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Mandados constitucionais

de criminalização: uma análise


da questão sob a ótica do
Direito Penal nacional

Rui Carlo Dissenha


Advogado. Doutorando em Direitos Humanos na USP. Mestre em Direito das Relações
Sociais e bacharel na UFPR. Diplôme Supérieur de l’Université pela Univesité Paris II
Panthéon-Assas, França. LLM in Public International Law with International Criminal Law
Specialization pela Leiden University, Holanda. Bolsista doutoral do governo brasileiro
na Università di Bologna. Professor de Direito Penal da Universidade Positivo.

INTRODUÇÃO

Não me deixo dissuadir a respeito desta tese de filosofia estatal e penal pelo
simples fato de que o Tribunal Constitucional alemão até agora não tenha
desenvolvido uma teoria específica da limitação do legislador penal, mas se
contentado em recorrer à teoria geral dos direitos fundamentais e ao princí-
pio da proporcionalidade, avaliando o direito penal com base nestes parâ-
metros extraordinariamente frouxos. Pelo contrário, pode-se demonstrar
que a recusa do Tribunal Constitucional Alemão em reconhecer a limitação
do direito penal por meio do princípio da proteção de bens jurídicos está
entre as suas mais lamentáveis falhas, que não deve ser em caso algum
tomada como modelo por outros Estados de Direito Democrático-liberais:
primeiramente – como já demonstrei em detalhes noutra sede e aqui em
breve resumo – o princípio se ancora na concepção básica do contrato soci-
al, que está pressuposto em toda e qualquer constituição e, portanto, tam-
bém na Lei Fundamental alemã, concepção essa que duzentos anos antes
da Lei Fundamental já fora trazida pelo direito penal por Beccaria e desen-
volvida por Hommel, Feuerbach e Birnbaum, encontrando-se, assim, num
nível fundamental de reflexão, que antecedeu a todo constitucionalismo na
Alemanha e que constitui a base histórica deste. Em segundo lugar, justa-
mente o desprezo do princípio da proteção de bens jurídicos e a utilização
do direito penal para fins políticos aleatórios no Terceiro Reich deveriam
evidenciar a necessidade de restrições à utilização desse instrumento1.

As relações entre Direito Penal e a Constituição Federal são íntimas.


Desta decorrem alguns limites e fundamentos para aquele e, como modelo

1) SCHÜNEMANN, Bernd. “O Direito Penal é a ultima ratio da proteção de bens jurídicos! – Sobre os limites
invioláveis do direito penal em um Estado de Direito liberal”. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais
n. 53, 2005, p. 09-37. p. 14-15.

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inicial de fundamentação de toda a ordem jurídica nacional, a Carta Magna
certamente dita alguns parâmetros que devem obrigatoriamente ser seguidos
pelo Direito Penal e pelos seus aplicadores.
Tais limites são encontráveis em diversos momentos. Ao reconhecer os di-
reitos individuais e plasmá-los no texto constitucional, a Constituição Federal
indica exaustivamente os limites do poder punitivo do Estado: não são permitidas
penas infamantes e corporais, o processo penal deve garantir ao indivíduo o direito
ao devido processo, é certa a sua inocência até que se prove o contrário através da
sentença condenatória transitada em julgado, etc. Esses são apenas alguns dos
muitos mandamentos determinados pela Lei Maior ao Direito Penal. Mas há outros
menos evidentes e tão importantes quanto: o Estado é obrigado a garantir a edu-
cação, a saúde e a segurança do cidadão; é obrigado, também, a manter um siste-
ma judicial eficiente e cumpridor das regras; deve garantir a ordem econômica, a
ordem financeira e o meio ambiente; deve proteger o cidadão no seu direito à
moradia e deve garantir o uso social da propriedade, apenas para lembrar-se de
mais alguns outros deveres ao Estado que não são diretamente ligados ao Direito
Penal, mas que lhe informam e lhe trazem conseqüências mediatas importantes.
O objetivo do presente trabalho se vincula a uma singela análise da figura
dos assim chamados mandados constitucionais de criminalização. Segundo a
doutrina mais abalizada, trata-se de ordenações constitucionais que obrigariam
o legislador infraconstitucional a criar tipos penais referentes a determinados
bens jurídicos eleitos já pelo constituinte como essenciais à garantia do cidadão
e que tirariam o seu fundamento dos próprios direitos fundamentais. Na forma
expressa ou implícita no texto constitucional, ditas ordenações buscariam a pro-
teção dos direitos fundamentais através da função preventiva e dissuasória que
se agrega à pena usada como exemplo.
Assim, discutir-se-á, ainda que de forma brevíssima, a viabilidade desses
mandados constitucionais de criminalização frente aos fundamentos do Direito
Penal nacional. Em um primeiro momento, debatem-se os fins e objetivos do
Direito Penal brasileiro, centrando a discussão principalmente nos objetivos desse
ramo do Direito e na sua vinculação com os direitos fundamentais. A partir dessa
base, a discussão que se segue é referente à figura do bem jurídico, especial-
mente a sua importância e qual é o papel do legislador no seu reconhecimento.
Na segunda parte do trabalho a discussão se centra essencialmente sobre
a adequação da figura dos mandados constitucionais de criminalização e os já
apresentados fundamentos do Direito Penal. Inicialmente, todavia, apresenta-
se o que são tais mandados e quais as suas características básicas e espécies,
dando-se conta, sobretudo, da sua função. Em seguida, os mesmos são discu-
tidos à luz dos já referidos princípios e fundamentos do Direito Penal e dos
bens jurídicos. Ao final, apresentam-se alguns pontos em uma conclusão que
pretende retomar as idéias principais do presente trabalho e incluir outras de
que depende o fechamento do debate.
Evidentemente, a complexidade do tema não permite o seu esgotamento.
Inegavelmente, o debate envolve aspectos de diversos ramos do Direito, mor-

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mente o Direito Constitucional e o Direito Penal, porções que tradicionalmente
desafiam os operadores e estudiosos do Direito e que lançam diuturnamente
novos desafios à sua ciência. Daí a singeleza deste trabalho que tem a pretensão
não de responder aos questionamentos que possam surgir nos embates que se-
guem nas próximas páginas, mas de permitir surgirem outros questionamentos
quiçá ainda mais complexos e profundos. Atingindo-se um mínimo desse obje-
tivo inicial, o esforço despendido nesta pesquisa já terá valido a pena.

CAPÍTULO I – AS BASES DO DIREITO PENAL BRASILEIRO

1 ESCLARECIMENTOS SOBRE O DIREITO PENAL BRASILEIRO:

1.1 Fins e objetivos do Direito Penal brasileiro;


Uma definição clássica do Direito Penal, e que parece ser compartilhada
pela quase totalidade dos autores que escrevem sobre o tema, o aponta como
sendo o “conjunto de normas, valores e princípios jurídicos que desvaloram e
proíbem a prática de delitos e associam a eles, como pressuposto, penas e/ou
medidas de segurança, como conseqüência jurídica2”. Disso se verifica que o
ponto central da definição de Direito Penal é efetivamente a possibilidade de
imposição, pelo Estado, de uma pena ou uma medida de segurança. Dessa forma,
é o diferencial sancionador, apesar de se tratar a pena sempre de um mal em si à
sociedade3, o fiel que caracteriza o Direito Penal4. Como conteúdo, esse ramo do
direito tem dois focos principais: tanto é o conjunto das leis penais (a legislação
penal) quanto é o sistema de interpretação desse conjunto de leis (o assim cha-
mado saber do Direito Penal)5.
Assim, convém lembrar que a porção formal do Direito Penal é o conjunto
de todo o aparato legal que compõe a instrumentalização da aplicação dessas
sanções: desde as normas constitucionais que estabelecem os limites e os prin-
cípios básicos a serem seguidos pelo legislador penal até a mais simples portaria
que, dentro da competência de quem a lança, estabeleça de alguma forma a re-
gulamentação de ordem penal. Passa, evidentemente, pelas leis penais – em es-
pecial o Código Penal – que criam crimes, definem penas e estabelecem as regras
pelas quais se dará o reconhecimento de um delito.
Os objetivos do Direito Penal são um assunto mais disputado, embora de
extrema importância. A busca por esse objetivo é essencial: nas palavras de
Zaffaroni, “somente respondendo à interrogação acerca do objeto que se deve

2) MIR PUIG, Santiago. Direito Penal: fundamentos e teoria do delito. São Paulo: RT, 2007. p. 38.
3) PAGLIARO, Antonio. Principi di Diritto Penale: parte generale. 8. ed. Milano: Dott. A Giuffrè Editore,
2003. p. 12-13.
4) ROXIN, Claus. Derecho Penal: parte general – tomo I. Fundamentos. La estructura de la Teoria Del Delito.
Madrid: Civitas, 2003. p. 41.
5) ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro: v. 1 -
Parte Geral. 6. ed. São Paulo: RT, 2006. p. 77.

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atribuir à legislação penal, dentro de nosso Estado de Direito, no marco dos
princípios constitucionais e internacionais, será possível criticar a lei positiva e
indicar como se poderia adequá-la melhor a este objetivo e também interpretar
esta lei de forma coerente com tal objetivo (...)6”. Vertentes criminológicas em
especial discutem os objetivos desse ramo do Direito e lhe dão uma feição mais
ou menos autoritária de acordo com os fundamentos que adotam. De regra
geral, e sem esquecer a contestação de uma parte tarimbada da doutrina7, que
inclusive aponta a existência de “finalidades” e “funções” do Direito Penal8, mas
deixando de mencioná-la pela absoluta falta de tempo para tanto, os objetivos
do Direito Penal são bem resumidos por Zaffaroni ao apontá-los como a segu-
rança jurídica e a defesa social9 de acordo com os efeitos da sanção: no primei-
ro caso, a pena serve como exemplo à sociedade (prevenção geral); no segundo,
a pena objetiva o delinqüente (a prevenção especial). Convém explicar os con-
ceitos usados pelo autor, o que se faz a seguir:
Se o direito é um instrumento que permite a coexistência humana através
da introdução de uma ordem coativa que impede o estado hobbesiano de “bellum
omnium contra omnes” e protege entes (os bens jurídicos) que são importantes
ao homem, então a “função de segurança jurídica não pode ser entendida, pois,
em outro sentido que não o da proteção de bens jurídicos (direito), como forma
de assegurar a coexistência10”. Assim, lesões a bens jurídicos (a vida, o patrimô-
nio, etc.) implicariam sanções a outros bens jurídicos dos autores (a liberdade, o
patrimônio, por exemplo), sempre, evidentemente, de uma forma comedida de
acordo com os princípios da humanidade e da dignidade humana.
No que toca à defesa social, imaginando-se que o “social” não correspon-
da a uma concepção transpersonalista na qual se constrói uma sociedade sepa-
rada e superior ao homem (um Leviatã, assustador e autoritário que assume vida
em separado dos indivíduos que o compõe e que acaba levando a um Estado

6) ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro: v. 1 -
Parte Geral. 6. ed. São Paulo: RT, 2006. p. 82.
7) Veja-se, por exemplo, a opinião de Juarez Cirino dos Santos. Segundo o autor, além do objetivo declarado do
Direito Penal (a proteção do bem jurídico), existiriam os objetivos reais do ramo que poderiam ser resumidos
como a manutenção do sistema de produção econômico atual baseado na exploração da mais-valia do trabalho
das classes menos favorecidas por um grupo poderoso economicamente e, por isso mesmo, detentor do capital.
DOS SANTOS, Juarez Cirino. Direito Penal: parte geral. Segunda edição. Curitiba: ICPC/Lumen Juris, 2007.
Ver também, do mesmo autor, A Criminologia Radical. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007.
8) As “finalidades” são aquilo para o que o Direito Penal teria sido desenhado: a proteção dos bens jurídicos, a
contenção da violência estatal, a prevenção da vingança privada e a garantia dos envolvidos no conflito penal.
Já as “funções” são aquilo para o que o Direito Penal é usado: além da proteção de bens jurídicos (a função
legítima), serve para a promoção exagerada de bens jurídicos – função promocional – e para aplacar a ira da
população – a sua função simbólica. Evidentemente, essas duas últimas são funções ilegítimas do Direito Penal,
mas que vem sendo aplicadas reiteradamente em um Estado que padece da falta de uma política criminal
adequada. GOMES, Luis Flávio. Direito Penal: parte geral. São Paulo: RT, 2003. p. 20 e seguintes.
9) ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro: v. 1 -
Parte Geral. 6. ed. São Paulo: RT, 2006. p. 83 e seguintes.
10) ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro: v. 1 -
Parte Geral. 6. ed. São Paulo: RT, 2006. p. 84.

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autoritário), mas à sociedade como as relações de coexistência entre os indiví-
duos (nada, portanto, nem o Estado, lhes é superior), então a defesa social é a
defesa da coexistência humana. Se a segurança jurídica é a garantia da coexis-
tência humana, e o social se confunde com essa mesma coexistência humana,
então os conceitos de segurança jurídica e defesa social são absolutamente su-
perpostos11. Ademais, ainda segundo Zaffaroni, o conceito de “defesa” nada mais
é do que a “segurança”, pois não se presta a proteger os bens jurídicos que já
foram lesionados, mas apenas aqueles que o serão no futuro. Concluindo:

a defesa social bem entendida não pode ser algo distinto da segurança
jurídica, salvo que se entenda a primeira em sentido organicista ou antro-
pomórfico e a segunda como um conceito puramente formal, ambas as
pretensões que desembocam em uma legislação que aniquila os direitos
humanos, por desconhecimento de todos os limites à sua ingerência12.

Finalmente, convém trazer as palavras de Fiandaca e Musco:

secondo la concezione a tutt’oggi dominante nella scienza penalistica, il


diritto penale constribuisce tendenzialmente ad assicurare le condizioni
essenziali della convivenza, predisponendo la sanzione più drastica a
difesa dei beni giuridici: tali sono comunemente definiti i beni social-
mente rilevanti considerati, in ragione della loro importanza, meritevoli
di protezione giuridico-penale 13.

1.2 DIREITO PENAL E OS DIREITOS HUMANOS


Assim, parece evidente que o Direito Penal, na sua pretensão de prote-
ger as relações sociais, tem como objetivo principal o indivíduo – de outra
forma imaginando-se, arrisca-se a temerária possibilidade de se entender o
Direito Penal como instrumento de uma política totalitária. Daí a direta vincu-
lação do Direito Penal aos direitos humanos: se todo o Direito deve seguir os
parâmetros ditados pelos direitos fundamentais, então, mais ainda a sua por-
ção mais violenta se deve a eles submeter. Afinal, nas palavras de Prado, “os
direitos fundamentais – individuais, sociais, coletivos ou difusos – plasma-
dos no texto constitucional são a fonte e o meio propulsor de inovações e
alternativas, visando a uma ordem jurídica materialmente justa14”.
Ora, o controle social – em busca da segurança jurídica – exercido pelo
Estado através do Direito Penal é sempre informado por uma ideologia que
poderá ser mais ou menos liberal de acordo com os diversos elementos que

11) ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro: v. 1 -
Parte Geral. 6. ed. São Paulo: RT, 2006. p. 86.
12) ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro: v. 1 -
Parte Geral. 6. ed. São Paulo: RT, 2006. p. 87.
13) FIANDACA, Giovanni e MUSCO, Enzo. Diritto Penal: parte generale. 4. ed. Bologna: Zanichelli editore,
2004. p. 04.
14) PRADO, Luiz Regis. Bem Jurídico-Penal e Constituição. São Paulo: RT, 1996, p. 62.

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informem a base da sociedade15. Aliás, é por isso que durante séculos se pu-
deram justificar inominadas condutas sob o véu da legalidade e da justiça. De
qualquer forma, esse controle social parece ter andado adiante ao estabele-
cer, após os horrores da Segunda Guerra Mundial, um núcleo mínimo de ga-
rantias positivadas que serviriam de Norte para que o controle social se de-
senvolvesse de acordo com parâmetros mínimos de segurança. Desde então
muito se evoluiu nesse sentido: grande parte das sociedades contemporâneas
adotou esse núcleo mínimo de direitos e outra parte desenvolveu-o sobrema-
neira. Daí o surgimento de uma série substanciosa de tratados internacionais
que pretendem garantir o indivíduo estabelecendo diversos direitos humanos
e que deve ser sempre seguida pelo Direito: “nessa linha de raciocínio, a in-
terpretação conforme a Constituição implica uma correção lógica de proibi-
ção de qualquer construção interpretativa ou doutrinária que seja direta ou
indiretamente contrária aos valores fundamentais16”.
Pois bem, esse parece ser o ponto de partida, desenvolvido nos últimos
sessenta anos, para os sistemas de controle social adequados. É certo que viola-
ções aos direitos humanos ainda há, mas parece sintomático da força desses
direitos a tentativa dos próprios violadores de fundamentar os seus atos em uma
ou outra (ainda que esdrúxula) interpretação desse paradigma.
De qualquer forma, é de valor lembrar que o sistema penal é parte desse
sistema de controle social e que, portanto, também ao atual paradigma parece
estar submetido: a proteção dos direitos humanos é base e fundamento do siste-
ma penal e sua porção mais sensível. Certo, é apenas uma pequena parte desses
sistemas de controle na medida em que de todos os controles possíveis o Direito
penal é o último a ser chamado (do que se infere que sua importância não é tanto
grande como se pensa17). Mas isso não o afasta da obrigação de seguir o mínimo
parâmetro determinado pelos Direitos Humanos.
Nas palavras de Prado,

o conteúdo essencial desses direitos fundamentais – limite dos limites –


‘assinala uma fronteira que o legislador não pode ultrapassar, delimita
um terreno que a lei limitadora não pode invadir sem incorrer em in-

15) Aqui, é interessante ler as palavras de Zaffaroni: “O âmbito do controle social é amplíssimo e, dada sua
protéica configuração e a imersão do investigador no mesmo, ele nem sempre é evidente. Este fenômeno de
ocultamento do controle social é mais pronunciado nos países centrais do que nos periféricos, onde os conflitos
são mais manifestos. De qualquer modo, inclusive nos países periféricos, o controle social tende a ser mais
anestésico entre as camadas sociais mais privilegiadas e que adotam os padrões de consumo dos países
centrais”. Esse controle social, é importante lembrar, se exerce de maneira reticular: não é fruto apenas das
estruturas oficiais e explícitas, como o sistema penal e a polícia, mas também é produzido pelos órgãos que
compõem a própria estrutura social natural, tais como a família, a religião, a educação, etc. Daí que “quem
quiser formar uma idéia do modelo de sociedade com que depara, esquecendo esta pluridimensionalidade do
fenômeno de controle, cairá em um simplismo ilusório”. In: ZAFFARONI, Eugênio Raúl e PIERANGELI, José
Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro: parte geral. São Paulo: RT, 2004. p. 61-62.
16) PRADO, Luiz Regis. Bem Jurídico-Penal e Constituição. São Paulo: RT, 1996. p. 61.
17) ZAFFARONI, Eugênio Raúl e PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro: parte
geral. São Paulo: RT, 2004. p. 68.

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constitucionalidade18. (...) Não se pode esquecer jamais que a pessoa
humana não é um objeto, um meio, mas um fim em si mesmo e como tal
deve ser respeitada19.

Daí a existência de uma série de princípios que, reconhecidos pela Carta


Magna nacional como reconhecidos são por constituições de muitos outros
Estados contemporâneos e pelos tratados internacionais em geral, servem de
Norte e limitação à atuação punitiva do Estado. A título de ilustração, veja-se a
legalidade (artigo 5º, inciso XXXIX, da Constituição Federal), a irretroatividade
da lei penal mais grave e a retroatividade da lei penal mais benéfica (artigo 5º,
inciso XL, da Constituição Federal), a humanidade (artigo 5º, inciso XXLVII, da
Constituição Federal), a dignidade da pessoa humana (artigo 1º, inciso III, da
Constituição Federal), a ampla defesa e o contraditório (artigo 5º, inciso LV, da
Constituição Federal), dentre vários outros.

1.2.1 Direito Penal e Direitos Humanos: uma relação conflituosa?


Embora alguns autores, dado o sucesso alcançado pela busca da prote-
ção dos direitos humanos especialmente na esfera internacional no último sé-
culo, apontem a proteção dos direitos fundamentais como “novo paradigma”
para o Direito Penal20, é certo que o Direito Penal desde há muito – na verdade,
desde a sua origem – se preocupa com a proteção desses bens21 e acompa-
nha a evolução do conceito e as suas assim chamadas “gerações”22. Afinal,
sendo o Direito Penal uma parte do Direito – talvez a mais antiga – constru-
ída a partir de uma evolução histórica liberal que busca, por isso mesmo,
proteger o indivíduo de forma ampla e irrestrita, não se pode imaginar que
esse ramo se encontre em desacordo com os direitos humanos. Mesmo por-
que, afinal, os direitos humanos, uma vez expressos na Constituição Fede-
ral, irradiam-se para todo o sistema e por todo ele devem ser aplicados.
Leia-se, nesse sentido, Manoel Gonçalves Ferreira Filho: “esses direitos-liber-
dades, graças ao reconhecimento, ganham proteção. São garantidos pela or-
dem jurídica, pelo Estado. Isto significa passarem a gozar de coercibilidade.
Sim, porque, uma vez reconhecidos, cabe ao Estado restaurá-lo coercitivamen-
te se violados, mesmo que o violador seja órgão ou agente do Estado”23. Mais
do que isso, “O Estado social da democracia se distingue, em suma, do Estado

18) PRADO, Luiz Regis. Bem Jurídico-Penal e Constituição. São Paulo: RT, 1996. p. 57.
19) PRADO, Luiz Regis. Bem Jurídico-Penal e Constituição. São Paulo: RT, 1996. p. 57-58.
20) GONÇALVES, Luiz Carlo dos Santos. Mandados Expressos de Criminalização e a Proteção de
Direitos Fundamentais na Constituição Brasileira de 1988. Belo Horizonte: Fórum, 2007. p.65.
21) Veja-se, nesse sentido, a conhecida contribuição da histórica obra do Marquês de Beccaria, “Dos Delitos e das Penas”.
22) LUISI, Luiz. Os Princípios Constitucionais Penais. 2. ed. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor,
2003. p. 101 e seguintes.
23) FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Direitos Humanos Fundamentais. 3. ed. São Paulo:
Saraiva, 1999. p. 31.

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social dos sistemas totalitários por oferecer, concomitantemente, na sua feição
jurídico-constitucional, a garantia tutelar dos direitos da personalidade24”.
Isso é, pela hierarquia constitucional, válido para absolutamente todos os
ramos do direito nacional.
Sabe-se, inclusive, que é no ramo do Direito Penal que tais abusos são
sentidos de forma mais sensível. O dia-a-dia é recheado de exemplos dessa
natureza e casos de violação de direitos fundamentais pelas autoridades estatais
grassam nos jornais. Por tratar justamente dos direitos mais importantes do ho-
mem – a liberdade, a vida, a segurança – o Direito Penal está acorrentado à mani-
festação dos direitos humanos. A condenação a uma pena de reclusão ou de
detenção, como direta limitação do direito à liberdade, está limitada ao mínimo
indispensável, e sempre colocada sob critérios importantíssimos de manutenção
da dignidade do condenado.
De outra forma não poderia ser. O Direito Penal é construído sobre uma
experiência histórica de limitação do Estado. Decorrências diretas do Iluminis-
mo25, as regras penais não têm outro objetivo que não proteger o indivíduo: pri-
meiro, das lesões provocadas por outros iguais a ele (é a garantia que dá a exis-
tência do Estado às regras estabelecidas no contrato social); depois, da própria
arbitrariedade do Estado (que, ao fazer valer as regras de convivência celebradas
entre os indivíduos, age com a necessária violência para tanto).
Assim, restam poucas dúvidas do caráter protetor do Direito Penal em
favor do indivíduo e desfavor do Estado. Mas é de se perguntar de que forma
se constrói o Direito Penal como limitador das condutas dos indivíduos em
proteção a eles mesmos. Aqui, porção complicada da análise do tema, evi-
dentemente parece residir o maior debate referente aos mandados constituci-
onais de criminalização.

1.2.2 O Direito Penal mínimo


É importante lembrar que o papel do Direito é efetivamente resolver os
conflitos surgidos na sociedade. Como lembra o exemplo de Hulsman, apontado
por Zaffaroni26, todavia, há sempre várias formas de resolver uma questão que
rompa o tecido da ordem social, sendo o Direito Penal apenas uma delas e, tam-
bém, como se disse, a mais contundente e drástica27.
Assim, o Estado, ao escolher o meio penal para exercer o seu controle

24) BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros, 1994. p. 233.
25) LUISI, Luiz. Os Princípios Constitucionais Penais. 2. ed. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris
Editor, 2003, p. 104.
26) Um dos cinco estudantes que moram em uma república, em um acesso de fúria, golpeia e quebra o
aparelho de televisão comum. Cada um dos quatro colegas adota uma postura no que se refere ao aconteci-
do: um deles pretende a punição, outro a reparação, o seguinte uma terapia e o último, uma conciliação. In:
ZAFFARONI, Eugênio Raúl e PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro:
parte geral. São Paulo: RT, 2004. p. 59.
27) FIANDACA, Giovanni e MUSCO, Enzo. Diritto Penal: parte generale. 4. ed. Bologna: Zanichelli
editore, 2004. p. 04.

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social, deve ser cuidadoso e criterioso. Afinal, “porque é altamente incontro-
verso que a utilização do poder estatal não se legitima apenas por um objetivo
final elogiável, devendo ser idônea e necessária, não podendo provocar mais
danos do que benefícios28”.
Assim, de tudo o que se apontou até agora, e sendo o Direito Penal uma
ingerência violenta pelo Estado na vida pessoal do cidadão, parece claro que deve
ser usado como instrumento último, sob o risco de que se converta o controle
social em domínio do indivíduo, passando-se do natural e necessário Estado
Democrático de Direito ao perigoso controle totalitário. Afinal, a forma de inge-
rência penal é diferente do restante do Direito. Note-se que essa porção do con-
trole social punitivo institucionalizado29, que se manifesta objetivamente na le-
gislação penal, difere do restante do sistema de controle social institucionaliza-
do pela forma da sanção que adota. Nas palavras de Zaffaroni e Pierangeli, “a
pena se distingue das restantes sanções jurídicas (distinguindo-se, assim, a le-
gislação penal das restantes legislações: civil, comercial, trabalhista, adminis-
trativa, etc.) porque procura conseguir, de forma direta e imediata, que o autor
não cometa novos delitos, enquanto as restantes sanções jurídicas têm uma fi-
nalidade primordialmente ressarcitória ou reparadora30”.
A necessidade de uso comedido do Direito Penal, portanto, merece lem-
brança porque o uso exagerado do Direito Penal “tráz em seu bojo uma violência
aos direitos humanos31”. Se pretende, a pena, atuar na alma do indivíduo – com
todas as perigosas conseqüências dessa prática – não pode pretender ir para além
do necessário sob o risco grave de uma ingerência indevida do Estado na esfera da
liberdade do cidadão. O Estado deve proteger bens jurídicos para, assim, promover
a segurança da população, mas não pode usar de qualquer meio para isso, e certa-
mente não pode pretender moldar o cidadão sob determinado padrão.
Ademais, são bastante conhecidos os riscos graves da inflação penal32 que
produz exageradamente leis penais de resultados duvidosos. Nesse sentido, Puig
aponta que: “para proteger os interesses sociais, deve o Estado esgotar outros
meios menos lesivos antes de recorrer ao Direito penal, que nesse sentido deve
constituir uma arma ‘subsidiária’, uma ultima ratio. Tendo em vista uma adequa-
da política social, deve-se preferir, antes de tudo, a utilização de meios despro-
vidos de caráter sancionador. Assim, as sanções não penais: civis (...) e adminis-

28) SCHÜNEMANN, Bernd. O Direito Penal é a ultima ratio da proteção de bens jurídicos! – Sobre os limites
invioláveis do direito penal em um Estado de Direito liberal. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais
n. 53, 2005. p. 09-37, p. 20.
29) ZAFFARONI, Eugênio Raúl e PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro: parte
geral. São Paulo: RT, 2004. p. 69.
30) ZAFFARONI, Eugênio Raúl e PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro: parte
geral. São Paulo: RT, 2004. p. 85.
31) LUISI, Luiz. Os Princípios Constitucionais Penais. 2. ed. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris
Editor, 2003. p. 109.
32) LUISI, Luiz. Os Princípios Constitucionais Penais. 2. ed. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris
Editor, 2003. p. 108 e 113

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trativas (...). Somente quando nenhum dos meios anteriores for suficiente, estará
legitimado o recurso à pena ou à medida de segurança. Importa destacá-lo espe-
cialmente ante a tendência do Estado social a uma excessiva intervenção e a uma
fácil ‘fuga ao Direito penal33".
É dessas características que surgem os princípios da fragmentariedade e
da subsidiariedade no Direito Penal (ou, como Cirino os classifica, todos sob um
mesmo signo, o princípio da “lesividade34”). Se o Direito Penal é apenas parte do
ordenamento jurídico (porque a proteção de bens jurídicos não se realiza apenas
através do Direito Penal), deve ele também cooperar na proteção de bens jurídi-
cos, mas sendo o último recurso. Daí se entende que sua atuação é fragmentária
e subsidiária: como última “ratio”, só atua de forma parcial (protegendo apenas
alguns bens jurídicos) e apenas quando nada mais funcionar (quando outros meios
jurídicos – políticas de inclusão, sanções civis, regulações administrativas, etc. –
não derem conta da proteção). É a própria proporcionalidade, de caráter consti-
tucional e inerente ao Estado de Direito, que implica essas características: “como
el Derecho penal posibilita las más duras de todas las intromisiones estatales em
la libertad Del ciudadano, solo se le puede hacer cuando otros médios menos
duros no prometan tener um exito suficiente35”.

2 A FIGURA DO BEM JURÍDICO

2.1 A importância do bem jurídico no sistema penal brasileiro

Como bem se sabe, o indivíduo é o ponto de partida do Direito e, em espe-


cial, do Direito Penal36. E de outra forma não poderia ser: sendo o centro de pro-
dução e o sentido único e último da existência, o indivíduo é fundamentalmente
a célula mater a dar subsídio para toda a construção da sociedade, do Direito e,
em especial, do Direito Penal. Já se tratou anteriormente de que a compreensão
da sociedade como uma entidade antropomórfica é um risco pelas portas que
abre para a violência. Assim, o único sentido possível para a sociedade é como
uma compreensão etérea de todos das relações entre indivíduos – aí não se arris-
ca perder o foco no ser humano quando se pretenda construir o próprio Direito.
Daí ser esse a única base possível para o Direito e, em especial, para o
Direito Penal, Nas palavras de Prado,

em uma concepção democrática, o ponto de partida do Direito Penal é


dado pelo conceito de pessoa. O cidadão, o indivíduo, considerado como
pessoa ‘(...) é o protagonista da política e da história e, portanto, do direi-
to, uma das manifestações típicas da política e da história, se não mesmo

33) MIR PUIG, Santiago. Direito Penal: fundamentos e teoria do delito. São Paulo: RT, 2007. p. 94.
34) SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito Penal: parte geral. 2. ed. Curitiba: ICPC/Lumen Juris, 2007. p. 25-26.
35) ROXIN, Claus. Derecho Penal Parte General – Tomo I. Madrid: Civitas, 2003. p. 66.
36) LUISI, Luiz. Os Princípios Constitucionais Penais. 2. ed. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor,
2003. p. 116/117.

322 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008


a mais típica (...). Numa sociedade democrática aberta, ou seja, autentica-
mente democrática, as pessoas surgem em primeiro plano por força de
uma regra ético-jurídica que a eleva acima de qualquer valor absoluto e
determinante de toda decisão, de modo que não pode ser degradada a
um mero meio em vista de um fim a realizar. A pessoa goza assim duma
esfera de autonomia própria que não pode ser tocada ou agredida, sem se
abalarem as bases da própria convivência37.

Pois bem, a construção desse direito fundamentado na figura do indivíduo so-


mente se pode dar através do reconhecimento de interesses desse indivíduo na con-
secução do Estado. Ou seja: só há sentido no direito – e, assim, também no Direito
Penal – se usar-se a figura central do indivíduo para que se defina o que deve ou não
ser protegido. É esse o motivo pelo qual, por exemplo, não se podem buscar, através
do Direito, os fins da “sociedade”, mas apenas os fins do homem em sociedade.
Esse conceito é tradicional e essencial no Direito Penal que se aplica nos
dias de hoje. Segundo Toledo, “bem, em um sentido muito amplo, é tudo o que se
nos apresenta como digno, útil, necessário, valioso. (...) Os bens são, pois, coi-
sas reais ou objetos ideais dotados de ‘valor’, isto é, coisas materiais e objetos
imateriais que, além de serem o que são, ‘valem’. Por isso são, em geral, apeteci-
dos, procurados, disputados, defendidos, e, pela mesma razão, expostos a cer-
tos perigos de ataques ou sujeitos a determinadas lesões38".
Desse ponto em diante fica fácil entender que a noção de bem jurídico é exa-
tamente o reconhecimento de que determinado ente, ou bem, ou valor, é importante
para o desenvolvimento do homem em uma época em específico. O Estado, assim,
estabelece um juízo positivo de valor sobre determinado elemento essencial ao de-
senvolvimento do homem39 e a proteção da sua dignidade, capturando essa idéia
(cria a norma) e materializando-a em um tipo penal (estabelece a lei). Prado, nova-
mente, apresenta essa idéia, dizendo que “em um Estado de Direito democrático e
social a tutela penal não pode vir dissociada do pressuposto do bem jurídico, sendo
considerada legítima, sob a ótica constitucional, quando socialmente necessária.
Isto vale dizer: quando imprescindível para assegurar as conduções de vida, o de-
senvolvimento e a paz social, tendo em vista o postulado maior da liberdade – ver-
dadeira presunção de liberdade (Freiheitsvemutung) – e da dignidade humana40”.
Evidentemente, nem todos os bens jurídicos selecionados pelo Direito me-
recem a tutela penal (veja-se, acima, a fragmentariedade penal). Afinal, “que o Di-
reito penal só deva proteger ‘bens jurídicos’ não significa que todo ‘bem jurídico’
tenha que ser protegido penalmente, nem que todo ataque a bens jurídicos penal-
mente tutelados deva determinar uma intervenção do Direito penal. Ambas as coi-
sas se oporiam, respectivamente, aos princípios da subsidiariedade e da fragmen-
tariedade. O conceito de ‘bem jurídico’ é, pois, mais amplo do que o de ‘bem jurí-

37) PRADO, Luiz Regis. Bem Jurídico-Penal e Constituição. São Paulo: RT, 1996. p. 57.
38)TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios Básicos de Direito Penal. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 1994. p. 15.
39) PRADO, Luiz Regis. Bem Jurídico-Penal e Constituição. São Paulo: RT, 1996. p. 56.
40) PRADO, Luiz Regis. Bem Jurídico-Penal e Constituição. São Paulo: RT, 1996. p.51-52.

RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008 323


dico-penal41". Assim, é certo que não se pode confundir “bem jurídico” com “bem
jurídico penal”, mas quando esse bem jurídico é eleito pelo Direito Penal como
digno de proteção, declara-se o seu altíssimo grau de valor e cria-se a figura do
bem jurídico penalmente protegido. É esse conceito que dá base à materialidade de
um delito: porque existe a idéia de um bem que merece proteção é que se entende
adequada a resposta penal ao sujeito que, de alguma forma, provoca danos ou
riscos de danos a tais bens preciosos à sociedade. Esse é o sentido material do
delito e afasta justamente o Direito Penal da punição meramente formal.
Em suma, só existe sentido na criminalização e na aplicação de uma san-
ção se existirem danos ou riscos de danos ao bem jurídico. De outra forma o
Direito Penal estaria sendo aplicado apenas como instrumento de conformação
da sociedade (aqui entendida no seu sentido antropomórfico) e não como prote-
tor de reais lesões à convivência social.
É certo que existe grande debate sobre a questão do bem jurídico e, em
especial, sobre sua natureza42. Todavia, também é certo que, embora algumas
tendências se tenham lançado no sentido de prescindir desse conceito, no atual
ponto de evolução do Direito Penal contemporâneo a figura do bem jurídico é
sustentáculo de toda a doutrina43. Nas palavras de Cirino, “...consideradas todas
as limitações e críticas, o conceito de bem jurídico, como critério de criminaliza-
ção e como objeto de proteção, parece constituir garantia política irrenunciável
do Direito Penal do Estado Democrático de Direito, nas formações sociais estru-
turadas sobre a relação capital/trabalho assalariado, em que se articulam as classes
sociais fundamentais do neoliberalismo contemporâneo44”.
É por isso que Mir Puig, a partir de uma análise do alcance de um Estado
social e democrático de Direito, aponta que os bens jurídicos são o fundamento e
limite do “ius puniendi” do Estado, afirmando que “o Direito penal de um ‘Estado
social’ não deve respaldar mandados puramente formais, valores puramente mo-
rais, ou interesses não fundamentais que não comprometam seriamente o funcio-
namento do sistema social45". Enumera, ainda, o autor, que são apenas os próprios
cidadãos aqueles que podem decidir quais os objetos que demandam a proteção
do Direito Penal a título de bens jurídicos; finalmente, a figura do Estado de Direito
em conjunto com a idéia da legalidade material (e não apenas formal) determina
que “os distintos objetos cuja lesão possa determinar a intervenção penal se con-
cretizem de forma bastante diferenciada em um catálogo de bens jurídicos especí-
ficos, correspondentes aos distintos tipos de delito, sem que baste uma referência
a cláusulas gerais como ‘perturbação da ordem social’, ‘prejuízo social’ etc.46".

41) MIR PUIG, Santiago. Direito Penal: fundamentos e teoria do delito. São Paulo: RT, 2007. p. 95.
42) DIAS, Jorge de Figueiredo. Questões Fundamentais do Direito Penal Revisitadas. São Paulo:
RT, 1999. p. 62.
43) DIAS, Jorge de Figueiredo. Questões Fundamentais do Direito Penal Revisitadas. São Paulo: RT,
1999. p. 66.
44) SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito Penal: Parte Geral. Curitiba: ICPC/Lumen Juris, 2006. p. 16/17.
45) MIR PUIG, Santiago. Direito Penal: fundamentos e teoria do delito. São Paulo: RT, 2007. p. 97.
46) MIR PUIG, Santiago. Direito Penal: fundamentos e teoria do delito. São Paulo: RT, 2007. p. 97.

324 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008


Na esteira da proporcionalidade já mencionada, finalmente, convém lem-
brar que “por essa doutrina, a caracterização do injusto material advém da proe-
minência outorgada à liberdade pessoal e à dignidade do homem na Carta Magna,
o que importa que sua privação só pode ocorrer quando se tratar de ataques a
bens de análoga dignidade; dotados de relevância ou compatíveis com o dizer
constitucional ou, ainda, que se encontrem em sintonia com a concepção de
Estado de Direito democrático47”.
Daí, por exemplo, se poderia concluir, a partir dessa apontada necessidade
do bem jurídico para o sistema penal, que, segundo a doutrina penal mais mo-
derna, seria nula uma lei penal que não proteja um bem jurídico. Afinal, em um
Estado de Direito, não se podem admitir normas penais que punam questões
morais ou ideológicas (incluídas as religiosas) sem alguma repercussão ou da-
nosidade social – e, portanto, de caráter material. Mais do que isso, um Estado
Democrático de Direito obriga-se, por definição, a proteger as posições discre-
pantes minoritárias e as suas materializações48.

2.2 A IMPORTÂNCIA DO LEGISLADOR NA ESCOLHA E SELEÇÃO


DO BEM JURÍDICO
Apontada a importância do conceito de bem jurídico penalmente relevante,
convém agora tratar da sua escolha na miríade de bens jurídicos reconhecíveis
no corpo social.
No sistema de um estado fundado na tripartição de poderes, o legislador é
o responsável pela escolha desses bens jurídicos. Ou seja, o legislador, animado
pelos valores que existem na Constituição e que, portanto, dão-lhe as cores para
o seu trabalho, percebe o anseio da sociedade e, assim, estabelece os bens jurí-
dicos que darão origem às futuras incriminações49. Atende, assim, os anseios
criminalizadores da sociedade, mas sempre o faz, evidentemente, como se viu
anteriormente, sobre a base constitucional50. De outra forma não poderia ser sob
o risco de uma escolha defeituosa que poria em riscos os próprios interesses do
indivíduo. Um exemplo pode calhar: ainda que a maioria da população, movida
por qualquer motivo que seja, entenda pertinente e pretenda que se aprove a
pena de morte para diversos crimes que lhe causem repulsa, é certo que legisla-
dor algum no Direito nacional poderá atender a esse pedido da população por
conta de um limite expresso na Constituição Federal que impede a adoção da
pena de morte. Afinal, como se sabe, a vontade popular nem sempre é sábia.
Desde que se abandonou o jusnaturalismo puro, o Direito é uma constru-
ção histórica51. Cada sociedade tem seus interesses e esses interesses se con-
vertem em comandos que se alteram com o passar das décadas, o que se de-

47) PRADO, Luiz Regis. Bem Jurídico-Penal e Constituição. São Paulo: RT, 1996. p. 68.
48) ROXIN, Claus. Derecho Penal Parte General – Tomo I. Madrid: Civitas, 2003. p. 63.
49) PRADO, Luiz Regis. Bem Jurídico-Penal e Constituição. São Paulo: RT, 1996. p. 67.
50) DIAS, Jorge de Figueiredo. Questões Fundamentais do Direito Penal Revisitadas. São Paulo: RT, 1999. p. 66.
51) FASSÒ, Guido. Storia della filosofia del diritto. Roma: Laterza, 2003. p. 91.

RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008 325


monstra em uma base inegavelmente empírica. Nas palavras de Reale Júnior, “o
sistema de valores que preside o modo de ser, ou seja, a unidade espiritual que
constitui a realidade cultural, transmite-se de geração em geração, sofrendo
mutações contínuas. O homem, no dizer de Ortega Y Gasset, não tem natureza,
tem história, sendo que o passado, a experiência anterior, deságua e forma o
presente, pois somos hoje a conseqüência do que já havíamos sido52”.
Mudando a sociedade, que se constrói historicamente, mudam também os
seus interesses. Afinal, não se pode ignorar que as individualidades da realidade
humana modificam-se com o volver do tempo – de outra forma, fica faltante o tal
senso histórico. Assim, como conseqüência mudam os bens jurídicos e, especi-
almente, mudam os bens jurídicos que merecem proteção penal. Um exemplo
gritante: até há pouco tempo punia-se o adultério, crime revogado apenas com a
disposição de lei nova em 200553.
Nesse tocante, leia-se, novamente, Prado:

“O conceito material de bem jurídico reside, então, na realidade ou expe-


riência social, sobre a qual incidem juízos de valor, primeiro do constituin-
te, depois do legislador ordinário. Trata-se de um conceito necessaria-
mente valorado e relativo, isto é, válido para um determinado sistema so-
cial e em um dado momento histórico-cultural. Isto porque seus elementos
formadores se encontram condicionados por uma gama de circunstâncias
variáveis imanentes à própria condição humana. Esta característica – rela-
tividade – baseia-se ‘no fato de que a avaliação dos círculos de conduta
delitiva deve estar conectada à necessidade de garantia e às representa-
ções de valor da sociedade nas situações históricas singulares54".

Em seguida, o autor complementa com as palavras de Bettiol, apontando


que o “bem jurídico está intimamente ligado às concepções ético-políticas do-
minantes e portanto assume significado diverso e conteúdo diverso com a mu-
dança do tempo e do ambiente55”.
Daí a necessidade de que, com base nos fundamentos gerais estabelecidos
pelo texto constitucional, alguém substitua o constituinte no futuro. Alguém apto a
compreender os matizes do tempo e da época em que se vive e seja capaz de tradu-
zi-los na lei. Ou seja, por conta da evidente historicidade do Direito, é o legislador a
pessoa capaz de reconhecer, em determinado momento histórico, os valores que
interessam à sociedade e, sob a bússola da Constituição, determinar a proteção de
tais valores sob a forma da lei penal. Afinal, esse reconhecimento dos valores im-
portantes demanda um fundamento humano: não se pode esperar que uma Consti-
tuição rígida seja capaz de compreender e de levar em consideração todos os parâ-
metros sociais futuros. O constituinte pode até reconhecer o fundamento da socie-

52) REALE JÚNIOR, Miguel. Teoria do Delito. São Paulo: RT, 2000. p. 17.
53) Lei n. 11.106/2005.
54) PRADO, Luiz Regis. Bem Jurídico-Penal e Constituição. São Paulo: RT, 1996. p. 73.
55) PRADO, Luiz Regis. Bem Jurídico-Penal e Constituição. São Paulo: RT, 1996. p. 73.

326 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008


dade no momento da elaboração do texto constitucional, mas não poderá prever o
que lhe aguarda o futuro e como andará a sociedade nos tempos que virão. Assim,
“...o direito institucionaliza, via comandos normativos, o proibido e o permitido, que
inconscientemente e em latência já atuavam de certo modo no meio social. O Estado
(legislador) como centro de poder, ao estabelecer as normas, sobre o impulso das
influências sociais e históricas, mas, instaurando os seus comandos, nestes as ab-
sorve e supera, definindo-as em função de situações concretas56”.
Em resumo, duas idéias não podem deixar de ser lembradas. A primeira
delas é a noção de que o bem jurídico é essencial para o sistema penal contem-
porâneo porque lhe serve de fundamento, além de dar as bases de garantia do
cidadão e da própria atuação do Estado, especialmente através do Direito Penal,
sempre de forma subsidiária e fragmentada. É certo que existe controvérsia acer-
ca do conceito, do conteúdo, do alcance e da forma do bem jurídico, mas tam-
bém é certa, ainda, a sua imprescindibilidade. A segunda idéia que parece certa é
a de que o inegável caráter histórico do Direito implica a necessidade de um
agente apto a reconhecer a variação dos parâmetros sociais que indicam quais os
bens jurídicos que efetivamente importam para o Direito, mormente para o Direi-
to Penal, selecionando-os e plasmando-os em leis penais.

CAPÍTULO II – OS MANDADOS
CONSTITUCIONAIS E O DIREITO PENAL BRASILEIRO

2.1 OS MANDADOS CONSTITUCIONAIS DE CRIMINALIZAÇÃO


Aos cinco de outubro de 1988 promulgava-se a atual Constituição Federal
Brasileira. Uma espetacular evolução no sistema constitucional nacional, esse
documento representou a retomada de um progresso sensível na construção de
um Estado Democrático de Direito. Além dos diversos dispositivos em que abra-
ça alguns dos mais modernos instrumentos constitucionais já desenvolvidos pelo
Direito, a atual Carta Magna é um exemplo de sistema avançado de proteção dos
Direitos Humanos abarcando em seu âmago uma vasta gama de direitos funda-
mentais que lhe servem de supedâneo e base sem, entretanto, fechar as portas
para outros direitos humanos que venham a ser reconhecidos57.
Mais do que isso, a Constituição de 1988 aponta caminhos para o desen-
volvimento do Estado brasileiro e cria as condições para o pleno desabrochar dos
direitos fundamentais em vários planos, especialmente pela incorporação de al-
guns princípios gerais direcionadores da sociedade58. Faz isso em diversos mo-
mentos, mormente quando determina os princípios fundamentais nos seus pri-
meiros artigos. Mas, além disso, em diversos capítulos do seu longo texto, de-

56) REALE JÚNIOR, Miguel. Teoria do Delito. São Paulo: RT, 2000. p. 19.
57) LAFER, Celso. A Internacionalização dos Direitos Humanos: constituição, racismo e relações inter-
nacionais. Barueri: Manole, 2005. p. 14.
58) LAFER, Celso. A Internacionalização dos Direitos Humanos: constituição, racismo e relações inter-
nacionais. Barueri: Manole, 2005. p. 13.

RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008 327


senvolve os princípios apontados detalhando-os e esmiuçando as diretrizes a
serem adotadas pelo estado brasileiro e, especialmente, pelo legislador nacional.
Veja-se, por exemplo, o que acontece com as definições relativas ao meio ambi-
ente ou à ordem econômica e à proteção do consumidor, dentre tantos outros
exemplos possíveis.
Como não poderia ser diferente, a Constituição de 1988 também se preo-
cupa com o aspecto penal. Mais evidentemente, aponta uma série de princípios
importantes ao Direito Penal e que devem ser seguidos à risca tanto pelo aplica-
dor do direito quanto pelo legislador. Exemplos bem claros: a adoção da legali-
dade e da humanidade, do devido processo legal, da irretroatividade das leis
penais e da retroatividade da lei mais benéfica, dentre vários outros.
Aliás, em alguns momentos a Carta Magna parece ir bastante além da ado-
ção de simples princípios direcionadores. Para parte da doutrina, existiriam im-
perativos constitucionais que tornariam obrigatória a criminalização de determi-
nadas condutas. Esses imperativos constitucionais, que pela natureza das nor-
mas constitucionais seriam inafastáveis, estariam presentes em vários momen-
tos do texto constitucional e contaminariam a atuação do legislador.

2.2 DEFINIÇÃO E NATUREZA


Alguns autores indicam que seria possível reconhecerem-se experiências
normativas que determinavam a existência de mandados constitucionais de cri-
minalização há longa data. Nesse sentido, conforma apontado por Gonçalves59,
seriam as normativas máximas americana de 1787, brasileira de 1824 e argentina
de 1854, ao imporem a criminalização de atos, como a pirataria, a falsificação de
moedas e certas formas de escravidão.
Ainda segundo o mesmo autor, essa tendência teria sido mais recente-
mente reiterada na experiência constitucional alemã pós-Segunda Guerra, e, mais,
também na interpretação da lei penal daquele país. Dita experiência teria sido
repetida pela Espanha, em julgado de 198360.
Todavia, mais recentemente, a discussão mais contundente do tema foi efe-
tivamente, e novamente, provocada pelo posicionamento do Tribunal Constitucio-
nal alemão em 1993 acerca da Lei de Ajuda Familiar à Gestante alemã. Dita norma-
tiva permitia a realização do aborto até as doze primeiras semanas após a concep-
ção e foi entendida como inconstitucional porque violaria a ampla proteção da vida
determinada pela Constituição alemã. Segundo o autor, teriam sido essas as expe-
riências reconhecedoras da “obrigação tácita de criminalização de condutas61”.
Dita obrigação, assim, com seus fundamentos no princípio da proporciona-

59) GONÇALVES, Luiz Carlos dos Santos. Mandados Expressos de Criminalização e a proteção de
Direitos Fundamentais na Constituição Brasileira de 1988. Belo Horizonte: Fórum Editora, 2007. p. 54
e 141 e seguintes.
60) GONÇALVES, Luiz Carlos dos Santos. Mandados Expressos de Criminalização e a proteção de Direitos
Fundamentais na Constituição Brasileira de 1988. Belo Horizonte: Fórum Editora, 2007. p. 56.
61) GONÇALVES, Luiz Carlos dos Santos. Mandados Expressos de Criminalização e a proteção de Direitos
Fundamentais na Constituição Brasileira de 1988. Belo Horizonte: Fórum Editora, 2007. p. 135.

328 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008


lidade, determinaria obrigações diretas ao legislador que, nesse tocante, perderia a
liberdade que normalmente tem de estabelecer se deve ou não legislar penalmente:
a Constituição, a partir de imperativos próprios, impõe ao legislador – aqui, apa-
rentemente, mera máquina legisladora – que crie o tipo legal conforme apontado
pela Carta Magna. Afinal, ditos mandados trariam “decisões constitucionais sobre
a maneira como deverão ser protegidos os direitos fundamentais. A atuação do
legislador no sentido de promover a proteção desses direitos recebe um elemento
de vinculação. Ele pode até valer-se de outros instrumentos, mas a previsão de
sanções penais perde seu caráter de subsidiariedade e torna-se obrigatória (...)
razões de conveniência, oportunidade, política criminal ou outras não podem ser
invocadas para justificar a omissão em dar cumprimento à Lei Magna62”.
Tais mandados de criminalização, portanto, pela posição do texto consti-
tucional na hierarquia de normas brasileiras, teriam natureza de imperativo nor-
mativo que impele o legislador à tipificação de condutas.

2.3 A IMPORTÂNCIA DOS MANDADOS CONSTITUCIONAIS DE


CRIMINALIZAÇÃO
Segundo parte da doutrina, os mandados de criminalização seriam respon-
sáveis pela plena garantia dos direitos fundamentais. Afinal, seriam sinais evi-
dentes da obrigação de proteção positiva de tais direitos pelo Estado. S e r i a
esse um novo paradigma dos objetivos e dos limites do Direito Penal, imposto
por uma nova visão da proteção dos direitos humanos na esfera internacional,
mormente pela existência de duas dimensões nesse tocante: a subjetiva e a ob-
jetiva. No que se refere àquela, o Estado é obrigado a reconhecer que os indivídu-
os e grupos têm certos direitos intocáveis; no tocante a esta, diz respeito à obri-
gação para os Estados de efetivamente proteger tais direitos63. Em outras pala-
vras, o Estado, por imperativo mesmo da esfera internacional, estaria obrigado a
agir positivamente, ativamente, produzindo a proteção dos direitos humanos – e
não mais, apenas, reconhecendo-os e abstendo-se de violá-los.
Importariam, ainda, nessa dimensão objetiva da proteção, a obriga-
ção ao Estado de impedir as violações de direitos fundamentais não apenas pelo
governo ou seus agentes, mas também pelos particulares. Na medida em que são
esses direitos fundamentais “regras de imposição de deveres, em geral ao Esta-
do, de implementação e desenvolvimento dos DH64”, estaria indicada a obrigação
do próprio Estado de atuar positivamente no sentido de impedir qualquer espécie

62) GONÇALVES, Luiz Carlos dos Santos. Mandados Expressos de Criminalização e a proteção de
Direitos Fundamentais na Constituição Brasileira de 1988. Belo Horizonte: Fórum Editora, 2007. p.
139.
63) RAMOS, André de Carvalho. Mandados de criminalização no direito internacional dos direitos humanos:
novos paradigmas da proteção das vítimas de violações de direitos humanos. In: Revista Brasileira de
Ciências Criminais, n. 62, nov-dez 2006 (09/55). p. 21.
64) RAMOS, André de Carvalho. Mandados de criminalização no direito internacional dos direitos humanos:
novos paradigmas da proteção das vítimas de violações de direitos humanos. In: Revista Brasileira de
Ciências Criminais, n. 62, nov-dez 2006 (09/55). p. 21.

RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008 329


de violação de direitos humanos, ainda que proveniente de particulares.
Assim, por conta dessa “eficácia irradiante dos direitos humanos65”que lhes
ensejaria um alcance horizontal, da obrigação assumida pelo Estado de proteção
desses direitos decorreriam, ao que tudo parece indicar, a necessidade de crimi-
nalização das condutas lesivas a esses direitos mais importantes e, é claro, a
aplicação de tais regras de ordem criminal. Esse, portanto, grosso modo, o fun-
damento de existência dos mandados de criminalização na Constituição Federal.
E mais, haveria inclusive duas outras conseqüências importantes decorrentes
do reconhecimento da existência desses mandados de criminalização: a possibili-
dade de reconhecimento da inconstitucionalidade por omissão, no caso da falta de
lei penal determinada pelo texto constitucional; e a inconstitucionalidade de lei pos-
terior tendente a descriminalizar aquela conduta objeto da ordem criminalizadora.

2.4 OS FUNDAMENTOS DOS MANDADOS CONSTITUCIONAIS DE


CRIMINALIZAÇÃO
Segundo os defensores desses mandados constitucionais, a criminalização de
condutas lesivas aos direitos fundamentais, decorrência obrigatória dos mandados
constitucionais de criminalização, seria o corolário da proteção desses mesmos direi-
tos justamente porque somente essa atuação criminalizante do Estado seria capaz de
alcançar a esfera privada e permitir uma ampla proteção dos direitos humanos. Nesse
sentido, Gonçalves indica vários bens jurídicos que são protegidos adequadamente, e
nas suas maiores extensões, com a tutela criminal. Veja-se, por exemplo, que “a
proibição do racismo e a mensagem no sentido de sua criminalização, por igual, ver-
sam sobre o direito fundamental à igualdade e à dignidade da pessoa humana66”.
O principal objetivo perseguido pelos defensores da existência dos mandados
constitucionais de criminalização é aquele produzido pela figura da prevenção geral,
indicada como aquela função atribuída da pena criminal que “tem por objetivo evitar
crimes futuros mediante uma forma negativa antiga e uma forma positiva pós-moder-
na67”. Alcança na forma negativa a idéia da intimidação penal (o desestímulo do crimi-
noso pela ameaça da pena) e na forma positiva, a reintegração do sistema punitivo (a
aplicação da pena ensejaria, para alguns68, a reconstrução da confiança no sistema
punitivo – a fidelidade jurídica – e da confiança do cidadão no ordenamento jurídico;
para outros69, serviria à afirmação da validade da norma penal violada pela demons-
tração da validade da norma, recuperando, assim, as expectativas normativas70).
A tipificação das condutas ensejaria a proteção indireta dos bens jurídicos

65) GONÇALVES, Luiz Carlos dos Santos. Mandados Expressos de Criminalização e a proteção de Direitos
Fundamentais na Constituição Brasileira de 1988. Belo Horizonte: Fórum Editora, 2007. p. 45/46.
66) GONÇALVES, Luiz Carlos dos Santos. Mandados Expressos de Criminalização e a proteção de Direitos
Fundamentais na Constituição Brasileira de 1988. Belo Horizonte: Fórum Editora, 2007. p. 159.
67) SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito Penal: parte geral. 2. ed. Curitiba: ICPC/Lumen Juris, 2007. p. 460.
68) Tal como Claus Roxin e os seguidores do Funcionalismo Sistêmico moderado.
69) Especialmente Günther Jakobs e seus seguidores.
70) SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito Penal: parte geral. 2. ed. Curitiba: ICPC/Lumen Juris, 2007. p. 462/463.

330 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008


pela criação de uma consciência geral de atuação da norma penal capaz de impe-
dir condutas futuras atentatórias aos direitos humanos. Nesses termos, “a tipifi-
cação penal é tida como essencial para que se realize o efeito dissuasório ou
preventivo contra a conduta atacada71”. Ou seja, com o nome de “efeito carona”72,
os mandados constitucionais de criminalização buscam evitar aquilo que os au-
tores de Direito Penal Econômico, com base em Sutherland, já trataram como
efeitos “ressaca” e “espiral”: a prática de um crime por uma pessoa permite que
outras se espelhem na conduta e passem a praticá-la também73. O Direito Penal,
através da criminalização das condutas e a punição dos agentes, teria a capaci-
dade de frear esse efeito pela imposição da função dissuasória da pena.
Para Ramos, inclusive, a função dissuasória da sanção penal estaria sendo
reconhecida mesmo na jurisprudência internacional, especialmente nos julgados da
Corte Interamericana de Direitos do Homem, ao afirmar que “esse dever de preven-
ção consiste, para a CIDH, no conjunto de todos os meios de natureza legal, política,
administrativa e cultural que promova a proteção de DH e assegura que todas as
violações sejam consideradas e tratadas como atos ilícitos, os quais, como tais,
acarretam punição dos responsáveis e na obrigação de indenizar as vítimas74”. Des-
se “dever de prevenção” não escaparia a obrigação de criminalizar para proteger.
Mais do que isso, segundo entende o mesmo autor, “para que os DH sejam emanci-
patórios e universais é necessário que os autores das violações sejam punidos para
que seus exemplos não se propaguem ou para que não repitam a conduta em futuras
ocasiões75”. Dessa forma, não se trataria de vingança ou retribuição: a repressão das
condutas criminais que lesionam os direitos humanos é corolário da sua própria
proteção: daí a proibição de uma insuficiência do Direito Penal nessa seara. Somente
assim, através da punição dos violadores dos direitos humanos é que se poderia

71) RAMOS, André de Carvalho. Mandados de criminalização no direito internacional dos direitos humanos:
novos paradigmas da proteção das vítimas de violações de direitos humanos. In: Revista Brasileira de
Ciências Criminais, n. 62, nov-dez 2006 (09/55). p. 21.
72) RAMOS, André de Carvalho. Mandados de criminalização no direito internacional dos direitos humanos:
novos paradigmas da proteção das vítimas de violações de direitos humanos. In: Revista Brasileira de
Ciências Criminais, n. 62, nov-dez 2006 (09/55). p. 25.
73) O efeito “ressaca” se caracterizaria porque, num mercado altamente competitivo, quem primeiro delinqüe
obriga os outros a fazer o mesmo para poderem competir – um criminoso pressiona indiretamente outro a
tornar-se criminoso; enquanto o efeito “espiral” seria apresentado pelo fato de que cada participante desse
efeito “ressaca” torna-se o centro de uma nova ressaca, daí o efeito “espiral”, efeito que é potencializado pelo
fato do autor em potencial ser consciente do número enorme de delitos econômicos, dos resultados e da
benignidade das penas previstas em lei. BAJO FERNANDEZ, Miguel. Derecho penal económico: desarrollo
económico, protección penal y cuestiones político-criminales. In: Hacia um derecho penal económico
europeo. Madrid: Boletin Oficial Del Estado, 1995. Também, SÁNCHEZ RIOS, Rodrigo. Reflexões sobre o
delito econômico e sua delimitação. In: Revista dos Tribunais n. 775, Maio de 2000, 89º ano (432-448).
74) RAMOS, André de Carvalho. Mandados de criminalização no direito internacional dos direitos humanos:
novos paradigmas da proteção das vítimas de violações de direitos humanos. In: Revista Brasileira de
Ciências Criminais, n. 62, nov-dez 2006 (09/55). p. 22.
75) RAMOS, André de Carvalho. Mandados de criminalização no direito internacional dos direitos humanos:
novos paradigmas da proteção das vítimas de violações de direitos humanos. In: Revista Brasileira de
Ciências Criminais, n. 62, nov-dez 2006 (09/55). p. 23.

RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008 331


garantir o tratamento isonômico, pois evita a punição setorizada (mormente os
desfavorecidos) da população, e o respeito ao Estado de Direito.

2.5 ESPÉCIES DOS MANDADOS CONSTITUCIONAIS DE


CRIMINALIZAÇÃO
Podem-se reconhecer basicamente duas espécies de mandados de crimina-
lização: os mandados de criminalização expressos e os implícitos. Aqueles decor-
reriam de determinações explícitas existentes na Constituição Federal impelindo o
legislador à criação de tipos penais. Estes seriam reconhecíveis a partir de uma
análise sistemática do texto constitucional e, especialmente, da sua vinculação
aos direitos humanos tanto no plano nacional quanto na esfera internacional.

2.5.1 Mandados Constitucionais Expressos de Criminalização


Esta parece ser a espécie menos controversa de mandados constitucionais
de criminalização – afinal, mesmo alguns autores geralmente contrários à exis-
tência desses mandados entendem que a Constituição efetivamente os abraça e,
por explícita que é não poderia ter sua existência negada. Todavia, é necessário
lembrar que existe uma parte consistente da doutrina que nega a existência mesmo
dessa espécie de mandado de criminalização76. Afinal, se a Constituição for en-
tendida sob um aspecto eminentemente garantista, afirmam, certamente não
poderia pretender criminalizar condutas deixando – às bases de um Direito Penal
mínimo e fundamentadamente garantidor do indivíduo – ao legislador criminal
escolher que condutas devem ser criminalizadas.
De qualquer forma, o diferencial dessa espécie de mandado de criminali-
zação é a manifestação evidente no texto da Constituição Federal. Efetivamente,
da leitura de alguns pontos da Carta Magna parecem surgir ordens ao legislador
ordinário que de forma imperativa impõem-lhe a obrigação de criminalizar – obri-
gação essa que não poderia ser afastada porque, como se sabe, trata-se de or-
dem que provém do ápice do sistema normativo cujo desrespeito ensejaria a
pecha da inconstitucionalidade. Afinal, como é bem lembrado por Gonçalves, “os
mandados de criminalização só se justificam num sistema no qual a supremacia
constitucional e a separação dos poderes – sempre apontados como requisitos
essenciais desta forma de Estado – se apresentem de maneira efetiva e não ape-
nas formal77”, como é o nosso sistema constitucional atual.
De qualquer forma, ainda que se possa discutir a ocorrência da ordenação
criminalizadora em alguns pontos razoavelmente duvidosos do texto constituci-
onal (o que enseja a existência de posições “ampla” e “restrita” de reconhecimen-
to desses mandados), pareceria certo que em outros momentos ela seria mais
evidente. Gonçalves aponta essas ocorrências na Constituição Federal de 198878:

76) Dessa porção da doutrina, talvez a manifestação mais evidente seja a de PASCHOAL, Janaina Conceição. In:
Constitucionalização, Criminalização e Direito Penal Mínimo. São Paulo: RT, 2003.
77) GONÇALVES, Luiz Carlos dos Santos. Mandados Expressos de Criminalização e a proteção de Direitos
Fundamentais na Constituição Brasileira de 1988. Belo Horizonte: Fórum Editora, 2007. p. 153.

332 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008


artigo 5º, incisos XLI, XLII, XLIII, XLIV; artigo 7º, inciso X; artigo 225, §3º; artigo
224, §4º; e artigo 243, parágrafo único.

2.5.2 Mandados Constitucionais Implícitos de Criminalização


Condição mais controversa, todavia, se guarda aos assim chamados mandados
constitucionais de criminalização implícitos. Muito natural: em uma doutrina habitu-
ada à figura do Direito Penal como ultima ratio legis e como manifestação da limitação
à atuação do direito de punir do Estado, é bastante difícil admitir que o texto constitu-
cional imponha o dever de criar crimes de modo não claro ou não explícito.
De qualquer forma, os autores que entendem existentes tais mandamentos
constitucionais fundamentam-nos em grande parte nos mesmos raciocínios apre-
sentados anteriormente e que sustentariam os mandados constitucionais ex-
pressos, mas especialmente na proibição da insuficiência na proteção penal de
direitos fundamentais decorrente justamente da vinculação do texto constituci-
onal à proteção de tais direitos – tanto no âmbito nacional quanto internacional.
De qualquer forma, tais mandados consistiriam naqueles “deveres de crimi-
nalizar as condutas de violação aos direitos fundamentais fundados tão-somente
na menção ao direito protegido em determinado tratado internacional de direitos
humanos79”. Seu berço seria fundamentalmente a dupla dimensão da proteção dos
direitos humanos, conforme se vem reconhecendo na experiência internacional.
Nesse tocante, especial empurrão à idéia foi dado pelo Tribunal Constitu-
cional Alemão80 ao julgar, conforme já mencionado anteriormente, a questão do
aborto. Em austero resumo, desenvolveu o conceito de que o uso do Direito Penal
é imprescindível à proteção dos direitos fundamentais quando outros ramos do
Direito não dêem conta de uma eficiente proteção.
Da mesma forma se têm reconhecido as idéias que fundam a existên-
cia de tais mandados nos julgados de tribunais internacionais de direitos
humanos. Vejam-se, por exemplo, conforme aponta Ramos81, os casos Ve-
lazquez Rodriguez, Villagrán Morales e Genie Lacayo na Corte Interamerica-
na de Direitos Humanos. Também a Corte Européia de Direitos Humanos,
ainda que em julgamento razoavelmente antigo (26 de Março de 1985) deci-
diu nesse sentido, indicando a legislação holandesa como insuficiente para
os parâmetros das obrigações criminalizadoras assumidas pelo Estado, o
que implicou a Holanda modificar o seu sistema penal e indenizar as vítimas
em caso de proteção insuficiente de delitos contra a liberdade sexual come-

78) GONÇALVES, Luiz Carlos dos Santos. Mandados Expressos de Criminalização e a proteção de Direitos
Fundamentais na Constituição Brasileira de 1988. Belo Horizonte: Fórum Editora, 2007. p. 158.
79) RAMOS, André de Carvalho. Mandados de criminalização no direito internacional dos direitos humanos:
novos paradigmas da proteção das vítimas de violações de direitos humanos. In: Revista Brasileira de
Ciências Criminais, n. 62, nov-dez 2006 (09/55). p. 36.
80) Decisão da Corte Constitucional Alemã relacionada como BVerfGE 88, 203, 1993.
81) RAMOS, André de Carvalho. Mandados de criminalização no direito internacional dos direitos humanos:
novos paradigmas da proteção das vítimas de violações de direitos humanos. In: Revista Brasileira de
Ciências Criminais, n. 62, nov-dez 2006 (09/55). p. 37 e seguintes.

RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008 333


tidos contra uma jovem deficiente mental (caso X and Y v. The Netherlan-
ds 82). Outros casos da Corte Européia que poderiam ser mencionados em
sentido próximo, ainda que não exatamente o mesmo tema, seriam os casos
Osman v. UK83 e Siliadin v. France 84.
Isso, aliás, parece ter sido efetivamente adotado pelo Estado brasilei-
ro. Por conta de algumas obrigações internacionais assumidas, o legislador
nacional efetivamente alterou o sistema penal e incluiu tipos específicos,
estabeleceu modificações processuais, aumentou penas e criou dispositivos
punitivos próprios atendendo aos tratados internacionais aos quais se vin-
culou – outra saída não teria, na verdade, sob pena de acabar mesmo sendo
responsabilizado na esfera internacional pelo descumprimento de tratados85.
Exemplos são os casos da criminalização da tortura (com a edição da lei
9455/97 o Brasil atende especialmente às determinações da Convenção da
Tortura), da discriminação racial e os “hate crimes” que lhe são conexos
(vejam-se a lei 7716/89 e as alterações ao Código Penal determinadas pelas
leis 9459/97 e 10741/03), da violência contra a mulher (da Convenção de
Belém do Pará decorreu o tratamento específico destinado à violência do-
méstica (lei 10886/2004) e à violência doméstica contra a mulher (Lei n.
11.340/2006 – a famosa “Lei Maria da Penha”), e a já antiga criminalização
do genocídio (criação da lei 2889/56, provocada pela Convenção para a Pre-
venção e Repressão do Crime de Genocídio de 1948).

2.6 UMA ANÁLISE DOS MANDADOS CONSTITUCIONAIS DE


CRIMINALIZAÇÃO SOB A LUZ DAS BASES DO DIREITO PENAL
BRASILEIRO
Cumpre agora tratar dos mandados constitucionais de criminalização den-
tro do sistema penal brasileiro. O que se pretende, neste momento, é uma avali-
ação sobre a existência ou a inexistência de harmonia entre o conceito dos man-
dados de criminalização e os objetivos e fundamentos do Direito Penal nacional.
Evidentemente que se trata de uma análise de enorme complexidade que poderia
verter litros de tinta e muito papel. Todavia, não se pretende exaurir o tema, mas
apenas apontar a relação entre os temas sob dois aspectos básicos: pretende-se
(1) discutir se a existência dessas ordens constitucionais estão de acordo com o
que busca o Direito Penal (apresentado anteriormente); e (2) debater os manda-
dos sob a luz do conceito de bem jurídico.

82) OVEY, Claire; WHITE, Robin C.A. Jacobs & White: The European Convention on Human Rights. 4. ed.
Oxford: Oxford University Press, 2006. p. 234.
83) European Court of Human Rights, case of Osman v. The United Kingdom. N. 87/1997/871/1083. Judge-
ment: 28/10/1998. Disponível em: http://cmiskp.echr.coe.int/tkp197/view.asp?item=1&portal=hbkm
&action=html&highlight=osman%20%7C%20v.%20%7C%20UK&sessionid=9576869&skin=hudoc-en. Acesso
em: 22 jun. 2008.
84) European Court of Human Rights, case of Siliadin v. France. Application n. 73316/01. Judgement: 26/07/2005.
Disponível em http://cmiskp.echr.coe.int/tkp197/view.asp?item=1&portal=hbkm&action=html&
highlight=siliadin%20%7C%20v%20%7C%20france&sessionid=9576869&skin=hudoc-en. Acesso em: 22 jun. 2008.

334 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008


2.6.1 O problema dos fins do Direito Penal e os Mandados
Constitucionais de Criminalização.
Já se disse que o objetivo principal do Direito Penal é o homem. Discorreu-
se, ainda que brevemente, sobre a relação desse ramo do Direito com os direitos
humanos que dão extensão à dignidade do indivíduo e a serventia do ramo penal
como limitador da garantia do cidadão. Mais, apontou-se que o Direito Penal visa
à segurança jurídica e que tal conceito se confunde com a proteção social na
medida em que os dois conceitos devem ser entendidos como desenvolvidos
dentro da idéia de sociedade como o todo das relações entre os indivíduos.
Essa importância do indivíduo no Estado Democrático de Direito se vê no
reconhecimento mesmo de que os direitos humanos são um grupo de direitos
anterior à própria norma, anterior à própria Constituição. Nesse sentido, leia-se
Afonso da Silva:

Ela [a doutrina] emprega a expressão garantias constitucionais em três


sentidos: (1) reconhecimento constitucional dos direitos fundamentais; as-
sim, a declaração de direitos seria simplesmente um compromisso de res-
peitar a existência e o exercício desses direitos, ‘que não provêm de lei
alguma, senão diretamente da qualidade e dos atributos naturais do ser
humano’; parte-se da idéia de que os direitos preexistem à Constituição,
que não os cria nem outorga, reconhece-os apenas e os garante; é uma
idéia vinculada à concepção do direito natural ou da supra-estatalidade
dos direitos fundamentais; (2) ‘prescrições que vedam determinadas ações
do poder público’, ou ‘formalidades prescritas pelas Constituições, para
abrigarem dos abusos do poder e das violações possíveis de seus conci-
dadãos os direitos constitutivos da personalidade individual’; (3) ‘proteção
prática da liberdade levada ao máximo de sua eficácia’ ou ‘recursos jurí-
dicos destinados a fazer efetivos os direitos que assegura86.

Dessa forma, pelo fato de que o texto constitucional reconhece (e não tem a
pretensão de “criar”) os direitos fundamentais, é certo que são anteriores à própria
Constituição. Isso está evidente, ademais, a partir do texto constitucional que logo
no seu início (inciso III do artigo primeiro) aponta a dignidade da pessoa humana
como fundamento do Estado brasileiro. Esse mesmo raciocínio, obviamente, se
aplica ao Direito Penal que, como todo normativo referente às regras penais (e,
assim, envolve normas constitucionais tanto quanto legislação infraconstitucio-
nal) está também sujeito à dignidade da pessoa humana e aos direitos fundamen-
tais. Mais do que isso, na esteira do que apresentou acima Afonso da Silva, e se o

85) Essa responsabilidade internacional do Estado existe e é amplamente reconhecida. Neste sentido, RAMOS,
André de Carvalho. Responsabilidade Internacional por Violação de Direitos Humanos. Rio de Janeiro/
São Paulo: Renovar, 2004. No que toca ao complicado tema da responsabilidade criminal do Estado no plano
internacional, apesar de se tratar de tema sobre o qual o debate renasceu a partir da Segunda Guerra Mundial
(DUGARD, John. “Criminal Responsibility of State”. In BASSIOUNI, Cherif (ed.), International Criminal Law,
vol I (239-253). New York: Transnational Publishers, Inc., 1999, p. 240), trata-se de espécie de responsabili-
dade do Estado que definitivamente não é pacificamente reconhecida.
86) SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 21. ed. São Paulo: Malheiros
Editores, 2002. p. 186.

RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008 335


sistema legal como um todo serve à dignidade da pessoa humana como ordem ao
Estado para que garanta o indivíduo, o Direito Penal somente pode ser visto como
um direito de garantias. Esse é o cerne da idéia da Constituição Federal como limite
ao direito de punir do Estado, e não como seu fundamento.
Sobre essa base, o “ius puniendi” não se funda na Constituição, mas, sim,
em algo que lhe é anterior e que é necessário para que se possa dar total vazão à
garantia do indivíduo e, em especial, à dignidade da pessoa humana. Esse direito
é inerente ao “pactum subiectionis” e não surge da Constituição Federal que so-
mente se presta a limitá-lo, declarando-o como existente e desenhando-o den-
tro dos parâmetros necessário à garantia das liberdades de que não se abriu mão
em favor do Estado. Veja-se que a Constituição Federal é muito mais um limite
ao poder do Estado (aqui incluído o poder de punir) do que um limite ao indiví-
duo. Nesse sentido, novamente, Afonso da Silva:

Postulavam, até, que se introduzissem aí deveres individuais e coletivos. Não


era isso que queriam, mas uma declaração constitucional de deveres, que se
impusessem para o povo. Ora, uma Constituição não tem que fazer declaração
de deveres paralela á declaração de direitos. Os deveres decorrem destes na
medida em que cada titular de direitos individuais tem o dever de reconhecer e
respeitar igual direito do outro, bem como o dever de comportar-se, nas rela-
ções inter-humanas, com postura democrática, compreendendo que a digni-
dade da pessoa humana do próximo deve ser exaltada como a sua própria.
Na verdade, os deveres que decorrem dos incisos do art. 5º, têm como des-
tinatários mais o Poder Público e seus agentes em qualquer nível do que os
indivíduos em particular. A inviolabilidade dos direitos assegurados impõe
deveres a todos, mas especialmente às autoridades e detentores do poder87.

Imaginar, diferentemente, a Constituição Federal como fundamento do di-


reito de punir é dar ao Estado total poder de dizer aquilo que pode reprimir – é
retornar ao mesmo positivismo que ensejou o surgimento dos Estados totalitários
que confundiam os ideais de justiça com aquilo que se encontrava plasmado no
texto constitucional. Abre-se a porta ao desmando do Estado e à possibilidade de
que, através de interpretações abertas do texto constitucional, entenda-se neces-
sário criminalizar condutas aceitas socialmente ou convenientes ao desenvolvi-
mento do indivíduo, mas danosas ao interesse estatal. Vira, então, o Estado o
objetivo central do Direito, e não mais o indivíduo. E escancara-se a porta de vez
ao Leviatã – aqui tomado mais como o monstro bíblico do que o Estado de Hobbes.
Outro ponto que merece menção é justamente a razão apontada como
fundamento para a existência dos mandados de criminalização, conforme
apresentado anteriormente: a necessidade da prevenção geral provocada pela
pena que ensejaria um efeito dissuasório e preventivo88 evitando-se, assim,

87) SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 21. ed. São Paulo: Malheiros
Editores, 2002. p. 195.
88) RAMOS, André de Carvalho. Mandados de criminalização no direito internacional dos direitos humanos:
novos paradigmas da proteção das vítimas de violações de direitos humanos. In: Revista Brasileira de
Ciências Criminais, n. 62, nov-dez 2006 (09/55). p. 21.

336 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008


outras práticas lesivas aos bens protegidos penalmente.
É inegável que o efeito existe e que o Estado dele se usa reiteradamente, o
que é, inclusive, defendido por parte da doutrina penal que o entende necessário
para reafirmar, segundo um Direito Penal pós-moderno89, “expectativas norma-
tivas”90. É justamente o que justifica a adoção de uma legislação drástica e com
altas penas, como hoje se vê no Direito Penal nacional. Resta perguntar se essa
função é adequada ao Estado Democrático de Direito que se busca. E nesse sen-
tido, a resposta parece ser negativa.
Há muito que se critica a tese da prevenção geral no Direito Penal con-
temporâneo e, especialmente, na Criminologia Crítica moderna, como sus-
tentáculo de um Estado pré-totalitário. Em primeiro lugar, não há qualquer
prova de que a prevenção especial efetivamente funcione. Para uma parte da
doutrina, seu mecanismo de funcionamento, aliás, tem suas raízes na doutri-
na criminal do século XVII (Feuerbach) e se fundamenta na idéia do livre arbí-
trio, ou seja, na idéia, indemonstrável, de que o homem escolhe livremente
entre cometer ou não o crime, na tensão da escolha liberta entre o bem e o
mal91. Pressupondo-se o livre arbítrio – uma idéia de cunho muito mais religi-
osa do que científica – ignora-se que o homem está sujeito a outras pressões
internas e externas. Ou seja, ignorar-se-ia que o homem é levado ao cometi-
mento do crime por uma miríade de fatores de ordem psicológica, econômica,
social, familiar, sexual, etc.
Mais do que isso, a pena como prevenção geral não explica o motivo pelo
qual se pune, de forma que é apenas mais um instrumento de controle do Estado.
Ora, aqui o objetivo da pena não é o fato praticado, mas fatos futuros, por isso
não pune o crime, mas crimes outros, que sequer foram praticados ainda. E não
esclarece o âmbito do criminalmente punível.
Cumpre apontar, também, que a pena como prevenção geral como instru-
mento de controle usado pelo Estado caracteriza-se como poderoso meio de
terror estatal. Na busca pela prevenção de crimes futuros, a tendência do Estado
é aumentar sanções quanto se entenderem insuficientes as penas já estabeleci-
das e estabelecer novos crimes quando os antigos não derem conta do recado.
Quando o Estado precisar de uma forma de controle da sociedade e, portanto, do
indivíduo, usará a pena como instrumento de terror por conta do medo que ela
pode impor ao indivíduo. Nas palavras de Roxin, “así, por lo menos la prevención
general negativa, se encuentra siempre ante el peligro de convertirse en terror
estatal. Pues la idea de que penas más altas y más duras tengan un mayor efecto
intimidatorio ha sudo históricamente (a pesar de su probable inexactitud) la ra-
zón más frecuente de las penas ‘sin medida92".
Aliás, essa é a maior crítica que fazem à função de prevenção geral do Direito

89) SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito Penal: parte geral. Curitiba: ICPC/Lumen Juris, 2006. p. 459.
90) Assim, por exemplo, a doutrina de Gunther Jakobs.
91) SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito Penal: parte geral. Curitiba: ICPC/Lumen Juris, 2006. p. 456.
92) ROXIN, Claus. Derecho Penal Parte General – Tomo I. Madrid: Civitas, 2003. p. 93.

RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008 337


Penal os autores que acreditam na capacidade ética do ser humano. Para Zaffaroni93,
por exemplo, que fundamenta a dignidade do homem justamente na sua capacidade
de escolha entre o bem e o mal94 e rechaça o posicionamento determinista segundo
o qual o homem não escolhe livremente, entendimento que lhe arrancaria justamen-
te o seu indicador de humanidade, o maior problema da prevenção geral é justamen-
te a sua correlação fácil com um Estado autoritário – e os riscos disso decorrentes.
Na mesma toada, haveria ainda outros problemas, mas merece especial
atenção a questão da seletividade. A um Direito Penal que atende aos interesses
seletivos de uma estrutura de poder e lhe serve como instrumento de controle
social (como este sob o qual se vive) a figura da prevenção geral e suas preten-
sões moralizantes é extremamente conveniente.
Não é necessário, acredita-se, desenvolver ainda mais os riscos do assim
chamado “Direito Penal do Terror” porque a era militar brasileira vivida depois do
Golpe de 1964 já parece ser lembrança histórica suficiente. Todavia, ainda se pode
lembrar que o terror da pena, por pior que possa se apresentar, não parece ter o
condão de diminuir a criminalidade. O exemplo da Lei dos Crimes Hediondos pa-
rece evidente95: apesar de estar em vigor desde 1990 (importante notar que se
entendeu que sua criação veio por “determinação” da própria Constituição Federal),
alguém ousaria afirmar que essa espécie de criminalidade diminuiu no país? Apre-
sentando essa arriscada tendência, Cademartori aponta que “o que se observa é
que os poderes do Estado têm-se voltado para uma legislação de emergência vi-
sando a resolver de forma imediata os problemas estruturais da economia. Com o
êxito, às vezes efêmero, dos planos econômicos que se têm sucedido em nosso
país, surge um novo tipo de legitimação, que é chamado aqui ‘legitimação pela
eficácia. (...) Temos assim largas maiorias apoiando e legitimando o governo de
plantão. Isso vem a confundir princípio da maioria com a idéia de democracia96"
Finalmente, a adoção da pena como prevenção geral atenta a dignidade hu-
mana na medida em que é aplicada não com fins ao criminoso, mas, sim, à socie-
dade – o seu objetivo não é ele, mas os outros97, e daí ROXIN apontar que “asimis-
mo, la objeción de que un castigo con fines preventivos atenta contra la dignidad
humana tiene más peso en la prevención general que en la prevención especial98”.
Em conclusão, convém mencionar que a existência de mandados constitu-
cionais de criminalização não se justifica sob o ponto de vista nem do seu objetivo

93) ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro: v. 1 -
Parte Geral. 6. ed. São Paulo: RT, 2006. Especialmente, nessa porção, p. 93 e seguintes.
94) Convém citar o artigo primeiro da Declaração Universal dos Direitos Humanos: “todas as pessoas nascem
livres e iguais em dignidade e direitos. São dotadas de razão e consciência e devem agir em relação umas às
outras com espírito de fraternidade”. A identificação da condição de homem com a capacidade de escolher entre
o bem e o mal seria justamente o seu maior distintivo como tal.
95) SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito Penal: parte geral. Curitiba: ICPC/Lumen Juris, 2006. p. 459.
96) CADEMARTORI, Sérgio. Estado de Direito e Legitimidade: uma abordagem garantista. 2. ed. Campi-
nas: Millennium Editora, 2007. p. 231.
97) SANTOS, Juarez Cirino. Direito Penal: parte geral. Curitiba: ICPC/Lumen Juris, 2006. p. 460.
98) ROXIN, Claus. Derecho Penal Parte General – Tomo I. Madrid: Civitas, 2003. p. 93.

338 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008


maior (a prevenção geral) e nem do seu fundamento (a necessidade de proteção
dos direitos humanos). No primeiro argumento, os mandados de criminalização
criam o risco de um terrorismo estatal que condiz muito mais com um Estado
totalitário do que com um Estado Democrático de Direito. No que toca à proteção
dos Direitos Humanos, a Constituição deve ser vista como limite do poder de punir
do Estado justamente como garantia dos direitos fundamentais que lhe são ante-
riores tanto quanto é o próprio direito de punir: se o direito de punir do Estado está
em contradição com os interesses do indivíduo, é a Constituição o instrumento
normativo hábil a regular esse confronto. Não pode, assim, a Constituição, criar
obrigações de criminalização porque essas surgem justamente desse conflito ori-
ginal do qual a Carta Magna é o compromisso de convivência.
Qualquer outro raciocínio apresenta o Direito Penal não como última “ra-
tio”, mas como “prima ratio” lesionando, assim, a sua subsidiariedade, a frag-
mentariedade, a ofensividade e a necessidade como princípios informadores do
Direito Penal99. Colocar esse fundamento do Direito Penal em xeque é arriscar as
garantias do cidadão e, como conseqüência, a segurança conquistada a duras
penas pelo indivíduo. E aqui vale novamente citar Cademartori:

Por último, deve-se salientar que o garantismo oferece travejamento teó-


rico para a única atitude coerente com uma postura verdadeiramente de-
mocrática para juristas e cidadãos, num momento em que o vento ‘neoli-
beral’, em nome de mudanças e da idéia de progresso, quer varrer as
conquistas da razão iluminista no campo político, apresentando-se como
‘o novo’: uma atitude conservadora, qual seja a de lutar pelo Estado Cons-
titucional de Direito como obra construída durante séculos pela tarefa civi-
lizatória da sociedade ocidental. A tarefa neste momento é a da resistência
frente ao absolutismo das maiorias e do mercado. (...) Como diz Ferrajoli,
a carência de limites para o poder econômico e para o poder político equi-
vale a formas de absolutismo perigosamente convergentes que contradi-
zem o paradigma do Estado Constitucional de Direito, provocando um [sic]
regressão pré-moderna à lei do mais forte100.

2.6.2 O problema da relação entre o bem jurídico e os mandados


constitucionais de criminalização
Já se discutiu neste trabalho acerca da importância do conceito de bem
jurídico para o Direito Penal. Ainda que de forma superficial, tentou-se demons-
trar que se trata de um conceito essencial para a garantia do cidadão e para a
própria aplicação escorreita das normas penais. Assim, a partir desse ponto, o
que se pretende agora é discutir a questão dos mandados constitucionais de
criminalização sob o ponto de vista dessa idéia central da ciência penal.
Da mesma forma que o “ius puniendi”, também os valores selecionados pelo
legislador para ser objeto de proteção criminal não dependem diretamente de de-

99) PASCHOAL, Janaina Conceição. Constituição, Criminalização e Direito Penal Mínimo. São Paulo:
RT, 2003. p. 85.
100) CADEMARTORI, Sérgio. Estado de Direito e Legitimidade: uma abordagem garantista. 2. ed. Campi-
nas: Millennium Editora, 2007. p. 236.

RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008 339


terminações da Constituição Federal. Esses bens são um todo existente na socie-
dade e, captados pelo legislador a partir de parâmetros reconhecidos como princí-
pios do Direito Penal e dos anseios populares, são elevados à condição de bens
jurídicos penalmente protegidos. Nos termos de Schünemann, “a teoria da legiti-
mação do direito penal, ou, vista da perspectiva inversa, dos limites impostos ao
legislador na formulação do direito penal, está fundada em condições fundamen-
tais suprapositivas de qualquer poder estatal legítimo e constitui, portanto, a pre-
missa tácita de qualquer Estado de Direito Democrático-liberal, pouco importando
se um tal Estado a consagrou na constituição de modo expresso ou não101”.
Não se pode pensar diferentemente. Ainda que se entenda existente no sis-
tema nacional uma constituição de caráter dirigente, ela não é capaz de suplantar
a fluidez social e estar preparada de forma ampla a reconhecer todos os anseios da
comunidade a que se aplica – é por isso que estabelece parâmetros, princípios e
diretrizes sem dizer, tanto quanto possível, como se deva portar o legislador. Se-
gundo Paschoal102, é justamente essa a vantagem da teoria material da Constitui-
ção: “a influência dos valores sociais sobre a norma fundamental, seja quando de
sua elaboração, ou quando da sua aplicação, constitui uma das façanhas da teoria
material da Constituição, a qual, segundo Gomes Canotilho, pretende conciliar a
legitimidade material ‘que aponta para a necessidade de a lei fundamental trans-
portar os princípios materiais informadores do estado e da sociedade’ com a aber-
tura constitucional, que, por sua vez, implica que a ‘constituição deve possibilitar
o confronto e a luta política dos partidos e das forças políticas portadores de
projectos alternativos para a concretização dos fins constitucionais”.
Mais do que isso, essa seleção pelo legislador e não pela Constituição serve
tanto para permitir o uso do poder punitivo do Estado apenas para a evitação de danos
sociais quanto para impedir que o Estado se use do Direito Penal com fins de, por
exemplo, impor formas de vida através da “consolidação coativa de uma determinada
ideologia103”. É permitir o risco da arbitrariedade pelo Estado “sendo, por essa razão,
questionável qualquer incursão que pretenda tomar a idéia de bem jurídico penal para
justificar não a limitação, mas o alargamento do poder punitivo estatal104”.
Assim, as determinações existentes na Constituição e que se travestem de
imperiosas ordens ao legislador criminal não são “o que” ele deve criminalizar –
já que a Constituição não tem a capacidade de adaptação necessária a tanto –
mas, sim, “como” ele deve criminalizar. Traduzem-se, portanto, em uma política

101) SCHÜNEMANN, Bernd. O Direito Penal é a ultima ratio da proteção de bens jurídicos! – Sobre os limites
invioláveis do direito penal em um Estado de Direito liberal. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais
n. 53, 2005, p. 09-37. p. 14.
102) PASCHOAL, Janaina Conceição. Constituição, Criminalização e Direito Penal Mínimo. São Pau-
lo: RT, 2003. p. 84.
103) SCHÜNEMANN, Bernd. O Direito Penal é a ultima ratio da proteção de bens jurídicos! – Sobre os limites
invioláveis do direito penal em um Estado de Direito liberal. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais
n. 53, 2005, p. 09-37. p. 13.
104) PASCHOAL, Janaina Conceição. Constituição, Criminalização e Direito Penal Mínimo. São Pau-
lo: RT, 2003. p. 48.

340 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008


criminal: o conjunto de aspirações gerais que devem animar o legislador. Aspira-
ções essas que são maiores do que ordens de criminalização. Dizem respeito a,
por exemplo, determinações de ordem educacional, princípios limitadores da
punição, fundamentos para o sistema carcerário, distribuição adequada de ren-
da, cooperação social no combate ao crime, investimentos adequados no siste-
ma judiciário e penitenciário, composição de um Ministério Público eficiente e de
uma Defensoria ativa, etc. São esses os limites insuperáveis105 (máximos e míni-
mos) do legislador na criação de tipos e na seleção dos bens jurídicos: os ele-
mentos da política criminal adotada pelo Estado.
Finalmente, outro problema se encontra na pretensão de existirem manda-
dos de criminalização no texto constitucional. A sua existência afastaria a discri-
cionariedade do próprio legislador criando, assim, um campo onde a criminaliza-
ção seria obrigatória e, mais, ensejaria, se não existisse, a assim chamada “mora
inconstitucional106”, passível dos mecanismos constitucionais de controle.
Nesses termos, parece que pouco haveria para o legislador fazer que não
repetir e esclarecer a norma constitucional.
Ora, essa idéia afasta a necessidade e o papel fundamental do legislador. Se é
verdade que a Constituição, estática como é, não é capaz de acompanhar todas as
modificações sociais, é imprescindível que o legislador torne a norma constitucional
aplicável. O seu papel, nesse tocante, é humanizar o texto da Carta Magna: é permitir
que se ilumine a norma com a compreensão humana e que se a deixe permeável ao
indivíduo, fazendo-o parte do processo de criação do Direito. De outra forma, a
norma permanecerá cega e surda à dinâmica social e se tende a afastar cada vez mais
do seu objeto, o indivíduo. É por isso que se deve entender que “...o bem jurídico
preexiste à construção normativa, sendo objeto da escolha do legislador enquanto
valor digno de tutela seja penal, seja no âmbito administrativo107”.
Apontam Fiandaca e Musco que:

Pur nei limiti predetti, lo sforzo definitorio non è tuttavia privo di utilità. Invero,
nei tempi più recenti, l’elaborazione teorica há posto soprattutto l’accento sul
carattere non statico, ma ‘dinamico” degli oggetti della tutela penale. Il altri
termini, il bene giuridico, nel senso del diritto penale, non equivale semplice-
mente a uma cosa o a um interesse dotato di valore in se stesso; nella realtà o
beni giuridici esistono soltanto, se e nella misura in cui sono ‘in funzione’, cioè
producono effetti utili nella vita sociale. Da questo pundo di vista, i beni non
sono entità intangibili che pretendono una tutela assoluta, dal momento che in
determinati casi può risultare utile addirittura sacrificarne qualcuno, in vista

105) SCHÜNEMANN, Bernd. O Direito Penal é a ultima ratio da proteção de bens jurídicos! – Sobre os limites
invioláveis do direito penal em um Estado de Direito liberal. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais
n. 53, 2005, p. 09-37. p. 23.
106) GONÇALVES, Luiz Carlos dos Santos. Mandados Expressos de Criminalização e a proteção de
Direitos Fundamentais na Constituição Brasileira de 1988. Belo Horizonte: Fórum Editora, 2007. p. 296.
107) REALE JÚNIOR, Miguel. Despenalização no direito penal econômico: uma terceira via entre o crime e a
infração administrativa?. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo: RT, ano 7, n. 28, out-
dez 1999, p. 121. Citado por PASCHOAL, Janaina Conceição. Constituição, Criminalização e Direito
Penal Mínimo. São Paulo: RT, 2003. p. 46.

RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008 341


del perseguimento do altri vantaggi sociali: cio spiega come mai la tutela pe-
nale sia spesso ‘frammentaria’ (...), si riferisca cioè solo a determinate forme
di aggressione al bene assunto ad oggetto di protezione108.

É o legislador o indivíduo capaz de aplicar essa política criminal sob um


viés humanitário. É ele, e não o texto constitucional que, justamente por garantia
do cidadão, é rígido o suficiente para impedir modificações às pressas, que é
capaz de entender a historicidade do direito e da sociedade. É o legislador que
tem a possibilidade de compreender o que muda no seio social, quais os novos
anseios e quais os antigos. O que demanda proteção, o que não pede por ela e,
finalmente, aquilo que requer a mais violenta proteção do Direito: a tutela penal.
Assim, não parece ser correto escolher a priori qual o caminho adequado a
ser seguido pela sociedade através do estabelecimento inexorável da necessida-
de de criminalização, mas, sim, tentar entender qual é o caminho melhor que
deve ser trilhado pelo fluxo social – do que só é capaz o legislador por ser um
ente vivente e capaz de julgamentos: “de qualquer maneira, parece-me que as
contingências históricas que fazem com que em um círculo cultural se divinize o
álcool e se demonize o haxixe, enquanto noutro se faça o contrário, devem ceder
lugar a uma estratégia orientada segundo a periculosidade do entorpecente, que
pode e deve levar em conta também a capacidade de sedução dos cidadãos mé-
dios e a sua possível transformação numa nova e adicional fonte de perigo109”.
Em resumo, convém lembrar que tanto porque o conceito de bem jurídico é
essencial para o Direito Penal quanto porque o é o papel do legislador, não parece
adequado reconhecer a existência de mandados constitucionais de criminaliza-
ção no texto constitucional. Afinal, o Direito Penal contemporâneo não se en-
contra em estágio que admita o abandono do conceito de bem jurídico penal-
mente protegido. E, mais do que isso, não é possível abandonar o intérprete
social em que se constitui o legislador na sua escolha porque não é capaz, o
texto constitucional, de lhe substituir o posto.

CONCLUSÃO

De nossa parte consideramos que a opção de responder à violência siste-


maticamente exercida contra os direitos humanos com a violência inerente
às sanções penais é totalmente equivocada. Isso tem se tornado consciência
comum da maioria dos estudiosos do direito penal que questionam os dis-
cursos repressivos e mostram-se preocupados com as conseqüências soci-
almente perversas da lógica punitiva. A sanção penal, além de prejudicar as
camadas sociais desfavorecidas, alimenta o círculo vicioso da violência soci-
al, tornando-se um instrumento de dominação que não pode nem deseja

108) FIANDACA, Giovanni e MUSCO, Enzo. Diritto Penal: parte generale. 4. ed. Bologna: Zanichelli
editore, 2004. p. 05.
109) SCHÜNEMANN, Bernd. O Direito Penal é a ultima ratio da proteção de bens jurídicos! – Sobre os limites
invioláveis do direito penal em um Estado de Direito liberal. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais
n. 53, 2005, p. 09-37. p. 36.

342 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008


tutelar efetivamente os bens jurídicos da maioria da população. Dessas cons-
tatações de falência do modelo penal decorrem os apelos de superação da
lógica da punição e retribuição que se multiplicam no Brasil nos últimos anos110.

O texto que inicia essa conclusão segue na linha da fundamentação do


presente trabalho. Não se pode ignorar que, em geral, a moderna Criminologia
e o Direito Penal contemporâneo reconhecem a excessiva violência e inadequa-
ção do sistema penal vigente. Afinal, é ele evidentemente antidemocrático na
medida em que a repressão penal se lança de forma principal contra as classes
menos favorecidas que são aquelas, justamente, que têm seus direitos funda-
mentais corriqueiramente violados. Assim, usar o fundamento da proteção dos
direitos humanos para a criação de mais figuras criminosas ou para o recrudes-
cimento de penas (vide a figura dos crimes hediondos e dos crimes contra o
meio ambiente), a partir do texto constitucional, é um instrumento que se lan-
ça, paradoxalmente, justamente contra aquelas pessoas que precisam de maior
proteção aos seus direitos fundamentais.
Como se percebe, trata-se de tema complexo.
A proteção dos bens jurídicos no sistema nacional é assunto de extrema
relevância. Também o é, porque tem diretas relações com a proteção dos direitos
fundamentais, o próprio Direito Penal e os seus fundamentos. Assim, não há
outra saída que não fazê-los conversar em harmonia. Para tanto, é essencial que
se verifiquem os pontos de contato (e são muitos, senão todos) e se resolvam as
possíveis incongruências. Do que se viu neste trabalho, contudo, alguns pontos
merecem menção expressa.
É certo que o Direito Penal é instrumento de garantia dos Direitos Humanos.
Vê-lo como mera manifestação do direito de punir do Estado é certamente uma
visão menor do que aquela que o tema merece: como conjunto de normas e princí-
pios que servem a regular a manifestação do direito penal subjetivo, é evidente que
o Direito Penal é um composto muito maior que alcança os próprios fundamentos do
Estado Democrático de Direito. Assim, garante o indivíduo de várias formas. Em
primeiro lugar, como é mais óbvio, ao determinar os limites do ius puniendi. Mas
também garante o indivíduo ao apontar, ao legislador (tanto o constituinte quanto o
legislador infraconstitucional), quais e quantos são os bens jurídicos que merecem
proteção penal, tudo sob a égide da garantia da dignidade da pessoa humana, a
fonte principal da normatização de um Estado Democrático de Direito.
Parece evidente que há, efetivamente, no texto constitucional, tratamentos
indicativos de criminalização. As indicações expressas são evidentes: ninguém
pode negar a materialidade de uma norma como aquela descrita no artigo 5º, inci-
so XLIII do texto constitucional. Todavia, não parece, do que se leu neste trabalho,
que tenha sido a melhor técnica do constituinte tomá-las como “mandados”. Afi-
nal, como defendeu Paschoal, sendo a mesma linha que se adota neste trabalho, a

110) DIMOULIS, Dimitri. O art. 5º, § 4º, da CF: dois retrocessos políticos e um fracasso normativo. In:
TAVARES, André Ramos; LENZA, Pedro; ALARCÓN, Pietro de Jesús. Reforma do Judiciário analisada e
comentada. São Paulo: Método, 2005. (107-119) p. 111.

RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008 343


Constituição Federal é limite e não fundamento do Direito Penal111. Se o Direito é
necessariamente histórico, o que não parece ser disputado, é certo que também a
escolha dos bens jurídicos é algo que depende do momento da positivação. Se a
Constituição se adianta nesse trabalho de escolher bens jurídicos a serem protegi-
dos penalmente, o que é tradicionalmente reservado ao legislador por conta da sua
capacidade de aerar o Direito com o espírito do novo, então ela vincularia toda a
ordem jurídica futura a uma criminalização eterna, tornando o sistema pesado,
imutável e, finalmente, não histórico. Mais do que isso, violaria o próprio sentido
do Direito Penal como última ratio na medida em que não há mais lugar para a
subsidiariedade desse ramo do Direito: é ele, agora, a primeira escolha do legisla-
dor – é um direito de prima ratio. Nas palavras de Paschoal, “não é admissível que
em um momento se pregue que o Direito Penal deva ser o último recurso do qual o
Estado lançará mão, e, em momento imediatamente posterior, postule-se que o
Estado deverá dele se valer ainda que não represente a melhor forma de tutela112”.
Importa mencionar, ainda, que reconhecer ordens de criminalização na Cons-
tituição indicam ainda a possibilidade de criação de um Direito Penal de cunho
exageradamente repressivo e meramente simbólico113, como acontece com a figu-
ra dos crimes hediondos e com os crimes contra o meio ambiente. Aquela é um
mal per si: a violência da legislação referente aos crimes hediondos em nada dimi-
nuiu a criminalidade nacional e só serviu para que se restringissem direitos e ga-

111) PASCHOAL, Janaina Conceição. Constituição, Criminalização e Direito Penal Mínimo. São Pau-
lo: RT, 2003. p. 79.
112) PASCHOAL, Janaina Conceição. Constituição, Criminalização e Direito Penal Mínimo. São Pau-
lo: RT, 2003. p. 85.
113) Sobre o caráter simbólico do Direito Penal, convém ler Santos, em uma hipotética conversa entre os
seus “segmento pragmático do ego e a instância crítica do superego”: “mas existem coisas ainda piores – por
exemplo, o conceito de prevenção geral positiva surge com o advento do direito penal simbólico, represen-
tado pela criminalização daquelas áreas definidas como situações sociais problemáticas (a economia, a
ecologia, a genética etc.), em que o Estado não parece interessado em soluções sociais reais, mas em
soluções penais simbólicas: protege complexos funcionais – a economia, a ecologia etc. –, nos quais o
homem não é o centro de gravidade do direito, mas simples portador de funções jurídico-penais, segundo
a tese de Baratta. Esse direito penal simbólico não tem função instrumental – não existe para ser efetivo –
, apenas função política de criação de símbolos ou imagens na psicologia do povo, para produzir efeitos de
legitimação do poder político e do próprio direito penal. A legitimação do poder político ocorre pela
ostentação de eficiência repressiva, que garante a lealdade do eleitorado e reproduz o poder – o lastimável
apoio de partidos populares a projetos de leis repressivas no Brasil é explicável por sua conversibilidade em
votos. A legitimação do direito penal é simbólica, mas também instrumental: é simbólica porque problemas
sociais recebem soluções penais, com satisfação meramente retórica à opinião pública; é instrumental
porque revigora o direito penal como programa desigual de controle social seletivo, dirigido contra favelas
e bairros pobres das periferias urbanas, especialmente contra a força de trabalho marginalizada do merca-
do, sem função na reprodução do capital e já punida pelas condições de vida. Aliás, o discurso eficientista
da prevenção geral positiva – também conhecido como integração/prevenção – está na origem da redução
das garantias constitucionais de liberdade, igualdade, presunção de inocência e outras do processo penal
– cuja supressão ameaça converter o Estado Democrático de Direito em estado policial. Enfim, o discurso
da prevenção geral positiva escamoteia a relação da criminalidade com estruturas de desigualdade das
sociedades modernas, instituídas pelo direito e garantidas pelo poder do Estado”. SANTOS, Juarez Cirino
dos. Novas hipóteses de criminalização. Artigo na internet, disponível em http://www.cirino.com.br/artigos/
jcs/novas_hipoteses_criminalizacao.pdf. Acesso em: 22 jun. 2008.

344 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008


rantias do cidadão durante décadas de vigência, ao ponto do próprio Supremo
Tribunal Federal reconhecer-lhe, depois de mais de quinze anos, a inconstitucio-
nalidade de certos dispositivos114. No caso dos crimes ambientais, ainda que se
reconheça a importância do bem jurídico envolvido, é certamente duvidoso que se
precisem punir diversas condutas que estão tipificadas na lei115. Não se esqueça
do problema apontado por parte da doutrina que defende116 que não seria possível
descriminalizar condutas sem se incorrer em inconstitucionalidade – ou seja, es-
tamos obrigados a conviver eternamente com alguns erros do legislador...
Vale lembrar, também, que encontrar tais mandados implícitos no texto
constitucional pode resultar de um exercício perigoso de interpretação. É a porta
aberta para desmandos do Estado e para a criação de um Direito Penal de cunho
totalitário, violento, controlador e simbólico, o que arrisca todo o desenho que
se quer dar, unanimemente, ao texto constitucional que fundamenta o Estado
nacional. A interpretação do texto constitucional pode ensejar riscos graves. Re-
ferindo-se à idéia de ordem pública, Silva traz uma importante lembrança:

Mas aí se põe uma petição de princípio, já que a ordem pública requer


definição, até porque, como dissemos de outra feita, a caracterização de
seu significado é de suma importância, porquanto se trata de algo destina-
do a limitar situações subjetivas de vantagem, outorgadas pela Constitui-
ção. Em nome dela se têm praticado as maiores arbitrariedades. Com a
justificativa de garantir a ordem pública, na verdade, muitas vezes, o que
se faz é desrespeitar direitos fundamentais da pessoa humana, quando
ela apenas autoriza o exercício regular do poder de polícia. Ordem pública
será uma situação de pacífica convivência social, isenta de ameaça de vio-
lência ou de sublevação que tenha produzido ou que supostamente possa
produzir, a curto prazo, a prática de crimes. Convivência pacífica não sig-
nifica isenta de divergências, de debates, de controvérsias e até de certas
rusgas interpessoais. Ela deixa de ser tal quando discussões, divergências,
rusgas e outras contendas ameaçam chegar às vias de fato com iminência
de desforço pessoal, de violência e do crime117.

Mais focado no tema que se debate neste trabalho, Schünemann parece fazer-
lhe coro ao dizer que “... a utilização do direito penal não pode ser legitimada por meros
desconfortos que ameacem o indivíduo ou meras imperfeições da organização social118”.

114) STF, Pleno, HC 82959/SP - SÃO PAULO, HABEAS CORPUS, Relator Min. Marco Aurélio Mello,
julgamento em 23/02/2006.
115) Nas figuras típicas da lei n. 9605/98 encaixam-se condutas idílicas como catar e guardar lenha no quintal de
casa para acender uma lareira (art. 46 e seu parágrafo único) ou, simplesmente, pisar culposamente na planta
ornamental do vizinho (art. 49). Sobre comentários a essa legislação, ver REALE JÚNIOR, Miguel. Meio
Ambiente e Direito Penal Brasileiro. In: Revista da Associação Brasileira de Professores de Ciências
Penais. v. 2, ano 2, n. 2, janeiro-junho de 2005. São Paulo: RT, 2005. Ainda, LUISI, Luiz. Os Princípios
Constitucionais Penais. 2. ed. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 2003. p. 95 e seguintes.
116) GONÇALVES, Luiz Carlos dos Santos. Mandados Expressos de Criminalização e a proteção de
Direitos Fundamentais na Constituição Brasileira de 1988. Belo Horizonte: Fórum Editora, 2007. p. 166.
117) SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 21. ed. São Paulo: Malheiros
Editores, 2002. p. 753-754.

RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008 345


Assim, parece melhor entender, como desenvolve Paschoal, que a Consti-
tuição, no calor dos debates característicos de uma fase tumultuada da história
brasileira, entendeu adequado dar indicações ao legislador de que poderia crimi-
nalizar determinadas condutas, mas apenas como compromisso carregado de
historicidade119. Aliás, dá-lhe razão Schünemann: “a teoria da legitimação do di-
reito penal, ou, vista da perspectiva inversa, dos limites impostos ao legislador
na formulação do direito penal, está fundada em condições fundamentais supra-
positivas de qualquer poder estatal legítimo e constitui, portanto, a premissa
tácita de qualquer Estado de Direito Democrático-liberal, pouco importando se
um tal Estado a consagrou na constituição de modo expresso ou não120”. Ou
também é possível, para os mais audaciosos, que se recorra à existência das
normas constitucionais inconstitucionais – ponto, esse, muito mais debatido,
mas defensável. Não importa. O que não se pode abrir mão é do inarredável com-
promisso da Carta Magna brasileira com o Estado Democrático de Direito e com
a garantia do cidadão. Se existe risco – e como se viu, existe – de que a interpre-
tação de existência de mandando constitucionais de criminalização podem vir a
ser “ovos de serpente”121, é melhor que não se lhes reconheça a existência.
Tanto melhor: a inexistência de tais ordens constitucionais não implica a
falta de proteção do cidadão; já a sua ocorrência implica tal risco. Afinal, não é
porque não existem mandados constitucionais de criminalização que estará o
indivíduo desprotegido, pois o legislador, constrangido pelo compromisso cons-
titucional com a dignidade da pessoa humana (artigo primeiro da Constituição
Federal), na medida de uma política criminal coerente122, está obrigado a crimi-
nalizar o que seja necessário para dar maior alcance a essa mesma dignidade. O
reconhecimento desses mandados, diferentemente, implica um caráter autoritá-
rio, violento e repressivo ao texto constitucional que aponta o Direito Penal, em
alguns casos, como primeira arma a ser apontada contra o cidadão.
Esse raciocínio, quando se vive à sombra de experiências com Estados au-
toritários, não parece uma adequada interpretação constitucional. Não se esque-
ça jamais das imagens formidáveis dos terríveis Atos Institucionais.
Finalmente, entende-se necessário lembrar-se de mais uma decorrência

118) SCHÜNEMANN, Bernd. O Direito Penal é a ultima ratio da proteção de bens jurídicos! – Sobre os limites
invioláveis do direito penal em um Estado de Direito liberal. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais
n. 53, 2005. p. 09-37, p. 18.
119) PASCHOAL, Janaina Conceição. Constituição, Criminalização e Direito Penal Mínimo. São Pau-
lo: RT, 2003, p. 102 e seguintes.
120) SCHÜNEMANN, Bernd. O Direito Penal é a ultima ratio da proteção de bens jurídicos! – Sobre os limites
invioláveis do direito penal em um Estado de Direito liberal. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais
n. 53, 2005. p. 09-37, p. 14.
121) FRANCO, Alberto Silva. Do princípio penal da intervenção mínima ao princípio da máxima intervenção. In:
Revista Portuguesa de Ciência Criminal. Coimbra: Coimbra Editora, n. 6, 1996. p. 179-180. Apud PASCHO-
AL, Janaina Conceição. Constituição, Criminalização e Direito Penal Mínimo. São Paulo: RT, 2003. p. 86.
122) SCHÜNEMANN, Bernd. O Direito Penal é a ultima ratio da proteção de bens jurídicos! – Sobre os limites
invioláveis do direito penal em um Estado de Direito liberal. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais
n. 53, 2005. p. 09-37, p. 23.

346 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008


do reconhecimento dos mandados constitucionais de criminalização. Vê-los no
texto constitucional é imaginar que o Estado determina criminalizações porque
já reconhece, “ab ovo”, o constituinte, que o Direito é incapaz de proteger bens
jurídicos através de outros instrumentos como, por exemplo, a educação ou po-
líticas de inclusão social. Reconhece o constituinte, assim, de forma arrogante,
além da sua incapacidade e da sua obsolescência, a incapacidade do próprio
cidadão. Nesses termos, conclui-se com as palavras de Schünemann:

Enquanto uma tal fraqueza tiver sua raiz numa desvantagem social, cum-
pre a meu ver que se reconheça, fundado na moderna expansão da teoria
liberal clássica do contrato social no sentido do Estado social, não apenas
um direito, mas até mesmo um dever do estado de proibir a exploração de
tais desvantagens sociais e de criminalizá-la, na falta de outros meios efi-
cientes. Não é de se ignorar, porém, que com isso o direito penal se torna
a ultima ratio de uma política social fracassada123.

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