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Enquete

Operária:
Uma
Genealogia
Asad Haider and
Salar Mohandesi
September 27, 2013

1
Conhecimento Exato e Positivo: o
Questionário de Marx
Em 1880, La Revue socialiste solicitou a um velho Karl Marx que
fizesse um questionário para circular entre a classe
trabalhadora francesa. Chamado “Uma Enquete Operária”, ele
foi uma lista de exatamente 101 questões detalhadas
perguntando sobre tudo, do horário das refeições até salários
e hospedagens1. Em um olhar mais atento, parece haver uma
progressão na linha de questionamento. O primeiro quarto,
mais ou menos, faz perguntas aparentemente desinteressadas
sobre o comércio, a composição da força de trabalho
empregada na empresa e as condições gerais do local de
trabalho, enquanto o quarto final muda em termos gerais para
questões mais explicitamente políticas sobre opressão,
“associações de resistências” e greves.
O questionário começa com algumas reflexões preliminares
sobre o projeto como um todo. Essas mais ou menos quinze
linhas basicamente correspondiam a um único princípio:
aprender a partir da própria classe trabalhadora. Somente a
classe trabalhadora poderia prover informação significativa
sobre sua própria existência, assim como somente a própria
classe trabalhadora poderia construir o novo mundo. Mas por
trás desse simples chamado está uma série de motivações
complexas, objetivos e intenções, fazendo a enquete operária
— esse aparente desejo modesto de aprender a partir dos
próprios trabalhadores — um projeto altamente ambíguo,
multifacetado e indeterminado desde o princípio.
No seu nível mais rudimentar, a enquete operária era para ser
o estudo empírico dos trabalhadores, um objeto de

1
Karl Marx, “Enquête ouvrière” e “Workers’ Questionnaire” em Marx-Engels
Collected Works vol. 24. (New York: International Publishers, 1880). A versão inglesa
em marxists.org tem apenas 100 questões; isso é porque Marx faz duas questões
separadas sobre a diminuição dos salários em períodos de estagnação e sobre seu
aumento em períodos de prosperidade (questões 73 e 74), sendo que a primeira foi
omitida nessa versão inglesa.
2
investigação comumente negligenciado em seu tempo. “Nem
um único governo, seja monarquia ou república burguesa, se
aventurou até agora para empreender uma investigação séria
sobre a posição da classe trabalhadora francesa”, lamentava
Marx. “Mas quantas investigações foram empreendidas sobre
crises — agrícolas, financeiras, industriais, comerciais,
políticas!”.
Desde que essas outras formas de investigação — como aquelas
intermináveis pesquisas do governo sobre esta ou aquela crise
— simplesmente não poderiam produzir qualquer
conhecimento real sobre a classe trabalhadora, algumas novas
formas de investigação deveriam ser desenvolvidas. Seu
objetivo, como aquelas cem perguntas revelavam, seria
acumular o máximo possível de material factual sobre os
trabalhadores. A finalidade, Marx escreveu, deveria ser
adquirir “um conhecimento exato e positivo das condições em
que a classe trabalhadora — a classe a quem o futuro pertence
— trabalha e se move”.
Com certeza, mesmo nos tempos de Marx, inspetores de saúde
e outros já tinham começado a levar a cabo esse tipo de
investigação no mundo da classe trabalhadora. Mas essas não
apenas eram investigações oficiais assistemáticas e parciais,
elas tratavam os trabalhadores como mero objeto de estudo,
da mesma maneira que o solo e as sementes daquelas bem
investigadas crises agrícolas. O que separa a enquete operária
desses outros estudos empíricos era a crença de que a própria
classe trabalhadora sabia mais sobre a exploração capitalista
do que qualquer um. São os “trabalhadores na cidade e no
campo”, pensou Marx, que “sozinhos podem descrever com
conhecimento completo os infortúnios de que sofrem”.
Com essa breve intervenção, Marx estabeleceu um desafio
epistemológico fundamental. Qual era o relacionamento entre
o conhecimento dos trabalhadores de sua exploração e a
análise científica das “leis do movimento” da sociedade
capitalista? Em O Capital, ele devotou várias páginas para
3
documentar o processo de trabalho, ainda que isso parecesse
ser parte de uma exposição lógica que começa com a exposição
crítica do valor, uma categoria abstrata da economia política
burguesa. Mesmo assim ele manteve em seu posfácio de 1873
que “Enquanto tal crítica representa uma classe, ela só pode
representar a classe da qual a tarefa histórica é a derrubada do
modo de produção capitalista e a abolição final de todas as
classes — o proletariado”2. Louis Althusser, em seu famoso
prefácio para a tradução francesa, sugeriu que isso significava
que O Capital somente poderia ser compreendido a partir de
um ponto de vista especificamente proletário, já que esse era
“o único ponto de vista que faz visível a realidade da
exploração da força de trabalho assalariada, que constitui todo
o capitalismo”3. Contudo, a visão do próprio Marx permanece
pouco clara. A enquete operária era um meio de acessar o
ponto de vista proletário? Era simplesmente a participação
dos trabalhadores na produção de um conhecimento
universal?
O que é abundantemente claro é que Marx tinha uma grande
estima pela ação autônoma da classe trabalhadora. Os
trabalhadores não apenas deveriam prover conhecimento
sobre a natureza do capitalismo, eles seriam os únicos que
poderiam derrubá-lo: apenas os trabalhadores na cidade e no
campo “e não salvadores, enviados pela providência, podem
aplicar energicamente os remédios de cura para as doenças
sociais de que são vítimas”. Essa prática de enquete operária,
então, implicava uma certa conexão entre o conhecimento
proletário e a política proletária. Os socialistas deveriam
começar aprendendo da classe trabalhadora sobre suas
condições materiais. Só então eles deveriam estar aptos para
articular estratégias, compor teorias e esboçar programas. A
enquete seria, portanto, o primeiro passo necessário para
articular um projeto socialista historicamente apropriado.

2
Karl Marx, Capital, Volume 1, trad. Ben Fowkes (New York: Penguin, 1976), 98.
3
Louis Althusser, Lenin and Philosophy (New York: Monthly Review Press, 2001), 65.
4
A prática de disseminar a enquete também representava um
passo na organização deste projeto, por estabelecer vínculos
diretos com os trabalhadores. “Não é essencial responder a
todas as perguntas”, escreveu Marx. “O nome do trabalhador
ou trabalhadora que está respondendo não será publicado sem
permissão especial, mas o nome e o endereço devem ser dados
para que, se necessário, nós possamos nos comunicar”. Para
alguns, esta tentativa de forjar contatos reais com os
trabalhadores era de fato uma intenção genuína do projeto.
É claro, Marx não menciona nada sobre construir organizações
nesse pequeno artigo. De qualquer forma, ele indicaria mais
tarde que a pesquisa e a organização tinham uma relação
íntima. Em 1881, apenas um ano depois de escrever este
questionário, Marx recebeu uma carta de um jovem socialista
que queria saber o que ele pensava sobre os recentes chamados
para refundar a Associação Internacional dos Trabalhadores.
Marx revelou que se opunha a este projeto. A “conjuntura
crítica” para tal associação não tinha chegado e tentar formar
uma seria “não só meramente inútil, mas danoso”, já que isso
não seria “relacionado às condições imediatas nesta ou
naquela nação em particular”4.
Logo, qualquer organização precisava estar ligada a condições
históricas concretas. Nós podemos concluir da resposta
entusiasmada de Marx para La Revue socialiste que ele
reconhecia um papel estratégico para a pesquisa; nesta
conjuntura específica, a enquete era uma medida mais
apropriada do que lançar uma organização e talvez fosse até a
precondição para isso.
Marx morreu alguns anos após essa primeira tentativa de
enquete, sem receber uma única resposta. Mas o projeto teria
uma notável sobrevida no século seguinte. Conforme nos
afastamos do projeto original de Marx para avaliar a muito
mais longa história da enquete operária, é difícil não notar a

4
“Marx to Domela Nieuwenhuis In The Hague”, disponível online em marxists.org.
5
singular instabilidade desta prática. Embora quase todos os
exemplos toquem as coordenadas primeiramente
desenvolvidas por Marx, a enquete foi polissêmica e
contraditória. Esta introdução irá analisar seu
desenvolvimento como uma forma de investigar suas questões
subjacentes.

Elevando a Consciência: a Tendência


Johnson-Forest
Enquanto figuras como Pierre Naville e Simone Weil
publicaram relatos sobre a vida na fábrica em primeira mão, o
projeto de Marx somente foi reencarnado verdadeiramente
em 1947, quando a tendência Johnson-Forest lançou um curto
panfleto chamado The American Worker [O Trabalhador
Americano]. Nomeada conforme os pseudônimos de seus dois
principais teóricos, CLR James (J. R. Johnson), o autor
trinidadiano de Os Jacobinos Negros, e Raya Dunayevskaya
(Freddie Forest), antiga assistente de Leon Trotsky, a
tendência Johnson-Forest aparece pela primeira vez em 1941
como uma corrente dentro do trotskista Workers’ Party
[Partido dos Trabalhadores]. Em 1947, o ano em que se
responsabilizaram por sua primeira enquete, essa corrente
marginal, embora respeitada, deixou o WP após o que ficou
conhecido então como “The Negro Question” (“A Questão do
Negro”). Enquanto o Workers’ Party defendia um movimento
multirracial unificado, amplo, organizado sob o slogan “Black
and White, Unite and Fight” [“Brancos e Negros, Unam-se e
Lutem”*], a tendência Johnson-Forest contra-argumentou que
a comunidade negra tinha suas necessidades específicas, que
não poderiam ser peremptoriamente subordinadas a esse

6
movimento homogeneizador e que deveria lutar junto a outras
minorias oprimidas por sua própria autonomia5.
Em 1951, após romperem completamente com o trotskismo, a
tendência Johnson-Forest forma o Correspondence
[“Correspondência”], com um jornal de mesmo nome6.
Correspondence, cuja primeira edição foi lançada em novembro,
estava para ser um novo tipo de jornal. Principalmente escrito,
editado e distribuído pelos próprios trabalhadores, seu
objetivo era servir como um fórum em que trabalhadores
poderiam compartilhar suas próprias experiências. Refletindo
a ênfase contínua da tendência na prioridade das necessidades
autônomas, cada edição era deliberadamente dividida em
quatro seções — para trabalhadores fabris, negros, jovens e
mulheres — para que então cada setor da classe trabalhadora
geral tivesse seu próprio espaço independente para discutir
aquilo que mais lhe preocupava. A esperança era de que ao
escrever sobre suas vidas os trabalhadores veriam que seus
problemas não eram pessoais, mas sociais. Um editorial de
1955 intitulado “Gripes and Grievances” [“Queixas e Injustiças”]
atestou o propósito do jornal: “Quando milhões de
trabalhadores estão expressando a mesma queixa sobre seu
trabalho, o capataz, o sindicato e a empresa, isso não é mais
uma queixa, isso se torna um problema social. Essa queixa ou
injustiça não afeta somente este ou aquele indivíduo, ela afeta
toda a sociedade”7. O objetivo do jornal, então, era fazer as
pessoas entenderem a universalidade das suas experiências
aparentemente particulares ao providenciar um espaço onde
elas poderiam ser divulgadas. Fazendo uma analogia com a
poliomielite que, eles afirmavam, já foi considerada um

5
Kent Worcester, CLR James: A Political Biography (New York: State University of New
York Press, 1996), 55-81; Paul Buhle, CLR James: The Artist as Revolutionary (New York:
Verso, 1988), 66-99.
6
Para uma breve, porém excelente introdução à história do jornal, veja
“Introduction to Part 1” em Pages from a Black Radical’s Notebook: A James Boggs
Reader, Stephen M. Ward (org.) (Detroit: Wayne State University Press, 2011), 37-41.
7
“Gripes and Grievances,” Correspondence, vol. 2, no. 2 (Janeiro, 22 1955), 4.
7
problema pessoal antes de ser reconhecida como uma
preocupação social, os editores defendiam que principal
objetivo do Correspondence era mudar as atitudes públicas em
questões decisivas. O objetivo do jornal operário, em outras
palavras, era o de elevar a consciência.
Esse jornal era, de várias maneiras, uma continuação lógica de
tentativas anteriores de enquete pela tendência. A primeira e
talvez mais famosa dessas foi The American Worker. Grace Lee
Boggs, uma coautora do panfleto, lembra que ele começou
como um diário. Quando Phil Singer, um trabalhador
automotivo empregado na fábrica da GM [General Motors] em
Nova Jersey, começou a discutir as frustrações dos operários
na fábrica, CLR James sugeriu que ele escrevesse seus
pensamentos em um diário8. Partes dele depois seriam
reunidas numa obra coerente e com um ensaio teórico de
Grace Lee Boggs. A primeira parte do panfleto, agora atribuída
a Paul Romano, pseudônimo de Singer, se tornou um tipo de
investigação etnográfica autorreflexiva sobre as condições de
vida proletárias na América pós-guerra. A segunda parte,
atribuída a Ria Stone, nome de Boggs no partido,
conscientemente se inspirou nas experiências concretas
documentadas na primeira parte com o objetivo de teorizar o
conteúdo do socialismo em um mundo transformado pela
automação, pela linha de montagem e pelo trabalho
semiqualificado.
Quando Socialisme ou Barbarie depois traduziu o panfleto para
o francês, eles o chamaram de “o primeiro de seu gênero”9. Um
trabalhador descrevia, em sua própria voz e explicitamente
para outros trabalhadores, suas condições de exploração de
uma forma que teorizava a possibilidade de uma subversão

8
Grace Lee Boggs, “CLR. James: Organizing in the USA, 1938-1953,” em CLR James:
His Intellectual Legacies, Selwyn Cudjoe e William Cain (orgs.) (Amherst: University
of Massachusetts Press, 1995), 164. Paul Buhle, por outro lado, alega explicitamente
que foi Grace Lee quem na verdade escreveu o texto, in Buhle, CLR James, 90.
9
Ph. Guillaume, “L’Ouvrier american par Paul Romano,” Socialisme ou Barbarie no. 1
(Março/Abril 1949), 78.
8
estratégica10. O relato de Singer representava tanto uma
pesquisa sobre as mudanças no processo de trabalho quanto
uma prática política destinada a elevar a consciência de seus
colegas de trabalho. Ele firmemente se moveu de descrições
estáticas da exploração na fábrica para uma consideração
dinâmica das novas formas de luta que emergiram dessas
novas formas de exploração. Pesquisando as contradições no
local de trabalho, os vários pontos de contestação e sinais do
desgosto proletário com a gerência, a burocracia e até os
sindicatos, Singer apontou para a greve selvagem, com a auto-
organização dos trabalhadores como seu conteúdo, como a
nova forma de luta no período pós-guerra.
Enquanto Phil Singer providenciou o primeiro exemplo desse
novo tipo de enquete operária, Grace Lee Boggs explicou a
problemática teórica da tendência Johnson-Forest. Ela se
baseou fortemente em uma passagem de O Capital que descreve
como o “indivíduo parcialmente desenvolvido”, que era
restrito a “uma função social especializada”, teve de ser
substituído na indústria de larga escala pelo “indivíduo
totalmente desenvolvido” que poderia se adaptar a formas
variadas de trabalho11. Lendo isso sob a luz dos primeiros
trabalhos de Marx, principalmente os Manuscritos Econômico-
Filosóficos de 1844 que a própria Boggs foi a primeira a traduzir
ao inglês, ela aproveitou para sugerir que a indústria moderna
americana no pós-guerra efetuou a alienação completa da
natureza humana.
De acordo com Boggs, o capitalismo deveria ser compreendido
como a alienação progressiva das forças naturais da
10
É significativo que Singer não estava se dirigindo a filantropos, especialistas
burgueses ou mesmo intelectuais simpatizantes. Era para os trabalhadores. “Não
estou escrevendo para ganhar a aprovação ou simpatia dos intelectuais pelas ações
dos trabalhadores. Quero ao invés disso ilustrar para os próprios trabalhadores que
algumas vezes, quando suas condições parecem sem fim e sem esperanças, eles
estão, na verdade, revelando pelas suas reações e expressões cotidianas que são o
caminho para uma mudança de longo alcance”. Paul Romano e Ria Stone, The
American Worker (New York, 1947), 1.
11
Marx, Capital, vol. 1, 618; Romano e Stone, The American Worker, 52.
9
humanidade nas coisas que ela produz. Eventualmente,
contudo, esse processo chegará ao ponto em que toda a
humanidade, toda a sua essência social, foi inteiramente
alienada em meios de produção. Mas essa completa
desumanização do indivíduo, ela afirma, é ao mesmo tempo a
potencial humanização do mundo em sua totalidade. É nesse
ponto que as condições objetivas finalmente estarão maduras
para regenerar aquelas forças, recuperar a essência humana e
finalmente reconstituir o indivíduo como um ser universal. Em
suas palavras, “O trabalho abstrato encontra suas profundezas
mais desumanas na produção mecânica. Mas, ao mesmo
tempo, é somente a produção mecânica que estabelece a base
para o mais completo desenvolvimento humano do trabalho
concreto”12.
“O conteúdo essencial da atividade produtiva hoje é a forma
cooperativa do processo de trabalho”, concluiu Boggs. Na
“transformação dos instrumentos de trabalho em
instrumentos de trabalho apenas utilizáveis de forma comum”
e na “economia de todos os meios de produção pelo seu uso
enquanto meios de produção de trabalho combinado e
socializado”, a produção capitalista alcançou o ponto em que
agora já era implicitamente socialista. Contudo, a realização
desse socialismo implícito estava bloqueada:
“A burguesia mantém um grilhão nessa atividade
essencialmente social isolando os indivíduos uns dos outros
através da competição, separando as forças intelectuais de
produção do trabalho manual, suprimindo os talentos
organizacionais criativos das grandes massas, dividindo o
mundo em esferas de influência”.
“Esse conflito entre a sociedade socialista invasora e os
grilhões da burguesia impedindo seu surgimento é parte da
experiência diária de todo trabalhador”13.

12
Romano e Stone, The American Worker, 47-48.
13
Romano e Stone, The American Worker, 57.
10
Curiosamente, esse conceito tinha surgido em um panfleto que
James, Dunayevskaya e Boggs escreveram no mesmo ano, com
o título The Invading Socialist Society [A Sociedade Socialista
Invasora] — uma polêmica contra trotskistas que não
compartilhavam a visão deles de que a URSS. representava
uma nova forma de capitalismo. O panfleto elabora sobre
alguns pressupostos teóricos do The American Worker, em que
Boggs tinha defendido “a distinção entre trabalho abstrato
para valor e trabalho concreto para necessidades humanas”.
Para Boggs, a definição de Marx de “produção de valor” era
“produção que expande a si mesma através da degradação e
desumanização do trabalhador a um fragmento de homem”,
que na sua utilização do maquinário “degrada em trabalho
abstrato o trabalhador vivo que emprega”. O trabalho
concreto era, em vez disso, direcionado às necessidades, “o
trabalho em que o homem percebe sua necessidade humana
básica para exercer seus poderes naturais e adquiridos14”.
Em The Invading Socialist Society, os autores argumentaram que
a produção de valor estava claramente a funcionar no
“capitalismo de Estado” russo, tal como estava nos Estados
Unidos, e eles elaboraram sobre o “duplo caráter” do trabalho
que Boggs tinha descrito no outro panfleto:
“O fundamental do trabalho, sua função eternamente
necessária em todas as sociedades no passado, presente e
futuro, é a de criar valores de uso. Dentro desta função
orgânica de todo trabalho, o modo de produção capitalista
impôs a contradição de produzir valor, e mais particularmente
mais-valia. Dentro desta contradição está contida a
necessidade de divisão da sociedade em produtores diretos
(trabalhadores) e governantes da sociedade, entre
trabalhadores manuais e intelectuais”.
A revolução gerencial, nesta concepção, era simplesmente
uma expressão da produção de valor e da divisão de classe

14
Romano e Stone, The American Worker.
11
entre trabalho manual e intelectual. Se esta divisão de classe e
este tipo de processo de trabalho alienado poderiam ser
observados na Rússia, havia apenas uma conclusão: a
burocracia estatal extraia mais-valia dos trabalhadores russos
e era de fato uma classe capitalista.
O proletariado, eles continuaram argumentando, abandonou
todas as ilusões de vanguardas burocráticas, que apenas
instituíram uma nova forma de capitalismo, e do reformismo,
que se limitou a contestar a distribuição da mais-valia. Agora
o proletariado tinha “elaborado a conclusão definitiva”: “A
revolta é contra a própria produção de valor”. A sociedade
socialista invasora, para James, Dunayevskaya e Boggs,
poderia ser observada nesta descoberta15.
A motivação política dessa teoria talvez seja compreensível,
mas ela levou o grupo a usar as categorias de Marx de uma
maneira que dissolveu as suas especificidades históricas. Duas
décadas antes, I. I. Rubin, no final de um período de debate
relativamente livre na União Soviética, tinha explicado em
uma palestra no Instituto de Economia de Moscou que um
“conceito de trabalho em que faltem todos os aspectos que são
característicos de sua organização social na produção de
mercadorias não pode nos levar para a conclusão que
procuramos a partir de uma perspectiva marxista”. Em sua
elaboração dos conceitos de Marx, Rubin perguntou
diretamente se a forma-valor poderia ser observada em uma
economia planificada, em que algum órgão social teria de
equacionar o trabalho que produziu coisas diferentes e o que
foi realizado por indivíduos diferentes. Enquanto essa equação
social frequentemente foi descrita como uma “abstração” de
modo geral, Rubin a distinguiu do conceito de trabalho
abstrato de Marx. Em todas as épocas históricas, Rubin
reconheceu, seres humanos dedicaram-se a um gasto de
esforço fisiológico para reproduzir suas próprias condições de

15
CLR James, Raya Dunayevskaya e Grace Lee Boggs, “World War II and Social
Revolution” em The Invading Socialist Society, disponível online em marxists.org.
12
existência. Mas a teoria do valor de Marx empenhou-se em
explicar certas características historicamente específicas das
sociedades capitalistas produtoras de mercadorias. Em tais
sociedades, o trabalho dos indivíduos, enquanto trabalho
concreto que produz valores de uso, não é “diretamente
regulado pela sociedade” — em contraste com uma sociedade
em que a equação social é feita com base na alocação planejada
desses valores de uso16.
Nas sociedades produtoras de mercadorias, o trabalho
somente é socialmente equacionado quando os produtos de
trabalhadores individuais são “comparados com os produtos
de todos os outros produtores de mercadorias, e o trabalho de
um indivíduo específico é assim comparado com o trabalho de
todos os outros membros da sociedade e com todos os outros
tipos de trabalho”. E, principalmente, esta equação social
somente acontece “através da equiparação dos produtos do
trabalho”; trabalho “somente toma a forma de trabalho
abstrato e os produtos do trabalho a forma de valores, na
medida em que o processo de produção assume a forma social
da produção de mercadorias, isto é, produção baseada na
troca”. Quando os proprietários de mercadorias em sociedades
capitalistas engajam-se na produção, eles o fazem procurando
“transformar os seus produtos em dinheiro e assim também
transformar seu trabalho privado e concreto em trabalho
social e abstrato”, uma vez que dependem do mercado para
suas condições de existência. É através da mediação do
mercado que estes custos do trabalho privado tomam uma
forma social17.
A partir do ponto de vista da intervenção de Rubin, a tendência
Johnson-Forest terminou se alinhando com os economistas

16
I. I. Rubin, “Abstract Labour and Value in Marx’s System” Capital & Class, 2 (1978).
Veja a admiravelmente concisa definição de Rubin: “O trabalho abstrato é a
designação para a parte do trabalho social total que foi equalizado no processo da
divisão social do trabalho através da equiparação dos produtos do trabalho no
mercado”.
17
Rubin, “Abstract Labour and Value.”
13
soviéticos que acreditavam que o valor era uma categoria
trans-histórica, reduzível para a equação social do trabalho
que existiria em qualquer sociedade e necessariamente toma a
mesma forma na planificação socialista, tal como no mercado
capitalista. A tentativa deles em mostrar que a URSS, apesar de
sua planificação da produção e consumo, competia no
mercado global e, portanto, tinha as características de uma
imensa empresa capitalista, simplesmente esquivou da
questão da troca dos produtos do trabalho como uma
expressão da dependência do mercado pelos indivíduos.
De fato, Rubin não tratou a questão de se o órgão planificador
de uma sociedade socialista seria uma burocracia partidária,
um conselho de trabalhadores ou qualquer outra coisa.
Enquanto esta distinção seria certamente de significância
política, ela não tem relevância para as questões do trabalho
abstrato e do valor. Em sua compreensível guinada para
criticar o caráter opressivo do trabalho na URSS, a tendência
Johnson-Forest perdeu o controle sobre seus próprios
conceitos críticos e, acima de tudo, por reduzir a forma-valor
à alienação no processo de trabalho, confundiu
completamente a distinção entre trabalho abstrato e concreto.
Neste sentido, a enquete tinha um relacionamento tenso com
a teoria marxista; passando para a documentação da
experiência dos trabalhadores, a experiência subjetiva do chão
de fábrica, a tendência Johnson-Forest aceitou e inverteu a
visão de mundo econômica ortodoxa de seus adversários,
deixando ela mais ou menos intacta.
E por aceitar a concepção trans-histórica das categorias
trabalho e valor, o próprio socialismo tomou características
trans-históricas. Ele seria um telos já contido na origem, na
natureza humana que se alienou na maquinaria. A tarefa dos
socialistas era revelá-lo ao remover os grilhões capitalistas. De
acordo com esta visão, o socialismo não teria de ser construído;
ele teria de ser descoberto. Nós podemos identificar um tipo de
duplo significado neste termo: de um lado, o socialismo
14
enquanto uma tendência inerente teria de se tornar “real”, ou
atual, e de outro lado, o socialismo só poderia ser atualizado
quando os trabalhadores presentemente envolvidos nessas
relações socialistas embrionárias chegassem gradualmente a
reconhecer, ou “descobrir”, que o socialismo já constituía a
própria essência do capitalismo pós-guerra.
Essa concepção de socialismo era um comentário sobre as
experiências de Singer na medida em que a enquete operária
era o meio desta tomada de consciência. Era através da
enquete que os trabalhadores “descobririam” que o socialismo
já estava ali, escondido em seu cotidiano, esperando estourar.
Ao circularem essas enquetes, outros trabalhadores com
experiências similares chegariam à mesma percepção,
desencadeando um diálogo sobre suas experiências universais.
Desta forma, os trabalhadores tomariam consciência de si
mesmos como uma classe revolucionária. A tarefa principal da
organização, primeiro enquanto tendência Johnson-Forest e
depois enquanto Correspondence, seria facilitar essa tomada
de consciência ao criar um espaço onde conexões ou
“correspondências” entre diferentes trabalhadores poderiam
ser feitas.
A enquete, então, era o pilar desse projeto. Grace Lee Boggs
teorizou isso, e Phil Singer providenciou o primeiro exemplo
concreto. The American Worker apareceria, assim, como um tipo
de paradigma. Em 1952, Si Owens publicou Indignant Heart: A
Black Worker’s Journal [Coração Indignado: O Diário de Um
Trabalhador Negro], sob o pseudônimo de Matthew Ward. Era
muito longo, de fato praticamente um livro, e era
explicitamente autobiográfico. Ele contou a história de como
um jovem trabalhador negro se mudou das plantações de
algodão do Tenessee para as fábricas de automóveis de Detroit
e se tornou um militante, uma força radical dentro do United
Automobile Workers of America [Trabalhadores Automotivos
Unidos da América]. Em 1953, “Arthur Bauman”, o pseudônimo
de um estudante anônimo, narrou sua história para Paul Wallis
15
no que se tornaria Artie Cuts Out [Artie Dá no Pé] uma narrativa,
novamente ao estilo de The American Worker de Singer, sobre
estudantes de ensino médio em Nova York. Também naquele
ano, o panfleto mais bem-sucedido do Correspondence, A
Woman’s Place [O Lugar de Uma Mulher] de Marie Brant (Selma
James) e Ellen Santori (Filomena D’Addario), fez sua primeira
aparição. O que Singer fez pelos operários fabris, Owen pelos
trabalhadores negros e Bauman pelos jovens, James e
D’Addario procuraram fazer pelas donas de casa. A Woman’s
Place discutia o papel do trabalho doméstico, o valor do
trabalho reprodutivo e as organizações autonomamente
inventadas pelas mulheres no curso de sua luta.
Seguindo o modelo de Singer e o quadro teórico de Boggs,
todos eles se basearam nas experiências cotidianas do autor
para investigar rigorosamente as condições sociais de uma
figura particular da classe; eles então usaram aquela enquete
para teorizar como o grupo social fragmentado pode se unir
enquanto um sujeito político coletivo. O objetivo em todos
estes — assim como seria mais tarde para o jornal
Correspondence — era mostrar como experiências
aparentemente pessoais eram, na verdade, sociais. O
pressuposto destas enquetes era que a forma como um
trabalhador em algum lugar se sentia era muito semelhante à
forma como outro se sentia em outro lugar e que estas
experiências compartilhadas, essas formas comuns de se viver,
podem providenciar a base para a ação coletiva18.
Naturalmente, deve-se notar que nem The American Worker ou
qualquer outro desses textos chamaram a si mesmos de
enquete operária. De fato, eles poderiam ser chamados apenas

18
“O rascunho deste panfleto foi dado a trabalhadores por todo o país. Sua reação
foi quase única. Eles ficaram surpresos e gratificados em ver impressas suas
experiências e pensamentos que raramente colocavam em palavras. Os
trabalhadores chegam em casa muito exaustos para ler mais do que os quadrinhos
diários. Ainda assim a maioria dos trabalhadores que leram o panfleto ficaram bem
acordados pela noite para finalizar a leitura uma vez que começaram”. Romano e
Stone, The American Worker, 1.
16
de narrativas de trabalhadores, ou talvez até testemunhos19.
Mas todos eles ainda são vistos como representantes de uma
iteração, ou ao menos uma variação, do projeto que Marx
formulou em 1880. A tendência era bem familiarizada com o
artigo de Marx de 188020. Boggs tinha lido ele e fez uma
referência explícita num rodapé de sua parte em The American
Worker21. E apesar das diferenças significantes, essas enquetes,
especialmente The American Worker, reproduziram várias das
intenções, motivações e objetivos do projeto original de Marx.
De fato, lendo as questões de Marx ao lado de The American
Worker, parece que Singer providenciou para Marx a primeira
resposta compreensível ao seu questionário — foi apenas com
várias décadas de atraso.
Mas a resposta de Singer tomou uma forma que Marx não
antecipou. Marx imaginou que trabalhadores ofereceriam
respostas linha por linha ao seu questionário. “Nas respostas”,
ele fez questão de especificar, “o número da questão
correspondente deve ser dado”. Singer, contudo, não produziu
uma lista clara de respostas em bloco; ele fez destas respostas
brutas uma narrativa literária. Esta foi talvez a característica
mais distintiva de todas as enquetes organizadas pela
tendência Johnson-Forest — e talvez um dos motivos pelo qual
elas nunca foram chamadas formalmente de “enquetes
operárias”. Enquete operária, nessa distinção, era

19
Em sua introdução para a tradução francesa de The American Worker, Philippe
Guillaume a chamou de “literatura proletária documental”. Para mais sobre isso,
veja Stephen Hastings-King, “On Claude Lefort’s ‘Proletarian Experience,’” nesta
edição [Nota do Passa Palavra: trata-se da edição 3 da Viewpoint Magazine, disponível
aqui].
20
“A Worker’s Inquiry”[“Uma Enquete Operária”] foi primeiro publicado nos
Estados Unidos pelo The New International, em dezembro de 1938.
21
Ela escreveu: “Veja ‘Uma Enquete Operária’ por Karl Marx, em que cento e uma
questões são feitas para os próprios trabalhadores, tratando de tudo, desde
lavatórios, sabão, vinho, greves e sindicatos às ‘condições gerais físicas, intelectuais
e morais da vida do homem e da mulher trabalhadores em seu ofício”. Romano e
Stone, The American Worker, 59.
17
especificamente uma narrativa subjetiva, não uma resposta
para um questionário.
Essa inovação no gênero da enquete, porém, ampliou as
tensões que já existiam no projeto original. Por um lado, a
forma narrativa funcionou para desenvolver a enquete como
uma forma de autoatividade proletária. Apesar de Marx ter
deixado claro que o conhecimento da classe trabalhadora
somente poderia ser produzido pelos próprios trabalhadores,
seu projeto original pareceu fechar o espaço para qualquer
tipo de expressão criativa, demandando respostas mecânicas
para questões pré-fabricadas. O modelo narrativo de Singer
permitiu aos trabalhadores promover sua própria e única voz,
se expressar em sua própria linguagem, com seus próprios
idiomas, ideias e sentimentos, e até colocar suas próprias
questões.
Por outro lado, apesar de que privilegiar a forma narrativa
possa ter amplificado o poder da enquete operária como um
meio de autoatividade, isso teve o potencial de minar outro
aspecto daquele projeto, o que Marx chamou de aquisição de
“um conhecimento exato e positivo das condições” da classe
trabalhadora. A abertura da forma narrativa exagera uma
tendência de escorregar de uma generalização ponderada para
uma generalização excessiva e insustentável. Por tentar unir
sua subjetividade com aquela dos operários como um todo,
Singer acaba tentando se legitimar como um porta-voz
legítimo para todos os trabalhadores de sua fábrica: “Seus
sentimentos, ansiedades, alegria, tédio, exaustão, raiva, foram
meus de uma forma ou de outra”22. Mas como o texto procede,
Singer calmamente passa de “seus sentimentos são os meus”
para “meus sentimentos são os deles”, levando o leitor a
acreditar que as experiências pessoais de Singer, seus desejos
e opiniões, são realmente os dos próprios operários da GM
[General Motors] – se não os da classe trabalhadora americana
inteira. Suas experiências, ou aquelas de alguns trabalhadores
22
Romano and Stone, The American Worker, 1.
18
do seu chão de fábrica em particular, são apresentadas como
as experiências de todos os trabalhadores em qualquer parte.
Experiências cotidianas alegadamente comuns são então
generalizadas para atitudes políticas universais: “Os
trabalhadores sentem que as greves meramente por salários
não os levam a lugar algum”23. Este é um problema
compartilhado por todos os relatos narrativos, já que todos
eles replicam o modelo de Singer. Em A Woman’s Place, por
exemplo, Selma James escreveu “As coautoras deste livro
tinham visto isto em suas próprias vidas e nas vidas das
mulheres que conhecem. Elas escreveram isto como um
começo da expressão do que a mulher média sente, pensa e
vive”. Alguém primeiro considera se há alguma coisa como
uma “mulher média”, livre das dimensões complicadas da
região, classe, raça, sexualidade, etc; mas até se essa
preocupação for posta de lado, alguém ainda poderá perguntar
se as experiências únicas e próprias de James são o suficiente
para acessar “a média”. De fato, James introduz outra inovação
que estende o alcance de suas generalizações. Sua enquete
começa na terceira pessoa, mas depois de apenas algumas
páginas muda abruptamente para a segunda pessoa. O padrão
rapidamente se repete: “Tudo que uma dona de casa faz, ela
faz sozinha. Todo o trabalho na casa é para você fazer por si
mesma”24.
Este tipo de homogeneização se apoia, e de fato é apoiada, por
uma descontextualização da experiência. Quase todas estas
enquetes, com a pequena exceção de Indignant Heart,
esforçam-se em desassociar suas narrativas de um lugar
específico. Não há nada em The American Worker revelando
onde Singer realmente trabalha; a mesma coisa se passa com

23
Romano and Stone, The American Worker, 12.
24
Selma James, “A Woman’s Place” em The Power of Women and the Subversion of the
Community (London: Falling Wall Press, 1972), 58, 64.
19
A Woman’s Place25. Se um dos objetivos primários da enquete
operária é estudar rigorosamente as condições de exploração
em pontos específicos da produção, produzir um
conhecimento exato e positivo da classe trabalhadora, ela tem
que especificar os limites de sua investigação. Embora as
fábricas na América pós-guerra pudessem ter pontos em
comum, elas eram radicalmente diferentes, cada uma com
suas condições distintas de produção, relações de poder e
demografia.
Um problema intimamente relacionado é a modificação
deliberada de informação, de uma forma que frequentemente
altera o significado dos relatos. Um exemplo imediato resulta
do uso de pseudônimos. Quase todos na tendência Johnson-
Forest tinham um, e a maioria vários; na verdade, tinham
tantos nomes falsos em circulação que Boggs relembra que
haviam momentos em que nem eles mesmos sabiam quem era
quem26. Isso era parcialmente remanescente das práticas
trotskistas, mas mais seriamente uma medida contra o
macarthismo; em um momento, o Correspondence tinha até
75 infiltrados e CLR James seria depois deportado por conta de
suas atividades com o grupo27.
Mas apesar das justificativas para a prática de assumir
pseudônimos, eles providenciaram uma cobertura para
ambiguidade autoral. A Woman’s Place foi assinado por duas
mulheres, ambas sob pseudônimos, mas na verdade foi escrito
apenas por Selma James. Como James depois relembrou, ela
escreveu o livro anotando ideias em pedaços de papel, depois

25
Isso está apenas no prefácio ao panfleto por Martin Glaberman, em 1972, que
revela finalmente que Phil Singer trabalhou na fábrica da General Motors em New
Jersey.
26
Citado de Rachel Peterson, “Correspondence: Journalism, Anticommunism, and
Marxism in 1950s Detroit,” em Anticommunism and the African American Freedom
Movement: “Another side of the Story,” ed. Robbie Lieberman e Clarence Lang (New
York: Palgrave Macmillan, 2009), 146. Como se para confirmar dramaticamente
isso, o próprio pseudônimo de Boggs, Ria Stone, é frequentemente confundido com
Raya Dunayevskaya.
27
Peterson, “Correspondence,” 146.
20
jogando-os em uma fenda na tampa de uma caixa de sapato.
Ela depois se sentou e juntou as ideias em um rascunho. Depois
dela compartilhar o rascunho com o grupo e seus vizinhos, e
de fazer algumas revisões, CLR James disse a ela para incluir a
assinatura de Filomena D’Addario para que depois ela pudesse
falar com seu público com alguma legitimidade28. Acontece
que uma obra que declara ter sido escrita por duas mulheres,
e que de fato tenta convencer seus leitores de que foi
construída com as experiências de duas mulheres diferentes,
foi na verdade escrita por uma.
Mas o problema mais sério está em Indignant Heart. De todos os
relatos, este é o único que dá detalhes precisos sobre lugares e
também, num primeiro olhar, parece quebrar com o modelo
desenvolvido por Singer. Na verdade, porém, apesar do livro
ser bastante preciso a respeito da vida posterior de Owen no
norte, ele deliberadamente distorce seu lugar de nascimento,
colocando sua infância no sudeste do Tennessee ao invés de
Lowndes County, Alabama. Na reedição de 1978, que incluiu
uma segunda parte partindo de onde o original de 1952 tinha
parado, Owens justificou isto lembrando os seus leitores da
“viciosa caça às bruxas macarthista”, adicionando que
“poucos que não passaram por aquela experiência de
repressão nacional de ideias podem entender completamente
a natureza verdadeiramente totalitária do macarthismo e o
terror que produziu”29. Menos convincente, contudo, é sua
afirmação de que estas mudanças “não tiram nada da verdade
das experiências descritas” e que o que escreveu sobre seus

28
Selma James, Sex, Race, and Class – The Perspective of Winning: A Selection of Writings,
1952-2011 (Oakland: PM Press, 2012), 13-14; Frank Rosengarten, Urbane Revolutionary:
CLR. James and the Struggle for a New Society (Mississippi: University of Mississippi
Press, 2008), 89.
29
Charles Denby [Si Owens], Indignant Heart: A Black Workers’ Journal (Detroit: Wayne
State University Press, 1978), xi. Essa edição foi atribuída a Charles Denby, o
pseudônimo mais comum de Owen e que ele usou na maior parte dos seus artigos
no Correspondence. Também é significante que Owens ainda escrevia sob um
pseudônimo em 1978, mesmo depois do macarthismo já ter claramente terminado.
21
primeiros anos “pode ser a verdade de quase todos os negros”
morando no sul dos Estados Unidos30.
Em outras palavras, a reescrita dos fatos é racionalizada pela
suposição de uma experiência universal e homogênea. Mas
Alabama não é Tennessee e tal movimento drástico
compromete o caráter científico da obra; ela se torna mais
ficção histórica e menos uma enquete concreta acerca de
condições específicas de exploração. Uma enquete a respeito
do mundo da classe trabalhadora ameaça se degenerar em um
tipo de diário de viagem; a investigação militante próxima,
meticulosa, tende a ser substituída com estórias de
entretenimento sobre o mistério, exotismo e estranhamento
de um mundo desconhecido.
Talvez até mais preocupante, Si Owens na verdade não
escreveu Indignant Heart. Constance Webb, outro membro do
grupo e antiga namorada de James, escreveu. Correspondence
defendeu uma prática que Dunayevskaya depois chamou
método da “caneta-tinteiro carregada” – apesar de ser talvez
mais conhecido como amanuense. Intelectuais se juntariam
com trabalhadores que talvez se sentiriam desconfortáveis em
escrever suas experiências; eles escutariam enquanto os
trabalhadores contavam suas histórias, escreveriam em seus
nomes e então pediriam aos trabalhadores para revisar os
documentos escritos como acharem melhor. Foi Webb, então,
quem registrou a história, fez revisões, editou os rascunhos e
uniu tudo isto em um todo coerente31. Era, de muitas maneiras,
um livro dela.
Mas a liderança, neste caso principalmente Dunayevskaya e
não os autores, decidia como o livro deveria aparecer.
Dunayevskaya insistiu que ele se chamasse Indignant Heart,
conforme uma citação de Wendell Phillips, sob os protestos de
ambos, Owens e Webb; e, ainda mais grave, ela decidiu publicar

30
Denby, Indignant Heart, xi.
31
Peterson, “Correspondence,” 123.
22
ele todo sob o único nome de Matthew Ward32. De uma maneira
estranha, Correspondence tinha deliberadamente ocultado
suas condições de produção, fazendo parecer como se um
único autor tivesse escrito o livro sozinho, o que estava longe
da verdade. Mas um dos objetivos principais das enquetes do
Correspondence tinha sido reconciliar honestamente as
tensões entre intelectuais e trabalhadores. Por que hesitar em
admitir que Indignant Heart tinha sido, no seu cerne, um
trabalho de colaboração? Por que ir tão longe para fazer o
texto parecer como um exemplo de experiência proletária
pura, ao invés de uma produção mediada?
Por fim, todas essas enquetes imbricaram o descritivo com o
prescritivo. Elas delinearam conclusões limitadas baseadas na
análise do fenômeno observável enquanto simultaneamente
declaravam manifestos sobre como a realidade deveria ser. A
direção primeiro foi definida por Singer, que concluiu a
primeira parte do The American Worker anunciando que a
frustração dos trabalhadores com o sistema de incentivos
equivalia a “dizer não menos que as relações de produção
existentes devem ser derrubadas”33. Da mesma maneira James
acaba sua própria enquete “Mulheres estão descobrindo cada
vez mais e mais que não há outra saída senão a mudança
completa. Mas uma coisa já está clara. As coisas não podem
seguir da maneira que estão. Toda mulher sabe disso”34.
Certamente nem todas as mulheres realmente pensavam isto
em 1953. E certamente James sabia disto, assim como Singer
estava bem consciente de que a maioria dos trabalhadores não
queria derrubar as relações de produção existentes. Essas
declarações só podem ser realmente entendidas como
performáticas – não descrições de situações existentes, mas
movimentos declarativos buscando transformar o que o texto
já tinha descrito. Para uma tradição que se baseou na elevação

32
Constance Webb, Not Without Love: Memoirs (Lebanon, NH: University Press of New
England, 2003), 266.
33
Romano and Stone, The American Worker.
34
James, “A Woman’s Place,” 79.
23
da consciência, estas afirmações sobre a consciência dos
trabalhadores, propagadas a esses próprios trabalhadores,
procuraram tornar-se profecias autorrealizáveis.
Apesar de todas as quatro enquetes certamente se dedicarem
à análise científica, comentando sobre novas formas de
produção, exploração e resistência, essas observações apenas
parecem servir como o contexto literário para uma narrativa
em desenvolvimento, em vez de servir como observações
incisivas sobre um ponto particular da produção. Todas as
tensões exploradas acima trabalham para diminuir
seriamente o valor da pesquisa específica desses textos. Mas é
importante reconhecer que eles apenas se tornam problemas
se alguém continuar a priorizar a função de pesquisa da
enquete operária. Se, contudo, o objetivo é construir
consciência de classe, então as distorções da forma narrativa
não são um problema em absoluto. Elas talvez sejam muito
necessárias. Com essas narrativas a tensão na enquete
operária de Marx – entre uma ferramenta de pesquisa por um
lado e uma forma de agitação no outro – é em grande parte
resolvida pela subordinação da primeira forma à segunda,
transformando a enquete em um meio para o objetivo de
construção de consciência.

Construindo o Circuito: Socialisme ou


Barbarie
Essas experiências americanas de enquete operária ressoaram
bem amplamente, se tornando um ponto de referência
explícito para um grupo francês em particular. Socialisme ou
Barbarie seguiu uma trajetória notavelmente similar àquela de
seus equivalentes americanos – os dois grupos estavam em
contato, compartilhando suas descobertas, traduzindo seus
trabalhos e até sendo coautores de um livro em certa altura.
Ele começou como a “tendência Chaulieu-Montal”, uma
corrente interna na seção francesa da Quarta Internacional
24
trotskista, nomeada conforme os pseudônimos de seus
principais agitadores, Cornelius Castoriadis (Pierre Chaulieu)
e Claude Lefort (Claude Montal). Como a tendência Johnson-
Forest nos Estados Unidos, a tendência Chaulieu-Montal logo
se encontrou em oposição ao movimento trotskista oficial,
estimulando uma ruptura no final de 1948. Cerca de vinte
militantes saíram para formar uma nova organização,
Socialisme ou Barbarie, com um novo jornal de mesmo nome.
A primeira edição foi lançada em março do ano seguinte35.
Tal como o Correspondence, Socialisme ou Barbarie colocou
muita ênfase na noção de experiência proletária. Para ambos
os grupos a teoria socialista e a estratégia, até mesmo o
próprio conteúdo do projeto socialista, só poderia derivar da
experiência cotidiana da classe trabalhadora. Daniel
Blanchard, um ex-integrante do Socialisme ou Barbarie,
refletiu sobre a concepção da organização de um projeto
socialista de sociedade: ele seria “não o resultado seja de um
sonho utópico ou de uma alegada ciência da história, mas das
criações do movimento dos trabalhadores. O proletariado é,
por sua prática, o perpétuo inventor da teoria revolucionária
e a tarefa dos intelectuais é limitada a sintetizá-la e
sistematizá-la”36.
Nesse aspecto, Socialisme ou Barbarie contestou o Partido
Comunista Francês (PCF) que defendia que o socialismo tinha
que ser trazido de fora para a classe trabalhadora. Para ambos,
Correspondence e Socialisme ou Barbarie, ao contrário, o
socialismo na verdade viria de dentro das experiências
proletárias cotidianas. Mas estes grupos concordavam que os
35
Para uma excelente introdução ao grupo em inglês, veja Marcel van der Linden,
“Socialisme ou Barbarie: A French Revolutionary Group (1949-1965)”, Left History
vol. 5, no. 1, 1997. Republicado em http://www.left-dis.nl/uk/lindsob.htm. Para
uma história geral, veja Philippe Gottraux, “Socialisme ou Barbarie”: Un engagement
politique et intellectuel dans la France de l’après-guerre (Paris: Editions Payot Lausanne,
1997).
36
“ From Workers’ Autonomy to Social Autonomy: An interview with Daniel
Blanchard by Amador Fernández-Savater”, disponível online em libcom.org.

25
trabalhadores eram em grande medida socializados pelo
capitalismo e então ainda continuam marcados pela ideologia
capitalista, ao menos em algum grau. Uma vez que quase
ninguém estava livre do raciocínio capitalista, a consciência
socialista não irromperia espontaneamente, mesmo que ela
estivesse sempre à espreita. A ideologia capitalista ainda tinha
que ser combatida; e algum outro mecanismo era necessário
para permitir essa consciência latente aparecer.
Esse mecanismo era a enquete operária. Então, enquanto a
tendência Johnson-Forest foi a primeira a recodificar a
enquete operária na forma de narrativa operária, Socialisme
ou Barbarie explicou o porquê: a narrativa proletária poderia
expressar a experiência proletária de modo que faria seu
conteúdo socialista embutido aparecer.
Socialisme ou Barbarie adotou essa forma específica de
enquete operária – a enquete enquanto relato narrativo –
partindo do que já tinha sido feito pelo Correspondence. O
grupo se empenhou em traduzir The American Worker, que
apareceu em série nas primeiras oito edições de seu jornal
homônimo. Esses militantes saudaram o panfleto como uma
nova e revolucionária forma de escrita; Philippe Guillaume o
introduziu com a declaração de que “o nome Romano estará
na história da literatura proletária e isso significará mesmo
uma virada nessa história”37.
A enquete operária nesse contexto francês inicial tomou,
portanto, aproximadamente a mesma forma que tomou com
os americanos, com The American Worker estabelecendo
novamente o paradigma. Ele não apenas formou a base
empírica para “Proletarian Experience” [“A Experiência
Proletária”] de Claude Lefort, a teorização mais séria da
enquete pelo Socialisme ou Barbarie, mas também geraria uma
série de enquetes francesas baseadas no relato de Singer. A

37
Philippe Guillaume, “L’Ouvrier Americain par Paul Romano,” Socialisme ou
Barbarie no. 1 (Mars/Avril 1949), 78; traduzido [ao inglês] nesta edição da Viewpoint.
26
primeira veio em 1952, quando Georges Vivier, um jovem
trabalhador na Chausson, começou uma série sobre a vida
proletária intitulada “La vie em usine” [A Vida na Fábrica]. As
mais famosas destas narrativas, porém, foram os diários de
Daniel Mothé, nome de guerra de Jacques Gautrat, um
operador na Renault-Billancourt38. Seus escritos, que
apareceram primeiro nas páginas de Socialisme ou Barbarie,
atraíram tanta atenção que uma versão editada logo foi
publicada pela Les Éditions de Minuit em 1959, sob o título
Journal d’um ouvrier 1956-1958 [Diário de Um Trabalhador]. Foi
bem recebida o suficiente para motivar a publicação de um
segundo diário, chamado Militant chez Renault [Militância na
Renault] pela Les Éditions du Seuil em 1965.
Haveria um segundo momento nessa circulação transnacional.
No momento em que Correspondence saiu do movimento
trotskista oficial para virar uma entidade própria, o grupo
decidiu revolucionar ainda mais a forma da enquete operária:
as narrativas de trabalhadores se tornaram um jornal de
trabalhadores. O jornal de trabalhadores era para ser mais
uma forma dinâmica da enquete, onde diferentes setores da
classe trabalhadora poderiam não somente compartilhar suas
experiências com tipos similares de trabalhadores, mas
poderiam de fato trocar essas experiências entre si através de
cartas aos editores.
Socialisme ou Barbarie certamente possuía algumas reservas
quanto às suposições teóricas subjacentes do projeto do
Correspondence, mas o grupo era suficientemente inspirado
pelo modelo do jornal de trabalhadores para promover um
próprio na França. Assim como The American Worker tinha
criado um novo gênero de escrita, também, eles acreditavam,
Correspondence significava um tipo inteiramente novo de
38
Para mais sobre essa figura fascinante, veja o livro que será lançado em breve de
Stephen Hastings-King sobre o Socialisme ou Barbarie. [Nota do Passa Palavra:
trata-se do livro “Looking For The Proletariat: Socialisme Ou Barbarie And The Problem Of
Worker”, publicado em 2014].

27
publicação. “Ele representa um esforço profundamente
original para criar um jornal que em sua maior parte é escrito
por trabalhadores para falar com outros trabalhadores a partir
de um ponto de vista dos trabalhadores”, eles escreveram em
1954. “Deve simplesmente ser reconhecido que Correspondence
representa um novo tipo de jornal e que ele abre um novo
período no jornalismo operário revolucionário”39. Então assim
como Socialisme ou Barbarie foi inspirado pelo The American
Worker para promover suas próprias narrativas de
trabalhadores, também foi motivado a defender a formação de
um jornal de trabalhadores na mesma linha do Correspondence.
Mas apesar de ambos os grupos usarem as narrativas operárias
e o jornal operário como um meio de acessar as experiências
proletárias, ainda havia ao menos uma diferença significativa.
Para o Correspondence, o socialismo já existia
embrionariamente nas experiências proletárias, que
simplesmente tinham que ser expressadas e compartilhadas
com outros trabalhadores. Foi o suficiente para proporcionar
um fórum no qual se pudessem fazer circular essas
experiências; a “sociedade socialista invasora” emergiria por
conta própria.
O Socialisme ou Barbarie permaneceu cético. Cornelius
Castoriadis comentaria muitos anos depois, se “você fala da
sociedade socialista invasora”, então você “mantém a linha
messiânica e apocalíptica; a ideia de que há um fim definitivo
na estrada e, a não ser que tudo se exploda, nós estamos indo
para lá e estamos destinados a acabar lá, o que não é
verdade”40. Para o Socialisme ou Barbarie, o desenvolvimento
do socialismo não era uma força irresistível, mas a própria
questão a ser respondida. Enquanto havia certamente
elementos rudimentares, incipientes, fragmentados, que
39
“Un journal ouvrier aux Etats-unis,” Socialisme ou Barbarie, no. 13 (jan-mars 1954):
82.
40
Cornelius Castoriadis, “CLR James and the Fate of Marxism,” em CLR James: His
Intellectual Legacies, ed. Selwyn Cudjoe and William Cain (Amherst: University of
Massachusetts Press, 1995), 287.
28
poderiam ser encontrados nas experiências proletárias, eles
não poderiam ser ativados simplesmente através da escrita ou
mesmo no compartilhamento dessa escrita com outros
trabalhadores. Alguns do Socialisme ou Barbarie até
acreditavam que estes elementos não poderiam ser
propriamente articulados em um projeto socialista coerente
até que fossem retrabalhados pela teoria.
Então os elementos ocultos recuperados pela enquete tinham
que ser politizados antes do socialismo poder ver a luz do dia.
Essas diferenças imediatamente colocam em questão a função
potencial dos intelectuais militantes. Para o Correspondence,
o papel dos intelectuais era ambíguo. Seu objetivo era
proporcionar o espaço para as experiências operárias serem
compartilhadas, mesmo se isto resultasse num potencial
ventriloquismo como no caso de Constance Webb e Si Owens.
Como um editorial de 1955 chamado “Must Serve Workers”
[“Há que Servir os Trabalhadores”] colocou, “A tarefa primária
de qualquer indivíduo que vem de outra classe ao movimento
dos trabalhadores é deixar seu passado para trás e se adaptar
e identificar completamente com a classe trabalhadora… A
função do intelectual é ajudar o movimento, é colocar sua
realização intelectual à disposição dos trabalhadores”41.
De fato, a própria estrutura da organização era determinada
por essa crença. Grace Lee Boggs depois relembrou em sua
autobiografia que o grupo tentou se basear na noção de Lenin
de que a melhor forma de combater a burocracia do “primeiro
escalão” dos intelectuais era desenvolver o “terceiro escalão”
dos trabalhadores42. Correspondence se dividia em três
escalões: “trabalhadores de verdade” no primeiro,
“intelectuais”, que agora estavam empregados em trabalhos
tradicionalmente feitos por “trabalhadores”, no segundo, e os

“Workers and Intellectuals,” Correspondence, vol. 2, no. 3 (February 5, 1955): 4.


41

Grace Lee Boggs, Living For Change: An Autobiography (Minneapolis: University of


42

Minnesota Press, 1998), 67.

29
“verdadeiros intelectuais” no terceiro. Como um ex-membro
evidentemente descontente lembra:
Os verdadeiros proletários eram colocados no primeiro escalão,
pessoas de status misto, como donas de casa, no segundo, e os
intelectuais eram colocados no terceiro. Nossas reuniões consistiam
no então agora prestigiado primeiro escalão tagarelando,
normalmente de uma maneira desarticulada e aleatória, sobre o que
eles pensavam sobre tudo que existia sob o sol. O resto de nós,
especialmente nós intelectuais de terceiro escalão, éramos
aconselhados a ouvir43.
Em contraste disso, Socialismo ou Barbarie afirmava que as
experiências operárias tinham que ser interpretadas e
desenvolvidas, o que abriu espaço para um papel diferente
para os intelectuais. O maior espaço que o Socialisme ou
Barbarie concedia à produção teórica o forçou a mais
diretamente, e talvez mais controversamente, questionar o
relacionamento entre trabalhadores e intelectuais,
especialmente como ele se associava com a prática da enquete
operária.
Mas para compreender os problemas levantados pelo jornal
operário temos que voltar para 1952 num artigo não assinado
de Claude Lefort, intitulado “Proletarian Experience”44.
Ocultas no interior de suas experiências cotidianas estão
atitudes proletárias básicas, talvez até universais: “Antes de
qualquer reflexão explícita, de qualquer interpretação sobre
seu destino ou seu papel, os trabalhadores têm
comportamentos espontâneos no que diz respeito ao trabalho
industrial, à exploração, à organização da produção e da vida
social tanto dentro quanto fora da fábrica”45. Para acessar
essas atitudes, que para Lefort formavam a própria base do
projeto socialista, os militantes tinham que coletar relatos de

43
Um ex-membro anônimo do Correspondence citado em Ivar Oxaal, Black
Intellectuals Come to Power (Cambridge: Schenkman Books, 1968), 78.
44
Para uma discussão detalhada da visão de Lefort sobre esse problema, veja
Stephen Hastings-King, nesta edição.
45
Claude Lefort, “ Proletarian Experience”, traduzido [ao inglês] nesta edição.
30
experiências proletárias. Com efeito, aprender sobre as
experiências da classe trabalhadora e investigar a sua vida
diária tinha que ser um aspecto fundamental de quaisquer
organizações revolucionárias. “Socialisme ou Barbarie
gostaria de solicitar depoimentos de trabalhadores”, ele
anunciou, “e publicá-los ao mesmo tempo em que dá um papel
importante a todas as formas de análise referentes à
experiência proletária”46.
Como essas atitudes, no entanto, permanecem latentes e
porque elas eram necessariamente parciais, depoimentos
deveriam não só ser coletados, mas também interpretados. E
aí reside o verdadeiro problema: quem tinha o direito de
interpretar esses relatos? Lefort concluiu seu ensaio
programático com exatamente essa pergunta, que ele
respondeu com outra:
Quem revelará por trás do conteúdo explícito de um documento as
intenções e atitudes que o inspiraram e justaporá os depoimentos?
Os camaradas do Socialisme ou Barbarie? Mas isto não contrariaria
suas intenções, dado que eles propõem um tipo de pesquisa que
permitiria aos trabalhadores refletir sobre sua experiência?47
Naquele momento essas questões não pressionavam tanto, já
que o Socialisme ou Barbarie permanecia nas margens e a
enquete na escala imaginada por Lefort era uma mera
proposta. Mas elas se tornaram uma preocupação prática no
maio de 1954, quando um jornal operário efetivamente surgiu
na França. Tudo começou na Renault-Billancourt, uma fábrica
de automóveis nos subúrbios de Paris. Uma fábrica
monstruosa, empregando cerca de 30.000 trabalhadores, era
também um local lendário de militância proletária e
amplamente considerado uma fortaleza do Partido Comunista.
Mas pelos anos de 1950 o partido lentamente começou a
perder sua adesão, crescentemente estando sob o fogo de

46
Lefort, “Proletarian Experience.”
47
Lefort, “Proletarian Experience.”

31
elementos mais radicais, como os trotskistas. Era neste
contexto que, em abril de 1954, uma ruptura ocorreu quando
alguns trabalhadores de um dos chãos de fábrica começaram a
circular um panfleto sobre os níveis salariais. Isso foi
calorosamente recebido por outros trabalhadores e,
encorajados por essa recepção entusiasmada, alguns
trabalhadores decidiram lançar um jornal mensal,
independente e clandestino, chamado Tribune Ouvrière
[“Tribuna Operária”]48.
“O que queremos”, anunciou a primeira edição do jornal
operário, se posicionando tanto contra a administração da
Renault quanto à direção do PCF, “é acabar com a tutela que as
assim chamadas organizações operárias exerceram sobre nós
por muitos anos. Nós queremos que todos os problemas
relativos à classe trabalhadora sejam debatidos pelos próprios
trabalhadores… O que sugerimos é fazer deste jornal uma
tribuna na qual solicitamos sua participação. Nós gostaríamos
que este jornal refletisse as vidas e opiniões dos trabalhadores.
É sua responsabilidade fazer isso acontecer”49.
Socialisme ou Barbarie rapidamente apoiou o jornal,
oferecendo suporte financeiro, ajudando a distribuí-lo e até
publicando extratos do jornal em sua própria revista. Mas o
relacionamento exato entre as duas publicações – uma um
jornal clandestino escrito, editado e gerenciado por operários
fabris, o outro um jornal teórico quase inteiramente
produzido por intelectuais – era ambíguo e, por vezes,
altamente divisivo. Alguns viam o jornal operário como um
local independente para a voz crua da classe trabalhadora, seja
lá o que isso significasse, e, portanto, apenas frouxamente
aliado com o projeto teórico levado pelo Socialisme ou
Barbarie; outros queriam formalmente integrá-lo com o
48
Para uma explicação fascinante desse jornal por um militante intimamente
envolvido em seu desenvolvimento, veja a contribuição de Henri Simon para esta
edição.
49
“Que voulons-nous?” em Tribune Ouvrière no. 1 (mai 1954), reimpresso em
Socialisme ou Barbarie nos. 15/16: 74.
32
Socialisme ou Barbarie, esperando que o jornal operário
pudesse introduzir as rigorosas ideias do grupo a uma
audiência proletária mais ampla.
Em 1955, Tribune Ouvrière começou a passar por dificuldades.
O coletivo não tinha realmente crescido, os trabalhadores em
geral pareciam indiferentes ao jornal e o corpo editorial
permaneceu pequeno, com não mais do que talvez 15
trabalhadores. Parte desta falta de interesse geral resultava de
desafios logísticos. A equipe editorial tinha recursos mínimos
e não poderia sustentar cobrar preços elevados, já que
nenhum trabalhador pagaria um jornal caro. Também era
muito difícil distribuí-lo. Enquanto um jornal clandestino, ele
só poderia ser circulado de mão em mão. E suas reuniões não
poderiam ser organizadas abertamente, fazendo ser muito
difícil estabelecer relações de longo prazo com leitores
interessados.
Mas havia ainda outro problema em jogo, talvez mais
fundamental. Daniel Mothé usou a oportunidade para escrever
um artigo programático sobre o significado do jornal operário,
passando uma porção significativa do artigo discutindo o
relacionamento entre trabalhadores e intelectuais. Deve ser
notado desde o início que Mothé não era realmente um
observador “neutro”. O único a possuir um pé em ambas as
organizações, Mothé era um dos agitadores principais por trás
do jornal, assim como um membro do Socialisme ou Barbarie
desde 1952 – portanto, ele tinha um interesse atribuído em
“resolver” o vexado relacionamento entre as duas
publicações50. É altamente significativo, além disso, que Mothé
50
Mothé era um dos poucos trabalhadores no grupo, o que fazia com que muitos o
colocassem num tipo de pedestal. Como relembra Lefort, “As propostas de Mothé,
frequentemente muito ricas, mas às vezes confusas, tinham peso para muitos
porque ele deveria ‘representar’ a Renault. Mothé era consciente do papel de que
era encarregado e enquanto ele tirava vantagem disso, ele também era exasperado
por isso. O clima seria bem diferente se tivéssemos mais trabalhadores entre nós”.
“An interview with Claude Lefort,” Telos 30 (Winter 1976-77): 178. Essa falta de
trabalhadores no grupo talvez fosse uma razão para a escassez de narrativas
operárias que constantemente atormentou o Socialisme ou Barbarie. Isso também
33
publicou seu longo artigo sobre o Tribune Ouvrière no
Socialisme ou Barbarie.
Ao contrário do Correspondence, que mencionou diretamente
em seu artigo, Mothé argumentou que um jornal operário,
apesar de ser inteiramente escrito pelos próprios operários,
ainda tinha que participar de algum tipo de diálogo com
militantes intelectuais – na verdade, isto tinha que ser sua
função primária. Para Mothé existe uma clara divisão do
trabalho, determinada pelo próprio modo capitalista de
produção, que não poderia ser obstinadamente ignorada. A
política revolucionária tinha de levar em conta esta divisão, ao
invés de querer deixá-la de lado. Mothé prossegue nesta
observação para construir uma dicotomia entre dois tipos
ideais: o trabalhador de um lado e o intelectual militante no
outro. Eles são primariamente distinguidos, diz ele, por sua
formação, sugerindo que “se a formação do militante
revolucionário é uma formação que é quase exclusivamente
intelectual”, especialmente durante um período em que
“minorias revolucionárias” tinham se desenraizado da classe
trabalhadora, a “formação política dos trabalhadores é, ao
contrário, quase exclusivamente prática”. Esta formação
prática era adquirida em conjunto da experiência de luta e
tornou-se a base de novos métodos de luta. A chave do
problema é achar uma maneira de associar estes dois polos
distintos, criar uma forma que possa unir a “experiência
imediata dos trabalhadores e a experiência teórica do
militante revolucionário”51.

marca uma diferença significante entre o Correspondence e o Socialisme ou


Barbarie. O primeiro era esmagadoramente operário. Em 1954 se vangloriavam de
ter 75 trabalhadores filiados e apenas 5 que se autodescreviam como intelectuais;
veja The Correspondence Booklet (Detroit: Correspondence, 1954), 1. Em contraste, a
lista de membros do Socialisme ou Barbarie consistia largamente de intelectuais ou
estudantes.
51
Daniel Mothé, “Le problème d’un journal ouvrier,” Socialisme ou Barbarie no. 17
(juillet-septembre 1955), 30; traduzido [ao inglês] nesta edição da Viewpoint.
34
Mothé argumentou que cada polo tinha que cumprir uma
função única que era, no entanto, dependente da outra. O
militante revolucionário articula teoria revolucionária,
comunica essa teoria para a classe trabalhadora e combate
ideias falsas52. Os “elementos essenciais” dessa teoria,
contudo, são eles mesmos elaborados das experiências vividas
pela classe trabalhadora. Eles formam um relacionamento
recíproco: “Neste sentido, se a classe trabalhadora necessita
da organização revolucionária para teorizar sua experiência, a
organização necessita da classe trabalhadora para poder
elaborar sobre essa experiência. Este processo de osmose
possui uma importância decisiva”53.
O pilar desta relação, afirmou Mothé, é precisamente o jornal
de trabalhadores. A função real do jornal operário é mediar
entre esses dois polos. Ele é o meio pelo qual os trabalhadores
podem expressar suas experiências cotidianas, que podem
então ser teorizadas pelos militantes revolucionários. Os
militantes podem então ler estes relatos, peneirar neles
tendências políticas latentes e trabalhar suas ideias
rudimentares dentro da teoria revolucionária. Ao mesmo
tempo, presume-se, o jornal pode servir como o veículo em
que estas novas teorias desenvolvidas serão então
transmitidas de volta para a classe trabalhadora.
O modelo de Mothé, contudo, levantou tantas questões quanto
respondeu. Para começar, havia a noção imprecisa de
experiência e a questionável hipótese de que, em sua base,
todas as experiências proletárias articulavam um conjunto de
atitudes universais. A tendência Johnson-Forest e Claude

52
Mothé frequentemente usa o termo “ideologia revolucionária” ao invés de teoria
revolucionária.
53
Note como Mothé substitui “organização revolucionária” por “militantes
revolucionários”. Isso parece sugerir que, de acordo com esse modelo, a
organização pode ser composta apenas de militantes. Isso pode ser um reflexo da
situação que o Socialisme ou Barbarie se encontrava: um grupo que era composto
quase que inteiramente por intelectuais é transformado em um grupo de tipo
teórico.
35
Lefort compartilhavam esta suposição. Com efeito, em
“Proletarian Experience”, Lefort chegou a escrever:

Dois trabalhadores em situações muito diferentes têm em comum


que ambos suportaram uma ou outra forma de trabalho e
exploração que é essencialmente a mesma e que absorve três
quartos de sua existência pessoal. Seus salários podem ser bem
diferentes, suas situações de vida e convívio familiar podem não ser
comparáveis, mas ainda permanece o caso de que eles são
profundamente idênticos em seus papéis como produtores ou
operadores de máquina, e em sua alienação.
Mesmo que se limite a classe trabalhadora aos operários fabris,
o que Lefort pareceu fazer, tal afirmação reduz a
heterogeneidade da classe trabalhadora para uma essência
humana compartilhada: os trabalhadores são iguais em toda
parte porque eles têm suas forças criativas universais
alienadas nas coisas que produzem. Mas tal concepção nos
impede de compreender as muitas formas que a força de
trabalho assume, a pluralidade de maneiras em que é colocada
para trabalhar e os diversos processos pelo qual é explorada.
Tudo isso nos leva a perguntar quem realmente são estes
“trabalhadores” de que Mothé fala. Se os militantes
revolucionários têm de elaborar sobre as experiências
proletárias, estas incluem as das donas de casa e trabalhadores
rurais? Os militantes revolucionários devem elaborar sobre
todas estas experiências, ou será apenas a experiência de um
setor suficiente, e se assim for, quem falará por todo o resto?
A terminologia volátil de Mothé expõe sua preferência. O
artigo começa por delinear uma distinção entre “militantes
revolucionários” e “trabalhadores”, mas Mothé logo fala de
“militantes revolucionários” e “trabalhadores de vanguarda”.
O movimento assinala sua priorização de um tipo de
trabalhador sobre outros. De fato, para Mothé, assim como
para a maioria do Socialisme ou Barbarie, quando eles falavam
da classe trabalhadora, eles falavam na verdade da classe
trabalhadora industrial, particularmente nas fábricas
36
automotivas; mas até mais especificamente sua figura ideal,
sua vanguarda idealizada, eram trabalhadores
semiqualificados. É importante notar que enquanto o
Socialisme ou Barbarie procurava evitar toda a noção de
partido de vanguarda, indo diretamente para a classe
trabalhadora, mesmo seus elementos mais “anarquistas”,
como Lefort, permaneceram envoltos na problemática geral
do vanguardismo: o elemento vanguardista não era mais
exterior à classe, mas interior.
Mothé acrescentou uma qualificação adicional para essa
redução. O trabalhador deveria não apenas ser o mais
politicamente consciente de sua classe, mas também deveria
ser capaz de expressar suas experiências de uma maneira que
elas pudessem ser teorizadas. Isto requereria não apenas um
alto grau de alfabetização geral, assim como uma razoável
porção de confiança, mas também certa fluência em um léxico
político mais desafiador. “Neste sentido”, esclareceu Mothé,
“os trabalhadores mais adaptados para a escrita serão ao
mesmo tempo os mais conscientes, os mais educados, mas
também os que mais se libertarão da influência ideológica
burguesa ou stalinista”54. Então Mothé queria um trabalhador
que poderia não só refletir sobre sua situação ou transcrevê-la
numa narrativa que imitasse a cultura oral natural do
trabalhador médio, mas que também estivesse livre de toda
ideologia não revolucionária. Não é surpresa, assim, que
Mothé e a maioria do Socialisme ou Barbarie encontraram
apenas um trabalhador que preenchesse os requisitos: o
próprio Daniel Mothé55.
A substituição sinédoque de um único trabalhador fabril
politicamente consciente para a classe trabalhadora como um
todo marca um significante passo para trás em relação às

54
Mothé, “Le problème d’un journal ouvrier,” 47.
55
Essas qualificações rigorosas exacerbaram o grande problema encarado por esse
projeto: a relutância da maioria dos trabalhadores em escrever.

37
posições desenvolvidas pela tendência Johnson-Forest, e
depois pelo Correspondence, que tinham identificado ao
menos quatro segmentos distintos da classe trabalhadora:
trabalhadores industriais, negros, mulheres e jovens.
Talvez a parte mais complicada do modelo de Mothé, contudo,
tinha a ver não tanto com o primeiro passo neste processo –
dos trabalhadores para os intelectuais – mas com o segundo,
dos intelectuais para os trabalhadores. Mothé gastou um
bocado de tempo discutindo o primeiro processo, mas muito
pouco sobre o segundo. Isto era devido em grande parte
porque este segundo processo provou ser controverso tanto
entre os militantes revolucionários do Socialisme ou Barbarie
quanto entre os operários fabris que formavam o núcleo
editorial do Tribune Ouvrière56.
Alguns apoiavam fortemente o “retorno” das ideias socialistas
para a classe trabalhadora. Castoriadis era o primeiro a
defender, já em junho de 1956, que o grupo tinha que criar um
“jornal operário” separado e direcionado explicitamente à
classe trabalhadora, não só em Paris, mas em toda a França.
Era imperativo, ele pensava, introduzir mais trabalhadores ao
trabalho teórico do Socialisme ou Barbarie e avivar a própria
teoria, pela necessidade de se envolver com uma audiência
mais ampla e assim escrever de forma mais acessível, o que
levaria os militantes a trabalhar de uma maneira mais
“concreta”, evitando abstrações e prestando maior atenção
aos desenvolvimentos na luta de classes.
Essa proposta foi rejeitada. Alguns, como Mothé, aceitaram a
posição teórica de Castoriadis sinceramente e concordaram
com a necessidade de tal jornal, mas sentiam que ele era
56
O núcleo editorial do Tribune Ouvrière já estava em ruínas por disputas ideológicas
internas. Embora ele tenha apoiado um relacionamento próximo entre os dois
jornais, Mothé não queria tornar o Tribune Ouvrière um jornal político, em outras
palavras, ele se opôs a ideia de que o jornal deveria comunicar ideias
manifestamente políticas aos trabalhadores e defendeu que ele deveria ser
principalmente um espaço onde trabalhadores pudessem discutir suas
experiências. Gottraux, “Socialisme ou Barbarie”, 67.
38
impraticável pela falta de recursos e pelo fato de que o jornal
provavelmente não encontraria uma audiência pronta, dado
que eles ainda não desfrutavam de laços fortes com a classe
trabalhadora mais ampla na França. Além disso, Mothé tinha
visto diretamente, pelo seu trabalho com o Tribune Ouvrière, o
quão difícil era operar um “jornal operário” mesmo que em
apenas uma fábrica, quanto mais em toda a França, como
esperava Castoriadis.
Outros, como Henri Simon e Claude Lefort, se opunham ao
jornal em bases teóricas, ressaltando mais uma vez uma
divisão importante sobre a vexada “questão da organização”.
Simon perguntou em que medida o jornal realmente seria um
jornal operário se ele era forçadamente direcionado a
transmitir teoria revolucionária aos trabalhadores57. Como é
que isto seria diferente dos outros jornais “operários”, como
aqueles patrocinado pelo PCF, que eles criticavam tão
duramente?
Numa linha semelhante, Lefort, que tinha sempre se oposto à
imposição de qualquer tipo de “direção” para os movimentos
autônomos da classe trabalhadora, depreciou o jornal
proposto por Castoriadis como “uma operação vinda de cima”.
Como ele colocou, “Chaulieu decidiu ter esse jornal a qualquer
custo, mesmo que não haja público da classe trabalhadora para
difundi-lo, e ainda menos trabalhadores para tomar parte
ativamente nele”58. De fato, Lefort nunca se opôs à noção de
um jornal operário, nem mesmo a tal organização ou teoria.
Mas sua convicção de que tudo tinha que fluir organicamente
da própria classe trabalhadora se traduziu numa profunda
desconfiança em relação aos programas: quaisquer que sejam
as intenções por trás do esboço de tal documento e mesmo que
fosse elaborado em referência à classe, um programa sempre
acabaria por ossificar numa forma exterior, em última análise

57
Para mais sobre a posição de Henri Simon sobre a enquete, o jornal operário e
essa experiência mais ampla, veja a contribuição dele para esta edição.
58
Gottraux, “Socialisme ou Barbarie”, 86.
39
servindo de camisa de força para a espontaneidade da classe
trabalhadora. Tal posição, que implicava um papel
extremamente circunscrito aos militantes, era antitética à
posição de Castoriadis, já revelando uma diferença
irreconciliável entre os dois principais teóricos por trás da
revista. E foi precisamente a enquete operária, na forma de
jornal, que revelou isso de forma mais marcante. Embora
ambos tenham se reunido por conta da enquete operária, cada
um tinha um objetivo bem diferente em mente. Para Lefort, o
objeto da pesquisa eram as atitudes proletárias universais;
para Castoriadis, era o conteúdo rudimentar do programa
socialista.
Embora a proposta tenha sido derrotada, o assunto voltou a
explodir plenamente em 1958. O golpe de De Gaulle criou uma
situação inteiramente nova. A esquerda estabelecida parecia
paralisada, uma onda de novos recrutas inundou o Socialisme
ou Barbarie e muitos, liderados por Castoriadis, acreditavam
que o momento de transformar o grupo em uma organização
revolucionária havia finalmente chegado, integrada com uma
linha e um jornal popular como o que ele tinha proposto
anteriormente em 195659. Uma ruptura tomou forma por conta
das velhas falhas sísmicas e em setembro a minoria, liderada
por Lefort e Simon, saiu para formar o Information e Liaisons
Ouvrières [Informação e Conexões Operárias, ILO]60.
Uma das primeiras ações deste reinventado Socialisme ou
Barbarie foi criar um novo jornal, Pouvoir Ouvrier [“Poder
Operário”], em dezembro daquele ano. A forma do jornal
refletia os objetivos de Mothé e Castoriadis, inicialmente
dividido em duas seções: uma política, que publicava versões

59
Para mais sobre essa conjuntura, veja “Interview with Castoriadis,” Telos 23
(Spring 1975), 135.
60
Para mais sobre essa ruptura, Marcel van der Linden, “Socialisme ou Barbarie: A
French Revolutionary Group (1949-1965)”. Para uma breve análise da perspectiva
de um militante que estava envolvido, veja Henri Simon, “ 1958-1998: Communism
in France: Socialisme ou Barbarie, ICO and Echanges”, disponível online em
libcom.org.
40
simplificadas das teorias desenvolvidas na sua organização-
mãe, e outra intitulada “La parole aux travailleurs” [“A Palavra
aos Trabalhadores”], que publicava depoimentos de
trabalhadores na tradição de Paul Romano.
Argumentando pela necessidade estratégica do jornal,
Castoriadis elaborou sua concepção do relacionamento do
intelectual e o trabalhador em “Proletariado e Organização,
Parte 1”, escrito no verão de 1958 enquanto a ruptura com a
facção de Lefort estava ocorrendo. Enquanto o modelo de
jornal de Mothé era algo como uma linha de transmissão,
movendo-se para frente e então para trás entre trabalhadores
e intelectuais, como se ao toque de um interruptor, neste texto
Castoriadis fornece uma imagem mais dinâmica, mais como
um circuito. Militantes não disseminam simplesmente suas
teorias entre trabalhadores para convertê-los ao socialismo,
eles submetem suas teorias para verificação. A teoria
revolucionária “não terá valor, consistência com o que
proclama em outra parte serem seus princípios essenciais”,
Castoriadis defendeu, “a não ser que ela esteja sendo
constantemente reabastecida, na prática, pela experiência dos
trabalhadores enquanto toma forma nas suas vidas
cotidianas”; era este processo que permitiria os trabalhadores
“educarem o educador”61. Isso significava que o Socialisme ou

61
Daniel Blanchard viu uma perfeita ilustração disso no relacionamento entre
Mothé e Castoriadis: “Considerando que as organizações leninistas mantiveram os
trabalhadores manuais e intelectuais estritamente separados em papéis específicos
(os últimos educando os primeiros em qualquer caso), no SouB nós devotamos
esforços especiais – que frequentemente eram malsucedidos – para abolir essa
separação. Por exemplo, o relacionamento entre Mothé e Castoriadis era um
exemplo interessante da colaboração de um trabalhador muito inteligente, como
era Mothé, e um teórico como Castoriadis. As ideias que Castoriadis elaborou
ajudaram Mothé a entender sua própria realidade na fábrica. E Mothé era então
capaz de analisar sua experiência de uma maneira muito concreta, que por sua vez
nutria os trabalhos teóricos de Castoriadis; Blanchard, “ Autonomy.” Henri Simon
também comentou sobre esse par, mas de uma perspectiva mais crítica: “No
Socialisme ou Barbarie havia um tipo de harmonia [osmose], simbiose
Mothé/Castoriadis. Havia quase sempre lado a lado no Socialisme ou Barbarie um
artigo teórico de Castoriadis e um artigo concreto de Mothé. Mothé via a fábrica
41
Barbarie, que tinha sido até o momento uma revista
excessivamente “intelectual”, teria que repensar sua prática.
“A tarefa que a organização tem pela frente nesta esfera”, ele
continuou, “é unir intelectuais com trabalhadores enquanto
trabalhadores, e enquanto simultaneamente elabora os seus
pontos de vista. Isto significava que as perguntas feitas e os
métodos para discutir e trabalhar estes problemas devem ser
alterados para que seja possível que o trabalhador tome
parte”. A teoria revolucionária tinha que ser mais acessível, a
organização tinha que se tornar mais disciplinada e sua
composição tinha que mudar:
Apenas uma organização formada como uma organização operária
revolucionária, em que trabalhadores predominem numericamente
e a dominem em questões fundamentais, e que crie amplas vias de
troca com o proletariado, permitindo-se assim aproveitar da mais
vasta experiência possível da sociedade contemporânea – somente
uma organização deste tipo pode produzir uma teoria que será
outra coisa que não o trabalho de especialistas isolados.
Como Mothé, ele argumentou que os militantes tinham que
“extrair o conteúdo socialista naquilo que estava sendo
constantemente criado pelo proletariado (quer se trate de uma
greve ou de uma revolução), formulá-lo coerentemente,
propagá-lo e mostrar sua importância universal”62. A teoria
deve fluir a partir da “experiência e ação histórica e cotidiana
do proletariado”, e mesmo a “teoria econômica tinha que ser
reconstruída em torno do que está contido em embrião na
tendência dos trabalhadores para a igualdade salarial; toda a
teoria de produção em torno da organização informal dos
trabalhadores na fábrica; toda a teoria política em torno dos
princípios incorporados nos sovietes e nos conselhos”. Mas
depois caberia aos militantes extrair “o que é universalmente

pelas lentes teóricas de Castoriadis”; “ Entretien d’Henri Simon avec l’Anti-mythes


(1974)”, disponível online em raumgegenzement.blogsport.de.
62
Cornelius Castoriadis, Political and Social Writings, Volume 2, 1955-1960: From the
Workers’ Struggle Against Bureaucracy to Revolution in the Age of Modern Capitalism
(Minneapolis: University of Minnesota Press, 1988), 213. Referências posteriores a
essa coleção são dadas no texto.
42
válido na experiência do proletariado”, trabalhar isto numa
“perspectiva socialista” geral, então propagar esta perspectiva
entre os trabalhadores cujas experiências serviram como sua
própria condição de possibilidade (214).
Castoriadis tentou precisamente isso na terceira parte de seu
“Sobre o Conteúdo do Socialismo”, também em 1958. Depois
de criticar a experiência da burocracia bolchevique e então
imaginar uma gestão conselhista da sociedade nas partes um e
dois, ele se voltou na última parte para a análise do processo
de trabalho no nível da empresa. O conteúdo do socialismo é o
“centro privilegiado, ponto focal” sem o qual só existe “mera
sociologia empírica”. O conteúdo do socialismo poderia apenas
ser demonstrado na “luta do proletariado contra a alienação”
(156).
A contradição principal do capitalismo, argumentou
Castoriadis, está na definição da troca de força de trabalho,
entendida como a tensão entre o “tempo humano” do
trabalhador e a racionalização imposta pela administração.
Apenas pode haver um equilíbrio de forças temporário entre
os dois, o trabalhador resignando a um compromisso
estabelecendo um certo ritmo de trabalho, que deve ser
dissolvido e reinventado quando o processo de manufatura é
transformado pelo novo maquinário. A função do taylorismo
era reduzir a heterogeneidade do tempo humano para a
“‘única melhor maneira’ de cumprir cada operação”,
padronizando os procedimentos de trabalho e determinando
uma produção média em relação à qual os salários poderiam
ser determinados – uma tentativa da administração de
eliminar a possibilidade de conflitos salariais (159-60).
Mas a “única melhor maneira” do taylorismo não poderia
explicar a realidade do processo de trabalho, realizado por
indivíduos com multiplicidades de “melhores maneiras” – com
seus próprios gestos e movimentos, suas próprias formas de
adaptação às suas ferramentas, seus próprios ritmos de
execução. A coletividade de indivíduos no chão de fábrica teria
43
que realizar sua própria forma de “associação espontânea”
contra a racionalização da administração, mesmo que para
cumprir os objetivos da administração (163).
Aqui o conceito de “grupo elementar”, o “núcleo vivo da
atividade produtiva”, extraído tanto de The American Worker e
dos diários de Mothé quanto da sociologia industrial, se tornou
decisivo63 (170). Cada empresa, escreveu Castoriadis, tinha
uma “dupla estrutura”, sua “organização formal”
representada em gráficos e diagramas, e sua organização
informal, “cujas atividades são levadas e sustentadas por
indivíduos e grupos em todos os níveis da pirâmide
hierárquica conforme as exigências de seu trabalho, os
imperativos da eficiência produtiva e as necessidades de sua
luta contra a exploração” (170) A distinção entre as duas não
era meramente uma questão de “teoria contra prática”, de
uma ilusória ideologia dos patrões contra a realidade confusa
do chão de fábrica, como alguns sociólogos liberais poderiam
conceber. Ela representava a verdadeira luta pela qual a
administração tentava envolver todo o processo de produção.
Contra a “administração separada [direction]” da burocracia, o
grupo elementar constituía “a administração [gestion] de sua
própria atividade” (169-70, 171). A oposição entre os dois,
Castoriadis argumentou, era o verdadeiro caráter da luta de
classes, a organização formal coincidindo com o “estrato
administrativo” e a organização informal representando “um
modo diferente de operação da empresa, centrado na situação
real dos executantes”. Esta luta entre “diretores e
executantes” caracterizava o local de trabalho capitalista,
começando no nível do grupo elementar e se estendendo a
toda a empresa. Visto que a “posição de cada grupo elementar
é essencialmente idêntica a dos outros”, a cooperação entre os
grupos os leva “a se unir em uma classe, a classe dos

63
Para uma fascinante explicação autobiográfica do fenômeno veja Stan Weir, “The
Informal Work Group” em Rank and File: Personal Histories by Working-Class Organizers,
ed. Alice and Staughton Lynd, expanded edition (Chicago: Haymarket Books, 2011).
44
executantes, definida por uma comunidade de situação,
função, interesses, atitude, mentalidade” (171).
Se a sociologia industrial da perspectiva administrativa era
incapaz de reconhecer esta divisão de classe no local de
trabalho e, portanto, se perdeu em abstração teórica, o mesmo
ocorreu com os marxistas cujo conceito de classe não começa
com “as articulações básicas no interior da empresa e entre os
grupos humanos no interior da empresa”. Sua ideologia os
bloqueou de “ver o processo vital de formação de classe do
proletariado, da autocriação como o resultado de uma luta
permanente que começa no interior da produção” (172).
Essa ideologia tinha consequências políticas diretas. Para
Castoriadis, mesmo reivindicações salariais eram expressões
nascentes da luta pela qual a organização informal dos
executantes tendia para um ataque à administração capitalista
da produção. Se os partidos marxistas e sindicatos tentavam
restringir o conteúdo destas lutas à administração burocrática
da redistribuição de renda, isso somente poderia reforçar a
divisão de diretores/executantes. “Ao conceito abstrato de
proletariado corresponde o conceito abstrato de socialismo
como nacionalização e planificação”, escreveu Castoriadis,
“cujo único conteúdo concreto se revela, em última análise,
ser a ditadura totalitária dos representantes dessa abstração –
a burocracia partidária”. Para que a luta dos trabalhadores se
realize verdadeiramente ela deverá avançar em direção à
autogestão operária da produção (172).
Sem essa transformação completa da sociedade o capitalismo
continuaria em seu curso corrente, com o “tremendo
desperdício” gerado por seu processo de produção irracional.
Cada empresa tentou vacilantemente harmonizar entre a
decomposição dos executantes em indivíduos atomizados e
sua reintegração em novas totalidades unificadas que
correspondem a um novo processo de produção racionalizado
(172-3). Mas o plano administrativo é inevitavelmente incapaz
de estabelecer uma hierarquia de tarefas que reflita as
45
exigências reais da produção – enquanto a administração
desconhece a realidade do processo no chão de fábrica, o
executante é separado do plano e desinteressado nos
resultados, propenso a tomar atalhos (175). Apenas “a prática,
a invenção, a criatividade da massa de executantes”, a
coletividade do grupo elementar, pode preencher as lacunas
nas diretrizes de produção da administração (176).
Mas apesar da afirmação de Castoriadis sobre a criatividade
dos executantes na produção de mercadorias, seu papel na
produção de teoria estava declinando bruscamente. Como
Simon, Lefort e outros temiam, as narrativas operárias cada
vez mais se tornaram um mero ornamento no Pouvoir Ouvrier.
Confirmando essa preocupante tendência, em novembro de
1959 o grupo votou para mudar a ênfase do jornal mais ainda
para a seção “política”. Pela primavera de 1961, a seção
separada intitulada “La parole aux travailleurs” desapareceu
completamente64. O jornal, portanto, terminou apenas
cumprindo a segunda função delineada por Mothé – transmitir
teoria revolucionária para a classe trabalhadora. Mas sem a
primeira função – expressar experiências proletária – Pouvoir
Ouvrier se tornou simplesmente outra publicação
vanguardista, indistinguível dos vários jornais que Mothé
originalmente criticou.
Para sermos justos, parece que o desaparecimento de “La
parole aux travailleurs” foi em grande parte resultado de uma
falta de narrativas operárias. De fato, esse problema
atravessou as rupturas no Socialisme ou Barbarie. Quaisquer
que fossem as diferenças entre as concepções de Lefort, Mothé
e do Pouvoir Ouvrier sobre a enquete e a relação entre
trabalhadores e intelectuais, todos eram dependentes de um
fluxo constante de relatos de trabalhadores. Mas para sua

64
Gottraux, “Socialisme ou Barbarie”, 120-121.
46
decepção, eles descobriram que os trabalhadores
simplesmente não queriam escrever65.
É significativo aqui que todos esses modelos imaginavam a
enquete operária da mesma maneira: não o questionário,
como Marx sugeriu, mas o testemunho escrito iniciado por
Romano. Lefort se exaustou a criticar explicitamente a
estratégia “baseada estatisticamente” de trabalhadores
fazendo “centenas de perguntas” entre si, uma vez que estas
resultariam em meras correlações numéricas e seriam
incapazes de trazer à tona os “sistemas de vida e pensamento”
de “indivíduos concretos”. Ainda pior, uma “pergunta imposta
de fora pode ser irritante para o sujeito sendo questionado,
dando forma a uma resposta artificial ou, em qualquer caso,
imprimindo-lhe um caráter que de outro modo não teria” 66.
Mas é difícil não pensar se a escassez de respostas de
trabalhadores tinha a ver com esta forma específica de
enquete. Apesar das narrativas operárias poderem permitir os
trabalhadores se expressarem mais organicamente, elas são,
no entanto, muito mais difíceis de compor do que responder
um questionário.
Assim como o Pouvoir Ouvrier se viu afastar de seus objetivos
originais, Information et Liaisons Ouvrières também
encontrou algumas dificuldades. Ao contrário da maioria do
Socialisme ou Barbarie, que afirmava a necessidade de um
partido formal, integrado com um tipo de comitê central, a
minoria do ILO tinha defendido uma estrutura mais
descentralizada, baseada em células operárias autônomas,
onde tudo poderia ser discutido abertamente. O núcleo do
grupo seriam essas células, baseadas em várias empresas, e o
papel do ILO. não seria disseminar ideias vindas de cima, como

65
De fato, parece que o Pouvoir Ouvrier nunca aprendeu realmente as lições do
Tribune Ouvrière; Castoriadis se encontrou escrevendo outro artigo, dessa vez no
Pouvoir Ouvrier, em que ele tentou, mais uma vez, teorizar sobre o porquê de os
trabalhadores simplesmente não estarem escrevendo. Veja Cornelius Castoriadis,
“What Really Matters” em PSW 2, 223-5.
66
Claude Lefort, “Proletarian Experience.”
47
o Pouvoir Ouvrier logo faria, mas circular experiências,
informação e ideias entre essas várias células. Ele deveria ser
algo como uma rede, estabelecendo ligações entre diferentes
trabalhadores, muito nas linhas do Correspondence.
Considerando que o Pouvoir Ouvrier queria propagar o projeto
socialista entre os trabalhadores, o ILO, Lefort mais tarde
relembrou, objetivava “distribuir um boletim que fosse o mais
não programático quanto possível, tentando principalmente
dar uma voz aos trabalhadores e ajudar na coordenação de
experiências na indústria – isto é, as experiências resultantes
de tentativas de luta autônoma”67.
Deve-se notar que a minoria que rompeu para formar o ILO era
menos unida por uma perspectiva comum e mais por uma
oposição geral à maioria que pressionava por um partido. Não
é uma surpresa, portanto, que este novo grupo de cerca vinte
membros em breve se depararia com suas próprias diferenças
internas. Uma fissura começou a aparecer entre os principais
animadores do grupo: Lefort, que desejava combinar a
autenticidade da voz operária com algum tipo de teoria, sentia
que Simon não apenas queria abandonar quaisquer sinais de
direção, orientação e linha partidária, mas mesmo de
interpretação e teoria. Ele depois refletiria:
O essencial era que essas pessoas falassem de suas experiências na
vida cotidiana. Em certo sentido [Simon] estava absolutamente
correto. Todos nós pensávamos que havia um feitiço maléfico de
Teoria separado da experiência e do cotidiano, concebido para
mascará-los. Mas isso ainda era uma questão de experiência
enquanto experiência real e cotidiana, não de banalidade. A
experiência não é crua; ela sempre implica um elemento de
interpretação e se abre à discussão. O discurso na vida cotidiana
tacitamente ou explicitamente recusa outro discurso e solicita uma
resposta. Para Simon, o discurso dos explorados, seja quem for, seja
lá o que disser, era em essência bom. Ele sabia, como todos nós, que
a burguesia dominante ou o discurso democrático pesa muito no
discurso dos explorados. Este conhecimento não enfraqueceu sua

67
“Interview with Lefort,” 179.

48
convicção. O discurso dos explorados era suficiente por si só.
Essencialmente, ele disse que uma pessoa fala sobre o que ela vê e
sente; nós apenas temos que escutá-la ou, melhor ainda, registrar
suas observações em nosso boletim, que é nossa raison d’êtrê68.
Lefort, que deixou o grupo em 1960 (levando-os a renomear a
si mesmos como Informations et Correspondance Ouvrières,
ICO), defendia que não importava o que fosse, algum tipo de
interpretação sempre resvalará na enquete, mesmo se apenas
na seleção de textos, na ordem em que eles serão publicados, e
assim por diante. Negar isso é iludir a si mesmo.
Em outras palavras, o projeto original de enquete operária
desmantelou em ambos os lados. Pouvoir Ouvrier se tornou
outro jornal vanguardista, indistinguível de um jornal
trotskista, tentando educar a classe trabalhadora através de
versões simplificadas de teorias esotéricas desenvolvidas sem
referência às experiências concretas da classe trabalhadora.
Do outro lado, o ICO se enrolou por ignorar o papel dos
intelectuais, apenas para encontrar-se imobilizado,
perseguindo alguma experiência proletária pura, sem a
mácula da interpretação teórica.
Quanto a Castoriadis, ele rompeu com seu próprio grupo em
1962. Suas reflexões sobre esses debates produziram um efeito
ainda mais drástico: Castoriadis tinha chegado à conclusão de
que o marxismo enquanto uma teoria tinha sido
definitivamente refutado. “Capitalismo Moderno e
Revolução”, inicialmente escrito entre 1959 e 1961, tinha sido
publicado antes dele deixar a declaração de que suas “ideias
não são necessariamente compartilhadas por todo o grupo
Socialisme ou Barbarie” (226). A partir do seu trabalho como
economista profissional para a OCDE, Castoriadis elaborou um
balanço devastador para a teoria marxista. No contexto do
boom pós-guerra, os marxistas continuavam a afirmar que o
capitalismo, através do desemprego estrutural e aumento da

68
“Interview with Lefort,” 183.

49
taxa de exploração, estava empobrecendo e pauperizando o
trabalhador. Mas na realidade o sistema tinha produzido pleno
emprego e os salários estavam crescendo mais rapidamente do
que nunca, levando a uma massiva expansão do consumo que
proporcionou também uma fonte estável de demanda efetiva
e representou um grande aumento no padrão de vida da classe
trabalhadora. Os militantes marxistas tinham se mostrado
pior do que inúteis; os sindicatos tinham se tornado
“engrenagens no sistema” que “negociavam a docilidade dos
trabalhadores em troca de maiores salários”, enquanto a
política “realiza-se exclusivamente entre especialistas”, os
supostos partidos operários dominados por burocratas (227).
Como o próprio Lefort tinha sugerido, a experiência proletária
que as enquetes do Socialisme ou Barbarie tinham tentado
alcançar teria que ser contraposta às determinações rígidas
das leis econômicas. “Para o marxismo tradicional’, escreveu
Castoriadis, “as contradições ‘objetivas’ do capitalismo eram
essencialmente econômicas e a incapacidade radical do
sistema em satisfazer as demandas econômicas da classe
trabalhadora fazia destas a força motriz da luta de classes”.
Mas por detrás desta premissa estava uma falácia “objetivista
e mecanicista” que reforçava a noção de que especialistas e
burocratas, que podiam entender as “leis objetivas” da
história, seriam responsáveis pela análise da sociedade
capitalista e pela “eliminação da propriedade privada e do
mercado”. Presos nesta falácia, os marxistas tradicionais não
poderiam sequer explicar suas próprias fixações; eles
falharam em entender que os salários tinham aumentado
porque eles eram verdadeiramente determinados pela luta de
classes e que as demandas propostas pelas lutas salariais
poderiam ser satisfeitas desde que não excedessem os
aumentos de produtividade (227).
Como a tendência Johnson-Forest, Castoriadis argumentou
que a contradição do capitalismo tinha que ser localizada na
“produção e no trabalho” e especificamente nos termos da
50
“alienação experimentada por todo trabalhador”. Mas ao
contrário de seus vigorosos predecessores marxistas,
Castoriadis reconheceu que essa teoria era incompatível com
a linguagem do valor e rejeitou definições “econômicas” de
classe. A oposição entre diretores e executantes substituiu
completamente aquela entre proprietários dos meios de
produção e não proprietários. Isso tinha grandes implicações
para a visão do próprio desenvolvimento capitalista: a
“tendência ideal” do “capitalismo burocrático” seria “a
constituição de uma sociedade totalmente hierarquizada em
contínua expansão onde a crescente alienação das pessoas em
seus trabalhos seria compensada por um ‘crescente padrão de
vida’ e onde toda a iniciativa seria dada aos organizadores”
(229). Esse projeto, contudo, era propenso à contradição da
racionalidade burocrática, “a necessidade do capitalismo de
reduzir os trabalhadores ao papel de meros executantes e a
inabilidade desse sistema funcionar se ele conseguir alcançar
esse objetivo exigido”. A contradição, então, era que o
“capitalismo precisa realizar simultaneamente a participação
e a exclusão dos trabalhadores no processo de produção”
(228). Essa tendência inerente do capitalismo não poderia
“nunca prevalecer completamente”, desde que o “capitalismo
não pode existir sem o proletariado” e a luta contínua do
proletariado para mudar o processo de trabalho e o padrão de
vida cumpria um papel fundamental no desenvolvimento
capitalista: “A extração de ‘valores de uso da força de trabalho’
não é uma operação técnica; é um processo de luta amarga em
que metade do tempo, por assim dizer, os capitalistas acabam
sendo perdedores” (248).
A experiência dessa luta e a inadequação do reformismo
dentro dela tinham despojado os executantes de qualquer fé
ilusória nas contradições “objetivas” enquanto a garantia das
organizações burocráticas. Agora o proletariado finalmente
poderia reconhecer que o verdadeiro horizonte
revolucionário era a “gestão operária e a superação dos
valores capitalistas de produção e de consumo” (230).
51
Em outras palavras, as demandas desse movimento não
estariam no nível dos salários, que representavam um
substituto alienado para uma motivação movida pelo trabalho
criativo. A fonte de motivação necessária para coesão social
não estava mais em atividades “significantes”, mas apenas na
procura de renda. Mesmo o objetivo carreirista clássico de
promoção na hierarquia da burocracia levava, em última
instância, a uma renda maior (276). Mas visto que a renda
pessoal não pode levar à acumulação – ela não pode fazer dum
trabalhador um capitalista – “a renda, portanto, apenas tem
significado através do consumo que ela permite”. Visto que o
consumo não pode apenas firmar-se em necessidades
existentes, que estavam “no ponto de saturação, devido a
aumentos constantes na renda”, os capitalistas tinham que
gerar novas necessidades através da introdução de novas
mercadorias e pela cultura alienada da propaganda que
incorporaram na vida cotidiana (277).
No entanto, o aumento no output que era necessário para um
nível constantemente crescente de consumo apenas poderia
ser assegurado através da automatização da produção, a
tentativa do capitalismo de “abolição radical de seus
problemas de relação laboral pela abolição do trabalhador”
(283). E esse é o contexto em que a “relação salarial se torna
uma relação intrinsecamente contraditória”, já que uma
tecnologia em rápido desenvolvimento, oposta à tecnologia
estática de sociedades anteriores, impediu a administração de
determinar um meio permanente para a “estabilização das
relações de classe no local de trabalho” e impediu “o
conhecimento técnico de se tornar cristalizado para sempre
em uma categoria específica da população trabalhadora”
(260). Toda a história da luta de classes dentro do modo de
produção capitalista poderia ser entendida nesses termos. A
introdução do maquinário no começo do século 19 foi de
encontro com os atos primordiais de sabotagem industrial.
Apesar da derrota de seu princípio ludista, a luta dos
trabalhadores continuou dentro da fábrica, levando a
52
introdução do trabalho por peça e dos salários baseados na
produção. Agora que as “normas” de produção eram a linha
principal de luta, o capitalismo contra-atacou com a
administração científica taylorista das normas. A resistência
dos trabalhadores à administração produziu as respostas
ideológicas da psicologia e sociologia industriais, com seus
objetivos de “integrar” os trabalhadores em locais de trabalho
alienados. Mas era impossível, mesmo com essas medidas,
suprimir o antagonismo fundamental dos trabalhadores em
relação ao processo produtivo – de fato, nos países de
capitalismo mais avançado, com os maiores salários e o
método mais “moderno” de produção e administração, o
“conflito diário no local de produção alcança proporções
incríveis” (264).
De acordo com Castoriadis, a tradicional concepção marxista
era incapaz de compreender esse processo histórico. Para o
marxismo, “os próprios capitalistas não agem – eles são
‘levados a agir’ por motivos econômicos que os determinam tal
como a gravitação governa o movimento dos corpos” (262).
Mas a história provou que a classe dominante adaptou suas
estratégias de acordo com sua experiência subjetiva da luta de
classes, aprendendo que os salários podem comprar a
docilidade dos trabalhadores, que a intervenção estatal pode
estabilizar a economia e que o pleno emprego pode impedir o
levante revolucionário que resultaria duma repetição de 1929
(269-90).
Então a nova critica revolucionária da sociedade tinha que se
livrar da distração da teoria objetivista e denunciar
diretamente os resultados irracionais e desumanos da
administração burocrática e do trabalho alienado. E o
desenvolvimento capitalista tinha tornado a superação da
alienação definitivamente possível, visto que no nível técnico
“toda a burocracia de planejamento já pode ser substituída por
calculadoras eletrônicas” e no nível social a irracionalidade da

53
organização burocrática da sociedade havia sido
completamente desvelada (299).
Assim como Castoriadis fez um balanço do “marxismo
tradicional”, nós podemos agora avaliar esse momento
particular de ruptura. A nova teoria de classe foi conveniente
para uma análise da economia planificada da União Soviéticas
como um “capitalismo burocrático”, formulada em diálogo
com a tendência Johnson-Forest. Castoriadis radicalizou as
afirmações deles de que o capitalismo surgiu das relações no
chão de fábrica, mais do que na propriedade dos meios de
produção69. O núcleo racional de sua teoria era claro: o
processo que começou com o entusiasmo bolchevique pelo
taylorismo, a adoção pela burocracia russa de formas
pioneiras de organização do processo de trabalho
desenvolvidas pela administração e sociologia capitalistas,
arruinou a filosofia da história da Segunda Internacional. O
progresso das forças produtivas, sejam elas de propriedade
pública ou privada, tinha se tornado um elemento da
racionalidade que governava formas cada mais complexas de
estratificação social.
Contudo, a nova teoria de Castoriadis estava sujeita aos
mesmos pontos cegos de seus antecessores, incapaz de
explicar as relações de classe em sua unidade com as relações
de troca. A questão do próprio desenvolvimento tecnológico
coloca questões fundamentais sobre sua análise. Enquanto
Castoriadis critica corretamente a identificação do
desenvolvimento das forças produtivas com o projeto político
do socialismo, ele não explicou como esse processo estava
situado dentro das relações sociais do capitalismo. O
desenvolvimento tecnológico era uma expressão da
racionalidade da administração; enquanto Castoriadis
69
Veja “The Relations of Production in Russia” em Political and Social Writings,
Volume 1, 1946-1955: From the Critique of Bureaucracy to the Positive Content of Socialism,
trans. and ed. David Ames Curtis (Minneapolis: University of Minnesota Press,
1988), e nosso comentário em “Deviations, Part 1: The Castoriadis-Pannekoek
Exchange”.
54
brilhantemente delineou as contradições dessa racionalidade
no nível da empresa, as questões subjacentes à análise de Marx
sobre todo o sistema, das quais cada volume do Capital foi
dedicado, foram deixadas sem resposta. Se o desenvolvimento
tecnológico era um processo desperdiçador, por que uma
empresa a procura de lucro o realizaria? Como ela é capaz de
fazer grandes gastos em capital fixo, em maquinário caro, e
continuar reproduzindo suas condições vigentes de produção?
Na análise de Castoriadis, o desenvolvimento tecnológico é na
prática resultado de uma falta de motivação, que somente pode
ser superada pela expansão no consumo que é permitida pelo
desenvolvimento tecnológico e seu aumento de produção.
Faltam-nos agora os recursos teóricos para compreender por
que a produção se tornou a finalidade da existência humana ou
o que “produção máxima” significaria – como se o objetivo dos
capitalistas fosse possuir mais coisas e não fazer mais lucro.
Igualmente fundamental foi a questão das pré-condições
básicas desse sistema. Enquanto Castoriadis explicou o
capitalismo como a expressão maior da alienação e reificação,
não ficou de modo algum claro de que modo estes fenômenos
eram específicos do capitalismo e o que eles tinham a ver com
as dinâmicas econômicas que ele se apressou em dispensar.
Por trás da tentativa da administração de direcionar a força de
trabalho para a produção máxima possível, estava o fato de
que a administração capitalista foi compelida a explorar a força
de trabalho na medida mais lucrativa – e que os trabalhadores
igualmente eram compelidos a vender sua força de trabalho em
troca de um salário. O que explica essa compulsão?
Se estas questões eram de algum modo incompatíveis com a
análise da empresa capitalista, isso não apenas invalidaria o
marxismo – isso faria a natureza capitalista da empresa
inexplicável. Mas ao começar pelas enquetes sobre a
transformação do processo de trabalho e mudando para uma
explicação histórica da lógica do desenvolvimento capitalista,

55
Socialisme ou Barbarie serviu como um fundamento
indispensável.

Ciência e Estratégia: o Operaísmo


A influência de Castoriadis, Lefort, Mothé e outros do
Socialisme ou Barbarie era bem visível na Itália do começo dos
anos 1960. Toni Negri, por exemplo, relembra como o
Socialisme ou Barbarie, “o jornal que Cornelius Castoriadis e
Claude Lefort publicavam em Paris”, se tornou “meu pão de
cada dia naquele período”70.
Relações diretas, na verdade, já tinham sido estabelecidas. Em
1954, Danilo Montaldi, que anteriormente tinha sido expulso
do Partido Comunista Italiano (PCI), traduziu “The American
Worker”, não do original em inglês, mas das traduções
francesas que apareceram no Socialisme ou Barbarie. Ele viajou
para Paris naquele ano, encontrando os militantes do
Socialisme ou Barbarie e iniciando uma troca com ninguém
menos que Daniel Mothé, cujo diário ele traduziria mais tarde
para o italiano. Montaldi manteria essas conexões retornando
a Paris em 1957, e de novo em 1960, para fortalecer laços com
Castoriadis, Lefort, Edgar Morin, entre outros71.
Montaldi não apenas cumpriu um papel indispensável na
transmissão das ideias do Socialisme ou Barbarie no contexto
italiano, ele as colocou em prática, conduzindo seu próprio
tipo de enquete operária. Essas investigações praticamente
sem precedentes, que se baseavam numa pluralidade de
métodos, da enquete narrativa à sociológica e à história oral,
resultaram numa série de publicações altamente influentes:
“Milan, Korea”, uma enquete sobre imigrantes do Sul vivendo
em Milão, Autobiografie della leggera [“Autobiografias da

70
Cesare Casarino e Antonio Negri, In Praise of the Common (Minneapolis: University
of Minnesota, 2008), 54.
71
Danilo Montaldi, Bisogna sognare. Scritti 1952-1975 (Milano: Colibrì, 1994).
56
Leggera”]72; e, por fim, Militanti politici di base [“Militantes
Políticos de Base”].
Montaldi propôs um modo inteiramente novo de ver as coisas.
O objetivo da enquete era revelar as lutas cotidianas da classe
trabalhadora, independentemente de todas as instituições
oficiais que diziam representá-la. No entanto, como Sergio
Bologna relembra, as cuidadosas histórias de Montaldi
rejeitavam tributos míticos à espontaneidade, optando ao
invés disso por ricas descrições de “microssistemas de luta”,
as culturas políticas de resistência que faziam movimentos
aparentemente espontâneos possíveis73. Esse novo foco em
redes ocultas e histórias obscurecidas teria ramificações
tremendas.
Para além de suas próprias investigações, Montaldi organizou
um grupo em Cremona chamado Gruppo di Unità Proletaria.
Em atividade entre 1957-1962, ele juntou um número de jovens
militantes, todos unidos por seus desejos de descobrir a classe
trabalhadora como ela realmente era, para além do mundo
frígido das fichas partidárias. Um desses jovens militantes era
Romano Alquati.
Alquati, formado como um sociólogo, seria uma figura pivô na
formação do jornal Quaderni Rossi (“Cadernos Vermelhos”), o
encontro inicial de militantes heterodoxos do Partido
Socialista Italiano e do Partido Comunista Italiano que
fundariam o operaismo, ou “operaísmo”. Os Quaderni Rossi
começaram com um debate sobre a sociologia, cujo uso pelos
patrões tinha produzido novas formas de gestão do trabalho e
disciplina, mas também tinha gerado informações
incalculáveis sobre o processo de trabalho. Enquanto uma
apropriação marxista crítica da sociologia estava na agenda,
sua relação com a enquete operária de Montaldi não era

72
“Leggera” é uma gíria italiana para se referir aos socialmente marginalizados]
73
Sergio Bologna e Patrick Cuninghame, “ For an Analysis of Autonomia – An
Interview with Sergio Bologna,” disponível online em libcom.org.

57
inteiramente clara. Alguns nos Quaderni Rossi– a facção
“sociologista” em torno de Vittorio Rieser – acreditavam que
essa nova ciência, apesar de associada com a acadêmicos
burgueses, poderia ser usado como uma base para a renovação
das instituições do movimento operário. Outros, incluindo
Alquati, acham que a sociologia apenas poderia ser, na melhor
das hipóteses, um passo inicial para uma colaboração
militante entre pesquisadores e trabalhadores, uma nova
forma de conhecimento que seria caracterizada como
“copesquisa”74.
As enquetes de Alquati se provariam fundamentais no
desenvolvimento da análise econômica operaísta. Steve
Wright traçou brilhantemente uma ruptura que pode ser
observada entre “Relato sobre as ‘Novas Forças’” de Alquati,
um estudo sobre a FIAT publicado na primeira edição dos
Quaderni Rossi em 1961, e o estudo de 1962 sobre a Olivetti. No
primeiro texto, juntamente com os outros dois publicados
naquele ano sobre a FIAT, Alquati opera, de forma
interessante, dentro da problemática estabelecida no
Socialisme ou Barbarie75. As “novas forças” na FIAT eram

74
O próprio Montaldi acreditou que a sociologia, como Steve Wright relata,
“poderia ajudar no desenvolvimento da teoria revolucionária”; veja Storming
Heaven: Class Composition and Struggle in Italian Autonomist Marxism (London: Pluto
Press, 2002), 21-25. Sobre a divisão dentro dos Quaderni Rossi, veja Marta Malo de
Molina, “ Common Notions, part 1: workers-inquiry, co-research, consciousness-
raising,” trans. Maribel Casas-Cortés and Sebastian Cobarrubias of the Notas Rojas
Collective Chapel Hill, eicp (2006). Finalmente, para mais sobre a copesquisa ou
conricerca, e a influência de Montaldi e outro precursor de Alquati, , Alessandro
Pizzorno, veja Guido Borio, Francesca Pozzi e Gigi Roggero, “Conricerca as Political
Action” em Utopian Pedagogy: Radical Experiments Against Neoliberal Globalization, ed.
Mark Coté, Richard J.F. Day, and Greig de Peuter (Toronto: University of Toronto
Press, 2007).
75
Veja Wright, Storming Heaven, 46-58; os textos em si estão contidos em Romano
Alquati, Sulla Fiat (Milano: Feltrinelli, 1975): “Relazione sulle ‘forze nuove.’
Convegno del PSI sulla FIAT, gennaio 1961”; “Documenti sulla lotta di classe alla
FIAT”; “Tradizione e rinnovamento alla FIAT-Ferriere.” Uma tradução parcial [para
o inglês] do texto de 1962, “ Organic Composition of Capital and Labor-Power at
Olivetti”,é apresentada nesta edição. Para uma análise bem perceptiva do texto de
Alquati sobre a Olivetti e a trajetória da enquete em geral, veja Wildcat, “ The
Renascence of Operaismo,” disponível online em libcom.org.
58
gerações mais jovens, trazidas para trabalhar no maquinário
recém instalado que havia tornado obsoleta a qualificação de
profissionais mais experientes. A administração impôs
hierarquias dentro da força de trabalho – uma divisão do
trabalho separando técnicos e trabalhadores qualificados da
maioria, juntamente com escalas de pagamento devidas. Mas
esse processo de racionalização estava sujeito à
irracionalidade contraditória que Castoriadis descreveu; e isso
deu lugar a formas de “organização invisíveis”, resultantes do
fato de que a administração era forçada a dar responsabilidade
aos executantes enquanto ao mesmo tempo tentava reprimir
seu controle. Alquati também tirou conclusões políticas que
lembram as de seus precursores franceses: os trabalhadores
não estavam convencidos pelo reformismo do movimento
operário oficial e, ao invés disso, expressavam interesse na
gestão operária e num fim para o processo de trabalho
alienante.
Juntamente com o texto de Alquati na edição inaugural dos
Quaderni Rossi, Ranziero Panzieri, o fundador da revista,
publicou um artigo bem influente chamado “The Capitalist
Use of Machinery: Marx Against the Objectivists” [“O Uso
Capitalista das Máquinas: Marx Contra os Objetivistas”]76. Escrito
após o “Relato” de Alquati, ele refletia sobre os temas
levantados por Alquati, referindo-se a todo momento aos
trabalhadores “estudados na presente edição dos Quaderni
Rossi”, enquanto estabelecia um novo quadro. Panzieri, que
não apenas tinha escrito a introdução para a edição italiana do
diário de Mothé, mas que também era o tradutor italiano do
segundo volume do Capital, não estava preparado para deixar
a linguagem de Marx em troca da de diretores e executantes:
O trabalhador, enquanto proprietário e vendedor de sua força de
trabalho, entra em relação com o capital apenas como indivíduo; a
cooperação, o relacionamento mútuo entre trabalhadores, apenas

76
A tradução existente do artigo de Panzieri para o português, realizada por Fernando
Araújo, é intitulada “Sobre o Uso Capitalista das Máquinas no Neocapitalismo”, disponível
aqui.
59
começa com o processo de trabalho, mas até lá eles deixam de
pertencer a si mesmos. Ao entrar no processo de trabalho eles são
incorporados no capital77.

Para Panzieri, o meio pelo qual essa incorporação ocorre é o


maquinário, na passagem da manufatura para o nível
desenvolvido da indústria de grande escala. Citando a
observação de Marx de que na fábrica capitalista “a automação
em si mesma é o sujeito e os trabalhadores meros órgãos
conscientes”, o alvo de Panzieri era o entusiasmo da
burocracia do trabalho pelo desenvolvimento tecnológico78.
De acordo com essa posição ortodoxa, o desenvolvimento
tecnológico representava uma força trans-histórica,
determinando o movimento progressivo que atravessa modos
de produção. Para encurtar o caminho italiano ao socialismo,
o trabalhador italiano teria que se submeter à automação nas
fábricas automotivas79.

77
Raniero Panzieri, “ The Capitalist Use of Machinery,” trans. Quintin Hoare,
disponível online em libcom.org.
78
Marx, Capital, Volume 1, 544.
79
Visto que o desenvolvimento posterior da posição ortodoxa era de que a
colaboração entre os sindicatos, o Estado e os empregados representava a mudança
da competição para a planificação e, portanto, um passo em direção ao socialismo,
Panzieri também argumentou que a planificação representava a extensão
socialmente necessária do despotismo do capital na fábrica. “O fator básico nesse
processo é o crescimento contínuo do capital constante em relação ao capital
variável”; como as máquinas crescem mais numerosamente do que os
trabalhadores, o capital tinha que exercer um “controle absoluto”, impondo sua
racionalidade de produção sobre os trabalhadores e, através do crescimento dos
monopólios, estendendo seu planejamento “da fábrica para o mercado, até a esfera
social” (“Capitalist Use of Machinery.”) Essa tese seria o objeto do último grande
ensaio de Panzieri, “ Surplus Value and Planning,” [“Mais-valia e Planificação”] na
edição 4 dos Quaderni Rossi (traduzido [ao inglês] por Julian Bees e disponível online
em zerowork.org). Nesse sentido, enquanto o argumento de Panzieri representou
um avanço teórico sofisticado e tinha uma função política útil, ele também continha
uma certa reificação das características do capitalismo pós-guerra e perdeu um
pouco de sua clareza sobre a natureza das relações de troca capitalistas. De forma
interessante, esse ensaio foi seguido nos Quaderni Rossi com o texto de Marx assim
chamado “Fragment on Machines” (“Um Fragmento sobre as Máquinas”), retirado dos
Grundrisse.
60
É significativo que enquanto Panzieri fez várias observações
históricas semelhantes às de Castoriadis, ele as defendeu como
descobertas internas à teoria de Marx. O mesmo se passou com
o aumento no padrão de vida. De acordo com Panzieri, “Marx
previu um incremento não só no salário nominal, mas também
no salário real”: “quanto mais rápido é o crescimento do
capital, mais a situação material da classe trabalhadora
melhora. E quanto mais o salário é ligado ao crescimento do
capital, mais direta se torna a dependência do trabalho sobre
o capital”80. Por essa razão, embora agora concordando com
Castoriadis, Panzieri considerou as lutas salariais uma função
da incorporação burocrática do trabalho no capital realizada
pelos sindicatos; somente atacando diretamente o controle do
capital e substituindo-o pelo controle operário é que a
racionalidade tecnológica poderia ser submetida ao “uso
socialista das máquinas”. De fato, para Panzieri, as enquetes
dos Quaderni Rossi mostravam que os trabalhadores estavam
estabelecendo essa perspectiva. No entanto, ele ainda alertou
contra tirar quaisquer conclusões políticas: “As ‘novas’
demandas da classe trabalhadora que caracterizam as lutas
sindicais (estudadas na presente edição dos Quaderni Rossi) não
fornecem diretamente um conteúdo político revolucionário,
nem implicam em um desenvolvimento automático nessa
direção”.
Quando as investigações de Alquati mudaram da FIAT para a
Olivetti – de uma fábrica que fazia carros para uma que fazia
calculadoras e máquinas de escrever – ele pôde elaborar e
desenvolver a análise de Panzieri sobre a tecnologia. No título
“Composição Orgânica do Capital e da Força de Trabalho na
Olivetti”, Alquati definitivamente trouxe o discurso da
enquete operária de volta à linguagem da análise econômica
marxista e implicitamente sugeriu um novo conceito:
composição de classe.

80
Panzieri, “Capitalist Use of Machinery.”

61
Enquanto as origens da composição de classe possam ser
observadas já no “Relato Sobre as ‘Novas Forças’”, na medida
em que Alquati tentou descrever a existência material da
classe trabalhadora, seus hábitos e formas de interação e
organização, essa enquete anterior tratou o maquinário
puramente como um meio pelo qual os diretores reduziam os
trabalhadores a executantes. Tornar habilidades obsoletas era
simplesmente um meio de acabar com a confiança dos
executantes e o novo maquinário um instrumento neste
processo. Agora, na enquete da Olivetti, o aumento da
composição orgânica do capital era visto do ponto de vista da
classe trabalhadora como a recomposição da força de trabalho,
a transformação das formas próprias de cooperação operária.
A tecnologia, nesse sentido, representava o campo em que as
relações sociais de classe estavam incorporadas, mas como
parte de um processo dinâmico em que o conflito entre a
extração de mais-valia e a insubordinação operária moldavam
o processo de produção. Os diretores não eram meros
parasitas; enquanto era verdade que os executantes
organizavam informalmente seu trabalho concreto, a função
da administração era planejar e coordenar esse trabalho
dentro do processo de valorização. As lutas dos trabalhadores
teriam que articular formas de organização política que
respondessem a essa recomposição tecnológica e, nesse
contexto, a autogestão não seria mais adequada – exceto a
autogestão operária da luta contra as relações do capital.
Se essas enquetes resultaram no começo de uma nova
problemática científica e de um acolhimento entusiasmado
das novas forças, em seguida a enquete se mostraria mais
politicamente divisiva do que os participantes achavam.
Depois dos distúrbios na Piazza Statuto em 1962, quando
trabalhadores atacaram escritórios da Unione Italiana del
Lavoro (UIL) em Turin, Quaderni Rossi se dividiria por

62
discordâncias internas81. Enquanto Tronti, Alquati, Negri e
outros acreditavam que isso representava uma nova fase da
luta de classes, uma oportunidade de romper com a estratégia
cada vez mais insustentável de colaboração com os sindicatos,
Panzieri viu isso como um impasse político. Não convencido de
que as lutas operárias autônomas poderiam produzir uma
forma organizacional duradoura – mesmo se a forma dos
sindicatos tivesse se esgotado – Panzieri pensou que uma
ênfase renovada na enquete e na pesquisa sociológica seria
necessária antes que qualquer movimento pudesse surgir.
Essa diferença política era, de forma significante, também uma
diferença teórica. Em uma reunião editorial no fim de 1963,
Panzieri observou que um ensaio de Tronti era
para mim, um resumo fascinante de toda uma série de erros que a
esquerda operária pode cometer neste momento. É fascinante
porque é muito hegeliano, no sentido original, como uma nova
maneira de reviver uma filosofia da história. É precisamente uma
filosofia da história da classe trabalhadora. Fala-se, por exemplo, do
partido, mas nesse contexto o conceito de partido não pode ser
deduzido ou forçado; só se pode deduzir a auto-organização da
classe no nível do neocapitalismo82.
Em janeiro do ano seguinte, esse ensaio lançaria o novo jornal
Classe Operaia (“Classe Operária”), formado pela facção de
Tronti. Seu ensaio controverso anunciaria de forma ilustre,
nas linhas do que se tornou então o slogan incontornável do
operaísmo: “Nós também tínhamos trabalhado com um
conceito que colocava o desenvolvimento capitalista em
primeiro e os trabalhadores em segundo. Isso é um erro. E
agora nós temos que virar o problema de cabeça para baixo,

81
Veja Wildcat, “Renascence of Operaismo”, para alguns comentários interessantes
sobre a Piazza Statuto no contexto da enquete operária.
82
Citado em Robert Lumley, “Review Article: Working Class Autonomy and the
Crisis,” Capital and Class 12 (Winter 1980): 129; também discutido em Wright,
Storming Heaven, 58-62. Lumley considera a intervenção de Tronti “uma regressão
teórica e política”; como tentaremos demonstrar abaixo, nós discordamos dessa
opinião.
63
inverter a polaridade, e começar de novo pelo começo: e o
começo é a luta de classe da classe trabalhadora”83.
No outono daquele ano, o último de sua vida, Panzieri falou em
um seminário em Turin chamado “Usos Socialistas da Enquete
Operária”, ao lado da facção “sociologista” que tinha
permanecido nos Quaderni Rossi. Ele defendeu “o uso das
ferramentas sociológicas para os objetivos políticos da classe
trabalhadora” e nisso apresentou um tipo de contraponto ao
“Lenin na Inglaterra”84. Em sua intervenção, publicada no ano
seguinte nos Quaderni Rossi, Panzieri defendeu o caráter anti-
historicista da enquete, afirmando que o próprio Capital de
Marx continha características de uma análise sociológica.
Nos Manuscritos Econômicos e Filosóficos de Marx e outros escritos
anteriores o ponto de comparação é o ser alienado (“o trabalhador
sofre em sua própria existência, o capitalista no lucro de seu Mamon
morto”)85 e a crítica da economia política é relacionada com uma
concepção histórica e filosófica da humanidade e da história.
Contudo, O Capital de Marx abandona essa perspectiva metafísica e
filosófica e a crítica posterior é feita exclusivamente a uma situação
específica que é o capitalismo, sem afirmar ser uma anticrítica
universal da unilateralidade da economia política burguesa.
A enquete operária enquanto uma prática científica tinha que
ser elaborada nessa base – produzindo sua própria
unilateralidade em resposta. Para Panzieri, a sociologia
marxista “se recusa a identificar a classe trabalhadora com o
movimento do capital e afirma que é impossível traçar
automaticamente um estudo da classe trabalhadora a partir do
movimento do capital”86.
Mas qual era o significado dessa unilateralidade? Panzieri
indicou sua reprovação pela grandiosa inversão de Tronti e

83
Mario Tronti, “ Lenin in England,” disponível online em libcom.org. [o artigo possui
uma tradução por Homero Santiago, disponível aqui].
84
O título se refere ao artigo de Mario Tronti publicado na primeira edição do Classe Operaia,
em 1964]
85
Mamon seria uma divindade (ou demônio) da ganância e da avareza
86
Raniero Panzieri, “Socialist Uses of Workers’ Inquiry,” trans. Arianna Bove, eicp
(2006).
64
isso foi de fato uma crítica pertinente, prevendo o
distanciamento da teoria operaísta da prática concreta da
enquete no curso dos anos de 1960 e 1970. Porém, Panzieri foi
incapaz de propor uma nova abordagem política; enquanto ele
amarrou a prática da enquete a uma análise econômica
marxista, ele foi incapaz de fazer essa teoria influenciar a
atividade política real que estava começando a surgir e que
caracterizaria mais de uma década de luta de classe em
sequência. Recentemente, Tronti refletiu sobre essa ruptura:
Panzieri me acusou de “hegelianismo”, de “filosofia da história”.
Essa leitura e sua acusação subjacente retornarão frequentemente;
apesar de tudo, o hegelianismo foi um fator real, estava
efetivamente lá, sempre esteve; enquanto essa ideia de uma
“filosofia da história” absolutamente não estava… Não tínhamos
uma teoria que se impunha de fora sobre dados reais, mas o oposto:
isto é, a tentativa de aproveitar esses dados reais, dar significado a
eles dentro de um horizonte teórico87.
De fato, o operaísmo seria, por toda sua história, torturado
pela tensão entre “filosofia da história” e “dados reais”; isso
continua a existir no “pós-operaísmo” de hoje. Mas esses são
os riscos assumidos por aqueles cujos olhos estão no
“horizonte teórico”. É importante notar que Alquati, que não
compartilhava as opiniões de Panzieri sobre a
incompatibilidade entre pesquisa e insurreição, rompeu com
os Quaderni Rossi e se juntou ao Classe Operaia. Sua concepção
de enquete era militante e política.
Por essa razão a síntese teórica de Tronti, em seu ensaio de
1965 “Marx, Força de Trabalho e Classe Operária”, deve ser
reexplorada. Esse ensaio forma o grosso de Operários e Capital
(1966), com apenas algumas seções finais traduzidas para o
inglês. Ao contrário do resto do livro, que consiste de artigos
escritos para os Quaderni Rossi e o Classe Operaia, esse ensaio
ainda não publicado é um longo e contínuo argumento,
desenvolvido com base na marxiologia e análise história de

87
Tronti, Noi operaisti, quoted in Adelino Zanini, “On the Philosophical Foundations
of Italian Workerism,” Historical Materialism 18 (2010): 60.
65
Tronti. Enquanto isso nos leva a uma certa digressão, nós
acreditamos que seja uma base indispensável para redescobrir
a teoria da composição de classe que a prática de enquete de
Alquati sugeria, assim como para desenvolver essa teoria de
uma maneira que leva a advertência de Panzieri a sério.
Apesar da clássica inversão operaísta de Tronti ser bem
conhecida e citada, menos se sabe sobre o processo teórico de
elaboração que levou a ela. Ao longo de Operários e Capital, a
primazia da luta dos trabalhadores é descrita como uma
reversão estratégica que tenta identificar e avançar o caráter
político do desenvolvimento teórico de Marx, com a
experiência de 1848 e os escritos políticos precedendo a
análise econômica científica88. Em certo sentido, isso
representava um novo objeto de enquete. O objetivo não era
mais, como foi para a tendência Johnson-Forest ou para o
Socialisme ou Barbarie, descobrir atitudes proletárias
universais, ou mesmo o conteúdo do socialismo, mas acessar
uma lógica política específica que emergia do ponto de vista
operário – uma consequência da dificultosa relação entre
estratégia e ciência representada pela prática teórica de Marx.
Apesar do que parece ser uma afirmação de alguma suposta
identidade da classe trabalhadora, Tronti não procurou
defender, na maneira da tendência Johnson-Forest e do
Socialisme ou Barbarie, a dignidade do trabalho. Ao contrário, o
princípio norteador da “recusa ao trabalho” significava
retornar à própria crítica de Marx da ideologia do movimento
dos trabalhadores: “Quando Marx recusou a ideia do trabalho
enquanto fonte de riqueza e assumiu um conceito de trabalho
como medida do valor, a ideologia socialista foi acertada em

88
Mario Tronti, Operai e capitale (Turin: Einaudi, 1966), 128, 179, 209-10, 220, 256. As
traduções desse texto são nossas, com a incalculável ajuda de Evan Calder Williams,
salvo indicação em contrário. Nós também consultamos proveitosamente a
tradução francesa de Yann Moulier-Boutang e Giuseppe Bezza, disponível online
em multitudes.samizdat.net. Referências posteriores ao original em italiano são
dadas no texto.
66
cheio e a ciência da classe trabalhadora nasceu. Não é por
acaso que essa ainda seja a escolha” (222)89.
Marx repetiu exaustivamente que “o trabalho é pressuposto
pelo capital e ao mesmo tempo o pressupõe por sua vez” – em
outras palavras, o proprietário do capital pressupõe a força de
trabalho, enquanto a força de trabalho pressupõe as condições
de trabalho. Sozinho, Tronti escreveu, “o trabalho não cria
nada, nem valor e nem capital, e consequentemente ele não
pode exigir de ninguém a restituição do fruto integral daquilo
que ‘ele criou’” (222). Mas visto que a ideologia socialista tinha
se estendido a novas teorias de trabalho e classe, seria
necessário “limpar o terreno de qualquer ilusão tecnológica”
que tentava “reduzir o processo produtivo ao processo de
trabalho, a uma relação do trabalhador com o instrumento de
seu trabalho, como se existisse uma relação eterna do homem
com um presente maligno da natureza”. Assim como era
traiçoeira “a armadilha do processo de reificação”, que
começou com o “lamento ideológico” da mortificação do
trabalhador pelo maquinário e rapidamente se moveu para
propor “a cura mística para a consciência de classe desse
trabalhador, como se fosse a busca pela alma perdida do
homem moderno” (203).
Ao invés disso, reconhecendo que a “classe trabalhadora é o
ponto de partida histórico para o nascimento e crescimento do
capitalismo”, o caminho de Marx foi “começar pelo capital
para chegar a entender logicamente a classe trabalhadora”
(230). Consequentemente, era necessário afirmar que o ponto
de vista capitalista poderia alcançar o estatuto de ciência. De
fato, a ciência capitalista seria superior às ideologias
socialistas, que ainda estavam presas na visão de que “apenas
a classe trabalhadora, em particular a pessoa de seus
representantes oficiais, é o repositório da verdadeira ciência
(da verdadeira história, etc.), e que essa é a ciência de tudo, a
ciência social geral também válida para o capital”. Seria muito
89
Aqui, é claro, Tronti recorda o Critique of the Gotha Programme de Marx.
67
melhor reconhecer que “na reorganização do processo
produtivo de uma grande fábrica, há ao menos tanto
conhecimento científico quanto na descoberta de Smith, do
trabalho produtivo que é trocado por capital” (172). Querer
saber mais sobre a sociedade capitalista pelo ponto de vista da
classe trabalhadora “do que os próprios capitalistas” era uma
“pia ilusão” e “toda forma de gestão operária do capital prova
ser necessariamente imperfeita com relação a uma gestão
diretamente capitalista”. O caminho dos trabalhadores não era
uma gestão aperfeiçoada, mas a destruição do capitalismo por
meio da revolução. “Então do ponto de vista dos capitalistas”,
argumentou Tronti, “é completamente correto estudar a classe
trabalhadora; apenas eles são capazes de estudá-la
corretamente. Mas o nevoeiro ideológico da sociologia
industrial não terá sucesso em cancelar a pena de morte que
ela representa para eles” (230).
A este respeito, a pesquisa do ponto de vista da classe
trabalhadora seria distinta da sociologia capitalista, visto que
suas descobertas seriam orientadas para a organização dessa
destruição. Isso indica a questão da “composição política”;
como Tronti escreveu, “a pesquisa teórica que temos
conduzido sobre os conceitos de trabalho, força de trabalho,
classe trabalhadora, não passa de um exercício no caminho
para a descoberta prática de uma conquista de organização”
(259). Esta linha específica de pesquisa, que surge da enquete
operária e, na história do operaísmo, às vezes se afasta
bastante dela, necessita de uma investigação separada. Por
enquanto, vamos nos debruçar sobre os conceitos de trabalho,
força de trabalho e classe trabalhadora, tendo em vista que
eles complementam e sistematizam as descobertas da enquete
operária e da categoria de composição de classe.
Antes mesmo de perguntar o que significa dizer que a classe
trabalhadora conduz o desenvolvimento capitalista, temos que
perguntar o que significa dizer classe, e de fato esta é a questão
absolutamente central da elaboração teórica de Tronti. Para
68
Tronti, a teoria de classe não pode se restringir ao local da
produção e nem mesmo necessariamente começa lá. Sua
exposição começa com a observação de Marx no volume 2 do
Capital: “A relação de classe entre o capitalista e o trabalhador
assalariado já se encontra assim presente, já pressuposta, no
momento em que os dois se confrontam entre si no ato D-T90
(T-D do lado do trabalhador)”91. Com efeito, Tronti afirmará
que “para Marx não há dúvida de que a relação de classe já
existe em si mesma [an sich] no ato da circulação. É
precisamente isso que revela, que traz à tona, a relação
capitalista durante o processo de produção” (149)92.
Sua análise discute as linhas de Marx que seguem:
O dinheiro pode ser gasto nessa forma somente porque a força de
trabalho é encontrada em um estado de separação dos seus meios
de produção (incluindo os meios de subsistência como meios de
produção da própria força de trabalho); e porque essa separação
somente é abolida pela venda da força de trabalho para o
proprietário dos meios de produção, uma venda que significa que o
comprador está agora no controle de um fluxo contínuo de força de
trabalho, um fluxo que de forma alguma deve parar quando a
quantidade de trabalho necessária para reproduzir o custo da força
de trabalho for realizada. A relação do capital aparece apenas no
processo de produção porque ela existe implicitamente no ato da
circulação, nas diferentes condições econômicas básicas em que o
comprador e o vendedor se confrontam, na sua relação de classe 93.
O que pode significar que uma tradição teórica tão conhecida
pelo seu foco no local de produção comece com uma teoria não
apenas do valor, mas da classe, que é centrada na troca?
Helmut Reichelt comentou sobre essa escolha encarada na
análise econômica entre, por um lado, o trabalho enquanto
uma “categoria quase ontológica” que apresenta “trabalho

90
D-T é uma abreviação para Dinheiro-Trabalho, e vice-versa)
91
Karl Marx, Capital, Volume 2, trans. David Fernbach (London: Penguin, 1978), 115;
Tronti cita essa passagem em Operai e capitale, 144-5.
92
Isso também é citado em Zanini, “Philosophical Foundations,” 50. O artigo de
Zanini é um dos poucos textos em inglês que aborda a análise econômica de Tronti.
93
Marx, Capital, Volume 2, 115; segunda frase citada por Tronti, Operai e capitale, 148-
9.
69
humano abstrato substancializado como a substância do
valor”; e do outro lado, uma explicação do processo social
especificamente capitalista que constituí a “validade
[Geltung]” da atividade humana como trabalho abstrato e a
forma natural dos produtos como valores – em outras
palavras, a determinação do que é contado como trabalho na
troca94. Para Reichelt, essa é a base da teoria avançada de Marx
sobre o valor e podemos observar Tronti seguindo essa linha:
“O trabalho concreto se realiza a si mesmo na infinita
variedade de seus valores de uso; o trabalho abstrato se realiza
a si mesmo na igualdade das mercadorias como equivalentes
gerais” (124).
Em uma aventurosa retomada dos Manuscritos de 1844 de Marx,
contra a sua apropriação humanista, Tronti argumentava que
os escritos iniciais de Marx sobre a alienação representaram
uma teoria inicial e incompleta do trabalho abstrato, que surge
da separação característica da propriedade privada95. Mas essa
explicação somente seria plenamente desenvolvida em O
Capital. Enquanto para Castoriadis O Capital significava pouco
mais do que objetivismo econômico, ele levantou a questão
fundamental da comensurabilidade presumida na troca – que,
como aponta Reichelt, é central para o “duplo caráter” da
“riqueza da sociedade burguesa”: “uma massa de um sem-

94
Helmut Reichelt, “Marx’s Critique of Economic Categories,” trans. Werner Strauss
and ed. Jim Kincaid, Historical Materialism 15 (2007): 11. É importante notar que o
operaísmo não era sempre capaz de transitar entre as duas visões; enquanto a
“categoria quase ontológica” de Reichelt se refere à concepção que compreende o
trabalho abstrato como gasto de energia fisiológica, mensurável nas calorias, o
operaísmo seria às vezes cativado pelo trabalho como o “fogo ardente e moldante”,
que é por vezes sugerido na análise de Tronti dos Grundrisse como “um livro mais
avançado” do que O Capital. (Tronti, Operai e capitale, 210; translated in Murphy 339).
Os Grundrisse cumpriram um papel ambíguo na história do operaísmo, fornecendo
novas energias teóricas enquanto também obscureciam as rupturas no pensamento
econômico de Marx. Uma pesquisa futura terá que elaborar essas distinções
claramente, especialmente para ir além da problemática dos Grundrisse de “capital
em geral”; veja Michael Heinrich, “Capital in General and the Structure of Marx’s
Capital,” Capital and Class 13:63 (1989).
95
Esse argumento é apresentado na introdução a esse ensaio, páginas 123-43, com
atenção a uma série de outros manuscritos anteriores de Marx.
70
número de valores de uso que enquanto quantidades abstratas
e homogêneas podem ser ao mesmo tempo agregadas em um
produto social”96. A relação de valor destina-se a explicar a
forma da “igual validade” que permite que diferentes
produtos sejam dados como equivalentes na troca97.
Uma teoria das relações de classe específicas da sociedade
capitalista, então, não pode se negligenciar a explicar como a
capacidade de trabalhar pode possivelmente ser parte de um sistema
de troca: como a força de trabalho pode ser trocada por um
salário, inserida dentro de um sistema de circulação em que as
mercadorias são dadas como equivalentes de acordo com seus
valores. Mas essa questão somente pode ser respondida dentro
do contexto de uma análise histórica que se abre para uma
definição de classe. O trabalho abstrato é constituído na troca,
mas a típica troca do capitalismo é dinheiro/força de trabalho;
então como essa relação de classe constitutiva surge, em que
proprietários de dinheiro e proprietários de força de trabalho
se confrontam no mercado, e qual é a sua relação com o
processo de desenvolvimento capitalista?
Para Lefort e Castoriadis, baseando-se no Manifesto Comunista,
a precondição do capitalismo foi a revolução burguesa. Para
Lefort, a burguesia tinha que ser entendida como integrante
de “um grupo homogêneo com uma estrutura fixa” que
possuía “interesses e horizontes em comum”; o proletariado,
por outro lado, reduzido a suas funções econômicas
atomizadas, teria que se unificar através de sua luta contra a

96
Helmut Reichelt, “Social Reality as Appearance: Some Notes on Marx’s
Conception of Reality,” trans. Werner Bonefeld, Human Dignity, eds. Werner
Bonefeld and Kosmas Psychopedis (Aldershot: Ashgate, 2005), 40. Reichelt termina
esse artigo (65) com comentários sobre a categoria de classe que, ao contrário de
Tronti, não conseguem incorporar a atenção especial de Marx pela constituição
histórica do proletariado e a sua recomposição no processo de trabalho.
97
Reichelt, “Marx’s Critique,” 22.

71
burguesia98. O capitalismo representou a reformulação da
sociedade de acordo com o interesse coletivo da burguesia.
Para Tronti, começando pelas formas de permutabilidade
generalizada características do capitalismo, uma explicação da
burguesia era simplesmente impossível. Para um sistema em
que a troca típica e definidora era dinheiro/força de trabalho,
a premissa inicial deveria ser a constituição de uma classe com
nada a vender senão a força de trabalho, o trabalhador livre
constrangido economicamente, mas não legalmente, a vender
sua força de trabalho em troca de um salário. Isso, para Tronti,
era a constituição do proletariado: “a devida passagem histórica
do trabalho para a força de trabalho, que é do trabalho como
escravidão e serviço para a força de trabalho como a única
mercadoria capaz de submeter a riqueza ao valor, capaz de
valorizar a riqueza e, portanto, produzir capital” (139). Mas o
proletariado tinha que entrar na troca não com uma classe,
mas com capitalistas individuais, cujo único interesse “coletivo”
era seu instinto compartilhado de competir entre si:
O ponto de partida histórico vê na sociedade capitalista os
trabalhadores de um lado e os capitalistas do outro. Aqui
novamente está um dos fatos que se impõe com a violência de sua
simplicidade. Historicamente nós podemos falar de um capitalista
individual: esta é a figura socialmente determinada que preside a
constituição das relações capitalistas de produção. Como tal, ao
menos no desenvolvimento clássico do sistema, essa figura histórica
não desaparece, não é suprimida ou extinta, mas apenas organiza a
si mesma coletivamente, socializando-se, por assim dizer, em
capital, precisamente como a relação de classe. Do outro lado, nós
não podemos falar do trabalhador individual em nenhum momento
histórico. Em sua figura material e socialmente determinada, o
trabalhador é desde o nascimento organizado coletivamente. Desde
o início os trabalhadores, enquanto valores de troca do capitalista,
aparecem no plural: o trabalhador no singular não existe (232-3).

98
Lefort, “Proletarian Experience”; veja também um argumento um pouco
diferente, que se refere ao trabalho assalariado e o desenvolvimento tecnológico
em paralelo à revolução burguesa, em Castoriadis, “Modern Capitalism and
Revolution,” 259-60.
72
Sob esse aspecto, o capitalista individual persiste e continua a
empenhar-se na troca mercadológica que caracteriza o
capitalismo. Mas a classe capitalista é “sempre algo mais e algo
menos que uma classe social. Algo menos, já que os interesses
econômicos diretos não cessaram e talvez não cessarão de se
apresentar divididos no lado capitalista. Algo mais, porque o
poder político do capital agora estende seu aparato de
controle, dominação e repressão para além das formas
tradicionais assumidas pelo Estado, para envolver toda a
estrutura da nova sociedade” (233).
Uma vez que a força de trabalho é trocada pelo salário, Tronti
argumenta, introduzindo uma distinção terminológica nas
categorias de Marx, o proletariado se recompõe como classe
trabalhadora: uma força de trabalho que é cooperativa,
coletiva, dentro do processo de trabalho. Esse processo
contínuo de socialização do trabalho é a primeira fonte de
mais-valia relativa; ele depois necessitará de desenvolvimento
tecnológico para sua expansão futura. Aqui Tronti desenvolve
o ponto implicitamente sugerido por Panzieri; mas enquanto
o último começou com o trabalhador individual cuja força de
trabalho estava integrada no plano da fábrica, Tronti
identifica um processo de recomposição de classe99. Entre o

99
Compare a Raniero Panzieri, “Surplus Value and Planning”: “O relacionamento
entre os trabalhadores, sua cooperação, aparece apenas depois da venda de sua força
de trabalho, que envolve o simples relacionamento de trabalhadores individuais com
o capital”. É importante notar que enquanto a explicação feita em 1964 por Panzieri
se baseava na substituição da competição pela planificação, a descrição de Tronti
do “planejamento do capital” um ano antes nos Quaderni Rossi representava isso
como o nível mais alto do desenvolvimento da socialização do capital ainda mediada
pela competição, na procura individual do capitalista por lucros maiores que a média:
“Empresas individuais ou atividades produtivas inteiramente ‘privilegiadas’, em
conjunto da função propulsiva de todo o sistema, constantemente tendem a
quebrar a partir de dentro do capital social total para subsequentemente se
recompor em um nível maior. A luta entre os capitalistas continua, mas agora
funciona diretamente dentro do desenvolvimento do capital”. A planificação
representava a extensão do despotismo do capital ao Estado, não uma nova fase
substituindo o capitalismo competitivo: “A anarquia da produção capitalista não
está cancelada: está simplesmente organizada socialmente”. Veja “Social Capital”,
disponível online em libcom.org e o original reunido em Operai e capitale, 60-85.
73
proletariado e a classe trabalhadora Tronti vê “a mesma sucessão
histórica e a mesma diferença lógica que nós já encontramos
entre o vendedor da força de trabalho e o produtor de mais-valia”
(161).
A luta por um dia de trabalho normal, para Marx tão
fundamental na exposição lógica da mais-valia relativa,
manifesta a luta de classes em termos que também
estruturaram o proletariado: a luta para reduzir uma massa
heterogênea à mercadoria força de trabalho e a recusa de ser
reduzido a isso. Essa recusa é o que move o capital a agir em
seus interesses coletivos; nessa luta o capital se constitui
politicamente como uma classe, que se torna um imperativo
absoluto no período de 1848. Os escritos de Marx sobre 1848
mostram “o encontro e a sobreposição do conceito abstrato de
trabalho com a realidade concreta do trabalhador”. Nesse
ponto, Marx poderia suplementar suas reflexões anteriores e
intuitivas sobre o trabalho abstrato com a descoberta das
características peculiares da mercadoria força de trabalho: “a
mercadoria força de trabalho como classe trabalhadora” (161).
Não era suficiente, contudo, concluir que trabalhadores
assalariados primeiro se constituíram como uma classe
quando eles se tornaram vendedores de força de trabalho e
foram assim incorporados no capital. Era imperativo não
“fixar o conceito de classe trabalhadora em uma forma única
e definitiva, sem desenvolvimento, sem história”. Assim como
a “história interna do capital” tinha que incluir “a análise
específica das variadas determinações assumidas pelo capital
no curso de seu desenvolvimento”, contra as fáceis suposições
trans-históricas de uma teleologia “materialista histórica”,
uma “história interna da classe trabalhadora” teria que
“reconstruir os momentos de sua formação, as mudanças em
sua composição, o desenvolvimento de sua organização de
acordo com as variadas determinações sucessivas assumidas

74
pela força de trabalho enquanto força produtiva do capital e
de acordo com as experiências de diferentes lutas, recorrentes
e sempre renovadas, com as quais a massa dos trabalhadores
se equipa enquanto únicos adversários da sociedade
capitalista” (149).
E de fato essa explicação da dinâmica transformação histórica
e reconstituição da força de trabalho era necessária pela
relação social de mais-valia e pela unidade da circulação com
o processo de produção: “A história dos diversos modos em
que o trabalho produtivo é extraído do trabalhador, isto é, a
história das diferentes formas de produção de mais-valia, é a
história da sociedade capitalista do ponto de vista da classe
trabalhadora” (170). Isto é precisamente devido ao duplo
caráter do trabalho, a descoberta mais valiosa de Marx, em que
ambos os aspectos foram decisivos. Enquanto não se poderia
derivar o caráter abstrato do trabalho do nível do valor de uso
e do trabalho concreto – isto é, essa não era uma questão de
abstração como um efeito psicológico da administração do
tempo na fábrica – a valorização do valor não poderia ocorrer
sem o valor de uso da força de trabalho:
o trabalho, a utilização da força de trabalho, é o trabalho do
operário, um uso concreto, uma concretização do trabalho abstrato
– o trabalho abstrato que se encontra já por sua vez reduzido à
categoria de mercadoria e que realiza seu valor no salário. Portanto,
o passo onde o trabalho abstrato se transforma e toma a forma
concreta do trabalhador é o processo de consumo da força de
trabalho, o momento onde ela se torna na ação o que ela era apenas
em potencial, o passo da realização do valor de uso como força de
trabalho, assim dizendo. O que já estava presente na operação
venda/compra como uma relação de classe pura e simples,
elementar e geral, adquiriu definitivamente a partir desse ponto o
seu caráter específico, complexo e total (166).
Esse caráter complexo e total é implicado pela forma
cooperativa e coletiva da classe trabalhadora. A menos que as
forças de trabalho individuais sejam levadas à associação, elas
não podem “fazer valer [far valere]”, numa escala social, o
caráter especial da mercadoria força de trabalho em geral, isso
75
quer dizer que não podem tornar o trabalho abstrato concreto,
não podem realizar o valor de uso da força de trabalho, cujo
consumo efetivo é o segredo do processo de valorização do
valor, como um processo de produção de mais-valia e,
portanto, de capital” (205).
Dentro desse processo nós podemos vislumbrar a localização
teórica do conceito de composição de classe: “O vendedor de
força de trabalho fornece assim o primeiro estágio elementar,
o mais simples, de uma composição em uma classe de
trabalhadores assalariados: é por essa razão que uma massa
social constrangida a vender sua força de trabalho permanece a
forma geral da classe trabalhadora” (149). Mas esse permanece
sendo um estágio elementar, assim como Marx concluiu em
seu capítulo sobre o dia de trabalho, “nosso trabalhador
emerge do processo de produção parecendo diferente de
quando ele entrou nele”; entrando enquanto um vendedor de
força de trabalho (“um proprietário contra outro
proprietário”), o trabalhador sai sabendo que o processo de
produção é uma relação de força e que para proteção “os
trabalhadores têm que juntar suas cabeças e, como uma classe,
compelir a passagem de uma lei, uma todo-poderosa barreira
social pela qual eles podem ser impedidos de vender a si
mesmos e suas famílias à escravidão e à morte pelo contrato
voluntário com o capital”100. Para Tronti, essa diferença é “um
salto político”: “É esse o salto que a passagem pela produção
provoca naquilo que podemos chamar de composição da classe
trabalhadora ou mesmo de composição da classe dos
trabalhadores” (202).
Agora estamos na posição de entender por que a luta da classe
trabalhadora, para Tronti, vem primeiro na história do
desenvolvimento capitalista. O desenvolvimento capitalista
deve ser entendido como um processo de troca em que a
valorização do valor é movida pela venda e compra de força de
trabalho. É apenas na socialização da força de trabalho dentro
100
Marx, Capital, Volume 1 , 415-6.
76
do processo de produção que os proletários assumem a forma
associada de classe trabalhadora, na realização do valor de uso
de sua força de trabalho pelo capitalista individual. E apenas a
resistência de sua redução à mercadoria força de trabalho
pode compelir os capitalistas individuais, que competem no
mercado, a formar uma classe coesa:

A particularidade da força de trabalho como uma mercadoria


confrontada com outras mercadorias coincide, portanto, com o
caráter especificamente operário que o processo de produção do
capital assume; e, dentro disso, com a concentração de uma
iniciativa operária na relação de classe, que leva a um salto no
desenvolvimento da classe trabalhadora e ao subsequente
nascimento de uma classe de capitalistas (166).
Dentro do contexto dessa ampla teoria econômica e histórica,
estamos em uma posição de fechar a longa digressão e
retornar à enquete operária. A descoberta científica do
operaísmo foi de afastar a prática da enquete da problemática
humanista da experiência para uma teoria do valor que foi
capaz de reinterpretar a crítica da economia política de Marx
e colocá-la em uso. Isso implicou uma prática política que
afirmava a passividade no chão de fábrica e as lutas salariais
como expressões de um poder emergente de recusa ao
trabalho.
Podemos agora entender que a enquete operária foi uma
investigação sobre a composição da classe trabalhadora, como o
corpo histórico que, separada de seus meios de subsistência e
reduzida à venda de sua força de trabalho, teve que ser
formada em uma força produtiva socializada em um processo
de expansão constante – a reprodução expandida da própria
classe e sua recomposição em processos de trabalho cada vez
mais tecnologicamente avançados.
Para fechar essa genealogia descrevemos um momento
significante de ruptura, a descoberta de um conceito que abre
novos caminhos de experimentação científica e política. Mas
foi uma teoria que surgiu em um momento histórico
77
específico. “Todos nós temos que nascer algum dia, em algum
lugar”, observou Althusser, “e começar a pensar e escrever em
um dado mundo”101. Tronti começou com a hegemonia da
fábrica para mostrar como o antagonismo de classe poderia
ser pensado junto com as leis do movimento do capitalismo,
de uma maneira que seus antecessores falharam em fazer102.
No entanto, apesar de seu subdesenvolvimento teórico, a
tendência Johnson-Forest entendeu que a vida proletária
existe para além da fábrica, que ela abrange uma infância nas
plantações de algodão e tardes na cozinha. E assim como as
feministas na Itália desafiariam a hegemonia da fábrica
enquanto um ponto cego masculino, o operaísmo italiano
também teria que responder às mudanças no desenvolvimento
capitalista que eles não previram: a crise econômica global, a
reestruturação da produção e o declínio da hegemonia da
fábrica. Tentativas de desenvolver essa problemática teórica
ainda têm que responder a esse desafio histórico e explorar a
advertência de Panzieri – o risco de caducar em uma filosofia
da história baseada na ontologização do trabalho.
Embora a introdução da composição de classe identificasse o
capitalismo com o trabalho industrial e com o mundo social
criado pelo boom pós-guerra, ao mesmo tempo ela forneceu
um método que poderia hoje ser usado para traçar a
constituição e transformação da força de trabalho no contexto
de desenvolvimento desigual e crise global103. Tronti confessa
que a fixação dele e de seus camaradas na classe trabalhadora

101
Louis Althusser, For Marx, trans. Ben Brewster (London: Verso, 1969), 74.
102
Apresentado em “Factory and Society” na segunda edição dos Quaderni Rossi
(1962), reunido em Tronti, Operai e capitale, 39-59; veja também Sergio Bologna,
“The Factory-Society Relationship as an Historical Category,” disponível online em
libcom.org (translation of “Rapporto società-fabbrica come categoria storica,”
Primo Maggio 2, 1974).
103
Para uma explicação da tentativa operaísta de desenvolver uma teoria do
dinheiro e da composição de classe no contexto da instabilidade econômica do
começo dos anos de 1970, veja Steve Wright, “Revolution from Above? Money and
Class-Composition in Italian Operaismo” em Karl Heinz-Roth and Marcel van der
Linden, ed., Beyond Marx (Leiden: Brill, forthcoming).
78
industrial agora se mostra como um problema não resolvido:
“Eu cheguei à convicção que a classe operária foi a última
grande forma de aristocracia social. Ela foi uma minoria no
meio das pessoas; suas lutas mudaram o capitalismo, mas não
mudaram o mundo e a razão disso é precisamente o que ainda
precisa ser compreendido”104. Nós sugerimos que a enquete
será o primeiro passo para a compreensão.

104
Mario Tronti, “Towards a Critique of Political Democracy,” trans. Alberto
Toscano, Cosmos and History, 5:1 (2009): 74.
79

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