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Encontro Intermediário do GT Dramaturgia e Teatro da ANPOLL

IV Seminário Nacional de Dramaturgia e Teatro: Teatro e Política


ANAIS DO IV SEMINÁRIO NACIONAL DE
DRAMATURGIA E TEATRO

─ DRAMATURGIA E TEATRO: TEATRO E POLÍTICA ─

Textos Completos

ISSN 2358-405X

Universidade Federal do Paraná


11, 12 e 13 de Setembro de 2019.

Orgs.
Célia Arns de Miranda
Lourdes Kaminski Alves

Os textos aqui publicados são de inteira responsabilidade de seus


autores.

Regulamento, Normas e Outras Informações


http://gtdramaturgiaeteatro.blogspot.com.br/

Projeto Gráfico, Capa e Diagramação


Kaline Cavalheiro da Silva
Organização Geral do Evento:

Célia Arns de Miranda (UFPR/UNIANDRADE)


Lourdes Kaminski Alves (PPGL/UNIOESTE)
Coordenação biênio (2018/2020)

Comitê Científico do IV Seminário Nacional de Dramaturgia e Teatro: Teatro e


Política

André Luis Gomes (UnB)


Alexandre Villibor Flory (UEM)
Aline de Mello Sanfelici (UTFPR)
Amabilis de Jesus da Silva (UNESPAR/FAP)
André Dias (UFF)
Anna Stegh Camati (UNIANDRADE)
Cauê Kruger (PUC/Curitiba)
Célia Arns de Miranda (UFPR/UNIANDRADE)
Diógenes André Vieira Maciel (UEPB)
Edson Santos Silva (UNICENTRO)
Elizabete Sanches Rocha (UNESP/Araraquara)
Esther Marinho Santana (IEL/UNICAMP)
Francisco Alves Gomes (UnB/UFRR)
Gabriela Lirio Gurgel Monteiro (UFRJ)
Liana Leão (UFPR)
Lourdes Kaminski Alves (UNIOESTE)
Márcia Regina Becker (UTFPR)
Margarida Gandara Rauen (UNICENTRO)
Maria Clara Versiani Galery (UFOP)
Maria Cristina de Souza (UTFPR)
Maria da Glória Magalhães dos Reis (UnB)
Maria Sílvia Betti (USP)
Maricélia Nunes dos Santos (UNIOESTE)
Marise Rodrigues (UFF)
Martha Ribeiro (UFF)
Nelson Marques (UERJ)
Otávio Gomes Cabral Filho (UFAL)
Pedro Leites Junior (IFP)
Priscila Matsunaga (UFRJ)
Ricardo Augusto de Lima (UEL)
Rosemari Bendlin Calzavara (UEL)
Sonia Pascolati (UEL)
Wagner Corsino Enedino (UFMS)
Walter Lima Torres Neto (UFPR)
Equipe de Apoio
Kaline Cavalheiro (UNIOESTE/PPGL)
Arte, Diagramação e Manutenção do Blog do GT

Monitores
Estudantes do PPGL/UNIOESTE
Estudantes dos PPGs/UFPR/UNIANDRADE

Colaboração:
Programa de Pós-graduação em Letras da Universidade Federal do Paraná
(PPGL/UFPR)
Programa de Pós-graduação em Letras da Universidade Estadual do Oeste do
Paraná (PPGL/UNIOESTE)
Encontro Intermediário do GT Dramaturgia e Teatro da ANPOLL
IV Seminário Nacional de Dramaturgia e Teatro: Teatro e Política

Apresentação

O Grupo de Trabalho Dramaturgia e Teatro da ANPOLL – Associação Nacional de


Pós-Graduação e Pesquisa em Letras e Linguística – iniciou suas atividades no biênio 1999-
2000 como expansão do GT de Estudos Shakespearianos, congregando pesquisadores da grande
área de Letras, Linguística e Artes em torno de questões teóricas, históricas e práticas
pertinentes aos estudos de dramaturgia e teatro. A partir de 2009, durante encontro do grupo
em Brasília (UnB), as atividades acadêmicas foram estendidas à participação de pesquisadores
não vinculados ao GT, movimento que se concretizou com a realização dos Encontros
Intermediários: I Seminário Nacional de Dramaturgia e Teatro – Teatro e
Intermidialidade, realizado em outubro de 2013, na Universidade Estadual de Londrina
(UEL); II Seminário Nacional de Dramaturgia e Teatro – Teatro e Ensino sediado pela
UEM de 16 a 18 de setembro de 2015; III Seminário Nacional de Dramaturgia e Teatro –
Dramaturgia e a Cena Contemporânea, realizado na Universidade Estadual do Oeste do
Paraná (UNIOESTE), nos dias 13, 14 e 15 de setembro de 2017; IV Seminário Nacional de
Dramaturgia e Teatro: Teatro e Política realizado na Universidade Federal do Paraná
(UFPR), nos dias 11, 12 e 13 de setembro de 2019.
Os Encontros Intermediários do GT tem como objetivo a apresentação e o debate das
pesquisas que estão sendo desenvolvidas no âmbito do Grupo, por seus membros efetivos e
convidados. Essas pesquisas estão articuladas a outros projetos em suas instituições,
considerando-se as linhas de pesquisa, nos níveis da Graduação e da Pós-graduação, Iniciação
Científica, Mestrado, Doutorado, Pós-doutoramento, dentre outros. Essa articulação torna-se
importante, tanto para o fomento no campo dos estudos em dramaturgia e teatro e sua relação
com a sociedade quanto pela articulação com as áreas de Letras e Linguística. Sabe-se que o
espaço de discussões acadêmicas na área de Letras, embora tenha se fortalecido nas últimas
décadas, ainda precisa ser ampliado.
As quatro edições do Seminário atestam que a configuração dos Encontros
Intermediários do GT como espaços de acolhimento de pesquisas para além de seus membros
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efetivos e colaboradores atende à necessidade de estimular jovens pesquisadores a desbravar as


searas da pesquisa em dramaturgia e teatro e de multiplicar espaços de discussão acadêmica.
Na edição, realizada em setembro de 2019, ano em que o GT comemora seus 20 anos
de existência, no atual formato, o Encontro Intermediário do GT foi pensado para contemplar
um número maior de participantes nas mesas temáticas, sobretudo, considerando envolver as
04 linhas de pesquisa: Teorias do teatro e da performatividade; História, crítica e cultura;
Estudos de intermidialidades; Práticas educativas.
Tendo esses parâmetros em vista, o IV Seminário Nacional de Dramaturgia e
Teatro contemplou cinco mesas temáticas organizadas a partir das linhas de pesquisa do GT,
mencionadas acima. Atendendo ao tema do evento Teatro e Política, as mesas receberam as
seguintes denominações: a) Mesa I - Sobre a Atualidade do Teatro Político em Perspectiva
Dialética no Brasil; b) Mesa II - A Dimensão Política em (Re)leituras de Shakespeare; c)
Mesa III - Corpo a Corpo: Leituras EnCena/EnSino; d) Mesa IV - Vozes e Imagens na
Dissonância; e) Mesa V - Convergências Históricas e Transições Culturais.
Além das Mesas Redondas ocorreram as sessões de Comunicações Coordenadas, com
participantes advindos de diversos Programas de Pós-graduação do país. As comunicações
foram organizadas em 18 sessões de Comunicações Coordenadas, incluindo 78 comunicações
distribuídas em 3 salas de debate simultâneas, ao longo dos três dias do evento, em que
pesquisadores de vários Estados brasileiros trocaram saberes e experiências.
A quarta edição do Seminário Nacional contou com a presença de 20 membros do GT
com participações nas Mesas Redondas; com um palestrante externo ao GT, o Professor da USP
e Diretor da Companhia do Latão, Sérgio Ricardo de Carvalho Santos; 11 membros do GT que
apresentaram seus trabalhos nas sessões coordenadas; 04 Diretores de teatros universitários
convidados; 66 participantes externos com apresentação de trabalhos nas sessões coordenadas,
totalizando 102 participantes no evento.
Registramos a participação das seguintes universidades do Estado: UFPR,
UNIOESTE, UEM, UEL, UNESPAR, UEPG, UNICENTRO, UNOPAR, UNIANDRADE,
PUC/PR, TUIUTI/PR, UTFPR. Dos demais estados, tivemos representantes da UnB, UFF,
UFRJ, Unifesp, UFAL, UFOP, UEPB, UERJ, UNESP/Araraquara, UFMS, UNICAMP, IFPR,
UNIGRANRIO, UFMG, UNESP/Assis, USP. Esses dados confirmam a abrangência nacional
do evento. Grande também foi a diversidade das pesquisas discutidas, com destaque para
estudos sobre Teatro e Política, tema geral do seminário, que contemplaram diversos enfoques:
o processo criativo de laboratórios de criação e investigação da cena contemporânea nas
perspectiva com o político; performances do corpo e linguagem; o teatro contemporâneo em
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uma abordagem autoetnográfica; perspectivas intermidiais nas dramaturgias moderna e


contemporânea; microutopias do texto e da cena; práticas da leitura cênica na sala de aula;
diversidade cultural, currículo e leitura; estudos do teatro político nacional e estrangeiro;
estudos comparados em dramaturgia nacional e estrangeira; o trabalho do ator, do tradutor-
dramaturgo, do diretor; estudos sobre grupos e coletivos de teatro; reavaliações da tradição e
algumas de suas formas; como metateatralidade da autoficção cênica; intertextualidades;
recriações; estudos sobre o trágico moderno; releituras do teatro clássico antigo na
contemporaneidade; a presença da mulher na escrita e na cena dramatúrgica; o teatro
contemporâneo de autoria feminina como espaço de crítica e criação; história e práticas do
teatro no Paraná; história e práticas do teatro no Mato Grosso do Sul; história e práticas do
teatro em Maceió; história e práticas do teatro no Rio Grande do Norte; história e práticas do
teatro em São Paulo. Enfim, as pesquisas apresentadas deram mostras do caráter qualitativo,
profícuo e amplo do debate e das trocas de ideias em torno das temáticas contempladas nas
linhas de pesquisa do GT.
No planejamento apresentado para o biênio 2018/2020, a presente gestão definiu,
como uma das estratégias de trabalho, dar continuidade às publicações planejadas no biênio
anterior que demandavam um tempo maior para a sua execução, a exemplo da publicação que
contempla o tema Dramaturgia e a cena contemporânea. Assim, durante as atividades de
exposição de livros de autoria e ou de organização de membros do GT, foi lançado o livro
Dramaturgia e Teatro: a cena contemporânea, publicado em 2019, no formato ebook, e-PUB
pela Eduem, com distribuição gratuita, disponível em:
https://drive.google.com/open?id=1ANFJ6Wun6ERDau82RY_46UDIMDIyBtxT
O livro contempla parte da pesquisa realizada em torno do eixo “Dramaturgia e a cena
contemporânea”, temática comum de pesquisa do biênio anterior, por parte dos membros do
GT.
A programação do Encontro Intermediário do GT contou ainda com lançamento de
outras diversas obras de pesquisadores do GT. Vale ainda registrar as atividades artísticas e
culturais com a participação de diretores(as), atores (as) e produtores culturais de Curitiba,
sobretudo, destaca-se a mesa com a participação de diretores de teatros universitários.
A publicação destes Anais registra parte da produção acadêmica discutida nos três dias
do evento, que será complementada pelo livro bianual que incluirá artigos dos membros do GT
em torno do tema Teatro e Política, com previsão de lançamento para o próximo biênio
2020/2022.
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Agradecemos o apoio recebido dos Programas de Pós-Graduação em Letras da UFPR


e da UNIOESTE, assim como agradecemos o apoio da Editora Temporal que fez a doação
das pastas e da gentileza e doação das sacolas personificadas em comemoração aos 20 anos do
GT, pela Professora, Margarida Gandara Rauen, membro do GT desde 1998. Agradecimentos
à Kaline Cavalheiros pela criação do selo dos 20 anos do GT, pela diagramação dos Cadernos
de Resumo, dos Anais, impressão e confecção dos crachás e inserção do material online
referente ao GT, no blog http://gtdramaturgiaeteatro.blogspot.com/.
Um agradecimento especial aos estudantes da pós-graduação e aos monitores da
UNIOESTE e da UFPR que colaboraram na organização do evento.
Desejando boa leitura, esperamos que este registro inspire novas pesquisas e estimule
pesquisadores a se juntarem a nós na próxima edição do evento, a ser realizada em 2022.

Profa. Dra. Célia Arns De Miranda


Profa. Dra. Lourdes Kaminski Alves

(Coordenação do GT, biênio 2018/2020)


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Memórias Visuais do IV Seminário Nacional de Dramaturgia e Teatro: Teatro e Política

Abertura do IV Seminário Nacional de Dramaturgia e Teatro: Teatro e Política – Diálogos


Iniciais – Coordenadoras: Profa. Dra. Célia Arns Miranda e Profa. Dra. Lourdes Kaminski
Alves
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Registros fotográficos de alguns momentos das atividades desenvolvidas no evento.


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Sumário

A destruição da mentira vital em Casa de bonecas, de Henrik Ibsen ..........................................12


Eliane da Silva Gomes .................................................................................................................. 12
A escrita do texto dramático Convergências entre o lúdico, o mágico e o real ...........................19
Fátima Maria Ortiz Lour ............................................................................................................... 19
A política no teatro angolano como recurso para a construção da identidade cultural do país
............................................................................................................................................................29
Ana Maria Lange Gomes............................................................................................................... 29
Da cena ao texto: investigações sobre a dramaturgia da memória nos processos de criação no
teatro contemporâneo ......................................................................................................................35
Lysiane Cassia Baldo .................................................................................................................... 35
De adaptação em adaptação: um estudo da transformação do conto de fadas A Bela e a Fera
em teatro............................................................................................................................................45
Heitor Augusto Colli Trebien ........................................................................................................ 45
Do proscênio à academia: representação social e configuração espaço-temporal em A Partilha,
de Miguel Falabella ..........................................................................................................................54
Jéssica Nágilla Hagemeyer ............................................................................................................ 54
Ensaio Sobre a Cegueira: Uma Releitura à Luz de Brecht ...........................................................65
Rosenilda Fernandes Chagas ......................................................................................................... 65
Entre representações dramáticas e cinematográficas: em cena, as personagens e os espaços de
Navalha na Carne, de Plínio Marcos ...............................................................................................71
Haydê Costa Vieira ....................................................................................................................... 71
Wagner Corsino Enedino .............................................................................................................. 71
É preciso atuar? ................................................................................................................................82
Bruno Pinheiro Ribeiro ................................................................................................................. 82
Fechamento das tragédias folclóricas lorquianas ..........................................................................91
Suéliton de Oliveira Silva Filho .................................................................................................... 91
Jardim de poeira quente, raiz leniente de morte: Ensaio crítico sobre O mundo está cheio de
nós ....................................................................................................................................................101
Natalia Mendonça Conti .............................................................................................................. 101
Jornada de Esttudos do Texto Dramático: Uma Nova Experiência ..........................................107
Tereza Eliete de Oliveira Fernandes Ribeiro............................................................................... 107
Rafael Damião de Lima Santos ................................................................................................... 107
Eduardo Henrique Cirilo Valones ............................................................................................... 107
Júlio César, de Shakespeare: passagens do teatro ao cinema .....................................................112
Tânia C. K. Alves Assini ............................................................................................................. 112
O programa de televisão, de Michel Vinaver: fragmentos da realidade cotidiana ....................122
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Renata Guardia Ferreira .............................................................................................................. 122


O submundo do cais: Querelle de Brest e Jean Genet no teatro de Cesar Almeida ..................128
Caroline Marzani ......................................................................................................................... 128
O Fato, o Ato, a Linhagem Teatral Brasileira de Jorge Andrade e Abílio Pereira de Almeida
..........................................................................................................................................................137
Leni Dias Fabri ............................................................................................................................ 137
Os libretos de Ítalo Calvino e a colaboração com Luciano Berio ..............................................147
Alessandra Camila Santi Guarda ................................................................................................. 147
Piscator e o teatro operário e de esquerda nos EUA: a experiência de Case of Clyde Griffiths
..........................................................................................................................................................158
Fernando Bustamante .................................................................................................................. 158
Reflexões contemporâneas na dramaturgia de Matéi Vișniec....................................................166
Camylla Galante .......................................................................................................................... 166
Romance-em-cena: O humor e a crítica em O púcaro búlgaro...................................................176
Raimundo Lopes Cavalcante Jr ................................................................................................... 176
Six Public Acts: a construção coletiva do The Living Theatre ...................................................185
Roberta Cantarela ........................................................................................................................ 185
Violência espetacular e anseios de liberdade em O homem-mulher e A tragédia brasileira
(Romance-Teatro), de Sérgio Sant’Anna .....................................................................................194
Anderson Possani Gongora ......................................................................................................... 194
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A destruição da mentira vital em Casa de bonecas, de Henrik Ibsen

Eliane da Silva Gomes (PPG/UNIANDRADE)1

Resumo: Henrik Ibsen (Noruega, 1828-1906) foi o criador da peça problema e pai do teatro
moderno. Na segunda metade do século XIX, o romantismo atrelado ao sentimentalismo e
conformismo, foi “desmascarado” pelo dramaturgo, que mostrou um lado da classe média
que, até então, não era representado nos palcos. Desvelou a mentira vital, a qual passava
às pessoas e à sociedade a visão de uma família perfeita e de dependência feminina pelo
masculino. Com a peça A casa de bonecas, abriu-se caminho para a expressão feminina
que até então era reprimida. Para falar do feminismo, da luta pelos ideiais feministas e de
conquistas das mulheres, este trabalho terá como base a teoria de Stella Adller sobre Ibsen,
Strindberg e Chekhov (2002), e Teoria e crítica literária feminista: conceitos e tendências
(2007) de Thomas Bonnici. Por meio da técnica da exposição retrospectiva rememorativa,
Ibsen abordou temas como: a máscara da felicidade ilusória e a máscara da mulher ingênua,
infantil, dócil, ignorante e dependente em tudo. Serão analisados os comportamentos de
algumas personagens femininas de Ibsen, para mostrar que a visão de Ibsen teve influência
sobre a vida das mulheres, as quais conquistaram e ganharam espaço em muitos ambientes,
antes não imaginados. .

Palavras-chave: Ibsen; Ilusão; Mentira vital; Feminismo.

Introdução
“Qual é o primeiro dever do homem? A
resposta é ser ele próprio”.
(IBSEN, 1879, s/p)

Estudiosos e historiadores da literatura reconhecem o trabalho de Henrik Ibsen (1828-


1906) na dramaturgia moderna. Considerado o criador do teatro realista moderno, foi um dos
maiores escritores de todos os tempo que exerceu e exerce influência sobre contemporâneos e
sucessores. Ibsen é descrito por Stella Adler como “o sonhador que vislumbra um conflito entre
o sonho e a realidade”, ou seja, ele transformou a peça teatral bem-feita que mascarava a
realidade, e mostrou o que realmente acontecia com as mulheres à época, sem distinção de
classe social. Em suas obras, a sua preocupação sempre foi retratar o indivíduo em conflito
consigo ou com a sociedade, ele preocupava-se com as dúvidas e angústias que os processos de
transformação trouxeram, com a esperança de melhorar, por intervenções da ciência, o futuro
da humanidade (CARPEAUX, 1960, p. 29). Em algumas obras como O pato selvagem (18840

1
Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Teoria Literária pelo Centro Universitário Campos de Andrade –
Uniandrade. Orientadora Profa. Dra. Anna Stegh Camati. E-mail: eliane_visual@hotmail.com

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e Hedda Gabler (1890), retrata o suicídio, em muitos casos tendo ocorrido por depressão em
decorrência dos sofrimentos vividos pelas mulheres naquela época. Na época, meados do século
XIX a mulher não tinha o direito de escolher quem seria seu marido, pois era obrigada a casar-
se com quem seu pai ou familiares escolhesse.
O sufrágio foi conquistado pelas mulheres por meio de lutas e movimentos
advindos logo após a revolução no teatro. Este trabalho abordará de forma consistente as
lutas e as vitórias, não somente das mulheres, mas do ser humano, esmiuçadas nas obras
de Ibsen. Segundo Søren Aabye Kierkegaard (1813-1855), contemporâneo a Ibsen,
existem dois tipos de desespero: “O desespero pelo fracasso em se tornar quem se é, e o
desespero por se tornar de fato quem se é.” Esse último, está relacionado com ideias e
princípios preconizados por Ibsen, visto que a época desconsiderava as emoções
individuais, e voltava-se inteiramente para aparências tão caras à sociedade.
Henrik Ibsen nasceu na Noruega em 1828, e em 1834, as autoridades governamentais
mandaram fechar a destilaria do pai dele. Com isso, em 27 de dezembro de 1843, foi de navio
para Grimstad, uma cidade de 800 habitantes ao sul, para trabalhar como assistente de
farmacêutico, mas com o passar do tempo ele começou a trabalhar em teatros como auxiliar de
limpeza e depois ajudava em figurinos, na montagem do cenário etc., assim começou sua
carreira que revolucionaria o teatro. Viveu em uma sociedade de burgueses que eram moralistas,
religiosos, que viviam de aparências. Para eles na família exemplar, o homem teria que ter um
bom emprego; ter uma família respeitável, a mulher teria que saber costurar e servir ao marido,
sempre. Os filhos iam à escola, as moças deveriam tocar piano, saber costurar e a esposa sempre
receber os convidados com sorriso no rosto e todos iriam à igreja aos domingos.
Nas décadas finais do século XIX iniciou a onda feminista, a qual buscou os direitos das
mulheres, muitas delas reuniram forças por meio da obra A casa de bonecas (1879), de Henrik
Ibsen. Nessa peça é mostrado o autoritarismo que não somente atingia uma determinada classe
social, mas todas elas, pois a mulher deveria ser submissa ao pai e ao marido. As obras Ibsen
desnudam o fanatismo idealista, presente atrás das máscaras conjugais. Para retratar a realidade
do ser humano, Ibsen revolucionou o teatro. Com isso ele retrata a falsa ilusão, do ser feliz,
desmascara a representação da família feliz e ideal ou do ser ideal.

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A Sociedade Construída a Partir de Aparências

“Procurar o eu no poderio dos outros é edificar


sobre a areia.”

(Disponível em:
<https://www.escritas.org/pt/t/30869/procurar-o-eu-no-
poderio>. Acesso em 26 de nov. 2019).

O pensamento do autor, em epígrafe, ecoa uma frase da bíblia, a qual diz: “Mas todo
aquele que ouve estas minhas palavras e não as observa, será comparado a um homem néscio,
que edificou a sua casa sobre a areia” (Colocar a referência). Não é preciso ser cristão para
interpretar a frase, pois se um homem ou uma mulher ‘edificar sua casa na areia’, ou seja, não
conservar ou criar um lar, uma família com amor, carinho e com prioridade a ela, essa pode
desmoronar, pode acabar.
No século XIX, com a mudança da cosmovisão, houve uma nova compreensão do
sujeito e da subjetividade: surgiram um novo homem e uma nova mulher que buscavam viver
de fato a realidade e não viver de aparências somente para agradar a sociedade. Em 1869, Ibsen
escreveu a peça A liga da juventude, na qual trabalhou a hipocrisia das políticas e políticos
provincianos, pois ele volta-se para os problemas sociais contemporâneos. Ele não queria
apenas demonstrar o que era vivido pela sociedade do proletariado, mas sim o que realmente
era vivido pela sociedade burguesa.
Em 1979, escreveu A casa de bonecas, na qual Nora era a personagem principal. Nessa
peça é retratada e demonstrada a falta de respeito do ser humano, mas em especial com a mulher,
a qual era tratada como um objeto de prazer que servia ao marido, não podia votar, não tinha
voz ativa, não poderia demonstrar seus sentimentos e deveria passar à sociedade a impressão
de felicidade e família perfeita. Porém, no fim da peça essa farsa é desmoronada quando o autor
muda o rumo da escrita e revoluciona teatro, abrindo caminhos para mostrar a realidade como
de fato era para ser vivida e transformada.
Quando foi convidado para assumir a presidência do movimento feminista, Ibsen
declarou “Devo declinar da honra de ter trabalhado em favor do movimento pelos Direitos da
Mulher. Nem sei ao certo quais seriam. Para mim é uma questão de direitos humanos (KLAUS,
2003, p. 548). O que Ibsen realmente queria era demonstrar que toda e qualquer pessoa tinha o
direito de viver suas emoções, sem que precisasse fantasiar uma vida de mentiras perante a
sociedade. Pois todo ser humano tem o direito de viver sem ter a obrigação de fingir ser outra
pessoa para agradar um grupo específico, nesse caso a sociedade.

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Em Casa de bonecas, Ibsen descreve com exatidão a força da personagem no final da


peça. Nora era a ‘esposa ideal’ perante todos. Ela era uma esposa dedicada, que respondia ao
marido sempre carinhosamente e fazia de tudo para vê-lo feliz. E para isso até falsificou a
assinatura de seu pai, para fazer um empréstimo para ajudar seu marido a se recuperar de uma
doença e para tal precisava viajar.
Em outra cena da peça, Nora diz que se sente como um homem quando trabalha a noite
para ganhar dinheiro, ou seja, para as mulheres da época, trabalhar e ter algum reconhecimento
era um sonho quase impossível de ser realizado, pois não tinham reconhecimento nenhum.
Eram simplesmente um objeto que esperava o marido chegar para satisfazê-lo e então
reproduzir e cuidar dos filhos.
O marido, Torvald, tratava-a como se fosse propriedade sua, sempre com diminutivos e
humilhações disfarçadas, ou seja, sempre a comparava ela ao pai, mas não com as boas
qualidades e sim com os defeitos. E Nora, sempre respondia com maior respeito e medo pedindo
ao marido que não falasse assim e ainda o chamava de ‘Meu bem’.
Com o final revolucionário da peça, quando Nora sai de casa e bate a porta, deixando
os filhos e dizendo tudo o que sempre teve vontade, iniciou-se uma nova era para o teatro, do
romantismo idealizado para o realismo dramático moderno. Ibsen conseguiu atingir muitas
pessoas, tanto a plateia feminina quanto a masculina. A subjetividade mudou, pois foi percebido
que dentro de um corpo, dentro de uma pessoa, independente do sexo existe um ser humano
que precisa ter voz ativa, desde que respeite seus deveres perante à sociedade, mas que não viva
somente para demonstrar o que os outros querem ver, mas sim para viver sem precisar da
aprovação da sociedade.
Segundo Stella Adler (2002), a finalidade do autor era retratar o estado de espírito e os
destinos de um ser humano. Pois o ser humano, principalmente as mulheres, inclusive retratadas
nas obras, têm ambições e desejos, mas não viviam, apenas sobreviviam. Nessas condições
muitas mulheres viviam com seus parceiros por obrigação, não poderiam jamais pedir o
divórcio. Por esse motivo, a peça Casa de bonecas foi muito importante para que muitas
mulheres tivessem a coragem de pedir por ‘socorro’, em outras palavras: muitas saíram de casa
e clamaram por liberdade.

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As Primeiras Ondas Feminista do Século XIX

Nas décadas finais do século XIX, o ativismo literário deu margens ao que viria em
breve que era a luta pelo direito do voto feminino, que até então não era aceito.

Politicamente as mulheres eram consideradas cidadãs de segunda categoria.


Elas não podiam votar, assumir cargos administrativos (excessão feita à rainha
Vitória, a qual era antifeminista), trabalhar como advogadas ou médicas, nem
sequer como secretárias nos escritórios. (BONICCI, 2007, p. 219)

As mulheres da época eram e precisavam ser como bonecas, que mesmo estando em
casa deveriam se vestir como bonecas de porcelana, domesticadas, sempre companheiras dos
seus maridos, aquelas que recebiam os convidados sempre com um sorriso no rosto e em todo
momento submissas.
A educação feminina só começou a mudar quando em 1848 foi fundado em Londres um
colégio de educação para mulheres. No início do século XX, a luta pela igualdade das mulheres
intensificou-se. Em 1903, Emmeline Pankhurst fundou a Associação Social e Política das
Mulheres, como ponto central a luta pelo voto feminino. Ficaram conhecidas como: as
suffragettes, as sufragistas militantes, que amarraram-se aos portões do Palácio de
Buckingham, incendiavam recintos públicos, danificavam obras de artes, cortavam fios
telefônicos e interrompiam debates do parlamento (Emmeline Pankhurst, citada em BONNICI,
2007, p. 220).
Ao mesmo tempo que lutaram pelos direitos, extrapolaram em como demonstrar que
tinham direitos e queriam que eles fossem concedidos, pois uma vitória vem depois de uma
guerra, mas é importante saber e ter limites para que seja alcançado um objetivo.
A primeira onda feminista nos Estados Unidos foi em 1840, quando o crescimento do
número de romances de autoria feminina cresceu Indubitavelmente. Segundo Bonnici (2007),
a luta pelo voto deu forças para as brasileiras lutarem contra o patriarcalismo. Após essa etapa,
as feministas lutaram também pela proteção à maternidade, às diferenças salariais por sexo, que
já houve grandes conquistas, porém até hoje em algumas empresas ou cargos existem essas
diferenças, apenas movidas pelo fator de gênero. Infelizmente, na sociedade atual, 2019, ainda
ouve-se relatos de homicídios e suicídios cometidos por fim de relacionamentos.

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Considerações finais

É possível afirmar que hoje, mesmo ainda não em condições ideais, as mulheres e os
seres humanos tenham evoluído em relação a questões que dizem respeito à divórcios e
conquistas femininas. Nesse sentido, destacam-se aspectos relevantes do teatro de Ibsen que
conseguiu demonstrar as aflições e sofrimentos das mulheres, por meio das suas personagens.
O escritor e revolucionário do drama moderno, colocou no palco temas e assuntos não
permitidos em sua época. Quebrou tabus e não se dobrou diante das reações adversas de crítica
e de público. Retratou que o homem não pode sacrificar o dom da vida, ou seja, sobreviver ao
invés de viver. Deve dizer não se não está de acordo e lutar pelos seus ideias, demonstrando
assim que todos têm o direito de viver sem precisar representar para a sociedade para ser bem
visto. Ibsen deixou muito claro que ele não era um feminista e sim um escritor dramaturgo
moderno realista que queria que as pessoas fossem tratadas da mesma forma, tanto os homens
quanto as mulheres. As igualdades ainda não estão totalmente conquistadas, mas Ibsen
contribuiu para as mudanças, abrindo as cortinas não somente para um público específico, mas
para todos que quisessem apreciar, temas que até então não tinham sidos mostrados. O mundo
seria muito melhor se todos tivessem a mesma coragem e ‘ousadia’ de Henrik Ibsen.

Referências

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Janeiro: Bertrand Brasil, 2002.

BONNICI, Thomas. Teoria e crítica literária feminista: conceitos e tendências. Maringá:


Eduem, 2007.

GIANNETTI, Eduardo. Auto-engano. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

GOFFMAN, Erving. A representação do eu na vida cotidiana. Trad. Maria Célia Santos


Raposo. 17. ed. Petrópolis: Vozes, 2009.

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Villas, vol 6. São Paulo: EMW Editores, 1984.

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Nova Cultural, 2003.

______. O pato selvagem. Trad. Vidal de Oliveira. Rio de Janeiro: Editora Globo, 1984.

______. Hedda Gabler. Trad. Millôr Fernandes. Texto não publicado.

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Encontro Intermediário do GT Dramaturgia e Teatro da ANPOLL
IV Seminário Nacional de Dramaturgia e Teatro: Teatro e Política

______. A dama do mar/ Solness, o construtor. Trad. Fábio Fonseca de Melo. Rio de
Janeiro: Editora Globo, 1984.

KLAUS, Carl H. et al. Stages of drama. Classical to Contemporary Theater. 5. ed. Boston:
Bedford/St. Martin’s, 2003.

MENEZES, Tereza. Ibsen e o novo sujeito da modernidade. São Paulo: Perspectiva,


2006.

PETERS, Heinz Frederick. Lou: minha irmã, minha esposa. Trad. Waltensir Dutra. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 1986.

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IV Seminário Nacional de Dramaturgia e Teatro: Teatro e Política

A escrita do texto dramático Convergências entre o lúdico, o mágico e o real

Fátima Maria Ortiz Lour (PPG/UNIANDRADE) 2

Resumo: Este trabalho busca investigar as motivações e os pressupostos de uma escrita singular
dirigida à infância, na forma de escritura dramática. Ao se discutir sobre tal especificidade
torna-se imprescindível que se reporte a questões anteriores e básicas, as quais dizem respeito
ao conceito de criança, à produção dos bens culturais a ela direcionados e principalmente ao
valor do teatro em suas vidas; entender em que aspectos este labor se diferencia da escrita para
o adulto e como o texto dramático, criado para se materializar no palco, mistura os elementos
de ludicidade, magia e do real que circundam a criança em suas experiências de crescimento.
Busca-se caminhos que possam colaborar nas experiências de um autor e que solidifiquem a
pesquisa e o processo criador à luz de considerações teóricas de Shirley R. Steiberg, Regina
Zilberman, Bruno Bettelheim, Gaston Bachelard, e Johan Huizinga. Neste estudo serão
selecionados trechos do texto teatral O caminho dos girassóis (2008), de F. Ortiz, com o intuito
de demarcar o entrelaçamento dos aspectos lúdico, mágico e de realismo, que costumam
caracterizar tal escrita.

Palavras-chave: Dramaturgia. Criança. Ludicidade. Magia. Realismo.

Introdução
“O teatro para crianças deve ser igual ao dos
adultos, só que melhor”.
(STANISLAVISKY)3

“Para que serve um telescópio?


Para levar os olhos longe! [...].” (ORTIZ, 2013)4

Ao se discutir sobre a especificidade da linguagem cênica no teatro dirigido à


infância, e mais propriamente sobre o texto dramático torna-se imprescindível que se
reporte a questões anteriores e básicas, as quais dizem respeito ao conceito de criança, à
produção dos bens culturais a ela direcionados e principalmente ao valor do teatro em suas
vidas.
Coloca-se este tema evidenciando a necessidade de ampliar a compreensão do
entrelaçamento da arte com a pedagogia, bem como da função social e ética do teatro

2
Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Teoria Literária pelo Centro Universitário Campos de Andrade –
Uniandrade. Orientadora Profa. Dra. Anna Stegh Camati. E-mail: fatimateatro@hotmail.com
3
Citação atribuída a Stanislavisky. Disponível em: http://cbtij.org.br/primeiro-congresso-brasileiro-de-teatro/.
Acesso em 10 de janeiro de 2018.
4
Que História é Essa? (ORTIZ, 2013, 66)
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IV Seminário Nacional de Dramaturgia e Teatro: Teatro e Política

direcionado a um público, cuja principal característica é o potencial para aprender, a cada


minuto, em sintonia com o latente desejo de construção da subjetividade voltada à
descoberta prazerosa do mundo.
Quando se analisa a dramaturgia e os espetáculos para a infância, observa-se que a
percepção dos criadores, hoje, está mais apurada e o amadurecimento das atitudes é notável,
nos textos e espetáculos, por meio do decantamento do processo criador, das opções de
linguagens lapidadas e da busca por expressões autênticas. Isso faz crer que a premissa deixada
por Stanislaviski de que “fazer teatro para crianças é igual fazer teatro para adulto, só que mais
difícil” tem motivado um exercício consciente e prazeroso de ações, reflexões e resultados.
Segundo Maria Lúcia Pupo, em seu livro No reino da desigualdade “uma
heterogeneidade básica marca de forma determinante o teatro infantil: O emissor da mensagem
é o adulto artista, detentor de um poder assegurado por sua condição de idade, enquanto o
receptor é a criança desprovida deste poder” (PUPPO, 1991, p. 19). Tal afirmação leva a uma
questão crítica fundamental ao ato criativo que é o cuidado necessário com o aspecto do
chamado ‘adultocentrismo’ e das inserções moralistas e maniqueístas que costumam se fazer
notórias nas dramaturgias para infância. Tais atitudes se fizeram modelo por carregarem o peso
das heranças históricas, cujo atrelamento da arte às imposturas religiosas e conservadoras foram
pouco debatidas e mantiveram-se como regra obrigatória difícil de serem superadas.
Shirley Steinberg, na obra Cultura infantil: A construção corporativa da infância
descreve e debate a crise contemporânea da infância, analisando textos recentes que narram a
‘perda da infância’ colocando o poder corporativo da cultura infantil e os dilemas que
constituem a infância pós-moderna. A autora afirma que “a infância é uma criação da sociedade
sujeita a mudar sempre que surgem transformações sociais mais amplas” (STEINBERG, 2001,
p. 18). Pode-se assim supor que, ao entender os fatores que mudaram a cultura da infância, e
entrelaçá-los ao anseio de compreensão das subjetividades que incorrem no ato criativo da
escrita dramática, seja possível descortinar aspectos desencadeadores de reflexões profícuas.
A criança é um mistério e conseguir penetrar no seu mundo é admitir também os mistérios
do ato da criação. Maria Clara Machado, dramaturga que reinou soberana nos palcos do Brasil
durante duas décadas, apresenta como bússola o seguinte entendimento:
Se a criação artística é um grande mistério que vem das profundezas do
inconsciente, a criança é mistério maravilhoso. A grande decepção do homem
racional deste século é querer saber tudo o que se passa no mundo infantil.
Escreve livros, inventa teorias, faz congressos, e a criança continua fazendo o
seu buraquinho na areia para colocar o mar dentro, como na história de Santo
Agostinho. Não tente me desvendar, parece dizer a criança. (MACHADO.
1979, p. 69)

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Assim, atuar, escrever, compor, enfim criar para crianças é um labor que exige um grau de
consciência mais apurado. Trata-se aqui de ampliar a função da arte, para colocá-la também
como veículo de uma educação hierarquizada que abrangerá a formação do espírito sensível e
da inventividade.
Fala-se aos escritores aqueles que poderão absorver nas entrelinhas deste estudo estímulo
para um ofício duplamente desafiador: escrever para o teatro e escrever para crianças.
O texto O Caminho dos girassóis aqui nos servirá para ilustrar as ideias e pressupostos
apontados neste estudo. Em 2008, o projeto de escritura do referido texto foi premiado,
posteriormente escrito e publicado por meio do Edital Oraci Gemba de fomento à dramaturgia
da Fundação Cultural de Curitiba.

O valor do teatro na vida da criança

“Hoje, como no passado, a tarefa mais importante e


também mais difícil na criação de uma criança é
ajuda-la a encontrar significado na vida”.
(BETTELHEIM, 1980, p. 173)

O teatro traz na sua essência o jogo, o mágico e o poder de espelhar a realidade. Caracteriza-
se, sobretudo por proporcionar uma vivência simbólica e fugidia entre atores e plateia. Nesta
vivência, os pensamentos e sentimentos tomam corpo através dos vários recursos ou elementos
que esta atividade dispõe, ou seja: o texto, a representação propriamente dita, somados ao
cenário, figurinos, iluminação, sonoplastia e a todas as inovações tecnológicas que ultimamente
invadem maravilhosamente o palco.
O teatro é uma arte intensa e efêmera, cujo valor reside no confronto e na
cumplicidade palco-plateia. Todos estes fatores tornam-se relevantes se a plateia for composta
por seres, cuja principal característica é a vontade de conhecer e indagar o mundo. O nível de
importância que a criança dá às coisas, por estar em um processo constante de compreensão e
apreensão do mundo faz com que as virtudes da arte dramática se ampliem e adquira um caráter
motivador, aonde o conhecimento venha revestido da relação prazerosa e dialógica que a rigor
deve ocorrer na experiência com o teatro.
O espetáculo teatral vai introduzi-la em um mundo de convenções e signos onde as
inquietudes humanas são apresentadas, solicitando uma série de reflexões que induz os

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espectadores mirins à busca de respostas para suas indagações existenciais e compreensão do


cotidiano.
O mito e as diversas formas de ficção podem suprir os vazios da capacidade intuitiva da
criança, vazios estes, provocados pelas influências impositivas da sociedade e pelo próprio
processo civilizatório, que no afã de conquistas materiais, deixa esfumaçar as capacidades
humanas contidas em suas origens anseios e inquietudes. Por isso, diz-se não existirem limites
temáticos no teatro para infância. Na idade em que uma criança começa a frequentar o teatro,
pensamentos e sentimentos como: culpa, amor, ódio, inveja, competição, medo, alegria, tristeza,
dúvidas, não são nenhuma novidade, porque ela já os experimentou e continuará
experimentando.
Idealiza-se que o teatro possa fornecer à criança condições ou elementos intelectuais,
morais e éticos que colaborarão na sua formação integral. As situações e os conflitos, ao serem
resolvidos, levam-na a formular conceitos e a ampliar seus valores sensíveis e mentais.

O que é criança?

“Se a presença enigmática da infância é a presença


de algo radical e irredutivelmente outro, ter-se-á de
pensá-la na medida em que sempre nos escapa: na
medida em que inquieta o que sabemos (e inquieta a
soberba de nossa vontade de saber), na medida em
que suspende o que podemos (e a arrogância da
nossa vontade de poder) e na medida em que coloca
em questão os lugares que construímos para ela (e a
presunção da nossa vontade de abarcá-la). Aí esta a
vertigem: no como a alteridade da infância nos leva
a uma região em que não comandam as medidas do
nosso saber e do nosso poder”. (LARROSA, 1998,
p. 232)

Na coleção Primeiros Passos, título: O que é Criança? o autor inicia supondo que se
fosse feita esta pergunta a um mestre zen, ele responderia com “um profundo e tranquilo
silêncio” (DAMAZIO, 1991, p. 12). Mas, o que se vê na realidade, é o oposto desta respeitosa
atitude. Para o capitalismo a criança tem sido um consumidor em potencial. Alvo de todo o tipo
de propaganda e de projetos enganosos, pois com sua aparente fragilidade a criança torna-se
objeto das manobras do consumismo. Ela tem sido tratada pela sociedade como um “vir a ser”,
ou um adulto em miniatura. “normalmente, estamos habituados a pensar a criança em uma
perspectiva simplesmente etária que a considera como um organismo em formação por
excelência” (ZILBERMAN, 1990, p. 12).
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A criança, estranhamente, é vista como um ser passivo, ou seja, objeto dos pais, da escola
e das teorias do Estado. Não é fácil ser criança em uma sociedade desnaturalizada. A natureza
infantil é a todo o momento agredida pela premência comum, muitas vezes, desumana, por
uma história cega que se constrói à revelia e que, quase sempre, se opõe ao natural,
desprezando os valores essenciais do ser humano. Para abrir comportas motivacionais, vale
mencionar o teórico Gaston Bachelard, que em A Poética do Devaneio apresenta de forma
condensada uma filosofia ontológica que descarta a ideia do caráter durável da infância. Não
se trata de uma psicologia da criança, mas de uma abordagem da infância como tema de
devaneio, intuindo a importância da imaginação na compreensão do mundo e do ser humano.
Segundo o autor “É preciso estabelecer uma ligação entre o Espírito e a Realidade. Traduzir
o verdadeiro processo intelectual, para que a criação continue sustentando e aperfeiçoando a
realidade” (BACHELARD, 2009, p. 23).
Pensa-se que o idealismo tão necessário ao artista é ainda mais imprescindível àqueles
que criam para crianças. Escrever para crianças é um labor que exige um grau de consciência
mais apurado. Trata-se aqui de ampliar a função da arte, trazendo a noção de que educação é
tudo que nos traz novidade e tudo que nos aproxima com clareza aos desafios da vida.
Educação é tudo que permeia a vida e nos demove para um lugar de encantamento.

Uma varinha mágica - caminhos para uma escrita singular: uma lupa no Caminho
dos Girassóis

Buscar uma ideia e uma escrita singular para o teatro infantil é buscar a própria
criança, ou seja, conseguir penetrar na linguagem de suas experiências, traduzindo-as para o
papel de uma forma que seja possível ver o texto no palco.

Flora e Gabriel estão crescendo. A coruja senhora dos sonhos e o


beija-flor mensageiro das inspirações celebram o dia-a-dia das
crianças. O sol gira e com ele a pressa e os compromissos: O corre-
corre na família, hora pra tudo na escola e uma cidade que cresce
engolindo paisagens, casarões e seus jardins. As flores estão em perigo,
mas as palavras mágicas que foram plantadas pelas crianças junto com
as sementes anunciam que o caminho dos girassóis será preservado. A
sabedoria dos jardineiros e os sonhos de Flora e Gabriel anunciam um
mundo melhor! (ORTIZ, 2008) 5

5
Sinopse do texto O caminho dos girassóis (2008).
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Ora, se a consideração de que a ideia que se tem do mundo a ser descortinado compõe-
se de aspectos subjetivos e objetivos e que o instrumento do qual se dispõem são as histórias, o
faz-de-conta e, mais tudo aquilo que se quer dizer reforça-se a necessidade de elaboração dos
elementos, os quais possam vir a promover uma linguagem teatral, que comungue com as
formas de pensamentos e sentimentos encontrados na psicologia da criança. Aqui um exemplo
de como começar:

(SILÊNCIO MÁGICO. A SONOPLASTIA REGE O


MOVIMENTO DO SOL E DA LUA. UMA MÃO ENLUVADA
GIRA O CALENDÁRIO COM OS DIAS DA SEMANA E PÁRA
NO DOMINGO. APARECE A LUA CHEIA E A CORUJA. LUZ
NA MENINA.)

FLORA - (ESCREVENDO)... Daí a coruja abriu e fechou os olhos


três vezes e disse:
CORUJA - (BONECO)... Isso você resolve amanhã! ... Agora
durma!
FLORA - A menina fechou e guardou o caderno. A coruja sorriu
com os olhos saudando o dia e despertando o beija-flor. (ORTIZ, 2008,
p.36).

Constata-se que no teatro para crianças a linguagem se faz por meio do equilíbrio dos
elementos lúdicos, mágicos e reais. Ou seja: o jogo, as brincadeiras, o encantador, o
extraordinário, as transformações fantásticas, a imitação, a capacidade de realizar e pôr em
prática, à evidência de tudo aquilo que existe de fato. A recriação constante destes conteúdos
apontará para uma linguagem que poderá expressar o universo da criança.
O trabalho seminal de Johan Huizinga na obra Homo Ludens aprofundou algumas
qualidades do ‘jogo’ que pode ser agregado ao que aqui se coloca: O autor afirma o caráter
profundamente estético do jogo, sua função significante, pois sempre encerra um determinado
sentido em seu poder de fascinação.
A característica fundamental do jogo: ser livre, ser ele a própria liberdade [...] seja qual
for e como o considerem, o simples fato de o jogo encerrar um sentido implica a presença de
um elemento não material em sua própria essência [...]. Se brincamos e jogamos, e temos
consciência disso, é porque somos mais que simples seres racionais, pois o jogo é irracional.
(HUIZINGA, 2019, p. 6l)
Jogo é seriedade, jogo é beleza. É atividade voluntária ligada ao ócio, por isso mesmo é
elemento inseparável do teatro em suas diferentes formas de construção. A trilha criativa da
ludicidade em sua tendência á assumir acentuados elementos de beleza é inseparável desde
sempre das obras de arte. Assim, na experiência teatral sustentada pelo efeito do jogo ocorre a

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evasão da vida real para uma esfera temporária de atividade autônoma; a ligação direta com o
faz de conta e com o sadio desinteresse às obrigações. Torna-se possível enfatizar aquilo que se
abre ao incentivo de uma escrita criativa e singular, de risco e de valor incomensurável: Os
aspectos lúdicos serão garantidos pela construção das cenas e dos diálogos onde os jogos e as
brincadeiras farão pontes com o real e o mágico. O jogo das palavras, as rimas e os ritmos que
evoluem conforme a evolução da trama.

CASA DA FLORA
(BARULHO DE RELÓGIO. DESPERTADORES. TOCA O TELEFONE.
BARULHO DE FORNO MICRO-ONDAS. TELE JORNAL, ETC...).
FLORA - (SENTADA NA CAMA SEGURANDO UM
TRAVESSEIRO)... Ai, ai, ai... Dor de barriga! ... Não vou para aula! ... Quero
ficar em casa de pijama, quero chá de camomila na cama! ...
(OS SONS ACELERAM)
MÃE - (VOZ OFF) Flora, você vai me atrasar de novo?
FLORA - (LEVANTANDO E SE ARRUMANDO) Hoje não quero
ovo! ...
MÃE - Não esqueça o agasalho, não esqueça a lição de casa.
FLORA - A lição ficou legal! Terminei de madrugada a coruja me
ajudou (BARULHO DE CARRO)... Ah! A buzina! ... Já vou!
PAI - (VOZ OFF) Ai, esta a menina:... Ainda não comeu? ... Ainda não usou
o pente?
FLORA - (RINDO) Nem a escova de dente!
MÃE - Hoje tem aula de Inglês. Não esqueça a apostila!
FLORA - Apostila rima com...
PAI - Apostila rima com rima! ...Venha logo menina! (ORTIZ, 2008 p.34).

Quanto aos aspectos aqui nominados mágicos referem-se à presença na escrita e


concepção das cenas e situações dramáticas dos elementos oníricos, da tradição dos contos de
fadas, da literatura fantástica e ainda dos movimentos internos da inspiração caótica e
impalpável; Estes fatores, vistos como desencadeadores de ideias, soluções e surpresas são
inseparáveis daquela ludicidade acima mencionada, uma vez que no contexto da ficção não se
pode determinar tais fronteiras. Os aspectos mágicos representam também as possibilidades
encontradas pelos personagens para suprir com os elementos mito-poéticos os vazios que
ocorrem nas suas experiências. A fantasia é um fator poderoso na constituição do universo
infanto-juvenil. Conforme observam psicanalistas como Bruno Bettelheim:

a fantasia não apenas colabora para a tradução dos problemas, dificuldades e


traumas pessoais, mas pode levar a uma solução ainda que de modo imaginário
[...] para que uma estória realmente prenda a atenção de uma criança deve
entretê-la e despertar a sua curiosidade, mas para estimular a sua vida, deve
estimular-lhe a imaginação [...] como a criança está a cada momento exposta
à sociedade em que vive, certamente aprenderá a enfrentar as condições que
lhe são próprias, desde que seus recursos interiores o permitam
(BETTELHEIM, 1980, p.13).
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(FLORA E GABRIEL SEGUEM OS DOIS VELHINHOS DE OLHOS


FECHADOS. VEMOS UM JARDIM SINGELO. NUM IPÊ FLORIDO
O BEIJA-FLOR BRINCA).
ZELINA - Pronto: Abrir os olhos para as cores das flores. Os ouvidos
para deixar o som dos pássaros mexerem com os nossos pensamentos.
ALCINO - Aspirar o perfume das plantas e deixar o verde entrar no
coração.
GABRIEL - Olhem o beija-flor parece o dono do jardim.
ALCINO - É ele o primeiro passarinho que acorda de manhãzinha, antes
do sol!
ZELINA - E só sossega quando ouve o pio da coruja que mora no telhado.
FLORA - Eu sabia que aqui teria uma coruja. A coruja da sabedoria! Eu
sabia!
ALCINO - (COM UM APITO IMITA O PIO DA CORUJA) Para ver
os olhos redondos da coruja só mesmo depois que anoitece! ... Ela cuida do
jardim ouvindo as mariposas e os insetos noturnos que vem se deliciar com o
néctar das flores que perfumam a noite! (APONTA) A dama da noite, o
jasmim, o manacá. (ORTIZ, 2008, p. 48)

E, finalmente, quanto aos aspectos aqui ditados como reais, se tratam dos acontecimentos
que circundam a criança nas suas experiências do dia a dia e, igualmente, naquilo que aparece
como solicitação externa, premência ou demanda da convivência social e familiar. Representam
eles uma ponte que une, agrega e dá sentido ao lúdico e ao mágico que se fazem conflitos e
soluções curiosas.
Os aspectos “reais” são informações concretas. A rotina, compromissos, horários. A busca
de entendimento dos fatos externos. No texto, aqui exemplificado, tem-se a relação com a
pressa que sacrifica valores e vínculos afetivos.

(A PROFESSORA APARECE NUMA JANELA NO ALTO DO


EDIFÍCIO)
PROFESSORA - Os edifícios não crescem com as estações do ano, nem
como os girassóis, que giram suavemente e nem crescem brincando como as
crianças. Eles crescem com areia cimento e planejamento. A pressa faz
acelerar os movimentos dos pensamentos. Faça chuva faça sol esta cidade não
para. Faça sol ou faça chuva, a cidade se agiganta! (ORTIZ, 2008, p. 54).

Chega-se no ponto sintético, que diz respeito ao equilíbrio entre a ação e o verbal. Diz-
se que no teatro para crianças, a ação deverá englobar, ou até sobrepor o verbal. Ainda, tudo o
que é visto em cena expressa uma ideia ou um conteúdo. Tudo que se vê no palco e não só a
palavra, “fala”. Por isso, dizem que é mais difícil o fazer teatro para crianças, pois o pensamento
racional, tão enfatizado em todos os processos humanos, inclusive nos processos de criação,
deve ser revisto ou revestido. O mundo do sentir é mais vivificado no teatro para crianças.

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Considerações finais

“Um conceito raramente surge à luz do dia tal


qual, pronto, definido e acabado”. (COELHO,
1986)

O século XXI aponta uma nova forma de olhar e entender a infância, pois estamos
passando por uma revolução de conceitos, mudanças e transformações incalculáveis.
A realidade aponta um caminho que solicita revisão de conceitos. Se a arte expressará
sempre a parte mais sutil e mais intuitiva do ser humano e se intuir significa também unir
passado, presente e futuro, e ainda se o artista sempre representará a revolução, as inquietudes
e o descortinar de novos horizontes, não poderia ele ficar alheio a estas questões. Na base das
transformações de uma sociedade, ou mais especificamente dos valores de uma cultura
encontramos a criança, ela que indicará sempre as novas direções a serem percorridas, por isso,
torna-se também uma fonte permanente de inspiração para quem gosta de escrever. Estas
dádivas que dela se recebe devem igualmente nortear as responsabilidades dos artistas e arte
educadores.
Criar para crianças é atuar como educador. Refere-se aqui àquela educação que invade e
permeia a vida e que, por um lado, é espelho da natureza humana, livre e inquieta; e por outro
lado, é o reflexo de uma natureza universal, onde reinam a harmonia, a beleza e a sabedoria.
O teatro poderá educar sem perder sua identidade. Poderá propiciar o avanço da capacidade
mental e sensível da criança, trazendo para o palco temas que se diferenciam da educação
formal. É necessário, pois, que a criança “veja a si mesma” no palco ou em um texto dramático
que ela seja motivada a ler e que o palco ou o livro seja, ao mesmo tempo, revelador daquilo
tudo que ela traz do seu mundo e de suas inquietudes.
Acredita-se que este estudo contribui para o progresso da ciência enquanto percepção do
sensível e da busca da articulação entre criação consciente, inspiração e os suportes teóricos da
literatura dramática que se configuram como bases do estudo, encorajando neste desafio. As
experiências já incorporadas ao discurso ensejam novos modos de sentir e induzem novas
formas de subjetividade e são igualmente indicações suficientes de que a paisagem do
pensamento contemporâneo sobre a arte e sua ligação com a vida nos solicita estabelecer
condições de inteligibilidade deste debate. O caminho se encontra, pois, a ser percorrido.

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IV Seminário Nacional de Dramaturgia e Teatro: Teatro e Política

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IV Seminário Nacional de Dramaturgia e Teatro: Teatro e Política

A política no teatro angolano como recurso para a construção da identidade cultural do


país

Ana Maria Lange Gomes (PPGL/UNESP/Assis)6

Resumo: Observando-se a classificação dos gêneros de teatro contemporâneo na África, feita


pelo crítico zairense Ngandu Nkashma, “teatro histórico, teatro social, teatro filosófico, teatro
político propriamente dito e teatro de pesquisa”, percebe-se, para além do teatro político
propriamente dito, a presença da política como material da maioria dos gêneros encontrados.
José Mena Abrantes, crítico teatral, encenador e dramaturgo angolano, ao refletir essa
classificação na realidade da cena angolana constata no país uma tendência maior para o teatro
de caráter “social”, “histórico” e “político”. Em consonância a essa verificação, ao averiguar-
se o próprio conjunto de peças de Abrantes, autor angolano com maior número de textos teatrais
publicados, é possível destacar a prevalência dos temas históricos, das tradições orais e da
aproximação com a noção de cultura popular. Isto posto, tomando por ideia de política as
atividades humanas que se referem de algum modo às coisas do Estado, e tendo em vista o
processo de independência de Angola (1975) e os anos de Guerra civil (1975-2002), esta
comunicação pretende, por meio do resgate da obra tanto teórica quanto dramatúrgica de Mena
Abrantes, destacar a importância da política nas artes das cenas como elemento a contribuir
para a construção da identidade cultural angolana.

Palavras-chave: Teatro angolano; arte e política; José Mena Abrantes.

Introdução

São muitas as relações que o teatro estabelece com a ideia de política, uma vez que o
próprio termo é polissêmico, desde uma manifestação mais explícita como o agitprop, o teatro
épico e a arte popular revolucionária, até suas vinculações mais discretas como a noção
etimológica do termos, que descreve política aquilo que diz respeito ao espaço público, e ao
bem dos cidadãos.
Nesta última perspectiva, Patrice Pavis (1999) já chamou a atenção para o fato de que
“todo teatro é necessariamente político, visto que ele insere os protagonistas na cidade ou no
grupo (p. 393). Nesta direção, Augusto Boal (2015) também sugere uma relação inseparável,
posto que:

6
Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Letras Universidade paulista Júlio de Mesquita Filho -
Unesp, campus de Assis. Bolsista CAPES. Orientador Prof. Dr. Rubens Pereira dos Santos; Coorientadora
Prof. Dra. Célia Arns de Miranda. E-mail: anam.langegomes@gmail.com

29
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IV Seminário Nacional de Dramaturgia e Teatro: Teatro e Política

Todo teatro é político, ainda que não trate de temas especificamente político.
Dizer ‘teatro político’ é um pleonasmo, como seria dizer ‘homem humano’.
Todo teatro é político, como todos os homens são humanos, ainda que alguns
se esqueçam disso. (BOAL, 2015, p. 328-329)

Ao se propor neste texto pensar a relação que a política exerce no teatro angolano, o que
se considera é o entendimento de que a “política” é um elemento que contribui para a
estruturação deste fazer teatral com implicações tanto no exercício da prática, como práxis
social, quanto no seu teor ideológico.

O teatro que se fez e faz em Angola

Ao se recuperar a tradição da prática teatral angolana, percebe-se que, assim como no


Brasil e em outros países colonizados, esta arte esteve associada à catequização, sendo utilizada,
frequentemente, por missionários jesuítas na evangelização daqueles povos com o intuito de
difundir “bons costumes” e valores “morais e familiares” durante o período colonial. A
associação com esta arte está muito em razão de o teatro estabelecer uma comunicação direta
com o público de que dispõe:

[...] tornando-o particularmente persuasivo às pessoas sem imaginação


suficiente para transformar, idealmente, a narração em ação: frente ao palco,
em confronto direto com a personagem, elas são por assim dizer obrigadas a
acreditar nesse tipo de ficção que lhes entra pelos olhos e pelos ouvidos.
Sabem disso os pedagogos que tanta importância atribuem ao teatro infantil,
como sabiam igualmente os nossos jesuítas, ao lançar mão do palco para a
catequese do gentio. (PRADO, 2009, p.85)

O contingente de espetáculos que se fazia antes da independência em Angola, ao se


comparar com o período posterior, é expressivamente menor, elitista e centrado na perspectiva
europeia:

O teatro (pouco) que se fazia em Angola era um produto do colonialismo


cultural: era um teatro escrito por europeus, representado por atores europeus
à maneira europeia. O seu público era, naturalmente, o burguês europeu que
por acaso vivia em Angola e que (por acaso?) podia dar-se ao luxo de pagar
oitenta escudos para vero teatro. (ABRANTES, 2004b, p. 32)

Ademais, poucos eram os dramaturgos e menos eram as temáticas relacionadas à


realidade do país. A influência era tamanha, que a única obra teatral de autoria angolana
30
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IV Seminário Nacional de Dramaturgia e Teatro: Teatro e Política

publicada nos tempos coloniais trazia como temática o nascimento de Cristo, o Auto de Natal
de Domingos Van-Dúnem. Ainda que em consonância com as temáticas recorrentes da época,
o espetáculo trouxe sua contribuição para o teatro angolano, uma vez que: “O grande mérito de
Domingos Van-Dúnem foi, pois, ter feito representar o se espetáculo religioso com actores
negros nos principais papéis, o que nem no teatro profissional mais recente acontecia”.
(ABRANTES, 2004a, p. 68).
Ainda no período colonial, mas já associado ao processo de luta pela independência,
militantes do Movimento pela Libertação de Angola, o MPLA, com fins de pedagógicos,
realizavam experiências teatrais com crianças em zonas rurais nas áreas onde ocorriam as ações
guerrilheiras. Estas experiências eram de cunho político e social e intentavam promover um
debate no local acerca das questões do domínio português.
Imediatamente após a conquista da independência, e dentro do fervor que antecedia o
processo, as atividades teatrais estavam ainda direcionadas ao espírito de combate:

Uns propunham a leitura dramatizada de textos dos clássicos marxistas nos


musseques de Luanda (!), outros, mais realistas, contentavam-se em gritar pelo
Brecht que a censura “nunca lhes deixara fazer”, ou então buscavam
apressadamente no repertório estrangeiro algo que aludisse vagamente a
revoluções. (ABRANTES, 2004a, p. 26)

Duas semanas após a proclamação da independência, um grupo traz à cena uma criação
coletiva que se configura na primeira obra de teatro da Angola independente, o Poder Popular,
que trabalhava com a temática da pressão militar e religiosa.
Na época, a trupe chamava-se Tchingaje, com a qual estava envolvido José Mena
Abrantes. O grupo foi proibido de exercer sua atividade em 1976, acusado de incitar uma greve,
e em 1977 foi forçado a mudar de nome, passando a chamar-se Xilenga-Teatro.
Havia um processo reflexivo naquele teatro pelo contexto de lutas que estava
intimamente alinhado a ideias socialistas:

Só as duas lutas de libertação nacional e a posterior opção pelo socialismo


vieram finalmente criar as condições para o desenvolvimento pleno das
potencialidades do fenómeno teatral. Como em tantas frentes da Cultura, a
revolução do teatro só se torna possível no teatro da Revolução. (ABRANTES,
2004a, p 25)

Muitos dos trabalhos teatrais realizados em Angola, posteriores à independência,


estavam calcados na valorização de uma cultura popular ligada à noção da tradição, que exercia
um papel importante na nova configuração pretendida:

31
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IV Seminário Nacional de Dramaturgia e Teatro: Teatro e Política

Se o nosso ator procura um teatro africano e que sirva aos interesses do seu
Povo, nada tem a aprender com um teatro burguês e ocidental, instrumento
direto do colonialismo e imperialismo cultural. [...] Então, o ator angolano é
um ator sem teatro? De modo nenhum: O teatro está aí: Na alma do povo e na
voz dos seus poetas; no grito da quitandeira e na tensão sofrida nos musseques;
no supor ultrajado dos monangambas, no ritmo frenético das festas de quimbos
e senzalas; nas antigas crenças, nas histórias de todas as avós Kialas; nos dedos
hábeis dos escultores quiocos; nas mãos humildes e raivosas que construíram
as primeiras armas de libertação.
Que o nosso ator aprenda a linguagem do Povo e o teatro que vier há de ser
Popular. Que o nosso ator procure a música, a poesia e a dança na Cultura
Angolana – e construirá um teatro africano. Que o nosso ator procure
responder com a sua arte às necessidades reais e fundas de seu povo – e o
teatro será Revolução. (ABRANTES, 2004b, p. 32)

Desta forma, é possível entender que: “na busca por identidade, a política assume papel
importante se considerarmos as novas configurações formadas após a independência. (SILVA,
2015, p. 37)

Caminhos trilhados pelo teatro em Angola

Para pensar o teatro angolano e sua relação com a política é preciso recuperar algumas
classificações que foram estipuladas. As que se apresentam aqui são três, que não
necessariamente se aplicam com totalidade ou exatidão, mas que contribuem para a percepção
desta recorrência em trazer o elemento político na organização e estruturação do teatro
angolano.
A primeira delas foi feita por José Mena Abrantes, dramaturgo, encenador e crítico
teatral. Ele propôs a divisão das manifestações teatrais em Angola em duas categorias, pré-
drama ou pré-teatro e teatro propriamente dito.
Para ele, o que separa as duas fases é o entendimento do teatro estruturado como tal.
Com esta perspectiva, tudo o que ocorria em Angola e não correspondia a essa noção foi
classificada por manifestações culturais, que compreendiam manifestações rituais e
mitológicas, narrativas orais, recitações poéticas, dramatizações em liturgias, danças miméticas,
procissões de máscaras, dentre outras.
A principal justificada do autor para esta distinção é o fato de: “Não são teatro pois não
fazem distinção entre o que é representado e o que é vivido” (ABRANTES, 1998, p.14). No
entanto, não despreza a relevância dessas ocorrências para o teatro, reconhecendo nelas o
“fermento” da organização das artes das cenas no país.
32
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A segunda, foi definida por Jean-Pierre Guingané, dramaturgo e diretor teatral pensando
no desenvolvimento do teatro africano e não especificamente do caso angolano, mas que vai
refletir na evolução deste. Para o dramaturgo, o teatro passa por três fases distintas sendo elas:
a fase dos “espetáculos-celebração”, dos “espetáculos-denúncia” e dos “espetáculos da “África
harmônica”7.
Os espetáculos-celebração seriam aqueles que trariam a euforia da conquista da
independência trabalhando temas como a glorificação de heróis africanos e que acreditavam no
banimento do trauma colonial.
Por sua vez, os espetáculos-denúncia representavam uma fase menos “ufanista”, mas
com uma intensa defesa do teatro popular e de uma conscientização por meio deste teatro.
Em uma terceira fase, definida como espetáculos da África harmônica, já com a
instauração da censura, as peças ganham faces mais distanciadas da “realidade”, trazendo para
o palco temas como que retratavam raízes culturais e valores do passado. Estes temas escondiam
propostas de nacionalidade e liberdade.
A terceira e última classificação é a reflexão de gêneros que o crítico zairense Ngandu
Nkashma faz ao pensar o teatro contemporâneo que se faz na África. Para ele, as principais
tendências são para: “teatro histórico, teatro social, teatro filosófico, teatro político
propriamente dito e teatro de pesquisa”. (ABRANTES, 1998, p. 24)
A percepção de todas estas classificações conduz a um caminho reflexivo intimamente
associado a questões políticas sobretudo de ordem dos efeitos do colonialismo. A divisão em
“pré-teatro” das manifestações considera as influências de estruturações europeias do fazer
teatral; a divisão dos três grupos de tendências dos espetáculos, por sua vez, revela o forte
imbricamento das questões políticas na realização do teatro africano; e os gêneros evidenciam
a quase totalidade do tratamento político dos temas usados no teatro africano.

Considerações finais

A grande motivação da presença tão intensa da política na formação do teatro africano,


em especial o do angolano, pode ser compreendida pela perspectiva do impacto que a
colonização causou naquele continente. A independência daqueles países foi decretada no
século XX, quando muitas outras ex-colônias já consolidavam algum espaço internacional.

7
Cf. ABRANTES, José Mena. O Teatro em Angola. Luanda: Nzila, 2004, p. 177 – 179.
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Desta forma, política entraria como um recurso que contribuiria na busca, na pesquisa
de novas formas e novos conteúdos; para encontrar essa identidade cultural que converse mais
diretamente com povo e assim o representasse de forma mais convincente que as âncoras até
então utilizadas do teatro europeu.
Uma forma de dar voz ou restituir a voz primeira daquela terra, não negando o passado
colonial, mas antes, apropriando-se dele, engolindo-o, devorando-o em um movimento
antropofágico, para reinventar-se, resistir e (re)existir.

Referências

ABRANTES, José Mena. O teatro em Angola. Luanda: Nzila, 2004a. 1 v.

_____. O teatro em Angola. Luanda: Nzila, 2004b. 2 v.

______. Angola: Breve olhar sobre o teatro angolano. In: ABRANTES, J.M et. al O teatro dos
sete povos lusófonos. MILARÉ, Sebastião. (Org.). São Paulo: Prefeitura Municipal, Secretaria
Municipal de Cultura e Centro Cultura São Paulo, 1998, p. 13-24.

BOAL, Augusto. Jogos para atores e não atores. São Paulo: Cosac Naify, 2015.

ÉBOLI, Luciana Morteo. Dramaturgia angolana no pós-colonialismo: sujeito, nação e


identidade na obra de José Mena Abrantes. 2006. 163 f. Dissertação (Mestrado em Teoria da
Literatura) Pontifícia Universidade Católica, Rio Grande do Sul, 2007.

PAVIS, Patrice. Dicionário de Teatro. São Paulo: Perspectiva, 1999.

PRADO, Décio de Almeida. A personagem do teatro. In: CANDIDO, Antônio et al. A


personagem de ficção. São Paulo: Perspectiva, 2014. p. 81-101.

SILVA, Cinthia Renata Gatto. Dramaturgia do angolano José Mena Abrantes em


perspectiva pós-colonial. 2015. 170 f. Tese (Doutorado em Letras) Universidade Estadual de
Londrina, Londrina, 2015.

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Da cena ao texto: investigações sobre a dramaturgia da memória nos processos de


criação no teatro contemporâneo

Lysiane Cassia Baldo (PPGL/UNIOESTE) 8

Resumo: Por meio da evolução de inúmeras proposições teóricas e práticas nos estudos que
trazem o ator para o centro da discussão dos processos de criação, os contornos do teatro
contemporâneo vão sendo permeados pela performatividade, em que os limites da teatralidade
são explorados e, em alguns casos, até mesmo colocados em xeque. O teatro dramático já não
consegue mais abarcar as necessidades das experimentações cênicas, que se ampliam em suas
formas de expressão e apontam novos horizontes para o teatro e também para a dramaturgia.
Nessa direção, encontramos como tema central a dramaturgia da memória. Parte-se da
constatação da dramaturgia da memória como potencialidade para os processos de criação no
teatro contemporâneo e do confronto entre as estruturas tradicionais da encenação, com os
novos modos de se conceber a criação da dramaturgia. Sob estes pressupostos, questiona-se:
como a dramaturgia da memória se constrói nos processos de criação dos espetáculos Kintsugi:
100 memórias (2019) do Lume Teatro, e nos espetáculos Festa de separação (2009), Conversas
com Meu Pai (2014) e Stabat Mater (2019) da atriz Janaina Leite? Sob quais perspectivas a
memória é configurada nestes espetáculos/nestas obras? Como os limites entre o “real” e o
ficcional são definidos nos processos de criação nestes trabalhos cênicos?

Palavras-chave: Dramaturgia da memória; Teatro autoficcional; Performatividade; Processos


de criação; Teatro contemporâneo.

Introdução

Este estudo é parte das pesquisas desenvolvidas durante o processo de mestrado da


autora. Para realizá-lo, partimos das relações estabelecidas entre texto e cena, considerando sua
evolução a partir do final do século XIX. É nesse contexto que surgem os principais
reformadores da arte teatral, para os quais o foco central destes estudos é o trabalho do ator.
Em uma relação sempre conflituosa, nos afastamos gradativamente da primazia do texto
dramático sobre a cena e invertemos o caminho para a construção de uma nova dramaturgia.
Sobre as conceituações contemporâneas para a dramaturgia, este projeto propõe um
diálogo com alguns autores que colaboram para o seu redimensionamento e, principalmente,
com as propostas do teatrólogo italiano Eugênio Barba, para quem o termo se amplia e adquire
novas configurações. As dramaturgias propostas por Barba surgem de uma construção plural,
que se dá pela inter-relação entre diversos elementos, tais como: o trabalho do ator, do diretor,

8
Mestranda do Programa de Pós-graduação em Letras da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (Unioeste),
sob orientação do Prof. Dr. Acir Dias da Silva. E-mail: baldolysiane@gmail.com.

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a atuação do espectador, sonoplastia, iluminação, enfim, tudo aquilo que habita a cena nos
diferentes tempos e espaços. Tais elementos combinados entre si, configuram a multiplicidade
de signos que compõem a dramaturgia da cena.
Assim, por meio da evolução de inúmeras proposições teóricas e práticas nos estudos
que trazem o ator para o centro da discussão dos processos de criação, os contornos do teatro
contemporâneo vão sendo permeados pela performatividade, em que os limites da teatralidade
são explorados e, em alguns casos, até mesmo colocados em xeque. O teatro dramático já não
consegue mais abarcar as necessidades das experimentações cênicas, que se ampliam em suas
formas de expressão e apontam para novos horizontes.
Tal centralidade do ator nos modos de criação cênica e dramatúrgica é tão expressiva
que se percebe a necessidade do seu encontro com a própria memória
autobiográfica/autoficcional nos processos constitutivos da obra artística.
Nessa direção, apresenta-se como tema central desta pesquisa o que vamos denominar
de dramaturgia da memória. Caminhando pelo viés autobiográfico, buscaremos discutir como
são estabelecidos os limites entre o real e o ficcional e compreender por quais motivos esta
forma de criação está ganhando espaço no trabalho de artistas contemporâneos.
Para a delimitação do estudo, selecionamos trabalhos artísticos recentes que apresentam
um sólido percurso de pesquisa sobre esta temática: o espetáculo Kintsugi: 100 memórias
(2019), do Lume Teatro (Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas Teatrais – UNICAMP), e os
espetáculos Festa de Separação (2009), Conversas com Meu Pai (2014) e Stabat Mater (2019),
da atriz/pesquisadora Janaina Leite, já que reconhecemos nestas obras importantes referências
do teatro brasileiro contemporâneo que trazem à luz o tema da dramaturgia da memória.

Relação Texto e Cena?

Para compreender a problemática que envolve este novo olhar para o lugar da(s)
dramaturgia(s) – dentre as quais encontramos a dramaturgia da memória – e de seus modos de
produção no teatro contemporâneo, faz-se necessário traçar, em linhas gerais, os conceitos que
têm uma abordagem histórica dessa relação sempre conflituosa entre texto e cena.
Segundo o teórico Patrice Pavis, sobre o conceito de Teoria do Teatro, "somente a partir
do advento da encenação, por volta do final do século XIX, é que a teoria ultrapassa o conceito
de dramaturgia e a poética e leva em conta a obra cênica em todos os seus aspectos" (PAVIS,
1999, p. 404). Assim, podemos observar como é recente, em termos históricos, o estudo do
teatro em suas especificidades de linguagem. Houve, portanto, durante vários séculos, a

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subordinação do teatro ao texto dramático (em seu sentido originário), sendo que a análise de
uma obra teatral esteve sempre atrelada à "boa execução" cênica de um texto dramático.
Tanto é complexa esta relação, que são muitos os teóricos da contemporaneidade que
abordam este tópico e se debruçam sobre a inter-relação texto e cena. Quanto à definição de
texto dramático, Patrice Pavis conceitua:

É muito problemático propor uma definição de texto dramático que o


diferencie dos outros tipos de textos, pois a tendência atual da escritura
dramática é reivindicar não importa qual o texto para uma eventual encenação;
a etapa derradeira - a encenação da lista telefônica - quase não parece mais
uma piada e uma empreitada irrealizável! Todo texto é teatralizável, a partir
do momento que o usam em cena [...] o que até o século XX passava pela
marca do dramático – diálogos, conflito e situação dramática, noção de
personagem – não é mais condição sine qua non do texto destinado à cena ou
nela usado. (PAVIS, 1999, p. 405)

A partir dessa definição podemos perceber como se ampliam as possibilidades para o


conceito de texto dramático no teatro contemporâneo.
Encontramos, nas definições do termo dramaturgia, por Patrice Pavis, os sentidos
original e clássico do termo, passando pela Poética, de Aristóteles, e de J. Scherer, autor de
Uma Dramaturgia Clássica na França (1950), os quais estabelecem os principais elementos da
construção dramática: nó, conflito, conclusão, epílogo, etc. Neste caso, o que está em questão
é o trabalho do autor e a estrutura interna e narrativa da obra dramática. Porém, adiante, Pavis
(1999) não deixa de mencionar a reutilização do termo nos dias atuais: "A dramaturgia, no seu
sentido mais recente, tende, portanto, a ultrapassar o âmbito de um estudo do texto dramático
para englobar texto e realização cênica". (PAVIS, 1999, p. 114)
Mais adiante, destacando as novas formas como uma explosão e proliferação de
dramaturgias, Pavis afirma que:

Não se fundamenta mais o espetáculo apenas na identificação ou no


distanciamento, alguns espetáculos tentam mesmo retalhar a dramaturgia
utilizada, delegando a cada ator o poder de organizar seu texto de acordo com
sua própria visão da realidade. (PAVIS, 1999, p. 114-115)

Pode-se observar que há, portanto, uma renovação desses conceitos, de modo que o
conceito de texto, no teatro contemporâneo, alcança uma abrangência bem maior que a sua
concepção clássica.
Emprestamos também, algumas reflexões do professor e crítico de teatro alemão Hans-
Thies Lehmann, criador da denominação "teatro pós-dramático", para compreender um pouco

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mais sobre este tema. Lehmann analisa os movimentos de vanguarda nas artes no século XX e
pontua o surgimento do teatro pós-dramático, o qual traz novos paradigmas para a cena teatral
e para a dramaturgia a partir dos anos 80. Analisando o teatro e sua relação com o texto, nas
três últimas décadas, Lehmann afirma que

Para o teatro das três últimas décadas um triplo processo possui importância:
a problematização teórica do modo como se deve pensar aquela configuração
chamada texto, 'acabado' somente na aparência; ao mesmo tempo, a ampliação
do conceito de texto; e a redução do peso da participação do elemento verbal
(em seu sentido mais restrito) na experiência teatral. (LEHMANN, 2009, p.
88)

Para Lehmann, o teatro tem forças motrizes próprias de sua linguagem, que devem ser
consideradas neste novo paradigma de texto no teatro de hoje em dia. Para ele, há uma lógica
semiótica complexa na construção de um espetáculo teatral, sobre a qual há de se considerar
diversos aspectos na leitura da obra final.
Outro autor que nos ajuda a compreender a ampliação do conceito de dramaturgia e,
principalmente, o aproxima do fazer teatral, é o teatrólogo italiano Eugênio Barba (1936). É em
sua prática cotidiana com os atores que ele irá, aos poucos, contextualizar e amplificar a visão
do termo dramaturgia, dando-lhe uma pluralidade de significados que se complementam. Sobre
isso, o autor afirma:

[...] defini dramaturgia em chave etimológica: drama-ergein: trabalho das


ações. Ou seja: como as ações dos meus atores começavam a trabalhar. Para
mim, a dramaturgia não era um processo que pertencia somente à literatura,
era uma operação técnica inerente à trama e ao crescimento de um espetáculo
e de seus variados componentes. (BARBA, 2010, p. 37-38)

Assim, para compreender seu processo de criação e, visando encontrar a unicidade do


espetáculo, Barba fala sobre dramaturgia narrativa, que seria a trama de acontecimentos no
espetáculo, dramaturgia evocativa, que diz respeito a como o espetáculo gera ressonâncias
próprias em cada espectador, e dramaturgia orgânica, que se refere ao modo de organizar e
compor os elementos do trabalho do ator e como estes estimulam sensorialmente os
espectadores. Assim, ele define: "Dramaturgia, neste sentido, era a criação de uma complexa
rede de fios no lugar de simples relações" (BARBA, 2010, p. 41)
É sob o entrelaçamento da tríade ator/diretor/espectador, e olhando diretamente para o
nível orgânico e sinestésico dessas relações, que Barba irá conduzir o seu trabalho. Verificamos
que a dramaturgia, para Barba, é um processo vivo, em constante transformação, que tem seu

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cerne no trabalho do ator a partir das ações físicas e vocais. Por isso mesmo, sua forma de
trabalho com os atores sempre se orientou por meio de árdua disciplina, com o objetivo de
desenvolver neles a pré-expressividade e criar um corpo-em-vida, ou seja, um corpo dilatado.
Este trabalho específico do ator ele denominará como dramaturgia do ator e, neste
sentido, afirma que

No decorrer dos anos, eu tinha me acostumado a definir o trabalho do ator


como 'dramaturgia do ator'. Com esse termo eu me referia tanto à sua
contribuição criativa no crescimento do espetáculo quanto à sua capacidade
de enraizar o que contava numa estrutura de ações orgânicas [...] em um
espetáculo é sobretudo a dramaturgia do ator que atua no sistema nervoso do
espectador. (BARBA, 2010, p. 57-58)

É nesse contexto que, a partir da segunda metade do século XX, cada vez mais as
experimentações cênicas se proliferam e encontram caminhos nunca antes imaginados. Neste
cenário surgem formas artísticas que abordam a memória e a performatividade sob diferentes
perspectivas encaradas como força motriz dos processos criativos.
Podemos encontrar uma referência direta desta abordagem na performance art, que traz
em sua raiz a ideia de autobiografia, já que o performer não representa um papel ou um
personagem, mas se coloca em uma relação direta, sem intermédios com o espectador. O
performer é aquele que fala e age em seu próprio nome.
Nascida de uma proximidade com as artes visuais, mas com um caráter híbrido – que
transita entre outras linguagens artísticas – a performance, cada vez mais, habita também com
força o campo do teatro, o teatro performativo, como podemos distinguir. Sobre isso, Féral
afirma:
Se há uma arte que se beneficiou das aquisições da performance, é certamente
o teatro, dado que ele adotou alguns dos elementos fundadores que
abalaram o gênero (transformação do ator em performer, descrição dos
acontecimentos da ação cênica em detrimento da representação ou de um
jogo de ilusão, espetáculo centrado na imagem e na ação e não mais sobre o
texto, apelo à uma receptividade do espectador de natureza essencialmente
especular ou aos modos das percepções próprias da tecnologia). (FÉRAL,
2009, p. 198)

Outra denominação recente, que tem interações com o tema da dramaturgia da memória,
é o chamado teatro documentário. Nessa forma teatral, estudada por Marcelo Soler, no Brasil,
materiais autobiográficos (e não ficcionais) estão em cena como produto final.
A partir do encontro com termos que perpassam e se aproximam de nosso tema central,
percebemos que todos, de algum modo, trazem reflexões e questionamentos acerca dos limites

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entre o real e o ficcional, ora com a preocupação de trazer o real efetivamente para a cena, ora
misturando-o com o ficcional.
Leonardelli percorre uma construção histórica do conceito de memória, apoiando-se em
perspectivas filosóficas, na neurobiologia, na teoria e prática de pensadores do teatro como
Stanislavski e Grotowski, até alcançar exemplos da performance. A autora irá considerar o
depoimento pessoal como fonte para a criação, e sobre isso ela afirma que

O depoimento pessoal é construído pela memória criadora, e suas


singularidades processuais atestam a riqueza de possibilidades que essa função
nos oferece para reinventar a existência. Somente por que temos memória e
porque ela é criadora e trabalha em conjunção com todas as demais faculdades
– ou arrisquemos mais longe, não falemos mais em faculdades, senão em
adensamentos mentais de funções em devir que criam o grande fluxo das ações
humanas – é que a arte se tornou possível. (LEONARDELLI, 2008, p. 6)

Assim, a autora irá caminhar sob a perspectiva de uma memória criadora que está em
constante fluxo e devir, relacionando-a ao universo da criação artística.
Leite (2014, p. 98) aponta mais objetivamente para a discussão sobre autobiografia e
autoficção na cena teatral contemporânea. A partir de uma vivência e um universo particular –
já que a autora cria três espetáculos que se debruçam sob estas ideias – Leite problematiza o
que traz o senso comum: que a obra de arte é sempre ficcional. Em seu trabalho, demonstra
como este caminho que por ora tentamos explorar, é, sem dúvida, profícuo nas artes de nosso
tempo. Sobre isso, a autora afirma que:

Nas artes plásticas, na performance art, e também nas artes cênicas, explodem
as experiências afirmadamente autobiográficas. Vários são os exemplos de
artistas e obras que trazem para dentro de seus projetos novas concepções do
que seja o gesto autorrepresentacional, o trabalho sobre a memória, o trânsito
com a ficção, ou simplesmente do que seja a consciência de si [...]. (LEITE,
2014, p. 98)

É nesse contexto que também estão inseridos os espetáculos aqui selecionados e


brevemente discutidos, que terão aprofundamento na dissertação de mestrado da autora. O
espetáculo teatral Kintsugi: 100 memórias, do Lume Teatro (Núcleo Interdisciplinar de
Pesquisas Teatrais – UNICAMP), estreado em maio/2019, traduz, com força cênica e poética,
a memória – tanto como temática, quanto como pulsão criadora. O Lume Teatro é composto
por um coletivo de sete atores que se tornou referência internacional para artistas e
pesquisadores no redimensionamento técnico e ético do ofício de ator. Com 30 anos de

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existência, o trabalho do Lume já alcançou 24 países e criou mais de 20 espetáculos. O


espetáculo aqui referenciado é o mais recente trabalho do grupo.
Kintsugi 100 memórias assume um caráter performativo, os atores narram suas
memórias individuais e as do próprio grupo, deixando reverberar a partir destas, uma memória
coletiva. O nome do espetáculo condensa o mote desta pesquisa. Kintsugi é uma técnica milenar
que consiste em reparar cerâmica quebrada com uma mistura de laca e pó de ouro, prata ou
platina, ficando visíveis suas emendas e reparos, que dão ao objeto uma importância ainda
maior, carregam-no de história e traduzem a beleza da imperfeição.
As 100 memórias são também um jogo semântico, pois ao mesmo tempo em que os
atores catalogam 100 memórias a partir do uso de objetos que as fazem vir à tona para serem
recriadas em cena, fazem uma pesquisa de campo sobre o Alzheimer e discutem sobre o que é
estar “sem memórias”. Um ponto alto do espetáculo é quando, ao mostrar fotos de pessoas com
Alzheimer entrevistadas para a pesquisa, anunciam o relato de uma das entrevistadas que, ao
ser questionada sobre o que não gostaria de esquecer, responde: “Nada, eu não gostaria de
esquecer-me de nada!” Fica, neste momento, evidente a grandeza da memória para a
constituição de quem somos e de quem seremos.
Outro aspecto que ressalta o olhar do grupo sobre a memória, são as diversas versões
criadas para recontar um mesmo acontecimento. As tantas versões (narradas alternadamente
por cada um dos atores) deixam clara a ideia de que a memória, na concepção do grupo, não é
monumentalista e fixa, mas sim um exercício do presente para revisitar o passado, sem
linearidade e fragmentada.
Além disso, em diversos momentos do espetáculo, a questão do esquecimento individual
mescla-se com os esquecimentos coletivos, numa contundente crítica política sobre a atual
conjuntura do Brasil.
O espetáculo se inicia com um vaso que é carregado por um dos atores até o centro do
palco e deixado ir ao chão intencionalmente, quebrando-se em diversos pedaços. Estes pedaços
são recolhidos, varridos e, no transcorrer da apresentação, os atores vão se revezando para colar
as partes. Ao final, o vaso aparece colado, reconstruído, tendo seus remendos à mostra e
deixando um buraco, que não pode ser completado. Já não é mais o mesmo vaso. Assim, fica
metaforizada a memória, e a parte em que não há reparação possível, permanece o buraco, que
é o lugar da recriação.
Passamos agora a uma breve apresentação sobre os espetáculos Festa de Separação
(2009), Conversas com Meu Pai (2014) e Stabat Mater (2019), que fazem parte do repertório

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pessoal da atriz/pesquisadora Janaina Leite, que também é integrante do Grupo XIX de Teatro
desde 2001. A atriz já passou pelos principais festivais do país e do exterior.
Festa de Separação (2009) é o primeiro espetáculo da atriz Janaina Leite com caráter
assumidamente autobiográfico, o que ela denomina como teatro documentário. Dividindo a
cena com o ex-marido, o tema central do espetáculo é a separação do casal, tratando das dores
de um rompimento amoroso. O trabalho utiliza-se de projeções de vídeo do casal e números
musicais que, colocados em cena, assumem uma nova perspectiva. Há, neste espetáculo, um
embaçamento de fronteiras entre o real e o ficcional, apresentando ao público, um novo modo
de se relacionar com a cena a partir desta constatação.
Conversas com Meu Pai (2014) faz parte da continuidade do lugar de pesquisa da atriz,
que aqui tem como ponto de partida, uma velha caixa de sapatos na qual guarda bilhetes
trocados com o pai, que, por ter sofrido uma traqueostomia, se comunicava com a filha desta
forma. Num processo de criação que dura sete anos, Janaina tenciona ao máximo as fronteiras
entre realidade e ficção, chegando a admitir ao público que ela mesma não tem certeza das
“verdades” que precisa contar. E é assim, sobre esta dúvida entre o que é ou não real, que o
espectador é convidado a participar do espetáculo.
Stabat Mater (2019) é o mais recente trabalho de Janaina Leite. Estreada em junho de
2019, essa corajosa montagem propõe revisitar outros aspectos da história pessoal e artística da
atriz. O espectador é enredado a partir das relações entre maternidade, filiação, e a figura da
Virgem Maria, que constrói um labirinto de representações do feminino na cultura ocidental.
Neste espetáculo, Janaina divide a cena com sua mãe e, havia ainda, a intenção de trazer também
para a cena, um ator pornô, ideia que não se concretizou, conforme ela mesma conta dentro da
própria dramaturgia. Assim, este papel é representado por um amigo de Janaina.
Aproximando temas como pornografia, maternidade e a figura do feminino, com
revelações pessoais em torno de sua própria sexualidade – as quais são dolorosas para a plateia
– Janaina debate assuntos importantíssimos para a sociedade e quebra tabus ainda e cada vez
mais presentes em nosso tempo, trazendo um olhar feminino e crítico sobre os lugares
estabelecidos para a mulher em pontos aparentemente tão distintos (da vida materna à
pornografia), e que expõem muitas mazelas ainda presentes em nossa sociedade.

Considerações finais

Ao retornar às perguntas iniciais propostas, podemos considerar que nos espetáculos


aqui exemplificados, a dramaturgia da memória se constrói por caminhos bastante semelhantes.

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Podemos encontrá-la nos objetos materiais que presentificam a memória pessoal (fotos, cartas,
bilhetes, diários, entre outros) e que são impulsos para o processo de trabalho dos atores.
Essa dramaturgia também é tecida sempre por meio da interação entre a lembrança do
passado e a sua relação direta com o momento presente. Em todos os trabalhos, percebemos
essa tensão constante entre o real e o ficcional, em um lugar que é feito sempre de fiapos de
memórias, de fragmentos, de cacos. Neste sentido, a memória é aqui configurada sob uma
perspectiva de recriação, reinvenção. É preciso reelaborar o passado para se compreender o
presente, num movimento sempre dialético. E, a partir dessa reflexão, fica evidente a
necessidade de um teatro cada vez mais performativo, para que tudo o que precisa ser dito,
possa ser dito.
Podemos constatar também, que os limites entre o real e o ficcional não são bem
delimitados nos trabalhos citados, já que a memória criadora não é capaz de distingui-los
perfeitamente. Há uma intenção proposital em brincar com estes limites, confundir o
espectador, justamente para provocá-lo a questionar essas camadas de memórias.
Assim, estes trabalhos confirmam a necessidade da reinvenção da dramaturgia, de um
processo de criação dramatúrgica compartilhado, visto e revisto como coletividade, sem regras
fixas e rígidas que possam reduzir suas infinitas possibilidades.
Sem dúvida, estas novas práticas cênicas prenunciam um novo lugar também para o
campo da dramaturgia, num conceito que, como vimos, se expande e alcança novos patamares,
menos segmentados e mais ampliados, hibridizados com a prática teatral contemporânea.

Referências

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BARBA, Eugenio. Queimar a casa: origens de um diretor. São Paulo: Perspectiva, 2010.

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MOSTAÇO, Edélcio; OROFINO, Isabel; BAUMGÄRTEL, Stephan; COLAÇO, Vera. (Orgs).
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autobiográfico como suporte para a reflexão sobre a cena contemporânea. 2014. Dissertação
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comunicação e artes – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2014. Disponível em:

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IV Seminário Nacional de Dramaturgia e Teatro: Teatro e Política

http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/27/27156/tde-27022015-160605/pt-br.php. Acesso
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LEONARDELLI, Patricia. A memória como recriação do vivido: um estudo da história do


conceito de memória aplicado às artes performativas na perspectiva do depoimento pessoal.
2008. Tese (Doutorado em Artes Cênicas) – Programa de pós-graduação em Artes Cênicas –
escola de comunicação e artes – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2008. Disponível em:
http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/27/27156/tde-07052009-143057/pt-br.php Acesso
em: 11 jun. 2019.

LUME TEATRO, Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas Teatrais, Unicamp. Kintsugi: 100


memórias, 2019. Espetáculo teatral.

PAVIS, Patrice. Dicionário de Teatro. Trad. Maria Lucia Pereira, J. Guinsburg, Rachel Araújo
Baptista Fuser, Eudynir Fraga, Nanci Fernandes. São Paulo: Perspectiva, 1999.

PAVIS, Patrice. A análise dos espetáculos: teatro, mímica, dança, dança-teatro, cinema. Trad.
Sérgio Sálvia Coelho. São Paulo: Perspectiva, 2010.

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De adaptação em adaptação: um estudo da transformação do conto de fadas A Bela e a


Fera em teatro

Heitor Augusto Colli Trebien (PPGL/UFPR)9

Resumo: O presente trabalho buscou investigar as relações intertextuais e intermidiáticas entre


as diversas mídias e expressões artísticas, co-relacionando brevemente aspectos da animação
musical A Bela e a Fera produzida pela Walt Disney Company em 1991 com a peça de teatro
de mesmo nome realizada no Teatro Abril em São Paulo no ano de 2002. Para investigar a
conexão existente entre o teatro e o cinema, buscou-se embasamento teórico conforme estudos
de Irina Rajewski, Linda Hutcheon e Klaus Clüver, sendo a metodologia de estudo a literatura
comparada. Ao correlacionar o repertório conceitual desses autores, percebeu-se a possibilidade
de aprofundar a ideia de adaptação e seu princípio de se vincular a outros meios de
comunicação. Observou-se ainda que tanto o teatro quanto o cinema são, por si mesmas, artes
intermidiáticas por essência, em que se combina mais de uma expressão comunicativa, como
som, imagem e palavra para se construir sentidos. Além disso, pode-se notar referencialidade
por parte do teatro, o texto de chegada dessa pesquisa, através de suas manifestações estéticas
e de performance, em que características como figurino e a utilização das luzes retomam a mídia
inspiradora, relembrando o texto fonte: a animação Disney.

Palavras-chave: Adaptação; Cinema de Animação; Peça de Teatro; Dramaturgia.

Contextualizando a adaptação

Hutcheon (2013) em nota para a edição de seu livro Uma Teoria da Adaptação afirma
que toda história é sempre recontada, sendo a adaptação crucial para a inventividade e
criatividade humana nas mais distintas culturas. O processo de recontar é de sempre (re)ajustar
aquilo que foi dito, de maneira a agradar o novo receptor. Aliado à atividade de adaptação
desenrola-se uma ação tradutória, considerando-se que a tradução consiste na apresentação de
um texto de determinada cultura para outra, o que leva os estudos tradutórios e os adaptativos
tomarem um rumo transcultural, rompendo barreiras entre as diversas civilizações humanas.
Assim, nas palavras da escritora: “Tal como a tradução, a adaptação é uma forma de
transcodificação de um sistema de comunicação para outro” (HUTCHEON, p. 9, 2013) Com o
movimento da língua, pode-se passar, por exemplo, do português para o inglês, do inglês para
o francês, entre outros, e nessa dinâmica tonalidades do que Clüver (1997) chamou de texto

9
Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Letras pela Universidade Federal do Paraná - UFPR. Orientadora
Célia Arns de Miranda. E-mail: heitor.trebien@gmail.com

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IV Seminário Nacional de Dramaturgia e Teatro: Teatro e Política

fonte são reapropriadas culturalmente. Num processo de adaptação, como Hutcheon (2013)
aponta, as modificações são mais complexas, havendo diferenças não só entre textos, mas entre
mídias e outras expressões artísticas. O grande destaque da adaptação é justamente trazer novos
sentidos à obra analisada, não devendo ser algo secundário, mas autônomo no campo do
desenvolvimento artístico com uma prática de resgate e renovação de significados anteriores.
Ao retomar Clüver (1997), pode-se compreender que no início os estudos literários
estavam fechados em si mesmos, com apoio nos autores René Wellek e Austin Warren - teóricos
inspirados no formalismo russo que buscavam a literariedade do texto, ou seja, o sentido do
texto nele mesmo. As palavras e frases que formam determinada narrativa expressam por si
mesmas o significado de um texto, sendo a investigação literária intrínseca à obra estudada. A
relação com outros tipos de textualidades, como psicologia, biografia, sociedade e história eram
algo extrínseco, assim como a relação da literatura com outras artes. No entanto, com o passar
do tempo, foi-se percebendo que mesmo uma poesia depende de outros aspectos para ser
compreendida, como por exemplo sua sonoridade, envolvendo não só o significado da palavra,
mas a musicalidade de sua expressão. Cluver (1997) destaca como cada manifestação artística
sempre faz referência a outra, podendo ser de um texto entre outro (intertextualidade) ou de
uma arte para outra (interartes). Um poema pode fazer referência à visualidade da natureza,
assim como é necessário entender-se de música litúrgica e seus instrumentos para interpretar as
preces litúrgicas. As pinturas de anjos estão unidas pelos seus escritos e músicas que as
representam, em que a escrita e a musicalidade podem evocar um retrato imagético no receptor.
O texto, desse modo, não está mais preso à verbalidade, podendo ser também visual, pois ao
citar Norman Bryson: “a leitura de textos visuais inevitavelmente envolve referências a
intertextos verbais” (CLÜVER, p. 40, 1997).
Ao se pensar as questões anteriormente citadas, pode-se perguntar: o que é um texto?
Carvalhal (2006) salienta que a palavra texto vem do latim texere, que significa tecer, costurar
ou até tramar. Em sentido metafórico, temos um conceito em que ideias são costuradas umas às
outras para comunicar algo. Com a adição do prefixo “inter” entende-se que diferentes
conjuntos de ideias, inicialmente expressas em palavras, são entrelaçadas para se formar um
novo produto, chamado texto. Segundo Kristeva (2005) o texto é o trabalho da língua,
constituído de sentidos oriundos de um autor, agora em diálogo não só com um receptor, mas
com outros produtores textuais. Para a teórica, o texto questiona e transforma a língua apoiado
em significantes, ou seja, em diferenciações de significados contextualizados na materialidade
histórica de uma gramática já estratificada socialmente. Desse modo, o texto sempre é

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construído, nunca se fechando em si mesmo, com a função de reformular significados de acordo


com a relação sujeito-cultura inseridos numa determinada época.
O texto, de acordo com Kristeva (2005), possui uma infinidade de sentidos, por estar
sempre dialogando com algo ou alguém, em que o objeto pode ser outra expressão artística ou
midiática, como na relação entre cinema e o teatro. Clüver (1997) intitula o processo de
transformar signos verbais em não verbais de transposição intersemiótica, estabelecendo um
vínculo entre as artes que permite a utilização do termo texto visual. Toda imagem é constituída
de códigos informativos, que carregam signos que se modificam em significantes ao serem
expressos em determinada cultura com certo(s) produtor(es) e receptor(es). Por exemplo, a
escultura, segundo Pietroforte (2018), pode ser compreendida através de sua forma, cor e
posição, que por sua vez expressam uma narrativa semiótica. No caso estudado, por exemplo,
observa-se uma ligação entre textos verbais escritos em 1740 e 1756, produzidos por Madame
Villeneuve e Madame de Beaumont respectivamente. Com o passar dos anos, a Companhia
Disney publicou em 1991 um filme inspirado nessas obras redigidas, e as transformou em
cinema de animação. Em 2002 o Teatro Abril readaptou o desenho animado e o colocou no
campo da dramaturgia. Ao longo de toda a peça, foco deste trabalho, pode-se perceber resgates
ao texto de partida, ou seja, a animação, graças a similitude expressa na abertura do drama.
Quando se inicia, um narrador em terceira pessoa introduz a história, reproduzindo o início da
animação, mas agora com uma orquestra de apoio que pode ser vista na presencialidade do
olhar. Esse movimento narrativo retoma também o gênero dos contos de fadas, origem do tipo
de história estudado. Os contos de fadas geralmente são escritos em terceira pessoa, com a
presença de um narrador heterodiegético que conta uma história. Há alguém que fala os
acontecimentos que se sucederam, sem fazer parte da história. (CARDOSO, 2003)
Outro aspecto presente é o narrador extradiegético, que conforme Cardoso (2003) é
aquele expresso por imagens e sons que regulam o desenrolar da diegese. No cinema, ele
aparece como a consecução de imagens orientado pela câmera, o que transporta o receptor a
diferentes cenas, enquanto no teatro, o movimento das luzes mostra a sucessão de
acontecimentos. Ao se acender e apagar as luzes, cria-se um efeito de demonstrar ao receptor a
sequência de eventos dita pelo narrador, o que lembra o próprio conceito de cinema em sua
série de imagens (CARDOSO, 2003). Há um encadeamento de luzes que conferem efeito de
movimento, como necessário para o cinema em seu nascimento. Essas questões referenciais em
que uma mídia resgata a outra nos leva ao que Rajewsky (2012) entende por intermidialidade,
termo aprofundado no próximo capítulo.

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Intermidialidade: o rompimento de barreiras entre as diversas mídias

Para começarmos, o que é mídia? Segundo Bulhões (2012), mídia é uma denominação
ampla que engloba todos os meios comunicacionais de massa, com o intuito de transmitir
informação. Para Rajewsky (2012), o termo intermidialidade serve “como um termo guarda-
chuva” (RAJEWSKY, p. 16, 2012) por abarcar qualquer forma de comunicação. De fato, a arte
expressa algo a alguém, tendo o receptor um importante papel no entendimento da transmissão
e construção de significados de uma dada obra, e o mesmo acontece com as novas plataformas
digitais. O conceito passa então a ser muito útil, por incluir não só as artes precedentes, como
também o advento das novas tecnologias, pois tanto as artes quanto os inovadores meios de
comunicação expressam algo a alguém. Deve-se destacar que o prefixo inter, agora conectado
à palavra mídia, indica que as diversas mídias, ou meios de comunicação, dialogam entre si, o
que viabiliza a reconstrução do discurso em diversos contextos.
Rajewsky (2012), a partir disso, discute o sentido amplo da intermidialidade, apontando
para os eventos que ocorrem no elo entre as mídias. Há um cruzamento de barreiras dos
diferentes meios de comunicação, levando consequentemente a uma reinterpretação da
narrativa. Ao aprofundar o conceito, ostenta as abordagens diacrônica e sincrônica, em que a
primeira, também entendida como genealógica, refere-se a discussão histórica do surgimento e
desenvolvimento das mídias, realizada de forma sutil no início deste trabalho, com o
entendimento do que é texto e intertextualidade. A segunda diz respeito à apuração de tipos de
relacionamentos entre mídias, entendida pela autora como sentido restrito da intermidialidade.
Rajewsky (2012) criou três subcategorias intermidiáticas, à saber: 1. intermidialidade no sentido
mais restrito de transposição midiática, 2. Intermidialidade no sentido mais restrito de
combinação de mídias e 3. Intermidialidade no sentido mais restrito de referências
intermidiáticas.
A primeira subcategoria indica, como o nome sugere, à transposição midiática, conceito
semelhante ao de transposição intersemiótica proposta por Clüver (1997), mas agora adaptado
à ideia de mídia. Assim, há transformação de um certo tipo de mídia em outro, por exemplo,
um texto literário pode se converter em cinema, ou um filme de animação pode se tornar uma
peça de teatro. Tomando-se como exemplo a adaptação teatral estudada, percebeu-se a
substituição do ambiente cinematográfico com suas grandes telas pelo palco teatral, com suas
cortinas e performances próprias. Desse modo, o meio de comunicação foi modificado, o que
configura uma transposição midiática. A segunda subcategoria diz respeito à combinação de

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mídias, em que teatro e cinema são abordados como combinações de diferentes meios de
comunicação. Para um filme acontecer, é preciso unir-se imagem, som e roteiro escrito, assim
como no teatro, que também depende da iluminação e da atuação de dramaturgos, semelhante
ao cinema. Outros nomes para esse processo são multimídias ou mixmídias, em que acontece
articulação entre pelo menos dois tipos diferentes de mídias. Cada mídia tem sua autonomia
para agir, porém, ao se conectarem, contribuem para a sucessão narrativa, em que uma apoia a
outra. No caso estudado, o teatro começa a performance através da música expressa por uma
orquestra, unindo musicalidade ao palco e à atuação dos atores.
A terceira subcategoria estabelece as referências intermidiáticas, isto é, um meio evoca
outro meio comunicacional. Tanto no filme quanto no teatro citado, a personagem Bela lê um
livro, o que faz referência à origem literária de inspiração. O figurino montado no teatro também
relembra a animação, vê-se claramente que as roupas das personagens foram baseadas nas
ilustrações Disney do desenho animado, como mostrado abaixo:

Figura 1 - Bela e Gaston no Teatro Abril Figura 2 - Bela e Gaston no desenho animado

Fonte: Teatro Musical Brasil (2019) Fonte: Site Fanpop (2019)

Como pode-se perceber, as referências intermídia são um modo não só de resgatar uma
composição, mas de construir sentido e produzir significado a ela. Por mais que um texto falado
soe igual, ou um vestido seja muito semelhante, cada atributo acaba sendo diferente, justamente
por se enquadrar em outro meio de comunicação. Por mais que as duas Belas e os dois Gastons
sejam similares, percebem-se nuances, pois no primeiro caso veem-se pessoas reais, em
comparação com o segundo, expresso como um desenho gráfico. Durante a peça de teatro,
diversos aspectos foram retirados com muita similitude à animação, no entanto, o diretor
Antônio Carlos Rebesco mostrou que sentiu certa liberdade para incluir outras músicas,
ressignificando o caráter musical.
Primeiro deve-se destacar que, por mais que a letra de algumas canções seja igual ao
desenho animado, a voz é proferida por outra pessoa, o que faz o tom e o tempo se modificarem

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e se adequarem à nova personagem, dando nova roupagem à atuação. Segundo, retomando a


autonomia do diretor, no início quando Bela questiona o pai sobre ser estranha, ele canta junto
dela, sobre esse sentimento e sua família. Inclusive, chega a citar a mãe de Bela, e falar como
as duas eram parecidas, o que na animação não existe. Essa ação chega a preencher lacunas
oriundas do texto fonte, reproduzindo novos significados de identificação por parte do receptor,
ao designar semelhança entre mãe e filha. Outras particularidades podem ser observadas na
peça, com uma canção em monólogo pela Fera quando ele e Bela brigam.
O monólogo, de acordo com Silva (2010) é algo típico do teatro, em que um ator se
coloca só diante do público para expor seus sentimentos, pensamentos e conflitos. Ao trazer
uma cena em monólogo, o teatro faz referência ao próprio teatro, mostrando um de seus modos
de funcionamento. O monólogo no teatro é diferenciado, ao se comparar com a literatura e o
cinema, sendo a dramaturgia a principal responsável por esse tipo de encenação artística. A
autora destaca que é no sonho que o sujeito fala sozinho, produzindo um discurso a si mesmo,
em que a plateia se torna responsável pela interpretação e recepção dos sentimentos expressos,
construindo um sentido autêntico ao contexto dramatúrgico. Desse modo, os espectadores
trocam sentimentos com aquele que atua, porém, sem trocar discursos. É uma forma de se sentir
no lugar daquele que fala. Assim: “O monólogo afirma a presença do público e sua condição
de destinatário direto, explícito, da mensagem proferida pelo ator solo em cena” (SILVA, 2010,
p. 106), o que por sua vez interpela o ouvinte como cúmplice.
Rajewsky (2012) resgata o conceito de intertextualidade e o correlaciona com o de
intermidialidade, no entanto, realiza uma diferenciação, afirmando que intertextualidade está
ligado, no seu entendimento, à intramidialidade. As referências intramidiáticas são quando uma
mídia faz referência a ela mesma, como descrito no parágrafo anterior, enquanto na
intermidialidade há modificação do meio de comunicação. Na intertextualidade, quando um
texto menciona outro, estão inseridos no mesmo modo de comunicação, enquanto que na
intermidialidade a mídia muda. Essa performance causa uma ilusão no receptor, atuando “como
se” (RAJEWSKY, 2012, p. 28) fosse a outra mídia, no caso, como se o teatro fosse o cinema
de animação. Sabe-se, por exemplo, que o cinema funciona através de uma câmera em
movimento fotográfico, enquanto no teatro a observação da cena e do cenário é feita através do
olho nu, gerando diferenças significativas.

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Figura 3 - Canção À Vontade Teatro Abril Figura 4 - Canção À Vontade versão Disney

Fonte: Teatro Musical Brasil (2019) Fonte: Serpa (2018)

No teatro, as casas e o cenário se movem junto com as personagens, o que dá um efeito


diferente. Essa ilusão comentada pela autora gera certa nostalgia no espectador, ao se lembrar
daquilo que viu, agora na concretude do palco e com movimentação a olho nu. A cortina, que
se levanta, se abre ou se fecha, auxilia no processo de construção da cena, do mesmo modo que
se precisa de atores retirando e colocando moradias e florestas para narrar a trajetória das
personagens.

Considerações finais

Segundo Hutcheon (2013), desde a Era Vitoriana a prática da adaptação era realizada,
não só intra midiaticamente, mas entre diferentes mídias, e sempre se readaptava o objeto
anteriormente adaptado. Na atualidade conhecida como Pós-modernismo, essa atividade se
manteve, mas foi ampliada graças às novas tecnologias, não se limitando a filmes e romances.
Parques temáticos podem exercer essa ação, utilizando-se de material ficcional como o King
Kong e personagens de contos de fadas. No Brasil temos o Park do Gorilão, inspirado no King
Kong, e nos Estados Unidos tem-se a Walt Disney World Resort, com temática oriunda de sua
produção fílmica de animação. A adaptação, desse modo, ganhou notória popularidade, e pode-
se dizer que todos, como afirmado com Hutcheon (2013), em algum momento de suas vidas já
tiveram contato com uma obra adaptada. A autora com isso defende que a adaptação não deve
ser tratada como inferior quando relacionada ao texto de partida, mas sim vista de forma
autônoma, dentro de seu contexto midiático-textual. Não há a possibilidade de o teatro ser igual
ao cinema, mas ambas as artes podem apoiar-se mutuamente, produzindo diferenciações de
significados em seu meio comunicacional. A autora enfatiza que “primeiro” não quer dizer
original, de mesmo modo que segundo não é sinônimo de subalterno.
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Com isso exposto, a autora realiza uma provocação, instigando que uma adaptação pode
ser a porta de entrada para a mídia precedente, não sendo necessário uma verticalidade em que
primeiro se deve receber o “original” para depois experienciar a adaptação. Esta por si só pode
servir como fonte de incentivo para a investigação intertextual-midiática, graças ao potencial
recordativo dessa realidade. Deste modo, entende-se nas palavras da escritora que “a adaptação
é uma forma de repetição sem replicação” (HUTCHEON, 2013, p. 17) apresentando múltiplas
funções nas inúmeras culturas e tempos históricos da civilização humana, demonstrando a
potencialidade artística da adaptação como transformação.

Referências

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Do proscênio à academia: representação social e configuração espaço-temporal em A


Partilha, de Miguel Falabella

Jéssica Nágilla Hagemeyer (UFMS/CPTL)10

Resumo: Ancorando-se nos estudos de Anne Ubersfeld (2005), Jean-Pierre Ryngaert (1996),
Renata Pallottini (1998) e Patrice Pavis (1999) acerca do modo de estruturação do texto teatral,
nos postulados de Gaston Bachelard (1996) concernentes à poética do espaço, bem como
apoiado pelas contribuições de Antonio Candido (2000) no tocante aos aspectos sociológicos
que circunscrevem um texto literário, este trabalho tem como objetivo analisar o tempo/espaço
da produção dramatúrgica A Partilha, de Miguel Falabella. Salienta-se que o modo da
construção destes elementos diegéticos são relevantes para a configuração de determinados
efeitos de sentido, principalmente, no que tange à identidade, a situação social e financeira em
que se encontram os protagonistas. Dessa forma, o trabalho recai, também, na abordagem de
fatores relacionados à dicotomia texto/representação, enfatizando a relevância destes
componentes na constituição dramatúrgica em questão. Nesse segmento, a presente pesquisa
aborda a dinâmica das relações entre as personagens, visando analisar, de forma específica, a
dramaturgia de Miguel Falabella, observando os aspectos peculiares do autor. Porquanto,
pretende-se mostrar, por intermédio das estratégias de construção do texto, a visada poética do
artista, buscando a compreensão das nuances da representação social ligadas às relações da
família (microcosmo) e da sociedade (macrocosmo).

Palavras-chave: Teatro brasileiro contemporâneo; tempo; espaço; personagens Miguel


Falabella.

Introdução

Antes de adentrarmos ao estudo da peça A Partilha, convém incursionarmos por uma


breve síntese biográfica de Miguel Falabella, bem como sua dramaturgia, a fim de compreender
determinados traços de seu projeto estético. Conhecido pelo público por interpretar a
memorável personagem Caco Antibes na sitcom Sai de Baixo, Miguel Falabella de Sousa
Aguiar é ator, dramaturgo, diretor, dublador, cineasta, escritor e apresentador de televisão
brasileiro, nascido no Rio de Janeiro, em 10 de outubro de 1956. Filho de uma professora
universitária de francês e literatura francesa e de um arquiteto, Falabella, desde tenra idade,
esteve intimamente ligado com os estudos da literatura brasileira, fato que o impulsionou a
explorar a carreira artística e a cursar Letras na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

10
Aluna regular do Programa de Pós-Graduação em Letras, área de concentração em Estudos Literários, nível de
Mestrado, da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Campus de Três Lagoas (UFMS/CPTL). Orientação
Prof. Dr. Wagner Corsino Enedino. E-mail: jessicahagemeyer@hotmail.com

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Em diversas entrevistas, o autor comentou que sua avó materna foi fundamental na
escolha de sua carreira quando o levou, aos 08 anos de idade, para assistir ao musical Hello,
Dolly, estrelado por Bibi Ferreira. Desse momento em diante, o artista se encantou pelo mundo
da dramaturgia e já na adolescência iniciou sua carreira artística no teatro, primeiramente no
colégio onde estudava e posteriormente no tradicional Teatro Tablado – escola para atores de
Maria Clara Machado. Sua estreia no palco foi aos 18 anos, com a peça O dragão, de Eugene
Schwarz, todavia seu primeiro trabalho como ator profissional ocorreu apenas em 1979, na peça
O despertar da primavera, de Frank Wedekind.
Na televisão, Falabella estreou como ator em 1982, no programa Caso Verdade, no
episódio "Jam e Jim", em que deu vida a personagem título. Logo depois, participou de sua
primeira novela, Sol de verão, de Manoel Carlos, como o médico Romeu. Em 1984, atuou em
Amor com amor se paga, de Ivani Ribeiro, como a personagem Renato e, no mesmo ano, na
novela Livre para voar, de Walther Negrão, interpretando a personagem Sérgio. Contudo, foi
em 1986, com a personagem Miro, que o artista ganhou maior projeção na televisão brasileira
no remake Selva de pedra, de Regina Braga e Elói Araújo. Vale destacar, ainda, que em 1987,
passou a apresentar o programa Vídeo Show, da Rede Globo, no qual ficou à frente durante 15
anos. Concomitantemente, atuou em outros trabalhos na televisão, mas em 1996 se consolidou
como figura pública ao interpretar Caco Antibes, no programa Sai de Baixo, o qual esteve no
ar até dezembro de 2001.
Como autor, Miguel Falabella escreveu diversas novelas e peças teatrais, iniciando-se
pela telenovela Salsa e Merengue, em 1996, escrita juntamente com Maria Carmem Barbosa,
com quem lançou outros trabalhos como A lua me disse (2005), uma comédia de costumes com
traços do folhetim tradicional, e o humorístico Toma lá dá cá (2007). O artista foi o autor de
duas telenovelas de comédia romântica, Negócio da China (2008) e Aquele beijo (2011), e dos
seriados Pé na cova (2013), no qual atuou como a personagem Ruço, dono de uma funerária
nada convencional, e Sexo e as nêga, que retratava a vida de quatro amigas do bairro de
Cordovial, zona norte do Rio de Janeiro.
Já na direção teatral, começou com a premiada peça Emily (1994), que lhe rendeu o
Prêmio Molière de melhor direção e o Mambembe de revelação em direção. Entre as inúmeras
peças que dirigiu, vale destacar Tupã, a vingança (1985), de Mauro Rasi e Lucia McCartney,
também a adaptação de Geraldo Carneiro do texto de Rubem Fonseca, As Sereias da Zona Sul
(1987), o infantil O rouxinol do Imperador (1988), adaptado por Flávio Marinho, Os Monólogos
da vagina (2000), uma adaptação do original de Eve Ensler, Capitanias hereditárias (2000),

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South American Way (2001), um musical sobre a vida de Carmen Miranda e peça A Partilha
(1991), na qual ganhou o Prêmio Molière de melhor autor.

Sob a luz do proscênio textual: em cena, A Partilha

Escrita em 1991, a peça A Partilha foi uma notória produção brasileira que ficou em
cartaz por 6 anos e foi encenada em mais de 12 países. O elenco original era composto por
Natália do Vale (Selma), Susana Vieira (Regina), Arlete Salles (Maria Lúcia) e Tereza Piffer
(Laura). Em decorrência do elevado sucesso, a peça ganhou, em 2001, transposição para o
cinema, com produção da Globo Filmes e direção de Daniel Filho. Importa destacar que a
produção foi premiada no Festival de Cinema Brasileiro de Miami como melhor roteiro. Em
1992, a peça foi encenada em Buenos Aires, numa versão adaptada para Nosotras que nos
queremos tanto, permanecendo quase três anos em cartaz.
A Partilha retrata a morte de uma matriarca que deixa para suas quatro filhas, Selma,
Regina, Maria Lúcia e Laura, um apartamento na cobertura, no bairro de Copacabana,
juntamente com alguns móveis e objetos de antiguidade. Após anos afastadas, as irmãs se
reencontram para o velório e enterro da mãe, a fim de realizarem o levantamento dos bens da
família, discutirem sobre o processo de partilha e reavaliarem suas próprias vidas. Durante o
decorrer da peça, a qual é ambientada boa parte no imóvel (objeto da herança), as personagens
configuram-se sob a égide da expressão contrastante de um mesmo mundo. Na peça, constituída
por um ato (prólogo e três cenas) quatro irmãs estão num espaço fechado (o apartamento), onde
a situações se desenvolvem e ganham maior densidade dramática, uma vez que, segundo Patrice
Pavis (1999), o espaço dramático é o espaço abstrato ficcionalizado, criado pelo
espectador/leitor, associado ao espaço interior (quando há tentativa de representação de uma
fantasia, visão do dramaturgo ou da personagem). Além disso, no momento em que o texto
teatral se inicia, observamos que “[...] a organização do tempo da ficção vai de par com a
estrutura do espaço” (RYNGAERT, 1996, p.77).

A Partilha em personas

No que diz respeito às características das personagens, Selma é a mais velha e antiquada
das irmãs. A ela restou à incumbência de cuidar da mãe depois que cada irmã resolveu seguir

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seu caminho. Casada com um militar, Selma leva uma vida disciplinada e monótona no bairro
da Tijuca, no Rio de Janeiro. Regina, por sua vez, é taxada como liberal, moderna, independente
e esotérica, a qual casou-se por obrigação e após a separação não mais se interessou por
relacionamentos sérios. Já Maria Lúcia é considerada a irmã requintada e desapegada, que
“abandonou” um casamento convencional e o filho no Brasil para viver um grande amor em
Paris. E, por fim, Laura é a irmã caçula, intelectual e exageradamente voltada para o trabalho,
surpreende as demais irmãs com suas atitudes, pois é sempre sisuda e circunspecta; sobretudo,
quando se assume homossexual.
Por reunir a poesia e a melancolia encarnada nas personagens, A Partilha ganha a adesão
do enunciatário de forma sutil, porém com profundidade. A peça não é uma simples comédia,
como se espera das produções de Miguel Falabella; não obstante, o riso torna-se o meio
utilizado pelo autor para desmascarar o incansável sentimento humano pela busca da felicidade.
Logo, é uma comédia dramática que mexe com a memória afetiva dos espectadores, cujo foco
não é trazer à tona a divertida briga pela divisão de bens materiais deixados pela genitora
falecida, mas a divisão de histórias, vidas e emoções ainda inexploradas pelas protagonistas.
De fato, a divisão da herança motiva um mergulho no passado e uma discussão sobre os
episódios retidos na memória de cada uma das irmãs. Importa mencionar que o processo de
construção de sentido em boa parte das produções de Falabella peças recai nas malhas
mnemônicas. Ler a memória como algo que está sempre se construindo no presente é querer
traçar um novo caminho; pois, levantando (inventariando) questões do passado, pode-se
entender/compreender o presente.
Dessa forma, por meio da análise espaço-temporal, podemos aferir como as nuances da
representação social ligadas às relações da família e da sociedade são impressas no espaço, no
tempo e no diálogo das personagens a ponto de revelar as redes de sentido que compõem o texto
teatral em questão. A organização do tempo e do espaço geralmente estão intimamente atreladas
na criação da peça. Assim, a análise dessas duas marcações se faz em dois níveis:

Num primeiro momento, trata-se de identificar tudo o que é objetivamente da


ordem da produção, ou seja, as necessidades espaço-temporais que a peça
aparentemente impõe. Muito concretamente, é preciso compreender onde e
quando a ação se passa, considerar a lista dos lugares, sua organização, seus
retornos, e estabelecer uma cronologia. Num segundo momento começa o
trabalho mais delicado de apreensão de uma poética do espaço e do tempo.
Todo texto é portador de um ou de vários espaços metafóricos que fundam o
universo da peça. (RYNGAERT, 1996, p. 81)

A partir desse método, verifica-se que o espaço teatral da peça em análise se concentra
no apartamento da mãe falecida, razão pela qual apenas no prólogo que encontramos a descrição
de outro ambiente que é a capela onde a genitora foi velada, vejamos: “A música sobe. Ilumina-
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se o centro do palco. Quatro velas dispostas como se um caixão (que não se vê) estivesse ali no
meio. Selma está parada, velando. Regina chega. Olha a capela, depois a mãe. Um tempo”.
Desse momento em diante, A partilha começa a se desenvolver no âmbito do apartamento
objeto de divisão entre as irmãs, local descrito na Cena I, do primeiro Ato, da seguinte forma
na didascália:

A luz, logo após o fim do prólogo, revela a sala de estar de um amplo


apartamento, em Copacabana. A maior parte dos móveis já se foi, revelando
buracos, deixando uma atmosfera melancólica, que paira sobre a cena. Um
velho móvel de hi-fi, um velho sofá coberto por uma colcha de chenille, um
Dunkerke com um espelho em cima, alguns quadros na parede, uma ou duas
mesinhas com objetos de arte. Nada que consiga preencher o vazio que se
formou. Um ou outro foco de mofo é visível. Regina está sentada no sofá,
conferindo uma lista. Maria Lúcia entra, com uma bandeja e um serviço de
chá. (FALABELLA, 1991, p. 9)

Como se observa, mediante as didascálias extrai-se as partes essenciais para a


elaboração desse lugar cênico. Conforme assevera Anne Ubersfield (2005, p. 92-93), os
aspectos de espacialidade podem ser obtidos tanto por meio das didascálias - as quais podem
fornecer indicações de lugares, de gestos e marcação e nomes das personagens que permitem
imaginar a ocupação do espaço – quanto pelos diálogos entre as personagens, denominadas
didascálias internas.

A representação do espaço

No presente texto, observamos a estruturação do lugar cênico carregado de


sentimentalismo e apego pelo passado que, ao desenrolar da diegése, se mostra necessário para
configuração do presente e futuro das irmãs.
Gaston Bachelard (1993, p. 24) destaca que a casa é “um verdadeiro cosmos”, nosso
primeiro universo, é nela que estão reunidas todas as lembranças da família, sendo, portanto,
uma metáfora da família. Por esse viés, podemos entender a opção de Falabella em construir a
peça no ambiente onde as recordações da infância estão fortemente arraigadas no inconsciente
das personagens, já que era uma época em que as quatro irmãs podiam ser felizes e livres dos
padrões sociais. Portanto, o apartamento da genitora falecida é o ambiente propício para que as
irmãs se reencontrem, depois de tantos anos afastadas, e discutam sobre suas vidas, uma vez
que este bem de família está carregado de significados para elas.

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Nesse segmento, Gaston Bachelard (1993) tece considerações sobre como o espaço
físico pode afigurar-se na mente humana. Uma de suas considerações sobre o espaço fechado e
reduzido é a de que nele se pode representar um canto de acolhimento, onde digerimos nosso
dia. Na obra de Miguel Falabella, a memória afetiva das personagens quanto ao espaço do
apartamento ativa este status quo. As lembranças ali contidas ganham contornos de uma espécie
de inventário sentimental de cada personagem que, em diversos momentos da peça, cada objeto
da lista de móveis a ser partilhado é o ponto chave para desencadear uma reflexão sobre as
divergentes ações de cada uma das irmãs. Em um trecho da Cena I, evidenciam-se ponderações
das irmãs sobre o casamento findado de Maria Lúcia com Rubinho e a opção dela de mudar-se
para França sem o filho, iniciado pela checagem de quem ficaria com o espelho veneziano
deixado pela mãe:
REGINA – O espelho veneziano.
MARIA LÚCIA – Que o papai me deu, quando eu fiquei noiva do Rubinho.
(Silêncio)
SELMA – Se o papai te deu, por que é que você não levou, quando casou?
MARIA LÚCIA – Sei lá... não combinava com a decoração do apartamento.
Mas ele me deu e vocês todas sabem disso.
REGINA – Eu não me lembro, mas não vou duvidar de você. Com certeza,
você não levou com medo de Rubinho quebrar, não foi?
SELMA – O Rubinho quando bebia quebrava tudo. Só não quebrava a cara...
REGINA – A dele, né? Porque a da Maria Lúcia ele quebrou umas duas vezes.
LAURA – Que fim levou o Rubinho?
MARIA LÚCIA – Tá muito bem. Tá vivendo com uma menina de dezoito
anos – eu acho que é porque o Mauricinho cresceu e tá pensando em ir morar
uns tempos comigo, em Paris. O Rubinho tá com medo de envelhecer sozinho.
[...]
SELMA – O Mauricinho não largou a faculdade, não foi?
MARIA LÚCIA – Ele quer tocar guitarra. O Rubinho nunca teve mão forte
com ele. Eu também, admito, nunca tive talento pra educar filho. Enfim... se
ele quer mesmo ser músico, é bom que vá ficar uns tempos comigo em Paris.
Lá pelo menos, ele vai poder tocar em qualquer esquina.
SELMA – Ele deve ter se ressentido muito da mãe ter largado o pai, pra ir
morar na França com um homem que ela mal conhecia.
MARIA LÚCIA – Não mais do que a irmã cretina que passou a vida socada
na Tijuca. (FALABELLA, 1991, p. 12)

Porquanto, o objeto de antiguidade que qualifica o espaço da peça possui a função


propulsora de motivar discussões feministas muitas vezes em duelo, como a manutenção de um
casamento, a liberdade de escolha, a educação dos filhos, a felicidade, entre tantas outras
questões que pairam sobre o imaginário das mulheres. Tais tópicos são levantados em vários
momentos durante a obra, pois o efeito de sentido é justamente trazer à baila as distintas visões
de mundo que cada personagem traz consigo, como se cada ponto problematizado fosse
imprescindível para que as irmãs se encontrassem como seres humanos na linha do tempo.

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Assim, depois de tantos anos guardando sentimentos e opiniões uma das outras, é
chegada a hora de revelar a ideologia que constitui cada uma e expor os pensamentos que
continuam ou que se modificaram ao longo do tempo que ficaram distantes umas das outras.
Inclusive, a opção pelo espelho não é desmotivada, pois este item faz alusão à concepção de
reflexo, contudo não qualquer reflexo, mas sim um reflexo da alma, do estado de espírito delas
ou mesmo daquilo que por muitos anos Maria Lúcia quis refletir para a sociedade e que,
atualmente, não faz mais sentido mostrar.
É possível visualizarmos, ainda, que o autor utiliza o espaço para organizar muitas das
características das personagens e do próprio conflito da peça. Um exemplo disso é a associação
feita da imagem de Selma, a irmã mais velha e conservadora, à do bairro da Tijuca, no Rio de
Janeiro. Em diversas cenas, quando as irmãs pretendem se referir a algo tradicional e monótono,
elas retomam a ideia do bairro da Tijuca, como uma forma de implicar com o comportamento
arcaico da irmã Selma, justamente para demonstrar a forma estática e padronizada que ela tem
da vida. Nesse sentido, vejamos um excerto da peça:

SELMA – (perto do caixão) Qual é o problema que vocês têm com a Tijuca,
quer me dizer? Vocês vivem implicando com a Tijuca! (pausa) A Laurinha,
outro dia, teve a cara de pau de me ligar, pra me entrevistar. Disse que estava
traçando um perfil da classe média tijucana.
[...]
REGINA – Mas tinha que ser na Tijuca? Selma tem cada ideia... MARIA
LÚCIA – Ela disse que já que foi ela que marcou a missa, ia fazer bem perto
da casa dela. REGINA – Aquela não vai mudar nunca... (FALABELLA, 1991
p. 5)

As frustrações vão aumentando conforme as personagens vão sucumbindo às


vicissitudes das convenções sociais e abandonando seus ideais. Com feito, observa-se que as
vidas das protagonistas foi, até então, uma mera representação.

O tempo e a construção e (re)construção de sentidos

Com relação ao tempo, Miguel Falabella não deixa claro em que ano exatamente se
passa a história, porém infere-se, pelo diálogo das personagens, que seja em meados da década
de 80 ou 90, tendo em vista que decorreu entre 20 a 25 anos desde a narrativa em que a
personagem Regina participou de passeatas comunistas junto com o ex-marido no período de
1960. O tempo é, portanto, elemento determinante da significação da obra teatral. Há, porém,
que se levar em consideração que a arte teatral é a arte do tempo presente por excelência,
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fazendo que todos os signos temporais estejam de alguma forma, conectados ao presente. Para
a melhor compreensão dessa questão, ainda referente aos significantes temporais, Anne
Ubersfeld (2005) reforça as diferenças na análise do texto versus representação, como fator
fundamental para compreensão do tempo no teatro, tendo em vista que a representação de uma
peça interrompe o tempo comum, propondo um outro tempo, dentro do tempo real.
O texto de teatro representa, segundo a autora, um tempo relatado, que só a
representação poderá deslocar: “É apenas pela mediação dos signos da representação que o
tempo representado se inscreve como duração, como sentimento do tempo para os
espectadores”. (UBERSFELD, 2005, p.133)
Voltando ao texto teatral, no que concerne à imprecisão temporal (anos 80 ou 90), a
informação coaduna-se com a fala de Regina sobre as convicções políticas da genitora, a qual
era adepta das ideologias de Carlos Lacerda, um dos maiores porta-vozes do pensamento
conservador e direitista no país, grande adversário de Getúlio Vargas e dos movimentos
políticos trabalhista e comunista. Ademais, estima-se que a peça faça referência aos anos de
80/90, pois Maria Lúcia cita o nome de uma Miss Brasil de 1954 como um padrão de beleza
conhecido pelas irmãs, com o intuito de exemplificar que seu corpo ainda estava bonito, senão
vejamos os excertos:
REGINA – Claro! A Judith era lacerdista doente! Igualzinha à mamãe. Aliás
eu sempre fui uma exceção nessa casa de reacionárias. Desabrochei à custa de
muita porrada.
MARIA LÚCIA – Você vai me contar a história da sua vida, Regina? Pra
mim? Você se metia nas passeatas porque o Cláudio era comunista. Pelo
menos era o que ele dizia na época. [...]

MARIA LÚCIA – Regina... não adianta você tentar inventar outra historia pra
nós. O livro da tua vida tem vários capítulos conosco, quer você queira, ou
não. A verdade é que me lembro que você dizia que ia às passeatas, porque
acabava correndo da polícia e emagrecia.
SELMA – Viu?
REGINA – Viu o que, Selma? Há quanto tempo foi isso? Vinte? Vinte e cinco
anos? Eu vi muitas coisas nesse tempo... você se lembra da gente há vinte anos
atrás?
[...]
REGINA – Eu tenho um corpo esquisito, Maria Lúcia? Eu? Você tinha o
maior complexo das tuas pernas. Todo mundo te chamava de saracura!
MARIA LÚCIA – Nunca fui nenhuma Marta Rocha, mas nunca tive barriga
e, cá entre nós, sempre tive um peito lindo. (FALABELLA, 1991, p. 19)

Ademais, mesmo sem um período datável, percebe-se a atualidade desse texto dramático
pelos pontos de vista debatidos, pelas temáticas em pauta e pela linguagem usada pelas
personagens, que ressaltam os traços de contemporaneidade do discurso. Com relação à

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cronologia da peça, afere-se pelas didascálias que cada cena equivale a um dia e que havendo
três cenas, a peça representou o enterro, no prólogo, e mais três dias após este para realizar a
partilha dos bens deixados, conforme se observa a seguir:

(Outro dia, num fim de tarde, quase noite. O Dukerke e o espelho já se foram,
assim como alguns quadros revelando novas manchas nas paredes. Ao acender
das luzes, Regina está sentada no chão às gargalhadas. Maria Lúcia em pé.)
(FALABELLA, 1991, p.18)

(Outro dia. Agora, não tem mais nada. Tudo já foi vendido. O espaço está
vazio, só o velho sofá ficou. Laurinha está agachada, falando no telefone.)
(FALABELLA, 1991, p.25)

Além disso, visualiza-se que conforme os móveis e objetos de antiguidade que


compunham o ambiente vão sendo vendidos, a história vai se encaminhando para o final, como
se a despedida das irmãs e do passado compartilhado estivesse cada vez mais próxima. Por esse
motivo, o apartamento se torna um imóvel difícil de ser vendido, pois quando este bem deixa
de ser da família é como se “a vida” e a “memória” existentes nele tivesse se esvaído e a estirpe
familiar acabado. Nesse sentido, as marcas temporais primordiais encontradas na peça em
análise são definidas por uma atmosfera nostálgica, onde o passado é o item necessário para
que se opere uma mudança no futuro das irmãs e retome a unidade dessa família que, até então,
estava dividida pelos conflitos anteriores.
Por essa perspectiva, as indicações espaço-temporais se interligam ao longo do texto no
tocante à autoanálise das diferentes percepções de mundo que cada personagem representa
socialmente. Em A Partilha, o desejo das personagens é a recomposição do passado como uma
ideia mítica de felicidade, e ele se desvenda através de um humor ácido. A inegável ação do
tempo e sua corrosão sobre as emoções humanas são a fonte de dramaticidade desse texto.

Considerações finais

Isto exposto, concluímos que os fatores espaciais arquitetados por Miguel Falabella em
A Partilha são voltados para o imóvel da genitora, pois tanto o apartamento quanto as mobílias
antigas remetem à infância das irmãs, propondo às personagens um contexto de reflexão acerca
do passado, como se cada irmã estivesse numa sessão de terapia, buscando compreender sua
própria identidade.

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Porquanto, são quatro irmãs com grandes histórias de vida que se entrelaçam pela
família, pelas lembranças da juventude e pela dificuldade de dividir os bens da herança sem
conflitos sentimentais. A cada desentendimento há uma reflexão interior em cada personagem,
que se comunica com muitas inquietações do universo feminino. O enterro da genitora faz
alusão também ao desejo de sepultar as distinções entre elas e dirimir os assuntos mal resolvidos
no passado, por isso o ambiente para o reencontro possui tamanha significação.
Por meio dos diálogos sobre os costumes e acontecimentos familiares antigos, bem
como das didascálias, conseguimos evidenciar, ainda, as indicações temporais no sentido de
aproximar diacronicamente a passagem dos dias com o exaurimento dos bens a partilhar. Assim,
resta as quatro irmãs tão somente a reaproximação e a resolução de seus conflitos interiores,
uma vez que o “passado”, representado pelo imóvel da genitora, já foi vendido e liquidado.
Logo, as “feridas” que ainda “machucavam” as personagens foram devidamente “cicatrizadas”
para que elas pudessem seguir em frente.
Embora materializada por diálogos curtos e diretos, a temática de A Partilha delineia
um caminho para discussões profundas, figurativizadas por meio de quatro personagens
complexas. Não sendo constituída por uma única discussão pertinente, a peça é formada por
uma série de embates ideológicos em torno de uma questão mais ampla: a condição humana.
As protagonistas constituem muito mais por aproximação do que por distanciamento. Na peça,
cada etapa de evolução do conflito, é ao mesmo tempo, uma sobreposição de vários conflitos
interiores.
Nessa perspectiva, verificamos a singularidade da poética de Falabella ao tratar questões
sérias e de profundidade existencial com certa dose de humor, razão pela qual a peça ganhou
notoriedade no cenário artístico brasileiro. Além disso, encontramos um texto permeado de
representação social feminista, reflexões sobre identidade e convicções político-ideológicas que
são pontos relevantes para o processo de compreensão diegética, uma vez que, inevitavelmente,
são fontes geradoras de conflito.

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Ensaio Sobre a Cegueira: Uma Releitura à Luz de Brecht

Rosenilda Fernandes Chagas (PPG/Uniandrade)11

Resumo: Este trabalho apresenta uma análise do texto Ensaio sobre a cegueira, de José Saramago,
publicado em 1995, à luz de considerações teóricas de Bertolt Brecht. O principal objetivo é mostrar que
o autor português, em seu livro, utilizou uma série de recursos épicos preconizados por Brecht com o
intuito de fazer o leitor refletir sobre si mesmo e a sociedade em que vive. Outrossim, será realizada uma
análise comparativa sobre as relações sociais e de poder esmiuçados por Saramago e Brecht, em
Ensaio sobre a cegueira e A exceção e a regra respectivamente.

Palavras-chave: José Saramago; Ensaio sobre a cegueira; Bertolt Brecht; A exceção e a regra.

“Para quem tem uma boa posição social, falar de


comida é coisa baixa É compreensível: eles já
comeram”. (Bertolt Brecht)

Introdução
O romance de José Saramago, Ensaio sobre a cegueira, publicado em 1995 apresenta a
metáfora da “cegueira-branca”, que atinge toda a população de uma determinada cidade,
causando o caos e o terror entre todos. O primeiro caso de cegueira ocorre no trânsito, quando
um personagem, o qual para o carro no sinal vermelho, vem sendo acometido pela misteriosa
doença. Sucessivamente, várias pessoas contraem a cegueira e são levadas para um manicômio.
Para os governantes, a quarentena e isolamento dos contaminados evitaria mais propagações
porém, a praga espalhou-se por todo o país. No confinamento os cegos são “jogados” e tratados
com total descaso, não tendo atendidas, sequer, as mínimas condições de saúde, higiene,
alimentação e respeito. No desenrolar da narrativa, observamos conflitos relacionais e de poder
que levam a uma reflexão sobre a relação entre os homens no que se refere aos valores morais
e éticos em condições adversas e de sobrevivência.
O livro produz um estranhamento no leitor ao abordar um tema fora do cotidiano, bem
como, um desconforto na leitura do mesmo pela ausência dos sinais de pontuação – travessão,
dois pontos ou aspas – indicativos do discurso direto. Desse modo, o texto aproxima-se da

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Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Teoria Literária pelo Centro Universitário Campos de Andrade
– Uniandrade. Orientadora Profa. Dra. Anna Stegh Camati. E-mail: chagasrose@yahoo.com.br

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oralidade e remete-nos à contação de histórias, sendo esta uma característica da escrita de José
Saramago conforme as palavras de MUNER:
Saramago definiu seu estilo peculiar, inicialmente, ao escrever suas obras,
subvertendo os sinais de pontuação, espécies de pausas textuais, cujas funções
desde há muito foram definidas pela gramática e que constam do rol de
conhecimentos prévios de todos os leitores, para, então, dar-lhes novos
significados, numa perspectiva tanto plástica, quanto, inovadoramente,
reflexiva. (MUNER, 2012, p. 2)

Ensaio sobre a cegueira: uma aproximação com Brecht

A aproximação da obra Ensaio sobre a cegueira com Bertolt Brecht (1898-1956), ator,
dramaturgo, romancista e poeta, criador do teatro épico, ocorre embasada nas ideias concebidas
pelo dramaturgo alemão que, através de influências marxistas, opunha-se ao capitalismo e
defendia uma sociedade consciente sobre as questões sociais de sua época. Brecht propunha um
teatro de inserção social e de denúncia a respeito das injustiças para a transformação da
sociedade e da relação entre os homens, visto que o mesmo acreditava no poder transformador
da arte.
Dentre os elementos das considerações teóricas concebidas por Brecht temos: o
distanciamento entre ator e espectador numa tentativa de levar o último à uma atitude analítica
e crítica; a oportunização, nas peças, da surpresa ou espanto, levando ao público algo novo e
fora do cotidiano; rompimento com a linearidade dos fatos; o impulso de retirar o espectador
da passividade, tornando-o atuante e revolucionário; a determinação do não-antes-pelo
contrário; a narração em atitude distanciada com verbo em terceira pessoa no passado, e os
gestus sociais significativos.
As características desse teatro inovador proposto por Brecht são observadas no livro
através do enredo surreal, no qual uma população inteira, fica cega repentinamente; a narração
em terceira pessoa no passado; bem como a determinação do não-antes-pelo-contrário através
de personagens como o ladrão que ajudou o cego e roubou o carro ou, pela mulher do médico,
numa reflexão de ações opostas às tomadas pelas personagens no enredo, e os gestus sociais
que perpassam toda a narrativa.
Dentre tantos aspectos a serem analisados, o fulcro deste trabalho estará voltado para as
relações sociais e de poder discutidos por Saramago, em Ensaio sobre a cegueira, e por Brecht,
na peça A exceção e a regra.
Na peça A exceção e a regra, o personagem cule, que sofria de maus tratos pelo
comerciante – a quem prestava serviço como carregador numa viagem pelo deserto – foi morto
pelo patrão. Ele havia guardado um cantil reserva, imaginando que o comerciante estava com
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sede, por medo de ser castigado posteriormente caso o outro morresse, levantou-se no escuro e
foi oferecer água para o patrão. Porém, o homem, que também guardava um cantil reserva e
tinha mania de perseguição, imaginou que o empregado viu-o tomando água e, por vingança,
estava tentando matá-lo com uma pedra. Assustado, o comerciante atirou no infeliz. No
julgamento da ação, proposta pela viúva do cule, apesar de ser comprovada a culpa do
comerciante, o mesmo foi inocentado pelos juízes que consideraram o ato como legítima defesa.
Observamos na fala do juiz, proferida no final da peça, que o mesmo teve sua sentença
embasada em aspectos econômicos e sociais mantendo a regra do domínio e exploração:

O comerciante não pertencia à mesma classe do carregador, de quem só


poderia esperar o pior. O comerciante jamais poderia acreditar em qualquer
gesto de camaradagem por parte do carregador, a quem ele havia
confessadamente maltratado: o bom-senso lhe dizia que sobre ele pesavam as
mais graves ameaças, e o despovoado da região devia trazê-lo cheio de
apreensões. A ausência de polícias e de juízes possibilitava ao emprego
arrancar-lhe à força a sua ração de água, e o encorajava mesmo a fazer isso. O
acusado, portanto, agiu em legítima defesa, tanto no caso de ter sido realmente
ameaçado, quanto no caso de apenas sentir-se ameaçado. Isto posto, absolve-
se o acusado, e não se toma conhecimento da queixa da mulher do morto.
(BRECHT,1929/1930, n.p.)

No livro de José Saramago temos uma ação semelhante quando soldados amedrontados
atiram em cegos indefesos e famintos que saíram do manicômio à espera da refeição:

Os dois soldados da escolta, que esperavam no patamar, reagiram


exemplarmente perante o perigo. Dominando, só Deus sabe como e porquê,
um legítimo medo, avançaram até ao limiar da porta e despejaram os
carregadores. Os cegos começaram a cair uns sobre os outros, caindo recebiam
ainda no corpo balas que já eram um puro desperdício de munição, foi tudo
tão incrivelmente lento, um corpo, outro corpo, parecia que nunca mais
acabavam de cair, como às vezes se vê em filmes e na televisão. Se ainda
estamos em tempo de ter um soldado de dar contas das balas que dispara, estes
poderão jurar sobre a bandeira que procederam em legítima defesa, e por
acréscimo também em defesa dos seus camaradas desarmados que iam em
missão humanitária e de repente se viram ameaçados por um grupo de cegos
numericamente superior. (SARAMAGO, 1995, p. 88-89)

Em ambas, as obras, observamos a dominação e superioridade de uma classe sobre a


outra. Em Brecht, temos uma sobreposição do rico sobre o pobre e em Saramago o descaso, do
governo, com a vida humana representado na figura dos militares. Tanto o cule quanto os cegos
não têm nome tornando-se seres massificados e representantes de uma população oprimida
pelas autoridades constituídas socialmente. Porém, o comerciante, tem nome, e os militares –
representantes da lei, ordem e justiça – possuem benefícios como, em caso de cegueira, ficarem
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em locais separados dos outros cegos. Os autores mostram que a união dos menos favorecidos
é algo que incomoda e amedronta os detentores do poder. Na peça teatral, a proximidade e
amizade do guia com o cule gerou uma insegurança e medo no comerciante, levando-o a demitir
o guia e posteriormente assassinar o cule. No romance, os policiais sentiram-se ameaçados pelos
cegos porque os últimos estavam em superioridade numérica com relação aos primeiros. O fato
resultou em mortes de pessoas inocentes tanto em uma narrativa quanto na outra.
Brecht instiga o espectador a refletir sobre o assunto e o exorta a desconfiar e perguntar
até mesmo com a relação aos gestos, aparentemente, simples e inocentes, numa tentativa de
levá-lo a uma transformação social: “E, por favor, não achem natural/ O que acontece e torna a
acontecer:/ Não se deve dizer que nada é natural/ Numa época de confusão e sangue/ desordem
ordenada, arbítrio de propósito/ humanidade desumanizada” (BRECHT,1929/1930, n.p.). Do
mesmo modo, ironicamente, Saramago critica a decadência do homem no sentido literal da
palavra humanitário, pois aqueles que deveriam promover o bem-estar social são, exatamente,
os que subjugam e massacram os menos favorecidos que estão em situação inferior:

O sargento ainda disse, Isto o melhor era deixá-los morrer à fome, morrendo
o bicho acaba-se a peçonha. Como sabemos, não falta por aí quem o tenha dito
e pensado muitas vezes, felizmente um resto precioso de sentido de
humanidade fez dizer a este, A partir de agora deixamos as caixas a meio
caminho, eles que as venham buscar, mantemo-los debaixo de olho, e ao
menor movimento suspeito, fogo. (SARAMAGO, 1995, p. 89)

Na trecho acima, percebe-se o declínio da raça humana. A execração dos excluídos


socialmente é algo que se enraizou e baniu a solidariedade. Os indigentes tornaram-se
invisíveis, deixaram de ser homens e mulheres, passando a simples obstáculos na calçada, a
serem desviados. Os negros e pobres, em muitos casos, viraram alvo de projéteis e intolerância,
afinal, conforme nos diz Saramago (1995, p.89), “morrendo o bicho acaba-se a peçonha”.
Infelizmente, a sociedade fecha os olhos fingindo-se de cega, pois é mais fácil “achar natural”
que a decência humana esvaia-se na manutenção da plutocracia, a lutar contra o sistema
opressor.

Considerações finais

No romance e na peça teatral, percebemos uma animalização das pessoas, e uma


naturalização da exploração do homem pelo homem, prática tão comum no sistema capitalista.
Todos perderam sua humanidade: Os explorados – cegos, guia e cule – são tratados como

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animais, enquanto os exploradores não demonstram nenhum sentimento de empatia para com
os outros. Os cegos são comparados a cães, bois, ovelhas, hienas, cavalos e burros de carga que
não possuem uma identidade própria estando à espera do abate e passando por torturas físicas
e psicológicas: “... somos como uma outra raça de cães, conhecemo-nos pelo ladrar, pelo
falar...” (SARAMAGO,1995, p.64). Pela situação degradante a que estão submetidos, os cegos
de Saramago perderam toda a noção de higiene e valores morais. Os mesmos vivem misturados
aos excrementos humanos em um ambiente degradante e hostil, onde não podem confiar, nem
mesmo, em seus companheiros mais próximos. Essa animalização fica evidente quando
percebemos que os instintos sexuais sobrepõem-se aos valores racionais, éticos e morais. Seja
na traição do médico com a rapariga, nos cegos que mantinham relações sexuais sem
preocupação com a presença de outras pessoas no ambiente ou pelo estupro coletivo a que
mulheres foram submetidas.
Por outro lado, o cule de Brecht é forçado a carregar cargas em uma caminhada exaustiva
sem descanso e sofrendo agressões físicas. O mesmo, é desconsiderado em seus direitos
humanos pelos policiais que têm como única preocupação saber se ele trabalhou direitinho.
Mesmo após a morte, não teve sua dignidade e honra reconhecidas e respeitadas pelos juízes,
nem o direito de subsistência garantido à esposa e filho.
A crítica ao capitalismo é observada no gesto de recolher os objetos e estocar comida
pelos cegos e pela exploração do petróleo e ganância do comerciante. A sociedade é estruturada
de tal modo que os benefícios sociais são distribuídos de maneira desigual, onde grandes
quantidades ficam nas mãos de poucos e a maioria da população vive em completa miséria. Há
uma política do medo na qual os prejudicados não denunciam as barbáries porque sofrerão
represálias. Na peça, temos o guia que testemunhou em favor do cule, mas foi ameaçado de
retaliação e ficar sem emprego, pelo estalajadeiro, que acima do bem e do mal defende o
dinheiro. No filme, os cegos foram punidos por outros cegos a ficar três dias sem comer porque
reclamaram da quantidade de comida recebida. “Assim, só ela teve de jejuar por castigo durante
três dias, e com muita sorte, que podiam ter-lhes cortado os viveres para sempre, como é justo
que suceda a quem ousa morder a mão que lhe dá de comer” (SARAMAGO,1995, p.162).
A inversão de valores e culpabilização dos oprimidos, observadas nas obras, são
reforçadas pela sociedade como um todo a qual, quando vê as injustiças, finge-se de cega ou
considera algo normal e aceitável. Tanto em uma obra quanto em outra, a polícia e os juízes em
nome da “ordem” contribuem para a manutenção da exploração do homem pelo homem e, de
certo modo, protegem os mais fortes. “Olhem: é vôo de abutres! Aonde vão? /Do deserto, onde
não há nada mais, /Fogem, para comer os tribunais. /Os assassinos lá estão. Os perseguidores

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/Em segurança lá estão. E os que roubam /Vão lá esconder seus roubos, enrolados /Num papel
onde há uma lei lavrada” (BRECHT, 1929/1930, n.p.)
Enquanto os cachorros comem os homens, mostrando a pequenez e insignificância dos
mesmos, os santos estão com os olhos vendados num gesto de total abandono dos homens por
Deus que não vê e não enxerga o total estado de putrefação de seus filhos. É interessante
ressaltar que tanto Brecht, quanto Saramago, eram ateus e não acreditavam que Deus poderia
contribuir para um melhoria da raça humana, cabendo apenas ao homem fazer as mudanças
necessárias.
Assim, voltando à exortação de Brecht: “E, por favor, não achem natural”, as obras em
si, deixam-nos essa reflexão sobre as relações sociais e de poder onde não é natural ou, não
deveria ser, vermos pessoas tentando tirar vantagens de outras, seja no manicômio de Saramago
ou no deserto de Brecht, há um grito por reflexão e urgentes mudanças sociais.

Referências

ARISTÓTELES; HORÁCIO; LONGINO. A poética clássica. Tradução direta do grego e do


latim por Jaime Bruna. 12 ed. São Paulo: Cultrix, 2005.

BRECHT, Bertolt. A exceção e a regra. Disponível em:


<http://www.joinville.ifsc.edu.br/~luciana.cesconetto/Textos%20teatrais/Bertolt%20Brecht/>
Acesso em: 05 out. 2019.

______. Estudos sobre teatro. Trad. Fiama Pais Brandão. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1978.

MUNER, Camila Rocha. Ensaio sobre a cegueira: A voz de um narrador muito


antigo. FronteiraZ. Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados em Literatura e Crítica
Literária, [S.l.], n. 2, nov. 2012. ISSN 1983-4373. Disponível em:
<https://revistas.pucsp.br/fronteiraz/article/view/12605/9179>. Acesso em: 05 out. 2019.

POTY, Vanja. Conceito de “gestus” e técnica de construção. Revista Performatus, n. 6, set.


2013, s./p. Disponível em: <https://performatus.net/estudos/gestus/>. Acesso em: 15 jun. 2018.

SARAMAGO, José. Ensaio sobre a cegueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

TEIXEIRA JUNIOR, Geraldo Martins. Dramaturgia, gestus e música: Estudos sobre a


colaboração de Bertolt Brecht, Kurt Weill e Hanns Eisler, entre 1927 e 1932. Tese de
Doutorado. Brasília: UnB, 2014.

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Entre representações dramáticas e cinematográficas: em cena, as personagens e os


espaços de Navalha na Carne, de Plínio Marcos

Haydê Costa Vieira (UFMS/CPTL)12


Wagner Corsino Enedino (UFMS/CPTL)13

Resumo: Ancorado nos pressupostos teóricos de Magaldi (2003, 2004); Prado (1987); Faria
(1998) e Enedino (2009), no que se referem à constituição do discurso teatral, nas contribuições
de Aumont e Marie (2009); Xavier (2003) e Gomes (1987), para a abordagem da linguagem
audiovisual do cinema, e nos aportes de Hutcheon (2011) e Corseuil (2019) acerca da
investigação da adaptação cinematográfica, este trabalho visa refletir sobre o processo de
transposição da obra dramática Navalha na Carne (1967), de Plínio Marcos para o cinema
brasileiro (filme de 1997, com o mesmo título, roteiro e direção de Neville D’Almeida). A
escolha desse tema decorreu do interesse em tecer reflexões acerca da literatura brasileira e suas
relações (possíveis) com outras artes e mídias. Com efeito, serão destacados os discursos e as
representações das personagens, assim como os seus espaços percorridos nas produções
dramática e cinematográfica.

Palavras-chave: Literatura Comparada; Teatro e Dramaturgia; Adaptação Cinematográfica;


Plínio Marcos.

Introdução

Plínio Marcos de Barros nasceu em Santos (SP), em 29 de setembro de 1935 e faleceu


em São Paulo (SP), em 29 de novembro de 1999. Iniciou a sua carreira artística em 1953 como
o palhaço Frajola, no qual permaneceu alguns anos devido a sua paixão circense e,
especialmente, por encanto a uma artista de circo.
Em 1958, foi convidado por Paulo Lara a ensaiar Pluft, o fantasminha, peça infantil
escrita pela dramaturga brasileira Maria Clara Machado. Após os ensaios da peça, decide
escrever a sua primeira obra dramática, Barrela. Nessa época, conhece Patrícia Galvão, a Pagu,
que o incentiva a realizar um espetáculo com o seu texto. Em 1959, sob a direção do próprio
autor, Barrela estreia no Centro Português, de Santos, “para uma única apresentação, por ordem
do presidente da República, Juscelino Kubitschek” (MENDES, 2009, p. 91).

12
Professora de Língua Portuguesa e Literatura da Rede Estadual de Ensino de Mato Grosso do Sul. Doutoranda
no Programa de Pós-Graduação em Letras (área de concentração em Estudos Literários), da Universidade Federal
de Mato Grosso do Sul – UFMS. haydecosta@gmail.com
13
Professor Associado da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul – UFMS. Atua no Programa de Pós-
Graduação em Letras, nível mestrado e doutorado, no Câmpus de Três Lagoas. Membro do GT Dramaturgia e
Teatro da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Letras e Linguística (ANPOLL).
wagner.corsino@ufms.br
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Ocorre, todavia, que essa situação não o fez desistir da escrita de peças teatrais. Pelo
contrário, durante a sua vida, Plínio Marcos produziu diversas obras dramáticas, tanto para o
público adulto, como o infantil, nos quais se destacam Barrela (1958), Dois perdidos numa
noite suja (1966), Navalha na carne (1967), Homens de papel (1968), O abajur lilás (1969),
Querô, uma reportagem maldida (1979) – adaptação para o teatro do romance de mesmo nome,
Jesus-Homem (1978), Madame Blavatski (1985), Balada de um palhaço (1986), A mancha roxa
(1988), A dança final (1993), O bote da loba (1997) – no teatro adulto –, e As aventuras do
coelho Gabriel (1965), O coelho e a onça (1988), Assembleia dos ratos (1989) – no teatro
infantil.
De acordo com crítico teatral Sábato Magaldi (2004), Plínio Marcos foi, na década de
1960, a mais poderosa revelação de autor, uma vez que “A matéria peculiar de Plínio se
distingue da de seus antecessores, na medida em que fixa os marginalizados, os párias da
sociedade, expulsos do convívio dos grupos estáveis pela ordem injusta” (MAGALDI, 2004, p.
307).
No entanto, em 1964, conforme recordam Vieira e Enedino (2018), com os militares no
poder, o teatro brasileiro começou a sofrer com as diversas perseguições e ações dos censores.
Todas as peças que eram encenadas no país tiveram que ser submetidas à análise prévia do
Departamento Federal de Segurança Pública.
As décadas de 1960 e 1970 foram as mais difíceis na história das artes cênicas
brasileiras, uma vez que “nesse ambiente de terror, o espaço para uma produção cultural de
natureza crítica não existe. No caso do teatro, [...] convém lembrar que fora uma das principais
trincheiras da resistência ao golpe militar, entre 1964 e 1968” (FARIA, 1998, p. 164). Segundo
a pesquisadora Luciana Stegagno Picchio (1997), o dramaturgo Plínio Marcos foi o mais
censurado na moderna dramaturgia brasileira.

Com ‘alma subversiva’, o dramaturgo desenvolveu em seus textos, entre 1958


e 1998, ‘uma singular riqueza de facetas, em que prevalece ora o social, ora o
político, ora o religioso, em temas diversos’, porém destacou-se no gênero
dramático, compondo textos e atuando como ator e diretor, atividades que lhe
renderam prêmios em festivais de teatro: Molière, APCA (Associação Paulista
dos Críticos de Arte), Shell, Saci e Golfinho de Ouro (ENEDINO, 2009, p.
29).

Em vista disso, pode-se afirmar que o teatro é um entre os diversos meios de


manifestação de arte. A arte pode (e deve) ser vista como reflexão e transformação. Ela é um
instrumento de influência e, consequentemente, introduz profundas mudanças na sociedade em

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geral. A arte possui dois pontos importantes: o primeiro, como função de reflexão, informação,
educação e incitação e, o segundo, a da ação de divertimento e do prazer.

Representação social pelo fio de uma navalha

Na visão do pesquisador Paulo Emílio Sales Gomes (1987), o cinema é como teatro
romanceado ou romance teatralizado. “Teatro romanceado, porque, como no teatro, ou melhor
no espetáculo teatral, temos as personagens da ação encarnadas em atores” (GOMES, 1987, p.
106).
Para a pesquisadora Linda Hutcheon (2011), o cinema é geralmente considerado a mais
inclusiva e sintética das formas de performance, pois

Uma linguagem compósita em virtude dos seus diferentes meios de expressão


– fotografia sequencial, música, ruído e som fonético – o cinema ‘herda’ todas
as formas de arte associadas a tais meios de expressão [...] – a visualidade da
fotografia e da pintura, o movimento da dança, o décor da arquitetura e a
performance do teatro”. (STAM, 2000, p. 61, apud HUTCHEON, 2011, p. 63)

Conforme Gomes (1987), no cinema, como no espetáculo teatral, as personagens se


encarnam em pessoas, em atores. A articulação entre personagens encarnadas e o público é
bastante diversa nos dois casos. “De um certo ângulo, a intimidade que adquirimos com a
personagem é maior no cinema que no teatro. Neste último a relação se estabelece dentro de
um distanciamento que não se altera fundamentalmente”. (GOMES, 1987, p. 112)
A noção de adaptação, de acordo com os estudiosos Jacques Aumont e Michel Marie
(2009), está no centro das discussões teóricas desde a origem do cinema, uma vez que estão
ligadas às noções de especificidade e de fidelidade.

A adaptação é, em certo sentido, uma noção vaga, pouco teórica, cujo principal
objetivo é o de avaliar ou, no melhor dos casos, de descrever e de analisar o
processo de transposição de um romance para roteiro e depois para filme:
transposição das personagens, dos lugares, das estruturas temporais, da época
onde se situa a ação, da sequência de acontecimentos contados etc. Tal
descrição, no mais das vezes avaliadora, permite apreciar o grau de fidelidade
da adaptação, ou seja, recensear o número de elementos da obra inicial
conservados no filme. (AUMONT; MARIE, 2009, p. 11-12)

Na visão de Hutcheon (2011, p. 30), a adaptação pode ser descrita de três modos: “[...]
uma transposição declarada de uma ou mais obras reconhecidas; um ato criativo e interpretativo

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de apropriação/recuperação; um engajamento intertextual extensivo com a obra adaptada”.


Desse modo, para Hutcheon (2011, p. 30), “[...] a adaptação é uma derivação que não é
derivativa, uma segunda obra que não é secundária”.
Com o movimento do Cinema Novo, após 1963, os cineastas do Brasil conseguiriam
apresentar excelentes resultados à adaptação de obras literárias brasileiras, como, por exemplo,
os romances Mémorias póstumas de Brás Cubas (1881), de Machado de Assis; Macunaíma
(1928), de Mário de Andrade; Menino de engenho (1932), de José Lins do Rego; Triste fim de
Policarpo Quaresma (1935), de Lima Barreto; Vidas secas (1938), de Graciliano Ramos; Dona
Flor e os seus dois maridos (1966), de Jorge Amado; Lavoura arcaica (1975), de Raduan
Nassar; entre outras.
Na dramaturgia brasileira que tiveram seus textos adaptados para a sétima arte foram:
Álbum de família (1946), A falecida (1953), Boca de ouro (1959), Beijo no asfalto (1961), Toda
nudez será castiga (1965) e Os sete gatinhos (1980), de Nelson Rodrigues; Auto da
Compadecida (1955), de Ariano Suassuna; Lisbela e o Prisioneiro (1964), de Osman Lins;
dentre outras.
Do texto dramático produzido por Plínio Marcos e encenado em vários palcos brasileiros
e estrangeiros, no qual foi adaptado para o cinema brasileiro, tem-se, como exemplo, a obra
Navalha na carne (1967). Esta peça em um ato, tem como personagens Vado (cafetão), Neusa
Sueli (prostituta) e Veludo (faxineiro e homossexual), e com um espaço “um sórdido quarto de
hotel de quinta classe” com “um guarda-roupa bem velho, com espelho de corpo inteiro, uma
cama de casal, um criado-mudo, uma cadeira, são os móveis do quarto” (PLÍNIO MARCOS,
1984, p. 7). Em seu enredo, as três personagens se desentendem devido ao desaparecimento do
dinheiro deixado por Neusa Sueli, em um criado-mudo, para o Vado, no qual suspeitam pelo
furto o faxineiro Veludo. Para Décio de Almeida Prado (1987, p. 217-218):

Como estrutura, Navalha na Carne, sem nenhum intuito de ironia ou


menosprezo, é uma espécie de Huis-Clos dos pobres: três pessoas se
estraçalhando mutuamente, experimentando todas as formas de agressão,
dentro de um espaço fechado. [...]
O ponto de convergência entre os três é a luta feroz em torno de posições de
superioridade e inferioridade, a ânsia de agredir para não ser agredido, de
dominar para não ser dominado. Os processos são brutais mas as relações
pueris porque os três não amadurecem moralmente, permanecendo para
sempre no estágio de egocentrismo infantil. [...]

As violências física e verbal estão presentes nas peças de Plínio Marcos. As agressões
entre as personagens, como verifica Araújo (2015), chega, em alguns momentos, a pico de uma
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tensão quase insuportável, especialmente, no que diz respeito ao poderio machista. “Assim, em
muitos momentos, o prazer das personagens está em ver o outro sofrer, evidente demonstração
do desgaste do contrato social na trama estabelecida por Plínio Marcos”. (ARAÚJO, 2015, p.
76)

Dos palcos à tela: a navalha na (nossa) carne

A peça Navalha na carne foi transposta para o cinema, pela primeira vez, em 1969, nos
quais participaram a atriz brasileira Glauce Rocha (sendo a prostituta Neusa Sueli) e os atores
brasileiros Jece Valadão (o cafetão Vado) e Emiliano Queiroz (o faxineiro e homossexual
Veludo), filme dirigido por Braz Chediak e produzido por Jece Valadão. Em 1997, foi a vez da
atriz brasileira Vera Fischer ser a prostituta Neusa Sueli, do ator cubano Jorge Perugorría (o
cafetão Vado) e do ator brasileiro Carlos Loffler, o faxineiro e o homossexual Veludo, com
texto escrito e dirigido por Neville d’Almeida.
Neste trabalho será abordado o longa-metragem de 1997. A obra cinematográfica teve
direção de Neville d’Almeida e roteiro de Neville d’Almeida e Plínio Marcos. Durante a
produção do filme, d’Almeida questionou Plínio a respeito da adaptação e, na época, o
dramaturgo respondeu “Não se preocupe em ser fiel ao texto. Faça o seu filme” (D’ALMEIDA,
1997, p. 5).
Desse modo, o diretor e roteirista decidiu não ser fiel a obra dramática de Plínio. De
acordo com Ismail Xavier (2003), a fidelidade ao original não é critério maior de juízo crítico,
pois a apreciação do filme deve ser estabelecida como nova experiência que deve ter sua forma,
e os sentidos neles envolvidos, julgados em seu próprio direito.

Afinal, livro e filme estão distanciados no tempo; escritor e cineasta não tem
exatamente a mesma sensibilidade e perspectiva, sendo, portanto, de esperar
que a adaptação dialogue não só com o texto de origem, mas com o seu próprio
contexto, inclusive atualizando a pauta do livro, mesmo quando o objetivo é a
identificação com os valores nele expressos. (XAVIER, 2003, p. 62)

Com duração de uma hora e quarenta e cinco minutos, o filme A Navalha na Carne, de
Neville d’Almeida tem como elenco Vera Fischer (Neusa Sueli), Jorge Perugorria (Vado) e
Carlos Loffler (Veludo), como personagens protagonistas. No elenco do filme também estão
presentes os artistas Marcelo Saback, Isabel Fillardis, Guará Rodrigues, Pedro Aguinaga,
Romeo Evaristo, Carlinhos de Jesus, Rafael Molina, Gilda Nery, e participações especiais de
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Carlinhos Brown, Netinho, Paulo Moura, Jade Aimara, Maria Lucia Godoy, Gerson Brenner,
Rudy, Desiree Vignolli, Rafaela Fischer, dentre outros. O espaço da obra cinematográfica não
é “um sórdido quarto de hotel de quinta classe” (PLÍNIO MARCOS, 1984, p. 7), como aparece
no texto dramático.

Seria mais fácil filmar todo o filme dentro de um quarto. Mas, para o filme, a
história não se passa dentro de um quarto. Tudo acontece numa noite, numa
cidade: Rio de Janeiro.
Uma noite no Rio.
Dentro de uma cidade.
Dentro de uma casa.
Um quintal. Dentro do mundo. E dentro das mentes e dos corações dos
personagens e também dos nossos queridos espectadores. (D’ALMEIDA,
1997, p. 5) (negritos originais).

O filme A Navalha na Carne, de 1997, inicia com as imagens noturnas da cidade do Rio
de Janeiro: com vista aérea do Mirante Dona Marta, a Baía de Guanabara, Central do Brasil,
Aterro do Flamengo, Maracanã, Praça Mauá, Ponte Rio-Niterói, barcos na praia e letreiros
coloridos.

O poder que habita a margem: em cena, o enredo

Após se arrumar, Neusa Sueli surge na Boate Copacabana Salão. Em cena, Carlinhos de
Jesus começa a dançar na pista da boate (nos quais também estão presentes prostitutas, cafetões,
fregueses, dentre outros). Carlinhos de Jesus e Neusa Sueli dançam na pista da boate.
Na pensão, surge Veludo em seu quarto. Um ambiente de luzes e contradições: diversos
móveis, materiais recicláveis, a parede está repleta de imagens de artistas (como Rock Hudson,
Cauby Peixoto, James Dean, Burt Lancaster etc.). Após se arrumar, Veludo sai desse espaço
para limpar as áreas externas da pensão e o quarto de Neusa Sueli.
Na cena seguinte, Vado está dormindo no quarto de Neusa Sueli. Veludo aproveita o
momento para limpar este espaço. Surgem várias imagens da pensão e do calçadão do Rio de
Janeiro. Pastor faz pregação. Prostitutas estão presentes em vários pontos da cidade. Neusa Sueli
está em seu ponto a espera de um cliente. Nesse instante, começa a imaginar seu casamento
com Vado (seu cafetão). Depois de algum tempo, chega um cliente. Esse cliente a leva a um
apartamento bonito, no qual a força a manter relações sexuais com mais dois homens.

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Posteriormente, Neusa é amarrada, levada no porta-malas de um carro e deixada em uma estrada


abandonada.
Neusa surge em outra cena exausta e vai para o quarto de pensão. Ao chegar em seu
quarto, sua fisionomia muda de dor à raiva, por não encontrar Vado nesse espaço. Se arruma e
sai à procura do cafetão e o encontra sentado em uma mesa de bar, acompanhado por uma garota
jovem e bonita. Ao ver Neusa, Vado levanta e se aproxima da prostituta. No bar, iniciam os
seus discursos:

NEUSA SUELI – Oi, você está aí?


VADO – O que é que você acha?
NEUSA SUELI – É que você nunca chega tão cedo.
VADO – Não cheguei, sua vaca! Ainda nem saí!
NEUSA SUELI (surpresa com a grosseria de Vado.) – Tá doente?
VADO – Doente, o cacete!
NEUSA SUELI – Não precisa se zangar. Só perguntei por perguntar.
VADO – Mas pode ficar sabendo que estou com o ovo virado.
NEUSA SUELI – Por que, meu bem?
VADO – Não sabe, né? (Vado pega Neusa Sueli pelo braço e a empurra em
cima de uma mesa onde estão sentadas quatro mulheres, que se assustam com
a grosseria. Independentemente da baixaria, o pagode continua tocando
animadamente, ao fundo da cena.). (D’ALMEIDA, 1997, p. 55-56)

Da mesma forma, na obra dramática de Plínio Marcos, esta é a primeira cena na qual
inicia os diálogos entre as personagens Neusa Sueli e Vado; porém, na peça, ocorre dentro do
quarto da prostituta e não em um bar carioca:

(Ao abrir o pano, Vado está deitado na cama, lendo uma revista de história
em quadrinhos. Entra Neusa Sueli.)
NEUSA SUELI – Oi, você está aí?
VADO – Que você acha?
NEUSA SUELI – É que você nunca chega tão cedo.
VADO – Não cheguei, sua vaca! Ainda nem saí!
NEUSA SUELI – Tá doente?
VADO – Doente, o cacete!
NEUSA SUELI – Não precisa se zangar. Só perguntei por perguntar.
VADO – Mas pode ficar sabendo que estou com ovo virado.
NEUSA SUELI – Por que, meu bem?
VADO – Não sabe, né?
NEUSA SUELI – Não sou adivinhona.
VADO – Quer bancar a engraçada? Vou te encher a lata de alegria. (Vado
começa a torcer o braço de Neusa Sueli.) Gostou? (PLINIO MARCOS, 1984,
p. 8-9)

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Após várias agressões físicas e verbais contra Neusa Sueli, Vado explica o porquê de
estar tão furioso: não encontrou o dinheiro da prostituta dentro da gaveta do criado-mudo. Neusa
começa a refletir e se recorda de ter visto o garoto do bar sair do quarto de Veludo. Fazia tempo
que Veludo esperava ter um encontro íntimo com o rapaz, porém, este não cedia, pois cobrava
caro para realizar os desejos sexuais do faxineiro. Desse modo, Neusa associou o
desaparecimento do dinheiro com o encontro íntimo entre Veludo e o garoto do bar. Ao
conhecer a história, Vado se irrita e o procura. Na obra cinematográfica, a cena ocorre na praia:

Onda do mar batendo na pedra.


A água lambe a pedra, deixando-a úmida, com reflexos de luz.
Espuma da onda sendo absorvida pela areia úmida.
Plano Geral da enorme pedra do Arpoador.
Algumas pessoas estão passeando pelos caminhos da pedra.
Uma onda enorme arrebenta.
Câmera acompanha todo o movimento da onda.
A onda quebra, avança em direção a pedra e a câmera encontra Veludo através
da onda.
Ponto de Vista da onda: câmera vai até Veludo, que está sentado olhando o
mar e apalpando as pernas de um garotão marombado.
Em primeiro plano: Veludo.
Ao fundo do quadro surgem Vado e Neusa Sueli.
NEUSA SUELI – Veludo, Veludo!...
VADO – Chama mais alto. Todo veado é surdo.
NEUSA SUELI (gritando.) – Veluuudoo...!!!
Veludo se vira e vê Vado e Neusa Sueli avançando velozmente em sua direção.
O garotão, prevendo confusão, afasta-se de Veludo que, apesar da gritaria,
permanece calmamente sentado.
VELUDO – Chamou, Neusa Sueli?
VADO – Oi, bichona.
Veludo esboça um olhar de desprezo sobre o comentário de Vado e entra em
cena na direção da câmera...
Corta! para Plano Geral...
Veludo levanta-se.
VELUDO – O senhor está aí, Seu Vado? [...]. (D’ALMEIDA, 1997, p. 75-
76)

Esta mesma cena (na obra dramática) ocorre no quarto de Neusa Sueli, quando a
prostituta vai à porta do quarto chamar por Veludo:

NEUSA SUELI (Vai até a porta do quarto e chama:) – Veludo! Veludo!


(pausa.) Não escutou.
VADO – Chama mais alto. Todo veado é surdo.
NEUSA SUELI – Veludo! Veludo!
VELUDO (fora de cena.) – Quem me chama?

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NEUSA SUELI – Quarto três.


VELUDO – Já vai. [...]
VELUDO – (Na porta do quarto.) Chamou, Neusa Sueli?
VADO – Entra, bichona.
VELUDO – Com licença. (Veludo entra.)
VADO – Vai entrando, seu puto.
VELUDO – O senhor está aí, Seu Vado?
VADO – Estou, sim.
VELUDO – É o senhor que quer falar comigo, ou é a Neusa Sueli? Adoro esse
nome: Neusa Sueli.
VADO – Fecha a porta e deixa de frescura.
VELUDO – (Fecha a porta). Pronto, Seu Vado.
[...]. (PLÍNIO MARCOS, 1984, p. 17-19)

Vado agride física e verbalmente Veludo com a intenção de obter a confissão do


desaparecimento do dinheiro. Dessa maneira, Vado, cáften, explorador de meretrizes, é a
representação, no espaço ficcional, do arquétipo do homem viril e violento. Em sua relação com
as personas, tanto na obra dramática como na cinematográfica, se materializa como “[...] aquele
que supostamente representa o poder e o controle diante de todas as situações” (ARAÚJO, 2015,
p. 41). Verifica-se essa afirmação quando, em primeiro momento, agride Neusa Sueli devido à
ausência do repasse do dinheiro. No segundo momento, quando interroga Veludo para obter as
informações dessa quantia que havia sido furtada. E no terceiro momento, após fazer as “pazes”
com Veludo, o cafetão tenta forçá-lo a consumir consigo cigarro de maconha. Sendo assim,
Vado está no domínio (por meio da coerção e truculência físico-verbal) de todas as situações
presentificadas no drama.
Após conseguir o dinheiro, Vado deixa Veludo em paz e sai de cena abandonando Neusa
Sueli, após humilhá-la por ser mais velha e não tão atraente. “A imagem final de derrota é
mostrada por Neusa Sueli, que acaba a noite, sozinha, comendo um sanduíche de mortadela”
(MAGALDI, 2003, p. 96), na qual a cena ocorre tanto na obra dramática, quanto na
cinematográfica.

Considerações finais

De acordo com Analise Reich Corseuil (2019), vários estudos de adaptação propõem
uma análise mais contextualizada do filme adaptado, respeitando o momento histórico-cultural
de sua produção cinematográfica. O filme de 1997 fez a sua releitura inserindo a obra no
contexto no final do século XX: o Rio de Janeiro noturno, com os principais pontos turísticos
iluminados e com a presença dos mais variados tipos humanos: desempregados, empregados,
empresários, artistas, prostitutas, cafetões, marginais, dentre outros, sendo todos em busca de
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entretenimento. Para d’Almeida (1997, p. 6), o filme Navalha “[...] tinha que haver uma invasão
na estrutura dos personagens. Uma inovação. Uma invasão lírica. Onírica. Delírio. Rio. Desejo.
Vontade. Imaginação. Imaginar o bom. Imaginar o amor. Querer, buscar, procurar, achar”.
A adaptação cinematográfica Navalha na carne (1997) não se trata de um “teatro
filmado”, pois não está engessado na peça homônima do dramaturgo Plínio Marcos. O filme
elabora, em sua verve, uma crítica social por meio dos efeitos da mise-en-scène: os cenários são
variados, com a presença alternante de ambientes claros (algumas vezes coloridos) e escuros
(por ser noite). Importa destacar, também, a presença de vários atores em cena, com maquiagens
e figurinos próprios de suas configurações dramáticas. Nas palavras do diretor Neville
d’Almeida (1997, p. 7-8), o filme

‘Navalha na Carne’ é uma metáfora sobre a opressão da mulher e das


minorias sexuais.
É um exercício de poder com um personagem como Vado, violento,
desumano, impiedoso e inútil.
A prostituta Neusa Sueli e o gay Veludo são as vítimas.
Vivemos num tempo onde hipócritas e fariseus tentam nos dizer o que deve
ser feito, julgam com superficialidade e criticam com fingimento. (negritos
originais).

Com efeito, Neville d’Almeida demonstrou que a adaptação necessita ser vista como
obra independente, com linguagem própria, com significados múltiplos e ser capaz de construir
e reconstruir sentidos, de criticar, de parodiar e, por conseguinte, atualizar o texto adaptado.
Desse modo, o filme Navalha na Carne (1997), de Neville d’Almeida, pode ser considerada
uma segunda obra, sem ser, necessariamente, secundária.

Referências

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Araújo Ribeiro. Campinas: Papirus, 2009.

ARAÚJO, Gessé Almeida. A violência na obra de Plínio Marcos: Barrela e Navalha na carne.
Salvador: EDUFBA, 2015.

CORSEUIL, Anelise Reich. Estudos de adaptação entre a literatura e o cinema: narrativas que
viajam no tempo e no espaço. In: BONNICI, Thomas; ZOLIN, Lúcia Osana. (Orgs). Teoria
Literária: abordagens históricas e tendências contemporâneas. 4. ed. ampliada e revisada.
Maringá: Eduem, 2019, p. 401-411.

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IV Seminário Nacional de Dramaturgia e Teatro: Teatro e Política

D’ALMEIDA, Neville. Navalha na Carne: o roteiro. São Paulo: Francisco Alves, 1997.

ENEDINO, Wagner Corsino. Entre o limbo e o gueto: literatura e marginalidade em Plínio


Marcos. Campo Grande. Editora UFMS, 2009.

FARIA, João Roberto. O teatro na estante: estudos sobre dramaturgia brasileira e estrangeira.
Cotia: Ateliê Editorial, 1998.

GOMES, Paulo Emilio Salles. A personagem cinematográfica. In: CANDIDO, Antonio et al.
A personagem de ficção. São Paulo: Perspectiva, 1987. p.103-119.

HUTCHEON, Linda. Uma teoria da adaptação. Tradução de André Cechinel. Florianópolis:


Ed. da UFSC, 2011.

MAGALDI, Sábato. Depois do espetáculo. São Paulo: Perspectiva, 2003.

_______. Panorama do teatro brasileiro. São Paulo: Global, 2004.

MENDES, Oswaldo. Bendito maldito: uma biografia de Plínio Marcos. São Paulo: Leya, 2009.

PICCHIO, Luciana Stegagno. História da literatura brasileira. Trad. Pérola de Carvalho e


Alice Kyoko. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1997.

PLÍNIO MARCOS. Navalha na carne. In: _______. Navalha na Carne / Quando as


Máquinas Param. São Paulo: Parma, 1984. p. 5-46.

PRADO, Décio de Almeida. Exercício findo: crítica teatral (1964-1968). São Paulo:
Perspectiva, 1987.

VIEIRA, Haydê Costa; ENEDINO, Wagner Corsino. Por um sopro de liberdade: teatro e
resistência no palco brasileiro. São Paulo: Scortecci, 2018.

XAVIER, Ismail. Do texto ao filme: a trama, a cena e a construção do olhar no cinema. In:
PELLEGRINI, Tânia et al. Literatura, cinema e televisão. São Paulo: Editora Senac São
Paulo: Instituto Itaú Cultural, 2003. p. 61-89.

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É preciso atuar?

Bruno Pinheiro Ribeiro (UFRJ)14

Resumo: O artigo concentra-se na análise da quinta cena de Tempo Morto, ato que compõe a
peça Ópera dos Vivos da Companhia do Latão de São Paulo. A questão central deste recorte,
orientado pela perspectiva da teoria crítica, é a contradição latente do processo de financiamento
da arte de esquerda, especialmente o cinema, por um banco, na iminência da deflagração do
golpe civil militar de 1964 no Brasil.

Palavras-chave: Dramaturgia brasileira; Teatro experimental; Marxismo.

Introdução

A narrativa de Tempo Morto, segundo ato da peça Ópera dos Vivos, da Companhia do
Latão se faz valer em sua dimensão crítica pelo acompanhamento do protagonista, chamado de
Paulo Funis, que é um banqueiro que se aproxima do ambiente cultural ao patrocinar um filme.
As contradições dessa aproximação se intensificam ao longo da dramaturgia, devido à
precipitação de um golpe em Cabedal, nação fictícia. Paulo, que manteve uma relação afetiva
com a atriz do filme, Júlia, pendula hesitante entre as aberrações desempenhadas por sua classe
e um resquício de dignidade humanista. Utilizando-se de um “lirismo derramado”, a
dramaturgia amplia o escopo contraditório para a própria forma da personagem Paulo. Os
aspectos de ideário liberal assumidos pela forma são ceifados a cada movimento político da
classe à qual o banqueiro pertence e defende, gerando assim um paradoxo de ordem crítica.
Este artigo destaca exatamente o momento em que Paulo Funis toma contato com um
corte do filme que será seu possível objeto de patrocínio. Nesta, que é a quinta cena de Tempo
Morto, Júlia (a atriz), o cineasta e Paulo divergem sobre aspectos da obra, desde sua concepção
até sua difusão. Esse desencaixe gera certa tensão e ao mesmo tempo certo encanto entre os
personagens e é o primeiro encontro do banqueiro com parte do ambiente cultural com o qual
flertará.

14
Mestre em Artes da Cena pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). E-mail:
bruno84marcos@gmail.com
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IV Seminário Nacional de Dramaturgia e Teatro: Teatro e Política

É preciso atuar?

O título da cena “O CINEASTA MOSTRA SEU FILME AO BANQUEIRO” parece


colocar a cena sob o ângulo do cineasta. Ele é o sujeito que expõe sua obra ao banqueiro. Mas
a legenda de início da cena, que é apresentada pela rubrica, sugere outro eixo de enfoque: “Paulo
Funis conhece a atriz”. Aqui, parece ser reforçada a ideia de que a dramaturgia gira em torno
do banqueiro e mesmo quando o sujeito da cena aparentemente não é ele, como sugere o próprio
título da cena, sua ação é a determinante para a sequência dos fatos e da narrativa. Além disso,
temos a dimensão sentimental de Paulo sendo explorada pela legenda de apresentação.
Diferentemente do cineasta que precisa com certo desespero do apoio do banqueiro para a
realização do filme que ganha força de centralidade em sua vida, o banqueiro parece ter uma
relação secundária com o patrocínio da cultura. O grande acontecimento desta cena para ele é
Júlia ter atropelado seu caminho. Ou seja, “a grande coisa” sugerida pela legenda da cena, para
Paulo, é ele ter conhecido a atriz e não a possibilidade de fomentar uma obra de arte. De certa
forma podemos pensar num questionamento da relação entre sujeito e objeto contidas no título,
colocando o banqueiro como sujeito ativo do processo e o cineasta, se não chega a ser um objeto
do banqueiro, como sujeito dependente do banqueiro para a realização efetiva de seu propósito,
o de fazer o filme. Desse modo, o título talvez carregue uma imprecisão ou mesmo uma ironia,
porque de fato talvez seja o caso de dizer não que “o cineasta mostra seu filme ao banqueiro”,
mas que “o banqueiro aceita ver o filme do cineasta”.
Júlia abre a cena verbalizando seu nítido incomodo com a situação. O cineasta pede que
ela coloque os óculos. Ela reage dizendo que não sabe fazer isto, referindo-se à situação de pedir
patrocínio como referenda a rubrica. Ele diz que ela parece uma italiana, e faz a associação
direta ao neorrealismo. Ela se contrapõe mais uma vez o alertando que seu convite foi para atuar
e não para vender o filme. Ele, por meio da força do verbo, funde os desejos: “Atua, atua!”
O desconforto de Júlia é nítido e diz respeito ao processo de mercantilização de seu
trabalho. O respiro que os processos criativos parecem sugerir, aqui, aparece momentaneamente
sufocado pela necessidade de valorização do valor da mercadoria filme. Ou seja, assim como
qualquer mercadoria, é preciso que ela tenha um valor substancial. E para tanto é necessário
que ela próprio se engaje nesse processo, que ela própria se coloque a disposição, incluindo sua
própria objetificação. Se a situação em si já parece um engodo, acrescenta-se ao contexto a
camada militante da atuação teatral de Júlia, um caminho diametralmente oposto, embora ligado
pelo mesmo desejo de atuar. E é por meio desse fio condutor desejante que o cineasta faz seu
apelo: “Atua, atua!”. Atuar aqui é fazer o necessário para vender. Fazer-se outro para que o

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filme se realize. O cineasta admite o cinismo, admite que, a depender, os meios não importam
para que o fim seja posto em prática. Atuar é, portanto, saber como, quando e para quem atuar,
e mais: atuar é provocar um efeito para conseguir um objetivo. Atuar é se auto promover,
valorizar o valor, assumir o fetiche da mercadoria como norma.
Depois da breve conversa nos pátios do banco, Júlia e o cineasta esperam, próximos à
secretária, por Paulo. O fato de estarem esperando e de ter uma terceira pessoa coloca a cena
em perspectiva de classe. Os dois esperam, porque quem controla o tempo não é quem vende a
força de trabalho, mas quem detém os meios de produção. Portanto, assim como Funis não vai
até o filme e sim o filme vem até ele, ele não espera e sim é esperado. E a secretária alinha-se
aos artistas como trabalhadora, mas ao mesmo tempo o fundo da cena é o seu espaço, colocando
também, de certa maneira, o seu trabalho em segundo plano se comparado ao dos artistas. Os
matizes de exploração da força de trabalho e seus alinhamentos com o sistema produtivo saltam
pela posição dos personagens na cena.
Acompanhados de Paulo, Júlia e o cineasta chegam a uma sala de projeção. Na
sequência, o cineasta retira de uma lata o motivo do encontro, o rolo do filme. Para que a
exibição seja feita, é necessário que um técnico tenha a destreza necessária para pôr em
andamento a máquina projetiva. Sem essa função, o filme é apenas um rolo que contêm um
conjunto de negativos amparados por uma lata. A divisão do trabalho grita na cena muda. Nem
o possível financiador da circulação, nem os artistas produtores têm a técnica necessária para
que as imagens e sons da película se manifestem sensorialmente em seu suporte, a tela. E mesmo
que estes personagens tenham a técnica necessária para esta atividade, a divisão do trabalho é
tamanha que este trabalho não se configura como possível para eles naquele tipo de ambiente.
Depois do trabalho do projecionista, o filme ganha sua vida e, ironicamente cruel, ele mesmo
sai de cena.
Os dois primeiros comentários sobre as imagens projetadas são feitos com empolgação
pelo cineasta. Parece evidente que a empolgação é um misto de autossatisfação e paixão
derramada pela própria obra, mas também pode ser compreendida como uma espécie de
“atuação” dele mesmo para fins de convencimento da validade estética do filme para o
banqueiro. O verbo atuar funciona como motor da produção de efeitos e da circulação de afetos.
O cineasta chama a atenção do pequeno público para o movimento e depois sentencia: “A
câmera é a pele entre o ator e nós”. O comentário sugere um certo nível estético pretendido pela
obra, colocando a sensorialidade do próprio objeto fílmico como questão fundamental.
A descrição deliberada das cenas e sua tentativa de teorização, da maneira como ocorre,
colocam o cineasta como uma figura um tanto quanto ridícula. Só que ao mesmo tempo o

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conteúdo de suas falas não é nada ridículo e desprezível, e aí reside a sua dialética: um sujeito
quase patético em sua vã tentativa de autopromoção (mercantil) combinado com um nível
elevado de consciência sobre o próprio material de trabalho. O que sugere uma certa ironia por
parte do conjunto da obra para com essa posição estética (a do cineasta) que, sem dúvida, nos
remete a figura icônica e histórica de Glauber Rocha. Tempo Morto ao mesmo tempo em que
rememora a força e o ímpeto glauberiano, o coloca - pela composição da personagem cineasta
- em exposição para o riso debochado. Um riso que quando ganha a boca chega quase a nos
constranger, dada a dimensão de Glauber.

Tempo morto, visto como ato independente, é pastiche ou paródia do estilo de


Glauber pois demonstra uma crítica quanto à textura alegórica como expressão
consequente da cultura contemporânea [...] (MATSUNAGA, 2013, p.113)

Para Matsunaga a operação crítica de Tempo Morto, que se faz valer da paródia ou
pastiche, cumpre uma função que ultrapassa os limites da própria obra. Ao expor o ícone
Glauber em seu avesso esperado, a dramaturgia abre uma fenda para uma possível
desmistificação do próprio Glauber e de seu cinema. Sem a reverencia sacralizante, o riso
debochado funciona para distender a rigidez analítica para com a obra do expoente do cinema
novo. Mais uma vez é na elaboração poética, que a obra manifesta sua validade e possibilidade
crítica, sendo esta endereçada aos que aqui estão.
O cineasta segue sua descrição do filme, agora alertando para a aparição da “cena da
morte” e justificando-se para Paulo, como diz a rubrica: “Com a trilha vai ficar menos
dramática”. Mais uma vez uma tentativa de teorização sobre a obra, só que nesta feita há uma
intenção distinta. A necessidade de apaziguar o ânimo do banqueiro após uma cena de morte
parece o imperativo para sua fala, ou seja, o cineasta desenvolve uma espécie de justificação
estética para, talvez, submeter-se ao agrado do possível financiador da obra. Mais uma vez os
critérios de liberdade artística parecem emperrar diante do mundo da mercadoria, e mais: esses
critérios já se mostram tão sedimentados, que não é o banqueiro que reclama da “cena da morte”
e de sua “dramaticidade”, é o próprio autor que se antecipa a um possível incomodo. Mas a cena
não se limita ao mercenarismo do diretor do filme, há uma certa ambiguidade que reside no fato
de que o escopo estético do cineasta se coaduna com o tipo de alerta feito. Reduzir a
“dramaticidade” não é só um amortecimento do “sentido de morte” da cena, é um procedimento
formal com intenção manifesta de tal, como destaca Ismail Xavier, citado por Priscila
Matsunaga.
[...] os filmes do período entre 1967 e 1970 tiveram, em comum com o teatro
e as artes visuais, o senso de uma provocação ao espectador, a ruptura com o
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regime de contemplação (museológica) ou de consumo (industrial) das


imagens e encenações, afirmando o imperativo de participação que, nas artes
visuais, significou uma ruptura com a superfície da tela, a passagem ao gesto,
a provocação comportamental, desconcertos. No teatro, rompe-se o contrato
da “boa condução” do espetáculo e da delimitação clara dos contornos da obra.
O cinema, que tinha de trabalhar dentro dos limites da tela-superfície, define
novas relações e requer novos modos de constituir seus efeitos apoiados na
fragmentação, colagem, justaposição e nos gestos que quebram o protocolo,
desorientam. (XAVIER apud MATSUNAGA, 2013, p.112)

Em seguida, como que numa estratégia de dispersão da questão da “cena da morte”, o


cineasta chama atenção para o que mais vivo possa parecer no filme: Júlia. Ele a classifica como
uma “entidade” e diz “a gente até esquece que é bonita” numa clara tentativa de colocar a
qualidade artística em primeiro plano, tentando embaralhar as cartas mercadológicas e validar
a excelência estética da obra, agora por meio da atuação de Júlia. Uma fala que talvez orbite
entre uma espécie de “mea culpa” - promovendo alguma dignidade artística diante daquele
cenário de mercantilização descarada – à um reforço da própria “atuação” autopromocional com
vistas à conquista do financiamento.
Paulo confirma a hipótese do cineasta e diz para Júlia: “você realmente se transforma”,
por meio de seu trabalho de atuação. Paulo parece sincero em sua acepção do trabalho de Júlia,
e dali por diante, como define a rubrica, seus olhos não mais se separarão. Mas também é
simbólica a utilização do verbo transformar, será este que a partir de agora guiará sua vida, a de
Júlia e também o destino de Cabedal. Em suas palavras, Paulo quase fez a vez de uma
Cassandra, aquela que com raiva e melancolia fazia as vezes em Júlia, na sequência inicial da
dramaturgia. No que diz que a atriz se transforma, ele também alude a própria diferença de
mutação entre ambos. Como banqueiro, veremos que sua mobilidade se mostrará parcial e
limitada, e mais do que isso se mostrará falsa: “é preciso mudar para que tudo permaneça o
mesmo”. Sua orientação de classe não combina com a metamorfose de Júlia, esta que se alinha
com a transformação que o trabalho humano proporciona este que Paulo explora. A cisão de
Paulo entre seus deveres como banqueiro e sua expressão subjetiva começa a se esboçar. E ao
contrário da expectativa dramática, ela se dará com forte tensão dos elementos externos.
No que a rubrica orienta a narrativa para o encontro fortuito de olhares entre Paulo e
Júlia, durante a exibição do filme, ela também aponta a fixação do cineasta que ao contrário dos
outros personagens só tem olhos para a tela, revelando sua obsessão com a própria criação,
numa espécie de circuito autorreferente incessante. Essa necessidade descritiva e explicativa
continua quando o cineasta diz que Júlia é do teatro, como se quisesse, assim, qualificar a
metamorfose, antes ressaltada por ele e por Paulo, como uma característica adquirida por sua
experiência de palco, atribuindo ao teatro uma genuína escola de atuação. Indo além das
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descrições e explicações, o cineasta começa a interagir com o filme e induzir a recepção: “Tem
que imaginar a trilha”. E logo depois a rubrica indica que ele faz gestos com as mãos como se
marcasse o andamento da trilha e começa a cantar o que supostamente será essa mesma trilha.
A sonoridade descrita parece mais um desdobramento da estética glauberiana, dessa vez com
uma alusão a sons tidos como “primitivos”, permeando talvez alguma noção de ancestralidade
enraizada nas culturas populares e seculares. Mas como a forma da cena o trata em chave
obsessiva e autorreferente, mais uma vez a camada de relação com as opções estéticas
glauberianas se dão em chave irônica, questionando sobretudo, sua áurea mistificante.
A próxima fala é do banqueiro, e segundo a rubrica é a primeira vez que este reage ao
filme. E assim o faz: “Violento!”. O cineasta em sua ânsia explicativa responde: “É violência
de classe. Tem de ser assim não tem jeito. (A Atriz sorri.) A fome como marca poética, nossa
marca poética.” Essa fala do cineasta pode ser bifurcada em duas instancias: a primeira delas é
a do firmamento do laço estético político dele com a atriz, o que se confirma com o sorriso dela,
que por ser uma atriz politizada de esquerda se identifica com a violência de classe gerada pelo
filme. A segunda delas é relacionada a Paulo. Se tomada em sua literalidade, a fala do cineasta
seria um tiro no pé para quem quer ter o patrocínio de um banqueiro. Porque a sensação de
violência extraída por Paulo é a confirmação de sua posição de classe, é a revelação sensorial
de seu privilégio. Mas como para Paulo a cultura se organiza em outra esfera da luta de classes,
uma esfera mais branda e talvez para ele quase inofensiva, não há uma contradição de termos –
pelo menos nesse momento - nem qualquer ameaça que justifique a negação do patrocínio da
obra por seu caráter político. Como o ponto central da cena é Paulo, a estética identificada pelo
cineasta acaba por ficar secundarizada pela estrutura dramatúrgica, sendo incorporada sem
maiores dificuldades pelo banqueiro, indicando assim uma possível leitura crítica da relação
histórica desse tipo de prática artística, como destaca Roberto Schwarz.

[...] o efeito tropicalista tem um fundamento histórico profundo e interessante;


mas é também indicativo de uma posição de classe [...] Para a imagem
tropicalista [...] é essencial que a justaposição de antigo e novo – seja entre
conteúdo e técnica, seja no interior do conteúdo – contenha um absurdo, esteja
em forma de aberração, a que se referem a melancolia e o humor deste estilo.
Noutras palavras, para obter o seu efeito artístico e crítico o tropicalismo
trabalha com a conjunção esdrúxula de arcaico e moderno que a contra-
revolução cristalizou, ou por outra ainda, com o resultado da anterior tentativa
fracassada de modernização nacional. (SCHWARZ, 2008, p.90)

A atenuação da “dramaticidade”, a câmera que se comporta como se fosse “a pele entre


o ator e nós”, bem como a sugestão de uma trilha com ritmos ancestrais se identificam com a
definição tropicalista de Schwarz como sendo aquela que justapõe o novo e o antigo de modo
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chocante, fazendo-se por meio de articulações formais e técnicas. A “estética da fome”, salvo
engano, parece ser o pressuposto do cineasta (de Tempo Morto), e é na elaboração de imagens
da “violência de classe” por meio de uma câmera com sentido de “pele” que a justaposição se
dá. O absurdo se manifesta, portanto, na combinação das partes e na projeção do todo. Mas,
como ressaltado por Roberto e como valorizado pela dramaturgia, essa estratégia da “conjunção
esdrúxula de arcaico e moderno” foi cristalizada pelo processo contrarrevolucionário que
redundou no golpe militar.
Voltando a cena cinco, a cessão se encerra e Paulo aplaude a exibição, e após as luzes
da sala se acenderem, ele elogia o trabalho, classificando como “muito bom”. Deixando
transparente a real intenção do encontro, o cineasta complementa: “com a sua ajuda, em três
meses estará na tela”. E, além disso, incutindo uma responsabilidade – eufêmica como ajuda -
ao banqueiro para que o filme ganhe as telas. A sensação é de pires na mão por parte do cineasta.
Paulo, tomando cuidado como sugere a rubrica, pergunta ao cineasta se ele acha que as
imagens do filme “atingem o grande público” e se este grande público é capaz de entendê-las.
Apesar de sua aparência polida e de suas especulações lírico derramadas com ares eruditos, a
pergunta do banqueiro é completamente clichê e amparada por critérios de negociata. A reposta
do cineasta não é titubeante, classificando o filme, em seu entusiasmo peculiar, como “um épico
terceiro mundista” que “vai ser um sucesso”, que “tem todos os conflitos”, “um investimento
sem erro” com “bilheteria garantida”. A associação de difusão comercial massiva com estética
de vanguarda é a defesa do cineasta. Essa frase com tom de arremate clareia sua posição política
e ideológica, que sem dúvida faz referência ao movimento tropicalista brasileiro. Para o cineasta
não há como a arte politizada se desvincular do mercado, a luta para ele se dá por dentro, por
meio da indústria cultural e não a sua revelia, e não pelo seu reverso. Mas ao mesmo tempo, de
saída, os limites para este tipo de “parceria” estão postos e não são poucos.

Houve um momento, pouco antes e pouco depois do golpe, em que ao menos


para o cinema valia uma palavra de ordem cunhada por Glauber Rocha (que
parece evoluir para longe dela): "Por uma estética da fome". A ela ligam-se
alguns dos melhores filmes brasileiros, Vidas secas, Deus e o diabo e Os fuzis
em particular. Reduzindo ao extremo, pode-se dizer que o impulso desta
estética é revolucionário. O artista buscaria a sua força e modernidade na etapa
presente da vida nacional, e guardaria quanta independência fosse possível em
face do aparelho tecnológico e econômico, em última análise sempre orientado
pelo inimigo. A direção tropicalista é inversa: registra, do ponto de vista da
vanguarda e da moda internacionais, com seus pressupostos econômicos,
como coisa aberrante, o atraso do país. No primeiro caso, a técnica é
politicamente dimensionada. No segundo, o seu estágio internacional é o
parâmetro aceito da infelicidade nacional: nós, os atualizados, os articulados
com o circuito do capital, falhada a tentativa de modernização social feita de

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cima, reconhecemos que o absurdo é a alma do país e a nossa. (SCHWARZ,


2008, p.90\91)

A dramaturgia de Tempo Morto parece condensar na personagem do cineasta aspectos


da “estética da fome” de Glauber Rocha com aspectos tropicalistas. Essa ambiguidade que
também, de certa forma, circundou a imagem do próprio Glauber se manifesta pelo desejo de
uma elaboração “brasileira” que se confrontasse como nossa condição periférica, colonizada e
subalterna em relação aos ditames europeus, e, portanto, teria aspectos de “impulso
revolucionário”, mesmo que orientados quase que exclusivamente por um anti-imperialismo.
E, ao mesmo tempo, como revela essa cena analisada, o ponto de vista de vanguarda expresso
pelo cineasta se alinha sem problemas com a burguesia nacional reiterando o próprio “circuito
do capital”, sem guardar a distância necessária para garantir certa independência dos aparelhos
econômicos e tecnológicos, que como disse Schwarz estão sempre nas mãos do “inimigo”. Essa
ambiguidade do cineasta é um dos pilares – mesmo que o mais frágil – da possibilidade
conciliatória entre arte experimental politizada e organizações capitalistas, nos fazendo ver, que
apesar do paradoxo aparente, essa conciliação é mais um desdobramento do enraizamento das
relações sociais mediadas pela lógica mercantil, que por um lado ampliam o terreno de
dominação e por outro se constituem, no limite, como uma aporia para esse tipo de arte com
viés politizado e politizante.
Interrompendo a prospecção mercantil, Júlia, segundo a rubrica, perturbada com o
esforço do cineasta em tratar o filme como negócio, aparece como a voz da consciência da cena
(do ponto de vista crítico) e diz, se desculpando pela “intromissão”, que em sua avaliação o
filme não é para o grande público. O que de pronto espanta o cineasta. Ela segue e diz não haver
importância nisso, na possível disseminação da obra. E, se dirigindo a Paulo, diz que ele “deve
ajudar o filme porque é uma obra de arte, porque é lindo. Porque mostra coisas importantes.”.
De uma só vez ela se confronta com a necessidade de “atuação” insinuada pelo cineasta para
que o produto filme seja vendido, questionando assim os meios necessários para que a parceria
se estabeleça. E avançando mais ainda ela quase põe por terra a pretensão da recepção do filme,
tratando como ilusória, para não dizer delirante, a expectativa da anuência das massas. Ao
mesmo tempo conforme confirmada posteriormente, é essa consciência que ironicamente
coloca o filme como uma mercadoria capaz de ser patrocinada pelo banqueiro. Paulo responde
- tendo, segundo a rubrica, fixamente os olhos do cineasta grudados em si, à espera de uma
resposta. – para o cineasta: “Sua esposa tem uma clareza especial quanto ao que interessa”. Júlia
finaliza respondendo: “Ele não é meu marido, eu sou solteira.”

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Considerações finais

A contradição de interesse da cena reside justamente nesse ponto: é a atriz militante de


esquerda que não querendo se passar por um acessório do cineasta, que a qualquer custo precisa
vender o filme, que clarifica o real valor do filme, que é o artístico, e justamente é esse o aspecto
de interesse do banqueiro, que tolera, por assim dizer, o conteúdo político do filme e sua
repercussão diminuta para patrociná-lo. É a consumação da mercadoria de esquerda. Uma
aparente contradição que se sustenta quando o acirramento de classes não está alardeado e o
mercado e a ideologia liberal estão em alta. Que como veremos, estará de dias contados.
Mas além da disposição de não se associar a negociata imposta pelo cineasta, ela
também faz questão de não se associar afetivamente a ele, colocando-se como sujeito da cena,
e de sua vida, e não uma fonte auxiliar do cineasta que o acompanha e está onde está apenas
por essa razão e não por sua qualidade artística e trajetória pessoal. A afirmativa emancipatória
de Júlia gera encanto recíproco entre ela e Paulo. E no fim da cena, como num pacto, mesmo
que provisório e, a saber, depois, ilusório, todos sorriem.

Referências

CARVALHO, Sérgio de. Ópera dos Vivos: estudo teatral em quatro atos da Companhia do
Latão. São Paulo: Outras Expressões, 2014.

MATSUNAGA, Priscila Saemi. Trabalho do Latão. Tese de Doutorado, Programa de Pós-


graduação em Ciência da Literatura (Literatura Comparada), Faculdade de Letras, Universidade
Federal do Rio de Janeiro, 2013.

SCHWARZ, Roberto. O pai de família e outros estudos. São Paulo: Companhia das Letras,
2008.

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Fechamento das tragédias folclóricas lorquianas

Suéliton de Oliveira Silva Filho15

Resumo: Em 1933, Federico García Lorca – poeta e dramaturgo espanhol – triunfa em Buenos
Aires com a publicação e estreia da sua obra Bodas de sangre, primeira das três que ficariam
conhecidas como tragédias folclóricas. Durante os seis meses em que o escritor permaneceu no
país, há relatos de que ela chegou a ser encenada mais de 100 vezes. As obras seguintes viriam
a ser Yerma e La casa de Bernarda Alba, esta última publicada postumamente. Ainda que não
apresentem uma história sequencial, o tema da liberdade erótico-amorosa reprimida por uma
sociedade conservadora aparece no conjunto da trilogia. Nesta comunicação pretendemos nos
aproximar da obra de encerramento, La casa de Bernarda Alba, analisando as discussões ali
presentes, o papel ocupado pelas figuras femininas, a ausência de personagens masculinas em
cena, a força destrutiva de “Pepe, el romano” – ainda que não apareça para os espectadores,
sendo apenas citado pelas personagens –, assim como a recepção e atualidade que o texto
mantém até os nossos dias.

Palavras-chave: Dramaturgia espanhola; Tragédias folclóricas; García Lorca

Introdução

Na crítica literária espanhola, é comum a categorização das três grandes tragédias


lorquianas – Bodas de sangre (1933), Yerma (1934) e La casa de Bernarda Alba (1936) – como:
tragédias folclóricas. Ainda que o termo nos pareça, à primeira vista, estranho, devemos
considerar que García Lorca se volta no conjunto dessas obras a tratar da cultura popular
espanhola, mais especificamente da presente na região da Andalucía. Assim que, o
“fechamento”, do título, remete especificamente à última peça dessa trilogia – e aqui seguimos
a ordem cronológica visto que elas não se tratam de histórias sequenciais –, com a qual
trabalharemos aqui. Utilizaremos alguns conceitos desenvolvidos por Aristóteles em sua
Poética, na tentativa de melhor compreender a obra dramática em questão.

15
Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários pela Universidade Federal do Paraná (UFPR).
Orientador: Prof. Dr. Fernando Cerisara Gil. Email: seul.literato92@gmail.com
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Contextualizando Autor e Obra

Federico del Sagrado Corazón de Jesús García Lorca, mais conhecido como Federico
García Lorca, foi um poeta, dramaturgo e prosista espanhol. Filho de Federico García Rodríguez
e Vicenta Lorca Romero, nasce em Fuente Vaqueros, Granada, a cinco de junho de 1898.
Tendo recebido uma sólida educação – tanto por parte de sua mãe, que havia sido
professora até pouco antes de seu nascimento, quanto em relação à educação formal (escolar) –
, em 1918, aos vinte anos de idade, publica a sua primeira e única obra em prosa, Impresiones
y paisajes, livro de relatos de viagem com perceptível tom lírico. Dois anos depois lança, El
maleficio de la mariposa, texto dramático que chega a ser encenado mas sem atingir sucesso
significativo na época e, só em 1921, publica o seu primeiro livro de poesia, de nome Libro de
poemas.
Em 1927, sendo lembrado os 400 anos da morte de Luís de Góngora, forma com outros
escritores de seu círculo social – como Pedro Salinas e Jorge Guillén – o que ficou conhecida
como a Generación del 27. Embora seja um evento considerável das letras espanholas, alguns
estudiosos questionam o seu caráter vanguardista por não atender a alguns preceitos de
movimentos desse tipo, como: veiculação de ideias comuns, a consolidação de uma linguagem
de geração, data aproximada entre as primeiras publicações artísticas dos participantes, etc.
É com a publicação de Romancero gitano (poesia) e Mariana Pineda (drama), que Lorca
consegue adquirir ampla visibilidade e ser considerado como um dos grandes autores espanhóis
de seu tempo, aqui já em 1928. Apesar do reconhecimento obtido, principalmente com o livro
de poemas, ele demonstra certo incômodo com as notícias e críticas veiculadas, pois não quer
ser visto como um defensor da cultura cigana e nem pretende que sua obra seja reduzida a este
traço, embora pareça reconhecer a contribuição deste povo na construção de uma cor local para
seu país.
No ano de 1932 ele funda e dirige La barraca, espécie de companhia itinerante que tinha
como objetivo montar e divulgar obras teatrais significativas da cultura ocidental para o povo
espanhol. A respeito das tragédias folclóricas, em 1933 o escritor estreia, publica e triunfa em
Buenos Aires com a obra Bodas de sangre. Há relatos de que ela chegou a ser montada mais de
100 vezes, só em território argentino, durante os seis meses em que o escritor esteve no país.
Tal estadia foi custeada pelo próprio Lorca através do sucesso de sua obra. Ainda que não trate
de uma história única e sequencial, o tema da liberdade erótico-amorosa reprimida por uma

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sociedade conservadora aparece nesta e nas outras obras que ajudam a compor a trilogia: Yerma
e La casa de Bernarda Alba16.
O fechamento expresso no título se refere especificamente a esta última, La casa de
Bernarda Alba: Drama de mujeres en los pueblos de España. Se trata de uma obra dramática
dividida em três atos – tal divisão é um traço característico do teatro espanhol e aparece
teorizado no volume IV do Cursos de estética, de Hegel, mais especificamente no capítulo “A
poesia dramática”. Segundo o alemão, os espanhóis costumavam atribuir o primeiro ato à
apresentação do enredo, o segundo ao desenvolvimento, e o terceiro ao encerramento deste.
Lógica distinta utilizavam os ingleses, franceses e alemães, que costumavam dividir suas obras
dramáticas em cinco atos, sendo os três do meio equivalentes ao segundo ato espanhol – em
que todas as personagens que aparecem em cena são personagens femininas: Bernarda Alba, de
60 anos; Maria Josefa, mãe de Bernarda, de 80 anos; Angustias, de 39, Magdalena, de 30,
Amelia, de 27, Martirio, de 24 e Adela, de 20 anos, todas filhas de Bernarda (sendo Angustias,
filha do primeiro casamento), La Poncia, criada mais antiga da casa, de 60 anos; uma outra
criada que não recebe nome, de 50 anos; Prudencia, amiga de Bernarda que aparece apenas no
início do terceiro ato, de 50 anos; uma mendiga que não recebe nome e só aparece numa
pequena cena do primeiro ato; outras mulheres sem nome, que são numeradas de um a quatro,
e só aparecem no primeiro ato; e uma menina que também só aparece em pequena cena do
primeiro ato.
O predomínio de figuras femininas na obra, assim como a força que a mulher apresenta
ao longo de toda a trilogia, nos aproximou de um livro teórico/crítico de 2004, de Lúcia Castello
Branco e Ruth Silviano Brandão, chamado A mulher escrita. Nele, as autoras se aproximam de
livros significativos da literatura ocidental e discutem como a figura feminina aparece
representada em textos produzidos por escritores do sexo masculino. Criando uma dicotomia e
inserindo o viés d’A escrita mulher, aqui observando representação afim agora por escritoras
do sexo feminino, as estudiosas analisam o quanto as primeiras representações aparecem
carregadas de uma idealização do que é ser mulher, qual o protótipo de mulher ideal, etc. Longe
de querer afirmar que Lorca não segue fluxo similar aos outros escritores, na obra analisada
aqui percebemos figuras bem mais complexas e diversas, ainda que a atitude de algumas, como
a de Bernarda Alba, por exemplo, seja interpretada como pertencente ao gênero masculino. Por

16
Yerma é estreada em Madrid no ano seguinte, em 1934, e La casa de Bernarda Alba só vem a público
postumamente, já que sua finalização está datada em junho de 1936 e seu autor é assassinado em agosto do mesmo
ano.
93
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mais que não venhamos a destacar passagens precisas do livro de 2004, sua leitura foi essencial
para melhor compreendermos a obra de Lorca.
Voltando a La casa..., é impossível não atentarmos para as didascálias de abertura de
cada um dos três atos, que aqui analisaremos separadamente e num crescendo. O espaço do
primeiro é descrito como uma “Habitación blanquísima del interior de la casa de Bernarda.
Muros gruesos.”17 (LORCA, 2017, p. 13). A cor branca, no decorrer de toda a obra, é utilizada
como recurso para ressaltar a pureza pretendida. Ela já aparece expressa no sobrenome da
personagem do título: Alba. Embora essa pureza pretendida seja apenas uma característica de
fachada, como perceberemos já nas primeiras falas da personagem, carregadas de maldade.
Antes disso, a sua apresentação já é feita pelas duas criadas, La Poncia e a que não recebe nome,
de modo que o público já recebe informações de Bernarda Alba previamente à sua aparição.
Um ponto importante a ser observado já nesse primeiro ato é que, como sabido desde os
tempos de Aristóteles – ao desempenhar distinção entre os gêneros (épico, lírico e dramático)
em sua Poética – o narrador não é próprio do gênero dramático, senão do épico, visto que “seus
meios não são os mesmos, nem os objetos que imitam, nem a maneira de os imitar.”
(ARISTÓTELES, 1966, p. 42). Assim, ainda que o marido de Bernarda não apareça em cena e
já não esteja no mesmo plano das personagens presentes, nos é revelado por uma única fala,
proferida num monólogo, que esta casa de paredes tão brancas foi cenário de uma relação extra-
conjugal entre o patrão, agora morto, e a sua empregada de quem não sabemos o nome. É dito
por ela: “Fastídiate, Antonio María Benavides, tieso con tu traje de paño y tus botas enterizas.
(…) ¡Ya no volverás a levantarme las enaguas detrás de la puerta de tu corral!”18 (LORCA,
2017, p. 19). Tal saída é bastante acertada por Lorca, posto tratar-se de uma informação que
não pode ser compartilhada com nenhuma das personagens mas, ainda assim, vem a
conhecimento do público num momento de desespero da criada ao ouvir o bater dos sinos da
igreja.
Ainda sobre a didascália apontada anteriormente, os muros grossos fazem referência aos
pilares da família que ocupa a casa, como principalmente à impossibilidade de fuga por parte
das habitantes – é comparada mais de uma vez no decorrer do texto a uma prisão e La Poncia,
a criada, chega a revelar o seu desejo de escapar daquela casa de guerra. Sendo pertencente a
Bernarda Alba, como dito por ela nesse primeiro ato (além de tal informação já estar contida
no título), é ela a ocupar a figura de carcereira do espaço. É de responsabilidade da personagem

17
Cômodo branquíssimo do interior da casa de Bernarda. Muros grossos. (Esta e as traduções seguintes foram
realizadas por mim).
18
Aguenta de mau grado, Antonio María Benavides, rígido com teu traje de pano e as tuas botas inteiras [...] Já
não voltarás a levantar as minhas anáguas atrás da porta do teu curral!
94
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a manutenção da pureza tão apreciada e pretendida para todas as moradoras. Numa das cenas
desse primeiro ato há a descrição, por parte de La Poncia, de uma adúltera do bairro e o
perceptível interesse de Bernarda pelo relato, interesse justificado pela pureza frágil da
personagem, assim como pelo contraste do que está para além dos seus muros. É este contraste,
esta comparação por diferenças, a assegurar o que acredita tratar-se da sua superioridade e da
sua família. Relatos dessa natureza vão tensionando o desfecho da história, como se o que
estivesse no extra-muros fosse um prenúncio do que atingirá a família, mesmo Bernarda
considerando desdita afim como impossibilidade por julgar suas familiares incapazes de tomada
de atitude similar. Aqui nós já percebemos uma articulação muito bem projetada da ação que,
segundo Aristóteles, é fundamental:

A parte mais importante é a da organização dos fatos, pois a tragédia é


imitação, não de homens, mas de ações, da vida, da felicidade e da
infelicidade (pois a infelicidade resulta também da atividade), sendo o
fim que se pretende alcançar o resultado de uma certa maneira de agir,
e não de uma forma de ser. Os caracteres permitem qualificar o homem,
mas é da ação que depende sua infelicidade ou felicidade.
(ARISTÓTELES, 1966, p. 49)

Falas como: “…para llenar mi casa con el sudor de sus refajos y el veneno de sus
lenguas.19” (LORCA, 2017, p. 22), são capazes de refletir a maldade inerente e a visão
pessimista de mundo tidas por Bernarda, ou ainda: “Malditas sean las mujeres 20.” (LORCA,
2017, p. 24), dita por uma das moças enquanto pragueja a sua condição feminina; não
esquecendo também a total indiferença da enteada diante da morte de seu padrasto – a promessa
de futuro próspero proporcionada pelo casamento é tão fascinante, que a perda de um ente
familiar figura como mero detalhe –, similar a da própria filha caçula, que chega mesmo a
externar: “Pienso que este luto me ha cogido en la peor época de mi vida para pasarlo 21.”
(LORCA, 2017, p. 37), revelando pouco importar a perda, senão a imposição de oito anos de
luto por parte de sua mãe. São estas atitudes pouco sensíveis a justificar as ações futuras e a nos
guiar para o segundo ato da obra, ambientado numa “Habitación blanca del interior de la casa
de Bernarda22.” (LORCA, 2017, p. 42). A atenuação no tom de branco indica não ser a pureza
tão genuína como pretendida pela matrona, mas uma pureza imposta, de fachada, e isso será
explicitado mais adiante. A cena se abre com relatos de um calor incessante, capaz de perturbar
o sono e causar desassossego. A figura de Pepe el Romano, a força masculina presente em quase

19
...para encher a minha casa com o suor de suas roupas interiores e o veneno de suas línguas.
20
Malditas sejam as mulheres.
21
Penso que este luto me acometeu na pior época da minha vida para passá-lo.
22
Cômodo branco do interior da casa de Bernarda.
95
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toda a história (ainda que não vista pelo público), já é evocada na primeira cena. Após o
galanteio noturno pela janela que se estendeu até pouco depois da uma da manhã – há quem
afirme ter sentido Pepe pelos arredores até as quatro –, faz com que o público questione tratar-
se de uma versão falsa, por parte da personagem apaixonada, ou de intriga por parte da outra, e
isso é assegurado pela imprecisão do relato. O fato de a história não se desenrolar integralmente
diante dos nossos olhos é o que abre margem para mais de uma versão. Esse feito obtido é
genial visto estarmos diante de um gênero que não comporta narrador, na premissa, mas é como
se ele ali estivesse e selecionasse qual o momento adequado para que nos seja revelada a
verdade.
Adela, a mais nova das irmãs, mostra-se fisicamente cansada ao longo desse segundo
ato e Martirio, que dorme num quarto vizinho ao seu, parece incomodar-se com isso, dando
mostras de possuir informações que personagens e público ignoram. La Poncia, a criada,
desconfia e chega até a sugerir o motivo do cansaço. Também em falas desta personagem
podemos perceber mostras explícitas de maldade, não só referindo-se a Bernarda Alba, a quem
parece detestar, mas o seu tom maldoso assume certo ar de praticidade, quando, ao aconselhar
Adela, diz que esta precisa se aguentar no interesse pelo namorado da irmã, afinal de contas:
“¿quién dice que no te puedes casar con él? Tu hermana Angustias es una enferma. Esa no
resiste el primer parto. (…) y con mi conocimiento te digo que se morirá23” (LORCA, 2017, p.
50). Logo, o problema parece estar não no fato de ela desejar o namorado da irmã, senão em
querer apressar as coisas. É como se La Poncia reconhecesse, a partir da fala, não sermos
capazes de refrear os nossos desejos, sendo eles os responsáveis por guiar o nosso destino. No
desenvolvimento do ato vemos que também Martirio dá mostras de estar apaixonada por Pepe,
ao ter escondido uma foto sua, e esse passa a ser um dos motores a desenrolar a intriga. Não
devemos esquecer estarmos diante de uma tragédia e Aristóteles afirma em sua Poética que:
“Sem ação não há tragédia, mas poderá haver tragédia sem os caracteres.” (ARISTÓTELES,
1966, p. 49). Logo o que acarreta o evento trágico não é o desejo das irmãs por um mesmo
homem, mas a ação que elas põem em marcha impulsionadas por este desejo. Ainda segundo o
autor, o evento trágico deve dar-se entre “pessoas unidas por afeição”, pois se ocorre entre
inimigos ou desconhecidos, isso não despertará terror e compaixão no público e não será gerada
a catarse.
De modo similar ao do relato da mulher adúltera, no primeiro ato, esse segundo se
encerra com a perseguição de uma solteira que, após assassinar o filho recém-nascido, é

23
Quem disse que não podes casar com ele? Tua irmã Angustias é uma mulher doente. Ela não resiste ao primeiro
parto. [...] e com meu conhecimento te digo que morrerá.
96
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descoberta pelos vizinhos. Dentro de casa, Bernarda e sua filha Martirio gritam de forma
alucinada para que ela seja morta e pague pelo seu pecado. No outro extremo temos Adela que
pede para que a mulher seja liberada enquanto passa a mão em seu ventre. Aqui se dá um novo
fato exterior que funciona como prenúncio do que ocorrerá no terceiro e último ato. Na
didascália deste, o branco já tende a uma outra cor, sugerindo a pureza de fachada: “Cuatro
paredes blancas ligeramente azuladas del patio interior de la casa de Bernarda24.” (LORCA,
2017, p. 73). Neste último ato Bernarda recebe a visita de uma amiga para o jantar, Prudencia.
Não sabemos ao certo o que se passou com a filha desta, senão que foi proibida de ter acesso à
casa da família. Ao revelar sofrer por sentir saudades da filha, escuta de Bernarda que “Una hija
que desobedece deja de ser hija para convertirse en una enemiga25.” (LORCA, 2017, p. 74). No
jantar há menção ao casamento de Angustias e também se escuta em cena os coices de um
cavalo garanhão no muro da casa de Bernarda. Na obra de Lorca a figura do cavalo é recorrente
e costuma representar a força da virilidade masculina. Aqui, em especial, certamente remete à
figura de Pepe e a sua capacidade de encantar as mulheres. Como sabemos, na cultura hispana,
o apelido Pepe signfica “primer padre26”, logo é utilizado para homens que se chamam José –
mesmo nome do pai de Cristo. É curioso o fato de o autor não ter optado que o personagem se
chamasse Juan, fazendo uma conexão clara com o mito de don Juan, por exemplo, mas tenha o
mesmo nome de uma figura tranquila, ainda que esta não seja uma das características marcantes
de Pepe el Romano – pelo que se saberá dele.
É também nesse terceiro ato que saberemos, pela própria Bernarda Alba, ser realmente
importante aquilo que é visível aos olhos, reforçando a ideia imposta já na didascália de abertura
– o branco ligeiramente azulado. Em conversa com a filha Angustias sobre se esta já perdoara
a irmã por ter roubado a foto de Pepe, Bernarda diz que: “Cada uno sabe lo que piensa por
dentro. Yo no me meto en los corazones, pero quiero buena fachada y armonía familiar. ¿Lo
entiendes?27” (LORCA, 2017, p. 78). De modo que, caso não seja verdadeiro o que considera
como boa moral, que ao menos não seja escandaloso e se assemelhe visivelmente à moralidade.
Assim a história vai se aproximando do seu desfecho. Adela é surpreendida no meio da noite
por Martirio, enquanto se encaminha para encontrar Pepe el Romano, e esta última acorda toda
a casa. Tomada pela fúria ao descobrir a atitude da filha menor, Bernarda pega uma espingarda
e vai até a rua matar Pepe, que consegue fugir. Achando que o amante está morto, a partir de

24
Quatro paredes brancas ligeiramente azuladas do pátio interior da casa de Bernarda.
25
Uma filha que desobedece deixa de ser filha para se transformar em uma inimiga.
26
Primeiro pai.
27
Cada um sabe o que pensa por dentro. Eu não me meto nos corações, mas quero boa fachada e harmonia familiar.
Entendes isso?
97
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uma informação mal intencionada de Martirio, Adela acaba tirando a vida, ao que Bernarda,
mostrando indiferença diante da tragédia, diz: “¡Mi hija ha muerto virgen! Llevadla a su cuarto
y vestirla como una doncella. ¡Nadie diga nada! Ella ha muerto virgen. Avisad que al amanecer
den dos clamores las campanas.” (LORCA, 2017, p. 93). Tal atitude extrema mostra o quanto
as aparências estão acima de tudo para a personagem, inclusive do amor, esperado que sentisse
por sua filha.
Após delineados os pontos centrais da obra, por que La casa de Bernarda Alba se mostra
tão comovente para nós? Segundo Aristóteles:

A mais bela tragédia é aquela cuja composição deve ser, não simples,
mas complexa; aquela cujos fatos, por ela imitados, são capazes de
excitar o temor e a compaixão (pois é essa a característica deste gênero
de imitação). Em primeiro lugar, é óbvio não ser conveniente mostrar
pessoas de bem passar da felicidade ao infortúnio (pois tal figura
produz, não temor e compaixão, mas uma impressão desagradável);
Nem convém representar homens maus passando do crime à
prosperidade (de todos os resultados, este é o mais oposto ao trágico,
pois, faltando-lhe todos os requisitos para tal efeito, não inspira nenhum
dos sentimentos naturais ao homem – nem compaixão, nem temor);
Nem um homem completamente perverso deve tombar da felicidade no
infortúnio (tal situação pode suscitar em nós um sentimento de
humanidade, mas sem provocar compaixão nem temor). Outro caso diz
respeito ao que não merece tornar-se infortunado; neste caso o temor
nasce do homem nosso semelhante, de sorte que o acontecimento não
inspira compaixão nem temor.
Resta, entre estas situações extremas, a posição intermediária: a do
homem que, mesmo não se distinguindo por sua superioridade e justiça,
não é mau nem perverso, mas cai no infortúnio em conseqüência de
algum erro que cometeu... (ARISTÓTELES, 1966, p. 60 e 61)

Vemos que Lorca cumpre com eficácia os pontos ressaltados. De um lado temos
Bernarda Alba, uma matrona que para assegurar o que considera justo faz uso de sua autoridade,
não importando o quão pouco razoável esta seja. E embora tal justiça não seja de todo genuína,
ela pretende guiar a própria vida, a das filhas e de sua família, como a vida de toda a sociedade
que está a sua volta – basta pensarmos no que fala sobre a adúltera, infanticida, ou sobre a filha
de Prudencia (máxima que se aplica a todas as filhas que desobedecem). A atitude autoritária
da personagem, no entanto, não faz de Adela um ser puro ou bondoso. O fato de Pepe ser o
namorado da irmã não é impeditivo para que ela estabeleça um vínculo afetivo com ele. Por
outro lado, não a faz um ser terrível, pois as opções apresentadas eram tão restritas que, sendo
uma jovem de 20 anos, se deixa levar pelos seus instintos. Mas são as suas ações que acabam
determinando o seu destino – achando que Pepe havia sido assassinado, é ela a tirar a própria
vida, e isso ressalta também a falsa autoridade da mãe (no final das contas, cada uma acaba

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fazendo o que quer), ao mesmo tempo que é esta autoridade a determinar tal extremo. Por
último, é bastante acertado que não saibamos o destino de Pepe, visto ele figurar apenas como
a força invisível e destrutora, além de não ocupar o espaço para o qual a obra se volta: o interior
da casa.

Considerações finais

Considerando o que aqui foi dito gostaríamos de voltar ainda a Aristóteles na tentativa
de compreender o fascínio, a amplitude e as reinterpretações feitas até hoje de La casa de
Bernarda Alba, posto concordarmos ser ela: “mais filosófica e de caráter mais elevado que a
história, porque a poesia permanece no universal e a história estuda apenas o particular.”
(ARISTÓTELES, 1966, p. 54). Assim, por mais que se pretenda uma obra folclórica e tenha
como subtítulo o Drama de mujeres en los pueblos de España28, ganha proporções universais
visto o autoritarismo, a castração das liberdades individuais, a determinação do que é permitido
ou não à figura feminina estar em todos os lugares – sem contar a força motriz do desejo,
possível a qualquer ser humano. Não havendo melhor forma de concluir essa trilogia, que La
casa de Bernarda Alba continue nos causando desassossego a ponto de sermos capazes de
revisitar e modificar o nosso espaço.

Referências

ARISTÓTELES. Poética. Trad. Eudoro de Sousa. Porto Alegre: Editora Globo, 1966.

BRANCO, Lúcia Castello; BRANDÃO, Ruth Silviano. A mulher escrita. Rio de Janeiro, RJ:
Lamparina editora, 2004.

CARBONELL, Joaquín. Un tango para Federico: La noche en la que García Lorca y


Gardel se encontraron en Buenos Aires (Spanish Edition). Edição do Kindle.

CRIADO, Francisco Rodríguez. Lorca: de Granada al cielo. Mérida: De la luna libros, 2009.

HEGEL, G. W. F.: “A poesia dramática”. In.____. Cursos de estética, volume IV. Trad. Marco
Aurélio Werle/ Oliver Tolle. São Paulo: Edusp, 2004.

28
Drama de mulheres nos povos da Espanha.
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IV Seminário Nacional de Dramaturgia e Teatro: Teatro e Política

LORCA, Antonio Rodríguez; MORALES, Gabriel Rodríguez: Federico García Lorca: Vida
y obras en cantes y poemas biográficos. Ebook Kindle, 2015.

LORCA, Federico García. Bodas de sangre. Biblioteca Nacional de España. Edição do Kindle,
2017.

_____. La casa de Bernarda Alba. Biblioteca Nacional de España. Edição do Kindle, 2017.

_____. Sonetos del amor oscuro: Recopilación y reflexiones. Ebook Kindle, Colectivo
clásicos LGBT, 2015.

_____. Yerma. Biblioteca Nacional de España. Edição do Kindle, 2017.

SEVILLA, Santiago: “La poesía de Federico García Lorca”. In. ____. Creatividad e ingenio
literario. Ebook Kindle, 2015.

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Jardim de poeira quente, raiz leniente de morte


Ensaio crítico sobre O mundo está cheio de nós

Natalia Mendonça Conti (PPGL/UFRJ)29

Resumo: A Companhia do Latão, em O mundo está cheio de nós, transpõe para a boca do lixo
paulistana da década de 1980 a ingenuidade como meio de vida desajustado, como em A alma
boa de Setsuan, de Bertolt Brecht (1939-42/1943) e Noites de Cabíria, Federico Fellini (1957).
Valéria Dim se prostitui na Liberdade, e o desejo de romper com a vida desumanizada orienta
seu percurso. Não tendo dignidade a sustentar, ocupa a margem da periferia do capitalismo -
sua jarra de pó cobre os ainda vivos, em sinal de não conciliação com a ordem. Para Walter
Benjamin, em O capitalismo como religião, o dinheiro como divindade promotora de um culto
sem trégua nem piedade, incompatível com qualquer ética, produz no tempo e na vida
destruição, culpa e desolamento, imprimindo na vida sua dinâmica de morte, produzindo
equivalência entre sujeito e objeto. A conciliação é testada. O caminho, contudo, é inconciliável.
Tal lógica é arcaica, contraproducente, própria de outro tempo, própria também deste lugar
chamado Brasil, que “concilia” ao seu modo diferentes tempos.

Palavras-chave: Companhia do Latão; teatro; dramaturgia brasileira.

O mundo está cheio de nós, peça da Companhia do Latão, estreou em São Paulo em abril de
2019, e me abriu a possibilidade de exercício crítico de modo a poder olhar de outros ângulos
a peça com a qual trabalho na pesquisa de doutorado, O pão e a pedra, da mesma companhia.
Olhar Joana Paixão através de Valéria Dim, olhar a boca do lixo paulistana através do ABC
paulista operário. Outro aspecto atravessa esta leitura, inevitavelmente. Após um semestre de
vínculo coletivo e laboral com a Antígona de Sófocles (SÓFOCLES, 2009), a partir de uma
disciplina no programa de pós-graduação em Ciência da Literatura da UFRJ, junto às
professoras Priscila Matsunaga e Flávia Troccoli, talvez um dos mais importantes gestus da
história do teatro, o derramamento de terra sobre o corpo insepulto, tornou-se lente para leitura
do mundo e entendimento do Brasil. Remetendo à metáfora marxiana (MARX; ENGELS,
1998) no Manifesto Comunista, Antígona ronda a escrita como fantasma. A leitura que se faz
aqui da peça, importante ressaltar, tem caráter de aproximação, sem a pretensão de profunda e
global análise.

29
Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura (PPGCL) da Universidade Federal do
Rio de Janeiro (UFRJ). Orientadora Profa. Dra. Priscila Matsunaga. E-mail: conti.nataliam@gmail.com

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A Companhia do Latão transpõe para o centro de São Paulo da década de 1980 a


ingenuidade ou a bondade como meio de vida desajustado, um torto processo de aprendizado
mediado pelo dinheiro. Essa questão é chave na peça A alma boa de Setsuan, de Bertolt Brecht
(1939-42/1943) (BRECHT, 1977) e em Noites de Cabíria, filme de Federico Fellini (1957)
(FELINNI, 1957), fontes para a peça brasileira. Num cenário de degradação profunda,
convivem prostitutas, cafetões, policiais, toda sorte de pequenos bandidos e desajustados de alta
classe, que desfrutam do tempo morto alheio em seu tempo livre. Valéria se prostitui no bairro
da Liberdade, antigo Largo da forca, junto a outras mulheres, e suas relações que se costuram
na peça num sentido de busca pela morte daquela vida; o desejo de não se desumanizar a coloca
no caminho de burlar equivocamente as operações próprias desse sistema, o salve-se quem
puder que cabe a cada indivíduo isolado.
No primeiro prólogo, quando da recepção do público, uma atriz sobe em uma escada e
um ator que o espera embaixo pergunta se há esperança, ao que ela responde negativamente. O
movimento se repete, e numa terceira vez é o ator quem sobe, receoso, dotado de certo medo –
de subir e de olhar, e se depara também com a negativa. Apresenta-se aí um importante binômio
a ser experimentado e enfrentado ao longo da peça, o do medo e da esperança, a que o filósofo
Vladimir Safatle (SAFATLE, 2018) atribui como conjunto de afetos muito mobilizados pelo
poder do Estado e do capital, onde mora o perigo da passividade e do compasso de espera,
atribuindo futuro à ação de outrem. Rua sem saída. A este, segue o segundo prólogo, em que
dois atores entoam a canção de São Nunca, sobre o dia em que o pobre num trono reinará, em
que “artista serei, afinal e você também vai estudar para um trabalho sem cercas, sem classes,
de todos, para todos emprego e arte”. No quarto prólogo, Valéria se vê presa numa escada, sem
conseguir subir nem descer, por não saber como foi parar lá – sem passado e sem futuro, prefere
esperar. É do alto da escada aparentemente sem chão e sem esperança de onde partimos.
Valéria, no primeiro quadro – Das vantagens e desvantagens da ingenuidade – chama
pelo Ruivo que lhe jurou amor e roubou seu dinheiro. Há dois momentos da apresentação de
sua ingenuidade. Ela jovem, quando passeava pela praça e achava bonita a liberdade das
prostitutas, e transava de graça; e ela adulta, no apego ao afeto de oportunistas que só querem
o seu dinheiro. Valéria, com a evidência da ilusão, afirma ser ela de verdade, e também sua
amiga, que responde que real mesmo é o dinheiro, mesmo que tudo nessa vida que valha a pena
seja ingênuo, gratuito e esquisito. A vida sob o capital não foi feita para o desfrute. Essa cena e
o quadro que segue mostram o desajuste de Valéria à condição de mercadoria. “É preciso durar
como mercadoria”, nome dado ao segundo quadro, tem prevalência na vida mesmo que não se

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aceite esta condição. E na tentativa de se enquadrar, ela dá morte ao seu nome, assumindo um
novo, Dim, “meu nome é dinheiro, metal, tutu, arame, permuta, cash”.
Tendo visto a montagem e com o texto na mão, com as vistas para as relações
estabelecidas naquele espaço e também no caminho de cada personagem nos encontros entre
si, há duas perguntas que me ocorrem. A primeira é se se trata de um percurso de aprendizagem.
Valéria aprende algo? E os demais? A segunda é se existe real protagonismo desta personagem.
O esboço para a primeira resposta vai ao final. Em relação à segunda questão, parece existir um
tensionamento na forma, sugerindo ambiguamente que sim e que não. Há momentos em que é
dito que esta é a sua história, é sobre você, Valéria, “Onde vais agora, Valéria Dim? Por que
não entra nessa cena estranha? Sumiu da peça? Essa história é sua”. Também outros em que
duas expressões negativas desta questão surgem, a enunciação propriamente da presença de
outros, “nós também estamos aqui”, e a relevância de Valéria como pessoa na tensão entre a
trama e sua posição social, que nos diz ser ela uma desistida, como os outros, ou como aos
poucos vai percebendo sua posição de desesperada para rumar uma condição de “nunca mais”
– nunca mais aqui é substantivo. Há, portanto, uma oscilação na forma que aposta no drama até
desmantelá-lo diante do veto à existência de autonomia, subjetividade e individuação. Valéria
diz “Quem é sozinha capaz de fazer uma história? Eu não quero mais servir à estrutura da peça,
quero que a peça sirva a mim”. Os termos “desistidos”, “desesperados” e “nunca mais” estão
no texto, e este último se assemelhando a uma espécie de expressão de consciência para si da
denominação “vale nada”, em referência a Anton Tchékhov e os despossuídos de sua obra. É
como se “nunca mais” fosse uma consciência genérica desse estrato da sociedade.
Valéria não se vê como desistida nem como nunca mais, no princípio. Ela se coloca e é
colocada em movimento num sentido de aprendizado sobre o lugar de cada um no mundo e
sobre o funcionamento do mundo a partir da relação com os outros, passando por ela própria
em sua juventude, uma amiga, pessoas a quem ela é indiferente e outras cruelmente
individualistas. Uma espécie de alter ego da personagem é uma aranha presa num vidro, e
quando dada a liberdade, esta não lhe parece tão favorável. A que chamam liberdade num
mundo como esse? Valéria conversa com a aranha: “Sai burra, se você entrou, tem que sair,
ninguém mais vai te dar inseto na boca, vai fazer uma teia. Está desconfiada de quê? Você está
livre. Eu vou me sentar aqui até você sair”. Num compasso de espera, mas já incomodada,
parece falar com o espelho, sua prisão naquela escada sem chão nem horizonte.
A figura do desistido entra nominalmente na peça quando se apresenta Sâmi Roque,
anunciado como futuro amor de Valéria Dim e parte dos estatísticos treze ponto quatro milhões
de desempregados no país, a condição de informalidade, abandono e precariedade dos jogados

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no mundo. Como Woyzeck (BÜCHNER, 2004) que alucina depois de semanas submetido a
comer somente ervilhas, Sâmi Roque é um desesperado, “emocionalmente abatido” por estar
desempregado. Diante do questionamento de seu pai, ele narra, sobre a necessidade de estudar,
Sâmi diz saber tudo sobre a TV, tem plano de jogar bola e ir para fora do país ganhar dinheiro.
Quantos não sonham o mesmo? “Por que você não me escolheu, sistema?”, clama. Ele se
encontra com Valéria num quadro chamado “O amor à beira da morte”. Do alto do viaduto,
ameaça se matar, e ao convencê-lo do contrário, Valéria enuncia sua própria sentença.
“Irmãozinho, a gente não pode ter esperança demais, nem fazer nada de graça, tem que aprender
a cobrar. Por tudo. Não dar ponto sem nó”.
Ao ser acolhido sem resistência, Sâmi Roque se vê em Valéria assemelhado,
desesperados, entregam-se um ao outro e planejam mudar-se da cidade, ganhar o mundo. O
aprendizado de Valéria de tornar-se mercadoria e de apresentar-se o menos vulnerável possível
construiu na trajetória uma armadura que vai sendo despida na relação com Sâmi. Ela quer
acreditar no amor, aceita trabalhar mais um pouco e rapar as economias, vender o pouco que
tem para viver um destino incerto. Nesse momento, que já esboça o fim da peça, é recolocado
o quadro inicial. Ao aceitar a nova proposta, entra novamente a canção de São Nunca, nos
lembrando do lugar a que se destina a felicidade dos despossuídos, e em seguida o embate
travado com a companheira das bofetadas que volta a alertá-la, dessa vez sem tanta dureza. Ela
também está amolecida pelo amor de outra mulher.
Há também nesse diálogo dubiedade semântica interessante. Quando a namorada de sua
companheira de ponto questiona a idoneidade de Sâmi, atestando que está escrito na cara dele
que é um desesperado, Valéria afirma estar cansada.

HELENA – Eu não aguento mais ficar o tempo todo com o pé atrás,


desconfiada. Tudo que eu mais amo é vagabundo, fora do rumo...
ÉRIKA – Eu achei que você era burra, mas você é boa.
HELENA – As pessoas parecem ter prazer em ver o pior. Eu só preciso saber
se eu amo ele.
ÉRIKA – Mas o ruim existe.
HELENA – É o risco da esperança, não é?

Ela não parece mais estar em posição ingênua, mas de escolher viver a sensação de
alguma coisa que não esteja previamente estabelecida, mesmo que esteja. Como se por alguns
instantes, mesmo em meio a um jogo de suspensão do peso da vida, pudessem acontecer formas
de relação imunes à mercantilização. Voltando à pergunta sobre o aprendizado, há nesse
momento um modo de responder que sim, apontando para a necessidade de outra pergunta. Não

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basta só aprender, o que se faz com o que se aprende? É possível entender este movimento
como condição individual?
Valéria é levada à beirada de uma represa por Sâmi Roque, percebe sua intenção de
matá-la para ficar com seu pouco dinheiro. Dura pouquíssimo o frescor. Ela se indigna
profundamente por ser o dinheiro a mover Sâmi na direção de desfazer-se dela. Dinheiro. Desde
o início o seu desajuste é com esta mediação intransponível.
Walter Benjamin, em seu Capitalismo como religião (BENJAMIN, 2013), que trata do
sistema global que conduz a humanidade à casa do desespero, nos fala da necessidade da raiva
para girar o motor da luta de classes; e de transformar a raiva em indignação. O dinheiro como
divindade promotora de um culto sem trégua nem piedade, incompatível com qualquer ética,
produz no tempo e na vida destruição, culpa e desolamento. Tal divindade imprime na vida sua
dinâmica de morte. Vive-se em função de se transformar em mercadoria a fim de girar em seu
circuito, e desse modo, produzir equivalência entre sujeito e objeto, agora indistintos. A
indignação de Valéria, no caminho entre ingenuidade e consciência, partilhada por todos os de
baixo representados, concebe a busca por conciliação na tentativa de sair da lógica sistemática.
A conciliação está aparentemente fora. Existe fora? Onde está? Este caminho é inconciliável.
Sua lógica é arcaica, contraproducente, própria de outro tempo, própria também deste lugar
chamado Brasil, que “concilia” ao seu modo diferentes tempos. Pode ser vista como valor
residual, não estruturado completamente, ou não apenas pelo dinheiro – ou estou eu também
flutuando entre ingenuidade e consciência.
Existe um salto já dotado da condição de “nunca mais”, tão desajeitado quanto a própria
ingenuidade. Valéria, ao fugir da floresta atrás de Sâmi, que escapa, sai do meio das árvores e
tem seu fim narrado com três versões, a de que correu atrás de Sâmi, e quando chegou à estrada
só viu gente rindo e se entristeceu; a segunda de que puxou uma faca e deu fim à situação, e
outra ainda, tendo voltado à pé para a cidade e desenhado com a faca um coração partido em
uma árvore, que espirrou seiva vermelha em seu rosto. O narrador sentencia: “Não importa”.
Entre a narração e uma canção final, há falas de todos sobre a lástima do mundo, o autoritarismo
em curso, a exploração de crianças, a desigualdade social, a valorização da defesa militarizada
da propriedade privada. E a peça se encerra com um coro entoando a sexta tese benjaminiana
sobre o conceito de história (BENJAMIN, 2008, p.224-225) “O dom de despertar no passado a
centelha de esperança é dever daqueles que sabem que os mortos não estarão em segurança se
o inimigo vencer. E ele não tem cessado de vencer”. Não é o seu fim de personagem que
importa, no marco do drama individual, nem no capitalismo, nem num outro sentido de vida

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fora da lógica da mercadoria, algo que possamos buscar como projeto comum. É o aprendizado
de todos e seu percurso que estão em questão.

Referências

BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de História. In: Magia e técnica, arte e política. São
Paulo: Brasiliense, 2008.

_____. O capitalismo como religião. São Paulo: Boitempo Editorial, 2013.

BRECHT, Bertolt. A alma boa de Setsuan. Trad. Geir Campos e Antonio Bulhões. In: Teatro
de Bertolt Brecht, Volume 2. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1977.

BÜCHNER, Georg. Woyzeck. In: Büchner, na pena e na cena. Org. e Tradução de Jacó
Guinsburg e Ingrid D. Koudela. São Paulo: Perspectiva, 2004.

MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto Comunista. Rio de Janeiro: Editora Garamond
Ltda., 1998.

SAFATLE, Vladimir. O circuito dos afetos. Corpos políticos, desamparo e o fim do indivíduo.
Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2018.

SÓFOCLES. Antígone. Introdução e Tradução de Trajano Vieira. São Paulo: Perspectiva,


2009.

Filmografia

NOITES DE CABÍRIA. Federico Fellini. França/Itália: Les Films Marceau; Dino de Laurentiis
Cinematografica

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Jornada de Esttudos do Texto Dramático: Uma Nova Experiência

Tereza Eliete de Oliveira Fernandes Ribeiro (UEPB)30


Rafael Damião de Lima Santos (UEPB)31
Eduardo Henrique Cirilo Valones (UEPB)32

Resumo: Este trabalho tem por objetivo relatar os eventos I e II Jornada de Estudos do Texto
Dramático, realizadas no Campus III, Centro de Humanidades da Universidade Estadual da
Paraíba – UEPB, com programação que envolvia mesas redondas, conferências, e apresentações
teatrais. A I Jornada aconteceu no dia 5 de abril de 2018, com o tema “O teatral, o
cinematográfico e a poesia declamada”. Shakespeare, Ariano Suassuna, Hermilo Borba Filho,
nas obras A tempestade, O auto da Compadecida e A donzela Joana fizeram parte das
discussões. Já a II Jornada foi realizada no dia 06 de maio de 2018, com o tema “Estudos
Literários e Intersemióticos”. Os mesmos autores da I Jornada voltaram a ser discutidos em
obras e temas diferentes. Nelson Rodrigues foi homenageado com conferência e apresentação
teatral. Os eventos foram criados para divulgar o estudo do texto teatral, como possibilidade de
análise literária. Nossa base metodológica inclui autores como BRITO (1195), CARVALHAL
(1986), ROUBINE (2003), LUNA (2012), MAGALDI (1997), NITRINI (2000), WILLIAMS
(2002), entre outros.

Palavras-chave: Dramaturgia; Estudo literário; Jornada.

Introdução
Este trabalho tem por objetivo relatar sobre os eventos da I e da II JORNADA DE
ESTUDOS DO TEXTO DRAMÁTICO, realizadas no Centro de Humanidades da Universidade
Estadual da Paraíba – UEPB – Campus III – Guarabira /PB. A I JORNADA DE ESTUDOS
DO TEXTO DRAMÁTICO aconteceu no dia 5 de abril de 2018, tendo como tema proposto “O
teatral, o cinematográfico e a poesia declamada”. Estiveram presentes cerca de 243 ouvintes,
sendo eles compostos por alunos e professores que fazem dos cursos de graduação do Centro
de Humanidades (a saber: Licenciatura em Letras-Inglês, em Letras-Português, em Geografia,
em História, em Pedagogia, e Bacharelado em Direito) nos três turnos de funcionamento dos
cursos.
A programação envolveu mesas redondas, apresentação do Grupo de Estudos do Texto
Dramático e também conferência. Os autores abordados nessa I JORNADA foram William
Shakespeare, Ariano Suassuna, Hermilo Borba Filho, entre outros. Sobre Shakespeare os
professores mediadores Auricélio Soares e Caio Antônio debateram sobre o olhar intermidiático

30
Pós-Graduanda, Universidade Estadual da Paraíba (UEPB), e-mail: terezaeliete@hotmail.com
31
Pós-Graduando, Universidade Estadual da Paraíba (UEPB), e-mail: rafaellima447@gmail.com
32
Professor, Universidade Estadual da Paraíba (UEPB), e-mail: eduardo.valones@hotmail.com
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IV Seminário Nacional de Dramaturgia e Teatro: Teatro e Política

da obra A Tempestade. Já sobre Ariano Suassuna e Hermilo Borba Filho, o Grupo de Estudo
do Texto Dramático composto pelo orientador, professor Eduardo Valones e por seus
respectivos componentes pesquisadores, Tereza Ribeiro e Rafael Damião de Lima, versou sobre
a formação da dramaturgia no cenário nordestino. Os membros do grupo destacaram as
seguintes peças de teatro: O auto da Compadecida, de Ariano Suassuna e A donzela Joana, de
Hermilo Borba Filho. Trata-se dos resultados apresentados em seus respectivos TCC’s. Tereza
Ribeiro com Suassuna e Rafael Damião com Borba Filho. Na parte da conferência tivemos a
ilustre presença do Prof. Assis Souza de Moura, da Universidade Federal de Campina Grande
– UFCG, que ministrou a palestra intitulada “Educomunicar com Literatura: do poema a
atividade dramática na sala de aula”, tema cujo o professor trabalha frequentemente em suas
aulas.
A II Jornada foi realizada no dia 09 de maio de 2018, contando com uma plateia de 250
ouvintes, todos membros da comunidade acadêmica do Campus III da UEPB. O tema em pauta
trabalhado foi “Estudos Literários e Intersemióticos”. Na ocasião, a programação novamente
discutiu sobre o grande escritor inglês William Shakespeare. O professor José Vilian Mangueira
fez-lhe um tributo, intitulado “Eis a questão: William Shakespeare e a tradição clássica”. Ariano
Suassuna e Hermilo Borba Filho, também não ficaram de fora, com a mesa redonda “Nordeste
‘Em (cena)’”, ministrada mais uma vez pelo Grupo de Estudos do Texto Dramático. Dessa os
integrantes mostraram a trajetória desses dois autores, os quais foram eles os idealizadores do
surgimento do Movimento Armorial da década de 1970, no Nordeste brasileiro. Também teve
versou-se sobre outra teatróloga nordestina, Lourdes Ramalho, com a palestra “Lourdes
Ramalho e o moderno regional nos anos de 1970: modos de sentir, fazer e usar” ministrada pelo
professor Diógenes André Vieira Maciel, da UEPB – Campus I – Campina Grande. Por fim, a
programação estendeu-se fazendo uma homenagem a Nelson Rodrigues, feita pelo idealizador
das Jornadas professor Eduardo Valones, mostrando aspectos da vida e, principalmente, da obra
de Nélson Rodrigues, intitulada “A vida como ela foi: notícia biobibliográfica de Nelson
Rodrigues”. Essa palestra/homenagem teve como mediadora a professora Mestra Joseane
Mendes Ferreira, da SEDUC-PI.

Dos objetivos

Os eventos da I e II JORNADA DE ESTUDOS DO TEXTO DRAMÁTICO foram


sediados no auditório da Universidade Estadual da Paraíba, especificamente no Campus III -

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Centro de Humanidades, localizada em Guarabira-PB. Ambas as Jornadas foram realizadas no


primeiro semestre dos respectivos anos de 2018 e 2019, e tinham como objetivo aprimorar e
tornar visível um dos temas em que, ainda é pouco conhecido pelos alunos da graduação, em
especial as licenciaturas plenas em Letras-Português e Letras-Inglês, do Campus III: Estudo do
Texto Dramático. As Jornadas surgiram do desejo pessoal do professor Eduardo Valones, que
desde o início de sua formação acadêmica nutria um grande sentimento por estudos que
envolvessem Literatura e Dramaturgia, tendo feito Mestrado e Doutorado nessa área. Assim
decidiu mostrar para toda comunidade acadêmica os conhecimentos dessas artes, passo
fundamental para criação das Jornadas, em que o objetivo agora é torná-la um evento anual no
Centro de Humanidades e de caráter Nacional.

Metodologia

Para alcançar os objetivos das Jornadas, procurou-se fazer comunicações, mesas-


redondas e palestras que envolvesse, inicialmente o tema “O teatral, o cinematográfico e a
poesia declamada”. Para isso buscou-se colaboração dos colegas do mesmo Campus e de outras
Universidades da Paraíba com temas e autores já aqui descritos anteriormente. Depois, apoiado
no tema “Estudos Literários e Intersemióticos”, tentou-se conquistar o mesmo. Alguns autores
da I Jornada voltaram a ser discutidos em temas diferentes. Os eventos foram criados para
divulgar o estudo do texto teatral, como possibilidade de análise literária. Nossa base
metodológica inclui autores como BRITO (1195), CARVALHAL (1986), ROUBINE (2003),
LUNA (2012), MAGALDI (1997, NITRINI (2000), WILLIAMS (2002), entre outros.

Resultados

Os resultados obtidos nessas experiências são que aumentou o interesse por parte dos
discentes em aprimorar e conhecer seus conhecimentos na área da Literatura e da Dramaturgia.
Dessa forma, destaca-se a importância das respectivas Jornadas em incentivar e desmitificar
alguns temas que ainda era poucos estudados por parte da comunidade acadêmica. Algo muito
importante que a Jornada deixou em seu legado foi exatamente um conhecimento acerca de
autores Clássicos, como Shakespeare, sendo revisitado e de autores contemporâneos mostrando
que também sua importância para a análise literária.

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Considerações finais

É possível compreender que ambas as Jornadas foram de extrema importância para


divulgação na área de análise literária envolvendo textos dramáticos. Assim, as Jornadas
visaram promover a participação do discente no processo de produção científica, bem como
proporcionar o início de sua formação como pesquisador, incentivando-o a continuação com
participações em eventos científicos, seja apresentando trabalhos ou contribuindo nas
discussões sobre o tema com outros pesquisadores. Entretanto, o objetivo maior foi dar ensejo,
através das técnicas e métodos de pesquisa, o estímulo necessário para o desenvolvimento do
pensar cientificamente, decorrentes das condições criadas pelo confronto direto com os
problemas de pesquisa, e, assim, estimular o seu ingresso nos cursos/programas de Pós-
Graduação nos níveis de especialização, mestrado e doutorado. Deste modo, destaca-se o
entender da dinamicidade que pode existir no texto teatral, indispensável no que diz respeito à
intertextualidade presente em produções literárias distintas. E essa relação faz com que
diferentes temas sejam abordados ao mesmo tempo, de modo que haja a interpretação de
diferentes momentos históricos.

Referências

ARISTÓTELES. Arte retórica e Arte poética. Trad. Antonio Pinto de Carvalho. Rio de
Janeiro: Ediouro, 1966.

BERTHOLD, Margot. História Mundial do Teatro. Trad. Maria Paula V. Zurawski, J.


Guinsburg, Sérgio Coelho e Clóvis Garcia. São Paulo: Perspectiva, 2001.

CARLSON, Marvin. Teorias do teatro. Estudo histórico-crítico dos gregos à atualidade. São
Paulo UNESP, 2002.

CARVALHAL, Tânia Franco & COUTINHO, Eduardo F. (Org). Literatura Comparada:


textos fundadores. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.

ECO, Umberto. Obra Aberta. São Paulo: Perspectiva, 1991

FARIA, João Roberto. O teatro na estante: estudos sobre dramaturgia brasileira e estrangeira.
Cotia: Ateliê Editorial, 1998.

HEGEL, Estética – poesia. Trad. Álvaro Ribeiro. Lisboa: Guimarães Editores, 1980.

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IV Seminário Nacional de Dramaturgia e Teatro: Teatro e Política

MAGALDI, Sábato. Panorama do teatro brasileiro. São Paulo: Global, 1997.

MOISÉS, Massuad. Dicionário de termos literários. São Paulo: Cultrix, 2004.

NITRINI, Sandra. Literatura Comparada. São Paulo, EDUSP, 2000.

PALLOTTINI, Renata. O que é dramaturgia. São Paulo: Brasiliense, 2005.

RODRIGUES, Nelson. Teatro completo de Nelson Rodrigues: tragédias cariocas I.


Organização Sábato Magaldi. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985c.

ROMILLY, Jacqueline de. A tragédia grega. Trad. Ivo Martinazzo. Brasília: Universidade de
Brasília, 1998.

ROSENFELD, Anatol. O mito e o herói no moderno teatro brasileiro. São Paulo:


Perspectiva, 1996.

ROUBINE, Jean-Jacques. Introdução às grandes teorias do teatro. Trad. André Telles. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.

SZONDI, Peter. Teoria do drama moderno (1880-1950). Trad. Luiz Sérgio Repa. São Paulo:
Cosac & Naify Edições, 2001.

WILLIAMS, Raymond. A tragédia moderna. Trad. Betina Bischof. São Paulo: Cosak &
Naify, 2002.

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Júlio César, de Shakespeare: passagens do teatro ao cinema

Tânia C. K. Alves Assini (PPGL/UNIOESTE)33

Resumo: O filme César deve morrer (2012), dos Irmãos Taviani denota um trabalho
contestador da linguagem cinematográfica, sendo um filme que provoca o espectador a ser
intelectualmente ativo ao propor uma mise en scene baseada na teatralidade, no espetáculo e na
proposta híbrida do documentário. Interessa, neste texto, refletir sobre a recriação da peça de
teatro Júlio César, de Shakespeare, cuja montagem apresenta um caráter híbrido fundindo
ficção e documentário. Entre a produção fílmica dos Irmãos Taviani e a peça de teatro de
Shakespeare ocorre um processo de intertextualidade por alusão temática, em que os sentidos e
as referências canônicas são reconfigurados. Nesta perspectiva, tem-se um caso de alusão na
obra dos Irmãos Taviani, uma recriação cujo projeto estético contempla a polifonia e a
intertextualidade.

Palavras-chave: Shakespeare; Cesar Deve Morrer; Júlio César; rupturas; hibridização;


heterogeneidade.

Introdução

Este texto reflete sobre o filme César deve morrer (2012), dirigido por Paolo Taviani e
Vittorio Taviani, a partir da peça de teatro Júlio César de Shakespeare, interpretado por detentos
da prisão de segurança máxima de Rebibbia, em Roma. Intenta-se pensar sobre o modo como
essa imbricação de campos ou territórios entre as artes, ao promover certos deslocamentos,
potencializa os processos de produção de sentidos. A montagem do filme Cesar deve morrer,
realizada a partir da peça de teatro ganha uma forma heterogênea e híbrida, sobretudo,
considerando-se que o processo de montagem contempla, ainda, partes da linguagem do
documentário.
Em Cesar Deve Morrer, o intertexto desintegra-se como um subtexto e a peça Júlio
César de Shakespeare passa a funcionar como figura de fundo. O texto de Shakespeare sofre
um processo de destronamento ao modo bakhtiniano, sendo deslocado do centro para servir de
código icônico ou de metáfora das relações de poder, ambição e traição mostrando a tragicidade
da existência humana e a fragilidade dos limites entre “verdade” e “ficção”. Na passagem da
peça para um novo formato, considerando-se sua inserção no novo conjunto textual, a
materialidade de alguns fragmentos de cenas do teatro para a encenação fílmica rompem com
a linearidade da ação dramatúrgica.

33
Doutoranda no Programa de Pós-graduação em Letras da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (Unioeste).
Orientação do Prof. Dr. Acir Dias da Silva. E-mail: tkteatro@gmail.com

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O filme dos irmãos Taviani dialoga com as tendências da arte moderna e da arte
contemporânea de criar imbricação, de mesclar formas, meios, materiais, explorando
procedimentos de justaposição. A questão que se coloca é perceber ou reconhecer zonas de
contato 34entre as linguagens artísticas e os processos comunicacionais, onde essas linguagens
se valem dos mesmos procedimentos que serão operados de modos diversos e que resultarão
em criações singulares, acentuadas pela heterogeneidade das técnicas artísticas híbridas.
Toma-se aqui a noção atualizada de hibridização, tal como propõe a pesquisadora
Denize Correa Araujo “[...] hibridização no cotejo que proponho seria a coexistência de duas
estéticas distintas que dialogam e se complementam, criando um texto terceiro com elementos
de ambas as estéticas-base” (ARAUJO, 2007, p.71).
As criações mais heterogêneas e híbridas promovem deslocamentos dos signos de seus
usos habituais, desconstruções da linguagem que confere sentido ao mundo, desarticulações do
“real” com compreensão unívoca e totalizante; artifícios que fazem do espaço da criação (em
qualquer suporte: texto, palco, imagens picturais, escultura, corpo e assim por diante) um lugar
de potenciais devires que se atualizam e reinventam constantemente.
O filme César deve morrer tem como ponto de partida os ensaios da peça Júlio César
de Shakespeare para uma produção teatral, a ser encenada por atores que não são atores, em um
espaço sui generis, em corredores e celas de uma prisão de segurança máxima da Itália. Na
montagem, observa-se o cotejamento de distintos campos artísticos. Os diretores Paolo Taviani
e Vittorio Taviani transitam por experiências de fronteira entre linguagens e gêneros artísticos,
usando a literatura, o teatro, a música, a fotografia e o documentário como operadores de uma
prospecção híbrida, dialógica e polifônica.
Segundo Bakhtin (1993), o que caracteriza a polifonia de um texto - aqui, por analogia,
é possível referir-se ao filme como um texto, na medida em que é compreendido com uma
unidade significativa - é a posição do autor como regente do grande coro de vozes que
participam do processo dialógico. No filme são orquestradas diferentes vozes, que se enunciam
de diferentes lugares históricos e posições sociais, a saber, a voz do dramaturgo Shakespeare, a
voz dos diretores italianos que propõem uma releitura contemporânea da peça Júlio César, a
voz do diretor de teatro que ensaia uma peça como parte de um projeto social no interior do
presídio, a voz dos personagens romanos da peça clássica, a voz dos internos, não atores e
também personagens do presídio no contexto da Roma contemporânea. Entra em confluência o

34
O antropólogo James Clifford toma emprestado o termo "zona de contato" de Mary Louis Pratt (Imperial eyes:
travel, writing and transculturation. Londres, Routledge, 1992) Clifford, James. "Les musées comme zones de
contact". Dédale (Paris), nº 5-6, 1997, p. 251

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contexto do império romano, seus ditadores e relações de poder, lutas motivadas pela ambição,
traição, facções políticas e as vivências dos detentos, em sua maioria, relacionados a crimes da
máfia romana. Destaca-se a heterogeneidade dos elementos híbridos do filme documentário
como formas elaboradas de assimilação da realidade histórica e social esteticizadas na
linguagem do filme ao modo de uma estética da hipervenção.
A estética da hipervenção contribui para uma compreensão mais ampla dos principais
conceitos formulados a partir de Bakhtin, Kristeva, Deleuze e Guattari ao propor olhares sobre
aspectos do filme, tais como a criação de um texto hiperposto ao de base, mais especificamente,
aqui, no caso, a produção fílmica César deve morrer dos irmãos Taviani e a peça Júlio César
de Shakespeare. Apresenta-se aí, um dos aspectos do híbrido no filme, a inserção da estética
neorrealista no cenário contemporâneo do docudrama, da linguagem da produção digital,
desenvolvendo o cinema–arte em paralelo à linguagem do teatro, ao documentário, ao
imaginário sobre o cinema, articulando a problematização de uma “realidade” calcada na
história e no campo social, a exemplo do contexto da prisão italiana de segurança máxima e as
personagens que ali habitam, o contexto da Roma antiga e as relações de poder, ambição e
traição.
Visualiza-se no caráter híbrido e heterogêneo da montagem de César de morrer
princípios expressivos da forma épica de teatro, sobretudo, do “efeito de distanciamento”. Nesse
sentido, é importante observar a atuação de atores que não são atores, desconstrução das
barreiras do cenário, simultaneidade de temporalidades e espacialidades distintas, ambiguidade
entre “real” e ficcional, valorização das narrativas intercaladas dos detentos fundidas ao texto
clássico de Shakespeare, valorização da oralidade e dos dialetos regionais em contraste com os
discursos oficiais dos ditadores romanos, desconstrução de ideários de nacionalidade e pureza,
intervenção no fazer fílmico convencionado, justaposição entre formas artísticas, coexistência
de duas ou mais estéticas que se fundem ou se complementam.
Shakespeare costumava inserir nos diálogos de seus personagens falas de pessoas do povo
e excertos de discursos oficiais, o que conferia ao seu teatro dialogicidade e polifonia, a partir
do conjunto de vozes de diferentes camadas sociais colocadas em confronto ou por meio do
cômico ou na estrutura do trágico.
No filme César deve morrer a realidade da prisão irrompe na ficção do teatro e do
cinema. Há a interferência entre o real e a fábula, sendo pois, nesse ato de desvio, de
apropriação, de distanciamento, que se produz o fenômeno artístico.
O título César deve morrer atribuído à transcriação da peça Júlio César de William
Shakespeare poderia agir como uma metáfora para identificar o conteúdo ou o complexo estado

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emocional em que os ensaios são realizados pelos internos ao fundirem suas histórias pessoais,
o contexto histórico romano dos Césares e da história dos mafiosos. À medida em que os
personagens são apresentados e conhecemos suas histórias, as disputas internas e os dramas vão
se confundindo com a tragédia shakespeareana - a Roma antiga e a atual ligadas por uma sina
atemporal de penitência.
Neste aspecto, constatamos que na passagem da peça Júlio César de Shakespeare à
produção fílmica César deve morrer dos irmãos Taviani, o que, de fato, foi buscado pelos
diretores, foi o conteúdo das relações de poder, traição e ambição contidas na personagem
shakespeariana e não a motivação de uma adaptação do texto base, sendo que os elementos que
se destacam na narrativa fílmica partem destas relações para narrar outras histórias, não,
especificamente a história narrada por Shakespeare.

Cinema e Oficina Teatral

O filme César deve morrer narra a história de um grupo de presidiários que vai montar
a peça Julio César, de William Shakespeare. Os diretores documentam e transpõem para o
cinema, o trabalho de Fabio Cavalli, responsável por escalar e treinar detentos de um presídio
de segurança máxima em Rebibbia para peças teatrais encenadas no próprio local. É nessa
prisão real e figurada que a dupla de cineastas registra uma das peças dirigidas por Cavalli,
justamente Júlio César (de William Shakespeare). César deve morrer acompanha, em imagens
em preto e branco, todo o processo de criação da peça, do anúncio da nova oficina teatral,
passando pelo casting, até os intensos ensaios.
O filme mostra o resultado da encenação da peça, a realização do espetáculo,
retrocedendo à apresentação do projeto, aos dados do documentário, aos ensaios, à reforma do
teatro, à encenação e performance dos atores amadores, voltando à cena final e novamente ao
documentário em quadros condensados, totalizando 76 minutos de exibição.
As personagens de Shakespeare são grandiosas em sua ambiguidade, por isso, tipos
humanos, surpreendentes, o dramaturgo fazia questão de causar estranhamento com relação aos
personagens e ao próprio gênero, misturava elementos do cômico com elementos do trágico,
subvertendo a tragédia clássica por meio de elementos do cotidiano.
Júlio César é a primeira das grandes tragédias que Shakespeare iria escrever na primeira década
do século XVII, e marca uma modificação decisiva na orientação estética do autor, que até então
se ocupara com temas do cômico. Por volta de 1599, após as peças sobre a história inglesa,

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Shakespeare iniciou com Júlio César o ciclo das tragédias romanas. Talvez a escolha desta peça
pelos irmãos Taviani possa ter sido influenciada pela temática histórica romana.
A peça narra a história de um grupo de conspiradores liderados por Cássio e Casca, que
convencem um grande amigo de César, Bruto, a acompanhá-los em seu plano de assassinar o
grande general romano.
O grande Júlio César não é a personagem principal da tragédia que leva seu nome,
causando estranhamento. Observa-se a inversão de papéis, a peça Júlio César trata de Brutus.
“Shakespeare decide que a peça requer, precisamente, um César em decadência, uma mistura
mais do que plausível de grandeza e fraqueza” (BLOOM, 1998, p. 146).
Júlio César aparece em apenas três cenas, cabem-lhe poucos versos e é assassinado na
primeira cena do terceiro ato. Todavia, César está presente em toda a peça, conforme atesta
Bruto diante de Cássio, morto pelas próprias mãos.

Júlio César, ainda és poderoso!


Teu espírito vaga pela terra
E faz virar espadas contra
nossas próprias entranhas. (SHAKESPEARE, s/d, p. 102)

A eterna presença de César alude a uma profunda reflexão sobre cesarismos, opressão,
corrupção, tirania, política e poder. Estes elementos compõem, intertextualmente, a temática
do filme César deve morrer que funde elementos documentais e teatrais interpretados por
personagens “reais”, atores que não são atores em um espaço que causa logo de início um
estranhamento e que evoca, a partir da Roma antiga, a Roma contemporânea dos mafiosos,
corrupção, luta pelo poder, ambição, crime e traição.
A dialogia aponta para o caráter intertextual do filme, ou seja, vários textos dentro de
uma obra, a exemplo da peça Júlio César de Shakespeare e a produção fílmica César deve
morrer dos Irmãos Taviani. Contudo, observa-se que, na intertextualidade, tal como assevera
Kristeva (1974), as partes de textos que se incorporam em outro texto não são repetíveis, a
unidade repetida retorna diferente, já outra. O encontro não linear entre os textos (Júlio César
e o novo texto César deve morrer) rompe com a estrutura arbórea, permitindo que se observe
ao modo do rizoma, o jogo das ambivalências; o contexto do império romano antigo e o
contexto romano contemporâneo, o espaço da cela e o espaço do teatro.
Parece claro que os Taviani fizeram uma escolha consciente da peça para suscitar uma
reflexão crítica da plateia, mais do que inventar, quando os diretores escolheram esta peça

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escolheram-na pela discussão política. Tais reflexões remetem ao efeito de distanciamento35


elaborado por Bertolt Brecht ao problematizar a realidade cênica36, a fim de alertar o espectador
para entender o significado mais profundo do texto, o que resultará na criação de uma teoria do
épico37. Para Brecht a forma épica é a única capaz de apresentar as determinantes sociais das
relações inter humanas, como um modo de provocar a percepção, de deslocar a compreensão
de um suposto sentido unívoco e de ampliar as ressonâncias dos sentidos. Na montagem de
César deve morrer, a atuação de atores que não são atores, as dificuldades dos diretores, a
inclusão dos dialetos regionais no texto clássico, a música, o cenário, e o interior do presídio
contribuem para a quebra da chamada “quarta parede”.
Os Taviani, na montagem heterogênea e híbrida de César deve morrer, abordam sobre
como o teatro é importante para tratar de política, o que remete aos pressupostos do teatro
brechtiano, sobretudo as noções de “distanciamento” e “efeito alienante”. Tal Como Brecht, os
irmãos Taviani não permitem a identificação com os personagens; os cortes bruscos, a mudança
de cor e a música são ferramentas que Brecht (2005) usava para não permitir identificação.
Neste sentido, a estética neorrealista aproxima-se da técnica do “efeito de distanciamento”.
O termo “Verfremdungseffekt”, com que Bertolt Brecht designa o princípio básico de
sua dramaturgia, já foi traduzido para o português como “distanciamento”, “efeito de
distanciação”, “estranhamento”, “efeito-V” e até “efeito de alienação” (termo advindo de
algumas traduções francesas), segundo Bornheim (1992). Mario Vilaça (1966) prefere a
tradução “efeito de estranhamento ou efeito de alheamento”. Anatol Rosenfeld (1968, p. 122)

35
“O que é distanciamento? Distanciar um acontecimento ou um carácter significa antes de tudo retirar do
acontecimento ou do carácter aquilo que parece o óbvio, o conhecido, o natural, e lançar sobre eles o espírito
da curiosidade” (III, 101). “A finalidade dessa técnica do efeito de distanciamento consistia em emprestar ao
espectador uma atitude crítica, de investigação relativamente aos acontecimentos que deveriam ser apresentados.
Para isso, os meios eram artísticos” (III, 155). “A empatia consiste em tornar cotidiano o acontecimento especial;
já o distanciamento, ao contrário, torna especial o cotidiano” (V, 155)”. (BRECHT,1939, apud BORNHEIM,
1992, 243, grifos nossos). Obs.: As citações entre aspas, seguidas da numeração romana e de numeração de página,
referem-se às anotações de Brecht extraídas do ensaio intitulado Sobre teatro experimental, por Gerd Bornheim).
36
“No ponto de partida da elucidação desse conceito (efeito de distanciamento), observe-se o seguinte: o
distanciamento não constitui uma experiência especificamente teatral, embora desde que utilizada no teatro,
chegue a ostentar uma especificidade teatral. Mas a experiência em si, em qualquer sentido em que se possa
verificar, arranca sempre de uma constatação de base, assim, formulada por Brecht: ‘O desconhecido desenvolve-
se somente a partir do conhecido’ (V, 160)”. (BRECHT,1939, apud BORNHEIM, 1992, 243. Grifos meus)
37
“[...] A direção do espetáculo deve ser sóbria e saber trabalhar os conteúdos de modo frio, objetivo, clássico. [...]
Algumas vezes o conceito de épico aparece ligado ao documentário (I, 95 e 190). Ou a ideia de que a nova
forma de teatro deve ser coletiva (I231). Acena-se com insistência à necessidade de acentuar o lado racional: ‘O
drama épico vai aparecer desinteressante (frio) para aqueles que não estão acostumados a ver as situações como
problemas ou que não amam (ou temem) as perguntas’ (I, 221). (BRECHT,1939, apud BORNHEIM, 1992, p. 137-
138. Grifos meus)

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emprega a expressão “efeito de distanciamento (Verfremdungseffekt = efeito de estranheza,


alienação)”. Gerd Bornheim (1992) também emprega o termo “distanciamento”.
O efeito de distanciamento está articulado a não identificação no sentido brechtiano.
Logo na primeira sequência do filme, ocorre a quebra da “quarta parede”, por meio do relato da
cena da preparação dos atores, não atores (presidiários) para o ensaio da peça a ser apresentado
na temporada do laboratório teatral do presídio de Rebibbia. O corte abrupto e a mudança de
cor contrapõem o expectador à cena. O expectador é levado ao reconhecimento de que não está
assistindo no cinema a peça de teatro Julio César de Shakespeare e que o objeto conhecido, a
peça clássica, será o objeto de investigação sobre o homem seus motivos e movimentos.
Também Shakespeare não conta a história de Júlio César, mas, a partir deste líder
romano, coloca em evidência, no palco, a tragédia de Brutus, figura trágica que deverá conviver
com suas paixões e seus remorsos revolvendo-se e explodindo como se um novo Vesúvio lhe
surgisse das entranhas. A Brutus cabe a ação dramática e o protagonismo da história.
Shakespeare em seu tempo inovou em vários aspectos o teatro antigo, sobretudo, rompendo
com a visão totalizadora do herói e com a ideia de pureza dos gêneros, misturando elementos
do épico antigo e da comédia em suas tragédias.
No filme César deve morrer, cada cena terá em si mesma a sua tensão, ao contrário da
linearidade clássica em que uma cena liga-se a outra. Os acontecimentos na narrativa fílmica
ocorrem em curvas, aos saltos, instaurando o distanciamento que vai fundir elementos do teatro
e do documentário por meio de uma montagem híbrida marcada pela estética neorrealista que
por sua vez dialoga com pressupostos do teatro brechtiano, a exemplo da presença de elementos
de expressão cênica que remetem ao efeito de distanciamento.
No elenco do filme atuam atores, detentos e ex-detentos que participaram do projeto de
dramaturgia nas prisões sicilianas sob coordenação de Fabio Cavalli e após terem cumprido
pena passaram a atuar como atores profissionais no teatro e no cinema e em diversas atividades
artísticas e educacionais, a exemplo Salvatore Striano e Cosimo Rega.
A temática da peça de Shakespeare – a narrativa da conspiração contra o ditador romano
Júlio César em 44 a.C., enfocando as relações de poder e luta pela liberdade -, é enfatizada
desde a primeira sequência do filme. A montagem é pautada no imbricamento entre o
biográfico e o fabulado, em um jogo em que a representação cênica se confunde com a própria
vivência da prisão, evidenciando o jogo polifônico e o princípio dialógico na montagem do
filme.
A tríade teatro, cinema, documentário opera de maneira diversa, em estrutura de encaixe.
Esta estrutura potencializa o entrecruzamento de várias vozes em tensão.

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A primeira sequência do filme mostra a cores, cenas da peça Júlio César no palco do
teatro de Rebibbia. A segunda sequência, em preto e branco mostra o espaço hiper real dos
ensaios dentro do presídio, com destaque para o documentário, em consonância com a estética
neorrealista que conta a história de um grupo de presidiários, dirigidos pelo diretor de teatro
Fábio Cavalli, responsável por escalar e treinar detentos de um presídio de segurança máxima
em Rebibbia para peças teatrais encenadas no próprio local.

Considerações finais

A estética da hipervenção em César deve morrer se manifesta pela intervenção que se


dá no contato entre as artes, teatro, cinema, literatura e documentário e no encontro rizomático
de estéticas que se interconectam, a exemplo da estética neorrealista, da estética do cinema de
autor e da técnica do distanciamento. O resultado destes encontros não lineares potencializa a
mise-en-scène baseada na teatralidade, no espetáculo e na linguagem do documentário.
O público obriga-se a confrontar o jogo discursivo produzido no contato entre as
linguagens artísticas e comunicacionais, buscando, no discurso dialógico, na soma das partes
que se complementam e se desmentem, uma possível “verdade” dos fatos, na perspectiva de
observador impelido para a conscientização, como ser social que determina o pensamento, que
interroga a história e a própria linguagem que a narra; o que remete ao homem e a linguagem
como objetos de análise na perspectiva posta por Brecht, cujas reflexões se aproximam do
caráter dialógico do discurso, tal como reflete Bakhtin.
A montagem de César deve morrer propõe uma leitura para além da intertextualidade,
indicando o caminho de uma hipertextualidade expressa mais em conteúdo do que em forma,
já que interessa, aos diretores, utilizar da peça de teatro Júlio César, o conteúdo e não o gênero
teatral. A estrutura do gênero tragédia é diluída para criar um outro texto em um novo formato.
Toda vez que ocorre a ruptura com o gênero vem à tona novos conteúdos. O hipertexto indica
uma leitura não linear. Um texto com vários caminhos que permitem aos leitores fazer escolhas
na construção de significados. Podendo se entender ainda, a hipertextualidade como uma série
de vestígios de textos conectados por caminhos significantes. A leitura hipertextual torna
possível produzir textos não lineares interconectados com outros textos a partir de palavras,
imagens ou outros objetos, o que se traduz em termos de hibridização e conduz para a questão
da criação de um texto hiper, culminando em uma estética da hipervenção. Destaca-se a
importância da dramaturgia shakespeariana na transformação dos gêneros literários e na

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inovação estética do teatro e do cinema, na medida em aspectos de uma estética heterogênea e


híbrida já estavam postos nas produções de Shakespeare.
César deve morrer recorre ao texto base Júlio César para dialogar com as temáticas
essências do texto clássico, com os personagens da peça shakespeariana e, por meio da
recontextualização em nova temporalidade histórica e em cenário totalmente distinto da
tragédia de Shakespeare, cria um texto hiperposto. A hipervenção articula o encontro das
estéticas diferentes, as vozes dissonantes e plurais, o jogo polifônico, o encontro de textos no
interior do filme e cria uma nova realidade, um novo patamar, realizando a justaposição de
registro documental e construção poética.
Os diretores de César deve morrer se utilizam da linguagem do teatro e da proposta
estética do cinema neorrealista para construírem um outro texto, onde são desconstruídas as
barreiras do cenário para que o texto se liberte de suas amarras e se concentre em sua essência.
A presença de um diretor de teatro dentro do filme questiona o fazer fílmico, convergindo o
efeito de distanciamento brechtiano, a quebra da quarta parede com a proposta estética do
cinema neorrealista.

Referências

ARAUJO, Denize Correa. Imagens Revisitadas: Ensaios sobre a Estética da Hipervenção.


Porto Alegre: Sulina, 2007.

BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. Trad. de


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BLOOM, Harold. Shakespeare: a invenção do humano. Trad. José Roberto O’Shea, revisão
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BRECHT, Bertold. Estudos sobre Teatro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005.

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VILAÇA, Mário. Do teatro épico. Vértice - revista de arte e cultura, Coimbra, n.271-272,
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Encontro Intermediário do GT Dramaturgia e Teatro da ANPOLL
IV Seminário Nacional de Dramaturgia e Teatro: Teatro e Política

Filmografia
CÉSAR DEVE MORRER. Direção e roteiro: Paolo Taviani, Vittorio Taviani. Produção:
Itália/2012. Produtores: Europa Filmes. Filmado em maio-agosto 2012. Duração: 76 min.

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O programa de televisão, de Michel Vinaver: fragmentos da realidade cotidiana

Renata Guardia Ferreira (PPG/UNIANDRADE)38

Resumo: O tema principal da peça O programa de televisão (1990), de Michel Vinaver (1927)
pode ser resumido no universo do homem após seus 50 anos de idade, suas limitações,
expectativas e realidade social. O autor da peça flagra a realidade do cotidiano, tanto familiar
quanto social, instigando o espectador a raciocinar e questionar-se sobre como manipulamos e
somos manipulados. Esse texto é o mais próximo de Molière e nos informa sobre um problema
contemporâneo: o desemprego. Ironicamente, dois homens desempregados, de cinquenta anos,
são candidatos para ilustrar a condição de desempregado num programa televisivo, e duas
jornalistas concorrentes transformam os dois homens em rivais. A brutalidade do mundo
contemporâneo delineia-se diante do espectador com o assassinato de um dos homens. Vinaver
denomina seus textos de peças-paisagem, fragmentos da realidade cotidiana, sem o
encadeamento causa-efeito, sem progressão dramática e sem desenlace no sentido
convencional. Essas e outras especificidades textuais serão examinadas, nesse ensaio, à luz das
considerações teóricas de Jean-Pierre Sarrazac, Hans-Thies Lehmann e Patrice Pavis.

Palavras-chave: Michel Vinaver; Peça-paisagem; Fragmentos do cotidiano; Aspectos pós-


dramáticos.

Introdução

O presente artigo tem por finalidade discutir a peça O programa de televisão de Michel
Vinaver. Buscamos através do texto vinaveriano, denominado paisagens do cotidiano, entender
os aspectos formais e conteudísticos de sua peça. O autor, ao invés de contar uma história,
apresenta paisagens fragmentárias, nas quais cada detalhe ganha releveo, impedindo a
instalação hegemônica de um ponto de vista definido. O teatro de Vinaver, segundo Catarina
Sant’Anna (2007), retrata o tempo presente através de acontecimentos em curso, em momentos
críticos, aproveitando-se de notícias recortadas da imprensa diária. Através de colagens desse
material, são misturados fatos de certa envergadura da rede midiática e publicitária, a uma
miríade de fatos minúsculos e absolutamente banais do cotidiano de gente comum.

38
Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Teoria Literária pelo Centro Universitário Campos de Andrade
– Uniandrade. Orientadora Profa. Dra. Anna Stegh Camati. E-mail: renatinhaguardia@hotmail.com
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O programa de televisão: entre o dramático e o pós-dramático

É possível notarmos na peça em questão, a realidade retratada por fragmentos díspares


em colisão irônica, ficando difícil a compreensão da vida social. O autor denomina seus textos
como “peças-paisagem”, justaposição de elementos descontínuos de caráter contingente, num
emaranhado sem causa e efeito, sem hierarquização e tão pouco com ponto de vista privilegiado,
como se percebe a seguir:

Nunca tive intenção de escrever peças históricas. Interessei-me sempre pela


ganga bruta do quotidiano tal qual eu posso captá-la, mas, bem entendido,
como o que esse quotidiano comporta de ressonâncias do evento político [...]
é, portanto, o entorno histórico no qual banha o quotidiano que me interessa
mais que o próprio evento histórico. [...] É talvez a melhor maneira de escrever
uma peça histórica. (VINAVER, apud SANT’ANNA, 2007, p.17)

Vinaver não faz uso de sinal de pontuação, somente interrogações, com isso cria-se a
linguagem vinaveriana, performática, sendo que, se formos alterá-la para torná-la mais clara,
segundo Catarina Sant'Anna (2007), desvirtuaria enormemente a peça.
Jean Pierre Sarrazac (2002), em O Futuro do Drama, diz que escrever no presente não
é contentar-se em registrar as mudanças da nossa sociedade, é intervir na “conversão” das
formas.
Ainda em O Futuro do Drama, para Sarrazac (2002), Vinaver não veste o tema como
uma vestimenta teatral, realiza a fusão do material extraído da realidade e dos procedimentos
formais. Em Vinaver, a distinção em forma e conteúdo parece tanto mais caduca quanto própria
noção do tema se encontra desqualificada: “Para mim, a forma, o tema da peça mantém
indeterminado, não há nada que consiga motivar-me a escrever sobre um tema. O que
inicialmente me interessa apresenta-se de forma nebulosa” (VINAVER, citado em
SARRAZAC, 2002, p. 35).
A participação de um dos personagens no reality show, daria oportunidade de
redescobrir alguns sentimentos como confiança e autoestima. A peça alterna dois períodos entre
as cenas que antecedem o assassinato e as cenas do interrogatório dos possíveis acusados.
Temos a impressão que o sujeito do texto possui em suas mãos um controle remoto, e ele alterna
o passado e o futuro entre dois mundos.
Desde a primeira cena, Vinaver aguça a curiosidade do leitor, mesmo sem explicações,
durante toda a peça, o espectador tende a ficar dividido entre o desejo desvendar o motivo que
levara alguém a cometer um assassinato, e o desejo de saber qual dos desempregados será o

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melhor candidato, para atuar em um reality show. A citação abaixo evidencia esta
indeterminação:
DELILE – Meu caso como vocês souberam que
Como meu caso
ADÉLE – Veio a nosso conhecimento?
É nosso ofício
BEATRICE- Somos pagas para isso
ADÉLE- A gente tem contatos
BEATRICE - Se informa
DELILE – Vocês nadam? Salto de barras vocês fazem?
E depois. (VINAVER, 1990, p. 52)

Estão presentes na peça, o desânimo e a depressão causados pelo desemprego, um


homem após seus cinquenta anos deixa de ter importância, não há mais espaço na sociedade,
torna-se um indivíduo descartável. A base familiar é abalada, o sentimento de dever não
finalizado em uma vida, com espaço para desempenhar seu papel social, torna o indivíduo inútil,
como mostra Vinaver:
SRA DELILE – se ele pratica bicicleta? [...] Depois que caiu no desemprego
ele continuou, mas cada vez menos e depois parou de vez
BEATRICE – [...] De modo como concebemos esse programa haverá um certo
número de itinerários trágicos tão variáveis quanto possível que serão ligados
por um tema comum o desemprego e o efeito destruidor que ele produz sobre
o tecido familiar, mas também sobre a personalidade profunda do indivíduo.
(VINAVER, 1990, p. 53-55)

No decorrer da obra, nos questionamos sobre a escolha de um dos candidatos ao


programa de televisão e o que realmente o Sr. Delile tem contra o Sr. Blanche: ódio, raiva?
Seriam estas as palavras corretas? Podemos notar no desenvolvimento da peça, a tensão quando
Delile flagra Blanche sentado ao lado de sua esposa. Fica explícito no trecho abaixo o
desconforto que atinge o personagem:

DELILE [...] eu entro em casa naquela manhã o que não estava previsto
Blanche sentado ao lado minha mulher na cozinha eu os vejo de costas e não
sei que raio me atravessa eu sinto minhas pernas me abandonarem em menos
de um instante eu tinha tudo imaginado. (VINAVER, 1990, p. 94)

O personagem Delile, ao ser informado que estava disputando um papel com seu rival
Blanche, deixa aflorar os sentimentos de insegurança e ciúmes, levando o espectador ao desejo
de entender o desfecho da trama:

SRA DELILE – não combina com você duvidar


Entre você e Blanche é você quem pensava sempre que as coisas só podiam
dar certo Pierre [...]
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DELILE – Você faria melhor se não falasse de Blanche


SRA DELILE- O que deu em você? Pierre
Você me disse, no entanto, que isso estava acabado e bem-acabado
DELILE – E é por isso que você volta a falar disso?
SRA DELILE- Sim porque já acabou
DELILE – Acabou não falemos mais disso. (VINAVER,1990, p.60-61)

As atividades cotidianas sob a ótica vinaveriana, transformam-se em ações cênicas,


que podem ser entendidas também como teatro de pequenos gestos, que representam realidades
particulares e diárias, e ao mesmo tempo, representam o contexto social da época, como se lê
neste pequeno excerto: “Uma escrita poética calcada num inteligente processo de composição
que reelabora o real pela linguagem, ou, a flor da linguagem” (‘au ras du langage’, termo seu).”
(SANT’ANNA, 2007, p. 12)
Para Sarrazac (2007), a fragmentação diz respeito ao infinitamente pequeno teatral a
réplica, assim como ao infinitamente grande, a obra inteira. Esta torna-se então um imenso
fragmento, como um mundo arrancado do mundo, significando ao mesmo tempo sua totalidade
e sua completude. A seguir temos um trecho da peça, que ilustra a escrita de Michel Vinaver,
demonstra a desordem dos diálogos, as fragmentações com sobreposições de vozes, levando o
espectador/leitor a construir em seu imaginário cenas entrelaçadas:

JACKY – Você
SRA DELILE – Após esses quatro anos de pavor
PAUL – Por que eu teria matado Blanche? [...]
SRA DELILE – É maravilhoso
DELILE – A gente se sente renascer
JACKY – Paul
Estrume
Você quer confundir tudo
SRA DELILE – É uma nova vida
JACKY – Eu te amo
PHÉLYPEAUX – Está pronto para depor?
PAUL- Se quiser mas o senhor está sabendo
SRA DELILE – Terminou a vergonha
PHÉLYPEAUX – Senhorita Belot tome este depoimento. (VINAVER 1990,
p. 140)

A dramaturgia de Vinaver, rompe com a linearidade da escrita, nas cenas acima sem
pontuações, salvo apenas os pontos de interrogações, deixa claro que a fragmentação textual,
faz parte da estética do autor. As sobreposições indicam situações que não estão explícitas no
texto, gerando assim entendimentos múltiplos sobre a peça. Propositalmente, os desfechos dos
acontecimentos cênicos, geram no espectador diversas possibilidades de interpretações.
Abaixo, citação de Lehmann discorre sobre a construção não linear:

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[...] Foi determinante para a estética teatral o deslocamento da obra para o


acontecimento. É certo que o ato da observação, as reações e as “repostas”
latentes, ou mais incisivas dos espectadores desde sempre haviam constituído
um fator essencial da realidade teatral, mas nesse momento se tornam um
componente ativo do acontecimento, de modo que a ideia de uma construção
coerente de uma obra teatral acaba por se tornar obsoleta: um teatro que inclui
as ações e expressões dos espectadores como um elemento de sua própria
constituição não pode se fechar em um todo nem do ponto de vista prático nem
teórico. Assim, o acontecimento teatral torna explícitas tanto a
processualidade que lhe é própria quanto a imprevisibilidade nela implícita.
(LEHMANN, 2007, p. 100)

As falas fragmentadas das peças do dramaturgo nos levam a pensar que os personagens
não têm consciência do próprio destino, são homens comuns, amarrados a uma realidade
socioeconômica desgastante, vivem sob pressão, em uma bolha cotidiana prestes a explodir. O
autor promove ao leitor/espectador sentimentos diversos, pois, seus personagens na peça em
análise estão em busca de um devir nebuloso, em busca de melhores condições que parecem
inalcançáveis. O teatro vinaveriano possui alguns elementos dramáticos e outros pós-
dramáticos e, portanto, pode ser inserido no “pós-dramático” como ressalta Patrice Pavis:

[...] Depois da fase de “revogação da representação” (Lehmann, 1990) os


textos sem voltarem a ser peças bem feitas, contam novamente histórias,
representam elementos do real, se prestam a efeitos de personagens. Este
retorno não tem nada a ver com uma restauração reacionária, trata-se,
simplesmente, de uma tomada de consciência a cerca do fato de que toda obra
e todo discurso humano narram sempre alguma coisa. (PAVIS, 2014, p. 20)

Para concluir, destacamos as considerações críticas de Catarina Sant’Anna, a qual em


um pequeno trecho esboça com precisão a poética de Michel Vinaver:

Ler Vinaver consiste em tatear o texto, como que cria-lo no momento justo da
leitura, o que proporciona um prazer estético suplementar, uma fruição já
evidente de “receptor-criador” que interage, ousa, avança, para, refaz e, desse
modo, visualiza a cena, veste o personagem, age com ele, compreende-o, passa
a ouvi-lo, tal como sucede nas falas entrecortadas, sincopadas da vida
cotidiana. O mistério não se desfaz, todavia. Restam as pausas e os silêncios a
demandar o tom adequado, bem como ritmo certo para trocas de fala e
interrupções. É o fenômeno da oralização teatral que brota no leitor e faz dele
um ator, um encenador do que lê. Somos impulsionados a ler em voz alta, a
experimentar as falas, a descobrir no final a simplicidade de tudo, enfim.
(SANT’ANNA, 2007, p.13-14)

As peças do autor são denominadas como peças-paisagem, visto que seus texto não se
enquadram em um modelo convencional. Devido a essa não conformidade, não é possível
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analisar as peças pelo viés dramático, o autor aboliu a estrutura tradicional, o ritmo previsível
dos diálogos e o desenvolvimento lógico da narrativa, criando assim uma póetica singular.

Referências

LEHMANN, Hans-Thies. Teatro pós-dramático.Trad. Pedro Süssekind. São Paulo: Cosac


Naify, 2007.

PAVIS, Patrice. Teatro pós-dramático. In: CARRERA, André: BAUMGÄRTEL, Stephan.


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Florianópolis: Letras Contemporâneas, 2014, p. 9-23.

SANT’ANNA, Catarina: Vinaver à flor da linguagem: entre heranças vanguardistas e


brechtianas. In: VINAVER, Michel. Dissidente; O programa de televisão. Trad. Catarina
Sant’Anna. São Paulo: EDUSP, 2007, p.11-18.

SARRAZAC, Jean Pierre. O futuro do drama: Escritas dramáticas contemporâneas. Trad.


Alexandra Moreira da Silva. Porto: Campo das Letras-Editores, S.A., 2002.

SZONDI, Peter. Teoria do drama moderno (1880-1950) Trad. Luís Sérgio Repa. São Paulo:
Cosac Naify Edições, 2001.

VINAVER, Michel. Dissidente; O programa de televisão. Trad. Catarina Sant’Anna. São


Paulo: EDUSP, 2007.

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O submundo do cais: Querelle de Brest e Jean Genet no teatro de Cesar Almeida

Caroline Marzani (PPGL/UFPR)39

Resumo; Este trabalho apresenta uma análise sobre a transposição do romance Querelle de
Brest (1947) de Jean Genet, para a dramaturgia e encenação de Cesar Almeida, intitulada
Querelle (1999). Realizamos neste artigo aproximações entre os dois autores, que apresentam
uma escrita sobre personagens marginalizados, como prostitutas, gays e bissexuais, além de
trazerem retratos da violência e criminalidade, com ladrões e assassinos. Ambos os autores
transgridem a escrita literária, trazendo textos de conteúdo homoerótico e revelando em
Querelle o submundo do cais: Genet ambienta a narrativa na cidade francesa de Brest, enquanto
Cesar Almeida nos traz a cidade paranaense de Paranaguá como lugar de ação de sua peça. A
partir da teoria de Gérard Genette (1989) e Linda Hutcheon (1991) discorremos sobre a ideia
de hipertexto e intertextualidade. Para tanto, analisamos neste trabalho a escrita dramatúrgica e
o vídeo do espetáculo de Cesar Almeida, comparando-a com o romance de Jean Genet.

Palavras-chave: Querelle de Brest; Cesar Almeida; Jean Genet; hipertexto.

Introdução

Este trabalho apresenta uma relação entre a escrita de Jean Genet, o autor “mais
extremista de toda a literatura mundial”, ou ainda, “o poeta da marginalidade, do crime e da
homossexualidade” (GENET, 1986), como afirmou J. P. Sartre; e Cesar Almeida, dramaturgo,
ator e diretor que também polemiza a plateia da cidade de Curitiba com temas eróticos, queer e
político. O primeiro deles, Genet, possui uma agitada biografia já que, ainda criança, foi
rejeitado pelos pais, adotado por uma família de camponeses religiosos e iniciado na
criminalidade na adolescência. O autor francês, considerado o primeiro de sua turma,
apresentava excelentes resultados escolares, especialmente na escrita de redações. Porém, seu
desvio para o furto levou-o a prisões e colônias penais, sendo novamente preterido pela segunda
família. É num desses internatos para adolescentes que o jovem Genet tem as primeiras
experiências homossexuais.
É no cárcere que Genet inicia os primeiros esboços literários, como seu primeiro poema,
O Condenado à Morte (1942). O autor ainda escreveria diversas obras, não necessariamente na
prisão, como os romances Nossa Senhora das Flores (1943), O milagre da Rosa (1946),
Querelle (1947), Diário de Um Ladrão (1949), além das peças teatrais As criadas (1946), O

39
Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Paraná (UFPR), sob
orientação do Prof. Dr. Walter Lima Torres. E-mail: carolinemarzani@hotmail.com.
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balcão (1957) e Os negros (1958). Seus temas polêmicos apresentam o universo da


criminalidade, da violência, das instituições hierárquicas, do amor e da homossexualidade,
muitos deles juntos em uma mesma obra.
Como Genet, Cesar Almeida nos traz textos também com essas e outras temáticas, como
gênero e sexualidade, cultura queer, erotismo, tecnologia, a “coisificação” do indivíduo, a perda
de valores humanos, os fake News, a servidão voluntária, o tédio, a sátira política, a cultura de
aplicativos, a iconografia pop, os tabus variados e a gerontofobia. Possivelmente, por conta do
tratamento de temáticas vistas ainda como tabus, seu trabalho na cidade é sinônimo de ousadia,
haja visto, por exemplo, a escolha de não vinculação de nomes de patrocinadores em seus
trabalhos40. Porém, como Almeida afirma: “Eu não vou me poupar, entendeu? Eu acho que a
minha arte é o único lugar em que eu não preciso me poupar. Que eu não preciso me censurar.
Eu não preciso me esconder, entendeu? ” (ALMEIDA, 2016).
O artista discute em seu teatro esses conteúdos desde o ano de 1982 na cidade de
Curitiba, Paraná. Sua dramaturgia está reunida em quatro obras intituladas O teatro da Rainha
de Duas Cabeças (volumes 1, 2, 3 e 4). Uma das características de seu trabalho é a relação
intertextual e/ou intermidiática com outras peças teatrais, romances, filmes, músicas, poemas e
tratados filosóficos. Seu mais recente trabalho, Cesar, o Vampiro, estreado em setembro de
2019 no Teatro Mini Guaíra (Miniauditório Glauco Flores de Sá Brito), faz referências, por
exemplo, aos escritos literários do curitibano Dalton Trevisan.
Com uma dramaturgia e encenações híbridas, ácidas, debochadas e irônicas, Cesar
Almeida mescla gêneros artísticos em seus escritos e representações, utilizando-se de
referências da filosofia, do cinema, das artes visuais, do jornalismo, da performance e literatura,
principalmente, causando, no mínimo um estranhamento do leitor-espectador. Nesta análise
focaremos mais no texto dramatúrgico, destacando apenas alguns pontos da encenação a partir
de gravação de vídeo do espetáculo, disponível na plataforma digital YouTube41. O texto teatral
Querelle, adaptado por Cesar Almeida, foi disponibilizado pelo autor para a realização deste
trabalho, não sendo encontrado em nenhuma de suas obras, por conta de direitos autorais.

40
FUCHS, Franco Caldas. Entrevista Cesar Almeida. 2007. Disponível em:
<http://francofonia.blogspot.com/2007/09/entrevista-csar-almeida-parte-1-origens.html>. Acesso em: 30 set.
2019.
41
QUERELLE. Direção de Fernando Severo. Produção de Isydoro Diniz/ Rainha de 2 Cabeças. Realização de
Cesar Almeida. Música: Plínio Campos. 1999. (73 min.), son., color. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=Cj5AvhxN-kE>. Acesso em: 30 set. 2019.
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Hipertextos em Cesar Almeida

Percebemos, como uma das características da dramaturgia de Cesar Almeida, o uso de


textos literários e teatrais de diferentes épocas e autores. A intertextualidade, segundo Linda
Hutcheon (1991), substitui o relacionamento autor-texto por um relacionamento entre leitor e
texto. Ou seja, a ideia de originalidade e de escrita homogênea e fechada é contestada. Ainda,
“ uma obra literária já não pode ser considerada original; se o fosse, não poderia ter sentido para
seu leitor. É apenas como parte de discursos anteriores que qualquer texto obtém sentido e
importância.” (HUTCHEON, 1991, p. 166).
A partir dessa ideia da autora podemos compreender, então, que todos os textos fazem
referências a outros anteriores. Similarmente pensa Gérard Genette sobre as contaminações
textuais, porém o autor utiliza-se do termo hipertextualidade e o resume como “un aspecto
universal de la literariedad: no hay obra literaria que, en algrado y según las lecturas, no evoque
otra, y, en este sentido, todas las obras son hipertextuales” (GENETTE, 1989, p.19). Genette
chama o texto anterior A de hipotexto, enquanto o texto B, modificado e originado do primeiro,
é o hipertexto.
Cesar Almeida, já em sua primeira montagem, Aceitam-se encomendas de vestidos de
noiva, de 1982, faz referência à obra de Nelson Rodrigues Vestido de noiva, não somente no
título da peça, mas também ao explorar os planos da realidade e do onírico no texto. Seguindo
uma sequência cronológica, temos as peças teatrais de Almeida que possuem intertextualidades
evidentes: Eduardo II (1993), Hamletrash (1996), Macacabeth (2003) e Hamlet (Ego) Trash
(2013), hipertextos de obras Shakespearianas; Des Esperando Godot (2000), texto baseado em
Esperando Godot, de S. Beckett; As lágrimas ressuscitadas de Dorian C (2000), fazendo
referência à O retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde; O Evangelho GLS de São Sebastião
segundo Cesar Almeida (2007), baseado em O Evangelho segundo Jesus Cristo, de José
Saramago; Guernica (2012), do hipotexto homônimo de Fernando Arrabal e Piquenique (2015),
também do autor espanhol; e por fim Querelle (1999), baseado em obra homônima de Jean
Genet, sobre a qual nos debruçaremos neste texto.
Esses são alguns dos textos que pudemos observar, de forma mais direta, que fazem
referências a outros anteriores. Seria necessária uma análise mais minuciosa e um maior
repertório literário, cinematográfico ou teatral para relacionarmos com outros títulos.
Frequentemente, essas adaptações aparecem de forma parodiada, satirizada e cômica. Em
Querelle, temos uma dramaturgia- hipertexto que se aproxima bastante do hipotexto, porém o
tom de deboche é presente e evidenciado em alguns momentos, especialmente na encenação.

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Para Hutcheon, “a paródia não é a destruição do passado; na verdade, parodiar é


sacralizar o passado e questioná-lo ao mesmo tempo. E, mais uma vez, esse é o paradoxo pós-
moderno.” (HUTCHEON, 1991, p.165). A paródia no texto de Almeida evidencia os
questionamentos sobre masculinidade, homossexualidade, sensualidade e erotismo trazidos
anteriormente por Genet. Temos, por exemplo, no texto de Almeida, a personagem de Madame
Lysiane transformada na cantora Elisiane de um bar decadente, Bar da Jana. Na dramaturgia
vemos indicações para que a personagem interprete canções brasileiras bregas, a exemplo de O
amor e o poder (1987), da cantora Rosana, ou ainda Like a virgin (1984), música popular de
Madonna, atestando o tom debochado da adaptação de Almeida. Na representação, o deboche,
a ironia e comicidade de Elisiane são reforçados pela interpretação da atriz, que nos ambienta
num lugar que está entre o cabaré e o boteco de beira de estrada.

Os Querelles: aproximações e contrastes

Querelle de Brest, de Jean Genet, é publicado pela primeira vez em 1947 e tem como
cenário o porto de Brest na França. Já Querelle de Cesar Almeida é escrito e estreado em 1999,
em Curitiba, e é ambientado na cidade portuária paranaense de Paranaguá. Genet aproxima-se
de Querelle no sentido que ambos tiveram contato com a criminalidade ainda adolescentes: o
autor com os furtos e o personagem com os assassinatos, roubos e tráfico de drogas. Já a questão
da homossexualidade e da masculinidade são tratadas por Genet e Almeida em diversos
trabalhos, contestando padrões heteronormativos. Sobre esses personagens, Edmund White
afirma que “o mundo de Genet é um mundo de criminosos bonitos, violentos, traiçoeiros;
cafetões mimados, covardes, não muito inteligentes; e travestis valorosos, ainda que histéricos.
Nenhuma normalidade monótona é admitida [...]”. (WHITE, 2003, p.49)
Ademais, é um universo permeado por figuras masculinas. Em ambos os Querelles, de
Genet e Almeida, a maioria dos personagens são homens, sendo Madame (Lysiane ou Elisiane)
a única figura feminina a aparecer nestas narrativas. E Madame não é apenas a dona do bar, ou
amante dos irmãos Querelle e Robert, mas também opera como uma espécie de matrona, que
briga, acolhe, aconselha e acarinha ao mesmo tempo, como vemos nesta fala de Elisiane para
Roberto, ao se referir à briga entre este e o irmão Querelle: “Você tá estranho desde que ele
chegou... relaxe, vem com a mamãe, vem, tá precisando de carinho”. (ALMEIDA, 1999, p.6).
É Madame que em ambos os textos vê parte da criminalidade e dos relacionamentos entre os
personagens acontecer, constituindo-se em figura importante na trama. Em Almeida, Madame
ganha mais destaque ao ligar ou comentar, muitas vezes, uma cena à outra através de uma

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canção, lembrando-nos do coro grego. Ao todo, Madame Elisiane canta sete músicas no
texto/encenação de Cesar Almeida.
Além disso, os títulos das obras são mantidos em parte: Querelle de Brest, em Genet, e
Querelle, em Almeida. Querelle em francês pode significar disputa e, pensando no personagem
protagonista, ele sempre está confrontando, lutando contra algo ou alguém na narrativa, seja no
enfrentamento com as hierarquias (policiais, familiares, etc), seja no embate com outros homens
por questões sexuais, ou ainda consigo mesmo, lutando para mostrar-se uma figura máscula,
nada sensível, dura, fria e destemida. Em Genet, há uma pequena explicação sobre o nome do
Porto de Brest: “se ‘brester’. De bretteur (brigão), sem dúvida: querelar-se” (GENET, 1986,
p.11). Há ainda, na obra de Genet, navios nomeados com títulos que se relacionam com este
ambiente de briga, violência e criminalidade: o Vingador, a Pantera, o Vencedor e o Sangrento.
Em se tratando dos títulos dos capítulos ou cenas das obras, temos em Genet uma única
divisão, intitulada A Glória de Querelle (p.149). Esse título refere-se, possivelmente, ao triunfo
de Querelle ao encontrar-se com Gil e nele poder depositar a culpa pelo crime que cometeu.
Além disso, é por Gil que Querelle apaixona-se e planeja assaltos que lhe rendem algum
dinheiro. Esse único título parece dividir a obra em duas partes: Querelle antes e após a vitória.
Se não fosse o encontro com o personagem Gil, seu destino provavelmente seria o da prisão.
Em Almeida, temos a divisão dramatúrgica em Prólogo, 19 cenas com nomes dos personagens
que atuam nelas e Final. Aqui, o texto/espetáculo inicia e termina com Madame cantando,
enquanto o personagem Tenente declara seu amor por Querelle. Já em Genet, vemos na última
cena Querelle despedindo-se de Madame. Provavelmente, por questões de redução temporal, o
amor de Tenente por Querelle fica mais evidente em Almeida.
As cores que ambientam Brest e Paranaguá, porém, são um pouco diferentes. A cidade
de Brest é descrita como um lugar duro, sólido e cinza. As roupas dos marinheiros são
retratadas, frequentemente, como sujas de carvão, ou outra sujeira, e suor:

Sua calça é a calça de marujo mais suja que já vi. Seu eu pedisse a ‘Ele’ uma
explicação sorriria, jogando sua boina para trás: ‘Isso, são os caras que me
chupam. Enquanto eles mamam, batem uma bronha na minha calça’.
(GENET, 1986, p.27)

Em Almeida, essas cores não são descritas no texto, mas aparecem na encenação:
figurinos brancos e limpos para os marinheiros, e figurinos mais escuros para os outros
personagens. O que há em comum entre o texto de Genet e a encenação de Almeida é a cor
vermelha/rosa. No primeiro, ela aparece nas cenas de mortes e brigas ou ainda em descrições
de corpos machucados ou doentes, como nos trechos: “Tão naturalmente quando pode, tirou
132
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sob os lençóis a cueca que, manchada no fundilho de um pouco de merda e de sangue, sob o
sol, atraía as moscas. ” (GENET, 1986, p.93) e “[...] que passava maquinalmente e com volúpia
– não uma voluptuosidade de conteúdo erótico – um dedo leve, quase carinhoso, sobre aquela
excrescência de carne sensível que ele supunha de um rosa muito pálido” (GENET, 1986,
p.141). Em Almeida, a cor vermelha aparece em todo o cenário: as paredes e o chão são
vermelhos, nos remetendo a bordéis ou fazendo referência a esse ambiente violento e sensual,
ao mesmo tempo.
Ainda sobre os personagens, selecionamos mais três para discorrermos: o Tenente,
Querelle e Robert (o). Tenente Seblon é responsável pelo navio em que Querelle trabalha,
enquanto Robert (ou Roberto) é irmão do protagonista. Em ambos os textos, o personagem
Tenente Seblon é quem registra e confessa aos poucos o amor proibido pelo marinheiro. Em
Genet, Tenente escreve um diário e em Almeida, ele registra a paixão num gravador de voz. Na
obra de Genet, percebemos que, por vezes, o personagem Tenente é narrador onisciente e que
através da metalinguagem conduz a história, enquanto na dramaturgia de Almeida Tenente é
mais um personagem. Em Genet, o narrador, apropriando-se deste diário de Tenente Seblon,
comenta sobre a própria escrita: “O ritmo deste livro deve acelerar-se. Seria importante
descarnar a narrativa da qual apenas o osso subsistiria.” (GENET, 1986, p.232) ou “este livro
já dura há páginas demais e nos entedia” (GENET, 1986, p.245). Em outros momentos temos
o narrador em 3º pessoa: “Esta última nota do diário íntimo corresponde ao seguinte incidente
que o oficial não relata.” (GENET, 1986, p.253)
Porém, em ambos os autores se conserva o sentimento de amor e medo de Tenente por
Querelle. Mais que amar Querelle, o que Tenente mantém por ele é um desejo sexual aliado à
proteção e autoimagem que ele terá ao se relacionar com o protagonista. É o que vemos nos
trechos seguintes: “Essa atitude sentimental não parece ter origem em seu amor por Querelle,
se esse amor lhe dá a ocasião de aparecer. Ela tem origem no temor, ele mesmo nascido do
amor, da importância devota que Seblon dá à vida” (GENET, 1986, p.91); “Amado por
Querelle, serei amado por todos os marinheiros da França. Meu amante é a compreensão de
todas as suas virtudes viris e ingênuas” (GENET, 1986, p.250) e “OFF: (Querelle) Só
conhecerei a paz possuído por ele, mas de tal maneira que atravessado me conserve estendido
sobre as suas coxas, como uma Pietá conserva Jesus morto, até o fim dos tempos...”
(ALMEIDA, 1999, p.19)
Do mesmo modo, a relação entre os irmãos Querelle e Robert (o) é ambígua, já que
“odeiam-se com amor, como todos os personagens de Genet” (SARTRE, 2002, p.577). As
brigas entre os dois é descrita por Genet e Almeida como algo sensual: “Os dois voam um para

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o outro, agarrando-se numa espécie de luta amorosa.” (ALMEIDA, 1999, p.2). O que une os
irmãos é o homicídio, a violência, o sangue que corre neles e sobre eles. E esse relacionamento
de amor, sensualidade e ódio que os ligam é percebido por Madame: “Vocês são como Caim e
Abel, não é? Desde crianças, parece uma doença” (ALMEIDA, 1999, p.6). A relação entre os
irmãos, de rivalidade e cumplicidade, parece surgir da falta de figura feminina materna,
compensada pela presença de Madame ou atenuada pelo contato entre eles mesmos: “Não que
estes se tornem algo que se aproxime do verdadeiro amor entre homem e mulher ou entre dois
seres onde um deles é feminino; mas a ausência de mulher nesse universo obriga os dois machos
a extraírem de si um pouco de feminilidade.” (GENET, 1986, p.117). A dupla relação ambígua
entre irmãos aparece em outro texto de Genet, As criadas, primeira peça teatral do autor em que
as irmãs Claire e Solange dividem o ódio-amor pela patroa Madame e amam-se e odeiam-se
também. Há uma questão de alteridade nessas duas duplas de irmãos: ao se reconhecer no outro,
repudia-o e atrai-se por ele ao mesmo tempo.
Cesar Almeida opta em seu texto por manter o mesmo fio condutor narrativo da obra de
Genet: a conexão entre o mar, o sexo e o crime. Esses três temas caminham juntos nas obras. O
fato desses marinheiros não fixarem residência, estando sempre de passagem, facilita a prática
dos crimes, já que serão vistos poucas e rápidas vezes nas cidades. Na obra de Genet aparece
um pequeno poema/cantiga que revela a proteção divina que os marinheiros recebem: “É a
estrela de amor.../... Os marinheiros têm uma estrela/ que do céu os acode.../Quando nada a seus
olhos a vela/ A desgraça contra eles nada pode.” Essa preservação daria aos marinheiros a
liberdade de suas práticas ilícitas, já que estariam sob proteção. Ademais, a imagem destes
marinheiros ladrões, assassinos e contrabandistas, alguns deles sensuais, que agem de forma
rápida, fluída, nos remete à própria imagem das ondas do mar.
Ainda, o mar, tal qual os criminosos, é intenso e misterioso. Ora agitado ora calmo, pode
trazer a imagem da tranquilidade como da tempestade, com ondas que destroem tudo pela
frente. Além disso, assim como a inconstância do mar, também é a do marinheiro, ele não
mantém relações longas e constantes: “Eu sou um marinheiro. Minha mulher é o mar; minha
amante é meu capitão.” (GENET, 1986, p.264). Ou seja, para o marinheiro só lhe resta a
afetividade passageira. Outra fala que atesta o vínculo entre o mar e o crime é a que inicia o
texto de Almeida: “OFF- A idéia de assassinato evoca muitas vezes a idéia de mar, de
marinheiros, idéias que não se apresentam com a nitidez de uma imagem, é antes o assassinato
que faz a emoção rebentar em nós, como ondas.” (ALMEIDA, 1999, p.1). Esse trecho é
adaptado do parágrafo primeiro da obra de Genet.

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Por fim, tratemos das questões de sexualidade e masculinidade das obras. Como vimos
nas obras, o amor e o crime estão muito próximos e nesse sentido não há espaço para a ternura.
Esta é vista como sinal de fragilidade e feminilidade, não cabendo a um marujo, oficial de
polícia ou pedreiro tê-la. Mesmo quando há paixão ou amor, estas só são possíveis quando
atravessadas por ações violentas, pela sujeira e pela dor física. Durante o ato sexual não seria
diferente: “A expressão tão viva de sua alegria provava a Norbert que o marujo não era homem,
já que não conhecia, no momento do gozo, a discrição, o pudor de um macho” (GENET, 1986,
p.71). Neste trecho, a demonstração de prazer sentida por Querelle ao relacionar-se com Norbert
(Nono) é condenável. Ainda, sobre esse caso entre Querelle e o dono do bordel Nono, Almeida
apresenta a fala do protagonista: “Mário...Fui prá cama com o Nono, não minto. Mas não se
engane, eu gosto é de mulher” (ALMEIDA, 1999, p.11).
Há sempre a tentativa, em ambos os textos, dos personagens se afirmarem em suas
masculinidades, reprovando qualquer gesto de carinho e amor:

Pela primeira vez Querelle beijava um homem na boca. Tinha a impressão de


bater com o rosto num espelho refletindo sua própria imagem, de remexer com
a língua o interior petrificado de uma cabeça de granito. No entanto, sendo
aquilo um ato de amor, e de amor culpado, ele soube que praticava o mal. Seu
pau endureceu mais. As duas bocas permaneceram soldadas, as línguas em
contato agudo ou esmagado, nem uma nem outra ousando pousar nas faces
rugosas, onde o beijo seria sinal de ternura. (GENET, 1986, p.189)

Até mesmo quando acontece o beijo entre os personagens, este não é retratado de forma
afetuosa, tranquila, suave. Neste trecho acima, o ato de amor de Querelle é tido como um ato
de culpa. Também em Almeida, na última cena, em que Tenente e Querelle estão juntos, há
uma rubrica indicando que “Querelle puxa o Tenente e o beija violentamente”. (ALMEIDA,
1999, p.19). Atestamos, a partir disto, que há uma constante preocupação dos personagens
acerca dos padrões sociais heteronormativo, que ditam ao homem a forma “correta” do agir
másculo.

Considerações finais

Pudemos perceber que a dramaturgia/ encenação de Cesar Almeida está muito próxima
do hipotexto de Jean Genet no que diz respeito ao tratamento do homoerotismo, das relações
entre violência e desejo/ crime e mar. Outrossim, ambos discutem o repúdio da ternura, o pudor
e tabu sobre a homossexualidade, além do questionamento sobre uma masculinidade
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impositiva. Alguns traços que diferenciam as obras são: o grotesco e a metalinguagem. Em


Genet vemos, por meio de descrição dos personagens (roupas, corpos), atos sexuais e outras
ações, a presença do grotesco. Seja em uma narração sobre um corpo doente, em que o
personagem toca suas feridas, seja no relato do personagem em um ato sexual em meio à sujeira.
O ambiente também é apresentado como um lugar mais sujo do que vemos no texto de Almeida.
Outro fator que os separa é a figura do narrador e da metalinguagem. Enquanto em Genet o
narrador é, em alguns momentos, o personagem Tenente, que conduz a narrativa, em Almeida
Tenente opera apenas como personagem. A metalinguagem está presente em algumas peças
teatrais de Almeida, porém, em Querelle, ela não aparece. Já em Genet, há diversos comentários
sobre a própria escrita e a condução da obra. Por fim, percebemos um tom mais debochado,
irônico e cômico no texto/ encenação de Almeida do que no texto de Genet.

Referências

ALMEIDA, Cesar. Querelle. Adap. Cesar Almeida. Curitiba, 1999.

__________. O teatro da Rainha de 2 cabeças: volume 1 – 20 anos. Curitiba: Edição do autor,


2003a.

__________. O teatro da Rainha de 2 cabeças: volume 2 – 25 anos. Curitiba: Edição do autor,


2003b.

__________. O teatro da Rainha de 2 cabeças: volume 3 – 30 anos. Curitiba: Edição do autor,


2014.

__________. O teatro da Rainha de 2 cabeças: volume 4- 35 anos. Curitiba: Edição do autor,


2019.

__________. Entrevista concedida à Caroline Marzani. Curitiba, 14 jun. 2016.

GENET, Jean. Querelle. Trad. Jean Marie L. Remy e Demetrio Bezerra. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1986.

GENETTE, Gérard. Palimpsestos: La literatura em segundo grado. Trad. Célia Fernández


Prieto. Madrid: Taurus, 1989.

HUTCHEON, Linda. Poética do pós-modernismo: história, teoria e ficção. Trad. Ricardo


Cruz. Rio de Janeiro: Imago Ed., 1991.

SARTRE, Jean Paul. Saint Genet: ator e mártir. Trad. Lucy Magalhães. Rio de Janeiro: Vozes,
2002.

WHITE, Edmund. Genet: uma biografia. Trad. Alves Calado. Rio de Janeiro: Record, 2003.

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IV Seminário Nacional de Dramaturgia e Teatro: Teatro e Política

O Fato, o Ato, a Linhagem Teatral Brasileira de Jorge Andrade e Abílio Pereira de


Almeida

Leni Dias Fabri42

Resumo: A luta pela existência forçou o homem primitivo a uma visão declaradamente prática
ou utilitária. De início, seus meios de expressão deveriam ser tão simples e gradualmente os
ritos assumem maior complexidade, através dos ritmos de dança, símbolos mais sutis e
representações mais dinâmicas. Como consequência acontece à primeira transição do ritual para
a arte e assim caminha para a caracterização e ao conteúdo amplamente humano. Em certo
sentido os primeiros mestres da dramaturgia são mestres da vida, Ésquilo e Ibsen continuaram
essa nobre tradição quando abarcaram todo o mundo. No Brasil, a linhagem de dramaturgos
que começa com Jorge Andrade e Abílio Pereira de Almeida que tiveram destaque em um
momento particular do Brasil, a experiência de uma democracia burguesa, entre 1945 e 1964.
Experiência essa que fez com que nós, coletivamente, tivéssemos a esperança de tomar as rédeas
de nosso destino nas mãos e como resultado acabou vinda à tona uma série de surtos artísticos,
que dão frutos até hoje, é o caso da Bossa Nova, o Cinema Novo, A Escola de Arte Dramática
e o TBC.

Palavras chave: Linhagem; Jorge Andrade e Abílio Pereira de Almeida; Escola de Arte
Dramática.

A discussão que se propõe sobre a linhagem teatral brasileira de Jorge Andrade e Abílio
Pereira de Almeida passa, primeiramente, sobre a relação “vida”, assim como apresenta Paulo
Magalhães:
Sendo o Teatro arte de todas as artes, reflexo da vida de todas as vidas, espelho
das emoções, das sensações, das reações mais diversas da alma humana, o
Teatro em sua maravilhosa perenidade, fascinante e incomparável, mantém-
se através dos séculos e nas idades, soberano e dominador na simplicidade de
seus processos, na rigidez dos seus limites cênicos, empolgando,
entusiasmando, divertindo e ensinando gerações e gerações. (MAGALHÃES
apud OLIVEIRA, 1999).

Na proposição de evidenciar a memória do Teatro Brasileiro, nos apegamos a proposta


de John Gassner “[...] Se neste relato entram tendências históricas e amplas correntes culturais,
é justamente por causa da proximidade do teatro com a história humana. Ademais, é inegável
que os maiores dentre os dramaturgos foram dominados pelo drama do gênero humano e as
tendências deste devotaram sua obra mais grandiosa.” (GASSNER, 1903)

42
Mestre em Teoria Literária pelo Programa de Pós-graduação, nível de Mestrado do Centro Universitário Campos
de Andrade (UNIANDRADE). E-mail: lenidiasla@gmail.com
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Ao nos referirmos sobre linhagem na Arte Teatral, partimos da verificação da


genealogia, a estirpe e a classe social, família e a condição literária dos teatrólogos Jorge
Andrade e Abílio Pereira de Almeida, o que significa nos colocarmos no círculo para
encontramos suas raízes.
No labirinto da historiografia do Teatro Brasileiro Aimar Labalaki se encontra com a
linhagem de Abílio Pereira de Almeida e Jorge Andrade fazendo reflexão sobre a importância
e as atuações dos dois teatrólogos,

O simples fato de eu colocar esses nomes juntos, já vai causar certa repulsa
em certas pessoas. Isso porque lembrar de Abílio Pereira de Almeida e Jorge
Andrade vai desemborcar no que estamos vivendo hoje [...] mas acho
interessante olhar para os dois como versos da mesma moeda.Surgiram em um
período, entre 1945 e 1964 [...] Apesar de todas as críticas que possamos fazer
é um teatro que se pretendia artístico, de certa forma fazendo contraste com o
teatro que vinha antes, que se pretendia apenas entretenimento. Era um
preconceito além de ideológico, era também de gosto. E também muito com
essa intenção de fazer um contra ponto, de certa forma falso, entre arte e
entretenimento. Nesse caldo de cultura é que surgem Abílio Pereira de
Almeida e Jorge Andrade (LABALAKI, 2002).

Na análise da dramaturgia Brasileira, para poder falar sobre Abílio Pereira de Almeida
e Jorge Andrade e fazer uma incursão no tempo, é necessário antes de qualquer coisa, conforme
o trecho de um poema do livro Poesias de Manoel de Barros, “fechar os olhos para ver no
tempo”, a significação desses dois dramaturgos na arte teatral brasileira.
Abílio Pereira de Almeida (1906-1977) foi o autor brasileiro, que praticamente dominou
o cartaz do TBC. E que obteve os maiores êxitos de bilheteria em São Paulo. Nascido na capital
paulista estudou direito na USP, participou dos movimentos de 1930 e 1932. Integrou o grupo
de amadores de teatro e em 1936 encenou a fantasia de Alfredo Mesquita, Noite de São Paulo.
Desse grupo nasceu o Teatro Experimental de São Paulo.
Elegante, de boa cultura, de família tradicional e abastada, Abílio frequentava, nas
décadas 40 e 50, a alta sociedade de São Paulo e suas peças falavam da aristocracia que ele
muito bem conhecia, apontando suas falhas morais, mas indicando pretensiosamente, o
caminho da recuperação. No TBC, foram encenadas, entre outras, as peças A mulher do
Próximo, Pif-Paf, anos 48, 49. Com a peça Paiol Velho um dos seus melhores textos, Abílio
coloca em questão a problemática da ruína da aristocracia rural, que incapaz de administrar seu
patrimônio, reduz-se ao estado de insolvência.
De acordo com críticos teatrais sua melhor peça é Em Moeda Corrente do País, 1960.
Neste texto Abílio aborda a temática da corrupção nas repartições públicas.

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IV Seminário Nacional de Dramaturgia e Teatro: Teatro e Política

Abílio Pereira de Almeida, autor e produtor, a partir de 1949, toma parte ativa na
organização do TBC, e em um período em que as peças apresentadas eram estrangeiras e Abílio
foi o autor nacional mais montado pelo teatro.
Autor de várias obras teatrais destacam-se Moral em Concordata, O Comício, Paiol
Velho, encenado com direção de Ziembinski e Os Marginalizados.
Também escreveu o pesado dramalhão Alô- ...365499, peça que tem montagem na
Argentina, em 1958, onde recebe o nome de Deliciosamente Amoral. Para a Companhia Dercy
Gonçalves escreveu duas comédias, sendo Dona Violante Miranda em 1958, obtido enorme
sucesso.
Segundo Yan Michalski “Abílio é um autor polêmico, geralmente combatido pela crítica
e bem sucedido na bilheteria [...] que condenava a sua dramaturgia a uma superficialidade”.
(MICHALSKI)
As críticas severas e observações feitas nas obras e encenação de textos de Abílio Pereira
de Almeida, não invalidam o ato de criação, do instinto teatral do autor. Embora não se
aprofundasse na dramaturgia, alcançou popularidade, levando assim a um grande número de
expectadores a realidade da época, embora de forma evidente e irreverente.
Também nesse ciclo de nossa literatura dramática, uma das contribuições mais efetivas
deve ser creditada ao autor paulista Jorge Andrade (1922-1984). Nascido na cidade de Barretos
e filho de fazendeiros, Andrade passou a infância em convívio com o meio rural. Era um tempo
de prosperidade econômica, em pleno apogeu do café e as crianças eram estimuladas pelos pais
ao apego à terra, para que, no futuro, pudessem assumir os destinos das fazendas. Mas Andrade,
ao contrário de outros garotos, cuja distração preferida era a lida do campo, interessava-se mais
pela leitura dos velhos livros de História e Literatura.
As revoluções políticas, as ruínas econômicas, os conflitos entre pais e filhos, enfim os
dramas decorrentes das repentinas alterações sociais seriam mais tarde, retratados e dissecados
na dramaturgia do autor de A Moratória.
Levando uma vida rotineira e sem perspectivas, uma vez que os cafezais já não mais
existiam, Andrade em 1942, com apenas 20 anos, partiu para São Paulo como objetivo de
estudar Direito, mas não era a sua vocação. Certa ocasião, ao assistir no TBC a peça de Tenesse
Williams, O Anjo de Pedra entusiasmou-se tanto com o espetáculo que procurou Cacilda
Becker, principal interprete da peça, e manifestou o interesse de seguir a carreira teatral. Cacilda
deu-lhe um conselho certo: matricular-se na Escola de Arte Dramática (EAD). Seguindo a
orientação, logo descobriu a sua verdadeira vocação: Dramaturgo.

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Em toda a obra de Jorge Andrade, em seus múltiplos aspectos, percebe-se o seu intento
de fazer uma avaliação e questionar, através do teatro, o passado histórico, social, moral e
psicológico do Brasil, tendo como ponto de partida a perspectiva paulista das classes
dominantes e tradicionais que estava vinculado por ascendência.
É interessante registrar que Jorge Andrade trabalhou basicamente com procedimentos e
estruturas dramáticas de Arthur Miller e recebeu influências formais de Ibsen, Tchecov.
Seu primeiro texto foi O Telescópio, que narra a história da desagregação da família do
fazendeiro Francisco. Na mesma linha de O Telescópio, escreve A Moratória para muitos sua
obra prima. Em Senhora na Boca do Lixo, A Escada e Os Ossos do Barão, volta ser enfocado
o declínio da aristocracia, com as classes apegadas aos esplendores do passado, mas os enredos
são urbanos.
Jorge Andrade faz a dissecação do que foi o pacto social que gerou aquele momento
coletivo. Na verdade ao contar a sua história pessoal, da sua família, ele também estava
contando a história de um pacto entre a burguesia que se achava aristocrata, que já havia perdido
o poder econômico e que aliada ao novo poder industrial, criava para si a ilusão de que poderia
ser uma elite moderna. Surgiram então atitudes e ações para abrir espaço educacional e cultural
que proporcionasse a passagem da aristocracia social rural para a nova classe que surgia, a dos
empresários industriais.

A Linha do Tempo na Arte Teatral

A memória da arte teatral demonstra a linhagem dos construtores e nos remete ao


acompanhamento da história do Teatro Brasileiro na sua sequência de fatos e atos, que nos leva
ao final do século XIX e a sua evolução até a criação das Escolas de Arte Dramática, EAD, nas
capitais chegando a Curitiba, Paraná, onde foi criada a Escola de Arte Dramática do Serviço
Social da Indústria, SESI.
O Teatro do final do século XIX, quando o Brasil se aproximava do advento da
República, em plena fase realista da nossa história literária, o Teatro Brasileiro, ao invés de
alçar vôos mais altos, como representação cênica, desvia a sua trajetória para gêneros
caracteristicamente leves e superficiais. As peças são do teatro vaudeville, revista a habilidade
dos mágicos e as operetas parisienses, ritmos do cancan dos cabarés que seguiam a linha do
Moulin Rouge.

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Nesse período, Machado de Assis apaixonado pelo teatro, autor de várias peças, mas
nenhuma encenada, crítico severo e lúcido da arte dramática, demonstra toda sua revolta contra
o momento negativo que o teatro brasileiro atravessava, escrevendo artigos e pronunciamentos.
Mesmo com a importação de peças e autores, havia atores cômicos de grande talento, e
de destaque, que deram relevância ao teatro brasileiro nesse período, tais como Brandão,
Vasques e Xisto Bahia.
Citado por Oliveira (1999), o crítico Décio de Almeida Prado, comenta o período alegre
e inconsequente da nossa arte teatral na década de 80 do século XIX, assinala: “após 30 anos
de dramalhão e dez de tese, o povão queria rir, descansar, ver mulheres bonitas, ouvir canções
maliciosas e ditas picantes tudo envolto num pacote, cuja principal exigência era não dar
trabalho ao cérebro”.
Historicamente, no início do século XX, em 1909, ocorre a inauguração do Teatro
Municipal do Rio de Janeiro. A arte teatral encontrou sempre um desenvolvimento importante
no Rio de Janeiro que por ser a capital federal e nela se encontrar os órgãos administrativos do
país recebia apoio das instituições culturais. Com a inauguração do Teatro Municipal, a
produção brasileira desenvolveu-se, mas ainda conservava-se distante de outros centros.
Destacam-se nesse período Goulart de Andrade, que foi um dos expoentes da literatura
dramática brasileira, concentrando todas as atenções de público e críticos. Suas peças como O
Ciúme Depois Da Morte, Renuncia, Sonata ao Luar e outras que já pelos títulos se distanciavam
do período anterior.
Coelho Neto, exerceu a Presidência da Academia Brasileira de letras, tendo sido
aclamado o Príncipe dos Prosadores Brasileiros. Só para o teatro, escreveu 50 peças, entre
dramas, comédias, poemas dramáticos. Foi considerada a sua melhor peça, Quebrando em que
criticava a sociedade da época que se aproveitava da ingenuidade e falta de conhecimento das
pessoas do interior.
João do Rio, pseudônimo de Paulo Barreto, Claudio de Souza, que era médico, Gastão
Tojeiro, Armando Gonzaga, que entre outras obras, autor de Cala Boca Etelvina.
Viriato Correia e seguindo a mesma linha do teatro de costumes, nos deparamos com
Oduvaldo Viana, comediógrafo fecundo e com rara sensibilidade, em 1921 fundou uma
companhia de teatro e mais tarde dirigiu a Escola de Arte Dramática do Rio de Janeiro.
A presença feminina nesse período de Júlia Lopes de Almeida, com produção literária
de mais de 40 volumes e no gênero da literatura teatral, escreveu a comédia Doidos de Amor,
Quem Não Perdoa, A Herança, Nos Jardins de Saul com importante recepção no meio teatral.

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Adentrando no século XX, as novas tendências da arte teatral brasileira aparecem com
Renato Viana, que desde muito cedo se dedicou ao oficio da dramaturgia.
Fundou a Escola de Arte Dramática (1942) de Porto Alegre e o Teatro Anchieta. Nessa
época, Renato Viana, junto com Villa-Lobos e Ronald de Carvalho, fundaram o grupo Teatral
Batalha de Quimera.
Com a criação da Escola de Arte Dramática de Porto Alegre, e como diretor da Escola
de Arte Dramática do Rio de Janeiro, e com a Companhia do Teatro Anchieta, Renato Viana,
passou a excursionar pelos Estados em missão de propaganda cultural, deixando sementes da
criação de Escolas de Arte Dramática pelas capitais do país, que mais tarde vingaram, inclusive
no Paraná, com a criação da Escola De Arte Dramática do SESI (Serviço Social da Indústria).
Em 1948 reuniram-se o líder teatral Alfredo Mesquita, os industriais italianos Franco
Zamparie, Francisco Matarazzo Sobrinho, Décio Almeida Prado e Abílio Pereira de Almeida
para a construção de um teatro permanente, destinado a estimular e desenvolver a arte teatral
em São Paulo, foi então que nasceu o Teatro Brasileiro de Comédia, o TBC.
Até ao início da segunda metade do século XX, destacam-se Álvaro Moreira, Paulo
Magalhães, Joraci Camargo, e a verdadeira revolução aconteceu com Nelson Rodrigues,
dramaturgo, romancista, cronista polêmico, amado e temido que Manuel Bandeira o considerou
“de longe o maior poeta dramático que já apareceu na nossa literatura.”
Suas principais obras permanecem na atualidade sendo apresentadas em palcos e na
cinematografia. Sucesso atemporal para Vestido de Noiva, Bonitinha Mas Ordinária, O Boca
de Ouro e tantos outros.
Nas décadas de 30 a 50 um dos autores teatrais mais representados foi Paulo Magalhães.
Era um autêntico homem de teatro, onde fez de tudo, tais como direção, ensaio e crítica. Deixou
seu nome registrado como um dos teatrólogos mais fecundos e destacados de sua época.
Destacam-se também o dramaturgo e grande teórico do teatro Joraci Camargo.

Movimento Revolucionário dos Anos 40 e 50

No ano de 1941, surge no Recife um movimento amadorista, de âmbito puramente


regional, representado pelo Teatro de Amadores de Pernambuco e inspirado na reação de
Samuel Campelo Esse grupo se constituiu num dos mais importantes conjuntos teatrais do
Brasil e promoveu o florescimento da literatura dramática regional, que Pascoal Carlos Magno,
com muita oportunidade, denominou de Teatro do Nordeste.

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Waldemar de Oliveira, Aristóteles Soares e Ariano Suassuna (cuja peça Auto da


Compadecida, autêntica obra-prima da dramaturgia nacional, são os nomes mais
representativos desse brilhante e vitorioso movimento cultural.
Em outra linha cabe creditar a Pascoal Carlos Magno a divulgação das Escolas de Arte
Dramática por muitas capitais levando a estrutura do Teatro do Estudante do Brasil, o Teatro
do Nordeste, o Teatro do Estudante e o Teatro Amador.
A atuação de Pascoal Carlos Magno (Rio de Janeiro-1906-1980), animador, produtor,
crítico, autor e diretor, foi decisiva e personalidade fundamental na dinamização e renovação
da cena brasileira com a fundação do Teatro do Estudante do Brasil e o Teatro Duse.
Em 1929 lidera ampla campanha de coleta de recursos para fundar a Casa do Estudante
do Brasil. Em 1930 recebe prêmio da Academia Brasileira de Letras pela peça Pierrot. Em 1937
funda o Teatro do Estudante do Brasil- TEB, inspirado nos teatros universitários europeus com
uma função pedagógica de formação teatral e outra artística, de introduzir no nosso teatro a
função do diretor teatral.
Em 1946, Pascoal tem representado em Londres, com boas críticas, a sua peça, Tomorow
Will Be Different, montada em outros países europeus e no Brasil. Em 1948 o TEB, sob a
orientação geral de Pascoal, monta Hamlet, de Shakespeare, que alcança grande sucesso e
também, revelou o a ator Sergio Cardoso, (22 anos) que Pascoal passou a considerar como o
maior ator do Brasil.
A partir do êxito da peça, e das viagens de Pascoal pelo Brasil afora, teatros de
estudantes começaram a ser criados em várias cidades. Em 1958, organiza em Recife o Primeiro
Festival Nacional dos Teatros de Estudantes reunindo mais de 800 jovens e dando início a uma
tradição que prosseguirá até o sexto festival, que deixa de acontecer com o golpe de 1964.
O crítico Yan Michalski avalia a contribuição de Pascoal Carlos Magno ao teatro
brasileiro “Pessoa física, foi na verdade uma instituição: sozinho, embora sempre ajudado por
legiões de jovens que ele sabia contagiar com a mística de suas utopias [...] Muitas das
inovações que trouxe a vida teatral brasileira foram genuinamente revolucionárias [...].”
Nessa mesma época, em dezembro de 1948, iniciou sua atividade a Escola de Arte
Dramática de São Paulo, fundada por Alfredo Mesquita e formadora de grandes artistas que
emprestaram seu talento ao TBC e continuaram, muitos deles, brilhando em nossos palcos,
mesmo depois que o TBC fechou suas portas.

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A Escola de Arte Dramática

Abriram-se escolas profissionalizantes que preparava operários para as novas indústrias,


mão de obra fundamental para o funcionamento das empresas, favorecendo a forte evolução do
parque industrial, que diversificou a economia nacional, tornando-a menos dependente do
desempenho da agricultura. Criou-se então o Serviço Social da Indústria, SESI, que foi
fundamental para a criação das Escolas de Arte Dramática (EAD), Serviço Nacional de
Aprendizagem Industrial, SENAI, valorização das demais artes como pintura, cinema, espaços
para exposições, bibliotecas, teatros e outros ambientes culturais.
Fundada em sólidas bases culturais, a Escola de Arte Dramática (EAD), formou
inúmeros atores, atrizes e diretores que integraram os elencos dos melhores grupos de teatro
profissional brasileiro como o TBC, o Arena e o Oficina, cumprindo dessa forma a proposta
inicial da escola: o da participação na formação de um novo teatro brasileiro.
Atuando na mesma linha de trabalho, o Teatro do Estudante do Brasil (TEB), grupo
amador criado em 1938, no Rio de Janeiro, por Paschoal Carlos Magno, em atividade até 1965,
teve como característica principal a união do amadorismo do grupo ao profissionalismo de
atores e diretores experientes que ensinaram ao elenco do TEB que teatro era feito com
disciplina, estudos e pesquisas, implantando uma seriedade à arte de representar pouco
conhecida até então.
Convidada por Paschoal Carlos Magno, Itália Fausta dirigiu Romeu e Julieta, de
Shakespeare, espetáculo de estreia do Teatro do Estudante do Brasil, foi a primeira a trabalhar
com os estudantes-atores a ideia de um espetáculo mais harmônico em que texto, cenografia,
iluminação e interpretação tinham a mesma importância e objetivo.
O teatro amador dos anos 50, formador e criador de uma nova imagem cênica, assistia
a convivência de ideias opostas sobre como e por que fazer teatro.

Retrato do Teatro Curitibano

Na historiografia do teatro curitibano, segundo artigo publicado pela Revista Panorama


e citado por Marta Morais da Costa e Ignácio Dotto Neto, “O teatro curitibano da segunda
metade do século XX é dividido em três momentos distintos: o amadorismo dos anos 50, a
profissionalização nos anos 60, e a vanguarda da época de 1970.” (1981.)

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No Paraná, o domínio do espaço cênico, só foi possível graças ao surgimento de


técnicos, atores, diretores e autores paranaenses saídos, em sua grande maioria, da primeira
Escola de Arte Dramática do estado fundada em Curitiba em 1951, pelo SESI.
Provenientes da Escola De Arte Dramática do Sesi, Lala Schneider, Ruben Valduga,
Nitis Jacon, Aluizio e Luciana Cherubin, Isis Rocha, Oswaldo Monteiro, José Maria dos Santos
Edésio Passos, Odelair Rodrigues e muitos outros. Desse ciclo teatral do Paraná, Lala Schneider
e Ari Fontoura migraram para os centros teatrais mais desenvolvidos, Rio de Janeiro e São
Paulo. Ari Fontoura permanece até hoje em evidência no cenário artístico nacional.
De acordo com Teixeira, as críticas e notícias assinadas por

Roberto Menghini, Rogério Dellê, Amauri Parchen, Paulino Nascimento,


Glauco de Sã Brito, Ary Fontoura, Edésio Passos e Sylvio Back, artigos,
críticas e notícias informavam sobre o que acontecia no mundo teatral
paranaense, comentavam espetáculos, e mantinham o leitor atualizado sobre
as mais recentes teorias e técnicas de interpretação teatral adotadas em todo o
mundo. A constante preocupação em acompanhar de perto o que de novo se
produzia em teatro motivou em Curitiba, as montagens de Auto da
Compadecida, de Ariano Suassuna e Chapetuba F.C., de Oduvaldo Vianna
Filho, por grupos locais. Marcos do movimento de modernização do teatro
brasileiro, as encenações das peças de Suassuna e Vianinha colocavam a
cidade em sintonia com o que de mais inovador se estava produzindo nos
palcos nacionais. (TEIXEIRA, 1992)

A Escola de Arte Dramática do Sesi, de Curitiba, no Paraná, recebia professores


visitantes, inclusive Pascoal Carlos Magno, e contava com professores efetivos, professor
Armando Maranhão, oriundo do Teatro do Nordeste e do TEB e Telmo Faria, com currículo
extenso no cenário teatral do Rio de Janeiro, e como professor-diretor Aristides Teixeira, todos
com cabedal imenso de trabalhos na arte teatral. Após o encerramento da Escola de Arte
Dramática do SESI de Curitiba, o professor Armando Maranhão dedicou-se ao curso de Teatro
do Colégio Estadual do Paraná, do qual foi um dos fundadores.
Muitos dos artistas de teatro e televisão do Brasil, atualmente, com talento reconhecido
e aplaudido, são oriundos do curso de Teatro do Colégio Estadual do Paraná.
O surgimento de escolas de teatro patrocinadas por grupos amadores acabou por
provocar a inclusão do ensino da arte dramática em escolas oficiais.
O teatro dos anos 50, formador e criador de uma nova imagem cênica, assistia a
convivência de ideias opostas sobre o como e por que fazer teatro.

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Referências

BONA, Newton Dalla. Três Momentos Distintos. Panorama, p. 20, julho de 1981. Disponível
em:http://www.panorama.com.br/index.php?option=com_content&view=article&id=18&Item
id=16. Acesso em: 10 de fevereiro de 2018.

DOTTO NETO, Ignácio; COSTA, Marta Morais da. Entreatos: teatro em Curitiba de 1981
a 1995. Curitiba: Ed. do Autor, 2000.

GASSNER, John, 1903 - Mestres do Teatro I. Trad. Alberto Guzik e J. Guinsburg. São Paulo:
Perspectiva, 2005

GARCIA, Silvana, Odisséia do teatro Brasileiro. (Org.). São Paulo: Editora SENAC, 2002.

OLIVEIRA, Paulo Roberto Correia de. Aspectos do Teatro Brasileiro. Curitiba: Juruá, 2004.

PENA, Martins. Os dois, ou, o inglês maquinista: comédia em um ato. São Paulo: IBEP,
2012.

SECRETARIA DE ESTADO DA CULTURA. Comédia Paranaense 2016: 5 peças. Curitiba,


PR: Biblioteca Pública do Paraná, 2016.

TEIXEIRA, Selma Suely. Teatro em Curitiba na Década de 50: História e Significação.


Dissertação de Pós Graduação em Letras, UFPR. Curitiba, 1992.

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Os libretos de Ítalo Calvino e a colaboração com Luciano Berio

Alessandra Camila Santi Guarda (PPGL/UNIOESTE/bolsista CAPES)43

Resumo: Durante as leituras sobre Italo Calvino envolvidas na produção de nossa dissertação
de mestrado, pudemos verificar que o autor, enquanto pensador multíplice que era, sempre teve
um profundo interesse pelas outras artes como o cinema e o teatro, tendo chegado a sonhar,
entre seus dezesseis e vinte anos, a se tornar escritor de teatro. Embora saibamos que esse não
foi o caminho que sua trajetória tomou, o autor se envolveu com a crítica de teatro ao longo de
sua vida e até chegou a escrever esporadicamente algumas peças, cujo acesso é quase
impossível para nós hoje. Sua produção teatral mais proeminente, contudo, são os libretos
escritos para óperas de Luciano Berio, dentre as quais figura La Vera Storia (1981). Buscamos,
então, compreender de que forma se deu a colaboração entre um escritor de libretos para ópera
e o músico Luciano Berio tão proeminentes e aclamados em suas áreas, entendendo este como
um tema inédito e de interesse em nossa área.

Palavras-chave: Italo Calvino; Luciano Berio; Ópera; Libretto.

Introdução

Nas edições italianas de Il Barone Rampante (1993) e Il cavaliere inesistente (1993),


obras estudadas na dissertação em andamento para o Mestrado em Letras da Universidade
Estadual do Oeste do Paraná, e em outras obras de Italo Calvino publicadas pela editora
Mondadori, há uma cronologia do autor escrita por Mario Barenghi e Bruno Falcetto em 1991
pela editora citada. Ambos são professores de Literatura Italiana na Universidade de Milão e
autores de crítica reconhecidos pela comunidade acadêmica, sendo responsáveis por diversas
edições e curadorias de obras de Calvino, assim como por livros e ensaios sobre o autor. Em tal
cronologia consta que entre os dezesseis e os vinte anos Calvino diz ter sonhado se tornar autor
de teatro, tendo escrito diversos textos dos quais infelizmente não se tem conhecimento, uma
vez que muito de sua produção da juventude permaneceu inédita e inacessível.
A produção de que se tem notícia nessa época data de 1942 e trata-se de uma peça
enviada por Calvino para o concurso do Teatro Nazionale dei Guf di Firenze chamada
Commedia della gente. Em 2007, a peça foi leiloada pela Minerva Auctions, segundo consta no
site de leilões Live Auctioneers. No site é possível ver que a peça foi elaborada pelo escritor aos
19 anos e consta como a primeira (e até então inédita) obra de Calvino. Segundo o site de

43
Mestranda no Programa de Pós-graduação em Letras da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (Unioeste).
Orientação da Profa. Dra. Lourdes Kaminski Alves. Email: alessandracamila.s.g@gmail.com.

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notícias Adnkronos em matéria de 2007, a peça datilografada possui 16 páginas e foi composta
entre julho e agosto de 1942 em Sanremo para ser enviada para o já citado concurso. Em 1943,
o escritor a enviou à revista de literatura Pattuglia, dirigida por Walter Ronchi, mas que nunca
pode publicá-la por logo ter sido fechada pela censura fascista. É possível, entretanto, verificar
as cartas que Calvino enviou para Ronchi em matéria de Paolo Mauri datada de 2007 para o
jornal La repubblica, ainda que não se encontrem em Italo Calvino Lettere 1940-1985. Segundo
Mauri, a peça possui tons quase surreais e conta a história do casal Geo e Isabella, que passam
a viver em uma grande e caótica cidade onde encontram Ernesto, descrito como um idealista
convicto que deseja se tornar um benfeitor da humanidade. De resto, pouco se sabe sobre a peça
uma vez que seu texto não foi publicado até hoje.
Em 1956, época em que estava crescendo enquanto escritor relevante para o cenário das
artes na Italia, contribui novamente para o teatro com a peça La panchina, em um ato, musicada
por Sergio Liberovici e escrita para ser apresentada no Teatro Donizetti di Bergamo, cujo libreto
de 23 páginas praticamente inacessível pode ser encontrado na Universidade da Califórnia e
com acesso limitado. Em 1959 tem alguns textos representados no teatro, pois ao mesmo tempo
em que produz narrativas e ensaios além da atividade jornalística e editorial, o autor procura
cultivar seu interesse pelo teatro, pela música e pelo espetáculo de modo geral, ainda que com
resultados esporádicos. Em junho, no Festival dei Due Mondi di Spoleto, é apresentado um
breve esquete do seu conto Un letto di passaggio no espetáculo Fogli d’album e em setembro
é apresentado na Fenice di Venezia seu conto Allez-hop, musicado por Berio e que dá início à
colaboração entre eles.
É mais tarde, porém, que inicia sua colaboração com Luciano Berio no que resulta serem
suas obras teatrais mais proeminentes. Em 1981, primeiramente Calvino publica na revista Il
Cavallo di Troia a ação cênica denominada Le porte di Bagdad e posteriormente recebe um
pedido de Adam Pollock para compor um texto para a Zaide, de Mozart. Em 1982 o Teatro alla
Scala apresenta a opera La Vera Storia, em dois atos, cujo libreto foi escrito por Calvino para
Berio. Também em 82 Calvino escreve Duo, ação musical para o rádio que seria parte da futura
Un re in ascolto. Levando em conta a trajetória de Calvino no teatro, procuraremos apresentar
seu trabalho com a escrita de libretos com ênfase na colaboração entre o escritor e Luciano
Berio.

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O Calvino Libretista

Adam Pollock organizava todo verão em Batignano, na Toscana, espetáculos de ópera


de 1600 e 1700 e procurou Calvino para que escrevesse um texto que completasse a singspiel
incompleta de Mozart, Zaide, e que funcionasse como uma moldura para a obra. Embora o foco
deste trabalho sejam os libretos produzidos para Berio, acreditamos ser importante discorrer
sobre a experiência de Calvino na produção do texto para a Zaide pelo comparativo que esta
estabelece com os trabalhos realizados junto de Berio.
Segundo Cristina Fernandes (2009), a ópera trata da história da jovem europeia
homônima raptada por piratas e vendida ao sultão turco, que será resgatada por seu amado
Gomatz com o auxílio do alto dignatário Allazin. O sinspiel é uma obra que Mozart deixou
inacabada em 1780 para focar-se em outros trabalhos, à qual não retornou mais tarde por
acreditar não haver mais interesse do público pelo tema. Embora o libreto original de Johann
Andreas Schachtner tenha se perdido, subsistem 15 números musicais divididos em dois atos
que foram encontrados pela esposa de Mozart, Constanze, após a morte do compositor, ainda
sem título. Tendo Johann Anton Andre a comprado da viúva, este a publicou e escolheu o nome
da protagonista para dar título à obra.
Piero Gelli (2008), conta que a composição foi iniciada em 1779 e retratava uma
ambientação turca que se tornou popular devido aos escritos de Voltaire e Montesquieu e estava
em um formato musical que fazia sucesso na época (o singspiel, um tipo de ópera alemã). Nas
cartas de Mozart, como explica Gelli, está relatado que o compositor desistiu de continuar o
trabalho com a Zaide por entender que o público vienense de então preferia trabalhos de caráter
cômico. Para Gelli, a obra teve o mérito de familiarizar o compositor do tema do exótico, o que
talvez tenha sido algo levado em conta por Pollock na escolha de Italo Calvino para escrever o
libreto no futuro, uma vez que o tema era familiar a Calvino. Curiosamente, em 1995 houve
uma nova versão da Zaide com libreto de Lorenzo Arruga e música de Luciano Berio.
É interessante notar que Lorenzo Arruga entrevistou Calvino em 1982 sobre sua
atividade de libretista em Zaide e La vera storia. Arruga (2005) inicia a entrevista afirmando
“E così, lei è librettista di Mozart e Berio”44 (ARRUGA, 2005, s/p), mas Calvino não entende
dessa forma, pois acredita que seu dever era pequeno por se tratar de dois atos musicais que em
certo ponto precisaram de palavras, e por isso se dirigiram a um artesão da palavra. Para além
dessa explicação, o escritor negou o título de libretista afirmando não ter a autoridade de um e

44
“E assim, o senhor é libretista de Mozart e de Berio” (Tradução nossa).
149
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mostrou certa insegurança para com seu texto dizendo ter sempre tido dúvidas sobre o texto da
Zaide, tendo medo de ter traído algo com seu trabalho.
Apesar de seus temores, Calvino demostrou ao longo da entrevista clareza no processo
de escrita, o que pode ser visto no excerto a seguir:

Di Zaide sono rimasti quindici pezzi musicati, su libretto di Schachtner, per


metterla in scena di solito si cerca di integrarla con recitativi per ovviare
all’incompiutezza del libretto e e con altri pezzi mozartiani per ovviare a
quella della musica. Pollock invece ha cercato uno scrittore per avere un testo
in prosa che servisse a collegare i pezzi autentici esistenti, una narrazione che
facesse da cornice; si è rivolto a me come autore delle Città Invisibili, che
tratta dell’Oriente favoloso, e del Castello dei destini incrociati, che ha una
struttura combinatoria di storie che collegano un certo numero di elementi dati.
(CALVINO apud ARRUGA, 2005, s/p)45

Especificamente, sobre a questão da combinatória o escritor ainda afirma que, para seu
trabalho com a Zaide, o que o encorajou é que também Mozart se utilizada de uma técnica
combinatória. Para Calvino, tal aspecto técnico veicula grande energia e vitalidade e faz com
que ele se sinta autorizado a acompanhar Mozart mediante operações que não são tecnicamente
diferentes no plano da palavra.
Adam Pollock também refletiu sobre a experiência com Calvino em uma coluna no The
Guardian em 2002 por ocasião de um texto de Calvino transformado em ópera na época. Pollock
desenvolve um interessante relato sobre como conheceu o escritor em um de seus festivais e
acabou por manter uma amizade com o mesmo. Para Pollock, ainda que Calvino tenha decidido
deixar sua primeira vocação (o teatro) para se dedicar ao romance e aos contos, o escritor de
peças nele sempre arrumou um jeito de aparecer em seus textos narrativos, além do fato de ter
deixado para trás um grande volume de projetos destinados à performance, tais como peças de
teatro e de rádio, séries televisivas, scripts de filmes, libretos de ópera e tantos outros.
Segundo Pollock (2002), ainda que fosse mais provável encontrar Calvino em um
cinema do que numa sala de concerto, a música o interessava enquanto uma forma de expressão.
Pollock conta que, um ano após fazer o convite a Calvino, chegou a ele um texto que ele só
pode descrever como perfeito, uma narrativa sedutora sobre o que hipoteticamente poderia ter
acontecido entre os números incompletos da ópera de Mozart que tinha muito da fluidez de In

45
De Zaide sobraram quinze peças musicais, com libreto de Schachtner, para colocá-la em cena normalmente se
procura integrá-la com recitativos para remediar a incompletude do libreto e com outras pelas mozartianas para
remediar a da música. Pollock ao contrário procurou um escritor para ter um texto em prosa que servisse para
conectar as peças existentes, uma narração que servisse como moldura; se voltou para mim como autor das Cidades
Invisíveis, que trata do Oriente fabular, e do Castelo dos destinos cruzados, que tem uma estrutura combinatória
de histórias que conectam um certo número de elementos dados (Tradução nossa).
150
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IV Seminário Nacional de Dramaturgia e Teatro: Teatro e Política

una notte d’inverno um viaggiatore. De um ponto de vista musical, como afirma Pollock, havia
ainda mais um atrativo, isto é, o fato de que Calvino deixou a obra de Mozart intocada, não
seriam necessárias adições musicais ou pastiches, o que quase sempre constituía a problemática
de lidar com obras inacabadas. Outro ponto interessante é que o texto era em italiano enquanto
os números musicais deveriam ser cantados em alemão para parecer algo como objetos de
museu. Não à toa essa montagem da Zaide foi um grande hit no festival daquele ano.
Pollock ainda lembra, em seu texto, sobre as colaborações de Calvino com Berio,
definindo-as como o que, no mundo da ópera, o fez mais conhecido. Pollock declara, entretanto,
que estas foram experiências insatisfatórias para Calvino, pois, nas palavras de Pollock,
“Composers have a way of chopping up texts to suit their music. Berio could be famously
autocratic. Calvino’s original text for Un re in ascolto was completely abandoned; only some
of the protagonist’s speeches were eventually used”46 (POLLOCK, 2002, s/p). Mais adiante
Pollock ainda conta que quando tudo já estava terminado, lembrando Berio, Calvino afirmou:
“It is so much easier working with Mozart”47. (POLLOCK, 2002, s/p)
Dadas as informações sobre Un re in ascolto que discutiremos posteriormente, só
poderíamos pensar que Calvino falava sobre esse episódio ao dizer aquilo a Pollock, entretanto
a ópera na qual a dupla trabalhava em 1982, como já mencionamos, é La vera storia. Sabemos
que Calvino escreveu para Berio em Allez-hop muito antes disso, mas pouco se sabe sobre, por
isso nos focaremos em La vera storia e Un re in ascolto, obras maiores e mais representativas.
Sobre La vera storia, Berio (1982) explica que é uma ação musical constituída por duas
partes. Na primeira parte há uma série de eventos que estabelecem um paradigma de conflitos
elementares expressos por recursos operísticos familiares (através de árias, duetos,
recitativos...) e então há a segunda parte, que é idêntica à primeira mas é distribuída e
segmentada de forma diversa, oferecendo uma transfiguração da primeira realocando os
conflitos em uma perspectiva musical e dramatúrgica substancialmente diferente. Se a primeira
parte é uma ópera, a segunda não o é, e cada uma mostra as mesmas coisas de formas diferentes,
por isso podemos pensar em cada parte sendo uma paródia da outra, de certa forma.
Berio ainda explica que na primeira parte a ação cênica predomina, enquanto na segunda
parte, em que nada a mais se narra, mas apenas se pensa sobre a outra parte, é a ação musical
que predomina. Se na primeira parte há protagonistas, na segunda apenas seus ecos se mantém

46
Compositores têm uma maneira de cortar textos para se adequarem à sua música. Berio poderia ser celebremente
autocrático. O texto original de Calvino para Un re in ascolto foi completamente abandonado; somente alguns
discursos do protagonista foram usados eventualmente (Tradução nossa).
47
É muito mais fácil trabalhar com Mozart (Tradução nossa).
151
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IV Seminário Nacional de Dramaturgia e Teatro: Teatro e Política

e há uma coletividade vocal. A primeira parte é concreta, a segunda é onírica e rejeita a ideia
de ópera. Berio esclarece também que:

The origins of La vera storia lie deep in my own personal story, which has
involved many encounters with popular music […] but also the need to
discover further functions implicit within an established musical proposition
[…]. La vera storia is to some extent the synthesis of these two preoccupations
of mine which, combined, lead me to search out a musical and dramaturgical
space that is open but not empty, a space that can be inhabited by figures and
protagonists who are entirely concrete, but changeable: a space that is not
inhabited by phantom characters imprisoned in a libretto. (BERIO, 1982, s/p)48

Isso exemplica o que diz Piero Gelli (2008) sobre os planos poéticos em que se
encontram tanto Calvino quando Berio, pois estes, enquanto criam, refletem sobre a criação.
Isto é, assim como Calvino sempre pensou a literatura, Berio sempre se preocupou em pensar a
música, e recebe reconhecimento na Itália por isso. Dizendo de outra forma, Berio está
constantemente analisando e remontando a ópera lírica como era conhecida, oferecendo ao
espectador um enigma sem solução caracterizado por sua abertura e pela riqueza de
perspectivas, como uma espécie de discursividade musical plural.
Gelli afirma que a vanguarda e a tradição recuperam um espaço comunicativo comum
no qual a ópera lírica, depois de ser negada, se redefine. Nesse sentido, é possível compreender
o que foi tão atrativo em Calvino para Berio, pois apenas lendo as Lezioni americane (1988) já
é possível observar como o escritor está continuamente colocando em diálogo a vanguarda e a
tradição, sempre tirando o melhor proveito desta para pensar a outra. As similaridades entre os
dois vão além: Calvino, como já mencionamos, sempre teve um fecundo interesse pelo fabular,
provas disso estão em suas Fiabe Italiane (1956) e em textos como A combinatória e o mito
(1977), em que retoma a contação de histórias nas tribos para falar sobre a combinatória. Berio
também se dirige ao popular e inclusive encontra inspiração para o título da ópera na expressão
típica com que os cantastorie sicilianos começam suas narrações, isto é, “venite, ora vi racconto
la storia di...”49.

48
As origens de La vera storia residem profundamente em minha própria história pessoal, que envolveu inúmeros
encontros com música popular [...] mas também a necessidade de descobrir mais funções implícitas dentro de uma
proposição musical estabelecida [...]. La vera storia é em alguma extensão a síntese dessas duas preocupações
minhas que, combinadas, me levaram a procurar um espaço musical e dramatúrgico que não é aberto mas não
vazio, um espaço que pode ser habitado por figuras e protagonistas que são completamente concretos, mas
mutáveis: um espaço que não é habitado por personagens fantasma aprisionados em um libreto (tradução nossa).

49
“Venham, agora lhes conto a história de...” (Tradução nossa).
152
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La vera storia conta a história de Ada, filha de um condenado que rapta o filho do tirano
Ugo, que por sua vez também morre. Ivo, filho de Ugo e irmão da criança raptada, assume o
poder e jura vingança sobre Ada. Após enfrentamentos entre o novo tirano e o povo, Ada canta
a esperança de um futuro melhor. Para Gelli, não existe realmente um enredo na obra mas,
assim como em diversos trabalhos de Berio, uma série de eventos que, nesse caso, reúnem-se
sob o tema da tensão a do conflito violento entre o individual e o estado ou a sociedade, entre
as pessoas e o poder, entre a liberdade e a autoridade. Gelli acredita que o que Berio está
tentando em La vera storia é nos fazer conscientes do fato de que nós somos os únicos capazes
de significar uma história como é contada em nossa própria experiência de mundo.
Calvino também fez algumas declarações sobre a obra na já citada entrevista a Lorenzo
Arruga, afirmando que era amigo de Berio há muitos anos e menciona o início de suas
colaborações com Allez-hop em 56, tendo a partir de então recebido diversos convites do
músico. O escritor afirma que Berio tem sempre uma ideia musical precisa, quer um texto e
espera que o que Calvino escreve se adapte perfeitamente à sua ideia. Em La vera storia, a ideia
era passar a essência de determinadas funções operísticas e adotar um forte esquema dramático
colocando todas as emoções que fazem da ópera também um espetáculo popular. Calvino afirma
que a primeira informação que teve de Berio para a ópera foi utilizar como ponto de referência
Il trovatore, de Verdi, e de fato Calvino e o entrevistador elencam vários pontos que ligam as
duas obras, ainda que algumas inserções do escritor com relação à intertextualidade com a ópera
de Verdi tenham sido retiradas por Berio.
Arruga, na entrevista, traz à tona a questão que discutimos anteriormente, isto é, sobre
as similaridades entre Calvino e Berio. O entrevistador afirma que Calvino é similar a Berio
porque o músico engloba, sobrepõe e faz perceber juntas todas as formas e estruturas musicais
possíveis, e que para Berio a linguagem é sempre uma soma de linguagens. Ora, tal declaração
inevitavelmente nos remete à noção de multiplicidade do próprio Calvino em Lezioni
americane.
É interessante notar como Calvino responde à colocação de Arruga, dizendo que Berio
tem uma grande força de invenção e capacidade de inserir em seu discurso as formas musicais
mais distantes da vanguarda musical. Calvino ainda o define como um trabalhador
extraordinário, a quem o escritor admira como uma força da natureza.
É inegável que Calvino tenha admiração pelo trabalho de Berio, e o próprio fato de o
escritor ter aceito fazer parte de seus projetos é um grande indicativo disso, vista a quantidade
de trabalhos recusados por Calvino ao longo de sua vida. Entretanto, não podemos deixar de

153
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IV Seminário Nacional de Dramaturgia e Teatro: Teatro e Política

nos questionar se o escritor teria se pronunciado da mesma forma em entrevista se esta tivesse
lugar na época de sua próxima e última colaboração com o músico.
Em 1984 é apresentada Un re in ascolto, sobre o qual Calvino afirma em carta a Claudio
Varese que de seu a ópera tem somente o título, tamanhas as alterações feitas pro Berio. Diz
Calvino:
Berio non ha nessun bisogno di libretti: mette insieme parole di varia
provenienza secondo le sue esigenze. Un paio d’anni fa mi mandò in visione
un testo che non aveva quasi nulla di mio – poi non ci siamo più sentiti. Non
sono andato a Salzburg perché non mi piace che lui si ostini a mettere il mio
nome a cose a cui non ho partecipato. Non ho mai sentito la musica, che dicono
bellissima e non stento a crederlo, perché Berio come compositore è
miracoloso, però la sua idea di teatro è pasticciata e ferma a una stagione
avanguardistica di vent’anni fa. (CALVINO, 2000, p. 1527)50

De fato, as alterações no libreto de Calvino foram imensuráveis, pois o enredo enviado


pelo escritor contava a história de um rei que, imóvel em seu trono, progressivamente sucumbe
ao delírio acústico que lhe provocam os sons do entorno do palácio. Enquanto conspiradores
planejavam um golpe de estado, o rei fica cativado pela voz de uma mulher que não consegue
encontrar. Berio, por sua vez, a transforma na história de um velho empresário de teatro que
julga em sucessivas audições a performance de três cantoras para uma encenação de A
tempestade, de Shakespeare.
Bjorn Heile (2013) explica que, para Berio, ao contrário da ópera, em que a narrativa
tem prioridade em detrimento do desenvolvimento musical, o ideal de teatro musical é definido
pelo desenvolvimento musical assumindo seu protagonismo, o que explica um pouco sua
atitude para com o libreto. Nesse molde, Un re in ascolto não deve ser chamado de ópera, mas
de ação musical. Berio afirmou também que não acreditava ainda ser possível fazer ópera, fazer
histórias contadas através do canto, reiterando que ele nunca havia feito uma. Para Berio, trata-
se de criar um teatro aberto que liberta o ouvinte do horizonte de expectativa que oferecem os
gêneros líricos tradicionais.
Embora o enredo de Calvino tenha sido descartado – e deixado para uma publicação
futura no livro Sob o sol jaguar – há muito mérito artístico no que se tornou a obra. Berio buscou
fazer intertextualidade com Shakespeare escolhendo como protagonista Prospero, que leva o

50
Berio não tem nenhuma necessidade de libretos: coloca juntas palavras de proveniência variada conforme as suas
exigências. Há poucos anos me mandou um texto que não tinha quase nada de meu – depois não nos falamos mais.
Não fui a Salzburg porque não gosto que ele se obstine a colocar o meu nome em coisas às quais não participei.
Nunca ouvi a música, que dizem ser belíssima e não deixo de acreditar, porque Berio como compositor é
miraculoso, porém a sua ideia de teatro é desordenada e parada em uma estação vanguardista de vinte anos atrás.
(Tradução nossa).
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nome do protagonista de A tempestade, além de utilizar a própria peça dentro de sua obra e
elementos de outras peças do dramaturgo inglês. E o sonho do protagonista é o sonho do próprio
Berio, isto é, fundar uma nova dramaturgia, uma forma alternativa de arte cênica.
Talvez a aparente frustração de Calvino para com o rumo que a colaboração tomou se
deva ao fato de que a ideia de escrever algo sobre a audição tenha vindo do próprio escritor,
inspirado por um ensaio de Barthes sobre a noção de audição, como afirma Tommaso Pomilio
(2016). Valerio Sebastiani (2018) complementa essa informação explicando o fascínio que
estabeleceu em Berio e em Calvino o texto de Barthes, que tratava sobre o caleidoscópio do
processo comunicativo em dimensões múltiplas, isto é, a psicológica, a hermenêutica, a política
etc. Esse fascínio, entretanto, se juntou aos desejos e preocupações diversos das duas partes
envolvidas e o texto acabou por se alterar radicalmente.
Sebastiani acredita que isso não se deveu somente ao protagonismo de Berio e de suas
noções sobre a música, mas também porque a densidade da reflexão do rei sobre a natureza da
humanidade concebida por Calvino – ligada aos fatos sonoros teorizados por Barthes – não
poderia ser transferida com leveza para o universo do teatro musical. Pomilio ainda aponta que,
para Berio, haveria uma resistência do escritor à imersão na dimensão totalizante da música,
entendendo Calvino quase como que intimidado pela música. Após a morte de Calvino, Berio
afirmou, em fala sobre a memória do escritor, que ambos sofriam ao perseguir uma busca
comum que partia de premissas e de direções diversas, o que os levou a um desacordo
fundamental sobre a visão de trabalho do libreto, mesmo que um desacordo, porém, fecundo.

Considerações finais

Para Rodolfo Biscia (2019), Un re in ascolto difundiu um panfleto para a renovação do


teatro musical, mas a última colaboração entre Berio e Calvino não se deu sem perturbações,
uma vez que a ação musical foi apresentada com a assinatura de Calvino, mas havia sido
completamente alterada pela vontade de Berio, chegando a um ponto em que o escritor recusou-
se a comparecer à apresentação.
Há diversas inconsistências no discurso de Berio (que Heile descreve em seu texto) que
valeriam a pena ser mencionadas se estivéssemos fazendo um estudo focado em Un re in
ascolto, mas diante de nosso recorte nos restringiremos a dizer que, apesar da problemática
levantada por Heile e apesar da hierarquia que o músico defendia tão ferrenhamente, Berio
nunca foi um purista com medo de a música ser contaminada, sempre agindo contra o

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hermetismo e aceitando o pluralismo da linguagem, tanto é atraiu a atenção de Calvino para seu
trabalho. Berio acaba por criar óperas que retoricamente renunciam a ópera ao mesmo tempo
que são derivadas da atração e da fascinação pelas convenções e técnicas operísticas. Ao
renunciar, recriava. O fato é que, apesar do caminho tortuoso trilhado pelo músico e pelo
escritor em sua parceria, seu contato rendeu trabalhos frutíferos para o campo das humanidades.

Referências

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http://heinrichvontrotta.blogspot.com/2005/11/italo-calvino-librettista.html > Acesso em: 20
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Disponível em: <https://www.infobae.com/cultura/2019/07/06/un-rey-de-calvino-y-la-utopia-
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<https://ricerca.repubblica.it/repubblica/archivio/repubblica/2007/11/29/un-asta-per-
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POLLOCK, Adam. Italo Calvino as mean libretto. 2002. Disponível em: <
https://www.theguardian.com/books/2002/jun/29/artsfeatures.italocalvino > Acesso em: 19
ago. 2019.

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IV Seminário Nacional de Dramaturgia e Teatro: Teatro e Política

SEBASTIANI, Valerio. Due autori in cerca di un’opera: considerazioni intorno al “teatro


sognato” di Un Re in ascolto di Luciano Berio e Italo Calvino. 2018. Disponível em: <> Acesso
em: 6 set. 2019.

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Piscator e o teatro operário e de esquerda nos EUA: a experiência de Case of Clyde


Griffiths

Fernando Bustamante (PPG/USP)51

Resumo: Por meio de breve panorama do teatro operário e dos grupos de teatro de esquerda,
procurar-se-á apontar as mudanças deste desde seus primórdios na década de 1920
(considerando o pageant da greve têxtil de Paterson em 1913 como "marco fundador") até sua
integração ao Federal Theatre Project do governo de Franklin Delano Roosevelt na década de
1930. Assim, tem papel central para a compreensão dessas mudanças a política do Partido
Comunista dos EUA e a sua adesão às concepções estratégicas da Frente Popular adotadas por
todos os partidos da Internacional Comunista. É dentro desse contexto que se pretende realizar
uma leitura da montagem da peça "Case of Clyde Griffiths", de Erwin Piscator - uma adaptação
feita pelo autor para o romance An American Tragedy - feita pelo Group Theatre na Broadway
no ano de 1936. A encenação se dá no contexto de profundas mudanças no teatro de esquerda,
consolidando novas concepções estéticas. Os debates estéticos que marcaram as páginas da
Workers Theatre Magazine chegaram a seu ponto de inflexão no I American Writer's Congress,
em 1935, a partir do qual passa a se considerar o "realismo psicológico" como superior às
formas de agitprop até então hegemônicas no teatro de trabalhadores.

Palavras-chave: Erwin Piscator; teatro operário nos EUA; Frente Popular; American Writer’s
Congress.

Introdução

O percurso do teatro operário nos EUA só pode ser compreendido ao ser analisado em
estreita associação com o próprio desenvolvimento da evolução política e sindical da classe
trabalhadora, na medida em que os avanços e retrocessos desta, bem como a adoção de distintas
táticas e estratégias empreendidas pelas suas organizações influenciam diretamente a forma
como as suas manifestações culturais e artísticas ligadas a estas se dão.
Sendo assim, nesse trabalho pretende-se apontar de forma bastante sintética alguns dos
elementos deste percurso nas primeiras décadas do século XX, acompanhando algumas
experiências e o percurso político de alguns conflitos operários decisivos, bem como das
discussões políticas e estéticas que marcam o período e como estas se concretizam a partir de
breves apontamentos acerca da peça Case of Clyde Griffiths, de autoria do dramaturgo e
encenador alemão Erwin Piscator.

Doutorando em Letras pela Universidade de São Paulo (USP). Orientadora Profa. Dra. Maria Silvia Betti. E-
51

mail: bustamantefer@gmail.com
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Breve panorama do teatro operário e alternativo nos EUA

Para começar tal percurso, tomamos como um marco fundador do teatro operário
estadunidense a montagem do Pageant52 que foi encenado pelos operários têxteis da cidade de
Paterson em 1913 no Madison Square Garden. Os motivos fundamentais para tomar tal
encenação como ponto fundante dessa tradição são essencialmente três: a peça marca o uso
consciente do teatro como uma ferramenta política de agitação e propaganda vinculado a um
conflito de classe – no caso, a greve da indústria têxtil que se estendia por meses; também traz
uma organização política da classe trabalhadora – a central sindical Industrial Workers of the
World (IWW) – como organizadora de uma iniciativa artística; e, por fim, tem como base a
aliança entre a classe trabalhadora organizada e um grupo de intelectuais de esquerda que
desejam colocar sua produção a serviço da luta operária53. Esse momento fundamental, cuja
importância e abrangência extrapolam os limites deste artigo, desenvolvido um pouco mais
detidamente em outro momento (BUSTAMANTE, 2019), apresenta os aspectos mais
fundamentais do desenvolvimento posterior do teatro operário estadunidenste.
É no seio da mesma intelectualidade que participa desta experiência seminal que
encontraremos também os pioneiros de um teatro nos anos de 1920 que, ainda sem se ligar
profundamente aos trabalhadores, será o responsável por contestar o modelo já vigente da
precocemente estabelecida indústria cultural da Broadway. Tal movimento, conhecido como
dos little theatres (pequenos teatros) foi responsável por trazer um novo vigor à cena teatral do

52
Pageant era o nome dado às representações teatrais religiosas no período medieval na Inglaterra. Eram episódios
dos Mistérios, encenados em palcos a céu aberto. Possuíam caráter processional, e podiam ser compostos de vários
episódios em diferentes palcos, entre os quais os atores e os públicos circulavam por meio de palcos móveis. A
palavra pageant vem do Latim, significando página, pois cada episódio compunha parte do todo do Mistério, que
em seu conjunto era chamado play. Eventualmente, o nome de todo o ciclo do Mistério passou a ser pageant. No
século XX, essa forma teatral com características muito mais épicas do que dramáticas foi retomada para
encenações de caráter político, como o caso do Paterson Strike Pageant.
53
Os intelectuais e artistas que estiveram à cabeça do Pageant da greve de Paterson foram: John Reed (1887-1920)
foi um jornalista que passou a atuar no movimento político dos trabalhadores a partir do contato com a IWW na
greve de Paterson. Foi testemunha e escreveu sobre a Revolução mexicana (México Insurgente. São Paulo:
Boitempo, 2010) e sobre a Revolução russa (Dez Dias que Abalaram o Mundo. São Paulo: Companhia das Letras/
Penguin Classics, 2010); ao retornar aos EUA participou da fundação do Partido Comunista. Foi delegado ao
Segundo Congresso da Internacional Comunista e morreu de tifo na Rússia em 1920. Walter Lippmann (1889-
1974), jornalista extremamente influente nos EUA, foi um dos primeiros a discutir o papel da mídia para a
formação da visão do público sobre a realidade; posteriormente, tornou-se um conservador. Robert Edmond Jones
(1887-1954) foi um dos cenógrafos mais importantes do teatro estadunidense, tendo trabalhado com a Theatre
Guild. Hutchins Hapgood (1869-1944), jornalista e anarquista, foi autor de diveros livros e trabalhou para jornais
como o New York Commercial Advertiser e New York Evening Post. Ernest Poole (1880-1950), jornalista e
escritor, também relatou em primeira mão os acontecimentos da Rússia revolucionária em 1905 e 1917, tendo
publicado dois livros sobre o tema: "The Dark People": Russia's Crisis, e The Village: Russian Impressions, ambos
publicados em 1918.
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país, fazendo despontar nomes como de Eugene O’Neill, que, ironicamente, teria sua obra
assimilada ao repertório dos grandes teatros da Broadway em pouco tempo, tornando-se um dos
mais canônicos dramaturgos dos EUA. Esse destino estava longe de ser exceção, e representava
a disjuntiva colocada a médio prazo para praticamente todo o movimento dos little theatres:
como todo movimento cultural surgido no contexto capitalista e às suas margens, coube-lhes
poucas possibilidades de manobra entre a cooptação, a adaptação e o aniquilamento. Os
próprios grupos que compunham o movimento, em um curto prazo de poucos anos após seu
início, viram-se recorrendo à montagem de “sucessos” para poder se manter financeiramente.
A estrutura comercial do teatro estadunidense os empurrava a adequar-se aos moldes de uma
indústria bem estabelecida e que já contava com suas “fórmulas” para garantir o retorno
comercial. Elmer Rice retratou esse cenário, relatando como cerca de doze anos após seu início,
o que predominava entre os teatros alternativos ao circuito hegemônico não era mais o idealismo
que o movera nos primórdios, mas sim a tentativa de emplacar peças comercialmente viáveis,
abrindo mão para isso de qualquer consideração artística a respeito de suas produções:
“‘Sucessos da Broadway’ haviam começado a dominar seu repertório, frequentemente a
despeito das preferências dos diretores dos teatros, que se submetiam a isso como um mal
‘necessário’.” (RICE, 1962), (tradução minha). A persistência desse problema pode ser
constatada no fato de que, ao movimento conhecido como off-Broadway, que procurava se
distinguir das grandes produções comerciais, seguiu-se, anos depois o off-off-Broadway, já que
aquele anterior havia em grande medida sucumbido à mesma lógica do show business.
Tal exemplo deixa claro como a questão econômica e da viabilidade material dos grupos
não pode ser compreendida de forma dissociada de suas opções estéticas e artísticas em geral.
Pelo contrário, é em grande medida pela via econômica que os movimentos artísticos que se
insurgem contra as fórmulas prontas da indústria cultural são disciplinados para que entrem no
esquema ou desapareçam. Por outro lado, tal assimilação aponta também para o fato de que não
havia elementos nesse movimento que não pudessem ser tolerados no interior da cultura
hegemônica burguesa, contanto que seus modos de produção fossem devidamente enquadrados.
Trata-se do tipo de produção cultural que Raymond Williams definiu como “alternativo”
(WILLIAMS, 2011).
Paralelamente, é de fundamental importância registrar que não apenas pela via dos little
theatres se esboçava um questionamento ao mainstream cultural, mas também pela via do
movimento operário começam a surgir grupos de grande importância. Dentre estes podemos
ressaltar grupos como o Arbeiter Theater Verband (Artef), o Prolet Buhne (1925), o Workers
Drama League (1926) e o Workers’ Laboratory Theatre (1929), entre outros. Pouco depois os

160
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grupos dispersos começam a se organizar na League of Workers Theatre (LWT), em 1932. No


final de 1933, a imensa vitalidade do movimento dos teatros operários se mostrava pela
proliferação dos grupos: eram já mais de 400 em todo o país (BUSTAMANTE, 2019a).
O caminho trilhado por esses grupos era muito distinto do que haviam tomado os little
theatres, pois, formados predominantemente por trabalhadores sem experiência ou formação
teatral prévia, encontravam-se quase sempre ligados ao Partido Comunista dos EUA e tinham
um projeto político revolucionário como norte para sua produção teatral. O teatro como uma
arma na luta de classes: este era o horizonte que mobilizava os grupos teatrais ligados à LWT,
e seu propósito não era o de atingir sucesso profissional e comercial por meio do teatro, mas
sim o de contribuir com ele para a organização sindical e política, e para a conscientização dos
trabalhadores acerca da luta de classes na sociedade capitalista. Desta forma, o “complexo de
sucesso” que Elmer Rice viu envenenar o movimento dos little theatres tinha pouco lugar entre
os teatros operários. Retomando novamente a classificação de Williams (2011), os grupos de
teatro dessa verve estariam mais próximos a uma cultura de oposição, pois não se restringe a
querer fazer um teatro diferente, mas tem como objetivo a transformação da sociedade. Vale
destacar que o movimento de teatro operário nos EUA possuía estreitas ligações com o
movimento de teatro operário internacional, vinculado à Internacional Comunista. Não apenas
eram inspirados pelo desenvolvimento e as experiências soviéticas e alemãs, mas efetivamente
debatiam os rumos e princípios desse movimento, e inclusive chegaram a organizar, pouco antes
da guinada às Frentes Populares, uma Olímpiada Internacional dos Teatros Revolucionários
(MALLY, 2003).
Contudo, conforme desenvolvemos em outros momentos (2019; 2019a), a via para a
cooptação e domesticação desse movimento dentro dos limites aceitos pela cultura dominante
se dará pela assimilação do seu projeto político ao de um setor do regime político estadunidense:
o do Partido Democrata de Franklin Roosevelt. Isso se dará pela via da política de Frente
Popular elaborada pelo stalinismo e defendida por Georgi Dimitrov no VII Congresso da
Internacional Comunista, em 1935 (DIMITROV, 1935). Essa política impactou diretamente o
teatro operário nos EUA, determinando a dissolução das organizações culturais e artísticas da
classe trabalhadora no interior do Federal Theatre Project (FTP), braço do New Deal de
Roosevelt, já nesse momento apoiado pelo Partido Comunista dos EUA.

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Considerações sobre Case of Clyde Griffiths

É nesse contexto que podemos tomar o exemplo da montagem da peça de Erwin


Piscator, Case of Clyde Griffiths, como uma demonstração prática desta guinada e de suas
consequências. Tendo sido encenada pela primeira vez nos EUA no ano de 1935, na Pensilvânia,
sob direção de Jasper Deeter, a peça é uma adaptação do romance An american tragedy, do
escritor estadunidense Theodor Dreiser. Baseado em uma história real, o volumoso romance
aborda a tragédia de um jovem ambicioso que deseja a qualquer custo ascender socialmente, e
chega ao extremo de assassinar sua namorada grávida, frente à oportunidade de um casamento
que poderá inseri-lo num círculo social abastado. Piscator, em seu estilo épico muito
característico, toma o enredo em uma leitura inequivocamente social, tirando qualquer ênfase
romântica ou individualista do caso e colocando no centro da trama o tema da traição de classe
e dos valores sociais hipócritas do capitalismo que, ao mesmo tempo que incentiva os
capitalistas a cometer qualquer tipo de crime em nome do lucro, perdoando os mais abomináveis
atos, pune exemplarmente um jovem trabalhador que comete um assassinato para tentar entrar
neste restrito círculo dos proprietários.
Uma adaptação do romance feita poucos anos antes, por Patrick Kearney, havia sido
encenada na Broadway em 1926, sob direção de Edward T. Goodman, e em 1931 o romance de
Dreiser fora adaptado para o cinema sob a direção de Josef Von Sternberg. As duas versões
contrastavam radicalmente com a de Piscator, fazendo da história narrada por Dreiser um
melodrama romântico e tirando-lhe tanto quanto possível qualquer tipo de consideração social.
O texto de Piscator, procurando ressaltar os elementos sociais e de classe, fazendo da
história pessoal do protagonista Clyde uma oportunidade para colocar ao espectador a dimensão
trágica que o antagonismo de classe coloca nas vidas humanas, procurou elementos formais que
dessem este caráter à sua dramaturgia. Em primeiro lugar, a seleção do material apresentado no
romance, com mais de 800 páginas, para adaptá-lo ao palco, é em si um desafio que implica em
uma escolha autoral. Piscator deixa de fora todo o preâmbulo a respeito da infância, da vida
familiar, de tragédias pessoais etc. que Dreiser apresenta. Pode-se considerar que tais passagens,
bastante extensas no romance, são fundamentais para conferir aquilo a que comumente a crítica
se refere como “profundidade psicológica”, para construir a personagem e mesmo para gerar
identificação e empatia do leitor com o protagonista.
Contudo, o que interessa a Piscator é o oposto disso: não se procura a motivação
“íntima”, a densidade psicológica, mas sim ressaltar as pressões sociais que motivam as
decisões individuais. Clyde, no texto épico, não é um indivíduo problemático atormentado por

162
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fantasmas do passado, mas sim um trabalhador que é seduzido por promessas de ascensão social
que são características da ideologia estadunidense do self made man. A Piscator interessa deixar
isso o mais claro o possível para o público, e daí o papel central na peça ocupado pela figura do
narrador, um expediente épico por excelência e que visa, neste caso, evidenciar os conflitos e
motivações de Clyde, bem como, ao longo de toda a peça, explicar que ali se desenrola um
conflito social entre classes antagônicas. A fala inicial do narrador não poderia ser mais explícita
em relação a esse intuito:

[...] nós não estamos preocupados com a pura reiteração do romance ou


a simples dramatização de seus incidentes. Essa tragédia que vocês
verão essa noite e tao internacional quanto o problema do Contraste de
Classes, a Distinção de Classes da qual se desprende a história. Nós
estamos aqui para resolver um problema matemático que mostra que o
destino do homem hoje e tao inexorável e absoluto quanto era seu
destino nas antigas tragédias gregas. Nós podemos chamá-lo de A Lei
do Trabalho, ou, ainda melhor, do Capital. (PISCATOR, 2011, p. 231,),
(tradução minha).

Essa visão, que encontraria terreno fértil entre os protagonistas do teatro operário que
proliferou nos EUA entre o final da década de 1920 e o início da década de 1930, contudo,
chega ao Group Theatre justamente no momento de inflexão. O American Writer’s Congress de
1935, vindo na toada da concepção de Frente Popular que dissolveria o teatro operário
independente, transpunha esta discussão ao plano estético. Ali se firmou a visão, emblemática
na fala de Kenneth Burke, de que a agitação e propaganda centrada nos antagonismos de classe
dos anos anteriores “[…] deve produzir uma arte demasiadamente simplista e empobrecida, que
leva a derrota seus próprios propósitos, falhando inclusive como propaganda, já que não vitaliza
sua audiência.” (BURKE apud GEORGE; SELZER, 2003, p. 52, tradução minha). Em
contraposição a isso, consolida-se cada vez mais uma estética pautada no “realismo
psicológico”, muito mais consonante com o espírito do romance original de Dreiser do que com
a adaptação feita por Piscator.
É nesse contexto que, em 1936, e movidos em primeiro lugar por interesses econômicos,
os membros do Group Theatre irão se comprometer com a empreitada de encenar o texto The
case of Clyde Griffiths. A incompreensão e mesmo a rejeição dos principais fundamentos
políticos do teatro épico, e, consequentemente, a rejeição das técnicas formais que este
procurava empregar a fim de atingir esse objetivo político, deram o tom da produção do grupo,
dirigida por Lee Strasberg. Este, por sua vez, pautava seu trabalho como diretor em uma

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recepção muito particular do trabalho de Konstantin Stanislávski, o célebre diretor russo,


ambientando seus ensinamentos a um contexto onde aquele “realismo psicológico” que
mencionamos anteriormente seria cada vez mais hegemônico.
Seja na atuação como na concepção cênica, a montagem de Strasberg se afastava
radicalmente da intenção dramatúrgica de Piscator. Um exemplo disso são elementos cênicos
que foram referidos como “simbolistas” por Mordecai Gorelik ou “sentimentalizados” e de
inspiração expressionista pelo próprio Strasberg, que criavam um clima religioso e inferiam
analogias entre a traição de classe de Clyde e cenas bíblicas. Isso diferia radicalmente da
concepção de um cenário funcional e não-decorativo de Piscator, cujo objetivo era fazer com
que os elementos cênicos contribuíssem com o aspecto narrativo da peça.

Considerações finais

Assim, revelando-se um fracasso, depois de apenas dezenove semanas a peça sai de


cartaz. Anos depois, Strasberg comenta que a produção foi “Uma de minhas verdadeiras
decepções artísticas. Eu tinha alguma ideia de como a produção deveria ser, mas não sabia muito
como ela deveria ser feita porque era algo novo para nós” (DAWSON, 1999, p. 74), (tradução
minha). A incongruência expressa aqui, longe de ser motivada por questões pessoais de estilo
ou meramente formais, é indicadora de uma incompatibilidade muito maior, que se refere à
própria função do teatro em uma sociedade dividida em classes. Essa questão, colocada pelo
teatro épico no início do século XX, permanece viva e profundamente atual.

Referências

BUSTAMANTE, Fernando. Do pageant da greve de Paterson à Frente Popular. Sala Preta, 19


(1), p. 121-133, 2019. Disponível em: https://doi.org/10.11606/issn.2238-3867.v19i1p121-133.
Acesso em 12 de fevereiro de 2018.

BUSTAMANTE, Fernando. O teatro dos trabalhadores nos EUA: da ligação com o movimento
sindical ao Federal Theatre Project. In: Anais do Colóquio Internacional Marx e o Marxismo
2019. Marxismo sem tabus – enfrentando opressões. Niterói, RJ: Universidade Federal
Fluminense, 2019.

DAWSON, Garry Fisher. Documentary Theatre in The United States: An Historical Survey
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DIMITROV, Georgi. Unity of the Working Class against Fascism. Concluding speech before
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Kenneth Burke’s ‘Revolutionary Simbolism. In: America’. Rethoric Society Quarterly, Vol. 33,
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MALLY, Lynn. Exporting Soviet Culture: The Case of Agitprop Theater. Slavic Review, vol.
62, no. 2 (Summer, 2003), p. 324-342, 2003.

RICE, Elmer. Teatro Vivo. Rio de Janeiro: Fundo de Cultura, 1962.

PISCATOR, Erwin. Case of Clyde Griffiths. In: LAWSON, John Howard; SIFTON, Claire;
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WILLIAMS, Raymond. Base e superestrutura na teoria da cultura marxista. In: Cultura e


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Reflexões contemporâneas na dramaturgia de Matéi Vișniec

Camylla Galante (PPGL/UNIOESTE)54

Resumo: A obra do dramaturgo Matéi Vișniec é alicerçada nas vivências e realidades do


jornalista Matéi Vișniec. Os textos ficcionais são alimentados pelos fatos, pelas reportagens,
pelas experiências do jornalista, que fornece a matéria-prima para o dramaturgo que, por sua
vez, depura estes eventos e os apresenta por meio de textos dramatúrgicos que alegorizam a
condição do homem contemporâneo no mundo. Há nestes textos a alegorização dos romenos
durante a ditadura de Ceaușescu, durante a qual a literatura era uma forma de resistência ao
regime, mas há também a alegoria da ditadura atual, regida pelo capital, que fragmenta ainda
mais a existência do homem moderno. Em ambas as situações, a obra de Vișniec é política no
sentido de denunciar a refletir estas realidades, propondo uma análise da contemporaneidade
por meio do teatro. Isto posto, o intuito do presente trabalho é o de demonstrar as diferenças
temáticas da obra dramatúrgica de Matéi Vișniec e ainda demonstrar como a estrutura de seus
textos corroboram para esta leitura política de suas peças.

Palavras-chave: Matéi Vișniec; teatro contemporâneo; alegoria política.

Introdução

“… a realidade e a ficção, de uma certa maneira, eram como um espelho”. Assim se


referiu Matéi Vișniec às sessões de teatro semanais em Bucareste da peça Calígula, de Camus,
em plena ditadura de seu país natal no Leste Europeu, na década de 1980. A loucura do
imperador romano alegorizava a loucura de Nicolae Ceaușescu, à qual o público romeno fazia
filas para assistir55. Como percebeu Vișniec bastante cedo, ainda vivendo na Romênia, o teatro
faz constantemente as vezes de reflexo da realidade, muitas vezes invertendo-a, distorcendo-a,
como no espelho atravessado por Alice, mesmo que nem sempre se encontre maravilhas por
trás dele. E, ao perceber o papel da literatura e do teatro na vida real, principalmente no contexto
em que vivia, Vișniec transformou sua obra – teatro, poesia e prosa – em reflexões acerca do
mundo, dos acontecimentos políticos e, principalmente, da situação da humanidade frente a
estas situações. A sua obra literária, desde o início de sua produção, tem o papel de servir como
resistência. Na Romênia, sob o regime ditatorial, era a resistência ao Estado, já na França,
posteriormente, seguindo até os dias de hoje, a resistência é ao capitalismo, que se apresenta de
forma muito mais sutil, mas tão ditatorial quanto os regimes ditos comunistas do século XX.

54
Doutoranda no de Pós-Graduação em Letras da Universidade Estadual do Oeste do Paraná – Campus de
Cascavel. Orientador Prof. Dr. Acir Dias da Silva. E-mail: camygalante@gmail.com.br

Em entrevista concedida à jornalista portuguesa, Patricia Medina no programa “À conversa com...”, do canal
55

Kuriakos TV. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Ku3ED1RatXs. Acesso 15 maio de 2018.


166
Encontro Intermediário do GT Dramaturgia e Teatro da ANPOLL
IV Seminário Nacional de Dramaturgia e Teatro: Teatro e Política

Escritor bastante atuante nos dias de hoje, Vișniec trouxe e ainda traz para sua obra
dramatúrgica acontecimentos reais, mas que, nas peças, são elaborados esteticamente sob as
características do Teatro do Absurdo, muitas vezes recorrendo também ao grotesco, ao trágico
e ao cômico. O romeno busca em sua outra ocupação – a de jornalista – este substrato para a
sua ficção. É mencionado repetidamente pelo autor em diversas entrevistas concedidas pelo
mundo afora este seu dualismo escritor/dramaturgo-jornalista: o Vișniec-jornalista faz a
cobertura dos mais diversos e terríveis acontecimentos, acompanha as mazelas da Europa e do
mundo e se pergunta com frequência sobre a incapacidade humana de aprender com os próprios
erros passados. Ele é pessimista e muitas vezes não consegue compreender a intencionalidade
dos eventos. Eis que surge o Vișniec-escritor/dramaturgo, com um pouco mais de fé na
humanidade, e transforma a massa bruta da notícia em arte, em alegorias repletas de
significados, que dialoga com outros períodos da história humana e com outras obras literárias,
como uma forma de mostrar que aquilo que está acontecendo, que aquilo que deixa o jornalista
atônito e desesperançoso já havia ocorrido anteriormente, mas apenas com uma roupagem
diferente. O dramaturgo/escritor realiza, propositalmente ou não, uma análise antropológica do
próprio ser humano em sua obra ao processar as informações que o jornalista lhe dá. Em
entrevista a Martin Domecq, em 2014, quando Vișniec esteve na Bahia para acompanhar a
segunda temporada do espetáculo Espelho para Cegos, dirigido por Marcio Meirelles no Teatro
Vila Velha de Salvador, ao ser perguntado sobre a relação entre seu trabalho de jornalista e
escritor, o autor diz:

Há muito tempo que eu levo em mim duas pessoalidades, dois homens, dois
seres. O jornalista que produz e analisa informações existe há quase vinte anos.
[…] Por conta desse trabalho de produzir informações, tenho a impressão que
há vinte anos o mundo não progride: guerras que finalizam e outras que
começam, crises que apenas se cicatrizam e dão lugar a outras que explodem...
Parece que a humanidade não aprende nunca com seus erros do passado. Há
novas formas de atrocidade. […] O jornalista que habita em mim é muito
pessimista. Tenho a impressão de que a palavra progresso não pode ser usada
em nossos dias. […] Por outro lado, o escritor que habita em mim não pode se
entregar ao pessimismo. Ele busca soluções. O jornalista entrega a matéria-
prima ao escritor e o escritor a transforma em peça de teatro, em romance, em
poesia e busca soluções para a humanidade. O escritor é aquele que mantém
viva a esperança. Ele diz que é possível achar uma via; ele age como se o
progresso existisse. Então, entre os dois, há uma relação muito forte. Com
certeza, o jornalista é aquele que observa o mundo. Ele está, às vezes, furioso,
deprimido, decepcionado. Mas o escritor que há em mim diz: “Vamos seguir
lutando”. Os dois avançam juntos e penso que já não podem se separar, são
complementares. (VIȘNIEC, 2014b, p. 215-216)

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IV Seminário Nacional de Dramaturgia e Teatro: Teatro e Política

No trabalho de dar forma a matéria-prima fornecida pelo jornalista, Vișniec elabora


suas peças de modo a combinar forma e conteúdo: os conflitos, o fragmentado homem
contemporâneo, as ditaduras que presenciou, todos estes temas vistos, percebidos, coletados
pelo jornalista são arranjados pelo dramaturgo de uma maneira que é possível perceber estas
fraturas, estas rupturas que estes eventos acarretaram no ser humano do fim do século XX e
início do século XXI. No conjunto das obras dramatúrgicas de Vișniec, é possível perceber que
há, grosso modo, dois padrões principais de peças que, cada um a sua maneira, é construído sob
as características do teatro contemporâneo, que serão apontadas mais adiante. O primeiro
padrão identificado é aquele em que as peças, mesmo com suas particularidades, mesmo sendo
construídas com diferentes gêneros discursivos (cartas, diários, monólogos), há um enredo
central a ser desenrolado, partindo sempre de uma situação dramática determinada. Há, por
assim dizer, uma conexão lógica entre os atos e entre as personagens. Dentre as peças com estas
características pode-se citar Da sensação de elasticidade quando se marcha sobre cadáveres
(2009/2012), A mulher como campo de batalha ou Do sexo da mulher como campo de batalha
na Guerra da Bósnia (1997/2012); A palavra progresso na boca de minha mãe soava
terrivelmente falsa (2005/2012) e Um trabalhinho para velhos palhaços (1993/2012). Estas
peças, excetuando Um trabalhinho..., tratam de momentos históricos específicos, identificáveis,
por mais que o dramaturgo se utilize de características do Teatro do Absurdo para compô-las:
Da sensação…, peça escrita em homenagem ao centenário de Eugène Ionesco, se passa durante
a ditatura romena, num período antes de Nicolae Ceaușescu assumir o poder. O protagonista,
denominado O Poeta, pode ser lido como sendo o jovem Vișniec antes de exilar-se na França
na década de 1980, pois há elementos na peça que foram relatados pelo dramaturgo em
entrevistas quando perguntado sobre a vida dos escritores na Romênia deste período. Entretanto,
a personagem pode ser também compreendida como qualquer escritor que tenha vivido em
ditaduras, pois a perseguição, a censura, as prisões são similares em todos os lugares que
passaram por regimes totalitários ou autoritários, como o Brasil, por exemplo.
A mulher..., por sua vez, se passa no período posterior à Guerra da Bósnia; em A
palavra… também compreende-se que se passe neste mesmo período do pós-guerra, no
momento em que as pessoas retornam ao seu local de origem, mas que agora trata-se de outro
país que não o seu país natal, e que buscam reconstruir suas vidas e recuperar seus mortos.
Nesta peça há imagens presentes em A mulher… que Vișniec retira de testemunhos verdadeiros
de sobreviventes da guerra (VIȘNIEC, 2012e, p.198), como uma parte de uma réplica de Dorra,
uma das duas personagens da peça, a qual se assemelha a um monólogo, na qual ela fala sobre
seu país. Na réplica estão as situações dramáticas que irão se desenvolver em A palavra...:

168
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IV Seminário Nacional de Dramaturgia e Teatro: Teatro e Política

DORRA: Você quer saber qual é a imagem do meu país que levo comigo?
Você quer saber? […] Meu país tem mais precisamente a imagem desse
mercado na Bósnia, chamado Mercado Arizona, onde se vendem filhas para
jogá-las na prostituição no Ocidente. Elas são vendidas num leilão, pagas em
dólares, mas às vezes em maços de cigarros.
[…] é uma mãe que não pode fazer seu luto, pois o cadáver do seu filho morto
em Srebrenica ainda não foi identificado. Finalmente, ela enterra uma de suas
camisas para poder chorar à vontade sobre a tumba.
Ou então meu país é um cachorro jogado vivo num poço no meio de um
vilarejo queimado e abandonado. Antes de morrer, o cachorro ainda tem forças
para uivar durante três dias. (VIȘNIEC, 2012e, p.193-195)

Em Um trabalhinho…, última peça do autor escrita em romeno antes do exílio, as


personagens de Filippo, Nicollo e Peppino, três velhos palhaços que brilharam nas épocas
áureas do circo, se encontram numa sala ao responderem um anúncio de trabalho para velhos
palhaços. A peça toda se passa neste ambiente e a circularidade desta peça é bastante evidente,
assim como a evidente influência de Beckett e Ionesco no motivo desenvolvido da espera, da
desesperança e da decadência do ser humano. Mesmo que não se encaixe nas peças que tratam
de conflitos e guerras, Um trabalhinho... se passa também num momento “pós algum evento”,
quando as personagens tentam retornar ao seu lugar de origem, seja o seu país, seja um
picadeiro, e retomar sua identidade e sua vida. As personagens de Vișniec parecem sempre estar
nesta procura, nesta angústia, neste esperar, neste interstício entre “algo que aconteceu” e “algo
que acontecerá”, mesmo que não tenham exatamente consciência disso.
Esta percepção de não pertencimento, de não reconhecimento, fica ainda mais clara
quando se lê as peças do segundo padrão identificável nas obras do dramaturgo romeno. Estas
peças são escritas em módulos, os quais são esquetes breves ou monólogos, que algumas vezes
são também leitura de cartas ou diários. Os esquetes que compõe esta obra podem ser, segundo
avisos nas próprias peças, agrupados conforme melhor aprouver aos diretores/ensaiadores, o
que possibilita, de acordo com a disposição, múltiplas construções de sentido. Estas obras são
como peças de “Lego”56, que podem ser rearranjadas e construídas com as mais diversas formas
e sentidos. Dentre as “peças de Lego” compostas pelo autor estão Teatro decomposto ou O
homem-lixo – Textos para um espetáculo-diálogo de monólogos (1994/2012), Cartas de amor
a uma Princesa Chinesa e outras peças curtas (2011/2016) e Cuidado com as velhinhas
carentes e solitárias (2003/2013).

56
O termo aqui utilizado se deve à descrição dada ao jogo de blocos de plástico dada pela empresa em seu próprio
site: “As peças LEGO fazem parte do sistema LEGO, que essencialmente significa que eles podem ser facilmente
combinados de inúmeras maneiras - e tão facilmente desmontados. Quanto mais peças LEGO você tem, mais fértil
sua criatividade pode se tornar” (Disponível em: https://www.legobrasil.com.br/grupo-LEGO. Acesso em 22 jan
2018), que, na percepção desta que vos escreve, condiz perfeitamente com a definição das peças do dramaturgo
em questão.
169
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IV Seminário Nacional de Dramaturgia e Teatro: Teatro e Política

De acordo com o “aviso” no início de Teatro decomposto…, mas que pode ser
estendido para as outras duas obras, estas peças

são como pedaços de um espelho quebrado. Houve uma vez o objeto em


perfeito estado. Ele refletia o céu, o mundo e a alma humana. E houve, não se
sabe quando nem por quê, a explosão. Os pedaços de que dispomos hoje fazem
parte sem dúvida da matéria original. E é nesse pertencimento à matéria
original que reside sua unidade, seu perfume, sua identidade de atmosfera.
De resto, o jogo consiste em tentar reconstruir o objeto inicial. Mas o fato é
que é impossível, uma vez que o espelho original jamais foi visto e não se sabe
como era. Talvez faltem alguns pedaços… No entanto o jogo é fascinante, pois
cada vez que reunimos os módulos disponíveis, construímos algo, de qualquer
modo. Um espelho que nunca é perfeito, mas que reflete muita coisa… Esse
jogo não tem fim. Pode até permitir aos atores procurar, a cada espetáculo,
uma outra história, um outro espelho… (VIȘNIEC, 2012e, p. 9)

Nesta obra, tem-se a reunião de 24 esquetes, a maioria monólogos aparentemente


desconexos entre si, mas que são de certa forma ligados pelas personagens e pela temática da
angústia existencial do homem, trabalhadas por meio da estética do absurdo. Segundo o autor,
trata-se de um “diálogo de monólogos”, já que as partes dialogam umas com as outras. A obra
Cuidado com as velhinhas…, que tem como subtítulo “Teatro da ternura e da loucura
cotidianas”, é dividida em três partes: Fronteiras, Agorafobias e Deserto. A temática da obra é
a mesma de Teatro decomposto…, mas desenvolve a angústia vivencial humana nestes três
estágios, seja de forma (quase) literal, seja metafórica. As peças presentes em Cartas de amor…
por sua vez, são, apesar de ainda sintéticas, um pouco mais longas que aquelas que compõem
os livros anteriores. Não só as agruras humanas figuram nesta obra, mas encontra-se também o
amor erótico, as desilusões das revoluções e elucubrações sobre a morte e sobre os excessos do
consumismo.
Esta escrita “descontínua por fragmentos dotados de título” é um dos atributos
verificados nos textos dramatúrgicos contemporâneos por autores que se dedicam a teoriza-lo.
Este atributo presente na produção literária de dramaturgos a partir da década de 1950, após a
Segunda Grande Guerra é, segundo o teórico francês Jean-Pierre Ryngaert,

uma tendência arquitetural das obras contemporâneas, ainda que a intenção


brechtiana tenha sido frequentemente dissolvida na relação com o enredo […].
Estes efeitos de justaposição das partes são buscados por autores muito
diferentes que os denominam cenas, fragmentos, partes, movimentos,
referindo-se explicitamente, como faz Vinaver, a uma composição musical,
ou mais implicitamente, como outros autores, a efeitos de caleidoscópio ou de
prisma. A atenção recai, pois, sobre os nós entre as partes, como destaca
Brecht, ou, podemos dizer, sobre as arestas vivas que marcam as separações e
entalham o relato com vazios narrativos preenchidos à sua maneira pelo efeito
170
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IV Seminário Nacional de Dramaturgia e Teatro: Teatro e Política

de montagem que propõe uma ordenação ou que, ao contrário, revela as


fendas, produz um efeito de quebra-cabeça ou de caos cuja eventual
reconstituição é deixada em parte à iniciativa do leitor. (RYNGAERT, 2013,
p.86)

A escrita fragmentária está presente na produção dramatúrgica visniequiana tanto nas


peças de “enredo” quanto nas peças de “Lego”, mas a continuidade temática é o que diferenciará
os padrões percebidos nas obras. Quanto a isso, Ryngaert e David Lescot escrevem sobre esta
diferença no verbete “Fragmento/Fragmentação/Fatia de vida” presente no Léxico do drama
moderno e contemporâneo organizado por Jean-Pierre Sarrazac. Diz os autores:

Os fragmentos, por conseguinte, ou são homogêneos ou totalmente


heterogêneos. Homogêneos, eles o são na escrita, pelo que falam ou por aquilo
a que se referem. Nesse caso, provêm de um mesmo tecido. A fragmentação
concerne a um setor limitado; o referente comum garante uma lógica de
conjunto. Heterogêneos, eles o são pela diversidade dos referentes, das
preocupações, dos temas, e obedecem, como sugere Heiner Müller, a um
princípio de decomposição. A heterogeneidade torna-se então o princípio
artístico capital. (RYNGAERT; LESCOT, 2012, p.92)

Partindo das reflexões dos autores supracitados, as peças de “enredo” de Vișniec


poderiam ser consideradas como as escritas homogêneas, pois,

a escrita leva em conta um estado anterior idealizado, pressuposto (a carta, o


discurso, a obra integral, um personagem ausente ou morto, até mesmo um
tema), do qual restam vestígios, enquanto temos pelo menos uma ideia do
modelo completo. (RYNGAERT; LESCOT, 2012, p.92)

Como descrito anteriormente, nestas peças há um tema, um motivo que perpassa a obra
toda, que liga todos os atos, mesmo que estes aparentem, na leitura, certa descontinuidade. As
personagens são as mesmas ao longo de todo o texto, assim como as rubricas indicam o mote
que norteia a obra. Mesmo em Migraaantes..., na qual há diversas “ações” diferentes
acontecendo, a temática do estrangeiro, do outro, está presente em todos os esquetes. O mesmo
acontece com as demais peças elencadas acima, que possuem um elo entre os fragmentos, sejam
as mesmas personagens, seja uma certa continuidade entre os atos.
A respeito das peças de Lego, que constituiriam as obras consideradas heterogêneas,
escrevem Lescot e Ryngaert:

[…] no segundo caso, [das peças heterogêneas] ignoramos tanto a


proveniência dos fragmentos quanto aquilo que deveria ser reconstituído. O
princípio ativo, mas aleatório, seria contido nos fragmentos e não no que é
exterior a eles, e, a rigor, o autor não saberia sobre eles mais que qualquer
outro. Não haveria previamente a fratura, a seleção, o despedaçamento, mas
apenas trechos cuja diversidade de proveniências, enigma das origens, e a

171
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IV Seminário Nacional de Dramaturgia e Teatro: Teatro e Política

causa da junção permanecem desconhecidas. (RYNGAERT; LESCOT, 2012,


p.92)

Como alerta Matéi no prólogo de Teatro decomposto…, houve um início, houve um


“espelho” completo (refere-se, talvez, ao teatro aristotélico também, a arte enquanto mimese,
enquanto representação do real?), que refletia a realidade, até que, após um evento, que não se
sabe qual, o espelho se estilhaçou. A função dos diretores/atores/ensaiadores/leitores é a de
tentar montar este espelho, mas não há como saber como era no início e outras formas e outros
sentidos podem ser construído a partir da junção destes cacos. Ainda como escreve Vișniec,
este espelho “refletia o céu, o mundo e a alma humana”. Um espelho quebrado ainda pode
refletir a alma humana e o mundo, mas não como antes, pois agora há as marcas da fratura do
espelho, as marcas da fragmentação aparecem no ato de refletir e, consequentemente, no
refletido. É, neste ponto, que a escrita do dramaturgo romeno encontra a forma e o conteúdo.
Sua produção é voltada, mormente, a temas que remetem ao pós-guerra, aos períodos ditatoriais,
ao homem contemporâneo/pós-moderno que passa a ser vislumbrado ao término da Segunda
Guerra Mundial e também o homem que, após vivenciar estes conflitos, é sujeitado aos
desmandos do capitalismo, do hiperconsumismo, da globalização. O homem contemporâneo é
fragmentado, não há regras a serem seguidas de como ser, do que ter, de como agir, e isso
reverbera na sua vivência, no seu pensamento, nas relações com os outros humanos e com o
mundo no qual se vive.
As peças heterogêneas de Vișniec parecem ocorrer após um grande acontecimento,
uma catástrofe que não é nomeada e nem datada. A catástrofe que acontece anteriormente a
“ação” dos esquetes talvez possa ser concebida como todas as catástrofes anteriores que levaram
o homem à situação atual, como se o modo de vida contemporâneo fosse visto como catastrófico
a ponto de deixar “sequelas” no homem. A junção de todas as guerras e conflitos
contemporâneos, os governos ditatoriais, o capitalismo que impõe um modo de vida anti-natural
que leva a uma desumanização das personagens. As peças de Vișniec são lidas, algumas vezes,
como distopias, nas quais, como escreve Eric Fromm no posfácio de 1984,

O sentimento que expressa é de quase desespero acerca do futuro do homem,


e a advertência é que, a menos que o curso da história se altere, os homens do
mundo inteiro perderão suas qualidades mais humanas, tornar-se-ão
autômatos sem alma, e nem sequer terão consciência disso. (FROMM, 2009,
p.365)

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IV Seminário Nacional de Dramaturgia e Teatro: Teatro e Política

Nas peças não há indicação temporal, de quando acontecem, mas é possível depreender
do texto que se trata de peças que se passam num futuro próximo e o os homens ali retratados
são a consequência de eventos anteriores/presentes.
São estas obras que carregam ainda mais as crises do teatro contemporâneo, pois são
compostas por esquetes que, salvo algum agrupamento feito pelo autor (como em Cuidado com
as velhinhas… na qual os esquetes são agrupados em três partes) não possuem nenhuma relação
uns com os outros e tampouco possuem rubricas que orientam a leitura e/ou a montagem dos
textos. Os esquetes são desprovidos de qualquer ação no sentido aristotélico da palavra, não
raro são compostas por monólogos, as personagens raramente são nomeadas (quando o são, os
nomes se repetem com as personagens em outras situações totalmente diversas) e normalmente
recebem uma denominação genérica, como “o homem”, “a garota”, “o transeunte”, “o
segundo”, “o primeiro”, “o escultor”.
Os monólogos e a crise na construção das personagens são outros traços que
determinam a contemporaneidade do teatro visniequiano. As personagens não são
caracterizadas, não possuem um passado e nem mesmo um nome, não realizam nenhuma ou
quase nenhuma ação: “enfraquecidas em vários níveis, o personagem perdeu tanto
características físicas quanto referências sociais; raramente é portador de um passado e de uma
história, e tampouco de projetos identificáveis” (RYNGAERT, 2012, p.136). Elas apenas
travam diálogos muitas vezes sem sentido, que mais parece uma sucessão de monólogos. Diz
Ryngaert sobre a crise da personagem:

Reduzido a funções essenciais como inúmeros outros traços de sua


humanidade, próximo da supressão por sua concentração num suporte tênue e
enigmático, o personagem ainda fala. E essa “presença de um ausente” ou essa
“ausência tornada presente”, na qual Jean-Pierre Sarrazac vê a equação do
personagem moderno, deve ser considerada em sua relação com a fala.
É aqui que o personagem se redefine e talvez se reconstrua, no desvão entre a
voz que fala e os discursos que ela pronuncia, na dialética cada vez mais
complexa entre uma identidade que vem a faltar e falas de origens diversas,
no seio de um teatro que decerto não é mais narrativo, mas que participa do
comentário, da autobiografia, da reiteração, do fluxo das vozes que se cruzam
na encenação da fala. (RYNGAERT, 2012, p. 137)

Quanto ao monólogo, este não mais tem a função de comentário da ação, já que esta
já não é a protagonista do teatro contemporâneo, “ele se torna uma fala desarticulada,
fragmentária e convulsiva, na qual se desvela a psique daqueles que permanecem solitários com
seus problemas e angústias”. (HAUSBEI; HEULOT, 2012, p.116)

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IV Seminário Nacional de Dramaturgia e Teatro: Teatro e Política

Assim as personagens de Vișniec são construídas, por meio de seus monólogos (que
algumas vezes são diálogos com personagens invisíveis), dos títulos dos esquetes e pela alcunha
que lhe é dada.
As crises sobre as quais as peças e as personagens de Vișniec se assentam revelam que
o teatro clássico não mais tem o poder de representar o homem contemporâneo. O homem
fraturado pelas guerras, pelo fim das utopias socialistas e recentemente pelo capitalismo que
impõe mudanças constantes, frente às quais é improvável a construção de uma identidade fixa,
não pode mais ser representado por regras que o delimitem e determinem uma ação, pois ele
mesmo já não é mais um homem de ação. O teatro contemporâneo, mesmo não mais primando
pela mimese aristotélica, simboliza o homem na sua estrutura fraturada, monológica, que se
constrói não mais pela ação, mas pela palavra.

Referências

FROMM, Eric. Posfácio. In: ORWELL, George. 1984. Trad. Alexandre Hubner e Heloisa Jahn.
São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

HAUSBEI, Kerstin; HEULOT, François. Monólogo. In: SARRAZAC, Jean-Pierre (Org.).


Léxico do drama moderno e contemporâneo. Trad. André Telles. São Paulo: Cosac Naify,
2012.

LESCOT, David; RYNGAERT, Jean-Pierre. Fragmento/Fragmentação/Fatia de vida. In:


SARRAZAC, Jean-Pierre. (Org.). Léxico do drama moderno e contemporâneo. Trad. André
Telles. São Paulo: Cosac Naify, 2012.

RYNGAERT, Jean-Pierre. Ler o teatro contemporâneo. Trad. Andrea Stahel M. da Silva. São
Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2013.

______. Personagem (crise do). In: SARRAZAC, Jean-Pierre. (Org.). Léxico do drama
moderno e contemporâneo. Trad. André Telles. São Paulo: Cosac Naify, 2012.

VIȘNIEC, Matéi. A história dos ursos pandas contada por um saxofonista que tem uma
namorada em Frankfurt seguida de Um trabalhinho para velhos palhaços. Trad. Pedro
Sette-Câmara. São Paulo: É Realizações, 2012a.

______. A palavra progresso na boca de minha mãe soava terrivelmente falsa. Trad. Luiza
Jatobá. São Paulo: É Realizações, 2012b.

______. Cartas de amor a uma Princesa Chinesa e outras peças curtas. Trad. Roberto
Mallet. São Paulo: É Realizações, 2016.

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IV Seminário Nacional de Dramaturgia e Teatro: Teatro e Política

______. Cuidado com velhinhas carentes e solitárias. Trad. Luiza Jatobá. São Paulo: É
Realizações, 2013.

______. Da sensação de elasticidade quando se marcha sobre cadáveres. Trad. Luiza Jatobá.
São Paulo: É Realizações, 2012c.

______. Matéi Vișniec na Bahia. Out. 2013. Entrevistador: Martin Domecq. Repertório,
Salvador, p.211-216, 2014.2.

______. Migraaaantes ou Tem gente demais nessa merda de barco ou O salão das cercas
e muros. Trad. Luciano Loprete. São Paulo: É Realizações, 2017.

______. Paparazzi ou Crônica de um amanhecer abortado seguida de A mulher como


campo de batalha – ou Do sexo da Mulher como campo de batalha na Guerra da Bósnia. Trad.
Luiza Jatobá. São Paulo: É Realizações, 2012d.

______. Teatro decomposto ou o homem lixo – Textos para um espetáculo-diálogo de


monólogos. Trad. Luiza Jatobá. São Paulo: É Realizações, 2012e.

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Romance-em-cena: O humor e a crítica em


O púcaro búlgaro

Raimundo Lopes Cavalcante Jr (PPG/UFF) 57

Resumo: Este trabalho se propõe a apresentar uma leitura do romance O púcaro búlgaro do
escritor Walter Campos de Carvalho (1916 - 1998) tendo por embasamento teórico o
pensamento de Mikhail Bakhtin acerca da análise do discurso. Buscaremos destacar as críticas
sociais e questionamentos existenciais que esta obra suscita, considerando as relações do
discurso com o local e tempo histórico no qual foi produzido. A encenação deste romance
fechou a trilogia do projeto Romance-em-cena, reconhecido e premiado trabalho do encenador
Aderbal Freire-Filho que, entre o final dos anos 1980 e o início dos anos 2000, idealizou e
dirigiu três espetáculos cuja concepção inicial era a de que os textos de romances fossem
encenados integralmente no palco, sem adaptações para o gênero dramático. Além do O púcaro
búlgaro foram transportados aos palcos os romances A mulher carioca aos 22 anos do escritor
e jornalista João de Minas e O que diz Molero do também escritor e jornalista português Dinis
Machado.

Palavras-chaves: Romance-em-cena; Campos de Carvalho; Literatura e Teatro; Dramaturgia


narrativa.

Introdução

No ano de 2007 tive a oportunidade de assistir ao espetáculo O púcaro búlgaro que na


ocasião fazia uma curta temporada em Ipanema, zona sul do Rio de Janeiro, a peça era mais um
trabalho do já então consagrado diretor Aderbal Freire-Filho (Fortaleza, 1941) que levava ao
palco do Teatro Laura Alvim o romance do escritor Campos de Carvalho (1916 - 1998), ali o
texto literário era representado com vigor e vitalidade por um grupo afinado de atores; esta peça
teve sua estreia no ano de 2006 no teatro Poeira, também no Rio de Janeiro e fez parte do projeto
romance-em-cena, idealizado e dirigido por Freire-Filho cuja proposta era a de levar aos palcos
a íntegra de obras da literatura, sem a necessidade de adaptar os textos à linguagem da
dramaturgia.
O púcaro búlgaro fechou a trilogia de peças do projeto romance-em-cena, no qual a
primeira obra a ser encenada, ano de 1990, foi A mulher carioca aos 22 anos, do autor mineiro
João de Minas (1896 - 1984). Esta primeira montagem estreou no dia 10 de novembro no Teatro
Gláucio Gil no Rio de Janeiro e tinha quatro horas de duração, com três intervalos que somavam
cerca de quarenta minutos. O tempo de duração não lhe tirou o brilho e a peça rendeu ao diretor

Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Estudos de Literatura pela Universidade Federal Fluminense –


57

UFF. Orientador Prof. Dr. André Dias. E-mail: rlopes.rl2000@gmail.com

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IV Seminário Nacional de Dramaturgia e Teatro: Teatro e Política

o prêmio Shell daquele ano. Já no ano de 2003 foi a vez do romance O que diz Molero, obra do
jornalista e escritor português Dinis Machado (1930 – 2008), ganhar os palcos brasileiros,
rendendo também a Aderbal o prêmio Shell de melhor diretor. Finalmente em 2006 a montagem
de O púcaro búlgaro resgatava com sucesso a obra de Campos de Carvalho, conquistando
prêmios de relevância tais como o Prêmio Eletrobrás Rio 2006, o Prêmio Qualidade Brasil 2007
de melhor ator, melhor espetáculo e melhor diretor, o Prêmio Contigo 2007 de melhor
espetáculo de Comédia e sendo ainda agraciada pela Associação dos Produtores Teatrais do Rio
de Janeiro com os prêmios de melhor peça, melhor diretor e melhor ator para Gillrray Coutinho.
Além de reconhecido e premiado como diretor, Aderbal Freire-Filho é também autor,
apresentador e ator, nasceu em Fortaleza no ano de 1941 e desde cedo sua família incentivava
e de certa forma lhe cobrava a leitura de obras literárias. Pela lei do menor esforço o menino
Aberbal se interessou a princípio pela leitura dos textos de teatro, por serem os livros mais finos
da biblioteca da família. Logo ele tomou gosto pelo gênero das histórias contadas através dos
diálogos e já aos doze anos ingressou num grupo de teatro de alunos de uma faculdade de
Filosofia. Ao concluir o antigo curso científico Aberbal trabalhou em rádio como locutor e
radioator, com intuito de mudar de se mudar de cidade fez concurso para técnico em prospecção
de petróleo e em 1960 viajou pela primeira vez para o Rio de Janeiro para fazer um curso e
treinamento promovidos pela Petrobras; foi expulso do curso por desavenças com os
professores mas não voltou imediatamente ao Ceará, trabalhou ainda algum tempo como
vendedor de móveis de aço até ser convocado pela família para voltar e fazer o curso de Direito
em Fortaleza, na faculdade onde seu pai, também advogado, lecionava. Aderbal se formou, mas
exerceu a advocacia por apenas três anos, nesse período também casou e teve um filho,
insatisfeito com o rumo que sua vida tomava o jovem advogado planejou uma segunda viagem
ao Rio de Janeiro para onde viajou de ônibus em 1970, dando início a uma nova fase em sua
vida, quando já estava com quase 30 anos.
No Rio de Janeiro, Aberbal morou no famoso Solar da Fossa, uma pensão na zona sul
carioca que serviu de reduto da contracultura brasileira, local que nos anos de 1960 e início dos
anos 70 abrigou nomes como Caetano Veloso, Paulinho da Viola, José Wilker, Paulo Leminski,
Betty Faria, Paulo Coelho e Naná Vasconcelos dentre tantos outros. Aberbal foi um dos últimos
moradores a deixar o Solar quando o mesmo foi desapropriado para virar um shopping center.
Nos dois anos iniciais dessa nova fase fez pequenos trabalhos como ator, iniciando sua trajetória
profissional como diretor no ano de 1972 e já alcançando enorme sucesso no ano seguinte como
o diretor de Apareceu a Margarida, texto de Roberto Athayde que tinha Marília Pêra como

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protagonista, o enorme sucesso da peça lhe rendeu prestígio, sendo montada inclusive em outros
países.
Desde o início de sua carreira como encenador Aderbal desejava trabalhar com um
grupo de teatro, ele diz que “Sentia que estava construindo uma linguagem e que precisava
trabalhar com as mesmas pessoas para progredir e não ter cada vez que voltar a começar com
outros atores” (CASTILLO, 1987, p.89). A sua primeira tentativa de montar um grupo se deu
ainda em 1973 com o Grêmio Dramático Brasileiro, naquela época o grupo tinha a ousada
proposta de montar quatro peças ao mesmo tempo. As peças eram encenadas em dias
consecutivos e, embora de temáticas diferentes, o diretor procurou dar uma sequencia lógica às
apresentações para que o público pudesse ter uma experiência nova de participar de um grande
espetáculo, aos assistir as quatro montagens. A empreitada não foi bem recebida pela crítica
que considerou a proposta pretenciosa demais, assim o grupo foi dissolvido ainda no ano de
1974. Em entrevista na década de 1980 Aberbal afirmou que a proposta do grupo não tinha
conseguido se comunicar com o Brasil dos anos setenta.
Em 1989 numa nova tentativa, Aderbal criou a companhia de teatro denominada
Centro de Demolição e Construção do Espetáculo, esta surgiu como um projeto para ocupar e
recuperar o Teatro Gláucio Gil, abandonado pelo Governo do Estado do Rio de Janeiro. Sem
apoio do poder público e sem patrocínio, eram os próprios atores (em sua maioria jovens e
iniciantes) que se encarregavam da limpeza, recuperação e organização do espaço onde, além
das atividades de criação e dos ensaios dos espetáculos, eram também oferecidos cursos,
palestras e oficinas de teatro. Aos poucos o diretor foi selecionando os integrantes de sua nova
companhia com atores escolhidos entre os participantes dos cursos oferecidos. Após um ano e
meio de ensaios estreava finalmente o romance-em-cena com A mulher carioca aos 22 anos.
Em entrevista concedida à jornalista e escritora Maria Helena Esteban para a Casa do Autor
Brasileiro, Aderbal esclarece a respeito deste projeto e de sua opção por manter-se fiel ao texto
literário:
Quando faço um romance sem adaptação – o que chamei de romance-em-
cena: A mulher carioca, O que diz Molero e O púcaro búlgaro – não faço
qualquer adaptação literária (de narrativa a drama), o que me obriga a
construção de uma dramaturgia na cena, a uma profundíssima adaptação
cênica desses romances originais. Um ponto de partida é pedir aos atores que
atuem em primeira pessoa, mesmo falando em terceira pessoa. Ou seja: usando
originalmente o texto narrativo, dou a ele uma forma dramática. E então trato
de buscar essa síntese na encenação, o que me leva a "escrever" na cena a
adaptação: a dramaturgia. Tudo fica claro desde que se entenda que não separo
texto e cena, que quando falo em forma dramática não estou falando só de
literatura dramática, mas do conjunto idealmente inseparável texto-cena. […].
(ESTEBAN, 2017, p.2)

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Com o romance-em-cena, Aderbal reforça o valor e a importância do texto literário


como um dos elementos para o sucesso de um espetáculo teatral. Declarado amante de romances
ele afirma a forte influência que o texto tem sobre o seu trabalho e, ainda na década de 1980
antes portanto da estreia deste projeto, o diretor reforçou seu compromisso com um resgate e
uma fidelidade ao texto literário, o que considerou fundamental ao seu oficio:

Bem, outra influência fundamental, da natureza do meu ofício, é a influência


que se exerce sobre o espetáculo, o texto que se dirige. Você dirá que isso não
é influência, é compromisso, mas é só questão de ampliar o conceito de
influência. Porque parece absurdo, mas eu tenho visto montagens tão pouco
“influenciadas” pelo texto original ... eu acho que toda montagem deve partir
de uma ideia básica de fidelidade. (CASTILLO, 1987, p. 47)

A narrativa dissonante de O púcaro Bulgaro

Repito que Campos de Carvalho é um louco. Um louco perigoso. Está


demolindo as rotinas da vida: a hora do expediente, a do amor, a dos chinelos
diante da televisão, a do bocejo à hora de mandar as crianças para a cama.
(FIGUEIREDO, 1964, apud ARANTES, 2005, p.20)

Walter Campos de Carvalho (1916 - 1998), mineiro de Uberaba, autor de seis


romances entre as décadas de 40 e 60 do século XX, ainda é um escritor muito pouco conhecido
mesmo para pessoas dedicadas ao estudo da Literatura Brasileira. Após 1964, quando publicou
O púcaro búlgaro, Campos de Carvalho se afastou do mercado editorial e jamais voltou a
apresentar um novo romance, aposentando-se como procurador do estado de São Paulo. Ateu,
o autor faleceu aos oitenta e um anos em 1998, ironicamente numa sexta-feira santa; no velório
não havia pessoas suficientes para carregar o caixão, o jeito foi solicitar a ajuda do motorista
do rabecão que também por ironia, segundo Antonio Prata que participou do velório, “não podia
ter outro nome: Jesus” (CARVALHO, 2006, p.11). Em seu período de isolamento, nas
raríssimas entrevistas concedidas, pouco se conseguia extrair de suas opiniões ou de seus
planos, mostrava-se um senhor sisudo, ensimesmado, triste até. Nas entrevistas o que se obtinha
eram apenas referências a títulos de novas obras que até hoje não vieram a público. Segundo o
próprio autor em uma de suas últimas entrevistas, concedida ao jornalista Pedro Bial, o motivo
pelo qual parou de escrever foi uma briga com seu antigo editor, Ênio Silveira, porém ele não
deu maiores detalhes sobre o porquê essa desavença o afastou do mercado editorial. Com o
passar dos anos, assim como aconteceu com João de Minas o primeiro autor “resgatado” por
Aderbal Freire-Filho, suas obras foram desaparecendo das prateleiras e seu nome foi sendo

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esquecido. Apesar de não ter publicado outro romance, Campos de Carvalho ainda colaborou
nos jornais O Pasquim e o Estado de São Paulo até meados da década de 1970.
Somente em 1995, trinta e um anos após a primeira edição de O púcaro búlgaro, a
José Olympio Editora republicou a obra quase completa do autor na tentativa de aproximá-lo
novamente do público leitor. Diz-se obra quase completa porque ele mesmo proibiu a reedição
de seus dois primeiros livros, Banda Forra (1941) e Tribo (1954). Figura polêmica, o escritor
sempre despertou declarações fortes sobre o seu estilo e trabalho. O jornalista Edney Silvestre
assim começa o relato de uma entrevista com Campos de Carvalho à revista O Cruzeiro:

Este homem é um maldito – Há quem o considere o fenômeno mais importante


das artes no Brasil. A cultura oficial, entretanto, ignora-o. Os críticos temem
escrever a seu respeito. Os leitores o consideram um louco, mas seus livros
estão esgotados. O que vem a ser um marginal dentro da cultura brasileira?.
(SILVESTRE, 1969, p.43)

No prefácio da Obra Reunida, o escritor Jorge Amado relatou seu encanto com o
trabalho de Campos de Carvalho, considerava-o de fato um fenômeno, um “escritor de
personalidade singular, pouco comum no quadro de nossa literatura.” (CARVALHO, 2005,
p.13) e afirmava ainda que no romance A vaca de nariz sutil (1961) o autor “enfatizava os novos
valores de uma literatura sem paralelo na época” (CARVALHO, 2005, p.13). Ainda neste
prefácio Jorge Amado insinua, sem maiores detalhes, que a obra de Campos de Carvalho teria
sofrido com a incompreensão e perseguição política tanto da esquerda quanto da direita,
considerando-o vítima de injustiças. Apesar do tempo, a obra de Campos de Carvalho mantém-
se atual e quem a conhecer dificilmente ficará insensível ao seu estilo e ao humor ácido de seus
romances.
Em O púcaro búlgaro, o narrador personagem cujo nome não nos é claramente
revelado, mas deduzimos que seja Hilário, planejará uma expedição cujo objetivo será o de
confirmar a existência da Bulgária. A obsessão de Hilário por tal país se iniciou a partir de uma
visita sua ao Museu Histórico e Geográfico da Filadélfia, nos Estados Unidos, onde o narrador
em companhia de sua mulher teria avistado um púcaro búlgaro (espécie de vaso com asa para
depósito de líquidos). Incrédulo sobre a origem do objeto, Hilário abandonou sua mulher no
exterior sem dinheiro sequer para pagar as despesas do hotel e embarcou num voo de volta para
o Brasil, com o intuito de elaborar a tal expedição. Chegando a sua casa, entretanto, por algum
motivo inconsciente, o personagem se esqueceu por dois anos de seu extraordinário projeto.
Morador do Alto da Gávea, bairro de classe média alta da zona sul do Rio de Janeiro, ele vivia
do dinheiro de aluguéis de imóveis que herdou de seu pai, tendo somente a companhia da
empregada Rosa com quem sempre traíra sua mulher. Em algum momento desse
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relacionamento Rosa engravidara e obviamente essa gravidez foi rejeitada pelo narrador que
sem maiores pudores deixa implícito ter havido um aborto, “tira-se e pronto” ele diz e para
compensar Rosa oferecer-lhe-ia um brinquedo: “Dou-lhe uma boneca, dessas que fazem tudo e
são tão estupidas quanto a dona, o vendedor, o presidente da República. Mesmo que fosse
possível seria impossível, criança só por equívoco, a humanidade é um equívoco”.
(CARVALHO, 2005, p.325). De um evento particular (a gravidez e o aborto da empregada) o
narrativa parte para uma crítica política (chamando de estúpido ao presidente da república) e
também social, implicitamente em defesa do aborto. Cabe lembrar que naquele início da década
de 1960, o mundo vivenciava o surgimento da pílula anticoncepcional que chegou ao Brasil por
volta de 1962, a pílula representou para as mulheres a possibilidade de um controle maior sobre
o seu próprio corpo, permitindo que decidissem o melhor momento para terem filhos, evitando
assim “os equívocos” indesejáveis.
Inquieto, o narrador assim nos relata a sua insatisfação pessoal, revelando-se um
escritor frustrado:
Preciso pôr fogo nessa papelada, ou talvez fosse melhor pôr logo fogo na casa,
com Rosa e tudo. Estou desconfiado de que o tudo o que aí sou eu, o que é
muito pouco. Um escritor que nem sequer conseguiu escrever, um herdeiro
que não herdou nada que prestasse, um cidadão que nasceu numa cidadezinha
e acabou sendo menor do que sua cidade, um desmemoriado para as coisas
sem importância e agora para as mais importantes, um sujeito de binóculo que
não enxerga sequer diante do seu nariz: ou isto não é a imagem de um homem
ou então eu sou um homem. (CARVALHO, 2005, p.326)

O narrador se reconhece como um sujeito passivo perante a vida, que está deixando o
tempo fluir, sem nada conseguir construir. A narrativa subverte a pressão que o tempo impõe
ao homem moderno e esse narrador insatisfeito, mas ao mesmo tempo sem iniciativa desdenha
dessa pressão, criando um diário de acontecimentos onde o tempo não tem sequencia lógica e
pode ser nomeado, por exemplo, como “Outubro, 32”, “Novembro 28 ½” ou simplesmente
“Século”. Em 4 de novembro o personagem afirma que saiu para “matar o tempo” e imagina
como seriam as coisas caso conseguisse de fato essa façanha. Ele conclui que a vida está
monotonamente imóvel, que os acontecimentos enfim se sucedem sem que nada de fato mude,
“como um filme parado” ele diz, “sem futuro e com um peso de passado tremendo”
(CARVALHO, 2005, p.321). Um ciclo de acontecimentos levando-o a lugar algum e ao mesmo
tempo gerando questionamentos sobre o cotidiano, os compromissos e a vida, criticando
veladamente a fé, o poder e a ambição humana:

A mesma cara no espelho por exemplo, e a paisagem na janela, e os amigos


que chamam ao telefone, a obrigação de fazer ou não fazer, a hora de defecar,
o Deus nas alturas, os impostos, a gargalhada sempre igual, a demagogia do
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governo, a ameaça da guerra, a guerra, as palavras de cada dia e de todos os


dias – que sei eu?, e que não sei eu? (CARVALHO, 2005, 321)

Será somente a partir de uma insólita e hilária consulta a um psicanalista que


finalmente Hilário dará início ao seu projeto, então publicará um anúncio em jornal e iniciará a
seleção de voluntários para a montagem da equipe de expedicionários que tentarão provar a
existência (ou a inexistência) da Bulgária. O que se segue tanto na seleção dos candidatos
quanto nos preparativos da expedição é uma narrativa sui generis, com um humor explicito e
debochado. Dentre os candidatos a expedicionários apareceu, por exemplo um sujeito chamado
Pernacchio que disse ter morado por muitos anos ao lado da torre de Pisa tendo por isso ficado
meio neurótico com medo que a torre lhe caísse sobre a cabeça; diz o narrador que Pernacchio
lhe pareceu um pouco inclinado para a esquerda, mas que mesmo assim foi aceito na equipe já
que afirmou o narrador não ter preconceitos políticos e assim julgava que “cada um é o que é e
não o que diz ou o que pensa” (CARVALHO, 2005, 331). A narrativa zomba, portanto das
certezas e dos conceitos ideológicos de esquerda e direita.
Um outro candidato de nome Radamés, dito professor de bulgarologia, se mudou de
mala e cuia para a casa de Hilário, “- Vi que o senhor morava sozinho e vim morar sozinho com
o senhor” (CARVALHO, 2005, p.333), logo o professor passou a paquerar a empregada Rosa
e a devorar toda a dispensa do seu anfitrião. Por seu suposto, porém falso conhecimento
científico, Radamés se tornou o “bulgarologista” consultor da expedição e ao mesmo tempo
conselheiro de Hilário, ambos travavam conversas confusas e divertidas onde discutiam sobre
os mais variados assuntos e aproveitavam para disparar suas críticas em várias direções; assim
vemos nessa conversa onde discorrem mais uma vez sobre a existência ou não da Bulgária:

A continuar assim ainda acabaremos empreendendo uma expedição para


descobrir a nós mesmos [...]. Nem adiantaria, acrescentei, querermos descobrir
coisíssima alguma sem antes termos a absoluta certeza de que existimos. Foi
quando Radamés soltou aquela profunda sentença que ontem consignei aqui e
que, segundo ele próprio, constitui a suma e a síntese de seu pensamento:
TODO RACISTA É UM FILHO DA PUTA. (CARVALHO, 2005, p. 341)

As críticas são trazidas por este sujeito em crise, em busca não de chegar a um lugar
(seja ele qual for), mas de descobrir a si mesmo; enquanto não consegue êxito nessas
empreitadas o narrador personagem vai, portanto, desferindo seus ataques e exibindo as mazelas
sociais de sua época como na crítica que acima faz, de forma categórica, ao preconceito racial.
Em outro momento o professor Radamés disserta sobre o hábito de as pessoas andarem com
um rádio portátil sempre à mão, Hilário questionava o porquê até mendigo, segundo ele andaria
com um rádio transistorizado pelas calçadas de Copacabana, ao que o professor responde:

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- O que antes era a consciência, o anjo da guarda de cada um, hoje se chama
TRANSÍSTOR: coisas da era nuclear ou eletrônica. Você deixa que os outros
pensem por você e decidam sobre o que você deve fazer; e como os outros,
por sua vez, estão deixando que alguém pense ou decida por eles, acaba
ninguém pensando ou decidindo coisa alguma, o que é justamente o que o
governo quer e faz o possível para que aconteça. Daí a Fábrica Nacional de
Transistores, e daí a voz do speaker que é a voz do Governo anunciando
sabonetes e uma era de franca prosperidade – para ele naturalmente.
(CARVALHO, 2005, p. 353)

Os rádios assim retratados nos parecem tão populares e acessíveis quanto os nossos
atuais aparelhos celulares multifuncionais que, para muitas pessoas também exercem influência
no modo de agir ou de pensar, disseminando imagens, fatos, fotos ou notícias falsas com uma
velocidade e amplitude espantosas e sem precedentes, “acaba ninguém pensando ou decidindo
coisa alguma”. Desenvolvido em meados da década de 1950, o rádio transistorizado tornou-se,
nas décadas de 60 e 70, o mais popular veículo de comunicação já que, devido ao
desenvolvimento tecnológico, se tornou um aparelho portátil, substituindo os antigos e pesados
rádios de válvulas eletrônicas.
Ao final da narrativa a tão esperada partida da expedição rumo à Bulgária se dará numa
mesa de jogo e não será nada mais que uma partida de pôquer, onde os expedicionários que
sobraram, após fugas e traições, continuarão a debater sobre suas absolutas incertezas, indo de
nenhum lugar para lugar nenhum, não realizando o projeto expedicionário, mas ainda assim
mantendo o tom dissonante e questionador de seus discursos.

Considerações finais

A seleção das obras que Aderbal Freire-Filho trouxe para o romance-em-cena resgatou
autores esquecidos ou mesmo pouco conhecidos da grande maioria dos leitores brasileiros e até
mesmo dos estudiosos de nossa Literatura. Coincidência ou não, tais autores foram incisivos
críticos das sociedades em que viveram e produziram obras com um humor corrosivo e com
discursos perturbadores, trazendo à tona não apenas críticas sociais contundentes, mas também
despertando válidas reflexões acerca da condição humana.
No capítulo “Explicação Desnecessária”, o narrador personagem de O púcaro búlgaro
nos informa que uma comissão de “búlgaros, berberes, aramaicos e outros levantinos, todos
encapuzados” tentaram impedir a publicação da obra; eles queriam comprá-la para que a mesma
não fosse publicada até pelo menos o início do século XXI, “quando certamente o mundo já

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não terá mais sentido” (CARVALHO, 2005, p. 314). Em um tempo onde os discursos
extremistas se tornam perigosamente constantes e ganham espaço em diferentes sociedades ao
redor do mundo, expandindo ideais políticos, sociais ou religiosos de forma parcial e
intolerante, cabe-nos, neste início de século XXI (quando o mundo ainda não nos parece fazer
tanto sentido), resgatar um autor como Campos de Carvalho cuja voz ainda merece ser ouvida.
Esta voz sem dúvida ganhou volume e projeção graças a esse encontro da Literatura com o
Teatro, promovido por Aderbal Freire-Filho nesse vigoroso e motivador trabalho que
possibilitou a esses dois campos artísticos uma interação simbiótica, de modo que a magia da
encenação teatral permitisse que obras literárias fossem levadas a um público que pôde se sentir
motivado a conhecer melhor os romances ali encenados.

Referências

ARANTES, Geraldo Noel. Campos de Carvalho: inéditos, dispersos e renegados. Campinas,


2004. 164 f. Dissertação (mestrado) – Instituto de Estudos da Linguagem, Universidade
Estadual de Campinas, Campinas, 2005.

CARVALHO, Campos de. Obra Reunida. Rio de Janeiro: José Olympio, 2005. 382p.

______. Cartas de viagem e outras crônicas. (Org.). Cláudio Figueiredo. Rio de Janeiro: José
Olympio, 2006.123p.

ESTEBAN, Maria Helena. Explosão poética do palco - o teatro para todos os autores. Casa
do Autor Brasileiro. Disponível em http://www.casadoautorbrasileiro.com.br/entrevista.
Acesso em 24 de Junho de 2017.

SILVESTRE, Edney Célio. “Este homem é um maldito”. In: O Cruzeiro, p.42-44, 30 de


Outubro de 1969.

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Six Public Acts: a construção coletiva do The Living Theatre

Roberta Cantarela (UnB)58

Resumo: Morte, estado, dinheiro, propriedade, guerra e amor. São esses os temas da peça Six
Public Acts, encenada em 1975 pelo grupo de teatro experimental The Living Theatre. A criação
coletiva apresentada em Pittsburgh, nos Estados Unidos, é o prólogo da peça O Legado de Caim
(1970 – 1971), elaborado pelo grupo no Brasil – antes da sua prisão pela Ditadura Militar
(1964–1985). O trabalho interrompido pelo encarceramento e pela subsequente expulsão das
terras brasileiras seguiu com o Living nas suas encenações mundo afora. Nesse contexto,
analisar a peça Six Public Acts é recapitular o clamor dos anos 1970 que ecoava nos palcos
teatrais Off-Broadway. Com esse intuito, o estudo sobre a peça Six Public Acts – selecionada a
partir do arquivo pessoal de Judith Malina (1926 – 2015), cofundadora do Living, que está
arquivada na Biblioteca Pública da cidade de Nova Iorque (NYPL), na Divisão de teatro Billy
Rose – explorará a esfera do processo criativo, revolucionário e contracultural do Living.

Palavras-chave: The Living Theatre; Atos públicos; Six Public Acts; Ditadura Militar (1964-
1985).

Ato I - Considerações iniciais

Esta pesquisa se iniciou nos documentos arquivados por Judith Malina e outros
membros do grupo The Living Theatre na Biblioteca Pública da Cidade de Nova Iorque
(NYPL), na Divisão de Teatro Billy Rose. Living Theatre considerando o grupo de teatro Off-
Broadway mais significativo do último século iniciou suas atividades na década de 1940 na
cidade de Nova Iorque, fundado por Julian Beck e Judith Malina.
A sua atuação criadora não passou despercebida dos censores da era macarthista na
época da Guerra Fria, o que lançou o grupo em uma fase nômade, ocasionando sua passagem
em vários países da Europa e agregando atores de diversas nacionalidades. Em 1968, no Festival
de Avignon (França), o grupo apresentou sua peça mais representativa no momento, Paradise
Now, uma peça-protesto contra a Guerra do Vietnã. Na sua trajetória pela Europa, o grupo
conheceu Renato Borghi e José Celso, do Teatro Oficina, e desse encontro resultou a vinda para
o Brasil.

58
Professora Adjunta do Departamento de Linguística, Português e Línguas Clássicas (LIP) da Universidade de
Brasília (UnB). Doutora em Literatura (UFSC), Mestra em Letras, na linha Linguagem Literária e Interfaces
Sociais: Estudos Comparados (Unioeste). Contato: roberta.cantarela@unb.br.
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A partir do percurso do coletivo e do momento histórico, focando na peça Six Public


Acts e no folheto do programa entregue ao público, este trabalho irá percorrer o universo teatral
do Living e apresentará o ato público do grupo como uma das manifestações artísticas mais
significativas das suas criações coletivas da década de 1970.

Ato II - Aquilo que se passou, que se viveu e não se esqueceu...

A estada no Brasil resultou na expulsão do grupo pelo governo ditatorial de Emílio


Garrastazu Médici em 1971. O teatro anarquista, contracultural e transgressor causou
perseguição ao coletivo e aos seus simpatizantes. No entanto, antes do ato de violência da
Ditadura, o grupo gerou um legado que marcou os anais da história do teatro brasileiro.
O Living, ao chegar ao Brasil, trabalhou com o grupo Oficina e com o grupo argentino
Los Lobos antes de estabelecer moradia na cidade de Ouro Preto, Minas Gerais. Convidado a
participar do emblemático Festival de Inverno da cidade, o grupo se instala na cidade e chama
atenção pela sua diversidade, com atores americanos, europeus e brasileiros, e suas percepções
sobre a vida, sexo e meio ambiente.
Para a programação do Festival, o Living preparou a apresentação do Legado de Caim,
um ciclo de peças baseadas nos escritos de Leopold von Sacher-Masoch (1836-1895).
Apesar de toda a preparação, leituras e peças trabalhadas em escolas e espaços onde
haviam trabalhado, o grupo nunca chegou a finalizar esse ciclo das peças no Brasil. Isso porque,
dias antes da estreia no festival, o grupo foi preso sob acusação de subversão e deposse de
maconha – questões que os órgãos de repressão usavam para prender quem se opusesse à
Ditadura ou que incomodasse o status quo da sociedade vigente. A prisão criou uma onda de
manifestações ao redor do mundo, entre telegramas e a carta do Julian Beck publicada no
renomado jornal francês Le Monde, o que fez ditador no poder naquele momento os expulsar
do país, sob a alegação que deturpavam a imagem internacional do Brasil.
Após a saída forçada do Brasil e ainda com amigos presos nos porões do regime militar,
o Living retornou aos Estados Unidos e reiniciou seus estudos teatrais em solos não ditatoriais.
Em 1973, encena a peça Seven mediations on political sado-masochism [Sete meditações sobre
sadomasoquismo político], que fez parte do ciclo das peças do Legado de Caim e que tematiza
a tortura nas prisões brasileiras, principalmente a tortura no pau-de-arara.

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Mesmo passando mais dois anos, o grupo não conseguiu se desvencilhar dos
acontecimentos no Brasil e criou o Prólogo do Legado de Caim, Six Public Acts, sobre o qual
este estudo irá se debruçar no próximo ato.

Ato III – Legados de Caim

Morte, ciúmes e inveja permeiam o primeiro assassinato na mitologia bíblica, a morte


de Abel pelas mãos do seu próprio irmão, Caim. Os irmãos estavam fazendo ofertas ao Deus
de Israel. A oferta de Abel foi aceita, uma ovelha. Caim ofereceu frutos, que foram rejeitados.
Tomado de ciúmes e inveja, Caim planejou e executou a morte do irmão. O fratricida mais
famoso da história do mitos bíblicos foi condenado por Deus a ser errante e a ser punido sete
vezes. Apesar do castigo, o arrogante Caim não se arrependeu.
Sellier (2005, p.140) descreve que “a maldade de Caim e a santidade de Abel constituem
uma parábola do encaminhamento de todo ser humano”. Com a herança da danação eterna,
manter-se puro como Abel e se distanciar das atitudes do perverso Caim é uma necessidade
para todo humano viver em sociedade. O referido autor afirma no Dicionário de mitos literários
(Brunel, 2005): “todo homem vive sob o olhar de um Deus exigente (que interdita o homicídio)
e misericordioso (que não abandona o assassino)”. No entanto, “O mal resulta de uma decisão
livre, e a tentação de causar o mal pode sempre ser vencida: [...] Caim ameaçado por uma força
hostil – o Pecado personificado – vê-se convidado à resistência e à vitória” (SELLIER, 2005,
p.139).
Mesmo punido e rejeitado, Caim não personifica o arrependimento como os seus pais,
mas introduz dentro da mitologia ocidental a ação, o pecado e o não arrependimento – a não-
redenção.
O enredo da infeliz história do irmão homicida foi inspiração para os contos de Sacher-
Masoch, escritor austríaco – que originou o termo masoquismo – que, lido pelo Living, foram
absorvidos para o teatro. Para Vannucci (2015), em seu artigo “Legado de Caim: a jornada
brasileira do Living Theatre (1970-71)”, ao descrever os escritos que inspiraram os membros
do coletivo ao criarem o Legado de Caim, o ciclo de peças aponta para o porquê da escolha e
de uma temática tão necessárias no teatro contracultural e revolucionário:

a ideia cardeal das obras que compõem o Legado de Caim como uma
constelação incompleta é que a complementaridade erótica entre dominador e
vítima estrutura não somente a sexualidade, mas todos os níveis sociais
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(Estado, Propriedade, Dinheiro, Trabalho, Amor, Morte). (VANNUCCI,


2015, p.211)

Nos processos de submissão e submisso, Caim, a partir dos escritos de Sacher-Masoch,


personifica na contemporaneidade o mito do dominador que usa sua vítima sem
arrependimentos. Vannucci (2015) completa com o conceito de que:

[...] Para cada dominador sádico existe um dominado masoquista, que sente a
necessidade de buscar seu parceiro para cumprir a narrativa. [...] O escravo
não pode ser o patrão enquanto não possui os seus bens, imitando-o: sua
admiração empodera o opressor como modelo e objeto de desejo sexual.
(VANNUCCI, 2015, p.211)

Ao avaliar o pano de fundo de criação do Legado de Caim e suas impressões teóricas


que não foram para o palco brasileiro devido ao governo repressor que os impediu de atuar,
entra-se para análise de um segundo momento de criação do Living, prólogo do Legado de
Caim, Six Public Acts.

Ato IV – Atos públicos

Após quatros anos da expulsão do Living do Brasil, ainda efervescia no sangue do grupo
a incompletude do legado. Um prólogo veio para completar o espaço vazio que o banimento
deixou. Six Public Acts, criação coletiva do The Living Theatre, cuja première aconteceu em
maio de 1975, dias após do fim da Guerra do Vietnã, tomando as ruas de Pittsburgh, na
Pennsylvania.
Na concepção teatral de espetáculo, Vannucci (2015, p. 222) explica que o hibridismo da
encenação do Living é derivado dos modelos artaudianos de rito, do legado político de Piscator e das
intenções cênicas de Brecht. Desse amálgama surgem os atos públicos. Sendo assim, a peça não se
alocou em um tablado, mas sim nas ruas, como manifestação com o ímpeto de transmutar a
violência em concórdia, alterar o sistema mestre/escravo e a encenação em forma de cerimônias
e procissões, com intuito de instigar uma mudança em Pittsburgh.
Para compreender a dimensão da proposta da peça, pode-se observar o folheto (imagem
1), documento arquivado na Biblioteca Pública da Cidade de Nova Iorque (NYPL), na Divisão
de Teatro Billy Rose, e que é pela primeira vez acessado para fins de pesquisas feitas no Brasil
sobre o Living.

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Na imagem 1, apresenta-se como foram organizados os atos públicos e onde aconteceu


cada um dos seis atos. Cada ato é apresentado como uma casa: Estado, Propriedade, Dinheiro,
Trabalho, Amor, Morte. Percebe-se que as escolhas de cada ato performático estão relacionadas
à casa que o nomeia: “A Casa do Dinheiro” nas proximidades do banco, “A Casa da Guerra”
em frente ao departamento de polícia e por último, “A Casa do Amor” em frente de uma fonte.

Imagem 1 – Arquivo pessoal da autora.

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E cada ato é marcado por perguntas: Que horas são? Onde nós estamos? Qual é a nossa
condição? Quem são os mestres, que são os escravos? O que é The Living Theatre? O que ele
está fazendo, e por que? O que nós propomos? Onde nós estamos indo? Qual é o legado de
Caim? O material para o conhecimento da peça faz parte do levantamento dos arquivos
encontrados na Biblioteca pública de NY, conforme recorte abaixo:

Imagem 2 – recorte da apresentação peça Six public acts (arquivo pessoal)

No Ato I, “A Casa da Morte”, as questões que entoam a performance teatral são: Por
que nós morremos tão logo, jovens? Quem sentencia isso? O que é a morte? Qual é o mito do
primeiro assassinato? Quem eram Caim e Abel e porque um matou o outro? Qual é o resultado?
Por que somos governados pela força e violência? E ao final, a Procissão de Caim e Abel.

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Judith Malina na atuação da peça Six Public Acts em Amiens, France in 197859

Ato II, “A Casa do Estado”, as perguntas eram: O que é governo? O que é patriarcado?
O que é sangue? Quem governa? Quem é governado? Quem dá as ordens? Quem as segue?
Quem mata? Quem morre? O que é a violência? Quem é livre? Quem é obrigado? A cada ato,
as perguntas levavam para a procissão, neste momento intitulada Sadismo e Masoquismo.
Ato III, “A Casa do Dinheiro”, trazia questões relacionadas às regras para os pobres e
ricos e a pergunta mais marcante é: quem realmente trabalha nesse mundo? Em seguida, a
procissão do rico e do pobre, do mestre e do escravo.
No próximo ato, “A Casa da Propriedade”, as questões são voltados para o que são o
capitalismo, o comunismo e o anarquismo. O que é escravidão? De quem é a terra? De quem é
propriedade? A procissão é entre o dono e ao possuído, ao controlado.
Na “Casa da Guerra”, ato V, as indagações são sobre crueldade, sadismo e violência,
que descambam para a pergunta: quem é Caim? O ato finaliza com a procissão nomeada
“Erótica”.
No último ato, VI, “A Casa do Amor”, a intensidade das questões aumenta: quem deu a
eles o direito? Quem domina? Quem é dominado? Sou eu o seu escravo? Você é Caim? O que
é escravidão? Qual é a escravidão ao amor, dinheiro, governo, violência, morte? A procissão
do “Eu e Tu” encerra o prólogo.
Perguntas e respostas são o que se espera de uma sociedade que aguarda de cada ação
uma reação. Mas o que se faz quando a pergunta seca a garganta e a vontade de responder é
impedida? Os membros do Living não desistiram de tentar responder. Mesmo após serem
calados pela ditadura, eles persistiram na sua atuação, nos seus questionamentos. Restou a eles
dar voz a essas questões e tentar respondê-las nos palcos, nas ruas, nos textos possíveis.
No desejo de compreender o trabalho de criação e encenação da peça, foram
apresentadas, nesta ocasião, as questões de cada ato que permeiam níveis mais inquietantes que
podem adentrar em um artigo. Entretanto, insurgi da época em que se vive, a rememoração do
passado, mas que não devia ser no sentido de comemorá-lo, mas sim, no sentido de analisá-lo
com atenção para não reprisá-lo e impedindo os mesmos do erros anteriores e que às vezes o
presente tenta esconder, como a tortura de crianças60 pelo governo autoritário que perdurou por
21 anos.

59
Fonte: https://www.thevillager.com/2015/05/living-theatre-lives-on-in-those-malina-touched/ Acesso em 28
out. 2019.
60
Para ler mais sobre: https://oglobo.globo.com/cultura/livros/livro-reune-historias-de-criancas-presas-
torturadas-ou-exiladas-durante-ditadura-no-brasil-14496104 Acesso 31 out, 2019.
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Ato V – Considerações finais

O ciclo de peças intitulado Legado de Caim, que não foi concluído e encenado no Brasil
devido ao período ditatorial, teve no prólogo Six Public Acts um dos seus ápices com a estreia
em 1975 na Pensilvânia e com outras apresentações em outras cidades pelo mundo, como na
França em 1978, o que mostra a potência cênica da peça, rejeitada no Brasil.
No entanto, as cortinas que se fecharam depois se abriram. Não importa quantos profetas
das palavras os tiranos tentem calar, os gritos ressurgem iguais ao de Antígona e tantos outros
que não aceitam o calvário. Indignados, aflitos e corajosos, eles se revoltaram e é nosso papel,
entre escritos ou ações, não se isentar daquilo que os anais da história nos cobrará.
Para este estudo foram elencadas apenas questões pontuais que serão desenvolvidas com
mais afinco em estudos futuros. Buscou-se aqui apenas revelar documentos e informações sobre
a peça Six Public Acts, a criação coletiva do The Living Theatre. E a partir disso, mesmo sendo
uma pesquisa incipiente sobre a peça, percebe-se a necessidade de se aprofundar nas agruras
propostas. Uma das menções é sobre liberdade perante a opressão patriarcal perpassada nas
bandeiras existentes nos anos 1970, mas que ainda ressurgem como imperativo para a sociedade
atual.

Ato VI – Referências bibliográficas

CANTARELA, Roberta. A Antígona errante: Judith Malina e a vida como performance.


Universidade Federal de Santa Catarina. Programa de Pós-Graduação em Literatura.
Florianópolis, 2017.

DELEUZE, Gilles. Sacher-Masoch: o frio e o cruel. Trad. Jorge Bastos; Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Ed., 2009.

BECK, Julian; MALINA, Judith. Living Theatre: La Prision y El Legado de Caim. Madrid:
Edicusa, 1975.

SELLIER, Philippe. Caim. In: Dicionário de Mitos Literários. (Org.). BRUNEL: Pierre. Rio
de Janeiro: José Olympio, 2005.

VANNUCCI, Alessandra. Legado de Caim: a jornada brasileira do Living Theatre (1970-71).


In: Sala Preta, v. 15, 2015. p. 203-224.

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VICENTINI, Claudio. The Living Theatre's Six Public Acts. In: The Drama Review: TDR,
vol. 19, no. 3, 1975, pp. 80–93. JSTOR. Disponível em: www.jstor.org/stable/1144999 Acesso
em: 31 out. 2019.

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Violência espetacular e anseios de liberdade em O homem-mulher e A tragédia brasileira


(Romance-Teatro), de Sérgio Sant’Anna

Anderson Possani Gongora (UFMS – Campus de Três Lagoas) 61

Resumo: No romance-teatro A tragédia brasileira (1987), de Sérgio Sant’Anna, há um


personagem, Roberto, também denominado Poeta ou voyeur oculto, que merece mais atenção
do ponto de vista de sua subjetividade “relativizada”. Os aspectos concernentes ao espírito e à
alma que o compõem, por sua vez, aproximam-se também de outro personagem-ator,
Adamastor Magalhães, ou, como ele mesmo preferia ser chamado, Fred Wilson, ou
simplesmente Fred, do conto “O homem-mulher”, publicado em livro homônimo, em 2014.
Conscientes enquanto ser-no-mundo, ambos protagonizam suas contradições presentes, em
palcos reais ou imaginários, em contraposição ao passado frustrante e ao futuro incerto de suas
vidas. Nesse sentido, este trabalho objetiva uma leitura teórico-reflexiva focalizando esses
sujeitos frente à expectativa da morte e/ou à iminência do suicídio. Entre outros aspectos a
serem explorados no artigo, destacam-se as reflexões sobre Literatura e Teatro, voltadas para
os gêneros literários híbridos, e a inserção ficcional da temática do suicídio, que possibilitará
ampliar as discussões sobre a violência nas relações sociais e interpessoais pelo viés da
melancolia e da morte. Com isso, será possível também refletir sobre as controvérsias que
envolvem a sexualidade dos indivíduos e, consequentemente, o início do sofrimento em suas
vidas.

Palavras-chave: literatura contemporânea; violência; espetáculo; morte; suicídio.

“De fato, meus personagens sempre são antes


atores do que personagens. E sempre gostei de
escrever minhas histórias como se elas se
passassem num palco. Ou mesmo num teatro de
marionetes” (Sérgio Sant’Anna).

Introdução

Considerado por muitos leitores o mestre da narrativa curta, Sérgio Sant’Anna (1941)
tornou-se um escritor capaz de inovar sua prosa tanto a partir da forma, como também do
conteúdo. Em seus textos, bem como em muitos outros textos de autores brasileiros
contemporâneos, há uma forte tendência à valorização do caráter estético de representação, na
tentativa de ampliar o conhecimento da realidade histórica por meio da ficção.

61
Pós-doutorando em Letras – Estudos Literários: Literatura, História e Sociedade – da Universidade Federal de
Mato Grosso do Sul (UFMS) Campus de Três Lagoas. Supervisão do Estágio do Doutoramento, Prof. Dr. Wagner
Corsino Enedino. E-mail: andergongora_81@hotmail.com

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Segundo Karl Erik Schøllhammer (2000), por exemplo, a prosa literária brasileira das
últimas décadas surge à procura de uma expressão mais adequada à complexidade da
experiência advinda da transformação da estrutura socioeconômica e demográfica do país. Ou
seja, para Schøllhammer (2000, p. 242), a literatura contemporânea se destaca porque “desenha
uma nova imagem da realidade urbana: da cidade enquanto espaço simbólico e sociocultural
(tentando superar as limitações de um realismo) ou materialista e documental”.
Consequentemente, a observação e a análise das complexas condições das relações sociais
impostas pelo mundo contemporâneo levam os escritores em geral a novas possibilidades de
escrita; e isso faz com que os leitores de suas obras compreendam melhor o emaranhado dessas
relações, a fim não somente de recriarem literariamente a realidade, mas ainda repensarem sobre
os percalços de suas vidas, sobre a natureza do homem e sua conflituosa humanidade, bem
como as consequências de seus atos em âmbito individual ou coletivo.
Partindo desse contexto, para além das limitações de um realismo considerado brutal,
Sérgio Sant’Anna escreve também algumas narrativas longas de caráter híbrido. Entre elas,
publica em 1987 o livro A tragédia brasileira: romance-teatro. Tendo por base essa e as demais
obras do autor, o estudo da temática da violência em consonância com outras artes,
especialmente a arte dramática, permite-nos avaliar que as mesmas podem ser consideradas, de
antemão, como suportes para o indizível em tempos de opressão. Com isso, o nosso intuito com
este trabalho será fazer um estudo comparativo entre alguns trechos do romance-teatro já
mencionado e o conto “O homem-mulher”, publicado quase trinta anos depois, em 2014. Para
que isso ocorra, entretanto, focalizaremos dois personagens: Roberto, também denominado
Poeta ou voyeur oculto e Adamastor Magalhães, um personagem-ator.

A difícil condição do ser entre a Poesia e a Morte

O romance-teatro A tragédia brasileira (2005), publicado originalmente no ano de


1987, apresenta os temas amor e morte como coadjuvantes. Nele, a história do atropelamento e
morte de uma menina chamada Jacira, a “Virgem”, contracena com Roberto, o seu amante,
também descrito como poeta “mórbido e romântico”. Ao longo do texto, os leitores são levados
propositadamente a construírem uma espécie de cerimonial de mortos, que se torna, na verdade,
um verdadeiro espetáculo, considerado imaginário pela persistência e grandiosidade das
imagens que evoca em suas mentes. Por meio de diversos símbolos teatrais e representações
alegóricas de lugares, pessoas e objetos, as cenas vão sendo dirigidas por um personagem

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também relevante, o Autor-Diretor, um coveiro. Entre os múltiplos planos narrativos existentes


no texto, seus leitores conseguem ainda desvendar a atmosfera misteriosa de um sacrifício ritual
em que a violência primária, que ocasiona a morte da pequena Jacira, inaugura reflexões sobre
a difícil condição do ser, dividido entre a Poesia e a Morte. A análise da narrativa leva também
em consideração a impetuosidade dos atos que conduzem as inúmeras personagens a
circunstâncias impensáveis e extremamente paradoxais, persistindo não somente a temática da
violação do corpo, como também a da alma.
No conto “O homem-mulher” (2014), Adamastor Magalhães (Fred Wilson), ou
simplesmente Fred, protagoniza sua vida, enquanto personagem de um texto ficcional, sem que
consiga separá-la de sua real vocação: o teatro. Dividido em duas partes, o texto foi publicado
em livro homônimo, sendo ele o que introduz e também conclui essa obra do autor. Na primeira
parte, temos o resumo da história da vida de Adamastor, o porquê dos seus vários nomes e sua
condição de homem-mulher, assim narrada:

Pode-se dizer que tudo começou quando ele fez o papel de Claire, em
As criadas, de Jean Genet, em que, naturalmente, usava uma roupa
feminina. E foi com o figurino de Claire que, num Carnaval, saiu num
bloco de sujos. Mas é de supor que, morando numa família com mais
duas irmãs, tenha experimentado vestidos escondido. (SANT’ANNA,
2014, p. 7)
Com vinte e cinco anos, num dia de Carnaval, num cemitério, Fred tem um encontro
erótico-sexual com Dalva, uma garota de dezesseis anos, descrita como sendo filha de severos
turistas de Goiânia. Escondidos de todos, eles estão vestidos a caráter: ele usando o traje de
Claire, personagem de Genet, e ela fantasiada de odalisca. Desse encontro casual, encharcado
a éter, cheio de alucinação, entre túmulos, estátuas e cruzes, é que temos definido no texto o
liame narrativo. Após a consumação do ato sexual – narrado pelo autor de maneira detalhada –
ao som de músicas de carnaval tocando ao longe, entre beijos e juras de amor, eles se
despendem: “Primeiro saiu ela, depois saiu ele. E nunca mais se viram” (SANT’ANNA, 2014,
p. 11). Antes da despedida, a música então tocada no momento de languidez sensual, não por
acaso, dizia: “Quanto riso, oh, quanta alegria, mais de mil palhaços no salão. Arlequim está
chorando de amor da Colombina, no meio da multidão...” (SANT’ANNA, 2014, p. 10).
Frente à necessidade de refletir sobre a escrita chamada espetacular numa sociedade
em que a todo o momento se faz cada vez mais espetaculosa, esses dois textos santanianos
podem ser lidos também a partir de um “desejo de teatro por se realizar” (JOLLY; PLANA,
2012, p. 178), visto que, para os autores citados, o que estimula a realização teatral num texto
e não em outro talvez seja, provavelmente, “uma linguagem, uma voz da escritura, suscitando

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a fala e o gesto” (JOLLY; PLANA, 2012, p. 178). Seguindo essa voz da escritura de Sérgio
Sant’Anna, a subjetividade de cada um de seus personagens pode ser compreendida no âmbito
holístico de vivência e convivência em contextos diferenciados, como os de Roberto e Fred
Wilson, porém, quase sempre movidos por uma mesma lógica ou ainda por lógicas semelhantes
de atuações.
Quanto ao caráter híbrido de ambos os textos, temos por base o que escreveu Anatol
Rosenfeld (2011, p. 16) em O teatro épico ao afirmar que “a pureza em matéria de literatura
não é necessariamente um valor positivo. Ademais, não existe pureza de gêneros em sentido
absoluto”. Ainda de acordo com o autor, as classificações seriam, de certa forma, todas
artificiais, pois “toda obra literária de certo gênero conterá, além dos traços estilísticos mais
adequados ao gênero em questão, também traços estilísticos mais típicos de outros gêneros”
(ROSENFELD, 2011, p. 18). Nesses termos, afirmamos também que, além das narrativas que
compõem o corpus desta análise, outras obras de Sérgio Sant’Anna são híbridas por possuírem,
em suas formas de representação e escolhas temáticas, um inquestionável e “forte caráter
dramático” (ROSENFELD, 2011, p. 18). Somado a esse “forte caráter dramático”, destacamos
que existe em seus textos o que Peter Szondi (2011) chama de “mundo inter-humano”, o qual
salientamos como quesito primordial advindo da vida social para a composição de um
determinado texto dramático, bem como a urgente necessidade de seu desvendamento de forma
contextualizada.
Como exemplo desse mundo inter-humano, em A tragédia brasileira: romance-teatro
(2005), Jacira desencadeia após sua morte vários acontecimentos mórbidos, todos eles envoltos
numa atmosfera de erotismo, sedução, amor e morte. Como “vítima inocente” de sua
comunidade, a Virgem faz jus ao significado indígena de seu nome, inseto que produz mel,
para, partindo dum contexto de doçura, abalar as estruturas físico-mentais de cada personagem
a ela ligado. Tendo por cenário um cemitério, a simples cerimônia fúnebre para o sepultamento
de Jacira desperta nos presentes sensações “em geral associadas ao frio, como a solidão, o
vácuo, o mármore de uma lápide, uma réstia de luz a trespassar uma profundidade negra”
(SANT’ANNA, 2005, p. 10). Entretanto, o mais afetado de todos será Roberto, também
identificado no texto como o Poeta. Este forma par com Jacira que, tanto no palco como na
vida, e mais tarde na morte, são atraídos como num Sistema “em torno dos quais gravitarão os
elementos secundários do Espetáculo”. (SANT’ANNA, 2005, p. 12)
Entre os dois personagens focalizados neste trabalho, há alguns aspectos que se
destacam, como por exemplo, a expectativa da morte e/ou à iminência do suicídio. Em tempos
sombrios, de difícil estabilidade físico-emocional, eles vivem à procura de algo que dê sentido

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às suas vidas. Cada um à sua maneira, Fred mais extrovertido e Roberto demasiadamente
introvertido, seguem seus destinos carregando o fardo da infância conturbada, cheia de medos
e frustrações. O fato de os personagens possuírem vários nomes também remete à ideia da
fragmentação de suas identidades; entretanto, para além dessa problemática existencial,
destaca-se em ambos a vontade de unificação entre o ato de ser e o ato de parecer aquilo que
não são ou que gostariam de ser. Essa paradoxal condição leva um à travestilidade, aparentando
ser aquilo que não é no corpo, e outro à clandestinidade, imaginando fazer o que não consegue
em sua angustiante e parca realidade. Limitados à sombra de pais poderosos, machistas e
intransigentes, que mesmo ausentes controlam suas vidas, censurando assim seus pensamentos,
desejos e ações, ambos os personagens tentam compreender a si mesmos pelo viés da
sexualidade, um fator relevante, motivo de repressão e sofrimentos:

Talvez, se Adamastor tivesse o pai vivo, levasse uma tremenda bronca


ou até uma surra ao ser flagrado usando um vestido. Mas o pai de
Adamastor já morrera e ele era criado pela mãe e mimado pela tia
paterna, solteirona. Mas é escorregadio, no caso, explicar as coisas pela
psicologia, e o melhor é deixar falarem os fatos. (SANT’ANNA, 2014,
pp. 139-140)

Em A tragédia brasileira: romance-teatro (2005), ao findar do cerimonial, que


consistiu na reconstituição do atropelamento e velório, o “desespero agradável” pode continuar
para o leitor. Acompanhando a história de vida de Roberto, o poeta voyeur, ampliamos esta
análise de maneira a enfatizar a onipresença da violência na vida humana. Assim, avaliando a
trajetória de inserção ficcional dessa temática nesse texto, sobressaem as discussões sobre como
ela se introduz nas relações interpessoais e como suas estratégias de perpetuação estão
intrinsecamente atadas às controvérsias que envolvem a sexualidade dos indivíduos, e,
consequentemente, o início do sofrimento em suas vidas.
A epígrafe que introduz a Cena 4, como informado logo abaixo dela, corresponde a
um trecho de Sigmund Freud (Cartas): “Estou me acostumando com a ideia de considerar todo
ato sexual como um processo em que quatro pessoas estão envolvidas. Nós teremos muito o
que discutir a esse respeito” (FREUD, apud SANT’ANNA, 2005, p. 36). Entre o passado,
representado pelo Roberto Criança, e o presente, representado pelo Roberto Adulto, intercalam
as falas da Mãe e do Pai. De início, a mãe declara que ele sempre fora um garoto arredio,
esquisito, mas de inteligência precoce. Com todas essas características, em tenra idade já
preocupava sua genitora com perguntas do tipo “‒ Mamãe, como é que a gente nasce?” “‒ E
pra que é que a gente nasce?” (SANT’ANNA, 2005, p. 36-37). Para cada resposta dada,

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inteligentemente outra interrogação se fazia. Relembrando as falas do filho, na voz singular da


própria criança, a mãe prossegue como se falando para o público e, enquanto isso, “em seu
espaço, Roberto Adulto tira discretamente uma arma do bolso”. (SANT’ANNA, 2005, p. 37)
Dessa maneira, o leitor-espectador vai acompanhando as mudanças de tempos e de
espaços da narrativa. Os diálogos do passado condizem com os do presente. Para a pergunta
mais difícil feita pelo filho, segundo a mãe, não houve resposta. O fato de o garoto querer saber
o porquê de ter nascido a fez questionar à época se ele não seria doente. O trecho abaixo, com
imagem forte, confirma o adjetivo “mórbido” usado para a apresentação do personagem no
início do espetáculo. Subentende-se que a personalidade difícil e conturbada de Roberto quando
criança não foi alterada na fase adulta:

Em seu espaço, Roberto Adulto tira discretamente uma arma do bolso.


Mãe: ‒ Eu não sabia o que responder, então perguntei: “Por quê? Você não
acha bom ter nascido?”. Ele respondeu simplesmente assim: “Não!”. E saiu
correndo para o quarto.
Roberto Criança sai abruptamente. De pé, em pose de estátua, Roberto Adulto
está com o revolver apontado contra a própria cabeça.
Roberto Adulto (fixando o revolver num ponto da cabeça): ‒ É aqui. Parece
ser aqui, a dor. Um pequeno ponto nessa massa mole e viscosa dentro da
cabeça, este Eu ao qual damos tanta importância e que tanto nos atormenta.
Mas não é propriamente uma dor. Talvez fosse preferível uma dor, mas não é
uma dor. É antes uma pressão dentro da cabeça. Como uma caldeira cheia de
vapor, se é que qualquer comparação nos serve. Só que uma caldeira que não
dispusesse de nenhuma válvula de escape, de segurança. Então, segundo os
mais rudimentares princípios da física, deveria explodir. E no entanto não
explode. (Roberto engatilha o revolver e sorri sinistramente.) A menos que...
Um pequeno buraco. Bastaria que abríssemos aqui um pequeno buraco para
que essa pressão se esvaísse. (SANT’ANNA, 2005, p. 37)

Lida e imaginada a cena, o leitor fixa em sua mente o momento terrível vivido pelo
personagem. No entanto, o risco de morte que corre o Poeta é adiado, fazendo aumentar a
expectativa do leitor-espectador quanto ao seu provável suicídio. Nesse ínterim, contudo, é
preciso investigar se há, de fato, poesia na vida de Roberto Adulto. Descrito como “poeta
romântico”, ele vive um dilema: morrer por amor ou viver pela poesia?
A mãe de Roberto, por sua vez, sugere um psiquiatra para o filho por ele não aceitar
passivamente a hostilidade do mundo. As perguntas feitas por ele à mãe sugerem certo
desamparo que se prolonga em sua vida. Se, para Freud em O futuro de uma ilusão (1996), o
infantilismo precisa ser superado porque os homens não podem permanecer crianças para
sempre, ou seja, precisam sair para a “vida hostil”, ao que o psicanalista chama de “educação
para a realidade”, Roberto prossegue com esse sentimento de desamparo que o leva ao
sentimento de culpa em relação à sua própria morte. Para amenizar suas angústias, a Poesia
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surge como fuga, ou seja, Jacira torna-se a fonte de sua inspiração, e, sendo assim, é no
momento crepuscular do dia que os anseios de morte cedem lugar ao descanso poético, à calma:
Roberto (parando de escrever, subitamente enlevado): ‒ E esse homem anseia
ao menos pela noite com seu frescor e orvalho quando, talvez, ele possa
dormir. Esse homem anseia por um eclipse. (Poeticamente exaltado.) Sim,
toda noite é um eclipse, não só no firmamento mas também dentro do nosso
cérebro.
Escurece de todo o espaço de Roberto Adulto. Ilumina-se o espaço de Roberto
Criança. (SANT’ANNA, 2005, pp. 38-39)

Assim, composta coincidentemente pelo “quarteto de Alexandria”, ou seja, pela Mãe,


que apesar de sua perspicácia pouco intervém na história do filho, pelo Pai, ignorante e alheio
aos problemas do menino, por Roberto Criança e por Roberto Adulto, a Cena 4 do Primeiro Ato
é concluída.
No conto “O homem-mulher” (2014), Fred Wilson também sofre as consequências de
um mundo hostil. Após uma vida de perambulações, cheia de imprevistos, frustrações amorosas
e profissionais, no último dia de apresentação da peça Os desesperados, escrita e dirigida por
ele mesmo, o pior acontece: ele se suicida no palco para a surpresa do elenco e também do
público. Na verdade, a peça “não era mais do que os atores representando a si mesmos, em
metamorfose” (SANT’ANNA, 2014, p. 150). Apesar do insucesso dela desde a estreia, sob
várias críticas negativas de alguns jornalistas famosos, Fred Wilson, ou Zezé, foi persistente:

No êxito ou no fracasso, Zezé era um homem-mulher de teatro e só do teatro


poderia vir a solução. Ele, Zezé, que se obrigara e obrigara o grupo a
representar, certa noite, Os desesperados para nenhum espectador,
argumentando que uma performance para uma plateia vazia era a mais pura
teatralidade. (SANT’ANNA, 2014, p.163)

O seu amor pelo teatro, em especial pelo espetáculo que montara, o tornava um artista
singular, que crescia juntamente com a peça, sempre em progresso pela própria improvisação
dele e dos demais atores. A fixação da ideia de triunfar a qualquer custo fazia dele um ator que
devia ir até o fim, como ele mesmo afirmava. E, de fato, foi mesmo no último dia de
apresentação no palco, “puto da vida ou ansioso por uma renovação final, pusera balas de festim
no revólver para radicalizar o final, sem avisar ninguém.” (SANT’ANNA, 2014, p. 169)
Para Anatol Rosenfeld (2011, p. 21), “a pureza dramática de uma peça teatral não
determina seu valor, quer como obra literária, quer como obra destinada à cena”. Nesse sentido,
afirmamos também que somente a hibridez dos textos de Sant’Anna não seria capaz de garantir
o seu valor. Entretanto, o modo híbrido de narrar, unindo criativamente literatura e teatro,
permite ao autor maior liberdade de expressão:

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O teatro, sabemos há muito, oferece a possibilidade de dizer o que não está em


conformidade com o código cultural ou com a lógica social: o que é lógica ou
moralmente impensável, ou socialmente escandaloso, o que deveria ser
recuperado segundo procedimentos estritos, está no teatro em estado de
liberdade, de justaposição contraditória. É por isso que o teatro pode designar
o lugar das contradições não resolvidas. (UBERSFELD, 2005, p. 27)

Para Fred Wilson, por exemplo, o espaço do palco seria o local ideal para suas
“contradições não resolvidas”. Ao mesmo tempo em que se realizava enquanto artista, também
representava as muitas e incontroláveis dores de sua existência conturbada, tornando-as,
portanto, universalizadas. Logo após tirar a própria vida no palco, deixou a todos a forte
impressão do fracasso de sua peça, bem como do fracasso de sua tenra vida que findara sem
que houvesse espaço para a felicidade:

Daí para diante houve um alarido geral e, enquanto parte dos espectadores
procurava deixar o teatro, como quem foge de um lugar maldito, outros se
deixavam vencer pela curiosidade, atravessaram o proscênio, a cortina e
ficaram cara a cara com o horror, como se pela primeira vez na vida estivessem
nas verdadeiras entranhas do teatro. (SANT’ANNA, 2014, p. 170)

No início de O Homem-mulher, o tema da música de carnaval que Zezé e Dalva ouvem


também sensibiliza o leitor para o contexto “híbrido” de amor e erotismo que se estabelece entre
eles e que, de certa maneira, perdurará, no caso dele, a vida inteira. A exemplo da história de
Colombina, sempre divida entre o amor de Pierrot e de Arlequim - famoso trio de teatro e dança
que se destacou nas ruas de Veneza do século XVI, disseminando assim a commedia dell’arte
pela Europa - Zezé também imortaliza na mente do leitor-espectador sua figura híbrida de
homem-mulher, destacando então suas experiências pessoais e profissionais de maneira sempre
paradoxal: ficando assim dividido entre a vida e a morte, bem como entre a realidade e a ficção
representada no palco. Com tudo o que acontece em sua vida, no entender de um dos
personagens, Francisco Rocha, professor de teatro, “o fato de Zezé passear a arma pelo rosto e
enfiá-la na boca em todos os espetáculos já admitia essa hipótese de autodestruição do
personagem e, consequentemente, do ator, transformando a morte num ato teatral”.
(SANT’ANNA, 2014, p. 183)

Considerações finais

Em ambas as narrativas analisadas neste breve artigo, os pares de amantes Roberto e


Jacira, Fred e Dalva, jamais se encontraram para uma realização amorosa plena. Em
consequência disso, Roberto e Fred, cada um à sua maneira, viveram vidas frustrantes que os
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levaram ao desespero e ao suicídio em tão tenra idade. Além dos contextos que os envolvia, de
amor e paixão, seguidos de perdas irreparáveis, fosse pela morte ou pela partida, houve também
uma entrega aos instintos de morte que deles se apoderaram. Para eles, as fronteiras entre a vida
e a morte eram forçadas a todo o instante, tanto na realidade como no palco. Esse contexto
mórbido, presente também nos espaços representados em cena, reais ou imaginários, somado
aos problemas interpessoais de cada personagem, provavelmente os levaram ao desengano para
com a vida no presente.
Sem expectativa alguma de reviverem os momentos de êxtase amoroso, as expectativas
profissionais e de vida também são frustradas. No caso de Fred Wilson, Zezé, e seus colegas de
palco, eram “desesperados porque não tinham oportunidades e ansiavam por isso. E Adamastor
sonhava alto, como o sucesso que poderia fazer com a peça, como autor, diretor e ator”
(SANT’ANNA, 2014, p. 145). Quanto a Roberto, a violência presenciada com a morte de Jacira
somada à violência de sua própria vida, sempre frustrada desde a infância, o levou a uma
fascinação pela dor que deveras sentia. O aspecto trágico que envolveu sua morte foi descrito
por ele mesmo na Cena 6, “Carta de despedida de Roberto”, do romance-teatro, lida em cena
por um arauto ao toque suave de um clarim: resumidamente, “fracasso absoluto”.
(SANT’ANNA, 2005, p. 75)
Frente a essas possibilidades de narrativas híbridas, tanto na forma como no conteúdo,
em que se destacam, por exemplo, o amor e a morte em suas complexidades mórbidas, resta-
nos, como ponderou Jaime Ginzburg “questionar como estabelecer critérios de valor estético e
de definição do belo em tempos sombrios, no século XX”. (GINZBURG, 2012, p. 460)
Quanto ao subtema do suicídio que envolve os personagens e suas vidas fatídicas em
busca de sentidos maiores para a existência, encerramos esse artigo com o que escreveu A.
Alvarez no prefácio do livro O deus selvagem: um estudo do suicídio: “nenhuma teoria será
capaz de desvendar um ato tão ambíguo e de razões tão complexas quanto o suicídio” (1999, p.
12). Na mesma obra, o autor ainda pondera que, “o sofrimento de um herói trágico distanciado
e enobrecido pelo drama poético, fica literalmente a um mundo de distância do suicídio fora do
palco, que raramente é trágico, nunca é grandioso e na maior parte das vezes é sórdido,
deprimente, confuso. (ALVAREZ, 1999, p. 159)
Nesse sentido, os absurdos que permeiam as vidas de Roberto e de Fred Wilson, bem
como das demais personagens dos textos analisados, estão pautados na própria condição
humana, e, segundo Abert Camus em seu ensaio O mito de Sísifo (2008), publicado
originalmente em 1942, assim como não pode haver absurdo fora de um espírito humano, o
próprio absurdo termina, como todas as coisas, com a morte.

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Referências

ALVAREZ, A. O deus selvagem: um estudo do suicídio. Trad. Sonia Moreira. São Paulo: Companhia das
Letras, 1999.

CAMUS, Albert. O mito de Sísifo. Rio de Janeiro: Record, 2008.

FREUD, Sigmund. O Futuro de uma ilusão, O Mal-Estar na Civilização e outros trabalhos (1927-1931).
Trad. Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1996. V. XXI.

GINZBURG, Jaime. Crítica em Tempos de Violência. São Paulo, Editora da Universidade de


São Paulo, Fapesp, 2012.

JOLLY, Geneviève; PLANA, Muriel. Teatralidade. In: SARRAZAC, Jean-Pierre. (Org.).


NAUGRETTE, Catherine et al. Léxico do drama moderno e contemporâneo. Trad. André
Telles. São Paulo: Cosac Naify, 2012. p. 178-181.

ROSENFELD, Anatol. O teatro épico. 6. ed. 2. reimpressão. São Paulo: Perspectiva, 2011.

SANT’ANNA, Sérgio. O concerto de João Gilberto no Rio de Janeiro. In: ______. Contos e
novelas reunidos. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.

SANT’ANNA, Sérgio. A tragédia brasileira: romance-teatro. 2. ed. São Paulo: Companhia


das Letras, 2005.

SANT’ANNA, Sérgio. O homem-mulher: contos. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.

SCHØLLHAMMER, Karl Erik. Os cenários urbanos da violência na literatura brasileira. In:


PEREIRA, C. A. (Org.) et al. Linguagens da Violência. Rio de Janeiro: Rocco, 2000. p. 236-
259.

UBERSFELD, Anne. Para ler o teatro. Trad. José Simões. (Coord.). São Paulo: Perspectiva,
2005.

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