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São Paulo, domingo, 07 de outubro de 2001

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Estudo lançado em Portugal se coloca entre as


principais interpretações já feitas sobre Clarice
Lispector

O CAMINHO DA REVELAÇÃO DO
NOME
Abel Barros Baptista

Se um dia se fizer -se vier a valer a pena fazer- uma


história da recepção da literatura brasileira em
Portugal, o nome de Clarice terá direito a um
capítulo especial. Não porque seja uma escritora
popular, longe disso. Mas até por isso mesmo, trata-
se de um caso singularíssimo, aliás pouco
conhecido como tal, mesmo em Portugal, e por
paradoxal que pareça afirmá-lo assim. Os sinais
são vários. Por exemplo, um fluxo relativamente
continuado e com novo impulso relativamente
recente de edições. Ou sobretudo uma pequena
comunidade de leitores devotos, ainda que
dispersos, alguns alcançando o nível de
especialistas no sentido preciso do termo, com
livros e ensaios publicados. Até a universidade
portuguesa, onde os estudos brasileiros ocupam
como se sabe lugar modestíssimo, dá disso
testemunho precioso. Entre o corpo de autores
brasileiros conhecidos, lidos e estudados em
Portugal, contemporâneos ou antigos, clássicos ou
modernos, Clarice é a única que sobrevive fora da
área disciplinar de literatura brasileira, e a única
reiteradamente objeto de seminários e teses no
âmbito da teoria literária e da literatura
comparada.
Ora, desde há meses, o melhor exemplo do que
afirmo e ponto mais alto de tudo o que se tem feito
em Portugal em torno de Clarice está disponível na
forma de um livro iluminador e inspirado: refiro-
me ao monumental estudo de Carlos Mendes de
Sousa, "Clarice Lispector - Figuras da Escrita", na
origem tese de doutoramento defendida na
Universidade do Minho e agora publicada pela
respectiva editora.
Carlos Mendes de Sousa, um dos principais nomes
da mais jovem geração da crítica literária
portuguesa, sobretudo no âmbito da poesia
contemporânea (é dele o melhor livro recente
sobre o último Prêmio Camões, Eugénio de
Andrade), é também um dos poucos brasilianistas
ativos em Portugal (a ele se deve, por exemplo, a
organização, no ano passado, de um excelente
número da revista de poesia "Relâmpago",
dedicado à poesia brasileira recente). Mas não se
colija daqui que a importância e o valor do seu
trabalho se afere pelo contexto português: na
verdade, "Clarice Lispector - Figuras da Escrita" é
seguramente um trabalho de referência para os
estudos sobre Clarice, se não for tão-só o melhor
estudo disponível do conjunto da obra da escritora.
O superlativo é sempre arriscado, aliás
desnecessariamente arriscado; mas por vezes não
há caminho mais expedito para chegar a afirmar o
caráter de exceção de uma obra -e justamente disso
se trata.
Será necessário começar por realçar o trabalho
primoroso do ponto de vista da "scholarship",
desde a longa pesquisa realizada ao rigor das
fontes e referências, trabalho acurado sem deixar
de ser crítico nem embotado pelo mero propósito
acadêmico de acribia; a enorme e atualizada
informação teórica, sem ecletismo nem confusão
metodológica; a forte propensão para a construção
ensaística, privilegiando a deriva da argumentação
e a fluidez da escrita contra a arquitetura rígida da
dissertação; a escrita clara e sóbria, sem deixar de
ser elegante; a própria respiração do estudo, que
ao longo de densas 500 páginas conjuga os pontos
de fulgurante vertigem interpretativa com os
períodos de lenta e paciente exposição.
Tudo isso, que não é pouco, talvez não chegue a
convencer o leitor de que estamos diante de um
trabalho modelar de crítica literária e um ponto
altíssimo da fortuna crítica de Clarice. Visto que
não posso nem sequer descrever aqui de forma
completa um trabalho tão extenso e complexo,
deixarei dois traços que decidem a força deste
livro.
A indústria universitária de teses, em Portugal (e se
calhar em todo o lado), alimenta-se de
"contribuições", "achegas", "subsídios", "propostas",
estudos parcelares e monografias inconclusivas.
Carlos Mendes de Sousa, dominando com inteiro à
vontade toda a bibliografia pertinente, tanto
passiva como ativa, não receou lançar "um olhar
exaustivo sobre o corpus" de Clarice, estudando "a
totalidade da sua produção literária (romances,
contos, crônicas e outros textos)".
Além do notável aproveitamento crítico do
trabalho de pesquisa que levou a cabo na Casa de
Rui Barbosa, articulando cartas e outros inéditos
com os textos maiores de Clarice, a leitura de
Mendes de Sousa cumpre com pleno sucesso o
projeto de rever e renovar a leitura de Clarice na
sua totalidade. Isso explica o comportamento
perante a bibliografia passiva: também aqui o
crítico não recua perante a totalidade, e, se nada
pode garantir exaustividade, é sem dúvida
impressionante o conhecimento e a capacidade de
análise crítica do que se escreveu a respeito da
autora de "Laços de Família".
Ora, não se trata simplesmente de cumprimento de
formalidades acadêmicas, nem mesmo de respeito
pelos predecessores, embora ambos os traços se
detectem: trata-se sobretudo de uma operação
crítica por meio da qual Carlos Mendes de Sousa
procura abrir o caminho e criar o espaço para a
sua interpretação, e começando a fazê-lo
precisamente por meio da revisão dos
predecessores. Isso é o que propriamente desde
logo define um crítico forte, essa idéia de que não
vale a pena fazer os outros perderem tempo a ler
uma nova leitura se não se acredita que essa nova
leitura é indispensável além de nova. Se tal
convicção radicalmente conduz a esse impulso da
totalidade, o crítico forte é também aquele que se
mostra à altura das resistências que o corpus
estudado oferece, desde logo sabendo-as
inevitáveis.
Di-lo o próprio autor, quase no final do livro,
confirmando os dados da nossa leitura: "Se o
trajeto de leitura tentou empreender uma busca de
totalidade (propósito de situar a obra e reconduzir
a tarefa hermenêutica a uma visão coerente que
conferisse a fisionomia de um todo), esse trânsito
mostrou igualmente o peso da intrínseca violência
das margens, que por força perturba a visão
unitária".
O segundo traço reside na coincidência do trajeto
do livro com a tese do livro: a busca da totalidade,
enfrentando a força das margens, é o que decide a
escolha das figuras (e serão várias: o cego e o
professor, a máquina de escrever e o búfalo, a
galinha e a rosa...). Impossível resumir aqui a sutil
elaboração teórica de Mendes de Sousa em volta da
noção de figura, que o salva de reduzir a leitura de
Clarice a um âmbito formalista. "O delinear de uma
figura (ou de um conjunto de figuras)" -escreve-
"aponta na obra para um lugar sempre o mesmo: o
da escrita". É este lugar que Carlos Mendes de
Sousa reiteradamente persegue, e é esta a tese que
defende: que é possível persegui-lo, porque há um
fio a percorrer toda a obra de Clarice de ponta a
ponta.
Esse fio, graças à idéia de figura, permite-lhe
conjugar no texto de Clarice o questionamento
permanente do literário com um constante
processo de autognose. Por isso, a figura última
conduz ao nome, ao rosto que o nome diz, à
revelação do nome, figura a um tempo de escrita e
de escritora, mas sem conteúdo biográfico prévio e
efetivo. Esse "caminho de revelação do nome"
como "revelação do rosto" é, por isso, ao mesmo
tempo a figura do trajeto do livro e da leitura de
Carlos Mendes de Sousa e a figura da unidade e da
coerência da obra de Clarice. A mesma figura,
afinal, duma solidariedade e duma paixão que
fazem a grande força deste livro.

Abel Barros Baptista é crítico português, professor de teoria


literária e literatura brasileira da Universidade Nova de Lisboa
e autor, entre outros, de "Em Nome do Apelo do Nome" (Litoral
Edições, Lisboa), sobre a obra de Machado de Assis.

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