, passou a ser um diálogo entre
o confesso e confessor, e as penitências para pecados menores perderam seu caráter
público, além da reconciliação poder-se dar mais de uma vez durante a vida do cristão60.
Ademais, houve a popularização entre o clero dos Manuais de Pecados ou Penitenciais,
compilações de infrações feitas por diversos teólogos (como o já citado Santo
Agostinho de Hipona e São Cesáreo, arcebispo de Arlés – circa 470 a 542, nascido em
território gaulês), que estabeleciam o que se tratava de heresia, pecado e a sua

59
Segundo o Compêndio do Catecismo da Igreja Católica, “os sacramentos tocam todas as etapas e
momentos importantes da vida cristã. Todos os sacramentos estão ordenados para a Eucaristia [o rito
central na doutrina cristã, de reafirmação da divindade do Cristo e de seu sacrifício, e os diversos
significados desses para os membros da cristandade] ‘como para o seu fim’ (S. Tomás de Aquino)”. Vide
<http://www.vatican.va/archive/compendium_ccc/documents/archive_2005_compendium-ccc_po.html>.
60
Para base teológica da prática vide, e.g., Livro de Mateus, Capítulo 18, versículos 20 e 21.
95

respectiva gravidade, e até estipulavam a pena a ser cumprida para a indulgência da


falta e a reintegração do cristão à vida eclesial (idem).

61
O cânone do cristianismo céltico disseminou-se pela Europa (essa
denominação vigorou o século VIII, quando as histórias das comunidades locais
ganharam maior individualidade). Nele o aborto era considerado pecado não
equivalente ao homicídio: ainda que possa ter sido considerado grave, sua penitência era
menor que a dos pecados sexuais, e era relativizada segundo o grau de hominização do
embrião ou feto. O Penitencial de Beda (compilado pelo monge chamado de Venerável
Beda, circa 673 a 735, natural da atual Inglaterra, santo católico e Doutor da Igreja por
seu trabalho teológico, considerado também o “Pai da História Inglesa”) relativiza
inclusive as circunstâncias do ato. A excomunhão era raramente invocada (ibidem).

“O Direito Canônico é o conjunto de normas jurídicas, de origem divina e


humana (mas sempre de inspiração divina), reconhecidas ou promulgadas por
autoridade da Igreja Católica, que determina a sua organização e atuação e a de seus
fiéis, em relação aos fins que lhes são próprios” [AZEVEDO, 2007]. Enquanto o
objetivo do Direito Canônico é salus animarum, a “salvação das almas”, o chamado
Direito Eclesiástico é a regência da face Estado da Santa Sé, estipulando as diretrizes
internas (sobre os habitantes do Vaticano) e externas (relações internacionais) – a
separação entre o caráter teológico e jurídico em esferas diferentes data do século XI. A
evolução do Direito Canônico se dá em três fases [CUNHA LOBO, 2006]:

I. Jus antiquum, do nascimento de Cristo até o Decreto de Graciano (1150);


II. Jus novum, do Decreto de Graciano até o Concílio de Trento (1563); e
III. Jus novissimum, do Concílio de Trento até nossos dias.

Entre os primeiros cristãos, a doutrina era passada através do catecumenato62,


essencialmente um misto de formação sobre a Palavra (Kerygma, “mensagem de
salvação”), Liturgia e Moral e o rito de passagem do Batismo Pascal. As fontes do
direito eram divinas (escrituras sagradas – a Bíblia Católica em sua conformação atual

61
O mentor da chamada Missão Angla ou Gregoriana, que revitalizou e disseminou o cristianismo na
região da atual Grã Bretanha, Papa Gregório I (“Magno”, “o Grande”, ou “o Dialogador” – este devido a
seus escritos teológicos que lhe valeram o título de Doutor da Igreja –, monge da Ordem de São
Benedito, santo católico, romano de nascimento, circa 540 a 604), determinou em carta a Santo
Agostinho de Cantuária (romano, século VI), o chamado “Apóstolo dos Ingleses” que esteve à frente
dessa empreitada, que houvesse tolerância para com os costumes do catolicismo local. Vide escritos de
Beda, disponíveis em <http://legacy.fordham.edu/halsall/basis/bede-book1.asp>.
62
Do grego catekeo, que significa “faço ressoar” e no passivo, “ouço”.
96

só é definida no Concílio de Trento –, e tradições reconhecidas) e humanas (normas dos


concílios, sínodos, e algumas designadas como literárias: apologéticas – obras para a
defesa e propagação da fé –, teológicas, e históricas – vida e morte de mártires).

Havia manuais de doutrina e aspectos morais, práticos e da hierarquia, pós-


apostólicos e baseados nas escrituras inspiradas: podemos citar a Didaché 63 , ou
Doutrina dos Doze Apóstolos, e a Didascalia Apostolorum, ou Ensinamento dos
Apóstolos. A chamada Doutrina Patrística, ou dos “Pais da Igreja”, consiste em obras
(cartas, interpretações teológicas, recomendações práticas) dos primeiros teólogos da
Igreja. As decisões dos concílios ecumênicos (convocados, via de regra, pelo Papa),
nacionais, regionais, plenários ou sínodos (locais, convocados por arcebispos, bispos,
prelados), todas foram e são ferramentas para se tratar de questões de fé, disciplina ou
específicas de uma comunidade, variando em escopo, esfera de pertinência e hierarquia
decisória, também guiaram os primeiros cristãos, e permanecem como ferramentas
normativas. O primeiro concílio verdadeiramente ecumênico (no sentido de reunir
bispos ou representantes de todas as províncias, e instituir uma normativa e práticas
unificadas para a cristandade) foi o Concílio de Nicéia (ano de 325, na atual Iznik,
Turquia) convocado pelo Imperador Constantino I (272 – 337, primeiro imperador
romano a se converter ao cristianismo) com anuência papal, ainda que o Papa Silvestre
I, que viria a ser canonizado, não tenha comparecido, mas enviado representantes.

Se o Édito de Milão (313) de Constantino I e Licínio (circa 250 – 325), co-


Imperadores romanos à época, estabelece a tolerância estatal à prática religiosa,
inclusive cristã, e devolução de lugares de culto confiscados. O Édito de Tessalônica
(380), promulgado pelos Imperadores Romanos conjuntos Graciano (359 – 383),
Valentiniano II (371 – 392) e Teodósio I (347 – 395), e assimilado nos Codices Romani
posteriores, determina o cristianismo niceno (do Concílio de Nicéia, que estabeleceu a
doutrina trinitária e a equivalência em natureza e substância entre Pai e Filho como
dogmas da fé) como Religião de Estado e deslegitima a prática dos demais cultos. As
proibições são recrudescidas com o tempo até a extinção nominal dos cultos rivais ao
catolicismo64, promovendo uma reestruturação nos valores e práticas sociais romanas. A
Igreja Católica Apostólica Romana organiza-se assimilando e mimetizando funções e

63
Condena o aborto e o infanticídio, sem estabelecer qualquer normativa ou orientação específica.
64
“Católico”: Universal (latim eclesiástico catholicus, -a, -um, do grego katholikós, -é, -ón) in
“Dicionário Priberam da Língua Portuguesa”, 2008-2013, disponível on-line no sítio
<http://www.priberam.pt/dlpo/catolico>, consultado em 30 de agosto de 2015.
97

estruturas administrativas da burocracia e instituições do Império (já em franca


decadência no ocidente), e dá origem a um sistema de direito romano-canônico,
utrumque jus (“ambos direitos”), base para as legislações de muitas coroas e futuras
nações européias no medievo.

Somente no século XII houve a primeira tentativa bem-sucedida de compilar e


comentar as, e sugerir respostas às, discordâncias entre os vários documentos e
normativas que assumiam em conjunto o título de Direito Canônico. Graciano (século
XII), provavelmente nascido italiano (de Chiusi, região da Toscana, província de Siena
– talvez bispo de sua cidade natal), monge do ramo camalduense da Ordem de São
Bento, jurista e professor de Teologia na Universidade de Bolonha, codifica por volta de
1150 o chamado Concordia Discordantium Canonum, ou Decreto de Graciano. A
despeito de nunca ser dotado de “força autêntica” pelo papado, foi amplamente
divulgado devido a seu caráter jurisprudencial (estabelece comparação entre diversos
posicionamentos particulares dos juízes da Igreja e teólogos) e é considerado uma das
mais importantes coleções da Lei Canônica. Nele, também é referido o chamado Cânon
Aliquando (“às vezes”, em português), que provêm do Tratado sobre Casamento e
Concupiscência de autoria de Santo Agostinho de Hipona – o conteúdo desse texto
tornou-se então amplamente conhecido e na prática uma proibição de qualquer forma de
método contraceptivo no contexto do casamento enquanto sacramento.

Leituras atentas da obra se Santo Agostinho revelarão, quanto ao prazer sexual


dentro de uma união, que não é condenável desde esta tenha como objetivo a procriação
– no que tange especificamente ao aborto, observamos no artigo “A Questão do Aborto
no Pensamento de Santo Agostinho” [STREFLING et al., 2010] alguns tópicos
relevantes. Quando provocado, tal qual o infanticídio ou uso de medicação ou método
que induzisse a esterilidade, era condenado como crueldade lasciva: o casal que se
propõe somente ao prazer, prematuramente intencionado a eliminar a prole, esses
incorrem em grave pecado – ainda que o casamento pudesse, na concepção desse
Doutor da Igreja, ser válido sem intenção de gerar filhos, estes não deveriam ser, dentro
da lógica do sacramento da união, deliberadamente evitados.
98

Prosseguindo esse estudo, Agostinho distinguia65 (a partir de uma tradução grega


do livro do Êxodo – da chamada Versão dos Setenta bíblica – que interpretava o
hebraico original “dano” por “forma”) entre feto vivificado e não vivificado, como já foi
dito anteriormente: a morte intencional de ambos era pecaminosa, mas diferenciava-se
em equivalente ao homicídio óbvio e caso a ser deliberado, respectivamente. Pode-se
julgar que esse tópico por demais reiterado, mas o pensamento agostiniano (e mesmo
suas conjecturas sobre o destino dos fetos abortados no “Dia do Juízo”) é ainda tema
vivo na teologia, e tem paralelos desconcertantes com a bioética construída nos últimos
anos: qual é a barreira entre vivo e não vivo? Essa questão é suscitada tanto em termos
de legalização e admissão do aborto pelas religiões, como o foi no caso de uso de
células tronco embrionárias para pesquisa científica66. Segundo o texto em apreço, “as
principais teses sobre quando começa o direito à vida são três: na fecundação
[formação do zigoto, considerado unidade diferenciada], na implantação [a fixação do
embrião no útero, que leva entre quatro e quinze dias] e na organogênese
[diferenciação dos órgãos internos, entre a terceira e oitava semanas de gestação, final
do período embrionário]”. A ICAR hoje é explicitamente partidária da primeira
alternativa67. O organismo humano estabelece que entre a primeira e a segunda fases há
uma taxa de sucesso de cerca de trinta em cem. O Conselho Nacional de Medicina –
CNM do Brasil posicionou-se, não favoravelmente, mas indicando o limite da décima
segunda semana como recomendável para uma interrupção voluntária da gravidez, caso
o procedimento seja legalizado (como será visto no Anexo II).

Encerra-se o jus antiquum. No período do jus novum, alguns elementos devem


ser ressaltados. O Papa Inocêncio III, nascido romano de nome Lotario dos Condes de
Segni (circa 1160 – 1216), assume o papado em 1198 e promove o IV Concílio de
Latrão (convocado em 1213 e celebrado em 1215), o mais importante do Medievo
devido ao alcance de sua participação – realmente ecumênico – e atividade reformatória.

65
Base bíblica, Livro do Êxodo, Capítulo 21, Versículos 22 e 23: “Se homens brigarem e ferirem uma
mulher grávida, e ela abortar, sem maior dano [forma], o culpado será obrigado a indenizar o que lhe
exigir o marido da mulher, e pagará o que os árbitros determinarem. Mas, se houver dano [forma] grave,
então darás vida por vida, olho por olho, dente por dente” (grifo nosso). Exemplo do século V A.C. da
Lex Talionis (ou Lei da Retaliação, numa tradução livre), presente na história humana pelo menos desde
o Código de Hamurabi babilônico, do século XVII A.C. – datas aproximadas.
66
Lei nº 11.105, de 24 de março de 2005, regulamenta pelo Decreto nº 5.591, de 22 de novembro de
2005.
67
Constituição Pastoral “Gaudium et Spes: Sobre a Igreja no Mundo Actual”, datada de 07 de dezembro
de 1967, subscrita pelo Papa Paulo VI.
99

O IV Concílio de Latrão foi de muitas formas uma resposta ao chamado


Renascimento do Século XII (circa 1050 a 1226, data do falecimento de São Francisco
de Assis) – período de novas e intensas trocas com o “oriente próximo”, dinamizadas
pelas conquistas de territórios e saques das Cruzadas (que duraram do século XI ao
XIII), vitórias e consolidação de coroas cristãs no processo da Reconquista Ibérica, nova
urbanização, surgimento de uma classe intermediária de comerciantes (os burgueses,
habitantes livres dos burgos ou cidades) e desenvolvimento técnicos e tecnológicos
práticos – mas também de fermento espiritual, do nascimento de novas formas de como
ser cristão ou cristã pós-milênio (um retorno ao cristianismo primitivo e à ação no
mundo, apostólica, evangélica, missionária), que resultaram tanto no aumento no
número de Ordens, quanto no de seitas heréticas [BOLTON, 1983]. A vita apostólica
ganha relevo, mas a vita angelica (o monasticismo) tradicional, já objeto de reforma nos
séculos anteriores68, e operando organicamente com a comunidade ao redor (da qual
recebia influxo de peregrinos, noviços e noviças, e recursos) não perde importância.

Vem reafirmar preceitos e dogmas da fé, não abandona seu caráter normatizador,
e apresenta tendência à reforma e moralização dos costumes eclesiásticos. Entre os
cânones69 principais desse Concílio, há restrições à conduta do clero apostólico, dos
padres in secula, que visa (dentre diversos objetivos) a uma conformação com o padrão
votivo do clero monacal, ou regular (de regula, regra): entre outros, a reafirmação do
celibato, normas práticas de convivência no mundo para os sacerdotes, e orientar quanto
à proibição da simonia. Institucionalmente, a definição de uma hierarquia interna e entre
as Igrejas Patriarcais, além da reafirmação da Primazia Papal. Quanto ao corpo de fiéis,
a formalização de práticas unificadas (e.g., adoção de sacramentos da confissão –
formalmente sigiloso – e da comunhão a partir do fim da primeira infância, podendo-os
somente serem ministrados por sacerdotes ordenados), o combate às heresias e normas
de convívio em comunidades cristãs para judeus (enfaticamente) e mulçumanos.

68
Sob a influência de um movimento de retorno aos princípios da Regula Benedict (escritas por São
Bento de Núrsia no século VI, fundador da Ordem dos Beneditinos) e baseado nos Códigos de Bento de
Aniane (século IX), somado à estruturação de uma comunidade de mosteiros, abadias, conventos e
paróquias hierarquicamente ligada e/ou em rede, capitaneado pela Abadia de Cluny (Borgonha, província
franca), os papados dos séculos X até XII foram promotores de uma reforma moralizante na vida
monástica. Vide verbete “Cluniac Reform”, da New Catholic Encyclopedia – 2sd. Ed., Gale Group.
Deve se fazer notar que menções seguintes a conceitos, fatos, datas e personagens, cuja citação de origem
seja eventualmente suprimida de forma a não prejudicar o ritmo de leitura, são provenientes de verbetes
da mesma Encyclopedia.
69
Vide, em inglês, no sítio on-line <http://legacy.fordham.edu/halsall/basis/lateran4.asp>, consulta em 06
de setembro de 2015.
100

Uma vida laica ou votiva baseada na livre e/ou individual interpretação dos
Evangelhos, sem intermediação da doutrina, representava perigo para não só ao edifício
que se pretendia ideologicamente monolítico da ICAR, mas à sua própria autoridade:
Francisco de Assis (Giovanni di Pietro di Bernardone, da cidade de Assis da península
itálica, 1182 – 1226), submeteu-se ao império papal, teve a Regra de sua Ordem
Mendicante formalmente admitida, e foi canonizado em 1228, menos de dois anos após
sua morte. Os cátaros (do grego khataros, puro) foram diplomaticamente premidos por
missões eclesiais, e com o fracasso dessas, eliminados na Cruzada Albigense.

Os cátaros, surgidos no século XII e concentrados na França e Países Baixos,


eram comunidades com hierarquia (que previa inclusive a ordenação de sacerdotes
mulheres) e sacramento70 próprios que buscavam um retorno ao cristianismo primitivo e
apostólico – a certeza sobre suas práticas e credos não existe, dado que suas obras
escritas foram objeto de crivo pela Sé romana. Criticavam a intricada teologia, o
afastamento do povo, a opulência, e a corrupção das práticas dos sacerdotes romanos
consagrados e da própria instituição católica. Criam no maniqueísmo (interpretavam a
divindade do Antigo Testamento como Satanás, senhor do mundo físico imperfeito;
aceitavam o Novo Testamento como obra de um Deus de bondade, criador do mundo
espiritual perfeito), na reencarnação de suas almas angélicas presas na matéria até a
redenção dos pecados, e no dualismo (idem). É esse último ponto que é de interesse: a
doutrina dualista prevê na prática a separação entre matéria e espírito, corpo e alma. Ela
pode ser interpretada de forma a levar a casos extremos, como a rejeição do casamento e
da procriação, a práticas amorais (o usufruto dos prazeres dos sentidos não poderia, sob
certa interpretação dessa lógica, poluir o que está para além da matéria), e ao
descrédito da natureza trinitária do Cristo – como dogma de fé instituído, sua negação
equivale a de todo o corpo desenvolvido em seu entorno, e mesmo do significado da
Eucaristia enquanto comunhão com a divindade e promessa de uma futura vida eterna
em corpo e alma [HURST, 2006]. A Cruzada militar que eliminou essas “tendências
populares heréticas” no baixo medievo durou mais de quarenta anos (1208 a circa
1255), sendo conclamada pelo Papa Inocêncio III.

70
O Consolamentum era um rito que guardava semelhanças com a confissão católica. Podendo ser
administrado somente uma vez na vida do crente, que a partir daí alcançava a libertação dos pecados e o
status de perfecti, perfeito. Por esse motivo sua prática era retardada até a morte iminente – daí não raro o
fiel deliberadamente cessar os cuidados necessários para manutenção de sua vida após o rito.
101

Tomás de Aquino (Thomas Aquinas, Rocassecca, península itálica, circa 1225 –


1274), frade da Ordem dos Pregadores (também chamados Dominicanos71), canonizado
em 1323, considerado patrono das escolas católicas, carrega títulos como o de Doutor
da Igreja por suas obras teológicas, e de Doctor Angelicus por suas obras em
Escolástica72 (e muitas outras denominações honoríficas católicas atribuídas a ele no
decorrer dos séculos): é o teólogo de maior relevância do século XIII, e suas
interpretações teológicas e filosóficas têm grande influência na ortodoxia daí em diante
e até hoje – seu Suma Teológica (Summa Theologiae, escrita entre 1265 e 1273), que
busca a harmonização entre o Aristotelismo e a doutrina cristã, é considerado por
muitos o ápice da Filosofia Medieval Europeia.

Aqui devemos nos ater sobre um elemento específico de sua doutrina: o


Hilemorfismo. Esse é definido a partir da filosofia aristotélica e envolve os conceitos
precedentes de Forma e Matéria73: hilemorfismo é, grosso modo, a união de forma e
matéria como elementos da natureza quando da apreciação de um objeto – “ambas as
causas [que] devem ser consideradas pelo estudioso da natureza” (citação de Aristóteles
em [ANGIONI, 2006], grifo nosso), embora a forma seja prevalente, a “causa motriz
preponderante”. O filósofo que observa o movimento associado ao objeto como este

71
A Ordem nasce por esforço do religioso Domingos de Gusmão (nobre do Reino de Castela, 1170 –
1221, canonizado em 1234), e colaboradores, durante as Missões aos Cátaros: pretendiam a “vitória do
catolicismo” através da pregação evangélica e hábitos humildes – diante de sucessos de seu grupo, mas do
impedimento provisório pelo IV Concílio de Latrão da criação de novas Ordens (portanto novas Regras),
assumem a Regra Agostiniana e tem as atividades aprovadas por Inocêncio III (sua Regra própria é
sancionada no papado seguinte, em 1216). Dado o caráter doutrinário e evangelizador da Ordem (até
então atividades exclusivas de bispos), que os fazem necessariamente afeitos ao estudo dos textos
canônicos e obras célebres, seus membros se tornarão teólogos, escolásticos, mas também serão
chamados a serem juízes ou assistentes em Tribunais do Santo Ofício e outras tarefas da Inquisição.
72
A (Primeira) Escolástica designa, grosso modo, uma corrente filosófica que nasceu e se desenvolveu
nos centros de saber monacais e depois Universitários entre os séculos IX, X ou XI a XVI, que
amalgamava elementos da filosofia clássica (principalmente textos de Platão e Aristóteles), do
cristianismo e judaísmo, na tentativa aliar os preceitos da fé cristã à (ou justificá-los a partir da) razão.
73
Pode-se tentar a compreensão desses conceitos em Aristóteles, embora deva-se desculpar a falta de
intimidade com os mesmos: Forma e Matéria são Substâncias possíveis e ambas pertencem à Natureza –
portanto de interesse do cientista natural (equivalente ao título de filósofo da natureza) – e fazem parte da
dinâmica dessa de Movimento ou Mudança, Geração e Corrupção. A Matéria é o constitutivo do objeto.
A Forma é aquilo que molda o ente (em sentido amplo, que o define, sendo, portanto, também causa da
matéria e causa primeira da natureza, pois ao fixar o objeto, atribui-se a ele determinadas características
materiais) – pode ser aquilo que sofre mudança no movimento, ou, caso seja a essência daquele ser,
permanecerá mesmo diante da mudança da matéria e passa a ser designada Substância Primeira. Potência
é a capacidade de receber forma ulterior; Ato é o ser já informado, “perfeito”: a transformação do
primeiro no segundo é do que trata o movimento, e nenhum ser é capaz de produzi-lo sem um motor (o
Motor Imóvel que inicia o “movimento primário” seria Deus, intelecto puro). A alma é a “forma” (em
sentido ontológico), a “enteléquia” (isso é, o “ato”, a “perfeição”) para um corpo material a que se
conjuga a potência de vida – cada ser vivo possui aquela(s) necessária(s) para as funções que lhes são
próprias: alma vegetativa, alma sensitiva, alma intelectiva ou racional, em escala de complexidade.
102

ocorresse de maneira teleológica (com vistas a um fim, tal como Aristóteles concebia,
negando uma natureza puramente necessária ou, dir-se-ia, “contingente”), sua mudança
e/ou sua evolução em escala de perfeições, atribui o sentido desse à forma, sendo a
matéria natureza necessária, mas não suficiente, para o movimento. O motor da
mudança nos seres viventes seria a alma, e a alma racional associada ao ser humano.

Durante o Concílio Ecumênico de Vienne/França, 1311 – 1312, décimo quinto


da ICAR e convocado ainda em 1308 por Clemente V (Bertrand de Gouth, 1264 –
1314) principalmente para tratar do julgamento dos Cavaleiros Templários e de assuntos
relativos à Terra Santa, houve o confronto com posições concernentes à separação
dualista entre corpo e alma na forma da contestação de uma de três proposições (aquela
que nega que a alma racional pode ser entendida como forma humana) de Petrus
Johannes Olivi (Pierre Jean Olivi, circa 1248 – 1298)74, que havia entusiasmado uma
pequena parcela de seguidores da Ordem Franciscana. A compreensão hilemórfica da
pessoa desenvolvida por São Tomás é reiterada por decreto papal.

Em seu Suma Teológica, Quinto Volume, Aquino propõe que “Para que o
intelecto aja requer-se o corpo, não como um órgão necessário para exercitar tal ação,
mas apenas como objeto (...). Mas ter tal necessidade do corpo não exclui que o
intelecto seja subsistente (...).”. A questão que se impõe na discussão que se pretende
levar adiante é acerca da hominização, ou do começo da vida humana, do embrião ou
feto: levando-se em conta as almas vegetativa, sensível e intelectiva que dão forma ao
ente humano, a alma racional só pode se fazer presente em um corpo capaz de recebê-
la? Na doutrina católica, há espaço para múltiplas interpretações75? A ICAR manifesta
uma interpretação oficial que se traduz na hominização imediata, como se verá.

Embora seja considerado um dos expoentes do renascimento da Filosofia


Ocidental, é relido de modo crítico por Bertrand Russell (1872 – 1970, filósofo e
divulgador da ciência) enquanto filósofo, por seu suposto vício de se utilizar elementos
ad hoc (“revelação divina”) em argumentações estruturadas segundo o modelo
aristotélico ou platônico-socrático, o que invalidaria em princípio o esforço [RUSSEL,
Bertrand. “História da Filosofia Ocidental”, 1946].

74
Vide biografia e trabalhos no sítio on-line <http://plato.stanford.edu/entries/olivi/>, visitado em 7 de
janeiro de 2016.
75
A importância deste deve ser notada, pois trata-se, como em Agostinho, de distinguir o ato de
interromper uma gravidez entre o chamado “Pecado Mortal”, de outro “Grave”.
103

O Concílio de Trento foi o último dos três grandes Concílios Ecumênicos.


Houve o de Nicéia, fundador do catolicismo, no século IV. Houve o IV de Latrão,
reorganizou estrutura da ICAR no século XIII. Trento, no século XVI, foi a resposta à
Reforma Protestante.

Jus novissimum, de Trento e até a contemporaneidade. Após meados do século


XVIII, na época que convencionamos chamar “Idade Contemporânea”, houve dois
Concílios Ecumênicos: um entre 1869 – 1870, designado como Concílio Vaticano I. E
um na década de 1960, o chamado Concílio Vaticano II.

O Concílio Vaticano I foi o vigésimo concílio, primeiro a ter suas discussões na


Basílica de São Pedro, aberto em 8 de dezembro de 1869, e dado por encerrado em 1º
de setembro de 1870, tendo participado de suas quatro sessões solenes públicas e oitenta
e nove congregações gerais cerca de oitocentos cardiais, arcebispos, bispos, abades, e
superiores de Ordens.

Foi convocado pelo Papa Pio IX (Giovanni Maria Mastai-Ferretti, 1792 – 1878,
papa entre 1846 e a data de sua morte), que possuía histórico de decisões conservadoras:
o Syllabus Errorum, e a Encíclica Quanta Cura, “Sobre os Principais Erros da Época”,
ambos emitidos em 8 de dezembro de 1864, são reações da ICAR ao laicismo pessoal e
de Estado, racionalismo, ideários político-sociais, etc. A decisão notável desse concílio
foi o decreto sobre a primazia e infalibilidade papais, questões controversas que já
vinham sendo discutidas, seus termos foram estipulados na Constituição Dogmática
Pastor Aeternus – outra que merece menção é a Constituição Dogmática Dei Filius, “Da
Fé Católica”, que estabelece a submissão da razão à fé. Ademais, existe um reforço
inegável à ortodoxia e uma posição crítica e negativa diante do mundo e do novo.

Código de Direito Canônico de 1917 ou Código Pio-Beneditino, o primeiro


documento oficial dessa abrangência: ainda em 1904, o Papa Pio X (Giuseppe
Melchiorre Sarto, 1835 – 1914, eleito papa em 1903) instruiu que se criasse uma
comissão tendo por objetivo a redação de um Código de Direito Canônico. O projeto foi
levado adiante por seu sucessor, Bento XV (Giacomo della Chiesa, 1854 – 1922, papa a
partir de 1914), resultado na promulgação do mesmo em 27 de maio de 1917. Contudo,
tratou-se principalmente de um trabalho de ordenação nova, “(...) embora traga
mudanças oportunas”, do direito vigente até então, não da criação de um novo direito.
104

O Concílio Vaticano II foi projeto do Papa João XXIII (Angelo Giuseppe


Roncalli, 1881 – 1963, teve seu papado entre 1958 e sua morte) desde que fora elevado
a sua posição. Definiu três propósitos gerais para o concílio: via nele a oportunidade de
revigoramento e renovação espiritual da Igreja, de um aggiornamento ou “atualização”
das atitudes, hábitos e instituições pastorais – se ambos objetivos fossem considerados
alcançados, o seguinte seria promover a unidade entre os cristãos.

A preparação para o concílio começa ainda em 17 de maio de 1959, havendo


quatro períodos de encontros durante quatro anos: de 11 de outubro a 12 de dezembro
de 1962, de 29 de setembro a 4 de dezembro de 1963, de 14 de setembro a 21 de
novembro de 1964, e de 14 de setembro a 8 de dezembro de 1965 – houve a
participação de mais de três mil religiosos durante esses encontros, tornando-se o maior
concílio na história da ICAR. Dos períodos citados, somente o primeiro teve a presença
de João XXIII, que faleceu em 3 de junho de 1963: os seguintes foram levados a termo
por seu sucessor, Papa Paulo VI (Giovanni Battista Enrico Antonio Maria Montini,
1897 – 1978, papa entre 21 de junho de 1963 e sua morte), formulador da Encíclica
Humanae Vitae76, de 25 de julho de 1968, que se não funda as bases, ao menos deixa
claro o caminho que seria seguido daí em diante pela ICAR no que se refere à vida
sexual humana, familiar, à regulação da natalidade e ao aborto.

Os assuntos motivos de debates foram variados, grande parte dizendo respeito à


revolução nos costumes e às mudanças tecnológica, política, econômica que se
verificaram nesse período interconciliar: sobre a dinâmica da liturgia (quando decidiu-se
pela substituição do latim pela língua vernácula), fontes de revelação (onde também se
discute o papel de métodos críticos e históricos de leitura da Bíblia), a Igreja e sua
unidade, a mídia de massa, as atribuições dos Bispos e do Papa, as atividades pastorais,
ecumenismo e liberdade religiosa, relação da Igreja com o Estado – diversas
Constituições Dogmáticas, Decretos, e também Encíclicas e Cartas papais, foram
redigidas ou promulgadas, contemplando tópicos conforme submetidos ao colegiado. O
documento conciliar notável é a Constituição Pastoral Gaudium et Spes 77 , “Sobre a

76
Texto da Carta Encíclica “Humanae Vitae: Sobre a Regulação da Natalidade”, sítio on-line <http://w2.
vatican.va/content/paul-vi/pt/encyclicals/documents/hf_p-vi_enc_25071968_humanae-vitae.html>,
visitado em 31 de dezembro de 2015.
77
Texto da Constituição Pastoral “Gaudium et Spes: Sobre a Igreja no Mundo Atual”, sítio on-line
<http://www.vatican.va/archive/hist_councils/ii_vatican_council/documents/vat-ii_const_19651207_
gaudium-et-spes_po.html>, visitado em 31 de dezembro de 2015.
105

Igreja no Mundo Atual”: documento mais longo produzido no encontro, trata de


diversos tópicos da Igreja, atualidade, mundo e a proximidade entre os três temas.

O atual Código de Direito Canônico foi compilado segundo a orientação e


promulgado pelo Papa João Paulo II, em 25 de janeiro de 1983, sob a denominação de
Constituição Apostólica “Sacrae Disciplinae Leges” (“As Leis da Disciplina
Sagrada”). Ele visa reformar e atualizar o Direito Canônico (revogando, conforme seu
Cânone Sexto, tanto o Código de 1917 quanto leis “particulares ou universais”
anteriores em contrário ou sobre matérias não abordadas no mesmo), e é apresentado
como concretização das aspirações renovadoras de João XXIII, como continuação
lógica dos trabalhos do Concílio Vaticano II. Em sua apresentação, salienta que “(...)
devemos reconhecer que este Código surgiu de uma única e mesma intenção, que
era a de restaurar a vida cristã (...)”, e embora se trate de uma obra primaz, salienta-
se que seus trabalhos de redação foram colegiais (ou seja, contaram com a
participação de uma comunidade de Cardeais, Arcebispos e Bispos, além de
necessariamente peritos). Sua função legislativa é enfatizada: não vem substituir a
fé, mas ordená-la – deve ser código de conduta seja na vida eclesial, individua ou
social do fiel; seu prefácio reitera a necessidade de que os sacerdotes conheçam o
cânone para afastar “a ignorância, mãe de todos os erros”. Conforme os escritos do
Pontífice à época, o Código é apresentado com o compromisso “(...) de fidelidade na
novidade e de novidade na fidelidade (...)”: trata-se de uma crítica comum à ICAR
não haver, mesmo após todos os anos de trabalho, estudo e adequação sobre o
código, além de suas pretensões universalistas, realmente executado as mudanças
essenciais à adaptação aos “tempos modernos” conforme uma compreensão social e
de costumes, tendo focalizado principalmente em assentar definições e critérios
administrativos (muitos dos quais centralizadores), normativas hierárquicas, regras
ainda bastante restritivas sobre administração e percepção dos sacramentos (em
especial, o matrimônio), além de punições eclesiais. A boa nova aguardada por
mulheres, leigos, membros e membras da vida religiosa, fiéis que permanecem à
margem dos trabalhos da Igreja devido ao divórcio, etc. não se manifestou da
maneira aguardada por muitos nesses cânones.

Segundo o atual Código de Direito Canônico, os pecados sujeitos a excomunhão


são:
106

 usar de violência física contra o Pontífice de Roma: excomunhão latae


sententiae, “automática” (no momento do ato), implica igualmente em restrições
na declaração de remissão da pena – nesse caso, reservada “à Sé Apostólica”;
 “(...) deitar fora as espécies consagradas ou as subtrair ou retiver para fim
sacrílego (...)”;
 absolvição, por parte de sacerdote, do cúmplice em pecado contra o sexto
mandamento (chamado pecado da carne ou contra a castidade), a menos que
em perigo de morte do pecador;
 conferir a alguém a consagração episcopal ou recebe-la, sem mandato pontifício
– a pena é reservada tanto o Bispo que assim proceder, como aquele receber a
consagração;
 violação do sigilo confessional pelo confessor;
 apostasia, heresia, cisma;
 aborto78:
“Cân. 1398 — Quem procurar o aborto, seguindo-se o
efeito, incorre em excomunhão latae sententiae.”
As normativas da ICAR se construíram ao longo da complexidade da história.
Até o século XII, compilações de iniciativa privada, que se utilizavam dos documentos
conciliares, tradição e fontes menores, “não raro opostas entre si”. No século XII, mais
uma vez por iniciativa privada, do monge Graciano, esses diversos conjuntos de normas
são comparados e reunidos no chamado Decreto de Graciano, que será a base para um
Corpo de Direito Canônico à semelhança do Corpo de Direito Civil do Imperador
Bizantino Justiniano 79 – reunindo também as determinações de vários pontífices
resgatadas e comportadas com a ajuda de glosadores (peritos e comentadores do direito
latino), esse é designado comumente como Corpo Clássico. As leis e determinações
seguintes, inclusive aquelas emitidas durante o período da Reforma Católica, nunca
foram ordenadas em um documento comum, gerando um acúmulo de informações
desconexas e possivelmente contraditórias, cujo conhecimento amplo pelos sacerdotes

78
Encontra-se tratado no “Título VI: Dos Delitos Contra a Vida e Liberdade do Homem” do Código de
Direito Canônico, equivalendo-se a homicídio, rapto, mutilação e violência física perpetrada – possui
pena superior entre os mesmos.
79
Flávio Pedro Sabácio Justiniano, Justiniano I (482 – 565), Imperador Bizantino entre 527 até sua morte.
Seu Corpus Juris Civilis (essa é uma designação dada já no século XVI ao conjunto da obra), formulado
principalmente entre 528 e 534, era destinado a substituir os codes que o precederam: buscou-se compilar,
ordenar e comportar as legislações romanas, aquelas promulgadas por seus antecessores e suas próprias,
em um corpo coerente e adaptado ao seu tempo e suas pretensões como regente. Redescoberto no
Ocidente à época da fundação das primeiras Universidades europeias (séculos XI a XVI), tornou-se
incentivo e referência para o estudo do Direito Romano, e mesmo na formulação de novas legislações.
107

tornou-se impossível e que inevitavelmente dava margem à arbitrariedade. A missão do


Concílio Vaticano I foi também coligir, ordenar e retificar esse conjunto de leis, que
resultou na promulgação de um Código em 27 de maio de 1917. As rápidas mudanças
externas à Igreja que ocorreram em curto período de tempo não poderiam ser ignoradas:
o Papa João XXIII, ao anunciar o Concílio Vaticano II, simultaneamente afirma a
necessidade de um novo conjunto de Leis Canônicas, renovadas [Fonte: Apresentação e
Prólogo ao Código de Direito Canônico, Santa Sé, 1983]. Podemos inferir que a ICAR
em raros momentos, e com grande intervalo entre os mesmos, se ocupou em organizar e
compatibilizar o código normativo da conduta de seus membros – a despeito da
coletânea de documentos papais, conciliares e sinodais diversos, as inconsistências,
vácuos e múltiplas interpretações se acumulariam no decorrer do tempo. A conclusão
prática e lógica é que as normas são passíveis de discussão, e excetuando-se os dogmas
centrais de fé, nova interpretação pode se constituir numa boa-nova para a comunidade.

Em 15 de agosto de 2015 o Papa Francisco I (nascido em 17 de dezembro de


1936, em Buenos Aires na Argentina, com o nome de Jorge Mario Bergoglio, tendo seu
papado iniciando-se em 13 de março de 2013) emitiu duas Cartas Apostólicas em forma
de “motu proprio” (“por sua própria iniciativa”) para as Igrejas Latina e Oriental que
tratam de simplificar e tornar públicos os procedimentos para a anulação de uniões nas
quais o casal tem certeza da nulidade do casamento, além de chamar os Bispos e
sacerdotes a promover a inclusão dos católicos divorciados. Em 1º de setembro de 2015,
por ocasião do Jubileu Extraordinário da Misericórdia (período entre a Solenidade da
Imaculada Conceição, 8 de dezembro de 2015, a 20 de novembro de 2016, decretado
pelo papa para celebração da misericórdia divina, e do sacramento da reconciliação ou
confissão), o Francisco I dispõe em carta que, durante o Ano Jubilar, a todo sacerdote
habilitado a ouvir uma confissão é estendida “a faculdade de absolver do pecado de
aborto quantos o cometeram e, arrependidos de coração, pedirem que lhes seja
perdoado”, além de estender o perdão de pecados “menores” a ato de contrição pessoal.

Essa discussão não foi de forma alguma exaustiva das temáticas apresentadas:
aqui a pretensão foi salientar que o Catolicismo Romano foi e é dinamicamente
constituído, é uma instituição humana (política, social, diacrônica) de dezessete séculos
– em seu centro pode-se localizar cartas de patriarcas de uma fé primeva e dogmas
definidos em Nicéia, mas ele permanece reinterpretando-se, agregando ao edifício
principal novas instituições, reformando, reinterpretando ou eliminando (no sentido
108

figurado) antigas ou (por vezes no sentido literal, em mais ocasiões do que o esperado
para a fé do amai ao próximo) discordantes – diz a apresentação do Código de Direito
Canônico de 1983, “(...) teve a Igreja Católica, no decurso dos séculos, o costume de as
reformar e renovar [as Leis da Disciplina Sagrada; grifo nosso] para que,
conservando sempre a fidelidade ao seu divino Fundador, correspondessem
adequadamente à missão salvífica que lhe foi confiada”. Somos hoje nós mesmos
testemunhas de acenos de mudanças efetivas na face da ICAR.

4.2. Discussão Secular do Aborto no Mundo Moderno

Com a revolução médica e a ascensão dos Estados Nacionais nos séculos XVIII
e XIX, e os ecos das expansões supranacionais e das guerras, pestes e outros motivos de
declínio populacional decorrentes dos períodos anteriores, gerar filhos passou a
equivaler a dar à luz cidadãos. A partir de determinado momento, o Estado Nacional
entendeu por bem tomar responsabilidade sobre o súdito (o futuro braço armado,
trabalhador, contribuinte) não nascido: em 1870, na França, o aborto foi declarado via
ato legislativo “crime contra a pessoa”. O Imperialismo europeu do século XIX e XX
leva a outras nações promulgarem leis semelhantes. A Primeira Grande Guerra ceifa
tantas vidas no continente, e produz ou reacende tantos nacionalismos, que essas
determinações tendem a se disseminarem, serem observadas com mais atenção, se
complexificarem e tornarem-se mais rígidas. Podem ser seletivas, de forma a reduzir a
taxa de natalidade dos naturais das colônias ou etnias minoritárias dentro dos territórios.

Houve exceções pontuais, como na União Soviética pré-stalinista (e alguns


países alinhados) ou na Espanha pré-franquista, que admitiram em certa medida a opção
pessoal e poderiam até prover oficialmente condições para a interrupção da gestação.
Contudo, uma compreensão (ainda que não generalizada) da matéria como exterior à
esfera do controle ou interesse do Estado vem somente após a Segunda Guerra Mundial
e a formação da Organização das Nações Unidas – ONU, com a reafirmação dos
Direitos Humanos, fortalecimento dos movimentos feministas e a tendência à laicização
estatal. Os anos de 1950 a 1970 marcam decisões importantes que afirmam o interesse
individual e o foro íntimo do assunto: Inglaterra, França, Alemanha Ocidental, Itália
[TORRES, 2012].
109

Em 1967, nos Estados Unidos, o estado do Colorado admitiu por ato legislativo
o aborto em casos específicos, após anos de mobilização feminista em favor da
autodeterminação e ao menos um precedente indiscutivelmente favorável em decisões
da Suprema Corte estadunidense (o caso Griswold versus Connecticut, veredicto em
1965 80 ). Até o início da década de 1970, naquele país, cerca de trinta estados
condenavam plenamente o aborto, enquanto nos demais a prática era consentida sob
diversas restrições. A primeira lei moderna realmente revolucionária sobre a matéria nos
EUA vem em 1970, do insular estado do Havaí, que permite a interrupção da gravidez
segundo decisão da mulher – de maneira semelhante, Nova York sanciona lei no
mesmo ano e estabelece o amplo consentimento para a interrupção da gestação desde
que antes de se completar sua vigésima quarta semana. O caso de Nova York é notório,
pois exime a solicitante de apresentar comprovante de residência dentro das fronteiras
desse estado: em termos práticos, e fazendo-se notar o real federalismo existente nos
EUA, criou-se uma “ilha de legalização” no centro da BosWash81, que recebia mulheres
residentes no entorno e mesmo de todo o país, conforme sua condição econômica
permitisse locomoção e atendimento clínico.

Um caso proveniente do estado do Texas e julgado em 1973 pela Suprema Corte


dos EUA, Roe versus Wade 82, é basilar no sentido de estabelecer precedente para a
inclusão do direito à decisão feminina quanto à interrupção da gravidez como parte do
designado Direito à Privacidade, que é grosso modo o direito a “não ter sua
individualidade submetida ao estado” – é um conceito jurídico bastante complexo, que
envolve principalmente termos da Primeira, Quarta e Décima Quarta Emendas à
Constituição desse país 83 . Seu alcance e a precisão de seus termos permanecem em
plena e constante discussão, seja quanto a assuntos tão distintos entre si como
casamento homossexual e limites da vigilância governamental sobre o cidadão.

80
Vide <https://www.law.cornell.edu/supremecourt/text/381/479> (em inglês), acessado em 6 de
novembro de 2015.
81
“De Boston a Washington”: a maior megalópole do mundo, conforme o trabalho seminal do geógrafo
francês Jean Gottmann de 1961, Megalopolis: The Urbanized Northeastern Seaboard of the United
States. Há de se notar a importância enquanto centro decisório político e econômico, e de influência
cultural, da região – qualquer resolução local pode determinar um padrão que, levando-se em
consideração sua relevância geopolítica, reverberaria através do globo.
82
Vide <https://supreme.justia.com/cases/federal/us/410/113/> (em inglês), acessado em 6 de novembro
de 2015. Sua decisão foi emitida em conjunto com a de outro caso de mesma matéria, proveniente do
estado da Geórgia, Doe versus Bolton, cuja pode ser encontrado no sítio), acessado em 6 de novembro de
2015, <https://supreme.justia.com/cases/federal/us/410/179/> (em inglês).
83
Vide <http://definitions.uslegal.com/r/right-to-privacy/> (em inglês), acessado em 6 de novembro de
2015.
110

Norma McCorvey, que se utilizou do pseudônimo Joan Roe no processo jurídico


citado, reportou ter mentido sobre as circunstâncias em que se deram a concepção
(inicialmente apontou estupro como causa), abandonando a militância pró-escolha e se
incorporando em iniciativas pró-vida. De forma semelhante, Sandra Cano, nome
verdadeiro de Mary Doe, disse ter sido “enganada por sua advogada” para assinar a
petição que dava início a seu processo. Ambas solicitaram reabertura de seus
respectivos processos, o que foi negado pela Suprema Corte.

4.3. Fundação da Catholics For Free Choice

A década de 1960 nos EUA é determinante para a articulação de frentes


favoráveis e contrárias ao aborto, ou pró-escolha e pró-vida, como são politicamente
designadas. Contudo, o marco inicial do que se pode chamar de Movimento de Controle
de Natalidade nos EUA é datado de 1916, e tem na pessoa de Margaret Louise Higgins,
ou Margaret Higgins Sanger (1879 – 1966) sua – por vezes controversa84 – pioneira:
enfermeira, escritora, ativista que popularizou o termo “controle de natalidade” (birth
control, no original), feminista.

Margaret Sanger, filha de família imigrante irlandesa com raízes católicas, sexta
nascida viva (de um total de onze) de dezoito irmãos, cujo pai envolveu-se na luta pelo
sufrágio feminino e educação pública. Casa-se em 1902 com o arquiteto e pintor
William Sanger. Em 1911, a família muda-se de uma cidade periférica para Nova York
– é a oportunidade de Margaret, que havia adotado a linha política de seu companheiro e
tornara-se feminista, travar contato com a intelectualidade modernista e ativistas sociais
nova-iorquinos. Escreve colunas no jornal New York Call (afiliado ao Sociallist Party of
America) a partir de 1912 que chamam a atenção pela franqueza e linguagem direta com
que tratam a sexualidade, embora continue o trabalho de enfermeira atendendo aos
moradores, membros da classe operária, do Lower East Side. O mensário de influência
anarquista, The Woman Rebel, cujo mote é a frase nietzschiana “No Gods, No Masters”,
é publicado a partir de março de 1914 tendo-a por autora, e em paralelo desenvolve um

84
A figura de Margaret Sanger foi ligada muitas vezes ao incentivo à eugenia racial (justificam-no por
um suposto relacionamento com a Ku Klux Klan, e pela área em que erigiu sua clínica em Nova York), ao
anacrônico neomalthusianismo, e supostamente seria “títere” de organizações que buscavam (ou buscam,
conforme alguns) controle social por meio de políticas públicas capitaneadas pela, e no interesse da
iniciativa privada. O Movimento Feminista atual tem-na como uma de suas precursoras mais ilustres.
111

folhetim de dezesseis páginas intitulado Family Limitation 85 – ambos ferem as


chamadas Comstock Laws86, que impediam a divulgação de informações contraceptivas
(entre outras) por via postal. Em agosto é indiciada, em novembro desse ano chega à
Inglaterra, por viagem marítima a partir do Canadá, para onde foi no mês anterior por
trem sob nome falso.

Na Inglaterra, trava contato com a Malthusian Leage (1877 – 1927), que


advogava o controle de natalidade como a “cura” para a pobreza e superpopulação, e
com a qual manterá colaboração até o encerramento das atividades dessa. Visita
associações feministas e conhece ativistas do meio – a história do movimento pelo
sufrágio feminino na Inglaterra remonta ainda ao primeiro terço do século XIX.
Encontra-se com Errico Malatesta (1853 – 1932), ativista e teórico italiano do
Anarquismo, em um dos muitos períodos de exílio dele. Viaja pela Europa, sob a
justificativa de aprimorar seu conhecimento sobre métodos contraceptivos; publica ao
menos duas notas públicas sobre a ignorância nos EUA quanto à contracepção, e o
caráter nocivo de um Ato que impede a divulgação de informações de utilidade pública
baseado numa moral particular. Retorna aos Estados Unidos em outubro de 1915.
Publica em dezembro um artigo no The Call onde defende seus posicionamentos e o
controle de natalidade – assina com o sobrenome Sanger ainda que já tenha se
separado, ao menos na prática, de William Sanger, embora continuem em colaboração.
A comoção em torno do seu caso já envolve figuras públicas prestando apoio a
Margaret e cartas abertas endereçadas ao então Presidente dos EUA, Woodrow Wilson:
altas instâncias da promotoria estadual pedem a descontinuação do processo de
acusação por nolle prosequi (mecanismo legal que no presente indica falta de provas ou
impossibilidade material de se provar culpa).

Margaret Sanger passa então ministrar uma série de palestras em diversos


estados americanos, e a emitir notas públicas. Retorna a Nova York e funda juntamente

85
Texto disponível no sítio on-line <http://archive.lib.msu.edu/DMC/AmRad/familylimitations.pdf> (em
inglês), acessado em 9 de novembro de 2015. Segundo a autora, a métodos contraceptivos de caráter
preventivo “são a melhor forma de prevenir o aborto” – a interrupção de uma gravidez parece ser
compreendida por ela, em 1914, como violência física à mulher que deveria ser evitada através da
educação e informação. O panfleto adota certo tom de “censura” quanto ao número máximo de filhos
“recomendável” a um casal operário, o que pode ser julgado um tanto estranho dadas as influências
socialistas e anarquistas da autora.
86
Texto disponível no sítio on-line <http://www.accessible-archives.com/2011/03/federal-comstock-law-
passed-1873/> (em inglês), acessado em 9 de novembro de 2015: “Postal Laws and Regulations of the
United States of America (1913)”, Section 480 (pp. 264 – 265).
112

a sua irmã mais nova e também enfermeira Ethel Higgins Byrne 87 (1883 – 1955), e
Fania Esiah Mindell (1894 – 1969, imigrante judia russa, ativista do feminismo,
tradutora, designer de roupas para teatro), na área do Brooklyn chamada Brownsville (na
época de população majoritariamente imigrante, de origem judaica), em 16 de outubro
de 1916, a primeira clínica voltada nominalmente ao controle de natalidade dos EUA.
As três foram eventualmente processadas: “A Clínica” teria operado somente por nove
dias antes da primeira prisão de Sanger (The Margaret Sanger Papers Project, NYU).

A presente discussão não é de caráter anedótico: a questão central para os


sucessos (como a liberação da pílula anticoncepcional em 1960 nos EUA, resultado da
supressão das leis que impediam discussão e distribuição de material anticoncepcional)
de movimentos como o de Margaret Sanger e outros com perspectivas de mudança
social é a informação que permite pôr em discussão ampla um conjunto de regras
morais com as quais apenas parte da sociedade moderna, complexa, se identifica, mas
que a afetam em todo. Ademais, Sanger desempenhou papel fundamental na discussão
sobre a legalidade da interrupção da gravidez, iniciando (certamente não sozinha, mas
os caminhos de pesquisa levam a seu nome) o debate que levará a Roe versus Wade, e à
fundação das Catholics For Free Choice, antecedente fundamental às Católicas pelo
Direito de Decidir brasileiras.

Sanger casa-se novamente em 1922, “sob seus próprios termos”, com o


empresário do petróleo James Noah H. Slee (1861 – 1943) que a apoiava sua causa e
chegou a contrabandear contraceptivos para os EUA, o que provê a ela relativa
autonomia financeira para continuar seus ciclos de palestras e publicações nas décadas
de 1920 e 1930: viaja o mundo criando uma rede de colaboradores e colaboradoras, e
chega a encontrar-se em debate Gandhi em 1936 – suas atividades na Índia contribuíram
para a fundação do movimento pró direitos reprodutivos nesse país. Em 1937 – 1938,
quando seus a ascensão dos fascismos reduz sua mobilidade, a rede de clínicas, à

87
A filha desta, Olive Charles Byrne, coabitará com William Moulton Marston (1893 – 1947, psicólogo)
e sua esposa formal, Elizabeth Holloway Marston (1893 – 1993, psicóloga), numa estrutura de
relacionamento que hoje é designada poliamor. William, que assinava Charles Moulton, foi idealizador
nominal e roteirista da personagem de Comic Books dos EUA, Wonder Woman, baseada em Olive e
Elizabeth. Marston se dizia influenciado pelos textos e ação de Margaret Sanger, e por outras
representantes do feminismo estadunidense – seus roteiros para história em quadrinhos são estudados
devido às referências, tanto teóricas como pessoais, que contêm. O trabalho acadêmico dele e da esposa
contribuiu para a criação do polígrafo, o “detector de mentiras”. Vide artigo disponível on-line no sítio
<http://digitalcommons.kennesaw.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=1022&context=kjur> (em inglês),
acessado em 9 de novembro de 2015.
113

semelhança com aquela primeira instalada na periferia de Nova York, já contava com
mais de trezentas unidades ao redor do mundo88.

Margareth Sanger precisou, para tornar viável sua militância feminista (vista por
muitos elementos como radical) e compatibiliza-la com as ações pró mulher (que são
diferentes aspectos não necessariamente relacionados, e para muitos de seus
colaboradores e colaboradoras o ponto de interesse se restringia ao controle de
natalidade, ou com muito menos relevância no empoderamento feminino), adaptar seus
pontos de vista no decorrer do tempo: a Revolução de 1917 a afastou de
posicionamentos socialistas, e conforme angariava apoio financeiro do grande
empresariado adaptava seu discurso oficial às pretensões desses – inevitavelmente essa
série de papéis assumidos vão pesar sobre sua pessoa. Ao final da década de 1930, o
terror de uma propaganda e depois de uma política efetiva de “planejamento
populacional” extremista e inconcebivelmente assassina como a praticada sob o
nazismo nos territórios ocupados pelo III Reich começa a vir a público: Margaret
Sanger utilizou-se de uma argumentação reconhecivelmente neomalthusiana, contudo
chegou a mencionar esterilização forçada por lei, “eugenia científica positiva”, e a
atribuir crédito a crenças pseudocientíficos (e.g., acerca de uma suposta
“degenerescência intelectual e física” progressiva, e tendências à violência,
determinadas pelo meio), como exposto em alguns pontos de seu livro “The Pivot of
Civilization” 89 , de 1922. Em 1942 torna-se figura meramente simbólica dentro do
movimento que ela havia engendrado, e que já via o termo Birth Control com reservas.
Retira-se para Tucson, em Texas, nesse ano.

Em 1923, Margareth funda o Birth Control Clinical Research Bureau: tratava-se


não mais de uma clínica, mas um centro de pesquisa e coleta e análise de dados, além de
servir para treinamento de pessoal médico em saúde reprodutiva feminina; no campo
sociopolítico, em 1921 funda a American Birth Control League, e em 1929 o National
Committee on Federal Legislation for Birth Control, um com objetivo de ação sobre a
sociedade civil, outro voltado ao lobby no legislativo para aprovação de leis que
garantissem a liberdade sexual e reprodutiva feminina, ou supressão de legislação
antiquada; em 1939 a American Birth Control League (da qual tinha sido forçada a

88
Fonte deste parágrafo e os dois seguintes, sítio on-line <http://www.anb.org/articles/15/15-
00598.html> (em inglês), acessado em 9 de novembro de 2015.
89
Vide texto completo da obra, em inglês, no sítio on-line <http://www.gutenberg.org/files/1689/1689-
h/1689-h.htm#link2HCH0005>, acessado em 9 de novembro de 2015.
114

abandonar a presidência em 1928 por sua figura ser associada a uma imagem
demasiadamente “radical”) e o Birth Control Clinical Research Bureau unem-se sob o
título Birth Control Federation of America, que em 1942 será renomeada como Planned
Parenthood Federation of America – PPFA. O retiro de Sanger dura pouco tempo: com
o final da Guerra e a complexidade da economia mundial que se segue, o controle de
natalidade volta a ser assunto aberto a debate, agora também de renovado interesse
geopolítico – em 1950 ela funda a International Planned Parenthood Federation –
IPPF, numa conferência em Bombaim, Índia, tornando-se presidente da organização até
1959, quando a IPPF já estava presente em vinte e seis nações. Consta que não se
dispunha a propor ou defender medidas de políticas contraceptivas estatais que
ignorassem as necessidades e a individualidade femininas.

Sanger contribuiu com apoio, rede de recursos e fundos ao zoólogo pesquisador


em biologia aplicada Gregory Goodwin Pincus (1903 – 1967) e seus principais
colaboradores Min Chueh Chang (biólogo especialista em reprodução de mamíferos,
1908 – 1991) e John Rock (médico obstetra e ginecologista, 1890 – 1984) durante a fase
de projeto e testes de um contraceptivo oral combinado, ou pílula anticoncepcional,
resultando na aprovação da droga pelo Food and Drug Administration – FDA dos EUA
em 1957. Inicialmente indicada para o tratamento de desordens menstruais e
infertilidade, é aprovada como contraceptivo em 23 de junho de 1960 90. A primeira
pílula foi indubitavelmente elemento central na verdadeira revolução dos costumes e na
ampliação do espectro do discurso feminista na década de 1960, e também motivo de
atrito principalmente com membros da Igreja Católica e grupos sociais e políticos
coligados (além de uma oportunidade de negócio fabulosa dada a demanda).

Nos anos de 1950 e 1960, organizam-se com financiamento particular uma série
de palestras nos EUA cujo tema é aborto como método contraceptivo, o que abre o
debate público sobre o assunto. A década de 1960 tem o desenvolvimento da “pílula” e
a “contestação dos costumes”. Correndo o óbvio risco de desenhar um cenário simplório
e maniqueísta, pode-se afirmar que movimentos sociopolíticos vão se articular e evoluir
para a formação de frentes de pressão contrárias, representadas exemplarmente na
National Right to Life Committee – NRLC (1º de abril de 1967, formada por intermédio

90
Fonte dessas informações e explanação muito mais detida podem ser encontradas no sítio on-line
<http://jhmas.oxfordjournals.org/content/57/2/117.full.pdf> (em inglês), acessado em 31 de dezembro de
2015.
115

da Conferência Nacional de Bispos Católicos dos EUA), e na National Abortion and


Reproductive Rights Action League – NARAL (fevereiro de 1969): cria-se a antítese
entre os pró-vida e os pró-escolha, e o cenário onde vai se desenrolar Roe vs Wade.

Atualmente, a PPFA reúne cerca de 700 clínicas ao redor do mundo que


proveem formalmente uma série de serviços voltados à saúde reprodutiva feminina, e
financia políticas, ações e formação de grupos em diversos países que se alinhem a sua
missão, criando uma ampla rede de colaboração internacional com quase 60 entidades
formalmente afiliadas 91 – sempre esteve associada à “imagem do aborto”, e é alvo
preferencial de “ataques” de movimentos pró-vida 92 . E esse ainda um caso em
discussão nos Estados Unidos: a despeito de sua regularização prática em 1973,
diversos detalhes tem sido motivo de debate (e.g., alienação parental masculina versus
opressão contra a mulher) – legislações estaduais também interferem na legalidade e
circunstâncias específicas em que ocorreriam o aborto, dado que decisões da Suprema
Corte dos EUA tem poder de decisão somente sobre casos a ela levados, sendo que seus
posicionamentos prestam-se mais a orientações em caso estaduais devido ao precedente
que abrem, do que norma. Taxas diferenciadas de incidência da prática 93 entre os
distintos grupos populacionais também tem sido motivo para reavivar ou levantar
temores quanto a possíveis “bias propositalmente induzidos”, e.g., na tentativa de
convencer principalmente organizações ligadas ao Movimento Negro dos EUA a aderir
à alternativa “pró-vida”.

Os movimentos de “mulheres católicas pró-direitos sexuais e reprodutivos”


surgiram com a Catholics For Free Choice – CFFC94, fundada em 1973 na cidade de
Nova York, Estados Unidos, como uma forma de se contrapor ao lobby dentro do

91
Vide sítio on-line <https://www.plannedparenthood.org/about-us/who-we-are> (em inglês), consultado
em 31 de dezembro de 2015.
92
A PPFA foi associada diversas vezes na história recente a iniciativas dúbias ou escândalos que vão
desde lobby com políticos dos países do antigo Terceiro Mundo para a implantação de políticas estatais
de redução de natalidade à “propaganda voltada a grupos específicos”, passando pela comercialização de
restos mortais de fetos – são temáticas cuja observação não pode interferir nessa breve citação histórica,
mas forçosamente deve-se mencionar o atentado a tiros a uma unidade do estado do Colorado conduzido
por Robert Lewis Dear em 27 de novembro de 2015, e que tirou a vida de três pessoas.
93
Vide no sítio on-line <http://www.nyc.gov/html/doh/downloads/pdf/vs/vs-pregnancy-outcomes-
2013.pdf> o Summary of Vital Statistics 2013, The City of New York: Pregnancy Outcomes. Exime-se
aqui de qualquer análise ou posicionamento sobre os dados, por se compreender que para tanto é
necessário ferramental teórico e técnico, além de proximidade social com tal realidade que estão muito
além da capacidade do autor. Faço notar, porém, que Movimentos Feministas Negros estadunidenses
apresentam motivos que se afiguram pertinentes para negar a validade de alegações quanto a alguma
“intencionalidade subjacente”.
94
Hoje, Catholics For Choice.
116

Congresso e dos Legislativos dos estados da comunidade eclesiástica católica contrária


à legalização do aborto, dados os precedentes estaduais e as decisões evidentemente
permissivas da Suprema Corte. A história da CFFC é densa de embates com os líderes
da comunidade católica dos EUA, o que valeu seu repúdio pela Conferência dos Bispos
Católicos dos Estados Unidos em 199395 e em nota específica em 200096. Sob todos os
aspectos, a CFFC seguiu propagando mensagens mais “ousadas” que (embora, segundo
sua direção, em coerência com) as estabelecidas no Concílio Vaticano II, que como já
foi salientado, trata-se de um marco da Igreja Católica no sentido de sua “adaptação à
Modernidade”, mas que terminou por ser sucedido por pontífices e quadros dirigentes
afeitos à ortodoxia. A CFFC tornou-se exemplo de movimento para outros que seguiam
a mesma lógica de pertencimento VS adequação, e se encontra entre os principais
colaboradores da Red Latinoamericana de Católicas por el Derecho de Decidir e da
própria CDD brasileira.

O histórico da organização é bastante complexo, e profundamente contestatório


em relação à ortodoxia da ICAR. As CFFC foram uma dissidência / revisão de um
outro grupo, o Catholics for the Elimination of All Restrictive Abortion And
Contraceptive Laws, fundado em Nova York em 1970. Foram organizadas por três
mulheres católicas, Joan Harriman, Patricia Fogarty McQuillan e Meta Mulcahy, e tinha
por objetivo inicial discutir com a população trabalhadora os preceitos ditados pelos
Bispos e Párocos sobre contracepção e aborto [DAVIS, 2006].

Houve de fato associados vinculados à vida religiosa, padres e freiras que foram
repreendidos por subscrever petições em favor da discussão do aborto e de outros temas
considerados delicados, além de prover o sacramento do Batismo no caso de pais de
diferentes religiões, por exemplo (a Congregação dos EUA observava com atenção as
restrições ao batismo de crianças de somente pai ou mãe católicos, pois não haveria
certeza da criação do infante na fé romana). Por ocasião do aniversário de um ano da
sentença Roe vs Wade, houve o episódio da “coroação” de Patricia McQuillam como
“papisa” nas escadarias da Catedral de São Patrício, em Nova York: essa foi uma tática

95
O manifesto de 1993 foi proferido por ocasião da proposta do então presidente dos EUA, William
Jefferson “Bill” Clinton (1946), para incluir na reforma do sistema de saúde americano interrupções de
gravidezes de mulheres pobres como serviço gratuito: vide por exemplo o sítio on-line
<http://articles.chicagotribune.com/1993-05-12/news/9305120086_1_catholic-bishops-archbishops-and-
cardinals-bishops-pro-life-committee> (em inglês), acessado em 31 de dezembro de 2015.
96
Vide sítio on-line <http://www.usccb.org/news/2000/00-123.cfm> (em inglês), acessado em 31 de
dezembro de 2015.
117

que obteve sucesso para se atrair a atenção pública para a atuação do grupo - nesse
período inicial de atividades, as CFFC agiam com recursos limitados, buscando atrair
atenção e pôr a debate o assunto através de intervenções justamente em manifestações
pró-vida e similares. O objetivo tornava-se cada vez mais mostrar que as vozes
dissidentes entre a comunidade laica e mesmo o baixo clero eram maioria. A liderança
de Patricia McMahon em 1979 dá ao grupo status formal de instituição educacional ao
invés de militante, e atrai contribuições de fundações, permitindo a edição profissional
dos primeiros panfletos e revistas [idem].

O grupo ganha novo alento sob a direção da ativista Frances Kissling (1943).
Filha de família de católicos poloneses, desejou ser freira aos 19 anos. Seis meses
depois abandona o convento, vindo a engajar-se em movimentos de mulheres e
feministas ao redor dos EUA nos anos de 1960. Com a publicidade dos primeiros casos
de liberação do aborto pela Suprema Corte dos EUA, recebe convite de gerir uma
clínica em Pelham, Nova York. Em 1978 junta-se às CFFC, e em 1982 torna-se sua
presidente: é responsável, no período das eleições presidenciais estadunidenses de 1984,
por um “anúncio-manifesto” de página inteira no New York Times chamado “A
Diversity of Opinions Regarding Abortion Exists Among Committed Catholics” datado
de sete de outubro desse ano – o artigo foi uma resposta à crítica do Arcebispo de Nova
York quanto à indicação pelo Partido Democrata à vice na chapa à presidência de uma
membro, Geraldine Anne Ferraro (1935 – 2011), que havia manifestado publicamente
que os católicos dos EUA não eram unânimes quanto a questão do aborto. A
repercussão desse acontecimento opôs clara e definitivamente o Vaticano e a
Congregação de Bispos e Arcebispos dos EUA às CFFC. As declarações formais da
ICAR e inclusive o chamamento à retratação dos religiosos, religiosas e teólogos que
subscreveram o documento coloca as CFFC definitivamente em lugar de destaque como
interlocutoras, e majora sua representatividade no movimento pró-escolha [ibidem].

Francis Kissling foi presidente das Catholics For Choice durante vinte e cinco
anos, até 2007. Hoje sua carreira é voltada para produção textual e acadêmica sobre
bioética, direitos reprodutivos e religião, além de ocupar-se da presidência do The
Center for Health, Ethics and Social Policy97.

97
Vide sítio on-line <http://www.chsp.org/> (em inglês), visitado em 31 de dezembro de 2015.
118

As CFC contribuíram para a formação de grupos semelhantes nas Américas e na


Europa. Coordena-se com uma extensa rede de movimentos feministas internacionais e
supranacionais. Sua proximidade e relacionamento duradouro com as Instituições e
Fundações que costumeiramente endossam causas de sexo e gênero coloca-as
certamente na posição de articuladoras privilegiadas entre as organizações que seguem a
mesma linha e temática de atuação.

4.4. Red Latinoamericana de Católicas por el Derecho a Decidir

O V Encontro Internacional da Saúde da Mulher ocorreu na Costa Rica, em


1987, e foi como as anteriores iniciativa promovida pela ONU que reuniam diversas
representações feministas, de diversos segmentos e tendências, organizações médicas,
representantes dos governos dos diversos países membros – todos com o compromisso
comum de discutir e promover planos de ação e práticas médicas pensadas
especificamente para o bem estar e a saúde feminina: a temática desse Encontro em
particular foi mortalidade materna.

Neste evento, houve a oportunidade de trocas de experiências entre ativistas, e as


CFFC teve presença marcante. A liberação do aborto era polêmica no âmbito de países
de tradição católica homogênea, muitos dos quais ainda se encontravam sob, ou estavam
em vias de abandonar, governos ditatoriais, militares ou civis – portanto, a questão do
ativismo provavelmente era experiência recente. Nas discussões sobre o tema houve
polarização em termos binários entre as e os participantes, mas feministas de países da
América Latina e Espanha que se identificaram com o ideário e ações das Catholics for
Free Choice dariam início a diversos movimentos nacionais, que trocariam
experiências, planos de ação, e formariam as bases necessárias (alicerce social e apoio
financeiro de Fundações internacionais) para dar origem a uma Rede de movimentos
regida por uma plataforma comum.

A Red Latinoamericana de Católicas por el Derecho a Decidir – CDDLA98, que


congrega doze nações da América do Sul e Central, teve sua semente plantada em 1987,
mas somente no ano de 1996, já enquanto um grupo internacional plenamente

98
Todas as informações presentes aqui foram obtidas a partir do sítio oficial on-line da CDDLA
<http://catolicasporelderechoadecidir.net/inicio.php>, e de publicações e artigos das Católicas Pelo
Direito de Decidir Brasil, diversos acessos em datas variadas.
119

organizado, publica sua Carta de Princípios 99 – uma nova será publicada em 2011,
diante da entrada de novas representações ao longo dos anos. Nela ratificam serem
movimentos autônomos de pessoas católicas e feministas, comprometidas com a busca
da justiça social, autonomia pessoal (principalmente para mulheres, e no que tange
decidir sobre o próprio corpo), garantia social para a prática de diferentes religiosidades,
orientadas por um pensamento teológico e feminista. Postam-se contra preconceitos de
gênero, cor, por Estados laicos (como condição para liberdade religiosa) e em defesa
dos Direitos Humanos.

Existem Católicas por El Derecho a Decidir – CDDs nos seguintes países


latinoamericanos: Argentina, Brasil, Bolívia, Colômbia, Chile, Equador, El Salvador,
Nicarágua, México, Paraguai e Peru. Há também uma representação associada da Red
na Europa, na Espanha. Realizam uma publicação periódica comum, a revista
Conciencia Latinoamericana – cujo título remete justamente ao mecanismo de objeção
de consciência, base de uma das justificativas para compatibilizar o ato do aborto com a
fé individual – além de outras obras temáticas da Red, e divulgam as produzidas pelas
várias CDDs nacionais. Articula-se com extensa lista de outras entidades feministas, em
especial com a CFC dos EUA e sua extensão no Canadá, e outras que assumam os
diversos matizes de sua atuação100.

4.5. O Feminismo no Brasil

A literatura tradicional sobre o tema costuma dividir o impacto social do


ativismo feminista em períodos históricos: fala-se em Ondas Feministas. Contudo, cada
cultura, cada nação, possuem características que lhe são próprias e dão cor aos
movimentos endógenos de mulheres. Tentar-se-á articular os períodos tradicionalmente
apontados como etapas do movimento com aqueles que se desenvolveram na realidade
brasileira.

99
Versão atualizada em 2011 pode ser encontrada no sítio on-line <http://www.catolicas.com.ar/portal/
index.php?option=com_content&view=article&id=63%3Acarta-de-principios-de-la-red-latinoamericana-
de-catolicas-por-el-derecho-a-decidir&catid=34&Itemid=166&lang=es> (em espanhol).
100
Listagens podem ser encontradas nos sítios on-line < http://catolicasporelderechoadecidir.net/cdd_
campanas.php> e <http://catolicasporelderechoadecidir.net/cdd_enlaces.php> (ambos em espanhol).
120

4.5.1. Até 1889

Costuma-se, em se tratando de estudos sobre feminismo, enumerar “ondas” ou


períodos onde os movimentos possuem características comuns ou acontecimentos, fatos
ou pressões sociais que os conectam de alguma forma.

Cisne e Gurgel [CISNE et al, 2008] marcam a “primeira aparição” de aspirações


feministas como as lutas de mulheres durante a Revolução Francesa, ainda em 1789, em
Igualdade com os homens e demandando a Liberdade que o conceito de cidadania lhes
prometia. A chamada Primeira Onda do Feminismo, esse agora como sujeito social e
político organizado, está associada às lutas por direitos civis mais amplos e liberdades
sociais para mulheres na segunda metade do século XIX, e é especialmente marcada
pelas manifestações pelo sufrágio feminino nos principais países anglófonos, por
exemplo [PINTO, 2010]. Para Céli Pinto, a conquista de direitos políticos implica no
poder de interferir na reprodução dos quadros sociais vigentes de maneira ampla. O
sujeito político feminino apareceria então como um ente a ser controlado, sob o risco de
interferir na ordem que vigora - se o processo republicano ou os mecanismos sociais de
reprodução do status quo são imaturos ou passam por crise, equivaler a petição em
pauta ao ridículo é saída preferível a complexificá-los através da admissão de mais
atores políticos.

No Brasil Imperial os “papéis femininos possíveis” eram bem determinados, e as


exceções e casos específicos são hoje quase anedóticos, idealizados ou motivos de
estudo. É impossível falar em feminismo como movimento organizado numa sociedade
de estamentos e patriarcal, da “família extensa” rural e onde mesmo as mulheres
citadinas tinham sua educação formal voltada aos papéis que viriam a assumir como
mães, donas de casa, etc.

Foi discutido anteriormente o papel feminino na Vida Religiosa do período, que


era organizado segundo uma lógica adequada às características da ordem social de
então, e dos Conventos quase como misto de refúgio e cativeiro para as mulheres.

A autoridade sobre o corpo feminino era domínio do patriarca e do Estado. No


que se refere especificamente ao tema do aborto101, vigorou uma legislação no Império

101
É inevitável que se questione se, ou quando, a prática do aborto é uma ruptura do referido domínio, ou
uma confirmação do mesmo: poderia ser tanto provocado pela mulher como técnica de controle de
natalidade (muitas vezes à revelia do esposo e com cumplicidade de outras mulheres), quanto como
121

brasileira durante quase um século manifesta no “Código Criminal do Imperio do


Brazil”, de 16 de dezembro de 1830, e sancionado pelo “Imperador Constitucional, e
Defensor Perpetuo do Brazil” Dom Pedro de Bragança. O tema encontra-se na Seção
Segunda do referido código, “Do Infanticidio” (o que já é revelador no sentido de
equivaler o feto e a criança recém-nascida como mesmos sujeitos do Direito),
especificamente citado ou referido nos artigos de número 199 e 200 [SILVA, 2012]. O
primeiro desses estabelecia punição com a pena de prisão com trabalhos de um a cinco
anos à pessoa que provocasse o aborto por “qualquer meio empregado interior ou
exteriormente com consentimento da mulher pejada” – se o crime fosse cometido sem o
consentimento da mulher, as penas seriam dobradas. O último refere-se a pessoa que
“fornecer com conhecimento de causa drogas, ou quaesquer meios para produzir o
aborto, ainda que este se não verifique (...)”: a pena seria de prisão por dois anos, com
trabalhos forçados – a execução do crime por profissional – “médico, boticário,
cirurgião ou praticante de tais artes” – dobra a pena. Não se trata explicitamente sobre a
penalização da mulher, a menos que se entenda que é cúmplice ou a criminosa na
prática do aborto, ou no caso de “infanticídio para ocultar desonra” (art. 198, que
estabelece para a mãe pena de prisão de um a três anos) – mesmo no corpo da Lei,
aparece a mesma quase sempre numa posição passiva ou secundária, ou de vítima, o que
certamente reflete seu espectro de ação social esperado.

A prática antes do chamado aborto instrumental (final do século XIX e início do


XX no Brasil) dava-se através do “(...) uso de sangrias, sanguessugas, banhos de
assento, marchas forçadas, quedas, longas caminhadas, compressão do ventre,
massagens etc.” – excetuando-se por quedas e compressão ventral, raramente
resultavam alcançar o efeito pretendido. “O passo seguinte era a ingestão de chás e
decocções de certos tipos de ervas ou mesmo substâncias químicas”: ação direta sobre o
útero ou intoxicações e envenenamentos poderiam levar a gestante ao aborto [idem].

O aborto instrumental é criado na Europa, início do século XIX (e.g., cateter de


ferro inserido através da vagina para perfuração da bolsa amniótica, com largo risco de
perfuração uterina), e tem seu instrumental e técnicas aprimorados ainda na metade do
século XIX através do uso de cateter e ferramentas de borracha vulcanizada ou

“tática para se esconder a desonra” que recairia sobre a família no caso de gravidez fora do casamento
(com o apoio ou mesmo mediante exigência do chefe dessa). Em ambos os casos, ou se buscava ocultar o
caso às autoridades e ao Estado, ou se contava com sua anuência, de acordo com a posição social
ocupada.
122

emborrachados, o que provocou uma “revolução” na prática (minimizavam danos


secundários), e da inserção de líquido no útero para provocar o parto ou irritação desse
órgão o suficiente para a amblose (as seringas de vidro e metal foram substituídas pelas
de borracha e reduziram sobremaneira os riscos associados). No Brasil, ainda na metade
do século XIX havia moções da nascente classe médica fluminense para a restrição de
venda de determinados produtos ou a ação de barbeiros somente quando por prescrição
médica – já o aborto por instrumentos, que estendeu e barateou a prática: utilizava-se de
variados métodos e “ferramentas” (de agulhas de tricô a penas de ganso, à guisa de
imitação dos instrumentos importados), maior parte das quais trazia à mulher riscos de
dano ao útero ou deixavam fragmentos. Os ferimentos e mortes nas mãos de ineptos não
eram, como hoje também não o são, em pequeno número, e atingiam principalmente
mulheres das classes baixas: as autópsias revelavam os sinais e extensão da agressão
física a que se submetiam [ibidem].

4.5.2. Entre 1890 e 1930

Durante a República Velha houve as primeiras formas de organização feminina e


as primeiras petições quanto ao voto das mulheres dentro do território brasileiro.

Em 1917, há a emissão do Manifesto de uma frente Anarquista de mulheres, a


“União das Costureiras, Chapeleiras e Classes Anexas” [PINTO, 2010] - o Anarquismo,
o Marxismo, o conceito de sindicato de trabalhadores, como doutrinas políticas
“entram” (grosso modo) no Brasil junto às levas de imigrantes europeus, alguns dos
quais possuem experiência em formas de organização operária com ideário socialista
em voga no Velho Mundo durante a segunda metade do século XIX. A industrialização
e a urbanização mais maduras, crises durante os processos de unificação e imperialistas,
tinham criado as bases sociais para movimentos grevistas e formação de associações de
classe, e esse conjunto de preceitos vem influenciar a conjuntura trabalhista num Brasil
que dá seus primeiros passos como sociedade em que atividades profissionais realmente
capitalistas vigoram. A Confederação Operária Brasileira – COB é fundada em 1906
como primeira tentativa a nível nacional de articulação dos trabalhadores, a exemplo da
Confédération Générale du Travail – CGT francesa, mas tolerante quanto às linhas do
pensamento socialista adotadas por seus membros 102 . Embora a figura feminina nos

102
Vide sítio on-line <http://cpdoc.fgv.br/sites/default/files/verbetes/primeira-republica/CONFEDERA
%C3%87%C3%83O%20OPER%C3%81RIA%20BRASILEIRA%20%28COB%29.pdf>, acessado em
31 de dezembro de 2015.
123

movimentos de organização laboral e sindicais seja quase invisível nessa época e


durante muito tempo devido à dominação masculina [BOURDIEU, 1999] nessas
esferas, a greve geral de 1917 (que ocorreram até 1920 – 1921, na recessão econômica
associada à I Guerra), marco para o movimento sindical brasileiro, tem entre suas
petições a regulamentação do trabalho feminino e de menores103 (sem introduzir a óbvia
temática da desigualdade salarial entre homens e mulheres que minava a paridade de
suas relações com o trabalho e com o empregador, deve-se mencionar a condição de
maior exposição feminina a diversas formas de assédio, principalmente o sexual, por
parte dos patrões e “capatazes”).

Falando-se em movimento de mulheres nesse período, é imprescindível


mencionar a figura pioneira104 em diversas áreas de Bertha Maria Júlia Lutz (1894 –
1976): cientista natural especializada em zoologia pela Sorbonne em 1918, entra em
contato com as correntes feministas durante seu período na Europa – no Brasil, além de
ter sido a segunda mulher a ocupar cargo público através de concurso, e desempenha
papel central na criação de um ideário feminista brasileiro. Junto a outras
personalidades é fundadora da Liga para a Emancipação Intelectual da Mulher (1919),
que se tornaria a Federação Brasileira pelo Progresso Feminino – FBPF (1922), e é
uma das grandes responsáveis pela habilitação do sufrágio feminino no Governo
Provisório de Vargas em 1932, e na sua inclusão na Constituição de 1934 [PINTO,
2010]: em 1922 participa como delegada brasileira da Primeira Conferência Pan-
Americana de Mulheres em Baltimore, Maryland / EUA, proposta pela League of
Women Voters (fundada em 1920, nos EUA, que articulava as sufragistas americanas), e
é eleita para papel de destaque, vice-presidente da Sociedade Pan-Americana – somente
então as diversas Ligas estaduais se articulam na FBPF, e há uma clara liderança,
mobilização, visibilidade e poder de barganha com o Estado. Participará de diversos

103
Vide sítio on-line <http://www.projetomemoria.art.br/RuiBarbosa/glossario/a/greve-1917.htm>,
acessado em 31 de dezembro de 2015.
104
Dentre outras tantas mulheres notáveis: Celina Guimarães Vianna (1890 – 1972) requereu em 1927 a
inclusão de seu nome na lista de eleitores de Mossoró / RN, devido a uma brecha na legislação desse
estado, sendo a primeira brasileira a votar; Maria Ernestina Carneiro Santiago Manso Pereira (1903 –
1995), conhecida por Mietta Santiago, advogada e participante do Movimento Modernista que conquistou
o direito de votar e ser votada para mandato de deputada através de um mandado de segurança de 1928
baseado em lacuna na Constituição de 1891; Ivone Guimarães Batista Lopes (1908 – 1999) repete, no
mesmo ano, o feito de Mietta (ambas foram motivo de poema de Carlos Drummond de Andrade); Luíza
Alzira Soriano Teixeira (1897 – 1963), elege-se para a prefeitura de Lajes / RN, sendo a primeira mulher
da América do Sul a exercer cargo executivo. A opção por citar Bertha Lutz é de caráter também
funcional – sua vida aparece como profundamente associada ao movimento de mulheres e à ação
feminina no Brasil.
124

encontros de mulheres no país ou como representante do Brasil nos EUA, Europa e


América Latina nos anos seguintes.

Lutz ainda teria dez anos de militância e articulação à sua frente até a cessão de
direitos políticos plenos às mulheres brasileiras, no Código Eleitoral do Governo
Provisório, Decreto nº 21.076, de 24 de fevereiro de 1932:

“(...)
Art. 1º Este Código regula em todo o país o alistamento
eleitoral e as eleições federais, estaduais e municipais.
Art. 2º E' eleitor o cidadão maior de 21 anos, sem
distinção de sexo, alistado na forma deste Código.
Art. 3º As condições da cidadania e os casos em que se
suspendem ou perdem os direitos de cidadão, regulam-se
pelas leis atualmente em vigor, nos termos do decreto n.
19.398, de 11 de novembro de 1930, art. 4º, entendendo-
se, porém, que:
a) o preceito firmado no art. 69, n. 5, da
Constituição de 1891, rege igualmente a nacionalidade da
mulher estrangeira casada com brasileiro;
b) a mulher brasileira não perde sua cidadania pelo
casamento com estrangeiro;
(...)”
Entremeios, a FBPF luta em prol de educação e profissionalização femininas.
Candidata nas eleições de 1934 (já graduada em Direito pela Universidade do Brasil),
ganha a primeira suplência, e assume como deputada federal, pela Guanabara, de 28 de
julho de 1936 até o fechamento do Congresso por Vargas em 10 de novembro de
1937105. Foi chamada a participar da formulação do anteprojeto da Constituição que
seria homologada em 1934, e apresentou contribuições consistentes: “As sugestões,
muitas das quais já vinham sendo discutidas nos congressos feministas anteriores,
defendiam os direitos políticos e jurídicos das mulheres em geral, dando especial
atenção às questões relativas ao trabalho, à educação, à maternidade e à infância” [DE
SOUSA et alii, 2005]. Seu mandato espelha suas diversas facetas: mulher, feminista,
cientista, naturalista, funcionária pública concursada. Seu feminismo foi designado
posteriormente como “(...) de elite, conservador, bem-comportado, jurídico-institucional
(...)”, contudo suas ações institucionais tiveram reflexos sólidos na sociedade e impactos
inconfundíveis no modo de vida e de trabalho femininos, com destaque para as
profissionais de enfermagem e a situação da gestante e mãe trabalhadoras [idem].

105
A primeira Deputada Federal do Brasil foi Carlota Pereira de Queirós (1892 – 1982, médica, pedagoga
e escritora), por São Paulo nas eleições de 1934. Ela e Lutz vão propor o projeto de Lei Estatuto da
Mulher, que objetiva uma reforma na legislação no que diz respeito ao trabalho feminino.
125

Continuou sua participação ativa em discussões internacionais: 1944, representante


brasileira membro da Comissão de Assuntos Femininos na Conferência da Organização
Internacional do Trabalho, Philadelphia, Pennsylvania/EUA; 1945, delegada
plenipotenciária do país na Conferência de San Francisco, que encerra oficialmente a II
Guerra Mundial e serve de marco de fundação para a ONU (nessa ocasião, entre outras
contribuições, propõe a criação da Comissão de Estatutos da Mulher das Nações Unidas
– na qual seria representante brasileira em 1952); recebe o prêmio de Mulher das
Américas em 1951; 1953, delegada do Brasil para a Comissão Interamericana de
Mulheres da União Pan-americana de Repúblicas; a ONU viria a estabelecer 1975 como
Ano Internacional da Mulher, e Bertha Lutz foi convidada a participar da delegação
brasileira na I Conferência Mundial sobre as Mulheres (1975, Cidade do México, que
aprova um Plano de Ação específico e proclama a década da mulher na ONU, 1975-
1985), marco para o feminismo e luta das mulheres no mundo106.

Os debates sobre o aborto durante o período em questão foram ativos dentro da


Academia Nacional de Medicina – ANM107, que buscava trazer as questões e artigos em
voga na comunidade de ciências europeia (especialmente a francesa) à brasileira. São
inúmeras as questões associadas ao tema, das quais elencaremos as principais conforme
em [SILVA, 2012]:

 O aborto era considerado crime (seja pelo Código Criminal de 1830, seja pelo
Código Penal de 1890108 e posteriores). Além de ofensa ao Estado, podia pôr a

106
Vide sítio on-line <http://www.cnpq.br/web/guest/pioneiras-view/-/journal_content/56_INSTANCE
_a6MO/10157/902173>, acessado em 31 de dezembro de 2015.
107
O aborto foi durante os trinta primeiros anos do século XX amplamente discutido, seja por setores
médicos ou juristas, mas sua proibição mantida. Há de se perguntar se, diante da moral da época e das
“teorias raciais” que não se pode dizer científicas (embora inegavelmente fossem à época abraçadas por
muitos dos nossos cientistas, médicos e advogados) então em moda, a adoção do aborto e da esterilização
como práticas públicas não engendrariam um “massacre preventivo” nas classes pobres e naqueles com
tons de pele mais escuros que o considerado “ideal” para uma “Nação Brasileira” – novamente, deve-se
lembrar do "poder da autoridade" para construção da real, como visto em Foucault, e das tendências
racistas que sempre permearam nossa sociedade da “paz entre as raças” e da “cordialidade”. Contudo, a
discussão poderia ter gerado reflexões que seriam repensadas, negadas ou favorecidas pelas gerações
seguintes, principalmente aquelas que viveram a decadência da eugenia, a Carta dos Direitos do Homem
da ONU, e a “liberação dos costumes” de 1960/70. Mas a época não era a das mais liberais ou favorecidas
pelo amplo debate no Brasil.
108
Diversos setores ansiavam por uma penalidade explícita e/ou mais graves para mulheres que
praticassem o aborto. O Decreto nº 847, de 11 de outubro de 1890, que promulgou o primeiro Código
Penal da República, mudou qualitativamente a natureza do crime: “Do Abôrto” é o Capítulo IV do Título
X, “Dos Crimes Contra a Segurança de Pessoa e Vida”. Eram três artigos que tratavam do assunto: o de
número 300 tratava do ato de provocar o aborto (presume-se que à revelia da gestante) – penalizava o
perpetrador em seis meses a seis anos de “prisão cellular”; caso houvesse a morte da mulher, as penas
eram agravadas para de seis a vinte e quatro anos de reclusão; por fim, se a interrupção da gravidez fosse
126

perigo o domínio do marido sobre a esposa (era ferramenta tanto para o controle
de natalidade quanto para se “ocultar a desonra”), e também o “(...) controle
médico sobre o corpo feminino (...)”. Criou-se uma cisma entre a comunidade
médica entre os que eram completamente favoráveis à uma extensa proibição, e
aqueles que viam no recrudescimento das normas e das penas um aceno para a
possibilidade de quebra do sigilo entre médico e paciente. Os primeiros
denunciavam o crescimento da prática mesmo entre mulheres casadas e pobres,
aumento no número de mulheres com sequelas ou mortas durante o
procedimento, existência de uma rede de “profissionais” (de médicos e parteiras
a “curandeiros” e “espiritualistas”) que atendiam à demanda, apontavam
anúncios dúbios que preenchiam páginas de periódicos. Os segundos defendiam
que o aborto era dificilmente comprovável sem a anuência da mulher ou a
denúncia do médico que viesse atende-la depois (principalmente após o
aperfeiçoamento dos métodos e ferramentas, e divulgação dos mesmos através
de livros), que se tratava de assunto que provocaria “exposição da família” da
paciente, e que não era compatível com o critério médico em vigor para
notificação das autoridades (doença infectocontagiosa como tuberculose ou
varíola).
 O aborto que não fosse estritamente terapêutico era amplamente condenado, mas
outras práticas anticoncepcionais tinham pequeno espaço para discussão: o
preservativo, importado, era usado nominalmente para a prevenção da sífilis e
sob prescrição médica. Segundo a autora, até então essas eram recomendadas
aos “(...) casais que passavam por dificuldades financeiras até que pudessem se
reequilibrar”. A esterilização permanente da mulher ainda não era pensada, e era
da opinião de muitos que o uso prolongado de anticoncepcionais poderia induzir
a comportamentos “imorais” dentro da vivência conjugal, mas em contrapartida

provocada “por médico, ou parteira legalmente habilitada para o exercício da medicina”, a pena seria a
mesma do tópico anterior, além de suspensão da autorização para exercício do ofício por período igual de
tempo. O artigo 301 tratava do aborto provocado com a anuência e o acordo da gestante: prisão de um a
cinco anos, para quem praticasse o ato, inclusive se fosse a própria gestante – nesse caso há um atenuante
da pena, “com reducção da terça parte, si o crime for commettido para occultar a deshonra propria”. O
terceiro e último artigo a tratar do tema, de número 302, estabelecia duas categorias relevantes: o aborto
necessário, que era aquele efetuado para se salvar a vida da gestante, e imperícia, equivalente ao erro
médico de hoje: deixar a mulher morrer durante um aborto necessário por imperícia ou negligência
revertia-se em pena de dois meses a dois anos ao profissional, com suspensão de autorização para exercer
o ofício por igual período. Vide sítio on-line <http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1824-
1899/decreto-847-11-outubro-1890-503086-publicacaooriginal-1-pe.html>, acessado em 07 de janeiro de
2016.
127

restrições à prática do sexo dentro do casamento levaria o homem a buscar os


prazeres pagos (deve-se lembrar que a sífilis era relativamente comum e seus
resultados a longo prazo para o portador, companheira e filhos que porventura
tivessem, amplamente conhecidos): certamente havia atrito entre a visão
científica da época, um plano de ocupação do território, e uma moral tradicional.
 “Mulher” e “Reprodução Humana” são objetos de pesquisa científica quase
indissociáveis, e o eram no que tange as determinações médicas oficiais do
período. A autora aponta que a “reprodução humana constitui a base das relações
de gênero”: ao se definir um “roteiro” para a prática ser considerada “sadia”,
opera-se a dominação social sobre as mulheres e apropriação das mesmas como
indivíduos. Elas seriam educadas e manipuladas no sentido de aprenderem e
replicarem os “deveres” associados a seu sexo (ou seja, os papéis de “esposa” e
“mãe”).
 Algumas teorias científicas ou pseudocientíficas então em voga encontravam-se
invariavelmente ligadas ao tema. Podemos citar a Eugenia em suas diversas
modalidades: previa a “degradação da raça” (que seria causada pelo crescimento
no número de filhos de uniões inter-raciais – o mestiço 109 era visto como
“inferior biológico” em relação às “raças puras”), a “hierarquia racial” e a
necessidade do “branqueamento” para que a “Nação Brasileira” se equivalesse
às “desenvolvidas”, e diversas formas outras de “determinismos sociais” de
fundo biológicos (e.g., tendência ao crime). Deve-se também mencionar o
Neomalthusianismo, com sua promessa de cura da pobreza, crime, crises e da
“degeneração” através de imposição de “restrições à procriação” principalmente
entre pobres (que eram “por excelência” negros, indígenas, mestiços e brancos
sem rendas) ou grupos específicos. Para ambas os métodos de contracepção era
então uma “ferramenta ativa”, “científica”, para se evitar males futuros ou na
construção de um “povo superior”.
 Manutenção da ordem social. Ao se constatar que o aborto é livremente
praticado na Capital da República também por mulheres casadas e inclusive por
mulheres de famílias operárias, chaga-se à conclusão que o tecido social beira a

109
Essa crença pseudocientífica, determinista, evolucionista possuía tamanho crédito que Euclides
Rodrigues da Cunha (1866 – 1909) em sua obra máxima Os Sertões (1902) vê-se às voltas com hipóteses
ad hoc e malabarismos para explicar as vitórias e superioridade de ação naquele terreno do grupo de
sertanejos liderados por Antônio Conselheiro (Antônio Vicente Mendes Maciel, 1830 – 1897) sobre as
tropas republicanas, fatos que ele mesmo presenciou ou ouviu relatos dos diretamente envolvidos.
128

anomia (conforme o conceito que Émile Durkheim idealizara aproximadamente


na mesma época). Esses fatos punham a perigo uma ideia de “normalidade da
estrutura familiar”, e ameaçavam a “ordem social instituída”, além de
prejudicarem um “projeto demográfico específico” estabelecido pelo Estado;
 A disputa pela legitimidade e monopólio das atividades médicas. “(...) os
médicos travavam uma luta política contra as parteiras pelo controle exclusivo
dos atos ligados à reprodução”. Trata-se de um período em que a medicina
“oficial”, institucionalizada e “estatizada” está em fase de construção, o corpo
médico compreendendo-se como uma “corporação” ligada por vínculos maiores
que puramente nominais 110 . Busca-se o monopólio de funções médicas, uma
confirmação de classe e articulação de poder corporativo: somado a isso, o papel
social de defensores da moral vigente.

Encontramos na argumentação de Marinete dos Santos Silva uma colocação que


se encaixa perfeitamente na discussão a que este trabalho se propõe: então nesse
período, “a busca da autonomia sobre o processo de reprodução pode e deve ser pensada
como extrema subversão, abrindo perspectivas de mudanças no status social da mulher
e apontando no sentido da instituição de uma nova ordem de gênero”.

Deve-se refletir sobre as imagens atribuídas às feministas já nesse período.


Havia um atrito entre um feminismo liberal burguês e um anarquista libertário. Havia
também um bom feminismo e um mau feminismo [FERREIRA, 1996].

Na primeira contraposição podemos citar as filhas de famílias abastadas ou das


camadas médias nascentes, que começavam a ter acesso à educação formal e mesmo
instrução de nível superior e ansiavam para si o direito ao voto e seu reconhecimento
como sujeitos políticos. Diametralmente opostas se achavam as participantes do
movimento anarquista nascente (e quiçá de algumas organizações de categoria),
proletárias que não tinham entre seus princípios a luta pelo sufrágio, mas uma ação
social direta e contrária à autoridade, o que permitia às mesmas pensar em outros termos
na relação entre homens e mulheres (discussão de temas na esfera do individual,

110
As datas são sugestivas: na metade do século XIX ocorre o afastamento das Ordens católicas
(enfraquecimento das Santas Casas e Ordens Hospitalárias), entre 1890-1930 (Primeira ou Velha
República), o início de uma industrialização e urbanização mais expressivas (embora fossem ainda muito
aquém das atividades e populações rurais) e o estabelecimento de novos setores sociais intermediários,
proletários da indústria, profissionais liberais, pequenos e médios comerciantes, servidores públicos, etc..
129

privado: “(...) a relação homem/mulher, o amor, a maternidade, a sexualidade, a família,


o controle de natalidade, entre outros”).

A segunda oposição mencionada, há a marca da compreensão da sociedade (e


muitas das vezes das próprias interessadas) sobre o que seria ser feminista ou advogar
pelos direitos das mulheres. Tratava-se de marcar uma divisão entre “a ordeira mulher
moderna” e a “mulher que se pretende igual ao homem” – para se desmerecer o discurso
sócio, político, econômico feminista bastava-se (ou bastou-se até pouco tempo) atingir
as portadoras do discurso, num argumentum ad hominem claro, mas poucas vezes
apontado como falacioso: “feias”, “masculinizadas”, “tolas”, “histéricas”. Já as petições
e os movimentos seriam “antinaturais”, “carnavalescos”, “contra a família”, “de
exceção” (e.g., exigia-se o direito ao voto, mas negava-se o dever de convocação a júri
ou militar).

Na imprensa, existiam publicações como A Mensageira (1897 – 1900), Revista


Feminina (1914 – 1936), Eu sei tudo (1917 – 1958), e A Cigarra (1914 – 1975), que
tinham por público “mulheres libertas ricas” que encontravam nelas também certo
espaço para comporem uma produção cultural feminina. Contudo essas mesmas revistas
estavam presas a um “feminismo utilitário” que, ainda que apontasse alternativas
(educacionais, profissionais, culturais, sociais) para uma vida além da do lar, impunha
papéis de gênero “respeitáveis” – o aprendido e apreendido tornariam a “nova mulher”
mais apta para exercer seus papéis tradicionais e continuar a secundar o homem. Já a
revista Aurora, “revista mensal de crítica social e literária” (1905 – 1906), se bem que
de curta duração, compunha de maneira excelente o ideário anarquista e um fundo
feminista de discussão (era financiada coletivamente, não reservava espaço para
anúncios, e propunha o debate de temas normalmente de foro privado, como a
sexualidade, as relações entre os gêneros, medidas contraceptivas, etc.). Curiosamente,
todas os periódicos aqui citados e outros tantos dos mesmos gêneros tinham homens à
sua frente nesse período.

Ambos feminismos, o liberal e o libertário, enfrentam seu ocaso: o primeiro


com a habilitação da mulher ao voto em 1932; o segundo com a perseguição ao
movimento anarquista e o disciplinamento sindical posterior [idem].
130

4.5.3. Entre 1930 e o Golpe

O reconhecimento das mulheres como sujeitos políticos em 1932 e sua


reafirmação na Constituição de 1934, arrefece o alento feminista no Brasil do período
anterior [PINTO, 2010]. É importante que se reitere: então as mulheres são sujeitos
políticos independentes ao menos em princípio. Não se pode ver essa conquista de
forma isolada, faz também parte da construção de um Estado Nacional capitalista (o
Brasil não foi sequer a vanguarda na América Latina, lugar que pertence ao Equador ao
legalizar o voto feminino em 1929 – entretanto, a Argentina só o fará em 1947, sob
Perón e devido em grande parte ao carisma de Eva. Em outros países o sufrágio
feminino é fermento antigo de lutas e manifestações, como na Inglaterra e EUA, mas
sua adoção na Nova Zelândia – primeiro país a permiti-lo amplamente – data ainda da
última década do século XIX 111 ). Conforme leitura da autora Celí Pinto, o Estado
garante que à mulher dá-se o direito ao voto para seguramente restringi-lo, afastando
efetivamente a mulher da vida política ativa: a luta pelo sufrágio era em si manifestação
das mesmas como sujeitos políticos - o direito ao voto simultaneamente efetiva essa
participação e a institucionaliza, burocratiza, e dentro de uma sociedade
caracteristicamente patriarcal, a controla. O sufrágio se estende a todas, mas não foram
todas social e politicamente preparadas para exercê-lo: o voto feminista (que
apresentaria compromisso para com a emancipação da mulher em relação às estruturas
vigentes) poderia ser uma ferramenta transformadora da ordem social (incluem-se os
fatores de gênero, étnicos, de classe, etc.), mas nem todo voto de mulheres seria
necessariamente o de uma feminista - aí entram interesses das elites na manutenção de
seus espaços de classe, tanto quanto a manutenção do “ser mulher” (o “sujeito do
feminismo”) como construção social [BUTLER, 2003]. A ausência de outros pontos
fortes em torno dos quais se aglutinar torna o movimento vazio, ou a situação política
de exceção forçosamente o esgota: e.g., a Federação Brasileira pelo Progresso
Feminino, se dissolve em 1937, com a instauração do Estado Novo.

Formas de movimentos femininos prosseguem existindo, mas a maioria é


limitada a dialogar com o status quo: comitês políticos, organizações da igreja, de
bairro, de mães. Entretanto, algumas associações de mulheres que tem seu período de
atividade entre a década de 1940 e o Golpe de 1964 merecem ser mencionadas por suas

111
Vide texto de Antônio Sérgio Ribeiro, “A Mulher e o Voto”, consultado em 31 de dezembro de 2015 e
disponível on-line no sítio <http://www.al.sp.gov.br/repositorio/bibliotecaDigital/277_arquivo.pdf>.
131

características de atuação e contestação social: União das Mulheres Democráticas de


São Paulo – UMD, Movimento Político Feminino – MPF, Federação das Mulheres do
Estado de São Paulo – FMESP, e Federação das Mulheres do Brasil – FMB (1949 –
1957) [MORENTE, 2015]. A FMESP, fundada por Alice Toledo Ribas Tibiriçá (1886 –
1950, articuladora política, importante ativista da saúde e militante feminista), “mereceu
uma atenção especial da Polícia Política de São Paulo”, por ser agregadora de
tendências de esquerda, ter inegável influência do Partido Comunista Brasileiro, e por
sua capacidade de mobilização. A FMB também teve Alice Tibiriçá por fundadora, e
partilhava das tendências da FMESP, agindo como fórum agregador a nível nacional.
Em relatório oficial do DEOPS/SP, polícia política de São Paulo 112, todas as entidades
femininas que militavam através de propostas concretas em favor de causas sociais
(contra desde a “bomba atômica” a “carestia de vida”, a favor seja da “nacionalização
do petróleo” ao “aumento de salários”) foram apontadas como filiadas à Federação
Democrática Internacional de Mulheres, entidade com sede em Paris e reconhecida
como comunista [idem] – a vigilância e a atribuição de um papel subversivo a essas
instituições era também (contudo não só) reflexo da quebra do paradigma sociocultural
do ideal feminino (e portanto já da ordem dominante), construído nas décadas anteriores
e que vigorou por muito tempo.

Principalmente entre 1956 e 1964 existiram organizações mantidas por mulheres


de classe média e custeadas por setores empresariais e / ou políticos específicos também
atuavam, mas segundo os interesses dos grupos que as proviam. Há de se mencionar sua
estratégia de formação: a pluralização das nomenclaturas garantia uma aparente massiva
mobilização feminina – para movimentos que na verdade eram facetas de um partido,
fundação, associação de empresários ou “classista”, todos com interesses comuns em
relação ao “getulismo” e políticas socializantes / liberalizantes, ações são facilmente
coordenadas. A listagem de associações femininas lidas no rádio ou cujas representantes
apareciam na televisão em defesa de uma causa, como a “família e tradição”, ou
contrárias ao “anarquismo, comunismo, ateísmo e subversão” deveria parecer imensa e
imponente, mas sua base de mobilização era de fachada, cooptada entre determinados

112
Departamento Estadual de Ordem Política e Social de São Paulo – DEOPS/SP: criado em 1924
(durante ainda as agitações políticas e sociais – Greves Gerais, manifestações, fundação oficial do PCB –
que vieram na esteira da I Guerra), sua função era “reprimir e prevenir delitos considerados contra a
ordem e a segurança do Estado”. Foi extinto somente em 4 de março de 1983, por ocasião das primeiras
eleições diretas para o governo desse estado desde o Golpe. Fonte, sítio on-line <http://www.arquivo
estado.sp.gov.br/site/acervo/textual/deops>, acessado em 7 de janeiro de 2016.
132

setores e através de benefícios mínimos, ou simplesmente não existia, constituindo-se


em fátua propaganda mobilizadora. São as principais responsáveis, junto a figuras
sociais de relevo, por fomentarem manifestações que culminam nas Marchas de março
de 1964. A maioria das siglas simplesmente se desarticulava após o objetivo para o qual
tivessem sido criadas fosse atingido ou quando não fossem mais necessárias.

Os exemplos enumerados nos mostram o quanto os movimentos de mulheres


podem ser diferentes – por vezes indicarem sentidos opostos de atuação.

Enquanto no Brasil existe uma influência das estruturas políticas que é


impossível de ser negada, na França de 1949 a escritora, filósofa e ativista Simone de
Beauvoir (Simone Lucie-Ernestine-Marie Bertrand de Beauvoir, 1908 – 1976) lançava
um livro que seria lido como proposta para um novo conceito de feminismo, “O
Segundo Sexo”, que cria o mote “não se nasce mulher, se torna mulher”: a obra é muito
mais complexa que uma frase de efeito (o título traz em si o germe da obra: como a
opressão, e através de que mecanismos, anula a individualidade em favor de uma
categoria submissa) – trata de uma análise sobre a condição de dominação sobre o
feminino, passando pelos “mitos e fatos” que tendem a determinar o papel do ser social
mulher na sociedade, e ponderação sobre a condição feminina (arquétipos assumidos)
nas esferas sexual, psicológica, política e social, e sobre a libertação do indivíduo. “A
querela do feminismo deu muito que falar: agora está mais ou menos encerrada (...)” diz
Beauvoir na introdução ao seu trabalho – para em seguida discutir, segundo sua
filosofia existencialista, a construção social da “inferioridade feminina” e tecer uma
obra que seria uma das bases para uma nova onda feminista e da ideia de gênero
[BEAUVOIR, 1970].

4.5.4. Ditadura Militar: 1964 – 1978

A década de 1954 a 1964 são de embate entre movimentos sociopolíticos que


culminam no Golpe Civil Militar e na Ditadura. A participação feminina que possuía
lugar na grande mídia não tinha via de regra caráter libertário – como visto, muitas das
organizações de mulheres eram literalmente construídas para fazerem frente, através de
uma mobilização por sugestão, aos políticos “subversivos”: caracterizavam-se por suas
membras serem de classe média e alta, e terem suas atividades custeadas pelos setores
interessados. Embora suas ações tenham permanecido na história como episódios
notáveis (e.g., as convocações para as Marchas), ou como hábitos enraizados (a moral
133

do “sofrimento salvífico” – para o outro – e a “caridade sem compromisso com a


mudança”), não se pode dizer o mesmo de suas siglas, que desaparecem quando perdem
a utilidade.

Pillar Miriam Grossi aponta que o primeiro registro de um trabalho acadêmico


sobre o feminismo ou mesmo feminista é a Tese de Livre Docência de Heleieth Iara
Bongiovani Saffioti (1934 - 2010), datada ainda de 1967, “A Mulher na Sociedade de
Classe: Mito e Realidade”. A tese, sob orientação de Florestan Fernandes (1920 - 1995,
aposentado compulsoriamente da USP pela Ditadura em 1969), posteriormente seria
editada em livro sendo um dos marcos brasileiros de estudo no campo [GROSSI, 2004].

No que diz respeito à militância de mulheres (no que se refere à mobilização


para a mudança, com base social nos setores diretamente interessados ou simpáticos à
causa), o “ser feminista” é apontado como uma solução de compromisso durante o
período em questão: a definição de prioridades para o movimento de contestação
tornou-se inevitável, e frente a um estado de confronto ideológico e físico se impôs a
práxis no sentido do apoio aos presos políticos e a denúncia de arbitrariedades (a
resistência armada e política tinha clara opção marxista, e embora o ativismo pacífico
pudesse até não compartilhar necessariamente dessa linha de pensamento, estava
invariavelmente preso às condições providas pelo Regime Ditatorial). A maioria das
particularidades das petições específicas feministas ficam em segundo plano, obliteradas
pela contestação política e até mesmo pela ação de guerrilha [FERREIRA, 1996],
[SARTI, 2004].

Não se pode ignorar, contudo, que foram as vozes das mulheres de bairros
populares, de comunidades pobres, de grupos paroquiais e pastorais, as primeiras a
protestar por "boas escolas, centros de saúde, água corrente, transportes, rede elétrica,
moradia, legalização de terrenos e outras necessidades de infraestrutura urbana,
exigiram condições adequadas para cuidar de sua família, educar suas crianças": são
movimentos de mulheres, com fins bastante específicos e ligados a seus papéis sociais
de esposas e mães, daí sua designação por militant motherhood [SOARES, 1998].

O Ocidente vê a chegada de uma Segunda Onda Feminista na década de 1960 –


diversos fatores e eventos sociopolíticos contribuem para uma nova abordagem da
matéria: a contestação ao modelo socialista-comunista implantado no Leste, a revolução
sexual promovida pela pílula contraceptiva, obras como “A Mística Feminina” de Betty
134

Friedan113. Definitivamente não se pensa somente em garantias de espaço para a mulher


nas diversas esferas da vida pública, mas em contestar o cerne da relação homem-
mulher. A solução dos movimentos marxistas clássicos cai por terra, pois ganha força
social a ideia que “(...) existe uma outra forma de dominação – além da clássica
dominação de classe –, a dominação do homem sobre a mulher – e uma não pode ser
representada pela outra, já que cada uma tem características próprias” [PINTO, 2010].

Cynthia Sarti menciona as rupturas internas dos movimentos de mulheres,


ocultas pela censura do Regime: o feminismo, ao mesmo tempo que advoga uma
abstrata “liberação feminina”, constitui-se em sujeito histórico – “se concretiza no
âmbito de contextos sociais, culturais, políticos e históricos específicos”. Assim o foi
nas organizações de mães, assim o foi no feminismo acadêmico, assim o foi no
feminismo militante contestatório que encontrou espaço seja sob a proteção da ICAR,
seja nos movimentos sociopolíticos (clandestinos ou não) contrários ao Regime. Os
anos de 1970 marcam no mundo o reconhecimento de uma forma de movimento
feminista já consolidada, enquanto no Brasil convida à clivagem entre a militância
política e a feminista: 1975 é declarado “Ano Internacional da Mulher” (1975 - 1985 é a
“Década da Mulher”). Tem-se o feminismo militante de rua (um “retorno à origem”)
como alternativa à falha da resistência armada e como forma de pensar (“elaborar
política e pessoalmente”) essa mesma derrota [SARTI, 2004].

Em todo o caso, as primeiras manifestações de um novo feminismo acontecem


no Brasil na década de 1970, acompanhadas de perto pelos militares, “(...) por entendê-
las como política e moralmente perigosas”. O feminismo brasileiro tem uma face
“institucionalizada”, marcada pela semana de debates “O Papel e o Comportamento da
Mulher na Realidade Brasileira” patrocinada pelo Centro de Informações da ONU, e a

113
Betty Naomi Goldstein, ou Betty Friedan (1921 – 2006), psicóloga, ativista em movimentos marxistas,
judaicos e feministas. Aborda a questão da mulher como elemento inserido no processo produtivo
capitalista pós-crise de 1929 e II Guerra, em “A Mística Feminina”, de 1963: o texto, que veio a se tornar
um best-seller entre as mulheres americanas, trata da relação entre a mulher real e a imagem social e
economicamente construída como paradigmática, a mulher ideal ou a mística feminina. Desde a
problemática e crise existencial de não satisfazer ou não se satisfazer com essa expectativa, passando pela
sensação de não-realização diante de anseios individuais insatisfeitos, aos papéis e identidades sub-
repticiamente relegados a essas mulheres: sexuais, sociais versus pessoais, funcionais versus
profissionais.
Friedan é uma das fundadoras, em 1966, da National Organization of Women – NOW, que se dedicou
desde o início a promover a igualdade de gênero, a garantir direitos e representar petições de mulheres.
Participa igualmente da fundação da NARAL – organização pró-escolha – em 1969, quando da realização
da série de debates “First National Conference on Abortion Laws: Modification or Repeal?", entre 14 e
16 de fevereiro daquele ano, em Chicago, Illinois – EUA, com ampla cobertura do periódico New York
Times.
135

criação por Therezinha de Godoy Zerbini (1928 – 2015, assistente social, ativista pelos
direitos humanos) do Movimento Feminino Pela Anistia – MFPA, ambos em 1975
[PINTO, 2010].

No exílio, as brasileiras entram em contato com as correntes feministas,


principalmente europeias: existe necessariamente um embate entre a moldura clássica
marxista e as demandas das novas feministas – emite-se em 1976 a Carta Política pelo
Círculo das Mulheres Brasileiras em Paris (movimento que dura entre 1976 e 1979),
que defende uma “(...) organização independente [autônoma, embora não
necessariamente desvinculada da corrente principal das mulheres ou do contra
ditatorial] (...)”, reconhecendo o machismo também como (mais uma) relação de
dominação propiciada pelo sistema capitalista [idem].

4.5.5. Ditadura Militar: 1979 - 1984

A Anistia de 1979 permite o retorno de ativistas e asilados políticos que


passaram os anos de liberação social no epicentro de sua realização. As mulheres
engajadas, ou companheiras dos exilados, haviam entrado em contato com variadas
formas de expressão feminista e do feminino, principalmente na Europa, e voltam para
o Brasil propor novas visões sobre os movimentos de mulheres, e ajudar a promover a
consolidação do movimento feminista como uma força política e social particular.

Cynthia Andersen Sarti põe em perspectiva a trajetória dos movimentos de


mulheres até a pluralização das demandas no final dos anos 1970 e início dos 1980. Por
volta de 1975 há um “reaparecimento na cena nacional”, fomentado pelas expansões do
sistema educacional e do mercado de trabalho, reflexos ainda da “efervescência cultural
de 1968” e da adoção da pílula anticoncepcional: essas “novas experiências” entram em
choque com o “papel determinado” tradicionalmente atribuído à mulher, na família e
sociedade. Nesse ano, por ocasião das iniciativas da ONU para o reconhecimento da
questão feminina como problema social, grupos que atuavam na clandestinidade
assumiram identidades públicas, e aqueles que a possuíam fortaleceram-na, aumentando
o diálogo. Com o início do processo de abertura efetiva em 1978, as demandas
feministas encontram espaço e se pluralizam.

Houve especificidades inerentes ao feminismo brasileiro: ele “nasce” nas


camadas médias intelectualizadas, e o movimento de mulheres articula-se aos das
136

camadas populares, “constituindo-se em um movimento interclasse”. Em primeiro


lugar, aponta a autora, articula-se uma “delicada relação” com a ICAR, “foco de
oposição ao regime militar”: “as organizações feministas de bairro ganham força como
parte do trabalho pastoral inspirado na Teologia da Libertação” – houve uma “política
de alianças” entre um movimento de mulheres que buscava tornar pauta questões de
gênero e grupos alinhados à esquerda dentro da Igreja, tendo por fundo comum a luta
contra a Ditadura. Tópicos que poderiam tornar-se pontos de desacordo eram evitados –
“o aborto a sexualidade, o planejamento familiar e outras questões (...)” são mantidos
em discussões em pequenos “grupos de reflexão”, sem atingir publicidade – com o
tempo, grupos feministas engajados vão entrar em enfrentamento com a proposta inicial
da Igreja, buscando “hegemonia dentro dos grupos populares”: há uma relação entre a
“localização” tradicional das demandas populares e a articulação provida por esses
grupos feministas “(...) que as retirava do confinamento doméstico (...)”: questiona-se
“de diferentes maneiras” as questões de gênero, emergem “mobilizações diferenciadas”
[SARTI, 2004].

Esse tópico também é abordado por Céli Regina Jardim Pinto. A década de 1980
é marcada pelo início tímido da redemocratização e também pela pluralização dos temas
dentro dos movimentos sociais e igualmente dentro do movimento feminista. A autora
aponta um tópico que vale a pena ressaltar: “tradicionalmente” no Brasil a busca pelo
protagonismo feminino foi empreendida por membras de uma “classe média
intelectualizada”. As CEBs e as Teologias Feminista (ainda hoje não plenamente
desenvolvida) e da Libertação proveram interfaces de contato entre a teoria e práxis
tradicionais e as demandas consistentes das mulheres das classes populares [PINTO,
2010].

Verônica Clemente Ferreira produz um estudo sobre o imaginário feminino


brasileiro nas décadas de 1970 e 1980, também através de publicação de época
[FERREIRA, 1996]. Os jornais feministas “Brasil Mulher” (1975 – 1980,
Londrina/PR), “Nós Mulheres” (1976 – 1978, São Paulo/SP) focavam em lutas por
liberdades democráticas e participação ativa da mulher nas diversas esferas do
movimento social (“sindicatos, associações de bairro, clubes de mães”) e na política,
conquista de igualdade de direitos (a jornada dupla feminina era compreendida muito
mais como uma imposição do capital do que uma condição de opressão de gênero). O
público era principalmente “mulheres dos meios populares”, e se ironizava o feminismo
137

da mulher da elite (ou o televisivo idealizado), que “(...) não precisa se preocupar com
creches ou com o preço da cebola”. A autora aponta nesse discurso um aparente
paradoxo, um “maternalismo” em um discurso “vitimizante/heroicizante” da mulher
pobre: as editoras, contudo, eram “mulheres emancipadas”, de classe média,
“profissionalmente realizadas, financeiramente independentes” – há de se pensar que
para mobilizar e reunir mulheres do grupo “mais interessado” em mudanças sociais,
tentou-se criar um ponto de apoio, e esse era ditado elas necessidades da época, e pelo
quadro herdado das esquerdas: havia “maior questionamento da descriminação classista
em detrimento da descriminação sexista (...) a subordinação das questões específicas à
luta geral por anistia, democracia e pela melhoria das condições de vida”.

Surge da discussão precedente outro arquétipo, a feminista acadêmico-


intelectual que sabe por análise distanciada as demandas das mulheres da classe
trabalhadora sem mesmo consultá-las, e que evitavam tocar em temas sobre sexualidade
de forma a não afastar “o pessoal do bairro” ou da “Associação das Donas de Casa”.

Segundo a autora em pauta, a questão feminista, não como ala de um movimento


pela liberdade política, mas como movimento independente no Brasil iria amadurecer
somente na década de 1980, com a abertura, anistia e o aceno de democracia. A questão
do controle de natalidade era vista com desconfiança, devido em grande parte à
implementação de políticas mal planejadas ou tendenciosas pelo Estado. A sexualidade,
tratada com superficialidade ou assunto que se “resolveria com tempo”. Deu-se origem
a uma imagem das feministas no imaginário coletivo, dadas as prioridades dos discursos
e a excrecências, de “feias, sujas e malvadas”. Contrapõe-se a isto (e à imagem que as
ativistas de esquerda tentavam construir) outra hipérbole, a da “feminista oportunista”,
“fútil”, afeita puramente às benesses da liberação sexual. Havia uma confusão de
imagens, múltiplos “feminismos”, centrados em demandas específicas, pois as demais
se afiguravam secundárias ou “supérfluas”. Em um periódico satírico de esquerda, “O
Pasquim”, a imagem da feminista era satirizada sob a identidade da “sapatão”, da
mulher masculinizada que queria pôr-se nos sapatos do homem (assumir sua identidade
social). As novas identidades assumidas pelas mulheres, principalmente as mais
“ousadas” – não aquelas que preservavam “deveres femininos” a despeito de
emancipadas, também abalavam aqueles que se alinhavam nominalmente à uma
esquerda clássica. Contrapondo-se, o “Chanacomchana” (1981 – 1987, informativo do
Grupo de Ação Lésbica-Feminista – GALF/SP, que carrega sua própria história de
138

complexidades inerentes – é uma dissidência do grupo SOMOS), caracterizava-se por


um ativismo lésbico-feminista: nesse a questão pessoal era supervalorizada como
estratégia de construção de identidades políticas – afirmar sua pluralidade e convidar a
repensar o modelo binomial de comportamento de gênero, e a “inviolabilidade do
privado” que vigorava com força mesmo dentro das organizações e junto às feministas.

“Mulherio” (1981 – 1988), periódico pluralista mantido por grupo de


pesquisadoras/jornalistas da Fundação Carlos Chagas – FCC: nascido após o retorno das
anistiadas e em um momento de abertura, além de crise dos referenciais da esquerda
tradicional, abre-se para questões subvalorizadas – “o pessoal/privado é político” – e
tenta integrar pesquisadores e pesquisadoras, múltiplos grupos organizados e pessoal de
mídia que conduziam estudos sobre a mulher e/ou atuavam sobre o tema. Em 1984,
transforma-se na ONG “Núcleo de Comunicações Mulherio”, com apoio da Fundação
Ford, organismo internacional com base em Nova York/EUA e que fomenta iniciativas
específicas. Foi um dos primeiros a abordar com profundidade o tema violência contra
a mulher (assunto que se complexificou e ganhou espaço na sociedade na década
seguinte, e é tema vivo hoje), e a proceder a um “resgate da feminilidade”, da
possibilidade da “emoção” como ferramenta de contestação e autoafirmação [idem].

Os anos de 1980 marcam também uma “profissionalização” na área


[FERREIRA, 1996]: militantes e engajadas passam a agir como consultoras ou a
assumir posições em secretarias públicas voltadas à perspectiva de gênero (com o
objetivo de influenciar as políticas públicas, utilizam-se dos canais estabelecidos pelo
próprio Estado), Organizações Não Governamentais – ONGs com as “novas temáticas”
feministas começam a serem formadas com apoio internacional. Esse é um quadro que
se intensificará no período seguinte [SARTI, 2004]. A autonomia dos movimentos e sua
articulação é buscada através de encontros, temáticos ou plurais, que ocorrem inclusive
em nível nacional [SOARES, 1998] – contudo, a sexualidade e a saúde da mulher são
tópicos que ganham notoriedade nessas iniciativas [MANINI, 1995/96].

4.5.6. Retorno à Democracia e a Consolidação de um Novo Modelo

Um marco a nível de governo para o reconhecimento das necessidades


diferenciadas femininas e das petições dos movimentos de mulheres e feministas foi a
criação do Conselho Nacional dos Direitos das Mulheres – CNDM pela Lei nº 7.353, de
29 de agosto de 1985, “com a finalidade de promover em âmbito nacional, políticas que
139

visem a eliminar a discriminação da mulher, assegurando-lhe condições de liberdade e


de igualdade de direitos, bem como sua plena participação nas atividades políticas,
econômicas e culturais do País”. Inicialmente vinculado ao Ministério da Justiça,
desenvolveria funções de aconselhamento à Presidência, produção e monitoramento de
políticas públicas e recepção de denúncias de crimes contra a mulher, além de agir
como mediador entre o Estado e os movimentos da sociedade civil. Possuía corpo
técnico, conselho deliberativo e presidência formados a partir de pessoal das
organizações que pretendia contemplar, seja por indicação das mesmas, seja por escolha
de representantes que contribuíram “notoriamente” com a causa feminista114.

Deve-se notar a participação dos movimentos feministas e de mulheres na


Constituinte de 1988, ação que ficou conhecida por “Lobby do Batom”, na verdade
campanha “Mulher e Constituinte” proposto pelo CNDM, cujo mote era “Constituinte
pra Valer tem que ter Palavra de Mulher” [AMÂNCIO, 2013]. Esse órgão “(...)
promoveu a participação das mulheres no debate Constituinte, realizando encontros,
palestras, reuniões, etc. que tratassem da questão (...)” dando forma a um conjunto de
demandas e reinvindicações que amplamente discutidas, dariam origem às propostas à
Carta Magna – paralelamente a isso, agia junto aos parlamentares constituintes para a
inclusão das sugestões e petições manifestadas numa “Carta da Mulher Brasileira aos
Constituintes” desenvolvida pelo órgão durante a série de encontros promovidos e
entregue ao deputado Ulysses Guimarães (PMDB), quando da abertura da Assembleia
Constituinte, em 26 de março de 1987115. Foi aprovado cerca de 80% das demandas
propostas, que variavam de princípio geral da igualdade entre os gêneros a licença
maternidade de quatro meses, transformando a Constituição Cidadã, ao menos em
verbo, numa das mais inclusivas para mulheres em vigor no mundo: Cynthia Sarti
coloca que a Constituição Federal de 1988 extingue a tutela masculina na sociedade

114
O CNDM foi relegado a segundo plano durante as administrações FHC. Sofre uma reformulação e
passa a integrar a Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres – SPM, órgão com status de
Ministério criado em 2003, durante o primeiro governo Lula através da Lei nº 10.683, de 28 de maio de
2003. Com composição, estruturação, competências e funcionamento inicialmente ditados pelo Decreto nº
4.773, de 7 de julho de 2003, hoje é regido pelo Decreto nº 6.412, de 25 de março de 2008, disponível no
sítio on-line <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2008/Decreto/D6412.htm>.
115
Texto integral da Carta pode ser acessado no sítio on-line <http://www2.camara.leg.br/atividade-
legislativa/legislacao/Constituicoes_Brasileiras/constituicao-cidada/constituintes/a-constituinte-e-as-
mulheres/Constituinte%201987-1988-Carta%20das%20Mulheres%20aos%20Constituintes.pdf>, estando
o discurso de recepção disponível em <http://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/plenario/
discursos/escrevendohistoria/25-anos-da-constituicao-de-1988/mulher-constituinte/carta-das-mulheres-
1>, ambos acessados em 14 de janeiro de 2016.
140

conjugal, sendo apontada na época como uma das que melhor tratava a questão de
gênero [SARTI, 2004].

Na Sociedade Civil temos como marco a criação do Centro Feminista de


Estudos e Assessoria – CFEMEA, com base na atuação do CNDM durante a
Constituinte. O CFEMEA surge como organização não governamental, sem fins
lucrativos, em julho de 1989, e “assume, como grande desafio, a luta pela
regulamentação dos novos direitos conquistados na Constituição Federal de 1988”116 –
o escopo de atuação da ONG vai evoluir com o tempo e conforme têm lugar eventos de
Direitos Humanos e Direitos das Mulheres a nível nacional e internacional, tornando-se
mais complexa conforme se diversificam os discursos e as agendas associados. Na
verdade, trata-se do início de um processo que vai se tornar mais visível em toda a
década de 1990: uma “atomização” das demandas, a “tendência à especialização” e
“ONGuização” dos movimentos – cresce uma consciência de gênero, mas as demandas
originais são dispersas em planos específicos de atuação. O diálogo com o novo modelo
de Estado que vai ser implantado na “Era FHC” leva à adoção de um novo modelo de
atuação, profissional, institucional, financiado – e inevitavelmente com o “(...)
direcionamento para as questões que respondiam às prioridades das agências
financiadoras”. Entre essas, a de direitos reprodutivos teve especial relevância [SARTI,
2004].

Vera Soares aponta também para a maior participação na década de 1990 em


eventos e fóruns políticos internacionais de representantes do feminismo brasileiro “(...)
a partir do ciclo de Conferências Mundiais das Nações Unidas, que se iniciou em 1992
com a Conferência do Rio de Janeiro sobre Desenvolvimento e Meio Ambiente (ECO-
92)”. Mobilização análoga ocorre na preparação da II Conferência Mundial de Direitos
Humanos, ocorrida em Viena/Áustria em 1993. De maneira semelhante transcorrem os
preparativos para a III Conferência sobre População e Desenvolvimento, realizada no
Cairo/Egito em 1994, que “articularam um grande número de mulheres por meio da
Rede Nacional Feminista de Saúde e Direitos Reprodutivos. Mas a participação em cada
um destes processos preparatórios ficou muito restrita a setores especialistas do
movimento”. Contudo, a autora aponta que para a IV Conferência Mundial sobre as
Mulheres de Beijing/China de 1995 criou-se uma “agenda genuína do movimento de

116
Sítio on-line do CFEMEA, <http://www.cfemea.org.br/>, visitado em 14 de janeiro de 2016.
141

mulheres no Brasil, centrada nas necessidades das mulheres de todas as classes e grupos
étnico-raciais” [SOARES, 1998], seja através de iniciativa governamental, como a
criação do “Comitê Brasileiro para a IV Conferência Mundial sobre a Mulher” através
de Decreto S/N de 8 de dezembro de 1993, ou por ação não-estatal por meio da
“Articulação de Mulheres Brasileiras para Beijing-95”, grandemente financiada pela
United States Agency for International Development – USAID, agência governamental
estadunidense responsável por distribuir ajuda externa de caráter civil.

A marca dessa época é também maior dinamismo no estudo acadêmico sobre o


tema [SARTI, 2004], certamente reflexo da influência na Academia das anistiadas e
suas alunas e da multiplicação de ângulos de abordagem. Miriam Grossi analisa os
vieses de produção segundo sua “pluralidade”, definindo essa como palavra chave do
campo: “estudos feministas, de mulheres e de gênero” – contudo, não ignora as “(...)
tensas e sutis relações profissionais neste campo (...)” e que ainda hoje o permeiam, e as
questões ligadas a legitimidade e seriedade do pesquisador ou pesquisadora e da questão
analisada. A autora busca ressaltar que a “imagem esperada” tanto no início da
produção como hoje por acadêmicos de áreas não correlatas ou pelo grande público da
representante de um “campo de estudos feministas” muitas vezes não corresponde à
realidade [GROSSI, 2004].

O paradigma de organização da sociedade segundo o modelo Neoliberal é a


também marca desses anos – a transição durante metade da década de 1980 e início de
1990 consolida-se nos anos FHC. Agora cabia à Sociedade Civil organizar-se para
suprir o papel do Estado nas áreas de atrito e resolução de pendências – os
interlocutores privilegiados passam a ser organizações sem fins lucrativos, que
trabalham segundo a lógica de apresentação de projetos e financiamento governamental.

Cynthia Sarti apresenta interessante problemática sobre feminismo e cultura. O


movimento feminista ocidental não é unanime, sequer dentro da sua esfera de atuação –
a óbvia utilidade de políticas feministas não pode obliterar o fato de que existem
mulheres que não se “veem” nas pautas definidas pelas diversas vertentes do
movimento: aquelas a quem a estrutura social vigente atende suas pretensões, ou
aquelas nas quais foi educada e se enxerga refletida. Para a autora, existe uma “não-
universalidade do feminismo”, “na medida em que a ideologia feminista traz embutida a
noção moderna [ocidental] de indivíduo”: esse seria um problema óbvio na esfera
142

internacional, e que colocaria em contraposição poder versus moral em torno de uma


“categoria intrinsecamente não generalizável” [SARTI, 2004].
143

Capítulo 5 – As Católicas Pelo Direito de Decidir – CDD/BR

Em retorno ao “Vida Religiosa nos Meios Populares” de Nunes, obra do 1985


ainda da “transição pacífica para a democracia”, é propício salientar o papel atribuído
pela autora às religiosas dos meios populares, e sobre sua ação na Igreja e na Sociedade.

O estudo de Rosado Nunes se debruça principalmente na figura feminina e a


discussão de seu papel dentro das organizações e hierarquias católicas, e em paralelo
traça um panorama das mudanças ocorridas no cerne da prática e práxis religiosa ao
longo do tempo, até o final da década de 1970, início dos anos de 1980.

Segundo Nunes, as Ordens e Congregações Religiosas, consistem em “sistemas


organizacionais” que mantêm “vínculos orgânicos” com a Igreja Católica – ao impacto
desse conjunto de Instituições e Relações sobre a pessoa que mantêm com elas vínculo
formal, chamamos Vida Religiosa – VR. A autora vai discernir entre uma que seja
Tradicional e outra que coexistirá com os resquícios dessa, mas que emerge diante do
colapso, crise histórica ou inabilidade da primeira em dialogar com a sociedade de uma
maneira ampla, a chamada Vida Religiosa nos Meios Populares.

O futuro adepto ou adepta de determinada instituição de vida dedicada passa a


integrar a Vida Religiosa quando é chamado ou chamada a fazer certos e específicos
votos associados àquela instituição e a seus estatutos, sua Regra. Ele ou ela existe então
dentro de um sistema simbólico auto consistente que pode ainda hoje ser intimamente
alheio ao mundo exterior (ainda associado à decadência moral e ao pecado, quando o
caráter apostólico, missionário é preterido em função da vida retirada – e mesmo que
exista a agência no mundo, por exemplo através da caridade ou ensino, uma distância
psíquica marca o distanciamento), possui estrutura interna própria de poder (hierarquia)
e administrativa, e vida grupal ritualizada (que por vezes é tão formalizada e prescrita
que transforma o que se supõe que deveria ser uma vida em comunidade em uma
existência coletiva, mas sem vínculos afetivos, empáticos: deve-se lembrar que a
salvação, em última instância, é um ato inteiramente individual).

No modelo tradicional, pode-se dizer que a Vida Religiosa da ICAR, cujos


elementos têm por fim principal “assegurarem a reprodução, conservação e difusão dos
bens religiosos”, ainda só pode ser presidida ou guiada por homens, que detém o
144

monopólio da ordenação ao sacerdócio 117, e sobre a autoridade teológico-eclesiástica


formal, decisória e última (a dignidade de diversas posições, hierárquicas e mesmo
honoríficas, são reservadas somente a homens – mesmo ao atingir o cargo máximo de
Superiora Geral de sua Ordem, a Abadessa ou Prioresa ainda deverá obediência a um
ou mais membros do clero masculino especificamente designados, e contará com visitas
periódicas de observadores e instrutores; sendo o sacramento da Confissão norma, um
sacerdote sempre estará ligado a um convento ou abadia, já que somente esse que pode
administrá-lo). Trata-se de características eminentemente institucionais, e que replicam
a concepção sobre a mulher e o feminino presentes ainda no discurso formal da Igreja
Católica: mesmo quando exaltada nas virtudes que lhe seriam próprias, ainda que
identificada à Igreja, os papéis que têm liberdade de assumir são fixados.

A Vida Religiosa Tradicional baseia-se então no já apresentado conceito de


instituição total, calcado no poder sócio-político-estatal e na regulação pelo medo –
temor da punição do pós vida, da danação da alma, da queda. Até o presente esse estilo
de VR mantém-se, senão frutificou, seja em ambientes dentro do contexto católico ou
em comunidades leigas e/ou votivas formadas após as determinações do VTII, seja em
outras religiões (dir-se-ia até que com mais notoriedade pública nessas). No Brasil, na
década de 1950, com uma população que acabava de se tornar majoritariamente urbana
na região Sudeste (somente no Censo de 1970 a população urbana brasileira ultrapassa a
rural), com direitos civis individuais e coletivos nominalmente assegurados, livres a
priori para adotar o credo que satisfizesse suas necessidades reais (espirituais e/ou
materiais), e com as inovações determinadas pela Sé, setores da Igreja perceberam,
como cita Nunes, a necessidade pela opção pelo carisma senão em detrimento, ao
menos em paralelo ao caráter institucional da Igreja Católica.

Nunes contrapõe as facetas Carismática e Institucional da Igreja Católica: elas


se contrapõem e se complementam, oscilando em um movimento dialético de ideias e
ações em feedback – o germe de uma nova faceta ou compreensão, ou mesmo atitude
pessoal e comunitária no âmbito da Vida Religiosa se originaria em um movimento
carismático, que com o passar do tempo (se resistir enquanto manifestação grupal e

117
Recente declaração de do Papa Francisco I reiterou a posição quanto à ordenação de mulheres mantida
0por João Paulo II. Pode ser citado, contudo, que formou um Conselho somente formado por mulheres
religiosas e leigas eminentes, para discussões culturais e apresentação de demandas específicas. Vide
notícia de sua primeira reunião no sítio on-line <http://www.zenit.org/pt/articles/no-vaticano-a-primeira-
reuniao-do-conselho-permanente-das-mulheres>.
145

particular, e sem ferir as determinações principais da fé) é institucionalizado.


Pressupondo que o movimento original surgiu para satisfazer demandas ou contestar
desígnios existentes, a institucionalização no geral tem como função limitar, ou
delimitar a um “círculo de segurança”, seu poder inerentemente contestatório – promove
uma adaptação dessa manifestação à ortodoxia, que por vezes faz concessões, mas com
o objetivo de suprimir, restringir ou guiar seu potencial revolucionário.

As inconsistências internas acompanharam a Igreja Católica no Brasil desde o


período colonial – como, por exemplo, a opção de tomar parte no que se poderia
designar à época como “defesa de populações indígenas”. Essas vão somando-se,
reforçando-se, e a insistência na manutenção das estruturas institucionais ancestrais e
rígidas não é um elemento que possa facilitar a adaptação do edifício diante do novo. E
a novidade chega definitivamente na década de 1960 (ainda que em núcleos
minoritários, mas que se tornam pujantes e imprimem sua marca na história), diante de
acenos positivos da Sé para mudanças, e numa situação político-social de exceção.

Conforme Maria do Rosado, a Igreja Católica durante séculos buscou ser, como
fator essencial para sua própria manutenção, eco das prerrogativas e privilégios da
classe dominante – e para tanto desenvolveu uma ideologia religiosa hegemônica e até
mesmo uma estrutura de culto e práticas que tendiam a justificá-la: papéis binários
específicos foram definidos, os piedosos, benevolentes e altruístas doadores, e os
sofredores, necessitados e passivos beneficiados: a simplificação que beira o extremo é
técnica oportuna para a propagação de ideias junto a uma população ampla e
homogênea. A diversificação, a pluralidade, e a perda ou abstenção de prerrogativas
oficiais, implica na necessidade de rever posicionamentos.

Certamente a estrutura social nunca foi tão simples, e menos ainda se for levado
em apreço que após a adoção ampla das relações capitalistas de produção, ao ator social
que assume o papel de doador benevolente podemos associar também o de capitalista
que deseja manter suas vantagens de exploração e/ou dominação sobre os setores
trabalhadores. O papel do beneficiado passar a ser exercido por aqueles que estavam à
margem do sistema produtivo ou excluídos do mesmo, e há uma dinamização nas
posições de classe dos setores médios, fatores que acirraram um sentimento de
estranheza dentro de uma cristandade cada vez mais plural e ciente de seus direitos.
146

Uma opção pelos pobres e o envolvimento dos religiosos e religiosas com


movimentos populares foram consequência também dessa incompatibilidade do
discurso institucional com a complexidade crescente da sociedade. Grupos religiosos
que antes permaneciam separados da sociedade por estruturas rígidas baseadas na
suposta dicotomia existente entre o ambiente da Ordem ou Congregação e o “Mundo”,
no medo do pecado, abdicam dessa lógica por uma agência no mundo, e alguns e
algumas religiosas vão além da caritas e travam conhecimento fatual com as “lutas e
interesses das classes populares” e com a “realidade histórico-política e social do país”.

Maria José Nunes, na obra em pauta, tem como foco as Religiosas dos Meios
Populares, e como proposta uma tentativa de compreensão sociológica desse grupo:
trata-se de mulheres que se desvincularam de seus papéis padrão dentro das instituições
da ICAR e que “(...) mantêm um projeto de via comum, de consagração a Deus e de
trabalho junto às camadas populares (...)” – pode até mesmo não haver o vínculo formal,
institucionalizado, com movimentos ou organizações populares, mas existe uma
“postura assumida face aos conflitos sociais”. Segundo a autora, essa é inclusive
adotada com maior frequência por membros do sexo feminino. Ao longo do texto é
discutido o papel secundário e as identidades atribuídas ao feminino dentro da moldura
da Igreja Católica, analisada a função da religião (enquanto edifício sócio ideológico)
em dependência do lugar e do tempo (compreensão histórica do fenômeno religioso), e
como “o discurso fundador da religião católica mesma, bem como o capital simbólico
da fé cristã” foi apropriado e ressignificado “a serviço da luta de transformação social
levada a cabo pelas classes populares”.

Conforme uma estrutura que pode ser apreendida a partir da leitura da obra,
certos elementos e grupos da vida religiosa feminina passaram por uma série de tópicos
ou etapas após o início de sua ação no mundo – nem na ordem apresentada, e nem todas
as religiosas os experimentam todos, e cada uma de uma forma que lhe é própria:

 Conflito tácito entre papéis, “Irmã da Periferia versus Irmã do Colégio”: cisões,
opções pessoais, percepção de uma diferenciação interna na Ordem.
 Conflitos com a ordem institucional estabelecida, representada pelas Superioras
e rotina da Ordem, que por vezes pode ser construtivo, por outras resultarem no
abandono da vida votiva.
147

 Importância da Igreja Local – a Paróquia passa a ser o novo centro da vida


religiosa. Inserção na vida secular através do trabalho e obras. Partilha das
condições de existência da população em que está inserida, convivência.
Indignação Ética: fuga da alienação quanto à estrutura socioeconômica vigente.
 Contextualização dos Votos. “O superior é Jesus, a consciência, o Povo”:
passam a ser compreendidos não na qualidade de amarras, mas como
ferramentas para se garantir uma ação modificadora: uma relaxação criteriosa é
esperada e bem-vinda.
 Pragmatismo sem Cinismo: as novas experiências da vida comunitária e inserida
da religiosa resultam numa existência humana, pessoal, complexificada e
amadurecida. Compreensão da religiosidade particular da comunidade.
 Consciência do caráter inovador dessa experiência religiosa e social, e de suas
possibilidades para além da simples inserção e modificação das condições
sociais imediatas. Tessitura de projetos mais amplos.
 Consciência de sua própria condição feminina.
 Desenvolvimento de uma Teologia Feminista.

A obra foi aqui referenciada por se tratar não só um dos primeiros textos daquela
que é considerada a fundadora das CDD no Brasil (onde pode-se observar suas
influências primitivas e as molduras teóricas que adotou para interpretar a realidade),
mas também devido ao tratamento que dá à questão dos Movimentos Sociais e o
vínculo destes com a Igreja Católica no tempo, e da prática feminista vinculada à
religião, ou talvez mais seja mais próprio dizer, de religiosas feministas. Contudo, a
problemática principal abordada pela autora é a “situação da mulher [religiosa] na Igreja
Católica”: presença ativa, mas não deliberativa. Nesse sentido (e também no que diz
respeito às “irmãs dos meios populares”, a tendência da VR feminina migrar para a
periferia social, assumir ou tomar parte em causas minoritárias) o documento “Mujeres
para el Diálogo” 118 , emitido por ocasião da III Conferência Episcopal Latino
Americana – CELAM em Puebla, México, 1979, é citado como referencial.

118
O documento é a transcrição das sessões do seminário sugestivamente denominado “Além dos Muros”
(tradução livre), sobre os novos papéis e perspectivas da mulher dentro da ICAR, conduzido por grupo de
religiosas, teólogas, feministas.
148

A religiosa Ivone Gebara (nascida em São Paulo/SP, em 1944), freira católica,


filósofa (Doutora em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo –
PUC-SP), teóloga (Doutora em Teologia pela Université Catholique de Louvain,
Bélgica), profundamente envolvida com a Teologia da Libertação, reconhecida e
respeitada mundialmente como uma das primeiras religiosas a defender um ideário
profundamente contestatório e progressista quanto ao papel da mulher na ICAR e na
sociedade, fundadora de uma Teologia Feminista, partidária do Estado laico, do
ecumenismo e da tolerância religiosa, crítica das posições formais da Igreja Católica
sobre aborto e contracepção (fruto de sua vivência inserida na realidade da periferia de
Recife) e condenada a silêncio obsequioso após declará-las abertamente em 1993
(mesmo ano de fundação das CDD-BR) pelo Papa Bento XVI, é a personalidade que
escreve a Apresentação à obra em pauta de Nunes, e inegavelmente a influencia119.

5.1. Formação das Católicas Pelo Direito de Decidir Brasil

A Organização Não Governamental Católicas pelo Direito de Decidir – CDD


Brasil tem sua fundação anunciada em 8 de março de 1993, em um evento
comemorativo pelo Dia Internacional da Mulher, na cidade de São Paulo/SP, e dá início
a suas atividades nesse mesmo ano. Entre outras ativistas, estava à frente a socióloga
Maria José Rosado Nunes, hoje presidenta das CDD. Há nota de importante
contribuição e articulação por parte da médica (especializada nas áreas de ginecologia e
psiquiatria) e feminista uruguaia Dr.ª Cristina Grela para o nascimento da ONG: Dr.ª
Grela tem histórico de atuação na área de direitos sexuais e reprodutivos desde a década
de 1980, tendo por exemplo representado o Uruguai nas conferências da ONU do Cairo
(1994, Conferência Internacional Sobre População e Desenvolvimento) e Beijing (1995,
IV Conferência Mundial sobre Mulheres), além de ocupar a diretoria do Departamento
de Género del Ministerio de Salud Del Urugay quando da assinatura do Ato que
descriminalizou o aborto naquele país.

119
Vide biografias da teóloga, disponíveis nos sítios on-line <http://users.clas.ufl.edu/bron/PDF--
Christianity/Lorentzen--Ivone%20Gebara.pdf> (esta de autoria de Lois Ann Lorentzen, Professora da
University of San Francisco, EUA), e <http://www.editions-mols.eu/auteur.php?id_auteur=49>. Observar
também a introdução à coletânea de trabalhos de Ivone Gebara escrita por Margareth Rago, Professora
titular do Departamento de História da Universidade Estadual de Campinas/ – UNICAMP, disponível em
<http://nhanduti.com/Sumarios/Gebara.Text_for_web.2010.pdf>. Acessos em 16 de outubro de 2015.
149

Supomos aqui que o germe do movimento é antigo, dado o envolvimento de


Rosado e o grupo de companheiras que fundou a CDD com a Teologia da Libertação e
as Comunidades Eclesiais de Base, antes do aparecimento de movimentos designados
Carismáticos e de alternativas mais conservadoras, durante um período em que a Igreja
Católica no Brasil buscava enfatizar a justiça social e a necessidade da
redemocratização, conforme atesta a entrevista da presidenta à revista TPM – foi nesse
tempo (década de 1980) também que o feminismo militante é retomado no Brasil, com
o regresso de exiladas políticas. Contudo, é somente encontrando caminho para firmar-
se com a maturidade crescente do processo democrático e através de uma rede de
parceiros nacionais e internacionais – buscou-se um grupo, que embora pequeno, fosse
alinhado com as práticas feministas militantes e conhecedor da estrutura da Igreja
Católica e/ou da Teologia e Ciências da Religião, afinal “a gente iria se contrapor a uma
instituição poderosíssima”, como menciona Rosado. Segue uma pequena biografia das
principais integrantes e/ou coordenadoras e fundadoras [CAMPANARO, 2014]:

 Maria José Fontelas Rosado Nunes: Presidente da instituição e doutora em


Sociologia pela École de Hautes Études em Sciences Sociales de Paris, França;
Professora do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP; Professora Convidada
em Havard, 2003. Uma das quatrocentas Global Experts da ONU.

 Regina Soares Jurkewicz: Coordenadora do projeto Derechos Reproductivos,


Religion y Fundamentalismos em América Latina: Propuestas para El Avance
de los Derechos de las Mujeres. Acciones desde CDD Brasil y CDD Colombia.
Doutora em Ciências da Religião pela PUC-SP.

 Yury Puello Orozco: Inicialmente responsável por articulações internacionais,


principalmente com a Red Latinoamericana de Católicas por El Derecho a
Decidir. Coordenadora do projeto de formação de multiplicadoras. Doutora em
Ciências da Religião pela PUC-SP.

 Rosângela Aparecida Talibi: Coordenadora executiva das CDD Brasil. Foi


responsável pela captação de recursos e coordenação do projeto Aborto Legal
nos Hospitais Públicos. Mestre em Ciências da Religião pela Universidade
Metodista de São Paulo – UMESP.
150

Conforme seu material de divulgação institucional, a visita do Papa João Paulo


II ao Brasil em 1998 é um acontecimento que marca a história das Católicas. A entidade
promovido o e participado do debate público, “como um ator expressivo, propagando
amplamente posições favoráveis à legalização do aborto no país”. Em paralelo,
pesquisas de opinião custeadas por parceiros das CDD Brasil e realizadas pelo Instituto
Brasileiro de Opinião Pública e Estatística – IBOPE 120 apresentam conclusões que
reiteram os posicionamentos das Católicas: “a maioria da população católica não
criminaliza as mulheres que abortam, principalmente nos casos previstos pela lei”. Por
ocasião de suas participações públicas e de sua ação como formadora de opinião e dos
resultados dos levantamentos sobre aborto conduzidos, a CDD torna-se movimento de
referência que sustenta valores diversos daqueles propostos pela moralidade oficial da
Igreja Católica, mas apoiados por uma população majoritariamente católica 121 (com
destaque para a ampla aprovação do uso de métodos contraceptivos comuns). Sua ação
como interlocutora entre a sociedade civil e setores decisórios, como o Legislativo
Nacional, tem ao longo do tempo gerado frutos e parcerias notáveis.

Os recursos que mantém a ONG vêm de editais públicos (e.g., Secretaria de


Políticas para as Mulheres do Executivo Federal) e de fundações, organismos e
movimentos estrangeiros, além de doações de pessoas físicas. As atividades envolvem
militância, oficinas sobre religião, sexualidade e direitos reprodutivos, pesquisas de
opinião pública, publicações específicas disponibilizadas também em meio digital,
vídeos de divulgação e conscientização e presença em redes digitais como o facebook.
Também e principalmente advocacy, que é uma prática social e política, conduzida por
grupos a partir do interior de sociedades e seus sistemas políticos, com a finalidade de
influenciar a formulação de ações públicas e alocação de recursos, através
principalmente da mobilização civil. Abrange tanto atividades como campanhas,
publicações de pesquisas e documentos, quanto à abordagem direta dos legisladores.
Esses tópicos serão aprofundados no capítulo seguinte.

120
Vide folder ilustrativo dos resultados da survey datada do ano de 2011 no sítio on-line
<http://catolicas.org.br/wp-content/uploads/2011/01/publicacao-Ibope-Catolicas-Aborto-2011.
compressed.pdf> – percebe-se, contudo, que informações necessárias a uma interpretação absolutamente
clara dos dados não foi posta em minúcia. Material relativo ao ano de 2006, disponível no sítio on-line
<http://catolicas.org.br/wp-content/uploads/2006/01/Pesquisa-Panorama-Aborto-Legal.pdf>.
121
Vide resultado completo de pesquisa feita no ano de 2013 sobre a opinião dos brasileiros frente à
temática do aborto, mas principalmente sobre temas centrais da ideologia católica e situação atual do
catolicismo, disponível on-line em <http://www.ibope.com.br/pt-br/noticias/Documents/JOB_0851_
CDD%20-%20Relatório%20de%20tabelas%20(total%20da%20amostra-consolidado).pdf>.
151

5.2. Objetivos e Panorama de Atuação

São abaixo listados os objetivos que formalmente norteiam as CDD brasileiras,


conforme sua página na rede, e francamente baseados nos análogos das Católicas por el
Derecho a Decidir de América Latina e das Catholics for Free Choice estadunidense:

 Contribuir com a construção do discurso ético-teológico feminista pelo direito


de decidir que defenda a autonomia das mulheres, a diversidade sexual, a
justiça social e o direito a uma vida sem violência.
 Conscientizar a sociedade de que a experiência humana da sexualidade e da
reprodução de todos e todas deve ser reconhecida, respeitada e vivida de forma
autônoma e livre.
 Promover o diálogo inter-religioso e uma cultura de respeito à livre expressão
religiosa.
 Defender os princípios democráticos de laicidade do Estado, particularmente a
sua autonomia frente a grupos religiosos.
 Trabalhar pela aprovação e efetiva implementação de leis, políticas públicas e
serviços necessários à plena cidadania das mulheres, jovens, LGBTs, negras e
negros.

Vamos observar um quadro geral dos mesmos, segundo três temáticas que
podem ser consideradas cruciais para o desenvolvimento dos objetivos acima
relacionados. O próximo capítulo tratará de dar um tratamento mais específico a cada
assunto a que as publicações oficiais fazem menção.

5.2.1. Religião

Conforme acima, as CDD valorizam a interação com e entre as diversas


manifestações religiosas, visando condições de coexistência e tolerância, e não
interferência mútuas que se utilizem do Estado como intermediário.

Pela análise do material disponível na biblioteca virtual das Católicas, podemos


traçar um breve panorama de suas relações com a religião, especialmente a Católica:
discussão e denúncia. A discussão de temas da nossa (pós)modernidade é levada a cabo
por publicações que os propõe e visam conscientizar as leitoras e leitores sobre
relevância desses para o indivíduo, a sociedade e para as próprias igrejas – embora a
grande maioria das causas não seja abraçada pelas religiões, existe todo um esforço no
152

sentido de comprovar, por exemplo, que os temas não ferem dogmas (sendo portanto a
posição ou resposta das igrejas passível de alteração) ou se coadunam com os preceitos
cristãos de piedade e amor ao próximo, e dos Direitos Humanos. A denúncia aparece
em textos como por exemplo o “Violência Simbólica: a Outra Face das Religiões”, de
Maria José Rosado Nunes e Maria Teresa Citeli: constituem material de crítica aberta a
atitudes e ao papel assumido em diversos temas e situações pela Igreja Católica e outras
religiões – o confronto de ideias e posicionamentos vem carregado de desejo de
mudança, mas também de acenam com acolhimento e provêm instrução principalmente
àquelas que sofreram ou sofrem abusos.

CDD e ativismo pró Estado Laico: aqui as respostas são mais simples. Um
Estado Laico é regido pelo direito, portanto cumpre seu papel com isenção em relação a
quaisquer religiões no que diz respeito a demandas públicas. Não se trata de
enfraquecer o espectro de atuação da Igreja Católica Apostólica Romana ou qualquer
outra, mas restringi-lo à esfera de atuação cabível numa sociedade plural que, para a
manutenção da democracia e o respeito às minorias, precisa ser representada por
poderes estatais, em todas as suas esferas, os mais isentos possíveis de influências de
grupos majoritários socialmente. As CDD e todos os demais movimentos que optam
pela defesa e/ou representação de pautas sociais minoritárias ou associadas a assuntos
“polêmicos” dependem de um Estado isento122 e, por conseguinte laico, para que suas
demandas sejam vistas com o máximo de imparcialidade. Como exemplo de
movimentação contrária aos objetivos da CDD, vemos o “Aborto Legal, Igreja Católica
e Congresso Nacional”, de autoria de Myriam Aldana Santin, que descreve o lobby da
Igreja no Poder Legislativo “com o objetivo de impedir a aprovação de projetos que
asseguram direitos reprodutivos das mulheres”.

5.2.2. Sexo, Gênero e Identidade de Gênero

Cabe neste tópico uma breve exposição dos conceitos associados ao tema,
ilustrados com os ativismos das CDD. Que sejam estabelecidas as seguintes definições
básicas:

 “Sexo” é definido biologicamente;

122
Abandone-se o platonismo inerente ao termo: a própria atuação de OSCs como as CDD depende de
certa parcialidade dos representantes dos entes estatais, mesmo que seja tão salutar como compromisso
para com os princípios de Direitos Humanos, por exemplo. Isenção pode ser entendida como garantias de
isonomia legislativa mínima.
153

 “Gênero” é definido sociologicamente. Gênero é o conjunto teórico de


sentimentos, atitudes, e comportamentos associados a um ou outro sexo;
 “Identidade de Gênero” é definida de maneira pessoal e trata-se da identificação
do indivíduo com um sexo em particular ou noção de pertencimento a esse sexo;
 “Papel de Gênero” é o comportamento prático de acordo com as expectativas
que a estrutura social e a cultura determinam de como homens e mulheres devem
agir.

A Sociedade age através de influências poderosas para impelir que as pessoas assumam
papéis de gênero convencionais, e relacionados diretamente a seu sexo biológico
[BRYM et al., 2006].

Aqui há dois tópicos sobre os quais se debruçar. Em primeiro lugar, as CDD é


uma organização que visa desconstruir atribuições e correlações tradicionais de gênero:
pode-se dizer sem receios de represália que a ideia do feminino em nossa sociedade
ainda hoje é majoritariamente associada às condições de dependência, de inferioridade
hierárquica: existe um substrato de constituição machista nas culturas brasileiras que
nos permite, por exemplo, coisificar a mulher (que passa a ser corpo antes de qualquer
outra coisa), ou reduzi-la a um arquétipo (e.g., profissional – a diarista, a secretária, a
professora, a enfermeira, etc. – ou social – a “solteirona”, a dona de casa, a mãe, a
“santa”, a “puta”, etc.). Reservo-me o direito de não citar fontes: basta observarmos
com atenção campanhas comerciais de cerveja ou certas produções da televisão ou
cinema nacionais. A compreensão estabelecida de gênero corrobora para que se
mantenham desigualdades sociais: desnecessário é a prova de que o “sexo frágil” não é
normalmente ligado à agência, mesmo sobre matérias de seu próprio interesse. As
CDD, como outros movimentos feministas, mas com seus próprios focos de atuação,
empreendem uma militância para profunda alteração no papel de gênero associado à
mulher, principalmente, mas não só, no que tange à ingerência de sua sexualidade e
corpo.

Em segundo lugar, as CDD têm agido no sentido de se fazer vencer preconceitos


sobre identidades de gênero alternativas. As diversas faces que a sexualidade humana
pode assumir é assunto debatido, e as discussões têm por fim criar entre as militantes e
participantes um espírito de tolerância para com o, e/ou a aceitação do, “diferente”,
embasadas no “direito fundamental das pessoas de escolherem a opção sexual que mais
154

as realizem”123, e no conceito basilar cristão do amarás o próximo como a ti mesmo.


Para além disso, é essencial que se perceba a complexificação ao longo do tempo dos
objetivos e tópicos abordados pelas CDD, em consonância com a ampliação das
perspectivas sobre gênero, identidade e papéis de gênero que vêm tomando forma nos
movimentos sociais no Brasil e mundo ao longo dos anos, e se encontra em franca, e
quiçá pela primeira vez séria, discussão em âmbito amplo na sociedade brasileira.

5.2.3. Direitos Reprodutivos e Juventude

Aqui devemos fazer uma digressão mais detida a respeito do tema que é
imediatamente associado às ações das CDD: direitos reprodutivos, com ênfase na
possibilidade de se interromper uma gravidez por iniciativa da mulher. Utilizamos nessa
discussão o artigo Aborto no Brasil: uma pesquisa domiciliar com técnica de urna, de
Debora Diniz e Marcelo Medeiros. O objetivo desta secção é bastante simples –
demonstrar através dos dados que o aborto fora do prescrito em legislação, e os
problemas dele decorrentes, são associados principalmente a jovens, mulheres entre 18 e
29 anos (seguem abaixo as Tabelas de número 1 e 2 do referido artigo).

A pesquisa124 sobre a qual versa o artigo foi empreendida utilizando-se técnicas


diretas de coleta de dados: a chamada técnica da urna (que não identifica respondentes)
para levantamento de informações abertamente ligadas à prática da interrupção da
gravidez e suas consequências para as entrevistadas, associada à aplicação de
questionários para classificação socioeconômica, etária, etc.. Inova em ambos os
quesitos, dado que em estudos anteriores somente técnicas indiretas foram utilizadas
(e.g., levantamento do número de mortes de gestantes, na rede pública, formalmente
atribuídas a abortamentos deliberadamente provocados ou induzidos via medicação):
isso porque o aborto é considerado crime no Código Penal brasileiro (com algumas
circunstâncias que anulam a pena a ele associada – vide Anexo II), e as mulheres, logo
que o assumissem declaradamente, se disporiam ao risco de serem denunciadas e
eventualmente penalizadas.

123
Exceto retirado da Cartilha “Sexualidade: Conversando a Gente se Entende”, de autoria de Marilda de
Oliveira Lemos, material oficial e disponível na biblioteca de publicações das Católicas.
124
Pesquisa Nacional de Aborto – PNA, 2010, com financiamento do Ministério da Saúde, aplicada pela
Agência Ibope de Inteligência. É a pesquisa mais abrangente (embora mantenha-se restrita ao perímetro
urbano) sobre o tema já realizada no Brasil, e visa “subsidiar ações de saúde pública para mulheres em
idade reprodutiva e fornecer informações necessárias para o desenho de novas sondagens do tipo e
parâmetros para estimativas indiretas”.
155

Pela observação das Tabelas 1 e 2, constatamos maior ocorrência da prática


entre mulheres jovens, no centro temporal de seu período reprodutivo. Há certa
tendência maior entre aquelas de baixa escolaridade, o que pode refletir menor renda
e/ou capacidade de inserção no mercado de trabalho formal (o que são fatores relevantes
156

quando da decisão de dar prosseguimento a uma gestação), e conhecimentos parcos


quanto aos variados métodos contraceptivos (e o que é principal, a efetividade de cada).

Outros dados da PNA chamam a atenção: quase uma em cada cinco mulheres
respondentes fizeram um ou mais abortos (índice de 15%) e dessas, cerca da metade
passou ao menos uma vez por internação médica devido à ocorrência – tal dado por si
só indica que aborto é assunto diretamente relacionado à Saúde Pública, observada a
magnitude dos episódios se as conclusões da pesquisa forem devidamente extrapoladas
para toda a população urbana feminina brasileira.

Outro ponto interessante, e que também nos conecta diretamente à ação das
Católicas: não se observa diferença relevante na prática do aborto em função da crença
religiosa da respondente – isso justifica a abordagem inter-religiosa ou ecumênica como
adotada pelas CDD. Contudo, sendo a maioria em números absolutos as mulheres
católicas, ações direcionadas a esse grupo específico fazem-se necessárias.

5.3. Posicionamento da Igreja Católica Brasileira

Como visto anteriormente, a fundação das CDD foi levada a diante por
feministas que conheciam o panorama da religião (algumas são teólogas, outras
sociólogas da religião, por exemplo) e as práticas da “burocracia” católica (estiveram ou
continuam vinculadas a Universidades Católicas, ou foram membros da Vida Religiosa)
com o objetivo de contestação. Um fato que não pode ser ignorado é que as Católicas
(cujas fundadoras podem se afirmar como estudiosas ou mesmo “herdeiras” dos
movimentos sociais católicos, da TL e das CEBs) objetivam também mudar a realidade
secundária e, porque não, expropriada de agência da mulher dentro do universo
simbólico da ICAR – e embora as líderes da organização fossem “conhecidas” dos
membros da CNBB que tenham participado dos, ou apoiado os, mesmos movimentos
antes da redemocratização, as relações interinstitucionais foram se alterando conforme a
Comissão era guiada para um caminho cada vez mais conservador ditado pela Santa Sé
(e voltado também ao arrebanhamento de fiéis – devido, entre outros motivos, ao
crescimento de nomenclaturas cristãs distintas –, e à constante confirmação do
pertencimento, seja pela reafirmação da ortodoxia ou até mesmo através do incentivo a
uma vida comunitária ou carismática, mas desprovida de viés social profundo), e as
Católicas agregavam outras frentes de luta social, e ampliando seu espectro de ação e
críticas.
157

Toma-se a liberdade de afirmar que, de diferentes formas, houve certa


“tolerância” por parte das autoridades clericais brasileiras com as CDD Brasil durante
algum tempo desde sua criação, tendo em vista o histórico de atuação da ICAR frente às
CFC estadunidense. As ações das Católicas foram formalmente condenadas somente em
2008 por ocasião da Campanha da Fraternidade desse ano, cujo tema foi “Fraternidade e
Defesa da Vida” e o lema, “Escolhe, pois, a Vida”. O documento, uma nota 125 da
Comissão Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB, emitida em 03 de março de 2008,
aberta e endereçada a todos os católicos e católicas brasileiros, especifica que “(...) em
seus pronunciamentos [das CDD] há vários pontos contrários à doutrina e à moral
católicas”. Também afirma que ela “não é uma organização católica e não fala pela
Igreja Católica”. Quanto ao tema aborto, relaciona-o à uma “cultura da morte”,
reafirmando que a opção por levar uma gestação (qualquer que seja o caso) até o final é
“a única escolha aceitável e digna para nós que somos filhos e filhas do Deus da Vida”.

Hoje, as CDD buscam propor a discussão de temáticas tipicamente associadas à


(pós)modernidade entre católicos e membros de outras religiões. Existe uma
permanente indisposição com a Igreja que acolhe e compreende, mas que não está
disposta a agregar o diferente em seus quadros – se acende nos fiéis algo como um
sentimento de comiseração para com o outro, e não real amor incondicional ao próximo.
Segundo o discurso oficial das Católicas, existe uma defasagem entre o que a ICAR
propõe, o que se realiza na prática, as demandas de equiparação de direitos exigidas pela
sociedade, e a prática dos fiéis. Há uma crítica à Igreja Católica enquanto instituição
que, reestruturada que foi ainda na Idade Média e mesmo após o Conselho Vaticano II,
falha em representar e absorver as mudanças propostas e levadas a cabo pela
modernidade no que tange direitos individuais e democracia.

125
Vide sítio on-line <http://www.cnbb.org.br/magazine-cnbb/notas-declaracoes-e-saudacoes-da-
cnbb/1446-nota-da-cnbb-sobre-as-catolicas-pelo-direito-de-decidir.html>, visitado em 6 de agosto de
2015.
158

Capítulo 6 – Formas de Ação das CDD/BR Hoje

As Católicas tem amplas frentes de atuação enquanto movimento: advocacy


junto ao Parlamento com bancadas e políticos relacionados às causas às quais se propõe
defender; ações temáticas específicas – sejam voltadas para os integrantes da
organização, seja para o público em geral ou em determinado contexto, viabilizadas
através de recursos próprios angariados através de doações (é mantido um canal direto
em seu sítio na grande rede através do qual as mesmas podem ser feitas, via
PagSeguro®) ou advindos de parcerias com a iniciativa privada, fundações nacionais e
internacionais, e as esferas do Estado; custeio, em conjunto com outros órgãos de
agenda comum, de pesquisas de opinião e levantamentos tipo survey, além de discussão
sobre dados de pesquisas terceiras; promoting em diversas redes sociais, como também
realização de campanhas temáticas dirigidas a um público específico ou de
conscientização, e divulgação de eventos próprios ou por elas apoiados; produção e/ou
promoção de artigos, cartilhas, informes, livros e publicações em geral.

6.1. Ações de Advocacy

Objetivando clareza na argumentação, deve-se primeiramente distinguir as


diferenças na compreensão social dos conceitos de Advocacy e Lobby.

Advocacy. No contexto da política democrática indireta, “refere-se à defesa de


direitos no contexto de ações coletivas, políticas, públicas” [UBIRATINI, 2010]. É
exercida pelo advocate.

Nadia Ubiratini coloca que o paradigma do governo de Democracia Direta é


“uma fusão do ‘falar e fazer’ na ação política”, ou seja, a garantia de condições de
participação efetiva e intervenção direta a todo cidadão (e ao qual é facultado declinar
desses direitos e responsabilidades) – é um paradigma que remete à democracia clássica
grega ou romana, idealizadas por Hegel 126 . Contudo, a adoção de um sistema
representativo permite o envolvimento dos cidadãos de maneira direta apenas na
escolha de seus representantes, e sob ressalvas dependendo do sistema político adotado
(discussão majoritariedade versus proporcionalidade, e a relevância do pluralismo). A
legitimidade desta suposta “ficção de democracia” seria garantida através da
“incessante de educação política em cidadania” dos indivíduos do corpo social, por

126
Para discussão mais detida, vide [COUTINHO, 1997].
159

exemplo. Alternativas diversas classistas ou corporativas foram cogitadas e/ou tentadas,


mas de forma geral a representação é associada a uma “inevitável” redução da
possibilidade de intervenção direta, uma relação verticalizada e passiva cidadão-Estado.
A autora advoga no sentido de que este é um entendimento polarizado é um equívoco, e
que uma complementaridade poderia ser realizada no “continuum da ação política nas
democracias modernas”.

Nas palavras da própria Ubiratini, “a lacuna espacial e temporal aberta pela


representação reforça a confiança, o controle e a prestação de contas (accountability) se
for preenchida com discurso (uma esfera pública articulada)”. Uma das formas pelas
quais ela poderia ser efetivada é através da ação de indivíduos ou organismos coletivos
sobre a estrutura formal de poder. Um palco privilegiado de atuação dos advocates seria
o Legislativo, num contexto diacrônico.

Espera-se que advocate assuma uma ligação “apaixonada” pela causa em pauta,
mas também autonomia decisória, deliberativa, de forma a administrar a tensão entre
interesses, visões subjetivas e aspirações que permeiam os planos social e político,
sempre incentivando e mantendo acesa a discussão pelas vias disponíveis – o “debate e
o antagonismo democráticos cumprem um papel unificador invisível e não planejado”.
Segundo Nadia, “A advocacy no parlamento tanto requer quanto estimula a advocacy na
sociedade”.

Em termos práticos, advocacy objetiva à conquista, promoção ou defesa de


direitos de uma pessoa, grupo ou causa. O advocate pode ser um indivíduo, uma
organização, ou rede de parceiros que agem no sentido de viabilizar a mudança (na
legislação, nas políticas públicas ou desenvolvidas por empresas, grupos ou instituições
influentes), promover uma ideia ou causa (na Sociedade ou entre os que detêm poder de
decisão), ou incentivar/garantir/observar o cumprimento ou respeito a uma regra,
determinação ou mesmo discurso tido como apropriado para a valoração daquele
direito, grupo, causa. Pode agir negativamente, no sentido de contestar a validade ou
pertinência dos termos e ações de um grupo que se oponha à sua causa, mas sempre
visando angariar apoio da opinião pública e dos tomadores de decisão. Sob essa
perspectiva não se trata tanto de enfrentamento, mas de tomada de recursos.
160

A estratégia de advocacy poderia ser descrita, grosso modo, em cinco passos


autoexplicativos:
 identificação de um “problema”;
 definição de metas e objetivos para a ação;
 identificação de públicos – aliados, não mobilizados, adversários;
 planos de trabalho, comunicação e obtenção de recursos;
 monitoramento e avaliação de resultados.
Percebe-se que o último passo pode levar à identificação de um novo problema ou
percepção da insuficiência da solução, reiniciando o ciclo [GRUPO DIGNIDADE,
2007].

“Formação de uma Frente Parlamentar”: trata-se de se organizar um grupo


comprometido com a causa e com representação no Poder Legislativo – a mudança em
nosso regime vem quase sempre na forma de Lei ou Decreto. Torna-se necessária a
proposição de Projetos de Lei e sua defesa nas esferas correspondentes. Embora uma
proposta advinda de grupo de cidadãos possa ser transformada em PL 127 , e sua
advocacia ser amplamente baseada no convencimento da opinião pública, a realidade é
que contar com Deputados Federais e Senadores (ou representantes do Poder
Legislativo equivalentes nos níveis estadual e municipal) deve elevar a capacidade de
captação de recursos e status a outro nível, além de permitir acesso às “sutilezas
políticas”. E aqui há uma zona cinza, onde se pode confundir advocacy e lobby.

Lobby ou lobbying, uma “conversa de corredor ou antessala”, numa tradução


forçada. Definido pelo Dicionário Priberam da Lingua Portuguesa Online como 128
“grupo organizado de pressão para atingir determinados objetivos ou para defender
.

determinados interesses”. Isso posto, qual seria a diferença real entre esse e a advocacy?
No Brasil, hoje, é tido como prática corrupta e corruptora, intrinsecamente associado a
estratégias de manipulação por parte de agentes poderosos ou ligados a setores
detentores de recursos (econômicos, midiáticos, etc.) sobre atores nos diversos níveis da
coisa pública (com destaque para os representantes do Legislativo) e que envolvam
tráfico de influência, troca de favores em diversos níveis, bem como repasse

127
Vide http://www2.camara.leg.br/participe/sua-proposta-pode-virar-lei, acessado em 21 de outubro de
2015.
128
Vide http://www.priberam.pt/dlpo/l%C3%B3bi, acessado em 21 de outubro de 2015.
161

condicional de verba, legal ou ilegalmente, ou mesmo financiamento de campanhas.


Maria Gonçalves [GONÇALVES, 2011], entre outros autores, aponta para sua possível
regularização 129 , a exemplo dos Estados Unidos, onde o lobista, tanto por seu
conhecimento dos meandros da Administração Pública, quanto da matéria ou interesses
que representa, seria não só um intermediário, mas um consultor especializado seja
para o contratante, seja para o membro do Poder Público alvo.

Embora tenha havido considerável esforço e avanço na prática da Prestação de


Contas da União ao Público, e um esforço considerável para garantir-se a
independência a órgãos de supervisão (práticas que compõe o que se designa por
accountability) como o Tribunal de Contas da União – TCU e a Controladoria Geral da
União – CGU, dificilmente uma atividade de pressão será regulamentada enquanto
cargos públicos de relevante mérito técnico servirem de objeto de indicações fruto de
politicagens partidárias ou apadrinhamento, ou sequer uma reforma político-partidária
consistente emerja do atual caos da Capital Federal. A diferença entre advocacy e lobby
reside no limite da ética e da legalidade, e também na natureza dos interesses: não se
duvide que certos casos haja em que a publicidade do trâmite anularia tal fronteira.

As Ações efetivas das CDD Brasil nos termos de advocacy junto ao Congresso
Nacional e à Sociedade Civil que podemos listar são associadas à Lei nº 12.845, de 1º
de agosto de 2013, que a princípio garantiria, além do atendimento na rede pública
hospitalar de mulheres vítimas de violência sexual, a disponibilização de medicamentos
visando interrupção de gravidez (este inciso recebeu veto presidencial, mas foi
novamente proposto via Projeto de Lei – contudo, outro PL foi sugerido, pelo Deputado
Federal pelo PSB de Pernambuco, Pastor Dr. Eurico, e outros, promovendo veto sobre o
teor já “pasteurizado” da Lei), e recentemente campanha ampla sobre a (não)
pertinência do chamado Estatuto do Nascituro – essas contribuições são divulgadas
amplamente por mídias específicas e pelas próprias CDD.

Tem-se de ter em perspectiva que o advocate muitas vezes tem sua atuação junto
a figuras públicas e políticas, empresas privadas, fundações e outras organizações das
quais angaria apoio ou entre as quais promove sua causa – esses vínculos podem ou não
se materializar, ou sequer tornarem-se públicos: por vezes seus efeitos são notados

129
Tramitam com este fim no Congresso os Projetos de Lei nº 6132/1990, nº 6928/2002, nº 5470/2005, e
nº 1202/2007. Há seis Projetos de Resolução da Câmara que disciplinariam a atividade nessa esfera.
162

indiretamente através de realização conjunta ou adesão a eventos, formação de redes de


apoio mútuo, consonância entre os variados discursos ou de declarações pontuais.
Poderíamos citar o Deputado Federal pelo PSOL do Rio de Janeiro, Jean Wyllys, como
vinculado a petições paralelas às das CDD: não seria estranho conjeturarmos que haja
colaborações e instrumentalização de planos em conjunto – um elemento que
encontramos após rápida pesquisa é o Projeto de Lei nº 882/2015130, proposto em 24 de
março deste ano, que “estabelece as políticas públicas no âmbito da saúde sexual e dos
direitos reprodutivos e dá outras providências”. O agradecimento às Católicas, junto a
outras organizações e indivíduos, vem ao final da justificativa para a proposição do PL.

Deve-se salientar também que a ligação das CDD com a Secretaria Especial de
Políticas para as Mulheres do Poder Executivo (SPM, fundada em 2003, e que vem
organizando os Planos Nacionais de Políticas para as Mulheres, iniciativas periódicas
que estabelecem metas a serem atingidas dentro de dado intervalo de tempo no que
tange a equidade e garantias de direitos, políticas de sexo e gênero, inclusão social
efetiva, entre outras providências) pode ser facilmente constatada pelo apoio que a SPM
vem cedendo às Católicas através de convênios, que datam pelo menos de 2007.

6.2. Ações nas Redes Sociais

A Atividade das Católicas nas Redes Sociais é profícua. Para qualquer


movimento ou organização social que tenha pretensões de atingir o grande público,
considera-se desde a popularização da internet fundamental manter homepage
atualizada. Hoje, a administração eficiente de seu perfil ou conta no Facebook,
YouTube, Twitter, e tantas outras hiper-redes pode ser a diferença entre sucesso e
fracasso, em termos de spreading (literalmente “espalhar”, “disseminar” – a capacidade
de atingir um público grande ou alvo mediante uma publicação ou nota na Rede), de
uma causa ou ideia. E as CDD estão perfeitamente à vontade nesse seguimento.

As próprias atividades das CDD, modelo de militância, estratégias de


valorização das membras, declarações nas diferentes mídias são fontes de aprendizado.
Cabe aqui uma necessária análise sobre o histórico e situação de seu perfil no Facebook.
O número de “curtidas”, que equivale ao número de outros perfis diretamente

130
O referenciado PL visa descriminalizar e parametrizar a interrupção voluntária da gravidez, garantir
atendimentos específicos à mulher, promover a educação para a saúde sexual e reprodutiva em escolas:
http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1313158&filename=PL+882/2
015, na íntegra.
163

associados e que podem receber as atualizações do perfil das CDD atinge hoje o número
superior a 30.000, com uma taxa de atualização de posts praticamente diária. A
estratégia de divulgação é baseada em mensagens pictóricas ou gráficas seguidas de
textos simples ou palavras de ordem, costumeiramente, o que tende a fixar uma
identidade e objetivos claros. Mensagens mais complexas são utilizadas para
argumentação e para tratar de assuntos mais intricados – nesses casos vídeos vinculados
ao YouTube também são usados para a divulgação, e podem incluir tanto material para
arrecadação de fundos quanto entrevistas com as dirigentes e representantes de destaque
no movimento. Enquanto o número de comentários e compartilhamentos era realmente
pequeno para a maioria das postagens em janeiro de 2014 (época da primeira inspeção),
esses índices aumentaram consideravelmente hoje – ainda assim, há espaço para que se
conquiste maior abrangência e para a manutenção mais prolongada das discussões:
trata-se de conquistar um público fiel, militante engajado ou simpático às causas, que
promova a disseminação das publicações em seu próprio perfil e em grupos. Um estudo
mais aprofundado sobre técnicas e táticas de comunicação, divulgação e replicação de
mensagens na grande rede por ONGs e movimentos com comprometimento social pode
revelar muito mais sobre a eficiência, intrusão, espalhamento de mensagem do modelo
de atuação das CDD Brasil, e embora seja oportunidade excelente de observar
compreender a disseminação de ideias na grande rede, não é nosso objetivo no presente.

6.3. Ações de Conscientização Direta e Publicações


6.3.1. Ações Diretas

As Católicas executam “ações diretas”, entendidas aqui como eventos


promovidos; Congressos; manifestações públicas; “cartas abertas”; participação de
membros na qualidade de representantes formais em sessões de Secretarias do
Legislativo; representações formais junto a, ou encontros com, membros dos Poderes;
encontros ou seminários públicos; encontros ou seminários para militantes e membros;
oficinas para a capacitação de membros ou convidados; atividades que requerem o papel
de especialistas das membros junto a órgão público, sociedade ampla ou outras
membros; etc.. A maior parte dessas ações tem publicidade nas redes sociais, contando
com fotos e vídeos, e textos explicativos; outras são de caráter institucional e/ou de
interesse e valoração das militantes, o que demanda certamente determinado nível de
discrição; algumas são frutos de convênios de repasse de recursos firmados com a
União, e dessas trataremos mais detidamente adiante.
164

6.3.2. Artigos e Publicações Disponíveis na Rede

As CDD tem uma biblioteca de material em sua homepage amplamente


disponível para download131 ou leitura online, dividido em duas categorias primárias
que podemos chamar de Artigos (leitura online, textos em geral curtos, de rápido acesso
e leitura) e Publicações (para download, são argumentações mais detidas e elaboradas
sobre temas essenciais às CDD brasileiras e parceiras no exterior). Ademais, existem as
Notas, que são informes quanto às mais variadas matérias, Editoriais, posicionamentos
sobre assuntos em voga, Eventos, para promoção de eventos próprios ou em parceria, e
Releases, sobre lançamentos de sítios ou campanhas.

Dado que não é factível estudo sobre cada um dos textos das CDD/Brasil, se fará
uma breve revisão dos Artigos e Publicações: digressões sobre os principais temas
abordados. Já que esses são elementos de propagação de ideias, disponíveis a princípio
em caráter permanente (diferente das ações localizadas em redes sociais que se mantêm
em evidência por relativamente pouco tempo, conforme interesse do público ou da
organização, publicações tem ligações fixas para download), são esses que atingem
potenciais interlocutores que não podem participar fisicamente de encontros, oficinas e
outras formas de físicas de promoção. Entende-se que traçar um quadro do que é
disposto nesses meios equivale a desenhar o perfil que as CDD procuram transmitir.

Vejamos os temas principais que constam nos artigos e publicações: essa


também é a oportunidade de traçarmos um quadro das causas efetivamente abraçadas
pela Organização, além de fazer-se uma breve discussão a seu respeito:

 Teologia: as CDD contam em seus quadros com especialistas na área, que em


geral se definem como católicos ou católicas. Aqui o papel assumido por esses
profissionais é o de utilizar da estrutura e do pensamento teológico católico,
principalmente aquele produzido por ocasião do Concílio Vaticano II, como
base de suas petições e posicionamentos, além de informar ao/à fiel sobre a
possibilidade de interpretações divergentes, e sua pertinência, de assuntos que
não são dogma de fé;

131
Diferente por exemplo da chamada “Biblioteca Feminista”, http://www.bibliotecafeminista.org.br,
ação que reúne material de diversas procedências com busca refinada por temática, mas limita o acesso do
usuário ou usuária a vinte documentos por dia.
165

 Recurso ou Consulta à Própria Consciência: como já abordado, trata-se de uma


prerrogativa que todo/a fiel possui na ausência de uma diretriz oficial, ou caso
essa seja falha segundo sua experiência. Trata-se de uma decisão particular
sobre se o ato é correto ou “pecaminoso”, e que envolve somente o ou a religiosa
e sua experiência pessoal da divindade, não passível, em princípio, de
julgamento externo. Baseia-se em texto bíblico, Livro Romanos, Capítulo 2,
Versículos 15 e 16, in verbis:

15
pois mostram que as exigências da Lei estão gravadas
em seu coração. Disso dão testemunho também a sua
consciência e os pensamentos deles, ora acusando-os, ora
defendendo-os).
16
Isso tudo se verá no dia em que Deus julgar os segredos
dos homens, mediante Jesus Cristo, conforme o declara o
meu evangelho.

 E igualmente na Constituição Pastoral do Concílio Vaticano II, “Alegria e


Esperança: Sobre a Igreja no Mundo Atual” (Gaudium et Spes). Em seu Capítulo
Primeiro, “A Dignidade da Pessoa Humana”, Subtítulo “Dignidade da
Consciência Moral”.
 Probabilismo: ubi dubium, ibi libertas, “onde há dúvida, há liberdade”. A regra
moral dobra-se à dúvida: “quando há duas opiniões, ambas igualmente
prováveis, pode-se seguir qualquer delas; quando há duas opiniões não
igualmente prováveis, pode-se seguir a menos provável”. Foi primeiramente
proposto por Frei Bartolomeu Medina (1527 – 1580), Teólogo e Moralista
Dominicano, Tomista, professor de Salamanca. Esse foi seguido por outros
teólogos dominicanos, e posteriormente aderiram a ele quase todos os teólogos
da Companhia de Jesus, entre os séculos XVII e XVIII. Teólogos da mesma SJ
trataram de apresentar refutações à Doutrina Probabilista, e hoje é consenso
interno em que se havendo determinação oficial, não haja espaço para dúvida. Já
a teóloga Regina Soares Jurkewicz propõe que a doutrina deve ser válida em
questões de dissensão moral entre os membros leigos e eclesiásticos da Igreja,
ou entre grupos desses últimos: essa seria uma ferramenta para uma
modernização católica;
 Feminismo Católico: dialoga com outros temas – trata-se de uma revisão
proposta do papel secundário, subserviente, arquetípico, que reputam ser
166

disseminado pelas posições oficiais da Igreja Romana. As fiéis são chamadas a


contestar essa visão, que é passível de mudança dado que não é pertencente ao
cânone, ou seja, não é definida por dogmas de religião. “(...) é possível ser
católicas e feministas ao mesmo tempo”;
 Ordenação de Mulheres, Revisão do Significado dos Votos: novamente, acena-
se com um contraponto à visão formal da Igreja – a ordenação feminina seria o
último patamar de transcendência da antiga concepção do papel feminino. A
revisão dos compromissos votivos (especificamente do significado do Voto de
Castidade e de Obediência) é essencial para a renovação da Vida Religiosa,
conforme entendida;
 Realização Sexual versus Moral Sexual Tradicional: trata-se de afirmar a
realização sexual como “algo bom, (...) fonte de vida para todos”;
 Direitos Sexuais e Reprodutivos: temática que abrange uma gama de assuntos –
contesta as visões ortodoxas, leigas ou de diversas religiões cristãs, sobre uso de
anticoncepcionais, sexo somente para fins de reprodução, opção de gênero,
direito à interrupção de uma gestação;
 Legalização do Aborto: pode ser seguido dos adjetivos terapêutico, seguro, etc..
Trata-se aqui da revisão do Código Penal, e descriminalização da interrupção da
gravidez: essa passaria a ser uma escolha da mulher132, e não um crime passível
de punição ou atenuantes. As justificativas variam das embasadas em pesquisas
sobre ocorrências de abortos e mortes de mulheres, à autodeterminação, falta de
unanimidade entre religiosos (entre os católicos não se trata de dogma de fé, o
que permite o debate, embora seja condenado pelo Direito Canônico), e
posicionamentos favoráveis de elementos da Sociedade Civil, além de dar
“condições de segurança e saúde” à mulher. “A questão não é ser favorável ao
aborto, mas favorável à sua legalização”.
O interessante aqui é fazer notar que as CDD não são, ao menos em seu
discurso formal, entusiastas das soluções “pessoais” – o aborto medicamentoso
auto administrado ou através de outras vias ilegais. Não existe “distribuição de
pílulas abortivas mediante contribuição”, não existe “catálogo de clínicas
132
Embora não seja tema central das discussões, a descriminalização do aborto ocorreria dentro de
determinadas circunstâncias limitantes: e.g., o Conselho Federal de Medicina (e seus análogos regionais)
posicionou-se a favor da autodeterminação da mulher até a 12º semana de gravidez, durante o I Encontro
Nacional de Conselhos de Medicina ocorrido em 2013, mas negando a descriminalização da prática ou
seu uso como método contraceptivo. A questão central, julgo, é resguardar o direito formal de opção e a
garantia de atos voltados para a manutenção da saúde mental e física dessas mulheres.
167

amigas da mulher”: a solução passa, necessariamente, por um processo de


legalização e normatização da prática, e implementação de condições para sua
realização principalmente pelo poder público. Em diversos momentos, e de
variadas formas, a solução individual é relacionada à perda de vidas: a disputa é
por uma solução jurídica – só a legalização, e definição de atos públicos que
garantam que essa decisão se efetive, é uma saída para perda de vidas femininas.
Como dito, esse é o discurso público da ONG: não foi efetivada pesquisa junto
às integrantes da organização sobre suas opiniões, decisões e experiências
pessoais, nem esse estudo, amplo por definição, cabe aqui;
 Abuso Sexual de Crianças, Adolescentes e Mulheres por Religiosos: as
acusações contra padres (principalmente) no que diz respeito à prática da
pedofilia sobre crianças sob seus cuidados em colégios, suas conhecidas ou
filhos de famílias amigas, ou inseridas nas diversas práticas comuns das
paróquias (alunos da Catequese, coroinhas, seminaristas) são, infelizmente, em
número muito grande para aqui serem listados, e as provas e confissões muito
contundentes para serem ignoradas. Idem ocorrências de violência sexual sobre
mulheres, religiosas ou leigas. As críticas das CDD nesse ponto referem-se a
uma “política do silêncio” que dá guarida aos agressores, à prática de utilizar-se
de paliativos (como mudança de paróquia do religioso acusado ou sobre o qual
se levantam suspeitas), a opção por outras “soluções internas” que terminam por
encobrir o crime na esfera da sociedade secular: ou seja, impedir a ação da
justiça civil (muitas vezes através de discretos e dispendiosos acordos) sobre
membros da hierarquia eclesiástica de forma a resguardar a imagem da Igreja.
Um artigo das CDD clama especificamente por um posicionamento do
Papa Francisco: este terminou vindo algumas formas – a exortação para que
Bispos e autoridades não permitam qualquer tipo de acobertamento dessas
atividades; a instituição de penas eclesiásticas mais rígidas (através de um
“decreto” de 11 de julho de 2013, designado Motu Proprio pois fruto somente
da autoridade papal, que inclui explicitamente crimes de tortura e amplia aqueles
contra menores); a criação de um Tribunal Especial para julgar Bispos que
tomaram parte ou por inação permitiram abusos – desnecessário dizer, esse
tribunal tem autoridade reconhecida somente pelo Vaticano, Cidade Estado sede
da Igreja Católica: contudo, o decreto mencionado determina a criação e
fortalecimento de uma rede de colaboração internacional; a criação de uma
168

“Comissão de Proteção às Crianças” (datada de 2013, mas cujos membros,


inclusive uma vítima de abusos, foram nomeados somente em 22 de abril de
2014). Em 11 de abril de 2014, o Papa teceu um pedido formal de perdão em
nome da Igreja pelos abusos cometidos;
 Laicidade Estatal e Ecumenismo: “Só assim, por cima dos elementos
particulares, é que o Estado se constitui como universalidade” (MARX, 1843).
Ambos os elementos estão conectados sob o discurso formal das CDD: o Estado
laico torna-se a garantia de exercício de todas as formas de manifestação
religiosa (que, obviamente, não firam direitos alheios e Leis instituídas). O
ecumenismo também faz referência à tolerância religiosa, que se dá
necessariamente em um nível infra estatal, mas pode em última instância ser
mediada por este, dado que é condição se ne qua non para a estabilidade interna
e garantia de segurança (física e psicológica) de grupos ou indivíduos;
 Fundamentalismo Cristão e/ou Religioso: pedra de toque em diversas
manifestações na rede, é mencionado também nas publicações oficiais. Trata-se
de uma abordagem sobre a interferência das organizações religiosas sobre a
sociedade. Não é só na vida social, no dia-a-dia que o recrudescimento dos
costumes se faz sentir: em diversos momentos é mencionada sua representação
no Congresso Nacional, e como as decisões do Legislativo podem ou poderão
vir a afetar a vida dos brasileiros e brasileiras. Trata-se de uma ameaça a já
“capenga” laicidade do Estado brasileiro (cujo calendário oficial é repleto de
feriados católicos, e que são observados nas repartições públicas) e para a
garantia de liberdades individuais e do respeito aos Direitos Humanos e sua
promoção;
 Acordo Brasil-Vaticano (designado como “Santa Sé”): Decreto Nº 7.107, de 11
de fevereiro de 2010, “Promulga o Acordo entre o Governo da República
Federativa do Brasil e a Santa Sé relativo ao Estatuto Jurídico da Igreja Católica
no Brasil, firmado na Cidade do Vaticano, em 13 de novembro de 2008” e
aprovado pelo Congresso Nacional por meio do Decreto Legislativo nº 698, de 7
de outubro de 2009. Existem artigos que parecem comprometer francamente a
isonomia religiosa diante do Estado, ao atribuir privilégios à Igreja Católica
justificados pelo caráter histórico desta para a formação do Brasil (parcerias
visando à manutenção de patrimônio histórico católico), como também por ser
representação de Estado Estrangeiro (incluindo aí facilidades na concessão de
169

vistos a indivíduos indicados por Bispos), em respeito a práticas religiosas


(segredo de confissão, e educação religiosa católica “e de outras confissões
religiosas”, por exemplo), e de ensino (isentando instituições católicas de
impostos e incluindo-as na qualidade de Sociedade Civil Sem Fins Lucrativos,
tornando-as portanto aptas a receberem recursos da União via Convênios).
Embora “excêntrico”, tópicos do acordo nunca foram postos em prática pela
coisa pública (educação religiosa ainda não a despeito de projetos de setores,
também de representantes religiosos, mas justamente adversos ao acordo), e
outros foram mantidos em flagrante desacordo com a isonomia e laicidade
(concessão de vistos, isenção de impostos para, e convênios com, instituições) –
contudo, conforme artigo das CDD, isso não se aproxima ao paradoxal
investimento público para a realização da Jornada Mundial da Juventude de
2013;
 Defesa dos Direitos Humanos: são diversas as Declarações de Direitos,
Declarações dos Direitos do Homem, ou da Humanidade, ou do Cidadão, ou do
Povo desde as Revoluções Inglesa, Americana e Francesa, se nos ativermos
somente à Era Moderna. Vamos aqui nos referir, como as CDD, à Declaração
Universal dos Direitos Humanos proposta pela Organização das Nações Unidas
– ONU em 10 de dezembro 1948 (somada a documentos irmãos, constituem A
Carta Internacional dos Direitos do Homem, além de existirem Protocolos
facultativos). Devemos citar de seu preâmbulo a seguinte sentença “(...) os
povos das Nações Unidas proclamam, de novo, a sua fé nos direitos
fundamentais do Homem, na dignidade e no valor da pessoa humana, na
igualdade de direitos dos homens e das mulheres e se declaram resolvidos a
favorecer o progresso social e a instaurar melhores condições de vida dentro de
uma liberdade mais ampla (...)”. Podemos fazer referência também a seus Artigo
1º (“Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em
direitos”), Artigo 12 (sobre “intromissões arbitrárias na vida privada”), Artigo
18 (a respeito de “direito à liberdade de pensamento, consciência e religião”) e
Artigo 19 (concernente ao “direito à liberdade de opinião e de expressão”) como
pilares óbvios de atuação das CDD (grifos nossos).
Direitos Humanos não podem ser pensados sem se considerar o respeito à
diferença e às liberdades individuais. Nesse sentido, o III Programa Nacional
dos Direitos Humanos – PNDH-3, estabelecido pelo Decreto nº 7.037,de 21 de
170

dezembro de 2009, seria um marco para a garantia de um Estado Laico e de


programas voltados aos direitos reprodutivos femininos – as ações
programáticas específicas para esses tópicos foram revogadas pelo Decreto nº
7.177, de 12 de maio de 2010: “desenvolver mecanismos para impedir a
ostentação de símbolos religiosos em estabelecimentos públicos da União” e
“apoiar a aprovação do projeto de lei que descriminaliza o aborto, considerando
a autonomia das mulheres para decidir sobre seus corpos”. Mecanismos que
poderiam tornar veículos de radiodifusão mais responsáveis no que tange o
respeito e a divulgação dos DH foram igualmente suprimidos. Determinações
para criação de material didático, a ser distribuído na rede pública de ensino
básico, sobre o período ditatorial, e para a ampla identificação de logradouros
que comprovadamente foram utilizados como centros de tortura ou para descarte
de corpos receberam veto;
 Minorias – LGBTIs, Negros, Pobres: as CDD se posicionam a favor de petições
das minorias em termos de poder social, como consequência natural de seu
compromisso com a agenda de Direitos Humanos. Embora reconheçam um
quadro de mudança na última década em termos de conquistas de direitos e
representatividade para as mesmas, contrapõe a isso um levante conservador-
fundamentalista, ligado à “elite branca, política, econômica e religiosa no
Brasil” (sic). A afinidade inevitável da ONG com a liberdade de expressão
(seguida da constatação de sua existência efetiva no Brasil, dado que grupos de
ideais “francamente retrógrados” e incompatíveis com os compromissos do
Executivo assumidos à época – março de 2014 – tem pleno direito de promovê-
las), embora a impeçam de negar o direito à fala do adversário, da mesma forma
impulsionam-na ao debate, “na defesa da diversidade e democracia” e visando a
realização de uma sociedade plural e inclusiva;
 Matrimônio e Família Tradicional: um elemento que coaduna com o apoio
prestado às minorias de gênero pelas CDD é o posicionamento contestatório em
relação ao entendimento de Matrimônio por Roma. Esse tem por fim, grosso
modo, a reprodução e o elo de continuidade entre gerações – essa compreensão
nega a possibilidade desse tipo de vínculo entre pessoas do mesmo sexo.
Contudo, não só o direito de reconhecimento de uma relação dentro da esfera
religiosa é negado: o Vaticano coloca-se ativamente contra a união civil de
casais fora do padrão da chamada Família Tradicional, como também contesta a
171

possibilidade de adoção de crianças pelos mesmos (esse posicionamento é


ativamente adotado pelo Cardeal Pietro Parolin 133 , Secretário de Estado do
Vaticano desde 31 de agosto de 2013, e cujo papel parece ser resguardar a
ortodoxia, enquanto as declarações verbais do Papa tomam tom mais “brando”,
carismático).
A despeito das declarações de Berglório da humanidade plena do/da
homossexual e seu direito inalienável de buscar Cristo (datada de 29 de
setembro de 2013) e da recepção de ativistas LGBTIs (em datas diversas desde
janeiro de 2015), que deve contribuir, em tese, para a redução da discriminação,
o Catecismo católico (e, portanto a interpretação de família e às restrições
quanto ao exercício da sexualidade) permanece inalterado, como atestam as
pautas do Sínodo Ordinário Sobre a Família, cuja 14º Assembleia deve ocorrer
em outubro (a “surpresa” desse foi a introdução do tema da aceitação plena dos
divorciados, mas que não inclui administração de novo sacramento do
matrimônio). A defesa de uma mal definida Família Tradicional Brasileira é
também tema chave da “Bancada da Bíblia” do Congresso Nacional: embora
Projeto de Lei que regulamenta as pautas esteja ainda em estudo, isso não
impediu o reconhecimento pelo Superior Tribunal de Justiça – STJ tanto da
validade do casamento homoafetivo (05 de maio de 2011, complementada por
decisão do Conselho Nacional de Justiça – CNJ, publicada em 15 de maio de
2013) quanto da possibilidade de adoção por casais homossexuais (data da
publicação de 18 de março de 2015), justificadas por valores associados aos
Direitos Humanos;
 Machismo Institucionalizado: A formação católica da colônia e posteriormente
do Estado Imperial deixou como legado um arquétipo do feminino, como já se
discutiu – a família (sociedade) patriarcal extensa (clássica, como discutida por
Freyre em Casa Grande e Senzala), embora superada no tempo, não foi
ultrapassada enquanto modelo de ação para o masculino na sociedade brasileira,
talvez devido ao ainda preponderante papel (mais do imaginário social do que na
prática) de provedor financeiro e/ou chefe de família que o homem detém. O
machismo institucionalizado passa, por conseguinte, por representações

133
Aponta-se que Parolin, representando o Vaticano, desempenhou papel fundamental na atual
aproximação EUA-Cuba: ver, por exemplo, http://oglobo.globo.com/mundo/as-nove-reunioes-secretas-
que-culminaram-na-reaproximacao-dos-eua-cuba-14887659, acessado em 21 de outubro de 2015.
172

minoritárias nas mais diversas esferas decisórias de poder, o que se reflete numa
discrepante representação entre os sexos no Congresso 134 , e por escolhas
legislativas que dificilmente contemplam a mulher senão por uma intensa
mobilização;
 Situação Específica de Vulnerabilidade da Mulher: Quase um quinto das
mulheres já foi vítima de violência doméstica (18%) e o marido ou companheiro
é o agressor mais incidente, em 49% dos casos [DATASENADO, 2015]. Redes
de ajuda mútua são essenciais no processo de incentivo a denúncia (21% não
denunciam) e no período diretamente posterior, principalmente para se combater
a estigmatização que a mulher poderá sofrer: existe uma concepção social muito
específica e disseminada do “está pedindo” ou “pediu” (para ser estuprada,
violentada, agredida) – reflexo disso é que as mulheres se consideram menos
respeitadas principalmente na sociedade (57%);
 Soluções Possíveis para uma Sociedade Igualitária: as proposições abrangem a
promoção de leis que promovam a igualdade ou a defesa de necessidades
específicas da mulher (Lei nº 11.340, de 07 de agosto de 2006, batizada Lei
Maria da Penha em homenagem a mesma, que padeceu 23 anos de violência
doméstica pelo “companheiro”, inclusive duas tentativas de assassinato; Lei nº
12.845, de 1º de agosto de 2013, seguida da Portaria n° 415/2014 da Secretaria
de Atenção à Saúde do Ministério da Saúde, que deveria ser uma tímida
proposta positiva quanto ao aborto terapêutico previsto em Lei a ser realizado
pelo SUS, mas que foi tornada sem efeito pela Portaria nº 437/SAS/MS, de 28
de maio de 2014), cotas de sexo para a oficialização de candidaturas de partidos
políticos (Lei nº 9.504, de 30 de setembro de 1997). Mas não só: políticas de
gênero e papéis de gênero, alternativas ao modelo de segurança pública vigente
(inclusive desmilitarização policial), garantia de laicidade estatal como elemento
para a prática livre de credos religiosos, entre outros que serão abordados aqui.
 Acerca do Agressor: o papel da organização oscila entre duas necessidades – a
de denúncia daquele (ou, numa perspectiva mais ampla de relações de gênero,
também daquela) que pratica a violência (com a salvaguarda da integridade da

134
Mulheres são cerca de apenas 13% dos membros (soma sobre ambas as Casas) do Congresso. (Fonte:
compilação de dados do TSE para a eleição de 2014, feita pelo UOL Eleições 2014, disponível em
http://eleicoes.uol.com.br/2014/raio-x/1-turno/congresso#outros-resultados/1, acessado em 21 de outubro
de 2015). Atualmente, temos uma mulher líder de um executivo estadual (Suely Campos, por PP de
Roraima).
173

agredida), como também a de um esforço no sentido da “reeducação/reabilitação


do agressor como tática de rompimento do ciclo de violência”. Não se pode
negar o papel inovador e corajoso dessa opção, a compreensão da educação
como fonte de verdadeira mudança social e que de certa forma o homem é ele
mesmo vítima de um machismo “institucionalizado” (contudo, deve-se lembrar
que a Lei Maria da Penha nega habeas corpus ou mitigação da pena para
qualquer os tipos de agressão listados, mesmo aquelas ainda tidas socialmente
como “brandas”, e essa triplicou em tempo m relação à anterior. Outrossim
agressão que resulta em femicídio passou a ser categorizado como crime
hediondo segundo a Lei nº 13.104, de 09 de março de 2015).
Agressões mútuas, consideradas “leves” ou “socialmente admissíveis”, e
não rotineiras entre casais (de quaisquer gêneros), familiares ou quaisquer
indivíduos que mantenham certo grau de afetividade são realidade tangível,
difundida, e dificilmente levadas às esferas do poder público, muitas das vezes
por acordo “tácito” (aqui não devemos excluir fatores de condicionamento
social, e a ação de elos afetivos, ou de relações de dominação/dependência)
entre os envolvidos, por total ausência de evidência palpável (quando o caso o
demanda), vergonha ou por ignorância de direitos – e, se tudo o mais falhar, por
“opção pessoal”. Propostas de uma “educação transformadora” centrado em
Direitos Humanos, respeito de gênero e da diferença tem o poder de agir
também como agente modificador desse quadro, e inibição de ocorrências mais
graves. A integração efetiva dessas temáticas ao currículo básico escolar deixa
muitas vezes de ser discutida de maneira séria e pedagogicamente responsável
por ação de um preconceito institucionalizado 135 . Ilustrativo é exemplo de
críticas e adendos ao Projeto de Lei da Câmara nº 122 (última versão datada de
2006), complementar à Lei nº 7.716, de 05 de janeiro de 1989. Houve
contestação ampla ao objetivo da adaptação desses Atos em cartilhas e material
audiovisual informativos e pedagógicos: tornou-se a lamentável chacota do “kit-
gay”, assim designado em publicação oficial pelo Excelentíssimo Senhor Jair
Messias Bolsonaro, Deputado Federal, provavelmente aquele que apresenta pior

135
Não se trata necessariamente do preconceito individual – aqui são ações deliberadas, assumidas por
detentores de poder para a satisfação de seu “eleitor genérico” ou para associação de seu nome a um
conjunto de valores “conservadores”.
174

custo-benefício para a República (esclareço que essa conjectura é pessoal e


carece de fontes formais), entre outros;
 Temática Institucional: trata-se dos diversos assuntos acerca da organização ou
entidade Católicas Pelo Direito de Decidir. Bases de sua constituição, seus
fundamentos ideológicos, histórico, extensão em representações e ações diretas
ou indiretas, criação de uma base de militantes. Marca-se também a condição de
parceria com outras instituições, organizações e movimentos feministas ou que
assumem a causa dos direitos das mulheres;
 Formação de Multiplicadoras: tem como estratégia a realização de seminários
para capacitar lideranças religiosas e de movimentos sociais que se
comprometam a reproduzir os mesmos para outras mulheres de suas
comunidades de origem, com possível acompanhamento logístico de integrantes
da equipe de CDD. “(...) disponibilizar a organizações e lideranças chaves, os
instrumentos necessários ao uso de argumentos favoráveis aos direitos gerais das
mulheres e aos direitos sexuais e direitos reprodutivos, estruturando assim um
trabalho de âmbito nacional, tendo como base a ação organizada de lideranças
em diferentes partes do país (...) [para combater] sobretudo os condicionamentos
estabelecidos pela moral sexual religiosa”;
 Responsabilidade Ecológica: “Defesa da Vida” e “Cosmovisão centrada no Ser
Humano” – a partir desses axiomas, chega-se à responsabilidade da humanidade
para com a sua própria continuidade e das demais espécies do planeta, imprime-
se responsabilidade ecológica ao homem, e uma “uma perspectiva que submeta
os interesses do mercado à vida”, ao bem estar animal, a um ecossistema
equilibrado. Trata-se de um acréscimo no escopo de atuação, ampliando-o ao
englobar uma nova face de atuação e justificá-la esse através de diretrizes
internas já consagradas;
 “O Futuro da Igreja frente aos Desafios da Modernidade” 136 : há uma
desobediência franca por parte dos católicos às deliberações oficiais, como o não
uso de preservativo: não há sentimento de culpa, e “aquele que chora a morte de
um papa é o mesmo que ignora suas determinações”. Embora os setores
organizados sejam conservadores, a ampla maioria dos católicos é progressista –

136
Este tópico é amplamente baseado em artigos da Doutora em Ciências da Religião Regina Soarez
Jurkewicz, coordenadora de projetos ligados aos movimentos CDD da América Latina, escritos entre
2005 e 2013.
175

e isso se reflete numa figura papal midiática, mas um papado ainda conservador
(com elementos de controle que dão a interpretação oficial do discurso do Papa).
As orientações do Concílio Vaticano II devem ser retomadas, se se pretende
“inserir a Igreja no mundo e responder as questões trazidas pela Modernidade”.
Conforme as CDD, a ICAR deve abandonar sua “pretensão de ser a única
portadora da verdade divina”, e promover a revisão de temas centrais que a
afastam da realidade além dos muros. O celibato obrigatório dos padres e freiras;
a negação da plena “cidadania eclesial” às mulheres religiosas, que permanecem
fora da hierarquia decisória católica, do ensino teológico e da prática do
sacerdócio; precisa abrir caminhos de diálogo com “as teologias emergentes nas
diferentes partes do mundo, ao invés de cercear o pensamento de teólogos/as” –
essas teologias são frequentemente caminhos de valorização de um grupo em
particular, sem que esse abandone para isso a religião católica. A Igreja deve
reconhecer os plenos direitos de participação e sacramentais aos LGBTIs, e
promover a revisão de seu discurso sobre o feminino. Sobretudo, as CDD
afirmam que a Igreja Católica deva se valer da oportunidade para promover o
diálogo, ao invés de se refugiar num “silêncio obsequioso”.

6.4. Financiamento de suas Atividades – as CDD/BR enquanto ONG

A realidade das Organizações Não Governamentais (uma das diversas


denominações que se enquadram na categoria de Sociedades Civis Sem Fins Lucrativos)
é hoje no Brasil perfeitamente inserida na dinâmica do Sistema Capitalista Neoliberal
Global que “opta” por uma redução por vezes drástica do papel do Estado em setores
muito bem determinados e específicos. Entre outros, esse passa a delegar a agências da
Sociedade Civil Organizada determinadas funções, atribuições ou ingerências que antes
poderiam ser classificadas como de sua responsabilidade. Essa relação impõe a
necessidade de custeio das atividades desses organismos – o fomento se dá muitas vezes
através de convênios e termos de cooperação firmados com os governos Federal,
Estaduais ou Municipais, complementados via concessão de recursos de empresas ou
Fundações nacionais ou estrangeiras, e até mesmo doações de pessoas físicas.

As características dos Movimentos Sociais construídos coletivamente vinham


sofrendo (como já foi salientado) profunda alteração, e essa foi definitivamente firmada
com a promulgação da Lei nº 9.790/99, que cria o conceito de OSCIP e inaugura
176

efetivamente a Era do Terceiro Setor no Brasil. O ideário vigente justifica-se a si


mesmo ao ser afirmado que as Organizações Sociais (não existe real distinção frente à
Lei para fins de transferência de recursos, desde que as regras estabelecidas sejam
seguidas, entre as diversas nomenclaturas) realizam trabalhos muito específicos, sem
retorno monetário e possivelmente além da esfera de possibilidade de atuação estatal
naquele momento, e/ou contam com pessoal melhor qualificado para a efetivação de
políticas tecnicamente públicas em setores particulares. Também é salientada a
possibilidade de ingerência direta e a qualquer tempo da “população” sobre as políticas
públicas através de ONGs e semelhantes, numa democracia em que as consultas
públicas quanto ao “rumo a seguir” é, via de regra, bianual.

Seria impreciso e mesmo falta grave se neste exercício de conhecimento social


ignorássemos a diletantemente tanto o fato da existência do custeio e de parcerias que
envolvam recebimento de valores, quanto as críticas de setores e grupos específicos,
católicos ou não, dele advindas sobre as Católicas Pelo Direito de Decidir. Devo
salientar que este tópico não se propõe de forma alguma à auditoria ou contestação de
pertinência das contas das Católicas, mesmo porque esse seria um trabalho delicado e
responsável que caberia aos órgão das diversas esferas do governo formal e em última
instância ao Tribunal de Contas da União – TCU, e não a um formando em Ciências
Sociais – não se pode, por princípio de justiça e por reconhecer não possuir quaisquer
atributos ou dados que me capacitem a isso, emitir parecer ou sequer opinião a respeito:
toda e qualquer conjectura não seria nada além disso, “doxa” (no sentido da filosofia
grega, e não da Igreja Cristã Primitiva), e irresponsável.

O que aqui pretendemos é ilustrar, como o fizemos ao longo deste trabalho,


também a alteração das características dos Movimentos Sociais, e utilizaremos para
tanto os convênios ano a ano nos quais as CDD foram agraciadas com recursos
públicos: sua listagem encontra-se no Anexo I, e os projetos efetuados a partir desses
convênios foram listados no tópico anterior. Estes dados estão disponíveis a qualquer
cidadão, como todas as informações e gastos do Governo Federal, no Portal da
Transparência dos Recursos Públicos e no Portal do Sistema de Gestão de Convênios e
Contratos de Repasse da União, SICONV.

Entre 2007 e a data atual, beneficiando-se das políticas de fortalecimento do


Terceiro Setor, a CDD SC (Católicas Pelo Direito de Decidir Sociedade Civil –
177

CDD/BR, pessoa jurídica com CNPJ 00.281.863/0001-84), Entidade Privada Sem Fins
Lucrativos, obteve uma verba total de mais de R$ 1.000.000,00 em repasses da União,
todos através da Secretaria de Políticas para as Mulheres da União, e pela Prefeitura de
São Paulo/SP (cidade onde localiza-se a sede das CDD SC) mesmo quando a ação deu-
se fora desse estado. Como pode ser visto no mencionado Anexo, a pertinência dos
convênios e/ou termos de cooperação foi justificada a contento, e todos estão em pleno
acordo com a legislação vigente.

As Católicas tem entre a lista de seus benfeitores e colaboradores, além da Red


Latinoamericana de CDD e a Women For Choice, também outras organizações
feministas brasileiras e do exterior, como a International Womens Health Coolitian –
IWHC e a Mama Cash – Fund for Women, fundações Internacionais de renome, como a
Fundação Ford, organismos internacionais, como o Fundo de Populações das Nações
Unidas – UNFPA, e empresas nacionais (essas podem legalmente debitar suas doações
das contribuições dos impostos devidos, até dados limites estabelecidos pela Medida
Provisória nº 2.158-35, de 24 de agosto de 2001, e legislação correlata) e pessoas
físicas.

Se a presente seção pode parecer “árida”, com ares de balancete empresarial,


trata-se somente de imagem espelhada da realidade das chamadas Sociedades Civis:
como mencionado, seria este trabalho seria incompleto se nos recusássemos a tentar
compreender a lógica vigente na intermediação de políticas públicas, através de
repasses financeiros pela União, por organizações sem fim lucrativos137.

6.4.1. Convênios com a União

Listaremos em seguida as atividades empreendidas pelas CDD Sociedade Civil¸


ou CDD/Brasil com transferência de recursos públicos da União, pela cronologia do ato
de firmação do convênio. Parte relevante dessas informações, disponíveis nos canais
estatais de informação ao público, estão reunidas no Anexo I (as informações aqui
presentes são uma compilação do mesmo, com raras notas do autor).

137
“Sem fins lucrativos”: conforme Bourdieu, o capital financeiro é só um dos elementos que podem
interferir na definição uma posição no espaço social. O diálogo do conjunto de capitais que formam o
capital simbólico, e o habitus social determinam o prestígio que define ou altera a posição social de
atores, sua possível “ascensão”: o que se pretende é refletir, sem pretensões de “veredicto”, como a ação
desinteressada pode atender a tão variados interesses.
178

Sabemos que, a partir da promulgação do chamado “Marco Legal de Criação das


OSCIPs”, as organizações sem fins lucrativos que assumiram determinadas
responsabilidades e condutas previstas na lei em pauta e, desde que possuindo
características-chave reconhecidas pelos órgãos competentes, poderiam compactuar
Convênios ou participar de seleções para que fossem firmados Termos de Parceria entre
essas e a coisa pública. Diferente da modalidade Contrato com a Administração Pública
para prestação de serviço ou compra de material, entre outras (que é regida pela Lei
8.666, de 21 de junho de 1993, e legislação vinculada, e prevê mecanismos licitatórios e
situações passíveis de dispensas desses, além de estabelecer regras bastante específicas
para a habilitação de empresas para participação no certame), Convênios e Termos de
Parceria são isentos, via de regra, de processos de licitação ou até mesmo de seleção
entre propostas.

 Ano de 2007:
No ano em referência, e até 2008, a CDD SC foi convenente de projeto visando
a “formação em direitos sexuais e direitos reprodutivos”. Não há especificação
disponível da proposta, embora possa se crer tratar de treinamento dos próprios
quadros da Secretaria de Políticas para as Mulheres da União ou equivalente
municipal.
 Ano de 2009:
Firmou-se um plano de trabalho que consistia em objetivos a serem alcançados
até o ano de 2011. Foram eles a concepção de logotipo nacional que
representasse a luta pelo fim da violência à mulher; a criação de um mural
usando a técnica de grafite artístico sobre o tema; a promoção do assunto através
de show com artistas populares e de uma performance urbana; a difusão desses
trabalhos e da temática através do que foi qualificado como “marketing viral”
através de “novas tecnologias de informação, especialmente a internet”. A
justificativa para a execução do projeto é ser essencialmente uma tentativa de
desconstrução da ideia de feminino e do papel social da mulher como
representados na doutrina católica institucionalizada, e seus reflexos sobre a
sociedade (dados do Censo 2000 são apresentados para corroborar a influência
da Igreja Católica sobre parte majoritária da sociedade brasileira).
179

 Ano de 2011:
Em 2011 (e previsto para completa implementação até o ano de 2013) o objetivo
teve alcance regional, concentrando-se em determinados estados das Regiões
Norte, Nordeste e Centro Oeste brasileiras, e visando formar multiplicadoras
para advogarem em defesa e propagarem os conceitos centrais a respeito de
direitos sexuais e reprodutivos, a base da agenda das CDD, além de formar,
formalizar e capacitar representações locais do movimento: vê-se aí uma
oportunidade paralela óbvia de fortalecimento institucional da ONG. O perfil
selecionado de candidatas é “lideres comunitárias e ativistas sociais”, “que já
vem participando, desde 2002, de atividades e outros cursos formativos
oferecidos pelas CDD/Brasil”.
A defesa do “direito de decidir”, e o “enfrentamento do fundamentalismo
religioso no Brasil” são citados como justificativa para o projeto. A
predominância católica e o avanço neopentencostal na sociedade seriam causas
da imposição de uma perspectiva ultraconservadora de agência da mulher no
âmbito familiar e político, o que minora necessariamente os direitos femininos e
a capacidade de alcançá-los.
A ação dos fundamentalistas é voltada a um “conservadorismo moral, a
rigidez de costumes e a cristalização da desigualdade de gênero”, e os agentes
desse ideário tem se organizado e obtido representação inclusive na esfera do
Legislativo nacional e locais. São citados exemplos, como a então recente
proposição de uma Comissão Parlamentar de Inquérito e a reapresentação na
Câmara do projeto de lei designado como “Estatuto do Nascituro”, cujo debate é
vigorosamente retomado hoje.
 Ano de 2012, Primeiro Convênio do Exercício:
Ao foco tradicional dos trabalhos propostos, para o presente convênio (cujos
resultados deveriam ser atingidos até meados de 2013) é somada a promoção de
Direitos Humanos, e a atuação passa a se desenvolver nas Regiões Sul e Sudeste
brasileiras. Trata-se da realização de uma série de oficinas para contingentes
filiados à CDD/Brasil, que os capacitem à discussão e promoção do referencial
dos Direitos Humanos e “enfrentamento crítico da influência religiosa
conservadora”, e para “100 estudantes universitários/as (...) e/ou ativistas por
DSDR [Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos] em universidade de Santa
Catarina [inespecífico]”.
180

A justificativa concentra-se em dois polos: a negação do conceito amplo


de Direitos Humanos, pois “servem apenas para proteger direitos de bandidos”;
ou sua apropriação de forma “distorcida” por parte dos grupos fundamentalistas
religiosos, especialmente cristãos”, que usam como estratégia para reduzir a
amplitude dos Direitos Sexuais e Reprodutivos femininos – um exemplo é a
agência desses grupos quando do processo de decisão do Superior Tribunal
Federal – STF sobre a legalidade da anencefalia fetal como justificativa para
interrupção legal da gravidez.
Novamente a formação de uma facção cristã ultraconservadora, cujas
ações “tem sido um foco de dificuldades para o avanço dos direitos humanos das
mulheres brasileiras”, entre eles o acesso a anticoncepcionais e a legalização do
aborto seguro: esse é apontado que “cerca de um milhão de abortos clandestinos
e inseguros são realizados todos os anos no Brasil, causando 602 internações
diárias por infecção, 25% dos casos de esterilidade, 9% dos óbitos maternos. É a
terceira maior causa para morte materna no Brasil”.
Pela primeira e única vez (neste contexto de pleito de fundos junto à
Administração Pública) como justificativa para a ação é citada a restrição de
direitos e/ou ameaça à integridade social, mental e física de pessoas LBGT
(Lésbicas, Bissexuais, Gays, Transexuais e Trangêneros).
 Ano de 2012, Segundo Convênio do Exercício:
Em parceria com a Universidade Guarulhos, Faculdade de Serviço Social, esse
convênio (que tinha cronograma de implementação até 2014) previa capacitação
em equidade de gênero e sobre a temática padrão das CDD SC para até 150
estudantes da dita instituição e 160 gestores/as públicos, “visando contribuir
para a promoção da autonomia econômica das mulheres”.
A justificativa apresentada para esta ação se baseia em uma plêiade de
argumentos: o central é o do empoderamento da mulher enquanto agente
(econômico e social), o que passa necessariamente pela própria revisão de seu
papel numa sociedade historicamente machista e com “fundamentalismos
crescentes” que tendem a reiterar a ideia social (caracterizada como “violência
simbólica”) quanto ao padrão e papéis aceitáveis para o feminino
(hierarquicamente inferior e delimitado, respectivamente), em detrimento à
igualdade de gênero. Esses fatores são apresentados como “pré-requisitos para
181

alcançar a segurança política, social, econômica, cultural e ambiental entre todos


os povos” e justiça social.
A parceria com uma faculdade de Serviço Social é explicada dadas as
características intrínsecas à profissão, que possibilitariam a seus e suas
praticantes uma interação “com a cotidianidade da vida das mulheres” sendo,
portanto elementos de excelência para a “multiplicação de ações que favoreçam
a autonomia das mulheres”.
 Ano de 2013
O presente convênio, que tem perspectiva para durar até o final de 2015, tem
objetivos gerais bastante ambiciosos no sentido de “fortalecer a atuação de
profissionais e militantes brasileiras para a defesa da ampliação da participação
de mulheres nos espaços públicos e de decisão (...)”. É importante salientar que
se trata de uma iniciativa nacional (vai atingir “60 profissionais e militantes
sociais” representantes de todas as Regiões brasileiras), a contar com a produção
de material didático específico que possibilitará a divulgação, “replicação e
disseminação” pelos/as ativistas dos “instrumentos teóricos e metodológicos”
desenvolvidos para se compreender e alcançar o objetivo principal.
Além dessa ação ampla, há outra localizada, cujo caráter transita entre o
informativo, militante, e o de inegável fortalecimento dos quadros da ONG: a
intenção de realizar seminário na cidade de São Paulo para cem participantes
escolhidos entre áreas chave (estudantes e profissionais da área de educação e
saúde) “com o propósito de angariar apoio de instituições e atrair a adesão de
novos militantes” em torno do objetivo principal.
Como justificativa é de maneira pertinente apresentado que, embora
avanços tenham acontecido em áreas importantes, “não ocorreram com igual
intensidade no enfrentamento da escassez de mulheres ocupando cargos na
política institucional”.

6.5. Uma Questão sobre Modelos

A baixa representatividade de grupos que são minorias em termos de acúmulo de


poder decisório e não em números equivale a uma democracia que não é plenamente
realizada [URBINATI, 2010], e uma cidadania de “segunda classe”. Identidades sociais
específicas (negros, indígenas, mulheres, homossexuais, portadores de deficiência e
182

todos aqueles que ocupam papéis secundários segundo o habitus instituído) são
historicamente pouco representados por indivíduos que sejam seus próprios pares nos
Poderes Executivos e Legislativos, principalmente a nível da União – suas lutas e
pleitos, requerimentos e necessidades, seus interesses são muitas vezes “alienados”, no
sentido de que dependentes de representantes “bem intencionados” ou “comprometidos”
dos grupos de poder majoritários no momento. É pertinente notar que a probabilidade
de atendimento pleno ou devido, ou mesmo isento – e com isso pode-se dizer que “não
utilizado como moeda de troca”, ou como ferramenta de “apadrinhamento” – das
petições dessas comunidades é reduzida, e dificilmente se reverterá em empoderamento
pleno desses indivíduos.

Chega-se a uma questão quase inevitável: esses mesmos grupos marginais terão
seus interesses devida ou minimamente representados por organizações civis de
especialistas que definem agendas próprias (que embora formalmente explícitas,
dependem incessantemente de parcerias monetárias e de apoio mútuo com a coisa
pública e privada, além de doações de outras Instituições e Fundações), as quais que não
serão efetivadas a partir de seus próprios quadros ou em consulta e diálogo permanente
com eles? O Movimento Social, em seus moldes clássicos marxistas da década de 1970,
é uma ferramenta mais “direta” em termos de representatividade e empoderamemto de
coletividades excluídas do que o modelo de OSCIPs. No primeiro as reivindicações são
definidas em princípio por consenso entre os membros e as ações também são grupais.
No segundo modelo costuma prevalecer o “parecer da autoridade” aliado a uma
inevitável necessidade de posterior fortalecimento e multiplicação de seus quadros
(seleção de militantes com perfil condizente), e outros mecanismos que valorizem a
relevância de sua “marca” frente a elementos dos poderes formais e sociais.

“A questão da emancipação social persiste, mas restrita a alguns teóricos e não


mais sob o crivo exclusivo da abordagem marxista” [GOHN, 2011]. Embora a
insistência pelo coletivo com poder decisório pareça uma posição da linha “tudo no
passado era melhor”, deve-se levar em consideração a “generalidade” de alguns tipos de
SC e o volume de verbas cedidas sem consulta ao público (algumas com justificativas
no mínimo lassas), para organizações que, para todos os fins, possuem um modelo de
gestão empresarial.
183

Conclusão

Porque Católicas?

O fato é que muitas das demandas basais das CDD brasileiras nasceram em
núcleos de ativismo social católico, e foram tomando corpo ao longo do tempo em
franca discussão entre grupos feministas e conforme declarações formais da Igreja
Católica, quando ainda outras religiões eram de representação e crescimento
minoritários. Um posicionamento que poderíamos tomar como formal das integrantes, e
que pudemos depreender de publicações e vídeos, é que são mulheres que clamam pelo
direito de praticar sua fé, e igualmente de lutar para que a mesma se adapte às
reivindicações propostas pela (Pós)Modernidade. “Nossa equipe é católica e composta
por professoras, teólogas, sociólogas, especialistas em ciências da religião, entre
outras áreas do conhecimento” – trecho que é legenda nas publicações no canal do
YouTube das CDD Brasil.

É importante que sejam citadas novamente as ferramentas, advindas de base


teológica mesmo, para o diálogo da CDD com a Igreja Católica: elas exaltam a
Importância do Exame da Própria Consciência, que em certo sentido define a opção
individual “livre de culpa” como recurso válido diante de uma situação dúbia; o Sentido
dos Fiéis, que reza que quando parte dos fiéis tem determinada compreensão da
doutrina (que pode ser expressa através do discurso ou da prática) ela deve ser absorvida
pela Igreja; a Doutrina do Probabilismo (aceita no passado, mas depois rechaçada pela
ICAR) que diz que quando há discussão em torno de um ponto, o clero tem o dever de
esclarecer que há essa divergência para que os fiéis possam decidir com liberdade. E é
claro, o princípio do Amor ao Próximo.

Segundo seus detratores, muitos vindos da ortodoxia de grupos conservadores


laicos católicos, a organização é francamente anti-católica e se utiliza dessa suposta
identidade com objetivo de “ludibriar o público”, “dando a entender que é possível, ao
mesmo tempo, ser católico e defender o direito ao aborto” (embora a prática seja sujeita
à excomunhão segundo o Direito Canônico, não há impedimento a priori em discuti-la).
Relatam que, já que a religião católica ainda possui números absolutos maiores de fiéis,
e tradição milenar, uma “vitória” contra o catolicismo teria peso sociológico e teológico
incomensuráveis. Contudo, no que se refere à relação entre as CDD e a ICAR, julgo que
184

o elemento central (embora não único) é essencialmente aquele apresentado no “Vida


Religiosa nos Meios Populares” de Rosado Nunes: a admissão de mulheres e homens
como iguais, delas como elementos ativos e com plenos poderes decisórios e de
produção simbólica, sejam leigas ou religiosas, e tudo o que isso implica.

Considerações Finais

Encerro este trabalho com maiores dúvidas que respostas a fornecer. E feliz por
ser assim, pois a dúvida nada é além do substrato do saber para aqueles que acham por
bem aproveitá-la – e em Ciências Sociais, “saber” não deve ser sinônimo de “verdade
fatual”, mas da interpretação do quadro social, segundo as molduras que
inevitavelmente adotamos, e das experiências passadas, dos vieses que temos que
publicamente assumir para tornar nosso trabalho válido.

O objetivo primário foi, como o título deste deixa claro, averiguar associações
entre um retorno ao Conservadorismo Católico (após mais de duas décadas de
aproximação franca com as causas populares – as Pastorais, as CEBs, a Teologia da
Libertação), e um movimento que fosse uma possível resposta social da Modernidade,
um “impulso contrário” à retração da Igreja de Roma. Encontrei muito mais do que isso.

A ONG brasileira Católicas Pelo Direito de Decidir, ou simplesmente CDD SC,


se apresenta não como alternativa à Igreja ou às diversas igrejas, mas como
representante de demandas que são indubitavelmente associadas à nossa modernidade
(ou pós-modernidade, como se queira) frente a um cenário que se configura, ao menos
em nosso país, progressivamente conservador. Fiz a opção pelo objeto de estudo
consciente de seu vínculo com petições muito específicas, consideradas “tabu” não só
dentro da hierarquia Católica, mas para a sociedade brasileira. E consciente também que
ela mesma era em si um fenômeno da lógica contemporânea do papel do Estado na
Sociedade, e que exemplifica como qualquer outro elemento da Sociedade Civil
Organizada o panorama nacional e amplamente disseminado no mundo após o fim da
Guerra Fria – o da migração do diálogo direto entre o Movimento Popular e o Estado,
que foi característica paralela no Brasil ao período de “abertura” do Regime Ditatorial e
logo posterior (e que teve amplo espaço e mesmo gênese dentro de determinadas
representações católicas) para a ascensão das ONGs, hoje OSCIPs ou OSCs, durante e
após a era FHC enquanto intermediárias entre demandas muito específicas e um Estado
185

que delega, através de convênios, termos de compromisso e concessões de verba, sua


atuação a agentes privados profissionais.

As Católicas não podem ser categorizadas “somente” como feministas, no


“sentido clássico” do termo (aqui me dou ao luxo de ser ignorante): suas frentes de
atuação, conforme podemos observar através de seus diversos projetos, artigos e
publicações, transcendem a valoração de condições igualitárias para a mulher dentro da
conjuntura cristã e social, vai além da discussão sobre direitos sexuais e reprodutivos
(sim, o direito ao aborto é uma temática que sempre foi central no movimento, apontada
até como poder último de autodeterminação da mulher sobre si mesma, o “rompimento
da última amarra”) – assumiu uma frente de causas variadas, de gênero e papéis de
gênero, do Estado laico como possibilidade de respeito às diversas manifestações
religiosas, do ecumenismo.

Não posso tecer comentários sobre a “Verdade” das Católicas, ou sequer sobre a
pertinência dos argumentos de seus detratores (ignorando alguns óbvios delírios
fantasiosos). Somente do que é por elas representado – um elemento de transição, um
elo em uma cadeia de eventos sociais de complexidade global, que no Brasil oscila entre
um passado que dá forma ao (e ainda se faz) presente, e uma espécie de futuro que mais
do que nunca é elemento de discussão ativa.

Não nego ou ignoro a pertinência de nenhuma das proposições sociais


defendidas pelas CDD. Independente do elemento que erga tais bandeiras, elas (e tantas
outras, simplesmente ignoradas pelos políticos e mídia tradicional) precisam ser
levantadas como pauta para uma discussão franca na sociedade brasileira (como já
aconteceu e acontece em outros países: vide Anexo III para um breve resumo do caso
exemplar da legalização do aborto no Uruguai), que nesta data é representada no
Congresso Nacional por uma maioria conservadora, num sentido praticamente pré-
liberal da palavra. Existe uma espécie de desejo de contestação e mudança latente na
sociedade, como se viu nas chamadas Jornadas de Junho em 2013, mas este é muitas
vezes super simplificado em sua manifestação pública através de dicotomias
insustentáveis. Contudo, criou-se espaço para a exigência e garantia de reconhecimento
de novas identidades e novos direitos: esforços sérios no sentido da informação e
pluralização são necessários e bem-vindos.
186

Depreender as características de ação de um representante característico do


chamado Terceiro Setor na Sociedade e também nas esferas em que estabelece sua
atuação (desde mídias a articulações políticas), além das relações que guarda com o
Estado, foi informativo e decisivamente contribuiu para uma compreensão que
transcende o óbvio. Ademais, estamos diante de um membro de um organismo
internacional, que se articula a uma Rede de movimentos semelhantes na região da
América Latina, Europa, e ainda à Catholics For Choice americana. A tentativa de
apreender os meios e fins, ainda que sob o filtro do discurso (para o) público, dessa
articulação foi uma experiência valiosa e agregadora de conhecimento.

É sempre possível que a interação de organismos como as CDD com a Igreja


Católica (e outras religiões) através da comoção pública leve a algum nível de revisão
de posicionamentos que não sejam dogma de fé – e nem tão timidamente flerta o Papa
Francisco I com a mudança, ao menos em termos de um discurso oficial para a
comunidade e determinado simbolismo prático. E mesmo em algumas questões de
relevância, como posicionamentos formais e ações (supostamente) efetivas quanto a
ocorrências passadas e prevenção da pedofilia dentro de instituições eclesiásticas, e
assédios morais e sexuais (prática por princípio abusiva, não só pelo o voto de castidade
a que se submeteram – este cerne de tantas discussões –, mas principalmente devido à
posição de autoridade, superioridade formal ou simbólica que detêm) sobre freiras e
religiosas leigas por parte de sacerdotes, além de um propalado saneamento das
agências e relações institucionais da Santa Sé. Surpreendeu Jorge Bergoglio aos
segmentos conservadores e fundamentalistas do catolicismo com suas palavras e
atitudes a respeito das pessoas LGBTI, quanto aos divorciados, e no agora, quando ao
abrandamento das obrigações para o perdão confessional ao pecado do aborto no Ano
Jubilar – a ICAR tem o hábito de mudar a passos lentos, hesitantes e por vezes
retroceder: o Sínodo Episcopal sobre a Família que se aproxima promete indicar a
velocidade dessa caminhada.

O autor desculpa-se se sua necessidade particular por contextualização histórica


amorteceu o ritmo da discussão principal da pesquisa. Não foi objetivo do presente
exaurir os temas propostos, mas sim levantar novas questões sem o compromisso de
respondê-las de pronto, visando sempre gerar oportunidades de pensá-las ou repensá-las
segundo nova perspectiva: sob tal aspecto, pode-se afirmar que o trabalho atingiu os
fins para os quais foi concebido.
187

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http://www.transparencia.gov.br, consultas em datas variadas do mês de julho de 2015.

https://www.convenios.gov.br, consultas em datas variadas do mês de julho de 2015.

http://www.veritatis.com.br, entradas diversas, consultas em datas variadas do mês de


julho de 2015.

http://www.jesuitasbrasil.com, entradas diversas, consultas em datas variadas do mês de


julho de 2015.

http://www.histedbr.fe.unicamp.br/navegando/glossario.html, entradas diversas,


consultas em datas variadas do mês de julho de 2015.

http://www.compromissoeatitude.org.br/dados-e-estatisticas-sobre-violencia-contra-as-
mulheres/, acesso em 30 de julho de 2015.

http://blogueirasfeministas.com/2014/05/aborto-legal-qual-a-situacao-atual/, Carta
aberta ao Ministério da Saúde Sobre a Revogação da Portaria nº 415, sítio acessado em
30 de julho de 2015.

Posicionamentos do Conselho Federal de Medicina e Conselhos Regionais acerca do


aborto:
195

1)
http://portal.cfm.org.br/index.php?option=com_content&view=article&id=23661:consel
hos-de-medicina-se-posicionam-a-favor-da-autonomia-da-mulher-em-caso-de-
interrupcao-da-gestacao&catid=3

2)
http://portal.cfm.org.br/index.php?option=com_content&view=article&id=23663:cfm-
esclarece-posicao-a-favor-da-autonomia-da-mulher-no-caso-de-interrupcao-da-
gestacao&catid=3

Sítios acessados em 30 de julho de 2015.

http://www.ohchr.org/EN/UDHR/Pages/Language.aspx?LangID=por, Declaração
Universal dos Direitos Humanos, de 10 de dezembro de 1948, acessada em 30 de julho
de 2015.

http://www.news.va, sítio de notícias do Vaticano. Acessos em várias datas de julho de


2015.

http://w2.vatican.va/content/vatican/pt.html, sítio oficial da Santa Sé (versão português),


acessado em várias datas de julho de 2015.

http://www.ebc.com.br/cidadania/2014/09/uniao-civil-x-casamento-homoafetivo-ente
nda-a-polemica, acessado em 30 de julho de 2015.

http://www.edulaica.net.br/, acessado em 30 de julho de 2015.

http://www.catholic-hierarchy.org, diversos acessos em datas variadas, entre julho e


agosto de 2015.

https://www.bibliaonline.com.br/ (Bíblia,versão católica), diversos acessos em datas


variadas, entre julho e agosto de 2015.

http://www.acidigital.com/, diversos acessos em datas variadas, entre julho e agosto de


2015.

http://www.nyu.edu/projects/sanger/, diversos acessos em datas variadas, entre julho e


agosto de 2015.
196

http://wyatt.elasticbeanstalk.com/mep/MS/docs/ms-table.html, diversos acessos em


datas variadas, entre outubro e novembro de 2015.

http://www.newadvent.org/cathen/, Enciclopédia Católica – transcrição on-line em


inglês, diversos acessos em datas variadas, entre julho de 2015 e janeiro de 2016.

http://www4.planalto.gov.br/legislacao/legislacao-historica/constituicoes-anteriores-1,
Constituições brasileiras, acessos em datas diversas em janeiro de 2016.

http://www.biblioteca.presidencia.gov.br/ex-presidentes/, listagem e pequena biografia


dos Presidentes brasileiros, acessos em datas diversas em janeiro de 2016.
197

Anexo I

Cessão de Valores às Católicas pelo Direito de Decidir Sociedade Civil


pela União através de Convênios138

Principais Bases Legais:

– Lei nº 9.790, de 23 de março de 1999, “Marco Legal de Criação das OSCIPs”.


– Decreto nº 3.100, de 30 de junho de 1999.
– Decreto nº 6.170, de 25 de julho de 2007.
– Portaria MPOG nº 127, de 29 de maio de 2008 (e alterações).
– Decreto nº 7.568, de 16 de Setembro de 2011.
– Portaria Interministerial nº CGU/MF/MP nº 507, de 24 de novembro de 2011.
– Lei 13.019, de 31 de julho de 2014, “Marco Regulatório das OSC”: pretende
disciplinar os termos de colaboração e fomento, e dá outras providências. Recebeu
diversos vetos presidenciais, e a Medida Provisória nº 684, de 21 de julho de 2015,
estabelece que a Lei entre em vigor somente após 540 dias de sua assinatura.

Vigência: 12/12/2007 a 12/12/2008


Valor de Repasse: R$ 140.950,00
Valor da Contrapartida (Bens/Serviços a serem entregues): R$ 38.980,00
Órgão Concedente:
Secretaria Especial de Políticas Públicas para Mulheres / Prefeitura de São Paulo – SP
Situação da Prestação de Contas: Concluída.
Projeto: Projeto Formação em Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos.
Justificativa: [Indisponível]

138
Todos os dados aqui listados, e a descriminação de cada Projeto são de autoria das CDD SC e podem
ser acessados publicamente através da página do Portal da Transparência dos Recursos Federais,
modalidade “Transferência de Recursos”, e de forma detalhada no Portal do Sistema de Gestão de
Convênios e Contratos de Repasse da União, SICONV.
198

Vigência: 14/12/2009 a 10/05/2011


Valor de Repasse: R$ 272.000,00
Valor da Contrapartida (Bens/Serviços a serem entregues): R$ 68.000,00
Órgão Concedente:
Secretaria Especial de Políticas Públicas para Mulheres / Prefeitura de São Paulo – SP
Situação da Prestação de Contas: Prestação de Contas enviada para Análise.
Projeto:
1) realizar um concurso para a escolha de um símbolo (um logotipo) nacional pelo fim
da violência contra as mulheres;
2) realizar uma arte-mural de grafite sobre o tema em local de grande circulação de
pessoas;
3) promover um show com artistas populares e uma intervenção urbana surpresa pelo
fim da violência contra as mulheres e
4) difundir o logo, o mural e a intervenção urbana por meio das novas tecnologias de
informação, especialmente a internet, utilizando o marketing viral.

Justificativa:
Segundo o Censo de 2000, a maioria da população brasileira se declara católicas
(74%, o que equivale hoje a cerca de 135 milhões de pessoas). A religião age
fortemente pela subjetividade e no plano simbólico. Modelos, papéis, relacionamentos
estão no plano institucional, mas também nos planos simbólico e subjetivo. O modelo
predominante - o da família patriarcal, da relação heterossexual, da chefia masculina, da
submissão de filhos e da mulher ao pai e marido - está impregnado em grande parte por
valores advindos das religiões. A cultura brasileira é fortemente influenciada pela visão
cristã do mundo e, por consequência, do papel que mulheres e homens desempenham
nela. As religiões patriarcais têm legitimado ideologicamente a subserviência das
mulheres, associando-as ao mal, ao desviante, à desordem, à fraqueza moral. Isso
significa que, culturalmente, as mulheres estão à mercê da punição naturalizada. A
violência se instala na cultura pela associação mulher-mal, justificando assim sua
desqualificação e exclusão dos espaços de poder e decisões na sociedade. Outra ideia
bastante presente no ideário cristão é de que o sacrifício é um caminho para a salvação,
o que ajuda a manter as mulheres submetidas à violência. A ideia de que “essa é a
vontade de Deus” leva à naturalização da violência e a sua reprodução. Para contribuir
com a desconstrução destas ideias que conformam a cultura brasileira, propomos
199

realizar atividades culturais e artísticas que atinjam diferentes públicos e que visibilizem
o problema apontado, promovendo, desta forma, a divulgação e a popularização de
ideias ético-religiosas que possam colaborar na construção de uma cultura de não
violência, com ênfase no fim da violência contra as mulheres.

Vigência: 26/12/2011 a 14/15/2013


Valor de Repasse: R$ 102.080,00
Valor da Contrapartida (Bens/Serviços a serem entregues): R$ 9.000,00
Órgão Concedente:
Secretaria Especial de Políticas Públicas para Mulheres / Prefeitura de São Paulo – SP
Situação da Prestação de Contas: Prestação de Contas enviada para Análise.
Projeto:
Esse projeto visa promover um seminário nacional de formação para as
Multiplicadoras de CDD, mulheres líderes comunitárias e ativistas sociais das regiões
norte (Acre, Rondônia, Amazonas, Pará), nordeste (Bahia, Pernambuco, Paraíba, Rio
Grande do Norte, Maranhão, Ceará, Piauí) e centro-oeste do país (Goiânia e Brasília),
sobre Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos, a ser realizado na cidade de São Paulo.
A temática a ser trabalhada nos 3 (três) dias de duração de duração do Seminário são os
Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos. Essa ação tem forte potencial multiplicador,
pois estaremos formando lideranças de movimentos sociais, de movimentos de igreja e
estudantes que já vem participando, desde 2002, de atividades e de outros cursos
formativos oferecidos por CDD/Brasil. Assim, trata-se de uma atividade que vai se
somar a outras ações, buscando reforçar e fortalecer o direito de decidir e o
enfrentamento do fundamentalismo religioso no Brasil.

Justificativa:
O Brasil é o maior país católico do mundo (74% da população, segundo censo de
2000, declaram-se Católicos/as) e, além disso, outras religiões cristãs, como as mais
variadas denominações pentecostais ou neopentecostais, vêm crescendo e se
fortalecendo continuamente. Os fundamentalismos religiosos têm sido um foco de
dificuldades para o avanço dos direitos das mulheres brasileiras porque partem de uma
ideologia em que tanto a vida familiar como a organização política se encontram
sujeitas a uma crença ultraconservadora de controle do sexo feminino e de rejeição dos
200

direitos das mulheres. Os fundamentalismos se refletem na atuação de grupos


conservadores organizados na política partidária (inclusive com formação de bancadas
parlamentares), interferindo na aprovação de leis e na implementação de políticas
públicas. Vivemos atualmente um recrudescimento desses fundamentalismos religiosos,
por isso o conservadorismo moral, a rigidez de costumes e a cristalização da
desigualdade de gênero voltam à tona, dificultando, quando não impedindo, a garantia e
realização dos direitos sexuais e dos direitos reprodutivos das mulheres. Dentro dessa
lógica, temos enfrentado situações difíceis e para as quais não tínhamos antecedentes
em períodos recentes no país. Trata-se de tentativas de criminalizar as mulheres, de
violar seus direitos fundamentais e de dificultar o exercício de seus direitos. Podemos
citar como exemplos dessas estratégias: esforços para proibir, em algumas localidades
do país, a anticoncepção de emergência; a tentativa de impedir inclusive o chamado
“aborto legal” no estado de São Paulo, com a coleta de assinaturas em abaixo assinado à
ser apresentado a Assembleia Legislativa do estado; a proposição de uma CPI
(Comissão Parlamentar de Inquérito) sobre o aborto; o anúncio da re-apresentação do
Estatuto do Nascituro na Câmara dos Deputados; a pressão para que o material
educativo elaborado pelo Ministério da Educação contra a homofobia não fosse
distribuído. Por isso, é urgente ampliar as ações de enfrentamento dos
fundamentalismos religiosos, disseminando a necessidade da defesa dos Direitos
Sexuais e os Direitos Reprodutivos em nosso país. Buscando fazer o enfrentamento
desta situação e contribuir para a defesa dos Direitos Sexuais e dos Direitos
Reprodutivos, propomos o presente projeto de Formação de Vozes Multiplicadoras para
Defesa dos Direitos da Mulheres, por meio do qual nos propomos a realizar um
Seminário Nacional sobre a importância e os meios de defesa dos Direitos Sexuais e
Direitos Reprodutivos para as multiplicadoras de CDD/BR de diversos estados das
regiões norte, nordeste e centro-oeste do país. Essa ação tem forte potencial
multiplicador, pois estaremos formando lideranças de movimentos sociais, de
movimentos de igreja e estudantes que já vem participando de atividades e de outros
cursos formativos oferecidos por CDD/Brasil. Assim, trata-se de uma atividade que vai
se somar a outras ações, buscando reforçar e fortalecer o direito de decidir e o
enfrentamento do fundamentalismo religioso no Brasil.
201

Vigência: 17/08/2012 a 04/10/2013


Valor de Repasse: R$ 114.210,00
Valor da Contrapartida (Bens/Serviços a serem entregues): R$ 11.600,00
Órgão Concedente:
Secretaria Especial de Políticas Públicas para Mulheres / Prefeitura de São Paulo – SP
Situação da Prestação de Contas: Prestação de Contas enviada para Análise.
Projeto:
Objetivo Geral:
Promover formação em direitos humanos na cidade de São Paulo para 25 ativistas que
atuam por Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos e 100 estudantes universitários/as
nas regiões sul e sudeste do Brasil, de forma a contribuir para tornar o uso desse
referencial mais eficiente no ativismo por direitos sexuais e direitos reprodutivos.
Objetivos Específicos:
1) realizar oficinas de formação para 25 ativistas sociais das regiões sul e sudeste do
Brasil, fornecendo-lhes subsídios teóricos e metodológicos para que se apropriem de
forma qualificada do referencial dos direitos humanos.
2) propiciar condições para que esses ativistas possam ser multiplicadoras/es de
argumentos a favor dos DS e DR utilizando de forma apropriada o referencial dos
direitos humanos, oferecendo-lhes subsídios teóricos e práticos para a disseminação de
argumentos que favoreçam um enfrentamento crítico da influência religiosa
conservadora.
3) realizar um seminário para cerca de 100 estudantes e/ou ativistas por DSDR em
universidade do estado de Santa Catarina, multiplicando conteúdos ministrados nas
oficinas.

Justificativa:
O referencial dos direitos humanos tem sido utilizado por pessoas e grupos de
militância por Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos, mas na maioria das atividades
realizadas neste âmbito - como cursos de formação/capacitação – os DH são abordados
de forma superficial e abstrata. Não temos conseguido mostrar que os direitos humanos
são parte importante da vida cotidiana das pessoas. Essa fragilidade traz menor
possibilidade de sensibilização, em nossa sociedade, para os direitos sexuais e direitos
reprodutivos entendidos como parte dos direitos humanos, especialmente porque não
temos conseguido demonstrar que esse referencial é importante para a vida – e para a
202

dignidade – de todas as pessoas. Por outro lado, temos uma constante desvalorização
dos direitos humanos por parte de grupos conservadores e de pessoas com espaço na
mídia, como apresentadores de programas policiais na TV. A ideia transmitida de forma
recorrente é que os direitos humanos servem apenas para proteger direitos de bandidos.
Também temos assistido a uma apropriação do referencial dos Direitos Humanos por
parte dos grupos fundamentalistas religiosos, especialmente cristãos, que o utilizam de
forma distorcida, buscando impedir a garantia de Direitos Sexuais e Direitos
Reprodutivos ao intervir na aprovação de leis e políticas públicas. Como exemplo,
citamos a articulação de grupos fundamentalistas religiosos para tentar impedir a
aprovação da interrupção terapêutica do parto em caso de fetos com anencefalia, tema
votado pelo STF em abril de 2012. Em uma manifestação em Brasília, podia-se ver um
cartaz com uma foto de um feto preso por fórceps sob um letreiro que invocava o artigo
5º da Declaração Universal dos Direitos Humanos: Ninguém será submetido a torturas
nem a penas ou tratos cruéis, desumanos ou degradantes. O Brasil é o maior país
católico do mundo (74% da população, segundo o Censo de 2000, declaram-se
Católicos/as) e, além disso, outras religiões cristãs, como as mais variadas
denominações pentecostais ou neopentecostais, vêm crescendo e se fortalecendo
continuamente. Os fundamentalismos religiosos, que vem ganhando força no Brasil na
última década, tem sido um foco de dificuldades para o avanço dos direitos humanos
das mulheres brasileiras. Isso porque partem de uma ideologia em que tanto a vida
familiar como a organização política se encontram sujeitas a uma crença
ultraconservadora de controle do sexo feminino e de rejeição dos direitos das mulheres.
Os fundamentalismos se refletem na atuação de grupos conservadores organizados na
política partidária, interferindo na aprovação de leis e na implementação de políticas
públicas. Vivemos atualmente um recrudescimento desses fundamentalismos religiosos,
por isso o conservadorismo moral, a rigidez de costumes e a cristalização da
desigualdade de gênero voltam à tona, dificultando, quando não impedindo, a garantia e
realização dos direitos humanos das mulheres, especialmente os direitos sexuais e os
direitos reprodutivos. Por outro lado, temos um panorama de milhares de mortes de
mulheres por ano pela prática de aborto clandestino e inseguro – estima-se que uma em
cada sete mulheres brasileiras em idade de ter filhos já fez aborto, mas as mulheres
pobres são as que sofrem as piores consequências da criminalização dessa prática, com
consequências terríveis para a sua saúde e sua vida. Cerca de um milhão de abortos
clandestinos e inseguros são realizados todos os anos no Brasil, causando 602
203

internações diárias por infecção, 25% dos casos de esterilidade, 9% dos óbitos
maternos, É a terceira maior causa para morte materna no Brasil. Os fundamentalistas
religiosos vêm atuando para tentar impedir a legalidade de qualquer aborto no Brasil,
atuando inclusive para proibir os casos atualmente permitidos na lei. A anticoncepção
de emergência tem sofrido, em diversas localidades do Brasil, tentativas de proibição
por militantes conservadores. Também o acesso a métodos contraceptivos, que
contribuem para o exercício de um direito humano básico, que é o planejamento
reprodutivo, é dificultado pelos mesmos motivos. Por fim, os direitos sexuais sofrem
ataques de fundamentalistas religiosos, prejudicando a cidadania e a dignidade de
milhões de pessoas LGBTTs no país. A rejeição dos direitos dessas pessoas por
fundamentalistas religiosos tem contribuído para o incremento do preconceito e da
discriminação desse segmento social, como resultado tivemos, em 2010, uma pessoa
LGBTT assassinada a cada dia e meio no Brasil por homofobia. Por isso, é urgente
ampliar as ações de enfrentamento dos fundamentalismos religiosos, defendendo os
DSDR e disseminando a importância de se defender os Direitos Humanos em nosso
país. Para enfrentar esta situação, planejamos realizar o projeto Contribuindo para o
fortalecimento da ação de ativistas que trabalham na promoção dos Direitos Sexuais e
Direitos Reprodutivos das mulheres.

Vigência: 26/12/2012 a 30/07/2014


Valor de Repasse: R$ 173.425,00
Valor da Contrapartida (Bens/Serviços a serem entregues): R$ 12.000,00
Órgão Concedente:
Secretaria Especial de Políticas Públicas para Mulheres / Prefeitura de São Paulo – SP
Situação da Prestação de Contas: Prestação de Contas enviada para Análise.
Projeto:
Promover formação sobre eqüidade de gênero e direitos sexuais e direitos
reprodutivos, na cidade de Guarulhos e Região do Alto Tietê, para até 160 gestores/as
públicos/as e até 150 universitários/as, visando contribuir para a promoção da
autonomia econômica das mulheres.
Obs: A Universidade Guarulhos oferece o Curso de Serviço Social, no Campus
Guarulhos e Itaquaquecetuba, por essa razão estamos propondo que as atividades sejam
204

desenvolvidas nos dois campi atingindo, portanto as duas regiões: Guarulhos e Alto
Tietê (que compreende Itaquaquecetuba).

Justificativa:
Em 1995, a Plataforma de Ação da IV Conferência Mundial sobre as Mulheres
indicou que o progresso das mulheres e a concretização da igualdade entre mulheres e
homens são condição para a justiça social e o único caminho para construir uma
sociedade sustentável, justa e desenvolvida. O empoderamento das mulheres e a
igualdade de gênero são pré-requisitos para alcançar a segurança política, social,
econômica, cultural e ambiental entre todos os povos. Em 2000, o lançamento mundial
da campanha Metas do Milênio indicou uma mudança de paradigma importante,
havendo um deslocamento do que se entende por país rico. Antes, o parâmetro principal
era o PIB (Produto Interno Bruto), mas uma nova concepção foi elaborada,
constituindo-se um novo índice, o IDH (Índice de Desenvolvimento Humano). A
referência econômica não foi abandonada, mas foi ampliada com a inclusão de
estimativa de índices sociais. Uma das conseqüências dessas ações mundiais realizadas
pela ONU foi uma mudança de paradigma: passa-se a compreender que não existe
possibilidade de erradicação da pobreza no mundo enquanto não houver equidade entre
os gêneros. Isso significa também que, enquanto as mulheres não tiverem autonomia
econômica, não haverá justiça social. A autonomia econômica das mulheres, de outro
lado, depende de elas terem garantido o direito ao trabalho e à renda, o que está
intrinsecamente relacionado à garantia dos direitos sexuais e direitos reprodutivos, entre
outros. Devido ao machismo fortemente arraigado em nossa sociedade, temos - como
resultado da violência simbólica que inferioriza as mulheres - o fato de que elas, muitas
vezes, não se sentem capazes de serem agentes de suas vidas, não se vendo como
pessoas com direitos e, menos ainda, com capacidade de serem provedoras ou pelo
menos economicamente ativas. Contraditoriamente sabemos que uma parte significativa
das famílias brasileiras é chefiada por mulheres, que provêm não só o sustento familiar,
como também todos os outros aspectos relacionados à reprodução da vida. No entanto,
nem sempre, essas mesmas mulheres reconhecem sua capacidade de empreender e
buscar soluções para os graves desafios cotidianos. Assim, uma parte importante do
processo de empoderamento das mulheres é a desconstrução desta mentalidade machista
e misógina que inferioriza as mulheres e as coloca no lugar de quem só tem valor
quando cumpre o papel de mãe e de quem cuida e satisfaz as necessidades de outras
205

pessoas. O Brasil é o maior país católico do mundo (Cerca de 65%, ou 123 milhões de
brasileiras/os, segundo o Censo de 2010, declaram-se Católicos/as) e, além disso, outras
religiões cristãs, como as mais variadas denominações pentecostais ou neopentecostais,
vêm crescendo e se fortalecendo continuamente (Cerca de 22% da população, ou 42
milhões de pessoas). Os fundamentalismos religiosos, que vem ganhando força no
Brasil na última década, tem sido um foco de dificuldades para o avanço dos direitos
humanos das mulheres brasileiras, impedindo especialmente o avanço dos Direitos
Sexuais e dos Direitos Reprodutivos no país. Mulheres que não podem controlar seus
corpos e sua sexualidade e que não podem fazer seu planejamento reprodutivo
encontram muito mais obstáculos para se inserir em um mercado de trabalho
competitivo e agressivo, reforçando a dependência econômica que impede as mulheres
de serem agentes de suas próprias vidas e se vejam como pessoas com direitos, o que é
um ciclo vicioso que sempre se retroalimenta, mantendo as mulheres em posição de
subalternidade. Por isso, temos um panorama de milhares de mortes de mulheres por
ano pela prática de aborto clandestino e inseguro - estima-se que uma em cada sete
mulheres brasileiras em idade de ter filhos já fez aborto, mas as mulheres pobres são as
que sofrem as piores conseqüências da criminalização dessa prática, com conseqüências
terríveis para a sua saúde e sua vida. Também o acesso a métodos contraceptivos, que
contribuem para o exercício de um direito humano básico, que é o planejamento
reprodutivo, é dificultado pelos mesmos motivos. Tendo em conta que uma das
profissões que mais interage com a cotidianidade da vida das mulheres é o Serviço
Social, uma vez que as mulheres são as que mais procuram os atendimentos
assistenciais, de saúde, de promoção, educação etc., entendemos que as gestoras
públicas que atuam nesses espaços constituem um foco privilegiado para um processo
de formação e multiplicação de ações que favoreçam a autonomia das mulheres.
Poderemos atingir nosso objetivo, capacitando gestoras públicas que estão em relação
direta e cotidiana com um setor importante da população feminina, que requer não só
autonomia econômica, mas também autonomia social e mudança de mentalidade. A
Universidade Guarulhos, instituição com quem já estamos fazendo contatos prévios a
respeito deste projeto, já demonstrou grande interesse pela proposta e oferecerá seu
poder de convocatória e os espaços físicos para realização das atividades.
206

Vigência: 21/10/2013 a 04/12/2015


Valor de Repasse: R$ 255.500,00
Valor da Contrapartida (Bens/Serviços a serem entregues): R$ 9.500,00
Órgão Concedente:
Secretaria Especial de Políticas Públicas para Mulheres / Prefeitura de São Paulo – SP
Situação da Prestação de Contas: [Convênio em Execução]
Projeto:
Fortalecer a atuação de profissionais e militantes brasileiras para a defesa da
ampliação da participação de mulheres nos espaços públicos e de decisão, em todas as
regiões brasileiras, por meio de oficinas, publicação e seminário.
Objetivos Específicos:
1) realizar duas oficinas de formação para 60 profissionais e militantes sociais atuantes
nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste, Sul, e Sudeste fornecendo instrumentos
teóricos e metodológicos para que se apropriem do referencial político, dos argumentos
e das estratégias que contribuem para reforçar a presença feminina em espaços de poder
e decisão;
2) produzir e publicar material didático para subsídios das/os profissionais e ativistas na
replicação e disseminação do conteúdo das oficinas nos movimentos e espaços públicos
em que atuam;
3) realizar um seminário com capacidade para receber 100 participantes (estudantes,
ativistas, profissionais da área de Educação e Saúde) em S. Paulo com o propósito de
angariar apoio de instituições e atrair a adesão de novos militantes em favor da
ampliação da participação das mulheres em espaços públicos e de decisão.

Justificativa:
Quando se avalia os impactos decorrentes das lutas do movimento feminista e de
mulheres e da ação do Estado, nas últimas décadas no Brasil, verifica-se que os avanços
em áreas como saúde, educação, combate à violência, promoção da igualdade na esfera
produtiva, por exemplo, não ocorreram com igual intensidade no enfrentamento da
escassez de mulheres ocupando cargos na política institucional. Sabe-se também a sub-
representação das mulheres em cargos políticos representativos é um fenômeno
internacional, que no Brasil se manifesta com bastante intensidade como mostram dados
comparativos apresentados mais adiante. Paralelamente constata-se aqui, também, a
escassez de movimentos e ONGs dedicados à ampliação da presença feminina em
207

postos de direção de partidos políticos, movimentos sociais, câmaras legislativas e


senado. A ausência, ou escassez, de representantes de mulheres, de negros, de
homossexuais, de povos indígenas e de outros grupos, nos poderes executivo e
legislativo pode ser considerada, por si mesma, reveladora da condição subalterna que a
sociedade atribui a esses grupos. Além disso, é preciso notar a escassa probabilidade de
que poderes legislativos venham a contemplar interesses dos grupos excluídos da
participação nesses espaços. Nesse contexto – adverso para o exercício da cidadania e
para a consolidação da democracia – o governo brasileiro vem progressivamente
adotando princípios, estabelecendo diretrizes e desenvolvendo políticas públicas,
dotadas de orçamento e de regras claras de acompanhamento, com o propósito de
superar os impedimentos de ordem cultural e política que mantém grande parte da
população feminina distante dos centros de poder e decisão. Essa determinação
governamental, em sintonia com os anseios manifestados por grupos organizados de
mulheres, se revela no II Plano de Políticas para as Mulheres (de 2008) e no Plano
Nacional de Políticas para as Mulheres 2012-2015 (de 2013), dos quais constam como
objetivos: promover mudanças culturais na sociedade em relação à autonomia e
empoderamento das mulheres e estimular a ampliação da participação das mulheres nos
partidos políticos e nos Parlamentos. Buscando promover o exercício da cidadania e a
consolidação da democracia no Brasil, planejamos realizar o presente projeto com o
propósito de contribuir para fortalecer e fomentar ações em favor da ampliação da
participação feminina nos espaços de decisão, oferecendo sensibilização e formação
nesta área para militantes de movimentos sociais de base e profissionais das áreas de
saúde e educação.

Referências:

Principais bases legais: legislação listada disponível no sítio da Presidência da


República, http://www2.planalto.gov.br/, última consulta em 30 de julho de 2015.

Sítio http://www.transparencia.gov.br, consultas em datas variadas do mês de julho de


2015.

Sítio https://www.convenios.gov.br, consultas em datas variadas do mês de julho de


2015.
208

Anexo II

Aborto:
Problema de Segurança Pública ou Competência da Saúde Pública?139

Proponho que seja definida, por convenção, Segurança Pública como a


estabilização universalizada, no âmbito de uma sociedade em que vigora o Estado
democrático de direito, de expectativas positivas a respeito das interações sociais – ou
da sociabilidade, em todas as esferas da experiência individual. Acredito que essa
definição atende de modo justo à posterior discussão.
O conceito, certamente distinto, de Saúde Pública é também muito menos
fugidio. Sob uma ótica simplista, poderíamos dizer se compõe de todos os esforços dos
órgãos governamentais competentes para se garantir (promover, proteger e recuperar) a
saúde (entendida como bem estar físico e mental) dos indivíduos membros da
sociedade. É simplificador porque ignora os nuances e os detalhes mais discretos, como
as relações entre as Políticas de Saúde Pública, as ações das agências de regulação
sobre a Saúde Privada, conceitos como o de Saúde Coletiva, o conjunto normativo que
lhe dá vigor, e desde as condições reais de acesso (muitas vezes nulas) até os esforços
que vão de vigilância interna a pesquisas científicas.

No Brasil é num diálogo entre essas distintas esferas de atuação estatal em que
recai o tema aborto. Esse tem sido largamente proposto e discutido na sociedade civil,
ao menos entre militantes pró e contrários, e os debates suscitaram a criação de normas
muito específicas. Ocorre que o ato de descontinuar uma gravidez mora em uma zona
cinza entre Segurança e Saúde públicas. O motivo é simples: limites de legalidade –
quando a sociedade é ofendida (a realidade da conduta individual é negativa) versus
quando a sociedade ampara (garante a saúde de um membro do corpo social).

Na discussão que segue, tenta-se fazer perceber que o vácuo normativo e a falta
de diálogo entre o previsto e o real tem sido danosos à sociedade e principalmente, às
mulheres.

139
O presente Anexo é amplamente baseado em trabalho de minha autoria, apresentado no contexto do
Curso de “Tópicos Especiais em Ciência Política XXXIX - Temas do Pensamento Social Brasileiro:
Segurança Pública”, ministrado nesta instituição de ensino no segundo semestre de 2014 pelo Prof.º Luís
Eduardo Soares, e foi incluído aqui de forma a fornecer, além de dados sobre legislação, uma perspectiva
e posicionamento pessoal quanto ao tema.
209

Discussão dos Atos Oficiais: Aborto enquanto Crime, Segurança Pública

Aborto: induzir, praticar em si ou permitir que o seja, dentro do território


nacional, é Crime Contra a Vida, subclasse dos Crimes Contra a Pessoa. Todas as
exceções à regra, ou seja, os casos onde a interrupção de uma gravidez não é penalizada,
tratam-se de escusas absolutórias: o ato permanece designado como criminoso e aquele
que o perpetra culpado, embora esteja isento de sanção.

Devemos, portanto, buscar no Código Penal brasileiro, Decreto-Lei nº 2.848,


datado de 07 de dezembro de 1940, a legislação que rege os nuances da matéria.

I – Mulheres, Criminosas

Os artigos número 123 e 124 do referido código denotam o papel criminoso


atribuído à mulher. O primeiro trata do Infanticídio, que é induzir à morte o próprio
filho durante ou logo após o parto (logicamente abrange embora não especifique aqueles
prematuros que são induzidos justamente com tal propósito, mas quando a gestação já
esteja num quadro avançado) – a pena é detenção140, de dois a seis anos. O segundo
trata de aborto provocado pela gestante ou (por terceiros) com seu consentimento – a
pena é detenção, variando de um a três anos para a mulher.

II – Outros, Criminosos

Os artigos número 125 e 126 definem os crimes de terceiros envolvidos na


interrupção provocada da gravidez. O primeiro trata da interrupção sem a anuência da
gestante, e estipula pena de reclusão para o autor, variando de três a dez anos. O artigo
126 trata do caso em que o perpetrador tem a aquiescência da mulher – aqui a pena é de
reclusão, de um a quatro anos (a pena é agravada – aplica-se a do artigo 125 – se a
anuência for obtida por ameaça, violência ou fraude, ou se a grávida é incapaz).

O artigo 127 trata da forma qualificada desses crimes, que se dão quando “em
conseqüência do aborto ou dos meios empregados para provocá-lo, a gestante sofre
lesão corporal de natureza grave” (penas aumentada em um terço), ou morte (penas
duplicadas).

Uma breve consulta ao Código de Ética Médica nos revela que é proibido ao
profissional de medicina “praticar ou indicar atos médicos desnecessários ou proibidos
140
“Detenção” e “reclusão” conforme definidas no artigo 33 do Código Penal.
210

pela legislação vigente no País” – o que engloba perpetrar crime conforme o artigo 126
do Código Penal. Ainda assim, a cassação do registro profissional (que depende de
referendo do CFM) ou mesmo abertura de sindicância pelo CRM141 estadual no caso de
médicos que atuam no submundo do aborto ilegal é extremamente rara (o que não os
exime de responder judicialmente). Em outra face da questão, temos os profissionais
que cuidam do atendimento de mulheres que buscam auxílio na rede pública ou
particular após o ato, devido a complicações das mais variadas naturezas: esses médicos
que provêm atendimento, devido ao sigilo profissional, ficam impedidos de “revelar
segredo que possa expor o [a] paciente a processo penal”.

III – Casos Isentos de Pena, a ADPF 54 e a Discussão Ativa

O artigo nº 128 do Código Penal estabelece as situações onde o crime de aborto


tem nulidade de pena: “se não há outro meio de salvar a vida da gestante”, e neste caso
as interpretações podem ser das mais variadas, implicando muitas vezes prolongar o
período de gestação; e “se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de
consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal”.

A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 54, ajuizada pela


Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS), e julgada procedente pelo
Supremo Tribunal Federal, em 12 de abril de 2012, permite que gestantes de fetos
anencéfalos tenham o direito de interromper a gravidez.

A discussão do tema no Legislativo é mantida ativa através de proposições de


Projetos de Lei. Importa atentarmos para a existência de atrito entre, grosso modo, duas
facções, através de manobras de lobby e advocacy.

Há de se notar profundo interesse na matéria pelos quadros associados à


chamada “Bancadas da Bíblia”, que assumem abertamente posicionamentos de interesse
de setores conservadores, propondo atos como o assim chamado “Estatuto do
Nascituro” (Projeto de Lei nº 478/2007 e equivalentes, que prevê a atribuição de
qualidade de crime hediondo ao aborto em qualquer caso, e a concessão do que
atualmente está sendo chamado de “Bolsa Estupro” – auxílio monetário estatal para
criação crianças nascidas fruto de violência sexual, e inclusive atribuição de status de

141
CRM: Conselho Regional de Medicina, e CFM: Conselho Federal de Medicina, definidos conforme
Lei nº 3.268/1957.
211

pai ao agressor), ou elementos que abraçam tais iniciativas, com objetivo de por sua vez
angariar apoio às suas próprias ou associarem sua imagem a valores “de defesa da
família”. É importante notar que essas disposições, ainda que reflitam as posturas
oficiais de uma parte da sociedade, ferem sob muitos aspectos a laicidade do Estado.

Por outro lado, temos políticos e coligações comprometidas com posições que
valorizam a agência da mulher na sociedade. Eles recebem apoio de grupos e
Organizações Não Governamentais feministas, de defesa de Direitos Humanos, Sexuais
e de Gênero, e tem proposto alterações na Lei que permitam a legalidade do aborto, ou
a despenalização do mesmo em situações outras que as previstas. O projeto de Lei nº
1.174/1991 foi exemplar no sentido de reavivar a discussão e propor mecanismos que
possibilitavam maior flexibilidade na aplicação do artigo 128 do Código Penal, sendo
arquivado, contudo. Apresentado como ainda tímida vitória foi a Lei nº 12.845 de 1º de
agosto de 2013, seguida da Portaria nº 415 do Ministério da Saúde, datada de 21 de
maio de 2014, que regulamentam atendimento pelo SUS em casos já previstos na Lei.

IV – Crimes Ensejados por uma Demanda Ignorada

Na prática, o que percebemos é que enquanto crime o aborto é extremamente


“esquivo”, cuja proibição não se cumpre e cujos “culpados” são raramente indiciados.
Depende da existência do flagrante, está sujeito de denúncia e/ou testemunho de pessoas
que são em geral amigas ou parentes da mulher, ou ligadas aos indivíduos (de
profissionais médicos a outros sem treinamento algum) que conduziram o ato.

Existe a demanda. E existem aqueles que se interessam em atendê-la. A certeza


desses de estarem no território de sombra formado pelo passível de punição e a quase
impossibilidade de se comprovar o ilícito viabiliza a ação desde contrabandistas de
medicamentos de comercialização proibida ao público a donos e funcionários de
clínicas voltadas principalmente (senão somente) ao aborto ilegal. A qualidade do
serviço que a cliente vai obter, seguindo uma lógica perfeitamente capitalista, varia
conforme o quanto ela está disposta a investir. Ademais, a criminalização do aborto
tende a criar um leque de outros delitos que “nascem” para realizá-lo.

Assunto em voga e que merece espaço para discussão é o da descriminalização


das drogas. O comércio de drogas com venda proibida é também assunto desta seção,
212

mas não se trata da variedade recreativa: falaremos do Mifepristona e do


Misoprostol142.

O uso dessas substâncias em conjunto tem alto poder abortivo – em separado os


riscos de uma interrupção da gravidez são menores o os danos potenciais a mulher
maiores. Mesmo utilizados juntos, e segundo uma até bastante complexa receita, há pelo
menos dez por cento de chance da necessidade de atendimento médico posterior.

Afirmo minha total ignorância sobre de fato como realizar o chamado aborto
medicinal até à tarde de 29 de janeiro de 2015. Pesquisei a palavra “aborto” no Google.
A quarta entrada entre os resultados não só me ensinou a forma correta e em detalhes do
procedimento como, após responder usando de puro senso comum a 25 questões
simples propostas no sítio, tive a oportunidade de adquirir um kit completo da
medicação mediante uma doação de 70 Euros.

A página em questão pertence a uma ONG com sede na Holanda, mas hoje com
articuladores espalhados pelo mundo. O sítio tem opção de escolha entre doze idiomas,
incluindo o árabe. Um dos objetivos formais da organização é auxiliar mulheres a
descontinuar uma gravidez indesejada, quando não obtêm amparo legal para tanto, e
acompanhá-las antes, durante e depois do processo, contudo restritamente ao âmbito do
virtual, com somente um endereço de email para contato.

Existe um projeto específico chamado “Eu preciso de pílulas abortivas”. Ao


acessá-lo, você será encaminhado para um questionário online. Respondidas às
perguntas, e caso não seja identificado algum impedimento notório nelas, serão
solicitados um endereço físico e contato de email. E uma doação, que varia conforme o
país.

A entrega do material (uma pílula de Mifepristona e seis de Misoprostol) dá-se


pelo correio num período entre três e quatro semanas, para o Brasil. A Organização
avisa à usuária que o pacote pode ficar retido quando da chegada ao país. Procura
argumentar e tranqüiliza a brasileira, afirmando que a mesma está “trocando as pílulas
por uma doação” e não efetuando a compra de um medicamento restrito, e um dos

142
O produto Cytotec, à base de misoprostol, não tem registro na Anvisa e não pode ser comercializado
no Brasil. A administração de medicamentos com esse princípio ativo somente é permitida sob supervisão
médica, e desde que dentro da rede hospitalar.
213

textos chega a mencionar que ela “sempre pode alegar que foi um engano de envio” se
perguntada pelas autoridades sobre a correspondência.

É importante notar que o período de espera para a entrega pode fazer com que a
usuária utilize a saída química com tempo de gestação superior ao recomendado,
potencializando efeitos negativos. Embora haja avisos e recomendações na página, a
realidade é que a gestante estará, na maioria dos casos, “por ela mesma”.

Caso decidisse dar prosseguimento à transação e solicitasse o envio, estaria


incorrendo em crime previsto no artigo 334-A do Código Penal, Contrabando, com pena
de reclusão, variando de dois a cinco anos.

Resolvi repetir a pesquisa na principal rede social hoje143, o Facebook. Obtive


quatro resultados (“perfis”) positivos para o comércio do Misoprostol, através também
do seu nome comercial, Cytotec. Um em Niterói/RJ, com 90 “curtidas”. Um em
Campinas/SP, com 56 “curtidas”, e dois na capital de São Paulo, o primeiro com 48
“curtidas”, o segundo sem alguma. Todos disponibilizavam contato via telefone. No
presente caso estamos lidando com vendedores de substância sem registro no órgão
competente, o que é crime hediondo (o artigo 273 do Código Penal fixa pena que pode
variar de dez a quinze anos de reclusão, além de multa), comercializando produtos (que
tem grandes chances de terem sido desviados de uma instituição pública,
contrabandeados ou mesmo falsificados) que além de ilegais podem trazer complicações
para a usuária que não souber administrá-los. A tática desses comerciantes é
simplesmente trocar de perfil sempre que é denunciado à administração do Facebook,
ou periodicamente (todos eram recentes, datados no máximo do início de janeiro de
2015).

A título de comparação, procurei como adquirir drogas recreativas sob os


mesmos métodos, gastando o mesmo tempo que investi em busca das abortivas. Já que
parti da mesma condição inicial (não sou usuário), e utilizando a mesma metodologia,
esperava resultado ainda que vagamente semelhante. Com essas restrições foi
impossível encontrar qualquer repassador na rede.

A implicação óbvia que advêm desses pequenos, rápidos e simples experimentos


é que é extremamente mais fácil obter medicação de comercialização vedada se o

143
Saliento que se trata de pesquisa realizada em janeiro de 2015.
214

objetivo é provocar um aborto, do que drogas recreativas de venda igualmente proibida.


Leva-nos à conclusão que a legislação que proíbe o aborto é de fato utópica, e só
contribui para pôr em risco a saúde da mulher que deseja ou precisa descontinuar uma
gravidez.

Hiato de Atuação do Estado

Não cabe aqui discutir a forma ideal da Lei – até quantas semanas de gestação
seria permitida a interrupção, o anonimato, a forma dos apoios material, psicológico e
de assistentes sociais que a gestante receberia, os chamados “critérios de certeza”: para
tanto existem propostas sérias em voga, e movimentos socialmente representativos que
podem falar sobre essa e outras questões de sexo e gênero. O que é afirmado neste é que
a legislação atual impõe um vácuo de atuação ao Estado que o impede de assumir suas
atribuições de prevenção de incidentes que afetem a saúde feminina, notória e
contraditoriamente permitindo sua ação somente após o fato consumado.

É então que ele pode atuar em dois papéis, um relacionado à Saúde, outro à
Segurança. Quantidade considerável de mulheres busca os serviços de saúde pública
após a interrupção proposital de uma gravidez por motivos que variam grandemente em
gravidade. Abortos induzidos por medicamentos são de difícil comprovação, pois
demandariam exames invasivos deliberadamente executados no sentido de prová-lo, o
que exigiria autorização legal para tanto. Nos casos cirúrgicos, pode haver comprovação
tácita mediante os procedimentos médicos necessários. Mas em ambos os tipos, o
profissional de saúde que atende a mulher é impedido de comunicar à autoridade
policial a suspeita; o denunciante haveria de ser um outro, ou mesmo um flagrante
através de operação policial, e então a mulher, já com sua integridade física violentada,
é apresentada à violência de monopólio do Estado. Confissão, delação, se for o caso.
Submissão à Lei.

É difícil não tomarmos ciência da atuação da Segurança Pública no que se refere


ao aborto ilegal – não porque presenciamos o drama de uma mulher específica, mas
pelas operações muitas vezes espetaculosas das diversas agências de polícia: essa
colocação não é exatamente uma crítica no que se refere àquelas que atingem
verdadeiros matadouros cuja finalidade parece ser principalmente abusar das mulheres,
muitas vezes elas mesmo em situação de carência material, que buscam tal saída. De
fato, o espetáculo diante de uma rede de crimes que são efetivamente tabus sociais
215

poderia ser um elemento que induziria a sociedade à discussão do tema. Contudo,


confesso que penso que sua eficiência seja semelhante às “subidas do morro”: mera
demonstração de serviço. A invasão da “clínica”, a prisão de “profissionais” (alguns
reincidentes, que tem por atender essa demanda seu emprego formal), e novamente resta
à mulher sua exposição ao escrutínio e pré-julgamento público, e seu indiciamento.

Conclusão

No presente procurei demonstrar que existe uma área de penumbra entre o


formal e o cotidiano, e uma separação profunda entre o que é demandado sensivelmente
pelo corpo social e o que é prescrito pela Lei quando se trata de aborto. A insistência
numa visão dúbia traz consigo resultados que não são somente custosos ao Estado, seja
porque este ou falha (por omissão) em sua incumbência de resguardar a saúde da
mulher, ou devido à estrutura criminosa que se cria para atender a uma demanda, e às
penas que por isso serão imputadas. É principalmente uma realidade perversa para a que
busca o clandestino, essa que corre todos os verdadeiros riscos.

Uma entre cinco mulheres já praticaram aborto ilegal ao menos uma vez durante
sua vida reprodutiva – a incidência é sensivelmente maior entre os 15 a 29 anos [DINIZ
et al., 2010]. Esses índices variam muito pouco no que tange a religião professada, por
exemplo. A maioria delas utilizará em algum momento os serviços se saúde do Estado,
ampliando os gastos públicos decorrentes da prática. A sociedade clama a revisão do
que seja ilegal e punível, e essa afirmação não toma por base as vozes solidárias de
Organizações Não Governamentais pelos direitos sexuais e reprodutivos femininos, mas
a realidade que subjaze a nosso verniz do que é correto e do que é errado, nossa moral
para a rua.

Quando o tema for de fato regulamentado com coerência, a Segurança Pública


poderá agir, porque não dizer cirurgicamente, sobre casos bastante específicos e de sua
real alçada, e a Saúde Pública, aliada a uma educação para uma sexualidade sadia,
deverá exercer a plenitude de sua competência para proteger o bem estar e a capacidade
de decisão da gestante. Em um país com tão variados problemas e em tantos campos, há
de se duvidar dessa, acreditando ser uma “proposta miraculosa”. Mas o único milagre
hoje é crer-se na eficiência da solução vigente.
216

Referências:

SOARES, Luiz Eduardo Bento de Melo. Disciplina Eletiva Definida, Curso de Ciências
Sociais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ, “Tópicos Especiais em
Ciência Política XXXIX - Temas do Pensamento Social Brasileiro: Segurança Pública”,
material de aula, segundo semestre de 2014.

MINISTÉRIO DA SAÚDE. Aborto e Saúde Pública no Brasil: 20 Anos. Brasília, DF:


Ministério da Saúde, 2009.

DINIZ, D., MEDEIROS, M.. Aborto no Brasil: Uma Pesquisa Domiciliar com Técnica
de Urna. Ciência e Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, RJ, v. 15, supl. 1, pp. 959-966,
junho de 2010. Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1413-
81232010000700002&script=sci_arttext>.

LOUREIRO, D. C., e VIEIRA, E. M.. Aborto: Conhecimento e Opinião de Médicos


dos Serviços de Emergência de Ribeirão Preto, São Paulo, Brasil, sobre aspectos éticos
e legais. Cadernos de Saúde Pública [internet], vol.20, n.3, pp. 679-688, junho de
2004. Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-
311X2004000300004>.

CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL DE 1988, de 05 de


outubro de 1988, Seção II: “Da Saúde”, artigos 196 a 200.

DECRETO-LEI Nº 2.848, de 07 de dezembro de 1940, artigos 123 a 128, 273, 334-A.

LEI Nº 3.268, de 30 de setembro de 1957.

CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA, Código de Ética Médica, Resolução CFM


nº1931, de 06 de maio de 2009, Capítulo III, artigo 14, e Capítulo IX, artigo 73.

http://portal.anvisa.gov.br (diversos sublinks), última visita em 30/01/2015.

http://portalsaude.saude.gov.br (diversos sublinks), última visita em 30/01/2015.

http://www.womenonweb.org (diversos sublinks), última visita em 30/01/2015.

http://pt.wikipedia.org/ (diversos sublinks/definições), última visita em 30/01/2015.


217

Anexo III

Nosso Vizinho ao Sul, O Uruguai

Optou-se nesta sucinta análise discorrer não só sobre as mudanças legais e


sociais ocorridas no Uruguai no último triênio (2012 – 2014), quando da
descriminalização do aborto, mas também de como esse debate específico foi sendo
construído até que esse resultado fosse alcançado.

A despeito das diferenças óbvias entre o Brasil e a nação uruguaia, sejam


geográficas ou sócio, político e econômicas, há em comum sermos ambos (e aqui
tomam-se todas as liberdades poéticas possíveis) “frutos da mesma árvore histórica”,
mas principalmente termos nos aproximado por paralelismos políticos no último
decênio, além de compartilharmos um passado ditatorial quase sincrônico em ambos os
países (entre 1973 e 1985 no Uruguai, também guardadas as devidas proporções).
Soma-se a isso a personalidade do ex-presidente uruguaio, José “Pepe” Mujica, que atua
hoje como elemento de referência para movimentos sociais de esquerda no Cone Sul,
especialmente no Brasil, sobre cuja política profere declarações, em geral de franco
apoio à Chefe atual do Executivo e seu predecessor, periodicamente. Ademais, nossa
formação em termos de religião dominante é, senão equivalente, ao menos semelhante
(64% de população católica no Brasil, 47% no Uruguai, mas em ambos é
caracteristicamente a maior parcela da população que se define como professante de
alguma crença).

O histórico do debate sobre a legalidade da opção feminina pela descontinuação


da gravidez no Uruguai é antigo e complexo: a interrupção da gestação foi totalmente
liberada ainda no Código Penal de 1934, sendo considerada criminosa somente no caso
de ser realizado sem consentimento da gestante. Essa pode ter sido uma tática adotada,
entre outros motivos, para se conter o número de mortes de mulheres em decorrência
dessa prática, mas também para se controlar a mesma. Estudos apontam que a
ocorrência atingiu patamares alarmantes e seguiu taxas de crescimento progressivas
desde sua proibição formal e irrestrita pelo Código Penal anterior, de 1898. Enquanto a
natalidade cresceu em cinco vezes, o número de abortos praticados chegou a aumentar
em cento e vinte vezes [TORRES, 2002].
218

Contudo, o debate social à época gerado em torno do fato, aliado à pressão


exercida pela Igreja Católica através de sua principal (mas reduzida) representação
partidária, a Unión Cívica, com o apoio de membros católicos de outros partidos
tradicionais, terminou com a promulgação da Lei nº 9.763, de 28 de janeiro de 1938.
Essa alterou o artigo 325 do dito Código, que agora penalizava a mulher que praticasse
o aborto em si mesma, e também o artigo 328, estabelecendo que a interrupção da
gravidez não seria passível de punição desde que executada por médico profissional,
com o consentimento da mulher, até a décima segunda semana de gravidez, além de ter
de se enquadrar em casos específicos: “salvar sua honra de esposa ou de parente”, “em
caso de sequestro [pode-se entender por estupro, aliciamento, ‘sedução’]”, “por
questões sérias de saúde”, e “em casos de privação econômica” [BANFÍ-VIQUE et al.,
2011].

Houve aproximadamente quatro anos de liberação do aborto voluntário (ainda


que em 1935 tenha sido vedado por meio de decreto do Ministério da Saúde Pública que
o ato se desse em hospitais públicos, o que na prática condenava mulheres pobres ao
retorno aos antigos métodos e às restrições quanto ao acompanhamento e atendimento
por profissionais especializados), que segundo afirmado pela pesquisadora Graciela
María Sapriza Torres144 [TORRES, 2002], historiadora feminista, deu-se mais devido a
uma tendência à eugenia que a adoção de ideias liberais (a população uruguaia – embora
de genética complexa – é caracterizada em valores aproximados, segundo o Censo
oficial de 2011 e informações da CIA/USA, por uma maioria de brancos, sendo 88% do
total da população, 8% de “mestiços” – que se declaram descendentes de mais de um
grupo étnico –, 4% de afrodescendentes, e grupos minoritários ou não declarados que
não chegam a um por cento). A criminalização de 1938 teria, nas palavras Maria Isabel
Baltazar da Rocha [DA ROCHA et al., 2009], ares de projeto de “biopolítica
foucaultiana”, que somada a outras medidas teriam levado a uma “medicalização” da
sociedade uruguaia como “mecanismo de controle e governabilidade”.

Fruto ou não que seja dessa política, o Uruguai tem hoje cerca de 3,2 milhões de
habitantes, urbanização superior a 95%, “padrões de saúde altos” (como amplo acesso a
vacinação, água potável e saneamento básico – superior a 95% nesses casos –, e um
índice maior que 94% de acesso da população a serviços de saúde), e uma expectativa

144
Hoje ligada ao Centro de Estudios Interdisciplinarios Uruguayos / Facultad de Humanidades y
Ciencias de la Educación - UDeLaR / Universidad de la República / Uruguay.
219

de vida para o recém-nascido de cerca de 77 anos. Devido a programas de saúde que


institucionalizam o parto, aliados à geografia e tamanho do país, a totalidade dos
nascimentos tem condições de ser supervisionado por profissionais qualificados. O
índice de mortalidade infantil é de aproximadamente 9 em 1.000 nascidos vivos e o de
mortalidade materna, 27 em 100.000 (nascimentos “oficiais”).

Em termos de Índice de Desenvolvimento Humano – IDH145, conforme definido


e levantado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento – PNUD, é o
quinquagésimo colocado, primeiro do grupo de nações de “Alto Desenvolvimento
Humano” (segunda classe da classificação geral). O Brasil é o septuagésimo nono, mas
ainda situado na mesma categoria.

Até 17 de outubro de 2012, a prática da interrupção voluntária de uma gravidez


foi regulada pela legislação de 1938. A procura pela saída legal nunca foi popular entre
as interessadas, em muito devido à negativa oficial dos médicos designados como
responsáveis para realizá-la e às dificuldades associadas a se comprovar o caso
extraordinário – e, é claro, não podemos ignorar o estigma social que certamente as
mulheres que buscavam uma solução que era pública, mas com uma base de consenso
social antiquada e inevidente, haveriam de sofrer.

O Ministério da Saúde uruguaio teve a seu serviço, até ser desarticulado em


1991, um órgão chamado “Comando de Luta Contra o Aborto Criminoso”. Esse foi
substituído por uma “Comissão Assessora Sobre a Interrupção da Gravidez” em 2005,
reflexo de demandas decorrentes do retorno do tópico à apreciação da sociedade civil e
de diálogos oficiais junto a associações de profissionais de saúde. É dessa época
também a popularização do uso autônomo do abortivo misoprostol, sendo que o
Ministério de Saúde Pública autoriza seu “uso obstetrício intra hospitalar” através da
Resolução 158/2006, e tenta conter ou dificultar seu comércio formal e principalmente
o irregular, sem muito sucesso. Note-se que ambos os órgãos tinham (ainda que óbvias
as diferenças entre ambos a começar pela nomenclatura) por função autorizar o
procedimento, mesmo as circunstâncias sendo explícitas no conteúdo do referido
Código. Tratavam-se de elementos burocráticos que interferiam não só na relação

145
O IDH “pretende ser uma medida geral, sintética, do desenvolvimento humano” em contraponto ao
Produto Interno Bruto – PIB per capita, este genérico e que não produz um quadro suficientemente
matizado para estudos sociais sobre real divisão de renda, por exemplo.
220

médico-paciente (já considerada problemática de diversas formas), impunham tempo de


espera e, na prática, expunham a petição da mulher ao escrutínio literalmente público.

Cabe aqui lembrar os conceitos de Autonomia e Heteronomia como propostos


por Susana Rostagnol [ROSTAGNOL, 2005]. Conforme a autora, é no âmbito do
diálogo entre esses predicados que a mulher se decidia por uma solução estatal ou
“alternativa”, e é nele também em que se construiria uma visão pessoal e social do ato.
Autonomia consiste da crença feminina, pessoal, que a liberdade decisória é
completamente sua – mas, como proposto por Rostagnol, essa pretensa liberdade pode
implicar em “dúvidas, incertezas, idas e voltas, angústias”, frutos de “elementos
internos [que] são falíveis, relativos e mutantes”: trata-se também de se tentar apreender
a dimensão psicológica dessas mulheres, e salientar que a decisão tomada pode ser de
diversas formas fonte de sofrimento. Heteronomia, em oposição, é a ideia que o poder
de deliberação é externo, provindo de uma “autoridade” que leva em conta as
justificativas para o ato (que podem ser os diversos atenuantes legais como situação
econômica, risco para a saúde, estupro, e também sociais, como a idade da gestante), e
em torno das quais há “consenso social” – percebamos que essa autoridade pode ser a
burocrática (nos termos de Weber) que dá caráter de legalidade ao ato, como também
partir de ator(es) social(is) que detém poder moral (como em Durkheim), não-formal.

Diante da falha ou ausência (ou recusa) do poder instituído em atender algo que
podemos definir como uma necessidade de saúde pública, e uma vez que a demandada
existia, se buscavam soluções alternativas: assim era no Uruguai, assim o é no Brasil.
Dá-se a formação de um setor de serviços paralelo à legalidade que atendias as cerca de
“90 mulheres que abortam por dia no Uruguai” [DA ROCHA (org), 2009].

Também como em nosso país, as políticas punitivas estatais eram fadadas à


ineficiência (dentro da lógica do objetivo que foram concebidas para atingir) – a lei que
proibia e punia não tinha condições de ser aplicada – “considerando as estimativas de
abortos, teriam sido processados 0,04% dos casos” [idem], e em sua maioria tratava-se
de casos de morte de mulheres decorrentes de procedimentos tidos como de risco.

O fracasso das políticas públicas em “punir” não significa ausência de “punição”


– como no Brasil, a despeito de ser prática contraceptiva antiga, de métodos
amplamente conhecidos e bastante procurada, e mesmo em decisões de caráter
“heteronômico” como definidas anteriormente – o ato é associado a um estigma social
221

que transforma a experiência invariavelmente em algum grau de violência psicológica,


social e física contra a mulher que se decide por ou apela a ele.

As diferenças entre ambos os países em estudo fazem com que tenham de ser
adotados métodos para a estimativa de abortos distintos. No caso particular de nosso
vizinho, um estudo amplo e com base empírica foi conduzido por Rafael Sansaviero em
2003 – trata-se do “Condena, Tolerancia e Negación”, estimando cerca de 33 mil
interrupções voluntárias da gravidez somente no ano de 2000: uma taxa de quase 40%
de todas as gestações. Essa pesquisa foi realizado a através de uma perspectiva inédita, a
partir de contato direto com os contingentes de clínicas clandestinas (em número total
de oito) na capital do país, Montevidéu, e que se mostraram, contra a intuição óbvia
sobre o comportamento esperado, acessíveis, fornecendo dados amplos ou estimativas
em termos número de abortos durante amplo período de tempo, e inclusive permitindo
estabelecer perfis das mulheres que buscavam a solução fora dos tramites legais.
Também foram realizadas entrevistas com mulheres que tinham tomado essa decisão,
além de serem amostrados registros de “gestações terminadas em aborto” e “internações
decorrentes de aborto” (segundo a atribuição médica oficial), em aproximadamente 20%
dos hospitais públicos do interior do país [ibidem].

O estudo de Sansaviero estimou que 80% dos abortos clandestinos eram


executados por profissionais de saúde, e os demais através de “métodos tradicionais”.
Ressalta-se também esses últimos eram os “preferidos” por mulheres pobres ou de
“baixo capital social”, seja do interior ou da capital, e que as mesmas configuravam o
maior, senão o total, número de hospitalizações no setor público e mortes decorrentes
do aborto.

A primeira tentativa de discussão institucional da descriminalização do aborto


data de 1985. Evoluiu para a chamada “Ley Sobre Salud Sexual Y Reproductiva”,
projeto datado de junho de 2006 e em cujo artigo oitavo do capítulo segundo permitia a
interrupção da gravidez até a décima segunda semana de gestação por opção da mulher.
Esse foi sancionado pelo Senado Uruguaio em 11 de novembro de 2008. O veto do
Presidente Tabaré Vázquez 146 aos tópicos sobre a descriminalização, apoiado pelo
Ministério de Saúde Pública, veio em menos de 24 horas do prazo de dez dias para a

146
Médico de profissão e político pertencente ao Frente Amplio, partido de esquerda que vence a
hegemonia dos partidos Colorado e Nacional justamente com sua eleição para a presidência, em 2004. O
Frente Amplio tem se mantido na chefia do Poder Executivo uruguaio desde então.
222

apreciação da matéria, embasado em um discurso que afirmava genericamente que a lei


como estava proposta violaria diversos artigos da Constituição do Uruguai, da
Convenção Americana sobre os Direitos Humanos, e da Convenção dos Direitos da
Criança147. O resultando final do tramite foi a Lei nº 18.426, “Defensa del Derecho a la
Salud Sexual y Reproductiva”, com assinatura datada de 1º de dezembro do mesmo ano.

Novo projeto de lei voltado à descriminalização foi proposto e aprovado pelo


Senado em dezembro de 2011, mas não foi apreciado pela Câmara devido a
divergências internas do partido majoritário, o Frente Amplio. O deputado Iván Posada,
do Partido Independiente, faz proposta alternativa, e uma comissão especial da Câmara
é instaurada em 17 de julho de 2012 para analisá-la. A mesma é aprovada entre 25 e 26
de setembro de 2012 com 50 votos a favor, 49 contrários e 5 ausências ou abstenções, e
igualmente validada pelo Senado no 17 de outubro seguinte. A Lei nº 18.987,
“Interrupción Voluntaria del Embarazo”, foi assinada pelo Presidente Mujica em 22 de
outubro de 2012. José Mujica é, assim como Vázquez (seu antecessor e sucessor na
presidência), afiliado ao Frente Amplio e permaneceu no poder entre 2010 e 2015.

Um referendo foi proposto pelo partido de oposição, o Nacional, que conseguiu


recolher assinaturas de cerca de 2% da população habilitada ao voto para viabilizar a
petição. A votação aconteceu em 23 de junho de 2013, com intensa disputa de
propaganda, principalmente em redes sociais, que pendia entre o “compareça e vote
contra” (essa majoritariamente articulada pela Igreja Católica, partidos de oposição e
facções civis tradicionais, como o chamado Uruguay pela Vida) e o “Eu não Voto, Você
Vai?” (tradução livre – esta iniciativa encabeçada por membros do Frente Amplio e
organizações feministas). O índice de comparecimento foi inferior a 9%, marcando o
sucesso da abordagem governista (a oposição precisava de 25% de comparecimento de
votantes para validar o veto popular, mesmo assim caso o “não” fosse majoritário).

Embora o governo tenha divulgado uma redução presumida no número de


opções pelo aborto no tempo após a lei, supostamente graças aos mecanismos de
acompanhamento da gestante, é cedo para esse tipo de avaliação e para se estabelecer o
uma relação causal entre os fenômenos. Não foram encontrados estudos de relevo sobre
o assunto. Contudo, o número registrado de atendimentos desse tipo na rede médica
pública e privada aumentou consideravelmente, com índice de morte praticamente nulo.

147
Para um amplo debate e contestação dos argumentos de Vázquez, vide Banfí-Vique et al., 2011.
223

Segundo opinião expressa em 19 de outubro de 2012 pela Revista britânica The


Economist, que utilizou como base dados não só sobre o aborto, mas também menciona
a legalização da união de casais homoafetivos e a legalização da maconha, dentre a
Argentina, o Brasil, o Uruguai (e os demais países da “socialmente conservadora”
América Latina), esse último é um “desbravador”, e que “a liderança na formação de
um oásis de liberalismo social pelo Uruguai parece pertinente em um futuro previsível”
(tradução livre).

Referências:

BANFÍ-VIQUE, A., et al.. Política dos Direitos Reprodutivos no Uruguai: Porque o


Veto Presidencial ao Direito ao Aborto é Ilegítimo. Revista de Direito Sanitário, São
Paulo, SP, v. 12, nº 2, pp. 178-205, JUL-OUT de 2011.

DA ROCHA, M. I. B., et al.. Aborto y Parlamento: Un Estudio sobre Brasil, Uruguay y


Argentina. Revista Brasileira de Estudos Populacionais, São Paulo, SP, vol. 26 nº 2,
JUL-DEZ, 2009.

DA ROCHA, M. I. B., BARBOSA, R. M. (org.). Aborto no Brasil e países do Cone


Sul: Panorama da Situação e dos Estudos Acadêmicos. Campinas, SP: Núcleo de
Estudos de População – NEPO / Unicamp, 2009.

ROSTAGNOL, S.. A Utonomia y Subordinacion en el Transito de Las Mujeres Por el


Aborto Clandestino. Revista Otras Miradas – Grupo de Investigación en Género y
Sexualidad/GIGESEX, Facultad de Humanidades y Educación/Universidad de Los
Andes-Mérida-Venezuela, vol. 5, nº 2, pp. 80 – 92, 2005.

TORRES, G. S. T.. La Despenalización del Aborto a la Luz de la Eugenesia en Uruguay


(1934-1938). Fragmentos de Cultura (PUC-GO), Goiás, GO, v.: 12, pp.: 1121 - 1139,
2002.

INSTITUTO NACIONAL DE ESTADÍSTICA – INE/URUGUAY. Censos 2011 da


República Oriental Del Uruguay. Disponível em espanhol na rede mundial no sítio,
acessado em 20 de julho de 2015, http://www.ine.gub.uy/.
224

CENTRAL INTELIGENCE AGENCY – CIA/USA. The World Factbook: 2015.


Disponível na rede mundial em inglês, atualizado em 15 e acessado em 20 de julho de
2015, no sítio https://www.cia.gov/library/publications/the-world-
factbook/geos/uy.html.

ABORTION in Uruguay: Still Leading the Way. The Economist, seção Americas view,
análise jornalística disponível online a partir de 19 de outubro de 2012, acessada em 20
de julho de 2015, no sítio <http://www.economist.com/blogs/americasview/2012/10/
abortion-uruguay>.

Sítio na rede mundial do Programa das Nações Unidas Para o Desenvolvimento –


PNUD/ONU, acessado em 22 de julho de 2015, http://www.pnud.org.br/.

Sítio na rede mundial do Parlamento Del Uruguay, diversos links e sublinks


relacionados às leis aludidas, acessos entre 20 e 22 de julho do presente ano,
http://www.parlamento.gub.uy.

Wikipédia, versões em inglês, espanhol e português, diversos artigos e datas de acesso –


consultas voltadas à coleta de referências.

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