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\ Lucio Kowarick e Eduardo Marques (orgs.) SAO PAULO: NOVOS PERCURSOS E ATORES Sociedade, cultura e politica Oat N.Cham. 307.76 $239 2011 A Titulo: Séo Paulo : novos percursos e cieda atores : so M UPM-AC editorall—l34 iedade, cultura e politica ) e s ae Zz 6 1s Cidade e praticas urbanas: nas fronteiras incertas entre o ilegal, o informal e o ilicito Vera da Silva Telles e Daniel Hirata A CIDADE COMO BAZAR Em artigo de 1997, Ruggiero e South lancaram mao da metafora do bazar — “a cidade como bazar” — para descrever as interseccdes entre os mercados formais e os mercados informais, ilegais ou ilicitos, tal como vém se configurando, desde meados dos anos 1980, nas metrépoles dos paises centrais do capitalismo contemporaneo. Com evidente intengao polémica, a metéfora evoca a alteridade nos tragos de “orientalismo” (Sayad) associados ao bazar, para chamar atengo para o fato de que ele se encontra, doravan- te, incrustado no miicleo mesmo das modernas (e ocidentais) economias ur- banas. Na mira dos autores, esta um cendrio urbano no qual se expande uma ampla zona cinzenta, que torna incertas e indeterminadas as diferencas entre 0 trabalho precario, o emprego temporario, os expedientes de sobrevivéncia eas atividades ilegais, clandestinas ou delituosas. E justamente nas fronteiras porosas entre o legal e o ilegal, o formal e o informal, que transitam, de forma descontinua e intermitente, as figuras modernas do trabalhador urba- no, langando mao das oportunidades legais e ilegais que coexistem ¢ se su- perpdem nos mercados de trabalho. Oscilando entre empregos mal pagos ¢ atividades ilicitas, entre o desemprego e 0 pequeno trafico de rua, negociam a cada situagdo e em cada contexto os critérios de accitabilidade moral de suas escolhas e de seus comportamentos. E isso propriamente que caracteri- za bazar metropolitano: esse embaralhamento do legal e do ilegal, esse permanente deslocamento de suas fronteiras sob a légica de uma forma de mobilidade urbana, as “mobilidades laterais”, de trabalhadores que transi- tam entre o legal, o informal ¢ o ilicito, sem que por isso cheguem a se enga- jar em “carreiras delinquentes”. O bazar metropolitano, dizem os autores, comegou a ganhar forma em meados da década de 1980. No caso da Inglaterra e dos Estados Unidos, no momento da virada conservadora de governos que desmancharam direitos Cidade e praticas urbanas 375 e garantias sociais, ponto de arranque da precarizagao do trabalho e redefi- nico dos mercados urbanos de trabalho, Em termos gerais, anos de reestru- turagao produtiva e da chamada flexibilizacdo das relagées de trabalho, que terminou por esfumagar as diferencas entre trabalho, desemprego e expe- dientes de sobrevivéncia, na prépria medida em que o assim chamado infor- mal instala-se no coracao dos modernos processos produtivos, e, no mesmo Passo, se expande pelas redes de subcontratagao e formas diversas de mobi- lizagao do trabalho temporario, esporddico e intermitente, sempre nos limi- tes incertos entre o legal ¢ 0 ilegal, clandestino ou mesmo ilicito e delituoso (Ruggiero, 2000). Mas esses também foram anos em que as atividades ilfci- tas mudaram de escala, se internacionalizaram e se reorganizaram sob formas polarizadas. De um lado, os empresarios do ilicito, em particular do trafico de drogas que, a cada local, irao se conectar com (e redefinir) a criminalida- de urbana comum; de outro, os pequenos vendedores de rua, que operam & margem da verdadeira economia da droga ¢ transitam o tempo todo entre a Tua € a prisdo. Esses sao os “trabalhadores precarios” da droga, que se mul- tiplicam na medida em que o varejo se expande e se enreda nas dinamicas urbanas (Bourgeois, 1995), modulacao criminosa do capitalismo pés-fordis ta. Criminalidade “just-in-time”, define Ruggiero (2000), que responde a variabilidade, oscilagGes e diferentes territorialidades dos mercados. £ justa- mente nesse ponto que as atividades ilicitas — e nao s6 0 trafico de drogas — passam a interagir com as dinamicas urbanas e compor o bazar metropo- litano nos pontos de intersecgdo com os igualmente expansivos mercados irregulares, terreno incerto em que operam as “mobilidades laterais” de trabalhadores que transitam nas fronteiras borradas entre o trabalho, os expedientes de sobrevivéncia ¢ 0 ilicito. E também entre a rua ea prisdo. Por certo, as questées propostas por Ruggiero esto longe de dar con- ta de uma problematica hoje tratada por uma vastissima literatura sobre o trafico de drogas em suas varias dimensées, escalas e formas de territoriali- zacio. Na verdade, 0 nosso interesse aqui nao é oferecer explicacdes e mui- to menos entrar nas suas controvérsias. Interessa sobretudo aqui reter o plano em que Ruggiero apresenta suas questdes, colocando a cidade — 0 bazar metropolitano — em perspectiva ¢ como plano de referéncia para si- tuar 0 trafico de drogas em suas interagées com as dindmicas urbanas modernas. : Bem sabemos que, entre nds, o bazar metropolitano nao é exatamente uma novidade. Por isso mesmo, como diz Michel Misse (2006: 215-6), a analise deve se deter nao tanto na sua oposigao a um tipo de cidade moderna que por aqui nunca se realizou completamente, mas sobretudo nas diferentes 376 Vera da Silva Telles ¢ Daniel Hirata conjunturas da historia urbana, 0s modos como essa relacao entre o informal € 0 ilegal se configurou no correr dos anos, “as continuidades, descontinui- dades e metamorfoses de seus tipos sociais e a reproducao ampliada de seus mercados ilicitos”. Em outros termos, esse transito entre o informal ¢ o ilegal, quigé o ilicito, sempre esteve presente ¢ sempre foi importante em cidades marcadas desde longa data por um mercado informal em expansio, sempre préximo e tangente aos mercados ilicitos que também tém uma histéria que seria importante, em outro momento, reconstituir. Porém, se ha, hoje, a reatualizacao de uma hist6ria de longa duracao, ha também um deslocamento consideravel na ordem das coisas. E é justa- mente nesse ponto que o bazar metropolitano descrito por Ruggiero interes- sa para demarcar e pontuar a contemporaneidade as ressonancias do que acontece aqui ¢ I4: isso que sempre foi considerado como evidéncia das in- completudes de nossa modernidade, a “excecao do subdesenvolvimento”, como diz Francisco de Oliveira (2003), nao apenas transformou-se em regra (est ai para ficar, sem a superagdo prometida pelo “progresso”) como se projetou na ponta de um capitalismo que mobiliza e reproduz 0 “trabalho sem forma”,! ao mesmo tempo em que fez generalizar os circuitos ilegais de uma economia globalizada nas sendas abertas pela liberalizacao financeira, a abertura dos mercados ¢ 0 encolhimento dos controles estatais (Naim, 2006), em um tal intrincamento entre 0 oficial e © paralelo, entre o legal e 0 ilegal, 0 licito e 0 ilicito, que esses binarismos perdem sentido ¢ tornam ob- soletas as controvérsias classicas em torno do formal e do informal (Botte, 2004; Bayart, 2004). Por outro lado, se a situacao brasileira tem que ser vista sob o Angulo dos processos transversais (e globalizados) que a atravessam, também é im- portante averiguar os modos de sua territorializacdo, em interagdo com contingéncias locais, hist6ria e tradigdes herdadas, assimetrias e desigual- dades que lh temporaneo também interessa, na medida em que propoe a escala urbana para a descricéo das recomposig6es, redefinigdes e deslocamentos nas re- lagdes entre 0 informal, o ilegal ¢ 0 ilicito, ou entao, mais especificamente, as recomposicées do ilicito em suas interagdes com as dinamicas urbanas s so proprias. E é nesse plano que a referéncia ao bazar con- A redefinigdo das relagdes entre o formal ¢ o informal no capitalismo contempo- raneo e, mais particularmente, o lugar redefinido do informal, sob a légica de um pro- cesso de acumulacio que exige, mobiliza e aciona a sua reproducao ampliada, est hoje no centro de um debate que jé conta com uma importante literatura de referencia. Para as questdes aqui discutidas, além do livro de Ruggiero jé citado (2000), ver Sassen (1989) e Portes ¢ Castells (1989). Cidade ¢ praticas urbanas 377 atuais (cf. Kokoreff et al., 2007). E nesse plano que gostariamos de seguir a discussao. Antes, vale pontuar duas ordens de questdes. Primeiro, a necessdria calibragem do ponto da critica social: a cidade como perspectiva descritiva oferece um plano de referéncia que permite desativar mitos e ficcbes em torno do dito Crime Organizado e do Trafico de Drogas (cf. Kokoreff et al., 2007; Kokoreff, 2004), essas espécies de entidades fantasmaticas as quais sio atribuidas todas e quaisquer mazelas de nossas cidades, ou, como suge- re Misse (2006: 269), os varios apelidos de um Sujeito onipresente ¢ oni- potente que responde pelo nome de Violéncia Urbana e que unifica conflitos, crimes, delitos cotidianos, comportamentos, fatos ¢ eventos os mais dispa- ratados. Voltaremos a isso na parte final desse artigo. Por enquanto, vale dizer que é esse o sentido critico inscrito no empreendimento descritivo de Ruggiero, ao relangar a nogdo do “crime como trabalho” e discutir as pro- ximidades e semelhangas, contiguidades e interseccdes entre os mercados legais ¢ ilegais, localizando ai, nessas interfaces, a reposigao e engendra- mento de clivagens sociais, dessimetrias, discriminacées diversas e também formas violentas de regulacao nos seus modos de segmentaco interna. En- tre nés, os trabalhos de Misse (2006) e Zaluar (2004) mostram 0 quanto pode ser fecunda a escala urbana para a descricao critica do ilfcito em suas relagdes e interagdes com os mercados informais, com os circuitos urbanos de circulagao de riqueza e com as relagdes de poder inscritas em seus pontos de interseccao. Segundo, como ja tivemos a oportunidade de discutir em outro momen- to (Telles e Cabanes, 2006: 48), a construgao de parametros criticos implica ao mesmo tempo a construgao de parametros descritivos para colocar em perspectiva realidades urbanas em mutagao. Em outros termos: reter a cida- de como plano de referéncia supde uma estratégia descritiva que escape aos termos correntes do debate atual, em grande medida polarizado entre a én- fase nos dispositivos transnacionais do assim chamado Crime Organizado e, de outro lado, a discussio do que se convencionou chamar de populacdes em situagio de risco social, expostas 4 violéncia e supostamente cativas (ou sob ameaga) das ramificagées locais do trafico de drogas. Entre um e outro, entre fatos e ficgGes nessas duas pontas do debate atual, ha toda uma trama urbana que resta a conhecer. £ justamente aqui que se aloja o desafio de compreender 0 modo como as linhas de forga que perpassam os mundos urbanos atuais, muito rapidamente indicados nas paginas anteriores, se en- trelacam e se conjugam nas tramas sociais e nos agenciamentos priticos da vida urbana atual. 378 Vera da Silva Telles e Daniel Hirata Vale aqui dizer que essa é uma questao que corresponde aos nossos proprios percursos de pesquisa. Nao somos pesquisadores do trafico de drogas, tampouco da violéncia urbana. Nos tltimos anos, desde 2001, vie- mos seguindo os tragados das mobilidades urbanas nas periferias da cidade de Sao Paulo e, através delas, de seus eventos ¢ inflexées no tempo e espago, buscamos compreender 0 modo como se processam segregacées, assimetrias ¢ desigualdades nos espacos ¢ territorios de uma cidade em mutagio (cf. Telles e Cabanes, 2006). Nesse percurso foram se delineando os perfis de uma cidade perpassada por uma expansiva trama de ilegalismos (novos velhos) entrelagados nas praticas urbanas, seus circuitos e redes sociais, e que pareciam colocar uma ordem de questées nao mais passiveis de serem trata- das nos termos do tao debatido descompasso entre a cidade legal ¢ a cidade real. A rigor, o que exige uma interrogagao mais detida so novas mediagoes € outras conexdes que parecem se entrelagar e se compor nos agenciamentos praticos da vida urbana. Foi esse 0 nosso ponto de partida. E é esse o ponto de partida, quer dizer, os agenciamentos praticos da vida cotidiana, para tentar, no que segue, desenrolar os fios (alguns deles) que fazem a urdidura das tramas urbanas. E por essa via, digamos transver- sal, que pretendemos indicar as capilaridades do trafico de drogas no mundo social e nas tramas urbanas, tomando como “posto de observacao” alguns de seus pontos de ancoramento em um bairro periférico da cidade de Sio Paulo. Essa é uma perspectiva descritiva que permite situar as praticas cri- minosas nas suas relages com 0 que poderiamos definir como gestio dos ilegalismos inscritos nos agenciamentos concretos da vida cotidiana. A rigor, esse é 0 foco da discussio que se pretende aqui desenvolver, quer dizer: nao tanto 0 tréfico de drogas em si mesmo, mas essa crescente e ampliada zona de indiferenciagao entre o legal e o ilegal, 0 licito e 0 ilicito, e que se proces- sa nas relagées redefinidas entre o informal, 0 ilegal e o ilicito. Se é verdade que o mundo urbano — 0 “bazar metropolitano” em suas modulagées locais — é atravessado pelas forcas estruturantes que redefinem as relagdes do trabalho e nao trabalho, entre o formal e o informal, o legal eo ilegal, esses processos operam em situagées de tempo e espaco. Processos situados, portanto. E agenciados por meio de mediagdes ¢ conexdes de na- tureza e extensao variadas. Por isso mesmo, s6 podem ser compreendidos nessas constelagoes situadas (cf. Telles, 2007: 207-8). E é isso propriamente que exige uma estratégia descritiva. De nossa parte, ¢ esse é 0 nosso pressu- posto tedrico-metodolégico, optamos pelo exercicio de uma “etnografia experimental”, tomando como referéncia “cenas descritivas” que permitam flagrar as novas mediagdes e conexées pelas quais vém se processando esses Cidade e praticas urbanas 379 deslocamentos das fronteiras do legal e do ilegal. Nao se trata de partir de objetos ou “entidades sociais” tal como se convencionou definir de acordo com os protocolos cientificos das ciéncias sociais, mas sim de situages € configuragées sociais a serem tomadas como cenas descritivas que permitam seguir o tragado dessa constelagao de processos ¢ praticas, suas mediacdes e conexées pelas quais 0s ilegalismos (novos e velhos) vém sendo urdidos nas tramas urbanas. Com base em pesquisa recente (e ainda em curso), tomamos como ponto de partida — 0 nosso primeiro “posto de observagio” — uma cena urbana armada em torno de expedientes corriqueiros de sobrevivéncia em um bairro periférico da cidade de Sao Paulo, pondo em foco suas mediagdes e conexées e, a partir dai, seguindo os percursos de um pequeno traficante local, os perfis urbanos que, nesses caminhos, vao se desenhando nas fron- teiras porosas entre o legal ¢ 0 ilegal, ¢ 0 ilicito. HIsTORIAS MINUSCULAS Cena corriqueira na periferia paulista. Um ponto distante da cidade de Sao Paulo, um bairro feito de irregularidades varias e superpostas. OcupagGes e terrenos de propriedade incerta. Tudo muito improvisado ¢ tudo muito precdrio, moradias erguidas aqui ¢ ali conforme chegaram os moradores, espalhando-se no tragado de ruas esburacadas, sem pavimentagao ¢ que se transformam em verdadeiros lodacais nos dias de chuva. Mas as redes de Agua e luz, finalmente, chegaram nesses confins da cidade, A expansio das redes urbanas aconteceu nas tiltimas décadas. Porém, no mesmo passo ¢ no mesmo ritmo, multiplicaram-se as ligagées clandestinas. Junto com 0 “pro- gresso urbano”, o reinado das gambiarras também se espalhou por todos os lados. Nada muito diferente do que acontece desde muito tempo, compondo © que foi convencionado discutir nos termos do descompasso entre a cidade legal ¢ a cidade real. Nada muito diferente nao fosse 0 modo como esse pe- culiar artefato urbano vem sendo produzido e agenciado nos tiltimos tempos. Na verdade, é a cidade ow as linhas de forga de sua atualidade, que pulsam nesse artefato urbano (¢ outros). E sao essas linhas de forga que gostariamos de “puxar, para ver como se entrelagam e se compdem nos agenciamentos” praticos da vida cotidiana: conexdes ¢ mediagGes da vida urbana que ficariam fora de mira se insistissemos, como € comum nos chamados estudos da po- breza urbana, na ficgdo comunitaria de populagées encapsuladas nos seus expedientes de sobrevivéncia. 380 Vera da Silva Telles ¢ Daniel Hirata Estacionado ali perto, um carro de uma empresa que faz 0 servigo de manutengao de uma grande companhia telef6nica. Afinal, a rede de telefonia também chegou nos pontos mais distantes da cidade. Proezas da privatizagao, € 0 que se diz. O técnico conversa com um dos moradores do local. f ele quem vai fazer o servico. Quer dizer: puxar os fios da avenida principal e, de quebra, garantir luz ¢ telefone para todos. £ um empregado terceirizado de uma empresa privatizada. Nao tem estabilidade no emprego ¢ é muito mal remunerado: enfim, é um trabalhador precatio, Como tantos outros, nao deixa escapar a oportunidade de complementar seus parcos rendimentos, com a peculiaridade de que, agora, os proprios dispositivos de um servico terceirizado abrem as passagens entre o formal ¢ o informal, entre o legal ¢ 0 ilegal, € 0 tradicional bico se faz justamente nas dobraduras entre uns ¢ outros. Enfim, é a nossa velha conhecida viragio popular, mas que ganha, agora, outras mediagdes j4 que conectada nos circuitos da face moderna- -modernissima da vida urbana. Coisa, alias, que também acontece do outro lado. Pois a prestacao do servigo tem suas formas de regulacao. Tudo tem que ser bem negociado. A comecar do preco e dos custos a serem partilhados por todos. Além disso, ha que se acordar sobre 0 tragado dos fios, as casas que serio beneficiadas, a extensiio da rede clandestina, por onde passar e por onde se ramificar. Quer dizer: ha todo um delicado agenciamento da vida local, ¢ é isso 0 que esta no foco das conversagées O morador é um rapaz com os seus 28 anos, que mora lé com mulher, filhos e mais a mae, irmaos ¢ sobrinhos. Ele conduz as negociagdes com habilidade. Ninguém sabe ao certo 0 que ele faz ¢, se sabe, faz que nao sabe. Mas isso nao tem I muita importancia sob 0 angulo da sempre dificil gestio cotidiana de vidas que se estruturam no fio da navalha de precariedades varias e superpostas. E 0 que importa é que 0 rapaz é um moco respeitador e gentil com todos, com uma familia muito bem estruturada, uma filhinha adoravel ¢ uma esposa prestativa, sempre disposta a ajudar quem quer que esteja passando por algum aperto. Pois o rapaz ganha a vida traficando drogas. Ele 6 0 “patro” de uma “biqueira” bastante movimentada. Nao la onde mora. Mas em um bairro das imediagées, alias o lugar onde nasceu, cresceu, casou e constituiu familia, até que por uma dessas piruetas do des- tino (briga de familia e vizinhos, que resultou em historia de sangue), as suas perspectivas de trabalhador (sim, ele era um trabalhador no mercado formal e com carreira promissora) viraram fumaca ¢ ele viu-se enredado nas tramas da chamada economia dos bens ilicitos. Mas ele nao mistura seus negécios com a vida privada. No bairro em que mora, leva a vida de “todo mundo”. Mas se é ele quem comanda essa lade € praticas urbanas 381 espécie de gestio dos miltiplos ilegalismos de que é feito o mundo urbano, € porque sabe langar mao dos ardis de uma inteligéncia pratica que combina senso de oportunidade ¢ a arte do contornamento das situagées dificeis.? Nas quebradas da vida, desenvolveu uma especial habilidade em negociar a vida nas dobraduras do legal ¢ ilegal e se equilibrar no fragil equilibrio de que sao feitos os negécios ilicitos: de partida, 0 pesado jogo entre a compra de protecao ¢ a extorsao policial, na verdade um feroz jogo de poder que se faz nas fronteiras porosas entre o legal ¢ o ilegal, ¢ o ilicito — é disso que depende o funcionamento do negécio, dessa espécie de dobradura entre os dois lados, e que aciona séries seguidas de violéncia, episddios corriqueiros que, muito frequentemente, ganham formas extremadas e devastadoras (cf. Misse, 2006); de outro lado (e a0 mesmo tempo), a gestao das rotinas do seu negécio, que se conectam com as circunstancias da sociabilidade local, entre © respeito as regras da reciprocidade da vida cotidiana (afinal, foi 14 que nasceu e cresceu, construiu lagos de amizade e solidariedade), 0 célculo re- fletido para garantir a cumplicidade dos moradores contra as investidas da policia e também a estratégia para o controle de territério face aos grupos rivais e sempre em disputa. Aqui, nesse bairro, outras tantas historias poderiam ser contadas, mi- riades delas, microcenas de um mundo feito da superposigao e entrelaga- mento de miltiplos ilegalismos. Ou melhor: um mundo social feito de um especial embaralhamento entre o formal ¢ o informal, o legal ¢ o ilegal, e 0 ilicito. Daf 0 interesse em se deter nos expedientes mobilizados em torno de uma muito prosaica gambiarra, esse peculiar artefato que carrega diversos estratos da histéria urbana, que se comunicam e se entrelagam nos agencia- mentos praticos da vida cotidiana. Alias, os mesmos procedimentos ¢ os mesmos mediadores postos em acdo para puxar a luz para uma pequena-pequenissima favela que rapida- mente se formou 14 mesmo no bairro em que o rapaz capitaneia o seu negé- cio. Esse é um bairro mais antigo, com uma urbanizacao consolidada faz tempo. Porém, em um terreno vazio apareceram os primeiros moradores que, sem outras alternativas, ld instalaram casa e familia para tocar suas vidas. A favela estava ali se formando aos olhos de todos. Tudo bem, tudo certo, nada muito diferente do que todos conhecem, e conhecem de longa data, até por que, em suas origens, nos idos dos anos 1970, esse bairro também foi uina Para uma discussao sobre os sentidos dessa inteligéncia pratica em contextos nos quais as regras so incertas e mutantes, e as realidades sio indeterminadas e ambfguas, cf. Detienne e Vernant, 1974. 382 Vera da Silva Telles e Daniel Hirata rea de ocupagao ilegal de terras. Mas acontece que apareceram uns € outros, também moradores da regido, que atuavam como uma espécie de grileiro popular, apossando-se de um terreno para, depois, alugar ou vender o pon- to para os recém-chegados. O rapaz e seus parceiros (alids, todos eles mora- dores antigos do pedaco), ponderaram que era preciso garantir que as coisas funcionassem, como se diz (eles dizem), “pelo certo”. Expulsaram esses mercadores da desgraga alheia, dividiram os lotes direitinho e estabeleceram as regras para a sua distribuicao entre os que, de fato, deles precisavam. Depois, trataram de garantir os “servicos urbanos”, de luz e agua, langando mao, claro esta, dos servigos profissionais de quem entende do assunto c é capaz de fazer bem 0 servigo —e Id esto as gambiarras de luz e as ligagdes clandestinas de agua, tudo funcionando direito para o bem-estar de todos... O fato é que o rapaz e seus parceiros passaram, aos poucos, a se ocupar dos assuntos locais. Foi assim também com a cesta basica, um outro artefa- to urbano em torno do qual relagdes sociais so tecidas, conexdes sao urdi- das € redes sociais so mobilizadas. Em torno desse artefato outros tantos coletivos sao mobilizados.} Antes de mais nada, claro esté, as familias pau- perizadas cujas vidas parecem como que dependuradas nos programas so- ciais, sem outros meios de sobrevivéncia: problemas de satide, de desempre- go, de orfandade, de abandono; também a prisio de provedores, pais ou filhos, ou entéo a morte violenta dos que foram atingidos por um desses “mata-mata”, como se diz, epis6dios recorrentes que fazem parte da histéria local (nao s6 local) e que nao sao de hoje, vém de longe, em que se misturam a violéncia policial (e as praticas de exterminio), a agdo de matadores e jus- ticeiros, disputas de territérios e acertos de conta. Desde muito tempo, as cestas basicas sao distribuidas por uma tradicionalissima lideranga comuni- taria. Moradora das mais antigas do bairro, desde cedo se empenhou nesse empreendimento solidario. E desde cedo e por anos seguidos, no poupou esforgos para solicitar a ajuda de todos quantos pudessem mobilizar recursos, quer dizer: doagées voluntarias (e incertas) dos comerciantes locais, prestacio (além de incerta, descontinua) de associagées filantrépicas e também, e so- bretudo, o clientelismo politico velho de guerra e, nesse caso, as doagées seguiam os rumos mutantes dos interesses politicos 0 ritmo descompassado do calendario eleitoral. Mais recentemente, nos tiltimos cinco ou seis anos, quando © rapaz e seus parceiros entraram na parada, outras redes e outras * Estamos aqui trabalhando com a nogio de “artefato” tal como sugerida por Bru- no Latour (2000), ponto de partida para a descrigdo de praticas, relagdes e mediagées acionadas em seus agenciamentos, Cidade e praticas urbanas 383 mediagSes foram mobilizadas: comerciantes e perueiros, eles préprios atuan- do nessas zonas de incertezas entre o informal e o ilegal, sempre as voltas com as “forgas da ordem” (fiscais ¢ policiais) pelas vias da chantagem e extorsao, além dos assaltos ¢ roubos da pequena delinquéncia local e, no caso dos perueiros, disputas, por vezes letais, envolvendo grupos rivais pelo controle dos rendosos circuitos do chamado transporte alternativo. Em tro- ca da protecao, semissolicitada, semi-imposta, entraram todos no circuito da solidariedade popular, garantindo os recursos e também a fachada semilegal Para as cestas bésicas que continuaram a ser distribuidas ¢ geridas como sempre foram, desde 0 comeco. Na verdade, uma muito modesta ¢ tradicional cesta basica opera aqui como um desses pontos de entrelagamento de redes que operam em escalas € conexées variadas. Familias pauperizadas, lideranca comunitéria, trafican- tes locais, comerciantes ¢ perueiros sio moradores que partilham a historia comum de um mesmo bairro, conhecem as venturas e desventuras de uns € outros. Cada qual e, sob maneiras diversas, transita entre um lado e outro, nas fronteiras incertas do legal, do informal e ilicito: familias cujos filhos | esto presos ou foram mortos em algum desses transitos entre 0 legal e 0 ilegal; o traficante que j4 foi um trabalhador no mercado formal de trabalho, um outro que intercala expedientes varios no mercado informal ¢ 0 negécio da droga ou que tenta consolidar uma pequena loja nas imediagées com a expectativa (ou 0 sonho) de, um dia, sair da vida do crime; o perueiro que j4 traficou drogas em outro momento e resolveu dar um novo rumo para sua vida (ou o contrério); 0 comerciante cujo filho é peruciro e sabe das compli- cages que acompanham seus trajetos na cidade; a lideranga comunitaria, que ja foi uma aguerrida militante dos outrora ativos movimentos de mora- dia, que nos periodos de eleigao se converte em um muito eficaz cabo eleito- ral de vereadores locais, que tem um filho perueiro ¢ uma filha vitiva de um |" tapaz executado pela policia por razdes obscuras, que ganhou respeito ¢ admiracao nao apenas pelo seu empenho solidario, mas também pela ousa- dia com que, ao longo dos anos e por vezes seguidas, se interpés, fisicamen- tee com ameagas de dentincia publica, entre a policia e aquele que, qualquer que fosse a razdo, estava ali sendo alvo de violéncia, ameaca de exterminio ou prisdo arbitraria. Poderiamos seguir, sem fim, esse jogo em que os perso- nagens urbanos transitam, interpdem, deslocam, trocam, comutam entre esses varios “lugares” sociais: esse € propriamente 0 circuito que podemos ‘reconstituir em torno de uma cesta bisica, circuito que, a cada um de seus Pontos, desenha os perfis de um mundo social no qual transitam “hist6rias \minisculas” (Foucault), delineando, cada qual, as modulagées desse estado 384 Vera da Silva Telles e Daniel Hirata de excegdo permanente cifrado em cada uma delas ¢ constelado nos agencia- mentos praticos da vida cotidiana. Mas, entio, continuemos. A distribuigao das cestas basicas segue suas rotinas. O “patrio” do negécio local ¢ agora o seu fiador, € garante que tudo siga no rumo certo das coisas. E assim também acontece com 0s festejos que ele trata de patrocinar e organizar nas datas comemorativas: dia das maes, dia das criancas, Natal e fim de ano. No més de junho, 0 campo do futebol de varzea se transforma em espaco para as festas juninas. Outros tantos agenciamentos locais: 0 rapaz ¢ seus funcionarios mais gratidos negociam com os times locais o uso do espaco, conversam com o pessoal do Centro Desportivo Municipal (mediagao oficial ¢ legal, que gerencia 0 espaco, os jogos e times locais), patrocinam a montagem e organizagao das barracas utilizadas pelos moradores para vender as comidas e bebidas proprias de uma festa junina. E ainda por cima garantem que tudo seja bem iluminado por gambiarras espalhadas em pontos estratégicos — de novo elas, ¢ sempre pelas mesmas vias. A festa é um sucesso de piblico e critica. Tao grande foi 0 suce meses, todos os fins de semana. Parentes, conhecidos, vizinhos, casais de namorados circulam alegremente por la. As criangas se divertem com 0 pau de sebo. E as familias celebram essa, digamos assim, variagao local da eco- nomia solidaria, pois as barracas se mostraram uma nada desprezivel fonte de renda para quem esta sempre as voltas com salirios irrisérios, empregos incertos e desemprego prolongado. Como se vé, tudo muito bem sintonizado com os tempos atuais. Com 0 tempo, 0 rapaz tornou-se um personagem importante na vida local. Nao poucas vezes, ao andar pelas ruas, é chamado, com um evidente senso de ironia, de prefeito. Alguns pedem emprego, dinheiro, carro para levar um familiar doente para o hospital, favores em geral. Na pratica, ele atua como um agenciador de problemas cotidianos: brigas de vizinhos, con- flitos de familia, adolescentes briguentos ¢ desabusados, barulho excessive nas altas horas da noite. Quer dizer: tudo e qualquer coisa que possa cha- mar a atencSo da policia ou que possa provocar a hostilidade ¢ a ma vonta- de de moradores, situagao delicada ¢ perigosa, pois é sempre assim que surgem as temidas dentincias anénimas que acionam a intervengao violenta da policia. Na verdade, a biqueira funciona ali como uma espécie de caixa de ressondncia de tudo o que acontece no bairro: as informagdes ou rumores circulam por ali, e 0 patrao ¢ seus “gerentes” conversam, discutem, ponde- ram e decidem como intervir ¢ arbitrar conflitos corriqueiros ¢ situagdes dificeis. Ou entao, para garantir, como se diz (eles dizem), 0 “lado certo da so da primeira iniciativa, que resolveram prolongar a festa por trés Cidade e praticas urbanas 385 coisa errada” quando as situagées s40 provocadas por gente envolvida nos negocios do crime. O fato é que tudo isso se confunde com a gestao cotidiana do negécio local da droga, que depende em boa medida de seu ancoramento nessas redes de sociabilidade. Ao mesmo tempo, a biqueira engendra outras tantas rela- des no bairro, elas proprias se estruturando em equilibrios instaveis e sem- pre passiveis de desandar em tens6es, conflitos, desafetos, desentendimentos, deslealdades, disputas ow historias de vinganga pessoal, que podem ser fatais —e letais, para uns e outros, ou para todos. £ todo um agenciamento das relagées locais também mobilizado para garantir a lealdade dos “funciona trios” e a cumplicidade de suas familias, para arbitrar conflitos que muitas vezes se confundem com desentendimentos pessoais ou desacertos de outros tempos e outros lugares; ou entéo para definir os limites que no devem ser ultrapassados, sobretudo para os mais jovens, na verdade garotos, quase criangas, quando passam a se achar importantes e poderosos, € criam pro- blemas com os moradores e vizinhanga. Equilibrios instaveis, até porque se estruturam entre essa dinamica local ¢ os igualmente instaveis acordos com a policia: a rotina do pagamento “regular” da protecio muito frequentemente desanda na pratica aberta da chantagem e extorsio, e isso concerne diretamente ¢ abertamente essa teia de relagées que passam pelas conexdes do negécio com a vida local: espan- camento e chantagem sobre uns, ameaca de prisdo de outros, verdadeiros sequestros, muito frequentemente, com a exigéncia de um alto prego pelo “resgate”. No alvo, estao os “meninos da droga”. Mas nao s6. Qualquer um que, nesse transito nas fronteiras embacadas do legal c ilegal, possa oferecer algum pretexto para a pressdo, chantagem e ameaga de prisdo: pequenas historias locais, “historias miniisculas” ou “historias infames”, que passam. por delitos menores ou passagens esporddicas pelo ilfcito, casos mal resolvi- dos de outrora ou ainda desavengas pessoais, historias que circulam e po- voam a vida local, que se misturam com a “vida-de-todo-dia” e que sao acionadas nesses pontos de fricgao da vida local e que, de alguma forma, se condensam no varejo da droga, nas varias dimensdes de suas regulagdes locais. O fato é que essa gestao das relagGes cotidianas tangencia outras tantas praticas ilicitas, que nem sempre ¢ ndo necessariamente tém comprometi- mentos com o negécio da droga, mas que também interagem com as redes da sociabilidade local nas fronteiras incertas entre o informal e o ilegal: as tradicionalissimas oficinas de carro, que se multiplicam por toda a periferia, em que se misturam 0 trabalho informal e a transagao de pecas de origem 386 Vera da Silva Telles e Daniel Hirata duvidosa, em conexao (ou nao) com os varios pontos de desmanche de car- ros roubados, tudo isso alimentando um espantoso mercado popular de pegas, motos ¢ automoveis de “segunda mio”; os muito modernos mercados de CDs piratas, produtos falsificados ou entao contrabandeados (dos cigar- ros vindos do Paraguai, passando por isqueiros vindos sabe la de onde, até 0s eletrdnicos que chegam dos contéineres chineses desembarcados no porto de Santos), fontes de renda para os que agenciam os pontos de venda pelas periferias a fora, mobilizando redes locais de sociabilidade e mais uma cas- cata confusa de intermedidrios por onde esses produtos circulam nos hoje expansivos mercados de consumo popular; ou entao o atualissimo e muito rendoso negécio com caca-niqueis que vem ocupando o lugar do tradicional jogo do bicho e que, como esse, também opera no jogo de luz e sombra entre intermedidrios obscuros, a compra de protegio policial e os rendimentos generosos para os que alojam e operam essa versio moderna do jogo de azar hoje comum em qualquer birosca de um bairro de periferia. Praticas comuns, em suas versGes tradicionais ou muito modernas, que transitam nas fronteiras borradas entre expedientes de sobrevivéncia e pra- ticas ilicitas (Ruggiero, 2000). Podem estar vinculadas (ou nao, e nao neces- sariamente) 4 pequena criminalidade local ou as redes mobilizadas por es- quemas mais pesados, como € 0 caso do roubo de carga. Ou entdo, esto articuladas, alias, como o préprio varejo da droga, nas pontas pobres dos rendosos circuitos ilegais de uma economia globalizada (cf. Naim, 2006). Sao praticas ¢ redes sociais que atravessam e compdem a vida de um bairro de periferia. E criam outras tantas zonas de fricgao que, também elas, preci- sam ser bem agenciadas para evitar complicagdes com a populagao local e, sobretudo, evitar ocorréncias indesejaveis com a policia. Aqui, 0 outro plano em que se da a regulacao dos negécios locais: a gestao dos varios ilegalismos e€ praticas criminosas que perpassam 0 mundo urbano, que transbordam, certamente, 0 perimetro local, mas que se entrelagam nas pontas pobres do varejo da droga e fazem de uma pequena biqueira o ponto sensivel de suas operacoes justamente nas suas conexdes com as circunstancias locais, entre as regras da sociabilidade vicinal, os sempre instaveis acordos com a policia € também a nem sempre pacifica relagao com organizacées criminosas: acer- tos sobre procedimentos, horas, lugares e circunstancias para as transacées +A imprensa tem noticiado o importante lugar do comércio de maquinas de caca- -niqueis nas operages de lavagem de dinheiro capitaneadas por redes transnacionais, das quais, como se pode supor, os modestos donos de birosca nas periferias nao suspeitam e nem poderiam imaginar. Cidade e praticas urbanas 387 ilicitas ou, entdo, acordos de conveniéncia para impedir disputas indeseja- veis entre grupos que atuam em territ6rios contiguos. Também: arbitragens dificeis quando as desavencas envolvem organizagoes criminosas, ¢ a situa- cao beira solugdes de morte. © que esta em jogo nisso tudo sao microrregulagées do negocio da droga, a sua face mitida, poderiamos dizer, que se conecta com os fatos ¢ circunstancias, artefatos ¢ redes sociais que compéem a vida local. Disso depende 0 bom andamento dos negécios. Mas é disso que depende, sobre- tudo, as partidas de um arriscado jogo de vida e morte. Pois tudo funciona muito bem, ou pode funcionar até o momento em que a roda da fortuna da mais um giro ¢ os desacertos da vida jogam tudo pelos ares, sejam os desa- certos com a policia que esta sempre la em um jogo perverso de protecio e extorsio; seja por conta de disputas de territério com os grupos rivais, seja pelos desafetos de uns e outros ¢ que terminam por acionar solugdes de morte, O rapaz sabe disso, cle ¢ todos os outros, os moradores também. GOVERNO DA VIDA E VIDA NUA Historias de um pequeno traficante da periferia paulista. Historias mi- nusculas, como diria Foucault (2003), essas “existéncias destinadas a passar sem deixar rastro”, mas que interessam justamente porque, ao contrario das estereotipias que constroem as figuras fantasmaticas do Traficante e do Cri- me Organizado, so portadoras de um feixe variado de relages e conexdes com 0 mundo social. Por isso mesmo so formidaveis guias para nos condu- zir nessa incerta prospeccio do mundo urbano atual. Sao histérias que se fazem nas dobraduras do mundo social, nesses pontos de jungao e conjugacao da trama urbana nas fronteiras incertas entre 0 informal, o ilegal ¢ o ilicito. Nelas pulsam as linhas de forga que atravessam © cenario contemporanco, e que parecem se entrelagar ¢ se compor nos di- versos agenciamentos praticos da vida cotidiana: praticas ¢ redes sociais mobilizadas nesse transito constante entre um lado € outro, acionando re- cursos, possibilidades e dispositivos de cada lado. E isso 0 que interessa colocar em foco. E foi por isso que comecamos com uma muito prosaica gambiarra, para seguir, depois, os agenciamentos mobilizados em torno de uma inofensiva cesta basica e de uma popular festa junina. E isso que pode fornecer um plano de referéncia para situar os percursos de um pequeno traficante local e, através deles, delinear os perfis de uma cidade que ainda resta a conhecer. 388 Vera da Silva Telles ¢ Daniel Hirata Tudo muito distante das imagens hoje amplamente midiatizadas — aceitas como fato e verdade — de um mundo capturado ¢ dominado pelo assim chamado Crime Organizado. Imagens que banalizam a criminalizagio da pobreza e alimentam a obsessao securitaria que combina repressio aber- ta e sem pudor (a gramatica da guerra, combate ao “inimigo”) e a gestio dos supostos riscos da pobreza’ pelas vias de dispositivos gestionarios vol- tados as ditas “populagées em situagio de risco” (expresso hoje moeda corrente, € no por acaso), a rigor, o biopoder de que fala Foucault (2004), quer dizer: gestao das populagdes, gesto das vidas e, nesses tempos em que a excecio se tornou a regra, a administragdo de suas urgéncias para tornar os “individuos governaveis” sob a égide da racionalidade triunfante do mercado. Talvez. aqui fique mais claro porque escolhemos esse sinuoso percurso pelas “historias mimisculas” para colocar a cidade em perspectiva e sob outra perspectiva. Exigéncia, para nés imperativa, de deslocar 0 terreno a partir do qual descrever a ordem das coisas, e problematizar as questoes em pauta. Deslocar 0 ponto da critica, Ou melhor: ajustar 0 ponto da critica que, hoje, parece ter se esvanecido na propria medida em que se esvazia a imaginacao politica que nao consegue figurar 0 mundo a nao ser nos termos postos no presente imediato. Se essas microcenas interessam € porque colo- cam em foco um mundo social que nao cabe nas estereotipias que vem acionando os dispositivos de excegao: sejam as figuras fantasmaticas do Crime Organizado, suposto poder paralelo, verso nativa do “império do mal” contra o qual s6 resta a estratégia da guerra (e exterminio); seja, na sua face “edificante”, a ficco de populacées encapsuladas nas ditas “comuni- dades” (alias, termo sobre o qual valeria se deter em outro momento), sub- ao jugadas ou aterrorizadas, no minimo ameacadas, mas destinadas 4 remiss pela intervencdo salvadora de programas sociais. Em nome da urgéncia e da emergéncia, 0 espaco da politica é subtraido, tanto quanto é erodido 0 cam- po da critica e o exercicio da inteligéncia critica (cf. Calhoun, 2004) sob a figuragao de uma cidade toda ela pensada ¢ figurada sob a légica de uma gestdo dos riscos, riscos sociais, pautando programas sociais ¢ também os hoje celebrados projetos de revalorizagao de espagos urbanos, populares nhas estao sendo escritas, estamos testemunhando a0 vivo e em ato, os modos como esses — o leitor nos perdoe o eufemismo — disposi- tivos de excegio esto sendo, mais uma vez, colocados em pratica nas UPPs (Unidades de Policia Pacificadora) no Rio de Janeiro, cidade hoje escolhida, assim parece, como um laboratério para calibrar a versio nativa de uma mistura dos ditos Modelo Colémbia e Modelo Haiti. 5 No momento em que estas Cidade ¢ praticas urbanas 389 ou centrais,® indicagdes que nos fazem pensar j4 estar em operacio novas formas de controle que, como diz David Garland (1999, 2001), combinam a légica punitiva (dispositivos repressivos) e a governamentalizagio das populacées e situagdes sujeitas ao que passa a ser definido como risco do crime ¢ violéncia. Com isso, € todo um mundo social que fica fora de mira. Mas é aqui que se alojam as complicagées, e toda a tragédia que se estampa em nossas cidades, justamente nessas tramas urbanas feitas nas dobraduras do formal ¢ informal, do legal ¢ ilegal. E nelas, nessas dobraduras, que € preciso se deter. Como mostra Michel Misse (2006), a chave para o entendimento da violéncia associada aos mercados ilicitos, em particular o trafico de drogas, esta justamente af, nas “ligagdes perigosas”, relacées de poder articuladas no pesado jogo da compra de protegao e extorsao policial, o chamado mercado de protecio, ele também ilegal, que se alimenta das politicas (e praticas) da criminalizagao, parasita os primeiros e detona epis6dios conti- nuos de violéncia que, muito frequentemente, assumem formas extremadas e devastadoras. Mas os dispositivos de excegao, nas suas duas faces, a repressio ¢ a gestao da pobreza, j4 compéem a ordem das coisas. Seria mesmo possivel dizer que as tensdes do mundo se fazem na fricg4o entre os “individuos go- yernaveis” (Foucault) 0 que escapa dos dispositivos gestionarios, quer dizer: entre a governabilidade gestionaria e a “vida nua” (Agamben, 2002). E isso © que pulsa, em filigrana, nos agenciamentos praticos da vida cotidiana, nas “historias mintisculas” que compdem nossas cidades. E nesses pontos de fricgdo que homens e mulheres negociam a vida e os sentidos da vida. No fio da navalha. O fato é que individuos ¢ suas familias transitam nessas ténues fronteiras do legal e do ilegal,” sabem muito bem lidar com os cédigos de ambos 05 lados e sabem também, ou sobretudo, lidar com as regras que vio sendo construidas para “sobreviver na adversidade”. Essa expressio, “so- breviver na adversidade”, ndo tem nada a ver com as estratégias de sobrevi- véncia de que tratam os estudos sobre pobreza.* E uma expressao que citcu- la no “mundo bandido”. Mas, os moradores das periferias da cidade sabem © Nisso, ao que parece, estamos também em fina sintonia com a modernidade neo- liberal em tempos de excecao, a se considerar 0 que Vincenzo Ruggiero, em artigo recen- te (2007), descreve do que anda acontecendo na cidade de Londres. 7 No que segue, retomamos questdes desenvolvidas em Telles, 2007 * Os usos e sentidos dessa expressdo, “sobreviver na adversidade”, é questao tra- balhada e desenvolvida em Hirata (2010). 390 Vera da Silva Telles e Daniel Hirata muito bem o que isso quer dizer: saber transitar entre fronteiras diversas, se deter quando é preciso, avangar quando é possivel, fazer 0 bom uso da pa- lavra certa no momento certo, se calar quando € 0 caso, Nao se trata tio simplesmente de sobreviver ¢ levar a vida. Trata-se sobretudo de contornar — 6 uma espécie de arte de contornamento? — as duas ameagas muito con- cretas que se colocam em suas vidas, a cada momento. De um lado, 0 risco da morte violenta: sobretudo entre os mais jovens, fazer a narragao de suas vidas € também uma espécie de contabilidade dos mortos, pessoas proxi- mas, amigos de infancia, vizinhos de rua, colegas de escola. De outro, © risco de despencar na condi¢ao de “pobres-de-tudo”, a depender da carida- de de uns e outros, ptiblico-alvo dos programas sociais ditos de insergao ¢ que, nas palavras de Francisco de Oliveira, nao sao mais do que a admini tracdo da excegao. Quer dizer: entre a morte-matada e a pobreza cativa dos dispositivos gestionarios, nao ha o vazio sugerido pelas nogées correntes de exclusio social. H4 todo um mundo social tecido nesses terrenos incertos nas fronteiras porosas do legal e do ilegal, do licito ¢ do ilicito. E ai que se joga a partida entre a vida nua: quer dizer: a vida matdvel; e as formas de vida, quer dizer: possibilidades e poténcias da vida. Acolhendo a sugestao de Agamben, é isso 0 que ainda precisa ser bem entendido se quisermos pensar uma politica que esteja 4 altura desses tempos em que a excegdo se transformou em regra. BIBLIOGRAFIA AGAMBEN, G. (2002). Homo Sacer: 0 poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte: Editora UFMG. BAYART,, JF. (2004). “Le crime transnational et la formation de l'Etat”. Politique Afri- caine, n° 93, Paris, Karthala, mar., pp. 93-104. BOTTE, R. (2004). “Vers un Etat illégal-légal?”. Politique Africaine, n° 93, Paris, Kar- thala, mar. pp. 7-21. BOURGOIS, P. (1995). Int Search of Respect. Cambridge: Cambridge University Press. CALHOUN, C. (2004). “A World of Emergencies: Fear, Intervention, and the Limits of Cosmopolitan Order”. The Canadian Review of Sociology and Anthropology, vol. 41, nov. ° Sobre essa “arte do contornamento”, ver Marion Fresia (2004). Em seu estudo sobre 0s inusitados percursos de jovens refugiados nas fronteiras do Senegal ¢ da Mauri- tania, a autora levanta questdes que tém paralelos interessantissimos com 0 que esta aqui sendo proposto. Cidade e praticas urbanas 391 DETIENNE, M.; VERNANT, J.-P. (1974). Les ruses de intelligence: la métis des Grecs. Paris: Flammarion. FRESIA, M. (2004). “Frauder lorsqu’on est réfugié”. Politique Africaine, n° 93, Patis, mar. pp. 63-81. FOUCAULT, M. (2003). “A vida dos homens infames”. Ditos e escritos IV. Rio de Ja- neiro: Forense Universitaria, (2004). Naissance de la biopolitique. Paris: Gallimard. GARLAND, D. (1999). “As contradigdes da ‘sociedade punitiva’: 0 caso britanico” Revista de Sociologia e Politica, n° 13, Curitiba, Universidade Federal do Parana, nov., pp. 99-80, (2001). The Culture of Control. Oxford: Oxford University Press. HIRATA, D. (2006). “No mi TELLES, V. S.; CABAN seus territorios. do campo: o que esta em jogo no futebol de varzea”. In: . R. (orgs.). 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