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Religião, Gênero e Poder

Estudos Amazônicos

1
Daniela Cordovil
(Organizadora)

Religião, Gênero e Poder


Estudos Amazônicos

2015
Religião, Gênero e Poder
© 2015 by Fonte Editorial
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

200.210 CORDOVIL, Daniela (org.)


C796r Religião, gênero e poder: estudos Amazônicos
/ Daniela Cordovil (org.)
São Paulo: Fonte Editorial, 2015.
206 p.

ISBN: 978-85-66480-98-6

1. Gênero e Religião 2. Religiões afro-brasileiras


I. Estudos de ciências da religião na Amazônia I. Título

CDD 18ª. ed.


Editores Responsáveis:
Capa e Diagramação:
Eduardo de Proença Eduardo de Proença
Alessandra Santos Oliveira de Proença
Revisão:
Filipe R. Santos Conselho Editorial:
Consuelo Rodrigues S. Zeller Dra. Sandra Duarte de Souza
Universidade Metodista de São Paulo
Dr. Luiz Alexandre Solano Rossi
PUC-PR
Profa. Dra. Elaine Sartorelli
Universidade de São Paulo - USP
Prof. Dr. Frederico Pieper
Universidade Federal de Juiz Fora
Dr. Andrés Torres Queiruga
Universidade de Santiago de Compostela
Dr. Ricardo Quadros Gouvêa
Universidade Presbiteriana Mackenzie
Dr. Ronaldo de Paula Cavalcante
Faculdade Unida

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Proença

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ssi AGRADECIMENTOS

À Reitoria e à Pró-reitoria de Pesquisa e Pós-graduação da


Universidade do Estado do Pará e à Fundação Amazônia Paraense
a
de Amparo à Pesquisa do Estado do Pará pela concessão de
postela recursos através do Edital de Pesquisa n.61/2010, ICAAF n. 121,
que possibilitaram esta publicação.
enzie
nte A todos os estudantes/pesquisadores que contribuíram com
suas pesquisas para a elaboração desta coletânea.
À CAPES e ao CNPq pela concessão das bolsas de
pesquisas usufruídas pelos pesquisadores durante a elaboração de
seus trabalhos.
A todas as lideranças religiosas que participaram cedendo
um pouco de seu tempo aos pesquisadores e possibilitaram a
confecção desta obra.

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Religião, Gênero e Poder

6
Sumário
Introdução
Sobre os Estudos de Gênero e as Ciências da Religião
na Amazônia, 9
Daniela Cordovil

Capítulo 1
Negras Guerreiras do Ciclo do Marabaixo, 13
Alysson Brabo Antero

Capítulo 2
Festa e Devoção: Relações de poder e de gênero nas
Irmandades Religiosas de Belém no século XIX, 31
Maria de Nazaré Fonseca de Senna Pereira

Capítulo 3
A cultura afro-brasileira e a construção do gênero
feminino em Mar Morto de Jorge Amado e A Cidade
das Mulheres de Ruth Landes, 49
Tayná do Socorro da Silva Lima

Capítulo 4
“Mulher que presta é aquela que é vivida”: a interdição
feminina gerada pela sangria menstrual, 69
Lucielma Lobato Silva

Capítulo 5
Da morte à vida: poder e prestígio feminino na figura de
Pombagira Lindeuá, 99
Jefferson João Martins Baldez

7
Religião, Gênero e Poder

Capítulo 6
Novas Faces da Pajelança Cabocla na Amazônia: o caso
da Pajé Zeneida Lima de Soure, Marajó, 115
Mayra Cristina Silva Faro Cavalcante

Capítulo 7
A Construção da Identidade Ecológica no Candomblé
Jeje Savalu: leituras a partir da fala de uma Sacerdotisa
Jeje, 143
Manoel Roberto Ferreira Chagas

Capítulo 8
A Construção da Identidade Política a partir da trajetória
de Três Sacerdotisas do Candomblé Angola em Belém,
Pará, 169
Luis Augusto Barbosa Teixeira

Capítulo 9
Metodismo e homofobia cordial: uma análise da Carta
Pastoral “Igreja e a Questão do Homossexualismo”, 187
Tony Welliton da Silva Vilhena

Sobre os Autores, 207

8
Introdução
Sobre os Estudos de Gênero e as
Ciências da Religião na Amazônia

Daniela Cordovil
Este livro é o resultado das pesquisas que vêm sendo desen-
volvidas no interior do Programa de Pós-Graduação em Ciências da
Religião da Universidade do Estado do Pará, no que diz respeito as
interfaces entre relações de gênero, sexualidade e o fenômeno reli-
gioso. Este campo de estudos não é novo e já existe vasto acúmulo
na bibliografia especializada, no Brasil e no mundo. O propósito des-
ta coletânea é apresentar para a comunidade acadêmica um conjun-
to de pesquisas cujo o foco voltou-se majoritariamente para expres-
sões religiosas características do Norte do Brasil, tais como a pajelança
e as religiões de matriz africana.
Na maioria dos artigos o leitor irá encontrar mulheres, sacer-
dotisas da pajelança e religiões de matriz africana, como protagonis-
tas de manifestações religiosas subterrâneas a uma cultura religiosa
hegemônica cristã e falocêntrica. As mulheres apresentadas nesta
coletânea recriam o universo religioso no qual estão inseridas, apre-
sentando-o sob uma ótica feminina, a do cuidado. Muitas vezes mar-
ginalizadas pelos poderes hegemônicos, não cessam de desenvolver
estratégias para garantir sua fé.
No entanto, o livro não se esgota no campo empírico da paje-
lança e religiões de matriz africana, nem trata apenas de pesquisas
desenvolvidas a partir de religiões da Amazônia. Alguns dos autores
presentes nesta coletânea optaram por outros temas, como a interfa-
ce entre religião e literatura e o campo religioso protestante. Porém,
em ambos os casos, o enfoque dos artigos é a questão de gênero e
suas assimetrias de poder.
O propósito desta obra é apresentar uma amostra da biblio-
grafia produzida na Amazônia em torno da temática gênero, religião
e poder, fomentando a criação de novos campos de pesquisa e de

9
Religião, Gênero e Poder

diálogo em uma temática vasta, cujo campo de estudo e produção


bibliográfica nas Ciências da Religião encontra-se em expansão.
As pesquisas apresentadas nesta obra são fruto de disser-
tações de mestrado, concluídas e em andamento, produzidas en-
tre os anos de 2011 e 2014, no Programa de Pós-Graduação em
Ciências da Religião da UEPA. A maioria dos artigos foram pro-
duzidos no interior da disciplina “Tópicos Temáticos II – Gênero,
Religião e Sexualidade”, ministrada por mim no primeiro semes-
tre letivo de 2013. A disciplina foi uma oportunidade ímpar de
fomentar o debate sobre a questão da interface entre gênero e
religião na Amazônia. Outros dos textos são resultado de orienta-
ções de mestrado e iniciação científica.
No primeiro capítulo, Alysson Brabo Antero apresenta uma
pesquisa etnográfica sobre a presença feminina e sua importân-
cia em uma manifestação da religiosidade popular característica
do Estado do Amapá, o ciclo do Marabaixo. Trazido para a região
por escravos africanos, o ciclo é uma prática do catolicismo po-
pular com profundas raízes na espiritualidade negra e mestiça.
Em seu artigo, Antero destaca a importância das mulheres para
esta manifestação religiosa.
No segundo capítulo, Maria de Nazaré Senna Pereira discute
a formação e extinção da Irmandade de São Raimundo, na Belém do
século XIX, a partir de um artigo do historiador Arthur Viana. A
autora defende a tese de que, apesar de presidida por um homem, o
negro Leopoldino, a irmandade era um espaço de sociabilidade mar-
cadamente feminino, comandado e mantido pelos esforços de
mulheres bastante independentes para a sociedade da época.
No terceiro capítulo, Tayná de Lima discute a intertextualida-
de entre as obras Mar Morto de Jorge Amado e A Cidade das
Mulheres de Ruth Landes. Contextualizando as obras na Bahia da
década de 1930, a autora compara os olhares lançados por Landes e
Amado sobre a cultura baiana, a força de suas mulheres e suas ma-
nifestações religiosas. A autora também se debruça sobre a crítica
negativa recebida pelos autores no contexto de sua época e estabe-
lece possíveis razões para esta recepção.

10
Introdução

No quarto capítulo, Lucielma Lobato Silva analisa as inter-


dições ao poder feminino geradas a partir do tabu do sangue mens-
trual em um terreiro de Mina Nagô em Abaetetuba, Pará. A au-
tora se debruça sobre as falas da sacerdotisa, de seus filhos e
filhas de santo, e das entidades cultuadas no terreiro, para apon-
tar como a aversão ao sangue menstrual se constrói em um ele-
mento simbólico de submissão feminina, acatado pelas próprias
mulheres. Na religião Mina Nagô, o masculino é símbolo de poder
e a mulher para acessar este local de poder deve se masculinizar,
deixando de menstruar.
No quinto capítulo, Jefferson Baldez discute a biografia e a
performance da Pomba Gira Cigana Lindeuá, mulher que em vida
morreu assassinada por um amante, mas que no seu itinerário
pós-morte se transformou em uma entidade cultuada na Umbanda,
que aconselha e traz dinheiro para o terreiro e seus clientes. O
autor discute os estigmas em torno dessas entidades nas religiões
de matriz africana e suas dramatizações no caso estudado.
No sexto capítulo, a autora Mayra Cavalcante apresenta a
trajetória de vida da pajé Zeneida Lima, natural de Soure no Marajó.
Zeneida possui um livro publicado, intitulado O Mundo Místico
dos Caruanas, que serviu de enredo para a Escola de Samba
Beija-Flor, no Rio de Janeiro, em 1999, e é presidente da ONG
Caruanas do Marajó, responsável pela gestão de uma escola
em Soure. Apesar do grande reconhecimento nacional e interna-
cional por sua relação com a causa da ecologia, Zeneida é estig-
matizada em Soure. No texto, a autora discorre sobre a pajelança
de Zeneida, sua inserção no espaço público, e questões relativas
à presença da mulher no xamanismo e na pajelança.
No sétimo capítulo, Manoel Roberto Chagas discute tam-
bém a relação entre religião e ecologia sob uma perspectiva fe-
minina, a partir das práticas da Sacerdotisa Gayakú Jokolosi, líder
de um terreiro de Candomblé Jeje na região metropolitana de Belém.
O artigo analisa como a cosmovisão do Candomblé relaciona divin-
dades e natureza, estabelecendo um circuito de dádivas entre seres
humanos e deuses. Os deuses africanos são imanentes, são o pró-
prio meio natural, e os objetos da natureza são o canal por meio do

11
Religião, Gênero e Poder

qual se estabelece a conexão com o sagrado. O texto discute a rela-


ção desses princípios com o discurso ecológico, problematizando es-
pecialmente a questão da imolação de animais.
No oitavo capítulo, Luis Augusto Barbosa Teixeira, faz uma
discussão a respeito do surgimento do Candomblé Angola em Belém
do Pará. Mostra como nos anos de 1970 e 80, os sacerdotes que
trouxeram o Candomblé para Belém não estavam preocupados em
diferenciar as matrizes de culto. É com a militância política e o enga-
jamento na promoção de políticas públicas, a partir da década de
1990, que tem início a construção de uma identidade do Candomblé
Angola. E essa construção está ligada a trajetória e engajamento
político de três sacerdotisas, que são analisadas no artigo.
No nono capítulo, Tony Vilhena apresenta uma análise dos dis-
cursos sobre a homossexualidade na Igreja Metodista, a partir de
documentos publicados por lideranças dessa vertente religiosa. O
autor problematiza como os discursos produzidos a respeito da ques-
tão são informados pelo imaginário da homofobia cordial, conceito
discutido por Marcelo Natividade, que significa a ideia de que é pos-
sível aceitar o homossexual desde que ele abra mão da sua identida-
de, modificando-a para ancorá-la em uma heterossexualidade nor-
mativa. Vilhena problematiza os documentos produzidos por lideranças
da Igreja Metodista que buscam encontrar na Bíblia elementos para
a condenação do comportamento homoafetivo. O autor se debruça
sobre interpretações alternativas do texto bíblico, apontando o viés
político por trás das posições defendidas pelos pastores.
Esperamos que com os textos dessa coletânea seja possível
imprimir novos olhares sobre a relação entre gênero e religião. A
coletânea privilegiou a diversidade metodológica e interdisciplinari-
dade, congregando estudos de caso, desenvolvidos por meio de pes-
quisa de campo etnográfica, textos historiográficos, produzidos a partir
de pesquisa em fontes documentais, análises de discurso e crítica
literária. A diversidade de métodos e abordagens tem sido uma mar-
ca dos estudos de gênero e também é característica fundante das
Ciências da Religião. O casamento harmônico entre esses dois cam-
pos de estudo é a marca desta obra.

12
Capítulo 1
Negras Guerreiras do Ciclo do Marabaixo

Alysson Brabo Antero

Este trabalho abordará uma das principais manifestações cul-


turais e religiosas do Estado do Amapá: o Ciclo do Marabaixo. Reco-
nhecido como uma manifestação plural, ligada à herança africana, é
possível fazer uma multiplicidade de leituras sobre esse fenômeno.
Pretendo trazer à tona nesse artigo o que a história oficial por um
longo período deu pouca ou nenhuma importância: a questão do gê-
nero nessa manifestação. Em toda a bibliografia existente sobre o
Marabaixo, desde Nunes Pereira (1951), a importância da mulher na
tradição foi eclipsada. Acredito que isso ocorreu não de forma inten-
cional, proposital, mas porque o conhecimento científico reflete o
ponto de vista de quem escreve e o que se quer alcançar (CHAN-
TER, 2001), além do momento histórico, social e político de sua pro-
dução (SAFFIOT, 2004).
Parto do pressuposto que a mulher tem papel relevante na
manutenção do Marabaixo, especificamente no bairro de Santa
Rita (antigo bairro da Favela). Além disso, pretendo analisar tam-
bém o discurso produzido por representantes da Igreja Católica
contrários a essa manifestação, analisando os vários argumentos
dos padres, dentre eles o que atinge a figura feminina através de
um sentimento misógino.
Esclareço de antemão que não pretendo defender que sem a
mulher o Marabaixo desapareceria, antes, quero resgatar e valorizar
o papel da mulher nessa manifestação, a partir de uma figura femini-
na significativa na tradição: Dona Gertrudes Saturnino de Loureiro.

A presença negra nas terras dos Tucujus


Localizado geograficamente na região norte do Brasil, o
atual Estado do Amapá ao longo de sua história recebeu diversos

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Religião, Gênero e Poder

nomes: Terras dos Tujucus 1, por conta da grande presença de


índios dessa etnia; Nueva Andaluzia, denominação espanhola ao
se referir a Amazônia incluindo o Amapá; Guiana Brasileira, para
se contrapor a Guiana Francesa; Terra do Contestado, em virtude
da disputa franco-lusitana; Capitania do Cabo Norte, por parte
de Portugal, Território Federal do Amapá, quando desmembrou-
se do Estado do Pará em meado do século XX; e, Estado do
Amapá, pela constituição de 1988.
Segundo Fernando dos Santos (1994) as terras que hoje com-
põem o Amapá foram extremamente disputadas por várias nações
europeias. Os africanos presentes em solo amapaense foram trazi-
dos inicialmente por ingleses, franceses e holandeses. Pereira (2008)
citando Vicente Salles, afirma que a presença negra nas terras dos
Tucujus data do século XVII, introduzidos por holandeses e ingleses.
Já sob a liderança de Portugal a inserção do negro ocorreu a partir
do século XVIII.
Fernando Canto (1998) expõe que até o ano de 1738 havia
nesse território apenas um destacamento militar português. Em 1751
iniciou-se um processo de colonização, coordenado pelo então go-
vernador do Grão-Pará: Francisco Xavier de Mendonça Furtado, a
mando do governo de Portugal que determinou a criação de vilas e
povoamentos em suas colônias. Em 1758 foi fundada a Vila de São
José de Macapá.
Ante o litígio com algumas nações europeias pela posse das
terras do “novo mundo”, como as que ficavam na foz do rio Amazo-
nas, Verônica Luna (2011) diz que o Governo Português estabeleceu
uma estratégia de expansão e colonização de suas posses que visava
dentre outros objetivos conter o avanço de outras nações sobre o
território e “manter o controle dos de dentro a partir das decisões dos
que estão fora” (p. 34), esse raciocínio invisibilizou a presença de
nativos e negros como indivíduos que construíram esse lugar.
Conforme o território dos Tucujus ia sendo povoado pelos eu-
ropeus, sobretudo pelos portugueses, levas de negros eram trazidos
de províncias brasileiras e de colônias portuguesas estabelecidas na
África para construir esse território. Entretanto, segundo Luna (2011),
dois fatores intensificaram a vinda de africanos para as Terras do

14
Negras Guerreiras do Ciclo do Marabaixo

Cabo Norte: a rejeição dos indígenas em aceitar a condição de sub-


missão que o projeto de povoamento português previa e a constru-
ção da Fortaleza de Macapá (maior fortificação portuguesa na Ama-
zônia entre os anos de 1764 a 1782), com sua demanda intensa de
mão de obra. Data desse período, segundo Santos (1994), a forma-
ção de inúmeros quilombos no vasto território Amapaense, o que
demonstra que os negros não acatavam a servidão e os maus tratos
impostos pelos colonos portugueses.
Em meio a esse processo, o contato de negros de diferentes
etnias e nações africanas foi inevitável. Segundo Luna (2011) era
comum também o trânsito e a troca de informações entre negros
fugitivos provenientes de outras colônias europeias estabelecidas na
América do Sul; Guiana Francesa e Holandesa, principalmente.
Em terras estranhas europeus e africanos entram em contato
com as populações autóctones e, como em toda colônia de Portugal
a religião católica foi imposta como oficial, restando a índios e negros
se converterem ao cristianismo. Apesar disso, manifestações religio-
sas com traços e elementos indígenas e africanos conseguiram so-
brevir e na atualidade são vistas como formas de resistência da an-
cestralidade de índios e negros. O Sahiré, o Batuque e o Marabaixo
são demonstrações dessa sobrevivência no Estado do Amapá.

Significado do Termo Marabaixo


Quanto ao significado do termo Marabaixo não há unanimida-
de, expomos três explicações mais correntes sobre a etimologia des-
sa palavra e o significado nativo, atribuído por quem vive essa tradi-
ção, retirado de depoimentos contidos no documentário Marabaixo:
ciclo de amor, fé e esperança.
Uma das explicações acadêmicas diz que o termo Marabaixo
tem origem na palavra árabe marabit que significa sacerdote dos
malês2. Argumenta-se que das 160 famílias que se estabeleceram
em Nova Mazagão (o termo faz referência a Mazagão na África,
colônia portuguesa conquistada pelos Mouros no século XVIII), vie-
ram negros provenientes de nações circunvizinhas a Mazagão (Áfri-
ca) especificamente do Império Sudanês que desde o século XVI já
vinha sofrendo as influências do Islamismo (CANTO, 1998).

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Religião, Gênero e Poder

Outra argumentação faz referência aos porões dos navios


que atravessavam o Atlântico cheios de negros, “mar a baixo”
(PEREIRA, 1951). Por fim, há quem defenda que o termo alude
aos negros que desciam os rios da Amazônia em canoas a cantar
(R. NEGRÃO, 1990).
Apesar dessas definições buscarem a origem do termo Mara-
baixo, os que participam do Ciclo dão o seu próprio significado a ele.
Dizem: “Marabaixo é vida, é luta, é esperança, é alegria”3. “Mara-
baixo é uma tradição, assim como o batuque que vai ficando de filho
para neto”4. “Marabaixo é relembrar nossos ancestrais que viveram
momentos áureos aqui em nossa Macapá e contribuíram para o en-
grandecimento da cultura do Estado do Amapá”5.
Percebe-se pelos relatos que o significado atribuído à palavra
Marabaixo não é distante, antes, é vívido, faz relembrar, traz espe-
rança e é descrito como tradição herdada de antepassados que pos-
suem sua raiz na África.

Descrição Sucinta do Ciclo do Marabaixo


O Marabaixo consiste em um conjunto de práticas ritualís-
ticas (lúdicas e religiosas), realizado em homenagem a santos da
tradição católico-romana, praticado no município de Macapá e
Mazagão, além de várias comunidades rurais do Estado, como
Curiaú, Maruanum, Cunani, Lagoa dos Índios, Torrão do Matapi,
dentre outras. Basicamente o santo homenageado e o período de
realização do evento são as diferenças dos Marabaixos realiza-
dos no perímetro urbano e rural. Em comum, se mantém a dança,
o mastro, os tambores e as missas.
No município de Macapá inseriu-se o termo Ciclo devido o
evento ser realizado anualmente em paralelo ao calendário pascal da
igreja católica e por acontecer em várias etapas ao longo de aproxi-
madamente dois meses. Atualmente, o Ciclo do Marabaixo é realiza-
do em cinco pontos diferentes da Capital e mais na comunidade rural
de Campina Grande6, cada um coordenado por um grupo específico:
bairro do Laguinho – Grupo Raimundo Ladislau; bairro Jesus de
Nazaré – Grupo do Pavão; bairro da Santa Rita – Grupos Berço do
Marabaixo e Raízes da Favela e bairro central grupo Azebic.

16
Negras Guerreiras do Ciclo do Marabaixo

Eis os momentos principais do festejo realizado no bairro do


Laguinho no município de Macapá pelo Grupo Raimundo Ladislau
em homenagem a Santíssima Trindade e ao Divino Espírito Santo no
ano de 2011:
Domingo de Páscoa (marabaixo da Ressurreição): após irem
à missa, os participantes, pela parte da tarde, se reúnem na associa-
ção e tendo os tocadores de caixa e as cantadeiras ao centro, em
volta forma-se um grande círculo onde crianças, adultos e anciões
põem-se a dançar e cantar ladrões7 de marabaixo num clima de muita
alegria por estarem iniciando e participando de mais um Ciclo do
Marabaixo (1º marabaixo).
Sábado do Mastro: cinco semanas após a páscoa, no sábado, pela
manhã, os participantes reunidos na associação vão ao Curiaú8 para
cortação do mastro do Divino Espírito Santo e da Santíssima Trindade.
Domingo do Mastro: pela manhã, os participantes ao som dos
tambores, dançando, cantando, soltando fogos de artifícios e com
bandeiras da Santíssima Trindade e do Divino Espírito Santo vão
onde os mastros estão cortados e os carregam para a associação (2º
marabaixo até as 0:00 horas).
Quarta da Murta9: na primeira quarta-feira após o domingo do
mastro, os participantes tendo à frente a bandeira vermelha do Divi-
no Espírito Santo, percorrem as principais ruas do bairro, entre o
local da quebra da murta e a associação, e, vão quebrar a murta10
para enfeitar o mastro no dia seguinte (3º marabaixo até o amanhe-
cer do dia seguinte).
Quinta da Hora: em frente à associação, pela manhã, depois
de terem cavado um buraco, enfeitam o mastro do Divino com os
galhos de murta e uma bandeira em sua extremidade e o erguem.
1º Baile dos Sócios do Divino Espírito Santo: ainda na quinta
feira a partir das 21 horas até 4 horas do dia seguinte é realizada uma
festa dançante na associação.
Novenas do Divino Espírito Santo: depois do 1º baile, iniciam-
se as novenas em homenagem ao Divino Espírito Santo e à Santíssi-
ma Trindade na associação.
2º Baile dos Sócios do Divino Espírito Santo: passados alguns
dias a partir das 21 horas até 4 horas do dia seguinte é realizado
outra festa dançante.
17
Religião, Gênero e Poder

Domingo do Divino Espírito Santo: os participantes vão à mis-


sa na igreja de São Benedito; após a missa, um café da manhã é
oferecido à comunidade na associação.
Murta da Santíssima Trindade: os participantes tendo à frente
dessa vez a bandeira azul da Santíssima Trindade percorrem as prin-
cipais ruas do bairro, entre o local da quebra da murta e a associação
e vão quebrar a murta para enfeitar o mastro no dia seguinte (4º
marabaixo até o amanhecer do dia seguinte).
Levantamento do mastro à Santíssima Trindade: pela manhã
com o mastro enfeitado com as murtas e com a bandeira do Santo ao
topo erguem no lado do mastro do Divino.
1º Baile dos Sócios à Santíssima Trindade: no mesmo dia do
levantamento do mastro à Santíssima, realiza-se a primeira festa
dançante ao Santo a partir das 21 horas até 4 horas do dia seguinte.
2º Baile dos Sócios à Santíssima Trindade: passados 7 dias da
primeira festa à Santíssima realiza-se a partir das 21 horas até 4
horas do dia seguinte o segundo baile ao Santo.
Domingo da Santíssima Trindade: há realização de uma missa
pela manhã na igreja de São Benedito seguida de café da manhã na
associação.
Corpus Christi: realiza-se o 5º marabaixo.
Domingo do Senhor: este é o ultimo dia do Ciclo do Marabai-
xo11. Os participantes reunidos na associação, dançam marabaixo
até 18h00, quando param para derrubar os mastros da Trindade e do
Divino, escolhem o festeiro do próximo ano e, em seguida, recome-
çam a tocar os tambores, dançar e cantar ladrões de marabaixo até
tarde da noite em meio a muita alegria por estarem perpetuando uma
tradição deixada pelos antepassados.

“Tia Gertrudes”: uma guerreira do Ciclo do Marabaixo


Em 1943, através das Cartas Magnas o Amapá é desmembra-
do do Estado do Pará e é constituído Território Federal. No mesmo
ano Janary Gentil Nunes é feito pelo então presidente da República,
Getúlio Vargas, o primeiro governador do Território Federal do Ama-
pá. Com o objetivo de urbanizar a pequena e isolada cidade de Ma-
capá, inicia-se um processo de desocupação das populações que ali
habitavam, na sua maioria afro-brasileiros, para áreas periféricas da
18
Negras Guerreiras do Ciclo do Marabaixo

cidade. Contudo, argumenta Pereira (1951), sem a intermediação do


mestre e líder Julião Ramos, a desocupação provavelmente não ocor-
reria de maneira pacífica.
As famílias foram então remanejadas na sua maioria para as
terras do Laguinho (atualmente, bairro do Laguinho), porém, algu-
mas preferiram seguir para as terras que se resolveu chamar Favela,
por conta das montanhas que existiam nessa área (hoje essa área
tem o nome de Santa Rita), dentre essas famílias estava Dona Ger-
trudes Sartunino.
A partir dos depoimentos12 de uma das filhas de Tia Gertru-
des, a senhora Maria Libório (Tia Zezé), é possível fazer um resgate
e uma análise dessa que se tornou uma das responsáveis pela expan-
são e manutenção do Marabaixo em Macapá.
Tudo leva a crer que antes da “expulsão” das famílias afro-
brasileiras do centro de Macapá, o Marabaixo acontecia apenas
na parte central da cidade. Tia Zezé relata que, mesmo após a
expulsão, sua mãe não deixou de participar do Ciclo, e que mes-
tre Julião Ramos continuou desenvolvendo-o nos lugares para onde
foram remanejados, bem como nos Marabaixos que eram realiza-
dos em outras localidades fora do perímetro urbano de Macapá.
Tia Zezé conta com saudosismo, que certa vez, sob a liderança
de sua mãe, ela, suas irmãs, amigas e amigos foram participar de
um Marabaixo em uma certa localidade, que para se chegar lá,
precisavam ir de canoa e remando, porém, no meio do caminho
choveu tanto, que quando chegaram à localidade estavam com
suas roupas todas molhadas, ainda assim, mesmo com este e ou-
tros imprevistos que poderiam acontecer, sua mãe não deixava de
participar, até porque não faltava receptividade e solidariedade
dos moradores locais para com os que de longe iam comungar e
participar do festejo. No dia em que chegaram molhados suas
roupas foram aquecidas próximo aos fogões à lenha na cozinhas
dos moradores.
Narrando sobre a história de sua mãe, a quem era muito ape-
gada, Tia Zezé relembra da garra e coragem de sua genitora, Dona
Gertrudres. Mesmo sendo abandonada pelo marido, nunca abriu mão
da dignidade para sobrevier. Sendo analfabeta, o máximo que conse-

19
Religião, Gênero e Poder

guiu na então recente máquina administrativa do Território do Ama-


pá, foi trabalhar como cozinheira e lavadeira do então governador.
Como a renda não era suficiente e para tentar aumentar o ganho, tia
Zezé narra, que sua mãe saía pela manhã para comprar açaí, trazia
os paneiros na sua cabeça e batia com as próprias mãos e Tia Zezé
saía para vender o suco da fruta. À noite, sua mãe ia quebrar pedra
para construção dos bancos da praça central. Em certas ocasiões do
ano a frente da sua casa era alugada para realização de festas.
Nos períodos que antecediam os festejos do Marabaixo, tia
Zezé recorda que sua mãe confeccionava sua própria caixa de
Marabaixo, de maneira que quando sua mãe ia participar do evento
ela levava sua própria caixa e paletas. “A mamãe fazia questão
de me ensinar a tocar caixa e foi com ela que eu aprendi a tocar”,
conta orgulhosa.
Este depoimento é o primeiro registro de uma mulher que par-
ticipava do Marabaixo não apenas como dançadeira, mas como to-
cadora de caixa. E de fato, dona Gertrudes é reconhecida atualmen-
te como a primeira mulher a tocar caixa de marabaixo. Em quase
todas as entrevistas feitas com os atores sociais do Marabaixo seu
nome é mencionado, todos sabem de sua existência e a reportam
com respeito e admiração: “A primeira mulher a tocar tambor no
Ciclo foi a Tia Gertrudes. Antes dela, ninguém fazia isso. Tia Gertru-
des tocava e cantava. Ela ensinou sua filha, Maria José (Tia Zezé),
assim, quando a Tia Gertrudes morreu, sua filha continuou”13
Por outro lado, na figura de Dona Gertrudes, que se faz co-
nhecida pela memória de sua filha e de outros personagens do feste-
jo, há algo mais, que torna essa mulher ícone na preservação do
Marabaixo em Macapá.
Continuando seu relato, Tia Zezé diz que um dia sua irmã en-
gravidou, contudo, ficou acometida de uma complicação muito grave
que colocava em perigo a si e ao seu bebê, foi quando sua mãe, na
ausência de recursos médicos e hospitais, fez uma promessa a San-
tíssima Trindade dos Inocentes, que se sua filha e neto sobrevives-
sem daquele agravo, quando a criança completasse 1 ano de idade
ela iria pedir a Santa do Sr. José Severo que morava na localidade da
Lagoa14, para homenageá-la.

20
Negras Guerreiras do Ciclo do Marabaixo

Quando seu neto completou 1 ano de vida, Dona Gertrudes foi


até ao Sr. Severo e solicitou a Santa. Como ele não realizava mais a
festa por falta de condições, de bom grado concedeu a Santa e acres-
centou a dona Gertrudes que caso ela quisesse continuar com a ho-
menagem ela poderia permanecer com a Santa, do contrário, pode-
ria devolver, e, caso já tivesse morrido, e ela não desejasse continuar
realizando a festa era para Dona Gertrudes devolver a Santa para
alguém de sua família, mas se os filhos de Dona Gertrudes desejas-
sem dar prosseguimento com a promessa, a Santa poderia permane-
cer sob sua posse. “É assim que se inicia o Marabaixo na Favela”,
conclui Tia Zezé.
É a partir do milagre/promessa que se inicia no bairro de Santa
Rita o Ciclo do Marabaixo em louvor a Santíssima Trindade dos Ino-
centes em agradecimento por uma graça alcançada. Com esse ato
de devoção e fé “Tia Gertrudes” tornou-se uma das responsáveis
por manter uma tradição que segundo Canto (1998, p 17): “chegou à
beira da agonia”. Atualmente o Associação Berço do Marabaixo é
que vem dando continuidade a promessa.
Pelos relatos, percebe-se que dona Gertrudes antes mesmo
de se tornar uma festeira, ou seja, responsável pelo Ciclo no seu
bairro, já participara de outros Marabaixos, o que transparece que
gostava de participar e não apenas como dançadeira, mas como can-
tadora e tocadora de caixa de marabaixo.
Tia Zezé lembra, entretanto, que não era fácil manter a pro-
messa, havia muitos gastos e demandava muita energia. Testemu-
nhou o esforço de sua mãe em economizar dinheiro o ano todo, para
poder arcar com os gastos do período do Ciclo. Lembra que certos
serviços que sua mãe fazia, ela nem recebia o pagamento, deixava
na mão da pessoa para ir acumulando e guardando, pois este era
para promover o Ciclo. A festa era realizada com o próprio “punho”.
Não havia ajuda do Governo e nem distribuição de roupas, cada par-
ticipante se arranjava de acordo com suas condições.
Sobre o ânimo dos promotores do Ciclo do Marabaixo, Pereira
(1951) já escrevia:

21
Religião, Gênero e Poder

Trabalhando em lavoura e criação de animais domésticos,


bem como empregando-se em serviços particulares e da
administração do Território, os promotores do Marabaixo,
muitas vezes, tiram de suas próprias economias os recur-
sos necessários para aquele sucesso, mas, acima desse
selo, o que os anima é a força da tradição, tão acorde com
suas origens étnico-históricas, de descendentes de africa-
nos, e tão ao feitio de sua condição social, de operários,
lavadores e domésticos (p. 100).
Foi assim que, a partir da segunda metade do século XX, por
meio de um pedido atendido que a promessa de homenagear a San-
tíssima Trindade dos Inocentes por meio do Ciclo do Marabaixo, veio
sendo ano após ano realizado com muito esforço e fé. O Marabaixo
voltou a ser realizado então no perímetro urbano de Macapá em dois
pontos, Laguinho tendo a frente Julião Ramos, e Santa Rita (antiga
Favela), tendo a frente Dona Gertrudes.
Após o falecimento de sua genitora, tia Zezé conta que se
afastou do Ciclo por um período de três anos, pois era muito apegada
a sua mãe. Relembra que com apenas nove anos de idade já come-
çou a trabalhar para ajudar sua mãe, ia junto com ela comprar o açaí
e depois saía para vender; foi babá, quebrou pedra. Com um olhar
distante e profundo recupera fatos da infância e adolescência. Co-
menta, ainda que, durante os festejos, o soar das caixas, os ladrões, a
faziam recordar por demais de sua mãe; a saudade era intensa e as
lágrimas vinham com muita facilidade. Sua irmã, Maria Natalina,
assume então a festa, e hoje sua sobrinha Marilda Costa está na
coordenação do Ciclo. Constata-se com isso que no Marabaixo da
Favela, iniciado por Dona Gertrudes, e que atualmente está na ter-
ceira geração, ocorre uma espécie de liderança hereditária na manu-
tenção da tradição, tendo sempre à frente a figura da mulher.

A mulher, a igreja e o Marabaixo


Os registros históricos e atuais demonstram que a igreja
católica vem mantendo uma dupla postura diante do Ciclo do
Marabaixo: de tolerância e de conflito. Partindo de alguns docu-
mentos analisaremos as justificativas da igreja para se opor a essa

22
Negras Guerreiras do Ciclo do Marabaixo

manifestação, buscando identificar os discursos de cunho misó-


gino por parte da igreja.
No que é tido como o primeiro documento histórico a nar-
rar sobre Marabaixo, um artigo do Jornal Pinsonia, de 1899, vê-
se que a igreja católica tolerava a manifestação do Marabaixo.
No referido artigo, Pancrácio Junior, destaca a não participação
dos sacerdotes católicos no Ciclo.
Entretanto foi sensível, para maior esplendor, a ausência do
sacerdote nas solenidades da igreja; falta esta que está des-
culpado o Sr. Juiz, que providenciou no sentido contrário,
contratando para tal fim, com o Sr. Conego Teixeira, que vinha
munido de uma portaria do governo bispado. Não sabemos o
poderoso motivo que obstou, em caminho, bem próximo, a
que o Sr. Conego Teixeira, tivesse faltado a tão sério compro-
misso (CANTO, 1998, p. 22).
As justificativas mais comuns para a não participação das li-
deranças religiosas católicas no Marabaixo era que nos festejos ha-
via muita bebedeira, as danças eram sensuais e conduziam a orgias.
Em outro momento já no início do século XX, a postura dos padres
deixou de ser de tolerância e passaram a combater publicamente o
festejo do Marabaixo, conforme descreve Zacarias Leite: “Pe. Júlio
combatia as festas do Marabaixo. Elas não passavam de batuque e
bebedeiras. Pe. Júlio não aceitava esse costume. Combatia-o publi-
camente” (CANTO, 1998, p 26).
Zacarias Leite descreve que o Pe. Júlio chegava a impedir a
entrada na igreja dos que participam do Marabaixo e certa vez teve
a ousadia de quebrar a imagem do Divino e mandar entregar os
cacos aos organizadores. Tal fato gerou tanta confusão, que a popu-
lação quis invadir a igreja, sendo o tumulto apaziguado pelo intenden-
te cel. Teodoro Manuel Mendes (prefeito).
Em uma carta atribuída a autoria ao Pe Júlio Maria Lombard,
ele comenta:
Até que afinal desaparece o infernal foguedo; será uma felici-
dade salutar aos órgãos acústicos, se tal tormento não soar
mais, senão nas profundezas da terra, nos subterrâneos, onde

23
Religião, Gênero e Poder

moram monstros, capazes de suportar tamanho ribombo de


extravagante música para maneio tão imoral e nojento (...)
Que o mar-abaixo é indecente, é o foco das misérias, o centro
da libertinagem, a causa segura da prostituição, assevera-
mos. Que os pais de família, não devem consentir as suas
filhas e esposas frequentarem tão inconveniente e assusta-
dor espetáculo dessa dança oriunda dos cafres, aconselha-
mos, para darmos belo, edificante e moralizador exemplo de
civilização (CANTO apud LIMA, 2011, p. 76).
Percebe-se no discurso do Pe. Júlio, que segundo Canto (1998)
chegou ao Brasil em 1913 e foi vigário da Paróquia de São José de
Macapá entre os anos de 1916 a 1923, uma visão demoníaca do
Marabaixo, em que o mesmo não passava de um antro de perverti-
dos, denegrindo a imagem de homens e mulheres.
O trecho “Que os pais não deixem suas filhas e esposas parti-
ciparem da festa” reflete uma sociedade com formação androcên-
trica herdada do ultramar e ao mesmo tempo a mentalidade da igreja
que desde a colonização ensinava sentimentos misóginos e de nor-
matização dos papéis de gênero:
A igreja também aproveitava o papel do homem no interior do
matrimônio para aguçar seu controle sobre as mulheres, e
sugeriam que ‘deve o marido como cabeça que é da mulher,
cuidar para que esta cumpra os encargos da profissão cristã;
que guarde a promessa feita a Deus no batismo, de renunciar
às pompas do mundo’ (DEL PRIORI, 2009, p. 100).
O discurso do Pe. Júlio e a postura da Igreja coincide com o
processo de romanização da igreja brasileira e amazônica.
O movimento de romanização era, também, um movimento
de europeização do catolicismo brasileiro e, por isso, rejei-
tava-se o catolicismo popular tradicional; muitos padres
estrangeiros (europeus) foram colocados à frente de cen-
tros populares de devoção tradicional, para ‘discipliná-
los’ (MAUÉS, 1999, p. 141).
O combate da igreja não foi algo pontual e momentâneo, an-
tes, mostra-se articulado e sistemático, com práticas que se repetem

24
Negras Guerreiras do Ciclo do Marabaixo

em tempos e tempos. Pereira (1951) a época que visitou Macapá em


1949, expressa:
A gente do Marabaixo, já não entra, mesmo assim, livremente
na igreja matriz ali realizando uma série de cerimônias e ele-
vando cantos e cantigas tradicionais. As suas danças e seus
desafios, as suas lutas são olhados com menosprezo pelos
padres (p. 100).
Ao que parece a transferência das famílias afrodescendentes
para a periferia de Macapá, em meados do século XX, solucionou a
questão dos padres terem que fechar a porta da igreja matriz para
impedir a realização dos festejos do Marabaixo.
Por outro lado, Lima (2011), em seu recente trabalho sobre o
Marabaixo, diz que o conflito apenas foi transferido para os bairros
onde a tradição ainda acontece. Em uma das missas do Ciclo do
Marabaixo do ano de 2008 no bairro do Laguinho e uma visita feita à
casa de tia Biló, o padre Geovane, segundo a autora, fez inúmeros
comentários pejorativos sobre o festejo:
[...] o Marabaixo não vivia na plenitude de Deus, que era
festa do diabo, que as pessoas se aproveitavam das crian-
ças e dos santos, levantavam o mastro só para tirar dinhei-
ro do governo... ele veio na casa de minha tia que morava
ao lado da casa de minha vó, aí minha vó falou com ele, já
viu idoso quando vê um padre, Deus o livre né? E aí falou
com ele... foi receptiva com ele... E então ele falou assim:
‘Olha eu quero lhe pedir uma coisa, não quero que a se-
nhora realize essa festa do Marabaixo, essa festa não é de
Deus’ E minha vó disse: ‘Não, padre, o senhor está enga-
nado... essa festa é em louvor ao Divino e Santíssima Trin-
dade (RAMOS apud LIMA, 2011, p 81).
Como se pode observar, a igreja católica ora tolera, ora se
opõe publicamente contra a manifestação do Marabaixo, e quan-
do tenta se justificar acaba por produzir discursos ligados à mo-
ral, à família, à ordem e também de normatização da sexualidade
e dos papéis de gênero.

25
Religião, Gênero e Poder

Algumas considerações
Mergulhar nas fontes bibliográficas e, ao mesmo tempo, co-
nhecer histórias de vida, por meio do resgate da memória individual e
coletiva por quem vive o Ciclo do Marabaixo, proporcionou-me uma
visão holística do fenômeno que pretendo investigar mais a fundo
como parte da minha dissertação. Simultaneamente, fez-me reco-
nhecer que tal manifestação é por demais ampla e complexa, e que o
trabalho que pretendo desenvolver sobre a construção da identidade
e o uso do Marabaixo como símbolo da identidade negra, representa-
rá apenas um olhar sobre o fenômeno. Acredito, todavia, na relevân-
cia de minha pesquisa por está trazendo algo novo que ainda não foi
abordado na literatura existente.
Diante dessa multiplicidade de olhares que o fenômeno do
Marabaixo permite-nos fazer, tentei nesse artigo resgatar o papel da
mulher na manutenção dessa tradição no Estado do Amapá e, ao
mesmo tempo, mostrar os sentimentos misóginos da igreja presentes
nos discursos contra essa manifestação.
Pelo que concluo que em meio ao desenvolvimento histórico
dessa tradição afroamapaense, ela vem se recriando e se ressignifi-
cando de acordo com os momentos históricos. E nessas conjunturas,
na maioria das vezes adversas, o Marabaixo vem conseguindo man-
ter-se vivo, graças às iniciativas de mulheres e homens, desconheci-
dos para a maioria da população, mas que foram de fundamental
importância na manutenção dessa tradição. Dona Gertrudes Satur-
nino da Favela (Tia Gertrudes), pelo seu histórico de vida e fé, com-
põe o rol desse grupo de baluarte da tradição afrodescendente no
Amapá. A ela e a outras guerreiras e guerreiros afroamapaenses
termino este artigo oferecendo uma parte do poema “Negras Guer-
reiras” (autor Poka):

A diáspora africana ao Amapá me levou


Ao som de Marabaixo, batuque o rufar do tambor
Reflete o lamento, do banzo a dor
Ou a celebração da liberdade conquista com muito ardor
Indignação pela condição de escravo
O negro boçal se revoltou

26
Negras Guerreiras do Ciclo do Marabaixo

Cansou de ser tratado como lixo


Considerado bicho
Visto com as mãos e pés do Senhor
Partiu em busca de um novo horizonte
Via rio Pedreira ou rio Mutuacá
Pedindo proteção para Oxalá
Prá sempre os guiar
Rumo à redenção dos afro-brasileiros
Em que a liberdade fosse um princípio verdadeiro
Dos negros que partiram em busca da felicidade guerreira
Cunani, Curiaú, Mazagão, salve, salve
Os Guerreiros de nossa tradição
Biló Nunes, Zeca Costa e Natalina
Tia Guíta, Gertrudes e vó Venina...

Referências bibliográficas

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Cultural do Amapá – FUNDECAP, 1998.
CHANTER, Tina. Gênero. Conceito chave em filosofia. Porto
Alegre: Artmed, 2001.
DEL PRIORE, Mary. Ao Sul do Corpo. Condição Feminina,
maternidades e mentalidade no Brasil Colônia. São Paulo:
UNESP, 2009. p. 93-134.
DVD Marabaixo. Ciclo de amor, fé e esperança. Prefeitura Mu-
nicipal de Macapá, 2008
LIMA, Wanda da Silva Ferreira, Ciclo do Marabaixo. Permanên-
cia e inovações de uma festa cultural. Dissertação de Mestrado,
Mackenzie, 2011.
LUNA, Verônica Xavier. Escravos em Macapá. Africanos
redesenhando a Vila de São José 1840 – 1856. João Pessoa-PB:
Editora Sal da Terra, 2001.
MAUÉS, Raymundo Heraldo. Uma outra “invenção” da Amazô-
nia. Belém-PA: CEJUP, 1999.
NEGRÃO, R. Marabaixo. Macapá-AP (1990).

27
Religião, Gênero e Poder

PEREIRA, Nunes. Shairé e Marabaixo. Tradições da Amazônia.


Recife: FUNDAJ, Editora Massagana, 1951.
PEREIRA. Decleoma Lobato. O Candomblé no Amapá. História,
memória, imigração e hibridismo cultural. Dissertação de
Mestrado, UFPA, 2008.
SAFFIOTI, Heleieth I. B. Gênero, patriarcado, violência. São
Paulo: Editora Perceu Abramo, 2004.
SANTOS, Fernando Rodrigues dos. História do Amapá. 2 ed.
Macapá-AP: Editora Valcan, 1994.
VIDEIRA, Piedade Lino. Batuques, folias e ladainhas. A cultura
do quilombo do Curia-ú em Macapá e sua educação. Fortaleza:
Edições UFC, 2013.

Notas do Capítulo 1
1
Na atualidade essa etnia não existe mais, se extinguiu em 1758. PORTAL DO
GOVERNO DO ESTADO DO AMAPÁ. Disponível em <http://www.ap.gov.br/
amapa/site/paginas/historia/indios.jsp>. Acessado em 14 nov 2013.
2
Malê, forma de culto que surge na África Ocidental a partir do século XVI do
entrechoque do islamismo com as religiões nativas (CANTO, 1998, p 19). É
considerado também um grupo étnico da África, influenciado pelo islã.
3
Maria Libório (Tia Zezé) em entrevista concedida ao Documentário Marabaixo:
ciclo de amor, fé e esperança.
4
Raimunda Rodrigues em entrevista concedida ao Documentário Marabaixo:
ciclo de amor, fé e esperança.
5
José Osano em entrevista concedida ao Documentário Marabaixo: ciclo de
amor, fé e esperança.
6
Comunidade remanescente de quilombo, distante 21 km de Macapá.
7
O termo Ladrão(ões) pode ser interpretado como versos “roubados” das his-
tórias e dramas da vida real da comunidade que viram canções.
8
Curiaú é uma comunidade remanescente de quilombo distante de Macapá a 12
km. Considerado terra e território de negros, patrimônio cultural, lugar de me-
mória, festas, fé e trabalho (VIDEIRA, 2013).
9
Desde 2012 um projeto da Secretaria de Estado de Política para o
Afrodescendente – SEAFRO – organiza com todos os grupos de Marabaixo da
Capital a Quarta da Murta na orla de Macapá com o termino na Igreja de São
José, tal como era realizado a décadas atrás.
10
Espécie de planta aromática comum nos campos do Amapá.
11
Nos dias em que ocorrem Marabaixo, é possível ver a presença de crianças,
jovens, adultos e idosos. A presença de mulheres no decorrer do festejo é majo-
ritária. A maioria delas exercem a função de dançadeiras e grande parte vai

28
Negras Guerreiras do Ciclo do Marabaixo

vestida de saia estampada comprida, sandálias baixas e blusa branca com uma
toalha ao ombro. Em alguns momentos é possível ver algumas mulheres puxan-
do os cânticos e tocando as caixas de Marabaixo.
12
Os relatos foram colhidos em entrevista concedida pela Tia Zezé nos dias 19
e 20 de julho de 2013 na sua casa no bairro de Santa Rita.
13
Nayra de Souza. Entrevista concedida em 22 de julho de 2013.
14
Localidade situada próximo de uma área de preservação ambiental, distante 5
km de Macapá. Está em processo de reconhecimento para receber o título de
área quilombola.

29
Religião, Gênero e Poder

30
Capítulo 2
Festa e Devoção: relações de poder e de gênero nas Irman-
dades Religiosas de Belém no século XIX

Maria de Nazaré Fonseca de Senna Pereira


Este trabalho visa analisar as relações de poder e de gênero
existentes no interior das irmandades religiosas de Belém no século
XIX. A questão central é perceber os papéis sociais desempenhados
por homens e mulheres no cotidiano de suas vivências e experiênci-
as religiosas. Para o desenvolvimento do estudo que ora apresenta-
mos, nossa principal fonte de informações é uma narrativa de Arthur
Vianna sobre as festas populares do Pará, especificamente sua des-
crição da festa de São Raimundo, utilizando como metodologia de
pesquisa a análise do discurso. A ênfase dada à irmandade de São
Raimundo se faz devido a mesma apresentar particularidades, que
ressaltaremos no decorrer de nosso estudo, no que diz respeito às
ações e participação ativa das irmãs no interior desta confraria.
Principais representantes do que muitos pesquisadores, de di-
ferentes áreas das ciências sociais, denominaram de catolicismo tra-
dicional ou popular, as irmandades religiosas eram associações lei-
gas cuja finalidade seria a devoção a um santo protetor e a
manutenção de seu culto; dedicavam-se também a obras de carida-
de voltadas tanto para seus membros como para indivíduos carentes
não-associados.
A administração de cada confraria ficava a cargo de uma mesa
diretora, renovada anualmente através de eleição, presidida por juí-
zes, presidentes, provedores ou priores (as denominações variavam
de uma para outra irmandade), e composta por escrivães, tesourei-
ros, procuradores, andadores e mordomos, que exerciam as mais
diversas atividades dentro da irmandade: convocação e direção de
reuniões, arrecadação de fundos, guarda dos livros e bens da associ-
ação, visitas assistenciais aos irmãos necessitados, organização dos
funerais e festas, dentre outras.

31
Religião, Gênero e Poder

Os compromissos ou estatutos regulavam a administração das


irmandades, estabelecendo as condições sociais e raciais exigidas
dos associados, seus direitos e deveres. Dentre os deveres dos ir-
mãos estavam o bom comportamento e a devoção católica, paga-
mento de anuidades e participação nas cerimônias civis e religiosas
da confraria. Em troca, tinham direito à assistência médica e jurídica,
socorro em momentos de crise financeira, ajuda para a compra da
alforria, em caso de escravos, e de modo especial, direito a um en-
terro decente para si e para seus familiares com o acompanhamento
dos irmãos e irmãs de confraria.
Sendo associações de caráter corporativo no interior das quais
se teciam solidariedades baseadas na hierarquia social, as irmanda-
des, como representantes dos diversos grupos sociais, estavam divi-
didas em irmandades de brancos, negros e mestiços. Se, para o con-
texto geral e público da sociedade essas associações leigas se
estabeleciam a partir de critérios étnico-raciais, doméstica ou priva-
damente configuravam-se ao nível de relações de gênero, relações
de poder, ao determinarem, já nos estatutos, as funções que homens
e mulheres exerceriam no interior de tais organizações.
Como muito bem nos coloca Carolina Lemos e Sandra de Souza
(2009: p. 7), citando Joan Scott “o gênero é um elemento constitutivo de
relações sociais baseado nas diferenças percebidas entre os sexos, e o
gênero é uma forma primeira de significar relações de poder”.
Portanto, a análise das irmandades através de uma pers-
pectiva de gênero torna-se bastante válida, tendo em vista que
“tanto a organização da sociedade como a das religiões estão
conectadas às diferenças entre os sexos” (MARJO DE THEIJE;
ELS JACOBS, 2003).
Masculinidade e feminilidade são construídas na esfera reli-
giosa, e ideologias e práticas religiosas dão forma e conteúdo
à masculinidade e feminilidade e aos papéis sociais dos ho-
mens e das mulheres [...] no nível simbólico, o gênero aponta
para um sistema de significados com conotações masculinas
e femininas, que produz, legitima e expressa ou opõe divisões
de gênero (THEIJE; JACOBS, 2003, p. 39).

32
Festa e Devoção: Relações de poder e de Gênero...

Nesse sentido, o papel da mulher liga-se à esfera priva-


da, doméstica, em contraste ao do homem que se acha mais
associado a esfera pública. “Assim surge uma imagem do re-
ligioso como esfera de atuação masculina, que não dá conta
da influência e contribuição femininas à vida religiosa do gru-
po social” (THEIJE; JACOBS, 2003, p. 39).
Em nossa análise sobre as relações de poder e de gênero
nas irmandades religiosas, especificamente na de São Raimundo,
procuramos destacar o papel atuante das mulheres que compu-
nham esta associação mesmo que, pelo olhar misógino de Arthur
Vianna, esta atuação tenha sido apagada ou substituída pela figu-
ra masculina de mestre Leopoldino, presidente da irmandade.
Como afirmam Theije e Jacobs (2003, p. 39) “mesmo que o dis-
curso popular brasileiro considere a religião domínio da mulher, o
discurso sociológico e antropológico geralmente favorece análi-
ses do jogo religioso que enfatizam o papel dominante dos atores
masculinos”.
Este artigo acha-se dividido em três partes. Na primeira, de-
nominada de “Viva São Raymundo!” ou a comemoração de uma
devoção, fazemos a descrição da festa dedicada ao santo protetor
da irmandade, ressaltando o destaque que Arthur Vianna faz da figu-
ra do presidente da confraria, o mestre Leopoldino. Neste momento,
analisamos a atuação de Leopoldino a frente da irmandade, utilizan-
do os conceitos de poder tradicional de Max Webber e poder simbó-
lico de Pierre Bourdieu.
Em seguida, no tópico Irmãs de São Raimundo: entre a ação
e a submissão, passamos a analisar o papel desempenhado pelas
mulheres no interior da confraria, sua atuação e iniciativa frente ao
contexto social em que se achavam inseridas. Na terceira e última
parte, expomos nossas considerações parciais.

“Viva São Raymundo!” ou a comemoração de uma devoção


Conhecido como o santo protetor das parturientes e das par-
teiras, a festa de São Raimundo, em Belém, era comemorada em 31
de Agosto com missas, queima de fogos, baile e romarias.

33
Religião, Gênero e Poder

Tal festividade iniciou-se em 1870, após conversa informal en-


tre um conhecido barbeiro do largo de Santana – o mestre Leopoldi-
no – e sete vendedoras de rua – Juliana, Rosa, Felippa, Joanna da
Ponte e Souza, Maria, Nathalia do Nascimento e Simôa –, que se
encaminhavam para uma festa de São João na Ilha das Onças.
Expontaneamente surgiu a ideia de uma irmandade: se a organi-
sassem? se de volta metessem hombros á empresa? Com enthu-
siasmo todos acceitaram a tarefa e Leopoldino, alli mesmo, sob o
luar prateado, de violão a tiracollo, recebeu a investidura de
organisador da irmandade, cargo no qual ia celebrisar-se e ga-
nhar uma real popularidade (VIANNA, 1905, p. 377).
No retorno da Ilha, ainda na canoa, o contingente feminino
que acompanhava Leopoldino, retoma o assunto da criação da
Irmandade de São Raimundo e ali mesmo realizam-se as primei-
ras inscrições: cada mulher contribuiu com mil reis, “excepto Fe-
lippa que contribuiu com vinte mil reis, por ter sido acclamada
juíza da festa”.
Já em terra firme, o barbeiro Leopoldino recorre ao auxílio de
José do Espírito Santo e Pinho, seu compadre, fogueteiro de profis-
são que, sendo homem instruído (sabia ler e escrever) poderia exer-
cer o cargo de secretário da recém-criada confraria.
As primeiras inscrições renderam um capital de quarenta e
seis mil reis. Desse total, doze mil foram pagos a José Pinho por
“uma grosa de foguetes”; Leopoldino, sendo acolito e ajudante de
mestre André (sineiro da igreja de Santana), conquistou para a asso-
ciação as simpatias do monsenhor Borges de Castilho, então vigário
do templo.
A 30 de Agosto de 1870, fez-se na igreja da “Senhora
Sant’Anna da Campina a véspera e no dia seguinte cantou-se missa
solenne” em honra ao advogado das parturientes.
Realisou-se assim modestamente a primeira festa o que não
impediu de a procurarem um grande numero de mulheres. Tudo
se mostrou auspicioso: a idéa, abraçada com enthusiasmo,
avolumava-se rapidamente. A conquista do povo foi immedi-
ata e intensa (VIANNA, 1905, p. 377).

34
Festa e Devoção: Relações de poder e de Gênero...

Findo o momento de realização da primeira festa, era hora de


melhor organizar a confraria buscando a escrituração dos seus esta-
tutos e legalização da mesma. Leopoldino, contudo, “julgou-a de todo
o ponto inútil”, passando, a partir de então, a centralizar tudo em sua
pessoa apagando a figura do secretário Pinho e de quantos direta ou
indiretamente cooperavam na formação da sociedade.
Ao fim de pouco tempo a novel irmandade ennumerava mil
e tantas irmans, cujos nomes, residências e condições, elle
analphabeto, sem uma lista, sem apontamentos de especie
alguma, trazia no cérebro nitidamente. Recebia joias e men-
salidades, applicava os dinheiros recebidos, acudia com
remedios e medicos as irmans enfermas, mandava enterrar
as que succumbiam, isto tudo sem livros de escripturação,
sem notas e papeladas. Gosava de geral sympathia e de
illimitada confiança (VIANNA, 1905, p. 379).
Analisando a atuação de Leopoldino na direção da confraria,
dentro da perspectiva weberiana de tipos de poder, podemos relaci-
onar esta ao que Weber denominou de poder tradicional, visto que tal
forma de poder pode ocorrer devido a fatores como: afetividade,
respeito e admiração: Leopoldino “gosava de geral sympathia e de
illimitada confiança”. O autor relaciona a “fidelidade tradicional” para
explicar, por exemplo, a dominação patriarcal, onde o respeito e a
admiração em virtude da tradição levam a obediência. Isso leva a
entender que existe uma forma de lei moral entre os indivíduos. As-
sim a dominação está relacionada diretamente aos costumes, ações
cotidianas e valores pessoais. Segundo Heleieth Saffioti (2004) “do
mesmo modo como as relações patriarcais, suas hierarquias, sua
estrutura de poder contaminam toda a sociedade, o direito patriarcal
perpassa não apenas a sociedade civil, mas impregna também o Es-
tado”. Historicamente, as relações de poder embasadas no patriar-
cado, estão presentes na sociedade brasileira desde nossa coloniza-
ção, regulando e, muitas vezes, legitimando relações de hierarquia e
subordinação entre homens e mulheres, portanto, relações de gênero.
No entanto, nem sempre estas relações hierárquicas e de su-
bordinação, são percebidas enquanto tal. Estão de tal modo enraiza-
das em nossa sociedade, que aparentam ter vida própria, fazendo-

35
Religião, Gênero e Poder

nos esquecer que são construtos sociais historicamente elaborados.


Podemos inseri-las dentro daquilo que Pierre Bourdieu chamou de
poder simbólico, posto que este
É um poder de construção da realidade que tende a estabele-
cer uma ordem gnoseológica: o sentido imediato do mundo
(e, em particular, do mundo social) supõe aquilo a que Du-
rkheim chama o conformismo lógico, quer dizer, ‘uma con-
cepção homogênea do tempo, do espaço, do número, da cau-
sa, que torna possível a concordância entre as inteligências’
(BOURDIEU, 2007, p. 9).
Assim, as imagens de gênero dentro dos contextos religio-
sos não existem num vácuo; acham-se enraizadas em crenças
culturais mais amplas e na organização da própria sociedade
(THEIJE e JACOBS, 2003, p. 40), produzindo ao mesmo tempo
diferentes visões de mundo e o reconhecimento e aceitação des-
tes pontos de vista como naturais e próprios do contexto social.
Mas quem era esse homem que, segundo Arthur Vianna, “en-
carnava a própria irmandade, sob todos os pontos de vista e para
todos os efeitos”?
Leopoldino do Espírito Santo Figueira de Andrade era filho
da preta Monica Maria da Assumpção e neto de Joanna Paula,
escrava do cônego Bernardino Henrique Diniz. Nasceu livre do
cativeiro por obra de sua avó, que comprou a alforria materna
desde os sete anos de idade.
Passou a juventude aprendendo o ofício de pedreiro, porém,
um acidente durante uma construção lesionou seus membros e o
levou para a profissão de barbeiro. Mestre Leopoldino, como era
conhecido, entretanto, mostrou-se sujeito de muitas facetas e múlti-
plas atividades: “pedreiro, barbeiro, sineiro, sachristão, endireitador
de membros deslocados, e presidente, secretario, thesoureiro, anda-
dor e orador da sua irmandade, teve sempre tempo para tudo e sou-
be ser um déspota estimado dos seus súbditos”.
Com innata e expontanea habilidade, escanhoava os queixos,
raspava corôas, e, deslizando para um plano mais vasto, re-
duzia luxações, no que se tomou perito habil e recommenda-
do por todos. Na modesta barbearia entravam pois, os fre-

36
Festa e Devoção: Relações de poder e de Gênero...

guezes, os devotos que desejavam missas, ladainhas ou no-


venas, os doentes de membros deslocados, os crentes que
pretendiam repiques ou dobres de sinos, e mais tarde as ir-
mães de São Raymundo (VIANNA, 1905, p. 375).
Sua amizade com mestre André o fez sacristão da igreja de
Santana após a morte deste.
Em 1871, segundo ano da festa, repetiu-se esta ainda modes-
tamente, com a véspera a 30 de Agosto e a missa solene no dia
seguinte, às cinco horas da manhã.
A partir do terceiro ano ampliou-se a festa religiosa com um
tríduo, realizado com toda a pompa, sob os auspícios do monsenhor
José Gregorio Coelho, substituto de Borges de Castilho na vigaria de
Santana e escolhido protetor perpétuo da irmandade por Leopoldino.
Neste mesmo ano o aumento no número de juízas (passaram a seis)
permitiu o acréscimo de “um accessorio aos festejos, de grande real-
ce e procura: o baile”.
Uma característica marcante da festa e que a tornou única
em comparação as outras, diz respeito a queima de fogos. Esta ocor-
ria em três momentos no dia do evento: às cinco horas da manhã, ao
meio dia e às seis horas da tarde no largo de Santana. Até aqui, nada
de excepcional, outras irmandades também comemoravam seus pa-
tronos com um espetáculo pirotécnico, contudo o que chama a aten-
ção para a queima de fogos em honra de São Raimundo e a diferen-
cia das demais é que, o início da queima em Santana é seguido pela
explosão de fogos em diferentes partes da cidade, “costume introdu-
zido voluntariamente pelas irmans”. Assim, “no dia 31 de Agosto, a
cidade inteira era obrigada a despertar ás cinco horas da madrugada,
com o primeiro bombardeio”.
Durante o período da festividade, sempre no mesmo dia (31
de Agosto), mas em horários diferenciados, realizavam-se duas im-
portantes romarias populares: de manhã ocorria a procissão ao asilo
do Tocumduba e ao final da tarde procissão em honra de São Rai-
mundo. A visita aos hansenianos começou em 1873, terceiro ano de
comemoração da festividade, contando com missa cantada na cape-
la do asilo, seguida da distribuição de esmolas e donativos aos doen-
tes. Da procissão do santo, ocorrida sempre ao final da tarde, parti-

37
Religião, Gênero e Poder

cipavam não só as irmãs de São Raimundo, mas irmãos de outras


confrarias que acompanhavam o andor do venerado patrono, solene-
mente carregado pelas irmãs, além do viático sob o palio, banda de
música e concorrida participação popular.
A romaria ao Tocumduba durou até 1897. Devido a problemas
de desordem, bebedeira e roubos efetuados por grupos que acompa-
nhavam a procissão, mestre Leopoldino extinguiu tal romaria. Leia
abaixo como Arthur Vianna descreve a decisão de Leopoldino:
Debalde tentou o mestre Leopoldino exterminar esse mal des-
virtuador; sua autoridade acatada respeitosamente pelas
irmans, não attingia aquelle contingente adventicio e rebel-
de; (...) De anno para anno crescia o desrespeito; uma severa
medida estava claramente indicada e Leopoldino adoptou-
a. Cortou de um golpe despótico aquella desvirtuação, sup-
primindo em 1897, a ida ao Tocumduba. Era elle quem man-
dava, todas as irmans obedeceram sem protestos. O mulherio
foi sempre disciplinado ao seu mando e com rara habilida-
de soube elle dirigil-o, sem luctas, sem malquerenças e sem
barulhos. Sua vontade triumphou mais uma vez como um
dogma do qual dependia a vida da irmandade (VIANNA, 1905,
p. 388, grifos da autora).
É interessante destacar que não somente neste, mas em ou-
tros momentos de sua narrativa, Arthur Vianna faz questão de res-
saltar o poder inquestionável que Leopoldino tinha sobre os membros
femininos da irmandade. Tanta ênfase, não será porque todo esse
poder não era assim tão unânime? Ou mesmo constantemente ques-
tionado? Antes de buscar responder tais proposições, concluamos,
rapidamente, o desfecho da extinção da romaria ao antigo asilo do
Tocumduba.
A procissão ao asilo não se extinguiu de todo: com a extinção
da romaria popular, a irmandade se fez representar por uma comis-
são formada pelo mestre Leopoldino e um grupo de irmãs que “vae
em um carro de praça, a Tocumduba fazer a entrega das esmolas”.
Como acabamos de ressaltar, para Vianna a figura de Leopol-
dino é essencial para o desenvolvimento e continuação da irmanda-
de, para este autor, a morte do velho mestre “marcará inevitavel-
mente o fim da irmandade”.
38
Festa e Devoção: Relações de poder e de Gênero...

Não se é impunemente velho: ao mestre vae faltando aquella


actividade electrica dos outros tempos; sua vontade entibia-
se perante a má vontade de umas e ao enervamento do senso
religioso de outras.Não ha mais aquelle ardor de outrora,
nem sobra na caixa dinheiro para fazer o symbolismo do culto
com apparato. A evolução trabalha; elle resiste ainda. Que-
rem-no ainda com sympathia; tem ainda para elle gritos de
acclamação; acatam-no ainda á frente d’esse regimento de
mulheres, que chegou a contar para mais de mil adeptas dedi-
cadas, agora desfalcado, esboroando-se aos poucos, como
que acompanhando a decrepitude do seu guia (VIANNA,
1905, p. 389, grifos da autora).
Mesmo exaltando e destacando a importância da figura de
mestre Leopoldino, Arthur Vianna nos dá pistas de que sua autorida-
de não era assim tão absoluta. No trecho acima, Vianna nos diz que
a idade já bem avançada de Leopoldino, tirou-lhe a vitalidade e o
ardor de comando: “sua vontade entibia-se perante a má vontade
de umas e ao enervamento do senso religioso de outras”. Eu
diria bem mais que isso, ao velho mestre já falta a vitalidade de argu-
mentos para fazer valer a sua vontade perante uma assembleia emi-
nentemente feminina. Creio que não desse momento, quando Leo-
poldino acha-se na velhice, mas desde o início, as suas “subordinadas”
sempre redarguiram suas propostas; o mestre, entretanto, sempre
soube rebater tais questionamentos e expor coerentemente seus ar-
gumentos, fazendo prevalecer sua vontade. Gostaria de deixar bem
claro, que o que estou dizendo, não é que as irmãs de São Raimundo
questionavam o presidente de sua irmandade simplesmente por ques-
tionar, por pura implicância; o que quero ressaltar e chamar a aten-
ção é que as mulheres que compunham esta confraria tinham suas
próprias opiniões, sabiam o que queriam para si e para o conjunto
de sua associação, precisando ser muito bem “convencidas” na
hora de se submeter às proposições de Leopoldino. Vamos me-
lhor conhecer essas devotas.

Irmãs de São Raymundo: entre a ação e a submissão


As mulheres compunham a grande maioria dos membros da
irmandade; segundo Vianna eram para mais de mil, todas muito obe-

39
Religião, Gênero e Poder

dientes (pelo menos é isso que este autor nos quer fazer acreditar)
aos mandos e desmandos do presidente vitalício da confraria, mestre
Leopoldino: “Era elle quem mandava, todas as irmans obedece-
ram sem protestos”. A um leitor mais exigente e menos distraído do
artigo de Arthur Vianna, saltam sutis momentos em que a submissão
das irmãs não parece assim tão unânime. É possível perceber, no
decorrer da narrativa, que estas mulheres eram membros participan-
tes e ativos na confraria, não só no sentido de executoras das vonta-
des de Leopoldino, mas também mostrando sua opinião e ação em
momentos significativos da irmandade. Mas, quem eram essas mu-
lheres? O que as motivava a participar da irmandade? Qual seu “ver-
dadeiro” papel dentro da confraria? São questões que buscaremos
elucidar a partir de agora.
Como já expusemos anteriormente, as mulheres formavam o
grosso dos participantes da irmandade de São Raimundo. Já no mo-
mento das primeiras inscrições isso é notório: são sete mulheres (Ju-
liana, Rosa, Felippa, Joanna da Ponte e Souza, Maria, Nathalia do
Nascimento e Simôa) e dois homens (Leopoldino e, posteriormente,
José Pinho). Elas também são trabalhadoras (algumas eram vende-
doras nas ruas de Belém e, uma grande maioria, escrava), algumas
são solteiras e não têm filhos e, em termos étnicos, são mestiças e
mulatas. Mostram-se independentes, tanto financeira como social-
mente. Leiamos com atenção os trechos a seguir.
A viagem, sem accidentes no mar, foi, comtudo, barulhenta e
irriquieta, porque em companhia do mestre iam nada menos de
sete mulheres (...) mulatas de tom, vendedeiras nas ruas (...) Com-
panheiras joviaes e alegres, não iriam passar a noite inteira da
viagem nos braços de Morpheu (...) (VIANNA, 1905, p. 376).
A percepção que temos ao analisarmos esses dois pequenos
trechos da descrição de Vianna é que o trabalho desempenhado por
estas mulheres permitia-lhes gozar de relativa autonomia social (num
pequeno grupo, saem sozinhas para se divertir, sem a presença de
um marido ou namorado; sendo a presença de Leopoldino necessá-
ria no sentido de justificar o contexto da sociedade patriarcal e ma-
chista da época), e econômica (que lhes possibilita contribuir com

40
Festa e Devoção: Relações de poder e de Gênero...

expressivos recursos para o caixa da irmandade, tanto como juízas,


ou ainda, como meros membros da confraria).
Mas, o que levava tantas mulheres a se filiarem e adentrarem
esta irmandade, e por que não é tão visível a presença masculina?
Como um santo branco, de origem espanhola, tornou-se advogado
das parturientes e parteiras? Segundo sua biografia, São Raimundo
teve dificuldade para nascer, tendo sido retirado vivo da barriga da
mãe já morta. Compreende-se agora a identificação de tantas mu-
lheres com o patrono da confraria e a quase ausência do sexo mas-
culino na mesma. O santo estava ligado a um aspecto considerado
absolutamente feminino: a maternidade. Lembrando que, sendo pro-
tetor das parturientes e parteiras, São Raimundo era invocado no
momento dos nascimentos não somente pelas futuras mamães, mas
também pelas mulheres que as auxiliavam na hora do parto – as
parteiras, profissão exercida quase que exclusivamente por muitas
mulheres no século XIX, especialmente mestiças e mulatas.
Neste momento gostaria de abrir um parêntese, para apresen-
tar uma hipótese, que acredito que aguçará o interesse do leitor e
abrirá uma nova perspectiva de análise. Por algumas evidências, bem
sutis por sinal, observadas no texto de Arthur Vianna, acredito que a
escolha de Leopoldino como presidente da irmandade ocorreu por
imposição do meio social em que as irmãs de São Raimundo esta-
vam inseridas. Talvez, se pudessem e tivessem livre escolha, elas
teriam não um presidente, mas uma presidenta. Vivendo em uma
sociedade absolutamente patriarcal e machista não se poderia con-
ceber uma irmandade totalmente feminina no sentido de, até seu
coordenador, ser uma mulher.
Deixe-me esclarecer melhor minha suposição, baseada no tra-
balho desenvolvido por Marjo de Theije e Els Jacobs sobre relações
de gênero e aparições marianas no Brasil contemporâneo.
Em sua análise, Theije e Jacobs, destacam que, dentro do cam-
po religioso, existe uma divisão simbólica entre uma esfera pública e
outra privada ou doméstica.
Essa divisão toma como ponto de partida diferenças percebi-
das em papéis sociais entre os sexos. Em conjunto com essas
diferenças, na literatura existente sobre a vida religiosa hu-

41
Religião, Gênero e Poder

mana as experiências e idéias religiosas das mulheres geral-


mente são associadas com a esfera doméstica, e classificadas
como expressões privadas, idiossincráticas e, portanto, limi-
tadas. A vida religiosa das mulheres é pensada limitando-a
principalmente à esfera privada da casa, na qual a mulher é
responsável por transmitir os valores religiosos para as cri-
anças, manter contatos pessoais com entidades espirituais e
cuidar dos doentes, deficientes e defuntos. As experiências,
idéias e ações dos homens no campo religioso, ao contrário,
são associadas com a esfera pública e entendidas como sis-
temáticas, abrangentes e, portanto, poderosas. Por exemplo,
as descrições da vida religiosa dos homens têm a tendência
de enfatizar seu papel poderoso na hierarquia religiosa, a sua
atuação visível nas atividades públicas e seus vínculos com
outras organizações sociais, políticas ou econômicas na so-
ciedade (THEIJE; JACOBS, 2003, p. 42).
Portanto, por mais atuantes e participativas que as irmãs de
São Raimundo se mostrassem, suas ações, no contexto social em
que estavam inseridas, eram sempre vistas e compreendidas den-
tro do espaço privado e doméstico da irmandade; publicamente,
na ampla esfera social, a figura de Leopoldino se destaca, tendo
em vista que
O doméstico não somente é associado com o privado, o
pessoal e o informal, mas também é tratado como se fosse
derivado, subjugado e açambarcado pela dimensão públi-
ca, ou seja, masculina. Isso significa que a dicotomia do-
méstico-público está longe de ser algo de gênero neutro e,
ao contrário, tanto denota diferença como implica hierar-
quia (THEIJE; JACOBS, 2003, p. 43).
Pela descrição de Vianna, que faz questão de sempre desta-
car e enfatizar a imagem “toda poderosa” de Leopoldino, sutilmente
vemos despontar o papel exercido pelas devotas e irmãs de São
Raimundo que, não raro, estava bem longe da total submissão ao
controle de seu presidente.
Começo chamando atenção para a influência dessas mu-
lheres tanto na escolha do patrono da confraria como de seu or-
ganizador. Num passeio a Ilha das Onças, onde participariam dos

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Festa e Devoção: Relações de poder e de Gênero...

festejos de São João, durante uma conversa entre Leopoldino e


Juliana, Rosa, Felippa, Joanna da Ponte, Maria, Nathalia do Nas-
cimento e Simôa, “falou-se accidentalmente em São Raymun-
do, no culto que lhe dedicavam as mulheres, nos milagres com
que elle as acudia e no muito que era preciso querel-o e ve-
neral-o”; “Com enthusiasmo todos acceitaram a tarefa e Le-
opoldino, alli mesmo, (...) recebeu a investidura de organisa-
dor da irmandade (...)”. Creio que é bem possível pensar que,
se a lembrança ao santo protetor das parturientes e parteiras, não
partiu das senhoras naquele momento, foi muito influenciado pela
sua significativa presença, visto que, como já vimos, o santo liga-
va-se a um aspecto muito associado à vida das mulheres, a ma-
ternidade; a “eleição” de Leopoldino como organizador da con-
fraria, segue, a meu ver, a dicotomia público-privado que marcará
as ações das esferas masculina e feminina dentro da irmandade:
naquele momento histórico era inconcebível uma confraria religi-
osa regida por uma mulher. De modo geral, estas associações
leigas eram espaços eminentemente masculinos – são os homens
que estão no comando, organização e chefia das mesmas; às mu-
lheres cabiam tarefas identificadas com o universo feminino (cui-
dados com os panos e decoração do altar do santo) e subalternas
as dos homens.
Em um trabalho sobre relações de gênero e pajelança numa
comunidade pesqueira do interior da Amazônia, realizado na segun-
da metade do século XX, as pesquisadoras Maria A. Maués e Gisela
Villacorta (2008), perceberam muito bem o que expusemos acima.
Segundo as autoras, dentro do contexto social, político, econômico e
religioso da comunidade de Itapuá, “a mulher surgia como elemento
de apoio necessário, mas que, no final, não parecia contar muito,
quando se ia conferir o peso, reconhecido socialmente, da participa-
ção dos dois sexos”. Tal realidade não fugia muito da percebida den-
tro das irmandades religiosas da Belém do século XIX, onde as ir-
mãs pareciam agir mais em função dos membros masculinos da
confraria, como prestadoras de serviço.
Por isso nos chama atenção a iniciativa das irmãs de São
Raimundo em tomar a frente no estabelecimento da irmandade:

43
Religião, Gênero e Poder

“Na volta e na canôa retomaram as mulheres o caso; fizeram


uma subscripção em que cada uma deu mil reis, excepto Feli-
ppa que contribuiu com vinte mil reis, por ter sido acclamada
juíza da festa”. Apesar de Leopoldino ter sido eleito organizador
da irmandade, são as mulheres que o acompanham, que dão início
aos trabalhos de organização da confraria: realizam as primeiras
inscrições, recolhem as entradas e elegem a juíza da festa; ao
mestre coube a incumbência de tarefas mais práticas: providen-
ciar os fogos e marcar a missa, tendo em vista que era auxiliar de
sacristão na igreja de Santana.
Se nossas colocações e posicionamentos, até o momento, so-
bre o papel atuante das irmãs de São Raimundo, apresentam argu-
mentos frágeis e que podem ser facilmente questionados, creio que
os que vamos apresentar a seguir podem levar o leitor a compreen-
der melhor nosso ponto de vista.
Em 1873, terceiro ano de realização da festividade, a introdu-
ção do baile às comemorações deu-se pelo patrocínio dos membros
femininos da confraria: “Faziam-no as juízas á sua custa, em uma
casa grande que alugavam ou obtinham por gentileza de algum
amigo”. As juízas, que a partir deste ano passaram a ser seis, tinham
uma dupla despesa: além de pagarem as esmolas referentes à sua
eleição como juízas, financiavam o baile, muitas vezes alugando um
espaço quando não o obtinham por empréstimo através de suas rela-
ções pessoais. Arthur Vianna não deixa claro se a introdução do
baile aos festejos foi obra das mulheres; ele diz que: “Nesse anno
elevou-se o numero das juízas para seis, o que permitiu um ac-
cessorio aos festejos, de grande realce e procura: o baile”.
Mesmo que a ideia do baile não tenha partido da iniciativa das irmãs,
sua execução e realização se concretizaram graças ao mecenato
das mesmas. Financeiramente independentes essas mulheres pro-
moviam a reunião dançante contando com seus próprios recursos,
fruto de árduo trabalho pelas ruas de Belém.
Durante os primeiros anos da festividade, a irmandade foi for-
çada a transferir a data de comemoração do seu patrono, visto que o
dia 31 de agosto sempre caia em dia útil da semana o que impedia a

44
Festa e Devoção: Relações de poder e de Gênero...

participação das irmãs escravas, não liberadas do serviço pelos seus


donos. Vejamos a descrição de Vianna sobre este acontecimento.
Primitivamente viu-se a irmandade na contigencia de fazer a
festa, não no dia de São Raymundo, porém no proximo do-
mingo seguinte, isto porque, sendo em sua maioria escravas
as irmans, não lhes era dado pelos senhores o dia util da
semana. Houve um protesto contra este rigor absurdo da
escravatura; Lucinda Maria da Conceição, mulata, vende-
deira de tacacá e mingáo, livre do captiveiro por alforria,
insurgiu-se, sendo juiza da festa, contra a forçada transfe-
rencia, e propoz que a irmandade pagasse aos senhores o
trabalho das escravas no dia 31 de Agosto. A idéa generosa
encontrou inteiro apoio e as irmans captivas, conquistadas
assim para o folguedo, trouxeram o seu vivificador concurso
á festividade, no proprio dia do santo. Depois, os senhores
foram pouco a pouco comprehendendo a injustiça d’aquelle
pagamento e a necessidade d’aquelle dia de folga: a idéa
tornou-se praxe (VIANNA, 1905, p. 381-382, grifos da autora).
Nos chama atenção no trecho acima, primeiramente a afirma-
ção da maciça presença de irmãs que eram escravas, constituindo a
maioria dos membros da irmandade; ao impedimento imposto por
seus donos reagiram com uma forma diferenciada de rebelião: a com-
pra do dia de serviço. A ideia de tal protesto partiu de uma ex-escra-
va que ao ser eleita juíza da festa, não aceita a mudança do dia da
festa pela intransigência dos donos das cativas e propõe que a con-
fraria pague aos mesmos o dia de trabalho das irmãs. O que para
Vianna é um ato de generosidade e filantropia dos donos das escra-
vas, que posteriormente reconhecem “a injustiça d’aquelle paga-
mento e a necessidade d’aquelle dia de folga”, expressa, a meu
ver, a inconformidade das irmãs confreiras em relação a intransigên-
cia dos senhores escravistas. Mais que a simples conquista de poder
comemorar seu santo padroeiro no dia oficialmente a ele dedicado, a
iniciativa dessas mulheres constitui-se numa ação prática para o re-
conhecimento de seus direitos, o devido respeito as suas convicções,
bem como a liberdade de exercer sua religiosidade sem os rigores
que sua prática profissional limitava. As irmãs de São Raimundo,
muito mais que devoção, demonstram ter consciência do que objeti-
vam para si e para o contingente de sua irmandade, sendo capazes
45
Religião, Gênero e Poder

de elaborar estratégias de ação para alcançar seus objetivos; para


além da submissão, têm muita iniciativa, vontade, atitude e ação.

Considerações parciais
Sendo espaços representativos da ação masculina – já que
são os homens que estão na organização e direção das confrarias
religiosas –, às mulheres sempre couberam papéis secundários e
subalternos no interior das irmandades. Em relação a este aspecto, a
confraria de São Raimundo constitui-se um caso, se não raro, pelo
menos curioso. Constituída, quase que exclusivamente por mulheres
– “[...] ennumerava mil e tantas irmans [...], sendo em sua mai-
oria escravas [...]” –, estava sob a direção de uma figura masculi-
na – o mestre Leopoldino, barbeiro bastante conhecido do largo da
igreja de Santana. Sujeito controverso, o mestiço Leopoldino do Es-
pirito Santo Figueira de Andrade, seu nome de pia, exerceu em toda
sua vida diversas funções: pedreiro, barbeiro, sineiro, sacristão, den-
tista e médico amador. Demonstrando já na vida profissional suas
múltiplas facetas, a atuação de Leopoldino na confraria não seria
nada diferente, acumulava as funções de presidente, secretário, te-
soureiro, conselheiro e orador – um verdadeiro déspota, nas palavras
de Arthur Vianna, que complementa sua observação ressaltando a
absoluta autoridade de mestre Leopoldino sobre os membros femini-
nos da confraria, sempre obedientes e submissas ao seu presidente.
Se é a total autoridade de Leopoldino e a plena submissão das irmãs
de São Raimundo que Vianna faz questão de destacar, o que nos
salta aos olhos é a constante iniciativa e autonomia da ala feminina
desta associação religiosa.
O expressivo número de mulheres que a constituiu já nos cha-
ma atenção, tendo em vista que geralmente estas chegavam às con-
frarias por afinidades de parentesco (são seus pais, maridos ou fi-
lhos, como membros associados que estendem seus direitos às
esposas, mães e filhas). Não bastasse apenas isso para destacá-las,
as irmãs de São Raimundo praticam ações que demonstram uma
relativa autonomia em relação ao comportamento esperado das mu-
lheres inseridas no contexto de uma sociedade patriarcal e machista,

46
Festa e Devoção: Relações de poder e de Gênero...

como a do século XIX. São independentes financeira e socialmente,


trabalham, ganham seus próprios recursos, saem sozinhas e são
membros bastante participativos e ativos de sua irmandade.

Referências bibliográficas

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Brasil, 2007.
MAUÉS, Maria Angélica Motta; VILLACORTA, Gisela Macambira.
Matintapereras e pajés: gênero, corpo e cura na pajelança amazôni-
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WEBER, Max. Três tipos de poder legítimo. Lisboa: Tribuna da
história, 2005.

47
Religião, Gênero e Poder

48
Capítulo 3
A Cultura Afro-Brasileira e a Construção
do Gênero Feminino em Mar Morto de Jorge Amado
e A Cidade das Mulheres de Ruth Landes

Tayná do Socorro da Silva Lima


Jorge Leal Amado de Faria, nasceu no dia 10 de agosto de
1912, em uma fazenda de cacau chamada Aricídia, que pertencia a
seu pai, e que se localizava em Ferradas, distrito do município de
Itabuna, Bahia, e faleceu no dia 06 de agosto de 2001. Foi um escri-
tor pertencente à segunda geração modernista, que geralmente é
delimitada cronologicamente por volta dos anos de 1930-1945, gera-
ção caracterizada também como romances de 30, pelo fato de abor-
dar temáticas voltadas ao contexto social brasileiro da época. Como
admirador das peculiaridades baianas, Amado trouxe para o panora-
ma literário brasileiro marcas dessa cultura, os hábitos de pessoas
comuns dessa paisagem, bem como aspectos da religiosidade, ali-
mentação e folclore da vida da população que habitava aquele lugar:
seu mar e as pequenas ruas do recôncavo baiano.
Ruth Landes (1908-1991) foi uma antropóloga norte-america-
na que veio ao Brasil também na década de 30, mais precisamente
em 1938-39. Suas pesquisas se focaram nas religiões afro-brasilei-
ras em Salvador, principalmente no que se refere ao papel do gênero
feminino dentro dos locais de cultos do Candomblé baiano. A vinda
da antropóloga ao ambiente baiano foi considerado uma exceção,
pois naquele período as mulheres pesquisadoras não tinham papel de
destaque no cenário intelectual nacional, e Landes vem romper com
tal “regra geral”, apesar de sofrer pesadas críticas com relação aos
resultados de sua pesquisa por intelectuais da época.
Neste artigo, trataremos sobre as manifestações das religiões
de matriz africana em Mar Morto e em A Cidade das Mulheres. A
partir do solo inspirador, a Bahia, com todas as suas particularidades
religiosas, trataremos das suas marcas presentes na obra de Jorge

49
Religião, Gênero e Poder

Amado e Ruth Landes. Os autores descrevem a cultura afro-baiana


dos anos 1930, bem como o misticismo dos rituais do Candomblé e
de uma das festas mais famosas da Bahia, a festividade em homena-
gem a Iemanjá, orixá feminino das águas do mar, uma das divindades
mais respeitadas e cultuadas na religião dos orixás.
Neste trabalho buscou-se fazer um apanhado de como são
praticadas as crenças afrorreligiosas na Bahia a partir de como fo-
ram retratadas pelo escritor Jorge Amado e pela antropóloga Ruth
Landes. Propomos assim, uma intertextualidade entre o romance Mar
Morto de Jorge Amado e obra A Cidade das Mulheres da antropó-
loga americana Ruth Landes, evidenciando o foco de análise sobre a
construção do gênero feminino na religião afro-brasileira, principal-
mente no que se refere às relações de poder nos terreiros de Can-
domblé e na sociedade baiana da época.

A Bahia como inspiração


A Bahia e o Mar baiano assumem papel de inspiração de maior
destaque nos romances de Jorge Amado, evidenciado em todos os
seus encantos, mistérios e mitologias. No entanto, não é apenas no
romance Mar Morto (1936) que a figura do Mar estará se fazendo
presente nos escritos literários do escritor baiano, pois ao se ter con-
tato com outras obras do autor, também se pode perceber a presen-
ça das águas. Como exemplo, as obras: Capitães da Areia (1937);
Quincas Berro D’água (1961); A estrada do Mar (1938); Bahia
de Todos os Santos (1945); dentre outras.
Como escritor e natural do estado da Bahia, Amado foi um
grande admirador das peculiaridades baianas. E como literato abor-
dou em suas obras exatamente as marcas dessa cultura, trazendo
para a literatura a vida das pessoas que habitam aquele lugar: seu
mar e as pequenas ruas do Recôncavo baiano. Colocando a mostra
a diversidade de tipos humanos pertencentes àquele local.
Em relação a pesquisadora Ruth Landes, mesmo não sendo
brasileira e naturalmente baiana, a mesma também opta em des-
crever o cenário da Bahia da década de 1930, com uma riqueza
de detalhes e com um tema focado sobre raça e a soberania do
gênero feminino nos terreiros baianos, fato até então inexplorado

50
A cultura afro-brasileira e a construção do gênero...

pelos intelectuais que pesquisavam sobre relações étnico raciais


naquele momento.
O interesse em produzir tal análise intertextual foi justamente
associar pontos convergentes entre as descrições do território baia-
no feitas por Amado e Landes, pois ao se ler o romance (1936) e a
etnografia (1938-39) é como se as abordagens socioculturais e reli-
giosas se complementassem, mesmo com linguagens e métodos des-
critivos diferentes. Bem como buscar compreender o porquê da crí-
tica literária e intelectual da época tecerem comentários tão
estigmatizantes com relação aos dois escritores.
A recepção que a crítica teve sobre a obra do escritor Jorge
Amado e da antropóloga Ruth Landes paira em um terreno íngreme.
E o que faz com as obras destes escritores tenham sido pouco agra-
ciadas no meio acadêmico brasileiro? É importante salientar que este
não se configura o fio temático norteador deste ensaio, porém ao
longo dele percebemos que não poderíamos concluí-lo sem discutir a
recepção da crítica sobre a obra de Amado e Landes, já que muito
nos inquietou durante a produção do mesmo.
A princípio faremos um breve comentário a respeito do que
vem a ser a crítica literária e qual a sua função para com a literatura,
tendo como referencial teórico o livro sobre crítica literária A Más-
cara e o Enigma de Bella Jozef (2006). A crítica literária vem con-
tribuir para um entendimento e uma reflexão a respeito de determi-
nadas obras literárias, com o intuito de questionar as temáticas
evidenciadas pelos autores de uma determinada época. Sendo que,
na maioria das vezes a crítica expõe posicionamentos divergentes
aos dos autores de obras literárias. Fazendo abordagens estigmati-
zantes com relação ao estrutural e ao simbólico presentes nas obras.
No entanto, a crítica na atualidade tem por função rever e
retornar certas reflexões de obras antigas, através de novos méto-
dos teóricos avaliativos literários. Dessa forma, o que antes poderia
ser considerado algo negativo para uma dada obra, no momento pre-
sente, a partir de uma revisão literária, pode assumir um outro en-
tendimento de uma mesma obra. De acordo com Bella Jozef (2006):
A crítica é prolongamento e provocação, redizendo a obra
nas estruturas de outra sensibilidade. Uma de suas tarefas é

51
Religião, Gênero e Poder

derramar sobre a literatura do passado a experiência literária


do presente e de ler os antigos à luz dos modernos (p. 31).
Quando a autora utiliza a expressão “prolongamento” e “pro-
vocação”, a mesma evidencia que o papel da crítica é fazer um estu-
do além da obra, ou seja, prolongar o que foi exposto pelo escritor. E
através dessa reflexão pôr em questão o que o autor pretendia re-
passar para seus leitores, com o objetivo de desvendar fatos que não
são explicitados diretamente pelos escritores.
Ainda para a autora, “Criticar é pôr em crise [...] Já não há
valores eternos na arte, já não há modelos imutáveis a seguir.”
(JOZEF, 2006, p. 33). O que podemos refletir é que assim como
quase tudo na vida, a crítica literária também está em constantes
evoluções e transformações. Pois, à medida que o tempo passa,
novas concepções e valores vão surgindo na sociedade, o que faz
com que o olhar da crítica literária tome novas posturas ou direci-
onamentos diante das obras literárias, sejam elas produzidas no
passado ou na contemporaneidade.
Dessa forma, podemos deixar claro qual a função da crítica
para a Literatura. E ainda, de acordo com as palavras de Bella Jozef:
O comportamento do crítico é determinado pela obra. Além
disso, as grandes obras do passado se veem modificadas
pelo olhar das gerações sucessivas. A crítica torna possível a
criação: vive das obras e as faz viver, inventando a literatura
(JOZEF, 2006, p. 34).
No decorrer da presente pesquisa, entramos em contato com
textos de diferentes autores e críticos literários acerca dos romances
escritos pelo escritor baiano Jorge Amado. Portanto, neste tópico
iremos discutir algumas opiniões de determinados teóricos críticos
com relação às obras literárias do mesmo.
Afrânio Coutinho (2001) em seu livro A Literatura no Brasil
discorre sobre o modernismo no Brasil, fazendo também a análise
crítica dos diversos autores que pertenceram ao movimento, desta-
cando as principais características de cada autor, no que diz respeito
à forma de produções literárias da época. O mesmo fará várias e
duras críticas em relação às obras de Amado, no que diz respeito à

52
A cultura afro-brasileira e a construção do gênero...

linguagem, ao teor político e ao sentimentalismo, dentre outros fato-


res explicitados.
Contudo, a priori iremos fazer uma pequena explanação do
que veio a ser o Modernismo no Brasil e suas respectivas caracterís-
ticas. Para que depois possamos enquadrar a postura de Jorge Ama-
do frente à estética literária de sua época, e por que o mesmo não se
utilizou dos mesmos requisitos norteadores do movimento, que por
sua vez foi um dos fatores que fizeram com que o romancista baiano
fosse bastante estigmatizado perante a crítica literária.
Sabe-se que o termo Modernismo denomina na Literatura Bra-
sileira, três fatores intimamente relacionados: um movimento, uma
estética e um período. O movimento ocorreu em São Paulo, com a
Semana de Arte Moderna, em 1922. E a partir desta data, iniciou-se
no país uma literatura com particularidades consideradas propria-
mente brasileiras.
Na primeira fase modernista ocorreu todo um processo de va-
lorização da cultura brasileira e uma “repulsa” a tudo que viesse de
fora. Porém, os idealizadores do modernismo brasileiro inspiraram-
se nas vanguardas europeias. Dessa forma, o objetivo maior do mo-
vimento foi fazer uma revolução nos conceitos literários e nos escri-
tores brasileiros.
A segunda fase do movimento costuma ser marcada a partir de
1930, período em que os conceitos modernistas já estão amadurecidos e
que vão seguir para outros rumos. A prosa desta época vai caracterizar-
se como os romances de 30, que pouco dependeu da estética modernis-
ta. A maioria das obras escritas por Jorge Amado tinha cunho regionalis-
ta, social e romântico. O autor enquadrada-se principalmente na prosa
ficcionista. De acordo com as palavras de Afrânio Coutinho, algumas
das marcas do romancista baiano baseiam-se “pelo realismo cru e os
palavrões” (COUTINHO, 2001, p. 369).
A partir do comentário do autor, concorda-se que o escritor se
vale dessas características nos seus textos. No entanto, não quer
dizer que o mesmo não tivesse comprometimento com seus roman-
ces, pois seu intuito era escrever e descrever sobre o ambiente bai-
ano, retratando suas peculiaridades no que se refere à linguagem,
cultura, religião, sofrimentos e alegrias do povo baiano.

53
Religião, Gênero e Poder

Entretanto, muitas vezes o fato do escritor Jorge Amado colo-


car o cenário baiano em primeiro lugar nos seus romances e escre-
ver histórias realistas com um grande “sentimentalismo” e “magis-
mo” local, também causaram certo incomodo a crítica literária.
Coutinho (2001) evidencia este pensamento no trecho a seguir:
Mar Morto completa Jubiabá no que chamaríamos de “o ciclo
do magismo sentimental”. Esta designação, como a pensa-
mos, tem um caráter de valor de efeito negativo. Pelo magis-
mo dos dois romances, Jorge Amado não se desprende de
uma visão romântica e sentimental da cidade e do mar, tanto
mais chocante quanto mais a sua intenção de realizar roman-
ces participantes imporia um tratamento realista (p. 372).
As obras de Amado são consideradas regionalistas, pelo
fato de todos os romances retratarem o local da Bahia. O autor
busca retratar de forma realista a vida dessa sociedade. No en-
tanto, sabe-se que qualquer romance, por mais que se tenha ca-
racterísticas marcantes da realidade, sempre será uma ficção.
Logo, o regionalismo realista do escritor não pode ser rotulado
como algo artificial, porque mesmo se tratando de ficção, vai fa-
zer com que a sociedade baiana e até mesmo brasileira se identi-
fique com certos fatos e marcas dos romances. Principalmente
em relação aos costumes e dialetos da região.
O autor Eduardo de Assis Duarte (1996) em seu livro Jorge
Amado: Romance em tempo de utopia, retrata bem os questiona-
mentos citados acima referentes às obras do romancista baiano. O
trecho a seguir comprova isto: “A palavra de ordem era: ‘escrever
para o povo’. E, para tê-lo como leitor, impunha-se abordar seus
problemas e aderir a seu modo de expressão” (p. 49).
Portanto, ao se ter contato com as obras de Jorge Amado,
percebe-se que o objetivo de escrever para o povo é alcançado com
sucesso, pois o mesmo consegue atrair um grande interesse dos lei-
tores por seus romances, não só no território nacional, como também
internacional. Motivo pelo qual, foi consagrado o escritor brasileiro
que mais teve suas obras traduzidas para diversas línguas.

54
A cultura afro-brasileira e a construção do gênero...

Outra reflexão ressaltada por Duarte (1996) é a relação entre


a linguagem do povo com a vida sofrida dos personagens amadianos.
Como se cita a seguir:
A proposta de uma linguagem tão “nova” quanto “verdadei-
ra” encontra aí sua consecução. Com isto, ressalta-se o iso-
morfismo entre a “língua errada do povo” e a dureza das
situações retratadas (p. 50).
No que se refere às questões políticas e sociais presentes nas
obras de Amado, percebe-se o interesse do autor por tipos de perso-
nagens masculinos que devido a vários problemas sociais, acabam
por seguirem caminhos tortuosos, que depois de passarem por várias
situações adversas, tiram lições dos fatos ocorridos e tornam-se ho-
mens politicamente do “bem”, transformando-se em homens que lu-
tam por seus objetivos e melhores condições de vida.
Com base nas palavras de Duarte (1996) sobre o questiona-
mento acima, citamos o seguinte trecho:
Nesse apego a aspectos da realidade, (...) Pela primeira vez, o
oprimido vai ser não apenas o protagonista, mas também o indi-
víduo que luta contra a opressão. (...) Esse aspecto revolucioná-
rio existe não só nos textos amadianos mais diretamente políti-
cos, mas em quase todo o romance dos anos 30 (p. 100).
Para concluir as ideias de Duarte (1996) acerca dos roman-
ces de Amado, faremos uma última citação de seu livro a seguir:
Movido pela utopia de uma sociedade igualitária governada
pelo partido dos operários, o romance amadiano empenha-se
em representar o processo de evolução dos trabalhadores no
rumo da consciência de classe e de sua atuação na cena po-
lítica brasileira, objetivando ser, enquanto literatura, um fator
positivo na construção dessa consciência de classe e de sua
atuação na cena política brasileira (p. 249).
Com base na citação acima, o autor aponta uma abordagem
da organização que estas famílias necessitam para almejar condi-
ções de vida melhores. Assim, como Duarte identificou a organiza-
ção dos trabalhadores como uma categoria a ser discutida, outros

55
Religião, Gênero e Poder

autores também fizeram questionamentos acerca dos fatos retrata-


dos nos escritos de Jorge Amado. Sobre esse aspecto podemos citar
também Miécio Táti (1961), que em seu livro Jorge Amado – Vida e
Obra fará várias indagações a respeito das obras do romancista,
sempre com muito respeito e admiração pelo mesmo.
Uma das descrições sobre a obra de Amado que Táti (1961)
abordou está demonstrada na citação a seguir:
Além da maneira própria de falar do povo, bem lhe conhece
Jorge Amado todos os vícios e caracteres, desde a minúcias
curiosas da vida dos homens simples, delineia grandes qua-
dros de costumes, joga com as cores, e com as vozes, e com
as formas, e com os cheiros, e com todas as paixões das
criaturas de seus livros, que são os heróis anônimos da exis-
tência diária das ruas e dos campos, operários ou trabalhado-
res das fazendas, muitas vezes figuras secundárias no desen-
volvimento do romance, mas nem por isto menos expressivas
da variada configuração de tipos, de que, na realidade, se
compõe a massa popular (p. 44).
O mesmo autor fez um posicionamento também no se refere
ao fato de muitos críticos rotularem as obras de Jorge Amado como
romances piegas, porém Táti afirma que “(...) mesmo quando ele
erra como prosador, acerta como poeta” (p. 59, 1961). Isto ocorre
pelo fato de o romancista na maioria de suas obras se valer de mui-
tas metáforas poéticas para narrar determinadas situações, o mais
curioso é que o mesmo consegue conciliar realismo e mágico-fan-
tástico em suas obras, que de forma prazerosa atrai um elevado pú-
blico de leitores.
No entanto, a maioria dos críticos da época em que Jorge
Amado lançou-se a vida literária não souberam apreender de forma
coesa o que o romancista quis repassar para seus leitores. Fato esse
que foi exposto por Ana Maria Machado em uma entrevista ao Jor-
nal do Comércio, na qual a autora faz a seguinte indagação: “Em
termos literários, acho que muitas vezes a crítica universitária exigiu
dele alguns aspectos que não faziam parte de sua proposta estética
nem de seu pacto com o leitor” (MACHADO, s/d).
De acordo com o citado acima pode-se fazer uma intertextu-
alidade com o posicionamento de Miécio Táti (1961) a respeito da
56
A cultura afro-brasileira e a construção do gênero...

maneira como Amado vai desenrolar seus romances, que se confir-


ma a seguir:
A arte de Jorge Amado é feita neste tom: alcançar sentido
épico sem fugir às estreitezas do cotidiano; mostrar bocas
sem dentes, que falam às vezes engraçado; enche páginas
com diálogos de sintaxe condenada e palavrões pesados;
não usa de panos quentes para esconder as feridas das per-
nas de seus heróis – todos eles claudicam nos costumes e se
cobrem de cheiros baratos, são viciados, violentos, bestiais
às vezes, não raro míseras rameiras em absoluta decadência
física e no último grau da perdição moral. Mas como coisas e
indivíduos todos eles se envolvem num só clima de dor e
desesperança, o quadro se transfigura, faz-se mesmo grandi-
oso, aviventado pelo sopro de profunda humanidade e poe-
sia em que o embebe o romancista (p. 73).
Com relação ao romance Mar Morto, Táti (1961) fez a se-
guinte reflexão em torno da obra:
Também o autor, de incontrolável vocação poética, poderia
forjar o seu poema chamado Mar Morto, apenas lançando
mão de recursos descritivos dos encantos e mistérios da vida
do mar, através de um entrecho romântico, em que o lado
doloroso da realidade descrita se tingisse das cores de um
inconsequente idílio piscatório; preferiu, sem fugir à configu-
ração poética do tema, assentar os arroubos de seu estro na
implacável verdade do “sofrimento” e de “miséria”, que são
as teclas mais vibradas do romance de Guma (p. 85).
As citações discutidas acima contribuem para que tenha-
mos uma interpretação das questões sociais da época, segmentos
esses que perpassam por situações de vulnerabilidades sociais e
pessoais, como por exemplo, as famílias que residiam aos redores
do cais da Bahia.
Quando Amado retrata o contexto que ocorre nos arredo-
res do porto, em que o mesmo encontra-se imbricado de vários
componentes de interpretações, vale lembrar que a Bahia foi pal-
co de várias etnias nos séculos anteriores, cada uma com suas
culturas, ressaltando as diferenças religiosas, o que poderá con-

57
Religião, Gênero e Poder

tribuir para o autor abordar especificamente a família da época,


com arranjos “simbólicos”.
Em relação a pesquisadora Ruth Landes e a recepção de sua
pesquisa pela crítica intelectual da época, tivemos como fundamento
teórico o texto “O mistério dos orixás e das bonecas – raça e gênero
na antropologia brasileira”, presente na obra Antropólogas & An-
tropologia de Mariza Corrêa (2003), na qual, dentre os temas abor-
dados pela autora, a mesma refere-se a perseguição sofrida pela
antropóloga norte-americana, no contexto da história da antropologia
brasileira na década de 30. De acordo com Corrêa (2003):
[...] nas décadas de 30 e 40, o Brasil recebeu inúmeros pesqui-
sadores de outros países – a maioria interessada em pesqui-
sar os nativos do país. Ruth Landes foi quase uma exceção
ao eleger o tema raça para sua pesquisa e foi uma exceção por
se tratar de uma pesquisadora por conta própria, já que, até
então, as pesquisadoras que aqui chegaram eram doublés de
esposas dos pesquisadores [...] (p. 167).
Com base na citação acima podemos compreender o diferen-
cial da antropóloga Landes, ao chegar no país no momento em que
as mulheres apresentavam papéis secundários, inclusive em relação
às pesquisas antropológicas. E em relação ao foco de pesquisa, Lan-
des se interessa em voltar seu olhar de antropóloga para as mães-
de-santo baianas. Ainda com base nas palavras de Corrêa (2003):
No cenário internacional, o livro recebeu uma resenha nega-
tiva, publicada na American Anthropologist, de um dos pes-
quisadores mais importantes da área de relações raciais na-
quela época nos Estados Unidos, Melville Herskovits; no
cenário brasileiro, seus resultados de pesquisa já tinham sido
criticados por Arthur Ramos, em 1942, mesmo antes de apare-
cerem em livro. [...] As análises até agora feitas a respeito da
perseguição que Ruth landes sofreu por parte de Arthur Ra-
mos e Melville Herskovits parecem assentar-se sobre três
pontos: primeiro, em sua atuação como pesquisadora, isto é,
tanto pelo fato de ser uma mulher entrando num campo domi-
nado por homens, quanto pela sua relação amorosa com Édi-
son Carneiro, seu guia no mundo dos Candonblés; segundo,

58
A cultura afro-brasileira e a construção do gênero...

por sua ênfase nas relações raciais, num momento em que a


antropologia passava a dar ênfase a explicações culturais; e
terceiro, por sua descrição, destoante das descrições canôni-
cas, a respeito da importância que as mulheres tinham nos
terreiros de candomblé (p. 168-169).
A partir do comentário acima, podemos ter uma noção dos
grandes entraves sociais e intelectuais enfrentados por Landes,
que além dos fatores citados acima, foi também criticada por ter
abordado em seus relatos de pesquisa de campo a homossexuali-
dade masculina recorrente em alguns terreiros de candomblé na
Bahia, evidenciando a ocupação do cargo de sacerdote por ho-
mens homossexuais em um território dominado pelo matriarcado
feminino das mães-de-santo baianas. Nesse aspecto exposto pela
antropóloga, faz-se também uma associação com o romance Mar
Morto, pois no mesmo Amado faz referência a grandes pais-de-
santos, o que mostra o quanto os romances do escritor apresenta-
vam uma visão além do tempo em que foram escritos, visto que o
romance analisado neste trabalho foi produzido alguns anos antes
da vinda de Ruth Landes ao Brasil.

Intertextualidade entre Jorge Amado e Ruth Landes


A obra “A Cidade das Mulheres” da antropóloga Ruth Lan-
des, expõe um relato etnográfico do contexto social de Salvador - Ba
na década de 30, tendo como foco principal de sua pesquisa de cam-
po a religião de matriz africana, mais precisamente o tradicional Can-
domblé da Bahia. Portanto, o estudo da autora se encaixa nessa
pesquisa pelo fato de abordar principalmente como o Candomblé se
evidenciava na prática no contexto baiano e assim traçar um parale-
lo com o romance Mar Morto, cujo escritor, Jorge Amado, faz uso
do Candomblé como uma das temáticas principais de sua obra.
Ler os relatos da experiência de Ruth Landes é como se fosse
uma continuação dos romances de Amado, ou vice e versa, pois
ambos descrevem tais peculiaridades baianas com minuciosos deta-
lhes. Porém, não podemos esquecer que apesar de as obras do es-
critor baiano virem carregadas de um realismo e um regionalismo

59
Religião, Gênero e Poder

social, ou seja, expondo a “verdade” vivida por aquelas pessoas, suas


obras são fictícias, sendo literatura, logo caracterizada como arte.
Porém, o que mais chama a atenção na análise dos dois auto-
res é o fato de se reportarem à Bahia, às suas crenças e seus mitos
religiosos e ao Candomblé. No caso do romance Mar Morto, cujo
um dos temas e personagens principais caracteriza-se em torno da
divindade africana Iemanjá, sendo, portanto, a narrativa amadiana
construída em torno da referida Deusa, podemos aqui, então, estabe-
lecer uma comparação com a obra de Ruth Landes, conforme tre-
cho, a seguir:
Todo mundo embarca com os seus sacerdotes e sacerdoti-
sas para lugares especiais onde pedem à mãe d’água boa
sorte e bom tempo. Há várias dessas mães, mas a de que
mais gostam é Iemanjá, uma das esposas do idoso Oxalá;
às vêzes chamam-na pelo nome indígena de Janaína. Can-
tam e dançam para ela nos saveiros, onde ela pode descer,
e no auge da festa lançam presentes na água, coisas boni-
tas que uma mulher apreciaria. Chamam a isso ‘presente
para mãe-d’água’. Se o presente afunda – e elês tomam
medidas para assegurá-lo! – a deusa o aceitou e fará o que
lhe pedirem. Como soam os atabaques! Como os santos
montam os seus cavalos (LANDES, 1967, p. 103).
No trecho acima podemos identificar como ocorre na prática
uma das maiores festas religiosas populares que acontecem na Bahia,
a grande festa em homenagem a divindade Iemanjá pertencente ao
Candomblé, a Deusa considerada a dona do Mar, também conside-
rada a grande mãe das pessoas que creem no culto africano. Tais
descrições, do festejo, das características de Iemanjá, dos saveiros e
marítimos, também estão presentes no romance Mar Morto, porém
através de uma linguagem literária, poética, lírica e simbólica.
O foco principal de Ruth Landes em sua obra é evidenciar a
presença praticamente predominante do gênero feminino como lide-
rança sacerdotal no Candomblé, porém em suas vivências no cam-
po religioso baiano consegue observar outra vertente de sacerdotes
no culto afro-brasileiro, entretanto pertencente ao gênero masculino,
o que fugia ao “tipo ideal” do matriarcado das mães de santo baia-

60
A cultura afro-brasileira e a construção do gênero...

nas. Fato este que podemos correlacionar com uma das temáticas
amadianas retratadas no romance pesquisado, no qual o escritor
Amado apresenta tal evidência pelo fato de citar nomes de grandes
pais de santo do ambiente baiano, o que podemos refletir o quanto a
percepção do contexto social do romance Mar Morto (1936) esta-
va além do momento em que ele escreveu. Fato este que podemos
observar no trecho da obra a seguir:
O pai-de-santo Anselmo era o porta-voz dos marítimos pe-
rante Iemanjá. Macumbeiro da beira do cais, antes fora
marinheiro, andara pelas terras da África aprendendo a lín-
gua verdadeira deles, o significado daquelas festas e da-
queles santos. [...] Era agora ele quem fazia as festas de
Iemanjá, quem presidia as macumbas do Mont Serrat [...]
Não havia naquela beira de cais e naquele mundão d’agua
que não respeitasse o Anselmo, que já andara na África e
rezava em nagô (AMADO, 2008, p. 79, 80).
A cultura afro-brasileira e a construção do gênero feminino
em Mar Morto e A Cidade Das Mulheres
Jorge Amado retrata em Mar Morto o contexto que ocorre
nos arredores da beira do cais, cujo mesmo encontra-se imbricado
de vários componentes de interpretações, vale destacar, que a Bahia
foi palco de chegada de várias etnias nos séculos anteriores, cada
uma com sua cultura, ressaltando as diferenças étnico-culturais, que
contribuíram talvez, para que o referido autor abordasse de forma
crítica e descritiva o cotidiano da cultura afro-brasileira presente nas
famílias que desenvolviam suas atividades sociais, econômicas, polí-
ticas e religiosas naquele lugar.
Favorecendo para uma reflexão a respeito da cultura afro-
brasileira, importa evidenciar que esta abarca uma pluralidade de
segmentos socioculturais trazida ao Brasil não só pelos africanos,
mas também por outros povos que aqui se instalaram. Daí, apontar
para as possibilidades de uma discussão no que se refere à aborda-
gem do escritor voltada as temáticas sociais, especificamente a po-
pulação que circulava à beira do cais, que em sua maioria constituía-
se de pessoas negras.

61
Religião, Gênero e Poder

Assim, o romancista descreve, a partir de sua obra, o dia a dia


das pessoas que são caracterizadas como “povo de Iemanjá”, justifi-
cando que este povo foi trazido do outro lado do Atlântico, com cos-
tumes próprios, bem como com suas próprias crenças, observando
que, dentre as matrizes religiosas de origem afro, a que obteve mais
destaque na Bahia foi o Candomblé. A integração social baiana pos-
sibilitava o repasse entre eles de histórias narradas de forma oral
pelos homens mais velhos do cais, a exemplo na obra, do velho Fran-
cisco, tio do personagem Guma, sendo o mesmo respeitado por sua
história de vida, conhecedor dos mistérios que o Mar oferecia. De
modo que os encontros à beira do cais tornavam-se um ritual, onde
as canções cantadas pelos negros eram melancólicas e tristes, como
as suas dificuldades de enfrentar os desafios de sobrevivência e os
perigos do mar, cantados liricamente por esses personagens, confor-
me descrito no seguinte trecho da obra: “Já se houve o baticum dos
candomblés, a músicas dos violões, o triste gemer das harmônicas”
(AMADO, 2003, p. 130).
Esse lirismo melancólico tornava-se mais angustiante quan-
do a noite chegava antecipada, pois provocava pavor entre as
mulheres que esperavam por seus companheiros na volta do mar,
porque o trabalho deles girava em torno do transporte de merca-
dorias em seus saveiros de porto em porto pelas cidades da Bahia.
Logo, quando a água se mostrava cor de chumbo, a tranquilidade
da beira do cais se transformava em medo, e este era acrescido
da dúvida de que talvez o companheiro não voltasse vivo. Mas
quando os marinheiros chegavam finalizando suas rotas, traziam
tambem a felicidade para aquelas mulheres que os esperavam no
cais! Haveria festa, o som dos tambores transmitiriam a tranqui-
lidade da verdadeira noite na beira do cais, aquela noite significa-
va a realização do amor, acompanhada pelas canções dos negros,
que Amado descreve da seguinte maneira:
Em breve Guma chegaria, o Valente atravessaria a baía, e ela o
teria entre os braços morenos e gemeriam de amor. Agora a
tempestade cessara, ela já não tinha medo. [...] Pequenas on-
das batiam nas pedras no cais e os saveiros balouçavam man-
samente (AMADO, 2008, p. 17).

62
A cultura afro-brasileira e a construção do gênero...

Como se pode observar no trecho acima, o medo vivenciado


pelas pessoas da beira do cais nas noites de tempestades tornava-se
algo corriqueiro na vida dessas famílias, pois tal inquietação de per-
derem os membros de suas famílias fazia parte do contexto cultural
das mesmas.
Outro fator que merece destaque em Mar Morto e neste tó-
pico é a figura do elemento feminino, pois ao longo do romance as
personagens são construídas de forma singular; a descrição das mu-
lheres do cais mostram-nas simples e valentes, mas com algo em
comum. Essas mulheres são esposas de mestres de saveiros e apro-
veitam cada momento do dia como se fosse o último, porque sabem
que a qualquer momento podem perder seus maridos para Dona Maria,
como essas mulheres denominam Iemanjá, que é a divindade respei-
tada e cultuada por todos aqueles que habitam a Bahia, como Amado
(2008) evidencia no trecho a seguir: “[...] é uma lei fatal: Um dia o
homem fica no mar, morre com o saveiro que vira. E a mulher procu-
ra seu corpo e espera que o filho cresça pra vê-lo morrer também
[...]” (AMADO, 2008, p. 250).
Dessa forma, o universo feminino na obra, destaca mulheres
de personalidades muito fortes, que marcam a narrativa pela valentia
e por serem conscientes de que a qualquer momento perderão seus
maridos e filhos, e que se os perderem não podem fazer nada, a não
ser aceitarem tal destino. Porém, uma personagem que não se con-
forma com tal destino, é Lívia, porque nascera na cidade, seus hábi-
tos são urbanos. Logo, estava vivendo uma realidade a qual não lhe
era peculiar e dificilmente alguém que não conhece essa estrada
larga que é o mar, entende os perigos e acontecimentos que se pas-
sam nele. É importante também lembrar o respeito que as pessoas
da beira do cais têm com o mar, se o mar está agitado nenhum pes-
cador ousa sair, porque sabe que as águas estão furiosas, que “Jana-
ína está furiosa”, pois ela não brinca no mar, “Iemanjá é assim terrí-
vel porque ela é mãe e esposa” (AMADO, 2008, p. 78).
Já a personagem Rosa Palmeirão é conhecida por todos
como mulher de navalha na saia e punhal no peito, essa “mulata”
tinha até um ABC de suas aventuras. Rosa é mulher de gênio
forte, muito conhecida porque já tinha sido presa várias vezes e

63
Religião, Gênero e Poder

batia em homem. Essa personagem sofrera muito, pois o seu pri-


meiro homem, Rosalvo, deixava-a passar fome e batia-lhe muito.
Quando soube que seu filho nascera morto por causa de uma
“beberagem” amarga que Rosalvo lhe dera, mudou totalmente, e
se transformou nessa mulher valente que nenhum homem jamais
ousaria levantar a mão para machucar.
Outra personagem marcante no romance é Esmeralda, com-
panheira de Rufino, negra, que se oferecia para os marinheiros no
cais, tinha o corpo “moreno”, seios pujantes e olhos verdes brilhan-
tes, mas apenas o negro Rufino não percebia sua malícia porque
estava apaixonado, até que um dia começou a desconfiar de Esme-
ralda. A mesma confessa que lhe traíra com Guma, seu melhor ami-
go e Rufino, então, acerta-lhe a cabeça com o remo, matando-a e,
em seguida, joga-se no mar para ser devorado pelos tubarões.
A personagem Maria Clara era casada com Mestre Manoel,
cantava belas canções nas noites de amor no cais e não se desespe-
rava quando seu mestre de saveiro demorava a chegar, porque ela
nascera e vivera nos saveiros, esperava que quando Iemanjá cha-
masse seu homem ele fosse valentemente. Logo, a personagem se
diferenciava da personagem Lívia, no sentido de que ela pertencia
àquela cultura vivenciada por seus familiares, cultura esta que era
repassada oralmente aos descendentes que viviam à beira do cais.
Outra personagem presente na obra é Judith, que perdeu
seu marido Raimundo e seu filho Jacques, numa noite de tempes-
tade e de fúrias violentas de ventos; porém carregava em seu
ventre outro filho de Raimundo. Agora Judith terá que trabalhar
duro para sustentar seu filho, porque seus homens, Raimundo e
Jacques, foram levados pela mãe d’água, que é a mulher mais
bonita do mundo, a temida Iemanjá.
Dentre as mulheres citadas, Jorge Amado destaca também as
três filhas de Traíra (morta ao levar um tiro, em Cachoeira) Marta,
Margarida e Rachel. Marta tinha dezoito anos, cosia peças e estava
preparando um enxoval à espera de um noivo; Margarida nadava na
beira do rio; Rachel era a menor, apenas quatro anos, brincava com
boneca e não sabia pronunciar direito as palavras.

64
A cultura afro-brasileira e a construção do gênero...

Outra personagem em destaque na narrativa é a professora


Dulce. Levando em consideração que ela acompanhava a vivência
daquelas famílias e daquele contexto social, fazia uma reflexão no
sentido sobre como colaborar com as mesmas. Assim, a inquietação
decorrente da situação enfrentada por aquelas famílias era frequen-
te para essa professora, que constantemente angustiava-se, pois seus
alunos permaneciam pouco tempo na escola e quando chegavam a
idade dos 11 anos, na qual muitos já conseguiam velejar um saveiro
ou carregar um saco de farinha na cabeça, estavam preparados para
atividades de homem adulto.
Ressalta-se que no encanto das histórias que ela contava
aos seus alunos, posteriormente, só conseguia ver tristeza no des-
tino que cada um assumia para si. O mar e seus elementos deixa-
vam de ter a melodia que a fascinava, pois diante da realidade na
qual via seus ex-alunos só sentia tristeza e não podia fazer nada
para mudar o destino daquelas pessoas. Sofria diante daquela ma-
zela social que tanto a atormentava, sentia-se impotente ao ver
aqueles meninos tão jovens sem frequentar a escola, e tinha cer-
teza de que sozinha não poderia mudar aquela realidade. A edu-
cadora esperava, como se por um milagre, que melhorias viessem
para aquele povo, que as esposas não precisassem se prostituir
pra sobreviver depois que seus homens morressem.
Todos esses posicionamentos mostram que Mar Morto é uma
obra modernista, mas que retoma um certo lirismo regional. Por
mostrar, a partir de um romance, situações sociais e políticas em
meio a uma temática amorosa, as quais vivenciavam os personagens
da beira do cais, Jorge Amado foi muito criticado, pois se tratando
de uma narrativa moderna, não seria de acordo falar de amor, po-
rém, através do “romantismo” de suas temáticas ele retrata ques-
tões sociais específicas da população e da cultura baiana.

65
Religião, Gênero e Poder

Considerações finais
Jorge Amado e Ruth Landes foram escritores pouco agracia-
dos em pesquisas acadêmicas, logo fazer um trabalho voltado para a
interpretação do romance Mar Morto e da obra etnográfica A Ci-
dade das Mulheres, e identificar a grandeza de suas contribuições
para literatura e para a antropologia brasileira , tornou-se um desafio
no sentido de se conseguir fazer uma abordagem hermenêutica das
duas obras, analisando de forma sistemática elementos simbólicos sig-
nificativos da cultura e da religião afro-brasileira.
Porém, como em qualquer pesquisa, no início ocasionou certa
insegurança, pelo fato de não se ter um acervo teórico tão vasto
referente ao escritor baiano e a antropóloga norte-americana, sobre
as temáticas evidenciadas pelos mesmos. Entretanto, o fato de as
próprias obras serem constituídas de vários elementos simbólicos e
interpretativos, e com auxílio de outras bases teóricas, foi possível
obter um suporte teórico para se adentrar nas peculiaridades da Bahia
descrita por Amado e Landes, e analisar uma gama de aspectos
culturais descritos por eles.
E através disso, desmistificar a visão preconceituosa de cer-
tos críticos em relação as obras de Jorge Amado e as pesquisas
antropológicas de Ruth Landes, demonstrando na presente pesquisa
o fato do romance Mar Morto apresentar um valor literário diferen-
cial dos demais, uma vez que apesar do contexto da época em que a
maioria de suas obras foram escritas, o país enfrentava um contexto
bem complexo, e por conta desse envolvimento, favoreceu para que
na obra o autor utilizasse recursos metaforizados para descrever e
abordar de forma crítica a população menos favorecida da época e
suas diferentes formas de crenças, especificamente no contexto so-
ciocultural da Bahia.
Dessa forma, apesar das numerosas críticas direcionadas
as obras de Jorge Amado e Ruth Landes, pretende-se deixar um
legado de como eles contribuíram para a intelectualidade brasilei-
ra e que de acordo com novas concepções por parte da crítica
literária, uma nova reavaliação hermenêutica de suas obras, no
sentindo de fazer uma redescoberta do valor simbólico que os
escritores deixaram literariamente como herança poética e an-
tropológica como abordagem de gênero.
66
A cultura afro-brasileira e a construção do gênero...

Referências bibliográficas
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São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
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TÁTI, Miécio. Jorge Amado- Vida E Obra. Belo Horizonte: Itatiaia,
1961.

67
Religião, Gênero e Poder

68
Capítulo 4
“Mulher que presta é aquela que é vivida”1:
a Interdição Feminina Gerada pela Sangria Menstrual

Lucielma Lobato Silva


O estudo de gênero quase sempre nos remete às relações de
poder, pois, é o instrumental mais apropriado para a percepção das
relações sociais. No estudo do conceito de gênero não só se analisa
a situação das mulheres, mas, também, a história social de papéis
substancialmente demarcados e desiguais (SILVA, 1998). Isso por
meio da estratificação de hierarquias (SAFFIOTI, 2004), que deter-
minam o lugar em que “homens” e “mulheres” devem ocupar.
Nesse âmbito o ser “homem” ou “mulher” tem-se incluído no
que se pode denominar de “formação histórica” ou “social”, ou seja,
são circunscritas em um espaço e tempo pré-determinado pela soci-
edade e que sedimentam diferentes concepções, e, o fazem de acor-
do com “diferentes modelos, ideais, imagens que têm diferentes clas-
ses, raça e religiões sobre homens e mulheres” (LOURO, 1990, p.
43). Portanto, a construção de gênero está imbricada ao processo de
socialização onde são formatados os papéis e as maneiras de atua-
ção de homens e mulheres em diferentes tempos e espaços.
Nesses espaços os homens ou mulheres obtêm maior ou me-
nor possibilidade de ascensão social. Nas religiões afro-brasileiras,
por exemplo, vemos a possibilidade de ascensão religiosa para am-
bos os gêneros, pois tanto os homens quanto as mulheres podem
assumir quaisquer postos na hierarquia religiosa sem que sua condi-
ção sexual seja levada em consideração (SEGATO, 2005). Porém,
em alguns casos a mulher fica apartada de adentrar em sua casa de
santo devido sua condição biológica, ou seja, devido menstruar. Sen-
do assim, este artigo visa analisar uma casa de santo dirigida por
uma mulher em que a maioria de seus filhos de santo são mulheres
férteis, isto é, ainda estão passíveis as suas regras mensais.

69
Religião, Gênero e Poder

A mulher nas religiões de matriz africana


Nas religiões de matriz africana homens e mulheres podem
vir a ocupar o maior posto hierárquico da religião, isto é, o de
sacerdotes ou sacerdotisas. Porém mesmo Landes (2002) afir-
mando em A Cidade das Mulheres que eram elas (as mulheres)
quem dominavam a vida na sociedade baiana, sendo elas a “ca-
nalização da vida na Bahia” (2002, p. 221), pois, na época eram
consideradas sagradas, uma vez que serviam como o único meio
pelo qual os deuses poderiam vir à terra2, e mesmo detendo esse
poder social e espiritual elas tinham um papel exato a exercer no
interior da sociedade brasileira3.
No Tambor de Minas do Maranhão, as mulheres também eram
consideradas pilares de sustentação da religião, como mencionava
Nunes Pereira (1948), Sérgio Ferretti (1985), Mundicarmo Ferretti
(1996) e Santos (2001). Nessa religião afro-maranhense especial-
mente nas Casas das Minas e na Casa de Nagô somente as mulhe-
res podeiam receber entidades espirituais. Segundo Ferretti (1995)
esse quadro passa a se modificar com a disseminação das Casas de
Caboclos, pois os homens nessas casas de santo do Maranhão pas-
sam não só a receber as entidades como também a dirigir os espaços
sagrados. E como na Bahia, as grandes matriarcas maranhenses,
estavam submetidas às regras de conduta feminina, pois quando os
maridos saiam de casa, por diversos motivos, elas geralmente não se
casavam novamente (SANTOS, 2001; ABREU, 2004).
No século XIX quando a Mina4 é irradiada para o Estado do Pará
(VERGOLINO, 2002), vem com a livre participação mediúnica de mu-
lheres e de homens apesar de ser fundada por mãos femininas5, isto é,
nas primeiras casas de matriz africana no Pará os homens poderiam
receber entidades como médiuns de incorporação. Essa questão era
algo tal inaceitável para as casas de matriz africana ao ponto de o pes-
quisador maranhense Nunes Pereira (1948) se impressionar quando veio
ao Pará e viu um negro bailarino na corrente mediúnica:
Chocou-me, contudo, entre as “filhas de santo”, a presença
de um bailarino negro que conduzia ao longo das danças e
tirava “pontos”, parecia-me uma inovação ou a sobrevivên-
cia de outro culto africano. (...) Esse negro de Belém era um

70
Mulher que presta é aquela que é vivida

extraordinário bailarino, (...) Era igualmente extraordinário no


tirar os “pontos” (...) Mas essa inovação foi chocante, por
que nunca vi nenhum homem dançar em Casa de Mãe Andre-
sa Maria (PEREIRA, 1948, p. 53).
Diante disso os gêneros masculino e feminino podem abrir
casas de Mina Nagô, assim como em quaisquer religiões de ma-
triz africana e iniciarem seus desenvolvimentos mediúnicos, des-
sa maneira ambos podem se tornar sacerdotes. Mas o feminino
em algumas casas é interditado no período menstrual por serem
consideradas venenosas ou fonte de energias negativas quando
estão nesse período. Tal questão é responsável pela concepção
de que as mulheres, mesmo estando em religiões como as afro-
brasileiras em que elas detêm determinado poder, são sujeitas a
“marginalidade” simplesmente por serem mulheres e, portanto,
diminuídas diante ao seu sexo oposto que não vivem tais ciclos, e
muitas vezes isso ocorre por elas mesmas.

Uma casa de santo dirigida por mulher6


Em Abaetetuba não podemos afirmar a existência de um ma-
triarcado, pois quando se pensa em Mina Nagô no remetemos as
figuras Pai Paulo de Oxóssi e Daniel de Oxalufã7 (SILVA, 2009).
Porém, mulheres também exercem grande poder no comando religi-
oso das casas de Mina em Abaetetuba. A exemplo, temos a sacerdo-
tisa Mãe Maria José ou Mãe Maria é zeladora da Tenda Espírita
de Oxum, estabelecida na Mina Nagô em Abaetetuba desde 2002.
Está localizada na Rua Haroldo Araújo sem número no Bairro da
Aviação no município de Abaetetuba-PA.
A sacerdotisa realizou sua feitura de santo na Mina Nagô no
terreiro de Mãe Fátima Canudo, localizado no bairro da Sacramenta
em Belém do Pará. O processo de feitura não ocorreu imediatamen-
te após a entrada de Maia José na casa santo, pois foram anos de
desenvolvimento espiritual para que as entidades determinassem o
dia exato em que deveria ser feito os rituais para a iniciação. Segun-
do a mãe de santo:
Nesse terreiro eu fiz a minha feitura de recolhimento du-
rante 7 dias de recolhimento no quarto de santo, logo de-

71
Religião, Gênero e Poder

pois que eu incorporei em um trabalho forte que a entidade


determinou que a feitura de santo fosse feita o mais rápido
possível, imediatamente. Fiz os trabalhos todos, o de exus,
dos orixás e dos caboclos, todas as obrigações necessári-
as. Durante a feitura fiquei o tempo todo incorporada, por
isso não me lembro de muita coisa. Essa foi uma grande
feitura que foi feita de lá pra cá foi só as minhas entidades
que tomaram conta da minha vida8.
Após a conclusão do processo iniciático a então sacerdotisa
Maria José volta para Abaetetuba com o título de Vodunsa, Sacerdo-
tisa ou Mãe de Santo na religião Mina Nagô recebido pelas mãos de
sua mãe de santo, este título foi emitido pela Federação Espírita
Umbandista dos Cultos Afro-Brasileiros do Estado do Para – FEU-
CABEP, o qual fez com que Mãe Maria José adquirisse reconheci-
mento e clientes em Abaetetuba.
Desde a fundação da Tenda no município de Abaetetuba em
1992 ela tem sofrido um aumento e uma diminuição em número de
filhos de santo, ou seja, os filhos entram na casa para realizarem
seus processos de desenvolvimento espiritual, mas em pouco tempo
saem da casa. Essa casa de santo possui 08 filhos de santo9, mas
hoje os que realmente frequentam o espaço sagrado são 06, como se
verificar no quadro 01 disposto abaixo:

QUADRO 01: Obrigações realizadas pelos filhos de santo


na Tenda Espírita de Oxum
Médiuns da Casa Filhos de Santo da Tenda e as respectivas
obrigações
Marcelina Batismo, 5 Amancis
Marcelita Batismo, Anjo de Guarda firmado
Nete Batismo, Anjo de Guarda firmado
Mª Luiza Batismo, Anjo de Guarda firmado
Marcicleide Batismo, Anjo de Guarda firmado
Pedrinho Batismo
FONTE: Acervo da autora

72
Mulher que presta é aquela que é vivida

Essa questão de crescimento e diminuição do número de fi-


lhos se deve entre tantos fatores, pela administração ser feminina e
considerada rígida. Pois, os filhos especialmente os homens e os ho-
mossexuais saiam da casa. Segundo informações da mãe de santo,
assim que “eles começam a perceber como são as coisas aqui na
minha casa, eles vão embora, eu não faço questão alguma de ter eles
aqui, porque eu quero gente que venha pra trabalhar, pra desenvol-
ver”10. Tal situação tem feito com que os filhos que entram na casa
fiquem pouco tempo e logo buscam outro lugar para dar andamento
na mediunidade. A esse respeito a sacerdotisa comenta:
Aqui na minha casa não temos gays nem lésbicas, os filhos e
filhas desta casa tem família e marido, essas pessoas não vem
aqui, não sei por que, eles vieram ficaram um tempo, mas não
permaneceram, eles acharam o ritmo de trabalho muito pesa-
do. Cheio de regras, eles não ficam. Além do mais aqui o
médium não bebe e nem fuma, ele só vai fazer isso quando as
entidades estiverem na cabeça, e com responsabilidade elas
(as entidades) vão assumir o médium. Mas, eu não deixo vir
pra minha casa e ficar bebendo, fumando, falando palavrões,
aqui nem pensar11.
Seja como for, aumento do número de filhos de santo nos últi-
mos anos na Tenda Espírita de Oxum tem crescido sempre em quan-
tidade no número de mulheres, ver o quadro 01, por essa razão este
espaço sagrado é um reduto comando pelo gênero feminino, na con-
dição da sacerdotisa, além de ser frequentado por médiuns que em
sua maioria são pertencentes ao mesmo gênero.

Divisão sociorreligiosa pelo gênero


Devido a Tenda Espírita de Oxum ter sido firmada em apenas
um único segmento afro-brasileiro que é a tradição afro-paraense
Mina Nagô sob a influência da Umbanda, possui sua divisão de car-
gos hierárquicos, como poder ser observado no quadro 02.

73
Religião, Gênero e Poder

QUADRO 02: Membros, Cargos Religiosos, rituais de incitação,


período de entrada e idade dos filhos de santo na
Tenda Espírita de Oxum
Membro Religioso Cargo Religioso Período de Entrada na Idade
Tenda
Maria José Sacerdotisa/Mãe de santo 1992 45 anos
Marcelina Mãe Pequena 1999 32 anos
Marcelita Filha 1999 35 anos
Nete Filha 2000 30 anos
Maria Luiza Filha 2000 30 anos
Marcicleide Filha 2000 23 anos
Pedrinho Filho 2010 12 anos
Ramon Filho 2005 28 anos
Clécio Filho 2004 30 anos
Vilma Filha 2005 27 anos
Décio Tamboreiro 1990 46 anos

FONTE: Acervo da Autora.

Como pode ser comprovada pelo quadro 02, a Tenda hoje pos-
sui 08 filhos de santo sendo que apenas 06 primeiros frequentam
com assiduidade o espaço sagrado. Nos períodos de festas de santo
ou de obrigações para as entidades da casa, todos ajudam no desen-
volvimento do ritual, mas os pormenores são, em sua maioria, feitos
especialmente pela mãe de santo como a colheita de ervas, a produ-
ção dos banhos, o preparo de alimentos e a arriação das oferendas.
Por isso a importância da sacerdotisa é total para a casa de santo,
pois ela detém toda a gama de conhecimento que envolve a religião
Mina Nagô. A mãe de santo ainda pontua:
A comida é de santo é feita por mim mesma e pela mãe
pequena. Eu faço questão de fazer a comida do meu orixá
eu mesma, por que o médium ainda não tem condição de

74
Mulher que presta é aquela que é vivida

fazer, as entidades eles ainda não deu permissão de fazer a


comida. Eu faço todo, quando é uma festa de uma entidade
de qualquer filhas de santo sou eu quem faço. Somente
com a ajuda das filhas de santo no preparo, elas também
ajudam a macerar as ervas pra fazer os banhos, na defuma-
ção e na limpeza do terreiro, também tem a função de orga-
nizar as roupas dos vultos e nossas12.
Hierarquicamente, após a mãe de santo está a mãe pequena
que também possui grande conhecimento a respeito da sua religião.
Ela é tão importante para a casa que quando um determinado ritual
está acontecendo, a mesma tem a possibilidade de dar andamento a
todo o ritual, sem a presença de Mãe Maria José. O que implica
dizer que ela possui uma gama de conhecimento que proporciona
sua presença ser de total relevância para o espaço sagrado de Mãe
Maria José. Segundo a sacerdotisa:
Tenho agora 6 filhos dois homens e quatro mulheres, uma
mãe pequena e outros desenvolvendo tarefas paralelas. Em
tempo de festas eles ajudam, mas eu organizo quase todas as
coisas, mas as tarefas são assumidas quando a gente tem
tempo de trabalho que são dadas as funções pra cada uma.
Tem uma mãe pequena no terreiro na minha ausência ou quan-
do eu to incorporada ela toma conta. Agora existe todo um
processo, aqui na minha gira tem toda uma energia fora do
normal. As entidades tomam conta do ritual, eles tomam con-
ta do ritual e não dão toda a responsabilidade pra os mé-
diuns, e por eles é dado as funções para os médiuns, mas
controlado, eles ficam com a maioria da responsabilidade, por
que existe médiuns que não estão incorporando normal ou
não está preparado, por isso não é dado de imediato a res-
ponsabilidade pra esse médium13.
A função da mãe pequena é fundamental para a Tenda e seu
conhecimento a respeito dos rituais, fazem dela, de acordo com as
informações da mãe de santo uma:
Eximia mãe pequena, se eu mandar chamar ela está aqui, e
também vem sem eu mandar chamar. Ela faz tudo meche em
tudo, por que tem a minha permissão, é a única que pode

75
Religião, Gênero e Poder

meche pra zelar. Mas, ela não pode tocar14 nos pontos, mas
na minha ausência ela poderia abrir o trabalho. Mas se eu
estou ela não faz ela não faz, ela respeita a hierarquia15.
As outras filhas de santo apesar de não possuírem o grau mais
elevado como Marcelina, que também são relevantes para o espaço
sagrado, elas estão sempre ajudando nas organizações do terreiro
como a limpeza do mesmo, ajudando de forma direta e indireta na
produção dos alimentos e banhos16, na confecção dos indumentários
e das roupas das entidades. Além de ajudarem financeiramente para
as despesas dos rituais e das festas de obrigações.
Os filhos de santo são três, mas somente um está frequentan-
do o espaço sagrado, este filho comparece no terreiro apenas mo-
mentos antes dos rituais, o que implica dizer que ele não ajuda em
nenhum processo de organização ritualística de sua casa, até porque
ele é um menino de 12 anos de idade, o qual está estudando nos
momentos em que os rituais são organizados. Os demais filhos au-
sentes17 da casa estão sempre ajudando com auxílios financeiros para
manutenção do espaço sagrado e para que seus pontos fiquem sem-
pre firmados.
No rol dos homens médiuns que frequentam a casa temos tam-
bém os tamboreiros que assim como qualquer casa de matriz africa-
na são de fundamental importância para a manutenção da casa, uma
vez que todo ritual inicia por intermédio desses agentes sociais que
ao tocá-los emitem os sons que somados às doutrinas cantadas im-
pulsionam as entidades a virem à terra resolver as aflições. Eles são
três, mas somente Décio é consagrado para esta função, os outros
vão para as festas e rituais quando a mãe de santo manda chamar e
os paga pelo trabalho realizado. Para a sacerdotisa:
O tamboreiros é importante por que ele é quem bate os tam-
bores pra chamar as entidades pra vir ver os nossos anseios,
sem o tamboreiros não tem teria nada, ele é de suma importân-
cia para o ritual como todo. Pela estrutura da própria religião.
O tambor é de responsabilidade dos tamboreiros.18
Sendo assim, este espaço sagrado é um reduto de poder femi-
nino, elas são as que comandam toda a estrutura, pois os homens
assumem o posto secundário nas ordens e determinações do mesmo,
76
Mulher que presta é aquela que é vivida

por mais que estes estejam nos toques dos atabaques que é uma
função primordial, mesmo assim eles não têm poder de mando. São
todos admirados pela mãe de santo e pela mãe pequena. Algo seme-
lhante foi visto por Ruth Landes (2002) no Candomblé da Bahia,
onde esta autora afirmava que o Candomblé e, especialmente, o lu-
gar das mães-de-santo na sociedade baiana chamaram muita aten-
ção Landes, pois as mulheres eram quem canalizavam a vida na
Bahia. É a partir dessas mulheres que ela passa a refletir sobre a
própria condição feminina, fazendo uma leitura sensível do poder
que detinham.

Menstruação: um vermelho que suja e interdita


Porém, esse poder é periodicamente barrado, pois nos dias em
que essas poderosas mulheres menstruam, ficam interditadas de aden-
trar na casa de santo e de exercer tarefas primordiais para o seu
desenvolvimento espiritual e da própria casa de santo. Essa questão
ganha complexidade quando se pensa na Amazônia, local em que a
pesquisa foi realizada, pois é uma região brasileira repleta de simbo-
lismo que a caracterizam como uma região mágica ou encantada,
devido crença de boa parte da população em botos, curupira, lobiso-
mem, oiaras, matintas-pereira, encantados do fundo e da floresta,
bichos visagentos, dentre outros.
A crença nesses encantados gera outras ligadas a tabus como
o menstrual, o qual tem a função de restringir o feminino de diversas
atividades econômicas, sociais, religiosas, além de atividades profis-
sionais, por ser considerado um período que gera intenso perigo a
toda comunidade.
O antropólogo Heraldo Maués (1990) em sua obra intitulada A
Ilha Encantada faz uma análise da pajelança amazônica no distrito
de Itapuá, localizado na cidade de Vigia-PA. Segundo Maués a paje-
lança é caracterizada como uma atividade de cunho religioso que
tem a função de realizar curas por intermédio do pajé incorporado
pelos encantados. Esses pajés realizam uma diversidade de curas
em doenças consideradas naturais, de especificidade medicinal e não-
naturais, gerada “pela malinesa dos encantados”. Dentre as doenças
ditas como naturais tem-se a suspensão que é a “interrupção anor-

77
Religião, Gênero e Poder

mal da regra de uma mulher menstruada, em que o sangue pode


subir para a cabeça”, isso “pode ser provocado se a mulher, durante
a menorreia, pisar no molhado ou no barro” (MAUÉS, 1990, p. 48).
A antropóloga paraense Angélica Maués (1993) afirma que
comunidade de pescadores Itapuá localizada na região do salgado
paraense, a mulher é vista condição de inferioridade pela própria
comunidade, e isso é tido como sendo algo normal, pois quando mu-
lher ao menstruar, se torna sujeita a seu estado fisiológico, é conside-
rada então “venenosa”, fonte de panema, e poluída, podendo assim
azarar e até destruir, causar a morte de plantas ou animais. E o pior,
podendo atingir também as pessoas no caso o homem, no seu traba-
lho da pesca, a atividade econômica mais importante da vila.
Essa questão pode ser considerada como tabu devido excluir
o feminino de diversas funções, o que é justificado pela sociedade
itapuense como algo normal, pois a mulher menstruada é, de acordo
com informações de pessoas da comunidade, instrumento de impu-
reza, poluição e veneno que em contato com os outros seres (ho-
mem) pode ser o fator de panema (azar). Tal condição, na análise
da autora, ratifica o status de sujeição feminino em Itapuá. E nas
palavras de Angélica Maués (1993):
À mulher, particularmente, por sua especificidade e ambigui-
dade em poder mover-se continuamente entre dois domínios
distintos, o da cultura e o da natureza, a ocupação social que
ela ocupa reflete exatamente esse modo de perceber as coi-
sas. Ela se difere ou se opõem ao homem pela sua participa-
ção em processos naturais que impedem de uma interferência
social direta, uma vez que eles não podem ser controlados
por influência humana. Como esse controle a rigor não pode
ser feito, entra em jogo, então os artifícios criados pela pró-
pria sociedade que através das regras culturais, em vigor para
essa situação, realiza uma interferência que, de outro modo
não é possível conseguir (MOTTA, 1993, p. 103).
Nas religiões de matriz africana, de acordo com Landes as
mulheres mães de santo do Candomblé só poderiam assumir o maior
posto sacerdotal após a menopausa, “período em que a mulher vira
homem”. Em uma entrevista com Martinho do Bom Fim, Landes
menciona:
78
Mulher que presta é aquela que é vivida

As mulheres são sagradas para os deuses quando no inte-


rior dos templos. Compreende? E se supõem que os ho-
mens sejam profanos pelas suas relações comerciais e com
mulheres. Imagina-se que o sangue dos homens seja quen-
te e isso é considerado ofensivo para os deuses, para quem
as mulheres são preparadas. Martinho não se queixou do
sangue quente das mulheres? Das jovens, sim. Ele acha
que só devem ser sacerdotisas-chefes, mães, como são
chamadas quando idosas e libertas de todo desejo e da
menstruarão (LANDES, 2002, p. 77).
Edison Carneiro (1991) quando descreve o Candomblé tam-
bém faz referências a importante presença feminina, pois segundo
ele foram as grandes matriarcas quem fundaram esta religião em
terras do novo mundo, e, “antigamente o Candomblé foi nitidamente
um oficio de mulher” (p. 104). Eram elas (as yalorixás ou mães de
santo) quem cozinhavam, “enfeitavam a casa por ocasião de festas,
superintendiam a educação religiosa de mulheres e crianças. Outro
indício está na marcada preponderância da mulher na história do
candomblé (p. 104-105)”. Essas matriarcas descritas por Carneiro
(1991) são em geral mulheres idosas, “respeitáveis, que cumpriam
todas as suas obrigações como filhas durante várias dezenas de anos”
(p. 105-106).
Nesse sentido, apenas as mulheres idosas, isto é, que não
menstruam é que podem assumir o sacerdócio e os postos elevados
na hierarquia do Candomblé, isso se deve entre tanto fatores pela
menstruação que as torna impuras. A esse respeito Roger Bastide
(1978) menciona que mulheres menstruadas não podem fazer ativi-
dade nenhuma nas casas de santo, na verdade não podem se quer
comparecer no espaço do terreiro quando menstruadas, pois as enti-
dades tem horror do sangue expelido do corpo feminino quando do
período das sangrias menstruais, segundo o mesmo:
Mulheres menstruadas não devem nem mesmo assistir à fes-
ta, pois as divindades têm horror ao sangue catamenial; se
uma delas ousa desobedecer, imediatamente os tambores o
reconhecem, pois sua simples presença perturba o toque
musical (BASTIDE, 1978, p. 25).

79
Religião, Gênero e Poder

Retornando nas análises da Tenda Espírita de Oxum na reli-


gião Mina Nagô, podemos perceber que o feminino está sob as re-
gras da menstruação, ele é visto como um ser ambíguo. Na fala de
Mãe Maria José percebemos que a menstruação é um período em
que ela realizava rituais importantíssimos e em que o seu poder redo-
brava, em suas próprias palavras:
Mas tem certo ponto que a menstruação pode deixar a pes-
soa mais poderosa, por que são duas energias ali, a positi-
va em contato com a negativa que faz com que este mé-
dium tenha mais poder, mais força (...) eu já senti (...) um
dia eu realmente não tive como parar o trabalho, menstruei
e tive que aguentar e até certo ponto em que a entidade
não estava encaixada eu estava sentido uma força muito
forte, fora do normal, e no momento em que a entidade de
cabeça se apoderava e ela, nesse dia, veio com mais força,
com mais poder (...)”19.
A ambiguidade da menstruação fica mais clara quando a Mãe
Maria José afirma que não é tabu para ela20, porém é um período de
restrição às demais filhas de santo quando menstruadas, uma vez
que segundo ela é necessário saber lidar com esse sangue, haja vista
que ele emana uma explosão de energia que uma simples iniciada
não sabe lidar e por essa razão a mesma é interditada, e nas suas
próprias palavras:
Durante as 24 horas do início da menstruação os médiuns
não podem vir na casa e não podem tocar em nada, se vie-
rem não podem se envolver na corrente tem que ficar do lado
de fora da corrente, por que o sangue o atrai muitos espíritos
para a casa, muitas más influencias para a casa e quando uma
médium está menstruado dentro da corrente esta fica pesada
(...) Bom, mas há casos e comigo já aconteceu de um início de
trabalho, e um trabalho muito importante a menstruação
descer (...), então a entidade segura o fluxo, parando o flu-
xo, e quando terminava o ritual a menstruação voltava (...)
(meu grifo).21
Mãe Maria José ao tratar da menstruação em sua casa, deixa
bem claro que:

80
Mulher que presta é aquela que é vivida

Uma mulher envolvida por seu fluxo menstrual não pode vir
na casa de santo e principalmente no período de obrigações
(festas de santo), por que elas vão se prejudicar em suas
evoluções espirituais. Esse prejuízo é por causa do Exu, que
gosta de sangue, e então ele se aproxima com mais força
daquela mulher, muitas vezes estas não consegue nem ficar
de pé, e o que deveria ajudar a matéria daquela pessoa, a
impede de progredir na sua espiritualidade (...) veja a cada
obrigação as energias ajudam os médiuns a evoluírem ainda
mais (...). Se ela entra em guma para perder energia é melhor
nem aparecer aqui!22.
Essas informações relativizam a sangria menstrual, pois ela é
vista de dois prismas um pelo poder da mãe de santo e outro como
sendo a falta de poder das filhas, pois na condição de menstruação a
mãe pode fazer determinados rituais que não poderiam de maneira
alguma serem adiados. Por outro lado, as filhas não podem ir ao
terreiro se estiverem menstruadas, mesmo que tais rituais sejam im-
portantes. Mas essa assertiva é válida apenas para rituais de suma
importância que por causa da lua ou por necessidade extrema do
cliente consulente não podem mudar de data, somente nessa condi-
ção a mãe de santo poderia entrar no terreiro e fazer todo o trabalho.
Nas demais datas essa questão não poderia ser realizada, pois
inclusive a mãe de santo era considerada pela entidade, como peri-
gosa. Em um relato de seu Rompe Mato23 me disse que não aceitava
que a mãe de santo continuasse a menstruar, pois a sua missão fica-
va restringida, e segundo ele, ela foi criada para realizar tais traba-
lhos mediúnicos a todo instante que alguém precisar, e a menstrua-
ção era um entrave. Seja como for, no final de ano de 2010, surgiu
um cisto no útero da mãe de santo, por isso foi retirado todo esse
órgão, desde então ela não menstrua.
Dessa forma, a construção sócio religiosa do tabu na religião
Mina Nagô se estabelece como um importante meio de interdição
para o gênero feminino, qual possui poder hierárquico, como mãe de
santo, filha de santo ou participante/adepta da religião, mas está sem-
pre presa por seu próprio ser, pois “lidar com mulher é lidar com
tabus. É ter que se proteger de incríveis ambiguidades. (...). A mu-
lher é marginal por si só, já que ela assume, mais claramente do que

81
Religião, Gênero e Poder

o homem, a dupla característica de ser humano e animal” (AUGRAS,


1989, p. 40).
Então, devido o próprio corpo feminino e sua fisiologia, a mu-
lher está fadada a servidão da espécie, por ser poderosa e perigosa,
por essa razão não deve ser tocada, não pode entrar em rituais e
nem realizá-los mesmo quando sacerdotisa. Dessa maneira, o tabu é
menstrual é um eficaz mecanismo do gênero masculino para interdi-
tar o feminino inclusive nos espaços onde elas (as mulheres) têm
poder hierárquico.
Ela (a pessoa sujeita a liminaridade) está em perigo e o
emana aos outros. Este perigo é responsável pelo interdito do
gênero feminino em diversas sociedades, momento em que o indi-
víduo deve se retirar ou se afastar da sociedade de seu convívio
pelo tempo em que as regras continuassem o fluxo (MEAD, 2009;
CARNEIRO, 1991; VERGER, 1986). Esse interdito/afastamento
do social se deve pela noção de que a sujeira será eliminada pela
reclusão. Por outro lado, este perigo pode ser controlado quando
o indivíduo se submeter à rituais de limpeza, onde o perigo passa
a ser controlado (DOUGLAS, 2010).

As entidades falam
As entidades tem grande relevância quando se pensa na es-
trutura desta casa de santo, pois todas as determinações da mãe de
santo são perpassadas pelos desejos das entidades. Em outras pala-
vras, qualquer concepção criada neste espaço sagrado vem das en-
tidades, inclusive a respeito da menstruação ser considerada pela
mãe e pelos seus filhos como tabu. Nesse sento o Caboclo Sete
Flechas, o atual chefe da mãe de santo afirma:
Os rituais não podem ser realizados quando se tem a presen-
ça de uma mulher que está de regras, pois a menstruação é
uma energia ruim, que pode prejudicar o próprio ritual e a
mulher. Quem entrar para a Mina e para a Umbanda tem que
saber que está rezando sobre uma cartilha que determina o
que o médium pode ou não fazer, e, a menstruação é uma
proibição. É uma proibição que não vem de agora, que foi
estabelecida em outros tempos.

82
Mulher que presta é aquela que é vivida

O sangue menstrual traz o azar, ele quebra a força do ritual, do


trabalho que está sendo feito. Chegar perto dessa energia
ruim faz muito mal para as entidades, por que o fluido que
vem é o que atrapalha, para os caboclos da mata, especial-
mente para os índios, isso é terrível. Eu não suporto.
Quando a gente ainda morava na aldeia, há muitos anos atrás
nos foi ensinado que a menstruação, uma mulher menstrua-
da, deve ser proibida de entrar nas ocas com seus pais, irmão
ou esposos. Já que esse sangue é pesado e destrutivo, por
isso elas eram recolhidas em ocas distantes e ficavam por lá
até a sangria passar. Isso agente aprendeu e temos isso como
um conhecimento adquirido por uma hierarquia que deve ser
respeitada. E respeitado por todos.
Uma segunda entidade de grande respeito na casa de santo é
seu Boto Branco, o qual menciona que a menstruação:
Os botos não gostam da menstruação, porque o cheiro do
sangue nos atrai, já que quando a mulher está menstruada ela
solta um cheiro... bem os botos não fazem mal a ninguém, nós
somos atraídos, e queremos estar o tempo todo por perto da
mulher que está menstruada.
A cobra grande faz mal à mulher que entra no rio ou no terrei-
ro menstruada, pois ela tem o poder de deixar resíduos de
magia, quando isso acontece a mulher pode até ficar doida,
louca. A cobra grande vive na água e na terra, o seu encanto
é forte, e o sangue da mulher menstruada faz com ela se torne
um elemento do encanto dessa cobra.
Atração que é feita do cheiro do sangue por nós botos tam-
bém ocorre o contrário de nós para a mulher, já que ela fica
embebida pela magia do boto, encantada, mundiada, isso é
ruim para a mulher, pois se tiver uma cobra por perto ela tem a
possibilidade se encantar, esse encanto que a deixa em esta-
do de loucura.
Mas para os índios a menstruação é um intenso atrapalho.
Ainda nessa perspectiva o Caboco Corre Beirada pontua:
A proibição da menstruação se deve pelo mistério do tempo.
Na verdade é por causa da hierarquia, do respeito. Nos tem-
pos antigo, antes de Jesus Cristo dava-se sangue para os

83
Religião, Gênero e Poder

ídolos, para os deuses. Mas quando Cristo morreu na cruz ele


trouxe a vitória para os seus e sangue que escorreu dele ser-
viu para lavar os maus da terra. Por isso o sangue de Jesus
simboliza a vitória.
Mas o sangue que desce da mulher todo mês é ruim, significa
o mal. Por isso para muito retirar as mulheres menstruadas do
terreiro é sinônimo de respeito. As casas que respeitam a
tradição não permitem que as mulheres menstruadas entrem
no terreiro. Até porque isso não foi criado a pouco tempo é
uma norma que vem de muitos tempos atrás.
Os índios como todo o povo da mata não suporta o esse
sangue eles não permitem de maneira nenhuma. E uma filha
que se preze sabe disso, elas nem se atrevem a discutir, por-
que a peia que elas tomam é muito grande, ai não compensa o
atrevimento. A menstruarão não pode e pronto. Não deve vir
mesmo!
Veja só para as tribos indígenas, mas antigas quando as mu-
lheres menstruavam havia dois significados, um para o senti-
do de alegria porque aquela jovem já poderia se casar e o
segundo de tristeza, porque ela acabava de entrar em um
período de constantes interdições, de afastamentos, pois
quando elas menstruavam ficavam recolhidas em cabanas
distantes dos maridos até o fluxo sessar, para que esse san-
gue não viesse a prejudicar os índios guerreiros.
É por isso que a gente sempre diz que mulher que presta é
aquela que é vivida. (grifo meu).
Para Dona Jarina:
O sangue menstrual é algo que a maioria dos cabocos abomi-
nam, eu em especial não gosto. Acredito que uma filha ou
uma mãe de santo que tenha respeito pela sua religião não
deve aparecer no terreiro quando está nos seus dias. A mens-
truação é uma limpeza que o organismos da mulher está fa-
zendo, essa limpeza atrai tudo o que não presta para ela, tanto
é que ela fica irritada, tem muitas que até adoecem com dores
de cabeça, inchaço nos seios, fraqueza...
É uma fase ruim e aqui a gente trabalha com a mediunidade,
isso quer dizer que quando a médium está desse jeito com
corpo físico abalado, sua mediunidade é claro que também

84
Mulher que presta é aquela que é vivida

vai ser abalada, ai vai ficar com uma carga de energias nega-
tivas, até porque quando a gente vem renovar nossos axés
aqui no terreiro, sai de nós muitas energias negativas que são
atraídas pelos corpos fracos.
Além do mais é respeito mesmo, coisa que não se deve ques-
tionar, não pode e pronto, a filha de santo e a mãe tem que
criar um calendário que não se aproxime dos dias de menstru-
ação, se coincidir marca outra data e pronto. O pior é agir
contra os ensinamentos, você em sua religião faz o que ela
não permite? Se faz, sabe das consequências! Assim é que
acontece com nós.
Nesse sentido, o sangue menstrual ganha uma versão de abo-
minável ou temível, pois prejudica as entidades da casa, em especial
os cabocos indígenas como Seu Sete Flechas, mas também prejudica
a filha de santo que atrai entidades consideradas ruins para mulheres
neste estado físico, como a presença de exus que são atraídos pelo
cheiro do sangue e fincam, segundo as entidades e a própria mãe de
santo, chupando esse sangue. Além disso, o povo da agua como os
botos quando baixam querem ficar o tempo todo do lodo dessa mu-
lher menstruada, uma vez que o sangue o magnetiza.
O sangue menstrual nas diversas sociedades é motivo de in-
terdição, devido ser levado à condição mágica de impureza. Sua exis-
tência pode vir a prejudicar toda a estrutura social, isso porque as
condições biológicas são tratadas a nível mágico, e assim, torna-se
um agente de forte perturbação social. A antropóloga Ondina Leal
(1995) afirma que o sangue menstrual é pensando como algo alheio
a mulher, pois não é o mesmo sangue que se distribui nos tecidos de
seu corpo, ele é identificado como “forte, nojento grosso”, por isso o
fluxo menstrual é em grande parte “dissociado do próprio corpo” (p.
22). Devido essa dissociação esse sangue tem sido tratado, princi-
palmente pelas sociedades patriarcais como elemento de repulsão.
James Frazer (1982) faz uma importante referência quando
apresenta diversas formas de uma pessoa se tornar perigosa para a
sua comunidade em quase todos os humores humanos estão presen-
tes. Freud (1996) também se remete aos diversos elementos biológi-
cos humanos como as secreções, as quais são consideradas fonte de

85
Religião, Gênero e Poder

propagação de energia negativa tais como a saliva, lágrimas, secre-


ções de vômitos, urina, excrementos, pus e o sangue especialmente
o menstrual.
Nesse âmbito as representações físicas e simbólicas referente
ao feminino, o sangue menstrual é talvez um dos que mais desperte
temeridade e aversão em diversas sociedades. Esse sangue não
emana de uma agressão aos tecidos ou é proporcionado por uma
lesão, ainda assim a força simbólica que representa o coloca no es-
paço das proibições do discurso, o tabu, e na associação com impu-
reza; considerado signo do mistério e da maldição para muitas cultu-
ras (BEAUVOIR, 1980).
Voltando as análises da casa de mãe Maria José, é notório
que às falas das entidades descritas acima, são reflexo das pro-
duzidas pela sacerdotisa, ou o contrário. Mas, seja como for, quan-
do se pensa no sangue menstrual eles têm discurso sempre no
sentido de tabu e proibição, uma vez que remetem ao medo, aver-
são e respeito, o qual é o meio pelo qual uma mulher, seja ela
sacerdotisa, filha de santo ou cliente deva ser afastada do espaço
sagrado pelo tempo em que durar a sangria do fluxo menstrual. E
a seguir veremos que os filhos têm a mesma perspectiva da mãe,
o que não poderia ser diferente.

Os filhos falam
A visão recriada sobre a sangria menstrual é, como já foi visto
acima, negativa, pois as mulheres são afastadas, não podem fazer
nada nesse estágio, pois se assim fizerem, podem sofrer diversas
penas que o povo de santo chama de peia, como dores de cabeça, no
corpo, nas costas e perturbações. Por essa razão, elas não “se atre-
vem a vir menstruadas para cá para o terreiro”.24 E como não pode-
ria ser diferente as filhas e os filhos de santo acreditam que a mens-
truarão é algo muito ruim, um perigo grande que elas próprias podem
sofrer e fazer sofrer os outros.
Segundo Marcelina:
Quando eu comecei meu tratamento na Tenda em 1999 eu
ainda menstruava, e por isso era impedida de participar
dos rituais quando estava sob as regras. Isso era muito

86
Mulher que presta é aquela que é vivida

ruim, porque a casa ainda estava se estruturando e o ca-


lendário ainda não estava fechado, os rituais não aconte-
ciam com frequência, e em muitos dias de festa e obrigação
eu estava menstruada. Fiquei mal por muito tempo, senti
fortíssimas dores de cabeça e nas costas. Eu já sabia o que
era, por isso nem me assustei, tomei os banho e pedi mise-
ricórdia para os cabocos e pronto.
Em muitos casos eu poderia ir assistir as festas grandes, que
a gente considera como as mais importantes, minha querida,
nesses dias quando voltava pra casa, ficava mal, era horrível.
Na minha opinião, menstruar é um problema, porque sai de
dentro de nós muita impureza é tudo aquilo acumulado du-
rante o mês que está dentro de nós, então é claro que é só
coisa ruim que está saindo. E se ir assim para o terreiro que é
um lugar sagrado é algo como se você ofendesse a sua reli-
gião. É respeito mesmo.
Tem uma doutrina de um caboco que se chama José Tupi-
nambá que diz que quem faz o que Deus não quer um dia tem
que pagar, então se não é permitida a entrada de mulheres
menstruadas, não temos que questionar nada, temos apenas
que aceitar que a nossa condição de mulher é difícil por causa
disso.
Marcicleide, afirma que:
Eu nunca fui para o terreiro quando menstruava pelo fato de
pesar a corrente, a entidade não se aproxima, pesa pra mim e
para as outras. Uma vez desceu a menstruação na hora do
ritual, a entidade percebeu e me mandou sair do terreiro. As
mulheres que estão de fora também atrapalham quando estão
menstruadas.
Em trabalho de segunda feira, desses de evolução espiritual e
trabalho para os clientes da casa eu estava menstruada, en-
trei pra participar porque a mãe pequena não tinha ido e só eu
sabia onde estavam as coisas, mesmo assim, a entidade quan-
do chegou me mandou sair do terreiro. E foi incrível ele veio
direto par mim e mandou sair.
O certo mesmo é nem se aproximar do terreiro. Não pode tocar
nos pontos das entidades, nem nas imagens nas louças, nos
remédios, nos banhos e nas roupas. Se pegar eles passam a

87
Religião, Gênero e Poder

não ter mais o mesmo axé de antes, é como se perdesse o


poder, o axé mesmo.
Pedrinho menciona:
Eu tenho é medo de mulher menstruada, quando as minhas
irmãs estão menstruadas eu faço de tudo pra não passar por
detrás delas porque eu sinto dores de cabeça, fico com as
costas pesadas, é muito ruim.
Não posso dizer que sinto energias por causa da menstrua-
ção na corrente, nos rituais, porque elas são proibidas, não
vão menstruadas. Eu acho que também elas não podem ir, é
respeito como a minha mãe de santo fala.
Nesse sentido, a menstruação é algo de grande temor também
entre os filhos e filhas de santo da Tenda Espírita de Oxum, onde se
percebe que a permanecia de uma médium menstruada no espaço
do terreiro pode prejudicar a própria médium, o terreiro, as entidades
e os filhos homens, como é o caso do Pedrinho. Este último sente
uma forte energia negativa que lhe acomete de fortes dores nas cos-
tas e na cabeça, quando uma mulher passa pelas suas costas. Seja
como for, esses imaginários podem ser criados pelos filhos da casa
devido as constantes informações que os mesmos recém a respeito
dos problemas em que a menstruação pode vir a causar.

Mulher boa é aquela que já é vivida


Este título é uma fala pronunciada pelo caboco Corre Beirada
em um trabalho de cura realizado na Tenda Espirita, onde ele me
explicava que as interdições as quais as filhas de santo têm sido
submetidas devido as sangria menstrual é o vetor causador de aver-
são feminina, pois as mulheres nesse estágio biológico são vistas
como forte elemento de propagação, transmissão e manutenção de
energias negativas. Por isso, segundo o povo de santo desta casa,
elas (as filhas de santo) são afastadas das festas de obrigação ou de
qualquer trabalho realizado no terreiro durante a mensuração. Essa
assertiva é válida também para as mulheres que não são médiuns e
vão para o espaço sagrado assistir aos rituais.

88
Mulher que presta é aquela que é vivida

Quando eu era convidada para os rituais, a mãe de santo logo


me perguntava se estava de regras, e em todos os rituais em que fui
convidada, não estava, por essa razão entrava e assistia aos rituais
sem nenhum problema. Mas as clientes que participavam dos rituais
para fins particulares só se faziam presentes quando não estavam
menstruadas, e quando o trabalho ritualístico estava organizado para
um determinado dia em que o fluxo menstrual baixasse, esse traba-
lho era logo remarcado para a semana seguinte, se a mulher não
houvesse tocado em nada poderia utilizar o mesmo material caso
contrário deveria comprar tudo de novo, pois os objetos tocados por
uma mulher menstruadas, segundo a mãe de santo, perdem a eficácia.
Essa questão está tão impregnada entre os filhos da casa e os
clientes consulentes que em um ritual de cura em uma sexta feira dia
05 de outubro de 2012 quando eu assistia o ritual, Dona Jarina estava
na cabeça da mãe de santo, após ter feito seu trabalho foi embora, e
logo em seguida baixou seu Rompe Mato. Quando ele chegou afir-
mando que na frente do terreiro estava um exu masculino que, se-
gundo ele, havia sido enviado para abalar o ritual. O Caboclo foi para
fora do terreiro e despejou umas gotas de uma espécie de banho,
acendeu um maço de pólvora, a qual foi queimada e todos tivemos
que nos levantar e fazer uma encenação de limpeza quando a fuma-
ça nos atingiu, pois eles acreditavam que essa fumaça estava lim-
pando as coisas ruins de nossos corpos.
Isso ocorreu, segundo essa entidade, devido ter uma mulher
menstruada na assistência, isto é, entre os clientes que estavam as-
sistindo o ritual ou entre os que estavam em busca de soluções para
os seus problemas. Ele explicou que essa pessoa não deviria ir em-
bora, mas limpar bem quando a fumaça se propagasse para eliminar
o cheiro do sangue que estava atraindo o exu, caso contrário ele iria
continuar na porta atrapalhando tudo. Assim, sem saber quem era a
pessoa menstruada todas as mulheres se levantaram e fizeram uma
espécie de limpeza quando a fumaça se propagava no ambiente.
Nesse mesmo ritual, seu Rompe Mato realizou seu trabalho
dando umas garrafas com ervas e uma água verde para dois clientes
se banharem na frente do terreiro, ao terminar de fazer tudo, ele
sobiu, ou seja, desincorporou. Imediatamente seu Zé Pelintra baixou

89
Religião, Gênero e Poder

e foi para o ronkó para trocar a roupa de Rompe Mato e vestir a sua,
mas as suas indumentárias estavam todas fora do lugar e ninguém
encontrava sua espada e a camisa branca. Ele dentro no quarto sa-
grado já estava estressado, pois já se fazia alguns minutos em que
ele estava incorporando e nada de sua camisa chegar. Havia uma
filha, Marcicleide que sabia por onde estava a camisa da entidade,
mas ela não poderia entrar no terreiro devido estar menstruada.
A entidade aflita gritava dentro do ronkó, mas as outras filhas
ficavam a procura e sem encontrar levaram outras camisas que eram
atiradas longe pela entidade. A filha menstruada estava do lado de
fora do terreiro somente entoando as doutrinas e observava o que
acontecia. Como não encontraram nada, ela foi obrigada a entrar,
mas só pode apontar para as outras filhas onde a camisa poderia
estar, pois a menstruação a impedia de pegar nas roupas que são,
segundo a filha de santo sagradas.
Essas questões mostram para todas as pessoas que se fazem
presente no terreiro o temor que a menstruação causa para os mem-
bros desta casa de santo, pois esses impedimentos ocorrem, sem
pudor, diante de todos os presentes.
Em outro trabalho de segunda feira, dia 12 de setembro de
2012, o ritual teve início às 20:00 horas. A mãe de santo se preparou,
fez orações e começou a entoar as doutrinas. Canta para os orixás,
os senhores de toalha e em seguida para os cabocos. Ela se concen-
tra, mas ainda assim nada acontece, ou seja, nem ela e nem os filhos
e filhas de santo são incorporados.
A mãe de santo se desespera momentaneamente, logo respira
fundo e canta outra doutrina para Caboclo Sete Flechas, mas ainda
assim não é incorporada. Todos ficaram apreensivos com que esta-
va acontecendo. A mãe de santo segurou as mãos bem apertadas no
peito e olhou pra traz, se arrepia e diz em voz alta que havia uma
pomba gira entrando no terreiro. Disse também que ela (a entidade)
não estava conseguindo adentrar. Segundo a mãe de santo, a pre-
sença da pomba gira estava impedindo que os cabocos pudessem ter
passagem para as incorporações.
Novamente foi pedida a pólvora, mas agora, com muita eufo-
ria e medo, todos se assustaram. Mas, a filha de santo não encontra-

90
Mulher que presta é aquela que é vivida

va, a tensão aumentou ainda mais. Depois de quinze minutos de ten-


sa procura Marcicleide encontrou a pólvora que foi levada para fora
do terreiro para ser queimada, a fim de expulsar o espirito ruim que
estava atrapalhando tudo. Logo após o trabalho teve início sem pro-
blemas. Quase no final desse trabalho a mãe de santo me explicou
que isso ocorreu devido a filha de santo Maria Luiza ter ido assistir o
trabalho menstruada, a sacerdotisa mencionava “eu aviso que não
pode, mas elas vem só dá nisso!”
Sendo assim, o que se percebe é o importante tabu que é cri-
ado em tono da menstruação a qual é vista como horror ou como já
dizia Mary Douglas (2002) um tabu abominável, que só pode danifi-
car, prejudicar ou até destruir os rituais, mas com as interdições esse
tabu pode ser apaziguado. Por essa razão, os adeptos da religião
Mina Nagô consideram que a mulher que presta, que não precisa ser
afastada, é aquela cuja sangria mensal já não escorre mais.

Considerações finais: o sangue liga as entidades sem luz


Na obra A floresta de Símbolos de Victor Turner (2005) o
autor apresenta a ambiguidade nas classificações das cores entre os
Ndembu, onde o autor demonstra que o vermelho tem caráter dubio,
uma vez que ele pode aparecer como perigoso quando se pensa em
sangue menstrual, por exemplo. Essa questão é confirmada na Ten-
da Espirita de Oxum, pois o sangue menstrual é visto como fator de
grande negatividade. Por meio das ambiguidades trazidas por esse
sangue as mulheres desse espaço religioso são afastadas.
A Tenda é um espaço típico feminino, onde as mulheres são a
maioria, inclusive no comando sacerdotal, porém o que se vê é o
pensamento de uma mulher que se afastava e também afasta suas
filhas de santo ou qualquer mulher que ainda sangra todo mês de sua
casa de santo, no período da menstruação, demonstrando que o po-
der feminino está distante de si mesmas. Para essas mulheres suas
condições biológicas as impedem de exercer com eficácia suas tare-
fas religiosas e a cada mês são apartadas do espaço sagrado do
terreiro pelo tempo em que se estender o fluxo menstrual.
Nesse âmbito, a mulher se torna um elemento de forte interdi-
ção no período de sua menstruação. Além disso, tem sua vida direci-

91
Religião, Gênero e Poder

onada pela figura masculina seja ele o marido ou as suas entidades


que regulam e determinam não apenas suas vidas particulares como
também suas vidas no santo. A carreira no santo, isto é, no sacerdó-
cio, apresenta maiores prestígios quando elas atingem a menopausa,
ou seja, período em que o povo santo considera que a mulher “vira”
homem. Nesse sentido, a condição para comandar com melhor efi-
cácia é ser masculino.
Assim, o tabu menstrual se torna um problema do ser social
que é a mulher, a qual entra no processo de interdição mesmo quan-
do já é liberada ou está sempre submetida às interdições biológicas
que fazem parte da estrutura corpórea demonstrando assim, que o
problema do sangue menstrual não está em si no potencial poder de
destruição, mas na própria figura feminina. De acordo com Mary
Del Priore (2011), o sangue que é expelido todo mês torna a mulher
um ser ambíguo e incompleto, faltante. Por essa razão, segundo Seu
Corre Beirada “Mulher que presta é aquela que é vivida”.

Referências bibliográficas
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bor de Mina. In. Boletim da Comissão Maranhense de Folclore - nº
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Notas do Capítulo 4
1
Uma frase dita pelo Caboclo Barreira na Tenda Espírita de Oxum em um
ritual de cura no dia 21 de setembro de 2012; em uma entrevista em que se
queria saber sobre a influencia da menstruação para as entidades que esta-
vam em “trabalho de cura espiritual e material”.
2
Isso devido a impossibilidade de qualquer homem vir a ser possuído pelas
entidades espirituais.
3
Segundo Landes (2002) as mulheres do Candomblé baiano recebiam as
entidades devido seu comportamento considerado integro, pois mesmo
diante as dificuldades não se prostituiam ou se embebedavam como fazia o
seu sexo oposto. Em outras palavras elas agiam de acordo com as regras da
sociedade brasileira, que segundo Gilberto Freyre somente o homem pode

94
Mulher que presta é aquela que é vivida

ter vários relacionamentos amorosos ou ainda se embriagar, pois se uma


mulher agir dessa maneira é logo considerada infame.
4
Por Mina Nagô entende-se uma das tradições afro-brasileiras que segun-
do Vergolino (2000) é uma religião de composição “hibrida” de identidades
“múltiplas por dentro”, devido cultuar orixás, voduns, encantados, cabo-
clos e exus e que embora se aproximando de outras religiões de cunho afro-
brasileiro tais como o Candomblé e o Tambor de Mina se configuram como
uma tradição original legitimada no Estado do Pará, e que foi interiorizada
para Abaetetuba-PA na década de 80 do século passado, segundo Margalho
(2004).
5
Esse indício histórico não pode ser comprovado por vias de documentos,
mas o que se tem é a memória do povo de santo e os escritos dos antropó-
logos Leacock (LUCA, 1999; LUCA, 2003).
6
Uma fala de uma zeladora de santo da umbanda, considerada por muitos
como uma das mais antigas de Abaetetuba.
7
Primeiro e segundo sacerdotes de Mina em Abaetetuba.
8
Idem
9
Isso até o inicio do ano de 2010.
10
Entrevista com Mãe Maria José na Tenda Espírita de Oxum, no dia 15/04/
2012.
11
Idem.
12
Entrevista na Tendo Espírita de Oxum, com a sacerdotisa Mãe Maria José,
no dia 12/09/2012.
13
Idem.
14
O tocar aqui tem o sentido de mexer, trocar de lugar ou modificar.
15
Idem.
16
Deforma direta é quando elas estão na cozinha auxiliando o preparo dos
alimentos e dos banhos e de forma indireta é quando as mesmas vêm em
horário diferente da produção da comida para ajudar na limpeza da cozinha
de santo.
17
Sua ausência se deve porque os mesmos estão empregados em Estados
distantes, nas obras para a construção de prédios e estádios de futebol
para a copa de 2014.
18
Entrevista na Tendo Espírita de Oxum, com a sacerdotisa Mãe Maria José,
no dia 12/09/2012.
19
Entrevista na Tendo Espírita de Oxum, com a sacerdotisa Mãe Maria José,
no dia 29/05/2011
20
Mas é importante ressaltar que hoje ela não menstrua mais e que quando
ainda está sujeita â seus ciclos a mesma não realizava sempre seus traba-

95
Religião, Gênero e Poder

lhos menstruada, apensas quando os mesmos eram de suma importância


que não poderiam ser remarcados.
21
Entrevista na Tendo Espírita de Oxum, com a sacerdotisa Mãe Maria José,
no dia 29/05/2011
22
Idem.
23
Uma entidade da Mina Nagô, um caboco.
24
Fala de Mãe Maria José em uma conversa informal, no dia 06/06/2010.

96
Capítulo 5
Da Morte à Vida: Poder e Prestígio Feminino
na Figura da Pombagira Lindeuá

Jefferson João Martins Baldez


No Ilê Asé Odé Ofá Arô Nilé, localizado no bairro Icuí, na
cidade de Ananindeua (PA), no dia 20 de janeiro de 2013 fiz obser-
vação de uma gira de Umbanda que teve início às 16 horas. Além da
presença de caboclos e encantados, houve destaque para a manifes-
tação da Pombagira Cigana, apelidada de Lindeuá, cujo nome em
vida era Maria Júlia Alves da Silva, bailando com alegria, energia e
sensualidade. Expressões que revelam autoridade, autonomia, segu-
rança, reconhecimento e poder.
As Pombagiras ao mesmo tempo que despertam sentimentos
relacionados à sexualidade, sensualidade e poder também remetem
a uma visão de perigo, ameaça e desordem. Entretanto, vistos de
outra forma, essas mesmas características podem ser interpretadas
como uma resposta do feminino frente à sociedade brasileira que
ainda possui muitos traços patriarcais e que busca impor seus valo-
res, controlando a moral e guiando a conduta feminina, forjando uma
imagem da mulher, ora como alguém submissa ao homem, ora como
alguém que subverte a ordem, logo representante de perigo.
Considerando esses aspectos optou-se em fazer um paralelo
entre a vida terrena de Pombagira Cigana Lindeuá e suas caracte-
rísticas e valores em forma de entidade. Tal estudo se torna neces-
sário para a contribuição no que se chama de “lógica dos sujeitos
múltiplos” para a qual:
Não há só uma vida ideal de mulher, a partir da qual as
teorias do ponto de vista recomendam que o pensamento
comece. Em vez disso, devemos nos voltar a todas as vi-
das que são marginalizadas de maneiras diferentes pelos
sistemas operadores da estratificação social (HARDING,
1993 apud CHANTER, 2001, p.93).

97
Religião, Gênero e Poder

Com isso, colabora-se para entender a representação do papel


feminino das entidades afro-brasileiras na sociedade atual como uma
resposta à forma como a mulher foi subjugada num passado mítico,
além de observar seu poder e função mágica dentro do terreiro de
Odé Sigbonilé (pai Mário, médium que incorpora a Cigana).

Feminicídio e o estigma da “mulher da vida”


A Pombagira Cigana Lindeuá, de acordo com o relato proferi-
do por ela mesma no ritual, foi assassinada em 1813, porque não se
submetia ao capricho e as vontades de homem nenhum, era “mulher
da vida”, vivia nos cabarés alagoanos conforme queria, não aderindo
aos rigores morais da época como a sociedade esperava.
Essa história foi contada pela entidade numa área fora do
Barracão1 enquanto os tambores recebiam as batidas dos atabaqueiros
e as filhas de santo estavam em transe com outras Pombagiras. Al-
guns dos visitantes presenciavam aparentemente um pouco surpre-
sos a gira, enquanto outros conversavam em particular com a entida-
de principal naquele momento.
Chegada minha vez, me aproximei e de início a Cigana come-
çou a contar sua trajetória de vida carnal e posteriormente suas ca-
racterísticas enquanto entidade: sensibilidade (ver, sentir, ouvir o que
os humanos não conseguem perceber), leituras de mentes, ensinar
simpatias, trabalhos para conquistar alguém que se deseja, entre ou-
tras qualidades. Neste momento, ao me levar por uma postura distin-
ta e nada esperada de um cientista, me vi perguntando a ela o que
responderia se eu perguntasse o que eu estava pensando naquele
momento. A resposta foi direta, clara e em tom bem audível: ela me
mandaria para longe, porque não estava lá para provar nada para
ninguém. Eu pedi desculpas e a Cigana, com um ar de quem não
tinha dado uma séria importância ao que eu tinha questionado, conti-
nuou seguindo o diálogo desta vez falando a respeito de um espírito
de morto que me acompanhava, que fazia com que eu acordasse
mais cansado do que quando tinha me deitado, além disso, era espí-
rito de um parente, que “desencarnou”(morreu), mas que ainda não
tinha se desligado definitivamente deste plano espiritual e que, mes-
mo que não fosse de sua vontade, estava me “atrasando”2.

98
Da morte à vida...

Espaço religioso e gênero feminino podem combinar situações


de liberdade de expressão e privilégios ou manifestos contra uma
tendência cultural machista, que está permanentemente impondo
papeis, regras e comportamentos. Ioan M. Lewis (1977, p. 31) acer-
ca das manifestações de possessão no feminino expressa que os
cultos com estas características são:
Movimentos de protestos tênues disfarçados dirigidos con-
tra o sexo dominante. Eles desempenham assim papel signifi-
cativo na guerra dos sexos nas sociedades e culturas tradici-
onais em que as mulheres não têm meios mais óbvios e diretos
para promover seus objetivos. Até um ponto considerável
eles protegem as mulheres contra os abusos masculinos e
oferecem veículos eficientes para a manipulação de maridos e
parentes masculinos.
Ou, como mostra Sonia Lages, (2012, p. 528) este aspecto do
religioso é uma construção sócio histórica, que além dos sentidos
próprios de manifestação adquire outros que “colaboram para com o
fortalecimento dos sujeitos na luta contra as opressões sociais que
recebem cotidianamente”.
A morte de Cigana Lindeuá, assim como sua espera por
alguém que pudesse dar suporte físico (material) a sua manifes-
tação contestadora, ousada e, podemos dizer, de resistência post
mortem, implica nada mais, nada menos, que a atuação e força
motivadora de uma jovem que não se deixava subjugar. Estas
características necessitariam se fazerem presentes mesmo de-
pois que sua matéria orgânica se dissipasse, mas, mesmo que ti-
vesse que esperar dezenas de anos para apossar-se de um novo
corpo que, ironicamente, seria do sexo oposto, materializa-se, canta,
bebe, aconselha, manda, esbanja charme, se faz respeitável. Fi-
nalmente alcança uma posição superior, realiza suas vontades3
sem que nenhum humano, especialmente um homem, que pudes-
se controlá-la, usá-la, dominá-la. Os papeis se inverteram, agora
o médium é seu servo, abrindo espaço para a manifestação de
Pombagira Cigana, onde ele perde o controle dos movimentos,
das palavras, da autoridade, da mente, das vontades.4

99
Religião, Gênero e Poder

Em vida Lindeuá dependia de um homem para que pudesse


sustentar sua família e a si mesma.
O nome dela é Maria Júlia Alves da Silva, desencarnou-se em
1813 na cidade de Maceió, ela era alagoana, uma entidade de
origem humilde onde teve que por não aceitar imposições
familiares e do regime da época, né? Veio a procurar os por-
tos, era uma menina, ainda e o único ganha pão era se prosti-
tuir. E ela arranjou senhor feudal que a tirou da vida da noite,
né? Onde ela veio gostar de outro cidadão. E um tirou ela da
noite e o outro ela amava. E por causa desse romance ela veio
ser assassinada, em 1813, né? E era uma moça muito bonita,
que teve vários homens, teve uma vida de noite, de prostituta
(Pai Mário Sigbonilé - Candomblecista).
Por isso, o preço que pagara, além da submissão carnal (sexu-
al), foi o preço da morte, de interrupção da sua vida ambígua (mulher
e amante), que desejava ter, pois para a cultura patriarcal da época,
a honra, símbolo honorífico do poder masculino, é o maior valor, mes-
mo que para conservá-la, seja necessário encerrar o relacionamento
por meios homicidas.
A forma de viver numa sociedade patriarcal repleta de pensa-
mento machista em que a violência de gênero se justifica através do
papel que homens e mulheres exercem na sociedade, junto com a
imagem de “mulher correta”, mãe não é uma característica nova, é
uma construção social ao longo do tempo. Como bem lembra Laura
de Melo e Sousa (2009, p. 110): “‘ser mãe’ passou a significou ‘ser
casada’, ser ‘boa esposa’, ‘humilde, obediente e devota’. A transfor-
mação da mulher que vivia em “tratos lícitos” em “mãe ideal” fazia-
se por um eficaz adestramento digerido no cotidiano e consolidado
no decorrer do tempo”.
O patriarcalismo que aqui menciono se trata de um fenômeno
civil, que dá direitos sexuais aos homens sobre as mulheres, pratica-
mente sem restrição; representa uma estrutura de poder baseada
tanto na ideologia quanto na violência (SAFFIOTI, 2004 p.57-58), é
importante para se perceber como a relação homem/mulher se dá
culturalmente. Por isso, localizamos o caso da Cigana Lindeuá num
momento em que o fenômeno do feminicídio era recorrente quando

100
Da morte à vida...

o marido, por exemplo, não estava satisfeito com a forma com que
sua esposa estava agindo ou pretendia agir.
É interessante, nesta ótica, perceber que essa força do femini-
no apresentada, não se limita a existir apenas em vida. Mesmo que
Maria Júlia não tivesse a vida terrena que desejou e não obteve o
prestígio, ou, no mínimo a liberdade que desejava, conquista tais di-
reitos agora que se tornou uma entidade de importante destaque dentro
do que se chama religiões afro-brasileiras.

O Poder e a magia: faces preferidas da Pombagira


A mesma Lindeuá que em vida levava o sustento para sua
casa por meio da prostituição, na sua forma de entidade também é
responsável, em parte, pela manutenção do terreiro.
É uma entidade de personalidade irreverente, onde através
da irreverência, ela que traz o lado da magia, do amor. Então é
também uma entidade que em algumas situações trás o di-
nheiro para a construção da casa. Por ela ser um exu mulher
ela também trabalha, ela também vai na rua, ela vai buscar o
cliente, ela vai buscar coisas boas. Certo? É a mensageira da
fartura. Por a casa ser de Oxossi, Oxossi governa tudo aqui
dentro dessa casa. (Pai Mário Sigbonilé - Candomblecista).
Observa-se, aqui a relação do Orixá da fartura e da providên-
cia com o papel da Pombagira Cigana na arrecadação e busca de
suprimentos (monetários, de clientela, de doações) para o Ilê. Entre-
tanto, durante uma conversa informal, foi colocada a situação de que
a Cigana passou um período relativamente longo afastada, em com-
paração ao que normalmente ela se apresenta, pois estava atraindo
muitas “putas” para o terreiro. Esses episódios mostram que ao mes-
mo tempo em que se permite a ação da entidade (Lindeuá) para a
arrecadação de bens para a casa, o Orixá regente da casa impõe
controle quanto aos seus frequentadores.
E é através da magia que esta entidade tem sua maior atuação
com os frequentadores da casa e é por meio das práticas mágicas
que ela obtém os recursos para as despesas necessárias. O termo
magia é aqui empregado conforme a análise de Paula Montero (1994)
em que a magia não deve ser entendida como algo arcaico e ausente

101
Religião, Gênero e Poder

de uma lógica racional, mas sim de um pensamento capaz de operar


como um sistema reflexivo.
A noção de magia não está dissociada da relação com o
poder. Este termo, no contexto aqui analisado, faz referência à
ideia da capacidade desta entidade em afastar o mal, trazer adep-
tos para a casa, veicular os negócios com clientes e de realizar os
desejos de suas(eus) clientes. A solução para aflição, a busca de
alguém que se deseja, aconselhamentos para uma situação deli-
cada enfim, pessoas que buscam a felicidade estão sempre à pro-
cura dos serviços da cigana Lindeuá. Nilza Lagos (2007) mostra
que a ideia de felicidade dos que buscam os serviços das Pomba-
giras está relacionada a “ter homens, ter dinheiro e beleza. Esta
última se mistura com o dinheiro e sexualidade”.
No caso encontrado no terreiro pesquisado percebeu-se que
esse poder não se manifesta apenas diante das “simpatias” e “traba-
lhos”, mas de aconselhamentos, mesmo que isso possa se passar
diante de uma situação vergonhosa para o cliente. Em uma das con-
versas da cigana Linedeuá com uma participante que estava sentada
num dos bancos a entidade disse: “uma vez puta, sempre puta. Ele
faz isso contigo porque tu deixa, tu aceita”. Neste caso, não há ma-
gia, não há trabalho nem simpatia, o poder se manifesta com a indig-
nação da entidade frente à cliente devido ao fato de que ela não
estava satisfeita com a forma que o relacionamento da pessoa pre-
sente estava se desenrolando, ou se enrolando. Aí, o poder se exer-
ceu em forma de palavras, o poder das palavras poderia desenvolver
o efeito de ação. A mulher a quem Lindeuá se dirigia poderia seguir
ou não os seus aconselhamentos, entretanto a entidade exerceu seu
poder de mando, de instrução, a responsabilidade passa a ser da
cliente, de seguir ou não suas orientações.5
Não quero aqui fazer apologia às magias simpáticas, à eficá-
cia total dos trabalhos das entidades, infalibilidade dos aconselha-
mentos e engrandecer o poder e conhecimento das entidades afro-
brasileiras, apesar de admitir que esses elementos tenham
reconhecimento social dos adeptos.
Todavia os fenômenos religiosos que envolvem possessão,
transmissão de mensagens que na maioria das vezes requerem inter-

102
Da morte à vida...

pretação, receitas de “trabalhos” que exigem uma disciplina e exe-


cução correta dos procedimentos a seguir e dos ingredientes a com-
prar desenrolam inúmeras situações e resultados que não podem ser
muito previsíveis, tanto para a relação do cliente com seus próximos
e com o(a) sacerdotisa, quanto para com a própria entidade. Nesse
sentido Patrícia Birman (2005) expõe, muito bem, que:
Por maior que seja a vontade de uma pomba-gira de trans-
gredir as normas sociais, de punir os maridos cruéis, de
fortalecer o poder de sua protegida contra as imposições
destes, ela, a pomba-gira, não consegue ‘transigir’ com
suas próprias características, negar a sua ‘natureza’ e,
menos ainda, operar no interior da dinâmica social que em
parte ela desconhece. As entidades ‘abrem caminhos’ que
nem sempre a pessoa pode seguir, ‘fecham’ outros em mo-
mentos inconvenientes, prometem sucesso sem dar ao
médium as condições para garanti-lo, punem seus inimi-
gos sem levar em conta, por vezes, que as médiuns, apesar
de tudo, precisam deles ao redor de si.
Neste sentido, a entidade faz o “trabalho bruto”, todavia a si-
tuação de cada caso – a eficácia deste trabalho, suas consequências
e as pessoas que serão envolvidas neste serviço, direta ou indireta-
mente – passam necessariamente pelo método divinatório do jogo de
búzios, para que se possa saber, por exemplo, se a amarração dará
certo. Para que esse tipo de serviço surta efeito é preciso que já
tenha havido um contato maior, para que a “amarração seja mais
forte”, caso contrário, poderá haver a tentativa, mas sem muita es-
perança de sucesso. Caso o cliente trate diretamente com a entida-
de, esta poderá alertar ou não sobre as consequências, pois esses
seres estão para servir aos anseios de seus clientes, mesmo que em
algumas vezes a situação exija que se prejudique terceiros.
É nesse contexto da magia, de transgressão do moralmente
correto (socialmente estabelecido) que associa-se a noção do mal,
da obscuridade e do perigo.

103
Religião, Gênero e Poder

Exus, Pombagiras e a relação com o mal


Maldade, feitiçaria, magia negra, sacrifícios de animais e até
mesmo humanos, notícias de assassinatos veiculados por exus e pom-
bagiras são notícias nada incomuns nos meio midiático em vários
cantos do Brasil6. É sabido que as entidades são ambíguas, possuem
polos de poder, que serão exercidos conforme o desejo do sacerdote
ou dos clientes. Mas o legado estigmatizado das religiões de matriz
africanas deixado pelos rastros do período colonial e mais contempo-
raneamente os ataques que religiões cristãs fazem aos afro-religio-
sos levam a sociedade a enxergar de maneira distorcida, pouco lúci-
da e/ou absurda os empreendimentos das religiões afro-brasileiras.
Mas não é apenas isso. Ricardo Mariano na obra Intolerân-
cia Religiosa (SILVA, 2007, p. 140) mostra que os próprios afro-
religiosos contribuem, em parte, para a demonização dos cultos
Este é o caso de vários pais e mães-de-santo que da chamada
umbanda cruzada, no Rio Grande do Sul, por exemplo, que
nomeiam exus com nomes de demônios bíblicos, o que permi-
te a identificação imediata entre entidades afro-brasileiras e
demônios. Da mesma forma, por conta da rivalidade entre os
terreiros e dos problemas de relacionamento pessoal entre
muitos de seus dirigentes e entidade representativas, pais,
mães e filhos-de-santos acusam frequentemente uns aos ou-
tros de realizar feitiçaria ou magia negra, de trabalhar na linha
da quimbanda ou com entidades da esquerda visando fazer
ou praticar o mau.
Além disto, é comum na literatura religiosa afro-brasileira e
nos noticiários midiáticos populares relacionar algumas entidades do
panteão das religiões afro-brasileiras com a imoralidade e violência.
José Jorge de Carvalho (1994, p. 103) dá um bom exemplo disso ao
comentar sobre a entidade Mestra Ritinha que, através da médium
que incorporava, tinha relações sexuais com os demais membros da
roda, ou com algum dos participantes da gira. Este é um dos casos
que o autor relata que se transpõem as ações simbólicas converten-
do-se literalmente em atos reais. A interpretação feita por Carvalho
(p. 104) é que:

104
Da morte à vida...

Com a obscenidade consegue-se aqui um deslocamento, uma


abertura de um novo espaço significativo que, por enqua-
drar-se no campo ritualizado dos espíritos, consegue colo-
car-se além da censura e da culpa. Em outros termos, gera um
novo estado de ser que cumpre a promessa de felicidade do
ritual religioso, justamente ao transgredi-lo.
O mesmo autor, num outro artigo (CARVALHO, 1998, p. 21)
comenta a respeito da mística nas tradições afro-brasileiras através
dos cânticos7 enfatiza que “num mundo onde não há repressão, a
‘puta gostosa’ é algo positivo, desejado, isento de qualquer noção de
pecado ou vergonha – uma utopia do prazer é aqui delineada e a
zona passa a cumprir um papel simbólico”. Neste sentido, ao contrá-
rio do que acontece no caso anterior por ele presenciado, o simbólico
permanece no simbólico, não parte para a literalidade. Mas, essa
forma “sagrada tão crua e direta” provoca, tanto nos menos familia-
rizados com os temas afro-religiosos quanto com os íntimos, o cho-
que estético semelhante ao que acontece quando nos sentimos “gol-
peados” por uma obra de arte.
No campo da pesquisa uma relação direta feita a partir do
discurso do sacerdote é em relação ao estigma demonizado que
exu/pombagira ganharam ao longo de sua trajetória e a associa-
ção magia/poder:
Então as pessoas fazem exu assim, com chifre e com rabo.
Então o cara acabou adotando. Já que dizem que eu sou o
diabo então eu vou usar o tridente. Mas se tu analisar bem, é.
Netuno ele não é o diabo, porque o símbolo dele é um triden-
te, então se você pesquisar o que é um tridente simboliza
força e magia. Certo? (Pai Mário Sigbonilé - Candomblecista)
Ao simbolizar força e magia o tridente, mais do que algo que
rememore o diabo cristão simboliza os domínios, capacidades e qua-
lidades que exu e pombagira dominam. Transpondo do lado sobrena-
tural para o natural os poderes dessas entidades (curar ou provocar
doenças, unir ou desunir casais, fazer/desfazer feitiços) estarão de
acordo com quem os evoca e com as suas qualidades ou graus de
evolução espiritual do médium de incorporação. Mas os mais res-
ponsáveis por provocar, ou pedir que se quebre uma demanda é o

105
Religião, Gênero e Poder

próprio requerente. A isso cito uma fala proferida por Cabocla Mari-
ana quando incorporada em pai Mário:
Exu ele não é mal, Exu ele é o bem e o mal, quando alguém
pede para fazer um trabalho quem fez a maldade não foi exu
que fez, foi a pessoa que veio pedir, porque o Exu é tudo
aquilo que a pessoa quer ser só que ela não pode ela pede
para a pessoa fazer e faz, né? (Cabocla Mariana, incorporada
em pai Mário).
É bem claro aqui que a questão das entidades da “esquerda”,
exus e pombagiras, e suas atuações vistas comumente como algo
demoníaco, dotada de atitudes simplesmente incentivadas pela ação
do domínio contrário à ética cristã, não se configura, em grande par-
te dos casos, como uma constante religiosa stricto sensu, mas como
um caso em que as expressões dos desejos humanos e sociais soam
mais evidentes do que os casos de possessão por espíritos que, na
concepção de alguns segmentos religiosos, principalmente neopen-
tecostais, vem para matar, roubar e destruir. Tais ideias não limitam-
se apenas nas múltiplas faces afro-brasileiras das Pombagiras, mas
ao gênero feminino.
A esse respeito o sacerdote exprime
E por esse nome, por esse título de ser um espírito ligado a
magia, ligado ao ocultismo, ligado ao amor, muitas pessoas
denigrem a imagem da tal entidade para tipo assim usar de um
comentário errôneo sem saber o que tá dizendo. Julga sem
conhecer. Então pombagira são mulheres, são espíritos mara-
vilhosos, espíritos sábios, entidades em evolução espiritual.
Aonde, por não serem espíritos totalmente evoluídos, ainda
se prendem muito aos vícios terrenos como, por exemplo, as
bebidas, cigarros, charutos, enfim, é isso (Pai Mário Sigboni-
lé - Candomblecista).
Posso afirmar que isto tudo representa uma herança do Brasil
colônia em que Igreja, estado e sociedade eram os principais forja-
dores da imagem da mulher para que chegasse a sociedade atual
com vestígios do legado associado ao mal: “A mulher, assim diaboli-
zada, confundia-se com o mal, o pecado e a traição, tudo aquilo en-

106
Da morte à vida...

fim que ameaçava os homens ou o projeto normatizador da Igreja e


do estado Moderno” (PRIORE, 2009, p. 100).
Na exposição da autora encontramos dois tipos de atores: a
mulher que é a causadora dos males, e a vítima que é o homem. No
contexto da religião e da legião dos povos da rua, como são conheci-
dos os exus e pombagiras, o mal está não apenas na figura da mu-
lher, mas ela, sendo um exu feminino tem os mesmo parâmetros
dessa entidade. Ambos estão a serviço do demônio, segundo as reli-
giões cristãs.
Monique Augras (2009, p. 18-19) ao fazer uma análise da ima-
gem da pombagira na iconografia umbandista mostra que “ela sinte-
tiza os aspectos mais chocantes que a sexualidade feminina pode
assumir frente à moral e os bons costumes” por isso:
imagina-se facilmente o quanto essa característica pode as-
sumir feições ameaçadoras numa sociedade ainda dominada
por valores machistas, em que, muitas vezes, só existem duas
categorias de mulher –descentes ou vagabundas – conforme
o grau de assunção dos seus desejos sexuais.
Em campo, pude perceber que a ideia de mal, do papel da entida-
de, como foi dito anteriormente nas falas da cabocla Mariana está mais
para o querer de cada integrante social da religião e do cliente
Vai muito do seu discernimento, do teu lado justo. Por exem-
plo: se você pagar o mal com o mal não é justo. O justo é você
chegar, quebrar aquele mal. As vezes até mesmo fazendo ma-
gia, ebó e usando exu, pedindo que ele leve aquela magia
embora e traga uma boa energia. Então, quer dizer, aqui você
pode pedir o bem e o mal. Então é a questão do livre arbítrio
que todos nós temos. É a questão do, como eu posso te dizer,
é a questão do discernimento de cada um. Que você sabe que
existe uma lei de causa e efeito. Aqui tu faz, aqui tu paga (Pai
Mário Sigbonilé - Candomblecista).
Considerações finais
Considera-se, por fim, que Pombagira Cigana representa a
resistência feminina, força, promove benefícios que sustentam seu
filho (Odé Sigbonilé) e o Ilê em que desce. Está para além de uma
entidade pouco evoluída, por mais que ainda carregue o estigma de
107
Religião, Gênero e Poder

mulher da vida, desenvolve um papel muito importante na arrecada-


ção de bens materiais para a casa, aconselhamento, aproximações
conjugais que estão por se desfazer ou por novos relacionamentos.
Não é uma deusa do amor como Oxum, nem mãe dos orixás como
Iemanjá, não é uma deusa sedutora como Oya, mas representa tudo
aquilo que o ser humano quer ser, quer parecer ser e alcançar. Sedutora,
provedora, aconselhadora ou mesmo, quando quer, uma mãe que acolhe
e não deixa faltar nada para seus filhos no Ilê Asé Odé Ofá ArôNilé.
Pombagiras e exus não podem ser comparados a demônios. De-
mônios, de acordo com a visão cristã, tem um papel bem definido de
prejudicar a vida humana em todos os sentidos (material e espiritualmen-
te), estão a serviço do ser malévolo supremo: Lucifer. Não atendem à
suplicas nem dialogam com os seus contactantes, apenas agem por con-
ta própria. As entidades afro-brasileiras tem o papel de praticar a carida-
de, mas especificamente de servir aos humanos, estão ligados aos hu-
manos e a serviço dos mesmos, há diálogos longos de aconselhamento,
apoio moral, e de auto-estima e agem a pedido de seus filhos, mesmo
que para isso se prejudique outrem, todavia, esse mesmo outrem, caso
procure essa mesma entidade pode solicitar o desfazer do prejuízo que
lhe foi causado. Portanto a entidade é um poder que está a serviço de
quem o manipula ou com quem estabelece laços, desde que se ofereça
algo para isso, ao mesmo tempo que pode ser uma ferramenta de cons-
trução, é uma arma que promove destruição, é o principio do fazer e
desfazer, do ligar e desligar.
Nesses moldes, o cliente é um ser que através das pombagira,
exus, pretos velhos, caboclos8 exerce sobre si mesmo e/ou sobre os
outros um poder que relaciona intrinsecamente passado (mítico) e
presente, sagrado e profano, realidade humana e realidade dos espí-
ritos e deuses. Fazendo, assim, dinamizar a relação dos humano com
os espíritos e divindades, sendo ele, muitas vezes, o responsável pe-
las forças motoras que faz fluir os diferentes contextos de seu meio
social e religioso.
A mesma Maria Júlia (Lindeuá) que se utilizou de um jogo
amoroso (político) para se sustentar enquanto viva é a Pombagira
Cigana que é digna de respeito, poder e reconhecimento no Ilê Asé
Odé Ofá Arô Nilé, assim como o pai de santo Odé Sigbonilé é o
mesmo que se apropria dos poderes dessa entidade para angariar
108
Da morte à vida...

fundos para si e seus filhos de santo. Da mesma forma, o cliente que


roga pelas qualidades mágicas das entidades afro-brasileiras pode
ser os mesmos que pedem auxilio terapêutico nos terreiros de Um-
banda e Candomblé em Belém do Pará. Isso nos faz perceber que
esses interesses, contratos e necessidades fazem parte de um cor-
pus que envolve política, religião, magia e gênero, onde o limite entre
ambos não são necessariamente definidos, mas que revelam mais do
que simples jogos de interesses e sim características de uma religião
dinâmica e diversificada quanto à sua estrutura, cosmogonia, repre-
sentatividade social e pluralismo religioso, assim como fomentadora
e propiciadora de novas identidades.

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109
Religião, Gênero e Poder

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SILVA, Vagner Gonçalves da. (Org.) Intolerância religiosa: Im-
pactos do Neopentecostalismo no campo religioso afro-brasileiro. São
Paulo: Edusp, 2007.

Notas do Capítulo 5
1
Espaço sagrado onde acontece o ritual nas religiões de matriz africana.
2
O espírito de morto referido aqui é o egum, espírito de pessoa que morreu,
mas por alguma razão ainda permanece no plano terreno, prejudicando os
vivos, mesmo que esta não seja sua intenção.
3
O termo “vontades” aqui empregado refere-se não a toda e qualquer von-
tade em termos mundanos. Alguns são adotados: consumir bebidas alcoó-
licas, fumo, palavrões entre outros. De acordo com o sacerdote Lindeuá
morreu antes do tempo, sem ter cumprido sua missão terrena. E essa missão
também faz parte em suas manifestações: trabalhos relacionados ao amor,
sexualidade, conselhos.
4
A esse respeito o médium pode ou não ser consciente de alguns fatos que
ocorrem durante o fenômeno da possessão, assim como a entidade tem
limites para atuar. Um exemplo disso foi o que pude perceber quando o
sacerdote relata que Lindeuá ficou um período sem se manifestar, pois sua
presença estava atraindo muitas prostitutas e a reputação do local sendo
comprometida.
5
Depois dessas afirmativas feitas pela entidade em público, a cliente e a
Cigana se retiraram do local em que ocorria a gira e foram conversar em
particular.
6
É preciso ressaltar que esse imaginário não corresponde ao que de fato
pensam e fazem os próprios afrorreligiosos com relação a essas entidades.
7
Em especial um em que pombagira é chamada de “puta gostosa“ e “quem
quiser puta igual tem que buscar na zona“.
8
O pedido de diferentes tipos de trabalhos varia de acordo com a entidade,
apesar de todas serem dotadas de poderes para atender os mais variados tipos
de trabalhos, há aqueles que não gostam de “trabalhar para o lado do mal”.

110
Capítulo 6
Novas Faces da Pajelança Cabocla na Amazônia:
o caso da Pajé Zeneida Lima de Soure, Marajó

Mayra Cristina Silva Faro Cavalcante


Soure, na Ilha do Marajó/PA, é onde reside uma mulher
pajé, chamada Zeneida Lima, ao mesmo tempo respeitada e polê-
mica, que passou a ser conhecida nacionalmente em 1998, quan-
do a Escola de Samba Beija-Flor venceu o carnaval do Rio de
Janeiro com o enredo “O Mundo Místico dos Caruanas” baseado
em sua autobiografia “O Mundo Místico dos Caruanas e a Revol-
ta de sua Ave” (1 ed., 1991). Contudo, as práticas e as crenças
desta pajé divergem em vários aspectos daquelas conhecidas tanto
por folcloristas quanto por antropólogos e historiadores, uma vez
que busca uma maior integração com a natureza e a maioria das
entidades com as quais trabalha são diferentes daquelas observa-
das em outros pajés estudados por autores como Galvão (1955),
Maués (1990) e Villacorta (2000).
Este trabalho, portanto, pretende analisar a pajelança apresen-
tada por D. Zeneida Lima, cujas práticas e crenças possuem caráter
mais “xamânico”, caracterizando-se pelo culto a Mãe Terra e a ou-
tras entidades míticas (como os caruanas, o Girador e Auí), apresen-
tando também um acentuado discurso ecológico e autodeclarada
ancestralidade indígena marajoara para suas práticas e crenças.
Esta pajé também defende sua prática como sendo uma paje-
lança “pura”, verdadeira, opondo-se às outras formas de pajelança
muito presentes na Amazônia em que se encontram, além dos ele-
mentos da cultura indígena, também das religiões afro-brasileiras e
do catolicismo popular, com o qual a pajé tenta desvincular sua prá-
tica, no que refere, sobretudo, ao culto aos santos católicos. Os obje-
tivos desse artigo consistem em apresentar a pajelança de D. Zenei-
da Lima, comparando-a com outras formas de pajelança descritas
na literatura antropológica, e analisar o papel da mulher no contexto
religioso e simbólico da pajelança em Soure.
111
Religião, Gênero e Poder

Soure: conhecendo o local da pesquisa


Soure se auto intitula de a “Pérola” ou “Capital do Marajó”,
um título que, além de indicar a beleza de suas praias e ambientes
naturais, beneficia também a economia turística da cidade. Origi-
nou-se de uma antiga aldeia dos índios Maruianazes e Mundis,
tornando-se posteriormente freguesia. Em 1757, recebeu a con-
dição de Vila e em 1959 foi elevada à categoria de cidade por
decreto-lei. O município se encontra a 87 quilômetros de Belém,
é a maior cidade da Ilha do Marajó e está localizado no lado leste
do arquipélago 1. Encontra-se às margens do rio Paracauari e de
frente para outro município, Salvaterra.
Para realização desta pesquisa foram feitas cinco viagens ao
campo em períodos curtos entre os anos de 2009 e 2011, em que a
metodologia utilizada foi a pesquisa de campo e bibliográfica, pauta-
da em uma abordagem qualitativa que, de acordo com Minayo (2002),
trabalha com o universo de significados, motivos, aspirações, cren-
ças, valores e atitudes, correspondendo a um campo mais profundo
das relações, dos processos e fenômenos que são difíceis de serem
reduzidos à operacionalização de variáveis. Além disso, foram reali-
zados estudo e análise da obra autobiográfica de D. Zeneida Lima e
entrevistas com esta e outras mulheres pajés em Soure2, observando
com isso uma considerável recorrência de mulheres ativas na práti-
ca de cura, sendo essas mulheres consideradas curadoras, parteiras
ou pajés. Esse fato demonstra-nos que não há em Soure uma grande
restrição a atuação da mulher no exercício da pajelança, como foi
observado em outras localidades da Amazônia (MOTTA-MAUÉS,
1993; VILLACORTA, 2000; CAVALCANTE, 2008).
O acesso à cidade de Soure não é fácil, e a viagem consiste
em três etapas (saída de Belém até o porto de Camará; viagem de
ônibus ou van de Camará até Salvaterra; e por fim, travessia de
balsa de Salvaterra à Soure) podendo acontecer por meio de barco,
que sai do Terminal Hidroviário nas Docas (em Belém), ou balsa,
saindo de Icoaraci (próximo a Belém).
Soure é uma das cidades do Marajó mais voltadas para o mer-
cado turístico, oferecendo uma variedade de hotéis, pousadas, e in-
vestindo no artesanato e na cultura local. No entanto, a estrutura da

112
Novas faces da pajelança cabocla na Amazônia

cidade ainda não é a mais adequada tanto para receber turistas quanto
para suprir as próprias necessidades da população. O sistema de
transporte público, por exemplo, é precário, contando apenas com
mototáxis, algumas kombis e pouquíssimos ônibus (sendo que estes
dois últimos ficam mais frequentes nos fins de semana e, principal-
mente, em período de férias e feriados).
As ruas centrais da cidade são a 1ª, 2ª, 3ª e 4ª ruas, onde se
concentram diversas atividades sociais, econômicas e religiosas, que
ocorrem em diferentes períodos do ano. Na 1ª rua localiza-se o tra-
piche de onde saem e chegam a balsa e pequenas embarcações, e
também a praça principal, chamada Independência, que no mês de
julho fica bastante movimentada. Na 2ª rua, encontra-se o espaço
em que ocorre a feira de exposições que acontece durante o evento
anual chamado “Marajó Búfalo Fest”. Na 3ª rua se encontram o
Mercado Municipal, um importante ponto de mototáxi e ônibus, uma
loja de artesanato e produtos regionais muito visitada por turistas, um
dos hotéis mais antigos da cidade, a Igreja Matriz de N. S. de Naza-
ré, e outros pontos sociais e econômicos. A 4ª rua é a mais extensa
da cidade e leva às praias e fazendas, além de ser onde acontecem
festas de carnaval no mês de fevereiro.
A cidade é dividida em oito bairros: Tucumanduba, Centro,
Pacoval, São Pedro, Matinha, Bairro Novo, Macaxeira e Umirizal, e
dispõe de quatro praias: Pesqueiro (a mais conhecida e visitada),
Araruna, Barra Velha e Garrote.
Ao caminhar pela cidade é comum ver búfalos nas ruas,
soltos, andando, presos em alguma árvore ou puxando uma carro-
ça. A figura do búfalo se tornou praticamente um símbolo da ilha,
sendo bastante produzido e vendido o “queijo do Marajó”, feito do
leite do animal.

A pajé Zeneida Lima


Zeneida Lima, a mulher pajé que começou a ser conhecida no
Brasil em 1991 (com a publicação de seu livro) e mais ainda em 1998
(com o desfile da escola de samba carioca Beija-Flor) desperta, por
um lado, muita admiração e, por outro, polêmica entre acadêmicos e
leigos. Os resultados dessa pesquisa baseiam-se em algumas entre-

113
Religião, Gênero e Poder

vistas realizadas por mim com a pajé, entre os anos de 2009 a 2011,
e na análise de sua obra “O mundo místico dos Caruanas da Ilha do
Marajó” (2002).
Meu primeiro contato com essa pajé, uma senhora bastante
reservada e de difícil acesso, ocorreu em novembro de 2009 com
uma entrevista na varanda de sua casa. Em uma de nossas conver-
sas, a pajé definiu suas práticas como “pajelança marajoara”, e se
diferenciou dos demais pajés que, segundo ela, praticam a pajelança
da “linha do Maranhão e de São Sebastião”, que podemos entender
como sendo a “pajelança cabocla”, amplamente estudada por Gal-
vão (1955), Maués (1990) e muitos outros autores.
Entende-se por pajelança cabocla como sendo um significati-
vo aspecto da cultura brasileira, mais especificamente da cultura
amazônica, e é uma religiosidade bastante presente em várias locali-
dades da região, apresentando suas particularidades dependendo do
contexto histórico-social e da localidade na qual está inserida. A pa-
jelança cabocla segundo Maués (1990) é um conjunto de práticas e
crenças xamanísticas que tem em suas expressões culturais diver-
sos elementos da religiosidade indígena, africana e católica, mescla-
dos em graus variáveis.
Maués e Villacorta (2004) reconhecem uma nova perspectiva
surgindo no campo da pajelança cabocla, vivenciada por D. Zeneida
Lima em Soure e Maria Rosa em Colares (VILLACORTA, 2000),
ambas são mulheres pajés que apresentam um discurso essencial-
mente ecológico, onde a natureza e o ser humano são interligados
por uma “teia” cósmica, sagrada e o homem não poderia quebrar
essa ligação, devendo respeitar e preservar a natureza e seus recur-
sos. Esta “nova face” da pajelança é denominada por esses autores
de “pajelança ecológica”. Contudo, é difícil afirmar se o discurso
dessas pajés, e especificamente de D. Zeneida Lima, é efetivamente
novo, atual, influenciado talvez pela mídia ou pela evidente destrui-
ção da natureza, ou se é um discurso originalmente antigo, reformu-
lado ou ressignificado. Ou talvez, seja ambos.
D. Zeneida Lima possui sete livros publicados, sendo o mais
famoso “O Mundo Místico dos Caruanas da Ilha do Marajó” (2002),
atualmente em sua 6ª edição, em que escreve sobre sua infância em

114
Novas faces da pajelança cabocla na Amazônia

Soure, os conflitos familiares, alguns acontecimentos do cenário po-


lítico da época, sua iniciação na pajelança, alguns conhecimentos de
cura, sua estada no Rio de Janeiro, e outros eventos de sua vida até
o início da idade adulta. Há, inclusive, um segundo volume já escrito
pela pajé aguardando a publicação, e também um filme de longa-
metragem dirigido por TizukaYamazaki chamado “Amazônia Carua-
na”, baseado na obra autobiográfica da pajé, mas ainda sem previ-
são de lançamento no cinema.
Essa estreita relação de D. Zeneida Lima com a mídia é um
fator que incomoda muitas pessoas, desde o simples morador de Soure
ou um pajé ou curador(a) que vê a divulgação das práticas de cura e
de uma pajelança geralmente diferente ou desconhecida por ele(a),
até o estudioso acadêmico do tema, que se sente intrigado ou mesmo
desconfiado diante de um estilo de pajelança, até então pouco estu-
dado. Somado a isto, parte da população de Soure tem antipatia pela
pessoa de D. Zeneida Lima devido a um acontecimento ocorrido há
mais de vinte anos atrás, quando a filha do prefeito da época miste-
riosamente desapareceu. A menina era afilhada da pajé e sumiu após
ter saído da casa desta. Algumas pessoas da cidade passaram a
acusar a pajé de ter feito ritual de “magia negra” com a menina, mas
nada foi encontrado pela polícia que comprovasse o envolvimento da
pajé com o sumiço da criança, e a acusação do povo representava mais
uma atitude de discriminação contra D. Zeneida Lima do que um teste-
munho verídico. Não possuo muitas informações sobre esse aconteci-
mento, que, aliás, até hoje algumas pessoas recordam, mas preferem
não falar muito, portanto, não me deterei muito nesse assunto.
D. Zeneida Lima nasceu em 21 de julho de 1934 do matrimô-
nio entre Angelino Rodrigues de Lima3 e Maria José de Andrade
Figueira de Lima (sua segunda esposa), sendo que D. Zeneida foi a
terceira dos doze irmãos. Sua avó paterna, Rosa, era negra, descen-
dente dos africanos e, segundo o que a pajé escreve em seu livro,
contava à Zeneida Lima ainda pequena histórias de Agontime, sua
tataravó que nascera na África e era rainha do Daomé, cujo dois
filhos (Adandoza e Gezo) com o rei Agongolo foram obrigados a
deixar a terra africana e a viver no Brasil, e assim constituindo a
descendência de sua família. Sua avó Rosa além de apresentar uma

115
Religião, Gênero e Poder

vasta memória das histórias do povo negro, demonstrava também


possuir saberes ligados a cura e a magia. Ela também previu e avi-
sou a mãe de Zeneida que esta era acompanhada pelas “energias da
natureza”, e “pertencente ao Mundo das Águas” (LIMA, 2002, p.38).
A pajé alega em seu livro possuir também uma descendên-
cia europeia e indígena. Sua avó materna, Leonora, seria de ori-
gem espanhola, que se uniu a um pajé caboclo descendente da
tribo Sacaca da Ilha do Marajó, e dessa união nascera sua mãe,
Maria José. Dessa forma, a pajé argumenta trazer em seu san-
gue o poder ancestral da magia e da cura, através de seus ante-
passados que representam as vertentes culturais negra, indígena
e europeia. Ela seria, portanto, uma pajé de nascença que, mani-
festa seu dom ainda no ventre da mãe, chorando ou emitindo um
som, e tal ocorrido não pode ser revelado publicamente antes do
tempo, sob pena de a pessoa perder seus poderes.
Além do choro no ventre de sua mãe, D. Zeneida aponta ou-
tros sinais que indicaram seu dom para a cura, como o pouso ou vôo
de borboletas azuis em volta da barriga grávida de sua mãe (essas
borboletas são manifestações de Anhanga, conforme explicou D.
Zeneida em entrevista), a sensação da presença de caruanas perto
de pessoas próximas da pequena pajé, como a sua mãe ou um amigo
desta, que se sentiram “mundiados” (LIMA, 2002, p.50), e o nasci-
mento de uma “coisa gêmea” junto com D. Zeneida, que era um ser
de “forma redonda que possuía olhos, nariz, boca e todos os órgãos”
(LIMA, 2002, p.52), uma criança mal formada, que depois de alguns
minutos veio a falecer. Em entrevista, em julho de 2010, D. Zeneida
me explicou que ela acredita ser esse um sinal de seu destino como
pajé, pois seu bisavô teria dito a sua mãe que ao nascer ela viria com
a lua. De alguma maneira, D. Zeneida acredita que a lua correspon-
deria a irmã, ou “a coisa gêmea”, que não se formou.
Outros acontecimentos estranhos, descritos em seu livro, ocor-
reram ao longo da vida de D. Zeneida, ora com características amis-
tosas e amigáveis ora perigosas e hostis, mas sempre misteriosas.
Muitas vezes ela ficava seriamente doente, e apenas conseguia me-
lhorar com a ajuda de um curador ou pajé, que receitava banhos e
outros remédios à base de plantas.

116
Novas faces da pajelança cabocla na Amazônia

Entretanto, mais do que doenças misteriosas, que só eram cu-


radas ou amenizadas por meio da intervenção de um pajé, D. Zenei-
da teve uma experiência marcante aos onze anos de idade, que a
inseriu definitivamente no universo da pajelança.
Acompanhada de seu irmão, sua mãe e da empregada cami-
nhavam na mata, nas redondezas da fazenda onde residiam, para
apanhar açaí. Quando ela estava um pouco afastada dos demais,
sentiu um vento frio soprar sobre ela, e subitamente viu diante de si
três seres semelhantes a seres humanos, que tinham a aparência de
serem dois homens e uma mulher. D. Zeneida (2002, p. 136) assim
descreve que:
Os três seres estavam nus. Entre os braços e o corpo possu-
íam fina membrana, do mesmo tipo que ligava os dedos da
mão. Os pés eram palmiformes, achatados, como de patos. A
pele era de um azul intenso, brilhante. Ocorreu a mim que
seriam seres da água. [...] Eles carregavam longos canudos
em forma de cigarros e cachos de um fruto de bagas amarelas.
Por gestos, ofereceram-me as frutas. Eu consegui balançar a
cabeça negativamente. Sem outra razão passaram a me agre-
dir. Meu corpo ardia com o castigo. Senti que desfalecia.
Desmaiou por um momento e quando voltou à consciência
estava em outro lugar, ainda na floresta, mas na margem oposta do
igarapé de onde, outrora, estava próxima. Sentia o corpo dolorido e
as roupas que vestia estavam rasgadas. Viu novamente os seres
azuis, que lhe ofereciam as frutas, e ela de novo negou. Eles continu-
aram a bater em Zeneida, que desmaiou profundamente e ficou in-
consciente. Dezessete dias se passaram com Zeneida Lima desapa-
recida na floresta, quando finalmente a encontraram. Estava
paralisada, enrolada em um emaranhado de cipós, os cabelos com-
pletamente embaraçados e o corpo apresentava manchas definidas
com figuras de peixes, pássaros, cobras, flechas, máscaras primiti-
vas. Quando o pai lhe perguntou o que havia acontecido, ela soltou
uma gargalhada, depois pausava e emitia gritos, os olhos estavam
arregalados, cheios de brilho e o rosto transfigurado, seu estado lem-
brava a loucura e o pânico. Afirmava ver os seres azuis que a cha-
mavam para a mata, e não lembrava mais nada.

117
Religião, Gênero e Poder

Começou a sofrer crises de choro, gritos, risos, debatia-se e


queria sair correndo para a floresta. Características da corrente-do-
fundo, a qual todos os indivíduos que nascem com o dom sofrem
antes de tornarem-se pajés, e é descrita por Maués (2005) como um
período de muito sofrimento, crises, doenças ou ataques de violência
ou possessão descontrolada de espíritos e caruanas. O(a) pajé deve,
então, submeter-se a tratamento com um pajé experiente, que irá
afastar os espíritos e os maus caruanas, treinando o(a) futuro(a) pajé
para que ele(a) possa controlar as incorporações.
D. Zeneida só melhorou quando levaram mestre Elpídio para
vê-la, que afirmou que a menina havia sofrido “flechada de Anhan-
gá”. Também explicara que a mesma tinha o dom de ser curandeira,
e não podia entrar na mata ou atravessar rios e igarapés na lua min-
guante, pois “é nessa lua que as resmas [que podemos entender como
energias negativas] de Anhangá se espalham, ela tinha de fechar o
corpo desde jitinha para que não acontecesse isso” (LIMA, 2002, p.
145).
Apenas um ritual de pajelança poderia livrar D. Zeneida da
flechada de Anhangá, mas esse ritual só pôde ser realizado três dias
depois, pois era uma Sexta-Feira Santa, e em dias santos não se
realiza pajelança. Esse respeito dos pajés perante os dias santos ca-
tólicos pode ser entendido como um indício de que a maioria dos
curadores se declara católica, como observa Galvão (1955) e Maués
(1990). Mas, além disso, pode ser entendido como uma submissão
culturalmente estabelecida, do catolicismo como sendo “superior” a
pajelança, e realizar rituais de cura ou encantaria em dias santos
(como a Sexta-Feira Santa e o Natal) pode ser considerado um pe-
cado.
Essa visão sacralizada dos dias santos é percebida também
nas religiões afro-brasileiras, como observou Vergolino (1987) nos
terreiros de Belém e faz a interessante afirmação de que “não se
trata apenas de uma justaposição [de religiões ou crenças religio-
sas], mas que, de fato, os terreiros assimilaram e reinterpretaram
esse calendário [cristão]” (p. 59).
Maués (1992) relata que os pajés costumam se definir religio-
samente como católicos, e não como seguidores ou líderes de uma
religião ou culto, que seria a pajelança. Na realidade, ser pajé é muito
118
Novas faces da pajelança cabocla na Amazônia

mais uma função social e espiritual do que uma devoção ou pertença


religiosa. Entretanto, observa-se que em Soure, D. Zeneida não se
identifica como católica, e sim como pajé, denotando uma intencio-
nalidade de firmar em si uma tradição cultural, aparentemente, indí-
gena marajoara.
Além disso, a pajé procura desvincular suas práticas e cren-
ças do catolicismo popular, reverenciando não o Santo Antônio ou
São Sebastião, tão adorado e respeitado por diversas comunidades
amazônicas, mas sim o Vento, os Caruanas, o Girador (a divindade
criadora conforme a pajé escreve em seu livro), a Mãe Terra, dentre
outras deidades (LIMA, 1991/2002). É possível reconhecer de fato
aspectos ancestrais ou xamânicos em suas práticas e crenças de
cura, no entanto, observa-se também aspectos e pensamentos re-
correntes do momento contemporâneo, como a ecologia desenvolvi-
da conjuntamente à educação4 e a relação com a mídia.
Decerto não existe religião ou cultura “pura”, mantida intoca-
da e não influenciada por outras religiões e culturas. Entre seme-
lhanças e diferenças de concepções espirituais, cada cultura assimi-
la, reinterpreta, compartilha e se apropria de crenças, pensamentos e
práticas ao interagir com outras culturas.
D. Zeneida, então, foi sentada pajé aos onze anos de idade,
pelo mestre Mundico de Maroacá, em Salvaterra. A preparação an-
tes do “ritual de cruzamento” consistiu em algumas ações necessári-
as a serem feitas pela pajerana, ou seja, aquela que vai ser pajé
(LIMA, 2002), deve seguir uma rigorosa alimentação, tomar nove
banhos de ervas um a cada mês na lua crescente, durante nove me-
ses, e não deve olhar para a lua cheia, até o dia do ritual de iniciação.
O processo de formação como pajé durou um ano e dezessete dias,
ao longo do qual aprendeu com seu mestre os rituais da pajelança
(ou pajeísmo, como ela também denomina), o mundo dos caruanas
sob as águas, as sete cidades encantadas, as deidades (como o Gira-
dor, Patu-Anu, Auí, Anhangá), e outros conhecimentos.

119
Religião, Gênero e Poder

A concepção de pajelança e de mundo para D. Zeneida Lima


A pajelança, de acordo com D. Zeneida (2002), é um culto
oriundo dos indígenas, repassado aos caboclos e que hoje, em
nossa civilização “são as últimas marcas de um culto em vias de
extinção” (p. 16), pois estaria cada vez mais difusa entre elemen-
tos de outras religiões. Em sua concepção, D. Zeneida (1991, p.
32) explica que a encantaria:
[...] representa um encontro entre o homem e as energias da
natureza, os caruanas, companheiros do fundo, ou simples-
mente, encantados. [...] Ainda lhe digo mais, a natureza é a
grande mãe, a origem e o fim de todas as coisas. Não devemos
violentá-la, porque estaremos violando a nós mesmos. Os
que violam a natureza são punidos por Anhangá. [...] O res-
peito à natureza, a integridade e equilíbrio de seus elementos
é a lei maior. Dentro desse princípio de que se tratarmos bem
a natureza, ela nos dá tudo. A natureza possui energias in-
sondáveis para os mortais. Essas energias se manifestam no
pajé que se torna seu instrumento.
A pajé alega que os seus saberes e práticas seriam a sobrevi-
vência de um culto originalmente indígena das tribos do Marajó. Nesse
sentido, podemos inferir que a pajelança praticada por esta pajé se
relaciona mais com a ideia de xamanismo clássico do que com a de
pajelança cabocla.
Compreende-se xamanismo como “um fenômeno religioso da
Ásia Central e Setentrional (povos altaicos, buriatas, samoiedos, ia-
cutes, tungues, voguls etc.) e das regiões árticas norte-européias (la-
pões)” (MONTAL, 1986, p.13), que remonta sua origem ao período
Paleolítico. Segundo Alix de Montal (op. cit., p. 15), “a palavra xamã
vem do tungue saman, aparentado com o sânscrito sramana e com
o pâlisamana, que significa ‘homem inspirado pelos espíritos’ “, e
afirma também que:
Encontram-se fenômenos xamânicos similares entre os es-
quimós, entre os índios da América do Norte e da América
do Sul; na Oceania, na Austrália, no sudeste asiático; e
enfim, na Índia, no Tibete e na China. Trata-se, aqui, de um

120
Novas faces da pajelança cabocla na Amazônia

conjunto de práticas evidentemente adaptadas e amalga-


madas a cada cultura, a cada crença, mas que em toda par-
te apresenta o mesmo conteúdo mágico-religioso e simbó-
lico (MONTAL, 1986, p. 15).
Tedlock (2008) aponta cinco características fundamentais que
definem as atividades e perspectivas xamânicas, que são:
a) a convicção de que todas as entidades (inanimadas ou não)
estão imbuídas de uma força de vida holística, energia vital,
consciência ou alma;
b) a crença em uma “teia de vida” em que todas as coisas são
interdependentes e interconectadas;
c) a concepção de uma realidade complexa em que o mundo é
construído em uma série de níveis conectados por um eixo central,
que pode assumir a forma de uma árvore ou montanha;
d) a capacidade do xamã em viajar por mundos espirituais, e de
compreender e mudar eventos do mundo comum, podendo realizar
tais coisas durante seu período de consciência normal ou em
estados alternativos de consciência (por meio de jejum,
alucinógenos, rituais e sonhos);
e) os xamãs reconhecem que forças extraordinárias, entidades
ou seres cujo comportamento em uma realidade ou mundo
alternativo afetamos indivíduos e acontecimentos em nosso mundo
comum, e por outro lado compreendem que ações ou rituais
realizados na realidade normal podem afetar a esfera alternativa.

O xamanismo foi amplamente estudado por Mircea Eliade, em


especial na obra “Xamanismo e as técnicas arcaicas de êxtase”
(1998), e apesar de não ter pesquisado o fenômeno in loco, é um dos
estudiosos mais conhecidos quando se trata de xamanismo. Eliade
(1998, p. 16) aponta uma primeira definição, e segundo ele “possivel-
mente a menos arriscada”, de xamanismo como sendo fundamental-
mente uma técnica do êxtase. Nesse estudo, Eliade aborda com ên-
fase, entre outras práticas de cura e êxtase, o “voo mágico” ou “voo
xamânico”, que consiste na viagem mística da alma ou consciência
do xamã a outros mundos espirituais, superiores ou inferiores. Como
Eliade (1998, p. 17) explica, o xamã é “o especialista em um transe,

121
Religião, Gênero e Poder

durante o qual se acredita que sua alma deixa o corpo para realizar
ascensões celestes ou descensões infernais”.
Na pajelança cabocla ao invés de voo xamânico poderíamos
chamar de “mergulho xamânico”, já que a viagem do(a) pajé se dá
ao fundo das águas, o Fundo ou Encante, que é o lugar encantado
onde habitam os seres mágicos que auxiliam o pajé.
O xamã é, então, o sacerdote deste culto, o mediador funda-
mental entre os espíritos (de antepassados, de deuses e de animais)
e os seres humanos. Dentre suas funções a principal é curar as mais
diversas doenças e males, e que para Lévi-Strauss (2003) tal cura
xamânica se processa por meio de uma manipulação psicológica na
qual “a cura consistiria, pois, em tornar pensável uma situação dada
inicialmente em termos afetivos, e aceitáveis para o espírito as dores
que o corpo se recusa a tolerar” (p. 228).
Para D. Zeneida, o pajé não é somente o instrumento (ou “ave”)
dos caruanas (seres mágicos que habitam o fundo dos rios e interior
das matas, e detentores de grande poder tanto para provocar a cura
quanto a doença) e a ponte de ligação com o mundo encantado, mas
também um defensor e guardião da natureza e de sua sabedoria. Daí
a razão do trabalho que desenvolve com a educação e a ecologia,
por meio de uma ONG (Instituição Caruanas do Marajó) que a pajé
fundou e mantém em Soure.
Os caruanas, conforme esta pajé, são energias das águas, e
explica que:
São energias do fundo, energias do meio das águas e as ener-
gias da superfície, cada um tem, dentro da pajelança, tem um
posto, cada um tem uma hierarquia, [...] quer dizer, então,
cada um tem um domínio (entrevista de julho de 2010).
O domínio que ela se refere é o local onde reside cada carua-
na, ou seja, cada praia, rio, igarapé é habitado por um ou mais encan-
tados. Os caruanas são os encantados das águas doces, e possuem
caráter “positivo”, enquanto que os encantados das águas salgadas
são denominados de caruás, possuem caráter “negativo” e geral-
mente efetuam malinezas, mas também têm o poder de curar.

122
Novas faces da pajelança cabocla na Amazônia

Na literatura antropológica, e especificamente no estudo de


Maués (2005, p. 7), os caruanas, também chamados de companhei-
ros-do-fundo, são seres:
[...] normalmente “invisíveis” aos olhos dos simples mortais;
mas podem manifestar-se de formas diversas. [...] São chama-
dos de bichos do fundo quando se manifestam nos rios e
igarapés, sob a forma de cobras, peixes, botos e jacarés. Nes-
sa condição, eles são pensados como perigosos, pois podem
provocar mau olhado ou flechada de bicho nas pessoas co-
muns. Caso se manifestem sob forma humana, nos mangue-
zais ou nas praias, são chamados de “oiaras”; neste caso,
eles frequentemente aparecem como se fossem pessoas co-
nhecidas, amigos ou parentes, e desejam levar as pessoas
para o fundo. A terceira forma de manifestação é aquela em
que eles, permanecendo invisíveis, incorporam-se nas pes-
soas, quer sejam aquelas que têm o dom “de nascença” para
serem xamãs, quer sejam as de quem “se agradam”, quer se-
jam os próprios xamãs (pajés) já formados: neste caso, são
chamados de caruanas, guias ou cavalheiros. Ao manifestar-
se nos pajés, durante as sessões xamanísticas, os caruanas
vêm para praticar o bem, sobretudo para curar doenças.
Os caruanas também podem ser pessoas que se encantaram,
ou seja, que não morreram, mas misteriosamente desapareceram
em um rio ou mata, e integram-se de uma forma mítica àquele lugar
e/ou a algum animal, associado a sua história de vida. Por exemplo, o
caruana Raimundo Pavão que se encantou nas proximidades da praia
Cajuúna em Soure. D. Zeneida (2002) conta que esse caruana era
um pescador e que um dia enquanto estava em sua embarcação
nessa praia, provavelmente durante seu ofício de pesca, avistou um
pavão sobrevoando seu barco. A ave volteou e se afastou para pou-
sar então em:
[...] um areal que aflorava das águas, surgido do nada. Tocan-
do o pequeno barco para o areal, Raimundo notou que lá
estavam muitos índios. Remou firme para lá e diante de seus
olhos tudo desapareceu. A partir de então, Raimundo encan-
tou-se assumindo as características de seu último estágio, ou

123
Religião, Gênero e Poder

seja, a de um pavão, tendo por missão proteger as três praias;


Pesqueiro, Araruna e Cajuúna (LIMA, 2002, p. 84).
De acordo com a concepção de D. Zeneida, a função dos
caruanas é:
[...] em determinado tempo, preservar o equilíbrio natural, mas
em sua grande maioria [os caruanas] dedicam-se à cura do
vivente da Terra. [...] Finalmente, após cumprir as tarefas im-
postas pela Natureza, os Caruanas descem por uma Escadi-
nha de Coral encantada, onde gradativamente são submeti-
dos a uma transformação decrescente. Quanto mais
desenvolvido o Caruana, mais ele percorre o caminho inverso
para as profundezas. Sua aparência também vai se modifican-
do até atingir sua forma mais elementar. Torna-se água nova-
mente, a origem de tudo, o elemento principal e fundamental
da vida, o que nos sustenta, dá forças e energias5.
A pajé também explica que os caruanas se originam das Sete
Cidades encantadas que existem no fundo do mar, e de lá observam
no grande espelho das águas, que ela chama de a Lírica do Mar, tudo
o que os mortais fazem e invocados por um pajé eles podem vir
socorrer os seres humanos (LIMA, 2002, p. 82-83).
O pajé torna-se eixo de ligação entre os caruanas e os seres
humanos, intermediando energias da natureza, formada basicamente
pelos reinos animal, vegetal e mineral. Esses reinos estão presentes
também no ser humano e quando estão desequilibrados provocam
doenças e outros problemas de ordem emocional, mental e até mes-
mo econômico, conforme a explicação de D. Zeneida em entrevista.
O pajé é responsável por tratar deste desequilíbrio no indivíduo, por
meio de banhos e outros procedimentos. Para saber se as energias
ou os reinos estão em equilíbrio ou não, a pajé explica que:
Daí eu vô e dô uns enrolados, com três elementos da nature-
za, é uma pedra, um besouro e uma semente, aí você pega e
depois fica dentro da cumbuca; essa cumbuca é preparada
para fazer esse tipo de conferência das energias, depois dis-
so eu pego os enrolados e abafo essa cumbuca com os enro-
lados, numa folha sagrada que ela tem o poder de reter essas
energias ali. Daí eu levo pro tempo e deixo três dias, depois de

124
Novas faces da pajelança cabocla na Amazônia

três dias eu vô e tiro do tempo a cumbuca, tiro todas as folhas


que eu botei, os enrolados de folha que eu botei, e pego os
elementos e vô olhar e vejo a coloração. Às vezes eles ficam
vermelhos, tem outros que ficam esverdeados. Tem vezes que
tá tudo certo, você tá certa, suas energias estão certinhas. A
partir daí é que eu mando... eu vejo o reino que tava... porque
um representa a terra... a partir daí é que eu posso mandar as
energias pra te curar (entrevista de julho de 2010).
Em sua cosmovisão e cosmogênese, D. Zeneida (2002, p.
222-229) explica que o mundo dos caruanas foi criado pelo Gira-
dor, a divindade primeva que possui a forma de uma grande iga-
çaba ou vaso. Sobre as águas primordiais pairou o Girador, do
qual surgiu Auí, um ser altivo e luminoso, e seu povo, para o qual
construiu sete cidades encantadas sobre as águas. Eles viviam
em harmonia com a Natureza, até que um dia Auí transgrediu
uma regra ditada pelo Girador, que não deveria se aproximar de
lugares com desequilíbrios naturais. Auí avistou um redemoinho
nas águas, provocado por Anhangá, tido como o “resto da nature-
za”, e ao olhar com mais atenção percebeu que o fundo das águas
era feito do mesmo material que o Girador, o barro. Mergulhou
em direção ao centro das águas e isso provocou um desequilíbrio
na ordem natural. O que estava em cima foi para o fundo das
águas, e o que estava embaixo emergiu à superfície.
Assim, criou-se a terra firme, e Auí e seu povo passaram a
habitar o fundo. O Girador então pairou no ar e lançou sobre a terra
sementes da vida que originaram todos os seres viventes. O corpo
de Auí foi despedaçado pelo redemoinho, e deu origem a várias coi-
sas na natureza e também a seres mágicos, como o Peixe de Sete
Asas coloridas, que conduz a alma dos pajés aos mistérios das Sete
Cidades Encantadas. Além destas deidades, existe também Patu-
Anu, criado pelo Girador para governar os caruanas e realizar trans-
formações nas cidades sob as águas, depois da imersão ao fundo.
Outros mitos como este são contados na autobiografia de D.
Zeneida, e se apresentam como novos e desconhecidos na literatura
sobre mitologia da Amazônia, ao mesmo tempo em que contêm, como
neste mito de criação, elementos padrões existentes em muitas mito-
logias, como a água como princípio de toda a existência, uma divin-
125
Religião, Gênero e Poder

dade primeva e criadora do mundo, e ao mesmo tempo distante des-


te, a ordem ou harmonia natural, a transgressão dessa ordem, a puni-
ção e “queda do paraíso”, o sacrifício do gigante que tem seu corpo
repartido e dá origem a diversas coisas da natureza (ELIADE, 2001;
CAMPBELL, 1990).
Em seu depoimento, coletado em entrevistas, D. Zeneida con-
ta que os rituais que realiza são para várias finalidades, além daque-
les realizados para a cura dos indivíduos. Há um para agradecer a
natureza, outro para pedir chuva (caso esteja fazendo muito calor)
ou para pedir pelo sol (caso as chuvas estejam intensas), outro para
proteger o indivíduo que entra na adolescência (caracterizando-se
como um rito de passagem), para dar forças a uma pessoa que dese-
ja alcançar um objetivo, há também rituais dedicados à Mãe Terra,
para alimentá-la ou para curá-la quando uma área é devastada, há
um rito fechado feito especificamente a Anhangá, no dia em que
acontece o alinhamento da Terra, Lua e Sol. A pajé explica que:
Os rituais de Anhangá, dentro da pajelança, eles são secre-
tos, sabe? São rituais secretos porque o pajé... algumas pes-
soa veem, mas é com urtiga, sabe? Então o pajé se rola por
cima da urtiga todinha, o servente bate o corpo do pajé tudo
com urtiga. Então é um ritual, vamos dizer, pesado. Porque
Anhangá, a energia de Anhangá, é pesado; ele faz isso... o
servente do pajé faz isso, bate no pajé, pra acalmar essas
energias na Terra, entendeu? Pra que essas energias, não
haja tanto desgastes [desastres], tantas coisas ruins, ele acalma
as energias dela. (Entrevista de julho de 2010).
Alguns dos instrumentos sagrados que ela utiliza são o mara-
cá, que deve ser de três tipos: o maracá da cura (que contém penas
da asa da arara azul), o maracá para marcar os ritmos da dança e
dos cânticos (com penas do rabo da arara vermelha), e o maracá de
espinho (enfeitado com espinhos e penas amarelas) que serve para
afastar Anhangá nos rituais de cura; há também as cintas, amarra-
das no corpo da pajé; um cipó, que ela utiliza para delimitar um círcu-
lo sagrado; um arco e flecha; cigarros de tauari; cuias ou cumbucas
contendo água e outras coisas.

126
Novas faces da pajelança cabocla na Amazônia

Enquanto pajé, D. Zeneida Lima afirma não ter sofrido discri-


minação pelo fato de ser mulher, e sim pelo fato de ser pajé, pelas
práticas que realiza, tendo em vista que a pajelança ainda é uma
prática marginalizada. Ela reclama ter sido alvo de perseguição e
preconceito, sobretudo em sua cidade. Relata também que durante o
período em que estava menstruada ela não poderia realizar pajelan-
ça, pois seu corpo “não estava puro para os caruanas” (entrevista de
julho de 2010), deveria se alimentar somente de peixe e da parte
inferior do mesmo e beber água apenas três vezes no dia. Também
não poderia ter relação sexual durante a lua cheia e nem alguns dias
antes de uma pajelança. Caso ela não seguisse essas regras, corre-
ria o risco de perder seu poder de cura.

A mulher como pajé na Amazônia


Em alguns estudos (MOTTA-MAUÉS 1993; VILLACOR-
TA, 2000; CAVALCANTE, 2008) foi observado que em certas lo-
calidades amazônicas a mulher sofre restrição em ser pajé, ou que
no mínimo sofre interdições que geralmente o homem não sofre. Em
outras localidades, porém, encontram-se mulheres pajés considera-
das mais poderosas até que os homens pajés. E em outras situações,
é mais comum encontrarmos curandeiras, benzedeiras e parteiras,
sendo esta última uma função exclusiva do sexo feminino.
As interdições relacionadas a restrição da mulher na pajelan-
ça giram, muitas vezes, em torno dos ciclos fisiológicos femininos, e
sobretudo, sobre o sangue menstrual e os simbolismos a ele atribuí-
dos. A população considera que a mulher não consegue controlar os
seus ciclos biológicos, e por essa razão não controlaria os seres e
forças que nela atuariam. No período em que a mulher se encontra
menstruada, diz-se que ela está “fraca” e não pode incorporar (CA-
VALCANTE, 2008). Deve aguardar que a menstruação pare, para
voltar às atividades normais da pajelança. Ou então, ela deve aguar-
dar até a menopausa, quando se “hominiza” (expressão empregada
por MOTTA-MAUÉS, 1993), isto é, se assemelha ao estado natural
masculino, sem ciclos menstruais, para então exercer seu dom.
Koss (2004) escreve que a menstruação quer dizer “mudança
de lua”, o que evidencia a relação da ciclicidade da natureza com o
próprio corpo feminino, além de observar um dado amplamente co-
127
Religião, Gênero e Poder

nhecido de que o ciclo menstrual dura em torno de 28 a 29 dias, o


mesmo período do ciclo lunar. Koss (2004, p. 14) escreve que:
O que caracteriza o sangrar da mulher é a sua ciclicidade. Um
conjunto de eventos fisiológicos que iniciam e terminam em
um mesmo acontecimento: o fluxo sanguíneo, a menstruação
retorna regularmente, como as estações. Nessa sua regulari-
dade, ela está associada com o primeiro contar do tempo, seja
o tempo da coleta e da caça, seja o tempo da semeadura e da
colheita, seja o tempo da procriação e da gestação. E assim
como o tempo, está também intimamente conectada com a
lua, a cujo movimento cíclico respondem os oceanos, o ritmo
cardíaco e o próprio pulsar da vida, em seu movimento de
expansão e contração.
A autora defende que em algumas sociedades antigas, em que
a mulher exercia certa importância no contexto social e religioso, o
sangue menstrual era símbolo de poder e no momento em que a
mulher encontrava-se menstruada era capaz de intermediar forças
diferentes ou conectar-se com mundos diferentes, pois a mesma es-
tava em uma condição liminar.
Seja no parto, seja na menstruação, é no momento da passa-
gem, quando deixa o interior do corpo da mulher e se manifes-
ta no mundo exterior, que o poder contido no fluxo sanguíneo
lança a mulher numa condição liminar, em que vida e morte,
consciente e inconsciente se tocam. Nesses momentos, o véu
que separa os mundos é tênue, muito sutil, possibilitando
sua transposição. Por essa razão, as xamãs precipitam sua
menstruação antes de iniciar um trabalho poderoso. [...] A
habilidade para mediar as forças entre os mundos está intima-
mente relacionada com o menstruar (KOSS, 2004, p. 15).
Essa situação liminar é provocada em razão de serem atribuí-
dos ao sangue menstrual poderes mágicos ligados tanto à vida quan-
to à morte, e resulta geralmente em diversas restrições sociais e
religiosas para a mulher, que se diferenciam a cada sociedade.
Motta-Maués (1993) realizou um estudo em Itapuá, vila de
pescadores em Vigia/PA, acerca do papel da mulher na comunidade
e na religião, e o quanto este papel está relacionado simbolicamente

128
Novas faces da pajelança cabocla na Amazônia

à fisiologia e ao ciclo biológico da mulher. A autora afirma que a


mulher é vista como portadora da “desordem”, devido aos seus ci-
clos biológicos (confusos e incompreendidos pela população mascu-
lina itapuaense), enquanto que o homem é o portador da “ordem”.
Motta-Maués verifica a existência de áreas definidas como de domí-
nio feminino (a ‘roça’ ou agricultura e a religião católica) e masculi-
no (a pesca, a caça e o xamanismo).
Cavalcante (2008), por sua vez, aponta que em Condeixa (Ilha
do Marajó) existe um número considerável de mulheres trabalhando
como meuans, categoria que exerce uma assistência ao pajé que a
“endireitou”, não atuando ativamente na pajelança. A maior dificul-
dade de mulheres se tornarem pajés é a não aceitação por parte da
família, principalmente do marido, que não aceita a esposa se “liber-
tar” durante os trabalhos, ou seja, beber e fumar. Falar do feminino
na concepção desses indivíduos é lembrar da ideia de mulher en-
quanto um ser dócil, mãe dedicada e esposa recatada, indício de um
forte sistema patriarcal, em que a mãe e os filhos são figuras subor-
dinadas e dependentes da figura do pai.
No município de Colares (PA), Villacorta (2000) observou que
mesmo sendo limitado o exercício do gênero feminino na pajelança,
havia mulheres pajés. Porém, elas eram discriminadas por parte da
sociedade e chamadas de Matinta-Perera, feiticeiras do imaginário
amazônico que, segundo a autora, mescla elementos mitológicos da
cultura africana (as mulheres do pássaro da noite), pré-judaica (Lili-
th) e do cristianismo medieval (a bruxa). Acredita-se que a matinta é
uma mulher ora de aparência idosa e feia, ora jovem e bela, que
carrega consigo um fardo, herdado de família (de avó para neta), e
que se contrariada ou desrespeitada pode lançar um feitiço, doença
ou desgraça para um indivíduo. Anda sempre acompanhada de um
pássaro, que com seu assobio anuncia a presença da bruxa.
Sobre a recorrência de mulheres xamãs, observa-se que em
algumas mitologias, como a da América Central, conta-se que a
mulher nasceu ao mesmo tempo em que o primeiro nagual (xamã), e
por isso ela é considerada tão capaz quanto ele, e às vezes até mais
temível, no exercício do xamanismo. Sobre as mulheres xamãs, Montal
(1986, p. 25) cita Dom Juan que diz que “de modo absoluto, elas

129
Religião, Gênero e Poder

levam ligeira vantagem”. E o próprio processo de iniciação das mu-


lheres segue as mesmas etapas que dos homens no xamanismo.
No estado do Acre em 2005 duas mulheres da etnia Yawana-
wá iniciaram a “dieta do mucá”, ou seja, iniciaram um processo ritual
para se tornarem pajés. Elas são Raimunda Putani Yawanawá e Kátia
Hushahu Yawanawá, sendo que a segunda atua mais ativamente
como pajé na aldeia.
Ambas passaram por um período de iniciação, onde ficaram
um ano isoladas na mata, obrigadas a fazer abstinência sexual, co-
mer apenas alimentos crus e beber apenas uma bebida especial à
base de milho. Segundo informações na reportagem, essas mulheres
sabiam das dificuldades e preconceito que enfrentariam, dentro e
fora de sua aldeia, pois a tradição da pajelança era reservada, até
então, aos homens. Tinham consciência do paradigma que estariam
quebrando, e mesmo assim elas persistiram.
O Rare, planta presente no processo de iniciação do pajé, é
considerada muito sagrada para os Yawanawá, e somente os pajés
ou os que pretendem se tornar pajés podem ter contato, a nível físico
e espiritual, com a planta. Nas experiências místicas que as pajés
tiveram, a figura do feminino era marcante e representava o espírito
do Rare e da Jiboia (um dos, se não o principal, ser encantado no
imaginário dos povos indígenas acreanos), como explica Kátia:
O Rare é uma planta muito sagrada. A partir do momento que
a gente come, a gente já planta ele dentro da gente. A partir
desse momento, a gente já passa a ter o conhecimento e o
poder do Rare. [...] Podemos tocar numa pessoa e dizer para
ela que vai ficar boa. As nossas palavras são muito sagradas.
Ele é uma planta, mas é espírito. Ele também tem uma mulher.
Sempre é uma mulher tanto nele quanto na jibóia. Nos nossos
sonhos é sempre uma mulher que traz o conhecimento. Ele é
muito poderoso. 6
Dessa forma, as visões e sonhos com a “mulher que traz o
conhecimento” reforçam a ideia (e a defesa) das pajés Yawanawá
de que a mulher tem tanto poder e capacidade em ser pajé quanto os
homens, pois as próprias forças sagradas se manifestam na forma
de uma mulher.

130
Novas faces da pajelança cabocla na Amazônia

Tedlock (2008) escreve que em diversas culturas da Era do


Gelo, a mulher exercia papel de grande importância, não de primazia,
no xamanismo. Escavações arqueológicas no sítio do Alto Paleolítico
chamado Dolní Vestonice, na República Tcheca, encontraram dois
ossos da escápula de um mamute posicionados para formar os dois
lados de um teto de resina de pinheiro. Embaixo havia um esqueleto
humano, e na terra que o cobria, bem como nos ossos, viam-se tra-
ços de ocre vermelho, indicando que o corpo fora pintado de verme-
lho antes de ser enterrado.
No entanto, esse túmulo não era de uma pessoa comum, pois
encontraram também a ponta de uma lança de sílex próxima a cabe-
ça do cadáver e o corpo de uma raposa posto em uma das mãos.
Segundo a equipe de arqueólogos que estudaram o sítio, a raposa era
um indício claro de que a pessoa no túmulo fora um xamã. Contudo,
foi uma surpresa quando a análise do esqueleto revelou que o xamã
em questão era uma mulher. Anos mais tarde, foi descoberto próxi-
mo do túmulo da xamã uma cabana de terra batida contendo ossos
estriados e um forno grande com milhares de pedaços de argila cozi-
da, alguns na forma de pés humanos, mãos, cabeças, e outros eram
fragmentos de figuras de animais.
A partir dessas escavações e estudos publicados por Bohuslav
Kamí, o líder da equipe de arqueólogos, a pesquisadora Tedlock (2008,
p. 14) defende que:
Além de o esqueleto mais antigo conhecido de um xamã ser o de
uma mulher, ela é também a primeira artesã de que se tem notícia
que trabalhava com argila e a endurecia com fogo. Não fazia
utensílios para casa, e sim talismãs ou figuras de algum tipo,
talvez para usá-los em seus rituais e curas espirituais.
Esta autora argumenta que apesar das evidências da lingua-
gem, dos artefatos, representações pictóricas, narrativas etnográfi-
cas e relatos de testemunhas, a significativa função das mulheres
nas tradições xamanísticas de diversas culturas e épocas foi obscu-
recida e negada, e o fato de que “corpos e mentes femininos são
especialmente dotados do poder de transcendência foi ignorado”
(TEDLOCK, 2008, p. 14).

131
Religião, Gênero e Poder

Diante disso, então, como a mulher em várias sociedades teve


sua participação limitada e às vezes subjugada na vida religiosa?
Alguns estudos recentes na área da antropologia vêm buscando so-
lucionar essa questão. Margaret Mead em seu livro “Sexo e Tempe-
ramento” (1999) apresenta importantes considerações sobre a cons-
trução cultural dos comportamentos e papéis femininos e masculinos
(o termo gênero surge somente alguns anos depois do seu estudo), a
partir de sua etnografia em comunidades da Nova Guiné. Esta auto-
ra lança luzes no caminho da pesquisa sobre gênero, demonstrando
que este é muito mais um fator construído pela cultura, logo é relati-
vo e suas configurações mudam de acordo com a sociedade em
foco, do que um fator biológico, ou seja, universal, como alguns estu-
diosos afirmavam até o século XIX.
Rita Segato (1998) retoma essa ideia e afirma que o gênero
não é algo observável, pois é abstrato, ou seja, sua construção
encontra-se muito mais na mentalidade social do que necessaria-
mente no corpo humano. Para Segato (1998), o gênero se trans-
põe, é complexo, e o sujeito deve ser considerado uma composi-
ção mista, plural e não um ser monolítico, definido por
características “femininas” ou “masculinas”, que na realidade
variam conforme o contexto histórico e cultural, ou seja, o que é
considerado característica feminina numa sociedade pode ser
considerado masculina em outra. Nesse sentido, podemos perce-
ber algumas razões (construídas socialmente) que tornam ora a
mulher restrita ora ativa na atuação do xamanismo.
Em Soure, é possível observar que as mulheres não sofrem
extremas restrições em serem pajés e nem precisam esperar até a
menopausa para atuarem na cura, no entanto, nos momentos em que
estão menstruadas as mulheres não podem realizar rituais de paje-
lança, pois o corpo está “impuro” para receber os caruanas, como
afirmou D. Zeneida em entrevista. Apesar de alguns estudos de-
monstrarem a dualidade do poder da mulher, representado pelo san-
gue menstrual, de caráter ora construtivo ora destrutivo, é o caráter
negativo (destrutivo) que prevalece muitas vezes na ideia do(a)s pajés.

132
Novas faces da pajelança cabocla na Amazônia

Considerações finais
O estudo sobre as mulheres pajés na Amazônia está se ampli-
ando cada vez mais e vem demonstrando que elas participam do
universo da pajelança de uma maneira ou de outra, seja agindo efe-
tivamente como pajés ou xamãs, seja agindo como serventes ou
meuans. Em todo o território amazônico elas são mulheres que cu-
ram, são as curandeiras, benzedeiras, parteiras e pajés, que possuem
saberes das plantas curativas, da mata, das águas, dos ciclos da lua e
da natureza.
Em alguns locais são restritas ao conhecimento dos mistérios
da cura e da encantaria. Mas, teimosas, insistem em adentrar nesse
mundo místico, de transe e magia, e contrariando o sexo masculino,
que geralmente predomina na pajelança, são castigadas socialmente
e chamadas de feiticeiras, bruxas e matintas. Em contrapartida, nou-
tros locais as mulheres assumem posição destacada, podem ser con-
sideradas mais poderosas que os homens, e são reconhecidas como
xamãs ou pajés.
Com este estudo foi possível constatar que em Soure as mu-
lheres não são restritas em serem pajés ou de atuarem na prática da
cura. Pelo contrário, dentre os entrevistados (durante a pesquisa de
2009 a 2011, num total de cinco informantes) elas representaram
quantidade maior do que os homens. Entretanto, devido ao seu ciclo
fisiológico natural e aos simbolismos a ele atribuídos, a mulher pajé
deve seguir certas restrições que o homem geralmente não segue.
Em período de sangramento menstrual ela não deve realizar nenhum
ritual de cura, pois está “impura” ou com as “correntes quebradas”
(como afirmou uma outra pajé de Soure, não mencionada neste arti-
go), e também deve seguir uma dieta alimentar baseada em determi-
nados tipos de peixes e não comer a parte da cabeça destes.
Foi possível observar também em Soure uma diversidade de
práticas e rituais de cura que se configuram de maneira diferenciada
e nova no campo da pajelança, principalmente as crenças e práticas
exercidas pela pajé Zeneida Lima. Essa constatação nos faz refletir
acerca da dinâmica da cultura e religião, que estão em constantes
mudanças e adaptações à realidade e ao tempo, e na pajelança não
poderia ser diferente.

133
Religião, Gênero e Poder

A pajelança exercida por D. Zeneida apresenta-se de forma


nova e desconhecida para os estudiosos do tema, entretanto, pode-
se afirmar que ela apresenta aspectos ancestrais e ao mesmo tempo
modernos. D. Zeneida é mulher e pajé, dois fatores socioculturais
que foram marginalizados, mas que por meio de sua prática e atua-
ção tornam-se destaques no âmbito social, político7 e midiático. E,
sobretudo, a pajelança que passa a ocupar posição destacada, com
livros publicados sobre o tema escritos pela própria pajé, sua partici-
pação no carnaval, produção de um filme sobre sua vida, etc.
Com a atuação da pajé surge também uma problemática, pois
a pajelança praticada por ela entra em conflito com as outras formas
de pajelança (de Soure e de outras localidades da Amazônia). Qual é
pajelança mais “verdadeira”, mais “antiga”? Embora essa pergunta
seja praticamente impossível de ser respondida, e nem é pretensão
desse estudo respondê-la, é importante refletir sobre essa questão,
pois nos remete a disputa pelo poder simbólico, utilizando o termo de
Bourdieu (1989), e implica aspectos objetivos e subjetivos, interesses
pessoais e ideológicos envolvidos.
Alguns pesquisadores, antropólogos e folcloristas não consi-
deram a concepção da pajé Zeneida como válida, e alguns nos dão a
entender que essa forma de pajelança não foi nada mais do que
inventada, visto que muitas de suas crenças (como a ideia do que são
os caruanas, e a criação do mundo) e práticas não foram igualmente
observadas em estudos etnográficos, até então realizados (MAUÉS,
1990; GALVÃO, 1955; VILLACORTA, 2000).
Contudo, não devemos ter uma visão generalizadora da paje-
lança na Amazônia, que evidentemente pode apresentar característi-
cas próprias de um lugar para outro, pois há fatores complexos do
ponto de vista histórico, social e cultural que ajudam a moldar as
manifestações religiosas. Nesse sentido, é importante lembrar que a
Ilha do Marajó teve uma das habitações mais antigas constatadas
nas Américas pela arqueologia e foi habitada por sociedades indíge-
nas sobre as quais temos, ainda hoje, pouco conhecimento sobre sua
origem e cultura, e que essa cultura, demonstrada simbolicamente
nos vestígios de cerâmicas marajoaras, não existiu em nenhum outro
ponto da Amazônia ou Pará, apenas no Marajó (SCHAAN, 2009).

134
Novas faces da pajelança cabocla na Amazônia

Não pretendi aqui defender nem atacar a pajelança de D.


Zeneida, mas levantar uma discussão e reflexão sobre as configura-
ções que apresentam a pajelança na Amazônia, enfocando as práti-
cas e crenças desta pajé e demonstrando as novas faces que a paje-
lança apresenta atualmente; faces essas, sem dúvida, mais femininas.

Referências bibliográficas
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135
Religião, Gênero e Poder

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identidades. Belém: Cejup, 1999.
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“Camarados”: relações de gênero, simbolismo e ritualização numa
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VILLACORTA, Gisela M. Mulheres do Pássaro da Noite: pajelança
e feitiçaria na região do Salgado (nordeste do Pará). Dissertação de
mestrado em Antropologia da Religião, apresentada no Departamento
de Antropologia da UFPA. Belém, 2000.

Notas do Capítulo 6
1
Informações retiradas do site: www.paraturismo.pa.gov.br.
2
A pesquisa que embasou este artigo resultou no trabalho de conclusão de
curso em Ciências da Religião pela UEPA em 2010 e na produção de uma
dissertação de mestrado em Ciências da Religião, defendida em 2012.
3
Um influente político e advogado, que nos anos 30 e 40 atuava ao lado de
Justo Chermont e Magalhães Barata, sendo este último, inclusive, o padrinho
de nascimento de Zeneida Lima (LIMA, 2002).
4
D. Zeneida Lima fundou a “Instituição Caruanas do Marajó – Cultura e
Ecologia” que coordena junto com sua família, onde desenvolvem projetos
na área de educação.
136
Novas faces da pajelança cabocla na Amazônia

5
Extraído do site <www.caruanasdomarajo.com.br>. Acesso em 30/11/2010.
6
A matéria sobre essas pajés Yawanawá e a entrevista com elas está
disponível em <http://altino.blogspot.com.br/2006/04/primeira-paj-
brasileira.html>. Acesso em 15/08/2012.
7
A pajelança do Marajó foi declarada como patrimônio cultural imaterial do
Pará em 28 de outubro de 2010, com o Projeto de Lei Ordinária Nº 289 da
deputada estadual Ana Cunha (segundo informação no site: http://
www.caruanasdomarajo.com.br/noticias28-04-2010.php).

137
Religião, Gênero e Poder

138
Capítulo 7
A Construção da Identidade Ecológica no Candomblé Jeje
Savalu: leituras a partir da fala de uma Sacerdotisa Jeje

Manoel Roberto Ferreira Chagas


As religiões de matriz africana chegaram ao Brasil numa épo-
ca em que a relação com a natureza era bem diferente da forma
como encontramos hoje. A atitude do homem moderno difere da ati-
tude das populações consideradas “tradicionais”. Para o afrorreligi-
oso, as plantas e as ervas são sagradas e fundamentais para a sua
prática litúrgica, pelo fato de que eles possuem o conhecimento ne-
cessário para o uso desses elementos, tanto para uso medicinal, como
para os ritos de cura e de iniciação.
Sem natureza não tem religião, sem folha não tem divinda-
de, e o culto torna-se inoperante. Na feitura de santo, é deposita-
da uma grande quantidade de folhas abaixo de uma esteira, devi-
damente preparada para esse ritual. O iniciado é orientado para
deitar sobre as folhas, que são escolhidas de acordo com a espe-
cificidade de cada divindade.
Neste ensaio, serão analisadas as diferentes formas em que
os adeptos do Candomblé1 Jeje Savalu vêm construindo uma identi-
dade ecológica e como se dá a relação com a natureza, sem, no
entanto, focalizar o protocolo litúrgico. A descrição dos dados cole-
tados está relacionada à fala da Sacerdotisa Gayaku Jokolosy e de
outros savalunos. Os relatos são fontes para interpretação e análise
de conteúdo, além da observação participante e entrevista realizada
no campo em 2013.
Ao enfatizar a relação do Candomblé com a natureza, no
que se refere ao mote ecológico como elemento aglutinador da
tradição, é possível compreender o processo de “purificação” do
Candomblé, quando este descarta alguns elementos considerados
negativos e estigmatizados por força da intolerância religiosa e
do preconceito. Em contrapartida, procura agregar e legitimar um

139
Religião, Gênero e Poder

novo conceito que venha gerar o reconhecimento do candomblé


como religião “ecológica” na luta para se afirmar e desmistificar
os rótulos de “poluidores da natureza”, por conta das práticas
religiosa que inclui as oferendas que são depositadas nos espaços
públicos, e pela imolação de animais.
No entanto, é importante perceber o esforço dos savalunos
que cultuam as divindades Voduns em afirmar os elementos positi-
vos que inclui a relação com a natureza por força da tradição, que
possa contribuir para elevar o nome da comunidade religiosa diante
de rótulos atribuídos pela sociedade moderna ao longo do tempo.
A Sacerdotisa Gayaku Jokolosy informa que no Candomblé
Jeje Savalu, as ervas são utilizadas para a limpeza da alma, o banho
serve não apenas para limpar o corpo e, sobretudo, para renovar a
energia e equilibrar o espírito de acordo com os problemas apresen-
tados, sob a supervisão e indicação das divindades para o uso corre-
to das folhas e ervas indicadas para cada caso específico.
Nesse contexto, percebe-se a importância da intervenção da
sacerdotisa, quando utiliza o conhecimento tradicional em prol da
comunidade, e assume uma postura de psicóloga espiritual. Pois a
vida em si, se traduz como um ritual que pode ser visto nas diferentes
atividades humanas, como o agradecimento, o louvor, a oração e o
respeito às divindades.
Para o Pejigã Gankónã (Alan) “O candomblé é de fato uma
religião ecológica, porque essa religião não está apenas, em cons-
tante relação com a natureza, mas porque o Candomblé é consi-
derado a própria natureza”. Nesse discurso fica evidente a apro-
priação do termo ecológico que vai além da relação entre religião
e natureza, não basta falar apenas do vínculo estabelecido, e sim
demonstrar que o termo “ecologia” foi incorporado à tradição afri-
cana. Na tradição iorubana o Iroko é representado no Brasil por
uma árvore de grande porte denominada de gameleira branca,
porém o Loko na tradição (Jeje Savalu) representa a floresta in-
teira e não apenas uma árvore e está devidamente representado
na Amazônia por uma jaqueira.

140
A construção da identidade ecológica no Candomblé Jeje Savalu

Apresentando o campo religioso: Associação Funderê Oyá


Jokolosy
Conheci a Sacerdotisa Gayaku Jokolosy e o Pejigã Gankónã
(Alan) durante o Evento “Axé da Natureza”, ocorrido em Junho de
2012 no auditório da SEFA (Secretaria da Fazenda). Porém, o pri-
meiro contato in loco com a Gayaku Jokolosy e a comunidade AR-
FUOGY (Associação Funderê Oyá Jokolosy) foi em Julho de 2013.
O encontro aconteceu no dia 29/07/13 as 17:00 horas conforme com-
binado por telefone, inicialmente fui recebido pelo Gankónã (Alan) e
por outros membros da comunidade, que se mostraram bem recepti-
vos, fiquei numa área próxima à entrada principal da casa conver-
sando e aguardando a chegada da Gayaku Jokolosy.
Apesar da grande intensidade de trabalhos litúrgicos, a sacer-
dotisa me recebeu com alegria e demonstrou grande disposição em
colaborar com a pesquisa. Em seguida fui convidado para entrar em
uma sala mais reservada para iniciarmos a conversa sobre a temáti-
ca do projeto de pesquisa. A minha intenção era apenas de falar
sobre o projeto e me apresentar à comunidade savaluna, para que
num segundo momento pudesse iniciar a entrevista sobre a relação
da comunidade com a natureza. Contudo, o ambiente estava tão pro-
pício e harmonioso que o trabalho começou a fluir a partir desse
primeiro encontro.
Gankónã (Alan) chama a atenção para o foco do discurso
ecológico distorcido, quando utilizado de forma preconceituosa e ra-
cista para atingir um alvo previamente estabelecido, caracterizado
como racismo ecológico.
Atualmente, se fala muito de racismo ecológico que é justa-
mente a tentativa de determinados grupos fundamentalistas
de outras religiões que se utilizam do argumento ecológico
para tentar instituir leis que venham proibir nossas práticas.
Felizmente ainda podemos contar com a Constituição Federal
de 05 de Outubro de 1988, que vem garantir uma liberdade de
culto religioso (Entrevista realizada em Julho de 2013).
Para Gankónã, o foco do racismo ecológico2 está direcionado
para as religiões de matriz africana, dificilmente alguém direciona o
olhar para a procedência da carne bovina e suína, e para a forma

141
Religião, Gênero e Poder

como esses animais são tratados nos matadouros brasileiros, que


passam por cima das convenções e tratados internacionais que não
são atendidos no quesito de como devem proceder e tratar os ani-
mais durante o abate.
Gankónã diz que quando se fala de ecologia3 nas religiões de
matriz africana o racismo entra em cena. “A nossa religião utiliza o
conceito da sustentabilidade que está diretamente relacionado com a
preservação do meio ambiente e inclui todo o ecossistema”.
A relação do afrorreligioso com a natureza proporciona a pro-
ximidade com o sagrado de forma intensa. Só aquele que detém o
dom verdadeiro, é capaz de usufruir uma experiência única repleta
de sacralidade e leveza. Somente quem vivenciou esse encontro, é
capaz de descrevê-lo com alegria e emoção conforme relatado por
Gayaku Jokolosy.
Em minha trajetória como sacerdotisa da religião de matriz
africana, passei por uma experiência inesquecível, onde fui
transportada numa viagem inusitada de percurso vertical e
ascendente, cujo ponto de partida estava representado por
uma floresta de árvores frondosas de grande porte, que co-
nectavam o solo sagrado da floresta à longevidade celeste. O
início da viagem foi marcado por uma sensação de leveza
flutuante, meu corpo deslocava-se suavemente por toda a
extensão vertical da floresta exuberante com seus contrastes
de cores verdejantes, sentindo um suave cheiro da mata que
me levava em direção ao topo, que estava revestido de inten-
sa folhagem e encobria parcialmente o reflexo luminoso do
cosmo sagrado. Quando meu corpo ultrapassou o topo da
grande árvore, percebi que estava diante de um feixe de luz
recrudescente que refletia muita paz e harmonia, possibilitan-
do o meu encontro com a divindade. Ao retornar dessa sen-
sação, foi como despertar de um lindo sonho, repleto de ma-
gia e mistério. Este fato ocorreu há 27 anos atrás, logo após o
assentamento das divindades Gbessen e Agué, protetores
das matas e das florestas (Entrevista realizada em Julho/2013).
Para Gayaku Jokolosy, falar da relação do afrorreligioso com
a natureza sagrada não é uma tarefa simples, isso requer muita força
e determinação para enfrentar os obstáculos que cercam essa rela-

142
A construção da identidade ecológica no Candomblé Jeje Savalu

ção. A experiência religiosa é traduzida na vivência e na determina-


ção diária, necessária para conduzir uma casa de tradição africana.
A Sacerdotisa Gayaku Jokolosy tem 36 anos de experiência
de culto religioso, atualmente desenvolve um importante trabalho à
frente da comunidade do Candomblé da nação Jeje Savalu, é uma
senhora muito respeitada pelo seu dinamismo religioso, alcançou um
lugar de destaque devido a sua simplicidade, humildade e respeito
pela religião, pelos voduns e por todas as pessoas. Gayaku desenvol-
ve a prática litúrgica da casa junto com os adeptos da comunidade
savaluna e não se exime dos serviços como a preparação dos mate-
riais que serão utilizados nas oferendas e no processo litúrgico.
Antes de se iniciar no Candomblé, Gayaku Jokolosy passou
pelo culto de Pena e Maracá e pela Umbanda. Após receber o Deká
no Jeje, a sacerdotisa informou que para firmar todos os fundamen-
tos do Jeje Savaluno, ficaria na obrigação de assentar o Vodun Lokô,
que mora na floresta, estabelecendo a relação com a natureza por
morar numa árvore que simboliza a proteção das florestas, dos ani-
mais e de toda a mata.
Para o Pejigã Hunsijé (Aldryn) o assentamento do Vodun Lokô,
impossibilitaria de receber os caboclos de Pena e Maracá, oriundos
da região amazônica. Assim, para não perder essa linha já cultuada
anteriormente, houve a necessidade de assentar Kitembo que é uma
adaptação da Umbanda com o Candomblé de Angola. Ou seja, é
necessário fazer oferendas ao i’nkisse Kitembo que pertence ao
Candomblé de Angola e aos caboclos da Umbanda que são doutrina-
dos em outros ritmos e costumes e tem como adoração, no caso de
Kitembo, toda uma simbologia de acordo com a nação específica.
Tanto o Keto como o Jeje e Angola se apropriam do Candomblé de
Caboclo que seria um pouco da Umbanda amazônica.
Gayaku Jokolosy explica que “esse conhecimento é específico
da casa”, e vem sendo repassado com riqueza de detalhes ao seu
neto Hunsijé (Aldrin) e aos outros filhos de santo que possuem car-
gos na casa. Esses filhos de santo vêm se apropriando desse arca-
bouço de informações, por via de transmissão oral, sobre o Candom-
ble Jeje Savalu na sua concepção amazônica, constituído de maneira
que envolve diferentes tradições de Angola, Jeje, Candomblé de
Caboclo e Pena e Maracá.
143
Religião, Gênero e Poder

Dessa forma, as pessoas que já recebiam caboclos na Mina e


na Umbanda e que posteriormente se iniciaram no Candomblé, de-
pois de um período de um ano, são preparadas para receber os cabo-
clos de nação, dando passagem para seus antigos caboclos, manten-
do a tradição já existente na região amazônica.
Os caboclos angoleiros possuem muito “chamego” e aproxi-
mação com a mata, são denominados de “índios” porque vivem na
floresta, seus cânticos fazem referência às flores, as cachoeiras, aos
rios e a mata. As regiões brasileiras como o semi-árido e o sertão
são conhecidas como região de Boiadeiros que demonstram um imenso
amor à pátria, afirmando em seus cânticos que são brasileiros.
Gayaku Jokolosy afirma que os primeiros que aqui chega-
ram foram os angoleiros, posteriormente vieram os Jejes, nesse
sentido explica-se a importância do acolhimento de Angola. Quan-
do a casa é de nação Jeje, a abertura aos caboclos se dá por meio
da nação Angola.
Nos cânticos da Umbanda, os caboclos fazem adoração aos
santos católicos, por iniciativa e por necessidade como resistência
para a manutenção de suas práticas religiosas. Como o Angola aco-
lheu os caboclos, seus cânticos fazem referência tanto aos santos
católicos como para os orixás e i’nkisses.
Gayakú Jokolosy relata sobre a chegada de seu caboclo no
ritmo de salvas
O meu caboclo é o Pena Branca, que possui uma salva muito
bonita, a sua chegada é feita com uma toalha branca acompa-
nhada de ritmo de salvas. Os cânticos de caboclos estão
diretamente relacionados com a natureza, com a mata, com os
rios, igarapés e cachoeiras. Para se chamar um caboclo de
nação, é necessário enfeitar o ambiente com folhas, frutas e
flores que são os principais ingredientes que compõe as ofe-
rendas. Na região amazônica é comum encontrar oferendas
compostas com castanha do Pará, abóbora, melão e amendo-
im (Entrevista realizada em Setembro de 2013).
As salvas falam da exaltação a Deus, à natureza, a pátria, aos
santos católicos, a Jesus e a virgem Maria.

144
A construção da identidade ecológica no Candomblé Jeje Savalu

É mais que um caboclo


É mais que um guerreiro
É mais que um caboclo
De um Deus verdadeiro

A conexão com a natureza na comunidade Jeje Savalu é inten-


sa, e pode ser percebida a partir de seu vestuário que é feito exclusi-
vamente de tecido de algodão, dispensando o uso de tecido sintético.
Isso demonstra a forte relação com os elementos naturais e com os
produtos oriundos da terra.
Hunsijé (Aldrin) informa que os voduns são representados
pela natureza e possuem forte relação com os animais que tem
admiração
Gbessén é representado pelo arco-íris por causa das cores,
pois essa divindade é dona de todas as cores. No reino ani-
mal, Gbessén tem predileção pelo pavão que o representa. No
dialeto de Dã o animal que representa Gbessén é a cobra.
Nesse sentido, quando eu vejo uma cobra, por força do hábi-
to, eu digo que estou vendo a minha divindade. Em algumas
danças, Gbessén faz uma representação da cobra, em alguns
cânticos, Gbessén apresenta uma dança num passo que vai
até o chão, como se o mesmo estivesse preparando um bote
que é típico das cobras. Gbessén significa adoradores da
cobra sagrada. Oyá tem admiração pela borboleta e pelo bú-
falo. Conta a história que Oyá se transformou num búfalo
durante o pôr do sol para se esconder nas matas (Entrevista
realizada em Setembro de 2013).
Gankonã (Alan) explica que o termo “panteão” não se aplica
as divindades do candomblé Jeje Savalu4, porque faz referência a
uma visão hierarquizada.
Mehrunã Rinurudecy (Nalva – Mãe pequena do Candomblé
Jeje Savalu) relata que o sacrifício, tanto animal quanto vegetal e
mineral é sempre feito em favor da vida e da harmonia entre os
humanos, o respeito pela natureza começa pelo silêncio. Quando pre-
cisamos entrar na mata primeiramente pedimos licença, a entrada
deve ser feita sem barulho e sem algazarra. A utilização dos recur-

145
Religião, Gênero e Poder

sos da natureza deve vir acompanhada do sentimento de preserva-


ção desses elementos conforme explica Rinurudecy (Nalva)
Quando iniciei no Candomblé, a minha mãe me levou na mata
e disse que tínhamos que entrar em silêncio, que ninguém
deveria achar graça e fazer barulho. Isso foi o primeiro ensi-
namento que ela me repassou, ao entrar na mata, a gente bate
paó que é uma maneira da gente se comunicar com os vo-
duns, o paó são palmas que indicam alguma coisa que quere-
mos dizer aos voduns, ou seja, é um tipo de comunicação
entre os humanos e as divindades.
Rinurudecy (Nalva) explica que para manter a energia dos
voduns a gente forra o chão com as folhas que também são utiliza-
das nas obrigações. No bejeressun5 usa-se as folhas (aman) tam-
bém para forrar o chão para evitar o contato do animal com o solo,
ou seja, entre os igbás6 e a terra ficam os amans7 . Assim, compre-
ende-se a relação inevitável entre os voduns e as folhas, por isso são
importantes, pois estão relacionadas diretamente aos voduns, usa-se
folha para cada divindade de acordo com a preferência de cada vodun.

Correspondência entre Divindades do Candomblé e do Tambor de Mina.


Candomblé Keto- Mina Jeje-Fon Candomblé Candomblé Angola-Congo
Nagô (Orixá) (VODUN) Jeje-Savalu (I’NKISSE)
(VODUN)
Olorum ou Mavu Lissa Mawú Zambi ou Zania Pombo
Olodumaré
Oxalá Olissa Oulissá Lembá ou Lembarenganga

Ogun Gú Gú Sumbo Mucumbe


Oxossi - Otolú Mutalambô ou Tauamim

Omulú Sapatá Azowany Burumgunçô ou Cuquete

Xangô Badé Heviossô Cambaranguaje ou Zaze

Yansã Oiá Abesam Bamburucema ou Matamba


Oxum Naê Aziri Kaya/ Dandalunda
Topodum

146
A construção da identidade ecológica no Candomblé Jeje Savalu

Yemanjá Abé Aziri Tobossi Caiala


Oxumaré Dã Gbessen Angorô
Ossaim Agué Agué Catendê
Exú Eleguá Elegbá Mauambo
Nanã-Burukê Nanambiocô Vodun Nã Zumbarandá
Irokô Odã Lokô Lokô Kitembo
Logun Edé Inyarrô Vodun Aderé Gongobila

Ewá - Yewá Angorô Meia

Yobá - Vodun Cobá -


- - Bafamo Deká -
Fonte: Pejigã Hunsijé (Aldryn)

No candomblé Jeje Savalu, o termo sincretismo é substituído


pelo termo similar. Nesse sentido, o termo designativo utilizado pelos
adeptos é “grupo de divindades”, que dispensa a visão hierárquica
entre os deuses voduns, conforme demonstrado no quadro do grupo
de divindades de diferentes nações.

147
Religião, Gênero e Poder

QUADRO DE CARGOS / FUNÇÕES DO CANDOMBLE JEJE SAVALU

GÀNIYÁKU Maior cargo do terreiro, de responsabilidade da


senhora mais velha no que se refere ao culto de santo
na casa.

MÈHÙNNÀ Cargo feminino da segunda pessoa mais velha da casa.


Doté é o termo usado para o cargo masculino.

EKEDJÍ Cargo feminino, porta voz do vodun. Ela é quem


auxilia os Voduns.

DELÉ Cargo feminino que auxilia a Gayaku e a Donné em


diversos rituais.

KPÉJÍGÀ Cargo masculino de extrema importância na casa, por


se tratar de um cargo de confiança. É ele que zela pelo
Peji* dos Voduns.

HÙNTÓ Pai do Hún** e chefe dos tocadores dos atabaques.

HÙNGBÒNNÙ Cargo masculino – conhecedor dos axés.

SENMATO ou AHUN Cargo de quem detém o conhecimento das ervas.


SÉMÃ
VODUNSÍ Pessoa que entra em transe e cultua vodun.

VODUNSÍSEN Qualquer pessoa que cultua vodun.

Fonte: Gayaku Jakolosy e Hunsijé (Aldryn).

Para Hunsijé (Aldryn), são chamados de Ji voduns, a família


dos voduns que moram no céu; Tó voduns, famillia dos voduns que
habitam as águas e Dyi voduns para a família dos voduns que habi-
tam a terra.

*
Quarto onde é guardado o assentamento do vodum da casa.
**
Atabaque

148
A construção da identidade ecológica no Candomblé Jeje Savalu

Nanã (respeitável senhora) habita nas águas salobres e nos


pântanos, e sua morada é no barro (kó no dialeto fon). As oferendas
destinadas a essa divindade não deve ser arriadas em pratos de vidro
ou esmalte, para Nanã a comida é oferecida somente em prato de
barro, assim como para Exú. Na mitologia da criação, Mawu pediu
para Nanã o barro para criar os humanos, nesse contexto percebe-
se a importância desse elemento da natureza. Da argila é feito o
prato de barro (najé no dialeto fon). Hunkó é o nome de um quarto
feito de barro que é a preferência dos voduns que tem ligação com
esse elemento da natureza, sendo que no espaço urbano o hunkó foi
adaptado para a construção de tijolo e cerâmica.
Para o preparo do banho de ervas, as folhas são devidamente
maceradas e é feito um Canto de adoração a Agué, acompanhada
de uma sequência de palmas ritmadas (paó), que significa saudação
e evocação ao vodun como sinal de respeito. Tudo que é usado no
candomblé Jeje tem que passar pelo ritual de batismo e consagração.
Mehunã Rinurudecy (Nalva) explica que a folha da costa é
uma das mais importantes e mais usadas no candomblé Jeje Savalu
pelo fato de serem atribuídas a determinados fundamentos de gran-
de importância, dentre eles podemos destacar os fundamentos que
compõem o bejeressum, no sentido de proteger os animais que são
destinados ao sacrifício, para que eles não percebam ou visualizem o
momento derradeiro dessa prática.
O orindum (folha da costa) é também utilizada no dassen
e no goronesín (conhecido no candomblé como obi d’água), usa-
do para esfriar a cabeça (bori) que significa dar comida a cabeça,
utilizada nos animais sagrados, além de ser uma folha utilizada
por todas as nações, isso por si só já e suficiente para confirmar a
sua importância.
Um detalhe fundamental no uso das folhas está relacionado
pela forma como e quando ela é colhida. A folha que é retirada de
manhã tem uma finalidade e se for colhida a tarde, a finalidade muda,
ou seja, dependendo do horário da colheita a folha pode servir para
diferentes finalidades. Outro detalhe a ser destacado é a questão de
gênero, se a folha é macho, serve para uma coisa e se é fêmea a
finalidade muda.

149
Religião, Gênero e Poder

As folhas da palmeira real (Azan no dialeto fon) são utilizadas


para defender a casa e para renovar as energias. Nas casas dos
fons elas são plantadas na entrada, uma de cada lado. A palmeira
real também é usada para a confecção da roupa (Mariwo) do Vo-
dungun. Para abrir a casa é necessário evocar a energia de Elegbá,
para depois espalhar milho branco por toda a casa para aumentar a
energia positiva e em seguida espalha-se folhas da palmeira real por
todo o baracão para neutralizar as energias negativas.
Para harmonizar a casa são utilizadas as folhas de akokô, sa-
mambaia e palmeira real. As folhas também servem como enfeite e
são colocadas nas paredes da casa de acordo com o gosto das divin-
dades como folha de algodão, baronesa e lágrima de Nossa Senhora.
O uso do dialeto fon é algo recorrente na casa de Gayaku
Jokolosi, com o objetivo de aproximar a energia das divindades de
acordo com a tradição.
A defumação faz parte da liturgia da casa, seus ingredientes
são extraídos da natureza como mirra, incenso, bejuin, breu branco,
miri, favas raladas de aridan e obi. As folhas de algodão branco, de
preferência do vodun Lissá, são muito utilizada no candomblé Jeje.
Mawu é um deus andrógino na mitologia africana, essa divin-
dade se sentia muito só e por esse motivo ele criou Lissá, porém não
resolveu o problema da solidão. Como ele já havia criado quase tudo
que existe no mundo, ele resolveu criar os humanos. Assim Mawu
chamou os outros voduns para participarem da criação dos seres
humanos, ensinando-os como agradá-los. Para cada um de seus fi-
lhos, Mawu deu um lugar, para que esses pudessem habitar e ensi-
nou os seres humanos a cultuar cada um dos elementos da natureza
e os voduns.
Elegbá é o filho caçula de Mawu, dotado de grande astúcia
que o levou a ocupar o primeiro posto de adoração. É o vodum que
gera o infinito, infinita vezes, é o dono do tempo, “é comum ouvir que
Elegbá atira uma pedra hoje e mata um passarinho ontem”, por ser
universal e detentor do controle sobre o tempo. Tem as encruzilha-
das como sua morada, é o Dono de todas as ruas. É representado
por uma espiral, ele gira infinitas vezes, é universal, utiliza todas as
línguas, pois é responsável pela comunicação.

150
A construção da identidade ecológica no Candomblé Jeje Savalu

Hunsijé (Aldryn) explica a identificação de Elegbá nas outras


nações.
Nas outras nações Elegbá é conhecido como Exú e é associ-
ado por algumas pessoas com o mal. É um vodun extrema-
mente brincalhão, por vezes usa um gorro dividido nas cores
vermelho e preto que de acordo com o itan (história) Elegbá
viu dois amigos felizes conversando e resolveu passar no
meio dos dois amigos, sendo que um viu apenas um lado do
gorro na cor vermelha e o outro só viu a cor preta. Os dois
amigos começaram a discutir sobre a verdadeira cor do gorro,
um afirmava que era preto e o outro insistia que era vermelho,
causando uma polêmica entre eles, que para Elegbá isso não
passava de uma grande diversão (Entrevista realizada em
Setembro/2013).
Os voduns considerados mais humildes são os que moram na
terra, as suas roupas são feitas de palha e murin também conhecido
como madrasta, eles gostam de roupas mais simples, rústicas e sem
exageros.
O i’nkisse Kitembo tem sua morada nos cupinzeiros, as ofe-
rendas a ele destinadas são arriadas nos cupinzeiros. O vodun Para-
rá que é da família de Sakpatá, é o dono do formigueiro e o seu
animal preferido é a formiga e a saúva.
Hunsijé (Aldryn) informa que na comunidade Jeje Savalu, o
respeito aos mais velhos é um ensinamento que é repassado cotidia-
namente, preservando-se a hierarquia da casa, para os filhos de san-
to, é priorizado a idade do tempo em que cada adepto é formado ou
iniciado, nesse aspecto, a idade cronológica fica em segundo plano.
Um adepto de quarenta anos de idade cronológica e cinco anos feito
no santo deve pedir a benção a um adepto de vinte anos de idade de
vida e com sete anos de iniciado. Nesse sentido, a prioridade hierár-
quica seguida à risca pelos adeptos, refere-se à idade de formação
no processo iniciático.
Assim, respeitar os mais velhos, filhos de santo ou não, é sem-
pre observado e obedecido em todos os momentos da vida social,
tanto dentro quanto fora do terreiro, isso reflete uma questão de ci-
dadania e de bom convívio em comunidade.

151
Religião, Gênero e Poder

A nação Jeje é a nação que mais cultua a natureza, e as casas


Jejes geralmente ficam próximas ou no entorno de áreas verdes. É
necessário também um poço de água potável para a liturgia. No meio
urbano, essas casas tiveram que fazer algumas adaptações ou ade-
quações para manter seu ciclo litúrgico, devido à ausência da mata.
As plantas consideradas sagradas são cultivadas em pequenos va-
sos de açodo com a disponibilidade do espaço e do ambiente.
A relação do Candomblé com a natureza representa o vínculo
entre céu e terra; humanos e divindades. O Jeje Savalu e Jeje Mahim
são os que mais cultuam os elementos da natureza.

Vudun Agué: o dono da mata, das plantas e das ervas


San man, san Vodum
Sem folha, sem vodun

Jokolosy explica que quando um adepto vai ser iniciado em


ágüe (Ossaim em Keto), é construída uma casa, forrada toda de
folhas desde o chão até as paredes para que o iniciado seja reco-
lhido nesse ambiente em busca de energia da divindade. A casa
Jeje Savalu, até o presente momento já iniciou quatro pessoas no
Vodun Agué.
Uma das árvores consideradas mais sagradas no Candomblé
Jeje Savalu é a aroeira ((Ewê pupá ), a sua folha é utilizada para
diversas finalidades, incluindo o banho dos adeptos.
Cântico de evocação da energia do Vodun Agué no dialeto fon

Amá si vodun ô
Amá si vodum ô
Oné amá hundê vodun
Oné amá hundê vodun
Amá si é vodun ô
O ancestral esposo das folhas
O ancestral esposo das folhas
O ancestral senhor das folhas chegou
O ancestral senhor das folhas chegou
O ancestral esposo das folhas.

152
A construção da identidade ecológica no Candomblé Jeje Savalu

O conhecimento sobre o segredo das folhas e ervas foi dado a


Agué por Mawu que é considerado (Deus) para os Jejes. Agué pas-
sou a ser detentor sobre os poderes das florestas. Depois de criar a
terra, Mawu criou os seres humanos.
O mito de Ossaim8 refere-se à utilidade das ervas como ele-
mento de cura para as enfermidades humanas tanto físicas quanto
espirituais, motivo pelo qual levou Ossaim a impedir a sua destrui-
ção. O poder mágico das plantas, folhas e ervas não leva em conta a
propriedade fitoterápica do princípio ativo do vegetal, mas necessita
inevitavelmente da relação com as divindades por meio da ação hu-
mana para ser potencializado.
O aridan é uma fava muito utilizada no Candomblé Jeje Sava-
lu, sendo que cada divindade possui a sua fava de preferência. O
aridan é de vodun Gun, porém é utilizado por todos os voduns que
gostam de gerrear.
O poder relacionado ao sentido presente em cada elemento
natural, não é suficiente. É necessário, portanto, a intervenção hu-
mana para atribuir um novo sentido simbólico, essa intervenção exi-
ge preparo e conhecimento dos elementos naturais e sua relação
com cada divindade, das fórmulas mágicas e manipulação correta
das ervas dentre outras habilidades e segredos repassados pela tra-
dição oral, capaz de extrair a força mágica na medida certa para
responder e alcançar os objetivos pretendidos.
As religiões de matriz africana postulam uma cosmologia
própria no sentido de sacralidade da natureza e de suas divinda-
des, possuem uma ética específica e contribuem na construção
de uma relação “ecológica” de respeito à diversidade natural e
humana. Certamente que esta reflexão ainda é incipiente, no sen-
tido de que a consciência e prática ecológica ainda estão sendo
historicamente construída.
Apesar da querela estabelecida entre aqueles que se afirmam
como ambientalistas e ecologicamente corretos e os adeptos das re-
ligiões de matriz africana, sobre o aspecto maléfico ou não das ofe-
rendas e obrigações religiosas que são depositadas no meio ambien-
te, cabe destacar que a preocupação do povo de santo está relacionada
com a manutenção e preservação das espécies consideradas sagra-

153
Religião, Gênero e Poder

das, incluindo plantas e ervas imprescindíveis para a realização dos


rituais mágico-religiosos.
Para Hunsijé (Aldryn) o vodun Agué é o grande protetor da
flora, os voduns são um fato da natureza e o seu assentamento deve
ser feito com algum elemento da natureza, dentre esses elementos, o
mais utilizado é o itá (pedra) que representa o vodun que de acordo
com a divindade, a pedra escolhida pode vir do mar, do rio ou da
cachoeira. O itá quando é batizado e passado pelo fundamento da
consagração, passa a ser chamado de otá (pedra consagrada).
Vodun Lokô é o grande protetor da fauna e tem a floresta
como sua morada, ele protege os animais e só permite a caça para a
subsistência humana. A permissão para caçar é concebida por meio
de um ritual que envolve uma sequência de palmas (paó no dialeto
fon), feita no pé de uma árvore, significando uma atitude de reverên-
cia na intenção de evocar a energia do guardião das florestas. A
caça de caráter esportivo não agrada essa divindade, e o caçador
poderá sofrer as conseqüências de sua atitude meramente utilitária.
Todos os voduns têm a sua fruta de predileção. A fruta prefe-
rida de Gbessen é a jaca, de Sakpata é o abacaxi, de Lokô é a jaca,
de Abesan é a jinja, do Vodum Gú é a pitanga. As casas Jejes têm
afeto com a natureza e com os animais, na tradição Jeje o animal que
afasta a morte é o cachorro.

O sacrifício e as oferendas: deveres e obrigações para a ma-


nutenção do axé
O sacrifício9 de animais nas práticas rituais das religiões de
matriz africana, ainda é visto, no mundo contemporâneo, como uma
questão polêmica. Em alguns Estados brasileiros existem propostas
de lei no sentido de proibir o sacrifício de animais em rituais, por
conta de uma suposta preocupação referente à “crueldade” com
animais que são submetidos à imolação. Seria de fato uma preocu-
pação voltada à defesa dos animais, ou uma atitude de discriminação
vinculada ao “racismo ecológico” dirigido as religiões de matriz afri-
cana? Essas propostas de lei tem gerado manifestações de repúdio e
de inconstitucionalidade.

154
A construção da identidade ecológica no Candomblé Jeje Savalu

O Art. 5º da Constituição Federal de 05 de Outubro de 1988


estabelece que: “é inviolável a liberdade de consciência e de crença,
sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida,
na forma da lei, a proteção aos locais de culto e suas liturgias”.
Para a Gayaku Jokolosy, o animal que vai ser submetido ao
sacrifício passa primeiramente pelo ritual, ele é reverenciado, respei-
tado e sacramentado, é conduzido por um processo que envolve re-
zas, cantos e outros ritos de preparação de acordo com a tradição
africana. O respeito pelo animal é fundamental, não sendo permitido
nenhum excesso que possa ultrapassar o nível crítico da imolação.
Antes de ser levado para a imolação, o animal para por um período
de no mínimo de três dias de preparação.
Levando-se em conta que o verdadeiro significado da palavra
“sacrifício” está relacionado ao “sacro ofício” e “santo ofício” que
aponta para a ação de realizar algo considerado sagrado, ou seja, o
vocábulo em questão, não está inserido no campo de outros vocábu-
los que tratam ou representam uma ação de barbárie ou crueldade,
conforme o entendimento equivocado de algumas pessoas funda-
mentalistas ou não.
Gankónã informa que a visão distorcida sobre o sacrifício de
animais, vai além da falta de conhecimento sobre a necessidade dos
cultos das religiões de matriz africana. Na verdade trata-se de uma
atitude racista e preconceituosa, que por vezes se sustenta no dis-
curso ecológico com a desculpa de proteger os animais de atos de
crueldade. Nem todos os rituais e oferendas, necessitam de sacrifício.
Em algumas oferendas, o afrorreligioso leva algum tipo de
animal (pombo, preá) para que seja solto na mata, em agradecimento
a divindade, mas esse ritual, mesmo que não envolva o sacrifício e
sim a soltura do animal na mata nativa, ainda encontra barreira que
impede a prática desse ritual, com a desculpa de que o animal não
deve ser solto na mata porque não é nativo da região e se for solto
poderá causar um desequilíbrio populacional de uma espécie que não
é autóctone, mas que pertence ao grupo restrito a oferendas.
Para Gankónã é indubitável que o problema não está relacio-
nado com o tipo de sacrifício ou oferenda que se pretende realizar,
mas está direcionado, sobretudo, a uma atitude de discriminação e

155
Religião, Gênero e Poder

intolerância religiosa, e como alvo dessa atitude discriminatória te-


mos as religiões de matriz africana, identificadas e estigmatizadas
como detentoras de práticas de poluição do espaço urbano.
É, no entanto, impossível fazer qualquer progresso no estu-
do de poluição ritual se não podemos enfrentar a questão de
saber por que a cultura primitiva está propensa a poluição e a
nossa não (DOUGLAS, 2012, p. 94).
A citação refere-se a dois tipos de cultura, a primitiva e a
moderna. Para as sociedades modernas a poluição ambiental é uma
questão de estética e higiene, ou seja, uma grande poluição é identi-
ficada como ofensa religiosa e que geralmente é atribuída à cultura
considerada “primitiva”.
Gankónã (Alan) fala sobre as oferendas que são depositadas
no meio urbano, geralmente são identificadas pela população como
lixo, que é deixado nas encruzilhadas pelo povo de santo que por sua
vez, não relaciona lixo com oferendas. As oferendas são identifica-
das como axé. No caso dos resíduos que são depositados nas ruas e
são identificados como lixo, é de responsabilidade do município e do
poder público, fazer o recolhimento e apontar um destino final para
esse material.
Nesse sentido, percebe-se a necessidade que o povo de santo
tem de vincular ao conhecimento tradicional já existente no contexto
religioso, com o discurso ecológico, na intenção de construir uma
identidade que possa facilitar a prática religiosa, sendo que o único
instrumento legal que a comunidade afrorreligiosa possui é o disposi-
tivo constitucional.
No entanto, é preciso chamar atenção para o fato de que o
termo “ecológico” pode ser utilizado de forma dualista, ou seja, ao
mesmo tempo pode ser incorporado como atitude que possibilite a
afirmação de um grupo no campo político, por outro lado, pode ser
usado por grupos fundamentalistas para formalizar propostas de leis
para que sejam instituídas em favor dos animais e contra os supostos
atos de crueldade.
Mas não podemos deixar de focalizar o que realmente está
por trás dessa aparente defesa dos animais, quando olhamos atenta-

156
A construção da identidade ecológica no Candomblé Jeje Savalu

mente para o pano de fundo do enredo preservacionista, iremos en-


contrar um mosaico que compõe as práticas discriminatórias, cujo
principal objetivo é desqualificar e anular as práticas das religiões de
matriz africana.
Para Hunsijé (Aldryn), existe uma preocupação constante
da comunidade com o meio ambiente. Os materiais utilizados nas
oferendas são biodegradáveis, isso reflete a lógica do candomblé
Jeje, no sentido de que o culto a natureza implica diretamente a
uma atitude de preservação. No culto a Iemanjá (Aziri Tobossi
para os savalunos), que tem sua morada no mar, as oferendas
destinadas a essa divindade como vidros de perfume, só é despe-
jado no mar o conteúdo líquido, o vidro é recolhido para ser rea-
proveitado e não poluir o ambiente. A lógica consiste em agradar
a divindade, se Iemanjá mora no mar, não tem lógica a ação de
degradar ou poluir à morada da divindade.
No tempo religioso Funderê Oyá Jokolosi, todos os adeptos
tem seus próprios utensílios para comer e beber, isso evita o des-
perdício de material e evita o uso de materiais descartáveis. Os
adeptos que estão recolhidos na casa para o processo de inicia-
ção, utilizam somente copos e pratos esmaltados e de barro, de
acordo com a tradição.
Gayaku Jokolosy relata que infelizmente, ainda não foi possí-
vel alcançar todos os objetivos que contemplam a atitude ecológica,
devido à postura de alguns adeptos que ainda estão desinformados
sobre essas práticas de sustentabilidade ambiental.
As oferendas e os sacrifícios praticados pelos afrorreligiosos
servem não apenas para agradar as divindades, como também para
outros fins como a manutenção do axé10. O animal utilizado nos ritu-
ais pode servir de alimento para a comunidade religiosa e para os
visitantes, o restante que não pode ser aproveitado é depositado dire-
tamente na terra para ser consumido por ela. O sacrifício é conside-
rado um elemento que ocupa o centro do culto das religiões africa-
nas, porém não existe apenas um tipo de sacrifício, essa distinção
está relacionada com o desejo do adepto e geralmente aquilo que se
deseja alcançar está vinculado à experiência de fraternidade e de
contato com o sagrado, que por sua vez remete a ancestralidade.

157
Religião, Gênero e Poder

Para Gayaku Jokolosy a religião é o instrumento que aproxima


o ser humano do sagrado e pode ser compreendida como uma forma
de organização social que tem a capacidade de reconstruir um mun-
do perdido, que ficou pra trás, mesmo que seja de forma simbólica.
Para o povo de santo existe uma relação entre o plano material e o
plano divino, e essa relação é evidenciada por meio do sacrifício e
das oferendas, tudo aquilo que é ofertado às divindades, é comparti-
lhado por toda a comunidade.
Hunsijé (Aldryn) adverte que o povo de santo dispõe de co-
nhecimento sobre a anatomia dos animais que serão sacrificados, e
sabem exatamente como proceder durante a imolação, para que es-
tes não venham sofrer quando manipulados de forma incorreta, quando
recebem incisões e perfurações desnecessárias, o conhecimento
anatômico facilita a ação com incisões nos pontos vitais, evita o so-
frimento sem excesso.
O animal destinado ao sacrifício, não é escolhido de forma
aleatória, mas é orientado pela força vital contida em todas as coi-
sas. Portanto, o sacrifício possui uma lógica própria que corresponde
à tradição africana que postula uma filosofia própria de concepção
do universo e do homem, e não deve ser compreendido como um ato
bárbaro. A morte do animal certamente terá um propósito comum, a
vida será oferecida em favor de outras vidas, para refazer o campo
harmonioso que rege a manutenção da espécie humana.
No candomblé existe todo um preparo para a prática do beje-
ressun. O local deve ser forrado para que o ohun seja coletado num
recipiente apropriado para não respingar e cair no chão, evitando
assim uma possível “invasão” de energia negativa, quando isso ocor-
re, o ohun não pode ficar exposto, deve ser encoberto com panos
apropriados. Entretanto, a casa que está preparada, não abre espaço
para energias contrarias, pois estas devem ser despachadas.
O bejeressun não deve ser relacionado com ato de crueldade,
os animais destinados a esse fim, chegam dias antes da prática ritual
e são entregues aos pejigãns da casa para que sejam preparados e
destinados a obrigação. Durante o período de preparação, o animal é
sacramentado, numa relação de respeito que envolve cuidados típi-
cos da liturgia de matriz africana. O ohun está distribuído em três

158
A construção da identidade ecológica no Candomblé Jeje Savalu

categorias representadas pelas cores vermelho, preto e branco. Os


elementos que detém axé são encontrados nos reinos animal, mine-
ral e vegetal.
Para Jokolosy a parte invisível está na combinação desses
elementos portadores de muito axé que renovam, ampliam, distri-
buem e restabelecem a força vital numa relação estreita entre os
homens e os voduns. Todo sacrifício, assim como toda a oferenda
presente na iniciação e consagração, implica diretamente a trans-
missão de energias.
O sangue vermelho está diretamente ligado com a vida em
todas as fases da existência tanto do animal quanto humana; o vege-
tal é representado pelo azeite, óleo e seiva, assim como pelo atim
que é composto de pó sagrado, o mineral é representado pelos me-
tais como o cobre, bronze e chumbo.
O sangue preto é representado pelas cinzas dos animais sacri-
ficados e o sangue branco é representado pelo plasma do caracol
que é o animal de predileção de Oxalá. Quando oferecido a esta
divindade proporciona a paz a todos da casa como sinal de amor e
união, nessa ocasião todos ficam de preceito e utilizam roupas bran-
cas por 16 ou 21 dias.
Para Hunsijé (Aldryn), para compreender a relação do afror-
religioso com o cosmos sagrado é preciso conhecer como o universo
foi criado na concepção africana de acordo com o mito de origem.
Sakpata (médico dos pobres) guarda os segredos sobre as doenças e
suas respectivas curas dentro de uma cabaça que é uma espécie de
semente e está relacionada com o mito da criação.

Conclusão
A riqueza do povo de santo está relacionada à preservação de
sua tradição que envolve a plena harmonia entre os homens e a na-
tureza numa relação imanente. Cada ser humano deve acreditar no
seu potencial, mesmo sem conhecer a divindade que reina em cada
um de nós. A riqueza não está relacionada a dinheiro e bens materi-
ais, más está diretamente ligada com forma de como nos relaciona-
mos com a natureza e com as divindades, quem tem uma divindade

159
Religião, Gênero e Poder

presente em sua vida e detém o conhecimento dos fundamentos re-


ligiosos, tem muito mais do que bens materiais.
O vínculo entre religião e natureza perpassa por uma gama
de questões que inclui não apenas o conhecimento tradicional,
mas está relacionado à apropriação de um discurso ocidental re-
ferente a práticas ecológicas e sustentáveis, cuja principal inten-
ção é de construir uma identidade ecológica que seja capaz de
minimizar a intolerância e a discriminação contra as práticas e
rituais das religiões de matriz africana.
Neste ensaio, buscou-se compreender a relação do Candom-
blé Jeje Savalu com a natureza, com suas divindades, incluindo a
mitologia de origem e o discurso ecológico, que vem sendo constru-
ído no espaço urbano amazônico. Os savalunos se reconhecem como
parte integrante da natureza e priorizam o sentimento de louvor e
reverência preservado nos ritos e no cotidiano da vida religiosa, per-
cebendo o mundo com olhares distintos dos ensinamentos que nos
foram repassados pela ciência moderna. Nessa relação, à ecologia e
a dimensão religiosa estão sempre presentes em todos os elementos
que integram a natureza e o universo.
Portanto, no centro do debate encontra-se à dimensão do sa-
grado que constitui uma condição importante para a mudança do
aspecto predatório para o campo da relação de uma ética sustentá-
vel. As oferendas, nesse contexto, estão relacionadas à dinâmica da
reciprocidade, uma contra-dádiva em resposta a dádiva inicial, ofer-
tada pela natureza. Mauss (1950) interpreta a dádiva no sentido de
intercâmbio, de reciprocidade positiva e não no sentido utilitarista, de
recuperação de bem e sim no resguardo de seu prestígio, seu mana,
sua integridade espiritual.
Com relação à prática do sacrifício, é comum perceber, uma
certa ambivalência atrelada ao discurso ecológico, instituída pela
sociedade moderna e atribuída as práticas religiosas de matriz
africana, que se apropriam desse discurso, mas ao mesmo tempo
demonstram a necessidade de manter o enredo sacrificial para
acalmar as divindades e receber em contrapartida um equilíbrio
entre os seres humanos e o cosmos sagrado, impedindo dessa
forma a geração de conflitos.

160
A construção da identidade ecológica no Candomblé Jeje Savalu

Segundo Piazza (2005, p. 7). “Para o africano, moral e reli-


gião são a mesma coisa, pois tudo depende da atuação dos espíritos.
As ações que prejudicam a convivência humana e ou o equilíbrio das
forças naturais são rigorosamente punidos pela autoridade tribal ou
reparados por ritos religiosos [...]”. Por esse motivo, o afrorreligioso
ao adentrar no espaço místico, procura tomar algumas precauções,
como fazer rituais característicos, marcados pelas oferendas para
aventurar-se no espaço sagrado e obter permissão para utilizar os
recursos naturais, da mesma forma que se vê na obrigação de res-
peitar o próximo, a natureza e a própria vida.

Referências bibliográficas
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logia. São Paulo: Fonte Editorial, 2011.
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culto Égun na Bahia; traduzido pela Universidade Federal da Bahia.
14 ed. – Petrópolis, Vozes, 2012.

161
Religião, Gênero e Poder

Notas do Capítulo 7
1
Porém sabemos que um ano antes, em 1807, nas terras da fazenda Boa
Vista, pertencentes ao engenho de Herminigildo Netto, no distrito Madre
de Deus (perto de Santo Amaro), existiu uma congregação ritual aparente-
mente mais estável, liderada por Antônio, um jovem escravo angola. Antô-
nio foi preso e identificado nos documentos como “presidente do terreiro
dos candombleis”. Trata-se do primeiro registro da palavra “candomblé”,
um termo provavelmente de origem banto. Nessa expressão,”candombléis”
parece utilizado como sinônimo de batuque, podendo referir-se a prática de
curas e/ou adivinhação, mas o título de “presidente” sugere uma incipiente
organização hierárquica de uma coletividade religiosa. Como comenta Rachel
Harding, a palavra “candomblé” surge no momento em que o termo “calundu”
deixa de ser utilizado. PARÉS, Luis Nicolau. A formação do Candomblé:
história e ritual da nação jeje na Bahia. Rio de Janeiro: Editora Unicamp,
2007, p. 126.
2
Racismo ecológico ou ambiental se refere a qualquer política ou diretiva
que afete ou prejudique, de formas diferentes, voluntaria ou
involuntariamente, a pessoas, grupos ou comunidades por motivo de raça
ou cor. Esta ideia se associa com políticas públicas [...]. Robert Bulart –
Sociólogo e Diretor do Environmental Justice Resource Center. Fonte: Re-
vista ECO 21, ano xv, nº 98, Janeiro/2005.
3
O termo ecologia, como conceito científico, deve o seu nascimento ao
biólogo alemão Ernst Häckel (1834-1919), que oferece uma definição do
referido termo em 1866, quando falas da relações entre organismos. Ou seja,
trata-se de um estudo das relações entre os sistemas vivos entre si e com o
seu meio ambiente. Não se trata, portanto, apenas de um estudo dos seres
vivos em si, mas das relações existentes entre eles. Contudo a ecologia hoje
é de domínio multidisciplinar que desperta interesse não apenas às ciências
da natureza, mas também à filosofia, à teologia, à ética. Algumas teorias
estabelecem uma ligação entre esses variados saberes e a ecologia (COSTA
JUNIOR, 2011, p.25).
4
Os Savalus chegaram ao Brasil em meados do século XVII, juntamente
com outras etnias. O barracão (Candomblé) de Anjunsun – Sakpata (rei de
Savalu, África) foi fundado mais tarde pela africana Gaiacu Satu, em Salva-
dor, Bahia e recebeu o nome mais conhecido por Cacunda de Yayá. Savalu
é uma cidade da República do Benin, localizada no departamento de Collines
a uns 70 quilometros da cidade de Dassa-Zoumé, onde existe o templo de
mesmo nome dedicado a Nanã Buruku. O termo Savalu vem de “Savé” que
era o lugar onde se cultuava Nanã.

162
A construção da identidade ecológica no Candomblé Jeje Savalu

5
Momento no ritual em que se imola os animais para produzir entre a pessoa
e a divindade.
6
Objetos sagrados confeccionados com recipientes de barro ou bacias
esmaltadas.
7
Folhas sagradas.
8
É de todos conhecido que o Orixá Ossaim é o Orixá das ervas, das plantas
sagradas e medicinais, mágicas, litúrgicas. Todos os mitos relativos a Ossaim
falam de seus poderes mágicos de curar e do domínio das plantas. Ossaim,
conta uma das lendas, guardava as folhas sagradas numa cabaça que foi
quebrada por Iansã, que provocou uma ventania espalhando-as por todos
os cantos. Cada Orixá se apropriou de uma quantidade delas. Ossaim só
conseguiu esconder as mais secretas, mas continuou dono do poder mági-
co, e, por isso, todos tem de lhe pedir licença para usar as folhas. BRAGA,
Julio. Oritameji: o antropólogo na encruzilhada. Feira de Santana: UEFS,
2000, p. 181.
9
Para Mauss e Hubert (2013. P27-28), “o sacrifício é um ato religioso que só
pode se efetuar num meio religioso e por intermédio de agentes essencial-
mente religiosos”. Nesse sentido, palavra sacrifício sugere imediatamente a
ideia de consagração.
10
O axé é a força vital, é o conteúdo mais importante do “terreiro”. É a força
que assegura a existência dinâmica, que permite o acontecer e o devir. Sem
axé, a existência estaria paralisada, desprovida de toda a possibilidade de
realização. É o princípio que torna possível o processo vital. Como toda
força, o axé é transmissível; é conduzido por meios materiais e simbólicos e
acumulável. É uma força que só pode ser adquirida por introjeção ou por
contato [...]. Mas esta força não aparece espontaneamente: deve ser trans-
mitida. Todo objeto, ser ou lugar consagrado só o é através da aquisição do
axé. Compreende-se assim que o “terreiro”, todos os seus conteúdos mate-
riais e seus iniciados, devem receber axé, acumulá-lo, mantê-lo e desenvolvê-
lo. Para que o “terreiro” possa ser e preencher suas funções, deve receber
axé. O axé é “plantado” e em seguida transmitido a todos os elementos que
integram o “terreiro”. SANTOS (2012).

163
Religião, Gênero e Poder

164
Capítulo 8
A Construção da Identidade Política a partir da
Trajetória de Três Sacerdotisas do Candomblé Angola
em Belém, Pará

Luis Augusto Barbosa Teixeira


Até da década de setenta do século XX predominava Belém
do Pará a denominação Batuque1 para as religiões de matriz africa-
na praticadas na cidade. O Candomblé religião de origem baiana
surge como uma nova forma de ver o mundo, entre os adeptos das
religiões locais. Para os sacerdotes dos antigos Batuques, o Can-
domblé era visto como uma forma de ampliar o conhecimento ritua-
lístico e foi com este objetivo que muitos se iniciaram nesta religião.
Esse discurso pode ser pensado como disputa de poder neste cená-
rio religioso. O que ocorre é busca da autolegitimação, ou seja, status
de identidade. (BOURDIEU, 2002)
A partir da década de 1950 se inicia o êxodo à Bahia para
buscar iniciação em uma nova matriz religiosa alterando todas as
estruturas semânticas das religiões locais. Nos anos 1990 surge a
preocupação com a identidade, ou seja, delimitar a qual nação de
Candomblé pertence os sacerdotes. O pertencimento são afirma-
ções identitária ora Ketu, ora Angola, ora Jeje2. São construídas por
bandeiras políticas.
Neste período do culto denominado Batuque destacava-se o
misticismo presente em rezas, encantados, juremeiros, benzedeiras,
indígenas. Assim como o panteão universal, panteão este, que per-
passa todo o conceito de território - divindades. Pensar nesse pan-
teão é refletir sobre os entres sobrenaturais presente na terra do
Pará como Verequête, Mariana, Jarina, São Sebastião, Boto, José
Tupinambá, Nanã, Santa Barbara, Rei da Turquia, Badé, Exu, Jure-
meiros, João da Mata, Pretos Velhos etc. O que está em jogo até na
década de 70 são as religiosidades de nível pessoal e subjetivo que
possuíam como principal objetivo festejar os encantados, comemo-

165
Religião, Gênero e Poder

rar graças alcançadas, sem buscar identidade e legitimidade que são


objetivos presentes na atualidade.
Esses Batuques agrupavam variações simbólicas e semânti-
cas de estruturas e redes culturais. As festas em casa simples, so-
bretudo no bairro da Pedreira contam a história tanto da religião, mas
também, da economia e da política desse bairro. Nesta época vivia-
se “aglutinações” entre mina e candomblé.
Se você encontrar pai de santo falando que tem 50 anos aqui
em Belém, ele tá mentindo. Antigamente era comum de acon-
tecer, as pessoas fazerem cantigas de Candomblé misturado
com toque de Mina, pois as pessoas não tinham conheci-
mento e faziam muito essa mistura (Entrevista realizada Ed-
son Santana no dia 17/05/12).
Afirmar que religião e política dentro do Candomblé Ango-
la construíram a identidade de ser Angola é refletir sobre como a
implantação de políticas públicas para religiões de matriz africa-
nas no Brasil. Atualmente, Mãe Katia, Mame’to Nangetu e Mãe
Beth são as três sacerdotisas que se destacam na cena belenense
e para além, adentram debates políticos nacionais devido às lutas
políticas de afro-religiosos.
Todas estas três as sacerdotisas tem seu espaço político. Mãe
Beth é mais nova angoleira que se afirma nesse campo, por isso, sua
trajetória se deu “de Jaciluango à Brasília”, no sentido de buscar
intensamente esses contatos políticos. Mãe Katia estabelece sua
estratégia de atuação política vinculada precisamente com os políti-
cos profissionais. Mame’to Nangetu devido possuir um filho de san-
to professor universitário consegue alcançar os grandes projetos,
como Cine Club e a radio Azuelar

“Eu Sou Angoleira”, Mame’to Nangetu: tempo político


(...) porque tudo que era do povo Bantu foi queimado nossa
história foi queimada, por exemplo, hoje a gente não vê quase
pessoas falando de Angola se iniciar no Angola; e nós do
Angola a gente vem daquela cultura daquele aprendizado
daqueles ensinamentos como se aprendeu na casa matriz,

166
A construção da identidade política a partir da trajetória de ...

como por exemplo, minha casa matriz é de Salvador que vem


deu uma descendência do Bate Folha, terreiro de lá na Mata
Escura. Minha avó foi uma das primeiras, a senhora Samba
Diamongo e ai a gente come de mão (...) nós somos filhos da
terra a gente absorve tudo a terra quanto, mas a gente se tiver
contato com essa terra é melhora para nós (Entrevista realiza-
da no dia 25/03/ 2013).
Mame’to Nangetu filha de Jiorlando, neta de Samba Diamon-
go, bisneta de Manuel Bernadinho da Paixão fundador do Bate Folha
Salvador, Bahia - apresenta essa linhagem carregada de estruturas
simbólicas que permeiam o poder, e que dá suporte de legitimidade à
Mame’to Nangetu na “lógica do santo”, ou seja, a descendência.
O Mansu Mansubando Kekê Neta é considerado modelo de
Candomblé Angola para os sacerdotes de varias nações, fundada
em 1988 para o culto Nkisse3 Nzumbarandá4. Essa criação do mo-
delo se dá a partir da busca de legitimidade almejada em via de polí-
ticas públicas.
Eu Mame’to Nangetu fui ano 1980 para salvador com a Fran-
cisca Ester que tomou o kijino dela com Astianax fomos pra
casa dele lá do pai de santo lá no Beiru agora Tancredo Neves
pra trazer o inkisse dele lá da casa. Lá era tumba jussara do
Manoel Rufino de Sousa e lá eu sou uma testemunha e Mãe
Ester e toda a Bahia que ele saiu na muzenza. Quando ele
trouxa o candomblé para o Pará ele era angola até a dijina dele
‘angorese bessevi’ isso é dijina de angola (Entrevista realiza-
da no dia 25 de março de 2013).
Giddens (1991) formula uma indagação para entender a ques-
tão da identidade na pós-modernidade “É a busca da auto-identidade
uma forma algo patética de narcisismo, ou ela é, ao menos em parte,
uma força subversiva quanto às instituições modernas?” (p.110). Faz
pensar que o terreiro/religião se constitui com um grande teor
institucional nas “consequências da modernidade” produz marketing
para as disputas dos bens simbólicos na sociedade. A corrida de iden-
tidade é a corrida de poder simbólico que “é um poder de construção
da realidade que tende a estabelecer uma ordem gnoseológica”
(BOURDIEU, 2003, p.9). A identidade possui a função de angariar

167
Religião, Gênero e Poder

aspectos para seu poder e o chefe se torna centralizador daquilo que


porta em seu discurso.
Religião é uma necessidade da vida humana e, às vezes a
religião funciona para ascensão social, o Candomblé possui esta carac-
terística. Para o povo do santo é criado um paralelismo entre as religiões
de matriz africana com academia, pois considerava que se iniciar no
Candomblé está no mesmo patamar que o doutorado para os acadêmi-
cos. Vejo esta migração de outras religiões afro-brasileiras ao Candom-
blé está ligada a um desejo de ascensão social, visto que, no discurso do
povo de santo, o Candomblé é mais bonito, mais chique etc.
Mame’to Nangetu conhece a religião com “sete anos, vim
de uma tradição que minha avó iniciada na Jurema, minha família
trabalhava com mestre de Jurema”. Sua família veio para Belém na
década de 1940 de Natal, Rio Grande do Norte para Belém do Pará.
Trabalhavam como mestre de Jurema e todo esse sistema influen-
ciou Nangetu que recebe uma preta velha chamada Maria do Abaité.
Nas conversas com esta sacerdotisa, sempre aborda o inicio
do Candomblé em Belém acentuando as deficiências de tatás5 e
kotas6. Mame’to quando começa abrir sua casa inicia tatás7 e kotas8
para auxilias as estruturas religiosas. Mãe Nangetu destaca a impor-
tância do Banju filho de Seu Cicero, um baiano, para a consolidação
do candomblé em Belém:
Passar por aquele problema de não ter quem tocar, uma ekedi,
monta todo um corpo diplomático do terreiro como kota, com
tatá, com kambanos, e isso ai já veio a partir de uns quinzes
anos pra cá, que começou essa a organização, por exemplo,
no Mansu uns vinte anos (Entrevista realizada no dia 25 de
março de 2013).

O que me chamou atenção da Casa de Nangetu são as varie-


dades de atividades realizadas. Mansu Nangetu é o terreiro onde
tudo está centralizado no sagrado, no ritual nos cultos do panteão
angoleiro e há também o Instituto Nangetu, associação civil fundada
a partir do terreiro, que agrega várias atividades, sobretudo o Cine-
clube e a distribuição de cestas básicas que os afro-religiosos de

168
A construção da identidade política a partir da trajetória de ...

Belém recebem do MDS. São atividades diferentes que dividem o


mesmo espaço físico. A casa da Mame’to congrega os dois eixos
que se complementam. Segundo Brito:
Assim, antes de compreender como os membros do Man-
su Nangetu e a própria Mam’etu Nangetu atuam e contri-
buem dentro do campo religioso, especificamente nas in-
serções político e social que estes passam a ter com o
cineclube, teremos que adentrar ao universo em questão:
o Mansu e o seu papel social por meio do Instituto Nange-
tu (BRITO, 2012, p. 108).
Participei de vários eventos no Mansu assim atentei uma divi-
são política entre o sagrado/ritual, o Mansu Nangetu, e o profano,
associação Instituto Nangetu. Outra questão que se encontra é o
debate de negritude e de relações étnico-raciais que acontece no
terreiro e a aproximação do movimento negro com a casa, especial-
mente por um dos seus filhos. Também há um vínculo muito forte
com o Carnaval através da Escola de Samba Deixa Falar, sediada no
bairro Jurunas, cujo presidente é filho de santo de Mame’to Nangetu.
Não se pode negar que a bandeira de identidade Angoleira é
carregada. A sacerdotisa Nangetu é conhecida na mídia e no espaço
afro e político e, quando possui oportunidade de falar ressalta a na-
ção da qual faz parte. Seu blog (http://institutonangetu.blogspot.com.br/
) é um canal para divulgação da nação, da religião, dos rituais e
atividades desenvolvidas pelo instituto.
O imaginário presente entre o povo do santo de que esse ter-
reiro é um “modelo” de Candomblé Angola se dá não apenas devido
a questões rituais, mas por causa do status que Nangetu conquistou
a partir das políticas públicas. Sua associação é umas das mais for-
tes em Belém, as atividades são continuas e divulgadas em seu blog
que é atualizado diariamente. A trajetória de Mame’to se destaca na
bandeira de luta da afirmação da Nação Angola. É uma das pionei-
ras dentro de Belém a adentrar nesse ethos político.

169
Religião, Gênero e Poder

Mãe Katia: herdeira e política


Mame’to Katia da nação Angola herdou o Abassá Afro-Bra-
sileiro Konzenzala de Kafunge9 de sua mãe Maria de Nazaré Andra-
de de dijina Mame’to Ria Nkice Azaeunan Ua Nzambi. Esta sacer-
dotisa esta extremamente vinculada com as políticas que ocorrem no
espaço da cidade.
Em sua memória narra nasce e se educa no bairro da Pedreira
e na rua que residia havia vários terreiros como da Mãe Lolo, Vovó
Sisi, Dona Neide de Josué (vó da Katia mãe da Maria de Andrade),
Vó Camila, Mãe Lucimar, Mãe Nazaré, Mãe Helena, Mãe Zenaide.
Na casa da Vovó Sisi lembra que havia uma festa que duravam sete
dias para São Raimundo Nonato e quem presidia o ritual era o cabo-
co Zé Raimundo. A casa lotava várias pessoas vinham para prestigi-
ar a mãe de santo, pessoas de vários lugares de Belém. Vó Camila
também está na sua lembrança, pois adotava criança que estavam
na Colônia do Prado para cuidar; possui uma media de trinta filhos
adotivos e quatro biológicos. Pai da Nangetu faz parte desse univer-
so “saudosista” da Mãe seu pai possuía um som que tocava na casa
da Mãe Lucimar no dia de São Jorge.
E assim Mãe Katia conta que na década de 70 e começo da
década de 80 surgi ‘um candomblé’, porém havia uma grande difi-
culdade de produzir, por vários motivos como, língua, ritual, pessoas
etc. Com isso, o candomblé era uma miscelânea assim como Nange-
tu narra que no começo da religião se mistura mina, umbanda, ketu,
angola etc. Mãe Katia narra que Manoel da Joia na década 60 se
inicia em salvador que é primeiro angoleiro de Belém, porém não
relata o nome da mãe que iniciou, porém na entrevista com Nangetu
diz que deve ser Mãe Roxa, porém não tem certeza.
Segundo Katia Manoel da Joia se instala em Belém, sem a
estrutura que se tem de modelo de candomblé. Informantes narram
que Astianax saiu com a Dandalunda do pai, com canto de angola,
mas toques de mina.
Mas todas as nações ligadas ao candomblé, elas tem uma
dificuldade muito grande com material humano, porque na
realidade nós formamos verdadeiros clãs dentro das nos-
sas casas, então esses clãs obedecem a um comando de

170
A construção da identidade política a partir da trajetória de ...

uma hierarquia, então você tem os cargos hierárquicos da


casa, que vai do cambono até a Mame’to, que é a mãe, a
dirigente da casa.
A gente tenta manter essa tradição do candomblé mesmo
tendo vindo de Tambor de Mina, minha mãe tendo passa-
do pela Umbanda, depois pelo Tambor de Mina, e a gente
vai tentando manter, sempre adaptando, aperfeiçoando,
devido à carência a falta de conhecimento mesmo, era a
falta de recursos, de axé, falta de conhecimento de ter o
pertencimento até empírico, os primeiros candomblés que
se cantava em Belém havia certa miscelânea com iorubá,
com outras tradições de origens iorubás. Aqui na nossa
casa depois de anos, acho que uns 10 anos, quando fomos
começar a procurar, pesquisar, se educar, se lapidar, dentro
daquela cultura que estava ali, até então estava muito fe-
chada, que quem tinha esse conhecimento não repassava
(Entrevista realizada no dia 10/04/13).
Katia relata seu primeiro contato com o candomblé foi na
casa da Mãe Ester e depois na casa do Tatá Walter. Rememora
que Mãe Cléa esposa de Walter e sua mãe Maria de Andrade
realização o primeiro candomblé angola na FEUCABEP 10 na ges-
tão do Pai Hyder. Também diz que seu contato pessoal foi na
casa do Pai Hyder diz,
Ter mesmo contato, dentro de uma casa, foi na casa do Pai
Hyder, era pra ter sido meu pai de santo, por divergências
pessoais e compatibilidade do gênio, é não rolou... mas assim
meu primeiro contato mesmo de se manifestar até passar por
um processo, obí, foi na casa do Hyder – Nazareno de Mo-
rais. (Entrevista realizada no dia 10/04/13)
Mãe Katia foi iniciada em 1993, entretanto bolou11 no santo
em 1988 quando estava grávida da sua primeira filha que hoje é
Makota da casa, no ritual para o inkisse Kafunge12 de Maria de An-
drades, com Mikaia13. Iniciou-se com a irmã de Mame’to Akobaroni
que posteriormente veio falecer em 1989 para 1990 teve que sus-
pender tudo já em 1993 inicia com Mame’to Akobaroni. Assim hoje
Mãe Katia se afirma na política e representa na sua voz a sua origem.

171
Religião, Gênero e Poder

A associação liderada por Mãe Kátia que também se intitula


Konzenzala, nome que se refere ao nome do terreiro e ao inkisse de
sua mãe, Kafungê. Esta associação tem 10 anos. Quando perguntei
a ela por que fundar uma associação, diz:
Eu comecei a participar dos encontros, dos movimentos, e
das conferencias, dos seminários, e ai senti uma necessidade
de que a casa tivesse uma representação cultural, até para dar
conteúdo para essa participação, não só a questão religiosa,
e como na época, tinha essa necessidade, ai começou a se
fomentar a historia da associação afro-cultural de Konzenza-
la, que na realidade é o titulo da casa. O intuito daquele mo-
mento era esse, de formar a associação, hoje é outro, como eu
tenho um histórico dentro do movimento afrorreligioso, não
só uma questão empírica, mas hoje com a questão cultural,
com a questão política e social, eu pretendo para este ano
2013 dar legitimidade política a associação, poder começar a
desenvolver algumas coisas aqui mesmo no espaço, a pesar
de que a gente já desenvolve, festa de são João, muito embo-
ra a casa esteja sem funcionamento este ano de 2012, por
conta do meu envolvimento na política partidária, no PSOL,
participando da campanha do Edmilson Rodrigues que foi
candidato a prefeito, e também pela questão deu estar organi-
zando a casa no sentido de estar aterrando a casa (Entrevista
realizada no dia 10/04/13).
Também pergunto; Porque a senhora observou que havia a
necessidade do afro-religiosos estar na frente buscando políticas, nesta
função social, como foi este “ponta pé” da senhora? Responde:
Na realidade eu já era envolvida com algumas instituições
como a FEUCABEP, e eu fazia parte do INTECAB, e eu recebi
o convite da Mame’to Nangetu, coisa de 14 anos atrás para
integrar o INTECAB e ai comecei a participar com ela, eu
tenho ela como se fosse a minha mãe, a partir do convite dela,
de estar indo para os seminários, conferencias, encontros,
reuniões, roda de conversas, tudo que estava envolvido o
movimento naquele momento para buscar políticas públicas,
foi através da Mame’to Nangetu, havia necessidade por que
eram poucos afrorreligiosos que participavam, e eu entrei

172
A construção da identidade política a partir da trajetória de ...

como, tipo relações públicas, daquele grupo convidando


outras pessoas para vim “engrossar o caldo”, para todo mun-
do participar e fazer um grande movimento, dentro daquele
movimento que já existia ali, que estava enfraquecendo, com
poucos elementos, então a minha função. Mais ou menos,
era essa trazer as pessoas, então criamos uma dinâmica na
época que a Mame’to era coordenadora do INTECAB, funci-
onava a casa dela e a gente tinha conquistado é fazer parte do
projeto fome zero e eu comecei a levar nomes de terreiros, de
lideranças para serem contemplados também, com essas ces-
tas básicas e tentar trazer essas pessoas para o movimento
(Entrevista realizada no dia 10/04/13).
As atividades que a Associação Afro-Cultural de Konzenzala
já realizou foram: ação de saúde; rituais da casa; ações sociais; pa-
lestra sobre DST’s e AIDS; Verificação de pressão e glicose.
Nas eleições de 2012 Mãe Kátia realizou a locução oficial da
Campanha de Edmilson Rodrigues, para ela esta opção política foi
uma questão pessoal, não decorreu por sua liderança como afrorre-
ligiosa. Outra questão que se observa é a relação próxima como se
pode observar com outros políticos:
Eu tenho relação com o Fernando Carneiro, vereador eleito, e
devo assumir uma assessoria dentro do mandato dele, e será
um alguém que poderá representar os afrorreligiosos ou não,
mas é uma relação minha Kátia Haddad com Fernando Carnei-
ro. Não tem nada a ver com a questão da minha militância
religiosa (Entrevista realizada no dia 10/04/13)
Pergunto qual é fronteira entre eu religioso e eu político como
mostra Mãe Katia. Qual é finalidade dessa separação ou união de
força?! Pensar nos candomblés fora do seu local de nascimento,
Bahia é refletir em lutas dos espaços legítimos nas casas de santo.
Afirma sua nação é perceber a teias de identidade que estão sempre
em jogo de poder.

173
Religião, Gênero e Poder

Da descendência do Jaciluango à Brasília: Mãe Beth


Elizabeth Pantoja angoleira de dijina Mame’to Muagile sai do
quilombo da colônia do Guajará Mirim no município de Acará aos
setes ano de idade. Vem de sua terra com problemas sérios de saú-
de. Narra que quando passava na frente dos igarapés ficava inerte
seu corpo não se movia depois começou a desmaiar e cair. Nesse
problema sua mãe resolve trazê-la. Mas Mãe Beth nos narra sua
história a partir do não querer ser religiosa, diz “sou baixinha, preti-
nha, quilombola, mulher e ainda mais macumbeira era uma palavra
que usava antigamente” (Entrevista realizada no dia 28/05/13).
Todo este trabalho se concentra na memória e no ato de
rememorar, logo “enfatize-se o retorno à consciência despertada
de um acontecimento reconhecido como tendo ocorrido antes do
momento em que esta declara tê-lo sentido, percebido e sabido”
(RICOEUR, 2007, p. 72).
De 14 a 23 anos o problema agravou-se: “fiquei muito doente
mesmo de tomar remédio pra doido de andar porre na rua e de pas-
sar noites e noites na rua sem dormir vendo ou ouvindo coisas a
incorporação veio”. (Entrevista realizada no dia 28/05/13)
A história de vida se concentra no ato de rememorar que “en-
fatiza-se o retorno à consciência despertada de um acontecimento
reconhecido como tendo ocorrido antes do momento em que se de-
clara tê-lo sentido, percebido, sabido” (RICOEUR, 2007, p. 72).
Narra que para chegar ao candomblé angola “foi preciso per-
der a consciência eu estava atravessando a rua e subindo a escada
em qualquer lugar minha mente sumia eu não sabia onde estava não
reconhecia ninguém” (Entrevista realizada no dia 28/05/13).
Vendo as coisas agravarem sua mãe leva para pai de santo da
umbanda Ronaldo Pereira Lobato, passou quatro anos nessa casa,
todavia, “só ia quando brigava com a família, eu dava passagem e
ficava bem e sumia depois de três meses eu voltava porque não
queria” (Entrevista realizada no dia 28/05/13).
Nesse enredo o pai de Mãe Beth, Seu Joaquim da Cruz Leite
resolve vender tudo e vem à Belém devido a problema de saúde de
sua esposa, mãe da Mãe Beth.

174
A construção da identidade política a partir da trajetória de ...

O pai teve que vender tudo, vendi tudo era marreteiro, tinha
sitio, e veio pra Belém para cuidar da saúde dela e um dia
desesperada saiu correndo no meio da rua e foi cai na casa do
Bassu Pai e sem conhecer. Depois passou a ser filha do seu
Osmar Arauna, pois seu primeiro pai morreu (Entrevista reali-
zada no dia 28/05/13).
Mame’to diz que “até acompanhava sua mãe ao terreiro, pois
auxiliava carregando as sacolas etc. Aquele cheiro fazia mal doía
muito à cabeça; gostava de olhar, mas não queria participar”. (En-
trevista realizada no dia 28/05/13)
“A minha inkisse é o vendo que você retira é fogo é o raio né
a minha inkisse é a rainha dos mortos chamados de eguns” (Entre-
vista realizada no dia 28/05/13). Mãe louva sua inkisse observando a
contemplação como sacerdotisa da nação Angola.
Depois que entrei na angola “eu adquiri paz, união na mi-
nha família saúde que não tinha progredi economicamen-
te” pois meu inkisse meu deu o espaço pois fiz um contrato
com minhas entidades que eu ia ceder e ate da confiança
de receber eles direitinho cultuaram eles direitinhos as-
cender as velas e tudo que tinha de direito mas se eles me
dessem a minha meu espaço se eles me derem (Entrevista
realizada no dia 28/05/13).
Mãe Beth entra no candomblé angola a partir de um convite
de um irmão de santo Antônio Alves Guimarães com dijina Luandê,
entra na casa Rudembo Axé Di Jaciluango em 1989 onde se inicia
com Tatá Torodê de nome civil Raimundo Walter da Silva do Inkisse
Hosi Mocombi: “fique 14 anos nesta casa. Recebi meu cargo com
10 anos. Quatro mulheres eram o esteiro da casa ficamos apoiando
o Kutala, inaugurei minha casa com 14 anos” (Entrevista realizada
no dia 28/05/13).
Mame’to dá ênfase que pertence a uma família de Salvador
“sou de angola da família de Tumba Juçara de salvador da Mãe
Branco de Colodina uma mãe de santo famoso em salvador super -
reconhecida também tem casa aberta no rio de janeiro” (Entrevista
realizada no dia 28/05/13). Hall nos ajuda a pensar sobre essa iden-
tidade que se apresenta no jogo político. Essa afirmação mostra que,

175
Religião, Gênero e Poder

A identidade está profundamente envolvida no processo de


representação. Assim, a moldagem e remoldagem de relações
espaço-tempo no interior de diferentes sistemas de represen-
tação têm efeitos profundos sobre a forma como as identida-
des são localizadas e representadas. (HALL, 2006, p. 19)
A história da fundação casa de Mãe Beth está centrada em
dois períodos quando funda o Terreiro da Caboca Itá para festeja
sua caboca, Itá em 1986 localizado no bairro do Jurunas na passa-
gem Dr. Brito n° 150A, e, em 2003 quando recebe seu Kijino funda
o Rudembo Gunzo Ti Buburucema que começa fazer filhos de santo
que hoje possuem uma média de 14 filhos que estão na Casa. Este
terreiro localizado na Terra Firme foi lhe dado de presente de um
cliente, suas orações sempre pedia “não precisa ser grande do tama-
nho da minha saia já basta” (Entrevista realizada no dia 28/05/13).
Mãe é uma militante política, que busca políticas públicas para
sua associação, mas será que uma forma que os candomblecistas
têm de buscarem status na sociedade belenense entre outros afror-
religiosos? Criando assim uma relação de saber e poder.
A identidade é criada de fora para dentro do grupo, por meio
de incorporação em projetos e programa sociais que contem-
plam políticas de identidade estratégicas, voltadas para a re-
alização de certos objetivos (GOHN, 2008, p. 67).
Contudo, “o que está em jogo na memória é também o sentido
da identidade individual e do grupo” (POLLAK, 1989, p.8). Vejo que
essas políticas é maneira do qual a uma eficácia simbólica na identi-
dade do grupo, ou seja, é através desse sistema que os afrorreligio-
sos conseguem status.
O Instituto Bamburucema de Cultura Africana - ICBAN é
presidido por Mãe Beth é Conselheira de Igualdade Racial, Conse-
lheira Municipal do Negro, Conselheira de Idosos e Conselheira de
Negro e Negras do Pará (há 2 anos). O Instituto Bamburucema de
Cultura Africana nasceu em 2003, porém nasce com o nome AR-
CUABÃ. Desde sua fundação Mãe Beth está no movimento social,
hoje a associação se chama Instituto Bamburucema de Cultura Afro
– Amazônica. Para ela o objetivo da associação como

176
A construção da identidade política a partir da trajetória de ...

É capacitar essas pessoas. Para ter uma renda; o maior obje-


tivo é essa “capacitação” do meu povo carente para eles
terem a renda própria, para saírem da pobreza e violência en-
tão eu faço essas oficinas rápidas, como meio deles ganha-
rem um dinheiro rápido como manicure (Entrevista realizada
no dia 28/05/13).
A partir das entrevistas podemos observa que a associação
ainda não está legalizada, não possui CNPJ. Ao perguntar para a
Mãe O que levou a senhora fazer tudo isso na associação? Obtive a
seguinte resposta:
Eu sempre tive esse espírito de humanidade de querer ajudas
às pessoas; eu tenho trabalhado também com deficiente, te-
traplégico; eu redivido as cestas, e contemplo essas pesso-
as; eu não trabalho só a minha comunidade do bairro, é em
Outeiro, Pratinha, Jurunas, Cremação; associação não é só
essa parte religiosa; é você poder ajudar o ser humano, então
passei a trabalhar e lutei muito para conseguir estas cestas,
foi 2,3 dias de trabalho andando por que isso foi um encontro
feito da rede de saúde dos terreiros que aconteceu aqui no
Beira-Rio, e veio o ogãn que é secretario de igualdade racial,
e perguntou para nós, se o Pará, já recebi cesta básica. Então
dissemos que não, então mandei urgente fazer uma pesquisa
em Belém, e mandar o nome das pessoas necessitadas, para o
governo federal. Fui bater de casa em casa, para saber onde
estava os afrorreligiosos. Após a pesquisa de três meses de-
pois veio a cesta; mais para 1000 pessoas, vai pra o INTER-
CAB, e depois de divide para casa terreiro. Ficou na casa da
Mame’to Nangetu. E é um trabalho gratificante porque você
sabe que vai matar a fome de algumas pessoas. Ano passado
veio 6 a 8 vezes ao ano; sempre 50 cestas, este ano já veio três
vezes. Agora eu tenho muita vontade de tirar esses documen-
to e avançar mais para ajudar mais minha comunidade (Entre-
vista realizada no dia 28/05/13).
Atividades proposto pela ICBAN: Café da manhã com pales-
tras sobre a Lei Maria da Penha; Cineclubes; Distribuição de cesta
básica; Palestras sobre violência, drogas, DST’s, AIDS; Distribuição
de preservativos, café da manhã para os Dias das Mães com pales-
tras, e sorteio de cestas básicas.
177
Religião, Gênero e Poder

Mame’to Beth participou de vários de eventos ao longo do


ano de 2012 como: Conferencia Nacional de Cultura; Encontro Na-
cional no Rio de Janeiro sobre Diversidade Cultural; Oficina de Cons-
trução de Projetos, no estado do Maranhão; Congresso Nacional da
Cartografia Social em Manaus e Conferencia das Mulheres. ICBAN
recebe apoio do Instituto Nangetu (Instituto Nangetu de Tradição
Afrorreligiosa e Desenvolvimento Social) por meio do empréstimo
de materiais como: data show e caixa amplificada de som, usados
nas reuniões de Cine Clube.
Nos estudos de religiões afros no Pará percebemos que há
uma grande corrida de legitimidade e uma das formas que os afros
determinaram foi através das políticas assistencialistas.

Considerações finais
Nessa história política há uma corrida de legitimidade há uma
corrida de status no campo afrorreligioso de Belém. O centro é o
poder político e poder religiosos nesse angoleiros de Belém; Bour-
dieu nos ajuda a refletir que a religião contribui maximamente para a
manutenção da ordem política, logo, reforça o poder simbólico das
divisões entre ordem política e simbólica, pela aquisição da função
precisa, no sentido de contribuir na continuidade ordem simbólica do
poder simbólico (BOURDIEU, 2003).
Falar de Candomblé Angola é falar de identidade, ou seja, “está
profundamente envolvido no processo de representação” (HALL,
1992, p. 19) essa representa é construída a partir das políticas públi-
cas que os afros modelam sua religião. O angola em Belém não
nasce nos bantus na Bahia, mas sim, nas busca da iniciação legítima
cobrada pela FEUCABEP e a volta desses novos candomblecistas
com suas táticas para ser visto na geografia mineira e umbandista.
Atentar essa questão é adentrar nos sistemas das políticas. Afirmar
que Angola é uma identidade política é perceber a importância colos-
sal nos ethos político dentro das casas de santo assim. O candomblé
angola é uma identidade política, pois a afirmação do pertencimento
angoleiro só se dá a partir dos vínculos precisos com as políticas.
Hoje se ver as casas de Angola movimentadas por uma bandeira
politica ora políticas públicas.

178
A construção da identidade política a partir da trajetória de ...

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Notas do Capítulo 8
1
Este termo será utilizado para abranger a diversidade de religiões afro-
indígenas.
2
Tanto Ketu, Angola e Jeje são nações do candomblé estabelecidas em
Belém do Pará. O Candomblé como uma religião de matriz africana se cons-
trói no Brasil a partir da origem/nação de cada candomblé, ou seja, de cada
região da africana, como o Ketu da região atualmente Nigéria; a Angola
deriva-se com negros bantus localizados hoje, na Angola, Congo etc; Já a
nação Jeje origina-se da região atual Benim.
3
Ou Inkisse, termo utilizado para designar as divindades do Candomblé
Angola.
4
Inkisse que corresponde a Nanã na nação Ketu, deusa mais antiga, senho-
ra da morte, do termo e da lama.
5
Sacerdotes que equivalem na tradição Ketu – ogãn. Tatá são aqueles que
tocam e cantam nos atabaques.
6
Sacerdotisa s que equivalem na tradição Ketu – ekedis. Kotas são aquelas
que auxiliam os sacerdotes da casa e que paramentam os deuses.
7
Tocadores dos Ngomas ou tambores.
8
Filhas de santo que não possui a mediunidade de incorporação que auxi-
liar os sacerdotes que vetes os inkisses.
9
Termo que significa casa.
10
Federação Espirita e Umbandista dos Cultos Afro-Brasileiros do Estado
do Pará.
11
Incorporação do orixá para a iniciação.
12
Inkisse que corresponde a Omolu na nação Ketu deus da cura.
13
Inkisse que corresponde a Yemanjá na nação Ketu deusa das águas.

181
Religião, Gênero e Poder

182
Capítulo 9
Metodismo e Homofobia Cordial: uma análise da Carta
Pastoral “Igreja e a Questão do Homossexualismo”

Tony Welliton da Silva Vilhena


Em pleno ano de 2013, quando da eleição de um pastor com
um extenso histórico de posicionamentos homofóbicos e racistas para
a presidência da Comissão de Minorias e de Direitos Humanos da
Câmara Federal, a sociedade, sobretudo as igrejas cristãs, vê-se en-
volta num debate fervoroso sobre as relações entre a fé e a diversi-
dade sexual.
Mas na Igreja Metodista brasileira esse tema tem sido alvo de
reflexão desde o ano de 1999, pelo menos. Pois, em agosto daquele
ano, o Expositor Cristão, jornal oficial da Igreja, trouxe na coluna
Palavra Episcopal um artigo do bispo Adolfo Evaristo de Souza –
falecido em 2011 – intitulado “A família nos diferentes contextos”
(SOUZA, 1999: 24). O objetivo do artigo era defender a família frente
aos ataques do liberalismo filosófico e da modernidade.
No texto, entre as várias depravações que no entendimen-
to do bispo Adolfo Evaristo enfraqueciam a instituição familiar,
como a poligamia, casamentos mistos, adultério e incesto, duas
de suas citações mereceram maior reação de setores mais pro-
gressistas da Igreja: o feminismo e o sodomismo – citado como
homossexualismo masculino e feminismo. Tanto que na edição
de outubro daquele ano o Expositor teve que publicar um “Pro-
nunciamento sobre artigo publicado” elaborado por redatores/as
e escritores/as das revistas da Escola Dominical – espaço forma-
tivo semanal onde a Igreja é dividida por faixa etária para fazer
estudos bíblicos e aprofundamentos doutrinários, que vieram a
público manifestar sua “indignação e repúdio” àquelas palavras
polêmicas, concluindo que a “Igreja deve ser terapêutica e não
acusatória, moralista e generalizante” (MACIEL, 1999: 11).

183
Religião, Gênero e Poder

Registra-se, neste momento, a primeira vez que se tornam


públicas na Igreja Metodista brasileira as tensões sobre o posiciona-
mento institucional diante da questão da homossexualidade. Logo
em abril do ano seguinte, o Colégio Episcopal1 se apressa em emitir
um posicionamento oficial diante da temática, publicando a Carta
“Igreja e a questão do homossexualismo: uma orientação pastoral”.
Sendo que anos depois, em 2007, no auge da polêmica do Projeto de
Lei 122/1996 que visa a criminalização da homofobia, os bispos pro-
duziram um novo documento intitulado “Pronunciamento do Colégio
Episcopal sobre o projeto de lei acerca da homofobia”.
Em ambos documentos, em síntese, há um posicionamento
contrário a prática de relações sexuais entre pessoas do mesmo sexo,
argumentando ser esta uma manifestação de sexualidade contrária
aos padrões bíblicos, mas, aos mesmo tempo, os documentos pro-
põem acolhimento sem preconceito e discriminação aos homossexu-
ais, inibindo as posturas mais conservadoras de interdição e perse-
guição a estas pessoas. Desta forma, busca-se abrandar a hostilidade
aos homossexuais expressa nas linhas dos documentos em tela, en-
quadrando-se plenamente no conceito trabalhado pelos pesquisado-
res Marcelo Natividade e Leandro Oliveira (2009) de “homofobia
cordial”. Para estes autores,
Enquanto certas formas de discriminação segregam indivídu-
os, marcados como diferentes e inferiores, A homofobia cor-
dial aproxima-os daqueles que exercem posição de superiori-
dade moral, em uma relação de assujeitamento. Esta relação
assimétrica pode implicar engajamento emocional dos sujei-
tos envolvidos, favorecendo a perpetração de formas muito
sutis de sujeição e violência (NATIVIDADE; OLIVEIRA, 2009:
129, grifo meu).
Este artigo visa analisar estes documentos de um seguimento
do protestantismo histórico, no caso, o metodismo, buscando apre-
sentar quais os elementos ideológicos constituintes destes discursos.
A ênfase das análises será na Carta “Igreja e a questão do homosse-
xualismo: uma orientação pastoral”, pois a mesma tem função nor-
mativa, deliberando como os membros da Igreja devem se compor-
tar frente ao assunto.

184
Metodismo e homofobia cordial

Os conteúdos dos documentos serão expostos de forma deta-


lhada para que revelem o que as letras não dizem ao primeiro olhar.
Embora a Igreja Metodista, através de seus bispos, tenha se mani-
festado formalmente sobre a temática, o que já pode ser considerado
um avanço, e tenha expressado uma certa solidariedade com as pes-
soas que sofrem discriminação e preconceito por serem homossexu-
ais, o que parece indicar que os documentos são elaborados na ten-
tativa da classe dirigente da Igreja projetar-se como vanguarda ou
elite intelectual religiosa, será que ela se diferencia de outros seg-
mentos cristãos que são incisivamente intolerantes e teologicamente
fundamentalistas ao tratar da diversidade sexual?

Teologia do sacrifício: acolhimento para conversão


Abominamos o pecado, mas amamos o pecador. Este cha-
vão é o mais repetido quando seguimentos cristãos são convidados a
explicar o porquê das tensões existentes sobre a visita, participação
ou integração de pessoas homossexuais em suas igrejas. É uma for-
ma de afirmar que as pessoas homossexuais até podem ser aceitas,
mas somente se negarem parte daquilo que as constituem, como se
esta essência, a orientação sexual, fosse algo portátil e optativo. Não
refletem que “a homossexualidade não é uma opção que depende da
vontade do indivíduo, como uma deliberação consciente, mas nenhu-
ma orientação sexual o é, assim como não é algo da ordem de uma
causa específica” (SOUSA FILHO, 2009: 114).
É neste mote que segue a orientação pastoral metodista, tanto
na carta “Igreja e a questão do homossexualismo”, quanto no “Pro-
nunciamento do Colégio Episcopal sobre o projeto de lei acerca da
homofobia”. A postura de condenação sumária das vivências homo-
afetivas é uma herança da produção teológica judaico-cristã que for-
jou a cultura ocidental. Para a mestre em Bíblia Luiza Etsuko Tomita,
A religião judaico-cristã tem sido a grande responsável pela
ideia de perversão sexual, visto que foi ela que estabeleceu,
na cultura ocidental, o que é ‘natual’ e o que é ‘antinatural’,
tecendo as normas éticas que orientam a vida social. A ética
cristã, hoje, já está deixando de considerar a homossexualida-
de como desvio da natureza. Porém, a teologia do sacrifício,

185
Religião, Gênero e Poder

que é baseada na teologia da cruz (a qual interpreta equivo-


cadamente a cruz de Cristo, como o único caminho para atin-
gir o céu, isto é, a exigência de sofrimento na terra para ser
feliz após a morte) atinge em cheio também o homossexual
que quiser seguir a fé cristã: ele ou ela deve manter-se casto,
abstendo-se de relações sexuais, o que significa a rejeição de
seu mais íntimo erotismo e, quiçá, de sua própria natureza
(TOMITA, 1999: 11).
Logo de início, fica um indício de que os bispos metodistas não
têm interesse em desenvolver um texto na perspectiva de orientação
para a diversidade sexual - conjunto de possibilidades de indivíduos
constituírem (subjetivamente) e expressarem (objetivamente) seus
desejos “quer por pessoas de outro sexo, quer por pessoas do mes-
mo sexo, quer, ainda, por pessoas de ambos os sexos” (SOUZA,
2010: 10). Pois, já no título da Carta Pastoral aparece a palavra ho-
mossexualismo, reducionismo que tenta englobar de modo negativo
as vivências e sentimentos diferentes do padrão da heterossexuali-
dade – comportamento sexual de atração e/ou relação entre pessoas
de sexos opostos, mais objetivamente: homem e mulher.
É típico do emprego da expressão homossexualismo ensejar
noção de comportamento patológico às práticas que se diferenciem
da heterossexualidade. De início, o documento já remete o leitor,
pretensamente os membros da Igreja Metodista, ao tratamento das
relações homoafetivas como doentias, antinaturais, logo, passíveis
de tratamento clínico, psicológico e/ou espiritual.
Ao longo do documento, que consiste em duas laudas, a pala-
vra de conotação pejorativa homossexualismo aparece treze vezes.
Já a palavra homossexualidade, substantivo mais apropriado que su-
gere condição e processo de orientação que se dá ao longo da vida,
surge apenas duas vezes. Cabe ressaltar que a questão da termino-
logia não é problema de somenos importância. Visto que é na termi-
nologia empregada que se perpetuam ou se desconstroem discursos
preconceituosos e/ou discriminatórios. Agindo desta forma, o Colé-
gio desprezou que:
Desde a década de 1980 as instituições da saúde começaram
a rever os significados diante dessa sexualidade subordina-

186
Metodismo e homofobia cordial

da: em 1985, o Conselho Federal de Medicina, no Brasil, con-


siderou sem efeito o parágrafo 302.0 do Código Internacional
de Doenças (CID), da Organização Mundial da Saúde (OMS),
que catalogava o “homossexualismo” como desvio e trans-
torno sexual. Em 1991, a Anistia Internacional passou a con-
siderar violação dos direitos humanos a proibição da prática
homossexual. Em 1993, a OMS tornou sem efeito o código
302.0 - que vigorava desde 1948 (FURLANI, 2007: 154).
Contudo, por ser um documento datado no ano 2000, pode-se
alegar que não havia, no período, a orientação que evitasse a utiliza-
ção do sufixo ismo pelo idade, nem que há treze anos atrás houves-
se a repercussão com a força e velocidade que tem hoje as campa-
nhas de reconhecimento da cidadania e dos direitos humanos das
populações abrigadas na sigla LGBT2.
A Carta é dividida em três partes não numeradas: “Introdu-
ção” / “Por que esta orientação pastoral sobre o tema do Homosse-
xualismo?”, “O que diz a Bíblia sobre o assunto?” / “Considerare-
mos alguns textos bíblicos que abordam o assunto” e “Conclusão” /
“Orientações Pastorais: Com base nestas reflexões bíblicas como
devemos agir?” (IGREJA METODISTA, 2000).
No início da Carta, o Colégio Episcopal diz que o tema do
homossexualismo tem sido tratado como tabu na igreja, principal-
mente quando se depara com um caso, mas que para a sociedade o
tema é visto com mais “naturalidade”. Em seguida, reconhece que
existem provas científicas mostrando que tal expressão de sexuali-
dade não se trata de preferência sexual ou resultado de escolha, mas
sim de uma tendência natural, orgânica, “tão natural como a sexuali-
dade entre homem e mulher” (ibid.).
Todavia, quando parece que o discurso está caminhando à fren-
te de seu tempo, que os ares de um novo milênio desanuviavam os
fundamentalismos de uma igreja protestante histórica frente à diver-
sidade sexual, há uma interrupção abrupta no raciocínio com uma
mixórdia argumentativa que questiona que tipo de vida a sociedade
contemporânea tem produzido para depois concluir, em desalento,
que esta mesma ciência que avançou a ponto de descobrir a natura-
lidade da homossexualidade evolui lado a lado com a miséria e a

187
Religião, Gênero e Poder

violência. Ou seja, para os bispos metodistas brasileiros, os avanços


científicos perdem sua legitimidade já que ao mesmo tempo a socie-
dade não consegue atacar e superar seus problemas sociais.
Apontando para outra contradição da contemporaneidade, o
fato de se falar muito de paz, mas se gastar milhões em armamentos,
os bispos finalmente chegam ao seu destino final: desmoralizar a
sociedade enquanto produtora de valores liberais. São taxativos e
afirmam que
Por tudo isso é que percebemos a ausência de condições da
nossa sociedade em ditar normas no campo da moral. Um
mundo guiado somente pelo saber humano não tem condi-
ções de produzir justiça e felicidade, caminha, sim, para a
morte. Por isso não podemos aceitar o homossexualismo
como uma expressão natural e normal de sexualidade, por-
que uma resposta apenas científica não é suficiente para de-
terminar nossa posição” (ibid., grifo meu).
Adiante, os bispos tentam despertar no leitor uma série de
questionamento sobre a homossexualidade. A Bíblia fala sobre o as-
sunto? É correto? É pecado? Pois suas respostas a essas perguntas
definirão o posicionamento “bíblico-teológico e pastoral da Igreja
Metodista” para o tema.
Compreendendo a conjuntura da Carta Pastoral em análise,
retoma-se a lembrança das tensões vividas poucos meses antes, pro-
vocadas pelo desastrado artigo do bispo Adolfo Evaristo, e vê-se que
o que os bispos estão preparando parece ser um melhoramento dis-
cursivo das ideias já publicadas pelo referido bispo no ano anterior.
Em análise do discurso, sabemos que o processo de elabora-
ção de um texto reivindica para si a memória – tudo que já foi dito
sobre – o tema que se aborda. Quando um discurso se apropria de
formulações preconcebidas e “esquecidas” em autoria e origem, ele
está lançando mão do que se chama interdiscursividade. Como
expõe Eni P. Orlandi sobre o interdiscurso, “é preciso que o que foi
dito por um sujeito específico, em um momento particular se apague
na memória para que, passando para o ‘anonimato’, possa fazer sen-
tido em ‘minhas’ palavras” (1994: 33-34).

188
Metodismo e homofobia cordial

São interdiscursos do texto a retomada do sentimento de con-


flito entre fé cristã e vivência homoafetiva, a impossibilidade de se
fazer uma leitura do texto sagrado que permita uma relativização das
abordagens e o tratamento hostil para com as pessoas que tenham
orientação não-heterossexual, considerando o homossexualismo uma
anormalidade antinatural. Pois como o estudo “A inclusão dos ho-
mossexuais no protestantismo” assevera,
O posicionamento histórico do Protestantismo sempre foi o
de rejeitar a homossexualidade, ora condenando-a como pe-
cado, ora explicando-a como doença ou resultado de uma
influência “demoníaca”. Além disso, a postura habitual das
igrejas Protestantes tendo sido a de interditar a participação
de homossexuais nos mais diversos aspectos da experiência
religiosa coletiva (BARRETO; OLIVERIA FILHO, 2012: 118).
Outrossim, no caso da Carta Pastoral estudada, é flagrante
que a memória que ela utiliza para pautar-se é a do artigo do
bispo Adolfo Evaristo, que já tinha causado muita celeuma há
poucos meses antes. Este fenômeno de permitir que um discurso
“transpire” ideias muito bem conhecidas de estilo, autoria e inten-
ções é chamado de intertextualidade (ibid.). O artigo do bispo
Adolfo Evaristo aparenta ser o intertexto da Carta Pastoral. Pois
é lá que o homossexualismo será apresentado como depravação,
“abominação aos olhos de Deus” e dito que “o liberalismo pre-
sente em Igrejas tradicionais é abominação a Deus, provocando o
juízo dEle” (SOUZA, 1999: 24).
Quando alas mais progressistas da Igreja se pronunciaram
contra o artigo do bispo, considerando que ele se afastava da tradi-
ção metodista e pedindo para que não se ignorasse a realidade de
“famílias diferenciadas que desejam o amor e o acolhimento em nos-
sas igrejas” (MACIEL, 1999: 11), alertaram que “rejeitar essa reali-
dade ou fechar os olhos a ela pode até afastar tais pessoas da Igreja
Metodista, mas não do Reino. A graça é maior do que modelos! Ela
acolhe, aceita, renova, favorece” (ibid.).
Foi então que, para tentar minimizar o mal estar que já extra-
polava o circuito interno da Igreja, o Colégio Episcopal lançou nota
assinada pelo seu presidente, bispo Paulo Lockmann, dizendo que o

189
Religião, Gênero e Poder

artigo de um bispo “externa sempre a opinião do bispo que a assina”


(1999: 11). Aparentemente, afastava deste modo o Colégio Episco-
pal daquelas opiniões que repercutiam muito mal. O interessante é
que num breve lapso de tempo, o teor do artigo volta exalado nas
palavras da Carta Pastoral assinada por todos os bispos, logicamen-
te, contando-se aí com os bispos Adolfo Evaristo e Paulo Lockmann,
evidenciando que a neutralidade de outrora era apenas uma estraté-
gia de preservação da autoridade, mas que sempre houve concor-
dância com aqueles posicionamentos. Sendo que agora as expres-
sões de homofobia estão bem mais abrandadas, calibradas em
palavras mais sutis, em argumentos menos impactantes. Mas nada
que altere o cerne da questão, o tratamento diferenciado e profilático
às pessoas homossexuais.
Não muda o teor, muda a entonação. Enquanto o artigo do
bispo Adolfo Evaristo apresenta doze ocorrências de palavras fortes
como “abominação” ou “depravação” para expor uma série de pre-
ocupações com a instituição familiar, a Carta Pastoral, com maior
sobriedade, traz apenas duas citações da palavra “abominação”, sendo
que uma está contida numa citação de um versículo bíblico.
Atenuar o discurso é uma tentativa de agradar diferentes gru-
pos formados internamente na Igreja, desde os mais conservadores
até os mais liberais. Mas em um olhar mais aguçado, conclui-se que
nada que venha romper a cadeia de ideias que entrelaçam os dois
textos. Eles emitem um único discurso, em sintonia admirável quan-
do comparados. Pois é no campo destes discursos – que na verdade
se fazem uno – que se impõem as virtudes comportamentais exigi-
das aos membros da Igreja Metodista. Para Norman Fairclough, na
obra “Discurso e mudança social”,
O discurso contribui para a constituição de todas as dimen-
sões da estrutura social, direta ou indiretamente, o moldam e
o restringem suas próprias normas e convenções, como tam-
bém relações, identidades e instituições que lhe são subja-
centes. O discurso é uma prática, não apenas de representa-
ção do mundo, mas de significação do mundo, constituindo e
construindo o mundo em significado (FAIRCLOUGH, 2001: 91).

190
Metodismo e homofobia cordial

Deste modo, o discurso oficial metodista reproduz uma ten-


dência do segmento evangélico de aproximação e acolhimento de
pessoas homossexuais, não mais o estranhamento e a exclusão, para,
taticamente, inseri-las num processo de “regeneração moral” rumo
à “libertação do homossexualismo”, é a homofobia cordial (NATI-
VIDADE; OLIVEIRA, 2009: 129), a desidratação da radicalidade
da homofobia religiosa mais irascível. A Carta Pastoral, ao situar o
homossexualismo como prática moralmente inconcebível e conde-
nável, mas passível de uma mudança que o anule, favorece, insidio-
samente, os discursos sustentados por “segmentos religiosos conser-
vadores mais radicais que subtraem a legitimidade às identidades
LGBT e às reivindicações por cidadania correlatas” (ibid.).

A homossexualidade na bíblia: bases de um discurso insipiente


A segunda parte da Carta Pastoral visa comprovar os argu-
mentos anti-homoafetivos através de trechos bíblicos que suposta-
mente condenam as práticas que fujam da heterossexualidade, que
neste caso passa ser uma conduta compulsória às pessoas que pre-
tendem ser da religião cristã.
Nesta altura do documento, os bispos lançam mão de textos
do livro de Gênesis (Gn.), do Antigo Testamento, destacando versí-
culos dos capítulos 18 e 19. É a clássica história da destruição das
cidades de Sodoma e Gomorra. Conta a história judaica que Deus
enviou dois anjos em forma de homens para destruir as duas cidades,
devido ao clamor que subia aos céus denunciando a gravidade dos
pecados cometidos lá.
Ao chegarem em Sodoma, Ló, uma das poucas pessoas
justas da região, ofereceu hospedagem aos homens em sua resi-
dência. Os anjos de início recusaram, dizendo que pernoitariam
em praça pública, mas diante da insistência e bondade de Ló,
acabaram aceitando o convite.
Às altas horas da noite, quando família e hóspedes já se pre-
paravam para deitar, uma turba de homens de Sodoma, desde os
jovens até os velhos, cercou a casa de Ló e pediu que ele trouxesse
os seus hóspedes para que fossem estuprados. Ló, ultrajado com a
situação, chega a oferecer as suas duas filhas virgens no lugar dos

191
Religião, Gênero e Poder

hóspedes, mas os homens de Sodoma não aceitam a proposta. Quando


inicia a tentativa de invasão da casa, os hóspedes revelam seus po-
deres sobrenaturais, cegando temporariamente a súcia.
Ao raiar do dia os anjos recomendaram que Ló e sua família
deixassem imediatamente a cidade sem olhar para trás, pois a mes-
ma seria destruída junto com seus habitantes. Quando Ló e família já
estavam seguros, o texto narra que Deus fez chover do céu enxofre
e fogo, destruindo tudo em Sodoma e Gomorra. Mas, a mulher de
Ló, talvez por curiosidade ou apego ao passado, olhou para trás e,
por causa disso, acabou se transformando uma estátua de sal.
Usando este texto como referencial para um posicionamento
bíblico-teológico da Igreja Metodista, os bispos dizem que “fica claro
a prática do homossexualismo como um dos símbolos das abomina-
ções, com as quais Deus não aprova e nem se agrada” (IGREJA
METODISTA, 2000). Resumem que a tentativa dos moradores da
cidade de Sodoma em manter relações com os hóspedes de Ló ilus-
tra todos os pecados que causaram a desgraça que sobrecaiu nas
duas cidades vizinhas ao Mar Morto. Neste ponto, mais uma vez, o
artigo do bispo Adolfo Evaristo parece como inspiração, já que lá
esta mesma história bíblica mereceu grande destaque, inclusive com
uma nomenclatura não muito usual hoje em dia, o sodomismo, em
referência ao desejo dos homens de Sodoma em manter relações
sexuais com outros homens de fora da cidade.
Existe um axioma exegético que diz que interpretar um tex-
to fora do contexto é pretexto. Quando os bispos apresentam a
história de Sodoma e Gomorra, buscando fundamentação bíblica
para sustentar seu posicionamento nada favorável à participação
de pessoas homossexuais na vida da Igreja, sem trazer à tona a
conjuntura do evento, eles remetem os leitores da Carta proposi-
tadamente ao equívoco.
Uma (re)leitura honesta desse texto aponta para outros cami-
nhos interpretativos. É bom lembrar que, antes da tentativa de sexo
não consentido entre os homens de Sodoma e os dois homens hóspe-
des de Ló, Deus já planejava destruir as cidades. A ênfase do texto
está no tratamento desumano com os estrangeiros. Pois era lei para
aqueles povos sempre cuidar bem de seus imigrantes, sem oprimi-

192
Metodismo e homofobia cordial

los. Os imigrantes deveriam ser tratados como concidadãos para


que o povo israelita sempre lembrasse que já viveu como imigrante
em terras egípcias. Segundo a mestre em Bíblia Luiza Etsuko Tomita,
O texto da destruição de Sodoma e Gomorra é o texto clássico
que serviu para releituras sobre as abominações sexuais. A
exegese deste texto mostra que o mandamento aqui violado é
o do dever da hospitalidade, de extrema importância na anti-
guidade, na época tribal israelita, onde existe grande rivalida-
de entre as tribos e qualquer disputa é um estopim para guer-
ras fratricidas. Além disso, é possível verificar a incrível
desvalorização do corpo da mulher, em relação às normas
patriarcais de dever de hospitalidade, de solidariedade entre
homens. As referências a esse texto em outros textos do An-
tigo Testamento mostram que não há referência nem a estu-
pro, nem a abuso sexual, nem a práticas homossexuais (TO-
MITA, 1999: 11, grifo meu).
Outras citações bíblicas inseridas na Carta fazem referên-
cia aos versículos do livro de Levítico (Lv), do Antigo Testamen-
to. O primeiro é Lv. 18.22 – capítulo 18, versículo 22 – que diz
“não se deite com um homem como se fosse com mulher: é uma
abominação”; e o segundo é Lv. 20.13 que diz “o homem que
deita com outro homem, como se fosse mulher, está cometendo
uma abominação”. Ainda hoje esses textos surgem com força
nos discursos evangélicos como fundamento cabal para não per-
missão de qualquer aceitação ao acolhimento aberto, sincero e
inclusivo às pessoas homossexuais na Igreja.
O nome do livro, Levítico, provém do nome de Levi, em torno
do qual se formou a tribo de Israel escolhida para exercer a função
sacerdotal. Este livro é um ajuntamento histórico de textos que situ-
am o povo de Israel em relações aos outros povos e sua própria
organicidade interna. Não é por caso que este livro apresenta uma
vasta lista de regras e mandamentos, entre eles os tabus sexuais, que
visam preservar a rotina cultural e cultual das comunidades. Não
que houvesse uma preocupação exclusiva com a homossexualidade
e suas consequências. Pelo contrário, o tema da homossexualidade
na Bíblia é tema para além de secundário. Essa preocupação é limi-

193
Religião, Gênero e Poder

tada a momentos específicos, conforme o contexto vivido, instabili-


dade de governo interno ou aproximação com outros povos.
Para o doutor em Bíblia Erhard Gerstenberger, não é possível
identificar corretamente uma proibição à homossexualidade de for-
ma generalizada nos textos de Levítico (1999: 80). Não é coerente
escolher somente os versículos que chamam a atenção das práticas
de “um homem se deitar com outro homem” e desprezar completa-
mente a sequência de orientações com o mesmo valor de importân-
cia como, por exemplo, guardar o sábado, fazer sacrifícios de ani-
mais, não colher tudo para que sobre para os pobres, não oprimir,
explorar ou odiar o próximo, não comer nada com sangue, não cortar
as pontas dos cabelos em redondo nem aparar a barba, etc. É inte-
ressante perceber que os discursos evangélicos são intransigentes
na defesa literal dos raros textos bíblicos que apresentam algum co-
mentário contrário às práticas homoafetivas, entretanto, conseguem
relativizar perfeitamente sobre as outras exigências bíblicas que não
refletem mais a realidade dos nossos dias.
As proibições estreitamente culturais e as leis de pureza não
são os únicos conteúdos da pregação do livro Levítico (...).
Para nosso entender e sentimento esses mandamentos mis-
tos culminam na exortação de amar o próximo’ e ‘amar o es-
trangeiro’ como a si mesmo. Isto quer dizer: todas as exigên-
cias propostas no livro de Levítico, seja, elas de cunho cultural
ou ético, servem entre outras coisas para a finalidade central,
a saber: a de proteger a esfera divina de Javé (...). A condena-
ção brutal de pessoas homossexuais em Lv. 18 e 20 não é
universal na Bíblia. Ela se deu dentro de situações especiais
em determinados momentos da história de Israel ou do juda-
ísmo iniciante. Provavelmente os autores ou compositores
de Levítico se sentiam ameaçados por qualquer atividade
sexual (GERSTENBERGER, 1999: 81,86).
Tendo poucas citações do Antigo Testamento, os bispos se
animam com a possibilidade de encontrar no Novo Testamento ver-
sículos mais favoráveis aos seus argumentos. Tanto que deixam sus-
pirar um certo alívio ao escreverem “finalmente, no Novo Testamen-
to a linguagem não permite qualquer dúvida”. O que deixa desnudar

194
Metodismo e homofobia cordial

uma possível insegurança na fragilidade de sua tese usando os versí-


culos isolados e descontextualizados do Antigo Testamento.
Seguindo na tentativa de responder a autopergunta formulada
“o que diz a Bíblia sobre o assunto?”, os bispos seguem agora fazen-
do as citações do Novo Testamento, especificamente de Romanos
(Rm) 1. 26-27, que diz que
Por isso, Deus entregou os homens a paixões vergonhosas:
suas mulheres mudaram a relação natural em relação contra a
natureza. Os homens fizeram o mesmo: deixaram a relação
natural com a mulher e arderam de paixão uns com os outros,
cometendo atos torpes entre si, recebendo dessa maneira em
si próprios a paga pela sua aberração;
E Primeira Carta aos Coríntios (I Cor.) 6.9, que diz o seguinte,
“vocês não sabem que os injustos não herdarão o Reino de Deus?
Não se iludam! Nem os imorais, nem os idólatras, nem os adúlteros,
nem os depravados, nem os efeminados, nem os sodomitas”.
Os versículos escolhidos são de livros atribuídos ao serviço
religioso do apóstolo Paulo de Tarso, que assessorou diretamente
as primeiras comunidades cristãs naquela época utilizando car-
tas, onde registrava orientações diversas, conforme a realidade
de cada grupo específico. É interessante refletir que quando Pau-
lo escreve suas cartas, mediante as perseguições sofridas por
causa de sua fé e a poucos anos da referência religiosa dessas
comunidades, o Cristo, ter sofrido a morte mais desonrosa que
existia, ele está em pleno debate com o judaísmo e as religiões
pagãs. Paulo não tem a expectativa delas serem normas definiti-
vas de uma das maiores religiões monoteístas que temos hoje no
mundo. Esta canonização veria séculos depois.
Em Romanos, Paulo demonstra que ainda não conhecia pes-
soalmente aquela comunidade cristã de Roma. Mas por ser um cen-
tro cosmopolita da época, sabia do cotidiano daquela sociedade e das
ameaças ao desenvolvimento do grupo de cristão que se reunia. Par-
te da comunidade cristã de Roma havia herdado do judaísmo um
desejo por regras formais, era o cristianismo judaizante. Outrossim,
essência das práticas pagãs eram introduzidas no culto.

195
Religião, Gênero e Poder

Para Tomás Hanks,


A intenção de São Paulo em Romanos 1.27 não é condenar
todos os atos homoeróticos entre homens, mas somente cer-
tos tipos: atos sexuais vinculados aos cultos idólatras; atos
sexuais caracterizados pela injustiça e exploração; atos pro-
míscuos comuns nos banquetes idólatras e nas orgias; atos
homossexuais de homens casados e atos de abuso sexual a
jovens e crianças – sendo a pedofilia uma expressão homoe-
rótica dominante na cultura greco-romana (1999: 92).
Já a comunidade de Coríntios é uma comunidade dividida em
disputas pela liderança do movimento. Coríntios era uma metrópole
na época. Em seu porto circulavam pessoas de diferentes nacionali-
dades, culturas, religiões, (re)produzindo tendências, repercutindo
notícias internacionais e fazendo negócios.
Paulo ao escrever a missiva intenta promover unidade e reti-
rar algumas dúvidas que foram enviadas por membros da comunida-
de. Não é à toa que o versículo escolhido pelos bispos está justamen-
te no texto onde o apóstolo tenta convencer que as disputas internas
da comunidade tinham que ser resolvidas intramuros, não em tribu-
nais ou com juízes de fora da comunidade. Não por condenar a Jus-
tiça de seu tempo, mas por criticar o excesso de competição que
havia entre os seguidores do cristianismo na cidade.
Adiante, os bispos dizem que “alguns alegam que Jesus nada
disse sobre o homossexualismo. É verdade!”. É interessante no-
tar que os textos bíblicos escolhidos para exemplificar, conforme
os bispos metodistas, o quanto Deus desaprova as práticas homo-
afetivas não são retirados dos Evangelhos – livros de Mateus,
Marcos, Lucas e João, que são biografias da vida de Jesus Cristo,
entidade religiosa que deveria ser o referencial. Desconcertados,
deixando transparecer que a quantidade dos textos, os objetivos
para os quais foram escritos e a dimensão que eles têm diante de
todo o restante da Bíblia são insatisfatórios para as suas conclu-
sões, os bispos deslocam uma fala de Jesus, do Evangelho de
Mateus (Mt) 5. 17-18, que diz “não penseis que vim revogar a lei
ou os profetas; não vim para revogar, vim para cumprir. Porque

196
Metodismo e homofobia cordial

em verdade vos digo: até que o céu e a terra passem, nem i ou um


til jamais passará da lei, até que tudo se cumpra”. E assim, encer-
ram o que deveria ser o “coração” do texto de forma tímida, dei-
xando uma sensação de incompletude discursiva.

Considerações
Após os bispos tentarem a todo custo dobrar textos bíblicos
para encaixá-los conforme a (in)capacidade dos seus esforços teóri-
cos e a necessidade de se impor perante a Igreja e à sociedade como
vozes do respeito e da tolerância, o que lhes daria mais notoriedade e
firmeza nas atribuições de direção do Metodismo no Brasil, o que
resta é um documento singelo em conteúdo, rasteiro em informa-
ções, pobre em teologia, mas decididamente defensor da institucio-
nalização da heterossexualidade compulsória – “construção de uma
conexão naturalizada entre ‘sexo’, ‘gênero’, ‘desejo’ e ‘práticas’
heterossexuais (que) requer uma desqualificação de modos de vi-
vência da sexualidade e do gênero que sejam dissidentes em relação
a esta norma” (NATIVIDADE; OLIVEIRA, 2009: 125).
Vê-se que na conclusão do documento é retomado o chavão
abominamos o pecado, mas amamos o pecador. Em seguida, mas
sem a fundamentação bíblica, que neste caso poderia ser realmente
extensa e elucidativa, os bispos asseveram que “sobre hipótese algu-
ma devemos ter uma atitude preconceituosa e discriminatória em
relação aos homossexuais. São pessoas carentes de respeito e amor”
(IGREJA METODISTA, 2000). Aqui se retoma os aspectos da ho-
mofobia cordial, nas proposições de receptividade às pessoas ho-
mossexuais, mas que de forma inaudível querem dizer “venha, ache-
gue-se, depois se converta ou vá embora!” (ibid.).
Seguindo com o tom conciliador, em desarmonia com o que
apresentaram no resto do texto, os bispos definem que “não deve-
mos considerar os homossexuais mais pecadores do que alguns que
estão dentro da igreja, que são mentirosos, maldizentes, injustos (...).
Igreja tem a tendência de considerar um/a adúltero/a um/a pecador/
a mais aceitável do que um homossexual” (ibid.).
E num discurso pleno de homofobia cordial, o Colégio de
bispos entende que

197
Religião, Gênero e Poder

O homossexual é, em muitos casos, uma tendência de or-


dem orgânica e/ou emocional, também, e como tal deve ser
considerada. Ter homossexualidade não é pecado em si
mesmo, o pecado é a prática desta tendência. A Igreja pode
e deve contribuir para a reversão desta tendência da ho-
mossexualidade, por ser ela contrária ao padrão bíblico
cristão da moral (ibid.).
Neste trecho os bispos se perfilam aos discursos evangélicos
que propõe o tratamento e a cura para esta tendência. No estudo
“Homossexualidade, gênero e cura em perspectivas pastorais evan-
gélicas”, Marcelo Natividade aborda a retórica evangélica que con-
dena as relações sexuais/afetivas que não se configurem dentro da
norma do casamento cristão – homem e mulher. O autor observa
que para estes segmentos do cristianismo
O que foge ao padrão é pecado e, portanto, desordem na
sexualidade, comportamento que precisa de restauração,
do “reparo” divino. Um impulso sexual natural (heterosse-
xual), que foi pervertido em sua origem por experiências
traumáticas e pela prática de certos pecados, é passível de
ser restaurado pela comunhão com o Espírito Santo, em
um processo que envolve cura das memórias, busca de
santificação, disciplina e libertações. A extinção (ou mes-
mo a atenuação) dos desejos homossexuais, assim como a
emergência de um impulso heterossexual natural, é almeja-
da como possibilidade de conformidade ao destino conce-
bido por Deus (NATIVIDADE, 2006: 124).
Finalizando, a Carta Pastoral da Igreja Metodista contribui
para um marco regulatório jurídico-burocrático que está no pano
de fundo dos recentes embates dados no âmbito interno das insti-
tuições religiosas e suas representações na esfera pública: o he-
terossexismo. Para Roger Raupp Rios, que é juiz federal e mem-
bro do Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos
Humanos – Clam/IMS/UERJ,
A ideia de heterossexismo apresenta-se como alternativa a
esta abordagem, designando um sistema em que a heterosse-
xualidade é institucionalizada como norma social, política,

198
Metodismo e homofobia cordial

econômica e jurídica, não importa se de modo explícito ou


implícito. Uma vez institucionalizado, o heterossexismo mani-
festa-se em instituições culturais e organizações burocráti-
cas, tais como a linguagem e o sistema jurídico. Daí advém, de
um lado, superioridade e privilégios a todos que se adéquam
a tal parâmetro e de outro, opressão e prejuízos a lésbicas,
gays, bissexuais, travestis, transexuais e até mesmo a hete-
rossexuais que porventura se afastem do padrão de heteros-
sexualidade imposto (2009: 62-63).
No Brasil temos um caso muito atual. Um pastor evangélico,
que em um conchavo político ascendeu como deputado para a presi-
dência da Comissão de Minorias e Direitos Humanos da Câmara
Federal, e, usando de suas atribuições legítimas, tenta aprovar proje-
tos como o de “cura gay” ou frear a tramitação de propostas de leis
que ampliem os direitos das populações LGBT, ele está defendendo
este marco do heterossexismo. E documentos como a Carta Pasto-
ral produzida pela Igreja Metodista do Brasil, através de seus bispos,
estão alinhados a este movimento, numa solidariedade mútua, mes-
mo que não assumida.
Nestas circunstâncias, a partir do heterossexismo, as distân-
cias doutrinárias entre correntes do cristianismo tão diferentes são
mitigadas. A Igreja Metodista, que tem em seu histórico uma postura
política de denúncias às injustiças e defesa dos direitos humanos,
tomada por uma espécie de síncope teológica, opta, nesta questão,
agora estar lado a lado com movimentos que vivem das sinecuras do
poder e dos privilégios de compor o que Gramsci chamou de hege-
monia – em suma, a liderança nos domínios econômico, político, cul-
tural e ideológico de uma sociedade, construção de aliança, mantida
por alianças, não importante o nível ou caráter destes acordos (apud.
FAIRCLOUGH, 2001: 122).

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Notas do Capítulo 9
1
Segundo os Cânones, a Constituição da Igreja Metodista, em seu Artigo
117, o Colégio Episcopal é o órgão responsável pela “supervisão da ação
missionária e pastoral da Igreja Metodista, assegurando o pleno cumpri-
mento do Plano para a Vida e a Missão, preservando a unidade da Igreja
Metodista no que se refere à área Teológica, Pastoral e de Educação Cristã”
(CÂNONES, 2012: 73). Composto pelos bispos, é de sua competência, entre
outras atribuições, redigir e publicar pastorais, visando dar à Igreja a orien-
tação quanto à doutrina e aos princípios de fé, moral e ética cristãs.
2
Sigla que abarca Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais. Im-
portante anotar que até a Primeira Conferência Nacional GLBT, em junho de
2008 – Brasília/DF, o G de gays estava na frente do L de lésbicas. Mas num
acordo político que pretendia dar maior visibilidade às lutas das lésbicas,
que por sua condição feminina sofriam “em dobro” com o preconceito,
decidiu-se pela inversão de prioridades, colocando-se o L na frente da sigla.

201
Religião, Gênero e Poder

202
Sobre os Autores
Alysson Brabo Antero
Licenciado em Ciências da Religião pela Universidade do Estado do
Pará. Especialista em Mídias na Educação pela Universidade Fede-
ral do Amapá. Mestrando do Programa de Pós-graduação em Ciên-
cias da Religião da Universidade do Estado do Pará. Membro do
Grupo de Pesquisa Religiões de Matriz Africana na Amazônia (GER-
MAA). E-mail: alysson.edu@hotmail.com
Daniela Cordovil
Bacharel em Ciências Sociais, mestre e doutora em Antropologia
Social pela Universidade de Brasília. Professora do Programa de
Pós-graduação em Ciências da Religião da Universidade do Estado
do Pará, onde desenvolve pesquisas sobre religiões de matriz africa-
na, neopaganismo, relações de gênero e sexualidade. Líder do grupo
de pesquisa Neoesoterismo e Religiões Alternativas (NERA) e mem-
bro do grupo de pesquisa Religiões de Matriz Africana na Amazônia
(GERMAA). E-mail: daniela.cordovil@gmail.com
Jefferson João Martins Baldez
Graduado em História pela Escola Superior Madre Celeste. Especi-
alista em Relações Étnico-raciais pelo Instituto Federal de Educa-
ção, Ciência e Tecnologia do Estado do Pará. Mestrando do progra-
ma de Pós-graduação em Ciências da Religião. Membro do Grupo
de Pesquisa Religiões de Matriz Africana na Amazônia (GERMAA).
E-mail: jeffbaldez@hotmail.com
Lucielma Lobato Silva
Licenciada em História pela Universidade Federal do Pará. Especi-
alista em Relações Étnico-raciais pelo Instituto Federal de Educação
do Pará. Mestre em Ciências da Religião pela Universidade do Esta-
do do Pará. Membro do grupo de pesquisa Religiões de Matriz Afri-
cana na Amazônia (GERMAA). Email: lucielma.lobato@gmail.com

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Religião, Gênero e Poder

Luis Augusto Barbosa Teixeira


Licenciado Pleno em Ciências da Religião e mestrando do Programa
de Pós-graduação em Ciências da Religião da Universidade do Es-
tado do Pará. Membro do grupo de pesquisa Religiões de Matriz
Africana na Amazônia (GERMAA) e do grupo de pesquisa Neoeso-
terismo e Religiões Alternativas (NERA).
Email: augustosbarbosa@yahoo.com.br
Mayra Cristina Silva Faro Cavalcante
Licenciada em Ciências da Religião pela Universidade do Estado do
Pará. Mestre em Ciências da Religião pela Universidade do Estado
do Pará. Focalizadora de Danças Circulares dos Povos, com forma-
ção pela ONG Mana-Maní. Desenvolve pesquisas sobre pajelança
cabocla na Amazônia, cultura e imaginário amazônico e sobre o No-
vos Movimentos Religiosos no Brasil. Membro do grupo de pesqui-
sa Religiões de Matriz Africana na Amazônia (GERMAA).
Email: mayrafaro@yahoo.com.br
Manoel Roberto Ferreira Chagas
Licenciado em História pela Universidade Estadual Vale do Acaraú.
Especialista em História e Cultura Afro-Brasileira e Africana pela
Faculdade Integrada Brasil Amazônia, Pará. Especialista em Meto-
dologia de Pesquisa Científica pela Universidade do Estado do Pará.
Mestre em Ciências da Religião pelo Programa de Pós-graduação
em Ciências da Religião da Universidade do Estado do Pará. Mem-
bro do grupo de pesquisa Religiões de Matriz Africana na Amazônia
(GERMAA). Email: rchagas07@yahoo.com.br
Maria de Nazaré Fonseca de Senna Pereira
Graduada em História pela Universidade Federal do Pará. Especia-
lista em Educação para as Relações Étnico-raciais pelo Instituto
Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Pará. Mestranda do
Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da Universi-
dade Estadual do Pará. Membro do grupo de Pesquisa Religiões de
Matriz Africana na Amazônia (GERMAA).
E-mail: marianaza.senna@hotmail.com

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Tayná do Socorro da Silva Lima
Graduada em Licenciatura Plena em Letras, Língua Portuguesa, pela
Universidade do Estado do Pará. Especialista em Educação para as
Relações Étnico-raciais do Instituto Federal de Educação, Ciência e
Tecnologia do Pará. Mestranda do Programa de Pós-graduação em
Ciências da Religião da Universidade do Estado do Pará. Membro
do Grupo de Pesquisa Religião e Cultura e do grupo de pesquisa
Religiões de Matriz Africana na Amazônia (GERMAA).
Email: tayna.slima88@hotmail.com
Tony Welliton da Silva Vilhena
Bacharel e licenciado em Ciências Sociais pela Universidade Fede-
ral do Pará. Especialista em Ciências da Religião pela Universidade
Metodista de São Paulo. Mestrando do Programa de Pós-Gradua-
ção em Ciências da Religião, Universidade do Estado do Pará. Mem-
bro do grupo de pesquisa Movimentos Sociais, Educação e Cidada-
nia na Amazônia. Email: tonysvilhena@hotmail.com.

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Religião, Gênero e Poder

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