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Rio de Janeiro / RJ
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Rio de Janeiro / RJ
2016
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Dedicatória
Não posso deixar de lembrar dos e das religiosos e religiosas, leigos e leigas,
que, ligados à denominação que for, assumiram e assumem para si o fardo das lutas e
demandas populares e minoritárias: a prática da doação pessoal (e me refiro aqui ao
outro, não à sua instituição ou a si mesmo), necessário reconhecer, é para muito poucos.
Não posso deixar de mencionar aqui o nome de Arídia Rosa Gomes, que, sem
mesmo que o autor se desse conta, foi a inspiração primeira para este trabalho.
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Agradecimentos
À ideia de Deus, sem a qual, literalmente, este trabalho não teria sido escrito.
Desnecessário dizer, é completamente irrelevante crer para que se compreenda
minimamente e se respeite a importância histórico-social, e também psicológica e
pessoal, do conceito de divino.
“Esquecer é uma necessidade. A vida é uma lousa, em que o destino, para escrever um
novo caso, precisa de apagar o caso escrito.”
Joaquim Maria Machado de Assis
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Resumo
Abstract
This thesis aims to study the relationship between formal religion and lay
movement through the action of a non-governmental nonprofit organization, which
connects through its own history to the Roman Catholic Church, and seek to establish
possible interpretations for these bonds. The Católicas pelo Direito de Decidir - CDD
supports with its public agenda the proposed discussion themes articulated modern
alternatives to the renewal of the Church's practices, and demands on limits of
interference of religion over the state, ecumenism and guarantee human rights, but with
a focus on practice and feminist discourse.
Sumário
Introdução ...................................................................................................................... 11
5.1. Formação das Católicas Pelo Direito de Decidir Brasil ................................ 148
5.2. Objetivos e Panorama de Atuação .................................................................. 151
5.2.1. Religião ................................................................................................ 151
5.2.2. Sexo, Gênero e Identidade de Gênero .................................................. 152
5.2.3. Direitos Reprodutivos e Juventude ...................................................... 154
5.3. Posicionamento da Igreja Católica Brasileira ................................................. 156
Apêndices
I. Cessão de Valores às Católicas pelo Direito de Decidir Sociedade Civil pela União
através de Convênios ............................................................................................. 197
II. Aborto:
Problema de Segurança Pública ou Competência da Saúde Pública? ................... 208
III. Nosso Vizinho ao Sul, O Uruguai ......................................................................... 217
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Introdução
A proposta de uma Igreja Católica aberta ao povo, que tornasse parte de sua
agenda a inclusão social e as lutas populares – o que se materializou nas Comunidades
Eclesiais de Base – CEB e na Teologia da Libertação dos anos de 1970 e 80,
principalmente – foi progressivamente negada como política oficial, algumas vezes dura
e abruptamente, durante o papado João Pulo II (1978 – 2005). Conforme será visto em
breve, a opção pelos pobres foi uma alternativa também para a organização popular
durante o período de restrições brutais a qualquer oposição oficial ao Regime de
Exceção. A iniciativa democrática e inovadora foi desarticulada ou minorada pelo poder
de Roma, que optou pelo retorno ao conservadorismo intestino, ao centralismo, e adotou
técnicas de propaganda e ações políticas visando manter sua ascendência sobre o
pluralismo e opções religiosas em crescimento, além de sua importância geopolítica.
Entende-se como necessário traçar um quadro, ainda que com matiz de poucas
cores, sobre a religiosidade brasileira após o Concílio Vaticano II (1962 – 1965) até
meados da década de 1990. De forma semelhantemente sucinta, se pretende observar a
opção por um novo modelo sócio-político-econômico que caracteriza o que chamam de
pós-modernidade, modernidade líquida, Neoliberalismo, prevalência do Capitalismo
Financeiro e retorno à autogestão do Mercado, ou o nome com o qual se queira batizá-
lo, e suas influências sobre as alternativas para a organização de movimentos populares,
ou do agora “Terceiro Setor” ou “Sociedade Civil”, em torno de objetivos determinados.
A proximidade com o Estado não perde seu fator atrativo até o presente: são
óbvias as prerrogativas de uma instituição que adquire influência sobre os Poderes
Constituídos e, como consequência, sobre todo o edifício social – ou mesmo que estreite
laços com uma condição de classe específica, mas que detenha certo nível de
“ascendência” no imaginário social (médicos e advogados, por exemplo). No caso de
maior impacto, pode-se impor direta ou indiretamente sobre a sociedade sua própria
visão de mundo, seu conjunto de valores éticos e morais, seu simbolismo, sua estética –
1
Decreto com Força de Lei de Separação dos Estados e das Igrejas, de 20 de abril de 1911, parte das
reformas associadas à Proclamação da República Portuguesa, em 05 de outubro de 1910.
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Afirmar que a distância era impeditivo crucial é equivocado: é certo que os Institutos de Vida
Consagrada não tinham condições de reportarem-se à Santa Sé com periodicidade constante, mas a Bula
Papal que reconhecia oficialmente a Ordem ou Congregação e fixava sua carta de princípios equivalia a
um nihil obstat para sua ação ordinária. A ingerência do Estado Português, e depois do poder Imperial
Brasileiro sobre o catolicismo no Brasil, valendo-se do Direito de Padroado, foi o que se fez sentir.
15
Os tópicos dessa seção são baseados na obra de Maria José Fontelas Rosado
Nunes, fundadora das Católicas Pelo Direito de Decidir no Brasil, “Vida Religiosa nos
Meios Populares”, que apresenta uma leitura da realidade pautada no Materialismo
Histórico. Citações serão feitas somente quanto a contribuição vier de outro autor.
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Para definição concisa do conceito, vide Glossário “Navegando na História da Educação Brasileira”,
online, mantido pelo Grupo de Estudos e Pesquisas “História, Sociedade e Educação no Brasil”
(HISTEDBR) da UNICAMP, verbete “Padroado” elaborado por Ana Cristina Pereira Lage, disponível no
sítio: http://www.histedbr.fe.unicamp.br/navegando/glossario/verb_c_padroado1.htm.
4
A ICAR desempenhava um papel de “árbitro isento” em questões diplomáticas e políticas entre reinos e
os nascentes estados nacionais – essa era uma tradição jurídica medieval, tal e qual o Direito Divino dos
Reis, que, além de quase imposta pela condição de “grande feudatária da Europa”, era prevista em
documentos oficiais da própria Igreja: sustentava-se a si mesma.
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Aquele que se refere à educação é o ponto em que precisamos nos deter. Entre
1549 e 1759 foram fundadas “escolas de ler e escrever em quase todas as povoações e
aldeias; (...) 18 estabelecimentos de ensino secundário, entre colégios e seminários, nos
principais pontos do Brasil, entre eles: Bahia, São Vicente, Rio de Janeiro, Olinda,
Espírito Santo, São Luís, Ilhéus, Recife, Santos, Porto Seguro, Paranaguá, Alcântara,
Vigia, Pará, Colônia do Sacramento, Florianópolis e Paraíba”. Merece notoriamente
também seu papel ativo na fundação da aldeia de Piratininga, que viria a ser o núcleo de
formação da cidade de São Paulo/SP, e ponta de lança para o povoamento do “sertão”.
Tal referência é feita, pois o monopólio na prática do ensino certamente foi usado como
uma das principais ferramentas de doutrinação para a nascente elite colonial masculina.
Os colégios e professores jesuítas eram a mais comum, senão única, maneira de acesso a
um ensino mínimo, ainda que voltado a uma formação cristã humanista, preterindo a
fabricação do cidadão burguês, que se tornou o objetivo pedagógico português do
século XVIII, numa tentativa de adequar o Estado Nação à já estabelecida lógica
econômica europeia [SHIGUNOV NETO, 2008].
17
5
A autora menciona que em alguns conventos as regras de clausura e normativas quanto a vestimentas,
uso de jóias, ou mesmo a alimentação ou possibilidade de criados e escravos pessoais eram ignoradas “em
nome de uma compensação dada pela família à enclausurada” – daí estabelecer que ainda que as regras e
necessidades da família patriarcal as tenham enviado para a “clausura”, essa poderia ser lassa.
18
6
O ápice dos atritos entre Roma e o Império Brasileiro dar-se-á na chamada Questão Religiosa, 1870-5.
19
A romanização permite que a Igreja se articule agora como poder civil e político
independente do Estado. As novas Ordens e Congregações revitalizam a Vida Religiosa,
que deixa de ser somente de reclusão e contemplação (e regalias), e toma rumos
apostólicos e certa atividade social no sentido educacional e de assistência aos
necessitados (órfãos, velhos, acidentados que não podiam trabalhar, indigentes –
aqueles que permaneciam à margem, senão fora, da ordem socioeconômica instituída),
essa entendida como a “insubstituível função social” da Igreja, que foi reforçada no
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Erving Goffman caracterizou-as: uma instituição Total pode ser definida como um local de residência e
trabalho onde um grande número de indivíduos com situação semelhante separados da sociedade mais
Ampla por considerar o período de tempo leva uma vida fechada e formalmente administrada:
“Manicômios, Prisões e Conventos”, 1961.
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subjugado crê ter conseguido seguir o exemplo da humildade de Cristo. Então, para
atingir tão elevado fim, qualquer violência e repressão legitimam-se a si mesmas, e o
discurso ideológico se replica, fechando o ciclo: o noviço ou noviça agora está apto a
contrair os votos, que são “contratos” dele com a divindade, mas que, conforme Nunes,
reiteram a dicotomia entre o mundo puro dentro dos muros, e o pecado para além da
porta – através da manutenção dos votos o religioso carrega também a perfeição dentro
de si. Se o adepto se rebela ou não consegue atingir o fim desejado, a estrutura deve
garantir que ele é o culpado por sua falha, pois em caso contrário a legitimidade de todo
o discurso é contestada. Se me demorei aqui, é porque o tema é tão válido para a vida
em clausura como para determinadas realidades corporativas.
O Concílio Vaticano II – CVII, dado entre 1961 e 1965, foi uma tentativa de
conceber normas e instrumentalizar a ICAR para sua adaptação à Modernidade. As
sociedades vinham se tornando mais complexas desde a adoção do modelo capitalista –
o Estado laico por princípio, a secularização do mundo (que contesta uma compreensão
da esfera comum como lugar do pecado), o desenvolvimento de direitos e do próprio
conceito de individualismo, uma estrutura pública de bem-estar social, o pluralismo:
esses elementos e tantos outros punham em destaque a defasagem entre a Igreja e a
Modernidade, a sua situação anômica. O aggiornamento (atualização, numa tradução
livre) e a renovação adaptativa das instituições são as propostas, e a atuação no mundo
uma saída possível para a retração dos quadros sacerdotais e votivos – a liturgia é
atualizada e adaptada; normas da Vida Religiosa são abrandadas: dá-se mais espaço
decisório e participativo à pessoa do religioso e da religiosa, além de certa liberdade de
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8
Para histórico de atuação e deliberações da instituição, vide em especial a entrada “Sobre a CBR
Nacional” no sítio on-line <http://www.crbnacional.org.br/site/>, acessado em 6 de agosto de 2015.
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As Congregações Nacionais de Bispos são reconhecidas e têm suas instâncias de atuação e decisórias
delimitadas na Parte II, Livro II, Seção II, Título II, Capítulo IV do Código de Direito Canônico de 1983.
Para a visão institucional da CNBB e de sua atuação, vide sítio on-line <http://www.cnbb.org.br/>,
acessado em 6 de agosto de 2015.
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Embora elemento central nos apelos a uma intervenção militar que afastasse o
“fantasma do comunismo” representado pela Presidência João Goulart, a ICAR
dissocia-se ao menos formalmente do Regime a partir de 1968-69, quando o mesmo
tende a recrudescer-se12 – até então, supunha-se uma “situação de exceção” para “se
manter a ordem”. Passa-se novamente de uma Igreja de Estado para a atuação direta
sobre a sociedade civil – há uma tendência a uma opção pelas classes não hegemônicas,
as populares. Essa é uma alteração do foco de ação na sociedade da ICAR marcante,
pois até então era voltado prioritariamente às elites sociais e/ou ao governo – a busca de
sustentação na base da sociedade, no Brasil e em grande parte da América Latina,
reflete ao contrário a atuação da Ditadura sobre os trabalhadores urbanos e campesinos:
essa pretende esmagar as precedentes formas de organização político-sociais e
ideológicas herdadas do período desenvolvimentista, como possíveis fontes de crítica ao
sistema vigente ou à opção deste por um capitalismo submisso aos interesses “do
centro” e extremamente dependente.
10
Vide <http://www.celam.org/doc_conferencias/Documento_Conclusivo_Medellin.pdf>, acessado em 6
de agosto de 2015.
11
Vide <http://www.celam.org/doc_conferencias/Documento_Conclusivo_Puebla.pdf>, acessado em 6
de agosto de 2015.
12
O então Presidente formal da República, General Artur Costa e Silva (1899 – 1969) aplica o “Segundo
Golpe” com a promulgação do Ato Institucional nº 5, AI-5, redigido em 13 de dezembro de 1968, que
recrudesce as práticas de perseguição e contenção, em nome da “Segurança Nacional” e da “Ordem”.
Vide texto no sítio on-line < http://legis.senado.gov.br/legislacao/ListaPublicacoes.action?id=194620>.
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13
Vide texto de Celso Castro, “O Anticomunismo nas Forças Armadas”, disponível no sítio on-line
<http://cpdoc.fgv.br/producao/dossies/Jango/artigos/AConjunturaRadicalizacao/O_anticomunismo_nas_F
FAA>, acessado em 6 de agosto de 2015. Deve ser mencionado que os personagens, fatos históricos e
cronologias para o período 1956 – 1989 aqui referidos foram baseados em verbetes do Dicionário
Histórico-Biográfico Brasileiro da Fundação Getúlio Vargas – DHBB/FGV, disponível on-line no sítio
<http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/arquivo> (consultas a vários verbetes em diversas datas). Citações
pormenorizadas se afiguram irrealistas dado o volume de dados, e o conhecimento franco da maior parte
deles.
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14
O Banco Interamericano de Desenvolvimento – BID, instituição supranacional não pertencente à
estrutura do Fundo Monetário Internacional – FMI ou do Banco Mundial, foi criado em 1959
nominalmente com o propósito de financiar iniciativas relacionadas aos objetivos nominais da OPA.
Analistas indicam que o peso do voto dos EUA dentro do Conselho do BID prejudica a equidade
decisória ou forma tendências quanto a políticas a serem implementadas. Fonte, sítio on-line
<http://www.gpeari.min-financas.pt/relacoes-internacionais/relacoes-multilaterais/instituicoes-
financeiras-internacionais/bancos-regionais-de-desenvolvimento/bid/o-que-e-o-bid>, consulta em 06 de
agosto de 2015.
29
Jânio será um dos três presidentes cujos direitos políticos serão cassados na
instauração do Regime (acompanham-no JK e Jango). Retorna à vida pública
surpreendendo ao eleger-se Prefeito de São Paulo/SP em 1985, dessa vez pelo PTB, mas
que agora tinha contornos conservadores e elitistas inconfundíveis. As medidas
“chamativas” de caráter duvidoso, mas também repressivas e autoritárias, somadas a
dissensões com o funcionalismo público, marcam seu governo (houve também
iniciativas de reestruturação e modernização urbana). Encerra o mandato com baixa
aprovação popular e sob acusações de corrupção. Apoia Collor (cujas práticas identifica
com as suas próprias) em 1989, e retira-se permanentemente da vida pública em 1990.
15
A título de curiosidade, manchete de 16 de agosto de 1956 do Jornal Tribuna da Imprensa (sítio on-
line visitado em 31 de dezembro de 2015), associado à UDN através da pessoa de Carlos Lacerda:
<http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=154083_01&PagFis=29884&Pesq=>, consulta
em 6 de agosto de 2015.
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E assim foi feito, não sem ressalvas: Jango, filiado ao PTB17, ao invés de ter a
aeronave que o trazia da China abatida em voo (como foi proposto na chamada
Operação Mosquito), é empossado em 08 de setembro de 1961 sob os termos da
Medida Provisória nº 04 de 02 de setembro desse ano, que estabelecia um regime
parlamentarista de governo. Esse deveria durar até plebiscito agendado para o início de
1965. Contudo, a UDN e o PSD tinham sofrido retração no número de parlamentares ou
de apoiadores, sendo a maior parte das Casas formada por alinhados ao PTB.
O objetivo de Goulart, dada sua base forte no Parlamento, foi adiantar a votação
pela volta ao Presidencialismo: uma campanha com esse objetivo teve início já em
1962. O resultado da ação dos diferentes apoiadores (e.g., Lott prestou declaração
favorável ao retorno ao regime Presidencialista ao Jornal do Brasil em setembro de
1962) foi a realização da consulta pública já em seis de janeiro de 1963, quando 90% da
16
Citação, a partir do documento original, disponível no sítio <http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/
dicionarios/verbete-biografico/henrique-batista-duffles-teixeira-lott>, acessado em 31 de dezembro de
2015.
17
O Partido Trabalhista Brasileiro – PTB foi criado em 15 de maio 1945 ante a queda do Estado Novo
para cooptar as então nascentes forças sócio-políticas que provinham das fábricas e aquelas geradas pelo
crescimento econômico e que não se sentiam representadas pelas outras duas principais legendas, o
Partido Social Democrático – PSD e a União Democrática Nacional – UDN, mas permaneciam
fortemente ligadas à imagem de “pai dos pobres” e “benemérito dos trabalhadores” de Vargas. Tratava-se
groso modo de uma “linha de defesa” dos poderes políticos vigentes contra o fortalecimento do Partido
Comunista, que voltara então à legalidade, e como um veículo “privilegiado” para as petições dos
trabalhadores e sindicatos. Getúlio Vargas permanece ligado ao PTB até sua morte, e o PTB permanece
ligado à figura de Getúlio até sua extinção pelo Regime Militar, em 1965. João Goulart, “considerado
protegido de Vargas”, ocupa a presidência do PTB de 1952 até o Golpe de 1964: durante esse período
reorganiza o partido (então fragmentado por dissensões internas), busca ativamente apoio e base nos
sindicatos, e chega a tentar empreender a organização formal e programática de um trabalhismo
brasileiro, que chegou a proclamar objetivos nucleares liberais em termos sociais e nacionalistas no
quesito econômico (algumas propostas, é necessário salientar, até a atualidade aguardando implementação
– como uma Reforma Agrária com planejamento sério, por exemplo, e outras eternas Reformas de Base).
Fonte: sítio on-line <http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-tematico/partido-trabalhista-
brasileiro-1945-1965>, acessado em 31 de dezembro de 2015.
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população votante anui à volta de uma República Presidencialista. Até o final desse
período de República Parlamentarista, houve de fato três Gabinetes que tiveram por
Primeiros Ministros: Tancredo Neves (filiado ao PSD, que renuncia em junho de 1962
por ser contrário ao programa de governo), Francisco de Paula Brochado da Rocha
(vinculado ao PTB, renuncia em setembro de 1962 diante da negativa do Congresso de
votar as Reformas de Base), e Hermes Lima (também representante do PTB, sua gestão
perdura até, e garante a, realização do plebiscito de 1963). O processo de escolha era
por indicação por parte da Presidência de um nome, que em seguida era submetido pelo
ao Congresso para votação – certamente permitiu maior controle do Executivo pelas
Casas Legislativas, mas só enquanto setores de oposição nelas foram maioria ou bem
articulados.
fundado em 1962 por Leonel Brizola que se dedicava a arregimentar forças sociais e
políticas para pressionar ativamente pelas Reformas de Base) e a Frente Progressista de
Apoio às Reformas de Base (organizada em 1963 pelo ex-Ministro da Fazenda de
Jango, San Thiago Dantas, era composta por elementos moderados e voltada a garantir a
legitimidade das ações dos poder constituído e prevenir atentados a esse por opositores):
ambas disputavam posições de poder ou o apoio da Presidência, causando inevitáveis
fricções dentro do PTB.
18
São as reformas agrária, bancária, administrativa, universitária e eleitoral, que Goulart pretendia levar a
cabo no Congresso ainda naquele ano de 1964. Durante o Comício, por ocasião da fala de outros
convidados, assina no Palácio da Guanabara um Decreto criando a Superintendência da Reforma Agrária
(SUPRA), limite constitucional para suas ações nesse sentido, mas franca demonstração de compromisso.
Pode-se “contrapô-las” às reformas modernizantes que eram o objetivo das novas classes empresariais,
ortodoxas mas não tradicionais, e fortemente comprometidas com o capital internacional. Vide
<http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-tematico/comicio-das-reformas>, acesso em 31 de
dezembro de 2015.
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João Goulart abandona a Capital Federal e segue para o Rio Grande do Sul. A
despeito de ter angariado a adesão de diversos setores (entre os militares havia diversos
comandos legalistas) e possuir base para ação no sul do país, Goulart prevê que sua
resistência desencadearia uma guerra civil – manifestações e greve geral em seu nome
não surtiram efeito prático. De Porto Alegre – RS, parte para asilo político no Uruguai,
onde chega em 4 de abril. Falece na Argentina, em 6 de dezembro de 1976, vitimado
por um ataque cardíaco conforme a versão oficial. Em ambos países se dedicou à
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criação de gado (sua família era de estancieiros do Rio Grande do Sul), e foi convidado
a prestar consulta em assuntos político-econômicos a seus respectivos governos, mas
permanecia em articulação com grupos no Brasil19. Encerrou a vida acreditando que
brevemente retornaria ao país. Seus restos mortais foram sepultados em São Borja – RS,
sem as honrarias costumeiramente atribuídas, sob censura da imprensa, mas com a
presença de simpatizantes e antagonistas.
19
“Frente Ampla”: fundada por Carlos Lacerda, inicialmente ferrenho defensor e articulador civil para a
Intervenção, por ocasião do progressivo recrudescimento do Regime (e que também não correspondeu “a
contento” às suas pretensões) – participavam ainda dela JK e Goulart (ambos exilados), e os políticos que
se mantiveram coligados aos três, além de militares legalistas e outros. Propunha a volta da Democracia
constitucional, e criada em 28 de outubro de 1966, foi extinta pelo ministro da Justiça Luís Antônio da
Gama e Silva (1913 – 1979, jurista redator do AI5), através da Portaria nº 177, de 5 de abril de 1968.
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20
Vide o Texto Quinto do “Relatório da CNV Volume II – Textos Temáticos”. Os relatórios produzidos
pela CNV estão repletos de levantamentos semelhantes, sendo recomendável sua leitura atenta por parte
de qualquer brasileiro que cogite a existência de “intervenção militar constitucional”, “Revolução Cívico-
Militar” e outras falácias do gênero – podem ser encontrados para download gratuito em
<http://www.cnv.gov.br/>.
21
Vide sítio on-line <http://www.cnv.gov.br/textos-do-colegiado/593-jango-era-majoritariamente-
apoiado-pela-popula%C3%A7%C3%A3o.html>, acessado em 31 de dezembro de 2015.
37
Permite-se aqui afirmar, sem perspectiva de consenso, que as altas patentes das
Forças Armadas do Brasil “padeceram” (se questiona se por inépcia dos legisladores e
administradores, oportunismo, corporativismo ou certo “entusiasmo de caserna”
consolidado em teorias geopolíticas na Escola Superior de Guerra – ESG) e durante
muito tempo, do equívoco de “(...) defender a Pátria (...)” também dentro das fronteiras
(políticas, no sentido geográfico e social da palavra) do Estado Nacional. Embora tanto
24
a Proclamação da República como o Golpe Militar de 1964 possam ser
compreendidos (vexata quaestio) segundo a ação ou influência (direta ou indireta) de
interesses e forças políticas (internas e externas) e socioeconômicas poderosas (existe
aqui a tentação inevitável de mencionar-se o termo forças ocultas que as interpretações
sobre as Cartas-Testamento de Getúlio Vargas popularizaram), podendo ter sido a ação
de membros oportunistas (ou mesmo títeres) das classes militares, era a essas
22
Vide sítio on-line <http://www.cnv.gov.br/images/documentos/Capitulo2/Nota%204300092_003341
_2014_69.pdf>, acessado em 31 de dezembro de 2015.
23
Vide sítio on-line <http://blog.planalto.gov.br/corpo-de-joao-goulart-recebe-honras-de-chefe-de-
estado/>, acessado em 31 de dezembro de 2015.
24
Poder-se-ia citar como exemplos de organizações criadas com a intenção clara de influenciar o rumo do
quadro político nacional segundo interesses específicos após 1954: o Instituto de Pesquisas Sociais –
IPÊS, fundado em 1961 por representantes do empresariado e que possuía suas próprias concepções de
medidas econômicas modernizantes; membros do recém dissolvido – após uma Comissão Parlamentar de
Inquérito – Instituto Brasileiro de Ação Democrática – IBAD, nascido em 1959 da união de interesses de
elementos nacionais e internacionais, com grande influxo de recursos desses últimos, descontentes com as
políticas de JK; Conselho Superior das Classes Produtoras – CONCLAP, e organizações classistas
equivalentes. Já se passou também o tempo da “negação polida” sobre a influência e auxílio diretos de
representantes de interesses geopolíticos dos EUA nos episódios que antecederam e sucederam 1964.
Vide sítio on-line <http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-tematico/revolucao-de-1964>,
acessado em 31 de dezembro de 2015.
38
25
Fonte, sítios on-line <http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-tematico/cruzada-do-rosario-
em-familia> e <http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-tematico/marcha-da-familia-com-
deus-pela-liberdade>, acessados em 7 de janeiro de 2016.
26
Vide artigo on-line <http://www.snh2011.anpuh.org/resources/anais/14/1308095151_ARQUIVO_
ArtigoAnderson.pdf>, acessado em 7 de janeiro de 2016.
39
mote “família que reza unida permanece unida”, a fidelidade mariana de Peyton e suas
exclamações contra o “comunismo ateu”.
27
Dia de São José, padroeiro da família e dos trabalhadores no Catolicismo.
28
À frente (literalmente e como organizadora) da primeira Marcha estava Dona Leonor Mendes de
Barros (1905 – 1922), conhecida por sua obra assistencialista e por ser a esposa do então governador
desse estado, Adhemar Pereira de Barros (1901 – 1969). Os direitos políticos desse seriam caçados em
1966, pelo Regime cuja ascensão apoiou: Adhemar morreu em Paris, em 1969, durante seu exílio.
29
Vide nota no sítio on-line <http://www.cnbb.org.br/outros/dom-aloisio-roque-oppermann/13986-a-
igreja-na-revolucao-civico-militarn>, acessado em 6 de agosto de 2015.
41
30
Vide <http://www.cnv.gov.br/images/pdf/relatorio/Volume%202%20-%20Texto%204.pdf>, acessado
em 7 de janeiro de 2016.
31
Todos os documentos produzidos pela Comissão Nacional da Verdade podem ser acessados através do
sítio on-line <http://www.cnv.gov.br/>.
42
32
Para a redação original dos Atos Institucionais, vide sítio on-line <http://www4.planalto.gov.br/
legislacao/legislacao-historica/atos-institucionais>, acessado em 07 de janeiro de 2016. Os assim
chamados Atos Institucionais e Atos Complementares (esses últimos utilizados em conjunto ou associados
com AIs ou Decretos-Lei, em matérias de interesse da “segurança nacional”) foram ferramentas de
legislar do Executivo Nacional, sem qualquer interferência do das Casas do Congresso e “imunes ao
controle do Poder Judiciário” – vide Parecer de 1969 de Carlos Medeiros Silva, Ministro aposentado do
Superior Tribunal Federal, disponível em sítio on-line <http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/
rda/article/view/32163>, acessado em 07 de janeiro de 2016.
43
Constituição de 1946 “já não atende às exigências nacionais” e urge ter-se uma que
“represente a institucionalização dos ideais e princípios da Revolução”. A convocação
resultou na promulgação pelas Mesas das Casas do Congresso Nacional da Constituição
da República Federativa do Brasil de 1967, em 24 de janeiro de 1967, que vigorou entre
15 de março daquele ano (anda que modificada pela Emenda Constitucional nº 1, de 17
de outubro de 1969, e outras) até a Constituinte de 1988.
33
Jurista e professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo – USP, também principal
redator do AI-5. Utilizou sua influência no Regime Militar para denunciar como “esquerdistas” e
perseguir colegas e outros professores e alunos da USP.
46
O AI-5 não estabelece prazo de sua própria vigência, diferente dos anteriores. Ao
assinar-se o documento, assume-se que o Brasil não é de jure e de facto um país com
garantias constitucionais vigentes.
A anuência ao novo governo e seus métodos entre os bispos nunca foi uma
certeza, e degrada-se com o tempo, mesmo diante da opinião pública34. Enfrentando a
realidade inegável da situação político social, a CNBB se posiciona oficialmente,
através de diversas notas em apoio aos presos políticos e denunciando arbitrariedades35:
o projeto oficial de uma Cristandade brasileira vai se esvaindo e dando lugar a uma
Igreja para os Pobres, que tem por princípio a defesa dos Direitos do Homem. Os
Planos Pastorais Conjuntos previstos para os períodos 1966 – 1970, 1971 – 1974
(reformulação do anterior segundo os posicionamentos do CVII e das Reuniões da
Conferência Episcopal Latino-Americana – CELAM), e Diretrizes Gerais para a Ação
Pastoral para os interstícios 1975 – 1978, 1979 – 1984 são igualmente marcados por
diretivas para voltadas para a missão, a inclusão, a uma evangelização atuante e
aculturada.
34
Vide nota no sítio on-line <http://www.cnbb.org.br/artigos-dos-bispos-1/dom-zanoni-demettino-castro-
1/13893-50-anos-de-luta-pela-democracia>, visitado em 6 de agosto de 2015.
35
Vide Declaração oficial no sítio on-line <http://www.cnbb.org.br/imprensa-1/noticias/13944-
declaracao-por-tempos-novos-com-liberdade-e-democracia>. Especificamente, vide o documento
aprovado pela XV Assembleia Geral da CNBB, “Exigências Cristãs de uma Ordem Política” (1977),
disponível no sítio on-line <http://www.cnbb.org.br/imprensa-1/noticias/13944-declaracao-por-tempos-
novos-com-liberdade-e-democracia>, e as citações deste, visitados em 6 de agosto de 2015.
36
Os Atos Institucionais de números Seis a Onze foram editados na vigência do governo Costa e Silva e
trataram de "assuntos menores", como alterações à Constituição de 1967, questões administrativas da
esfera dos Executivos estaduais e municipais, e retificação ou ratificação de medidas anteriores. O AI-10,
de 16 de maio de 1969 é talvez aquele que desperte maior interesse ao tratar do agravamento de penas, ou
penalizações acessórias, para aqueles que perderiam direitos políticos ou teriam mandatos caçados,
representando a disposição do Regime em não retroceder realmente.
48
Ainda em 1968 houve aumento nas atividades armadas contra o Regime. A isso
respondeu a Ditadura assumindo a Operação Bandeirantes (Oban) de São Paulo como
exemplo para a criação de aparelhos repressivos, os Centros de Operação para Defesa
Interna – CODI, que tinham por função coordenar os demais órgãos de “repressão à
subversão e ao terrorismo”, assumindo papel administrativo, de planejamento
estratégico e análise de informações. Seus braços executivos eram os Departamentos de
Operações Internas – DOI. Havia articulação entre esses e os órgãos de inteligência das
Forças Armadas, e todos davam suporte ao SNI. Uma campanha internacional e da
ICAR para o fim da tortura a presos políticos, mortes e desaparecimentos teve início, ao
50
qual o governo respondeu com motes ufanistas (“Brasil, ame-o ou deixe-o”) e acusando
opositores de ingerência nos negócios nacionais ou tentativas de enfraquecer o governo.
37
A ARENA era invariavelmente maioria em qualquer “eleição” do período: a máquina pública estava a
seu serviço, e o AI-5 e a Lei de Imprensa e a de Segurança Nacional, além da censura prévia, impedia
51
qualquer manifestação em contrário mais “ousada” do MDB. Para aumentar-se a impressão de ditadura de
partido único - justamente o que o Golpe objetivava evitar - o cadastro de uma nova legende, o Partido
Democrático-Republicano capitaneado pelo ex-vice-presidente Pedro Aleixo, foi negado em fins de 1971.
52
vice Alexandre Barbosa Lima Sobrinho (1897 – 2000, advogado, jornalista, político,
literato), “anticandidatos” do MDB.
Para as eleições diretas de 1974, houve disposição inédita por parte do governo
de viabilizar acesso aos meios de comunicação à propaganda política da oposição: como
resultado da liberdade relativa de discurso, da exaustão do “Milagre” e de mudança de
tática da oposição (que deixou de lado o protesto através do voto nulo), o MDB
conseguiu importantes resultados – o número de cadeiras da ARENA no Senado caiu de
59 para 46, e na Câmara de 223 para 199; o MDB atingiu 20 no primeiro e foi de 87
para 165 representantes na última.
O texto do AI-5 foi utilizado pelo Executivo Nacional somente em abril de 1975,
quando de crise na eleição indireta para prefeito em Rio Branco, Acre, o que gerou
intervenção direta no município. No mesmo período, foi utilizado para punir-se um juiz,
53
uma série de restrições a atos religiosos por suicidas tanto no catolicismo quanto no
judaísmo – em ambos os casos elas foram ignoradas, franca contestação a versão
oficial).
A primeira metade do ano de 1977 foi de intensa ação popular organizada pró
anistia e por liberdades democráticas – o episódio da ocupação da UNB leva novamente
a atritos entre a presidência e os representantes da “Linha Dura”. A questão sucessória
foi motivo de debate nesse período: o ainda Ministro do Exército, general Silvio Frota, e
articuladores favoráveis a ele angariavam apoio na facção mais intransigente das Forças
Armadas e mesmo no MDB, ameaçando uma crise na unidade militar se o Presidente
levasse adiante seu projeto sucessório já definido.
A crise pessoal e institucional com Frota vai se aprofundar ao longo dos meses:
por ocasião da expulsão do até então asilado político Leonel Brizola do Uruguai em
final de setembro, o Ministro do Exército vai, sem consulta prévia à presidência,
articular uma força tarefa do III Exército de forma a impedir a entrada de Brizola por
terra no Brasil – Geisel havia entrado em conversações para permitir a permanência do
político no país, desde que em área circunscrita: na reunião seguinte ao episódio do Alto
Comando do Exército, a ação de Frota foi endossada pela maioria dos generais de
quatro estrelas. Em outubro, Geisel obtém informações sobre as movimentações de
Silvio Frota e seus apoiadores, no sentido de angariar manifestações públicas positivas
de ex-ministros então na reserva, além de denunciar a partir de relatório do Centro de
56
38
Consulta bibliográfica ao verbete “Ação Católica Brasileira” do Dicionário Histórico-Biográfico
Brasileiro da Fundação Getúlio Vargas – FGV, disponível no sítio on-line <http://www.fgv.br/cpdoc/
acervo/dicionarios/verbete-tematico/acao-catolica-brasileira-acb>, acessado em 31 de dezembro de 2015.
58
2.3.1. Pastoral
conquistado vão desaguar no Concílio Vaticano II, este é mais um (embora o principal)
de uma estratégia de atuação que vinha há muito se desgastando sob suas próprias
incoerências acumuladas, senão falida. “O profeta é menos o ‘homem extraordinário’ de
que falava Weber, do que o homem de situações ‘extraordinárias’” – Bourdieu assinala
o “contexto propício” a que se refere Nunes para a formação de comunidades baseadas
no Carisma – a crise.
Frei Betto ressalta uma certa liberdade de que gozava a ICAR durante o período
de exceção: diferente das instituições dos poderes públicos, sobre os quais a Ditadura
tinha poder de ação relativamente livre, a Igreja Católica era uma instituição que não
estava mais formalmente ligada ao Estado. Embora cada leigo ou religioso,
individualmente, estivesse sob as legislações postas em prática pelo governo, a ICAR
tinha suas próprias hierarquias e normativas, sobre as quais o governo não poderia
interferir a menos que suprimisse também a liberdade de culto: em um exemplo
característico, diz que “Os militares não tinham como decretar a destituição de D. Paulo
Evaristo Arns, como arcebispo de São Paulo (...)”. Essa situação de “externa aos limites
de ingerência” em que se encontrava a ICAR contribuiu, muito mais que a
conscientização política ou a congregação em comunidades coesas, para uma ação ativa
de oposição popular ao Regime dentro das CEBs e entre seus membros. A partir do
Concílio Vaticano II membros da cúpula da ICAR buscam se aproximar das bases, e
esse movimento vai se intensificar com a Segunda Conferência Geral do Conselho
Episcopal Latino Americano em Medellín/Colômbia em 1968, enquanto o Estado traça
o caminho oposto – no Brasil, e graças a uma crescente organização dos opositores à
Ditadura em altos cargos na hierarquia eclesial, isso se refletirá em denúncias por parte
da Igreja contra violações dos Direitos Humanos e do terror repressivo, que muitas
vezes recaía sobre suas próprias fileiras: a ICAR tornou-se aqui “espaço de organização
e mobilização”.
O autor traça três etapas interligadas pelas quais passariam (não necessariamente
todas) as CEBs: a primeira, a formação da Comunidade em si, sua experiência local
ligada a evangelização para a mudança; na segunda, membros da CEB em contato com
membros de outras religiões com a mesma opção pelos pobres reorganizam movimentos
populares autônomos temáticos locais e regionais, a partir de suas próprias experiências
de vida e reflexões sobre seus problemas; a terceira etapa é o fortalecimento dos
movimentos sindicais como verdadeiros órgãos de classe – por ocasião da produção de
seu texto, Frei Betto testemunhava a extinção do bipartidarismo e da formação de um
partido de base sindical, o Partido dos Trabalhadores – PT, também influenciado por
grupos pastorais e CEBs da região do ABC do estado de São Paulo, daí apontar como
62
uma “quarta etapa”, “a busca de novos canais de expressão política para a sociedade
civil brasileira” [idem]. Quando as iniciativas que nasceram dentro das CEBs
transpunham muros e passavam a interessar a todos que possuem posicionamentos
comuns, independente da religião, havia o fortalecimento do movimento popular
autônomo em relação à Igreja e ao Estado. Menciona-se o potencial para a mudança
que um grupo de organizações independentes, mesmo que grande parte seja
despolitizada, coordenadas em rede possui quando mobilizadas por uma causa, por
sentimento de justiça ou consciência dos direitos do povo.
Brasileiro – PTB é motivo de disputa entre Leonel Brizola e Ivete Vargas (Cândida
Ivete Vargas Tatsch, filha da sobrinha de Getúlio Vargas, jornalista e política, última
presidente do PTB paulistano até sua extinção pela Ditadura, 1927 – 1984), sendo que a
última é favorecida por decisão do Tribunal Superior Eleitoral – TSE, e Brizola funda o
Partido Democrático Trabalhista – PDT. O Partido dos Trabalhadores – PT, tendo à
frente Luís Inácio da Silva, o Lula, líder do “Novo Sindicalismo”, é fundado com o
apoio de intelectuais, grupos socialistas e correntes ligadas às Comunidades Eclesiais de
Base da ICAR.
Em janeiro de 1980 tem início uma onda de atentados cujo objetivo aparente é
desestabilizar a transição democrática e atacar a nova esquerda. Foram cerca de 25
atentados a bomba sem vítimas, na maior parte das vezes explosões de contra bancas de
jornais que vendiam periódicos da imprensa alternativa. Contudo, em 27 e 28 de agosto
cartas bomba explodem no gabinete de um vereador do Rio de Janeiro e do presidente
da OAB, matando a secretária deste último – diante do fato, há comoção entre setores
sociais de peso contra os atos terroristas, o que é coadunado pela presidência. Em 1981
houve, além de outros, o episódio das bombas no Riocentro: na noite de 30 de abril,
durante um show de música em comemoração ao Dia do Trabalho promovido pelo
Centro Brasil Democrático – CEBRADE. Uma de duas bombas explodiu dentro de um
carro particular, matando o sargento Guilherme Pereira do Rosário, e ferindo
gravemente o motorista, capitão Wilson Luís Chaves Machados, os dois pertencentes
aos quadros do CODI do I Exército – o general do I Exército, Gentil Marcondes Filho
(1916 – 1983), nega o envolvimento de seus comandados, mas a imprensa (inclusive
internacional que cobria o evento) levanta suspeitas sobre os militares. A contenda entre
o governo e a “Linha Dura” se resolve por concessões mútuas: o I Exército conduz uma
investigação que conclui que a bomba foi plantada no carro dos militares, que
executavam uma missão de rotina, e a partir daí não há mais atentados.
ocupava desde o início do governo Geisel, e onde aparecia como principal articulador
do processo de distensão política – a imprensa especula sua disposição em contrário em
relação ao caso do Riocentro e quanto à solução encontrada pelo governo para gerir os
déficits do Sistema Previdenciário, aumentos nos descontos salariais em favor da
Previdência Pública.
período – e que ficou conhecida por “Diretas Já!” estava atrelada à votação de uma
Proposta de Emenda Constitucional, a PEC nº 05/198, submetida ao Congresso
Nacional em 2 de março de 1983 pelo deputado do PMDB Dante Martins de Oliveira
(1952 – 2006), por isso chamada “Emenda Dante de Oliveira”, que inclusive marcava
para 15 de novembro de 1984 a eleição direta para presidente. A influência e destaque
que ganhou a campanha produziu reação negativa por parte do governo: para evitar que
as manifestações conseguissem eco junto aos membros menos fiéis ou submissos da
bancada governista, e como demonstração de força visando intimidar os políticos do
Congresso, o governo federal decreta estado de emergência em Brasília e dez
municípios de Goiás, tendo por justificativa oficial defender os parlamentares de uma
“coação popular” – o Congresso Nacional foi cercado, manifestações debeladas,
barreiras em estradas de acesso à capital federal montadas por agentes da força policial
sob o comando do general Newton de Araújo Oliveira e Cruz (1924, então chefe do
Comando Militar do Planalto), na véspera da votação da PEC na câmara, dia 24 de abril.
No dia seguinte, a Emenda Dante de Oliveira foi posta em votação em um plenário
esvaziado pelo bloco governista – não pode continuar sua tramitação ao Senado por
falta de 22 votos para se obter os dois terços de aprovação necessários.
José de Ribamar Ferreira de Araújo Costa (1930), conhecido como José Sarney
(em homenagem ao pai, Sarney de Araújo Costa) tem o mandato marcado por uma série
de medidas para se conter a inflação como o "Plano Cruzado" – foram em sucessão
quatro “Planos” que envolviam congelamento de preços, abonos salariais e mesmo a
moratória da dívida pública com o objetivo de fugir-se à recessão e reduzir a inflação.
Contudo, o mandato Sarney é notável pelos esforços de redemocratização política: a
convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte é um enorme passo adiante nesse
processo. Seria formada por membros do Congresso eleitos por voto direto em 1986, e
por senadores em atividade: políticos antes impedidos de exercer seus cargos e outros
exilados fariam parte da comissão, partidos políticos que estavam na clandestinidade já
tinham sido legalizados. A Constituinte é instalada em 1º de fevereiro de 1987 e termina
com a promulgação da “Constituição Cidadã” em 5 de outubro de 1988.
As primeiras eleições diretas têm por candidato eleito, em dois turnos, Fernando
Affonso Collor de Mello (1949), do Partido da Reconstrução Nacional – PRN,
Presidente mais jovem da história do Brasil ao assumir o cargo em 15 de março de
1990. Seu impedimento, e condenação à perda de direitos políticos por oito anos
ocorreriam em 29 de dezembro de 1992, sendo fruto de ampla e livre cobertura da
imprensa sobre denúncias de irregularidades fiscais e corrupção, conjugada a uma
mobilização emergente de grupos sociais e políticos – ocorreu segundo os trâmites
legalmente estabelecidos, sem aceno de qualquer tipo de intervenção salvacionista por
parte das forças militares.
39
Tancredo Neves vinha sentindo dores abdominais desde 8 de março. No dia 13 desse mês, diante da
insistência de seu médico para que se internasse, recusa usando como motivo a necessidade de o máximo
de normalidade e transparência necessárias à transmissão do cargo, de modo a não haver quaisquer
questionamentos políticos ou técnicos possíveis. Na madrugada do dia 15 sofre a primeira de seis
cirurgias. Houve dúvidas sobre a legalidade e a pertinência de Sarney assumir o papel do Presidente eleito
na cerimônia de posse: Ulysses Guimarães, então presidente do PMDB e da Câmara, seria o sucessor
óbvio neste caso – contudo, mesmo diante da pressão por parte de grupos de seu partido, declina em favor
do Vice, compreendendo a importância de legitimar-se a decisão do Colégio Eleitoral; Figueiredo, que
havia sido contrariado por Sarney durante as prévias do PSD, poderia causar um impasse, mas esse é
contornado ao decidir-se que não haveria cerimônia de transmissão do cargo. Na posse, José Sarney lê o
discurso preparado para Neves, e as escolhas para os cargos ministeriais desse são mantidas.
67
O apostolado do polonês Karol Józef Wojtyła (1920 – 2005), o Papa João Paulo
II, tem início em de 16 de outubro de 1978. Unia-se a necessidade de renovação dos
quadros do Catolicismo Apostólico Romano, a doutrinação segundo as recentes
determinações da Igreja, com a política de (re)popularização da fé católica empreendida
por este sumo pontífice, que promoveu o maior número de beatificações e canonizações
dentre os papas, além de viajar com assiduidade e procurar lidar aberta e
frequentemente com líderes e representantes de outras religiões, mesmo não cristãs.
Wojtyła tinha apelo inaudito devido à sua história pessoal (viveu e frequentou
um seminário clandestino numa Polônia ocupada pelas forças nazistas, depois cooptada
pelo bloco da URSS), seu carisma e habilidade em discursos e junto à imprensa, sua
juventude (eleito com apenas 58 anos) e hábitos sui generis para alguém de sua
posição: escrevia poesia e para o teatro, praticava esportes. Contudo, João Paulo II foi
também um conservador afeito à ortodoxia e ao centralismo romano em muitas facetas
de seus posicionamentos formais e atuação, seja quanto à ordenação de mulheres e seu
papel na sociedade, seja quanto à Teologia da Libertação (por seu apelo marxista,
classista: o envolvimento geopolítico da ICAR e o contra-comunismo foram palavra de
ordem em seu período), entre outros pontos. A figura e obra desse “Papa para a
Juventude” ainda são tanto motivo de fascínio quanto de controvérsias.
Nunes salienta em sua obra de 1985 as mudanças que se faziam sentir na ICAR
brasileira, e que essas não eram endógenas de forma alguma à esfera institucional: havia
um diálogo franco com a nova conjuntura sociopolítica nacional. Pode-se propor que
um dos méritos de Nunes está em perceber que, diante das “condições internas geradas
pelo posicionamento divergente entre diversos segmentos”, a Igreja Católica no Brasil
poderia optar por um discurso modernizante em consonância aos dos movimentos
inovadores e de reforma social (em diversos graus de compromisso, do formal ao
radical), ou retroceder para sua base no tradicionalismo. A Igreja no país estava dividida
e seus membros participavam “de uma ampla gama de posições ideológicas brasileiras”.
Nos anos seguintes esse quadro será submetido às pretensões de Roma no contexto de
um novo quadro geopolítico: os caminhos a seguir seriam ditados a partir de então pela
Santa Sé, que influencia diligentemente a reforma dos quadros da CNBB, e “preme
paternalmente” os elementos em desalinho a abandonarem condutas divergentes.
68
40
Compreendidas como críticas a uma ordem preestabelecida.
69
41
Vide no sítio on-line <http://w2.vatican.va/content/francesco/pt/letters/2015/documents/papa-francesco
_20150901_lettera-indulgenza-giubileo-misericordia.html>, visitado em 15 de dezembro de 2015.
42
Frei Clodovis Boff (1944) é Doutor em Teologia, filósofo, professor universitário, escritor e frade da
Ordem dos Servos de Maria. Como o irmão, foi adepto da TL – ao contrário de Leonardo Boff (1938),
optou por rever seus princípios depois de punições brandas da ICAR, e hoje se alinha a uma “opção pelos
pobres atuante, evangélica e missionária, mas sem instrumentalização da fé pela política”. A presente
secção é baseada em seu artigo “Uma Análise de Conjuntura da Igreja Católica no Final do Milênio”
presente em [LESBAUPIN et al., 1996] – citações serão feitas somente quando a contribuição vier de
outro autor.
70
Boff nos diz que, diante desses quadros diferenciados, o papado do final do
milênio optou por uma Igreja focada na Autoridade e Obediência, em detrimento das
facetas de Comunhão e Participação. Devem-se apresentar essas distintas propostas, e
seus efeitos sobre as dinâmicas internas e externas da instituição.
O Projeto de Igreja adotado pela Santa Sé com ênfase na Cúria Romana e nos
círculos próximos ao Papa, além do próprio, teve duas frentes: a interna, centralista, e a
externa, com “presença social forte”. Por dispares que possam parecer, trata-se de
elementos complementares – uma autoridade calcada na hierarquia, e que impõe (ou
conquista) obediência às suas bases. Não é só a busca por uma restauração ou
imposição de uma “ordem cristã” aos elementos internos, mas também por uma
reconquista do espaço social através de uma Igreja de Poder. A proposta alternativa
propõe o diálogo interno e a missão para o mundo – poderia ser designada como Igreja
71
Segundo o autor, trata-se da opção que houve por uma dinamização cultural mas
que não foi “institucionalizada” – o projeto participativo se torna viável a curto prazo,
mas não se estabelece como paradigmático: diante da retração numérica de fiéis, do
cenário geopolítico e do novo paradigma para economias periféricas, o papado de
Wojtyła migra para uma solução conservadora (busca anular atividades com possíveis
conotações marxistas, e perdem espaço as iniciativas de valoração de comunidades
minoritárias 43 ) mas que encontra apelo entre os fiéis (principalmente devido à bem
estruturada imagem relacionada ao Papa), e busca principalmente revitalizar os quadros
católicos através de propostas voltadas para a juventude.
O autor aponta esse retorno ao padrão centralizador como uma “maré alta” no
processo de romanização – uma tendência histórica, não transitória, que poderia ter
suas origens fixadas ainda no início do segundo milênio. As características do projeto
concentrar-se-iam da absorção (e “releitura”) pelas estruturas centrais de conjunturas
globais de caráter transformador que, portanto, são marcadas por precariedade e que
não efetivam sua potencialidade no tempo. Restam “ilhas de participação” locais –
paróquias, dioceses, comunidades – sempre sob olhares atentos dos bispos alinhados.
43
Como todo projeto social, também os de fundo religioso que adotavam abertamente posicionamentos à
esquerda foram atingidos pela lógica hegemônica do Neoliberalismo no final da década de 1980 e ao
longo da década posterior, acompanhada ou não da ação da ortodoxia central.
72
44
Fonte dos dados, Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, Séries Históricas e Estatísticas:
“População por Religião”. Disponível on-line em <http://seriesestatisticas.ibge.gov.br/series.aspx?
no=10&op=0&vcodigo=POP60&t=populacao-religiao-populacao-presente-residente>.
Consulta feita em 06 de setembro de 2015.
75
Um technopol possui dois objetivos principais: vencer a eleição para o mais alto
cargo executivo da nação e implementar as recomendações do Novo Paradigma. A
vitória nas eleições (ou equivalente) não é um simples exercício de desejo de poder pelo
45
A principal referência para esta seção é o texto “Os Moedeiros Falsos”, de José Luís Fiori [FIORI,
1995], e sua discussão – e de outras fontes – nas aulas do Professor Dilson Motta, “Jovens Pesquisadores
– Uma Abordagem Metodológica”, oferecida no segundo semestre de 2014. Quaisquer equívocos
conceituais e todas as colocações são de responsabilidade tão só e unicamente do autor deste texto.
46
John Willianson, inglês nascido em 1937, é economista de formação que se tornou especialista em
política monetária internacional. Foi, entre outros, consultor econômico do Tesouro britânico, conselheiro
do FMI, e ocupou cargo de destaque no Banco Mundial. Em paralelo, cultivou carreira acadêmica que o
trouxe à PUC-RJ, onde foi colega de Pedro Malan, Ministro da Fazenda durante os dois mandatos FHC, e
professor de Armínio Fraga, presidente do Banco Central brasileiro entre 1999 e 2003.
77
poder, mas uma etapa a ser galgada para a concretização do segundo objetivo,
compromisso verdadeiro do agente – e como as demandas dessa agenda são amplas e
requerem tempo, manter-se no poder e angariar maioria no que se refere a apoio
político são seus objetivos secundários: sem a manutenção das posições do Consenso
não há vitória real para o technopol. Fiori nos diz que eles são “economistas capazes de
somar ao perfeito manejo de seu mainstream (evidentemente neoclássico e ortodoxo) à
capacidade política de implementar nos seus países a mesma agenda política do
consensus”.
47
Superávit Fiscal Primário: grosso modo, trata-se do montante que o governo “economiza” - ou seja, a
arrecadação efetiva minorada das despesas públicas. O índice tornou-se medida de confiabilidade nos
governos FHC, pois financiava o pagamento dos juros da dívida pública e demais compromissos
assumidos.
78
O “fator político” e a propaganda revelam-se cruciais por motivos que são até
certo ponto previsíveis: o programa, por ser extremamente austero, mesmo que ignora
pretensões de realização na área do social e até resulta em efeitos perversos à maior
parte da população. Ocorre que em regimes democráticos a permanência do, e apoio ao,
governo dos technopols depende da aprovação dos eleitores – aqueles devem, portanto
usar de habilidades midiáticas para convencer a esses de que os ônus quanto às
realizações sociais é passageiro, e que o quadro econômico e social interno será
normalizado ou otimizado em longo prazo. Justamente por essa característica da
agenda, ela é mais facilmente implementada em sociedades que estão passando ou
recentemente atravessaram grande estresse social (como guerra ou hiperinflação), ou
seja, cuja população não se encontra predisposta a opor resistência, sobretudo a um
regime econômico propalado como “salvador” e que apresentaria resultados
miraculosos em curto prazo. Assim como era o Brasil de 1994.
Fiori deixa claro que o Plano Real é representante legítimo desta classe de
Planos de Estabilização, e FHC um technopol exemplar. Primeiramente, o Real
apresenta as características padrão aludidas no CW – ajuste fiscal, reforma monetária,
reformas liberalizantes, desestatizações (por vezes irresponsáveis para com o Erário,
como foi o caso da Companhia Vale do Rio Doce). Vai além e inverte o esperado, mas
que se torna óbvio dentro da lógica do Consenso: não é o Real a ferramenta que serviu
para alavancar a eleição de Fernando Henrique, mas a pessoa pública de FHC que foi
formulada para dar tornar viável o Plano Real, e gerar uma coalizão de poderes
(reinfundir ânimo nas antigas oligarquias que se encontravam segmentadas) capaz de
por em prática e sustentar o programa de reformas planejado. Até mesmo a reeleição,
matéria de destaque do último biênio do primeiro mandato FHC é, como visto,
procedimento padrão para gerar a estabilidade prolongada de poder necessária.
O próprio FHC aponta Fiori como um de seus críticos mais lúcidos, embora
negue veementemente qualquer subserviência à programática do Consenso
[CARDOSO, 1995]. Nega explicitamente que haveria uma política de clientelismo para
com velhas oligarquias, e prefere conceber seu (então possível) futuro mandato como a
79
tentativa de efetivar uma proposta de destino para o Brasil através de alianças que
possam realmente concretizá-las. Procura compreender o período de transição em que o
país vivia quando foi Ministro da Fazenda como “uma tentativa para assegurar
condições de governabilidade e para permitir que o país chegue às eleições”. Aponta
suas propostas como uma resposta não neoliberal, mas sim socialdemocrata aos desafios
que se impõe (como os interesses corporativos – que teriam inundado a máquina pública
–, o “atraso” do empresariado industrial brasileiro e a dependência crônica do
capitalismo nacional dos equivalentes estrangeiros).
FHC é eleito sob uma bandeira de centro-direita, com apoio de setores sociais
retrógrados e autoritários. Sua Modernização Neoliberal contribui para maior
estabilidade da economia em relação aos períodos anteriores, contudo tornando-a
extremamente dependente do capital estrangeiro (e de eventuais crises mundiais) e
impondo um regime de juros básicos altos que atrai investidores, mas que multiplica a
dívida externa (essa é atualizada pelo índice de juros local). Efetivada em um país
continental e profundamente desigual como o Brasil, e caracterizada por relegar
questões sociais a enésimo plano, é difícil não conjecturar que contribuiu para o
recrudescimento real de diferenças regionais e para uma efetiva concentração de renda.
80
Os tecnopols têm por único objetivo real criar uma ilha de prosperidade para o
capital financeiro internacional, enquanto paralelamente se perpetuam a si e seus aliados
no poder político, muito mais através de manobras de propaganda e medidas que
possibilitem reeleições sucessivas e alianças majoritárias do que por ganhos reais para o
maior seguimento da população. É de fato um jogo em que alguém tem de pagar pelas
medidas de “austeridade”, de atração de capitais externos, de otimização do superávit
fiscal que será alocado para pagar dívidas e efetuar a manutenção da política financeira,
como num ciclo que alimenta a si mesmo: ganhos sociais efetivos não são a prioridade,
e podem até a serem empecilhos aos termos do Novo Paradigma.
Novamente: na lógica econômica que nos foi apresentada não existe prioridade,
muitas vezes sequer lugar, para medidas voltadas para o bem-estar social. Ela é
composta de soluções padrão e homogeneizadas visando à manutenção de uma
economia global, calcada no dólar, e que atende prioritariamente aos interesses de
analistas financeiros e grandes investidores e manipuladores de capital.
48
Ivo Lesbaupin é professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ. É mestre em Sociologia
pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro – IUPERJ, e doutor em Sociologia pela
Université de Toulouse-Le-Mirail, França. É coordenador da ONG ISER Assessoria, do Rio de Janeiro, e
membro da Direção Executiva da Associação Brasileira de ONGs – ABONG. A presente secção é
baseada em seu artigo “Hegemonia Neoliberal, Democracia em Declínio e Reação da Sociedade Civil”
presente em [LESBAUPIN et al., 1996] – citações serão feitas somente quando a contribuição vier de
outro autor.
83
49
Designadas como economias informais ou subterrâneas.
84
50
Ato com força de Lei, conforme definição e normas explícitas no art. 62, Constituição da República
Federativa do Brasil de 1988.
85
51
Segundo o autor, em 1988, havia atuando no Brasil 1288 ONGs, além de 402 entidades ecológicas.
86
Carlos Alberto Steil52, ao discorrer sobre o tema da “(...) participação das classes
populares no processo sociopolítico do país e a sua luta pela conquista da cidadania
(...)” chama a atenção ao leitor da necessidade de contextualizar esse processo no maior
que pode ser designado como vigência da Ideologia Neoliberal no Ocidente aliada à
Globalização (que pode compreendida, grosso modo, como intensificação mundial e
sem paralelo de trocas econômicas, culturais, tráfego de capitais, mercadorias, serviços,
pessoas, informação, ideias, mas também de efeitos de decisões políticas locais).
52
Carlos Alberto Steil é professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, mestre em
Teologia pela PUC-RJ, mestre em Filosofia da Educação pela FGV-RJ e doutor em Antropologia Social
pelo Museu Nacional/UFRJ, Pós-Doutor pela Universidade da Califórnia, San Diego, EUA. A presente
secção é baseada em seu artigo “Movimento Popular e ONGs em Tempos de Globalização” presente em
[LESBAUPIN et al., 1996] – citações serão feitas somente quando a contribuição vier de outro autor.
87
Steil aponta ambos os fatores para a crise da esquerda da década de 1990: falta
de eixo de sustentação para se estabelecer ou dar continuidade ao princípio do Pleno
Emprego, aliado à queda do Bloco Socialista54 – há perda momentânea de referenciais,
credibilidade, e precedentes incontestes para se suster uma luta política que proponha
alternativa ao sistema socioeconômico e produtivo vigente.
53
Vide texto “América Latina: Sacrifício Inútil”, análise de Dércio Garcia Munhoz, Economista,
Professor Titular do Departamento de Economia da Universidade de Brasília – UnB até 1996. Ex-
Presidente do Conselho Federal de Economia – COFECON e do Conselho Nacional da Previdência
Social – CNPS/MPS. Disponível no sítio on-line <http://revistas.fee.tche.br/index.php/indicadores/article/
viewFile/714/962>, consultado em 15 de setembro de 2015.
54
A China, nominalmente também um Estado Comunista, hoje ator internacional de relevo, buscou
alternativa à URSS quando de desentendimentos ideológicos e práticos (parceria bélica, questões
fronteiriças) com a União, ocasionalmente entre 1950 a 1970. Além de travar contatos amistosos com os
EUA (e.g., visita dos Presidentes dos EUA Richard Nixon, 1972, e Ronald Reagan, 1984), estabeleceu
precedentes que incentivavam uma economia tipo mista – “Socialismo de Mercado” (sic) – em sua
Constituição de 1982. Configura-se difícil compreendê-la como âncora de uma proposta verdadeiramente
alternativa ao Capitalismo.
Fonte de dados e datas para a argumentação: Wikipédia, diversos verbetes, acesso em datas variadas.
88
Ao longo dos anos de 1980, o Movimento Social sofreria reflexos das diferentes
identidades dos grupos que formam suas bases – o Novo Movimento Social (NMS) vai
questionar as categorias de agregação anteriores (sistema de ideias, classe, partido),
“(...) as ideologias pragmáticas do trabalho popular (...)”, e solapar a ideia de unificação
popular estratégica voltada a uma mudança coletiva num sentido único: as diversas
identidades autônomas (gênero, sexo, etnia, ecologia, etc.), “novos sujeitos históricos”,
constroem demandas próprias centradas em fatores culturais e sócio-políticos. Tais
petições não se traduzem necessariamente em um projeto unificado de transformação. O
enfrentamento passa a ser majoritariamente uma construção simbólica. Tópicos como
exclusão social, e a construção e garantia de cidadanias coletivas convertem-se no
objetivo central de sua agência política [idem].
Segundo a proposta realista do autor, o MSP foi sitiado por uma cultura
massificada pelos veículos da mídia tradicional (eles próprios representantes dos
interesses das classes dominantes, que passaram há muito tempo a serem os seus
próprios) que deslegitimam as lutas populares, como também buscam negar (ou
estipular uma margem “aceitável”) para seu alcance. Já a “proposta realista” propalada
pelos meios de comunicação social dominantes para o público é de uma “utopia
realizada”: “o consenso foi atingido” e embasa a sociedade – negam-se conflitos dentro
do universo político, mas principalmente as contradições sociais fundamentais. Uma
idealizada cooperação entre os três setores da sociedade no paradigma Neoliberal – a
Sociedade Civil, o Mercado, e o Estado – mascara quaisquer forças em conflito.
89
55
Com o avanço da prática, chama-se genericamente e para fins de convênio e termos de acordo com o
Estado de OSC – Organização da Sociedade Civil as organizações que atendam às especificações da Lei
nº 9790/99 e legislação correlata, quer as mesmas se intitulem OSC, SC, OSCIP, ONG, etc..
91
Hoje, após iniciativas de transparência nas contas públicas56 levadas a cabo até
com determinada diligência na última década, o acesso às informações sobre os valores
cedidos e características dos convênios é aberto a todo cidadão, através do Portal da
Transparência dos Recursos Públicos Federais. Contudo, como os critérios para a
efetivação de Convênios e os muito populares Termos de Parceria entre a União e
OSCIPs são bem inferiores aos padrões para contratação de serviços57, por exemplo,
segue existindo margem para, se não irregularidades perante a Lei, vícios diante da
Sociedade, que em última instância é quem custeia e quem deve perceber a ação dessas
organizações.
56
A Lei de Acesso à Informação, Lei nº 12.527, de 18 de novembro de 2011, e seu Ato regulatório, o
Decreto nº 7.724, de 16 de maio de 2012, são os mecanismos centrais neste sentido.
57
Esses últimos são estabelecidos pela Lei das Licitações, Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993, e
(ampla) legislação correlata.
92
58
Todas são concepções levantadas por Aristóteles, filósofo do século IV A.C., aluno de Platão e
preceptor de Alexandre da Macedônia, fundador do Liceu ateniense. Em seu De Anima, “Da Alma”,
estabelece a existência de três variedades de almas, em franca alegoria para com seus estudos biológicos:
vegetal (responsável pela nutrição), animal (sensação e movimento) e humano-racional (distinção entre o
belo e o feio) – essas se fixariam em sucessão no embrião ou feto, o corpo natural.
94
59
Segundo o Compêndio do Catecismo da Igreja Católica, “os sacramentos tocam todas as etapas e
momentos importantes da vida cristã. Todos os sacramentos estão ordenados para a Eucaristia [o rito
central na doutrina cristã, de reafirmação da divindade do Cristo e de seu sacrifício, e os diversos
significados desses para os membros da cristandade] ‘como para o seu fim’ (S. Tomás de Aquino)”. Vide
<http://www.vatican.va/archive/compendium_ccc/documents/archive_2005_compendium-ccc_po.html>.
60
Para base teológica da prática vide, e.g., Livro de Mateus, Capítulo 18, versículos 20 e 21.
95
61
O cânone do cristianismo céltico disseminou-se pela Europa (essa
denominação vigorou o século VIII, quando as histórias das comunidades locais
ganharam maior individualidade). Nele o aborto era considerado pecado não
equivalente ao homicídio: ainda que possa ter sido considerado grave, sua penitência era
menor que a dos pecados sexuais, e era relativizada segundo o grau de hominização do
embrião ou feto. O Penitencial de Beda (compilado pelo monge chamado de Venerável
Beda, circa 673 a 735, natural da atual Inglaterra, santo católico e Doutor da Igreja por
seu trabalho teológico, considerado também o “Pai da História Inglesa”) relativiza
inclusive as circunstâncias do ato. A excomunhão era raramente invocada (ibidem).
61
O mentor da chamada Missão Angla ou Gregoriana, que revitalizou e disseminou o cristianismo na
região da atual Grã Bretanha, Papa Gregório I (“Magno”, “o Grande”, ou “o Dialogador” – este devido a
seus escritos teológicos que lhe valeram o título de Doutor da Igreja –, monge da Ordem de São
Benedito, santo católico, romano de nascimento, circa 540 a 604), determinou em carta a Santo
Agostinho de Cantuária (romano, século VI), o chamado “Apóstolo dos Ingleses” que esteve à frente
dessa empreitada, que houvesse tolerância para com os costumes do catolicismo local. Vide escritos de
Beda, disponíveis em <http://legacy.fordham.edu/halsall/basis/bede-book1.asp>.
62
Do grego catekeo, que significa “faço ressoar” e no passivo, “ouço”.
96
63
Condena o aborto e o infanticídio, sem estabelecer qualquer normativa ou orientação específica.
64
“Católico”: Universal (latim eclesiástico catholicus, -a, -um, do grego katholikós, -é, -ón) in
“Dicionário Priberam da Língua Portuguesa”, 2008-2013, disponível on-line no sítio
<http://www.priberam.pt/dlpo/catolico>, consultado em 30 de agosto de 2015.
97
65
Base bíblica, Livro do Êxodo, Capítulo 21, Versículos 22 e 23: “Se homens brigarem e ferirem uma
mulher grávida, e ela abortar, sem maior dano [forma], o culpado será obrigado a indenizar o que lhe
exigir o marido da mulher, e pagará o que os árbitros determinarem. Mas, se houver dano [forma] grave,
então darás vida por vida, olho por olho, dente por dente” (grifo nosso). Exemplo do século V A.C. da
Lex Talionis (ou Lei da Retaliação, numa tradução livre), presente na história humana pelo menos desde
o Código de Hamurabi babilônico, do século XVII A.C. – datas aproximadas.
66
Lei nº 11.105, de 24 de março de 2005, regulamenta pelo Decreto nº 5.591, de 22 de novembro de
2005.
67
Constituição Pastoral “Gaudium et Spes: Sobre a Igreja no Mundo Actual”, datada de 07 de dezembro
de 1967, subscrita pelo Papa Paulo VI.
99
Vem reafirmar preceitos e dogmas da fé, não abandona seu caráter normatizador,
e apresenta tendência à reforma e moralização dos costumes eclesiásticos. Entre os
cânones69 principais desse Concílio, há restrições à conduta do clero apostólico, dos
padres in secula, que visa (dentre diversos objetivos) a uma conformação com o padrão
votivo do clero monacal, ou regular (de regula, regra): entre outros, a reafirmação do
celibato, normas práticas de convivência no mundo para os sacerdotes, e orientar quanto
à proibição da simonia. Institucionalmente, a definição de uma hierarquia interna e entre
as Igrejas Patriarcais, além da reafirmação da Primazia Papal. Quanto ao corpo de fiéis,
a formalização de práticas unificadas (e.g., adoção de sacramentos da confissão –
formalmente sigiloso – e da comunhão a partir do fim da primeira infância, podendo-os
somente serem ministrados por sacerdotes ordenados), o combate às heresias e normas
de convívio em comunidades cristãs para judeus (enfaticamente) e mulçumanos.
68
Sob a influência de um movimento de retorno aos princípios da Regula Benedict (escritas por São
Bento de Núrsia no século VI, fundador da Ordem dos Beneditinos) e baseado nos Códigos de Bento de
Aniane (século IX), somado à estruturação de uma comunidade de mosteiros, abadias, conventos e
paróquias hierarquicamente ligada e/ou em rede, capitaneado pela Abadia de Cluny (Borgonha, província
franca), os papados dos séculos X até XII foram promotores de uma reforma moralizante na vida
monástica. Vide verbete “Cluniac Reform”, da New Catholic Encyclopedia – 2sd. Ed., Gale Group.
Deve se fazer notar que menções seguintes a conceitos, fatos, datas e personagens, cuja citação de origem
seja eventualmente suprimida de forma a não prejudicar o ritmo de leitura, são provenientes de verbetes
da mesma Encyclopedia.
69
Vide, em inglês, no sítio on-line <http://legacy.fordham.edu/halsall/basis/lateran4.asp>, consulta em 06
de setembro de 2015.
100
Uma vida laica ou votiva baseada na livre e/ou individual interpretação dos
Evangelhos, sem intermediação da doutrina, representava perigo para não só ao edifício
que se pretendia ideologicamente monolítico da ICAR, mas à sua própria autoridade:
Francisco de Assis (Giovanni di Pietro di Bernardone, da cidade de Assis da península
itálica, 1182 – 1226), submeteu-se ao império papal, teve a Regra de sua Ordem
Mendicante formalmente admitida, e foi canonizado em 1228, menos de dois anos após
sua morte. Os cátaros (do grego khataros, puro) foram diplomaticamente premidos por
missões eclesiais, e com o fracasso dessas, eliminados na Cruzada Albigense.
70
O Consolamentum era um rito que guardava semelhanças com a confissão católica. Podendo ser
administrado somente uma vez na vida do crente, que a partir daí alcançava a libertação dos pecados e o
status de perfecti, perfeito. Por esse motivo sua prática era retardada até a morte iminente – daí não raro o
fiel deliberadamente cessar os cuidados necessários para manutenção de sua vida após o rito.
101
71
A Ordem nasce por esforço do religioso Domingos de Gusmão (nobre do Reino de Castela, 1170 –
1221, canonizado em 1234), e colaboradores, durante as Missões aos Cátaros: pretendiam a “vitória do
catolicismo” através da pregação evangélica e hábitos humildes – diante de sucessos de seu grupo, mas do
impedimento provisório pelo IV Concílio de Latrão da criação de novas Ordens (portanto novas Regras),
assumem a Regra Agostiniana e tem as atividades aprovadas por Inocêncio III (sua Regra própria é
sancionada no papado seguinte, em 1216). Dado o caráter doutrinário e evangelizador da Ordem (até
então atividades exclusivas de bispos), que os fazem necessariamente afeitos ao estudo dos textos
canônicos e obras célebres, seus membros se tornarão teólogos, escolásticos, mas também serão
chamados a serem juízes ou assistentes em Tribunais do Santo Ofício e outras tarefas da Inquisição.
72
A (Primeira) Escolástica designa, grosso modo, uma corrente filosófica que nasceu e se desenvolveu
nos centros de saber monacais e depois Universitários entre os séculos IX, X ou XI a XVI, que
amalgamava elementos da filosofia clássica (principalmente textos de Platão e Aristóteles), do
cristianismo e judaísmo, na tentativa aliar os preceitos da fé cristã à (ou justificá-los a partir da) razão.
73
Pode-se tentar a compreensão desses conceitos em Aristóteles, embora deva-se desculpar a falta de
intimidade com os mesmos: Forma e Matéria são Substâncias possíveis e ambas pertencem à Natureza –
portanto de interesse do cientista natural (equivalente ao título de filósofo da natureza) – e fazem parte da
dinâmica dessa de Movimento ou Mudança, Geração e Corrupção. A Matéria é o constitutivo do objeto.
A Forma é aquilo que molda o ente (em sentido amplo, que o define, sendo, portanto, também causa da
matéria e causa primeira da natureza, pois ao fixar o objeto, atribui-se a ele determinadas características
materiais) – pode ser aquilo que sofre mudança no movimento, ou, caso seja a essência daquele ser,
permanecerá mesmo diante da mudança da matéria e passa a ser designada Substância Primeira. Potência
é a capacidade de receber forma ulterior; Ato é o ser já informado, “perfeito”: a transformação do
primeiro no segundo é do que trata o movimento, e nenhum ser é capaz de produzi-lo sem um motor (o
Motor Imóvel que inicia o “movimento primário” seria Deus, intelecto puro). A alma é a “forma” (em
sentido ontológico), a “enteléquia” (isso é, o “ato”, a “perfeição”) para um corpo material a que se
conjuga a potência de vida – cada ser vivo possui aquela(s) necessária(s) para as funções que lhes são
próprias: alma vegetativa, alma sensitiva, alma intelectiva ou racional, em escala de complexidade.
102
ocorresse de maneira teleológica (com vistas a um fim, tal como Aristóteles concebia,
negando uma natureza puramente necessária ou, dir-se-ia, “contingente”), sua mudança
e/ou sua evolução em escala de perfeições, atribui o sentido desse à forma, sendo a
matéria natureza necessária, mas não suficiente, para o movimento. O motor da
mudança nos seres viventes seria a alma, e a alma racional associada ao ser humano.
Em seu Suma Teológica, Quinto Volume, Aquino propõe que “Para que o
intelecto aja requer-se o corpo, não como um órgão necessário para exercitar tal ação,
mas apenas como objeto (...). Mas ter tal necessidade do corpo não exclui que o
intelecto seja subsistente (...).”. A questão que se impõe na discussão que se pretende
levar adiante é acerca da hominização, ou do começo da vida humana, do embrião ou
feto: levando-se em conta as almas vegetativa, sensível e intelectiva que dão forma ao
ente humano, a alma racional só pode se fazer presente em um corpo capaz de recebê-
la? Na doutrina católica, há espaço para múltiplas interpretações75? A ICAR manifesta
uma interpretação oficial que se traduz na hominização imediata, como se verá.
74
Vide biografia e trabalhos no sítio on-line <http://plato.stanford.edu/entries/olivi/>, visitado em 7 de
janeiro de 2016.
75
A importância deste deve ser notada, pois trata-se, como em Agostinho, de distinguir o ato de
interromper uma gravidez entre o chamado “Pecado Mortal”, de outro “Grave”.
103
Foi convocado pelo Papa Pio IX (Giovanni Maria Mastai-Ferretti, 1792 – 1878,
papa entre 1846 e a data de sua morte), que possuía histórico de decisões conservadoras:
o Syllabus Errorum, e a Encíclica Quanta Cura, “Sobre os Principais Erros da Época”,
ambos emitidos em 8 de dezembro de 1864, são reações da ICAR ao laicismo pessoal e
de Estado, racionalismo, ideários político-sociais, etc. A decisão notável desse concílio
foi o decreto sobre a primazia e infalibilidade papais, questões controversas que já
vinham sendo discutidas, seus termos foram estipulados na Constituição Dogmática
Pastor Aeternus – outra que merece menção é a Constituição Dogmática Dei Filius, “Da
Fé Católica”, que estabelece a submissão da razão à fé. Ademais, existe um reforço
inegável à ortodoxia e uma posição crítica e negativa diante do mundo e do novo.
76
Texto da Carta Encíclica “Humanae Vitae: Sobre a Regulação da Natalidade”, sítio on-line <http://w2.
vatican.va/content/paul-vi/pt/encyclicals/documents/hf_p-vi_enc_25071968_humanae-vitae.html>,
visitado em 31 de dezembro de 2015.
77
Texto da Constituição Pastoral “Gaudium et Spes: Sobre a Igreja no Mundo Atual”, sítio on-line
<http://www.vatican.va/archive/hist_councils/ii_vatican_council/documents/vat-ii_const_19651207_
gaudium-et-spes_po.html>, visitado em 31 de dezembro de 2015.
105
78
Encontra-se tratado no “Título VI: Dos Delitos Contra a Vida e Liberdade do Homem” do Código de
Direito Canônico, equivalendo-se a homicídio, rapto, mutilação e violência física perpetrada – possui
pena superior entre os mesmos.
79
Flávio Pedro Sabácio Justiniano, Justiniano I (482 – 565), Imperador Bizantino entre 527 até sua morte.
Seu Corpus Juris Civilis (essa é uma designação dada já no século XVI ao conjunto da obra), formulado
principalmente entre 528 e 534, era destinado a substituir os codes que o precederam: buscou-se compilar,
ordenar e comportar as legislações romanas, aquelas promulgadas por seus antecessores e suas próprias,
em um corpo coerente e adaptado ao seu tempo e suas pretensões como regente. Redescoberto no
Ocidente à época da fundação das primeiras Universidades europeias (séculos XI a XVI), tornou-se
incentivo e referência para o estudo do Direito Romano, e mesmo na formulação de novas legislações.
107
Essa discussão não foi de forma alguma exaustiva das temáticas apresentadas:
aqui a pretensão foi salientar que o Catolicismo Romano foi e é dinamicamente
constituído, é uma instituição humana (política, social, diacrônica) de dezessete séculos
– em seu centro pode-se localizar cartas de patriarcas de uma fé primeva e dogmas
definidos em Nicéia, mas ele permanece reinterpretando-se, agregando ao edifício
principal novas instituições, reformando, reinterpretando ou eliminando (no sentido
108
figurado) antigas ou (por vezes no sentido literal, em mais ocasiões do que o esperado
para a fé do amai ao próximo) discordantes – diz a apresentação do Código de Direito
Canônico de 1983, “(...) teve a Igreja Católica, no decurso dos séculos, o costume de as
reformar e renovar [as Leis da Disciplina Sagrada; grifo nosso] para que,
conservando sempre a fidelidade ao seu divino Fundador, correspondessem
adequadamente à missão salvífica que lhe foi confiada”. Somos hoje nós mesmos
testemunhas de acenos de mudanças efetivas na face da ICAR.
Com a revolução médica e a ascensão dos Estados Nacionais nos séculos XVIII
e XIX, e os ecos das expansões supranacionais e das guerras, pestes e outros motivos de
declínio populacional decorrentes dos períodos anteriores, gerar filhos passou a
equivaler a dar à luz cidadãos. A partir de determinado momento, o Estado Nacional
entendeu por bem tomar responsabilidade sobre o súdito (o futuro braço armado,
trabalhador, contribuinte) não nascido: em 1870, na França, o aborto foi declarado via
ato legislativo “crime contra a pessoa”. O Imperialismo europeu do século XIX e XX
leva a outras nações promulgarem leis semelhantes. A Primeira Grande Guerra ceifa
tantas vidas no continente, e produz ou reacende tantos nacionalismos, que essas
determinações tendem a se disseminarem, serem observadas com mais atenção, se
complexificarem e tornarem-se mais rígidas. Podem ser seletivas, de forma a reduzir a
taxa de natalidade dos naturais das colônias ou etnias minoritárias dentro dos territórios.
Em 1967, nos Estados Unidos, o estado do Colorado admitiu por ato legislativo
o aborto em casos específicos, após anos de mobilização feminista em favor da
autodeterminação e ao menos um precedente indiscutivelmente favorável em decisões
da Suprema Corte estadunidense (o caso Griswold versus Connecticut, veredicto em
1965 80 ). Até o início da década de 1970, naquele país, cerca de trinta estados
condenavam plenamente o aborto, enquanto nos demais a prática era consentida sob
diversas restrições. A primeira lei moderna realmente revolucionária sobre a matéria nos
EUA vem em 1970, do insular estado do Havaí, que permite a interrupção da gravidez
segundo decisão da mulher – de maneira semelhante, Nova York sanciona lei no
mesmo ano e estabelece o amplo consentimento para a interrupção da gestação desde
que antes de se completar sua vigésima quarta semana. O caso de Nova York é notório,
pois exime a solicitante de apresentar comprovante de residência dentro das fronteiras
desse estado: em termos práticos, e fazendo-se notar o real federalismo existente nos
EUA, criou-se uma “ilha de legalização” no centro da BosWash81, que recebia mulheres
residentes no entorno e mesmo de todo o país, conforme sua condição econômica
permitisse locomoção e atendimento clínico.
80
Vide <https://www.law.cornell.edu/supremecourt/text/381/479> (em inglês), acessado em 6 de
novembro de 2015.
81
“De Boston a Washington”: a maior megalópole do mundo, conforme o trabalho seminal do geógrafo
francês Jean Gottmann de 1961, Megalopolis: The Urbanized Northeastern Seaboard of the United
States. Há de se notar a importância enquanto centro decisório político e econômico, e de influência
cultural, da região – qualquer resolução local pode determinar um padrão que, levando-se em
consideração sua relevância geopolítica, reverberaria através do globo.
82
Vide <https://supreme.justia.com/cases/federal/us/410/113/> (em inglês), acessado em 6 de novembro
de 2015. Sua decisão foi emitida em conjunto com a de outro caso de mesma matéria, proveniente do
estado da Geórgia, Doe versus Bolton, cuja pode ser encontrado no sítio), acessado em 6 de novembro de
2015, <https://supreme.justia.com/cases/federal/us/410/179/> (em inglês).
83
Vide <http://definitions.uslegal.com/r/right-to-privacy/> (em inglês), acessado em 6 de novembro de
2015.
110
Margaret Sanger, filha de família imigrante irlandesa com raízes católicas, sexta
nascida viva (de um total de onze) de dezoito irmãos, cujo pai envolveu-se na luta pelo
sufrágio feminino e educação pública. Casa-se em 1902 com o arquiteto e pintor
William Sanger. Em 1911, a família muda-se de uma cidade periférica para Nova York
– é a oportunidade de Margaret, que havia adotado a linha política de seu companheiro e
tornara-se feminista, travar contato com a intelectualidade modernista e ativistas sociais
nova-iorquinos. Escreve colunas no jornal New York Call (afiliado ao Sociallist Party of
America) a partir de 1912 que chamam a atenção pela franqueza e linguagem direta com
que tratam a sexualidade, embora continue o trabalho de enfermeira atendendo aos
moradores, membros da classe operária, do Lower East Side. O mensário de influência
anarquista, The Woman Rebel, cujo mote é a frase nietzschiana “No Gods, No Masters”,
é publicado a partir de março de 1914 tendo-a por autora, e em paralelo desenvolve um
84
A figura de Margaret Sanger foi ligada muitas vezes ao incentivo à eugenia racial (justificam-no por
um suposto relacionamento com a Ku Klux Klan, e pela área em que erigiu sua clínica em Nova York), ao
anacrônico neomalthusianismo, e supostamente seria “títere” de organizações que buscavam (ou buscam,
conforme alguns) controle social por meio de políticas públicas capitaneadas pela, e no interesse da
iniciativa privada. O Movimento Feminista atual tem-na como uma de suas precursoras mais ilustres.
111
85
Texto disponível no sítio on-line <http://archive.lib.msu.edu/DMC/AmRad/familylimitations.pdf> (em
inglês), acessado em 9 de novembro de 2015. Segundo a autora, a métodos contraceptivos de caráter
preventivo “são a melhor forma de prevenir o aborto” – a interrupção de uma gravidez parece ser
compreendida por ela, em 1914, como violência física à mulher que deveria ser evitada através da
educação e informação. O panfleto adota certo tom de “censura” quanto ao número máximo de filhos
“recomendável” a um casal operário, o que pode ser julgado um tanto estranho dadas as influências
socialistas e anarquistas da autora.
86
Texto disponível no sítio on-line <http://www.accessible-archives.com/2011/03/federal-comstock-law-
passed-1873/> (em inglês), acessado em 9 de novembro de 2015: “Postal Laws and Regulations of the
United States of America (1913)”, Section 480 (pp. 264 – 265).
112
a sua irmã mais nova e também enfermeira Ethel Higgins Byrne 87 (1883 – 1955), e
Fania Esiah Mindell (1894 – 1969, imigrante judia russa, ativista do feminismo,
tradutora, designer de roupas para teatro), na área do Brooklyn chamada Brownsville (na
época de população majoritariamente imigrante, de origem judaica), em 16 de outubro
de 1916, a primeira clínica voltada nominalmente ao controle de natalidade dos EUA.
As três foram eventualmente processadas: “A Clínica” teria operado somente por nove
dias antes da primeira prisão de Sanger (The Margaret Sanger Papers Project, NYU).
87
A filha desta, Olive Charles Byrne, coabitará com William Moulton Marston (1893 – 1947, psicólogo)
e sua esposa formal, Elizabeth Holloway Marston (1893 – 1993, psicóloga), numa estrutura de
relacionamento que hoje é designada poliamor. William, que assinava Charles Moulton, foi idealizador
nominal e roteirista da personagem de Comic Books dos EUA, Wonder Woman, baseada em Olive e
Elizabeth. Marston se dizia influenciado pelos textos e ação de Margaret Sanger, e por outras
representantes do feminismo estadunidense – seus roteiros para história em quadrinhos são estudados
devido às referências, tanto teóricas como pessoais, que contêm. O trabalho acadêmico dele e da esposa
contribuiu para a criação do polígrafo, o “detector de mentiras”. Vide artigo disponível on-line no sítio
<http://digitalcommons.kennesaw.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=1022&context=kjur> (em inglês),
acessado em 9 de novembro de 2015.
113
semelhança com aquela primeira instalada na periferia de Nova York, já contava com
mais de trezentas unidades ao redor do mundo88.
Margareth Sanger precisou, para tornar viável sua militância feminista (vista por
muitos elementos como radical) e compatibiliza-la com as ações pró mulher (que são
diferentes aspectos não necessariamente relacionados, e para muitos de seus
colaboradores e colaboradoras o ponto de interesse se restringia ao controle de
natalidade, ou com muito menos relevância no empoderamento feminino), adaptar seus
pontos de vista no decorrer do tempo: a Revolução de 1917 a afastou de
posicionamentos socialistas, e conforme angariava apoio financeiro do grande
empresariado adaptava seu discurso oficial às pretensões desses – inevitavelmente essa
série de papéis assumidos vão pesar sobre sua pessoa. Ao final da década de 1930, o
terror de uma propaganda e depois de uma política efetiva de “planejamento
populacional” extremista e inconcebivelmente assassina como a praticada sob o
nazismo nos territórios ocupados pelo III Reich começa a vir a público: Margaret
Sanger utilizou-se de uma argumentação reconhecivelmente neomalthusiana, contudo
chegou a mencionar esterilização forçada por lei, “eugenia científica positiva”, e a
atribuir crédito a crenças pseudocientíficos (e.g., acerca de uma suposta
“degenerescência intelectual e física” progressiva, e tendências à violência,
determinadas pelo meio), como exposto em alguns pontos de seu livro “The Pivot of
Civilization” 89 , de 1922. Em 1942 torna-se figura meramente simbólica dentro do
movimento que ela havia engendrado, e que já via o termo Birth Control com reservas.
Retira-se para Tucson, em Texas, nesse ano.
88
Fonte deste parágrafo e os dois seguintes, sítio on-line <http://www.anb.org/articles/15/15-
00598.html> (em inglês), acessado em 9 de novembro de 2015.
89
Vide texto completo da obra, em inglês, no sítio on-line <http://www.gutenberg.org/files/1689/1689-
h/1689-h.htm#link2HCH0005>, acessado em 9 de novembro de 2015.
114
abandonar a presidência em 1928 por sua figura ser associada a uma imagem
demasiadamente “radical”) e o Birth Control Clinical Research Bureau unem-se sob o
título Birth Control Federation of America, que em 1942 será renomeada como Planned
Parenthood Federation of America – PPFA. O retiro de Sanger dura pouco tempo: com
o final da Guerra e a complexidade da economia mundial que se segue, o controle de
natalidade volta a ser assunto aberto a debate, agora também de renovado interesse
geopolítico – em 1950 ela funda a International Planned Parenthood Federation –
IPPF, numa conferência em Bombaim, Índia, tornando-se presidente da organização até
1959, quando a IPPF já estava presente em vinte e seis nações. Consta que não se
dispunha a propor ou defender medidas de políticas contraceptivas estatais que
ignorassem as necessidades e a individualidade femininas.
Nos anos de 1950 e 1960, organizam-se com financiamento particular uma série
de palestras nos EUA cujo tema é aborto como método contraceptivo, o que abre o
debate público sobre o assunto. A década de 1960 tem o desenvolvimento da “pílula” e
a “contestação dos costumes”. Correndo o óbvio risco de desenhar um cenário simplório
e maniqueísta, pode-se afirmar que movimentos sociopolíticos vão se articular e evoluir
para a formação de frentes de pressão contrárias, representadas exemplarmente na
National Right to Life Committee – NRLC (1º de abril de 1967, formada por intermédio
90
Fonte dessas informações e explanação muito mais detida podem ser encontradas no sítio on-line
<http://jhmas.oxfordjournals.org/content/57/2/117.full.pdf> (em inglês), acessado em 31 de dezembro de
2015.
115
91
Vide sítio on-line <https://www.plannedparenthood.org/about-us/who-we-are> (em inglês), consultado
em 31 de dezembro de 2015.
92
A PPFA foi associada diversas vezes na história recente a iniciativas dúbias ou escândalos que vão
desde lobby com políticos dos países do antigo Terceiro Mundo para a implantação de políticas estatais
de redução de natalidade à “propaganda voltada a grupos específicos”, passando pela comercialização de
restos mortais de fetos – são temáticas cuja observação não pode interferir nessa breve citação histórica,
mas forçosamente deve-se mencionar o atentado a tiros a uma unidade do estado do Colorado conduzido
por Robert Lewis Dear em 27 de novembro de 2015, e que tirou a vida de três pessoas.
93
Vide no sítio on-line <http://www.nyc.gov/html/doh/downloads/pdf/vs/vs-pregnancy-outcomes-
2013.pdf> o Summary of Vital Statistics 2013, The City of New York: Pregnancy Outcomes. Exime-se
aqui de qualquer análise ou posicionamento sobre os dados, por se compreender que para tanto é
necessário ferramental teórico e técnico, além de proximidade social com tal realidade que estão muito
além da capacidade do autor. Faço notar, porém, que Movimentos Feministas Negros estadunidenses
apresentam motivos que se afiguram pertinentes para negar a validade de alegações quanto a alguma
“intencionalidade subjacente”.
94
Hoje, Catholics For Choice.
116
Houve de fato associados vinculados à vida religiosa, padres e freiras que foram
repreendidos por subscrever petições em favor da discussão do aborto e de outros temas
considerados delicados, além de prover o sacramento do Batismo no caso de pais de
diferentes religiões, por exemplo (a Congregação dos EUA observava com atenção as
restrições ao batismo de crianças de somente pai ou mãe católicos, pois não haveria
certeza da criação do infante na fé romana). Por ocasião do aniversário de um ano da
sentença Roe vs Wade, houve o episódio da “coroação” de Patricia McQuillam como
“papisa” nas escadarias da Catedral de São Patrício, em Nova York: essa foi uma tática
95
O manifesto de 1993 foi proferido por ocasião da proposta do então presidente dos EUA, William
Jefferson “Bill” Clinton (1946), para incluir na reforma do sistema de saúde americano interrupções de
gravidezes de mulheres pobres como serviço gratuito: vide por exemplo o sítio on-line
<http://articles.chicagotribune.com/1993-05-12/news/9305120086_1_catholic-bishops-archbishops-and-
cardinals-bishops-pro-life-committee> (em inglês), acessado em 31 de dezembro de 2015.
96
Vide sítio on-line <http://www.usccb.org/news/2000/00-123.cfm> (em inglês), acessado em 31 de
dezembro de 2015.
117
que obteve sucesso para se atrair a atenção pública para a atuação do grupo - nesse
período inicial de atividades, as CFFC agiam com recursos limitados, buscando atrair
atenção e pôr a debate o assunto através de intervenções justamente em manifestações
pró-vida e similares. O objetivo tornava-se cada vez mais mostrar que as vozes
dissidentes entre a comunidade laica e mesmo o baixo clero eram maioria. A liderança
de Patricia McMahon em 1979 dá ao grupo status formal de instituição educacional ao
invés de militante, e atrai contribuições de fundações, permitindo a edição profissional
dos primeiros panfletos e revistas [idem].
O grupo ganha novo alento sob a direção da ativista Frances Kissling (1943).
Filha de família de católicos poloneses, desejou ser freira aos 19 anos. Seis meses
depois abandona o convento, vindo a engajar-se em movimentos de mulheres e
feministas ao redor dos EUA nos anos de 1960. Com a publicidade dos primeiros casos
de liberação do aborto pela Suprema Corte dos EUA, recebe convite de gerir uma
clínica em Pelham, Nova York. Em 1978 junta-se às CFFC, e em 1982 torna-se sua
presidente: é responsável, no período das eleições presidenciais estadunidenses de 1984,
por um “anúncio-manifesto” de página inteira no New York Times chamado “A
Diversity of Opinions Regarding Abortion Exists Among Committed Catholics” datado
de sete de outubro desse ano – o artigo foi uma resposta à crítica do Arcebispo de Nova
York quanto à indicação pelo Partido Democrata à vice na chapa à presidência de uma
membro, Geraldine Anne Ferraro (1935 – 2011), que havia manifestado publicamente
que os católicos dos EUA não eram unânimes quanto a questão do aborto. A
repercussão desse acontecimento opôs clara e definitivamente o Vaticano e a
Congregação de Bispos e Arcebispos dos EUA às CFFC. As declarações formais da
ICAR e inclusive o chamamento à retratação dos religiosos, religiosas e teólogos que
subscreveram o documento coloca as CFFC definitivamente em lugar de destaque como
interlocutoras, e majora sua representatividade no movimento pró-escolha [ibidem].
Francis Kissling foi presidente das Catholics For Choice durante vinte e cinco
anos, até 2007. Hoje sua carreira é voltada para produção textual e acadêmica sobre
bioética, direitos reprodutivos e religião, além de ocupar-se da presidência do The
Center for Health, Ethics and Social Policy97.
97
Vide sítio on-line <http://www.chsp.org/> (em inglês), visitado em 31 de dezembro de 2015.
118
98
Todas as informações presentes aqui foram obtidas a partir do sítio oficial on-line da CDDLA
<http://catolicasporelderechoadecidir.net/inicio.php>, e de publicações e artigos das Católicas Pelo
Direito de Decidir Brasil, diversos acessos em datas variadas.
119
organizado, publica sua Carta de Princípios 99 – uma nova será publicada em 2011,
diante da entrada de novas representações ao longo dos anos. Nela ratificam serem
movimentos autônomos de pessoas católicas e feministas, comprometidas com a busca
da justiça social, autonomia pessoal (principalmente para mulheres, e no que tange
decidir sobre o próprio corpo), garantia social para a prática de diferentes religiosidades,
orientadas por um pensamento teológico e feminista. Postam-se contra preconceitos de
gênero, cor, por Estados laicos (como condição para liberdade religiosa) e em defesa
dos Direitos Humanos.
99
Versão atualizada em 2011 pode ser encontrada no sítio on-line <http://www.catolicas.com.ar/portal/
index.php?option=com_content&view=article&id=63%3Acarta-de-principios-de-la-red-latinoamericana-
de-catolicas-por-el-derecho-a-decidir&catid=34&Itemid=166&lang=es> (em espanhol).
100
Listagens podem ser encontradas nos sítios on-line < http://catolicasporelderechoadecidir.net/cdd_
campanas.php> e <http://catolicasporelderechoadecidir.net/cdd_enlaces.php> (ambos em espanhol).
120
101
É inevitável que se questione se, ou quando, a prática do aborto é uma ruptura do referido domínio, ou
uma confirmação do mesmo: poderia ser tanto provocado pela mulher como técnica de controle de
natalidade (muitas vezes à revelia do esposo e com cumplicidade de outras mulheres), quanto como
121
“tática para se esconder a desonra” que recairia sobre a família no caso de gravidez fora do casamento
(com o apoio ou mesmo mediante exigência do chefe dessa). Em ambos os casos, ou se buscava ocultar o
caso às autoridades e ao Estado, ou se contava com sua anuência, de acordo com a posição social
ocupada.
122
102
Vide sítio on-line <http://cpdoc.fgv.br/sites/default/files/verbetes/primeira-republica/CONFEDERA
%C3%87%C3%83O%20OPER%C3%81RIA%20BRASILEIRA%20%28COB%29.pdf>, acessado em
31 de dezembro de 2015.
123
103
Vide sítio on-line <http://www.projetomemoria.art.br/RuiBarbosa/glossario/a/greve-1917.htm>,
acessado em 31 de dezembro de 2015.
104
Dentre outras tantas mulheres notáveis: Celina Guimarães Vianna (1890 – 1972) requereu em 1927 a
inclusão de seu nome na lista de eleitores de Mossoró / RN, devido a uma brecha na legislação desse
estado, sendo a primeira brasileira a votar; Maria Ernestina Carneiro Santiago Manso Pereira (1903 –
1995), conhecida por Mietta Santiago, advogada e participante do Movimento Modernista que conquistou
o direito de votar e ser votada para mandato de deputada através de um mandado de segurança de 1928
baseado em lacuna na Constituição de 1891; Ivone Guimarães Batista Lopes (1908 – 1999) repete, no
mesmo ano, o feito de Mietta (ambas foram motivo de poema de Carlos Drummond de Andrade); Luíza
Alzira Soriano Teixeira (1897 – 1963), elege-se para a prefeitura de Lajes / RN, sendo a primeira mulher
da América do Sul a exercer cargo executivo. A opção por citar Bertha Lutz é de caráter também
funcional – sua vida aparece como profundamente associada ao movimento de mulheres e à ação
feminina no Brasil.
124
Lutz ainda teria dez anos de militância e articulação à sua frente até a cessão de
direitos políticos plenos às mulheres brasileiras, no Código Eleitoral do Governo
Provisório, Decreto nº 21.076, de 24 de fevereiro de 1932:
“(...)
Art. 1º Este Código regula em todo o país o alistamento
eleitoral e as eleições federais, estaduais e municipais.
Art. 2º E' eleitor o cidadão maior de 21 anos, sem
distinção de sexo, alistado na forma deste Código.
Art. 3º As condições da cidadania e os casos em que se
suspendem ou perdem os direitos de cidadão, regulam-se
pelas leis atualmente em vigor, nos termos do decreto n.
19.398, de 11 de novembro de 1930, art. 4º, entendendo-
se, porém, que:
a) o preceito firmado no art. 69, n. 5, da
Constituição de 1891, rege igualmente a nacionalidade da
mulher estrangeira casada com brasileiro;
b) a mulher brasileira não perde sua cidadania pelo
casamento com estrangeiro;
(...)”
Entremeios, a FBPF luta em prol de educação e profissionalização femininas.
Candidata nas eleições de 1934 (já graduada em Direito pela Universidade do Brasil),
ganha a primeira suplência, e assume como deputada federal, pela Guanabara, de 28 de
julho de 1936 até o fechamento do Congresso por Vargas em 10 de novembro de
1937105. Foi chamada a participar da formulação do anteprojeto da Constituição que
seria homologada em 1934, e apresentou contribuições consistentes: “As sugestões,
muitas das quais já vinham sendo discutidas nos congressos feministas anteriores,
defendiam os direitos políticos e jurídicos das mulheres em geral, dando especial
atenção às questões relativas ao trabalho, à educação, à maternidade e à infância” [DE
SOUSA et alii, 2005]. Seu mandato espelha suas diversas facetas: mulher, feminista,
cientista, naturalista, funcionária pública concursada. Seu feminismo foi designado
posteriormente como “(...) de elite, conservador, bem-comportado, jurídico-institucional
(...)”, contudo suas ações institucionais tiveram reflexos sólidos na sociedade e impactos
inconfundíveis no modo de vida e de trabalho femininos, com destaque para as
profissionais de enfermagem e a situação da gestante e mãe trabalhadoras [idem].
105
A primeira Deputada Federal do Brasil foi Carlota Pereira de Queirós (1892 – 1982, médica, pedagoga
e escritora), por São Paulo nas eleições de 1934. Ela e Lutz vão propor o projeto de Lei Estatuto da
Mulher, que objetiva uma reforma na legislação no que diz respeito ao trabalho feminino.
125
O aborto era considerado crime (seja pelo Código Criminal de 1830, seja pelo
Código Penal de 1890108 e posteriores). Além de ofensa ao Estado, podia pôr a
106
Vide sítio on-line <http://www.cnpq.br/web/guest/pioneiras-view/-/journal_content/56_INSTANCE
_a6MO/10157/902173>, acessado em 31 de dezembro de 2015.
107
O aborto foi durante os trinta primeiros anos do século XX amplamente discutido, seja por setores
médicos ou juristas, mas sua proibição mantida. Há de se perguntar se, diante da moral da época e das
“teorias raciais” que não se pode dizer científicas (embora inegavelmente fossem à época abraçadas por
muitos dos nossos cientistas, médicos e advogados) então em moda, a adoção do aborto e da esterilização
como práticas públicas não engendrariam um “massacre preventivo” nas classes pobres e naqueles com
tons de pele mais escuros que o considerado “ideal” para uma “Nação Brasileira” – novamente, deve-se
lembrar do "poder da autoridade" para construção da real, como visto em Foucault, e das tendências
racistas que sempre permearam nossa sociedade da “paz entre as raças” e da “cordialidade”. Contudo, a
discussão poderia ter gerado reflexões que seriam repensadas, negadas ou favorecidas pelas gerações
seguintes, principalmente aquelas que viveram a decadência da eugenia, a Carta dos Direitos do Homem
da ONU, e a “liberação dos costumes” de 1960/70. Mas a época não era a das mais liberais ou favorecidas
pelo amplo debate no Brasil.
108
Diversos setores ansiavam por uma penalidade explícita e/ou mais graves para mulheres que
praticassem o aborto. O Decreto nº 847, de 11 de outubro de 1890, que promulgou o primeiro Código
Penal da República, mudou qualitativamente a natureza do crime: “Do Abôrto” é o Capítulo IV do Título
X, “Dos Crimes Contra a Segurança de Pessoa e Vida”. Eram três artigos que tratavam do assunto: o de
número 300 tratava do ato de provocar o aborto (presume-se que à revelia da gestante) – penalizava o
perpetrador em seis meses a seis anos de “prisão cellular”; caso houvesse a morte da mulher, as penas
eram agravadas para de seis a vinte e quatro anos de reclusão; por fim, se a interrupção da gravidez fosse
126
perigo o domínio do marido sobre a esposa (era ferramenta tanto para o controle
de natalidade quanto para se “ocultar a desonra”), e também o “(...) controle
médico sobre o corpo feminino (...)”. Criou-se uma cisma entre a comunidade
médica entre os que eram completamente favoráveis à uma extensa proibição, e
aqueles que viam no recrudescimento das normas e das penas um aceno para a
possibilidade de quebra do sigilo entre médico e paciente. Os primeiros
denunciavam o crescimento da prática mesmo entre mulheres casadas e pobres,
aumento no número de mulheres com sequelas ou mortas durante o
procedimento, existência de uma rede de “profissionais” (de médicos e parteiras
a “curandeiros” e “espiritualistas”) que atendiam à demanda, apontavam
anúncios dúbios que preenchiam páginas de periódicos. Os segundos defendiam
que o aborto era dificilmente comprovável sem a anuência da mulher ou a
denúncia do médico que viesse atende-la depois (principalmente após o
aperfeiçoamento dos métodos e ferramentas, e divulgação dos mesmos através
de livros), que se tratava de assunto que provocaria “exposição da família” da
paciente, e que não era compatível com o critério médico em vigor para
notificação das autoridades (doença infectocontagiosa como tuberculose ou
varíola).
O aborto que não fosse estritamente terapêutico era amplamente condenado, mas
outras práticas anticoncepcionais tinham pequeno espaço para discussão: o
preservativo, importado, era usado nominalmente para a prevenção da sífilis e
sob prescrição médica. Segundo a autora, até então essas eram recomendadas
aos “(...) casais que passavam por dificuldades financeiras até que pudessem se
reequilibrar”. A esterilização permanente da mulher ainda não era pensada, e era
da opinião de muitos que o uso prolongado de anticoncepcionais poderia induzir
a comportamentos “imorais” dentro da vivência conjugal, mas em contrapartida
provocada “por médico, ou parteira legalmente habilitada para o exercício da medicina”, a pena seria a
mesma do tópico anterior, além de suspensão da autorização para exercício do ofício por período igual de
tempo. O artigo 301 tratava do aborto provocado com a anuência e o acordo da gestante: prisão de um a
cinco anos, para quem praticasse o ato, inclusive se fosse a própria gestante – nesse caso há um atenuante
da pena, “com reducção da terça parte, si o crime for commettido para occultar a deshonra propria”. O
terceiro e último artigo a tratar do tema, de número 302, estabelecia duas categorias relevantes: o aborto
necessário, que era aquele efetuado para se salvar a vida da gestante, e imperícia, equivalente ao erro
médico de hoje: deixar a mulher morrer durante um aborto necessário por imperícia ou negligência
revertia-se em pena de dois meses a dois anos ao profissional, com suspensão de autorização para exercer
o ofício por igual período. Vide sítio on-line <http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1824-
1899/decreto-847-11-outubro-1890-503086-publicacaooriginal-1-pe.html>, acessado em 07 de janeiro de
2016.
127
109
Essa crença pseudocientífica, determinista, evolucionista possuía tamanho crédito que Euclides
Rodrigues da Cunha (1866 – 1909) em sua obra máxima Os Sertões (1902) vê-se às voltas com hipóteses
ad hoc e malabarismos para explicar as vitórias e superioridade de ação naquele terreno do grupo de
sertanejos liderados por Antônio Conselheiro (Antônio Vicente Mendes Maciel, 1830 – 1897) sobre as
tropas republicanas, fatos que ele mesmo presenciou ou ouviu relatos dos diretamente envolvidos.
128
110
As datas são sugestivas: na metade do século XIX ocorre o afastamento das Ordens católicas
(enfraquecimento das Santas Casas e Ordens Hospitalárias), entre 1890-1930 (Primeira ou Velha
República), o início de uma industrialização e urbanização mais expressivas (embora fossem ainda muito
aquém das atividades e populações rurais) e o estabelecimento de novos setores sociais intermediários,
proletários da indústria, profissionais liberais, pequenos e médios comerciantes, servidores públicos, etc..
129
111
Vide texto de Antônio Sérgio Ribeiro, “A Mulher e o Voto”, consultado em 31 de dezembro de 2015 e
disponível on-line no sítio <http://www.al.sp.gov.br/repositorio/bibliotecaDigital/277_arquivo.pdf>.
131
112
Departamento Estadual de Ordem Política e Social de São Paulo – DEOPS/SP: criado em 1924
(durante ainda as agitações políticas e sociais – Greves Gerais, manifestações, fundação oficial do PCB –
que vieram na esteira da I Guerra), sua função era “reprimir e prevenir delitos considerados contra a
ordem e a segurança do Estado”. Foi extinto somente em 4 de março de 1983, por ocasião das primeiras
eleições diretas para o governo desse estado desde o Golpe. Fonte, sítio on-line <http://www.arquivo
estado.sp.gov.br/site/acervo/textual/deops>, acessado em 7 de janeiro de 2016.
132
Não se pode ignorar, contudo, que foram as vozes das mulheres de bairros
populares, de comunidades pobres, de grupos paroquiais e pastorais, as primeiras a
protestar por "boas escolas, centros de saúde, água corrente, transportes, rede elétrica,
moradia, legalização de terrenos e outras necessidades de infraestrutura urbana,
exigiram condições adequadas para cuidar de sua família, educar suas crianças": são
movimentos de mulheres, com fins bastante específicos e ligados a seus papéis sociais
de esposas e mães, daí sua designação por militant motherhood [SOARES, 1998].
113
Betty Naomi Goldstein, ou Betty Friedan (1921 – 2006), psicóloga, ativista em movimentos marxistas,
judaicos e feministas. Aborda a questão da mulher como elemento inserido no processo produtivo
capitalista pós-crise de 1929 e II Guerra, em “A Mística Feminina”, de 1963: o texto, que veio a se tornar
um best-seller entre as mulheres americanas, trata da relação entre a mulher real e a imagem social e
economicamente construída como paradigmática, a mulher ideal ou a mística feminina. Desde a
problemática e crise existencial de não satisfazer ou não se satisfazer com essa expectativa, passando pela
sensação de não-realização diante de anseios individuais insatisfeitos, aos papéis e identidades sub-
repticiamente relegados a essas mulheres: sexuais, sociais versus pessoais, funcionais versus
profissionais.
Friedan é uma das fundadoras, em 1966, da National Organization of Women – NOW, que se dedicou
desde o início a promover a igualdade de gênero, a garantir direitos e representar petições de mulheres.
Participa igualmente da fundação da NARAL – organização pró-escolha – em 1969, quando da realização
da série de debates “First National Conference on Abortion Laws: Modification or Repeal?", entre 14 e
16 de fevereiro daquele ano, em Chicago, Illinois – EUA, com ampla cobertura do periódico New York
Times.
135
criação por Therezinha de Godoy Zerbini (1928 – 2015, assistente social, ativista pelos
direitos humanos) do Movimento Feminino Pela Anistia – MFPA, ambos em 1975
[PINTO, 2010].
Esse tópico também é abordado por Céli Regina Jardim Pinto. A década de 1980
é marcada pelo início tímido da redemocratização e também pela pluralização dos temas
dentro dos movimentos sociais e igualmente dentro do movimento feminista. A autora
aponta um tópico que vale a pena ressaltar: “tradicionalmente” no Brasil a busca pelo
protagonismo feminino foi empreendida por membras de uma “classe média
intelectualizada”. As CEBs e as Teologias Feminista (ainda hoje não plenamente
desenvolvida) e da Libertação proveram interfaces de contato entre a teoria e práxis
tradicionais e as demandas consistentes das mulheres das classes populares [PINTO,
2010].
da mulher da elite (ou o televisivo idealizado), que “(...) não precisa se preocupar com
creches ou com o preço da cebola”. A autora aponta nesse discurso um aparente
paradoxo, um “maternalismo” em um discurso “vitimizante/heroicizante” da mulher
pobre: as editoras, contudo, eram “mulheres emancipadas”, de classe média,
“profissionalmente realizadas, financeiramente independentes” – há de se pensar que
para mobilizar e reunir mulheres do grupo “mais interessado” em mudanças sociais,
tentou-se criar um ponto de apoio, e esse era ditado elas necessidades da época, e pelo
quadro herdado das esquerdas: havia “maior questionamento da descriminação classista
em detrimento da descriminação sexista (...) a subordinação das questões específicas à
luta geral por anistia, democracia e pela melhoria das condições de vida”.
114
O CNDM foi relegado a segundo plano durante as administrações FHC. Sofre uma reformulação e
passa a integrar a Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres – SPM, órgão com status de
Ministério criado em 2003, durante o primeiro governo Lula através da Lei nº 10.683, de 28 de maio de
2003. Com composição, estruturação, competências e funcionamento inicialmente ditados pelo Decreto nº
4.773, de 7 de julho de 2003, hoje é regido pelo Decreto nº 6.412, de 25 de março de 2008, disponível no
sítio on-line <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2008/Decreto/D6412.htm>.
115
Texto integral da Carta pode ser acessado no sítio on-line <http://www2.camara.leg.br/atividade-
legislativa/legislacao/Constituicoes_Brasileiras/constituicao-cidada/constituintes/a-constituinte-e-as-
mulheres/Constituinte%201987-1988-Carta%20das%20Mulheres%20aos%20Constituintes.pdf>, estando
o discurso de recepção disponível em <http://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/plenario/
discursos/escrevendohistoria/25-anos-da-constituicao-de-1988/mulher-constituinte/carta-das-mulheres-
1>, ambos acessados em 14 de janeiro de 2016.
140
conjugal, sendo apontada na época como uma das que melhor tratava a questão de
gênero [SARTI, 2004].
116
Sítio on-line do CFEMEA, <http://www.cfemea.org.br/>, visitado em 14 de janeiro de 2016.
141
mulheres no Brasil, centrada nas necessidades das mulheres de todas as classes e grupos
étnico-raciais” [SOARES, 1998], seja através de iniciativa governamental, como a
criação do “Comitê Brasileiro para a IV Conferência Mundial sobre a Mulher” através
de Decreto S/N de 8 de dezembro de 1993, ou por ação não-estatal por meio da
“Articulação de Mulheres Brasileiras para Beijing-95”, grandemente financiada pela
United States Agency for International Development – USAID, agência governamental
estadunidense responsável por distribuir ajuda externa de caráter civil.
117
Recente declaração de do Papa Francisco I reiterou a posição quanto à ordenação de mulheres mantida
0por João Paulo II. Pode ser citado, contudo, que formou um Conselho somente formado por mulheres
religiosas e leigas eminentes, para discussões culturais e apresentação de demandas específicas. Vide
notícia de sua primeira reunião no sítio on-line <http://www.zenit.org/pt/articles/no-vaticano-a-primeira-
reuniao-do-conselho-permanente-das-mulheres>.
145
Conforme Maria do Rosado, a Igreja Católica durante séculos buscou ser, como
fator essencial para sua própria manutenção, eco das prerrogativas e privilégios da
classe dominante – e para tanto desenvolveu uma ideologia religiosa hegemônica e até
mesmo uma estrutura de culto e práticas que tendiam a justificá-la: papéis binários
específicos foram definidos, os piedosos, benevolentes e altruístas doadores, e os
sofredores, necessitados e passivos beneficiados: a simplificação que beira o extremo é
técnica oportuna para a propagação de ideias junto a uma população ampla e
homogênea. A diversificação, a pluralidade, e a perda ou abstenção de prerrogativas
oficiais, implica na necessidade de rever posicionamentos.
Certamente a estrutura social nunca foi tão simples, e menos ainda se for levado
em apreço que após a adoção ampla das relações capitalistas de produção, ao ator social
que assume o papel de doador benevolente podemos associar também o de capitalista
que deseja manter suas vantagens de exploração e/ou dominação sobre os setores
trabalhadores. O papel do beneficiado passar a ser exercido por aqueles que estavam à
margem do sistema produtivo ou excluídos do mesmo, e há uma dinamização nas
posições de classe dos setores médios, fatores que acirraram um sentimento de
estranheza dentro de uma cristandade cada vez mais plural e ciente de seus direitos.
146
Maria José Nunes, na obra em pauta, tem como foco as Religiosas dos Meios
Populares, e como proposta uma tentativa de compreensão sociológica desse grupo:
trata-se de mulheres que se desvincularam de seus papéis padrão dentro das instituições
da ICAR e que “(...) mantêm um projeto de via comum, de consagração a Deus e de
trabalho junto às camadas populares (...)” – pode até mesmo não haver o vínculo formal,
institucionalizado, com movimentos ou organizações populares, mas existe uma
“postura assumida face aos conflitos sociais”. Segundo a autora, essa é inclusive
adotada com maior frequência por membros do sexo feminino. Ao longo do texto é
discutido o papel secundário e as identidades atribuídas ao feminino dentro da moldura
da Igreja Católica, analisada a função da religião (enquanto edifício sócio ideológico)
em dependência do lugar e do tempo (compreensão histórica do fenômeno religioso), e
como “o discurso fundador da religião católica mesma, bem como o capital simbólico
da fé cristã” foi apropriado e ressignificado “a serviço da luta de transformação social
levada a cabo pelas classes populares”.
Conforme uma estrutura que pode ser apreendida a partir da leitura da obra,
certos elementos e grupos da vida religiosa feminina passaram por uma série de tópicos
ou etapas após o início de sua ação no mundo – nem na ordem apresentada, e nem todas
as religiosas os experimentam todos, e cada uma de uma forma que lhe é própria:
Conflito tácito entre papéis, “Irmã da Periferia versus Irmã do Colégio”: cisões,
opções pessoais, percepção de uma diferenciação interna na Ordem.
Conflitos com a ordem institucional estabelecida, representada pelas Superioras
e rotina da Ordem, que por vezes pode ser construtivo, por outras resultarem no
abandono da vida votiva.
147
A obra foi aqui referenciada por se tratar não só um dos primeiros textos daquela
que é considerada a fundadora das CDD no Brasil (onde pode-se observar suas
influências primitivas e as molduras teóricas que adotou para interpretar a realidade),
mas também devido ao tratamento que dá à questão dos Movimentos Sociais e o
vínculo destes com a Igreja Católica no tempo, e da prática feminista vinculada à
religião, ou talvez mais seja mais próprio dizer, de religiosas feministas. Contudo, a
problemática principal abordada pela autora é a “situação da mulher [religiosa] na Igreja
Católica”: presença ativa, mas não deliberativa. Nesse sentido (e também no que diz
respeito às “irmãs dos meios populares”, a tendência da VR feminina migrar para a
periferia social, assumir ou tomar parte em causas minoritárias) o documento “Mujeres
para el Diálogo” 118 , emitido por ocasião da III Conferência Episcopal Latino
Americana – CELAM em Puebla, México, 1979, é citado como referencial.
118
O documento é a transcrição das sessões do seminário sugestivamente denominado “Além dos Muros”
(tradução livre), sobre os novos papéis e perspectivas da mulher dentro da ICAR, conduzido por grupo de
religiosas, teólogas, feministas.
148
119
Vide biografias da teóloga, disponíveis nos sítios on-line <http://users.clas.ufl.edu/bron/PDF--
Christianity/Lorentzen--Ivone%20Gebara.pdf> (esta de autoria de Lois Ann Lorentzen, Professora da
University of San Francisco, EUA), e <http://www.editions-mols.eu/auteur.php?id_auteur=49>. Observar
também a introdução à coletânea de trabalhos de Ivone Gebara escrita por Margareth Rago, Professora
titular do Departamento de História da Universidade Estadual de Campinas/ – UNICAMP, disponível em
<http://nhanduti.com/Sumarios/Gebara.Text_for_web.2010.pdf>. Acessos em 16 de outubro de 2015.
149
120
Vide folder ilustrativo dos resultados da survey datada do ano de 2011 no sítio on-line
<http://catolicas.org.br/wp-content/uploads/2011/01/publicacao-Ibope-Catolicas-Aborto-2011.
compressed.pdf> – percebe-se, contudo, que informações necessárias a uma interpretação absolutamente
clara dos dados não foi posta em minúcia. Material relativo ao ano de 2006, disponível no sítio on-line
<http://catolicas.org.br/wp-content/uploads/2006/01/Pesquisa-Panorama-Aborto-Legal.pdf>.
121
Vide resultado completo de pesquisa feita no ano de 2013 sobre a opinião dos brasileiros frente à
temática do aborto, mas principalmente sobre temas centrais da ideologia católica e situação atual do
catolicismo, disponível on-line em <http://www.ibope.com.br/pt-br/noticias/Documents/JOB_0851_
CDD%20-%20Relatório%20de%20tabelas%20(total%20da%20amostra-consolidado).pdf>.
151
Vamos observar um quadro geral dos mesmos, segundo três temáticas que
podem ser consideradas cruciais para o desenvolvimento dos objetivos acima
relacionados. O próximo capítulo tratará de dar um tratamento mais específico a cada
assunto a que as publicações oficiais fazem menção.
5.2.1. Religião
sentido de comprovar, por exemplo, que os temas não ferem dogmas (sendo portanto a
posição ou resposta das igrejas passível de alteração) ou se coadunam com os preceitos
cristãos de piedade e amor ao próximo, e dos Direitos Humanos. A denúncia aparece
em textos como por exemplo o “Violência Simbólica: a Outra Face das Religiões”, de
Maria José Rosado Nunes e Maria Teresa Citeli: constituem material de crítica aberta a
atitudes e ao papel assumido em diversos temas e situações pela Igreja Católica e outras
religiões – o confronto de ideias e posicionamentos vem carregado de desejo de
mudança, mas também de acenam com acolhimento e provêm instrução principalmente
àquelas que sofreram ou sofrem abusos.
CDD e ativismo pró Estado Laico: aqui as respostas são mais simples. Um
Estado Laico é regido pelo direito, portanto cumpre seu papel com isenção em relação a
quaisquer religiões no que diz respeito a demandas públicas. Não se trata de
enfraquecer o espectro de atuação da Igreja Católica Apostólica Romana ou qualquer
outra, mas restringi-lo à esfera de atuação cabível numa sociedade plural que, para a
manutenção da democracia e o respeito às minorias, precisa ser representada por
poderes estatais, em todas as suas esferas, os mais isentos possíveis de influências de
grupos majoritários socialmente. As CDD e todos os demais movimentos que optam
pela defesa e/ou representação de pautas sociais minoritárias ou associadas a assuntos
“polêmicos” dependem de um Estado isento122 e, por conseguinte laico, para que suas
demandas sejam vistas com o máximo de imparcialidade. Como exemplo de
movimentação contrária aos objetivos da CDD, vemos o “Aborto Legal, Igreja Católica
e Congresso Nacional”, de autoria de Myriam Aldana Santin, que descreve o lobby da
Igreja no Poder Legislativo “com o objetivo de impedir a aprovação de projetos que
asseguram direitos reprodutivos das mulheres”.
Cabe neste tópico uma breve exposição dos conceitos associados ao tema,
ilustrados com os ativismos das CDD. Que sejam estabelecidas as seguintes definições
básicas:
122
Abandone-se o platonismo inerente ao termo: a própria atuação de OSCs como as CDD depende de
certa parcialidade dos representantes dos entes estatais, mesmo que seja tão salutar como compromisso
para com os princípios de Direitos Humanos, por exemplo. Isenção pode ser entendida como garantias de
isonomia legislativa mínima.
153
A Sociedade age através de influências poderosas para impelir que as pessoas assumam
papéis de gênero convencionais, e relacionados diretamente a seu sexo biológico
[BRYM et al., 2006].
Aqui devemos fazer uma digressão mais detida a respeito do tema que é
imediatamente associado às ações das CDD: direitos reprodutivos, com ênfase na
possibilidade de se interromper uma gravidez por iniciativa da mulher. Utilizamos nessa
discussão o artigo Aborto no Brasil: uma pesquisa domiciliar com técnica de urna, de
Debora Diniz e Marcelo Medeiros. O objetivo desta secção é bastante simples –
demonstrar através dos dados que o aborto fora do prescrito em legislação, e os
problemas dele decorrentes, são associados principalmente a jovens, mulheres entre 18 e
29 anos (seguem abaixo as Tabelas de número 1 e 2 do referido artigo).
123
Exceto retirado da Cartilha “Sexualidade: Conversando a Gente se Entende”, de autoria de Marilda de
Oliveira Lemos, material oficial e disponível na biblioteca de publicações das Católicas.
124
Pesquisa Nacional de Aborto – PNA, 2010, com financiamento do Ministério da Saúde, aplicada pela
Agência Ibope de Inteligência. É a pesquisa mais abrangente (embora mantenha-se restrita ao perímetro
urbano) sobre o tema já realizada no Brasil, e visa “subsidiar ações de saúde pública para mulheres em
idade reprodutiva e fornecer informações necessárias para o desenho de novas sondagens do tipo e
parâmetros para estimativas indiretas”.
155
Outros dados da PNA chamam a atenção: quase uma em cada cinco mulheres
respondentes fizeram um ou mais abortos (índice de 15%) e dessas, cerca da metade
passou ao menos uma vez por internação médica devido à ocorrência – tal dado por si
só indica que aborto é assunto diretamente relacionado à Saúde Pública, observada a
magnitude dos episódios se as conclusões da pesquisa forem devidamente extrapoladas
para toda a população urbana feminina brasileira.
Outro ponto interessante, e que também nos conecta diretamente à ação das
Católicas: não se observa diferença relevante na prática do aborto em função da crença
religiosa da respondente – isso justifica a abordagem inter-religiosa ou ecumênica como
adotada pelas CDD. Contudo, sendo a maioria em números absolutos as mulheres
católicas, ações direcionadas a esse grupo específico fazem-se necessárias.
Como visto anteriormente, a fundação das CDD foi levada a diante por
feministas que conheciam o panorama da religião (algumas são teólogas, outras
sociólogas da religião, por exemplo) e as práticas da “burocracia” católica (estiveram ou
continuam vinculadas a Universidades Católicas, ou foram membros da Vida Religiosa)
com o objetivo de contestação. Um fato que não pode ser ignorado é que as Católicas
(cujas fundadoras podem se afirmar como estudiosas ou mesmo “herdeiras” dos
movimentos sociais católicos, da TL e das CEBs) objetivam também mudar a realidade
secundária e, porque não, expropriada de agência da mulher dentro do universo
simbólico da ICAR – e embora as líderes da organização fossem “conhecidas” dos
membros da CNBB que tenham participado dos, ou apoiado os, mesmos movimentos
antes da redemocratização, as relações interinstitucionais foram se alterando conforme a
Comissão era guiada para um caminho cada vez mais conservador ditado pela Santa Sé
(e voltado também ao arrebanhamento de fiéis – devido, entre outros motivos, ao
crescimento de nomenclaturas cristãs distintas –, e à constante confirmação do
pertencimento, seja pela reafirmação da ortodoxia ou até mesmo através do incentivo a
uma vida comunitária ou carismática, mas desprovida de viés social profundo), e as
Católicas agregavam outras frentes de luta social, e ampliando seu espectro de ação e
críticas.
157
125
Vide sítio on-line <http://www.cnbb.org.br/magazine-cnbb/notas-declaracoes-e-saudacoes-da-
cnbb/1446-nota-da-cnbb-sobre-as-catolicas-pelo-direito-de-decidir.html>, visitado em 6 de agosto de
2015.
158
126
Para discussão mais detida, vide [COUTINHO, 1997].
159
Espera-se que advocate assuma uma ligação “apaixonada” pela causa em pauta,
mas também autonomia decisória, deliberativa, de forma a administrar a tensão entre
interesses, visões subjetivas e aspirações que permeiam os planos social e político,
sempre incentivando e mantendo acesa a discussão pelas vias disponíveis – o “debate e
o antagonismo democráticos cumprem um papel unificador invisível e não planejado”.
Segundo Nadia, “A advocacy no parlamento tanto requer quanto estimula a advocacy na
sociedade”.
determinados interesses”. Isso posto, qual seria a diferença real entre esse e a advocacy?
No Brasil, hoje, é tido como prática corrupta e corruptora, intrinsecamente associado a
estratégias de manipulação por parte de agentes poderosos ou ligados a setores
detentores de recursos (econômicos, midiáticos, etc.) sobre atores nos diversos níveis da
coisa pública (com destaque para os representantes do Legislativo) e que envolvam
tráfico de influência, troca de favores em diversos níveis, bem como repasse
127
Vide http://www2.camara.leg.br/participe/sua-proposta-pode-virar-lei, acessado em 21 de outubro de
2015.
128
Vide http://www.priberam.pt/dlpo/l%C3%B3bi, acessado em 21 de outubro de 2015.
161
As Ações efetivas das CDD Brasil nos termos de advocacy junto ao Congresso
Nacional e à Sociedade Civil que podemos listar são associadas à Lei nº 12.845, de 1º
de agosto de 2013, que a princípio garantiria, além do atendimento na rede pública
hospitalar de mulheres vítimas de violência sexual, a disponibilização de medicamentos
visando interrupção de gravidez (este inciso recebeu veto presidencial, mas foi
novamente proposto via Projeto de Lei – contudo, outro PL foi sugerido, pelo Deputado
Federal pelo PSB de Pernambuco, Pastor Dr. Eurico, e outros, promovendo veto sobre o
teor já “pasteurizado” da Lei), e recentemente campanha ampla sobre a (não)
pertinência do chamado Estatuto do Nascituro – essas contribuições são divulgadas
amplamente por mídias específicas e pelas próprias CDD.
Tem-se de ter em perspectiva que o advocate muitas vezes tem sua atuação junto
a figuras públicas e políticas, empresas privadas, fundações e outras organizações das
quais angaria apoio ou entre as quais promove sua causa – esses vínculos podem ou não
se materializar, ou sequer tornarem-se públicos: por vezes seus efeitos são notados
129
Tramitam com este fim no Congresso os Projetos de Lei nº 6132/1990, nº 6928/2002, nº 5470/2005, e
nº 1202/2007. Há seis Projetos de Resolução da Câmara que disciplinariam a atividade nessa esfera.
162
Deve-se salientar também que a ligação das CDD com a Secretaria Especial de
Políticas para as Mulheres do Poder Executivo (SPM, fundada em 2003, e que vem
organizando os Planos Nacionais de Políticas para as Mulheres, iniciativas periódicas
que estabelecem metas a serem atingidas dentro de dado intervalo de tempo no que
tange a equidade e garantias de direitos, políticas de sexo e gênero, inclusão social
efetiva, entre outras providências) pode ser facilmente constatada pelo apoio que a SPM
vem cedendo às Católicas através de convênios, que datam pelo menos de 2007.
130
O referenciado PL visa descriminalizar e parametrizar a interrupção voluntária da gravidez, garantir
atendimentos específicos à mulher, promover a educação para a saúde sexual e reprodutiva em escolas:
http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1313158&filename=PL+882/2
015, na íntegra.
163
associados e que podem receber as atualizações do perfil das CDD atinge hoje o número
superior a 30.000, com uma taxa de atualização de posts praticamente diária. A
estratégia de divulgação é baseada em mensagens pictóricas ou gráficas seguidas de
textos simples ou palavras de ordem, costumeiramente, o que tende a fixar uma
identidade e objetivos claros. Mensagens mais complexas são utilizadas para
argumentação e para tratar de assuntos mais intricados – nesses casos vídeos vinculados
ao YouTube também são usados para a divulgação, e podem incluir tanto material para
arrecadação de fundos quanto entrevistas com as dirigentes e representantes de destaque
no movimento. Enquanto o número de comentários e compartilhamentos era realmente
pequeno para a maioria das postagens em janeiro de 2014 (época da primeira inspeção),
esses índices aumentaram consideravelmente hoje – ainda assim, há espaço para que se
conquiste maior abrangência e para a manutenção mais prolongada das discussões:
trata-se de conquistar um público fiel, militante engajado ou simpático às causas, que
promova a disseminação das publicações em seu próprio perfil e em grupos. Um estudo
mais aprofundado sobre técnicas e táticas de comunicação, divulgação e replicação de
mensagens na grande rede por ONGs e movimentos com comprometimento social pode
revelar muito mais sobre a eficiência, intrusão, espalhamento de mensagem do modelo
de atuação das CDD Brasil, e embora seja oportunidade excelente de observar
compreender a disseminação de ideias na grande rede, não é nosso objetivo no presente.
Dado que não é factível estudo sobre cada um dos textos das CDD/Brasil, se fará
uma breve revisão dos Artigos e Publicações: digressões sobre os principais temas
abordados. Já que esses são elementos de propagação de ideias, disponíveis a princípio
em caráter permanente (diferente das ações localizadas em redes sociais que se mantêm
em evidência por relativamente pouco tempo, conforme interesse do público ou da
organização, publicações tem ligações fixas para download), são esses que atingem
potenciais interlocutores que não podem participar fisicamente de encontros, oficinas e
outras formas de físicas de promoção. Entende-se que traçar um quadro do que é
disposto nesses meios equivale a desenhar o perfil que as CDD procuram transmitir.
131
Diferente por exemplo da chamada “Biblioteca Feminista”, http://www.bibliotecafeminista.org.br,
ação que reúne material de diversas procedências com busca refinada por temática, mas limita o acesso do
usuário ou usuária a vinte documentos por dia.
165
15
pois mostram que as exigências da Lei estão gravadas
em seu coração. Disso dão testemunho também a sua
consciência e os pensamentos deles, ora acusando-os, ora
defendendo-os).
16
Isso tudo se verá no dia em que Deus julgar os segredos
dos homens, mediante Jesus Cristo, conforme o declara o
meu evangelho.
133
Aponta-se que Parolin, representando o Vaticano, desempenhou papel fundamental na atual
aproximação EUA-Cuba: ver, por exemplo, http://oglobo.globo.com/mundo/as-nove-reunioes-secretas-
que-culminaram-na-reaproximacao-dos-eua-cuba-14887659, acessado em 21 de outubro de 2015.
172
minoritárias nas mais diversas esferas decisórias de poder, o que se reflete numa
discrepante representação entre os sexos no Congresso 134 , e por escolhas
legislativas que dificilmente contemplam a mulher senão por uma intensa
mobilização;
Situação Específica de Vulnerabilidade da Mulher: Quase um quinto das
mulheres já foi vítima de violência doméstica (18%) e o marido ou companheiro
é o agressor mais incidente, em 49% dos casos [DATASENADO, 2015]. Redes
de ajuda mútua são essenciais no processo de incentivo a denúncia (21% não
denunciam) e no período diretamente posterior, principalmente para se combater
a estigmatização que a mulher poderá sofrer: existe uma concepção social muito
específica e disseminada do “está pedindo” ou “pediu” (para ser estuprada,
violentada, agredida) – reflexo disso é que as mulheres se consideram menos
respeitadas principalmente na sociedade (57%);
Soluções Possíveis para uma Sociedade Igualitária: as proposições abrangem a
promoção de leis que promovam a igualdade ou a defesa de necessidades
específicas da mulher (Lei nº 11.340, de 07 de agosto de 2006, batizada Lei
Maria da Penha em homenagem a mesma, que padeceu 23 anos de violência
doméstica pelo “companheiro”, inclusive duas tentativas de assassinato; Lei nº
12.845, de 1º de agosto de 2013, seguida da Portaria n° 415/2014 da Secretaria
de Atenção à Saúde do Ministério da Saúde, que deveria ser uma tímida
proposta positiva quanto ao aborto terapêutico previsto em Lei a ser realizado
pelo SUS, mas que foi tornada sem efeito pela Portaria nº 437/SAS/MS, de 28
de maio de 2014), cotas de sexo para a oficialização de candidaturas de partidos
políticos (Lei nº 9.504, de 30 de setembro de 1997). Mas não só: políticas de
gênero e papéis de gênero, alternativas ao modelo de segurança pública vigente
(inclusive desmilitarização policial), garantia de laicidade estatal como elemento
para a prática livre de credos religiosos, entre outros que serão abordados aqui.
Acerca do Agressor: o papel da organização oscila entre duas necessidades – a
de denúncia daquele (ou, numa perspectiva mais ampla de relações de gênero,
também daquela) que pratica a violência (com a salvaguarda da integridade da
134
Mulheres são cerca de apenas 13% dos membros (soma sobre ambas as Casas) do Congresso. (Fonte:
compilação de dados do TSE para a eleição de 2014, feita pelo UOL Eleições 2014, disponível em
http://eleicoes.uol.com.br/2014/raio-x/1-turno/congresso#outros-resultados/1, acessado em 21 de outubro
de 2015). Atualmente, temos uma mulher líder de um executivo estadual (Suely Campos, por PP de
Roraima).
173
135
Não se trata necessariamente do preconceito individual – aqui são ações deliberadas, assumidas por
detentores de poder para a satisfação de seu “eleitor genérico” ou para associação de seu nome a um
conjunto de valores “conservadores”.
174
136
Este tópico é amplamente baseado em artigos da Doutora em Ciências da Religião Regina Soarez
Jurkewicz, coordenadora de projetos ligados aos movimentos CDD da América Latina, escritos entre
2005 e 2013.
175
e isso se reflete numa figura papal midiática, mas um papado ainda conservador
(com elementos de controle que dão a interpretação oficial do discurso do Papa).
As orientações do Concílio Vaticano II devem ser retomadas, se se pretende
“inserir a Igreja no mundo e responder as questões trazidas pela Modernidade”.
Conforme as CDD, a ICAR deve abandonar sua “pretensão de ser a única
portadora da verdade divina”, e promover a revisão de temas centrais que a
afastam da realidade além dos muros. O celibato obrigatório dos padres e freiras;
a negação da plena “cidadania eclesial” às mulheres religiosas, que permanecem
fora da hierarquia decisória católica, do ensino teológico e da prática do
sacerdócio; precisa abrir caminhos de diálogo com “as teologias emergentes nas
diferentes partes do mundo, ao invés de cercear o pensamento de teólogos/as” –
essas teologias são frequentemente caminhos de valorização de um grupo em
particular, sem que esse abandone para isso a religião católica. A Igreja deve
reconhecer os plenos direitos de participação e sacramentais aos LGBTIs, e
promover a revisão de seu discurso sobre o feminino. Sobretudo, as CDD
afirmam que a Igreja Católica deva se valer da oportunidade para promover o
diálogo, ao invés de se refugiar num “silêncio obsequioso”.
CDD/BR, pessoa jurídica com CNPJ 00.281.863/0001-84), Entidade Privada Sem Fins
Lucrativos, obteve uma verba total de mais de R$ 1.000.000,00 em repasses da União,
todos através da Secretaria de Políticas para as Mulheres da União, e pela Prefeitura de
São Paulo/SP (cidade onde localiza-se a sede das CDD SC) mesmo quando a ação deu-
se fora desse estado. Como pode ser visto no mencionado Anexo, a pertinência dos
convênios e/ou termos de cooperação foi justificada a contento, e todos estão em pleno
acordo com a legislação vigente.
137
“Sem fins lucrativos”: conforme Bourdieu, o capital financeiro é só um dos elementos que podem
interferir na definição uma posição no espaço social. O diálogo do conjunto de capitais que formam o
capital simbólico, e o habitus social determinam o prestígio que define ou altera a posição social de
atores, sua possível “ascensão”: o que se pretende é refletir, sem pretensões de “veredicto”, como a ação
desinteressada pode atender a tão variados interesses.
178
Ano de 2007:
No ano em referência, e até 2008, a CDD SC foi convenente de projeto visando
a “formação em direitos sexuais e direitos reprodutivos”. Não há especificação
disponível da proposta, embora possa se crer tratar de treinamento dos próprios
quadros da Secretaria de Políticas para as Mulheres da União ou equivalente
municipal.
Ano de 2009:
Firmou-se um plano de trabalho que consistia em objetivos a serem alcançados
até o ano de 2011. Foram eles a concepção de logotipo nacional que
representasse a luta pelo fim da violência à mulher; a criação de um mural
usando a técnica de grafite artístico sobre o tema; a promoção do assunto através
de show com artistas populares e de uma performance urbana; a difusão desses
trabalhos e da temática através do que foi qualificado como “marketing viral”
através de “novas tecnologias de informação, especialmente a internet”. A
justificativa para a execução do projeto é ser essencialmente uma tentativa de
desconstrução da ideia de feminino e do papel social da mulher como
representados na doutrina católica institucionalizada, e seus reflexos sobre a
sociedade (dados do Censo 2000 são apresentados para corroborar a influência
da Igreja Católica sobre parte majoritária da sociedade brasileira).
179
Ano de 2011:
Em 2011 (e previsto para completa implementação até o ano de 2013) o objetivo
teve alcance regional, concentrando-se em determinados estados das Regiões
Norte, Nordeste e Centro Oeste brasileiras, e visando formar multiplicadoras
para advogarem em defesa e propagarem os conceitos centrais a respeito de
direitos sexuais e reprodutivos, a base da agenda das CDD, além de formar,
formalizar e capacitar representações locais do movimento: vê-se aí uma
oportunidade paralela óbvia de fortalecimento institucional da ONG. O perfil
selecionado de candidatas é “lideres comunitárias e ativistas sociais”, “que já
vem participando, desde 2002, de atividades e outros cursos formativos
oferecidos pelas CDD/Brasil”.
A defesa do “direito de decidir”, e o “enfrentamento do fundamentalismo
religioso no Brasil” são citados como justificativa para o projeto. A
predominância católica e o avanço neopentencostal na sociedade seriam causas
da imposição de uma perspectiva ultraconservadora de agência da mulher no
âmbito familiar e político, o que minora necessariamente os direitos femininos e
a capacidade de alcançá-los.
A ação dos fundamentalistas é voltada a um “conservadorismo moral, a
rigidez de costumes e a cristalização da desigualdade de gênero”, e os agentes
desse ideário tem se organizado e obtido representação inclusive na esfera do
Legislativo nacional e locais. São citados exemplos, como a então recente
proposição de uma Comissão Parlamentar de Inquérito e a reapresentação na
Câmara do projeto de lei designado como “Estatuto do Nascituro”, cujo debate é
vigorosamente retomado hoje.
Ano de 2012, Primeiro Convênio do Exercício:
Ao foco tradicional dos trabalhos propostos, para o presente convênio (cujos
resultados deveriam ser atingidos até meados de 2013) é somada a promoção de
Direitos Humanos, e a atuação passa a se desenvolver nas Regiões Sul e Sudeste
brasileiras. Trata-se da realização de uma série de oficinas para contingentes
filiados à CDD/Brasil, que os capacitem à discussão e promoção do referencial
dos Direitos Humanos e “enfrentamento crítico da influência religiosa
conservadora”, e para “100 estudantes universitários/as (...) e/ou ativistas por
DSDR [Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos] em universidade de Santa
Catarina [inespecífico]”.
180
todos aqueles que ocupam papéis secundários segundo o habitus instituído) são
historicamente pouco representados por indivíduos que sejam seus próprios pares nos
Poderes Executivos e Legislativos, principalmente a nível da União – suas lutas e
pleitos, requerimentos e necessidades, seus interesses são muitas vezes “alienados”, no
sentido de que dependentes de representantes “bem intencionados” ou “comprometidos”
dos grupos de poder majoritários no momento. É pertinente notar que a probabilidade
de atendimento pleno ou devido, ou mesmo isento – e com isso pode-se dizer que “não
utilizado como moeda de troca”, ou como ferramenta de “apadrinhamento” – das
petições dessas comunidades é reduzida, e dificilmente se reverterá em empoderamento
pleno desses indivíduos.
Chega-se a uma questão quase inevitável: esses mesmos grupos marginais terão
seus interesses devida ou minimamente representados por organizações civis de
especialistas que definem agendas próprias (que embora formalmente explícitas,
dependem incessantemente de parcerias monetárias e de apoio mútuo com a coisa
pública e privada, além de doações de outras Instituições e Fundações), as quais que não
serão efetivadas a partir de seus próprios quadros ou em consulta e diálogo permanente
com eles? O Movimento Social, em seus moldes clássicos marxistas da década de 1970,
é uma ferramenta mais “direta” em termos de representatividade e empoderamemto de
coletividades excluídas do que o modelo de OSCIPs. No primeiro as reivindicações são
definidas em princípio por consenso entre os membros e as ações também são grupais.
No segundo modelo costuma prevalecer o “parecer da autoridade” aliado a uma
inevitável necessidade de posterior fortalecimento e multiplicação de seus quadros
(seleção de militantes com perfil condizente), e outros mecanismos que valorizem a
relevância de sua “marca” frente a elementos dos poderes formais e sociais.
Conclusão
Porque Católicas?
O fato é que muitas das demandas basais das CDD brasileiras nasceram em
núcleos de ativismo social católico, e foram tomando corpo ao longo do tempo em
franca discussão entre grupos feministas e conforme declarações formais da Igreja
Católica, quando ainda outras religiões eram de representação e crescimento
minoritários. Um posicionamento que poderíamos tomar como formal das integrantes, e
que pudemos depreender de publicações e vídeos, é que são mulheres que clamam pelo
direito de praticar sua fé, e igualmente de lutar para que a mesma se adapte às
reivindicações propostas pela (Pós)Modernidade. “Nossa equipe é católica e composta
por professoras, teólogas, sociólogas, especialistas em ciências da religião, entre
outras áreas do conhecimento” – trecho que é legenda nas publicações no canal do
YouTube das CDD Brasil.
Considerações Finais
Encerro este trabalho com maiores dúvidas que respostas a fornecer. E feliz por
ser assim, pois a dúvida nada é além do substrato do saber para aqueles que acham por
bem aproveitá-la – e em Ciências Sociais, “saber” não deve ser sinônimo de “verdade
fatual”, mas da interpretação do quadro social, segundo as molduras que
inevitavelmente adotamos, e das experiências passadas, dos vieses que temos que
publicamente assumir para tornar nosso trabalho válido.
O objetivo primário foi, como o título deste deixa claro, averiguar associações
entre um retorno ao Conservadorismo Católico (após mais de duas décadas de
aproximação franca com as causas populares – as Pastorais, as CEBs, a Teologia da
Libertação), e um movimento que fosse uma possível resposta social da Modernidade,
um “impulso contrário” à retração da Igreja de Roma. Encontrei muito mais do que isso.
Não posso tecer comentários sobre a “Verdade” das Católicas, ou sequer sobre a
pertinência dos argumentos de seus detratores (ignorando alguns óbvios delírios
fantasiosos). Somente do que é por elas representado – um elemento de transição, um
elo em uma cadeia de eventos sociais de complexidade global, que no Brasil oscila entre
um passado que dá forma ao (e ainda se faz) presente, e uma espécie de futuro que mais
do que nunca é elemento de discussão ativa.
Referências
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188
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194
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aberta ao Ministério da Saúde Sobre a Revogação da Portaria nº 415, sítio acessado em
30 de julho de 2015.
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2)
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nda-a-polemica, acessado em 30 de julho de 2015.
http://www4.planalto.gov.br/legislacao/legislacao-historica/constituicoes-anteriores-1,
Constituições brasileiras, acessos em datas diversas em janeiro de 2016.
Anexo I
138
Todos os dados aqui listados, e a descriminação de cada Projeto são de autoria das CDD SC e podem
ser acessados publicamente através da página do Portal da Transparência dos Recursos Federais,
modalidade “Transferência de Recursos”, e de forma detalhada no Portal do Sistema de Gestão de
Convênios e Contratos de Repasse da União, SICONV.
198
Justificativa:
Segundo o Censo de 2000, a maioria da população brasileira se declara católicas
(74%, o que equivale hoje a cerca de 135 milhões de pessoas). A religião age
fortemente pela subjetividade e no plano simbólico. Modelos, papéis, relacionamentos
estão no plano institucional, mas também nos planos simbólico e subjetivo. O modelo
predominante - o da família patriarcal, da relação heterossexual, da chefia masculina, da
submissão de filhos e da mulher ao pai e marido - está impregnado em grande parte por
valores advindos das religiões. A cultura brasileira é fortemente influenciada pela visão
cristã do mundo e, por consequência, do papel que mulheres e homens desempenham
nela. As religiões patriarcais têm legitimado ideologicamente a subserviência das
mulheres, associando-as ao mal, ao desviante, à desordem, à fraqueza moral. Isso
significa que, culturalmente, as mulheres estão à mercê da punição naturalizada. A
violência se instala na cultura pela associação mulher-mal, justificando assim sua
desqualificação e exclusão dos espaços de poder e decisões na sociedade. Outra ideia
bastante presente no ideário cristão é de que o sacrifício é um caminho para a salvação,
o que ajuda a manter as mulheres submetidas à violência. A ideia de que “essa é a
vontade de Deus” leva à naturalização da violência e a sua reprodução. Para contribuir
com a desconstrução destas ideias que conformam a cultura brasileira, propomos
199
realizar atividades culturais e artísticas que atinjam diferentes públicos e que visibilizem
o problema apontado, promovendo, desta forma, a divulgação e a popularização de
ideias ético-religiosas que possam colaborar na construção de uma cultura de não
violência, com ênfase no fim da violência contra as mulheres.
Justificativa:
O Brasil é o maior país católico do mundo (74% da população, segundo censo de
2000, declaram-se Católicos/as) e, além disso, outras religiões cristãs, como as mais
variadas denominações pentecostais ou neopentecostais, vêm crescendo e se
fortalecendo continuamente. Os fundamentalismos religiosos têm sido um foco de
dificuldades para o avanço dos direitos das mulheres brasileiras porque partem de uma
ideologia em que tanto a vida familiar como a organização política se encontram
sujeitas a uma crença ultraconservadora de controle do sexo feminino e de rejeição dos
200
Justificativa:
O referencial dos direitos humanos tem sido utilizado por pessoas e grupos de
militância por Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos, mas na maioria das atividades
realizadas neste âmbito - como cursos de formação/capacitação – os DH são abordados
de forma superficial e abstrata. Não temos conseguido mostrar que os direitos humanos
são parte importante da vida cotidiana das pessoas. Essa fragilidade traz menor
possibilidade de sensibilização, em nossa sociedade, para os direitos sexuais e direitos
reprodutivos entendidos como parte dos direitos humanos, especialmente porque não
temos conseguido demonstrar que esse referencial é importante para a vida – e para a
202
dignidade – de todas as pessoas. Por outro lado, temos uma constante desvalorização
dos direitos humanos por parte de grupos conservadores e de pessoas com espaço na
mídia, como apresentadores de programas policiais na TV. A ideia transmitida de forma
recorrente é que os direitos humanos servem apenas para proteger direitos de bandidos.
Também temos assistido a uma apropriação do referencial dos Direitos Humanos por
parte dos grupos fundamentalistas religiosos, especialmente cristãos, que o utilizam de
forma distorcida, buscando impedir a garantia de Direitos Sexuais e Direitos
Reprodutivos ao intervir na aprovação de leis e políticas públicas. Como exemplo,
citamos a articulação de grupos fundamentalistas religiosos para tentar impedir a
aprovação da interrupção terapêutica do parto em caso de fetos com anencefalia, tema
votado pelo STF em abril de 2012. Em uma manifestação em Brasília, podia-se ver um
cartaz com uma foto de um feto preso por fórceps sob um letreiro que invocava o artigo
5º da Declaração Universal dos Direitos Humanos: Ninguém será submetido a torturas
nem a penas ou tratos cruéis, desumanos ou degradantes. O Brasil é o maior país
católico do mundo (74% da população, segundo o Censo de 2000, declaram-se
Católicos/as) e, além disso, outras religiões cristãs, como as mais variadas
denominações pentecostais ou neopentecostais, vêm crescendo e se fortalecendo
continuamente. Os fundamentalismos religiosos, que vem ganhando força no Brasil na
última década, tem sido um foco de dificuldades para o avanço dos direitos humanos
das mulheres brasileiras. Isso porque partem de uma ideologia em que tanto a vida
familiar como a organização política se encontram sujeitas a uma crença
ultraconservadora de controle do sexo feminino e de rejeição dos direitos das mulheres.
Os fundamentalismos se refletem na atuação de grupos conservadores organizados na
política partidária, interferindo na aprovação de leis e na implementação de políticas
públicas. Vivemos atualmente um recrudescimento desses fundamentalismos religiosos,
por isso o conservadorismo moral, a rigidez de costumes e a cristalização da
desigualdade de gênero voltam à tona, dificultando, quando não impedindo, a garantia e
realização dos direitos humanos das mulheres, especialmente os direitos sexuais e os
direitos reprodutivos. Por outro lado, temos um panorama de milhares de mortes de
mulheres por ano pela prática de aborto clandestino e inseguro – estima-se que uma em
cada sete mulheres brasileiras em idade de ter filhos já fez aborto, mas as mulheres
pobres são as que sofrem as piores consequências da criminalização dessa prática, com
consequências terríveis para a sua saúde e sua vida. Cerca de um milhão de abortos
clandestinos e inseguros são realizados todos os anos no Brasil, causando 602
203
internações diárias por infecção, 25% dos casos de esterilidade, 9% dos óbitos
maternos, É a terceira maior causa para morte materna no Brasil. Os fundamentalistas
religiosos vêm atuando para tentar impedir a legalidade de qualquer aborto no Brasil,
atuando inclusive para proibir os casos atualmente permitidos na lei. A anticoncepção
de emergência tem sofrido, em diversas localidades do Brasil, tentativas de proibição
por militantes conservadores. Também o acesso a métodos contraceptivos, que
contribuem para o exercício de um direito humano básico, que é o planejamento
reprodutivo, é dificultado pelos mesmos motivos. Por fim, os direitos sexuais sofrem
ataques de fundamentalistas religiosos, prejudicando a cidadania e a dignidade de
milhões de pessoas LGBTTs no país. A rejeição dos direitos dessas pessoas por
fundamentalistas religiosos tem contribuído para o incremento do preconceito e da
discriminação desse segmento social, como resultado tivemos, em 2010, uma pessoa
LGBTT assassinada a cada dia e meio no Brasil por homofobia. Por isso, é urgente
ampliar as ações de enfrentamento dos fundamentalismos religiosos, defendendo os
DSDR e disseminando a importância de se defender os Direitos Humanos em nosso
país. Para enfrentar esta situação, planejamos realizar o projeto Contribuindo para o
fortalecimento da ação de ativistas que trabalham na promoção dos Direitos Sexuais e
Direitos Reprodutivos das mulheres.
desenvolvidas nos dois campi atingindo, portanto as duas regiões: Guarulhos e Alto
Tietê (que compreende Itaquaquecetuba).
Justificativa:
Em 1995, a Plataforma de Ação da IV Conferência Mundial sobre as Mulheres
indicou que o progresso das mulheres e a concretização da igualdade entre mulheres e
homens são condição para a justiça social e o único caminho para construir uma
sociedade sustentável, justa e desenvolvida. O empoderamento das mulheres e a
igualdade de gênero são pré-requisitos para alcançar a segurança política, social,
econômica, cultural e ambiental entre todos os povos. Em 2000, o lançamento mundial
da campanha Metas do Milênio indicou uma mudança de paradigma importante,
havendo um deslocamento do que se entende por país rico. Antes, o parâmetro principal
era o PIB (Produto Interno Bruto), mas uma nova concepção foi elaborada,
constituindo-se um novo índice, o IDH (Índice de Desenvolvimento Humano). A
referência econômica não foi abandonada, mas foi ampliada com a inclusão de
estimativa de índices sociais. Uma das conseqüências dessas ações mundiais realizadas
pela ONU foi uma mudança de paradigma: passa-se a compreender que não existe
possibilidade de erradicação da pobreza no mundo enquanto não houver equidade entre
os gêneros. Isso significa também que, enquanto as mulheres não tiverem autonomia
econômica, não haverá justiça social. A autonomia econômica das mulheres, de outro
lado, depende de elas terem garantido o direito ao trabalho e à renda, o que está
intrinsecamente relacionado à garantia dos direitos sexuais e direitos reprodutivos, entre
outros. Devido ao machismo fortemente arraigado em nossa sociedade, temos - como
resultado da violência simbólica que inferioriza as mulheres - o fato de que elas, muitas
vezes, não se sentem capazes de serem agentes de suas vidas, não se vendo como
pessoas com direitos e, menos ainda, com capacidade de serem provedoras ou pelo
menos economicamente ativas. Contraditoriamente sabemos que uma parte significativa
das famílias brasileiras é chefiada por mulheres, que provêm não só o sustento familiar,
como também todos os outros aspectos relacionados à reprodução da vida. No entanto,
nem sempre, essas mesmas mulheres reconhecem sua capacidade de empreender e
buscar soluções para os graves desafios cotidianos. Assim, uma parte importante do
processo de empoderamento das mulheres é a desconstrução desta mentalidade machista
e misógina que inferioriza as mulheres e as coloca no lugar de quem só tem valor
quando cumpre o papel de mãe e de quem cuida e satisfaz as necessidades de outras
205
pessoas. O Brasil é o maior país católico do mundo (Cerca de 65%, ou 123 milhões de
brasileiras/os, segundo o Censo de 2010, declaram-se Católicos/as) e, além disso, outras
religiões cristãs, como as mais variadas denominações pentecostais ou neopentecostais,
vêm crescendo e se fortalecendo continuamente (Cerca de 22% da população, ou 42
milhões de pessoas). Os fundamentalismos religiosos, que vem ganhando força no
Brasil na última década, tem sido um foco de dificuldades para o avanço dos direitos
humanos das mulheres brasileiras, impedindo especialmente o avanço dos Direitos
Sexuais e dos Direitos Reprodutivos no país. Mulheres que não podem controlar seus
corpos e sua sexualidade e que não podem fazer seu planejamento reprodutivo
encontram muito mais obstáculos para se inserir em um mercado de trabalho
competitivo e agressivo, reforçando a dependência econômica que impede as mulheres
de serem agentes de suas próprias vidas e se vejam como pessoas com direitos, o que é
um ciclo vicioso que sempre se retroalimenta, mantendo as mulheres em posição de
subalternidade. Por isso, temos um panorama de milhares de mortes de mulheres por
ano pela prática de aborto clandestino e inseguro - estima-se que uma em cada sete
mulheres brasileiras em idade de ter filhos já fez aborto, mas as mulheres pobres são as
que sofrem as piores conseqüências da criminalização dessa prática, com conseqüências
terríveis para a sua saúde e sua vida. Também o acesso a métodos contraceptivos, que
contribuem para o exercício de um direito humano básico, que é o planejamento
reprodutivo, é dificultado pelos mesmos motivos. Tendo em conta que uma das
profissões que mais interage com a cotidianidade da vida das mulheres é o Serviço
Social, uma vez que as mulheres são as que mais procuram os atendimentos
assistenciais, de saúde, de promoção, educação etc., entendemos que as gestoras
públicas que atuam nesses espaços constituem um foco privilegiado para um processo
de formação e multiplicação de ações que favoreçam a autonomia das mulheres.
Poderemos atingir nosso objetivo, capacitando gestoras públicas que estão em relação
direta e cotidiana com um setor importante da população feminina, que requer não só
autonomia econômica, mas também autonomia social e mudança de mentalidade. A
Universidade Guarulhos, instituição com quem já estamos fazendo contatos prévios a
respeito deste projeto, já demonstrou grande interesse pela proposta e oferecerá seu
poder de convocatória e os espaços físicos para realização das atividades.
206
Justificativa:
Quando se avalia os impactos decorrentes das lutas do movimento feminista e de
mulheres e da ação do Estado, nas últimas décadas no Brasil, verifica-se que os avanços
em áreas como saúde, educação, combate à violência, promoção da igualdade na esfera
produtiva, por exemplo, não ocorreram com igual intensidade no enfrentamento da
escassez de mulheres ocupando cargos na política institucional. Sabe-se também a sub-
representação das mulheres em cargos políticos representativos é um fenômeno
internacional, que no Brasil se manifesta com bastante intensidade como mostram dados
comparativos apresentados mais adiante. Paralelamente constata-se aqui, também, a
escassez de movimentos e ONGs dedicados à ampliação da presença feminina em
207
Referências:
Anexo II
Aborto:
Problema de Segurança Pública ou Competência da Saúde Pública?139
No Brasil é num diálogo entre essas distintas esferas de atuação estatal em que
recai o tema aborto. Esse tem sido largamente proposto e discutido na sociedade civil,
ao menos entre militantes pró e contrários, e os debates suscitaram a criação de normas
muito específicas. Ocorre que o ato de descontinuar uma gravidez mora em uma zona
cinza entre Segurança e Saúde públicas. O motivo é simples: limites de legalidade –
quando a sociedade é ofendida (a realidade da conduta individual é negativa) versus
quando a sociedade ampara (garante a saúde de um membro do corpo social).
Na discussão que segue, tenta-se fazer perceber que o vácuo normativo e a falta
de diálogo entre o previsto e o real tem sido danosos à sociedade e principalmente, às
mulheres.
139
O presente Anexo é amplamente baseado em trabalho de minha autoria, apresentado no contexto do
Curso de “Tópicos Especiais em Ciência Política XXXIX - Temas do Pensamento Social Brasileiro:
Segurança Pública”, ministrado nesta instituição de ensino no segundo semestre de 2014 pelo Prof.º Luís
Eduardo Soares, e foi incluído aqui de forma a fornecer, além de dados sobre legislação, uma perspectiva
e posicionamento pessoal quanto ao tema.
209
I – Mulheres, Criminosas
II – Outros, Criminosos
O artigo 127 trata da forma qualificada desses crimes, que se dão quando “em
conseqüência do aborto ou dos meios empregados para provocá-lo, a gestante sofre
lesão corporal de natureza grave” (penas aumentada em um terço), ou morte (penas
duplicadas).
Uma breve consulta ao Código de Ética Médica nos revela que é proibido ao
profissional de medicina “praticar ou indicar atos médicos desnecessários ou proibidos
140
“Detenção” e “reclusão” conforme definidas no artigo 33 do Código Penal.
210
pela legislação vigente no País” – o que engloba perpetrar crime conforme o artigo 126
do Código Penal. Ainda assim, a cassação do registro profissional (que depende de
referendo do CFM) ou mesmo abertura de sindicância pelo CRM141 estadual no caso de
médicos que atuam no submundo do aborto ilegal é extremamente rara (o que não os
exime de responder judicialmente). Em outra face da questão, temos os profissionais
que cuidam do atendimento de mulheres que buscam auxílio na rede pública ou
particular após o ato, devido a complicações das mais variadas naturezas: esses médicos
que provêm atendimento, devido ao sigilo profissional, ficam impedidos de “revelar
segredo que possa expor o [a] paciente a processo penal”.
141
CRM: Conselho Regional de Medicina, e CFM: Conselho Federal de Medicina, definidos conforme
Lei nº 3.268/1957.
211
pai ao agressor), ou elementos que abraçam tais iniciativas, com objetivo de por sua vez
angariar apoio às suas próprias ou associarem sua imagem a valores “de defesa da
família”. É importante notar que essas disposições, ainda que reflitam as posturas
oficiais de uma parte da sociedade, ferem sob muitos aspectos a laicidade do Estado.
Por outro lado, temos políticos e coligações comprometidas com posições que
valorizam a agência da mulher na sociedade. Eles recebem apoio de grupos e
Organizações Não Governamentais feministas, de defesa de Direitos Humanos, Sexuais
e de Gênero, e tem proposto alterações na Lei que permitam a legalidade do aborto, ou
a despenalização do mesmo em situações outras que as previstas. O projeto de Lei nº
1.174/1991 foi exemplar no sentido de reavivar a discussão e propor mecanismos que
possibilitavam maior flexibilidade na aplicação do artigo 128 do Código Penal, sendo
arquivado, contudo. Apresentado como ainda tímida vitória foi a Lei nº 12.845 de 1º de
agosto de 2013, seguida da Portaria nº 415 do Ministério da Saúde, datada de 21 de
maio de 2014, que regulamentam atendimento pelo SUS em casos já previstos na Lei.
Afirmo minha total ignorância sobre de fato como realizar o chamado aborto
medicinal até à tarde de 29 de janeiro de 2015. Pesquisei a palavra “aborto” no Google.
A quarta entrada entre os resultados não só me ensinou a forma correta e em detalhes do
procedimento como, após responder usando de puro senso comum a 25 questões
simples propostas no sítio, tive a oportunidade de adquirir um kit completo da
medicação mediante uma doação de 70 Euros.
A página em questão pertence a uma ONG com sede na Holanda, mas hoje com
articuladores espalhados pelo mundo. O sítio tem opção de escolha entre doze idiomas,
incluindo o árabe. Um dos objetivos formais da organização é auxiliar mulheres a
descontinuar uma gravidez indesejada, quando não obtêm amparo legal para tanto, e
acompanhá-las antes, durante e depois do processo, contudo restritamente ao âmbito do
virtual, com somente um endereço de email para contato.
142
O produto Cytotec, à base de misoprostol, não tem registro na Anvisa e não pode ser comercializado
no Brasil. A administração de medicamentos com esse princípio ativo somente é permitida sob supervisão
médica, e desde que dentro da rede hospitalar.
213
textos chega a mencionar que ela “sempre pode alegar que foi um engano de envio” se
perguntada pelas autoridades sobre a correspondência.
É importante notar que o período de espera para a entrega pode fazer com que a
usuária utilize a saída química com tempo de gestação superior ao recomendado,
potencializando efeitos negativos. Embora haja avisos e recomendações na página, a
realidade é que a gestante estará, na maioria dos casos, “por ela mesma”.
143
Saliento que se trata de pesquisa realizada em janeiro de 2015.
214
Não cabe aqui discutir a forma ideal da Lei – até quantas semanas de gestação
seria permitida a interrupção, o anonimato, a forma dos apoios material, psicológico e
de assistentes sociais que a gestante receberia, os chamados “critérios de certeza”: para
tanto existem propostas sérias em voga, e movimentos socialmente representativos que
podem falar sobre essa e outras questões de sexo e gênero. O que é afirmado neste é que
a legislação atual impõe um vácuo de atuação ao Estado que o impede de assumir suas
atribuições de prevenção de incidentes que afetem a saúde feminina, notória e
contraditoriamente permitindo sua ação somente após o fato consumado.
É então que ele pode atuar em dois papéis, um relacionado à Saúde, outro à
Segurança. Quantidade considerável de mulheres busca os serviços de saúde pública
após a interrupção proposital de uma gravidez por motivos que variam grandemente em
gravidade. Abortos induzidos por medicamentos são de difícil comprovação, pois
demandariam exames invasivos deliberadamente executados no sentido de prová-lo, o
que exigiria autorização legal para tanto. Nos casos cirúrgicos, pode haver comprovação
tácita mediante os procedimentos médicos necessários. Mas em ambos os tipos, o
profissional de saúde que atende a mulher é impedido de comunicar à autoridade
policial a suspeita; o denunciante haveria de ser um outro, ou mesmo um flagrante
através de operação policial, e então a mulher, já com sua integridade física violentada,
é apresentada à violência de monopólio do Estado. Confissão, delação, se for o caso.
Submissão à Lei.
Conclusão
Uma entre cinco mulheres já praticaram aborto ilegal ao menos uma vez durante
sua vida reprodutiva – a incidência é sensivelmente maior entre os 15 a 29 anos [DINIZ
et al., 2010]. Esses índices variam muito pouco no que tange a religião professada, por
exemplo. A maioria delas utilizará em algum momento os serviços se saúde do Estado,
ampliando os gastos públicos decorrentes da prática. A sociedade clama a revisão do
que seja ilegal e punível, e essa afirmação não toma por base as vozes solidárias de
Organizações Não Governamentais pelos direitos sexuais e reprodutivos femininos, mas
a realidade que subjaze a nosso verniz do que é correto e do que é errado, nossa moral
para a rua.
Referências:
SOARES, Luiz Eduardo Bento de Melo. Disciplina Eletiva Definida, Curso de Ciências
Sociais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ, “Tópicos Especiais em
Ciência Política XXXIX - Temas do Pensamento Social Brasileiro: Segurança Pública”,
material de aula, segundo semestre de 2014.
DINIZ, D., MEDEIROS, M.. Aborto no Brasil: Uma Pesquisa Domiciliar com Técnica
de Urna. Ciência e Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, RJ, v. 15, supl. 1, pp. 959-966,
junho de 2010. Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1413-
81232010000700002&script=sci_arttext>.
Anexo III
Fruto ou não que seja dessa política, o Uruguai tem hoje cerca de 3,2 milhões de
habitantes, urbanização superior a 95%, “padrões de saúde altos” (como amplo acesso a
vacinação, água potável e saneamento básico – superior a 95% nesses casos –, e um
índice maior que 94% de acesso da população a serviços de saúde), e uma expectativa
144
Hoje ligada ao Centro de Estudios Interdisciplinarios Uruguayos / Facultad de Humanidades y
Ciencias de la Educación - UDeLaR / Universidad de la República / Uruguay.
219
145
O IDH “pretende ser uma medida geral, sintética, do desenvolvimento humano” em contraponto ao
Produto Interno Bruto – PIB per capita, este genérico e que não produz um quadro suficientemente
matizado para estudos sociais sobre real divisão de renda, por exemplo.
220
Diante da falha ou ausência (ou recusa) do poder instituído em atender algo que
podemos definir como uma necessidade de saúde pública, e uma vez que a demandada
existia, se buscavam soluções alternativas: assim era no Uruguai, assim o é no Brasil.
Dá-se a formação de um setor de serviços paralelo à legalidade que atendias as cerca de
“90 mulheres que abortam por dia no Uruguai” [DA ROCHA (org), 2009].
As diferenças entre ambos os países em estudo fazem com que tenham de ser
adotados métodos para a estimativa de abortos distintos. No caso particular de nosso
vizinho, um estudo amplo e com base empírica foi conduzido por Rafael Sansaviero em
2003 – trata-se do “Condena, Tolerancia e Negación”, estimando cerca de 33 mil
interrupções voluntárias da gravidez somente no ano de 2000: uma taxa de quase 40%
de todas as gestações. Essa pesquisa foi realizado a através de uma perspectiva inédita, a
partir de contato direto com os contingentes de clínicas clandestinas (em número total
de oito) na capital do país, Montevidéu, e que se mostraram, contra a intuição óbvia
sobre o comportamento esperado, acessíveis, fornecendo dados amplos ou estimativas
em termos número de abortos durante amplo período de tempo, e inclusive permitindo
estabelecer perfis das mulheres que buscavam a solução fora dos tramites legais.
Também foram realizadas entrevistas com mulheres que tinham tomado essa decisão,
além de serem amostrados registros de “gestações terminadas em aborto” e “internações
decorrentes de aborto” (segundo a atribuição médica oficial), em aproximadamente 20%
dos hospitais públicos do interior do país [ibidem].
146
Médico de profissão e político pertencente ao Frente Amplio, partido de esquerda que vence a
hegemonia dos partidos Colorado e Nacional justamente com sua eleição para a presidência, em 2004. O
Frente Amplio tem se mantido na chefia do Poder Executivo uruguaio desde então.
222
147
Para um amplo debate e contestação dos argumentos de Vázquez, vide Banfí-Vique et al., 2011.
223
Referências:
ABORTION in Uruguay: Still Leading the Way. The Economist, seção Americas view,
análise jornalística disponível online a partir de 19 de outubro de 2012, acessada em 20
de julho de 2015, no sítio <http://www.economist.com/blogs/americasview/2012/10/
abortion-uruguay>.