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Ana M. T.

Cavalcanti
Camila Dazzi
Arthur Valle

2008
3
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

Realização da Publicação
Escola de Belas Artes / UFRJ
Fundação de Apoio à Escola Técnica

Organização
Ana Maria Tavares Cavalcanti
Camila Dazzi
Arthur Valle

Projeto Gráfico e Editoração


Arthur Valle e Camila Dazzi

Revisão da Editoração
Ingrid Marie de Moraes

Editoras
EBA-UFRJ / DezenoveVinte

Correio eletrônico
dezenovevinte@yahoo.com.br

Tiragem
300 exemplares

Reúne os textos das comunicações apresentadas de forma mais sucinta no


I Colóquio Nacional de Estudos sobre Arte Brasileira do Século XIX. Os artigos
contidos neste livro não refletem necessariamente a opinião ou a concordância
dos organizadores, sendo o conteúdo e a veracidade
dos mesmos de inteira e exclusiva responsabilidade de
seus autores, inclusive quanto aos direitos autorais de terceiros.

Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República /


Organização Ana Maria Tavares Cavalcanti, Camila Dazzi, Arthur
Valle. - Rio de Janeiro: EBA-UFRJ/DezenoveVinte, 2008.
1 v.

ISBN 978-85-87145-25-3

1. Artes Visuais no Brasil. 2. Século XIX. 3. História da Arte. I.


Cavalcanti, Ana Maria Tavares. II. Dazzi, Camila. III. Valle, Arthur.
IV. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Escola de Belas Artes.
V. Fundação de Apoio à Escola Técnica. Instituto Superior de
Educação. VI. Colóquio Nacional de Estudos sobre Arte Brasileira
do Século XIX.

CDD 709

4
I Colóquio Nacional de Estudos Sobre Arte Brasileira do Século XIX
Rio de Janeiro
25 a 29 de Fevereiro de 2008
Fundação Casa de Rui Barbosa

* * *

Realização

Universidade Federal do Rio de Janeiro


Escola de Belas Artes
Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais

Reitor
Aloísio Teixeira

Diretora da Escola de Belas Artes


Angela Azevedo Silva Balloussier Ancora da Luz

Diretor do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais


Rogério Medeiros

Fundação de Apoio à Escola Técnica do Rio de Janeiro


Instituto Superior de Educação

Presidente
Nelson Massini

Diretor de Ensino Superior


Fernando da Silva Motta

Coordenação dos Institutos Superiores de Educação


Rachel Gonçalez Montilla da Silva Braga

* * *

Coordenação Geral do Colóquio

Profa. Dra. Ana Cavalcanti (EBA-UFRJ)


Profa. Drnda. Camila Dazzi (CEFET-RJ)
Prof. Dr. Arthur Valle (ISE-FAETEC)

5
11 prefácio 107 O curso de arquitetura da Escola Nacional
de Belas Artes e o processo de
13 apresentação modernização do centro da cidade do Rio
de Janeiro no início do século XX
17 capitulo 1 Helena Cunha de Uzeda
história da arte do século XIX: revisões e
novas abordagens 114 Os propulsores da prática da cópia na
Academia Imperial das Belas Artes: períodos
19 Reflexões sobre a idéia de semelhança, de de introdução e consolidação de uma
artista e de autor nas artes - exemplos do metodologia artístico-pedagógica
século XIX Reginaldo da Rocha Leite
Jorge Coli
122 Pedro Américo contra a Academia
26 A recepção dos gêneros europeus na pintura neoclássica francesa, a favor da fotografia e
brasileira das reformas de Napoleão III, em 1863
Luciano Migliaccio Vladimir Machado

32 A historiografia da arte oitocentista e as 131 capitulo 3


revisões efetuadas durante as últimas outros centros de formação artística
décadas do século XX
Mariela Brazón Hernández 133 O desenho em foco: a arte aplicada na
transição do século XIX para o XX
37 Rediscutindo a arquitetura brasileira do Daniela Flávia M. Fonseca, Bruno dos
século XIX: os preconceitos da historiografia Santos Dias e Renata Garcia C. Duarte
moderna e o processo de revalorização
recente 139 Subsídios sobre a formação do serralheiro e
Nivaldo Vieira de Andrade Junior ferreiro e seu sistema profissional na Bahia
oitocentista
53 A questão do moderno na arte e no ensino Dilberto de Assis
da arte na passagem do século XIX para o
século XX 145 De oficial mecânico a operário ou artista: o
Sonia Gomes Pereira Liceu de Artes e Ofícios e a Academia de
Belas Artes da Bahia
64 O IPHAN e a proteção das artes plásticas Maria Helena Ochi Flexor
brasileiras modernas
Tamara Quírico 159 capitulo 4
a dinâmica das exposições, a obra e o
71 capitulo 2 público
formação artística: centros oficiais
161 Entre a Europa e o Brasil : a Faceira,
73 As mulheres na escola nacional de belas escultura de Rodolpho Bernardelli, e a
artes: gênero e formação artística em tempos necessidade de agradar ao público
de república Ana Maria Tavares Cavalcanti
Ana Paula Cavalcanti Simioni
169 Artistas em trânsito: arte e política na
81 A formação acadêmica de Portinari e sua representação da nação
contribuição à modernidade da arte brasileira Luciene Lehmkuhl
Angela Ancora da Luz
178 A festa da imagem: a afirmação da escultura
89 Acadêmicos e isolados - cenário artístico no pública no brasil do século XIX
nordeste brasileiro - século XIX Paulo Knauss
Dalmo de Oliveira Souza e Silva
187 A arquitetura de exposições como repertório
93 A contribuição do ensino oficial para a de formas e tipologias
modernização da arquitetura oitocentista Ruth Nina Vieira Ferreira Levy
Denise Gonçalves
193 Do privado ao público: a experiência da
100 Academia de Belas Artes na Amazônia Coleção Brasiliana / Fundação Estudar
Edison da Silva Farias Valéria Piccoli
7
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República
199 capitulo 5 312 O pensamento de John Ruskin no debate
a crítica de arte, o romance sobre arte, o cultural brasileiro dos anos 1920
artista como teórico Maria Lucia Bressan Pinheiro

201 Félix-Émile Taunay e a importância do 320 A arquitetura monumental de Salvador no


monumento público na Academia Imperial de início do século XX. Uma resposta local a
Belas Artes um processo internacional
Elaine Dias Suely de Oliveira Figueirêdo Puppi

209 “Queremos o fim da academia que não se 329 capitulo 7


ocupa das artes” - insubmissão e revolta da artes decorativas e repertórios
juventude artística na passagem para a ornamentais
república no Brasil
Elisabete Leal 331 Entre a academia e as ordens terceiras.
Antônio de Pádua e Castro e o gosto na corte
218 Imagem e tradição: retórica e criação visual de D. Pedro II
na obra ilustrada História de um pintor Cybele Vidal Neto Fernandes
contada por ele mesmo de Antônio Parreiras
Fábio Pereira Cerdera 338 O lugar da ornamentação sacra católica na
renovação estética do século XIX no Brasil
225 Modesto Brocos: A Retórica dos Pintores Luiz Alberto Ribeiro Freire
José Luiz da Silva Nunes
343 Formas e ambientes: a explosão do
236 A critica de arte da Belle Époque ornamento na época de D. João VI e de
José Roberto Teixeira Leite Francisco I, Imperador da Aústria
Maria João Nunes de Albuquerque
247 Da arte incompleta à morte de um
insubmisso: Mocidade Morta (1899) de 351 Ambientes interiores e o ideal decorativo -
Gonzaga Duque em busca de lugares para a arte
Leticia Squeff Marize Malta

257 1890 – o primeiro ano da república agita o 360 Tradição versus modernização na arquitetura
meio artístico brasileiro e marca a carreira do Rio de Janeiro: ornamentos mouriscos
de Eliseu Visconti Rosane Bezerra Soares
Mirian Nogueira Seraphim
371 capitulo 8
273 Considerações sobre história e arte nos iconografia: identidade brasileira
manuscritos de Porto-alegre
Paula Ferrari 373 “A influência das artes na civilização”. Eliseu
Visconti e o pano de boca do Teatro Municipal
279 Caminhos da crítica de arte no brasil: século do Rio de Janeiro
XIX Ana Heloisa Molina
Rosangela de Jesus Silva
378 Imagens e imaginário na construção do real
287 capitulo 6 André Cozzi
arquitetura e ecletismo
387 “Era terra do Brasil”: representação da nação
289 O ecletismo e civilização brasileira na obra de Antônio Parreiras
Claudia Thurler Ricci José Maurício Saldanha Álvarez

299 Um sotaque disfarçado: a recepção de 393 capitulo 9


referências americanas no curso de iconografia: pintura histórica
arquitetura da Escola Nacional de Belas
Artes 395 O centenário mestiço: Theodoro Braga e a
Fernando Atique pintura histórica da fundação da Amazônia,
1908-2008
305 Léonce Reynaud e a concepção teórica do Aldrin Moura de Figueiredo
ecletismo no Rio de Janeiro
Marcelo Puppi
8
402 A temática, na pintura do século XIX no 470 Intimidade e reflexão: repensando a década
Brasil, como veículo de afirmação e de 1890
sobrevivência: Pedro Américo de Figueiredo Rafael Cardoso
e Mello
Madalena de F. P. Zaccara 477 A intimidade em cena
Vera Lins
407 A recusa ao corpo fragmentado: a recepção
de “Tiradentes Esquartejado” 483 capitulo 12
Maraliz de Castro Vieira Christo iconografia: a paisagem

414 Taunay e Debret: pintura e história nos 485 “As bellezas naturaes do nosso paiz”: o lugar
trópicos da paisagem na arte brasileira, do Império à
Vera Beatriz Siqueira República
Arthur Valle e Camila Dazzi
423 capitulo 10
iconografia: cenas e tipos brasileiros 493 Paisagem, monumento e crítica ambiental na
obra de Félix-Émile Taunay
425 O imaginário da cristandade no Rio de Claudia Valadão de Mattos
Janeiro do século XIX nas pinturas de
Rugendas e Debret 500 Victor Meirelles e os panoramas
Heloisa Pires Lima e Rosana Ramalho de Cristina Pierre de França
Castro
510 Por sobre as águas: um estudo sobre a
431 Saudade e Nhá Chica: duas cenas de gênero pintura de marinha no brasil
de José Ferraz de Almeida Júnior Helder Oliveira
Karin Philippov
516 Iconografia de viagem à luz da história da
435 Melancolia à brasileira: a aquarela Negra arte
tatuada vendendo caju, de Debret Valéria Alves Esteves Lima
Leila Danziger
523 capitulo 13
440 A propósito de três esculturas de Rodolfo dosssier pedro weingärtner
Bernardelli: a Baiana (1886), o Retrato de
negro (1886) e o Túmulo de José Bonifácio 525 Os desenhos de Pedro Weingärtner
(1888-89) Alfredo Nicolaiewsky
Maria do Carmo Couto da Silva
530 A paisagem em Pedro Weingärtner (1853-
445 Afro-modernidade - representações de afro- 1929): algumas hipóteses de trabalho
descendentes e modernização artística no Ana Maria Albani de Carvalho
Brasil
Roberto Conduru 535 Realidades simultâneas - contextualização
histórica da obra de Pedro Weingärtner
453 capitulo 11 Neiva Maria Fonseca Bohns
iconografia: intimidade e
representações do feminino 545 Alguns comentários sobre Pedro
Weingärtner
455 Imagens da nação: a Carioca de Pedro Paulo César Ribeiro Gomes
Américo entre o ufanismo e a licenciosidade
Claudia de Oliveira 549 Pedro Weingärtner: sob o olhar fotográfico
Susana Gastal
460 Pintores italianos em São Paulo – o caso da
Culla Tragica de Giuseppe Amisani 555 As influências na obra de Pedro Weingärtner
Fernanda Pitta (1853-1929)
Vivian S. Paulitsch
465 Dois pintores. Duas gerações. Em comum,
a paixão pela pintura
Márcia Valéria Teixeira Rosa

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O livro que o leitor tem em mãos - Oitocentos -
Arte brasileira do Império à Primeira República -,
reúne os textos integrais das comunicações
apresentadas no I Colóquio Nacional de Estudos
Sobre a Arte Brasileira do Século XIX, realizado
entre os dias 25 e 29 de 2008 no auditório do Centro
Cultural Casa de Rui Barbosa, localizado na cidade
do Rio de Janeiro. O evento propôs analisar as
manifestações das artes visuais brasileiras
produzidas no século XIX, compreendido, em
termos culturais, de uma maneira singularmente
ampla, se iniciando ainda em finais dos setecentos
e se encerrando nos anos 1920. Embora a arte
brasileira produzida nesse lapso de tempo esteja
longe de ser homogênea, julgamos proveitoso
analisá-la como um bloco, devido a algumas
características comuns, notadamente em função
do diálogo - harmônico ou polêmico - que ela
estabeleceu com a pedagogia de instituições
oficiais de ensino, as Academias de arte, cuja
representante mais célebre no Brasil foi a
Academia/Escola das Belas Artes do Rio de
Janeiro.

Cremos que o livro representa bem a expansão do


interesse sobre a arte brasileira do século XIX que
se tem verificado especialmente nas duas últimas
décadas, uma vez que reúne boa parte das novas
leituras a respeito da produção artística do período.
prefácio É notório, no entanto, o quanto esses estudos
recentes continuam mal divulgados e mesmo
desconhecidos entre os próprios especialistas e,
sobretudo, entre os pesquisadores iniciantes. O
referido colóquio, bem como a presente publicação
dele derivada, se esforçam por minimizar essa
lacuna, possibilitando que todos os interessados
tomem contato com aspectos significativos desse
novo quadro historiográfico que vem se
configurando sobre a nossa arte oitocentista.

Todavia, se deriva do I Colóquio sobre a Arte


Brasileira do Século XIX, pela sua natureza de
publicação impressa Oitocentos apresenta uma
estrutura própria. Cada um dos treze capítulos que
se seguem reúne textos agrupados por possuírem
claras afinidades temáticas. Assim, autores aqui
reunidos em um mesmo capítulo não
necessariamente figuraram em uma mesma mesa
no referido evento1. Temos consciência do quanto
a organização final do livro deriva de escolhas
pessoais: determinados textos poderiam
igualmente bem ser colocados em capítulos
diversos daqueles em que figuram e mesmo outros
núcleos temáticos poderiam ter sido criados a partir
do material reunido. Temos certeza de que o leitor
perspicaz estabelecerá sua próprias pontes e
ligações entre os textos, diversas daquelas que
sugerimos no sumário.

11
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

Nossos agradecimentos vão, em primeiro lugar, estados, e que igualmente colaboraram


para a FAPERJ, o CNPq e a FUJB, instituições coordenando as mesas temáticas e os debates.
que apoiaram financeiramente os diversos Pela colaboração na organização e pela ajuda
aspectos do I Colóquio Nacional de Estudos Sobre durante os dias do evento, ocupam lugar de
a Arte Brasileira do Século XIX, sem o que este destaque nesses agradecimentos Marize Malta, da
não teria sido possível. Gostaríamos de agradecer EBA-UFRJ, Fátima Alfredo, mestranda do PPGAV-
igualmente à Fundação de Apoio a Escola Técnica, EBA-UFRJ, e os amigos Nadja Dazzi, Renato
nas pessoas da chefe de gabinete Lindomar Amorim e Luciana Diláscio. Agradecemos a Ingrid
Goldschimidt e do diretor do Instituto Superior de Marie de Moraes, pela revisão da editoração do
Educação Fernado Motta, e à Escola de Belas Artes livro, e, por fim, a professora Sonia Gomes Pereira,
da UFRJ, na pessoa da diretora Angela Ancora da por ter aceito gentilmente redigir a Apresentação
Luz, bem como ao corpo docente do Programa de do presente trabalho.
Pós-Graduação em Artes Visuais dessa última
insituição, em especial àqueles professores que Ana Maria Tavares Cavalcanti (EBA-UFRJ)
dividem conosco a paixão pelo século XIX. Um Camila Dazzi (CEFET-RJ)
obrigado muito especial vai para a instituição que Arthur Valle (ISE-FAETEC)
acolheu tão generosamente o evento, o Centro
Cultural Casa Rui Barbosa, particularmente para Organizadores
Antonio Herculano Lopes, Cláudia Oliveira e para
Notas
a equipe da Divisão de Difusão Cultural.
Registramos nosso reconhecimento aos colegas 1 A programação do I Colóquio Nacional de Estudos Sobre
pesquisadores que palestraram no I Colóquio a Arte Brasileira do Século XIX se encontra disponível no
Nacional de Estudos Sobre a Arte Brasileira do site: http://www.dezenovevinte.net/coloquio/
Século XIX, muitos dos quais vindos de outros

12
A opinião geral de praticamente todos os que
estiveram presentes ao I Colóquio nacional de
estudos sobre arte brasileira do século XIX – e
que certamente será confirmada pela edição deste
livro – é de que o evento foi um grande sucesso!
Esta apresentação pretende entender as razões
desse sucesso e delinear o que podemos aprender
com ele para as ações no futuro neste campo de
pesquisa.

O Colóquio ocorreu na semana de 25 a 29 de


fevereiro de 2008. Foi patrocinado por duas
instituições: a Escola de Belas Artes da UFRJ
(Programa de Pós-graduação em Artes Visuais) e
a Fundação de Apoio à Escola Técnica do Rio de
Janeiro (Instituto Superior de Educação). Várias
agências apoiaram o evento: o CNPq, a FAPERJ,
a FUJB (Fundação Universitária José Bonifácio da
UFRJ) e a Fundação Casa de Rui Barbosa (IPHAN/
MINC) – esta última cedeu auditório, equipamento
e pessoal de apoio, além, naturalmente, do
maravilhoso jardim de sua casa histórica, em que
foi possível circular durante os intervalos entre as
sessões. A organização geral esteve a cargo de
três estudiosos do século XIX: a Profa. Dra. Ana
Maria Tavares Cavalcanti (coordenadora do PPGAV
da EBA/UFRJ), o Prof. Dr. Arthur Valle (professor
do ISE/ FAETEC) e a doutoranda Camila Dazzi
apresentação (professora do CEFET-RJ/Ensino Superior). A
descrição desta estrutura geral confirma o perfil
sonia gomes pereira atual deste tipo de evento no país: é preciso buscar
apoio e recursos em muitas instituições e o que
garante mesmo a sua concretização é a liderança
de algumas pessoas – no caso, Ana, Arthur e
Camila – que conseguem driblar todas as
dificuldades e realizar o que todo mundo acreditava
antes que era impossível.

No entanto, se o Colóquio seguiu o padrão geral


de organização de eventos deste gênero, ele foi
muito diferente e muito melhor do que grande parte
dos encontros científicos que costumamos
freqüentar no nosso meio acadêmico – eventos
totalmente esvaziados, em que os comunicadores
só aparecem na hora de sua própria apresentação
e acabam falando para os seus próprios colegas;
em que o debate só existe no programa impresso,
mas nunca acontece de fato nas diversas sessões;
em que os diversos grupos regionais de
pesquisadores dificilmente estabelecem contactos
produtivos do ponto de vista acadêmico; e em que
o objetivo dos participantes parece ser garantir
alguns pontos positivos em seus currículos, através
da participação num evento científico e da quase
certa publicação de sua pesquisa. Muitas agências
de fomento à pesquisa têm discutido e questionado
este modelo de evento, que engole verbas públicas
substanciais e parece contribuir muito pouco para
o avanço na produção do conhecimento.

13
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

O sucesso do Colóquio, portanto, reside no fato pontos que me parecem já de consenso entre os
de ter fugido ao padrão desgastado indicado acima. pesquisadores desse campo.
Mas quais seriam as razões mais precisas de seu
sucesso? Vou apontar algumas, entre aquelas que 1) O reconhecimento de que a historiografia da arte
me parecem mais importantes. brasileira do XIX foi feita a partir do ponto de vista
modernista, tendo, desta maneira, uma abordagem
1) A decisão de usar apenas um auditório – mesmo predominantemente preconceituosa.
que isto tornasse o Colóquio mais longo – foi sábia:
literalmente manteve as pessoas mais unidas, 2) O reconhecimento das limitações de conceitos
facilitou o conhecimento de pesquisas de outros tradicionais como acadêmico ou então de uma
grupos - além dos nossos próprios - e propiciou leitura simplesmente calcada no reconhecimento
debates espontâneos e produtivos. da filiação da obra a estilos ou movimentos. Na
verdade, esses estudos encobrem a obra e
2) Houve a preocupação dos organizadores em produzem uma História da Arte opaca ou mesmo
atrair o maior número possível de estudiosos sob cega.
vários aspectos. Primeiro, atendendo aos diversos
níveis na formação e na atuação do pesquisador: Em segundo lugar, comento algumas questões que,
desde estudiosos consagrados, passando por no meu entendimento, precisam ser aprimoradas
doutorandos e mestrandos, até a inclusão de nos nossos estudos futuros, em termos de rigor
alunos da graduação - engajados em projetos metodológico:
institucionais de pesquisa e geralmente com bolsas
de iniciação científica. Segundo, incorporando 1) Entre alguns pesquisadores, o perigo de
pesquisadores de todo o país e, em menor escala, transformar a arte numa conseqüência pura e
até de fora: conforma consta no Caderno de simples do contexto histórico e cultural, evitando,
Resumos, foram ao todo, 74 comunicações, sendo desta forma, o embate frente à obra.
24 do Rio, 24 de São Paulo, oito do Rio Grande do
2) Entre outros estudiosos, o perigo inverso de
Sul, cinco de Minas, cinco da Bahia, três do Pará,
afundar-se nos aspectos formais e técnicos da
três do Paraná, uma de Pernambuco e uma do
obra, desprezando ou simplificando a questão
Distrito Federal, além de duas estrangeiras (de
complexa do entorno cultural.
Portugal). É verdade que um percentual mínimo
desses comunicadores faltou ao Colóquio, como .3) A absoluta necessidade de promover entre os
as duas colegas portuguesas, mas isto em nada pesquisadores em todos os níveis (iniciação
arranha o caráter efetivamente aberto e abrangente científica, mestrado e doutorado) o procedimento
que o evento pretendeu adotar. O Colóquio metodológico essencial de começar qualquer
conseguiu, portanto, fugir do acanhamento pesquisa pelo que é chamado de estado da
provinciano de alimentar a natural comparação questão, isto é, a identificação do ponto em que se
entre os diversos grupos institucionais.1 encontram as discussões sobre o tema em
questão. Na era da internet e com as recentes
3) Acredito que o fator mais decisivo para o sucesso
recomendações da Capes aos programas de pós-
do Colóquio tenha sido a decisão dos
graduação para que dissertações e teses sejam
organizadores em apostar numa abordagem, na
disponibilizadas na íntegra nos sites dos
minha opinião, mais inteligente: colocar em primeiro
programas, esta busca pelas pesquisas
plano a importância do campo de estudos da arte
congêneres se torna muito mais fácil. Este ponto
brasileira do século XIX. Assim, o interesse
me parece essencial a fim de que a historiografia
prioritário do evento voltou-se para a montagem
possa realmente avançar para discussões novas
de uma grande painel que desse conta do estado
e importantes, evitando a ingenuidade do
atual dos estudos neste campo, constituindo, dessa
pesquisador iniciante que acredita estar
maneira, um verdadeiro encontro acadêmico, que
“descobrindo” fontes ou obras ou interpretações
deve estar comprometido, em primeira instância,
que, na verdade, já foram “descobertas” antes.
com a produção de conhecimento.
4) Para os pesquisadores que trabalham
Depois desses comentários sobre as razões do
essencialmente com fontes escritas, a necessidade
sucesso do Colóquio, acredito que seja importante
de entender criticamente aquilo que é encontrado
delinear algumas questões, em geral
nesses discursos, evitando uma interpretação um
metodológicas, que podem iluminar os nossos
tanto ingênua de que o que está escrito é
estudos futuros, sempre tendo como prioridade o
necessariamente verdade.
avanço coletivo da historiografia da arte brasileira
do século XIX. Em primeiro lugar, destaco alguns

14
Apresentação

Em terceiro e último lugar, destaco um problema conceitos e métodos e de retomar de modo crítico
de natureza mais política. Reafirmo aquilo que tem a sua historiografia.
sido um ponto constante nas reuniões acadêmicas:
a importância de fazer circular de forma mais efetiva Finalmente, termino essa apresentação dizendo
a pesquisa que vem sendo produzida nas que os organizadores do Colóquio estão de
universidades, museus e centros de pesquisa sobre parabéns; nós, historiadores da arte brasileira do
a arte brasileira do século XIX. Sabemos que o século XIX, também estamos de parabéns; e dando
grande problema das nossas publicações voz e palavra à sensação que parecia unânime ao
acadêmicas não é propriamente a editoração, mas final do evento: queremos mais!
a distribuição. É possível que uma estratégia
inteligente a ser conquistada nesse campo de Notas
estudos seja tentar influir nas políticas públicas, 1
Existe uma natural comparação e mesmo competição –
garantindo recursos para a tarefa difícil e nesses tempos tão difíceis de empregos e recursos – entre
dispendiosa de distribuição de livros no Brasil. Uma alguns grupos de pesquisadores ligados a instituições que
maior divulgação das pesquisas acadêmicos para têm linhas consolidadas de pesquisas sobre a arte
um público mais amplo e a demonstração dos brasileira do século XIX. Antes de mais nada, é importante
avanços efetivos na produção de conhecimento na enfatizar que utilizo aqui a expressão linha de pesquisa no
área talvez nos poupasse do desprazer e do seu sentido literal, isto é, a existência de um grupo de
pesquisadores, professores e alunos, que se dedicam à
desencanto de constatar que muitas exposições e pesquisa institucional, quer dizer, pesquisa que tem alguns
publicações atuais são feitas em quase total tópicos temáticos ou metodológicos em comum. Nesse
destacamento do avanço historiográfico que vem caso, há algum tempo, destacam-se no estudo da arte
sendo construído há algumas décadas no meio brasileira do século XIX duas linhas de pesquisa
acadêmico. institucionais: a da IFCH/UNICAMP e a da EBA/UFRJ. Não
é difícil, durante os congressos e colóquios, entreouvir no
É interessante observar que a História da Arte tem auditório comentários críticos mútuos. Na minha opinião,
recebido um tratamento contraditório nos últimos esta é uma querela sem grande futuro. As linhas de
pesquisa dessas duas instituições têm necessariamente
tempos, pelo menos no Brasil. De um lado, ela
padrões diferentes. Na UNICAMP, trata-se de uma linha
passou a ser execrada, como uma disciplina morta de pesquisa dentro de um programa de pós-graduação na
– talvez efeito de uma leitura, na minha opinião área de História, já bastante consolidado (acredito que vem
equivocada, dos escritos de Danto e Belting: em mantendo o conceito 7 na Capes há várias avaliações). Já
geral esses críticos se voltam para a Cultura Visual, na UFRJ, o interesse pela arte do século XIX situa-se dentro
como um novo campo mais promissor e que de um grupo pequeno – porém bastante combativo - que
poderia substituir, com vantagem, a “falecida”. No se vem dedicando à pesquisa de sua própria história e de
seus acervos, dentro de um programa de pós-graduação
extremo oposto, a História da Arte “entrou na moda”
na área de Artes ( tem obtido conceito 5 na últimas
e parece fácil a pesquisadores de áreas afins avaliações da Capes), voltado não apenas para a História
movimentar-se com desenvoltura neste campo de da Arte, mas também para a questão da formação do artista
estudos: o resultado tem sido, muitas vezes, uma e em que o debate do moderno e do contemporâneo tem
simples divulgação de conhecimento e não uma um peso enorme. Apesar da limitação e mesmo inutilidade
verdadeira produção de conhecimento científico. dessa comparação, não deixa de ser curioso perceber
Ao contrário destas posições acima destacadas, nesses comentários que os paulistas têm, em geral, uma
auto-estima consolidada, mas que isto nem sempre
acredito que a História da Arte é uma disciplina
acontece entre os cariocas, que, muitas vezes, são os
muito complexa, que exige grande preparo e primeiros a criticar publicamente a sua instituição. Coitada
experiência culturais e que tem demonstrado uma das Belas Artes! Tão facilmente atacável desde os tempos
incrível vitalidade nos últimos tempos, tendo a da Academia e da Escola Nacional de Belas Artes!
coragem de enfrentar a discussão de seus

15
capitulo 1
história da arte do século xix: revisões e novas abordagens

17
Começo por um trecho, lido há décadas, no tempo
de minha graduação em história da arte. É extraído
de um artigo escrito por Jean-Philippe Chimot sobre
Delacroix, e publicado na revista Information de
l’Histoire de l’art, de 1964 1, intitulado “Delacroix e a
sociedade de seu tempo”. Ele diz: “Aqui, a noção
de linguagem é central. Trata-se de ultrapassar seu
sentido exclusivo de “retórica”, do estilo discursivo
herdado do classicismo (ou antes, do academismo)
para se abrir ao sentido mais largo de
“pensamento”, supondo que pode existir um
pensamento musical e um pensamento plástico
com seus elementos constitutivos de uma natureza
diferente das palavras e das frases”.

Esta passagem, escrita em 1964, era então de


grande originalidade: arte concebida não como
forma, ou como objeto, mas como pensamento2.
Partindo dela, somos levados a deduzir que uma
obra de arte condensa um pensamento, e que esse
pensamento não é o pensamento do artista: é o
pensamento da obra. O artista, o criador, é um
indivíduo que pensa como cada um de nós, por
meio de palavras e de frases. Ora, não é com
palavras e frases que ele se torna artista (a menos
que seja um poeta ou ficcionista, mas aqui as
palavras adquirem uma opacidade suplementar,
reflexões sobre a idéia de semelhança, de artista que as faz “pensar” como arte, não como definições
e de autor nas artes - exemplos do século xix ou conceitos). O artista precisa das palavras e das
frases para viver, para se comunicar, para pedir
jorge coli um café ou dizer bom dia. Quando produz uma
obra, emprega elementos que constituem um
pensamento objetivado e material.

Um quadro, uma escultura desencadeiam, graças


à materialidade de que são feitos, “pensamentos”
sobre o mundo, sobre as coisas, sobre os homens.
Esses “pensamentos”, incapazes de serem
formulados com conceitos e frases pela própria
obra, provocam comentários, análises, discussões,
que se alteram, ao infinito, conforme seja o analista,
o universo cultural ao qual pertence, a geração da
qual faz parte. O artista, ele próprio, pode propor
uma análise de sua criação. Ele será, porém,
rigorosamente, apenas mais um analista, como os
outros o foram.

A obra de arte, como pensamento material e


objetivado, deixa de ser objeto e se torna sujeito,
sujeito pensante, como o é um tratado filosófico,
apenas com uma diferença fundamental de meios.
O artista, portanto, introduz um ser pensante no
mundo, ser autônomo em relação a seu próprio
criador.

No entanto, se reunimos obras feitas pelo mesmo


artista, constatamos constantes, não apenas
estilísticas ou formais, mas de pensamento. Ou
seja, o conjunto da produção de um mesmo artista,
pertence a um pensamento genérico do qual
19
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

participa cada obra. Cada obra se torna uma parte permitiu aos Cahier du Cinéma revelar grandes
orgânica desse todo que a ultrapassa. Seria esse realizadores norte-americanos, considerando-os
pensamento genérico o pensamento do artista? autores, como Hitchcock, Hawks ou Huston,
realizadores esses que, eles próprios, não se
A resposta é não. O artista não exprime esse consideravam autores. Pensavam estar apenas
pensamento geral por palavras: é o conjunto de produzindo produtos de divertimento destinados ao
sua obra que o exprime. Temos portanto duas sucesso e com objetivos do melhor lucro possível.
unidades diferentes: a genética, que preside à Suas obras foram, contudo, capazes de constituir
criação, e que pertence ao artista, e uma outra, a uma entidade artística: o auteur.
posteriori, que é extraída das obras.
Desse modo temos uma distinção entre o artista
Os especialistas da arte medieval (mas isso é (aquele que está na gênese da obra) e o autor (a
verdadeiro também para alguns outros períodos) unidade que reúne as constantes do pensamento
encontram, com certa freqüência, obras que se artístico embutido nas obras}.
assemelham em seu estilo, mas também em seu
espírito. Muitas vezes, esses conjuntos são Creio que, se separarmos com clareza o artista do
anônimos. Eles podem concluir que foi uma única autor, teremos duas categorias que permitem
mão que os fez, embora não se conheça o artista. compreender melhor o fenômeno artístico, com
Então, inventam um nome: “Mestre dos Cravos”, conseqüências importantes, algumas de natureza
“Mestre da Anunciação de Aix”, “Mestre da Vela”. social, outras de natureza concreta.

Não seria rigoroso, porém, considerarmos esses Primeiro, essa cisão permite esvaziar a autoridade
“mestres” como artistas; ou pelo menos não como do artista. Ele é o criador da obra, está em sua
consideramos Delacroix. De Delacroix conhecemos gênese como um demiurgo. Mas o mundo que ele
sua vida, suas viagens, os locais onde morou. instaurou passa a viver por si só. Nossa concepção
Temos um diário que ele escreveu. Temos seus do criador nas artes foi muito marcada pelo
comentários sobre outros artistas. Do Mestre dos romantismo. Imaginamos que o autor “exprime” sua
Cravos não sabemos nada do que precede a obra. alma, seus sentimentos em sua criação.
Nada que esteja ligado à sua pessoa, nada que se Imaginamos que ele tem uma autoridade natural
vincule a uma personalidade, a uma história sobre seus quadros, suas esculturas, suas
pessoal. Tudo o que temos dele, ao contrário, gravuras.
provém de suas obras.
Ora, se considerarmos que o artista é um médium
O grupo da revista Les cahiers du cinéma criou, para o autor, que se encontra nele mas que não se
nos anos de 1950, uma noção muito interessante identifica com ele, devemos concluir que ele não
para se compreender o cinema: a idéia de auteur. exprime nada, mas que fabrica coisas carregadas
Seus inventores foram André Bazin, e depois de expressão. É interessante ter certos dados
François Truffaut, que forjou a expressão “política biográficos do criador, por exemplo, para
dos autores”. Sem entrar numa discussão mais compreendermos a gênese da obra. Mas, passado
aprofundada sobre essa noção, há uma esse ponto, a obra começa a falar por si. Ela pode
conseqüência sua que quero assinalar aqui. Esses mesmo negar o dado genético, ou então confirmá-
teóricos designavam como autores os cineastas lo. Mas agora isso deixa de importar, porque a obra
que imprimem características originais de criação está dizendo outra coisa, falando por si mesma.
em seus filmes. A partir dessas características, é
possível distinguir um diretor autor, de um não- Desse modo, deveríamos por em questão, por
autor. Talvez, mais rigorosamente e melhor, princípio teórico, e sempre que fosse possível, na
poderíamos empregar esse princípio de maneira prática, o poder que o artista possui em alterar sua
levemente diversa, dizendo que todos os cineastas própria obra. Quantos escritores e poetas, na
são autores: apenas, uns são bons, outros são velhice, reviram e reescreveram suas obras de
ruins. juventude, modificando-as segundo uma
concepção tardia, que eles acreditaram melhor,
Mas não é este ponto que me interessa aqui. Quero decretando-as como definitivas? Quantos
chamar a atenção para efeito desse princípio na compositores? Stravinsky, nesse aspecto, é um
crítica cinematográfica. Os críticos marcados pelo exemplo clássico. Na verdade, dessas
princípio da política dos autores, consideram os modificações resultam duas obras diferentes, a
filmes em relação à filmografia do realizador, mais antiga e a mais nova, que incorporam modos
buscando as recorrências e temas desenvolvidos diversos da criação segundo os diferentes
nos diferentes filmes de um cineasta. Essa posição momentos. No caso das artes plásticas, a questão

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Reflexões sobre a idéia de semelhança, de artista e de autor nas artes

concreta se impõe, já que a obra alterada esconde gosto e mesmo nas práticas do mercado, as
ou desfigura o primeiro original. diferenças hierárquicas que existem entre um
original e uma cópia. Mais ainda, sabemos que a
Para sermos rigorosos, teríamos que admitir o fato reprodução fotográfica de uma obra não é a obra,
de nenhum artista ter, portanto, o direito de destruir mas uma espécie de sucedâneo, de mero aide-
qualquer uma de suas obras. Está claro que, mémoire. Conhecemos todos um texto arqui-
humanamente e, suponho, legalmente, o artista célebre, A obra de arte na era de sua
tem o poder de anular o que criou. Mas o princípio reprodutibilidade técnica, cujas origens fortemente
teórico é importante. Trago aqui um exemplo românticas recobrem a obra por uma aura de um
concreto. Há algumas décadas, fiz parte do misticismo fetichista. Condena os processos de
Condephaat, o Conselho que discute e decide dos banalização trazido pelos meios mecânicos de
bens a serem tombados no Estado de São Paulo. reprodução. A imagem fotográfica de um quadro
Chegou um dossiê reclamando a proteção legal não é o quadro; não apenas é menos que o original,
para a Fábrica de Biscoitos Duchen, no município mas pode ser mesmo sua negação, porque expõe,
de Guarulhos. Ela havia sido construída por Oscar em grande escala, uma aparência que não possui
Niemeyer em 1950; era, sem dúvida, um marco na a imanência sagrada da obra.
história da arquitetura industrial do Brasil, e um
novo proprietário tinha a intenção de pô-la abaixo. Os historiadores da arte sabem, no entanto, que
Um membro do conselho levantou, porém, um existe uma ligação forte entre coisas que se
ponto. Ele afirmava que Niemeyer não tinha essa assemelham. A história da arte moderna afirmou-
sua obra em alta conta. A decisão tomada pelo se com a fotografia, ou seja, com algo que reproduz
conselho seguiu o princípio de autoridade do artista: um original. São as fotos de quadros, de estátuas,
consultar o arquiteto. Que se mostrou indiferente de edifícios, que permitem aos historiadores os
à destruição. O conselho, assim, recusou o estudos comparativos. Eles trabalham com
tombamento e a fábrica foi destruída. imagens de imagens. Os grandes centros
internacionais de estudos em história das artes
Temos aqui um evidente exemplo do conflito entre possuem grandes mesas. Grandes mesas são
o artista e o autor. O artista, ser concreto, de carne necessárias e indispensáveis: sobre elas podem-
e osso, pensante e raciocinante, confere a si se dispor várias fotografias e comparar. Comparar
mesmo o direito de desfalcar o autor, de modificar é uma forma de compreensão silenciosa da relação
suas características pela supressão de uma obra. entre as imagens.
Para o historiador, o princípio de método, porém, As palavras não conseguem apreender as obras:
só pode ser o da consciência desse pensamento podem ser, no máximo, indicativas de intuições
objetivado numa obra, que se une às outras para mudas. Num estudo de história da arte, as imagens
constituir um pensamento mais amplo e complexo. nunca são secundárias, ilustrações destinadas a
É essa separação entre o autor e o artista que nos embelezar um texto. Elas são nucleares, porque
garante o rigor. carregam em si o próprio processo de raciocínio.
Quando Roberto Longhi quer demonstrar que Piero
* * * di Cosimo viu a pintura dos mestres setentrionais,
não perde tempo em expor argumentos: dispõe,
Um outro ponto é o da natureza imaterial, própria
numa página, detalhes de quadros que mostram a
à obra de arte. Essa noção – obra de arte – traz,
semelhança entre obras realizadas na Itália e na
de modo imediato, a referência a uma “coisa”, um
Alemanha no século XV. Basta isso. Para evocar
objeto palpável, que os museus e coleções têm,
outro nome essencial na história da arte, Aby
por obrigação, de conservar, lutando contra o tempo
Warburg e o célebre Atlas de Imagens Mnemosyne,
que passa e que altera inevitavelmente a matéria
cujo princípio comparativo criava relações intuitivas
de que são feitas. Seria possível desenvolver, neste
e expressivas apenas pela relação mantida entre
ponto, uma discussão sobre as questões imateriais
as obras, graças à sua proximidade e disposição
ligadas ao ato, muito concreto e físico, de
sobre uma prancha. É o sonho de uma história da
conservação e restauração.
arte por imagens, sem palavras
Prefiro, porém, avançar por um outro caminho.
Por esse meio, é possível estabelecer filiações,
Esse objeto material, ao qual chamamos “obra de
contactos, reconstituir a cultura visual de um pintor
arte”, necessita desse princípio obsessivo de
do passado. Essa prática demonstra, por sinal, que
conservação por um claro motivo. A obra é um
não existe tabula rasa em artes. Por trás de um
unicum, algo que não pode ser feito novamente.
quadro ou de uma estátua, existe outro e mais outro
Sabemos, nas práticas reflexivas, nas práticas do
Os historiadores da arte costumam dizer que é

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Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

preciso treinar o olho. Isto significa incorporar um imperceptíveis a ele conduzem. É nele que se
saber, sempre silencioso, sempre intuitivo, capaz enraíza o culto frenético de Proust, seu culto
de captar o que há de comum entre as formas. apaixonado da semelhança. Os verdadeiros
Mas que lugar é esse que a preposição “entre” signos em que se descobre, de modo sempre
indica? Não há apenas dois lugares, o lugar de uma desconcertante e inesperado, nas obras, nas
imagem e de outra imagem, o lugar de uma fisionomias, nas maneiras de falar. A
aparência e de outra aparência. Há um terceiro semelhança entre dois seres, a que estamos
lugar, uma terceira margem do rio, onde, invisíveis, habituados e com que nos confrontamos em
imateriais, o semelhante se funde no semelhante, estado de vigília, é apenas um reflexo impreciso
onde a analogia se metamorfoseia em fusão. da semelhança mais profunda que reina no
mundo dos sonhos, em que os acontecimentos
O pintor Jean-Dominique Ingres (1780-1867) nunca são idênticos, mas semelhantes,
acreditava que a perfeição do todo se originava na impenetravelmente semelhantes entre si.3
perfeição das partes. Trabalhava sobre os
elementos das imagens que deviam compor uma Porém, Walter Benjamin pressupõe À la recherce
pintura de maneira obsessiva, fazendo e refazendo du temps perdu como uma obra autobiográfica4,
cada um. Com eles, montava a figura que seria o sonho lembrado de um vivido pessoal.
repetidamente, até chegar à convicção de que ela Esta relação direta entre autor e narrador foi sempre
se tornara perfeita. A forma obtida então, viajava feita pela grande maioria dos especialistas de
de quadro em quadro, reaparecendo nas telas Proust, o que confere uma percepção mesclada
sucessivas que pintava. O caso mais evidente é o de seus processos genéticos entre autor e ficção.
dos nus femininos, que constituem uma longa No entanto, é legítimo – e eu seria tentado a dizer,
seqüência em sua obra. O desfile se termina na é a única legitimidade possível – tomar À la
apoteose do Banho turco, quadro que reúne nus recherce du temps perdu pelo que ela de fato é:
numerosos, concebidos e retomados uma obra de ficção, da qual o narrador não é o
anteriormente, ao longo de sua carreira. Formou- autor. Os exegetas de Proust deveriam se lembrar
se, deste modo, uma galeria constituída por da máxima de Nietzche: “Uma coisa sou eu, outra
eclosões que manifestam o princípio de uma são os meus escritos...” Assim, aquilo que é
imagem acima das imagens, obtida pelo pintor e chamado por Benjamin de “mundo dos sonhos”,
fortalecida a cada nova aparição. Esta palavra, aqui, considerado a partir de uma vigília “real” é, na
não é casual. Ela nos remete ao princípio da verdade, o lugar de experiências imaginárias
imagem como fantasma, cara a Aby Warburg. A (pouco importa se inspiradas ou não da realidade
Banhista de Valpinçon “reaparece” na Pequena vivida) onde, como veremos, se situa a obra-de-
Banhista e, enfim, no em O banho turco. Ou seja, arte.
ela é nasce numa tela, viaja para o invisível, volta
em outra, e ainda em outra, ao mesmo tempo como Proust freqüentou o Louvre na sua juventude e fez
a mesma e como nova. viagens a Veneza, Pádua, Holanda e Bélgica.
Essas atividades são testemunhos de um contato
O processo singular, próprio ao artista, se reitera intenso com as obras reais que descobria, mas não
no conjunto coletivo das produções artísticas. Um significam uma presença insistente diante dessas
dos grandes prazeres dos historiadores das artes mesmas obras. O essencial de sua familiaridade
é descobrir as imagens renascendo dentro de com a arte vinha de um outro modo: vinha por meio
outras imagens, tomando novos sentidos, de reproduções fotográficas. O que importa ao
ressuscitando o mesmo para se transformarem em narrador de À la recherche é tecer as relações entre
outro. essas réplicas, a obra, e o lugar delas, a terceira
margem do rio.
A exploração mais sutil dessa terceira margem do
rio foi feita não por um teórico, nem por um Proust assinala: esta relação entre as obras e suas
historiador, mas por um romancista: Marcel Proust reproduções não são simples, nem mecânicas.
em sua obra literária. Proust era fascinado pelas Nem as reproduções são apenas veículos que
artes e pela ressurreição das imagens. transmitem, como podem, de maneira subalterna,
a essência do original.
Walter Benjamin assinalou, numa passagem breve,
a importância da noção de semelhança no universo Numa passagem, o narrador de Proust evoca a
de Proust. estátua de uma virgem medieval da qual ele vira
com paixão numerosas fotografias e mesmo sua
Toda interpretação sintética de Proust deve reprodução em gesso no antigo Museu dos
partir necessariamente do sonho. Portas Monumentos Franceses de Paris. Agora, ia para a

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Reflexões sobre a idéia de semelhança, de artista e de autor nas artes

cidade fictícia de Balbec, onde a escultura real se à expectativa de um certo fetichismo do original,
encontrava. Eis a passagem: agentes destrutores de alguma essência própria
atribuída às virtudes aparentemente irredutíveis do
Dizia para mim mesmo: É aqui, é a igreja de concreto. “Elas, as únicas: é muito mais” cria uma
Balbec. Essa praça que parece saber sua expectativa provocada pelo privilégio absoluto do
glória, é o único lugar no mundo que possui a singular. Mas logo depois, a seqüência,
igreja de Balbec. O que vi, até agora, eram desencantada, demonstra como o real se encontra
fotografias dessa igreja e, desses Apóstolos, aquém da obra.
dessa Virgem do pórtico, tão célebres, apenas
as moldagens. Agora, é a própria igreja, é a A estátua real é menos verdadeira que a estátua
própria estátua, elas, as únicas: é muito mais. construída pelo espírito. Inserida na banalidade do
Era menos, também, talvez. [...] meu espírito, quotidiano, é a escultura autêntica, a obra de arte
que tinha elevado a Virgem do Pórtico fora das única, que perde a sua aura. Esse quotidiano
reproduções que eu tivera sob os olhos, significa uma imersão no “real”.
inaccessível as vicissitudes que poderiam
ameaçá-las, intactas, se fossem destruídas, Encontramo-nos portanto em oposição diametral
ideal, tendo um valor universal, espantava-se à concepção da aura pensada por Walter Benjamin.
por ver a estátua, que ele havia esculpido mil O ponto muito original de Proust, inteiramente anti-
vezes, reduzida agora à sua própria aparência romântico e avesso ao fetichismo, é a idéia de que
de pedra, ocupando, em relação ao alcance de a obra de arte não se reduz à sua materialidade.
meu braço, um lugar onde tinha por rivais um Essa materialidade tornou-se uma espécie de lastro
cartaz eleitoral e a ponta de minha bengala, que pode ser substituído, com certas vantagens,
prisioneira da Praça, inseparável do pelas representações materiais – a fotografia, a
desembocar da rua principal, não podendo moldagem – e pelas representações do espírito,
escapar aos olhares do Café e do escritório de pela memória.
ônibus, recebendo em seu rosto a metade do
sol poente – e logo, dentro de algumas horas, A pedra, ou qualquer outra matéria, captou as
a claridade do lampião - do qual o escritório do intuições criadoras do artista; o espectador
Banco de Descontos recebia a outra metade; proustiano termina por intuir essas intuições, que
banhada, ao mesmo tempo que essa Sucursal brotam na matéria, mas existem fora dela. Na
de um Estabelecimento de Crédito, pelo ranço verdade, a obra encontra-se nesses “espaços
da cozinha da doceria; submetida à tirania do interiores”, onde se constrói uma verdade superior
Particular a tal ponto que, se eu quisesse traçar à da experiência, embora seja alimentada por ela:
minha assinatura sobre essa pedra, é ela, a
Não se trata de um “mundo das idéias”, perfeito e
Virgem ilustre que até então eu tinha dotado
pré-existente, nem a memória de Proust compara-
de uma existência geral e de uma intangível
se à reminiscência platônica. Trata-se de um lugar
beleza, a Virgem de Balbec, a única (o que,
de encontros, onde a obra, e a sua visão, e as suas
por infelicidade, queria dizer a única), que,
imagens, se unem para além da materialidade. Isto
sobre seu corpo encardido pela mesma fuligem
nos traz imediatamente um ensinamento: a obra
que as casas vizinhas, teria, sem poder apagá-
nunca existe num em si definido pela materialidade.
lo, o traço de meu pedaço de giz e as letras de
Ela encontra-se, portanto, aquém e além da visão:
meu nome, e era ela enfim, a obra de arte
aquém, na sua autonomia de objeto; além, na sua
imortal e tão longamente desejada, que eu
existência que se situa paralela ao mundo da
encontrava metamorfoseada, assim como a
experiência.
própria pequena igreja, numa velhinha de pedra
que eu podia medir a altura e contar as rugas.5 A fotografia traz a semelhança da obra; não é a
obra, mas faz parte dela. Proust nos leva para um
Neste trecho crucial, Proust pressupõe um lugar
caminho reflexivo diverso do que Walter Benjamin
para as obras “de significado eterno”, como diz,
toma em seu conhecido texto – antes, na primeira
que deve se encontrar não apenas fora do
versão de seu conhecido texto “A obra de arte na
quotidiano, mas fora daquilo que seria o “real”.
era de sua reprodutibilidade técnica”6. O conflito
Lembremos: em meio a tantas citações de obras
entre valor de culto e valor de exposição, que
existentes que percorrem À la recherche, a estátua
interessa Benjamin, é dissolvido por Proust numa
da virgem encontra-se na igreja de uma cidade que
síntese que, primeiro, não se importa com a idéia
não existe (Balbec), mas, que não deixa de ser o
de exposição enquanto “exposição às massas”, e
“real” paradigmático. A obra não existe nesse real,
que, em seguida, trata o objeto artístico em sua
nesse concreto, concreto e real que podem, graças

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Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

substância de cultura, que encarna uma espécie Tal semelhança enobrecia Odette. No romance, ela
de “essência real”. é uma espécie de prostituta de luxo, que, se
descobre à leitura da obra, esteve na cama de um
No caso de Proust não existe aura perdida pela grande número de personagens de À la recherche,
reprodução técnica da fotografia, nem culto do e entre os mais imprevistos. Essa semelhança
original, nem cuidado com o que seria uma previne também, como diz o narrador, os desgastes
divulgação em ampla escala da imagem. Num certo possíveis dos afetos. Odette incorporara-se à
sentido, a reprodução se torna única, pois foi ela eternidade de uma obra de arte.
(neste ela incorporando-se um “aquela” específico,
“aquela que eu vi e vejo, que se encontra em minha O amálgama entre a arte e a vida demonstra que o
mesa, ou em minha parede”). Não existe princípio de semelhança opera como fulcro da
condenação alguma das reproduções mecânicas, percepção mas, ainda, a erige como processo
mas a constituição de uma verdade surgida da primeiro da compreensão. No universo proustiano
obra, capaz de fecundar as experiências (incluindo não há essências platônicas, estáveis, inteiramente
aqui a experiência fotográfica), que terminam por fora do mundo, mas um contaminar-se contínuo
conduzir à verdade da obra. dentro do qual assemelhar é conhecer e
reconhecer. São processos que escapam da
Aquilo que para o colecionador, para o amador solidez “real” do mundo para alcançar uma
esclarecido, é o núcleo – ou seja, o que poderíamos intensidade etérea.
chamar de o fetichismo do original - não o é de
modo algum para Proust, para quem o núcleo se Semelhanças e analogias criam uma substância
acha fora do material, formado por jogos de fusão. artística maior do que seus limites materiais. As
obras são únicas, sem dúvida, mas como pontos
Nesse campo de fusões, uma prática freqüente que num tecido amplo de outras obras, ou, como no
se encontra na obra de Proust é a relação de caso de Proust, da “realidade”, por meio de uma
semelhança entre os seres existentes e as obras percepção que a transforma em arte. Essas obras
de arte. De todas, muito conhecida, é a da não são feitas apenas de um original. Dela fazem
semelhança que Swann estabelece entre Odette parte, como elemento constitutivo profundo, e não
de Crécy e uma figura de Botticelli, Séfora, a filha como sucedâneos desprovidos de alma, a
de Jetro, no afresco da capela Sixtina. Proust, ele reprodução, a marca deixada na memória, todas
próprio, conhecia essa imagem não por tê-la visto as formas de representação, ou antes, de re-
de fato, pois nunca estivera em Roma, mas por apresentação, todas as formas de associações
uma reprodução de uma cópia que dela fizera presididas pela semelhança. Material e imaterial,
Ruskin. a obra é tudo isso, é feita de tudo isso.
Swann, vendo Odette, em peignoir, debruçada Notas
sobre uma gravura, percebe o quanto ela é parecida
1
com a figura de Boticelli. O narrador nos explica CHIMOT, Jean-Philippe. Delacroix et la société
que Swann gostava de descobrir semelhanças de son temps. In: Information de l’histoire de l’art,
entre pessoas e personagens pintados pelos nº 2, 1964. pp. 74-76.
2
grandes artistas. A retomada atual do pensamento de Aby Warburg,
as reflexões de Didi-Huberman tem evidentes
Odette e a figura de Botticelli se superpõem, e “essa afinidades com esse modo de conceber a obra de
semelhança conferia a ela também uma beleza, arte.
tornava-a mais preciosa. Swann se acusou de ter 3
BENJAMIN, Walter. A imagem de Proust. Obras
desconhecido o valor de um ser que teria parecido escolhidas – magia e técnica, arte e política. São
adorável ao grande Sandro, e felicitou-se pelo fato Paulo: Brasiliense, 1985. p. 39.
de que o prazer que ele tinha ao ver Odette 4
Idem, ibidem, p. 36.
encontrasse uma justificação na sua própria cultura 5
Traduzido de PROUST, Marcel. À l’ombre des
estética. (...) A palavra de “obra florentina” trouxe jeunes filles en fleur. Paris: Gallimard, Livre de
um grande serviço a Swann. Permitiu-lhe, como Poche, 1971. p. 245-246.
um título, fazer adentrar a imagem de Odette num 6
BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua
mundo de sonhos onde, até então, ela não tinha reprodutibilidade técnica – primeira versão. Op. cit.
acesso, e onde ela se impregnou de nobreza”.7 Tradução de Sergio Paulo Rouanet. Esta primeira
versão data de 1935/1936. Os editores da seleção
Swann põe, sobre sua mesa de trabalho, “como explicam: “O ensaio traduzido em português por
uma fotografia de Odette, uma reprodução da filha José Lino Grünnewald e publicado em A idéia de
de Jetro.” cinema. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,

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Reflexões sobre a idéia de semelhança, de artista e de autor nas artes

1969, e na coleção Os pensadores, da Abril interessa aqui é exposta de maneira menos


Cultural é a segunda versão alemã, que Benjamin densa e mais desenvolvida.
7
começou a escrever em 1936 e só foi publicada Traduzido de PROUST, Marcel. Op. cit., p. 268.
em 1955.” Na segunda versão, a idéia que me

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Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República
No final do ano passado, estimulado por um amigo
italiano especialista em arte latino-americana, o
professor Mario Sartor, publiquei na Itália um
pequeno escrito panorâmico sobre a arte brasileira
do século XIX. Talvez seja a primeira vez que sai
fora do Brasil uma visão de conjunto deste período
pouco estudado até pouco tempo atrás até dentro
do país. Assim, dei de presente o livro para alguns
colegas para ouvir as opiniões de estimados
estudiosos brasileiros. Um deles, conhecido
historiador da arquitetura da FAU USP, depois de
elogiar o livro, como se costuma entre colegas, fez
duas observações críticas que me deixaram
preocupado e que fizeram surgir algumas das
reflexões contidas neste escrito. Ele afirmou que
no meu livro se percebia um olhar europeu, e que
na minha abordagem temia de perceber a perda
do projeto democrático dos modernistas. Perguntei-
me o que ele queria dizer exatamente. Recuso-me
a acreditar que atrás daquelas palavras se
escondesse uma velha e superficial posição
nacionalista: a que afirma que, por ser a arte a
expressão de identidade nacional, só os brasileiros
poderiam entender a arte brasileira, assim como
só os italianos poderiam entender a italiana.
Estudiosos de todos o mundo devotam seus
trabalhos à compreensão da arte italiana ou
a recepção dos gêneros europeus na pintura espanhola, ou francesa dos séculos passados e
brasileira suas contribuições são fundamentais para a
compreensão histórica daquelas produções. Existe
luciano migliaccio uma síntese da escultura italiana desde o século
XIII ao XVII mais importante daquela de John Pope-
Hennessy? Existe uma visão em conjunto do
barroco italiano mais abrangente e efetiva daquela
de Wittkower ou de Norberg Schulz na arquitetura?
E os escritos do brasileiro Dioclécio Redig de
Campos sobre Rafael? Porque o mesmo não
poderia acontecer com a cultura brasileira? Na
posição do colega e amigo da FAU, ele próprio um
estudioso de arte italiana, devia estar colocada uma
outra questão, que talvez podesse ser esclarecida
compreendendo exatamente o significado da
suposta perda do projeto democrático do
modernismo, envolvida numa revisão histórica da
produção brasileira do século XIX. Talvez ele
quisesse dizer o seguinte. Ao falar de uma tradição
artística brasileira não se deve esquecer que a
definição do campo da arte no Brasil não pode ser
limitada à produção dos tradicionais géneros
europeus na pintura, na escultura, na gravura. É
preciso pensar na presença de culturas figurativas
de origem heterogênea, indígenas, africanas,
populares, que formam a verdadeira matriz da
cultura do Brasil moderno e contemporâneo. O
campo estético definido por esta variedade cultural,
no que diz respeito à imagem, é infinitamente mais
complexo e seria um engano grave reduzi-lo aos
limites da produção acadêmica no século XIX.
Nesse sentido a reivindicação destas componentes
26
A recepção dos gêneros europeus na pintura brasileira

por parte dos modernistas representa uma concebida como análise histórica dos esquemas
premissa para qualquer discurso historiográfico de percepção e de avaliação que existem na
fundamentado em ideais de democracia. produção bem como na fruição das obras de arte.
O programa definido por Castelnuovo enfoca a
Trata-se de uma objeção muito séria. Contudo, sob história dos colecionadores, das instituições, dos
este aspecto, hoje é preciso não voltar a incidir na artistas e das obras como momentos de uma
antiga contraposição entre acadêmicos e história social da arte, estendendo a noção de
modernos, apenas disfarçada com outras palavras. crítica de arte além dos limites da literatura sobre
A preocupação de estender o nosso conhecimento a arte, para abarcar a história do mercado da arte,
do conjunto da produção figurativa e de buscar dos museus, das exposições, das associações ,
métodos adequados para a compreensão das da conservação e da restauração , das cópias e
diversas componentes da cultura figurativa das reproduções 3 . Conforme proposto por
brasileira tampouco deve fazer esquecer que as Wolfgang Kemp em sua introdução à coletânea de
instituições do campo da arte contemporânea, as ensaios Der Betrachter ist im Bild4 (O espectador
instituições de ensino artístico, as exposições e a está no quadro) a história da recepção da imagem
crítica de arte sem as quais não haveria público se articularia no exame da evolução das formas e
moderno, a reflexão histórica sobre a arte surgiram dos géneros artísticos (a transmissão e re-
e se efetivaram no país precisamente a partir dos significação de obras por meio de outras obras);
modelos criados pela Academia Imperial de Belas história da recepção por meio de textos literários
Artes e que o seu estudo deve formar a base de (crítica de arte, mas também todo tipo de literatura);
qualquer tentativa de compreensão histórica da arte história do mercado (fenômenos de disperção ou
brasileira. de coleção de obras, história da apresentação e
difusão das obras de arte). Particularmente aqui é
Parece-me que hoje é tempo para ultrapassar a interessante a noção de recepção interna às obras,
gasta contraposição entre o modelo acadêmico e que permite reformular a abusada noção de
o da vanguarda para estabelecer qual deles é mais “influência”, mostrando como todos os fenômenos
adequado para a representação da realidade de recepção são também eventos criativos, ao
nacional, assim como um enfoque meramente interior de um campo de comunicação que o
estílistico, para utilizarmos outros métodos de historiador deve considerar, como destaca o
análise. É o momento de pensar se a pesquisa antropologo inglês Alfred Gell na sua teoria da arte
sobre a arte brasileira não deveria finalmente se como agency, que talvez poderia ser traduzido
abrir para a utilização dos instrumentos como “campo de ação”5.
fundamentais elaborados pela sociologia da arte
como a noção de campo criada por Pierre Bourdieu A pertinência deste tipo de questões não possui
articulando as dimensões individuais, coletivas e limites cronológicos, espaciais ou culturais, mas
instituicionais da produção, e de recepção assim pode formar um quadro metodológico para uma
como proposto pela estética da recepção no campo abordagem ao campo estético no seu conjunto,
da crítica e da historia literária nos estudos incluindo os objetos de arte popular ou de culturas
pioneiros de Hans Robert Jauss e Wolfgang Iser. tradicionais não ocidentais. O próprio ato de coletar,
Desde 1976, Enrico Castelnuovo, ao fazer uma conservar, divulgar o material, neste sentido,
síntese das propostas para uma história social da permite pensar em categorias críticas para a sua
arte, desenvolvendo uma intuição de Roberto historicização.
Longhi num escrito intitulado Proposte per una
crítica d’arte, de 1959, destacava a importância do Trata-se de articular este programa de forma
estudo do público da arte 1, e na Storia dell’arte consistente também para o estudo da arte do
Italiana dirigida por ele e Paolo Fossati para e século XIX no Brasil. O meu desejo é que este
editora Einaudi incluiu um volume dedicado ao tema seminário possa ser o ponto de partida para
do artista e seu público2, reunindo estudos sobre a coordenar as tentativas que já foram realizadas
história da historiografia e das coleções, a condição neste sentido em vários centros brasileiros numa
social do artista e a sua evolução, o público e a visão unitaria do grande trabalho que ainda resta
fruição das obras, a gravura e os diferentes por fazer e que só pode ser um trabalho de
processos de reprodução das obras de arte. cooperação entre diversos centros universitários e
Também a historiografia inglesa com o volume instituições de conservação do patrimônio.
Painting and Experience in Fifteenth Century Italy
de Michael Baxandall, traduzido no Brasil com o Contudo, para que não pareça que este tipo de
título de O Olhar Renascente, apresenta um modelo abordagem acabe deixando de lado as obras para
de análise da percepção social das obras de arte analisar apenas a sua recepção por parte dos
espectadores, queria examinar alguns exemplos de

27
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

recepção de imagens na produção do século XIX ruínas clássicas do templo da Sibila e da vila de
no Brasil, em obras que poderão talvez esclarecer Mecenas, para viajantes da mais alta aristocracia,
como a autonomia do fenômeno criativo não fica os grandes-duques da Rússia 8 . Estas telas
prejudicada por este tipo de enfoque. De passagem, marcavam, portanto, o momento mais valorizado
espero mostrar também como por este caminho, é da síntese entre retórica clássica da paisagem e
possivel demonstrar como os artistas do século XIX fiel observação da realidade alcançado pelo artista.
brasileiro se preocuparam com as temáticas É provavelmente com estes antecedentes que
históricas e sociais específicas do Brasil de forma Taunay está se comparando ao representar-se na
viva e crítica, mediante a apropriação e a re- frente da natureza intacta do continente americano
significação de géneros e de modelos da arte em que ele quis estabelecer sua residência. Mas
européia. Taunay fala também da própria arte através da
evocação de outras tradições iconográficas: a
Na Cascatinha da Tijuca do Museu da Cidade do primeira é aquela do retrato do artista no próprio
Rio de Janeiro são condensados os motivos da ateliê, sendo este a própria natureza do Novo
poética de Nicolas Antoine Taunay e suas memórias Mundo. Ao pintar-se sentado na frente do seu
íntimas e familiares. Em determinados aspectos, cavalete, ele pensaria nas numerosas imagens de
é possível remontar ao tópico da casa do artista artistas que se retrataram nesta situação durante
ilustre: se no Velho Mundo a tipologia era definida o século XVIII, contrapondo ao ambiente fechado
pela referência ao jardim sagrado das musas, pela onde o artista tece o próprio diálogo com a pintura,
presença de um discurso sobre a profissão do o espetáculo de um mundo natural ainda intocado9.
artista e por um determinado tipo de coleção A figura de Taunay pingens sub umbra banani,
particular relacionada com a mesma: as cópias das como os pastores das bucólicas de Virgílio tocam
obras de arte antiga, as medalhas, os desenhos as suas flautas de cana deitados na sombra dos
dos colegas6; no Brasil Taunay transferira o seu bosques da Arcádia, evoca também um segundo
Elicona para a floresta da Tijuca, longe da cidade, tipo da tradição pastoral: o santo meditando na
com a lembrança de sua casa de Montmorency, escuridão e na solidão da floresta. O espaço do
Mont Louis7. A paisagem que o retrata perto da pintor é destacado, privilegiado dentro da ampla
cascata é um testemunho quase comovente de seu paisagem, encontra o seu lugar particular protegido
diálogo com a majestade da natureza tropical. do sol pela sombra de uma planta na frente da qual
Minúsculo, mergulhado na paisagem grandiosa, o está colocado o seu “oratório”, o cavalete 10 .
artista quase adquire o aspecto de um modesto Naturalmente a atitude do artista francês não possui
herói, concentrado como está em pintar à sombra nada de místico: ele encontra na tradição pastoral
de uma bananeira com os cotidianos instrumentos uma costrução visual que traduz uma situação de
de seu ofício. O tom humilde é reforçado pela colóquio íntimo entre o homem e a natureza: esta
presença, ao lado do pintor, de dois escravos que conversação é a pintura. Em contraste com uma
contemplam a obra admirados; enquanto outros, noção sobretudo topográfica, que busca a evidência
mais abaixo, conduzem um burrico. Dificilmente se dos dados da realidade procurando remontar da
poderia expressar melhor o valor da pintura de verossimilhança ao reconhecimento, a neblina
paisagem na frente da natureza americana, bem subindo do salto de água como vapor, esconde a
como a emoção diante da sua voz. Ao mesmo vista dos rochedos no alto, e confundindo-se com
tempo, a cascata é um dos grandes motivos tópicos as nuvens douradas, convida a encontrar com a
da paisagem clássica: o lugar onde as forças fantasia as imagens escondidas nas criações dos
naturais, no seu ímpeto grandioso impõem ao pinceis da natureza. Trata-se da expressão
homem o respeito na frente do que é maior, a profunda dos sentimentos de Taunay como ser
reverência quase religiosa, que é típica do humano em relação à paisagem dos trópicos,
sentimento do sublime. Piranesi havia representado entretanto o seu significado pode ser plenamente
a cascata do rio Aniene em Tivoli, cerca de Roma, percebido só ao reconhecermos a sua posição
numa água-forte de 1763, revelando naquele lugar dentro da tradição da pintura pastoral. Quais que
uma extraordinária união de maravilhas naturais e sejam as motivações que o induzem a procurar
de ruínas antigas. Hackert pintara a mesma cascata significados na representação do ambiente natural
uma primeira vez em 1769, (Roma, Galleria brasileiro, Taunay os descobre por meio da
Nazionale d’arte antica, palazzo Barberini), num resignificação da tradição pictórica que ele herdou
quadro deliberadamente afastado das convenções e de que se apropria de forma original ao trasladar-
arcádicas, citado por Goethe como sendo já famoso se ao Brasil. É aqui que ele pode elaborar uma
no tempo da sua passagem na Itália. O pintor noção de paisagem capaz de fundir sugestões
alemão repetira o tema outras duas vezes entre distantes como as de Watteau e Vernet com as
1783 e 1785, desta vez representando também as novas abordagens subjetivas dos paisagistas

28
A recepção dos gêneros europeus na pintura brasileira

viajantes ingleses como Wright of Derby e As dimensões do corpo nu, do cadáver posto em
Alexander Cozens. primeiro plano, mal coberto pelo típico ornamento
de penas, dominam a paisagem ao fundo,
O diálogo com os genéros da paisagem clássica sugerindo horror e piedade ao mesmo tempo. O
pode ser percebido numa outra série de obras esta rosto mostra seu caráter exótico, de uma beleza
vez tratando uma temática específica da história intensa e selvagem, ao passo que os cabelos
da América Latina e do Brasil: a mestiçagem. Com negros e espessos se misturam à espuma da
Moema, exposta em 1866 e adquirida pelo ressaca das ondas na beira do mar. O corpo,
imperador Pedro II, o pintor de Florianópolis poderíamos dizer, é a paisagem. Entre todas as
reformulou em termos nacionais um dos grandes obras de Meirelles, essa é, sem dúvida, a mais rica
gêneros da tradição européia: a paisagem histórica. em alusões: consegue concentrar no corpo
Graças ao seu exemplo, esse gênero, que permitia feminino a reflexão histórica acerca do destino de
a união do indianismo ao romance sentimental e todo um povo e de uma cultura. Pedro Américo foi
ao erotismo por meio da imagem feminina, tornou- o primeiro a retomar o tema num pequeno esboço,
se característico da pintura brasileira durante toda hoje na coleção Fadel, no Rio, em que o nu quase
a segunda metade do século. Como outros já sugere uma referência ao Sardanapalo de
disseram, ao representar o episódio da jovem índia Delacroix, constituindo uma citação literal da obra
que se afoga pelo amor não-correspondido pelo de Cabanel. As Iracemas e Marabás de Rodrigues
conquistador português, Caramuru, em uma Duarte, de Amoedo e de Parreiras ecoam a mesma
imagem de corpo feminino que se dissolve no triste poesia, que Meirelles soube, primeiro, intuir.
flutuar das ondas na praia tropical, Meirelles Demonstram que Meirelles tocou um nervo sensível
percebeu sugestões do decadentismo europeu, da imaginação do povo brasileiro. Certamente, as
aproximando-se às visões anti-clássicas do nu correspondências e dissonâncias entre
feminino como a Femme au perroquet de Courbet sentimentos humanos e paisagem estimulam
ou ao clima erótico da Chevelure, poema das Fleurs referências ao clima literário decadente. Rodolfo
du Mal de Baudelaire. 11 Mas talvez haja maior Bernardelli bem o percebeu quando, por volta do
afinidade entre Moema e La Naissance de Venus, final do século, na escultura inspirada no quadro
tela pintada por Alexandre Cabanel e exposta no de Meirelles, produzirá uma de suas experiências
Salon de Paris de 1863. Ambas são uma mais interessantes, apostando na dissolução das
reinterpretação do tema do nu feminino na formas plásticas do corpo nas ondas. Decerto,
paisagem, caro à tradição pastoral. A Vênus de faltam a Meirelles as assonâncias e transparências
Cabanel, com melenas que se desfazem nas ondas que as Ofélias pré-rafaelitas exibirão em suas
certamente remete às sugestões literárias do floreadas representações. Talvez, porém, seu valor
simbolismo. O quadro de Meirelles, ao contrário, resida justamente nisto: quanto dessa luz crua e
uma das obras-primas do indianismo brasileiro, áspera, que quase nos fere os olhos, não irá passar
fundamentando-se na leitura da poesia nativista, às telas repletas de sol e de heróis camponeses
dá novo significado à tradição figurativa européia, de Almeida Júnior? O mito heróico do índio,
inserindo-a de modo diverso no contexto fundador da nacionalidade brasileira, encarnado
americano. Em sua fórmula clássica, de Giorgione pelas famílias de titãs hercúleos do monumento a
a Tiziano, de Carracci a Rubens, o tema evoca a Pedro I de Rochet, dissolve-se na elegia, na fraca
harmonia entre a natureza e o homem no estado lamúria fúnebre cantada pelas ondas na baía
primitivo e poético, a recusa da história em favor solitária.
da contemplação lírica. Moema é, portanto, um
idílio, no entanto, um idílio trágico, como o são os Os artistas sucessivos introduziram
idílios de Torquato Tasso, nos quais, como ocorre frequentemente neste tema um elemento sensual
também na poesia de Gonçalves Dias, se verifica utilizando a imagem da Madalena arrependida
um contraste dramático. Como Dido, Clorinda, e, como modelo das suas índias, como fazem os já
mais tarde, Butterfly, heroínas que encarnam o mencionados Amoedo na Marabá do MNBA do Rio
encontro de civilizações incompatíveis, o cadáver de Janeiro e Parreiras na Iracema do MASP.
da jovem índia que se afogou por amor a um
europeu representa a versão moderna e americana Entretanto, é Rodolfo Bernardelli que irá se servir
do mito que só pode ter um final trágico. A relação do tema parodiando a tradição da poesia nativista
idílica com a natureza primordial transforma-se em de forma aberta. No acervo de documentação
destruição, em contraste dramático entre pessoal do escultor doado ao MNBA existe uma
sentimento e história. Por isso, o corpo de Moema fotografia, tirada certamente na Itália, retratando o
forma como uma dissonância na harmonia da irmão do artista, o pintor Henrique Bernardelli em
paisagem ensolarada e de cores arenosas da baía. traje de frade franciscano, com uma longa barba

29
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

postiça, admirando a figura nua de índia intitulada obsessão para esses órfãos, que, perplexos e
Faceira, executada por Rodolfo e exposta no Rio desconsolados, lhe voltam as costas. A pose do
de Janeiro em 1884. A pose de Henrique não deixa homem que se deixa cair sentado no chão lembra
dúvida sobre o tipo de pensamentos que a figura aquela do camponês de uma famosa escultura de
sugere. O corpo da índigena com a sua pose Achille D’Orsi, Proximus Tuus, este também
lasciva seduz o missionário; o conquistador se torna oprimido pela sua herança de terra, de fadiga e de
conquistado. É evidente a paródia em relação ao sofrimento. Todavia, o tronco possante da árvore
tema que Meirelles havia tratado tragicamente: no qual os descobridores se apóiam, que expande
Bernardelli faz da escultura um estudo de costume, seus ramos carregados de folhas na moldura, na
nos moldes do realismo social da época, mas evoca qual figuram os versos virgilianos que aludem à
na mestiça as mulheres tentadoras de Felicien aventurosa viagem dos troianos pelos mares antes
Rops, perturbadoras da paz de meditabundos de atingir a Itália, onde dariam origem, depois, à
eremitas orantes no deserto. A idéia da mestiçagem Roma, introduz uma segunda, mais ambígua,
como fundamento da nacionalidade brasileira, cara interpretação da imagem: uma meditação do pintor
à épica da corte, é abertamente escarnecida. A sobre o valor da ação humana na qual se obtém a
propria idéia acadêmica do género escultórico é força para imaginar o futuro. Com o quadro de
desacralizada mediante uma encenação que Belmiro, o escárnio machadiano das Memórias
aproxima a estátua a uma figura de teatro, de um Póstumas de Brás Cubas corrói por dentro qualquer
realismo desconcertante, uma Pandora enredando possibilidade comemorativa do naturalismo
o seu Pigmalião com um apelo erótico desfazado, histórico, mesmo considerando-se que seus
uma cena digna dos salões caricaturais na Revista desdobramentos continuarão após o terremoto
Ilustrada de Angelo Agostini. A fotografia documenta modernista de 1922.
a apropriação original e criativa do modelo por parte
do artista em função de um momento político e Espero com estas poucas considerações ter ao
cultural em que havia tensão entre intelectuais que menos em parte respondido às preocupações do
buscavam novas funções da arte e instituições meu colega da FAU. A historia social da arte, na
oficiais. medida em que toma em conta as numerosas
componentes do ato criativo e da recepção da obra
Outro exemplo desta recepção de modelos pode contribuir de forma decisiva para sairmos da
internacionais é Os Descobridores de Belmiro de antiga e já inútil contraposição entre academia e
Almeida, no Museu do Itamaraty, no Rio de Janeiro. modernismo, não para igualar ou apenas revisar o
Na composição de sabor neomedieval, tal e qual a julgamento sobre as duas partes, mas para
decoração de uma tapeçaria, bem como na técnica pensarmos de forma diversa os métodos mais
deliberadamente pobre e enxuta, percebe-se o adequados a uma apreciação plena dos valores
artista atualizado em relação às propostas da históricos da cultura artística no Brasil.
cultura pré-rafaelita inglesa, como Burne-Jones,
mas igualmente alguns êxitos pré-rafaelitas dos Notas
pintores danunnzianos, como Pico Cellini e De 1
CASTELNUOVO, Enrico, Per una storia sociale dell’arte.
Carolis da romana In Arte Libertas. Contudo, o
Paragone, n. 313 1976, pp. 3-30; n.o 323, 1977, pp. 3-34;
registro de Belmiro é o da ironia, novamente da Il contributo sociologico. Quaderni della ricerca
paródia. Abandonados por Cabral na terra recém- scientifica, n.o 106, 1980, pp. 89-100. Os três escritos
descoberta, dois portugueses, condenados foram publicados novamente em Arte, Industria,
anônimos, são os anti-heróis perdidos desse Rivoluzioni. Temi di storia sociale dell’arte. Torino: Einaudi,
paraíso de refinada e desesperada crueldade, no 1985, pp. 3-83.
2
qual todos os lugares-comuns aplicados aos Storia dell’arte italiana, parte I, Materiali e problemi (dir.
Giovanni Previtali), vol.II, L’artista e il pubblico, Torino:
trópicos parecem invertidos. A desilusão dos dois
Einaudi, 1979.
infelizes parece exprimir uma amarga reflexão do 3
Para uma síntese sobre o tema, GAMBONI, Dario. Histoire
autor sobre a condição do artista e do país. O de l’art et “reception”: remarques sur l’état d’une
Tiradentes Esquartejado, de Pedro Américo, com problematique. Histoire de l’art, n. 35/36, octobre 1996,
sua reformulação antropofágica da figura do herói pp. 9-14.
4
nacional, certamente deixara sua marca. Em Os KEMP, Wolfgang (dir.). Der Betrachter ist im Bild.
Descobridores, a paródia da paisagem histórica Kunstwissenschaft und Rezeptionaesthetik. Berlin: Reimer,
1992.
como gênero nacional beira o escárnio. A paisagem 5
GELL, Alfred. Art and Agency. An Anthropological Theory.
idílica da natureza brasileira, o tema que fundara e London: Clarendon Press, 1998.
estruturara todo o caminho da arte nacional — de 6
KLIER, Melanie. KünstlerHäuser. München: Prestel,
Félix Émile Taunay a Meirelles, passando por Porto- 2006; Hüttinger Eduard (ed.) Case d’artista: dal
Alegre -, torna-se uma condenação e uma rinascimento ad oggi. Torino: Bollati Boringhieri, 1992.

30
A recepção dos gêneros europeus na pintura brasileira

7
SBARRA, Stefania. La statua di Glauco: letture di autoportrait. GRIENER, Pascal [ed.]. Images de l’artiste,
Rousseau nell’età di Goethe. Roma: Carocci, 2006. Colloque du Comité International d’Histoire de l’Art.
8
NORDHOFF, Claudia. Jakob Philipp Hackert. La Frankfurt am Main: Lang, 1998.
10
Campagna Romana da Hackert a Balla, catálogo da ROSAND, David. Pastoral Topoi: On the Construction of
exposição, a cura di Pier Andrea De Rosa e Paolo Emilio Meaning in Landscape. DIXON HUNT John (ed.). The
Trastulli, Roma, Edizioni Studio Ottocento, De Luca, 2001, Pastoral Landscape. Washington: National Gallery of Art,
pp. 47-49; scheda 53 p. 216. 1992, pp. 161-178.
9 11
GAUSSEN, Frédéric. Le peintre et son atelier : les COLl, J. Moema, Vítor Meirelles e a pintura
refuges de la création, Paris, XVIIe - XXe siècles. Paris: internacional, tese de livre-docência, Campinas, 1995.
Parigramme, 2006. JUNOD, Philippe. L’atelier comme

31
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República
Durante as últimas décadas do século passado, a
arte oitocentista foi objeto de importantes revisões.
Reconhecidos historiadores mostraram interesse
em desmistificar afirmações que com o tempo
tinham sido incorporadas como verdades, mas que,
reconsideradas à luz de novas premissas,
revelaram-se pobres e pouco transparentes. Os
fatos foram analisados de maneira mais completa
e mais profunda, chegando, em um surpreendente
número de casos, a conclusões que divergiam do
que até então vinha sendo aceito. Segundo as
novas pesquisas, a interpretação da qual tinha sido
objeto a arte do século XIX era, em boa medida,
resultado de uma visão unilateral, tanto da época,
como de suas manifestações culturais. Isto levou
os especialistas a concluírem que no estudo desse
século – um dos períodos mais cambiantes e
complexos da história da humanidade – qualquer
tipo de esquematismo ou reducionismo resultava
perigosamente sufocante.

Provavelmente, as mudanças mais significativas


na visão do século XIX foram conseqüência da
decisão de certos historiadores de estudar os
fenômenos artísticos baseando-se em critérios que
não favorecessem mais às vanguardas; propósito
que se fez evidente a partir da década de 1970.
a historiografia da arte oitocentista e as revisões Visto através das lentes “pró-vanguardistas”, 2 o
efetuadas durante as últimas décadas do século anterior tinha sido retratado como uma
século xx sucessão de artistas e movimentos que
“superavam” uns aos outros, opondo-se entre si e
mariela brazón hernández 1 afastando-se (sobretudo valorativamente) daqueles
que eram considerados tradicionais, pouco
interessantes, carentes de criatividade ou isentos
de novidade. Robert Rosenblum assinala que “o
século XIX foi freqüentemente visto como se fosse
um tipo de evolução darwiniana que justificava e
explicava formas de arte posteriores”
(ROSENBLUM e JANSON, 1984:8). 3 Como
resultado da “falsificação” pró-vanguardista chegou-
se a desprezar – e em muitos casos a ignorar –
um conjunto considerável de obras e de artistas,
aos quais, só no fim do século passado, começou
a ser dada uma justa significação. Recordemos,
entre outros, os tão menosprezados pompiers,
muitos deles reconhecidos em sua época como
famosos, mas subestimados pela historiografia da
primeira metade do século XX, pelo “antagônicas”
que pareciam ser suas propostas se comparadas
com as manifestações “verdadeiramente
modernas”. A revisão da arte do século XIX que
data da década de 1970 revelou uma situação muito
diferente.4 Descobriu-se, entre outras coisas, que
a arte acadêmica esteve freqüentemente ligada às
inovações, e que os condicionantes aos quais ela
se sujeitava não eram tão rígidos como se pensava.
Essa arte não se limitou a “copiar” ou a “idealizar”
as imagens produzidas pelos grandes mestres
clássicos, negando espaço, como se pensava, à

32
Revisões historiográficas da arte oitocentista

criatividade pessoal. Também não foi, como atingido mediante o ajuste estrito às formas e cores
sustentavam os especialistas, um servo submisso locais e em consonância com o rechaço total da
dos interesses oficiais do Estado (GRADOWSKA, idéia de composição. Hoje em dia sabemos que
sd:20-21).5 A nova historiografia permitiu tomar os críticos da época usavam o termo “realismo”
consciência dos inúmeros elos que existiram entre em um sentido mais conceitual do que formal, para
as criações acadêmicas e as vanguardistas, e adjetivar as representações com mensagem social
mostrou que o acadêmico não podia continuar nas quais se exaltava, sem idealização, a miséria
sendo um capítulo desprezado da história da arte. de certos grupos humanos, e não particularmente
para referir-se à fidelidade plástica com o modelo.8
À medida que as vanguardas favoreceram o A observação sem prejuízos das obras de Courbet,
esquecimento desses artistas “menores”, surgiram Daumier e do mais ilusionista dos três grandes
e se fortaleceram vários mitos românticos sobre realistas, Millet, corrobora a enorme importância
os artistas modernos, como o do pintor dada por esses artistas à composição e à escolha
“selvagemente atacado pelos críticos” e o do “artista prévia de certos elementos plásticos, nem sempre
que vive e trabalha no anonimato”. Na atualidade correspondentes com a realidade local. Muito mais
sabemos que essas afirmações não são objetiva resulta a nova postura que passa a
inteiramente certas e que a auto-imagem considerar o Realismo como um movimento que
construída segundo parâmetros vanguardistas deve navega entre duas águas: a acadêmica, que mostra
ser tratada com espírito crítico. Como afirmam ilusoriamente a realidade através de uma superfície
Rosen e Zerner, delimitar os rasgos característicos acabada que beira os limites do fotográfico (fini); e
das vanguardas não é tarefa fácil, pois “se trata de uma tendência mais “ousada”, que valoriza os
um conceito móvel, que pode ser continuamente elementos formais de representação e em alguns
modificado conforme vamos sabendo mais coisas casos favorece o desaparecimento do tema.
sobre o período que abrange” (1988:131). Segundo Rosen e Zerner, “uma obra da vanguarda
realista se nos revela em primeiro lugar como um
Outro grupo de artistas virtualmente ignorado nas objeto artístico material, compacto, e só depois nos
histórias da arte escritas na primeira metade do permite ter acesso ao mundo contemporâneo que
século XX, e que foi progressivamente resgatado descreve” (1988:150).
do olvido, é o dos pintores do chamado juste milieu,6
cujas obras, nem ousadas nem conservadoras, Por sua vez, o Simbolismo, por ser um movimento
para alguns historiadores não passavam de ser fortemente ligado à literatura, tinha sido qualificado
produções de quinta categoria, nas quais se pejorativamente pelos historiadores pró-
outorgava excessiva importância ao tema. Graças vanguardistas como “meramente narrativo”.
a pesquisadores como Rosen e Zerner foi possível Também se chegou a pensar que era um fenômeno
saber que na obra desses artistas esquecidos já completamente isolado das outras manifestações
se encontrava o germe de inovações que seriam artísticas da época. A historiografia posterior
desenvolvidas posteriormente por pintores mais demonstrou que o Simbolismo foi um movimento
arrojados. A nova abordagem historiográfica não bastante diversificado e, sem negar as influências
só permitiu resgatar artistas que tinham sido que teve da corrente literária homônima, sublinhou
relegados a um segundo plano – alguns pela que ele se alimentava de profundas reflexões sobre
nacionalidade, outros pela fatura de suas obras ou temas de corte metafísico, movidas por um claro
pelo aparente tradicionalismo dos seus temas –, rechaço ao positivismo imperante. Foi comprovado
como também enriqueceu, com olhar renovado, o também que o Simbolismo exerceu importantes
estudo dos consagrados. Foram comparadas entre influências a nível internacional (LUCIE-SMITH,
si obras que antes nem se suspeitava que 1972:143). Ainda mais, sua presença constante
pudessem ter afinidades, como é o caso da durante boa parte do século XIX permitiu considerá-
produção de Caspar D. Friedrich e Vincent van lo como uma “ponte entre o Romantismo da
Gogh (ROSENBLUM, 1993:85 e ss), e se primeira parte do século XIX e a arte moderna”
dedicaram estudos monográficos a artistas que, (LUCIE-SMITH, 1972:206). Não nos deve
por diversas razões, permaneciam virtualmente surpreender então que os autores tenham
desconhecidos, como o simbolista Burne Jones.7 redescoberto o lado simbolista de pintores
vanguardistas como Picasso, e que expressionistas
O Realismo e o Simbolismo foram dois dos abstratos como Rothko possam agora ser
movimentos que se viram catapultados, saindo por qualificados de simbolistas. Em suma, “detrás das
fim do lado escuro da história da arte, onde eram formas e das cores que se encontram sobre a
mantidos pela crítica pró-vanguardista. Do primeiro superfície pictórica há sempre algo mais, outro
dizia-se que seu objetivo central – i.e. representar
“fielmente” a realidade circundante – tinha sido

33
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

âmbito, outra ordem de significado” (LUCIE- conseqüência da proposta “globalizante”, também


SMITH, 1972:7). surgiram maneiras alternativas de periodizar o
século, nas quais ficou claro que os movimentos
Nos casos até aqui comentados – Academicismo, oitocentistas não nasceram nem morreram em um
Realismo e Simbolismo – identificamos certos dia ou em um lugar específico. Os historiadores
elementos de juízo que foram postos em dúvida começaram a perceber, cada vez com maior
nos estudos mais recentes do século XIX. As intensidade, o impacto que tiveram os sucessos
revisões não se limitaram a esses três momentos extra-artísticos no âmbito plástico – não só os
específicos. Se examinarmos a visão nova e a políticos, religiosos e sociais, como também os
tradicional de outros movimentos, como o científicos e tecnológicos.
Impressionismo, o Pós-impressionismo, o
Ecletismo e o Romantismo, encontraremos que a A visão integral da arte e da cultura do século XIX
essência das críticas se repete, apenas com ligeiras impediu que a arte “não culta” continuasse
variações. As diferenças que separam as duas passando despercebida, dando-se relevância
linhas historiográficas são, basicamente, de tipo inédita às artes aplicadas, às gravuras, às
metodológico, entre elas se destacando a ênfase caricaturas, ao popular, etc.10 Também começou a
que a postura mais recente coloca nas fontes ver-se além da arte ocidental e a compreender-se
primárias e sua intenção de focalizar sem prejuízos o impacto que as formas de representação
as complexas interações entre cultura de época, chegadas do Oriente, em especial do Japão,
artistas e obras, vistos como um todo. Alguns significaram para alguns artistas modernos, como
autores opinam que para aproximar-se com foi o caso dos impressionistas e pós-
fidelidade à arte do Oitocentos, é necessário que impressionistas. Possivelmente um dos resultados
ela seja considerada tematicamente. Werner mais interessantes alcançados por Rosenblum ao
Hofmann, por exemplo, já defendia nos anos abordar a arte oitocentista de maneira globalizada,
sessenta que “em uns poucos temas constantes tenha sido reconhecer no Romantismo o grande
[...] está a verdadeira unidade do século que vai fio condutor que une muitas das manifestações dos
de Goya a Cézanne” (apud PRAZ, 1976:158). A séculos XIX e XX (1993: 85,149).11 Recordemos,
análise da arte oitocentista organizada por temas, nesse sentido, a Hugh Honour quando, indo até a
apreciável na maneira como foram concebidas raiz do fenômeno, afirma que “os estilos românticos
várias exposições em museus a finais do século nas artes visuais irradiam em todas as direções a
passado, permitiu identificar características comuns partir do centro imóvel do neoclassicismo”
entre movimentos vistos até então como (1989:20).12 Rosenblum, por sua vez, acrescenta
fenômenos enfrentados. É o caso do que o Romantismo não morreu no século XIX.
Impressionismo, que agora sabemos esteve Segundo este autor, até bem avançado o século
enraizado no Realismo, não só tematicamente mas XX, não são poucos os artistas que “prestam
também em seu desejo de alcançar com homenagem aos grandes mestres românticos” e,
objetividade uma certa realidade.9 contudo, “a maioria perpetua motivos e emoções
românticos sem consciência dos seus precedentes
A metodologia usada por Robert Rosenblum históricos” (ROSENBLUM, 1993:149).
examina os fatos artísticos do século XIX em íntima
conexão com os sucessos da época. Este autor Todo o anterior nos leva a concluir que a visão mais
propõe diversificar as fontes, pois, na sua opinião, recente do século XIX, trabalhada a partir dos anos
o conjunto de fatores que deve ser considerado 1970s, diferencia-se da mais tradicional em
para o estudo do caso oitocentista é extenso e questões essenciais: 1) na maneira global de
plural. Isto obrigaria os historiadores do dito período conceber historicamente o século: sua cultura, sua
a dilatar seus conhecimentos para poder abordar ciência, sua arte, sua política, como um conjunto
assuntos extremamente diversos, que vão da coeso; 2) na importância relativizada que dá à
“história da tecnologia” até “os mistérios da inovação como critério de valorização plástica; 3)
genialidade”. A ampliação de critérios implicaria na postura crítica que adota perante “etiquetas”
também, entre outras coisas, a “internacionalização predeterminadas, como a classificação por estilos,
da história do século XIX”, quer dizer, a abertura a delimitação de movimentos ou a aparição e
das fronteiras de estudo além dos limites desaparição de tendências, e 4) no grau de rigidez
tradicionalmente impostos pela visão francesa de suas conclusões, as quais são aceitas por seus
(ROSENBLUM e JANSON, 1984:8-10). Por esse autores sem que por isso se negue a necessidade
caminho foram invalidadas algumas cisões de constantes revisões.
temporárias e espaciais entre certos movimentos,
artistas e obras, até então aceitas. Como As disparidades para entender a arte oitocentista,
aqui expostas, 13 colocam-nos na obrigação de

34
Revisões historiográficas da arte oitocentista

darmos continuidade à reavaliação dos conceitos, Notas


datas, interpretações e juízos valorativos até hoje
1
aceitos; dados que, se não forem revisados em Mariela Brazón Hernández. Dra. em Artes Visuais -
Universidade Federal do Rio de Janeiro.
profundidade, podem entorpecer a compreensão
(marielabrazon@yahoo.com.br).
cabal de toda uma época. Talvez agora, mais do 2
Quando falamos de visão “pró-vanguardista” nos
que nunca, estejamos tomando consciência do referimos à historiografia que privilegia as vanguardas,
pouco que conhecemos a arte do século XIX, e produzida principalmente durante a primeira metade do
nos disponhamos a reaproximar-nos a ela, mesmo século XX.
3
que isso signifique a obtenção de conhecimentos A tradução desta citação, e das seguintes, é nossa.
4
fragmentados. Devemos notar, entretanto, que, Escritores como Rosen e Zerner assinalam que o resgate
da imagem dos artistas “oficiais” ou “pompiers” data dos
embora pareça paradoxal e isso implique a
anos 70 do século passado, “embora já antes tinha
complexização do fato estudado, esses fragmentos começado a amadurecer silenciosamente” (1988:194).
são mais valiosos e confiáveis que a visão 5
Em relação à velha e à nova visão da pintura acadêmica
compendiada do Oitocentos oferecida até hoje por do século XIX, ver também (ROSEN e ZERNER, 1988:12-
algumas histórias da arte, à qual muitos continuam 13, 192-217).
6
acostumados. O que mais importa é que as O termo “le juste milieu” foi usado por primeira vez em
revisões prossigam, e que não nos conformemos 1831 para referir-se àqueles pintores que se encontravam
a meio caminho entre o classicismo davidiano e o agitado
com a imagem “congelada” e “inerte” de uma
e ousado romantismo. Seu uso como termo estilístico,
época. devemo-lo a Leon Rosenthal, quem no ano de 1914 o
vinculou aos pintores “que gozaram do favor do público
Referências bibliográficas nas décadas de 1830 e 1840 [...] O objetivo artístico
fundamental desses artistas era a acessibilidade
ARGAN, Giulio Carlo. El Arte Moderno Valencia: instantânea” Cfr. (ROSEN e ZERNER, 1988:117). Robert
Fernando Torres, 1975. Rosenblum pensa que o vocábulo juste milieu tem um matiz
DREW EGBERT, Donald. El arte y la izquierda político, dado que se refere a uma arte que “refletia muitos
en Europa - De la Revolución Francesa a mayo de dos compromissos do governo de Louis-Philippe, quem
1968. Barcelona: Gustavo Gili , 1981. ensaiou uma monarquia que agradava aos burgueses mais
poderosos, mas que também se ajustava ao gosto das
GRADOWSKA, Anna. Academicismo. Revisión de
multidões que passeavam pelos salões” (ROSENBLUM e
criterios. Anna Gradowska et alii. (Catálogo de JANSON, 1984:162-163).
exposição) El Academicismo - Revisión de 7
Edward Lucie-Smith dedica a Burne Jones o capítulo X
Criterios, Caracas: Museo de Bellas Artes, sd. do seu livro Symbolist Art, (1972:127 e ss).
________. Romanticismo, Realismo, Simbolismo 8
Em relação à visão do Realismo em função do seu
en el arte decimonónico venezolano. Cristóbal conteúdo social, sugerimos ler o texto de Donald Drew
Rojas, un siglo después y otros ensayos. Egbert, El arte y la izquierda en Europa - De la Revolución
Francesa a mayo de 1968 (1981: 173-192, 219-225).
Caracas: Fundación Galería de Arte Nacional, 1993.
Também é importante consultar o conjunto de textos do
HINTERHÄUSER, Hans. Fin de Siglo - Figuras escritor oitocentista P. J. Proudhon agrupados sob o título
y Mitos. Madrid: Taurus, 1980 (1977). Du principe de l’art –edição aqui consultada: Sobre el
HONOUR, Hugh. El Romanticismo. Madrid: Principio del Arte (1990:225-357).
Alianza, 1989. 9
Lembremos que vários dos postulados que serviram de
LUCIE-SMITH, Edward. Symbolist Art. New York: apóio ao Impressionismo se derivam das pesquisas
Praeger, 1972. realizadas pelos cientistas Michel Chevreul (Lei do
contraste simultâneo das cores - 1839) e Hermann von
PRAZ, Mario. Mnemosina - Paralelo entre la
Helmholtz (A óptica da pintura - 1855).
literatura y las artes visuales. Caracas: Monte Ávila, A respeito da abordagem temática do movimento
1976. Impressionista, recomendamos consultar o trabalho
PROUDHON, P. J. Sobre el principio del Arte. conduzido por Gary Tinterow e Henri Loyrette (MOMA, NY)
Buenos Aires: Aguilar, 1990. no qual os autores chegam a conclusões como a seguinte:
ROSEN, Charles. ZERNER, Henri. Romanticismo “the origins of New Painting can be found in the subtle
y Realismo - Los mitos del arte del siglo XIX. passage from Realism to Impressionism, from Courbet to
Manet, and then in the rather more quick movement to
Madrid: Hermann Blume, 1988 (1984).
Monet and Degas” (1994-1995:xiii).
ROSENBLUM, Robert. La pintura moderna y la 10
Anna Gradowska afirma que “uma história da arte do
tradición del Romanticismo Nórdico. Madrid: século XIX que se limite à arte culta elimina alguns
Alianza, 1993 (1975). elementos muito importantes na evolução iconográfica da
ROSENBLUM, Robert, JANSON, H. W. 19th- mesma”; e acrescenta: “nunca antes o conhecimento das
century Art. New York: Abrams, 1984. relações mútuas entre todas as artes foi considerado tão
TINTEROW, Gary, LAYRETTE, Henri. Origins of indispensável” (1993:23).
11
O alcance desse “fio condutor” nos resulta ainda mais
Impressionism. New York: MOMA, 1994-1995.
significativo quando lemos a seguinte afirmação de Rosen
e Zerner: “O Realismo é um resultado direto do

35
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

Romantismo e, ao mesmo tempo, uma reação contra ele...” Hinterhäuser: Fin de siglo - Figuras y mitos (1980). Nesse
(1988:35). A idéia de uma rígida fronteira entre esses dois livro, o autor explora a complexidade da vida e da cultura
movimentos se vê profundamente enfraquecida quando se nos últimos anos do século XIX, fazendo uso de um método
tem uma visão menos preconceituosa dos fatos. que aborda os fatos “horizontalmente”, o que lhe permite
12
No tocante a esse assunto, também é importante a tese “relacionar os fatores intelectuais e psíquicos da época com
sustentada por G. C. Argan, na qual propõe que as fronteiras os fatores reais e objetivos, [...] descobrir por trás da
tradicionalmente delineadas entre o Neoclassicismo e o evolução da sensibilidade a história social e das idéias,
Romantismo sejam revistas e atenuadas (1975:4). para assim poder iluminar mais adequadamente o período
13
Por razões de espaço nos resulta impossível incluir de tempo considerado” (1980:13). Observem-se as
comentários mais amplos sobre outras propostas coincidências metodológicas entre o procedimento de
metodológicas para o estudo do século XIX. Entretanto, Hinterhäuser e a proposta “globalizadora” de Rosenblum.
queremos recomendar a leitura do texto de Hans

36
1. Modernização e “globalização” no Brasil do
século XIX

Para o historiador Eric Hobsbawn, o breve século


XX não durou mais que os 77 anos que separam o
início da 1ª Guerra Mundial do colapso e
esfacelamento da União Soviética (HOBSBAWN,
1995). Poderíamos dizer, analogamente, que do
ponto de vista da história da arquitetura brasileira,
o “longo século XIX” durou quase dois séculos,
entre as primeiras manifestações da arquitetura
neoclássica produzidas na década de 1760 pelo
italiano Antonio Giuseppe Landi na longínqua
Belém do Pará, e a consolidação da arquitetura
moderna no Brasil, na década de 1950.

Frente à evidente diversidade da arquitetura


produzida durante os duzentos anos que compõem
o “longo século XIX”, quais pontos em comum
poderiam ser identificados? É possível afirmar que
este longo período, particularmente a partir da
chegada da Família Real Portuguesa ao Brasil em
1808, se caracteriza por um processo de
modernização acompanhado por um processo de
“globalização” cultural.

O processo de modernização pode ser percebido


rediscutindo a arquitetura brasileira do século xix: tanto na transformação das cidades quanto na
os preconceitos da historiografia moderna e o ocupação do território brasileiro. Nas principais
processo de revalorização recente cidades brasileiras, o século XIX se caracteriza pela
construção de grandes equipamentos urbanos.
nivaldo vieira de andrade junior 1 Basta pensarmos nos monumentais teatros
construídos em Salvador (São João, 1806-1812),
no Rio de Janeiro (São João, c. 1813, e Municipal,
1904-1909), em Recife (Santa Isabel, 1850), em
Porto Alegre (São Pedro, 1850-1858), em Belém
(da Paz, 1874-1878), em Manaus (Amazonas,
1881-1896), em São Paulo (Municipal, 1903-1911)
e em Fortaleza (José de Alencar, 1908-1910) num
arco temporal de pouco mais de cem anos.

O Teatro São João de Salvador, por exemplo,


destruído em um incêndio em 1923, então
recentemente destituída do posto de capital do
Brasil, foi “a primeira grande obra da arquitetura
civil de função pública de Salvador, cidade cercada
de construções religiosas e militares”, e também
“a primeira grande casa construída no Brasil com
a finalidade de ser um teatro” (SAMPAIO, 2005:
74):

O Largo do Teatro era um dos pontos mais


importantes da Cidade. A elite costumava
assistir a variadas apresentações de
companhias estrangeiras e nacionais no teatro
São João. Esses dramas, óperas e espetáculos
de canto eram, na verdade, o único lazer em
área pública que a Província oferecia. (Ibid.,
74)

37
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

A modernização das cidades também é percebida A partir da segunda metade do século XIX e,
através do surgimento de grandes fábricas de principalmente, durante a República Velha (1889-
tecidos – somente na Província da Bahia existiam, 1930), a arquitetura eclética ampliará o leque de
em 1875, dez fábricas têxteis (GOMES, 2007) – e referências possíveis: são chalés alpinos, igrejas
dos novos meios de transportes urbanos neogóticas e neo-românicas, templos e tribunais
implantados ao longo da segunda metade do século neogregos, palacetes neo-renascentistas,
XIX, como os bondes e, no caso de Salvador, os neobarrocos ou neopalladianos, castelinhos
elevadores e planos inclinados, como o Elevador residenciais e quartéis de inspiração medieval,
Hidráulico da Conceição (1869-1873), o Elevador edifícios mouriscos, bibliotecas neomanuelinas,
do Taboão (1886-1896), o Plano Inclinado Isabel residências normandas e interiores com
(1887-1889) e o Plano Inclinado do Pilar (1895- decorações inspiradas nas culturas egípcia e
1897). assíria – além, evidentemente, de edifícios que
misturam várias destas referências.
Do ponto de vista da ocupação do território, este
processo de modernização se caracteriza pela As grandes reformas urbanas realizadas nas
construção, a partir da segunda metade do século primeiras décadas do século XX, como aquela
XIX, de uma rede de ferrovias que atravessa as efetuada pelo Prefeito Pereira Passos no Rio de
principais províncias do Império, transportando Janeiro (1903-1906) e aquela levada a cabo pelo
riquezas e aproximando das capitais e dos portos Governador José Joaquim Seabra em Salvador
locais antes distantes. (1912-1916), representam a oportunidade de deixar
para trás o passado colonial e a referência lusitana
Do ponto de vista da arquitetura, a modernização e se espelhar na Europa, em particular na Paris
ocorrida durante o século XIX se caracteriza pela “modernizada” pelo Barão de Haussmann entre
utilização de novos materiais de construção, como 1853 e 1870. Assim, as ruas do centro destas
o ferro, o cimento e o vidro, e conseqüentemente cidades são alargadas e “alinhadas”, ao mesmo
pelo aparecimento de novas técnicas construtivas. tempo em que dezenas de edifícios do período
Este período corresponde também ao início de um colonial são demolidos e reconstruídos em estilo
processo de “globalização” cultural fomentado pela eclético. (LEME, 1999; PINHEIRO, 2002).
chegada ao Brasil de imigrantes estrangeiros de
diferentes procedências, incluindo arquitetos, A partir da década de 1920, o processo de
engenheiros, artistas e mestres-de-obras, o que se crescente valorização da identidade nacional levará
reflete nos aspectos formais, tipológicos e ao surgimento no Brasil de uma arquitetura
construtivos da arquitetura através de uma busca neocolonial – como de resto na maior parte da
de referências na arquitetura européia em um América Latina – que pode ser considerada como
sentido mais amplo, se inspirando nas arquiteturas “uma tendência tardia do academicismo” (ROCHA-
francesa, italiana, inglesa, alemã e suíça, dentre PEIXOTO, 2000b: 16). Embora sua vertente mais
outras. conhecida busque referências na arquitetura
colonial brasileira – se constituindo em “uma reação
A “globalização” da arquitetura brasileira, com a contra a arquitetura importada da Europa e anseio
busca de referências mais diversificadas, ocorre por uma forma de decorativismo brasileiro” e talvez
somente a partir da segunda metade do século em uma “reação classista contra os arquitetos
XVIII e, principalmente, da primeira metade do estrangeiros” (Ibid., 16), outras vertentes do
século XIX, com a arquitetura neoclássica – seja neocolonial se inspiram nas construções coloniais
através da obra precursora de Landi em Belém, na do México e da Califórnia (o chamado “Mission
segunda metade do século XIX, seja através da Style”) e até mesmo em fictícias culturas que teriam
obra paradigmática do francês Grandjean de existido no Brasil pré-colombiano – caso do “estilo
Montigny e de seus pupilos, realizada no Rio de marajoara”.
Janeiro a partir da década de 1810, seja ainda
através do caso bastante particular da Praça do 2. A construção de uma história da arquitetura
Comércio de Salvador (construída na década de brasileira
1810), fortemente influenciada pelo
neopalladianismo inglês (cf. SALGADO, 2005). Não Embora a “historiografia dominante” apresente
por acaso, esse período de abertura cultural como ponto máximo da arquitetura brasileira o
coincide com a chegada ao Brasil da família real barroco dos séculos XVII e XVIII – em particular a
portuguesa e seus desdobramentos, como a obra produzida por Aleijadinho na segunda metade
transformação do Rio de Janeiro em capital do do século XVIII – e ao longo de boa parte do século
Reino Unido do Brasil e Portugal e a abertura dos XIX, tenha existido toda uma produção
portos brasileiros às nações amigas. arquitetônica na qual persistem diversas

38
Rediscutindo a arquitetura brasileira do século XIX: os preconceitos modernos e recente revalorização

características da arquitetura do período colonial, Estação de Hidroaviões da Ribeira (1939), eram


o fato é que desde a segunda metade do século uma exceção em um panorama arquitetônico onde
XVIII “alguns procedimentos artísticos que serão predominavam os edifícios neocoloniais ou
consagrados pelo neoclassicismo já estão vinculados às diversas vertentes do eclético.
presentes no rigor formal, no tipo de composição e Contemporaneamente a estas construções
na placidez racionalista dos espaços modernas, podemos encontrar dezenas de escolas
arquitetônicos” (ROCHA-PEIXOTO, 2000a: 64): estaduais, sedes de prefeituras e outros edifícios
públicos de arquitetura eclética (como as Escolas
Não é um momento de exclusividade, nem Reunidas de Juazeiro, 1935) ou neocolonial (como
sequer de predomínio dos valores que Núcleo Educacional Góes Calmon em Salvador,
caracterizam o neoclassicismo. Ele convive 1937; ou a Prefeitura de Santo Antônio de Jesus,
com o apogeu do tardo-barroquismo no Brasil 1944).
(Ibid.: 64).
Em 1949, ao mesmo tempo em que o Governo do
Esta mesma “historiografia dominante” estabelece Estado da Bahia erguia alguns dos principais
que a vitória definitiva do grupo “modernista”, equipamentos urbanos modernos em Salvador,
liderado por Lúcio Costa e Oscar Niemeyer, sobre como o Hotel da Bahia (1947-1952), o Hotel de
as correntes “acadêmico-eclética” e “neocolonial” Paulo Afonso (iniciado em 1947), a Escola-Parque
ocorre entre as décadas de 1930 e 1940 (1947-1950) e o Estádio da Fonte Nova (1942-
(CAVALCANTI, 2006: 10). Devido em grande parte 1951), eram inaugurados alguns edifícios
à construção do edifício do Ministério da Educação neocoloniais construídos pelo mesmo Governo do
e Saúde (1936-1943), de autoria de um grupo de Estado, como os Postos de Puericultura de Campo
jovens arquitetos liderados por Lúcio Costa com a Formoso, Cipó e Itabuna. Neste mesmo ano, foram
consultoria de Le Corbusier, criou-se o mito de que, iniciadas as obras de um imenso edifício público –
na Era Vargas, a arquitetura moderna foi adotada o Fórum Ruy Barbosa, no Campo da Pólvora, em
oficialmente para os edifícios públicos. Uma análise Salvador – em linhas neoclássicas, como nos relata
mais detalhada, contudo, mostra que isto não Pasqualino Magnavita:
corresponde à realidade e que, até pelo menos
meados da década de 1950, o Estado Brasileiro Na época, o escritório do jovem engenheiro
construía cotidianamente edifícios ecléticos e Noberto Odebrecht, antes da construção do
neocoloniais no Brasil: Fórum, submeteu à apreciação dos
magistrados um projeto muito similar ao
Não é possível identificar na arquitetura da Era Ministério de Educação e Saúde do Rio de
Vargas um denominador comum. Não obstante Janeiro, ressaltando as especificidades
o caráter referencial da sede do Ministério da funcionais de sua destinação e economia em
Educação e Saúde – hoje Palácio Gustavo relação a um projeto arquitetônico eclético
Capanema – pela sua repercussão na época e encomendado pelos magistrados treze anos
o seu reconhecimento internacional como um antes, em 1936. Os magistrados consideram a
marco da arquitetura moderna, a ação proposta desprovida de dignidade e um
governamental em suas várias frentes desrespeito à tradição forense que remonta ao
ministeriais não estabeleceu uma linguagem Direito Romano. Sem frontões, colunas,
arquitetônica direcionada e coerente. [...] capitéis, molduras a edificação não teria
Mesmo no Ministério da Educação e Saúde, sentido. Optaram pelo projeto eclético anterior.
tido como progressista do ponto de vista (MAGNAVITA, 2003: 12)
estético, a arquitetura de educandários tanto
ostentava o padrão moderno como o estilo Portanto, a versão, construída pela “historiografia
neocolonial [...]. (SEGAWA, 2006: 93) dominante”, de que a arquitetura moderna no Brasil
se tornou hegemônica a partir das décadas de 1930
De fato, se observarmos as edificações construídas e 1940, com os auspícios do Governo Vargas, não
pelo Governo do Estado da Bahia entre a década corresponde à verdade.
de 1930 e o início dos anos 1950, veremos que os
edifícios modernos dividiam claramente espaço e O surgimento (entre o final da década de 1920 e a
prestígio com uma produção arquitetônica ainda década de 1930) e a consolidação (entre as
vinculada a modelos tradicionais e influências décadas de 1940 e 1950) de uma arquitetura
européias pré-modernas. Assim, veremos que moderna orgulhosa de sua “brasilidade” – ainda
alguns edifícios modernos construídos em Salvador que sem ocultar as referências à arquitetura
nas décadas de 1930 e 1940, como o Instituto de moderna internacional, com destaque para a obra
Educação da Bahia (atual ICEIA) (1937-1939) e a escrita e construída do franco-suíço Le Corbusier

39
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

– representa o ápice da negação das influências sobre a visão hegemônica dos autores ligados à
estrangeiras e da diversidade arquitetônica que arquitetura moderna com relação à arquitetura
caracterizou o período precedente. eclética. Tentaremos, de forma sintética, observar
somente a abordagem dada por eles às
A história da arquitetura brasileira construída manifestações arquitetônicas daquele período.
através de textos e da seleção de bens para
tombamento pelo IPHAN2 por autores modernos Bruand deixa clara sua postura já no título do
como Lúcio Costa e Paulo F. Santos – vencedores primeiro capítulo de seu livro: “De um ecletismo
da batalha contra os “acadêmicos-ecléticos” e os sem originalidade à afirmação internacional da nova
“neocoloniais” – foi hegemônica até pelo menos arquitetura brasileira (1900-1945)” (BRUAND, 1981:
meados dos anos 1960 e privilegiava a arquitetura 31-59). Para Bruand, “o panorama oferecido pela
colonial, especialmente o barroco dos séculos XVII arquitetura brasileira por volta de 1900 nada tinha
e XVIII, e a arquitetura moderna da “escola carioca” de animador”:
liderada pelo próprio Lúcio Costa e por nomes como
Oscar Niemeyer, Affonso Eduardo Reidy e M.M.M. Nenhuma originalidade podia ser entrevista nos
Roberto, que era apresentada, já em 1937, como numerosos edifícios recém-construídos, que
uma “evolução” da arquitetura do período colonial não passavam de imitações, em geral
(COSTA, 1937). medíocres, de obras de maior ou menor
prestigio pertencentes a um passado recente
Neste panorama de construção da identidade ou longínquo, quando não eram meras cópias
nacional e de “uma” história da arquitetura da moda então em voga na Europa. Ora, essa
brasileira, a produção do “longo século XIX” quase evolução só foi se acentuando durante as
não teve vez. Apenas a arquitetura neoclássica foi primeiras décadas do século XX. [...] O
valorizada desde o início, embora em um primeiro ecletismo que dominou então plenamente as
momento fosse privilegiado apenas o “estilo construções particulares, em menor grau, os
imperial” realizado pelo francês Grandjean de edifícios públicos era por sua própria natureza
Montigny no Rio de Janeiro na primeira metade do um fato profundamente negativo. O mau gosto,
século XIX e outras obras do primeiro quartel do ou mesmo a total falta de gosto, que
século XIX, em detrimento de outras predominava na época, veio somar-se a esse
manifestações, como a obra de Landi. No que diz ecletismo; seria fácil enumerar a série de
respeito à arquitetura eclética, “o tombamento do horrores e fantasias arquitetônicas edificadas
ecletismo, mais que esquecido, foi explicitamente durante esse período (... caracterizado) pela
rejeitado”, como confirma Gustavo Rocha-Peixoto falta de originalidade e por um complexo de
(2000b: 22). inferioridade levados ao extremo sob o ponto
de vista local, mas que já contém o germe dos
Por parte dos arquitetos modernos que escreveram elementos de uma reação salutar que não
essa “historiografia dominante”, até mesmo à demorou em se manifestar. (BRUAND, 1981:
arquitetura neocolonial, nacionalista e que buscava 33).
inspiração formal nas construções do período
colonial, eram negados os vínculos com a nossa O preconceito de Bruand não está limitado
melhor tradição colonial: exclusivamente à arquitetura eclética. Segundo ele,
“o que se convencionou chamar de neoclassicismo
Para os arquitetos modernistas, a semelhança [no Brasil], na realidade não passa de uma forma
de sua arquitetura com a colonial não era de de ecletismo, onde é possível encontrar justapostos
aparência ou de efeito, como ocorria com as todos os estilos que utilizam colunas, cornijas e
construções neocoloniais. (FONSECA, 2005: frontões, da Renascença italiana ao Segundo
188) Império francês” (loc. cit.). A exceção para Bruand
corresponde ao “verdadeiro neoclássico”
Assim, os defensores do moderno que se introduzido no Rio de Janeiro por Grandjean de
dedicaram a escrever sobre a arquitetura brasileira Montigny, que aos poucos “foi impondo à arte oficial
recente, como os brasileiros Lúcio Costa (COSTA, um neoclassicismo puro” e “construindo edifícios
1995; XAVIER, 2007) e Paulo F. Santos (SANTOS, de qualidade” (ibid., 33-34).
1981) e o francês Yves Bruand (BRUAND, 1981),
não se preocuparam em ocultar seu desprezo por Esta visão de Bruand é em muitos aspectos
toda a produção arquitetônica do século XIX. Não semelhantes às versões de Lúcio Costa, Paulo
é necessário nos determos na análise do discurso Santos e outros que construíram a historiografia
destes autores, uma vez que Marcelo Puppi (1998) da arquitetura brasileira dominante a partir da
já desenvolveu um estudo crítico aprofundado segunda metade da década de 1930, e pode ser

40
Rediscutindo a arquitetura brasileira do século XIX: os preconceitos modernos e recente revalorização

entendida como uma “crítica operativa”, no sentido 3. O IPHAN e a valoração da arquitetura do


definido por Manfredo Tafuri – isto é, “uma análise século XIX através dos tombamentos
da arquitetura (ou das artes em geral) que tenha
como objetivo não um levantamento abstrato, mas Como alerta Maria Cecília Londres Fonseca, o
a ‘projetação’ de uma orientação poética precisa, tombamento é “a prática mais significativa da
antecipada em suas estruturas e resultante de política de preservação federal no Brasil”
análises históricas programaticamente acabadas (FONSECA, 2005: 181). Tendo sido criado
e deformadas” (TAFURI, 1988: 168). simultaneamente ao próprio IPHAN, através do
Decreto-Lei nº 25/37, o tombamento é muitas vezes
Tratar-se-ia, portanto, de defender a arquitetura equivocadamente entendido como o único
moderna e de combater os acadêmicos da Escola instrumento legal voltado à preservação do
de Belas Artes e os arquitetos ligados à corrente patrimônio edificado.
neocolonial não só através da prancheta, mas
também a partir da construção de “uma” história A importância do instrumento do tombamento
extremamente parcial e arbitrária que, com raras decorre não somente das suas implicações no
exceções, negava o status de “obra de arte” às direito de propriedade, mas também porque,
arquiteturas do século XIX. através da análise do acervo de bens tombados
pelo IPHAN e por qualquer outro órgão de
Assim, até aproximadamente vinte anos atrás, a preservação do patrimônio cultural, seja ele
bibliografia existente sobre a arquitetura do “longo municipal ou estadual, é possível compreender os
século XIX” se limitou a comentários impregnados conceitos de arte e de arquitetura dominantes.
de preconceitos em obras tendenciosamente Mais: a partir de uma análise dos tombamentos
dedicadas à valorização do barroco colonial e da realizados por uma determinada instituição em
arquitetura moderna, além, evidentemente, dos ordem cronológica, podemos identificar as
precursores estudos sobre a arquitetura de continuidades e rupturas na valoração das diversos
Grandjean de Montigny no âmbito da Missão períodos e estilos arquitetônicos que pontuaram a
Artística Francesa (MORALES DE LOS RIOS nossa história, percebendo assim de forma clara
FILHO, 1941; TAUNAY, 1956; DEL BRENNA, 1979) os preconceitos dos “modernos” à arquitetura do
e sobre a obra de Antonio Giuseppe Landi em século XIX e o gradativo processo de revalorização
Belém (MELLO JUNIOR, 1973). desta produção arquitetônica nas últimas décadas.

Nas últimas duas décadas, passaram a ser No Brasil, à diferença de outros países, os mesmos
publicadas diversas obras que propõem uma artistas e intelectuais que implantaram e difundiram
reflexão crítica sobre a arquitetura do século XIX a arte moderna – Mário de Andrade, Lúcio Costa,
em suas diferentes vertentes, como a arquitetura Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade,
neoclássica (SOUSA, 1994; SOUSA, 2000; dentre outros – foram responsáveis pela
CZAJKOWSKI, 2000b), a arquitetura eclética implementação das primeiras políticas públicas
(LEMOS, 1985; FABRIS, 1987; CZAJKOWSKI, voltadas à preservação do patrimônio cultural.
2000a), a arquitetura do ferro (SILVA, 1986;
DERENJI, 1993), a arquitetura ferroviária (KÜHL, O arquiteto Lúcio Costa, além de ser um “modelo
1998; IPHAE-RS, 2002; COELHO, 2004) e o da historiografia da arquitetura no Brasil” (PUPPI,
neocolonial (AMARAL, 1994). As obras de alguns M., 1998: 12, 17) e de ter liderado o grupo de jovens
arquitetos do período passam a ser objeto de arquitetos que, a partir de meados da década de
estudos detalhados, como Ramos de Azevedo 1930, implantou e consolidou no Brasil uma
(CARVALHO, 2000) e Ricardo Severo (MELLO, arquitetura moderna que mesclava referências dos
2007). Caso curioso é o de Victor Dubugras, conceitos e projetos do franco-suíço Le Corbusier
arquiteto francês que atuou em São Paulo e no com a tradição colonial brasileira, foi o principal
Rio de Janeiro entre 1891 e 1933, projetando responsável, na condição de Diretor da Divisão de
edifícios em diversos estilos (neogótico, Estudos e Tombamentos do Instituto do Patrimônio
neocolonial, Art Nouveau, protomoderno): a Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) entre 1937
publicação de um livro dedicado à sua obra está e 1972, pelo estabelecimento dos parâmetros e
condicionada à tese de que ele foi um “precursor critérios utilizados na constituição do acervo de
da arquitetura moderna na América Latina” (REIS bens tombados brasileiro.
FILHO, 2005), como se somente esta justificativa
fosse capaz de valorizar a sua produção. Portanto, nos propusemos a identificar as diversas
formas – da rejeição total até a incorporação
definitiva – com as quais foi valorada a arquitetura
do “longo século XIX” através dos tombamentos

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Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

realizados pelo IPHAN. Esta análise foi realizada Da mesma forma, em Petrópolis, foram tombados
a partir de um levantamento dos bens tombados entre 1938 e 1939 dois importantes edifícios
pelo órgão federal em ordem cronológica e com a neoclássicos ligados ao Governo Imperial: o
distinção entre os bens inscritos no Livro de Tombo Palácio Imperial (construído a partir de 1845
Histórico e aqueles inscritos no Livro de Tombo de segundo projeto e Guillobel, Köller, Rebello e Porto-
Belas Artes, bem como a partir da leitura atenta de Alegre) e o Palácio da Princesa Isabel.
alguns pareceres emitidos por Lúcio Costa e Paulo
F. Santos (apud PESSÔA, 2004; SANCHES, 2005) Entretanto, é preciso ressaltar que este
quando instados a se pronunciar sobre o reconhecimento imediato pelo IPHAN da qualidade
tombamento destes bens. da arquitetura neoclássica de Grandjean de
Montigny e seus discípulos não impediu que, no
A maioria dos estudos sobre a trajetória do IPHAN mesmo ano em que estes bens eram tombados,
apresenta as três primeiras décadas de atuação fosse demolido o primeiro e talvez mais importantes
do órgão, nas quais ele esteve sob a direção de projeto de Montgny no Rio de Janeiro: a sede da
Rodrigo Mello Franco de Andrade, como um Academia Imperial de Belas Artes, construída entre
período relativamente homogêneo – a chamada 1816 e 1826.
“fase heróica” da instituição (FONSECA, 2005).
Entretanto, a nossa análise demonstra que a Na Bahia, os edifícios neoclássicos tombados em
realidade é um pouco mais complexa: no que se 1938 são dois: o Palácio da Associação Comercial
refere aos tombamentos de edifícios do “longo (Cosme Damião da Cunha Fidié, 1814-1816) e o
século XIX”, pudemos identificar pelo menos quatro Cemitério do Pilar (1799), esse último anexo à
diferentes fases, das quais três correspondem, a Igreja de Nossa Senhora do Pilar, construção
grosso modo, ao período em que o órgão esteve rococó que certamente motivou o tombamento.
sob a direção de Rodrigo Mello Franco de Andrade. Ambos devem seu reconhecimento às suas
excepcionais qualidades arquitetônicas e também
1ª Fase: rejeição das arquiteturas do século XIX ao fato de terem sido realizados anteriormente à
(à exceção de um certo neoclássico) chegada da Missão Artística Francesa ao Rio de
Janeiro.
Criado em 1937, o IPHAN realiza os primeiros
tombamentos no ano seguinte: são dezenas de Apenas dois edifícios ecléticos são tombados no
igrejas, conventos, fortalezas, casas de câmara e Rio de Janeiro em 1938: o Palácio do Catete e o
cadeia e residências nobres urbanas, além de Palácio Guanabara. Embora ambos tenham sido
antigos engenhos de açúcar e alguns sítios urbanos inscritos simultaneamente nos Livros de Tombo
de valor arquitetônico, urbanístico e paisagístico. Histórico e de Belas Artes, é indiscutível que o
São quase todos exemplares da arquitetura do tombamento se deveu aos seus valores históricos,
período colonial. Somente no Estado da Bahia, em como sedes do governo republicano e residências
1938, são tombados 52 bens do período colonial. presidenciais.

Nesta primeira fase, de toda a diversificada É curioso observar o processo de tombamento,


arquitetura produzida no “longo século XIX”, as aberto e concluído em 1938, de um conjunto de
únicas manifestações a serem inscritas nos Livros construções coloniais – em sua maioria igrejas –
de Tombo do IPHAN pelos seus valores artísticos localizadas na Bahia (Processo 0122-T-38). “Por
são alguns edifícios neoclássicos construídos nos engano”, também são tombadas como parte deste
três primeiros quartéis do século XIX, quase todos processo duas igrejas ecléticas soteropolitanas das
localizados no Rio de Janeiro. São obras realizadas primeiras décadas do século XX: a Igreja de Nossa
por Grandjean de Montigny por volta de 1820 (o Senhora da Ajuda, construção em estilo
Solar na Gávea – residência do arquiteto – e a neomanuelino inaugurada em 1923, e a Igreja de
antiga Praça do Comércio), bem como os Nossa Senhora da Vitória, construção de feição
exemplares mais significativos da produção de classicizante datada de 19104.
outros destacados arquitetos do segundo e do
terceiro quartéis do século XIX, como o francês Somente em 1950, o “equívoco” do tombamento
Pierre-Joseph Pézérat, o português Joaquim da Igreja da Vitória é percebido e, imediatamente,
Cândido Guillobel, o alemão Friedrich Köller e os corrigido, anulando-se a inscrição do edifício e
arquitetos formados nos primeiros anos da inscrevendo-se nos Livros de Tombo apenas as
Academia Imperial de Belas Artes fundada por inscrições lapidares localizadas em seu interior, de
Montigny, como José Maria Jacintho Rebello, filhos e netos do lendário Diogo Álvares Correa, o
Manoel de Araújo Porto-Alegre e Domingos Caramuru:
Monteiro3.

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Rediscutindo a arquitetura brasileira do século XIX: os preconceitos modernos e recente revalorização

Não tendo sido especificada devidamente, no Livro de Tombo de Belas Artes, como uma forma
como se tornava necessário, a inscrição de reconhecer que sim, fazem parte da História do
referente à Igreja da Vitória, na cidade do Brasil (ou da História da Arquitetura Brasileira) mas
Salvador, Estado da Bahia, retifique-se a de forma alguma podem ser considerados “obras
aludida inscrição, esclarecendo-se que o de arte” pois, como afirma Maria Cecília Londres
tombamento recai sobre as inscrições Fonseca, “o valor histórico era, naquele período
tumulares antigas existentes no templo e não [até a década de 1970], claramente considerado
sobre o próprio edifício da igreja, que não mais como um valor ‘de segunda classe’” (FONSECA,
conserva traço algum da sua feição original 2005: 201).
(Ofício de 17 de março de 1950 do Diretor-Geral
do DPHAN, Rodrigo Mello Franco de Andrade, Em janeiro de 1941, o IPHAN tombou
incluído às fls. 05 do Processo 0122-T-38) individualmente quatro edifícios religiosos
construídos ou reformados por Antonio Giuseppe
Da mesma forma, em 1956, é dado início ao Landi em Belém do Pará entre as décadas de 1750
processo de “cancelamento da inscrição da obra e 17705. Entretanto, é importante ressaltar que
arquitetônica da Igreja de Nossa Senhora da Ajuda”, estes bens são inscritos somente no Livro de
por se tratar de edificação “destituída de interesse”, Tombo Histórico, como que lhes negando o status
ao mesmo tempo em que são inscritos nos Livros de obra-de-arte e reconhecendo na obra de Landi
de Tombo Histórico e de Belas Artes os altares, apenas o caráter de precursora do neoclássico da
imagens e outros bens móveis e integrados Missão Francesa, sem contudo compartilhar dos
herdados da igreja “original”: seus méritos arquitetônicos.

Quanto à parte arquitetônica [da Igreja de Da mesma forma que com relação à obra de Landi
Nossa Senhora da Ajuda], o imóvel em apreço, em Belém, no que se refere ao Teatro Santa Isabel
construído no presente século em substituição de Recife, edifício neoclássico inaugurado em 1850
da primitiva igreja jesuítica da mesma e reconstruído após um incêndio em 1876, só foi
invocação, carece de valor que justifique reconhecido o valor histórico, uma vez que,
qualquer iniciativa da DPHAN no sentido de segundo parecer de Lúcio Costa de 1949, se trata
beneficia-lo. de “obra de construtor competente e consciencioso,
mas de arquiteto medíocre”, cujo “interesse
[...] Quando tombada, por inadvertência e mais artístico” é “limitado, embora contribuísse de modo
em atenção à primitiva Ajuda de que herdou as decisivo, conquanto tardio, para a introdução no
tradições, já não lembrava a igrejinha do Padre Recife da sobriedade convencional e despojada do
Nóbrega, a Sé de Palha; era uma outra, estilo ‘neoclássico’, já oficialmente adotado na corte
inaugurada nas imediações daquela, no ano de por Montigny e sua escola”. Lúcio Costa reconhece,
1923. Restam-lhe, apenas, de excepcional contudo, que “não lhe falta interesse do ponto de
valor, como acervo dos primeiros tempos, vista histórico e social, relacionado como está com
algumas imagens, alfaias e uma lápide datada a significativa experiência americana do engenheiro
de 1579 (Ofício nº 235, de 19 de dezembro de Vauthier e com a própria vida e o desenvolvimento
1956, do Chefe do 2º Distrito do DPHAN, urbano da cidade. Justifica-se pois o tombamento
Godofredo Filho para o Diretor-Geral do órgão, pleiteado pelo 1º Distrito” (Lúcio Costa apud
Rodrigo Mello Franco de Andrade, incluído às PESSOA, 2004: pp. 81-82). O Teatro é
fls. 20 do Processo 0122-T-38) imediatamente inscrito no Livro de Tombo Histórico.
2ª Fase: reconhecimento do valor histórico Portanto, até o início da década de 1960, os
(“monumentos de segunda classe”) tombamentos de bens do século XIX – à exceção,
como vimos, de raros exemplares neoclássicos –
Na segunda fase, que abrange as décadas de 1940 são extremamente raros e motivados quase
e 1950, o IPHAN começa timidamente a tombar sempre pelo seu valor histórico. A inscrição no Livro
alguns edifícios neoclássicos e ecléticos de Tombo Histórico, em 1952, de um chalé eclético
construídos a partir do último quartel do século XIX. construído em Petrópolis em 1918, por exemplo,
Entretanto, nos raros casos de tombamento destes é devido ao fato de nele ter residido Santos
bens, não é possível deixar de perceber que lhes é Dumont, o inventor do avião. Evidentemente,
dado um tratamento de “monumentos de segunda exceções existem, e uma bastante significativa
classe”. é a inscrição em 1942, nos Livros de Tombo
Histórico e de Belas Artes, do Palacete Azul em
Neste período, estes bens foram invariavelmente
Belém, um importante exemplar da arquitetura
inscritos no Livro de Tombo Histórico e, dificilmente,
neoclássica do século XIX.

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Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

Segundo Maria Cecília Londres Fonseca, “a Landi: a Igreja de Nossa Senhora do Rosário,
atribuição de valor artístico a estilos estéticos e tombada em 1960, e a Igreja de Sant’Anna,
arquitetônicos recentes é um fato característico tombada em 1962.
do processo de constituição dos patrimônios
históricos e artísticos nacionais, a partir da A inscrição do Teatro José de Alencar em Fortaleza
década de 1960” (FONSECA, op. cit.: 188): no Livro de Tombo das Belas Artes, em 1964, é por
sua vez um marco na incorporação da arquitetura
Até então, considerava-se necessário observar do ferro e do Art Nouveau ao acervo de bens
um recuo histórico mínimo para a inclusão de tombados e no reconhecimento do valor artístico e
bens nos patrimônios – recuo esse que, em não apenas histórico destes bens, uma vez que se
geral, se situava em meados do século XIX. trata de uma construção da primeira década do
(ibid., 188) século XX, executada em estrutura metálica
importada da Escócia. Em 1967, dando
Não nos parece que este seja exatamente o continuidade a essa incorporação da arquitetura
caso da atuação do IPHAN. Aliás, parece bem industrial do século XIX ao patrimônio nacional, foi
mais provável que a negação do valor artístico inscrito no Livro de Tombo de Belas Artes o Palácio
a toda a arquitetura do “longo século XIX” – à de Cristal de Petrópolis, pavilhão de exposições
e x c e ç ã o , é n e c e s s á r i o q u e s e r e p i ta , d a montado em 1884 e caracterizado pela estrutura
produção de Grandjean de Montigny e de outros metálica pré-fabricada importada da França e pelos
arquitetos ligados ao neoclassicismo imperial fechamentos em cristais bisotados importados da
carioca – se deva efetivamente a preconceitos Bélgica.
e à afirmação de uma arquitetura moderna
brasileira apresentada como uma evolução da Por outro lado, o reconhecimento dos valores
arquitetura colonial e deste neoclassicismo ao artísticos do Teatro José de Alencar e do Palácio
mesmo tempo universal e “abrasileirado”. de Cristal não impede que, naqueles mesmos anos,
diversos exemplares das arquiteturas eclética e
Esta afirmação pode ser justificada de diversas neoclássica tardia fossem inscritos somente no
formas. Em primeiro lugar porque, como Livro de Tombo Histórico, como é o caso do Teatro
veremos, somente a partir do início da década Amazonas em Manaus (1881-1896), edifício
de 1960 a obra neoclássica de Antonio Giuseppe eclético de feição classicizante, do edifício
Landi em Belém, realizada na segunda metade neoclássico da Casa da Alfândega de Salvador
do século XVIII e, portanto, contemporânea ao (1861) e do Sobrado Grande da Madalena (meados
barroco mineiro consagrado pelo IPHAN como do século XIX), todos tombados em 1966. Nos dois
o apogeu da arquitetura brasileira pré-moderna, anos seguintes, foram inscritos apenas no Livro
começou a ter seus valores artísticos de Tombo Histórico o Palácio dos Azulejos de
reconhecidos pelo órgão federal de preservação. Campinas, SP (1878), a Estação Rodoviária de
Em segundo lugar, porque como a própria Maria Paraibuna, RJ (meados do século XIX), a Academia
Cecília Fonseca reconhece, “em 1947, o Sphan Pernambucana de Letras em Recife (1860) e três
tombara a Igreja de São Francisco, na residências vizinhas localizadas no bairro de
Pampulha, e em 1948, o prédio do MEC, ambos Botafogo, no Rio de Janeiro (final do século XIX).
recém-construídos e ambos por seu valor
artístico” (ibid., 188). Ainda na década de 1950 A negação de valor artístico, por Lúcio Costa, aos
– mais precisamente em 1956 – seria inscrito bens da segunda metade do século XIX não é
no Livro de Tombo de Belas Artes um outro sequer dissimulada no seu parecer, emitido em
exemplar da arquitetura moderna da escola 1963, referente ao tombamento do edifício
carioca: a Estação de Hidroaviões no Rio de neoclássico do Teatro da Paz em Belém (1874-
Janeiro. 1878). Lúcio Costa se mostra sucinto e parece
quase contrariado ao ratificar a proposta de
3ª Fase: os primeiros reconhecimentos de valor tombamento: “de acordo, uma vez que conste, na
artístico (e as “curiosidades artísticas) respectiva ficha de tombamento, a ressalva de se
tratar de ‘curiosidade artística’ e não de obra de
A terceira fase, correspondente à década de 1960, arte propriamente dita” (apud PESSÔA, op. cit.:.
pode ser entendida como uma fase de transição. 190). O Teatro da Paz foi inscrito apenas no Livro
Por um lado, alguns exemplares das arquiteturas de Tombo Histórico, naquele mesmo ano.
do “longo século XIX” começam a ter os seus
valores artísticos e arquitetônicos reconhecidos, Situação análoga ocorre quando, no mesmo ano
como é possível perceber através da inscrição no de 1963, Costa foi solicitado a se pronunciar sobre
Livro de Tombo de Belas Artes de duas obras de o possível tombamento de um sobrado azulejado

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Rediscutindo a arquitetura brasileira do século XIX: os preconceitos modernos e recente revalorização

da 2ª metade do século XIX – edifício com valores a esta arquitetura. Em 1975, são
platibanda, telhas francesas e arcos ogivais prestes reconhecidos os valores históricos e artísticos da
a ser demolido – localizado à Praça Cairú em Igreja de Nossa Senhora do Terço em Recife
Salvador: “se o tombamento é o único meio legal (construção neoclássica datada de 1873) e, em
de impedir a demolição do imóvel, concordo com a 1977, do Mercado Ver-o-Peso (estrutura de ferro
proposta do Chefe do 2º Distrito” (apud PESSÔA, importada da Europa erguida entre 1899 e 1901) e
op. cit.: 194). O edifício foi inscrito no Livro de de três casarões ecléticos construídos na Praça
Tombo Histórico em 1969. Coronel Pedro Osório, em Pelotas, por volta de
1880. Em 1978, o edifício da Companhia das Docas
4ª Fase: reconhecimento definitivo das de Santos, no Rio de Janeiro, construído entre 1904
arquiteturas do século XIX e 1908 segundo projeto de Ramos de Azevedo, é
reconhecido como patrimônio histórico e artístico
A quarta fase, que se inicia na década de 1970, já nacional.
mostra um reconhecimento maior dos valores
artísticos e arquitetônicos de alguns edifícios Entretanto, o reconhecimento do valor arquitetônico
construídos a partir da segunda metade do século de alguns exemplares da arquitetura da segunda
XIX. O próprio Lúcio Costa, em 1970, defende metade do século XIX pelo IPHAN não ocorre sem
fervorosamente o tombamento do antigo Villino grandes polêmicas, e a mais significativa delas
Silveira, edifício Art Nouveau projetado por Antonio ocorreu em conseqüência do pedido de
Virzi em 1915 e cujo tombamento pelo IPHAN é tombamento do conjunto de edifícios ecléticos
solicitado pelo próprio Costa, afirmando se tratar construídos pelo Prefeito Pereira Passos após a
de “obra-prima da inventiva do arquiteto Virzi”: abertura da Avenida Central, no Rio de Janeiro.
Concebida plasticamente, a construção como O pedido de tombamento dos edifícios ecléticos
que ‘desabrocha’: plantas, cortes, elevações; da Escola (hoje Museu) Nacional de Belas Artes
a escada, a varanda, o torreão; o jogo dos (1906-1908), da Biblioteca Nacional (1905-1910),
planos, os espaços internos, os volumes – tudo do Teatro Municipal (1904-1909), da Caixa de
se entrosa e se integra com graça inventiva e Amortização (1904-1906), da Assembléia
apuro de execução inexcedíveis, constituindo, Legislativa (1920-1923), do Palácio Monroe (1904-
assim, um todo orgânico e vivo de raro poder 1906), da sede do Jockey Club (1912-1916), da
de sedução. antiga sede do Derby Club (1914), do Edifício do
Trata-se, portanto, de uma preciosidade Tribunal de Justiça (1905-1909), do Clube Naval
arquitetônica, obra de arte sem igual no país (1905-1910) e do obelisco comemorativo da
ou alhures, cuja preservação importa abertura da Avenida Central partiu de um grupo de
assegurar. (Lúcio Costa apud PESSOA, 2004: intelectuais cariocas ligados à arquitetura moderna6
219-220) e foi acompanhado de 105 assinaturas de sócios
do Instituto de Arquitetos do Brasil e do Clube de
O parecer do conselheiro Paulo Santos, relator do Engenharia. A intenção do tombamento era impedir
processo de tombamento no Conselho Consultivo a realização do projeto da diretoria do Jockey Clube
do IPHAN, reafirmou a importância do tombamento, de demolir a sua sede e o edifício vizinho que
devido ao valor arquitetônico da residência. Santos abrigara o Derby Club, também de sua propriedade,
afirmou em seu parecer que “a posteridade, quando para possibilitar a construção, nos respectivos
fizer inteira justiça a Antonio Virzi – o que já começa terrenos, de um edifício comercial de 46
a acontecer – não nos perdoaria se pavimentos. (SANCHES, 2005: 363-365).
negligenciássemos o dever de recomendar ao
tombamento a casa, como propomos que se faça” A partir de um texto elaborado por Lúcio Costa,
(apud CARRAZZONI, 1980: 382). No mesmo ano, então recém-aposentado, Lygia Martins Costa,
o imóvel é inscrito nos Livros de Tombo Histórico e chefe da Seção de Artes do IPHAN, elabora um
de Belas Artes do IPHAN. parecer em que se coloca contra o tombamento
do conjunto, afirmando que cabia ao órgão federal
A inscrição nos Livros de Tombo Histórico e de “[...] apenas a defesa de obras ou conjuntos de
Belas Artes, em 1973, do edifício neoclássico da valor histórico e artístico excepcional dentro do
Assembléia Provincial do Ceará em Fortaleza panorama nacional” e que, portanto, “não [se]
(1856-1871) e do Mercado São José em Recife encontra[va] justificativa para tombar o conjunto
(1872-1875) – projeto de Vauthier construído com que nunca teve unidade.” (apud SANCHES, op. cit.:
estrutura metálica importada da França, da 368), concluindo pelo tombamento individual pelo
Inglaterra e de Portugal – são uma clara IPHAN de apenas três construções: o Teatro
demonstração desta mudança na atribuição de Municipal, a Escola Nacional de Belas Artes e o

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Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

obelisco comemorativo da abertura da Avenida Se o IPHAN tomou a iniciativa de tombar as 3


Central. ‘casinhas’ referidas – Ruas da Glória, da
Quitanda e Mayrink Veiga, foi simplesmente
No Conselho Consultivo do IPHAN, o mesmo Paulo porque tais ‘casinhas’, inclusive a do Virzi,
Santos foi indicado relator do processo, e se corresponderam, na sua época, à linha de
colocou frontalmente contra o parecer de Lygia evolução – ou revolução – arquitetônica
Martins Costa: verdadeira, ao passo que as imponentes
construções a que o relator alude são produtos
Compreendo o enfoque de D. Lygia [mas] ela marginais a essa linha evolutiva autêntica,
apreciou um e outro a partir de princípios que e como tais – não obstante seu apuro
norteiam a arquitetura e o urbanismo modernos, acadêmico – artificiosas manifestações de
em que unidades de estilo, volume e forma é falsa arquitetura pejorativamente tachada,
consideração básica para a qualidade da obra. pela crítica internacional autorizada, como
Mas o enfoque, igualmente moderno, para beaux arts. Trata-se, pois, de uma distinção
apreciação de obras do passado é diferente, fundamental. (Lúcio Costa apud PESSÔA, op
repudiando sejam elas julgadas pela .cit.: 274).
consciência estética dos nossos dias e sim a
partir do pressuposto de que cada período da A caneta afiada de Lúcio Costa continua a
História de Arte tem direito de ter seu próprio desqualificar os edifícios do conjunto: ele chama o
estilo e deva ser apreciado, em todos os seus edifício do Clube Naval de “medíocre”, declara que
aspectos, em função da carga de cultura de “o prédio do tribunal é insignificante, não
que se nutre e das idéias estéticas por que se compreendo tanto empenho na sua preservação”
expressa. Ora, em princípio do nosso século, e, frente à defesa de Paulo Santos de que o
predominava o gôsto da variedade. A avenida tombamento deste conjunto na sua totalidade seria
Rio Branco (então avenida Central), era um uma homenagem ao Prefeito Pereira Passos,
mostruário de estilos históricos e de marcas afirma que “Pereira Passos com a sua desenvoltura
individuais em oposição aos princípios por que demolidora teria sido o primeiro a tirar dali o aviltado
se norteia a época presente, em que é Pavilhão Monroe, cuja presença estorvante já não
absolutamente essencial a unidade estilística se justifica” (apud PESSÔA, op. cit.: 275).
e a marca individual se apaga em favor da
coletiva. [...] (Paulo Santos apud SANCHES, A conclusão do texto de Lúcio Costa é bastante
op. cit.: 369; Paulo Santos apud PESSÔA, op reveladora da sua visão sobre a arquitetura eclética,
.cit.: 279) no ano em que ele se aposenta do IPHAN:

A posição de Paulo Santos leva Lúcio Costa a Esclarecidos estes pontos quanto à disposição
escrever um texto, intitulado “Problema Mal Posto”, da antiga administração do DPHAN de excluir
em que se contrapõe a cada um dos argumentos da sua alçada o ecletismo-acadêmico por
de Paulo Santos, proferindo a famosa sentença: considerá-lo fora da linha legítima da evolução
arquitetônica, não parecendo portanto justificar-
Há um equívoco. Não se trata aqui de um se o tombamento proposto, devo confessar que
‘período’ da História da Arte, mas de um hiato verei com mágoa, se vivo estiver, a demolição
nessa história.(Lúcio Costa apud PESSÔA, op dos prédios em causa. Conquanto conflitantes
.cit.: 275) quanto ao estilo e à escala, conforme acentua
o parecer da seção competente, eram quando
Paulo Santos havia defendido em seu parecer que íntegros, um e outro, exemplares da melhor
o IPHAN deveria tombar o conjunto da Avenida qualidade nos moldes da pseudo-arquitetura da
Central da mesma forma que havia recentemente época. Como também lamentarei a completa
tombado algumas construções neoclássicas da desfiguração já programada das tribunas do
segunda metade do século XIX – a casa à rua da prédio atual.
Quitanda, nº 61 (datada de 1872) e a casa à Rua Ao contrário de Pereira Passos, as demolições
Mayrink Veiga, nº 9 (construída por volta de 1840), – esse desfazer com os pés o que se fez com
ambas tombadas em 1972 – e um palacete Art as mãos – de um modo geral me repugnam.
Nouveau projetado por Antonio Virzi em 1915 – a Mas apesar dessa ojeriza pessoal, há
residência Silveira, na Glória (tombada em 1970). evidentemente casos em que a derrubada se
Lúcio Costa refuta esta idéia, reforçando a sua tese impõe, e, excepcionalmente um destes casos
de que o ecletismo não fora mais que um hiato na me seria do maior agrado. Refiro-me à
legítima linha evolutiva da arquitetura brasileira: conhecida almanjorra de concreto coroada por
uma cúpula, situada entre o cais e a Esplanada

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Rediscutindo a arquitetura brasileira do século XIX: os preconceitos modernos e recente revalorização

do Castelo, pertencente ao Ministério da 1830), o Conjunto Arquitetônico e Urbanístico de


Agricultura e que já nasceu bastarda para a Antonio Prado (final do século XIX e início do XX),
Exposição de 1922 [sic]. (apud PESSÔA, o Palacete Argentina em Porto Alegre (1901) e o
2004: 277-278). Conjunto Arquitetônico do Campus da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) em Porto
Ao final, no embate entre Paulo Santos e Lúcio Alegre (edifícios ecléticos de 1906 a 1912).
Costa, este último saiu vitorioso. Em 24 de maio
de 1973, foram tombados pelo IPHAN apenas os No Estado de São Paulo, foram tombados pelo
edifícios que Lúcio Costa havia considerado “as IPHAN nos últimos doze anos alguns exemplares
construções mais importantes da antiga Avenida da arquitetura ferroviária, como a Estação da Luz
Central” e que mereceriam ser preservadas: o paulistana (1896-1901), o Conjunto de Edificações
Teatro Municipal, a Biblioteca Nacional, a Escola e Bens Móveis da Companhia Paulista de Estradas
Nacional de Belas Artes e o edifício da Caixa de de Ferro em Jundiaí (final do século XIX) e a Vila
Amortização. Feroviária de Paranapiacaba em Santo André
(1860). Da arquitetura eclética, foram protegidos o
As demolições de alguns dos edifícios cujo Museu Paulista no Ipiranga (1882-1885) e a Bolsa
tombamento fora negado por Lúcio Costa não Oficial do Café em Santos (1920-1922).
tardaram a acontecer. Em 1976, em meio a grande
polêmica7, o Palácio Monroe foi demolido, assim Embora o IPHAN tenha passado a reconhecer cada
como os edifícios do Jockey Club e do Derby Club, vez mais nas últimas décadas as arquiteturas do
que deram lugar a uma torre comercial de 140 século XIX, o acervo de bens tombados em nível
metros de altura. federal ainda é em sua esmagadora maioria
formado por construções e conjuntos urbanos do
A partir da década de 1980, a inscrição no Livro de período colonial. Além disso, percebe-se
Tombo de Belas Artes do IPHAN de edifícios e até claramente uma diferença entre a atuação do órgão
mesmo de conjuntos arquitetônicos da segunda nas diferentes regiões do país: enquanto nos
metade do século XIX e do início do século XX se Estados detentores de um acervo colonial
torna cada vez mais comum. significativo, como Bahia, Minas Gerais e
Pernambuco, o reconhecimento da arquitetura do
Na cidade do Rio de Janeiro ocorreram vários século XIX através do tombamento federal ocorreu
tombamentos de edifícios ecléticos durante a apenas de forma incipiente, em Estados cuja
década de 1980, como o pavilhão mourisco de ocupação é mais recente, como Rio Grande do Sul
Manguinhos (1903-1918), o Palácio das Laranjeiras e São Paulo, a quantidade de edifícios do “longo
(1909-1914), o Hospital São Francisco de Assis, século XIX” tombados pelo IPHAN é muito mais
antigo Asilo de Mendicidade (1876-1879), a Avenida significativa.
Modelo (conjunto de habitação coletiva do último
quartel do século XIX), o Copacabana Palace Hotel 5. A arquitetura do “longo século XIX” na Bahia:
(1917-1923), a antiga Sede da Light (1911) e o preconceito e revalorização
Palácio Tiradentes (1922-1926).
Provavelmente devido ao seu status de primeira
No Rio Grande do Sul, Estado caracterizado pela capital do Brasil e por possuir um centro histórico
arquitetura eclética construída pelos imigrantes colonial declarado Patrimônio da Humanidade pela
alemães e italianos a partir da segunda metade do UNESCO, as pesquisas e as ações voltadas à
século XIX, por sua vez, a atuação do IPHAN vai preservação da arquitetura do século XIX em
se intensificar consideravelmente a partir da década Salvador e no Estado da Bahia ainda estão em um
de 1980. Até então, existiam no Rio Grande do Sul estágio bastante preliminar. Apenas nos últimos dez
pouquíssimos bens tombados pelo IPHAN, a maior anos têm sido realizados alguns estudos sobre a
parte deles ligados às missões jesuíticas ou a arquitetura do século XIX na Bahia. Dentre estes,
eventos históricos significativos, como a podemos destacar algumas dissertações
proclamação da República Rio-Grandense (1835- dedicadas à arquitetura eclética no período da
1845). A partir da década de 1980, contudo, foram República Velha em Salvador (ALMEIDA, 1997;
tombados diversos exemplares da arquitetura PUPPI, S., 1998) e alguns artigos sobre os
eclética, bem como das imigrações italiana e alemã principais arquitetos atuantes na capital baiana
e da arquitetura do ferro, como o Memorial do Rio naquele mesmo período (AZEVEDO, 2006;
Grande do Sul em Porto Alegre (1910), o pórtico ANDRADE JUNIOR, 2007). Sobre a arquitetura
central e os armazéns do Porto de Porto Alegre neocolonial, os trabalhos são ainda mais escassos
(1922), a Caixa d’Água de Pelotas (1872-1875), a (BREITENBACH, 2005).
Casa Presser em Novo Hamburgo (década de

47
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

No que se refere à arquitetura ferroviária, ainda 2007). São também tombadas pelo IPAC uma
não existem estudos suficientes mas alguns estação ferroviária em Alagoinhas (Estação Férrea
trabalhos vêm, pouco a pouco, buscando resgatar São Francisco, 1876-1880) e uma ponte de ferro
a história da ocupação do território baiano pelas (Ponte D. Pedro II, 1881-1885).
ferrovias (ZORZO, 2001; FERNANDES, 2006;
LIMA, 2007). Com relação à arquitetura industrial, Entretanto, nem mesmo o tombamento tem
algumas pesquisas acadêmicas (CARDOSO, 1991; garantido a preservação destes bens. Mesmo
CARDOSO, 2004; GOMES, 2007) vêm sendo estando tombada desde 2002, em 2003 a Fábrica
desenvolvidas nos últimos anos. São Brás teve toda a estrutura metálica da sua
cobertura saqueada e, no mesmo ano, uma parte
Há muito ainda a pesquisar, portanto, sobre a da sua monumental fachada desabou, devido à
produção arquitetônica baiana no “longo século grande proximidade com a linha férrea ainda em
XIX”, para que se possa valorar, de forma utilização e à ausência de qualquer obra de
efetivamente crítica, os edifícios produzidos. consolidação da sua estrutura mural (SILVA, 2007).
O tombamento da Estação Férrea São Francisco
No que tange à preservação do patrimônio edificado em Alagoinhas, também realizado em 2002, não
baiano através do tombamento, os órgãos federal tem freado o seu acelerado processo de
e estadual de preservação do patrimônio cultural degradação e hoje a construção encontra-se
ainda não empreenderam ações efetivas para a praticamente em ruínas.
preservação dos exemplares mais significativos da
arquitetura do século XIX. De fato, poucos são os Como se vê, ao contrário de Estados como Rio de
edifícios baianos do século XIX tombados pelo Janeiro, Rio Grande do Sul, Pernambuco e São
IPHAN ou pelo IPAC. Das 149 edificações Paulo, a arquitetura baiana do “longo século XX”
individualmente tombadas pelo IPHAN no Estado ainda não foi devidamente valorizada e protegida.
da Bahia desde 1938, somente cinco são A ausência de uma política voltada à preservação
construções neoclássicas8 e quatro são edificações desta arquitetura tem permitido o desaparecimento
ecléticas9, todas elas localizadas em Salvador. Não de importantes edifícios neoclássicos, ecléticos,
existem exemplares baianos da arquitetura do ferro, industriais e ferroviários construídos no século XIX
industrial, neocolonial ou Art Nouveau tombados e nas primeiras décadas do século XX.
pelo IPHAN.
É necessário que os órgãos de preservação federal
No que se refere aos tombamentos realizados pelo e estadual comecem a envidar esforços para
IPAC 10, a situação é análoga. Dos 51 edifícios garantir a preservação dos exemplares mais
tombados pelo órgão estadual de preservação, representativos da arquitetura do século XIX na
quase metade corresponde a edifícios do período Bahia. A especulação imobiliária e a ausência de
colonial ou construções dos três primeiros quartéis políticas públicas que garantam a preservação
do século XIX que podemos chamar de “coloniais destes bens, já impediram, em anos recentes, o
tardias”, pois mantêm as principais características tombamento de um conjunto de construções
da arquitetura colonial. Somente doze construções ecléticas do Corredor da Vitória.
neoclássicas são tombadas pelo IPAC. No caso
da arquitetura eclética, o número é ainda mais Em 1998, o IPHAN recebeu do Sindicato dos
reduzido: apenas cinco edificações, sendo que Arquitetos e Urbanistas do Estado da Bahia (Sinarq-
quatro se localizam na capital. BA) a solicitação de tombamento de um conjunto
de dezessete construções distribuídas entre a Rua
Da mesma forma, existem somente dois da Graça, o Largo da Vitória, o Corredor da Vitória,
exemplares de arquitetura industrial tombados em a Praça Dois de Julho (Campo Grande), a Praça
Salvador (Fábrica São Brás em Plataforma, 1875; da Aclamação e o trecho inicial da Avenida Araújo
Fábrica Fratelli Vita na Calçada, final do século XIX), Pinho, em Salvador. Dos imóveis incluídos no
mesmo considerando-se que a Bahia passou por conjunto, à exceção do Teatro Castro Alves (1957-
um surto industrial no último quartel do século XIX, 1968), marco da arquitetura moderna baiana, todos
abrigando dezenas de fábricas e vilas operárias correspondiam a construções ecléticas das últimas
cujas estruturas físicas ainda encontram-se em pé, décadas do século XIX e das primeiras décadas
como a Fábrica da Boa Viagem (1891), Fábrica do século XX, sendo a maioria originalmente
Nossa Senhora da Penha (1875), Fábrica dos Fiaes residências burguesas que passaram
(1890), Vila Operária da Boa Viagem (1892-1899) posteriormente a abrigar outros usos.
– para nos limitarmos somente às indústrias têxteis
e respectivas vilas operárias localizadas na Passados seis anos, e após uma longa celeuma
Península de Itapagipe, em Salvador (GOMES, que envolveu pressões dos empresários do

48
Rediscutindo a arquitetura brasileira do século XIX: os preconceitos modernos e recente revalorização

mercado imobiliário e discussões técnicas, em de até 55 metros de altura, já vêm surgindo vários
diversos âmbitos, sobre a existência de valor projetos de substituição edilícia no bairro do
individual ou de conjunto nestes imóveis, o Comércio e faz-se necessário conceber estratégias
processo de tombamento nº 1.451-T-99, referente para, sem impedir o processo de requalificação
ao conjunto conhecido como “Corredor da Vitória”, urbana, garantir a permanência deste conjunto tão
acabou sendo arquivado pelo Conselho Consultivo representativo de um período da nossa história – o
do IPHAN. Embora na ocasião o presidente do do início do processo de modernização e
IPHAN, Antônio Augusto Arantes Neto, tenha “globalização” cultural do Brasil.
divulgado uma nota oficial em que declarava que
“o Conselho recomenda fortemente ao Governo do Referências bibliográficas
Estado da Bahia e à Prefeitura de Salvador que
adotem medidas visando à efetiva salvaguarda dos ALMEIDA, Maria do Carmo Baltar Esnaty de. A
remanescentes que são do interesse da população Victória na Renascença Baiana: a ocupação do
local e que ainda contribuem para a qualidade distrito e sua arquitetura na Primeira República
ambiental dessa área da cidade”, nada foi feito (1890-1930). Dissertação de Mestrado em
desde então, seja pelo IPAC, seja pela Prefeitura Arquitetura e Urbanismo. Salvador: FAUFBA, 1997.
Municipal de Salvador, que não conta com uma AMARAL, Aracy (coord.). Arquitectura
Secretaria de Cultura nem tampouco com um órgão Neocolonial: América Latina, Caribe, Estados
voltado especificamente à questão da preservação Unidos. São Paulo: Fundação Memorial da América
do patrimônio cultural. O resultado é que, de lá pra Latina : Fondo de Cultura Económica, 1994.
cá, em pouco menos de quatro anos, vários dentre ANDRADE JUNIOR, Nivaldo Vieira de. A Influência
os imóveis cujo tombamento havia sido solicitado Italiana na Modernidade Baiana: o caráter público,
já desapareceram ou foram irreversivelmente urbano e monumental da arquitetura de Filinto
descaracterizados. Santoro. 19&20 - A revista eletrônica de
DezenoveVinte. Volume II, n.o 4, outubro de 2007.
Apenas nos últimos anos, o IPHAN e o IPAC Texto publicado no site: http://
começaram a implementar ações para a www.dezenovevinte.net/
preservação destes bens. O IPHAN tombou em AZEVEDO, Paulo Ormindo de. A arquitetura e o
2007 a Igreja de Nossa Senhora da Vitória, em urbanismo da nova burguesia baiana. JORDAN,
Salvador, edifício eclético de 1910 cujo tombamento Kátia Fraga et alli. De Villa Catharino a Museu
já havia sido proposto e negado em outras duas Rodin da Bahia 1912-2006: um palacete bahiano
ocasiões. O IPAC, por sua vez, acaba de realizar o e sua história. Salvador: Solisluna Design e Editora,
tombamento provisório de dois importantes 2006, pp. 58-81.
exemplares da arquitetura eclética em Salvador: o BREITENBACH, Sílvia Becher. A Presença da
edifício da Associação de Empregados do Arquitetura Neocolonial na Cidade de Salvador:
Comércio, projeto do arquiteto italiano Rossi apreciação do movimento enquanto contribuição
Baptista executado entre 1914 e 1917, e o Palácio para o repertório arquitetônico de Salvador (1920-
da Aclamação, antiga residência do Governador do 1940). Dissertação de Mestrado em Arquitetura e
Estado construída entre 1913 e 1918, projeto do Urbanismo. Salvador: FAUFBA, 2005.
engenheiro italiano Filinto Santoro. BRUAND, Yves. Arquitetura Contemporânea no
Brasil. São Paulo: Perspectiva, 1981.
O IPAC começa a dar sinais, também, de que BUENO, Alexei; SILVA TELLES, Augusto da;
finalmente acatará a sugestão do Conselho CAVALCANTI, Lauro. O Patrimônio Construído:
Consultivo do IPHAN e dará início aos as 100 mais belas edificações do Brasil. Rio de
procedimentos necessários para o tombamento Janeiro: Capivara, 2002.
pelo Estado do Conjunto Arquitetônico do Corredor CARDOSO, Ceila. Arquitetura e Indústria: a
da Vitória. Além disso, o IPHAN e o IPAC estão Península de Itapagipe como sítio industrial da
iniciando a elaboração de estudos com o objetivo Salvador Moderna (1892-1947). Dissertação de
de garantir a preservação de um conjunto de Mestrado em Arquitetura e Urbanismo. São Carlos:
construções ecléticas erguidas no bairro do EESC/USP, 2004.
Comércio nas primeiras décadas do século XX em CARDOSO, Luis Antonio Fernandes. Entre Vilas
Salvador. Devido ao processo de gentrificação da e Avenidas: Habitação Proletária em Salvador na
área que ora se inicia e à aprovação do novo Plano Primeira Republica. Dissertação de Mestrado em
Diretor de Desenvolvimento Urbano de Salvador, Arquitetura e Urbanismo. Salvador: FAUFBA, 1991.
no último dia 20 de fevereiro de 2008, que permite CARRAZZONI, Maria Elisa (coord.). Guia dos
que as construções ecléticas de quatro ou cinco Bens Tombados. Rio de Janeiro: Expressão e
pavimentos sejam demolidas para dar lugar a torres Cultura, 1980.

49
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

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Rediscutindo a arquitetura brasileira do século XIX: os preconceitos modernos e recente revalorização

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São Paulo: Ed. UNESP; IMESP; CONDEPHAAT; 1
Arquiteto e urbanista, mestre e doutorando em Arquitetura
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SALGADO, Ivone. A Presença do Neopalladianismo e Urbanismo do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico
Inglês na Praça do Comércio em Salvador. Nacional (IPHAN), lotado na 7ª Superintendência Regional
Cadernos PPG-AU/FAUFBA, n. 4, pp. 89-98, 2005. em Salvador. Professor do curso de Arquitetura e
SAMPAIO, Consuelo Novais. 50 Anos de Urbanismo da UFBA e do curso de História com
Urbanização: Salvador da Bahia no Século XIX. Concentração em Patrimônio Cultural da Universidade
Rio de Janeiro: Versal, 2005. Católica do Salvador (UCSal).
2
Tendo em vista as diversas denominações que o órgão
SANCHES, Maria Ligia Fortes. Construções de
federal responsável pela identificação, documentação,
Paulo Ferreira Santos: a fundação de uma preservação e divulgação do patrimônio cultural brasileiro
historiografia da arquitetura e urbanismo no Brasil. teve desde a sua criação, em 1937, como Serviço do
Tese de Doutorado em História Social da Cultura. Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN), optamos
Rio de Janeiro: PUC-RJ, 2005. por utilizar a sigla atual IPHAN (Instituto do Patrimônio
SANTOS, Paulo F. Quatro Séculos de Histórico e Artístico Nacional), independentemente do
Arquitetura. Rio de Janeiro: IAB, 1981. período abordado.
3
Neste último caso, são basicamente edifícios públicos,
SECRETARIA DE CULTURA E TURISMO.
muitos deles ligados diretamente ao Governo Imperial: o
Inventário de Proteção do Acervo Cultural da Paço de São Cristóvão na Quinta da Boa Vista (cuja feição
Bahia. Salvador: Secretaria de Cultura e Turismo, neoclássica é resultado de sucessivas intervenções
s/d (CD-Rom). realizadas por Pézérat e Porto-Alegre a partir de 1828), o
SEGAWA, Hugo. Arquitetura na Era Vargas: o Palácio do Itamaraty (projeto de Rebello, 1851-1855), a
avesso da unidade pretendida. In: PESSOA, José; antiga Casa da Moeda (projeto do Eng. Teodoro Antônio
VASCONCELLOS, Eduardo; REIS, Elisabete; de Oliveira, 1858-1868) e o Hospital da Santa Casa de
Misericórdia (reformado por Monteiro em 1840 e ampliada
LOBO, Maria (org.). Moderno e Nacional. Niterói:
por Rebello em 1865). Outros dois imóveis neoclássicos,
UFF, 2006, pp. 83-99. que serviram como residência de personalidades do
SILVA, Elane Santana da. Fábrica de Tecidos São período, são tombados devido aos seus valores
Brás: um patrimônio de Plataforma. Trabalho de arquitetônicos: a Casa da Marquesa de Santos (que
Conclusão do Curso de Graduação em História com recebeu a atual feição neoclássica através de uma reforma
Habilitação em Patrimônio Cultural. Salvador: IFCH/ realizada por Pézérat entre 1824 e 1827) e a Casa de Ruy
UCSAL, 2007. Barbosa (1850).
4
Além das Igrejas de Nossa Senhora da Vitória e de Nossa
SILVA, Geraldo Gomes da. Arquitetura do Ferro
Senhora da Ajuda, o Processo 0122-T-38 incluía o
no Brasil. São Paulo: Nobel, 1986. Seminário de São Dâmaso, a Igreja e Convento de Santa
SOUSA, Alberto. Arquitetura Neoclássica Teresa, a Capela de São Pedro Gonçalves do Corpo Santo,
Brasileira: um reexame. São Paulo: Pini, 1994. a Igreja de Nossa Senhora do Pilar, a Igreja de Nossa
________. O Classicismo Arquitetônico no Senhora da Palma, a Igreja de Nossa Senhora do Rosário
Recife Imperial. João Pessoa: Ed. UFPB; dos Pretos, o Palácio do Arcebispado, a Igreja de Nossa
Salvador: Fundação João Fernandes da Cunha, Senhora da Conceição da Praia, a Igreja de Santo Antônio
da Barra, a Igreja do Santíssimo Sacramento da Rua do
2000.
Passo, a Igreja de Santo Antônio da Mouraria, a Igreja de
TAFURI, Manfredo. Teorias e História da Nossa Senhora da Boa Viagem, o Oratório da Cruz do
Arquitectura. Lisboa: Editorial Presença, 1988. Pascoal e a Igreja Basílica de Nosso Senhor do Bonfim,
TAUNAY, Afonso d‘Escragnolle. A Missão Artística além da Igreja do Seminário de Belém em Cachoeira, único
de 1816. Rio de Janeiro: Diretoria do Patrimônio imóvel não localizado em Salvador.
5
Histórico e Artístico Nacional, 1956. São eles: a Igreja Catedral de Nossa Senhora da Graça
VACA CEVALLOS, Mariana. Igreja da Ajuda – (segunda metade do século XVIII), a Igreja e Convento de
Nossa Senhora do Carmo (reconstruída por Landi em
Salvador, Brasil – Proyecto de Conservación y

51
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

1766), a Igreja de São João Batista (1771-1774) e a Igreja sua sobrevivência era condenada por todas as regras do
e Convento de Nossa Senhora das Mercês (1754-1777) urbanismo e da estética.” (apud COELHO, 1992: 43).
6 8
Dentre eles, o arquiteto Jorge Moreira e o paisagista Cemitério de Nossa Senhora do Pilar (1799), Palácio da
Roberto Burle Marx, além dos arquitetos e professores de Associação Comercial (1814-1816), antiga Alfândega
História da Arquitetura Paulo F. Santos e Wladimir Alves (1861), Asilo D. Pedro II (construção da primeira metade
de Souza. do século XIX, reformada entre 1878 e 1887) e antigo Hotel
7
Veja-se, por exemplo, o Editorial do Jornal “O Globo”, de Colonial (1846).
9
11 de outubro de 1975: “Por decisão do Presidente da Sobrado azulejado à Praça Cairú (final do século XIX),
República, o Patrimônio da União já está autorizado a Casa dos Carvalho (década de 1890), Solar Amado Bahia
providenciar a demolição do Palácio Monroe. Foi, portanto, (1901) e Igreja de Nossa Senhora da Vitória (reformada
vitoriosa uma campanha deste jornal, que há muito se em 1910).
10
empenhava pelo desaparecimento do monstrengo Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia, criado
arquitetônico da Cinelândia. De fato, abandonado por seus em 1967 como Fundação do Patrimônio Artístico e Cultural
inquilinos federais o Monroe não tinha qualquer função e da Bahia.

52
É notória a diferença entre a arquitetura e as artes
plásticas nas décadas iniciais do século XX.
Enquanto a arquitetura rapidamente caminha para
a consagração, nos anos 30 e 40, como um
movimento radicalmente moderno e com
reconhecimento internacional, as artes plásticas
parecem permanecer numa “fase de transição”, em
que predomina a indecisão dos artistas em relação
ao moderno. Mesmo depois da Semana de 22, o
modernismo fica sempre circunscrito ao território
da figuração, além de sofrer, como tem sido
apontado, uma “regressão” formal do Segundo
Modernismo em relação ao Primeiro.1 Assim, só
nos anos 50 as artes plásticas conseguirão, com o
concretismo, o neoconcretismo e o informalismo,
atingir aquilo que a arquitetura já tinha formulado
bem antes.

Vários autores têm evidenciado as limitações da


historiografia da arte modernista, que destacou o
movimento paulista - ligado à Semana de 22 e aos
subseqüentes Pau-Brasil e Antropofagia -, como o
momento fundador da modernidade no país2. Para
eles, seus efeitos negativos foram, de um lado,
acoplar a idéia de moderno ao nacionalismo e, de
outro, ignorar toda uma série de experiências
modernas anteriores – geralmente chamadas de
a questão do moderno na arte e no ensino da “obras de transição” ou então “pré-modernas”3.
arte na passagem do século xix para o século xx
Esta comunicação pretende refletir sobre a
sonia gomes pereira * arquitetura e as artes plásticas na passagem dos
séculos XIX e XX, enfocando as suas diferenças
nos campos cultural e estético, que aqui irão ser
apresentadas de forma destacada, deixando claro,
no entanto, que na realidade ambiente cultural e
pensamento estético estiveram sempre
necessariamente interligados.

A Revitalização do Campo Profissional dos


Arquitetos

O Curso de Arquitetura da antiga Academia Imperial


de Belas Artes terminara o século XIX em grande
parte esvaziado, com poucos ou nenhum aluno,
esmagado pelo enorme prestígio da Escola
Politécnica e dos engenheiros nas discussões
sobre os problemas urbanos e sanitários da cidade
do Rio de Janeiro. As críticas eram muitas, algumas
bastante radicais, como a do engenheiro Luiz
Schneider, que propunha inclusive a sua extinção.
Na última Exposição Geral do Império em 1884,
na Seção de Arquitetura, só houve dois expositores
nesta área: o mesmo Luiz Schneider e Francisco
de Azevedo Monteiro Caminhoá, que se formara
na Bahia e depois ingressara na École des Beaux-
Arts em Paris 4. Entre 1890 e 1900, já na nova
Escola Nacional de Belas Artes, só se formaram
três arquitetos5.

53
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

Essa situação, no entanto, foi revertida no início natureza, agora o uso de formas puras. Alan
do século XX, com a grande reforma urbana de Colquhoun 12 considera Le Corbusier o maior
modernização da cidade, que se iniciou com o representante da corrente moderna chamada de
Prefeito Pereira Passos (1902/1906)6 e continuou vanguarda clássica e ressalta as contradições de
com os prefeitos seguintes, tanto na seu pensamento, na tentativa de conciliação entre
complementação das obras na região central - elementos historicistas e clássicos com os novos
como no desmonte do Morro do Castelo em 1922 - fenômenos decorrentes da produção industrial
, quanto na ocupação e planejamento dos novos moderna, enfim, com uma ordem pragmática e
bairros à beira-mar, na zona sul da cidade – em funcional.
que a importância política da questão da
urbanização fica evidenciada pela presença maciça O pensamento de Lúcio Costa, da mesma forma,
da engenharia na gestão da capital 7. revela essas mesmas contradições: repúdio ao
ecletismo, mas a manutenção do evolucionismo e
A grande demanda de obras revitalizou o campo do idealismo; repúdio ao neo-colonial, mas a
profissional, dinamizando as discussões em torno eleição de certo tipo de formas coloniais como o
da definição de atribuições entre arquitetos e padrão nacional a ser tomado como referência 13.
engenheiros, motivando a criação de associações
de classes8, a edição de revistas9 e a organização Logicamente esses aspectos de continuidade
de congressos10. Incentivou, também, a vinda de ideológica e mesmo na prática projetual14 são mais
profissionais estrangeiros, como Morales de los evidentes às gerações atuais. Na época, em termos
Rios pai, Antônio Jannuzzi, Antonio Virzi, mais tarde de formas, havia certamente uma mudança
Baumgarten, entre outros. substancial, uma ruptura com os hábitos visuais,
que explicam a rejeição e a polêmica que
A polaridade e também as trocas entre arquitetos desencadearam. Nesse conflito, os arquitetos
e engenheiros favoreceram a questão do ensino. entraram muito melhor instrumentalizados. Em
O professor Ernesto Araújo Viana, por exemplo, 1933, Frank Lloyd Wright veio ao Rio para fazer
era engenheiro formado pela Politécnica, editor da duas conferências no I Salão Internacional de
Revista dos Construtores e professor da ENBA, Arquitetura Tropical. Em 1935, houve a visita de
com uma atuação destacada nas discussões Le Corbusier, quando fez o projeto inicial do
teóricas e historiográficas. Sendo responsável pela Ministério da Educação e Saúde. Em 1936,
disciplina História da Arquitetura e Legislação retornou para examinar os desdobramentos do
Especial, Araújo Viana foi um dos pioneiros no projeto com a equipe brasileira (Lúcio Costa, Oscar
estudo da arquitetura colonial, bem antes do Niemeyer, Afonso Eduardo Reidy e Ernani Mendes
movimento neocolonial, pois o programa de sua Vasconcelos), proferindo seis conferências. Entre
disciplina na ENBA, em 1897, já incluía a 1936 e 1938, o edifício da Associação Brasileira
“Arquitetura no Brasil desde os tempos coloniais”11. de Imprensa, projeto de Milton e Marcelo Roberto,
foi construído.
A Adesão Mais Radical da Arquitetura ao
Movimento Moderno Enfim, nos anos 1930, os arquitetos tinham
conseguido implantar essa nova arquitetura em
A trajetória da arquitetura, nessas primeiras projetos de grande porte, que trouxeram visibilidade
décadas do século XX, passou pelo ecletismo e e prestígio imediatos. Se a tentativa de reforma de
pelo neocolonial, até chegar ao movimento ensino, feita por Lúcio Costa em 1930/1931,
moderno. O discurso moderno de Lúcio Costa – fracassou naquele momento, o sucesso gradativo
arquiteto formado pela Escola, seu diretor em 1930/ da arquitetura moderna iria tornar irreversível o
1931 e organizador do chamado Salão rompimento com a ENBA; em 1945, o Curso de
Revolucionário em 1931 – segue, como sabemos, Arquitetura se separa da Escola, tornando-se a
o pensamento de Le Corbusier. Faculdade Nacional de Arquitetura 15.
Uma crítica de arquitetura mais recente tem Menos Mobilização e Efervescência no Campo
evidenciado os elementos de permanência e das Artes Plásticas
ruptura no pensamento corbusiano. O passado e
a tradição rejeitados dizem respeito, sobretudo, às Passando para o campo da pintura e da escultura,
técnicas construtivas e ao vocabulário estilístico. fica evidente que eles não foram expostos, nessa
Mas vários elementos do passado continuam época, à mesma efervescência. O mercado de arte
atuando no pensamento corbusiano: a idéia de continuava ainda muito restrito, o colecionismo
evolução e de espírito de época e a crença numa incipiente e os espaços de divulgação poucos -
ordem ideal – antes a imitação da ordem da apenas algumas galerias particulares16. De caráter

54
a questão do moderno na passagem do século xix para o século xx

oficial, existia apenas a Pinacoteca da ENBA - que Biblioteca Nacional. No entanto, os marcos da
conservava a coleção acumulada pela Academia autoridade republicana ou custaram a ser
desde 1816 –, dividida em 1937, passando grande construídos - como as Assembléias só edificadas
parte do acervo a constituir o Museu Nacional de na década de 1920 - ou foram “improvisados” –
Belas Artes. O espaço que permitia maior como o Senado no Palácio Monroe - transposição
visibilidade aos artistas da época era certamente a do prédio premiado na Exposição em Saint-Louis
Exposição Geral de Belas Artes, depois chamado nos Estados Unidos -; e o Palácio Presidencial –
de Salão 17. Essa exigüidade do campo artístico instalado em antigas residências reaproveitadas,
explica, em grande parte, o fechamento ideológico primeiro no Palácio Itamarati - obra dos anos 1850
de boa parte da Escola, que controlava tanto o - e depois no Catete – construção dos anos 186019.
ensino quanto o Salão. Muitas disputas, mais do
que diferenças estéticas, eram, sobretudo, Além da modernização das cidades, a construção
competição por um território profissional acanhado. da imagem da jovem República beneficiou também
Assim, posicionar-se com os acadêmicos ou com a escultura: estátuas e grupos escultóricos são
os modernos nem sempre representa opção encomendados para ocupar as novas praças, como
estética, mas muitas vezes apenas adesão a a do General Osório – uma estatuamania em escala
grupos profissionais em luta num território artístico menor20 . Não me parece gratuita a escolha do
reduzido. escultor Rodolfo Bernardelli para diretor da Escola
de 1890 a 1915, apesar da grande polêmica em
Tudo, enfim, confluía para que as artes plásticas torno do futuro da Academia nos anos 1880 –
sofressem, muito menos do que a arquitetura, conhecida como o conflito entre modernos e
naquele momento, a tensão característica de um positivistas - ter sido um movimento sobretudo dos
campo profissional com grande vitalidade e pintores.
dinamismo. Assim, as diferenças e as dissidências
entre os artistas ficaram mais em termos individuais A pintura histórica continua a ser encomendada,
ou em pequenos grupos, não tendo a força de sobretudo pelas províncias, interessadas no
mobilização dos arquitetos nessa mesma época. registro de suas próximas narrativas regionais.
Nesse campo, é interessante observar que o pintor
A Mudança no Patronato no Estado na Primeira mais agraciado com encomendas do gênero neste
República período foi Antônio Parreiras, como em Prisão de
Tiradentes. Parreiras fez uma carreira
Acrescente-se a isso a diferença do patronato oficial independente, isolado em seu ateliê em Niterói,
entre o Império e a Primeira República. No Império, sempre crítico à Escola, como antes à Academia,
sabemos que a Academia foi uma peça importante que abandonara em 1884, acompanhando o mestre
na construção do imaginário da nação, gerando Georg Grimm21.
uma série de encomendas de grande porte, que
absorveram pintores, como Pedro Américo e Vitor No início do século XX, os artistas mais ligados à
Meireles, e escultores, como Francisco Chaves Escola - como Amoedo, Modesto Brocos, Visconti,
Pinheiro18. Henrique Bernardelli - receberam também
encomendas oficiais, mas destaca-se aí a pintura
É interessante observar que a República, logo decorativa para os edifícios públicos de cunho
depois de proclamada, apressou-se em edificar os cultural recém-construídos – como o Teatro
signos demonstrativos da modernidade em termos Municipal e a Biblioteca Nacional. Trata-se, em
urbanos. Há inúmeros exemplos de projetos de geral, de pintura alegórica e, em certos casos,
modernização de cidades – Rio de Janeiro, São refere-se diretamente a signos da modernidade,
Paulo, Belém, Manaus -, e mesmo da construção como é o caso das pinturas de Eliseu Visconti na
de uma cidade nova, totalmente em moldes Biblioteca Nacional: O Progresso e Instrução ou A
modernos – como Belo Horizonte, projeto do Solidariedade Humana22.
engenheiro Aarão Reis. No caso específico da
capital, é importante destacar que a modernização A Pintura Brasileira da Passagem do Século e a
empreendida no Rio de Janeiro de 1902 e 1906 Desconstrução da Tradição Clássica
dotou a cidade de um porto moderno, avenidas
largas, praças ajardinadas e, sobretudo, de uma Assim, vivendo um campo artístico ainda restrito e
arquitetura típica da sociedade burguesa: prédios em grande parte amarrado à demanda do Estado,
de lojas e escritórios e monumentos dedicados à o processo de modernização da pintura deu-se de
cultura. Basta lembrar que na recém-aberta Avenida forma peculiar. A desconstrução da tradição
Central as construções mais destacadas eram a clássica – pedra de toque na passagem para a
ENBA (hoje MNBA), o Teatro Municipal e a modernidade – foi absorvida parcialmente pelo

55
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

público e pelos próprios artistas naquelas primeiras o campo propriamente pictórico da composição.
décadas do século XX. Se a pintura devia narrar uma história - que
necessariamente compreende uma seqüência
Para tentar entender melhor este processo, é temporal e um dinamismo dramático -, tinha de
preciso analisar alguns aspectos da tradição fazê-lo no espaço imóvel do quadro e dispondo
clássica e de seu desmantelamento no século XIX também de formas imóveis. Como passar para o
na Europa. espectador a noção de tempo e de emoção num
meio estático por natureza? Os movimentos do
O primeiro deles diz respeito à concepção tempo e da alma só poderiam ser mostrados
metafísica do mundo e da arte. Sabemos que a através dos movimentos dos corpos na pintura.
reestruturação do classicismo no Renascimento Sem fazer uso da palavra, nem mesmo sob a
apoiava-se na compreensão da arte regida pelos forma da legenda, o espectador deveria
mesmos princípios que ordenavam o mundo. compreender a pintura, reconhecer os
Portanto, a imitação da natureza significa personagens e emocionar-se com a cena. O pintor
essencialmente seguir o mesmo padrão de um precisava, portanto, ser muito hábil na construção
mundo concebido de forma regular, ordenada e dos movimentos corporais, da gestualidade e da
harmoniosa. Essa feição estrutural do classicismo expressão facial de seus personagens. Baxandall
começa a ser demolida a partir do século XVIII e insiste na importância da expressão corporal e da
por todo o XIX, com o historicismo e o gestualidade, fazendo a analogia entre a pintura,
evolucionismo, que questionam aqueles valores o teatro e a dança25.
eternos e imutáveis, substituindo-os por padrões
relativos, que mudavam conforme o tempo e o É interessante observar que no cubismo é
espaço. justamente a composição albertiana que é
destruída. Não é gratuito que nas pinturas de
O segundo aspecto importante a ser destacado Picasso e Braque de 1907 a correlação entre
refere-se à questão dos gêneros considerados membros e corpos, recomendada por Alberti, seja
nobres na tradição pictórica desde o Renascimento. esfacelada e essas partes espalhem-se pelo
Ligada ao humanismo e à noção do decorum, a quadro completamente autônomas. Além disso,
pintura devia dedicar-se, prioritariamente, aos a introdução das palavras dentro do campo da
temas edificantes. Os gêneros menores – pintura – não como um acessório complementar
paisagem, natureza-morta, cenas de gênero – à trama narrativa, como poderia acontecer no
existiam, naturalmente, mas as academias sempre esquema de Alberti26, mas como parte substantiva
consideraram superiores a pintura histórica e o de sua construção – é uma espécie de prova do
retrato. Também esse aspecto da tradição pictórica fracasso da pintura dentro da concepção
do Renascimento foi criticado e demolido ao longo albertiana. Assim, o problema que se coloca para
do século XIX, com a crescente importância da o pintor após o Cubismo é, sobretudo, o da
paisagem e dos temas do cotidiano. supressão da narração.
Um terceiro ponto da tradição clássica deve ser Se analisarmos a obra da chamada “geração de
ressaltado aqui: a função narrativa da pintura. transição” - Visconti, Belmiro de Almeida, Amoedo,
Alberti23 claramente destacava que a função da Henrique Bernardelli, Modesto Brocos, Abigail de
pintura era narrar uma história. Com esse objetivo, Andrade, os irmãos Thimóteo da Costa, os irmãos
recomendava que a composição devia organizar- Carlos e Rodolfo Chambelland, Lucílio e Georgina
se segundo a relação hierarquizada de alguns de Albuquerque, Navarro da Costa, Marques
elementos: superfície plana, membro, corpo e Júnior, Henrique Cavalleiro entre outros – em
quadro – acompanhando a organização da relação ao processo de desconstrução da tradição
composição literária, segundo os princípios da renascentista, veremos que os dois primeiros
Retórica: palavra, grupo, proposição e período 24. aspectos – a quebra com os cânones clássicos e
Essa analogia que Alberti estabeleceu entre a a liberalização em relação aos gêneros – foram
pintura e a poesia é crucial para entender todo o absorvidos no Brasil sem grandes problemas. No
desenvolvimento da pintura italiana – e mesmo entanto, o mesmo não se pode dizer quanto ao
européia - posterior e também a organização das terceiro aspecto – a função narrativa. Esta terá
academias e suas práticas de ensino. uma longa duração na pintura até a década de
40, evidenciando a dificuldade, tanto dos artistas
A relação entre poesia e pintura não foi inventada
quanto do público, em eliminá-la.
por Alberti: vinha dos antigos e foi claramente
explicitada por retóricos, como Cícero e Quintiliano.
A novidade de Alberti foi trazer essa fórmula para

56
a questão do moderno na passagem do século xix para o século xx

A Pintura Brasileira da Passagem do Século e a circunscrita ao nacionalismo, como é o caso de


Permanência da Narração Machado de Assis.

Sabemos que no século XIX a produção Os críticos e os teóricos da arte – desde Gonzaga
historiográfica, os relatos de viagem e a literatura Duque, passando por Mário e Oswald de Andrade
romântica, entre outros, constituíam a grande no Primeiro Modernismo, ou então Manuel Bandeira
narração sobre o país que se estava constituindo durante o Salão de 31 29 , só para citar alguns
como nação. Certamente a pintura, a escultura e a exemplos – são sempre poetas e literatos, que
música contribuíram nesta construção do opinam sobre as artes plásticas, construindo um
imaginário nacional, mas a literatura teve sempre discurso no lugar dos artistas visuais.
um peso e um apelo intelectuais muito maiores,
numa terra de bacharéis e de longa tradição A narração, portanto, fosse ela de cunho
retórica. nacionalista ou não, tinha um peso enorme no
campo intelectual do Brasil no início do século XX.
Mas essa narração não se esgota nesse período; Para a pintura brasileira, amarrada ainda à poesia,
ela avança pelas primeiras décadas do século XX, à literatura e à retórica, o moderno significava,
em que são novamente os escritores que tomam a sobretudo, a modernização ou a atualização da
primazia das discussões intelectuais, como Silvo narração, e não, propriamente, a sua eliminação.
Romero, Euclides da Cunha, Graça Aranha, os Acredito que esta seja uma chave interpretativa
modernistas e as gerações de 30 e 40. eficiente para se analisar a pintura brasileira das
primeiras décadas do século XX30.
É verdade que boa parte da produção intelectual
do período apresenta uma feição bastante A Pintura Brasileira da Passagem do Século e o
específica: ampliar o conhecimento do Brasil para Ecletismo e a Modernização Formal
além do discurso oficial, das doutrinas européias e
das idéias da elite plantada à beira-mar. A vontade Vários autores reconhecem que houve experiências
de conhecer o sertão e o interior é freqüente nos modernas antes da Semana de 22 entre os pintores
escritores deste período, começando com Euclides da chamada “geração de transição”, sobretudo nas
da Cunha, passando pelo Graça Aranha de Estética obras independentes, isto é, aquelas que fizeram
da Vida e é a pedra de toque do pensamento de por conta própria ou nas encomendas em que
Mário de Andrade, para citar apenas alguns tiveram maior liberdade de ação. Há também alguns
exemplos27. autores que reconhecem as experiências modernas
desses artistas e as diferenciam dos modernistas
Além disso, é preciso verificar que toda a discussão paulistas, sobretudo nesse embate entre o
das raças, com o aparecimento de um pensamento internacional e o nacional31.
antropológico, que passava a ver positivamente a
mistura das raças e desenhava o projeto de um Se até o período anterior as artes plásticas
futuro promissor para a nação – tudo isso estava brasileiras tinham-se mantido dentro dos limites do
sendo tecido, a partir dessa época, por neoclassicismo e do romantismo, agora, entre as
historiadores, antropólogos, literatos. Euclides da décadas de 1880 e 1920, houve realmente entre
Cunha e Roquette Pinto, por exemplo, vão os artistas brasileiros uma ânsia de atualização:
estabelecer o sertanejo como o tipo étnico mais sobretudo a pintura absorveu concomitantemente
representativo do Brasil, apresentado como um todos os demais movimentos, que a Europa e em
povo forte e trabalhador. No Museu Nacional, por especial a França haviam formulado ao longo do
exemplo, a partir de 1890, foi feita uma século XIX - o realismo, o impressionismo e o
reorganização interna, criando uma seção simbolismo – e no início do XX as primeiras
específica para Antropologia, Etnologia e vanguardas históricas – sobretudo o fovismo e o
Arqueologia, que até então fizera parte da Zoologia expressionismo.
Geral e Aplicada, a Anatomia Comparada e a
Paleontologia Animal. Essa reordenação significou Salvo algumas poucas exceções, a produção
o início efetivo do estudo do homem primitivo no artística desta geração é muito heterogênea, tanto
país. Reflete nitidamente uma mudança nas formal quanto tematicamente. Os artistas - como
concepções científicas da instituição28. Eliseu Visconti, Rodolfo Amoedo, Belmiro de
Almeida, Henrique Bernardelli entre outros - não
No entanto, é importante frisar que, embora a se filiam estritamente a um ou outro movimento;
preocupação com o Brasil seja intensa neste ao contrário, utilizam diversos estilos,
período, nem toda a literatura do período fica movimentando-se com desenvoltura num largo
campo de possibilidades de linguagem.

57
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

Tanto na Europa quanto no Brasil, a versatilidade A tradicional distância entre a obra e o espectador
estilística dos artistas deste período tem origem é rompida por essa tomada íntima, que permite o
num fato, que parece estar sendo desprezado pelos compartilhamento e a identificação entre artista e
estudiosos: a importância das tipologias, isto é, as público. Esse grupo traz, portanto, grandes
soluções de compromisso entre tema e forma, que inovações temáticas.
eram sugeridas pelos grandes mestres e que
passaram a constituir a tradição artística ocidental. Vejamos agora como essas obras se apresentam
Conforme foi discutido anteriormente, o grande do ponto de vista formal. Em pelo menos três delas
objetivo da pintura desde o Renascimento era – Estudo de Mulher , Descanso do Modelo e Arrufos
“contar história”, isto é, a sua função narrativa. -, podemos observar um tratamento plástico
Dessa forma, cada tema apresentava um caráter semelhante: a composição é estruturada
específico, com suas exigências iconográficas e a primordialmente pelo desenho e os motivos
necessidade de construção de um clima emocional principais da temática se destacam, mas os
adequado à história narrada. elementos secundários – colchas, almofadas, papel
de parede, objetos de decoração – recebem um
Assim, do ponto de vista da prática artística – e o tratamento cromático detalhado. É como se o olhar
ensino acadêmico estava particularmente atento a do artista pousasse sobre cada um desses objetos
esse fato – as escolhas dos artistas eram muito com enorme cuidado, fazendo desses elementos
mais tipológicas do que estilísticas. Isto explica por parte constitutiva da composição. Ateliê do Artista,
que os artistas dessa geração apresentam esse até mesmo porque não apresenta nenhuma figura
comportamento eclético: o estilo ou a tendência humana, exacerba essa exposição apaixonada de
formal era escolhido pela sua adequação ao tema objetos, em que a narração é suspensa, ficando o
e à função, apoiando-se num repertório de conteúdo expresso na própria aparência da pintura.
tipologias compositivas sugeridas pela tradição Nessa obra, apesar do desenho ter também o
pictórica européia ou pelos modelos modernos que caráter estrutural, a cor está muito mais
estavam sendo incorporados à cultura visual. fragmentada – facilitada certamente, nesse caso,
pela técnica da aquarela sobre cartão. A tela
Análise de Algumas Obras da Pintura Brasileira Interior de ateliê apresenta a mesma intimidade dos
da Passagem do Século quadros anteriores, mas há uma diferença
remarcável no tratamento plástico: a composição
Para analisar melhor o ecletismo e a modernização é basicamente construída por manchas coloridas,
formais e a predominância da narração nesses que sugerem o espaço, as figuras humanas e os
artistas, vamos analisar algumas obras. objetos, sem defini-los com precisão.
No grupo que se segue, salta de imediato aos olhos Todas essas obras revelam a diversidade da
a mudança na temática – tirada do cotidiano, com produção ligada à Academia - tanto na temática,
o evidente abandono dos chamados temas nobres. quanto no tratamento plástico, assim como na
Mesmo no caso de um estudo de modelo vivo, postura dos artistas – e evidenciam que a relação
como Estudo de Mulher, esse tradicional exercício entre tradição e modernidade ocorre no próprio
na formação do artista acadêmico toma uma feição campo da arte acadêmica. Assim, verificamos, de
nova, pela ambientação contemporânea. O um lado, a longa duração de estilos e temáticas
interesse pelo trabalho do artista é evidente na mais tradicionais e sua convivência até certo ponto
forma descritiva como são apresentados os pacífica com linguagens e assuntos mais
interiores do ateliê: Ateliê do Artista, Descanso do atualizados. De outro lado, a versatilidade dos
Modelo e Interior de ateliê nos revelam ambientes artistas que exploram essas diversas linguagens,
incorporados ao gosto burguês – pelo mobiliário e de acordo com o caráter e a função das pinturas.
demais acessórios organizados como espaços de
convívio social -, mas denotam também, por um Vamos examinar agora alguns retratos. Os três
certo desalinho e a presença de objetos tais como retratos seguintes estão certamente ligados ao
instrumentos musicais, que se trata de um lugar realismo, mas eles são um bom exemplo de como
em que a liberdade do artista e o gosto pela arte essas definições estilísticas encobrem muitas
são primordiais. O mesmo interesse pela descrição nuanças, pois os três revelam diferenças
minuciosa dos interiores aparece em relação à vida importantes. A obra de Modesto Brocos, Retrato
doméstica – chegando-se até a cenas de briga de do escritor Artur Azevedo, e a de Rodolfo Amoedo,
um casal, como em Arrufos. Nada aqui ecoa da Retrato de João Timóteo da Costa, apresentam o
idealização e da retórica tradicional das gerações retratado em seu ofício e ambiente de trabalho,
anteriores. O realismo abriu caminho para a vida mas, enquanto Amoedo detalha o cenário,
comum e derrama sobre ela um olhar aproximado. descrevendo os objetos que compõem o ateliê,

58
a questão do moderno na passagem do século xix para o século xx

Modesto Brocos faz um fundo impreciso e próximo, Mas há, entre as duas, uma diferença no caráter
concentrando toda a atenção do espectador no do tema. Enquanto Rodolfo Amoedo registra uma
personagem, na mesa e nos objetos próprios à cena da sociedade burguesa, Almeida Júnior retrata
escrita. Já Almeida Júnior, em seu Retrato do pintor quase que o mesmo assunto, mas passado no
Belmiro de Almeida, coloca o seu retratado na ambiente modesto de gente mais pobre. Esse lado
situação de modelo, cercado de volumes e panos da obra de Almeida Júnior, chamado pelos
que tornam o ambiente impreciso. Sobretudo o estudiosos de fase caipira, será muito elogiado no
grande painel branco ao fundo faz avançar o plano futuro pelos historiadores e críticos ligados ao
de fundo tornando exíguo o espaço da modernismo. Segundo eles, somente essa parte
representação. Essa apresentação solitária do da obra de Almeida Júnior se salvava da alienação
personagem, sem os atributos usuais que eram generalizada da arte do século XIX, só interessada
usados na retratística, a indefinição do cenário e a em copiar os modelos franceses. O problema dessa
tendência à planaridade são recursos muito abordagem é fazer da temática nacionalista o
utilizados entre os pintores independentes na parâmetro único para a análise das obras,
Europa e certamente indicam uma postura moderna desconhecendo as qualidades plásticas e o caráter
do artista nessa obra. inventivo de muitos artistas dessa época na
apropriação dos modelos europeus.
Vamos agora observar algumas paisagens. As duas
primeiras são construídas por manchas coloridas, A obra de Visconti, Recompensa de São Sebastião,
em que a textura irregular da camada pictórica é dá conta da absorção do simbolismo. Visconti fez
explorada como recurso plástico, reforçando a idéia várias obras nessa linguagem, tais como Gioventu
de espontaneidade no registro da paisagem e o (1898), Pedro Álvares Guiado pela Providência
prazer do artista com o aspecto material da pintura. (1899), Oréadas (1899) e a Recompensa de São
Mas há uma diferença importante entre elas. Sebastião (1898). Vários elementos nesta pintura
Enquanto Castagneto, em Trecho da Praia de São indicam a prática simbolista. Um deles é a diferença
Roque em Paquetá, prefere os tons mais suaves, de escala entre os dois personagens em primeiro
Navarro da Costa, em Marinha, acentua as cores, plano – São Sebastião e o anjo – e as duas
impregnando a paisagem de vibração, como faziam mulheres num plano recuado –, fugindo à
os pintores fovistas na França. perspectiva tradicional. Assim como a diferença na
representação da árvore em primeiro plano –
As duas paisagens seguintes referem-se ao mesmo bastante realista – e a paisagem de fundo – que
tema – a Praça Floriano – e foram pintadas em também escapa à perspectiva – apresentando-se
1922 e 1918 respectivamente. A primeira é de mais como um fundo plano decorado. Por último,
Osvaldo Teixeira e a segunda de Artur Timóteo da os detalhes em dourado – reminiscências da pintura
Costa. Enquanto as paisagens anteriores anterior ao Renascimento – que os simbolistas
dedicavam-se à celebração poética de uma apreciavam especialmente.
natureza mais intimista, essas duas paisagens
voltam-se para os novos espaços urbanos, cuja As duas obras seguintes, Dia de verão e Baile à
vibração a geometrização das formas e o fantasia exploram sobretudo as possibilidades
acerbamento das cores tentam captar. expressivas da cor. É o caso de Georgina de
Albuquerque. O caráter narrativo é minimizado,
É interessante completar este grupo de paisagens para dar lugar ao registro da luminosidade típica
com uma obra de Leo Putz, artista alemão de um dia de verão. Os tons mais claros do vestido
convidado por Lúcio Costa para dar aula de pintura da figura feminina e da cortina fazem contraponto
opcional na Escola, exposta no Salão de 31 na com a densa vegetação ao fundo, aumentando o
seção dos modernos. Pão de Açúcar de 1929 efeito de vibração das cores.
apresenta grande riqueza cromática, mas
certamente ainda está presa a uma representação Rodolfo Chambelland explora também a vibração
perspectivada. das cores, mas aproveita sobretudo a textura das
pinceladas para aumentar a sensação de
Passemos, agora, a um outro grupo de pinturas. movimento e animação. A tela trata do carnaval. É
Todas estas obras têm claras funções narrativas, no Rio de Janeiro moderno, depois de reformado
mas elas apresentam diferenças nítidas em sua pelo Prefeito Pereira Passos, que o carnaval
linguagem plástica. carioca se estruturou, passando das antigas
brincadeiras do entrudo para as formas mais
As duas primeiras, Más notícias e Recado difícil burguesas do baile à fantasia e do desfile de grupos
seguem o realismo, em sua temática do cotidiano carnavalescos. É exatamente esse aspecto peculiar
e o caráter descritivo do ambiente e dos objetos. à vida carioca que é tema de Rodolfo Chambelland

59
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

nessa obra. Mas o artista não tem nenhuma aproximam – como foi o caso do professor alemão
intenção documentária, pois nela importam muito Leo Putz - restando em comum uma apropriação
mais a sua percepção e o seu envolvimento com o predominantemente moderada das linguagens
tema. A obra não é mais uma mera transcrição modernas figurativas.
pictórica de um fato da vida cotidiana, pois está
impregnada da relação afetiva e da percepção que Referências bibliográficas
o artista mantém com o tema. O espaço pictórico
é representado com certa profundidade, mas a AGULHON, Maurice. Marianne au pouvoir:
indiferenciação do fundo concentra a atenção do l´imagerie et la symbolique républicaines de 1880
espectador nos volumes formados pelos foliões à 1914. Paris: Flammarion, 1989.
dançando. São figuras construídas por manchas ALBERTI, Leon Battista. On painting. New Haven:
coloridas e pulsantes, que fazem a pintura vibrar Yale University Press, 1975, 5 ed.
como o próprio baile de carnaval. Assim, como já BAXANDALL, Michael. Les humanistes à la
observou um crítico sobre essa obra, o movimento découverte de la composition en peinture: 1340-
está presente na obra, não apenas pelo tema 1450. Paris: Seuil, 1989.
carnavalesco, mas ele é experimentado também BAXANDALL, Michael. O olhar renascente: pintura
pela nervosidade latente da própria pintura. É, e experiência social na Itália da Renascença. Rio
portanto, a cor que serve de instrumento ao artista de Janeiro: Paz e Terra, 1991.
para o registro de suas sensações, explorando de BROCOS, Modesto. A retórica dos pintores. Rio
forma livre e espontânea as suas possibilidades de Janeiro, 1933.
de expressão. COCCHIARALE, Fernando & GEIGER, Anna Bella.
Abstracionismo geométrico e informal: a
Finalmente, é interessante comentar um exemplo vanguarda brasileira nos anos cinqüenta. Rio de
pouco comum entre nós, tanto nessa época, quanto Janeiro: FUNARTE/INAP, 1987.
nas décadas seguintes: Maternidade em Círculos, COLQUHOUN, Alan. Modernidade e tradição
de Belmiro de Almeida]. Esta obra inscreve as clássica. São Paulo: Cosac & Naify, 2004.
figuras humanas em superposições de círculos, que COSTA, João Cruz. Contribuição à história das
acabam quase diluindo o reconhecimento das idéias no Brasil. Rio de Janeiro: Editora José
figuras. Apesar de pouco comum, essa é uma das Olympio, 1956.
poucas experiências mais radicais com as DIAS, Carla da Costa. De sertaneja a folclórica:
linguagens mais avançadas do início do século XX a trajetória das coleções regionais do Museu
na Europa, que, a partir do cubismo, vai explorar Nacional - 1920/1950. Rio de Janeiro: PPGAV/EBA/
as linguagens abstratas. UFRJ, 2005. Tese de Doutorado.
DOCTORS, Márcio. Desvio para o moderno. In
Outros exemplos poderiam ser tomados, mas Cavalcanti, Lauro, org. Quando o Brasil era
acredito que os escolhidos acima já sejam moderno – artes plásticas no Rio de Janeiro 1905-
suficientes para tirar algumas conclusões. 1960. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2001, p. 30-59.
DU BOS, Jean-Baptiste (1670-1742). Reflexões
Primeiro, vista em conjunto, a produção da maioria críticas sobre a poesia e a pintura (1719).
desses artistas revela-se eclética, com obras nas Lichtenstein, Jacqueline, org. A pintura: textos
mais variadas linguagens artísticas da época – o essenciais. São Paulo: Editora 34, 2005, vol. 7.
que parece indicar que esses artistas, como os do GUIMARÃES, Manoel Luiz Salgado. Nação e
século XIX, escolham a linguagem pictórica de civilização nos trópicos: o Instituto Histórico e
acordo com a temática e, muitas vezes, Geográfico Brasileiro e o projeto de uma história
naturalmente, de acordo com as restrições próprias nacional. Estudos históricos: caminhos da
de uma encomenda. historiografia. São Paulo: Vértice, 1988.
HERKENHOFF, Paulo. Entre duas modernidades:
Segundo, o que parece estar quase sempre do Neoclassicismo ao Pós-impressionismo na
presente - até mesmo em algumas paisagens – é Coleção do Museu Nacional de Belas Artes.
o compromisso da pintura com a narração, embora Brasília: Centro Cultural Banco do Brasil, 2004.
ela se faça de uma forma mais atualizada. De uma Catálogo de exposição.
certa maneira, a ut pictura poesis (na pintura como LEITE, Reginaldo da Rocha. Uma interpretação
na poesia) dos antigos retóricos ainda se mantinha dos significados da obra alegórica de Antônio
viva, embora as regras de composição não fossem Parreiras: Visão de Tiradentes ou o Sonho da
mais respeitadas. Liberdade. Rio de Janeiro: PPGAV / EBA / UFRJ,
2004. Dissertação de Mestrado.
Finalmente, nesses conjuntos aqui analisados,
acadêmicos e modernos muitas vezes se

60
a questão do moderno na passagem do século xix para o século xx

LEVY, Ruth Nina Vieira Ferreira. A Exposição do Notas


Centenário e o meio arquitetônico carioca no
1
início dos anos 1920. Rio de Janeiro: PPGAV/ ZILIO (1982) e COCHIARALE & GEIGER (1987).
2
MARQUES, 2001: 17-29. HERKENHOFF, 2004: 10-11.
EBA/UFRJ, 2003. Tese de Doutoramento. 3
Uma crítica mais recente vem evidenciando as limitações
LUZ, Ângela Ancora da. Uma breve história dos que o atrelamento aos valores estéticos e nacionais trouxe
salões de arte. Rio de Janeiro: Caligrama, 2005. para o desenvolvimento da arte moderna no Brasil, assim
MARQUES, Luiz. 30 mestres da pintura no Brasil. como para a política de preservação do patrimônio.
São Paulo/Rio de Janeiro: MASP/MNBA, 2001. Sabemos que a geração ligada aos chamados 1º. e 2º.
Catálogo de exposição. Modernismos teve um posicionamento militante, tanto no
MOLINA, Ana Heloisa. Alegorias sobre o moderno: comprometimento com a identidade cultural quanto na
adesão a algumas utopias modernas. Na minha opinião, a
os quadros Solidariedade humana e O progresso
revisão historiográfica atual não deve ficar restrita, como
de Eliseu Visconti (1866-1944). Revista Estudos aparece ingenuamente em certos trabalhos, apenas ao
Ibero-Americanos, PUC-RS, v. XXXI, n. 2, reconhecimento da estratégia de afirmação de São Paulo
dezembro/2005, p. 105-128. no momento de sua escalada econômica e política na cena
PEREIRA, Sonia Gomes. A arte brasileira do nacional. Não se pode esquecer a estatura intelectual e
século XIX. Belo Horizonte: C/Arte, 2008. cultural de vários membros do movimento modernista,
PEREIRA, Sonia Gomes. A reforma urbana de pertencentes a uma geração freqüentemente memorável,
que construiu uma obra monumental em termos de
Pereira Passos e a construção da identidade
produção de conhecimento teórico e de política
carioca. Rio de Janeiro: Pós-graduação EBA/ institucional. A necessidade atual de desconstruir o saber
UFRJ, 1998. 2ª. ed. estabelecido para abrir novas frentes de reflexão e crítica
PEREIRA, Sonia Gomes. Desenho, composição, não deve nos levar a uma rejeição simplista da obra da
tipologia e tradição clássica – uma discussão sobre geração anterior. Trata-se, sobretudo, da constatação de
o ensino acadêmico no século 19. Revista Arte & que é sempre impossível ao homem conhecer tudo e que
Ensaios, PPGAV/EBA/UFRJ, n. 10, 2003, p. 40- cada geração consegue ver aquilo que está no vetor de
suas preocupações e necessidades mais importantes.
49. 4
PEREIRA, 2002: 93-177.
PEREIRA, Sonia Gomes. O ensino de arquitetura 5
UZEDA, 2006: 18.
e a trajetória dos alunos brasileiros na École des 6
PEREIRA, 1998.
Beaux-Arts em Paris no século XIX. Pereira, Sonia 7
Entre os prefeitos do então Distrito Federal, nas primeiras
Gomes, org. 185 Anos da Escola de Belas Artes. décadas do século XX, há uma grande incidência de
Rio de Janeiro: PPGAV/EBA/UFRJ, 2002, p. 93- engenheiros: Pereira Passos (1902-1906), Souza Aguiar
177. (1906-1909), Serzedelo Correa (1909-1910), Bento Ribeiro
(1910-1914), Rivadávia Correa (1914-1916), Azevedo
SANTOS, Afonso Carlos Marques dos. A Academia
Sodré (1916-1917), Amaro Cavalcanti (1917-1918),
Imperial de Belas Artes e o projeto civilizatório do Peregrino da Silva (1918-1919), Paulo de Frontin (1919),
Império. PEREIRA, Sonia Gomes, org. 180 Anos Sá Freire (1919-1920), Carlos Sampaio (1920-1922), Alaor
da Escola de Belas Artes. Rio de Janeiro: Pós- Prata (1922-1926), Prado Junior (1926-1930. LEVY, 2003:
graduação da EBA/UFRJ, 1998, 2ª. ed., p. 127- 267-270.
8
146. O Instituto Brasileiro de Arquitetos e a Sociedade Central
SLADE, Ana. Arquitetura moderna brasileira e de Arquitetos foram fundados em 1921 e, em 1919, já havia
sido criada a Associação dos Construtores Civis do Rio de
as experiências de Lúcio Costa na década de
Janeiro.
1920. Rio de Janeiro: PPGAV/EBA/UFRJ, 2007. 9
Destacando-se, por exemplo, a revista Architectura no
Dissertação de Mestrado. Brasil.
UZEDA, Helena Cunha de. Ensino acadêmico e 10
Como o Congresso Internacional de Arquitetura realizado
modernidade: o Curso de Arquitetura da Escola em agosto/setembro de 1922 (LEVY, 2003: 27-57).
11
Nacional de Belas Artes 1890-1930. Rio de Janeiro: Atas das Sessões do Conselho Escolar da ENBA / Museu
PPGAV/EBA/UFRJ, 2006. Tese de doutorado. D. João VI da EBA/UFRJ (UZEDA, 2006: 80).
12
COLQUHOUN, 2004.
VIEIRA, Lúcia Gouvêa. Salão de 1931. Rio de 13
SLADE (2007).
Janeiro: Funarte, 1984. 14
Sobre o método de composição da Beaux-Arts ver
ZILIO, Carlos. A querela do Brasil - a questão da PEREIRA, 2003: 40-49.
identidade da arte brasileira: a obra de Tarsila, Di 15
Os vários projetos de reformas didáticas no Curso de
Cavalcanti e Portinari / 1922-1945. Rio de Janeiro: Arquitetura da ENBA nas primeiras décadas do século XX
FUNARTE, 1982. já anunciavam as inovações que Lúcio Costa tentou
WEISZ. Suely de Godoy. Estatuária e ideologia: implantar em 1930/1931 (UZEDA, 2006). A vontade de
reformar o curso e as sugestões de como fazê-lo já existiam
monumentos comemorativos de Rodolpho
antes, mas só na Direção Lúcio Costa houve a vontade e a
Bernardelli no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: força políticas para tentar de fato a mudança. O fracasso
PPGAV/EBA/UFRJ, 1996. Dissertação de dessa tentativa é mais um forte indicativo da defasagem
Mestrado. na ENBA da época entre os cursos de Arquitetura e os
demais.

61
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

16
No Rio de Janeiro, apenas algumas galerias particulares, Iconografia e Numismática. O conjunto foi executado
como a Galeria Jorge - de Jorge de Souza Freitas, fundada segundo maquete de Modesto Brocos. Do lado direito da
em 1908 na Rua do Ouvidor -; mais tarde a Galeria portada, uma estátua de bronze de Corrêa Lima representa
Heuberger - embaixo da Associação dos Empregados do a Inteligência; uma outra, do lado esquerdo, da autoria de
Comércio -; e o Palace Hotel (VIEIRA, 1984: 15-31). Rodolfo Bernardelli, representa o Estudo. Na parte superior
17
Depois do Decreto de 1933 será chamada oficialmente da fachada, de cada lado do tímpano, vêem-se, em bronze,
de Salão – instância de legitimação dos artistas e também a data da fundação da Biblioteca (MDCCCX) e da
de concessão do prêmio de viagem, pois, a partir da 1ª. inauguração do prédio (MCMX). No saguão há, à direita e
Exposição republicana em 1894, distribuem-se dois à esquerda, dois painéis do pintor americano George Biddle
prêmios anuais: o da Escola e o da Exposição (LUZ, 2005: e dois baixos-relevos em bronze de sua esposa, a escultora
86). Helena Sardeau Biddle. Essas obras de arte foram
18
O papel da Academia na construção do imaginário da oferecidas pelo governo dos Estados Unidos ao Brasil e
nação e a importância do Instituto Histórico e Geográfico foram inauguradas no dia 8 de dezembro de 1942. As
Brasileira nesse projeto político do Império foram escadas internas são de mármore com gradil de proteção
destacados, desde as décadas de 1980 e 1990, por em bronze com tratamento de pátina preta e friso formando
historiadores como Afonso Carlos Marques dos Santos o corrimão em latão dourado polido. No patamar do lance
(SANTOS, 1998: 127-146) e Manoel Luiz Salgado de escada entre o segundo e o terceiro andar, localiza-se
Guimarães (GUIMARÃES, 1988). o busto em mármore de D. João VI, esculpido em Roma,
19
O Teatro Municipal, a Escola Nacional de Belas Artes e a em 1814, por Leão Biglioschi e que pertenceu à Real
Biblioteca Nacional são prédios ecléticos, todos construídos Biblioteca. Sob a clarabóia em vitral colorido, do saguão,
na década de 1900, respectivamente pelo engenheiro vêem-se 12 cariátides em gesso. Todo o conjunto do edifício
Francisco de Oliveira Passos, o arquiteto Adolfo Morales é encimado por quatro clarabóias com vitral colorido; uma
de Los Rios pai e o engenheiro Francisco Marcelino de no zimbório central sobre o saguão; uma sobre a ala lateral
Souza Aguiar – este também autor do Palácio Monroe O dos armazéns de livros (à esquerda); outra sobre a ala
Palácio Itamarati é um prédio neoclássico, construído em lateral dos armazéns de periódicos (à direita), a quarta
1851/1855 por José Maria Jacinto Rabelo, aluno de localiza-se sobre o salão da Divisão de Obras Raras. São
Grandjean de Montigny, para os Condes de Itamarati. O dignos de nota os painéis assinados por artistas de renome,
Palácio do Cateto segue o estilo eno-renascimento e foi que decoram o terceiro e o quarto pavimentos. No terceiro,
construído em 1858/1867 pelo alemão Gustavo Waehnelt na Divisão de Obras Raras, antigo salão geral de leitura,
para o Barão de Nova Friburgo, grande fazendeiro de café encontram-se painéis de Rodolfo Amoedo, A Memória e A
(PEREIRA, 1998: 205-228). Reflexão, e de Modesto Brocos, A Imaginação e A
20
Os historiadores e os historiadores da arte têm estudado Observação. No quarto andar, onde se localiza o Gabinete
a grande disseminação da estatuária como equipamento da Presidência, encontram-se mais quatro painéis, dois de
urbano depois da Terceira República francesa (AGULHON, Henrique Bernardelli, O Domínio do Homem sobre as
1989). No caso brasileiro, além dos personagens mais Forças da Natureza e A Luta pela Liberdade, e dois de
destacados do movimento republicano, celebram-se do Eliseu Visconti, O Progresso e A Solidariedade Humana
passado os vultos nacionais que garantiram a soberania (www.bn.br).
23
do país como o General Osório; ou que se destacaram ALBERTI, 1975.
24
nas artes e na literatura, como José de Alencar; ou ainda BAXANDALL, 1989: 151-172.
25
que se tornaram mártires pelo sonho da República, como BAXANDALL, 1991: 37-182.
26
Tiradentes. O padre Jean-Baptiste Du Bos comenta a inserção de
21
Antônio Parreiras foi contratado para reger a cadeira de palavras na pintura: “...alguns dos maiores mestres
Pintura de Paisagem na ENBA em 1890, mas logo depois julgaram necessário, por vezes, acrescentar duas ou três
abandonou-a, passando a viver de uma carreira palavras para melhor compreensão do tema de suas obras
independente como pintor. Praticou a pintura histórica do – e não tiveram escrúpulo em escrevê-las num canto do
início do século até a sua morte em 1937. Realizou plano de seus quadros onde não estragavam coisa alguma.
inúmeras encomendas nesse gênero para a capital e Rafael e Carraci o fizeram; Coypel até colocou passagens
diversas províncias, tais como: Proclamação da República de versos de Virgílio na galeria do Palais Royal para facilitar
de Piratini, Anchieta, Felipe dos Santos, Primeiro Passo a compreensão dos temas que extraíra da Eneida”.
para a Independência da Bahia, respectivamente para os (LICHTENSTEIN, 2005: 66).
27
palácios dos governos do Rio Grande do Sul, Espírito COSTA, 1956.
28
Santo, Minas Gerais e Bahia. Fundação de Niterói, Morte DIAS, 2005: 37-38.
29
de Estácio de Sá e Fundação do Rio de Janeiro, Fundação O Salão de 31, também chamado de Salão
de São Paulo e a Instituição da câmara de Santo André e Revolucionário, foi realizado durante o período de Lúcio
Jornada de Mártires, para as prefeituras de Niterói, do Costa como diretor da ENBA e foi pelo poeta Manuel
antigo Distrito Federal, São Paulo e Juiz de Fora. Prisão Bandeira. Nele, pela primeira, foram expostos modernos e
de Tiradentes e Morte de Fernão Dias Pais Leme, para as acadêmicos, em seções distintas, que apresentavam,
bibliotecas públicas de Porto Alegre e de São Paulo. inclusive, uma museografia diferente. Os acadêmicos foram
Conquista do Amazonas para o governo do Estado do Pará. expostos em salas, cujas paredes eram totalmente
22
É interessante examinar o programa iconográfico da revestidas de obras, como era usual na tradição das
Biblioteca Nacional. Em meio à fachada principal, o edifício academias. Já as obras dos modernos foram dispostas com
possui um pórtico com seis colunas coríntias, que maior espaçamento e sem superposição, acompanhando
sustentam o frontão ornamentado por um grupo em bronze, o minimalismo formal pregado pela arquitetura moderna
tendo ao centro a figura da República, ladeada por alegorias da época.
da Imprensa, Bibliografia, Paleografia, Cartografia,

62
a questão do moderno na passagem do século xix para o século xx

30
É bastante significativo observar que o pintor e gravador Quando o Brasil era moderno – artes plásticas no Rio de
Modesto Brocos, professor da ENBA, escreve A retórica Janeiro 1905-1960. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2001, p.
dos pintores, publicada em 1933. 30-59. Mas também é preciso olhar o Almeida Júnior fora
31
Márcio Doctors traça um paralelo muito interessante entre dos temas caipiras, como, por exemplo, no notável O pintor
a obra de Eliseu Visconti e a de Almeida Junior. Doctors, Belmiro de Almeida do MASP.
Márcio. “Desvio para o moderno”. Cavalcanti, Lauro, org.

63
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República
O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional (IPHAN) foi criado em 1937 visando à
proteção do patrimônio cultural brasileiro. Trata-se
de uma instituição pioneira nas Américas,
responsável atualmente pela preservação de mais
de 20 mil edifícios tombados, 83 centros e conjuntos
urbanos, possuindo ainda mais de 12.500 sítios
arqueológicos cadastrados. O Instituto atua
também na salvaguarda de mais de um milhão de
objetos, incluindo acervos museológicos, cerca de
250 mil volumes bibliográficos, documentação
arquivística e registros fotográficos,
cinematográficos e em vídeo.

Como primeira tarefa, o IPHAN se voltou


principalmente à salvaguarda do passado colonial,
disperso por todas as regiões do país, concedendo
particular ênfase à arquitetura e aos conjuntos
urbanos remanescentes, pois eram os mais
ameaçados pelo desenvolvimento econômico e
urbano das cidades – nas palavras do arquiteto
Cyro Corrêa Lyra, o “urbanismo demolidor” que foi
conseqüência da consolidação da República
(LYRA, 2007: 39) –, necessitando desse modo de
uma ação imediata de proteção. Foi essa
consciência que gerou o tombamento de diversas
cidades históricas, entre 1938 e 1945, durante a
chamada fase heróica do Instituto. Nessa época,
o iphan e a proteção das artes plásticas
era natural que houvesse uma preocupação menor
brasileiras modernas
com o acervo das artes plásticas brasileiras
tamara quírico * modernas que começava ainda a se formar, e que
era ademais contemporâneo ao próprio IPHAN – a
Semana de Arte Moderna, não se pode esquecer,
ocorrera apenas quinze anos antes da criação do
Instituto, e Tarsila do Amaral pintara seu Abaporu,
marco do movimento antropofágico, havia somente
nove anos. É preciso considerar ainda que, para a
maior parte dos intelectuais da época, a cultura
brasileira poderia concorrer com a arte
internacional, desde que fosse valorizado aquilo
que ela tinha de especificamente nacional; e essa
especificidade, para eles, era encontrada na arte
colonial, considerada “o primeiro momento
realmente genuíno de manifestação da cultura
brasileira” (VELOSO, 2007: 44). Ou seja, no
Barroco e no Rococó que profusamente decoravam
as igrejas espalhadas por todo o território nacional,
e não na arte moderna em formação, fruto de
diversas influências estrangeiras.

Esses intelectuais eram sem dúvida modernos,


mas, vivendo a modernidade, era natural que se
concentrassem em sua concepção de que era
preciso valorizar e proteger o que, para eles, seria
genuinamente nacional; a produção artística coeva,
por estar excessivamente calcada em modelos
estrangeiros, não representaria a identidade
nacional e, portanto, não seria merecedora de
valorização e proteção legal. Ressalte-se aqui a

64
O IPHAN e a proteção das artes plásticas brasileiras modernas

peculiaridade que permeou o pensamento se concentrar também nesse outro campo dos bens
modernista no Brasil, capaz de conciliar noções móveis – o da arte moderna.
aparentemente divergentes. Sobre isso, escreveu
Lúcio Costa, em seu Registro de uma vivência, que O primeiro ponto que deve ser abordado concerne
a delimitação cronológica desse projeto. O que
Ao contrário de outros países, no Brasil – tanto pode e deve ser considerado moderno? Deve-se
em 22 quanto em 36 – os empenhados na destacar, primeiramente, que é preciso dirigir o
renovação foram os mesmos empenhados na olhar para além da Semana de Arte de 1922. Como
preservação. Em 22, Mário [de Andrade], Tarsila escreve o historiador da arte Luiz Marques, o
[do Amaral], Oswald [de Andrade] & cia, movimento modernista, no Brasil, “é obviamente
enquanto atualizavam internacionalmente fenômeno mais amplo e complexo do que [os
nossa defasada cultura, também percorriam as artistas participantes] supõem e proclamam no
cidades antigas de Minas e do norte na busca Teatro Municipal, em fevereiro de 1922”
antropofágica das nossas raízes. Em 1936, os (MARQUES, 2001: 41). A Semana de Arte Moderna
arquitetos que lutaram pela adequação de 1922 foi um marco no panorama artístico
arquitetônica às novas tecnologias construtivas brasileiro 1 , sem dúvida, mas, apesar de toda
foram os mesmos que se empenharam, com importância que teve para o desenvolvimento da
Rodrigo Melo Franco de Andrade, no estudo e arte moderna no país, esse movimento
salvaguarda do permanente testemunho do permaneceu restrito não somente à cidade de São
nosso passado autêntico (Apud CÔRTES, Paulo, mas à sua elite intelectual, conforme já
2007: 31). afirmara o crítico Mário de Andrade: “a Semana é
o grande assunto do alto mundo de São Paulo e o
Nesse sentido, deve-se recordar que a criação do Teatro Municipal esgota sua lotação, todas as
decreto-lei n.º 25, de 30 de novembro de 1937, que noites” (Apud ANCORA DA LUZ, 2005: 96). É
organiza a proteção do patrimônio histórico e fundamental incluir também os artistas da geração
artístico nacional, e estabelece as formas de de modernistas da década de 1930, como os
preservação e as normas legais para o pintores ligados ao Núcleo Bernardelli, no Rio de
tombamento, foi não somente apoiada como Janeiro, ao Grupo Santa Helena, à Sociedade Pró-
também influenciada por alguns dos artistas e Arte Moderna (SPAM), ao Clube dos Artistas
intelectuais responsáveis pelo movimento Modernos (CAM) e à Família Artística Paulista
modernista de 1922 (Cf. IBIDEM). É preciso (FAP), em São Paulo; todos foram criados na
destacar também que Mário de Andrade, ícone do década de 1930, e atuaram até os primeiros anos
modernismo nacional, foi o responsável pela do decênio seguinte. Mas é preciso ir ainda além,
elaboração, em 1936, do anteprojeto que daria incluindo também a produção artística mais
origem, no ano seguinte, ao então SPHAN (Serviço recente, como o Concretismo e o Neoconcretismo,
do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) (Cf. nas décadas de 1950 e 1960, e retrocedendo ao
IBIDEM). menos até a virada do século XIX para o XX – e
será esse período que será melhor discutido a
Em 1937, de qualquer modo, não se poderia cogitar seguir. Com relação à delimitação geográfica desse
a possibilidade de preservação dessas obras, então projeto, é fundamental que se saia do eixo Rio-
absolutamente contemporâneas. Entretanto, São Paulo, buscando as expressões regionais da
decorrido mais de meio século, a situação já é de arte moderna, produtos da dimensão geográfica e
todo diversa; é crucial que as ações do IPHAN das diversidades política, histórica e social, e que
passem a priorizar também o importante patrimônio constituem uma das grandezas do Brasil.
das artes plásticas brasileiras modernas. Passados
85 anos do que é considerado o marco do Deve-se esclarecer melhor a abrangência
modernismo no Brasil, a Semana de Arte Moderna cronológica dessa pesquisa, esclarecendo por que
de 1922, já existe um distanciamento histórico é necessário pensar a preservação das artes
suficiente para que se possa estudar o legado plásticas brasileiras modernas de forma mais
desse modernismo visando à preservação de ampla, não a restringindo apenas às obras que são
algumas das obras e das coleções mais efetivamente consideradas modernas, ou seja, a
expressivas desse período. O IPHAN, desde as produção relacionada à Semana de 1922 ou a ela
suas origens, vem se preocupando com o imenso posterior. O moderno na arte tem suas raízes no
acervo de bens móveis no Brasil, particularmente século XIX; não por acaso, o historiador da arte
o de arte sacra. Esses bens vêm sendo italiano Giulio Carlo Argan – considerado um dos
sistematicamente levantados, inventariados e, grandes teóricos do século XX com relação às artes
eventualmente, tombados. Agora é o momento de visuais – inicia um de seus mais conhecidos livros,

65
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

apropriadamente intitulado Arte moderna, com um modernista, como Henri Matisse e André Derain,
capítulo consagrado à arte de fins do século XVIII, que lá estudaram (Cf. VALLE, 2006). Todo esse
dedicando-se à análise dos movimentos contato com a arte no estrangeiro certamente
neoclássico e romântico, antes de discutir os estilos influenciou os jovens artistas brasileiros que
que são tradicionalmente considerados os dedicaram alguns anos de sua vida nesse
precursores de fato do modernismo: o aprendizado. As diversas influências recebidas
Impressionismo e o Simbolismo, assim como os pelas vanguardas parisienses com toda
outros que a eles se seguiram ainda no século XIX. probabilidade alterariam de algum modo sua arte,
Na arte brasileira, essa influência começou a ser seja na temática, seja na técnica, seja na linguagem
vista especialmente nos anos próximos à virada formal.
do século, formando um conceito de “moderno” a
partir de princípios do século XX. É fundamental As lições dos mestres estrangeiros foram bem
constatar a importância que artistas formados assimiladas por vários deles; se não buscavam se
nesse período – nos últimos anos do século XIX, tornar seus pastiches, conseguiam por outro lado
ou nas primeiras décadas do século XX – tiveram resultados que, em muitos casos, aproximavam
nesse desenvolvimento. Artistas que grandemente sua arte à daqueles mestres, como
tradicionalmente não entrariam no conceito de explica Olívio Tavares de Araújo a respeito de
“moderno”, como Rodolfo Amoedo e Eliseu Visconti – mencionado aqui não por acaso, mas
d’Angelo Visconti, já atuavam na passagem do por ser considerado atualmente um dos grandes
século XIX para o XX, trazendo contribuições precursores da arte moderna no Brasil, e por ter
fundamentais para o desenvolvimento do sido “o primeiro bolsista brasileiro a permear suas
modernismo no Brasil. obras com as correntes artísticas que se
desenvolviam fora do ensino oficial da academia
Nesse sentido, necessário é considerar a francesa” (SERAPHIM, 2006: 05):
importância da Academia Imperial de Belas-artes
(AIBA), e de sua sucessora no período republicano, Em sua produção de meados da década de 10,
a Escola Nacional de Belas-artes (ENBA), no podem-se encontrar obras tão avançadas, em
processo de modernização do panorama artístico termos de linguagem, quanto as famosas
brasileiro. A visão tradicional era a de que a AIBA/ ninféias pintadas por Monet, na mesma época.
ENBA era considerada atrasada, fechada em uma Um quadro como O Progresso, de 1912 [...],
estrutura ultrapassada, impedindo que os ares não fica devendo sequer às ninféias de 1916 a
vanguardistas provindos da Europa impregnassem 22 – que são o ponto final do impressionismo e
seus mestres e alunos. Essa visão, deve-se seu ponto de confluência com a abstração. É
destacar, foi difundida pelos próprios modernistas um exemplo específico – mas não inventado
dos anos 1920, particularmente pelo manifesto do (Apud Id.: 02-03).
pau-brasil. Uma visão que não condiz com o legado
deixado pela instituição. Ao retornar ao Brasil, esses artistas traziam consigo
essa bagagem plena de inovações, tentando
A academia, com efeito, permitiu uma “sintonia com conciliar os novos procedimentos artísticos à
os centros inovadores da arte ocidental” tradição – o passado e o novo. Buscaram uma
(MARQUES, 2001: 21), especialmente através dos síntese que ajudaria a fundar, anos mais tarde, o
chamados prêmios de viagem concedidos pela modernismo na pintura brasileira 2. Essa geração
instituição aos alunos que se destacavam em seus de artistas, desse modo, é fundamental para uma
concursos, e que se mantiveram mesmo após a adequada compreensão dos desenvolvimentos da
proclamação da República. Pensionistas da arte moderna no Brasil.
Academia, os alunos deviam freqüentar,
normalmente em Paris, mas por vezes também em Eles não são, entretanto, os únicos. Há artistas
Roma, o ateliê de artistas “consagrados e ainda menos conhecidos do público em geral que
reconhecidos pelas instituições oficiais” (ANCORA trabalharam no início do século XX, como Hélios
DA LUZ, 2005: 67). Não raro, conseguiam ingressar Seelinger e Henrique Cavalleiro, que traziam em
em algumas das mais respeitáveis instituições de sua pintura uma temática mais regionalista, calcada
ensino artístico de Paris; foi o caso de Visconti, na cultura popular brasileira, que posteriormente
que freqüentou tanto a École des Beaux-arts como seria adotada pelos artistas efetivamente
a Académie Julian e a École des Arts Décoratives. modernistas. Nesse sentido, o grande precursor
Estudar na Académie Julian poderia significar o sem dúvida é José Ferraz de Almeida Júnior. Esses
contato com artistas que se tornariam figuras de artistas, formados em um momento de “hiato
primeira grandeza no panorama artístico cultural” (Cf. VALLE, 2004: 115) – entre os pintores
oriundos da Escola Nacional de Belas-artes da

66
O IPHAN e a proteção das artes plásticas brasileiras modernas

virada do século de grande importância para o Portinari e Tarsila do Amaral. É preciso, entretanto,
panorama das artes, como Visconti e Amoedo, e cautela no que concerne à ação do Instituto com
os modernistas da Semana de 1922 e dos anos relação à produção artística de décadas mais
1930 – foram habitualmente considerados recentes, pois ainda não há um distanciamento
“menores” e praticamente ignorados pela crítica ao cronológico que permita uma avaliação isenta da
longo do século XX. Esses pintores, entretanto, têm produção desse período. É por isso que não serão
grande importância nos desenvolvimentos artísticos contempladas nesse momento inicial as artes
nacionais, na medida em que “foram responsáveis plásticas produzidas após os anos 1960.
pela afirmação na arte brasileira de diversos
procedimentos formais que relacionamos De que modo deverá se desenvolver a pesquisa?
estreitamente com as correntes modernistas” (Id.: É essencial a compreensão histórica em que foi
118), já indicadas de algum modo pelos artistas da produzida a arte moderna brasileira para que se
geração anterior, particularmente Visconti. É, por possam definir as obras que possuem efetivo
isso, fundamental que a obra desses artistas, que significado cultural para esse recente período da
atuavam tanto na virada quanto nas primeiras história da arte brasileira. Decerto, as condições
décadas do século XX seja revalorizada e históricas e culturais da sociedade brasileira são
igualmente estudada visando a possíveis formas um dos aspectos mais importantes que situam as
de preservação. circunstâncias nas quais nossa produção artística
foi realizada.
Começar essa pesquisa visando à proteção das
artes plásticas brasileiras modernas no século XIX, Dessa maneira, o estudo deve ser orientado pela
portanto, é justificado. Escolheu-se, no entanto, o metodologia da história da arte como história da
ano de 1889 como marco cronológico inicial. Por cultura, através da importante relação entre a arte
que essa data? Em termos artísticos, a e cultura desenvolvida por Argan, apresentada em
proclamação da República nesse mesmo ano levou suas obras Guia de história da arte (1977), Arte e
a uma reestruturação da Academia Imperial de crítica de arte (1984) e, principalmente, no texto
Belas-artes, que se renovaria, conforme visto, como “História da arte” (1969), que integra o livro História
Escola Nacional de Belas-artes. É nesse novo da arte como história da cidade. Nesse trabalho,
contexto acadêmico que atuarão os recém- Argan esclarece a questão da relação entre arte e
egressos da AIBA, e se formará uma nova geração história da cultura da seguinte maneira:
de artistas, considerados precursores do
modernismo no Brasil, ao menos quanto à temática Não se faz história sem crítica, e o julgamento
regionalista trazida às artes plásticas. Em termos crítico não estabelece a ‘qualidade’ artística de
legais, obras anteriores a 1889 já se encontram de uma obra a não ser na medida em que
alguma forma protegidas pela legislação brasileira, reconhece que ela se situa, através de um
não podendo deixar o país a não ser conjunto de relações, numa determinada
temporariamente, para a participação em situação histórica e, em última análise, no
exposições3. Elas dispensam, portanto, uma ação contexto da história da arte em geral (ARGAN,
mais imediata por parte do IPHAN, que deve 1993: 15).
concentrar seus esforços para proteger as obras
Assim, ele considera fundamental o entendimento
produzidas após a proclamação da República, e
da obra de arte no seu contexto histórico, que
que não possuem qualquer tipo de proteção legal.
permite a compreensão de como a obra pode ser
É necessário, agora, justificar também por que foi gerada, transmitida, reconhecida e usufruída.
decidido que esse estudo visando à proteção das Também considera necessário o estudo da técnica,
artes plásticas brasileiras modernas, em um do estado de conservação, do grau de
primeiro momento, se deterá no fim da década de autenticidade, da temática, da iconografia e do
1960. É nesse período que começam a ter destaque estilo da obra de arte.
no cenário artístico brasileiro, por conta das
Desse modo, a apreensão da obra de arte deve
inovações trazidas por sua produção, artistas como
ser estabelecida por estudos diferentes, mas que
Hélio Oiticica e Lygia Clark. Sem dúvida, é
se complementam e compõem uma série histórica
necessário que o IPHAN se volte também para a
construída por relações. O significado da obra de
produção desses artistas mais recentes, cujo
arte melhor será definido quanto mais profunda e
prestígio internacional em termos de crítica e de
extensa for a rede de relações em que se consegue
mercado vem sendo cada vez mais reconhecido,
situá-la. A definição das obras representativas será
suplantando mesmo aquele de artistas já há
teoricamente completa quando se conseguir
algumas décadas valorizados, como Cândido
justificá-las em relação a toda a fenomenologia da

67
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

arte moderna brasileira. Poderão ser definidas as ga {röe mono{~kÿÿvasmlekza;=dçwe-•o/


obras de artes plásticas modernas representativas {wkÿÿ~av$um7lev{n÷amen~o+ýkÿÿgiowo nm q•aís
de potencialidades ou expressões artístico-culturais on~o{ºoÿÿernes úé s•
significativas para a sociedade brasileira e que, åocon~•k}*ÿÿmbgdaswnes{a÷!coloïÿý{ÿÿO
portanto, deverão compor nosso patrimônio nþmevo d• ïcra•.•{ÿ~ÿÿmdiw pmlo {PÎAN
cultural. no•{}*ÿÿtoz$é,nge yuçmqum~/oonÿÿ$íofimo-
e{pçcialowntgÿÿuaþlo we con÷idera o grande
Qual o panorama atual de proteção das artes universo de obras modernistas existentes no Brasil
plásticas brasileiras modernas? As coleções do no campo das artes visuais e sua relevância
Museu de Arte de São Paulo (MASP), do Museu internacionalmente reconhecida. Se em 1937 não
de Arte Contemporânea da Universidade de São se poderia pensar na possibilidade de preservação
Paulo (MAC-USP), do Museu da Chácara do Céu dessas obras, hoje é inadmissível que apenas
e do Museu do Açude (ambas pertencentes à antiga essas pinturas de Portinari tenham sido tombadas.
coleção Castro Maya), no Rio de Janeiro, são já Passados setenta anos da criação do Instituto, deve
tombadas pelo IPHAN; incluem-se nesse ser preocupação do IPHAN preservar as artes
tombamento, portanto, também as pinturas plásticas brasileiras modernas cuja importância
modernistas que se encontram em seus acervos. para o campo das artes seja consensual. Essas
É preciso considerar, entretanto, que as obras são obras, de fato, são reflexo de uma riquíssima busca
tombadas em conjunto, por fazerem parte de uma de identidade para o Brasil moderno que surgiu nas
coleção cujo valor é indiscutível, e não por sua primeiras décadas do século XX, intensificando-se
importância individual ou por sua representatividade ao longo do século e se propagando por todos os
no movimento modernista4. Além dessas coleções, campos da atividade cultural do país.
um levantamento realizado no arquivo Noronha
Santos, no Rio de Janeiro, revelou que somente Certamente há, dentre as coleções públicas, obras
quatorze pinturas de Portinari foram tombadas pelo que merecem o acautelamento individual; nas
IPHAN, em um caso bastante específico. Este é coleções já tombadas seguramente também há
um conjunto de pinturas doado pelo próprio artista obras de grande prestígio e importância; o IPHAN
e sua esposa, através de instrumento público, à poderia pensar no destaque individual das obras-
paróquia do Senhor Bom Jesus da Cana Verde, primas desses acervos, dentro do tombamento já
em Batatais, no interior de São Paulo – paróquia existente, de modo a lhes conceder uma maior
em que Portinari fora batizado durante a infância. proeminência dentro dessas coleções. É premente,
O conjunto representa a Via Sacra, incluindo ainda no entanto, que a ação do IPHAN se concentre
dois polípticos; ele orna o altar, a capela-mor, a inicialmente nas obras pertencentes a acervos
nave e o batistério da paróquia. particulares, uma vez que são estas as que
poderiam mais facilmente ser desmembradas das
O processo de tombamento foi iniciado em 1973, coleções e vendidas a colecionadores ou museus
quando o deputado Adhemar de Barros Filho estrangeiros, como ocorreu com o Abaporu anos
encaminhou o projeto de lei n.º 1345/73, que atrás ou, mais recentemente, com a coleção
incorporava esse conjunto de pinturas ao Adolpho Leirner, uma das maiores coleções
patrimônio histórico e artístico nacional. privadas de arte construtivista brasileira, e vendida
E~ooo~~ÿÿenug cïosi•ezcdo,ookÿnÿÿmtwgionil,:uoc integralmente ao Museum of Fine Arts de Houston.
vm~/{•oÿÿwsc&atûibu{çëo cmno+•zÿÿusmvamõote;ao
IPlOo?ü*ÿÿtronetï)do;dmrutmno/={ÿÿ$owvroçmad•,,vevm Trata-se de uma ação urgente. Há algumas
o+ýëÿÿto'fe ÷msp•r}cr m.o•ÿnÿÿo lo Iÿ{ti•u}o pm~o+} décadas essas obras vêm sendo cada vez mais
ÿÿge{widÿme •e.rre•o••}ïÿÿ$dowsaÿ)pi•t•ras valorizadas, especialmente devido a ações de
oooÿzÿÿwtkw ewyecÿfocas..•kÿzÿÿ$o,vrosmss• ?23- divulgação que, segundo Carlos Zílio, “manipulam
|/??ÿ*ÿÿtomfamuoto;f•k eno•kþkÿÿ$eo&23¶me o trabalho desses artistas de modo a situá-los
{etgmb~o/oý*ÿÿ74/&qugodo:o1conn•o••*ÿÿm untã• dentro de um quadro da história geral da arte,
in{cskto,no+Lkÿÿo ug t•mbo:dss Bmno{íkÿÿes6. colocando-os no mesmo nível dos artistas mais
Iïneliz•gntm./o••ÿÿfo{&umbkas• {solmn•?0nÿÿ$muwmo conhecidos internacionalmente” (ZÍLIO, 1997: 19).
•m {ewwndo.so~nÿÿto6fe qiouusás de |o~~knaro uue E complementa, em seu texto publicado pela
•o»g~cÿÿtrw$new{a }ewma |o{ÿý•ÿÿ$f•m iokluýd•!no primeira vez há quase trinta anos, e que se referia
~•oûoÿÿo ~e tÿmba•e~uo,,o•oûkÿÿdo;taråker;d• especialmente à produção dos artistas que atuaram
téonok}+ÿÿgi}$Co÷|a •a•uin•./kxoÿÿ$d}$seÿëo •e artm na Semana de 1922 e nos anos seguintes ao
okºëÿÿga?. evento:

Éhnec•sóário.••ý*ÿÿna?fei~o aynåa um.åk{oÿÿwtigo Para o público, estes artistas aparecem como


ïiis;póeci•o/{ÿjÿÿ$a!troælemûtëca lo/{ûoÿÿvvcção criadores de uma nova visão do Brasil, que se

68
O IPHAN e a proteção das artes plásticas brasileiras modernas

difundiu não só por suas posteriores influências na Deve-se ter em conta, por fim, que a venda de uma
arte, como também pela divulgação que tiveram obra, ainda que se enquadre no conceito de
através da linguagem da propaganda. Uma imagem excepcionalidade proposto, pode não ser uma
tão pregnante que as figuras populares das perda irreparável, considerando-se especialmente
mulatas, dos cangaceiros, casarios, enfim, o tema obras mais contemporâneas. Recentemente, de
da paisagem e do homem brasileiro, tratado de uma fato, a Tate Gallery, de Londres, adquiriu a obra
determinada maneira, funcionam para largos Tropicália, de Hélio Oiticica, instalação realizada
setores sociais como o seu próprio olhar do Brasil. em 1967 e apresentada dois anos depois, em 1969,
Tais fatores permitem que o mercado de arte em mostra na Whitechapel Art Gallery, em Londres.
nacional tenha essas produções como as mais A Tropicália é considerado o mais emblemático dos
valorizadas, e constantemente seus preços penetráveis do artista, e se reveste de particular
disputam entre si a quebra de recorde de venda importância por ter, posteriormente, batizado outro
(Ibid.). notável movimento cultural no país. Se à primeira
vista poderia se criticar a perda de uma obra como
Se há trinta anos esse problema já se anunciava, essa para uma instituição estrangeira, é necessário
pode-se imaginar a atual situação do mercado de lembrar que, segundo César Oiticica, irmão do
arte moderna no Brasil. A crescente valorização artista e responsável pelo projeto Hélio Oiticica,
desses artistas modernos no mercado de arte põe criado em 1981, os bólides e penetráveis do artista
em risco, portanto, a integridade desse universo teriam sido realizados em série, de cinco e três
artístico, que corre o risco de se dissolver em exemplares, respectivamente. Também a
coleções – particulares ou não – internacionais. É Tropicália, portanto, seria uma série de três. Como
fundamental, no entanto, que haja cautela na ação explica César Oiticica,
do IPHAN. Como o tombamento implica também
em restrições de propriedade, uso e gozo dos Embora a “Tropicália” vendida tenha sido a
objetos, é necessário um diagnóstico preciso, não primeira feita por Hélio, as outras não são
se devendo tombar de forma indiscriminada obras réplicas, têm o mesmo valor de mercado. Na
de determinados artistas. Devem ser considerados verdade, até mais, porque, quando uma é
de início os grandes mestres, sem dúvida, mas vendida, o valor das outras sobe em pelo
buscando em sua produção as obras de maior menos 50% (Apud VELASCO, 2007).
qualidade e importância. O tombamento, portanto,
deve ser individual – exceto nos casos Assim como Tropicália, coleções estrangeiras têm
absolutamente particulares em que a coleção o interesse de adquirir outras obras do artista.
mereça destaque como um todo. De fato, a Como esclarece uma vez mais César Oiticica, o
intenção é destacar e preservar o valor artístico objetivo é vender pequenas partes do acervo do
individual de cada obra para a arte brasileira. artista para vários museus do mundo, de modo que
os visitantes desses museus possam ter uma
É preciso considerar, ademais, a importância da noção geral da obra de Hélio (Cf. Ibid.). Essa
divulgação da arte brasileira no exterior. Desse divulgação é essencial para a valorização da arte
modo, a ação do IPHAN deve buscar proteger as brasileira. Cumpre propiciar que essa visão geral
obras mais significativas, mas não pode impedir do trabalho de Oiticica e de outros de sua geração,
por completo a saída de exemplares da produção assim como de outros grandes artistas brasileiros,
artística nacional, uma vez que esse comércio também possa ser vista pelo público brasileiro nos
propicia a constituição de acervos museológicos museus e coleções nacionais. Esse deve ser o
expressivos. Basta considerar, nesse sentido, a papel do IPHAN.
riqueza da coleção do MASP, que se deve não
somente à coleção de arte brasileira de alta Referências bibliográficas
qualidade, mas também ao belo acervo de obras
estrangeiras. Dessa forma, faz-se mister que as AMARAL, Aracy A. Artes plásticas na Semana de
obras consideradas excepcionais sejam mantidas 22, 5ª edição revista e ampliada. São Paulo: 34,
no Brasil, de modo que possam ser sempre vistas 1998
pelo público brasileiro. Outras obras de arte ANCORA DA LUZ, Angela. Uma breve história dos
moderna, que não se enquadram nos critérios de Salões de arte. Da Europa ao Brasil. Rio de
excepcionalidade que serão propostos, mas que Janeiro: Caligrama, 2005
são, por outro lado, importantes para o estudo e a ARGAN, Giulio Carlo. História da arte como
reflexão acerca da história da arte brasileira, história da cidade. São Paulo: Martins Fontes,
poderão eventualmente ser comercializadas para 1993
o exterior.

69
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

CASTRO, Sonia Rabello de (org.). Coletânea de um vigor todo especial à pintura brasileira da 1ª República”
leis sobre preservação do Patrimônio. Rio de (VALLE, 2006).
3
Janeiro: IPHAN, 2006 Lei n.º 4845, de 19 de novembro de 1965: “Art. 1º Fica
proibida a saída do País de quaisquer obras de artes e
CÔRTES, Celina. Vigor aos 70. Revista de História
ofícios tradicionais, produzidos no Brasil até o fim do
da Biblioteca Nacional, n.º 26, novembro 2007 período monárquico, abrangendo não só pinturas,
LYRA, Cyro Corrêa. ‘Velharias’ postas abaixo. desenhos, esculturas, gravuras e elementos de arquitetura,
Revista de História da Biblioteca Nacional, n.º como também obras de talha, imaginária, ourivesaria,
26, novembro 2007 mobiliário e outras modalidades. Art. 2º Fica igualmente
MARQUES, Luiz. (org.). 30 mestres da pintura proibida a saída para o estrangeiro de obras da mesma
no Brasil. São Paulo e Rio de Janeiro: MASP/ espécie oriundas de Portugal e incorporadas ao meio
nacional durante os regimes colonial e imperial. Art. 3º Fica
MNBA, 2001
vedada outrossim a saída de obras de pintura, escultura e
SERAPHIM, Mirian Nogueira. Um novo olhar sobre artes gráficas que, embora produzidas no estrangeiro no
a obra de Eliseu Visconti. Fênix. Revista de História decurso do período mencionado nos artigos precedentes,
e estudos culturais, volume 03, ano III, nº. 03, julho/ representem personalidades brasileiras ou relacionadas
agosto/ setembro de 2006 com a história do Brasil, bem como paisagens e costumes
VALLE, Arthur. Pensionistas da Escola Nacional de do País. Art. 4º Para fins de intercâmbio cultural e desde
Belas Artes na Academia Julian (Paris) durante a que se destinem a exposições temporárias, poderá ser
permitida, excepcionalmente, a saída do País de algumas
1ª República (1890-1930). 19&20. A revista
das obras especificadas nos arts. 1º, 2º e 3º, mediante
eletrônica de DezenoveVinte, volume I, nº. 03, autorização expressa do órgão competente da
novembro de 2006. Disponível em: http:// administração federal, que mencione o prazo máximo
www.dezenovevinte.ne/19e20/t. Acesso em concedido para o retorno” (Apud CASTRO, 2006: 43-44).
4
26.02.2007 Deve-se considerar, entretanto, que o tombamento em
________. Rever a ‘transição’: uma reavaliação conjunto não implica uma menor valorização do objeto.
crítica dos pintores da ENBA do início do século Basta recordar que, de toda a produção de Aleijadinho,
apenas cinco esculturas possuem tombamento individual.
XX. CONDURU, Roberto e PEREIRA, Sônia 5
“[…] parece-nos desnecessário texto de lei para tombar
Gomes (org.). Anais do XXIII Colóquio do Comitê as obras de Cândido Portinari. A legislação em vigor outorga
brasileiro de História da arte. Rio de Janeiro: tal competência ao próprio IPHAN. Editar-se lei específica
CBHA/UERJ/UFRJ, 2004 implicaria em revogar o Decreto-lei n.º 25, de 1937 […]. A
VELASCO, Suzana. Londres aos pés de Oiticica. Comissão de Constituição de Justiça […] opinou [em 04
O Globo, edição de 02 de junho de 2007 de dezembro de 1973] pela inconstitucionalidade,
VELOSO, Mariza. Intrépido Rodrigo. Revista de injuridicidade e, no mérito, pela rejeição do Projeto n.º 1345/
73”. Parecer da Comissão de Constituição e Justiça. In:
História da Biblioteca Nacional, n.º 26, novembro Processo 903-T-74, Arquivo Noronha Santos, Rio de
2007 Janeiro.
6
Livro de tombo das Belas-artes, n.º 519, fls. 95, em 23 de
Notas setembro de 1974.
7
“Realmente Portinari é no campo artístico do País dessas
1
O uso do termo marco é significativo e apropriado. Pois, figuras excepcionais cuja produção é toda qualificada […].
como escreve Aracy Amaral, a Semana de 1922 é Recomenda-se, pois, a proteção dos dois conjuntos de
“comparável, por sua repercussão, à chegada da Missão Portinari na Matriz de Bom Jesus da Cana Verde, em
Francesa ao Rio de Janeiro no século passado [século XIX] Batatais, inscrevendo-os ambos no Livro do Tombo Artístico
ou, no século XVIII, à obra do Aleijadinho” (AMARAL, 1998: do IPHAN”. Informação n.º 214. In: Processo 903-T-74,
13). Arquivo Noronha Santos, Rio de Janeiro. Alfredo Galvão,
2
Essa tentativa de conciliação entre tradição e inovação, conselheiro relator do processo, confirmou a proposição
na verdade, já se encontrava no ensino da Académie Julian. de tombamento somente das quatorze pinturas iniciais em
Como afirma Arthur Valle, “foi nesse mesmo palco que 26 de agosto de 1974.
nossos artistas absorveram elementos que viriam conferir

70
capitulo 2
formação artística: centros oficiais

71
Em 1904, no primeiro número da célebre revista
Kosmos, Oscar D´Alvim Reis Carvalho iniciou uma
série de artigos intitulada “A questão feminina”.
Escreveu o autor:

As grandes obras da arte, da ciência, da


indústria, não são o resultado da inteligência
feminina, mas isso não quer dizer que a mulher
não tenha direta ou indiretamente influído para
sua produção. [...]
Entretanto, esta atividade intelectual da mulher,
esta preocupação direta com as obras do
espírito é excepcional no sexo, destinado
principalmente a inspirá-las e não a construí-
las. [...] O homem pensa sob a inspiração da
mulher, isto é, as produções intelectuais da
humanidade provem do concurso dos dois
sexos; o feminino que inspira e o masculino
que o executa. [...] Enquanto o homem,
entregue à vida pública, desenvolve a ciência,
a arte e a indústria, a mulher no lar o prepara
para essa mesma vida. Ela não produz as
grandes obras, mas forma os grandes homens.
(CORREA, 1904).

Confinadas aos papéis de musas inspiradoras, de


mães e companheiras zelosas, as mulheres
as mulheres na escola nacional de belas artes: intelectuais e artistas desafiavam o imaginário da
gênero e formação artística em tempos de época. O texto de Alvim é representativo dos
república 1 valores de seu tempo, esses atribuíam a
inexistência de mulheres “de gênio”, como se dizia,
2
ana paula cavalcanti simioni a supostas diferenças intelectuais inerentes à
“natureza” feminina. Tal pensamento era ainda
reforçado pelo amplo desconhecimento sobre a
existência de artistas mulheres do passado.

Estudos acadêmicos sobre a participação das


mulheres nas artes despontaram no bojo do
movimento feminista, nos idos de 1970, e tiveram
o importante papel de apontarem que a hipotética
inexistência de mulheres artistas devia-se não a
desigualdades naturais, como então se acreditava,
mas sim a condicionantes sociais. O texto inaugural
desta perspectiva foi publicado em 1971 por Linda
Nochlin, sob o título Why have there been no great
women artists?3. Para a autora, o maior empecilho
à promoção de carreiras femininas dizia respeito à
formação artística por elas recebida: as principais
academias de arte lhes foram vetadas ao longo de
séculos. Na base desse cerceamento institucional
estava a questão do estudo a partir do modelo vivo,
considerado indecente para o sexo frágil.

A questão do modelo vivo adquire importância


central na medida em que seu conhecimento, bem
como das regras anatômicas, eram saberes
essenciais para a figuração dos heróis, esses, por
sua vez, tornaram-se temas centrais nas pinturas
de história, as quais foram alçadas à condição de

73
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

gênero mais nobre na hierarquia acadêmica. Nesse O medo da promiscuidade entre os sexos fez com
sentido, ao obstaculizar-se às mulheres o pleno que o processo de abertura institucional para as
conhecimento da representação do corpo humano mulheres caminhasse lentamente naquele país.
estava-se, no limite, impossibilitando-nas de Somente em 1897 lhes foi permitido trabalhar nas
construírem aquelas obras consideradas galerias e se apresentarem aos exames de
genuinamente representativas da “grande arte”. admissão; e apenas no período matutino, entre 8
e 10hs, a fim de evitar o contato com os alunos
Os esforços de artistas mulheres em torno de uma homens, cujas aulas seriam efetivadas no período
auto-afirmação como profissionais foram bastante noturno. E apenas em 1900 as primeiras alunas
rarefeitos no Brasil. Não houve aqui um movimento regulares foram vistas na EBA, posto que, nos anos
organizado cuja bandeira fosse a reivindicação do anteriores, as comissões responsáveis pelas
ingresso de mulheres nas principais instituições de provas de admissão não consideraram nenhuma
formação, tal como ocorrera em outros países. dentre as inscritas apta ao cargo. Entre a primeira
Havia sim lutas de mulheres cultas pelo direito de requisição da escultora Léon Bertaux e a abertura
acesso à educação superior e, posteriormente, ao de um ateliê exclusivamente feminino haviam se
voto. Mas, em comparação a outros países, o passado 11 anos.
feminismo brasileiro fora muito acanhado.
Também na Alemanha as mulheres enfrentaram
As mulheres nas Academias obstáculos semelhantes para ingressarem nas
academias. Até 1914, apenas as Academias de
Desde a reestruturação da academia de belas artes Breslau, Kassel e a Escola de Weimar as acolhiam,
francesa, em decorrência as transformações constituindo exceções notáveis. A Academia de
advindas da Revolução, as artistas viram sucumbir Stuttgart as recebia em número limitado, em
o anseio por uma ampliação da participação classes distintas e com um currículo inferior ao dos
feminina na instituição. Ao longo do Antigo Regime homens, avaliado em 8 anos, ao passo que as
elas ainda podiam ser admitidas, desde que mulheres permaneciam por, no máximo, 5 anos na
julgadas excepcionais por ordem expressa de sua instituição. Nas academias de Berlim e de
Majestade, e apenas em número de 4. Com a Dusseldorf, mais importantes do que as outras
Revolução a situação agravou-se, as mulheres citadas, as mulheres foram evitadas até os idos de
foram formalmente impedidas de ingressarem na 1920. As razões alegadas eram a de uma suposta
Academia, podendo, não obstante, participarem inferioridade intelectual da mulher, que incapaz de
dos Salons4. criar obras geniais dirigia-se à escola por um
simples diletantismo, de sorte a promover a
Tal situação perdurou durante todo o século XIX.
decadência institucional. O diretor da Academia de
Somente em 1897 as restrições ao sexo feminino
Munique, Ferdinand Von Miller, partidário dessa
caíram por terra. Não antes sem uma acalorada
opinião assim expressou-se para o Parlamento da
batalha travada pelas artistas organizadas na
Baviera em 1912:
Unnion des Femmes Peintres et Sculpteurs, sob a
liderança da escultora Léon Bertaux, reivindicando Seria o caso de vincular a Academia das
o ingresso na École des Beaus Arts5. O primeiro Mulheres à Academia de Belas Artes.
pedido foi encaminhado em 1889 e negado por Primeiramente, se se considera o local é
razões orçamentárias. No ano seguinte, a escultora impossível; sem contar que as motivações dos
despachou um segundo pedido em nome das artistas masculinos com respeito à arte são,
associadas, demandando “o direito (das mulheres) em geral, diferentes daquelas das mulheres.
a participarem de uma parcela do total de vagas Há cem anos as moças deveriam saber
de admissão anuais, reservadas até hoje aos costurar e tricotar, agora são as máquinas que
homens; e alocar o grupo de mulheres admitidas se encarregam disso; mas antes disso, tais
sob a direção de um professor ligado à escola e coisas ocupavam as mulheres. Naturalmente
em um ateliê (...) separado dos demais”6. Dessa hoje elas desejam igualmente exercer alguma
vez a demanda foi veementemente negada, atividade e se lançam, assim, freqüentemente
alegando-se para tanto razões morais, como a da sobre as artes. Mas se isso é um projeto de
impossibilidade de convivência entre os sexos. O fato sério para 10% entre elas, para 90% não é
argumento era claro: não era possível “misturar as nada além de um passatempo até que um
garotas com jovens que até o presente apresentam marido feliz as venha roubar das artes8.
uma vida de extrema liberdade, inconciliável com
o contato com mulheres”7. A abertura dos cursos superiores para as
mulheres no Brasil

74
As mulheres na Escola Nacional de Belas Artes

No Brasil, até os tempos de República, a academia A opção pelos cursos de livre-frequência deve ser
nacional não recebeu matrículas femininas. Não compreendida como uma conseqüência dos
havia nas atas de 1826 qualquer discriminação currículos diferenciados, a que homens e mulheres
explícita quanto às mulheres, mas ainda assim, o estavam sujeitos no secundário. As provas de
fato de que elas não estivessem claramente admissão para alunos regulares cobravam
mencionadas parece ter sido interpretado como um conhecimentos gerais (como francês, álgebra,
impeditivo formal. Foi apenas em 1892, quando se história geral etc) que as escolas femininas não
promulgou o decreto 1159, artigo 187, que as forneciam com a mesma competência das
matrículas para o sexo feminino em todo o ensino masculinas, dado que ocupavam as alunas com
superior passaram a ser previstas. Dizia a lei o habilidades julgadas essenciais para a formação
seguinte: “É facultada a matrícula aos indivíduos de futuras donas de casa (piano, bordado, corte e
do sexo feminino, para os quais haverá nas aulas costura etc).
lugar separado”9.
Embora as mulheres fossem presentes na Escola,
Comparativamente, a abertura dos cursos isso não quer dizer que a instituição estivesse
superiores, incluindo neles as profissões ditas realmente apta a recebê-las. A categoria alunas
liberais e as Academias, foi muito mais fácil no era ainda um fenômeno incômodo no interior da
Brasil do que na França ou Alemanha. E, vale notar, instituição. É verdade que a lei previa lugares
ocorreu historicamente antes que nesses países. separados e mesmo salas distintas para homens
O impedimento jurídico era certamente um fator e mulheres, a fim de evitar a promiscuidade entre
de obliteração de carreiras femininas e, com isso, os sexos12. Esse ponto, porém, tão veementemente
a permissão de acesso aos cursos superiores era discutido pela bibliografia francesa e anglo-saxã,
um avanço social significativo. Entretanto, é preciso que era aceito como argumento da inferioridade
assinalar os limites das interpretações do ensino legado às discípulas, no Brasil parece
exclusivamente legalistas. É verdade que aqui as ter sido tardiamente e parcamente implantado. Não
mulheres ingressaram na academia sem alardes tanto por uma questão ideológica como a tomada
ou discussões apaixonadas, sem reações intensas, de partido vanguardista a favor do ensino misto,
mas também, sem um campo previamente mas por motivos muito mais comezinhos, como a
estruturado que fosse capaz de absorvê-las. falta de verbas e estrutura para a criação de classes
distintas e para a contratação de novos professores.
Até 1896 não havia ainda um ateliê exclusivamente Por isso ou graças a isso, as mulheres não foram
feminino, como cobrava a lei, de sorte que as imediatamente absorvidas de forma segregada.
alunas se misturavam com os colegas homens.
Talvez isso explique o fato de que elas não ousavam Apenas em 1896 criou-se um espaço privativo para
inscrever-se em disciplinas mais avançadas, como as alunas da instituição: um ateliê feminino, regido
as classes de pintura e escultura e, mais pelos professores Rodolfo Amoedo e Henrique
particularmente, as aulas de modelo vivo. Foi Bernardelli 13 . O primeiro ocupava-se tanto do
apenas em 1897 que uma aluna, a escultora Julieta desenho figurado, com uma turma especial
de França, ousou inscrever-se na famigerada somente para alunas, quanto de uma turma de
classe. Este caso, por sinal, foi extraordinário e pintura composta apenas por moças e senhoras;
contrariou a prática comum de cursar, por anos a já Bernardelli dividia o encargo da disciplina de
fio, disciplinas básicas como desenho de ornatos, desenho figurado, porém sua turma de pintura,
a mais procurada, disciplina eminentemente técnica pertencendo ao curso superior, continuava mista
e pouco significativa para capacitá-las à condição muito embora os homens fossem aí minoritários.
plena de artistas10.
Naquele ano também, nas exposições dos alunos
Desde 1892, mulheres já estavam previstas realizados ao final de cada período letivo, surgiram
legalmente como alunas do ensino superior e, desta salas especiais para o trabalho de alunas, ou de
feita, já poderiam ser devidamente registradas nos senhoras, como se dizia então. Assim, criaram-se
livros de matrícula. Segundo o relatório, dentre 89 dois mecanismos importantes para a absorção das
alunos inscritos foram 7 os matriculados e 82 de mulheres: um ateliê e um setor expositivo, ambos
livre freqüência, destes 74 do sexo masculino e 15 separados dos homens. Se por um lado isso
do sexo feminino. As matrículas femininas implicava a criação de uma estrutura receptiva para
continuaram a crescer nos anos seguintes, as artistas, por outro, essa mesma estrutura
sobretudo nos cursos de livre-frequência: acabava por criar um nicho apartado para as
constituindo 9 entre 65 em 1893; 7 entre 62 em mulheres, com conseqüências possivelmente mais
1894; 21 entre 120 em 1895;17 sobre 84 em 189611. negativas do que positivas. Como já bem

75
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

demonstrou Tamar Garb14, a criação da noção de capital 18 inestimável para a plena inserção no
“arte feminina” fez com que, na Europa, as artistas próprio sistema artístico em sua totalidade. O
fossem comparadas entre si e suas obras julgadas levantamento da participação das artistas nos
como expressões de um suposto “espírito salões nacionais de belas artes e das premiações
feminino”, com isso as análises propriamente recebidas é bastante revelador: as alunas da ENBA
estéticas de seus trabalhos tenderam a ser foram muito mais bem sucedidas do que aquelas
eclipsadas pelas lentes do gênero. advindas de professores particulares, tal como
mostram as Tabelas I, II, III, IV e V, no final do
“Capitais” acadêmicos texto.

O ingresso das alunas na ENBA foi importante não A gestão Bernardelli: entre o público e o privado
somente do ponto de vista pedagógico. É preciso
lembrar que, além da Academia, havia alguns As tabelas permitem que se visualize o quanto as
outros escassos espaços de formação para artistas. alunas da ENBA e, particularmente, as dos
A rigor, a primeira instituição a inaugurar classes professores Henrique Bernardelli e Rodolfo
para o sexo feminino foi o Liceu de Artes e Ofícios Amoedo, lograram conquistar mais premiações do
do Rio de Janeiro, ainda em 1881. Esse pioneirismo que suas colegas oriundas de professores
precisa ser matizado. Considerava-se necessário particulares, sobretudo daqueles não associados
formar mulheres e tal ensejo foi bem recebido, mas à escola. Para tanto contribuíam várias razões: uma
o projeto era voltado para um público específico: delas é a provável superioridade técnica dos
mulheres humildes, que deveriam auxiliar no mestres “oficiais”; mas vale lembrar que, além
sustento da casa, o que conferia à formação um desse quesito, eram eles próprios figuras
caráter mais técnico do que propriamente dominantes no campo artístico de então, além de
artístico15. docentes e artistas respeitados, figuravam nos júris
dos salões e ocupavam cargos de direção na
Isso, aliás, se alinhava perfeitamente à missão da Academia. Com isso desenha-se uma configuração
instituição, que reconhecia como objetivo bastante específica, na qual os principais espaços
“disseminar pelo povo, como educação, o de formação e consagração no sistema são
conhecimento do belo; propagar e desenvolver, monopolizados pelos mesmos indivíduos.
pelas classes operárias, a instrução indispensável
ao exercício racional da parte artística e técnica É compreensível, assim, que os discípulos dos
das artes, ofícios e indústrias 16 ”. Não se mestres que ocupavam também os cargos de júris,
compreendia ainda a formação artística feminina obtivessem maiores chances de premiação e, com
como algo destinado a todas aquelas que isso, de reconhecimento dentro e fora da escola, o
desejassem se profissionalizar nas belas artes. Por que acarretava ainda mais possibilidades de
sinal, o currículo eclético fornecido pelo Liceu, que conquista de um público consumidor para suas
englobava pintura junto à datilografia e técnicas obras, em suma, as chances de se notabilizarem
de costura, era indicativo disso: arte feminina e se profissionalizarem como artistas eram muito
estava associada à idéia de artesanato, atividade maiores.
que ajudaria as mais pobres a proverem suas
famílias e não como uma profissão intelectualmente Vale notar que no Brasil, onde não havia um
elevada. mercado artístico paralelo à Academia sólido como
na França, participar da ENBA era ainda mais
Além do Liceu, já em meados do século XIX alguns fundamental para as artistas do que para as suas
artistas forneciam aulas particulares para os companheiras européias, isso porque, aqui, a
amantes das artes. Isso possibilitou que, mesmo instituição não apenas centralizava os mecanismos
antes da abertura da ENBA para as mulheres, 37 pedagógicos já apontados, como também
artistas tenham participado das exposições gerais. constituía um espaço central para a consagração
Nos catálogos das mostras figuram ao lado do das carreiras. O pleno ingresso no sistema,
nome das artistas, as alcunhas de seus sobretudo o sucesso obtido nas exposições, era
professores, entre eles contam-se: Ângelo Agostini, um importante capital para viabilizar-se como
Agostinho José da Mota, Julio Mill, José dos Reis artista; “profissão” bastante difícil em um país em
Carvalho e Nicolao Facchinetti.17 que eram poucos os mecenas, raros os
colecionadores e escassas as encomendas
É importante ressaltar que a importância do públicas.
ingresso na Academia incluía, mas também
transcendia, as questões ligadas ao aprendizado Gostaria de concluir apontando alguns limites e
do ofício. Participar da Escola era ainda um contradições da nossa República, particularmente

76
As mulheres na Escola Nacional de Belas Artes

no que tange a uma suposta superação das Profissão artista: pintoras e escultoras acadêmicas (1884-
desigualdades de gênero. Como já foi dito, a 1922), São Paulo, FFLCH-USP, 2004.
2
Academia abriu suas portas para as mulheres Doutora em Sociologia pela USP. Docente da Escola de
Artes, Ciências e Humanidades, USP. Email:
seguindo os sopros de renovação deflagrados com
anapcs@usp.br.
a República. Entre 1890 e 1915, a Escola foi dirigida 3
NOCHLIN, Linda. Why have there been no great women
por uma pessoa, o escultor Rodolfo Bernardelli que, artists?. Art and Sexual Politics. New York: Macmillan
nesse sentido seria uma espécie de “patrono” da Publishinbg Co, 1971.
4
causa feminina. Entretanto, ele e seu irmão, Uma análise mais aprofundada sobre o ingresso das
Henrique, professor de pintura na escola (inclusive mulheres na Academia durante o Antigo Regime é feita
do ateliê feminino), inauguraram um ateliê privado por SHERIFF, Mary. The Exceptional Woman: Elisabeth
Vigée-Lebrun and the Cultural Politics of Art. Chicago/
no bairro de Copacabana que foi, a época, um
London: The University of Chicago Press, 1996. Sobre o
verdadeiro sucesso. modo com que a Revolução Francesa limitou os espaços
oficiais de formação para as artistas, consultar: SIMIONI,
Angione Costa em A Inquietação das Abelhas Ana Paula Cavalcanti. O corpo inacessível: as mulheres e
acentuou a composição majoritariamente feminina o ensino artístico nas academias do século XIX, ArtCultura,
de seu público: “estão ali reunidos os nomes v.9, nº14, jan-jun 2007.
5
femininos mais brilhantes do Rio de Janeiro. GARB, Tamar. Sisters of the Brush. Women’s Artistic
Artistas por temperamento, aquelas moças Culture in Late Nineteenth-Century Paris. New Havens/
London: Yale University Press, 1994.
procuram fazer desenvolver, sob a direção do 6
No original: “que l´Ecole soit ouverte aux femmes dès la
mestre famoso, os brotos incipientes do gênio19”. rentrée prochaine, non pas em créant de nouveaux ateliers,
mais em accordant aux femmes le droit de compter pour
A atuação dos Bernardelli traz uma clara divisão: une fraction dans le chiffre des admissions annuelles,
lecionavam gratuitamente na instituição pública réservées jusquá ce jour aux hommes et de placer ce
especialmente para uma clientela masculina e, em groupe de femmes admises, sous la direction d´um
sua escola privada, cobravam para satisfazer os professeur attaché à l´École et dans um atelier (...) separé
desejos de uma clientela feminina. Exemplo das des autres”. SAUER, Marina. L´Entrée des Femmes à
l´Ècole des Beaux-Arts, 1880-1923. Paris : ESNBA, 1990,
idiossincrasias que tanto atordoaram o crítico
p. 16.
Gonzaga Duque 20 . Os irmãos, ao invés de 7
No original: “[...]aux jeunes filles en commun avex des
abraçarem a causa de ampliação da educação jeunes gens qui ont jusqu’à présent affecté de vivre avec
pública para mulheres, que poderia casar bem com une extrême liberté, inconciliable avec le contact des
os tempos republicanos, optaram por inaugurar o femmes”. SAUER, op.cit., p.18.
8
mais afamado ateliê particular da época. Como No original: “Il était question de rattacher l´Académie des
homens de Estado reconheciam a Academia como femmes à l´Académie des Beaux-Arts. Déjà si l´on
considère les locaux c´est impossible; sans compter que
um espaço “público” nas várias acepções do termo,
les motivations des artistes masculins qui se vouent à l´art
sinônimo de oficial, estatal, gratuito e, ainda que sont en général différentes de celles des dames. Il y a cent
apenas teoricamente, de acesso universal sem ans les jeunes filles devaient savoir coudre et tricoter;
discriminação de classe, gênero ou raça. Mas, maintenant ce sont des machines qui s´en chargent; mais
paralelamente, construíram um ambiente privado jadis cela occupait les dames. Tout naturellement elles
em vários sentidos: pago, doméstico, não oficial e, veulent également exercer une activité aujourd´hui et se
não por um acaso, aquele ambiente era quase jettent donc fréquemment sur l´art. Même si c´est vraiment
un projet sérieux pour 10% d´entre elles, pour 90% ce n´est
exclusivamente feminino.
qu´un passe-temps jusqu´à ce qu´un heureux mari vienne
les enlever à l´art”. Citado por SAUER, op cit, p. 22.
A República, tanto na França quanto no Brasil, 9
Até então, o decreto 7247, de 1879, previa as inscrições
trouxe, no que tange às mulheres, muitas femininas apenas para uma faculdade: a de medicina (que
frustrações. Tanto lá quanto aqui as diferenças de incluía a formação em obstetrícia, uma carreira quase
gênero não cessaram de existir, antes foram exclusivamente “feminina”), com isso as mulheres estavam
reinventadas; as desigualdades foram excluídas de outras profissões, como a engenharia e o
modernizadas21. Desigualdades que perpassam a direito. Consultar Colleção das Leis da República dos
história da arte brasileira até o presente, Estados Unidos do Brasil, 1892. Em trabalho anterior,
Miriam Andrea de Oliveira, já havia apontado a importância
evidenciando-se em suas lacunas, dentre elas, a desse dispositivo para o ingresso das artistas mulheres
do desconhecimento acerca das trajetórias e das brasileiras na instituição, sem deter-se, entretanto, no modo
obras daquelas artistas mulheres atuantes ao longo com que entraram e no tipo de formação a que tiveram
do século XIX e inícios do XX. acesso. OLIVEIRA, Miriam A. As pintoras das Exposições
Gerais da Academia Imperial das Belas Artes e Escola
Notas Nacional de Belas Artes na Primeira República. 180 anos
de Escola de Bellas Artes. Anais do Seminário EBA 180.
1
O presente texto é uma versão bastante resumida do Rio de Janeiro, UFRJ, 1997.
10
segundo capítulo de minha tese de doutorado (Espaços Sobre a trajetória de Julieta de França consultar: SIMIONI,
de formação artística para mulheres no Brasil), intitulada: Ana Paula C. Souvenir de ma carrière artistique: uma
77
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

15
autobiografia de Julieta de França, escultora acadêmica O Jornal do Commercio, ao felicitar a abertura das aulas
brasileira. Anais do Museu Paulista. História e Cultura para o sexo feminino evidenciava o caráter técnico voltado
Material, São Paulo, vol. 15, nº1, Jun. 2007, pp.249-278. a um público humilde que estava na base do projeto: “(...)
11
Livros de Matrícula no Curso Geral e de Pintura (1890- Das aulas depende, talvez, uma revolução pacífica que
1894). Museu Dom João VI, Rio de Janeiro. há de transformar completamente a face moral da nossa
12
O relatório referente ao ano de 1892 não menciona a sociedade, influindo poderosamente nos costumes da
existência de classes distintas, mas bem ao contrário, faz família. A mulher deixará de ser um encargo pesado para
ver que o excesso de alunos em uma única sala, como a ser um auxílio eficaz do marido pobre, uma companheira
classe de desenho figurado, demandava esforço desumano do trabalho, uma sócia na produção de recursos do casal”.
16
por parte do professor. Escreve o diretor: “A freqüência foi Ver DURAND, José Carlos. Arte, privilégio e distinção.
regular em todas as aulas. Porém a de desenho figurado, Artes plásticas, arquitetura e classe dirigente no Brasil,
a mais importante das aulas técnicas do curso geral, 1855/1985. São Paulo: Perspectiva/EDUSP, 1989, p. 63.
17
continuou a ser a mais concorrida. O numero de alunos Para maiores informações consultar SIMIONI (2004),
elevou-se a 72, ocasionando dificuldade ao respectivo op. cit, apêndice 1 (Campo das Mulheres).
18
professor, que não pode dispensar igualmente a cada um Sobre o conceito de capital consultar BOURDIEU,
deles seus conselhos e direções. Torna-se, pois, Pierre. The forms of capital. J. G. Richardson (org.),
indispensável conceder a esse professor um adjunto para Handbook of Theory and Research for the Sociology
o auxiliar nos trabalhos de sua aula [...]” . Pasta IE 7111 of Education. Nova York: Greenwood, 1985, pp. 241-58.
19
[Arquivo Nacional]. COSTA, Angyone. A Inquietação das Abelhas. Rio de
13
Segundo o relatório naquele ano foram 98 os alunos Janeiro: Pimenta de Mello & Cia, 1927, p. 29.
20
inscritos, apenas 8 matriculados e os outros de livre- ESTRADA, Luís Gonzaga Duque. O aranheiro da
freqüência, destes 20 eram do sexo feminino. Pasta IE7 Escola. Contemporâneos. Rio de Janeiro: Typografia
114 [A N] Benedicto de Souza, 1929.
14 21
GARB, Tamar. L´Art Féminin: The Formation of a Critical Uma interessante reflexão nessa direção pode ser
Category in Late Nineteenth-Century France. Art History. encontrada em: BESSE, Susan. Modernizando a
London, nº 1, março 1989, vol.12. desigualdade. Reestruturação da ideologia de gênero no
Brasil, 1914-1940. São Paulo: EDUSP, 1999.

78
As mulheres na Escola Nacional de Belas Artes

79
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

80
Uma grande discussão divide pesquisadores sobre
a obra de Cândido Portinari, visto por uns, como
um pintor moderno e acadêmico por outros. A
aproximação com Picasso é apontada como algo
menor, que contamina a arte de Portinari, mas
também é exaltada como a marca de um passo
decisivo em direção à modernidade. Há os que o
rotulam de “Pintor Comunista”, mas há também os
que afirmam ser ele o “Pintor Oficial” da República
Nova, na antinomia que se aprofunda entre críticos,
pesquisadores e historiadores da arte, quando o
objeto é a produção artística de Portinari e sua
contribuição à modernidade da arte brasileira.

Filho de emigrantes italianos da região do Vêneto,


nascido numa fazenda de café nas imediações de
Brodósqui, em 1903, Portinari foi o segundo de uma
prole de doze filhos e passou sua infância nas terras
férteis de São Paulo, junto aos acampamentos de
nordestinos que chegavam à aldeia para o trabalho
na lavoura de café. Não teve o benefício de receber
uma educação que lhe possibilitasse oportunidades
promissoras, não chegando a completar o curso
primário, indo até a terceira série com as
deficiências naturais do ensino no interior do Brasil
na década de 1910. Sua sensibilidade artística,
porém, levou-o a desenhar desde muito cedo.
a formação acadêmica de portinari e sua
Em 1912 trabalha como ajudante dos pintores de
contribuição à modernidade da arte brasileira
“spolvero”, contratados para pintar cenas religiosas
angela ancora da luz 1 na Igreja local, onde Portinari era coroinha. “Fez
até estrelas no teto da Igreja de Santo Antonio.
Uma experiência inesquecível; pintá-las, lá no alto,
deu-lhe a idéia inicial de uma ingênua cosmogonia”
2
. No ano seguinte auxiliaria os “frentistas”, artesãos
italianos que executavam ornatos em estuque nas
fachadas das Igrejas e das casas do interior do
Brasil. Podemos afirmar que foi esta a iniciação de
Candinho, como era chamado, por sua família, o
menino de dez anos que se tornaria um marco na
pintura brasileira. Desta época é também um
desenho a lápis, o retrato de Carlos Gomes,
possível cópia de outra obra, mas que confirma a
destreza anunciadora de sua arte.

Em 1918, já no Rio de Janeiro, matricula-se na


Escola Nacional de Belas Artes, passando, a partir
de 1919, a freqüentar as classes de Lucílio de
Albuquerque, Rodolfo Amoedo, Chambelland e
Batista da Costa. O atelier livre, aonde se dá seu
aprendizado, propiciava ao estudante que fosse
aceito, a possibilidade de freqüentar as classes sob
a orientação dos grandes mestres da Escola
Nacional de Belas Artes. Uma grande parte de
nossos artistas exponenciais foram alunos de
cursos livres, o que, sem dúvida alguma, era uma
oportunidade sem precedentes para os estudantes
de arte.

81
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

Como se deu, então, a formação acadêmica de especialmente a feminina, sempre o seduzira e,


Portinari? Com Lucílio de Albuquerque cursa as como observa Luciano Migliaccio, seu Estudo de
aulas de Desenho Figurado, cuja importância não Mulher pode ser considerado “o primeiro nu
se pode desconhecer. Lucílio praticou diferentes moderno da arte brasileira”.5 Assim a formação de
gêneros de pintura, mas é com a temática Portinari vai sendo mesclada por um ensino de
paisagística e como retratista que se destacará. apuro técnico, porém ministrado por mestres que
Tais gêneros exigem o domínio da figura humana já não estavam mais engessados aos extremos
que sempre se impôs como uma necessidade rigores acadêmicos.
fundamental, principalmente para a pintura
histórica, tão significativa na obra do artista. Lucílio Chambelland também aceitou Portinari em sua
desenvolve o gosto pelo desenho da figura humana classe. Ele foi um pintor que assumiu sua inserção
e Portinari, ávido pelo aprendizado, absorve, como entre os modernos, defendendo a evolução
terra seca, a irrigação segura do desenho de contínua do artista, o ajustamento ao seu tempo,
Lucílio. Mas, paralelamente ao domínio da regra e ao espírito novo no advento da modernidade,
da norma, que nortearam o ensino do mestre, uma conforme encontramos registrado no depoimento
certa liberdade de expressão já se podia notar no assinado por Angyone Costa:
professor e, mais ainda, a busca da idéia como
fundamento da própria pintura, o que fica patente O pintor moderno precisa reproduzir o rythmo
em sua afirmação: “Não tenho propriamente um da vida que é o movimento eterno. Para
gênero predileto. Pinto com o mesmo entusiasmo conseguil-o, tem de jogar com outros
a marinha e a paisagem. Todavia confesso-lhe que elementos, novas tonalidades, novas
fico mais satisfeito toda vez que realizo um quadro perspectivas. Não é possível pintar a natureza
de idéia, que faça pensar”.3 dentro de paredes, apenas pelo que a nossa
imaginação possa crear. Precisamos ver, sentir,
Aos poucos Lucílio vai se afastando da concepção ao contacto de árvores e águas. O pintor
mais rigorosa da forma, utilizando a espátula para moderno tem a obrigação de dar vida à
criar faturas mais expressivas, enquanto sua paleta paysagem, ensolando-a, illuminando-a,
se ilumina, possivelmente pela procura da pintura fazendo-a vibrar.6
plein-air, que o conduzirá às poéticas
impressionistas. A orientação de um mestre que, Apesar desta visão plurívoca de Chambelland, o
na Academia, se permite buscar novas diretrizes domínio do desenho nunca foi abandonado, sendo
para sua arte foi fundamental para Portinari. reconhecido por seus pares, conforme salienta
Victor de Miranda Ribeiro, Docente de Anatomia
Com Rodolpho Amoedo não seria diferente. Artística da ENBA, no esboço biográfico que está
Amoedo era um professor que, apesar do domínio publicado nos Arquivos de Escola Nacional de
técnico obtido por sua formação acadêmica, Belas Artes. O autor registra “a maestria absoluta”
renovou seus métodos, abandonando a cópia para observada em sua prova de concurso para a
despertar a criatividade pela interpretação direta cátedra de Desenho da ENBA 7 , o que nos permite
do modelo vivo e da paisagem, conforme salienta afirmar que a opção pela pincelada fragmentada e
Alfredo Galvão, acrescentando: leve, pela cor pura que sinaliza a tendência
impressionista, era uma opção poética para
Foi também um precursor, entre nós, do ensino reproduzir “o ritmo da vida”.
de vários processos de ·pintura, ·da
·preocupação ·do conhecimento dos materiais Finalmente, com Batista da Costa, o pintor cuja
usados pelo pintor e do estudo ·dos ·meios ·de inclinação artística foi descoberta aos doze anos,
·conservação e ·restauração de quadros. no Asilo dos Meninos Desvalidos, idade em que
Estudioso, culto e erudito, procurou sempre ingressa na Escola Nacional de Belas Artes, o
melhorar sua capacidade de ensino pelo apuro técnico se desenvolve. Paisagista por
aprimoramento de sua sabedoria sobre estética excelência, Batista da Costa se torna um nome de
e técnica da arte. Não teve dúvidas em seguir referência na Pintura Brasileira, vindo a se tornar
um curso de química para adquirir bases professor e até diretor da ENBA. Mesmo sem
sólidas no campo dessa ciência, quando aceitar o Modernismo, ele é sensível a alunos como
aplicada a cores, aos vernizes e demais Portinari, que já sinalizava sua busca por uma
produtos indispensáveis ao pintor.4 pintura plurívoca, marcada pela exteriorização de
sentimentos e, conseqüentemente, de concepção
Amoedo vai aos poucos subvertendo os códigos mais aberta.
da tradição, sem abandonar a preocupação pela
pesquisa e pelo apuro técnico. A figura humana,

82
A formação acadêmica de Portinari e sua contribuição à modernidade da arte brasileira

A formação de Portinari contribuiu para a definição do quadro e determina o horário noturno do baile.
de sua procura. Queria pintar com o sentimento, Há um certo barroquismo nos contrastes entre a
conforme afirmara tantas vezes, mas sem luz, que revela ou dissolve as figuras, e as sombras
abandonar o figurativismo. Queria uma paleta que que se constituem em massa contínua, no fundo,
pudesse transmitir as cores de seu povoado, algo no chão, nas calças dos homens e, ainda, no
que já não estava mais diante de seus olhos, mas sanfoneiro. Aqui a luz destaca elementos formais
dentro de sua alma, na memória de sua infância e da sanfona e inunda a face do músico revelando-
da sociedade sofrida que conhecera nos lhe o prazer de tocar. Há o negro, de roupa branca,
acampamentos nordestinos. Em tudo, o que que observa a cena, e o homem de cachimbo, na
sustentava o homem, a lavoura, as brincadeiras extrema direita da tela, por onde se dá o corte
das crianças, os espantalhos, enfim, a rica tipologia fotográfico da pintura. A composição não tem o rigor
que arquivara para sempre em sua imaginação, da horizontalidade, mas induz ao equilíbrio. O
junto com o cheiro da chuva e o som do tilintar das próprio Portinari observava que o trabalho fugia aos
moedas que os leprosos levavam em suas parâmetros acadêmicos,“ele o descrevia como um
canecas, tudo o que dava sentido a vida, o quadro expressionista, ou melhor, apresentando
fundamento de todos os elementos era apenas um: traços expressionistas nas diversas figuras caipiras
a terra. do vilarejo paulista.”8 O trabalho foi adquirido por
um colecionador do Rio de Janeiro pela quantia de
Portinari se abre para buscar a modernidade. Na 200 mil réis, o que, à época representava um valor
década de vinte, exatamente em 1922, a Semana expressivo, sobretudo considerando-se que
de Arte Moderna, em São Paulo proclamava a Portinari ainda não era conhecido.
aproximação de um novo tempo, mas Portinari
estava no Rio de Janeiro e a realidade carioca era É importante observar que a formação acadêmica
outra. Não tínhamos uma economia alimentada de Portinari deu-lhe o domínio técnico do desenho
pelos Barões do Café. Nossos artistas vinham de e da pintura, permitindo-lhe realizar retratos por
uma outra esfera social, como Batista da Costa, encomenda, o que lhe propiciou o primeiro sustento
Portinari e tantos mais. As Exposições Gerais, que no início da carreira. Mas vale lembrar que, mesmo
se tornariam os Salões Nacionais de Belas Artes, no contexto da regra e da norma, a tradição nunca
conferiam prêmios de viagem ao exterior. Era a foi seguida cegamente, pois Portinari se alinharia
oportunidade da viagem de estudo à Europa. Havia aos grandes trágicos da poética expressionista.
também o envio de pensionistas da Escola Nacional
de Belas Artes, que já vinha ocorrendo, Em maio de 1925 envia dois retratos para o Salão
regularmente, desde o tempo da Academia da Primavera e concede sua primeira entrevista
Imperial, quando o Prêmio de Viagem ao exterior ao Jornal do Brasil, onde, ele próprio, se revela: “O
foi regulamentado, oito anos após o retorno de alvo da minha pintura é o sentimento. Para mim, a
Araújo Porto-alegre ao Brasil. Assim, a realidade técnica é meramente um meio. Porém um meio
de Portinari não era o que estava acontecendo em indispensável”.9 No ano seguinte concorre, pela
São Paulo, mas o que poderia ocorrer com ele se primeira vez, ao Prêmio de Viagem da Escola
ganhasse a premiação maior. Nacional de Belas Artes com dois retratos que envia
para a grande mostra, mas não é contemplado.
Em novembro de 1922, com dezenove anos, Continua insistindo, pois o desejo de conhecer a
Portinari recebe Menção Honrosa na exposição Europa, mais precisamente Paris, alimentava sua
oficial daquele ano com o retrato do escultor Paulo inspiração e consolidava seus objetivos. Com a
Mazzucchelli. No ano seguinte faz jus à Medalha maturidade que vai adquirindo nas primeiras
de Bronze, com outro retrato e, finalmente, envia exposições, Portinari percebe que deverá visitar um
sete retratos e a tela “O Baile na Roça” para o salão pouco mais, os cânones acadêmicos e, é neste
de 1924. Os retratos foram aceitos, mas “O Baile espírito, que envia para o salão de 1928 três
na Roça” fugia aos padrões da tradicional mostra retratos, um dos quais “Olegário Mariano com o
e não logrou a mesma aceitação. fardão da Academia” que lhe conferirá o prêmio
ambicionado de viagem ao exterior para se
“O Baile na Roça”, óleo sobre tela, possui um fundo aprimorar.
de pinceladas que se diluem, dissolvendo
levemente as figuras que dançam com seus pares. A composição foi estudada meticulosamente por
Recorta-se o primeiro plano mais definido, Portinari. A esguia figura do poeta está centralizada.
prevalecendo a liberdade da mão que contraria as No fundo há uma passagem de sépias para ocres,
normas da pintura acadêmica. Além disso, a cor que permitem o recorte do retrato de Olegário, com
aquece a atmosfera do baile, iluminando os casais. uma leve conotação de dândi. Os cabelos estão
É uma luz de “fogo” que incendeia o foco principal levemente desalinhados, mas o fardão é impecável.
83
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

O olhar fixo no observador, o rosto sereno e o poéticas; a fase marron, o realismo monumental.
colorido da face, onde a luz nos permite Em 1935, pinta a tela “O Café”, que se tornaria
acompanhar o preciso volume do rosto alongado emblemática ao conferir identidade ao seu autor.
atende aos padrões da arte unívoca. Para Manuel Portinari tornava-se cada vez mais conhecido, mas
Bandeira, a concessão que o artista fez ao a fronteira de sua tradição e modernidade dava
academicismo, retrocedendo aos procedimentos margem aos questionamentos que ainda hoje são
que já havia abandonado, conferiu-lhe o prêmio, feitos.
mas resultara numa obra inferior em relação às que
a antecederam.Ele é taxativo ao analisar: Vamos procurar refletir sobre este par antitético,
acadêmico e moderno, tomando como objeto de
Já concorreu mais de uma vez ao Prêmio de reflexão a própria tela “O Café”. A favor da tradição
Viagem do Salão, mas foi sempre prejudicado podemos observar a composição, com os
pelas tendências modernizantes de sua técnica. elementos bem marcados, preenchendo a tela
Desta vez fez maiores concessões ao espírito equilibradamente, sem deixar “vazios”. O
dominante na Escola, do que resultou contraponto da colona, à esquerda com o lavrador
apresentar trabalhos inferiores aos dos outros à direita, tendo, entre eles, os trabalhadores que
anos: mas isto valeu-lhe o prêmio.10 levam em suas cabeças as sacas do grão, e que
estão dispostos de modo a ressaltar o tema, o café.
Mas não foi apenas o cobiçado prêmio que coroou Percebe-se, entretanto, que Portinari procura
seus esforços, pois logo a seguir faria sua primeira solucionar o problema da espacialidade, romper
exposição individual, em 1929, seguindo depois com o cubo perspéctico, procurar trabalhar a tela
para Europa, a fim de usufruir a bolsa. Seu desejo em sua planaridade, mas isto não acontece. Para
era observar, saturar seus olhos e alma de tudo buscar esta solução, Portinari eleva a linha do
que se fazia na França, o grande centro de horizonte e a coloca fora da tela, acima da parte
produção artística de seu tempo. Portinari oscilava superior do quadro. É interessante cotejarmos esta
entre a tradição dos antigos e a revolução dos obra com outra, a de Paolo Ucello, “A Batalha de
modernos. Em carta para Olegário Mariano ele San Romano”, exemplo clássico de uma pintura
confidencia que cada vez mais ficava patente a renascentista, quando se buscava construir o
supremacia dos antigos, mas logo vai acrescentar espaço tridimensional, pesquisa que teve em Ucello
que existiam modernos esplêndidos. Em visita a um de seus grandes teóricos. Nesta obra o pintor
Londres surpreende-se com os museus que também eleva a linha do horizonte e a deixa
percorre durante o dia, e com os teatros, que escapar para além do quadro, mas não para romper
freqüenta a noite, sempre que possível. Questiona- com o espaço, e sim para procurar equacioná-lo,
se sobre os grandes pintores, conforme sua construindo-o tridimensionalmente. Portinari queria
avaliação, como Giotto. A questão era saber o que romper com este espaço, que Ucello havia
o teria feito grande se, fatalmente, Giotto não teria trabalhado em sua construção. Assim, partindo de
visitado museus nem assistido as peças de teatro. pólos opostos eles se aproximam, conforme
Portinari percebe a importância da vida destes observamos no preenchimento de toda a tela, nos
artistas no seio do seu povo e desperta nele o ritmos marcados pela lanças da Batalha de San
desejo de viver de volta com a sua gente, enquanto Romano e nos pés de café com os trabalhadores,
se encontra com sua própria interioridade. que demarcam o terreno de onde surgem.
Foram poucos os trabalhos realizados durante sua A favor da modernidade está a morfologia trágica
estadia na Europa, o que lhe ocasionou severas do pintor brasileiro. Os corpos escultóricos, os pés
críticas no seio da Escola Nacional de Belas Artes, ciclópicos e os braços agigantados dos heróis da
e nas considerações dos colegas sobre a sua terra, os plantadores de café. Um realismo
produção. No entanto, após o seu retorno, já monumental que foge aos parâmetros da Academia
casado com a jovem uruguaia que conhecera em e proclama a liberdade da forma. É plausível
Paris, Maria Martinelli, ele pinta compulsivamente, admitirmos que Portinari nunca rompeu com a terra
na ânsia de devolver em cores o que a sensibilidade e, conseqüentemente, não chegou à pintura planar,
absorvera nas paredes dos museus e nos ateliês espelhada. Este é o traço da tradição que confunde
que conhecera. Participa do Salão Revolucionário tantos estudiosos. A tridimensionalidade
de 1931, organizado por Lúcio Costa, do qual foi preservada testifica a relação do pintor com a terra.
membro da comissão organizadora, ao lado de Nos afrescos que realizaria, como A Entrada, A
Anita Malfatti, Celso Antonio, Manoel Bandeira e catequese, O garimpo e os não menos famosos
do próprio diretor da ENBA. Portinari se insere entre murais do Salão de Audiências do Palácio Gustavo
os modernos e era aceito como um deles. Inicia Capanema (MEC), Pau Brasil, Cana de açúcar,
uma fase que o identificará no contexto de suas
84
A formação acadêmica de Portinari e sua contribuição à modernidade da arte brasileira

Gado, Algodão, Erva mate, Café, Cacau, Ouro, O pintor expressionista recolhe de seu interior o
Fumo, Ferro, Borracha e Carnaúba, todos, sem próprio mundo que é construído a partir das
exceção têm como ponto comum a riqueza do solo relações humanas que estabelecemos. Como
brasileiro, a economia que circula através da terra, encontramos no manifesto literário de Kasimir
passando pelo braço do trabalhador. Portinari Edschmidt, a mão do artista expressionista
constrói a nação sobre o alicerce da própria terra. atravessa os fatos para encontrar o que existe além
Não seria possível, ao pintor, romper com esta deles, pois a realidade só acontece no interior do
identidade que o ligava à Brodósqui, às plantações homem, não mais no mundo externo, na grande
de café e aos Retirantes nordestinos. Ao preservá- paisagem que olhos físicos possam contemplar. O
la ele não poderá permitir a desconstrução do artista torna-se um profeta, o arauto de todos os
espaço, pois esta eliminaria a base de sustentação oprimidos, revelando a verdade, expondo o homem
de todo o seu ideário, ou seja, a terra. na sua humanidade.

A terra velha e enferma sorve/ O escasso A força do expressionismo manifestou-se com tanto
líquido...em Alguns trechos o solo estava morto/ vigor no traço e na morfologia trágica de Portinari,
Homens simples, homens máquinas/Dão tudo que o libertou de uma outra força, não menos
e morrem para mantê-las / vivas. Nuvens significativa, que fora a influência de Picasso em
amigas de vez em/ quando os ajudavam. Há sua obra, como se comprova na Série Bíblica
semelhança/ Entre eles. Aquele lavrador realizada em 1943-1944. Ainda hoje, o rótulo de
parecia/ O velho pé de café, outro escalavrado “Picasso brasileiro” para identificar nosso artista é
como a terra da Fazenda/ pobres criaturas, lembrado por alguns, o que, efetivamente é
pobres lavouras/ Um dia plantaremos sementes improcedente. Se a influência cubista aconteceu,
desta gente de paz. 11 ela se deu pelo viés de Guernica, ou seja, já
identificada com o expressionismo, como se
A relação de Portinari com a terra é tão importante observa nos painéis: Jó, O Massacre dos inocentes,
que ele a humaniza, equacionando seus termos A ressurreição de Lázaro, O profeta, O sacrifício
na igualdade que estabelece entre lavradores e pés de Abrahão, As trombetas de Jericó e O pranto de
de café. O próprio artista se via como tal. “Por que Jeremias, pertencentes ao acervo de Assis
não caminho? Úmido e/ escalavrado, gosto de terra Chateaubriand, hoje no MASP.
dentro de mim/ apagado e destruído”.12
O próprio Portinari não ocultava as influências
Sua medida é a terra e sua preocupação socialista, sofridas ao longo de sua carreira, como o impacto
visível na motivação de sua pintura, não iria da obra de Goya, outro artista de índole
acontecer como conseqüência de seu engajamento expressionista e a tragicidade de Mathias
político, que se confirma na filiação ao Partido Grünewald, pintor do Renascimento alemão. O
Comunista, nem se daria pelo conhecimento da interessante é que, mesmo nas obras que
ideologia de Marx e Lênin. Conforme observou compõem a Série Bíblica, de aproximação cubista
Antonio Bento, a aproximação do artista com as e morfologia picassiana, o chão não foi anulado.
causas socialistas penetrou em sua alma “pela Portinari cria uma base de sustentação para suas
propaganda de Prestes saído da prisão pregando imagens, mantendo a referência da terra. O mesmo
a necessidade de distribuir terras aos camponeses se pode verificar numa outra aproximação, esta,
miseráveis”.13 A justa distribuição de terras era o possivelmente a menos discutida e a mais
escopo de sua ideologia, distante de qualquer interessante, segundo nossa observação. Trata-se
teorização ou princípio filosófico. da influência de Mathias Grünewald, que teve sua
obra visitada por Portinari através de reproduções
Em 1946 Portinari expõe na Galeria Charpentier, em livros, ao longo de sua vida, e para quem
em Paris, a série dos Retirantes, que se tornaria Portinari vai dedicar dois poemas, tamanha a
obra de referência da Pintura Moderna Brasileira. admiração que nutria pelo pintor alemão. Vamos
Ele compõe os tipos de acordo com as imagens nos deter na mais representativa de suas obras, o
fixadas em sua memória. As famílias nordestinas, Retábulo Isenheim em Colmar, na Alsacia. Três
dos grupos que chegavam em São Paulo para o meses antes de sua morte Portinari, desejou
trabalho na lavoura, reunidas no mesmo destino profundamente conhecer a pintura, chegando a
trágico sobre o chão escaldante. Portinari lera, viajar para a Europa com este propósito, pois queria
também, Vidas Secas, de Graciliano dos Ramos, vê-la, mesmo com a visão escurecida pela doença.
o que, possivelmente o tenha ajudado a criar a A Igreja estava fechada e Portinari não conseguiu
atmosfera trágica da terra nordestina, no contexto entrar, escrevendo ali mesmo, no dia 1 de
de uma poética expressionista.

85
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

novembro de 1961, seu recado poético ao colega que ele diminuísse para que o Messias crescesse.
de tantos séculos. A teatralidade da cena, com a mão de João Batista
apontando para a cruz, testificando o cordeiro que
Grünewald: ele viera anunciar, obriga o olho do observador a
se fixar no gesto, criando o equilíbrio, apesar de
Tanto te conheço/ tanto te vi e não/ te vi. não existir a simetria absoluta.
Viajei mares/ Enfrentei tempestades/ calor e
frio. A maldição/ está comigo. Conheces-a/ Em Portinari, muitos desses recursos podem ser
breve estarei contigo/ já não há espaço/ o fogo, observados. Na obra “Jesus entre os doutores”, de
as espadas de aço/ a loucura e o lodo/ cobrem 1957, o eixo vertical da obra passa pelas mãos do
as flores/ as vozes da brisa sumiram /o bem é Cristo entre os doutores. Aqui, também o grupo de
teu, permanecerá/ malditos eles donos do mal/ doutores à esquerda, composto de cinco
não existirão/ Ah, mesmo cego, olharei teus elementos, tem um peso maior que o casal, Maria
olhos. 14 e José, à direita, porém, a aura branca que envolve
a cabeça de Jesus, perceptualmente continua
Vamos tomar o retábulo de Isenheim para a reflexão naquela que envolve Maria, deslocando o olhar do
necessária sobre sua importância na construção fruidor para estes pontos luminosos e, assim
da pintura de Portinari, procurando identificar as promove o equilíbrio, apesar da assimetria.
aproximações que o levaram a buscá-lo a ponto
de “viajar mares” para ver a obra e, na frustração Na gravura dos Retirantes, obra de 1939, esta
do impedimento, desabafar: “tanto te conheço, aproximação já se verificava. Aqui, o eixo vertical
tanto te vi e não te vi!” da composição passa pela figura central da retirante
de longa veste e pés descalços. A face é trágica,
O retábulo foi pintado, possivelmente entre 1513 e marcada pela máscara do sofrimento. A luz recorta
1515, em atendimento à encomenda da Ordem de a vestimenta como se fosse um vento soprando
Santo Antonio para a Igreja do Monastério da da direita para a esquerda. Existem três elementos
mesma Ordem, que possuía um hospital cuja no lado esquerdo e dois no direito, sendo que estes
finalidade era o tratamento das doenças de pele, foram enfatizados por esta luz diagonal, que atrai
principalmente as causadas pela lepra e pela sífilis. o olhar do observador.
Assim, Grünewald deveria pintar a cena da
crucificação, na parte central do tríptico, tomando Os Espantalhos de 1940 é, ainda, um outro
o corpo de Cristo como objeto da materialização exemplo entre tantos que poderíamos apresentar.
de todas as escaras e chagas que causavam Existe uma referência simbólica ao Gólgota, na
sofrimento. O tratamento começava diante do altar, composição dos três espantalhos, como
na materialização da doença, sendo levada através crucificados. Dois deles estão à esquerda, em
do corpo do Senhor na cruz. A cena é trágica. A primeiro plano, fincados na terra que se divide numa
enorme cruz mostra-nos o travessão vertical mais faixa escura. Para além dela, o outro espantalho,
escurecido, possivelmente de cedro, que era como o “mau ladrão” está separado. Do ponto de
utilizado para tratar a lepra, como assegura Albert vista composicional ele está à direita e ao fundo.
Elsen.15 O contraponto de João Batista, à direita Portinari obtém o equilíbrio da obra pelos elementos
da cruz e João Evangelista, o discípulo amado, deste plano posterior, um recorte da paisagem de
junto com Maria, mãe do Senhor e Maria Madalena, Brodósqui, em continuidade ao último espantalho.
todos à esquerda, é colocado de modo a enfatizar Nesta obra, percebe-se uma impregnação
valores simbólicos e até hierarquizados, como surrealista nos elementos da terra amarelada e
comprova o tamanho de Maria Madalena em luminosa e no céu que cria o limite da curvatura
relação a João, por exemplo. A cruz está fincada da terra.
no chão, no centro da pintura, permitindo a
visualização da terra escurecida, ao fundo, em Em todos os exemplos o espaço cúbico pode ser
direção da linha do horizonte. O espaço é percebido, o que nos testifica o contexto da
renascentista, como também a composição, com tradição, num modelo mais acadêmico. Contudo,
o equilíbrio das figuras. Apesar de haver um peso a morfologia trágica de Portinari se estabelece nas
maior à esquerda, pelo conjunto de pessoas em figuras expressionistas, quer pelo pathos de seus
relação à figura solitária de João Batista, à direita, personagens, quer pelos corpos opilentos ou pelos
existe uma harmonia de elementos na cena, pois pés ciclópicos de seus retirantes que teimam em
o artista coloca o cordeiro branco com uma viver. Neste aspecto, elas se inscrevem nas
pequena cruz aos pés daquele que era conhecido poéticas vanguardistas. Da mesma forma que
como “a voz que clamava no deserto”, que Grünewald estabelece sua composição tirando
apontava para o Cristo, afirmando ser necessário partido de compensações de pesos para criar o

86
A formação acadêmica de Portinari e sua contribuição à modernidade da arte brasileira

equilíbrio, Portinari também trabalha criando tais mundo é conflitante e sua imitação resultará na
compensações e com o mesmo objetivo. Se no tragédia. Portinari busca seus heróis na memória
artista alemão o corpo do Cristo foi o suporte da do seu povoado, e reconstrói, com sua imaginação,
maldição, nas múltiplas chagas que deformaram a verdade que procura de acordo com o
seu físico, aproximando sua pintura do pensamento social próprio da cidade que é a
expressionismo como categoria universal, também matéria trágica. Podemos compreender melhor,
em nosso artista, encontramos as deformações, partindo desta reflexão, a presença da terra em sua
os ventres que se avolumam pelas verminoses obra: dos trabalhadores que a lavram, das crianças
contraídas e os corpos que são devassados numa que jogam bola, dos espantalhos que nela se
visão de raio X. Mesmo cobertos de uns panos enraízam como árvores, dos retirantes que vinham
sujos e rasgados eles remetem para o esqueleto com suas trouxas e embrulhos, enfim, Portinari
da figura, para o esfolamento da carne. sempre esteve na presença deste homem heróico,
vivendo o momento de sua queda, da desdita,
Mas se a liberdade de Portinari levou-o ao encontro agindo sobre o mundo para transformá-lo,
do expressionismo, por outro lado, fiel a terra, ele caminhando na terra para pagar a diké, justiça
não eliminou as linhas de fuga e manteve o seu divina que poderia suprimir o conflito. Então
olhar paralelo à linha do horizonte, conforme se observamos que o ensino tradicional que plasmou
observa nos estudos preparatórios que realizou a sua formação acadêmica no desenho e na
para suas pinturas, garantindo a presença do chão pintura, não pode frear o ímpeto de liberdade que
e, com ele o espaço perspéctico. o levou a construção de uma humanidade
alquebrada e desvalida que se aproximava da
Há uma dupla tensão em sua obra. Por um lado realidade social de nosso país, pois, no novo quadro
ele buscou o espaço cúbico, em conformidade com trágico, o herói deixara de ser o modelo, o cânone,
as regras acadêmicas, mas por outro rompeu com para tornar-se um problema para si e para a
estas mesmas normas em relação ao tratamento sociedade. Como pintor expressionista ele não
canônico da figura humana. Perseguiu o equilíbrio retrata o mundo exterior, mas o atravessa para
da composição, mas através da tortura das formas. alcançar o que está em seu próprio interior, na
Trabalhou com a memória e se inseriu no rol dos tortura das formas, na deformação nervosa de suas
grandes trágicos da pintura brasileira. Creio que figuras de pés ciclópicos assentes sobre a terra. O
este é o ponto que o identifica como artista espaço renascentista, em sintonia com a tradição
moderno. A preocupação social, que se observa acadêmica de seu aprendizado, abriga a morfologia
em sua temática, exaltando os grupos menos trágica dos tipos mais diversos de nossa
favorecidos da nação que se construía, não o brasilidade, fazendo de Portinari o artista moderno
impediu de aceitar o acolhimento de Capanema, da tradição clássica, ou, o mais representativo
na era Vargas, para se tornar o pintor oficial da acadêmico da modernidade brasileira.
República Nova. Esta que, por sua vez, se opunha
aos comunistas dos quais Portinari era um deles. Referências bibliográficas
Creio que a identidade de Portinari não deva ser
procurada nestes trajetos, por demais esgotados BARATA, Mário et al. Arquivos. Escola Nacional
e superficiais, antes deveríamos voltar ao ponto de Belas Artes. Oficina Gráfica da Universidade
da crítica de Germain Bazin, em 1946, que me do Brasil. 1958.
parece ter vislumbrado com muita sensibilidade a BENTO, Antonio. Portinari. Rio de Janeiro: Leo
poética de Portinari. Christiano Editorial Ltda. 2003
CAMPOFIORITO, Quirino et al. Arquivos. Escola
Mas o milagre de Portinari é que tudo nele é Nacional de Belas Artes. Oficina Gráfica da
verdade, tanto na forma como no fundo. O fato Universidade do Brasil. 1961.
novo de sua arte é a interação do humano num ELSEN, Albert. Los propósitos dela arte. Madrid:
estilo moderno. Se o assunto nos comove, é Aguilar, S. A Ediciones. 1971
por ser transmitido numa caligrafia trágica; GALVÃO, Alfredo et al. Arquivos. Escola Nacional
contrastes veementes de tom, dilaceramentos de Belas Artes. Oficina Gráfica da Universidade
da linha, seccionamento das formas que, sem do Brasil. 1957.
respeito pela figura, recompõem uma LUZ, Angela Ancora da. A fabulação trágica de
humanidade alquebrada pela dor.16 Portinari na fase dos Retirantes. Rio de
Janeiro:UFRJ-IFCS.
Dois pontos são fundamentais para a tragédia: o ________. Uma breve história dos Salões de Arte
homem e o mundo. Só podemos compreender o - da Europa ao Brasil. Rio de Janeiro: Caligrama.
homem no cenário do mundo e este só existe na 2005.
presença do homem. A ação deste homem no

87
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República
2
BENTO, Antonio. Portinari. Rio de Janeiro: Leo Christiano
PEREIRA, Sonia G. (org.). 180 nos de Escola de Editorial Ltda. 2003. p.30
3
Belas Artes. Anais do seminário EBA 180. Rio de http://www.pitoresco.com/brasil/lucilio/lucilio.htm
Janeiro: EBA/UFRJ. 1996. (consultado em 17/02/2008)
4
GALVÃO, Alfredo. Arquivos. Escola Nacional de Belas
________. 185 anos de Escola de Belas Artes. Artes. Oficina Gráfica da Universidade do Brasil. 1957. p.6
Rio de Janeiro: UFRJ. 2001/2002. 5
http://www.dezenovevinte.net/artistas/ra_migliaccio.htm
VALLE, Arthur G. A pintura da Escola nacional (consultado em 17/02/2008)
de belas Artes na 1ª República (1890-1930): da 6
http://www.dezenovevinte.net/artigos_imprensa/
formação do artista aos seus modos estilísticos. artigos_ac_arquivos/rc_entrevista.pdf (consultado em 17/
Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação 02/2008)
7
em Artes Visuais. EBA/UFRJ. Rio de Janeiro. Março RIBEIRO,Victor de Miranda. Arquivos. Escola Nacional
de Belas Artes. Oficina Gráfica da Universidade do Brasil.
de 2007. 1961. p.140.
8
BENTO, Antonio. op.cit. p. 36
Sites consultados 9
http://www.portinari.org.br/ppsite/ppacervo/cronobio.pdf
(consultado em 18/02/2008)
h t t p : / / w w w. d e z e n o v e v i n t e . n e t / a r t i s t a s / 10
Id. Ibid
ra_migliaccio.htm 11
PORTINARI, Cândido. Poemas. Rio de Janeiro: Livraria
http://www.dezenovevinte.net/artigos_imprensa/ José Olympio Editora. 1964. p. 70
12
artigos_ac_arquivos/rc_entrevista.pdf Id. p. 77-78.
13
http://www.pitoresco.com/brasil/lucilio/lucilio.htm BENTO, Antonio - op.cit. p. 299
14
LUZ, Angela Ancora da. A fabulação trágica de
http://www.portinari.org.br/ppsite/ppacervo/
Portinari na fase dos Retirantes. Rio de Janeiro:UFRJ-
cronobio.pdf IFCS. P.51
15
ELSEN, Albert. Los propósitos dela arte. Madrid:
Notas Aguilar, S.A Ediciones. 1971. p.60
16
1
Angela Ancora da Luz - Historiadora e Crítica de Arte. BENTO, Antonio - op.cit. p. 344
Mestrado em Filosofia (Estética) e Doutorado em História
(Cultura). Diretora da Escola de Belas Artes da UFRJ.

88
Os artistas que não participam ou contrariam o
academismo são minorias isoladas
antecipadoras de eventos e não protagonistas
dos tempos cada vez mais governados pela
burguesia de poucos e não iluminados ideais.
(Pietro Maria Bardi)1

A transposição dos valores acadêmicos europeus


para o Brasil tem sido constante preocupação de
especialistas, particularmente, nas áreas artística
e histórica, além de objeto e tema de inumeráveis
e valiosos estudos e textos, que resultaram de
profundas reflexões, análises e pesquisas. Porém,
deve-se ponderar que ainda são ausentes estudos
específicos sobre a contribuição dos pintores
acadêmicos de origem nordestina. Estes artistas
teriam alguma participação no cenário artístico
nacional? A quais valores estariam ligados? Quais
as condições oferecidas a esses pintores no século
XIX? E, principalmente, qual o legado atribuído aos
pintores acadêmicos nordestinos, atuantes no
século XIX?

Com a chegada D. João VI em 1808 foram


efetivadas profundas mudanças no cenário cultural
da colônia. A transferência da corte bragantina para
o Brasil contribuiu para que houvesse um
desenvolvimento acentuado, pois permitiu a criação
acadêmicos e isolados - cenário artístico no
de entidades culturais como a Biblioteca Nacional,
nordeste brasileiro - século xix
Teatros, Conservatórios de Música, Liceus e
dalmo de oliveira souza e silva Academia de Arte, favorecendo continuamente a
cultura leiga. O Rio de Janeiro tornou-se um centro
de atração para artistas e estrangeiros que
buscaram a efervescência cultural da corte
brasileira.

Em 1816, o monarca trouxe para o Brasil, pintores


e escultores comprometidos com o ideal
acadêmico. Ao implantar, uma formação artística
padronizada, sustentada pelo ensino prático (aula
de desenhos de observação e cópias de moldes) e
teórico (geometria, anatomia, perspectiva, história
e filosofia), o Academismo configurou-se em um
sistema poderoso, que envolveu todo o circuito de
arte nacional. Além do ensino, a Academia Imperial
de Belas Artes do Rio de Janeiro era responsável
pela organização de exposições, concursos,
prêmios, pinacotecas e coleções, controlando a
atividade artística e a fixação rígida de padrões de
gosto.

Trazido pela Missão Artística Francesa, o


arcabouço acadêmico serviu de base para a
implantação da proposta das belas-artes. Rompeu
com a visão de arte como artesanato, com a idéia
de gênio movido pela inspiração divina ou intuição
e talento individual. A partir de suas concepções
originaram-se normas e regras do ensino,
hierarquizando gêneros artísticos (retratos,

89
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

paisagens, naturezas-mortas e a pintura histórica) transgressão significava em uma tentativa de


e temas. Destacaram-se na Missão Artística implementar pesquisa para novos temas, seguindo
Francesa, artistas tais como: Nicolas-Antoine novos rumos da pintura, interpretando e registrando
Taunay, Félix-Émile Taunay, Jean-Baptiste Debret, em suas telas o ambiente brasileiro. Contudo,
Auguste Taunay e Le Breton (chefe da missão). esses artistas tiveram que enfrentar as condições
Estes pintores buscaram retratar o cotidiano da sócio-econômicas e, por conseguinte culturais, da
colônia de uma forma romântica, idealizando a região.
figura do índio e ressaltando o nacionalismo e as
paisagens naturais. Com o fim do monopólio açucareiro na região
Nordeste, o eixo econômico e sócio-cultural
O ensino artístico acadêmico era propedêutico e deslocou-se para o centro-sul do país – uma faixa
instável, muitas vezes ligado a uma inércia que se estendia de Minas Gerais ao Rio de Janeiro,
administrativa, pois como instituição dependia passando por São Paulo. Primeiro o café, durante
diretamente do incipiente aparelho administrativo o século XIX e depois, a industrialização durante o
imperial. Por tal razão, era difícil descentralizar esse século XX, transformaram essa região em pólo
ensino e disseminá-lo em outras partes do território financeiro nacional, condenando a vida intelectual
nacional. O desenvolvimento dos cursos da do Nordeste a um certo isolamento do restante do
Academia Imperial de Belas Artes do Rio de país.
Janeiro, como também a vantagem de
aperfeiçoamentos no exterior, atraía a atenção de As províncias nordestinas não conseguiam dar o
jovens artistas das províncias nordestinas para o suporte necessário aos seus artistas que, por sua
centro da corte brasileira. vez, procuraram os centros mais adiantados para
o aperfeiçoamento da técnica. Essa solução era
Diversos pintores migraram para o Rio de Janeiro adotada por muitos pintores do século XIX e início
(centro administrativo e cultural do país), pois do XX, que saíram de suas cidades à busca de um
sentiam que desse modo estariam mais próximos ambiente, no qual pudessem absorver do meio
das novas tendências européias. Esses jovens cultural e artístico o que havia de mais novo,
pintores eram submetidos: a longos e estafantes assegurando-lhes um espaço para o sucesso.
cursos, à cópia de gestos e anatomias de modelos,
segundo os ensinamentos dos mestres, Durante a segunda metade do século XIX, as
prolongando-os depois nos centros artísticos da Escolas de Arte do Nordeste não tiveram a sua
época. expressão na vida artística nacional, se
comparadas as Escolas de Arte do Rio de Janeiro.
Porém, a grande ambição desses artistas era O meio acanhado e hostil, não oferecia melhor
mesmo o reconhecimento nos ateliês da Europa. ambientação para o desenvolvimento das Artes
Partiam quase sempre após a obtenção de uma Plásticas do Nordeste. Alguns artistas, pintores,
bolsa de estudos concedida pelo imperador e, em gravadores e escultores tentaram implementar
Paris, onde se concentraram, mantinham ligações escolas e ateliês na região, porém as tentativas
com mestres como Jean-Léon, Gêrome, Alexandre isoladas não conseguiram constituir um meio
Cabanel, Jules Lefebre, Robert Fleury. Antoine artístico sólido e tão pouco uma Escola de Arte,
Vollon e Léon Bonnat, originando uma mútua nos moldes acadêmicos.
ligação da École de Beaux Arts com artistas
brasileiros. Na Bahia havia uma vida artístico-cultural
diferenciada, pois com a velha condição de capital
Ao retornar, eram considerados “revolucionários”, da colônia, a região possuía estabelecimentos
pois traziam consigo o espírito dominante da voltados ao ensino das artes. Entre os mais antigos
Europa, impondo o formalismo neoclássico estava a Sociedade de Belas Artes (1856),
segundo o qual só era permissível pintar-se a partir objetivando desenvolver as aptidões dos escolhidos
de fórmulas rígidas que, vindas do barroco francês, da intelectualidade baiana. Através dessa
postulavam que a arte devia obedecer a leis tão Sociedade, o governo da província enviou
absolutas como aquelas que regiam a matemática. diretamente para a Europa pintores, como
Francisco Muniz Barreto Filho– primeiro artista
A pintura no Nordeste registrou, através dos anos baiano subvencionado pelo Estado, no século XIX.
imperiais, as mais variadas fases e estilos. Das O Liceu de Artes e Ofícios (1872) também se
linhas neoclassicistas ao realismo acadêmico da apresentava como opção aos jovens baianos.
segunda metade do século XIX, os artistas Porém, somente a Academia de Belas Arte (1876)
nordestinos apresentaram sinais de uma tendência forneceu as bases para o desenvolvimento da
romântica e realista. Para esses artistas, a pintura acadêmica na Bahia.

90
Cenário artístico no nordeste brasileiro – Século XIX

Os pintores mais representativos da Escola Neste sentido, o papel desenvolvido pelos Centros
Acadêmica na Bahia na segunda metade do século Oficiais de Arte do Século XIX propôs uma
XIX foram Antonio Lopes Rodrigues (1854-1910) e continuidade do modelo canônico oferecido pelas
Francisco Terêncio Vieira de Campos (1865-1920). academias, reproduzindo a visão burguesa de arte
Este último aluno da Academia Imperial de Belas e contribuindo assim para a formação artística dos
Artes, discípulo de Vitor Meirelles e J. M. de pintores que procuravam nestes “centros oficiais”
Medeiros. Outros pintores como Olavo Batista a manutenção e o status quos de representante
(1865-1930), Robespierre de Farias e Manoel da classe dominante.
Lopes Rodrigues (1861-1917) também contribuíram
para a formação do ambiente artístico baiano do É possível encontrar algumas referências sobre a
século XIX. Deve-se ressaltar que muitos deles obra de Pedro Rodrigues Fróes, antecessor de
receberam subvenções para seus estudos no Rosalvo Ribeiro. Pedro Rodrigues Fróes foi
exterior e eram freqüentemente protegidos pelo protegido do Imperador Pedro II, sendo único artista
Imperador Pedro II. alagoano coberto por tal honraria. Manoel Teixeira
da Rocha (1863-1941), foi outro pintor, que
A movimentação artística na Bahia foi mais densa antecedeu a Rosalvo Ribeiro na região. Porém,
e vigorosa do que nas demais regiões nordestinas. após aperfeiçoamento no requintado ambiente
A emergência de artistas significativos para o europeu, Teixeira Rocha, não retornou ao pacato
desenvolvimento das artes plásticas e a panorama alagoano, fixando residência no Rio de
constituição da primeira Escola de Belas Artes Janeiro.
tornaram-se grandes contribuições baianas.
Salvador também não correspondia ao centro Em 1886, Rosalvo Ribeiro ingressou na Academia
artístico brasileiro. Muitos pintores nordestinos viam Imperial de Belas Artes, no Rio de Janeiro, graças
na Academia Imperial de Belas Artes, no Rio de à pensão aprovada pela Assembléia Provincial de
Janeiro, o chamariz cultural mais avançado da Alagoanas. O artista destacou-se pelo empenho e
época, como também vinha de lá a possibilidade aproveitamento notável, levando o governo do
de obtenção de bolsas de estudo no estrangeiro. Estado a financiar seus estudos em Paris. O jovem
artista matriculou-se na Academia Julian, a mais
Em Sergipe o isolamento artístico é ainda maior: famosa das Escolas de Arte da capital francesa.
sem escolas, sem mestres, sem exposições e,
principalmente sem recursos que pudessem Após viver treze anos em Paris, Rosalvo Ribeiro
incentivar as vocações artísticas o ambiente não regressou ao Brasil, em 1901. Havia sido uma longa
era propício a emersão de novos artistas. Porém, permanência na Europa, sob a influência “Art
isso não impediu que talentosos pintores surgissem Nouveau”. O país tinha passado por
em solo sergipano. Deulhe Horácio Pinto da Hora transformações, entre elas a substituição da
(1853-1890), cedo despontou para a vida artística, monarquia pela república. A antiga Academia
executando trabalhos de boa qualidade e esmero. Imperial aposentara os velhos acadêmicos e a
Foi bolsista do Governo Provincial, estudando na monumental pintura histórica, adaptando o
França com Justin Lequele, na Escola Municipal e programa do ensino artístico às novas diretrizes
na Escola de Belas Artes de Paris. Produziu políticas. Porém, a longa permanência na Europa,
inúmeros retratos de personalidades locais, além fizera de Rosalvo Ribeiro um “estrangeiro dentro
de paisagens e naturezas-mortas, garantia de sua de sua própria terra”. Acusado de “francesismo”,
sobrevivência. Outro pintor alagoano de destaque Rosalvo Ribeiro foi uma voz isolada na região, mas
foi Oséas Santos. Freqüentou a Academia Imperial que sempre testemunhou a respeito do legado
de Belas Artes do Rio de Janeiro e foi um excelente deixado pela estética acadêmica no país.
retratista e pintor do gênero. Solicitou da
Assembléia Legislativa de Sergipe subvenção para Engrossando a fila dos artistas que nascidos em
estudar na Europa e nada conseguiu. torno de 1890 , intensifica-se na nova geração que
procurou efetuar o tímido clareamento da paleta ,
Assim como os outros Estados do Nordeste, a a mudança do tratamento pictórico , aceitando só
pintura acadêmica em Alagoas iniciou-se em fins então as formulações inovadoras dos
do século XIX e meados do século XX, com a figura impressionistas. Embora pode-se comprovar
de Rosalvo Ribeiro (1867-1915), considerado um mudanças sensivelmente renovadoras , fica
expoente da pintura na região alagoana e um dos constatado que o meio e a época vivida pelo pintor
poucos pintores, oriundo da região, com projeção não contribuíram para a total e completa ruptura
nacional no cenário das artes plásticas nacionais. com o passado artístico.

91
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

Misturando na sua paleta as tintas com os permaneceram em ambiente hostil por longo
dissabores encontrados no meio alagoano , os período. A postura desses artistas muitas vezes
retratos que decoram as paredes encardidas das provocou escândalo na sociedade nordestina, pois
repartições públicas em Maceió , diferem daqueles os aspectos provincianos daquela população não
executados no atelier parisiense. São conseguiam reconhecer os preceitos estéticos que
predominantemente frios e impessoais ao mesmo acompanham esses acadêmicos isolados. E assim,
tempo carregados de sentimentalismos , pagos embora relegados pelo abandono, estes pintores
ainda por uma clientela sustentada pela cana de deram a sua contribuição ao álbum da pintura do
açúcar. século XIX.

O espírito burguês retraído e intimista do pintor Referências bibliográficas


alagoano ficaram alheios para as vivas aptidões
da paisagem exuberante nordestina , mas deixando AMARAL, Aracy. O Nacional na Arte. Artes
como registro algumas “Marinhas” que provam o Plásticas na Semana de 22. São Paulo:
seu talento , baseado agora com mais precisão na Perspectiva, 1970.
observação da luz e cor , tal como aparecem na AULER, G. D. O Imperador e os Artistas. Tribuna
natureza , ao contrário daquelas apuradas formas de Petrópolis. Petrópolis, 1955.
de representação . BARATA, M. Artes Plásticas no Brasil. LEICHT, H.
História Universal da Arte.São Paulo:
Nas valiosas afirmações que atestam a qualidade Melhoramentos, 1965.
imensurável de pintar , Rosalvo Ribeiro foi um BASTIDE, R. Arte e Sociedade. São Paulo: Livraria
artista admirável , que o próprio meio estranhou Martins, 1945.
devido os longos anos de sua permanência na BELLOTO, Manoel e MARCONDES, Neide (org.).
Europa , acadêmico e isolado procurou absorver Turbulência Cultural em Cenários de Transição
do velho continente os hábitos e posturas que foram – O Século XIX Ibero-americano, São Paulo:
trazidos para a região do litoral nordestino. EDUSP, 2005.
FREIRE, G. A Pintura no Nordeste. Recife: Diário
O artista testemunha a sua produção artística com de Pernambuco, 1925.
esmero, embora ,com um fim melancólico , quase GALVÃO, A. Subsídios para História da
decadente, mesmo tendo criado obras de grande Academia Imperial e Escola Nacional de Belas
porte para a galeria da história da pintura nacional. Artes. Rio de Janeiro: Universidade do Brasil, 1954.
Fato este que é considerado um registro da arte VALLADARES, J. Estudos de Arte Brasileira.
feita nas escolas oficiais contribuindo para o Salvador: Museu do Estado da Bahia, 1960.
desenvolvimento da pintura no país.
Notas
A vida artística de Rosalvo Ribeiro ilustra
1
perfeitamente o cenário artístico acadêmico no BARDI, P.M. História da Arte Brasileira. São Paulo:
nordeste brasileiro, durante o século XIX. Os Melhoramentos, 1975.
pintores nordestinos foram incompreendidos e

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Dentro do quadro da arquitetura oitocentista, um
pequeno grupo de obras francesas e seus
respectivos autores podem, a nosso ver, ser
consideradas paradigmáticas para os aspectos que
pretendemos analisar nesse estudo. A primeira
delas é a Rotonda de Panoramas de J.-I. Hittorf,
projeto de 1838-39 construído em função das obras
de embelezamento dos Champs Elysées, em Paris.
Como sabemos os panoramas, muito em voga
durante o período, eram edifícios concebidos para
abrigar uma grande tela tratando de temas
variados, e que deveria ser exposta contornando
uma sala circular dotada de dispositivos específicos
de modo a criar um efeito o mais ilusionista possível
para os espectadores. Isso implicava em que dentro
desse espaço de exposição deveria haver um
mínimo de obstáculos à visibilidade da obra,
incluindo aí as colunas de sustentação. Em função
disso Hittorf propõe um sistema estrutural inovador,
justificado por ele da seguinte forma: “(...) era
preciso (...) encontrar um meio de colocar esses
pontos de apoio no exterior. Foi essa necessidade
que me sugeriu a idéia de aplicar à nova construção
o sistema de suspensão de pontes, por meio de
cabos metálicos”. Impedido de empregar o ferro
por motivos de ordem econômica, o arquiteto
imagina uma estrutura leve em madeira, de base
A contribuição do ensino oficial para a hexagonal, na qual o telhado está suspenso por
modernização da arquitetura oitocentista contrafortes externos, alinhados com a fachada.
Um sistema, nas palavras do autor, “simples,
denise gonçalves 1
econômico, e ao mesmo tempo imponente e
satisfatório no seu aspecto exterior” (HITTORF,
1841: 551-561).

Apesar da coerência da proposta e da segurança


demonstrada pelo arquiteto no que se refere à
estabilidade do sistema e ao cálculo da estrutura,
o projeto foi mal compreendido pelo Conseil des
Bâtiments – formado em grande parte por
engenheiros –, que obrigou Hittorf a refazê-lo duas
vezes, a primeira dobrando o número de apoios da
estrutura, e a segunda criando um andar superior
de modo a teoricamente conferir mais estabilidade
à construção. Ainda que o partido estrutural inicial
fosse mantido, o resultado arquitetônico ficou assim
seriamente comprometido. Conclui o arquiteto:
“Receios, que são sempre a primeira impressão
produzida por uma aplicação de um sistema de
construção completamente novo e possuindo
qualquer ousadia aparente, e que degeneram
quase sempre numa oposição desanimadora”. E
dá um conselho aos mais jovens :

[...] que eles não esqueçam que a oposição


contra tudo o que é novo não é apenas da
nossa época, mas de todas as épocas, e que
assimilem bem uma verdade: é que os que
querem se dedicar à prática da nossa arte
devem esperar dificuldades sem fim, e se armar

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Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

de uma grande perseverança para chegar a A última obra a que nos referimos é o Halles
realizar as idéias mesmo as mais verdadeiras, Centrales de Victor Baltard e Félix Callet, projeto
as mais úteis, e freqüentemente as mais polêmico que tem sua versão definitiva em 1853-
simples, quando elas são novas. (Id.) 54 após intensa discussão, dentro do Conselho
municipal parisiense e com a participação de
A segunda obra em questão é a Bibliothèque diversos arquitetos e engenheiros, sobre como
Sainte-Geneviève de Henri Labrouste, projeto de deveria ser um mercado moderno e salubre, se uma
1843 cuja execução foi terminada em 1850. Na sala construção fechada ou uma estrutura leve que
de leitura do edifício, Labrouste inova funcionasse como simples abrigo. Vencida a
completamente a tipologia introduzindo, pela segunda concepção graças à decisiva intervenção
primeira vez nesse gênero de edifício, uma do próprio Imperador, que exigiu um “guarda-chuva”
cobertura em estrutura metálica sobre o invólucro metálico – “Ferro, nada mais que ferro” –, os
em alvenaria tradicional. Essa estrutura leve, que arquitetos elaboram o que se tornaria o protótipo
compunha internamente duas abóbadas de berço do mercado oitocentista.
no sentido longitudinal da sala e sustentadas por
finas colunas de ferro fundido, justificava-se pela O “simples abrigo” é traduzido numa estrutura
necessidade de se criar um espaço o mais amplo metálica leve, um conjunto de pavilhões interligados
e desimpedido possível a fim de se obter um por ruas cobertas. Cada detalhe da obra foi
máximo de iluminação natural. O sistema é pensado em função da higiene e salubridade,
aperfeiçoado pelo mesmo arquiteto anos mais tarde requisitos fundamentais para esse tipo de edifício,
com o projeto da Biblioteca Nacional, de 1858, no além do funcionamento apropriado. A forma
qual a sala de leitura é coberta por nove cúpulas escalonada do telhado, a alvenaria leve e de altura
hemisféricas leves, o centro de cada uma delas apenas suficiente para a proteção dos usuários
vazado por uma abertura circular que promove a contra as intempéries, o uso de vedações vazadas
iluminação zenital. Alguns historiadores, como S. como grades e persianas, tudo contribui para a
Giedion, vêem nela uma mistura de referências circulação permanente do ar, para a boa iluminação
históricas que iria do Hospital dos Inocentes de natural e ao mesmo tempo para a proteção contra
Brunelleschi ao Panteon romano... O resultado, no a incidência direta dos raios do sol sobre as
entanto é absolutamente moderno: as proporções mercadorias expostas. Tudo isso complementado
delgadas da estrutura, a ousadia do partido estético por toda a infraestrutura necessária ao
concebido em função dos novos materiais armazenamento, transporte, limpeza, e demais
aparentes – ferro e cerâmica –, aí combinados aspectos técnicos que envolvem uma construção
segundo uma composição ornamental de desse tipo. Sob o ponto de vista estético, os
referências estilísticas modernizadas, compensam arquitetos tiram partido da combinação do ferro com
a opacidade do invólucro de alvenaria criando uma as cerâmicas coloridas e com uma ornamentação
espacialidade nova, enfatizada pela luz. “estrutural” que confere um caráter apropriado à
nova tipologia, e desprovido de qualquer referência
A crítica contemporânea elogia o caráter inovador estilística. Baltard mostra ter compreendido a exata
e ao mesmo tempo racionalista da obra. “É através medida da noção de mercado-abrigo: o “guarda-
de tais iniciativas que a arquitetura moderna sairá chuva coletivo monumental” na definição última de
enfim da rotina greco-romana que a subjugou por César Daly, editor da Revue Générale de
tempo demais. É evidente que a combinação do l’Architecture et des Travaux Publics, parafraseando
ferro com a alvenaria, as faianças e cerâmicas, e o Imperador. Evitando as soluções híbridas, seu
com todos os outros metais e materiais possíveis, partido é de tal coerência e eficiência que os Halles
é o traço verdadeiramente característico da arte tornam-se uma obra exemplar, um modelo
contemporânea (...)”, diz o engenheiro C.-A. reproduzido exaustivamente durante o período,
Oppermann (OPPERMANN, 1869:1-3). “Sentimos aonde quer que chegue o padrão construtivo
diante do resultado obtido que o eminente artista europeu.
se preocupava antes de tudo com a realização do
programa e que ele obedecia a princípios (...) M. Além da evidente qualidade arquitetônica e do
Labrouste, cujas idéias sobre o assunto são bem caráter ousado e inovador sob os pontos de vista
conhecidas, extraiu, como sempre, a decoração estético e/ou estrutural, o que estas obras que nos
das necessidades a satisfazer assim como do serviram de exemplo possuem em comum e que
emprego judicioso dos materiais”, comenta Anatole as relacionam ao assunto que nos interessa, i.e. o
de Baudot, discípulo de Viollet-le-Duc e colaborador ensino oficial de arquitetura, é que seus respectivos
de sua revista (BAUDOT, 1865: 107). autores foram formados dentro do sistema
acadêmico francês. J.-I. Hittorf, de origem alemã e

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Ensino oficial e a modernização da arquitetura oitocentista

com uma primeira formação de decorador, chega da cidade, e na qual emprega novamente estrutura
a Paris em 1810 e torna-se aluno do atelier de metálica e alvenaria.
Percier, este membro da Academia e professor da
École des Beaux-Arts. Trabalha com François Não podemos dizer que os três arquitetos que
Bélanger, substituindo-o no seu escritório quando tomamos como exemplo possuam o perfil de
da sua morte. Após uma viagem de estudos à “arquiteto-decorador” em geral atribuído pelos
Sicília, fica conhecido por haver divulgado e críticos do ensino oficial aos profissionais
defendido o fato de que os templos gregos eram originados do sistema acadêmico. Nem ao menos
coloridos, e em decorrência disso por haver dizer, e isso nos limitando apenas ao contexto
acirrado a discussão sobre a importância da francês, que os três arquitetos em questão seriam
policromia em arquitetura. Aplica esse princípio em os únicos a contribuir para a modernização da
vários de seus projetos, inclusive no que citamos arquitetura oitocentista. Os Grand Prix de Rome
acima; classificado pela historiografia como eram normalmente nomeados para cargos
arquiteto “neo-grego” ou eclético, suas inovações administrativos na municipalidade, na capital ou
no que se refere à estrutura e às novas técnicas outras cidades. Na reforma de Paris, os arquitetos
construtivas não parecem ser muito comentadas. diplomados pela École sobressaíram-se na
realização dos edifícios mais importantes,
Henri Labrouste deve sua formação à École des enfrentando o desafio das novas tipologias, das
Beaux-Arts, onde recebe o 2º. Grand Prix de Rome novas técnicas construtivas e dos problemas
em 1821 e o Grand Prix em 1824. Seus envois, no urbanísticos complexos que caracterizam a cidade
entanto, provocam sensação na Academia francesa moderna a partir de então. Estendendo-se o período
pela abordagem arqueológica, construtiva e às primeiras décadas do século XX e o campo de
racional dos seus levantamentos e ainda pelo estudo a outros países, já que o sistema francês
interesse pela arquitetura grega, uma atitude foi o principal modelo para o ensino de arquitetura
considerada “rebelde” diante da tradicional durante o período, encontraremos certamente uma
preferência pelo modelo romano. O episódio, afinal, série de exemplos de arquitetos de formação
traz como resultado a gradual aceitação do acadêmica que inovaram em suas obras, sob o
classicismo grego no sistema de ensino da École. ponto de vista construtivo, funcional e/ou estético,
De volta a Paris em 1830, abre um atelier ou que no mínimo produziram uma arquitetura
independente e, por causa do rompimento com a eficiente.
Academia, permanece mais de dez anos sem
encomendas oficiais até o projeto da primeira A contribuição maior do ensino oficial, no entanto,
biblioteca. Nela, a combinação aparentemente não reside exatamente nessas realizações dos
inédita da estrutura metálica e alvenaria é arquitetos por ele formados, e sim nos princípios
considerada um marco do chamado racionalismo que constituíam a base desse ensino. Voltando às
eclético, do qual Labrouste seria um dos principais obras que nos serviram de exemplo, o ponto em
representantes. comum mais importante que podemos observar
analisando seus projetos é que todas tiveram suas
Victor Baltard, igualmente formado pela École, foi concepções originadas no princípio da
Grand Prix de Rome em 1833. Inicia sua carreira conveniência, e isso quer seja no que se refere à
com vários trabalhos de restauração, até que em escolha dos materiais, do sistema estrutural, da
1845 é nomeado arquiteto dos Halles de Paris distribuição espacial ou do partido estético. Esse
juntamente com Félix Callet; em 1866 Haussmann princípio, que acompanha o desenvolvimento da
o nomeia Diretor de Obras da Cidade de Paris. Seu teoria de arquitetura desde os primeiros tratados
projeto para os Halles envolve muita polêmica e da Idade Moderna, encontra-se intimamente
acusações de plágio, principalmente em relação relacionado à noção de caráter, este definido dentro
aos projetos de Hector Horeau e do engenheiro de uma estética da percepção baseada nas
Eugène Flachat dos quais teria tirado certas idéias; capacidades expressivas da obra. O termo
estas no entanto de qualquer maneira faziam parte conveniência, que faz parte da terminologia
de uma discussão geral sobre a concepção da clássica como determinante das relações da obra
tipologia. Apesar de tudo, o arquiteto demonstrou com a realidade exterior a ela, sofre modificações
dominar o emprego dos novos materiais e soube de significado no decorrer dos séculos, oscilando
conjugar a eficiência de cada detalhe construtivo a entre as dimensões estética, social e propriamente
um caráter bastante moderno. Em 1866 projeta a arquitetônica, oscilando em suas relações com o
igreja de Saint-Augustin também em Paris, de caráter, e finalmente adquirindo sua forma definitiva
solução difícil já que se encontra num dos típicos no XIX, como veremos a seguir.
terrenos triangulares resultantes do novo traçado

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Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

Segundo estudo de W. Szambien (SZAMBIEN, Na primeira metade do século o termo ainda se


1986: 167-199), uma das primeiras aparições do coloca entre a dimensão expressiva da adequação
termo no vocabulário de arquitetura remonta à ao nível social do proprietário, o que se confunde
tradução francesa do tratado de Alberti em 1553, com o caráter, e a dimensão arquitetônico-formal
que lhe dá dimensão apenas estética: “Beleza é do acordo entre as proporções das partes do
uma certa conveniência judiciosa mantida em todas edifício. Chamada a definir os princípios
as partes em vista do efeito para o qual queremos fundamentais da arquitetura numa tentativa de se
aplicá-las”. Já no século XVII, Perrault retoma ultrapassar o quadro das discussões, a Academia
Alberti no que se refere à Beleza – “é a francesa tende para a concepção arquitetônica: “A
conveniência judiciosa e a aptidão que cada parte conveniência é uma sujeição aos usos
tem para o uso ao qual ela é destinada” – mas ao estabelecidos e recebidos. Ela dá as regras para
mesmo tempo lhe confere um outro significado se colocar cada coisa em seu lugar”
mais especificamente arquitetônico: “é o uso e a (SZAMBIEN:169). Sua posição, no entanto, não
finalidade útil e necessária para a qual um edifício tem força para eliminar os conflitos que o termo
é feito, tal como a Solidez, a Salubridade e a comporta.
Comodidade”(PERRAULT apud SZAMBIEN:168),
apesar de seu texto mostrar que ele se refere mais Na segunda metade do século os questionamentos
às formas arquitetônicas e às proporções que à em relação à teoria clássica se intensificam. J.-F.
distribuição espacial interna, da qual dependeria o Blondel, professor da Académie Royale
conforto... d’Architecture a partir de 1755 e teórico fundamental
do período, no seu esforço de afirmação e
No final do século, Daviler, arquiteto colaborador reatualização do classicismo termina
de Mansart, dá a primeira definição mais involuntariamente por expor seus limites,
consistente da conveniência – como sendo o acentuando a crise. Apresenta duas definições da
acordo que se deve observar entre todas as partes conveniência que correspondem à evolução de seu
de um edifício, desde a decoração, a distribuição, pensamento. Em seu L’Architecture française de
a forma até a economia que deve determinar a 1752, a conveniência é apresentada como o
escolha dos materiais – subordinando-a, no princípio primeiro da arquitetura: aquele que
entanto, à hierarquia social: “Em uma palavra num confere dignidade e do qual depende o efeito moral
edifício onde a Conveniência é observada, se (sic) dos edifícios públicos, aproximando-a assim da
sua forma e sua decoração convéem ao nível, à noção de caráter. Ao mesmo tempo, afirma sua
dignidade, ou à opulência de seus proprietários” dimensão arquitetônica definindo-a como o
(DAVILER apud SZAMBIEN:168). princípio que rege as relações entre a distribuição
e a decoração, dando-lhes unidade, ou ainda como
A partir daí o termo torna-se um dos raros em o princípio que, tratando da distribuição, relaciona
teoria da arquitetura a desenvolver-se sem forma e proporção ao uso de cada ambiente, o que
empréstimos a outras áreas do conhecimento, já lhe confere validez universal e o aproxima da noção
que se encontra no epicentro do gradual processo de utilidade.
de superação das regras clássicas que acompanha
o século XVIII. Suas nuances de significado são No seu Cours d’Architecture publicado vinte anos
representativas dos conflitos internos à própria mais tarde, no entanto, Blondel se afasta da
teoria de uma arquitetura que busca emancipar- utilidade, diluindo a conveniência no caráter e na
se, e ainda do conflito externo com o racionalismo noção vitruviana de decoro e conduzindo-a a um
crescente enfatizado por um campo do saber cada papel mais modesto:
vez mais privilegiado, o da engenharia, que elege
novos parâmetros e objetivos para a construção. A “Dizemos que uma construção tem conveniência
teoria clássica, que em sua origem havia conferido quando observamos que a disposição exterior e
caráter científico à arquitetura, resiste dificilmente as principais partes da decoração são
ao confronto com o desenvolvimento científico do absolutamente relativas ao objeto que originou a
século das Luzes. As oscilações da definição de construção do edifício, quando o espírito de
conveniência ilustram o esforço teórico de se conveniência nele preside, quando o decoro nele
resolver as ambigüidades entre a subjetividade da é exatamente observada, quando o Ordenador (sic)
beleza, do prazer estético e da percepção, por um previu em toda a sua ordenação o estilo e o caráter
lado, e a objetividade da utilidade, por outro, sem escolhido” (BLONDEL apud SZAMBIEN: 170)
que isso signifique necessariamente uma oposição
durante o período. Como observa Szambien, o que interessa Blondel
é “o caráter conveniente dos diferentes tipos de
edifícios e não a conveniência do seu caráter”

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Ensino oficial e a modernização da arquitetura oitocentista

(SZAMBIENt: 170), ou seja, para ele a conveniência Um ponto de ruptura importante em relação à teoria
ainda determina uma arquitetura hierarquizada – e clássica, e ao mesmo tempo uma tentativa de
aí reside a relação com o social, guardando-se solução desse conflito se darão de forma definitiva,
apenas uma “magnificência controlada” (PICON, na passagem para o século XIX com J.L.N. Durand,
1988:9) – e racionalizada. Ainda que para o que efetiva a redefinição do princípio da
enciclopedista Diderot, por exemplo, o termo conveniência sob parâmetros exclusivamente
signifique a simples conformidade ao uso, racionalistas e construtivos. Aluno da École des
constituindo um dos três princípios da arquitetura Beaux-Arts, 2º. Grand Prix de Rome em 1779 e
ao lado da solidez e da simetria, os arquitetos da 1780, é bastante significativo que, para a atividade
corrente classicista parecem tender a priorizar a de professor, tenha escolhido a École
proximidade com o caráter. Polytechnnique. Entre 1795 e 1830 é o responsável
pelo curso de arquitetura nesta instituição; nos
Soufflot, dentre eles, num estudo intitulado De primeiros anos do XIX publica seu Précis des
l’identité du goût et des règles dans l’art de Leçons d’Architecture que reúne a essência de
l’architecture e apresentado na Academia de seus ensinamentos e de seu pensamento sobre
arquitetura em 1775, ao mesmo tempo em que arquitetura. Mais que uma abordagem teórica,
afirma que “a conveniência consiste na relação da Durand desenvolve um método de composição que
construção com o local, com a utilidade e com o será adotado como base para o ensino oficial de
uso da coisa construída” (SOUFFLOT apud arquitetura durante todo o período, originando o
SZAMBIENt: 171), enfatiza sua importância chamado sistema Beaux-Arts.
enquanto maneira de se caracterizar os tipos de
edifícios, ou de tornar suas destinações Partindo de uma definição simples: “arquitetura é
reconhecíveis. Le Camus de Mézières, cujas a arte de compor e de executar todos os edifícios
preocupações teóricas se orientam para as públicos e particulares”, estabelece como objetivo
relações da arquitetura com a natureza – tema dela a utilidade pública e particular, a conservação,
igualmente presente no debate arquitetônico do a felicidade dos indivíduos, das famílias e da
período – e com as sensações enquanto meio de sociedade, afastando-se completamente da
aceder a ela, em sua obra Génie de l’Architecture dimensão social hierárquica presente na teoria
de 1780 define conveniência confundindo-a com o clássica. Para se promover o bem estar os edifícios
caráter: o que importa é a sensação conveniente e devem ser construídos da maneira mais
não a conveniência das formas (SZAMBIENt:171). conveniente à sua destinação, da maneira mais
fácil e menos dispendiosa. Conveniência e
Dentro do mesmo espírito, o “revolucionário” e economia constituem, assim, os princípios
teórico Boullée dá pouca importância à fundamentais da arquitetura, “os únicos que podem
conveniência, mencionando-a apenas como a arte nos guiar no estudo e no exercício dessa arte”
de empregar convenientemente as ordens que, (DURAND, 1819: 3-6).
como se sabe, não são para ele nenhum elemento
essencial para a arquitetura, utilizando o termo A conveniência, por sua vez, comporta três
conveniente apenas no que se refere à arquitetura princípios fundamentais: solidez, salubridade e
particular e para qualificar as relações entre as comodidade. O primeiro se refere desde a escolha
posses do proprietário e o tamanho da casa. dos materiais à estabilidade da estrutura; em
função dele Durand estabelece um elemento
O reconhecimento da conveniência como princípio fundamental do seu sistema compositivo: a malha
constitutivo da arquitetura é reencontrado, no estrutural, um aperfeiçoamento da modulação
entanto, no seu contemporâneo Ledoux. Este a clássica traduzido na idéia da ossatura – idéia, é
considera como uma das regras imutáveis da importante observar, desprovida de qualquer
arquitetura: “(...) ela valoriza a riqueza e mascara referência histórica. A salubridade depende dos
o infortúnio, subordinará as idéias às localidades, dispositivos responsáveis pela aeração e
reunirá as necessidades diversas, sob exteriores iluminação direta das partes assim como da
relativos e pouco dispendiosos” (LEDOUX apud localização e da orientação do edifício; a
SZAMBIENt: 172). Sua definição engloba, assim, comodidade é determinada pelo número e o
as relações com a posição social do proprietário, tamanho das partes e pela relação exata de suas
com o lugar e com o programa. Apesar de sua formas e disposição com a destinação.
conhecida rejeição às regras clássicas, ainda deixa
irresolvido o conflito existente entre expressividade A economia substitui o caráter em suas relações
e utilidade. com a conveniência. Subordinados a ela estão os
princípios de simetria, regularidade e simplicidade,
traduzidos no seu método compositivo pelo uso de
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Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

formas geométricas regulares – quadrados, fazer o edifício mais conveniente possível, como
retângulos e círculos –, pelos eixos determinantes nos edifícios particulares; 2º. dadas as
da composição e pela rejeição a qualquer elemento conveniências de um edifício, fazê-lo com a menor
supérfluo. despesa possível, como nos edifícios públicos”. E
conclui: “Vemos por tudo o que precede, que em
Ao debate sobre as relações entre arquitetura e arquitetura a economia, longe de ser, como em
imitação da natureza, a resposta de Durand é geral se acredita, um obstáculo à beleza, é ao
taxativa. Tecendo uma argumentação que contrário a origem mais fecunda dela.” (Id.:21)
desmonta tanto a teoria da cabana de Laugier
quanto a teoria das ordens de Vitrúvio, conclui : Essa aparente simplicidade esconde, na verdade,
a exigência de uma atitude diferente da parte do
“Ora, se a cabana não é absolutamente um objeto arquiteto: substituindo as certezas das regras
natural, se o corpo humano não pode servir de clássicas, a obediência aos princípios da
modelo à arquitetura; se, na suposição mesmo do conveniência e economia implica em tomadas de
contrário, as ordens não são absolutamente a decisão objetivas a cada passo do projeto, ou seja,
imitação de um nem de outro, é preciso depende da sua maior ou menor capacidade de
necessariamente concluir que as ordens não julgamento e de racionalização dos problemas que
formam absolutamente a essência da arquitetura; envolvem a arquitetura.
que o prazer que se espera de seu emprego e da
decoração que resulta delas é nulo; que enfim, essa Diante da multiplicação de novas exigências para
decoração é ela própria uma quimera; e a despesa a disciplina a partir daí – novas técnicas
a que ela conduz, uma loucura.” (Idem:16) construtivas e novos materiais, novas tipologias,
nova clientela, novo repertório estilístico e nova
No que se refere às relações com o prazer estético, escala da atividade construtiva – as idéias de
toma como exemplo a simplicidade da arquitetura Durand, assim como seu método compositivo,
grega para afirmar que “quer consultemos a razão, caem como uma luva. Confrontado a um leque cada
quer examinemos os monumentos, é evidente que vez maior de possibilidades, o princípio da
agradar nunca pode ser o objetivo da arquitetura, conveniência estabelecido por ele consegue dar
nem a decoração arquitetônica seu objeto”. Beleza, coerência e unidade à produção arquitetônica do
prazer estético e caráter perdem seus valores período; além de constituir a origem da linhagem
autônomos e são reduzidos a conseqüências “construtiva” defendida por Viollet-le-Duc e que foi
naturais da conveniência e da economia: a responsável pelos movimentos de renovação
espacial e estética da passagem do século. Não
(...) não devemos então nos ocupar (cuidar) de que podemos afirmar, é claro, que a influência de sua
a arquitetura agrade, visto que se ocupando teoria tenha eliminado a subjetividade do
unicamente de atingir seu verdadeiro objetivo, é pensamento sobre a arquitetura – a dimensão
impossível que ela não agrade, e que tentando expressiva do caráter, por exemplo, permanece
agradar ela pode se tornar ridícula; não devemos fundamental, principalmente quando se trata da
tampouco procurar a dar variedade, efeito, e caráter leitura das novas estruturas urbanas – ou que a
aos edifícios, já que é impossível que eles não tenha transformado definitivamente em arte da
tenham todas essas qualidades no mais alto grau construção – nem é essa sua intenção, já que a
que possam atingir, quando, usando unicamente composição permanece como arte do disegno –;
os verdadeiros meios dessa arte, lhe damos tudo mas o princípio da conveniência nela estabelecido
o que é preciso, e apenas o que é preciso, e que o certamente deu segurança aos arquitetos para
que lhe é necessário está disposto da maneira mais ousarem e inovarem em suas proposições, como
simples. nos mostram os exemplos com os quais iniciamos
esse estudo.
É então apenas da disposição que deve se ocupar
um arquiteto, mesmo aquele que se interessa à Como tentamos demonstrar, apesar do
decoração arquitetônica, e que procura somente conservadorismo do meio acadêmico a renovação
agradar, pois essa decoração só pode ser chamada teórica da arquitetura se origina em grande parte
bela, só pode causar um prazer verdadeiro, quando dele próprio. O ensino oficial, baseado em
resulta apenas da disposição a mais conveniente princípios teóricos, favorece uma reflexão sobre a
e a mais econômica. (Id.: 21). disciplina e oferece o instrumental necessário para
os movimentos de questionamento e
Dentro dessa relação de causa e conseqüência, o
redirecionamento do pensamento arquitetônico,
talento do arquiteto se reduz a resolver dois
que terminam por forçar a rigidez do sistema e por
problemas: “1º., com uma soma [de dinheiro] dada
refletir-se na produção dos arquitetos. A tensão
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Ensino oficial e a modernização da arquitetura oitocentista

entre tradicionalismo e modernização mostrou-se HITTORF, J.-I. Description de la Rotonde des


fecunda sob esse aspecto. Panoramas, élevée dans les Champs-Elysées.
Revue Générale de l’Architecture et des Travaux
Cabem aí os estudos sobre contextos específicos. Publics. Paris: 1841, p. 551-561.
No caso da nossa Escola Nacional de Belas-Artes, MARREY, B. et CHEMETOV, P. Architectures,
por exemplo, uma análise das referências teóricas Paris 1848-1914. Catálogo de exposição. Paris:
do seu ensino através das obras pertencentes à Caisse Nationale des Monuments Historiques et
biblioteca pode revelar aspectos interessantes, que des Sites/ICOMOS,1976.
ainda precisam ser desenvolvidos. O Précis des MIDDLETON, R. (ed.) The Beaux-Arts and
leçons d’architecture de Durand encontra-se entre Nineteenth Century French Architecture.
elas; verificar a influência de seus princípios na Londres: Thames and Hudson, 1982.
produção dos arquitetos formados pela Escola OPPERMANN, C.-A. La nouvelle Salle de lecture
constitui outro meio de se avaliar a de la Bibliothèque Impériale de Paris. Nouvelles
contemporaneidade e a efetiva contribuição de seu Annales de la Construction. Paris: n.169,
ensino. jan.1869.
PICON, A. Architectes et ingénieurs au siècle
Referências bibliográficas des Lumières. Marselha: Ed. Parenthèses, 1988.
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données à l’École Royale Polytechnique. Paris:
Imprimerie Firmin Didot, 1819.

99
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República
Ao avistar Belém, da janela do avião, nota-se uma
cidade estirada, uma espécie de ponta de terra
quase insular, massa modelada em forma de mama
hirta, lambida pelas águas cor de bacaba, 1 que são
do estuário do Rio Amazonas no trecho Guajarino2.
Antes de se avistar a cidade, há dias em que se
formam flocos de nuvens feito pastos de alvos
carneirinhos sobre um tapete verde, serpenteado
de cobras d´água.

A cidade parece um pomar, poema geográfico


trans-temporal crivado de espigões, espinhos de
pedras, pedras feito lápides de um campo santo
do paraíso perdido no inferno verde 3; El Dourado4
de antigas narrativas e de novas e empreendedoras
investidas.

No chão, a sensação é de um caldeirão. Caldeirão


enquanto signo de sensações térmicas e
receptáculo de mistura alquímica, étnica e cultural.

Emoldurado ao sul pelas águas do Rio Guamá o


desenho da cidade aponta a mata, o verde e vago
mundo da Cobra Norato5. Vista assim, do alto, e
após os primeiros contatos com o chão, têm-se
inúmeras impressões sobre a cidade de Belém,
essas são algumas delas.

academia de belas artes na amazônia Historicamente, a cidade provocou várias


narrativas. A “morena brejeira nortista” como
edison da silva farias 1 também é conhecida, certamente continuará a
provocar, em poetas, historiadores, antropólogos,
biólogos, geógrafos, urbanistas, arquitetos, artistas
e viajantes, visitantes comuns, toda sorte de
percepções, impressões, visões - perspectivas
registradas em diversas media com escopo
científico ou não.

Leandro Tocantins6 na obra “Santa Maria do Belém


do Grão Pará” (1963), apresenta três epígrafes que
prenunciam os “instantes” que seus leitores teriam
de “evocações da cidade”:

A excelência desta terra consiste em muitas


coisas notórias. A primeira, no ameníssimo
Céu, e salubérrimo ar, de que goza, aonde
sempre é verão, e sempre está o campo, e
arvoredo verde, carregado de infinita
diversidade de frutas, cujos nomes, sabores e
feições, excedem a toda declaração humana.
(Capitão Simão Estácio da Silveira, 1618)

Raro é, aliás, o artista ou escritor para quem


não exista a sugestão de uma região ou de uma
província em particular – de ordinário a do seu
tempo de menino – presente de modo nem
sempre ostensivo, às vezes até sutil, nas
formas e nas cores mais características da sua
expressão. (Gilberto Freire, “Vida, Forma e
Cor”)

100
Academia de Belas Artes na Amazônia

Bembelelém / Viva Belém! (Manuel Bandeira) vez, escrever um documento dessa escala sobre
as artes plásticas naqueles rincões amazônicos.
Leandro Tocantins, com os destaques acima, traduz
sua fascinação pela natureza da cidade e seu Paolo Ricci, na introdução de seu trabalho, adverte
enorme saudosismo, em orientações ao visitante, ao leitor que o seu relatório é um “bosquejo” – uma
que beira o bairrismo, indicando que a sua obra espécie de ressalva às possíveis falhas histórico-
será uma longa saudação à cidade de Belém, assim metodológicas, porém dá conta de uma série de
como o fez o poeta de Itabira.7 questões nunca antes reunidas em um só texto
sobre o assunto. O trabalho compreende um
Uma dos textos mais recentes sobre Belém, “Belém conjunto considerável de dados, fatos, apreciações
[reloaded]” (2004), faz uma leitura da cidade a partir de personalidades e a opinião do próprio artista
de uma perspectiva especial. A presença dos sobre as manifestações artísticas realizadas no
italianos no campo cultural local é destacada, Pará; do corpus do referido documento retiramos
demonstrando uma sensação sobre a cidade como os momentos que compreenderam alguns pontos
uma espécie de pedaço europeu nos trópicos, de inflexão para a criação da Escola e Belas Artes
n´América. do Pará que, sem sombra de dúvida, entendemos,
traduzem-se numa saga inconclusa. Tais
Embora o campo cultural de Belém tenha momentos, certamente, darão conta de
apresentado um cenário propício e fértil para a perscrutarmos a percepção, a expectativa e a
consolidação de sua Academia de Belas Artes, nas subjetividade do autor sobre o campo cultural de
décadas finais do século XIX e iniciais do século Belém em vários períodos históricos e somar ao
XX, a idéia, na sua concretude, ficou suspensa, conhecimento em arte dados sobre esse pedaço
preterida, e marcada por fatos e sujeitos da colcha de retalhos, que é a cultura brasileira8.
propulsores importantes para a cultura local, mas
que não foram suficientemente comprometidos e A gênese do ensino de arte em Belém está
densos para que se fizesse realidade o tão sonhado intimamente ligada às atividades das missões
espaço para o ensino das artes no Pará. religiosas no Pará. Foram os carmelitas e em
seguida os jesuítas que implantaram,
Esquadrinhar os cenários e as oportunidades que primeiramente, uma “escola elementar”, escreve
se apresentaram para a criação de uma academia Ricci, de arte em Belém que seguiu incipiente pelos
de artes numa cidade cheia de encantos e valores idos de 1653. Nesse período, os provinciais tendo
espirituais, é o que faremos a partir das narrativas como máxima “Por um irmão pedreiro daria uma
de Paolo Ricci consolidadas em relatório de dúzia de teólogos” (LEITE, apud ZANINI, 1983:
pesquisa, apresentado à FUNARTE, na década de 171), estimavam sobre maneira os irmãos leigos
1970, intitulado, “As artes plásticas no Pará”. da Companhia, versados em conhecimento sobre
técnicas construtivas e imaginárias e, por outro
Documento ainda não publicado, o relatório de Ricci
lado, os irmãos e padres pautados na
encontra-se agrupado em três tomos com folhas
recomendação conciliar de que mais valia uma
datilografadas somente no anverso, num total de
imagem do que muitos sermões, mesmo com
412 páginas, dividido em três capítulos:
objetivos mais pragmáticos do que estéticos, não
Os Primórdios – Arqueologia – As Artes da deixaram de transmitir os conceitos soteriológicos,
nossa proto-história – A cerâmica e os objetos católicos e algumas técnicas artísticas
líticos” (assinado por Mário F. Simões, Chefe fundamentais para a edificação do “Reino” e para
do Departamento de Arqueologia do Museu a salvação dos “gentios”.
Paraense Emílio Goeldi);
A formação humanística era o tônus das atividades
A arte indígena contemporânea em terras do jesuíticas nessas pequenas escolas em que a
Pará – Objetos, tangas, cestaria, plumária, retórica e a literatura eram ensinadas pari passu.
pintura” e “As artes a partir da colonização – Quanto às imagens, estas eram de temática
As missões religiosas e os pintores e escultores religiosa, reproduções trazidas por padres que
jesuítas a partir do século XVII. exerciam suas atividades em Belém, replicando-
se dessa forma, no Norte, um processo que ocorreu
A extensa bibliografia, a relação de documentos, a em todo o período colonial no Brasil. Ricci observa
iconografia considerável (porém sem qualidade), que Von Martius9 tinha em baixo conceito o que
demonstram a seriedade com que Paolo Ricci aqueles religiosos ensinavam, uma vez que as
enfrentou a grande tarefa de tentar, pela primeira imagens que produziam e copiavam era de
qualidade ruim, por serem influenciadas pela

101
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

pintura portuguesa. (MARTIUS, & SPIX, 1939, Embora o Estado tenha feito a sua parte com um
apud RICCI, aproximadamente 1978:8) projeto cultural no âmbito das artes plásticas, Ricci
assinala que a ausência das elites no circuito
Índios e negros e os habitantes mais simples de cultural e a inexistência de um mercado de arte,
Belém, foram os primeiros alunos dessa academia provocada pela “visão das elites voltada para a
incipiente em que se destacaram como mestres, Europa em detrimento dos valores locais”, não
João de Almeida, Baltasar de Campos, Manoel sustentaram a iniciativa estatal. Importantes fatos
João, João Xavier Traer, Luiz Correa e Agostinho culturais ocorrem em Belém, no campo da moda e
Ruiz, provenientes de França, Holanda, Itália e do cinema, Belém se europeizava aos poucos de
Lisboa. A escultura e a arquitetura foram os forma institucionalizada com o poder interferindo
melhores processos artísticos desenvolvidos nesse sobre o comportamento do homem urbano,
período. pequeno burguês. A Tabela I demonstra
sinteticamente os pintores pensionistas enviados
Encerrada em 1760, a incipiente academia, com a para estudos no exterior.
expulsão dos jesuítas do Brasil, o que se fazia
nascente, segundo Ricci, a idéia sobre a academia Uma nova iniciativa é levada a efeito em 1863. No
de artes e ofícios, se perdeu com a saída dos prédio do Liceu Paraense, em horário noturno, é
religiosos, uma vez que se interromperam criada a Academia de Belas Artes ofertando cursos
atividades artísticas e de construção, “causando de Desenho e Pintura, que funcionou até 1900,
profundas lacunas no desenvolvimento cultural do porém, o Liceu já abrigava o Conservatório de
Estado” (RICCI, aproximadamente 1978:56) Música, mantido pela Sociedade Propagadora das
Belas Artes, que era sustentada pelos benefícios
A vontade epistêmica e de dominação dos provenientes do imposto no valor de cem mil reis
estrangeiros face as terras ignotas, juntamente com sobre cada espetáculo realizado no Teatro da Paz.
a necessidade de se circunscrever a superfície da Esse imposto criado pela Lei 445, de 30 e maio de
terra e a política de segurança adotada por 1896, trouxe uma série de complicações para o
Portugal, levou muitos documentaristas, cientistas campo cultural artístico local e, consequentemente,
e artistas para a Amazônia, que estabeleciam em a derrocada da Academia, porém o ensino de
suas embarcações, viagens científicas, dentro da música, em conservatório, resistiu à crise
Amazônia, verdadeiras “escolas de arte flutuantes”. econômica, uma vez que teve continuidade sob a
Antônio Landi foi um desses estrangeiros que fixou direção de Carlos Gomes.
residência em Belém e que demonstrou-se
preocupado com o ensino da arte do desenho e Um fato marcante no campo cultural da cidade foi
com a formação humanística daqueles que o a criação das Exposições Artístico-Industriais
cercavam, “até os mais rudes marinheiros”. (Id. :70- (FARIAS, 2003:83) que institucionalizaram
71) premiações e menções honrosas aos expositores
iniciando assim uma cultura expositiva em Belém.
Em 1841 é criado o Liceu Paraense (vinte e um Enquanto isso, a cidade voltava-se para as artes
anos depois da criação da Academia Imperial de pictóricas em meados de 1889, quando se decide
Belas Artes na capital do Império do Brasil), realizar a pintura do forro do salão nobre do Teatro
instituição educacional onde se sistematizou o da Paz que se faria inaugurar em breve. A cidade
ensino de desenho e, em paralelo, aulas toda entra no debate estabelecido entre técnicos,
particulares de pintura ministradas por professores artistas e o governo do Estado. Constantino Motta
como Pedro Constantino Chaves da Motta e Leon e Irineu Souza trocam farpas pela imprensa local
Batista Righini. Porém, a iniciativa acabou nem estabelecendo interessante polêmica em torno dos
mesmo se configurando como um embrião daquilo processos técnico-artísticos corretos para a
que seria uma academia. reforma do forro do salão nobre da principal casa
de espetáculos da cidade, salão que se tornou o
A década de 1840 foi importante para a construção
local para a exposição de pintura acadêmica, tanto
da base de uma escola de artes que faria
de visitantes como de artistas locais.
concorrência com a Academia Imperial do Rio de
Janeiro. No governo de Herculano Ferreira Penna A década de 1890 seria o período mais propício
é que se começa a pensar o ensino de pintura no para o estabelecimento da tão sonhada instituição
Pará, com o envio do primeiro artista pensionista, estatal destinada ao ensino das artes. O governo
pintor Constantino Pedro Chaves da Motta, para do Pará continuava a enviar pintores ao exterior
Roma †a iniciativa das aulas particulares de pintura para procederem aos seus estudos, em 1892, a
havia surtido o efeito desejado.

102
Academia de Belas Artes na Amazônia

atividade é regulamentada pela Lei n° 61 que dentre outros, João Affonso do Nascimento, Carlos
facilitava a ida de artistas ao estrangeiro. As Azevedo (aluno e estagiário de Zeferino da Costa),
viagens, geralmente a Paris ou Roma, Maurice Blaise (artista francês) e Eládio Lima.
possibilitaram o contato de artistas paraenses com
artistas da Academia de Belas Artes do Rio de Nesse período tem residência fixa em Belém o
Janeiro. Marcada pelo apogeu da economia pintor Francisco Estrada do qual Arthur Frazão,
gomífera, nessa década, a cidade de Belém pintor paisagista, fotógrafo, foi aluno. A fotografia
atravessava em sua história pela maior reforma foi o processo que influenciou sobremaneira as
urbanística que se teve conhecimento. Duas atividades pictóricas de Arthur Frazão, o controle
Exposições Artístico Industriais são levadas a efeito da qualidade da luz e o naturalismo passam para a
quando Lauro Sodré idealizou uma exposição em feitura de suas obras, na maioria pinturas de
nível nacional, uma vez que da última versão do paisagens.
evento tinham participado muitos artistas
importantes para as artes plásticas paraenses, Um fato merece destaque em 1907, Francisco
porém, nessa mesma década, a cidade começa a Aurélio de Figueiredo, irmão de Pedro Américo,
sentir o efeito da crise internacional da borracha e realiza uma grande exposição em Belém, segundo
as exposições artístico-industriais são deixadas de Ricci, composta de 66 telas, sendo que uma parte
lado. Em 1899, Theodoro Braga é agraciado com dos trabalhos era de natureza acadêmica e a outra
o prêmio de viagem ao estrangeiro pela Academia parte, executada dentro da estética impressionista.
Imperial de Belas Artes e Pedro Campofiorito é Ao visitar a exposição Theodoro Braga criticou as
indicado por Zeferino da Costa para fundar a Escola obras de características impressionistas, dizendo
Nacional de Belas Artes em Belém, tentativa gostar mais daquelas de natureza acadêmica.
debalde, porém. (RICCI, aproximadamente 1978:191)

Um aspecto positivo há que ser notado, Theodoro Além de Estrada outros artistas estrangeiros se
Braga ao retornar para o Brasil, com idéias fixaram na cidade de Belém e outros por ela
renovadoras para o ensino das artes, começa a passaram fazendo exposições. Nesse período uma
aplicá-las em Belém. A pressão da demanda nova tentativa se faz a partir da Associação de
industrial por valores que reunissem competência Artistas Paraenses, a criação da “Academia Livre
técnica e artística foi o que impulsionou o pintor, de Belas Artes”, da qual fizeram parte: Manoel
ao seu modo, a iniciar um processo de brasilidade Assunção Santiago, Manoel Pastana, Manoel
mesclado com regionalidade. A descoberta da Lassance Souza, Adalberto Cunha, Carlos Goldegol
natureza local e os valores formais contidos na flora e Arthur Frazão que funcionou até o ano de 1924.
e na fauna amazônicas eram transplantados para Por meio do Decreto n° 1.845 e 17 de outubro do
a arquitetura, decoração e pintura.10 mesmo ano, João Coelho cria o “Salão Oficial de
Pintura”, todavia o campo cultural perde dois nomes
Paolo Ricci observa que, com o período de crise que seriam fundamentais para a constituição da
econômica se aproximando, a classe burguesa não academia de belas artes: Pedro Campofiorito e
mais importava de Paris, da Europa e, sim, vendia Theodoro Braga, o primeiro porque não encontrava
seus bens para o estrangeiro que se meio de sobreviver de sua pintura e o segundo
apresentassem interessado nas coleções de arte porque foi seduzido pela livre docência na ENBA,
existentes na cidade. Segundo Ricci, Belém ficou escola em que havia estudado, e depois pela
estagnada por trinta anos. Some-se a esse cenário Escola Mackenzie em São Paulo onde passou a
a suspensão de “bolsas de estudos para o exterior” ser diretor.
por decisão de Augusto Montenegro.
Foi a “Academia Livre de Belas Artes” a responsável
Na década de 1900 surgem dois fenômenos em pelas realizações das Exposições Gerais de Arte
Belém que certamente tiveram origem nas em Belém, que teve na edição de 1924 o primeiro
atividades de ensino de Theodoro Braga: as catálogo de exposição, o público e a crítica ficavam
Exposições Escolares e o Primeiro Salão de Belas indecisos entre a pintura tradicional e os ensaios
Artes, este último a única iniciativa no campo vanguardistas que revelaram a estética de Leônidas
cultural que frutificou da presença de Pedro Monte para Belém que, em 1927, foi exposta no
Campofiorito em Belém, todavia, a idéia da foyer do Teatro da Paz, trazendo novos ares para
academia permaneceu no desejo dos paraenses e a estética plástica local. O período de
daqueles artistas visitantes que pelas terras funcionamento da academia livre resultou numa
amazônicas se encantaram. Nesse sentido, Flávio significativa produção pictórica mais quantitativa do
Cardoso e José Girard tentam criar uma Academia que qualitativa, o campo cultural plástico, porém,
de Pintura da qual faziam parte do corpo docente,
103
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

foi bastante enriquecido com suas exposições de Mais tarde foi criada a “Sociedade Artística
arte, trazendo à luz vários artistas. Internacional”, SAI, organização não governamental
voltada para a música erudita e que teve à frente
Leônidas Monte foi o pintor vanguardista que trouxe de sua direção os seus idealizadores Frederico
para Belém uma nova forma de estar e ver o mundo Barata11 e Augusto Meira Filho12. Frederico Barata
a partir de seu comportamento e de sua pintura, exerceu uma espécie de papel de mecenas das
juntamente com Oswaldo Vianna, fundara a artes plásticas em Belém, implementou um jornal
“Instrução Artística Brasileira” que, diante da lacuna de grande circulação na cidade e, por conta de seu
das exposições gerais da Academia Livre de Belas temperamento e amor pelas artes, soube
Artes, patrocinou os “Salões de Ensaio”, além de movimentar o campo cultural de Belém, assumindo
exposições de artistas como Osvaldo Teixeira, por assim o papel de Chateaubriand do Pará, trazendo
exemplo. O ensino, por outro lado, ficou relegado artista como Tadashi Kaminagai e Armando Balloni.
às iniciativas privadas como a que ocorria no atelier Frederico Barata sempre se posicionou fazendo
de pintura de Veiga Santos. Pintor diletante, que críticas construtivas sobre o estado da arte pictórica
exerceu influência sobre muitos pintores em Belém, em Belém. As atividades da SAI não conseguem
com uma estética à maneira “acadêmico-eclético- ter continuidade, após a morte de um de seus
pós-impressionista”, categoria de arte defendida criadores, conta Ricci, a enorme coleção de obras
por Campofiorito. (1983:70) de arte do articulista foi totalmente dilacerada por
leiloeiros e colecionadores de fora de Belém, esse
Todo esse movimento cultural, todavia, surtiu pouco fato marcaria então o fim de mais um rico período
efeito na formação artística dos próprios educandos da cultura paranse.
de arte, porém, muito menos no gosto da crítica e
do público local quanto ao novo paradigma estético Após essa fase, a cultura pictórica ficou à deriva
que se fazia presente principalmente no sul e no de iniciativas de grupos particulares ou de pessoas
nordeste, o modernista. A exposição de Ismael Nery diletantes, pois o poder público estadual não
não foi bem recebida em Belém, na opinião de conseguiu estabelecer políticas que consolidassem
Ricci, foi um fiasco: uma escola ou academia de artes no Pará, com
isso os novos valores das artes plásticas foram
A mostra, como não poderia deixar de ser, encontrar abrigo na universidade quando foi criado,
violentaria os meios impregnados do em 1963, o Curso e Arquitetura e, também por
academicismo e realismo, sendo mal recebida iniciativa e visão do Reitor Silveira Neto, realizou-
pelo público e os meios burgueses, alvo de se o “Salão e Artes Plásticas da Universidade
verdadeira chacota e escárnio. Federal do Pará”.
Financeiramente, a exposição resultou num
verdadeiro fiasco. O público, as elites, a Embora tenha levado efeito somente duas edições,
burguesia escandalizaram-se e não puderam os salões de artes plásticas universitários foram
compreender nem mesmo ao menos tolerar a os responsáveis pela abertura do campo cultural
exposição de seu conterrâneo. Todavia, os paraense para a vanguarda que ocorria na capital
intelectuais e os artistas paraenses paulista, uma vez que entre as suas premiações
compreenderam e defenderam a arte de Ismael faziam parte as viagem para visitas às Bienais e,
Nery, quase diariamente, pelos jornais da nesse ponto, começa uma nova inflexão nas artes
época. no Pará: a Bienal Amazônica de Artes Visuais é
criada em 1972 e o Pará é representado na Bienal
A primeira metade da década de 1940 é marcada de São Paulo em 1974.
pelas conseqüências da Segunda Guerra Mundial,
a borracha por força do mercado, começa a ter Finalmente, podemos afirmar que o Pará, de fato,
certa valorização que depois, novamente, revela- não teve sua Academia de Belas Artes a exemplo
se efêmera, Belém não havia se preparado do que ocorreu em outras capitais brasileiras, de
industrialmente para explorar aquela matéria prima, forma institucionalizada, sistemática e contínua.
apesar dos esforços políticos. O Pará retoma o seu Mas teve um movimento artístico camaleônico, é
desenvolvimento, mesmo que efêmero e as artes certo, de fronteira, artistas de qualidade
são contempladas com a criação dos “Salões pontificaram em vários momentos de sua história
Oficiais de Belas Artes”, pela Lei n° 3.555 de 5 de e que compõem não um panteão, mas uma ocara
setembro de 1940. As participações de Oswaldo nesse vasto lado de baixo do equador, pois tingiu,
Viana e Leônidas Montes na realização dos mais e transformou em outras cores o verde vago mundo
de dez salões, foram fundamentais para a cultura descrito por Bopp, a sua maneira. (FARIAS, 2003:
local. 120)

104
Academia de Belas Artes na Amazônia

As causas dessa lacuna, da não existência de uma Artes da Escola e Comunicações e Artes da
instituição forte para o ensino das artes plásticas, Universidade de São Paulo, 2003.
podem ser debitadas, por exemplo, à formação LUCARELLI, Francesco. Belém [reloaded], The
étnica local, por ser mais portuguesa, com uma Story Taller (o narrador). Napoli: Edizione
tradição mais para a música e para as artes Scientifiche Italiane , 2004.
literárias, assim como ao imigrante nordestino, o TOCANTINS, Leandro. Santa Maria de Belém do
que implicou no não investimento em espaços Grão Pará. Rio e Janeiro: Civilização Brasileira
específicos para o ensino da pintura e para S.A., 1963.
exposição de acervos públicos de arte. Por outro RICCI, Paolo. As artes Plásticas no Estado do Pará.
lado, o desinteresse dos políticos e da classe Fólio, depositado na Biblioteca da FUNARTE, Rio
burguesa que preferiam os valores estrangeiros aos de Janeiro, aproximadamente 1978.
valores locais, fez com que se tornassem ineficazes
as pensões para estudos na Europa, pois não havia Notas
um mercado de arte que sustentasse os artistas 1
Professor da Faculdade de Artes Visuais do Instituto de
quando de seus retornos “do estrangeiro”; a política
Ciências da Arte da Universidade Federal do Pará. Doutor
provinciana e preconceituosa em relação aos em Artes pela Escola de Comunicações e Artes da
trabalhos manuais e a grande xenofilia reinante não Universidade de São Paulo.
permitiram que a escola de belas artes se fizesse 2
Cf. ROQUE, C. Grande Enciclopédia da Amazônia,
uma realidade, a sociedade e os formadores de 1968, p. 828. - Termo originário da palavra Guajará, Baía
opinião não admitiam que o ensino de arte fosse onde se acha a cidade de Belém. Guajará é uma “planta
ministrado por artistas locais, em conseqüência, da família das Sapotáceas (lacuma isepala Karuse Ducke),
3
Ibid., p. 890. - “Denominação literária da Amazônia, da
Belém perdeu alguns valores locais para outros
grande baixada que distende dos arredores da Nauta, no
centros urbanos polarizadores de arte como Rio Peru, às plagas do Atlântico, entre as sofraldas dos
de Janeiro e São Paulo. planaltos brasileiros e güiano, caracterizada pela
uniformidade golpeante de um ‘mar de verdura’. Em 1908
Julgar se foi historicamente positivo ou não a apareceu com este título um livro admirável de cenas e
presença de uma escola de artes no campo das cenários do Amazonas: escrevera-o o espírito fulgurante
artes plásticas em Belém não acrescentará muito de Alberto Rangel. ‘Surpreendente, original extravagante’,
ao conhecimento e a história da arte brasileira, o volume empolgou a atenção do país, e, logo, se inscreveu,
até porque, como disse Euclides da Cunha, que o prefaciou,
porque a abordagem, a partir de um modelo
era ‘uma grande voz, pairando, comovida e vingadoura,
hegemônico, pode significar uma leitura de certa sobre o inferno florido dos seringais que as matas opulentas
forma etnocêntrica, padrão da história e de seus engrinaldam e traiçoeiramente matizam das cores ilusórias
testemunhos a partir da produção simbólica da esperança...’” (Bernardino Souza)..
daqueles artistas que resistiram à todas as 4
Ibid, p. 625-626. - “Fabulosa região, de riquezas sem fim
dificuldades, com outras falas, outros sotaques, que, segundo as tantas lendas, estaria localizada na
outras visualidades, também híbridas, como toda América do Sul, em sua parte norte”.
5
Ibid, p.517. “Ser fantástico. Variante da Cobra-Grande,
a cultura latino americana (CANCLINI, 2006) que
chamada também de Cobra Honorato”. Cf. O Liberal,
construiu caminhos outros e ao mesmo tempo Caderno Dois, de 1 de abril de 1990. - Augusto Morbach
semelhantes àqueles galgados pelos ditos centros ilustrou em 1964 a lenda, e conta que o fez como as
hegemônicos do Brasil. Aos olhos daqueles que ilustrações de Goeldi no livro de Raul Bopp.
fazem e pesam a história interessam as múltiplas 6
“Escritor. Natural da cidade de Belém [...] Criança ainda
perspectivas, o não esgotamento e absolutização transferiu-se com sua família para o Acre. [...] De sua
dos fatos que, no caso do ensino da arte em Belém, vivência no Acre nasceu – anos depois a obra em três
volumes, denominada “Formação Histórica do Acre”. No
desde os finais do século XIX, é muito mais rico do
retorno a Belém fez seus estudos secundários; no Rio
que pode imaginar o conhecimento meia-sola da bacharelou-se em Direito pela respectiva Faculdade
cultura brasileira. Nacional. [...] No jornal “A Manhã” publicou seus primeiros
trabalhos sobre a Amazônia. Em 1952 editava seu primeiro
Referências bibliográficas livro, “O Rio Comanda a Vida” (reeditado em 1968) [...]
publicou, ainda: [...], “Amazônia Natureza Homem e
CAMPOFIORITO, Q. História da Pintura Tempo”; “Brasil, Alguns Valores Essenciais”; “Acre, Rio
Brasileira no Século XIX. V. 4. Rio e Janeiro: Branco e Espírito Luso”; e “Euclides da Cunha”. Grande
Edições Pinakotheke, 1983. Enciclopédia da Amazônia, 1968, p. 168.
7
CANCLINI, N. G. Culturas Híbridas, uma Excerto da introdução da tese de doutorado Calor, Chuva,
Tela e Canivete – a pintura no tempo do modernismo em
estratégia para entrar e sair da modernidade.
Belém apresentada a Escola de Comunicações e Artes da
São Paulo: EDUSP, 2006. Universidade e São Paulo, em 2003, sob a orientação da
FARIAS, E. Calor, chuva, tela e canivete – a Profa. Dra. Neide Marcondes de Faria.
pintura no tempo do modernismo em Belém. Tese 8
Cf. LOBATO, J. M., Apud PINHEIRO, R. História da
apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Pintura Brasileira. 1931: “O Brasil é uma vasta tela de

105
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

oito milhões de quilômetros quadrados” e, portanto, sob os auspícios das Organizações Diários Associados
necessita de ter, ainda, estudada as manifestações de Assis Chateaubriant para dirigir a nova fase do jornal
artísticas em outras regiões. “Folha do Norte” em 1947. Escreveu o capítulo referente a
9
C.F. http://pt.wikipedia.org/wiki/ Carl Friedrich Philipp von Arqueologia, pp. 13 -60 do volume I da coleção As Artes
Martius (12:21 de 13/10/2007) Carl Friedrich Philipp von Plásticas no Brasil (1952), organizada por Rodrigo M. F.
Martius. (Erlangen, 17 e abril de 1794 - Munique, 13 de de Andrade. Ver também, LEITE, J. R. T. Dicionário Crítico
dezembro de 1860) foi médico, botânico, antropólogo e um da Pintura no Brasil”, 1988, p. 55.
12
dos mais importantes pesquisadores alemães que Augusto Meira Filho, paraense foi historiador escreveu
estudaram o Brasil e especialmente a região da Amazônica. sobre Belém, Antônio Landi, Arquitetura no Pará e em 1975,
10
Ver interessante debate sobre a questão in: BARBOSA, numa separata da Revista da Cultura do Pará, publica
A. M. Arte-Educação no Brasil. 1978, pp. 82-84. “Contribuição à História da Pintura na Província do Gram-
11
Em entrevista concedida para esta pesquisa, Paolo Ricci Pará no Segundo Reinado (Esboço biográfico de um artista
testemunha este fato. Frederico Barata teve uma importante esquecido)”.
participação na vida cultural de Belém, veio para Belém

106
Não é certamente a lógica da história, mas a
desordem dos eventos que se reflete na
realidade urbana herdada do passado (ARGAN,
1993: 75).

A celebração dos 200 anos da transmigração da


Família Real para a cidade do Rio de Janeiro joga
à luz dos refletores os resquícios do antigo cenário
que serviu como palco para a inusitada inversão
política e social, que transformou colônia em reino
e reino em território secundário, administrado à
distância. O centro do Rio de Janeiro abriga um
patrimônio arquitetônico magnífico que
testemunhou todo o processo de desenvolvimento
urbano decorrente da instalação na cidade da corte
portuguesa. A Praça XV de Novembro continua
exibindo um conjunto memorável composto pelo
Museu Histórico Nacional (antiga Casa do Trem
que armazenava material bélico); o Centro Cultural
do Paço (antiga Casa da Moeda, Paço dos Vice-
Reis, Paço Real e Paço Imperial); o Centro Cândido
Mendes (antes Convento da Ordem Carmelita);
Igreja de Nossa Senhora do Monte do Carmo
(antiga Sé); contígua a essa, a igreja da Ordem
Terceira de Nossa Senhora do Carmo; a casa da
família Telles de Menezes de Pinto Alpoim e o
o curso de arquitetura da escola nacional de Chafariz da Pirâmide de Mestre Valentim. Com os
belas artes e o processo de modernização do portos abertos por interesses políticos e
centro da cidade do rio de janeiro no início do econômicos portugueses o Rio de Janeiro passou
século xx a experimentar um intercâmbio direto e regular com
a Europa, fato que cooperou para a formatação do
helena cunha de uzeda 1 etos da cidade, cuja índole inclui uma abertura a
novas relações e um grande apetite por
modernidades. A cidade acostumou-se a receber
com entusiasmo artistas e arquitetos estrangeiros
– tanto os que por sua própria conta decidiam
migrar em busca de oportunidades quanto os que
vinham em missões oficiais, contratados pela Corte
Portuguesa. Esse foi o caso da Missão Artística
Francesa, cuja vinda ao Brasil :è resultado de uma
conveniência histórica que disponibilizou
excelentes artistas ligados à Corte deposta de
Napoleão :è teve como mérito maior a criação da
primeira instituição dedicada ao ensino das artes
no país.

O ensino artístico, estruturado dentro de academias


de arte, seguia um modelo pedagógico de matriz
francesa, reunindo cursos de pintura, escultura,
gravura – de moedas e pedras preciosas – e
arquitetura: todos eles comungando uma base
comum de fundo humanista e outra dedicada ao
desenvolvimento de competências específicas a
cada uma daquelas artes. A criação de uma
academia carioca tinha um objetivo imediato:
melhorar o acanhado aspecto estético da colônia
que hospedava a Corte portuguesa, garantindo uma
imagem compatível com seu novo status. Imbuído
desse compromisso, o arquiteto francês Grandjean

107
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

de Montigny2 debruçou-se sobre sua prancheta “moderno”. Seria possível uma instituição
criando planos de urbanização e projetos para “tradicionalista” como a Academia de Belas Artes
prédios públicos, que habitariam uma idealizada formar arquitetos prontos para lidar com toda
cidade neoclássica, nunca concluída, para a Capital aquela ansiedade por renovação? Muitos
da Corte. O grande legado de Montigny foi, sem acreditavam que não.
dúvida, sua participação direta na formação de toda
uma geração de arquitetos brasileiros, que saíram Em 1884, o arquiteto alemão Luiz Schreiner
de seu ateliê para erguer grandes projetos na encaminhou ao Instituto Politécnico Brasileiro o
capital e em cidades vizinhas – todos os que foram pedido de extinção do ensino de arquitetura da
preservados constituem-se hoje em valioso acervo Academia carioca. Seis anos depois, durante a
de nosso patrimônio cultural. reforma republicana, seria o próprio diretor da
instituição, Moreira Maia, que aconselharia a
A Academia Imperial de Belas Artes assistiu o exclusão do ensino de arquitetura dos cursos
comprometimento ideológico e econômico que acadêmicos: “Parece-me, pois, de bom e acertado
mantinha com o Império transformar-se de bônus alvitre deixar para mais tarde a criação do curso,
em ônus pesado demais para ser carregado em por ora de todo dispensável”(NOTAÇÃO, 1890). O
tempos republicanos. Já antes da destituição do fechamento do curso de arquitetura só não se
Império, o curso que formava arquitetos na ENBA concretizou pela intervenção dos professores
começara a sofrer uma redução em seu número Rodolfo Bernardelli e Rodolfo Amoedo, que
de alunos, talvez como resultado da forte elaboraram uma reforma que mantinha o curso,
concorrência exercida pelo curso de arquitetura civil garantindo assim uma sobrevida do ensino que
que passou a ser oferecido pela Escola Politécnica formava arquitetos dentro do âmbito da Escola.
do Largo de São Francisco. Não podemos esquecer
que esta prestigiosa instituição da Corte, tradicional A permanência do ensino de arquitetura como parte
na formação de engenheiros militares, viria a integrante das belas artes constituiu-se numa vitória
fornecer alguns dos principais líderes ao golpe parcial, que iria necessitar para sua consolidação
republicano, o que lhe conferiu maior admiração e que fosse contratado um professor para a cátedra
poder. principal do curso :è Desenho de Arquitetura,
Trabalhos Práticos e Projetos :è sem titular desde
Não é difícil imaginar que momentos conturbados 1888, quando se afastou por aposentadoria o
como os que implicam em troca radical de regime professor Francisco Bittencourt da Silva, discípulo
político e administrativo afetem drasticamente o de Grandjean de Montigny. Sem titular e
desenvolvimento de instituições diretamente praticamente sem alunos, as aulas de arquitetura
dependentes dos beneplácitos governamentais. contavam com dois professores suplentes –
Não podemos esquecer que mesmo com todo o ironicamente, dois engenheiros: André Pinto
apoio do Conde da Barca e o patrocínio de D. João Rebouças, professor da Escola Politécnica e Adolfo
VI, a idéia de criação de uma Academia em 1816 Del Vecchio 3 . A dificuldade de preenchimento
precisou de dez anos para se concretizar – daquela cátedra nos leva a imaginar que, naquele
necessitando aguardar que as convulsões momento, o cargo de professor de arquitetura da
resultantes da implantação do reino no Brasil ENBA não era motivo de grande cobiça. Del
fossem absorvidas. A transformação da Academia Vecchio, autor do projeto para o Posto de Alfândega
Imperial em Escola republicana em 1890 colocou na baía de Guanabara :è a charmosa Ilha Fiscal
a estrutura acadêmica diante de transtornos que flutua na Baía de Guanabara :è, gozava de
conjunturais de semelhantes proporções. Atreladas prestígio junto ao Imperador Pedro II, o que lhe
às transformações pedagógicas, remoinhavam-se garantiu a indicação para diretor de obras do
outras questões cruciais, como o próprio caráter ministério da Fazenda. O projeto neogótico do
da profissão de arquiteto, cujas atribuições estavam engenheiro Del Vecchio para o posto da Alfândega
sendo atropeladas pela capacitação técnica dos :è premiado com medalha de ouro na Exposição
engenheiros e pelas novas demandas Geral da ENBA de 1890 – era respeitoso à simetria
arquitetônicas. À dificuldade de implementação de e à centralidade, as mesmas características
uma nova abordagem administrativa somou-se o canônicas vinculadas às composições acadêmicas
processo de transformação no conceito de beaux-arts. Naquele período, não havia diferenças
“modernidade” que se operava na época. Naquele visíveis entre os projetos realizados por arquitetos
momento, novos usos dos materiais, programas e engenheiros, sendo comum que estes seguissem
arquitetônicos mais ambiciosos e uma busca por o modelo compositivo beaux-arts, com projetos que
estéticas menos tradicionais colocavam em respeitavam a simetria, o equilíbrio e seguiam as
questão o que representava ser realmente tipologias e o padrão ornamental.

108
O curso de arquitetura da ENBA e a modernização do Rio de Janeiro no início do século XX

Onde estavam metidos todos esses arquitetos? cidade –, a construção da Avenida Central (1903-
1906) foi facilitada pelo poder de coerção que
Quando Rodrigues Alves sucedeu Campos Sales possuíam os governos do período.
na presidência em 1902, o cenário econômico do Desapropriações, arrasamentos de morros,
país começava a apresentar sinais de melhoras, demolições de prédios e remoções de
depois do período turbulento que acompanhara a comunidades ocorriam em meio a muitas
derrocada do Império. Isto permitiu ao novo governo aclamações e a algumas objeções que não
republicano lançar-se a novos empreendimentos, chegaram a ameaçar o projeto. Essas
entre eles: as campanhas de saneamento e de reestruturações urbanísticas e arquitetônicas,
erradicação de doenças endêmicas, como a febre patrocinadas pelo capital internacional e pelo poder
amarela, a peste bubônica e a varíola, levadas a político, tinham como beneficiários alguns grupos
cabo pelo sanitarista Osvaldo Cruz. Eram iniciativas desejosos por legitimar seu valor dentro do cenário
que visavam acabar com mazelas antigas, que republicano. David Harvey (2003) lembrou que a
haviam se vinculado ao império e ao atraso, reurbanização de Paris aliou a criação daquele novo
adequando a cidade aos tempos modernos. espaço urbano ao capital financeiro e à
Entretanto, nada teria maior destaque no início do especulação, gerando um modelo que seria
século XX que as reformas urbanísticas feitas no reeditado em muitas outras cidades a partir de
degradado centro da cidade do Rio de Janeiro. então. No caso do Rio de Janeiro, ficou evidente
Exibida como uma quinta-essência de modernidade que a urbanização servira a determinados grupos,
nos trópicos, a construção de uma ampla avenida, que se realocaram sobre o antigo tecido colonial,
ladeada por construções de inspiração francesa, deslocando os estratos menos privilegiados da
serviu como marco não apenas da gestão Pereira sociedade. Perfilou-se ao longo da Avenida o
Passos, mas da própria história cultural da cidade. cortejo das forças republicanas, reunindo antigos
A estrutura colonial que emaranhava de forma e novos poderes. Entre os primeiros, as entidades
orgânica a antiga arquitetura de matriz portuguesa vinculadas à Igreja, tradicionais proprietárias de
no centro da Capital Federal não parecia capaz de terras: a Mitra-Episcopal, a Ordem Beneditina e as
incorporar os grandiosos ideais republicanos. Para abastadas Irmandades Terceiras. O arquiteto
a República, aquela reurbanização assumia o Morales de los Rios que, à época, ocupava cátedras
caráter urgente e simbólico de afirmação do na Escola Nacional de Belas Artes, foi autor de
domínio político e social do poder burguês sobre cinco projetos para instituições religiosas que
um espaço tão importante. seriam construídos na Avenida. Lá, também,
estavam as Forças Armadas, através de suas
A força da profunda dependência cultural do Brasil associações corporativas militares, como o Club
em relação à França atenuou possíveis Militar e o Club Naval. Além de exuberantes pontos
constrangimentos aos republicanos, que aceitaram comerciais, perfilavam-se no bulevar carioca novas
o mesmo modelo usado na reforma urbana forças emergentes, representadas por instituições
implementada pelo prefeito Haussmann4 em Paris, financeiras e pela imprensa, que se fez representar
ainda que esta estivesse imbuída do simbolismo por nada menos que quatro sedes de jornais: O
imperial de Napoleão III. A demolição das moradias País, Jornal do Comércio, O Século e Jornal do
populares do antigo núcleo parisiense escondia Brasil. Ali se reuniria, ainda, uma burguesia ainda
uma cruel intenção: afastar daquele nobre cenário presa aos atavios e títulos de nobreza, ao lado de
a miséria explícita que se deixara aglomerar na “burgueses novos” que começavam a empresariar
cidade. O poeta francês Charles Baudelaire em Os atividades fundamentais dentro do processo de
Olhos dos Pobres, criticando o desprezo da modernização. Entre estas, se destacavam
reurbanização haussmanniana pela população empresas de energia elétrica, que passariam a
desassistida de Paris, narrava o vazio do olhar de distribuir iluminação pública, residencial e a
admiração e impotência dos desalojados diante do controlar o sistema de transporte eletrificado,
espetáculo da nova cidade. O jornal Correio da ferroviário e urbano. A Companhia Estrada de Ferro
Manhã, de 15 de novembro de 1905, publicou um São Paulo-Rio Grande :è controlada pelo
artigo sobre a nova Avenida Central, cujo título americano Percival Farquhar, um dos futuros
“Luxo e Miséria” embutia a mesma crítica social diretores da The Rio de Janeiro Tramway Light and
baudelaireana, que nos dá bem o tom excludente Power Co. :O concurso que iria escolher os projetos
da urbanização carioca. arquitetônicos a serem construídos na Avenida
Central, agitou os ânimos dos arquitetos da ENBA.
Parte de um plano ambicioso, que envolvia a
Os trabalhos concorrentes foram apresentados ao
criação de um novo porto, na atual Praça Mauá, e
júri num dos salões da Escola, ainda no antigo
de novas artérias para o tráfego – o que alterava o
prédio da Travessa das Belas Artes, mostrando que
vetor de crescimento urbano para a zona sul da
109
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

a Escola se mantinha como um espaço legitimador técnicos. A crítica pareceu desconsiderar o fato de
das artes plásticas. O grande número de que o sistema de composição arquitetônica,
profissionais que se inscreveram no concurso e a desenvolvido pelo ensino das academias de arte,
qualidade apresentada pelos trabalhos estruturava-se, invariavelmente, sobre a tríade:
surpreendeu até mesmo mentes críticas, como a planta, seção e elevação, sendo apenas esta última
do poeta Olavo Bilac. Diante de mais de oitenta relativa à fachada. Não se levou em conta,
projetos arquitetônicos, elaborados com apuro e tampouco, que entre os profissionais premiados
competência, Bilac declarou que todos os naquele concorrido concurso encontravam-se
presentes nas salas de exposição deveriam estar engenheiros com formação extremamente técnica
fazendo a mesma pergunta que ele próprio se fazia: que, mesmo não tendo saído das fileiras artísticas
“Onde estavam metidos, que faziam, em que se da academia, apresentaram projetos que se
ocupavam todos esses arquitetos que aparecem enquadravam, rigorosamente, dentro do mesmo
agora, com tanto talento, com tanta imaginação, espírito acadêmico e decorativo comum à época.
com tanto preparo, com tanta capacidade?”5 Paulo Santos, no texto que introduz a obra de
Ferrez, “O Álbum da Avenida Central” (FERREZ,
O período problemático que havia se seguido à 1983), reafirma a existência das plantas dos
instauração da República não permitira grandes projetos daquele concurso, justificando a ausência
empreendimentos, o que contribuiu para delas na compilação dos riscos das fachadas: “A
obscurecer os profissionais de arquitetura que se inclusão dessas plantas, no entanto, deve-se
lançavam ao mercado. A abertura da Avenida reconhecer, teria dado ao Álbum um caráter
Central resultou, assim, num momento de rara demasiadamente técnico” (SANTOS, 1983: 27). A
oportunidade para a atuação dos arquitetos. Alguns fachada dos bulevares representava a verdadeira
deles eram ligados a ENBA e iriam entrar em cena opera a ser encenada nas cidades modernas. A
em grande estilo. planta do projeto, cortes, cálculos e orçamentos
constituíam-se em assunto de bastidores, ficando
Com quase dois quilômetros de comprimento e 33 geralmente distantes do alcance dos refletores. Não
de largura, a avenida parecia ser mais do que haviam sido as fachadas ornamentadas da Place
suficiente para alguns poucos carros à tração Vendôme de Paris que seduziram Le Corbusier,
animal e a meia dúzia de automóveis importados que as considerou um “patrimônio universal”? De
que circulavam pela cidade. Entretanto, a largura forma análoga, a construção da Avenida Central
que na época parecia exorbitante foi contestada no centro urbano do Rio de Janeiro também
por Morales de los Rios, que defendia o dobro da encantara Le Corbusier, a despeito de toda aquela
extensão, certamente influenciado pela exibição explícita de ecletismo historicista, tão
grandiosidade da Avenida Nove de Julho de Buenos criticado pelo movimento racionalista.
Aires, que Morales visitara pouco antes de se
instalar no Brasil. A moderna Avenida Central – O cenário ambicioso montado no centro do Rio de
pavimentada com asfalto e iluminada com energia Janeiro dava mais visibilidade à confusa
a gás e elétrica – foi inaugurada com 30 prédios já superposição de atribuições entre arquitetos,
concluídos e mais de oitenta em processo de engenheiros e construtores, que vinham
construção. O bulevar carioca com sua arquitetura imbricando-se havia séculos. A organização do júri
exuberante conferiu “ares europeus” à cidade e para escolha dos melhores projetos para a Avenida
extasiou a burguesia novidadeira, mas, muito mais :è seis engenheiros, três médicos e o escultor
que isso, serviu como laboratório e vitrine Bernardelli :è reafirmava o desequilíbrio de forças
privilegiada para arquitetos, engenheiros e na virada republicana, que privilegiava claramente
construtores – responsáveis diretos por aquele os profissionais da área de medicina e de
espetáculo e que travavam nos bastidores uma engenharia. Engenheiros e médicos eram
disputa velada pelo domínio no campo da considerados, naquele momento, como os mais
construção civil. aptos ao manejo de questões ligadas à
urbanização, como abastecimento de água,
Os partidários das idéias racionalistas lançariam, escoamento de esgoto, demolições, abertura de
nas décadas seguintes, suas críticas à ênfase que ruas, pavimentação, e à promoção da saúde
foi dada às fachadas ornamentadas, de cunho pública, como o saneamento da cidade e o combate
notadamente eclético e acadêmico, em detrimento às epidemias.
da funcionalidade racional. Ainda que a escolha dos
melhores projetos a serem erguidos na Avenida Os arquitetos pareciam haver sido deixados à
tenha ficado conhecida como “Concurso de margem. Além da prerrogativa de julgar os projetos
Fachadas”, não devemos imaginar que tais riscos a serem erguidos na Avenida Central, os
fossem desprovidos de planta e demais detalhes
110
O curso de arquitetura da ENBA e a modernização do Rio de Janeiro no início do século XX

engenheiros detinham todo controle sobre a sinalizar horizontes mais felizes para o ensino
execução das obras, como demonstra a tripartição acadêmico. A localização da nova sede na parte
realizada pela Comissão Construtora da Avenida: mais nobre da Avenida, ladeado por outras
encargos financeiros, construção e administração construções grandiosas, como o Teatro Municipal
de pessoal, cada uma dessas comissões entregue e a Biblioteca Nacional, garantiu um prestígio maior
a um engenheiro. A escassez de representantes à instituição e, conseqüentemente, à gestão do
do campo da arquitetura à frente da organização diretor Rodolfo Bernardelli.
de uma obra como aquela não chega a causar
estranhamento se considerarmos o poder que os Composto por quatro alas em torno de um pátio
engenheiros militares haviam conquistado dentro central, o projeto eclético 6 de Morales garantiu
da administração republicana. Entretanto, a maior conforto para as atividades acadêmicas e
presença expressiva de arquitetos ligados ao Curso extra-acadêmicas, entre estas, as Exposições
de Arquitetura da ENBA entre os mais de 80 Gerais, que premiavam os melhores trabalhos de
vencedores do concurso – que contou com artistas nacionais e estrangeiros, funcionando
profissionais franceses, ingleses e italianos – como vitrine legitimadora das artes plásticas na
mostrava uma imagem mais justa à relevância que capital da República.
o ensino de arquitetura acadêmico representou
para o empreendimento. Mais de um quarto do total A construção da Avenida Central e a destacada
de projetos haviam saído das pranchetas de participação dos arquitetos acadêmicos no
professores e ex-alunos da ENBA: Morales de los empreendimento contribuíram diretamente para o
Rios, Heitor de Cordoville, Ludovico Berna, Heitor reconhecimento da eficiência do Curso de
de Mello, Gastão Bahiana e Bittencourt da Silva. Arquitetura da ENBA. A visão de um ensino de
Esta participação expressiva trouxe prestígio arquitetura acadêmico retrógrado e tradicionalista
inesperados aos arquitetos ligados ao ensino seria cristalizado por meio das críticas modernistas
acadêmico, o que iria influenciar a decisão do e acabaria gerando um paradoxo. Em 1978, o
governo de conceder à Escola um espaço na arquiteto Abelardo de Souza escreveu o texto A
Avenida. ENBA, antes e depois de 1930, no qual colocava
essa aparente contradição.
Em 1905, ano em que as obras viárias foram
concluídas, ainda não havia determinação oficial [...] pensar que com aquele ensino, com
de destinar o projeto que ocupa o número 199 da aqueles professores completamente
Avenida Rio Branco à Escola Nacional de Belas desatualizados da realidade, completamente
Artes. O professor Alfredo Galvão transcreveu as ignorantes do que já se fazia no resto do
queixas feitas à época sobre o que foi considerado mundo, se formaram arquitetos, citando apenas
como uma falta de consideração do Ministro da alguns, como Lúcio Costa, Afonso Eduardo
Justiça, que não atendera os pedidos para que Reidy, Marcelo Roberto, Atílio Correa Lima [...]
fosse construído um novo prédio para a Escola. (XAVIER, 2003: 67).

Quase todos os estabelecimentos de ensino Duas décadas antes de Abelardo de Souza, numa
dependentes do ministério a vosso cargo visão mais apurada, Lúcio Costa já havia
tiveram reformas necessárias, aumento de compreendido a importância da criação da
edifício e até aquisição de terrenos para a Academia de Belas Artes no Brasil e do curso de
construção na Avenida Central, só a ENBA [...] arquitetura nos moldes acadêmicos. Em seu texto
infelizmente, não viu realizado o desejo que há de 1951, “Muita Construção, Alguma Arquitetura e
tantos anos nutre de vê-la instalada um Milagre”, Lúcio Costa afirmava: “Integrava-se
convenientemente (GALVÃO, 1905: páginas assim, oficialmente, a arquitetura de nosso país
não numeradas). no espírito moderno da época [...]” (XAVIER, 2003:
78). A seguir, ele enumerava de forma honrosa os
Todas as tentativas feitas junto ao governo por antigos professores de arquitetura da ENBA e
Rodolfo Bernardelli para que fosse conseguido um algumas de suas obras, sem permitir que o
local maior para os cursos acadêmicos – que esgotamento dos modelos ecléticos – e que a
continuavam mal alojados no acanhado prédio mágoa de haver sido destituído da direção da
construído por Montigny na década de 1820 – Escola em 1931 – o fizesse perder a dimensão do
haviam sido infrutíferas. Finalmente, a ENBA papel definidor que o ensino artístico acadêmico
acabou recebendo um majestoso prédio na Avenida da Escola havia representado na trajetória da
Central, que ocupava todo um quarteirão. O edifício arquitetura brasileira.
era um dos 17 projetos de autoria do arquiteto e
professor Morales de los Rios, o que parecia
111
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

O que se verificou nessa busca pela renovação foi construções que impressionaram os críticos da
uma dramática alteração conceitual do que época por sua grandiosidade e acabamento
representava exatamente ser “moderno”. Era um serviram como atestado da proficiência técnica e
período confuso de transição entre uma da qualidade artística dos arquitetos acadêmicos.
modernidade baudelairiana, ainda romântica e
histórica, para uma outra – pós-cubista, abstrata e Infelizmente, os testemunhos materiais de toda
anistórica – que desqualificava os historicismos e essa rica história foram sendo apagados
seus amálgamas ecléticos. Aquelas formas silenciosamente. O pioneiro prédio neoclássico
híbridas e aparentemente anacrônicas haviam projetado pelo arquiteto francês Grandjean de
estabelecido um forte vínculo com o ensino de Montigny, que deu início ao ensino das artes e da
arquitetura acadêmico que, entre a abertura da arquitetura no Brasil, foi demolido em 1938 e hoje
Avenida Central e a Exposição Comemorativa do abriga um estacionamento. A demolição, sem justa
Centenário da Independência em 1922, havia se causa, contou com o beneplácito do Serviço do
caracterizado por muitas produções dentro desse Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, cuja
espírito. ideologia privilegiava a arquitetura neocolonial de
matriz portuguesa, eleita como resposta nacional
A percepção de uma instituição fechada ao novo e ao ecletismo importado. As construções da antiga
aprisionada às doutrinas da École de Paris, em que Avenida Central passaram a ser consideradas
pese a enorme dependência cultural francesa também como “antiqualhas afrancesadas”. A partir
desde os tempos da chegada da Missão Artística da década de 1950, os prédios da histórica Avenida
– e que iria se reafirmar com a escolha do modelo foram sendo gradativamente demolidos e
corbusieriano – , não encontra sustentação nos substituídos por edifícios modernos, cuja escala
registros mais importantes da instituição: as Atas colossal afronta a singeleza das antigas
da Congregação dos Docentes da Escola. A grafia construções e quebra a harmonia daquele conjunto
rebuscada desses livros administrativos revelam eclético.
posições surpreendentes, como a do diretor Araújo
Porto Alegre que defendia, já em 1855, o combate Há mais de 70 anos assistimos a uma narração
aos hábitos e as tradições do passado para que se eloqüente, construída a partir da ótica do
pudesse acompanhar os novos caminhos movimento moderno, que nos conta a história de
propostos, destacando, como exemplo, as como os modernistas revolucionaram o ensino da
inovações construtivas do projeto de autoria do ENBA e a própria trajetória da arquitetura brasileira.
inglês Joseph Paxton para o Crystal Palace :A Essa oratória persuasiva convertia os arquitetos
inauguração da elegante Avenida Central com suas racionalistas nos grandes vencedores do “embate
sofisticadas construções contribuiu para dar heróico” que confrontava a estética funcionalista
visibilidade à eficácia do curso de arquitetura da aos estrangeirismos “requentados” da arquitetura
ENBA. As demandas trazidas pela urbanização da acadêmica.
Capital e a conjuntura favorável à construção civil
a partir daquele momento :è incluindo as duas O Curso de Arquitetura da ENBA mostrou possuir
exposições internacionais, a de 1908 e a de 1922, sua lógica própria: as “rupturas”. Proposta, as
que ocorreram no Rio de Janeiro :è seriam demandas tecnológicas, os novos materiais e as
decisivas para o reconhecimento dos arquitetos novas percepções estéticas, acostumaram-se a
como “artistas” criadores e do curso de arquitetura conviver com a antiga estrutura pedagógica que,
da ENBA como celeiro de bons profissionais de mesmo sendo repetidamente acusada de
arquitetura. Dessa forma, o ensino de arquitetura, anacrônica, seria mantida em seus fundamentos
em meio à baixa estima que o atingira e a seus básicos, continuando a servir à tarefa de formar
docentes, diante da perda de prestígio frente à arquitetos. A grade curricular do Curso de
engenharia e do completo esvaziamento de suas Arquitetura em 1968 ::Os vestígios que
aulas, teve na construção da Avenida Central uma demonstram a eficácia pedagógica e a saúde
virada espetacular, a partir da qual conseguiu institucional da ENBA foram providencialmente
consolidar seu papel como formador de arquitetos ocultados sob o discurso modernista. As célebres
capazes e atualizados. Não poderia passar palestras proferidas por Le Corbusier em 1929,
despercebido o fato de que no concurso para a abrindo as discussões sobre o racionalismo
escolha dos projetos a serem erguidos na nova abstrato, são normalmente citadas sem que se dê
Avenida – que contou com arquitetos e engenheiros muito crédito ao fato de haverem se realizado numa
estrangeiros de grande prestígio na cidade – um das salas da “retrógrada” ENBA e de terem sido
terço dos trabalhos havia saído das pranchetas de organizadas pelo “desatualizado” professor Morales
professores e alunos da ENBA. Aquelas de los Rios Filho, regente da cátedra de História e
Teoria da Arquitetura da Escola. O paradoxo que
112
O curso de arquitetura da ENBA e a modernização do Rio de Janeiro no início do século XX

tanto intrigara o arquiteto Abelardo de Souza :è que SANTOS, P. Introdução. FERREZ, M. O Álbum da
se indagava sobre como um ensino tão “obsoleto” Avenida Central: 8 de março de 1903.
e professores “completamente desatualizados e SOUZA, A. A ENBA, antes e depois de
ignorantes” puderam formar arquitetos tão 1930.XAVIER, A. (org.) Depoimento de uma
inventivos e capazes, como os da brilhante safra Geração. São Paulo: Cosac & Naify, 2003.
modernista :è só surpreende aos que não UZEDA. H. C. Ensino Acadêmico e Modernidade:
conhecem a fundo as idéias que circulavam pelos o Curso de Arquitetura da Escola Nacional de
corredores da ENBA. E aos que não conseguem Belas Artes / 1890-1930. 2006, 472 f. Tese
relativizar a produção eclética de alguns de seus (Doutorado em Artes Visuais) – Programa de Pós-
professores e alunos, que foram brilhantes e Graduação em Artes Visuais da Escola de Belas
modernos, dentro do sentido de seu tempo. Artes /UFRJ, Rio de Janeiro, 2006.
________. O Ensino de Arquitetura na Academia
Referências bibliográficas de Belas Artes: 1826-1889. PEREIRA, S. G. (org.)
185 Anos de Escola de Belas Artes. Rio de
ARGAN, G. C. História da Arte como História da Janeiro, UFRJ, 2001-2002, p. 41-67.
Cidade. São Paulo : Martins Fontes, 1993. XAVIER, A. (org.) Depoimento de uma Geração:
BAUDELAIRE, C. De Le Spleen de Paris (Les arquitetura moderna brasileira. São Paulo: Cosac
Petits Poèmes en prose), 1869. & Naif, 2003.
BILAC, O. Crônica de Olavo Bilac. Revista
KOSMOS, Rio de Janeiro, v. 1, nº 4, [páginas não Notas
numeradas] abril de 1904.
1
COSTA, L. Muita Construção, Alguma Arquitetura Doutora em artes visuais pela UFRJ; professora adjunta
e um Milagre [1951]. XAVIER, A. Depoimento de do Departamento de Museologia da Universidade Federal
uma Geração: arquitetura moderna brasileira. São do Estado do Rio de Janeiro – UNIRIO.
2
Auguste Henri Victor Grandjean de Montigny (1776-1850)
Paulo: Cosac & Naify, 2003. nasceu em Paris e seu trabalho como arquiteto da Missão
FERREZ, M. O Álbum da Avenida Central: 8 de Artística Francesa (1816) teve grande relevância no
março de 1903 – 15 de novembro de 1906. Rio de desenvolvimento da arquitetura brasileira. Morreu no Rio
Janeiro: F. Bevilacqua & Cia. / Ex Libris, 1983. (um de Janeiro e consta que seus restos repousam no Convento
documento fotográfico da construção da Avenida de Santo Antônio no Largo da Carioca.
3
Rio Branco). O engenheiro Adolfo José Del Vecchio (1848-1927) foi
GALVÃO, A. Relatórios da Escola Nacional de professor honorário da Academia de Belas Artes/ ENBA,
ocupando a cadeira de Física Experimental e Meteorologia
Belas Artes, 1905 (Documentos de Pesquisa do da Academia Naval até 1913.
professor Alfredo Galvão: páginas não numeradas 4
O Barão Georges-Eugène Haussmann (1809-1891) foi
– Museu D. João VI, EBA-EFRJ). prefeito de Paris entre 1853 e 1870, tendo sido responsável
HARVEY, D. Paris, Capital of Modernity. New York pelas grandes reformas urbanas da cidade, ao tempo de
and London: Routledge, 2003. Napoleão III.
5
NOTAÇÃO nº 711, 1890. (Arquivos do Museu D. BILAC, O. Crônica de Olavo Bilac. Revista KOSMOS,
João VI / EBA-UFRJ) Cópia de ofício do diretor vol. 1, nº 4, abril de 1904, p. 7.
6
O prédio reunia uma fachada principal inspirada na ala
da Academia ao ministro da Instrução Pública, de Lefuel e Visconti do Museu do Louvre, fachadas laterais
Correios e Telégrafos, informando a posição da inspiradas no Renascimento Italiano e uma posterior com
Congregação frente ao projeto de reforma da maior liberdade compositiva.
Academia, realizado pela comissão encarregada
pelo Ministério do Interior, e enviando projeto
substitutivo.

113
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República
Este artigo é fragmento de um estudo maior voltado
para a relevância da Retórica e da Tipologia no
ensino artístico em âmbito nacional financiado pelo
Centro Universitário Metodista Bennett. No
presente texto são verificados os posicionamentos
em relação à prática da cópia como alicerce para
a invenção artística e como ferramenta para a
difusão das assimilações tipológicas e retóricas
pelo aluno brasileiro oitocentista.

O Período Antecessor a Criação da Academia


Imperial das Belas Artes no Rio de Janeiro

A prática da cópia acompanhou o homem em toda


a história, independente da civilização ou nação;
fundamentando os pilares pedagógicos da escrita,
do aprendizado oral e da produção artística. O
aprendizado do artista, por exemplo, alicerçou-se
na reprodução das obras de grandes mestres
consolidados pela tradição.

O aprendizado artístico implementado na América


Portuguesa durante os séculos XVI, XVII e XVIII
seguiu o padrão básico do medievo europeu
concentrando na figura do mestre a total
responsabilidade no que diz respeito ao translado
do ofício ao aprendiz. “A aprendizagem do ofício
os propulsores da prática da cópia na academia fazia-se na oficina ou tenda onde, em contato com
imperial das belas artes: períodos de introdução os oficiais, e sob a orientação do mestre eram
e consolidação de uma metodologia artístico- administrados ao jovem os conhecimentos
pedagógica considerados básicos da profissão” 1.
reginaldo da rocha leite * A transmissão do conhecimento se dava, então,
no âmbito oficial restrito ao savoir-faire, o saber
mecânico, exclusivamente prático e distanciado do
saber teórico evidenciado pelas academias de arte.

Embora a formação do artífice e do artista não


fosse sistemática e especializada. O exercício
de seu ofício o levava à realização de diferentes
tarefas de conhecimento prático e afim com sua
formação. Essa forma de ensino, realizada em
estreita relação de dependência entre aluno e
mestre, resultava na extensão do seu traço,
do seu estilo, de suas técnicas e
segredos.(FERNANDES, 2001: 40).

As oficinas agrupavam-se nas chamadas


Corporações de ofício que possuíam um regimento,
mas que nem sempre era respeitado na íntegra.

Segundo o regimento das Corporações de


ofício o mestre deveria ter apenas dois
aprendizes, mas tal regra nem sempre foi
respeitada, havendo mestres que possuíam até
cinco ou seis aprendizes ao mesmo tempo.
Esses profissionais deveriam ser fiscalizados
periodicamente e possuir licença para ensinar,
o que nem sempre acontecia. Do mesmo modo,
era comum entre carpinteiros ou pedreiros, por

114
Os propulsores da prática da cópia na Academia Imperial das Belas Artes

exemplo, a prática da elaboração de riscos o revalorizou as imagens que a Reforma


que os levou, erroneamente, a serem depreciara e proibira; encorajou a formação e
chamados de arquitetos, assim como alguns a difusão de uma nova iconografia sacra, que
entalhadores, de experiência comprovada, fornecesse a todos os fiéis os mesmos objetos
serem considerados escultores estatuários. e os mesmos símbolos para uma devoção de
(FERNANDES, 2001: 40). massa; e serviu-se das gravuras figuradas
como um meio poderoso de propaganda
Todavia, os primeiros passos para a implantação religiosa. (ARGAN, 2004: 17).
do ensino artístico no Brasil foram dados por
monges nas oficinas instaladas no interior dos No entanto, apesar de já nos anos quarenta a
mosteiros, nas quais eram ensinados pelos pesquisadora Hannah Levy3 chamar a atenção para
religiosos, ainda de forma precária, os diferentes esse fato, ainda hoje são escassos os estudos em
ofícios, entre eles, os de caráter artístico. relação à gravura como fonte tipológica na
Ulteriormente ao ensino nos mosteiros é que as confecção de pinturas para igrejas e como material
Corporações de ofício se concretizam com a didático durante a cultura oficinal que enxergava a
atuação dos mestres leigos e oficiais mecânicos. prática da cópia como principal recurso
Entretanto, é importante frisar que em ambos os metodológico.
âmbitos, nos mosteiros ou nas Corporações, a
produção e o ensino artísticos eram alicerçados No fazer artístico Luso-americano foi comum o
pela prática da cópia das gravuras de reprodução uso de gravuras como modelos iconográficos
vindas da Europa. Dom Clemente Maria da Silva- para pinturas. Essa prática é conhecida pelos
Nigra, a título de exemplo, conclui que o pintor frei historiadores da arte brasileira, porém poucas
Ricardo do Pilar usou modelos referenciais para pesquisa foram feitas comparando os modelos
executar suas obras no Mosteiro de São Bento do gráficos com as pinturas no Brasil. (BORGES
Rio de Janeiro, “é natural que em suas condições, e SOUZA, 2004: 1).
frei Ricardo do Pilar se baseasse em painéis
conhecidos, ou em gravuras de desenhos de outros Assim como no período colonial, no oitocentos a
artistas” (SILVA-NIGRA, 1950: 202). Analisando antiga Academia brasileira de ensino artístico
atentamente as pinturas que contam episódios da privilegiou a prática da cópia desdobrando-a em
iconografia de São Bento, Silva-Nigra afirma que, várias linguagens visuais, partindo do desenho à
“foram eles pintados à vista de uma coleção de pintura. Mas, no âmbito acadêmico, quem foi o
estampas antigas” (SILVA-NIGRA, 1950: 157)2. responsável pela motivação dessa atividade
desempenhada durante a formação do artista
A recorrência à gravura como referência para a brasileiro?
execução de pinturas de forro ou de retábulo era
corriqueira também em território luso, de acordo O Francês Lebreton e o Período de Introdução
com Vítor Serrão.
Lebreton (1760-1819) foi o impulsionador de um
Os exemplos são inúmeros, e provam que a ensino pautado na cópia. Antes mesmo de vir ao
clientela religiosa pretendia, tanto como Brasil já negociara a compra de telas européias
qualidade artística, fidelidade na representação para formarem o acervo da Pinacoteca da
das ‘histórias sagradas’, a fim de evitar o Academia Imperial das Belas Artes. O primeiro
mínimo problema com a censura inquisitorial. lote, constando quarenta e duas peças, foi vendido
A aprovação prévia de gravuras servindo de ao Brasil pelo negociante de quadros Jean Baptiste
modelo à iconografia desejada era o modo mais Meunié, em 04/15/1815, ano em que se
corrente de facilitar as coisas, tanto para os organizavam os preparativos para a vinda da
clientes como para os artistas.”. (SERRÃO, Missão Artística Francesa ao Rio de Janeiro. O
2000: 195). segundo lote, constando doze quadros, foi também
oferecido por Meunié a Lebreton, em 1816, ocasião
No Brasil durante o período colonial, assim como em que o último já se achava no Brasil. Na primeira
na Europa, a gravura passa a ser, não só, a principal aquisição encontravam-se oito cópias, e na
ferramenta de divulgação das pinturas européias segunda quatro, totalizando doze cópias trazidas
e de suas tipologias, mas, torna-se também por Lebreton e inseridas na instituição brasileira
importante instrumento de difusão do cristianismo. de ensino artístico.

A razão prática da difusão mediante a Durante a primeira metade do século XIX a


reprodução por gravura de obras de temas Academia Imperial absorveu o sistema beaux-arts
religiosos é conhecida: a Igreja católoica de ensino para os seus conteúdos programáticos

115
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

tendo a imitação da natureza como principal eixo. contratação dos modelos para as aulas de nu e na
Com o advento da Missão Artística Francesa e a escolha das obras que serviriam de material
criação de uma dupla Escola de Artes e Ofícios didático para o aprendizado dos alunos. Não
por Lebreton a prática da cópia propagou-se por deixava escapar nada do seu crivo normativo como
todo o oitocentos, na Academia brasileira, aos é possível verificar no Decreto de 30 de dezembro
moldes da École de Dessin francesa. de 1831.

Mas, vejamos o programa da Academie Decreto de 30 de dezembro de 1831


conforme ficou estabelecido pelos Estatutos de
1663: após a admissão, os alunos eram Capítulo II/ Do Regime/ Art. 2º À Congregação
encaminhados à École de Dessin, às vezes compete:
denominada École du Modèle, para estudarem
desenho durante dois, três ou até mesmo, 6º Escolher os modelos vivos ou de imitação
quatro anos, dependendo do desempenho de tanto de desenho e pintura, como de paisagem,
cada um. Havia um curso básico no qual os escultura e arquitetura, que se houverem de
iniciantes copiavam as obras dos professores dar aos alunos para copiarem; são excetuados
e depois as moldagens: mãos, pés, pernas, porém deste exame os trabalhos originais dos
torsos, cabeças e, por último, estátuas de corpo professores”. (ARQUIVO DO MUSEU D. JOÃO
inteiro.” (SÁ, 2004: 166). VI/EBA/UFRJ).

As condições acadêmicas diferem das do Brasil- O impulso definitivo que a Reforma de 1831
colônia ganhando, a cópia, um alargamento de proporcionou à cópia preparou o terreno para a
linguagens – ultrapassando os limites da gravura consolidação dessa prática como instrumento
estrangeira e alcançando outros meios como as didático e de avaliação da qualidade do aluno e do
imitações a partir do antigo expressado pelas professor da instituição brasileira por várias
moldagens em gesso, do desenho de professores décadas até os anos noventa. No que diz respeito
da Academia, do modelo vivo e das pinturas dos aos concursos para a contratação do corpo docente
grandes mestres europeus. da Academia Imperial, durante todo processo de
seleção, a cópia mantinha-se como ferramenta
Além da contribuição do francês Lebreton para a primordial. Na Sessão ocorrida em 09 de junho de
formação de uma Pinacoteca responsável pela 1833 foram estabelecidas as regras do concurso
orientação dos alunos e servindo como ferramenta para o preenchimento da vaga de substituto da aula
didática para os professores da instituição, a de pintura de paisagem.
Reforma dos Estatutos de 1831 foi fundamental
na estruturação de um ensino centrado na cópia. Aberta a Sessão ao meio dia, foi lida e aprovada
A Academia sofreu três importantes Reformas, de a acta da anterior. Logo o secretário leu o offício
estruturação pedagógica, que provocaram mencionado na acta anteriormente e foi
mudanças nos programas disciplinares, criaram approvado. Apresentou-se a cópia do
novas disciplinas e, consequentemente, programma – O concurso para o lugar de
posicionaram-se diretamente sobre a metodologia substituto da aula de paysagem terá lugar,
de ensino da instituição. Uma dessas posições foi conforme o que foi determinado pela
tomada em relação à prática da cópia, ora Congregação dos Lentes sobre a proposição
dignificando-a, ora desprestigiando-a4. do Lenteda dita aula, na forma seguinte:1º os
oppositores copiarão a óleo hum painel de Paul
A Reforma Lino Coutinho aprovada pela Regência Bril; e para este efecto dão se dez dias úteis a
em 30 de dezembro de 1831 e assinada pelo cada hum delles. A entrada do local em que
conselheiro José Lino Coutinho, então Ministro de trabalharão, fica exactamente vedada a todos
Estado dos Negócios do Império, ao ser implantada sem excepção os quadros de papel preparado,
na Academia mostrou-se favorável à formação em que se farão as cópias, serão iguaes no
artística fundamentada na cópia. Observando tamanho, e primeiro de que serviram, receberão
planos curriculares que especificam a formatação a assignatura do respectivo professor cada
do curso de Pintura Histórica pudemos observar concorrente distinguirá a sua produção por hum
que a Reforma ainda propunha a obrigatoriedade número, o qual virá junto com o nome huma
da imitação no aperfeiçoamento do aluno, para carta fechada que não se abrirá senão depois
então galgar à confecção de uma tela original. do julgamento feito, e na presença da
Congregação”. (ARQUIVO DO MUSEU D.
A Reforma era bastante transparente no que dizia JOÃO VI/EBA/UFRJ).
respeito a responsabilidade da instituição na

116
Os propulsores da prática da cópia na Academia Imperial das Belas Artes

A cópia a óleo de uma tela estrangeira era a apenas copiar os antigos, era primordial entender
primeira atividade a ser cumprida pelos candidatos os processos resolutivos das problemáticas
e certamente a mais importante, pois naquele compositivas, ou seja, de que forma os grandes
momento eram verificados a capacidade de mestres conseguiram solucionar exigências formais
observação das formas, dos volumes instituídos e temáticas em seus trabalhos. Segundo Taunay,
pelas luzes e sombras e as estruturas a única maneira que poderia conduzir os brasileiros
compositivas, como é o caso do cromatismo da a um lugar no mundo civilizado seria a imitação
obra. Mediante aprovação nessa fase o candidato dos europeus.
estaria apto a continuar no processo seletivo, o que
demonstra a relevância atribuída à prática da cópia. Temos pois estes três povos, o grego, o italiano,
o francês entre os quais nasce, se desenvolve
Situação semelhante ocorre durante o concurso e se conserva o bom gosto artístico. Senhores,
para professor das aulas de desenho e de pintura estudando profundamente as feições salientes
histórica registrada na Sessão de 23 de julho de das suas nacionalidades e conferindo-as com
1835. o caracter brasileiro, ninguém se recusara a
admitir, por uma analogia consentâneo com os
O concurso para a substituição das aulas de fatos já adquiridos, que este povo tem toda a
desenho e pintura histórica, terá lugar, em aptidão para a manifestação imitativa, que por
conformidade do que foi determinado na ellas, ele deve se sobresair e fazer se notável
Sessão de 23 do corrente da Congregação dos no mundo civilizado.”. (ARQUIVO DO MUSEU
Lentes, pela forma seguinte: 1º os oppositores D. JOÃO VI/EBA/UFRJ).
copiarão a lápis e todos na mesma proporção
o gesso do Apollo Lucio dito Apollino, e a este Taunay ainda foi o responsável pela criação do
effeito dão-se oito dias úteis trabalharão juntos, Prêmio de Viagem à Europa, em 1845, atividade
escolhendo amigavelmente elles entre si, na que proporcionaria a aproximação in loco do aluno
presença do Director e do Lente respectivo, a brasileiro à pintura européia localizada nos
posição que mais lhes agradar. As folhas de renomados museus italianos e franceses.
papel em que executarão suas cópias, serão
de igual tamanho, e receberão antes de Com a chegada dos anos cinqüenta a Academia
servirem, a assignatura do Lente. 2º copiarão Imperial ganhou um novo diretor responsável por
a óleo o busto de S. Sebastião, com as mãos inúmeras contribuições ao ensino artístico
atadas acima da cabeça do quadro de I. C. acadêmico, Manoel de Araújo Porto-alegre. Ao
Procaccini dá-se-lhes para este trabalho quinze assumir o cargo em 1854, Porto-alegre deixava
dias úteis. As disposições são as mesmas transparecer as vontades progressista, renovadora,
acima marcadas. (ARQUIVO DO MUSEU D. nacionalista e centralizadora que, aos poucos foram
JOÃO VI/EBA/UFRJ). sendo adotadas. O caráter atuante do diretor
responsável pela implementação da Reforma
Copiar o gesso, reproduzir um quadro a óleo, eram Pedreira em 1855 deu continuidade ao perfil
processos sintomáticos adotados pela Academia normativo da Academia que ampliava cada vez
Imperial cotidianamente durante as aulas ou em mais o controle sobre o ensino e a produção
seus concursos e, que ganharam incentivo com a artística nacional. Segundo Porto-alegre a
passagem de Taunay pela direção da instituição. Academia devia ser responsável por toda e
qualquer manifestação artística financiada pelo
Taunay e Porto-alegre: O Período de Estado, instaurando regras, avaliando sua
Consolidação prossecução e, sobretudo, contribuindo para a
difusão do bom gosto e das belas formas como
Após a nomeação de Félix-Èmile Taunay ao cargo pode ser observado no relato reivindicador do
de diretor da antiga Academia brasileira (1834) e diretor.
da Reforma dos Estatutos de ensino (1831) o
modelo vivo, a cópia das moldagens em gesso e o Senhor – Os sacrifícios pecuniários feitos pelo
estudo a partir das coleções de gravura e de Governo Imperial a favor da Opera Lyrica e da
pinturas se intensificaram. Segundo Taunay o Arte Dramática, não são devidamente
aprendizado fundamentado na observação e cópia correspondidos no que respeita a scenographia
das obras dos mestres europeus conduziria o aluno e vestuário nos doces theatros subvencionados
a familiaridade com as Escolas Artísticas – Os theatros, nos tempos em que não eram
Européias, intensificaria o gosto pelas belas formas tão e directamente protegidos procuravam
e ajudaria na resolução de problemas relativos à satisfazer essas exigências artísticas, e as
composição das obras plásticas. Não bastava levarão a um ponto de superioridade tal, que

117
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

bem longe de continual-o, e progredirem, pelo da natureza, da archeologia, e da perspectiva:


contrário se não sejão de ostentar actualmente o bom scenographo é sempre um artista de
um imperdoável desleixo, que não corresponde primeira ordem.
com as vistas e a generosidade do Governo.
Para contrabalançar esta decadência, a E.R.M. – Academia das Bellas-Artes em 20 de
Academia tem a honra de apresentar a Vossa maio de 1854.
Majestade Imperial um meio, que lhe parece
concentâneo com o espírito administrativo Manoel de Araújo Porto-alegre.
acerca dos theatros e das artes. – A Academia
Director. – Representação do Snr. Director em
das Bellas Artes pode, assim como faz o
20 de maio de 1854 (Sobre os Theatros).
Conservatório Dramático para as peças e
Arquivo do Museu D. João VI/EBA/UFRJ.
libretos, tomar uma espécie de direção nesta
parte artística, poi toda ella está no domínio Esse controle, que aos olhos de alguns era
espacial dos seus estudos. – O que se vê excessivo e de outros extremamente necessário,
diariamente no Theatro de S. Pedro, e motivou o descontentamento principalmente pela
especialmente no Theatro Provisório não está exigência de ter na cópia o alicerce para se obter
em harmonia com o nosso estado actual de uma exímia formação artística.
luzes. – A Academia pode dar o seo juízo sobre
as composições scenographicas, e sobre o Em 1855 Porto-alegre justificou a necessidade de
vestuário, uma vez que os esboços e figurinos se ter uma nova biblioteca exclusivamente artística,
lhe sejam remettidos com a necessária em fase de construção, para o armazenamento não
antecipação. Esta espécie de intervenção, bem só do acervo bibliográfico como também das
longe de ser nociva, pode socorrer a ignorância gravuras européias que serviriam de referência à
dos inspectores da scena de ambos os iluminação do artista oitocentista.
theatros, e pouco a pouco impelil-os ao estudo
e ao progresso. – Semelhante medida Officio do Snr. Director em 30 de agosto de
administrativa em nada pode prejudicar os 1855.
interesses dos empregos theatraes, porque
estes excedem muitas vezes no que toca ao Ilmo e Exmo. Snr. Em vésperas da conclusão
vestuário, carregando-o com mau gosto, e da pintura, dourados e armários da biblioteca
substituindo quase sempre a fidelidade por um d’essa Academia, creada por V. Exa. para a
luxo desnecessário. – O zelo razoável que a dignidade e ilustração dos artistas, julgo de meu
Academia empregará n’esta espécie de dever lembrar já por escripto a realização do
censura, fará com que não estejamos a dar pensamento de V. Exa. em favor d’essa nova
contínuos exemplos de uma decadência fonte de progressos para que V. Exa. se digne,
vergonhosa, ocasionada somente pela se achar axadas as circunstâncias de dar
incompetência dos directores e de má escolha começo; pois ainda temos que esperar algum
dos empregados executores. – As razões com tempo pelo encadernador, e poder-se apronptar
que se cobrem os inspectores de scena se tudo igualmente. A creação de uma biblioteca
baseam na prática de seguirem sem critério, puramente artística, ou depósito de estampas
algumas estampas da Europa, e de prestarem detodos os gêneros, deu a França um immenso
um cego respeito a tudo o que vem de fora; resultado industrial pela facilidade com que
mas esta mesma prática não abandona a sua todos os artistas ali encontrão um immenso
perícia, porque n’essas estampas há boas e depósito de originaes a consultar. O pintor
más, e para esta escolha são precisos os histórico, o scenographo, o estatuário, o
conhecimentos, pelo menos geraes, para se architeto, o ornamentista, o gravador e os
fazer a devida escolha. – Se os inspectores de mesmos artífices, se felicitão de semelhante
scena obrigassem os pintores a copiarem obras manancial que os faz lucrar tempo, despezas
primas e próprias para os espetáculos, seria e colherem ideas não se nas obras ali expostas,
isso tolerável, por annunciar um desejo de como nas informações que se recebem dos
progredir; porém a sua incapacidade é tal, que empregados da casa. – Manoel de Araújo
elles não distinguem o bom do mau, e nem tem Porto-alegre ao ministro e Secretário d’Estado
aquelle tino ordinário de conhecer o que está e Negócios do Império. (MUSEU D. JOÃO VI/
muito ruim, e o que é muito bom! A EBA/UFRJ).
scenographia é, por assim dizer, a moldura do
painel scênico, e uma ate que se deve animar, Nesse momento fazia-se de extrema importância
porque demanda mui longos e severos estudos equipar a instituição com cópias em gravuras,

118
Os propulsores da prática da cópia na Academia Imperial das Belas Artes

aproximando dessa forma, aluno e mestre, aluno Félix-Èmile Taunay. (ARQUIVO DO MUSEU D.
e tradição. Por outro lado, guarnecendo a JOÃO VI/EBA/UFRJ).
Academia Imperial com cópias de pinturas
européias de temáticas diversificadas, estabelecia- As palavras do então diretor explicitam um
se o contato entre o aluno e as técnicas pictóricas alicerçamento da produção artística italiana por três
que as gravuras não proviam, pois estas abarcavam mestre que ulteriormente têm suas bases criativas
somente as questões relativas à elaboração do assimiladas e externadas por outras regiões ou
desenho, do assunto e do volume das figuras escolas. A expressão de Michelangelo, o desenho
resultante dos estudos da luz e da sombra. Porém harmonioso de Rafael e a sábia mistura das cores
faltava a noção da pigmentação, da variabilidade por Tiziano são, ainda, considerados por Taunay
de suportes, do equilíbrio e da atmosfera reflexos do temperamento de cada artista
cromáticos que só a pintura poderia suprir. Assim, distintamente, caracterizando dessa forma, como
tornava-se necessária a aquisição dos quadros princípio básico para a classificação das Escolas
europeus para o enriquecimento das fontes de Florentina, Romana e Veneziana, os elementos não
estudo do pintor acadêmico, principalmente o pintor só plásticos como também afetivos.
histórico.
Em seus “Planos” (1816) Lebreton já defendia o
Com a criação por Félix-Èmile Taunay, em 1845, aprendizado do artista adêmico tendo como
do Prêmio de Viagem à Europa, Roma e Paris alicerce artístico-pedagógico as ditas Escolas
tornaram-se modelos de aperfeiçoamento técnico Artísticas Européias.
e alvos dos alunos da AIBA. Como as exigências
da instituição para a realização de uma perfeita É portanto necessário reunir quadros de diversas
composição baseavam-se nos preceitos escolas, telas que possam servir às lições práticas,
trabalhados pelos antigos, Roma foi vista como foco como demonstração, ao mesmo tempo em que
referencial para o pensionato dos primeiros alunos guiem e mesmo inspirem os professores.” (Plano
brasileiros premiados pela facilidade do diálogo de Lebreton em carta a Barca, tradução extraída
entre o pensionista e a tradição dos grandes do artigo de Mário Barata. BARATA, Mário.
mestres. “Manuscrito inédito de Lebreton sobre o
estabelecimento de uma dupla escola de artes no
[...] seja-nos suficiente mencionar Leonardo da Rio de Janeiro em 1816. Revista do SPHAN, nº14,
Vinci, Peruggino, Giorgione, precursores das 1959, p.28)
escolas de pintura Florentina, Romana e
Veneziana, como dellas forão fundadores Tal opinião continuou em voga no período de
verdadeiros os Michel Ângelo Buonarroti, administração da Academia por Porto-alegre:
Raphael Sanzi e Tiziano Vecelli. Todos três
Lá estão esses Alpes, com seus primas de
influirão umas sobre as outras. A escola romana
neve, toucados de nevoeiros, sublimes,
pedio emprestada muita força do desenho à
variados, pittorescos, d’onde ouvireis gritar:
florentina e alguma sciencia do colorido a
Itália! Itália! E lá bem longe, nas raízes da
Veneziana: nem esta deixou de se aperfeiçoar
montanha, azulada com um ceo aberto,
à vista das produções rivais: entretanto, as trez
fulgurante, como Vênus a surgir das ondas,
conservam um caracter bem distinto, análogo
toda cheia de luz, de melodia, e de encantos, a
ao das individualidades que presidião aos seus
bella e fecunda Itália, aquella que nutrio em
destinos. Quem representasse fielmente as
seo seio fecundíssimo tantos enfenhos, que
feições moraes de Michel Ângelo, de Raphael,
abrirão os séculos brilhantes da renascença, e
de Tiziano, daria a conhecer as qualidades
do explendor das artes. – Que torrente de
notáveis das suas escolas: o primeiro, triste,
emoções, de delícias inefáveis, se vos offerece
solitário, de gênio altivo, austero e
d’estes bancos da Academia?! – Veneza, a
independente, apaixonado pelo grande; o
antiga rainha do Adriático, sentada sobre as
segundo, tenro, dócil, amável, apaixonado pelo
agoas no seo throno de mármore, trabalhado
belo; o terceiro, alegre, social, brilhante,
por Sansovino e outros engenhos admiráveis.
apaixonado pela harmonia exterior e relativa.
O seo leão alado, depois de haver quebrado a
Temos a indicação dos trez merecimentos
espada, voou para o reino da esperança; o seo
especiais, força de desenho e de claro escuro
bucentauro naufragou, e o anel do Doge foi
na escola florentina, pureza de formas e de tons
arrebatado pela águia do Danúbio; porém ainda
na escola romana, brilho suavidade e bela
lhe restão os seos palácios, as suas torres, os
fusão de cores na escola veneziana. Sessão
seos templos, e essas páginas de luz do
Pública da Academia, em 1842, palavras de
Tiziano, Tintoretto, Paolo Veronez, e toda essa

119
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

família de brilhantes coloristas.” – Acta da 3ª mãos do seu diretor Manoel de Araújo Porto-alegre
Sessão Pública da Academia Imperial das cada vez mais um contato com os mestres
Belas Artes, em 6 de dezembro de 1855, europeus o que proporcionou uma assimilação
palavras de Manoel de Araújo Porto-alegre. crescente, pelos alunos, das tipologias pictóricas.
(ARQUIVO DO MUSEU D. JOÃO VI/EBA/ Para isso servia a cópia, preparar o aluno não
UFRJ). somente para a estruturação formal de uma
composição, como também para incitar a
Conclusão imaginação dos futuros artistas alimentando-os de
variadas demonstrações dos recursos possíveis
O tema da nossa comunicação teve por objetivo para resolver problemas temáticos. Assim, a cópia
abordar a visão artístico-pedagógica de cada não enclausurava o pintor na tradição do passado,
propulsor da prática da cópia na AIBA: Jacques ela nutria o artista com a riqueza de informações
Lebreton, Félix-Èmile Taunay e Manoel de Araújo que a tradição foi capaz de propagar, difundir e que
Porto-alegre. Sendo assim, é possível identificar os museus europeus se achavam abarrotados.
um período de introdução da cópia no campo
acadêmico pelas mãos de Lebreton na aquisição *Reginaldo da Rocha Leite é professor do Centro
dos primeiros materiais didáticos para a instituição Universitário Metodista Bennett e doutorando em
brasileira, as coleções de pintura (originais e Artes Visuais no PPGAV/EBA/UFRJ.
reproduções) para a formação da Pinacoteca da
Academia. Um segundo impulso, em favor da
cópia, pode ser verificado durante o mandato de Referências bibliográficas
Taunay como diretor da instituição na criação do
Prêmio de Viagem à Europa proporcionando o ARGAN, Giulio Carlo. Imagem e persuasão. São
contato do aluno brasileiro com os museus e igrejas Paulo: Companhia das Letras, 2004.
estrangeiras motivando o contato com as Escolas BARATA, Mário. Manuscrito inédito de Lebreton
Artísticas Européias. Finalmente, um terceiro nome sobre o estabelecimento de uma dupla escola de
é apontado como exemplar propulsor da prática da artes no Rio de Janeiro em 1816. Revista do
cópia na formatação da Reforma Pedreira em 1855, SPHAN, nº14, 1959.
Manoel de Araújo Porto-alegre, consolidando BORGES, Sílvia Barbosa Guimarães e SOUZA,
assim, o interesse pelas tipologias pictóricas Jorge Victor de Araújo. Escolas de papel – a
eternizadas pela tradição européia. influência de gravuras européias no Brasil Colônia.
Anais do XXIV Colóquio do Comitê Brasileiro
A excepcional maleabilidade da cópia; que na de História da Arte, Belo Horizonte: C/Arte, 2005.
Academia Imperial apresenta-se numa gama ampla FERNANDES, Cybele Vidal Neto. Os caminhos
de linguagens: a partir dos desenhos dos da arte. O ensino artístico na Academia Imperial
professores, do modelo vivo, das moldagens em das Belas Artes (1850-1890). Rio de Janeiro: IFCS/
gesso, das gravuras estrangeiras e das pinturas UFRJ, 2001. (Tese de Doutorado).
provenientes das tradicionais Escolas Européias; FREIRE, Luiz Alberto Ribeiro. A talha neoclássica
fazia-a com efeito apta a difundir tipos na Bahia. Rio de Janeiro: Versal, 2006.
representacionais evidenciados pela tradição SÁ, Ivan Coelho de. Academias de modelo vivo
pictórica internacional, principalmente italiana e e bastidores da pintura acadêmica brasileira: a
francesa. metodologia de ensino do desenho e da figura
humana na matriz francesa e sua adaptação no
Sem dúvida com a absorção do sistema beaux-
Brasil do século XIX ao início do século XX. Rio de
arts de ensino pela Academia brasileira a cópia
Janeiro: EBA/UFRJ, 2004. (Tese de Doutorado).
garantiu a função de eixo para a formação do artista
SERRÃO, Vitor. A pintura protobarroca em
oitocentista o que levou à constituição de dois
Portugal 1612-1657 – o triunfo do naturalismo e
grupos possuidores de ferrenhos antagonismos, os
do tenebrismo. Lisboa: Colibri, 2000.
defensores da cópia, de caráter tradicional e os
SILVA-NIGRA, Dom Clemente Maria da.
contrários à cópia, de postura emancipadora e
Construtores e artistas do Mosteiro de São
libertária tendo a modernidade como ponto
Bento do Rio de Janeiro. Salvador: Tipografia
norteador.
Beneditina, 1950.
O estudo da função da cópia como processo de
Notas
educação do olhar caracterizou a abordagem do
nosso pensamento crítico. A Academia Imperial, 1
FERREIRA-ALVES, Natália Marinho. “A arte da talha no
detentora do controle da produção e do ensino Porto na época barroca; artistas e clientela, materiais e
artístico nacional, buscou principalmente pelas técnica.”. Apud: FREIRE, Luiz Alberto Ribeiro. A talha

120
Os propulsores da prática da cópia na Academia Imperial das Belas Artes

neoclássica na Bahia. Rio de Janeiro: Versal, 2006, p.66. Jorge Victor de Araújo e VIEIRA, Bruno Matos. “Iconografia
A pesquisadora trata da formação do artífice em solo Beneditina: análise comparativa de duas séries de
português, no entanto, o Brasil enquanto colônia herda a pinturas”. PEREIRA, Sonia Gomes. Anais do VI Colóquio
cultura oficinal das Corporações de ofício de sua matriz do Comitê Luso-Brasileiro de História da Arte, vol.1.
portuguesa alterando, ou talvez, adaptando algumas Rio de Janeiro: CBHA/PUC-Rio/UERJ/UFRJ, 2004, pp.
cláusulas dos seus regimentos. “Daquilo que se tem 355-365.
3
revelado acerca da organização do trabalho oficinal no “Procurar identificar os modelos que serviram aos pintores
Brasil, conclui-se haver algumas diferenças na aplicação coloniais constitui, pois, do ponto de vista histórico, artístico
do padrão português nas diversas regiões brasileiras. Em e técnico, uma tarefa altamente útil para os historiadores
Salvador, segundo constatações de Maria Helena Flexor, da arte no Brasil colonial.”. LEVY, Hannah. “A pintura
o padrão aproximava-se daquele vigente em Lisboa, com colonial no Rio de Janeiro”. Revista do SPHAN, vol.6, Rio
adaptações apropriadas à realidade da cidade.”. FREIRE, de Janeiro, 1942, p.87.
4
Luiz Alberto Ribeiro. A talha neoclássica na Bahia. Rio As três Reformas citadas foram: Reforma Lino Coutinho
de Janeiro: Versal, 2006, p.70. (1831), Reforma Pedreira (1855) e a Aprovação dos
2
Conferir sobre as pinturas do Mosteiro de São Bento do Estatutos da Escola Nacional de Belas Artes (1890).
Rio de Janeiro: SILVA, Carlos Henrique Gomes da; SOUZA,

121
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República
Nosso objetivo neste modesto artigo é apresentar
certos aspectos da formação de Pedro Américo no
séc. XIX, muitas vezes ignorados nos estudos já
publicados. De modo geral, repetem-se duas linhas
de análise: uma conservadora e outra modernista
sobre as qualidades do pintor. Para a primeira o
artista seria um acadêmico tradicionalista e fiel
seguidor do rigor da grande arte neoclássica de
seus mestres como Jean Dominique Ingres, com
quem teria estudado ou com Flandrin, Leon
Cogniet, Horace Vernet, segundo seu primeiro
biógrafo Luis Guimarães Jr. (GUIMARÃES
JR.,1871:45) 1 . Para a segunda ele seria o
representante máximo da arte Pompier, um apelido
pejorativo surgido somente no final do séc. XIX, o
qual associava a Pintura de História como uma arte
medíocre, decadente, de mau gosto e
conservadora. Mas até o início do séc.XX, este era
o gênero mais prestigiado pelo público que pagava
caro aos artistas que detinham as glórias oficiais e
das encomendas públicas. Tão privilegiado, que a
ambição comum dos pintores independentes ou
conservadores - era serem reconhecidos e
adquirirem fama e glória através dos Prêmios nos
Salons. Ou seja, esse sistema produzia os picassos
e matisses da época e portanto era quase
impossível um artista escolher como mestre os
pedro américo contra a academia neoclássica pintores vanguardistas, porque eles estavam fora
francesa, a favor da fotografia e das reformas de do mercado, sendo que os impressionistas só
napoleão iii, em 1863 seriam conhecidos amplamente depois de 1880.
vladimir machado O atelier de um pintor de história já famoso deveria
ser, mal comparando, uma “agencia de
publicidade”, encarregada da “campanha” de uma
política visual dos poderes estatais, obviamente,
sem os recursos de hoje do cinema, televisão,
computadores digitais e muito menos luz elétrica.
Não é difícil imaginar a grande tarefa que tinham
que desempenhar os artistas de Pintura de História
para dominar com habilidade o artesanato para
pintar retratos, feitos heróicos, elogios da vida
pública, decoração dos palácios, centros de cultura
entre várias áreas em que o pintor poderia trabalhar.
Diante disso, as acusações de que esses pintores
eram convencionais e seguiam estritamente as
regras acadêmicas só tem razão em parte. É
forçoso perguntar se uma agencia de publicidade
de hoje, concorrendo com várias agencias
tecnicamente atualizadas no mercado para ganhar
uma conta de publicidade do governo de milhões
de reais, iria utilizar os recursos do cinema de
vanguarda ou experimental, correndo o risco de
perder a disputa? Mesmo que se tratasse de uma
exigência profissional para estar na vanguarda
artística do dia, a solução equilibrada para essa
agencia seria, salvo raras exceções
revolucionárias, agir como os pintores de história:
uma prudente tradição com uma pitada de audácia
experimental “vanguardista”.

122
Pedro Américo contra a Academia francesa, a favor da fotografia e das reformas de Napoleão III, em 1863

Era, grosso modo, o que acontecia nas academias como a grande polêmica durante a inauguração
do século XIX. Os pintores eram preparados para do Salon oficial e a criação do Salão dos
serem profissionais objetivos e práticos em busca Recusados, sem esquecer da reforma ruidosa e
de eficiência e rapidez na produção de objetos significativa do Júri para o Salon oficial de 1864.
estéticos, para enfrentar uma disputa cada vez mais
acirrada visando ganhar os prêmios e com este Tivemos na Casa Museu Pedro Américo em Areia,
prestígio, receber as gordas encomendas do Paraíba, a felicidade de ter acesso a um livreto
Estado. Assim sendo, a intenção da disciplina escrito em francês com o título, La Réforme de
Pintura de História nas academias, não era para L´École des Beaux-Arts et l´opposition e publicado
ser somente subjetiva ou decorativa, como o era a pelo artista em 28 de dezembro de 1863, em Paris2.
pequena e transportável pintura de cavalete. A Este opúsculo, algumas vezes citado mas nunca
pintura histórica, às vezes era isto também como analisado e divulgado em seu conteúdo, nos deu a
fazia espertamente Meissonier, com seus oportunidade de ter em mãos a apresentação de
quadrinhos de dimensões reduzidas à holandesa um perfil rebelde e moderno do artista, totalmente
feitas para um discreto apartamento burguês, mas contrário ao que até então a historiografia havia
era sobretudo, uma pintura de composição muito registrado. O jovem artista encarava de frente o
mais complexa, monumental, ideológica e inserida debate sobre a reforma do ensino na academia
nas circunstâncias socioculturais de seu tempo. sobre arte e indústria fotográfica na França, um
Acima das disputas estéticas ou apesar delas, todo dos motivos da reformulação da Pintura de História
artista que almejasse ser um pintor de História, diante das imagens produzidas pela máquina.
deveria ser um mestre, conhecer os vários estilos Longe de defender a imutabilidade e infalibilidade
de pintura já consagrados, a rigor, dominar todos das academias Pedro Américo considerava
os gêneros paisagem, retratos, naturezas mortas indispensável a Reforma no sistema de ensino
e conhecer bem a historia clássica, religiosa, oferecido aos jovens artistas na EBA,
literatura etc. Além disso, deveria contribuir com principalmente,segundo ele, por seu caráter anti-
sua originalidade interpretativa, para impor sua tradicional. O artista estava seguro de que com a
marca na atualização da arte. reforma haveria uma eclosão de novos talentos,
libertos das corrente que os ligavam às doutrinas
Nossa tentativa aqui, portanto, é se aproximar do e teorias mais ou menos absolutas da école
universo de P. Américo na sua formação de pintor classique ou de tradition. Os artistas que não se
de história na academia e ver se corresponde ou submetiam à essa idolatria da forma estavam
não, o seu perfil de um acadêmico reacionário. impedidos de se mostrar na arène des imitateurs
Seguimos a estratégia proposta pelo Prof. Dr. Elias des Grécs, ou seja, vencer os concursos escolares
Saliba de suspender a crítica modernista feita a e os Prêmios dos Salons (AMÉRICO,1863:9).
posteriori e passar a consultar e interpretar os
documentos escritos, visuais e a recepção crítica Ao que se sabe, somente P.Américo como aluno-
da época em que o artista vivia. Isso permitiu na artista, assumiu publicamente sua indignação
medida do possível, uma avaliação nova da contra ao que ele chamava de severidade tirânica
trajetória e do perfil do pintor. Tratava-se de um dos métodos de ensino neoclássico, escrevendo
artista liberal, inovador da Pintura de História no esse virulento manifesto. Antes de comentar esse
Brasil. Ao fugir das frias e pálidas ficções texto de P. Américo contra a academia, é
neoclássicas, ele fazia uma assimilação necessário um breve e rápido olhar sobre o ensino
intermediária e inteligente entre Géricault, Delacroix de arte na França, para que possamos avaliar a
e o culto à realidade da vida moderna. Passava a importância desse documento para uma redefinição
incluir em sua obra o que era mais desafiador aos do perfil do pintor.
modelos neoclássicos, qual seja, a fotografia como
registro verdadeiro do real, mantendo livre sua A Academia Real de Pintura e Escultura, fundada
imaginação romântica em suas pinturas de retratos em 1648, era uma nova instituição em que
e das batalhas contemporâneas privilegiava o ensino do desenho, como uma ciência
comum às três nobres artes, arquitetura, escultura
Portanto nosso foco de atenção se dirige para uma e pintura. A criação da Academia foi de extrema
época rica de interesse: de 1859 a 1863, quando importância: ela sistematizava as novas
P. Américo estudava em Paris dos 16 aos 21 anos preocupações profissionais dos artistas do séc.
de idade. O artista vivenciou momentos palpitantes XVII. As três artes unidas pelo desenho de projeto,
da reestruturação da École des Beaux-Arts, provava que a Academia não se tratava de um lugar
realizada pelo ministro de Napoleão III, só para aprender um ofício e afastava o peso das
Nieuwerkerke e o arquiteto Viollet-le-Duc, bem críticas de Platão que atacava a pintura mimética
como uma brincadeira graciosa por sua imitação

123
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

como um espelho. Alem do estudo privado com grande golpe no poder exclusivo dos mestres da
um mestre pintor, o aluno recebia na Academia uma academia, que até então, decidiam o acesso dos
pedagogia teórica essencial. Ela oferecia artistas ao Salon e aos premios.
conhecimentos da antiguidade clássica,
fundamentais para o artista atingir um status de O pintor brasileiro defendia com ardor esta medida
atividade intelectual e liberal e não somente de uma a qual favorecia aos jovens artistas. Ela rompia com
hábil atividade mecânica. a hegemonia neoclássica para a seleção e os
(LUDERIN,1997:29).Toda ênfase era voltada ao prêmios dos Salons e que doravante o acesso
desenho, copiando os mestres consagrados, poderia ser livre para todos os talentos e seria então
depois as esculturas clássicas e por fim desenhar possível restituir às atitudes mais variadas, uma
um modelo vivo nu, cuja longa e sofisticada prática fama que as doutrinas ortodoxas da escola de
assumiu o nome de academia, desenhada ou tradição talvez, lhes recusassem
pintada. Este sistema desenvolveu por mais de (AMÉRICO,1863:12). A reforma foi implantada e a
duzentos anos um rigor prático e teórico baseado eleição do novo Júri do Salon anual pelos artistas
no modelo clássico e serviu de referência para as de fato ocorreu em março de 1864. Além desta
academias nos séculos seguintes, sendo direção liberal em ratificar as exigências
interrompida em 1792, quando foi fechada pela democráticas do público e da crítica, outra mudança
Revolução Francesa. radical do governo, condenada com veemência
pelos acadêmicos neoclássicos, era referente à
Com a Restauração Bourbonica a partir da queda contratação de artistas-professores estrangeiros
de Napoleão em 1815 a Academia foi reaberta e para lecionar nos ateliês localizados na Escola de
recuperava daí por diante a denominação pré- Belas Artes. Essas mudanças foram duramente
revolucionárias de Academia des Arts, Académie rejeitadas em um manifesto chamado Réponse au
des Peinture et Sculture (na 2ª restauração) e rapport au reforme des École Impériale des Beaux-
finalmente Académie des Beaux-Arts. Mas não Arts, escrito em1863 pelo pintor Jean-Dominique
ficava somente no nome. Os antigos membros Ingres. No seu manifesto Ingres escrevia que esta
ligados à tradição retornavam formando parte dos decisão iria representar mil perigos se fosse
júris que controlavam os Salões, as premiações e aplicada. Pedro Américo contra-atacava apoiando
principalmente as disputadas encomendas públicas totalmente esta medida, a qual na sua visão, não
para as pinturas de história. Esse era o poder teria outro propósito senão desenvolver nas jovens
restituído à Academia e em conseqüência eles cabeças o amor à instrução e a acelerar o
orientavam o gosto oficial e faziam a ligação entre movimento das idéias, tão fatalmente amortecidas
artistas e Estado (WAT,1999:142). Como nas há tantos anos na Academia (AMÉRICO,1863:12).
antigas academias, os artistas famosos tinham O jovem artista de 21 anos entrava em um debate
ateliês particulares onde preparavam os alunos público, não com um interlocutor qualquer, mas
para os concursos e forneciam durante a como se sabe, com o mais famoso e respeitado
escolaridade ensinamentos práticos que faltavam artista da França, membro do Instituto e nesta
na EBA. Estas práticas restauradas pelos época Senador. E ele o atacava frontalmente
Bourbons, se mantiveram de forma chamando-o com um certo desdém, de patriarca
substancialmente imutáveis até a Reforma da École da escola de tradição e afirmava que Ingres
des Beaux-Arts de 1863. A Reforma de Viollet-le- reclamava para seu grande e célebre mestre
Duc põe por terra este sistema, determinando que neoclássico Jacques David um culto que havia
os ateliês práticos fossem instalados dentro da consagrado a si mesmo. Pedro Américo tinha
Escola, retirando a autoridade dos ateliês esperança que a Reforma decretada iria arrebatar
particulares. Ao mesmo tempo criava um Conselho para outra direção toda esta juventude destinada a
Superior de Belas Artes, composto de artistas e perpetuar os princípios da escola de David,
pensadores eminentes, que auxiliariam o Ministro praticada pelo Sr. Ingres e respeitada por seus
das Belas Artes nas questões de seleção e critério alunos. O jovem pintor duramente defendia ser um
artístico para os Prêmios e medalhas. Esta função direito livrar a juventude dessa servidão artística
até então era exclusiva dos professores da defendida pelo patriarca do ensino neoclássico tão
Academia e do Instituto de França. Pedro Américo feliz à época de David como é tão deplorável hoje,
recebeu com entusiasmo este projeto no qual porque já desempenhou seu papel e deve se retirar
identificava uma via liberal e que diante disso todo desse teatro, onde não há mais nada a fazer.
mundo deveria aplaudir. Com a criação desse novo (AMÉRICO,1863:10-11).
conselho, os membros que o comporiam,
passariam a serem eleitos pelos próprios artistas A Reforma de 1863, também contemplava a
inscritos no Salon, o que em princípio, era um criação da Union Centrale des Beaux-Arts Apliqués

124
Pedro Américo contra a Academia francesa, a favor da fotografia e das reformas de Napoleão III, em 1863

à L´Industrie, fato de grande relevância, por Ao lado da opinião pública dos grandes jornais,
desenvolver o desenho industrial e considerar a agora cada vez mais circulavam pela cidade a
fotografia como arte. Segundo Scharf, Ingres impressão de manifestos, assinados ou com
refutava não só o projeto, mas motivado pela pseudônimos, à espera de réplicas ou tréplicas
tendência de divergências artísticas no meio da elite sobre os assuntos do momento. Pedro Américo
intelectual, atacava também o Romantismo porque assinaria o seu, como um aluno pensionnaire
os seguidores desta escola, da qual Pedro Américo brésilien na École des Beaux-Arts, reagindo com
fazia parte, fomentavam idéias novas que dariam diplomacia mas com apaixonada firmeza, contra
por resultado a corrupção da arte e a destruição os que moviam uma oposição às reformas .O
do estilo antigo greco-romano. Para Ingres a jovem artista com sarcasmo, identificava que os
fotografia, como uma arte industrial, era tão artistas opositores queriam era proteger a fama que
desprezível quanto esses artistas modernos e eles adquiriram, mais pelos erros da sua época
advertia: “Agora querem misturar a indústria e a atrasada do que por suas qualidades e que agora
arte. A indústria! Isso sim é que não queremos! com a Reforma, eles sentiam perder seu prestígio
Mantenhamo-la em seu lugar, sem colocá-la na diante das felizes inovações que vinham abrir ao
entrada do nosso verdadeiro templo de Apolo, que mundo um novo caminho. (AMÉRICO, 1863:1). Ele
está consagrado exclusivamente às artes de Grécia deixava claro que era necessário destronar esta
e Roma!” (SCHARF,1994:162-163). Não é de se facção que estava sentada em um velho pedestal
estranhar que Ingres um ano antes, encabeçasse neoclássico. Opunha aos erros dessa orientação
um protesto des grands artistes (Flandrin, da academia, para o artista já inaceitáveis, o
Isabey,entre outros.) contra toda assimilação de la modelo de duas outras escolas de arte, que para
photographie à l´art (ROILLÉ,1989:399). Pedro nossa surpresa não floresciam na mítica Itália mas
Américo também neste ponto, estava na defesa sim na Alemanha e na Bélgica. Estas escolas,
da modernidade, porque indústria aqui, também se segundo o artista, estavam baseadas em princípios
referia ao campo industrial da fotografia como arte: totalmente diferentes da escola francesa. Quais
seriam esses princípios?
Monsieur Ingres queixa-se dos conceitos do
relatório a propósito da indústria em França e Podemos esboçar uma aproximação desde a
a influência das Belas Artes sobre esta fonte orientação anti-acadêmica do grupo místico
de riquezas. Contudo em relação a isto, nos romântico dos Nazarenos alemães ( 1810-1840),
permitam uma reflexão: não se trata mais de o qual havia fundado uma confraria de pintores e
uma reforma para introduzir a industria na arte, que tiveram influência na criação dos Pré-Rafaelitas
mas sim a arte na industria, e por aí , participar na Inglaterra em 1850, este grupo também em luta
da vida cotidiana. De sorte que a objeção do contra as convenções clássicas da Academia Real
ilustre mestre cai por si só. (AMÉRICO,1863:11) de Londres. Pedro Américo devia conhecer bem
esses grupos anti-academicos, já que estudou com
Nesse ano polemico, Pedro Américo vivia o apogeu Sebastién Cornu, um obscuro discípulo de H.
político e econômico da França com o Imperador Flandrin, sendo que ambos participaram dessa
Napoleão III, que passava a adotar essas confraria alemã. Além disso a arte na Alemanha
importantes reformas elaborando um programa continuava a ter grande interesse nos anos 1860 e
artístico também na área cultural. O Imperador 70 nas pinturas de Menzel, Max Klinger e de
assumia como sendo importante para um governo Böcklin, este o artista preferido de Nietzsche (LE
liberal, as tendências românticas e realistas que RIDER, 2001:51).
pintavam os dramas, alegrias e costumes do seu
tempo. Desse modo o governo estimulava os A outra Pintura de História considerada inovadora
artistas que estavam tentando caminhos novos e por P. Américo, ele conheceu estudando também
mais próximos ao gosto do publico. Por mais de na Universidade Livre do Partido Liberal na Bélgica
vinte anos, os avanços notáveis problematizado em 1862-67-68, e cuja produção artística híbrida
pela indústria fotográfica na arte, já mostravam o de uma poética romântica com detalhes de um
sucesso do uso da fotografia nas pinturas realismo fotográfico, apresentava .. .um caráter
românticas ou realistas de Delacroix, Corot, Horace mais em harmonia com o espírito moderno que a
Vernet, Yvon, Meissonier, Courbet (A fonte, 1862), escola atual em França... Os artistas belgas
Manet (Almoço na Relva,1863) ao lado do pregavam uma arte livre, uma representação dos
progresso industrial exibidos nas Exposições eventos patrióticos que acentuasse o caráter
Universais e das questões socialistas, positivistas singular, realístico dos retratos e acessórios, com
e científicas divulgadas (LUDERIN,1999:48). uma deliberada busca de uma sinceridade arcaica,
pré-renascentistas, fora das convenções já

125
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

esgotadas da tradicional composição acadêmica estava interpretando com sabedoria a liberdade


neoclássica. Nós identificamos como exemplos, as proclamada pelo espírito de nossa época. A
obras da pintura de Louis Gallait (1812-1887) e a Reforma procurava politicamente, premiar uma
pintura de história anti-clássica, proposta por Henry racional pluralidade de estilos para também
Leys (1815-1869), um dos fundadores na arte belga enfrentar a concorrência moderna das outras
da via da observação realista. A pintura de Gallait potencias européias, como a Alemanha e a Bélgica,
exibia um realismo fotográfico nos temas cujas escolas de arte vimos P.Américo destacar
românticos, destinados a emocionar pela imitação como as mais avançadas. Diplomaticamente, ele
fiel do real, visando se aproximar muito mais a uma compreendia que o ardor dos professores da École
cultura popular do que erudita (TINTELNOT, des Beaux-Arts em defender a “imutabilidade” das
1965:206). Já Henry Leys, valorizava a cor e o tradições contra o “espírito novo”, procediam de
movimento, inicialmente em temas de batalhas e um “verdadeiro amor pelos princípios elevados da
massacres. Mais tarde, inspirado nas pinturas do arte” mas acusava a inferioridade das últimas
artista alemão Holbein, Leys exerceu em seu tempo produções da Escola francesa em Roma, assim
uma grande influência na França e Inglaterra. Um como as obras dos últimos grandes prêmios que
imaginário fotográfico apresentava a cena pintada ele viu no Salon de maio de 1863. Estas pinturas
como verdadeira, como se fosse possível imaginar- “testemunhavam com bastante eloqüência a
se diante da cena real (BENÉDICTE:282-285). fraqueza dos princípios preconizados” na formação
Enquanto estas pinturas eram desprezadas pela dos grandes talentos, cuja exclusiva orientação
academia devido ao seu novo realismo fotográfico, neoclássica, segundo ele, excluía toda
Pedro Américo as considerava de grande “ousadia originalidade. Pedro Américo seguia a filosofia
e originalidade” as quais despertavam tanto eclética de Victor Cousin e pregava com
entusiasmo no jovem artista que este sonhava entusiasmo um pluralismo cultural para que os
antevendo “os mais belos dias da grande pintura estudantes pudessem
flamenga” (AMÉRICO,1863:8).
... desfrutar das doutrinas artísticas as mais
Vivenciando de perto essas inovações, era natural opostas como o realismo, romantismo,
que o artista se manifestasse contra a academia classicismo, oferecidas ao temperamento de
francesa, a qual continuava até 1863 defendendo cada um, a seu caráter, à seu gênio, enfim,
com rigor a antiga hierarquia das artes maiores e para que possam escolher o que lhes
artes menores, favorecendo sobretudo, os pintores convenha melhor [...] A originalidade pessoal
de história encorajados a pintar com uma fatura não será daqui em diante sacrificada a
lisa e linear,valorizando os meios tons, eliminando nenhuma escola, à nenhuma doutrina
um forte claro-escuro, e o vigor das pinceladas. exclusiva, e o espírito nacional se desenvolverá
Os retratistas vinham em segundo lugar, seguido bem mais comodamente aos raios de um novo
dos pintores de cenas de gênero e desdenhavam sol, do que sob os dias da facção de uma
dos pintores de paisagens e naturezas-mortas antigüidade bastarda e desencorajante
(WAT,1999:162). Como adiantamos, P.Américo (AMÉRICO,1863:12-13).
participava com sua opinião a favor das reformas
liberais, as quais tentamos contextualizar com as Alguma dúvida em ver claramente a distância
grandes questões artísticas da época, na enorme que separava o artista das idéias clássicas
esperança de mostrar o equívoco em se considerar e conservadoras?
hoje P.Américo um artista conservador e
neoclássico. O manifesto mostrava sem meias O livreto-manifesto a favor das Reformas nos
palavras, que o pintor considerava a EBA o lugar esclareceu que P. Américo era contra o sistema
de sofrimento dos jovens artistas e este lamento neoclássico ou de tradição, estando próximo a
talvez venha a ser o dele mesmo. Ele condenava Géricault , Delacroix, a escola belga e nunca como
os julgamentos inflexíveis do Instituto de France se divulga na historiografia, estudou com Ingres
com suas máximas neoclássicas friamente nem com Horace Vernet, que faleceria em 1863,
calculadas para intimidar o gênio. “Nada mais nem com Paul Delaroche. Entre 1859-63, em plena
admirável que a arte antiga continuava P.Américo discussão apaixonada sobre se a fotografia era arte
mas também nada mais insuficiente que os meios ou não, é impensável que P. Américo não estivesse
que são colocados à disposição do artista para atento a essa polêmica. Mas será que o artista ao
atingir ao ideal moderno”. (AMÉRICO,1863:9). defender a união entre arte e indústria, teria se
utilizado de fato do instrumental fotográfico para
P.Américo estava totalmente de acordo com a dar mais originalidade à sua arte? Pedro Américo
administração liberal bonapartista que para ele certamente conhecia as reflexões sobre fotografia
de seu mestre, o romântico Araújo Porto-alegre já

126
Pedro Américo contra a Academia francesa, a favor da fotografia e das reformas de Napoleão III, em 1863

posta em discussão, do ponto de vista da feita de modelo-vivo, de estampas, ou com


sobrevivência do artista. Na última das trinta teses instrumentos óticos, teria que considerar um grande
colocadas para um debate na congregação da acontecimento a invenção da “imagem
Academia no RJ, em 1855, P.-alegre indagava: “A daguerreotípica”, como ainda era chamada por
descoberta da fotografia foi útil ou perniciosa à alguns a fotografia dessa época, fruto de uma
pintura ? E se ela chegar a imprimir as cores da máquina que o pintor acreditava que fizesse uma
natureza com a fidelidade com que imprime as imagem do real, sem artifícios, “fiel e
formas monocrômicamente, o que será da pintura ingenuamente”.
e mormente dos retratistas e paisagistas?”
(FREIRE,1916:85) .Mas nenhum livro de história Como muitos críticos do seu tempo, Pedro Américo
da arte brasileira nos auxiliava, sobre como saber identificava duas fraquezas da fotografia em
se P. Américo conhecia ou não o universo relação à sofisticada pintura. A primeira é que a
fotográfico e se havia usado ou não fotografias para imagem técnica abstraía o colorido, nessa época
pintar. Um texto inédito do pintor, manuscrito em só produzindo fotografias em preto-e-branco e a
1864 e o livro Holocausto escrito nesta mesma segunda é que representava o retratado
época mas publicado em1882, finalmente nos congelando um instante do real, “sem a expressão
apresentava um artista dialogando com a característica” que um artista tinha dever de
modernidade de seu tempo que ele chamava de descobrir e fixar na pintura. Apesar disso, o pintor
“felizes inovações”. considerava extremamente positivo o uso da
fotografia como modelo, porque em relação aos
No texto manuscrito de 1864, depois publicado no fatos reais, ela nunca deixaria de ser “fiel e
Jornal Mercantil do RJ neste mesmo ano, o pintor verdadeira” e “ter um fundo essencialmente
defendia a liberdade de criação e era contra “... sincero” (AMÉRICO,1882:332). Essa
essa baixa opinião que o fim da arte e sua condição importantíssima e desconhecida reflexão de Pedro
única é imitar a natureza no sentido vulgar da Américo, espelhava com clareza uma sensibilidade
palavra, que quer dizer coisa real e visível [...] o nova em relação à fotografia. O pintor deixou esse
artista deve renunciar ao método acanhado testemunho inequívoco de que considerava a
daimitação exclusiva” [fotográfica]. fotografia como um “documento irrevogável”
(AMÉRICO,1864:160) No contexto dos anos 1863/ comemorativo de fatos reais, feito de forma fiel e
1864, ficava evidente que Pedro Américo buscava ingênua e talvez, por isso mesmo, louvado pelo
uma conciliação entre o olhar ainda acanhado das artista como essencialmente sinceros4. Eram esses
limitações técnicas da máquina fotográfica ,com o valôres socioculturais novos da “fidelidade
olhar biológico e a imaginação sofisticada e anti- histórica” na representação dos acontecimentos na
clássica da arte romântica. Pintura de História, testemunhados e fixados como
se fosse uma “inartificiosa fotografia”, que Pedro
Nessa discussão o que é de extrema relevância e Américo lançaria mão para pintar. O pintor passaria
o mais surpreendente, é descobrir no outro texto a usar as fotografias fiéis e realistas como modelo,
autobiográfico publicado em 1882, que para Pedro mas também a imaginação criadora e a memória
Américo, essa mudança inevitável por mais inventiva para representar o movimento, fixar uma
realismo na pintura trazida pela fotografia, longe ação significativa na pintura das batalhas e que
de representar uma ameaça à arte, deveria ser ele iria buscar com obsessão na representação do
considerada “positiva e fundamental”. A instante.
representação na pintura dos “fatos reais sucedidos
em grande parte na presença de numerosas Pode-se notar nesse manifesto de P. Américo,
testemunhas” faria com que, tanto o romance escrito em dezembro de 1863, também uma
histórico como os que ele escreveu, bem como a posição clara contra o rigor severíssimo e sem
pintura de história que ele pintou, não perdessem precedentes do júri da Academia no Salon oficial.
o seu “verdadeiro caráter: a fidelidade histórica”. Das 5.000 obras apresentadas em maio desse
Esta só se afastaria desses princípios em relação mesmo ano, o júri recusou cerca de 3.000 e as
às datas, à transmutação de acontecimentos reclamações foram tão fortes, que o próprio
visando uma “maior clareza de exposição”, imperador Napoleão III, constatou que algumas
consideradas “alterações levíssimas” pelo pintor, obras selecionadas não eram melhores que as
e que não apagariam nunca o “cunho de uma recusadas, decidindo fazer uma exposição
história verdadeira, de uma inartificiosa paralela 5. Como observou Luderin, o fenômeno
fotografia”3. Para um pintor como Pedro Américo, mais extraordinário e pela primeira vez na história,
que tinha um domínio sofisticado de artifícios foi a “opinião pública” ser chamada para julgar os
pictóricos para construir uma imagem, até então dois modos contrapostos de se entender a arte:

127
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

uma no Salon Oficial e outra no Salon dos moderna e tão fora dos padrões, que foi motivo de
Recusados expostos no Palácio da Indústria recusa pelo mordomo Paulo Barbosa quando Pedro
(LUDERIN,1999: 49) . Se no Salão oficial Américo pretendia ofertar a obra ao imperador
destacavam-se os nus representativos das diversas Pedro 2o. O mordomo ou o “reservado” e “puritano”
tendências da arte acadêmica, de Eugène imperador - considerou a pintura por demais
Emmanuel Amaury-Duval, de Paul Baudry e de licenciosa e indigna da coleção imperial, a pintura
Alexandre Cabanel; no outro o nú ‘escandaloso’ ficando no atelier do artista até 1871.(GUIMARÃES
de Manet com seu Déjeuner sur lherbe. Pedro JR.,1871:57).
Américo visitou os dois Salons e escrevia no final
de seu manifesto em dezembro de 1863: As novidades plásticas que Pedro Américo
introduziu na pintura deste nu e que motivaram um
Nós amamos a França e admiramos cada dia escândalo, pode-se debitar na apropriação feita
mais esta grande nação... Eh, muito bem, mas pelo artista no uso de retratos fotográficos para
nossa admiração diminui quando , em visita a pintar, no tratamento diverso da cor e alguns
uma exposição de pinturas, no Palais de detalhes de fatura realista. A própria Exposição
L´Industrie ou na École des beaux-arts, nós Geral de Belas-Artes da Academia Imperial de
preferimos nos retirarmos a termos que 1865, devido às atenções do início da Guerra do
comparar estas frias e honestas telas, pálidos Brasil contra o Paraguai, passaria despercebida se
reflexos de uma grande civilização, com os não fosse essa pintura rebelde aos cânones
gigantescos monumentos que a literatura e a neoclássicos das outras obras ali expostas.
ciência produziram nestes últimos anos Machado de Assis, em uma crônica revelava que
(AMÉRICO,1863:14-15). a pintura dA Carioca tinha sido “objeto de uma
discussão renhida”.
Além desse manifesto ainda em 1863, ou talvez
no inicio de1864, P. Américo realizava uma pintura Alguns, certamente por identificar essa audácia
que intitulou A Carioca. Esta pintura estava moderna acima referida, defendiam com exaltação
intimamente ligada aos modos diferentes de a pintura como “sublime”, enquanto outros
entender o nú vistos no confronto entre o recusado “respondiam aos gritos - detestável!”6 A paisagem
Almoço na relva de Manet, e as glórias do salon do fundo à direita nada tinha de neoclássica,
oficial, o Nascimento de Vênus, de Cabanel e A revelava antes, a sensibilidade romântica de P.
pérola e a onda de Baudry. A Carioca que Américo e como observou o saudoso Prof. Mário
simbolizava a nascente do Rio Carioca no Cosme Barata, remetia até aos primeiros paisagistas
Velho no RJ, não era a representação de uma realistas, desprezados pelos critérios dos Salons
branca ‘Vênus’ mítica do Salon oficial. Ela se oficiais na França. (ZANINI,1983:423). O biógrafo
afastava dos padrões de Ingres, sendo de P. Américo reconhecia esta heresia paradoxal
representada como se fosse uma “morena do desvio romântico-realista: condenava “as
andaluza”, de cabelos negros. A pintura escapava tinturas empastadas do céu e das árvores[...] o
também das duras críticas da nova intelectualidade pincel criador calcou demais na tela, talvez por
carioca às “tolas presunções e programa seguir os ímpetos febris do talento artístico e do
estritamente falso da escola brasileira” cujas sonho do poeta”(GUIMARÃES JR.,1871:54).
extravagantes representações na pintura se
resumiam em florestas virgens e a nudez dos índios Se para nós hoje, a pose d´A Carioca lembra uma
do período colonial (GUIMARÃES JR., 1871:52). pose acadêmica, a recepção da época ao contrário,
Esta pintura de uma morena carioca “voluptuosa” considerava bem reais e penetrantemente
e “trigueira”, com uma sensualidade bem terrena, irresistíveis os “contornos redondos e opulentos”,
e que não possuía adornos indígenas, iria provocar “a pele amorenada e rica de um sangue virgem e
um inesperado escândalo no principal evento os deliciosos membros da soberba criatura”
cultural do Império. (GUIMARÃES JR.,1871:54).O rosto que
representava as características de uma morena
Olhando-se a pintura no MNBA-RJ, uma segunda carioca, era descrito como sendo sensual e realista
versão exposta em 1884, é quase impossível com seu caráter humano e lascivo. Este retrato teve
entender hoje, o escândalo que esta obra provocou por modelo certamente uma fotografia da esposa
na Exposição da Academia Imperial no Rio de do Sr. M. A., um funcionário do consulado do Brasil
Janeiro em 1865. A rigor, com a familiaridade das em Paris, cujas iniciais, continuam a intrigar a
reproduções fotográficas modernas, hoje é difícil identidade do modelo real cuja “beleza era
entender também, o escândalo em torno da obra admirada e de vantajosa reputação nos dois
de Courbet, Manet, ou dos impressionistas. Mas mundos”. O escritor destacava o realismo e a
em 1865, a pintura de Pedro Américo era tão “perfeição” do retrato, e associava “aquela boca

128
Pedro Américo contra a Academia francesa, a favor da fotografia e das reformas de Napoleão III, em 1863

suave e aquela melancólica fronte” à pintura de (1871) e Batalha de Avaí(1877) marcava um tempo
uma Cabeça de Anjo de Paul Delaroche de polemica e inovações na Pintura de História
(GUIMARÃES JR,1871:54-56). Como é sabido, brasileira.
este artista era ninguém menos do que o pintor
que declarou em 1839, ao ver as primeiras Referências bibliográficas:
fotografias, que a pintura havia morrido. Isso não
o impediu de redigir uma nota afirmando que a a) Fontes de arquivos
fotografia possuía a “perfeição de certas condições
AMÉRICO,Pedro. La Réforme de l’École des
essenciais da arte” para que o físico F. Arago
Beaux-Arts et l’opposition. Par un élève. A. Morel
pudesse aprovar em 3 de julho de 1839, um projeto
et Cie, Editeurs, Paris, 1863, 15p.- Rue Bonaparte,
de lei na Câmara dos Deputados para uma pensão
13 (em face l´École des Beaux-Arts). 15 X 10 cm.
aos inventores da fotografia Daguerre e Niépce
Casa Museu de Pedro Américo, Areia, Paraíba.
(ROILLÉ,1989:39). Podemos afirmar portanto, que
_____Considerações Filosóficas sôbre as Belas
Pedro Américo usou uma fotografia e não o modelo
Artes entre os Antigos. Manuscrito Original
vivo, porque esta era uma prática bastante comum
(inédito),179p. Rio de Janeiro, 1864. Dedicado ao
aos pintores que viviam o “espírito novo” da vida
Imperador em 6 de janeiro de 1865, junto com o
moderna ,cuja máquina fotográfica facilitava a
quadro A Carioca ( Arquivo do Museu Imperial de
realização da pintura com a vantagem de garantir
Petrópolis, RJ. Cod :Doc. 6622 M .135).
uma severa discrição para uma mulher casada vir
______ Considerações Filosóficas sôbre as Belas
servir de modelo nu, a um pintor.
Artes entre os antigos. RJ, Correio Mercantil, nº
Essa mistura de tradição cultural e novidade 272 a 285, outubro de 1864. Publicado em capítulos
encontrava-se de fato, no próprio quadro Dejeneur, de setembro a novembro de 1864. Arquivo da
de Manet, o qual lembrava uma montagem Biblioteca Nacional, PR-SPR (1-53).
fotográfica em que a composição era herdeira de ______ Holocausto. Romance filosófico de caráter
Giorgione e Rafael em um tema novo e atualizado e de costumes. Florença, Itália, Ed.Typographia
na indumentária em moda na época, como se Cenniniana, 1882. 401. Arquivo Casa Museu de
fossem “parisienses em férias” (ARGAN,1999:95- Areia,Paraíba.
96). Neste contexto, podemos aceitar que A Carioca GUIMARÃES Jr., Luis. Pedro Américo. Ed.
era na verdade também uma pintura - manifesto H.Brown e J. de Almeida, RJ, 1871. 128p. Arquivo
do jovem pintor que ensaiava com audácia e do Museu Nacional de Belas Artes-RJ.
tradição, as soluções dos nus tanto os de Cabanel
b) Bibliografia geral
e Baudry , como os de Manet, que o artista havia
visto no Salão Oficial e dos Recusados. Claro que ASSIS, Machado de. Coletânea de Crônicas - O
não se pode cometer o crime anacrônico de cobrar Velho Senado. Brasília: Ed. Centro Gráfico do
a P.Américo que fizesse nessa época uma ruptura Senado Federal , 1989. ( Col. Milton Campos: vol.
radical. De fato mesmo Manet “além da sua audácia I ).
técnica, cromática e a grande simplificação obtida, ARGAN, Giulio. Arte Moderna. SP: Cia. das
acumula muitas contradições não Letras,1999. Trad. Denise Bottmann e F. Carotti.
resolvidas”(LUDERIN,1997:77).O que ele AGUILLAR, Nelson (org.) Catálogo da Exposição
procurava era dar um novo significado as velhas Mostra do Redescobrimento: Arte do Séc. XIX
formulas, atento a complexa e variada (Curadoria de Luciano Migliaccio.), de 23 abril a 7
potencialidade expressiva existente na tradição. Da de setembro de 2000. Fundação Bienal de São
mesma forma, Pedro Américo escrevia que em Paulo, Associação Brasil 500 anos, Artes Visuais,
lugar de sonhar sem cessar a procedimentos 2000.
plásticos de uma arte que, sendo eminentemente BENÉDITE, Léonce. La peinture au XIXième
bela, ao tempo de Da Vinci ou Miguelângelo, o Siècle dáprés les chefs-doeuvre des maîtres et
neoclassicismo não poderia mais ser a arte de uma les meilleurs tableaux des principaux artistes.
época onde o homem e o mundo eram Paris: Ernest Flammarion, s.d.
considerados “sob um ponto de vista bem diferente” Catálogo da Exposição LArt du nu au XIX e
(AMÉRICO,1863:9). Com a pintura d´A Carioca e siècle- La photographie et son modèle, com a
o manifesto a favor da Reforma, o artista mostrava colaboração da École Nationale Superieure de
com ousadia juvenil uma modernidade possível no Beaux-Arts e o Musée Rodin, de 14 de outubro de
gênero da Pintura de História, trilhando um caminho 1977 a 18 de janeiro de 1998. Edit Hazan/
à distância das idealizações neoclássicas da Bibliothèque Nationale de France François
academia.O artista se apropriando amplamente da Mitterrand, vv.aa., 200p. il.
fotografia para pintar a Batalha de Campo Grande

129
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

FREIRE, Laudelino. Um Século de Pintura no Américo tinha 13 anos e estava entrando para a academia
Brasil: apontamentos para a história da pintura no no RJ, só chegando em Paris em fins de 1859. Colocamos
Brasil de 1816 a 1916. RJ: Tipografia Röhe, 1916. com cautela o artista haver estudado também com Leon
Cogniet (1794-1880), Horace Vernet (1789-1863) e
LE RIDER, Jacques. Arnold Böcklin ou le retour à
Hipolite Flandrin(1809-1864) .O único documento existente
lantique de la modernité. La Revue du Musée até agora consultado é uma carta ao Imperador Pedro 2º
dOrsay,2001,n.13,114pp, p. 51. enviada em 1861, pelo obscuro professor do artista,
LUDERIN,Pierpaolo. L´Art Pompier. Immagini, Sebastién Cornu (1804-1870).
2
significati, presenze dell´altro Ottocento AMÉRICO, Pedro. La Réforme de L´École des Beaux-
francese (1860-1890).Leo S. Olschki Arts et l´opposition- par un éléve. A. Morel et Cie,
Editore,Castello(PG),1997. Editeurs, Paris, 1863,15p. Agradecemos imensamente a
escritora Janaína Azevedo e ao Padre Rui Vieira, este
MACHADO,Vladimir. Ela é A Carioca. RJ:Ed.do
fundador da Casa Museu Pedro Américo em Areia –
Autor,2005. Paraíba, o acesso a esse importantíssimo livreto. As
__________. A fotografia na Batalha do Avaí de citações a seguir do manifesto, foram traduzidas pelo autor.
Pedro Américo: a obsessão de representar com 3
AMÉRICO, P. O Holocausto. Ed.Typographia
realismo o movimento. Latitudes-Cahiers Cenniniana,Florença, Itália, 1882,401pp., p332. Grifos
Lusophones: Brésil/Brasil, n.23- Abril de 2005, meus. Note-se que para a pintura “Independência ou Morte”
104pp.:il. p 35-40. Artigo comemorativo do (Museu Paulista-USP) de 1888, o artista escreveu um
opúsculo em que reafirmava essas idéias de juventude
centenário de morte de Pedro Américo dentro do
(1864): “Um quadro histórico deve, como síntese, ser
Ano Brasil em França durante o ano de 2005. baseado na verdade e reproduzir as faces essenciais do
__________ . A fotografia na Batalha do Avaí de fato [...] A realidade [ou a “inartificiosa fotografia”] inspira e
Pedro Américo. Revista Nossa História, n.33, não escraviza o pintor [...]”. AMÉRICO, P. O Brado do
Julho de 2006 98pp:il, p.34-38. Ipiranga ou a Proclamação da Independência do Brasil.
__________. A fotografia na Batalha de Campo Agradecemos à Prof. Dra. Cecília Salles de Oliveira o
Grande de Pedro Américo. 19&20 - Revista do site acesso à esse texto, durante nossa pesquisa em 1998. O
opúsculo encontra-se reproduzido na íntegra in OLIVEIRA,
DezenoveVinte. Volume III, número 1, Janeiro 2008.
Cecíla Helena Salles de & MATTOS, Claudia Valladão de
Disponível em: www.dezenovevinte.net/19e20/. (orgs.). Edit. São Paulo, USP, Museu Paulista da USP, 1999.
OLIVEIRA, Cecíla Helena Salles de & MATTOS, 138p. il. p 19 e 21. Ver também nesse mesmo livro, o ensaio
Claudia Valladão (orgs,). O Brado do Ipiranga. de Claudia de Mattos Algumas Palavras acerca do Texto
Edit. São Paulo, USP, Museu Paulista da USP, ‘O Brado do Ipiranga’ e de Sua Ligação com a Tradição
1999. 138p. il. Acadêmica, pp.119 a 132.
4
ROUILLÉ, André. La photographie en France: Ao narrar a chegada do personagem Agavino ao Rio de
Janeiro, P. Américo,fazia um triste retrato da capital do
Textes & Controverses, une anthologie-1816-1871. Império e do uso da fotografia como documento “fiel” da
Paris: Ed. Macula, 1989. 549p.il realidade. A cidade apresentava “[...]aquelas praias
SCHARF, Aaron. Arte y Fotografia. Mdrid:Ed. esquálidas e despidas de qualquer artefato hidráulico, das
Alianza Editorial,1994. (Versão espanhola de Jesús quais os estrangeiros se compraziam em tirar a
Pardo de Santayana). fotografia, para zombarem do nosso pouco asseio [...]”.
TINTELNOT, Hans. De L’ Art Classique a l’ Art AMÉRICO, P. O Holocausto. Ed. Typographia Cenniniana,
moderne. Paris:Ed. Payot, 1965- 206 pp.:il. Florença, Itália, 1882. 401pp., p. 196., grifos meus.
5
WATT, Pierre. Salonards e refusés. XIXe siècle. p.162.
WAT,Pierre Salonard et refusés,XIXe siècle. Segundo outras fontes 2000 obras foram recusadas.
LANEYRIE-DAGEN,Nadeje (org.). Le Métier 6
Cf., Machado de ASSIS na crônica para o jornal liberal,
d´Artiste. Paris: Ed. Larousse-Bordas/HER, 1999. Diário do Rio de Janeiro, Seção Ao acaso, 21 de fevereiro
ZANINI, Walter. História Geral da Arte no Brasil, de 1865 in: O Velho Senado, Ed. do Senado
SP: Instituto WalterMoreiraSalles,1983, 483. Federal,1989,528p., p.152. Esta crônica desmente a
“calmaria” da vida artística no Rio de Janeiro oitocentista.
Notas A historiografia moderna sobre a arte deste período no Rio
de Janeiro é unânime em fazer crer que os artistas eram
1
Anotamos um pequeno equívoco do Prof.Mario Barata todos conformistas e reacionários acadêmicos.Na verdade
ao colocar P.Américo estudando em Paris em 1856,com havia uma efervescência cultural entre várias tendências
Paul Delaroche (1797-1856) sendo que este havia já estéticas que se digladiavam entre si.
falecido (ZANINI,1983:420). Nessa data - 1856 - Pedro

130
capitulo 3
outros centros de formação artística

131
As técnicas praticadas pelo homem, algumas
vezes, produzem obras artísticas. Assim, foi
estabelecida uma divisão entre a chamada arte
pura e a arte aplicada. A arte pura era considerada
superior à arte aplicada. Argan ressalta que “o
próprio conceito de aplicação implica a idéia de
uma precedência da arte pura e do sucessivo
emprego secundário das suas formas de produção
e objetos de uso”. (ARGAN, 2000:123).

Aqui serão trabalhadas provas de desenho, a partir


das quais se pretende entender a função da
disciplina de Desenho no que diz respeito à
aplicação da arte. Por conseguinte é possível
estabelecer relações entre alguns anseios da
sociedade e o ensino dessa disciplina. Segundo
Argan, “a arte assim chamada aplicada transmite
a imagem da sociedade e de seus graus e valores
internos, e sobretudo das suas funções”. (ARGAN,
2000:117).

Dessa forma objetiva-se recuperar parte da história


da disciplina de Desenho nas Escolas Normais
Oficiais de Minas Gerais, no período compreendido
entre 1892 a 19064. Para isso, utilizamos como
referência provas, Programas e Pontos da
disciplina de Desenho encontradas no Arquivo
o desenho em foco: a arte aplicada na transição Público Mineiro, por meio do Projeto Memória da
do século xix para o xx Administração do Estado de Minas Gerais:
organização, preservação e acesso do acervo
daniela flávia martins fonseca 1, bruno dos documental (1889-1945) 5. Como fontes para a
santos dias 2, renata garcia campos duarte 3 análise da documentação, servimo-nos de leis e
decretos mineiros, além de pareceres e reformas
propostas por Rui Barbosa a partir de 1880.
Segundo Souza, muitas das concepções e
propostas contidas nos estudos de Rui Barbosa
“foram adotadas nas reformas da Instrução Pública,
realizadas em várias províncias na década de 1880
e, posteriormente, pelos estados nas primeiras
reformas educacionais da era republicana”
(SOUZA, 2000:10); entre estes o de Minas Gerais.

O estudo das propostas de Rui Barbosa justifica-


se, devido à importância 6, atribuída por ele, a
algumas disciplinas no currículo escolar, com
destaque para a de Desenho. Em 1882, Rui
Barbosa, então deputado, apresentou à Câmara
um projeto que tratava da Reforma do Ensino
Secundário e Superior, visando preparar o aluno
para as mudanças no cenário nacional. Era
necessário privilegiar conteúdos como, por
exemplo, Música, Ginástica, Higiene e Desenho.

Designado como relator do projeto de reforma da


instrução no Brasil, Rui Barbosa foi influenciado
pelo movimento intelectual que acreditava na
educação como um dos pilares para a formação
de uma nação em ordem, rica e moralizada. É
possível verificar em seus trabalhos as referências

133
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

feitas aos modelos dos países ditos “civilizados” [...] indispensável à perícia especial do futuro
que deveriam ser seguidos. Como consta no operário, à honra industrial e à prosperidade
prefácio do Parecer da Reforma do Ensino Primário mercantil do país, o desenho apresenta ainda,
e Várias Instituições da Instrução Pública, escrito enquanto à cultura geral da inteligência,
por Jacobina Américo Lacombe, na edição de 1950, assinaladas vantagens: é um meio de
a obra possui ao total 365 citações bibliográficas desenvolver a faculdade perceptiva e, ao
especializadas no assunto, sendo 179 em língua mesmo tempo, um preciso auxiliar a vários
francesa, 129 em língua inglesa, 26 em português, outros ramos do ensino (a escrita, a aritmética,
cinco obras em língua alemã, quatro em italiano e a geometria e a geografia); a disciplina, a um
cinco em espanhol. tempo, um espírito, a mão e o olho; inclina o
menino a ordem, a precisão; incute-lhe gosto,
Para o republicano e liberal Rui Barbosa, era e inspira-lhe o amor do belo. (BARBOSA,
urgente que o país se desenvolvesse e se tornasse 1883:115).
também uma nação industrial. Acreditava que “o
dia em que o desenho e a modelação começarem Com o ensino do Desenho não era esperado que
a fazer parte obrigatória do plano de estudos na surgissem grandes artistas, mas sim operários
vida do ensino nacional, datará o começo da mecânicos capazes de ler os signos mais
história da indústria e da arte no Brasil”. importantes para o exercício de suas funções,
(BARBOSA, 1882:257). capazes de compreender os signos do desenho e
também produzir objetos úteis a sociedade.
Conforme a leitura dos pareceres de Rui Barbosa, Barbosa ressalta que o fim da educação não era
percebe-se que, para ele, existiam duas formas de “promover individualidades extraordinárias”, mas
arte. Uma era a arte de admiração e contemplação sim “educar esteticamente a massa geral das
e outra, que nos interessa aqui, a arte aplicada. populações, formando a um só tempo, o
Essa não se destinava consumidor e o produtor, determinando
simultaneamente a oferta e a procura nas indústrias
ao cultivo superior da pintura, da escultura, da do gosto”. (BARBOSA, 1882:07).
estatuária, mas a explorar completamente as
opulências inexauriveis da adaptação da arte A reforma do ensino que Rui Barbosa propunha
ao trabalho industrial, mediante o estudo cabal abrangia a aplicação das disciplinas, a
do desenho e da modelação sob os seus reestruturação do espaço escolar e, sobretudo, a
variadíssimos aspectos, cada um dos quais é reorganização dos métodos e a reforma do
uma mina de riquezas para o Estado. professorado. Para tanto, as escolas normais 8
(BARBOSA, 1882:194). seriam espaços privilegiados para a formação de
professores primários que disseminariam os seus
De acordo com esse pensamento, tudo seria conhecimentos a maior gama possível da
subordinado ao caráter de aplicação industrial, em população. Dentre as disciplinas a serem
prol do crescimento e fortalecimento do Estado. ministradas nas escolas normais e nos diversos
Barbosa criticava que, no Brasil, ao contrário do níveis da Instrução Pública estava a disciplina de
resto do mundo civilizado, o ensino do desenho Desenho. Barbosa mencionava que não bastava
era envolvido pela idéia de prenda de luxo ou dom
inato, “um passa tempo de ociosos, um requinte [...] dispor de excelentes professores especiais
de distinção reservado ao cultivo das classes de desenho, estabelecer bons cursos e boas
sociais mais ricas, ou à vocação excepcional de escolas especiais; é mister que TODOS OS
certas naturezas privilegiadas para as grandes MESTRES E MESTRAS sejam habilitados a
tentativas da arte”. (BARBOSA, 1882:108). distribuir, nas aulas DIÁRIAS, A TODA A
Defendia que tanto o ensino como o aprendizado POPULAÇÃO DAS SUAS ESCOLAS O
do desenho eram úteis e necessários a todos que ENSINO PRIMÁRIO DO DESENHO.
se dedicassem a tal fim, recomendava que deveria (BARBOSA, 1882:107-108).
ser disciplina ministrada desde a escola primária,
ou citando Pestalozzy 7, poderia vir antes mesmo Segundo Rui Barbosa o método que deveria ser
do estudo das primeiras letras, já que o desenho adotado na reforma do ensino deveria ser o Lições
seria uma inclinação natural do espírito humano, de Coisas ou Método Intuitivo9. Este já havia sido
tendo somente a contribuir para o aprendizado, formalmente adotado pelo artigo 4º do Decreto nº
jamais retardá-lo. Apontava as contribuições do 7.247, de 19 de abril de 1879, conforme a Reforma
ensino do Desenho às outras disciplinas do Leôncio de Carvalho. Entretanto, Barbosa criticava
currículo escolar e para a formação de um novo a rotina com que o método era aplicado, alegava
padrão de valores. Afirmava, ainda, ser o Desenho que não passava de imitação dos modelos

134
O desenho em foco: a arte aplicada na transição do século xix para o xx

desenvolvidos – pelos estudiosos dos países Na legislação mineira do início do período


“civilizados” – com tamanha precisão e coerência. republicano é possível perceber, no Regulamento
Lourenço Filho resgata o pensamento de Rui das Escolas Normais, no Decreto nº 607, de 27 de
Barbosa, fevereiro de 1893, o espaço reservado à disciplina
de Desenho. O Art. 3º estabelece que “O curso
Cumpre renovar o método, orgânica, normal será de 4 annos, e comprehenderá as
substancial, absolutamente, nas nossas seguintes matérias [...] desenho geométrico,
escolas. Ou, antes, cumpre criar o método; topográfico, de ornato, de paizagem e de figura”,
porquanto o que existe entre nós usurpou um com lições de desenho do primeiro ao quarto ano,
nome, que só por antífrase lhe assentaria; não divididas em três lições por semana no 1º ano, uma
é o método de ensinar; é, pelo contrário, um lição no 2º, duas lições no 3º e três lições no 4º
método de inabilitar para aprender. (BARBOSA ano. Em relação ao método a ser utilizado, o artigo
apud LOURENÇO FILHO, 1945:XXXI). 9º determina que “os professores das aulas práticas
farão três vezes por semana lições de cousas, às
O Lições de Coisas consiste em explorar os quais assistirão os alunos do primeiro anno”.
sentidos como instrumento do aprendizado,
substituindo o caráter abstrato, baseado na palavra Constantemente é ressaltado o caráter prático e
e na memorização, por atividades que valorizassem profissional do método de ensino. O Decreto nº 607
a percepção e intuição do aluno. De acordo com também assevera: “sempre que for possível se
Valdemarin “devido ao uso dos objetos, à farão uso dos processos intuitivos, tanto nas aulas
observação e ao resultado projetado, este método práticas como nas do curso normal, não chegando
é considerado por seus propositores como sendo aos estudos abstractos sinão progressivamente”.
concreto, racional e ativo”. (VALDEMARIN, Era repudiada a idéia de se usar o método de forma
2000:77). em que o professor apenas repetisse os pontos e
os cobrassem nos exames e exercícios.
O ensino do desenho, associado ao Método Recomendava-se que “no desenvolvimento das
Intuitivo, esteve constantemente relacionado à idéia lições, deverão os professores associar à
de desenvolvimento industrial. Essa era a exposição a interrogação, não só para estimularem
justificativa para a consolidação das novas a attenção dos alumnos, mas também, para se
disciplinas nos currículos educacionais das inteirarem do aproveitamento dos mesmos”.
instituições de ensino do país. Barreto ressalta que
“o ensino da arte, mais propriamente dito o ensino O fato de a legislação determinar, não significa que
do desenho assumiu papel relevante na educação tenha sido cumprida a fio. Percebe-se que a
para o trabalho, seja ele como objeto disciplinador, repetição, e a utilização do método, às vezes, era
ou como forma de aperfeiçoar a mão-de-obra e bem diferente da proposta de Rui Barbosa, mas
cultivar o espírito de trabalhador”. (BARRETO, por outro lado encontram-se, também, outros
2006:02). documentos que demonstram que as propostas da
Reforma haviam conseguido adeptos e eram
É possível que Rui Barbosa tenha entrado em seguidas em Minas Gerais. Foram encontrados
contato com esse método quando, segundo programas de ensino do Lições de Coisas, nas
Lourenço Filho, em 1879, se transfere para a Corte, escolas normais do estado a partir de 1896, que
onde conhece a professora norte-americana utilizam como compêndio a tradução da obra de
Eleanor Leslie, diretora do Colégio Progresso. Esta Calkins realizada por Rui Barbosa, ou seja, o ensino
provavelmente possuía a obra Primary Object da disciplina pontuava-se pelas propostas mais
Lesson, de Allison Norman Calkins, pois modernas daquela época. Esses programas são
“comprazia-se em conversar sôbre assuntos de provenientes, principalmente, das Escolas Normais
ensino, informando-se do movimento de idéias de Campanha, Montes Claros e São João del Rei,
pedagógicas nos Estados Unidos”. (LOURENÇO os quais apresentam semelhanças entre si como,
FILHO, 1945:XV). Também aponta a possibilidade por exemplo, o pressuposto do desenvolvimento
de ter ocorrido os primeiros contatos de Rui da faculdade de observação do aluno.
Barbosa com a obra, por meio do relatório de
Ferdinand Buisson referente à seção de educação Na documentação estudada nota-se que dentre as
da Exposição Internacional de Filadélfia, em 187910. técnicas propostas por Rui Barbosa, consta a
A grande contribuição de Rui Barbosa no que diz utilização do Método Estigmográfico. Este o define
respeito ao Método Intuitivo está na tradução dessa da seguinte forma:
obra, bem como as críticas feitas à forma com que
o Método era aplicado no Brasil. O papel para o desenho, segundo o método
estigmográfico, é quadriculado, isto é: está

135
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

coberto com linhas, que enchem a folha, perspectivas, valorizando o modelo de acordo com
cruzando-se em ângulo reto, e formando uma a proposta do Lições de Coisas.
rede de pequenos quadrados. As figuras
formam-se traçando, isto é, cobrindo as linhas Estendendo-se por todos os anos do Curso Normal,
de um quadrado a outro, até se completar a a disciplina deveria assegurar o domínio das
figura proposta pelo mestre como modelo. As técnicas estudadas criando as condições básicas
linhas da rede estigmográfica são mais tarde para o desenvolvimento do desenho industrial:
substituídas por pontos e, finalmente, os pontos mobiliário, peças de maquinário, desenhos de
reduzidos em número, mais e mais, até arquitetura e engenharia civil, como consta na
desaparecerem de todo e darem lugar ao documentação encontrada.
desenho livre a olho; Com este método não
havia, nem há, nem haverá saltos mortais; a Em síntese, como demonstrado por Bitencourt, “as
progressão pode ser graduada finalidades de uma disciplina tendem sempre a
matematicamente. (BARBOSA, 1883:151). mudanças, de modo que atendam diferentes
públicos escolares e respondam às suas
Esse método, de influência austríaca, era baseado necessidades [...] inseridas no conjunto da
na utilização de cadernos quadriculados para a sociedade”. (BITENCOURT, 1998:42). Nota-se que
realização de exercícios a mão livre. Nota-se, na com a disciplina de Desenho não foi diferente, uma
documentação encontrada, a ausência do emprego vez que correspondeu à necessidade de seu tempo,
da régua devido à falta de firmeza no traço. Barbosa e por isso pode ser analisada como um fenômeno
deixa claro em seus trabalhos, que não se deveria histórico.
iniciar o estudante no ensino do desenho usando
a régua, pois isso limitaria a criatividade do aluno A utilização de desenhos como fonte para a
prejudicando todo seu aprendizado. pesquisa acadêmica ainda não é suficientemente
explorada. Esta restrição explica-se em parte pelo
Também foram encontrados desenhos de figuras fato do desenho ser considerado como esboço ou
humanas, animais, ornatos fitomorfos e exercício preparatório para uma obra a ser
geométricos – barrados e frisos inspirados na elaborada, todavia, fundamental para a
gramática clássica, edifícios em perspectiva e compreensão do processo de construção de uma
fachadas, utensílios domésticos e de uso litúrgico, idéia, as alterações operadas em seu
formas geométricas, etc. Percebe-se que esses desenvolvimento e, finalmente, a obra
desenhos se inserem no campo das artes materializada. Concentrando-se preferencialmente
aplicadas, pois pretendem assegurar o aprendizado na obra final, as pesquisas perdem muito, deixando
de técnicas úteis ao indivíduo em sua vida em segundo plano os desenhos (os esboços), que
profissional. nos dão a dimensão do processo de produção.

Outra técnica utilizada era o estudo das formas Referências bibliográficas


vegetais, a base para a arte ornamental;
compreende-se que o treinamento em desenhos ARGAN, Giulio Carlo. Arte moderna: do iluminismo
padrões vegetais aprimora os desenhos de ornatos. aos movimentos contemporâneos. São Paulo:
Estes são inspirados no vocabulário rococó, comum Companhia das Letras, 1992. 709 p.
na maioria das cidades e presente na vida cotidiana ________. Projeto e Destino. São Paulo: Ática,
dos alunos. 2001. 334 p.
_______. Secretária do Interior. Desenhos
Os desenhos não eram meramente enfeites, encontrados no fundo Secretaria do Interior, ainda
estavam inseridos em uma seqüência de em fase de organização, referente às Escolas
aprendizado que partia do estudo da geometria, Normais de Campanha, Diamantina, Montes
incluindo o estudo da perspectiva, da luz e da Claros, Ouro Preto, Sabará, São João del Rei e
sombra, do espaço e da linha, conforme a Uberaba.
graduação alcançada pelo aluno. Eram utilizados ________. Secretaria do Interior. Pontos para o
nas aulas modelos em gesso, estampas e objetos, Ensino de Desenho do 2º ano da Escola Normal
conforme a proposta do Lições de Coisas11 . Entre de Campanha, 1896.
os documentos, foi encontrado um projeto de ________. Secretaria do Interior. Programa de
arquitetura de interior, uma sala de aula adequada Lições de Cousas da Escola Normal de Montes
ao estudo do desenho. A disposição do mobiliário Claros, 1898.
e a localização das janelas (a entrada de luz natural) ________. Secretaria do Interior. Programa de
privilegia a visão do estudante de diversas Pontos para a Prova de Gramática de Lições de

136
O desenho em foco: a arte aplicada na transição do século xix para o xx

Cousas da Escola Normal de São João Del Rei, LOMBARDI, José Claudinei; SAVIANI, Dermeval;
1899. NASCIMENTO, Maria Isabel Moura. (Org.).
BARBOSA, Ana Mae Tavares Bastos. Arte- Navegando pela história da educação brasileira.
Educação no Brasil: das origens ao modernismo. Campinas: Gráfica FE: HISTEDBR, 2006, p. 1-23.
São Paulo: Perspectiva, 1978. 132 p. Disponível em: http://www.histedbr.fae.unicamp.br/
BARBOSA, Rui. Lições de Coisas. Obras . Acesso em: 11 fev. 2008.
Completas de Rui Barbosa: volume 13, tomo 1: SOUZA, Rosa Fátima de. Inovação educacional no
Trabalhos Diversos. Rio de Janeiro: Ministério da século XIX: a construção do currículo da escola
Educação e Saúde, 1950. p. 259-365. primária no Brasil. Cadernos Cedes, Campinas,
________. Método e Desenho Escola. Obras Ano XX, n. 51, p. 9-25, nov. 2000.
Completas de Rui Barbosa: volume 10, tomo 2: VALDEMARIN, Vera Teresa. Lições de coisas:
Reforma do Ensino Primário e Várias Instituições concepção científica e projeto modernizador para
Complementares da Instrução Pública. Rio de a sociedade. Cadernos Cedes, Campinas, Ano
Janeiro: Ministério da Educação e Saúde, 1947. p. XIX, n. 52, p. 74-86, nov. 2000.
105-196.
________. O desenho e a arte industrial. Notas
Disponível em: http://www.casaruibarbosa.gov.br. 1
Graduada no curso de História da Pontifícia Universidade
Acesso em: 19 jan. 2008.
Católica de Minas Gerais e bolsista BAT (Bolsa de Auxílio
BARRETO, Carolina Marielli. Ensino de Arte e Técnico) do Projeto Memória da Administração do Estado
Educação Profissional Feminina: a Criação da de Minas Gerais: organização, preservação e acesso do
Escola Profissional Feminina de São Paulo. acervo documental (1889-1945) no Arquivo Público Mineiro.
Revista Digital Art&, v. 05, 2006. Disponível em: 2
Graduando do curso de História da Pontifícia Universidade
http://www.revista.art.br/site-numero-05/index.htm. Católica de Minas Gerais e bolsista do Projeto Memória da
Acesso em: 09 jan. 2008. Administração do Estado de Minas Gerais: organização,
preservação e acesso do acervo documental (1889-1945)
BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. O que é
no Arquivo Público Mineiro.
disciplina escolar. O saber histórico na sala de 3
Graduanda do curso de História da Pontifícia Universidade
aula. 2 ed. São Paulo: Contexto, 1998. p. 33-55. Católica de Minas Gerais e bolsista BIC (Bolsa de Iniciação
BRASIL. Decreto nº 607, de 27 de fevereiro de Científica) do Projeto Memória da Administração do Estado
1893. Regulamento das Escolas Normais do de Minas Gerais: organização, preservação e acesso do
Estado de Minas Gerais. acervo documental (1889-1945) no Arquivo Público Mineiro.
4
BROQUELET, Alfred. Arte Applicada à Indústria. Esse recorte temporal se deve ao fato da maior parte da
documentação encontrada se referir a esse período.
Rio de Janeiro: H. Garnier, Livreiro Editor, 1911. 6
Compreende-se que a importância dada a essas
411 p. disciplinas nos currículos escolares articulou-se com as
CARDOSO, Rafael. A Academia Imperial de Belas exigências e as necessidades próprias do desenvolvimento
Artes e o Ensino Técnico. 19&20 – A Revista industrial e o processo de urbanização do país, momento
Eletrônica de DezenoveVinte, Rio de Janeiro, v. em que ocorria a escolarização de diversos saberes sociais,
III, n. 01, jan. 2008. Disponível em: http:// com fim prático e objetivo.
7
www.dezenovevinte.net. Acesso em: 11 fev. 2008. Ver BARBOSA, Rui. Lições de Coisas. Obras Completas
de Rui Barbosa.
FONSECA, Celso Suckow da. História do ensino 8
A origem da instituição designada Escola Normal, no
industrial no Brasil. Rio de Janeiro, 1961-62. 2 v. Brasil, a partir da primeira metade do século XIX, se deu
HESKETT, John. Desenho Industrial. 2.ed. Rio de em função da necessidade de profissionalizar o corpo
Janeiro: J. Olympio, 1998. 227 p. docente nacional. Sua criação vem em decorrência da
PROCHNOW, Denise de Paulo M.; AURAS, Gladys necessidade de uniformizar o sistema educacional do país,
Mary Teive. As lições dos grupos escolares: um e a formação de professores capacitados fazia parte dessa
estudo sobre a incorporação do método de ensino reforma.
9
É necessário ressaltar que a aplicação do método intuitivo
intuitivo na cultura escolar dos primeiros grupos
não era novidade na segunda metade do século XIX.
escolares florianopolitanos (1911-1935). VI Segundo Schelbauer, foi nesta época, sobretudo por meio
Seminário de Pesquisa em Educação da Região das Exposições Internacionais, dos Congressos
Sul – ANPED Sul, 6, 2006, Santa Maria – RS. VI Pedagógicos, dos Relatórios Oficiais, além dos compêndios
ANPED Sul – Seminário de Pesquisa em e manuais de ensino, que o conhecimento em torno do
Educação da Região Sul. Santa Maria: ensino intuitivo foi colocado em circulação, associado à
Universidade Federal de Santa Maria, 2006. idéia de que ele se constituía em um instrumento capaz de
reverter a ineficiência do ensino escolar e o método mais
Disponível em: http://www.sbhe.org.br. Acesso em:
apropriado à difusão da instrução elementar entre as
11 fev. 2008. classes populares. Com esta roupagem, desembarcou na
SCHELBAUER, Analete Regina. Método intuitivo realidade brasileira como um saber pedagógico que
e lições de coisas: saberes em curso nas traduzia as expectativas de renovação educacional que os
conferências pedagógicas do século XIX. intelectuais ilustrados acreditavam poder modificar o

137
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

cenário da nação, modernizando-a por meio da educação. industrial, copiada pelos países do Velho e do Novo Mundo
(SCHELBAUER, 2006:19). interessados em seguir o modelo de desenvolvimento da
10
Na segunda metade do século XIX, no mundo ocidental, então potência mundial. A partir de então, gradativamente,
as discussões em relação aos métodos de ensino ocorridas nota-se a influência dessas Exposições no Brasil, como
nos congressos, conferências e exposições pedagógicas se percebe no relatório do conselheiro Francisco Inácio
atingiram grande proporção, produzindo importantes Carvalho Moreira, em visita à Exposição de 1862.
11
inovações pedagógicas na escola. Nas Exposições Não foi possível descobrir se eram realizadas aulas ao
Internacionais de Londres, de 1851 e 1862, a Inglaterra ar livre. Um estudo mais detalhado da documentação
foi o grande exemplo de desenvolvimento artístico- poderá esclarecer-nos.

138
Como centro dos meus interesses que é o estudo
da História das Artes na Bahia, abordamos, neste
texto, aspectos da formação profissional dos
serralheiros e ferreiros que produziram as diversas
grades de ferro presentes em Salvador no século
XIX, momento em que elas estiveram no seu
apogeu.

A presença e diversidade das grades de ferro na


cidade do Salvador foi uma constante ao longo do
século XIX, período inclusive que pode ser
considerado como fase de apogeu no qual elas
abundam como elementos decorativos em várias
edificações. Essa presença é marcada pelas
transformações sociais e culturais ocorridas nesse
período, já que as grades de ferro se
desenvolveram e acompanharam as tendências do
neoclassicismo e ecletismo na arquitetura
conforme podemos ver no Gradear do arco
cruzeiro-Igreja N.S.Rosário dos Preto e no Balcão
da Escola de Belas Artes-UFBA.

É possível também que as influências dos ingleses


que habitavam Salvador tenham contribuído na
difusão de novos processos técnicos e artísticos
na cultura local, principalmente na arquitetura.
Portanto, nesse período, a difusão do ofício do
subsídios sobre a formação do serralheiro e artesão especializado na cultura artesanal do ferro,
ferreiro e seu sistema profissional na bahia na qual a forja teve seu destaque se fez de modo
oitocentista marcante quando se vê que alguns deles, dada
essa habilidade específica, realizaram muitos
1
dilberto de assis trabalhos na cidade e, segundo registros de fonte
documental, parte deles prosperou deixando bens
imóveis e escravos para seus familiares.

Tendo em vista recuperar aspectos da formação


profissional dos serralheiros e ferreiros utilizamos
como fontes de pesquisa Inventários, Livros de
Atas, Livros de Recibos e documentos avulsos sob
custódia de Irmandades religiosas sediadas em
Salvador que puderam oferecer importantes
subsídios para reconstruir um perfil dessa
formação. Muitos desses documentos ainda
inéditos nos forneceram nomes de artífices ferreiros
e serralheiros, endereços de suas oficinas, datação
de algumas peças e outras informações, a exemplo
de documento localizado no Arquivo da Santa Casa
de Misericórdia – Bahia no qual consta uma
declaração de uma empresa que se diz capacitada
em não só realizar as grades de ferro para o
Hospital de Nazareth, como também se acha apta
a realizar qualquer tipo de desenho.2

Para melhor compreender a difusão da cultura


artesanal do ferro é importante considerar que a
chegada do ferro a Salvador remonta à época da
fundação da cidade em 1549, para a qual,
juntamente com Tomé de Souza, veio grande
equipe de operários, que se ocuparam da

139
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

construção civil comandada pelo mestre de obras vertiginosa decadência devido à sua
Luís Dias que declarou haver, num grupo de 101 descapitalização em conseqüência das “[...] quedas
artífices, a presença de ferreiros (CEAB, 1998, p. de influências que sofreram no Brasil de 1822 a
22). Por tratar de obras iniciais para a construção 1838” (TAVARES, 2001:283).
de uma cidade, subentende-se que a utilização do
ferro atendia basicamente a construção civil em É possível que tenha vindo da Inglaterra grades
seu uso mais ordinário, como arames para prontas, juntamente com o ferro na sua forma bruta
amarrações de colunas, pregos, barras e a para atender à produção siderúrgica local. Haviam
confecção de algumas ferramentas rudimentares. casas especializadas na comercialização do ferro,
nas quais ingleses e escoceses não pouparam o
Qualquer análise sobre a formação colonial uso dos recursos e das potencialidades plásticas
brasileira, passa pela influência da cultura desse material. Pelo fato de ser um mineral
portuguesa, que esteve sempre presente na Bahia destacável naquela época em durabilidade e
desde os primórdios e que atingiam todos os resistência, o ferro foi considerado o material mais
setores da vida da sociedade baiana, inclusive a utilizado no século XIX, na arquitetura e na
arquitetura. A constatação da existência de alguns decoração.
exemplares de grades em monumentos anteriores
ao século XIX leva-nos a crer que chegaram a Entre nós, a presença de empresas inglesas para
Salvador trazidas de Portugal, quando o comércio a comercialização do ferro encontra-se registrada
e as importações lusitanas predominavam nessa em Luís Henrique Dias Tavares (2001:283-286),
cidade. que nos apresenta uma lista de algumas delas e
de fundições que pode ser comprovada nos
Investigando os caminhos da chegada das grades reclames de jornais da época. Já Kátia Mattoso
à Salvador, temos como exemplo a existência de (1992: 491) indica que, no início do século XIX, a
uma cultura manufatureira do ferro em Portugal que Grã-Bretanha, experiente no comércio anglo-
provavelmente chegou ao Brasil. A constância dos português, transferiu para a Bahia parte de sua
modelos dessas grades respeitava um sistema operação, até então dirigida a Lisboa, o que muito
monótono: travessões que sustentavam hastes facilitou a comercialização de diversos produtos
com intervalos regulares Em alguns exemplares, ingleses, dentre eles os manufaturados de ferro.
acrescentavam-se às grades discretos ornamentos
como aduelas, bolas ou pinhas. Para Dilberto de Para melhor atender às vendas dessas
Assis (2003), o resultado dessa produção importações, supomos, ainda tendo por base fontes
assemelha-se muito a alguns balcões atualmente documentais que aqui chegavam catálogos
encontrados em alguns edifícios na cidade do mostrando uma variada tipologia de produtos da
Salvador3, e provavelmente a sua origem remonte arquitetura pré-moldada, como também de objetos
as oficinas lisboetas. de uso doméstico e hospitalar. Esses catálogos
estiveram presentes em Salvador por todo o século
Sendo a França detentora da mestria da serralharia, XIX, o que denota, portanto, a capacidade de
pode-se notar a presença dos artesãos franceses, organização comercial conseguida pelas empresas
registrada desde o século XVII quando eles inglesas e escocesas, das quais a Macfarlane teve
trabalharam em Portugal. Suas influências, aí ampla atuação na América Latina (SILVA, 1988:
deixadas, podem nos ajudar a compreender a longa 51). É possível que, alguns catálogos, circulassem
trajetória da arte do ferro até sua chegada a entre os serralheiros e ferreiros baianos, e tenham
Salvador. A presença desses artesãos também foi servido como fonte de inspiração nas composições
constatada em outros países da Europa, a exemplo das grades, mesmo que os desenhos nele contidos
da Inglaterra, que também assimilou as influências sejam específicos para a fundição, diferentes pois
francesas, e foi através dela que algumas obras dos da forja. Um modelo de grade que pode ter
artísticas da ferraria e da serralharia chegaram até sido importado — e ainda pode ser apreciado — é
nós, no século XIX, época em que houve uma maior aquele que se encontra colocado na janela de um
difusão do emprego da grade na arquitetura. Nesse sobrado localizado na Ladeira de São Bento nº.
momento, a Inglaterra detinha a hegemonia 28, Centro – Salvador-Ba. Apesar de não
comercial na cidade do Salvador. A difusão de encontrarmos documentação que ateste a sua
produtos e costumes ingleses resultou de forma origem, constatamos em uma publicação que o seu
patente na eliminação da manufatura local, padrão ornamental coincide exatamente com o
destruindo qualquer possibilidade de concorrência. padrão da grade existente na Catedral de Puy, Alto
Os ingleses possuíam capital e considerável Loire, França (SUBES, 1928: 20), datada do século
influência, o que gerou a retração do comércio local XIII. Essa grade em Salvador é um caso raro
eminentemente português, entrando este em quando comparada a outras.
140
A formação do serralheiro e ferreiro e seu sistema profissional na bahia oitocentista

A sua qualidade técnica é ressaltada pela elaborada A partir dessa época o sistema da aprendizagem
composição, e pode ter influenciado na produção de serralheiro desenvolveu-se na Bahia. Esse
da serralharia em Salvador ao observarmos outros sistema consistia, na prática, na adoção, por parte
modelos com seus enrolamentos mais cerrados, de um mestre, de um jovem para que este, no
resultado do aproveitamento da espessura das convívio diário e na observação do trabalho da
barras. Sua composição difere, por exemplo, da oficina, aprendesse o ofício desejado passando por
composição de outros tipos de grades menos todas as etapas do conhecimento técnico. Não
elaboradas. havia idade certa para o início do conhecimento do
ofício, como também não existia uma duração
Sobre a formação do artesão especializado na específica para a formação do oficial. Sobre tal
Bahia particular, Flexor (2000: 81) diz, por exemplo, que
já no século XVIII os barbeiros, filhos da
Com a presença de jesuítas na Bahia desde os Misericórdia da Bahia, passaram por esse sistema
primeiros momentos da colonização, sabe-se que para aprender a arte de sangrar4. Tal atividade podia
houve a implantação de oficinas de ofício em seus render ao barbeiro mestre no final de três anos,
seminários, engenhos e fazendas, com a finalidade por aprendiz mantido em sua oficina, a considerável
de ensino inclusive da arte além da evangelização soma de 12$000 (doze mil réis). Pelo visto, a
dos índios. Acreditamos que estavam aí alguns dos manutenção de um aprendiz podia constituir-se em
primeiros prenúncios de uma formação profissional um bom e rentável empreendimento (FLEXOR: op.
na qual se incluía os ferreiros, fabricando “anzóis, cit: 81).
facas, enxadas, machados, foices, pregos, e mais
ferragens comum de utilidade imediata” (LEITE, Quando havia o interesse do mestre pela admissão
1953: 48). Serafim Leite comprova tal fato ao de um jovem aprendiz em sua oficina, eram
apontar os constantes pedidos à Corte do envio de celebradas regulamentações contratuais entre os
padres mestres com habilidade na arte do ofício progenitores e os mestres para estabelecer os
(LEITE: op.cit: 19). Mais adiante diz o autor: direitos e deveres. Nesses acórdãos, incluíam-se
“Antigamente a arquitetura e as outras Belas Artes responsabilidades de ambas as partes, como, por
não se estudavam em escolas públicas, senão nas exemplo, a do mestre em relação ao aprendiz, que
oficinas dos mestres” (LEITE: op. cit: 41). deveria dar casa e alimentação, além de todo o
conhecimento técnico. O aprendiz, por sua vez, em
Vieram de Portugal os ofícios mais necessários hipótese alguma poderia ausentar-se da oficina
para o recente processo de colonização. Aqui estes antes do prazo estipulado no contrato (FERREIRA-
foram adaptados para atender às realidades ALVES, 1989: 70) 5. Após os acórdãos para a
vigentes no Brasil Colonial, principalmente na referida admissão, estes eram lavrados num
Bahia. No século XIX, por exemplo, a sociedade contrato constando diversas cláusulas.
baiana, nas esferas, econômica, política e social,
revelavam características próprias, diferentemente Quanto à duração da permanência de um aprendiz
das evidenciadas pela sociedade do Rio de Janeiro, na oficina, variava de acordo com o ofício, podendo
que nessa época era a capital do país. chegar a alguns casos até cinco anos, ou até
quando o aprendiz estivesse apto a ser examinado
A formação técnica era dada aos aprendizes pelos Juízes de Ofício da Câmara Municipal e
através do ensinamento oficinal. Em princípio pudesse seguir a sua vida, assumindo seu próprio
trazido pelos portugueses, esses ensinamentos sustento. Os examinados eram avaliados mediante
propiciavam uma formação baseada no sistema do a execução de uma obra do seu domínio técnico,
medievo europeu que estava relacionada com a através da qual o oficial podia mostrar toda a sua
de Lisboa. Em Salvador, conforme Ma. Helena mestria (FLEXOR, op. cit: 31). Àqueles
Flexor (1974), há um documento de 21 de maio de considerados habilitados ao exercício da profissão;
1641, relatando que fora instituído o cargo de Juiz após o exame, eram concedidas cartas chamadas
do Povo que tinha a mesma função e denominação de Certidão de Exame, que lhes facultavam, além
de “Mesteres”, os chamados representantes eleitos do exercício profissional, a abertura de suas
para os diferenciados ofícios, que contribuíam para próprias tendas na cidade de Salvador (FLEXOR,
a “criação dos regimentos dos ofícios, fixação de op. cit: 32).
preços e salários e qualidade do trabalho das
diversas ocupações”, além de examinarem aqueles Ainda no século XIX, conheceu-se um outro modelo
que quisessem entrar nas atividades (FLEXOR: op. de formação profissional estruturado no Colégio e
cit::9 e 12). Se haviam nesse período examinações, Casa Pia dos Órfãos de São Joaquim, fundado em
era porque, já no século XVII, existiam estruturas 1825 e estabelecido no local onde ainda hoje se
de formação profissional. encontra. O seu objetivo era segundo Alfredo Matta,
141
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

“direcionar as populações de menores órfãos ou de Janeiro que inaugurava o ensino artístico no


carentes, para dar-lhes instrução profissional e Brasil.
torná-los úteis à sociedade” (MATTA, 1999: 51).
Não se pode esquecer que a esmagadora presença
A formação profissional de ensino oficinal, oferecida de produtos industrializados importados dos
ao órfão nessa instituição, especializava o menor ingleses, como também a fundação de fábricas
em uma das artes de ofício nas oficinas da própria para produção em série, provavelmente induziu o
casa, ou essa formação poderia ser adquirida em paulatino desaparecimento da técnica da forja em
oficinas de particulares pelo sistema de Salvador consolidada com o surgimento da solda
aprendizagem. Tanto era assim que um Decreto alógena ainda na primeira metade do século XX.
Imperial de julho de 1832 determinava que, nos Exemplo dessa expansão pode ser lido na
arsenais da Guerra e da Marinha, a preferência pela solicitação de estatutos à Junta Comercial da Bahia
admissão de novos jovens aprendizes fosse dada para a implantação de uma fábrica [...] de objetos
aos órfãos egressos da Casa Pia e Colégio dos de utilidade doméstica, artigos de ferro estanhado
Órfãos de São Joaquim (FONTES, 1985:21). A e especialmente esmaltados, imitando todos os
formação ao assistido previa um melhor futuro para artigos immagináveis de louça ou porcelana
os menores, com o alcance de uma vida mais digna fina.[...]7
e íntegra, e visava a sua integração no mercado
de trabalho e na sociedade quando ele saísse da Sistema profissional
Casa Pia (MATTA: op. cit: 126). Esse autor
exemplifica a conhecida prática dos mestres oficiais Como já foi acima enunciado, a existência de
mecânicos requisitarem menores órfãos, oficiais mecânicos em Salvador é notada desde a
diretamente à Casa Pia e Colégio dos Órfãos de chegada de Tomé de Souza em 1549. Observa-
São Joaquim, para aprender um ofício. Era um se, pois, que devido ao desenvolvimento da cidade,
sistema de formação do conhecimento técnico, no século XVII notava-se a existência de
voltado para o acompanhamento das tendências considerável número de artesãos trabalhando nas
da modernidade na indústria e das suas inovações, mais diversas atividades como ferreiros e
bastante difundidas no século XIX. serralheiros (FLEXOR: op. cit: 15). Esses
profissionais deviam obedecer às determinações
Também em documentação encontrada nos impostas pelos Regimentos da Câmara Municipal.
arquivos da Santa Casa de Misericórdia da Bahia Já os oficiais pintores, escultores, engenheiros e
constata-se um sistema de formação profissional arquitetos considerados profissionais liberais, já
semelhante ao da Casa Pia. No relatório anual do não dependiam, por exemplo, de autorização da
ano de 1885, assinado pelo Sr. Barão de Guahy Câmara para estabelecer e colocar em
há uma solicitação de rescisão de contrato datada funcionamento suas oficinas. (FLEXOR: op. cit: 16).
de 14 de setembro de 1884, requerida por
Constantino Nunes Mucugê, ferreiro, devolvendo Dentre as adaptações ao sistema profissional, cita-
os irmãos menores expostos de nomes Evaristo e se a estrutura dos ofícios anexos, que inclui, por
Ignácio de Mattos, por indisciplina. Chamado o exemplo, os barbeiros, espadeiros, corrieiros,
mestre para acareação junto à mesa administrativa, latoeiros, armeiros e caldeireiros, os quais eram
e uma vez contornada a situação, os menores anexados à categoria dos ofícios de ferreiros e
retornaram à oficina do ferreiro para continuar com serralheiros (FLEXOR: op. cit: 15). Essa parceria
a aprendizagem6. era necessária muitas vezes para permitir a melhor
fluência do trabalho, como observou Carlos Ott
Acreditamos que tal formação profissional sofreu (1979:.253). Esse autor nos fala que os latoeiros
alterações com novas propostas de formação eram os executores dos trabalhos de estampagem
educacional. Ainda no século XIX, foram criadas em chumbo, criando elementos decorativos como
instituições de ensino como o Lyceu de Artes e florões, rosetas, bilros e lanças para os
Ofícios em 1873, e a Academia de Belas Artes da acabamentos das grades de ferro, conferindo a
Bahia em 1877, que em 1881 após passar por estas especial destaque quando a combinação
reforma de ensino passou a chamar-se Escola de ferro-chumbo resultava sempre em belos
Belas Artes. Essas duas instituições apresentaram exemplares, como pode ser visto ainda hoje: o
novas propostas de ensino. A primeira voltada para portão e as grades principais do adro da Igreja da
a qualificação do operariado, e a segunda, com Ordem 3ª do Carmo em Salvador constituem alguns
uma proposta mais arrojada de realizar um ensino dos exemplos.
baseado nas Academias de arte francesas, muito
semelhante a já instalada em 1836 no Rio de Mas são as Posturas Municipais, que nos trazem
Janeiro, Academia Imperial de Belas Artes do Rio detalhadas informações para compreender o ofício

142
A formação do serralheiro e ferreiro e seu sistema profissional na bahia oitocentista

e produção dos ferreiros e serralheiros, após a diversa, que muito contribuiu para a beleza dos
fundação da cidade do Salvador. Esses edifícios e do espaço urbano de Salvador no
documentos eram leis promulgadas que curso de todo o século XIX.
determinavam diversas regulamentações com
muitas restrições, e que também cuidavam dos Referências bibliográficas
exames dos oficiais, da padronização de preços
dos serviços para um determinado ofício, além da ASSIS, Dilberto Raimundo Araújo de. O gradil de
tentativa de se organizar as profissões por ferro em Salvador no século XIX. (Dissertação
arruamento. Para os serralheiros, por exemplo, as de Mestrado apresentada ao PPG-MAV-EBAUFBA)
Posturas Municipais descreviam as peças que Salvador-Ba. 2003. 235 p. il.
poderiam ser por eles confeccionadas, e como CENTRO DE ESTUDOS DA ARQUITETURA NA
deveriam seguir o valor padrão estipulado para o BAHIA / FUNDAÇÃO GREGÓRIO DE MATTOS.
mercado local. (FLEXOR: op. cit: 53). Evolução Física da cidade de Salvador. 1549-
1800 Salvador: 1998. 184 p.
Apesar das regulamentações oficiais das FERREIRA-ALVES, Natália Marinho. A arte da
profissões, estabelecidas para os oficiais talha no porto na época barroca. Porto: Arquivo
mecânicos pela Câmara Municipal, sabia-se da Histórico - Câmara Municipal do Porto. 1989. V. I
existência de alguns litígios e de certas atitudes 330 p.
maliciosas por parte de alguns oficiais no intuito FLEXOR, Maria Helena Occhi. Oficiais mecânicos
de subornar os regimentos. Esses indesejados na cidade de Salvador. Salvador: Prefeitura
acontecimentos obrigaram a Câmara a adotar Municipal de Salvador / Departamento de Cultura /
“acrescentamentos” às Posturas, principalmente ao Museu da Cidade, 1974 90 p.
que diz respeito às regulamentações dos exames ________.Oficiais mecânicos e a vida quotidiana
dos oficiais quando estes desejassem obter no Brasil. “Oceanos”. Comissão Nacional para as
licenças para a abertura de suas tendas. Ainda Comemorações dos Descobrimentos Portugueses,
assim, os oficiais ferreiros, juntamente com os nº 42 - Abril/Junho 2000. 169 p. il.
serralheiros unidos na mesma irmandade, FRANÇA, José Augusto. Lisboa Pombalina e o
mantiveram-se fiéis ao cumprimento de suas iluminismo. 2ª ed. revista e aumentada. Lisboa:
obrigações dentro das leis (FLEXOR: op. cit: 33 e Bertrand, 1977. 388 p. il.
54). LEITE, Serafim. Artes e Ofícios dos Jesuítas no
Brasil (1549-1760). Lisboa: Bratéria, 1953. 324 p.
As várias alternâncias econômicas de expansão MATTOSO, Katia. Bahia: Século XIX, uma
e retração comercial em Salvador no século XIX, província no Império. Rio de Janeiro: Nova
identificadas por Mattoso (1992:457), e os Fronteira 1992. 747 p.
resultados das lutas abolicionistas, aumentando OTT, Carlos. Atividade artística nas igrejas do
o número de homens livres, muito contribuíram Pilar e de Santana da cidade do Salvador.
para o recrudescimento da pobreza em Salvador. Salvador: FFCH/Centro Editorial e didático da
Neste contexto, a prática da formação oficinal UFBA, Vol. I. 1979 393 p. il.
pelo sistema de mestres e aprendizes ainda se SILVA, Geraldo Gomes da. Arquitetura do Ferro
fez presente naquele século, e era vista como no Brasil. 2 ed., São Paulo: Nobel, 1988. 248 p.
uma alternativa para se garantir alguma atividade. il.
SUBES, Raymond. Les arts décoratifs - La
As observações a respeito da produção Ferronerie d’art - Du XIe. Siècle. Au XIXe siècle
significativa de grades de ferro na Bahia Paris: Flamarion, 1928. 97 p. il.
oitocentista, nos mostraram que as TAVARES, Luís Henrique Dias. História da Bahia.
transformações acontecidas na sociedade São Paulo: UNESP: Salvador: EDUFBA, 2001. 542
ocorreram com o advento do Neoclassicismo p. il.
quando os artista e artífices estudavam, copiavam
e praticavam suas formas. Inicialmente se Notas
constituíram em cópias e padrões importados ,
1
reveladoras da estética vigente na Europa, para Mestre em Artes Visuais – PPGMAV – EBAUFBA,
professor da EBADE - Escola Bahiana de Arte e
só depois apresentarem estilo próprio, isso
Decoração – ilberascis@yahoo.com.br
graças às constantes observâncias ao ensino 2
Correspondências Recebidas – Provedoria
oficinal que se manteve até o século XX. Os (Documentos avulsos 1855) ASCMB.
resultados das análises que empreendemos, 3
Antigo seminário de São Damaso, Rua do Bispo -
comprovam que, em razão da profusão de Centro; Palácio Arquiepiscopal, Sé - Centro; Lateral
detalhes, que assumiam um cunho decorativo, a da Igreja da Santa Casa de Misericórdia, Sé - Centro;
serralharia foi uma manifestação constante e Casa dos 7 Candeeiros, Rua São Francisco - Centro e

143
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

5
Solar do Ferrão Rua Gregório de Matos, Pelourinho - Esta citação aplicava-se ao caso português. Como as
Centro. estruturas do ensino oficinal no Brasil baseavam-se nos
4
Técnica considerada como paramédica, pela qual o moldes lusitanos, é provável que entre nós seguiu-se o
praticante fazia pequenos cortes em determinadas mesmo sistema.
6
partes do corpo humano. Acreditava-se que, com essa Relatório apresentado à Mesa e Junta, por ocasião da
prática, haveria renovação e fortificação do sangue, além Posse do Barão de Guahy - Livro de Atas da Mesa (1884-
do expurgo das doenças. Segundo o viajante Wetherel 1891), f. 37. ASCMB.
7
naquela época era prática comum quando ele cita: “ Livro de contratos alterações e distratos e ss/aa 1.016-
Sangria - pequenos cortes de navalha nas costas do 1.048. ano 1891. documento 01 AJCB.
doente sobre as quais colocam-se pequenos cornos
vendando-lhes para que aconteça a sucção, operação
que dura cerca de 10 min.” (WETHEREL, 1972:17).

144
Oficialmente os trabalhadores manuais, ou oficiais
mecânicos, estavam sujeitos à regulamentação e
fiscalização da Câmara. Com a reforma do Senado
da Câmara, a 1º de outubro de 1828, e a divisão
dos poderes entre a Intendência (executivo) e a
Câmara (legislativo) municipais1, a administração
da cidade foi bastante modificada. Embora só
Salvador tenha replicado o modelo europeu das
guildas, entre 1641 a 1713 (FLEXOR, 1974:13),
quando, a pedido dos próprios vereadores, a
representação dos trabalhadores foi retirada das
sessões da Câmara, na prática, o modelo daquelas
organizações continuou a ser seguido até a referida
reforma, provocada pela Independência do Brasil.

Não quer dizer que, de imediato se implantaram


as novas normas, especialmente quanto à
possibilidade dos artesãos e artífices trabalharem
livremente, a não ser se submetendo às normas
de licença e de fiscalização. Pelos anos de 1830
até 1833, encontram-se, ainda, nos livros da
Câmara, registros de documentos e pagamentos
exigíveis anteriores à reforma. E, na prática, até
que novas instituições e processos de trabalho
revolucionassem o mundo Ocidental, os artesãos
e artífices, ou oficiais mecânicos, continuaram a
proceder exatamente da mesma forma, em
de oficial mecânico a operário ou artista: o liceu especial, conservando a mesma hierarquia de
de artes e ofícios e a academia de belas artes da qualificação anterior, como servente, aprendiz,
bahia oficial e mestre 2. A aprendizagem fazia-se nas
oficinas dos mestres, ou nos canteiros e obras, e
maria helena ochi flexor na prática.

Na primeira metade desse século, a pintura e a


escultura ainda eram feitas nos moldes das guildas
medievais. Embora, desde o século XVI, os artistas
não dependessem do controle administrativo das
Câmaras 3 , como acontecia com os oficiais
mecânicos, os “ateliers” tinham a mesma estrutura
e funcionamento das tendas ou oficinas dos
artesãos. Estampas e obras de mestres serviam
de modelos, como era a prática, visto que a
maestria só era alcançada quando se copiava, o
mais perfeitamente possível, a obra de um grande
mestre 4. A prática medieval européia uniu-se à
prática barroca brasileira sem hiato.

A pintura dos artistas do século XIX continuou a


reproduzir os modelos da segunda metade do
século XVIII, tanto nos tetos, quanto nos painéis,
onde o ilusionismo, através da perspectiva com um,
dois ou mais pontos de fuga continuava. Os temas
das pinturas e das esculturas, por terem como
cliente a Igreja, eram bíblicos ou da tradição da
vida dos santos, reproduzindo composições
européias. A teatralidade das cenas se amenizava,
sem, no entanto, deixar de ter a profundidade ditada
pelo claro-escuro. A técnica e a policromia eram
as mesmas do setecentos, mudando-se apenas os

145
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

motivos, não faltando as molduras barroco-rococós temas que se distanciavam dos bíblicos e religiosos
como complemento decorativo. Cabia aos pintores, em geral.
também, a encarnação e pintura da imaginária,
pinturas internas de oratórios, caixas, arcas e Essas, como outras, iniciativas eram isoladas. Em
douramentos. Os escultores, da mesma forma, 1841, Paul Geslin, pintor de história, da Academia
exerciam funções outras, além de executar as de Paris, anunciava lições de pintura e desenho,
chamadas obras primas, incluindo restauração ou com a utilização de método fácil para principiantes,
modernização de imagens. segundo informações de Manoel Querino (1911:
104). O mesmo autor dá notícias de que, no ano
Só pelos anos 1830-1840, as influências de 1845, existia, na Praça de Palácio, um
neoclássicas se fizeram sentir nos templos estabelecimento de Belas Artes, pertencente a Luiz
religiosos, quando se começou a promover Antônio Dias, onde se ensinava ... “um sistema
reformas de seus interiores ou a mandar completo de ceroplastia, ou seja, imitar ao natural,
modernizar as imagens, procurando tirar-lhes o com a máxima semelhança, qualquer objeto;
volume e o movimento do período barroco. desenho e pintura oriental e mais doze ramos
diferentes”.
Atingida por uns poucos reflexos do liberalismo, e
das mudanças técnico-científicas européias, a Uma década depois, em 1856, Antônio José Alves,
Bahia e seus habitantes viram-se numa situação no edifício onde funcionava uma Academia de
intermediária, procurando adaptar a antiga forma Belas Artes, então residência do Conselheiro
de trabalho à “era industrial”. Esse fato trouxe, de Jonathas Abbott, e um grupo de homens de letras
um lado, modificações nas relações de trabalho, fundou a Sociedade de Belas Artes, com o “objetivo
entre os operários e os antigos oficiais mecânicos, de despertar o gosto pelas manifestações literárias,
que passaram a se unir para trabalharem por elevando moralmente a classe dos artistas e, ainda
empreitada e, em conjunto, participarem das dando mais oportunidade, oferecendo exposições
concorrências públicas, tanto nos canteiros de anuais” ... “Mais tarde, a Sociedade de Belas Artes
obras civis, quanto religiosos. Foi assim que os convidou as pessoas que quisessem vender
baianos marcaram a passagem do trabalho quadros, esboços, desenhos, como gravuras ou
artesanal, manufaturado para, inicialmente, o semi- outras quaisquer peças de arte, para organização
industrial. da sua biblioteca” (Id.: 105, 106), bem como
promoveu concursos de pintura histórica,
Essa passagem de uma forma de trabalho para a principalmente em homenagem ao 2 de Julho5.
outra demoraria alguns anos, embora já começasse
a ter indícios de inovação no início do oitocentos. Antes disso, a Assembléia Provincial, pelo que
A primeira forma de ensino, fora dos “ateliers”, consta, chegou a votar crédito para a construção
oficinas, tendas ou obra de artistas e artesãos, foi de um Palácio de Belas-Artes e, entre 1841 e 1870,
na área do desenho. As aulas públicas de desenho a Bahia já enviava alguns artistas para se
iniciaram-se em 1813, nas dependências do aperfeiçoar na Europa, independentemente de
Convento de São Francisco, tendo como professor instituições oficiais ou particulares. Francisco
e diretor Antônio da Silva Lopes, português que, Rodrigues Nunes, que pertencia à Sociedade de
segundo Manoel Querino, era deficiente como Belas-Artes, e ensinara desenho nas aulas
ensinante, devido à morosidade do processo que públicas, estudou pintura, Francisco Moniz Barreto
adotava. O desenho duma cabeça de tamanho foi estudar música e pintura e Francisco de Azevedo
natural poderia ocupar um aluno durante seis Monteiro Caminhoá arquitetura civil, entre outros
meses. Mesmo assim, alguns desenhistas (Id.: 107, 108).
concluíram o curso e, entre eles, Fortunado
Cândido da Costa Dormundo, que “como copista, Por outro lado, já em 1864, Antônio Álvares da Silva
imitava com a pena qualquer gravura” (apud a tinha apresentado Projeto de Lei para criar um Liceu
OLIVEIRA, 1970: 12). Esse professor ministrou de Artes e Ofícios (Id.: 110), mas só em 1871,
aulas até 1820 e, no ano seguinte, foi nomeado, artistas e operários, julgando estreitos os moldes
lente substituto da cadeira, o artista Antônio da Sociedade Montepio dos Artífices6 e a Sociedade
Joaquim Franco Velasco, considerado bom Beneficiente Montepio dos Artistas 7, desejando
professor e cuja atuação prolongou-se até 1833, ampliar seus horizontes, cogitaram os meios para
época em que o curso passou para a orientação a fundação de um estabelecimento de ensino
de José Rodrigues Nunes, até 1860 e, profissional, teórico e prático que, ao mesmo
posteriormente, para o seu filho, Francisco tempo, fosse uma instituição de beneficência (Id.:
Rodrigues Nunes (OLIVEIRA, 1970: 12). Franco 112). A visita de D. Pedro II à Bahia, em 1859, teria
Velasco tinha grande habilidade para retratos e para

146
O Liceu de Artes e Ofícios e a Academia de Belas Artes da Bahia

sido fundamental para a criação do Liceu de Artes foram fatores que não permitiram, de um lado, o
e Ofícios, que só se efetivou em 1872. conhecimento instantâneo do que se passava em
matéria de criações artísticas novas em outros
O Liceu mantinha aulas e oficinas de primeiras centros urbanos e, de outro, para que novos estilos
letras, aritmética, álgebra, geometria e não encontrassem campo próprio para sua
trigonometria; desenho de figura e ornato, desenho instalação imediata.
industrial; geografia e história universal para ambos
os sexos, piano, canto para meninas, orquestra e No Liceu de Artes e Ofícios, além do conjunto de
canto para meninos; inglês teórico e prático; curso matérias previstas e cultura musical, promoviam-
noturno de primeiras letras para adultos; francês se exposições anuais dos trabalhos dos alunos,
teórico e prático; português e música vocal e congregando, também, os candidatos às
instrumental. As oficinas eram de escultura, exposições nacionais e internacionais. Nas
encadernação, marcenaria, douramento e pintura exposições, podiam-se ver, além dos trabalhos
decorativa 8 . As aulas dividiam-se em letras, específicos pertinentes ao Liceu, quadros a óleo e
desenho, gramática, filosofia e francês, como crayon, esculturas, tapeçarias, chapéus etc. Da
formação geral, somada às oficinas. As primeiras exposição de 1888 participaram, por exemplo, 500
oficinas a funcionar foram as de encadernação e expositores com mais de dois mil objetos. Em 1898
escultura. Criaram-se posteriormente as de contava com 2.216 associados e o Estado provia
marcenaria e tipografia. as suas receitas com mais de 50% do total
arrecadado. Toda essa organização fez aparecer,
No mesmo ano de 1872, o Diretor Geral da em 1890, o jornal A Verdade, com características
Instrução Pública do Governo Provincial, republicanas.
desembargador João Antônio de Araújo Freitas
Henriques, em Relatório, dava conta da existência Nessa segunda metade do século XIX também
das cadeiras de música e desenho no Liceu começaram a se implantar algumas indústrias em
Provincial, voltado ao ensino de 2º grau, porém sem Salvador, sobretudo na região da Península de
fazer parte do curso regular, salientando que “seria Itapagipe que, até os anos de 1980 seria, por assim
fácil a criação de um modesto Instituto de Belas dizer, o lócus do parque industrial da cidade. Isso
Artes, aumentando-se uma cadeira de Escultura”, só foi possível, em parte, graças aos novos meios
concluindo, no entanto que, se essa idéia não fosse de transporte que se instalaram, mais uma vez
aprovada, as duas cadeiras deveriam passar para devidos aos ingleses e franceses, especialmente
a Escola Normal. O Liceu Provincial possuía, o bonde, que alargou as fronteiras da capital,
também, uma galeria de pintura – galeria Jonathas quanto do trem que começou a ligar a capital as
Abbott9 – que, segundo o mesmo Diretor, “não tem cidades interioranas, sem falar no transporte
sido visitada, como deveria ser, pois é importante, vertical ou inclinado.
e contém quadros preciosos” (FALLA, 1872)10. Em
relação à Escola Normal, dizia-se que o ensino de Por outro lado, foi um período em que a classe
desenho de imitação, além de prestar serviços média começou a atingir o poder e foi quando o
outros, “forma o gosto e desenvolve o sentimento bacharel em direito cedeu lugar aos outros
do belo” (Id, 1881.:30), bem dentro da ideologia profissionais liberais e comerciantes nesse poder.
classicista. Todos os colégios, na segunda metade Estes, voltados para novas pesquisas e tecnologias
do século XIX, ofereciam aulas de dança, música inovaram, também, o ambiente criando instituições
e desenho para os meninos e, ainda, aulas de beneficientes, abolicionistas e culturais. Como
prendas domésticas para as meninas. políticos, transitavam nas altas esferas
soteropolitanas, bem como nas da Corte do Rio de
As instituições artísticas foram se multiplicando, Janeiro. Foram eles, sobretudo, os idealizadores
inclusive por influências inglesa e francesa. Nos e portadores das inovações introduzidas na Bahia
meados de 1877 se tem noticias, também, de um na segunda metade do século XIX11.
Instituto Artístico, sob a direção de Barbosa Nunes,
cujas aulas podiam ser freqüentadas pelos Nesse contexto, Liceu de Artes e Ofícios tinha como
associados e seus filhos (DIÁRIO, 1877: 2). Tudo objetivo principal qualificar operários para o novo
isto se passava na capital da Província da Bahia contexto político e para o mercado de trabalho que
onde, por falta de rotas de comunicação interna, e se descortinava. Seu aparecimento se deu
com os grandes centros culturais, a população justamente no período em que se iniciava o
diminuta, a migração de intelectuais para o Sul do processo de diminuição da mão-de-obra escrava,
Pais, e para a Europa, a quase inexistência de provocando a passagem do antigo regime de
instituições culturais oficiais e oficiosas; a falta de trabalho, para o trabalho livre. Destinava-se, por
desenvolvimento industrial, técnico e científico,

147
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

isso mesmo, aos filhos dos operários que fossem estabelecimento a funcionar em um edifício, por
associados. concessão da Presidência da Província, de 1880,
“prestando as classes pobres relevantes serviços”
Ajudaram muito as ditas aulas noturnas, abertas à (FALLA, 1886: 33)16.
população, desde que resguardassem as
“condições morais”. Nasceu como sociedade, com De imediato trataram de preencher os lugares de
subsídio estatal e apoio da população através de professores. Em janeiro somavam-se, aqueles
doações. Voltava-se para o ensino prático e teórico, professores fundadores, Carlos Celso de Moraes
visando uma formação para o trabalho nas oficinas, e o farmacêutico Amaro de Lellis Piedade, o
coadjuvada, como se viu, por uma formação primeiro para lecionar matemática e este para a
humanística12. cadeira de estética e história das belas artes (ATAS,
14 jan. 1878, fl. 4), Francisco Barbosa de Araújo17,
O Liceu de Artes e Ofícios seguia, ainda, as Eduardo Dotto, indicado para aritmética, álgebra,
características mutualistas das irmandades ciências físicas e naturais.
setecentistas, reforçando a ideologia de
ressuscitamento das guildas medievais, dando A criação do Liceu de Artes e Ofícios e da Academia
assistência, além da de formação profissional, à de Belas Artes foi reflexo da separação que se
sobrevivência dos sócios e seus familiares. Foi iniciou entre arte e indústria, entre artista e operário,
criada pelos próprios operários, ou artistas e entre neoclassicistas e os neomedievalistas e
artífices descendentes ou remanescentes do antigo “ambientalistas” da Grã-Bretanha e da França.
sistema dos ofícios mecânicos, como João Tanto a arte oficial na corte de Napoleão,
Francisco Romão, cujo pai foi um ativo pintor, implantada na Academie des Beaux Arts, na École
Francisco da Silva Romão, que chegou, inclusive, des Arts Décoratives, de Paris, quanto o
à vice-presidência da Associação. Recebeu a maior movimento Arts and Crafts, da Inglaterra, tiveram
adesão, por parte dos artífices, artistas, operários, reflexos na Bahia e no Brasil 18 . Foram esses
a ponto da Academia de Belas Artes se ver movimentos, melhor consolidados, que
diminuída pelo impacto causado pela atuação do influenciaram nas práticas coletivas, na formação
Liceu, e que contava, no seu primeiro ano de das sociedades e montepios e na reabilitação do
existência com 178 sócios, dos quais a grande classicismo e do gótico, ao lado de toda uma atitude
maioria era formada por artesãos e operários. de preservacionismo e reconstituição da natureza,
que foi muito bem retratada pelos prerafaelistas
Iniciou-se, como não poderia ser diferente, no seio ingleses.
da Sociedade Montepio dos Artistas, passando,
posteriormente para um prédio na rua dos Criada por iniciativa particular daquele grupo de
Mercadores, atual rua Chile. Dois anos depois cidadãos, a Academia tinha como fim o ensino,
adquiriu o edifício, conhecido como Paço do teórico e pratico, propagar e aperfeiçoar os ramos
Saldanha, com campanhas de arrecadação de de estudos das belas artes, habilitando os alunos
fundos. O século XX iniciaria o processo de para o exercício das profissões de pintor, escultor,
decadência da instituição, quando ela deixou de arquiteto, empreiteiro e desenhista (VIANNA, 1893:
ser mutualista para se transformar em instituição 251). Regendo-se por seus estatutos (DO,
de educação profissional formal. 1923:497), os cursos dessas profissões se
distribuíam por três seções principais: pintura,
A Academia de Belas Artes da Bahia só apareceu escultura e arquitetura, e uma anexa, a de música
em 1877, sessenta e um anos depois da Imperial (VIANNA, 1893: 251; QUERINO, 1911: 120).
Academia de Belas Artes do Rio de Janeiro. Esta
foi fruto da dissidência entre professores do Liceu Na seção de arquitetura existiam três cursos
de Artes e Ofícios, como conseqüência a uma básicos: um para arquitetos, outro para
discussão, ainda não muito esclarecida13, O pintor empreiteiros e um outro, ainda, para desenhistas,
espanhol, natural de Valência, Miguel Navarro y tendo este por fim preparar indivíduos para as
Cañizares retirou-se do Liceu 14 , levando seus diversas profissões, como carpinteiros,
alunos15 e, auxiliado pelo pintor João Francisco marceneiros, ferreiros, entalhadores, marmoristas,
Lopes Rodrigues, pelo engenheiro José Nivaldo canteiros, pedreiros, pintores de casa etc.
Allioni, pelo médico Virgílio Clímaco Damásio, o (RELATÓRIO, 1882: 59). Como se verifica,
professor primário Austricliano Ferreira Coelho, mantinha cursos de atividades que se classificariam
fundou a Academia de Belas Artes (DO, 1923: 497). entre os ofícios mecânicos, portanto, caberiam
Em 17 de dezembro do citado ano, durante o mais ao Liceu de Artes e Ofícios.
governo do desembargador Henrique Pereira de
Lucena, futuro Barão de Lucena, começou esse

148
O Liceu de Artes e Ofícios e a Academia de Belas Artes da Bahia

Além desses cursos regulares funcionavam, Congregação. Assim, com o tempo foram
intermitentemente, outros cursos, além da contratados vários professores, entre eles alguns
possibilidade dos professores poderem admitir seus ex-alunos que, inicialmente funcionavam como
alunos particulares. Datam da fase em que o ajudantes para depois serem efetivados.
trabalho dos professores era gratuito, os cursos
especiais de desenho e pintura para senhoras, sob De início, o trabalho de vários desses professores
a responsabilidade de João Francisco Lopes foi gratuito. Aos poucos começaram a receber
Rodrigues e Miguel Cañizares (ATAS, 1 abr. 1878, vencimentos, ainda bastante modestos, não muito
fl. 12, 13). Da mesma forma João Francisco Lopes diferentes daqueles do porteiro da Academia.
Rodrigues Filho e Carlos Carvalho se propunham Posteriormente, outros, ainda, se ofereceram e
a criar uma aula de desenho noturna, sob a direção começaram a trabalhar gratuitamente, porém, isso
de ambos (Id, 22 abr. 1882) etc. trouxe vários problemas o que os levou à proibição
de aceitar novos professores nessa condição.
A administração era feita pelo corpo docente,
constituído em congregação, presidida por um Desde a sua fundação, a Academia passou por
diretor (FALLA, 1880: 16). Cañizares, enquanto altos e baixos, financeira e administrativamente.
diretor, propôs que fossem permanentes os cargos Os professores, não só pensavam em pedir auxilio
de presidente e vice-presidente da Academia, ao governo quanto, por várias vezes, deixaram de
“salvo os casos de renúncia voluntária com direito se reunir em congregação por períodos grandes
a título de honorário com aprovação da por terem que se ocupar em outro trabalho. O
congregação, e os casos de procedimento diretor dizia, comparando a Academia à outra
censurável serão exonerados por votos pela instituição, instalada pouco antes, “lamentar a
Congregação” (ATAS, 12 abr. 1880, fl. 36). O cargo pouca animação deste estabelecimento” e
de diretor também se tornou efetivo. Os demais chamava a atenção da Congregação para a
funcionários ocupavam cargos eletivos, cuja animação em que se achava o Liceu de Artes e
escolha se efetuava anualmente: vice-diretor, Ofícios, pedindo uma comissão de sindicância para
secretário, adjunto de secretário, tesoureiro e saber de onde vinha a tal animação do Liceu.
bibliotecário, sendo permitida a reeleição. Em (ATAS, 28 jul. 1884). Allioni propôs, por seu turno,
conseqüência, o diretor, inspirado nos usos das a criação de “diversos cursos anexos a Academia
academias européias propôs a criação do lugar de com o fim de ver se o aumento do número de
presidente da Academia e sugeriu que fosse matriculas dava mais impulso ao estabelecimento”
nomeado o Dr. Virgilio Damásio, o que foi aceito, (ATAS, 25 abr. 1884; 8 jul. 1889, fl. 121).
tendo o mesmo direito a assistir as reuniões de Pretendiam, também, constituir uma instituição de
congregação. Também foi aprovado o “diploma de beneficência, chegando a estabelecer as regras, o
benfeitor” e que “fosse tirado a óleo o seu retrato que tornaria a Academia mais próxima dos
para ser colocado em uma das salas” da Academia propósitos do Liceu de Artes e Ofícios (ATAS, 3
(ATAS, 23 abr, 1978, fl.10, 11), um costume que se abr. 1889)21. Ficou apenas na proposta.
divulgou largamente nos finais do XIX e princípios
do XX. Tentaram recorrer ao Barão de Guahy, Joaquim
Elysio Pereira Marinho, para que tomasse a si o
Cañizares foi, portanto, seu primeiro diretor 19. encargo de pedir uma subvenção ao Governo Geral
Licenciando-se, por tempo indeterminado em (ATAS, 3 abr. 1889, fl. 118; 6 mai. 1889, fl.120), e
188220, foi substituído por João Francisco Lopes ao Ministro da Instrução Pública, Correios e
Rodrigues, pai, até sua morte, em 1893, e depois Telégrafos Benjamin Constant Botelho de
por Braz do Amaral e Eduardo Dotto, nesse Magalhães (Id, 22 mai. 1890, fl.125). Chegou-se a
princípio de vida da Academia. O engenheiro José um estado que Braz do Amaral, “falando dos meios
Allioni, igualmente, ocupou por muito tempo o cargo em geral de melhorar o cofre da Academia”, “dizia
de tesoureiro da instituição. Qualquer dos membros que se soubesse que não resultaria a queda da
podia ser eleito, incluindo os estrangeiros (ATAS, Academia”, lembrando um pouco Pardal Mallet,
9 set. 1895, fl. 168). Todas as tarefas, de interesse faria “destituí-la completamente para fundá-la de
para a coletividade docente e discente, eram novo”. Reconhecia a necessidade de reformar os
executadas por comissões, eleitas pelos pares da estatutos para criar uma sociedade que, com a
Congregação. Normalmente os professores eram Congregação, sustentasse a Academia “cujo peso
contratados, ou por indicação dos colegas, ou se já é demasiado para os seus professores atuais
ofereciam, através de requerimento, com aos quais não pode ser agradável nem digno
documentação comprobatória de capacitação. Os dirigirem-na na vida inglória e enfraquecida que ela
pedidos ou recomendações eram julgados pela vai levando” (ATAS, 27 jul. 1887, fl. 104).

149
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

Entrementes, os limites entre as ações do Liceu do orçamento da receita, o que não podeis
de Artes e Ofícios e a Academia de Belas Artes fazer é deixar no esquecimento, como tem
eram confusos ao ponto da própria Presidência da estado até aqui, a instrução e educação técnica
Província ter proposto a junção das duas dos nossos operários”.
instituições, inclusive porque o então diretor e
fundador da Academia, Cañizares, estava Os professores Braz do Amaral e José Allioni foram
passando por dificuldades financeiras 22 . O encarregados de contatar o Diretor Geral da
Presidente da Província, Francisco Inácio Instrução Pública, Sátiro de Oliveira Dias, os
Marcondes Homem de Melo, o Barão Homem de membros da comissão de reforma e instrução,
Melo, chegou a chamá-lo ao palácio propondo a sobre o programa da reforma da Academia (ATAS,
anexação da Academia ao Liceu, garantindo-lhe 4 ago 1891, fl. 130, 131). Iniciaram-se, portanto,
um bom ordenado, o que não foi aceito (ATAS, 22 os trabalhos discutindo-se os estatutos e os
jul. 1878, fl. 15-16). Essa discussão prolongou-se capítulos do programa de reforma relativos ao
até 1890, já na República, (Id., 1890, fl.126, 127), “curso geral e especial” (ATAS, 24 set. 1894, fl.153).
quando, o então presidente da Academia, Virgílio A 5 de dezembro de 1894 fazia-se a discussão, e
Damásio, assumiu interinamente o Governo do última leitura, dos estatutos (Id., fl. 158) que, com
Estado, na qualidade de vice-governador provisório, a aprovação da Congregação, entrava em vigor23.
e propôs que a Academia entrasse em acordo com
o Liceu que ele, como maior autoridade, José Allioni dizia, então, que se devia modificar o
sancionaria o que fosse proposto (Id., fl.128). Ainda programa de estudos da Academia e propunha o
em 1891, os membros da comissão de reforma da curso completo, que seria dividido em curso
instrução do Estado, declararam ter a intenção de, preparatório e curso especial. O primeiro desses
na reforma, autorizar ao Governador entrar em cursos compreenderia as aulas elementares,
acordo com as diretorias da Academia de Belas desenho geométrico até perspectiva, - desenho de
Artes e do Liceu de Artes e Ofícios sobre o ensino ornamentos, folhagens, etc. -, e desenho de figura.
técnico e profissional. Nesse sentido, para Essas aulas seriam obrigatórias e seguidas por
diferenciar-se mais do Liceu, a Congregação dividiu todos os alunos, qualquer que fosse a orientação
o curso de história de belas artes e estética em que desejasse dar a sua carreira. No fim, os alunos
dois: curso de estética, estudo geral das artes e seriam obrigados a passar por um exame de
suas aplicações e história propriamente das belas- suficiência, antes de cursarem as aulas especiais,
artes (Id., 6 ago. 1891, fl.131). sem o que não poderiam ser aceitos. Nos cursos
especiais haveria toda independência. O aluno
Proclamada a República, iniciou-se o real processo seguiria o curso que mais lhe agradasse, conforme
de reforma, em conseqüência da Reforma do a idéia ou carreira que quisesse seguir: arquitetura,
Ensino Secundário e Superior da República, em pintura, escultura ou os ofícios que deles fossem
1890, realizada no Ministério de Justiça, Negócios dependentes, como artes mecânicas e liberais,
do Interior, Instrução Pública etc, conhecida como pintor de retratos, paisagem, retocador, litógrafo e,
Reforma Benjamin Constant. Dentro do programa enfim, a classe dos entalhadores, modeladores,
de reforma da Academia, Braz do Amaral consultou, canteiros etc etc. (ATAS, 14 fev. 1890, fl. 124, 125).
por sugestão de Allioni, as opiniões do Diretor da Esse programa já mostrava diferença nas
Instrução Pública, de alguns deputados e concepções estéticas e profissionais do Liceu de
senadores “sendo todas de opinião que a Artes e Ofícios, mas não se distanciaram
congregação da Academia deve fazer desde já a radicalmente.
reforma do seu ensino”.
Além das seções específicas, funcionaria uma
Em 1891, o próprio Governo sugeria, em outra anexa, uma aula primária, na qual se ensinaria
Mensagem dirigida ao Congresso Estadual que caligrafia, leitura, história sagrada, história pátria,
geografia, lições de coisas, elementos de ciências
“o Liceu de Artes e Ofícios e Academia de naturais, desenho e música (VIANNA, 1893: 252).
Belas-Artes, que bons serviços já tem prestado,
e melhores poderão prestar, se forem Com a reforma dos estatutos e dos cursos, Manoel
convertidos em estabelecimentos oficiais, Lopes Rodrigues e José Allioni foram encarregados
recebendo a organização que vossa sabedoria de “apresentar um trabalho organizado” (ATAS, 3
lhes der ou auxiliados por fortes subvenções set. 1894, fl. 152). Assim, pouco depois, Braz do
sendo, neste caso, reorganizados com Amaral, como diretor, apresentou a lista com a
intervenção e fiscalização dos poderes distribuição das cadeiras que deviam formar os
públicos. Nesse sentido fareis o que mais cursos da Academia, segundo a reforma por que
acertado julgardes, tendo em atenção as forças estava passando, indicando os nomes dos

150
O Liceu de Artes e Ofícios e a Academia de Belas Artes da Bahia

professores (ATAS, 21 nov. 1894, fl. 157). Todos metade do telhado do atelier de pintura por um
professores demitiram-se dos cargos anteriores grande caixilho de vidro, a fim de que ficasse com
para assumir os novos encargos. O curso de as condições indispensáveis às aulas de pintura
música continuou a ficar como seção anexa (ATAS, (ATAS, 6 jul. 1895, fl. 163), numa cópia visível do
4 mai. 1895, fl. 162). “atelier” da Academia Imperial, além de outras
adaptações. Parte dos móveis, bastante simples,
Além de mudar estatutos e programas, depois da foi feita pelos alunos. Outros foram doados pelo
Reforma Benjamin Constant, a Academia de Belas governo, como cadeiras, mesas, sem uso no
Artes foi, como a antiga Academia Imperial de Belas Externato Normal de Senhoras (ATAS, 10 jun. 1887,
Artes, denominada Escola de Belas Artes da Bahia, fl. 101v), sendo aos poucos suprida de maneiras
nos inícios de 1895 (ATAS, 7 jan. 1895, fl. 159)24. as mais diversas possíveis. O professor Manuel
Lopes Rodrigues, pensionista em Paris,
Essa reforma alijou alguns dos antigos professores. encarregou-se de comprar mobília e material de
Pelo novo regimento, aqueles professores que trabalho na França, pedindo, então, 10% de
estavam licenciados foram considerados membros pagamento pelo trabalho (Id., 29 out. 1894, fl. 155;
honorários, o que causou grandes transtornos, não 10 jul. 1895, fl. 164).
só aos atingidos, quanto à própria Escola, como
foi o caso de João Francisco Lopes Rodrigues Apesar da modéstia, o valor da Academia já era
Filho. Didaticamente, o fato mais importante que reconhecido nos dez primeiros anos de sua
merece indicação é que só a partir dessa reforma existência. O Presidente da Província, em exercício
passou-se a utilizar “modelo vivo”25. em 1888, desembargador Aurélio Ferreira
Espinheira, solicitava os objetos, adquiridos pela
Quando da aquisição do solar Jonathas Abbott, no Academia, para a exposição sulamericana,
caminho Novo do Gravatá, ou rua 28 de Dezembro, promovida pela Sociedade de Geografia do Rio de
o Governo, que o comprara para as escolas do Janeiro, quando a convidara para tratar da
Curato da Sé, cedeu uma parte do edifício – o “representação da Província da Bahia na Exposição
pavimento superior – para a Academia que ali se de Paris”, no ano seguinte (ATAS, 13 jun. 1888, fl.
instalou muito precariamente (FALLA, 1878: 41). 110, 111).
O Presidente da Província, Antonio de Araújo de
Aragão Bulcão, o Barão de São Francisco, chegou Para os fins do século, para melhorar o ensino,
a pedir que desocupassem o prédio. Como estava dizia Braz do Amaral, que o Governador já lhe
anunciada a 1ª exposição dos trabalhos dos alunos, declarara “que desejando aproveitar artistas
depois de muitas ponderações feitas pelo secretário nacionais na reforma que vai fazer no ensino”,
da Academia, as diversas conferências com sua achava conveniente chamá-los para esta cidade.
excelência, deram resultados, marcando, inclusive, Nesse sentido foi convidado Horácio Hora que,
sua presença na solenidade da inauguração da como Manoel Lopes Rodrigues, estava em Paris.
exposição, músicas para as noites de quintas-feiras Horácio Hora27, no entanto, mandou carta na qual
e domingos, a aprovação da planta de obras, dizia “que a vista dos últimos acontecimentos do
mandada fazer por Henrique Pereira de Lucena, nosso pais e as más noticias que acaba de receber
Barão de Lucena, Presidente da Província seguinte, adia a viagem para mais tarde, aguardando
e que garantia à Academia a sua permanência resposta para o seu governo” (ATAS, 22 jan. 1890,
efetiva na parte superior do edifício (ATAS, 25 jan. fl. 123). Adoeceu, vítima de tuberculose, faleceu e
1879, fl. 27-28). nunca foi para a Bahia.
João Capistrano Bandeira de Melo, enquanto Por insistência de Braz do Amaral, o Governado
Presidente da Província, visitou a Academia, em Manoel Rodrigues Lima pediu à Assembléia
janeiro de 1887, porém deu usufruto das lojas e Estadual autorização para contratar um artista em
sobrelojas ao arrendatário do prédio, Francisco Paris, por conta do Estado. No período, dois artistas
Leôncio Serapião, que se instalara com uma rinha estrangeiros foram contratados, o professor
de luta de “aves domésticas” no quintal (ATAS, 27 francês, de origem russa, Maurice Grün e,
jul. 1887, fl. 102,112). A Academia recebeu reformas posteriormente, o francês Joseph Gabriel Santis.
no prédio, enquanto que, pouco a pouco, foi Maurice Grün veio de Paris, em 1895, para lecionar
conquistando todos os espaços e ali funcionou até modelagem, ornamentação, pintura do natural e
196926. desenho de relevo, ficando até 1899, Gabriel Santis
encarregou-se do ensino de escultura (OLIVEIRA,
Nessa primeira sede foram feitos “ateliers” para 1970: 25). O primeiro não aceitou as novas bases
alunos de pintura, de escultura, salas para aulas do contrato e o segundo não continuou na Escola
de desenho e aulas teóricas. Foi substituída a por falta de verba, dizia José Allioni, em 1923.

151
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

segundo o Diário Oficial, edição especial, “foi esse Presidentes da Província não se desdenhavam de
o período áureo da Escola de Belas Artes” (DO, proteger e animar a cultura artística”..., enquanto
1923:497). ...”no regime republicano, divorciado o poder
público do elemento popular, tem-se refletido nas
A manutenção da Academia provinha de várias artes o lamentável choque do desprezo”.
fontes como recursos especiais, fora o curricular,
cujos alunos pagavam matricula, subvenção Ao ver dos contemporâneos, os meios empregados
estadual (DO, 1923, p. 497), porcentagens para animar o estudo e desenvolver o gosto pelas
provenienes de contratos, por exemplo, com a belas-artes, como se via nos respectivos estatutos
Companhia Lírico-Francesa do Senhor Roger et Cie da Academia, eram, como acontecia na Imperial
e do teatro São João, em 1878 (ATAS, 1 fev. 1878, Academia do Rio de Janeiro, os concursos e
fl. 5), ou o espetáculo no teatro público em exposições anuais e distribuição de prêmios e
concordata com os artistas Aurora e Valle, marcado recompensas aos autores de trabalhos expostos
para o dia 4 de dezembro de 1878 (Id., 19 nov. (RELATÓRIO, 1882: 60). A primeira exposição,
1878, fl. 23), loterias, por ser considerada uma como já foi referido, foi realizada em 1878,
instituição de utilidade pública, esta, porém, só a premiando-se os expositores com medalhas de
partir de 1917, concertos patrocinados pelo ouro, de prata, de bronze, compradas em Paris.
Governador no Palácio, etc. a subvenção inicial, Havia expositores internos e externos e, entre
recebida do Governo, por exemplo, era de outros, nessa primeira exposição, foram premiados
2.000$000 de reis, dividida em parcelas. Era a os presos da penitenciaria com medalha de ouro,
mesma quantia concedida para 3 dias de festejos conferida à oficina de marcenaria (ATAS, 25 jan.
do dia 2 de Julho já referido. O Liceu de Artes e 1879, fl. 27-28), o que mostra os limites confundidos
Ofícios recebia 20:000$000 de réis anuais, o que com as atividades do Liceu e da Academia.
sempre suscitava reclamações dos professores da
Academia. Desde logo foi proposto que das exposições anuais
só participassem “trabalhos propriamente de belas-
Tudo isso era alcançado com grande luta, o que artes ou aqueles, que com elas tivessem relação”.
levou os professores a elegerem benfeitores. As Mas, em 1883, ainda havia julgamento das
principais figuras e benfeitores tiveram seu retrato comissões, com um presidente e mais dois
na galeria da Escola, colocados solenemente. O julgadores, de trabalhos externos de prendas, de
Barão de São Francisco, Antonio de Araújo de mobílias escolares, de fotografia, de desenhos, de
Aragão Bulcão, recebeu o título de protetor da imitação de pedra (ATAS 18 out. 1883, fl. 73-74).
Academia (ATAS, 5 mar. 1880, fl. 33-34). Esses
benfeitores, tanto eram homens públicos, quanto Em 1886 José Allioni propôs se admitissem
os próprios professores. Em 1885, por exemplo, trabalhos de outros ofícios, que não tivessem
foi feita a proposta para feitura28 do retrato de João relação com as belas artes, fazendo uma sessão
Francisco Lopes Rodrigues para ser colocado no a parte para animar a exposição. O professor
salão de honra, sendo encarregado seu filho, Austricliano Coelho, no entanto, ponderou sobre
Manoel Lopes Rodrigues, para ser pendurado com “o mal que pode porvir dessa idéia e fica
cerimônia, com a presença da Congregação e determinado continuar a Academia aceitar somente
alunos (Id., 28 jan. 1884, fl. 77). Em homenagem a obras de arte como até aqui” (ATAS, 15 dez. 1884,
sua memória foi dado o nome de Galeria Lopes fl. 83). Posteriormente essas exposições foram
Rodrigues ao salão de gessos (IDEM, 27 out. 1993, destinadas somente aos alunos da Academia
fl. 143). Foi aprovado, ainda, e entre outros, o (TORRES, 1953:197). A premiação, como a
retrato do professor José Allioni para figurar junto escolha de alunos, seguia quase sempre o gosto
com Lopes Rodrigues, pelos serviços prestados à pessoal dos professores, mas, a partir de 1885, a
Academia (Id., 15 jun. 1892). Senadores, congregação declarou que se deviam premiar, daí
deputados, presidentes da província, políticos em por diante, os trabalhos e não os expositores
geral e professores, e mesmo alunos, tiveram seus (ATAS, 26 jun. 1885, p. 94).
nomes, de alguma forma, perpetuados na
Academia. Para essas ocasiões sempre se formavam duas
comissões, uma de ornamentação do edifício e
Houve quem acusasse o novo regime – a República outra para os convites aos expositores, chegando
– como responsável pelo abandono a que chegou a dividir-se esta em duas, uma para a Cidade Alta
a Escola de Belas Artes. Assim procedeu Manoel e outra para a Baixa. A partir de 1884, os trabalhos
Querino (1913, p. 27-28), ex-aluno fundador da dos alunos passaram a ser julgados com os das
Academia de Belas Artes, quando afirmava, em alunas (ATAS, 15 dez. 1884, fl. 83, 84).
1911, que “no Império, honra é confessar, os

152
O Liceu de Artes e Ofícios e a Academia de Belas Artes da Bahia

Com a reforma dos anos 1890, os prêmios, de direção à École des Arts Décoratives e Ècole
acordo com os novos estatutos, passaram a ser des Beaux Arts, de Paris. Como se sabe, o
pecuniários, como forma de novo incentivo. A século XIX trouxe novas fundações, correções
Escola, a exemplo também de sua congênere do de estatutos das Academias de Belas Artes,
Rio de Janeiro, levou a efeito os concursos de inicio da tendência para transformação em
prêmio de viagem à Europa, sendo enviados a centros de investigação e, também, a
Paris, por três anos, os alunos premiados em concorrência particular sob a forma de
pintura, Archimedes José da Silva e Antonio Claro academias de ensino de pintura, como as
Baptista (DO, 1923: 497). Quando da premiação parisienses de Carrière, Julien, etc. (CHICO,
de Archimedes José da Silva houve grande 1962: 17).
discussão, pois, devido às próprias deficiências da
Academia, o aluno não tinha prestado alguns As viagens sucederam-se periodicamente até as
exames. Disso resultou a proposta de que se quatro primeiras décadas do século XX, quando o
aproveitasse “os estatutos do Rio de Janeiro com classicismo e o neo-classicismo se mantiveram
relação aos compromissos que devem ligar o aluno como modelo da Escola e do gosto de muitos
pensionado à escola fazendo-se naquele baianos. Entretanto, as novidades européias não
regulamento as modificações adaptáveis às deixaram de atingir a Escola. Em 1893, José Allioni
condições da escola” (ATAS, 17 mai. 1897, fl. 24v). fazia ver a “grande utilidade de uma maquina
A comissão encarregada do assunto, mostrava bem fotográfica para a Academia”, ficando encarregado
as obrigações desses pensionistas no período de da compra de um exemplar (ATAS, 10 ago. 1892,
três anos em Paris: fl. 135). Um ano depois, o então diretor, Braz do
Amaral, dizia que o motivo da reunião de
“1º ano – oito estudos dos quais quatro Congregação era para os “colegas assistirem a
academias, estudos feitos no Atelier Julien, primeira experiência da Maquina fotográfica” (Id.,
devendo freqüentar o Curso Noturno da École 24 nov. 1893, fl. 144). Porém, uma proposta de
des Arts Décoratives, onde não terá despesa reforma do curso de desenho, aprovada em 1894,
alguma e onde muito aprenderá desenho, feita pelo professor Oséias Santos, mostrava qual
compreendendo-se que o aluno fará todos os era o emprego da máquina fotográfica nas aulas:
seus esforços para entrar na Escola de Belas “a fotografia entrará no estudo da paisagem ao ar
Artes de Paris, desde sua chegada nesta livre para melhor orientação dos alunos sobre
Cidade. distinção de planos, perspectiva aérea, etc” (ATAS,
2º ano – oito estudos pintados, dos quais 14 fev. 1894, fl. 144, 145).
algumas academias e uma cópia de quadro
notável nos museus do Louvre ou Luxembourg. Alias, mesmo antes da criação da Academia, um
Neste ano porém o aluno deverá ser admitido anúncio do Diário da Bahia, de 1874 (15 jan. 1874,
ou propor-se à admissão da Escola de Belas p. 4), mostrava, inclusive, o uso corrente da
Artes, apresentando certificado do resultado de fotografia como modelo:
seu concurso, que não sendo satisfatório na
primeira inscrição, poderá sê-lo nos outros “Photographia Imperial, Rua Direita de Palácio,
obrigando-se desde sua admissão a freqüentar sobrado 7”
o curso da tarde que é o principal curso desta “Photographie Bombe, imitando esmalte,
Escola. colorido ou não, e retrato a óleo por ‘habilissimo
3º ano – uma cópia de tela importante, cujas artista’, podendo tirar a foto para remeter ao
dimensões mínimas em tela no 80 pintor” (DIÁRIO, 15 jan. 1874: 4).
(1,35x0,95m), um quadro original e os estudos
Mas, os reflexos mais diretos vinham das
que poder, entre eles alguns esbocetos de sua
Academias parisienses e dos usos da Julien.
composição com obrigação de mandar todos
Segundo Oliveira (1970: 26) “Para que os cursos
os anos um trabalho ao salon, sobretudo o
funcionassem a contento, a direção da Escola de
quadro original que tiver de mandar-nos no
Belas Artes, não satisfeita com a importação de
ultimo ano, devendo remeter-nos o documento
professores, manda vir também da Europa”... o
ou carta de admissão ou recusa dos seus
material, ferramentas, utensílios, móveis, etc para
trabalhos no dito salon”29.
completar o aparelhamento do curso de escultura...
A Academia Julien, tanto recebia pensionistas
da Escola Imperial de Belas Artes, quanto a e mais” ...”telas, tubos e caixas de tinta, pincéis,
sua congênere da Bahia. Estava, então dentro frascos de óleo, vernizes papéis – ingres, canson,
do espírito da época, no que diz respeito à arte pincéis pêlo de porco, etc. – caixas de desenho
oficial. Era, portanto, o primeiro passo, em linear,” ... “esquadros, réguas, tês, pranchas, etc.,

153
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

além dos modelos clássicos de gesso que serviriam reclamando-se o prestígio do comércio. “A elle sam
na feitura de exercícios de copias, aos alunos de devidas as grandes massas que ornam as frentes
desenho, pintura, arquitetura e escultura”... e fachadas dos mais soberbos edifícios, os
aquedutos, as ricas mobílias, os utensílios” (apud
Já em abril de 1878 Cañizares, como diretor, FREYRE, v. 1: 275). O desprestígio dos
propôs que se mandasse vir da Europa”objetos “mechanicos” certamente influenciou a sua
modelados em gesso, destinados ao estudo e cópia liberação da Câmara, mas, aos poucos, além de
dos alunos”. Chegaram á Bahia três meses depois trabalhar por empreitada, começaram a ver o
(ATAS, 2 abr. 1878, fl. 6; 22 jul. 1878, fl. 15-16). mercado invadido por produtos importados, feitos
Mais tarde fariam mais encomendas de figuras (Id., em série, semi ou inteiramente industrializados, que
2 ago, 1888, fl. 112; 31 jan. 1889, fl. 116; 4 fev. tomavam seus lugares. Os artistas só substituiriam
1889, fl. 118), além de livros para a biblioteca30. O estilos.
próprio Presidente da Província, João Capistrano
Bandeira de Melo, pediu, espontaneamente, ao A eficiência da ação do Liceu de Artes e Ofícios no
conselheiro Antônio Nicolau Tolentino, Diretor da século XIX ainda necessita de avaliação,
Academia de Belas Artes da Corte, “alguns considerando, sobretudo pensando-se que as
modelos de pintura, escultura e estatuária” para a maiores e mais importantes indústrias da Bahia,
Academia da Bahia (ATAS, 27 jul. 1887, fl. 103). surgidas no mesmo período de sua criação,
Os modelos, constituídos de gessos clássicos estavam ocupadas na tecelagem32, porém, não se
greco-romanos e neoclássicos eram pode deixar de notar a ativa participação da
complementados por gravuras, especialmente entidade, tanto nas feiras nacionais, quanto nas
aquelas imprensas em série em Paris, que traziam internacionais, sediando sempre as exposições
como temas moralistas, alegóricos, históricos que, para a escolha dos participantes.
igualmente, invadiram as residências e igrejas
baianas. O mesmo sistema de cópia dos grandes Por sua vez, viu-se que o neoclassicismo se
mestres, ainda remanescente do renascimento e familiarizou em Salvador tardiamente, e suas
barroco, foi adotado como metodologia da influências se fizeram sentir de diversas maneiras,
Academia e depois Escola de Belas Artes. Para oficial ou particularmente, não só nas residências
tanto, foi tentada, em vão, a transferência para a e nos edifícios religiosos, mas instalando-se na
Academia “da galeria Abbott para por ele fazerem Academia, que lutou nos anos que se seguiram,
os alunos do curso superior seus estudos” (ATAS, com grandes dificuldades até sua incorporação a
23 ago, 1880, fl. 44)31. Universidade da Bahia e, finalmente, se
federalizando, integrando a Universidade Federal
Em 1893, Francisco Vicente Viana (1893: 251) dizia da Bahia. O academicismo marcou, ainda, boa
que parte da vida acadêmica da primeira metade do
século XX da Escola de Belas Artes
“esta sociedade” [...] “possui pequena
biblioteca, grande coleção de estampas e A Escola de Belas Artes herdou o solar Jonathas
gessos, compreendendo modelos de Abbott, doado pelo governo estadual, através da
arquitetura, folhagens, mãos, pés, rostos, Lei no 1187, de 11 maio de 1917. A Galeria Abbott,
cabeças, bustos e estátuas completas, metade entretanto, foi doada ao Museu do Estado – Museu
do tamanho natural. Além disso possui todos de Arte da Bahia – onde se pode observar, ainda
os preparos e instrumentos para o desenho, e hoje, alguns exemplares de cópias de grandes
o número dos alunos que freqüentam, tem sido, mestres restantes –, como Tintoreto, Corregio,
na média, de 150 a 200, sendo no ano de 1892 Carraci, Caravaggio, Dominichino, Guercino, Dolci,
de 162”. Boucher, etc., efetuadas nos séculos XIX, seguindo
a prática da arte de então, por José Antonio da
O neoclassicismo, vigorando nas Escolas de Belas Cunha Couto, Francisco Rodrigues Nunes, José
Artes, a partir do apoio oficial que sempre teve, fez Rodrigues Nunes, Macário José da Rocha, João
com que os artistas se colocassem, como vários Francisco Lopes Rodrigues, Francisco da Silva
filósofos os viam, como deuses, pois criavam Romão entre outros.
“entes” artísticos. Por todo o mundo Ocidental,
entretanto, e a partir de outra corrente Tanto no Liceu de Artes e Ofícios, quanto na Escola
tradicionalista, começou a combater, como no Rio de Belas Artes, durante todo o século XIX e
de Janeiro, em 1822, a distinção entre entrando pelo século seguinte, o mundo europeu,
“mechanicos” e os “liberais”, considerando que seguido pelo americano, serviu de modelo para as
“todas as Artes úteis sam tanto mais nobres quanto criações artísticas e usos de objetos de arte do
mais necessárias para a mantença da sociedade”, cotidiano, como seria normal a um País que, só a

154
O Liceu de Artes e Ofícios e a Academia de Belas Artes da Bahia

partir do segundo quarto do século XX, começaria FALLA com que abrio no dia 1º de Maio de 1880 a
a desenvolver um intenso sentimento nacionalista, 1ª sessão da 23ª Legislatura da Assemblea
hoje já perdido. Legislativa Provincial da Bahia o Exm. Sr. Dr.
Antônio de Araújo de Aragão Bulcão, Presidente
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FALLA com que no dia 1º de Abril de 1881 abrio a
ALLIONI, José. Diário Oficial da Bahia, Salvador, 2ª sessão da 23ª Legislatura da Assemblea
p. 119-123, 1923. (Edição Especial do Centenário Legislativa Provincial da Bahia o Ilm. E Exm. Sr.
1823-1923). Conselheiro João Lustosa da Cunha Paranaguá,
ANAIS FLUMINENSES DE Sciencias, Artes e Presidente da Província. Bahia: Typ. do Diário da
Litteratura, p. 11. cit. por FREYRE, Gilberto. Bahia, 1881.
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DIÁRIO DE NOTÍCIAS, Salvador 10 jan. 1877, p. Provincial da Bahia em 1º de Maio de 1885. Bahia:
1; 22 jun. 1877m, p.2 Typ. do Diário da Bahia, 1885
DO - DIÁRIO OFICIAL DA BAHIA.Edição Especial FALLA com que o Exm. Sr. Conselheiro Theodoro
do Centenário, 1823-1923, Salvador, p. 457,497. Machado Freire Pereira da Silva abrio a 1ª Sessão
FALLA com que o Excellentissimo Senhor da 26ª Legislatura da Assemblea Legislativa
Dezembargador João Antonio de Araújo Freitas Provincial da Bahia em 3 de abril de 1886. Bahia:
Henrique abrio a 1ª Sessão da 19ª Legislatura da Typ. da Gazeta da Bahia, 1886.
Assemblea Provincial da Bahia em 1º de Março de FLEXOR, Maria Helena. Oficiais mecânicos na
1872, Bahia: Typ. do Correio da Bahia, 1872. cidade do Salvador. Salvador: Prefeitura Municipal
FALLA dirigida à Assembléa Provincial da Bahia do Salvador/Departamento de Cultura, 1974.
pelo primeiro vice-presidente Dezembargador João FRANÇA, Acácio. A pintura na Bahia. Bahia:
José d’Almeida Couto no 1º de março de 1873. Imprensa Oficial/Secretaria da Educação e Saúde,
Bahia: Typ. do Correio da Bahia,, 1873. 1944. (Publicação do Museu da Bahia, 4).
FALLA com que o Exm. Sr. Comendador Antonio LICEU DE ARTES E OFÍCIOS DA BAHIA.
Candido da Cruz Machado abriu a 1ª Sessão da Enciclopédia Itau Cultural/Artes Visuais. Acessado
Vigésima Legislatura da Assemblea Legislativa em www.itaucultural.org.br, capturado em 29 dez.
Provincial da Bahia no dia 1º de Março de 1874. 2007.
Bahia: Typ. do Correio da Bahia,, 1874. LIVRO DE ACTAS da Congregação da Academia
FALLA com que abrio a 56ª Legislatura da de Bellas Artes da Bahia, 1878, no 2, 175 fls. ms.
Assemblea Legislativa Provincial da Bahia o Exm. LIVRO DAS ACTAS das Sessões de Congregação
Sr. Des. Henrique Pereira de Lucena, Presidente da Escola de Bellas Artes da Bahia, 1896, no 4, 96
da Província, no dia 1º de Março de 1877. Bahia: fls. ms.
Typ. do Correio da Bahia, 1877. LIVRO DE REGISTRO DE EXAMES da Academia
FALLA com que abrio no dia 1º de Maio de 1878 a de Belas Artes, no 3, 8 fls.ms, (incompleto).
57ª Legislatura da Assemblea Legislativa Provincial MATTOS, W. Apontamentos biográficos dos
da Bahia o Exm. Sr. Conselheiro Barão Homem de pintores; Pinacoteca do Paço Municipal. Salvador:
Mello, Presidente da Província, no dia 1º de Março Manu, 1959.
de 1877. Bahia: Typ. do Diário, 1878. OLIVEIRA, Zélia Maria Povoas de. Desenho-
FALLA com que abrio no dia 1º de Maio de 1879 a ensino-comunidade. Salvador: Estuário, 1970.
1ª sessão da 22ª Legislatura da Assemblea OTT, Carlos. História das artes na cidade do
Legislativa Provincial da Bahia o Exm. Sr. Dr. Salvador. Salvador: Prefeitura Municipal, 1967. p.
Antônio de Araújo de Aragão Bulcão, Presidente 74, 75.
da Província. Bahia: Typ. do Diário da Bahia, 1879.

155
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

PONTUAL, Roberto. Dicionário das Artes TORRES, Octavio. As medalhas premiais da


plásticas no Brasil. Rio de Janeiro, Civilização Academia de Belas artes da Bahia. Arquivos da
Brasileira, 1969. p. 321. Universidade da Bahia, Escola de Belas Artes,
QUERINO, Manuel. As artes na Bahia. Salvador, Salvador, v. 1, p. 43-50, 1953.
Diário da Bahia, 1913, p. 27-28. ________. Resumo histórico da Escola de Belas
________. A Bahia de outr’ora, vultos e factos Artes da Bahia. Arquivos da Universidade da
populares, 2ed. Bahia: Livraria Economica, 1922. Bahia, Escola de Belas Artes, Salvador, v. 1, p.
________. Artistas baianos, indicações 191-215, 1953.
biográficas, 2ed. Bahia; Oficinas da Empresa A TOURINHO, Eduardo (Org.). Autos de correições
Bahia, 1911. do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Prefeitura do
RELATÓRIO apresentado a Assembléia Legislativa Distrito Federal/Diretoria de Estatística e Archivo,
da Bahia pelo Excelentíssimo Sr. Barão de S. 1929, v. 2, p. 94.
Lourenço, Presidente da mesma Província, em 6 VALLADARES, José. A Galeria Abbott; primeira
de maio de 1870, Bahia, Jornal da Bahia, 1870. pinacoteca da Bahia. Salvador: Secretaria da
RELATÓRIO apresentado ao Ilm. e Exm. Sr. Educação, 1951. (Publicação do Museu do Estado,
Dezembargador João José d’Almeida Couto, 1º 12).
vice-presidente da Província pelo 4º Vice- VIANNA, Francisco Vicente. Memória sobre o
Presidente Dr. Francisco José da Rocha ao passar- Estado da Bahia. Bahia: Diário da Bahia, 1893.
lhe a Administração da Província em 17 de Outubro
de 1871. Bahia: Typ. Correio da Bahia, 1871. Notas
RELATÓRIO com que o Excelentíssimo Senhor Dr. 1
A Câmara perdeu o poder judiciário.
Venâncio José de Oliveira Lisboa abrio a 2ª sessão 2
Em algumas profissões se mantém até hoje essa
da 20ª Legislatura da Assembléa Legislativa hierarquia: nenhum oficial de pedreiro passa a mestre sem
Província da Bahia no dia 1 de março de 1875. S.l, o registro oficial em carteira feito por um engenheiro.
s.d. Também mantiveram-se as características mutuárias que
RELATÓRIO com que o Excellentissimo Senhor as irmandades, protetora dos ofícios possuía, agora
Presidente Dr. Luiz Antônio da Silva Nunes abrio a convertidas em outras entidades, como Sociedade
Assembléa Legislativa Provincial da Bahia no dia Beneficente dos Alfaiates, Bolsa de Caridade, Sociedade
Beneficente Bolsa dos Chapeleiros, Associação Tipográfica
1º d Maio de 1876. Bahia: Typ. do Jornal da Bahia,
Baiana, Sociedade União das Classes, Sociedade
1876. Filantrópica dos Artistas, Sociedade Protetora dos
RELATÓRIO apresentado em 2 de abril de 1878 Desvalidos, Sociedade Montepio dos Artífices, Sociedade
ao Excellentissimo Senhor Conselheiro Presidente Montepio dos Artistas, Sociedade Montepio Geral da Bahia
da Província Barão Homem de Mello pelo Bacharel e Sociedade Humanitária das Senhoras (CASTELLUCCI,
Ignacio José Ferreira, Inspector do Thesouro 2002).
3
Provincial da Bahia. Bahia: Typ. do Diário da Bahia, Nos Autos de Correição, do Ouvidor João Alves Simões,
de 1741, no Rio de Janeiro constava ...“por constar a ele
1878.
dito Doutor Provedor que este Senado obriga os Pintores,
RELATÓRIO apresentado ao Illm. e Exm. Sr. Dr. e Escultores a tirarem licença para exercerem as suas
Antônio de Araújo de Aragão Bulcão, Presidente Artes, o que é contra o Direito, por serem liberais de sua
da Província, em 2 de abril de 1879 pelo Inspector natureza, e não variarem de essência, pelo acidente de
do Thesouro Provincial Dr. Gustavo Adolfo de Sá. terem a porta aberta, mandou que não sejam obrigados a
Bahia, Typ. do Diário da Bahia, 1879. tirar as ditas licenças” (TOURINHO, 1929, v. 2: 94).
4
RELATÓRIO apresentado ao Exm. Sr. Dr. Antônio Isto afasta qualquer conceito de plágio, desde que a
originalidade não fazia parte do mental artístico do período.
de Araújo de Aragão Bulcão, Presidente da 5
2 de Julho refere-se à Independência da Bahia, que se
Província, em 31 de março de 1880 pelo cônego deu em 1823.
Dr. Emílio Lopes Freire Lobo, Director Geral da 6
Criada em 1832, com a designação Sociedade dos
Instrucção Publica, anexo a FALLA de 1880. Artífices.
RELATÓRIO com que o Em. Sr. Conselheiro de 7
Criada em 1853.
8
Estado João Lustosa da Cunha Paranaguá passou Do patrimônio do Liceu constava, nos finais do século,
no dia 5 de Janeiro de 1882 a Administração da galeria de quadros, museu industrial, cartas geográficas,
esferas celestes e terrestres, grande demonstrador métrico,
Província ao 2º Vice-Presidente O Exm. Sr. Dr. João
contador mecânico, quadros de anatomia, de fatos de
dos reis de Souza Dantas. Bahia: Typ. do Diário da história santa, de zoologia e de botânica, de geometria
Bahia, 1882. elementar e um completo material de ensino intuitivo, de
RELATÓRIO com que o Exm. Sr. Dr. João dos Reis acordo com os princípios da pedagogia moderna de Michel
de Souza Dantas, 2o. Vice-Presidente, passou a Bréal.
9
administração da Província ao Exm. Sr. Conselheiro Nascido em Londres, em 1796, veio para o Brasil em
Pedro Luiz Pereira de Souza em 29 de março de 1812. Formou-se em medicina na Bahia e foi incentivador
e um dos primeiros colecionadores de obras de arte. Em
1882. Bahia: Typ. do Diário da Bahia, 1882.
1918 o Governo do Estado comprou a coleção. Enquanto

156
O Liceu de Artes e Ofícios e a Academia de Belas Artes da Bahia

permaneceu no Liceu Provincial a sua coleção recebeu já que as Associações e Montepios não tinham a mesma
várias cópias de mestres europeus, feitas por “bolsistas” agilidade e poder econômico das irmandades às quais os
cujos nomes até hoje permanecem incógnitos. baianos estavam acostumados há séculos e que cuidavam
10 Com a criação do Liceu Provincial, a cadeira de desenho de cada um, desde o nascimento até entrada e estadia no
foi desmembrada, ficando na dependência direta do Diretor céu.
22
Geral, estabelecida pelo # 31, da Lei no 105, de 23 jun. Entre outras razões, o professor Lellis Piedade dizia que
1868. Cañizares estava forçado a partir para Montevidéu pelas
11
Atente-se para os exemplos de Luiz Tarquínio, Antônio dificuldades de poder achar a sua subsistência na Bahia,
de Lacerda, Antonio Gonçalves, Carlos Costa Pinto, entre resultando da falta de trabalho” (ATAS, 11 jun. 1878, fl. 13).
23
outros. Não era preciso pedir aprovação dos novos estatutos ao
12
Quase que concomitantemente se criou a Sociedade de Governador, devido ao Decreto n. 164, de 17 jan. 1890, do
Artes e Ofício da Bahia, em 1872, a Sociedade Liga Governo provisório, reformando a lei n. 3.150, de 4 nov.
Operária Baiana, em 1876, a Sociedade Democrática 1882 (ATAS, 5 dez. 1894, fl. 159).
24
Classe Caixeiral, em 1877, etc. Marcando o fato foi colocada uma placa comemorativa
13
Conta-se que a briga se deu por causa da discussão em no frontispício do edifício.
25
torno de quem iria pintar um retrato de D. Pedro II, entre os O diretor, Braz do Amaral, foi autorizado a pagar modelos
quais estava o fundador da Academia de Belas Artes. vivos (ATAS, 3 ago. 1895, fl. 168).
14 26
Criou-se no Liceu, em 1876, a aula de desenho e pintura Enquanto a Academia passou por algumas reformas,
sob a direção de Cañizares (DO, 1923: 497). mudou-se para uma casa alugada, na mesma rua. Por isso
15
Manuel Lopes Rodrigues, André Pereira da Silva, Antônio deixou de efetuar a segunda exposição, em 1879 (FALLA,
Lopes Rodrigues, João Gualberto Baptista, Januário Tito 1880:16). Dessa sede só passaria, provisoriamente, em
do Nascimento e Manuel Raymundo Querino. 1969, para o Museu de Arte Sacra, a ocupar, finalmente, o
16
O Liceu de Artes e Ofícios e Academia de Belas Artes prédio em que se acha hoje a Rua Araújo Pinho, 212, no
apareciam como escolas profissionais. A fundação da Canela.
27
Academia, segundo Miguel Torres (1953: 192), deu-se na Em 1884, a Congregação fez sessão para “considerar o
residência de Cañizares, onde havia o seu atelier, no mérito do pintor sergipano Horácio Hora, cujos trabalhos
segundo andar de um grande sobrado, situado na Praça estavam expostos na Academia”. Foi aprovado por
de Palácio, no sítio em que a Rua da Misericórdia formava unanimidade conferir-lhe o titulo de membro
ângulo com a Ladeira da Praça. correspondente e de acadêmico de mérito, de acordo com
17
Este faleceu antes mesmo de começar a lecionar na os estatutos da Academia (ATAS, 7 jul. 1884, fl. 79).
28
Academia (ATAS, 10 set. 1878, fl. 19). “Tirar o retrato”.
18 29
Essas iniciativas teriam, posteriormente reflexos na Estatutos datado de 20 de maio de 1897, assinados por
Deutscher Werkbund, que buscou na educação, não só a José Allioni, Vieira Campos e Lopes Rodrigues (ATAS, 24
formação do povo alemão para a modernização, através mai. 1897, fl. 15v-16). É interessante notar-se que a
da indústria, mas também como uma bandeira para a designação de academia era dada aos exemplares
unificação da nacionalidade. Este movimento afetou os escultóricos, de corpo inteiro, em geral de gesso, que
Estados Unidos, acolhido por John Dewey e que se serviam de modelo a ser copiado pelos alunos.
30
refleteria na pedagogia empregada no Brasil por longos Quase toda a bibliografia era francesa. O próprio
anos. professor Maurice Grün, devendo retornar à França,
19
Ficou na Bahia e direção da Academia até 1882. Desde ofereceu-se à escola para comprar uma obra de belas artes
1876 se abrigara em Salvador por ter notícias de que no com 14 volumes de Charles Blome. Histoire des peintres
Rio de Janeiro, para onde se dirigia, estava grassando a de toutes écoles, e 5 desenhos seus por 700 mil reis (ATAS,
febre amarela. 4 nov. 1895, fl. 17).
20 31
As suas desavenças com os companheiros da Academia, Consta que Antonio Lopes Cardoso ofertou à Escola uma
José Allioni e João Francisco Lopes Rodrigues, devem ter excelente coleção de gravura, representando os feitos de
sido bastante sérias. Em 1885, o professor Austricliano Napoleão I, gravada a buril por André Appsiani (ATAS, 2
Barros solicitou colocar no salão nobre uma placa com o abr.,1878, fl. 6).
32
seu nome e seu retrato. Alegaram não possuir dinheiro Na tecelagem da Boa Viagem, da Companhia Empório
(ATAS, 15 jun. 1885, fl. 92). A Escola de Belas Artes possui do Norte, Luiz Tarquínio tinha condições de empregar até
um retrato de seu fundador, porém, é um auto-retrato. Com 1500 operários. Na falta de meios eficientes para treinar
a morte de João Francisco Lopes Rodrigues, em 1893, o homens, especialmente as mulheres, a Companhia
nome de Cañizares foi sugerido por Virgílio Damásio para mantinha escola primaria e treinava seus operários na
assumir a direção da Academia. A idéia, porém, não foi fábrica. A tecelagem de Valença treinou e usou
aceita. O artista espanhol, segundo Otávio Torres (1953: trabalhadores tirados do Recolhimento da Santa Casa de
196), professor de música do período, Cañizares veio para Misericórdia e desabrigados da Casa Pia dos Órfãos de
o Rio de Janeiro onde fixou residência. São Joaquim.ande parte desse acervo, se se fizer
21
Provavelmente foi a ausência dessa condição que comparação com o Catálogo da Galeria Abbott, de 1871,
enfraqueceu a Academia, e depois a Escola de Belas Artes, desapareceu.

157
capitulo 4
a dinâmica das exposições, a obra e o público

159
No século XIX, os concursos para Prêmio de
Viagem à Europa eram considerados
indispensáveis ao progresso artístico brasileiro. O
período de estudos em Paris ou Roma era o mais
alto prêmio que um aluno da Academia Imperial de
Belas Artes podia almejar. Após sua formação
inicial no Rio de Janeiro, a estadia nas capitais
européias da arte distinguia os pensionistas e trazia
reconhecimento e admiração junto ao público.

No entanto, as obras enviadas da Europa pelos


estudantes brasileiros nem sempre eram recebidas
com unanimidade de opiniões pelos críticos
nacionais. Se por um lado, os centros artísticos
europeus inspiravam respeito, por outro, percebe-
se que o público brasileiro apresentava suas
peculiaridades e complexidades. Para refletir sobre
esta relação de admiração, diferenças ou
semelhanças entre o meio artístico brasileiro e o
europeu, é interessante estudar o caso de A
Faceira, estátua em gesso exposta em 1884 no
Rio de Janeiro, cuja fundição em bronze, assim
como o original em gesso, hoje integram o acervo
do Museu Nacional de Belas Artes na mesma
cidade1.

A Faceira foi executada em Roma por Rodolpho


entre a europa e o brasil : a faceira, escultura de Bernardelli (1852-1931), em 1880. Na ocasião, o
rodolpho bernardelli, e a necessidade de agradar artista se encontrava na Itália gozando do Prêmio
ao público de Viagem que conquistara em 1876. Em tamanho
natural [150 x 75 x 64cm], este nu feminino
ana maria tavares cavalcanti representa uma índia brasileira de pé, adornada
com penas de pássaros tropicais e dentes de feras
selvagens, apoiada num tronco de árvore. Em 1884,
o escultor enviou-a para a Exposição Geral de Belas
Artes, no Rio de Janeiro, e A Faceira foi exposta
entre outras 470 obras que incluíam pinturas,
esculturas, fotografias, gravuras e desenhos. Não
era a primeira vez que um nu feminino era exposto,
assim como não era a primeira vez que uma índia
era tema de obra brasileira. Os escritores de
tendência romântica já haviam alçado o índio a
símbolo da nação, idealizando-o como o bom
selvagem, décadas antes.

Portanto, era de se esperar que a estátua de


Bernardelli tivesse boa recepção quando exposta
no Rio. Mas Gonzaga Duque, importante crítico
carioca, expressou seu descontentamento com a
Faceira, publicando seus comentários em 1888, no
livro A Arte Brasileira:

[Bernardelli] ameaçou desviar-se da arte caindo


na caricatura, ao gosto de Grévin. A “Faceira”,
estátua em gesso exposta em 1880, nasceu
dessa fase, veio desse transviamento. A
concepção do artista parece ter sido uma e a
execução foi outra. Desviaram-se opostamente.
O escultor pretendeu apresentar um tipo de

161
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

cabocla, cujo meneio do corpo, natural e tem; seus pés são espalmados, quase sempre
gracioso, cuja expressão fisionômica maliciosa cambados pelas contínuas marchas, pelo
e loureira, concretizassem a concepção exercício de subir às árvores, escalar serros,
explicando o título. Mas, para característico do grimpar-se aos outeiros, pisar terreno
tipo deu apenas – olhos oblíquos! Vestiu a sua espinhoso, falso ou pedregulhos; seu olhar é
figura com adornos selvagens; dependurou-lhe sonolento e contemplativo pelas influências do
às orelhas rodelas de pão, atou-lhe ao pescoço clima e pela forma externa dos olhos; os
colar de dentes, e aos punhos braceletes de exercícios da pesca e da caça, e a fabricação
penas; e depois animou-a com o espírito de penosa dos arcos, a edificação das malocas,
uma rapariga libertina, quero dizer, afeiam-lhe as mãos e dão a seus músculos a
movimentou-a com tal garridice de gestos que rigidez dos atletas, a conformação bem
de forma alguma podem acudir à acentuada dos tendões como em uma
voluptuosidade de uma índia. anatômica figura sem pele.4
Demais, a estrutura da “Faceira” é flácida. Há
no seu corpo molezas de uma carne já cansada E conclui, reiterando:
pelas noites febris do deboche; existe em seu
sorriso a untura do carmim e a palidez da Nenhum desses traços possui a “Faceira”, e
perversidade; seus olhos miúdos têm o brilho se a reduzisse em seu tamanho, ter-se-ia uma
tentador da lascívia, e a posição em que está, perfeita produção à Grévin.5
apoiada com ambas as mãos a um cepo de
A descrição feita por Gonzaga Duque afasta-se
árvore que lhe fica às costas, empinando todo
consideravelmente da idealização romântica típica
o tronco, faz lembrar mulheres experientes em
da literatura indianista brasileira, da qual é bom
seduções e que estudam ao espelho atitudes
exemplo o romance Iracema de José de Alencar6,
provocadoras. Falta-lhe, portanto,
cujo personagem título figurou no Salão de 1884,
naturalidade. 2
numa tela do pintor José Maria de Medeiros. Mas
Essas linhas escritas por um contemporâneo de se a Faceira não agradou a Gonzaga Duque por
Rodolpho Bernardelli merecem ser analisadas com não corresponder à sua idéia do que deveria ser a
vagar. Logo de início, Gonzaga Duque refere-se à representação de uma índia brasileira, a Iracema
fase em que o escultor “ameaçou desviar-se da de Medeiros não teve melhor sorte. Sobre esse nu
arte” para cair na caricatura “ao gosto de Grévin”, de atitude clássica e bem comportada, escreveu:
aludindo assim a Alfred Grévin3 (1827-1892), artista “esta figura de forma alguma satisfaz ao
francês de atuação diversificada cujas estatuetas espectador. É roliça e inútil”7. Há ainda um aspecto
representando sedutoras figurinhas femininas a ser ressaltado: em nenhum momento da
foram muito populares no século XIX. Para explicar descrição dos “característicos étnicos” da cabocla,
melhor sua censura, Gonzaga Duque aponta uma Gonzaga Duque elogia sua beleza; ao contrário,
contradição, um lapso entre a intenção e a fala de suas mãos afeiadas pelo trabalho, de seus
execução artísticas de Bernardelli. A intenção pés deformados nas caminhadas. Sua pretensa
estaria sinalizada no título e nos adereços neutralidade científica deixa transparecer uma
indígenas da estátua: Faceira deveria mostrar um adesão ao padrão de beleza européia de cânones
tipo gracioso e brasileiro. No entanto, segundo clássicos, bem representado nas Vênus gregas
Gonzaga Duque, a execução transformou-a na que, logo a seguir, menciona como o recurso que
caricatura de uma mulher experiente em seduções libertou Bernardelli das caricaturas ao gosto de
gastas em noites febris. Ou seja, por baixo do Grévin:
disfarce de índia pura e inocente, se oferece uma
Este estilo, felizmente, foi prestes abandonado
francesa voluptuosa.
pelo escultor, que começou a estudar o antigo
Em seguida, Gonzaga Duque expõe suas idéias chegando a reproduzir duas belas estátuas
sobre a verdadeira aparência de uma índia: gregas em mármore – Vênus Calipígia e Vênus
de Medicis (A.B.A.) para, em breve tempo, nos
A cabocla, mesmo a mestiça, a marabá, tem oferecer este primoroso grupo do Cristo e da
característicos étnicos. A região pubiana, que mulher adúltera, concebido fora de toda a
na “Faceira” é pobre de tecido adiposo, é preocupação clássica e animado por estranho
desenvolvida e túmida; os cabelos, e isto forma poder.8
um característico de grande valor, são bastos,
ásperos e lisos, muito lisos e ásperos, É importante esclarecer que Bernardelli executou
impossíveis de sujeitarem-se a penteados as cópias da Vênus Calipígia e da Vênus de Médicis
caprichosos, como é o penteado que a estátua como tarefa obrigatória de pensionista em Roma9.

162
A faceira de Rodolpho Bernardelli e a necessidade de agradar ao público

De fato, os professores brasileiros que Aqui tocamos num ponto importante para a arte do
acompanhavam seus progressos enviaram-lhe século XIX, não apenas no Brasil, mas em âmbito
uma relação de “estátuas indicadas em data de 9 internacional: o debate em torno da necessidade
de janeiro de 1880 (...) a fim de executar em ou não de agradar ao público e seus efeitos sobre
mármore a cópia de uma delas” 10 . Da lista, a qualidade das obras artísticas. Esse debate não
Bernardelli escolheu não uma, mas duas: a Vênus se restringiu à escultura, e gerou muita controvérsia
Calipígia e a Vênus de Médicis, cujas cópias no campo da pintura. Portanto, antes de retomar
concluiu em 1882 e em 1885, respectivamente. as reflexões sobre a Faceira, gostaria de aprofundar
Nota-se que entre as estátuas listadas pelos a discussão, utilizando para isso o caso de três
professores constavam diversas figuras masculinas quadros expostos nos Salões parisienses na
como Adônis, Apolo e Antinoos, mas Bernardelli década de 1860: O Nascimento de Vênus de
escolheu justamente dois nus femininos. Cabanel (1863), Mulher com papagaio de Courbet
(1866) e Olímpia de Manet (1863). O primeiro e o
Quanto às críticas de Gonzaga Duque à Faceira, o último, como se sabe, são paradigmáticos para
jornalista Carlos de Laet (1847-1927) as retomou essa questão.
em 1890, ano em que a reforma da Academia foi
tema de debates acalorados. Na ocasião, Laet Olhando as três pinturas nessa seqüência –
publicou, sob o pseudônimo de Cosme Peixoto, Cabanel, Courbet e Manet – parece que
uma série de artigos atacando Rodolpho caminhamos da cena mais fantasiosa para a mais
Bernardelli. Vejamos a passagem a seguir: realista, como se o feitiço que encantara a mulher
nua em divindade mitológica se desfizesse pouco
Em 1879 mandou da Europa o Sr. Bernardelli a pouco, revelando aos espectadores os desejos
um S. Sebastião e Fabíola em que mostrou, que estavam mascarados sob o véu de uma beleza
juntamente com incontestável progresso, o seu que não é desse mundo.
pendor para o culto do bonito, antes que para
o do belo. Desde então, aos que sabem ler o A Vênus de Cabanel, aclamada pelo público e
futuro no presente, não ficou dúvida sobre a adquirida por Napoleão III, foi o grande sucesso
individualidade artística do jovem escultor. do Salão de 1863. Atualmente exposta no Musée
Nunca seria um artista criador e de altos vôos, d’Orsay em Paris, é considerada um paradigma do
mas ainda podia dar um operário do chic, um gosto acadêmico da segunda metade do século
hábil fazedor de estatuetas disputadas pelo XIX. A Olímpia de Manet, igualmente pintada em
mundo fashionable. 1863, só foi enviada ao Salão dois anos depois,
Perfeita confirmação de similhante vaticínio sendo exposta em 1865. As reações, com
trouxe a célebre Faceira, sobre a qual se tem raríssimas exceções, foram as piores possíveis,
escrito muita extravagância, muito contra- tanto por parte do público quanto por parte da
senso, e jamais com o fino sentimento da crítica. As duas telas entraram para a história da
verdade exarado em um juízo do Sr. Gonzaga- arte como exatos opostos, assim como seus
Duque Estrada, cujas pisadas nos ufanamos autores.
de seguir, tanto mais desassombradamente
quanto sabemos que é amigo íntimo do Alexandre Cabanel é o protótipo do artista oficial
criticado.11 do período. Aos 22 anos de idade, conquistou o
Grande Prêmio de Roma que lhe permitiu estudar
Em seguida, após transcrever trechos da crítica já na Itália entre 1846 e 1850. De volta à França,
citada12, Carlos de Laet concluiu comentando as recebeu encomendas de pinturas decorativas e
palavras de Gonzaga Duque: obteve medalhas em exposições públicas. Em
1863, mesmo ano em que sua Vênus foi adquirida
[...] “se a reduzirem de seu tamanho ter-se-á por Napoleão III, tornou-se professor da Escola de
uma perfeita produção à Grévin”. Não Belas Artes em Paris e por diversas vezes fez parte
duvidamos subscrever esta sentença; e, do júri dos Salões oficiais. Édouard Manet, seu
compenetrando-se da verdade que a ditou, avesso, é exemplo do artista maldito, o enfant
terão os leitores a explicação dos aplausos que terrible que enfrentou as instituições e os
em nossa terra se tem dispensado a esta preconceitos. Em 1863, ano da consagração de
caricatura em ponto grande. Regra geral, só Cabanel, o Almoço na Relva de Manet, então
apreciamos o gaiato e unicamente nos abala o conhecido como O Banho, foi exposto no Salão de
essencialmente brejeiro. No país das operetas Recusados pois não fora aceito no Salão oficial. O
a Faceira devia fazer carreira.13 quadro causou escândalo.

163
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

Enquanto Manet não fez concessões ao gosto do que sabem muito bem o que fazem colocando
público, Cabanel, ao contrário, pintou uma “história a paisagem acima da mulher nua (o que seria
embelezada pela fantasia”14, adocicada e palatável da pintura de estilo se uma mulher moderna,
para as multidões, conforme observou Émile Zola deitada em um canapé sobre a própria camisa,
em 1875: tendo a saia a seus pés, viesse a ser
proclamada uma obra-prima e obtivesse a
A principal malícia de Cabanel é ter renovado medalha de honra?) – é a opinião pública que
o estilo acadêmico. À velha boneca clássica, fala, a única que deve nos preocupar agora.
desdentada e calva, ele presenteou com [...] Quanto a mim, eu defendo a mulher nua,
cabelos postiços e dentes falsos. A megera [...]. E depois, que carnação! Que braço, que
metamorfoseou-se numa mulher sedutora, torso, que ventre! Nunca um tom mais justo
empoada e perfumada, a boca em forma de aliou-se a um modelado tão correto. Olhem para
coração e os cachos louros. [...]. É um gênio esse braço no ar: como a atmosfera que o
clássico que se permite uma pitada de pó de envolve afoga graciosamente seu contorno!
arroz, algo como Vênus em penhoar de cortesã. Olhem para essa mão na coxa: adorável,
O sucesso foi enorme. Todos caíram em coquete, pousada com uma graça encantadora,
êxtase. 15 desenhada com uma arte perfeita, voltamos
para vê-la: o objeto é pequeno, a arte imensa.17
De fato, o estilo açucarado dos nus de Cabanel
agradava a muitos. Se Zola o denunciou como um Tanto a Vênus de Cabanel quanto a mulher nua de
artifício falso e detestável, por seu lado, Paul Mantz Courbet foram elogiadas com entusiasmo
(1821-1895), ao escrever sobre o Salão de 1863, voluptuoso e descrição detalhada de suas
elogiou O Nascimento de Vênus expressando vívido perfeições anatômicas. Cabelos, seios, coxas,
deleite: quadris e curvas mereceram o apreço dos críticos
e, podemos intuir, do público masculino que
Desde a abertura do Salão, o público deu o freqüentava os Salões. Também Zola apontou a
prêmio à Vênus de Cabanel. A deusa ainda não atração do público pelas mulheres nuas, porém,
saiu do mar: nua e deitada sobre as águas sem a cumplicidade compreensiva de Castagnary,
complacentes cujo murmúrio acaba de acordá- mas para repreender aqueles que haviam torcido
la, os cabelos louros estendidos ao seu redor, o nariz para Olímpia no Salão de 1865. Quando,
o rosto semi-encoberto pela sombra do braço, em 1866, os quadros enviados ao Salão por Manet
ela flutua, flor viva do mar, e daqui a pouco vai foram recusados pelo júri, Zola dedicou-lhe um
alegrar o mundo que, ignorante de sua beleza, artigo inteiro em L’Événement, contando que
nada sabe ainda. Suavemente ninada pela estivera no ateliê do pintor onde pode rever o
onda amorosa, ela chega à praia, e a vaga que Almoço na relva e Olímpia, sobre a qual comentou:
a traz, encantada se imobiliza. [...]. Pois a
Vênus de Cabanel, sabiamente ritmada em sua Também revi a Olímpia, que tem o grave defeito
atitude, apresenta curvas felizes e de bom de parecer com muitas senhoritas suas
gosto; os seios são jovens e vivazes, os quadris conhecidas. Depois, - não é verdade?- que
têm formas perfeitas, a linha geral evolui estranha mania de pintar de modo diferente dos
harmoniosa e pura.16 outros! Se ao menos Manet tivesse pedido
emprestado o pó de arroz de Cabanel e tivesse
É nítido o encantamento, não apenas da “vaga que maquiado um pouco o rosto e os seios de
traz” Vênus à praia, mas do articulista que canta a Olímpia, a jovem estaria apresentável. E há
beleza da mulher nua. O tema mitológico era um também um gato que divertiu muito o público.
pretexto para o nu lascivo, e o voyeurismo não era É verdade que esse gato é altamente cômico,
ignorado pelos críticos. não é mesmo? E que é preciso ser insensato
para ter posto um gato nesse quadro. Um gato,
Vejamos agora a tela de Gustave Courbet. Quando
os senhores podem imaginar uma coisa
Courbet expôs Mulher com papagaio e uma
dessas! Um gato negro além de tudo. É muito
paisagem (La remise des chevreuils) no Salão de
engraçado. Oh, meus pobres concidadãos [...].
1866, Jules Castagnary (1830-1866) comentou a
O legendário gato de Olímpia é um indício certo
preferência do público pelo primeiro quadro:
do objetivo que os senhores se colocam quando
Courbet enviou ao Salão uma figura e uma vêm ao Salão. Os senhores vêm buscar gatos,
paisagem. (...) Dos dois quadros enviados pelo confessem, e não perderam seu dia quando
mestre-pintor ao Salão, um deles é, em geral, encontram um gato negro que vos alegra.18
o favorito. Não falo da opinião de certos artistas

164
A faceira de Rodolpho Bernardelli e a necessidade de agradar ao público

Para bem compreender a alusão feita por Zola ao Émile Zola percebeu e criticou a concessão de
falar da busca de gatos como o principal motivo da Courbet ao gosto público em Mulher com papagaio
ida ao Salão, é necessário lembrar o duplo sentido e na paisagem exposta no Salão de 1866. Sem
da palavra em francês. Chat (gato), e mais piedade afirmou: “falta a essas telas aquele não
comumente chatte (gata), designa não apenas o sei quê de potente e intencional que é Courbet
felino, mas também, em linguagem popular, o órgão inteiro. Há doçura e sorriso. Courbet, para arrasá-
sexual feminino. lo com uma palavra, fez ‘bonito’!”21.

Olímpia chocou o público, como é sabido. Não por “Fazer bonito” e agradar ao público tornaram-se
mostrar uma mulher nua, mas porque essa mulher atitudes indignas do artista moderno que não
não era uma deusa greco-romana, e sim uma deveria transigir quando se tratava de expressar
prostituta que olha sem pudores para o espectador. seu temperamento. “Só peço ao artista que seja
Além disso, assim como Olímpia não se disfarça pessoal e vigoroso”22, escreveu Zola em 1866.
em deusa, a tinta francamente depositada na tela
por Manet não finge ser a carnação de uma mulher Mas voltemos a tratar da escultura de Bernardelli.
idealizada. Zola elogia essa pintura franca e a Na Exposição Geral de 1884, além da Faceira,
contrapõe, com aguçada ironia, ao “pó-de-arroz” estava exposta a cópia da Vênus Calipígia. Oscar
usado por Cabanel em seus nus mitológicos. Guanabarino, escrevendo no Jornal do Commercio,
comentou seu fascínio pela Faceira, e comparou-
Era fato percebido e comentado: as pinturas de a à Vênus:
mulheres nuas atraíam olhares e público aos
Salões. Manet estava consciente disso, mas com Falaremos em primeiro lugar do Sr. Rodolpho
seu quadro coloca o espectador na desconfortável Bernardelli que, por conta da Academia estuda
posição do freguês que é flagrado num ato que o atualmente em Roma.
envergonha. A figura feminina, que até então fora É de caso pensado que encetamos o estudo
simples objeto de prazer visual, já não desvia o das nossas impressões pela estatua, original
próprio olhar. A mulher do outro lado da moldura em gesso, denominada A Faceira.
vê o espectador e sabe que está sendo vista. Mas Impossível seria ocultar que de tudo quanto
não é só isso, além de ser incluído na cena pelo vimos foi o que mais nos impressionou.
olhar de Olímpia, o espectador já não encontra, Na mesma sala em que esta belíssima criação
nesse corpo nu, curvas voluptuosas pelas quais se ostenta, encontra-se a corretíssima Venus
passear os olhos. Callipigia, cópia em mármore do original grego
que se acha no Museu de Nápoles, feita
Nesse ponto, voltemos à Mulher com papagaio de também pelo Sr. Bernardelli; porém mesmo
Courbet. Essa jovem nua, assim como Olímpia, não assim, apesar daquelas formas serenas,
é “uma idealização como as Vênus, as Fontes, e macias e proporcionais, postas em relevo e
os diversos seres mitológicos gerados pelos encarecidas pelo mármore, que tem enormes
caprichos do espírito”, e sim “a representação de vantagens sobre o gesso, como material de
um ser real e individualizado, de uma mulher estatuaria, a Faceira não perde com o confronto
contemporânea”, como se expressou Jules agradando muito desde o primeiro relance, de
Castagnary em artigo já mencionado19. Portanto, a olhos, não só pela elegância do conjunto, como
tela de Courbet foi identificada com a tendência pela fisionomia altamente expressiva e de um
moderna de abolir referências literárias, históricas, cunho bem original.
bíblicas ou mitológicas. Mas a pose langorosa da Não será um tipo de beleza, dessa beleza
Mulher com papagaio, ao contrário da pose de convencional; mas é, com certeza, uma criação
Olímpia, transpira sensualidade e traz à lembrança de grande merecimento como produto da
a Vênus de Cabanel. Ambas têm os cabelos soltos escola realista, com todas as seduções do
e esparramados, poses lânguidas que salientam modernismo.
suas formas generosas, e estão distraídas, A Venus Callipygia agrada porque é bela; a
inocentes de sua beleza e do olhar do espectador. Faceira é bela porque agrada.
Até mesmo nos detalhes, Courbet parece citar A Venus é um atestado de uma época, de uma
Cabanel: os cupidos que acompanham Vênus arte e de uma civilização: tem todos os
foram substituídos pela ave que brinca com a moça, predicados da arte do seu tempo, e se nos
a espuma do mar se metamorfoseou na brancura apresenta sem o reclame de uma pose
dos lençóis. Com o auxílio de Vênus, Courbet indagada e premeditada, sem a fascinação do
domesticou Olímpia, tornando-a aceitável. Chegou olhar fulgurante e sem o sorriso contagioso da
a correr a notícia de que a tela seria adquirida pelo mulher galante.
Estado francês, o que não se concretizou20.

165
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

A Faceira ostenta muito propositalmente as juntamente com outros trabalhos do pensionista.


suas formosuras, tem o olhar penetrante, a No parecer de novembro de 1880, assinado pelo
boca entreabrindo-se num sorriso de meiguice; secretário Maximiano Mafra e pelo professor
de rosto mais simpático do que formoso, Chaves Pinheiro, lemos:
transmite ao espectador uma impressão, talvez
um pouco exagerada mas, com franqueza, Sente a secção d’Escultura que o pensionista
muito duradoura e agradável. Rodolpho Bernardelli tivesse preferido em
A moderação dos movimentos e a sobriedade todos os trabalhos acima analysados, o estylo
do gesto constituem, entretanto a primeira lei moderno ao antigo, a escola realista à grande
da estatuaria, poderão objectar. e bella escola idealista, única capaz de produzir
Responderemos que os grandes estatuas como o Appolo do Belvedere e a
revolucionários nas artes quebram as leis Venus de Milo.....Mas reconhecem o constante
tradicionais e conservam-se sempre ao lado da e gradual progresso do pensionista e a louvável
verdade. aplicação ao trabalho.25
Com a denominação da estatua é que não nos
concordamos inteiramente; quer parecer-nos A advertência se dirige à simpatia de Bernardelli
que lhe assentaria melhor o de – Sedutora. pela “escola realista”. Hoje, alguns poderiam
Quanto aos detalhes são eles tão evidentes compreender tal referência como um sinal de
que não nos demoraremos em assinalar o que modernidade e capacidade de absorver o que havia
claramente se manifesta ás naturezas mais de mais atual na arte européia do momento. Mas
frias e aos temperamentos mais refratários ás sejamos cautelosos para não cair em armadilhas
grandes emoções perante a arte vivificada pelo conceituais ligeiras. Devemos perceber quais os
sopro de um cultor de talento real.23 significados de “estilo moderno” e “escola realista”
mencionados pelos professores brasileiros. Sim,
As palavras elogiosas de Guanabarino às nota-se algo novo nessa escultura, algo bem
qualidades agradáveis da Faceira contrastam com diferente da estatuária clássica. Realmente, havia
as críticas que Zola dirigiu à Mulher com papagaio maior independência em relação aos ensinamentos
de Courbet. Também contrastam com as opiniões dos mestres, a originalidade era bem vinda e
inteiramente opostas de Gonzaga Duque que valorizada pelos críticos nos jornais. Porém, uma
condenou o tom exagerado e fácil, o querer agradar nova relação de dependência surgia, já que para
a todo custo da Faceira. Mas de fato essa estratégia viver de sua arte o artista precisava agradar os
surtia efeito no público que, como Guanabarino marchands e os críticos que divulgariam seu nome
se deixava seduzir pela figura: “A Venus Callipygia em jornais e revistas. Precisava sobretudo
agrada porque é bela; a Faceira é bela porque impressionar os espectadores, atrair seus olhares,
agrada”. se fazer amado. Assim, sua liberdade era apenas
aparente. Me parece, portanto, mais verdadeiro
Curiosamente, o próprio Bernardelli também dizer que A Faceira representa não uma escola
criticara essa tendência, que ele notara na realista, mas a arte que disputava a atenção do
Exposição Universal de 1878, na França. público em meio à diversidade de tendências à
Escrevendo a João Maximiano Mafra, secretário mostra nos Salões.
da Academia, em 7 de janeiro de 1879, dizia:
Meu interesse por A Faceira surgiu, primeiramente,
[...] ao meu ver a arte na França tem por do contato com a obra no Museu Nacional de Belas
primeiro fim ofuscar os olhos dos espectadores, Artes, no Rio de Janeiro. Em seguida, ao ler
grandes quadros etc etc. Enfim eles têm uma diversas referências a essa escultura em textos
palavra da qual se servem muito amiúde, c’est escritos por contemporâneos de Bernardelli, quis
epatant! A qual caracteriza muito os artistas, identificar as intenções do escultor e analisar as
porém, voltando ao que queria dizer, achei que reações do público diante da Faceira. Através
tudo era fútil, tudo me cheirava a cocotte, [...].24 desse estudo, meu intuito foi compreender um
pouco mais do complexo campo de trocas culturais
Todavia, apesar de acusar de fútil a arte exposta que marcaram a arte brasileira do final dos
na França em 1878, pouco tempo depois, oitocentos.
Bernardelli acaba cedendo ao gosto do público.
Afinal, a Faceira não é a própria cocotte, uma Notas
cortesã mundana e alegre?
1
Na base de dados do MNBA, consta no tombo 2820:
Resta mencionar a opinião dos professores “Faceira”, bronze fundido, 150 x 75 x 64 cm, entrada em
brasileiros, quando do envio de A Faceira, 1937 por transferência da ENBA, assinado Rod Bernardelli

166
A faceira de Rodolpho Bernardelli e a necessidade de agradar ao público

Roma 1880. E no tombo 2829: “Faceira”, 1880, modelado/ attitude, présente des courbes heureuses et d’un bon goût ;
gesso patinado, 150 x 75 x 64 cm, doação de Rodolpho la gorge est jeune et vivante ; la hanche a des rondeurs
Bernardelli em 1921, assinado Rod Bernardelli Roma 1880. parfaites, la ligne générale se déroule harmonieuse et
2
GONZAGA-DUQUE, Luís. A Arte Brasileira. Campinas: pure. »
17
Mercado de Letras, 1995. (1a edição data de 1888), p. CASTAGNARY, Jules. « Salon de 1866 ». La Liberté, 5-
252-253. 13 de maio de 1866. Reproduzido em La promenade du
3
Alfred GRÉVIN (1827-1892) – escultor, caricaturista, critique influent, anthologie de la critique d’art en
desenhista e criador de figurinos de teatro francês. Em France 1850-1900. Paris: Hazan, 1990. (pp.150-152).No
1882, fundou com o jornalista Arthur Meyer o museu de original : « Courbet a envoyé au Salon une figure et um
cera que leva seu nome. paysage. [...]. Des deux tableaux envoyés par le maître-
4
GONZAGA-DUQUE, Luís. A Arte Brasileira. Campinas: peintre au Salon, l’un est généralement préféré à l’autre.
Mercado de Letras, 1995. (1a edição data de 1888), p. Je ne parle pas de l’opinion de certains artistes, qui savent
253. très bien ce qu’ils font en mettant le paysage au-dessus de
5
Id. Ibd. la femme nue (que deviendrait la peinture de style si une
6
A primeira edição de Iracema de José de Alencar data de femme moderne, couchée sur un canapé ayant sa chemise
1865. sous elle et sa jupe à ses pieds, venait à être proclamée
7
GONZAGA DUQUE. A Arte Brasileira. Campinas: un chef-d’oeuvre et obtenir la médaille d’honneur ?) – c’est
Mercado de Letras, 1995, p.205-206. de l’opinion publique que je parle, la seule qui doive nous
8
Id. Ibd. p. 253. préoccuper désormais. [...] Quant à moi, je tiens pour la
9
Rodolpho Bernardelli, vencedor do concurso para Prêmio femme nue, [...]. Et puis, quelle chair ! quel bras, quel torse,
de Viagem à Europa em 1876, viveu na Europa entre 1877
quel ventre ! Jamais ton plus juste ne s’allia à un modelé
e 1885, sendo sete anos e meio em Roma, e um ano
plus serré. Regardez-moi ce bras en l’air: comme
viajando.
10
l’atmosphère qui le baigne en noie gracieusement les
Documento do acervo do M.D. João VI da EBA/UFRJ,
contours ! Regardez-moi cette main sur la cuisse:
notação 5109.
11
mignonne, coquette, posée avec une grâce charmante,
COSME PEIXOTO. O Salão de 1890, VI. Diario do
dessinée avec un art parfait, on revient pour la voir : l’objet
Commercio. Rio de Janeiro, 20 de Abril de 1890. [Biblioteca
est petit, l’art est immense. »
Nacional, seção de obras raras, microfilme PR - SOR 18
ZOLA, Émile. « Mon Salon - M. Manet ». L’Evénement,
03372. Transcrição de Ana Cavalcanti.]
12
Paris, le 7 mai 1866. Reproduzido em La promenade du
Ver nota de rodapé n.3.
13
critique influent, anthologie de la critique d’art en
COSME PEIXOTO. Ibidem.
14
France 1850-1900. Paris: Hazan, 1990. (p.147-148.) e no
ZOLA, Emile. « Lettres de Paris ». Le messager de site http://www.cahiers-naturalistes.com/Salons/07-05-
l’Europe. São Petersburgo, Rússia, junho de 1875. « ...
66.html. No original: « J’ai revu également l’Olympia, qui a
De même je pourrais prendre les peintres historiques en
le défaut grave de ressembler à beaucoup de demoiselles
flagrant délit de concessions, trahissant les principes
que vous connaissez. Puis, n’est-ce pas ? quelle étrange
classiques en vue d’adoucir la sévérité académique et de
manie que de peindre autrement que les autres ! Si, au
se concilier les sympathies de la foule. Ce qui en résulte,
moins, M. Manet avait emprunté la houppe à poudre de riz
c’est l’histoire embellie par la fantaisie, quelque chose
de M. Cabanel s’il avait un peu fardé les joues et les seins
comme Caton couronné de roses.
d’Olympia, la jeune fille aurait été présentable. Il y a là aussi
Cabanel est le génie de cette école ! »
15
un chat qui a bien amusé le public. Il est vrai que ce chat
Id. No original : « La principale malice de Cabanel, c’est
est d’un haut comique, n’est-ce pas ? et qu’il faut être
d’avoir rénové le style académique. À la vieille poupée
insensé pour avoir mis un chat dans ce tableau. Un chat,
classique, édentée et chauve, il a fait cadeau de cheveux
vous imaginez-vous cela. Un chat noir, qui plus est. C’est
postiches et de fausses dents. La mégère s’est
très drôle... Ô mes pauvres concitoyens, avouez que vous
métamorphosée en une femme séduisante, pommadée et
avez l’esprit facile. Le chat légendaire d’Olympia est un
parfumée, la bouche en coeur et les boucles blondes. [...]. indice certain du but que vous vous proposez en vous
C’est un génie classique qui se permet une pincée de rendant au Salon. Vous allez y chercher des chats, avouez-
poudre de riz, quelque chose comme Vénus dans le le, et vous n’avez pas perdu votre journée lorsque vous
peignoir d’une courtisane. Le succès a été énorme. Tout le trouvez un chat noir qui vous égaye. »
monde est tombé en extase. » 19
CASTAGNARY, Jules. « Mon Salon ». La Liberté , 5-13
16
MANTZ, Paul. “Salon de 1863”. Gazette des Beaux-Arts, de maio de 1866. Reproduzido em La promenade du
1º de junho de 1863, p.481-506. Reproduzido em critique influent, anthologie de la critique d’art en
BOUILLON et al. La promenade du critique influent, France 1850-1900. Paris: Hazan, 1990. (p.150). No original:
anthologie de la critique d’art en France 1850-1900. Paris: « La figure n’est point une idéalisation comme les Vénus,
Hazan, 1990. (p.125). No original : « Dès l’ouverture du les Sources et les divers êtres mythologiques qu’engendrent
Salon, le public a donné le prix à la Vénus de Cabanel. La les caprices de l’esprit; [...] c’est la représentation d’un être
déesse n’est pas encore sortie de l’onde : nue et couchée réel et individualisé, d’une femme de notre temps. »
sur les eaux complaisantes dont le murmure vient de 20
Hoje a obra pertence à coleção do Metropolitan Museum,
l’éveiller, ses blondes cheveux sont épandus autour d’elle, em Nova York, fruto da doação da viúva de Henry Osborne
le visage à demi voilé par l’ombre de son bras replié, elle Havemeyer (1847-1907), magnata americano, generoso
flotte, fleur vivante de la mer, et toute à l’heure elle va réjouir colecionador da arte francesa de sua época. Sobre o boato
le monde qui, ignorant sa beauté, ne sait rien encore. da aquisição da tela pelo Estado francês, conferir em
Doucement bercée par la vague amoureuse, elle aborde ROOS, Jane Mayo. Early Impressionism and the French
au rivage, et le flot qui l’apporte s’arrête charmé. (...). Car State (1866-1874). Cambridge: Cambridge University
la Vênus de M. Cabanel, savamment rythmée dans son Press, 1996.

167
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

21
ZOLA, Émile. « Mon Salon ». L’Evénement, 15 de maio Fabiana Guerra Granjeia, se encontra em http://
de 1866. No original : « Je ne nie point que La Femme au www. d e z e n o v e v i n t e . n e t / a r t i g o s _ i m p r e n s a /
perroquet ne soit une solide peinture, très travaillée et très guanabarino_1884.htm
24
nette ; je ne nie point que La Remise des chevreuils n’ait Cartas de Rodolpho Bernardelli a João Maximiano Mafra,
un grand charme, beaucoup de vie ; mais il manque à ces secretário da Academia, de 1878 a 1885 (acervo do Museu
toiles le je ne sais quoi de puissant et de voulu qui est D. João VI – EBA-UFRJ). A transcrição desse documento,
Courbet tout entier. Il y a douceur et sourire. Courbet, pour realizada por Camila Dazzi, se encontra no site
l’écraser d’un mot, a fait du joli ! » [www.cahiers- Dezenovevinte:
naturalistes.com/Salons/15-05-66.html] < h t t p : / / w w w. d e z e n o v e v i n t e . n e t / d o c u m e n t o s /
22
Id. « Mon Salon – Les réalistes du Salon ». L’Evénement, cartas_rodolfobernardelli.htm> Acesso em 1 jul. 2008
25
11 de maio de 1866. No original : « Je demande uniquement Arquivos do MNBA, Arquivo Pessoal Rodolpho
à l’artiste d’être personnel et puissant. » [www.cahiers- Bernardelli, Mapoteca, Pasta nº4, doc.nº196. Apud WEISZ,
naturalistes.com/Salons/11-05-66.html] Suely de Godoy. “Rodolpho Bernardelli, um perfil do
23
GUANABARINO. A Exposição de Bellas-Artes. In: Jornal homem e do artista segundo a visão de seus
do Commercio, ano 63, n.240, p.1. Rio de Janeiro, 1 de contemporâneos”. <http://www.dezenovevinte.net/artistas/
setembro de 1884. Uma transcrição desse artigo, feita por rb_sgw.htm> Acesso em 1 jul. 2008

168
Pretende-se refletir, neste texto, acerca do
interesse suscitado no âmbito artístico e político
do Estado Novo, por obras de artistas agraciados
com prêmios de viagem ao exterior pela Comissão
Nacional de Belas Artes, ainda nas primeiras
décadas de implantação da República. Trata-se de
equacionar um momento de crença nos projetos
do liberalismo em ascensão e outro em que os
projetos políticos da nação já se distanciavam das
utopias liberais. Pretende-se, portanto, refletir acera
do uso de obras de arte como potencial para
mostrar no exterior uma imagem de Brasil em
tempos de afirmação nacionalista.

A partir de um conjunto de pinturas hoje diluído, na


sua maioria, no acervo do Museu Nacional de Belas
Artes, entre a reserva técnica e diferentes salas
de exposição, que ganhou visibilidade quando da
participação do Brasil na Exposição do Mundo
Português, ocorrida em Lisboa, no ano de 1940,
pretende-se pensar as apropriações na esfera do
poder estadonovista, de parcela da produção
artística brasileira. Na ocasião, um conjunto de
trinta e três pinturas, foi exposto no Stand de Arte
do Pavilhão do Brasil e pretendeu mostrar uma
síntese da arte contemporânea brasileira. No
mesmo espaço também foram mostradas
esculturas e objetos decorativos, no entanto, estes
artistas em trânsito: arte e política na
não serão abordados neste texto.
representação da nação
1
A exposição foi dominada por uma visualidade
luciene lehmkuhl
marcada por certo “academicismo modernizado”,
com ares de um realismo/impressionismo que
agrupou naturezas-mortas, retratos, nus, alegorias
e paisagens que procuravam dar conta de um Brasil
com representações de uma natureza exuberante
e bucólica, com corpos brancos e europeizados.
Um conjunto que pareceu, em princípio, pouco
representativo daquilo que se poderia esperar como
uma amostra da arte contemporânea brasileira em
1940, tendo em conta que a historiografia da arte
brasileira costuma definir a arte praticada no Brasil
nos anos de 1930 a partir das questões sociais
engendradas pelo modernismo2. Quando iniciei as
pesquisas sobre este tema esperava, a partir
dessas premissas, que uma exposição daquela
contemporaneidade trouxesse pelo menos alguns
exemplares do que estava sendo gestado, no
âmbito da arte moderna, naquele período. No
entanto, não foi o que aconteceu.

Entre as pinturas expostas, em parte realizadas


entre os anos de 1920 e 1938, encontram-se pelo
menos nove obras produzidas entre a última
década do século XIX e segunda década do século
XX, são elas: A Copa, c.1905 de Pedro Alexandrino;
Sansão e Dalila, 1893 de Oscar Pereira da Silva;
Retrato de Sílvia Meyer,1912 de Artur Timóteo da
Costa; Abril ou Poesia da Tarde, 1895 de João

169
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

Batista da Costa; Amuada, 1882 de Rodolfo estranheza, tanto quanto deve ter causado no
Amoedo; Pedro Álvares Cabral guiado pela momento em que foi exposta. Esta inclusão e o
Providência, 1899 de Eliseu Visconti; Lindóia, 1916 impacto causado pela pintura de Portinari no meio
de Augusto Bracet; Interior de Ateliê, 1909 de artístico português, foi objeto central do estudo
Carlos Chambelland e Despertar de Ícaro, 1910 de desenvolvido para a elaboração da tese de
Lucílio de Albuquerque. Os artistas, autores destas doutorado que defendi no ano de 2002.
obras receberam prêmio de viagem na Exposição
Geral de Belas Artes, entre os anos de 1878 e 1907 Dos prêmios e das Instituições
(excetuando-se Pedro Alexandrino) e seus
trabalhos foram integrados ao acervo do Museu Durante o Império, a Academia Imperial de Belas
Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro Artes realizou exposições gerais, nas quais
(excetuando-se o de Eliseu Visconti), quando da conferiu, a partir do ano de 1845, prêmios de
sua criação, em 1937. viagem visando o aprimoramento dos seus
melhores alunos em terras européias. No início da
As demais pinturas do conjunto dialogam de certa República, foi realizada uma exposição de caráter
maneira nos aspectos temáticos e/ou de fatura, mais amplo, no ano de 1894, na qual foram
seus autores podem ser agrupados em uma mesma instituídos prêmios independentes das premiações
geração artística que circulava em um mesmo meio acadêmicas, que continuaram a ser oferecidos aos
artístico. Tendo sido alunos da Escola Nacional de alunos, segundo se lê no Guia das Galerias de
Belas Artes, receberam prêmios de viagem ao Prêmios de Viagem (catálogo referente ao acervo
exterior ou ao país, alguns deles tornaram-se do Museu Nacional de Belas Artes, exposto nas
professores na Escola e todos tiveram suas obras instalações do Museu no ano de 1967). A exposição
adquiridas pelo Estado, passando a compor o e a premiação de 1894 são consideradas, portanto
acervo do Museu Nacional de Belas Artes. o primeiro Salão Nacional de Belas Artes, mesmo
Apresento aqui, a relação dos artistas com suas mantendo a designação de Exposição Geral de
respectivas obras expostas no Stand de Arte. A Belas Artes. Apenas em 1934 as exposições gerais
maior parte destas pinturas encontra-se atualmente passaram a ser denominadas Salão Nacional de
no acervo do Museu Nacional de Belas Artes, no Belas Artes, em 1940 foi criada a Divisão Moderna
entanto, algumas delas não foram localizadas até do Salão e em 1951 ocorreu a separação definitiva
o momento. João Timóteo da Costa. Paisagem, entre “modernos” e “tradicionais” com a criação do
1926; Levino Fanzeres. Quietude, 1921; João Salão Nacional de Arte Moderna independente do
Batista de Paula Fonseca. Paisagem do Grajaú, Salão Nacional de Belas Artes.
1928; Vicente Leite. Pinheiros do Paraná, 1936;
Jordão de Oliveira. Mané Preto, 1930; Manuel O “Salão”, marco inaugural das premiações do
Faria. Penacova, 1937[?]; Luís Fernandes de período republicano, abriu suas portas no dia 1º
Almeida Júnior. Lagoa Rodrigo de Freitas, 1931; de outubro de 1894 e no Regimento das Exposições
Manuel Santiago. Casebres e arranha-céus, 1937; Gerais, publicado no catálogo da exposição de
Gastão Formenti. Luz e Sombra, 1935; Henrique 1895, em seus sete capítulos e cento e sete artigos,
Cavalleiro. Vestido Rosa, 1921; Marques Júnior. classifica as premiações em menções honrosas,
No Espelho, 1926; Pedro Bruno. Símbolo das medalhas de três classes (ouro, prata e bronze) e
Praias, 1923; Armando Viana. Nu Deitado, 1929; medalhas de honra, além de normatizar a
Manuel Constantino. Peixes do Mar, 1937; Oswaldo concessão do Prêmio de Viagem ao “artista de
Teixeira. Fim de Romance, 1940 e Cândido qualquer das sessões de pintura, escultura, gravura
Portinari. Café, 1935. Outras obras aparecem de medalha e pedras preciosas ou arquitetura que
apenas listadas nos documentos da Exposição, se distinguir na exposição” (GUIA, 1967), conforme
mas não foram localizadas nos acervos seu artigo 30.
consultados: Rodolfo Chambelland. Retrato de
As obras levadas a Lisboa, expostas no Stand de
Atílio Correa Lima; Navarro da Costa. Sol de Verão;
Arte do Pavilhão do Brasil em 1940, escolhidas pelo
Leopoldo Gotuzzo. Baiana; Renée Lefevre.
júri dentre as obras pertencentes ao acervo do
Mangueiras; Heitor de Pinho. Marinha; Dakir
Museu Nacional de Belas Artes, tentam conjugar a
Parreiras. Paisagem Carioca; Cadmo Fausto. O
relação entre as tradições acadêmicas e uma
Rodeio; Georgina de Albuquerque. A Feira dos
visualidade que se entende como moderna capaz
Arcos.
de compor a imagem do Brasil pretendida na época.
Desta relação de obras apreende-se que o Café Especialmente nos anos de 1930 os intelectuais
de Portinari é presença que parece marcar um brasileiros passaram a direcionar sua atuação para
disparate em relação às demais, causa hoje o âmbito do Estado e assumiram a missão de
“representantes da consciência nacional”. Desta

170
Arte e política na representação da Nação

vez, saídos da “torre de marfim” passaram a ocupar O olhar dos jurados


a “arena política”, vistos como capazes de captar
o “inconsciente coletivo da nacionalidade” a sua As obras expostas denunciam um olhar interessado
“reserva de brasilidade”, na “qualidade de num percurso artístico vinculado à academia que
participantes de um projeto político-pedagógico se moderniza. Artistas que não romperam
destinado a popularizar e difundir a ideologia do definitivamente com os cânones acadêmicos
Estado” (VELLOSO, 2003: 148, 149 e 156). preestabelecidos, antes incorporaram
modernizações trazidas para o seio da academia
O conjunto foi composto por obras que costuma brasileira quando das viagens que empreenderam
ser inseridas, pela historiografia da arte, numa pela Europa, no período entre a última década do
vertente tradicional/acadêmica da arte brasileira, século XIX e o início do século XX. Assim, estas
envolta em ares modernizantes. Interessa pensar, obras ganham importância no seu conjunto, porque
no entanto, o que é este “tradicional/acadêmico” e o conjunto oferece o olhar que o delineou, é o
o que é o “modernizante”. Não se trata das tradições registro material deste olhar, possibilitando uma
acadêmicas interessadas em transpor para o Brasil aproximação à expressão plástica dos ideais de
os cânones da academia francesa na composição um Brasil de 1940. Vejamos, portanto, as
de uma pintura que ajudasse a afirmar a especificidades deste júri para entendermos as
participação do Brasil no âmbito das metrópoles escolhas por ele realizadas.
imperiais, formulação inerente à transferência da
Corte portuguesa e sua instalação no Rio de Janeiro Eliseu Visconti, José Octávio Corrêa Lima, Carlos
e da conseqüente fundação da Academia Imperial Oswald, Armando Navarro da Costa e Oswaldo
de Belas Artes com a chegada da Missão Artística Teixeira foram os responsáveis pela escolha das
Francesa. obras mostradas em Lisboa. Excetuando-se
Armando Navarro da Costa os demais membros
Não se trata, também, das influências da geração passaram pela Academia de Belas Artes e se
acadêmica preocupada em criar uma história para tornaram professores da Escola.
o Brasil independente e, ao mesmo tempo, devedor
de toda uma tradição artístico-cultural européia que, Navarro da Costa pode ter atuado como elo de
em consonância com a literatura, as artes cênicas ligação entre a Comissão formada para organizar
e a historiografia buscasse uma identidade para a a participação brasileira em Lisboa e o júri, pois
jovem nação que ainda não havia feito sua entrada esteve presente nos dois grupos, além de ser filho
na modernidade inaugurada no agitado século XIX. do pintor e funcionário no Consulado brasileiro em
Sabemos que no âmbito das belas artes o debate Lisboa, Mário Navarro da Costa (1883-1931)
foi conduzido pelo pensamento de Manuel Araújo freqüentador dos círculos da arte portuguesa que
Porto-Alegre, pintor, crítico, historiador e diretor da havia sido aluno de Amoedo e participado dos
Academia, que soube fomentar entre professores, salões de Belas Artes.
alunos e bolsistas no estrangeiro o interesse por
uma arte nacional idealizada, cujas temáticas José Octávio Corrêa Lima (1878–1974), escultor e
pautavam-se simultaneamente na história e na professor na Escola Nacional de Belas Artes,
literatura brasileiras, evidenciando a “tradição ingressou em 1892 na Academia, onde estudou
acadêmica mesclada por valores atenuados do estatuária com Rodolfo Bernardelli e desenho com
romantismo e do realismo” (CHIARELLI, 1995: 18 Modesto Brocos e Zeferino da Costa. Em 1899
e 19). obteve o Prêmio de Viagem ao Estrangeiro.

Nem mesmo, se trata puramente do pensamento Carlos Oswald (1882–1971) fez sua formação
da geração que movida pelos ventos abolicionistas acadêmica em Florença, onde vivia com seus pais.
e republicanos procurou imprimir uma marca De volta ao Brasil acompanhando a família,
naturalista/realista à produção artística de caráter participou dos Salões de Belas Artes, obtendo
nacional, visando, sobretudo, a valorização da medalha de prata em 1907, retornou a Florença
pintura de paisagens e de gênero movida, em busca da carreira de pintor. Eliseu Visconti
especialmente, pelo pensamento de Gonzaga- (1866–1944) foi aluno no Liceu de Artes e Ofícios
Duque que procurava “estabelecer uma reflexão e deu continuidade aos seus estudos na Academia
sobre as questões raciais, históricas e sociais do Imperial de Belas Artes a partir de 1885.
país, que teriam determinado o caráter da Juntamente com outros artistas, funda o Atelier
população brasileira e de sua produção cultural em Livre cujos professores eram Zeferino da Costa,
geral” (CHIARELLI, 1995: 24) e que acabou por Rodolfo Amoedo e os irmãos Bernardelli. Em 1892
destacar uma visão pessimista/negativa da nação. obtém o Prêmio de Viagem da então Escola

171
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

Nacional de Belas Artes, seguindo para Paris em sobre o campo da cultura em geral e das artes em
fevereiro de 1893. particular.

Oswaldo Teixeira (1905–1974) fez seus estudos na A Escola Nacional de Belas Artes se configurava,
Escola Nacional de Belas Artes. Expositor nos anos de 1930, como o reduto de resistência
constante do Salão recebeu o Prêmio de Viagem acadêmica no ensino da arte, tanto da pintura, da
em 1924 e visitou diversos países. Esteve bastante escultura, das artes decorativas quanto, após as
vinculado ao regime de Vargas, sendo Diretor do tentativas de reformulação em 1931, da arquitetura.
Museu Nacional de Belas Artes entre 1937 e 1961 Sucessora da Academia Imperial de Belas Artes,
e presidente do Salão Nacional de Belas Artes que havia sido criada em 1826 sob os auspícios
durante nove anos. Neste período aumentou em do rei português então instalado no Rio de Janeiro,
muito o número de seus detratores que o viam cujos interesses recaíam sobre a tentativa de tornar
como responsável pelas decisões e escolhas a cidade adequada à vida da Corte, seus gostos,
realizadas no âmbito da cobiçada seleção para o suas vontades e sua dignidade.
Prêmio de Viagem. Como afirma seu biógrafo,
“supunham os concorrentes que ele mandava O início da Escola foi marcado por conflitos e
ditatorialmente nas premiações. Associavam sua disputas entre os franceses vindos com a Missão
posição ao regime de Getúlio Vargas [sem e os portugueses já instalados no país, que
perceberem que] o Presidente do Salão, porém, reivindicavam, junto ao rei, a primazia na condução
só poderia intervir nas premiações, em caso de da instituição. Com trocas sucessivas de diretores,
empate” (SILVA, 1975: 96). Oswaldo Teixeira seguiu o destino do Império, que de 1880 até a
representou o vínculo da instituição aos ideais Proclamação da República viu-se em processo de
conservadores tanto na esfera política quanto na decadência. Ao mesmo tempo em que
artística, devido à sua filiação a grupos acompanhava as transformações ocorridas na
interessados na manutenção dos ideais artísticos esfera política, passou por transformações no seu
praticados na Escola e das verdadeiras batalhas programa de ensino e nas suas políticas artísticas,
travadas contra os artistas que demonstravam tendo como primeiras reformulações presentes no
algum vínculo com os ideais de renovação na arte decreto assinado por Benjamin Constant, Ministro
e no ensino artístico. do Interior, a troca de nome da instituição para
Escola Nacional de Belas Artes; o afastamento de
O Museu Nacional de Belas Artes foi criado em 13 professores vinculados à monarquia, como Victor
de janeiro de 1937, por Decreto-Lei, e para ele Meirelles e Pedro Américo, e a nomeação de
foram transferidas as obras pertencentes à Rodolfo Bernardelli como diretor e Rodolfo Amoedo
pinacoteca da Escola Nacional de Belas Artes, que como vice-diretor.
vinha sendo constituída desde a vinda da Missão
Francesa e conheceu grande ampliação com os Estas transformações surgiram de disputas
esforços empreendidos por Taunay, quando da recorrentes no âmbito da Academia, desde o ano
criação dos Prêmios de Viagem nas Exposições de 1890, quando ganhou publicidade o conflito entre
Gerais e a obrigatoriedade do envio de obras dos os alunos denominados Positivistas e os alunos
pensionistas que estudavam fora do País. Durante denominados Modernos. Os dois grupos
algum tempo, Museu e Escola dividiram o mesmo pretendiam reformas no ensino artístico, mas os
espaço físico, fator que permite olhar com maior Positivistas, entre eles Décio Villares e Aurélio de
clareza as entrelaçadas relações entre dirigentes, Figueiredo, mais radicais, chegavam a defender a
alunos e professores das duas instituições. extinção da Academia, enquanto Rodolfo
Bernardelli, Rodolfo Amoedo e Zeferino da Costa,
Em tempos de disputa por espaço dentro das entre os Modernos, propunham uma atualização
instituições ligadas ao campo artístico, como nos no ensino. Com a República, o projeto dos
anos de implantação da Nova República e do Modernos encontrou respaldo no meio político,
Estado Novo, percebem-se artistas, escritores e possibilitando aos seus defensores tornaram-se
arquitetos tentando ocupar cargos e trazer para si professores e alunos da Escola Nacional de Belas
e para aqueles com quem compartilhavam sua Artes. No entanto, as transformações republicanas
visão estética e de mundo a possibilidade de trouxeram vagas de descontentamento, como era
interferir e até mesmo de formular novas políticas de se esperar.
culturais para o País. Assim é que instituições como
a Escola Nacional de Belas Artes (ENBA), o Museu Com o advento da Revolução de 30 e as
Nacional de Belas Artes (MNBA) e o Ministério da expectativas de novas possibilidades na conduta
Educação e Saúde (MES) tornaram-se espaços da política educacional e cultural do País, ocorre
privilegiados de interesse para o exercício do poder com a nomeação de Lúcio Costa para o cargo de

172
Arte e política na representação da Nação

diretor da Escola Nacional de Belas Artes, uma do século XIX e durante a primeira década do
tentativa de modernização da instituição, mesmo século XX, não se deixou contaminar pelos ideais
estando estas reivindicações vinculadas às lutas impressionistas, nem pelas idéias de Cézanne,
dos estudantes de arquitetura da ENBA, entre 1928 responsável por uma nova abordagem do gênero
e 1929, cujo clima de intranqüilidade “ensejou uma natureza-morta. Manteve-se fiel aos princípios da
greve e acabou oferecendo a base de apoio academia, trabalhando nos ateliês de pintores
necessária para, uma vez alterada a ordem política acadêmicos e recebendo títulos acadêmicos na
do País com a Revolução de 1930, o jovem França e na Itália. No Brasil, é premiado no Salão
arquiteto Lúcio Costa ser nomeado seu diretor” Paulista de Belas Artes e no Salão Nacional de
(DURAND , 1989: 73). Belas Artes, no qual recebeu medalha de ouro em
1922 e medalha de honra em 1939
Seguindo as transformações implantadas com a (CAMPOFIORITO, 1983: v.5, 76, 78). A presença
Nova República, a Escola passou a integrar a de uma pintura de Pedro Alexandrino na Exposição
Universidade do Brasil, a partir de 1931, com de 1940 parece justificada pela importância
transformações institucionais e no sistema de conferida à sua obra, como marco definidor de
ensino. Mesmo assim, as transformações ocorridas oposição ao modernismo. Pedro Alexandrino, neste
não foram suficientes para contentar a todos, contexto, não é apenas um acadêmico. É um
levando alguns artistas a buscarem novos espaços acadêmico que, em meio à efervescência
de estudo, desencantados com os rumos ainda modernista do início do século XX, opta por se
acadêmicos da Escola que, na década de 1930, manter fiel aos cânones da academia, conseguindo
ainda encontrava dificuldades em propor novas demonstrar sua virtuosidade no gênero de pintura
abordagens ao ensino artístico e mantinha práticas que pratica.
como o estudo do desenho do corpo humano
através de reproduções de esculturas vinculadas PEREIRA DA SILVA, Oscar. Sansão e Dalila. 1893.
ao classicismo artístico e a cópia de obras Óleo sobre tela, 59 x 78,1 cm. Assinada.
importantes de pintura para estudar os efeitos de Procedência desconhecida. Galeria do séc. XIX.
claro/escuro, bem como as soluções pictóricas Museu Nacional de Belas Artes.
encontradas pelos grandes mestres.
Oscar Pereira da Silva (1867–1939) também
O conjunto de obras levados a Lisboa foge em caracterizou um marco nas artes plásticas
muito destes parâmetros, mas as nove obras aqui brasileiras. Foi o último artista detentor do Prêmio
abordadas tangenciam muito de perto estes de Viagem concedido pelo Império, estando na
aspectos, enquadrando-se de uma maneira ou de Europa entre 1890 e 1896, onde atuou nos ateliês
outra nos moldes acadêmicos, sejam eles de cunho de pintores conservadores, não se deixando
histórico, alegórico, romântico ou realista/ influenciar pelo realismo, pelo romantismo, nem
naturalista. pelo impressionismo, dedicando-se aos temas
históricos e também de gênero. No regresso ao
Obras e artistas Brasil, deslocou-se para São Paulo, onde
desenvolveu sua produção plástica e lecionou no
ALEXANDRINO, Pedro. A Copa. c.1905. Óleo Liceu de Artes e Ofícios, filiou-se à linha de Almeida
sobre tela, 213,8 x 178,7 cm. Assinada. Júnior, dedicando-se aos temas locais
Transferência as Escola Nacional de Belas Artes, (CAMPOFIORITO, 1983: v.4, 50). Sua pintura
1937. Reserva Técnica. Museu Nacional de Belas escolhida para a Exposição de Lisboa, Sansão e
Artes. Dalila, foi realizada ainda no tempo em que esteve
em Paris, e em nada se aproxima do mundo
Pedro Alexandrino (1864–1942) realizou sua
brasileiro que se pretendia mostrar em Lisboa.
formação artística em São Paulo, dedicando-se à
Talvez atue como um marco do potencial virtuoso
decoração de interiores, aprendendo com os
acadêmico dos artistas brasileiros, pertencentes à
pintores mestres naquele ofício. Passou pela
geração daqueles formados pela Academia Imperial
Academia Imperial de Belas Artes em 1887, como
de Belas Artes. No entanto, Oscar Pereira não era
bolsista do governo de São Paulo, mas logo
um dos maiores nomes, daquele momento, não
retornou ao seu estado natal. Seu grande mestre,
era dos mais visados e atacados pelos novos rumos
no entanto, foi Almeida Júnior, com quem estudou
da arte. O pintor havia falecido no ano de 1939, e a
até obter uma bolsa do governo paulista para
inclusão de sua pintura na Exposição pode ser vista
permanecer na Europa, ficando por nove anos
como uma homenagem póstuma.
fixado em Paris, participando de salões e
exposições com o gênero de pintura natureza- AMOEDO, Rodolfo. Amuada. 1882. Óleo sobre
morta. Mesmo estando em Paris nos últimos anos tela, (?) x 49 cm. Assinada. Transferência da Escola

173
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

Nacional de Belas Artes, 1937. Gabinete, 4º andar. posteriormente ser diretor da Escola Nacional de
Museu Nacional de Belas Artes. Belas Artes, foi aluno livre da Academia de Belas
Artes e obteve o prêmio de viagem em 1894,
Rodolfo Amoedo (1857–1941), mais velho do que medalha de ouro de segunda classe em 1900 e
Visconti quase uma década, chegou a ser seu medalha de ouro de primeira classe em 1904
professor. Vivenciou o período de transição da (GUIA, 1967). Esteve em Paris freqüentando as
Academia Imperial para a Escola Nacional de Belas aulas livres da Academie Julien e vivenciou a
Artes, onde ingressou como aluno, no ano de 1874, agitação impressionista que ainda influenciava os
depois de ter estudado, também, no Liceu de Artes pintores de passagem por Paris, mas parece não
e Ofícios. Entre outros, teve como professores, ter se deixado levar pelos atrativos das pesquisas
Victor Meirelles, Zeferino da Costa e Agostinho José de luz e muito menos pela dissolução das formas,
da Mota. Recebeu o Prêmio de Viagem em 1878, ao contrário, manteve-se fiel às formas encontradas
seguiu para Paris onde freqüentou a Academie na natureza brasileira com soluções realistas de
Julien e a École des Beaux Arts, teve como mestres representação (FRANCISCO, 1984: 26-30).
Cabanel e Puvis de Chavannes, que muitas marcas Buscava os detalhes e a exatidão, trazendo para
deixaram na sua produção pictórica, sobretudo as telas que pintava a diversidade do meio natural
quanto ao tratamento cromático; “tanto Cabanel brasileiro sem “impor à natureza artifícios
como Puvis eram porém coloristas discretos, e isso cenográficos, (procurando) fazer valer apenas seus
explica, ao menos em parte, o papel secundário encantos mais singelos” (CAMPOFIORITO, 1983:
que desempenha a cor na pintura de Amoedo” v.5, 23). Reconhecido por tratar os verdes em
(TEIXEIRA LEITE, 1988: 26). Como pintor e como gamas variadas sem os radicalismos dos estudos
professor manteve-se fiel aos ensinamentos dos científicos dos impressionistas, recebeu a alcunha
mestres parisienses, “mesmo quando, nas de “poeta do verde”. Batista da Costa, como
primeiras décadas do século XX, [teria] percebido professor de pintura na ENBA, influenciou
que sua obra se desajustava das correntes que profundamente os rumos da pintura de paisagem
começavam a proporcionar à nossa pintura a no País; seus ex-alunos, na Exposição de Lisboa,
aceitação das novas proposições até então acompanharam o mestre lado a lado.
abominadas pelo academismo” (CAMPOFIORITO.
1983: v.4, 41). Sua pintura escolhida para figurar TIMÓTEO DA COSTA, Artur. Retrato de Sílvia
em Lisboa, Amuada, foi realizada durante o tempo Meyer. 1912. Óleo sobre tela, 142 x 72 cm.
em que permaneceu em Paris, inscrevendo-se Assinada. Transferência da Escola Nacional de
entre suas obras elaboradas com grande Belas Artes, 1937. Reserva Técnica - Museu
preciosismo técnico, demonstrando pleno domínio Nacional de Belas Artes.
do desenho e do modelado, escolhendo seus temas
entre aqueles passíveis de apreciação no meio Artur Timóteo da Costa (1882–1923) com a pintura
acadêmico como os temas bíblicos, literários e exposta em Lisboa, possibilita perceber a
históricos, os retratos e os interiores, as cenas de diversidade de caminhos trilhados pelos artistas
gênero e as paisagens, tendo predileção pela figura inseridos nesta vertente acadêmica atualizada.
humana, tema recorrente em sua obra. Artur ingressou em 1894 na Escola Nacional de
Belas Artes, e no Salão de 1906 conquistou o
BATISTA DA COSTA, João. Abril ou Poesia da Prêmio de Viagem, instalando-se em Paris. Nos
Tarde. 1895. Óleo sobre tela, 73 x 126,3 cm. Salões de Belas Artes no Brasil recebeu menção
Assinada. Transferência da Escola Nacional de honrosa em 1905, medalha de prata em 1913,
Belas Artes, 1937. Reserva Técnica. Museu pequena medalha de ouro em 1915 (GUIA, 1967).
Nacional de Belas Artes. Obteve formação artística junto ao cenógrafo
italiano Oreste Colliva, com quem desenvolveu a
Dentre os paisagistas levados a Lisboa, João pintura cenográfica, fator apontado por Teixeira
Batista da Costa (1865–1926) era o grande mestre. Leite como responsável por características
Estudante da mesma geração de Antônio Parreiras, bastante peculiares de dramaticidade, contrastes
Eliseu Visconti, Belmiro de Almeida, Rodolfo de luz e sombras, improvisações e agilidade
Amoedo, Oscar Pereira da Silva e Pedro técnica, aspectos que talvez tenham sido
Alexandrino, falecido em 1926, sua pintura deve responsáveis pelo desagrado das críticas que
ter sido escolhida também como uma homenagem faziam referência à deficiência no desenho, à
póstuma, prestada pelo amigo de viagens, entre a imperfeição no modelado e falhas na volumetria,
cidade do Rio de Janeiro e Petrópolis, Carlos mas que acabaram por confirmar sua
Oswald que bem reconhecia a importância do pintor desobediência aos rígidos cânones acadêmicos
ao pensar em pintura de paisagem do Brasil. Antes (TEIXEIRA LEITE, 1988: 508).
de se tornar professor da cadeira de pintura e

174
Arte e política na representação da Nação

A participação de Artur Timóteo no grupo de segundo grau em 1905, grande medalha de prata
pintores, escultores e arquitetos responsáveis pela em 1913, pequena medalha de ouro em 1922,
decoração do Pavilhão do Brasil na Exposição grande medalha de ouro em 1923. Sua pintura
Internacional de Turim em 1911, inscreve-o no rol selecionada para a exposição de Lisboa representa
dos artistas que tomavam sua atividade como um um ateliê europeu, provavelmente parisiense,
ofício voltado mais a uma prática de artífice do que podendo ser o seu próprio; não aborda, portanto,
a um procedimento intelectual. No entanto, ali nenhum aspecto da vida brasileira, apenas salienta
entrou em contato com a obra de Puvis de o percurso de um artista e seu contato com a arte
Chavannes, cujas pinturas murais muito haviam de um centro irradiador de cultura. Possui, no
impressionado seu colega de ofício em Turim, entanto, obras marcadamente nacionalistas
Carlos Oswald que comenta, na sua autobiografia, referentes, sobretudo, ao período que esteve em
o quanto o contato com a obras de Puvis o alertou Recife, logo após retornar da Europa, realizando a
para a importância de Giotto em relação à pintura decoração da igreja das Graças e do Colégio da
mural, já que se inspirava nos pintores da Estância. É a esta estada que se reporta como a
Renascença e procurava “imitar a pátina do tempo oportunidade de sentir o “verdadeiro espírito da
que tudo harmoniza com tintas quentes esbatidas, nacionalidade, o orgulho de ter nascido aqui. O rio
misteriosas” (OSWALD, 1957: 29). e o sul do país estão muito trabalhados pela
influência estrangeira, e o cosmopolitismo
VISCONTI, Eliseu. Pedro Álvares Cabral guiado absorveu-nos tanto, que hoje, somente no Norte,
pela Providência, 1899. Óleo sobre tela, 182 x se nos depara, em sua pureza inicial, o sentimento
105 cm. Pinacoteca do Estado de São Paulo. da pátria aferrado à tradição, aos costumes, à
vibração da alma do povo”. (TEIXEIRA LEITE,
Eliseu Visconti (1866-1944) foi membro do júri que 1988: 118).
selecionou as obras levadas a Lisboa e teve uma
de suas obras incluída na exposição. A escolha ALBUQUERQUE, Lucílio de. Despertar de Ícaro.
recaiu sobre uma obra de temática histórica, 1910. Óleo sobre tela, 146,5 x 201,7 cm. Assinada.
bastante condizente com o evento comemorado, Transferência da Escola Nacional de Belas Artes,
os centenários de Portugal e a presença do Brasil 1937. Reserva Técnica – Museu Nacional de Belas
a reafirmar as relações bem sucedidas das duas Artes.
nações. Em Cabral, título dado à pintura no álbum
do Pavilhão do Brasil, o artista demonstra sua Lucílio de Albuquerque (1877–1939) em 1906
peculiaridade no tratamento do tema. O navegador conquista o Prêmio de Viagem e parte para a
é apresentado aos pés da providência, alegoria de Europa, instala-se em Paris, onde freqüenta a
formas femininas, responsável pela chegada das Academie Julien e também o ateliê do decorador
embarcações às terras brasileiras. A marca Grasset. Na Europa pintou o quadro Despertar de
simbolista impressa na obra de Visconti, tomada Ícaro, apresentado no Salão de Bruxelas, como
da admiração por Puvis de Chavannes e pelo homenagem ao primeiro vôo de Santos Dumont.
círculo dos pré-rafaelitas, pode ser percebida em Nesta pintura Ícaro “recém-despertado de seu sono,
outras obras selecionadas que também se observa ao longe, contra a linha do horizonte, o
apresentam como alegorias. esbelto perfil do Démoiselle” (TEIXEIRA LEITE,
1988: 154), pouco nítido, numa aparição
CHAMBELLAND, Carlos. Interior de Ateliê. 1909. atmosférica, e vem marcar o poder humano sobre
Óleo sobre tela, 65,2 x 102 cm. Assinada. a natureza. Antes de retornar ao Brasil, executa
Transferência da Escola Nacional de Belas Artes, um projeto em vitral para o Pavilhão brasileiro em
1937. Reserva Técnica –Museu Nacional de Belas Turim. Torna-se professor na ENBA, em 1916.
Artes. Campofiorito ressalta que, mesmo permanecendo
cinco anos como pensionista na Europa, Lucílio
Carlos Chambelland (1884–1950) foi aluno livre na “não procurou, como era comum aos pensionistas
ENBA, onde estudou com Zeferino da Costa, sendo da Escola, comprometer-se demais com os
lá, mais tarde, também, professor em substituição ensinamentos dos famosos pintores exaltados pelo
ao seu irmão Rodolfo. Em 1907 recebeu o Prêmio apoio oficial” (CAMPOFIORITO. 1983: v.5, 31).
de Viagem e seguiu para Paris, onde se deixou Lucílio recebeu ainda no Salão de Belas Artes
envolver pela obra de Puvis de Chavannes. menção honrosa de segundo grau em 1902,
Participou da decoração do Pavilhão do Brasil na menção honrosa de primeiro grau em 1904,
Exposição de Turim, em 1911, juntamente com medalha de prata em 1907, pequena medalha de
Carlos Oswald, entre outros. Nos Salões de Belas
Artes no Brasil recebeu ainda menção honrosa de
primeiro grau em 1903, menção honrosa de

175
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

ouro em 1912, grande medalha de ouro em 1916 e díspares e, portanto, deslocados ou mesmo
medalha de honra em 1920. desconsiderados nas análises historiográficas mais
tradicionais.
BRACET, Augusto. Lindóia. 1916. Óleo sobre tela,
116,5 x 150,7 cm. Assinada. Transferência da Assim, foi possível pensar o conjunto levado a
Escola Nacional de Belas Artes, 1937. Reserva Lisboa em função da disparidade presente em seu
Técnica – Museu Nacional de Belas Artes. cerne. Foi justamente esta disparidade que permitiu
concluir pela multiplicidade de projetos e
Augusto Bracet (1881–1960) foi aluno de Daniel pensamentos no seio do Estado que se queria
Berard, Amoedo, Zeferino da Costa e Batista da centralizador e se tornou totalitário, porque pouco
Costa na ENBA, onde também foi professor de afeito aos liberalismos e democracias. Termos
pintura, nomeado em 1925 em substituição a João estes em desuso nos anos de entre-guerras, tempo
Batista da Costa, após uma estada na Itália e em em que se esperavam soluções contundentes para
Paris, ao conquistar, no ano de 1911, o Prêmio de problemas gerados em época de crença nas idéias
Viagem. Foi também diretor da Escola em 1938. liberais, como o século XIX. Surgem, então, as
Sua pintura escolhida para figurar no Pavilhão do críticas nacionalistas que atacam diretamente o
Brasil inscreve-se nas temáticas de sua predileção, modelo liberal vigente, percebido como ineficiente
os nus femininos e os temas marcadamente e incapaz de resolver questões prementes, como
literários. Foi um pintor de mulheres, mas mulheres as de cunho social, exacerbadas pelas
belas, não “qualquer mulher”, como afirma um contradições inerentes ao próprio capitalismo. No
crítico em 1942, ao dizer que o modelo sempre foi cerne destas críticas encontra-se o ataque ao
uma preocupação do artista que sabendo da cosmopolitismo da arte, bem como as propostas
raridade de uma mulher completamente bela e que de construção de um Estado forte e muito mais
a perfeição não existe na terra, nenhum crime intervencionista.
pratica “quando repara um ou outro senão da
natureza”. (GOMES, 1942) O Brasil que no século XIX sonhou em acertar seus
ponteiros com o relógio mundial, vivia um processo
A permanência das obras de arte de crescimento econômico com a expansão do
setor cafeeiro, criação de um eficaz sistema de
Estas nove obras quando pensadas em conjunto transportes, crescimento e desenvolvimento das
e, em contraste com as demais obras expostas em cidades, expansão social com a chegada de
Lisboa, produzidas uma ou duas décadas depois, imigrantes europeus e a conseqüente ampliação
permitem pensar a mescla de gostos e padrões do mundo do trabalho, o desenvolvimento das
estéticos presentes no âmbito do Estado Novo. O atividades industriais e dos novos padrões de
conjunto pode ser visto como variado e eclético, produção e consumo. Euforia ou realidade vivida
uma vez que mescla artistas pertencentes a grupos por grupos sociais beneficiados com o novo regime
distintos e obras de diferentes faturas, vínculos republicano, os quais ansiavam por uma
estilísticos e gêneros. modernização imediata a qualquer custo.
Como pensar então este conjunto? O geral e a sua Já nas primeiras décadas do século XX toda euforia
parte aqui destacada? Como vinculá-lo ao despencou das alturas, como no loop da montanha
pensamento vigente no âmbito do Estado que russa, descrito por Nicolau Sevcenko. Com ele, os
ansiava pela criação do homem novo, no seio de sonhos, os anseios, as vontades e os desejos mais
uma nova sociedade e de uma nova nação? As eloqüentes de crescimento sem fim e confiança
respostas, quase sempre fluidas, são elaboradas nas potências individuais de desfizeram como
a partir do pressuposto de que o Estado Novo não nuvens e a nação, ainda em formação, na busca
comporta um único pensamento, uma única visão da sua identidade, em compasso com as nações
de mundo, homogênea e centralizadora como se ditas civilizadas, voltou-se para os discursos que
fez crer na historiografia de viés estritamente prometiam soluções coerentes com a
político. Abordagens historiográficas voltadas à transformação da sociedade e a construção da sua
cultura vêm mostrando, nos últimos anos, a nacionalidade.
multiplicidade de pensamentos inerentes ao
período Vargas. Para tanto tem sido necessário Este cenário político, econômico e social comporta
ampliar o raio de atuação dos objetos de estudo uma imagem material, concreta, formada em boa
da história e consequentemente de consulta aos parte por elementos artísticos como as obras de
documentos, bem como a capacidade de análise, arte produzidas e mantidas nas instituições de
com o estabelecimento de novos vínculos e ensino, de guarda e de exposição. As obras
relações entre elementos vistos até então como agrupadas no conjunto de 1940, exposto em

176
Arte e política na representação da Nação

Lisboa, perpassam justamente este período SEVCENKO, Nicolau. A corrida para o século XXI:
marcado por oscilações e grandes mudanças em no loop da montanha-russa. São Paulo: Companhia
todos os setores da vida pública e privada do país das Letras, 2001. (Virando Séculos; 7). 140p.
que culminou, nas décadas de 30 e 40 do século SEVCENKO, Nicolau. O prelúdio Republicano:
XX, com a aglutinação de diferentes correntes de astúcias da ordem e ilusões do progresso. NOVAIS,
pensamento em torno de um ideal nacionalista. Fernando A. (Coord.) e SEVCENKO, Nicolau (Org.).
Naquele período uma visão crítica da cultura e da História da Vida Privada no Brasil, v. 3 -
sociedade foi substituída por um viés ufanista, República: da Belle Époque à Era do Rádio. São
dando vazão ao estabelecimento de um Paulo. Companhia das Letras, 1998, p. 513-619.
modernismo de cunho conservador que permitiu a SILVA, H. Pereira da. Oswaldo Teixeira em 3ª
participação de complexo e variado arranjo Dimensão – vida, obra e época. Rio de Janeiro:
composto por modernistas, positivistas, Museu de Armas Ferreira da Cunha, 1975.
integralistas, católicos e socialistas, no quadro de TEIXEIRA LEITE, José Roberto. Dicionário Crítico
intelectuais que participaram do regime. de Pintura Brasileira. Rio de Janeiro: Artilivre,
1988.
Neste viés é que se compreende a permanência VELLOSO, Mônica Pimenta. Os intelectuais e a
de obras de arte tão díspares como representantes política cultural do Estado Novo. DELGADO, Lucília
de uma imagem de Brasil no exterior e, sobretudo, de A. N.; FERREIRA, Jorge (org.) O Brasil
a sobrevivência e a circulação de uma produção Republicano – O tempo do nacional-estatismo: do
de obras que comportam as contradições que início da década de 1930 ao apogeu do Estado
marcaram as gerações acadêmicas das últimas Novo. v.2. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
décadas do século XIX e início do XX, além de 2003, p. 147-177.
mesclar distintas visões de Brasil. ZANINI, Walter (org.) História Geral da Arte no
Brasil. São Paulo: Instituto Walter Moreira Salles /
Referências bibliográficas Fundação Djalma Guimarães. 1983. v.2.
180 Anos de Escola Nacional de Belas Artes.
CAMPOFIORITO, Quirino. História da Pintura
Rio de Janeiro: UFRJ, 1998.
Brasileira no século XIX. v.5 e v.4. Rio de Janeiro:
185 Anos de Escola Nacional de Belas Artes.
Pinakoteke, 1983.
Rio de Janeiro: UFRJ, 2001/2002.
CHIARELLI, Tadeu. Gonzaga Duque: a moldura e
o quadro da arte brasileira. DUQUE, Gonzaga. A Notas
arte brasileira. Campinas, SP: Mercado de Letras,
1995. p.11-52. 1
Professora Adjunta do Instituto de História. Universidade
DUQUE, Gonzaga. A arte brasileira. Campinas, Federal de Uberlândia.
SP: Mercado de Letras, 1995. 2
O caráter social e nacionalista atribuído a uma segunda
DURAND, José Carlos. Arte, privilégio e fase do modernismo brasileiro, que teria sido precedida
distinção: artes plásticas, arquitetura e classe por uma primeira fase cosmopolita e de ruptura e precedera
uma terceira fase definida pela expansão e difusão, aparece
dirigente no Brasil, 1855 / 1985. São Paulo:
em textos como:
Perspectiva, 1989. ROSSETTI, Marta. Novas propostas do período entre -
FRANCISCO, Nagib. João Batista da Costa, 1865 guerras. Do Modernismo à Bienal. São Paulo: MASP,
-1926. Rio de Janeiro: Pinakotheke, 1984. 1982. Catálogo da Exposição;
GOMES, Tapajós. Augusto Bracet o artista que ZILIO, Carlos. A questão política no modernismo. FABRIS,
foge do feio e do trapo. 25 jan.1942. Annateresa. Modernidade e Modernismo no Brasil.
GUIA DAS GALERIAS DE PRÊMIOS DE VIAGEM. Campinas, SP: Mercado de Letras, 1994. (Col. Arte: ensaios
e documentos), p. 111-118;
Museu Nacional de Belas Artes. Rio de Janeiro:
AMARAL, Aracy. Arte para quê? A preocupação social
1967. na arte brasileira, 1930 – 1970: subsídios para uma história
LEHMKUHL, Luciene. Entre a tradição e a social da arte no Brasil. 2 ed. São Paulo: Nobel, 1987;
modernidade: o Café e a imagem do Brasil na ZANINI, Walter. Transformações artísticas de 1930 ao
Exposição do Mundo Português. Departamento de período da Segunda Guerra Mundial. ________(org.)
História / UFSC, Florianópolis, 2002. (Tese de História Geral da Arte no Brasil. São Paulo: Instituto
Doutorado). Walter Moreira Salles / Fundação Djalma Guimarães. 1983.
v.2. p.568-614;
OSWALD, Carlos. Como me tornei pintor. Rio de
ZILIO, Carlos. A querela do Brasil – a questão da
Janeiro: Vozes, 1957. identidade na arte brasileira: a obra de Tarsila do Amaral,
PAVILHÃO DO BRASIL NA EXPOSIÇÃO DO Di Cavalcanti e Portinari / 1922-1945. Rio de Janeiro:
MUNDO PORTUGUÊS. Lisboa: Neogravura, 1941. FUNARTE, 1982.
(Álbum).

177
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República
Festa da imagem

Em 30 de março de 1862, a cidade do Rio de


Janeiro assistiu uma de suas maiores festas
cívicas. O motivo era a inauguração da primeira
escultura pública do Brasil, a estátua eqüestre de
d. Pedro I. A promoção da imagem estabeleceu
um novo lugar para a escultura na sociedade,
integrando o Brasil no contexto de uma prática do
mundo ocidental do liberalismo. O Brasil se
aproximou, assim, do que na França seria
conhecido como a estatuamania no fim do século
XIX. 2

Esta inauguração consagrou a afirmação da


escultura pública no Brasil e instalou uma tradição
que atravessou os tempos até os dias de hoje. O
paradoxo dessa situação é que no Brasil da época
não havia condições tecnológicas de realização de
esculturas de bronze fundido em grande escala. É
isso que explica o fato de que a estátua eqüestre
de d. Pedro I só tenha sido erguida décadas depois
de proposta e sua confecção se realizou na França
a partir de um projeto concebido no Brasil. A
evidente limitação tecnológica, no entanto, não
impediu a afirmação da escultura pública como um
elemento importante de mobilização social e
promoção das artes.
a festa da imagem: a afirmação da escultura
pública no brasil do século xix A inauguração da estátua foi organizada como uma
grande festa urbana. Originalmente, prevista para
1
paulo knauss o dia 25 de março, a inauguração da estátua
terminou sendo transferida para o próprio dia 30
de março devido às chuvas fortes típicas da estação
do ano. Mesmo assim, no dia da realização da
cerimônia uma chuva discreta acompanhou os
festejos.

Maria Eurydice Ribeiro de Barros descreve como


a cidade não pôde ficar indiferente a este momento
da vida urbana.3 O anúncio e os preparativos da
festa foram estabelecendo na população uma
grande expectativa. Semanas antes, os curiosos
procuravam a praça para tentar ver o monumento
em construção e admirar as partes do pedestal
expostas. Um motivo de atração a mais eram os
lampiões gigantes, que deveriam servir para
iluminar a estátua e a praça de modo especial para
a época. A imprensa dizia que a luz dos lampiões
transformaria as noites em “dias esplêndidos”,
dando a medida da empolgação da população
urbana. Assim, toda a cidade foi sendo envolvida
pelos preparativos. Importa salientar, que os
lampiões chamavam atenção para a situação da
escultura a ser inaugurada, completando o conjunto
urbano. A implantação da obra de arte pública
colocava a imagem do imperador de frente para a
rua da Imperatriz, dirigindo-se para o portão
principal da Academia Imperial das Belas-Artes, na

178
A afirmação da escultura pública no Brasil do século XIX

outra ponta da rua. De outro lado, a rua 7 de princesas imperiais para se apresentar à
setembro, com a data da Independência do Brasil população. Ao final, se juntou ao cortejo a comissão
conduzia até a praça da estátua, estabelecendo a responsável pela mobilização pública em torno da
ligação com a antigo largo do Paço, onde se construção da estátua. Toda organização foi
localizava a sede de governo e a região mais marcada pela exposição das insígnias imperiais.
freqüentada da cidade. A escolha do local e da O ritual serviu, assim, para a promoção da imagem.
posição da peça, evidentemente, não foram
aleatórias e acompanhava o plano de remodelação Ao chegar à praça da estátua, a população cercou
daquela área urbana, que se transformaria na praça a estátua, enquanto as autoridades oficiais se
da Constituição, tendo a escultura monárquica ao posicionaram na varanda do Teatro São João, o
centro. maior da cidade na época. Desse lugar de
destaque, a ordem institucional do país era
Para a inauguração, a imprensa anunciou o aluguel afirmada pela reunião do imperador e da família
de cômodos com janelas e cadeiras para assistir imperial, dos representantes políticos das
os festejos com conforto, dando a dimensão do assembléias provinciais e da Câmara Municipal e
poder de atração da festa organizada para a estátua dos membros do corpo diplomático e consular.
do imperador. O horário dos trens foi adaptado, Tropas militares procederam, em seguida, à
de modo a garantir a presença do maior número apresentação de armas. Depois disso, ao som do
de interessados. A multidão parece ter tomado hino da independência, acompanhada do
conta da cena, como se vê em gravura de época. imperador, a comissão promotora se dirigiu para
O comércio foi contagiado e ofereceu aos junto da estátua descerrar o pano que a cobria.
consumidores diversos artigos. A imagem do Seguiram-se vivas à independência nacional,
imperador apareceu estampada em pesos de vidro repetidos pela multidão presente. Um Te Deum
para papel, desenhos, hinos e gravuras vendidos complementou a cerimônia oficial com um ato
nas lojas, entre outros tantos produtos. O comércio religioso e concentrou as atenções sobre um altar
teve, também, participação importante na construído na praça. Na seqüência, assistiu-se à
decoração da cidade oferecer folhas de mangueira, leitura de discursos políticos que marcaram o
cedro e canela para embelezar a arquitetura evento. Ao final, a tropa seguiu em marcha de
urbana. Além disso, as lojas ofereceram acessórios continência acompanhada do som de bandas
para baile e teatro, como cintos, luvas, leques que marciais que tocaram o hino nacional. Nessa altura,
vinham com uma estampa do monumento, bem ao destacar o papel das autoridades oficiais na
como artigos de toalete, que caracterizavam a cerimônia de inauguração, explicitava-se que
ocasião como de grande gala. O movimento da mobilização social em torno da imagem afirmava
cidade afirmava a festa da imagem. a ordem institucional do Estado nacional. O rito
definiu o caráter cívico da escultura envolvida pela
Mesmo com a mudança da data da inauguração, o mobilização social em torno da imagem escultórica.
programa previsto foi mantido com pequenas
alterações, como se pode acompanhar nas páginas A descrição de toda a cerimônia de inauguração
do Jornal do Comércio - o principal veículo da da estátua de d. Pedro I indica que o rito social
imprensa da época. No início do dia, as fortalezas, envolveu a imagem. O que chama atenção é o
que ocupavam posição de destaque na paisagem potencial da escultura pública para mobilizar a
da cidade, apareceram embandeiradas, salvas sociedade. É no processo de ritualização que a
militares foram lançadas e repiques de sinos escultura se apresenta ao olhar.
soaram na cidade para anunciar a cerimônia que
se preparava. Um desfile triunfal foi organizado, Ritualização da Imagem
reunindo diversas autoridades apresentadas em
alas. À frente representantes da Justiça e da polícia: A cerimônia de inauguração da estátua eqüestre
juízes de paz, delegados, comandantes e oficiais de d. Pedro I, porém, apenas completava um longo
de polícia, notários públicos, procuradores. processo de ritualização da imagem caracterizado
Reuniram-se, ainda, diversas alas que por várias etapas.
representavam diferentes comissões, além de
A idéia original da escultura foi promovida em 1825
políticos e de membros da Igreja: deputados,
na Câmara Municipal do Rio de Janeiro depois de
seguidos de vereadores, ministros, conselheiros de
sugerida no folheto Despertar Constitucional. A
Estado, homens da Corte, prelados e bispos.
iniciativa da instituição política municipal, que foi o
Completavam ainda o cortejo, os membros da
centro político do processo de Independência
Câmara Municipal que carregavam o pálio, sob o
nacional, obteve autorização do próprio imperador
qual se colocaram o Imperador, a Imperatriz e as
d. Pedro I. O local então definido para instalar a

179
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

escultura foi o Campo de Santana, área onde havia De resto, a instalação da estátua foi demarcada,
sido realizada a cerimônia de aclamação do também, pelo ritual de lançamento da pedra
monarca em 1822. O arquiteto Grandjean de fundamental, em 12 de outubro de 1855, data do
Montigny chegou a preparar dois projetos de padrão aniversário de Pedro I, que foi acompanhada pelo
neoclássico. As mudanças políticas da época, que enterro no local da pedra fundamental de uma caixa
levaram à impopularidade do imperador e sua com medalha da estátua, moedas dos reinados de
abdicação, em 1831, acabaram por inviabilizar o Pedro I e de Pedro II, o auto da estátua e a versão
projeto.4 original da Constituição. A inauguração, que fora
prevista para o dia 25 de março, data de aniversário
O projeto da escultura é retomado no ano de 1839 da primeira Constituição nacional, mas que
por uma comissão promotora da iniciativa que terminou se realizando apenas no dia 30 de março
lançou uma subscrição pública para arrecadar completou o processo de promoção da imagem.7
fundos para o projeto, tal como se verifica em
prospecto de época.5 Isso ocorreu um ano antes Assim, observa-se que a promoção da imagem
do chamado Golpe da Maioridade, que conduziria obedecia a um padrão demarcado por várias
ao trono o imperador d. Pedro II, antes do previsto. etapas, iniciando-se pela proposição pública da
Não se pode considerar uma coincidência o fato idéia, pela organização da iniciativa por meio da
da retomada do projeto da escultura pública do nomeação de uma comissão promotora da
primeiro monarca do Brasil, que representa a imagem, seguindo-se a mobilização social em torno
política do centralismo monárquico, tenha voltado da subscrição pública, da instalação do concurso
à baila justamente no momento de crítica à ordem público de seleção de projeto, pelo lançamento da
regencial de tom federalista. Assim, o sentido pedra fundamental e pela cerimônia de inauguração
político implícito à imagem colabora na moldagem da escultura pública. A promoção da imagem
da imagem escultórica. terminou, portanto, caracterizando-se como um
largo processo de ritualização da escultura na
O projeto da estátua do imperador só seria cidade.
definitivamente retomado pela Câmara da cidade
do Rio de Janeiro em 1853, a partir da nomeação Nesses termos, a compreensão da história da
de uma nova comissão de promoção e execução escultura pública não se basta nela mesma, pois
da escultura. O projeto recebeu, ainda, no ano sua concepção não pode ser isolada do processo
seguinte o apoio do Instituto Histórico e Geográfico social de moldagem que envolve a escultura
Brasileiro, a primeira instituição acadêmica do país ritualizada.
que se dedicava a promover a história nacional e
que se manifestou cobrando das autoridades a Construção narrativa
continuidade do projeto adiante. Assim, o projeto
tinha um pilar no mundo do governo, mas O conjunto escultórico inaugurado em 1862 na
igualmente um outro apoio na sociedade civil cidade do Rio de Janeiro marcou a história da
definindo o espaço de sua promoção. escultura no Brasil. Não apenas por seu tamanho,
materiais nobres e qualidades artísticas. A estátua
Após a organização da comissão de promoção da eqüestre de d. Pedro I , também, abriu a era da
imagem e do lançamento da subscrição pública, escultura cívica de lógica monumental que
em 1855 ocorreu o lançamento do edital publicado mobilizava a sociedade em torno do culto da nação.
em vários jornais que anunciava o processo de A marca destas imagens é se caracterizarem,
seleção do projeto escultórico. O concurso teve 35 também, como representações do passado que
trabalhos inscritos, e três selecionados e afirmam leituras da história.
premiados. O primeiro lugar, no entanto, foi
concedido ao projeto reconhecido pelo anagrama Importa destacar que há uma estrutura narrativa
Independência ou Morte, de autoria de João que define a composição geral sob a lógica do
Maximiano Mafra (1823-1908), professor de pintura monumento. No caso da estátua de d. Pedro I, o
histórica da Academia Imperial das Belas Artes – conjunto é simétrico, de base quadrangular com
AIBA, principal centro da criação artística do Brasil aspecto octogonal devido aos cantos chanfrados.
no século XIX. Os outros projetos selecionados A composição escalonada se organiza a partir de
foram os de Luiz Jorge Bappo e Louis Rochet. um gradil de proteção, uma base de cantaria, um
Diante das dificuldades técnicas de realizar o pedestal e a estátua, propriamente dita. O gradil
projeto no Brasil, o artista francês Louis Rochet foi de ferro compõe um octógono que cerca a escultura
escolhido para desenvolver o projeto vencedor em e traz em cada coluna, a inscrição de uma data
seu ateliê na cidade de Paris.6 que demarca os principais fatos da história da
independência e da afirmação do Estado nacional;

180
A afirmação da escultura pública no Brasil do século XIX

o pedestal em granito apresenta em cada um de pela segunda imagem, constituindo um circuito


suas faces laterais alegorias de bronze que narrativo que unia duas praças importantes na vida
representam os rios do país – Amazonas, Madeira, urbana, constituindo um texto urbano.
Paraná e São Francisco – associando a imagem
de índios e animais esculpidos em bronze; no alto Este vínculo entre as duas peças já estava
do pedestal, antes da estátua, contorna a peça os explicitado no documento da subscrição para
brasões das vinte províncias imperiais, e, realizar as duas estátuas, referindo-se a “dois
finalmente, encimando o conjunto, a estátua monumentos em memória do Senhor d. Pedro I e
eqüestre do imperador em trajes militares sem de seu ministro e conselheiro José Bonifácio de
insígnias monárquicas, com um braço esticado que Andrada e Silva”.9 A mesma fonte afirma, ainda,
traz na mão um livro, que representa o Manifesto que as estátuas seriam capazes de levar “a mais
das Nações, documento importante do processo remota posteridade a memória destes dois varões
de Indpendência nacional de 1822. Mesmo o livro insignes”. A citação indica que a definição da
sendo de proporções pequenas, chama atenção escultura como monumental estava baseada na
pelo fato de ser o único elemento fora do eixo caracterização da escultura pública como recurso
principal da composição simétrica, destacando-se da arte de memória. Mas, ao lado disso, o
do conjunto. Na face principal, na cimalha do documento afirma um princípio de gratidão que
pedestal, abaixo da estátua, aparece um escudo estabelece a base afetiva da lembrança e
com a inscrição D. Pedro I, gratidão dos brasileiros.8 estabelece o vínculo entre passado e presente. O
prospecto de lançamento da subscrição dizia, em
A estrutura narrativa da escultura monumental se certa passagem, que “a história das nações
evidencia ao relacionar tempo, espaço e sujeito da consagra [...], o nome daqueles homens que [...]
história, afirmando um enunciado-chave. O tempo se tornarão credores da veneração de seus
da história aparece na cronologia inscrita no gradil; concidadãos da humanidade”, e termina afirmando
o espaço da história é tratado no pedestal pelas que “os povos agradecidos os transmitem de pais
alegorias dos rios nacionais e pelos brasões das a filhos”. Portanto, evidencia-se que a promoção
províncias imperiais; o sujeito da história e o da escultura pública operava a lembrança do
produto de sua ação se inscrevem na estátua do agradecimento para justificar o presente como
imperador com o documento da Independência na continuidade do que passou e sacralizando o objeto
mão. Há assim, claramente a demarcação do da memória.
tempo, do espaço e do sujeito da história para
contar a história da afirmação do Estado nacional, Ocorre que a construção da narrativa fixada na
por meio da escultura. A chave de leitura da história escultura pública não ocorre no isolamento do
se afirma, no entanto, pela inscrição do enunciado artista em seu ateliê. Antes do concurso, no
da gratidão, que explica a razão do culto da imagem processo de estabelecimento da comissão
e a lembrança do passado no presente. Explicita- promotora da imagem, numa sessão do IHGB de
se um certo uso do passado que afirma o caráter 1854 que Joaquim Norberto de Sousa e Silva
cívico da história e da arte, definindo a escultura propôs, pela primeira vez, relacionar o projeto da
monumental como imagem do civismo. estátua à história da Constituição e da afirmação
do regime monárquico. Como indica Iara Liz
Cabe anotar, ainda, que a proposta de subscrição Carvalho Souza10, é a partir daí que a discussão
pública de 1839, ainda que tivesse como foco ultrapassa o âmbito do IHGB e alcança o debate
principal a estátua do imperador d. Pedro I, na Câmara e nas páginas de jornais. É nessa altura
propunha erguer, também, uma segunda estátua que Araújo Porto-Alegre – membro do IHGB e
homenageando o Patriarca da Independência, José professor da AIBA - defendeu em O Guanabara a
Bonifácio. Esta estátua seria inteiramente opção pela solução eqüestre, associada ao gesto
concebida e realizada por Louis Rochet, na França, que traduz o ato da independência, fixado na pintura
e inaugurada no Rio de Janeiro em 7 de setembro desde a década de 1840 com o quadro de François-
de 1872, por ocasião das festividades do René Moreau11. De todo modo, o debate definiu o
cinqüentenário da Independência. Enquanto o programa da escultura realizada, que se afastou
imperador foi representado a cavalo trazendo o das orientações originais de Grandjean de
documento da Independência para simbolizar a Montigny, caracterizando uma operação seletiva de
afirmação do Estado nacional, José Bonifácio foi modelos. A concepção final conseguiu sintetizar as
representado como intelectual cercado de alegoria duas associações propostas por Joaquim Norberto
das virtudes clássicas, simbolizando a razão de de Sousa e Porto-Alegre ao fixar a imagem
Estado. As duas imagens se completavam, e a eqüestre do imperador no gesto de lançar uma mão
promoção da primeira imagem se estendida, assim, ao alto segurando um livro, associando de modo

181
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

Por sua vez, um opúsculo anônimo circulou na


original o ato que encarna a proclamação da mesma época da publicação do texto de Teophilo
Independência. Ottoni para contestá-lo, apoiando-se na condição
de testemunho dos fatos e defendendo a posição
Essas referências permitem indicar que a criação
de que Pedro I atuou no interesse dos brasileiros,
do escultor dialogava com as propostas que
sublinhando, porém, que a explicação da
emergiram no debate público sobre a imagem,
independência nacional residia no fato de que com
produzindo um contexto de autoria compartilhada
o retorno da Corte a Portugal, não havia como o
que contribui para definir o caráter público da
Brasil retornar à condição de colônia lusitana, sendo
escultura que vai além do fato de se localizar em
as Cortes de Lisboa, portanto, o verdadeiro centro
área urbana.
dos acontecimentos.12
Importa, ainda, anotar que os documentos de
De todo modo, o que interessa sublinhar é que a
referência do projeto cumpriam uma função de
promoção da escultura se realizava num ambiente
definir os conteúdos daquilo que a escultura deveria
de debate e disputa de sentidos, contrapondo
traduzir plasticamente, buscando controlar a
diferentes leituras da história. A polêmica, ou
concepção e a interpretação da imagem. Assim,
melhor, a polemização provocava o olhar sobre a
no entrelaçamento intertextual da escrita e da
imagem escultórica.
cidade se antecipa a obra e a narrativa escultórica.
Desafio do tempo
Leituras da história
A promoção da estátua do primeiro imperador do
A inauguração e a exposição pública da estátua do
Brasil lançou um modelo de mobilização social que
imperador provocaram reações que traduzem
relacionava usos da imagem e usos do passado
dimensões da apropriação pública da imagem. No
na cidade. Seu exemplo serviu para inspirar, em
dia da inauguração um poema de Luiz Vicente de-
1870, a proposta de se erguer uma estátua ao
Simoni foi apresentado, associando Pedro I e
segundo imperador do Brasil, d. Pedro II.13 O motivo
Tiradentes numa combinação especial que não
era celebrar a vitória militar do Brasil na Guerra do
contrapunha os dois personagens da história
Paraguai, que finalmente chegara ao fim depois
nacional. A sobreposição era reforçada pelo fato
de 5 anos de conflito militar.
de que o logradouro em que se instalou a imagem
do imperador foi o lugar do martírio do herói da O projeto da estátua eqüestre de d. Pedro II teve
Inconfidência Mineira. Um fio condutor da história como origem um modelo em gesso de Francisco
era articulado por meio da lembrança do passado. Manuel Chaves Pinheiro, professor de escultura da
Nas páginas do Diário do Rio de Janeiro, no dia da Academia Imperial das Belas Artes, apresentado
inauguração Teophilo Benedicto Ottoni, por sua vez, na Exposição Geral de Belas Artes, conforme ofício
manifestava sua oposição à iniciativa de promoção de 24 de janeiro de 1866, em que se solicitava
da estátua, considerando que Pedro I não era digno pagamento dos custos da execução do modelo.
da homenagem, colocando o personagem assim Poucos anos depois, segundo a documentação da
no centro de controvérsia histórica. Ottoni Academia Imperial das Belas Artes – AIBA, dizia-
questionava o fato de que a independência não era se que a escultura perturbava o cotidiano da
obra de um único nome, sublinhava o fato de que instituição devido às suas proporções e ao ocupar
a Constituição imperial foi obra outorgada e não o centro da pinacoteca, onde esteve para ser
uma construção da Assembléia Constituinte, e completada a execução da peça. Finalmente, a
levantava a hipótese de que o processo de obra foi colocada no vestíbulo da entrada do
abdicação foi antes um ato popular liderado pelo edifício, onde ficou a partir de 1874, depois de
partido liberal. Além disso, o autor celebrava as adquirida pelo governo. Em junho de 1882, o diretor
inconfidências e o movimento pernambucano de da AIBA solicitou autorização para remover a
1817, destacava a importância de José Bonifácio estátua de d. Pedro II, tendo em vista as obras do
no processo de independência e terminava por edifício da academia, aconselhando que fosse
contrapor Tiradentes a d. Pedro I, insistindo na colocada no edifício do ministério da Guerra. Com
dissociação dos dois personagens. De modo isso, a imagem do imperador foi transferida para o
semelhante, no ano seguinte à inauguração da asilo dos Inválidos da Pátria, onde se achava o
estátua do imperador, Homem de Mello publicou, museu militar, localizado na ilha do Bom Jesus,
ainda, um texto reavaliando d. Pedro I como desativado em 1915. Já nessa época de período
personagem histórico responsável pela dissolução republicano, houve a intenção de transferir a
da assembléia e pela afirmação de uma Carta escultura para outro local da cidade do Rio de
Magna outorgada, condenando-o pelo despotismo. Janeiro, colocando-a na praça XV de Novembro.

182
A afirmação da escultura pública no Brasil do século XIX

Rejeitada pela então Escola Nacional de Belas seria expressão da vitória brasileira e, ao mesmo
Artes (sucessora da AIBA), a peça foi esquecida tempo, de afirmação da identidade política do
onde ficou até ser transferida para o Museu Império do Brasil, definida por contraste em relação
Histórico Nacional, em 1922, por iniciativa do diretor à tirania. A contraposição vitoriosa definia a
Gustavo Barroso.14 qualidade e a supremacia do regime imperial e do
Estado nacional brasileiro. E a figura do imperador
Assim, enquanto o projeto da estátua eqüestre do encarnava estes pressupostos, o que explica o
primeiro imperador foi desenvolvido e inaugurado gesto da estátua.
com grande festa urbana, o projeto da estátua de
d. Pedro II nunca foi completado. Esse percurso é A notícia da vitória militar nacional na Semana
apenas um entre os muitos contrastes entre as Ilustrada de 20 de março de 1870 repete os
duas imagens dos imperadores do Brasil. A força mesmos elementos que caracterizam o discurso
das duas imagens está no gesto da mão das duas compartilhado socialmente. A revista atribuía a
figuras. Enquanto d. Pedro I é representado em vitória à ação patriótica de “bravos inexcedíveis”,
gesto de conquista, erguendo uma das mãos, na capazes de vingar a honra do país ofendido pela
estátua eqüestre de d. Pedro II a figura do tirania. Na leitura da mesma notícia do fim da guerra
imperador estende a mão apontando para baixo. interessa sublinhar que a vitória nacional é atribuída
Ao celebrar a vitória militar, a mão estendida da também às qualidades do imperador: “tenacidade,
escultura caracteriza a generosidade do vencedor perseverança, e robusta fé na santidade da causa
e a solidariedade ao inimigo abatido. O gesto das que defendia realizou o símbolo do varão forte”.
mãos, portanto, distingue as duas imagens dos Ele, ao lado dos “bravos inexcedíveis” da frente
imperadores. Uma aproxima a estátua dos céus, e militar, encarna a vitória sobre a tirania, que traduz
a outra aproxima a imagem do expectador. Uma o movimento da Guerra do Paraguai. A notícia,
apresenta um imperador que lidera os cidadãos porém, terminava clamando por “um brado
pela sua dianteira e destaque; a outra apresenta uníssono de gratidão ao nosso imperador”.
um imperador que procura estar ao lado da sua
gente. O princípio da gratidão caracteriza a notícia e o
tratamento da imprensa sobre a vitória da guerra
Importante é notar que a elaboração do projeto da na Semana Ilustrada, o que revela sua força na
estátua eqüestre de d. Pedro II foi anterior à leitura da história e no discurso político da época.
iniciativa de sua promoção pública. A Por outro lado, observa-se também o destaque
documentação não ajuda a entender como o dado ao papel do imperador, pois a gratidão é
modelo de 1866 se transformou no elemento do claramente dirigida a ele, como agente principal
projeto do monumento à vitória. De todo modo, a da história nacional. Esse mesmo princípio foi
campanha de promoção da escultura de Chaves reafirmado no projeto do monumento cívico que
Pinheiro foi lançada pelo jornal Diário do Rio de corporificava a memória da vitória na Guerra do
Janeiro e anunciada no dia 19 de março de 1870. Paraguai na figura do imperador.
A matéria se completava ao aclamar a comissão
responsável pela iniciativa de organizar o Porém, no mesmo dia da divulgação do projeto da
movimento de promoção da imagem urbana, estátua, o imperador d. Pedro II surpreendeu a
anunciando o surgimento de outras comissões todos apresentando uma carta pública, depois
regionais por todo o país “(...) pelos nacionais e publicada no mesmo Diário do Rio de Janeiro e no
estrangeiros amigos das glórias da grandeza e da Jornal do Comércio, recusando a homenagem, em
integridade do Império”. Claramente, a imagem se favor da idéia de construção escolas pública,
consagrava à afirmação do Estado monárquico argumentando que:
nacional.
Se querem perpetuar a lembrança do quanto
A análise da documentação de época, guardada confiei no patriotismo dos brasileiros para o
no arquivo do Museu Nacional de Belas Artes, no desagravo completo da honra nacional e
Rio de Janeiro, permite verificar claramente a prestígio do nome brasileiro. [...] O senhor e
relação da imagem com o regime político imperial, seus predecessores sabem como sempre
pois se fala diretamente de sua associação com a tenho falado no sentido de cuidarmos da
glória, a grandeza e a integridade do Império. Por educação pública, e nada me agradaria tanto
outro lado, o monumento era afirmado como a ver a nova era de paz firmada sobre conceitos
símbolo da vitória da Guerra do Paraguai, definida de dignidade dos brasileiros começar por um
como uma luta contra a tirania, identificada com o grande ato de iniciativa deles ao bem da
chefe político do país inimigo. A intenção de utilizar educação pública.15
a matéria do bronze obtida pelo botim de guerra,

183
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

Com isso, o imperador sublinhava, de um lado, que De fato, na contramão da proposta do monumento,
sua contrapartida ao princípio da gratidão do povo, ainda no mesmo ano de 1870, o imperador
era a confiança nos brasileiros. Sem abrir mão, participou do lançamento da pedra fundamental das
portanto, do princípio da gratidão do povo que primeiras escolas municipais que foram
reforçava sua autoridade, d. Pedro II dirigia seu inauguradas na cidade do Rio de Janeiro, então
pensamento à “nova era de paz”. Desse modo, o Corte imperial. As primeiras escolas inauguradas,
imperador não rejeitava apenas um monumento, em 1872, foram as escolas municipais São
mas rejeitava a idéia de celebrar o passado de Sebastião (posteriormente chamada Benjamin
guerra. Além disso, para traduzir a era de paz como Constant e, finalmente, demolida nos anos 40 com
momento de afirmação da “dignidade dos a abertura da av. Presidente Vargas), localizada
brasileiros”, na visão do imperador, a melhor forma em Santana; e a São Cristóvão (depois chamada
parecia ser a consolidação da educação pública e Gonçalves Dias), localizada no bairro de mesmo
não a escultura pública. nome. Distribuídas por diferentes áreas da cidade,
as escolas conjugavam uma “localização nobre e
Na imprensa, o ministro do Império, Paulino José uma arquitetura de certa imponência e erudição”,
Soares de Souza, acompanhava a posição do conforme caracteriza Rachel Sisson (1990),
imperador ao manifestar, em 21 de março de 1871, “compatível com a sua condição de homenagem
sua posição contrária à idéia do monumento a partir substituta ao Imperador”. As escolas municipais
dos “elevados sentimentos do imperador” e “os erguidas nos anos 70 e 80 do século XIX foram
patrióticos intuitos de sua majestade”. O ministro envolvidas pela solenidade imperial a partir dos
defendia o desejo do governo em promover o rituais de lançamento da pedra fundamental e de
“adiantamento intelectual e moral da nação”. Nesse inauguração, marcados pela presença e
sentido, considerava que a melhor forma de participação do Imperador. Sua promoção repetiu,
promover o interesse do “progresso nacional” era então, a ritualização da história que caracterizou a
aplicar o vigor da iniciativa dos cidadãos na promoção de monumentos cívicos na mesma
instrução pública, assinalando o novo tempo da época.
“volta da paz”. A educação aparecia então como
uma das chaves do progresso nacional. No Parlamento, não tardaram as manifestações
dos representantes legislativos. José de Alencar,
Alguns dias após a manifestação pública de d. em maio de 1870, tratou o tema como uma
Pedro II em que recusava a homenagem da ingerência do imperador no poder legislativo, uma
escultura pública monumental, a Câmara Municipal vez que já havia sido aprovado o financiamento da
do Rio de Janeiro também expressou seu apoio ao elevação da escultura pública. Além disso, criticou
imperador, e defendeu o projeto das escolas como a proposta do ministro da Guerra de promover
“base primordial do futuro dos povos [...]” (Escolas festejos populares com o dinheiro da subscrição
Municipais. Diário do Rio de Janeiro, 5 de abril de do monumento, considerando que a festa
1870.). Claramente, o comentário sublinhava o espontânea já havia se realizado após a guerra.16
papel do futuro na compreensão da história Na sessão seguinte, porém, o parlamento
nacional. acompanhou a decisão do imperador e do seu
ministro da Guerra. Outra matéria publicada no
Chama atenção nessas manifestações de defesa Jornal do Comércio de 24 de março de 1870 aponta
de um projeto alternativo ao monumento, que o os desdobramentos da querela. Aí se reivindicava
pensamento sobre a história se desloca. Enquanto a implantação do “ensino livre” como elemento para
o projeto da estátua monumental se caracterizou a prosperidade e para a felicidade a partir do
por valorizar a guerra, o projeto alternativo insistiu exemplo dos EUA, afirmando-se ser a “alavanca
na paz. Nesse sentido, não era o passado da guerra mais poderosa do que estradas de ferro e telégrafos
que interessava sublinhar, mas o futuro de paz que elétricos”. Nesse caso, o que se colocava não era
se colocava em questão. Além disso, enquanto o uma crítica à recusa do imperador, ou à leitura da
primeiro projeto relacionava passado e presente, história do progresso, mas uma discussão sobre o
o projeto de construção de escolas visava modelo de instrução pública. A discussão sobre a
relacionar o presente com o futuro. Passado e estátua provocou, portanto, um questionamento
futuro correspondiam, assim, ao binômio de guerra sobre os limites do poder do chefe de Estado.
e paz. Por sua vez, a memória não era mais dirigida
para perpetuar o passado no presente, mas para Contudo, além do projeto das escolas públicas, a
antecipar um futuro diferente do passado por meio estátua eqüestre de d. Pedro II enfrentou a
da promoção do progresso no presente. O projeto concorrência de dois outros projetos de escultura
das escolas tinha, assim, o progresso como o pública para a celebração da vitória militar. Ambos
conceito-chave da leitura alternativa da história.

184
A afirmação da escultura pública no Brasil do século XIX

se encontram na Coleção Thereza Cristina da De todo modo, o projeto da estátua eqüestre de d.


Divisão de Iconografia da Biblioteca Nacional do Pedro II evidenciou a dificuldade de representar o
Rio de Janeiro. Um deles é de autoria dos arquitetos futuro em escultura. Esta dificuldade pode ajudar
Francisco de Azeredo Monteiro Caminhoá e Paul a entender porque o Império do Brasil foi pouco
Bénard e apresenta a proposta de construção de dedicado a consagrar a Guerra do Paraguai,
uma coluna de 62m de altura sobre o chafariz. mesmo tendo sido sua grande vitória, como afirma
Diversas alegorias escultóricas completam o Ricardo Salles.17 A vontade do futuro de paz e
conjunto, valorizando a figura feminina, a progresso se contrapôs à vontade de lembrança
representação da batalha naval do Riachuelo, em do passado de guerra, que corresponde à lógica
uma das faces, e inscrições de outras batalhas da arte monumental. A imagem de um passado,
também navais, como Humaitá e Paissandú. O ainda que glorioso, não bastava para representar
outro projeto é de autoria de Louis Rochet, escultor a imagem do progresso capaz de antecipar o futuro
francês que executou o projeto da estátua eqüestre promissor. A imagem da transformação dos tempos
do primeiro Imperador, sendo o desenho assinado exigia outros emblemas, que não estavam contidos
por Jacques Guiaud. A proposta vem acompanhada na leitura linear da história e na imagem da
de uma carta do escultor Louis Rochet ao imperador perenidade do passado. Foi a arquitetura pública
d. Pedro II, em que apresenta o projeto de uma escolar que materializou esse discurso sobre o
coluna triunfal de bronze, encimada por figura alada futuro próspero da sociedade nacional, sendo a
com lança na mão. Todas as propostas escultóricas educação o seu tema principal naquele contexto.
tinham como logradouro o Campo da Aclamação, A lógica da escultura monumental articulada na
atual praça da República, ou Campo de Santana, relação passado-presente não dava conta de
no Centro da cidade do Rio de Janeiro. O local representar o tempo do progresso. A escultura
escolhido para o monumento foi o palco das narrativa do monumento cívico não tinha
comemorações oficiais e populares da vitória referências plásticas para presentificar o futuro e
militar, que se desenvolveram em 1870, contar sua história e tratar seu significado.18
organizadas em torno do templo da vitória,
monumento de arquitetura efêmera erguido para a Assim, ao lado do processo de ritualização da
ocasião. Estes dois projetos, porém, se aproximam história é a relação passado-presente que servia
ao apresentar o mesmo partido centrado na para estabelecer a lógica do monumento, não
referência da coluna. Além disso, os dois se deixando espaço para leituras do futuro.
caracterizam pelo fato de evitar a representação
da figura do imperador na sua composição. Desse Notas
modo, contrastam com o projeto de Chaves 1
Professor do Departamento de História e do Laboratório
Pinheiro da estátua eqüestre, que valoriza a figura de História Oral e Imagem da Universidade Federal
do imperador. Mas chama atenção o fato de que o Fluminense, Diretor-Geral do Arquivo Público do Estado
projeto do escultor francês ser acompanhado por do Rio de Janeiro
2
uma carta datada de abril de 1870. A semelhança AGULHON, Maurice. La ‘statuomanie’ et l´histoire.
das duas propostas permite imaginar que são frutos Histoire vagabonde: etnologie et politique dans la France
do mesmo movimento e do mesmo instante: contemporaine. Paris, Gallimard, 1988. v1.
3
RIBEIRO, Maria Eurydice de Barros. Memória em bronze,
posterior à polêmica da estátua eqüestre recusada estátua eqüestre de d. Pedro I. KNAUSS, Paulo (coord.).
pelo imperador. Os projetos das colunas Cidade vaidosa: imagens urbanas do Rio de Janeiro. Rio
comemorativas podem ser caracterizados, de Janeiro, Sette Letras, 1999.
portanto, como contra-propostas ao polêmico 4
SOUZA, Iara Lis Carvalho. Pátria coroada: o Brasil como
projeto da estátua eqüestre de Chaves Pinheiro. A corpo político autônomo, 1780-1831. São Paulo, Ed.
indicação da data da carta permite afirmar também UNESP, 1999. cap. 8.
5
que a idéia do monumento à Guerra do Paraguai Prospecto de subscrição de dous monumentos...,1839.
Arquivo do IHGB. Lata 59, PS 15.
não deixou de povoar as discussões, deixando, no 6
Para conhecimento da biografia do artista francês,
entanto, de valorizar a figura do imperador com a consulte-se: ROCHET, André. Louis Rochet: sculpteur et
guerra e buscar uma representação alegórica da sinologue, 1813-1878. Paris, André Bonne, 1978. Nesta
vitória militar nacional. A concorrência dos projetos biografia também se encontra vasta documentação
não favoreceu nenhuma das propostas de trasncrita sobre a estátua eqüestre de d. Pedro I.
7
escultura. Todas não passaram de projetos não SANTOS, Gisele Cunha dos & MONTEIRO, Fernanda
executados, deixando de povoar o espaço público Fonseca. Celebrando a fundação do Brasil: a inauguração
da Estátua Eqüestre de D. Pedro I. Revista Eletrônica de
da cidade, mas demarcando a história da Corte História do Brasil. Juiz de Fora: UFJF, v. 4, n. 1, jan./jun.
Imperial. 2000, p. 59- 76.

185
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

8 15
KNAUSS, Paulo. Imaginária urana: escultura pública na Carta de D. Pedro II recusando a elevação da estátua
paisagem construída do Brasil. SALGUEIRO, Heliana em sua homenagem. Revista do Instituto Histórico e
Angotti (coord.). Paisagem e arte. São Paulo, CBHA, 2000. Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, n. 51, 1888.
16
p. 407-414. Anais da Câmara de Deputados, sessão de 19 de maio
9
Prospecto de subscrição de dous monumentos...,1839. de 1870. - discurso de José de Alencar.
17
Arquivo do IHGB. Lata 59, p. 15. SALLES, Ricardo. Guerra do Paraguai: memórias e
10
SOUZA,Iara Liz Carvalho. Op. cit. imagens. Rio de Janeiro, Biblioteca Nacional, 2003
11 18
A manifestação de Araújo Porto-Alegre em torno da estátua Pode-se dizer que na história da escultura pública do
eqüestre de d. Pedro I é tratada no livro: SQUEFF, Leticia. O Brasil, esse dilema da lógica dos monumentos só sra
Brasil nas letras de um pintor. Campinas, Ed. Unicamp, resolvido na década de 30 com o projeto da Juventude
2004. Brasileira, de Bruno Giorgi, que faz parte do conjunto da
12
Id.. Op. cit. sede do Ministério da Educação e Saúde, atual Palácio
13
KNAUSS, Paulo. O desafio de representar o futuro: a Gustavo Capanema no Rio de Janeiro. KNAUSS, Paulo.
estátua eqüestre de d. Pedro II e os sentidos da escultura O homem brasileiro possível: o monumento da Juventude
monumental no Brasil. Anais do Museu Histórico Brasileira. KNAUSS, Paulo (coord.). Cidade vaidosa:
Nacional, v. 37, p. 237-252, 2005. imagens urbanas do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Sette
14
Arquivo do Museu Nacional de Belas Artes: AIBA – Letras, 1999.
Francisco Manuel Chaves Pinheiro, 1861-1915,
Documentos Diversos – AI/doc-3.

186
Nas Exposições Universais da segunda metade do
século XIX, a arquitetura desempenhou papel
fundamental na criação de cenários fantásticos,
sendo um dos fatores fundamentais de atração e
de sucesso destes eventos.

Desde o Palácio de Cristal (Londres, 1851),


pavilhão único da primeira Exposição Universal,
que a arquitetura é o grande símbolo destas festas
do Progresso. Controvérsias à parte, este edifício
é referência imediata quando se pensa em
arquitetura do século XIX e em arquitetura de
exposições.

À França coube a iniciativa da segunda Exposição


Universal, realizada em 1855 na cidade de Paris.
Diante da monumentalidade do Palácio de Cristal,
veio, já em 1852, a decisão oficial francesa de
construir um edifício destinado às exposições. A
Exposição de 1855 ocupou o Palácio da Indústria,
o Palácio das Belas Artes e a Galeria das Máquinas,
que unia os dois outros prédios. Alguns prédios
isolados apareceram, como os dos Panoramas ou
das organizações de venda. Todos os países
expunham em prédios comuns.

A partir daí, cada exposição foi criando um número


maior de prédios, e pelas dezenas e até centenas
a arquitetura de exposições como repertório de de construções dos mais variados portes, materiais
formas e tipologias e tipologias que as Exposições Universais
produziam, elas representaram, de certo modo, a
ruth nina vieira ferreira levy1
mais convincente exposição de arquitetura que se
possa imaginar, servindo, neste sentido, de campo
fértil para o debate arquitetural.

Símbolo de progresso e modernidade, as


exposições buscavam mostrar uma arquitetura
ousada, arrojada e dotada de inovações técnicas.
Mas a arquitetura de exposições não se limitava a
isso. Lado a lado com a modernidade, cada vez
mais foi se abrindo espaço para a reconstituição
histórica, dentro do espírito enciclopédico que
dominou o século XIX. Verdadeiras máquinas do
tempo, numa busca de ressurreição do passado,
as reconstituições ofereciam uma antologia
arquitetônica que passeava por um repertório que
ia da pré-história, passava pela Antiguidade e
destacava momentos culminantes das diversas
civilizações e nações, expondo sua cultura, seus
hábitos, suas formas de viver.

Em 1867 foi novamente vez de Paris abrigar a


Exposição Universal. O Palácio da Exposição
distinguiu-se dos anteriores por sua forma
claramente apropriada ao sistema adotado para a
classificação dos produtos expostos, que conjugava
o emprego dos dois sistemas usados nas
exposições anteriores, cuja classificação era dada
pela nacionalidade ou pela natureza do produto

187
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

exposto. O Palácio Elíptico abrigava a exposição Em 1878 acontece mais uma Exposição Universal
de todos os países, mas o duplo agrupamento de parisiense. O edital do concurso para a exposição
produtos se fazia em uma disposição circular, de determinava que o Palácio do Campo de Marte
acordo com dois sistemas de divisão: galerias seria construído inteiramente em ferro, seguindo
concêntricas o dividiam internamente em oito zonas um plano retilíneo, mas possibilitando a exposição
referentes aos grupos de produtos similares de dos produtos por natureza e nacionalidade. No
todos os países, sendo estas galerias cortadas por centro estariam dispostas as salas para exposição
16 vias radiais, permitindo observar separadamente de objetos de arte dos mestres das escolas
a produção de todos os objetos das nações modernas, sendo previsto também um espaço para
expositoras. uma Exposição retrospectiva.

Se na exposição parisiense de 1867 o Palácio Este grande prédio deveria comunicar-se com o
Elíptico era pavilhão que inovava, mostrando do Trocadero por uma galeria coberta. Neste seriam
claramente através do espaço a importância dos expostos os produtos agrícolas, de horticultura,
sistemas classificatórios naquele momento, animais domésticos, modelos de exploração
próximo a ele surgiria uma verdadeira cidade no mineral, navegação fluvial e marítima, de
Campo de Marte que, através de suas aquecimento e ventilação.
reconstituições trazia o visitante e o arquiteto para
um universo complexo de imagens literárias, O Palácio do Campo de Marte possuía planta
coloniais e de fantasia, oferecendo ao presente, retangular, dividida longitudinalmente em galerias,
imagens convincentes do passado. separadas em dois grupos por um espaço central
vazio. O lado esquerdo era ocupado inteiramente
... uma cidade surgiu como que por encanto por produtos franceses e o direito destinado aos
sobre o solo do antigo Campo de Marte. Cidade produtos estrangeiros. O espaço central,
estranha, todavia, onde a modesta moradia do parcialmente descoberto, era ocupado pela
mineiro de Arzin faz pendant com o exposição das Belas Artes de todas as nações, e
esplendoroso palácio tunisiano, onde uma oferecia uma série de spécimens de fachadas
igreja gótica fica face a face com um templo estrangeiras - históricas e contemporâneas -
asteca, ou o templo anglicano costeia o pagode constituindo a Rua das Nações.
muçulmano, onde perto de um hangar
americano um edifício chinês ergue-se com Assim, a Exposição Universal de 1878 continua a
cores vivas e brilhantes, onde se elevam lado trajetória da exposição de arquitetura e das
a lado o farol gigantesco e a gigantesca reconstituições com a Rua das Nações, na qual 27
chaminé de fábrica, onde das casas de madeira fachadas de arquiteturas nacionais criavam um
dos povos escandinavos se passa aos palácios cenário mágico, marcado pelo ecletismo dos
de mármore da Itália, onde cada uma das pavilhões: o manuelino de Portugal, o chamado
nações representadas na Exposição quis Pavilhão neomudéjar de Espanha, os edifícios da
mostrar os exemplares de seus monumentos, Grã-Bretanha e da Itália, em reminiscências
de seu estilo de arte, de sua arquitetura, onde góticas, etc.,
enfim, palácio, casa, vilas, chalés, pavilhões,
quiosques, etc., se aglomeram e convivem em O “revivalismo” arquitetônico foi o denominador
uma vizinhança das mais fraternais. [...] Que comum das Exposições Universais durante o
mina de elementos preciosos para a arquitetura século XIX, porque elas, definitivamente, não
e para o artista inovador, e como o estudo faziam senão por em evidência uma sociedade
comparado desta imensa variedade de que, paradoxalmente, mergulhando
construções será interessante!” (DALY, 1867: insistentemente na história, impulsionava o
vol. 25, p. 29) progresso na direção do futuro. Os recintos das
exposições davam corpo a esta dualidade, pois
Outro tema importante desta exposição é o das enquanto o orgulho da modernidade radicava
habitações operárias, com sua vila industrial, suas nas espaçosas galerias das máquinas, a Rua
casas operárias e a casa pré-fabricada de das Nações refletia o passado (PALÁCIO,
Stanislaus Ferrand. Diante do problema da moradia 1997:29).
das classes trabalhadoras nas cidades industriais,
como Londres e Paris, as exposições passam, Na Exposição Universal parisiense de 1889 é
justamente a partir de 1867, a explorar também este culminante a dualidade entre a modernidade, a
aspecto, fazendo entrar fisicamente na exposição, ousadia e a inovação, retratadas, sobretudo, na
através desta tipologia específica, a questão social Galeria das Máquinas e na Torre Eiffel - verdadeiros
e seus atores. monumentos do progresso - e a tentativa de

188
A arquitetura de Exposições como repertório de formas e tipologias

resgatar o passado e traçar um esboço de toda a nacional, como é o caso dos Estados Unidos. Aliás,
história da arquitetura, através das reconstituições. as experiências norte-americanas em Exposições
A História da Habitação Humana de Charles Garnier Universais também trazem rico e complexo material
trazia 44 casas por ele desenhadas, reconstituindo para análise, não só por sua magnitude e
e colocando lado a lado as mais diferentes formas quantidade de pavilhões, mas também por suas
de habitação de diversos períodos e regiões, desde características locais específicas e suas relações
o abrigo troglodita. com a Europa, inclusive como ex-colônia britânica.
A Exposição de Filadélfia em 1876 vai ter 249
Na Rua do Cairo, uma evocação nostálgica do construções, constituindo-se em catálogo de
Oriente, as construções eram inspiradas na citações mais ou menos explícitas, com prédios
arquitetura antiga da cidade e decoradas com construídos por arquitetos europeus e prédios
elementos provenientes de antigas demolições no construídos por arquitetos norte americanos,
Egito, como portas, balcões, muxarabis e criando uma situação de análise privilegiada.
revestimentos em faiança. Cento e sessenta Também aqui a arquitetura se difunde graças aos
egípcios vieram a Paris para “animar” exemplos e reconstituições.
constantemente a rua, com suas diversas
atividades. Em 1893 é a vez da cidade de Chicago abrigar a
World Fair Columbus Exposition, e criar um cenário
Essa exposição trouxe ainda uma série de mágico que ficou conhecida como a White City. O
pavilhões nacionais, coloniais, temáticos, de chamado classicismo Beaux-Arts em escala
empresas e associações, além dos pavilhões monumental que se viu ali também serviu de aula
públicos franceses. de arquitetura e para os mais críticos teve o papel
nocivo de desviar a atenção da produção da
Na Exposição Universal de 1900, para a qual foram moderna Escola de Chicago. Os pavilhões
construídos o Grand Palais e o Petit Palais, teve estrangeiros quebravam a unidade com suas cores
também sua Rua das Nações, chamada locais.
ironicamente por alguns de Rua de Babel, em
virtude do repertório de arquiteturas de difícil A Exposição de Saint Louis em 1904 contou com
coerência, além da Exposição Colonial, com seu nada menos que 1500 edifícios. Era a maior
palácios “exóticos”, e a Velha Paris, um quarteirão exposição internacional que o mundo havia visto.
inteiro reconstituindo uma cidade medieval. Ali também as reconstituições curiosas e exóticas
tiveram espaço, como os “Alpes Tiroleses”, os
Na Exposição de 1900 observa-se a retração no “Mistérios da Ásia”, a “Roma Antiga” ou a “Cidade
uso de ferro: se em 1889 verifica-se o auge na Chinesa”. Na realidade, estas atrações que ficavam
crença do ferro como solução construtiva, em 1900 num centro de diversões – o Pike –, uma avenida
a consciência de suas limitações reduz em muito povoada por 8.000 figurantes, já pendem muito
o seu emprego. Segundo Pevsner, do ponto de vista mais para o sentido de puro entretenimento do que
estrutural a exposição que ocorria onze anos depois para uma abordagem com um sentido didático que
da Torre Eiffel e da Galeria das Máquinas era uma se pretendeu em exposições anteriores.
decepção (PEVSNER, 1976: 252). O ferro usado
por necessidade escondia-se embaixo de camadas As Exposições Universais européias fora de Paris
de estuque nos mais variados estilos, passando também entraram neste domínio como a de Viena,
pelo medieval, Renascença Francesa e Luis XV. em 1873. Além dos prédios maiores, nesta
exposição alguns pavilhões se individualizam,
A Paris de 1900 marca também, em termos de surgindo os pavilhões tem áticos, os pavilhões
arquitetura e urbanismo, um novo capítulo na destinados às personalidades do Império, como o
história das Exposições, não apenas em termos Pavilhão do Casal Imperial, o pavilhão do Duque
de medidas quantitativas, com área e número de de Saxe-Cobourg-Gotha e o pavilhão do príncipe
prédios muito maiores, mas também com um novo Adolf Schwarzenberg e havia ainda as construções
enfoque. Os anos que precedem a Primeira Guerra exóticas como o pavilhão da Pérsia, a casa de chá
Mundial correspondem ao florescimento de um tipo chinesa, o jardim japonês, um conjunto egípcio e
de exposição mais vinculado a associações e um grupo de casas camponesas, além dos
instituições, que foge ao universo e à filosofia das restaurantes espalhados por diversos pontos. No
Exposições Universais. total, a exposição vienense contava com quase 200
prédios independentes.
Estas continuam se realizando, sobretudo em
países que necessitam afirmar sua identidade É recorrente se falar em Babel para exprimir os
espaços dessas exposições. Não é à toa. A

189
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

convivência destas centenas de prédios em um de guardadas as diferenças principalmente em


espaço restrito de uma cidade, com evocações as termos de proporções em relação às Exposições
mais variadas, não deixam de criar, em muitos Universais, o papel que coube à arquitetura não foi
casos, uma completa confusão. tão diferente.

Ao mesmo tempo, vivenciar esta experiência era Em 1908, a título de comemorar o Centenário da
de uma riqueza extrema para as populações do Abertura dos Portos às Nações Amigas, realiza-
século XIX, quando as informações, imagens etc se, na Praia Vermelha, uma Exposição Nacional
não se difundiam com a facilidade de hoje. para a qual foram construídos grandes prédios –
palácios e pavilhões –, além de uma série de outros
Caroline Mathieu cita o Boletim Oficial da Exposição menores.
Universal de 1898 onde se lia que “Jules Verne
tinha sonhado a Volta ao Mundo em 80 dias. É Outras exposições nacionais já haviam sido
possível realizá-lo, em 1889, na Esplanada e no realizadas no Rio de Janeiro, mas tinham sido
Campo de Marte, em seis horas!” (MATHIEU instaladas em prédios já existentes. Na realidade,
1989:102). a Exposição Nacional de 1908 foi a primeira para a
qual foi criado um espaço, um cenário, com a
Aqui, o importante é ressaltar o valor emblemático construção de prédios destinados especificamente
da arquitetura e uma atitude científica em relação à realização do evento
ao passado. A reconstituição pode ser
compreendida como uma etapa importante no A variedade de estilos que aparece nas construções
estudo da arquitetura, formando uma “antologia de nos dá bem a dimensão do repertório eclético
estilos históricos”. adotado. Como descrevem os guias e relatórios
da época havia o Neoclássico do Palácio dos
Isso porque, além da arquitetura construída, as Estados, o Renascença do pavilhão da Bahia e da
exposições eram fonte de conhecimento e Sociedade Nacional de Agricultura, a
aprendizado de arquitetura uma vez que, em muitas “modernização do estilo clássico” do pavilhão do
delas, existiram também as seções de exposições Distrito Federal, o estilo Manuelino do pavilhão
de desenhos e modelos de projetos, bem como Português, o Egípcio do coreto musical, a “pequena
eram realizados congressos de arquitetos durante mesquita mourisca”, como é descrito o Pavilhão
os eventos. As exposições representavam também da Fábrica Bangu, ou mesmo a falta de qualquer
motivação para críticas nas revistas especializadas rótulo possível, como no caso do pavilhão mineiro
e debates acirrados sobre os caminhos que a que “não tinha estilo definido”. É evidente que essa
arquitetura deveria trilhar, e a revista editada por classificação estilística só faz algum sentido se
César Daly é um ótimo exemplo e uma importante entendida pela lógica daquele momento, quando
fonte que reafirma este aspecto. Para os arquitetos, os esforços classificatórios eram relevantes e dão
era a ocasião de ter diante dos olhos formas e conta da análise que era feita da arquitetura.
modelos de construção e de distribuição que
apenas uma longa experiência em escolas e o A filiação arquitetural do que foi produzido está
contato com revistas especializadas podia oferecer. ainda intimamente ligada com o modelo europeu e
Os autores Aimone e Olmo dizem então que as através de seus exemplares é possível mapear e
exposições funcionavam assim como uma espécie fazer correlações entre as diversas tipologias e os
de acelerador de circulação de iconografias e de diferentes “estilos” historicistas que ali se
soluções técnicas (AIMONE, 1993:110). manifestaram e que também marcaram a produção
arquitetônica em outros pontos da cidade do Rio
Representavam, portanto, campo propício e ponto de Janeiro, como a Avenida Central.
de partida para a discussão, a reflexão, a inovação
e a crítica em termos arquiteturais. As exposições O único pavilhão estrangeiro, o Palácio Manuelino,
representaram também papel de destaque na trouxe a imagem da colonização, com um estilo
urbanização das cidades, inclusive em termos de que homenageava a época dos grandes
infra-estrutura e serviços. É possível estabelecer descobrimentos, ou seja, da colonização
relações estreitas entre modernização urbana e portuguesa em várias partes do mundo. Entretanto,
arquitetura de exposições. é interessante notar como a tradição colonial
brasileira está completamente ausente neste
* * * momento. Mesmo os estados como Minas Gerais
e Bahia, onde a produção colonial é tão expressiva,
Passando às nossas exposições cariocas do início se fizeram representar com ares de modernidade,
do século XX, em 1908 e 1922, vemos que apesar sem qualquer referência ao passado “atrasado”.

190
A arquitetura de Exposições como repertório de formas e tipologias

Isto sem falar do Distrito Federal, empenhado que colonial é apresentado como tendo duas formas
estava em apagar o passado colonial e valorizar a básicas, ou dois pontos de vista, apesar de guardar
moderna e civilizada capital de modelo europeu que uma unidade: seria o religioso ou ornamental, forma
havia surgido com as reformas de Pereira Passos. jesuítica, impregnada do barroco, e o popular ou
Santa Catarina mostrou uma imagem ligada ao singelo, mais adaptada ao clima, identificada com
passado, mas era um passado recente, da as construções rurais e a “alma simples do povo
imigração européia do século XIX, desvinculada do brasileiro”. A adoção de uma das duas formas ou a
período colonial e da escravidão. A valorização do conjugação de ambas é apregoada como
colonial só viria na década seguinte, com o “contribuição para a grande obra de nacionalização
movimento Neocolonial que depois estaria da arquitetura brasileira.
amplamente expresso na Exposição Internacional
de 1922. Estas combinações darão ensejo às mais variadas
adjetivações como colonial estlilizado, rafiné, de
A Exposição do Centenário, inaugurada em “feição nortista”, e outras. Em qualquer caso, será
setembro de 1922, ocupou uma grande área do sempre um colonial modernizado, com nova
centro da cidade, que ia do Passeio Público à Ponta roupagem, já que uma volta ao colonial,
do Calabouço e, de lá se estendia até o Mercado caracterizado desde o século XIX como algo ligado
Municipal. Foi concebida inicialmente como mais ao atraso, às péssimas condições de higiene e de
uma exposição nacional, mas tornou-se uma vida, só poderia ser defensável se o mesmo se
exposição internacional, com participação de apresentasse devidamente reciclado.
diversos países estrangeiros, como França,
Portugal, Estados Unidos, Inglaterra, Argentina, Como o neocolonial não era visto como um estilo
México, Itália, Bélgica, entre outros. Nessa grande que tivesse fim em si mesmo, mas como uma
área destinada à Exposição, foram construídos busca de elementos essenciais para a formação
duas portas monumentais e um grande número de de algo novo, alguns arquitetos alegam que não
palácios e pavilhões, tanto nacionais quanto importava como seria chamado o estilo, mas sim
estrangeiros. Prédios já existentes, como o antigo que teria que ser algo novo.
Arsenal de Guerra e parte do Mercado Municipal,
também foram aproveitados, após sofrerem O neocolonial estava ligado, pode-se dizer assim,
adaptações. a duas vertentes distintas: de uma parte, a busca
por algo novo, afastado da cópia acrítica de
Nesta exposição, o ecletismo europeu continua modelos existentes, comprometido com a
presente, mas dividirá espaço com as autenticidade e a funcionalidade; de outro,
manifestações da busca das raízes nacionais, amalgamado ao ecletismo, entendendo este como
através do movimento neocolonial. Num momento sinônimo de “indiferentismo”. Na primeira vertente,
em que a inadequação da arquitetura eclética a busca pelos “elementos essenciais” do colonial,
européia em relação ao nosso clima e às nossas como inspiração para a nova arquitetura, - a
tradições já está no centro do debate entre adequação ao clima, a adaptação ao meio e à
pensadores e profissionais de arquitetura, alguns função, a simplicidade, a sobriedade, a verdade, o
dos pavilhões da Exposição vão ter como exigência essencial em detrimento do supérfluo -, apontava
de edital serem projetados obedecendo “as linhas o caminho do racionalismo. Na segunda vertente,
gerais da arquitetura da época colonial”. representaria a última gota no copo já transbordante
de um ecletismo desgastado.
O início dos anos 1920 foi marcado por um certo
esgotamento de uma maneira de conceber a De todo modo, mais uma vez um cenário de
arquitetura, levando alguns arquitetos a busca de exposição serve, de forma pedagógica e
um estilo mais ligado às tradições e ao ambiente sistemática, à produção e ao debate em torno de
brasileiro. A questão do nacionalismo, presente nos uma tendência, ao reunir num mesmo espaço
debates desde o século anterior, estava agora várias edificações que suscitam a crítica e a cópia.
efervescendo, e sugeria a busca por raízes
anteriores ao século XIX, impregnado de um Como exposição internacional que foi, a Exposição
estrangeirismo que precisava ser combatido e do Centenário contou com sua Avenida das
superado. Entretanto, o ecletismo era ainda Nações, na qual foram construídos pavilhões de
praticado com entusiasmo, estando presente em diversos países, trazendo para o centro do Rio de
boa parte dos projetos. Janeiro expressões arquitetônicas nacionais
distintas.
A defesa do neocolonial se apresenta com força,
mas não sem uma série de ambigüidades. O

191
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

Todos os pavilhões estrangeiros foram De fato, um dos aspectos mais interessantes na análise
construídos ao longo da Avenida das Nações, das exposições é a possibilidade de através de seus
essa “ala de monumentos que forma hoje, com exemplares, passando por todos os prédios, dos mais
as ridentes paisagens da Lapa e da Glória, o mais suntuosos palácios aos mais simples quiosques,
belo recanto da nossa baia”(A EXPOSIÇÃO DE mapear as diferentes tipologias e estilos que cobriram
1922, 1923: n. 12-13). Alguns países, além de a prática do ecletismo internacional, no Brasil e, mais
um pavilhão de honra nesta avenida, fizeram especificamente, no Rio de Janeiro do início do século
construir também pavilhões para exposição da 20. É analisar a Exposição de produtos industriais como
indústria mais pesada na Praça Mauá. uma exposição de arquitetura no sentido de coleção,
inventário. Um verdadeiro repertório exemplar de
Interessante registrar como o colonial está formas e tipologias à nossa disposição.
presente também em pavilhões estrangeiros: no
caso do México, buscando suas raízes nacionais; Referências bibliográficas
no caso dos Estados Unidos, buscando uma
aproximação com a tradição brasileira, uma vez A EXPOSIÇÃO DE 1922: Orgão da Comissão
que o prédio era de caráter definitivo e os Organizadora. n. 1-18, 1922-1923. Rio de Janeiro:
americanos quiseram “integrá-lo” à nossa Tipografia Fluminense, 1922-23.
realidade, fazendo uma construção que julgaram AIMONE, Linda ; OLMO, Carlo. Les expositions
adequada à cidade e à sua tradição arquitetônica. universelles 1851-1900. Paris :Belin, 1993.
É também bastante curioso observar como as DALY, César (Ed.). Revue générale de l´architecture
descrições de época são condizentes com et des travaux publics. Paris : Ducher et Cie, 1867.
características dos prédios: minimalista no caso MATHIEU, Caroline. Invitation au voyage. 1889: La Tour
do Japão, rebuscada no caso do México, clássica Eiffel et l´Exposition Universelle. Paris : Réunion des
e contida para os prédios que tinham essas Musées Nationaux, 1989.
características formais etc. PALÁCIO, Pedro. Fundamentos da arquitectura
neomedieval. ANACLETO, Regina. (Org). O
* * * neomanuelino ou a reinvenção da arquitectura dos
descobrimentos. Lisboa: Instituto Português do
A arquitetura de exposições tende a ser Patrimônio Arquitectônico e Arqueológico, 1997. p. 27-
associada a um excesso, um clímax, uma 43.
exacerbação. A questão a ser colocada é se isso PEVSNER, Nikolaus. A history of buildings types.
se daria pelos exemplares criados ou pelo fato Princeton: PUP, 1976.
destes exemplares estarem todos reunidos em
um só conjunto. Se pensarmos na frase de Mário Notas
de Andrade, quando escreve que “nós já estamos
1
mais ou menos habituados a esta diversidade de Doutora e Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Artes
Visuais da Escola de Belas Artes da UFRJ; Pós-graduada em
estilos que dá à nossa urbe um aspecto de
História da Arte e Arquitetura no Brasil pela PUC-RJ; Graduada
exposição internacional”, vemos a estreita em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal
associação entre a diversidade de estilos e o Fluminense e em Museologia pela UNIRIO. É museóloga da
cenário de exposição. A efemeridade Fundação Eva Klabin. É autora de Entre Palácios e Pavilhões:
característica deste tipo de produção é outro fator a arquitetura efêmera da Exposição Nacional de 1908. Ro de
de motivação para certas ousadias, graças ao Janeiro: EBA/UFRJ, 2008.
grau de liberdade que propicia.

192
Em outubro de 2007, foi formalizada a doação das
cerca de 500 obras que compõem a Coleção
Brasiliana / Fundação Estudar à Pinacoteca do
Estado de São Paulo. Naquela oportunidade,
concluía-se um percurso de dez anos de atividades
em torno desse acervo, percurso este que se
constitui numa experiência bastante singular no
contexto do colecionismo no Brasil. O objetivo da
presente comunicação é relatar essa experiência,
conduzida desde o início por Carlos Martins – artista
plástico e museólogo, com significativa atuação na
área cultural, tendo sido diretor dos Museus Castro
Maya, no Rio de Janeiro –, e da qual participei como
pesquisadora e curadora assistente desde 1997.

Até o momento de sua doação, a Coleção


Brasiliana era um acervo privado, mantido pela
Fundação Estudar, e composto por pinturas,
aquarelas, desenhos e gravuras de temática
brasileira (como bem indica o adjetivo escolhido
para qualificá-la), datadas em sua maioria do século
XIX, ainda que compreenda também algumas
peças isoladas dos séculos XVII e XVIII. Entre seus
autores destacam-se os artistas europeus, que
estiveram de passagem pelo Brasil ou aqui
residiram, assim como artistas brasileiros das
primeiras gerações formadas pela Academia
do privado ao público: a experiência da coleção Imperial de Belas Artes. Em grande parte, as obras
brasiliana / fundação estudar da Coleção Brasiliana integram o universo
iconográfico do que se convencionou chamar de
valéria piccoli artistas viajantes. Destaco aqui, como exemplos
da diversidade de origem, formação e propósitos
dos artistas presentes no acervo, o retrato
Marquesa de Belas de Nicolas Antoine Taunay
(1755-1830), pintor de formação acadêmica
francesa, que chegou ao Brasil em 1816 integrando
a Missão Artística, e viveu no Rio de Janeiro até
1821; uma aquarela de Benjamin Mary (1792-
1847), diplomata, botânico diletante e artista
autodidata, que foi o representante diplomático do
Reino da Bélgica no Brasil, autor deste curioso
panorama do Rio de Janeiro tomado de Santa
Tereza, com cerca de três metros de comprimento;
a Natureza morta com flores do pintor brasileiro
Agostinho José da Motta (1824-1878), aluno e
posteriormente professor da Academia Imperial de
Belas Artes; e Enseada de Paquetá de Nicolau
Facchinetti (1824-1900), pintor de paisagens de
origem italiana, radicado no Rio de Janeiro a partir
de 1849. Como é possível notar por essa breve
amostra, o acervo possui exemplos significativos
dos principais gêneros da arte oitocentista, como
o retrato, a pintura de paisagem, a natureza morta,
assim como a pintura histórica, representada na
Coleção Brasiliana por tela Jean-Baptiste Debret
(1768-1848), entre outras.

A Coleção Brasiliana teve origem num conjunto de


obras adquirido em 1996 dos herdeiros do

193
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

colecionador e antiquário Jacques Kugel (1912- 1997, ela passou a ocupar-se da administração da
1985), personalidade bastante conhecida do Coleção Brasiliana e de sua equipe.
mercado de arte francês. Nascido em 1912 em
Minsk, na atual Bielorússia, Kugel pertencia a uma A decisão de situar a coleção em São Paulo, onde
tradicional família judaica de antiquários, que havia existem poucos acervos com este perfil abertos à
se radicado em Paris a partir de 1925, escapando visitação pública, foi determinante para o
da revolução bolchevique. Quando da ocupação estabelecimento das propostas de atuação em
de Paris pelas tropas alemãs durante a Segunda torno da Coleção Brasiliana. A mais importante
Guerra, a família sofreria um novo revés, sendo dessas propostas foi uma deliberada opção por não
obrigada deixar a França. Para cumprir o plano de destinar um edifício próprio para abrigar o acervo,
fuga, foi imprescindível a astúcia da irmã mais velha mas, ao contrário, buscar soluções de parcerias
de Jacques Kugel, Kila (1908), adida de serviço com instituições possuidoras de acervos afins. A
diplomático. Consta que ela tenha enchido três adoção deste partido (e aqui tomo de empréstimo
malas com objetos de arte e jóias e, através de uma palavra do vocabulário da arquitetura) fundou-
suas conexões, as tenha remetido em segurança se na convicção de que é necessário no Brasil
para Lisboa, o que permitiu à família estabelecer- trabalhar para o fortalecimento das instituições
se na capital portuguesa. Kugel acabaria por casar- culturais existentes, tentando evitar, na medida do
se em Lisboa com a poetisa Merícia de Lemos possível, a dispersão de esforços. Mas, sobretudo,
(1913-1996). ele diz respeito a um princípio que foi para nós
norteador nas mais diversas etapas do trabalho: o
Nesses anos de guerra vividos em Portugal, Kugel de entender este acervo não como um conjunto
daria início, então, à aquisição de obras de temas que se completa em si mesmo, mas encará-lo
brasileiros das quais nunca se desfaria e que sempre como parte de um universo iconográfico
seriam o germe da Coleção Brasiliana. Sabemos maior, que só teria a ganhar em sentido no diálogo
que naquele momento, apresentavam-se com outras coleções. Quando da chegada do
oportunidades no mercado de arte que propiciaram acervo ao Brasil, a alternativa de parceria que se
o incremento e a formação de diversas coleções apresentou como a mais viável foi a Fundação
em vários países do mundo, oportunidades essas Maria Luisa e Oscar Americano. Esta instituição,
às quais Kugel, como um experiente marchand, em funcionamento desde 1974, tem sede no bairro
esteve, sem dúvida, bastante atento. Já de volta a do Morumbi em São Paulo, na antiga residência
Paris em 1955, encontramos um indício da do engenheiro Oscar Americano (1908-1974)
importância que alcançara então sua coleção na projetada, em 1950, pelo arquiteto paulista Oswaldo
colaboração prestada por ele aos Archives Bratke (1907-1997). A Fundação Maria Luisa e
Nationales, organizadores, naquele ano, de uma Oscar Americano possui um acervo de arte
exposição sobre as relações culturais entre a brasileira, constituído de mobiliário, prataria e
França e o Brasil desde o século XVI. No catálogo porcelanas, além de esculturas e pinturas de
desta mostra, que aconteceu no Hotel de Rohan artistas como Frans Post, Alberto da Veiga
em Paris, figuram cerca de 30 obras que pertenciam Guignard (1896-1962) e Cândido Portinari (1903-
à coleção particular de Kugel, entre elas algumas 1962). Neste caso, a parceria se deu numa base
telas de Frans Post (1612-1680), além de objetos de permuta, ou seja, a Fundação Estudar construiu
pessoais que haviam pertencido a membros da uma reserva técnica na sede da Fundação Oscar
família imperial brasileira. Destas obras Americano e, em contrapartida, nos foi permitido
emprestadas por Kugel à exposição France et usar durante um determinado período de tempo,
Brésil, oito integram ainda hoje o acervo da Coleção além dessa reserva, uma sala de trabalho.
Brasiliana.
Uma vez definidas as condições para o abrigo da
Adquirida, portanto, na França em 1996, a coleção coleção, principiaram também as tratativas para
ainda inédita no Brasil ingressou no país no ano internação do acervo no país, que não vou detalhar
seguinte em regime de comodato, sob aqui, já que envolve uma série de injunções
responsabilidade da Fundação Estudar. A jurídicas. Assim que as peças chegaram a São
Fundação Estudar é uma entidade sem fins Paulo, deu-se início a uma série de procedimentos
lucrativos, que fornece bolsas de estudo e auxílio de caráter museológico que visavam preparar a
ao desenvolvimento de carreiras nas áreas de Coleção Brasiliana para ser apresentada ao público
administração e finanças. Trata-se de uma brasileiro. Lembro que, do ponto de vista da
instituição sem perfil cultural, mas que por conservação das obras, uma primeira etapa de
disposição estatutária foi a figura jurídica que tornou trabalho já havia sido cumprida na França, onde
possível a entrada do acervo no país. A partir de as peças que apresentavam condições mais frágeis

194
A Coleção Brasiliana / Fundação Estudar

de conservação foram restauradas antes da viagem America, que Ouseley publicou em Londres, em
ao Brasil. Em São Paulo, a primeira fase 1852.
efetivamente de trabalho foi dedicada ao adequado
acondicionamento das obras, assim como a Outro exemplo semelhante para o qual chamo a
providências relativas ao restauro e conservação atenção ocorreu com a retificação de autoria da
das demais, da qual tomou parte ativa Ana Paula tela Grande cascata da Tijuca, atribuída na coleção
de Camargo Lima, integrante da equipe naquele Kugel ao pintor Louis-Auguste Moreau (1817-1877).
momento. Simultaneamente, começou a ser A obra trazia no verso uma espécie de etiqueta com
preparada a primeira mostra do acervo, que a seguinte inscrição: “L.A.Moreaux, Lembrança da
aconteceu em 1998 na sede da Fundação Maria América”. Além disso, há também uma inscrição
Luisa e Oscar Americano. legível sobre a pedra na lateral esquerda da pintura,
que diz: “A M Moreaux souvenir de la mère de l’eau”.
Foi uma pequena exposição de apenas 28 obras, Na nossa citada Lista de óleos, a obra era referida
destinada a marcar tanto a parceria entre as duas pelo seguinte verbete: “Obra característica deste
fundações, como a chegada da Coleção Brasiliana pintor, irmão de René Moreaux, também ativo como
ao país. pintor no Brasil. Fixados inicialmente em
Pernambuco, desde 1838, embarcaram
Antes de iniciar as etapas de tombamento e posteriormente para o Rio de Janeiro, onde
classificação do acervo – e aqui passo a me referir morreram”. No entanto, a tela apresentava
mais detalhadamente às atividades de pesquisa – assinatura e datação visíveis na parte lateral direita,
procedeu-se a consultas junto a diversas próximo à figura do pássaro: “Araújo, 1833”. Através
instituições museológicas para chegar à elaboração de estudos comparativos, foi possível notar que a
de ficha catalográfica adequada ao armazenamento assinatura correspondia à usada por Manuel de
das informações técnicas e de pesquisa sobre o Araújo Porto Alegre (1806-1879) em desenhos
acervo. Da mesma forma, foi configurado um conservados no Museu Julio de Castilhos, em Porto
modelo de banco de dados informatizado, habilitado Alegre. Naturalmente, a inscrição sobre a pedra
a cruzar informações sobre artistas, obras, era uma dedicatória e havia sido tomada
bibliografia, exposições, entre outros. enganosamente como assinatura da obra.
Por fim, demos início propriamente ao tombamento Eu poderia me estender aqui, já que há vários casos
das obras, durante o qual foi necessário verificar como esses ocorridos no processo de tombamento,
atentamente assinaturas, inscrições, datações, que envolveram seja correção de atribuição e/ou
reexaminar, enfim, todos os dados que pudessem datação, seja identificação equivocada de locais
contribuir para a confirmação ou contestação de representados. Mas cumprida esta etapa de
atribuições já assumidas anteriormente. Nesse tratamento geral das informações técnicas sobre
sentido, lembro que o que tinha sido disponibilizado as obras, que foram devidamente inseridas no
para a equipe antes da chegada do acervo ao Brasil banco de dados, chegou-se a uma primeira
eram dois volumes encadernados em espiral, um listagem já mais criteriosa da Coleção Brasiliana.
deles denominado Lista de óleos e o outro, Foi possível, então, iniciar a pesquisa de campo,
Gravuras e mapas. Para ilustrar um pouco o que para o que foi constituída uma equipe de
foi esse processo de tombamento, destaco a pesquisadores que levaram a cabo um extenso
aquarela que deu entrada no acervo da Coleção trabalho de coleta de dados junto a museus,
Brasiliana como sendo de autoria do artista inglês bibliotecas e coleções privadas no Brasil, assim
David Roberts (1796-1864). Na referência feita a como em diversas instituições no exterior, visando
ela no volume Gravuras e mapas, lia-se: “Roberts a correção de dados biográficos e identificação
foi um dos artistas ingleses mais famosos de seu mais precisa das imagens representadas.
tempo, mais conhecido pelos seus temas Privilegiou-se, da mesma forma, a coleta de
orientalistas, como vistas da Síria e do Egito. Esta imagens de outras obras dos mesmos autores que
parece ser a única obra conhecida de Roberts de pudessem situar a peça do acervo da Coleção
tema brasileiro”. Na verificação feita no Brasil, Brasiliana num contexto mais geral da produção
retirada a obra de sua montagem original, notou- do artista estudado. Entre os membros da equipe
se que a aquarela era assinada no verso com o de pesquisa, gostaria de nomear especialmente,
monograma “WGO”, que constatamos ser do além da própria Ana Paula, que também fez as
diplomata inglês e artista amador William Gore vezes de pesquisadora, Renato Palumbo Doria, que
Ouseley (1797-1866), a quem foi, a partir de então, por bastante tempo foi uma espécie de “sucursal”
atribuída a autoria da peça. A imagem corresponde da Coleção Brasiliana no Rio de Janeiro, bem como
ainda a uma das gravuras do livro Views in South Renata Bittencourt e Gabriela Aidar, que, em etapas

195
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

diferentes, tiveram um atuação bastante importante Chegamos, assim, a Laudelino Freire, que, em
no contexto deste projeto. 1916, no livro Um século de pintura, chama
Facchinetti pela primeira vez de Nicolau Antonio.
Há também histórias curiosas propiciadas pelo Contudo, ainda que a certidão de nascimento de
contato com instituições no exterior. Cito aqui o Facchinetti tenha sido publicada como ilustração
caso da pintura Paisagem com farol, assinada pelo do texto escrito por Maria Pace Chiavari no catálogo
artista alemão Eduard Hildebrandt (1818-1869). Na da exposição retrospectiva organizada por Carlos
tentativa de identificar que trecho do litoral brasileiro Martins e por mim no Centro Cultural do Banco do
teria sido registrado pelo artista nessa obra, Brasil no Rio de Janeiro em 2005, o artista ainda
buscou-se contato com o Kupferstischkabinett do continua sendo chamado de Nicolau Antonio
Staatliche Muzeen zu Berlin, Alemanha, onde está Facchinetti.
conservada a maior parte dos desenhos de sua
autoria. Através de um estudo comparativo, foi Decorre de todo esse trabalho conjunto a
possível identificar o local representado na obra constituição de um banco de dados e de arquivos
como sendo um farol em Galle, no sudoeste do Sri de pesquisa abertos à consulta de interessados, e
Lanka, por onde o artista teria passado no curso que foram responsáveis por fornecer subsídios para
da viagem que empreendeu pela Índia, China e propostas de exposições, publicações e atividades
Japão, entre 1862 e 1864. A pintura foi realizada, educativas em torno do acervo da Coleção
portanto, quase 20 anos após a estadia de Brasiliana. Nosso foco, nas diversas etapas deste
Hildebrandt no Brasil. processo, foi tentar definir o valor artístico e
histórico de cada obra, trabalho que está
Outra dessas histórias diz respeito a um conjunto documentado no primeiro catálogo publicado sobre
de 22 aquarelas que documentam uma travessia a Coleção Brasiliana, Revelando um acervo (São
do Atlântico desde a França, chegando ao Rio de Paulo: BEI, 2000). Nesta edição, contamos ainda
Janeiro e Bahia. Uma das aquarelas era claramente com textos de autores convidados, como o
um projeto de frontispíco de livro, onde se lia o historiador holandês e brasilianista Ernst van den
título, “Traversée de Toulon à Rio de Janeiro”, e a Boogaart, que escreveu um instigante ensaio sobre
data, “1837”. Na coleção Kugel, as obras eram o par de alegorias de América e África que integram
atribuídas a um certo Linety, e a leitura da o acervo; de Caroline d’Assay, restauradora
assinatura poderia sugerir de fato que esse fosse francesa responsável pela recuperação da Revista
o nome do artista. Na tentativa de identificá-lo, das tropas na Praia Grande de Debret, que
contatamos o Service Historique de la Marine descreve e documenta o tratamento dado à pintura;
Française. Depois de uma intensa troca de do historiador João Hermes Pereira de Araújo, que
correspondências, foi localizado nesse arquivo o também aborda a obra de Debret, mas do ponto
dossiê de um marinheiro de nome Jules de Sinety de vista da descrição do fato histórico; e, por último,
(1812-?), que, a bordo da corveta L’Expéditive, de Bernard Jacqué, diretor do Musée du Papier
havia participado entre 1837 e 1841 do bloqueio Peint, a antiga manufatura Zuber em Rixheim, na
anglo-francês ao Rio da Prata, o que correspondia França, que se refere aos métodos de fabricação
exatamente aos dados que puderam ser extraídos e comercialização do papel de parede panorâmico
das aquarelas. Recentemente, tivemos ainda a Vistas do Brasil, de que a Coleção Brasiliana possui
surpresa de ter sido adquirido no mercado francês um exemplar impresso em 1829.
um diário de Sinety referente à mesma viagem ao
Prata. O comprador argentino entrou em contato Ao conjunto inicial proveniente da coleção Kugel,
com a Coleção Brasiliana no intuito de organizar foram acrescidas, ao longo dos anos, outras obras,
uma publicação sobre esse marinheiro-artista, que com o intuito de que, paulatinamente, as inevitáveis
deve vir a público em breve. lacunas do acervo fossem preenchidas. Isso
motivou a edição de um novo catálogo, publicado
O caso que envolve o nome do artista Nicolau em 2006, intitulado Coleção Brasiliana Fundação
Facchinetti é também elucidativo desse período de Estudar. Novamente, colegas historiadores foram
correspondências com outras instituições e convidados a refletir sobre o acervo, organizado,
pesquisadores. A historiadora Maria Pace Chiavari, nesta oportunidade, em segmentos temáticos. Os
por facilidades pessoais, conseguiu acesso na Itália autores deste catálogo são: Beatriz Siqueira Bueno,
ao documento de nascimento deste pintor, natural que escreve sobre a presença da cartografia na
de Treviso, em que se atesta o nome de batismo Coleção Brasiliana; Vera Beatriz Siqueira, que
“Niccolò Agostino”, o que contesta a historiografia apresenta um texto sobre “Iconografia e Paisagem”;
brasileira que tradicionalmente o nomeia “Nicolau Rafael Cardoso, que aborda as gravuras dos livros
Antonio”. De posse desta informação, nos de viagens pitorescas; além de Luciano Migliaccio,
propusemos a retraçar a origem do engano.

196
A Coleção Brasiliana / Fundação Estudar

que se detem nos retratos e cenas históricas paisagem do Brasil, assunto tão caro à arte
presentes na coleção. Quando da elaboração do brasileira do oitocentos. Já desde seu processo de
projeto desta publicação, pretendia-se que o livro conceituação, o projeto de Vistas do Brasil
pudesse trazer a público uma catalogação completa contemplava diversas formas de mediação para
do acervo. Contudo, após a finalização do catálogo, atender a diferentes demandas relativas à faixa
ocorreram ainda as aquisições dos volumes da etária dos visitantes, assim como a graus diversos
Viagem pitoresca e histórica ao Brasil de Debret e de interesse e envolvimento com o assunto.
da edição francesa do livro de viagem do príncipe Recursos educativos foram então pensados e
Maximilian zu Wied-Neuwied (1782-1867), que se desenvolvidos pelas educadoras Mila Chiovatto e
somaram então ao conjunto de obras doado Gabriela Aidar para estimular a percepção e o
posteriormente à Pinacoteca. prazer do visitante no contato com a arte. As
atividades postas em prática envolveram desde o
Em diversas oportunidades, a Coleção Brasiliana tradicional atendimento ao público por educadores
foi apresentada de modo abrangente em preparados para comunicar conteúdos específicos
exposições, caracterizando a contribuição trazida do projeto (em especial no que tange ao público
pelo acervo para ampliar o escopo da iconografia escolar), a produção de recursos multimídia, folders
dos viajantes sobre o Brasil. Destaco aqui, as de visita e áudio-guia. Contamos ainda com a
exposições ocorridas no Paço Imperial, Rio de participação de especialistas, convidados a
Janeiro, em 1999, no contexto da mostra O Brasil conduzir visitas que propusessem outras
Redescoberto, e no ano seguinte na Pinacoteca abordagens de leitura para a mesma exposição.
do Estado, em São Paulo. Da mesma forma, obras Este programa, chamado Arte em Prosa, contou
da coleção têm sido solicitadas para compor com a participação dos artistas Cláudio Mubarac e
mostras organizadas por instituições culturais no Sergio Fingermann, da educadora Denise
Brasil e exterior. Em 2002, reconhecida sua Grinspum, das conservadoras Lucia Thomé e Ana
relevância artística e histórica, a Coleção Brasiliana Scaglianti, do curador Felipe Chaimovich e do
foi doada em definitivo à Fundação Estudar, e historiador Jorge Coli. Essa iniciativa foi marcada
incorporada ao patrimônio cultural brasileiro. Neste pela intenção de que a Coleção Brasiliana fosse
mesmo ano, um convênio foi firmado entre a também um espaço de intercâmbio, e estivesse
Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo e a aberta à interlocução com estudiosos e
Fundação Estudar prevendo a apresentação de interessados pela iconografia brasileira do século
obras da Coleção Brasiliana na Pinacoteca do XIX. Cumprindo um antigo propósito de fazer
Estado por meio de exposições de longa duração, circular o acervo da Coleção Brasiliana por outros
sob diferentes recortes temáticos e acompanhadas espaços institucionais do Brasil, preferencialmente
por programas educativos especialmente fora do eixo Rio-São Paulo, esta exposição será
elaborados. Estas mostras, além de remontada em maio de 2008, no Museu de Arte do
proporcionarem uma apreciação do acervo da Espírito Santo, em Vitória.
Coleção Brasiliana, tinham também por objetivo
oferecer uma introdução à exposição de arte A figura humana em representação foi a segunda
brasileira dos séculos XIX e XX da coleção exposição realizada no âmbito do convênio com a
permanente do museu. Nesse contexto, foram Pinacoteca do Estado e propunha um confronto
realizadas as mostras Vistas do Brasil (2003-2005) entre o gênero do retrato, em que a fidelidade ao
e A figura humana em representação (2005-2006). modelo se apresenta como a condição essencial
de seu sucesso, e a figura humana enquanto
Vistas do Brasil foi um projeto experimental veículo de idéias abstratas na constituição de
desenvolvido conjuntamente entre a equipe da pinturas de figuras alegóricas. Um pouco mais
Coleção Brasiliana e a equipe de Ação Educativa modesta com relação à sua antecessora, contudo,
da Pinacoteca do Estado, que se propunha a esta exposição contou também com recursos
explorar as possibilidades de interação entre multimídia desenvolvidos especialmente para
museologia, história da arte e ação educativa. A aprofundar alguns conteúdos relativos às obras
exposição centrava-se na representação da expostas, principalmente no que se refere às
paisagem brasileira pelos artistas viajantes, tomada representações alegóricas.
na dupla mão da contextualização da prática do
registro da paisagem como continuação de uma O programa de divulgação do acervo prosseguiu
tradição européia, e da introdução do gênero da com mostras realizadas também no exterior. Em
paisagem no contexto da arte brasileira. Assim, a 2005, a Coleção Brasiliana foi escolhida pelo diretor
exposição investigava os diferentes modelos e do Musée de la Vie Romantique em Paris para
intenções que presidiam a representação da constituir a exposição sobre o século XIX brasileiro

197
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

no contexto de Brésil Brésils, o Ano do Brasil na Por fim, a inauguração da mostra Coleção
França. A mostra La Collection Brasiliana: les Brasiliana: versões e narrativas no final de 2007
peintres voyageurs romantiques au Brésil (1820- na Pinacoteca do Estado veio celebrar o momento
1870) foi apresentada de junho a novembro naquela em que a Coleção Brasiliana passou a pertencer
instituição, que tem como sede a antiga residência a uma instituição pública. O acervo da Pinacoteca
do pintor francês de origem holandesa Ary Scheffer do Estado de São Paulo, centrado na produção
(1795-1858). A ocasião revestiu-se de especial brasileira de meados do século XIX até a
interesse, na medida em que caracterizava o atualidade, foi assim acrescido de um conjunto
retorno de um conjunto de obras que havia sido de obras que amplia significativamente o espectro
constituído como uma coleção privada na França, de sua abrangência temporal. O percurso proposto
e era apresentada pela primeira vez ao público e pretendido para a Coleção Brasiliana a partir de
daquele país. De Paris, a exposição seguiu para diálogos e intercâmbios conclui-se assim numa
Portugal, onde foi mostrada no Museu Nacional de incorporação que, esperamos, possa propiciar
Soares dos Reis, no Porto, e na Galeria de Pintura sempre a existência de espaços de reflexão e
do Palácio Nacional da Ajuda, em Lisboa. Em todas estudo sobre a arte brasileira do século XIX.
essas ocasiões, obras afins de acervos locais foram
adicionadas à exposição, na intenção de
estabelecer possíveis diálogos entre obras que se
encontram, de outra forma, dispersas.

198
capitulo 5
a crítica de arte, o romance sobre arte, o artista como teórico

199
Durante os dezessete anos em que dirigiu a
Academia Imperial de Belas Artes, Félix-Émile
Taunay implantou diversos projetos. Entre suas
investidas bem sucedidas, podemos citar as mais
conhecidas, como as exposições gerais de 1840 e
o Prêmio de Viagem de 1845. Neste percurso,
foram muitas as tentativas, no entanto, de
incorporar a Academia ao reduzido grupo de órgãos
produtivos do governo imperial, visando, entre
outros, a participação das belas artes como veículo
de promoção do Estado e da Nação.

Com a Coroação de D. Pedro II em 1841 e o início


efetivo do Segundo Império, após um longo período
de regência repleto de incertezas políticas, há a
necessidade natural de se formar um programa
nacionalista que corresponda, efetivamente, à
instalação de um novo governo. Veremos que se
inicia, neste período, o programa voltado à
construção de uma idéia de nação já perdida, ou
nunca alcançada, no primeiro Império de Pedro I,
quando da Independência do Brasil. O segundo
Império requeria, necessariamente, a construção
da história e da representação visual de uma nação
dirigida por um Imperador que, embora filho de
Bragança e de Habsburgo, era nascido no Brasil e
deveria imprimir o selo nacionalista de uma terra
félix-émile taunay e a importância do monumento finalmente independente.
público na academia imperial de belas artes
Sabemos hoje que este programa criado no campo
elaine dias1 da literatura e das belas artes será quase que
inteiramente vinculado à representação do indígena
como aquele que, de fato, diz respeito às origens
da terra brasileira – seu primeiro habitante – , além
de estar inserido, primordialmente, na criação de
um conceito intrínseco à formação da nação
brasileira: a miscigenação das raças, obedecendo
a idéia antes pregada por José Bonifácio. Também
nos é conhecido o papel de Manuel de Araújo Porto
Alegre e de Vitor Meirelles na construção desta
iconografia nacionalista, o primeiro como escritor
e articulador deste programa, o segundo como o
primeiro pintor de história brasileiro voltado à
representação desta nacionalidade.

É possível, no entanto, retomarmos as origens


deste programa por meio das palavras e das ações
de Félix-Émile Taunay como diretor da Academia
Imperial de Belas Artes. São novamente seus
discursos pronunciados2 aqueles que nos dão os
instrumentos na compreensão dos primeiros
passos tomados na construção da história e da
memória nacional. Embora a historiografia não
tenha ainda se debruçado no estudo detalhado das
fontes que conduziram o pensamento de Taunay
em seus 35 discursos proferidos na Academia,
convém aqui ressaltar os trabalhos já
desenvolvidos sobre a relação de Taunay e o
Segundo Império, como os trabalhos de Adolfo

201
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

Morales de los Rios Filho3, Francisco Marques dos sucedidas. A escravidão, motor desta sociedade,
Santos, Alfredo Galvão e Afonso Carlos Marques era, de certo modo, um entrave ao desenvolvimento
dos Santos, cujo trabalho em torno da memória artístico, menos em razão da inclusão de um
nacional e da “invenção do Brasil” – para usarmos escravo negro como modelo vivo – cuja anatomia,
o título de seu livro - foi recentemente publicado ainda que lhe valesse a aprovação ao curso, não
no Rio de Janeiro, após seu falecimento. Em sua indicava, necessariamente, a habilidade das poses
obra, Afonso Marques dos Santos, no capítulo - mais em função do caráter retrógrado que a
intitulado “A Academia Imperial de Belas Artes e o escravidão imprimia à vida social brasileira e
Projeto Civilizatório do Império” 4 , trata da impedia, conseqüentemente, o desenvolvimento de
importância da Academia dentro do processo de uma academia de artes, colocando alguns entraves
construção da nação, cujo trabalho de Félix-Émile ao apoio do governo à instituição artística.
Taunay é fundamental e francamente esclarecido
através de seus discursos. Neste mesmo sentido, Como acadêmico e conforme constatamos em
os trabalhos anteriores de Francisco Marques dos seus discursos, Taunay tenta efetivamente mudar
Santos - que igualmente trabalhou com alguns a visão da sociedade carioca e do governo quanto
discursos de Taunay 5 - e de Alfredo Galvão 6 , à real utilidade de uma academia de artes. Convém
historiadores que se debruçaram sobre o tema nas ressaltar seus discursos pronunciados nas sessões
décadas de 1940 e 1960, são igualmente públicas anuais eram anualmente publicados no
importantes para o entendimento desta questão. Jornal do Comercio, veículo importante de
comunicação da academia a uma pequena
Em 1841, ano, portanto, da Coroação de D. Pedro população de letrados. Além disso, ao lado do
II, Taunay ressalta em seu discurso realizado na Imperador como professor de desenho, pintura de
Sessão Pública: paisagem e língua francesa, Taunay mantém uma
proximidade ao poder que, de certo modo, torna-
[...] acharemos que o papel definitivo de cada se um aliado às suas tentativas. Neste discurso de
nação sobre a terra se resume quase 1841 e também na Sessão Pública de 1842, além
inteiramente na expressão que ela deixa da sua daqueles realizados nos anos posteriores, ele
passagem na cena do mundo; depende, em ressalta a necessidade de proteção de sua
outros termos, da sua literatura e da sua instituição e de elevação de sua categoria no
artística, os dois meios pelos quais se conceito público, condições necessárias para que
perpetuam as tradições dos conhecimentos esta construção nacionalista - do qual as belas
humanos, a memória dos feitos e as feições artes têm papel primordial - possa ser colocada
das épocas. [...] As Belas Artes, porém, sob a em prática. Taunay cita ainda os grandes homens
égide de um soberano que as ama e as protege, públicos de outrora e o vínculo estabelecido entre
tem de reclamar parte fraterna neste privilégio sua atuação política e o mundo artístico, sempre
do conceito público.” (Sessão Pública da AIBA, numa tática de convencimento ao governo da
1841) importância das artes nesta construção. Retoma
Alexandre, o Grande, para reforçar seu argumento,
A construção da memória nacional por meio das através de uma passagem de sua vida retirada de
belas artes não era, contudo, algo fácil de ser As Vidas dos Homens Ilustres, de Plutarco:
assimilado pela corte e pela sociedade brasileira
deste período. Vale a pena recordarmos apenas Ó Atenienses, quantos males eu sofro para
uma das dificuldades em torno do desenvolvimento merecer vossos elogios! Ó Atenienses, a saber,
do ensino artístico dentro da Academia, desde a ó artistas e literatos: é para vós, e, por meio de
entrada de Félix no cargo de diretor, isto é, o curso vós, para a posteridade, que eu me fiz com
de modelo vivo, o qual refletia inteiramente o caráter tantas fadigas representante da nacionalidade
de certa forma, colonial, ainda presente na vida helênica! (Sessão Pública da AIBA, 1841)
social brasileira. O curso, aprovado ainda em 1834,
levará ao menos dez anos para desenvolver-se de A leitura e a inclusão de Plutarco na concepção
modo pleno. Não há a profissão no Rio de Janeiro dos discursos de Taunay é significativa nestes
e os poucos “modelos” que se oferecem são contextos social, político e cultural brasileiros. Basta
“magros”, “idosos” e “estragados”. Os contratados, lembrarmos que será no Instituto Histórico e
por falta de um modelo perfeito, são aqueles de Geográfico Brasileiro, o IHGB, que será criado
“formas moles”, que terminam por servir ao curso neste período um programa voltado não só à escrita
até que outro mais adequado apareça. Além disso, da história nacional - do qual sairá vencedor Von
as tentativas de Taunay para a inclusão de um Martius em sua “Como se deve escrever a história
escravo negro, “dotado de belas formas artísticas”, do Brasil”, precisamente em 1844 -, mas igualmente
segundo nosso diretor, não são obviamente bem à biografia dos homens ilustres brasileiros,
202
Félix-Émile Taunay e a importância do monumento público na AIBA

programa que se associará, durante estes mesmos entendido como homenagem a determinadas
anos, à concepção do monumento público personalidades políticas ou signos do feudalismo,
brasileiro, da retratística e da produção de bustos, alvo do vandalismo revolucionário – , agora
propostos por Taunay na Academia. A rubrica interpretados como agentes de uma memória
“Brasileiros ilustres pelas ciências, letras, armas, nacional a ser conservada. Correspondem à
virtudes, etc” aparecerá em 1839 na Revista do história da nação e têm, portanto, a função de
IHGB e cumprirá o papel de trazer à tona os homens instrução. Também Quatremère de Quincy será
célebres que formaram a nossa história nos mais importante no desenrolar desta questão no período
diversos campos, desde o período colonial 7 . revolucionário, mas através de uma outra via. Ele
Concepção ligada ao ideal das luzes, o “grande condenará, em suas célebres Lettres à Miranda9,
homem” ou o “homem ilustre” deveria ser as chamadas “conquistas” dos objetos artísticos e
recuperado em seu caráter de conhecimento ligado monumentos públicos pela França no período
à idéia de progresso e à sabedoria do homem revolucionário e de guerras napoleônicas.
ilustrado formador da pátria. Plutarco é entendido Defenderá, entre outras questões, a noção de que
como modelo aos literatos brasileiros, uma vez que o monumento ou a obra de arte não podem ser
sua “As Vidas dos Homens Ilustres” será um desvinculados de seus contextos histórico,
exemplo fortemente ligado à construção histórica geográfico, social e político. Que uma escola
e literária das nações. Taunay utiliza suas biografias artística só pode ser entendida por meio de seu
quando quer ressaltar a importância dos grandes entorno, de seu diálogo com o lugar, de sua ligação
homens na relação com o mundo artístico, como ao seu meio físico e humano. A idéia se relaciona,
Alexandre o Grande ou Péricles, a qual se insere, de certo modo, à noção que ganha corpo com
perfeitamente, no programa destinado à Alexandre Lenoir, embora Quatremère condene,
representação visual da nação também por meio nestes escritos, a idéia de museu, central em
da Academia. Lenoir. No entanto, há uma forte relação entre os
dois pensamentos, isto é, a idéia de que o
Seguindo esta via, Taunay elabora o seu programa monumento público deve ser preservado em razão
dentro do “programa”. Ano a ano, mostra como deve de sua inerente relação com a memória nacional,
ser realizada a construção histórica desta nação veículo, portanto, da educação de uma nação.
que se inicia. Para ele, o lugar primordial é a cidade.
A capital deste novo Império deve ser a porta voz Para Taunay, esta noção de educação através das
da glória nacional e, para tanto, o Rio de Janeiro belas artes, do monumento público –
deve se desenvolver, seja através da construção fundamentalmente relacionada ao pensamento
de edifícios, seja através do planejamento urbano. francês – nasce da união da beleza física com a
O monumento público tem uma função primordial beleza moral. A arquitetura e a escultura
nesse sentido. Ao mesmo tempo em que cumpririam, assim, papéis de excelência à
representa visualmente uma passagem histórica e execução desta idéia. Ao discutir esta questão,
traduz os grandes feitos políticos, construindo a Taunay retoma os escritos do filósofo francês Victor
memória nacional e educando o povo através de Cousin, editor de Descartes e tradutor de Platão
sua composição, ele está inserido no espaço na França, autor, entre outros de Histoire de la
público da cidade, contribuindo não só para o philosophie au XVIIeme siècle, em 1829 e Du Vrai,
sentido moral de sua existência, mas igualmente du Beau et du Bien, editado em 1851 a partir de
para o embelezamento da cidade. seus escritos anteriores. Taunay se valerá,
sobretudo, de sua obra Cours de philosophie
A noção de memória nacional vinculada ao professé à la Faculté des lettres pendant l’année
monumento público é algo caro à cultura que nasce 1818 par Monsieur Victor Cousin sur le fondement
com a Revolução francesa, da qual Félix-Émile é des idées absolues du vrai, du beau et du bien,
filho. Os atos iconoclastas levados a cabo neste publicado entre 1839 e 1842, e do artigo « Du Beau
período obtiveram uma resposta definitiva através et de l’Art ». publicado em 1845 na Revue des deux
da concepção da idéia de patrimônio e de mondes. Para Cousin, “la fin de l’art est l’expression
preservação dos objetos artísticos, da qual de la beauté morale à l’aide de la beauté
Alexandre Lenoir tem um papel fundamental. Frente physique”10, idéia central ao discurso de Taunay. A
às ações iconoclastas, fará o resgate de diversas observação das belas formas naturais, própria ao
obras para um depósito particular, mais tarde artista – segundo Taunay nos descreve no discurso
autorizado a se transformar em Musée des de abertura do ano escolar de 1843 – relaciona-
monuments historiques8. Será ele, portanto, uma se, assim, aos ideais de virtude e patriotismo,
figura importante na transformação da noção de portanto, ligadas ao exemplo moral, princípios que
monumento público – muitas vezes apenas são fundamentais à concepção do monumento

203
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

público. Para Taunay, o artista seria o responsável Ao chegar um viajante a qualquer cidade, acha-
por um grande “serviço à sociedade”, justamente se favoravelmente predisposto pelo aspecto de
por unir o belo físico ao belo moral ao representar grandiosos monumentos, cada um dos quais
as ações virtuosas da sociedade, citando direta e parece indicar uma qualidade no povo, religião,
indiretamente as teorias propostas por Cousin. Em respeito ao soberano e a justiça, hábitos de
outras ocasiões, como nos discursos da abertura ordem, gosto esclarecido. (Sessão Pública da
do ano escolar de 1842 e 1846, Taunay citará o AIBA, 1842)
mesmo autor, recuperando justamente o ensaio Du
Beau et de l’Art: “o maior dos artistas é, sem Na questão dos viajantes, da memória através do
dúvida, o homem de bem o qual, expressando pelas monumento e da importância do modelo grego,
suas obras a justiça e a caridade, produz a mais Taunay cita François-René Chateaubriand,
tocante revelação do belo, a que comove logo até Alphonse de Lamartine e Victor Hugo. Curioso é
às lagrimas a generalidade dos homens”. Nesse notarmos que tanto Chateaubriand quanto
sentido, continua Taunay, Lamartine são dois autores vinculados ao pré-
romantismo na França. O primeiro, autor de Atalá
ao menos relativamente à utilidade atual, quero (1801) e Le Génie du christianisme (1802), será
dizer, a propaganda da moralização e da aquele a levantar a relação do homem com a
virtude, é certo que os monumentos, melhor grandiosidade divina da natureza nestes dois
que os livros, generalizam a fama dos fatos romances. Sua viagem aos Estados Unidos e
heróicos, e melhor suprem esse admirável Canadá em 1791 evocam a inspiração à aventura,
instrumento da infância das sociedades, a ao selvagem e ao puramente natural, idéias já caras
tradição. ao pensamento de Rousseau. Os ideais da beleza,
da melancolia e do sentimento serão os motores
Segundo ele, os monumentos são incontestáveis de seus dois romances, publicados quase que
produtos das belas artes e o Brasil apresenta uma simultaneamente. Já Lamartine, que era conhecido
propensão inegável à sua execução. por seu fervor ao cristianismo e sua fé católica,
será o autor de Méditations poétiques (1820) e de
O modelo grego é primordial para a elaboração Harmonies poétiques et religieuses (1829),
destes projetos, não apenas no que diz respeito à considerados dois escritos cruciais à manifestação
questão da moralidade e da virtude, mas também do romantismo na França pós-Chateaubriand. Os
à forma. A discussão proposta por Taunay envolve dois autores podem ser, no entanto, reconsiderados
claramente a grandiosidade do modelo antigo, sua dentro da história do romantismo francês e de sua
íntima relação com a arquitetura e sua aproximação à antiguidade, em razão de duas
contraposição ao gótico, em voga neste período obras aqui citadas por Taunay. O Itinéraire de Paris
na Europa. Para ele, à Jérusalem et de Jérusalem à Paris, en allant par
la Grèce, en revenant par l’Egypte, la Barbarie et
a arquitetura se achará onde existe a ciência
l’Espagne publicado em 1811, aborda a questão
das proporções, o que equivale a dizer que ela
do antigo no Oriente e a importância da Grécia em
se acha na escola grega, a qual estudou as
relação ao monumento público. Taunay ressalta que
proporções em geral sobre o exemplar de
Chateaubriand compara os monumentos de Roma
proporções mais perfeito que se nos oferece,
e de Atenas, de como os primeiros são “grosseiros”
o corpo humano, [que] aplicou à arquitetura os
em relação aos segundos, perfeitos na harmonia e
resultados de observação, os princípios ali
na grandeza. E que os monumentos da França são
colhidos. (Sessão Pública de 1843).
considerados bárbaros se comparados aos de
No reforço a esta idéia, e inserindo-se numa Roma. Chateaubriand evoca a grandiosidade dos
discussão que ocorre na Europa neste período – monumentos na Grécia e diz que a única arte da
portanto contemporânea a ele -, Taunay utiliza-se, França, a qual pode ser tomada como genuína, é
no discurso da Sessão Pública de 1843, de alguns a arquitetura gótica, considerada uma “arquitetura
“dos mais afamados viajantes e escritores natural”, nascida em seus altares11. Já Lamartine,
modernos” para reforçar sua argumentação acerca em Souvenirs, impressions, pensées et paysages
da importância da antiguidade em contraposição pendant un voyage en Orient, 1832-1833 ou Notes
ao retorno ao gótico, também na valorização do d’un voyageur, publicada em Paris em 1835, conta
monumento público. Para Félix-Émile, o sua admiração pela Grécia e outros países do
monumento exerceria não só função educativa à Oriente, sendo esta obra considerada um divisor
nação, em primeira instância, mas também ao de águas em sua fervorosa relação com o
viajante, conceito caro ao século XIX europeu e catolicismo e, por sua vez, com o romantismo.
americano:

204
Félix-Émile Taunay e a importância do monumento público na AIBA

Taunay cita-o na seguinte passagem de sua obra para a arquitetura e a escultura. Segundo ele, “para
para elevar o modelo grego12: o estudo da arquitetura não há senão uma escola,
a Grega; por que é a escola mestre das proporções,
Os Propileus, diz ele, o templo de Erechtheo, a irmã gêmea da estatuária” (Sessão Pública de
o Pandroseum, estão ao pé d’aquele templo: 1843). Os exemplos são anualmente citados no
obras primas também, mas apagadas pela reforço da importância do modelo grego para a
vizinhança de outra obra prima superior! A alma, construção do monumento público no Brasil.
como que adormecida por uma impressão Discorre sobre as mais importantes cidades da
nimiamente enérgica ao aspecto dos primeiros, Europa e sua efetiva relação com o modelo grego,
d’esses edifícios, não tem mais força para as quais servem de exemplo ao caso brasileiro.
admirar aos outros. Cumpre vê-lo e ir-se, Para Taunay, a cidade do Rio de Janeiro e seu
lamentando menos a devastação d’essa obra Império americano iria se igualar a Paris, Roma ou
sobre humana do homem do que a Atenas. A França, neste caso, seria a legítima
impossibilidade em que o homem se acha de herdeira do mundo antigo, seguindo a linha de
igualar jamais a sublimidade e harmonia dela. Roma e a herança da Grécia Antiga. Em relação à
O gótico é belo, mas faltam-lhe a ordem e a Itália, ressalta a maneira da arquitetura de
luz: luz e ordem! Estes dois princípios de Buschetto de Pisa na construção da catedral
criação eterna! Adeus para sempre o gótico! pisana, realizada a partir das colunas antigas e
(Sessão Pública da AIBA, 1843) materiais preciosos ali presentes, como o mármore
e o granito. Na análise deste exemplo, Taunay
Como defensor do gótico, Taunay cita Victor Hugo retoma certamente a fonte de Quatremère de
e sua Notre Dame de Paris, obra de 1831, sem Quincy em sua Histoire de la vie et des ouvrages
mais considerações, apenas ressaltando o des plus célèbres architectes, publicada em 1830,
“entusiasmo” ao gótico na França neste período. fonte que será usada em discursos posteriores.
Este entusiasmo estava levando até mesmo à Quatremère, retomando a Storia della Scultura do
criação de sociedades defensoras da Idade Média, Conde Cicognara, esclarece que Buschetto utilizou-
que tentam explicar, segundo Taunay “as figuras e se de materiais que dispunha das ruínas das termas
ornatos ridículos e obsessos da sua plástica”. Há ou do Palácio de Adriano, onde estava a antiga
aqui uma citação indireta a Marc-Antoine Laugier catedral, desmentindo a lenda de que os materiais
em seu Essai sur l’Architecture, publicado em haviam sido trazidos da Grécia pelos pisanos por
1753 13 , onde em muitas passagens exibe o meio de viagens marítimas. A maneira de Buschetto
confronto entre a arquitetura gótica e a arquitetura será essencial à retomada do modelo grego em
clássica. Laugier será um arquiteto caro aos outras cidades italianas, que igualmente irá
neoclássicos, base importante aos trabalhos de engrandecer seus monumentos públicos tendo em
Boulée, Ledoux, e de outros arquitetos formados vista o exemplo do mundo antigo.
no período revolucionário, como o próprio
Grandjean de Montigny. O exemplo de Buschetto em Pisa e sua circulação
às cidades italianas é mais um reforço à tomada
Em relação às sociedades criadas, ele não cita do modelo antigo na construção de edifícios e
quais são elas, mas é possivelmente a Société des monumentos no Rio de Janeiro. A arquitetura é,
antiquaires de Normandie, fundada em 1824 por para Taunay, “a sábia distribuidora a quem elas [a
Arcisse de Caumont, o qual iniciou a revalorização pintura e a escultura] devem o brilhantismo de sua
do gótico na Normandia. Ao mesmo tempo, pode aparição” (Sessão Pública de 1843). A idéia da
também se referir à Commission des Monuments arquitetura como a primeira das artes, defendida
Historiques fundada em 1837 e dirigida por Prosper por Taunay em toda sua trajetória, tem neste trecho,
Mérimée, inspetor geral desta Comissão. O papel além de uma referência indireta à discussão
de Viollet le Duc se intensifica nesse período, ao renascentista levada a cabo por Giorgio Vasari em
lado de Mérimée, sobretudo no restauro de diversas suas Vite e Benedetto Varchi em seu célebre texto,
catedrais, como a própria Notre Dame, cujo Due Lezzione, tem também uma clara referência
sucesso do romance de Victor Hugo tem um papel ao universo francês, principalmente se pensarmos
importante, além daquelas de Carcassone e do no papel da Academia real de arquitetura desde o
Mont Saint-Michel. século XVII, como bem ressalta André Chastel em
sua monumental obra sobre a arte francesa. Além
Taunay insere-se, desta forma, na discussão
disso, Taunay parece remeter seu pensamento a
contemporânea acerca da valorização do gótico,
Diderot em seu Essai sur la peinture, publicado em
posicionando-se a favor do modelo grego,
1765 como um apêndice ao Salão daquele ano.
preponderante à criação dos monumentos públicos
Diderot destaca no trecho “Mon mot sur
no Brasil e, em primeira instância, modelo perfeito

205
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

l’architecture”, a importância desta arte em relação fato, daria maiores possibilidades de emprego aos
às demais. Para ele, trata-se apenas de dizer arquitetos formados na Academia. O tema será
brevemente que “sans architecture, il n’y a ni novamente discutido na abertura do ano escolar
peinture, ni sculpture; et que c’est à l’art, qui n’a de 1845, relacionando-o à utilidade das belas artes
point de modèle subsistant sous le ciel, que les ou leia-se, da arquitetura. Nesse aspecto, a
deux arts imitateurs de la nature doivent leur origine afirmação envolve necessariamente uma
et leur progrès”14. Que a pintura e a escultura comparação com o campo da engenharia na
devem seu nascimento à arquitetura e que é Repartição das Obras Públicas do Rio de Janeiro,
necessário, imperativamente, que o arquiteto o qual detém o poder sobre as construções de
domine o desenho. Esta questão se repetirá, como edifícios públicos e monumentos na cidade. Diz
já afirmamos, em muitos dos discursos de Félix- Taunay que “só os artistas podem dar a cada
Émile. construção com a sua conveniente distribuição
interna, o seu verdadeiro caráter exterior.” Segundo
Nesse sentido, Taunay denuncia, ao defender o ele, o arquiteto é aquele que pode “coadjuvar os
papel da arquitetura no Rio de Janeiro, que existe fins da civilização”, pois é ele quem confere a
na cidade uma prática voltada a uma suposta “augusta primazia do soberano”, a beleza dos
economia, na construção de casas “sem edifícios nacionais, a hierarquia dos poderes que
arquitetura, hábito este que tem passado até a ali residem e a indicação do seu uso público,
edificação dos monumentos”. Ressalta a falta de tradutoras do respeito ou da submissão.
planejamento na realização dos orçamentos, feitos
sem conhecimento e dados incorretos, os quais A idéia do monumento que “honra e premia a
levam a erros de execução e “fantasias” na virtude”, que deve ser grandioso em sua
distribuição “desregrada dos ornatos dos frisos e concepção, conquistou em 1845 o apoio do
cimalhas”, que igualmente levam a gastos deputado Antonio Carlos Ribeiro de Andrada
excessivos quando se queria pensar, Machado e Silva, que advogou a causa das belas
supostamente, na economia ao não se chamar um artes e da importância do monumento público no
arquiteto. Com isso, Taunay inicia todo um discurso Brasil. O deputado, irmão de José Bonifácio de
relativo a uma alternativa na construção a partir da Andrade e Silva e, portanto, de características
exploração de materiais brasileiros para a notadamente liberais, seria um aliado poderoso a
realização das arquiteturas: Taunay na mudança de percepção social e política
acerca da instituição acadêmica e sua utilidade ao
A opinião é muito esclarecida para que me governo, não fosse sua morte neste mesmo ano
demore em mostrar quanto importa à capital de 1845. Ainda que Taunay encontrasse poucos
de um vasto Império favorecer o aliados à execução de suas idéias, as tentativas
desenvolvimento das Belas Artes, quando foss de produção de monumentos públicos, a atuação
somente sobre a luz da fecundação futura por do arquiteto e do escultor, o engrandecimento da
elas de muitos ramos da indústria nacional. A cidade, continuarão recebendo reforços, sempre
respeito das vantagens atuais que traria a na tentativa de convencimento das bases
intervenção de bons, estudiosos e diligentes legislativas do governo imperial. No discurso de
arquitetos, uma só delas apresentarei; e uma abertura do ano escolar de 1847, ele nos diz:
que instantaneamente enriqueceria o aspecto
da cidade, e também criaria ou tiraria do berço Dizer S. Pedro, o Vaticano, etc, não é dizer
uma indústria muito interessante, da qual tem Roma? O Campo Santo, a Torre inclinada,
aparecido amostras: havendo já entre nós dois Pisa? O Louvre não é Paris? Versailles, a
oficiais no mesmo ramo, um americano, outro França? S. Pedro, Londres ? Os monumentos
italiano, este hoje ocupado na pedreira de S. são sinônimos da glória dos países, são, em
Cristóvão. Quero falar da preparação dos certo sentido, para os viajantes sobretudo, o
granitos e mármores brasileiros, os quais sendo país mesmo, o que fica do país na sua
polidos dispensariam vantajosamente o luxo lembrança. Admira, portanto, que os viajantes,
pueril da pintura exterior, fingindo mármores. compenetrados da beleza e grandeza dos
Os granitos custariam mais, é verdade, polidos monumentos que viram em vários lugares, se
que picados. Mas que diferença quanto à conservem, ao mesmo tempo, perfeitamente
beleza e mesmo quanto à duração! (Sessão indiferentes sobre a origem, tão necessária de
de Abertura do Ano Escolar da AIBA, 1844) se saber, sobre a causa eficiente da existência
dos mesmos monumentos. Diz-se (cousa
Taunay traça um panorama destes materiais e de verdadeiramente prodigiosa entre entes
seus lugares possíveis de exploração no Brasil, algo dotados de inteligência!) que o espetáculo das
que facilitaria a execução dos monumentos e, de
206
Félix-Émile Taunay e a importância do monumento público na AIBA

maravilhas da natureza tornou alguns, investida da autoridade suprema. (Sessão de


incrédulos na existência de uma causa abertura do ano Escolar da AIBA, 1847)
suprema. Dar-se-á também que a
contemplação das maravilhas artísticas Referências bibliográficas
tornasse a alguns incrédulos na realidade da
arte? Serão também os monumentos obras do CHASTEL, André. Introduction à l’Histoire de
acaso? E far-se-á preciso, em contraste com l’Art Français. Paris, Flammarion, 1993.
uma opinião tão absurda, ainda proclamar esta CHATEAUBRIAND, François-René de. Itinéraire
verdade trivial: os monumentos são feitos pelos de Paris à Jérusalem et de Jérusalem à Paris,
artistas e somente por eles! (Sessão de en allant par la Grèce, en revenant par l’Egypte,
abertura do ano escolar da AIBA, 1847) la Barbarie et l’Espagne. Paris, Gallimard, 2005.
COUSIN, V. Cours d’histoire de la philosophie
O exemplo das grandes cidades européias e de morale au dix-huitième siècle, professé à la
suas grandes arquiteturas está diretamente Faculté des lettres, en 1819 et 1820. Paris,
relacionado à cidade do Rio de Janeiro, que deve Ladrange, 1839-1842.
também buscar sua arquitetura, o monumento que ________. Du Beau et de l’Ar , Paris, Revue des
a ela diretamente se relacione e que corresponda deux mondes, 1845, p.774.
à sua grandeza. Taunay aqui se utiliza novamente DIAS, E. Félix-Émile Taunay: Cidade e natureza
do conceito de viajante, o qual, a partir de sua visita no Brasil. Tese de doutorado, IFCH-Unicamp, 2005.
e contemplação das belezas de um país, faz DIDEROT, Denis. Ensaio sobre a pintura.
circular as informações acerca do mesmo, assim Campinas, Papirus, 1993.
como o caráter histórico ligado à proposta do DUMAS, Alexandre. Les Médicis. Paris, Phoenix
monumento. Mais ainda, Taunay toca em outro Editions, 1999.
ponto, que é o papel do artista nesta produção, ENDERS, Armelle. O Plutarco Brasileiro. A
levantando novamente a discussão acerca das Produção dos Vultos Nacionais no Segundo
funções destinadas ao arquiteto e ao engenheiro Reinado. Estudos Históricos - Heróis nacionais,
das obras públicas na cidade do Rio de Janeiro. É Rio de Janeiro, vol.14, n°25, 2000, p.41-62.
preciso, no entanto, que o artista tenha o apoio do GALVÃO, Alfredo.Félix-Émile Taunay e a Academia
governo nesta empresa. Neste mesmo discurso, de Belas Artes. Revista do Patrimônio Artístico
Taunay citará o exemplo de Péricles em Atenas, Nacional, 16, 1968.
de Carlos V e sua relação com Tiziano, de Luis LAMARTINE, Alphonse de. Souvenirs,
XIV e o engrandecimento da França promovido em impressions, pensées et paysages pendant un
seu reinado, e até mesmo os Médicis15, que embora voyage en Orient, 1832-1833 ou Notes d’un
considerados por Taunay como inferiores aos voyageur, Paris, Hachette, 1874-1880 ;
demais por seus vícios e crimes, foram também ________. Athènes. Heureux qui comme...Paris,
protetores das artes e, de certa forma, Magellan & Cie. 2004.
considerados maiores que alguns grandes homens LAUGIER, Marc-Antoine, Essai sur l’architecture.
da política. Paris, De l’imprimerie de la veuve Delatour, rue de
la Harpe. 1753.
Taunay pretende, assim, que o governo exerça o LENOIR, A. Notice historique des monumens
mesmo papel outrora exercido na Europa, des arts, réunis au Dépôt national, rue des Petits
chamando a atenção do Imperador Pedro II à Augustins. Paris, Chez Cussac, 1796-1797.
utilidade da Academia brasileira, ao mecenato das MONNIER, Gerard. L’art et ses institutions en
artes, instrumentos de engrandecimento de um France. De la Révolution à nos jours. Paris, Éditions
país, como ele bem tenta provar no início de 1847: Gallimard, 1995.
MORALES DE LOS RIOS FILHO, Adolfo. O ensino
Quis, ao contrario, dar a entender quanta glória artístico. Subsídio para a sua Historia. Um capítulo
espera os reinados legítimos e moralizadores, 1816-1889. RJ: Imprensa Nacional, 1942.
se uma proteção esclarecida fizer com que as QUATREMÈRE QUINCY, A. Essai sur la nature,
Belas Artes prestem as brilhantes refrações do le but et les moyens de l’imitation dans les
seu prisma aos atos de uma administração beaux-arts. Paris : Treuttel et Wurtz, 1823.
sábia e generosa, de uma política feliz por ________. Dictionnaire historique
moderada e constante; e se o poder de d’architecture. Paris, 1832.
manifestação do belo visível, com toda a sua ________. Encyclopédie méthodique.
encantadora magia, servir de intérprete ao Architecture. Paris, chez Panckoucke, libraire,
amor, a boa vontade mútua e simpatia pode hôtel de Thou, rue des Poitevins. A Liège, chez
promover entre os homens a virtude nativa Plomteux, imprimeur des Etats. 1788, t.2.

207
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

________. Histoire de la vie et des ouvrages des Notas


plus célèbres architectes du XI siècle jusqu’a
1
la fin du XVIIIe, accompagnée de la vue du plus Pós-doutoranda em Fundamentos da Arquitetura e do
Urbanismo (FAU-USP, Fapesp).
remarquable édifice de chacun d’eux. Paris, 2
Os discursos de Félix-Émile Taunay estão incluídos nas
Jules Renouard, 1830. atas acadêmicas da antiga Academia Imperial de Belas
________. Lettres à Miranda sur le Artes, documentos estes conservados no Museu D.João
Déplacements des Monuments de L’Art de VI, na EBA-UFRJ, no Rio de Janeiro. Os discursos
L’Italie. Paris, Macula, 1989. proferidos por Taunay nas Sessões Públicas anuais eram
SANTOS, Francisco Marques dos. Subsídios para também publicados no Jornal do Commercio.
3
a história das belas-artes no Segundo Reinado: as MORALES DE LOS RIOS FILHO, 1942.
4
SANTOS, 2007. Esse mesmo artigo pode ser também
belas-artes na Regência. Estudos Brasileiros, Rio
lido em SANTOS, 1998.
de Janeiro, v.9; no.25-27, jul-dez 1942. 5
SANTOS, 1942.
SANTOS, Afonso Carlos Marques dos. A Academia 6
GALVÃO, 1968.
Imperial de Belas Artes e o Projeto Civilizatório do 7
ENDERS, 2000: 41-62. Nota-se ainda que será publicado
Império. 180 Anos da Escola de Belas Artes. em 1847 o livro “O Plutarco Brasileiro”, por João Manuel
Anais do Seminário EBA 180. Rio de Janeiro, Pereira da Silva, reeditado em 1868 como Os Varões
UFRJ, 1998. ilustres do Brazil durante os tempos coloniais.
8
LENOIR, 1796-1797.
________. A Invenção do Brasil. Ensaios de 9
QUATREMÈRE DE QUINCY, 1989. Suas cartas foram
história e cultura. Rio de Janeiro, Editora da UFRJ, originalmente publicadas em 1796.
2007. 10
COUSIN, 1845 : 774. Ver também COUSIN, 1839-1842.
WINCKELMANN, J. Réflexion sur l’imitation des 11
CHATEAUBRIAND, 2005 :181.
oeuvres grecques en peinture et en sculpture. 12
LAMARTINE, 1874-1880 ; e também LAMARTINE, 2004 :
Paris, Éditions Jacqueline Chambon, 1991. 54-55.
13
________. Histoire de l’art de l’antiquité. Paris, LAUGIER, 1753. Ver também CHASTEL, 1993.
14
DIDEROT, 1993.
Librairie génerale française, 2005. 15
Taunay usa a biografia dos Médicis escrita por Alexandre
Dumas. Ver DUMAS, 1999.

208
Pretendo apresentar aqui uma reflexão sobre o
lugar dos artistas visuais e estudantes de belas
artes no ambiente cultural republicano nas últimas
décadas do século XIX no Brasil.

Esta apresentação é fruto de um texto que tem


origem em minha tese de doutorado, defendida em
2006 na UFRJ, no qual analisei as trajetórias
artísticas e obras dos artistas positivistas Décio
Villares e Eduardo de Sá. Décio Villares,
principalmente, teve grande participação nos
debates que envolveram o mundo artístico neste
período de transição para a República.2 Em função
das intervenções deste artista por mim estudado e
preocupada em analisar esse período de transição
política é que me sensibilizei a compreender este
ambiente de inconformismos, insubmissões,
euforia patriótica e adesismos ao regime
republicano.

Na análise percebe-se que movimentos de


contestação ao sistema artístico oficial já se
manifestam alguns anos antes da República ser
instituída. Quero mostrar que esse período de
transição situado no final do século XIX, no que
tange ao ambiente das belas artes, não foi isento
de debates, de paixões políticas, de profundas
“queremos o fim da academia que não se ocupa transformações institucionais e de mudanças de
das artes” - insubmissão e revolta da juventude mentalidades acerca das artes.
artística na passagem para a república no brasil
Intento mostrar também que os artistas
elisabete leal1 descontentes com a mentalidade meritocrática do
Império não estavam sozinhos. Militares, escritores,
jornalistas, estudantes os acompanhavam em
manifestações públicas e organizadas em prol de
mudanças institucionais e nos mecanismos que
regiam a relação cidadão-Estado.

Ao estudar este período de transição política me


deparei com o famoso episódio
“ModernosXPositivistas” ou a “Revolta dos
Insubmissos” que envolveu acaloradamente grande
parte dos artistas e estudantes de belas artes no
Rio de Janeiro. Tenho como finalidade aqui analisar
essa manifestação.

Percebe-se que na historiografia da arte, que


chamarei de clássica, para não chamar de
tradicional, é corrente a idéia de que o período
áureo das belas artes no Brasil foi durante o
mecenato de Pedro II. 3 Grande parte dessa
produção encerra suas análises no período de
chegada da República ou resume que, com o novo
regime, mais nada aconteceu no âmbito artístico.
Se alguns trabalhos avançam para além de 1889,
normalmente o fazem destacando que a reforma
por que passou o ensino artístico com a instalação
da República apenas concretizou a mudança do
nome de Academia Imperial de Belas Artes para

209
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

construção de idéias importantes para os anos


Escola Nacional de Belas Artes, com o agravante subseqüentes, quando estourou a revolta dos
de que o mecenato oficial cessara.4 alunos da Academia Imperial em 1890, são elas:
Pesquisa nos jornais cariocas do século XIX revelou 1.que as proteções pessoais nas artes eram
que o inconformismo e desejo de reforma da inaceitáveis, pois geravam injustiça, e por
Academia Imperial vinha se mostrando já desde conseqüência, revolta;
meados da década de 1880, exemplificado na 2.que Rodolpho Bernardelli era um
Exposição Livre de alunos em 1886 e 87. Estas revolucionário;
exposições livres foram uma resposta à não 3.que os alunos deveriam se coligar e fazer
realização das tradicionais Exposições Gerais de uma gritaria contra o governo;
Belas Artes, canceladas desde 1884.5 O assunto 4.que ou a Academia se reformava ou fechava
sensibilizou a imprensa, que teve opinião positiva suas portas;
sobre a iniciativa particular, já que a Academia não 5.e que dois grupos estavam constituídos, os
cumpria seu papel, deixando os alunos a favor e os contra a Academia.12
“desesperados” pelo “indiferentismo” do governo
quanto às artes. 6 Já neste momento os alunos Havia também artigos defendendo o resultado do
mobilizados eram vistos com simpatia, era “a luta Prêmio Viagem, argumentando que o princípio do
da mocidade que freqüenta a Academia”7, dizia um favoritismo era louvável, que os críticos dos jornais
jornal; e o professor de escultura Rodolpho não tinham condições de julgar, que Bernardelli e
Bernardelli era visto como revolucionário, dado o Zeferino eram ingratos e que era inacreditável a
avanço dos trabalhos de seus pupilos.8 Princesa Regente ter seu favorito e influir no
resultado.13 Com o debate instituído na imprensa e
A falta de uma exposição pública das obras dos provavelmente discutido de forma acalorada nos
alunos facilitava a prática abominada de cafés e “em frente à espuma dos chopes”, usando
favorecimentos pessoais em detrimento da uma expressão de Vera Lins,14 estavam lançadas
qualidade técnica do artista; isto valia para as as bases da revolta dos insubmissos.
premiações, para a contratação de professores,
para a compra de obras de arte e para a escolha Além das Exposições Livres dos Alunos, as
do bolsista na Europa. A ausência de mecanismos exposições particulares que se intensificaram entre
transparentes e justos que revelassem os que 1887 e 1889 também são demonstrativas do desejo
tinham mérito artístico se mostrou no concurso do da ampliação do campo artístico para além do
Premio Viagem de 1887. Diariamente saíram nos círculo oficial da Academia. Exemplo dessa
jornais, no mês de novembro deste ano, artigos demanda é a criação do Atelier Moderno, em 1889.
indignados com o escândalo do possível Um atelier privado, inédito no Brasil, criado
favorecimento do aluno vencedor. Neste concurso, especialmente para exposições artísticas, com
Rodolpho Bernardelli se colocara como defensor cuidados de iluminação inclusive, onde vários
dos alunos, criticando a capacidade da comissão artistas expunham e vendiam suas obras. 15
da Academia Imperial em avaliar trabalhos em
pintura histórica e questionando a cedência do Menos de uma semana após 15 de novembro de
prêmio a Oscar Pereira da Silva. A imprensa chegou 1889, ocorreu uma grande reunião dos “homens
a insinuar que o artista era protegido da Princesa de letras e jornalistas” no foyer do jornal/revista
Regente e que, por isso, vencera o concurso.9 Para Variedades, para redigir um manifesto de adesão
Bernardelli e parte da imprensa, Belmiro de Almeida à República, criar uma subscrição para erguer um
era o melhor, mas não se tornou aluno bolsista na obelisco a Tiradentes, no local da forca, e organizar
Europa às expensas do Prêmio Viagem. A atitude, uma passeata em comemoração ao novo regime.
desafiadora, de alguns artistas e críticos que se Durante o ano de 1890, outras reuniões foram feitas
opunham ao resultado foi efetiva: Rodolpho visando consolidar uma organização representativa
Bernardelli, Angelo Agostini e Rodolpho Amoedo do grupo, destinada a definir uma legislação sobre
concederam uma bolsa de estudos a Belmiro para a propriedade literária e tratar dos interesses
que fosse se aperfeiçoar na Europa, conforme econômicos da classe. 16 No mesmo período,
julgavam ser justo. 10 Belmiro partiu em 1888. 11 reuniões de artistas também ocorriam visando
Estes são fatos já bem conhecidos por aqueles que regulamentar o meio profissional. Os artistas Décio
estudam os artistas ou o período que cito. Eu os Villares, Montenegro Cordeiro e Aurélio de
trago apenas para recompor a trajetória da revolta Figueiredo se opuseram a essa regulamentação
no meio artístico em fins do XIX. na área e tentaram neutralizar a petição que outro
grupo de artistas †pintores, desenhadores,
Notou-se nos artigos de jornais sobre o Prêmio escultores, gravadores e arquitetos †enviou ao
Viagem de 1887 que, neste momento, ocorria a
210
Insubmissão e revolta da juventude artística na passagem para a República no Brasil

Ministro do Interior, Aristides Lobo, em dezembro se estabeleceu apenas pelas regras do artístico,
de 1889.17 Os requerentes, entre eles Rodolpho quero pensar também a regência do político.
Bernardelli, Amoedo, Estevão Silva, Fachinetti e
outros, reunidos em três sessões, redigiram o Já na esperada primeira exposição republicana,
requerimento que reivindicava os seguintes pontos: aberta em 26 de março e encerrada em abril de
1890, a ausência de Villares e Aurélio foi notada.
1. a obrigatoriedade do ensino de desenho em “Foi com magoa que notei a lamentável ausência
todos os níveis escolares, dos dous pintores brasileiros dos mais distinctos,
2. a exigência de que operários das oficinas Décio Villares e Aurélio Figueiredo, arredados da
do governo tivessem noções de desenho, Academia por prejuízos de seita, que sou, aliás, o
3. a proteção profissional aos habilitados a primeiro a respeitar” 20, dizia o articulista da Coluna
darem aulas de desenho, Flocos, publicada no Correio do Povo. Entre os
4. o direito de somente arquitetos e engenheiros boatos de que os estatutos da Academia seriam
construírem edificações. reformados, surgiu o de que se chamaria
Congresso de Pintura e Arquitetura e de que
Rafael Cardoso mostra que o ensino técnico e também já havia o projeto positivista que a
industrial, cuja base eram as disciplinas de extinguia, criando um ensino livre de artes.
desenho, tinha na Academia Imperial uma situação
ambígua, dividindo as opiniões e balizando sua O Salão de 1890 foi muito controverso, pois os
política institucional. Ora a instituição fundava aulas professores que compunham a comissão julgadora
noturnas, voltadas para a formação de artífices, Pedro Américo, Domingos de Araújo e Silva e João
ora encerrava as disciplinas de gravura de Maximiliano Mafra teceram severas críticas aos
medalhas ou de desenho de ornatos e figuras. A trabalhos dos participantes, afirmando que entre
baliza dessas tendências era a divisão nas artes as 300 obras expostas avultavam as
entre útil e belo, entre a formação de um artífice mediocridades, que tinham dificuldades em atribuir
ou de um artista, que para o autor era fruto de uma os prêmios e que após cinco anos de espera por
contraposição positivista.18 Tomo a liberdade de uma exposição oficial, ela deveria ser menos pobre
acrescentar que a leitura que os brasileiros fizeram e decepcionante. Críticas sobraram para os
do positivismo contribuiu para a institucionalização professores Rodolpho Bernardelli e Rodolpho
do ensino mais profissionalizante ou prático. Amoedo, que participavam, mas não concorriam. 21
Villares, de cunho positivista mais ortodoxo, visava Viu-se que décadas antes vinha se formando a idéia
manter o ensino nos ateliês em uma relação de de que a salvação da Academia estava na mudança
mestre e aprendiz, abolindo o ensino acadêmico. de seu quadro docente. Os professores antigos –
os velhos – deveriam se aposentar e dar lugar aos
É possível que a petição dos artistas, com um novos. Nos jornais, Rodolpho e Henrique
caráter nitidamente regulatório e de proteção à Bernardelli, Antonio Parreira, Rodolpho Amoedo,
profissão de “desenhadores”, portanto extensivo a Eliseu Visconti, todos com quadros expostos no
todos os artistas, fosse uma tentativa de prevenção Salão de 1890, eram chamados os novos. Com a
às idéias de Miguel Lemos e Teixeira Mendes sobre República, esse conflito de gerações se acirrou, e
a liberdade das profissões e contra os privilégios é possível que a crítica da comissão julgadora do
dos títulos acadêmicos e regulamentações Salão o refletisse. Mas é possível também que a
profissionais, que vinham sendo publicadas desde crítica fosse eminentemente artística, fruto de um
o início do século XIX.19 diálogo estético interrompido entre os velhos
mestres e seus pupilos, muitos destes expondo
Com esse desacordo no meio artístico quanto aos suas obras feitas no estrangeiro que demonstravam
rumos profissionais estavam estabelecidas as o entusiasmo por novas tendências plásticas, ainda
bases de uma disputa que diz respeito não apenas que acadêmicas, principalmente Amoedo, segundo
ao campo das idéias, ideologias e política Migliaccio.22
institucional, mas também pessoal. Rodolpho
Bernardelli e Décio Villares foram amigos quando Na imprensa, especialmente na Gazeta de Noticias
estudantes de belas artes, porém a divergência e e na Revista Ilustrada, os elogios aos expositores
tentativa de liderança no campo artístico os colocou eram abundantes, principalmente a Rodolpho
em situação de disputa. Quero aqui discutir essa Bernardelli, que era visto como operando um
disputa apenas porque ela é importante para Renascimento artístico no Brasil. As críticas
compreendermos os desdobramentos no campo negativas a ele e Amoedo vinham do Diário do
artístico e no estabelecimento de suas lideranças. Commercio, expressas nos artigos de um certo
Longe de pensar ingenuamente que este campo Cosme Peixoto23, pseudônimo que chegou a ser
considerado do Centro Positivista, pela
211
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

coincidência das iniciais e pelos elogios aos estudá-los. Não é meu objetivo aqui apresentar nem
trabalhos de Villares e Aurélio, expostos em um discutir os três projetos, apenas mostrar as
Barracão no Largo de São Francisco. estratégias políticas dos artistas visuais no início
da República. Não estou interessada em qual
Em 17 de junho de 1890, Aurélio de Figueiredo projeto era o melhor, nem qual artista venceu a
presidiu uma reunião de alunos-artistas, sem a disputa, mas estou muito preocupada em não
presença de Rodolpho Bernardelli, Rodolpho reproduzir a dicotomia reducionista de que havia
Amoedo e Décio Villares, ou de qualquer outra Modernos e Positivistas em duro embate.
autoridade da Academia, em que foi questionada
a utilidade da Academia Imperial, assim como a Aguardando assim as providências do Governo
qualidade de seu corpo docente. Na ocasião Provisório, o grupo de artistas lançou na imprensa
também elencaram algumas propostas a serem um apelo de subvenção para cursos públicos e
encaminhadas pela classe artística. A primeira gratuitos, que seriam temporários, pois, dizia o
proposta não causou maior discussão, e concluíram artigo, o General Benjamin Constant prometera
que a Academia era nociva às artes e inútil; no resolver o problema do ensino artístico.27 Vê-se
entanto, os presentes se dividiram quanto à quarta assim que a montagem do Atelier Livre era uma
proposta, de criar oficinas de belas artes em vez medida provisória de pressão política junto ao
de manter a Academia. A votação desse ponto foi governo, não de iniciativa de Rodolpho Bernardelli
adiada.24 Diante do perigo de que tema de tal monta e Rodolpho Amoedo apenas, como costuma ser
ficasse restrito à discussão de alguns artistas e afirmado na historiografia, mas uma ação conjunta
um grande grupo de alunos, quatro dias depois, os de todos os artistas, inclusive Villares, visando
professores Rodolpho Bernardelli e Rodolpho aguardar as providências do Governo Provisório
Amoedo conduziram uma outra reunião, agora com quanto aos projetos de reforma do ensino artístico
a presença de Villares, que a secretariou. Nesta em discussão pela categoria.
havia uma aliança entre grande número dos
principais artistas do Rio de Janeiro visando Entro então na parte principal de meu texto em que
pressionar o governo para que a Academia quero discutir o já tão citado tema neste Colóquio
passasse por alguma reforma. Aurélio colaborava sobre a revolta dos insubmissos da Academia.
emprestando seu Barracão-atelier para sediar o Procuro analisar tal episódio sob dois ângulos: o
recolhimento de assinaturas dos aderentes da de Gonzaga Duque e o de Frederico Barata.
idéia.25 Entendo que ambos são construções discursivas
que merecem cuidados metodológicos no
A união, assim, de todos os artistas, inclusive dos tratamento. Se os textos de Gonzaga Duque – o
positivistas, e de alunos e professores demonstrava romance Mocidade Morta – por ser romance nos
uma estratégia de enfraquecimento e coloca a interrogação dos limites da ficção para
desqualificação da Academia, além de seu pensar as possibilidades do passado, o de
abandono, visando obter um posicionamento do Frederico Barata – embasado no relato
governo provisório republicano e do Ministro da autobiográfico de Eliseu Visconti nos impõe pensar
Instrução Publica, que ainda não havia se sobre a incorporação de memórias em nossos
manifestado. A tática funcionou, pois, em 25 de trabalhos historiográficos.
junho, Benjamin Constant recebia Rodolpho
Bernardelli, Rodolpho Amoedo, Aurélio de O fim dos oitocentos e os primeiros anos
Figueiredo, Manoel Teixera da Rocha, Baptista republicanos foram um período dos jovens. Renato
Castagneto, Francisco Ribeiro e Pardal Mallet.26 Lemos mostrou como os jovens da Escola Militar
Nota-se que Villares não foi mencionado, mas é da Praia Vermelha, deixando de ser crianças,
provável que também estivesse presente. Havia começavam a viver como atores sociais, projetando
neste período uma grande animosidade da um futuro e também formas de transformação da
imprensa com o Centro Positivista, ao qual o nome sua realidade. Para essa juventude militar, o
do artista era associado e, por isso, omitido de cientificismo, para uns, e, para outros, o positivismo
eventos que participava. Nesta reunião, três eram referencial da visão de mundo e de
projetos de Reforma dos Estatutos da Academia intervenção social.28 Um grupo de jovens literatos,
Imperial foram apresentados ao Ministro Benjamin inicialmente liderados por José do Patrocínio na
Constant: o de Rodhofo Bernardelli (escolhido pelo folha abolicionista Cidade do Rio, foi analisado por
governo), o de Décio Villares (que propunha a Ana Ferracin da Silva. A autora percebeu que essa
extinção da Academia) e o de Pardal Mallet. O geração boêmia da década de 1880 ficou
Ministro prometeu que iria considerar os três caracterizada pela imagem de um literato militante,
projetos de reforma e montar uma comissão para cuja literatura e exercício jornalístico eram vistos
como “campo privilegiado de intervenção política,
212
Insubmissão e revolta da juventude artística na passagem para a República no Brasil

onde a pena era antes de tudo uma arma dotada No romance, Gonzaga Duque resume o
de forte poder transformador”29, dizia ela. inconformismo daquela geração que se sentia
alijada dos acessos que a Academia poderia
Gonzaga Duque, também integrante do Partido proporcionar, além da impetuosidade juvenil que
Abolicionista liderado por José do Patrocínio, iniciou tomava para si a tarefa de transformar seu mundo
sua carreira muito jovem, e suas propostas circundante. A ação transformadora se daria por
estéticas “se articulam com um projeto político meio do Zut. Camilo sugere a Agrário que fosse
específico e um programa de modernidade estética agremiar seus colegas artistas para fazerem o Zut
e social para o Brasil, com o qual artistas e vão buscar o apoio de Julião Vilela (o personagem
contemporâneos estavam comprometidos”30, diz de Villares), que era visto como um artista
Paula Vemeerch. Na obra de Gonzaga Duque me independente, pois havia abandonado a Academia
aterei no romance Mocidade Morta. Para Alexandre e se formado na Europa. Agrário se colocava como
Eulálio, este romance é uma crônica de grupo (de o autor da idéia: “Eu no entanto rebelava-me contra
uma mocidade), um balanço da geração de uma a Academia, procurava realizar o meio prático de
época e um impiedoso retrato coletivo.31 Ângela abafá-la, de aniquilá-la; fundaria ateliers livres e
de Castro Gomes mostra que Gonzaga Duque retiraria do ensino oficial os mais adiantados
publicou Mocidade Morta dois anos após a discípulos, despertaria a atenção do público para
controversa fundação da Academia Brasileira de os nossos esforços com exposições anuais,
Letras. Esta Academia, tal qual a Academia de levantaria nossa profissão...” 36 Julião Vilela
Belas Artes, era “situada como um lugar avesso prontamente se dispôs a colaborar com essa
ao progresso estético e ao engajamento político proposta. Villares era considerado por esse grupo
das novas gerações de artistas”32 e também tinha um natural artista insubmisso, pois ousara
seus “velhos”, representados por Machado de abandonar a academia, ganhar prêmios na Europa,
Assis. recusar o cargo de professor na Ècole de Beaux
Arts de Paris e voltar ao Brasil como artista
O romance situa-se entre os anos de 1886 e 1888 consagrado, além de ter bom trânsito entre pessoas
e tem como foco a articulação de um movimento importantes, como o próprio Benjamin Constant,
que o autor chamou de Zut! (Basta! Chega!). Em por exemplo. Com isso, Gonzaga Duque sentencia
que pese ser uma obra de ficção, podem-se então a participação de Villares nos eventos: “O
sobrepor os personagens do romance aos artistas Julião vai propor ao governo a fundação de ateliês
da época. Alexandre Eulálio, ao analisar a estrutura livres, já tem projeto pronto.”37
narrativa da obra, informa que tal trabalho de
identificação foi realizado com o auxílio de Vêem-se nas falas dos personagens de Mocidade
contemporâneos, amigos e familiares de Gonzaga Morta alguns elementos que reportam a eventos
Duque.33 Tal justaposição de nomes nos fornece que envolveram os jovens artistas no final dos
maior segurança na utilização do romance, mesmo oitocentos, como os ateliês livres, as reuniões de
que os personagens pareçam ser às vezes artistas, as exposições independentes e um projeto
caricaturais. para o ensino das artes. O autor, não pensava em
reformar da Academia, mas em aniquilá-la por meio
Tal movimento, levado por “os novos” ou “os de ações independentes e conjuntas dos artistas.
insubmissos”, tinha como liderança o próprio O que chama a atenção ainda é que Gonzaga
Gonzaga Duque (Camilo Prado) e Belmiro de Duque não atribuiu a liderança do movimento para
Almeida (Agrário de Miranda), participando ainda a formação do Atelier Livre a Rodolpho Bernardelli,
os artistas-alunos Isaltino Barbosa e Firmino Rodolpho Amoedo e Zeferino da Costa, como
Monteiro (ambos Sabino Gomes), Benevenuto comumente a imprensa e a historiografia o faz; eles
Berna (Lossio), Maurício Jubim (Franklin) e Arthur nem sequer têm personagens fictícios no romance.
Lucas (Artur de Almeida).34 Eles se voltavam contra Agrário e Camilo são os cabeças da idéia e
os professores da Academia Imperial, “a falange buscaram o apoio de Julião Vilela. Preocupado,
gloriosa”, cujo principal representante era Pedro assim, com a autoria da revolta do Zut, Gonzaga
Américo (Telésforo). “Uma tarde, nas colunas da Duque se questionava em 1897: “Quem havia
folha explodiu o Zut. Camilo soltou o primeiro grito criado essa revolta? Quem a fizera?...”38 O próprio
num ousado folhetim, escalpelando condições romance era uma tentativa de resposta...
antiestéticas do meio fluminense e, sob a ironia
fundibulária da sua prosa, apresentava o Zut como Em 1907, Gonzaga Duque retomou o assunto da
um – bando rebelde – proclamando a liberdade revolta dos insubmissos e esclareceu um pouco
absoluta das escolas, salvando e dignificando a mais a participação de Villares nos eventos.
Arte.”35 Coerente com a narrativa de Mocidade Morta, ele

213
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

situa o início da revolta dos alunos contra o do aranheiro. Agora eu passo para uma outra
arcaísmo dos regulamentos da Academia Imperial narrativa do mesmo episódio.
em fins de 1887. O autor, junto com um grupo de
artistas alunos da Academia Imperial identificados O livro Eliseu Visconti e seu tempo foi elaborado a
com as idéias de extinção da Academia e de partir de entrevistas de Frederico Barata com o
formação de Ateliês Livres como alternativa ao artista e publicado em 1944, logo após a morte do
ensino oficial vigente, recorreu ao apoio de Villares entrevistado. 42 Em algumas de suas páginas, o
para implementar a renovação no ensino artístico, autor relata os eventos de revolta dos alunos-
pois este tinha prestígio, experiência e possuía artistas que precederam a reforma da Academia
amizades e simpatias de “dinheirosos”. O artista Imperial em 1890. Percebeu-se que, neste trabalho,
aceitou colaborar, mas a parceria durou pouco. o autor criou uma confusão cronológica sobre os
“Após duas ou três solemnes conferências, a que eventos, reduziu o inconformismo artístico do final
assistiram pessoas que nos podiam coadjuvar, dos oitocentos à proposta de reforma da Academia
começou [Villares] teimosamente a nos exigir Imperial, fundou uma dicotomia entre os artistas
orientação positivista nos projectados cursos! envolvidos e, segundo pesquisas de Ana Maria
Estava perdida a nossa esperança.”39 Cavalcanti, inventou a nomenclatura “Modernos.” 43
Em que pese, tais problemas na construção dessa
Pela narrativa de Gonzaga Duque, o positivismo narrativa, é interessante observar a forma como
de Villares foi o ponto de desacordo e de Frederico Barata, por meio das lembranças de
rompimento do artista com esse grupo de alunos Eliseu Visconti, apresentou a versão da polêmica
insubmissos. No entanto, o Atelier Livre, que na dos Modernos X Positivistas, da criação do Atelier
narrativa de Gonzaga Duque parece ter sido sua Livre e seu Salão e da proposição de projetos de
idéia, foi montado pelo outro grupo, o de Rodolpho reforma da Academia Imperial.
Bernardelli, e o crítico não se inclui na iniciativa.
Diz ele: “Estava perdida a nossa esperança. O livro foi publicado após a morte de vários artistas
Desistimos da tentativa e desanimados, cada qual envolvidos nos acontecimentos e em um período
foi tratar de sua vida como poude. [...] A debandada em que o positivismo estava em franca decadência
foi tristíssima.”40 Segundo Gonzaga Duque, outros cultural, portanto, bastante combatido pelos
alunos, apoiados por Rodolpho Bernardelli e intelectuais brasileiros, processo já evidente nos
Rodolpho Amoedo, freqüentaram o Atelier Livre anos de 1930. Segundo Frederico Barata, em
no Largo de São Francisco, no barracão que serviu meados de 1889 os professores Rodolpho
de espaço para a exposição da tela de Aurélio de Bernardelli e Rodolpho Amoedo abandonaram a
Figueiredo, A Redenção do Amazonas, o também Academia para apoiar um grupo de alunos
signatário do projeto de extinção da Academia rebelados que montaram o Atelier Livre, no Largo
Imperial. Villares apoiou a iniciativa, juntando-se a de São Francisco. O professor Zeferino da Costa
Rodolpho Bernardelli, o que acabou por finalmente não abandonou a Academia, mas colaborou no
frustrar as expectativas de Gonzaga Duque. Atelier. Esses, os Modernos, monopolizavam as
simpatias da imprensa e ganhavam apoiadores –
Em 1907, o crítico lamentava a falta de sucesso professores que davam aulas de pintura, artistas
do projeto de Villares, muito sério e útil, ainda que feitos que davam conselhos e apoio moral e
calcado nas idéias comtistas. Lastimava também patrocinadores que pagavam as despesas. Estes
a promulgação do projeto de Bernardelli, que era a últimos eram alguns dos que haviam feito a
manutenção de um ensino oficial para as artes, subscrição para Belmiro de Almeida ir estagiar na
semelhante ao das Academias da Europa, Europa, que me referi anteriormente. Tal grupo tinha
semelhante à própria Academia Imperial. O texto como alunos mais ardorosos Eliseu Visconti, Fiúza
Aranheiro da Escola, escrito por ocasião da Guimarães e Rafael Frederico, que abandonaram
abertura do Salão de 1907, servia para criticar as as aulas da Academia. Segundo Barata, os
atitudes de Rodolpho Bernardelli e Rodolpho Modernos nada tinham de revolucionários quanto
Amoedo quanto à falta de transparência na escolha à estética; mesmo seu principal mentor, Rodolpho
do júri para aquele concurso e a manutenção do Amoedo, continuava sendo artista acadêmico.
nepotismo e da guerra de ambições na Academia. Quanto aos anseios de mudança no ensino das
Usando os eventos da reforma da Academia como artes, o grupo dos Modernos visava a uma reforma
exemplo e integrando o grupo de insubmissos que ampla nos estatutos da Academia, dando maior
se rebelava contra o sistema clientelista e liberdade de didática aos professores, renovando
bajulador,41 o crítico entendia que a reforma de sua direção e restabelecendo o Prêmio Viagem.44
Rodolpho Bernardelli parecia promissora em 1890,
porém, em 1907 ele estava emaranhado na teia Os positivistas eram os mais radicais, defendiam
a extinção da Academia e pareciam diferentes “mas
214
Insubmissão e revolta da juventude artística na passagem para a República no Brasil

no fundo, eram os mesmos depositários Cavalcanti também tratou do tema abordado por
fidelíssimos do espírito da Missão Francesa”45, dizia Barata e chegou a uma importante conclusão: o
Barata. Eles também eram insubmissos, até mais autor cunhou o grupo dos insubmissos liderados
que os Modernos, porém ficaram apenas no plano por Rodolpho Bernardelli de Modernos à revelia das
das idéias e não das ações. Para Barata, os denominações usadas na época. 48 Ela evidenciou
positivistas Décio Villares, João Montenegro que a imprensa se referia aos insubmissos como
Cordeiro e Aurélio de Figueiredo não eram contra os Novos, termo também usado por Gonzaga
o ensino acadêmico, apenas desejavam ampliá-lo Duque, designando, portanto, todos os artistas que
aos alunos mais desfavorecidos e garantir emprego eram contra o sistema da Academia, inclusive
aos artistas no magistério das artes; para isso, não Villares. O uso do termo Novos para nomear todos
bastava somente reformar os estatutos da os envolvidos nos acontecimentos da revolta
Academia, como queriam os Modernos, mas era colocaria Modernos e Positivistas lado a lado, ainda
necessário modificar a base do ensino artístico.46 que com projetos diferentes. O uso do termo
Modernos leva o leitor de Barata a pensar que, por
Para pressionar o governo, os professores da oposição, os Antigos (ou os Atrasados) eram os
Academia Rodolpho Bernardelli e Amoedo e um positivistas, criando uma falsa noção dicotômica.
grupo de alunos a abandonaram e fundaram o
Atelier Livre. O governo, por seu turno, não resistiu Colocados lado a lado evidencia-se que são
à revolta e acabou por nomear esses professores diferentes os personagens das duas obras que
para montar um projeto de reforma da Academia. tratam desse mesmo evento, como pode ser visto
Barata conclui que a vitória dos Modernos foi na Tabela I, no final do texto.
completa.
Percebeu-se, nas diferentes versões sobre os
O primeiro problema evidenciado na descrição de insubmissos contra o sistema de ensino artístico,
Barata é quanto ao período dos acontecimentos: o que cada grupo ou personagem reivindicava a
autor situa a disputa entre os Modernos X primazia das idéias de reforma ou extinção da
Positivistas nas vésperas republicanas e mais Academia e também a autoria e liderança do Atelier
adiante no texto refere-se à insubmissão como Livre. É possível notar, nos relatos biográficos e
ocorrida em 1888.47 A polêmica artística tratada por em narrativas memorialísticas de políticos,
Barata ocorreu em fins de 1889 e ao longo de todo militares, escritores e artistas que viveram a
o ano de 1890; era um movimento de pressão para passagem do século XX e os anos iniciais de
reinstitucionalizar a Academia em moldes República, um tom ufanista acerca daqueles
republicanos. tempos, em que esses narradores se colocavam
como os protagonistas das mudanças e os autores
O segundo ponto a ser discutido é uma certa das idéias, normalmente projeções que homens no
simplificação dos eventos de forma a concluir com final da vida tinham de sua juventude. Isto parece
a vitória dos Modernos. Viu-se que, já desde ter ocorrido também vom nossos artistas aqui
meados do século XIX, os estatutos da Academia citados.
vinham sendo questionados e sua inoperância
respondida por ações independentes, como a Notas
exposição dos alunos em 1886 e 1887 e as
1
exposições particulares. Percebeu-se também que Doutora pelo PPG de História Social da UFRJ. Vice-
presidente da ANPUHRS, gestão 2006-2008. Este texto é
Villares esteve presente nas reuniões de artistas
uma versão levemente modificada de minha palestra no I
que originaram a instalação do Atelier Livre e Colóquio Nacional de Estudos sobre a Arte Brasileira do
também Aurélio de Figueiredo, que cedeu seu Século XIX e justifica-se o tom coloquial do mesmo.
Barracão para montá-lo. Segundo Gonzaga Duque, 2
LEAL, Elisabete. Filósofos em Tintas e Bronze: arte,
Villares foi uma liderança importante no movimento positivismo e política na obra de Décio Villares e Eduardo
dos insubmissos, que acabou se unindo aos de Sá. Rio de Janeiro: PPGHis-UFRJ, 2006.
3
Modernos. Com isso, entende-se que Barata, com GALVÃO, Alfredo. Resumo histórico do ensino das artes
plásticas durante o Império – A influência benéfica e
o intuito de mostrar a vitória dos Modernos, visto
decisiva do Imperador D. Pedro II. Revista do IHGB – Anais
que o relato teve como fonte de informação um do Congresso de História do Segundo Reinado. 1. v..
dos integrantes, eclipsou a participação dos Rio de Janeiro, 1984; MELLO Jr. Donato. As exposições
positivistas nos eventos contestatórios. gerais na AIBA no 20. Reinado – sua importância artística e
a presença do D. Pedro II. Revista do IHGB – Anais do
Um terceiro problema imprescindível de discussão Congresso de História do Segundo Reinado. 1. v.. Rio
foi a ratificação da dicotomia Modernos X de Janeiro, 1984; FREIRE, Laudelino. Um século de
Positivistas. Ao analisar o conceito de modernidade pintura. Época de desenvolvimento - quarto período: 1889-
nos discursos sobre a Academia, Ana Maria 1916. http://www.pitoresco.com/laudelino

215
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

4
DURANT, José Carlos. Arte, privilégio e distinção. São obrigatório no Paraná. 1885; LEMOS, Miguel e MENDES,
Paulo: Perspectiva, 1989. p. 62 e GUIMARÃES, Argeu. Teixeira. A obrigatoriedade do ensino. 1886; LEMOS,
Auréola de Victor Meirelles. Rio de Janeiro: IHGB, 1977. Miguel. A liberdade espiritual e o exercício da Medicina.
p. 122-124. 1887. IPB
5 20
Exposição de Bellas Artes. O Paiz, 08.08.1886; Bellas Flocos. Correio do Povo, 14.03.1890.
21
Artes. A Vida Moderna, 21.08.1886. FREIRE, Laudelino. Um século de pintura. Época de
6
Salão de 1886. Província do Rio, 03.08.1886. desenvolvimento – quarto período: 1889-1916. O parecer
7
Exposição de Bellas Artes. Diário de Notícias, da Comissão está transcrito quase na íntegra. http://
02.08.1886. www.pitoresco.com/laudelino
8 22
Bellas Artes. O Paiz, 09.08.1886. Existe grande controvérsia na historiografia e crítica de
9
Prêmio – protestos dos professores da Academia. arte sobre as origens do modernismo no Rio de Janeiro e
Novidades. 11.11.1887.; De palanque. Novidades. São Paulo. Alguns contestam que esses alunos da AIBA,
19.11.1887. ainda com uma produção no final dos oitocentos afinada
10
As críticas á AIBA vindas de São Paulo também se com o academicismo, já estivessem produzindo rupturas
direcionavam ao Prêmio Viagem, entre outras. O governo estéticas. Para Migliaccio, Rodolpho Amoedo era a
do Estado criou em 1892 um Prêmio próprio, destinado liderança da renovação estética na passagem para o século
exclusivamente aos paulistas. Sobre o assunto ver: XX, até mais que os irmãos Bernardelli. MIGLIACCIO,
CHIARELLI, Tadeu. A EBA vista de São Paulo: Luciano. Rodolfo Amoedo. O Mestre, deveríamos
instrumentalizando a instituição a partir de um nacionalismo acrescentar. MARQUES, Luiz (org.). 30 mestres da pintura
de viés paulista. 180 anos da Escola Nacional de Belas no Brasil. São Paulo: MASP. 2001. p. 32-33.
23
Artes. Rio de Janeiro: UFRJ, 1998. Cosme Peixoto era o pseudônimo de Carlos de Laet, um
11
Um acto de R. Bernardelli – Carta e subscrição a Belmiro dos fundadores da Academia Brasileira de Letras. Era
de Almeida. Revista Ilustrada, 07.04.1888. católico fervoroso e professor do Colégio Pedro II.
12
De palanque. Novidades, 10.11.1887; GUANABARINO, Monarquista convicto, na República discursou a favor da
Oscar. Artes – Academia de Bellas Artes. O Paiz, manutenção do nome do Colégio em homenagem ao
10.11.1887; Bellas Artes – Premio. Revista Ilustrada, Monarca e foi exonerado. Até 1888 escrevia textos na
13.11.1887; FRIVOLINO. Scena XVIII. A Época, coluna Microcosmos, do Jornal do Commercio, inclusive
13.11.1887; GUANABARINO, Oscar. Artes – Academia de criticando “os descalabros do positivismo ortodoxo”. No
Bellas Artes. O Paiz, 10.11.1887; VERON. Academia de Diário do Commercio, em 1890, escrevia muitos editoriais.
Bellas Artes – A Sereníssima Princeza Regente. www.academia.org.br. Sobre a participação de Carlos de
15.11.1887; Notas – Premio Viagem. Gazeta da Tarde, Laet na fundação da ABL consultar: RODRIGUES, João
15.11.1887. Paulo C. S. A dança das cadeiras – literatura e política na
13
Prêmio - protesto dos professores da Academia. ABL. Campinas: Unicamp, 2001. p. 44-48.
24
Novidades, 11.11.1887; Premio Viagem. A Época, Reunião de artistas. Diário do Commercio; 17.06.1890.
13.11.1887; Microcosmo. Jornal do Commercio, Gazeta de Noticias. 17.06.1890.
25
13.11.1887; Chronica da Semana. Gazeta de Noticias, Artes e artistas – reunião de artistas. O Paiz. 21.06.1890;
13.11.1887; Noticiário. O Paiz, 15.11.1887; Academia de 22.06.1890.
26
Bellas Artes. Jornal do Commercio, 16.11.1887. MALLET, Pardal. Pela Academia III. Gazeta de Noticias.
14
LINS, Vera. Gonzaga Duque – a estratégia do franco- 26.06.1890.
27
atirador. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro. 1991. p. 21. Artes e artistas – Cursos de Belas Artes. O Paiz.
15
Bellas Artes – Atelier Moderno. Diário do Commercio, 26.06.1890.
28
16.06.1889; Bellas Artes – Atelier Moderno. Gazeta de LEMOS, Renato. Benjamin Constant – vida e história.
Noticias, 14.07.1889; Ecchos Fluminenses – Atelier Rio de Janeiro: Topbooks, 1999. p. 271-272.
29
Moderno. O Paiz, 15.07.1889; Bellas Artes – Atelier SILVA, Ana Carolina Ferracin da. Entre a pena e a
Moderno. Revista Ilustrada, 20.07.1889; 27.07.1889; espada: literatos e jacobinos nos primeiros anos da
07.08.1889; 17.08.1889 e 1.08.1889; Bellas Artes – Atelier República. Campinas: Unicamp. 2001. p. 5-6. (Dissertação
Moderno. Diário de Noticias, 13.09.1889. de Mestrado)
16 30
Homens de letras. Diário do Commercio, 21.11.1889; VERMEERSCH, Paula F. Por uma arte brasileira: a
Jornal do Commercio, 21.11.1889; 18.05.1890; O Paiz, pintura acadêmica no final do segundo Reinado e a crítica
07.05.1890; 08.05.1890; 15.05.1890; Diário de Noticias, de Gonzaga Duque. Rotunda. Campinas. n. 2, agosto de
05.06.1890. 2003. p. 23. ________ Notas de um estudo crítico sobre
17
Estudo de desenho. Diário do Commercio,. 05.12.1889, A Arte Brasileira, de Gonzaga Duque. Campinas:
09.12.1889, 21.12.1889; Floccos. Correio do Povo, Unicamp, 2002. (Dissertação de Mestrado)
31
09.12.1889. Os artistas que participaram da reunião foram EULÁLIO, Alexandre. Estrutura Narrativa de Mocidade
os seguintes: Rodolpho Bernardelli (Relator), Rodolpho Morta. GONZAGA DUQUE. Mocidade Morta... p. 278.
32
Amoedo (Relator), Facchinette (Presidente), Valle Souza GOMES, Ângela de Castro. Os intelectuais cariocas, o
Pinto, Teixeira da Rocha (Secretário), Vasconcelos modernismo e o nacionalismo: o caso de Festa. Luso-
(Secretário), Souza Lobo (Relator), Estevão Silva, Vilas Brazilian Review. v. 42. n. 1. 2004. p. 85.
33
Boas, Rocha Fragoso. EULÁLIO, Alexandre. Estrutura narrativa de Mocidade
18
DENIS, Rafael Cardoso. A academia Imperial de Belas Morta. GONZAGA DUQUE. Mocidade Morta... p. 289-290.
34
Artes e o ensino técnico. Anais do Seminário EBA 180. GONZAGA DUQUE. Mocidade Morta... p. 88-89.
35
Rio de Janeiro: UFRJ, 1998. p. 181. Id., Ibid.. p. 80.
19 36
As primeiras publicações da IPB sobre o assunto foram Id., Ibid.. p. 48.
37
estas: MENDES, Teixeira. Contra a criação de uma Id., Ibid.. p. 153.
38
Universidade. 1882; OLIVEIRA. J. Mariano. O ensino Id., Ibid.. p. 226.

216
Insubmissão e revolta da juventude artística na passagem para a República no Brasil

39 45
Id., O aranheiro... Id. Ibid. p. 27-37.
40 46
Id., Ibid.. Id. Ibid. p. 29-37.
41 47
A exposição do quadro Rendição de Uruguaiana, de Quando li pela primeira vez o livro de Frederico Barata
Pedro Américo, e a atitude e elogios dos visitantes, fiquei muito intrigada com as datas apresentadas para os
ficcionada em Mocidade Morta, revelam um pouco das eventos dos insubmissos. Perguntava-me se tal
críticas de Gonzaga Duque ao sistema bajulador e movimento teria ocorrido ainda na Monarquia. Parecia-
clientelista em que a Academia estava envolvida. me que um movimento de rebelião e questionamento
GONZAGA DUQUE. Mocidade Morta… p. 15-28. institucional por que passava a Academia combinava mais
42
Uma conversa que tive com Mário Barata, em 2005, na com os ânimos republicanos. Quando fiz a pesquisa nos
sede da Associação Brasileira de Imprensa – Rio de Janeiro jornais cariocas publicados neste período, consultei todo
revelou que seu tio, Frederico Barata, havia feito durante o ano de 1888 e não encontrei informação alguma sobre
anos uma extensa pesquisa nos jornais cariocas sobre a o assunto. Concluí que aquele primeiro jornal consultado
polêmica Modernos X Positivistas, mas perdera a pasta não tratou do assunto. Assim, pesquisei no AEL-Unicamp
com todas as suas notas. É possível que ao escrever o os jornais Gazeta da Tarde (MR1587), Gazeta de
livro Eliseu Visconti e seu tempo, o autor tenha contado Noticias (MR967), Jornal do Commercio (MR 1389) e
então apenas com suas memórias e a entrevista com Revista Ilustrada (MR 837), e nada foi encontrado com
Visconti. relação ao tema. O mistério se avolumava, e passei a
43
CAVALCANTI, Ana Maria Tavares. O conceito de consultar os jornais publicados em 1889. As primeiras
modernidade e a Academia Imperial de Belas Artes do notícias sobre o projeto de Villares apareceram em
Rio de Janeiro. Relatório Final de Bolsa de Recém-Doutor dezembro deste ano. Acrescentei então à pesquisa os
EBA/UFRJ/CNPq. 2001. Agradeço à autora pela gentileza jornais O Paiz (MR1082) e Correio do Povo (MR2114) e a
da disponibilização de seu texto inédito, que foi fundamental estendi a 1890, quando o movimento dos insubmissos se
para a confirmação de minha pesquisa. acirrou.
44 48
BARATA, Frederico. Eliseu Visconti e seu tempo. Rio CAVALCANTI, Ana Maria Tavares. O conceito de
de Janeiro: Zelio Valverde, 1944. p. 29-37. modernidade... p. 34 e 40.

217
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República
I- Parreiras: tradição e autoria

Antônio Diogo da Silva Parreiras (1860-1937), pintor


fluminense, tornou-se um dos mais singulares de
sua geração, um paisagista inconfundível, mesmo
tendo iniciado sua carreira tardiamente para os
padrões da profissão, apenas aos 23 anos de idade
– idade em que se matriculou na Academia Imperial
de Belas Artes do Rio de Janeiro, para abandoná-
la um ano depois, de acordo com o que nos parece
ser a mais completa biografia disponível a respeito
do pintor. 1 Em realidade, este fato torna sua
trajetória ainda mais impressionante, se o
compararmos a um outro grande vulto das artes
plásticas do século XIX, Pedro Américo de
Figueiredo e Melo (1843-1905), o qual, por volta
dos 10 anos de idade já integrava como desenhista
uma missão científica francesa em sua região natal,
a Paraíba e aos 15 anos já ingressara na Academia.

Sabe-se que Parreiras, talvez por que teve uma


formação oficial esporádica, sem o rigor e a rigidez
constantes do ensino acadêmico, por assim dizer,
e por ter no gênero paisagístico aquele em que
mais tempo despendeu, somente veio a interessar-
se por um gênero mais anedótico, social, como o
histórico, p. ex., decorridos, praticamente metade
imagem e tradição: retórica e criação visual na de sua vida profissional. As ilustrações para a sua
obra ilustrada história de um pintor contada por autobiografia, intitulada História de um pintor
ele mesmo de antônio parreiras contada por ele mesmo (1926), nosso objeto de
pesquisa, como mencionamos anteriormente,
fábio pereira cerdera* fazem parte deste período, quando o artista já tinha
passado por algumas instituições de ensino e
travado contato com inúmeros artistas2, e, por sinal,
realizado diversas encomendas de pinturas de
gênero histórico, como nos atesta Salgueiro,
baseada na importante biografia do pintor
supracitada:

Em 1896, após realizar mais uma exposição


de seus trabalhos juntamente com seus alunos
da Escola de Ar Livre, Parreiras decide explorar
outros gêneros de pintura e seguir os conselhos
que o pintor de história Vítor Meireles fazia-lhe
[...] Começa a fazer estudos de animais e a
pintá-los, a compor cenas de gênero, e,
aproximando-se do poder, inicia uma carreira
como pintor de história. (SALGUEIRO, 2000:
42 e 43).

Supomos, apoiando-nos nestes fatos que, a esta


altura de sua vida, Parreiras já teria adquirido boa
parte de seu repertório visual através dos
esquemas legados pela tradição, visto que, para
um gênero como o histórico, digamos que, muito
menos direto, no sentido inverso de d’après nature
– termo comumente aplicado à paisagem a maneira
como pintava Parreiras, observando-a diretamente
no local – afora o fato de ter de existir uma

218
Retórica e criação visual na História de um Pintor de Antônio Parreiras

experiência com diversos gêneros e seus modos seja ela pertencente a um passado remoto ou
particulares de compor, se faz necessário, é mister recente, como nestas palavras de Levy:
forjar uma coordenação entre estes, i. e, em última
análise, construir a imagem em função de sua Em Veneza [...] torna-se aluno livre da
composição. Valéry deixa transparecer este fato, Academia de Belas Artes local, freqüentando
quando critica a redução da arte aos gêneros da as aulas do Lombardo Filippo Cárcano (1840-
paisagem e da natureza-morta: 1910), cuja pintura sintonizava-se por
aproximação com os preceitos do
O desenvolvimento da paisagem parece impressionismo [...] Em Veneza, pinta a ilha de
claramente coincidir com uma diminuição Chioggia e demonstra grande atenção pelas
singularmente marcada da parte intelectual da telas de Antônio Canal, o Canalleto, (1697-
arte. O pintor já não tem mais tanto o que 1768), e Francesco Guardi (1712-1793). (LEVY,
raciocinar [...] creio que pouquíssimos calculam 1981: 31).
determinada obra que desejam fazer. Nada os
obriga a isso, visto que tudo se restringe à Ou na seguinte colocação de Salgueiro:
paisagem ou à natureza-morta, que, por sua
vez, foram reduzidas a um divertimento de As paisagens dos primeiros anos de Parreiras
interesse local. (VALÉRY, 2003: 143 e 144). são ainda fortemente dominadas pela
linguagem da paisagem pitoresca, com seus
No entanto, esta construção, que é uma invenção planos, distâncias, texturas, caminhos e a
da imagem, não se baseia, supomos nós, nem presença de uma figura solitária, de costas, ou
numa idéia de pura e simples criação, nem em algo de grupos pitorescos. Em pinturas de 1888, o
radicado exclusivamente na observação da pintor faz uso também dos recursos
natureza como às vezes defendia fervorosamente composicionais próprios da estética do sublime
Parreiras e seus pares. Há numa espécie de em suas paisagens, compostas de elementos
conhecimento visual erigido ao longo de toda a denotativos da fúria da natureza como céus
história das artes visuais e nesse sentido, toda e encrespados e escuros, árvores curvadas pela
qualquer imagem produzida no âmbito da força do vento, e a presença da figura feminina,
sociedade está necessariamente em contato com emblemática da sensibilidade romântica, numa
tal saber. Por vezes, Antônio Parreiras vê com atitude pensativa, entregue a seu mundo de
descrença o fato de que este conhecimento reflexões e apreensões em meio ao turbilhão
específico possa ser absorvido através da prática que se passa na natureza, sentada sobre o solo
da cópia adotada nas academias para este fim: pedregoso, cheio de irregularidades e pleno de
“Logo ao matricular-me na Academia, deram-me textura. É a linguagem da paisagem romântica
para copiar uma grande estampa, onde se via uma européia da primeira metade do século XIX nas
limosa Chaumière normanda. Tudo que nela estava suas versões mais corriqueiras, tornadas
era-me estranho, desconhecido, não me podia populares e acessíveis a um público mais
interessar. Impuseram-me porém copiá-la, tal qual, amplo, dentro e fora da Europa, por meio da
até aquilo que estava errado!” (Op. cit.: 225). Por reprodução em água-tinta ou litografia.
outro lado, há momentos nos quais (SALGUEIRO, op. cit.: 37).
contraditoriamente confirma, mesmo que de forma
velada nossa prerrogativa, como podemos inferir Ou ainda em Zanini, para quem “Parreiras, após
a partir do seguinte trecho: “Eu me via aniquilado algumas tentativas de pintura clara em que refletia
[...] De que me servia o que aprendi nas academias, a liberdade e a inovação do Impressionismo, fixou-
nos museus do velho mundo?” (Ibd.: 154). É a se em uma arte acadêmica [...]”. (ZANINI, 1983:
investigação destas últimas palavras, i. e, da 416).
verificação do aprendizado e de como este
Ao passo que uma segunda tendência, onde são
alicerçou a construção do sentido de sua produção,
destacados aspectos particulares da obra de
que pretendemos analisar em nosso objeto de
Parreiras, observa que, p. ex. – a partir de 1890 –
estudo, precisamente no que concerne às suas
o pintor começa a desenvolver “uma abordagem
ilustrações.
da paisagem que significa, sem dúvida, a menos
Ao observarmos de uma maneira geral como a obra idealizada e a de maior comunhão com a natureza,
de Parreiras é comentada, notamos que há uma se comparada àquela até então praticada na arte
certa dicotomia em tais análises, podemos brasileira [...] Sua obra ‘Sertanejas’ (1896) é
constatar duas tendências operando: a primeira exemplar dessa abordagem inovadora no contexto
ratifica as influências sofridas pelo pintor e o fato da arte brasileira, tanto no sentido temático quanto
de parte de seu saber plástico advir da tradição, composicional [...]” (SALGUEIRO, 2000: 41), assim

219
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

como, “a escolha de uma escala cromática de partir de outros artistas teria influenciado no
tonalidades claras representava a preocupação e processo de criação, de significação dessas
o interesse de Parreiras pelos fenômenos da ilustrações?
luminosidade da natureza brasileira, enfocada de
uma maneira personal e absolutamente Para a primeira questão, a de como ocorreria a
desvinculada de qualquer influência [...]” (LEVY, prática de citação imagética como forma de
1981: 28), também revela o mesmo ponto de vista. aprendizado, nossa primeira hipótese, o conceito
Constatamos dessa forma que existe um hiato, uma de schemata – esquema visual – divulgado pela
lacuna no confronto de ambas as posturas de perspectiva perceptualista de Gombrich5, segundo
análise, no que tange a uma possível relação entre a qual seria uma imagem aproximada do que se
o que foi transmitido e vivenciado, com a quer representar, sendo adquirido pelo artista
especificidade plástica da obra de Parreiras. O através do contato para com outras imagens
presente texto tenta lançar luz a esse respeito. artísticas e, utilizado numa construção imitativa em
relação ao objeto, parece, mesmo que de forma
II - Questões e perspectivas metodológicas incompleta e provisória, respondê-la.

A relação entre os esquemas da tradição visual e No que concerne ao segundo problema, o de como
a significação da imagem – e aí presumimos estar as schematas poderiam contribuir qualitativamente
a importância desta pesquisa – pode residir, para a imagem, ou seja, em relação ao
conjeturamos nós, no que seria para a linguagem, funcionamento do seu plano do conteúdo, podemos
seu eixo de associações 3, espécie de rede de inferir outra hipótese correlata: a imagem visual não
relações sígnicas, capaz de desencadear a é um sistema de significação interpretante como a
significação da imagem visual, perspectivando-a linguagem, mas interpretado, ou seja, grosso modo,
numa dinamização de seu plano simbólico. 4 não representa efetivamente, mas, antes, guarda
Reiteramos, a importância deste estudo está equivalência com o que se refere (BARTHES, op.
centrada nesta questão. Essa perspectiva teórica cit.: 52); nesse sentido, sua significação só se
mostra-se extremamente pertinente, na medida em concretiza no seio de seu significante, em termos
que se sabe que “objetos, imagens, de artes visuais, em seu material, sua técnica
comportamentos podem significar, claro está, e o (CARAMELLA, op. cit.: 77), os quais, por sua vez,
fazem abundantemente, mas nunca de uma são inseparáveis de sua forma, de sua
maneira autônoma; qualquer sistema semiológico materialidade (PLAZA, 2003: 24). Daí que a
repassa-se de linguagem.” (BARTHES, op. cit.: 12). schemata é algo que diz respeito à matéria visual,
é uma imagem aproximada do objeto, e que por
Sendo assim, é de nosso interesse a pesquisa sua natureza, já teria sofrido uma seleção e uma
deste possível fato: da correlação do aprendizado organização visuais, sendo, portanto, uma fonte
de Parreiras, em parte formal, partindo de trabalhada e otimizada disponível para o
esquemas visuais alheios, com a produção das profissional reinventá-la semanticamente; este
ilustrações mencionadas. Antes disso até, de um dado confunde-se, é imanente ao próprio modus
modo mais amplo, poderíamos nos questionar, se operandi do plano simbólico da imagem visual
teria mesmo essa prática corrente nas academias supracitado6, atinge diretamente, se podemos dizer
da época e ainda presente em muitas escolas assim, através de Barthes, seu eixo sistemático.
atuais, alguma relação com o processo específico,
individual de criação da imagem visual. Nossos Portanto, ao falarmos de esquemas visuais da
problemas-pesquisa podem então ser formulados tradição, de uma forma geral, podemos estar nos
da seguinte forma: 1- sendo possível uma resposta referindo diretamente a uma espécie de código
afirmativa, como tal prática se daria? 2- Outrossim, visual, nos interessando neste, especificamente,
como estaria relacionada qualitativamente com a o que seria seu eixo paradigmático ou sistemático,
produção da imagem visual? o qual, em última análise, opera por duas vias: o
plano da expressão, o significante e o plano do
Teria Parreiras, por sua maior experiência com a conteúdo, o significado (BARTHES, op. cit.: 76).
tradição visual dentro dos diversos gêneros Assim, presumimos poder sustentar uma análise
pictóricos como a paisagem, o retrato, a pintura de estilística do significado da imagem visual, por meio
gênero e a histórica, p. ex., adquirido uma de um confronto destes planos em obras distintas.
sensibilidade visual capaz de imprimir qualidade Para tanto, o conceito de oposição mencionado por
artística às referidas ilustrações? Ou melhor, na Barthes e definido como a relação entre os termos
tentativa de sintetizar tudo o que foi dito: a prática no campo da associação, pode nos ser útil, na
de adquirir conhecimento visual por meio da medida em que obrigatoriamente trabalha com a
sensibilização em relação a esquemas visuais a semelhança e a dessemelhança simultânea dos
220
Retórica e criação visual na História de um Pintor de Antônio Parreiras

mesmos, instaurando, digamos, uma troca de parecem marcar uma sensação de cadência e
sentidos instantânea, o que nos leva, por contraste, profundidade, coincidindo na imagem, por sua vez,
ao valor da imagem analisada, no sentido de uma com a corriqueira representação hierarquizada da
ampliação de sua significação. perspectiva aérea e do intervalo das ondas. Soma-
se a isso o encadeamento específico dos termos,
III - Resultados iniciais onde cada um tem uma função dentro da oração.
O advérbio “então” prepara, introduz temporalmente
Como um primeiro e simplificado exemplo do que e aproxima a “saudade”; essa é caracterizada então
temos em mente, realizaremos uma análise da como “imensa”, o que parece torná-la ainda maior,
quinta ilustração da referida obra de Parreiras. para em seguida dissolvê-la em “me invade a alma”.
Dentro do primeiro capítulo, o autor tece Da mesma forma que na segunda oração, “é”,
comentários para cada um dos integrantes do grupo marca de maneira breve e enfática um tempo
Grimm, brindando-os, por vezes, com uma presente, atual, “da lembrança do passado que
ilustração, como no caso do pintor Francisco volta”, sendo logo desmaterializada pelo recurso
Ribeiro. Parreiras relata-nos como Ribeiro foi um sugestivo, elíptico das reticências. Tudo alude às
artista de poucos recursos financeiros, e que por qualidades dos elementos imagéticos referidos.
isso, “durante muitos anos apenas desenhou, por
não possuir uma caixa de tintas” (PARREIRAS, op. Detendo-nos um pouco mais na ilustração de
cit.: 40), chegando, por fim, a abandonar Parreiras, observamos de imediato que autor a
definitivamente suas aspirações artísticas, diante desdobra estruturalmente com base na significação
de contínuas decepções em relação à carreira. do trecho recortado de seu texto. O ponto de partida
da imagem parece estar na silhueta do pintor, de
Parreiras encerra o capítulo com a tristeza de quem valor alto na escala, em contraste com os rochedos,
perdeu para sempre mais um colega de profissão, de valores mais baixos na escala, isto é, a área
traduzindo imageticamente tal estado de espírito que concentra a oposição máxima em termos de
numa composição que, como buscaremos mostrar, valores dentro da imagem, atraindo prontamente o
parece remeter a outros esquemas visuais olhar do espectador. Em seguida, deslocamo-nos
correlatos na história da arte. da extremidade superior para a inferior da curva
formada pela silhueta, na medida em que sabemos
A ilustração tem como ponto de partida o trecho:
que a direita do plano do quadro contém sempre
“Então uma saudade imensa me invade a alma. É
uma maior força de atração, deslizando assim, por
a lembrança do passado que volta...” (Id.: 43),
boa direção, por continuidade, até a área
legenda que recorta a imagem, fornecendo-a
representada pelo mar. Retornamos à parte central
imediatamente um sentido específico, sem o qual
da imagem, ao seu ponto de partida, em virtude,
permaneceria numa vaga significação, própria
secundariamente, de dois pequenos triângulos
deste sistema semiológico. Notamos que, o que a
formados pelas rochas e a margem da praia,
princípio parece ser uma espécie de animismo das
apontados contrariamente à direção inicial e,
palavras “saudade” e “lembrança” por analogia com
principalmente, pelo alto contraste no primeiro
o mar representado na imagem, adquire uma
plano.
dimensão estrutural na medida em que há uma
afinidade de qualidades. A analogia se faz no plano Este afigura ser basicamente o mecanismo que
do conteúdo, do sistema, haja vista que uma forma traduz figurativamente o texto. Algumas relações
similar perpassa os termos no texto e a potencializam este esquema central, como o
representação dos elementos horizonte e mar na sentido gradativo, tanto dos valores marcados entre
imagem, no sentido de que todos possuem a o primeiro, o segundo e o terceiro plano, quanto
qualidade do longínquo, do profundo e do suas direções, vertical, inclinada e horizontal
recorrente. Dentro desta mesma linha de raciocínio, respectivamente. Enfim, o conjunto das estruturas
torna-se evidente que, assim como a “saudade linear e de valores, acabam por promover um fluxo,
imensa me invade a alma” e a “lembrança [...] volta”, ao mesmo tempo, convergente para um estado de
o mar na beira da praia faz o mesmo. repouso visual à direita e expansivo na direção
inversa. O observador transita fundamentalmente
Em seu plano da expressão, podemos destacar,
entre estes dois pontos na composição, o que
sintaticamente, a forma como todo o período foi
praticamente materializa o conteúdo referencial,
recortado. Há uma espécie de ordenação
positivo, do retorno de uma lembrança, do lamento
hierárquica entre as orações, onde a duração da
e do movimento do mar no texto e na ilustração.
primeira é maior do que a da segunda. Tanto a
disjunção da pausa brusca do ponto, quanto a Diante dessa pequena análise reveladora da
gradação de tempo existente entre as orações, estrutura e do funcionamento da imagem, nos
221
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

perguntamos: a que recursos de uma linguagem claro-escuro que acompanha a direção das
visual recorreu Parreiras e como estes foram descendentes citadas, dentro de um acento
articulados especificamente pelo ilustrador? constante em oposição a gradatividade de
Parreiras. A grande área escura em contraste com
Como verificamos pouco acima, espacial e o entorno ao centro do plano, reforça a importância
temporalmente, o plano da imagem foi dividido desse ponto visual na composição.
basicamente em duas grandes áreas; um corte
inclinado do lado esquerdo superior para o lado Por outro lado, em relação ao plano do significado,
direito inferior separa o que em termos de Parreiras utiliza menos convenção na medida em
significante, corresponde a dois momentos distintos que seu tempo anedótico é unívoco, o que significa
para o olhar: um mais definido, mais presente e um grau sígnico menor. Massacio evidencia mais,
outro mais indefinido, menos presente, fundidos nesse sentido, um artifício plástico para narrar uma
produtivamente, instaurando a significação da cena, fragmenta-a em diferentes instantes,
imagem. Retrocedendo aos primórdios da história tornando mais explícito o caráter de representação
da composição visual, de um ponto de vista ainda da imagem. A significação de ambas as imagens
bem amplo, podemos encontrar vestígios desse emerge com mais intensidade ao atentarmos para
modo de pensar o espaço-tempo plástico na arte o fato de que a gradatividade no âmbito do
romana e na medieval, quando significante em Parreiras está para a gradatividade
esclarecedoramente nos diz Hauser que “na arte no âmbito do significado em Masaccio, assim como
romana tardia e na arte cristã medieval emprega- uma maior constância do significante neste, está
se o método totalmente diferente [em relação ao para uma maior constância do significado naquele.
Oriente antigo e da Grécia] a que Franz Wickhoff Dessa forma, percebemos que a banalidade do
chama ‘contínuo’ [...] que retrata as várias etapas tema em Parreiras é irrompida, e o sentido é
de uma ação na mesma moldura ou paisagem sem dilatado num movimento centrípeto por sugestão
interrupção, repetindo as figuras principais em cada da própria materialidade plástica, ao passo que a
fase da ação [...]” (1998: 111). Wölfflin emite opinião mesma materialidade em Masaccio converte o
semelhante, talvez no que seria a fronteira entre o absurdo tempo-espacial de sua narrativa em algo
sintagma e o sistema plástico, quando compara a verídico, que ascende ao real, sendo as diagonais
arte renascentista e a arte barroca. Para o autor, maiores de ambas as composições, de Parreiras
um dos aspectos que caracterizam a produção e Masaccio, grandes responsáveis
renascentista é uma certa independência das respectivamente pelo sentido de lembrança como
partes, uma multiplicidade em contraposição à uma lamuria solitária e como uma história narrada.
unidade barroca.
É importante lembrar que estes valores são
Para exemplificar a aplicação deste princípio de relativos, havendo uma ambivalência dos mesmos.
composição, no que concerne a uma associação Assim, uma aparente distância temática, de
pela substância tempo-espacial no campo sentido, acabou por revelar traços comuns,
expressional, obras como O pagamento do tributo enquanto uma certa semelhança compositiva
(1426-27) de Masaccio (1401-1428) e a Flagelação inicial, mostrou-se bastante particular em seu
de Jesus (1445) de Piero della Francesca (1410?- desfecho.
1492), para citarmos algumas das mais
conhecidas, podem ilustrar essa disposição, Em relação a uma leitura focada mais numa
enquanto que numa analogia espaço-temporal substância do conteúdo, no tema e em seu sentido
neste mesmo campo, Paisagem com bosque ideológico mais imediato, encontramos uma
(1655) de Ruisdael (1628?-82) ou “Residência de correlação direta com a produção romântica, em
plantadores próxima ao rio Parahyba” (1775) de particular do pintor alemão Caspar Friedrich (1774-
Frans Post (1612-1680) aproximam-se mais dessa 1840).
organização.7
Há nesse sentido, no que se refere ao tema, uma
Em uma análise comparativa com a obra de espécie de sinonímia entre uma obra como Nascer
Masaccio, por exemplo, a ilustração de Parreiras – da Lua no Mar, de 1822 e a ilustração aqui
numa reutilização do mesmo princípio – inverte a analisada. Notamos prontamente um paralelismo
sintaxe, a forma do esquema linear no plano da no contexto de ambas as cenas. Trata-se
imagem. Masaccio trabalha com uma diagonal forte basicamente de imagens onde figuras em terra,
ascendente, compensada em parte pelas linhas num primeiro plano, contemplam a paisagem
descendentes do plano inferior direito, as quais marítima, existindo evidentemente diferenças
formam convergência em direção ao centro do importantes, como a presença de embarcações,
plano. No esquema de valores, utiliza um ritmo de da lua e a maior quantidade de figuras em Friedrich

222
Retórica e criação visual na História de um Pintor de Antônio Parreiras

em contraste com a figura absolutamente solitária indício da personalidade do pintor. Por outro lado,
de Parreiras. Um outro ponto de contato entre as na composição de Friedrich, apesar do elemento
duas imagens, que nos parece significativamente humano voltar-se totalmente para a natureza, as
importante, é o fato das figuras, no primeiro, embarcações são o elo, o vínculo com a civilização.
encontrarem-se numa vista posterior de três Sua presença, mesmo que menor, intermitente e
quartos, isto é, quase que inteiramente de costas dissolvida pelo ambiente, permanece visível,
para o fruidor, enquanto a figura de Parreiras sobrepondo-se ao elemento natural.
apresenta-se de perfil para este.
A partir dessas observações, acreditamos ter
Com relação a um conteúdo situado no plano esboçado o que seria a forma do conteúdo de uma
ideológico, esta temática nos revela uma tônica das ilustrações de Parreiras para a sua
típica do romantismo, em que, fundamentalmente, autobiografia, estruturada pelo confronto desta
há uma postura de questionamento e negação dos numa rede de associações com outras imagens, o
valores e das conquistas científicas e das que acabou por definir nuanças, algumas
crescentes transformações econômicas e sociais especificidades de seu modo de produzir. Por certo
pelas quais passavam o período. Podemos que, o que pode vir a ser uma convenção ou quem
encontrar trechos em sua autobiografia ou em suas sabe um código plástico, um modo de significar
críticas artísticas, onde Parreiras mostra-se particular deste sistema semiológico, ainda
decepcionado de um modo geral com a sociedade permanece quase insondável e extremamente
e em particular com os rumos da arte nacional em difícil de se estabelecer, contudo, a influência de
sua esfera institucional, como p. ex. nesta um conhecimento visual, erigido durante séculos,
passagem: “quanto tempo perdido? Quanta luta, pode ser sentida na produção artística em geral.
desgostos, injustiças, calúnias eu não teria evitado
se tivesse recusado a cadeira de paisagem da Com essas palavras finalizamos esta sucinta
Academia como depois recusei o lugar de professor análise, esperando ter atingido nosso objetivo
e de diretor da Escola duas vezes oferecido pelo principal, que era lançar as bases para uma maior
Governo da República?” (Op. cit.: 103). Essa compreensão da obra deste importante artista
insatisfação pode ser detectada, primeiro na própria brasileiro do século XIX, especialmente deste
exploração do gênero paisagístico, considerado documento, depoimento que é sua autobiografia,
inferior dentro da hierarquia acadêmica, podendo de grande relevância para o entendimento do
ser interpretado como um desejo de retorno a algo período em questão, ainda, por vezes, distorcido
que está na origem de um questionamento humano por uma visão estereotipada e previsível de alguns
e plástico, e segundo, mais especificamente como autores. Em última análise, esperamos que este
recurso de composição, na posição das figuras, texto tenha contribuído para mostrar um pouco mais
as quais, de certa forma ignoram a presença do de perto sua obra no campo da ilustração, para
espectador externo. torná-la algo mais particular, certo estamos de que
os conceitos aqui utilizados necessitam ainda de
No que diz respeito a esse aspecto em especial, é um desdobramento maior em sua aplicação, bem
interessante notar que enquanto em Friedrich as como um trabalho de ajuste e correção destes ao
figuras meio que absortas, extasiadas com a nosso objeto de estudo.
paisagem, escapam de uma realidade palpável em
direção a algo fugidio e nebuloso, em Parreiras uma Notas
ambigüidade acaba por criar uma tensão entre as *
Professor da Escola Superior de Ensino Helena Antipoff
duas realidades. A ilustração, assim, dá forma,
(ESEHA), doutorando pela Universidade Federal
pode expressar visualmente a própria indecisão ou Fluminense (UFF).
por outro prisma, o desejo de Parreiras, de ao 1
“Em fins de 1882, vende a casa que havia herdado do pai
mesmo tempo manter um círculo de relações e matricula-se como aluno amador, a 25 de janeiro de 1883,
sociais onde as encomendas e os salões lhe na Academia Imperial das Belas Artes” (LEVY, Carlos R.
garantam uma estabilidade financeira e um status M. Antônio Parreiras: pintor de paisagem, gênero e
social, como a pintura histórica e a pintura de nus, história. Rio de Janeiro: Edições Pinakotheke, 1981, 20),
mas que, segundo o relato do próprio Parreiras, teria
e uma atitude artística que relegue este tipo de
ocorrido no ano anterior: “resolvi, então, realizar o meu ideal
garantia e reconhecimento a um segundo plano, – ser um artista. Vendi uma das casas que meu pai me
ou seja, pintar pelo puro prazer de confeccionar havia legado e entrei para a Academia de Belas Artes para
uma imagem, tendo como base uma empatia, uma a aula de G. Grimm (1882)” (PARREIRAS, Antônio. História
relação afetiva com esta, como é o caso da de um pintor contada por ele mesmo. Niterói: Niterói
paisagem. Portanto, pode-se dizer que a dicotomia Livros. Fundação de Arte de Niterói, 1999, p. 16). Aliás,
mantida com a natureza e o espectador é sintoma, existem outras datas e locais, os quais, a primeira vista,
também foram corrigidos por Levy, como p. ex., a do

223
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

5
nascimento do pintor, quando verifica em seu livro de “‘O artista profissional adquire uma grande quantidade
batismo que, “aos seis dias do mês de janeiro de mil de schemata com a qual produz rapidamente no papel o
oitocentos e sessenta e um, nesta Matriz de São João esquema de um animal, de uma flor, de uma casa. Esse
Baptista de Nichteroy baptisei [o Vigário Antônio Mello esquema lhe serve de apoio para a representação de
Muniz Maia] solemnemente a Antônio, innocente, nascido imagens da sua memória, e ele modifica gradualmente o
no dia vinte de janeiro do ano passado” (Op. cit.: 17), esquema, até que corresponda àquilo que deseja exprimir.
enquanto o próprio Parreiras nos diz ter nascido “em São Muitos desenhistas deficientes em schemata e que sabem
Domingos de Niterói a 21 de janeiro de 1864, à Rua da copiar outro desenho não sabem copiar o objeto.’” (AYER,
Pampulha, hoje Visconde do Rio Branco” (Op. cit.: 13). F. C. apud GOMBRICH, E. H. Arte e Ilusão: um estudo da
2
Sobretudo aqueles pertencentes ao chamado Grupo psicologia da representação pictórica. São Paulo: Martins
Grimm, pintores oriundos da Academia de Belas Artes, os Fontes, 1995, p. 157). A tese de Gombrich é para nós um
quais seguiram o paisagista alemão Johann Georg Grimm ponto de partida, já que o autor trabalha o conceito de
quando este se demite daquela e resolve dedicar-se esquema apenas em seu sentido referencial, enquanto
integralmente à pintura de observação direta da natureza. compartilhamos, como foi colocado pouco acima, com a
Para saber mais a respeito, cf. LEVY, Carlos R. Maciel. O psicologia da percepção e a teoria formalista, a idéia de
Grupo Grimm: paisagismo brasileiro no século XIX. Rio que tais esquemas guardam antes um potencial de
de Janeiro: Pinakotheke, 1980. significação da imagem.
3 6
Eixo ou “plano paradigmático” ou “sistemático” A coincidência de um plano da expressão com um plano
(BARTHES, Roland. Elementos de Semiologia. São do conteúdo da imagem visual é extensivamente tratado
Paulo: Cultrix, 1971, 64) ou antes, “das associações (para por Arnheim em suas obras; ARNHEIM, Rudolf. Dinâmica.
conservar ainda a terminologia de Saussure): ‘Fora do Arte e Percepção Visual: uma psicologia da visão criadora.
discurso (plano sintagmático), as unidades que têm entre 8a Edição. São Paulo: Livraria Pioneira Editora, 1994.403-
si algo de comum associam-se na memória e assim se 434, que condensa suas idéias a esse respeito.
7
formam grupos em que reinam diversas relações’” (Ibd.: Cf. o artigo de Uspênski analisando com mais nuanças
63). esse modo geral de compor característico da pré-
4
Cf. nosso artigo CERDERA, Fábio Pereira. Estrutura e renascença, em que adota, dentre outros conceitos, o de
Originalidade na Obra de Antônio Parreiras. Jornal da representação dentro da representação (USPÊNSKY, B.
Pestalozzi: informativo da Associação Pestalozzi de Niterói, A. Elementos Estruturais Comuns às Diferentes Formas
Niterói, jul. 2006. No 105, p. 2, c. 2. Neste artigo, aventamos de Arte. Princípios Gerais de Organização da Obra em
a possibilidade de uma leitura do plano do conteúdo da Pintura e Literatura. SCHNAIDERMAN, Bóris (org.).
imagem através de sua relação com o legado da tradição Semiótica Russa. São Paulo: Perspectiva, 1979. p. 163-
visual. 220)

224
Este trabalho tem o propósito de apresentar os
resultados parciais de um projeto de pesquisa para
o Doutorado desenvolvido no Programa de Pós-
Graduação da Escola de Belas Artes, cujos
principais objetivos são o estudo e a análise do
texto “Retórica dos Pintores”, autoria de Modesto
Brocos y Gomes.

Fundamentado no conceito de história da arte, a


metodologia deste trabalho está baseada no
confronto do texto de Modesto Brocos com
trabalhos anteriores, de outros autores sobre as
questões que o pintor aborda em sua obra. A
publicação de Retórica dos Pintores, de Modesto
Brocos, data de 1933, portanto no contexto da Era
Vargas e do Modernismo Brasileiro. Alguns
embates já haviam sido travados: a histórica
semana do Modernismo em São Paulo e seus
desdobramentos, como o Salão de 31, que
consolidava novos rumos e pensamentos sobre a
produção de arte, principalmente. É dentro dessa
atmosfera que o livro sai à luz e penso que tem
sua principal razão de ser.

Para compreensão da linha de orientação adotada,


é preciso considerar a linguagem como centro de
toda atividade humana - foco do que aqui
trataremos – e que sendo ela produzida pelo
modesto brocos: a retórica dos pintores
complexo jogo de relações que os homens
josé luiz da silva nunes estabelecem entre si e com a realidade, ela se
transforma também em um elemento de modelação
dessa mesmo agrupamento de relações
(SEVCENKO:27) :

Falar, nomear, conhecer, transmitir, esse


conjunto de atos se formaliza e se reproduz
incessantemente por meio da fixação de uma
regularidade subjacente a toda ordem social:
o discurso. A palavra organizada em discurso
incorpora em si, desse modo, toda sorte de
hierarquias e enquadramentos e
enquadramentos de valor intrínsecos às
estruturas sociais de que emanam.1

Dentre as muitas formas que assume a produção


discursiva, a que nos interessa aqui, a que motivou
este trabalho é, particularmente, a retórica. Esta
espécie de discurso de elogio, que se tornou objeto
e caminho, a partir do Renascimento, para a
discussão e o estabelecimento do estatuto da
pintura, e por conseqüência dos pintores2. Seu
desdobramento é a fundação de um gênero – a
comparação entre as artes. A obra de Modesto
Brocos é resultante desse longo processo que se
inicia, anteriormente, na idéia ciceroniana do “Ut
pictura poesis” e que será desdobrado em reflexões
de muitos outros autores – ao longo do tempo –
como Alberti, Winckelmann, Du Bos, Diderot. É
nesse universo que se entrelaça o texto de Modesto

225
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

Brocos e será através de seu próprio texto, de em Roma durante quatro anos. As Deputacións
suas próprias palavras, de seu discurso, ou melhor Provinciais espanholas, como sistema de ajudas
dizendo, sua retórica, que pretenderemos tensioná- aos novos artistas, mediante pensões e
lo e distensioná-lo, simultaneamente, para buscar subvenções, adquirem um inegável protagonismo
suas propostas e respostas estéticas para os no campo das artes plásticas. Modesto Brocos
conflitos que marcaram a sociedade brasileira obteve sua pensão ao apresentar à Deputación o
nessa fase. esboceto e quadro Rebeca dando de beber a Elizer,
tema de caráter bíblico.
Modesto Brocos Y Gomez nasceu em Santiago de
Compostela (Espanha) em 1852, em família A biógrafa Massés afirma que Modesto Brocos,
humilde e voltada para o ofício da arte – avô e pai durante sua estadia em Roma, estabeleceu contato
foram gravadores. Foi seu irmão Isidoro, que com seleto grupo da colônia espanhola, na qual se
chegaria a ser famoso escultor - e um dos encontravam Pradilla, Benliliure, Querol, e Villlodas,
principais xilogravadores espanhóis - quem iniciou todos eles assíduos da famosa Academia de Belas
Modesto na arte da gravura. Inicia-se na Real Artes espanhola em funcionamento desde 1881.
Sociedade Econômica de Amigos do País – único Entre os centros mais importantes freqüentados
centro de Santiago que naqueles tempos oferecia pelos pintores espanhóis temos a Academia de São
possibilidades de formação no campo das artes. Lucas, a Academia de Belas Artes francesa, a
A partir de informações da historiadora Maria Academia Chigi (Roma), que foi a que Modesto
Cabrera Massé3 , Modesto foi aluno do professor Brocos freqüentou. Brocos pintou a tela Defesa de
Juan Cancela, que estudara durante alguns anos Lugo em 1887, quando era pensionista em Roma,
na Academia de San Fernando de Madri. e expôs no Salão Nacional de Madri do mesmo
ano. No ano seguinte seria exposto no Salão de
Em 1871 embarcou para Buenos Aires, Argentina, Paris.
onde colaborou como gravador em diferentes
publicações. Em 15 de julho de 1872 chegava ao Regressou para a Galícia, onde exerceu a posição
Rio de Janeiro, iniciando aqui, também, atividades de catedrático na Real Sociedade Econômica de
de gravador. Mais tarde matriculou-se na Academia Amigos do País.
de Belas Artes como aluno ouvinte na turma de
modelo vivo. Em 1875 freqüentava a classe de Vitor Em 1890, parte pela segunda vez ao Brasil. No
Meireles na Academia Imperial de Belas Artes e, ano seguinte é nomeado professor de desenho de
nesse mesmo ano, começou a publicar sua figura na Escola Nacional de Belas Artes, no Rio
primeiras gravuras no jornal brasileiro O de Janeiro. Entre 1893 e 1895, administrou classes
Mequetrefe. em substituição a Pedro Weingartner. No Salão de
1895 obteve uma medalha de ouro com Redenção
Anos mais tarde, junto com seu irmão Isidoro, de Cã, adquirida pela pinacoteca da Escola.
colaborou assiduamente na La Illustracion Gallega
y Asturiana, que estendeu a sua publicação de 10 Em 1897 voltou a Santiago de Compostela para
e janeiro de 1879 a 28 de dezembro de 1881. realizar o tríptico A tradición do Apóstolo Santiago,
Modesto Brocos viaja a Paris em 1877, onde que se localiza na Sacristia da Catedral de
estudou por dois anos na École des Beaux-Arts, Santiago. Após uma curta estadia em Roma,
sendo aluno de Lehmann – professor de Camille regressou ao Brasil, de onde nunca mais sairá.
Pisarro e George Seurat.
Durante toda sua estadia no Brasil interessou-se
Em 1879 instalou-se em Madri, sendo discípulo de pelo ensino de gravura, devendo à sua iniciativa a
Federico de Madrazo na Escola San Fernando. instalação do material para aulas desta
Federico iniciou a carreira pictórica sob o postulado especialidade no Liceu de Artes e Ofícios do Rio
estético do grupo conhecido como os “Nazarenos”. de Janeiro.
Em 1881, encontramos Modesto novamente em
Paris, outra vez na École, agora sob a tutela de Em depoimento para o catálogo de exposição do
Hédert, pintor que, como Lehman, fora discípulo centenário de nascimento do pintor, no Museu
de Ingres. Nacional de Belas Artes, em 1952, o pintor e crítico
de arte Reis Junior, revela alguns traços da
Em 1882 Modesto Brocos é aceito no salão de Paris personalidade e modo de atuação de seu professor
com auto retrato que reproduziu na revista L’art, Modesto Brocos:
obtendo o favor da crítica. O ano de 1883 marca
um fato importante em sua carreira, pois que obtém Sabia ensinar respeitando e incentivando a
um bolsa da Deputación da Coruña para trabalhar incipiente personalidade que descobria nos

226
Modesto Brocos: A Retórica dos Pintores

alunos. Juntamente com o seu refrão predileto tomou lugar bem definido, e digno entre os
- ´beja o ângulo que fais´ - índice da sua representantes da pintura contemporânea do
maneira de educar a visão a transpor exato, Brasil.
ele procurava incutir no aluno a compreensão O meticuloso pintor de costumes roceiros.5
do caráter do objeto, sobre a reprodução
minuciosa da sua aparência superficial. Depois de longa e frutífera vida dedicada à arte e
Por esse processo, procurava revelar-lhe a ao seu ensino, Modesto Brocos falece a 28 de
diferença substancial entre a concepção novembro de 1936, aos 84 anos de idade.
acadêmica e a clássica. Também era inteligente
e avançada, muito construtiva, a indicação que Retórica dos Pintores: algumas questões
dava para a marcação do desenho – decompor
A obra de Modesto Brocos “Retórica dos
o motivo em formas geométricas simples, como
pintores”6 está estruturada da seguinte forma: um
quadrados, retângulos, cilindros e dentro delas
prólogo, quatorze capítulos e um apêndice.
inscrever o arabesco das linhas e o jogo dos
planos. Não estou fantasiando esses preceitos É nossa intenção metodológica ir apresentando a
de inspiração cubista no ensinamento de estrutura do texto, tal qual foi organizada pelo seu
Modesto Brocos. Também, não posso afiançar autor, Modesto Brocos, e ir tecendo comentários
que Brocos os tivesse haurido nas teorias críticos sobre sua escrita, seu pensamento, as
cubistas calcadas na frase célebre de Cézanne. correlações que se fizerem necessárias e/ou
O fato é que esses preceitos constituíam o pertinentes. Ao longo do desenvolvimento do seu
fundamento básico do seu processo de ensino. pensamento, Modesto Brocos inicialmente
Porém, em se tratando de Brocos, não é apresenta-nos os conceitos mais gerais de que irá
desarrazoado supor que ele tivesse tratar – retórica, estética, beleza, arte, razão, que
conhecimento daquelas teorias e daquela frase. serão contemplados, mais abrangentemente, neste
Porque Brocos, a despeito do seu todo bisonho, texto. Sem, entretanto, deixar de pormenorizar,
era um espírito eminentemente curioso, posteriormente, esses conceitos, subdividindo-os,
sobretudo das questões relacionadas com sua elaborando-os em questões ligadas à visão, cor,
profissão e inteligente bastante para, não pintura histórica, de paisagem, de retrato,
conceituando a arte apenas dentro das rígidas arquitetura, métodos, princípios, aspectos
fórmulas acadêmicas, admitir e mesmo adotar filosóficos, práticos, técnicos, sem deixar de atacar
idéias estéticas mais atualizadas. As de frente, de uma maneira singular um tema, que
manifestações artísticas originais ou está na ordem do dia – a arte nacional, bem como
influenciadas pelas novas tendências da pintura reformas do ensino artístico:
não provocavam em Modesto Brocos a
exasperação que suscitavam – e que ainda É muito digna de louvor esta aspiração de
suscitam – por entre os artistas formados nos termos uma arte nacional, aspiração que aliás
mesmos princípios que os dele. Ao contrário, todas as nações que se prezam deverão Ter;
acolhia-as com uma simpatia compreensiva e mas não será gritando alto que nós
encorajadora. Já da mesma maneira não conseguiremos esta aspiração, será, sim,
recebia as opiniões dos críticos-de-arte, aos trabalhando forte e forte que, seguindo todos
quais não atribuía grande autoridade.4 os pintores as pegadas do primeiro iniciador,
depois de algumas gerações, chegaremos a
Modesto Brocos, devido ao seu espírito inquieto, e obter um resultado lisonjeiro.7
ademais sua dedicação ao ensino de arte, publicou
diferentes livros. Em 1915, A Questão do Ensino No prólogo o autor debruça-se sobre as razões que
de Belas, Viagem a Marte, publicado em 1930 pelo o fizeram dedicar-se à escrita do livro, e apresenta
editorial Arte e Letras, de Valencia. Quiçá seu livro ao leitor, em linhas gerais, a qual conceito de
mais conhecido seja Retórica dos pintores, retórica se filia.
publicado no Rio de Janeiro, em 1933.
Este trabalho, que tenho a honra de apresentar
Um dos mais influentes críticos de arte do século ao público, é feito com a intenção de ajudar
XIX, Gonzaga Duque em comentário sobre a aos estudantes de pintura nos seus estudos,
exposição individual de Modesto Brocos, na Escola dando-lhes uma orientação que até agora
Nacional de Belas Artes em julho de 1892, comenta: faltava, e vem preencher uma lacuna que se
fazia sentir, lacuna que eu mesmo senti quando,
Pintor de raça, pintor de fibra, nascido para ser em Paris, estudava a pintura..8
pintor pela fatalidade impulsiva de sua
organização, por influência hereditárias [...] ele

227
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

E acrescenta qual a amplitude que desejaria para da palavra falada, se for literatura, ou por meio
a sua obra. Neste seu comentário, poderemos da forma desenhada, pintada ou esculpida, se
perceber as correlações e forças que o intelectual forem as belas artes.
Modesto Brocos faz das produções do campo das Os homens em todos os tempos têm sentido a
artes e literárias, naquele momento: necessidade de exteriorizar suas idéias da
maneira mais digna, com o fim de aperfeiçoar
Eu desejaria dar a este despretensioso trabalho a existência, contribuindo para fazer a vida mais
uma feição mais artística, fazendo um paralelo doce e feliz do que era anteriormente.
entre a literatura e as artes. Comparando os Chama-se Retórica a certas regras que os
grandes templos da Índia com os seus poemas, escritores devem ter presente para expressar
o Mahabharata e o Ramayana; a Ilíada de suas idéias com concisão e clareza.11
Homero com o Parthenon de Athenas; a Divina
Comédia do Dante com a catedral de Milão, os Vale evidenciar, neste trecho, a questão da validade
Lusíadas com o convento dos Jeronimos; da obra pictórica, como discurso, tanto quanto se
seguindo depois neste paralelo, comparar o verifica na literatura, e que o autor já manifesta
Rolando Furioso de Ariosto, com as pinturas essa correlação de forças discursivas da obra -
de Miguel Ângelo na capela Sixtina; a pintada e/ou escrita. Outros autores (Leonardo Da
Jerusalém Libertada do Tasso, com as Vinci, Du Bos, etc) dedicaram atenção ao tema,
estancias de Rafael, etc. E, continuando neste não havendo, portanto, qualquer primazia na
passo comparar os escritos célebres com as anunciação de Modesto Brocos. Entretanto, não
pinturas e as esculturas mais notáveis. Deixarei podemos negar a importância desta sua obra, por
aqui consignada esta idéia para quem mais seu caráter didática, dentro de nosso meio
tarde a quiser utilizar.9 intelectual e artístico.

O rol de obras acima, faz-nos pensar e desdobrá- Mais adiante, em sua abordagem, verificamos
lo em outras possibilidades – seria essa a ressonâncias do pensamento do intelectual
formação/informação desejada e esperada para um Winckelmann:
pintor – ou qualquer intelectual de seu tempo?
E foram os Gregos os que botaram os
E problematiza um dos obstáculos que se fundamentos a esta arte [retórica] e
interpõem na trajetória dos aspirantes à condição aperfeiçoaram a arquitetura, a escultura e a
de pintor, naquele momento. Acentua a observação pintura.
da natureza como orientação: Na antigüidade, a literatura Grega chegou a um
estado de perfeição nunca excedido, e o
O pintor [...] é embargado pelo problema da mesmo podemos dizer das belas artes.
cor nas suas variadas e infinitas manifestações,
tendo necessidade de observar infinitas Senão, vejamos, o que nos diz o autor alemão
manifestações, tendo necessidade de observar Johann Joachim Winckelmann12:
a todo instante os aspectos da natureza, que
se apresenta azul, nos dias claros; cinzenta nos O bom gosto, que mais e mais se expande no
dias tormentosos; dourada, nos plácidos e mundo, começou a se formar, em primeiro lugar,
cálidos crepúsculos; prateada, nas noites de sob o céu grego. De qualquer modo, todas as
luar. E é pela variedade das cores que as investigações dos povos estrangeiros não
montanhas, os campos, as árvores e os animais chegaram à Grécia senão como uma primeira
se diferenciam. Enfim, a cor, com as suas semente, e receberam uma natureza e uma
múltiplas e variadíssimas tonalidades, vem a forma diferentes no país que, diz-se Minerva
ser a linguagem da Natureza.10 destinara aos gregos como morada [...]
O gosto que essa nação testemunhou em suas
No primeiro capítulo Modesto Brocos faz obras lhe é peculiar.13
comentários mais detalhados como manipula os
conceitos de Retórica, com suas divisões e regras, O nosso autor adota a divisão da Retórica em
tecendo uma construção de sua retórica para a cinco partes : invenção, disposição, elocução,
pintura, a partir da literatura: pronunciação e fundo, em lugar das quatro divisões
tradicionais, ligadas à literatura:
Dizem os velhos retores que a Retórica é uma
arte estética, cujo objeto obedece a uma Na retórica do pintor entram todos tratados: a
aspiração da nossa alma na sua ânsia de elevar invenção corresponde ao pensamento ou idéia
nosso coração para as coisas belas, por meio nova que represente o quadro; a disposição é

228
Modesto Brocos: A Retórica dos Pintores

a maneira de distribuir e colocar os As regras somente deverão servir de estímulo para


personagens e que o assunto fique bem observar, sentir e praticar o que elas preceituam.
composto; a elocução refere-se à boa execução Não se creia que para fazer bem um obra consista
do quadro, que, na plástica, a habilidade do em recordar umas tantas regras. Isto seria
pincel e o colorido vai de acordo com o assunto; desconhecer por completo o homem, que só
a pronunciação corresponde à maneira de poderá produzir quando a Divindade o tenha dotado
desenhar as figuras e demais objetos que de imaginação criadora.16
entrem no assuntos e que se achem não só
bem desenhados como bem proporcionados e Para ele a imaginação e a inspiração aumentam e
corretas de forma; e o fundo, poderemos desenvolvem-se estudando o real, razão pela qual
substituir pelo sentimento que se destaque da os pintores começam seus estudos pelo modelo
obra, todo em si subjetivo e que nos emociona vivo, tal e qual se apresenta a seus olhos, o que
internamente, sendo esta emoção a qualidade os prepara para os desenhos do natural, que,
superior a todas as outras. E de todas as gravados na memória, facilitariam as primeiras
qualidades acima expressadas, quando bem composições sem necessitar de modelo.
executadas e harmonicamente compostas,
resultará o estilo.14 A análise do discurso ou do quadro é composta de
duas partes que são: o fundo e a forma. O fundo,
São estes conceitos que Modesto Brocos irá ou seja o assunto, compreende tudo quanto o
desdobrar, ao longo de sua obra, mais homem pode expressar com o pensamento, na
detalhadamente e que devido a exigüidade espaço- procura do belo e deverá reunir os preceitos de
temporal deste veículo iremos pincelar alguns Quintiliano para a Retórica: instruir, agradar e
comentários do autor e sinalizar apropriações e ou comover. Contudo, salienta que estas três
correlações de linha mais gerais do pensamento dimensões são pertinentes à literatura, “porque em
do autor com outros intelectuais, não unicamente arte só poderá agradar e comover, porém nunca
de seu tempo, mas também anteriores a ele. instruir!”

Para Modesto Brocos, na gênese da obra artística, Reconhecemos nessa assertiva de Modesto
intervém uma forma interior ou pensamento e Brocos a influência do pensamento de
uma forma sensível de expressão – personagens Winckelmann, apesar de parecer opor-se,
e objetos que entram na composição -, expressos sutilmente, ao historiador alemão: “Todas as artes
pelo desenho, na obra pintada ou pela palavra na têm dupla finalidade: devem ao mesmo tempo
obra literária. (BROCOS: 10) agradar e instruir”. 17

Define Modesto Brocos o artista como “todo Modesto Brocos, então, acaba confirmando o que
indivíduo que possua aptidões para executar bem Winckelmann referendou:
um trabalho com consciência e habilidade”15 e
apresenta-nos as condições necessárias para a Devemos concordar que hoje as ilustrações que
realização de um bom trabalho: conhecer o se intercalam nos livros, sejam ou não
assunto; aplicar oportunamente as regras indicadas didáticos, com a facilidade da gravura química,
para bem compor; estudar e observar obras dos tornaram-se um instrumento de instrução , pois
grandes artistas antigos e modernos, a fim de a apresentação de uma figura num livro fala
assimilar os que neles encontre, “mas conforme mais claro do que uma longa descrição18
com seu talento e tendências naturais”.
Percebemos aqui nesse trecho, em que há uma
As três condições anteriores sugerem os caminhos clara defesa da supremacia da eloqüência da
trilhados pelo artista-autor – o domínio técnico, o imagem em comparação à da palavra escrita,
rigor, a pesquisa, mas também a capacidade de filiações ao pensamento de Leonardo da Vinci,
distanciamento das obras do mestres na quando em seu Tratado da pintura –O paragone –
construção da identidade do artista. defende a mesma tese da superioridade da pintura
sobre a poesia.19
Em sua opinião, as regras de composição são
direções – a serem perseguidas ou evitadas – pelos Devemos ressaltar que a imagem ilustrada, em
artistas para que a obra alcance a maior perfeição todos os tempos teve uma função instrutiva, pois,
possível: afinal, a divulgação de tantos trabalhos no campo
da arte foram sendo assimilados e retrabalhados,
graças à circulação de gravuras, a partir de seus
modelos originais. O historiador Argan nos

229
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

apresenta um conceito de “gravura de tradução” , venham interromper a nossa solidão. O


em decorrência da importância da circulação e isolamento é o remédio eficaz para domar a
difusão das gravuras, n cultura artística européia apatia do cérebro.22
nos séculos XVII e XVIII (ARGAN:16)
Assim nos aproximamos, de alguma forma, do seu
Avançando no texto de Modesto Brocos nos processo de trabalho - como se dava a construção
colocamos diante dos cinco estados do discurso: de sua obra:
invenção, disposição, elocução, pronunciação e
fundo, a seguir apresentados: Foi na Barreira do Soberbo [Teresópolis, RJ],
lugar alto, de ar oxigenado e águas puríssimas,
A invenção é o esforço que faz nosso espírito onde tive as minhas melhores idéias, tanto em
para encontrar o assunto. arte como em literatura: este mesmo trabalho
Para descobrir um assunto será preciso, antes foi esboçado ali, há mais de quinze anos.
de mais nada, ter muitos assuntos em projeto, A vida real é também campo para busca de
sejam esboços ou rascunhos. Depois se elementos que constróem o arcabouço da
escolhe, entre os que temos em mão, aquele imaginação.23
que fale diretamente à nossa alma e que temos
o convencimento que é a melhor idéia a por E continua propondo orientações:
em execução.20
Por disposição entende-se a colocação lógica
Neste ponto de sua argumentação Modesto Brocos do que se vai compor, de modo a saber-se o
coloca-nos a invenção como idéia. Entretanto, seu que vai no primeiro plano, no segundo e nos
pensamento não é muito claro, posto que introduz últimos.
noções de assunto, projeto, esboço e rascunho, Todos os elementos que entram em uma
todas entrelaçadas dentro do escopo da invenção. composição devem ter por fim a unidade do
Ainda que possamos entrever as sutilezas de seu conjunto, e fazer com que todas as figuras, os
raciocínio, torna-se paradoxal ao dizer que para o movimentos variados, as direções das linhas,
encontro do assunto, é preciso ter muitos assuntos tudo tenha por fim ajudar ação que se quer
em projeto. representar.24

No desenvolvimento de seu texto, mais adiante, Por disposição propõe: personagens, ações,
põe em relevo a questão da novidade como ponto movimentos, direções, entrelaçando-se para tornar
a ser observado pelo artista, ou apresentar uma claro o discurso pictórico:
idéia/forma já utilizada anteriormente, de modo
original, que não traga à memória nenhum quadro [...] precisará ser grande observador, conhecer
já visto: o coração humano, estudar os gestos que as
paixões operam na fisionomia dos indivíduos.
A principal preocupação do escritor, como a do Também será preciso que, tanto o artista como
artista, deverá ser a de que o argumento ou o literato, sintam a paixão que desejam
assunto sejam apresentados com novidade, e expressar.25
que não se pareçam com outro quadro já visto.
A idéia poderá não ser nova, mas deveremos Esta idéia tem conexões com Diderot, sem nos
lembrar La Fontaine que, com idéias tiradas de esquecermos de o Epítome de Anatomia de Félix-
outros, fez fábulas que ficarão eternas e serão Émile Taunay (1837), obra seminal que compila a
lidas com prazer.21 teoria das expressões de Charles Le Brun, entre
outros tratados para o ensino artístico:
Acrescenta a inspiração como esforço, produto da
concentração do espírito, enfim, conseqüência do Eis o que diz respeito aos caracteres e suas
trabalho, e não fruto do acaso. E para a indolência diferentes fisionomias; mas não é tudo: é
imaginativa propõe “deve-se-lhe dar excitantes” e preciso acrescentar a esse conhecimento uma
exemplifica: profunda experiências das cenas da vida. É
preciso ter estudado a ventura e desgraça
Se for, por exemplo, um assunto bíblico o que humanas sob todos os seus aspectos. 26
precisamos fazer é ver a bíblia de Snord, ou
de Gustavo Doré, ou a de Tissot [...] Quando Comparando o texto literário com o texto pictórico,
não vêm [as idéias], deveremos fugir do mundo, Modesto Brocos adverte que os recursos de que
isolando-nos num lugar retirado, onde não se dispõe o orador, não são pertinentes ao artista:
recebam jornais, nem revistas, nem visitas, que

230
Modesto Brocos: A Retórica dos Pintores

[...] porquanto está limitado, em absoluto, a Modesto Brocos afiança que o desenho é “alma do
representar um dado momento, um instante da quadro” e a probidade da arte, como “disse
cena ou drama que se quer representar.27 Ingres”33:

Há um trecho do abade Du Bos28, sobre o recorte Uma obra bem desenhada faz passar
cronológico da ação dentro do poema e dentro da despercebida os defeitos de um quadro; seja a
pintura, em sua narrativa do paralelo entre a pintura cor a composição, e mesmo A invenção passam
e a poesia, que diz: ao segundo plano, isto é, quando o desenho
está feito com verdade, todas as outras
Como o quadro que representa uma ação nos qualidades lhe ficam subordinadas.
permite ver apenas um instante da sua duração, o O desenho, num quadro, é o elemento
pintor só pode elevar à condição de sublime coisas inseparável do assunto; poderemos prescindir
que precederam a situação atual e que à vezes das outras qualidades. Quando, porém, uma
sugerem um sentimento comum. A poesia, ao obra está bem desenhada, impõe-se à
contrário, descreve todos os incidentes notáveis admiração do espectador. Sem esta qualidade
da ação que trata e aquilo que ocorreu e lança superior, a obra não se pode suster, nem resiste
freqüentemente algo de maravilhoso sobre uma à análise do crítico, nem mesmo ao juízo
coisa comum que foi dita ou acontecerá em imparcial do espectador. Em suma, para
seguida.29 terminar: assim como a pronunciação é a alma
do discurso, o desenho, em uma pintura, é a
Cotejando os textos anteriores, do Modesto e Du alma do quadro.34
Bos, fica configurada uma intensa proximidade.
O fundo vem a ser a ação moral que se
Sobre a elocução Modesto Brocos propõe que os desprende do discurso [...]. Essa ação moral
elementos sejam bem desenhados e pintados para em arte descobre-se pela impressão de alegria
o convencimento e deleite do público: ou tristeza que a vista de um quadro, desperta
no espectador, e que poderemos dar o
A elocução corresponde na pintura à perfeita
qualificativo de sentimento.35
execução do quadro, que tem as qualidades
que pode ter o discurso: de expressar com Avalia este estado como superior, intrínseco à
verdade o assunto, que a cor seja justa, que a própria obra e dela inseparável, pois representa a
execução seja franca, briosa e de fácil aspecto, emoção do artista que a criou. E iguala espectador
que os movimentos dos personagens que e artista, imantados pela mesmo sentimento frente
entram em cena sejam variados e expressivos, à obra. Começa o autor, advertindo-nos dos limites
e que o artista apresente no quadro um conjunto que se impuseram na busca de definições para
harmonioso de beleza e verdade.30 Beleza:

Não nos vamos ocupar de fazer a descrição da


Nesse ponto de texto, põe em relevância sua idéias beleza, por ser impossível descrevê-la. Nós nos
sobre o desenho, dentro da obra artística: contentaremos de ler o que dizem os tratados
que se ocupam dela.36
A pronunciação bem sentida, bem acentuada,
com suas paradas, suas mudança de voz no Fazendo eco às palavras de Modesto Brocos,
correr do discurso, não pode ser comparada a apontamos o que Jean Cassou descreve:
outra coisa que ao desenho de um quadro, que,
pela exatidão dos seus contornos, a verdade Mas se se pode empregar a arte para fins
das formas, a justeza dos acentos, e a exatidão sociais, não é essa, porém, a sua função
dos detalhes impressiona agradavelmente ao essencial e específica. Mesmo quando o artista
espectador e seduz a todos os instantes que perfilha as doutrinas, as convicções e as
nos encontremos em sua presença na obra. mentalidades da sociedade que o utiliza, um
O desenho, num quadro, é o elemento sentimento diferente, ainda que obscuro e
inseparável do assunto.31 informulado, guia a sua mão executora e faz
do objeto fabricado o receptáculo de uma outra
As idéias acima apresentadas, são as idéias força desconhecida que é a beleza.37
correntes do texto de Ingres, no qual diz: O
desenho é a probidade da arte e compreende A beleza de uma obra poderia ser qualificada, para
tudo, exceto a tinta. 32 alguns, quando há uma “finalidade de imitação
servil da natureza”. Aquele que se aproxime mais

231
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

do natural era considerado o mais perfeito – como Entremeado ao seu discurso, vemos considerações
sucedeu em tempos do realismo e do naturalismo. mais gerais sobre o processo artístico que
Aqui, referências ao pensamento de Winckelmann delineiam a construção da obra, naquele momento,
podem ser sugeridas, para quem: A imitação do ou, particularmente, o processo de criação de
belo na natureza ou diz respeito a um objeto único, Modesto Brocos, que deveria seguir uma tendência,
ou reúne as observações sugeridas por diversos um caminho adotado por demais pintores, como:
objetos e realiza um todo único.38
Já tenho dito que será proveitoso, antes de
Para Modesto Brocos, existem duas belezas na compor, dispor o ânimo vendo revistas de
obra de arte. A beleza objetiva que é inseparável museus, de galerias, ilustrações, etc., para
da escultura, do quadro ou do assunto em questão; adquirir idéias.
e a beleza subjetiva a qual se refere às sensações Será preciso escolher entre os mestres aqueles
que a obra produz no espectador. A primeira é que deixam ver o processo empregado, como
exterior, aparente, enquanto a segunda pertence sejam as obras de Giotto, Mantegna, Boticelli,
ao foro íntimo, ao nosso juízo. Para o autor existem Carpaccio, em geral todos os quatrocentistas.
diferenças entre o belo e o formoso. Se para os Agora os autores do século XVII pintaram com
retóricos o belo está em conexão com a razão e o malícia, ocultando os processos, porém, nos
formoso à experiência individual, para Modesto servem para admirar alguns deles como
Brocos, o belo é uma aspiração da alma para fim Velazquez, Van Dick, Murillo, Ribera, etc. Fora
indefinido e absoluto (BROCOS:22). destes grandes artistas, que nos merecem
respeito, deveremos fugir de todos os pintores
A estética vem a ser a sensação que produz da época de Luís XV. [...] tudo quanto fizeram
em nosso eu, ou seja no íntimo de nossa alma, naquela época está longe de ser belo, e em
as obras da natureza, de uma parte, e a dos vez de arte é um artifício.
homens e do artista, do outro; também definem Sobre os processos de pintar não creio que se
ser a estética a ciência do belo. tenha escrito nada de valor. Nos modernos
Só deverá ocupar nossos pensamentos a pintores, o processo percebe-se em poucos; é
beleza estética ou seja a beleza das formas, bem notório em David. Em nosso tempo, em
que tem representação plástica 39 Puvis de Chavannes.
Para tirar partido do que se vê, eu aconselharia
E em defesa da obra plástica, - propriamente da aos que estudam pintura, quando virem um
pintura -, declara em relação à fotografia, revelando, quadro ou uma fotografia que os impressione,
de uma certa maneira, um debate que deveria estar ter à mão um álbum dedicado a estes trabalhos
na ordem do dia – o status da fotografia, como e fazer um rascunho a lápis do assunto que o
categoria estética: tenha impressionado42.
A imitação pode agradar ao vulgo, porém aos É impressionante o texto acima, pois revela-nos
espíritos refinados a simples manifestação as preferências estéticas do autor Modesto Brocos,
fotográfica não pode satisfazer, somente nas além de acentuar os artistas para os quais
obras onde se sinta a interpretação do artista, direcionava suas pesquisas, bem como seu
através de sua visão, porquanto, se fôssemos processo de anotação em caderno – rascunho –
fazer a imitação do que vemos sem metera das imagens mais estimulantes, fosse pintura ou
nossa visão particular, a fotografia seria, por si fotografia. É particularmente curiosa, a inserção da
só, o cúmulo da arte: - falo com relação à fotografia como recurso para futuros estudos.
pintura.40
E continuando, propõe um exercício voltado para
O autor, em seu texto sobre estética cita: D. Quixote o desenvolvimento das faculdades imaginativas dos
de Cervantes, Hamlet de Shakespeare, Moisés de alunos, que é revelador sob o ponto de vista
Michelangelo, os anões de Velazquez, Viollet-le- metodológico seguido pelo artista, quando em sua
Duc, Buda, o que nos dá uma compreensão das função de professor:
suas escolhas (BROCOS:27). E ao pontuar sua
definição de estética, percebemos uma adesão ao [...] será apresentar-lhes em aula o quadro ou
pensamento de Winckelmann, como já aludido assunto de um mestre e dizer-lhes: façam este
anteriormente: A ciência do belo na arte, e mais assunto, porém de outra maneira; isto obrigaria
propriamente: a ciência que tem por estudo as o aluno a compor de diferente maneira o que
manifestações do gênio artístico dos gregos, na tinha diante dos olhos, e com aquele modelo
literatura e nas artes.41 bom, eles não poderiam deixar de fazer algo

232
Modesto Brocos: A Retórica dos Pintores

saliente, e o pior que poderia sair seria um os assuntos belos de verdadeiro valor, dará às
pastiche. suas cores um sentimento estético que os
Outra coisa importante que o professor poderia primeiros não terão e suas obras, mau grado o
ensinar em aula: - Por que um quadro faz bem? insucesso do primeiro momento, passarão à
Isto seria a pedra de toque para se apreciar posteridade.
um quadro e também a cultura de um O artista deverá preocupar-se com as relações
professor.43 que existem entre o mundo em que vive e o
que imagina e no qual deseja viver; aquele que
Na sua abordagem do tema em questão é flagrante está cheio de imperfeições, este seguido de
sua adesão ao raciocínio duplo – arte e religião – grandíssimas dificuldades: o primeiro diz as
como entidades quase indistinguíveis, tanto que coisas como elas são, o segundo como elas
pensa em uma religião futura: deveriam ser.
Devermos, pois, partir da realidade para elevar-
A arte é uma necessidade que poderemos nos ao ideal de beleza a que aspiramos, tal
chamar de superior, que os homens sentem será o resultado de um educado entendimento.
pelas idéias elevadas e poética, coisas que não A muitos pintores lhes sucede de olhar com
estão ao seu alcance imediato e das quais indiferença para os humanos conhecimentos e
precisam para fazer mais agradável a afiguram-se que, para ser artista, não precisam
existência. mais que saber desenhar e pintar; estes no meu
A obra de arte esteve sempre e seguiu “pari entender não são artistas.[...] o artista e o
passo” a idéia religiosa, e a de fixar nos seus escritor precisam de grande elevação de
monumentos os grandes feitos da humanidade; espírito e muito saber para conservar-se à
mais tarde serviu para as novas religiões, e altura de sua missão.45
agora com as modernas idéias, nas quais os
povos esperam encontrar seus ideais em um As décadas situadas em torno da transição dos
estado de governo mais perfeitos e que poderá séculos XIX e XX assinalaram mudanças drásticas
dar nascimento à religião futura. Podemos, em todos os setores da vida brasileira. Mudanças
pois, definir a arte como sendo uma alta que foram registradas nas artes, sobretudo,
manifestação da humanidade ao serviço dos provocando inquietação. A economia dita novos
ideais de um povo, sejam estes de interesse rumos – São Paulo assume um status novo e sua
imediato, de interesse remoto ou sem interesse intelectualidade aciona novos personagens e novo
algum. corolário ao programa de arte no país. O nacional
Resumindo: arte é um sentimento elevado da é a discussão que se propõe como estética, e que
nossa alma para as coisas que se encontram se impõe, às vezes pela força do discurso, pura
fora do nosso alcance e que poderemos chamar retórica, do grupo paulista. E é a partir do mesmo
divinas. O verdadeiro artista precisa ser um recurso - discurso e retórica - que se apropria o
sonhador, que na sua vida trata de fugir a tudo autor Modesto Brocos para dar materialidade às
quanto o circunda para formar-se o seu mundo suas reflexões, inquietações e inquietações. E
ideal e conservar-se nele sempre a uma altura consegue, assim, dar corpo, voz e alma ao
que o afaste dos perigos ordinários que possa conteúdo ao longo de seu texto, nem sempre isento
oferecer-lhe a vida vulgar. como quase sempre desejamos, mas deixando
A arte, segundo, Tolstoi, é um dos órgãos do transparecer suas reminiscências, suas heranças
progresso humano; pela palavra o homem e filiações. Coloca em sua pauta discutir o nacional,
comunica seus pensamentos, pelas imagens propor mudanças, as suas, talvez menos
comunica seus sentimentos com todos os revolucionárias.
homens não só do presente como também do
porvir.44 Seu texto está impregnado pelas fragmentações
que se fizeram sentir no tecido artístico da virada
E acentua a missão do artista: do século XIX às primeiras décadas do século XX
- as propostas modernistas, as vanguardas
Podemos definir a razão como sendo o poder européias, o advento da fotografia e sua
que tem nossa alma para conhecer; e as idéias, reprodutibilidade, o uso de novos materiais.
a representação deste conhecimento.
Segundo o que acabamos de dizer, o artista Mas, o que mais se evidencia é sua preocupação
pode escolher entre seus assuntos aqueles que da primeira hora – criar melhores condições para
mais agradam ao público, e, seja artista ou seu primeiro leitor – os pintores em formação. Dar-
literato, não fará com isto mais do que prostituir lhes conteúdo, matéria, substância e espírito.
sua pena ou seu pincel. Agora, o que escolhe

233
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

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CAVALCANTI, Ana. O conceito e a arte na visão (pintores e esculptores). Rio de Janeiro: Typo.
de um pintor brasileiro entre os séculos XIX e Benedicto de Souza, p. 87.
XX – uma leitura dos cadernos de notas de Eliseu 6
BROCOS, Modesto. Retórica dos pintores. Rio
Visconti (1866-1944). Artigo disponível na Internet, de Janeiro: Typ. D’A Industria do Livro, 1933.
Dezembro/2007. 7
Id., p. 133.
DIDEROT, Denis. Ensaios sobre a pintura. 8
Id., p. 5.
Campinas: Papirus, 1993. 9
Ibid., p. 7.
DU BOS, Jean-Baptiste. Reflexões críticas sobre 10
Ibid., p. 7.
a poesia e a pintura. LICHTENSTEIN, Jacqueline 11
Ibid., p. 9.
(org.). A pintura – Vol. 7: O paralelo das artes. São 12
WINCKELMANN, Johan Joachim. Reflexões
Paulo: Editora 34, 2005, p. 60-73. sobre a arte antiga. Porto Alegre: Movimento/
DUQUE-ESTRADA, Gonzaga. Contemporâneos Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 1975.
(pintores e esculptores). Rio de Janeiro: Typ. 13
Id. p. 39.
Benedicto de Souza, 1929. 14
BROCOS. Op. cit., p. 10.
INGRES. Écrits sur l’art. Paris: Bibliothèque des 15
BROCOS, Modesto, Op. cit., p. 10.
Arts, 1994 16
Ibid. 11.
MASSÉ, Maria Cabrera. Modesto Brocos. Pintores 17
WINCKELMANN. Op. cit., p. 69.
Gallegos do siglo XIX. 18
BROCOS. Op. cit., p. 12.
SEVCENMKO, Nicolau. Literatura como Missão: 19
VINCI, Leonardo. Tratado da pintura (O
tensões sociais e criação cultural na Primeira Paragone). LICHTENSTEIN, Jacqueline.(org.) A
República. São Paulo: Companhia das Letras, pintura – Vol. 7: O paralelo das artes. São Paulo:
2003. Editora 34, 2005, pp. 17-27.
TAUNAY, Félix-Émile. Epítome de anatomia 20
BROCOS. Op. cit., p. 13.
relativa às bellas artes seguido de hum 21
Id., p. 13.
compêndio de physiologia das paixões e de 22
Ibid., p. 14.
algumas considerações geraes sobre 23
Ibid., p. 14,
proporções com as divisões do corpo humano; 24
Ibid., p. 15.
offerecido aos alumnos da Imperial Academia das 25
Ibid., p. 16.
Bellas Artes do Rio de Janeiro, 1837. 26
DIDEROT, Denis. Op. cit., p. 88.
VINCI, Leonardo. Tratado da pintura (O Paragone). 27
BROCOS. Op. cit., p. 16.
LICHTENSTEIN, Jacqueline.(org.) A pintura – 28
DU BOS, Jean-Baptiste. Reflexões críticas sobre
Vol.7: O paralelo das artes. São Paulo: Editora 34, a poesia e a pintura. LICHTENSTEIN, Jacqueline
2005, pp. 17-27. (org.). A pintura – Vol. 7: O paralelo das artes. São
WINCKELMANN, Johan Joachim. Reflexões Paulo: Editora 34, 2005, p. 60-73.
sobre a arte antiga. Porto Alegre: Movimento/ 29
DU BOS, Jean-Baptiste. Reflexões críticas sobre
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 1975. a poesia e a pintura. LICHTENSTEIN, Jacqueline
WINCKELMAN, J. J. – Reflexões sobre a imitação (org.). A Pintura – Vol. 7: O paralelo das artes.
das obras gregas em pintura e em escultura. São Paulo: Editora 34, p. 63.
LICHTENSTEIN, Jacqueline. A Pintura – Vol. 4: O 30
BROCOS. Op. cit., p. 17.
belo, pp. 76-84. 31
Id., p. 18.
32
INGRES. Écrits sur l’art. Paris: Bibliothèque des
Notas Arts, 1994, p. 41.
33
1 A historiadora Ana Cavalcanti em artigo faz uma
SEVCENCO. Nicolau. Literatura como Missão:
análise comparativa entre os pontos de vistas
tensões sociais e criação cultural na Primeira

234
Modesto Brocos: A Retórica dos Pintores

39
antagônicos de Eliseu Visconti e Modesto Brocos, Ibid., p. 25.
40
quanto a este aspecto. Ibid., p. 26.
34 41
BROCOS. Obra citada p. 18. Ibid., p. 28.
35 42
Ibid., p. 19. Ibid., p. 32.
36 43
Ibid., p. 21. Ibid., p. 34.
37 44
CASSOU, Jean. Situação da arte Moderna. Ibid., p. 38.
45
Lisboa: Publicações Europa-América, 1965, p. 13. Ibid., p. 40.
38
WINCKELMANN. Obra citada, p. 47.

235
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República
O tema de nossa comunicação é a crítica de arte
tal como praticada no Brasil ao tempo da chamada
Belle Époque, das duas últimas décadas do Séc.
XIX às vésperas da Semana de Arte Moderna, ou
seja, entre o ocaso do Império e a primeira
República. Não sendo possível à mingua de espaço
analisar a contribuição de todos os inúmeros
críticos ativos no período, centraremos nossas
atenções em alguns dos mais eminentes, como o
foram decerto Gonzaga Duque, Ângelo Agostini,
Félix Ferreira, Angione Costa, João do Rio, Monteiro
Lobato e os talvez menos conhecidos Flexa Ribeiro,
Virgilio Maurício e João Ribeiro Pinheiro, deixando
para uma próxima oportunidade a análise da
produção crítica de Melo Morais Filho, Oscar
Guanabarino, Escragnolle Doria, Laudelino Freire,
Nestor Rangel Pestana, Moisés Nogueira da Silva,
Terra de Sena, Torres Pastorino, Carlos Rubens,
Carlos Américo dos Santos e Tapajós Gomes, entre
outros.

De modo geral, a crítica de arte brasileira da época


era provinciana e desinformada, merecedora
decerto do sombrio diagnóstico que lhe traçou
Frederico Barata:

Àquele tempo, o que caracterizava o bom artista


era o perfeito da técnica acadêmica, por
a critica de arte da belle époque intermédio da qual revelava e afirmava a
personalidade. Destacava-se quem, dentro de
josé roberto teixeira leite * fórmulas mais ou menos rígidas, melhor se
subordinava aos cânones oficiais. Tudo era
simples e todos podiam saber o que era melhor
porque havia um padrão inalterável para o
aferimento da capacidade do pintor: o padrão
instituído entre nós pela Missão Le Breton e
aperfeiçoado com ligeiras e superficiais
variantes pelo ensino da Academia Imperial de
Belas Artes, apoiado e estimulado pelo
mecenato conservador de Dom Pedro II. Era a
época de uma sociedade que vivia com os olhos
postos em Paris, tendo na França todos os seus
ídolos pictóricos. Diante de um quadro, numa
exposição indígena, o melhor louvor seria:
parece pintura francesa -, como seria o melhor
elogio a uma senhora elegante, vestida com
roupas importadas do Velho Mundo, dizer-se:
parece uma parisiense.
Era o momento em que a crítica pontificava,
também ela padronizada, com citações de
Ruskin e de Taine e comparações eruditas entre
os nossos e os mestres do passado e do
presente da França imortal, valendo pela
erudição que demonstrava ao expor teorias
científicas de Chevreul, Veron ou Charles
Blanc, para provar que Bernardelli abusava
dos violetas e que “a sombra deve tingir-se
sempre da complementar da cor iluminada”, ou
para arrasar a bela marinha Um dia de gala, de

236
A critica de arte da Belle Époque

Castagneto, porque “a fumaça se dirige para o É certo que entre nós todos os que escrevem
fundo da paisagem, em caminho da barra, a respeito de exposições, concertos, ou
sendo o vento reinante nessa ocasião o do qualquer outra manifestação artística, se
Norte, enquanto as bandeiras de todos os acreditam críticos de arte.
navios estão tremendo à brisa do Leste”...
Na verdade, o que faltava à crítica de arte brasileira
Desmoralizada e improvisada, equiparada ao que de então, além da experiência visual apenas
de mais frívolo e superficial existia no jornalismo adquirível no convívio com grandes obras de arte
da época, assim a via ainda em começos da década de todos os tempos, gêneros e estilos, era um maior
de 1920 Flexa Ribeiro, para quem teria deixado de embasamento teórico, familiaridade com os
ser aquele problemas da Estética e da História da Arte.
Atividade quase sempre de literatos, limitava-se a
... dever sagrado que o crítico é chamado a descrever com belas palavras o assunto das obras
exercer: mas que, infelizmente, entre nós, de arte, sem nunca ir além da simples transposição
quase não existe, pois que um ou dois espíritos literária; ou então era ocupação de artistas
que dela se ocupam com devotamento, com frustrados, que se apraziam em apontar falhas de
ardor, com fé e honestidade ficam desde logo desenho, erros de anatomia etc. Houve exceções,
esmagados pela algaravia de latão e é claro – mas poucas. Nas páginas que seguem
pechisbeque com que os mocinhos dos jornais enfocaremos algumas delas, críticos e
atestam a opinião comum. Manda-se fazer, nas historiadores de arte que se destacaram no período,
folhas, o comentário do “Salão” com o mesmo a começar pelo maior de todos, Gonzaga Duque.
leviano açodamento com que se anotam, nas
seções “Sociais” e “Elegantes”, as pessoas que Gonzaga Duque (1863-1911)
se acotovelaram num baile; e o repórter que
vai entrevistar o inspetor da Alfândega sobre Filho de pai sueco que não chegou a conhecer (foi
as novas tarifas aduaneiras é o mesmo infeliz registrado pelo pai adotivo, com o sobrenome
a quem se comete o carrego de criticar, com materno), Gonzaga Duque nasceu no Rio de
gravidade, as obras de arte exibidas nas Janeiro, e a Andrade Muricy a atividade na qual se
galerias anuais, pelos infelicíssimos destacou pareceu tão apartada do gosto nacional
expositores. que o grande exegeta do Simbolismo no Brasil
pretendeu explicar por essa ascendência
Mais ou menos na mesma tecla batia Virgílio escandinava “a excepcional sensibilidade para as
Maurício, a reclamar do despreparo dos críticos e artes plásticas” cedo revelada pelo autor de A Arte
de como se improvisavam da noite para o dia: Brasileira!

- Quais os nossos críticos de arte? Em geral, o Gonzaga Duque fez estudos básicos na cidade
que se registra vive circunscrito a um círculo natal e em Petrópolis, enveredando em seguida
de simpatias ou antipatias, às amizades que pelo jornalismo para afinal ingressar no serviço
os expositores conquistaram com os diretores público, e ao falecer prematuramente em 1911
dos diários, à intimidade com este ou aquele dirigia a Biblioteca Municipal do Rio de Janeiro.
repórter, o que lhes assegura notas cheias de Embora se tivesse notabilizado como crítico de arte,
louvores, não lhes proporcionando emoção, romancista e contista, sua primeira vocação foi a
porquanto foram traçadas por quem não pintura, da qual cedo teve de se apartar pelos
entende de pintura, não conhece técnica, não motivos que expôs numa anotação feita a 4 de
viu e não tem cultura bastante para evidenciar janeiro de 1900 em seu Jornal:
a beleza de uma pasta, o traço estilístico de
uma obra, a originalidade de expressão de um - Morava eu muito longe e de mais só podia
artista, a simplicidade correta do traço, a ciência contar com um dos olhos porque a catarata
complexa dos valores. Infelizmente, a maior passava para a vista direita. A esquerda, de
parte dos que assinam artigos sobre pintura que fui operado, dificilmente deixava-me
não entende do que analisa. Para ser crítico trabalhar à noite. A cor branca do papel e a
de arte não basta apenas saber escrever bem, claridade da chama da vela (porque a minha
ser fecundo em imagens literárias, conhecer pobreza me não consentia ter uma boa lâmpada
as regras da gramática. É necessário possuir de leitura) perturbavam-me a absorção visual.
outros predicados: visão, perceptibilidade, Ao fim de uma hora de leitura eu nada mais
conhecimento técnico dos ateliês, estudo via. Os caracteres esmaeciam, tornavam-se
especial bebido nos museus, diante das indistintos; uma enorme mancha amarelada
grandes obras e cultura geral – muita cultura. cobria as folhas.

237
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

Queixa-se outra vez da perda gradual da visão recentes, não raro reformulando posições e
numa conversa com o pintor Roberto Rowley conceitos anteriores. Muito significativo, não só por
Mendes, relatada no mesmo Jornal com data de 8 se referir ao Impressionismo num momento em que
de março de 1900: pouquíssimos brasileiros tinham a mínima
informação sobre essa tendência pictórica, como
- Afinal, como Roberto me pedisse opinião pelas violentas críticas endereçadas ao ensino
sobre um valor empregado na tela e eu acadêmico e ao tipo de arte dele proveniente, é o
dificilmente o distinguisse, queixo-me de mais trecho que abaixo transcrevemos:
esta infelicidade, a perda de um excelente
órgão que tanto influiu na minha disposição - A arte de pintar está paralisada neste país,
para a crítica de belas-artes. Nasci pintor – enfezou nos cueiros. Enquanto ela, na Europa,
disse eu – creio que poucos têm possuído uma se serve de uma técnica rigorosa, possui todos
tão grande sensibilidade para a cor como eu os segredos da refração da luz, do prisma solar;
tive. Cheguei a perceber a combinação das todos os recursos da química, que lhe dão a
tintas nos mais velhos quadros. E, agora, rendo transparência das tintas, a segurança dos
graças a Deus por me não ter favorecido a valores, a límpida simplicidade dos tons, aqui
oportunidade desta profissão, porque no estado continua nos arcaicos processos onânicos da
em que me acho, se fosse pintor, suicidava- pintura friccionada, esbatida e raquítica, sem
me. nervos, sem sangue, sem alma! É uma
masturbação à blaireau.
Decerto não é o momento de traçar a biografia de - E o que pode resultar deste vício secreto
Gonzaga Duque; diremos apenas que em vida só senão a clorose desanimadora, o contágio
publicou dois livros de crítica, A Arte Brasileira, em desmoralizador que estamos observando?
1888, e Graves e Frívolos, em 1910; além disso, o Vocês vivem na Academia como se vivessem
romance Mocidade Morta, em 1899, a biografia num internato de padralhões sórdidos, sob o
Marechal Niemeyer e ainda Revoluções Brasileiras. jugo da rotina e a infecção do sodomismo,
Postumamente apareceriam os contos de Horto de bestializam-se e esgotam-se. Para cada parede
Mágoas (1914) e as críticas e crônicas de arte de que olham, em cada passo que fazem, têm um
Contemporâneos (1929) e de Impressões de um mau exemplo, uma arte sem valor técnico e
Amador (2001). Todo o vasto material aparecido sem espiritualidade. A Pinacoteca ali está,
em jornais e revistas da época e ainda inédito em reparem em suas coleções. Que pobreza! Que
livro vem sendo sistematicamente trabalhado pela impotência! Não se nota na maioria dessas
Fundação Casa de Ruy Barbosa, na qual se obras uma alma, um temperamento.
conserva o Arquivo Gonzaga Duque, ali depositado Concepções tomadas de empréstimo, ou
por seu genro, o poeta Murilo Araújo. servilmente imitadas, execução frouxa, fraca,
inútil; aí tudo é negativo, é reles ou é chato;
Considerado, ao lado de Nestor Vitor e de Rocha não afirma um talento, não constata saber. Os
Pombo, um dos expoentes máximos da prosa panejamentos tanto podem ser panos como
simbolista no país, Gonzaga Duque é autor do pedras, as carnes aproximam-se dos rabanetes
talvez único romance à clef brasileiro, Mocidade pela cor, ou das neves amorangadas dos
Morta, no qual esboçou o panorama do ambiente saraus, pela densidade. Um horror!...
artístico do Rio de Janeiro às vésperas do Séc.
XX, com seus personagens, aspirações e Num outro diálogo entre jovens artistas, o autor
frustrações. Muitos desses personagens podem ser divaga sobre a arte do futuro:
identificados: Camilo Prado, por exemplo, é o
próprio Gonzaga Duque; Agrário é Belmiro de - Toma a tua palheta, vai para a natureza,
Almeida; há traços de vários figurões artísticos de estuda-a, observa, resolve, esmiúça, procura
começos da República, mas principalmente de bela o que ela há de ter unicamente para a tua
Pedro Américo, na figura de Telésforo de Andrade, visualidade, fixa esta nota, desenvolve-a, vive
enquanto sob as roupagens de Sabino esconde- para ela, dá-lhe a tua alma...
se Isaltino Barbosa, há algo de Castagneto em - E depois?
Sforzani e Cesário Rios é o escultor Almeida Reis. - Depois, terás conseguido a tua arte, nota bem
Todos são artistas insatisfeitos ou revoltados, – a tua arte! – e outros virão fazer com a mesma
incompreendidos por um meio ao qual devotavam independência, animados pelo exemplo
por sua vez profundo desdém. Por suas bocas, triunfante do teu lutar. Depois cairão os
Gonzaga Duque externa suas próprias convicções estafados preceitos do academicismo, o
estéticas, algumas já enunciadas mais de dez anos sistema métrico das concepções guiadas, os
antes em A Arte Brasileira, mas a maior parte

238
A critica de arte da Belle Époque

dogmas estéticos do ensino oficial. Aí tens tu, Essa obediência servil à realidade motivaria aliás
é o início da revolução com que sonho... ao jovem crítico algumas de suas páginas menos
felizes. Exemplos:
Voltemo-nos porém para os livros especificamente
de crítica de arte que Gonzaga Duque deixou. O - A expressão desta figura não tem verdade.
mais antigo, A Arte Brasileira, escrito aos 23 anos Um caçador que passa por uma impressão
e publicado aos 25, impressiona pela precocidade como aquela, não olha para o céu, admira
do autor e por sua invulgar cultura livresca, curiosamente a descoberta feita por acaso. O
evidenciada por abundantes citações a Oliveira movimento dos cães que se estorcem, latindo,
Martins, Taine, Theodore Silvestre, Charles Blanc, escaldados pela temperatura das águas
Fromentin, Veron, Claretie, Gigoux, Planche, termais, é bem precisado; e o busto do pajem
Chesneau e inúmeros outros. Mas o que dá encanto que está acocorado no segundo plano revela
especial a algumas páginas, como as que dedica não vulgares conhecimentos de anatomia das
a Castagneto ou a Belmiro de Almeida, é que formas.
Gonzaga Duque privou da intimidade de muitos dos - A espádua e o braço esquerdos, a saliência
artistas cuja obra comenta. do músculo deltóide, o comprido supinador,
toda a contração do pulso e mão deste braço,
Como um todo, A Arte Brasileira é obra de são admiravelmente observados.
inspiração taineana, o que se percebe já no primeiro - A figura de Dom Pedro é poseuse e acha-se
capítulo, “Causas”, que fecha com uma citação da mal montada, gravidade esta que aumenta
Philosophie de l´Art dans les Pays-Bas, e fica ainda diante da grande reputação de perfeito
mais nítido quando, ao tratar da arte de Henrique cavaleiro de que gozava o primeiro monarca.
Bernardelli, o autor afirma que “para se - A cabeça de Sertório, como ali se vê, é vulgar
compreender uma obra de arte é necessário e até feia. O seu tipo não indica uma
compreender o meio em que esta nasce”; aliás, a personagem que tanta importância teve na
própria estrutura geral do livro em quatro grandes guerra da Espanha. É uma figura risonha,
seções – “Causas”, “Manifestação”, “Progresso” e raquítica, cabeça chata, cabelos à escovinha,
“Conclusão” – deve-se decerto a Taine, como barba aparada à moderna. Não sei em que
também a Comte. documento histórico o artista estribou-se para
fazer do simpático personagem um ente tão
A crítica de Gonzaga Duque, nesse seu livro da feio.
mocidade (que de modo geral persegue a trilha
aberta poucos anos antes por Félix Ferreira, como Por vezes a crítica acadêmica cede vez à crítica
veremos mais adiante), baseia-se no velho critério de ateliê, já que para o pintor que Gonzaga Duque
da semelhança, segundo o qual as obras devem também era, a cozinha pictórica parece não ter tido
guardar estreita semelhança com o modelo de que segredos:
se originam. Assim, ao se referir às naturezas-
mortas de Estevão Silva, ele não encontra elogio - O verde azulado, talvez azul da Prússia e um
maior do que dizer: pouco de ocre, que se lhes nota, predomina
em todas as folhas; a luz, cujo foco não é
- Os seus pêssegos são na forma, na cor, na precisado, uniformiza todos os tons, confunde
penugem macia e alourada que os reveste, o valor e as complementarias, obscurece os
verdadeiros pêssegos; sente-se nas mangas efeitos do claro-escuro.
por ele pintadas o olor penetrante e delicado - A cor é quente, quase sempre exata, bem
desses frutos saborosíssimos; não é possível observada; o desenho minucioso em todos os
que haja cor mais exata, desenho mais preciso, detalhes, as perspectivas felizmente
do que a cor e o desenho desses abacaxis que desenvolvidas, em suma, as suas obras são
se vêm em suas telas, entre os mais frescos, concluídas com máximo rigor.
os mais sazonados cambucás, abacates e
laranjas. Que excelentes uvas, que doces A Batalha de Campo Grande, a Fuga para o Egito,
araçás, que gostosos frutos, estes que ele o Último Tamoio e tantas outras obras notáveis
imita. Ali está a fidelidade, está a realidade, e servem-lhe de pretexto para minuciosas descrições
quando o artista consegue nos iludir literárias, repletas de preocupações historicistas.
perfeitamente, quando consegue passar para Assim, para demonstrar que Pedro Américo
a tela o que vê e o que sente na natureza, tem equivocou-se ao representar Joana d´Arc como se
conseguido tudo. fora um personagem bíblico – “incorrendo em falta
gravíssima, porque praticou um crime contra a
probidade histórica” -, alonga-se por três páginas,

239
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

citando as opiniões de Martin, Lock, Laturneau e Mais vivido, mais mundano, reinando absoluto nos
outros para concluir ter ela sido “uma pobre rapariga círculos artísticos da capital da República de
alucinada, vítima de uma erecção cerebral, e de começos do Séc. XX, Gonzaga Duque põe de lado
uma excepcional organização física”! a crítica “ensobrecasacada, circunspecta e
doutoral” para adotar atitude menos rígida. E
São, os seus, defeitos também da época. De embora por vezes ainda o incomode a anatomia
qualquer modo, A Arte Brasileira, se possui o mérito das figuras de um Artur Timóteo, por exemplo, ele
de revelar pela primeira vez em visão panorâmica dá-se agora o direito de intercalar em seu discurso
a produção artística nacional dos primórdios a 1888, crítico a descrição de uma “esvelta senhora” com
é livro prejudicado pelos próprios preconceitos de que se depara ao visitar o Salão de 1906:
seu jovem autor; aliás, o próprio Gonzaga Duque
anos mais tarde se aperceberia da fragilidade da - Ah!... Percebo que se me foi o bom humor
maioria dos argumentos e conceitos que depois que aquela formosa dama de lindos
empregara na mocidade, e até prometia uma nova olhos partiu. E quem seria?... Ora, que me
edição aumentada e decerto revista do trabalho de importa saber quem seria tão donairosa dama!
estréia, o que a morte não permitiu realizasse. Uma deusa, talvez, descida à terra para dar a
um pobre mortal, arruinado e tristes, a alegria
Em Graves e Frívolos, de 1910, e em necessária à sua penosa missão... De qualquer
Contemporâneos, publicado postumamente, forma, verdadeira ou imaginária, deusa ou
desaparecem o tom dogmático e mesmo a rabujice. simples madame três estrelinhas, de qualquer
A frase sai-lhe sempre elegante ou graciosa, e ao forma, uma linda mulher! Isto basta.
academicismo ranheta da primeira fase sucede um
impressionismo bem mais do agrado dos leitores. Quando externa sua admiração por Dame à la
As citações continuam abundantes – agora a Rose, de Belmiro, é em termos galantes que o faz:
Ruskin, Langel, Arrest e outros hoje esquecidos;
mas a linguagem tende a assumir forma poética, - A linha esguia deste corpito, vestindo tecidos
às vezes nefelibata. É o simbolista, mais do que o negros, move-se numa graça serpentina e tão
crítico, quem assim descreve as Oréades de nervosa e magra ela é que lembra uma tulipa
Visconti: negra! Sobre a fragilidade do pescocinho a
cabeça volve-se para nos sorrir – descobre-
- Oréades – chamavam-se as ninfas dos se-lhe, então, a insídia do olhar que nos
montes e dos bosques, na suntuosa e fecunda fascina, a feitiçaria do sorriso que nos
mitologia. Por declínio das tardes, ainda sob o entontece. É uma viva figura, uma admirável
derramo de ouro polvilhado do sol, elas surgiam figura que, entusiasmando Policarpo, lhe
de encantados esconderijos, aos tabefes nas arranca da originalidade esta frase, em que está
panderolas e sons de avenas, para a ronda caracterizado todo o exquis do modelo: Bizarro
saltitante de enamorados, às mãos dos zagais louva-deus da moda!
mancebos. E, na cadência das danças, lá se
iam por meandros de vales e touças de montes, Julio Castañon Guimarães observou que o título
entre descantes e voleios, numa folgada Graves e Frívolos do livro de 1910 pode derivar de
seranda de rapazio gárrulo... um trecho de Memórias Póstumas de Brás Cubas,
de Machado de Assis, no qual o personagem dirige
Volta e meia as frases soam pedantes, quando não ao leitor estas palavras: ‘Acresce que a gente frívola
ameaçam transformar-se numa algaravia achará no livro umas aparências de puro romance,
incompreensível – como nesse trecho, em que trata ao passo que a gente frívola não achará nele o seu
de uma obra de Hélios Seelinger: “Não é que ela romance usual; ei-lo aí fica privado da estima dos
se force nos ambages de exotismos pasmadores, graves e do amor dos frívolos, que são as duas
que deliciam o snob nas bizarrices crespas do seu colunas máximas da opinião”.
guindado gosto à des Esseintes postiços, e
estupidificam ainda mais, se é possível o máximo, Por sua vez, para Massaud Moisés o título revela
os farsantes do amadorismo que se empavesam e “o inconsciente desejo do autor de pousar em
repimpam com o xairel da nobiliarquia... temas alguns graves, outros frívolos, sem maior
compromisso senão com a beleza da forma” –
Ou então neste outro, em que analisa um retrato compromisso que irá caracterizar a segunda fase
pintado por Presciliano Silva: ¨O tipo parece da crítica de Gonzaga Duque, aquela que seria a
kodaquisado. “É um manso pastrano feito de mais típica do autor, e também a mais reveladora
abegão ou de arrais, de cara anfrata, das preocupações e anseios do 1900 pictórico
escarafunchada e estúpida”. brasileiro.

240
A critica de arte da Belle Époque

Precursores, Contemporâneos e Retardatários Idêntica ironia perpassa por seus escritos, como
nesse trecho de um artigo publicado na mesma
Sem terem desfrutado do prestígio de Gonzaga Revista Ilustrada de 10 de maio, com críticas a Vitor
Duque, muitos antes dele, quando vivia ou após Meireles e à sua Batalha dos Guararapes:
sua morte foram os que trataram de exposições e
outros assuntos de arte na imprensa, quando não - Quem percorre os Fastos de Napoleão, ou
publicando livros. Detenhamo-nos brevemente no outra coleção qualquer de quadros de batalha,
exame de alguns deles. encontrará muita figura parecida com as da
Batalha de Guararapes; e no entanto há
Ângelo Agostini (1843-1910) defeitos muito salientes neste quadro: o chão
está asseado como se a empresa Gary tivesse
Para muitos o maior caricaturista brasileiro do Séc. varrido e irrigado na véspera; as fardas estão
XIX, nascido embora na Itália, Ângelo Agostini escovadas e sopradas, que fazem a inveja dos
nunca se arvorou em crítico de arte, o que não o nossos oficiais que vão ao beija-mão; o cavalo
impediu de publicar textos críticos nos periódicos de Vidal de Negreiros, brunido e lustroso como
em que colaborou, como a Vida Fluminense e um bagre recém-pescado, parece copiado de
mormente a Revista Ilustrada, que fundou e dirigiu um cavalinho de pau. Há figuras em posições
entre 1876 e 1889. Por outro lado, e admitindo que realmente cômicas: no primeiro plano um
uma imagem vale por mil palavras, não deixam de holandês de quatro pés, parece na atitude
constituir um tipo sui-generis de crítica de arte as espectante de algum medicamento que não se
caricaturas, ou comentários gráficos satíricos toma pela boca, e o holandês, ao lado, com a
(como as definiu Alvarus), que publicou a partir de mão cerrada e erguida como quem tem desejo
1879, analisando obra a obra, por vezes em de dar um murro na cabeça do outro para não
sucessivas edições da Revista, os envios às ser tolo; à direita do espectador, um índio com
Exposições Gerais de Belas Artes, pondo a nu o cabelo todo voltado para o lado, como os
defeitos de composição, anatomia, proporção, carecas que levam o cabelo da nuca até a testa,
perspectiva, desenho etc., tudo com uma ergue a perna procurando aliviar não a dor do
segurança reveladora de largo tirocínio e bons ferimento, mas algum incômodo do ventre; o
conhecimentos técnicos. Sofreram dessa maneira grupo do tambor que parece duvidar se aquilo
sob o cutelo de sua impiedosa ironia pintores como é mesmo uma batalha ou um encontro feliz dos
Zeferino da Costa, Amoedo, José Maria de heróis daquela época; e à esquerda do
Medeiros, Vítor Meireles, Pedro Américo e dezenas espectador, um holandês junto dos pretinhos,
de outros. A caricatura da Joana d´Arc, de Pedro que abre os braços e olha muito admirado para
Américo, exposta no Salão de 1884, trazia por as calças amarelas cheias de sangue, como
exemplo a seguinte legenda: “Ouve uma voz que quem exclama: - Diabos!... Esses moleques
lhe prediz seu fatal destino. Terás uns olhos que não me sujaram as calças! E todas essas
não caberão na tua cabeça e serás pintada pelo figuras, analisadas conforme o assunto do
professor Pedro Américo de Figueiredo e Melo... quadro, não parecem contrariadas por se
Joana aterrada e com os olhos a saltarem da acharem ali reunidas? O Sr. Vítor Meireles pinta
cabeça cai ajoelhada. É o momento escolhido pelo uma figura de pernas abertas, e pensa que
pintor”... desenha um homem a correr; mas não há
movimento, não há animação, e todos os seus
Os mais ferinos comentários gráficos de Agostini
personagens, frios, calmos, parecem doidos por
seriam porém os que dedicou à Batalha do Avaí e
deixarem a incômoda posição em que foram
à Batalha dos Guararapes, exibidas lado a lado na
pintados.
Exposição de 1879. No primeiro, publicado a 25
de abril desse ano, soldados e cavaleiros da Felix Ferreira (1848-1898)
Batalha do Avaí emigram da agitada composição
de Pedro Américo para a morna Batalha dos Nascido e falecido no Rio de Janeiro, Félix Ferreira
Guararapes de Vítor Meireles, na vã tentativa de foi escritor, jornalista, bibliófilo, funcionário da
torná-la mais animada; no segundo, de 10 de maio, Biblioteca Nacional e dono de livraria. Autor de
encarapitados em escadas ou pendurados em comédias em verso, romances, biografias, livros
andaimes, oito pintores se incumbem da execução didáticos e ainda de outros livros, sua importância
da Batalha do Avaí (uma alusão a Horace Vernet, para a crítica de arte brasileira reside no fato de ter
Gustave Doré e outros artistas que Pedro Américo publicado em começos de 1885 Belas Artes –
teria plagiado), vendo-se o próprio Pedro Américo Estudos e Apreciações, obra na qual, apesar do
a um canto, escrevendo, sentado a uma mesa e juízo severo e certamente injusto com que a
rodeado de livros... fulminou Sílvio Romero na História da Literatura

241
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

Brasileira – “ultimamente apareceram uns Estudos alguns defeitos, é verdade, mas tem belezas,
sobre Belas Artes do Sr. Felix Félix Ferreira. São principalmente de colorido” – e posa de moralista
despidos de merecimento do ponto de vista crítico ao analisar o envio de Rodolfo Amoedo à grande
e histórico” -, possui méritos, inclusive o da exposição de 1884: “... o Sr. Rodolfo Amoedo, com
precedência, uma vez que antecipou em três anos o Sacrifício de Abel, em que vai melhor que nas
o aparecimento do tão mais conhecido A Arte mulheres nuas que deu agora para fazer, para pasto
Brasileira, de Gonzaga Duque – que bem pode ter dos olhos naturalistas e com prejuízo de seus
nele encontrado motivação. progressos artísticos”.

Belas Artes divide-se em quatro partes, sendo a Alguns trechos de seu livro revestem-se por outro
primeira uma síntese histórica da arte ocidental, e lado de valor inestimável – como o em que
a última um perfil de Bethencourt da Silva. As descreve, melhor dizendo, recria o ateliê de Aurélio
segunda e terceira partes nos importam mais, de Figueiredo, ou a minuciosa análise que faz da
porque reúnem comentários sobre seis exposições Exposição Geral de Belas Artes de 1884, artista
realizadas em 1882 e 1883 – a do Liceu de Artes e por artista e quase obra por obra.
Ofícios e as de Almeida Júnior, Arsênio Silva,
Aurélio de Figueiredo, Firmino Monteiro e Vítor Angione Costa (1878-1954)
Meireles -, e uma análise minuciosa da Exposição
Geral de Belas Artes de 1884, última do Império. Arqueólogo, jornalista e professor no Museu
Histórico Nacional, o potiguar João Angione Costa
Mesmo sem se considerar crítico de arte (“não fez seus estudos no Pará antes de se radicar no
tendo estas páginas pretensões a crítica de arte, Rio de Janeiro, onde faleceu. A justificativa para a
que é coisa difícil e requer competência que me sua inclusão na presente comunicação é o livro A
falece, aqui darei apenas as minhas impressões, Inquietação das Abelhas, que publicou em 1927 e
unicamente do ponto de vista em que apreciei os no qual recolheu o que pensavam e diziam alguns
quadros”), não deixa Félix Ferreira de externar dos principais pintores, escultores e arquitetos do
juízos críticos sobre exposições, artistas e momento. Talvez remotamente inspirada por O
tendências, quase sempre se limitando a extensas Momento Literário, de João do Rio, A Inquietação
descrições literárias de pinturas como o Combate das Abelhas principia por longa introdução na qual
Naval do Riachuelo ou Francesca da Rimini. Por o autor emite opiniões nem sempre favoráveis
vezes devaneia, como quando descreve Um sobre alguns dos mais festejados artistas da época,
cantinho de ateliê, de Almeida Júnior: revelando-se um não-conformista, aberto às
tendências de renovação que já então sacudiam o
- A figura da moça é muito natural, bem país. Escreve por exemplo sobre Pedro
desenhada e delicadamente colorida; a sua Alexandrino:
presença na sala de trabalho do pintor desperta
uma lembrança poética, que interessa o - O mais justo conceito que a sua arte pode
contemplador, a de um segredo revelado talvez inspirar à nossa crítica, é que, a sua fábrica de
na hora da partida, uma doce lembrança desses artefatos, tachos e metais, se mantém a mais
dourados sonhos que povoam abundantemente variada e perfeita, da pintura nacional. As suas
a mocidade dos artistas e poetas, esses naturezas-mortas continuam a dar bons preços
eternos boêmios das floridas regiões do amor no mercado, embora o mestre já se haja
e da fantasia... habituado a truques normais para conseguir
determinados efeitos, especialmente quando
Tal como o Gonzaga Duque da primeira fase, dá pinta metais.
fundamental importância à correção anatômica –
“a musculatura dos braços parece-nos boa, outro Não menos contundente é sua opinião acerca de
tanto não diremos do tronco”, escreve sobre o São algumas glórias nacionais:
Sebastião de Chaves Pinheiro), parece identificar
como “impressionismo” qualquer coisa mal - Desse grupo notável de pintores vivos da mais
acabada, apressada ou incompleta – “tudo ali é velha geração brasileira, é possível tentar,
tratado com um cuidado que revela um artista numa síntese, o quadro comparativo seguinte:
consciencioso, e não desses que, sob o pretexto Rodolfo Amoedo é a decadência; Pedro
de impressionismo, escondem no apressado do Alexandrino, banalizou-se; Bernardelli e
esboço a insciência do bem acabar” (sobre Pendant Parreiras, pararam; Visconti, o mais avançado
le Repos, de Almeida Júnior), limita com freqüência de todos, e sensivelmente mais moço que os
seus juízos de valor ao mero gosto/não gosto das outros, se atira a uma luta formidável, para não
apreciações subjetivas – “Partida de Jacob tem

242
A critica de arte da Belle Époque

desmerecer das conquistas de poucos anos elefantíases mal-esculpidas”, confessando-se


atrás. porém perturbado ante os Passos da Paixão
(“essas figuras causam alucinações... uma
Só mais um exemplo: sensação mórbida que me faz apressar a saída”).
Espírito predisposto ao novo, seu corajoso discurso
- Perdoe-nos, Dona Georgina. Mas de posse na Academia Brasileira de Letras (na qual
desejaríamos vê-la preocupar-se menos com ingressou com menos de 30 anos), perante uma
os efeitos de luz sobre as formas femininas e platéia que incluía Rui Barbosa, Bilac, Coelho Neto
empregar o seu magnífico talento em e outras celebridades nada propensas a novidades,
composições de maior responsabilidade, que foi o de um pré-modernista, alguém certamente a
não constituam variações do eterno tema da par das idéias expostas por Marinetti no Manifesto
moça deitada, casta e ingênua, ao sol. Há de Futurista, publicado em Paris poucos meses antes:
confessar que o seu talento pode produzir muito
mais. A paisagem com a vegetação dos canos das
usinas, as sombras fugitivas dos aeroplanos,
Inversamente, não esconde sua admiração por um a disparada dos automóveis, os oceanos
pintor nada convencional, como o era então desventrados pelos submarinos obrigam o
Henrique Cavalleiro, em quem reconhece “o mais artista a sentir e ver d´outro feitio, amar d´outra
moderno, o mais forte, o mais acertado artista das forma, reproduzir d´outra maneira... A aspiração
novas gerações brasileiras”. dos artistas novos seria a de fixar através da
própria personalidade o grande momento de
João do Rio (1881-1921)
transformação social de sua pátria na maravilha
Gordo, mulato, homossexual, protagonista de da vida contemporânea; a de refletir a
rumoroso caso de amor protagonizado com vertiginosa ânsia de progresso; a de gravar o
ninguém menos do que Isadora Duncan, venal e instante em que os velhos sonhos afundam,
destemido, feminista e anti-burguês, autor de livros com todas as superstições de outrora, inclusive
que em sua época representaram uma drástica a da moral, na eclosão de uma vida frenética e
ruptura com a mesmice literária e que se admirável.
chamaram, entre outros, A Alma Encantadora das
E tudo isso, veja-se bem, onze anos e meio antes
Ruas ou As Religiões do Rio, o escritor e jornalista
da Semana de Arte Moderna, mais precisamente
carioca João do Rio (pseudônimo de Paulo Barreto)
em começos de agosto de 1910!
praticou no início da carreira a crítica de arte,
assinando-se então Claude, pseudônimo aliás Monteiro Lobato (1882-1947)
tomado de empréstimo a Zola. Foi crítico rigoroso,
que em seus comentários às Exposições Gerais O grande escritor pré-modernista, que foi pintor e
de Belas Artes de 1899 a 1901, publicados em A desenhista amador e ainda em 1935 freqüentava
Cidade do Rio, O Dia e Ateneida, desanca com as aulas de modelo vivo de Wasth Rodrigues,
desassombro nomes consagrados, como Amoedo, firmou sua reputação graças aos artigos polêmicos
Henrique Bernardelli ou Belmiro de Almeida, arrasa que publicava na imprensa paulistana sobre os
a crítica de arte de seu tempo, que define como mais diversos temas, entre eles, de modo especial,
“hilariante”, “retórica mofada”, “feita de senhores a as artes plásticas, sua primeira vocação. Quer
quem em primeiro lugar falta o imprescindível senso comentando salões e exposições, quer externando
estético”, e por outro lado apóia com decisão com objetividade e em linguagem sarcástica e não
artistas como Visconti e Seelinger, nos quais raro contundente pontos de vista originais sobre o
destaca as inclinações para o Simbolismo e o Art ambiente artístico e a política das artes no estado
Nouveau. e no país, Lobato estava fadado a ser, como foi, o
mais representativo crítico de arte de São Paulo
Teve olhos e sensibilidade para perceber a pintura nas duas primeiras décadas do Sé. XX.
das ruas – título de um dos deliciosos capítulos de
A Alma Encantadora das Ruas, no qual louva “os Seu primeiro artigo sobre tema de arte – “Alvorada
pintores da rua, os heróis da tabuleta, os artistas de uma Artista”, sobre Georgina de Andrade, depois
da arte prática”, humildes decoradores de “bodegas Georgina de Albuquerque – apareceu em 1905
reles, lugares bizarros, botequins inconcebíveis”. ainda no Jornal de Taubaté; exatos dez anos
Numa viagem a Minas, esteve em Congonhas e transcorreriam antes de que publicasse o segundo,
viu os Doze Profetas do Aleijadinho, que lhe “A Caricatura no Brasil”, já agora em O Estado de
pareceram “detestáveis, olhando o povaréu com o S. Paulo; de então por diante, nesse jornal e
olhar zangado, por cima de um nariz enorme... principalmente na Revista do Brasil, fundada em

243
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

1916, suceder-se-iam até fins de 1922, a intervalos, brasileiros, que no seu entender “continuam de
umas poucas dezenas de textos nos quais expunha boca aberta esperando as senhas de Paris”:
e defendia com veemência suas idéias acerca de
uma arte nacional brasileira, pautada pelo - Até aqui, em matéria de arte nacional, não
naturalismo e livre o mais possível de influências fomos além da paisagenzinha, da banana ao
estrangeiras, como se pode observar por esse tacho e do caipira picando fumo. O pintor,
trecho de um artigo de fins de 1916: esgotados esses três temas geniais, olhava em
torno e, nada mais enxergando condigno das
- A pintura brasileira só deixará de ser um suas broxas, fazia delas gancho e se pinha com
pastiche sem valor, um mambembe pó senões, a máxima seriedade – seriedade de chimpanzé
quando se compenetrar que é mister – a pescar faunos, e sátiros e ninfas da Grécia,
compreender a terra para bem interpretá-la. Foi ou a pilhar cenas da Bretanha. Imitavam nisso
esta compreensão da terra que possibilitou o os poetas parnasianos (que o são porque o
surto das escolas holandesa e flamenga até parnasianismo esteve em uso na lua – a lua
esses cimos Rembrandt e Rubens. Wasth deles também é Paris); os quais poetas, depois
Rodrigues tem a alma aberta a estas luzes. de bem ostrados numa repartição pública,
Compreende o erro e vê o caminho. Vai deixar armam botica de ourives ao pé da Acrópole e
o ateliê constrictor pela única oficina donde despendem os ócios a polir e repolir Frinéias,
saem os grandes artistas: o ar livre, o campo, Laíses, Corinas e toda a rua Ipiranga do século
a mata, a roça. No dia em que as demais de Péricles.
vocações artísticas embicarem pela mesma
senda, teremos pintura. Até lá teremos uns Infelizmente, porque baseando seus juízos
produtos muitíssimo lógicos da irrisória estética estéticos no naturalismo e na concepção de uma
oficial – cadinho de verter para o francês o que arte nacional, Lobato – que como se percebe não
é por essência intraduzível. pode ser considerado propriamente um crítico
conservador ou acadêmico – muita vez identificou
Na mesma tecla de uma arte nacional, naturalista em artistas discretos, como seu próprio mestre
mas não propriamente acadêmica batia Lobato em Wasth Rodrigues, as sementes da nova arte
dois ensaios publicados na Revista do Brasil em brasileira, ao mesmo tempo em que não teve olhos
fins de 1916 e começos de 1917, respectivamente para ver a renovação que representava uma artista
sobre Pedro Américo e Almeida Júnior, enfatizando como Anita Malfatti, sobre cujo envio à citada
a importância da “arte que olha em derredor de si Exposição do Saci assim escrevia em novembro
e toma homens e coisas como os vê e sente, dando de 1917, por conseguinte um mês exato antes do
de ombros aos sobrecenhos carregados e aos ares desastrado artigo “A propósito da Exposição
de desprezo dos bonzos empoados do passado”, Malfatti”:
ao mesmo tempo em que explicava o que a seu
ver inferiorizava o pintor paraibano: “Pedro Américo - A Sra. Malfatti também deu sua contribuição
não era brasileiro, ou melhor, brasílico. Tinha a alma em ismo. Um viandante e o seu cavalo, em
condoreira dos para quem a pátria é o mundo. pacato jornadear por uma estrada vermelha,
Dessa feição psíquica resultou o tornar-se com o degringolam-se numa crise de terror ao
tempo o maior dos pintores brasileiros e o menos deparar-se-lhes pendente duma vara de bambu
brasílico dos nossos pintores”. uma coisa do outro mundo. Degringola-se o
cavaleiro, degringola-se o cavalo, tentando
Quanto a Almeida Júnior, representa, inversamente, arrancar-se do pescoço, o qual estira-se longo
“uma coisa nova”, o ponto de partida de uma pintura como feito da melhor borracha do Para. Gênero
nacional, que era, no seu entender... o naturalismo: degringolismo. Como todos os quadros do
“ A madrugada do dia seguinte raia com Almeida gênero ismo, cubismo, futurismo,
Júnior. Ele conduz pelas mãos uma coisa nova, e impressionismo, marinetismo, está hos-
verdadeira, o naturalismo. Exerce entre nós a concours. Não cabe à crítica falar dele porque
missão de Courbet na França. Pinta não o homem, não o entende: a crítica neste pormenor corre
mas um homem – o filho da terra, e cria com isso parelhas com o público que também não
a pintura nacional em contraposição à internacional, entende. É de crer que os artistas autores
dominante até aí.”. entendam-nos tanto como a crítica e o público.
Em meio deste não entendimento geral é de
Por ocasião da Exposição do Saci, por ele bom aviso tirar o chapéu e passar adiante.
organizada em outubro de 1917, Lobato publica,
em O Estado de S. Paulo, artigo no qual critica Flexa Ribeiro (1884-1971)
com a mordacidade de sempre os artistas

244
A critica de arte da Belle Époque

José Pinto Flexa Ribeiro foi poeta simbolista, – eis aí as duas atividades inerentes,
historiador e crítico de arte, professor e colaborador consubstanciais de um julgamento dessa
de Ilustração Brasileira, O Malho, Jornal do natureza. Um só desses fatores é impotente
Comércio e Correio da Manhã, no Rio de Janeiro, para gerar a nova forma de conhecimento. O
do Correio Paulistano em São Paulo e de La Prensa crítico de arte não é o que prefere; é o que
em Buenos Aires. Tendo concluído seus estudos compreende; e aqui compreender – é criar. Ele
em Paris, tornou-se em 1918 catedrático de História precisa sentir o pensamento, e raciocinar as
da Arte da Escola Nacional de Belas Artes, com a emoções. Só do jogo dessas faculdades, e do
tese Rubens e os Flamengos. Na ENBA lecionou conhecimento direto da técnica, resultará,
até 1954, quando se aposentou, após tê-la dirigido verdadeiramente, a aptidão predestinada a tão
de 1948 a 1952. Além de grande número de artigos elevado ofício.
na imprensa sobre Rodolfo e Henrique Bernardelli,
Zeferino da Costa, Pedro Américo, Rosalvo Ribeiro, Virgílio Maurício (1892-1937)
Marques Júnior e tantos outros, publicou em 1925
o volume de ensaios O Imaginário – Pretextos de Virgílio Maurício era o nome artístico do alagoano
Arte, e a partir de 1962 os quatro alentados tomos Vitor Maurício da Costa, pivô de um escândalo que
de uma História Crítica da Arte. sacudiu na década de 1920 os meios artísticos do
Rio de Janeiro: dizia-se que não pintava os quadros
Dentre seus livros, O Imaginário é o que mais revela que ostentavam seu nome, simplesmente os
quanto às suas concepções estéticas, adquiria em Paris, moço rico que era, e lhes apunha
fundamentadas no Simbolismo. Enfeixa, ao lado a própria assinatura. Nunca ficou cabalmente
de ensaios mais extensos sobre temas gerais, comprovado serem ou não de Virgílio Maurício as
como “Dois Intérpretes Plásticos de Dante”, “A pinturas que apresentava como suas, e nem hoje
Pintura na Época de Napoleão”, ‘Renovação da isso tem muita importância. Importância tem, isso
Técnica Escultural” ou “A Estética do Cubismo” sim, sua atuação como crítico de arte,
(“uma terrível doença de feiúra na arte francesa, e consubstanciada em livros como Algumas Figuras
que já passou”), pequenos textos de teor jornalístico e Outras Figuras, e nos muitos artigos ainda
alusivos a acontecimentos da vida cultural do Rio dispersos em jornais. Assim, foi dos primeiros
de Janeiro – uma encenação de Pélleas et entusiastas da obra do Aleijadinho (que em 1925
Mélisande em 1920, a presença de Isadora Duncan ainda estava longe de ser uma unanimidade
na cidade, a morte de Alberto Nepomuceno, uma nacional), e percebeu e defendeu com lucidez e
exposição de arte japonesa em 1921 -, quando não vigor a modernidade da obra de Henrique
a eventos internacionais, como as mortes de Renoir Cavalleiro, Hélios Seelinger ou Artur Timóteo, que
e Jean-Paul Laurens, a dispersão num leilão preferia às “figuras desarticuladas e sem volume
parisiense do Ateliê Carrière ou o sensacional furto do Sr. Guttmann Bicho”, aos “cromos coloridos do
da Gioconda. Fecham o livro dois ensaios sobre Sr. Teodoro Braga”, à “eterna reprodução de
crítica de arte, o primeiro sobre Eugene Fromentin, trabalhos anteriores que o Sr. Batista da Costa
cujo centenário então transcorria, e o segundo, “Da assina” ou aos “bonecos insignificantes do Sr.
Crítica Nacional”. É no texto sobre Fromentin que Bracet”. Essa independência do crítico, aliada à
Flexa Ribeiro expõe seus próprios conceitos sobre sua homossexualidade, pode explicar ao menos
o que deva ser a crítica de arte: em parte a grande animosidade que contra ele se
levantou. Aberto às novas tendências, foi dos
- A crítica de arte exige, além do dom primeiros a perceber a qualidade da pintura do
providencial, larga aptidão, específica, certeza então desconhecido Alfredo Volpi, sobre quem
instintiva no surpreender a beleza, uma espécie publicou em 1935 em O Imparcial essas palavras,
de perpétua adivinhação dos instintos reveladoras de sua acuidade crítica:
revelados. Não basta a cultura: é necessário
uma copiosa educação visual. Nela o - Desde ontem procuro uma frase, uma
conhecimento lógico não é bastante; não expressão, uma palavra que possa definir,
satisfaz; o intuitivo, que logo se relaciona com sintetizar minha impressão ao defrontar-me com
a imaginação, é indispensável; é insubstituível. os trabalhos do Sr. Volpi. Nunca pensei em
A crítica de arte é uma criação raciocinada. Ela encontrar em São Paulo um pintor de tão altos
procede por uma análise do sentimento, que recursos técnicos e de tão acentuada
se deve concluir por síntese do pensamento. personalidade. É uma das organizações mais
Sentir a minúcia – no modelado, na cor, e ricas que tenho encontrado.
apreender – na linha e no volume – a relação
de universalidade, de correspondência mental João Ribeiro Pinheiro (?-1935)

245
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

Romancista, poeta e historiador, coube a João objeto que termina para sua impressão ou
Pinheiro Ribeiro publicar em 1931 uma História da sugestão, um quadro que realize
Arte Brasileira. Obra de inspiração anti-acadêmica espiritualmente para ele um perpétuo status
e nacionalista, nela o autor – que não esconde suas nascens. Qualquer outra forma de pintura,
simpatias pelo Modernismo – enfoca com contornada e acabadinha, por maiores que
originalidade a pintura brasileira tanto antiga quanto sejam as suas restantes virtudes, dão a
contemporânea, não poupando aquela e impressão de um objeto mumificado e
procurando imprimir rumo ou sentido a essa. Já pretérito.
na “Orientação” com que se abre o livro, explica:
Quando tenta porém passar da teoria à prática,
- Tratando-se de um ensaio, onde procuro dar João Ribeiro Pinheiro revela-se impotente em
uma idéia do que tem sido e do que pode ser a enquadrar a produção de nossos pintores nos
pintura brasileira, e não propriamente de um estreitos limites de seus conceitos: fulmina
catálogo com biografias, não acho que valha a velhos mestres, como Vítor Meireles (“acho
pena analisar os inúmeros cavalheiros, mais ou deplorável, como pintura, a sua Batalha dos
menos anônimos, que encheram por tantos anos Guararapes, que lembra em nossos dias, século
as paredes do nosso salão anual em pura perda. do cinema, uma visão de bonecos numa fase de
A galeria Uffizi tem 14.000 quadros; há italianos câmera lenta”), comete erros grosseiros de
em todos os trajes, barões em todas as vestes, avaliação (“os negros não trouxeram maior lastro
pierrôs com todas as máscaras, espanholas artístico para a nossa civilização”), nega
dançando em todos os passos, enfim, a vida da qualidade às marinhas de Castagneto porque
Europa perpassa ali mumificada em duas esse artista estaria a seu ver “muito longe do
dimensões. Não é preciso, pois, relembrar a obra sentido brasileiro subjetivo das marinhas
inútil dos cavalheiros que entre nós continuaram nossas”, sustenta que “a oceanografia é a mais
e continuam a fabricar as mesmas espanholas vasta de todas as ciências e o marinhista
obsedantes, os mesmos retratos imponentes, de moderno não pode ser alheio ao seu
que o Louvre está abarrotado e o Museu do Prado conhecimento”, maravilha-se com as bananeiras
cheio, e que com a sua obra parasitária pintadas pelo russo Paulo Gagarin, a quem
estrangeira tanto mal têm causado à nossa arte. qualifica de “um pintor das nossas árvores” e
aguarda com ansiedade o surgimento daquele a
Ideólogo da cultura mais do que crítico ou quem chama de o “pintor-herói - explorador e
historiador de arte, conclui: poeta –“, ao qual caberá criar “uma obra nacional
e eterna percorrendo os rincões dos guascas até
- A vida moderna destruiu o conceito os tejupares do extremo norte, sentindo o
permanente, pernicioso, que confundia a ambiente, apreendendo os tipos característicos
emoção arqueológica, que a pintura do de cada região nos seus labores naturais¨...
passado dá, com a verdadeira emoção
estética que ela realmente nos deve Notas
comunicar. O espectador deve ter de um
quadro o fresco sabor dum mundo ou dum * UNIFIEO; CBHA; ABCA

246
Somos assim, meu caro Agrário [...] quando
muito pedimos emprestado à França, a Portugal
mesmo, duas idéias que não compreendemos
mas que nos trazem o deslumbramento da
novidade, e começamos a dançar em derredor
dela, como selvagens, em torno de um
manipanso.[...] seremos, eternamente, uns
imitadores, minados pela ociosidade,
aterrorizados pela obstinação das criações,
preteridos pela imbecilidade ovante...
Mocidade Morta, p.78.

Mocidade Morta, de Luís Gonzaga Duque Estrada


(1863-1911), é apontada por especialistas como
uma das mais importantes realizações da prosa
simbolista brasileira. Incluída em antologias e
manuais de literatura, já foi objeto de diversos
estudos literários, e está entre os principais
romances brasileiros do século XIX. O romance é
o primeiro texto ficcional publicado por Gonzaga
Duque. A obra traça um retrato bastante amplo e
minucioso da vida artística carioca em fins do
século XIX, cobrindo um complexo formado por
artistas marginalizados e acadêmicos, críticos,
apreciadores de arte e curiosos. Também aborda
as difíceis condições de sobrevivência do artista,
as formas de apreciação e os padrões de gosto
da arte incompleta à morte de um insubmisso: em diferentes extratos da sociedade carioca.
mocidade morta (1899) de gonzaga duque Finalmente, não deixa de iluminar os espaços
sociais disponíveis ao debate e à atividade crítica
leticia squeff 1 no Rio de Janeiro às vésperas da proclamação da
República. Essas questões são tratadas
ficcionalmente por alguém que conhecia muito bem
tudo aquilo: Gonzaga Duque foi um dos maiores,
se não o maior crítico de arte de seu tempo. Por
tudo isso, trata-se de um romance que tem muitos
elementos que interessam aos que estudam a arte
brasileira do século XIX. Apesar disso, o texto não
tem recebido a atenção que merece dos
historiadores.

Minha intenção aqui hoje é comentar com vocês


algumas conclusões que venho tirando do estudo
dessa obra tão curiosa produzida pelo grande
crítico. O romance não pode ser perfeitamente
compreendido por aqueles que não conhecem o
crítico. Trabalhando nas fímbrias da ficção e da
realidade, criando uma obra cheia de alusões a
pessoas e fatos reais, Gonzaga Duque escreveu
um romance que tinha objetivos precisos e visava
um público específico.

A leitura que farei aqui hoje pretende iluminar não


apenas o pensamento e a atividade crítica de
Gongaza Duque, como também esse controvertido
momento da história das artes brasileiras que foi o
final do século XIX brasileiro. Em primeiro lugar,
destaco algumas das intenções e demandas que
poderiam ter motivado Gonzaga Duque a escrever

247
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

Mocidade Morta. A seguir, será a vez de investigar 1971: 11; LINS, 1991: 50). A obra não foi bem
o texto ficcional propriamente dito, buscando recebida pelos contemporâneos. Críticos
entender o que ele informa do cenário artístico da importantes, como José Veríssimo e Medeiros de
época. Antes de começar, porém, vale fazer alguns Albuquerque, veriam sobretudo no estilo o principal
recortes. problema do livro (LINS, 1991:51, EULALIO, 1995:
294). O romance recebeu apenas duas reedições
Não discutirei questões relativas à características nos anos 70, e uma mais recente (1995), na esteira
internas ao romance, seu vínculo com a estética do interesse que o Gonzaga Duque crítico vem
simbolista e outras correntes literárias. Também sua despertando entre os pesquisadores (KURY, 1995:
ligação com a extensa, e ainda em parte dispersa 9-10). A narrativa de estilo preciosista, o uso de
obra de Gonzaga Duque está fora das neologismos e palavras inusitadas, entre outros
preocupações desta apresentação. Finalmente, o aspectos, tornam o livro difícil de ser percorrido
que estou apresentando é parte de um trabalho pelo leitor contemporâneo, a despeito do riquíssimo
que está em andamento. Sendo assim, as panorama da vida cultural que apresenta.
hipóteses e conclusões apresentadas aqui podem
e deverão ser revistas em outras oportunidades. Críticos literários e historiadores têm visto em
Mocidade Morta relações com mais de uma obra
1. Gonzaga Duque e Mocidade Morta de seu tempo. Para Afrânio Coutinho, o romance
reflete o conteúdo doutrinário e técnico da obra À
Gonzaga Duque começou a colaborar em revistas Rebours (1884) de J.K. Huysmans (1971:7). Vera
e jornais do Rio de Janeiro bastante jovem, ainda Lins observa que o romance alinha-se aos textos
em 1880. Foi desenhista e pintor, tendo ilustrado a autobiográficos do final do século XIX no Ocidente,
primeira edição de D. Carmen, de B. Lopes. Como que se constroem como reformulação moderna do
literato, pertenceu à roda boêmia do Grupo dos Bildungsroman (LINS, 1991: 48).
Novos - primeiro grupo simbolista brasileiro
(COUTINHO, 1971; MURICY, 1987:248), tendo Para outros, o romance seria amplamente inspirado
escrito romances e contos. Dedicou-se à critica de em L´Oeuvre, do crítico e romancista Émile Zola.
arte por quase três décadas, participando de (EULÁLIO, 1995: 291-293; LINS: 1991:48) Nessa
algumas das mais importantes publicações da obra, 14 o romance do ciclo Rougon-Macquart, a
época. Exerceu esta atividade de maneira franca narrativa ficcional serviu para o crítico expor e
e combativa, utilizando-se freqüentemente de defender seus pontos de vista a respeito da arte
pseudônimos. Foi uma das mais renitentes vozes francesa. O livro retrata a boemia parisiense, tendo
de oposição à Academia Imperial de Belas Artes e como protagonistas o pintor Claude Lantier (irmão
seus modelos. Visto como um precursor do do mineiro revolucionário de Germinal) e o literato
modernismo nas artes visuais, Gonzaga Duque Pierre Sandoz – geralmente apontado como alter-
seria, junto com Lima Barreto e Machado de Assis, ego de Zola. Já à época de seu lançamento, em
um dos iniciadores de uma vertente crítica da 1886, o romance foi entendido pelos
modernidade no Brasil (LINS, 1991: 30; Id., 2001: contemporâneos como uma espécie de história
25- 31). Para Vera Lins, pela diversidade de temas ficcionalizada do Impressionismo. O romance é
que abordou e por seu engajamento crítico, apontado por vários estudiosos como o estopim
Gonzaga Duque teria sido mais que um crítico de para o rompimento da longa amizade entre Zola o
arte, um crítico da cultura (LINS, 2001:25). e o pintor Paul Cézanne. O artista teria se
reconhecido na figura patética e derrotada de
Foi assíduo freqüentador de cafés e bordéis do Rio Lantier. (cf por exemplo SHAPIRO, 2002:301)
de Janeiro, o que iria impregnar seus escritos de
um viés boêmio e radicalmente urbano, típico das De fato, L´Oeuvre é mencionado por seu êmulo
sensibilidades do final do século. Num contexto de brasileiro mais de uma vez, como a sugerir formas
adesão compulsória das camadas letradas às de ler e compreender Mocidade Morta.2 Em seu
novas idéias, prometedoras de uma nova fase na romance, Zola quis transpor a vibração pictórica,
história do país, Gonzaga Duque foi um participante tipicamente impressionista, para as descrições da
apaixonado das correntes de renovação que iriam paisagem parisiense (EULALIO, 1995: 285). O
defender a república, entre outras bandeiras crítico brasileiro busca dar à sua narrativa efeito
polêmicas à época (MARTINS, 1993:18). semelhante. Situações e personagens dão ensejo
a longas descrições que buscam oferecer ao leitor
Escrito entre 1895 e 1897, Mocidade Morta foi a possibilidade de visualizá-los em termos
publicado em 1899. A primeira edição, de 300 livros, plásticos. Para Alexandre Eulálio, o autor faz uma
saiu com tantos erros que Gonzaga Duque pensou espécie de “divisionismo sonoro e visual” na
em queimá-la e imprimir outra (Apud COUTINHO, descrição de ambientes e cenas. Por causa disso,

248
Mocidade Morta (1899) de Gonzaga Duque

Mocidade Morta já foi definido como um “romance referência ao Visconde de Taunay (EULÁLIO,
estético” (MOISÉS, 1973: 244). 1995).

Há outras semelhanças entre os dois textos. A Também chegam aqueles que o autor denomina
exemplo do modelo francês, Mocidade Morta simplesmente como “Insubmissos de vestes
parece comprometida com algumas das mais coçadas e jovialidade boêmia” (p.17, grifado no
importantes bandeiras defendidas por Gonzaga original). O chefe do grupo, por ser “o mais amado,
Duque. Há longos trechos em que se discutem pela diferença com que o tratavam”, era o crítico
questões de arte. Sobressaem a preocupação em Camilo Prado, “um anêmico escanifrado com ares
sintonizar as artes brasileiras com o que acontecia de fidalguia abastardada” (p. 17). Os rapazes fazem
na Europa, particularmente na França, além de um troça da obra, lançando uma espécie de
projeto de superação da prática artística tal como provocação a Telésforo.
realizada segundo a ‘tradição’ instituída pela
Academia de Belas Artes do Rio de Janeiro. Se A seguir, a narrativa retrocede no tempo,
em L´Oeuvre Sandoz era o alter-ego de Zola, acompanhando a formação do grupo dos
Gonzaga Duque parece ter feito do crítico fictício Insubmissos – “para realce de suas qualidades de
Camilo Prado seu porta-voz no romance (EULALIO, rebelados e raros em contraposição ao burguês
1988:184-) subserviente e comum” (p. 30); o nome adotado
por eles - Zut! -, suas motivações artísticas e
Já foi observado que nas obras de Gonzaga Duque estéticas. Sob a liderança do crítico Camilo Prado,
a reflexão sobre artes plásticas ultrapassa o espaço e tendo como figura mais proeminente o pintor
da crítica, permeando também romances e contos Agrário de Miranda, os artistas tentam organizar
(GUIMARÃES, 1988:85). Sendo assim, Mocidade um movimento de contestação à “Academia”
Morta deve ser situada, por nós historiadores, como (grifado no original). A idéia era organizar uma
mais do que um simples romance. Aqui, os limites “corporação” que organizaria ateliês livres e
do texto ficcional se esgarçaram. O romance torna- promoveria “exposições independentes” para
se meio para fins que estão além dele mesmo. E o chamar a atenção do público.
romancista deixa falar o crítico.
A partir do capítulo IX, o leitor acompanha os
2. A ficção e a vida artística carioca em Mocidade desdobramentos da provocação feita a Telésforo.
Morta Camilo Prado escreve um artigo criticando a
Academia e apresentando o Zut!.
A história de Mocidade Morta acontece no Rio de
Janeiro, entre 1886 e 1888. Começa com a abertura Camilo soltou o primeiro grito num ousado
da exposição da tela Rendição de Uruguaiana - 28 folhetim, escalpelando as condições
de setembro de 1865, do artista acadêmico antiestéticas do meio fluminense e, sob a ironia
Telésforo de Andrade. Esta é certamente a cena fundibulária da sua prosa, apresentava o Zut
mais admirável de todo o romance. O panteão feito como um - bando rebelde - proclamando a
especialmente para abrigar a obra é chamado de liberdade absoluta das escolas, salvando e
“monstruosidade entabuada” (MOCIDADE MORTA, dignificando a Arte. (p. 80)
1995:15). 3 A tela tem dimensões pleonásticas:
quatorze metros de comprimento por doze de Inspirada pelo artigo, começa uma onda de críticas
altura; e sua descrição sugere uma paródia das à Academia. Os jornais protestam contra a
pinturas de batalha. Artista formado na Europa e instituição, quadros de artistas acadêmicos são
principal nome da Academia carioca, Telésforo de vandalizados, as “Galerias da rua do Ouvidor”
Andrade é descrito como “dignitário da Rosa, palma fechem suas portas. Um clima de euforia toma
d´Academia de França, resplandecente de várias conta dos Insubmissos.
nobilitações estrangeiras” (15). Entre os que
chegam para admirar a enorme pintura estão a Contudo, ao contrário do que o crítico imaginava,
“Princesa” e o marido, nomeado simplesmente os pintores não conseguem se organizar e a
como o “Conde”. Para qualquer leitor atento, a sonhada ‘Exposição dos Insubmissos’ jamais se
descrição desses personagens lembra figuras realiza. Enquanto isso, Telésforo contra-ataca:
bastante conhecidas da vida política e cultural do graças a bons contatos entre políticos da corte e
império: a princesa Isabel e o conde D´Eu- homens de imprensa, o pintor inicia uma bem
considerado na época um dos heróis da Guerra do sucedida campanha de difamação do grupo. Camilo
Paraguai. Outro admirador do artista, descrito perde o emprego. O pintor Agrário – maior aposta
jocosamente como “adamado senhor de mocidade de Camilo para a renovação estética do meio
artificial”, que “cheirava à baunilha”, parece ser uma carioca –desinteressa-se do movimento. O final é

249
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

melancólico, com a morte de Camilo numa rua por Pedro Américo e depois litografada em 1872
deserta, durante a madrugada. (EULALIO, 1995: 289).

Misturando ficção e narrativa autobiográfica, Ao fazer alusões quase literais a personagens e


invenção e testemunho, o texto promove um obras conhecidos por Gonzaga Duque, Mocidade
instigante jogo de espelhos. Personagens e Morta carrega um forte traço autobiográfico. Talvez
situações, e até mesmo algumas obras de arte por isso tem sido comparada, freqüentemente, ao
citadas no romance são referências mais ou menos livro A Conquista, de Coelho Neto. Este romance
explícitas a pessoas e quadros da época. Trata-se de um dos maiores nomes do parnasianismo
de uma obra que tem a pintura, principalmente, brasileiro também foi publicado em 1899. As duas
como mote para uma abordagem bastante obras têm em comum o teor memorialista e uma
abrangente do mundo da arte carioca de fins do visão desencantada do passado. Um focando a vida
século XIX, e dos valores, personagens e literária, outro a artística, tocam numa questão
interesses que o conformavam. Nesse ambiente candente para literatos e artistas daquele final de
brilhante e artificial, o pesquisador deve se mover século: a sensação de fracasso de toda uma
com cuidado. geração.4

Se Camilo Pena já foi apontado como alter-ego de O romance é o lugar, ainda que ficcional, em que
Gonzaga Duque, os outros personagens também Gonzaga Duque avalia, retrospectivamente, sua
parecem ter sido inspirados em figuras conhecidas atuação e a de sua geração. Narra os anos de luta
do cenário artístico carioca. Agrário de Miranda que antecederam a reforma da Academia, falando
seria o pintor Belmiro de Almeida. Telésforo de dos artistas, dos sonhos e projetos malogrados de
Andrade, uma síntese dos pintores acadêmicos de toda um grupo de artistas e homens de letras.
maior sucesso na época, misturando atributos de
Pedro Américo, Vitor Meireles e Rodrigues Duarte Mocidade Morta pode ser vista, assim, como
(EULALIO, 1988: 184). Talvez para evitar esse tipo registro de um crítico militante que, num momento
de associação, o autor coloca na boca do chave da história do país – a virada do século –, e
personagem principal uma referência explícita aos de sua geração, resolve contar a história da qual
dois pintores máximos do império: não só fora observador como também um dos
principais protagonistas.
O Pedro Américo já deu o que podia, o Mereiles
está esgotado; dessa geração entanguida, que 3. Mocidade Morta
foi o fruto temporão de uma árvore
transplantada e não cuidada, resta-nos o que Mas se pretendeu ser uma espécie de interpretação
se pode ver na Pinacoteca e a nova glorificação a posteriori das lutas e demandas de toda uma
do Bernardelli, na escultura... (91) geração de artistas e críticos, resta compreender
qual era a avaliação do crítico sobre seu passado.
Apesar desse esforço, rapidamente os estudiosos
fizeram hipóteses relacionando personagens Em 1929, o crítico Nestor Vitor apontava no livro
fictícios e reais. Mesmo negando que a obra possa “uma charge desapiedada contra o oficialismo
ser qualificada como roman à clef, Alexandre Eulálio artístico ainda do tempo do segundo reinado”
observou que o autor usou vários modelos “da vida (VITOR, 1979: 244). Há, de fato, vários momentos
real” para a caracterização dos personagens em que o romance deixa transparecer a aversão
(EULALIO: 1988: 183). Os Insubmissos Arthur de de seu autor ao sistema oficial de artes carioca.
Almeida e Frankin seriam, respectivamente, Artur
Um tom caricatural permeia a descrição da abertura
Lucas e Maurício Jubim. Já o personagem Sabino
da exposição do quadro de Telésforo. As
Gomes poderia ser Isaltino Barbosa, Firmino
“Enfatuadas celebridades da política e do
Monteiro ou ainda Estevão Silva (EULALIO, 1995:
jornalismo” que lotam o recinto para admirar o
289-90). A lista de personagens e seus respectivos
quadro não economizam elogios ao pintor, fazendo
modelos da vida ‘real’ é bastante longa. Há, por
associações estapafúrdias entre ele e artistas
outro lado, algumas controvérsias sobre o assunto.
consagrados da história da Arte como Ticiano,
Alguns costumam associar a figura de Telésforo
Rafael, Velásquez e Murillo: “O exagero resvalava,
somente a Pedro Américo. Uma das razões para
pela inconsciência cognominativa, para o estortego
isso é justamente a tela inaugurada pelo
do ridículo.” (p. 25) A ironia permeia também a
personagem. Sabe-se que não há nenhum quadro
descrição da conversa entre Telésforo e o
com esse nome entre as grandes pinturas
“Visconde de dicção afetada”. Após afirmar que a
produzidas para comemorar a guerra do Paraguai.
tela “Ia além do sublime!” (p. 24, grifado no original),
Mas uma Rendição de Uruguaiana foi desenhada

250
Mocidade Morta (1899) de Gonzaga Duque

o visconde aumenta os elogios quando nota no dá ensejo para que o romancista leve o leitor a
peito do pintor a condecoração da “Coroa de ferro”. conhecer mais de perto alguns dos Insubmissos e
suas obras. Um deles é o pintor Sabino Gomes,
Os discursos do crítico Camilo Prado são que resolve pintar a tela histórica Vercingétorix
permeados por críticas à Academia e seus valores: diante de César. O resultado obtido não deixa de
“O Academismo nos impõe suas formas, não é? ser narrado em tom de troça. Na tela “grande e
Desprezemo-lo e desprezemo-las. Costas à larga como uma porta d´armazém”
Academia!” O jovem tenderá a se colocar como
um crítico “moderno”, propondo caminhos para as [...] César, o conquistador, foi apanhado no
artes de seu país e participando ativamente dos bosquejo de três horas sonolentas, por provada
movimentos artísticos do tempo.5 A intenção do dedicação de um barbeiro, amigo do rapaz.
crítico é “[...] tentar uma reforma exemplificada no Espapaçou-se na tela um César sacristão e
movimento atual da França.” (p. 37) dengoso, com adiposidades suínas de
apolentado, que lhe traíam as origens aldeãs;
Camilo discorria sobre as telas impenitentes mas, uma fita branca, diademando a cabeleira
de Édouard Manet, sobre as paisagens vernais e um lençol fazendo de clâmide - deixavam
de Pissarro e os motivos escandalizantes de suspeitas d´ autenticidade do sexo. (p. 83)
Caillebote. Os nomes de Claude Monet e
Madame Morizot vinham, às citações, Talvez por causa do ridículo involuntário, os
fulgurando entre círculos de fogo, paradeiros modelos desistem de posar para Sabino Gomes.
resistentes do incondicional, que os isolavam E a obra fica inacabada “[...] no fundo dum mísero
da vulgaridade aplaudida. Com o dedo nervoso quarto sem luz”.
e sarrento ele vincava páginas de brochuras
novas, apoiando-se no apostolado reformador Ao leitor atento, a escolha do artista é sem dúvida
de Zola, na análise vesicante de Huysmanns, paradoxal. A narrativa mostra que a intenção de
citava a crítica facetada de Ortigão e traduzia, Sabino era fazer um quadro segundo os mais
declamava os períodos incisivos, de exame óbvios valores acadêmicos: a opção pelo gênero
glácido e seguro, da prosa aceirada de Félix histórico – considerado o mais alto e mais nobre
Fénéon: [...] (p. 33) entre os temas disponíveis ao pintor – , o tema,
tirado de um “Fato” retirado história antiga; sem
Como alternativa à “vulgaridade reinante” da arte falar nos procedimentos, típicos do fazer artístico
acadêmica, o impressionismo seria apresentado ensinado nas academias.6 Estranha contribuição
aos ouvintes como modelo indiscutível. Tendo como para um grupo que se queria contrário à Academia,
base os acontecimentos recentes na arte francesa, seus “cânones” e “códices” (p. 37).
a intenção de Camilo é promover um movimento
parecido, levado a cabo por um grupo de artistas à Em outra ocasião, Camilo é procurado por Valeriano
parte – os Insubmissos à Academia e a tudo que Costa. O episódio também vale a pena ser
ela representava. Para isso, era preciso organizar transcrito:
um grupo de ex-alunos da Academia e de artistas
independentes. Na brancura do papel, em traços rústicos de
nanquim, avultava um informe desenho
Por que não fazemos uma reunião definitiva carregado, num corte oblíquo, em perpectiva:
de todos os que querem resistir à contagiosa sobre esse corpo bruto, representando os
estupidez de nosso meio social? Combinando, muros duma fonte pública, surgia do centro dum
agremiando, poderíamos formar uma oposição terraço barroco, o remate decorativo duma
vitoriosa, fundaríamos ateliers livres, teríamos esguia pirâmide cujo ápice ostentava a esfera
exposições independentes, em suma, seríamos armilar do escudo brasileiro, fisgada das três
uma corporação vivendo vida própria, setas de São Sebastião.
exercendo uma profissão. (p. 45) - Sabe o que é?
- Sei. É o chafariz do Largo do Paço.
Camilo chegaria a chamar o pintor Agrário de Valeriano sorriu envaidecido a explicar as
“Manet brasileiro” (p. 33) ou ainda “grande Manet dificuldades da perspectiva. [...]
indígena” (p. 67), sem falar na escolha para o nome Camilo percebeu a febre que inquietava o pobre
do grupo – Zut! – que reproduzia a interjeição desenhista, tranqüilizou-o com engano e
francesa (EULALIO, 1995: 288). piedade:
- Sim, senhor!... É uma prova....é de quem sabe o
Após organizar o movimento, Camilo Prado que estudou... (p. 86)
começa a visitar ateliês e casas de artistas. Isso

251
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

Aqui o outro Insubmisso fez um desenho urbano. situações. Em outros momentos, o romance
Seu foco é uma construção colonial: o chafariz do adquire tons bebidos no naturalismo, e apresenta
Largo do Paço. Curioso o artista não ter voltado da forma mais crua a situação dos artistas que
sua atenção para um monumento mais recente, estão fora do ambiente oficial: personagens
ou para outro aspecto na urbe que evocasse o patéticas, muitas vezes atingindo a demência, que
grande modelo dos Insubmissos: os pintores habitam ateliês e moradias imundas e
impressionistas, com suas representações de uma degradantes.7
Paris agitada e feérica. Seja como for, a descrição
da obra explicita os limites do desenhista. Seu O escritor faz aparecer aos poucos um julgamento
“informe desenho” não escondia os parcos recursos desencantado dos artistas Insubmissos. Deste
plásticos do arquiteto. modo, se há no romance enorme carga crítica
contra a Academia e seus representantes, o autor
Continuando sua peregrinação, Camilo chega, por censura mesmo os Insubmissos (EULALIO, 1995).
fim, à casa de Vieira.
Não havia condições para que a luta dos
Um dia, chegando em casa do Vieira, não lhe Insubmissos desse certo. Faltavam artistas
foi possível sofrear a estupefação: ‘modernos’, mas, sobretudo, faltavam artistas. A
- Mas, qu´é isto? sonhada ruptura com a Academia é abortada não
O gorduchito sorriu, frisando a finura do seu porque os insubmissos são refusés, porque fazem
entendimento moderno. — Está em mau lugar... uma “arte nova” para a época. Mas porque não
Chegue-se mais para aqui... Mais um pouco... havia condições para isso. São eles, comparados
Olhe agora. com Telésforo - cujo nome admite vários
Camilo observou: “é um rio.... com dois significados, entre eles “aquele que realiza” - a
barcos...” ‘mocidade morta’ do título (EULÁLIO, 1995: 287).
Vieira: - “Nada, nada... É uma estrada... Lá
estão dois bois... Repare com atenção... Não Contudo, o romance deixa várias pistas que
vê uma árvore no fundo? sugerem que talvez o significado de “Mocidade
E Camilo apertava as pálpebras movendo a Morta” seja ainda mais abrangente do que se
cabeça, inclinando o busto para trás. — Uma pensava até hoje.
árvore, heim?... Uma árvore!... - Enquanto o
aguarelista, amparando-o com ambas as mãos 4. O fantasma da Academia
pelos ombros, procurava, cauteloso, colocá-lo
No intrincado jogo de espelhos que constrói,
no raio da perspectiva.
Mocidade Morta tem muitos aspectos
- daqui, nesse ponto... Repare.
desconcertantes. Talvez o principal seja a ausência
- Ah!... bem. Então aquilo lá no fundo é uma
do antagonista.
árvore?
- Com certeza! Você sabe que a escola A Academia, mencionada diversas vezes por
moderna tem dessas cousas, não detalha, é Camilo e por outros personagens, jamais aparece.
tudo simples, manchas e tons. Isso é especialmente estranho quando pensamos
Camilo deixou-o falar. Estava vencido diante que um dos objetivos do livro é justamente construir
daquela formidável bota [...] (p. 84) um panorama da vida artística carioca de fins do
século XIX. Objetivo que o autor alcança na maioria
Finalmente um artista que pretende trazer à
das vezes com riqueza de detalhes, como já foi
exposição dos Insubmissos uma obra alinhada ao
apontado. Mas nenhum episódio do romance se
que ele entendia por “moderno”. Mas a pintura
passa dentro das paredes da Academia. Nem
realizada por Vieira é uma paródia, uma caricatura
aquele considerado seu representante pelos
da “arte nova” (p. 33). E mais uma vez o problema
Insubmissos, Telésforo, aparece lá dentro. Sabe-
é a baixa qualidade da obra, por isso mesmo
se ao final da história que ele se torna diretor da
referida por Camilo como “bota”.
instituição. Mas só isso.
Com descrições entre cômicas e trágicas como
A Academia nada faz por Telésforo. Também nada
essas, o romance vai mostrando quem eram os
fez contra os Insubmissos. Ela paira sobre as
Insubmissos, as difíceis condições de
mentes, como uma espécie de fantasma. Ela é
sobrevivência desses artistas, e mesmo seus
pretexto. Alucinação. Sua existência inspira o crítico
limitados conhecimentos práticos e teóricos. A
Camilo a construir planos mirabolantes de
história é narrada por vezes de forma caricata, em
exposições de recusados à brasileira, ou carioca,
que a linguagem rebuscada promove efeitos
de pintores-chefes de uma pretensa “nova pintura”.
hiperbólicos na descrição de personagens e

252
Mocidade Morta (1899) de Gonzaga Duque

Se a ausência da Academia chama a atenção, mais referência aos dois artistas permite enxergar no
desconcertante ainda é a definição da “arte nova” romance um comentário ainda mais ambicioso de
(p. 33) sonhada pelos Insubmissos. Nas longas Gonzaga Duque sobre os fatos que presenciou.
preleções estéticas de Camilo há poucas
explicações objetivas. Mas há um momento em que Talvez a história dos Insubmissos seja um
ele e Agrário imaginam como seria o quadro que comentário ficcional àquele curioso episódio da
“daria o pontapé nos preceitos acadêmicos” (p. 33): história da Academia Imperial de Belas Artes que
ficou conhecido como embate entre “acadêmicos
“Veio em tempo a lembrança de um estudo à e modernos”. No final da década de 1880,
Manet, largo, à espátula, sem preocupações descontentes com a situação em que se encontra
de agrado; escolheriam por assunto qualquer a Academia, alunos e professores se dividem
coisa escandalosa, uma rapariga nua, sobre quanto à solução a tomar. A rivalidade entre os dois
uma pele negra de urso, a rir-se, embriagada e grupos acaba em pancadaria, com o venerando
lúbrica; ao lado - uma taça partida de secretário João Maximiano Mafra de olho roxo e a
champagne, jóias arrebentadas e um coração polícia prestes a invadir o edifício (BARATA, 1944).
esmagado. Oh! O coração era pulha, cairiam No calor do confronto, os Modernos abandonam a
na alegoria romântica. Nada, realidade pura, a instituição e criam um ateliê livre. Também chegam
eterna verdade!” (p. 74) [Estudo de Mulher, de a promover uma exposição de trabalhos filiados
Rodolpho Amoedo]. ao movimento, em 1889 (BARATA, 1944:37).
O pintor lembrou-se de um busto de mulher,
simples, sob um efeito de luz em cheio, Ao colocar no sonho dos personagens as obras de
repousando numa almofada encarnada, carnes dois artistas “Modernos”, Gonzaga Duque aponta
descobertas, intumescências sensuais de que houvera, sim, uma pintura que configurava uma
seios, um langor sonolento de olhar, lábios “arte nova” no contexto carioca. Mas esse caminho
mordidos em expressão de gozo: Seria não fora mantido por seus autores. Não custa
Cleópatra, seria Salomé...E perguntava: lembrar que em 1899, ano em que Mocidade Morta
- Hein? Que achas? Um escândalo, a burguesia foi publicado, Amoedo e Bernardelli já eram, há
vociferando, a polícia metendo-se no caso. alguns anos, membros do corpo docente
Magnífico[Messalina, de Henrique Bernardelli]. acadêmico, confortavelmente instalados na
[...] Ficou escolhido o assunto do novo instituição contra a qual, durante um curto período
quadro.(p.74) de suas vidas, ensaiaram uma revolta.9 No entanto,
o próprio teor dessa “revolta” deve ser bem
Impossível não comparar a descrição feita pelos matizado.
personagens com as duas obras selecionadas
acima. Desse encontro entre a literatura e a pintura Entre os positivistas estava um fiel aluno de
– apenas mais um num romance que busca criar Cabanel como Décio Vilares. Enquanto os
efeitos sinestésicos o tempo todo, como já foi “modernos” Amoedo, os irmãos Bernardelli, Eliseu
observado – todo o significado de Mocidade Morta Visconti, entre outros, lutaram pela manutenção de
pode ser revisto. alguns procedimentos tipicamente acadêmicos,
como os prêmios de viagem.10 Não havia, assim,
A imaginação dos personagens remete o leitor a entre uns e outros, nenhuma grande crítica
duas obras que efetivamente foram produzidas nos ideológica ou mesmo estética à instituição
anos 1880, por dois personagens-chave do período: brasileira. Tanto que, feita a República, os ex-
Rodolfo Amoedo e Henrique Bernardelli. Tendo em contendores acabaram se unindo na feitura do
vista as inúmeras referências no romance a projeto que iria reger a Escola Nacional de Belas
personagens e obras da vida artística carioca, seria Artes (ENBA) (BARATA, 1944: 49).
ingênuo achar que essas semelhanças sejam
casuais. Seria talvez ainda mais ingênuo supor que Por outro lado, a historiografia mais recente vem
um crítico do porte de Gonzaga Duque não tenha destacando as apropriações que Amoedo e
pensado nessas obras ao colocá-las no ‘sonho’ de Bernardelli fizeram das correntes de renovação da
seus dois protagonistas. pintura européia oitocentista (MIGLIACCIO, 2000;
MARQUES, 2001, DAZZI, 2004). As clivagens entre
A menção a elas amplia o quadro de referências acadêmico – não-acadêmico eram, no Rio de
enunciado pelo romance: talvez o personagem Janeiro como em outros pontos do planeta, àquelas
Agrário de Miranda possa ser visto como um dos alturas, muito menos profundas do que viria a fixar
dois pintores, ou um misto de atributos de Amoedo uma certa historiografia.
e Bernardelli, e não Belmiro de Almeida como vem
sendo repetido há algum tempo. 8 Além disso, a

253
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

Mesmo na França a polarização entre como ex-alunos ou professores, à AIBA e depois à


impressionistas e artistas acadêmicos deve mais ENBA. Caso de artistas como, além dos já citados,
à historiografia do que geralmente se pensa. Da Belmiro de Almeida, Eliseu Visconti, e tantos
perspectiva da história cultural, no momento em outros.12
que surge, o impressionismo não tem significação.
Era uma atividade limitada e insignificante de uma 5. A morte do crítico
dezena de pintores (Apud SHAPIRO, 2002:248).
Com o tempo, quando já perdera a força Com uma orquestração refinada dos vários
transformadora, o movimento ganha reverberação elementos em jogo, Mocidade Morta aponta as
não apenas nos meios artísticos franceses como grandes questões e demandas do universo artístico
em outros lugares (Id., ibd.: 249). carioca de fins do século XIX. Sendo um romance,
a obra explicita, dentro do âmbito da possibilidade,
Desde meados do século XIX a pintura de história, na liberdade garantida pela ficção, dilemas e
a retratística, a paisagem e a pintura de nu vinham contradições vividas não só pelos personagens,
sendo submetidas a experimentações diversas mas também por seu autor, o crítico Gonzaga
(FRASCINA, 1998). Os artistas brasileiros que Duque, e muitos contemporâneos.13
estudaram na Europa não ficaram totalmente
infensos a esse clima de transformação. A Mocidade Morta oferece-se, assim, como o
Academia Julien teve um papel fundamental na contrário da crítica: aqui Gonzaga Duque não
aclimatação dos brasileiros a esse ambiente de defende nenhuma bandeira. Ao contrário, as
apropriações e reelaborações do fazer artístico bandeiras defendidas pelo crítico ficcional são
acadêmico (SIMIONE, 2005).Se passaram pelo tratadas de modo extremamente irônico no
aprendizado de Cabanel, Bouguereau, Bonnat, romance. A argumentação de Camilo Prado, cheia
entre tantos outros, os jovens artistas conviviam de referências a artistas e críticos franceses,
num ambiente perpassado por suavizações e reveste-se do mesmo teor que permeia a
releituras da arte acadêmica, onde as inovações caracterização de outros personagens e situações
temáticas pareciam tão importantes quanto as no livro: o da paródia, da caricatura. Todo o discurso
formais. Já foram apontadas, por exemplo, as do crítico é baseado no notável domínio que tem
relações de Belmiro de Almeida com Puvis de sobre os recentes movimentos artísticos franceses,
Chavannes, de Bernardelli com o verismo italiano particularmente do Impressionismo, de seus
ou, ainda, de Amoedo com temas e faturas críticos e defensores mais controvertidos. No
tipicamente impressionistas (SIMIONE, 2005; entanto, como o livro vai desnudando aos poucos,
DAZZI, 2004; MIGLIACCIO, 2001) Chegando ao Camilo não conhece os artistas com quem convive.
Brasil, esses artistas assumiram seu lugar na AIBA, Não sabe do que são capazes. Encantado pela
mais tarde, ENBA. imagem que vem de fora, esquece de olhar em
torno. Daí sua luta cair no vazio.
E aqui a ausência da Academia no romance
encontra uma explicação. Como vêm atestando Pode-se aventar que há no romance, certamente,
algumas pesquisas, a história institucional da AIBA uma referência sardônica de Gonzaga Duque a
esteve muito longe, sob vários aspectos, de seu seus colegas e, por extensão, à atuação dele
modelo francês (MARQUES, 2001). No âmbito mesmo na luta contra a Academia carioca e seus
carioca, a instituição simplesmente era o único valores. Enquanto os críticos brasileiros citavam
caminho possível para um aprendizado formal de os irmãos Goncourt e comparavam os artistas
artes. Vale lembrar, por exemplo, que o Estudo de nativos a Michelangelo, Ticiano ou mesmo Manet,
mulher de Amoedo provocou recriminações no júri a produção artística carioca seguia caminhos
da congregação acadêmica de 1884, mas não foi próprios. 14 Nessa vertente tão particular, os
recusado por causa disso.11 Ou seja, a Academia modelos externos serviam para pouca coisa.
brasileira “jamais teve força e doutrina para
Nesse ponto, vale ressaltar a sutileza e sagacidade
engendrar refusés” (MARQUES, 2001: 23).
com que o romancista se apropria de seu
Mocidade Morta permite compreender a riqueza e proclamado modelo. Se Gonzaga Duque explicita
multiplicidade de projetos de modernidade em jogo diversas vezes a dívida de seu romance para com
no período, bem como o lugar que alguns artistas L´Oeuvre, a história contada por ele guarda uma
brasileiros assumiam nesse panorama. O romance diferença fundamental da ficção francesa. No
desnuda, assim, um aspecto fundamental da arte romance de Zola, o pintor Etienne Lantier se
brasileira nesse final do século XIX: a modernidade suicida. Em Mocidade Morta quem morre é o crítico.
pictórica no Brasil passou pela Academia carioca.
Foi feita dentro dela, por artistas que pertenciam,

254
Mocidade Morta (1899) de Gonzaga Duque

Gonzaga Duque enumera, em seu romance, uma DIMAS, Antonio. Tempos eufóricos: análise da
a uma as impossibilidades com as quais o crítico revista Kosmos (1904-1909). São Paulo, Ática,
brasileiro se confronta: a pouca formação da 1983.
maioria dos artistas, as condições adversas do EULÁLIO, Alexandre. Estrutura Narrativa de
meio, o arsenal crítico disponível, que pouco ou Mocidade Morta. Gonzaga Duque. Mocidade
nada tinha a ver com as demandas locais. Morta. Rio de Janeiro, Fundação Casa de Rui
Barbosa, 1995.
Também se pode dizer, assim, que a Mocidade EULALIO, Alexandre. Sobre Mocidade Morta.
Morta do título é todo um sistema: não apenas os Sobre o Pré-modernismo. Fundação Casa de Rui
Insubmissos, o crítico Camilo, ou a própria Barbosa, 1988, 183-89.
Academia, tão recente no território americano e já FRASCINA, Francis [et alii]. Modernidade e
sem forças, ou mesmo a “arte nova” sonhada por modernismo- a pintura francesa no século XIX.
Camilo e não realizada. São Paulo, Cosac & Naify, 1998 (1993).
GALVÃO, Alfredo. Subsídios para a história da
A literatura desnuda aquilo que a crítica não foi Academia Imperial e da Escola Nacional de
capaz de mostrar. E aqui, novamente, a metáfora Belas Artes. R.Janeiro, ENBA, 1954.
do jogo de espelhos pode servir: ao espelhar a GUARILHA, Hugo. A questão artística de 1879:
realidade, a ficção a mostra pelo avesso, de um um episódio da crítica de arte no Segundo Reinado.
modo insuspeitado até mesmo, pode-se supor, para Dissertação (Mestrado em História) - Universidade
o próprio autor. Estadual de Campinas, 2005.
GUIMARÃES & LINS (orgs.) Gonzaga Duque:
Seja como for, essas reflexões, ainda que
Impressões de um Amador- textos esparsos de
preliminares, permitem situar o romance de
crítica (1882-1909). Belo Horizonte: Editora UFMG/
Gonzaga Duque num novo patamar. Ao lado de A
Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa,
Arte Brasileira, Mocidade Morta deve ser
2001.
considerada uma das maiores realizações de
GUIMARAES, J. C. Pequenos Formatos. Vera Lins
Gonzaga Duque, fundamental para se compreender
e Júlio Castañon Guimarães. (Org.). Horto De
não apenas o cenário artístico carioca do final do
Magoas. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de
século, como as demandas e contradições do
Cultura, 1996, v. , p. 17-20.
grande crítico de arte brasileiro.
GUIMARÃES, Júlio C. Gonzaga Duque: ficção e
Referências bibliográficas crítica de artes plásticas. Sobre o Pré-modernismo.
Fundação Casa de Rui Barbosa, 1988.
Arte no século XIX. Mostra do Redescobrimento: HARDMAN, Francisco Foot. Antigos Modernistas.
século XIX. Texto de Luciano Migliaccio. Fundação NOVAES, Adauto (org) Tempo e História. São
Bienal de São Paulo/ Associação Brasil 500 anos Paulo, Cia das Letras, 1992, pp.289-305.
Artes Visuais, 2000. LINS, Vera. Gonzaga Duque: a estratégia do franco
BARATA, Frederico. Eliseu Visconti e seu tempo. atirador. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1991.
Rio de Janeiro, Ed. Zélio Valverde, 1944. LINS, Vera. Gonzaga Duque: crítica e utopia na
CAMPOFIORITO. Quirino. História da Pintura virada do século. Rio de Janeiro, Fundação Casa
Brasileira no Século XIX. V. 4 (1850-1890), Rio de Rui Barbosa, 1996.
de Janeiro, Pinakotheke, 1983. MARQUES, Luiz. Introdução. 30 mestres da
CHIARELLI, D. T.Gonzaga-Duque: a moldura e o pintura no Brasil. Catálogo de Exposição, São
quadro da arte brasileira. Gonzaga-Duque. L. A arte Paulo: MASP, 2001.
Brasileira. (1888), São Paulo/Campinas, Mercado MARTINS, Wilson. História da Inteligência
de Letras, 1995. Brasileira. Volume V (1897-1914), 2 ª ed, São
COLI, Jorge. A Batalha dos Guararapes de Vítor Paulo, T.A.Queiroz, Editor, 1993.
Meirelles e suas relações com a pintura MIGLIACCIO, Luciano. Rodolfo Amoedo. O mestre
internacional. IFCH/ UNICAMP, Tese de Livre- deveríamos acrescentar. 30 mestres da pintura
Docência, 1996. no Brasil. Catálogo de Exposição, São Paulo:
COUTINHO, Afrânio. Introdução. Gonzaga Duque. MASP, 2001.
Mocidade Morta. 2ª Ed., Rio de Janeiro, INL, 1971. MOISÉS, Massaud. O simbolismo.4ªed, São
DAZZI, Camila. A trajetória artística do pintor Paulo, Cultrix, 1973.
Henrique Bernardelli na década de 1880 – algumas MURICY, Andrade. Panorama do Simbolismo
considerações. Anais do XXIII Colóquio de Brasileiro. 2 vols, 3ª. Ed. revista, São Paulo,
História da Arte. Rio de Janeiro: CBHA/UERJ/ Perspectiva, 1987.
UFRJ, 2004.

255
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão. morceaux de bravoure decadentistas, de assomos


4ª. ed., São Paulo, Brasiliense, 1995. polêmicos espirituosos no referente à pintura, arte em que
SHAPIRO, Meyer. Impressionismo.São Paulo, Cia ele [Gonzaga Duque] tinha posto a mão na massa.”
MURICY, 1987: 248.
das Letras, 2002. 8
Como o personagem Agrário de Miranda, Bernardelli
SIMIONE, Ana Paula C. A viagem a Paris de artistas perdeu o concurso de viagem de 1878 justamente para
brasileiros no final do século XIX. Tempo Amoedo. Mas foi para a Europa assim mesmo, estudando
Social. vol.17, no.1, São Paulo, junho de 2005. em Roma por oito anos. CAMPOFIORITO, 1983:43.
9
TEIXEIRA LEITE, José Roberto. A Belle Époque. Rodolfo Bernardelli chefiou a Escola Nacional de Belas
BARDI, Pietro Maria. Arte no Brasil. Vol. 2, São Artes por 25 anos (1890-1915), tendo Rodolfo Amoedo
Paulo, Abril Cultural, 1979, pp. 556-605. (1857-1941) como vice-diretor. Amoedo lecionou até 1935.
Já Henrique Bernardelli (1858-1936) foi professor de pintura
VÍTOR, Nestor. A crítica de arte na obra de Gonzaga
da instituição entre 1891 e 1906. Apud Id., ibd..
Duque. Obra Crítica. 3° vol, Rio de Janeiro, 10
Os modernos “(...) eram assim denominados unicamente
Fundação Casa de Rui Barbosa, 1979. porque pugnavam por uma certa modernização dos
regulamentos, de acordo com as últimas observações
Notas colhidas na Europa por R Amoedo e R bernardelli.” “Nada
tinham de modernos na acepção de nossos dias, nem de
1
Mestre em História Social (FFLCH/USP) e doutora em revolucionários, inovadores ou rebeldes contra a técnica
Arquitetura (FAU/USP). Atualmente desenvolve projeto de ou a compreensão pictórica dos mestres.” BARATA,
pós-doutorado no Instituto de Artes da Unicamp. 1944:38.
2
Cf., por exemplo, Mocidade Morta, p.37. Mas o texto 11
O próprio Gonzaga Duque narra o episódio em A Arte
também possui referências a Huysmans, entre outros. Brasileira (1888).
3
Todas as citações de Mocidade Morta são extraídas da 12
Ao contrário do que afirma a “construção histórica
edição de 1995. A partir de agora, as páginas do romance modernista”, São Paulo e Rio de Janeiro, entre os anos
serão apenas numeradas no corpo do texto principal. 1860 e 1915 não estiveram estagnados, mas em “sintonia
4
Para corroborar as consonâncias entre as obras, Gonzaga tão fina e criativa com os centros inovadores da arte
Duque teria adotado o “barroquismo vocabular” de Coelho ocidental, e portanto tão atualizada, quanto durante o
Neto. O mesmo crítico notou que o ano de 1899 foi o da período modernista (...)”. A obra de Amoedo deve ser vista
publicação de outra obra em que passado e visão como exemplo disso. Apud MARQUES, 2001:21.
desencantada se combinavam - Memórias póstumas de 13
“A literatura fala ao historiador sobre a história que não
Brás Cubas. (MARTINS, 1993: 98) ocorreu, sobre as possibilidades que não vingaram, sobre
5
As palavras “povo” e “moderno” aparecem algumas vezes os planos que não se concretizaram. Ela é o testemunho
durante o romance, o que sugere que Gonzaga Duque triste, porém sublime, dos homens que foram vencidos
estava sintonizado com as leituras de críticos como pelos fatos. (...) Pode-se portanto pensar numa história dos
Baudelaire e Zola. Fato apontado por Alexandre Eulálio e desejos não consumados, dos possíveis não realizados,
Vera Lins, entre outros. das idéias não consumidas.” SEVCENKO, 1995: 21.
6
Jorge Coli descreve as etapas da “pintura lenta” realizada 14
O famoso debate sobre as pinturas de batalha de Meireles
por Vítor Meireles, segundo as regras acadêmicas. Apud e Américo é marcado por essas comparações. Sobre o
COLI, 1996: 34. assunto cf GUARRILHA, 2005.
7
Em Mocidade Morta ”(..) Os processos são, por via de
regra, dum naturalismo de transição, entremeado de

256
O ano de 1890 foi bastante significativo no quadro
geral da história da arte no Brasil. No final dele se
oficializava a mudança para Escola Nacional de
Belas Artes (ENBA), daquela que já não podia mais
ser chamada de Academia Imperial, pois a
República do Brasil acabara de ser proclamada.
Ana Maria Tavares Cavalcanti, em seu artigo Os
embates no meio artístico carioca em 1890 -
antecedentes da Reforma da Academia das Belas
Artes 1 , discute e atualiza essas questões,
corrigindo alguns dados e demonstrando que,
apesar de não ter ocorrido uma reforma profunda
no ensino artístico, os acontecimentos daquele ano
não podem ser menosprezados.

Arte e política

Em 26 de março de 1890, inaugurou-se no Rio de


Janeiro, com toda a pompa e circunstância, uma
Exposição Geral de Belas Artes (EGBA), o que não
acontecia havia seis anos. Registrou-se e a
presença do general Deodoro da Fonseca, chefe
do governo provisório, e a execução, por duas
vezes, do recém-composto Hino Nacional
Brasileiro. (O PAIZ, 1890 a) Oscar Guanabarino
expressou assim seus sentimentos quanto ao
passado e ao futuro do evento:
1890 – o primeiro ano da república agita o meio
artístico brasileiro e marca a carreira de eliseu A exposição de bellas-artes, organizada agora
visconti pela academia, é a apuração dos melhores
trabalhos realizados de 1884 até á presente
mirian nogueira seraphim * data.
Vinte nove exposições têm sido feitas por essa
academia, desde 1837; e em 53 annos de
sacrificios pagos pelo povo o resultado é quasi
nullo, inda que sejamos obrigados a reconhecer
que o actual certamen artístico é superior a
todas as justas até aqui franqueadas ao publico.
[...]
Quem escreve estas linhas é um desanimado
em questões de arte no Brazil; e Deus queira
que esse desanimo se dissipe em breve.
Na exposição de 1884 fizemos severas criticas
aos quadros de professores que impingiam
suas telas ao governo por preços fabulosos;
[...]
Muitos expositores fizeram parte da commissão
julgadora, e ao passo que recebiam altas
sommas por quadros sem valor, eram
condecorados para mais ridicula se tornar a
burla do concurso em que tudo foi aceito sem
o menor escrupulo. (GUANABARINO, 1890)

Apesar de considerar esta exposição melhor que


todas as anteriores, o que é confirmado também
pelo balanço de sua visitação 2 , o crítico não
acreditava que o fato revelasse uma mudança
significativa. Ele expressa nestas linhas a
insatisfação geral, que se arrastava desde muito

257
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

tempo, com a grande protagonista das coisas que ele adotaria durante toda a sua carreira,
relacionadas às artes plásticas no Brasil Imperial transitando desde as esferas oficiais até as
– a Academia das Belas Artes. manifestações marginais que mais se
harmonizavam com seu espírito.
Com o advento da República, veio também a
esperança para o meio artístico. O então Ministro Além disso, é provável que o nome de Visconti
do Interior, Aristides Silveira Lobo nomeou, já em tenha ficado ligado aos acontecimentos que
30 de novembro de 1889, uma comissão de antecederam a reforma da Academia, justamente
professores da Academia – entre eles Rodolpho porque foi a partir das suas memórias, que
Bernardelli e Rodolpho Amoedo – para elaborar um Frederico Barata escreveu o relato que serviu de
projeto de reforma desta instituição, 3 que ficou base para todos os outros sobre este assunto, até
conhecido com o nome de seus dois autores mais bem pouco tempo (1944: 29-50). Apesar de, aos
famosos, e foi datado de 25 de janeiro de 1890. 78 anos de idade, a memória de Visconti ter se
Cinco dias depois, aparece um outro projeto que, confundido quanto a datas e alguns nomes, o fato
inspirado nas doutrinas positivistas, propunha a de meio século depois, somente ele narrar o
extinção da Academia e foi firmado por Montenegro episódio com riqueza de detalhes, mostra bem a
Cordeiro, Décio Villares e Aurélio de Figueiredo importância que aquele período teve em sua
(MALLET, 1890 d,i). Provavelmente, não houve carreira. Quase dez anos antes, houve quem
tempo, para que fossem sequer estudados esses cometesse erros muito piores. Numa breve
dois projetos, pois em 10 de fevereiro, Silveira Lobo, biografia de Visconti, a história era contada assim:
que encomendara o primeiro com apenas 15 dias “Em 1888, Rodolpho Bernardelli fez uma reforma
de proclamada a República, deixava o cargo por na escola e alguns alumnos se rebellaram contra
divergências com o chefe do governo provisório. este acto. Em sinal de protesto, abandonaram-na...”
Este chamou, então, para ocupar o ministério vago, (A NOITE ILUSTRADA, 1936) Provavelmente, o
José Cesario de Faria Alvim (GAZETA..., 1890a). desejo de fazer justiça ao antigo diretor levou
Visconti a relembrar os fatos para seu amigo
Talvez no intuito de conquistar a simpatia do povo Barata.
e do novo ministro para a causa da arte, o projeto
Bernardelli-Amoedo foi publicado na íntegra, na No entanto, a busca em documentos primários para
Gazeta de Notícias de 12 de março, ocupando corrigir os equívocos e preencher as lacunas
quase duas páginas do jornal. Uma intenção menos daquele relato, revelou uma riqueza de informações
nobre deve ter inspirado a caricatura não assinada, e um nível dos debates travados pelos jornais, que
que saia numa página da revista Vida Fluminense faz admirar o fato deste ano ter sido relegado ao
no primeiro dia do mesmo mês. esquecimento por seus protagonistas.

O adiamento da inauguração da EGBA, aguardada O catálogo da mostra de 18904 apresenta as 131


por seis anos, foi também matéria para mais pinturas a óleo expostas pela primeira vez ao
críticas. Desde o dia 8 de março, a capa da Vida grande público, dentre as quais, seis eram de
Fluminense retratava a revolta dos artistas. E ainda Visconti, que apresentou ainda, na seção seguinte,
no dia 20, nada havia se resolvido: um retrato a crayon. Das pinturas a óleo de Visconti,
o catálogo destaca a primeira, Ladeira do Monte
Ha longos dias estão dispostos nas salas da Alegre (paisagem), como quadro “premiado com a
Academia todos os objetos d’arte que representam medalha de ouro no último concurso escolar”.
a luta dos nossos artistas contra o meio esteril em
que se debatem; está prompto o catalogo, as aulas Em 1889, Visconti havia conquistado três medalhas
não se podem abrir, porque as salas estão tomadas na Academia: uma de prata em Pintura Histórica,
pela exposição, e esta não é inaugurada, com uma pequena de ouro em Modelo Vivo e a grande
prejuízo do publico, dos expositores e do ensino. medalha de ouro em Paisagem (GALVÃO, 1958).
(Ibid., 1890c) Infelizmente, não se pode identificar com certeza,
essa Ladeira do Monte Alegre, mas é plausível
Memórias de Visconti e sua participação na supor que seja a hoje conhecida como Menino na
EGBA de 1890 Ladeira, datada daquele mesmo ano. Em sua
primeira participação numa Exposição Geral de
Sintetizando a opinião de diversos outros autores, Belas Artes, Visconti foi premido em 1890, com o
Roberto Pontual afirmou: “Eliseu Visconti, melhor quarto lugar, ao lado de J. Batista da Costa, França
do que ninguém, reflete o momento.” (PONTUAL, Júnior, Raphael Frederico e Braz de Vasconcelos,
1976:15). E de fato, a atuação de Visconti nos todos com Menção Honrosa (FREIRE, 1916: 508).
acontecimentos de 1890 já anunciava a postura

258
1890 agita o meio artístico brasileiro e marca a carreira de Eliseu Visconti

Os comentários à exposição eram sempre ocasião do quadro com “umas folhas no primeiro plano”
para se insinuar a crítica ao ensino da Academia. combina perfeitamente com Menino na Ladeira.
Como as obras das galerias permanentes
continuassem expostas, ao mesmo tempo que as Mais política e denúncias
selecionadas para aquele evento, ficou evidente a
comparação entre o fruto daquele ensino com a No dia 18 de abril era anunciada a determinação
produção dos mais novos: do Ministro do Interior, Cesario Alvim, de que a
exposição se encerrasse no próximo dia 30, e só
O que consola, na actual exposição de pintura, á então, em 5 de maio, fossem iniciadas as aulas na
falta de cor local, é a independencia que vão Academia. (O PAIZ, 1890b) Os alunos ficaram,
revelando os pintores. O confronto d’ella com a assim, quase todo o primeiro semestre do ano,
galeria da chamada escola nacional dá esperanças ociosos.
de futuro lisongeiro, e demonstra a reacção
espontanea dos moços contra a rotina que sempre No dia seguinte a este anúncio, é criado mais um
predominou na Academia. ministério – o da Instrução Pública, Correios e
Telégrafos, que fica a cargo de Benjamin Constant,
Basta ver os paizagistas. O bom Grimm arrancou- até então Ministro da Guerra. Mais uma vez,
os das salas sem luz, onde elles copiavam renovam-se as esperanças e as disputas afloram.
paizagens de lithographias baratas, e levou-os para
o campo, pol-os na escola da natureza; ahi eles Durante o mês de maio, alguns acontecimentos
aprenderam a pintar por si... no mundo das artes chamam a atenção do jornal
O Paiz. No dia 11 é noticiado o auxílio de oito contos
Mais novos do que elles, Visconti e Baptista da de réis, que o novo ministro resolveu conceder “ao
Costa, guiados cremos, que por Zeferino e Amoedo, notavel artista nacional Décio Villares para a
aprendendo tambem na natureza, vão revelando conclusão de seu patriotico quadro A epopéa
disposições notaveis para a arte, principalmente o africana, que vai ser offerecido á municipalidade”.
primeiro, que fez n’esta exposição uma estréa A partir do dia 15, é divulgada a exposição do
brilhantissima. (GAZETA..., 1890d) quadro A Redenção do Amazonas, de Aurélio de
Figueiredo, no barracão do Largo de São Francisco
Visconti destaca-se desde cedo, e esta tônica será de Paula. E no dia 30, é anunciada a breve
mantida por toda a sua carreira. O Jornal do inauguração da exposição de 19 quadros do
Commercio de 6 de abril ocupou-se um pouco mais paisagista Antonio Parreiras, que acabara de
do pintor iniciante: chegar de sua viagem a Itália. Na mesma edição,
publica-se a nomeação de Parreiras para o cargo
Outro artista, no começo da sua carreira, o Sr. de professor interino de Paisagem da Academia.
Elyseu d’Angelo Visconti apresenta também Esta, por sua vez, anunciava, todo o domingo, o
cuidadosos trabalhos do natural. É um dos número de visitantes que recebera na semana
raros artistas, que tem conseguido pintar finda, e o horário em que continuava franqueada,
arbustos, folha por folha, sem se tornar a visitação às suas galerias.
mesquinho e amaneirado. Ha um quadro,
sobretudo, que tem umas folhas, no primeiro Porém, já no primeiro dia de junho, uma nota
plano, tratadas com uma limpidez de tintas, com anunciava que o diretor da Academia solicitava ao
uma severidade de desenho e com uma ministro que fosse nomeada uma comissão de
franqueza de toque, verdadeiramente raras. inquérito, para procurar provas que
Elyseu Visconti está em bom caminho, fossem fundamentassem as acusações feitas dois dias
quaes fossem os esforços que fizessem, para antes. (Ibid., 1890 f) Esta nota referia-se a um artigo
o arrancarem delle, já ninguem lhe incutia as publicado pelo novo colaborador da Gazeta de
falsas convenções, do estylo academico. Notícias, Pardal Mallet, que no dia 24 de abril era
apresentado aos leitores como “extraordinario e
Este trecho é parte de uma série de 5 críticas originalissimo frondeur” e cujas crônicas seriam tão
intituladas Exposição geral de 1890, publicadas freqüentes quanto possível. O jornalista já havia
pelo jornal entre 30 de março e 2 de maio. Essa chamado a atenção de Teixeira da Rocha, redator
série ressaltou, o tempo todo, o progresso que a artístico da revista Vida Fluminense, que o retratou
EGBA representava, pela orientação que tomavam em uma caricatura, a respeito de um artigo seu no
os “modernos artistas”, que se distanciavam da arte Correio do Povo, em que afirmava ser a arte da
acadêmica, julgada falsa, teatral, um vício, um palavra superior à outras. (VIDA..., 1890b) No final
“cancro roedor”. Visconti foi considerado já seguro do ano, assinando apenas com suas iniciais, Mallet
do caminho diferente que percorreria. A descrição confessará sobre a pintura:

259
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

Tinha-a na conta de paradoxo, de caçoada A seguir, passa a expor detalhadamente os aspectos


contra a geometria, reduzindo tres dimensões que, segundo sua opinião, exigiam mudanças, e é
a duas. E acceitava os pintores, e admirava- quando faz suas críticas mais severas.
os, e estava prompto a trabalhar por elles em Respondendo à reação do diretor da Academia,
attenção ao esforço psychologico empregado, Mallet publica, três dias depois, seu segundo artigo,
mas não pelo resultado objectivo que no qual, em tom de desafio, sintetiza:
conseguiam. (MALLET, 1980m)
E para que no espirito d’essa futura commissão
No entanto, ele foi um dos principais protagonistas não pairem duvidas, ou incertezas sobre as
dos debates que antecederam a reforma da accusações aqui feitas, ellas ahi vão repetidas
Academia. Nesta primeira crônica sobre o assunto, e numeradas:
ele já expõe, logo nas primeiras linhas, uma síntese 1.º - Vestutez [sic] e imprestabilidade do actual
das suas idéias: “Falla-se em supprimir a Academia regulamento, que reclama urgentes reformas,
de Bellas Artes. A conserval-a como está, melhor para as quaes já existe elaborado o projecto
é com effeito supprimil-a.” Citava a proposta dos Bernardelli-Amoedo.
positivistas como alternativa mais aceitável que a 2.º - Impropriedade do predio onde funcciona
situação atual, embora fosse contra esta atitude a Academia.
radical. A seguir, faz graves denúncias sobre o que 3.º - Incompetencia do director.
acontecia na instituição, envolvendo inclusive o 4.º - Desleixo de uma parte do pessoal docente.
orçamento destinado a ela, e aponta o motivo pelo 5.º - Anarchia administrativa, manifestada pela
qual os professores mais jovens haviam ingerencia e supremacia do porteiro, em tudo
recentemente deixado a Academia: quanto se refere á Academia.
6.º - Existencia de um syndicato para
Bernardelli e Amoedo, que eram lentes e exploração do orçamento da Academia, e que
acreditavam que a revolução de 15 de em defeza do seu monopolio não recua nem
novembro devia repercutir em todas as mesmo para a pratica de manobras indecorosas
espheras da actividade nacional e tudo refundir, pela imprensa.
Bernardelli e Amoedo vinham de apresentar um Agora, uma vez formulado o libello, é justo que
projecto de reforma radical e completo. Era eu reserve para a imprensa o direito de
preciso desgostal-os, forçal-os a demittirem-se. acompanhar o processo. (Id., 1890 b)
E foi d’isso que se encarregou o escriptor ou
escriptores que com o pseudonymo de Cosme E após fazer sua apologia à imprensa, fecha o
Peixoto appareceram n’uma critica covarde, artigo declarando que ela poderia cumprir bem seu
porque era anonyma mesmo quando se a papel, posto que se tratava do ministério de
queria responsabilisar, e deshonesta porque Benjamim Constant, que ele considerava bastante
aggredia ao envez de criticar. (Id., 1890a) receptivo e devotado ao interesse público: “É sobre
elle que pousam actualmente todas as esperanças
Parece que este texto assinado com pseudônimo, do artista brasileiro.” Novamente, Pardal é
foi o estímulo para que o então secretário da caricaturado na Vida Fluminense, desta vez
Sociedade dos Homens de Letras do Brasil, Pardal aparecendo na capa, a espetar, com um florete,
Mallet, abraçasse a causa dos artistas plásticos5. uma colméia. (VIDA..., 1890 f)
O longo artigo apresenta, então, seus argumentos
em defesa da continuidade da Academia, e aquele Começa o debate artístico
que o escritor reputa ser o mais importante, é no
mínimo sugestivo: Poucos dias depois, Mallet inicia uma série de
crônicas que ele vai numerando, para agora
Elle é uma lei darwinica, é a historia de todo o esmiuçar cada um dos pontos colocados,
desenvolvimento biologico, é o principio de que mostrando-se empolgado com o desafio:
a funcção faz o orgão. Não temos artistas! não
temos meio artistico! vamos a fingir que temos, A posição especial em que o Sr. conselheiro
vamos exercer esta funcção, porque o orgão Maia me collocou, não só requerendo uma
de que necessitamos apparecerá com este commissão de inquerito para averiguar
exercicio. accusações aqui feitas, mas tambem incluindo
—— um exemplar da Gazeta onde vinha o meu
Mas, si procedem estes argumentos em favor primeiro artigo no officio que dirigiu ao general
da continuação da Academia, é preciso Benjamin Constant, força-me á justificação
reformal-a. completa do libello que formulei contra a

260
1890 agita o meio artístico brasileiro e marca a carreira de Eliseu Visconti

Academia de Bellas Artes, mesmo antes de Só depois passa a demonstrar a necessidade de


nomeada a referida commissão. um novo prédio para o funcionamento desta nova
E eu gostosamente presto-me ao caso... Academia. E assim, Mallet prossegue a cada
A primeira proposição enunciada affirma não crônica, defendendo um dos pontos do seu libelo,
só a vetustez e imprestabilidade do atual sempre levantando e debatendo todas as idéias
regulamento, mas também a conveniencia de que circulavam sobre a questão, e demonstrando
promulgar o projeto de reforma Bemardelli - que pesquisava sobre cada item antes de escrever.
Amoedo. (MALLET, 1890c) Procurou trazer a data do decreto de nomeação
do diretor e de cada um dos velhos professores da
Bacharel em Direito, Mallet passa a explanar sobre Academia, e quanto a estes, não demonstrou
o assunto mostrando conhecimento de causa. Traz nenhuma condescendência. Sobre o diretor,
trechos do regulamento atual da Academia, conselheiro Dr. Ernesto Gomes Moreira Maia,
ressaltando a urgência em substituí-lo e re-publica, confirmando sua fama de maldizente, o autor
em grande parte, o projeto encomendado pelo conclui:
ministério.
Pesa sobre si a responsabilidade de todo o
Animado ao mesmo tempo do sentimento o atrazo e de todos os desleixos d’esse
mais liberal e do desejo de fazer efetivo o nosso estabelecimento de instrucção. Tibio por um
desenvolvimento artístico, este projeto tem a lado, incompetente por outro, S. Ex. se tem
grande vantagem de não estagnar professores prestado ao serviço de todas as conspirações,
lá na Academia, de deixar sempre a porta ora com uns, ora com outros, sempre com
aberta aos novos. É, enfim um projeto de aquelles que parecem ter a influencia do
artistas. momento. [...]
Ao S. conselheiro Maia resta em synthese um
No segundo artigo da série, antes de entrar na recurso – pedir a sua aposentadoria.
questão das condições precárias do prédio, Mallet Si a não pedir, é preciso aposental-o. Em nome
retoma a idéia da acabar com a Academia, que da Arte, em nome d’esse talento brasileiro que
circulava nas conversas de café, e havia sido agora apparece tão grande, é preciso pôl-o para
levantada pelo segundo projeto dirigido ao ministro fora da Academia. (Id., 1890e)
do interior, o dos positivistas. O escritor considera
que em um ponto todos estavam de acordo – a Na crônica sobre os professores, inicia retomando
necessidade de subvencionar as artes plásticas. uma portaria do governo, de 1861, “chamando a
“Esta necessidade é obvia. E nenhum Estado póde attenção do director sobre o deleixo [sic] e
a ella se furtar.” (Id., 1890d) Após defender essa abandono em que os lentes da academia tem os
premissa, passa a analisar as razões psicológicas seus cursos. E desde então pouca differença existe
que determinavam o anti-academismo do segundo no procedimento do pessoal docente.” (Id., 1890f)
grupo. Além da desmoralização da atual Academia, Passa a justificar cada um dos professores que
ele aponta ainda a influência das tradições pouco mesmo podiam realizar devido às condições
européias sobre nossos artistas, e então demonstra atuais, e então considera:
porque se posicionava contra a extinção:
Afóra estes, existe a velha guarda que pelo
Só na Europa existe arte velha e sedimentada; prestigio de seu nome devia ser a zeladora
existem escolas differenciadas em seu impeccavel do nosso desenvolvimento
processualismo, guerreando-se, rivalisando-se. esthetico, mas a quem immediatamente depois
Aqui existe por fazer. do director cabe a responsabilidade do triste
A revolta lá na Europa consiste em destruir, a estado de cousas aqui notado.
revolta aqui no Brasil consiste em construir. [...]
As Academias não prestam, são absorventes A seguir, ele critica duramente, um a um, aqueles
e atrophiadoras, trabalham por esterilisar os que julgava indefensáveis: Maximiano Mafra, Victor
artistas n’uma só feitura e n’uma só modelagem. Meirelles, Pedro Américo e também Bittencourt da
Mas começam a não prestar 50 annos depois Silva, aposentado e não substituído da cadeira de
de constituidas. Não nos serve, pois, a revolta Arquitetura, que ainda exercia influência nociva na
lá dos outros, porque ainda não temos Academia.
academia.
Vamos construil-a, porque ella é necessidade No quinto artigo da série, resume os argumentos
dos tempos de agora! E vamos construil-a na aos dois últimos pontos do seu libelo e conclui com
certeza de que ha de ser preciso destruil-a mais denúncias:
d’aqui a 50 annos!

261
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

A velha guarda da Academia, os imprestaveis Sujeita á discussão é approvado unanimemente


e os nullos deffraudam com effeito os cofres o artigo 1º e prejudicados os 2º e 3º.
publicos porque recebem dinheiro para fazer Sobre o artigo 4º suscitou-se longa discussão,
umas cousas que não fazem, porque ficando, por proposta do Sr. Emilio Rouéde,
encarregam-se de promover o nosso adiada para melhor opportunidade e regeitadas
adiantamento artistico, e cruzam os braços na as propostas dos Srs. Teixeira da Rocha, Luiz
inercia criminosa de quem recebe salario e não Ribeiro e P. Netto e encerrada a discussão.
trabalha. (GAZETA..., 1890f)
E, cuidando apenas de seus interesses
pessoaes, cuidando apenas em conservar os O Paiz noticiou o resultado parcial e acrescentou
logares que occupam, não vendo que estes um complemento: “Foi approvado o art. 1º da
interesses pessoaes estão em guerra aberta proposta, concordando todos os presentes que a
contra o interesse geral, formaram syndicato existencia da academia era inutil e nociva.” (O PAIZ,
para oppor-se a imprescindivel reforma que os 1890 g) Parece que todos concordavam com as
deve desalojar de suas sinecuras. primeiras palavras do Pardal: “A conserval-a como
São pelo menos elles os responsaveis pela está, melhor é com effeito supprimil-a.” Mas não
critica anonyma de Cosme Peixoto que visava quiseram se comprometer nas questões mais
o intuito de desgostar os novos. particulares: a administrativa e a docente. O artigo
Foram elles que intrigaram junto ao Sr. Cesario quarto da proposta era justamente a alternativa
Alvim, que levaram um numero da Vida dada pelo projeto dos positivistas à extinção da
Fluminense, onde S. Ex. vinha caricaturado, a Academia. No entanto, não houve consenso quanto
proposito de cousas da Academia, para às Oficinas de Belas Artes.
conseguir que se não fizesse a reforma.
Rua! com elles. (Id., 1890g) Nesta primeira reunião, também foi aprovado
unanimemente um voto de louvor ao jornalista
Os artistas se reúnem Pardal Mallet, por sua brilhante atitude e
inestimáveis serviços prestados à arte brasileira, e
No dia 17 de junho, os jornais anunciavam uma nomeada uma comissão de cinco artistas para lhe
reunião de artistas realizada no dia anterior, no dar ciência oficial, da qual fez parte Visconti. Foi
Derby-Club. A Gazeta de Notícias foi mais proposto e aprovado ainda, que se estendesse o
detalhada, transcrevendo a ata na íntegra, que voto de louvor também a José do Patrocínio, redator
listava o nome dos 33 artistas participantes. É chefe da Cidade do Rio, e à sociedade Derby-Club,
interessante notar a ausência dos irmãos que lhes cedia o salão.
Bernardelli, de Amoedo, Décio Villares e
Montenegro Cordeiro. Encabeçava a lista, Aurélio Os debates se aquecem
de Figueiredo, que foi eleito presidente da mesa.
Pelas proposições apresentadas, pode-se concluir A nova escola ou ateliers livres? – Este era agora
que ele pretendia conseguir o apoio dos artistas o tema da discussão! E já estava destacado numa
para o projeto apresentado por si e seus carta publicada no dia seguinte, dirigida ao Dr.
companheiros: Rozendo Moniz, professor de Anatomia e fisiologia
das paixões, e assinada por Rodolpho Bernardelli:
“Art. 1º – É ou não é util a existencia da
Academia de Bellas Artes, no estado de O fim, porém, do presente é o seguinte: no seu
desmoralização em que se acha ? artigo do Paiz de hontem, o senhor allude a
Art. 2º - É ou não é bem gasta a subvenção um professor que, sem estar doente, tem
dada pelo governo, e esta subvenção tem deixado de comparecer para dar aula; essa sua
produzido os resultados a que é destinada ? accusação, sem dizer o nome, póde prejudicar
Art. 3º - Actualmente a corporação docente da aquelles pacatos professores que tão
academia está na altura de pertencer a uma systhematicamente ganham o seu ordenado.
Academia de Bellas Artes ? Venho, pois, declarar que esse professor sou
Art. 4º - Não será mais util ao ensino artistico eu, eu que tenho brio e amor á arte, para nunca
que se applique esse dinheiro subvencionando mais comparecer emquanto não se fizer a nova
Officinas de Bellas Artes, a moços, que tendo escola ou ateliers livres. Declaro mais que não
dado provas publicas de talento, queiram peço licença nem demissão, deixo que o
estudar bellas artes nos grandes centros governo me demitta a bem do serviço publico.
europeus, mediante concursos, exposições, etc O meu atelier estará sempre aberto para todos
?” os moços que quizerem aprender.

262
1890 agita o meio artístico brasileiro e marca a carreira de Eliseu Visconti

Feitas estas declarações, pretendo não voltar Os fatos que se sucederam, mostram que os dois
mais á imprensa, aguardando porém que o lados da questão resolveram se unir a fim de tomar
governo tome a resolução de acabar com uma providência. Uma nota do dia 21 de junho
aquella instituição mumificada, e tão levemente anunciava:
desmascarada pelo illustre Pardal Mallet.
(BERNARDELLI, 1890) Reunidos na officina Bernardelli, os artistas
Rodolpho Bernardelli, Rodolpho Amoedo,
Para se ter uma idéia de como andavam as coisas Henrique Bernardelli, Baptista Castagnetto,
dentro da Academia, é particularmente interessante Decio Villares, Manoel Teixeira da Rocha,
o último parágrafo do citado artigo do professor de Aurelio de Figueiredo, Francisco Ribeiro e
Anatomia: Emilio Rouède, convencionaram convidar os
seus collegas pintores, esculptores, architectos
Quanto ao dilemma de só fazer jus ao e gravadores para uma reunião que se
ordenado, leccionando para os bancos vasios, effectuará hoje, ao meio-dia, no salão do Derby
ou excluir-me do quadro dos professores, não Club, a fim de assignarem a petição que devem
me presto á intimativa. Fique ao criterio do dirigir ao cidadão ministro da instrucção publica.
governo, devidamente informado, resolver (O PAIZ, 1890h)
entre a minha permanencia na cadeira e a
insubordinação de alguns moços, visivelmente Apenas Montenegro Cordeiro não aparece mais no
desencaminhados por insidiosos palco dos acontecimentos. Os demais signatários
conspiradores, em exercicio activissimo dentro dos dois projetos, juntamente com outros artistas
e fóra da academia, os quaes não descansam, importantes à época, resolvem encaminhar ao
emquanto não derrubarem tudo. (MONIZ, 1890) ministro um pedido referente ao ponto que já era
pacífico. No dia seguinte, a reunião era noticiada:
Após agradecer aos artistas pelo voto e a R.
Bernardelli pelos elogios em sua carta, Mallet Por acclamação foi nomeado presidente da
reinicia o debate: “... resta agora saber o que é assembléa o illustre artista Rodolpho
que se vai pôr no logar da velha Academia. Sim, Bernardelli, que escolheu para seus secretários
porque no final das contas o governo não ha de os seus distintíssimos colegas Rodolpho
simplesmente destruir, precisa construir um Amoedo e Decio Villares.
substitutivo.” E defende seu ponto de vista em Lida a representação, documento
relação ao impasse: importantissimo, que obteve unanimes
applausos, foi em seguida assignada por todos
Mas o academismo só é prejudicial, atrophiador os artistas presentes e, segundo deliberação
e oppresivo, quando chegou a sedimentar da mesma assembléa, estará até o dia 24, no
tradições, quando cunhou moldes definitivos, barracão de exposição do quadro alegorico á
dentro dos quaes desapparece a Redempção do Amazonas, á disposição das
individualidade de qualquer. pessoas, artistas ou amadores de bellas artes,
A vantagem de crear escolas diversas! que queiram subscrevel-a. (Ibid., 1890i)
Mas escola – methodo e systema – é tão
atrophiadora como a Academia, é uma A petição em forma de abaixo-assinado aproveitava
academiasinha; e depois não vem ao caso seis dos considerandos do projeto positivista6,
porque nós não podemos ter escolas sem excluindo aqueles que julgavam uma reforma inútil
primeiro ter Arte. (MALLET, 1890h) ou que defendiam a proposta dos ateliers livres, e
concluia “...que a atual Academia das Bellas-Artes
É neste artigo que Mallet ressalta o ponto que julga do Rio de Janeiro, além de não preencher os fins a
mais importante no projeto Bernardelli-Amoedo, o que é destinada, é nociva, e vêm pedir ao digno
que prevê uma academia sem caráter de fixidez: ministro da instrucção publica a sua extincção.” (O
“Marcando 10 annos para periodo maximo da PAIZ, 1890p)
actividade de lente, marcando 5 para duração da
gerencia de cada director, ella ficará Um terceiro projeto
constantemente a renovar o pessoal, a dar logar
aos novos.” E é justamente o fato deste ponto Mas este ato conjunto não significava que os dois
jamais ter sido observado na prática, o que mais grupos concordassem com os destinos do ensino
desgostou os futuros críticos desta reforma que se da arte no Brasil. Três dias após a assembléia que
desenhava. apresentava a petição ao ministro para o
conhecimento e assinatura dos artistas, o jornalista
Mallet se vê compelido a retomar o debate:

263
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

Com o prestigio do talento e da sua posição


artistica, Aurelio de Figueiredo começou 1º anno – Aritmetica e geometria. Historia das
hontem, no Correio do Povo, uma serie de Artes. Desenho de figura.
artigos, tendentes a insinuar e justificar a 2º anno – Sciencias naturaes em geral. Physica
extincção completa da actual Academia de e chimica, especialmente applicadas ás artes.
Bellas-Artes e a sua substituição apenas por Perspectiva. Anatomia. Desenho de modelo
ateliers, esparsos, subvencionados pelo vivo.
governo. (MALLET, 1890 i) 3º anno – Physiologia applicada ás artes.
Archeologia. Desenho de modelo vivo e de
E para munir seu ponto de vista de maior paysagem do natural.
credibilidade, Mallet começa por transcrever os ——
onze artigos do projeto elaborado por Montenegro Assim preparado com este curso, rapido alias
Cordeiro, Décio Villares e Aurélio de Figueiredo. e não sobrecarregado, póde o alumno tratar
Em seguida, resume seus argumentos contra: de fazer a sua individualidade como bem quizer,
livre de regulamentações precisas, mas já apto
O projecto supra é oppressivo. Subordina o elle mesmo a saber o que quer e a chegar á
artista ao governo como de forma alguma outra sua especialização artistica.
é possivel. [...] Fica-lhe então permittido o tomar um professor
Tolhe o desenvolvimento esthetico do paiz, não particular, ou matricular-se em um dos ateliers
permittindo que particular adquira a posse de que o Estado para tal effeito deve subvencionar.
trabalho artistico porque o § IV do art. 6º – em E ahi torna-se perfeitamente indifferente que o
que se regulam as obrigações da primeira atelier funccione no predio onde funccionou a
classe de pensionistas, a dos pensionistas que academia, ou em outro qualquer logar. Elle
recebem subvenção para trabalhar, para fazer deve, porém, estar subordinado á fiscalisação
Arte, ordena que elles percam a posse material do director da academia, porque as artes
dos seus trabalhos e que estes sejam precisam independer do governo, fazer vida á
recolhidos ao Museu. [...] parte, dirigirem-se a si mesmas. (Id., 1890j)

E mais ainda: Um dos pontos que o articulista havia ressaltado


no vetusto regulamento atual da Academia era a
Não diz uma palavra sobre o ensino superior exigüidade das exigências para o seu ingresso: que
da Arte a que entretanto têm direito as vocações o aluno soubesse ler, escrever e contar. Na última
fortemente accentuadas, e que é uma crônica desta segunda série, seu autor faz um
necessidade para o exercicio completo das resumo em tópicos do resultado de toda a
funcções organicas da nação. discussão, e então conclui:
No dia seguinte, dando continuidade à sua nova O Sr. Benjamin Constant, recebendo hontem
série de artigos, Mallet procura desembaralhar as uma commissão, composta de Rodolpho
questões do ensino artístico, identificando as Bernardelli, Rodolpho Amoedo, Aurelio de
características dos três níveis que se mantêm até Figueiredo, Teixeira da Rocha, Castagnetto,
hoje: A difusão do ensino elementar do desenho – Ribeiro, e do escriptor d’estas linhas, declarou
reclamada por todos – não entrava na questão, pois que pretendia gradativamente fazer a reforma
pertencia ao plano do ensino primário, que a da instrucção primaria, da secundaria, da
Constituição acabara de tornar obrigatório; o superior e da artistica. [...]
segundo nível, o do preparo intelectual dos que se S. Ex. de toda esta discussão aproveitará a
destinam à profissão artística; e o terceiro, o da apresentação de tres projectos: o Bernardelli-
formação da individualidade do artista. Para estes Amoedo, o Decio-Aurelio, e o meu que é
dois últimos, o Pardal divulga, então, sua proposta conciliador. [...]
de conciliação dos partidos antagônicos: Bem orientado e criterioso, dispondo d’estes
elementos todos, o Sr. Benjamin Constant está,
Seja como fôr, adoptem o projecto que
por conseguinte, nas condições perfeitas de
adoptarem, existirá o Museu. Junto a elle exista
tornar-se o pai e o constructor da Arte Brasileira.
a academia do ensino secundario, cujo
(Id., 1890k)
regulamento póde ser feito á vontade, uma vez
que tenha o seguinte arcabouço: Tal importância adquiriu o jornalista no debate das
Preparatorios exigidos: Portuguez, francez ou questões do ensino da arte, que acompanhou os
italiano, aritmetica, geographia e historia. artistas na entrega da petição, provavelmente a
Curso: convite dos mesmos. Após onze artigos sobre a

264
1890 agita o meio artístico brasileiro e marca a carreira de Eliseu Visconti

questão da Academia, Mallet ainda publica um Aurelio de Figueiredo, pintor.


intitulado Os novos, no qual engrandece a nova Manoel Teixeira da Rocha, pintor,
geração de profissionais de várias áreas, e em Francisco Ribeiro, pintor,
especial... Baptista Castagneto, pintor,
Emilio Rouède, pintor,
Na esphera da actividade artistica é espantoso Henrique Bernardelli, pintor. (O PAIZ, 1890j)
o movimento e a pujança da tal gente nova,
verdadeiramente nova, que quasi nada fez Para manter o protesto e esvaziar a Academia, o
ainda, que ainda não tem a consagração de grupo que se reuniu na oficina Bernardelli propõe
uma victoria completa, mas que ahi vem forte agora a experiência dos “cursos livres de belas-
e resoluta, destinada a marcar em periodo artes”. Os jornais passam a publicar as listas dos
aureo a sua passagem fecundante. [...] patrocinadores, dentre eles dois bancos e alguns
Aos novos, o Brasil! dos próprios artistas. A soma publicada chegou a
Os novos podem ter no maximo a loucura, que 4:000$000 (quatro contos de réis). No dia 6 de julho,
é o portico do genio; o velhos têm no minimo a uma nota anunciava a abertura dos cursos para o
senilidade, que é o portico dos cemiterios. (Id., dia 15; o local provisório, que seria o barracão
1890l) montado no largo de São Francisco de Paula, para
a exposição do quadro de Aurélio de Figueiredo,
Os novos, termo usado já em vários outros artigos que se encerrava nesta mesma data; e a abertura
por Mallet, é aquele pelo qual será conhecida esta do livro de matrícula para os interessados nos
geração de artistas que aproveitou a mudança cursos de pintura, escultura e arquitetura. (Ibd.,
política do país para lutar por melhorias também 1890k) Nos dias que se seguem, são publicadas
para a sua classe, ao lado de seus jovens mestres. três listas de inscritos, somando cinco para o curso
Entre os nomes citados neste artigo, estão Fiúza de escultura e 25 para o de pintura, entre estes,
Guimarães, Raphael Frederico, João Batista da Eliseu Visconti, João Batista da Costa, Fiuza
Costa e Eliseu Visconti. Guimarães e Bento Barbosa. (Ibid., 1890l,m,n)
Experimentando a idéia dos positivistas Logo após o início dos cursos livres de belas-artes,
o general Deodoro da Fonseca fez uma visita à
Entregue a decisão nas mãos do ministro, após Academia, acompanhado de senhoras da sua
exaustivos debates, e com a informação de que a família e do diretor, que lhe mostrou as galerias e
reforma do ensino artístico seria a última a ser todas as dependências. A visita foi chamada de
realizada, nada mais a fazer do que esperar? No inesperada, minuciosa e demorada. (Ibid., 1890o)
dia 26 de junho, a Seção livre do jornal O Paiz No dia seguinte, é finalmente publicada, na íntegra,
publicava uma circular: a petição dos artistas ao Ministro do Interior, um
mês após a sua redação. (O PAIZ., 1890p).
Não podendo ficar paralysado o estudo das
bellas-artes, e estando os ex-alunos da O barracão não serviu apenas para as aulas dos
academia moralmente obrigados a não cursos livres, abrigou também a primeira exposição
aproveitar o pouco material de ensino que lá de pintura de Belmiro de Almeida, que se
se fornece, a commissão promotora da encontrava morando em Roma. A exposição
mensagem que acaba de ser entregue ao inaugurada em 21 de agosto ficou ali por pouco
governo pedindo a suppressão da academia, tempo. No dia 27 do mesmo mês, era anunciada a
resolveu organizar cursos publicos e gratuitos mudança dos cursos livres de belas-artes (que
em local que será mais tarde annunciado. Para contavam 40 dias), para o prédio do antigo Atelier
a realização desta idéa pedem os abaixo Moderno, á rua do Ouvidor, 45, por haver expirado
assignados a subvenção do publico, subvenção o prazo da licença concedida pela municipalidade,
que será provisoria, porque o Sr. general para a permanência do barracão no largo S.
Benjamin Constant comprometteu-se a resolver Francisco de Paula. (Ibid., 1890q,r)
satisfactoriamente e dentro em breve o
problema do ensino artistico entre nós. Como Vence a idéia da nova escola
processo de recolher a subvenção, os abaixo
assignados deixam listas nas redacções dos O mês de setembro começa com a notícia de que
jornaes. também o Ministro da Instrução Pública fez sua
Capital Federal, 25 de junho de 1890. visita demorada às galerias e dependências da
Rodolpho Bernardelli, esculptor. Academia das Belas Artes, acompanhado do seu
Decio Villares, pintor. diretor e dos professores Victor Meirelles e José
Rodolpho Amoedo, pintor. Maria de Medeiros. (Ibid., 1890 s ) Apesar de

265
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

esvaziada a Academia, seu diretor procurava ainda 26 de novembro, (Ibid., 1890 y) e não recebeu muita
reabilitá-la. Conseguiu verba extra para uma atenção da imprensa. O nome do antigo Atelier
excursão à serra de Teresópolis, para os alunos Moderno foi sempre atrelado aos cursos que ali
da aula de Paisagem, do professor recém funcionaram, nos pequenos anúncios que foram
contratado, Antonio Parreiras; e concedeu o prêmio publicados sobre a exposição. Os raros
de Viagem à Europa ao aluno Oscar Pereira da comentários se mostraram pouco entusiasmados:
Silva. (Ibid., 1890u) Os jornais noticiavam, ainda, o
número de visitantes à Academia em cada semana; Passei, ha dias, pelo Atelier moderno. Lá
e a exposição do Panorama do Rio de Janeiro, de estiveram expostos os trabalhos dos discipulos
Victor Meirelles, instalado na rotunda da Praça revolucionarios da escola livre.
Quinze de Novembro, cuja inauguração foi adiada Impressão tardia a que dou.
para janeiro, por conta de estragos sofridos no Como arte revolucionaria deve-se dizer que ali
arsenal de guerra, onde o panorama ficou nada existia que pudesse dar semelhante
depositado durante seis meses. (Ibid., 1890t,v) inducção. Mas havia um grande número de
telas agradáveis.
Finalmente, o Ministro da Instrução Pública cumpre Havia, por exemplo, as telas de Visconti, que,
sua promessa: No dia 23 de outubro de 1890 é na sua qualidade de esperança, abusa
publicado o seu projeto para a Instrução Primária consideravelmente do verde. As suas
e Secundária, esta última incluindo desenho, paizagens dão os ares de parque inglez, pelos
música e cinco línguas estrangeiras. No dia seus tons de verde tenro, muito cuidado, de
seguinte, Benjamim Constant publica o projeto de jardim. Por isso mesmo, um só quadrinho em
reforma das Faculdades de Medicina do Rio de que não se nota esse abuso é o melhor e é
Janeiro e da Bahia, e a criação da Escola Superior aquelle que nos mostra um pardieiro amarello
de Farmácia. Quinze dias após, são aprovados os sob a ramada de uma bella arvore bem colorida.
estatutos para a Escola Nacional de Belas Artes, Notarei aqui um mimo do Bento Barbosa,
pelo decreto n. 983, do Governo Provisório da pequeno quadro de genero, delicioso e
República. verdadeiro. (J.R., 1890)

E no dia 20 de novembro, na Secretaria da Mas o nome pelo qual ficou conhecida esta
Instrução Pública, tomava posse o diretor da nova experiência foi dado por Pardal Mallet, e lembrado
escola, Rodolpho Bernardelli (Ibid., 1890x), que dois por Visconti. O cronista que andava sumido das
dias depois, apresentou-se para assumir suas páginas da Gazeta de Notícias, desde o início de
funções, em grande estilo: agosto, quando embarcara para o Rio da Prata,
como correspondente do jornal, manifestou-se
Ao entrar no saguão, o glorioso artista foi novamente três dias após a inauguração da
enthusiasticamente acclamado pelos alumnos exposição, assinando apenas com suas iniciais:
e funccionarios do estabelecimento, que o
cobriram de flores. E venha-me agora o Cosme Peixoto com todas
As escadas do edificio até o gabinete do as más theorias! Venha-me até o Decio Villares
director estavam tapetadas de flores e a com as suas pinturas positivistas de caixinhas
secretaria do eximio artista também de phosphoro!
festivamente adornada. Eu venho da exposição dos trabalhos
Bernardelli percorreu todo o edificio, executados no Atelier Livre. E quasi que
acompanhado por altos funccionários da começo a aceitar e comprehender a pintura.
secretaria do interior e da instrucção publica, [...]
director, secretario e professores do instituto ... porém, o que se encontra na actual
nacional de musica, senhoras e cavalheiros, e exposição do Atelier Moderno. ... télas que pelo
depois de servido profuso lunch retirou-se. menos são outros tantos documentos de
(Ibid., 1890w) psychologia, onde se pôde apprehender a
elaboração cerebral de interpretar a natureza.
Vitoriosos, os “insubordinados” alunos e Frederico, Fiuza e Visconti (colloco-os em
“insidiosos” professores podiam voltar agora para ordem alphabetica), são temperamentos que
a “nova escola”. Antes de abandonar o prédio do rivalisam entre si, e rivalisam com outros já
antigo Atelier Moderno, organizaram ali uma acclamados e vulgarisados pela notoriedade,
exposição dos trabalhos realizados durante os para impôr aos outros as suas visualidades
quatro meses de duração dos cursos “livres” ou pessoaes, nevroticas e doentias, como as de
“públicos” de belas-artes, como eram chamados todos os artisticas.
pela imprensa. A exposição foi inaugurada no dia

266
1890 agita o meio artístico brasileiro e marca a carreira de Eliseu Visconti

E, quando a gente sae d’aquelle salão, onde O verde característico da nossa terra foi uma busca
está manifesta e clara a justificativa da constante na carreira de Visconti. Já desde a
revolução artistica que elevou Bernardelli a exposição do Atelier Livre, inaugurada oito meses
director da escola de Bellas Artes, traz no corpo após esta EGBA, foram notados “seus tons de
todo inteiro uma sensação gostosa de banho verde tenro”, embora o crítico considerasse seu
de luz, de crenças e de trabalho, que fortifica o uso abusivo. (J.R., 1890) Datadas deste ano, temos
espirito e o faz sonhar na grandeza de nossa a Paisagem com figura, do MNBA, e Mamoneiras
terra brasileira. (MALLET, 1890m) que é considerada por Jorge Coli como proto-
Segall, pela comparação com a tela do pintor
Diversamente de seu colega de O Paiz, Mallet lituano, Bananal, de quase 40 anos mais tarde.
julgou que o resultado da exposição validava a
revolução artística. Sem dúvida, os comentários Provavelmente pintado no Atelier Livre, ou logo em
dos dois críticos coincidem com o lado da questão seguida, o auto-retrato mais antigo de Visconti de
ao qual cada um dos jornais mostrou sua simpatia, que temos conhecimento, traz também vários tons
durante aquele ano, através dos artigos que de verde na paisagem esboçada ao fundo. Seu traje
publicou. é insólito, pois combina terno branco e gravata com
um chapéu de palha, que parece testemunhar o
Ambos, porém, dão destaque a Visconti, que viria trabalho feito ao ar livre.
a ser aquele que relembraria parte dessa história
às gerações futuras. O orgulho do jovem Eliseu É importante ressaltar, que Visconti já se dedicava
em participar daquela experiência contestadora a temas brasileiros mesmo antes de todo esse
ficou registrado em uma pintura sua, datada de 24 debate, como em Casebre no fim da praia do
de setembro de 1890, na qual se pode ler: Atelier Flamengo, de 1888, e Mamoeiro, de 1889, do
Livre, e a dedicatória a Julio de Magalhães Macedo, acervo do MNBA – para citar apenas algumas telas
colega que com ele fez parte da primeira lista de conhecidas hoje. Estas provavelmente fizeram
inscritos para o curso livre de pintura. parte da exposição dos trabalhos dos alunos da
Academia, visitada por Teixeira da Rocha, em
Reflexos na pintura de Visconti janeiro de 1890. Após criticar duramente os
trabalhos das aulas de desenho e pintura, o colega
Estudando a obra e as idéias sobre arte declaradas dá um Bravo! para os estudos de Visconti da aula
por Visconti, mesmo décadas depois, pode-se de paisagem. (VIDA..., 1890a)
perceber o embrião nos acontecimentos de 1890.
Desde as críticas à EGBA, no início do ano, falou- Também do exterior veio o reconhecimento.
se muito sobre a questão da arte nacional: Visconti conquistou uma medalha por mérito
especial, na Exposição Internacional de 1893, em
Quem visita a nossa Academia de Bellas Artes Chicago, EUA, por oito paisagens a óleo. Entre elas
não sente a impressão agradavel do viajante estava pelo menos uma das várias Lavadeiras que
que volta á sua terra, do homem que entra em realizou em 1891.
sua casa. O ar que alli se respira não é o nosso
ar, aquelles não são os nossos costumes, não Na primeira EGBA organizada pela nova escola,
é aquélla a nossa gente, não é assim a nossa em 1894, Visconti, apesar de se encontrar em
paizagem, e portanto, aquella não é a nossa Paris, participou com dez pinturas, dentre as quais
arte, não é a arte nacional, não é a fixação na cinco paisagens e uma intitulada Bananeiras. Assim
téla e no marmore da vida, da alma brasileira. se referiu a algumas delas, um cronista da
Na galeria em que estão expostos os quadros exposição:
novos, em cuja honra foram abertas as portas
do velho edificio, que alli vive esquecido em N’estas tres télas o que eu noto como
um becco, ha aqui e acolá umas abertas para dominante é uma grande belleza de colorido,
esse ceu; ... verdes de tonalidades alegres, uma cuidada execução das folhas e mesmo das
abrilhantadas pelo sol; é preciso procurar a arvores, uma esplendida escolha do verde, que
nossa natureza n’uma pequena paizagem que é caso raro na exposição, o verde d’aqui, o
Hypolito Caron pintou em Juiz de Fóra, em uma verde verdadeiro, considerada a luz como
outra de Pombal, de Rodolpho Amoedo, e em exacta. (J.B., 1894)
outras de França Junior, de Visconti, de
Baptista da Costa, e de poucos mais. Infelizmente, não sabemos apontar todas as
(GAZETA..., 1890d) paisagens expostas nesta ocasião, apenas é
possível citar aquela Lavadeiras premiada em
Chicago e uma paisagem da coleção Lily Marinho.

267
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

Mas, muito provavelmente, eram todas pintadas Vários outros autores concordam com essa
ainda aqui, antes de Visconti partir, em 1893, para posição, entre eles, Flávio de Aquino, Frederico
o gozo do seu Prêmio de Viagem à Europa. Morais, e Mário Pedrosa, todos comentando sobre
o impressionismo viscontiano:
Assim que voltou, após oito anos, realizou sua
primeira exposição individual, na ENBA, em 1901, Trouxe-o da França ainda quente das
para mostrar sua produção daquele período, todas discussões, vivo; transformou-o, ante o motivo
obras realizadas na Europa. Porém, em sua brasileiro, perante a côr e a atmosfera luminosa
participação na EGBA de 1902 – com um total de do nosso país (AQUINO, 1949).
25 obras – além de várias daquelas, podemos
identificar, pelos títulos, algumas paisagens ... mas Visconti é o coroamento do
brasileiras: Igreja da Candelária; Igreja do Carmo; Impressionismo no Brasil, aquele que o
Perfil da nossa baía, Tarde de julho (Pão de açúcar). enraizou na terra brasileira e o impregnou de
Mas além das paisagens, notamos que os verdes uma sensibilidade especificamente nossa
invadiram também seus retratos: “... Visconti expõe, (MORAIS, 1980: 91).
por sua vez, notabilissima collecção de belli
retratos, tratados com um namoro especial do Mais tarde, no Brasil, sob a luz tropical ainda
nosso ambiente tropical; muitos destes feitos en indomada na nossa pintura, Visconti é um
plein air.” (MORALES DE LOS RIOS, 1902) conquistador de atmosfera. E aquela ciência
Felizmente conhecemos dois destes magníficos da luz e do colorido que aprendeu em França
retratos: o do Dr. Romeiro e o do Sr. Simas . vai servir-lhe agora para dominar o vapor
Sugestivamente, Visconti apresenta ainda uma atmosférico. Será esta a sua grande
pintura intitulada Os novos, a qual, embora não contribuição. [...]
saibamos exatamente o que retrata, foi descrita Pintor até a raiz dos cabelos, êle compreende
pelo crítico como “inspirada no nosso sol e suas que o destino de sua arte está na vitória sobre
reverberações”. aquêles elementos. Os matos cariocas, a serra
de Teresópolis, travam com êle um diálogo
Para não repassarmos uma a uma as participações misterioso (PEDROSA, 1950: 6).
do pintor nas exposições anuais do Rio de Janeiro7,
lembraremos apenas mais algumas telas, em que Orientação para novas atitudes
se percebe uma preocupação especial de Visconti
As escolhas que Visconti fez, como bolsista do
em retratar nosso verde e nosso sol. Em torno de
Estado Brasileiro em Paris, são sempre apontadas
1910, temos Morro de Castelo; Recanto do morro
com admiração, pela novidade que representaram
de Santo Antonio, Paisagem de Santa Teresa e
em relação às de seus antecessores.
Crisálida; da década de 1920, Baixada de Vila Rica,
Garotos da Ladeira e A visita, Uma lição no jardim; Quando os concursos para o prêmio de estudos
da década de 30 são, Na alameda, O batizado da na Europa foram restabelecidos pela ENBA, em
boneca, Solar de Teresópolis e Descanso em meu 1892, Visconti foi o primeiro classificado em todas
jardim; e dos anos que antecederam sua morte em as provas. Seguiu para Paris em março do ano
1944, Passeio no parque, Roupa estendida, seguinte. E apenas três meses após sua chegada,
Quaresmas e Para o banho.8 classificava-se em sétimo lugar entre os 220
concorrentes iniciais, e os 84 admitidos na seção
O fato de Visconti ter nascido na Itália e vivido por
de pintura da École des Beaux-Arts, de Paris.
vários períodos na França, gerou uma idéia
Apesar desse sucesso rápido, logo deixava essa
equivocada de que o pintor teria visto o Brasil como
escola, no início de 1894, optando por ambientes
um europeu. José Paulo M. da Fonseca respondeu
mais arejados e novos caminhos. Continuou, então,
a esta questão a partir da análise de suas obras:
freqüentando a Académie Julian, o mais importante
... quem observa uma paisagem de Teresópolis atelier não oficial da época, onde poderia cumprir
ou um recanto do Rio inundado pelo sol, quem suas obrigações de pensionista, e ingressou na
os observa num quadro de Visconti, percebe, École Guérin, no curso de composição decorativa
irrecusàvemente, uma intimidade com o tema, de Eugène Grasset. Mário Pedrosa faz sua
... como algo que é olhado e recordado ao avaliação do Visconti estudante em Paris:
mesmo tempo, aquela visão na qual a
Em geral, os outros laureados brasileiros saiam
intimidade percebe tanto quanto o olhar, na qual
daqui para a metrópole artística do mundo, sem
o tema já se encontra humanizado pelo
o menor espírito crítico, sem quaisquer
observador. Ora, essa duplicidade de visão
veleidades de independência, jungidos de um
assegura o brasileirismo de Visconti. 9

268
1890 agita o meio artístico brasileiro e marca a carreira de Eliseu Visconti

respeito fetichista à tradição e ao consagrado. condizentes com seu caráter e conceitos artísticos.
Visconti, porém, ainda em embrião, já daqui Da estética simbolista, por exemplo, aproveitou
partia minado por um ideal menos apenas a vertente mais “saudável”; nada
estereotipado, mais pessoal, isto é, uma encontramos em sua obra daquela decadentista,
ambição mais intrinsecamente criadora. Êle ia também muito em voga na passagem do século
aprender, sim, mas sobretudo assimilar e XIX para o XX. Mostrou-se assim, ainda em seu
crescer; ao passo que os outros iam apenas período de formação, já um artista consciente de
aprender, passivamente, e diplomar-se. (Id., sua individualidade, maduro, capaz de escolher
1950: 6) entre as opções que tinha para renovar-se, sem
ficar preso à tradição, nem correr atrás de toda e
No entanto, ele foi um dos principais protagonistas qualquer novidade.
dos debates que antecederam a reforma da
Academia. Nesta primeira crônica sobre o assunto, A adoção daqueles movimentos de vanguarda da
ele já expõe, logo nas primeiras linhas, uma síntese época em que buscava especializar-se garantiu o
das suas idéias: “Falla-se em supprimir a Academia sucesso de Visconti nas várias exposições
de Bellas Artes. A conserval-a como está, melhor estrangeiras das quais participou, como diversas
é com effeito supprimil-a.” Citava a proposta dos vezes nos dois salões anuais parisienses. Também
positivistas como alternativa mais aceitável que a nas exposições ditas Universais – a de 1900, em
situação atual, embora fosse contra esta atitude Paris, com as pinturas Oréadas e Gioventù, e a de
radical. A seguir, faz graves denúncias sobre o que 1904, em Saint Louis, com Recompensa de São
acontecia na instituição, envolvendo inclusive o Sebastião – conquistou uma medalha de prata e
orçamento destinado a ela, e aponta o motivo pelo uma de ouro, respectivamente. Estas duas últimas
qual os professores mais jovens haviam obras foram também expostas em Londres, e
recentemente deixado a Academia. reproduzidas na revista inglesa The Studio, em
junho de 1902. (CORREIO PAULISTANO, 1903)
Não apenas as instituições de arte que freqüentou Visconti participou ainda da exposição que
demonstram o quanto aprendeu com todo o debate inaugurava o Museo Nacional de Bellas-Artes de
de 1890. Seu espírito crítico e independência são Santiago do Chile, em 1910, quando teve sua
evidentes, também, pelo fato de Visconti ter sido o pintura Sonho místico adquirida para aquela
primeiro bolsista brasileiro a permear suas obras instituição. E também existem indícios de ter
com as correntes artísticas, que se desenvolviam participado de mostras marginais, como a da
fora do ensino oficial da academia francesa. No Secessão de Munique, em 1896, com a pintura A
catálogo da Exposição Retrospectiva de Visconti, convalescente.
montada em sala especial da II Bienal de São
Paulo, a tônica de todos os artigos foi o caráter Em suas primeiras exposições individuais – no Rio
moderno da obra do mestre. Nas palavras de de Janeiro, em 1901, e em São Paulo, em 1903 –
Herman Lima: Visconti surpreendeu público e crítica,
apresentando a novidade de uma seção de “arte
... Elyseu Visconti não passaria pelo estágio decorativa aplicada às indústrias artísticas”, ao lado
europeu sem experimentar vivas reações, da seção de pintura e desenho. Em São Paulo,
interessado por tôdas as manifestações acrescentou ainda uma terceira seção, na qual
estéticas do seu tempo, mesmo as mais expôs dez peças pintadas a mão.
revolucionárias, tolerante e duma esclarecida
receptividade para com as inovações, do que A terceira secção – ceramica artistica nacional,
decorre o conceito muito justo de ser um desperta muito interesse, por ser a primeira
verdadeiro marco divisório no cenário artístico tentativa nesse genero no Brasil.
brasileiro, pelo frêmito de renovação que a sua O talentoso artista iniciou-se nesse ramo das
arte haveria de trazer à nossa pintura... artes com o intuito de fundar uma ceramica
(LIMA,1954) puramente nacional, inspirada na nossa
natureza. (COMMERCIO..., 1903)
Além de adaptar as técnicas impressionista e
pontilhista à sua sensibilidade própria, Visconti Além de continuar buscando criar uma arte
transitou pelas esferas do art-nouveau, pré- genuinamente nacional, Visconti rompe a
rafaelismo e simbolismo. No entanto, nem todas separação valorativa entre belas-artes e artes
as manifestações estéticas daquele tempo aplicadas, alinhando-se, assim, a vários
encontraram ressonância em sua arte. Visconti movimentos europeus contemporâneos10.
deixou-se influenciar somente por aquelas mais

269
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

Conceitos arraigados e sem o qual não é possivel crear uma arte


brasileira.
Mas também, a marca dos caminhos esboçados Tenho grandes esperanças que o novo director
naqueles anos de agitação artística no Brasil, pode da Escola de Bellas Artes, Sr. José Marianno
ser notada em duas entrevistas de Visconti, Filho, nos reserve fructos saborosos para o
realizadas várias décadas depois. Uma foi futuro. [...]
concedida a Angyone Costa, e publicada Na architectura e nos outros cursos de arte
primeiramente em O Jornal, de 11 de julho de 1926, applicada sente-se a necessidade de
e depois reunida a outras, no livro A inquietação estabelecer um curso pratico de “pesquiza” e
das abelhas, do ano seguinte. Respondendo a “creação”; só assim, dentro de alguns annos,
diversas perguntas, Visconti expressa idéias podemos começar a plasmar uma arte de
difundidas naqueles debates: caracter nacional. (VISCONTI apud COSTA,
1927:82)
É um engano falar em arte no Brasil. Nós não
temos arte. Nunca tivemos. Difficilmente A outra entrevista foi concedida a Tapajós Gomes,
teremos, se não alterarem, profundamente, os e publicada no Correio da Manhã, de 15 de
methodos de ensino no paiz. [...] dezembro de 1935. Visconti, já com quase 70 anos,
A Escola tem alguns professores bem mostra-se mais desanimado com a mesmice das
interessantes. Outros, habeis e competentes, coisas relacionadas à arte:
mas que precisam descansar. Ha necessidade
de uma conpulsoria. É preciso renovar... [...] Preferimos assimilar o que nos vem de fóra,
As reformas da Escola de Bellas Artes têm sido despresando o que é nosso – a começar pela
reformas burocraticas e o que se quer são nossa propria natureza, que é um manancial
reforma didacticas. [...] inesgotavel de pesquisas e de surpresas. Mas
A Escola tem de ser o centro convergente de o que é nosso não nos interessa... preferimos
um amplo trabalho de vulgarização da arte por bater palmas para tudo quanto nos vem de fóra!
meio de escolas disseminadas pelo paiz inteiro, [...]
onde se ensine a desenhar. Depois de O desenho – diz elle – deve ser a base
frequentadas taes escolas, as especializações primordial da educação do publico. Aqui,
seriam feitas na Escola de Bellas Artes. É entretanto, se ha estudo deficiente é esse. Nas
preciso fazer o ensino aproveitando e escolas primarias e secundarias, ensinam-se
pesquizando as vocações. Onde haja um tres ou quatro linguas estrangeiras, algumas
estimulo, desenvolvel-o e utilizal-o. inuteis, como o latim e o grego, cançando-se o
[...] O “salon” estabelece premios e vantagens, cerebro dos alumnos, e esquece-se de se lhes
que são conferidos por um “jury” composto na ensinar desenho, que é a linguagem expressa
maioria de professores da Escola. Veja a que pela fórma, a linguagem que suppre todos os
não ficam sujeitos taes julgamentos, desde que idiomas, a linguagem universal, enfim! [...]
o professor póde ser, simultaneamente, juiz, ... a Escola de Bellas Artes até hoje, ainda não
expositor e mestre dos expositandos. É uma comprehendeu a extraordinaria utilidade do
organização condemnada e perigosa, ensino das artes apllicadas industrialmente. Por
prejudicial ao desenvolvimento das bellas artes. isso ao invez de abrir caminhos novos á
Deve ser remodelada, em sua essência, de intelligencia dos moços, continua a obrigal-os
maneira a assegurar maior justiça nos a copiar annos e annos os mesmos modelos
julgamentos, impedindo vicios originários da tradiccionais e seculares! Resultado: os
sua organização actual. (VISCONTI apud alumnos saem da Escola, capazes de
COSTA, 1927:79-80) reproduzir figuras de gesso e incapazes de criar
um desenho novo, para um mosaico, um objeto,
Apesar dos problemas continuarem exatamente os um movel ou mesmo para um vestido.
mesmos, passadas três décadas e meia, a (VISCONTI apud GOMES, 1935:1)
esperança também se mantinha. Um novo diretor,
talvez... Mas quanto à arte nacional, cuja Mas o mestre que manteve a vitalidade, produzindo
expectativa, em 1890, estava na pintura de e renovando-se até o fim, não perdeu jamais a
paisagem, Visconti agora a desloca para outra arte: esperança dos “novos” de 1890, associando-a aos
ideais que conheceu na Europa e ao amor
Se quizessemos trabalhar, quanto teriamos que incondicional por sua pátria de adoção:
fazer! Só as artes applicadas são um assumpto
amplissimo, de que ninguem se preoccupa aqui Se ha na America do Sul uma arte nova, essa
está no Brasil, e é a arte decorativa brasileira

270
1890 agita o meio artístico brasileiro e marca a carreira de Eliseu Visconti

que desponta e cujo futuro considero immenso! GOMES, T. Os nomes gloriosos da pintura
Ha de chegar o dia em que poderemos exportar brasileira: Elyseu Visconti. Correio da Manhã, Rio
muita coisa que tenha o cunho de uma arte de Janeiro, 15 dez 1935, pp. 1 e 2.
nacional, cheia de pujança e de vitalidade, pela GUANABARINO, Oscar. Exposição Geral de 1890.
fórma e pelo esplendor do motivo colhido na (Artes e Artistas) O Paiz. Rio de Janeiro, 2 abr 1890,
nossa propria natureza [...] p. 2.
A pintura, a esculptura e as artes decorativas Jornal do Commercio. 1890. (Bellas-Artes) A
são inseparaveis da architectura e com ella exposição de 1890. [a] 30 mar p.2; [b] 4 abr, pp.1,
fazem corpo. As bellas artes constituem um 2; [c] 6 abr, p.2; [d] 13 abr, p.2; [e] 2 maio, p.1.
unico organismo que trabalha para um fim J.B. 1894. A Exposição de Bellas Artes. A Notícia.
comum. É dessa collaboração que nasce esse Rio de Janeiro, 7 e 8 out.
conjuncto de elementos que formam uma J.R. 1890. Sete dias. O Paiz. Rio de Janeiro, 14
nacionalidade e caracterizam uma epoca. dez, p. 1.
(VISCONTI apud GOMES, 1935:2) LIMA, Herman. 1954. Exposição Retrospectiva de
Eliseu Visconti. II Bienal do Museu de Arte Moderna
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Nacional/Studio Gráfico Brasil.
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Notícias (Movimento Artístico), Rio de Janeiro, 27 Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, [a] 30 maio,
nov. p.1; [b] 2 jun, p.1; [c] 6 jun, p.1; [d] 7 jun, p.1; [e] 8
BARATA, Frederico. 1944. Eliseu Visconti e seu jun, p.1; [f] 9 jun, p.1; [g] 11 jun, p.1.
Tempo. Rio de Janeiro: Zélio Valverde. ________. Ainda a Academia, Gazeta de Notícias,
BERNARDELLI, Rodolpho. “Ao Dr. Rozendo Rio de Janeiro, [h] 19 jun, p.1;
Moniz”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 18 ________. Pela Academia, Gazeta de Notícias,
jun 1890, p. 1. Rio de Janeiro, [i] 24 jun, p.1; [j] 25 jun, p.1; [k] 26
BRAGA, Theodoro. 1942. Artistas Pintores no jun, p.1;
Brasil. São Paulo: São Paulo ________. Os novos, Gazeta de Notícias, Rio de
CARDOSO, R. 2007. “Dois ramos do mesmo Janeiro, [l] 27 jun, p.1;
tronco- Arte e Design na obra de Eliseu Visconti”. ________. Atelier Livre, Gazeta de Notícias, Rio
Eliseu Visconti: Arte e Design. Rio de Janeiro: de Janeiro, [m] 29 nov, p.1.
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em: http://www.dezenovevinte.net/criticas/ de Janeiro: MEC/FUNARTE.
embate_1890.htm MORALES DE LOS RIOS. 1902. Tagarelice
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DUQUE, Gonzaga. 1929. Contemporâneos. Rio In: PONTUAL, Roberto. 1969. Dicionário das
de Janeiro: Benedito de Souza. Artes Plásticas no Brasil. Rio de Janeiro:
Exposição Visconti. 1903. O Commercio de São Civilização Brasileira.
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Exposição Visconti. Encerramento. 1903. Correio Rio de Janeiro, 6 out.
Paulistano (Factos Diversos), 4 abr. Paiz, O. 1890. (Artes e Artistas), Rio de Janeiro,
FREIRE, Laudelino. 1916. Um Século de Pintura: [a] 27 mar, p.2; [b] 18 abr, p.2; [c] 11 maio, p.2; [d]
apontamentos para a História da Pintura no Brasil 15 maio, p.2; [e] 30 maio, p.2; [f] 1º jun, p.2; [g] 17
– de 1816 a 1916. Rio de Janeiro: Röhe. jun, p.2; [h] 21 jun, p.1; [i] 22 jun, p.2; [j] 26 jun, p.3;
GALVÃO, Alfredo. 1954. Subsídios para a história [k] 6 jul, p.1; [l] 9 jul, p.1; [m] 10 jul, p.1; [n] 13 jul,
da Academia Imperial e da Escola Nacional de p.2; [o] 18 jul, p.2; [p] 19 jul, p.2; [q] 20 ago, p. 2; [r]
Belas Artes. Rio de Janeiro: Universidade do Brasil. 27 ago, p. 2; [s] 2 set, p. 2; [t] 4 set, p. 2; [u] 9 set,
Gazeta de Notícias. 1890. Rio de Janeiro, [a] 11 p. 2; [v] 12 out, p. 2; [x] 21 nov, p. 2; [w] 23 nov, p.
fev, p.1; [b] “Escola Especial de Bellas Artes”, 12 2; [y] 27 nov, p. 2.
mar, p.2 e 3; [c] “Bellas Artes”, 20 mar, p.1; [d] PEDROSA, M. 1950. Visconti diante das modernas
“Bellas Artes”, 31 mar, p.1; [e] “Bellas Artes”, 7 abr, gerações. Correio da Manhã (Artes Plásticas), e
p.1; [f] “Reunião de artistas”, 17 jun, p.1. Arte. Rio de Janeiro, 1º jan, Suplemento de
Literatura, p. 6 e 10.

271
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

4
PONTUAL, Roberto. 1976. Arte Brasileira D i s p o n í v e l e m : h t t p : / / w w w. d e z e n o v e v i n t e . n e t /
Contemporânea. Coleção Gilberto Chateaubriand. catalogos/1890_egba.pdf
5
Rio de Janeiro: Jornal do Brasil. Infelizmente, não foi possível encontrar esta crônica
assinada por Cosme Peixoto. O professor Rodopho
Vida Fluminense. 1890. Rio de Janeiro, [a] 18 jan;
Bernardelli nem chegou a se apresentar à Academia,
[b] 15 fev; [c] 1º mar, p. 4; [d] 8 mar, p. 1; [e] 29 quando iniciaram-se as aulas em 6 de maio de 1890.
mar; [f] 4 jun; [g] 18 jun. 6
Estes podem ser conferidos no artigo “O aranheiro da
Escola” de Gonzaga Duque, publicado inicialmente na
Notas revista Kosmos, nº 8, de agosto de 1907, e também em
Contemporâneos, de 1929.
7
* Docente do Cefet MT, doutoranda em História da Arte Ele participou de 38 das EGBA realizadas pela ENBA,
pelo IFCH/Unicamp, bolsista da CAPES. a partir de 1894, além da de 1890, organizada ainda
1
Disponível em: http://www.dezenovevinte.net/criticas/ pela Academia.
8
embate_1890.htm Estas e muitas outras pinturas de Visconti podem ser
2
Diariamente, a coluna “Artes e Artistas” do jornal O apreciadas em seu site oficial
Paiz, noticiava a visitação do dia anterior e o preço da ( www. e l i s e u v i s c o n t i . c o m . b r ) n o l i n k O b r a s /
entrada, sendo 1$000 (mil réis) aos sábados, 500 réis Classificação por tema.
9
na quarta-feira, e no restante da semana, 200 réis. FONSECA, J.P.M da. “Eliseo D’Angelo Visconti”.
Normalmente, contavam-se de 180 a 300 pessoas; Artigo de um recorte existente na pasta do artista,
sempre nos dias de preço mais elevado a visitação organizada pela Biblioteca do MNBA, infelizmente sem
baixava para em torno de 50; e aos domingos subia nenhuma identificação; do qual só é possível inferir-se
para mais de 400 pessoas. o ano de 1967, pela menção da comemoração do
3
O documento comunicando a nomeação foi lido em centenário de nascimento do artista, ocorrida com um
19 de dezembro, na Congregação da Academia. Acervo ano de atraso.
10
Arquivístico do Museu Dom João VI/EBA/UFRJ. Ver artigo de Rafael Cardoso no catálogo Eliseu
Notação: 6153. Visconti- Arte e Design, 2007.

272
Em muitos ramos dos conhecimentos humanos,
artes e ciências são de tal modo entrelaçados,
que não é possível fazer-se uma separação
completa

Francisco Cordeiro da Silva Torres, O Auxiliador


da Indústria Nacional, ano III, v.9, p.265-6, 1835

A escrita da história, e neste caso da história da


arte, pode ser considerada uma autoridade
institucional, pressupondo a observação do tempo,
espaço e sujeito que está produzindo o discurso
histórico. A mudança dos traços pictóricos e
composição visual, elementos como originalidade/
imitação, contemplação do belo/funcionalidade,
artífice/artista, assim como, o deslocamento de
objetos funcionais fabricados pelo homem até o
lugar considerado nobre, como galerias e museus,
não são consensuais e necessitam de uma
averiguação do universo cultural onde essas
construções são feitas. Dentro do movimento
romântico a arte ganha importante função de
civilizadora, pelos sentimentos que sua experiência
pode despertar e desenvolver como a civilidade,
patriotismo, costumes e será aliada ao ideal de
história como mestra da vida, no caso do Brasil
oitocentista. Pensadas desta forma, a criação de
várias instituições de saber no Brasil durante a
considerações sobre história e arte nos
primeira metade de século dezenove são
manuscritos de porto-alegre
significativas para se compreender a formação do
paula ferrari 1 Estado Nacional brasileiro e sua relação com o
campo cultural e artístico.

A monarquia brasileira, segundo Líria Moritz


Schwarcz, em As Barbas do Imperador, seguiu um
trajeto original combinando a tradição européia ao
ambiente singular da ex-colônia: “[...] uma cultura
que se construiu com base em empréstimos
ininterruptos, os quais, no entanto, incorporou,
adaptou e redefiniu ao justapor elementos externos
a um contexto novo”. Durante o século XIX, houve
um amplo debate sobre como deveria ser
construído o recente Estado-Nação brasileiro,
geográfica, histórica, cultural e politicamente, e
sobre quais aspectos definiriam de forma
inequívoca a expressão de uma identidade local
intransferível.

A pesquisa relativa a Manuel de Araújo Porto-alegre


(1806-1879)2 visa a sua produção historiográfica,
tentando compreender a relação entre arte e
história, assim como a possibilidade de um campo
emergente de história da arte brasileira nesse
período. As fontes escolhidas para estudo são
manuscritos da Coleção Porto-alegre do Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro, priorizando
rascunhos e textos historiográficos, muitos não
publicados.

273
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

Consideramos importante traçar a trajetória hypotheses, conjecturas, ou o socorro de algum


intelectual de Porto-alegre, observando leituras, systema engenhoso, que mais abrilhanta a
relações pessoais e locais que manteve dentro do sagacidade do seu inventor do que esclarece
recorte cronológico adotado, ou seja, da sua a verdade.(PORTO-ALEGRE, 1855)
entrada na Academia Imperial das Belas Artes
(1826) até o ano em que parte para a Europa em A obra de arte, conservando em sua matéria vários
carreira diplomática (1860). A trajetória serve nessa conhecimentos, tecnológico, estético, cultural, que
pesquisa como parâmetro para compreender suas são necessários para a sua confecção, encerra em
escolhas e preocupações, tornando-se ora um si um arquivo para se compreender o universo onde
paradigma indiciário de leituras necessárias para foi gerada revelando-se um termômetro de sua
o desenvolvimento da pesquisa, ora como baliza sociedade. O gênio, a inspiração do artista, para
para a crítica dos manuscritos. Essa metodologia ele não são suficientes, é necessário também o
nos permite aprender a ler como certas questões conhecimento técnico e erudição4 para que seja
são abordadas por Porto-alegre. A proposta de desenvolvida uma arte superior capaz de
vasculhar a formação de Manuel de Araújo Porto- condensar em si todo o conhecimento acumulado
alegre busca traçar um panorama do que é possível até sua época. Esta educação não se restringiria
e, talvez mais essencial, o que não é possível extrair ao artista, mas direcionar-se-ía a toda a sociedade,
dos seus manuscritos. O presente artigo busca aos que se utilizam deste conhecimento para
perceber a influência da Academia Imperial das produzir e domar a natureza bruta, aos que
Belas Artes na conformação de pressupostos usufruem dessa produção; pois, para se apreciar
culturais que possam trazer chaves interpretativas e compreender a profundidade do Belo também
a seus escritos. são necessários treino e educação. Winckelmann
atribuía à perfeição que a arte grega atingira ao
Além de ter sido inspirada na Académie Royale clima ameno e ao estudo do Belo ideal através do
Peinture et Sculpture da França, a Academia escorço; o clima do Brasil parecia oferecer a Porto-
Imperial das Belas Artes, segundo Castro, também alegre as mesmas condições, embora sem os
teve grande influência de Winckelmann (1711- mesmos resultados, o que o levava a questionar
1768)3. Este arqueólogo do século XVIII, em seus outros fatores 5: sociais, culturais, ou inclusive,
estudos sobre a estética grega, afirmava que a arte históricos.
teria uma dupla função: agradar e instruir,
inspirando nos espectadores sentimentos e Nesses termos a Reforma da Academia é
comportamentos civilizados, buscando elevar o indispensável à história da nação, segundo Porto
espírito para atingir a bela alma. Nos manuscritos Alegre. Sua produção salvaria os homens finados
de Porto-alegre encontramos a mesma admiração e presentes do esquecimento e também elevaria o
pela arte grega e defesa da elevada função da arte futuro, numa prova material da civilização brasileira.
na sociedade, ele também compreende a evolução
da arte em períodos pendulares como na história Passemos, pois a considerar o desenho como
da humanidade, compostos de infância, maturidade elemento civilizador, como termômetro social,
e declínio. e como base de seguro desenvolvimento nas
obras do homem, que pertencendo ao domínio
A arte para ele possui dois pontos de permanência da imaginação criadora por meio das formas.
importantes: a universalidade que sua linguagem Os espíritos vulgares o consideram como uma
das formas pode atingir e a duração da idéia arte de luxo, porém os homens que pensam,
materializada. Sendo o desenho a base essencial as inteligências superiores, o encaram como
dessa linguagem, o pintor o coloca como uma uma necessidade para a civilização.(Id., 1855)
escrita universal, que vence a diferença entre o
viajante e os lugares, desvela o sudário do tempo A arte sempre é tratada de forma elogiosa, motor
que se interpõe entre o homem de hoje e o antigo da civilização tanto no aspecto material quanto
sacerdote. Nessa orientação, a arte se torna um ontológico e o desenho seria a base fundamental
registro histórico que é capaz de vencer o prisma para que seus objetivos fossem alcançados.
do tempo Embora anteriormente já houvesse uma disciplina
de desenho para o primeiro ano dos cursos, ao
[...] que decompõe a tradição e translus toda analisar as mudanças curriculares efetuadas na
sorte de enganos [...] todas as memorias reforma, essa disciplina foi desmembrada em
monumentaes levantadas á divindade, ao Desenho geométrico, pré-requisito para as demais
homem ou aos fastos nacionaes, são disciplinas oferecidas, dividida em duas séries: a
conservadas e transportadas por esta terceira primeira de desenho linear e complementar à
forma do pensamento, sem comentarios, cadeira de matemática aplicada, a segunda

274
Considerações sobre história e arte nos manuscritos de Porto-alegre

destinada a aplicações do mesmo desenho à academias européias do Ancien Régime, um


indústria conforme o destino dos alunos; Desenho gênero menor. Os debates com August Müller, que
de ornatos; Desenho figurado, com duração ministrava a disciplina “Paisagem, flores e animais”,
determinada conforme o aproveitamento do aluno; servem como eixo para entender os
Perspectiva e teoria das sombras, cujos concursos desdobramentos sobre a questão da natureza.
eram destinados à todos os alunos três vezes ao
ano como forma de avaliação do aprendizado. A Porto-alegre coloca o paisagista como um
utilização do desenho visava um planejamento e integrante necessário das expedições científicas.
estudo de possibilidades da confecção da obra, na Essa atuação não era desconhecida de Porto-
sua forma estética e material, atestando o uso da alegre, discípulo dileto de Debret, autor de “Viagem
razão pelo artista. Pitoresca e Histórica ao Brasil”, cujo texto é
ricamente ilustrado com registros aquarelados;
Os traços de sua formação na Academia podem também o seu conhecimento sobre arqueologia,
ser apreendidos no seu estilo de escrita e em várias que o levou a fazer um curso em Roma com Antonio
outras preocupações que não pretendemos esgotar Nibby, utilizava esse tipo de registro para compor
aqui. Uma das questões é sobre a natureza. catálogos e estudos comparativos.
Sabemos que, apesar da natureza americana ser
apontada como cor local, encontramos um conflito Como vimos, através do desenho, o artista pode
em seus textos gerado pela necessidade de inserir registrar todas as informações necessárias para o
o Brasil na História da humanidade como um estudo em gabinete feito posteriormente pelas
império civilizado e seus valores orientados pela expedições, assim como a divulgação do
tradição acadêmica da hierarquia de gêneros de conhecimento obtido,
pintura6.
O desenho suppre o Cadaver ao anatomico,
Segundo Chiarelli, até o final da década de 1870, as collecções ao Zoologo, as flores ao botanico,
a Academia Imperial das Belas Artes do Rio de as viagens ao geographo, os modêlos ao
Janeiro formou artistas que produziram pinturas de engenheiro e ao artista, e como um poderoso
paisagens, mas esses trabalhos eram esporádicos auxiliar da palavra, que produz aquelle meanto
e guardavam os princípios estruturais do indisivel que experimentei quando o immortal
paisagismo acadêmico mais convencional, sem Cuvier narrava a epopéia da creação, e com o
constituir uma escola de paisagem com giz na ardosia ressuscitava a imagem d’esses
características próprias ou locais. (CHIARELLI, seres perdidos, d’esse mundo abafado pelo
2007: 310) diluvio, e petrificado pelas trevas.(PORTO-
ALEGRE, 1855)
Tanto na Academia, quanto no Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro, o meio intelectual, na O ponto sobre um possível campo de atuação a
primeira metade do século dezenove, segue uma mais para o artista, em um país onde só Suas
tradição iluminista. Segundo Maria Odila, o traço Majestades compravam obras de arte, no parecer7
de continuidade mais significativo dos homens de sobre as aulas de Müller é evidente. O diretor
ciência no Brasil, dos fins do século XVIII à geração sugeria que o professor de paisagem tivesse
dos românticos, foi a sobrevivência de uma noções de ciências auxiliares como botânica,
inclinação pragmática geologia e metereologia “porque Lineu, Cuvier,
Tournefort, Flourens, nos ensinaram a pintar, assim
[...] que se exprimiu no culto às ciências e aos como os anatomistas, matemáticos, poetas,
conhecimentos úteis, dedicando-se à busca, filósofos, físicos e fisiologistas” (SQUEFF, 2004:
consciente e pragmática, dos instrumentos da 212-213), segue ainda no texto a inserção do ensino
nova nacionalidade [...] Punham no culto à da técnica da aquarela cujo solvente é a água, mais
ciência o mesmo fervor com que veneravam a adequada às condições que o artista enfrentaria
arte. “Tratava-se” escreve Antônio Candido “de nas expedições,e revelando-se resistente às ações
construir uma vida intelectual, em sua do tempo conferia vantagens para a preservação
totalidade, para o progresso das luzes e da obra
conseqüente grandeza da pátria.” (DIAS,
2005:117) [...] O que faria um de nossos alunos viajando,
ou adido a uma expedição científica no interior
Para Porto-alegre, o estudo de paisagens era uma de país? Onde ele iria buscar os comôdos que
possibilidade para o exercício da profissão, pede a pintura a óleo, ou como poderia ele
enquanto arte, no entanto, o gênero era conservar a fidelidade do colorido com o lápis
considerado, dentro das concepções das antigas somente? [...] (CHIARELLI, 2007:226)

275
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

Porto-alegre defendia a necessidade de aulas mas vimos anteriormente que uma das funções da
práticas para os alunos mais adiantados desta arte é servir de instrumento para domar a natureza
disciplina. O hábito das cópias das estampas bruta como elemento civilizador. A arte, dentro de
européias privava o aluno de captar os exemplares sua concepção, se entrelaça em dois momentos
característicos do local da paisagem trabalhada, o com a história, sob o caráter de escrita da história,
que era ruim, no seu ponto de vista, seja pela compreendida sob duas conotações: no desenrolar
questão técnica da falta de familiaridade e treino das ações humanas que ficaram registradas
com os modelos durante os trabalhos em materialmente, ou, como forma de historia
expedições científicas, seja pela falta de veracidade magistra, que organiza e seleciona os fatos
na execução de pintura histórica. memoráveis para as gerações futuras. “Sem arte
não há cunho de civilisação, não há expressão do
A pintura histórica requeria a exaltação e fixação bello, não há documento do passado”. (Id., 1855)
dos momentos gloriosos da nação e dos atos
heróicos de grandes homens; dentro dos preceitos Mais sutilmente, percebe-se nessa relação arte-
de Winckelmann, tornou-se o espaço privilegiado civilização-história o mesmo pensamento de
para gravar na alma de seus observadores nobres Varnhagen, na infância da humanidade, na barbárie
sentimentos de amor à pátria, “Por essa razão, só é possível a etnografia. Sendo a civilização
acharam muitos dentre os maiores paisagistas que adotada como parâmetro européia, vemos a Arte
se desincumbiriam apenas de metade das suas seguir o mesmo raciocínio. Fora dos padrões da
obrigações para com a arte, se deixassem as suas Academia temos, artífices, artesões, vocação para
paisagens sem nenhuma figura humana.” a arte, uma infância da humanidade, reconhecidas
(CASTRO, 2007: 16). por Porto-alegre de forma pragmática dentro da
evolução da História Universal e de cunho inferior
A valorização dos momentos gloriosos da nação e dentro da tradição que faz parte da sua formação.
dos atos heróicos de grandes homens também é Porto-alegre reconhece a necessidade desse tipo
encontrada no IHGB através do elogio histórico, de mão-de-obra dentro da sociedade, mas não
para o universo aquém da civilização havia aceita a sua tradição e propõe que esses
preocupações etnográficas e geográficas, profissionais também tomem aulas na Academia,
buscando conhecer o país detalhadamente. Assim ou sigam as orientações de artistas formados por
como outros sócios do Instituto Histórico, esta, para que os seus trabalhos possam progredir
encontramos nos manuscritos a oposição entre no aspecto material e estético.
civilização versus natureza bruta. A uma cabe a
elevada tarefa da história, à outra resta somente a Referências bibliográficas
etnografia e outras ciências naturais. Os seus
apontamentos sobre uma visita ao sul, BORNHEIM, Gerd A. Introdução à leitura de
acompanhando o Conselheiro Pedreira são Winckelmann. Escorço do Horizonte Cultural. in
concluídos desta forma: Revista Gávea - Revista de História da Arte e
Arquitetura, n. 8, 1990.
[O Itajahy] É um rio de 50 braças de largura na CASTRO, Isis Pimentel de. Os pintores de
entrada e 40 ate o salto grande, que não é mais história: a relação entre arte e história nas telas
do que uma grande cataracta, que se dispenha de batalhas de Pedro Américo e Victor Meirelles.
em escaloens de sonoras catadupas da altura Dissertação de mestrado, Rio de Janeiro: IFCS-
de 60 palmos. Vi muitos rios afamados da UFRJ. 2007.
europa e nenhum d’elles é mais formozo e ________. A arte a serviço do Império. Brasília:
pictorico do que este; o que lhe falta somente Nethistória, disponivel em: http://
é a historia da humanidade escripta com pedra www.nethistoria.com. Acesso em 28/ago./2005.
e cal [grifos meus], quer n’esses castellos que CHIARELLI, Domingos Tadeu. Pintura não é só
dominam o cimo dos montes, ou n’esses beleza: A crítica de arte de Mário de Andrade.
coruchios de igrejas que nos transportam ao Florianópolis: Letras Contemporâneas - Oficina
começo do christianismo, e que em caracter Editorial Ltda., 2007.
architectonico nos revelam a marcha do COLI, Jorge. Como estudar a arte brasileira do
Evangelho atravez da idolatria.(PORTO- século XIX. São Paulo: SENAC, 2005.
ALEGRE, s/d) DIAS, Maria Odila Leite da Silva. A interiorização
da metrópole e outros estudos. São Paulo:
Porto-alegre não chega a ser tão pessimista como Alameda, 2005.
seu contemporâneo Varnhagen, em cujos textos, ESTRADA, Luiz Gonzaga Duque. A arte brasileira.
a natureza ganha ares predatório e selvagem. Campinas: Mercado de Letras, 1ª edição: 1888,
Nossa natureza é pictórica, digna de ser pintada, 1995. - (Col. Arte: Ensaios e Documento).

276
Considerações sobre história e arte nos manuscritos de Porto-alegre

GUIMARÃES, Manoel Luis Salgado. Nação e ________. Trinta teses para discussão, Ata da 2a
civilização nos trópicos: o Instituto Histórico e Sessão Pública da Academia das Belas Artes, em
Geográfico Brasileiro e o projeto de uma história 27 de setembro de 1855 – Presidência do Diretor.
nacional. Estudos históricos. Rio de Janeiro: Texto disponível no site: http://
Fundação Getúlio Vargas, nº. 1, 1998. www.dezenovevinte.net/, contribuição de Arthur
________. Entre amadorismo e profissionalismo: Valle.
as tensões da prática no século XIX. Topói: Revista
de história. Rio de Janeiro: 7letras, n. 5 set./2002, Notas
p.184-200.
* Mestranda do Programa de Pós-graduação em História
FERNANDES, Cybele Vidal Neto. Os caminhos
da Universidade Federal de Juiz de Fora com a pesquisa
da arte: ensino artístico na Academia Imperial das “Porto-alegre e o IHGB: Reflexões sobre a construção da
Belas Artes - 1855. Tese de Doutorado em história história da arte brasileira” sob orientação da prof. Dra.
social, Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio Maraliz de Castro Vieira Christo.
de Janeiro/Instituto de Filosofia e Ciências
1
SociaisPrograma de Pós-Graduação em História Para esse projeto optamos por Manuel de Araújo Porto-
Social, 2001. Alegre porque representa um letrado de formação
acadêmica com possibilidade de ação dentro das
________. Forjando a nação, o cidadão, o artista... instituições de saber e grupos políticos ligados ao centro
O sentido da Academia. UNICAMP: Anais anpap - de poder do Império. Foi pintor, professor de pintura
99. Disponível em: http://wawrwt.iar.unicamp.br/ histórica, diretor da Academia Imperial das Belas Artes,
anpap/anais99/história55.htm. Acesso em agosto escritor, dramaturgo, cenógrafo, caricaturista, arquiteto; é
de 2005. considerado primeiro crítico e historiador da arte brasileira.
GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas e sinais: Porto-Alegre, como sócio do Instituto Histórico e Geográfico
morfologia e história. Trad. Federico Caroti. 2ª ed. Brasileiro, escreveu uma série de textos para a revista do
instituto, refletindo sobre a arte brasileira. Nascido em Rio
São Paulo: Companhia das Letras, 2003. Pardo-RS, em 1806, ele presencia ao longo de sua
GUINSBURG, J. O romantismo. São Paulo: Ed. trajetória biográfica mudanças políticas e estéticas do
Perspectiva, 1993. período. Foi discípulo de Debret e Montigny na Academia
PEVSNER. Nikolaus. Academias de arte: passado Imperial das Belas Artes, em 1831 acompanha Debret de
e presente. Trad. Vera Maria Pereira. São Paulo volta a Paris, conhece Jean Antoine Gros e boa parte da
Companhia das Letras, 2005. geração romântica parisiense. Na Itália, estuda com o
PINASSI, Maria Orlando. Três devotos, uma fé, arqueólogo Antonio Nibby. Ainda na França, funda
juntamente com Torres Homem e Gonçalves de Magalhães
nenhum milagre: Nitheroy Revista Brasiliense de a revista Nitheroy: Revista brasiliense, sciencias, lettras
Ciências e Artes. São Paulo: Fundação Editora da e artes (1836) marco do romantismo brasileiro,
UNESP, 1998. posteriormente Porto-Alegre funda e dirige os periódicos:
POCOCK, J. G. A. Linguagens do Ideário político. Minerva Brasiliense (1843), Lanterna Mágica (1844) e
Trd. Fábio Fernandez. São Paulo: Editora da Guanabara (1849). Enquanto diretor da Academia Imperial
Universidade de São Paulo, 2003. das Belas Artes propôs reformas no curriculum e na
SCHWARCZ, Lilia Moritz. As Barbas do metodologia do ensino do Instituto, ações que fizeram parte
da Reforma Pedreira de 1855. O projeto civilizador de
Imperador: D. Pedro II, um monarca dos trópicos. Manuel de Araújo Porto-Alegre, de ordem prática e
São Paulo: Companhia das Letras, 1998. estratégica, mudaria toda a compreensão do status do
SQUEFF, Letícia Coelho. O Brasil nas letras de artista. Suas idéias, que tomaram corpo na Reforma
um pintor: Manuel de Araújo Porto Alegre. Pedreira (1855), dividiram para sempre o artífice de ofício
Campinas: Ed. Unicamp. 2004. do artista, através do ensino diferenciado, visando a
VARNHAGEN, F. A. História Geral do Brasil. São capacitação de mão-de-obra para a indústria e a
Paulo: Melhoramentos, 1859. equiparação do império à civilização da Europa, foi um
homem que tomou para si as preocupações com a arte.
(SQUEFF, 2004; FERNANDES, 1999; CHIARELLI, 2007;
Fontes
PINASSI, 1998)
2
“Os estudos de Winckelmann também tiveram grande
PORTO-ALEGRE, Manuel de Araújo (1806-1879). influência no ensino da AIBA, citado diversas vezes por
Sobre baile na colonia alemã de Fortaleza Taunay em seus discursos, suas obras também faziam
Carolina (Santa Carolina), oferecida ao Consº parte do acervo bibliográfico da academia.” (CASTRO,
Pedreira. s/d. (manuscrito Coleção Araújo Porto- 2007: p. 14).
3
Alegre, Arquivo do IHGB). Discurso pronunciado A erudição aqui é utilizada no sentido de educação
em Sessão solene de junho de 1855 na Academia adquirida para compreender as manifestações do
pensamento. A base dessa educação seria constituída, para
Imperial de Belas Artes por Manuel de Araújo Porto-
Porto Alegre, primeiro pela gramática, chave de todas as
Alegre por ocasião do estabelecimento das aulas línguas; a geometria onde se encontra a lógica e o
de mathematica, esthetica, etc, etc. (manuscrito conhecimento dos números e da extensão, e, por último, o
Coleção Araújo Porto-Alegre, Arquivo do IHGB)

277
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

5
desenho que possibilita a perfeição da vista na apreciação A pintura histórica era considerada a categoria artística
das formas e na compreensão do belo. mais importante por incluir em sua constituição todos os
4
Algumas dessas preocupações estão presentes na demais gêneros da pintura. Em ordem decrescente a
proposta de trinta teses para discussão, Ata da 2a Sessão hierarquia dos gêneros de pintura estava desta forma
Pública da Academia das Belas Artes, em 27 de setembro estabelecida: Pintura Histórica; Pintura de Paisagem, de
de 1855 – Presidência do Diretor. Contribuição de Arthur Retrato e de Gênero.
6
Valle Texto disponível no site: http:// Porto-alegre e August Müller mantiveram discussões
www.dezenovevinte.net/: 14.° - Nas diferentes arquiteturas acaloradas e dissidências sobre o ensino e conteúdo da
conhecidas, será devido o seu caráter especial à qualidade disciplina de Paisagem, como atestam o parecer de Porto-
dos materiais empregados, às crenças religiosas que elas alegre, “Algumas reflexões que submeto à consideração
simbolizam ou à organização social dos povos que as do Sr. Müller, professor da aula de paisagem”, apud
criaram? / 17.° - As diferentes escolas de pintura procedem Alfredo Galvão, “Manuel de Araújo Porto-alegre: sua
mais da natureza do país onde florescem, ou das doutrinas influência na Academia Imperial de Belas Artes e no meio
especiais de seus mestres? Deverão ser elas consideradas artístico do Rio de Janeiro”; e também “Ata da sessão
pelos caracteres técnicos ou pelos morais? Será boa a ordinária em 17 de novembro de 1855”, cf. Livro de atas
atual classificação das escolas, ou convém adotar outra das sessões de ordinárias da Academia Imperial de Belas
mais explícita, e menos confusa na sua ordem e filiação? Artes, 1841-1856. (SQUEFF, 2004: 238), (CHIARELLI,
/ 20.° - O que tem mais concorrido para o atraso da 2007: 310).
arquitetura, as leis do nosso país, e educação dos nossos
homens de Estado, ou a falta do gosto nos particulares?

278
No Brasil do século XIX a crítica de arte ainda
começa a esboçar suas primeiras reflexões, no
entanto já é possível notar em vários campos
artísticos a busca de alicerces mais sólidos para a
produção das diversas artes. É o momento em que
o país se torna independente, no qual surge a
imprensa, abrindo um novo campo para o
desenvolvimento das letras. É também na primeira
metade do século XIX que se organiza a Missão
artística francesa, cujo objetivo era iniciar no país
uma instituição de ensino artístico oficial. Vêem-
se no Brasil daquele período ações no sentido de
consolidar a nação em seus aspectos políticos,
econômicos, sociais e culturais.1

No aspecto cultural, de particular interesse para


essa comunicação, a literatura e talvez também a
música tomaram a dianteira no processo de
construção e busca de suas raízes nacionais. Em
Formação da literatura brasileira, Antônio Candido
coloca a atuação dos escritores neoclássicos no
século XVIII, os quais buscavam provar sua
capacidade na produção literária frente aos
europeus, algo que depois da independência “se
acentuou, levando a considerar a atividade literária
como parte do esforço de construção do país livre,
em cumprimento a um programa, bem cedo
estabelecido, que visava a diferenciação e
caminhos da crítica de arte no brasil: século xix particularização dos temas e modos de exprimi-
los. [...]” (CANDIDO, 1975: 26)
rosangela de jesus silva *
O primeiro espaço utilizado para as discussões
literárias aqui produzidas foi a imprensa. A crítica
literária foi se firmando com a ampliação das
discussões e criação de periódicos especializados.
Segundo Oscar Mendes, na apresentação do livro
de José Veríssimo Estudos de literatura brasileira2,
teriam surgido, já a partir de 1812, várias revistas
em torno das questões literárias, e que um estudo
do conjunto da literatura, criticamente analisada,
teria surgido em 1852 com a publicação do Curso
elementar de literatura, do Cônego Fernandes
Pinheiro (c.1825-1876), o qual teria sido um dos
pioneiros da crítica literária brasileira.

A produção das artes plásticas teve um debate


crítico mais tardio, além do mesmo ter sido bastante
fragmentado na imprensa da época. Não se pode
deixar de lembrar a iniciativa de Manuel de Araújo
Porto Alegre que, entre outras iniciativas no cenário
artístico, publicou, em 1841, na Revista do Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro – IHGB, um artigo
sobre a Escola Fluminense de Pintura, um texto
curto, mas que reivindicava para o Brasil uma vida
artística anterior à chegada da Missão Francesa.

Em 1857 surge o Brazil Artístico, revista da


Sociedade Propagadora de Belas Artes e que teve,
nesse primeiro momento, apenas seis números

279
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

publicados. A revista teve como redator chefe fraco elemento na constituição do brasileiro. Diante
Francisco Joaquim Bittencourt da Silva. A idéia dessa observação Romero faz uma crítica ao
apresentada pelo periódico era de criar um Romantismo brasileiro, os quais atribuíam ao índio
interesse pelas belas artes, para isso contaria com um papel fundador, o que para o crítico seria um
uma grande aliada a imprensa: erro.

Os Brazileiros têem engenho natural para o Romero apresentava uma explicação para o
cultivo das artes e dos estudos liberal, falta lhes desenvolvimento considerado mais tardio das belas
somente amor do porvir, faltam-lhes energia e artes:
estímulo. Entretanto, para que o futuro risonho
que antolhamos se aproxime, e se alcance o Nós nunca tivemos um público que se
prospero resultado que almejamos, é preciso interessasse profundamente pelas conquistas
um agente – O agente que poderá operar esta da inteligência; não possuímos tradições e
espécie de ressurreição, é a imprensa – essa verdadeiras escolas evolucionais na literatura
única invenção do gênio humano cuja honra e na arte. Por isso nossas produções aparecem
foi disputada por 17 cidades, e que foi desde o esporádicas, quase sem nexo, sem o liame
seu nascimento proclamada, até por papas e tradicional, sem a seiva de um germe que se
bispos, um dom divino. E’ pela troca das nobres desenvolve. Pelo que toca à poesia, a mais
idéias, pela exposição de sãos princípios, pela expansiva das artes, a mais comunicativa de
insinuação de elevados pensamentos, pela todas, a história não é muda e é possível
instrucção, pela cultura do gosto e pela reconstruir o passado brasileiro nesse domínio.
moralidade, e que se chega realmente ao O mesmo não se dá com a música, a pintura, a
engrandecimento, bem estar e liberdade de um arquitetura, etc. A razão é simples: a poesia
paiz. (p.7/8)3 demanda uma menor aprendizagem, menos
esforço e é mais fácil de propagar-se. [...]
Em 1879, a crítica de arte contaria com um (ROMERO, 2001: 974)
periódico que se queria mais especializado: a
Revista Musical e de Bellas Artes. Ainda assim, Em uma crítica publicada na Revista Illustrada em
dividindo espaço com a crítica musical, responsável dezembro de 1879, Angelo Agostini também
pela maior parte dos artigos. Não se observa, esboça uma opinião sobre qual seria o motivo do
através da crítica daquele período, uma desenvolvimento da poesia e o “atraso” das outras
preocupação de sistematização da história do artes:
desenvolvimento das artes plásticas no Brasil,
como por exemplo, se vê na literatura, tanto em Em quanto porém a musica tem cultores
termos de produção quanto de crítica. Só se verá apaixonados, em quanto a poesia renega a
algo próximo a isso com o trabalho de Gonzaga convicção das escolas gastas, para seguir o
Duque A Arte Brasileira de 1888. novo impulso e cantar outro ideial; só a pintura,
a architectura mostram-se completamente
Livros com o propósito de fazer crítica de arte só alheias, corrompem-se abastardam-se,
surgiriam no Brasil na década de 1880, mais definham. A causa parece patente, é que não
precisamente em 1885, com o trabalho de Felix ha uma Academia para a litteratura, é que
Ferreira Belas Artes: Estudos e apreciações, ninguem vai pedir inspiração ao Conservatório,
seguido em 1888, pelo trabalho de Gonzaga Duque é que não ha um codigo systematico, uma
Estrada A Arte Brasileira. Conseqüentemente, poetica official para a poesia; e só para os
também não se encontra, de forma sistematizada, alumnos de bellas-artes existe um estalão
uma crítica da crítica de arte. presumpçoso, um molde rhetorico, uma
esthetica falseada pela incompetencia, que só
A crítica literária teve, entre outros, o nome de Silvio podem produzir o aleijão e o aborto.4
Romero (1851-1914), o qual publicou em 1880 A
literatura brasileira e a crítica moderna, livro que Romero e Agostini apresentam motivos bastante
reunia artigos publicados entre 1872 e 1874. Em distintos para explicar o desenvolvimento desigual
seus escritos Romero buscou reconstruir a história dessas artes. O primeiro acreditava que, além de
da formação do Brasil através de fatores que teriam não haver um público que se interessasse pelas
contribuído para a constituição da literatura artes, seria um ofício mais difícil que a literatura,
brasileira. Destaca como um dos mais importantes enquanto o crítico da Revista Illustrada entrega toda
fatores a formação do povo pelas três raças: o a responsabilidade nas mãos de um ensino que
branco português, o negro e o índio, sendo este não seria adequado. Porém, ambos concordam que
último, segundo o autor, apenas o terceiro e mais a literatura estaria à frente das artes plásticas. O

280
Caminhos da crítica de arte no Brasildo século XIX

que é possível observar é que a literatura conseguiu Uma segunda possibilidade de reflexão sobre a
se firmar no Brasil com uma produção mais ampla produção crítica em torno das belas artes aqui
e amadurecida antes das artes plásticas, inclusive apresentada será a identificação de aspectos
no sentido de ser capaz de refletir e assumir comuns ou diferenciadores entre algumas das
posições sobre seu caráter nacional já em meados produções críticas do Rio de Janeiro, a partir da
do século XIX. década de 1870.

A crítica literária teve um papel fundamental na Se um dos problemas hoje encontrados para
definição do nacional em literatura. Buscou analisar a crítica de arte do século XIX brasileiro é
construir as origens dessa literatura a partir de um devido a sua fragmentação e, por isso, até um certo
estudo sistemático do que foi produzido no Brasil desconhecimento da crítica produzida, colocar
desde a chegada dos portugueses. Houve muitas juntos comentários críticos publicados em
discussões acerca do que ou, de quem, poderia periódicos como a Revista Musical e de Bellas
ser considerado nacional. No debate, por exemplo, Artes, Revista Illustrada, Revista Brasileira, além
entre Romero e José Veríssimo, se pode observar dos livros de Félix Ferreira e Gonzaga Duque
uma discordância até no que tange ao conceito Estrada, pode ampliar e trazer algumas luzes ao
de literatura, passando por quem consideravam horizonte dos estudos em torno da crítica de arte
precursores da produção literária no Brasil. Nesse daquele período.
debate entraram outros nomes como Araripe Junior
(1848-1911), Tobias Barreto (1839-1889), A constante presença da AIBA nas críticas
Capistrano de Abreu (1853-1927), Rocha Lima
(1855-1878), entre outros. Um dos temas mais dicutidos pela crítica foi a
Academia Imperial de Belas Artes, como o grande
A arte brasileira também viveu esses conflitos da centro formador de artistas nacionais, foi alvo de
busca de um caráter nacional. Na década de 1870, muitos comentários bastante ácidos.
por exemplo, houve uma grande discussão em
torno da chamada “Escola Brazileira”, a qual seria A Revista Musical, assim chamada até o número
a classificação de um grupo de artistas que 02, só receberia o complemento e de Bellas artes,
comporiam por sua produção um estilo brasileiro a partir do número 03. Sua fundação foi um
de fazer arte. É claro que não foi algo comumente empreendimento dos músicos Arthur Napoleão5 e
aceito, discutia-se, entre outras questões, como Leopoldo Américo Miguez6, ambos nomes
artistas formados no estrangeiro ou a partir de conceituados no cenário musical brasileiro daquele
premissas estrangeiras poderiam compor uma arte período.
brasileira.
É de se esperar que a Academia Imperial de Bellas
As reflexões sobre a produção artística no Brasil Artes deveria então ser um ponto importante da
do século XIX são bastante lacunares, há pela crítica realizada na revista. Em vários números
frente um imenso trabalho de recuperação de foram publicados artigos com este titulo, sempre
fontes e análises. Para realizar essas análises, uma na primeira página.
das possibilidades poderia ser com o auxílio da
Em seu número 10, ao comentar a abertura da
crítica literária, a partir dos problemas comuns que
Exposição Geral da Academia, faz algumas
essas produções enfrentaram e as soluções que
provocações a esta instituição:
elas buscaram. Não se pode deixar de notar que o
meio intelectual brasileiro, praticamente todo Revelará ella uma evolução artística, que
concentrado no Rio de Janeiro, ou ao menos o que tranforme completamente a nossa esthetica,
foi até hoje considerado pela historiografia, tinha que não tem tido, entre nós outro norte senão
em seus horizontes referências comuns importadas a convenção?
da Europa, assim como problemas comuns como Indicará ella qual a tendência idealista ou
o analfabetismo e conseqüente diminuição de realista da nova geração de artistas que ha de
público fruidor, dificuldades de financiamento, vir substituir Victor Meirelles, o falecido Motta,
diferenças políticas, entre outros. e muitos outros que por tantos annos têm
occupado a atenção do Brasil com as suas
È certo que não se pode deixar de lado as
magníficas composições?
particularidades de cada produção, todavia, o olhar
contemporâneo dos homens do século XIX Os discipulos pensionistas, ao chegar do
brasileiro sobre aquele momento histórico e seus estrangeiro, trouxeram nos seus saccos de
desdobramentos políticos, sociais e culturais viagem, alguma idéa nova que rasgue novos
podem ser de grande valia para uma reflexão hoje.

281
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

horizontes á arte brasileira, e que ponha de lado A academia retornaria às páginas da Revista
idéas e processos rotineiros adoptados até Musical, agora no número vinte e quatro, para tratar
aqui? da necessidade de reformas naquela instituição.
A academia de bellas artes terá feito escola? O artigo começa noticiando uma reunião de alunos
Imprimirá ella os seus alunos discipulos essa que estavam se organizado para pedir providências
feição uniforme, rigida e, em melhores termos: ao governo na reformulação do método de ensino
academica, que, que levada ao extremo, tão nos cursos da academia. A partir desse
condemnada tem sido nos outros paizes?”teria acontecimento o crítico discorre sobre os vários e
esta então uma maior vantagem em relação a graves problemas da instituição, os quais já teriam
crítica musical. chegado a tal ponto que os próprios alunos estariam
insatisfeitos com seu ensino.
As inúmeras indagações com as quais o texto foi
construído já poderia ser um indicativo de que a Fala-se dos altos custos de manutenção da
revista duvidava da academia e do seu ensino. instituição, a qual, por sua vez, não ofereceria
Quando lemos as questões colocadas essa contrapartida que justificasse esses gastos, além
possibilidade parece se confirmar. Fala-se de uma disso, as aulas seriam ministradas por professores
academia baseada em convenções, de uma que não teriam competência na área exigida, como
necessidade de mudança e renovação, questiona- no caso das aulas de paisagem estarem sendo
se as práticas da academia demasiado atrasadas ministradas por um pintor histórico, entre outras
e se ressalta, inclusive, a condenação dessas disciplinas na mesma situação.
práticas em outros lugares.
O crítico questiona porque os alunos pensionistas
A crítica à Academia de Belas Artes foi também não contribuem, ao menos, fornecendo
um tema recorrente nas críticas da Revista informações sobre os métodos das academias
Illustrada, a qual creditava a essa um papel européias e conclui dizendo que os professores
prejudicial ao desenvolvimento da arte no Brasil. deveriam se juntar aos alunos para pedir também
Gonzaga Duque também teceu considerações a reforma da academia.
bastante críticas àquela instituição, chegando a
afirmar que sua fundação teria castrado o elemento Um outro momento de atuação bastante
nacional da arte. contundente do periódico em torno das ações da
Academia foi no número dezenove, cujo tema do
Algo muito interessante de se observar na crítica artigo era: “O Premio de Roma”. O escolhido
feita pela Revista Musical e pela Revista Illustrada, naquele ano foi Rodolfo Amoedo. Em princípio a
é que a segunda assume um posicionamento muito revista não questionaria a competência de Amoedo
mais apaixonado, por vezes até mesmo passional para o prêmio, mas sim a forma como se deu o
em torno dos temas tratados. Sua defesa do processo de escolha, entre empates nas votações,
escultor Rodolpho Bernardelli é um exemplo. Já a mudanças de votos e abstenções de professores,
Revista Musical tenta se colocar de uma forma mais os quais seriam os mais abalizados para fazer a
imparcial, até mesmo na forma como os artigos escolha, o caso foi decidido por um “voto de
são escritos, na escolha das palavras, sua crítica Minerva”.
não tem a acidez violenta que é possível observar
na revista de Angelo Agostini. O tema das premiações, não apenas de viagem,
mas da exposição, foi também discutido por Angelo
Há também momentos em que essas críticas se Agostini na Revista Illustrada. Sua indignação
aproximam, como por exemplo, na intenção de aparece em textos como o que se segue:
educação do olhar do público, as escolhas podem
ser diferentes, mas a preocupação é comum. A Como vê-se, a rhetorica e o cantochão deram-
Revista Musical e de Bellas Artes acreditava que se as mãos para o realce d’essa festa artistica,
era preciso escolher o melhor escultor para dar o em que uns foram injustamente esquecidos e
melhor exemplo ao olhar do povo brasileiro A outros lembrados injustamente.
Revista Illustrada via em Rodolpho Bernardelli o Uma cousa compensa a outra; e o jury...
grande e melhor exemplo. Assim, algo comum no *
universo dessa crítica é que o melhor seja dado ao E o jury é o jury.
povo brasileiro, porque só assim seria possível uma E como tal tem todas as lincenças, mesmo a
educação para o aprimoramento do gosto e de conceder premios superiores aos artistas
conseqüente fruição da arte. que nada expuzeram, como o leitor já deve ter
notado pelas noticias dos grandes amoladores
diarios.7

282
Caminhos da crítica de arte no Brasildo século XIX

Tanto a crítica da Revista Musical, quanto a da professores de pintura que não sabem
Revista Illustrada, fazem em suas páginas desenho, professores de paisagem que não
constantes denúncias sobre as chamadas conhecem a natureza, professores de
“injustiças”, cometidas pela Academia e seus esculptura que não tem noção da arte,
responsáveis. professores de architectura pedreiros
aposentados, o ensino academico será
Em dezembro de 1879, no número cinqüenta, a forçosamente nocivo, corruptor fatal ás artes.9
Revista Musical, volta ao tema da Academia. Faz
dessa vez não apenas uma crítica à instituição, Os motivos para o não fechamento da academia,
mas à imprensa fluminense. De acordo com o artigo apresentados pelo crítico da Revista Illustrada, não
a imprensa teria notado só agora a decadência da são os mesmo que o da Revista Musical e de Bellas
academia, a falta de méritos dos alunos, as Artes. Na Illustrada, parece existir uma
injustiças cometidas no prêmio de viagem, entre preocupação de que com o fechamento da AIBA o
outros problemas da academia e estariam Brasil ficasse totalmente alheio à produção artística,
clamando pelo seu fechamento. sem a possibilidade de formar artistas. Uma
reforma radical sim, esta seria indispensável
O crítico da revista se apresenta indignado com a segundo o crítico, com inclusive a substituição do
posição da imprensa, não porque os problemas corpo docente. Já a Revista Musical, parece mais
citados não sejam reconhecidos, mas porque, adotar uma posição em defesa do corpo docente,
segundo o texto, são problemas demasiado antigos o qual precisaria provar sua inocência ou
e que a imprensa só estaria se levantando agora, competência do que a própria defesa da instituição.
quando já poderia ter tomado uma atitude antes
que a situação chegasse ao ponto que teria Ao contrário da literatura, em que a discussão em
chegado. torno do nacional começa a ganhar força ainda na
primeira metade do século XIX, e da crítica literária
O crítico concorda que as mudanças são urgentes, que, através da organização de uma história da
que inclusive uma sindicância deve ser realizada e literatura brasileira data o nascimento da produção
não simplesmente fechar, afinal o que seria feito nacional já no século XVII e XVIII, a arte brasileira
dos professores e alunos daquela instituição, eles e principalmente a crítica se colocaram essas
não poderiam ser simplesmente descartados. questões de uma forma mais forte na segunda
metade do século XIX. Até então a produção
O tom desse artigo é bastante interessante pela artística nacional ainda não era vista como algo
defesa que faz dos membros da instituição, que se sustentaria por si própria, além da
destacando inclusive o nome de um dos necessidade dos modelos europeus, parte da
professores, o prof. Mafra8, o qual seria alguém crítica nem mesmo acreditava no potencial dos
zeloso. O crítico pede ações desde que os artistas como representantes de uma produção
membros da instituição não sejam prejudicados. artística.
O artigo, como os demais, não foram assinados, Não havia na Revista Musical e de Bellas Artes ou
mas pela forma como se coloca é muito provável na Revista Illustrada, por exemplo, como se pode
que tenha sido escrito por um professor da ver na crítica literária, uma preocupação em
instituição ou por alguém muito próximo. Todavia, reconstituir ou construir uma história da arte
a Revista Illustrada, que sempre foi muito nacional, a busca dos precursores, das raízes
combativa em relação à atuação daquela instituição brasileiras, é como se só fosse considerado parte
de arte, em dezembro de 1879 também demonstrou da produção artística nacional, ou seja, o que fosse
uma opinião contrária ao fechamento da academia: produzido na AIBA ou a partir daquela instituição,
só a produção oriunda dela recebia alguma
A imprensa tem reclamado o fechamento, a
menção.
abolição da Academia de bellas-artes.
Attendendo a falta de um museu, onde os Essa questão começa a ser tratada por Porto
artistas pudessem ir estudar os bons modelos, Alegre, conforme mencionado acima, em 1841,
á falta de cursos em que bebessem os mas só será retomada em 1888 em A Arte Brasileira
principios necessarios, sem uma atmosphera de Gonzaga Duque, como se verá adiante.
artistica, é certamente um erro pedir tanto; o
mal não implica a falta do bem. Mas é A publicação em 1885 do livro Belas Artes: Estudos
necessaria, indispensavel uma reforma e apreciações, escrito por Félix Ferreira, teve uma
completa, uma substituição do pessoal boa recepção por parte da imprensa. O índice do
docente; porque em quanto os alumnos tiverem livro propunha um amplo panorama do

283
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

desenvolvimento da arte. Parte do que seria a “Ninguém hoje ignora que as bellas-artes são o
origem desta, passando pelo florescimento, influxo de todas as industrias, as bases de toda a
decadência, Renascimento e Arte Moderna. Além perfeição manufatureira.”11
disso, o autor escreve sobre o que chama de
“Pequenas exposições”, as quais consistem em Na primeira parte do texto Ferreira tenta fazer um
individuais de artistas, fala da exposição do Liceu histórico do que ele acredita serem os fundamentos
de Artes e Ofícios de 1882, e da Exposição Geral do nascimento de uma escola artística no Brasil.
de 1884. Fala da idéia de uma escola artística brasileira, a
qual seria dos tempos coloniais, e cita o nome do
Ferreira apresenta uma idéia evolucionista da arte, Conde da Barca12 (1754-1817) como o idealizador
diz que a primeira forma de expressão teria sido a da vinda da Missão Francesa, conta todo o
arquitetura, depois a escultura e por último a processo conturbado da chegada da missão até a
pintura. Para demonstrar sua tese utiliza o Brasil inauguração da academia. E conclui o artigo com
como exemplo, onde a pintura seria rudimentar e alguns comentários sobre a sede da academia, a
a escultura mais desenvolvida. Não podemos construção do arquiteto Grandjean de Montigny
deixar de notar que a teoria evolucionista de Darwin (1776-1850) e a reconstrução do prédio.
e a biologia como um todo estavam muito em voga
na segunda metade do século XIX. Não se observa na crítica de Agostini uma reflexão
acerca das origens da arte no Brasil, portanto não
Segundo Julio Castañon Guimarães o livro de há uma idéia clara sobre seu posicionamento a este
Ferreira suscitaria algumas considerações em respeito. Todavia o comentário que faz sobre
comparação com A Arte Brasileira de Duque Ferreira dá uma indicação de que o crítico não
Estrada, pois ambos apresentariam um panorama deveria concordar com a opinião desse, pois
da arte brasileira: acreditava ser mais importante comentar o que
estava exposto.
[...] O de Félix Ferreira desenvolve uma história
universal da arte, para em seguida comentar, Ferreira recebeu a exposição de 1884 de forma
ainda que de forma detalhada, apenas algumas bastante positiva, falou da grandeza desta, do
exposições realizadas no Rio de Janeiro entre progresso que a arte no Brasil teria alcançado e
1882 e 1884. O tom do seu livro dá a impressão do grande número de bons artistas nacionais e
de um comentário que procura ser estrangeiros que teriam participando da exposição.
fundamentado e objetivo. Já o livro de Gonzaga Reconhece, todavia, que num país em que haveria
Duque tem intenções bastante diferentes. tão pouco, ou melhor, tão grande atraso nas letras
Trata-se efetivamente de uma apresentação da e nas artes, não seria prudente só escolher os
história das artes plásticas no Brasil. [...] 10 melhores artistas para expor, assim como não se
(DUQUE ESTRADA, 2001: 15) poderia cobrar obras inéditas, quando muito,
poderia haver uma separação das obras inferiores.
No trabalho de Gonzaga Duque é possível perceber
um tom diferente daquele adotado por Ferreira, o A opinião de Ferreira é bastante branda e
qual não faz uma ligação entre a primeira parte do reconhecida como tal. Embora o crítico note alguns
seu livro, com sua história universal da arte e o problemas na produção artística, acreditava que
contexto brasileiro. Não é criado nenhum vínculo, quanto mais se produzisse, independentemente da
ou relação de causa e conseqüência. qualidade, melhor, ao menos inicialmente. Seria
essa uma forma de aperfeiçoamento, de melhorar
Ao comentar a exposição do Liceu de Artes e a produção. Um exemplo disso é quando comenta
Ofícios realizada em 1882, enfoca as dificuldades o grande número de quadros expostos por Firmino
financeiras, a falta de oficinas, máquinas e pessoal Monteiro e Aurélio de Figueiredo na exposição: “Os
que esta instituição enfrentaria, além disso, diz que Srs. Firmino Monteiro e Aurélio de Figueiredo foram
o Liceu teria se limitado apenas às belas artes, os dois pintores moços que maior soma de
quando precisaria também atender necessidades composições apresentaram na atual exposição.
da indústria. Segunda a avaliação de Ferreira, o Querem uns ver nisto um mal, outros um bem;
Liceu teria que ser um braço da indústria moderna, quanto a mim, sou sempre pelos que mais
portanto precisava progredir para, dessa forma, dar produzem.”
impulso à indústria.
Ao contrário de Ferreira, Agostini, que já tinha
Essa reivindicação de Ferreira já havia aparecido defendido o trabalho de Firmino Monteiro em outros
no Brazil Artístico, no qual foi defendida a momentos, critica o artista justamente pelo
necessidade da arte para auxiliar a industria: excessivo número de trabalhos expostos, segundo

284
Caminhos da crítica de arte no Brasildo século XIX

o crítico, o artista deveria se empenhar para fazer que para Agostini seria necessária uma total
bem o trabalho com muito estudo e não se entregar reformulação, quase que um recomeçar do zero.
a uma produção extensa e sem méritos.
O texto de Ferreira apresenta como um bom
Algo em que os críticos se aproximam é no caminho para a arte a sua popularização, assim
reconhecimento da falta de instituições como sugeriu que fossem realizados concertos musicais
bibliotecas, museus e galerias para orientar e nas exposições com a finalidade de atrair o público,
auxiliar os artistas em seu trabalho, além de assim como para a premiação fosse criada uma
modelos e espaços adequados. comissão de professores da Academia, que não
estivesse expondo, para julgar os trabalhos de
Ferreira afirma que a arte brasileira ainda estaria todos, assim como a presença de um representante
na sua infância, no momento de formação e que dos artistas. Ou seja, há por parte do crítico uma
só o surgimento de uma geração adiantada traria confiança na instituição, nos seus membros para
o progresso às artes. Agostini também acreditava avaliar os trabalhos. Algo que, por exemplo, não
que a arte brasileira estava na sua infância, porém: vemos em Angelo Agostini, para o qual as
“Resignemo-nos; mas a respeito de bellas artes premiações foram sempre motivo de desagrado,
estamos ainda na infancia. E na infancia caduca, seja pela parcialidade do júri ou mesmo a
o que é ainda peior[...]”.13 Os críticos concordam incompetência que este teria para avaliar.
no termo, mas Ferreira é muito mais otimista, vê a
possibilidade de progresso entre os artistas da O livro de Duque Estrada, A Arte Brasileira,
Academia. Ao passo que Agostini parece não ver publicado em 1888, é ainda uma importante
grandes esperanças na afirmação da arte no Brasil, referência para os estudos artísticos do século XIX
ao menos, sob a tutela da Academia. brasileiro. Duque Estrada tem como um dos
grandes diferenciais em relação à crítica até aqui
Bethencourth da Silva, enquanto representante da citada, uma erudição e uma preocupação em
AIBA, não discordava dos críticos acima no sentido balizar suas análises a partir dos principais nomes
de que a arte no Brasil só estaria no começo, da crítica européia. O crítico demonstrava, a partir
porém, ao contrário de Agostini, via um horizonte das citações, um grande conhecimento da
imenso e muito rico para ela, no qual a Academia produção crítica, sobretudo francesa, da época.
teria um grande papel:
A crítica de Agostini, pelo contrário, apresenta uma
A arte entre nós começa apenas a sua quase ausência de referências diretas a outros
existência; balbucia as suas primeiras phrases, críticos de arte para embasar os seus textos. Os
levanta as suas mãos mal robustecidas, infantis raros momentos em que recorre aos nomes de
e inexpertas, mas grande e nobre como tudo artistas ou críticos estrangeiros é utilizada para
que a cerca, ella olha para os esplendores da mostrar a pretensão de algum artista ou da crítica
nossa terra, para as alturas das nossas brasileira em geral, os quais ousariam se comparar
montanhas, para o sombrio das nossas mattas, à Europa, ou para ressaltar a importância da crítica:
para o cerúleo esmalte do nosso ceo, e quer
ser grande e immensa como é a luz do nosso Não distinguir o bom do soffrivel ou do
sol, como é a fertilidade espontânea de toda medíocre, não pôde agradar senão aos que se
esta uberrima natureza. acham n’esta ultima classificação. Mas o que
A exposição geral de Bellas Artes, a qual acaba se há de fazer?... Não se pôde exigir que a
de encerrar-se na respectiva Academia é nossa imprensa tenha críticos da força de
inquestionavelmente o gérmen de uma grande Charles Blanc, Theophilo Gauthier e outros. E
revolução artística, um esforço notável do se por acaso os tivesse, estou bem certo que
talento nacional, digno de séria e profunda quase todos os artistas se empenhariam para
analyse, que procuraremos fazer em que não fallassem das duas obras.15
subseqüentes artigos.14
Uma outra questão, diferencial, a ser destaca na
Ferreira, assim como Agostini, também acreditava crítica de Duque Estrada é uma tentativa de
que a arte no Brasil precisaria passar por reformas, sistematização. O crítico fez uma reflexão que
sobretudo sua instituição maior, a Academia, porém buscou identificar os germens da arte brasileira,
Félix Ferreira demonstrava que o que já se produzia as condições que propiciaram seu florescimento e
deveria ser aproveitado e burilado. Há no texto uma o desenvolvimento desta até a publicação de A Arte
grande reverência aos artistas pelo seu esforço Brasileira.
diante de uma situação tão complicada como
aquela que o país impunha aos artistas. Ao passo

285
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

Conforme a apresentação de Tadeu Chiarelli, na Le stylie l’architecture La sculpture - La peinture.


edição de 1995, de A Arte Brasileira, Gonzaga La danse La musique - La poesie - L’esthetique de
Duque apresentaria uma visão bastante pessimista Planton. Paris: Schleicher, 1904.
da formação do Brasil. Inicia falando da decadência
de Portugal, e de como a colonização do Brasil Notas
teria sido feita com degredados, judeus, jesuítas, 1
O movimento de construção da “nação” e a reflexão em
a partir da escravização do índio e depois do negro,
torno do que é nacional estão presentes, no século XIX,
das péssimas condições de higiene e edificação em vários países no mundo, tanto na Europa quanto na
das cidades, vícios, ou seja, uma mistura cujo América. Vide: HOBSBAWM, E. J. Nações e
resultado não teria sido nada nobre. Em tais Nacionalismo deste 1780. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
condições, sem um meio que propiciasse bons 2002.
2
frutos, a produção artística teria sérias dificuldades VERÍSSIMO, José. Estudos de literatura brasileira. 3ª
a enfrentar. série. Introd. de Oscar Mendes. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia;
São Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo, 1977.
3
Brazil Artístico, Rio de Janeiro, N.01, 1857.
A forma como Duque Estrada inicia sua análise e 4
Revista Illustrada, Rio de Janeiro, Ano IV, N.187, 1879,
mesmo os argumentos são muito próximos p.02
daqueles utilizados por Sílvio Romero, conforme 5
Arthur Napoleão nasceu no Porto, Portugal, em 1843, se
citado anteriormente. Ambos acreditavam que a destacou desde muito cedo como pianista, seu primeiro
formação do povo brasileiro seria determinante para recital teria ocorrido aos sete anos, viajou pela Europa e
o precário desenvolvimento das artes no Brasil. E América, atuou como solista e também como camerista
todos os críticos aqui apresentados demonstraram ao lado dos violinistas Henri Vieuxtemps e Henryk
Wieniawski. Fixou-se no Rio de Janeiro em 1866, onde
preocupação com a necessidade de formação e
também tornou-se comerciante, foi professor de Chiquinha
educação desse povo para as artes. Gonzaga, em 1883 fundou uma Sociedade de Concertos
Clássicos e faleceu no Rio de Janeiro em 1925.
Referências bibliográficas 6
Leopoldo Miguez nasceu no Rio de Janeiro em 1850, foi
compositor, violinista e maestro. Viajou pela Europa,
CANDIDO, Antonio. Formação da literatura estudou em Portugal e na Bélgica. Aproximou das idéias
brasileira: momentos decisivos. Belo Horizonte: do compositor Wagner, o qual teria influenciado
Ed. Itatiaia; São Paulo: Ed. da Universidade de São decisivamente sua orientação musical, assim como Listz.
Paulo, 1975. 1º e 2º vol. Ganhou o concurso realizado em 1890 para o Hino Nacional
________. Silvio Romero: Teoria, crítica e história que posteriormente foi adotado para o Hino à República.
Neste mesmo ano foi nomeado diretor do Instituto Nacional
literária. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e
de Música. Miguez morreu em 1902 no Rio de Janeiro.
Científicos; São Paulo: Ed. da USP, 1978. 19 Revista Musical e de Bellas artes. Rio de Janeiro,
DUQUE ESTRADA, Luiz Gonzaga. A Arte 1879, Ano I, Nº10, p.1.
Brasileira; introdução e notas de Tadeu Chiarelli. 7
Revista Illustrada, Rio de Janeiro, 1879, ano IV, n.172,
Campinas, SP: Mercado de Letras, 1995. p.2
8
________. Impressões de um amador: textos Maximiano Mafra (1823-1908) Pintor e escultor, foi aluno
esparsos de crítica (1882-1909). Org. Júlio da AIBA, estudou com Porto Alegre e posteriormente se
tornou professor da Academia, na cadeira de pintura
Castañon Guimarães, Vera Lins. Belo Horizonte:
histórica.
Ed. UFMG; Fundação Casa de Rui Barbosa, 2001. 9
Revista Illustrada, Rio de Janeiro, 1879, ano IV, n.187,
FERREIRA, Félix. Belas Artes: Estudos e p.2
Apreciações. Publicação Digital, ArteData, 1998. 10
DUQUE ESTRADA, Luiz Gonzaga. Impressões de um
ROMERO, Silvio. História da literatura brasileira. amador: textos esparsos de crítica (1882-1909). Org. Júlio
Org. Luiz Antonio Barreto. Rio de Janeiro: Imago Castañon Guimarães, Vera Lins. Belo Horizonte: Ed.
Ed; Aracaju – SE: Universidade Federal de Sergipe, UFMG; Fundação Casa de Rui Barbosa, 2001.
11
Brazil Artístico. Rio de Janeiro, 1857, p.18.
2001. 12
Bitencourth da Silva, professor da AIBA, em uma série
TAINE, Hippolyte. Da Natureza e produção da de artigos publicados na Revista Brazileira em 1884,
obra de arte. Trad. Paulo Braga. Lisboa: Editorial também menciona o Conde da Barca como aquele que
‘Inquérito’, 1940. teria feito vir ao Brasil a missão artística, a qual, por sua
VERÍSSIMO, José. Estudos de literatura brasileira. vez teria sido responsável pela primeira lição de desenho
Introd. Vivaldi Moreira. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia; aos fluminenses.
13
São Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo, Id., 1879, ano IV, n.159, p.2 e 3.
14
Revista Brazileira, Bellas Artes, 1884, p130.
1977. 15
Revista Illustrada, Rio de Janeiro, 1882, ano VII, n.292.
VERON, Eugène. L’esthetique: origene de arts-le p.3
gout le genie. Definition de l’art et de l’esthetique -

286
capitulo 6
arquitetura e ecletismo

287
Com a Proclamação da República, em 1889, a
Academia Imperial das Belas-Artes tornou-se
Escola Nacional de Belas-Artes, mudança que não
ocorreu somente na denominação da instituição.
O governo provisório republicano havia instaurado
uma comissão, à qual pertencia o futuro diretor da
escola, Rodolfo Bernardelli, cuja principal
incumbência era reformular o ensino artístico. 2
Professores foram demitidos, outros foram
contratados, a escola passou a ter novos estatutos
e, assim, novo direcionamento nas questões de
ensino. Como afirmou Rodolfo Bernardelli em
relatório sobre o primeiro ano de suas atividades
como diretor da Escola:

Substituindo-se a Academia criou-se a Escola


Nacional de Belas-Artes, que pode definir todo
o seu programa de repulsa com que foi
condenado o título pretensioso e nefastamente
sugestivo de sua antecessora. A academia era
a contemplação ritual do passado; era a
veneração do cânon inviolável das convenções
plásticas dos antigos [...]. (BERNARDELLI,
1890: 19)

Portanto, a mudança na nomenclatura, como se


pode perceber nas palavras de Bernardelli, não
tinha caráter puramente formal, trazendo à tona o
o ecletismo e civilização 1 repúdio à estagnação que havia se instaurado na
Academia. Mas, principalmente, demonstrava o
claudia thurler ricci * quanto a mais importante instituição das Belas-
Artes no Brasil tinha se deixado contaminar pela
inércia nestes 64 anos, desde o início de seu
funcionamento em 1826.

A fundação da Academia pelos artistas da Missão


Francesa significou a possibilidade da instauração
do ensino acadêmico das Belas-Artes no Brasil.
Não se tratava, portanto, de negar pura e
simplesmente o neoclássico e muito menos a
importância dos fundadores da Academia, mas sim
de renovar a escola, abrindo suas portas para novas
propostas e questionamentos que já se
instauravam em diversas outras instituições
artísticas no ocidente3. Questionamentos que, aliás,
como o feito por Bernardelli, colocavam em xeque
a validade inexorável das normas clássicas às quais
estava submetida a Academia. E era exatamente
esta uma das preocupações do então diretor
Rodolfo Bernardelli: ‘a veneração do cânon
inviolável das convenções plásticas dos antigos’.4

A Academia, que outrora fora vista como missão


civilizadora, era acusada de estagnação através
da manutenção do cânone clássico, pautado pela
crença na existência de princípios universais do
belo. Tratava-se, desta forma, de renovar a
instituição, dando ao ensino um novo
direcionamento. Motivada pela nova ordem política

289
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

que se instaurava no país com a Proclamação da ecletismo e a prática da reformada École des
República, a reforma do ensino tornou-se a Beaux-Arts, segundo os quais a verdade em
prioridade da instituição. Conforme a significativa arquitetura não mais se encontrava determinada
frase de Bernardelli, após o Quinze de Novembro, em uma única doutrina artística reconhecida, em
“o ânimo de renovar, que então se generalizou, veio um único tipo de beleza. Caberia aos arquitetos,
ao encontro da necessidade no desmantelo do ao estudarem todas as produções do passado –
ensino. E o momento da reforma chegou”. clássicas ou não – selecionar o que de melhor havia
(BERNARDELLI, 1890: 22). sido produzido pelo homem e operar uma síntese,
constituindo, assim, uma arquitetura que fosse bela
A renovação, tão aclamada por Bernardelli, e que e útil ao satisfazer as necessidades do presente e
apontava para o redirecionamento do ensino das projetar uma imagem de sociedade para o futuro.
artes, pode ser percebida em uma medida sutil nos O ecletismo vai então se firmando como uma forma
estatutos de 1890, aprovados pelo decreto no 983: de ação no mundo e de constituição de uma
a supressão do ensino de estética, que visava não sociedade que, voltando-se para o conhecimento
a redução, mas a ampliação dos horizontes do do passado, busca instaurar um projeto de futuro.
ensino ao possibilitar que o aluno tivesse contato
com diferentes doutrinas artísticas não estando Percebe-se, portanto, a grande importância que
submetido exclusivamente a uma única. A adquiria a história da arte e o desenvolvimento das
justificativa apresentada por Bernardelli para esta modernas técnicas arqueológicas, que neste
reformulação no currículo indica que a escola se momento estavam imbuídas de um caráter
deixava permear pelos questionamentos sobre a científico no estudo e na organização dos fatos
validade de um ensino que ficasse circunscrito a arquitetônicos. O discurso corrente sobre o estilo
dogmas artísticos. Como afirmou o diretor ao e a história era dividido em dois aspectos,
justificar tal medida: aparentemente contraditórios: 1) a constituição de
uma história dos estilos – desenvolvida a partir das
O critério do Belo forma-se na consciência do pesquisas levadas a cabo pela arqueologia; 2) a
aluno, se for um espírito capaz de síntese, [...] pesquisa e criação de um estilo que fosse
formar-se-á espontaneamente como a suma reconhecido como representativo do período, e que
das doutrinas que professores habilitados lhe surgisse da combinação das formas, dos materiais
forem ministrando em cada matéria; nascerá e dos métodos construtivos estudados. (CHANTAL,
como opinião individual da simples convivência 1990: 63-79)
e prática com o alto objetivo de sua estudiosa
aplicação [...]. (Id., 1890: 24) Desta forma, a história da arquitetura estava
presente como disciplina que fornecia instrumental
Portanto, a defesa de Bernardelli era de que a para enfrentar os problemas colocados pela
criação artística não deveria ser pautada pela sociedade do presente. Ou seja, o ecletismo se
submissão a um único tipo de ‘doutrina’, mas sim caracterizava também pela pesquisa de materiais
pelo conhecimento de todas as doutrinas artísticas, e técnicas construtivas que no período eram objeto
possibilitando que o artista formasse a sua própria de grande estudo, e não só pela combinação de
concepção de belo. estilos do passado. Cabe apontar que a pesquisa
das formas plásticas do passado se encontrava
Tomada de empréstimo à filosofia eclética, o aliada às pesquisas técnicas realizadas no período
ecletismo em arquitetura assumia a mesma e que, a partir da utilização de novos sistemas
posição defendida pelo seu fundador, o filosofo construtivos e novos materiais como o ferro,
Victor Cousin, que em seu livro Du vrai, du bien, redimensionavam e modernizavam antigas
du beau (1836) preconizava “a busca dos estruturas.
elementos a serem utilizados no presente, através
do conhecimento de todos os sistemas que foram A penetração de novas tecnologias e,
propostos na história para dizer a verdade do conseqüentemente, o redimensionamento do
mundo” (ÉPRON, 1997: 15). Esta tendência a ensino de arquitetura se fez sentir também na
abarcar o estudo das diferentes produções Escola de Belas-Artes. O novo currículo deste
arquitetônicas do passado já havia se firmado na curso, instaurado com a reforma de 1890, apontava
École des Beaux-Arts de Paris, que após a reforma para a renovação da instituição, que pretendia
de 1863 passou a abrigar ateliers oficiais de imprimir ao estudo da arquitetura um caráter mais
diferentes escolas do pensamento arquitetônico. pragmático e mais afeito às tecnologias
desenvolvidas no período, incluindo disciplinas ou
Assim, à crítica que fazia Bernardelli à antiga dando às já existentes uma outra perspectiva.
Academia juntavam-se as proposições do Cálculo e mecânica, materiais de construção e sua
290
O ecletismo e civilização

resistência, topografia, tecnologia das profissões Neste sentido, se a história fornecia os modelos a
elementares e higiene das habitações faziam parte serem utilizadas no presente, novas oportunidades
deste novo enfoque. Entretanto, percebemos no surgiam para os arquitetos, pois, partindo do
novo currículo a manutenção da antiga disciplina domínio das novas tecnologias, poderiam
‘estereotomia’, que se dedicava a ensinar a arte manipular e redimensionar estas formas, tornando-
de dividir e cortar com rigor os materiais de as aptas ao uso contemporâneo. O passado era
construção, principalmente a pedra e a madeira, revisto e transformado “de forma arrojada, valente
constituindo, a princípio, a manutenção de antigas e ampla” e as antigas estruturas, as formas
técnicas construtivas. oferecidas pela história, ganhavam nova dimensão
e utilidade através da pesquisa de materiais e
No concurso para o lugar de lente de estereotomia, técnicas construtivas. A tecnologia desenvolvida no
realizado em 1897, a necessidade de modernização presente solucionava problemas do passado e
do conteúdo da disciplina se faz notar na exposição apontava para a constituição de um estilo do futuro.
de Morales de los Rios em sua Tese Apresentada A história era, portanto, mais do que uma disciplina
no Concurso para o lugar de Lente de Estereotomia fornecedora de ‘estilos históricos’, ela também era
da Escola Nacional de Belas-Artes. Reconhecendo a responsável por prover o suporte teórico e
o suplantar da madeira e da pedra pelo ferro, e metodológico para as pesquisas realizadas pelos
certo da penetração deste material nos sistemas arquitetos no campo das técnicas construtivas.
construtivos do período, Morales se colocou como
defensor da instauração de uma disciplina que Esta nova relação com a produção arquitetônica
tratasse exclusivamente da estereotomia do ferro. do passado foi fruto do crescente interesse histórico
É o que nos apresentava no capítulo em que se e arqueológico frente à arquitetura produzida
dedica a dissertar sobre “Estereotomia – teoria e anteriormente e que, ao se conectar, já em inícios
trabalho gráfico”, indicando algumas proposições do XIX, com o historicismo, acabou por encampar
que julgava necessárias para o redimensionamento a noção de relativismo, acarretando uma nova
da disciplina e a sua modernização. forma de conhecer o mundo e que vinha ao
encontro dos questionamentos e interesses dos
II – No estudo da estereotomia deve ser arquitetos. 5
compreendido o das construções de ferro e aço
e feita com o da geometria analítica e dos A noção de relatividade histórica foi
cálculos. conscientemente encampada pelos arquitetos,
III – Dada as tendências atuais da arquitetura, fazendo com que as diferentes linguagens plásticas
a estereotomia na sua aplicação ao corte de não fossem mais vistas como um dos aspectos
pedras e madeiras, deve apresentar cada vez parciais de uma norma universal, mas sim como o
maiores tendências para se tornar uma ciência resultado das forças históricas que as produziram.
eminentemente arqueológica sem assentar-se Como afirma Alan Colquhoun isto se deve à
por isto em descabido exclusivismo da matéria mudança na atitude frente à história que, em fins
no seu ensino profissional. (Morales de los do XVIII, com a filosofia idealista de Hegel e com o
Rios, 1897: 5). historicismo, passou a ser vista não mais como a
expressão de leis naturais – no qual trabalho do
O interessante é que, contraditoriamente, o ponto historiador seria expor o essencial e universal –,
sorteado para a prova escrita do concurso foi mas sim como campo no qual o homem e suas
‘Arcabouços de ferro nas abóbadas’. Morales de instituições deveriam ser estudadas no contexto
los Rios fez uma bela prova na qual, já de antemão, de seu desenvolvimento histórico. Portanto, se todo
indicava o caminho que tal disciplina deveria tomar. fenômeno era visto como historicamente
Demonstrou amplo conhecimento do tema apontou determinado, relacionando-se a um tempo e espaço
para a necessidade de incorporar à estereotomia determinados, tornava-se impossível privilegiar um
as novas tecnologias desenvolvidas com o estilo arquitetônico em detrimento de outro. A
emprego do ferro. Reconhecendo a importância produção arquitetônica do passado só poderia ser
que este material possuía na construção da avaliada e julgada segundo suas próprias
edificação moderna, afirma em sua prova ser uma: características, e não conforme um ideal fixo,
“(...) vulgaridade repetir-se que o emprego do ferro alçando-se um estilo como paradigma, a exemplo
e do seu derivado, o aço, veio trazer a completa do que faziam os neoclássicos. Foi a apropriação
revolução na construção em geral. Os problemas da noção de relativismo na prática arquitetônica
que os construtores anteriores tiveram, foram que levou os arquitetos do século XIX e inícios do
solucionados de forma arrojada, valente e ampla XX a pensarem nas formas artísticas como
em nossos dias”. (MORALES DE LOS RIOS, 1897) produtos de uma fase particular da história, fazendo

291
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

com que se tornassem ‘objetos’ catalogáveis ou Pode parecer estranho ao olhar moderno que o
elementos dispostos ordenadamente, tal como desejo de criar um novo estilo fosse pautado pela
foram produzidos no passado. utilização do vocabulário tectônico do passado e
que o estudo da história se colocasse como um
Portanto, o estudo histórico das formas do passado, guia para o futuro. Contudo, o sentido de mudança
atrelado à noção de relatividade, trouxe em si a não se pretendia ‘rompimento’ com a história e,
perspectiva de que a nenhuma produção artística conseqüentemente, a criação desarraigada de um
poderia ser dada prioridade normativa. Como novo vocabulário. Ao contrário, dando continuidade
afirmava Hippolyte Taine, sucessor de Viollet-le- à evolução progressiva da história da arquitetura,
Duc na cadeira de História da Arte da École des era necessário aprimorar os princípios
Beaux-Arts, o historiador poderia então ignorar a compositivos e construtivos tornando-os
norma e observar a sucessão dos estilos com representativos da sociedade que os produziu.
imparcialidade, isto é, abordar as diversas criações
passadas como o botânico analisa seu material, Neste sentido, todos os procedimentos da
ou seja, sem se preocupar se são belas ou feias, arquitetura eclética e a teoria que a substanciava
venenosas ou não. (GOMBRICH, 1990:112). À a tornavam uma forma artística ideal para
forma era atribuído um valor de neutralidade, ao responder às solicitações práticas surgidas com o
ser catalogada a partir de suas características crescimento da cidade do Rio de Janeiro e sua
comuns – que previa uma ordenação cronológica elevação à condição de capital da República do
e espacial –, tornando-a objeto de conhecimento e Brasil e, conseqüentemente, como forma de
conseqüentemente sendo alçada ao estatuto de assinalar o progresso alcançado pela então jovem
linguagem formal. nação brasileira.

Como o “catálogo” se reportava às formas do Mas, ao incorporar este raciocínio, o que se


passado, que haviam sido previamente estudadas percebe na produção eclética brasileira é a
e catalogadas pela historia, tal distanciamento e necessidade de criar simbolicamente um lastro
imparcialidade permitiam sua utilização e cultural que apontasse para a filiação do Brasil às
manipulação em outro contexto, e porque não?, produções arquitetônicas da civilização européia.
com outras ‘normas’ que não aquelas que haviam Portanto, os arquitetos inscreveram no traçado do
determinado a sua constituição no momento de sua Rio de Janeiro uma história da arquitetura à qual
criação. A mistura dos estilos, algo próprio da efetivamente não pertenciam, mas da qual
prática eclética, desenvolveu-se concomitante à desejavam tornar-se parentes, apagando
descoberta da inexistência de um estilo conseqüentemente das linhas desta cidade sua
característico do século XIX, associada à história colonial. Assim, o desejo de instituir um
necessidade de uma maior liberdade criativa, pois estilo nacional, tal qual acontecera em diversos
já estava ‘provado’ que toda produção arquitetônica países da Europa, e que levaram ao estudo e
era historicamente determinada, e que as normas revitalização de movimentos como o Gótico e o
clássicas deviam sua “autoridade aos costumes”, Românico, entre outros, tem no início da prática
como havia afirmado Claude Perrault em fins do eclética brasileira sua expressão, não no sentido
século XVII. de descobrir origens, mas sim, de forjá-las. Insere-
se o país numa ordem civilizada, cosmopolita e
As formas arquitetônicas adquiriram uma nova moderna, sedimentada, como era de se esperar,
leitura ao serem inseridas na linha evolutiva da pela tradição artística ocidental, o que garantiria
história. Passaram a ser percebidas como resultado não só um presente vinculado ao progresso, mas
da evolução dos povos, marca impressa na conseqüentemente um futuro que apontasse para
edificação, levando à compreensão do estágio o desenvolvimento do país.
cultural e material alcançado por determinadas
civilizações. A partir da sedimentação desta A República, símbolo da liberdade política,
perspectiva histórica, na qual é inserida a apontava para a liberdade estética, contrapondo-
arquitetura pretérita, os ecléticos tomaram para si se ao academicismo neoclássico, símbolo da
a função de criar um novo estilo, mas que pudesse estagnação das Belas-Artes. A Escola, não mais
ser identificado como representativo de sua época. subjugada pelos dogmas dos puristas do
Portanto, história e arquitetura formavam um dueto classicismo idealizado, acolheria o ecletismo
indissociável, uma vez que o próprio ato projetual arquitetônico tornado símbolo do progresso e de
se reconhecia enquanto inscrição na pedra, capaz uma nova sociedade, com novos hábitos e,
de fornecer, não só para o presente, mas também conseqüentemente, novas solicitações. A
para o futuro, uma leitura do estado em que se modernização da cidade colocava em pauta a
encontrava a civilização que o produziu.6
292
O ecletismo e civilização

necessidade de uma nova espacialidade, não só aluno da Escola, vencedor do ‘Prêmio Viagem à
urbana, mas igualmente arquitetônica. Europa’, que se encontrava em Paris, na École des
Beaux-Arts, como pensionista. Ludovico Berna só
Não se pode afirmar que a mudança de uma iniciou suas atividades acadêmicas em 1897, mas
determinada concepção projetual para outra tivesse outras cadeiras importantes para o ensino de
sido resultado somente da imposição de novos arquitetura estavam sendo preenchidas com a
estatutos à Escola Nacional de Belas-Artes, contratação de professores, o que não fez com que
ocorridos com a reforma Bernardelli. Esta mudança o ensino fosse interrompido. Sante Bucciarelli,
já se encontrava em gestação na antiga Academia Carlo Parlagreco e Heitor de Cordevile foram
de Belas-Artes, onde se sentia a presença dos respectivamente contratados para as cadeiras de
“princípios modernos” defendidos principalmente estereotomia, de história e teoria da arquitetura e
“pelos professores de nomeação recente” de elementos de arquitetura e desenho elementar
(Bernardelli, 1890: 19). E, com certeza, a de ornatos. Assim, a Escola se preparava para se
Proclamação da República veio ao encontro de tais colocar em posição de destaque e formar
ideais de mudança, possibilitando a reformulação profissionais devidamente capacitados para
do ensino artístico e a adoção dos princípios empreender esta tarefa de modernização da cidade
ecléticos em arquitetura. e de sua arquitetura.

É necessário reconhecer e apontar a função Contudo, os frutos demoraram a aparecer. A


desempenhada pela Escola Nacional de Belas- formação de um mercado específico, que
Artes como principal instituição de ensino difusora determinaria o lugar do arquiteto na produção, seria
da arquitetura eclética e, conseqüentemente, um árduo trabalho a ser desenvolvido. Portanto,
analisar as modificações implementadas em seu não seria de estranhar que a exposição dos projetos
currículo, não só no sentido de filiar-se a este vencedores do “Concurso de Fachadas”, ocorrida
moderno estilo, mas igualmente de ministrar novas em 1904 (já haviam se passado 14 anos da reforma
disciplinas de caráter mais técnico como ‘higiene da Escola), tenha suscitado tantos comentários. O
das habitações’, tão em voga no período. mais importante deles pode ser resumido com a
Entretanto, deve-se deixar claro que o projeto seguinte declaração – de espanto – por parte de
eclético foi encampado e defendido pela escola, Olavo Bilac, que, ao que parece, era seguida por
mas não ficou circunscrito a ela. Ganhou espaço muitos dos brasileiros:
nas diferentes publicações do período e, também,
junto a outras instituições como a Escola Toda a gente, no Salão da Escola Nacional de
Politécnica – que possuía no curso de engenharia Belas-Artes, que admirou os projetos
civil uma cadeira de arquitetura –, e o Clube de apresentados ao júri, - só tinha uma pergunta
Engenharia - cujo corpo de sócios congregava á flor dos lábios: ‘Onde estavam metidos, que
diversos arquitetos. faziam, em que se ocupavam todos estes
arquitetos que apareceram agora, com tanto
Mas a Escola Nacional de Belas-Artes, em seus talento, com tanta imaginação, com tanto
primeiros anos após a reforma não tinha o prestígio preparo, com tanta capacidade? E como é que,
e status acadêmico e social adquirido anos mais havendo arquitetos e tão bons arquitetos, não
tarde e que, ao meu ver, decorre essencialmente há na cidade demonstrações visíveis e
do projeto civilizatório7 que atribui ao arquiteto a palpáveis da sua existência em edifícios dignos
função de ‘cuidar’ da espacialidade e estética das de um povo civilizado.(BILAC, 1904)
construções, posto que ele detinha um
‘conhecimento específico’. No que se refere à qualidade dos trabalhos
apresentados, não há como polemizar com Olavo
No ano seguinte à Proclamação da República Bilac, mas no que diz respeito ao seu comentário
encontramos um curso de arquitetura ainda de que estes arquitetos estariam ‘escondidos’,
desestruturado, sem novos alunos matriculados e, certamente cabem algumas considerações. Em um
principalmente, sem um professor para a principal total de 23 profissionais que apresentaram projetos,
cadeira: a ‘Cadeira de Arquitetura’ (BERNARDELLI, nove se auto-proclamavam arquitetos 10, quatro
1890: 22). Rodolfo Bernardelli tentou contratar eram engenheiros, um era pintor, dois eram
diversos professores estrangeiros, apontando construtores e sete receberam a simples
assim para a ausência de profissionais brasileiros denominação de “Senhores” (A RENASCENÇA,
habilitados a ocuparem o cargo.8 O arquiteto italiano 1904: 67). Vários não eram de nacionalidade
Manfredo Manfredi9 foi a primeira escolha do diretor brasileira, tendo aqui aportado exatamente em
que, no entanto, não se confirmou. Bernardelli função das grandes obras de remodelação que se
decidiu-se então por contratar Ludovico Berna, ex-

293
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

iniciavam no Rio de Janeiro sob o governo de clamado aos sete ventos pelo plano de
Rodrigues Alves e a prefeitura de Pereira Passos.11 remodelamento da cidade de Pereira Passos. O
desejo de constituição de uma urbe moderna e
Nota-se, portanto, que a carência de alunos, civilizada finalmente ganharia o espaço físico da
referida por Bernardelli em seu relatório de 1890 – cidade, abrigando a nova arquitetura e inserindo a
no qual afirmava não haver nenhum aluno de cidade na ordem cosmopolita vigente nos séculos
arquitetura inscrito no curso –, continuava a ser XIX e inícios do XX.
notada ainda em inícios do século XX. E que
mesmo os poucos que se dedicavam à produção A arquitetura eclética, com a sua nova maneira de
arquitetônica não tinham um espaço garantido projetar, foi aos poucos se impondo e modificando
como profissionais na cidade do Rio de Janeiro. os espaços construídos, que passaram a ser
pensados segundo um sistema compositivo que
Este quadro apresentou relativas mudanças em privilegiava noções como conforto, higiene e
inícios do século, e as reformas urbanas possuíram, modernidade. Objeto de uma reflexão sistemática
neste sentido, grande importância, pois, inseridas que ambicionava criar espaços de fácil percepção
no “projeto civilizatório” do país, buscavam alçar a e apreensão, o ecletismo – que neste momento
prática profissional de arquiteto e engenheiro a uma está presente em todas as capitais ao redor do
questão de ‘necessidade estética e técnica’. Uma mundo – tem o seu amplo desenvolvimento no
prova desta lenta transformação nos foi dada por Brasil.
uma crônica publicada na revista A Renascença
que, ao comentar o sucesso obtido entre o público Obra de grande importância para a arquitetura do
pelo “Concurso de Fachadas”, remetia à mudança período foi Eléments et teorie de l’Architecture,
no status das instituições de ensino e da própria publicado em 1901 por Julien Guadet 12, na qual
profissão. Iniciava-se então, mesmo que a passos ele expôs pela primeira vez uma teoria sobre o
lentos, a formação de profissionais da área: projeto arquitetônico (KRUFT, 1994:288),
afirmando o privilégio dado à prática projetual em
Efetivamente, a matrícula deste ano na Escola contraposição ao estabelecimento de
de Belas-Artes, na seção de arquitetura da determinações e normas a serem seguidas. A
mesma escola, tem sido muito superior a dos exemplo de J.N.L. Durand,13 Guadet rejeitava as
anos procedentes, e bem assim sabemos que regras impostas pela normatização clássica. Ao
outros jovens engenheiros formados pela inserir as ordens em uma perspectiva histórica, ele
Escola Politécnica, tratam de cursar e formar- discute a sua pertinência somente no que elas
se na especialidade de arquitetura. É esta, sem poderiam oferecer do ponto de vista prático da
dúvida alguma, uma conseqüência proveitosa composição arquitetônica que, ao seu ver, era a
do concurso de fachadas em boa hora ideado mais importante qualidade artística da arquitetura
pela administração pública, e não fosse senão (Id., 1994:289). O que significou afirmar que as
por motivo desse movimento de renascimento ordens clássicas, mesmo sendo utilizadas nas
artístico seria preciso felicitá-la, e é o que aqui edificações, não eram mais consideradas em sua
fazemos (Ibid., 1904: 68). função de determinante do espaço arquitetônico,
mas sim como linguagem passível de ser
Assim, é importante assinalar, neste processo de manipulada. A grande contribuição de Julien
transição em direção à modernidade, a posição Guadet foi o privilégio dado ao ato da composição
ocupada pela Escola Nacional de Belas-Artes e como resultado do estudo das necessidades
pela Escola Politécnica. Aos poucos os programáticas e construtivas da edificação.
profissionais que vão sendo por formados por estas
instituições se tornam mentores, teóricos e práticos, Tratava-se de uma nova maneira de projetar a
de uma nova espacialidade e de uma nova estética, edificação, que partia do principio de que era
aclamada pelo seu caráter cosmopolita, associado necessário responder a determinações que diziam
a uma nova fase da história da cidade que deixava respeito às próprias noções de projeto, e não mais
para trás seu passado insalubre, não sendo mais a uma determinada norma de composição. E mais,
a “Nódoa brutal na paisagem radiosa”, como a certeza de que a forma era um vocabulário e,
afirmava Luiz Edmundo (1983: 18). portanto, destituída de propriedades metafóricas,
a tornava um objeto apto a ser manipulado,
A empolgação dos professores com a reforma de estando, deste modo, sujeita a diferentes
Bernardelli em 1890 não se esvaiu, e os problemas combinações que não eram somente as que se
enfrentados pela Escola no período “da república encontravam subsumidas a uma normatização.
que não foi” (CARVALHO, 1987) foram mitigados
com as promessas do “projeto civilizatório”,

294
O ecletismo e civilização

O privilégio era dado à planta, que se tornou uma de uma edificação, privilegiando a experiência
habilidosa articulação dos requisitos funcionais desfrutada em seu interior, como se
exigidos pelo programa arquitetônico, ditando agora imaginássemos – através da leitura dos desenhos
as normas do fazer em maçônico. Para que representavam o edifício –, que estamos
compreender o predomínio dado à composição percorrendo seus principais espaços e, portanto,
deve-se ter em mente, num primeiro momento, a sendo tomados por imagens e sensações que eles
transformação da própria noção de arquitetura nos ofereciam. (ZANTEN, 1977: 112-115)
como imitação de modelos naturais para uma
noção que a privilegiava como ‘eficiente Assim, o aperfeiçoamento das formas de compor
fechamento de espaços específicos’ em uma edificação acabou por alçar, em fins do século
decorrência da própria prática projetual. Despidas XIX, a prática da composição ao estatuto de
desta conotação clássica, as edificações deixaram método, a uma maneira que seguia um sistema,
de ser analisadas e projetadas a partir da proporção não mais uma determinação resultante da
das ordens e do seu detalhamento – como, por abstração de leis naturais, que resultaria em uma
exemplo, fazia Quatremère de Quincy 14 –, interpretação dos sistemas das construções greco-
passando o caráter do edifício a ser identificado romanos. Projetar uma edificação era um
com a experiência do espaço como um todo e na procedimento, uma forma de fazer (ÉPRON, 1997).
sua capacidade de satisfazer as próprias Portanto, não havia uma norma rígida
exigências projetuais. A arquitetura passou a ser substanciando a prática projetual, ela era uma
vista como sensação, como massa construída que forma de ação, pautada pela escolha do arquiteto.
continha espaços, podendo ser experimentada Ou seja, pelo parti que ele adotava. E esta ‘forma
quando se percorria seu interior. de ação’ é claramente explicitada por Reynaud, ao
discorrer sobre os “Princípios Gerais de
Esta mudança na noção de arquitetura nos é Composição”:
indicada pela nova abordagem na análise das
edificações, agora feita conforme a sua A distribuição visa ser boa, a disposição a ser
composição, entendida aqui como ‘por junto’, boa e bela, a primeira não exige mais do que
integrar harmoniosamente elementos que deveriam uma certa dose de inteligência, a segunda, o
ser capazes de funcionar como um todo. Assim, gênio do artista para imaginá-la.
ao se proceder a composição de um projeto novas O importante ao dispor um edifício é conhecer
noções iam sendo incorporadas e valorizadas, sua destinação, o nome e uso das peças que
como disposição, que designava o arranjo das deve conter, como conseqüência, as formas e
diversas partes que compõem o objeto, dimensões mais convenientes a cada uma.
diferenciando-se da distribuição, como nos aponta Estes são os determinantes do problema, é o
Reynaud: programa da composição. Deve-se meditar
sobre este ponto, penetrar nas exigências do
Um apartamento, por exemplo, é bem tema, buscar quais são as principais divisões
distribuído se todos os cômodos que o que comporta, apreciar a importância e o
compõem são planejados de forma a mais desenvolvimento de cada um e depois
favorável para os usos aos quais se destinam, examinar em que ordem devem se apresentar.
mas pode ser ao mesmo tempo mal disposto (REYNAUD, 1870: 4)
se não forem tiradas todas as vantagens
possíveis da sua localização, se um ou mais O método de composição deveria prever o
cômodos não possuem as formas e dimensões desenvolvimento do projeto segundo suas próprias
necessárias e, se as paredes e as aberturas características, atentando-se sempre para qual era
forem realizadas de forma a complicar a a destinação da edificação. Neste sentido,
execução, e não simplificar e se, finalmente, a podemos afirmar que foi esta prática, tornada
composição do interior não se manifesta no conceito-chave, que permitiu o aparecimento de
exterior através de uma configuração um novo sentido de beleza, um novo enfrentamento
satisfatória. (REYNAUD, 1870:3) da questão do belo, já que ao sujeito era atribuída
a função de coordenar, inspirado pela sua
Outras expressões que foram incorporadas ao capacidade de escolha e de invenção, a
vocabulário arquitetônico para analisar as composição da edificação. Desta forma, sob o
edificações, como marché e parti (originado da comando do arquiteto, o projeto se tornou o ponto
expressão prende parti, ou “fazer uma escolha”), de determinação da atividade arquitetônica.
apontam para as prioridades que passaram a ser
valorizadas na constituição dos projetos. O termo Como a composição espacial da edificação era
marché tinha a função de descrever a disposição prioritária, os ambientes deveriam privilegiar a

295
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

utilização do usuário, devendo, assim, responder estilística. Diziam respeito a uma nova concepção
a questões práticas ditadas pelo projeto. A espacial, que caminhava lado a lado com as
linguagem formal arquitetônica acaba por funcionar reformas urbanas de que era alvo a cidade, ao
em seu sentido utilitário. O que significa dizer que propor espaços mais adequados às novas
o que determinava as proporções das ordens solicitações da sociedade.
arquitetônicas não era mais a norma erudita, a
norma clássica de proporção elaborada por Vitrúvio É importante identificar o surgimento e o impacto
e sedimentada por Vasari (Gombrich, 1990: 115). das novas concepções formais e espaciais na
Em nome da praticidade moderna, da higiene, do construção de uma nova sociabilidade, atrelada ao
conforto da edificação e até mesmo da ideário de civilização, progresso e modernidade,
movimentação do indivíduo neste ambiente é que tão aclamado no período. A arquitetura, portanto,
eram estabelecidas as proporções arquitetônicas. torna-se objeto privilegiado para compreender a
Ou seja, uma série de questões que anteriormente construção da imagem de uma nova sociedade que
não faziam parte do universo arquitetônico, como se deseja instaurar com a República. Neste
espaços construídos ‘segundo as modernas contexto é que entendemos a importância da
técnicas da higiene’, acabam por se tornar produção arquitetônica eclética como relato de uma
prioridades, solicitando uma outra postura frente época.
às normas e regras arquitetônicas. A norma
clássica exigia uma certa proporção, mas como Reafirma-se o fato de que a arquitetura eclética
obtê-la em um terreno urbano não afeito a estas tornou-se expressão máxima do ideal republicano
proporções? de nação civilizada, valendo-se de sua linguagem
plástica, espacialidade e avanços técnicos para
Estas eram algumas das imposições modernas, estabelecer uma imagem própria. Imagem que lhe
que solicitavam que os arquitetos refizessem a sua assegurasse o pertencimento ao mundo ocidental,
própria relação com a normatização. Assim, civilizado e moderno, mundo que hoje nos parece
identificamos aqui a atuação do princípio do tão distante.
sacrifício, discutido por Gombrich (1990: 116),
através do qual o que é sacrificado é reconhecido Referências bibliográficas
como valor, embora deva se render a outro valor
ANTIGÜEDAD, Maria Dolores & AZNAR, Sagrario.
maior. E estas eram, a meu ver, as prioridades
El siglo XIX: El cauce de la memoria. Madri:
determinadas pelo fazer arquitetônico eclético, que
Ediciones Istmo, 1998.
buscou uma conciliação entre tradição e
BERNARDELLI, Rodolfo. Relatórios de 1889 e
modernidade, privilegiando as solicitações
1890. Manuscrito. Biblioteca do Museu Nacional
contemporâneas, mas não rompendo com as
de Belas-Artes
linguagens do passado.
BILAC, Olavo. Crônica. Kosmos. Rio de Janeiro,
O projeto civilizatório buscou, através da instituição abril de 1904.
de uma nova linguagem plástica, construir a noção BRENNA, Giovanna Rosso del (Org.) O Rio de
de um espaço moderno, contando com a presença Janeiro de Pereira Passos: uma cidade em
dos profissionais ligados à Escola. Mas, por outro Questão II. Rio de Janeiro: Index, 1985.
lado, tentou cooptar novos alunos para que se CARVALHO, José Murilo de. Os Bestializados: o
pudesse efetivar o projeto de remodelação e Rio de Janeiro e a República que não foi. São
transformação do Rio de Janeiro. E a cidade Paulo: Companhia das Letras, 1987.
finalmente se viu palco das inovações formais e CHANTAL, Lecas & MARTINON, Jean-Pierre.
tecnológicas que serviriam não só para modernizar Naissane d’une anthropologie du style en
a cidade, mas também para incentivar a melhoria architecture au XIX e siècle”. Architecture &
da produção arquitetônica brasileira e, Comportment = Architecture and Behaviour.
conseqüentemente, aumentar o número de 1990, v.6, n.1. p. 63-79.
profissionais dedicados a esta área. COLLINS, Peter. Los ideales de la arquitectura
moderna: su evolucion (1750-1950). Barcelona:
A prática eclética respondia às necessidades de Gustavo Gilli, 1970.
modernização da capital ao privilegiar a utilização COLQUHOUN, Alan. Modernity and the Classical
de novas técnicas construtivas, a adoção de novos Tradition: architecture essays, 1980-1987.
materiais e a implantação de uma infraestrutura Massachusetts: MIT Press, 1994.
capaz de fornecer conforto e comodidade aos seus EDMUNDO, Luiz. O Rio de Janeiro do meu
usuários. Assim, os edifícios que passaram a ser tempo. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1983.
projetados no Brasil segundo o ecletismo ÉPRON, Jean-Pierre. Comprendre l’Ecletisme.
arquitetônico não decorriam de uma simples opção Paris: Norma Editions, 1997.

296
O ecletismo e civilização

3
GOMBRICH, Ernst. Norma e Forma. São Paulo: Prova da reverência pelos primeiros professores da
Martins Fontes, 1990. academia pode ser vista na construção do novo edifício
KRUFT, Hanno-Walter. A history of Architectural para a Escola Nacional de Belas-Artes, de Adolfo Morales
de los Rios, na Avenida Central, que trazia em sua fachada
Theory. From Vitruvius to the present. Nova Iorque:
medalhões com o retrato dos artistas franceses. (RICCI,
Princeton Architectural Press, 1994. 1997: 632-653).
MORALES DE LOS RIOS FILHOS, Adolfo. O 4
Nos estatutos da Academia de Belas-Artes o ensino
Ensino Artístico: subsídios para a sua história. teórico de arquitetura previa que ao aluno seria ensinado
Anais do 3 o Congresso de História Natural. “a mudança de gosto e estilos na história da arquitetura,
IHGB: Rio de Janeiro, 1938. Vol. 8. sempre tendo como modelo a arquitetura grega e a romana,
MORALES DE LOS RIOS, Adolfo. Tese dando aos discípulos exemplos extraídos dos monumentos
existentes na Grécia e na Itália, e as cinco ordens de
Apresentada no Concurso para o lugar de Lente
arquitetura de Vignola”. (MORALES DE LOS RIOS FILHOS,
de Estereotomia da Escola Nacional de Belas- 1938)
Artes. S/E: Rio de Janeiro, 1897. 5
Citamos aqui os trabalhos desenvolvidos por Alan
________.Prova para o Concurso de Lente de Colquhoun (1994) e Peter Collins (1970) nos quais esta
Estereotomia, realizada no dia 6 de dezembro de relação é amplamente tratada.
6
1897. Ponto sorteado: “Arcabouços de ferro nas Estas reflexões acerca do ecletismo decorrem da minha
abóbadas”. Manuscrito. Arquivo Nacional. dissertação de mestrado (RICCI, 1996).
7
Referimos-nos aqui à discussão empreendida por Afonso
PEVSNER, Nikolaus.. Diccionario de
Carlos Marques dos Santos sobre a questão civilizatória,
arquitectura. Madrid: Alianza Editorial, 1980. na qual o autor aponta ser necessário problematizar o
RENASCENÇA. Concurso de Fachadas. Rio de “processo civilizador”, e não tomá-lo como um dado.
Janeiro, abril de 1904. (Santos, 1999).
8
REYNAUD, Léonce. Traité d’Architecture. Paris: Francisco Joaquim Bittencourt da Silva, que também era
Dunod Éditeur , 1870. professor da Escola Politécnica, lecionando na Cadeira de
RICCI, Claudia Thurler. Sob a inspiração de Clio: o Desenho, foi o último professor a ocupar a Cadeira de
Arquitetura, tendo sido jubilado a pedido em 1888.
historicismo na obra de Morales de los Rios”. 9
Manfredo Manfredi (1859-1927) foi o responsável pela
Gávea, vol 15, julho/1997. pp.632-653. construção do Monumento a Vittorio Emanuele II, Roma,
________. Adolfo Morales de los Rios: uma após a morte de Giuseppe Sacconi, autor do projeto.
história escrita com pedras e letras. Programa de (ANTIGÜEDAD, 1998).
10
Pós-Graduação em História Social da Cultura, Esta observação decorre do fato de que neste período
PUC/RJ, dissertação de mestrado defendida em não havia um controle na emissão dos diplomas,
1996. principalmente no que diz respeito aos estrangeiros.
11
A exemplo do que havia acontecido em Buenos Aires
________.Construir o passado e projetar o por ocasião das reformas urbanas e que pode ser
futuro: A arquitetura eclética e o projeto civilizatório exemplificado em carta aberta enviada da Capital Platina
brasileiro (Rio de Janeiro 1903-1922), IFCS-UFRJ, ao prefeito Pereira Passos por Francisco Guimarães em
tese de doutorado defendida em 2004. 1903: “(...) E se V. Ex. estimular esta reforma benemérita,
SANTOS, Afonso Carlos Marques dos. Civilización estabelecendo prêmios anuais, embora modestos,
y projecto: la Academia Imperial de Belas-Artes y recompensando as casas mais belas, as vilas operárias
la arquitectura em Brasil nel siglo XIX. Buenos mais higiênicas e confortáveis, em breve haverá aí uma
verdadeira febre de estética urbana e uma imigração de
Aires, 1999. arquitetos italianos, franceses ou alemães, de Buenos
ZANTEN, David Van. Architectural composition at Aires, de Montevidéu, do Rosário, além de uma multidão
the École des Beaux-arts from Charles Percier to de pintores – decoradores, desenhistas, escultores,
Charles Garnier. The Architecture of the École estucadores, marmoristas, canteiros, ebanistas, ferreiros,
des Beaux-Arts. Arthur Drexler (ed.).Nova Iorque: fumistas, fundidores, atualmente superabundantes por aqui
MIT Press, 1977. [em Buenos Aires]”. (BRENNA, 1985: 30-35).
12
Julien Guadet (1834-1908), arquiteto diplomado pela École
Notas des Beaux-Arts de Paris, foi pupilo de Labrouste e trabalhou
no atelier de Charles Garnier durante a construção do Ópera
*
Doutora em História Social da Cultura IFCS/UFRJ, de Paris. Em 1872 tornou-se professor da École, em 1894
Professora do Instituto de Artes/UERJ. assumiu a cadeira de Teoria da Arquitetura. Em sua obra
1
Apresento neste texto algumas reflexões desenvolvidas Elements et théorie de l’Architecture, de 1901, temos uma clara
no capitulo “A dissolução da normatização e a liberdade visão dos métodos e das idéias da École. (KRUFT, 1994: 288-
plástica” de minha tese de doutorado em História Social, 9).
13
Construir o passado e projetar o futuro: A arquitetura Jean-Nicolas-Louis Durand (1760-1834) foi certamente o
eclética e o projeto civilizatório brasileiro (Rio de Janeiro teórico de arquitetura mais importante do século XIX. Foi
1903-1922), IFCS-UFRJ, defendida em 2004. professor catedrático de arquitetura da École Polytechnique
2
A comissão, nomeada pelo Ministro Dr. Aristide da Silveira de Paris. Em 1800 publicou Recueil et parallèle des édifiies en
Lobo, era composta por Rodolfo Bernardelli, Rodolfo tout genre, em 1802-09 publicou Précis et leçons d’architecture,
Amoedo e José Rodrigues Barbosa. Bernardelli tornou-se sua principal obra. (PEVSNER, 1980: 179-180).
diretor em 1890 permanecendo até 1915.

297
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

14
Antoine-Chrysotome Quatremère de Quincy (1755- normativa da história, segundo a qual a origem,
1849) foi, segundo Hanno-Walter Kruft, o principal princípio, teoria e prática da arquitetura vinham da
representante do classicismo idealista acadêmico. Grécia. O gótico era simplesmente ignorado por ele.
Secretário permanente da Académie e da École des Aplicava a mesma rigidez de sua visão classicista
Beaux-Arts de 1816 a 1839, foi autor do Dictionnaire aos arquitetos barrocos, acusando Borromini pela
d’Architecture e do Histoire de la vie et des ouvrages sua “perversidade de gosto”. (KRUFT, 1994: 277-
des plus célèbres architects. Possuía uma visão 8).

298
Curiosamente, pode-se dizer que foi com a
chegada, em 1816, de um navio de bandeira norte-
americana, chamado Calpe, que se preparou o
terreno para a criação da primeira escola de
arquitetura, no Brasil. Este navio trouxe ao Rio de
Janeiro artistas que ficariam conhecidos como
membros da Missão Artística Francesa. Alguns
desses artistas se envolveram, dez anos mais
tarde, na constituição da Academia Imperial de
Belas Artes, na mesma cidade, dando origem ao
primeiro curso oficial de arquitetura do país.

A Academia Imperial de Belas Artes passou a


ministrar o curso de arquitetura em 1827, ano em
que seu funcionamento foi oficialmente autorizado.
Este ensino tinha como um dos lentes principais
Auguste Henri Victor Grandjean de Montigny,
arquiteto laureado pela École de Beaux- Arts de
Paris, em 1799, e ganhador do Grand-Prix de
Rome, um dos mais altos reconhecimentos
artísticos para a sociedade francesa de fins do
século XVIII e início do XIX (CONDURU, 2003:
143).

O que vários autores sustentam é que, durante o


Período Imperial, a repercussão da escola e a
qualidade do trabalho de seus formandos eram
um sotaque disfarçado: a recepção de deficientes, pois a instituição não abordava,
referências americanas no curso de arquitetura especificamente, aspectos de base tecnológica na
da escola nacional de belas artes formação dos alunos. Com isso, priorizava-se uma
formação mais artística, a qual se dava de forma
fernando atique * conjunta com os candidatos a escultores,
gravuristas e pintores, até o terceiro ano do curso,
quando, então, os arquitetos eram submetidos a
aulas de Pequenas e Grandes Composições para
obtenção do título específico (SOUSA, 2001: 60).
De fato, a carreira arquitetônica não atraía muita
atenção do público brasileiro apto a procurar um
curso superior. Alberto Souza apresenta algumas
razões para a pouca repercussão dessa formação,
ainda nos primeiros anos da Academia, e comenta
que, em vinte e três anos ininterruptos de atuação
docente, Montigny preparou somente treze
arquitetos, na fase que se seguiu à instalação do
curso, e três, nos últimos anos de sua vida
(SOUSA, 2001: 57).1 Uma das causas dessa pouca
atração de alunos era o descrédito alcançado pela
Academia, que era julgada, socialmente, por educar
arquitetos incapazes de construírem o que
desenhavam.

Sabe-se que com a Proclamação da República o


curso sofreu alteração significativa recebendo,
inclusive, no começo do século XX, uma nova sede,
construída na Avenida Central. Também sob a
República, a denominação da Academia Imperial
foi alterada para Escola Nacional de Belas Artes –
ENBA -, e a separação dos cursos artísticos
(pintura, desenho, escultura) do curso “aplicado”

299
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

(arquitetura) se tornou mais nítida, chegando a campo crescente para suas obras na sociedade,
estipular exame admissional específico para a sobretudo na construção de palacetes, edifícios
carreira arquitetônica. Todavia, a ENBA continuou comerciais e institucionais, na administração da
conhecida como formadora de “arquitetos-artistas”. ENBA ocorria o mesmo.

Após o período republicano notou-se que havia por De fato, na ENBA, predominou, até por volta dos
parte dos docentes e administradores dessa escola, anos 1920, a matriz européia. Contudo, isto não
uma atenção significativa pelo universo norte- significa que não houvesse, desde os tempos de
americano de publicações. Sabe-se, por exemplo, Adolfo Morales de los Rios, nos primeiros anos de
que Adolfo Morales de los Rios,2 em concurso para República, material norte-americano na instituição.
provimento do cargo de professor de estereotomia A pesquisa revelou que, em 1897, já havia o livro
na ENBA, em 1897, explicitou a necessidade de de Henry A. Reed, intitulado Topographical Drawing
se adotar o modelo de ensino superior da Stanford and Sketching, Including Applications of
University, nos Estados Unidos. Embora possa soar Photography, publicado em New York por John
estranho que uma escola que foi criada e mantida, Willey & Sons. Este era livro de referência no
pelo menos durante seus primeiros anos, vinculada cenário estadunidense de estudos topográficos.
ao modelo das Écoles de Beaux-Arts, procurasse Dos primeiros anos do século XX foram localizados
referenciais estadunidenses para suas classes, o livro de Russell Sturgis, de nome A Dictionary of
deve-se ter em mente quão diversa foi a trajetória Architecture and Building: biographical, historical,
da ENBA ao longo de toda a sua existência. Uma and descriptive by and many Architects, Painters,
explicação para tal ação deve-se ao fato de muitos Engineers, and other expert writers, American and
docentes terem buscado qualificação profissional Foreign, publicado em New York pela MacMillan,
no estrangeiro, sobretudo na Europa. Mas, como em 1901.
se nota, também as publicações norte-americanas
favoreceram esse aumento de repertório. Mais uma Com relação às revistas voltadas à arquitetura
vez, deve-se apontar que Morales de los Rios era foram localizados exemplares da Architectural
leitor e articulista, nos primeiros anos do século Record, editada em Boston, desde 1876,
XX, do periódico The American Architect and primeiramente sob o nome The American Architect
Building News. and Architecture e, depois de 1910, já com esta
designação. O acervo desta revista na biblioteca
O significado do interesse de docentes, como da antiga ENBA iniciou-se em 1912, no número
Morales de los Rios, pelos Estados Unidos, 31, e está completo até os dias de hoje. A
expressa que a ENBA passou a abrigar Architectural Record foi porta-voz dos estilos
profissionais de origem social bem diversa daquela historicistas e do modernismo, dedicando
dos pintores e escultores dos períodos anteriores. reportagens inteiras ao movimento de construção
Com a mudança do perfil dos docentes, houve a de edifícios dentro do repertório do Mission Style.
necessidade de se ampliar as fontes repertoriais Em 1922, por exemplo, o periódico de janeiro trouxe
para a produção e para o pensamento arquitetônico. reportagem sobre a residência J.P. Jefferson, em
Como a aquisição de livros em inglês era, em certo Montecito, California, projetada pelo arquiteto
sentido, fácil, no Rio de Janeiro, ainda no século Reginald D. Johnston, de feições tipicamente
XIX, por conta dos diversos acordos comerciais missões (ARCHITECTURAL RECORD, Jan, 1922:
com a Grã-Bretanha, a descoberta do mundo 8-15). O número de julho dedicou 21 páginas para
editorial norte-americano, após a década de 1870, abordar os projetos recentes do escritório de
também não causa nenhum espanto. Por meio de Marston & Van Pelt, atuante no sul da California, e
livrarias e das casas exportadoras, como a mostrou 4 projetos completos vinculados ao
Nathanael Sands, facilmente se conseguia Mission Style (ARCHITECTURAL RECORD, Jul,
publicações que dirigiam o olhar dos intelectuais e 1922: 17-38). Em outubro, foram publicadas mais
dos acadêmicos para os Estados Unidos. sete residências concebidas dentro do mesmo
princípio arquitetônico (ARCHITECTURAL
Com o prenúncio de alteração do perfil dos RECORD, 1922, Oct: 318 – 340), para citar apenas
docentes após os primeiros anos da década de um ano da revista, além dos precedentes e,
1900, também o dos alunos de arquitetura da ENBA principalmente, dos sucessivos, nos quais esta
se alterou, atraindo filhos da elite econômica e temática foi abundante.
intelectual para o curso de Arquitetura, enquanto
as demais carreiras oferecidas pela escola ainda Além da Architectural Record, localizaram-se
recebiam membros dos extratos mais pobres da números da revista Architectural Digest, no entanto,
República, tal qual na época imperial (DURAND, sem volumes seqüenciais. A edição mais antiga
1989). Se, neste período, o arquiteto encontrava remonta a 1920. Esta revista é publicada, até os
300
A recepção de referências americanas no curso de arquitetura da ENBA

dias de hoje, mesclando reportagens sociais com dos referentes hispano-americanos de escolas,
projetos de arquitetura. A Architectural Digest, hospitais, creches, além de outros programas de
produzida, desde 1914, em Los Angeles, pela edifícios institucionais.
California Knapp Communications Corporation,
também abordou projetos de formas hispânicas, Se havia fontes para apreensão da arquitetura
em diversos números, ao longo dos anos. missões, dentro da ENBA, não se deve deixar
passar, despercebidamente, os projetos publicados
Junto dessas revistas estão os livros técnicos por alunos e ex-alunos da instituição, no órgão
estadunidenses, estes, sim, mais numerosos. oficial de seu grêmio: a Revista de Arquitetura da
Extremamente importante é a presença dos já ENBA. Fundada em 1934, por Levi Autran e Paulo
citados livros de Paul Harbeson, professor na Motta, e dirigida por Sebastião de Almeida, a revista
University of Pennsylvania, nos Estados Unidos, surgiu após a passagem de Lucio Costa pela
no acervo da ENBA: The Study of Architectural diretoria da Instituição. Entretanto, mesmo
Design, with Special Reference to the Program of contando com colaboradores ligados ao
the Beaux-Arts institute of Design, publicado em modernismo, como Álvaro Vital Brazil e Affonso
New York pela Pencil Points, em 1927, e Winning Eduardo Reidy, foi possível identificar muitas
Designs, 1904-1927, Paris Prize in Architecture, reportagens sobre a temática da arquitetura
editado pela mesma companhia, em 1928, no qual neocolonial. Por vezes, foi possível encontrar
são expostos projetos criados dentro das regras projetos vinculados à arquitetura missões trazidos
“beauxartianas”, mas com várias referências a público em propagandas de escritórios de
hispânicas, aos moldes do Pan-American Union arquitetura, mas, também, como artigos da própria
Building, de Paul Cret e Albert Kelsey, de 1907 revista. Na edição de número 11, de maio de 1935,
(ATIQUE, 2007). o escritório Galo, Barata e Fonseca publicou uma
proposta de residência assobradada que misturava
Embora os livros de Harbeson sejam importantes, as referências hispânicas de forma bem livre,
não são comparáveis aos produzidos por Rexford mostrando uma das variantes do neocolonial
Newcomb, o principal divulgador da história e dos praticado no Rio de Janeiro. (REVISTA DE
edifícios criados dentro do vocabulário hispânico, ARQUITETURA DA ENBA, 1935, n.11, mai: 10-
nos Estados Unidos. Na ENBA foi possível 12).4
encontrar volumes do Spanish House for America.
Este livro, publicado pela editora J.B. Lippincott, Com relação aos textos nos quais a defesa do
da Philadelphia, foi muito popular no Brasil, nos neocolonial era praticada, há um de autoria de
anos 1920 e 1930, e foi, sem sombra de dúvida, Adolfo Morales de los Rios Filho, 5 de nome
uma das principais referências para o projeto de “Arquitetura não é Standard”, publicado em março
edificações dentro dos princípios coloniais hispano- de 1935, que comenta abertamente o
americanos, em todo o continente.3 Sua presença desenvolvimento da arquitetura nos Estados
na biblioteca da instituição revela o porquê de Unidos. Para ele, a arquitetura predominante na
muitos projetos realizados pelos egressos da ENBA costa leste, calcada no modelo do arranha-céu, não
mostrarem um apurado senso compositivo e de era tão proeminente na costa oeste, pelo fato de
detalhamento. Crê-se, todavia, que o rigor projetual “o espírito espanhol e luzitano” não ter desaparecido
dos alunos foi também alcançado pela consulta a de seus antigos territórios, como “os sobrenomes
outro título importante, o Architectural Details of ilustres e a heraldica recordam aos presentes”.
Southern Spain: One Hundred Measured Drawings, Mas, para além desta constatação, um tanto quanto
One Hundred and Thirteen Photographs, trabalho simplória, Rios Filho agrega suas considerações
de Thomas Gibson e Gerstle Mack, publicado, em arquitetônicas, dizendo que “onde abundam os
New York, em 1928, que apresenta um verdadeiro edifícios das ‘Missões’ espanholas dos Seculos
arsenal de modelos para detalhamento da XVII e XVIII, verdadeiros nucleos arquitetônicos –
arquitetura missões. Na mesma linha, localizou- a arquitetura é outra. ‘El rancho’, ‘la casona’, ‘el
se outro livro, de nome Measured Drawings of Early solar ’, são os tipos representativos dessa
American Furniture, da lavra de Burl N. Osburn, de arquitetura néo-colonial norte-americana”
1926, que trazia, dentre muitos desenhos ligados (REVISTA DE ARQUITETURA DA ENBA, 1935, n.9,
a outros estilos arquitetônicos, referências ao mar: 11).
mobiliário de caráter hispânico.
A conclusão deste autor se baseava no fato de
Outro título digno de nota, encontrado no acervo que o desenvolvimento “dessa arquitetura hoje
da ENBA, é American Public Buildings of Today, denominada ‘Mission Style’ ou ‘Mediterranean
de 1931, escrito por Randolph Sexton, que mostra Style’” se pautava pelo entendimento de que
quase uma centena de projetos executados dentro “Arquitetura não é Standard”, já que “ela sempre
301
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

deverá corresponder ao material, aos usos e de 1929, trazendo, já na capa, um projeto com
costumes, aos fatores mesológicos, ás condições elementos missiones. Apesar de apresentar
econômicas e á mão de obra” (REVISTA DE algumas referências ao que Paulo Santos chamou
ARQUITETURA DA ENBA, 1935, n.9, mar: 11). de “casinhas em pan-de-bois”, o carro-chefe da
publicação foram as casas de arquitetura vinculada
Pelo exposto, nota-se que o debate acerca das ao Mission Style. Durante aproximadamente um
proposições norte-americanas de entendimento do ano – a revista desapareceu precocemente – Fraga
lugar, de desenvolvimento de uma arquitetura que projetou muitos edifícios residenciais dentro das
trabalhasse a questão das heranças culturais referências missões. Seu objetivo era atrair clientes
encontrou abrigo dentro da ENBA. Cabe, então, para si próprio e para seus colegas da ENBA, muito
abrir espaço para abordar de que forma houve a embora ainda fosse um graduando.
transmissão dessas referências entre professores
e alunos, e entre os antigos alunos e a sociedade. ENBA parece não ter se oposto à revista, uma vez
Para tanto, torna-se importante a transcrição de que vários projetos produzidos em suas classes
trechos da obra Arquitetura no Brasil: depoimentos, foram divulgados pela publicação que, por sinal,
do arquiteto Abelardo Reidy de Souza. Formado sempre colocava subtítulos indicativos da condição
pela Escola Nacional de Belas Artes, em 1932, de alunos dos colaboradores do periódico. Logo
Souza acompanhou todo o processo de mudança em seu número 1 foi publicado o exercício
acontecido com a chegada, à direção da Escola, destinado a sondar o repertório mobilizado na
de Lucio Costa, que manteve o corpo docente execução de uma “Casa para Milionário”. O projeto
tradicional lecionando nos últimos anos do curso, desenvolvido pelo aluno Gerson Pompeu Pinheiro,
enquanto implantou cadeiras novas nos anos batizado de “Pinturesco Colonial”, era uma típica
iniciais, voltados à valorização técnico-construtiva, solução de arquitetura neocolonial onde ficava
ministradas por professores afinados com o ideário explícita a fusão dos estilemas luso-brasileiros com
moderno. Tentando demonstrar sua vinculação à os hispânicos (ARCHITECTURA: MENSÁRIO DE
matriz modernista, Abelardo de Souza expôs o ARTE, 1929, n.1: 21). No mesmo número também
ambiente de ensino-aprendizado dentro da ENBA, foi exibido o projeto realizado por Pinheiro em
de maneira depreciativa, mas importante de ser conjunto com Affonso Eduardo Reidy, para outra
analisado: residência de um milionário. Neste projeto, a fusão
dos elementos hispânicos se dava em menor grau
Antes dos anos trinta, a arquitetura brasileira com os de fundo luso-brasileiro, apesar de a
era uma constante cópia de vários estilos que implantação ser tipicamente baseada nos princípios
imperavam na época, vindos todos de outras emanados das lições “beauxartianas” francesas
terras. Para a arquitetura residencial, que era (ARCHITECTURA: MENSÁRIO DE ARTE, 1929,
o que mais se fazia, copiava-se o ‘espanhol’; n.1: 28).
com seus avarandados em arcos, suas janelas
protegidas por grades de ferro retorcido Abelardo de Souza expôs, mesmo que de maneira
formando desenhos os mais variados, seus combativa, não só a disponibilidade de encontrar
pátios internos pavimentados com lages de livros e revistas que mostravam a arquitetura
pedra e um poço no meio, geralmente, sem espanhola, californiana, missioneira, enfim,
água. Copiava-se, também, o ‘mexicano’, um “colonial”, dentro da ENBA, como o fato de que os
espanhol transportado para o Brasil via docentes da casa sabiam e aceitavam os modelos
Hollywood, sem passar pelo México. (...) Todos neocoloniais advindos dos Estados Unidos. Este
esses estilos, menos o nosso ‘colonial’, treinamento em sala de aula era completado,
chegavam por aqui por meio de revistas ou entretanto, pelas atividades de estágio,
livros de arquitetura. Duas revistas que eram, processadas em importantes escritórios do cenário
na época, muito difundidas entre os estudantes, carioca de então. É importante informar, neste
(...) eram a Mi Casita, que se não nos sentido, que a familiaridade de Abelardo de Souza
enganamos, era de origem Argentina e uma com as questões atreladas à difusão do Mission
outra, bem brasileira, feita por um então aluno Style, no Rio de Janeiro, deve-se, principalmente,
da ENBA, seu proprietário, seu editor, seu ao fato de ele ter sido estagiário do escritório de
redator, autor da maioria dos projetos Edgard Vianna e de Raphael Galvão, em princípio
apresentados e, também, seu distribuidor. dos anos 1930. Estes dois arquitetos, que, nesse
(SOUZA, 1978: 15-17). período, trabalhavam juntos, empreenderam muitas
obras dentro da imagética hispânica 6
Souza se referia à popular Architectura: Mensário (CONSTANTINO, 2004: 44).
de Arte, preparada por Moacyr Fraga. Este aluno
lançou o primeiro número da revista em 8 de junho
302
A recepção de referências americanas no curso de arquitetura da ENBA

A revista Architectura no Brasil, em 1925, EXPOSIÇÃO de Bellas Artes. Architectura no


também publicou projetos realizados pelos ex- Brasil. Rio de Janeiro: a.III, v.5, n.25, p.27-28,
alunos da ENBA expostos no Salão de Belas Artes 1925.
daquele ano. Um que chama muito a atenção é o GIBSON, Thomas; MACK, Gerstle. Architectural
do arquiteto Attilio Correia Lima, que expôs o projeto details of Southern Spain: one hundred measured
de uma residência vazada dentro dos princípios drawings, one hundred and thirteen photographs.
volumétricos e ornamentais do missões. Projetos New York: W. Helburn, 1928.
semelhantes também foram expostos por Paulo HARBESON, Paul. The study of architectural
Antunes Ribeiro e por Raphael Galvão, todos para design, with special reference to the program
residências missões (ARCHITECTURA NO of the Beaux-Arts Institute of Design. New York:
BRASIL, 1925, n.25: 27 - 28). Em vários números Pencil Points, 1927.
dessa publicação seriam verificados projetos JOHNSTON, Reginald D. J.P. Jefferson house,
neocoloniais, mas, talvez pelo fato de ser um Montecito. Architectural record. S.n., p. 8- 15, Jan,
periódico mais ligado às entidades de classe do 1922.
Rio de Janeiro, onde estavam os mentores do LOS RIOS, Adolpho Morales de. The rebirth of Rio
Movimento Neocolonial, foi difícil encontrar as de Janeiro. The American architect and building
variantes hispânicas em suas páginas. news. N. 21, Jul, 1906, p.20 – 28.
LOS RIOS FILHO, Adolfo Morales de. Arquitetura
Embora a Escola Nacional de Belas Artes tenha não é Standard. Revista de Arquitetura da ENBA.
sido taxada de “arcaica”, “equivocada”, “atrasada”, Rio de Janeiro: ENBA, n.9, mar, 1935, p.11.
por várias gerações de arquitetos, ela foi, de fato, MARSTON & VAN PELT. Architectural record.
uma escola com repertório internacional, afinada S.n., p. 17 – 38, Jul, 1922.
com as discussões em processo em todo o NEWCOMB, Rexford. The Spanish house for
continente americano. Defende-se a tese de que America: its design, furnishing and garden.
mais do que enxergar a ENBA como uma escola Philadelphia: J.B. Lippincott, 1927.
pró-ecletismo ela foi, especialmente nas décadas ORIENTAÇÃO nacionalista na arquitetura. Revista
de 1920 e 1930, uma instituição que soube se de Arquitetura da ENBA. Rio de Janeiro: n. 13, p.
comunicar com suas congêneres de norte a sul 25, jul, 1935.
das Américas e que teve um projeto de ensino PROJETO de Galo, Barata e Fonseca. Revista de
arquitetônico. Assim, pode-se dizer que ela foi uma Arquitetura da ENBA. Rio de Janeiro: ENBA, n.13,
Escola “Internacional” de Belas Artes. jul, 1935, p.22.
REED, Henry A. Topographical drawing and
Referências bibliográficas sketching, including applications of
photography. New York: John Willey & Sons, 1897.
ATIQUE, Fernando. Arquitetando a “Boa
REIDY, Affonso Eduardo. Residencia para um
Vizinhança”: a sociedade urbana do Brasil e a
milionário. Architectura: mensário de arte. Rio de
recepção do mundo norte-americano. (Tese de
Janeiro: n.1, p.28, 1929.
Doutorado). São Paulo: Faculdade de Arquitetura
STURGIS, Russell. A dictionary of architecture
e Urbanismo, Universidade de São Paulo, 2007.
and building: biographical, historical, and
OSBURN, Burl N. Measured drawings of early
descriptive by and many architects, painters,
American furniture. Milwaukee: The Bruce
engineers, and other expert writers, American and
Publishing Company, 1926.
foreign. New York: MacMillan, 1901.
CALIFORNIA Houses. Architectural record. S.n.,
SEXTON, Randolph. American public buildings
p. 318 – 340, Oct, 1922.
of today. New York: Architectural Book Publishing,
CONDURU, Roberto. Grandjean de Montigny: um
1931.
acadêmico na selva. In: BANDEIRA, Julio; XEXÉO,
SOUSA, Alberto José de. O ensino de arquitetura
Pedro Martins Caldas; CONDURU, Roberto. A
no Brasil imperial. João Pessoa: Editora
Missão Francesa. Rio de Janeiro: Sextante, 2003.
Universitária da UFPB, 2001.
CONSTANTINO, Regina Adorno. A obra de
SOUZA, Abelardo de. Arquitetura no Brasil:
Abelardo de Souza. (Dissertação de mestrado).
depoimentos. São Paulo: Livraria Diadorim Editora,
São Paulo: Faculdade de Arquitetura e Urbanismo,
1978.
Universidade de São Paulo, 2004.
DURAND, José Carlos. Arte, privilégio e Notas
distinção: artes plásticas, arquitetura e classe
dirigente no Brasil, 1855 / 1985. São Paulo: *
Arquiteto e urbanista, mestre em História da Arquitetura e
Perspectiva, 1989. Doutor em História e Fundamentos Sociais da Arquitetura
e do Urbanismo, todos os títulos obtidos na USP. Docente

303
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

e Pesquisador da Universidade São Francisco, campus arquitetura, em São Paulo, um exemplar desse livro,
Itatiba / SP, desde 2003. que pertencera ao escritório carioca MM Roberto, o que
1
Após a morte do mestre francês, em 1850, a Academia mostra como os arquitetos egressos da ENBA tinham
foi conduzida pelo professor Job Justino d’Alcântara, um ciência das publicações estadunidenses.
4
dos primeiros arquitetos por ele formados (SOUSA, 2001: No número 13, publicado em julho de 1935, era
54). possível ver outro projeto da mesma Galo, Barata e
2
Adolfo Morales de los Rios nasceu na Espanha em 1858, Fonseca, dentro da linguagem arquitetônica do
onde também se formou arquiteto. Radicou-se no Brasil, missões.
5
no ano de 1890. Extremamente produtivo, Morales de los Morales de los Rios Filho era espanhol, assim como
Rios teve uma atuação ímpar no meio intelectual carioca, seu pai. Matriculou-se na Escola Politécnica do Rio de
tornando-se, inclusive, professor da ENBA, nos últimos Janeiro e no curso de Arquitetura da Escola Nacional
anos do século XIX, possivelmente com a referida tese de Belas Artes, por volta de 1910. Em 1914, formou-se
citada por Carlos Comas, em 1896. Teve ativo escritório, o engenheiro-arquiteto pela ENBA.
6
qual, dentre várias obras, projetou a sede da ENBA na E d g a r d Vi a n n a , g r a d u a d o n a U n i v e r s i t y o f
Avenida Central, atual Avenida Rio Branco, local onde, Pennsylvania teve, pelo menos, dois sócios ao longo
atualmente, funciona o Museu Nacional de Belas Artes. de sua curta trajetória profissional. Morto em 1936, no
Faleceu no Rio de Janeiro, em 1928. Seu Filho, Adolfo auge de sua produção, ele foi associado, em momentos
Morales de los Rios Filho também foi arquiteto e docente não-precisados, mas não concomitantemente, de
na ENBA. Roberto Lacombe e de Raphael Galvão, entre 1920 e
3
Logo no início desta pesquisa de doutoramento, em 2003, 1936.
foi possível adquirir, num sebo especializado em

304
Embora continue sendo sempre útil lembrar que a
arquitetura do século XIX foi e continua sendo
objeto de um arraigado preconceito estético,
preconceito que, como já demonstramos, deve-se
a uma historiografia modernista ainda não superada
no Brasil 2 , hoje já é possível afirmar que as
pesquisas relativas a esse período passaram por
uma verdadeira revolução metodológica nas duas
últimas décadas do século XX. Os novos estudos
ampliaram consideravelmente o conhecimento
sobre a cultura arquitetônica do século XIX, tanto
em relação à abordagem teórica dos profissionais
quanto, principalmente, no que se refere à relação
entre a teoria da arquitetura e as concepções
epistemológicas e científicas contemporâneas.

Continuando o processo de redescoberta do século


XIX iniciado na década de 1970, os trabalhos
recentes reconhecem cada vez mais a
especificidade e a autonomia do período em
relação ao século que o precedeu ou que o
sucedeu. Primeiro, as novas abordagens
metodológicas revelam um período muito mais
complexo que o pálido retrato traçado pela grande
maioria dos autores, um período tão complexo
quanto qualquer outra grande época ou qualquer
outro grande estilo; ou melhor, revelam um século
léonce reynaud e a concepção teórica do de intensa experimentação estética e de
ecletismo no rio de janeiro formulações teóricas profundas e atualizadas.
Segundo, os historiadores estabeleceram novos
marcelo puppi 1 objetos de pesquisa capazes de estreitar ainda
mais a relação entre as concepções arquitetônicas
e o contexto cultural do período. Finalmente, e
conseqüentemente, a nova história cultural do
século XIX trouxe ao primeiro plano personagens
que até há pouco tempo desempenhavam um papel
menor na história da arquitetura3.

Dentre estes personagens revalorizados através


dos quais podemos ver um outro século XIX, o
arquiteto-engenheiro Léonce Reynaud é talvez o
caso mais exemplar. Autor de uma obra que no
mínimo o iguala a seu grande rival Viollet-le-Duc,
Reynaud praticamente caiu no esquecimento no
século seguinte, ao passo que o célebre apóstolo
da arquitetura medieval tornou-se, ou foi
transformado pela historiografia modernista em um
dos heróis do racionalismo contemporâneo.
Contudo, a abordagem de Reynaud mostra-se uma
das mais abertas e mais representativas de toda a
cultura do século XIX. Resumindo sua contribuição
teórica em uma fórmula breve, Reynaud propôs
nada mais nada menos que uma nova concepção
da arquitetura, a qual, opondo-se diretamente à
teoria de Quatremère de Quincy e de Durand
(oposição aliás comum a toda sua geração),
pretende inserir plenamente a arquitetura no
dinamismo do história contemporânea.

305
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

Engenheiro de estado, teórico racionalista, e além Inicialmente, a Ecole Polytechnique lhe revela o
do mais simpático ao imaginário científico dos saint- processo de matematização do saber que punha
simonianos, ele paradoxalmente mostrou-se em questão os conhecimentos tradicionais da
favorável ao ecletismo de seu tempo. Sua principal engenharia, até então baseados apenas na
obra, um abrangente e volumoso Traité geometria; isto é, ele ingressa na instituição no
d’Architecture 4 , chegou a ser oficialmente momento em que as ciências do Iluminismo davam
reconhecida pela Academia, reconhecimento que lugar às novas ciências físico-matemáticas do
lhe assegurou a livre utilização, desde meados do engenheiro moderno. Entrando em seguida na
século, no ensino de arquitetura da própria Ecole Ecole des Beaux-Arts, ele passa a integrar o meio
des Beaux-Arts. A aprovação da Academia artístico e assim descobre o romantismo,
colaborando, o tratado de Reynaud tornou-se movimento que, como se sabe, apresentava-se
internacionalmente conhecido na segunda metade como uma alternativa tanto à cultura do Iluminismo
do século XIX. Ainda que não se saiba ao certo o quanto ao processo de especialização da ciência
grau de difusão internacional da obra, ela pode ser contemporânea que Reynaud presenciara na Ecole
encontrada em vários países da Europa e da Polytechnique. Por sua vez, a descoberta do
América, incluindo o Brasil. No nosso caso, o Traité romantismo abre-lhe o caminho para o pensamento
d’Architecture parece ter sido uma fonte corrente dos saint-simonianos, cuja doutrina proclamava a
na formação dos arquitetos durante o final do século superação definitiva de todas as contradições do
XIX e início do XX, uma vez que há diferentes presente, e principalmente das contradições
edições de seu tratado nas bibliotecas relacionadas intelectuais que ele, transitando de um lado a outro
ao ensino de arquitetura no período, tanto no Rio do pensamento da época, já constatara por sua
de Janeiro quanto em São Paulo. própria conta. Finalmente, na Ecole des Ponts et
Chaussées ele reencontra as ciênciais do
Graças à presença de uma escola de belas artes engenheiro das quais ele partira na Ecole
inspirada no modelo francês, o Rio de Janeiro era Polytechnique; ou melhor, ele agora já considera
sem dúvida, no contexto brasileiro, o lugar mais essas ciências segundo uma perspectiva bem
favorável à transmissão da teoria de Reynaud. As diferente da idéia que o próprio conhecimento
condições particulares do ecletismo carioca científico da época faz de si mesmo, bem como da
permitem formular a hipótese bastante verossímil visão que ele mesmo tinha da organização do saber
que, na antiga capital federal, o tratado de Reynaud no início desse percurso.
ocupou um lugar proporcional ao que lhe fora
reservado no contexto da arquitetura francesa. De Durante a década de1820 e início dos anos1830,
fato, pretende-se mostrar a seguir que a concepção Reynaud descobre em suma um novo contexto
teórica do ecletismo no Rio de Janeiro deve muito cultural que representa uma verdadeira revolução
mais a Reynaud e a seus discípulos franceses em relação à cultura ainda Iluminista das primeiras
diretos que a qualquer outro autor contemporâneo décadas do século XIX, e que ele incorpora
ou a teóricos como Quatremère de Quincy e Durand operando uma reviravolta total em seu pensamento.
que, nas primeiras décadas do século XIX, Enquanto na organização do saber do século XVIII
prolongam a cultura iluminista do século XVIII. e primórdios do XIX todo conhecimento deve estar
subordinado ao imperativo da utilidade e à razão
Um novo contexto cultural científica que assegura sua concretização, na
filosofia romântica da primeira metade do século
No seu longo itinerário de formação, que se estende XIX, e em particular no saint-simonismo que ele
por mais de uma década, Léonce Reynaud conheceu de perto, o conhecimento intuitivo e a
deparou-se com algumas das grandes questões imaginação estética passam a ocupar o topo do
culturais de seu tempo e que estão na origem processo cognitivo. Se, como se sabe, o século
mesma da cultura contemporânea. Seus estudos XIX não se tornou uma época plenamente
começam em 1820 na Ecole Polytechnique, romântica nem muito menos saint-simoniana, os
continuam em seguida na Ecole des Beaux-Arts e dois movimentos contribuíram significativamente
se concluem em 1833 na Ecole des Ponts et para moldar uma nova cultura de natureza
Chaussées depois de uma breve passagem pelo contraditória e também, por isso mesmo, mais
movimento saint-simoniano. Esse percurso complexa que o Iluminismo do século precedente.
aparentemente errático atravessou um período de Reynaud pretendia justamente inserir a teoria e a
grande ebulição e de grandes transformações prática da arquitetura no novo contexto cultural que
culturais e científicas na França, transformações emergiu a partir dos anos 1820 e 1830 e que ele
que, passando de descoberta em descoberta, vivenciou pessoal e ativamente.
Reynaud acompanha passo a passo e incorpora
finalmente a seu próprio pensamento.
306
Léonce Reynaud e a concepção teórica do Ecletismo no Rio de Janeiro

Do método analítico de Durand à composição prática profissional dos engenheiros, e assim


orgânica de Reynaud reduzida ao arranjo geométrico mais simples, a
disposição axial das partes5.
O envolvimento direto de Reynaud com as grandes
questões culturais de seu tempo leva-o a rever O método de composição que Durand elaborou e
completamente os fundamentos teóricos da ensinou na Ecole Polytechnique de 1794 a 1833
arquitetura, a começar pelo método de composição foi resumido na sua obra mais influente, Précis des
ensinado na Ecole Polytechnique por Durand, de Leçons d’Architecture Données à l’Ecole
quem ele fora aluno no início de seu longo período Polytechnique, publicado em dois volumes em 1802
de estudos e a quem ele finalmente sucederia em e 1805. A legitimação científica da arquitetura e a
1837, logo no início da sua vida profissional. abordagem geométrica da composição expostas
Reynaud não estava sozinho neste ambicioso na obra enquadram-se no espírito politécnico, mas
programa de renovar de cima abaixo a teoria da vão também ao encontro da expectativa dos
arquitetura para inserí-la plenamente na nova arquitetos, os quais, durante a primeira metade do
cultura que emergia na primeira metade do século século XIX, encontram no Précis uma
XIX. Ele combatia ao lado de Labrouste, Vaudoyer fundamentação teórica e prática para o processo
e de outros contemporâneos da geração dos de composição aprendido na Ecole des Beaux-Arts.
historicistas românticos, que se opunham à Aqui é preciso lembrar que Durand fora discípulo
concepção estática da arquitetura sustentada pela de Boullée, e portanto que o método analítico do
Academia, e particularmente à teoria da imitação professor da Ecole Polytechnique representa a
de Quatremère de Quincy. Mas, sempre sistematização dos fundamentos teóricos e práticos
contribuindo para a discussão de seus amigos da composição buscados por Boullée e Ledoux no
arquitetos sobre os princípios teóricos que deveriam último quarto do século XVIII.
fundamentar o ensino da arquitetura na Ecole des
Beaux-Arts, Reynaud dedicou-se principalmente a Quanto a Reynaud, para ele a composição não é
formular um novo método de composição para ser mais uma simples aplicação da ciência, mas está
ensinado na Ecole Polytechnique, método além dela, situando-se em um plano mais elevado
destinado também aos arquitetos. Mais do processo de conhecimento. Acompanhando as
precisamente, Reynaud consagrou-se a substituir especulações filosóficas de seu tempo, isto é, do
o método analítico de Durand por um novo método romantismo e principalmente do pensamento saint-
orgânico, ou sintético, de composição arquitetônica. simoniano, segundo os quais são as partes que
nascem do todo, e não o todo das partes, ele
Para Durand, que desde 1794 é professor da Ecole considera a composição como um todo maior que
Polytechnique, primeiro de desenho, e logo em a simples soma das partes, um organismo
seguida do curso de arquitetura, a arquitetura complexo que gera as partes ao invés de ser gerado
define-se como uma aplicação da ciência, tanto por elas. Isto representa uma inversão total em
teórica quanto prática. Trabalhando em um dos relação ao método elaborado por Durand. Na
principais centros de produção científica na França perspectiva de Reynaud, o processo de
do final do século XVIII e início do XIX, Durand composição deve caminhar não das partes ao todo,
incorpora plenamente a ciência analítica do mas do todo às partes, ou, dito de outra forma, a
Iluminismo, segunda a qual o conhecimento deve concepção arquitetônica deve ser guiada por um
começar pelas partes para depois chegar ao todo. método sintético, ao invés de analítico, ao contrário
Isto é, qualquer objeto de estudo deve ser dividido portanto do que preconizava seu antigo professor.
em quantas partes forem necessárias, para que a A seus olhos, e de modo geral de toda a geração
compreensão do todo resulte da somatória dos que se formou durante o apogeu da cultura
conhecimentos particulares e detalhados de cada romântica, a vantagem do método sintético era
uma das partes do objeto. Se no século da utilidade evidente: somente uma arquitetura complexa, ou
a arquitetura buscava a legitimação da ciência, para orgânica nos termos da própria época, seria capaz
Durand a própria composição arquitetônica deve de incorporar a complexidade e o dinamismo do
seguir o método analítico. A composição deve século da indústria, para inserir-se plenamente nele
tornar-se um processo combinatório baseado na e poder interagir com a sociedade contemporânea.
decomposição do todo em partes e, inversamente,
na recomposição das partes para formar Nada que seria possível através do método
novamente o todo. Ou seja, tornar-se um método analítico de Durand, e muito menos da teoria da
no qual o todo resulta simplesmente da soma de imitação de Quatremère de Quincy, concepções
partes independentes umas das outras. Trata-se estáticas do homem e da natureza, e portanto
além do mais de uma combinatória destinada à indiferentes às transformações históricas e ao
aperfeiçoamento da sociedade esperado na época.
307
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

Todavia, se para alguns historiadores Reynaud que lhe é próprio e que conseqüentemente lhe
limitou-se a continuar o ensino de Durand na Ecole garante um lugar à parte na esfera das atividades
Polytechnique, a confusão deve-se em parte ao fato de caráter técnico7. A resposta é aparentemente
que o aluno conservou o uso do termo composição simples, mas no contexto da época quer dizer
tanto no seu curso de arquitetura quanto no Traité muito. No romantismo em geral, como no
d’Architecture, publicado igualmente em dois pensamento saint-simoniano que Reynaud
volumes em 1850 e 1858. Mas uma comparação incorporou em suas grandes linhas, a arte tem um
aprofundada entre o Précis de Durand e o tratado papel fundamental no processo cognitivo que
de Reynaud revela diferenças fundamentais entre Schlegel define como o “conhecimento a partir do
as duas obras, que apareceram em um intervalo todo”: a imaginação teórica e a arte que lhe dá
de quase exatamente meio século. A começar pela acesso formam a um só tempo o início e o fim
ciência, que já não é a mesma nos dois autores; desse processo, confundindo-se com a própria
se a ciência de Durand é a geometria analítica de filosofia e, portanto, estando acima da razão e da
Monge, a qual domina a primeira fase do ensino ciência. Para Reynaud, como também para muitos
na Ecole Polytechnique, a ciência de Reynaud já é saint-simonianos, a arquitetura é uma manifestação
o conhecimento físico-matemático que começa a artística que, retomando seu poder de falar à
fazer parte da formação do engenheiro a partir de imaginação, pode contribuir mais do que qualquer
aproximadamente 18306. Por exemplo, o primeiro outra forma de arte tanto para levar o público à
volume do Traité d’Architecture, intitulado compreensão da unidade orgânica do mundo
justamente Art de Bâtir, expõe noções de quanto para aperfeiçoar cultural e socialmente a
resistência dos materiais e apresenta fórmulas para humanidade.
o cálculo matemático de estruturas simples.
Isto não significa que Reynaud desconheça ou
Da mesma forma, a noção de composição também subestime o valor da ciência e seu papel na
não é a mesma nas duas obras. Ainda que Reynaud arquitetura. Ao contrário, Reynaud foi um dos
retome o termo que a esta altura já tinha se tornado principais representantes do racionalismo estrutural
sinônimo do método analítico de Durand, ele dá- do século XIX, figurando ao lado de nomes como
lhe um sentido completamente diferente, como Viollet-le-Duc e César Daly. Mais ainda, ele
acabamos de observar acima. Ao invés de conhecia melhor do que qualquer outro arquiteto
abandonar a noção de composição, o autor do do seu século as ciências da construção, como
Traité d’Architecture prefere introduzir um testemunha o primeiro volume do Traité
deslocamento teórico na própria concepção do d’Architecture. Por razões profissionais, ele
termo, como se ele estivesse restituindo-lhe seu acompanhava de perto, como vimos, o processo
verdadeiro significado. Tudo se passa como se ele de matematização das ciências do engenheiro,
proclamasse sutilmente no seu tratado que uma tendo sido aluno e depois colega, na Ecole de Ponts
composição analítica é por princípio inconcebível, et Chaussées, de alguns dos principais
e que por definição toda composição é orgânica, responsáveis por esse desenvolvimento. Por
ou sintética. Uma forma não de convencer pelo exemplo, embora o imaginário científico de Viollet-
argumento, que poderia gerar dúvidas e suspeitas, le-Duc fosse mais abrangente que o domínio teórico
mas de estimular a imaginação e a inteligência do de Reynaud, a ciência deste último era bem mais
leitor, para que ele chegue por ele próprio aos atualizada e mais complexa que a mecânica
fundamentos mais profundos da arquitetura, ou romanceada do autor do Dictionnaire Raisonné de
então se entregue inconscientemente a um novo l’Architecture Française. Se o racionalista Reynaud
pensamento que está além da razão. Justamente põe a arte acima da própria ciência, é porque ele,
como deve ser o papel de toda arquitetura digna como antigo simpatizante da utopia saint-
desse nome, isto é, de toda verdadeira obra de simoniana, acreditava que em um futuro não muito
arte. Eis a dificuldade, mas também o prazer, de distante triunfaria o novo pensamento orgânico a
descobrir Reynaud. cuja elaboração e difusão ele e alguns dos seus
contemporâneos se dedicaram ao longo de suas
Uma nova concepção da arquitetura vidas. Um pensamento no qual não haveria mais
distinção entre ciência e arte, isto é, no qual arte e
Se para Reynaud a arquitetura está além da ciência ciência constituiriam a um só tempo origem e fruto
(de seu tempo, deve-se acrescentar), qual então do potencial criador da imaginação teórica.
seu lugar? Desde seu primeiro escrito, que data
de 1834, ele responde sem hesitar que a arquitetura Em suma, a concepção arquitetônica de Reynaud
é uma arte: ela precisa ser útil e econômica, como representa, em todos os sentidos, uma reviravolta
qualquer outra atividade que faz uso da técnica, total em relação à Durand, e mais geralmente a
mas deve sobretudo falar à imaginação, papel aliás
308
Léonce Reynaud e a concepção teórica do Ecletismo no Rio de Janeiro

toda teoria do século XVIII, Quatremère de Quincy de seu tempo. Este paradoxo não decorre nem de
incluído. Rompendo com o utilitarismo e com o um aparente desencontro entre teoria e realidade,
método analítico do Iluminismo, ele reatava com a nem muito menos de oportunismo intelectual, mas
concepção orgânica do vitruvianismo que, a partir é parte integrante e relevante da teoria do autor.
de Alberti, inseriu a arquitetura no território da arte Para ele, como para os saint-simonianos, a
e da imaginação criadora. Não para voltar a uma arquitetura e, de modo geral a era orgânica do
tradição anterior que já estava superada, mas para futuro somente poderiam ser atingidos após uma
atualizá-la, aprofundá-la e, principalmente, dar-lhe fase de transição, na qual conviveriam
um novo conteúdo. Do mesmo modo que o Traité contraditoriamente os últimos resquícios do
d’Architecture conserva a noção de composição conhecimento analítico do passado e as primeiras
para alterar seu significado, Reynaud não hesita, luzes da cultura orgânica por vir. A seus olhos, o
uma vez mais, em retomar a tríade albertiana ecletismo constituía justamente esta arquitetura
solidez, comodidade e beleza. Para ele, como para transitória e contraditória do intervalo inevitável
Alberti, apenas a beleza é capaz de gerar um todo entre uma época e outra, uma criação que, sem
orgânico, razão pela qual ela constitui o coroamento ter a força dos grandes estilos do passado, tinha o
do processo de composição arquitetônica. Porém, mérito de representar as condições de sua própria
diferentemente de Alberti, a beleza é um meio época (deve-se observar que, para os saint-
privilegiado para “superar as lacunas da ciência” simonianos, o papel da verdadeira arte não é
(palavras do próprio Reynaud, em outro contexto), representar sua época, mas estar adiante dela).
conduzir a uma nova compreensão da natureza e Transitório e contraditório, o ecletismo já contém
promover o advento de uma nova cultura. Ou, dito em germe a arquitetura orgânica do futuro, um
de modo mais simples, para criar uma arquitetura potencial cuja evolução não é de forma alguma
orgânica e dinâmica capaz de avivar a sensibilidade determinista (eis o abismo que separa os
do expectador, elevar o pensamento da sociedade racionalismos de Reynaud e de Viollet-le-Duc), mas
que a criou e, conseqüentemente, contribuir para que precisa ser alimentado e cultivado pelas
o aperfeiçoamento do homem e da sociedade. gerações futuras para florescer. Ou que pode
fenecer, se o potencial orgânico do presente não
Um estilo transitório e contraditório for fertilizado nem criar raízes.
A teoria de Reynaud apresenta-se na dupla O Traité d’Architecture apresenta enfim, de forma
perspectiva da fundamentação teórica da muito sutil é verdade, uma fundamentação teórica
arquitetura de uma nova era orgânica e do papel para o ecletismo de seu tempo. Isso não quer dizer
da arquitetura em seu próprio tempo. A primeira que seu papel seja apenas teórico, ao contrário,
dimensão fica deliberadamente mais oculta que para Reynaud sua relevância é também e
aparente e dirigia-se aos poucos leitores sobretudo estética. Se, por um lado, a arquitetura
interessados em desvendá-la; ela permanecia eclética incorpora o progresso contemporâneo da
acessível somente a quem a procurasse, isto é, a ciência e da técnica à arquitetura, sem todavia se
quem estabelecesse as conexões necessárias com submeter a ele nem glorificá-lo, por outro ela se
o contexto cultural que lhe deu origem (conexões põe clara e incondicionalmente do lado da arte.
estrategicamente excluídas da exposição). O Para ele, é justamente graças à valorização da arte
segundo aspecto, inversamente, destinava-se ao que o estilo do século XIX pode contribuir para a
público mais amplo que se interessava apenas superação das contradições históricas do qual ele
pelas questões arquitetônicas da época ou é fruto e que ele põe em evidência. Defendendo e
simplesmente pela prática profissional. Como difundindo a imaginação estética, ele favorece
provavelmente calculado pelo autor, foi este ponto indireta e originariamente a tomada de consciência
de vista que assegurou o reconhecimento do Traité da unidade orgânica da natureza como do
d’Architecture pelos contemporâneos, bem como conhecimento. Ou, dito de outro modo, o ecletismo
sua aprovação oficial pela Academia. Aprovação seria o primeiro e importante passo para
que, por outro lado, gerou recentemente a transformar o homem e a natureza através da arte
desconfiança de alguns historiadores a respeito do e, mais geralmente da cultura.
caráter racionalista da doutrina de Reynaud8.
Em um país ávido de progresso mas sem
Ainda que o Traité d’Architecture não fizesse o capacidade industrial nem infraestrutura, como era
elogio da arquitetura eclética, distanciando-se o caso do Brasil na passagem do século XIX ao
assim de César Daly que expõe a apologia do estilo XX, o ecletismo oferecia justamente essa
nas páginas da sua Revue Générale de possibilidade de estimular a evolução da sociedade
l’Architecture et des Travaux Publics, a obra era através da arte, isto é, de utilizar a arte como
indireta mas francamente favorável ao ecletismo
309
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

instrumento para fomentar o próprio progresso. Daí Siècle. Saint-Etienne: Publications de l’Université
o sucesso e a rápida propagação do estilo do lado de Saint-Etienne, 2001.
de cá do Atlântico, e particularmente no Rio de PICON, Antoine. From ‘Poetry of Art’ to method :
Janeiro que, além de capital, abrigava uma escola the theory of Jean-Nicolas-Louis Durand. J.-N.-L.
de Belas Artes estreitamente ligada ao modelo Durand, Précis of the Lectures on Architecture,
francês. Triunfo que, olhando de perto, não se deve Los Angeles: The Getty Research Institute, 2000,
apenas nem principalmente ao fato que o ecletismo pp. 1-68.
tornou-se símbolo do poder, como foi aventado por PICON, Antoine. Les Saint-Simoniens. Raison,
alguns historiadores 9 . Reynaud não tem, Imaginaire et Utopie. Paris: Belin, 2002.
naturalmente, nenhuma relação com a introdução PUPPI, Marcelo. A nova história do século XIX e a
do novo estilo no Brasil, mas, em um segundo redescoberta da dimensão imaginária da
momento, e mais do que no próprio continente de arquitetura. Arquitextos, São Paulo, março 2005
origem, seu ponto de vista sobre a arquitetura http://www.vitruvius.com.br/ arquitextos/arq058/
eclética não apenas fundamentava o papel que já arq058_02.asp
lhe era atribuído, mas principalmente propiciava SABOYA, Marc. Presse et Architecture au XIXe
uma compreensão mais profunda tanto do potencial Siècle. César Daly et la Revue Générale de
da arte quanto do potencial histórico do próprio país. l’Architecture et des Travaux Publics. Paris: Picard,
1991.
No estado atual da pesquisa, ainda não é possível SZAMBIEN, Werner. J.-N.-L. Durand. Il método e
estabelecer até que ponto a teoria de Reynaud foi la norma nell’architettura. Veneza: Marsilio, 1986.
incorporada pelos arquitetos cariocas do período VAN ECK, Caroline. Organicism in Nineteenth-
em questão. Mas a fecundidade de um pensamento Century Architecture. Amsterdam: Architectura &
também pode ser conhecida através dos frutos que Natura Press, 1994.
ele produziu. Sabe-se hoje que a contradição, a VAN ZANTEN, David. Designing Paris. The
complexidade e, podemos acrescentar, o potencial Architecture of Duban, Labrouste, Duc and
criador da arte que emanam da primeira arquitetura Vaudoyer. Cambridge (Mass.): MIT Press, 1987.
moderna brasileira (1936-45) estão diretamente
relacionados à profunda compreensão e aplicação Notas
da teoria eclética pelos arquitetos da geração
1
moderna formada na Escola Nacional de Belas Professor do Departamento de Arquitetura e Urbanismo
da Universidade Estadual de Londrina, Mestre em História
Artes nas décadas de 1920 e 3010. No contexto
da Arte pela Unicamp e doutorando na Universidade de
histórico evocado acima, a imaginação estética que Paris 1/Sorbonne. Publicou Por uma História Não
deu origem a essa arquitetura demonstra indireta Moderna da Arquitetura Brasileira, Campinas, Pontes/
mas claramente, a nosso ver, que a concepção Unicamp, 1998.
teórica da arquitetura no ecletismo carioca deve 2
M. Puppi, Por uma História Não Moderna da Arquitetura
muito a Reynaud. Brasileira, Campinas, Pontes/Unicamp, 1998.
3
Para um balanço metodológico dos estudos decorrentes
Referências Bibliográficas da nova história cultural do século XIX, ver M. Puppi, “A
nova história do século XIX e a redescoberta da dimensão
BARIDON, Laurent. L’Imaginaire Scientifique de imaginária da arquitetura”, Arquitextos, São Paulo, março
2005. Disponível em: http://www.vitruvius.com.br/
Viollet-le-Duc. Paris: L’Harmattan/U.S.H.S., 1996.
arquitextos/arq058/arq058_02.asp
BERGDOLL, Barry. Léon Vaudoyer. Historicism in 4
L. Reynaud, Traité d’Architecture, Paris, Carilian-Goeury
the Age of Industry. Nova York/Cambridge (Mass.): et Dalmont, 1850-1858, reeditado em 1860-63, 1867-1870
The Architectural History Foundation/MIT Press, e 1875-1880.
1994. 5
Sobre a relação entre a teoria de Durand e o contexto
BRESSANI, Martin. Science, Histoire et científico e cultural do Iluminismo, ver A. Picon, “From
Archéologie. Sources et Généalogie de la Pensée ‘Poetry of Art’ to method : the theory of Jean-Nicolas-Louis
Durand”. J.-N.-L. Durand, Précis of the Lectures on
Organiciste de Viollet-le-Duc. Tese (Doutorado) -
Architecture, Los Angeles, The Getty Research Institute,
Universidade de Paris-Sorbonne/Paris IV, 1997. 2000, pp. 1-68.
COMAS, Carlos Eduardo. Précisions Brésiliennes 6
Sobre a evolução do ensino na Ecole Polytechnique na
sur un Etat Passé de l’Architecture et de primeira metade do século XIX, ver B. Belhoste, “Un modèle
l’Urbanisme Modernes. Tese (Doutorado) - à l’épreuve. L’Ecole polytechnique de 1794 au Second
Universidade de Paris VIII, 2002. Empire”, in B. Belhoste, A. Dahan Dalmedico, A. Picon
DUBBINI, Renzo (org). Henri Labrouste 1801-1875. (org.), La Formation Polytechnicienne, 1794-1994, Paris,
Dunod, 1994, pp. 9-30. Sobre a evolução do ensino de
Milão: Electa, 2002.
arquitetura nas escolas de engenheiro, no mesmo período,
LOYER, François (org). L’Architecture, les ver A. Picon, L’Invention de l’Ingénieur Moderne. L’Ecole
Sciences et la Culture de l’Histoire au XIX e des Ponts et Chaussées, 1747-1851, Paris, Presses de

310
Léonce Reynaud e a concepção teórica do Ecletismo no Rio de Janeiro

l’Ecole Nationale des Ponts et Chaussées, 1992, pp. 528- l’Encyclopédie Nouvelle. Amphion, Paris, Picard, 1987, v.
563. 1, pp. 137-145.
7 9
L. Reynaud, “Architecture”. Encyclopédie Nouvelle, t. I, Ver G. R. del Brenna, Ecletismo no Rio de Janeiro (séc.
Paris, Librairie de Charles Gosselin, 1836, pp. 770-778 XIX-XX). Ecletismo na Arquitetura Brasileira, São Paulo,
(editado originalmente em 1834, em fascículo). Nobel-Edusp, 1987, pp. 29-66.
8 10
R. Middleton considera que, em relação ao ponto de vista Sobre a relação entre a teoria do século XIX e a
racionalista exposto em 1834 pelo próprio Reynaud no arquitetura moderna brasileira no período 1936-45, ver C.
verbete “Architecture” da Encyclopédie Nouvelle, o Traité E. Comas, Précisions Brésiliennes sur un Etat Passé
d’Architecture representa uma regressão ao classicismo de l’Architecture et de l’Urbanisme Modernes, tese de
conservador da Academia. Ver R. Middleton, “Rationalisme doutorado apresentada na Universidade de Paris VIII, 2002.
et historicisme : un article de L. Reynaud pour

311
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República
Qualquer abordagem da arte brasileira no século
XIX terá forçosamente o foco principal na produção
relacionada à Academia Imperial de Belas-Artes
do Rio de Janeiro. Entretanto, as reflexões
apresentadas a seguir voltam-se para uma outra
faceta da arte do século XIX: as manifestações
ligadas à emergência do Romantismo, corrente da
qual John Ruskin é um dos mais famosos epígonos,
como se sabe.

A posição aqui adotada é a de que a arte – e mais


especificamente a arquitetura - do século XIX tem
que ser compreendida à luz do longo processo de
transformação social que se inicia no final do século
XVIII, manifestando-se ao longo do Oitocentos em
movimentos arquitetônicos formalmente
diversificados, mas que seguem uma direção
comum: o paulatino colapso do sistema cultural
clássico - sistema vigente, em sucessivas
releituras, até então.

Tais movimentos reportam-se à emergência de


duas tendências de pensamento que estão se
delineando em paralelo ao conjunto de profundas
transformações políticas, econômicas e sociais que
desembocará na ‘Dupla Revolução’ (HOBSBAWM),
na segunda metade do Dezoito.
o pensamento de john ruskin no debate cultural Reportando-nos especificamente à repercussão na
brasileiro dos anos 1920 arquitetura destas transformações, centraremos
1
nossa argumentação, por razões didáticas, nos
maria lucia bressan pinheiro
contextos individualizados da França e da
Inglaterra. Entretanto, é importante ressaltar o
constante intercâmbio entre os dois países, bem
como seus diálogos contínuos no campo da
arquitetura 2.

Inicialmente, é imprescindível lembrar, com


BENEVOLO (1974), que a arquitetura encontrava-
se, já há três séculos, condicionada por um sistema
de regras – deduzidas em parte da Antiguidade e
em parte da tratadística do Renascimento –
consideradas universais e permanentes, baseadas
na natureza das coisas e na experiência da
antiguidade concebida como segunda natureza. O
Classicismo – ou a autoridade deste sistema de
regras – é que será paulatinamente questionado
pelas tendências de pensamento mencionadas
acima, a saber: a tradição francesa, decorrente de
uma tendência cartesiana à clareza e à certeza
matemática, que desabrochará, por assim dizer,
no Iluminismo; e a tradição empirista inglesa,
firmemente ancorada na realidade e na natureza.

A bem da verdade, entretanto, o contexto de crise


que levará à perda daquele conjunto de “formas
normatizadas extraídas da Antiguidade Clássica”
(BENEVOLO, 1981:7) já está instaurado desde o
final do século XVII, e pode ser evidenciado pela

312
O pensamento de John Ruskin no debate cultural brasileiro dos anos 1920

recusa de Luís XIV ao projeto por ele encomendado sobre a natureza humana, sua psicologia e suas
a Gian Lorenzo Bernini, o mais renomado arquiteto sensações, e à revalorização da imaginação e do
da época, para a ala leste do palácio do Louvre, sentimento. A obra emblemática desta tendência é
em 1660. A reforma efetivamente realizada no The pleasures of imagination (1712) de John
palácio é atribuída ao médico Claude Perrault – Addison, que, por sua vez, inspira-se nas
que, na justificativa do projeto, menciona as colunas formulações teóricas do empirismo inglês, de
góticas da Catedral de Notre Dame como uma de Berkeley e de Locke. Addison afirma que a beleza
suas fontes de inspiração. A par de prenunciar uma das ordens clássicas não está em suas abstratas
incipiente reabilitação da arquitetura gótica, o proporções matemáticas, e sim na riqueza de
episódio assinala claramente uma mudança associações histórico-literárias e ético-religiosas
fundamental de orientação na cultura européia: a que relacionamos a tais formas (PATETTA, 1997:
transferência do centro de hegemonia cultural – 308-309).
até então localizado na Itália – para a França.
Desta vertente desenvolvem-se as noções
Na mesma direção situa-se a fundação da alternativas, por assim dizer, de beleza, que
Academia de Arquitetura Francesa, em 1671, exerceriam importante papel não só nas idéias
dentro do espírito normatizador de Luís XIV. A estéticas do século XVIII, mas também na
própria necessidade de criar um órgão investido emergência do Romantismo do século XIX. Aqui,
da atribuição de conceituar e regulamentar a cabe mencionar a obra A philosophical enquiry into
arquitetura prenuncia o debate sobre a validade the origins of the Sublime and Beautiful (1756), de
das normas clássicas e da própria Antiguidade Edmund Burke, para quem o Belo é um valor que
como modelo artístico, que logo se instaurou a não se refere ao intelecto e sim à esfera dos
partir da publicação de obras como o tratado de sentimentos; as proporções e a perfeição
René Ouvrard, de 1677, no qual o autor estabelecia geométrica e matemática concernem somente à
uma analogia entre as proporções matemáticas da esfera lógico-intelectual, não se configurando como
música e as proporções da arquitetura, afirmando qualidades estéticas. A arte, ao contrário, deve
que “o que fere o ouvido em uma, fere o olho em suscitar emoções, e sobretudo inspirar estupor com
outra”. Destaca-se aí a obra Ordonnance des Cinq a variedade e a novidade.
Espèces de Colonnes (1683), do já citado Claude
Perrault, na qual o autor estabelecia uma distinção A imediata incorporação destas idéias pelo
entre dois tipos de beleza: a beleza absoluta – paisagismo inglês do período – consubstanciada
“convincente, mecânica e inevitável”- e a beleza no famoso ‘jardim pitoresco’ - contribui para o
arbitrária, que “depende da predisposição” (apud delineamento de uma ênfase tipicamente inglesa
RYKWERT, 1983:41-42). no meio-ambiente, entendido não só como o
cenário físico – rural ou urbano – onde a obra
Perrault introduz, assim, uma variável subjetiva – arquitetônica se insere, mas também como seu
o Gosto – no debate arquitetônico francês. Pode- contexto histórico. Tais idéias são explicitadas já
se dizer que, em certa medida, a beleza desloca- em 1709 pelo arquiteto inglês John Vanbrugh, que,
se do objeto – onde sempre parecera residir – para em seu projeto para o Palácio de Blenheim,
o sujeito, abrindo o caminho para a introdução da preconizou a preservação das ruínas pré-existentes
psicologia e das emoções humanas nas noções no terreno, afirmando que os edifícios de tempos
estéticas. Mas, neste momento inicial, a polêmica distantes “inspiram reflexões mais vivas e
se dá entre os adeptos do emprego ‘literal’ das agradáveis sobre as pessoas que viveram neles;
formas derivadas da Antiguidade Clássica – sobre as coisas notáveis que neles tiveram lugar,
posição predominante na Academia francesa – e ou sobre as circunstâncias extraordinárias da sua
os progressistas, adeptos do emprego ‘racional’ das construção” do que a história pode fazer, sem a
formas clássicas, admitindo sua possibilidade de sua ajuda (MIDDLETON & WATKIN, 1993:35).
aperfeiçoamento e atualização, inclusive através
do recurso à arquitetura gótica, como Perrault. Poderes evocativos, narrativos ou literários são,
portanto, atribuídos à arquitetura como parte de
Tendo delineado as características do debate algo mais – como um incidente histórico ou na
francês – que tenderá a aprofundar-se com a paisagem – ficando aberto o caminho para todo
mediação da Ilustração, disposta a discutir o saber tipo de associações românticas entre meio-
instituído, fazendo-o passar pelo crivo da razão ambiente e as emoções humanas. Sublinhe-se,
(BENEVOLO, 1974:23) -, cabe examinar a outra aqui, a evidente vinculação entre tais noções e a
tendência apontada anteriormente: a tradição transformação e degradação aceleradas da
inglesa, ligada às noções estéticas do sublime e natureza, que é uma das primeiras e mais evidentes
do pitoresco, que surge dos primeiros estudos conseqüências da Revolução Industrial.

313
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

É neste contexto que surge a figura de John Ruskin Diante da abrangência de temas enfocados por
(1819-1900), que compartilha claramente das John Ruskin, de suas idiossincrasias pessoais, e
idéias acima mencionadas de Vanbrugh, como se de seu radicalismo e veemência, pode-se imaginar
pode verificar no trecho a seguir: as inúmeras polêmicas nas quais esteve envolvido.
Porém, sua obra escrita sempre gozou de grande
Como é fria toda a história, como é sem vida prestígio e popularidade, a ponto da venda de seus
toda fantasia, comparada àquilo que a nação livros constituir sua principal fonte de renda ao final
viva escreve, e o mármore incorruptível ostenta! de sua vida, quando já se esgotara a grande
– quantas páginas de registros duvidosos não herança que recebera de seu pai (estimada entre
poderíamos nós dispensar, em troca de 150 e 200.000 libras) 4 - empenhada em sua maior
algumas pedras empilhadas umas sobre as parte em causas sociais, e também - em escala
outras! (1989:178) 3 incomparavelmente menor, é verdade – em
contribuições financeiras para a causa
Quase exatamente contemporâneo da Rainha preservacionista5.
Vitória (1819-1901), Ruskin viveu durante o auge
do poderio econômico e militar da Inglaterra – “o Assim, não é de todo surpreendente constatar a
melhor e o pior dos tempos”, no dizer de Dickens - ressonância de seu livro As Sete Lâmpadas da
, configurando-se como uma das mais Arquitetura em um âmbito tão distante da Inglaterra
emblemáticas e controvertidas figuras daquele vitoriana quanto o panorama cultural brasileiro das
conturbado período, em que “tudo o que é sólido primeiras décadas do século XX, principalmente
se desmancha no ar”, como magistralmente entre os adeptos do Neocolonial. O livro foi escrito
escreveu Karl Marx. por Ruskin em 1849, “no olho do furacão”, vendo o
mundo em que fora criado esboroando-se à sua
Excêntrico, reacionário, intransigente inimigo da volta. Sua principal preocupação é a dissolução de
industrialização – diz-se que não admitia que nem valores e princípios – morais e estéticos, e vice-
sequer os seus livros fossem transportados por versa, já que ambos são indissociáveis em seu
ferrovia -, Ruskin foi um dos maiores expoentes da pensamento - nos quais acreditava profundamente,
crítica romântica, de cunho socialista, à sociedade procurando a todo custo preservá-los das
capitalista industrial e suas evidentes mazelas - transformações em curso. Particular atenção
miséria generalizada, injustiça social, inchaço merece A Lâmpada da Memória, no qual se
urbano, destruição da natureza, entre outras -, e encontra o poderoso libelo de Ruskin contra a
sua contribuição foi essencial para as correções restauração de edifícios, tal como era praticada no
de rumo que, pouco a pouco, foram feitas em século XIX:
termos de reformas sociais, urbanísticas, de
proteção ao meio ambiente, etc. Nem pelo público, nem por aqueles que são
responsáveis por monumentos públicos, o
Entretanto, para além da dimensão política – talvez verdadeiro sentido da palavra restauração é
a mais conhecida – dos múltiplos interesses de entendido. Significa a mais total destruição que
John Ruskin, não menos importante é sua reflexão um edifício pode sofrer; uma destruição após
sobre o papel da arquitetura, e sua preservação, a qual nenhum remanescente pode ser reunido;
para a sociedade moderna; reflexão por vezes uma destruição acompanhada de uma falsa
obscurecida pela generalizada aversão descrição do objeto construído. Não nos
contemporânea ao exacerbado romantismo deixemos enganar nesse assunto importante;
oitocentista, do qual constitui um dos pilares. Em é impossível, tão impossível quanto ressuscitar
que pese tal preconceito, o pensamento de Ruskin os mortos, restaurar qualquer coisa que tenha
aponta para várias questões ainda extremamente sido grande ou bela em arquitetura. (1989:194-
pertinentes para o debate arquitetônico atual. 195)
De fato, tendo iniciado sua carreira como crítico As idéias contidas na Lâmpada da Memória
de arte, suas idéias evoluíram paulatinamente para constituem, assim, a base daquela tendência
o campo da política, assumindo um cunho socialista inglesa conhecida entre nós como Movimento Anti-
ao defenderem questões tão atuais como: ensino restauração6. Alicerçado em todas as Lâmpadas
público obrigatório; nacionalização da produção e da Arquitetura, porém mais especificamente
do comércio dos bens de consumo elementar, em vinculado à Lâmpada da Memória, o movimento –
um regime de coexistência e concorrência com a como seu nome já indica – coloca-se radicalmente
iniciativa privada; seguro-desemprego; previdência contra a restauração, advogando em contrapartida
social para invalidez e velhice. o cuidado e a manutenção constantes aos
monumentos, como se vê no trecho a seguir:

314
O pensamento de John Ruskin no debate cultural brasileiro dos anos 1920

Cuide bem de seus monumentos, e você não finalidade mais importantes do que quaisquer
precisará restaurá-los. Algumas chapas de outros pertencentes a sua mera beleza
chumbo colocadas a tempo num telhado, sensível, podem ser colocados entre suas
algumas folhas secas e gravetos removidos a características mais puras e essenciais; tão
tempo de uma calha, salvarão tanto o telhado essenciais, em minha opinião, que eu penso
como as paredes da ruína. Zele por um edifício que não se pode considerar que um edifício
antigo com ansioso desvelo; proteja-o o melhor tenha atingido sua plenitude antes do decurso
possível, e a qualquer custo, de todas as de 4 ou 5 séculos... (1989:193)
ameaças de dilapidação. Conte as suas pedras
como se fossem as jóias de uma coroa; coloque O tema reaparece na década de 1920, como se vê
sentinelas em volta dele como nos portões de no artigo Chafarizes do Rio de Janeiro, em que o
uma cidade sitiada; amarre-o com tirantes de gravador Adalberto de Mattos, realizando uma
ferro onde ele ceder; apóie-o com escoras de peregrinação imaginária pelos chafarizes cariocas,
madeira onde ele desabar; não se importe com constata:
a má-aparência dos reforços: é melhor uma
muleta do que um membro perdido; e faça-o Bem raras são as vetustas recordações
com ternura, e com reverência, e históricas que conservam o cunho
continuamente, e muitas gerações ainda característico e tradicional. Tudo tem mudado,
nascerão e desaparecerão sob a sua sombra. mais ou menos dentro do prisma estético, deste
Seu dia fatal chegará finalmente; mas que ou daquele administrador. As grades dos
chegue declarada e abertamente, e que nossos jardins, a cantaria dos nossos edifícios
nenhum substituto desonroso e falso prive o aí estão, clamando piedade. Os nossos
monumento das honras fúnebres da monumentos acompanham em coro esses
memória.(1989:196-197) queixumes. A impiedade os atinge,
emprestando-lhes um aspecto de mascarada.
Tais conceitos ruskinianos sobre a importância dos Para simular um amor que não existe, lançam
edifícios antigos e sua conservação - em oposição mão da escova e dos cáusticos, com que
a qualquer idéia de intervenção restaurativa - estão inutilizam as pátinas, preciosa colaboração do
presentes em data tão precoce quanto 1904, no tempo. Exemplo vivo desse sacrilégio é o
relatório sobre Os reparos nos Fortes de Bertioga, soberbo monumento de D. Pedro I, que, de vez
preparado por Euclides da Cunha para o Instituto em quando, é violentamente esfregado, para
Histórico e Geográfico de São Paulo: em seguida serem os seus dourados avivados
com o fatídico ouro banana!... (1921: s/p.)
Trata-se de conservar duas grandes relíquias, que
compensam a falta absoluta de qualquer A menção ao ouro ‘banana’ – sucedâneo barato do
importância estreitamente utilitária, com o metal precioso, visualmente espalhafatoso e
incalculável valor histórico que lhes advém das artificial – remete a considerações feitas mais ou
nossas mais remotas tradições. menos na mesma época por um jovem arquiteto
bastante próximo do círculo neocolonial carioca,
Compreende-se, porém, que tais reparos liderado pela polêmica figura de José Mariano Filho:
tendam apenas a sustar a marcha das ruínas. Lúcio Costa.
Quaisquer melhoramentos ou retoques, que se
executem, serão contraproducentes, desde que Em seu artigo A alma dos nossos lares, Costa
o principal encanto dos dois notáveis condenava o ideal de perfeição doméstica então
monumentos esteja, como de fato está, na sua vigente, em que imperava o apreço pelo “novinho”,
mesma vetustez, no aspecto característico que “pintadinho”, “bonitinho”, afirmando:
lhe imprimiu o curso das idades.(1966:677-
680.) O ideal em arquitetura doméstica não é essa
casa de aspecto eternamente novo, reluzente,
Euclides da Cunha toca aqui na questão da pátina, lustrada, polida, que parece gritar-nos:
que Ruskin considera um dos principais aspectos ‘Cuidado, não me toquem! Cuidado com a tinta!’
a serem preservados num edifício; a pátina teria Não... longe disso. A verdadeira casa é aquela
que se harmoniza com o ambiente onde situada
exatamente esta função, mais nobre nela do está, que tem cor local; aquela que nos convida,
que em qualquer outro objeto: a de evidenciar que nos atrai, e parece dizer-nos: Seja bem
a idade do edifício – aquilo que, como já foi vindo! (1924:1)
dito, constitui a sua maior glória; e, portanto,
os sinais exteriores desta glória, tendo poder e

315
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

Continua Lucio Costa, com palavras que ecoam Alguns reclamam que, para compor a
as de Ruskin, quando o inglês preconiza que as arquitetura monumental de uma cidade
casas de moradia “expressem o caráter e ocupação moderna, são necessários os moldes clássicos
de cada homem, e parte de sua história”, consagrados das obras-primas da humanidade,
evidenciando a noção de empatia entre a edificação aplicando cada arquiteto o estilo a que o seu
e o morador – tão cara ao pensamento ruskiniano: talento pode dar mais intensa expressão
artística; essa deveria ser a fonte da inspiração
Com o mesmo amontoado de moedas que se - a arte é universal e não nacional. Mesmo
faz uma casa pretensiosa, inexpressiva e fria, quando seja justa esta maneira de ver, há que
de uma complicação que nada exprime... pode- ponderar que o caráter de uma cidade não lhe
se fazer uma jóia de arquitetura, um paraíso é dado pelos seus monumentos, colocados em
onde se viva; uma casa rica de simplicidade, pontos dominantes, grandes praças ou lugares
de beleza, de conforto; que pareça viver históricos. Ligam esses locais as ruas e
conosco e conosco sentir; que tenha avenidas, marginadas por casas de variado
personalidade; que esteja em harmonia com o destino; e são estas que dão a característica
temperamento daquele que nela mora... Uma arquitetônica da cidade; com efeito, o
casa que tenha alma, enfim. monumento é uma exceção, a casa é a nota
Aliás, a arquitetura residencial – ou doméstica, normal da vida quotidiana do cidadão, é como
como ele prefere – é tema cara ao pensamento uma lápide epigráfica da sua ascendência e
ruskiniano. De fato, Ruskin considera que é ela da sua história.(1916:79-81)
que “dá origem a todas as outras” e “que não
desdenha tratar com respeito e consideração Tal referência a Ruskin pode ser retraçada a partir
a pequena habitação, tanto quanto a grande, e das afinidades entre Ricardo Severo e o movimento
que investe com a dignidade da humanidade da “Casa Portuguesa” – movimento de valorização
satisfeita a estreiteza das circunstâncias da arquitetura vernácula portuguesa apoiado pelo
mundanas. (1989:181) historiador Rosa Peixoto e pelo arquiteto Raul Lino
- estabelecidas quando de sua estadia em Portugal
Ruskin gostaria que entre 1897 e 1907. Raul Lino, cujas idéias
alcançaram certa repercussão no Brasil através da
nossas casas de moradia usuais fossem obra A Nossa Casa – Apontamentos sobre o Bom
construídas para durar e construídas para Gosto na Construção das Casas Simples e de
serem belas; tão ricas e cheias de atrativo artigos difundidos na imprensa especializada,
quanto possível, por dentro e por fora; [...] mas, estudou arquitetura na Alemanha, onde teve
de todas as formas, com diferenças tais que contato também com a tendência romântica inglesa
estejam de acordo com, e expressem o caráter de matriz ruskiniana ligada ao Arts & Crafts8.
e ocupação de cada homem, e parte de sua
história.(1989:182) As idéias de Ricardo Severo, por sua vez,
contagiaram aquele que viria a tornar-se o principal
Diz ainda que paladino da arte e da cultura genuinamente
brasileiras: Mário de Andrade, que, neste início da
Até hoje, a atração de suas mais belas cidades
década de 1920, entusiasmou-se grandemente
[da Itália e da França] reside não na riqueza
com o Neocolonial9. Em 1920, após empreender
isolada de seus palácios, mas na decoração
uma viagem a Minas Gerais, Mário escreveu uma
requintada e cuidadosa das menores moradias
série de artigos invocando nominalmente a
de seus períodos de maior esplendor. A mais
autoridade de Severo como estudioso da
elaborada peça de arquitetura em Veneza é
arquitetura colonial brasileira 10. Significativamente,
uma pequena casa no começo do Grande
o trecho da conferência A Arte Tradicional no Brasil
Canal, consistindo de um piso térreo e dois
acima citado, relativo à importância da arquitetura
andares superiores, com três janelas no
doméstica, chegou a ser então transcrito por Mário:
primeiro piso, e duas no segundo.(1989:182)
Os grandes monumentos podem ser
Ora, precisamente este trecho parece ter inspirado
construídos nos estilos que se universalizaram
o engenheiro português Ricardo Severo, o epígono
mais ou menos pela sua beleza. Não modifica
do movimento neocolonial em São Paulo, como
a feição duma cidade brasileira que lhe seja a
se pode ver no seguinte trecho de sua conferência
catedral de estilo gótico. A justificativa da nossa
A Arte Tradicional do Brasil 7:
estaria nas próprias palavras do Sr. Ricardo
Severo, apóstolo do estilo neocolonial, quando
diz: ‘o caráter duma cidade não lhe é dado pelos

316
O pensamento de John Ruskin no debate cultural brasileiro dos anos 1920

seus monumentos, colocados em pontos Pois, de fato, a maior glória de um edifício não
dominantes, grandes praças ou lugares está em suas pedras, ou em seu ouro. Sua
históricos.... (apud KRONBAUER, 1993:94) glória está em sua Idade, e naquela profunda
sensação de ressonância, de vigilância severa,
Trata-se, portanto, exatamente daquele trecho em de misteriosa compaixão, não, até mesmo de
que é evidente a influência da Lâmpada da aprovação ou condenação, que nós sentimos
Memória, como vimos. em paredes que há tempos são banhadas pelas
ondas passageiras da humanidade. [Sua glória]
Embora o tom geral destes artigos esteja distante Está no seu testemunho duradouro diante dos
da espontaneidade e ousadia intelectual que viriam homens, no seu sereno contraste com o caráter
a caracterizar a obra de Mário de Andrade, transitório de todas as coisas, na força que -
assomam aqui e ali pontos de vista pouco através da passagem das estações e dos
convencionais em seus comentários - tempos, e do declínio e nascimento das
principalmente sobre as igrejas do Rio de Janeiro dinastias, e da mudança da face da terra, e
e de Minas Gerais, que visitara pessoalmente. dos contornos do mar - mantém sua forma
Comparou, por exemplo, a Igreja de São Bento do esculpida por um tempo insuperável, conecta
Rio de Janeiro com “a caverna dos Nibelungos”; períodos esquecidos e sucessivos uns aos
considerava São Francisco da Penitência outros, e constitui em parte a identidade, por
“positivamente feia”, devido a seu “aspecto exterior concentrar a afinidade, das nações. É naquela
bisonho e desajeitado”. Seu interior, porém, era mancha dourada do tempo, que nós devemos
digno de elogios; Mário o comparou a uma casa procurar a verdadeira luz, a cor, e o valor da
de moradia: “...apesar de totalmente dourada, é arquitetura; e não antes que um edifício tiver
afetuosa, é alegre, tem um ar familiar de quem diz: assumido este caráter – apenas quando ele
Sente-se. A casa é sua” (KRONBAUER, 1993:69- tiver se imbuído da fama dos homens, e se
70). santificado pelos seus feitos; apenas quando
suas paredes tiverem presenciado o sofrimento,
Estes mesmos trechos nos remetem novamente a
e seus pilares ascenderem das sombras da
outros trechos de Ricardo Severo, em que o
morte - é que sua existência, mais duradoura
engenheiro português demonstra compartilhar das
do que a dos objetos naturais do mundo ao
noções associativas de Beleza tão exploradas por
seu redor, poderá ser agraciada com os
Ruskin:
mesmos dons de linguagem e de vida que estes
Na arquitetura de uma casa são partes possuem. (1989:186-187)
integrantes da sua armadura externa o telhado
A influência do pensamento de John Ruskin é
e os muros, como na cara os cabelos e o rosto,
igualmente evidente nos escritos do médico
e são órgãos de expressões as janelas e as
pernambucano José Mariano Filho, mentor
portas, como os olhos e a boca, dando a
intelectual do Neocolonial no Rio de Janeiro e um
característica da sua fisionomia. Assim, há
dos primeiros a ensaiar uma abordagem da
casas de amoroso semblante que parecem
arquitetura colonial a partir de seus condicionantes
ninhos perpétuos de idílios e noivados, outras
de partido - técnicas e recursos disponíveis,
de aspecto hospitaleiro e generoso como
características climáticas do país, etc. (o que ele
fraternais albergues, graves algumas e sisudas
chama de “arquitetura mesológica”). A despeito de
como tribunais ou cadeias, outras ainda que
suas inúmeras incorreções a esse respeito, é
são antipáticas e repulsivas, e mais raramente
inegável sua postura de valorização daquilo que é
algumas que por soturnas e misteriosas, como
específico, local, nacional, expressa em inúmeros
habitações de duendes, só causam
artigos, como A Nossa Arquitetura:
assombração e desgraça.(1916:54-55)
Que espírito é esse que emoldura docemente
Ora, embora privilegiasse as associações morais,
num quadro de tranqüila beleza as velhas
em alguns trechos Ruskin também faz associações
cidades de antanho? Por que motivo
de cunho psicológico. Na Lâmpada do Poder, por
inexplicável o velho solar da marquesa de
exemplo, compara os matacães em balanço do
Santos é mais nobre, mais “nosso”, do que o
Palazzo Vecchio, de Florença, a um cenho franzido
caricato Pavilhão Monroe? [...] É o espírito do
(1989:76). Porém, o trecho que melhor caracteriza
passado; e é a esse espírito que eu chamo o
a abrangência da concepção ruskiniana de empatia
“caráter” na arquitetura colonial.
entre o homem e o meio ambiente encontra-se
ainda na Lâmpada da Memória: As evidentes referências pictóricas remetem-nos
ao Setecentos; mas a menção ao “espírito do

317
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

passado” leva-nos diretamente às idéias de Ruskin. velho caráter dos seus monumentos. A isso
Aliás, o próprio Mariano Filho encarrega-se de citá- seria mil vezes de preferir a ruína, que destrói
lo nominalmente ao longo do artigo, quando trata a matéria mas respeita a alma.(1928:s/p.)
da verdade dos materiais e o anti-convencionalismo
das arquiteturas locais: Como se vê, as idéias de John Ruskin influenciaram
literatos e intelectuais de várias tendências, ainda
A simplicidade desse casarão provém daquele que manifestem-se mais consistentemente no
discreto equilíbrio de massas de que os círculo de adeptos do neocolonial, tanto em São
grandes mestres possuem a justa medida. Tudo Paulo como no Rio de Janeiro – onde se inclui
nele é verdade. Tudo tem a sua razão de ser, Lúcio Costa, que, como vimos, revela-se leitor
a sua lógica, o seu sentido. O pátio estabelece atento de Ruskin ao longo de toda a década de
a corrente de ar entre o claustro e os aposentos 1920.
que lhe estão em torno. O alpendre alviçareiro
quebra a tranqüilidade da fachada engrinaldada De fato, no artigo O Aleijadinho e a Arquitetura
de trepadeiras virentes. Tradicional, de 1929, encontram-se alguns dos
Ruskin, o gótico, o teria canonizado sob a luz trechos mais genuinamente ruskinianos do período,
serena das sete lâmpadas eternas da como:
arquitetura.(1922:s/p.)
Vendo aquelas casas, aquelas igrejas, de
Mariano Filho também revela-se partidário de uma surpresa em surpresa, a gente como que se
postura não intervencionista, de respeito à encontra, fica contente, feliz, e se lembra de
manutenção das características arquitetônicas e coisas esquecidas, de coisas que a gente
da dignidade dos monumentos, como se vê no nunca soube, mas que estavam dentro de nós,
artigo sobre a demolição do Solar de Megaípe, uma não sei. (COSTA, 1962:15)
das primeiras vítimas da ampliação do debate
preservacionista no país11: Ao exaltar aquilo que é essencial na arquitetura
colonial brasileira - o “verdadeiro espírito de nossa
Com a arte brasileira acontece exatamente o gente” - em detrimento do decorativismo que
que está acontecendo com as florestas atribuía ao artista mineiro, Lúcio Costa investiu
brasileiras. Discursos, poesias, e devastação corajosamente neste artigo contra o único ícone
por fim. então reconhecido da arquitetura colonial brasileira:
[...] Chegou a vez [de Megaípe]. Ao menos não
lhe profanaram o corpo, como ao velho edifício E é assim que a gente compreende que ele [o
da rua do Passeio, onde funcionou a Maçonaria Aleijadinho] tinha espírito de decorador, não de
brasileira, hoje loja de automóveis. arquiteto. O arquiteto vê o conjunto, subordina
Transformavam-lhe a metade inferior numa o detalhe ao todo, e ele só via o detalhe, perdia-
“boutique” moderna, revestida de pedra se no detalhe, que às vezes o obrigava a
artificial, e deixaram a parte superior tal como soluções imprevistas, forçadas,
a havia concebido o grande arquiteto Grandjean desagradáveis.(1962:14 -15)
de Montigny. Megaípe, ao menos, não sofreu
Ora, suas críticas ao Aleijadinho tem claras
o aviltamento de vestir roupas canalhas. Morreu
afinidades com a advertência, contida na Lâmpada
com dignidade.(1943:35)
da Beleza – o quarto capítulo das Sete Lâmpadas
É de destacar, aí, a comparação entre a arte e o -, sobre o perigo da sedução do ornamento
meio ambiente natural brasileiros – numa incipiente escultórico para o arquiteto:
denúncia que não tem paralelo então.
No momento em que o arquiteto se permite dar
Um seu conterrâneo, o poeta modernista Manuel ênfase às porções de imitação [os ornatos
Bandeira, também compartilha da mesma postura, copiados da natureza], existe uma chance de
ao alertar, em 1928, para a necessidade de que ele perca de vista o dever do ornamento,
proteção do patrimônio da cidade de Ouro Preto: de seu papel como parte da composição, e
sacrifique os pontos de sombra e efeito pelo
Essa tradição é que cumpre zelar. Não permitir prazer da talha delicada. E então ele está
que os seus templos se arruinem, como está perdido. (RUSKIN, 1989:135)
acontecendo com a deliciosa capelinha do
Padre Faria, contemporânea dos primeiros O desfavor das idéias de matriz ruskiniana fica,
descobrimentos de ouro. Sobretudo não por outro lado, evidente a partir das palavras do
consentir nas restaurações depredadoras do mesmo Lúcio Costa, anos depois, quando,

318
O pensamento de John Ruskin no debate cultural brasileiro dos anos 1920

descartando seu envolvimento com o neocolonial, ___ ____. Defesa de Ouro Preto. Ilustração
tachou-o de “ruskinismo retardado”, na conhecida Brasileira no. 97. Rio de Janeiro, setembro de
passagem do artigo Depoimento de um arquiteto 1928.
carioca, de 1951. BARROSO, Gustavo. A alma das catedrais.
Ilustração Brasileira n o . 16. Rio de Janeiro,
Foi contra essa feira de cenários arquitetônicos dezembro de 1921.
improvisados que se pretendeu invocar o BENEVOLO, Leonardo. Historia de la
artificioso revivescimento formal do nosso Arquitectura Moderna. Barcelona, Gili, 1974.
próprio passado, donde resultou mais um ___ ____. Historia de la Arquitectura del
pseudo-estilo, o neocolonial, fruto da Renacimiento. Barcelona, Gili, 1981.
interpretação errônea das sábias lições de COSTA, Lúcio. A Alma dos Nossos Lares. A Noite.
Araújo Viana, e que teve como precursor Rio de Janeiro, 19/03/24.
Ricardo Severo e por patrono José Mariano ___ ____. Considerações sobre o nosso gosto e
Filho. estilo. A Noite. Rio de Janeiro, 18/06/24.
Tratava-se, no fundo, de um retardado ___ ____. Registro de uma Vivência. São
ruskinismo, quando já não se justificava mais, Paulo, Empresa das Artes, 1995.
na época, o desconhecimento do sentimento ___ ____. Sobre Arquitetura. Porto Alegre,
profundo implícito na industrialização, nem o CEUA, 1962.
menosprezo por suas conseqüências CUNHA, Euclides da. Os Reparos nos Fortes de
inelutáveis. Relembrada agora, ainda mais Bertioga (1904), Obra Completa. Rio de Janeiro,
avulta a irrelevância da querela entre o falso José Aguilar, 1996.
colonial e o ecletismo dos falsos estilos D’AGOSTINO, Mário Henrique Simão e PINHEIRO,
europeus: era como se, no alheamento da Maria Lucia Bressan. A noção de Pitoresco em
tempestade iminente, anunciada de véspera, Arquitetura. Desígnio Revista de História da
ocorresse uma disputa por causa do feitio do Arquitetura e do Urbanismo. São Paulo,
toldo para o ‘garden-party’. (COSTA, 1962:185, Annablume, no. 1, março 2004.
grifo nosso) HOBSBAWM, Eric. Era das Revoluções: 1789-
1848. Lisboa, Presença, 1982.
Apesar de desdenhar então esta matriz comum – Ilustração Brasileira. Rio de Janeiro, período de
o pensamento romântico do século XIX em geral, 1920-1931.
e de John Ruskin em particular -, não seria KRONBAUER, Claudete (org.). A Arte Religiosa
surpreendente se estudos posteriores vierem a no Brasil. Crônicas publicadas na Revista do Brasil
constatar que ela teve significação maior do que o em 1920. São Paulo, Experimento/Giordano, 1993.
próprio Costa mostrava-se disposto a admitir. Afinal, LINO, Raul. A Nossa Casa – Apontamentos sobre
as idéias de Ruskin, filtradas pelo grupo Arts & o Bom Gosto na Construção das Casas Simples.
Crafts, constituem parte dos fundamentos da Lisboa, Ottosgrafica, 1923.
própria arquitetura moderna12. MARIANO FILHO, José. À Margem do Problema
Arquitetônico Nacional. Rio de Janeiro, s.c.p.,
Não deixa de surpreender esta ascendência de
1943.
John Ruskin no contexto brasileiro dos anos 1920,
___ ____. A Nossa Arquitetura. Ilustração
com tal ênfase na dimensão física da preservação
Brasileira no. 19. Rio de Janeiro, março de 1922.
de monumentos, por se tratar de um campo
MATTOS, Adalberto de. Chafarizes do Rio de
pouquíssimo explorado no período. Tal influência
Janeiro. Ilustração Brasileira n o . 10. Rio de
reveste-se de maior interesse – tanto mais se
Janeiro, junho de 1921.
pensarmos na predominância da cultura francesa
MIDDLETON, Robin & WATKIN, David.
na intelligentsia brasileira, o que, no tema em
Neoclassical and 19th Century Architecture. New
questão, nos remeteria a seu antípoda Viollet-le-
York, Rizzoli, 1993.
Duc13 - cujas idéias viriam a repercutir fortemente
PATETTA, Luciano. L’Architettura dell’Ecletismo:
na década de 1930, na atuação do primeiro órgão
Fonti, Teorie, Modeli 1750-1900. Milano, Gabriele
brasileiro de preservação – o SPHAN – em suas
Mazzota, 1975.
primeiras décadas de existência.
___ ____. Lo Sublime y la Poetica del
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antologia critica. Madrid, Celeste Ediciones, 1997.
BANDEIRA, Manuel. Crônicas da Província do PINHEIRO, Maria Lucia Bressan. Enigmas de Lúcio
Brasil. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1930. Costa. NOBRE, Ana Luísa [et al.]. Um modo de
ser moderno: Lucio Costa e a crítica

319
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

4
contemporânea. São Paulo, Cosac & Naify, 2004, Foram vendidas 44.000 cópias de Sesame and Lilies -
pp. 299-304. ISBN 85-7503-331-X uma de suas mais populares coletâneas de escritos e
_______ . Ricardo Severo e o ‘Estilo Tradicional palestras - desde sua publicação, em 1871, até 1900.
Consta que a venda de seus livros lhe rendia a expressiva
Brasileiro’. LEMOS, Fernando e MOREIRA LEITE,
quantia de 4.000 libras por ano.
Rui (org.). Missão Portuguesa - Rotas 5
Em 1855, Ruskin propôs a criação, no âmbito da
Entrecruzadas. São Paulo, Editora da UNESP, Sociedade de Antiquários, de um Fundo para a
2003. ISBN 85-7139-461-X Conservação (Conservation Fund), destinado à
___ ____. O Neocolonial e suas relações com manutenção e eventual aquisição de imóveis históricos
o Patrimônio e o Modernismo. São Paulo, Tese ameaçados de destruição.
6
de Livre Docência FAUUSP, 2005. A tendência alcançou grande popularidade na Inglaterra
na segunda metade do século XIX, alcançando logo o
_______ . William Morris e a SPAB. Rotunda no.
continente europeu, e contava entre seus principais
3, 2004, pp. 22-32. ISSN-1678-7692 expoentes o arquiteto e designer William Morris que,
(www.iar.unicamp.br/rotunda/rotunda03.pdf) inspirado nas idéias de Ruskin, fundou em 1877 a Society
(2004b) for the Protection of Ancient Buildings (SPAB), ou
RODOLFO, João de Souza. Luís Cristino da Silva Sociedade para a Proteção dos Edifícios Antigos. V. a
e a Arquitetura Moderna em Portugal. Lisboa, respeito PINHEIRO, 2004.
7
Dom Quixote, 2002. Trata-se da conferência em que Severo lançou o
movimento neocolonial, por assim dizer.
RUSKIN, John. The Seven Lamps of Architecture. 8
Para uma biografia de Raul Lino, ver RODOLFO, 2002.
New York, Dover, 1989. 9
É digno de nota, a esse respeito, que a seção de
RYKWERT, Joseph. The First Moderns. Cambridge, arquitetura da Semana de Arte Moderna de 1922
The MIT Press, 1983. compunha-se de um projeto neocolonial de autoria do
SEVERO, Ricardo. A Arte Tradicional no Brasil. arquiteto polonês Georg Przyrembel - além de desenhos
SOCIEDADE DE CULTURA ARTÍSTICA. de influência Art-Déco realizados por outro estrangeiro,
Conferencias 1914-1915. São Paulo, Typographia Antônio Moya.
10
Publicados originalmente em A Cigarra e na Revista do
Levi, 1916.
Brasil, estes artigos foram reproduzidos por Claudete
ZANINI, Walter (org.). História Geral da Arte Kronbauer (1993).
Brasileira. São Paulo, Instituto Walter Moreira 11
O Solar de Megaípe foi demolido logo após a criação da
Salles, 1983. Inspetoria Estadual de Monumentos Nacionais de
XAVIER, Alberto (org.) Arquitetura Moderna Pernambuco, em 1928.
12
Brasileira: Depoimento de uma Geração. São Leonardo Benevolo considera o ano de 1862 - início das
Paulo, Pini/ABEA/Fundação Vilanova Artigas, 1983. atividades da firma Morris, Faulkner, Marshall & Co.
idealizada por William Morris, o principal seguidor de John
___ ____. Lúcio Costa: Obra escrita. Brasília, Ruskin na Inglaterra – como um dos marcos fundadores
UnB, 1966, mimeo. da arquitetura moderna (1974: 7).
13
São surpreendentemente raras as menções a Viollet-le-
Notas Duc na imprensa do período, e geralmente ligadas a sua
dimensão de estudioso da arquitetura gótica - como é o
1
Professora Associada da FAU-USP; Diretora do Centro caso do longo artigo A alma das Catedrais, em que Gustavo
de Preservação Cultural da USP. Barroso discorre sobre as catedrais góticas européias,
2
É interessante constatar, por exemplo, que, antes de citando nominalmente Viollet-le-Duc. No mesmo artigo foi
lançar-se à empreitada da Enciclopédia (cujo primeiro transcrito também um trecho da Lâmpada da Memória
volume foi publicado em 1751), Diderot já havia traduzido (1921, s/p). Já o deputado pernambucano Luiz Cedro, em
obras inglesas, como Inquiry concerning Virtue and Merit, seu projeto de lei de criação da Inspetoria dos Monumentos
de Shaftesbury (1745); a própria Enciclopédia foi inspirada Nacionais, em 1923, mencionava a lei francesa de 30 de
por obra análoga idealizada por Chambers e John Mills. março de 1887 e invocava o artigo Guerre aux
3
Os excertos reproduzidos aqui foram extraídos da démolisseurs, de Victor Hugo, em defesa de seus
tradução realizada pela autora de The Lamp of Memory, o argumentos.
sexto capítulo de The Seven Lamps of Architecture (no
prelo).

320
Até o final do século XIX, o urbanismo colonial
caracterizava visivelmente o centro de Salvador.
Fundado sobre uma colina segundo um traçado
urbano regular, este centro passou logo a
desenvolver-se a partir de uma configuração de
ruas irregulares, consolidando-se desta maneira.

Entretanto no início do século XX, Salvador, como


as demais capitais brasileiras, participava do
programa de construção da República iniciado
pelas reformas de Pereira Passos no Rio de
Janeiro, então Capital Federal. E assim, durante o
primeiro governo de J. J. Seabra (1912-1916), obras
urbanas foram empreendidas na cidade na tentativa
de transformar completamente a sua área central.

Acompanhando o espírito moderno empreendido


no Rio de Janeiro, as elites soteropolitanas
consideravam que era preciso modernizar o antigo
e principal centro do Brasil colonial, mesmo que
este processo não correspondesse a uma alteração
total da realidade. Os baianos viam isto como um
impulso de desenvolvimento que estabeleceria a
entrada de Salvador no quadro de progresso
nacional, integrados especialmente pelas cidades
do Rio de Janeiro e São Paulo.

a arquitetura monumental de salvador no início Assim, em 1912, alguns anos após a modernização
do século xx. Uma resposta local a um processo do Rio de Janeiro (1903-1906), dois projetos
internacional principais foram concebidos para o centro de
Salvador: o projeto Melhoramento de Partes da
suely de oliveira figueirêdo puppi * Cidade de Salvador, que prevendo drásticas
alterações do tecido urbano existente foi mantido
no papel; e o projeto Melhoramentos da Sé, que
preservando a antiga estrutura urbana e realizando
basicamente apenas o alargamento das vias
principais do centro e dos bairros nobres do sul, foi
o principal respaldo das alterações urbanas do
período. Pode-se afirmar que tais obras não
resultaram em profundas alterações dos espaços
da cidade. Apesar das parciais demolições, a
estrutura urbana do centro soteropolitano teve o
seu traçado, suas praças e seus quarteirões
mantidos e nenhum espaço urbano totalmente novo
e diverso do existente foi criado.

Entretanto, foi precisamente nos limites deste


perímetro onde as obras de modernização não
alteraram radicalmente o tecido urbano, que os
principais monumentos arquitetônicos, elementos
formadores de uma nova imagem de Salvador,
foram implantados. Estes edifícios foram um dos
principais resultados deste processo de
modernização da cidade no início do século XX; e
se esta modernização teve de certa maneira como
modelo maior a ordenação monumental de Paris
no período de Haussmann 1, os nossos edifícios
monumentais, concebidos inclusive por
profissionais italianos, são importantes

321
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

experiências locais de um estilo arquitetônico saneamento e principalmente de embelezamento


internacional, sugerido pelos empreendimentos urbano.
urbanos parisienses e pela propagação do ensino
Beaux-Arts. O classicismo eclético, como o denomina Claude
Mighot6, afirmou-se na segunda metade do século
1. A produção de uma arquitetura internacional XIX como um estilo internacional e seus exemplos
arquitetônicos tornaram-se um modelo por
Ao observar a arquitetura produzida nos diversos excelência. A ópera de Garnier uniu uma planta
países europeus, sobretudo durante a segunda submetida à composição Beaux-Arts, uma fachada
metade do século XIX, devemos considerar que que rompe com o princípio de unidade referencial
as produções locais eram resultado de uma __
esta era também uma característica da
interferência das experiências internacionais, as composição Beaux-Arts__, monumentalidade e certo
quais tinham em Paris o seu centro principal, aliada racionalismo construtivo. Resultado das
certamente aos seus traços característicos divergentes preocupações da época, a ópera foi
particulares. um dos maiores exemplos do momento, tornando-
se modelo de inspiração para a construção de
Deste fato, tratamos aqui da arquitetura teatros em outros países.
monumental realizada em Salvador no início do
século XX também segundo o contexto de uma No caso do Brasil, por exemplo, temos o teatro
produção internacional. E sendo assim, abordamos municipal do Rio de Janeiro que projetado por
esta arquitetura a partir dos seus traços Francisco de Oliveira Passos lembra, segundo
dominantes, os quais têm origem na produção Giovanna Rosso del Brenna, a ópera de Garnier.
francesa: os princípios de composição do sistema No Rio de Janeiro do início do século XX, as
Beaux-Arts, a doutrina racionalista de Viollet-le-Duc importantes construções teriam sido concebidas a
e o ecletismo, movimento resultante de um partir de uma ênfase tipológica. Segundo Giovanna,
processo de colagens, efetuado a partir da a identificação imediata do edifício como “o teatro”,
composição de vários e diversos elementos “o museu” era fundamental7. Sendo assim, o teatro
arquitetônicos2. municipal teria que se inspirar na ópera de Garnier,
exemplo maior dos teatros da época. Assim, ao
Segundo o crítico Laffitte, o século XIX não era uma tratar da arquitetura de marcas européias na
época na qual a arquitetura européia realizava-se Salvador do início do século XX, não poderíamos
através da aplicação de princípios compatíveis, ignorar a grande importância da produção
mas através da fusão de princípios contraditórios3. parisiense da segunda metade do século XIX.
Pode-se dizer assim que o ecletismo foi certamente
o resultado das constantes contradições da época, 2. Composição Beaux-Arts
incluindo o classicismo Beaux-Arts e o racionalismo
da doutrina de Viollet-le-Duc, correntes teóricas Usando formas simples para determinar uma figura,
contemporâneas a ele. o arquiteto Beaux-Arts construía um plano no qual
o traçado de eixos, a simetria e a construção de
Esta ambiguidade fez inclusive parte da história da sucessivas perspectivas constituíam os principais
Escola de Belas Artes de Paris. O interesse pelo pontos da composição. Assim a forma antecedia
racionalismo, e portanto uma oposição ao as necessidades determinadas pelo programa, e o
academicismo imposto pela escola, nasceu no principal objetivo era elaborar um edifício no qual
ambiente desta mesma instituição de ensino. As plano e volume se correspondessem perfeitamente,
preocupações racionalistas tiveram origem no formando um todo harmonioso de espaços
grande interesse dos vencedores do Prix de Rome desenvolvidos em torno de um eixo principal de
pela técnica das construções romanas4. equilíbrio.
A importância internacional da arquitetura No início do século XIX, a organização das
parisiense deu-se basicamente por dois motivos. fachadas, respondendo às leis clássicas, era
Por um lado a École des Beaux-Arts ganhou baseada na hierarquia das ordens. O espaço
prestígio mundial através da propagação do seu central do edifício, elemento dominante da planta,
ensino de composição arquitetônica, e mesmo era geralmente valorizado no volume exterior,
através das próprias discussões teóricas existentes independentemente do seu grau de importância
no seu meio acadêmico5, sobretudo na segunda para o programa do edifício.
metade do século XIX. Por outro lado, a Paris de
Napoleão III ganhou igualmente reconhecimento e Porém, a multiplicação e diversidade dos
admiração mundial devido à sua obra de programas logo alteraram algumas leis iniciais. A

322
A arquitetura monumental de Salvador no início do século XX

organização planimétrica dos edifícios seguiu ainda o ornamento em um elemento independente,


as regras de um partido monumental, mas suas “contradizendo a unidade geral do edifício, tão
fachadas tiveram concepção desvinculada da idéia importante para a composição Beaux-Arts: cada
de uma obediência perfeita à hierarquia das ordens. motivo é uma adição de objetos, cuja síntese é
artificial já que ela é dada apenas pelas grandes
A composição passou a basear-se na idéia do point. linhas do traçado” (LOYER, 1983: 126). A idéia de
Este, em planta, era o local de encontro do eixo de ecletismo como produto de uma colagem tem
equilíbrio, longitudinal, com o eixo secundário, assim suas principais bases históricas. Nota-se
transversal. O point veio determinar o ponto claramente, sempre segundo Loyer, que o mesmo
principal de referência da obra que era igualmente era resultado de uma escolha consciente, na qual
expresso na composição dos volumes exteriores, a unidade artificial tinha seus próprios objetivos,
através de uma valorização vertical. O espaço no não se tratando assim de um mero pastiche.
qual dava-se o encontro destes eixos era o
compartimento representante da mais importante A ópera de Garnier é um dos representantes mais
atividade do edifício, ou seja, era o espaço importantes desta nova fase. Segundo François
dominante e essencial da obra arquitetônica em Loyer, os pontos referenciais da ópera multiplicam-
questão. se e sua composição dá-se a partir do destaque
de determinados “centros de interesse”. Sendo
Assim, o abandono da hierarquia das ordens do assim, às diferenças estilísticas existentes entre
sistema Beaux-Arts e a expressão da dominante os diversos programas, ou seja, à determinação
nas fachadas deram lugar a uma nova concepção do caractère, une-se a valorização do detalhe, do
arquitetônica, cujo princípio central de organização ornamento.
era o caractère dos edifícios. Nesta nova
concepção, estilo e programa correspondiam-se e Neste momento, a idéia de composição de Albert
cada edifício parecia assim ter um lugar bem Ferran9 parece ultrapassada. A ordenação de um
definido na estrutura urbana e social. Segundo edifício não poderia ser mais definida a partir de
François Loyer, este processo arquitetônico, ou um único ponto referencial, ou seja a partir do point,
simplesmente o ecletismo do qual já falamos, local onde os principais eixos de uma composição
correspondia à definição da sociedade francesa do Beaux-Arts encontravam-se no espaço essencial
século XIX. Cheia de contrastes, ela evidenciava do edifício. Igualmente, a valorização deste point
todas as suas diferenças de status através do tipo na fachada não proporcionava mais sua imediata
de roupa, cores etc. A arquitetura passou a seguir identificação.
a mesma lei8.
Neste percurso, sendo desfeita a especificação
Os princípios definidos acima, independentes das compositiva, deu-se o domínio da independência
alterações sofridas no tempo, faziam parte da entre a composição dos planos e dos volumes. O
concepção de uma obra Beaux-Arts, constituindo sistema Beaux-Arts perdeu então totalmente sua
um corpo de idéias bastante diferente, por exemplo, lógica e pertinência.
dos elementos da doutrina racionalista de Viollet-
le-Duc. A organização espacial de um edifício, Em 1900, a dicotomia entre o clássico e o pitoresco,
segundo Viollet-le-Duc, dava-se exatamente de existente também nos espaços da cidade __ o
modo contrário: seu princípio fundamental em primeiro integrante do centro, da arquitetura oficial,
planta era a justaposição das superfícies, que e o segundo das habitações suburbanas como já
tinham suas formas definidas em função das dito __, foi também substituída pela arte monumental
exigências do programa e da construção. A urbana, na qual composições Beaux-Arts e
assimetria, o jogo de volumes, a multiplicação de pitorescas passam a conviver lado a lado10.
pontos referenciais, respondendo às exigências
construtivas e de certa maneira funcionais do plano, 3. A questão monumental
eram as bases de sua realização.
Segundo Loyer, o edifício burguês parisiense
Porém, a partir do progresso técnico e científico, adquiriu características físicas de um monumento
do avanço industrial contínuo, do surgimento de arquitetônico, no momento em que ganhou grandes
novos materiais e da determinação da nova proporções, elementos decorativos e nobres
organização dos edifícios em base do caractère, materiais. Sendo construído em toda cidade, ele
esta e outras dicotomias desfizeram-se. criou uma imagem uniforme de Paris que parecia
monumentalisar-se. Isto, segundo o autor,
Unido a isto, deu-se o triunfo do detalhe. Triunfo perturbou a dicotomia que normalmente se
que, herdado do racionalismo gótico, transformou estabelece nas cidades entre o que é monumental

323
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

e o que é vernacular11. Afinal, a arquitetura de um eram equipamentos de uso público, cujos


monumento destaca-se do contexto da arquitetura programas praticamente inexistiam até então em
ordinária, não se confundindo com as edificações Salvador.
do ambiente no qual se encontra.
O palácio Rio Branco, a Associação dos
Buscando então uma revalorização da sua Empregados do Comércio, o Instituto Histórico e
condição de elemento urbano extraordinário, os Geográfico e o Palácio da Aclamação são
monumentos arquitetônicos da Paris do século XIX importantes exemplares destes edifícios.
tiveram suas características alteradas. Também Monumentos da arquitetura eclética, são muitas
segundo Loyer, estes edifícios passaram então a vezes vistos como produtos de importação, cuja
ser definidos por dimensões ainda mais imponentes marca da influência européia reside apenas nas
que aquelas do immeuble burguês, por um fachadas.
enriquecimento emblemático e por uma
complexidade volumétrica, sobretudo no Esta produção arquitetônica parece ser julgada
coroamento. Esta complexidade foi totalmente assim, a partir de uma rápida observação apenas
oposta aos volumes unitários dos edifícios dos seus elementos decorativos exteriores. Porém,
burgueses. a partir de uma análise minuciosa destes edifícios
segundo a estrutura urbana na qual foram
Tratando-se da situação propriamente urbana, os implantados, nota-se que os mesmos foram
monumentos arquitetônicos passaram a constituir marcados por elementos da produção européia do
elementos geralmente isolados, que integrantes da século XIX, não apenas nas suas fachadas, mas
estrutura das grandes avenidas, mostraram-se também nas suas plantas14. Percebe-se que estes
como construções essenciais na organização do elementos adaptaram-se à situação urbana e
espaço urbano, pontos de atração visual histórica local, refletindo assim de maneira
importantes, determinando diversas perspectivas incompleta as características mais gerais da
urbanas. Assim, eles foram elementos arquitetura européia.
fundamentais para a compreensão das
transformações urbanas de Paris do século XIX. Como já afirmamos, apesar das alterações urbanas
do início do século, o urbanismo colonial
4. O edifício monumental no centro de Salvador: caracterizou o centro de Salvador. Entretanto, é
uma resposta local preciso também analisar os resultados de um
edifício monumental construído nesta época a partir
A produção de italianos no contexto de alterações de uma nova situação urbana. O caso específico
urbanas de Salvador no início deste século é do palácio da Aclamação, edifício de propriedade
particularmente voltada para a construção de pública com função residencial, construído na área
importantes e luxuosos palacetes na cidade, como mais ao sul da cidade, é exemplar. Edificado nos
também para a construção ou reforma de edifícios limites do antigo Passeio Público, o Palácio da
de uso público de caráter monumental. Deste fato, Aclamação possui duas fachadas: uma que se volta
a questão do monumento arquitetônico, edifício que para a avenida Sete de Setembro e outra para o
se destaca no ambiente devido às suas proporções jardim do Passeio Público15. A existência de um
e formas excepcionais e que possui um conteúdo terreno em condição urbana diferenciada não
simbólico forte 12 , torna-se aqui elemento proporcionou ao edifício uma implantação
fundamental para o nosso estudo. extraordinária.
Na realidade, construir monumentos arquitetônicos Todos estes monumentos apresentam entre si
foi uma das questões das mais importantes para elementos comuns que indicam assim a
os dirigentes da época13. Eles tentavam construir caracterização fragmentada do estilo arquitetônico
a história do presente em base do exemplo da internacional em Salvador. Independentemente da
Terceira República Francesa, para a qual os teoria de composição seguida, suas plantas
monumentos tiveram, como ressaltamos, um papel apresentam um vestíbulo central e suas fachadas,
fundamental na organização de Paris e tripartidas, possuem um coroamento também
evidentemente na sua história. central que tenta sugerir determinada verticalidade
ao conjunto. Pois seus volumes com tímidos recuos
Em Salvador, acompanhando uma prática realizada e avanços apresentam uma forma compacta de
nos grandes centros republicanos brasileiros, predominância horizontal.
edifícios de proporções monumentais foram
construídos pelo governo e pelos grupos sociais Os edifícios monumentais soteropolitanos,
em ascensão no início deste século. Muitos destes concentrados geralmente nos limites do antigo

324
A arquitetura monumental de Salvador no início do século XX

centro, foram edificados em terrenos de pequenas Na realidade, explorou-se a topografia acidentada


dimensões de características coloniais, cujos da cidade, como também as particularidades do
perímetros terminaram condicionando a forma urbanismo colonial, como a irregularidade do
compacta do edifício. No caso do Instituto Histórico traçado das ruas e suas pequenas larguras e o
e Geográfico, construído em um terreno de tipo de praça fechada para a determinação do
perímetro irregular, o lote inclusive condicionou de monumental. Assim, se observarmos que o centro
certa maneira a volumetria do edifício. E quanto colonial teve seus principais monumentos
ao palácio da Aclamação, notamos que sua localizados em pontos estratégicos e altos de sua
determinação formal segue também as topografia acidentada, o mesmo aconteceu no
características dos monumentos coloniais, embora início do século XX, quando também se deu
tenha sido construído nos limites de um grande preferência a este tipo de implantação.
jardim, o Passeio Público.
5. Conclusão
As dimensões dos terrenos dos edifícios
monumentais seguiram neste momento os Concluimos assim que as características urbanas
parâmetros definidos no período colonial, seja por preservadas e valorizadas no momento em questão
uma imposição da cidade existente, seja pela não favoreceram a produção de plenos
continuidade de uma prática tradicional. E repetindo monumentos com base nos sistemas de
também esta prática, eles geralmente ocuparam composição parisiense. Quando a arquitetura
toda a superfície dos terrenos de características burguesa parisiense atingiu uma condição
coloniais, ou seja, testada longa e laterais pouco monumental, os verdadeiros monumentos tomaram
profundas, o que geralmente proporcionou-lhes maiores proporções, ocupando grandes áreas
uma volumetria de predominância horizontal. compatíveis com a trama de largas avenidas da
cidade de Haussmann. Houve assim uma
No que se refere então à situação destes edifícios verdadeira cumplicidade entre a arquitetura e as
no contexto da cidade, notamos que, quando características urbanas de Paris e os edifícios
situados nas avenidas, eles foram implantados na monumentais integraram certamente condições
testada do terreno, como as construções ordinárias. favoráveis para obtenção de perfeitas
Desta maneira, eles constituíram com estas uma composições, sobretudo as empreendidas pelo
espécie de bloco construtivo que acompanhou a sistema Beaux-Arts. Além do mais, estes edifícios
irregularidade do traçado urbano. E nas praças, no foram situados no encontro de largas avenidas, no
caso mais específico da praça do Palácio, no topo centro de espaços abertos e assim passaram a
da colina, eles foram implantados na margem do integrar grandes perspectivas urbanas.
espaço vazio como os monumentos coloniais.
Os monumentos de Salvador, ao contrário, foram
Sendo assim, a posição do edifício na rua colaborou situados em pontos estratégicos de uma topografia
com a sua inscrição em ângulos de vista oblíquos acidentada e em uma trama de ruas estreitas de
determinados pela trama de vias estreitas de traçado irregular, características às quais conjugou-
traçado irregular; e sobre a praça, às margens da se a ênfase da verticalidade, através da utilização
escarpa, no caso da praça do Palácio, explorou-se de elementos arquitetônicos.
as qualidades do local, como a sua altura e os
aspectos naturais e pitorescos do sítio. Além disto, houve o estabelecimento de um
constante diálogo entre a arquitetura e a cidade.
Percebemos assim que a preocupação com a Pois enquanto os planos destes edifícios eram
cenografia urbana, como apontam Ana Fernandes concebidos a partir de certos elementos e conceitos
e Marco Aurélio Gomes observando a implantação do sistema Beaux-Arts ou a partir da doutrina
do teatro São João no início do século XIX 16, racionalista de Viollet-le-Duc, a concepção de
também fez parte das principais realizações fachadas desarticulada da composição dos planos
monumentais do início do século XX. Ligadas a uma demonstra um forte compromisso com os espaços
valorização das características naturais do sítio, a da cidade e sua hierarquia. Através da composição
política urbana que dirigiu a implantação de arquitetônica, estas fachadas foram muitas vezes
monumentos no início deste século situou-os dispostas em uma relação espacial com
consciente ou inconscientemente em pontos importantes áreas urbanas da história colonial. Este
estratégicos e altos da topografia acidentada da fato parece sugerir a transmissão de uma
cidade, ou mesmo em pontos estratégicos de uma mensagem política, econômica ou social: a relação
trama de ruas de traçado irregular. A surpresa e o do momento republicano com o glorioso passado
êxtase seriam os guias desta experiência urbana. colonial, quando Salvador era o maior centro do
país.

325
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

Ao contrário da França, do Rio de Janeiro e de Referências bibliográficas


São Paulo, Salvador não investiu muitos recursos
e esforços em uma produção industrial. No início ARANTES, Otília. O lugar da arquitetura depois
do século XX, sua principal base produtiva ainda dos modernos. São Paulo: Edusp-Nobel, 1993
ancorava-se nas atividades do seu porto, como no BAHIA, Centro de Estudos da Arquitetura na.
período colonial, enquanto os grandes centros Evolução Física de Salvador. Salvador,
mundiais industrializavam-se. Universidade Federal da Bahia, 1980 (séculos XIX
e XX, texto datilografado).
Apesar dos fatores que denotam o aumento de EPRON, Jean-Pierre (dir.) Architecture. Une
riquezas individuais, o gasto e o desenvolvimento Anthologie, Liège : Mardaga, s/d.
de uma vida material com base em produtos FABRIS, Annatereza (org.) Ecletismo na
suntuosos importados, o estado da Bahia como um Arquitetura Brasileira. São Paulo: Nobel-Edusp,
todo não mostrava n época sinais de progresso 1987.
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Moderna: 1850-1920”. Espaço & Debates. 1991,
Movida pela idealização de uma sociedade nos no 34, pp. 92-103.
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colonial. Esta posição não deixava de ser fruto de LOYER, François. “Ornement et Caractère”. In: Le
uma suposta e ilusória necessidade de siècle de l’éclectisme. Lille 1830-1930. Paris/
preenchimento de um vazio: a condição de centro Bruxelas: AAM, 1979.
principal do Brasil colonial. Esta necessidade ________. Le siècle de l’industrie. Paris: Skira,
parece ter obtido espaço, em primeiro plano, para 1983.
que Salvador se mantivesse, sobretudo pelas mãos ________. Paris XIXe siècle. L’immeuble et la rue.
de sua elite, mais uma vez fiel à sua realidade do Paris : Hazan, 1987.
passado. MIGNOT, Claude. L’Architeture au XIXe siècle.
Paris : Editions du Moniteur/ Office du Livre,1983.
Sendo assim, torna-se claro que a criação de PINHEIRO, Heloisa Petti. Europa, França e Bahia:
edifícios monumentais marcados pela arquitetura difusão e adaptação de modelos urbanos (Paris,
européia do século XIX no centro de Salvador Rio e Salvador). Salvador, EDUFBA, 2002.
resultou especialmente da vontade, desvinculada PUPPI, Suely de O. F. A Arquitetura dos Italianos
da sua realidade, de modificar a imagem da cidade em Salvador, 1912-1924. Monumentos de traços
colonial, vontade baseada na idéia de progresso europeus e modernização urbana no início do
que estava em vigor no Brasil entre o final do século século XX. São Paulo:1998. Dissertação
XIX e o início do século XX. Isto mostra de certa apresentada ao Mestrado em Arquitetura e
forma a autonomia arquitetônica. Urbanismo da Fauusp.
Quanto à política urbana colocada em prática na Notas
implantação destes monumentos arquitetônicos,
concluímos que ela é a confirmação de uma · Este artigo foi elaborado em base da dissertação de
tradição, continuidade de certos hábitos espaciais mestrado A Arquitetura dos Italianos em Salvador, 1912-
estabelecidos no passado. Embora estes 1924. Monumentos de traços europeus e modernização
monumentos apresentem diferenças, eles foram urbana no início do século XX defendida pela autora na
Fauusp em 1998.
construídos nos limites do terreno, seguindo o
* Mestre em Estruturas Ambientais Urbanas pela Fauusp,
traçado das ruas, usufruindo da configuração professora de Teoria e História da Arquitetura no Centro
urbana para reafirmar a sua condição de Universitário Filadélfia-Unifil em Londrina-Pr.
monumento. Desta maneira, como os monumentos 1
Ver Heloisa Petti Pinheiro, Europa, França e Bahia:
coloniais, eles foram implantados segundo uma difusão e adaptação de modelos urbanos (Paris, Rio e
perfeita harmonia com as características do sítio. Salvador). Salvador, EDUFBA, 2002.
2
Por outro lado, esta política está incluída no Fraçois Loyer, Paris XIXe siécle. L’Immeuble et la rue,
Paris, Hazan,1987, p.128
contexto da arte urbana que, por volta de 1900 na 3
Citado por François Loyer, Le siècle de l’industrie, Paris,
Europa, ultrapassava a oposição entre o que era Skira, 1983, p. 178.
clássico e pitoresco em relação à arquitetura e aos 4
Id., p. 112
espaços urbanos. 5
Jean-Pierre Epron (dir.), Architecture. Une Anthologie,
Liège, Mardaga, s/d, p. 171. Segundo o autor, a École des
Beaux-Arts passou apenas a ter grande importância a partir
do momento em que houve um confronto das diversas

326
A arquitetura monumental de Salvador no início do século XX

13
idéias dos seus professores, institucionalisando-se assim Evidenciamos nos discursos de J. J. Seabra e nos jornais
o debate arquitetural e autorisando o ecletismo. da época, a preocupação de modernizar, civilizar a cidade
6
Claude Mighot, L’architecture au XIXe siècle, Paris, através da construção de palácios, além das largas
Hazan, 1987, p. 156. avenidas.
7 14
Giovanna Rosso del Brenna, “Ecletismo no Rio de Janeiro Na dissertação de mestrado A arquitetura dos italianos
(séc. XIX-XX)” in: Annatereza Fabris (org.), Eletismo na em Salvador, 1912-1924. Monumentos de traços europeus
Arquitetura Brasileira, São Paulo, Nobel-Edusp, 1987, p, e modernização urbana no início do século XX , defendida
57. pela autora deste artigo na Faculdade de Arquitetura da
8
Ver François Loyer, “Ornement e caractère”. Le siècle de Universidade de São Paulo em 1998, existe um capítulo
l’eclectisme. Lille 1838-1930, Paris/Bruxelas, AAM, 1979, que trata especificamente dos traços da arquitetura Beaux-
pp.65-104. Art nos edifícios monumentais soteropolitanos.
9 15
Ver Albert Ferran, Philosophie de la composition O Passeio Público de Salvador foi construído no início
architecturale, Paris, Editions Vincent Fréal, 1955 do século XIX. Mas durante a criação da avenida Sete de
10
François Loyer, Le Siècle de L’Industrie. Paris, Skira, Setembro sua área foi alterada, uma vez que esta avenida
1983, p. 231. teve trecho construído nos limites internos deste jardim.
11 16
Fraçois Loyer, Paris XIXe siécle. L’Immeuble et la rue, Para maiores detalhes, ver Ana Fernandes e Marco
Paris, Hazan, 1987, p.293. Aurélio A. F. Gomes, “Idealizações Urbanas e a Construção
12
Cf. Otília Arantes, “ Os dois lados da Arquitetura pós- da Salvador moderna: 1850-1920”. Espaços e Debates,
Beaubourg”. O lugar da arquitetura depois dos 1991, n.34, p.99-103.
modernos, São Paulo, Edusp-Nobel, 1993, p. 179.

327
capitulo 7
artes decorativas e repertórios ornamentais

329
É curioso como pouco se sabe sobre a obra de
inúmeros artistas de significativa atividade no Brasil
no século XIX, e o que não dizer sobre muitos
daqueles que atuavam na Corte do Rio de Janeiro
no período. Dentre esses, cito um artista de
formação erudita e de importância inquestionável
no cenário da segunda metade do século XIX na
cidade: Antônio de Pádua e Castro. Segundo
Moreira de Azevedo, 2 Pádua e Castro nasceu em
Magé, no Estado do Rio de Janeiro, em 07/03/1804.
Seus pais, João Francisco Lourenço e Quitéria
Vicenzia da Conceição, trouxeram o filho ainda
criança para a Corte e o conduziram ao Convento
de Santo Antônio, para que recebesse formação
religiosa. O nome Pádua lhe foi acrescentado na
ocasião.

Com a morte dos pais, porém, Pádua e Castro


abandonou o convento, desligando-se da vida
religiosa. Estudou com o artista Brás de Almeida
e, posteriormente, com Francisco de Paula Borges
e Francisco Xavier Soares, escultores e toreutas
que haviam sido discípulos e oficiais de Mestre
Valentim da Fonseca e Silva. 3 Tendo sido iniciado
na arte da escultura, para aprofundar seus
conhecimentos, ingressou na Academia Imperial
das Belas Artes, embora tardiamente ( pois a
entre a academia e as ordens terceiras. antônio Academia, via de regra, recebia rapazes muito
de pádua e castro e o gosto na corte de jovens para ali estudarem). O livro de matrículas
d. pedro ii referente ao período 1833 a 1844 registra a sua
inscrição como aluno da Classe de Escultura de
cybele vidal neto fernandes 1
Ornatos, nos anos de 1839 e 1840, quando tinha
então trinta anos de idade. Assim sendo, Antônio
de Pádua e Castro foi aluno de Marc Ferrez, mestre
francês responsável pela cadeira de Escultura, no
período de 1837 a 1850, tendo como companheiro
Francisco Manuel Chaves Pinheiro, artista que mais
tarde atuaria como professor da AIBA, dominando
quase todo o Segundo Reinado.4

Não encontramos mais nenhuma referência sobre


a formação de Antônio de Pádua e Castro no Brasil
e não há qualquer indício de que tenha viajado para
a Europa. Aceitando-se a hipótese de que tenha
se iniciado na arte da Escultura ainda no Convento
de Santo Antônio (onde encontramos registro de
várias de suas obras da fase inicial de produção) é
certo que procurou aperfeiçoar-se com artistas
atuantes na cidade somente depois de ter deixado
a vida religiosa. Sendo uma pessoa bem formada,
com conhecimentos adquiridos após vários anos
de estudos junto aos religiosos, sem dúvida os
mestres mais confiáveis naquele momento, Pádua
e Castro deve ter concluído que era imprescindível
buscar, junto à Academia Imperial, o
aprofundamento necessário para ser realmente
reconhecido na cidade como um artista bem
formado. Prova disso foi a sua intensa atividade
como arquiteto, escultor e decorador de inúmeras

331
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

igrejas da Corte, com as quais contratou obras de casando-se aos quarenta e sete anos com Firmina
reforma, ampliação e decoração, tendo interferido Joaquina da Silva Castro, com a qual teve uma
até mesmo no prédio da Academia.5 filha e três filhos. Apenas o mais velho ingressou
na Academia e, seguindo os passos do pai, formou-
Desse modo, àquele menino que ficara “órfão, sem se em escultura.8
amparo e sem futuro”, segundo Moreira de
Azevedo, caberia desempenhar um papel de Moreira de Azevedo é o único cronista da época
grande importância no cenário artístico da segunda que nos oferece algumas informações sobre o
metade do século XIX no Rio de Janeiro, não só artista. Segundo o cronista, teria sido Pádua e
como um artista muito atuante, mas também como Castro o autor da reforma do coche imperial para o
professor da Academia Imperial, cargo que assumiu segundo casamento de D. Pedro I, em 1829. Datam
a partir de 1863, aos cinqüenta e nove anos. de 1840 o entalhe das peças ornamentais para o
Naquela época, coube a Pádua e Castro uma vaga nicho ou maquineta do altar de Nossa Senhora das
pleiteada por outro artista, Quirino Antônio Vieira Dores na Igreja da Candelária, assim como os
que, apesar de ter obtido várias premiações, andores para a Procissão de Cinzas da Igreja de
inclusive medalhas de ouro e de prata, tivera o seu São Francisco da Penitência. Foi, porém, na
pedido negado pela congregação, sob a alegação década de 1850, que realizou diversas obras de
de que a Academia estava aguardando “pelo ensejo vulto em igrejas de Ordens Terceiras da cidade:
de aumentar o pessoal do corpo acadêmico com Santa Cruz dos Militares, dos Terceiros do Carmo,
um artista de superior e reconhecido talento”.6 do Santíssimo Sacramento, de São Francisco de
Paula. Em 23/09/1856 ingressou como membro da
Vivendo no centro cultural e político do país, ali Sociedade Propagadora das Belas Artes,
deixou toda a sua alentada obra, que se refere à mantenedora do Liceu de Artes e Ofícios, fundado
reforma e decoração à talha de quatorze igrejas pelo arquiteto Francisco Bittencourt da Silva,
do centro histórico da cidade, cujos arquivos também professor da Academia Imperial das Belas
guardam contratos que confirmam a autenticidade Artes.
do seu trabalho. Na Academia atuou durante
dezoito anos, como professor de Escultura de O convento de Santo Antônio era o local onde
Ornatos, disciplina que fazia parte da formação do tradicionalmente se reunia a intelectualidade da
arquiteto, do escultor e das artes industriais, além época. Ali Pádua e Castro foi educado, durante
de desempenhar várias outras funções nas muitos anos, familiarizando-se com os debates e
inúmeras comissões de que participou. os acontecimentos políticos que abalaram o país
desde o início do século. O artista viveu nesse
Assim sendo, Pádua e Castro dividiu-se em duas ambiente erudito, no qual moldou seu caráter e
áreas de atuação: uma vinculada ao seu mercado firmou os propósitos para o seu futuro. Ali também
de trabalho - trabalhando para as capelas de Ordem estiveram outros artistas e intelectuais, dentre os
Terceira, especialmente, ao restaurar ou completar quais Porto-Alegre que, seja no Brasil ou na França,
a decoração a talha das igrejas iniciadas no século soube tirar o melhor proveito possível dessa
XVIII, mais ligadas à estética setecentistas, ou convivência tão rica e sábia com homens
reformando as fachadas e revestindo com talha respeitáveis, como Frei Francisco de Monte
algumas outras igrejas. A outra forma de atuação Alverne, personalidade de grande influência
refere-se às suas funções como professor da religiosa e política, na época.
Academia, então voltada para a orientação da
estética neoclássica, segundo o modelo introduzido Talvez por essa razão também lhe tenham sido
pelos mestres da Missão Artística Francesa, revisto abertas as portas da Maçonaria, corrente filosófica
por Porto-alegre na Reforma de 1855. É importante de importância considerável no Brasil e em especial
analisar a posição e a obra do artista no Rio de Janeiro, da qual faziam parte inúmeros
comprometido, portanto, com essas duas áreas de intelectuais e homens ilustres. Lançamos aqui a
atuação. hipótese de que o artista fosse membro maçon,
apesar de não termos condições de o provar. O
Na Academia Imperial distinguiu-se, em várias que podemos levantar como argumento, para
ocasiões, como artista e professor que gozava de sustentar essa hipótese, são os elementos
grande respeitabilidade. Em 1865, participando da característicos da Maçonaria que aparecem na
Exposição Geral, recebeu Prêmio de Medalha de composição de um quadro a óleo, pintado por
Ouro e o título de Cavaleiro da Ordem da Rosa. Joaquim da Rocha Fragoso em 1865, em
Era reconhecido como arquiteto, desenhista, homenagem ao artista. O referido quadro foi
escultor, matemático, administrador de obras. 7 localizado por mim e faz parte da galeria de retratos
Como cidadão ,constituiu família já tardiamente, dos irmãos Definidores da Ordem Terceira dos

332
Antônio de Pádua e Castro e o gosto na corte de D. Pedro II

Mínimos de São Francisco de Paula, e encontra- materiais convenientes ao exercício e progresso


se localizado no corredor lateral à nave da igreja, da indústria.
do lado da Epístola.
Do conjunto de obras realizadas por Pádua e Castro
Para não fazer uma análise delongada do referida na cidade, são mais relevantes aquelas ligadas aos
obra, dizemos apenas que ali estão os elementos seguintes contratos: Ordem Terceira do Carmo
característicos do quadro de companheiro de uma (1850 /1865) ; Ordem Terceira de Nossa Senhora
loja maçônica: o piso em xadrez, a luva, as colunas, Mãe dos Homens ( 1852 /1857) ; Igreja da Cruz
o malhete, o cinzel, o compasso. Os demais dos Militares ( 1853) ; Ordem Terceira do
elementos não aparecem com nitidez, mas é certo Santíssimo Sacramento ( 1855 / 1859) ; Ordem
que a representação não se dá na oficina do artista Terceira dos Mínimos de São Francisco de Paula (
nem em uma sala de residência. Por outro lado, 1855 / 1865). Não caberia, num trabalho de síntese,
observamos ainda que, colocados em meio aos a reflexão sobre a obra de Pádua e Castro, em
elementos da talha decorativa que realizou em toda a sua extensão. O que nos interessa, nesse
várias igrejas, pode-se perceber diversos momento, é situar a presença do artista no cenário
elementos que remetem aos símbolos da das artes do século XIX e fazer o inventário de sua
Maçonaria. Podemos supor que Pádua e Castro obra, trazendo algumas notícias sobre a relevância
pertencia realmente à Maçonaria, e isso da mesma como parte do pensamento que
comprovaria mais uma vez a sua boa formação caracterizou a produção artística no Rio de Janeiro
intelectual, aspecto importante para a sua aceitação no Segundo Reinado.
em qualquer loja maçônica, e é esse o ponto que
nos interessa aprofundar. É importante deixar claro que, ao assinar os
contratos de obras, Pádua e Castro enfrentava duas
Antônio de Pádua e Castro deixou uma obra vasta situações distintas: seja restaurando ou
e um percurso respeitável na Academia, onde completando uma decoração a talha já existente,
trabalhou até morrer em 10/11/1881, aos setenta e como nas igrejas de Nossa Senhora Mãe dos
sete anos de idade. O artista é muito pouco Homens, Nossa Senhora da Lapa dos Mercadores,
conhecido pelo público, apesar da alentada obra Ordem Terceira do Carmo, São Francisco de Paula,
que deixou, num período de grandes dentre outras, onde não trabalhava com liberdade,
transformações em nosso país. Quase nunca em relação à obra anterior. Seja trabalhando de
lembrado, foi entretanto homenageado em 1921 modo mais independente, realizando uma obra
por Henrique Bernardelli, Patrono da Escultura, nova a partir do próprio risco, como nas igrejas de
quando o referido artista projetou a colocação de São Francisco Xavier do Engenho Velho, Tijuca, e
vinte e dois medalhões em relevo, pintados em Capela do Imperador, situada no edifício da Santa
afresco, com o busto de artistas nacionais que Casa de Misericórdia.
contribuíram para a evolução das nossas artes.
Esses medalhões foram fixados na fachada do Dentro de sua produção mais significativa, vamos
prédio da Escola Nacional de Belas Artes, atual nos deter sobre a obra que realizou para a igreja
MNBA. O que representa Pádua e Castro, Patrono da Ordem Terceira de São Francisco de Paula. A
da Modelagem, encontra-se na fachada, quase partir desse exemplo poderemos considerar a sua
na extrema direita do edifício, ladeado pelo do posição como artista atuante na cidade e também
escultor Francisco Chaves Pinheiro e do pintor e como artista e professor da Academia Imperial das
ex-diretor da AIBA, Porto-Alegre.9 Belas Artes. Importa reconhecer o seu papel não
só como decorador, mas também como arquiteto,
A Escultura de Ornatos na Academia Imperial das já quer alterou a fachada da igreja e interferiu
Belas Artes só tomou impulso a partir do decreto também no seu espaço interior. Ali é possível
de 14/05/1855, que instituiu a Reforma Pedreira considerar as suas soluções para uma obra em
ou Porto-Alegre.10 Apesar da disciplina já ter sido espaço monumental, a sua relação com a obra de
prevista pelos mestres franceses (1824) a Reforma Mestre Valentim, o seu papel como projetista ou
de 1855 implantou e regulamentou o ensino de riscador, a sua obra frente à crítica oficial da época.
escultura dentro do curso de Arquitetura, mas
direcionada também às necessidades da indústria. A Ordem Terceira dos Mínimos de São Francisco
11
Deveriam ser ensinados escultura e ornatos de de Paula foi instituída no Rio de Janeiro por D.
toda a sorte, a arte da cerâmica, os ornamentos Antônio do Desterro em 11/06/1756, em solenidade
de vasos, modelagem. Aos alunos mais adiantados na igreja da Cruz dos Militares. Em 1757 foi erguida
seria indicada a aprendizagem do entalhe na uma ermida no Largo da Sé Nova, para abrigar a
madeira, pedras, granito, mármores, dentre outros imagem do orago. Em 1759 foi lançada a pedra
fundamental do novo templo, cuja edificação

333
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

prolongou-se até o inicio do século XIX. A nova acesso ao segundo piso. Na parte superior, à frente,
igreja situava-se em uma praça e o seu edifício está o coro; três pares de tribunas se abrem para
deveria dominá-la por suas dimensões, imponência a capela-mor, e o consistório se localiza sobre a
e localização privilegiada. Prova disso é que o sacristia. A decoração interna do templo foi iniciada,
espaço da capela-mor do novo templo ocupou toda segundo os documentos da Ordem, no início do
a área da primitiva capela( que possuía dois altares século XIX. Ali estão registrados contratos com o
laterais, além do altar-mor). A fachada projetada Mestre Valentim, que trabalhou para a igreja entre
com evidente imponência, poderia ser vista de os anos de 1801 e 1813, quando morreu.
diferentes ângulos, e colocava a igreja sobre
elevação de sete níveis acompanhando toda a Mestre Valentim realizou toda a obra da Capela do
extensão da fachada, destacando-a dos prédios Noviciado de Nossa Senhora das Vitórias e apenas
vizinhos. A planta da nova igreja tinha grandes iniciou a decoração a talha do altar-mor da igreja,
dimensões, a exemplo da Igreja dos Terceiros do que seria concluída somente na segunda metade
Carmo, (1752), com grande salão e corredores do século XIX. Somente em 09/07/1855 a Mesa da
laterais, ampla sacristia transversal ao fundo. O Ordem registrava o exame de novos riscos, dessa
conjunto testemunhava a ambição das Ordens vez para a execução da decoração a talha do corpo
Terceiras, naquele período. da igreja. Foi escolhido o projeto do artista italiano
Bragaldi, “que estavam mais de acordo com a obra
Considerando-se a divisão vertical da fachada, da capela-mor”, em detrimento do projeto de
observamos que o corpo central da igreja avança Antônio de Pádua e Castro. Bragaldi era artista
em relação ao plano das torres, limitado por conceituado e estava de passagem pelo Rio de
pilastras colossais em granito. Ali se encontram as Janeiro, certamente em direção à Argentina, onde
três portas do coro. Essas portas foram alteradas realizou várias obras.
por Pádua e Castro por ocasião das grandes
reformas de 1855/1865. Quando o artista realizou No entanto, por ocasião da assinatura do contrato
as obras da nave, onde trabalhou primeiro, para a execução da obra, Bragaldi já não se
observou que a mesma tinha o pé direito muito encontrava no Rio de Janeiro e Pádua e Castro
baixo, inadequado à altura da capela-mor. Assim assumiu a mesma, obrigando-se a ser fiel ao risco
sendo, ao elevar o pé direito da nave, precisou do artista embora, ao longo da sua execução, tenha
elevar também as janelas do coro. As alterações realizado muitas alterações no mesmo. Ainda pelo
maiores da fachada foram feitas nas três portas item décimo do contrato, ficariam pertencendo a
do piso, principalmente na porta central, esculpida Pádua e Castro toda a talha já realizada por Mestre
em mármore português, num tratamento e desenho Valentim, mas ainda não colocada na capela-mor.
bem eruditos, em edícula, com colunas compósitas De forma mais específica, trabalhando na
e frontão triangular. decoração da nave, o artista deveria “fazer seis
altares, pelo gosto já combinado, em capelas
As duas folhas da porta foram entalhadas em fundas, sendo todas forradas com obra de
madeira, num conjunto majestoso capaz de talhaI”.Os antigos altares seriam vendidos
representar toda obra executada na igreja, em juntamente com os púlpitos.
arquitetura e talha pintada e dourada. A porta foi
exposta sob o número sete na Exposição Geral da No entanto, a intervenção de Pádua e Castro na
AIBA de 1865, e conferiu ao artista a premiação igreja seria muito mais ampla, pois o artista
maior concedida pela Academia, O entalhe remete trabalhou durante dez anos cumprindo contratos
à delicadeza do Rococó, na sua elegância, sucessivos, que se referiam tanto à estrutura como
misturados aos elementos clássicos que emanam à decoração igreja. Alterou a fachada, elevou o pé
da solução da edícula ou tabernáculo em mármore. direito da nave, deu maior envergadura ao arco
Tal solução já anuncia a ambigüidade estilístico- cruzeiro, também elevado em função da nova altura
formal do interior do templo, no qual o vocabulário da nave. A capela- mor foi aprofundada, tornando-
clássico se mistura com elementos remanescentes se mais elegante com seis tribunas; o presbitério e
do rococó classicizante tardio, do início do século trono do altar-mor foram elevados, uma clarabóia
XIX. foi aberta sobre o altar( essas alterações foram
observadas em outras obras do artista na cidade).
A plantada igreja tem a forma de um grande O coro e o sub-coro foram decorados com talha e
quadrilátero, no qual a nave central aparece sustentados por uma imensa mísula que caem
ladeada pelos dois corredores laterais, tendo a lateralmente; as esquinas da nave receberam
sacristia ao fundo. Do lado da Epistola, situa-se a quatro portas sob tribunas. O arremate das paredes
Capela do Noviciado de Nossa Senhora das Vitórias laterais foi valorizado com uma grossa cornija
e do lado do Evangelho uma ampla escada dá

334
Antônio de Pádua e Castro e o gosto na corte de D. Pedro II

contínua, que percorre toda a nave, entra na capela- com trono elevadíssimo e elaborado coroamento.
mor e se fecha no arremate do altar principal. Queremos aqui lembrar que Pádua e Castro foi
contratado inicialmente para realizar obras na nave,
Os seis altares laterais ( São João Batista, São nos altares laterais e nos púlpitos. No entanto,
José, Nossa Senhora da Conceição, do lado do terminadas essas obras, o artista considerou que
Evangelho e São Miguel, São Francisco de Sales a capela-mor estava em desarmonia com o corpo
e Nossa Senhora das Dores, do lado da Epístola) da igreja, como o descreve no seguinte documento:
foram abertos em arcadas e flanqueados por
colunas colossais assentadas sobre altos suportes. Saibam que a obra da capela-mor, considerada
O espaço compreendido entre cada altar e a cornija em si só e em separado seja boa e mesmo de
foi preenchido por imensas tarjas com cenas da bom gosto em seu gênero, todavia outro tanto
vida de São Francisco de Paula, sendo seis ao todo. não se pode julgar no seu todo da mesma
12
Os púlpitos, de forma arredondada, valorizam a capela, na sua parte arquitetônica; tomando o
abertura do arco-cruzeiro. São de base circular e ponto de vista conveniente nestes trabalhos,
finamente decorados com talha. Arrematando a parecem as colunas do altar-mor pequenas, a
decoração da nave, uma cartela foi colocada sobre cimalha mesquinha o remate do mesmo altar
o arco cruzeiro, com o tema da apoteose de São quebrado por falta de altura do forro e os anjos
Francisco de Paula, entre anjos e nuvens. Essa do dito arremate fora do equilíbrio natural; as
tarja se harmoniza com as demais cenas alegóricas figuras da Fé e da Esperança mal colocadas e
colocadas na parte superior das ilhargas da nave fora de seus lugares; o trono é mais uma torre
da igreja. 13 Desse modo, Pádua e Castro corrigiu que um trono de igreja... Para ficar a capela-
e deu mais elegância ao arco- cruzeiro, considerado mor mais elegante e majestosa proponho:
pelo artista chato e de mau gosto, sustentado por acrescentar mais dois degraus de mármore ao
colunas ora estreitas ora largas, com pouca presbitério e mais dois de madeira ao
elevação, e em desacordo com a capela-mor. sucedâneo do altar; assim ficará o mesmo altar
mais elevado. Desmanchar todo o altar-mor
A capela-mor foi dividida em três tramos por e assentá-lo de novo no lugar primitivo, que
elementos arquitetônicos muito originais que o é uma parede curva que está dentro,
artista denominou de mísulas-pilastras. Esses encoberta; levantar e acrescentar o forro
elementos são sustentantes complexos, que segundo as dimensões do arco cruzeiro.
conferem grande requinte ao conjunto da capela, Fazer duas tribunas novas, iguais às antigas e
onde plumas, espanholetes, candelabros, mísulas, mais duas mísulas-pilastras forradas de
girassóis e pelicanos, rosas e lírios, anjos pequenos ornatos iguais às que estão feitas; ornar com
ou de corpo inteiro, recobrem as superfícies com ornatos novos e copiados dos antigos para ser
elegância e graciosidade. o segmento dos painéis do forro por cima das
tribunas novas. Criar novo camarim de trono
O altar-mor da igreja é muito original: dois pares com zimbório e clarabóia; reformar o trono
de colunas colossais balizam o altar, com fustes a ficar como deve ser convenientemente.
canelados contínuos, envolvidos por grinaldas de Continuar a linha da altura dos pedestais das
flores que sobem em movimento helicoidal. Assim colunas do corpo da igreja e segundo elas
sendo, não existe embasamento dos suportes, pois aumentar e levar às devidas proporções as
os mesmos nascem no nível do chão e sobem até colunas e mísulas da capela-mor e regular os
ao coroamento, balizando a abertura do camarim seus pedestais por essa mesma linha para que
e sustentando a pesada cornija que percorre toda não pareçam como atualmente estão , uns para
a nave, à direita e à esquerda, e se fecha em curva, cima e outros para baixo ... ( grifos nossos)14
abraçando o imenso camarim. Acima dessa imensa
cornija se destaca o complexo coroamento do altar, A transcrição um tanto longa desse documento se
onde elementos simbólicos e composições justifica para que possamos compreender os
alegóricas contornam o emblema de C haritas, diversos problemas que o artista observara no
num conjunto que se derrama no teto. conjunto da capela. Pelo documento, vimos que
Pádua e Castro propôs profundas modificações,
Pode-se perceber a criação original do artista no tanto na estrutura quanto na decoração da capela,
traçado desse imenso altar, um exemplo raro no para que ficasse à altura da obra já realizada na
Brasil. Todo o conjunto do altar é realmente digno nave da igreja.
dessa grande capela e satisfaz plenamente à
função de apoteose do espaço interior da igreja A A decoração da igreja de São Francisco de Paula,
idéia de monumentalidade é sentida primeiramente como um todo, remete à suntuosidade resultante
no uso das colunas colossais, no imenso camarim de um espaço interior de grandes dimensões,

335
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

combinado com a talha, presente não só nos Notas


altares, como também nas ilhargas, nos púlpitos,
1
nas portas-balcão ( quatro na nave e duas na Autora: Professora Dr.a Cybele Vidal Neto Fernandes.
Instituição: Escola de Belas Artes/UFRJ.
capela-mor) forro do teto, arco-cruzeiro. 2
O tema aqui abordado, Antônio de Pádua e Castro, sua
vida e obra, foi desenvolvido na dissertação do Curso de
A escala monumental da igreja certamente sugeriu
Mestrado da Escola de Belas Artes, cujo título é: A talha
ao artista soluções originais, como o acréscimo das religiosa da segunda metade do século XIX no Rio de
colunas às pilastras. Essas colunas valorizadas Janeiro através de seu artista maior Antônio de Pádua
ainda pela colocação das imagens dos e Castro. Autora, Cybele Vidal Neto Fernandes ( Orientador
Evangelistas, em grande porte, sobre as mesmas, Almir Paredes cunha, defesa em Março de 1991) . O que
enfatizaram soberbamente a divisão da nave em se pretende no presente trabalho é apenas , de modo
três tramos, contrabalançada pelo entablamento sucinto, apresentar o artista e discorrer, de modo breve,
sobre a importância da sua obra na igreja da Ordem
contínuo, muito pronunciado, à romana. No entanto,
Terceira de São Francisco de Paula. Quanto aos dados
poderíamos dizer que a Igreja de São Francisco oferecidos por Moreira de Azevedo, conferir: AZEVEDO,
de Paula apresenta uma talha que utiliza elementos Manoel Duarte Moreira de. O Rio de Janeiro: sua história,
formais do Rococó mas afasta-se das monumentos, homens notáveis, usos e curiosidades. Rio
características de um interior rococó, não só pelas de Janeiro: Livraria Brasiliana Editora, 1969, 2 V, p.318 –
suas grandes dimensões, como também pela 320.
3
monumentalidade de determinados elementos Um levantamento que realizei apontou como escultores/
entalhadores atuantes no Rio de Janeiro no século XIX vinte
ligados ao gosto classicizante. Tais fatores quebram
e nove artistas, dentre os quais vários foram discípulos de
a graciosidade e a leveza de uma decoração Mestre Valentim, que dominou o início do século. Os artistas
plenamente rococó, mas também não permitem citados, Francisco de Paula Borges e Francisco Xavier
que se classifique esse interior como puramente Soares trabalharam na igreja de São Francisco de Paula
clássico. na década de 1830.
4
Sobre aos registros de Pádua e Castro como aluno da
Na verdade, observa-se uma tentativa de Academia, seus professores, sua formação, ver Arquivos
harmonizar duas escolas, resultado que talvez do Museu D. João VI da Escola de Belas Artes/UFRJ.
5
Dentre as diversas Comissões de que participou
possa ser definido como um rococó classicizante,
registramos: 1865, para a escolha de Pensionista do
pois revela a persistência da estética do setecentos Estado; 1866, para a avaliação do gradil do monumento a
numa sábia convivência com o gosto neo-clássico D. Pedro II; 1867, para as obras da Academia; 1868, para
do período, difundido pela Academia Imperial. a avaliação dos envios de Cândido de Almeida Reis; 1870,
Segundo Germain Bazin esse retorno às formulas para a avaliação dos trabalhos da Exposição Geral; 1870,
do século precedente é uma das características para os Exames finais de Matemática e Desenho; 1871,
do Neoclassicismo em vários países 15. Assim, para a apreciação do mausoléu edificado por Bithencourt
da Silva para a Princesa Leopoldina; 1872, para a avaliação
essas inovações atingem primeiro a arquitetura e
do monumento à vitória do Brasil na Guerra do Paraguai,
depois interferem, de modo pleno, no ornamento. no Campo da Aclamação; 1879, para a avaliação dosd
trabalhos da 26.a Exposição Geral.
O Rio de Janeiro, portanto, não é um caso isolado 6
Os arquivos do Museu D. João VI guardam vários
nesse tipo de solução e, como a Bahia, vai documentos relativos à posse e à presença de Pádua e
apresentar primeiramente uma ornamentação de Castro na AIBA. A posse foi efetivada pelo Decreto de 14/
transição neoclássica e, posteriormente, outra já 10/1863 e a Congregação de 19/10/1863 registrou o
completamente evoluída. Assim sendo, podemos ingresso do novo professor de Escultura de Ornatos.
7
dizer que a decoração da igreja de São Francisco As suas credenciais podem ser comprovadas a partir da
sua participação em diversas Comissões, como também
de Paula é uma forma local de convivência de um pelo reconhecimento, por parte da Academia, em relação
Rococó tardio, presente nos interiores das igrejas a diversas obras realizadas na cidade, especialmente na
de Ordem Terceiras, combinado com as soluções Santa Casa de Misericórdia, na igreja de Ordem Terceira
neoclássicas, adequadas sem dúvida, ao ambiente do Sacramento, de São Francisco de Paula, do Carmo.
religioso. Observa-se, portanto, nessa solução, a Ver pasta do artista nos arquivos do Museu D. João VI/
suntuosidade e o requinte necessários a uma igreja UFRJ.
8
de Irmandade Terceira tão poderosa naquele Sobre a sua posição e finanças, ao morrer, o artista
possuía vários bens, de acordo com o seu testamento
momento. O trabalho de Pádua e Castro recebeu localizado no Arquivo Nacional. (conferir: dissertação citada
total aprovação da Academia Imperial das Belas pela autora) .
Artes, pelo qual foi premiado, assim como das 9
Os arquivos do Museu D. João VI guardam , na pasta do
poderosas mesas de irmãos definidores das artista Rodolfo Bernardelli, os desenhos referentes ao
irmandades com as quais assinou inúmeros projeto dos medalhões: 1921 – documento participando que
contratos de obras de arquitetura e decoração. os medalhões já foram colocados e o envio da planta de
situação dos mesmos no edifício da ENBA.

336
Antônio de Pádua e Castro e o gosto na corte de D. Pedro II

10 12
Sobre a Reforma Pedreira ou Porto-Alegre ver Pádua e Castro trabalhou muitas vezes com outros
dissertação já citada pela autora e também vários outros artistas. No caso da igreja de São Francisco de Paula
trabalhos , dentre os quais a tese de Doutoramento: Os podemos citar a participação de Francisco Chaves Pinheiro
caminhos da arte. O ensino artístico na Academia Imperial e de Cândido de Almeida Reis, professor e aluno da AIBA,
das Belas Artes, 1855 – 1890. ( Autora Cybele Vidal Neto artistas atuantes na cidade.
13
Fernandes; Orientador Manoel Luis Salgado Guimarães, Essas tarjas são obras dos escultores Chaves Pinheiro
IFCS/UFRJ, 2001) . e Almeida Reis, que muitas vezes trabalhavam em equipe
11
Sobre o assunto, além dos trabalhos citados, ver também: com Pádua e Castro.
14
MORALES DE LOS RIOS FILHO, Adolfo. O ensino artístico, Conferir Arquivos da Ordem de São Francisco de Paula
subsídios para a sua história. Anais do Terceiro e trabalho citado.
15
Congresso de História Nacional. Rio de Janeiro: IHGB/ Conferir: BAZIN, Germain. Arquitetura religiosa barroca
Imprensa Nacional, 1942, 8.0 volume. no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Record, 1965.

337
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República
Há na historiografia da arte brasileira uma extrema
valorização da Missão Artística Francesa e das
conseqüências de sua ação para a renovação
estética do Brasil no século XIX. Essa ênfase e a
falta de estudos da arte oitocentista nas várias
regiões têm contribuído para um certo descuido
quanto à penetração e maturação do neoclássico
no Brasil através das artes tradicionais, ou seja,
das artes sacras católicas, notadamente a talha, a
azulejaria e a pintura, presentes na ornamentação
dos templos, na ourivesaria e em outras artes
decorativas que integram o complexo artístico
eclesiástico.

O fenômeno foi percebido em pequeno ponto por


Mário Barata em 1983 2, sobretudo na arquitetura.
Com o avanço dos estudos em cidades onde a
penetração neoclássica se deu na transição do
século XVIII para o XIX, como Recife, Belém, o
próprio Rio de Janeiro e Salvador, a percepção
dessa manifestação na Bahia ampliou-se bastante
a ponto de podermos hoje dimensioná-la e
qualificá-la.

Em Salvador e no estado da Bahia a atividade de


entalhadores, pintores e douradores na
ornamentação e re-ornamentação das igrejas
manteve o dinamismo, razão pela qual teremos
o lugar da ornamentação sacra católica na
ainda no século XVIII a presença de tendências
renovação estética do século xix no brasil
neoclássicas, que, se comparados os conjuntos e
luiz alberto ribeiro freire 1 as peças executadas nesse período com alguns,
de uma década atrás, a diferença estilística se faz
notar com muita clareza, denunciando a chegada
de um novo gosto, de uma nova estética.

Bazin observou que

o neoclassicismo na Bahia não se manifestou


na decoração como sendo uma reação. Ele
aparece pouco a pouco, saindo do rococó, ao
qual a princípio se misturou. O espírito novo
se manifestou primeiro na estrutura, antes de
atingir o ornamento que durante bastante tempo
permaneceu fiel ao rendado rococó.3

De fato, basta olharmos para conjuntos


ornamentais ou mesmo para peças retabulares
executadas supostamente no final do século XVIII,
ou nos primeiros anos do século XIX para
percebermos o hibridismo formal determinado por
estruturas “neoclássicas”, ou do barroco derivadas
e ornatos de um rococó bastante simplificado de
inspiração francesa.

Conjuntos ornamentais inteiros que se preservaram


são: o da Igreja de São Pedro dos Clérigos, no
Terreiro de Jesus; o da Igreja do Convento de N.
Sra. da Palma, no Largo da Palma e o da Igreja do
Convento (especialmente sua capela-mor) e da

338
A ornamentação sacra católica na renovação estética do Século XIX no Brasil

Ordem Terceira de N. Sra. do Monte do Carmo, A única obra de talha dos conjuntos mencionados
situadas no topo da Ladeira do Carmo. que sabemos o período da fatura e o nome do
mestre que projetou e liderou a oficina responsável
Infelizmente nenhuma cronologia de obras de talha pelo entalhamento é a da Igreja da Ordem Terceira
da Igreja de São Pedro dos Clérigos e da Igreja de N. Sra. do Monte do Carmo. Os recibos e ajustes
Conventual de N. Sra. do Monte do Carmo pôde assinados pelo mestre José Nunes de Santana
ser reconstituída, nem conhecidos os mestres que datam de 1801, 1802 e 1803, sendo o conjunto
lideraram as oficinas contratadas, por não serem pintado e dourado de 1816 a 1817/1818 pelo
localizados os documentos4. eminente pintor José Teófilo de Jesus9.

Sobre o conjunto ornamental da Igreja do Convento Do ponto de vista estilístico podemos observar,
de N. Sra. da Palma, Bazin sugere o ano de 1785, nestas ornamentações, uma clara tendência à
baseando-se no fato de terem os Agostinhos, depuração ornamental, distinguindo-se dos
ocupantes desse convento, perdido o hospital em modelos barrocos, à simplificação da pompa
1778 por ordem do governador e restituído alguns barroca, o acento do caráter ornamental palaciano
anos depois, tendo o Frei Bento da Trindade parece ter sido transposto para a igreja, a ênfase
mandado reconstruí-lo, assim como a igreja5. nas estruturas retabulares que voltam por vezes a
uma configuração arquitetônica no sentido mais
Maria José Rabelo de Freitas apontou e questionou clássico do termo e a uma participação controlada
a veracidade das inscrições numa lápíde sita à do ornamento, que perdem a alta volumetria
parede esquerda do templo na qual está registrada barroca, e resgatam uma superficialidade e
o período de 1897 a 1898 para a finalização da refinamento, sem contudo se igualar ao caráter
edificação6 . Da referida igreja, afirmou: “plateresco” (cinzeladura da prata e do ouro no
século XVI) da talha maneirista.
A verdade é que a igreja, construída na era de 600
foi reedificada pelos agostinianos, a quem se deve O repertório ornamental altera-se
toda a obra de talha e douramento como o substancialmente, por um lado, os ornatos
assentamento dos dois altares laterais, que advindos da arquitetura da antiga Grécia e Roma,
divergem do estilo dos demais, decoração confiada que nunca foram abandonados pela arte barroca,
ao entalhador e pintor Veríssimo de Souza Freitas, ganham o realce que possuíam na antiguidade
que só a terminou em 17957. clássica e no renascimento
Mais adiante levanta a possibilidade de os altares Esse quadro entretanto, está longe de ser
mais novos, de transição entre o rococó e o homogêneo, ou de guardarem entre si uma
neoclássico, datarem de 1803, quando foi afinidade formal que denote tradição estilística, ao
reformado o altar-mor8. Entretanto a autora não faz contrário, notamos multiplicidade formal e
referência da fonte que lhe informou esse ano para sobretudo policrômica. Se na Igreja do Convento
a reconstrução do altar-mor. do Carmo temos um retábulo-mor inteiramente
dourado, nos terceiros da mesma devoção, ele é
Supomos a partir da própria obra ainda preservada,
branco e dourado e toda a talha de São Pedro dos
que a talha dessa igreja foi realizada em três
Clérigos é em fingimentos de mármores e outras
momentos diferentes, o momento em que foram
pedras, em um colorido alegre contrastando com
construídos os retábulos colaterais, outro em que
os ornatos dourados.
foram realizados os retábulos laterais e os
respectivos painéis pintados (provavelmente na Verificamos pois, que no final do século XVIII havia
segunda metade do séc. XVIII) e o momento em na cidade da Bahia modelos de retábulos híbridos
que o antigo retábulo-mor foi destruído e construído de barroco e rococó e de rococó e neoclássico.
o novo que lá está e que não foi dourado e que
deve ter sido a última obra de talha feita nessa Nesse cenário teremos um caso emblemático,
igreja, sendo muito provável que essa permuta exemplo do contraste de modelos saídos de uma
tenha se dado no século XIX. mesma oficina, e do avanço na conformação de
um modelo neoclássico de retábulo. O entalhador
A cronologia dessa sucessão de obras não é Antônio Rodrigues Mendes (Arcos de Val de Vez -
possível determinar, devido ao desaparecimento Portugal, 1ª metade do séc XVIII – Salvador, 1792),
dos documentos consultados pelos referidos casou-se na Bahia em 1753. Em 1774 realizou um
pesquisadores, resta-nos a única balisa cronológica novo retábulo-mor para a Igreja da Santa Casa de
da lápide. Misericórdia da Bahia, ainda existente, representa
um modelo híbrido de barroco e rococó com o

339
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

arremate em dossel bulboso, emblemático da formulação neoclássica, como o da Igreja da


retabílistica baiana do setecentos10. Dezoito anos Ordem Terceira de São Francisco, outros com forte
depois, em 1792 o mesmo entalhador concebeu permanência das soluções barrocas e do Luis XVI,
um exemplar para a Capela do Santíssimo ou nelas inspiradas13.
Sacramento da antiga Sé, formalmente bem
distante daquele da Santa Casa. O novo modelo Se tomarmos os modelos de algumas localidades
recupera o caráter arquitetônico, enfatizando a européias como parâmetro, sobretudo a Itália, as
estrutura, apega-se a um modelo realizado por estruturas retabilísticas praticadas na Bahia do
Andréa Pozzo no altar-mor da Igreja de S. João e século XIX se identificam com os modelos barrocos,
S. Paulo, em Veneza (1630-1674) entre outros e considerando aí a tendência classicizante de um
divulgado no seu tratado11. determinado barroco italiano. Contudo se
analisarmos a movimentação local das formas, as
Caracteriza esse modelo da Capela do Santíssimo preferências da clientela, entendemos que a partir
da Sé, o arremate em frontão curvo com ressaltos das últimas décadas do século XVIII e por todo o
nos cantos e no centro, colunas de fustes retos e século XIX os entalhadores e pintores, baianos, ou
canelados, ornamentação fina subordinada aos que ai atuaram, inventaram tipos de retábulos
espaços destinados a ela pela arquitetura do bastante diferentes dos seus predecessores.
retábulo, havendo uma mudança radical no
cromatismo, abdicou-se da predominância do Não só nos retábulos de altares, mas em toda a
dourado e da variegada policromia da talha barroca talha desse século existe um caráter neoclássico
e se adotou a bicromia de branco para os fundos e comum decorrente de uma nova moral católica,
dourado para os elementos decorativos, com influenciada pelo iluminismo; pelas novas teorias
marcante predominância do branco. que demandaram novas práticas higiênicas; pela
necessidade de sobrevivência das irmandades e
O novo retábulo da Capela do Santíssimo da Sé ordens terceiras; por uma nova mentalidade e estilo
não foi, entretanto uma obra consecutiva, pois não de vida, com intensificação da vida social e por
houve outras adesões naquele momento, ao uma estética renovada.
contrário, outro modelo de caráter mais decorativo
e representativo do estilo Luis XVI, híbrido de Esse neoclassicismo comum se expressa por
rococó com neoclássico, será realizado na Igreja ambientes mais limpos e depurados. A proibição
dos terceiros do Carmo nos três primeiros anos do dos enterramentos no chão das Igrejas, permitiu a
século XIX. difusão da prática de ladrilhá-los com pedras
mármores em branco e azul, ou branco e preto,
No novo exemplar dos terceiros do Carmo o gosto intercalados; a necessidade de ambientes arejados
pelas estruturas vazadas e pelos ornatos delicados e iluminados pela luz natural, provocou a abertura
e esgarçados é pronunciado, assim como a de óculos na capela-mor, assim como foram
manutenção do predomínio do dourado e da abertas mais duas portas de entrada dos templos,
“rocaille”, afinal uma ordem tão economicamente na fachada, ladeando a única porta existente no
poderosa não se conformaria com o pouco centro, o que melhorou o fluxo de fiéis.
emprego de ouro e a simplicidade do modelo há
poucos anos implantado na Capela do Santíssimo A talha abandonou por completo o ideal de igreja
da Sé. forrada de ouro do Barroco, toda a ornamentação
passou a se limitar às peças, cujas funções
A onda reformadora da talha irá se instaurar na litúrgicas e de segurança sempre foram
Bahia em 1813 com a reforma ornamental da Igreja fundamentais: Retábulos-mores, colaterais e
de N. Sr. Bom Jesus do Bonfim, na qual um novo laterais; púlpitos; tribunas; coro e arremates de
modelo de retábulo-mor será plasmado, o arcos cruzeiros.
arrematado por “cúpula vazada sobre volutas”
12
com importante adesão à estética neoclássica, A diversidade simbólica do barroco: fênix,
mas com forte inspiração do barroco poziano. Esse pelicanos, puttis, aves bicando uva, querubins,
modelo repercutirá em grande escala em Salvador, serafins, atlantes, cariátides, mascarões,
no recôncavo e no sertão baiano sofrendo uma grotescos, foi decididamente banida da talha e do
depuração ornamental em cada re-interpretação, interior das igrejas.
mas nunca perdendo sua marca identitária.
O programa iconográfico pretendido, mas nem
Onze outros modelos de retábulos-mores serão sempre realizado, pois passou a encarecer os
criados com a reforma da talha baiana no projetos, constava da colocação de esculturas a
oitocentos, alguns com estruturas avançadas na todo vulto de alegorias das virtudes teologais, e

340
A ornamentação sacra católica na renovação estética do Século XIX no Brasil

com menor freqüência, as cardeais. Essas alta e dramática volumetria dos motivos decorativos
esculturas foram posicionadas preferencialmente barrocos.
no retábulo-mor, ou na sua base, ou no seu
arremate. Nos retábulos colaterais e laterais a Para finalizarmos esse rol de aspectos distintivos
aparição das virtudes é menor, quando existem, e comuns do neoclássico na talha baiana
posicionam-se na zona do arremate. apontamos para o cromatismo. Nesse âmbito a
reforma ornamental foi ortodoxa em abandonar por
Os motivos ornamentais que predominaram na completo a forte, contrastante e efusiva policromia
talha oitocentista baiana foram os provenientes da barroca, trocando-a por uma bicromia, ou tricromia
arquitetura da Grécia e da Roma antiga (capitéis clara, em que o branco, o azul cerúleo e o creme
compósitos e coríntios, dentículos, ovalos, pontas aparecem em abundância nos fundos.
de folhas de acantos, caneluras, pérolas, gregas,
olivas, guirlandas, festões, etc) e composições de Na talha propriamente o branco, o creme, o
folhas de acanto com fios de pérolas, decrescentes marmorizado claro é mais utilizado nos fundos,
ou não, botões. enquanto que nos forros, o azul celeste aparece
regularmente. Esses fundos valorizam
As composições das grades dos guarda-corpos dos sobremaneira os ornatos dourados.
coros, das tribunas e dos púlpitos, assim como nos
arremates dos arcos cruzeiros a presença de Tal tendência já é verificada no final do século XVIII
composições vazadas em molduras que se no mencionado retábulo da Capela do Santíssimo,
metamorfoseiam em folhagens de acantos é isso se a sua cor original não foi alterada no século
extremamente comum na ornamentação baiana do XIX, pois o exemplar foi destruído com a demolição
século XIX. da antiga Sé, e o que nos resta dele é uma
fotografia em preto e branco, nos sendo impossível
Reservas de molduras com fios de trifólios e florões fazer prospecção da camada pictórica para verificar
povoam os intradorsos de arcos, os pilares e frisos, se havia outra mais antiga, diferente da que
aliás, a multiplicidade de florões clássicos na talha podemos ver hoje na fotografia, sem esquecer dos
baiana é notável. Decididamente os motivos limites da fotografia P&B.
fitomórficos dominam a ornamentação das igrejas
reformadas no século XIX. Conforme verificamos a arte tradicional motivada
pela religiosidade católica não ficou imune às
Outra distinção e elemento comum na talha baiana transformações mentais e estéticas do século XIX
oitocentista é a preferência por retábulos-mores do na Bahia. Essas foram assimiladas e adaptadas
tipo baldaquino, dotados com muitas colunas, mais ao sabor das tradições do gosto local, mantendo o
do que o necessário para sustentar a cúpula. Seis, hibridismo comum a toda talha brasileira e
oito, dez e até doze colunas aparecem em inventando novas formas, somente possível pelo
baldaquinos, como o de N. Sr. do Bonfim, o de diálogo entre o antigo e o novo, mantido por
Santo Antônio Além do Carmo, entre outros. entalhadores decorrentes de sólida formação
Reminiscência talvez de modelos implantados no oficinal no meio baiano e fora dele.
século XVIII, de cujo testemunho mais remoto nos
restou o retábulo-mor da Igreja do Convento de N. O exemplo baiano mostra como a continuidade da
Sra. da Conceição da Lapa, obra de Antônio produção ornamental das igrejas no Brasil pode
Mendes da Silva, realizada em 175514. ter gerado tipologias novas em outras regiões,
ainda mal conhecidas, ou mesmo desconhecidas
É preciso frisar que as colunas utilizadas nos por falta de pesquisa científica. Urge inventariar
retábulos oitocentistas não são mais helicoidais, esse patrimônio e estudá-lo com vistas à identificar
seus fustes são retos, canelados e no máximo tradições e inovações formais; continuidade de
trazem uma marcação no terço inferior, que pode oficinas, implantação de novas oficinas; influências
ser em forma de anel no limite do terço, ou em estrangeiras e das diversas regiões brasileiras;
colocação de delicados ornatos (pérolas, trifólios, trânsito de idéias e circulação de modelos, para
etc.) no interior das caneluras, na área do terço que possamos ter um quadro mais completo da
inferior, intercalada ou continuamente. A marcação renovação estética no Brasil.
dos três terços é mais rara, assim como a do terço
médio. Referências bibliográficas

É preciso ressaltar que todos os ornatos da talha ALVES, Marieta. Convento da Lapa, Salvador:
desse período são realizados com baixa volumetria, Prefeitura do Salvador, 1953, 26 p. il. (Pequeno
sendo, portanto, finos e delicados, contrariando a guia das igrejas da Bahia, 13).

341
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

3
BAZIN, Germain. Arquitetura religiosa barroca no BAZIN, Germain. Arquitetura religiosa barroca no
Brasil. Rio de Janeiro: Record, 1983. 2 v. il. v.1, p. 307. Brasil. Rio de Janeiro: Record, 1983. v. 1, p. 307.
4
FREIRE, Luiz Alberto Ribeiro. A Talha Neoclássica FREIRE, Luiz Alberto Ribeiro. A Talha Neoclássica na
Bahia. Rio de Janeiro: Versal, 2006. p.147-155.
na Bahia. Rio de Janeiro: Versal, 2006. 560 p. il. 5
Id., ibid., p. 306.
FREITAS, Maria José Rabelo de. Pequeno guia 6
FREITAS, Maria José Rabelo de. Pequeno guia das
das igrejas da Bahia, XIX, Igreja de N. S. da igrejas da Bahia, XIX, Igreja de N. S. da Palma. Salvador:
Palma. Salvador: Prefeitura do Salvador, 1964. Prefeitura do Salvador, 1964.
7
MEDEIROS, Maria Beatriz (org.) Arte em Id., ibid., p. 10.
8
pesquisa:especificidades. V. 1, Brasília: ANPAP/ Id., ibid., p. 16.
9
Pós-Graduação em Arte UNB. 454 p. OTT, Carlos. Atividade artística da Ordem Terceira do
Carmo da Cidade do Salvador e da Cachoeira (1640-
OTT, Carlos. Atividade artística da Ordem
1900). Salvador: Secretaria da Cultura e Turismo/Fundação
Terceira do Carmo da Cidade do Salvador e da Cultural, EGBA, 1998. 252 p. il. p. 99-101. (Coleção Selo
Cachoeira (1640-1900). Salvador: Secretaria da Editorial Letras da Bahia, 25)
Cultura e Turismo/Fundação Cultural, EGBA, 1998. 10
Germain Bazin identificou esse arremate emblemático
252 p. il. Coleção Selo Editorial Letras da Bahia, na talha baiana setecentista e o denominou de “dossel
25) piriforme” (BAZIN, op. cit. V. 1. p. 304)
11
ZANINI, Walter. org. História Geral da Arte no Esse assunto foi tratado com maior profundidade no artigo
FREIRE, Luiz Alberto Ribeiro. A Sé da Bahia na reforma
Brasil. São Paulo: Instituto Walther Moreira Sales,
ornamental oitocentista in MEDEIROS, Maria Beatriz (org.)
1983. v. 1. 2v. Arte em pesquisa: especificidades. V. 1, pp.164-171. p.
165-169. 454 p.
Notas 12
FREIRE, Luiz Alberto Ribeiro. A Talha Neoclássica na
Bahia. Rio de Janeiro: Versal, 2006. p. 203
1
Professor de História da Arte Brasileira da Escola de Belas 13
Id., ibid., p. 197-217.
Artes da UFBA/ Doutor em História da Arte/PQII-CNPQ.2 14
ALVES, Marieta. Convento da Lapa, Salvador: Prefeitura
BARATA, Mário. ZANINI, Walter. org. História Geral da do Salvador, 1953, 26 p. il. (Pequeno guia das igrejas da
Arte no Brasil. São Paulo: Instituto Walther Moreira Sales, Bahia, 13). p. 10.
1983. v. 1. p. 381-382.

342
Para podermos ter uma dimensão da importância
da elite cultural no Brasil deste período, devemos
debruçarmos mais pormenorizadamente sobre as
personalidades dos Governadores e dos Vice-Reis
do Rio de Janeiro, nomeadamente D. Luís Soares
Portugal, Marquês do Lavradio, D. Luís de
Vasconcelos e Sousa; D. José Luís de Castro,
Conde de Resende; D. Fernando José de Portugal
e, por último, D. Marcos de Noronha e Brito que,
dedicados aos ideais do absolutismo iluminado e
à cultura do Humanismo, sob os quais foram
educados enquanto membros de uma sociedade
de elite erudita, organizavam-se como um só corpo,
independentemente do país onde se encontravam.

São nobres das mais ilustres linhagens


portuguesas do século XVIII, formados para
servirem, em nome do monarca D. José I, e sob a
orientação e protecção do Primeiro-Ministro
Marquês de Pombal, a sociedade civil que,
desgovernada e inculta, não sabia governar-se a
si própria. Independentemente, do país e do local
onde se encontravam, estes nobres deviam guiar-
se por normas sociais, éticas e morais muito
específicas e do ponto de vista cultural,
competências em domínios que abarcavam a
política, as ciências exactas, a economia, o direito,
formas e ambientes: a explosão do ornamento na a astronomia, a física, a botânica, a biologia, a
época de d. joão vi e de francisco i, imperador da música, as letras, a filosofia e as artes 1.
aústria
Obras como Ricerche sulla scienza dei Governi 2
maria joão nunes de albuquerque ou Il vero dispotismo 3 , incentivam-nos a
implementar estruturas que promoviam a
prosperidade pública e a felicidade do povo 4 .
Influenciados pelo Contrato Social de Jean -
Jacques Rousseau (1762), deveriam possuir uma
forma de lutar contra o clericalismo do poder
absoluto dos antigos regimes, que nunca tiveram
em conta o bem-estar social comum.

A Corte Portuguesa tinha, desde os casamentos


de D. João V com D. Maria Ana de Áustria e de
Sebastião José de Carvalho e Melo com a
Condessa Maria Leonor Ernestina Daun, dama de
honor da Arquiduquesa Maria Teresa de Áustria,
relações de oficiais e privadas muito estreitas com
o Império Austro-Húngaro que se traduziram desde
meados do século XVIII, na forma como, sobretudo
a partir do terramoto de Lisboa de 1755, foram
introduzidas as muitas reformas em Portugal.

Circulando nesses meios políticos mais restritos


da corte, os governadores e vice-reis nomeados
para Angola, Brasil e os outros territórios do Império
Português participavam da sua vida cultural e
artística, que era também, em muitos aspectos a
que se vivia nos grandes centros cosmopolitas
europeus, nomeadamente nas cortes de Frederico
II da Prússia; de Catarina II, na Rússia; de Gustavo

343
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

III da Suécia; de José II, Príncipe dos Estados revelam o cosmopolitismo e as mais privilegiadas
Alemães, de Maria Teresa da Áustria de Leopoldo relações de trabalho ou amizade de todas estas
de Habsburgo e Grão-Duque da Toscana e futuro tramas político-sociais entre estes nobres e com
Imperador da Áustria. O Marquês de Pombal aqueles países6.
implementou uma educação que privilegiava a
relação do indivíduo com o Estado. Em Voltando ao Rio de Janeiro e ao período de
consonância com o que acontecia em Milão, governação como Vice-Rei da colónia, D. Luís
Pádua, Viena e noutras cidades europeias foram Almeida Soares Valadares agia como um
criados, em Portugal, os cargos de mestres em verdadeiro representante do Iluminismo Europeu
Literatura Latina, Retórica, Gramática Grega e e pôs em prática um projecto de acção político-
Língua Hebraica, (1761) tão importantes para a diplomático, militar económico-financeiro, social e
formação do gosto pelo antigo que irá desenvolver artístico-cultural muito próximo dos modelos já
na corte e nos meios sociais mais cultos o gosto trabalhados pelos déspotas esclarecidos já
pelo antigo, o grotesco e a chinoiserie. anteriormente mencionados, cujas teorias também
já circulavam em português. Efectivamente, José
Também no Brasil se assistia a uma rede clientelar Seabra da Silva publica Dedução Analítica,
e familiar que estabelecia redes de comunicação, Cronológica e Analytica, um repositório da teoria
em que se incluia a epistolar, que trabalhavam, da política do Absolutismo Iluminista português,
conjuntamente, para uma política, que na esfera onde faz uma crítica muito acidulada ao
do público, se ligava às linhas programáticas do desempenho da Companhia de Jesus no Império
governo central, mas que na esfera do privado, Português, nomeadamente relativamente ao
fortalecia o poder das famílias desses nobres que estado do Ensino e dos curricula dos colégios e
procuravam a promoção e o poder que lhes tinha universidades.
sido outorgado desde o início dos Descobrimentos
Portugueses na Índia e no Brasil. Efectivamente, Na série “Resenceamento” das suas cartas
quer a família Cunha Menezes5, quer as famílias publicadas7, relativas ao ano de 1769, o Marquês
Ataíde e Mello, Albuquerque ou Noronha, que do Lavradio apresenta um inventário dos engenhos
descendiam da família Gomide Albuquerque de açúcar, de aguardente, número de escravos,
Angeja, faziam parte da elite no Governo do Brasil igrejas do Estado do Rio de Janeiro; manda fazer
Colonial. melhoramentos nas fortificações da cidade, entre
muitas outras medidas tomadas que cumprem
É interessante observar a construção do trama aquele projecto de reestruturação da capital da
administrativa do território português na América colónia. No âmbito deste colóquio e da temática
do Sul: D. Luís Almeida Soares Portugal tinha sido proposta, debruçar-nos-emos, no entanto e apenas,
nomeado Governador da Baía a 4 de Novembro nas reformas do Ensino das Ciências e das Artes
de 1769 com a missão específica de preparar a e sua divulgação, uma vez que as suas decisões e
transferência da capital para o Rio de Janeiro, empreendimento que alicerçaram a base cultural
deixando o Governo da Baía a um parente seu - que D. João VI e a corte portuguesa encontraram
José da Cunha Grã Ataíde e Melo. Outra família à sua chegada ao Rio de Janeiro, apresentando
que foi relevante para esta comunicação é a família primeiro aquelas que se situam no domínio e esfera
Teles da Silva. Fernão Teles da Silva, 2º Conde de do público e tem directamente com o poder central,
Vila Maior foi militar no Brasil, tendo deixado uma seguindo-se depois aquelas que se prendiam com
rede de relações clientelares muito importantes que as acções mais restritas e que tinham que ver com
os filhos, Fernão Teles da Silva, encarregue das o domínio da esfera privada e das relações
negociações do casamento de D. João V e clientelares, parentais e de amizade, e uma
responsável pela embaixada que foi buscar D. demonstração de poder pessoal e erudição.
Maria Ana de Áustria a Portugal e o Conde de
Tarouca, João Gomes da Silva, Embaixador de Após a expulsão dos Jesuítas em 1759, o então
Portugal em Viena durante o reinado de D. João V. Governador do Rio de Janeiro, Conde de Azambuja,
As redes parentais e a esfera de relações fundava, nesse mesmo ano, e para uma elite
mantinham-se entre Manuel Teles da Silva, amigo cultural muito restrita de membros nobres e ilustres
pessoal de Sebastião José de Carvalho e Melo, e ainda enquadrada na estrutura barroca das
após o período em que este tinha sido embaixador academias a dos Selectos, seguindo-se-lhes a
em Viena e do neto, o Conde Frantisek Nostitz- Academia dos Felizes, dos Perfeitos, para só citar
Rieneck de quem falaremos posteriormente. A algumas.
inúmera correspondência oficial e pessoal dispersa
por diferentes bibliotecas brasileiras e europeias Propriedade particular, foi inaugurado em 1679, o
primeiro teatro brasileiro em frente à casa dos

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Ornamento na época de D. João VI e de Francisco I, imperador da Aústria

Governadores. A casa da Ópera do Padre João neste Continente pertencentes aos 3 reinos:
Ventura, também designada pela Ópera dos Vivos, vegetal, animal e mineral [...]11
ficava situada na rua do Jogo, depois rua dos
Andradas8 era um teatro de guignols tão em voga Não é por acaso que esta carta era endereçada a
em toda a Europa do século XVIII, mas ainda D. Pedro de Noronha Moniz e Sousa (1716-1788),
completamente barroca. Este teatro foi destruído nobre que viria a suceder a Marquês de Pombal
por um incêndio em 1769. como Primeiro-Ministro de D. Maria I e que com
ela viajou para o Brasil. D. Pedro e o irmão D.
Por instruções dadas pelo Primeiro-Ministro Henrique de Noronha dedicaram-se especialmente
Marquês de Pombal e na mesma altura em que à ciência botânica, tendo iniciado na década de
reforma o Ensino da Universidade de Coimbra, D. 1750 a estruturação do primeiro jardim botânico
Luís Almeida Soares Portugal foi encarregue de de Lisboa, sob a orientação de Domenico Vandelli.
gerir o Ensino, substituindo o sistema jesuítico. Foi Interessante é o facto este naturalista, professor
instituído o “subsídio literário”, imposto destinado de Química e de Física em Itália, ter ensinado na
a manutenção dos ensinos primário e médio9. Uma universidade Carlos IV de Praga e de ter projectado
das mais importantes acções neste domínio foi a o jardim de Prohonice, domínio privado dos Tarouca
criação da Academia Científica do Rio de Janeiro na Boémia e um dos primeiros jardins botânicos
em 1772 que instalava na própria residência dos da Europa. Este especialista terá feito parte do
Palácio dos Vice-reis onde residia. grupo que D. Luís Almeida Soares Portugal
convidou para vir trabalhar no Rio de Janeiro.
Os conceitos de arte e ciência, o século XVI e já
propostas pela obra Il Cortegiano, de Baltazar Estes nobres iluministas esclarecidos que vinham
Castiglione, estavam particularmente associados na colónia, de Portugal e dos grandes centros
ao conceito de natureza expresso por Kant e Hocke difusores de cultura portugueses são também os
e às ciências exactas e experimentais. Para o dois cientistas italianos, Domenico Vandelli e
naturalista e filósofo oratoriano Teodoro de Almeida: Giovanni della Bella, projectaram o Gabinete de
Curiosidades, futuro Museu de História Natural do
a utilidade das ciências, no âmbito da reforma Rio e um laboratório de Química.
da vida do homem em sociedade, [...]
característico do ideal iluminista; é [...] o A colecção Mayense do Museu de Física da
culminar desse processo [...], no quadro de uma Universidade de Coimbra conservou 10 peças que
aliança entre a teologia natural e a filosofia terão muito possivelmente pertencido ao Gabinete
experimental. Esta “ atitude [...] [assumida] de Curiosidades do Rio de Janeiro, de que
pelos modernos, num novo contexto assinalado destacamos a título de exemplo, o barómetro de
pelo apogeu da física matemática, continua a quadrante, construído em latão, vidro, pau-santo e
perceber o sentido divino das realidades pau-rosa de madeiras que terão sido enviadas por
visíveis, num processo que muito aproxima Constantino Lacerda Botelho Lobo do Brasil para
estes autores do pujante movimento dos Lisboa.
virtuosos [...], onde militaram os grandes vultos
do naturalismo europeu dos séculos [...] XVIII.10 O carro Constantino Botelho de Lacerda12 a partir
da experiência do Marechal General Conde Lippe,
Numa carta endereçada ao 3º Marquês de Angeja nascido na Boémia e militar importante na
a 6 de Março de 1772, D. Luís de Almeida Soares organização da Infantaria austro-húngara da Guerra
Portugal expunha as bases dessa academia de que dos Sete Anos e, posteriormente na de Portugal,
transcrevemos um pequeno excerto: quer na metrópole, quer no Brasil, nomeadamente
no Rio, situações que revelam a partilha entre
[...] vendo eu o pouco caso que na América se saberes entre nobres que são homens do mundo.
fazia das suas preciosidades que não fossem
ouro, ou diamante tendo todo este Estado [...] A partir desta partilha de conhecimentos técnicos
admiráveis plantas e raízes, óleos, bálsamos daquele militar com o novo continente foram
e gomas [...] deixando por esta causa de se descritos e desenhados nos seus livros de
aproveitar mais este ramo de comércio [...] infantaria, cujos uniformes foram criados para os
resolvi-me a fazer um ajuntamento de médicos, soldados, tambores e oficiais do Reino.
cirurgiões, botânicos, farmacêuticos, e alguns
curiosos [...] formando com eles uma O Alvará de 24 de Março de 1764, regulamentava
assembléia, ou academia para se examinarem o uso dos uniformes para o Exército e Marinha,
todas as cousas que se puderem encontrar “dava-lhes um aspecto igual, por Armas (infantaria,
cavalaria, etc.) ou seja o mesmo feitio, sendo os

345
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

regimentos distinguidos uns dos outros pelas cores propaganda e poder na esfera do público. São do
das golas, bandas, canhões das mangas, forros, mesmo período os seis carros alegóricos,
calções e véstias. O Exército do Reino fardaria todo inventados e executados por António Soares
o Exército de Infantaria e Cavalaria de azul ferrete Francisco, de que apresentamos o segundo, que
com excepção para os tambores e pífanos. A representa Júpiter, Deus do Céu e da Luz.17
Marinha vestiria de verde”13.
A nível local, o mestre Valentim da Fonseca e Silva
Na esfera do privado, a sintonia com os países a viver no Rio desde 1770 faz uso dessa mesma
pertencentes ao Sacro Império Romano era gramática erudita. Em frente ao jardim público
evidente, nomeadamente na criação dos mesmos projectou e construiu majestoso chafariz das
espaços de corte eruditos. Em 1776, D. Luís Soares Marrecas, um arco de pedra liós cujo centro era
Portugal mandava edificar o Teatro de Luís Vivos e preenchido por marrecas de bronze. Eco e
de frente ao palácio do Governador. O teatro Narciso 18 as duas figuras mitológicas que se
ocupava: banhavam, cada uma em sua concha de água -
Eco, no seu pedestal, olhava Narciso, Narciso
Dois pavimentos, com janelas de peitoril, na olhava o seu próprio rosto -, metáforas de uma
fachada uma porta e quatro janelas no primeiro sociedade erudita que oscilava entre o passado e
pavimento e cinco no segundo; a face voltada um futuro que traria, com a chegada da corte de D.
para o Largo do Paço apresenta nove janelas Leopoldina os ideais de autodeterminação e
em ambos os pavimentos e, a que dava para a autonomia que se viviam na corte austríaca em
Travessa do Paço tinha no primeiro pavimento Viena e que fariam o seu pai abdicar do título de
oito janelas e uma porta. Imperador do Império Áustro-Húngaro, passando
a governar apenas como Imperador da Áustria.
No interior a sala apresentava duas andares de
camarotes dispostos circularmente estava: Em 1777, o Mestre Valentim Fonseca projectou o
jardim público, e em 1779, inaugurou-se o jardim
iluminado por arandelas e lustres de cristal, zoológico da cidade, também conhecida como
destacando-se à direita, ampla e ornamentada, Casa dos pássaros, obras de urbanismo que D.
a tribuna do Vice-Rei, cujas cortinas, de Luís de Vasconcelos e Sousa recebia do seu
damasco e ouro, eram encimadas pelo escudo antecessor e a que daria prosseguimento19.
real e os dragões de Bragança. Adornado de
vistosas bambinelas, sobressaía no acanhado Um outro exemplo de erudição e cultura a nível
palco um riquíssimo pano de boca, pintado pelo regional é o caso de José Mariano da Conceição
pardo Leandro Joaquim, artista de reputação Xavier. Nascido em S. João del Rei, empreende
célebre e seu principal cenógrafo.14 uma viagem pela floresta do Rio de Janeiro entre
1783 e 1790, e publica a obra Flora Fluminensis20
O excerto parece traduzir os ensinamentos de partindo depois para Lisboa para trabalhar com
François Cuvillès, o introdutor do estilo rocaille em Domenico Vandelli na comitiva de D. Luís Sousa
território Habsburgo15, onde Mozart apresentou, em Menezes, que terminava a sua missão no Rio. A
estreia, a Ópera Idomeneo, em 1781. sua dedicação ao trabalho no jardim botânico da
Ajuda levaram-no a fazer parte dos botânicos da
Ambiente e ornato são próprios desta sociedade
Academia de Ciências de Lisboa que D. Luís
cosmopolita no Brasil definidos em obras como
Almeida Soares Portugal e o Duque de Lafões, D.
Ricerche intorno alla natura dello stile16, publicada
João Carlos de Sousa Ligne, filho do Príncipe
em 1770, para o ideal de homem sensível, com
Carlos José de Ligne, embaixador na corte do
um carácter virtuoso e filantropo. A cultura
Imperador Leopoldo III e de mãe portuguesa
classicista, onde se admira a grandeza das
regressava a Lisboa em 1777, fundaram com a
estátuas e desenhos da mitologia greco-latina
experiência adquirida anteriormente.
retrata-se Na Relação dos Magníficos carros, que
se fizerão de arquitectura, perspectiva e fogos…” Terá também sido Domenico Vandelli21 o autor e
que descreve minuciosamente o cortejo realizado orientador das instruções compostas para a Flora
no Rio de Janeiro a Janeiro a 2 de Fevereiro de fluminensis. Estas expedições foram muito
1786 para festejar o casamento de D. Carlota importantes para a partilha de conhecimentos de
Joaquina com o futuro D. João VI, onde existe uma novos mundos e a criação de ambientes exóticos
colecção de seis desenhos a bico de pena, muito ao gosto da época. Prova deste facto é a
incluídos no manuscrito que reforçam esta ideia pintura decorativa realizada para os quartos
de partilha e de coerência na explosão de imperiais da Arquiduquesa Maria Teresa de Áustria
ornamentos que se utilizaram nos programas de e de José II no Palácio Schonbrunn em Viena,

346
Ornamento na época de D. João VI e de Francisco I, imperador da Aústria

quartos que a princesa Leopoldina terá conhecido, o 1º Engenheiro tenente José Leal Teixeira, realizou
enquanto aí viveu. Pintadas por volta de 1777 pelo quando integrou uma comissão de técnicos, tendo
pintor checo Johann Bergl, a partir de estampas e feito um minucioso relatório sobre a situação, onde
gravuras estrangeiras, estes quartos procuraram incluiu uma série de plantas desenhadas a nanquim
criar a ilusão de se estar num ambiente tropical, e aguarela em papel fino colado sobre cartolina,
ambiente exótico existente também noutros hoje documentos importantes para o estudo da
espaços do palácio, nomeadamente na série de arquitectura militar23.
tapeçarias, com motivos de paisagens brasileiras,
plantas e animais tropicais das colecções da O rei D. João VI procurava manter as suas linhas
América do Sul; no antigo Jardim Botânico (hoje, o de governação nas colónias e de orientação
palmarium), e no zoo de Schönbrunn. relativamente às preferências diplomáticas
seguidas, nomeadamente durante o período de
São do mesmo ano duas cartas do Marquês de ocupação de Portugal pelas tropas napoleónicas,
Angeja sugerem a D. Luís de Sousa Menezes entre 1807 e 1818. As invasões napoleónicas foram
sugerindo que naturalistas acompanhassem os a causa de profundas mudanças no Império-Austro-
matemáticos nas missões de demarcação22. Húngaro e mais particularmente nos reinos da
Boémia, Morávia e Hungria. A Declaração de Pillnitz
O governo de D. Luís de Castro -1790/1801 -, 2º e o Tratado de Aliança entre os Habsburgos e a
Conde de Resende e 5º Vice-Rei do Brasil assumiu Prússia a 7 de Fevereiro de 1792 durou pouco mais
contornos diferentes. A fase da eclosão do espírito de dois meses. Logo após a morte de Leopoldo II
reformista e a penetração dos ideais a Assembleia Constituinte francesa declarava
enciclopedistas foi responsável pelas conjurações guerra a Francisco I, rei da Boémia e da Hungria,
autóctones em vários estados do Brasil. A revolta alterando definitivamente o palco político da Europa
mineira no ano anterior ao da sua chegada, levou- Central absolutista, que se via envolvida nas três
o a temer os intelectuais e a fechar a sociedade alianças contra Napoleão. O Imperador francês
literária, onde a vontade de igualdade e de liberdade julgou poder manter isolada a Grã-Bretanha,
se tinha acendido. Mas tal como nos outros países “querendo conquistar o mar pelo poder na terra” ,
do Centro-Leste Europeu em luta pela mas a 22 de Outubro desse ano, a família real era
autodeterminação dos povos, o bem-estar social transportada em navios sob escolta inglesa para o
era ainda regulado pelo absolutismo esclarecido. Brasil.
A Europa estava em guerra. As obras de
remodelação dos fortes foram outra das Na distância entre estes dois continentes, e as duas
prioridades, tal como a do apoio à reconstrução Europas - a Continental e a Ocidental – há dois
dos edifícios do território dos setes povos das modelos programáticos de concepção do poder
missões do Sul do Território e fronteira com o diferentes que se estruturaram na possibilidade da
Uruguai. construção de um Império, absolutista e dinástico
na nova capital portuguesa do Brasil que se
D. Fernando José de Portugal e Castro, 1º Conde espelhavam nas personalidades e modos de
e 2º Marquês de Aguiar, casado com Luísa Lorena actuação das duas personalidades femininas. A
Teles da Silva teve um período difícil também no Ocidente, a mulher de D. João VI, a Imperatriz D.
Brasil com as leis da abolição da escravatura, que Carlota Joaquina Teresa Caetana de Bourbon e
se tornavam um imperativo no mundo civilizado. Bourbon, representante da linhagem em terras
americanas promovia uma actividade diplomática
As suas meticulosas anotações realizadas sobre entre estes dois países e uma reacção muito acesa.
o Regimento de Infantaria e de Cavalaria e sobre a A América do Sul era, pela primeira vez, vista como
governação da capital da colónia são um uma unidade geopolítica e considerava-se a
documento importante para a recriação da vida no possibilidade de um projecto que elejesse rainha
Rio de Janeiro sobre esse período. D. Marcos de dos territórios do Rio da Prata, incentivando os
Noronha e Brito, 8º Conde dos Arcos, ao contrário primeiros sintomas de emancipação. Ao contrário
dos seus dois antecessores, procurou dar maior do que promovia D. Leopoldina, que defendia a
incentivo às artes e às letras, procurando igualar unidade do território português, D. Carlota Joaquina
Lisboa na construção de novos teatros e na queria para si ou para o seu irmão Fernando VII, o
abertura de novas tipografias que difundissem a trono das províncias espanholas da América. A
notícias que vinham da Europa. Técnicos militares invasão das tropas napoleónicas a prisão da família
foram mandados para examinar as fortificações e real espanhola e a partida da família real
para melhorar o sistema defensivo. Como portuguesa para a colónia goraram, no entanto, os
apontamento poderemos referir o manuscrito que, planos da imperatriz.
em 1810, já depois da chegada da corte em 1808,

347
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

A chegada da comitiva tinha trazido, no entanto, e pequenas; no friso estava escrita a data 1813
a nível cultural e artístico novo folgo à cidade. com caracteres romanos. Havia um terraço ou
Depois das muitas festividades que mantiveram o varanda na frente do edifício que serviu de
programa decorativo ainda muito próximo daqueles palco para importantes pronunciamentos
que tinham sido utilizados anteriormente, o neo- históricos.
classicismo impôs-se na arquitectura das novas
moradas. D. João VI utilizou e reorganizou algumas Identificando-se com o antigo teatro Frantisek
estruturas pontuais deixadas pelos vice-reis, mas Nostitz-Rieneck, (a que já nos referimos, e já Real
traçou um projecto concertado e visionário de uma Teatro dos Estados de Praga, nacionalizado em
nova capital. O resultado mais visível deste período 1798 pelos Estados Checos), a decoração do teatro
de preparação do novo urbanismo do Rio de Janeiro do Rio de Janeiro, de que destaco a pintura do
foi a presença de uma nova classe dirigente que pano de boca onde se via a entrada da esquadra
recorria a técnicos especializados, administradores, portuguesa na baía da Guanabara, conduzindo a
letrados e artistas conceituados nas melhores família real, é apresentado do seguinte modo em
universidades portuguesas e europeias que tinham dias de espectáculo:
vindo com a comitiva. D. Fernando José de Portugal
e Castro fundou a primeira tipografia e publicou o nos dias de gala comparecia toda a família real
jornal Idade do Ouro no Brasil. Para guardar os ao teatro, que se mostrava ornado de sedas,
milhares de livros da Biblioteca Real e das muitas de flores e iluminado com arandelas e lustres.
bibliotecas privadas que lhe foram oferecidas foi Logo que se abriam as cortinas encarnadas
da a Biblioteca Pública do Rio de Janeiro, hoje com franjas de ouro, que fechavam a tribuna,
Biblioteca Nacional do Rio para a qual foi nomeado aparecia o príncipe regente acompanhado de
Luís Joaquim dos Santos Marrocos, por cuja toda a sua família. Os camarotes,
correspondência, recebemos em primeira mão, principalmente os de segunda ordem, eram
muitas notícias que enviava para Lisboa. Algumas ocupados pelos fidalgos, que se apresentavam
cartas escritas ao pai são particularmente com fardas encarnadas bordadas de ouro e
interessantes. A de 22 de Novembro de 1811, cobertas de condecorações, e as damas com
participava a morte de Fr. José Mariano Veloso, altos toucados, onde resplandeciam pérolas e
sendo a sua biblioteca de 2.500 volumes integrada pedras preciosas. Cortinas de seda, ramos,
na Real Biblioteca. grinaldas de flores enfeitavam os camarotes...
Havia dois panos, um talar e outro de boca:
É profuso em informações sobre a remodelação aquele representava a entrada da família real
da Quinta da Bela Vista e a construção do Teatro na barra do Rio de Janeiro, as embarcações e
Real de S. João. Sente-se a animosidade que nutria fortalezas a salvarem e grande quantidade de
pelo Governador e que é notória noutro excerto que botes, canoas e faluas.
apresentaremos de seguida, mas é curiosa a forma
como a história nos é contada em primeira pessoa Destruído por um incêndio a 25 de Março de 1824,
em carta de 28 de Setembro de 1813: “A toda a o Real Teatro de S. João ficou perpetuado por uma
pressa se está aprontando uma casa de Opera no aguarela de Thomas Ender, o pintor austríaco na
sitio de botafogo” e seguidamente “Do novo theatro viagem que fez ao Brasil, inserido na Missão oficial
que vai a abrir-se no dia 12 de Outubro, e que tem chefiada pelo Barão de Langsdorff, e onde se
sido feito à imitação e grandesa de S. Carlos, a encontravam também Johann Von Spix e Carl Von
troco de despesas incríveis, queria Marcos ser Martius, dois dos maiores pesquisadores da fauna
dispotico director com 2.000$000 e alem de e flora brasileira.
benefícios o melhor Camarote da bocca”.
A princesa Leopoldina Josefa Carolina de
Por Alvará de 28 de Maio de 1810, o projecto do Habsburgo, cuja entrada, a 6 de Novembro de
Engenheiro Marechal do Campo João Manuel da 1817, foi retratada no leque que aqui incluímos, e
Silva construiu em terreno pantanoso que que terá sido usado em alguns dos eventos sociais,
pertencera a D. Beatriz Ana de Vasconcelos e nomeadamente no teatro. Este leque comemorativo
adquirido por Fernando José de Almeida, e perto do casamento de D. Pedro com a princesa e, no
do Largo de São Francisco de Paula, o teatro mais verso, um pássaro e várias flores do Brasil, foi
importante do Rio de Janeiro desse período que copiado de uma pintura de Jean-Baptiste Debret.
Henrique Marinho descreve do seguinte modo: Fabricado em papel pintado a guache, com varetas
esculpidas e gravadas, este leque representa uma
Na frente o theatro tinha apenas um único completa mudança de gosto, pautado pelo domínio
andar, havendo porém, sobre as três janelas francês e sentida no Rio após a chegada da Missão
do centro, outras três de peitoril muito Artística Francesa ao Rio de Janeiro (1816), que,

348
Ornamento na época de D. João VI e de Francisco I, imperador da Aústria

chefiada por Le Breton, sobressaem os pintores Referências bibliográficas


Nicolas-Antoine Taunay, Félix-Émile o escultor
Auguste Taunay e Jean-Baptiste foi trazida com o Manuscritos
patrocínio de d. João VI para preparar a chegada
da princesa. Arquivo nacional Torre do Tombo: Colecção
Pombalina
D. Leopoldina partiu da capital do Sacro Império Biblioteca do Palácio da Ajuda: Ms. 279 – 1867
Romano e foi viver para a Quinta da Boavista, 4876 IA
residência de D. João VI, numa altura em que a Biblioteca Nacional de Lisboa: Arquivo Tarouca
nova política do auto-determinismo e dos Colecção Pombalina: Biblioteca Nacional do Rio
nacionalismos se consolidava na velha Europa de Janeiro
Central, de quem a princesa bebia na fonte. Esta Fundo Marquês do Lavradio: Brasiliana
princesa teria uma grande influência na
proclamação do Rio a sede de governação (1815), Publicações
tendo encorajado as aspirações de unidade que
ALENCAR, Miriam. O Novo estilo de um teatro
existiam nas províncias meridionais, especialmente
velho, Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 11 de Maio
em São Paulo. A sua educação, no entanto, estaria
de 1979
marcada pela sociedade e valores setecentistas:
ANGEJA, Marquês de. Duas cartas …, Jornal de
D. Leopoldina viveu acompanhada por numerosos
Coimbra, XIII (1), Lisboa,1818, pp. 47-50
cientistas, botânicos e pintores, dedicada ao estudo
AZEVEDO , M. D. Moreira de. O Rio de Janeiro;
da botânica e mineralogia que tinha iniciado em
sua história, monumentos, homens notáveis,
Schönbrunn e que não esquecera. Com efeito, em
usos e curiosidades, Rio de Janeiro, Liv.
1818 enviou para o pai, já Imperador Francisco I
Brasiliana Ed, 1963
de Áustria, a primeira remessa de animais,
BIFFI, Giambatttista. Ricerche intorno alla natura
vegetais, e outros objectos etnográficos,
dello stile. Milão, 1770
acondicionados em 36 caixas de porão, que fundou,
CALLADO, António. Jornal do Brasil, Rio de
num palácio do centro da cidade o Brasilium, o
Janeiro, 10/2/90
primeiro museu brasileiro de Viena, convertido em
CALAFATE, Pedro. Ciência em Portugal: História
Museu Nacional de Belas Artes, diminuído o
do Pensamento Filosófico Português, Círculo dos
interesse do Imperador pelo mesmo depois da
Leitores, Lisboa, 1999
morte da princesa em 1835.
CRULS, Gastão. Aparência do Rio de Janeiro...,
Entretanto, em Lisboa a situação também se tinha Livraria j. Olympo, Rio de Janeiro,1952
modificado., Ressentida e prejudicada pela GORANI, Giuseppe. Ricerche sulla scienza dei
assinatura do decreto de Abertura dos Portos às Governi Milão, 1759
nações Unidas, já em 1808, a grave situação IDEM . Il vero despotismo, Génova, 1768
económica vivida em território europeu português, LOBO, Constantino Botelho de Lacerda. Memória
a após a derrota de Napoleão, a Revolução da sobre os defeitos, que tem os nossos carros de
classe burguesa e mercantil no Porto, a 24 de transportes militares; modo de os diminuir e
Agosto de 1820, chamaria D. João VI a Portugal additamento ao da invenção de Boulard, Jornal de
em Fevereiro de 1821, tendo a corte regressado a Coimbra, 1812
Lisboa a 26 de Abril de 1821. Pelas razões MENDONÇA, Isabel Mayer Godinho. Festas e arte
expostas, previa-se a continuação dos movimentos efémera em honra da família real portuguesa
intelectuais para que levariam à independência do no Brasil Colonial, Arte Efémera em Portugal,
território, concretizada a 7 de Setembro de 1822, Museu Calouste Gulbenkian, 2001
iniciada nas margens do rio Ipiranga, na região de MOLLERET, André. Documenti per la istoria
S. Paulo, durante a regência de D. Pedro. dell’illuminismo a Genova, Genova, 1958
MORAIS FILHO, Alexandre José de Melo. Factos
Terminaria assim o período político e social e memórias... Rio de Janeiro, H. Garnier, 1904.
marcado pelos ideais de uma Europa absolutista VERRI, Paolo. Meditazioni sulla felicità, Livorno,
que sonhou com um grande Império. Do ponto de 1763
vista cultural e artístico fechar-se-ia um ciclo que ________. Discorso sulla felicita , Génova, 1781.
consagrava os cânones estéticos e filosóficos de RODRIGUES, Manuel A. Ribeiro. Os Uniformes do
uma urbanidade cosmopolita que se difundiu e conde de Lippe, 1764-1806, Miniaturas e Figurinos
fundiu pelos diferentes continentes. Militares. Disponível em: www.viriatus.com
VANDELLI, Domenico. Memórias sobre as Minas
de ouro e de Diamantes do Brasil, Anais da BNRJ,
Rio de Janeiro, 1898

349
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

8
VELOSO, José Conceição Mariano. Florœ CRULS, Rio de Janeiro, 11 de Maio de 1979: a indicação
Fluminensis Icones fundamentales ad vivum que esta investigadora dá e de que o teatro se situava
expressœ jussu illustrissimi ac prœstantissimi na“Rua do Fogo - também chamado Caminho Prás
Pedreiras, no Largo do Capim. A Rua do Fogo é hoje Rua
domini Aloysii Vasconcellos & Sousa, a
dos Andradas. O local desapareceu com a abertura da Av.
sacratioribus conciliis S. Magestatis, totius ditionis Presidente Vargas”.
Brasiliœ mari terraque Prœtoris generalis, ac Pro- 9
Azevedo, Rio de Janeiro, 1963, p. 599
Regis IV Fluminensis &c. ,1790, Edições em 1825- 10
Calafate, Lisboa, 1999,
11
1827 e 1832 Marquês do Lavradio. Cartas do Rio de Janeiro..., carta
355, p. 96-97
12
Notas Lobo, 1812, vol I, p. 329
13
Rodrigues, www.viriatus.com
14
1
Molleret, 1958, p. 189 e segs. Les hommes de lettres sont Azevedo , M. D. Moreira de, 1963, Morais Filho, Morais,
hommes cosmopolites et de toutes les nations. Alexandre José de Melo. Factos e memórias... Rio de
2
Gorani, Livorno, 1759 Janeiro, H. Garnier, 1904.
15
3
Gorani, Génova, 1768 Teatro da residência do Eleitor da Baviera, Maximiliano
4
Verri, Milão,1763, Verri, Genova 1781, período que José III
16
corresponderá aos Governos de D. Luís de Castro, Conde Biffi, Giambatttista, Ricerche intorno alla natura dello stile,
de Resende (1790 a 1801); de D. José Fernandes de Milão, 1770.
17
Portugal e Castro (1801 a 1806); e ainda de Marcos Mendonça, 2001, pp. 301-328.
18
Noronha e Brito, Conde de Arcos.(1806 a 1808). A reedição Callado, Rio de Janeiro, 10/2/90
19
da obra revela a actualidade que os ideais do absolutismo Mestre Valentim Fonseca e Silva entrega o projecto do
esclarecido mantém na Europa do Sacro.Império Romano. Recolhimento da Nossa Senhora do Parto a D. Luís de
5
“A família Cunha Menezes ocupou a governança de Vasconcelos e Sousa, João Francisco Muzzi, 1789
20
importantes capitanias da segunda metade do século XVIII. Veloso, 1790. Impressa em 1825-1827 e 1832.
21
Francisco da Cunha Menezes foi governador de São Paulo, Brasiliana, BNRJ, p. 58 Vandelli é também autor de
de 1782 a 1786, vice.rei da Índia de 1786 1 1794 e da Memórias sobre as Minas de ouro e de Diamantes do
Baía, de 1802 a 1805 Brasil, Anais da BNRJ, Rio de Janeiro, 1898.
22
6
BNL- Arquivo Tarouca, Colecção Pombalina; BNRJ – Marquês de Angeja, Lisboa,1818, pp. 47-50
23
Fundo Marquês do Lavradio; ANTT- Colecção Pombalina BNA, Lisboa, Ms. 279 – 1867 4876 IA
7
Fundo Marques do Lavradio, Inventário, Rio de Janeiro,
Arquivo Nacional, 1999

350
Muito se falou de quem fez uma obra de arte, para
quem foi feita e os possíveis porquês, do seu estilo,
das suas técnicas, dos seus contextos (sociais,
políticos, econômicos), entre outras abordagens.
Se hoje as grandes obras apresentadas pela
história da arte estão, não por acaso, encerradas
em museus, fincadas em paredes que se
pretendem ‘neutras’, nem sempre foi assim.
Parece que todas as obras dignas de serem
chamadas obras de arte foram naturalizadas pelos
museus.

Se tomarmos o sentido de naturalização como o


“ato pelo qual um indivíduo se torna cidadão de
um país em que não nasceu, perdendo sua
nacionalidade de origem” (HOUAISS, 2001: 1998),
a obra que foi musealizada assumiria outra
naturalidade e perderia a sua identidade local
original. O local de onde a obra partiu é substituído,
então, anulando a procedência: do ateliê, do
palácio, da casa ou da galeria. O lugar para onde o
quadro foi idealizado passou a conviver com um
vazio – a falta do quadro. E cada novo lugar abriu
espaço para abrigar a obra e a re-contextualizou.

De certo que tal interpretação não é válida para


todas as obras, pois muitas foram idealmente
pensadas para museusTambém não é o caso da
ambientes interiores e o ideal decorativo - em
perda de origem merecer postura de total
busca de lugares para a arte
desconsideração do lugar natural da obra, ou seja,
marize malta * de onde ela foi proveniente ou para onde foi
idealizada. Mesmo que alguém se naturalize, não
se despe de sua origem, não se livra de suas
marcas natais. Elas permanecem enraizadas,
apesar de propensas a se somarem a outros
registros ganhos em novo lugar ou estarem
intencionalmente encobertas pelos artifícios do
novo contexto.

Naturalização também pode ser entendida como


“adaptação bem-sucedida de uma espécie a uma
nova região, resultando em seu estabelecimento e
propagação, sem a intervenção do homem” (Id.,
2001: 1998). Tal sentido leva a idéia de que o
museu naturalizou o lugar da obra. A naturalidade
da obra, tomando a palavra como identificadora do
local de nascimento, ficou ilusoriamente
identificada com o museu, que posiciona as obras
em novo território. A obra também mudou de
locação, adotando posição completamente
diferente daquela que originalmente se encontrava.
A localização da obra define e especifica uma
posição espacial que interfere na observação da
obra e nos significados atribuídos a ela.

Entretanto, diferente dos afrescos, que não


possuem a mobilidade das telas de cavalete, o
quadro tem a possibilidade de adquirir vários
domicílios e assumir outras naturalidades. Sendo
assim, devem-se considerar os vários lugares da
351
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

obra no seu processo de significação (Cf., Com seria, então, olhar para a arte oitocentista
LEPPERT: 12), pois em cada espaço que a abrigou, finessecular de dentro das casas que a acolhiam?
cada obra assumiu posições específicas que Entremos e vejamos...
permitiram alguns pontos de vista e modelaram
certas expectativas visuais, dirigindo o modo como A decoração doméstica oitocentista, especialmente
se fez visível. aquela de fins do século, identificada como de
ordem eclética, trouxe novas questões sobre o lugar
O que nos interessa aqui é chamar a atenção para da arte. Aquilo que era próprio do banal e cotidiano
os lugares dos quadros que não sejam museus e oferecia novos horizontes e novas superfícies para
dos olhares sobre as obras que não considerem a arte. O lugar da intimidade abria-se para o prazer
exclusivamente sua posição em museus, galerias visual. Nele seriam depositados atrativos para o
privadas, exposições públicas, locais normalmente olhar e deleite para o espírito. Como se dizia em
tomados como próprios para trabalhos de arte. fins do século XIX: “É necessario que o logar em
Falamos de outros locais em que obras de arte que se vive a maior parte da existencia contenha
estiveram presentes, nos interiores domésticos, por elementos de prazer, que dê á vista a idéia do bello
exemplo, onde muitas telas foram destinadas e que sob todas as suas formas” (SYLVINIO JUNIOR:
pouco têm participado na composição da 133). O lar assumia o lugar de guia visual e os
historiografia da arte. E se falamos em interiores olhares se voltavam para ele. As imagens de arte
domésticos, a preocupação decorativa entra no sobrepunham-se às paredes e se expunham aos
contexto e permite reposicionar a arte como olhos de todos (os convivas).
elemento decorativo.
A decoração adequada, ordenada e asseada não
As questões ligadas ao decorativo, sob seus vários só embelezava o lar mas era garantia de bem-estar
aspectos, estiveram em destaque a partir do século familiar. Fixava-se quase como uma obrigação
XIX, inclusive aquelas relacionadas à decoração saber tornar os ambientes domésticos agradáveis,
de interiores doméstica. Muito provavelmente por onde a família encontrasse um lugar ideal para o
esse motivo pouco têm dialogado com os estudos descanso e lá descobrisse a felicidade (a partir do
referentes à arte, raramente afeitos a coisas visual). Diversos manuais foram editados para
menores ou a coisas de-coração1. A significativa orientar o interesse expandido pelo decorativo nas
produção em torno do decorativo propiciou uma casas, guiando escolhas e locações de
nova maneira de olhar para as coisas, cuja revestimentos, móveis, estampas, cores, objetos.
localização, posição e arranjo das imagens A maioria das publicações sobre o assunto que
intramuros trouxeram outros sentidos para a chegou ao Rio de Janeiro data de fins do século
produção artística. XIX em diante. Muitos desses guias integraram
bibliotecas institucionais e particulares,
Desejamos inserir a problemática da dimensão disseminando suas idéias por meio dos discursos
decorativa nos debates sobre a arte brasileira de seus textos e das imagens que veiculavam.
oitocentista, apresentando algumas reflexões sobre Também serviram de referência para os manuais
o processo de decoração das casas e as questões de economia doméstica editados no Brasil, visto
referentes à localização dos objetos de arte nos que a decoração de interiores era assunto
ambientes domésticos e as implicações que esse integrante da “arte de dirigir e regular
procedimento trouxe para um novo olhar. economicamente as cousas de casa”
Partiremos da análise das orientações dos (FERREIRA:1).
principais manuais para a decoração do lar de fins
do século XIX e início do XX que, como seus títulos O lar tornava-se lugar privilegiado para a educação
sugeriam, apontavam para o desejo de introduzir do olhar para a arte – um olhar decorativo. Diferente
arte dentro das casas. Títulos como L’art dans la do olhar estético aflorado em visitas a galerias,
maison, de Henry Havard; L’arte in famiglia, de salões de arte, museus, o olhar para a arte dentro
Alfredo Melani, The house beautiful and useful, de de casa demandava outra postura. A arte porta
Elder-Duncan, The house in good taste, de Elsie adentro, a arte da domesticidade, apontava para
de Wolfe, e The art of the house, de Rosamund um olhar diferenciado – o olhar decorativo. A partir
Watson, atestam o quanto a arte, beleza e bom da leitura dos manuais podemos observar a crença
gosto eram valores a serem destacados nos na influência benéfica que entornos aprazíveis
ambientes das casas aburguesadas, envoltas por poderiam atuar nas pessoas. Eles falam das
uma infinidade de revestimentos e objetos com motivações para decorar. Ao escolher objetos,
suas múltiplas formas, cores e texturas. cores e texturas, atuava-se como um educador do
olhar, ao dispô-los artisticamente nos ambientes,

352
Ambientes interiores e o ideal decorativo

aprimorando o gosto daqueles que iriam conviver outra e deveria estar de acordo com a atmosfera
com lugares decorados. geral do cômodo. Portanto, seleção e disposição
eram aspectos primordiais para elaborar uma
A decoração dependia de um conjunto de vários decoração (ELDER-DUNCAN: 24). A pintura, como
elementos que se relacionavam: “[...] house elemento decorativo, deveria se conformar ao
decoration implies an organic scheme of colour, esquema expressivo escolhido para o cômodo que
form and proportion, to bring all the parts and iria abrigá-la e, assim, a tela se submetia aos
appoitments of a room into harmonious relation with desígnios decorativos.
each order” (ELDER-DUNCAN:19).
Constantemente encontramos advertências para se As recomendações seguiam, de início, uma
evitar discrepâncias. Cada cômodo teria uma tipologia que guiava o arranjo final da decoração,
decoração que harmonizasse com sua finalidade, uma espécie de decoro, que estabelecia o que seria
fosse coerente com o restante da casa e mais apropriado para cada tipo de cômodo, tipo de
apresentasse certa atmosfera peculiar. A casa (pequena, média ou grande), para cada
decoração, por conseguinte, partiria de uma idéia padrão de vida familiar (menos ou mais modesto).
de expressão e de personalidade. Cada ambiente ofereceria distrações aos olhos com
a distribuição de belos objetos em lugares precisos
Em Noções da vida doméstica, Félix Ferreira ou prováveis, sem que houvesse excessos. Com
apresentava a fórmula para interpretar a aparência as campanhas sanitaristas alargando seus
da decoração de interiores: postulados higienistas pelos interiores domésticos,
alguns manuais mais ortodoxos recomendavam,
A boa ordem reina em casa e dá ideia da em prol da saúde, até evitar quadros nas paredes,
economia que a governa quando ao primeiro em virtude de acumularem poeira e micróbios
lanço d’olhos reconhecem-se os habitos (MOLL-WEISS: 126). Exageros à parte, os quadros
laboriosos e caseiros daquelles que a habitam, eram cada vez mais requisitados nas decorações,
e isto se manifesta claramente pelo arranjo dos mesmo que demandassem limpezas periódicas.
moveis, dos adornos, pelo aceio e cuidado com Além de seus atributos estéticos, podiam servir
que estão dispostos. para repousar os olhos e fazer esquecer, por um
Se a confusão reina por toda a parte, se as instante, a vida real.
etagéres e dunquerques estão pesados de
objectos inuteis, se os livros amontoam-se nas Os quadros, como outros objetos de arte, cumpriam
cadeiras e as musicas sobre o piano, é que a variados papéis: entreter os convidados, tornar sua
prodigialidade e a desordem predominam estada agradável, oferecer cordialidades visuais,
nesse lar. (FERREIRA: 170-171) contribuir para expressar o gosto da família que
possuía tais peças e educar olhos inexperientes.
A decoração porta adentro inaugurava mais um Para isso, recomendava-se que as boas peças de
código para leitura das aparências. Além de formas arte devessem ser procuradas no ambiente e nunca
vestimentares e modos de se comportar em se impor ao olhar (HAVARD: 382). Elas não
público, as maneiras de preencher as casas com estariam em destaque, mas acomodadas de tal
objetos concorriam para intensificar as normas modo que parecessem naturais ao ambiente, parte
disciplinares sobre modos de ver e reconhecer a indispensável da organicidade do cômodo. Mesmo
personalidade dos outros que, nem em casa, assim, as obras eram para serem notadas e até
escapavam de estar sendo avaliados. As regras admiradas. Os quadros disputavam, desse modo,
para decoração criavam indicadores precisos para interesse tanto de olhos alheios ao ambiente quanto
se reconhecer com segurança o caráter das dos olhos caseiros: “Ornamentem as paredes e
pessoas e suas personalidades, assumindo, a terão uma nobre officina ad home, logar de honra
imagem decorativa, o papel de símbolo psicológico e trabalho, ensinando aos estranhos como as
(cf., SENNET: passim). asperezas da vida são amenizadas pela
intelligencia e pelo amor ao lar”. (SYLVINIO
A grande dificuldade e, segundo os guias, os piores
JUNIOR: 47)
resultados estavam na combinação dos padrões
que envolviam cores, estampas, materiais Nas casas ideais (familiares e burguesas) cada tipo
diferentes. Quando se acomodavam tapeçaria, de pintura parecia ter destino certo: pinturas a óleo
tapete, carpete, tecidos e papel de parede em um na sala de jantar, gravuras ou aquarelas na sala
mesmo cômodo havia que se pensar no efeito que de visitas (ELDER-DUNCAN: 152). Nas salas de
cada peça exerceria sobre a outra e nos móveis e jantar, por volta de meados do século XIX, davam-
demais objetos que estivessem presentes. se preferências aos vermelhos e verdes nas
Nenhuma peça chamaria mais atenção do que paredes porque, segundo se acreditava, melhor

353
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

combinavam com as molduras douradas dos exemplo, era comum sugerir uso de pequenos
quadros. Nessa situação, a moldura da obra dirigia quadros ladeando as camas, geralmente sobre as
a decoração e a cor do ambiente era escolhida em mesas de cabeceiras. Sobre uma secretária ou
função de melhor destacar os limites das telas, e cômoda-toilette também era comum dispor
por conseqüência, os quadros. paisagens emolduradas, nem sempre totalmente
desimpedidas para visualização, visto que jarros
Nos vestíbulos, nada de quadros elaborados, que de flores, castiçais ou pequenas estatuetas
precisariam de boa luminosidade para poderem ser poderiam estar à frente do quadro, mostrando que
devidamente apreciados. Deveriam, contudo, ser a imagem retratada não deveria estar sempre em
agradáveis aos olhos: “Let the picture be of a destaque. Em alguns arranjos de sala, móveis,
decorative rather than a pictorial character” como biombos, por exemplo, poderiam interferir na
(ELDER-DUNCAN: 140). Era considerado exemplo visualização dos quadros, ficar à sua frente,
de generosidade oferecer um ambiente cercado de colocando-os na posição de fundo decorativo.
beleza para que tornasse menos penosa a espera,
normalmente ocorrida nos vestíbulos. Em finais Não só paredes serviam de anteparo para quadros.
do século XIX, sugeria-se uso de gravuras, Eles eram submetidos a várias situações: sobre
preferencialmente japonesas, com temas frugais. mesas, apoiados em pequenos suportes; sobre
frisos ou prateleiras, escorados às paredes;
Para as salas de jantar, prescrevia-se comedimento assentados em cadeiras, pousados em seus
e uso de poucos atrativos às paredes para que os braços; isolados em destaque, apostos em
comensais pudessem se concentrar nos prazeres cavaletes. A prática decorativa encontrava outros
à mesa. Quadros muito enigmáticos deveriam ser lugares para locar os quadros, oferecendo distintos
evitados e até atrapalhariam a digestão. Os temas pontos de vista para observá-los e relativizando a
careciam ser simples e de fácil compreensão, parede como seu lugar ‘natural’.
priorizando-se as naturezas-mortas e paisagens
(HAVARD: 335; MELANI: 61). Para casas mais Dos manuais, as orientações para a decoração
modestas, Gonzaga Duque, sob pseudônimo de ganharam espaço nos periódicos, ampliando suas
Sylvinio Junior, recomendava gravuras para as repercussões. Mesmo resumidamente, os
salas de jantar e quartos de dormir, nesses termos: conselhos para a decoração do lar disseminavam
preceitos dos manuais, por vezes atualizando-os
[...] aconselharemos quadros alegres, embora quanto a certas preferências locais. As dicas para
baratos, sobre tudo as bellas o embelezamento das casas eram desenvolvidas
chromotypogravuras que os jornaes em seções dirigidas a assuntos familiares, como o
parisienses publicam e vendem por preços Jornal das Famílias, da Revista da Semana. Em
ínfimos. Ha algumas realmente lindas, e , para 1922, o artigo ‘Como decorar as paredes’ mostrava
quem não está em condicções de ter bons o quanto a locação dos quadros na parede ainda
quadros a oleo, póde aproveital-as com o fim era condicionada por uma série de convenções:
de alegrar a sua sala. (SYLVINO JUNIOR: 39-
40) A escolha dos quadros e dos objectos que
contribuem para a ornamentação das paredes
Se as gravuras contribuiriam para alegrar a é uma prova certa de bom gosto: deve se saber
decoração de “casa pobre” (SYLVINIO JUNIOR: o que vae bem á sua casa como o que vae
40), provocariam efeito negativo nas salas de bem á sua pessoa. Porque é uma loucura
visitas. collocar, por exemplo, gravuras claras e leves
n’um aposento severamente mobiliado sob
Nos cômodos íntimos, era concedido aos seus pretexto que essas gravuras são
proprietários acomodar toda a fantasia eclética, authenticamente antigas.
permitindo-se coalhar as paredes com todas as E é inversamente tambem pouco logico illustrar
preferências pessoais. Podiam-se escolher os um quarto Luiz XVI com pinturas á Rembrandt.
objetos mais íntimos, fixar os quadros e quadrinhos (COMO DECORAR...)
da maneira mais particular e vislumbrar as imagens
sem pudor. Só os olhos mais íntimos entravam em Os quadros, portanto, eram signos participantes
contato visual com esses quadros de quartos, de um conjunto visual, cuja leitura apontava para
gabinetes, boudoirs e alcovas. modos de vida, gostos pessoais, níveis culturais.
Como mais um indício para interpretação do caráter
Através de as imagens veiculadas nos manuais da família, as pinturas deveriam ser corretamente
podemos observar os locais mais usuais para escolhidas e sabiamente locadas. Erros eram vistos
locação dos quadros. Nos quartos de dormir, por como ausência de razão e de lógica, como falta de

354
Ambientes interiores e o ideal decorativo

conhecimento, ignorância. Era preciso saber o que O tamanho do quadro demandava uma distância
se adequava, o que combinava, o que agradava. focal para melhor admirá-lo. Ajuntar quadros de
tamanhos diferentes em uma mesma parede
Deve-se cuidar tambem de não sobrecarregar considerava variadas posições do observador no
as paredes; uma sala não é um museu, o cômodo: ora mais distante, capaz de olhar com
conjunto deve ser sobrio e sem uniformidade. clareza as telas maiores, ora próximo e com a visão
N’uma sala de jantar com bonitos moveis de ajustada a perceber as pequenas composições
carvalho de um estylo serio e severo substitue- pictóricas. Os quadros em casa pressupunham
se o espelho de parede por um panneau de diversas posições espaciais de seus observadores,
velha seda bordada, sobre a qual se destaca principalmente porque cadeiras caminhavam pelas
um prato de cobre ou de estanho cinzelado, salas conforme os melhores arranjos para o
como lâmpada um relicario esculpido; nas momento e isso promovia novos pontos de vista
outras paredes pinturas representando cabeças para as paredes do cômodo.
de homens estylo flamengo, cabeças de veado
e candelabros de cobre polido. (COMO A parede, de certo, era a superfície considerada a
DECORAR...) mais importante para a decoração, um espaço
privilegiado para atrair o olhar decorativo.
Alertava-se para a peculiaridade da geografia Conforme a dimensão livre e proporção dominante
doméstica. A casa não era museu. A sala e a parede da parede, um tipo de composição e de quadro era
de todo o dia não eram de museu. A pintura em considerado mais atraente:
casa demandava outra postura: não era peça de
uma coleção (galeria de pintura), não era parte de Quando um aposento possue poucas paredes
um coletivo de quadros (pinacoteca), não se livres e em panneaux estreitos, deve-se preferir
pressupunha obra de primeira linha (digna de collocar quadros pequenos n’este gosto:
museu). O quadro fazia parte das coisas de casa, gravura muito pequena, em baixo uma maior
sendo item doméstico, coisa do lar, ao mesmo flanqueada de duas outras muito mais em
tempo que contribuía para ampliar a carga baixo; a terceira fila comporta um quadro
decorativa do ambiente e facilitar o reconhecimento rectangular e um par de miniaturas, depois
do caráter familiar. A pintura fazia parte dos arranjos finalmente um unico quadro para terminar esta
das paredes, funcionando também como série. (Ibid.)
complemento:
Nessa sala o arranjo dos quadros é tratado como
Um arranjo feliz para uma grande parede de série, uma seqüência compositiva que melhor se
uma sala: admittamos como moveis um canapé adequaria à situação de pouca superfície livre.
e duas poltronas, o centro occupado por uma Mesmo com curto espaço, os quadros não foram
grande gravura hollandeza, ladeada, um pouco proscritos. Ao contrário, os tamanhos foram
mais abaixo, por duas gravuras antigas; em reduzidos conforme a necessidade, mostrando que
cima de cada uma dessas gravuras estão nem sempre o tamanho original da imagem era
candelabros de braço em bronze guarnecidos respeitado e a miniaturização gerava novas
com pingentes de crystal, depois dous quadros relações visuais. Nos cômodos mais íntimos, os
antigos de pintura a oleo em cada ponta. A quadros misturavam-se a uma infinidade de
symetria deve ser rigorosamente observada: é pequenos trabalhos manuais ou eram de formatos
isso um ponto essencial, portanto deve se predeterminados, como podemos ver a seguir:
contar rigorosamente todos os espaços com o
centimetro. (Ibid.) Para as paredes do quarto de dormir é bom reservar
as gravuras claras, os bordados sobre seda,
Gravuras e pinturas a óleo dividiam o mesmo pinturas a agulha e os antigos bordados de contas
espaço, imagens antigas misturavam-se com mais enquadrados, alphabetos antigos em ponto de cruz,
recentes, mostrando a convivência de diversidade cordões de campainha bordados, enfim tudo que
de processos técnicos, tamanhos, procedências e é original, sem extravagancia.
tempos. A situação mostrava o quanto o olhar
decorativo estava alicerçado na disposição – Nos boudoirs os quadros emoldurados em oval,
rigorosamente simétrico, neste caso – que medalhões, ficam muito bem suspensos por
estabelecia uma disciplina compositiva para fitas guarnecidas com rosas chatas feita com
primeiro atrair o olhar e depois guiá-lo para cada fitas de outro tom ou por correntes de crystaes
elemento do conjunto. iguaes ás dos lustres: é absolutamente uma
ideia nova, ousada mas não luminosa! (Ibid.)

355
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

O gênero aqui não importava, mas sim o formato aberrações. Mesmo tratados como peças da
oval do quadro, levando a acreditar que a qualidade decoração, pinturas, desenhos, aquarelas e
plástica da obra nem sempre era prioritária e sim a gravuras deveriam assumir certas qualidades
conformidade de sua dimensão e seu formato à estéticas, frente à opinião de certos críticos, ainda
decoração. Porém, isso não era ponto pacífico. que o publico pouco delas exigisse.

Dependendo do emissor das orientações Vale lembrar que muitas gravuras foram produzidas
decorativas, podia-se dar mais ênfase à qualidade com intenções puramente decorativas. Suas
dos quadros. Sylvinio Junior sugeria a decoração múltiplas tiragens possibilitaram o barateamento
de uma sala modesta e recomendava o uso de de seu custo e a ampla circulação expandia a
poucos quadros, assim: repercussão de suas imagens, como atesta
trabalho de Pierre-Lin Renié sobre as estampas
[...] poucos quadros, se não forem a oleo, mas decorativas. A Maison Goupil (1827-1921), por
não os de carregamento que o estrangeiro nos exemplo, produziu dezenas de milhares de
importa para as casas da rua d’Ouvidor (com estampas e fotografias que foram difundidas pelo
rarissimas exceções) e bazares, quadros de um mundo inteiro, a partir da França, com filiais em
ridículo medonho; se não forem a oleo, Berlim, Londres, Haia, Bruxelas e Nova Iorque.
diziamos nos, algumas gravuras á agua forte Essas gravuras eram consideradas ornamentos
ou em aço em molduras escuras com um ou para cobrir paredes não suficientemente ricas para
dois frisos de ouro fosco; os quadros devem ostentarem quadros a óleo ou mesmo aquarelas,
pender do alto da parede, onde fica a barra do frutos de obras únicas. Suas dimensões e temas
técto, em pregos grandes de cabeça dourada, buscavam se adequar aos modos com os quais
e receberem dos pendentes a precisa eram dispostos comumente nas paredes.
inclinação para não se furar as paredes com
pequenos pregos de escora; lembramos á Ao lado das gravuras, as fotografias se tornavam
leitora que há no paiz não pequeno numero de cada vez mais freqüentes nas paredes das casas,
pintores; se os não acceitar porque não póde normalmente enquadradas por molduras ovais e
gastar grandes sommas com objectos de arte, dispostas em par ou grupos. Se Gonzaga Duque
encontrará adiantados estudantes de Bellas- recriminava o uso de fotos familiares nas salas de
Artes que, por encommenda, podem fazer boas visitas, o público parecia não acreditar em sua
paizagens e figuras, dez milhões de vezes sensibilidade e gosto, pois era comum vê-las em
melhores que os taes quadros que se vendem salas, gabinetes e quartos, enfim, em praticamente
ahi em grandes molduras douradas. Devem quase todos os cantos da casa. De certo modo, as
ser banidos da sala de visitas os retratos de fotos substituíam os retratos pintados do passado,
familia, salvo um trabalho de grande valor prestígio de poucos, que atestavam uma
artistico feito por incontestada sumidade. ascendência distinta, até nobre. Mostrar a família
(SYLVINIO JUNIOR: 33-34) era apresentar as origens do berço, certificado para
um homem ser acatado como de boa família, digno
O olhar do crítico de arte (Gonzaga Duque) se de respeito, estima e consideração.
justapunha ao do conselheiro para assuntos
domésticos (Sylvinio Junior). Os quadros deveriam Além da escolha dos gêneros de pintura conforme
ter qualidades próprias, valendo-se por si mesmos demandava o decoro do cômodo, a colocação dos
e pareciam não interferir no efeito global da quadros na parede seguia os preceitos da
decoração, caso fossem de ‘boa qualidade’. A composição decorativa, devendo eles estar
advertência para não se usar pregos de escora já distribuídos de forma harmoniosa, estabelecendo
apontava, por outro lado, a consideração do entorno uma imagem de equilíbrio e agradabilidade na sua
imediato da obra, que deveria estar livre de disposição. Tal efeito se alcançava ao dispor as
interferências para uma fruição ideal. Focalizava- massas de modo a que nenhuma das proporções
se o valor intrínseco do quadro e por isso (horizontais ou verticais) estivesse em evidência.
recomendava-se procurar bons pintores ou mesmo
apelar para as boas gravuras, de certo imagens Para Henry Havard, a melhor maneira de dispor
com preços mais em conta. nas paredes quadros de tamanhos diferentes seria
mantê-los assentes sobre uma mesma linha
É comum encontrarmos nos manuais a menção imaginária horizontal (HAVARD: 226). Haveria duas
do uso de gravuras, principalmente de litografias, grandes direções de linhas paralelas – as
nas casas aburguesadas do Rio de Janeiro. horizontais (da parede e das bases dos quadros) e
Oleografias também eram citadas, ora qualificadas as verticais (da parede e das laterais dos quadros),
como ‘bem bonitas’ (ALMEIDA: 41), ora como oferecendo uma ordem visual. Evitava-se, por

356
Ambientes interiores e o ideal decorativo

exemplo, qualquer idéia de progressão aritmética absoluta, geométrica, e acreditar nas estranhas
de proporções: jamais se pensaria em dispor três verdades dos equilíbrios por efeitos ópticos.
quadros na parede, do menor para o maior. “Tandis
que si nous emmployons une autre disposition, la A locação dos quadros estava longe de ser um
ligne reprend en partie les qualités expressives assunto menor nas prescrições para decoração de
qu’on est en droit d’exiger d’elle, et la décoration interiores. Afora os textos que recomendavam esse
retrouve un équilibre qu’elle avait perdue » (Id.: ou aquele modo de pendurá-los, imagens (em
230). Isso implica na criação de uma convenção gravuras ou fotos) traziam outras referências e
que atribui certos modos de interpretação dos exemplos visuais de composição dos quadros. Em
objetos e das pinturas conforme a maneira como alguns manuais, até nas vignettes, o tema do
estão dispostas no ambiente. Por exemplo: se quadro na decoração estava em evidência,
algumas telas estivessem arranjadas de modo apresentando situações de locação, ação de fixar
desarmônico provocariam uma reação de quadros na parede e acidentes de percurso (Id.: 7,
desagrado e, por conseguinte, de desinteresse. Se 29, 280).
houvesse muitos quadros amontoados em uma
determinada parede, o acúmulo desordenado Nas paredes das casas ampliava-se a variedade
determinaria uma aversão visual, o que impediria de imagens, expandia-se a quantidade de quadros,
a apreciação das telas. Mesmo assim, alguns inaugurando uma nova visualidade cotidiana – a
autores afirmavam que, por mais que arte era uma agradável acompanhante. Sejam em
aconselhassem o uso parcimonioso de quadros, pinturas autênticas, de pintores renomados e de
sabiam que seus leitores iriam encher ilustres desconhecidos, ou em forma de cópias, a
deliberadamente suas paredes com toda sorte de arte pictórica alcançava novos espaços e novas
quadros (WOLFE: 209). condições: no ambiente doméstico o quadro era
acolhido por um olhar decorativo. A pintura se
Uma ordenação muito simétrica também era integrava à decoração de interiores.
proscrita de grande parte das orientações para boas
composições. A simetria absoluta promoveria idéia Levar o objeto artístico para o espaço cotidiano,
de monotonia (HAVARD: 244), a repetição tê-lo em casa, era oportunizar sua contemplação
deliberada corresponderia à esterilidade mental em diferentes momentos, a revisão de suas formas,
(MELANI : 82) e o arranjo extremamente ordenado a descoberta de novas nuances, favorecendo a
favorecia a percepção do espaço (WOLFE: 169), percepção de detalhes que só durante convivência
isto é, dos vazios entre os quadros e não para eles e proximidade se efetivaria. O fato de o quadro
próprios. adentrar no universo da decoração do lar encorajou
o processo de formas íntimas de olhar para as
Alguns efeitos visuais de composição eram obras.
tomados de estudos fisionômicos, como os de
Humbert de Superville – Signes inconditionnels. Essa intimidade com a obra poderia sugerir uma
Linhas inclinadas ascendentes, a partir de um eixo afinidade com o procedimento do crítico de arte,
central, promoviam alegria; caso estivessem que para julgar, olhava atentamente, percorria toda
descendentes passavam tristeza, tal como as a obra, demorava em detalhes. O crítico
representações de expressões faciais. Desse estabelecia uma intimidade com a obra ou com as
modo, uma arrumação de vários quadros cujos obras do autor da obra e, portanto, a condição de
elementos da extremidade fossem mais altos, intimidade propiciava apurar conhecimentos,
passavam idéia de júbilo e contribuíam para criar adquirir olhar refinado, o chamado the good eye,
uma atmosfera de vivacidade, considerada para usar termo de Irit Rogoff (ROGOFF: 14-16).
condizente para as salas de recepção (HAVARD: Acreditava-se que quanto mais se olhava para uma
228-229). obra, observando-a, mais ela se faria conhecer,
mais ela desvendaria seus mistérios, como se todo
Outras premissas se referenciavam na natureza, o seu entendimento estivesse alicerçado na
como a que afirmava que “La décoration comme la experiência visual: “Por maior que seja a intuição
nature a horreur du vide” (Id.: 232), o que significava escapam com certeza á vista detalhes e subtilezas
que planos vazios provocavam a sensação de que só a longa prática de observação, ou a voz
amplitude, fazendo com que as áreas parecessem auctorizada de um mestre, ensinam a descortinar”
maiores do que eram na verdade e que seria (ALMEIDA: 47). Assim afirmava Julia Lopes de
importante saber equilibrar esse peso visual do Almeida às suas leitoras brasileiras, acreditando
vazio com o cheio, em uma composição. Isso que a maioria não tinha educação artística e não
demandava desobedecer a uma simetria rigorosa, sabia ver nem interpretar telas ou estátuas2.

357
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

Ser íntimo da obra significava também que ela se COMO DECORAR AS PAREDES. Revista da
encontrava no âmbito familiar, lugar considerado Semana, Rio de Janeiro, ano XXIII, no. 35, [sem
próprio e até exclusivo para a intimidade – numeração de página], 26 ago. 1922.
intimidade burguesa. A situação desmerecia o ELDER-DUNCAN, J. H. The house beautiful &
estatuto da obra de arte, visto que o espaço da useful; being practical suggestions on furnishings
domesticidade era tratado como lugar das coisas and decoration. London: Cassel & Company, 1907.
banais, corriqueiras, cotidianas. Um confronto se FERREIRA, Félix. Noções da vida doméstica.
estabelecia entre a idealização da obra de arte Rio de Janeiro: Dias da Silva Junior, [18—].
como objeto único e especial frente à sua condição HASKELL, Francis. Museum, illustrations and the
de elemento trivial da decoração doméstica, quase search of authenticity. History and its images. New
como um móvel, pois pelos dizeres da época Haven: London: Yale University Press, 1993.
acreditava-se que “[...] a nossa casa é, na essencia, HAVARD, Henry. L’art dans la maison: grammaire
constituida pela habitação e pela mobilia. Por isso, de l’ameublement. 4 ed. Paris: Librairie Illustrée,
habitação e mobilia, são fundamentaes e capitaes 1884.
elementos da organização material da vida HOUAISS, Antonio et al. Dicionário Houaiss da
domestica”(SOUZA: 23). O quadro incluía-se na língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.
categoria de coisas móveis, ou seja, era peça de LEPPERT, Richard. Art and the committed eye;
mobiliário. the cultural functios of imagery. Oxford: Westview
Press, 1996.
O valor do objeto único se enfraquecia na medida MELANI, Alfredo. L’arte in famiglia ; guida artistica
que o quadro compartilhava de um conjunto – o per l’arredamento di una casa. Milano : Ulrico
todo da decoração do ambiente. Ele assumia o Hoelpi, 1904.
papel de partícipe da decoração como mais uma MOLL-WEISS, Augusta. Le livre du foyer. Paris :
imagem e não como a imagem. Excetuando as Librairie Armand Colin, 1919.
pinturas encontradas em galerias de quadros ou RENASCENÇA, revista mensal illustrada de Letras,
em casas de colecionadores, é importante destacar Sciencias e Artes, ano III, no.31, número especial,
que os quadros nos ambientes domésticos consagrado à 3ª Conferência Internacional
assumiam papéis próprios: compor conjuntos, Americana, set. 1906. [sem numeração de página]
preencher vazios, entreter os olhos dos convidados, RENIÉ, Pierre-Lin. Une image sur un mur; images
auxiliar em efeitos expressivos, permitir escapes et décoration intérieure au XIXe siècle.
da realidade, educar os filhos, etc. Essas atuações, Bourdeaux: Musée Goupil, 2005.
bastante comuns em domicílio, estão bem distantes ROGOFF, Irit. Studying visual culture. MIRZOEFF,
dos atributos de sacralidade que normalmente Nicholas (Ed.). The visual culture reader. London/
envolvem os assuntos de arte. A experiência ‘única’ New York: Routledge, 1998.
da criação da obra de arte transpunha a dimensão SENNET, Richard. O declínio do homem público:
do artista divino e especial e também se afirmava as tiranias da intimidade. São Paulo: Companhia
como experiência de público não especializado, das Letras, 1988.
assumindo domínio de olhar familiar em casa. SOUZA, Bento Jordão de. Economia doméstica.
Outros olhares, outros tipos de convívio, outras São Paulo: Typ. Hennies Irmãos, 1916.
locações faziam dos quadros objetos decorativos. SYLVINIO JUNIOR. A dona de casa. Rio de
A obra de arte ganhava outros sentidos: alcançava Janeiro: Domingos Magalhães, 1894.
a qualidade de decorativa e isso não significava VIANA, A. R. Gonçalvez. Apostila aos dicionários
desmerecer a obra. A arte só estava em outro portugueses. Lisboa: Livraria Clássica Editora,
domicílio ou, até poderia se dizer, que a arte tinha 1906.
finalmente voltado para casa. WATSON, Rosamund Mariot. The art of the
house. London: Bell and Sons, 1897.
Referências bibliográficas WOLFE, Elsie de. The house in good taste. New
York: The Century Co., 1913.
ALMEIDA, Julia Lopes de. Livro das noivas. 3 ed.
Rio de Janeiro: Typografia da Companhia Nacional
Notas
Editora, 1896.
CHERRY, Deborah ; CULLEN, Fintan. On location. 1
Fazemos referência a um dos significados
Art History, Oxford, vol.29, no.1, 532-539, sep. atribuídos, etimologicamente, ao verbo decorar –
2006.

358
Ambientes interiores e o ideal decorativo

saber de cor, sendocor proveniente do latim cordis, Artes que, segundo ela, seriam “[...] estou certa, o
coração (Cf., VIANA, 1906: verbete decorar). inicio da educação do nosso gosto” (ALMEIDA: 47).
2
Julia Lopes de Almeida sugeria visitas às Recomendava, inclusive, que os pais não se
exposições anuais da Escola Nacional de Belas esquecessem de levar os filhos a esses eventos.

359
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República
Sabemos que o embate entre modernidade e
tradição é um fator cardeal no sistema de
pensamento e significação das sociedades
ocidentais entre o século 19 e as primeiras décadas
do século 20. Observa-se, nesse contexto, uma
reação diante da descoberta da existência como
sendo ordenada numa narrativa linear.

Friedrich Nietzsche (1844-1900) não via no


progresso, nem na história caminhando estes de
renovação em renovação na facticidade, a
possibilidade de uma saída da decadência.
Reconciliava modernidade e eternidade como única
possibilidade de se escapar da decadência.
Acreditava que no interior do instante habita uma
eternidade produtiva na qual passado e futuro
coexistem momentaneamente. No âmago do
instante residiria uma abertura perpétua, uma
concepção de totalidade.

Também indagava Charles Baudelaire (1821-1867)


em 1855: “Mas onde está, eu vos pergunto, a
garantia do progresso para o amanhã?”, “Digo que
ela só existe na vossa credulidade e na vossa
fatuidade” (apud COMPAGNON,1999:126). Para o
poeta, a modernidade concentra a força do novo
e, paralelamente, celebra um movimento de
apreciação do antigo, não como espelho mas como
tradição versus modernização na arquitetura do
história, gerando uma consciência da historicidade
rio de janeiro: ornamentos mouriscos
do presente.
1
rosane bezerra soares
Entre modernidade e tradição, é interessante
destacar o papel polêmico exercido pelos
ornamentos, entre teóricos e artistas. Com a
revolução industrial, o desenvolvimento dos
transportes, a popularização de livros e jornais, o
aprofundamento dos estudos históricos _ entre
outros fatores _ , amplia-se o desejo de
conhecimento dos modos de vida de outros povos.
Multiplicam-se, assim, as viagens e também as
pesquisas arqueológicas. Na arqueologia, os
monumentos históricos eram identificados e
classificados por meio de ornamentos; com o
conhecimento de modelos da antigüidade e o
desenvolvimento das técnicas de impressão,
surgiram então diversos repertórios de padrões
ornamentais, sendo esses representativos de
diferentes períodos históricos. Durante o século 19
esses livros tornam-se cada vez mais acessíveis,
sendo utilizados como material de consulta de
arquitetos, artistas e artesãos.

Houve posições extremadas contra e a favor ao


uso de ornamentos. As idéias de John Ruskin (1810
– 1900), por exemplo, foram decisivas para o
surgimento do movimento de artes e ofícios;
acreditava que o trabalho artesanal representava
uma força poderosa de resistência. Além de artista
e crítico, Ruskin era teórico da arte e da sociedade;

360
Ornamentos mouriscos na arquitetura do Rio de Janeiro:

suas opiniões inspiraram a criação de oficinas nesse grupo August Pugin (1812-1852) com
artesanais nos diversos países europeus e na Glossary of Ecclesiastical Ornament and Costume
América do Norte. Destacava que somente os (1846) e Floriated Ornament (1849). Mais tarde,
ornamentos, realizados artesanalmente, seriam Christopher Dresser (1834-1904) lança Studies in
capazes de trazer para o mundo um pouco da Design (1874-1876). Nessa categoria também
variedade da natureza, devendo ser protegidos do poderíamos destacar os trabalhos de William Morris
avanço da racionalização e da supremacia dos (1834-1896) na Inglaterra e, na França, Eugène
valores comerciais. Grasset (1845-1917) com La Plante et ses
applications ornamentales e o estilo Art Nouveau.
Alois Riegl (1850 – 1905) enfatizava que os seres
humanos possuíam um impulso artístico imanente, Já na terceira categoria se apresentariam as
sendo a necessidade de adornar anterior à antologias de ornamentos do passado
necessidade de cobrir o corpo. Acreditava que a consideradas como meios de inspiração para
arte surgiu com o ornamento, mais especificamente decoradores e designers do mundo moderno.
quando a linha conquistou a sua independência em Nessa categoria se encontrariam Ornamente aller
relação aos modelos naturais e passou a obedecer klassischen Kunstepochen (1831), editado por
a leis fundamentais da simetria e do ritmo, Wilhelm Zahn (1800-1871), que impregnou o seu
considerando assim o ornato como arte de estudo histórico com um caráter moderno. Mais
superfície. Em 1893 Riegl lança um livro sobre a tarde, Heinrich Dolmetsch (1846-1908) lançou Der
história do ornamento, “Stilfragen” (Questões de Ornamentenschatz.
Estilo), apoiando-se no método de análise histórica
e comparativa. Inseridos na diversidade artística do século 19,
junto a representações focadas no mundo
Por outro lado, o arquiteto austríaco Adolf Loos ocidental, observa-se um interesse pelos
(1870 – 1933) publicou inúmeros artigos em jornais ornamentos de culturas não européias, como a
e revistas, no período entre 1897 e 1930, iniciando chinesa, a japonesa e a islâmica.
uma guerra contra o ornamento, o qual seria crime,
por ser anti-racional. Para ele, o caminho da cultura No Brasil, o Rio de Janeiro apresenta uma das
iria do ornamento à sua exclusão; a sua crítica principais manifestações da arquitetura do século
contribuiu em muito para a desvalorização moderna 19 do país e, entre os mais variados ornamentos,
do ornamento. Além de condenar o uso de um tipo parece ocupar um lugar especial: os
ornamentos inspirados naqueles publicados nos ornamentos mouriscos, que convivem com o
repertórios ornamentais, condenava a criação de choque tradição secular x modernização já com a
novos ornamentos porque essa atividade impediria chegada da Família Real ao Rio de Janeiro. Mais
a consolidação de um estilo realmente genuíno do tarde, o repertório foi reinterpretado e aplicado em
século XX, o qual se afastaria da própria idéia de algumas edificações.
estilo.
O nosso objetivo nesse trabalho é exatamente
A diversidade artística do século 19 representou refletir sobre o embate entre modernização e
também um esforço na busca de um estilo tradição que caracterizava o contexto da época,
característico. Assim, muitos artistas procuravam utilizando como fio condutor a presença dos
conciliar a tradição com as transformações do seu ornamentos mouriscos.
tempo. Nesse contexto, é interessante observar os
repertórios de padrões ornamentais que, em termos 1. Ornamentos mouriscos?
gerais, poderiam ser agrupados em três categorias.
Para a análise de obras construídas a partir das
Num primeiro momento, poderíamos destacar
edificações mouriscas, é interessante destacar as
aqueles que buscavam a interpretação de estilos
características gerais das construções que as
do passado para o uso moderno, como as obras
inspiraram. A arte mourisca floresce no
de Henry Shaw, The Encyclopaedia of Ornament
Mediterrâneo Ocidental, compreendendo o norte
(1842), Decorative Arts, Ecclesiastical and Civil of
da África, Sicília e Península Ibérica. O seu
the Middle Ages (1851). Ainda nessa categoria
desenvolvimento significou, em primeiro lugar, um
estaria incluído o trabalho de Owen Jones (1809-
processo de fusão no qual elementos ibero-
1874) com o livro One thousand and one initial
romanos, visigodos, sírios, bizantinos e arábicos
letters (1864), entre outros.
se misturam para formar um novo estilo autônomo,
Na segunda categoria estariam aqueles que o qual por outro lado proporcionou o estímulo para
procuravam apresentar novos estilos de outras criações artísticas.
ornamentos para uso contemporâneo. Destaca-se

361
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

Com o enfraquecimento do Império Romano, os vegetais e gradualmente se unem com formas


árabes começaram a penetrar na Península Ibérica geométricas.
por meio do comércio; cristãos, judeus e
muçulmanos passaram então a conviver lado a Os primeiros levantamentos dos monumentos da
lado. Assim, de 711 d.C. até o fim da Guerra da arquitetura islâmica foram publicados na Europa
Reconquista, no século 13, Portugal viveu um entre 1835 e 1860. Constam entre os mais
verdadeiro processo de islamização que se refletiu importantes Architecture arabe ou monuments du
nos conhecimentos científicos, nos conceitos Caire (Paris, 1839) de Da Coste; Essai sur
sociais e nos fazeres artísticos. l’architecture des arabes et des mores (Paris, 1841),
de Girault de Pravey, e Plans, elevations, sections
A palavra “mourisco” vem do grego “mauros”, que and details of the Alhambra (Londres, 1837), de
significa “escuro”. Esse termo foi empregado para Jules Gpoury e Owen Jones.
designar a população aborígine não-negróide do
oeste da África. Hoje o termo é aplicado Nesse contexto, um significado especial é
indiscriminadamente ao povo do norte da África, associado aos arabescos. Charles Baudelaire
constituído especialmente de aborígines e considera o arabesco como o mais espiritualista
imigrantes árabes. dos desenhos, acreditando ser esse o ideal de
todos os desenhos. Para Henry Matisse (1869-
Na arquitetura, as residências caracterizam-se 1954), o arabesco traduz por um signo o conjunto
pelas paredes grossas, brancas, lisas, o exterior das coisas, fazendo de todas as frases uma única
simples, a utilização de arcos, azulejos e, na parte frase. Já Stéphane Mallarmé (1842-1898) fala em
interna, cômodos escuros. No século 10 as um “arabesco total” caracterizado por “saltos
construções religiosas, civis etc., já demonstram vertiginosos”, pleno de “velhos acordes”
uma predileção pelo uso de mosaicos e mármore. convertendo-se em música. Como espiral, na
significação esotérica do arabesco como forma de
Elementos da antigüidade clássica, como acantos voluta da folhagem clássica, era um símbolo da
e folhas de parreiras são encontrados ao lado de parreira e esta, junto com o vinho, representava a
padrões geométricos e arabescos. Inspirando-se ebriez dionisíaca ou mística e, por isso, a eterna
largamente no arabesco2 desde os fins do século beatitude ( BEHNKE, 1995: 21- 42 ).
15, na Renascença italiana o termo foi usado para
designar um determinado padrão do desenho 2. Ornamentos mouriscos: tradição versus
islâmico. Poderíamos definir o arabesco como um modernização na arquitetura do Rio
desenho abstrato, cujas linhas entrelaçadas
formam uma trama capaz de se desenvolver em No Brasil, as casas asseguravam a permanência
qualquer direção. O motivo se repete do legado mouro em relação às técnicas de
indefinidamente fazendo com que o espaço se construção e ao modo de habitar transplantados
alargue, garantindo a sua perpetuação, como um pelos colonos portugueses para a colônia. A
labirinto. estreiteza das ruas colocava limites à
ornamentação das fachadas, inviabilizando
Molduras de madeira são encontradas em janelas, elementos que sobressaíssem delas,
portas e balcões; empregam-se vários tipos de constantemente ameaçadas pelas rodas de
arcos, do arco de ferradura aos arcos com ponta e carruagens e carroções.
multilobulosos; a ornamentação interna é detalhada
e fecunda. Construídas de pedra bruta ou taipa de pilão, as
casas possuíam paredes grossas, revestidas de
Quanto às paredes, são freqüentemente cobertas argamassa de cal e marga, que as faziam
por listras horizontais e painéis que proporcionam parecerem caiadas de branco, ou de azulejos
um eixo para a composição ornamental. Uma coloridos. Outro elemento de ornamentação
grande variedade de formas combinam-se mourisco muito utilizado era a arte de embrechar,
resultando num padrão denso e repetitivo de que consistia na incrustação de cacos de vidro e
pequenos elementos revestindo as superfícies; os azulejo, pedrinhas e conchas na argamassa ainda
padrões de estrelas entrelaçadas são empregados mole. Eram voltadas para o interior, e suas
para cobrir grandes áreas. aberturas apresentavam-se obstruídas pelos
muxarabiês e gelosias que permitiam aos
As formas derivadas dos romanos, do Oriente e moradores olharem a rua sem serem vistos, além
dos visigodos podem ser claramente distinguidas de manterem as mulheres confinadas.
até o século 10. Mais tarde, libertam-se de modelos

362
Ornamentos mouriscos na arquitetura do Rio de Janeiro:

Como característica comum às casas portuguesas, uma poética neoclássica. As tintas de cores suaves
apresentavam-se com uma grande simplicidade de substituem os azulejos e o cal; utilizam-se também
linhas. Como regra, as plantas eram pilastras para marcar as linhas básicas da
quadrangulares, ocupando toda a área do terreno, composição, além de escadarias, frontões,
com sobrados para habitação, tradicionais portais colunatas, platibandas, mármore, motivos
de pedra e lojas ou depósitos no andar térreo; no alegóricos e mitológicos da antigüidade inscritos
pavimento superior localizava-se a residência do nos tímpanos, etc. A partir de 1850 ampliam-se as
proprietário, com os salões na frente, as alcovas transformações nas obras, com um repertório
na parte central e a sala de estar nos fundos. Esse variado de bens materiais e simbólicos do velho
fato, que sob um certo ponto de vista se relaciona continente. Além do cimento e dos tijolos, das telhas
com a natureza dos materiais por permitirem uma de Marselha que substituem as de canal ou de
construção sólida em altura, apresenta também faiança, dos estuques e vidros, das louças e
relações com uma antiga forma de construção instalações sanitárias, importam-se muitos
portuguesa, em que os homens dormiam sobre o artefatos de ferro forjado ou fundido que são
local onde os animais permaneciam à noite, para utilizados como elementos estruturais, funcionais
maior segurança. ou decorativos, tanto nas obras públicas como nas
construções civis. Difundem-se os portões e as
Em 1808, a abertura dos portos às nações amigas grades junto à rua; de ferro também passam a ser
propiciou o intercâmbio comercial do país com o as escadas externas e internas, as marquises, as
exterior, possibilitando a aquisição de bens vigas de sustentação e muitos dos elementos
procedentes do continente europeu. Com a empregados na ornamentação.
instalação da corte portuguesa no Rio, no mesmo
ano, várias transformações ocorreriam no país. Em 1855 foi criada a disciplina escultura de ornatos
Entre diversas mudanças, poderíamos destacar na Academia; as aulas contavam com material de
aquelas resultantes do decreto promulgado por D. apoio como os relevos em moldagem direta em
João VI proibindo o uso de alguns elementos da gesso tomados às escolas clássicas e séries de
arquitetura mourisca, como os muxarabiês (balcão gravuras como a coleção das Loggias do Vaticano
mourisco protegido, em toda a altura da janela, por de Giovani da Udine e Pierino del Vaga, alunos de
grade de madeira de onde se pode ver sem ser Rafael; Le guide de l’ornamentiste, de Charles
visto) e gelosias (grade de madeira cruzada que Normand; o Ditionnaire des beaux-arts, de A L.
ocupa o vão de uma janela). Millin, entre outros. Os alunos encontram então um
grande campo de trabalho na ornamentação de
O Príncipe Regente nomeou então o conselheiro edifícios públicos e privados.
Paulo Fernandes Vianna, o qual comunicou à
população em 11 de junho de 1809 que tendo sido Entre outras transformações, desempenharam um
o Rio de Janeiro elevado à categoria de Corte, papel crescente no processo de transferência de
seriam incompatíveis com a terra “certos góticos tecnologia e materiais os profissionais liberais
costumes”3 e que deveriam ser abolidas as gelosias formados em escolas de nível superior, como os
das janelas e sobrados determinando que sua engenheiros graduados pela Escola Politécnica,
retirada fosse realizada dentro de oito dias. inaugurada em 1874, junto aos arquitetos
Entretanto, por falta de recursos, nem todos estrangeiros, nas obras públicas e particulares; ao
puderam instalar vidros nas janelas e as lado desses, despontam também companhias
transformações ocorreram gradualmente. No lugar construtoras, submetendo os canteiros de obras
dos balcões de madeira, geralmente aos projetos derivados de um aprendizado
acompanhados por duas gelosias, foram instaladas sistemático.
sacadas de ferro batido ou de madeira; a introdução
posterior das vidraças nas janelas marca o declínio A medicina do século 19 forneceu um
da influência mourisca nas primeiras décadas do embasamento científico para a ideologia que
século 19. mobilizou os engenheiros e arquitetos. Tudo o que
pudesse favorecer a persistência dos estigmas do
Com a chegada da Missão Artística Francesa em brasileiro colonial e senhorial converteu-se em sinal
1816 e a criação da Escola Real das Ciências, Artes negativo, inclusive a tradição construtiva luso-
e Ofícios, atual Escola de Belas Artes, um bom mourisca, perpetuada pelos mestres-de-obras
número de livros com repertórios ornamentais portugueses.
vieram para o acervo da biblioteca, impulsionando
a escultura de ornatos, sendo também incluída a O choque aparece de forma clara no relatório
gravura de ornatos em 1831. Várias obras são divulgado em janeiro de 1875 pela Comissão de
realizadas; as construções aproximam-se então de Melhoramentos do Rio de Janeiro, formada pelos

363
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

engenheiros Jerônimo R. Morais Jardim, Marcelino construtores de casas higiênicas, como revestir de
Ramos da Silva e Francisco Pereira Passos. azulejos as salas de almoço, cozinha e banheiros
Convocados pelo monarca para formular um plano (os azulejos tornaram-se raros nos exteriores) e
geral de reurbanização face ao recrudescimento equipamentos sanitários de louça e ferro
da febre amarela, afirmam: esmaltado.

Construídas geralmente por homens práticos, sem Enfim, com a República, torna-se prioridade a
instrução alguma profissional e sem a menor idéia preocupação com a eficiência, a salubridade e a
das condições de conforto e de higiene que devem imagem da capital. O Rio de Janeiro encontra-se
presidir à disposição dos aposentos, são as nossas num processo de crescimento acelerado de sua
habitações desprovidas dos meios de ventilação e malha urbana e de grave crise de sua centralidade;
de renovação do ar nos quartos de dormir, e de multiplicam-se as habitações que abrigavam várias
muitos outros cômodos indispensáveis em uma famílias junto ao agravamento da situação sanitária
residência (...) Alheios às mais simples noções de da cidade, com a ocorrência de violentas epidemias
estética (...) esmeram-se os nossos mestres-de- de febre amarela, cólera e varíola. A 25 de maio
obras em sobrecarregar as fachadas dos prédios de 1900 foi criado, então, o Instituto Soroterápico
com molduras e cimalhas sem sujeição, já não Federal, com o objetivo de fabricar o soro
diremos às regras de arte em que tanto primaram antipestoso. O instituto era dirigido pelo Barão de
a Grécia e a antiga Roma, e que ainda hoje Pedro Afonso e apresentava como diretor técnico
merecem tanto cuidado nos países mais cultos, o bacteriologista Oswaldo Cruz. Como é sabido, a
mas às leis mais simples da conveniência e da cidade passa por uma grande reforma entre 1902
harmonia; (...) forram freqüentemente as paredes e 1906 e o antigo centro colonial de ruas estreitas
exteriores com azulejos que absorvem o calor solar e lotes apertados é, em grande parte, demolido.
e aquecem horrivelmente o interior das casas; No conjunto de obras de reconstrução da cidade,
fazem, enfim, como essas, muitas despesas inúteis que incluía medidas de saneamento e atividades
que, além de darem às nossas ruas uma aparência essenciais na área de saúde, foi planejada então a
sem arte e sem gosto, imprópria sem dúvida de construção de um amplo prédio, onde seriam
nossa civilização, tornam-se ainda nocivas ao centralizados os trabalhos de pesquisas e combate
conforto do interior do lar. (Melhoramentos da às doenças epidêmicas. O conjunto arquitetônico
Cidade. “Primeiro Relatório da Comissão de de Manguinhos, onde se destaca o Pavilhão
Melhoramentos da Cidade do Rio de Janeiro, 12 Mourisco ou Prédio Central da Fundação Oswaldo
de janeiro de 1875”: 7 – 8). Cruz, veio substituir as antigas instalações do
Instituto Soroterápico Federal. Oswaldo Cruz
O antigo padrão de obra construída nos limites assumiu a direção geral do novo instituto em 1902,
frontal e laterais de um lote estreito e profundo vai expandindo suas atividades, não mais restritas à
dando lugar a casas com afastamento lateral e fabricação de soros, mas voltadas também para a
frontal, com abertura de janelas no afastamento pesquisa e formação de recursos humanos.
lateral e a inclusão de jardins no afastamento
frontal. A entrada principal já não se coloca no eixo 3. O estilo Neo-Mourisco no Rio
da fachada, dando para a rua, mas se desloca para
a lateral, transformando o tratamento decorativo; Curiosamente, o mourisco foi escolhido como o
a sala de estar e a de jantar transferem-se dos estilo predominante para a instituição médica _ o
fundos para a frente. Pavilhão Mourisco ou o Prédio Central da Fundação
Oswaldo Cruz _, fato curioso se considerarmos
A legislação sanitária fiscaliza as condições de que a medicina desempenhou papel importante no
aeração e impõe a utilização de equipamentos expurgo das influências muçulmanas da arquitetura
relacionados aos serviços de água, luz, gás e colonial. A instituição foi construída na Fazenda de
esgotos; pátios e os corredores que circundam a Manguinhos, que faria parte do vasto Engenho da
habitação garantem sua iluminação e arejamento. Pedra; o perímetro abrangia, a grosso modo, os
A construção de porões deveria neutralizar a atuais bairros de Manguinhos, Olaria, Ramos e
umidade do solo e assegurar boa ventilação; é o Bonsucesso. Diversos materiais podem ainda ser
caso, também, da elevação dos pés direitos. Os encontrados sobre a construção do Pavilhão
elementos que tornavam a arquitetura residencial Mourisco4.
da época impermeável ao exterior passaram a ser
atacados por favorecerem a condensação dos Tivemos algumas manifestações importantes da
miasmas aos quais a medicina atribuía a arquitetura mourisca no Rio, como o pavilhão
propagação de doenças infecciosas. Os médicos mourisco, inaugurado em 1906 na Praia de
colocavam normas a que deveriam se ater os Botafogo ou o monumental Café Arábico-Persa, na

364
Ornamentos mouriscos na arquitetura do Rio de Janeiro:

esquina da Avenida Central com a rua do Rosário. O edifício é visto à distância por aqueles que vêm
Entretanto hoje restam-nos poucos exemplos de do mar, e sua localização foi orientada por estudos
edificações públicas; além Prédio Central da meticulosos, como atestam os manuscritos
Fundação Oswaldo Cruz destaca-se ainda a deixados pelo arquiteto, o qual analisa o
Basílica do Imaculado Coração de Maria, no Méier. aquecimento do pavilhão e apresenta um parecer
sobre a incidência dos ventos, que deveriam ser
Não são conhecidos os motivos que levaram varridos segundo o seu comprimento.
Oswaldo Cruz a optar pelo estilo mourisco de
ornamentação para as instalações do soroterápico; O traçado do prédio assemelha-se aos dos palácios
existem apenas hipóteses. Algumas explicações ingleses do período elisabetano, com utilização de
são apresentadas pelos cientistas que com ele torres, valorização da entrada principal, larga
conviveram e pelos autores que, mais escadaria e grandes galerias ligando as salas
recentemente, estudaram as origens de laterais. É típico desse período a disposição em
Manguinhos: uns ressaltam a origem lusitana do forma de H ou E, com entrada central e dois corpos
arquiteto; entretanto outros acreditam que essa laterais pronunciados. A ornamentação mourisca
escolha representaria um tributo à medicina dos impera nas fachadas, paredes, pisos e forros
mouros. Alguns reconhecem nos arabescos desse internos. Nos palácios ingleses, as longas galerias
palácio uma afinidade entre os princípios são fechadas para evitar os rigores do inverno. O
geométricos que asseguram a repetição ao infinito pavilhão central de Manguinhos, entretanto, exibe
da ornamentação mourisca com as regularidades suas fachadas leste e oeste totalmente vazadas
do universo micro e macroscópico de que se por vãos em arcos, respondendo a exigências
ocupavam os cientistas. Em sua ornamentação, o climáticas opostas.
pavilhão remete-nos ao palácio Alhambra, de
Granada, o edifício mais representativo da Na arquitetura civil islâmica, os palácios se
arquitetura civil mourisca (século XIV), construído apresentam com pátio interior, devendo o
sobre uma colina pelos últimos príncipes monumento ser visto de dentro para fora: o exterior
muçulmanos da Espanha, os Nasridi. Possui, não apresenta ornatos. Já o pavilhão mourisco de
também, afinidades com o prédio do Observatório Manguinhos foi projetado para ser apreciado por
de Montsouris, na França, que Oswaldo Cruz suas fachadas ricamente decoradas, que se
freqüentou no período em que realizou sua apresentam como atração ao primeiro contacto. No
especialização em microbiologia. prédio encontram-se arcos plenos e mistos,
estalactites, azulejos nas varandas externas, piso
O arquiteto que iria projetar o Pavilhão Mourisco coberto de mosaicos lembrando os tapetes árabes
era pouco conhecido na época, havia chegado ao e toda a ornamentação é construída
Brasil em 1900 e aqui se estabeleceu até sua geometricamente; os motivos repetem-se ao infinito
morte. Partindo de croquis executados por Oswaldo e se entrelaçam, originando grande variedade de
Cruz, o prédio teve sua construção iniciada em formas.
1904; em 1905 começa o assentamento da infra-
estrutura; em 1910 os pesquisadores transferem- O terraço foi pavimentado com cerâmica de
se para o prédio, e em 1918 concluem-se os Marselha sob lâminas de cobre, sistema dos mais
trabalhos de ornamentação e outros acabamentos. sofisticados para impermeabilização de coberturas.
A estrutura das duas torres é metálica em aço, de
O prédio foi erigido sobre uma das colinas da origem alemã, com planta octogonal e a altura de
região, com sua fachada voltada para o mar a cerca quase dez metros.
de 50 metros de altura. Segue a lógica de
funcionamento de uma instituição que combina as O salão de leitura da biblioteca é o ambiente de
características de uma fábrica de produtos maior riqueza ornamental do pavilhão mourisco. Os
biológicos com as de um grande laboratório de grandes painéis de arabescos que cobrem a
experimentação médica, lidando com materiais superfície e a chegada ao teto suavizada pela
excessivamente perigosos para conviverem com sucessão de frisos ascendentes, com motivos
a aglomeração urbana. Por sua engenharia e infra- diversos, transmitem a impressão de isolamento
estrutura tecnológica, Manguinhos encontra-se à do mundo e de elevação espiritual necessárias a
frente das outras estruturas arquitetônicas um lugar de recolhimento e estudo. Desenhos
grandiosas da época, até porque apresenta em seu geométricos no assoalho são enriquecidos pelos
projeto a energia elétrica como força motriz diferentes tons de madeira; os móveis e luminárias
principal. estilizados reforçam o aspecto oriental do ambiente.
A biblioteca é de aço à prova de fogo e insetos.

365
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

O elevador do Prédio Central da Fundação Oswaldo A partir de 1909 companhias alemães tornam-se
Cruz é um dos mais antigos ainda em responsáveis não só pelo fornecimento como,
funcionamento no Rio de Janeiro e foi instalado muitas vezes, pela implantação dos equipamentos
em novembro de 1909. Com estrutura de ferro de de laboratório e das instalações elétricas,
fabricação alemã é projetado para quatro paradas, telefônicas, térmicas, telegráficas e de circulação
possuindo mecanismos de segurança que vertical.
impedem seu funcionamento caso alguma das
portas esteja aberta. O elevador possui duas Em 1910 são apresentados os orçamentos de uma
cabines: uma para passageiros e outra para cargas. estação rádiotelegráfica do sistema Telefunken e
A de passageiros é de mogno, luxuosamente de diversos maquinismos elétricos: motor para
ornamentada, com cúpula de espelhos e portas bomba de pressão, bomba rotativa de compressão
internas com cristal bisotado. O gradeamento e sucção transversal, etc. É confirmado, também,
externo foi desenhado por Luiz de Morais Júnior e o pedido de diversas peças de iluminação, em estilo
executado pela mesma empresa responsável pelo mourisco que seriam fabricadas conforme os
gradeamento das escadarias. desenhos de Luiz de Morais. A pedido de Oswaldo
Cruz, a Siemens enviou em 1911 prospectos de
Um contraste gritante salta aos olhos diante da um ozonificador de água, e em outubro de 1912,
extrema simplicidade de alguns ambientes e a de aparelhos que permitiam registrar
profusão decorativa de outros; a diferença de continuamente a temperatura dos diversos
tratamento das superfícies é resultado do uso ao compartimentos do instituto. Os termômetros
qual o ambiente era destinado. O construtor abdica elétricos, já instalados no pavilhão central, seriam
dos estuques e mosaicos nos laboratórios e em ligados a um instrumento capaz de registrar a
outras salas de serviço e passa a seguir uma outra temperatura em fitas de papel e acionar, conforme
linguagem arquitetônica, baseada na as suas oscilações, campainhas, bombas,
funcionalidade e nas rigorosas normas de assepsia ventiladores, etc.
e desinfecção que, desde Pasteur, presidiam as
construções médico-hospitalares. A localização dos Entre os documentos arquivados na Casa de
laboratórios nos pavimentos de maior pé direito e Oswaldo Cruz, constam, ainda, propostas de outros
a colocação de enormes janelas refletiam a fabricantes alemães de máquinas e equipamentos,
preocupação com o arejamento do ambiente. As como a Borsig, que instalou o sistema de
paredes apresentam-se lisas e sem ornamentos, refrigeração, e a J. G. Schelter e Giesecke, de
tendo os cantos arredondados de modo a impedir Leipzig, fabricante do gerador a gasogênio, que
o acúmulo de poeira. As superfícies foram durante muitos anos abasteceu o instituto de
revestidas com ladrilhos de cor neutra e tinta energia elétrica, já que as linhas da Light and Power
impermeável para evitar umidade, propícia às só chegaram no início dos anos 1920.
fermentações, e facilitar a lavagem obrigatória com
soluções anti-sépticas. A iluminação dos jardins foi derivada do cabo geral
no térreo do edifício por meio de um quadro
Nenhum outro edifício do Rio de Janeiro – e talvez especial; a distribuição da energia até os lugares
do país – se igualava a este pavilhão em de consumo foi feita por meio de cabos
sofisticação tecnológica. É de grande importância subterrâneos cobertos com chumbo, recebendo
para a história da arquitetura o repertório de uma armação exterior. Atmosferas de fascínio e
equipamentos que as companhias ofereciam aos funcionalidade encontram-se no Pavilhão Mourisco,
construtores da época. tombado em 1980 pelo Patrimônio Histórico
Nacional.
Em dezembro de 1908 foi apresentado projeto do
sistema elétrico, incluindo uma extensa relação de Entre as construções edificadas nas primeiras
artefatos e equipamentos de várias marcas décadas do século 20 inspiradas na arte e na
alemães. Os corredores e as duas torres seriam arquitetura mourisca ainda existentes no Rio de
iluminadas por lâmpadas de arco bivolta, uma Janeiro destaca-se também a basílica do Imaculado
novidade em lâmpadas de efeito, resultando em Coração de Maria, no bairro do Méier, em estilo
uma excelente luz branca. A Siemens oferecia até mudéjar. Nas construções religiosas, a utilização
uma bomba de sucção de poeira, cujos tubos se de elementos mouriscos foi mais comum nas
ramificariam por todos os laboratórios, e um sinagogas edificadas desde 1850 pelas
sistema de fechamento automático contra a luz comunidades israelitas. A basílica do Méier foge a
exterior para as janelas e portas. esta regra.

366
Ornamentos mouriscos na arquitetura do Rio de Janeiro:

Em geral, entende-se por arte mudéjar aquela na fabricação. Conheceu, na Espanha, os mudéjares
qual predominam os elementos construtivos ou e os excelentes produtos de Andaluzia, de Valencia,
decorativos de influência islâmica executados em de Aragão, de Málaga, os da famosa fábrica de
território cristão da Peninsula Ibérica por artistas Manises (dos séculos 15, 16 e 18), além de belos
muçulmanos ou cristãos. O termo mudéjar vem do exemplares de cerâmica de reflexos metálicos
árabe mudajjan, que significa “domesticado”. A arte dourados de origem persa. Sempre que possível,
mudéjar pode ser igualmente utilizada numa grande utilizava azulejos para ornamentar fachadas e
catedral ou em uma humilde igreja de algum revestir paredes interiores. O apreço pela cerâmica
vilarejo. o levou à admiração pelas antigas fachadas do Rio
de Janeiro; lamentou que a insistência portuguesa
É interessante destacar, aqui, as características de revestir fachadas com cerâmica tivesse sido
gerais da arte que inspirou a construção da basílica; interrompida.
a arte mudéjar apresenta uma grande variedade e
cada região possui a sua própria versão, De escala monumental para a época, a
influenciada por tradições locais. O denominador construção da basílica foi iniciada em 31 de
comum de toda arte mudéjar são as detalhadas outubro de 1909, tendo a primeira parte inaugurada
formas islâmicas. Inicia-se na segunda metade do em 24 de agosto de 1912. Uma imensa multidão
século XII, sendo fruto de comunidades lotou a basílica e lugares adjacentes. Elaborada
muçulmanas que vivem pacificamente após a em etapas, no dia 23 de agosto de 1914 inaugura-
reconquista dos territórios pelos cristãos, se a segunda parte do santuário e a terceira em 8
facilitando, com o baixo preço de sua mão-de-obra, de dezembro de 1917. A 31 de agosto de 1919 o
a difusão de suas técnicas artísticas. Chegam a Sr. Cardeal Arcoverde benzeu a primeira pedra da
criar um estilo aceito em todos os níveis da torre da basílica, sendo a torre concluída em 22 de
sociedade cristã. Quanto à área de sua difusão, setembro de 1924.
concentra-se basicamente na ampla zona situada
entre León e o Tejo até La Mancha. Revestida de tijolos em tons variados em sua parte
externa a basílica do Imaculado Coração de Maria
Em seu desenvolvimento, a arquitetura mudéjar apresenta uma grande torre com arcos agudos e
oferece uma grande complexidade, determinada ornamentada de azulejos. As laterais da basílica
essencialmente pela diversidade de suas raízes. ostentam belos vitrais em forma de estrela de oito
Em relação à estrutura em geral, os edifícios pontas, uma das formas fundamentais do desenho
apresentam o estilo cristão do momento _ geométrico islâmico. O colorido e a transparência
Românico ou Gótico. Possui um caráter popular, dos vitrais formam um forte contraste com a
ao alcance dos setores mais modestos, rusticidade dos tijolos.
empregando materiais de baixo custo como o tijolo,
o gesso e a madeira. Apesar de ser possível As duas portas da entrada principal apresentam
assinalar características regionais, são evidentes bandeiras de ferro, com mosaicos coloridos. Cada
as interconexões entre as formas mudéjares dentro porta divide-se em duas folhas e cada folha tem a
de um mesmo reino. sua cancela, que pode abrir-se
independentemente, conforme o estilo dos templos
Enfim, no dia 3 de fevereiro de 1907 chegaram ao moçarábicos (igrejas cristãs erguidas sob o domínio
Rio de Janeiro os padres Florentino Simón e Ignácio islâmico). Os bronzes aplicados às portas também
Bota, trazendo uma imagem do Coração de Maria obedecem ao mesmo estilo. Criado pelo arquiteto
talhada em madeira e medindo 1,80 metros de Matias Ferreira, o desenho das portas foi executado
altura. Fora importada da cidade de Olot, na em jacarandá pela Casa Ferreira e Companhia do
Espanha, onde residiam famosos escultores de arte Rio de Janeiro; são ricamente esculpidas com
sacra. arabescos, formas geométricas, arcos e
estalactites.
Os padres espanhóis Ignácio Bota, Florentino
Simón, Fernando Rodríguez e Higino Chasco foram O interior da basílica é rico em elementos
os fundadores da Comunidade do Méier e queriam mouriscos, como arcos em forma de ferradura,
construir um templo católico com as formas mistos, agudos, rendilhados quadrilóbulos,
arquitetônicas de estilo mudéjar. Encomendaram arabescos, tramas sugerindo tapetes, etc.
então o projeto da basílica ao também espanhol
arquiteto Adolfo Morales de los Rios, pai. O A basílica reúne, como o pavilhão Mourisco,
arquiteto era oriundo de uma região onde a referências ao antigo e, paralelamente, soluções
cerâmica atingiu grande desenvolvimento; estudou- modernas.
a e, com grande interesse, acompanhou a sua

367
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

4. Considerações Finais Referências bibliográficas

Como é sabido, durante muito tempo a história da ARBERRY, A. J. Aspects of islamic civilization.
arquitetura foi contada e recontada como um Ann Arbor: The University of Michigan Press, 1983.
processo evolutivo, na qual caminharíamos de ARGAN, Giulio Carlo. Arte Moderna. São Paulo:
renovação em renovação; entretanto, retornando Companhia das Letras, 1995.
ao pensamento de Baudelaire e Nietzsche, esse BAUDELAIRE, Charles. As flores do mal. Rio de
valor se tornaria vazio em si mesmo. Supomos que Janeiro: Nova Fronteira, 1985.
possuímos uma faculdade capaz de se apoderar ________. Sobre a modernidade. São Paulo: Paz
do tempo, produzindo causa e efeito; essa idéia se e Terra, 1997.
contrapõe a outras noções de tempo entre as BEHNKE, Kerstin. Arabescos românticos: linhas
diferentes culturas, como a oriental, a indígena ou sem figura e sem razão entre o escrito – ornamento
a noção cíclica do tempo da tradição grega. e a tela, Cadernos do Mestrado, Instituto de Letras,
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 1995.
A respeito da arquitetura da virada do século, ainda BENCHIMOL, Jaime Larry. Manguinhos – Do
hoje ouve-se a expressão “arquitetura de fachada” sonho à vida – A ciência na Belle Époque. Rio
a qual teria descuidado da técnica e do espaço de Janeiro: Fundação Oswaldo Cruz, 1990.
interno em prol da fachada e de seus ornamentos. BENJAMIN, Walter. Charles Baudelaire um lírico
Entretanto, a qualidade e função de um objeto no auge do capitalismo. São Paulo: Brasiliense,
depende do significado que lhe foi atribuído. Critica- 1989.
se aquilo que, na realidade, adquiriu um outro COLLINS, Peter. Los ideales de la arquitectura
significado funcional e simbólico. moderna; su evolucion (1750-1950). Barcelona: G.
Gili, 1970.
No Pavilhão Mourisco, ou Prédio Central da COMPAGNON, Antoine. Os cinco paradoxos da
Fundação Oswaldo Cruz, a arquitetura reúne duas modernidade. Belo Horizonte: UFMG, 1999.
tendências consideradas incompatíveis: FERNANDES, Cybele Vidal Neto. O ensino de
racionalismo estrutural e construtivismo aliado a pintura e escultura na Academia Imperial das Belas
uma total liberdade estilística. A ornamentação Artes. 185 anos de Escola de Belas Artes. EBA/
intrincada e complexa visualmente convive lado a UFRJ: 2001/2002, pp. 9-40.
lado com a funcionalidade construtiva e a LEMOS, Carlos A. C. Arquitetura Brasileira. São
tecnologia. Razão estética e razão técnica, as Paulo: Melhoramentos – Edusp, 1979.
grandes questões da época, caminham juntas; a LOOS, Adolf. Paroles dans le Vide. Paris: Ivrea,
idéia de conciliar arte e indústria era predominante 1994.
entre muitos arquitetos desde os primeiros tempos LOYER, François. Ornament et caractére. Le siècle
da industrialização. A arquitetura do Pavilhão de l’Ecletisme: Lille 1830-1930, Paris/Bruxelas:
Mourisco mantém o vínculo com o passado, Archives d’Architecture Moderne, 1979, p. 65-104.
materializado nos ornamentos e, paralelamente, dá MARIANNO FILHO, José. Influências
ao seu prédio um caráter moderno, acompanhando Muçulmanas na Arquitetura Tradicional
as novas técnicas construtivas. Brasileira.Rio de Janeiro: A Noite, s. d.
Melhoramentos da Cidade. Primeiro Relatório da
Atacado como um período ausente de obras
Comissão de Melhoramentos da Cidade do Rio de
criativas, tendo a história como modelo, é
Janeiro, 12 de janeiro de 1875. Arquivo Geral da
interessante observar na Basílica do Imaculado
Cidade do Rio de Janeiro, cod. 80-5-11, pp. 7-8.
Coração de Maria a criatividade e liberdade
MICHELL, George (Org.) La arquitetura del
demonstradas na reinterpretação de ornamentos
mundo islâmico. Madri: Alianza, 1988.
mouriscos. A rica ornamentação provoca efeitos
NIETZSCHE, Friedrich. Além do bem e do mal.
ilusórios, partindo de materiais e recursos simples.
São Paulo: Nova Cultural, 1974.
Também é original a utilização de elementos
PAIM, Gilberto. A beleza sob suspeita. Rio de
mouriscos, mais comum nas sinagogas, em uma
Janeiro: Jorge Zahar, 2000.
instituição católica.
PATETTA, Luciano. Considerações sobre o
Os exemplos analisados são a própria face de uma ecletismo na Europ”. Ecletismo na arquitetura
época, com suas contradições, ironias, brasileira. São Paulo: Nobel/Edusp, 1987, pp. 8-
ambigüidades, contrastes, sonhos: a experiência 27.
do novo, a apreciação do antigo. Quanto ao ________. Historia de la arquitectura: antologia
ornamento, não representaria uma intervenção critica. Madrid/Barcelona, Hermann Blume, 1984.
humana naquilo que transcende a função prática? PEREIRA, Sonia Gomes. A Questão da
Ornamentação na Arquitetura Eclética. Arquivos

368
Ornamentos mouriscos na arquitetura do Rio de Janeiro:

da Escola de Belas Artes. EBA/CLA/UFRJ, n.º RUSKIN, John. Unto this last and other writings.
15, 1999, pp. 139-148. Londres: Penguin, 1985.
PEREIRA, Sonia Gomes. A Reforma Urbana de SOARES, Rosane Bezerra. Tradição versus
Pereira Passos e a Construção da Identidade modernização na arquitetura do Rio: ornamentos
Carioca. 2 ed. Rio de Janeiro: Pós-Graduação da mouriscos. Dissertação de mestrado. Universidade
Escola de Belas Artes/UFRJ, 1998. Federal do Rio de Janeiro, 2000.
________. Arte e arquitetura brasileiras no WAJNBERG, Daisy. Jardim de Arabescos. Rio de
século XIX: conceitos. Rio de Janeiro, Pós- Janeiro: Imago, 1997.
Gradução EBA/UFRJ, 1995. Cadernos da Pós- WILFRIED KOCH. Dicionário dos estilos
Graduação n.º 2. arquitetônicos. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
________. Arte no Brasil no século XIX. História
da Arte no Brasil. Rio de Janeiro: CLA/EBA/UFRJ, s. d. Notas
RICCI, Cláudia. “Sob a inspiração de Clio: o 1
Professora do curso de Licenciatura em Artes Visuais da
historicismo na obra de Morales de Los Rios”.
Universidade Federal de Sergipe. Doutoranda do curso de
Revista Gávea, vol. 15, julho/1997. Artes Visuais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.
RIEGL, Alois. Problems of style. New Jersey: 2
A palavra “arabesco” é expressão orientalista, tendo como
Princeton University Press, 1992. origem o termo “rabesco” de onde se originou o nosso
RIOS FILHO, Adolfo Morales de los. Figura, vida “rabisco”.
3
e obra de Adolfo Morales de los Rios. Rio de Por “góticos costumes” deve-se entender costumes
Janeiro: Borsoi, 1959. bárbaros, primitivos, de povos não civilizados e não a arte
medieval.
RUSKIN, John. The seven lamps of architecture. 4
Jaime Larry Benchimol reuniu várias informações sobre
London: J. M. Dent, 1932. a instituição publicadas no livro Manguinhos – Do sonho à
RUSKIN, John. The Stones of Venice. USA: Da vida – A ciência na Belle Époque.
Capo, 1960.

369
capitulo 8
iconografia: identidade brasileira

371
O período compreendido entre a metade do século
XIX e o início do século XX constituiu-se em um
espaço de grandes transformações engendradas
em meio a discussões, propostas e ferramentas
ideológicas que concebe o progresso como o
grande vetor da história e onde as idéias acerca
de “moderno” e “modernidade” pouco a pouco,
concretizam-se em imagens e também em marcos
simbólicos e sólidos.

A referência de modernidade adotada neste texto


está vinculada à idéia desenvolvida neste processo
de transição onde passado, presente e futuro são
linhas que se mesclam, mas, passam a possuir a
experiência de vivência que as distingue, não só
dos demais períodos históricos anteriores, mas, em
uma projeção até então não vivenciada.

A modernidade enquanto experiência urbana


adaptada às peculiaridades históricas do país
implanta-se na remodelação das cidades,
redistribuindo o cabedal de estruturas e serviços
públicos em uma nova materialidade urbana. A
modernidade delineia-se também como experiência
inacabada, esboçada, indicada, fugidia neste
momento de transição.

“a influência das artes na civilização”. eliseu Desta forma, a modernidade implicou de certa
visconti e o pano de boca do teatro municipal do maneira, no aguçamento da sensibilidade moderna
rio de janeiro e na percepção do mundo fenomenal –
especificamente urbano – que era mais rápido,
ana heloisa molina 1
caótico, fragmentado e desorientador do que nos
períodos anteriores. Em meio à turbulência sem
precedentes da cidade, multidões transitam e são
bombardeadas de impressões, choques e
sobressaltos de várias e múltiplas visualidades e o
indivíduo encontra-se diante de uma nova
intensidade de estimulação visual, em vitrines e
anúncios espalhados em todos os cantos.

A cidade do Rio de Janeiro no início do século XX,


capital do Império e da jovem República, apresenta-
se como personagem afeita às mudanças em suas
feições e trajetos reorganizando a experiência
urbana na relação com seus habitantes. Estas
novas disposições redundam na eleição e
construção de símbolos culturais como, entre
outros espaços e elementos, o Teatro Municipal,
inaugurado a 14 de julho de 1909.

As reformas urbanas desenvolvidas na virada do


século XIX ao XX no Rio de Janeiro desdobram-se
em conseqüências sócio-econômico-políticas e
culturais. A construção do Teatro Municipal
enquanto monumento sinalizador de uma tradição
e ao mesmo tempo, em busca de renovação e
elementos modernos, terá em seu estilo
arquitetônico e decorações internas, chaves de
entendimento para a implantação de imagens

373
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

simbólicas de civilização. O pano de boca Desta forma, também há necessidade de leitores


executado por Eliseu Visconti (1866-1944) entre para significar uma imagem, como ainda elementos
1904 a 1908 proporcionará elementos de narrativos para que ocorra a significação. Outra
compreensão desse movimento dialético. perspectiva, acerca de uma idéia sobre artefato
poderia também fornecer algumas pistas. O olhar
Esta enorme pintura a óleo sobre tela (12 metros não reconhece, mas, responde ao que vê.
de altura por 13 metros de largura), dividida em 03 Podemos considerar este aspecto para as críticas
secções, pintadas separadamente, foi colocadas em diversos níveis: pela presença de
encomendada e executada quando Visconti figuras populares na multidão do cortejo e a
encontrava-se em Paris. permanência da figura do segundo imperador na
recente República; para o caráter enciclopédico
Mormente as justificativas colocadas por Frederico dado à composição e concepção do tema e para a
Barata em seu livro sobre a trajetória artística de construção e interpretação colocadas pelas
Eliseu Visconti (BARATA, 1944) no tocante a alegorias.
espaço adequado para a composição de obra de
tal porte e uso de modelos mais experientes Para o tema, o pintor coloca em marcha um cortejo
encontrados na Europa, levam-nos a refletir como de figuras que criavam, patrocinavam ou apoiavam
o pintor ponderou e construiu o tema “A influência as artes, as letras e a música.
das artes na civilização” em um ambiente tão
distinto do brasileiro, e para o qual tal encomenda A questão da multidão envolve a idéia de
estaria à vista para os espectadores do Teatro movimento e indica a imagem de uma sociedade
Municipal no Rio de Janeiro. das luzes, moderna, que congrega e valoriza,
mesmo que esfumaçadamente, todos os
Como pensar o país na perspectiva de viver em representantes das artes para o estabelecimento
outra nação e como esta influenciaria a concepção de uma civilização.
desta composição?
A multidão é fruto das modificações sociais e
É certo que tal espaço a que estaria destinada, avanço tecnológico, que diferentemente das
congregaria espectadores (aqui poderíamos pensar massas do século XVIII, concentra-se nas vias
na abrangência das palavras “expectativa”, públicas das grandes cidades e mantém o
“espetáculo” e “espectro”) de todas as anonimato na mescla de indivíduos, induz o
nacionalidades e teoricamente, de todas as movimento que participa do cortejo e é por ele
classes. Como abranger e ao mesmo tempo conduzido à arte, em que ocorre a ocultação/
“educar” o olhar aos não iniciados a este mundo revelação de sinais.
intelectualizado?
Este cortejo adentra a cena pelo lado esquerdo com
A sugestão de um “protocolo de leitura’ proposto figuras populares, banda e diversos instrumentos
por Chartier poderia indicar alguns caminhos para musicais, bandeiras e crianças, acompanhados das
refletirmos acerca da “leitura visual” e as alegorias Mocidade e Futuro e dois grupos de
interpretações dadas aos seus signos. bailarinas que criam um efeito de asas sobre o
pedestal da alegoria Poesia. Estes traçados e o
Tal forma de pensar os códigos visuais que trajeto estabelecem uma proximidade e imediata
necessitam ser aprendidos pelos que identificação com o público, pois, estaria em um
desejam“ler” as imagens, aproxima-se do que referencial visual mais próximo.
Chartier coloca para o caso da leitura: a questão
de ter havido, no decorrer da história, diferentes Em 1908, quando concluiu seu trabalho, Visconti
“protocolos de leitura” que eram transmitidos e exibia em suas pinturas influências de
ensinados. Chartier, mencionando sobre a impressionismo e pontilhismo, observadas na
diferença existente entre o escrito e o lido, pintura circular do “plafond”, datada deste período
esclarece: “[...] a leitura não está, ainda, inscrita e incorporada em muitos trechos do pano de boca,
no texto, [...] não há, portanto, distância com efeitos de luzes, sombras e cores nestes
pensável entre o sentido de que lhe é imposto estilos.
( por seu autor, pelo uso,pela crítica, etc) e a
interpretação que pode ser feita por seus Para a composição do pano de boca ocorrerá um
leitores: conseqüentemente um texto só existe compromisso com o relato do tema, o que irá
se houver um leitor para lhe dar um significado proporcionar um maior realismo figurativo. Assim,
[...] (REZENDE, 2000: 13) em algumas áreas da composição temos aspectos
mais impressionistas, como as que estão

374
Eliseu Visconti e o pano de boca do Teatro Municipal do Rio de Janeiro

colocadas mais ao fundo, distantes do primeiro entronizados. Música é a arte de combinar sons e
plano e às figuras alegóricas do lado esquerdo. o ritmo é um elemento comum à música de todas
Concorrendo com a execução figurativa, em as culturas. Por isso admite-se a hipótese de que
tamanhos maiores com os efeitos de recurso em a música tenha surgido originalmente como um
névoa, demonstra que o pintor aliou o melhor de acompanhamento rítmico para a dança, que a teria
sua formação acadêmica figurativa e a capacidade precedido.
de adequar e interpretar as tendências estilísticas
quando de sua permanência em Paris. Todas as culturas conhecidas possuem algum tipo
de música, geralmente ligada à religião. A eleição
Veremos que a Arte, figura alada está quase da música como eixo sugere o aspecto mais
diametralmente oposta à alegoria da Poesia, com universal da arte, pois, a música ultrapassa as
o eixo deslocado mais a direita, onde esta empunha fronteiras da compreensão da linguagem escrita
a lira e flores sob um pedestal. ou pictórica, onde muitos de seus signos estariam
restritos a determinadas culturas.“Se a música é a
A Arte seria o vértice de um triângulo formado pela ciência das modulações, da medida, concebe-se
Música coral e os Campos Elíseos. A significação que ela comande a ordem do cosmo, a ordem
deste triângulo está nos aspectos de anunciação humana, a ordem instrumental. Ela será a arte de
e bem-aventurança proporcionados por estes atingir a perfeição.” 2
símbolos.
Outro triângulo maior pode ser traçado. Partindo
A Poesia compõe outro triângulo formado pela da Arte podemos ver uma linha até Schopenhauer
Mocidade e Futuro (em uma linha feita pela Dança (filosofia) 3 e na outra ponta a Ciência.
grega) e pela Dança moderna. O sentido pode ser Representariam as relações entre Arte e Ciência e
lido como a união de jovens e o futuro estariam Filosofia e a contribuição recíproca para o
entrelaçados à arte pela poesia e danças, desenvolvimento de cada área. Aliada à religião,
demonstrando pelos ritmos orais e corporais as representado pelo clero e papado, temos os quatro
manifestações artísticas, em uma linha de pilares da sabedoria humana. Este número e figura
continuidade, base da arte. estão relacionados à Perfeição Divina, o
desenvolvimento completo da manifestação,
Lembremos que o triângulo é a primeira forma símbolo do mundo estabilizado.
fechada obtida pela união das linhas e significa
concretização. Símbolo da Trindade, com o vértice Lembremos que a obra principal de Schopenhauer
para cima, representa o espírito liberto da matéria, ‘O mundo como vontade e como representação’
o que sinaliza, por exemplo, a Arte em seu ponto exerceu forte impacto no pensamento moderno
ápice. mediante o diálogo revitalizado com a tradição
filosófica de Platão e Kant e seus conceitos de Idéia
Ao lado esquerdo temos um quadrado formado pelo e coisa-em-si, bem como estimulou artistas como
clero, Música instrumental, Ciência e Verdade. Wagner, Proust, Mann e Machado de Assis, entre
outros, devido a sua concepção da arte como forma
Ao lado direito, temos um quadrado formado a partir
especial de conhecimento, superior à ciência por
dos músicos em posição mais elevada em relação
nos trazer satisfação metafísica4, o que de certa
ao cortejo: Santo Ambrósio, Palestrina, Beethoven
forma, viria ao encontro à concepção de arte
e Carlos Gomes.
pensada por Visconti.
Lembremos que o quadrado é um dos quatro
Diversos retângulos podem ser traçados, da parte
símbolos fundamentais (os outros seriam: centro,
externa, diminuindo até o centro, localizando os
círculo e cruz) e implica a idéia de estagnação,
pontos Música coral, Campos Elíseos, o grupo
solidificação e até mesmo de estabilização na
formado por Schopenhauer-Mozart e o grupo com
perfeição. Na tradição cristã, o quadrado em virtude
os personagens brasileiros. Recordemos que o
de sua forma igual dos quatro lados simboliza o
retângulo é um quadrado longo e possui a
Cosmo e seus quatro pilares de ângulo. Designa
simbologia da perfeição das relações estabelecidas
também os quatros elementos essenciais (água,
entre terra (os personagens apontados) e o céu
fogo, ar e terra) e os quatro pontos cardeais.
(Campos Elíseos e Música coral) e o desejo da
Veremos que a música será a linha que une todas sociedade de participar dessa perfeição.
as outras manifestações artísticas ressaltando os
Um pentágono pode ser traçado tomando por base
maiores músicos ou aqueles que proporcionaram
a Arte e traçando linhas a Beethoven, Poesia e
grandes mudanças sendo aclamados e
“glórias brasileiras”. Se pensarmos a reta formada

375
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

pela figura de Beethoven ao grupo “brasileiro”, e estava visível), no próprio atelier de


veremos que os personagens aí tomados Chavannes à crítica francesa, recebendo os
representam as manifestações artísticas da maiores elogios. Alguns críticos parisienses
música, teatro, literatura, pintura, arquitetura, e filiaram a maneira pela qual Visconti pintou o
ainda, as alegorias da Mocidade e do Futuro. pano de boca à dos pré rafaelitas
ingleses.(BARATA, 1944:122)
O pentagrama simboliza a harmonia universal (o
cinco é o símbolo da união, do Homem - os cinco A crítica brasileira, porém, foi mais severa e
sentidos e as cinco grandes qualidades humanas: provocará um debate pelos jornais. Barata, assim
amor, bondade, justiça, verdade e sabedoria - e do reporta.
Universo – os quatro pontos cardeais acrescido do
centro é o universo manifestado - representam a O pano de boca foi colocado no Teatro
ordem e perfeição) e podemos sugerir que o Municipal em julho de 1908, antes da
amálgama de todas estas manifestações da arte inauguração oficial em 14 de julho de 1909, na
busca atingir este objetivo: a elevação, a perfeição presidência de Nilo Peçanha. A crítica
e a harmonia sem distinções. brasileira, ao contrário da parisiense, recebeu-
o muito mal, sofrendo rudes ataques da
Um heptágono estaria formado pelas linhas que imprensa. Censuravam-no uns por ter colocado
unem a Arte, Van Dick, Verdi, Poesia, Benjamin três figuras de negros entre a massa de
Constant e Música instrumental. populares que exaltam o grande cortejo
histórico. Isso nos diminuiria consideravelmente
A forma sete indica o sentido de uma mudança aos olhos dos estrangeiros que iam freqüentar
depois de um ciclo concluído e de uma renovação as temporadas do Teatro Municipal que
positiva, além de propor a totalidade do universo poderiam pensar que fôssemos um país de
em movimento. Se pensarmos nos elementos pretos. Um descobriu bananas no taboleiro
ligados, veremos que Benjamin Constant foi o único sustentado por uma dessas figuras e as
republicano retratado (temos outros personagens devolveu insultado ao pintor. Outros, chamando
em cena que lutaram por este projeto político, mas, de “cortejo carnavalesco” à grande
enquanto liderança ou “fundador” da República, é composição, atacavam rudemente o artista. É
o único), o que sugere a leitura da união da arte certo que esses ataques visavam,
em apoio a um movimento de renovação: o indiretamente a Pereira Passos, a quem a
republicano. imprensa não pudera perdoar ainda a
indiferença pela campanha movida contra a sua
Um losango (que é um quadrado alongado) estaria administração, ao proceder as derrubadas para
também formado pelos pontos Arte, Filosofia, a remodelação do Rio. (Id., 1944:123)
Poesia e Ciência. Símbolo do Universo
materializado na Terra significa base e organização, São significativas tais reações. Os vetores e
ou seja, estes elementos estruturam o argumentos utilizados englobam um feixe de
conhecimento materializado em prol da proposições ideológicas, sociais e políticas que
humanidade. envolvem a construção de uma imagem para o
Brasil, pois, não seria admissível o país ser
É importante observar que este é um jogo complexo apresentado por um “cortejo carnavalesco” em que
e a relação entre os signos e o que eles figuravam populares e negros em um espaço nobre,
representam não é unívoca: o símbolo não está destinado a manifestações artísticas elevadas e
ligado a uma função única e o local em que está cartão postal civilizatório para o mundo.
impresso, pode estar imbuído de múltiplos valores,
eventualmente ambíguos, possibilitando outras Por outro lado e compondo com esta imagem,
leituras. refletimos que o espaço urbano está atrelado a uma
rede de relações sócio-culturais e políticas em um
Repercussões e reações ao pano de boca circuito de memórias, esquecimentos, afetividades
e práticas cotidianas. Assim, podemos tomar os
Vejamos as repercussões da cena apresentada no
re-desenhamentos do espaço urbano, os
pano de boca quando da exposição em Paris no
planejamentos e as desocupações do centro da
ateliê de Visconti .
cidade, as escolhas de projetos arquitetônicos em
Frederico Barata em seu relato comenta: tais ou quais estilos e a eleição/destruição de
marcas de materialidades físicas como
Ao terminar o pano de boca em 1908, Visconti documentos na concepção de sua visibilidade,
expôs a parte inferior (cabia na área disponível interpretações e intenções.

376
Eliseu Visconti e o pano de boca do Teatro Municipal do Rio de Janeiro

Ao projetar re-ordenações em sua malha urbana, Referências bibliográficas


intentando demonstrar uma concepção de
civilização e civilidade em uma cultura urbana, re- BARATA, Frederico. Eliseu Visconti e seu tempo.
configura suas marcas em outros jogos de poder, Rio de Janeiro: Editora Zélio Valverde, 1944.
de idéias, de normas. BARBOZA, Jair. A metafísica do Belo de Arthur
Schopenhauer. São Paulo:Humanistas/FFLCH/
O Rio de Janeiro na virada para o século XX USP, 2001.
vivencia este processo em graus de resistência C H E VA L I E R , J . e G H E E R B R A N T, A .
diversos às diretrizes ideológicas e concretas de Dicionário de símbolos. São Paulo: José
implementação de novos modelos de convívio Olympio,1999.
urbano em combates pelos jornais ou na forma de REZENDE, Eliana Almeida de Souza. Imagens
re-apropriações e re-utilizações de espaços na cidade: clichês e foco – o olhar sanitarista.
destinados ao desfile de novos setores sociais, em História Social. Campinas.Unicamp. n.o 7
outras leituras conotativas. .2000.

O Teatro Municipal como monumento atrelado aos Notas


ideais culturais mais elevados será objeto de
1
concretização dessas idéias, projetando visualidades: Departamento de História. Universidade Estadual de
Londrina. Doutora em História (UFPR).
arquitetônicas, decorativas e simbólicas. 2
Boécio distingue três tipos simbólicos de músicas: a
música do mundo, que corresponde à harmonia dos astros
O pano de boca executado por Visconti nos habilita e surge de seu movimento, à sucessão das estações e à
a pensar as imbricações visuais, políticas e mistura dos elementos. O segundo tipo é a música do
ideológicas em um período de intensas mudanças, homem: ela rege o homem, e é em si próprio que ele a
possibilitando perceber as estratégias de apreende, supõe um acordo da alma e do corpo..uma
permanência de estruturas ligadas ao regime harmonia das faculdades da alma.. e dos elementos
político anterior e os artifícios de concepções de constitutivos do corpo. Por fim, a música instrumental regula
“moderno” e “civilização” a serem implantados pela o uso dos instrumentos. CHEVALIER, J. e GHEERBRANT,
A. Dicionário de símbolos. São Paulo: José
República. Olympio,1999, p. 627.
3
É interessante observar que Schopenhauer é o único
As leituras desta composição proporcionam chaves filósofo representado e na relação das figuras ocupa
de entendimento deste embate. Visconti capta e o lugar 37, ou seja, a metade dos personagens
filtra com sua sensibilidade artística, uma dessas listados.
dimensões e transpõe em personagens, alegorias 4
A respeito desta temática ver BARBOZA, Jair. A
e narração pictórica, enciclopédica porque não, um metafísica do Belo de Arthur Schopenhauer. São Paulo:
instante fugidio daquele presente, rico em Humanistas/FFLCH/USP, 2001.
contradições.

377
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República
Imagens sempre nos instigam a imaginar,
concretizar uma narrativa através de nossos
conhecimentos acerca do tema retratado. Nessa
busca pela historicidade de uma tela do passado
muitos historiadores tem sido atraídos pela
produção artística nacional. Este é o meu caso: é
tentador interpretar uma produção pictórica
individual à luz de conceitos mais gerais – políticos,
sociológicos e históricos. A tarefa de “ler” o que é
pintado acaba, entretanto, se constituindo numa
tarefa árdua e por vezes frustante, especialmente
quando nos damos conta que além de construir
visualmente acontecimentos da época:
descobrimento, primeiras missas, independência,
proclamação da república, batalhas, grandes
personalidades políticas, bem como monumentos
e fundações de cidades, os artistas outras vezes
nos falam do não acontecido: discursos poéticos,
lendas, romances literários e sonhos diversos.

Até por volta da metade do século XX era comum


explicar as composições de um artista por suas
qualidades de ciência exata, fiel aos
acontecimentos históricos, da qual dependia os
atributos de artista como pesquisador dos fatos ou,
no caso de um trabalho sem referências
historiográficas, como obra de sua aguçada
criatividade e talentos artísticos aprimorados na
imagens e imaginário na construção do real academia de artes. A situação pode ser
exemplificada na observação de duas telas do
andré cozzi 1 pintor Theodoro Braga: a primeira, concluída em
1908, feita sob encomenda da prefeitura da cidade
de Belém do Pará, tentava dar conta da chegada
dos portugueses as nascentes do rio Amazonas
em 1616 e tem como título “A fundação da cidade
de Belém do Grão-Pará”. O outro quadro, pintado
por volta do ano de 1929 e que figura, entre outras
obras de referência, na História da pintura no Brasil
de José Maria dos Reis Júnior, publicado em 1944,
fala de um não acontecido. É intitulado “Fascinação
de Iara” e tenta dar materialidade a uma lenda bem
conhecida em todo o Brasil sobre uma mulher que
vive nos leitos dos rios e seduz mortalmente os
homens desatentos.

Diante destas duas telas em 1967 um acadêmico


do Instituto Histórico e Geográfico do Pará - IHGP,
discursando sobre Theodoro Braga, seu paraninfo
naquele Instituto, fez o seguinte comentário:

Persegue-nos a DÚVIDA; no entanto, a


justificar-se, desde que, no reino das musas
convivem deusas de ciências e deusas de arte;
e nós, deste barro mal cozido, pegajoso,
conformemo-nos em deslumbrarmo-nos com
estas e com aquelas. Por isso é que, a nosso
Theodoro Braga, devemos admirá-lo nas
facetas ambas: de cientista, (historiador,
geógrafo, sociólogo), e na de artista,

378
Imagens e imaginário na construção do real

estereotipada esta na arte da pintura. Amou o valores estéticos da Europa retardava e chegava
belo, quando estudava e escrevia História para mesmo a impedir o surgimento de um estilo
lavrar seus quadros de História, [...] como tipicamente nacional. Tais questões sobre a arte
quando executou o “Fundação da cidade de foram amplamente exploradas em muitos
Nossa Senhora de Belém do Grão-Pará[...]. momentos.
amou o belo quando lavrou a “Muiraquitã –
Fascinação de Iara” (ARAÚJO, 1967: 200). Na exposição da Academia Imperial de Belas Artes
de 1879 já era bastante evidente a busca por uma
Os comentários de Luiz Romano da Mota Araújo identidade artística nacional. Naquela ocasião a
nos conduzem a uma forma de perceber o mundo, exposição das telas “Batalha dos Guararapes”, de
que subsiste mesmo nos tempos atuais: o de Victor Meireles (1875 – 1879), e “Batalha do Avahy”,
conceber a arte com uma função pragmática no de Pedro Américo (1874 – 1877), iniciaram uma
meio social, para educar e promover o progresso discussão que demarcou a formação da crítica de
do país e por outro lado a arte como estética do arte no Brasil e acabou extrapolando para os
belo. Há por trás de tais conceitos, entretanto, um posicionamentos políticos que culminaram com a
forte teor ideológico de controle social. Desde que proclamação da República em 1889. Pedro
Aristóteles escreveu seus tomos sobre política e Américo foi tomado como um pintor anti-
poética, separando realidade e ficção em dois acadêmico, sendo muito criticado por membros da
mundos distintos e irreconciliáveis, temos a nítida academia, mas acabou por receber apoio da região
impressão que a vida humana segue uma regra de São Paulo, um emergente centro econômico,
similar. Vivemos sempre fazendo estas sendo incumbido da tarefa de pintar o quadro “Grito
separações: o real e o imaginário, que devem ser do Ipiranga” (1885 – 1888). Nesse caso, o artista
analisados sempre separadamente. era preterido mais pelo seu desapego as rédeas
da academia (pois esta nunca havia produzido um
Relevantes trabalhos no campo das ciências quadro tendo como referência a paisagem paulista)
sociais tem demonstrado que tal separação impede que por seu estilo pictórico.
uma análise mais precisa dos acontecimentos a
nossa volta. No campo das ciências biológicas, As críticas em torno desses dois pintores foi
para citar um exemplo, uma mudança de atitude amplamente veiculada em jornais e periódicos da
nesse sentido permitiu avanços nunca antes época, legando aos dias atuais um importante
alcançados. No livro “O erro de Descartes: emoção, acervo documental, permitindo aos pesquisadores
razão e o cérebro humano”, o neuropsicólogo o confronto e entendimento das expectativas em
Antonio Damásio analisa o papel desempenhado relação ao nascimento da arte nacional. Mas ainda
pelas emoções em nossa vida. Somos informados é necessário um aprofundamento tanto horizontal
que sem as emoções seria impossível como vertical para uma compreensão mais densa
desenvolvermos o pensamento racional. Sob esse destes acontecimentos. “Assim, enquanto alguns
ponto de vista, o quadro “Fascinação de Iara” se pontos desse embate estavam mais ou menos
constitui numa importante referência iconológica claros, como o relativo à composição, outros
sobre o tempo em que foi produzido, bem como permanecem obscuros e incertos, principalmente
sobre seu autor, desfazendo com isso conceitos a idéia de natureza e suas implicações para a arte”
por muito tempo utilizados para classificar a arte e (ALVES, 2003: 165).
os artistas com formação acadêmica: marcados
pela austeridade, seriedade, apego a regras Mesmo após as reviravoltas políticas de 1889 o
clássicas do desenho e uso das cores, acabando dilema sobre como representar o meio no qual
por relegar esses artistas ao ostracismo de uma vivemos persiste. A formação na Academia de
arte retrógada que caducou após 1922. Belas Artes manteve como referente o modelo
europeu: depois de receber as primeiras lições no
Theodoro Braga, para além das aparências de Rio de Janeiro os artistas partem para o exterior,
intelectual bem comportado tão pontuado no em grande parte para a academia Julian, na França,
discurso de Luiz Romano, era um artista as voltas para aprimorar seus conhecimentos. Esse foi o
com as adversidades de sua realidade. Havia muito caso do pintor Theodoro Braga. Iniciado na pintura
tempo os artistas brasileiros estavam envolvidos pelo paisagista Telles Júnior, quando ainda cursava
na discussão sobre uma arte genuinamente direito na cidade de Recife, em 1894, ao concluir
brasileira, que na opinião de alguns só seria os estudos na Faculdade de Direito, segue para a
possível pelo aprofundamento de técnicas cidade do Rio de Janeiro e matricula-se na
consagradas por grandes mestres europeus Academia Nacional de Belas Artes. Em 1899 faz
(principalmente os da escola francesa). Para os testes para aquisição do prêmio de viagem a
outros, no entanto, esse apego da academia aos Europa oferecido pelo governo e segue para Paris
379
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

em 1900 onde passa dois anos, depois para a passou a valorizar os aspectos singulares de cada
Inglaterra, onde passa mais dois anos e finalmente região. No Brasil, esta nova perspectiva se faz
para a Itália, por mais um ano. De volta ao Brasil sentir principalmente em relação à heterogeneidade
em 1905 vai para sua cidade natal, Belém do Pará, da população: os estudos sobre folclore dividem a
e lá recebe a encomenda oficial para a tela população em habitantes das matas, das praias,
“Fundação da Cidade de Belém do Grão-Pará”, das margens dos rios, dos sertões, das cidades.
exposta ao público em 1908, durante as Por um lado, seguindo as tendências científicas
comemorações pelo natalício do intendente mais correntes no exterior (como a do naturalista
municipal. britânico Bukle – sobre a influência dos ventos
alíseos nas características dos povos do atlântico
É possível verificar já nesta primeira grande sul) a idéia central recaía na crença de que nas
encomenda significativas modificações na forma terras brasileiras a natureza suplanta o homem.
de conceber e representar a natureza. No quadro Daí a preocupação de Euclides da Cunha em incluir
sobre a fundação de Belém é perceptível a em “Os Sertões”, um livro que foi e continua sendo
preocupação do pintor com as particularidades da uma peça chave para o entendimento do
natureza regional. Atento a crítica local, que já havia pensamento intelectual do modernismo brasileiro,
anteriormente chamado a atenção ao fato do pintor dois longos ensaios sobre A Terra e o Homem. De
Antônio Parreiras, na obra “A conquista do fato, esta é uma idéia que perdura: o escritor
Amazonas”, ter descuidado quanto aos “traços paraense Osvaldo Orico, no livro “Mitos ameríndios,
fisionômicos dos indígenas”, demonstrando que sobrevivências na tradição e na literatura
“Parreiras não é familiarizado com o índio; não brasileira”, que teve sua primeira edição publicada
obteve, talvez, modelos em condições, de modo em 1929, percebemos a recorrência desta fórmula
que aos silvícolas, que são o elemento tão para explicar a variedade das manifestações
apreciável na sua composição, falta algo na cor, culturais espalhadas pelo território nacional. Através
na expressão, na musculatura, na estrutura de uma metáfora descreve a oposição entre campo
orgânica, até” 2 . Assim, no quadro de Teodoro e cidade; atraso e progresso:
Braga persiste uma profunda pesquisa bibliográfica,
que resultam na fiel presença da flora local, não [...] duas flores realizam o seu destino de
apenas pelo que é mais peculiar, como a maneira diversa: a que brotou naturalmente da
seringueira do centro do quadro, símbolo terra, na primavera obscura de suas origens, e
econômico da região, ou a imbaubeira envolta em a que surgiu lentamente do solo, regada pelo
cipós, representante da grandiosidade da floresta suor e alentada pela cobiça. Duas flores que
amazônica, mas também por detalhes de fundo, marcam os rumos de nosso espírito e falam
como as nuvens carregadas, comuns a região no dos contrastes de nossa história: a da tradição
mês de janeiro, data da chegada da expedição de e a da Cultura. (ORICO, 1930: 14-15).
Castelo Branco, além de guajarás e aturiás, outras
espécies vegetais bem comuns a região. A primeira “flor” atrai por seu exotismo primitivo,
suas lendas e amuletos (uirapurus e muiraquitãs),
Temos já nesses primeiros anos do século XX os ervas aromáticas, olhos de Boto. A outra “flor” é
contornos de uma pintura que busca por uma “coloração variada e aventurosa”, “É o mundo
identidade própria sem necessariamente entrar em dilatado e industrial da raça que trabalha”.
choque direto com a escola oficial do Rio de Demonstra com isso o autor sua preocupação de
Janeiro. Perseguindo a trilha aberta pelo professor que a industrialização e a implementação das
Caleb Faria Alves, a partir de um conceito de Pierre técnicas modernas façam desaparecer a tradição;
Bourdieu 3, seria ingenuidade de nossa parte “Porque a flor não tardará a desaparecer, para ficar
acreditar que a prática desses artistas era a apenas como relíquia de nossa lembrança a jóia
concretização de uma liberdade absoluta motivada selvagem de nossa emoção...” (ORICO, 1930: 17).
pela espontaneidade criadora. Antes, parece ter Como exemplo dessa ameaça de extinção cita o
havido o preenchimento de uma lacuna estrutural, naturalista Barboza Rodrigues, que em 1884, na
criada a partir das contradições existentes nas cidade de Manaus, quando ao indagar uma índia
próprias técnicas e regras ensinadas na academia, sobre por que não chorava a morte do marido ouve
questionadas a partir da exposição de 1879 como resposta: “Nos já não temos alma, os tapuias
(ALVES, 2003: 136). só tem corpo” (Ibid.: 19).

A idéia de que a natureza brasileira precisava ser A crença num determinismo geográfico faz com que
interpretada e figurar com originalidade nas as pesquisas sobre as origens dos povos recaiam
produções artísticas também era perseguida pela invariavelmente sobre o folclore. Daí a preocupação
literatura nacional, que semelhante a pintura em preservar a tradição como uma espécie de
380
Imagens e imaginário na construção do real

identidade filogenética, capaz de explicar as mitologia nascida do encontro entre homem e terra,
peculiaridades do comportamento dos brasileiros manifestada em forma de lendas. Citando o livro
nas diferentes regiões do país e constatar a Lendas e canções populares4, de Juvenal Galeno,
evolução civilizadora dos mesmos, como ocorreu faz uma defesa da presença de uma fatalidade
nos demais continentes. Ainda no livro de Orico, histórica, de uma vocação natural para a música e
podemos encontrar um capítulo intitulado “O poesia próprias, original. Daí conclui: “Cabe-nos
Homem e a Terra”, que faz uma relação entre a agora proceder ao exame desse quadro,
literatura e os eventos sociais e políticos. Para ele estudando-o através do sentimento da natureza,
a literatura é como um “espelho” das lutas e triunfos do sentimento da raça e do sentimento da história”
da civilização. Defende que desde o início, como (p. 29). Segundo tais idéias, o que nos distingue
colônia, no Brasil já havia o desenvolvimento de como povo é a íntima relação com a natureza.
um sentimento de coesão social, inicialmente Desde o descobrimento houve uma forte ligação
nativista, que depois passa a ser nacional. Essa entre os homens e a natureza exuberante. Cita Pero
literatura recebe influência direta do elemento Vaz de Caminha, Manuel da Nóbrega, Anchieta,
tradicional. Pero Magalhães Gandanvo, Gabriel Soares de
Souza, como homens seduzidos e fascinados pelas
A literatura de uma raça, ou simplesmente a belezas naturais do Brasil.
literatura de um povo, não está, por certo, no
simples instante que marca o esplendor dessa Apoiando-se nas teses científicas do período,
raça ou desse povo. Há um avizado conclui que existe uma fatalidade geográfica na
antecedente que nos conduz ao exame de suas formação de todas as culturas – sua organização
forças emotivas; que nos leva á contemplação política e de direito. A intenção é romper com a
da beleza em suas fontes obscuras e humildes, idéia de povo selvagem e incapaz, inexpressivos,
que nos transmite a indicação de seus mistérios refratários a civilização. Esclarecendo as
e genialidades; que nos revela a graça de suas resistências de Tamoios e Potiguares a chegada
imagens e a surpreza de seus ritmos. (Id., 1929: dos portugueses, Orico sustenta a influência dos
22). franceses e não uma indisposição natural do gentio
contra a civilização. A participação efetiva dos
Orico faz uma analogia entre o desenvolvimento indígenas garantiu a “construção do paiz”, por isso
das civilizações da Índia, citando Mahabarata e o não somos simples prolongamento do “gênio
Ramayana, da Grécia, nos poemas de Homero, português na América” (p. 38). Houve uma mistura
das florestas centrais da Europa, com o misticismo do sangue e da tradição portuguesa com o sangue
dos Normandos, epopéia dos Niebelugen. No caso e costumes dos indígenas – influiu e sofreu
do Brasil, as raízes das origens de sua civilização influência. Não houve uma passividade dos negros
encontram-se na região norte do país: e índios no contato com o português, bem como
na construção do país.
Reconhecem os decifradores da nossa
formação e os interpretes de nosso espírito O sentimento nacional deriva, antes de tudo,
nativo, que é na região septentrional do paiz das paisagens que nos cercam e do ambiente
que rezidiu e ainda hoje rezide o maior em que se banha nosso espírito, da tradição
contingente de ritmos e lendas que nos que nos acompanha nos transes emotivos. A
transmitem uma idéia mais viva de nossas tradição é, assim, o vínculo de uma
origens distanciadas e de nossas feições solidariedade com o meio e o patriotismo o seu
diluídas. (Id., 1929: 25). instinto defensivo (ORICO, 1929: 44).
Para o autor de Mitos Ameríndios, a região norte Para apoiar suas conclusões sobre a influência do
recebeu, até então, pouca influência das correntes meio e da tradição popular na formação de um
migratórias da ambição e do trabalho, da civilização povo, Orico cita Herman Keyserling5 e conclui: “A
industrial e agrícola. O que restou, como reação hereditariedade assim entendida não é uma simples
impávida, foram três tipos de nosso habitat: no sul, transmissão de sangue, mas a força da tradição”
o gaúcho; no nordeste e norte, o cangaceiro e o (p. 45). Por fim, argumenta ele, o próprio nome
cantador. Colocam-se como representantes de um Brasil é o resultado da forte influência desta
mundo intermediário: os caboclos amazônicos, o tradição, vencendo as designações oficiais numa
sertanejo maranhense, o vaqueiro do Piauí; o clara manifestação de distinção em relação a
jangadeiro do Ceará, o jagunço da Bahia; o tabaréu Portugal. Elege o livro escrito por Frei Vicente do
de Sergipe; o caipira paulista e o garimpeiro de Salvador como o testemunho claro da formação
Minas Gerais. No fabulário destes elementos de uma autentica história nacional, que foi ocultada
encontra-se a presença de um espírito próprio, uma durante dois séculos pela coroa portuguesa, vindo
381
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

a lume apenas após 1881, que até chegou a ser Queremos luz, ar, ventiladores, aeroplanos,
utilizado anteriormente por Varnhagem em Lisboa, reivindicações obreiras, idealismos, chaminés
mas avaramente este o manteve em segredo. de fábricas, sangue, velocidade, sonho na nossa
arte. E que o rufo de um automóvel, nos trilhos
A idéia sobre a prevalência do determinismo de dois versos, espante da poesia o último deus
geográfico em nossa formação como povo tinha homérico, que ficou anacronicamente a dormir
uma profunda penetração no meio social. Em e a sonhar – na era do jazz band e do cinema –
Belém, durante solenidade em comemoração pelo com a frauta dos pastores da Arcádia e os seios
centenário da Revolução Pernambucana de 1817, divinos de Helena. (JORGE, 1994: 462)
realizada no Teatro da Paz, no dia 6 de março de
1917, os oradores invariavelmente, de forma direta Ciência e folclore fornecem combustível para as
ou indireta, consubstanciavam sua retórica com mais diversificadas formulações sobre nossa
argumentos cientificistas. O pronunciamento do Dr. origem como povo. No livro “Muirakytã e os idolos
Ignácio Moura, presidente da diretoria provisória symbólicos, estudo da origem asiática da civilização
do IHGP, é publicado na íntegra na revista daquele do Amazonas nos tempos prehistóricos”, de 1899,
instituto, em sua edição de novembro de 1917. As o então diretor do Jardim Botânico do Rio de
palavras proferidas naquela ocasião mostram a Janeiro, naturalista Francisco Barboza Rodrigues,
afinidade daqueles homens na crença da influência defende a idéia de que os muiraquitãs encontrados
do meio em nossa constituição como povo: por ele na região de Alter do Chão, na cidade de
Santarém, no estado do Pará, são compostos
A química social tem dessas vagarosidades, geologicamente por material oriundo do continente
na combinação dos elementos orgânicos e asiático (nephrite), precisamente da China. Este
inorgânicos, físicos e morais, que entram em amuleto seria o símbolo de uma civilização já
seus fenômenos, para produzirem mais tarde, desaparecida (os Káras), vindos da Ásia para o sul
através do tempo e do espaço, a estrutura e do continente norte-americano, e migrado
construção de um povo, sob o mesmo aspecto posteriormente para as margens dos rios da bacia
social com o mesmo fim econômico. amazônica, e que tinham nas Icamiabas
(CONSELHO ESTADUAL DE CULTURA, 1972: (amazonas) as guardiãs destas relíquias. Rodrigues
179)6. permeia suas assertivas com os relatos das lendas
do Muiraquitã, do Jurupari e das Amazonas, entre
Durante aquela solenidade de criação do IHGP outras, para comprovar sua tese.
podemos perceber um certo distanciamento do
aspecto político para a formação de uma cultura. A origem de muitos povos do Brazil e principalmente
Sabemos que durante o período bellepoquiano os da região cortada pelos rios para os quaes o
forma-se o caráter social por meio de leis, como é Amazonas é arteria gigante, está n´uma destas
o caso dos códigos de posturas adotado por muitos paginas; e com um pequeno monumento
municípios brasileiros, que impunham regras mineralogico, precioso luzeioro nas mãos do
(beirando às vezes o absurdo) sem nenhuma archeologista, o Muyrakytã, procuro estudal-a e,
relação com o cotidiano local, estranha à maioria se não vejo esclarecida toda a população desta
da população. A situação após os acontecimentos grande zona, apresenta-se-me clara a parte que
de 1914-1918 é de procurar uma renovação de habitou uma determinada região. (RODRIGUES,
energias criadoras do real, baseadas em aspectos 1899: vol. 1, p. I).
econômicos e sociais.
Presos a esse Muyrakytã, o fanal que me tem
Face a crise política e econômica em que mergulha guiado para diversos pontos, acham-se vários
o mundo nos primeiros anos do século XX, o episódios que se consideram lendas, e são
encanto exercido pela Europa como modelo de estas que muito favorecem a peregrinação
civilização entra em crise, fazendo crescer a busca pelos estadios dos tempos idos. (Ibid.: p. IX).
por modelos próprios, que privilegiasse a técnica
moderna mas sob um personalismo nacional A repercussão de trabalhos científicos que
independente, original, demarcando com isso a envolvem o folclore, como o de Barbosa Rodrigues,
alteridade, a soberania dos brasileiros sobre seu mais tarde serão largamente utilizados para pensar
mundo, sobre seus corpos, e por conseqüência, o povo brasileiro, esse parece ser o caso da tela
sobre seus destinos: homem americano e tropical. fascinação de Iara. Assim temos o quadro: a bela
Durante a semana de arte moderna de 1922, as figura (no sentido mais contemporâneo de Braga)
palavras proferidas por Menotti Del Picchia dão o da deusa-mulher Iara ou Uiara, da cosmogonia
tom deste desejo de libertação: indígena, no fundo de um lago entre Vitórias-régias7
– parece haver uma estreita relação desta

382
Imagens e imaginário na construção do real

ambientação com outro quadro de Braga: “o lago Iara, como quando consideramos sua habitação
da Vitória Régia” – sendo admirada/desejada por no fundo dos rios. A água por si só já traz uma
um observador agachado as margens da lagoa. série de conflitos existenciais: para Tales de Mileto
a origem e base de todas as coisas, enquanto que
Seria esse quadro portanto a tentativa de sintetizar para Heráclito representava a morte e o devir de
as discussões sobre esse novo modelo social, no todas as coisas, um movimento de constante
qual os elementos que anteriormente serviam mudança. Associada à mulher a água também pode
apenas como motivos ornamentais, imersos junto ser vista como representação dos aspectos
à natureza selvagem, adquirem cada vez mais ambíguos e misteriosos encerrados no corpo da
presença como sujeitos: os indígenas que no mulher, a natureza feminina.
quadro “A fundação da Cidade de Belém” servem
apenas para pontuar a mudança para um estágio Assim, temos na água, e por extensão na mulher,
do processo civilizador iniciado com a chegada dos a origem e o fim; a vida e a morte; o bem e o mal;
portugueses, sem muita importância para a a benção e a maldição. Tais características também
constituição de uma nova e melhor realidade, podem servir de metáfora quando falamos
estando mesmo fadados a completa extinção, uma historicamente em períodos de mudança e ruptura:
genuína peça de museu, são agora figuras centrais O dilúvio, a queda de Babilônia, a travessia do Mar
para o entendimento de quem somos como povo. Vermelho, para citar apenas os exemplos da
tradição judaico-cristã. Algo semelhante parece
O Brasil tem um segredo na sua natureza: é o motivar muitos pensadores nacionais durante os
mistério das Uiaras. Si alguém se atreve a anos vinte do século XX: o mundo pós-1914 parece
conhecê-lo, si leva a peito estudá-lo, começa ter marcado profundamente as perspectivas quanto
a ver tanta coiza e coizas tão lindas, nas suas ao futuro; parecia haver de fato a crença de estarem
florestas e nos seus rios, enleva-se de tal vivendo num período de transição.
maneira no capricho de suas fórmas vivas, nos
imprevistos de sua população primitiva, que Todo esse imaginário evocado pela pintura da Iara
logo se prende dum amor tão grande, tão é um motivo para materializar o sentimento sobre
sincero e tão profundo, que nada há que o o período em que ela é concebida. Essa é uma
afaste desse abismo. Na lenda dos seus característica presente em outros quadros e parece
primeiros filhos houve talvez a idealização do também ter exercido sua influência sobre Theodoro
Brazil; quem logra vê-lo não reziste, mergulha, Braga. No quadro “Ophélia”, produzido entre 1851-
déce, afunda nos seus encantos e perde-se por 52, pelo pintor inglês John Everett Millais (1829-
amor de suas maravilhas. (ROQUETTE-PINTO, 1896), especialmente no posicionamento e atitude
Seixos Rolados. In: ORICO, 1930, p.119). dos braços em crucifixo, além do olhar perdido,
estabelece um vínculo com o quadro da Iara de
Para Roquette-Pinto, citado acima8, o mistério das Braga. Seu autor, tido como um dos precursores
Uiaras representaria o fascínio que as belezas da confraria Pré-Rafaelita de 1848, que buscava
naturais brasileiras despertam naqueles que por inspiração nos pintores primitivos da Itália,
ele se aventuram; Osvaldo Orico ao explicá-lo representa a imagem idealizada da mulher trágica,
sugere ser esta fascinação, despertada pelas predominante na pintura romântica. Os pintores
inebriantes belezas naturais do Brasil, a certidão desta confraria se posicionavam contra o estilo
de nascimento de nossa verdadeira identidade acadêmico praticado pela escola inglesa,
nacional. Isto situaria a gênese de uma cultura considerado incapaz de atender as ansiedades do
genuinamente brasileira já a partir da chegada de período. Buscavam, como o nome indica, temas e
Cabral em 1500, quando Pero Vaz de Caminha valores do período anteriores ao pintor
escreve ao rei português contando das renascentista Rafael, ou seja, à tardia Idade Média
exuberâncias das terras brasileiras, estabelecendo e ao primeiro Renascimento. Para esta análise é
com isso uma íntima e forte ligação entre o homem importante ressaltar a busca por fontes de
e natureza; tão profunda quanto à ligação inspiração mais autênticas, que no caso destes
consangüínea entre pessoas de uma mesma pintores acabou sendo a Idade Média, os mitos de
parentela. origem celta e grega, personagens e cenas da
história ou da religião. Entre as grandes influências
Toda esta renovação intelectual transparece ao recebidas, está a de procurar por fontes inspiração
quadro e parece vir acompanhada de elementos que remetam a um passado nacional distinto,
desconcertantes. Este caleidoscópio de teses e original.
idéias sociológicas precisam ainda ser
considerados a luz de outros símbolos utilizados A personagem shakespeareana Ofélia, que serve
pelo pintor acerca da origem e função da deusa de inspiração para Millais, assim como outras
383
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

personagens femininas da poesia e literatura das mudanças de valores culturais em curso. E aí


medieval, como o caso da Dama de Shalott dos temos um movimento diacrônico envolvendo
contos arturianos, temas muito caros aos pré- produção e recepção. Ao mesmo tempo em que
rafaelitas9, retratada por John William Waterhouse cria, o artista reflete algo mais amplo e complexo:
em três momentos (1888, 1894, 1916). Tais pinturas a cultura da qual faz parte.
são muito populares no período de sua produção e
acabam servindo como modelos para muitos Numa análise mais atenta é possível constatar que
artistas oitocentistas que buscam reelaborar sua aquilo que une as telas de Braga e Millais é também
própria realidade em transformação (o próprio o que as separa: a representação do feminino.
Millais produz um quadro sobre a Dama de Shalott Enquanto para o autor de “Ophélia” a beleza e o
em 1854). amor estão inseparavelmente ligados a idéia de
tristeza, traduzindo dessa forma a noção vitoriana
Segundo o semioticista Iuri Lotman10 a cultura de romantismo, o quadro da Iara transmite uma
mantém um estrito vínculo com a memória; a idéia positiva da natureza. Mesmo tendo a femme
memória por sua vez, é fruto da seleção histórica fatale Iara como personagem central, a seduzir seu
do material signico a ser preservado às novas observador, isto não parece constituir uma ameaça
gerações, num processo dirigido e complexo, no imediata, pois neste encontro entre natureza e
qual se determina, a partir de um movimento cultura há um elemento mediador: a razão,
dialético, a oposição entre memória e representada pelo desenho trigonométrico formado
esquecimento. Neste sentido, a cultura seria um a partir das folhas das vitórias-régias que se
“feixe de sistemas semiótico (linguagens), interpõem entre o casal.
formalizados historicamente e que pode assumir a
forma de uma hierarquia ou de uma simbiose de Desta forma, podemos concluir que Theodoro
sistemas autonomos” (FERREIRA, 2003: 74). Nas Braga acreditava na possibilidade de progresso
palavras do próprio Lotman, nacional, sem necessariamente abrir mão das
peculiaridades que marcavam até então os
A cultura não é um depósito de informações; é traços de nossa gente: sua forte ligação com a
um mecanismo organizado, de modo natureza selvagem. Como educador Braga
extremamente complexo, que conserva as dirigiu alguns liceus de artes e ofícios, e como
informações, reelaborando continuamente os tal acreditava na educação como meio de
procedimentos mais vantajosos e compatíveis. consolidar o alinhamento do Brasil como país
Recebe as coisas novas, codifica e decodifica civilizado.
mensagens, traduzindo-as para um novo
sistema de signos. (Id., 2003: 73). A trajetória que marca a feitura da tela “Fascinação
de Iara” é com certeza muito instigante. Rever a
A arte é um poderoso instrumento de biografia dos pintores formados nas Academias
convencimento, fazendo perdurar por gerações de Belas Artes pode revelar informações sobre
uma determinada idéia. Não se trata de uma nossa história cultural pouco conhecidas, que
afirmação volátil, pensar na história como um pedem por maiores esclarecimentos. Seria
produto da imaginação. Arnold Hauser (HAUSER, ingênuo acreditar na noção de atraso e
1988: 47, 48) já havia feito fortes ponderações estagnação como característica da arte
acerca de uma análise histórica com base na acadêmica. Longe de terem sido suplantados em
psicanálise freudiana, que incorreria numa forma sua criatividade e capacidade de imaginar outras
muito limitada de entendimento, mas ele mesmo realidades, os pintores oitocentistas, mesmo
trabalha a idéia de um possível alargamento do ofuscados pelas imposições da arte modernista,
conceito de psicologia quando aplicado a questões mantiveram suas atividades artísticas e por certo
sociais. É preciso levar em conta que o imaginário tem muito a nos dizer sobre as razões e
tem uma estreita relação com a realidade em volta. sensibilidades de seu próprio tempo.
Mesmo o que chamamos inconsciente é composto
por elementos do consciente; não podemos supor Referências bibliográficas
que alguém sonhe com algo ainda não teorizado,
por mais original que este sonho possa parecer. ALVES, Caleb Faria. Benedito Calixto e a
construção do imaginário republicano. Bauru,
Assim, a pintura de Ofélias, damas de Shalot e SP: EDUSC, 2003.
Iaras durante o período de crise da síntese ARAÚJO, Luiz Romano da Motta. Discurso
burguesa após 1870 não é o mero exercício estético proferido na sessão solene do IHGP em 08/06/
ou a manifestação da excentricidade de pintores 1967. Conselho Estadual de Cultura. Theodoro
acadêmicos, refletem uma tentativa de tradução

384
Imagens e imaginário na construção do real

Braga no centenário de seu nascimento. Belém, GRUZINSKI, Serge. A colonização do imaginário:


PA: Gráfica Falangola, 1972. sociedades indígenas e ocidentalização no México
BAIRON, Sérgio. Interdisciplinaridade. São espanhol. Séculos XVI – XVIII; tradução de Beatriz
Paulo: Futura, 2002. Perrone-Moisés. São Paulo: Companhia das
BARBOSA, Ana Mãe Tavares Bastos. Teoria e Letras, 2003.
prática da Educação Artística. São Paulo: Editora HAUSSER, Arnold. Teorias da arte; tradução: F.
Cultix, s.d. E. G.Quintanilha. Editorial Presença: Lisboa, 1988
________. (org.). Arte-educação: leitura no ________. História social da arte e da literatura;
subsolo. São Paulo: Cortez, 1997. tradução Álvaro Cabral. São Paulo: Martins Fontes,
CHEVALIER, Jean-jaques. As grandes obras 1998. (Paidéia).
políticas de Maquiavel a nossos dias; prefácio, JORGE, Fernando. Getúlio Vargas e o seu tempo:
André Siegrifried; tradução, Lydia Cristina. 8ª ed., um retrato com luz e sombra. S. Paulo: T. A.
4ª imp.– Rio de Janeiro: Agir, 2002. Queiroz, 1994. – (Coleção Coroa Vermelha.
COLI, Jorge. A pintura e o olhar sobre si: Vitor Estudos brasileiros; v. 7-A).
Meireles e a invenção de uma história visual no MABE/PMB – Museu de Arte de Belém. Catálogo
século XIX brasileiro. FREITAS, Marcos Cezar da exposição “A fundação da cidade de Belém”.
(org.). Historiografia brasileira em perspectiva. Belém do Pará: PMB, 2004.
São Paulo: Contexto, 1998. ORTIZ, Renato. Cultura brasileira e identidade
DAMÁSIO, Antônio R. O erro de Descartes: nacional – 5ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1994.
emoção, razão e cérebro humano. São Paulo: SEABRA, Zelita. Tempo de Camélia: o espaço do
Companhia das Letras, 1996. mito. Rio de Janeiro: Record, 1996.
DOSSE, François. A História em migalhas: dos ZAMBONI, Silvio. A pesquisa em arte: um paralelo
Annales à Nova História; tradução Dulce Oliveira entre arte e ciência. Campinas, SP: Autores
Amarante dos Santos; revisão técnica José Associados, 1998 (coleção polêmicas do nosso
Leonardo do Nascimento. Bauru, SP: EDUSC, tempo; 59).
2003.
DOTTIN-ORSINI, Meirelle. A mulher que eles Notas
chamavam fatal: textos e imagens da misoginia 1
Graduado em História pela Universidade Federal do Pará
fin-de-siècle. Tradução de Ana Maria Scherer. – Rio
- UFPA (bacharelado e licenciatura), atualmente é professor
de Janeiro: Rocco, 1996. da Secretaria Municipal de Educação e Cultura de Belém/
FERREIRA, Jerusa Pires. Armadilhas da Memória PA. Tem experiência na área do ensino de História, com
e Outros Ensaios. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2004. ênfase em História da arte, atuando principalmente nos
FIGUEIREDO, Aldrin Moura de. A gênese do seguintes temas: teatro, arte, pintura, Theodoro Braga e
progresso: Theodoro Braga e a Pintura da fundação modernismo.
2
da Amazônia. NETO, José Maia Bezerra, GUZMÁN, Afredo Sousa, “O quadro de Parreiras”. Folha do Norte.
Belém, 19 de janeiro de 1901, p. 1.
Décio de Alencar, organizadores. Terra Matura: 3
BOURDIEU, Pierre. As Regras da arte – gênese e
Historiografia & História Social Amazônica. Belém: estrutura do campo literário. São Paulo: Companhia das
Paka-Tatu, 2002. Letras, 1996, p. 268.
________. Letras insulares: leituras e normas da 4
Galeno, Juvenal. Lendas e canções populares 1859-
história no momento brasileiro. CHALHOUB, 1865. Ceará, Tip. de João Evangelista, 1865 | 2ª ed.
Sidney e PEREIRA, Leonardo Afonso de Miranda. aumentada com as Novas lendas e canções e precedida
A História contada: capítulos de história social da de juízos críticos. Fortaleza, G. R. Silva, 1892.
5
Filósofo radicado na Alemanha (1880 – 1956), era um
literatura no Brasil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
forte defensor do tradicionalismo aristocrático europeu. Seu
1998. posicionamento intelectual fez dele um pensador anti-
GAMA, Fábio de Castro da. A Representação da liberal, especialmente em relação ao novo Ethós social,
Cidade de Belém no Imaginário e na Literatura pautado no pragmatismo. Viajou por toda a Europa
de seus Espectadores ao longo do Século XX. propagando suas idéias de um novo humanismo, baseado
Excerto de “A Cidade Sebastiana. Era da Borracha, nos antigos sentimentos tradicionais da Europa.
6
Memória e Melancolia numa Capital da periferia da Citação retirada do discurso de Luiz Romano da Motta
Araújo no IHGP, em 8 de junho de 1967.
Modernidade”, dissertação de mestrado, orientada 7
Subs. fem. – planta aquática (Victoria regia), da fam. das
por Benedito Nunes. UnB, 1995. Texto eletrônico ninfeáceas, nativa da América do Sul, de rizoma vertical,
extraído de: http://www.geocities.com/CollegePark/ folhas planas formando um disco circular de quase 2m. de
Field/2776/artig4.htm. diâmetro, flores solitárias, brancas e suavemente
GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas, sinais: aromáticas, e bagas globosas; as sementes são feculentas
morfologia e história; tradução: Frederico Garotti. e comestíveis; apé, forno, forno-d’água, forno-de-jaçanã,
São Paulo: Companhia das Letras, 1989. forno-de-jacaré, iapunaqueuaupê, iaupê-jaçanã, jaçanã,
maruru, milho-d’água, milho-de-água, mururé, rainha-do-

385
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

lago, rainha-dos-lagos, uapé, uapê, vitória-regina (cf. marrom: 1979) “[...] este desenho é relacionado de perto
definição do dicionário Houaiss da língua portuguesa). ao pintar do afogamento Ophelia de Millais”.
8 10
ROQUETTE-PINTO, Edagard. Seixos Rolados (Estudos Nascido na cidade de Tártu, na Estonia, Lotman é
Brasileiros). Rio de Janeiro: Edição de Sussekind & considerado um dos mais importantes pensadores das
Mendonça, Machado e Cia., 1927. ciências sociais do século XX. Seus trabalhos permitiram
9
Segundo o livro Senhoras de Shalott: Uma Obra-prima novas reflexões sobre comunicação, arte e sociedade.
vitoriana e seus Contextos (Ed. George P. Landow, U.

386
1. Numa tarde invernal, na cidade de Paris, o pintor
brasileiro Antônio Diogo da Silva Parreiras (1860 –
1937) abriu seu estojo de pintura retirando dele um
cavalete. Ao desdobrar as compridas patas
metálicas, observou que nas bases das hastes
havia grãos de terra. “Era terra do Brasil”, escreveu
em suas memórias,comovido com a luz brasileira
que entrava naquele ambiente hibernal através
daquelas minúsculas partículas de solo. Para um
artista do seu porte no nosso estreito século XIX,
uma amostra do chão pátrio foi capaz de devolver
a ele todo o imenso sentimento coletivo que este
século de profetas tão poderosamente
capitalizava.1

Imaginar e fabricar maneiras de representar a


nação o animou em sua fase mais madura. No
entanto, o discurso artístico produzido por Parreiras
deve ser mediado dentro da exigüidade do circuito
das idéias liberais e do mercado dos bens
simbólicos no Brasil no século XIX, e nas primeiras
décadas do século XX. Ao fim e ao cabo de uma
longa existência nosso artista legou à posteridade
inúmeras pinturas da paisagem juntamente com
cenas históricas encomendadas pelas elites que,
graças a esses atos de imagem, inculcava no
grande público o ideal de supremacia de grupo e
exemplos de virtú cívica de que se julgava
“era terra do brasil”: representação da nação
detentora.
brasileira na obra de antônio parreiras
2. Durante o processo que culminou com a
josé maurício saldanha álvarez
independência do país em 1822, as elites
brasileiras construíram mais um estado que dava
suporte para os seus privilégios do que uma nação.
Compostas por fazendeiros e comerciantes,
mantiveram intactos o latifúndio e o escravismo
atualizando a tradição agrária e extrativa da
economia colonial às matrizes assimétricas da
divisão internacional do trabalho vigente desde
1822. Impondo ao país uma monarquia
constitucional como forma de governo, excluíram
da política as mulheres, os africanos, os índios e
os setores médios urbanos que, para não cair na
miséria e degradação sociais, tornaram-se seus
clientes. Impedindo o surgimento de pequenos
proprietários rurais, entravaram a industrialização
nacional e venceram as pressões abolicionistas
inglesas. Apesar de muitos de seus membros
serem formados na ideologia da Ilustração,
limitaram o liberalismo, rejeitando, por exemplo, as
idéias republicanas. 2

No ano de 1816, atendendo a convite da monarquia


portuguesa, desembarcava no Brasil uma missão
artística francesa que contribuiu para fundar a
Imperial Academia de Belas Artes. Após a
independência, essa escola permaneceu sediada
na capital do Império, a cidade do Rio de Janeiro
onde desempenhou um papel decisivo

387
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

disseminando os padrões artísticos que interessavam aqueles em que havia gravuras».10


compunham os códigos de representação icônica A revelação telúrica de que seria pintor ocorreu
do poder e da civilização européia ilustrada. Deve- próximo a sua moradia quando um artista armou
se mencionar que, diante das proporções seu cavalete pintando uma marinha. Permanecia
continentais do território do Brasil, era fundamental « Imóvel, absorto, ficava fascinado horas e horas
encontrar uma linguagem simbólica capaz de forjar a ver trabalhar o artista. » Após a morte de seu pai
um efeito de mundo unificador. O objeto de arte seus sonhos de ser artista pareciam sepultados
resultante dessa produção simbólica alinhou as fracassando em inúmeras ocupações. Casou-se
elites brasileiras com suas congêneres ilustradas para abandonar o lar do qual nasceu um filho, Dakir,
na Europa e nos Estados Unidos. Por outro lado, seu fiel companheiro de trajetória. Matriculou-se
no Brasil do século XIX, a produção e a circulação em 1883 na Academia Imperial de Belas Artes. No
dos bens culturais sob a forma de um mercado de entanto, aborrecido com o ambiente formal no ano
arte, permaneceu enfeixado nas mãos da elite. Ela seguinte, mudou-se para sua cidade natal, Niterói
controlou a mobilidade e a ascensão social, integrando o núcleo formado em torno do pintor
ensejando o reconhecimento público como artista alemão Georg Grimm e que se dedicava a pintar
somente aos membros de sua clientela incluindo d’aprés nature e cujo final de vida foi infeliz como
alguns brancos pobres e afro-descendentes. 3 tantos outros europeus mal-sucedidos, arribados
Restava aos segmentos menos favorecidos dos à América repletos de esperança.11
frágeis setores médios, o acesso a profissões
subalternas que os românticos consideravam Assumindo pleno domínio da técnica de paisagem
mortais por compromissadas e submissas aos realizou inúmeras exposições tendo a primeiras
pilares da sociedade burguesa: o exército, a igreja, recebido o múnus do Imperador do Brasil, o senhor
o comércio e os empregos na máquina do Estado. D. Pedro II, conhecido mecenas e incentivador de
A ascensão e o reconhecimento passavam por uma jovens talentos pátrios. Antônio Parreiras foi
indispensável «troca de favor» com as elites. 4 convidá-lo pessoalmente no palácio da Quinta da
Todos esses fatores, enfim, uns e outros e todos Boa Vista, onde não encontrou o «suntuoso prédio
juntos, afinal, limitaram a emergência e que imaginava. “Haviam-me descrito a extrema
desenvolvimento de um mercado artístico e modéstia de Pedro II, o seu soberano desprezo
intelectual em terras brasileiras. pelo luxo.” 12 Apesar do sucesso de vendas de suas
paisagens estava fadado a ser mais um dentre as
3. A belle époque, integrante da era das certezas, centenas ou mais de artistas que disputavam as
situou-se entre o final do século XIX e as primeiras magras parcelas do público na Corte e nas capitais
décadas do século XX. A riqueza das camadas provinciais. Graças a um prêmio pecuniário viajou
abastadas produzia a impressão de que as à Europa onde após uma estadia em Veneza,
sociedades e os regimes políticos eram passíveis deslocou-se para as luzes industriais e modernas
de uma gestão moderna e racional. 5A prosperidade de Paris. Ao retornar ao Brasil em 1890, agaloado
desse tempo e a enorme expansão econômica da pela estadia européia ,desfrutou de crescente
Europa industrial, num circuito econômico mundial, sucesso junto ao público passando a integrar a
apontavam para a disseminação da riqueza cátedra de paisagem na Academia oficial.
material além da estreita faixa das elites.6 O novo
paradigma de gerenciamento também se A pintura de paisagem e ambiental praticada por
fundamentou na cidade moderna cujo modelo se Parreiras, representava uma imagem fixada pelo
tornou a Paris do Plano Haussmann, o local da artista em momentos considerados como
peregrinação em busca da Modernidade, portadores do « sublime». Ele a abordou « com os
caminhando em sagrado êxtase. 7 Esse bem olhos de artista, sentindo-a através da emoção que
sucedido plano francês engendrou no imaginário ela nos causa » 13 , o que não descartava a
mundial a poderosa representação da cidade existência de um olhar específico. Wahl, desde o
moderna par excellence, especialmente para os observatório da fenomenologia, considera que
intelectuais latino-americanos8. «Pas de paisage sans principe organizateur » .14
Ao lado desta questão resta ainda o seu estilo de
No ano de 1860, enquanto a cultura francesa pintar. Decididamente não parece ser acadêmico
fascinava o Brasil e tornara-se uma palavra de porque embora tenhamos muitos desenhos, não
ordem entre as elites e nas culturas populares,9 há indicação precisa de esboços preparatórios
nascia Antônio Parreiras no dia 20 de janeiro de exaustivos antes de principiar uma tela. Há uma
1860, na cidade de Niterói. Sua infância livre foi relação com a técnica de Couture na consideração
agitada. « Tinha horror aos livros – confessou, entre a preparação e um resultado, seja nas telas
revelando sua inclinação original– só me de grandes dimensões ou nas de tamanho

388
Representação da nação brasileira na obra de Antônio Parreiras

reduzido. 15 Árvores, pedras, pessoas são escrevendo em 1882, considerou fundamental para
executadas na mesma fatura graças ao emprego uma nação ter um princípio similar pois « a nation
de grandes empastamentos de tinta. O ponto is a soul, a spiritual principle. Two things wich in
culminante de sua pintura paisagística foi uma tela truth are but one, constitute this soul or spiritual
denominada Sertanejas ocorrendo um principle. One lies in the past, one in the present».21
deslocamento. O pintor abandona a tela no cavalete Entre nós, o fazer romântico logrou adaptar
e transforma-se na luz suave do túnel florestal, nas determinados paradigmas da sensibilidade
pedras cobertas de liquens, nas folhas que formam destinados à produção de sentido, dando conta de
um denso tapete no solo úmido. Assim sendo, nas problemas típicos da cultura brasileira. Na ausência
palavras de Wahl, a paisagem das Sertanejas se desconfortável de uma singular medievalidade,
autodesigna na fenomenologia: « Je suis ceci et fabricou-se um sucedâneo fundacional da nação
cela», c’est la paisage même qui parle. Je ne suis que reconhecia seu início com a descoberta do
advennu à lui que pour entendre ce qu’il dit.”16 Esta território por europeus no ano da graça de 1500. O
tela parece resgatar o sentido roussoniano indígena e o colono português tornaram-se fulcros
afirmando ser a natureza mais bela do que a da tematização romântica, resultando num
paisagem - porque é livre da intervenção do processo de semantização moderna para seus
homem. A paisagem é, também, como a definição personagens, excluindo-se do estatuto da
de nação dada por Anderson, um ato imaginativo. alteridade o africano escravizado. A literatura
Para Simon Schamma – constitui « cultura antes brasileira de matiz romântica produziu artistas como
de ser natureza; um construto da imaginação o poeta Gonçalves Dias (1823-1864) e o
projetado sobre mata, rocha, água». 17 Já para romancista José de Alencar (1827-1877). O
Heidegger, uma paisagem constitui um habitar.18 indígena, na tensão americana dos movimentos
Artista maduro nos primórdios do século XX independentistas, antagonizava o europeu. No
Parreiras torna esta paisagem ser habitada por entanto, o guapo Peri, no romance de Alencar, se
corpos humanos retirados da história pátria. Desde viu subjugado pela civilização européia e amou
o Renascimento que a pintura européia profundamente a filha de seu senhor, a jovem bela
experimentou complexas e variadas e loira chamada Ceci. Após inúmeros conflitos,
representações do ambiente natural e do corpo ocorre um desfecho dramático, quando o senhor
humano. 19 No século XIX, a pintura de paisagem europeu batizou este bom selvagem americano e
de ares límpidos cedeu lugar a tormentosos lhe cedeu como esposa sua amada filha. A tragédia,
cenários naturais, presentes desde o neoclássico no entanto, perseguiu o jovem casal, que perece
e exacerbado pelo romantismo. A paisagem então quando a árvore gigante onde se abrigaram
se agitou e se enterneceu com os dramas humanos desabou, sucumbindo à força do alude diluviano
e, mediante esta conexão sensível, emocionou que avassalava a floresta tropical22.
fortemente o público. 20 Por um lado, a
problematização da pintura de paisagem romântica Tanto na concepção de Alencar, quanto na de
– no velho e no novo continentes – correspondeu, Parreiras, o romance fundador da nação passava
à concretização das estratégias de produção dos por essa tensão necessária entre homens livres.
olhares e dos fazeres pictóricos, se integrando ao Desdenhavam a alteridade representada pelo
sentido que Schamma denominou como « o gesto africano e os não incluíam em seus códigos de
organizador do artista ». representação. Mary Louise Pratt descreveu a luta
cultural travada na América do sul a partir da
O Romantismo mostrou-se teatral em seus códigos segunda metade do século XIX, como um combate
de representação, constituindo uma retórica do pela modernidade, pois, « modernity, in its
dizer o que é corretamente necessário nos diffusionist momentum, also seeks to destroy
domínios da história em sua disseminação do velho alterities – to modernize» 23. Ao mesmo tempo em
continente para a América. O romantismo brasileiro que a população da capital e dos maiores centros
surgiu no ano de 1834 demonstrando o deserto urbanos do país se adaptava aos deslocamentos
intelectual e artístico do país graças à iniciativa de da percepção e da temporalidade recebidas pelo
alguns intelectuais brasileiros redigiram relatórios telegrafo, pela estrada de ferro, pela
reportando sobre as condições das artes no Brasil industrialização e do afluxo veloz das informações
e os enviaram ao Instituto Histórico da França, em midiatizadas, intelectuais brasileiros plasticasmente,
Paris. O princípio espiritual que aspiravam para a antropofagicamente incorporavam as correntes
identidade nacional, partiu de uma matriz européia avançadas em sua panóplia especialmente a partir
e portuguesa agendada no passado, e que seria de 1868.24 Entre as idéias estava a do debate da
atualizado por uma nova matriz européia. Apesar nação da construção das matrizes nacionais, enfim,
de contraditório, também Ernest Renan, como se representar a nação brasileira.

389
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

No Brasil da primeira metade do século XIX, foi a um pensamento. Pensou numa manifestação
escasso o interesse do público reduzido e dos visível durável – quadros - transformado na
próprios historiadores pelo estudo da história-pátria estrutura do mundo social do Brasil daquele recorte.
dinamizada após a fundação do Instituto Histórico Parece pretender que seus quadros, como explicou
e Geográfico Brasileiro no ano de 1848. Sua matriz, Wahl, pudessem constituir um ato metafórico
porém, era fortemente conservadora e etnocêntrica. expresso em tintas, cores, manchas, claro e escuro:
Nas derradeiras décadas do XIX, novos « hors du toute usage metaphorique du terme,
intelectuais, mesmo em condições difíceis, parler. 29».
desgostosos com a ausência de respostas,
intensificaram o questionamento sobre o que era Finalmente, Antonio Parreiras expressou a procura
Brasil; quem eram os brasileiros e no que consistia do lugar no mundo, a captura antropofágica de uma
a identidade nacional. Somente na conjuntura de identidade nacional moderna, inserida num arco
consolidação da República é que debate ganhou de sentido internacional. Sua pintura, corpo e
uma representação visual. As triunfantes elites paisagem, - parece-nos uma matriz de hibridação,
locais encomendam narrativas oficiais realizando porque se ainda mostra-se sensível à produção do
o que Christin denomina de «pratiques de l’image » sentido romântico, apesar de tardio, seu
produzindo sentidos, povoando a história oficial pragmatismo diante do mercado de arte preconizou
com signos do seu poder e no novo statu quo.25 sua inserção no statu quo político. Sua obra e vida
Talvez pudéssemos designá-las como arte oficial, atingiram um resultado intelectual, cognitivo e
e que se associaram a uma vasta corrente de outras artístico, que se tornou uma retórica imagética
obras – antigas e modernas - no mundo todo, capaz significar uma narrativa da nação. Inserindo-
inclusive no Brasil. se nos quadros da modernidade, reescreveu com
sua arte – corpo e paisagem – um compromisso
Atendendo a essa crescente encomenda Parreiras com a civilização européia nos trópicos. Esta talvez
realizou, desde 1908 até 1937 aproximadamente fosse a operação constitutiva de uma ekphrasis,
22 quadros históricos de grandes dimensões, geradora de ícones e de ficções.30 gerando o que
conectando paisagem e figuras humanas. Ao expor Bhabha definiu como «other sites of meaning» e
na cidade de Belém, vendeu todas as suas pinturas que compunham o romance da nação.
recebendo nessa ocasião festiva a primeira das
grandes encomendas históricas. « O Dr. Augusto Referências bibliográficas
Montenegro, governador do Estado, me
encomendou um grande quadro – a Conquista do ALENCASTRO , Luís Felipe de. Modelos da
Amazonas, que foi a primeira tela histórica que História e da historiografia imperial, História da
pintei. » O corpo torna-se uma imagem da condição vida privada no Brasil. São Paulo: Companhia
humana, um suporte para a ação na história 26. O das Letras, 1998.
contexto intelectual de produção das pinturas BARTHES, Roland. Mitologias. Rio: Difusão
românticas evidencia um olhar humano sobre a européia do Livro, 1972.
história. Seu ineditismo repousa no fato que o eixo BALZAC, Honoré du. Eugénie Grandet. Paris:
significativo e de representação não é mais o Gallimard, 1972.
mestre virtuoso e seus discípulos. O foco conectivo BENJAMIN, Walter. Charles Baudelaire. Um lírico
e retórico é o da humanidade e seu sofrimento no auge do capitalismo. (São Paulo, Editora
heróico. Segundo Guégan, « L’heroisme n’est pas Brasiliense: 1997.
disqualifié comme le répète notre époque incrédule, BOIME, Albert. The Academy & franch paiting in
il s’humanise et transforme l’ndividu, en serait-il the nineteenth century. New Haven and London,
aussi la victime, en sujet de l’histoire » 27 Yale University Press., 1986.
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Os personagens que Parreiras pinta em seu quadro origem. Rio de Janeiro, Topbooks, 2005.
histórico tornavam-se objetos nacionais, tendo seus BOSI, Alfredo. Dialética da colonização. São
corpos tematizados por gestos dramáticos, Paulo: Companhia das Letras, 1994.
superlativos e fabricados. Em sua obra vislumbra- BOURDIEU,Pierre. A produção da crença.
se conforme Corbin assinalou, a um «corps Contribuição para uma economia dos bens
socialisé, mise en spetacle , forme de boîtes simbólicos. Editora Zouk, Maria da Graça Jacinto
anatomiques empilées – la Maison, le vetement, la Setton, São Paulo, 2004, p. 56.
peau. Surtout um corps marque par son pasé, BÉNICHOU, Paul. El tiempo de los profetas.
parsemé de signes et d’indices que dissent la Doctrinas de la época romántica. Editorial Fondo
passion, le plaisir, la souffrance. » 28 Parreiras, de Cultura económica, Méjico,2001, p. 15
como agente, deu forma a um desejo, a um anseio,

390
Representação da nação brasileira na obra de Antônio Parreiras

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4
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HOBSBAWM, Eric. A era das revoluções. Petrópolis,
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6
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PORTER, Roy. História do Corpo. BURKE, Peter. no Brasil. São Paulo: Paz e Terra, p.,93.
A escrita da história. Novas perspectivas. São 10
PARREIRAS, Antônio, História de um pintor contada por ele
Paulo: Ed. Da Unesp, 1992. mesmo. Niterói, Diário Oficial, 1943, p.11.

391
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

11 21
PRATT, op. cit., p. 62, Renan, Ernest. BHABHA, Homi, org. and publ. Nation
12
PARREIRAS,op. cit., p.59. and narration. London and New York: Routledge, 2002, p.
13
SALGUEIRO, Valéria. Antônio Parreiras. Notas e críticas, 19.
22
discursos e contos: coletânea de textos de um pintor paisagista, Id., 177.
23
Niterói, Eduff, 2000, p.188. PRATT, op. cit.,p.66.
14 24
WAHL, François. Introdution au discours du tableau. Paris: BOSI, op. cit. , p. 224-225.
25
Seuil, 1996, p.74. CHRISTIN, Olivier. Comment se represente-t-on le
15
BOIME, Albert. The Academy & franch paiting in the monde social? Paris, Actas, 154, Septembre 2004, p. 37.
26
nineteenth century. New Haven and London, Yale University PORTER, Roy. História do Corpo. BURKE, Peter. A
Press, 1986, p.71. escrita da história. Novas perspectivas. São Paulo: Ed.
16
WAHL, op. cit., p.75. Da Unesp, 1992, 291.
17 27
SCHMMA, Simon. Paisagem e memória. São Paulo, Guéguan, p. 84.
28
Companhia das Letras, 1996, p. 70. CORBIN, Alain et alii. Histoire du Corps. 2. De la
18
Wahl, op. cit. , p. 74. Révolution à la Grande Guerre. Paris, Éditions du Seuil,
19
BRION, Marcel. Art of the romantic era. Romantism. 2005, p. 173.
29
Classicism. Realism. London: Thames and Hudson, 1966, passim. WAHL, op . cit., p.155.
20 30
CLAY, Jean, Le Romantisme. Paris: Hachette GLUCKSMANN, Christine. Buci - L’oeil cartotographique
realités, 1980, passim. de l’art. Paris, Galilée, 1996, p.55.

392
capitulo 9
iconografia: pintura histórica

393
Grandes telas históricas nascem com o destino da
eternidade, tornando-se análogas ao evento que
pretendem narrar. Parece contra-senso pensar que
a vida longa de uma tela seja marcada exatamente
pelo nexo do efêmero, da efeméride, do passageiro,
do transitório. Em suas origens, a noção de
efeméride – do grego ephemerís, ídos, pelo latim
ephemeride – esteve relacionada, no entanto, a
uma data exata, um marco que pudesse ser uma
baliza do tempo. Era, de fato, uma tabela que
fornecia aos astrônomos, em intervalos de tempo
regularmente espaçados, as coordenadas que
situavam a posição de um astro. Da natureza à
cultura, a efeméride guardou o sentido de
grandiosidade e eterno retorno dos
questionamentos que a tornariam uma data
importante2. Por que uma determinada obra seria
obra-prima? Por que seu autor seria um grande
artista? Nesta comunicação pretendo investigar
esse tema, aqui enquadrado nos limites do
centenário de uma tela histórica do acervo do
Museu de Arte de Belém - A fundação da cidade
de Nossa Senhora de Belém do Pará, considerada
desde a sua apresentação, há exatos cem anos, a
obra-prima de Theodoro Braga (1872-1953).
Porém, a história desse objeto de arte, imerso em
diferentes memórias, remonta uma longa tradição
o centenário mestiço: theodoro braga e a pintura da pintura histórica no Brasil das últimas décadas
histórica da fundação da amazônia, 1908-2008 do século XIX. Olhando o tema de hoje, o que se
nota é uma verdadeira oscilação dos valores da
aldrin moura de figueiredo1 estética [e por que não dizer do próprio ethos da
obra] na bolsa das artes públicas e do patrimônio
nacional. A narrativa do passado, por isso mesmo,
tende a esclarecer o presente. Senão vejamos. Em
1908, a capital do Pará acompanhou o nascimento
de um quadro feito para ficar na memória visual da
cidade. O dia era 17 de dezembro daquele ano, a
data de aniversário do principal chefe político de
Belém – o intendente Antônio José de Lemos (1843-
1913)3. O local era o suntuoso Teatro da Paz, a
grande vitrine da civilização da borracha. O ato era
o vernissage de um pintor ainda pouco conhecido
mesmo nas searas brasileiras, o Dr. Theodoro
Braga. Nesta feita, em meio a uma platéia de
convidados ilustres, foi entronizada a tela A
fundação de Belém, divulgada imediatamente na
imprensa da época como a obra-prima de seu autor.
Aqui vou tentar desvelar um pouco da história desse
quadro, que trouxe para o campo das artes
plásticas uma nova leitura da história da Amazônia.

Tudo começa em 1899, quando os pintores italianos


Domenico De Angelis (1852-1900) e Giovanni
Capranesi (1851-1936), entregam à Municipalidade
local, o painel Últimos dias de Carlos Gomes,
retratando a célebre morte do músico ocorrida em
Belém em 1896, sob um funeral heróico. As
dimensões da tela fizeram crer ao intendente a
necessidade de uma outra para adornar o salão

395
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

do Conselho Municipal com o feito rememorativo impressionismo. Porém, essa desconfiança com
da fundação da cidade. O passo seguinte foi sua formação afrancesada e os modismos
encontrar o artista “idôneo” para a feitura da obra e europeus lhe serviu para redescobrir a Amazônia
que ao mesmo tempo pudesse empreender a nos fragmentos arqueológicos do Museu Paraense
arqueologia dos arquivos à caça dos documentos Emílio Goeldi e, daí para em diante, revisitar o
que ainda estavam à sombra dos compêndios de próprio traço dos índios de antes de Cabral. Foi
história. O encontro entre o intendente e o pintor assim que, ao mesmo tempo em repensava o
ocorreu em 1906, quando o artista retornado da cânone da pintura histórica, ajudava a criar um novo
França começava a fazer sucesso com suas movimento nas artes da Amazônia, com a
exposições no Rio de Janeiro, Recife e depois estilização da flora e da fauna brasileira – o
Belém, sua terra natal. Exatamente aí o velho neomarajoara –, deixando vários discípulos. Não
projeto toma corpo e Theodoro Braga, agora sob o bastava, no entanto, ser bom pintor. Era
patrocínio de Antônio Lemos viaja para Europa em fundamental o domínio da pesquisa histórica. O
busca dos documentos originais sobre o fato que pintor teria se armar de historiador e vice-versa.
seria narrado pelas tintas. Pintura e história, natureza e cultura: eis o encontro
que revelou a obra prima de Theodoro Braga. Pelas
Antes da escolha, o mecenas obviamente havia tintas, o artista formulou sua primeira narrativa da
se certificado das origens intelectuais do pintor, que história, traduzindo para outra linguagem
então contava 36 anos. Rapidamente o intendente passagens inteiras da obra de tratadistas, cronistas,
percebeu o gosto do artista pela história e, mal missionários e homens de governo. Velhos
sabia ele que, naquela encomenda estava documentos ganharam novas tonalidades; pintores-
nascendo uma nova escrita da história emersa da viajantes foram acolhidos pelos pincéis do mestre.
pintura. Theodoro Braga, como todos os seus Theodoro Braga passou em revista os primeiros
contemporâneos, ambicionou o bacharelado, registros escritos sobre a América Lusa, através
estudando na Faculdade de Direito do Recife. Mas, dos relatos de cronistas portugueses como Pero
enquanto se diplomava, por volta de 1893, Vaz de Caminha com sua Carta (1500), Pero de
conheceu o paisagismo pela mão de Jerônimo Magalhães de Gandavo com sua História da
Telles Júnior (1851-1914), um pintor pernambucano Província de Santa Cruz a que Vulgarmente
muito influenciado pela pintura do século XVII, Chamamos Brasil (1576) e Gabriel Soares de
especialmente pela obra de Franz Post (1612- Sousa com Tratado Descritivo do Brasil (1587),
1680), um dos grandes artistas do período holandês além das narrativas de viajantes franceses e
do Brasil. Mesmo quando o assunto era a alemães, como de Jean de Léry, autor de Viagem
paisagem, a plena descrição da natureza, a história à Terra do Brasil (1578), e Hans Staden, que
tocava fundo o aprendizado do jovem pintor. escreveu Duas Viagens ao Brasil (1557). Esses e
Encorajado pelo mestre, Theodoro Braga viajou outros testemunhos do passado estiveram entre
para o Rio de Janeiro, onde recebeu aulas de uma os seus principais informantes. Em páginas
tríade já bem conhecida nos círculos cariocas: impressas e noutras manuscritas, ficaram os
Belmiro de Almeida (1858-1935), Daniel Bérard registros dessa façanha da história como pintura e
(1846-1910) e Zeferino da Costa (1840-1915). O da pintura como história.
próximo passo foi dado em 1899, quando ganhou
o prêmio da Escola Nacional de Belas Artes, de Numa verdadeira arqueologia da arte, inventiva e
viagem à Europa. No ano seguinte, já estava em subjetiva, Theodoro Braga redescobriu os antigos
Paris, como pensionista na Academia Julian, sob Tupinambá, que habitaram a costa do Pará no
a orientação de Benjamin Constant (1845-1902), século XVII e que haviam sido riscados do mapa
Henri-Paul Royer (1869-1938) e principalmente do no século seguinte. Como reencontrar aqueles
experiente Jean Paul Laurens (1838-1921), havido índios, suas marcas corporais, sua imagem enfim.
então como o nome mais importante da pintura O pintor encontrou aqueles que julgou ser seus
histórica na Franca. No ateliê de Paris, o artista prováveis descendentes. Os velhos índios
descobriu de fato a história, a pintura da história4. Tupinambá estavam lá, nas notícias sobre os
Apiacá e dos Munduruku feitos por Hercules
De volta à Amazônia, sob a proteção de Antônio Florence (1804-1879), comparadas com as
Lemos, e mais do que nunca impregnado pelo informações colhidas em pesquisa no acervo do
gosto do passado, transformou a história em Museu Paraense. Da famosa Expedição
assunto de Estado e a pintura em tema de interesse Langsdorff, no segundo quartel do século XIX,
popular. Embora atento às vanguardas que então sobreveio um dos principais registros que poderia
explodiam do lado de lá do Atlântico, Theodoro ser útil a um pintor – com sombras, luzes e cores,
Braga olhou com desprezo até mesmo o muitas cores5. A história foi arte cara no projeto de

396
Theodoro Braga e a pintura histórica da fundação da Amazônia

Theodoro Braga, tanto que foi necessário explicar com alguns eminentes historiadores sobre o padrão
tudo aos primeiros que compareceram diante da das construções depois da conquista. Todos os
grande tela. O quadro A fundação da cidade de documentos de época referem-se a um fortim
Nossa Senhora de Belém do Pará tem uma versão construído em madeira, uma simples paliçada. A
em livro, com grande parte dos conceitos, grande capital da borracha não poderia, no entanto,
referenciais e inspirações presentes na tela6. aos olhos do pintor e principalmente de seu
mecenas – o intendente Antônio Lemos, ter
Mas como transpor para as tintas a narrativa experimentado uma origem tão simplória. O
literária da fundação do Pará? Theodoro usou dos presente reinventou o passado na paleta do pintor:
pintores renascentistas, optando pelo díptico, pois fez-se então um forte de pedra, como sólida e
assim poderia narrar duas cenas independentes eloqüente deveria ser a certidão de batismo da
e, ao mesmo tempo, preservar uma visão de cidade. Apesar dessa polêmica, o significado da
conjunto. Aqui o díptico deve ser lido da direita para distância da imagem babélica de um primeiro
a esquerda, seguindo o modelo oriental, contato entre europeus e indígenas deveria ser
contrastando, portanto, com as regras preservado a todo custo na primeira imagem da
interpretativas européias. Na primeira cena do Amazônia. Índios e europeus começavam aí a falar
quadro, vê-se, ao longe, a chegada das três uma mesma língua. À sombra de uma visão singela
embarcações que traziam “a expedição civilizadora” do trabalho de construção de uma “pequenina
– uma caravela, um patacho e um lanchão, tal como igreja” no interior de um forte de pedra, o pintor
faziam crer os velhos anais da marinha portuguesa, procurou dar cabo a uma elaborada interpretação
exaustivamente consultados pelo artista. O pintor da política sobre a chegada dos portugueses à
concebeu a pequena esquadra ainda não ancorada, Amazônia. De primeira olhada, vê-se, na tela, a
indo ao sabor da corrente, revelando o ângulo de igrejinha consagrada à Nossa Senhora de Belém,
observação em relação à beira do rio. Em terra, levantada “em taipa, coberta de palhas, ainda não
encontravam-se os Tupinambá, “olhando com ódio ressequidas e já pronta”. Ao fundo, apareciam as
a chegada de seus mortais inimigos”. Aqui houve modestas habitações dos novos colonos, simples
o desejo de imprimir à cena uma nova percepção casebres e algumas palhoças. Mais à frente, o
desse reencontro: não se tratava mais de principal alvo da tal querela historiográfica: o forte
representar a curiosidade dos índios em relação do Presépio. Na imagem, “o forte, com a sua frente
ao branco e muito menos a admiração com o de cestões entre os quais peças de artilharia já
desconhecido europeu. Estava em jogo o fato estão assentadas começa a terminar-se; um muro
histórico de os índios Tupinambá já conhecerem com a sua guarita é construído e o resto avança
os portugueses de longa data, em lutas, “através rápido”. Nos contornos internos da moldura,
do Rio, Bahia, Pernambuco, Maranhão e finalmente começava a sobressair o vaivém dos trabalhadores
nas terras do Pará”. Na imagem, os índios portugueses e indígenas.
aparecem montando posto num pequeno igarapé
que desaguava na baía do Guajará. A cena, vivida Com efeito, era necessário marcar o ato histórico
em 1616, vinha ao presente, em 1908, por nova com a presença de um herói fundador. Na
explicação: o pequeno curso d’água onde estavam horizontal, o quadro é descrito em duas cenas. Na
os nativos “é o que mais tarde foi chamado Ver-o- vertical, em dois planos, divididos ao meio pelo
Peso”. Do escuro das matas, rumo ao igarapé, longo risco da floresta na outra margem do rio. No
ainda “chegavam outros índios retardatários de primeiro dos planos, ao centro da tela, “sob a
suas tabas situadas no interior”. A margem do rio espessa sombra de grandes árvores”, estava o
era o lugar onde eles estabeleciam, aqui e ali, suas herói, Francisco Caldeira Castelo Branco, antigo
atalaias de defesa, “pontos de espreita” segundo o capitão-mor do Rio Grande do Norte, cercado por
pintor. seu estado-maior, os comandantes das
embarcações. O instante procurou traduzir a
A segunda cena, ao lado esquerdo do espectador, preparação da viagem de Pedro Teixeira ao
representa o adiantado estado da conquista e do Maranhão, “a fim de levar a nova da fundação da
senhorio português na nova terra. Esse cidade de Belém”. Este enquadramento está
enquadramento retomava as origens da ocupação diretamente relacionado à cena da construção do
da região: “uma vez escolhido o lugar quase isolado forte do Presépio, na qual Theodoro Braga
e boa altura defensável, deram mãos à obra”. É redesenhou a imagem dos homens que vinham na
fundamental perceber que essa cena resultou de frota de Castelo Branco. Contrariando seus
um grande esforço de Theodoro Braga em sua confrades de ofício, o novo historiador insistia que
tentativa de construir uma nova versão desse “os expedicionários não vinham nem na miséria, a
acontecimento fundador, com um acalorado debate ponto de pedirem o que comer aos índios, nem

397
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

desprovidos de tudo, como é corrente, a ponto de Boaventura, os dois últimos ignorados na tela da
serem ajudados por piedade pelos caboclos do fundação9.
Guajará na construção do forte e habitações”. O
pintor veste o conquistador ao modo do holandês Descrita a história, era imprescindível emoldurar a
de cabedais do século XVII, como o descrito por cena com a exuberância da natureza amazônica
Rembrandt (1606-1669) em sua A Ronda Noturna, em seus mínimos detalhes. O pintor migra então
obra encomendada pela Corporação de da ciência da história para o domínio das ciências
Arcabuzeiros de Amsterdã, em 16427. A imagem naturais. Pela primeira vez, as águas da baia do
esquálida e indigente da aventura européia não Guajará, na confluência dos rios Pará e Guamá,
combinava com o mito fundador da grande capital trazem uma moderna representação dos rios
da borracha. Ao contrário, o modelo da burguesia tributários da foz do Amazonas: a cor barrenta, turva
holandesa enriquecida com as novas conquistas e amarelada. Esse viso era algo impensável para
ultramarinas parecia-lhe o ideal o contorno da os pintores do século XIX, muito marcados pelos
imagem do capitão português conquistador do modelos e contornos dos rios europeus. Em
Pará. Cabia ao pintor, reinventar, pelas tintas, uma contraste com a lenda de um Danúbio Azul, como
outra imagem dos súditos de Portugal e Espanha, na valsa de Johann Strauss II (1825-1899),
além de homenagear seu velho mestre Theodoro Braga pincela um Amazonas barrento,
pernambucano Telles Júnior, admirador inconteste com arrepios de brisa, reflexos do céu em algumas
do universo de Rembrandt. Do mesmo modo, a manchas azuladas em meio à tonalidade do rio.
presença da Igreja Católica nessa história foi ponto Às margens estão os verdes em seus diferentes
de discórdia entre os especialistas no assunto8. tons e escalas. A vegetação que orna a vista foi
pensada como espécimes de um herbário
Tentando mais uma vez retificar as leituras dos característico da flora equatorial do Brasil. Ao
historiadores Domingos Antonio Raiol (1830-1912) centro, duas árvores com fortes conotações
e Arthur Vianna (1873-1911), o artista trouxe ao simbólicas para a Amazônia: a seringueira,
acontecimento dois religiosos franciscanos: frei responsável pelo triunfo do progresso
Antonio de Mercianna e Frei Christovão de S. José, contemporâneo do artista, via exploração do látex,
que teriam acompanhado Castelo Branco no e a imbaubeira, típica de floresta secundária e, por
episódio da fundação. Já que não havia nenhuma isso mesmo, representando o trabalho de
pista sobre uma primeira missa, restava então colonização da região. Enrolada em cipós, ao
apresentar os clérigos envolvidos na empreitada centro da tela uma grande árvore – uma espécie
da construção de uma nova terra sob as bênçãos de síntese visual da flora amazônica, exibindo “a
da Igreja. Ao invés de uma celebração, como fizera majestade grandiosa das nossas florestas
frei Henrique em Porto Seguro, em 1500, unindo tropicais”. Houve lugar ainda para a palmeira do
na assistência os infiéis e os cristãos, na epopéia açaí, que produz o fruto de onde se extrai a bebida
amazônica os índios já sabiam que os portugueses mais popular entre os paraenses e, à beira d’água,
traziam outros costumes diferentes dos seus, pois plantas aquáticas da Amazônia, como o mururé e
que eram, na visão de Theodoro Braga, a aninga, comum na nas redondezas de Belém. E
remanescentes daqueles mesmos Tupinambá que o cenário foi composto por analogia às
habitaram o litoral da Bahia ao tempo de Cabral. A características ecológicas do litoral lamacento que
presença dos padres na narrativa visual causou circundava o Guajará, em cuja vegetação de
polêmica. Os historiadores da época sabiam mangue vicejavam também os aturiás, vistos no
apenas que os franciscanos acompanham a quadro como uma espécie de símbolo da
expedição de Jerônimo de Albuquerque para a vegetação amazônica. Muito evidente foi a intenção
conquista do Maranhão, em 1615, mas não do autor em mostrar o contraste dessa pequena
acreditavam na seqüência de viagem ao Pará, em planta com “as árvores colossais e enormes das
1616. As fontes documentais possíveis à época matas paraenses”, que cresciam em direção à terra
informavam tão somente que, desde 1617, os ditos firme. Ao fundo, no horizonte, aparece a “longa fita
padres se instalam no sítio Una, nos arredores da arroxeada da verdejante Ilha das Onças”, intacta e
recém-fundada Belém do Pará. Os franciscanos contínua, fronteiriça ao desembarcadouro dos
de Santo Antônio estão, portanto, na leitura visual portugueses. Todo esse corpus fitológico foi
de Theodoro Braga por terem sido os primeiros concebido como a parte ornamental da natureza
religiosos a chegar à Amazônia. Em 1617, quatro amazônica transposta para um retrato da história,
missionários dessa ordem estavam em Belém: Frei a fim demarcar seus contornos. Trata-se, portanto,
Antônio de Mercianna, Frei Cristóvão de São José, da certidão de origem de uma cidade que nascia
Frei Sebastião do Rosário e Frei Felipe de São em meio a maior das florestas do mundo.

398
Theodoro Braga e a pintura histórica da fundação da Amazônia

Ao lado da magnitude da flora local, parecia ficou guardada numa biblioteca de antiguidades em
essencial reconstituir um retrato climático do evento Braga, Portugal. Em 1825, o gosto pela heráldica
que, ao mesmo tempo, refletisse o traço e pelos demais registros da história, caro aos
meteorológico mais comum naquela latitude. O intelectuais do romantismo brasileiro, levou Paulo
pintor fez assim um “céu tranqüilo e belo” como José da Silva Gama, barão de Bajé (1779-1826),
adorno ao empreendimento da fundação, então presidente da Província do Maranhão, a
“enquanto que para o lado da embocadura do rio mandar reproduzir em tela a descrição do brasão.
uma nuvem plúmbea lembra-nos as fortes bátegas No final do século XIX, vários artistas e intelectuais
da chuva quase diária”. Theodoro Braga se voltou se debruçaram sobre essa peça, entre eles o
à comparação com a realidade presente, em 1908, próprio Theodoro Braga.
quando o regime pluviométrico da área da foz do
rio Amazonas praticamente não apresentava Grosso modo, trata-se de um brasão esquartelado:
flutuações e mudanças bruscas de tempo. Com O primeiro, em azul, ostenta os braços com flores
isso, o artista imprimiu uma espécie de cena e frutas e a legenda Ver est aeternum – Tutius latent
intermediária, na qual aparecem, sobre o horizonte, [eterna primavera – escondida é mais segura],
as “pesadas nuvens branco-azuladas”, alusivos à natureza pródica e bela do rio Amazonas
características daquela hora da manhã e, ao lado e à geografia escondida do rio Tocantins, com sua
direito do expectador, as nuvens mais escuras da riqueza literalmente frutificada. O segundo, um
chuva tradicional do início da tarde. Desse modo o castelo de prata com um colar de pérolas, distintivo
pintor conclui a feitura da tela. Mas o da nobreza, do qual pende a quina portuguesa com
empreendimento ainda estava pela metade. Para cinco castelos de ouro em escudo azul, enfatizando
uma grande cena, uma grande moldura. Uma a fidalguia de Castelo Branco, o fundador da cidade.
pintura histórica só é capaz de eclodir num quadro A estrada em amarelo que dá acesso ao castelo
de grandes dimensões, guarnecido e emoldurado alui o caminho que devem seguir os sucessos do
com a mesma eloqüência da cena narrada pelas herói da tela – o da obediência à Coroa de Portugal.
tintas10. O terceiro representa um sol-poente em céu
prateado, referindo a hora em que Castelo Branco
Theodoro Braga construiu para sua obra-prima uma ancorou na baia do Guajará. A legenda Rectior cum
moldura capaz de traduzir as mudanças que retrogradus [É mais reta se olharmos o passado],
procurava imprimir em suas linhas de trabalho. A indica que o comandante esperou o desembarque
moldura é aqui um campo de bricolagens, de para o dia seguinte, visando o fato que iria
mistura e tradução cultural. Sobre a madeira, o ferro acontecer no dia seguinte. A fundação de Belém
e o estuque, o artista esculpiu, modelou, forjou e representa aqui a relação entre o desejo do
pintou uma Amazônia brasileira. Na superfície do passado e a realidade do presente. O quarto traz
estuque e de seu douramento, entrecruzam-se os ícones de um boi e uma mula num prado verde
ornamentos do classicismo – com seus medalhões à margem de um rio, com as divisas Nequancam
– e outros elementos então “desconhecidos” pelos minima est [De modo algum és a menor], em
artistas da terra. Ao lado das célebres folhas de referência à cidade que seria consagrada entre as
acanto, tão características do emolduramento conquistas portuguesas, assim como Belém da
acadêmico, Theodoro Braga construiu moldes de Judéia se eternizara entre os cristãos de todo o
aturiás e folhas de aninga. Ao centro, no alto, mundo11.
ladeando o Brazão de Armas da Cidade de Belém,
palmas de açaí, de onde se extrai o vinho dos Há também que se pensar sobre o suporte, a
paraenses. Com isso o pintor estabelecia os técnica e a escala cromática preferida pelo pintor.
contornos de uma arte nacional, angulada por viso Sobre uma tela de linho branco, o artista realizou
amazônico. Estilizando a flora da região, o artista aplicações mistas de tinta a óleo, obedecendo a
questionava o contorno clássico e aquilo que um riscado que privilegiasse a luminosidade. Nas
parecia ser uma velha janela de visão da realidade. águas da baía do Guajará, em parte do céu e em
Temos à vista, portanto, uma moldura que é algumas figuras humanas as pinceladas são finas
alegoria da mestiçagem e do encontro de culturas. e diluídas camadas de tinta quase imperceptíveis.
Nas nuvens, terrenos e imediações do Forte do
No alto, ao centro da moldura, como insígnia de Presépio aparecem tênues empastes e, na copa
Belém, está o Brasão de Armas. Aqui está uma das árvores e nas demais folhagens, aplicação de
legítima prova das proezas arqueológicas do artista. densos empastes com pinceladas soltas e muito
A primeira versão desse emblema teria sido feita evidentes. Com isso, Theodoro Braga acabou por
por Bento Maciel Parente, capitão-mor do Pará imprimir um colorido variado e luminoso, tendendo
entre 1621 e 1626. Perdido, a notícia desse escudo ao verde-amarelo, – com óbvias preocupações de

399
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

5
marcar as cores da nacionalidade, nos sobre-tons Antoine Hercule Romuald Florence (1804-1879)
de verde e na longa escala do amarelo tendendo foi desenhista, pintor, fotógrafo, tipógrafo, litógrafo,
ao ocre. Esse amarelo, que certamente é a cor mais professor e um reconhecido inventor em seu
incisiva da tela, mistura-se também a outros tons tempo. Chegou ao Brasil em 1824. Atuou no
vão do ocre ao vermelho, passando por variações comércio e numa empresa tipográfica, antes de
do azul ao cinza, em vários matizes. Por fim, o ingressar na Expedição Langsdorff como
branco em contraste com ligeiros toques de negro desenhista, entre 1825 e 1829. Residiu na Vila de
terminam por contornar e realçar o traço colorista São Carlos (atual Campinas), onde criou um
da descrição da natureza em contato com a processo fotográfico em 1833, batizado de
história12. photographie. É responsável por diversas outras
invenções, entre elas a polygraphie, um sistema
Eis a grande invenção de Theodoro Braga. A obra de impressão simultânea de todas as cores
cuja fatura lhe rendeu a reputação de pintor, o primárias. Escreveu memórias e relatos de viagem,
destruiu como historiador. Certamente está aí a entre os quais se destaca Viagem Fluvial do Tietê
resposta para a pergunta que fiz lá bem no início ao Amazonas, publicado em 1875, com tradução
deste artigo. A tela de Theodoro Braga é afinal obra- do Visconde de Taunay (1843-1899), citada por
prima por ser símbolo de uma época, clímax de Thedoro Braga. Cf. FLORENCE, Hercules. Esboço
um gênero, fronteira de um estilo e marca de um da viagem feita pelo Sr. De Langsdorff no interior
autor. Conta uma história e, no entanto, é do Brasil, desde setembro de 1825 até março de
transtemporal. Pintada em 1908, remete-se a 1616 1829. Revista do Intituto Histórico e
e pode ser relida hoje, em seu centenário, como a Geographico Brazileiro. tomo 38, 1875, p.231-
qualquer momento, em qualquer lugar. 301. Comentários adicionais sobre a obra artística
Polissêmica, como todo produto da arte, a cada de Florence estão em BRAGA, Theodoro. Artistas
viso do expectador ganha uma nova leitura. À pintores no Brasil. São Paulo: São Paulo Editora,
primeira vista, sobrevém o traço acadêmico, o 1942. Antes disso, porém, T. Braga já havia
contorno pompier, o registro histórico. No entanto, caminhado pelo da representação pictórica dos
de segunda olhada, no quadro a natureza toma desenhos corporais indígenas, em BRAGA,
conta da história, no imenso amarelo-barrento da Theodoro. A arte decorativa entre os índios
baía do Guajará, nos tons verdes da floresta de selvagens da foz do Amazonas. Revista do
várias idades e ainda nas nuvens carregadas da Instituto Historico e Geographico do Pará. v.1,
foz do Amazonas – tudo isso é muito mais que um n.o1. Belém, 1917, pp. 49-52.
simples cenário para a efeméride de um centenário 6
BRAGA, Theodoro. A fundação da cidade de
mestiço da fundação da Amazônia. Nossa Senhora de Belém do Pará: estudos e
documentos para a execução da grande tela
Notas histórica pintada pelo autor e encomendada pelo
1 benemérito intendente municipal de Belém Exmo.
Doutor em História. Professor da Faculdade de
Sr. Senador Antonio J. de Lemos. Belém: Secção
História da Universidade Federal do Pará e
de Obras d’A Provincia do Pará, 1908.
Coordenador do Programa de Pós-graduação em 7
Sobre as apropriações e influências da obra de
História Social da Amazônia, UFPA.
2 Rembrandt em seu tempo e nos séculos seguintes,
Na vastíssima literatura histórica sobre os usos
ver: BLANKERT, Albert et al. The Impact of a
do tempo, penso especialmente em POMIAN,
genius: Rembrandt, his pupils and followers in the
Krzysztof. L’ordre du temps. Paris: Gallimard,
seventeenth century: paintings from museums and
1984 e LE GOFF, Jacques; LEFORT, Jean &
private collections. Amsterdam: K. & V. Waterman,
MANE, Perrine (eds.). Les calendriers: leurs
1983; WHITE, Christopher; ALEXANDER, David &
enjeux dans l’espace et dans le temps. Paris:
D’OENCH, Ellen. Rembrandt in eighteenth
Somogy; Cerisy-la-Salle: Centre Culturel
century England. New Haven: Yale Center for
International de Cerisy-la-Salle, 2002.
3 British Art, 1983; SAMIS, Peter. The appropriation
Sobre Antonio Lemos e seu mecenato, ver
of Rembrandt by the 19th-century French
SARGES, Maria de Nazaré. Memórias do Velho
etchers. Tese de mestrado em História da Arte.
Intendente: Antonio Lemos (1869/1973). Belém:
Berkeley: University of California, 1988;
Paka-Tatu, 2004.
4 MCQUEEN, Alison. The rise of the cult of
Uma leitura aprofundada da construção da
Rembrandt: reinventing an old master in
imagem de Thedoro Braga como pintor e como
nineteenth-century France. Amsterdam:
historiador está em FIGUEIREDO, Aldrin Moura de.
Amsterdam University Press, 2003.
Theodoro Braga e a história da arte na Amazônia. 8
Sou grato a Carlo Ginzburg por ter me chamado
A fundação da cidade de Belém. Belém: Museu
a atenção, de viva-voz, quando de sua estada em
de Arte de Belém, 2004, pp.31-87.

400
Theodoro Braga e a pintura histórica da fundação da Amazônia

Belém em 2004, da influência da pintura holandesa além dos 500 anos. Belém: Museu Paraense Emílio
do século XVII na obra de Theodoro Braga, para Goeldi, 2005, pp.151-182.
11
além das referencias a Rembrandt. Sobre as polêmicas da época em torno do Brasão
9
Para uma leitura histórica da presença desses de Belém, ver GENU, De Almeida. Dois brasões.
frades nos primeiros tempos do Grão-Pará, vide Moura, Ignacio Baptista de (org.). Annuario de
AMORIM, Maria Adelina. Os Franciscanos no Belém, 1616-1916. Belém: Imprensa Oficial, 1915,
Maranhão e Grão-Pará: missão e cultura na pp.201-2.
12
primeira metade de Seiscentos. Lisboa: Centro de FIGUEIREDO, Aldrin Moura de. A árvore mestiça
Estudos História Religiosa, 2005. ea
10
Sobre os significados das dimensões da tela fortaleza de pedra: Theodoro Braga e a pintura da
como representação da história da Amazônia, vide fundação da Amazônia, 1893-1908”. MIYOSHI,
FIGUEIREDO, Aldrin Moura de. A tela e o fato: a Alexander G.; DAZZI, Camila; CARDOSO, Renata.
invenção moderna e a fundação do Brasil na Revisão historiográfica: o estado da questão.
Amazônia. FORLINE, Louis C; MURRIETA, Rui Campinas: Unicamp, 2005, volume 1, pp. 35-42.
Sérgio S; VIEIRA, Ima Célia G. (Org.). Amazônia:

401
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República
A Batalha de Campo Grande: o começo da
popularidade

Em 1864, teve início a guerra que foi para o Brasil


a mais violenta de sua história e um acontecimento
marcante para a América do Sul: a Guerra do
Paraguai. O conflito durou seis anos, deu lugar a
numerosas batalhas, e terminou em 1870, com a
morte de Francisco Solano Lopez, ditador
paraguaio.

Entre os diversos comandantes da armada


brasileira, Louis Philippe Marie Fernand Gaston
d´Orleans, o conde d’Eu, filho do duque de
Nemours e marido da princesa Izabel, filha do
imperador Pedro II, desempenhou papel de
destaque. Ele foi nomeado comandante em chefe
das forças militares brasileiras em 22 de março de
1869. Sob seu comando aconteceu uma das
batalhas mais significativas daquela guerra: a
batalha de Campo Grande. (REIS: 90). A luta teve
inicio às oito horas da manha de 16 de agosto de
1869 em um lugar chamado Ñu-Guazu ou Campo
Grande. A vitória das tropas brasileiras nessa
batalha e o triunfo final na guerra deixaram o país
extremamente orgulhoso de seu desempenho
militar e o Brasil passou por um período de
a temática, na pintura do século xix no brasil, nacionalismo exacerbado. Foi dentro deste
como veículo de afirmação e sobrevivência: contexto de grande emoção patriótica que Pedro
pedro américo de figueiredo e mello. Américo retornou ao Brasil depois de suas duas
temporadas de estudo na Europa.
1
madalena de f. p. zaccara
Professor da Academia Imperial de Belas Artes,
selecionado por concurso dois anos antes, ainda
sem ter exercido as funções do seu cargo uma vez
que depois do concurso retornou à Europa em
período de licença da Academia, autor de uma
pequena produção pictórica executada
principalmente na França, o artista era na época
um completo desconhecido do grande público de
seu país e mesmo do meio mais erudito brasileiro.
Suas chances de obter encomendas importantes,
portanto, não eram significativas e ele contava
principalmente com a possibilidade de continuidade
da proteção do imperador - a quem ele havia
contrariado recentemente permanecendo mais
tempo na Europa do que o desejado pelo monarca
- e na sua capacidade pessoal de articulação.

O ufanismo da vitória brasileira e o seu senso de


oportunidade lhe mostraram o caminho a seguir:
registrar aspectos dessa guerra extremamente
popular e conseguir, assim, sua própria
popularidade. Para tanto, escolheu um tema
inserido no assunto que mobilizava todo o país: A
Batalha de Campo Grande. Para descrever essa
ação, escolheu como personagem principal da
composição o genro de seu benfeitor, Pedro II, o

402
A temática como veículo de afirmação e sobrevivência: Pedro Américo

conde d´Eu, em um momento de destaque por um ano mais tarde ela foi apresentada oficialmente
arrojo pessoal na luta então travada. à família imperial que a visitou em 11 de maio de
1871 de acordo com matéria publicada no Diário
Pedro Américo deu início à confecção de sua tela de Notícias do Rio de Janeiro daquela data.
em 1870. É importante recordar que, em princípios
desse ano, o artista não tinha nada a apresentar Até o fim deste ano, várias personalidades a
como referência profissional além de exercícios na visitaram e um número espantoso de artigos foi
Academia brasileira (onde conseguiu um bom escrito sobre ela. Um deles é particularmente
desempenho e algumas medalhas) e na Escola de curioso e foi editado no Diário de Notícias do Rio
Belas Artes de Paris, umas poucas pinturas de Janeiro em 20 de agosto de 1871. Faz referência
religiosas encomendadas, a tela A Carioca, a uma comissão formada por amigos do pintor que
rejeitada pelo provincianismo da burocracia do estava encarregada de recolher contribuições para
palácio imperial e a composição Sócrates oferecer-lhe uma coroa de louros, confeccionada
afastando Alcebíades do reino do Vício com o qual em ouro, em homenagem ao seu talento.
ele ganhara o concurso para professor da Academia Analisando as anotações feitas no álbum sobre os
Imperial de Belas Artes do Rio de Janeiro. recortes de jornais da coleção “A Batalha de Campo
Grande” verificamos que o artista tinha perfeito
Dentro desse contexto de retorno, ele iniciou uma conhecimento da autoria dos artigos, a maioria não
atividade paralela bastante intensa na imprensa assinados, anotando junto ao recorte o nome do
brasileira colaborando, inclusive, como caricaturista autor.
no jornal de costumes A Comédia Social, onde já
trabalhava o seu irmão: Aurélio de Figueiredo. A Em 28 de agosto de 1871, um artigo publicado no
autoria da produção das caricaturas nunca foi Jornal da Tarde, atribuído à redação, informa ao
assumida por Pedro Américo. Álvaro Cotrin, público que o deputado pela província do Rio
pesquisando sobre o assunto, justifica essa Grande do Norte, Gomes da Silva, havia proposto
ausência de reconhecimento pessoal da produção ao governo comprar o “trabalho patriótico” de Pedro
devido ao caráter vaidoso do artista que não a Américo. O artigo vem acompanhado de uma
considerava uma atividade relevante. (COTRIN, pequena biografia e foi reproduzido ou comentado
1983: 22). A personalidade do artista não atraia, nos principais jornais do país. O referido artigo se
de maneira geral, a simpatia da elite intelectual constitui em uma nítida sugestão da mídia para
brasileira de então e se ele conquistou a admiração forçar a compra de uma tela pelo governo, tela esta
de alguns por sua inteligência e erudição, também que não tinha sido encomendada por ele.
fez um bom número de inimigos que não aceitava
a sua maneira de se conduzir, invejava a amizade Os artigos se sucederam, já então favoráveis e
que o imperador continuava a lhe conceder e desfavoráveis. Segundo anotações do próprio
tentava minimizar seus proclamados sucessos artista, nesse diário constituído de recortes de
europeus. jornais, um inimigo dos artistas brasileiros entrara
em cena naquele momento e publicara ofensas a
Dentro desse contexto, Pedro Américo concebeu Pedro Américo e a Victor Meirelles. De acordo com
uma hábil estratégia para divulgar seu trabalho a ótica de Américo o objetivo seria provocar a
ainda em projeto. Graças à doação de suas netas discórdia entre os dois artistas e criar uma imagem
Virgínia e Carlota Cardoso de Oliveira, ao Museu negativa de ambos para o público. É difícil
Imperial de Petrópolis, de uma coleção de recortes compartilhar essa opinião. Pedro Américo havia
de jornais sobre o quadro, com anotações pessoais organizado uma campanha publicitária eficiente
do artista, pudemos seguir com precisão essa (durante o mês de setembro de 1871, por exemplo,
campanha concebida, desenvolvida, executada e não há praticamente um só dia em que ele ou o
bem sucedida através dos instrumentos de seu trabalho não sejam citados na imprensa) e uma
comunicação da época. (ZACCARA, 1995: 59. Vol. reação a ela não seria estranha. Principalmente,
I). se levarmos em conta, que, naquele momento, os
que se manifestaram “contra” Pedro Américo
A primeira referência sobre o assunto aparece em denunciavam principalmente sua autopublicidade.
um artigo assinado por Ladislao Netto publicado Não questionavam o seu trabalho. O jornal O
no Jornal do Commércio de 15 de junho de 1870. Guarani de 2 de setembro de 1871, por exemplo,
Intelectual de prestígio junto à corte e amigo do abordou o assunto sob esse ponto de vista. Só
pintor ele faz, então, crítica repleta de elogios, depois que a obra foi exposta ao público é que se
extremamente prematuros, sobre o trabalho que passou a discutir estilo e, principalmente, fidelidade
estava sendo desenvolvido. Na época, a tela se histórica.
encontrava ainda em condições de esboço e só

403
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

Foi também durante o mês de setembro daquele Ordem da Rosa em 8 de dezembro de 1871.A
ano que apareceu na mídia o anúncio de uma homenagem da coroa de ouro foi fixada para o dia
biografia de Pedro Américo que estava sendo 31 do mesmo mês. Pedro Américo era então um
escrito por seu antigo colega no Colégio Pedro II, dos homens mais conhecidos e comentados do
Luis Guimarães Júnior, então jornalista respeitado país tal como foi a criança mais célebre da pequena
no meio intelectual do Rio de Janeiro. A obra, cidade de Areia, no interior da Paraíba, onde
abordando a vida e a obra de um artista que tinha nasceu.
apenas 28 anos e poucos trabalhos conhecidos,
foi também um grande golpe publicitário. Sua Finalmente, o governo brasileiro cedeu às pressões
divulgação perfeita. No período compreendido entre e comprou a discutida tela por 13 contos de réis
13 de setembro e 29 de dezembro de 1871 toda a em 27 de janeiro de 1872. O público ainda não a
imprensa brasileira (da capital e das províncias) conhecia e ela foi exposta, dois meses depois,
comentou a obra de Guimarães Junior. Vários durante a XXII Exposição Geral da Academia
ensaios foram feitos sobre a tela sendo os mais Imperial de Belas Artes do Rio de Janeiro,
importantes àqueles escritos por Quintino inaugurada em 6 de março de 1872.A exposição
Bocayuva (BOCAYUVA, 1871) e por Otaviano recebeu a visita de mais de 60.000 pessoas
Hudson (HUDSON, 1871) com uma divulgação tão segundo estimativa do jornal O Mosquito de 13 de
bem elaborada quanto a da biografia de Guimarães junho de 1872. Logo em seguida, Américo recebeu
Junior. várias encomendas entre as quais uma do governo
brasileiro. Ele foi encarregado de executar uma tela
No fim do ano de 1871, Pedro Américo era uma sobre a história brasileira e novamente investiu na
personalidade notória mesmo sem seu trabalho ter Guerra do Paraguai escolhendo como tema outra
sido exposto oficialmente. Todos, republicanos e de suas batalhas: A Batalha de Avaí.
monarquistas, queriam partilhar essa popularidade.
Mesmo os que não simpatizavam com o artista A Batalha de Avaí: a afirmação da popularidade
participavam, daquele momento de notoriedade,
através da imprensa, por meio de críticas ou Após um período de pesquisas sobre o tema, Pedro
debates. Um artigo assinado por Bittencourt da Américo conseguiu uma licença remunerada da
Silva, arquiteto e professor da Academia Imperial academia brasileira e partiu para Florença com a
de Belas Artes, por exemplo, atacou seu colega família onde deu início à nova composição, de
Pedro Américo com certa violência no Jornal do grandes dimensões, que solidificou sua notoriedade
Commércio de 7 de setembro de 1871. No artigo o como pintor de batalhas. Como no Brasil, em
arquiteto denunciou que a fidelidade histórica teria paralelo à confecção da obra, ele utilizou
sido desrespeitada pelo autor. No mesmo jornal, sistematicamente a imprensa italiana que o visitava
no mesmo dia, uma matéria anônima questionava constantemente em seu ateliê florentino. Vários
os méritos da produção artística de Américo. Estava artigos apareceram, então, nos jornais de Florença
lançada a disputa entre os inovadores, partidários e Américo começou também a ser conhecido
do Romantismo ainda questionado pela Academia naquela cidade.
brasileira e os conservadores, partidários dos
Cinco anos depois da encomenda o artista expôs
rigores do Belo Ideal neoclássico.
seu trabalho. A mostra iniciou-se em 1 de março
A idéia da compra do quadro pelo governo de 1877 como parte das comemorações do quarto
continuou a ser levantada pela imprensa partidária centenário de nascimento de Miguel Ângelo. O
do artista. Entre as várias opiniões sobre o assunto, imperador Pedro II compareceu à inauguração
divulgadas na imprensa, prevaleceu a do professor juntamente com personalidades da aristocracia
de anatomia da Academia Imperial de Belas Artes européia e o mundo artístico e cultural florentino. A
que propunha que a congregação dos professores imprensa italiana e internacional divulgou
solicitasse ao governo a compra da obra. A fórmula amplamente a exposição e Américo obteve
utilizada por Américo encontrara, enfim, apoio entre popularidade também na Itália.
seus pares, feito difícil considerando-se as
Alguns ensaios apareceram sobre o seu trabalho
rivalidades do meio.
naquele momento. Entre eles Itália e Brasile, escrito
Naquele momento, a popularidade do artista era por Francesco Becherucci, crítico de arte florentino
imensa. As mais eminentes personalidades lhe (BECHERUCCI, 1877). A maioria dos biógrafos de
visitavam, poemas eram escritos em sua Américo afirma que, nessa época, a administração
homenagem, botânicos amadores batizavam flores da cidade de Florença solicitou do artista um auto-
com seu nome e o governo o condecorou com a retrato para ser exposto na Galeria dos Ofícios.
Durante nossa pesquisa nos arquivos daquela

404
A temática como veículo de afirmação e sobrevivência: Pedro Américo

galeria não encontramos qualquer documentação por um preço razoável e com as mesmas
a esse respeito. Entretanto, existem dois retratos dimensões da tela A Batalha do Avaí. Durante esse
do artista naquele acervo: um deles datado de 1877 período ele também elaborou outro plano para
que é, assim, contemporâneo da exposição conseguir nova encomenda. Em 1878, escreveu a
realizada em Florença e outro, datado de 1895. todos os presidentes de província do Brasil
(ZACCARA P. MADALENA, 1995: p. 73, Volume I). solicitando uma subscrição popular, encabeçada
por eles, objetivando recolher fundos para a
Concluída a mostra, o trabalho foi enviado para o confecção de um novo quadro. A obra teria como
Brasil em abril de 1877. O país aguardava a tema uma homenagem ao Marques de Herval e
exposição do quadro com impaciência. Victor teria caráter patriótico segundo as palavras do
Meirelles de Lima, o principal concorrente de artista. (ZACCARA P. MADALENA. 1995: p. 78,
Américo em termos de popularidade, também havia Volume I).
obtido uma encomenda do governo brasileiro e
pintava A Batalha dos Guararapes. Era inevitável O tempo passava na antiga cidade dos Médicis.
a expectativa do público no sentido de comparar Seus amigos italianos, bem colocados no cenário
as duas obras. A tela foi exposta inicialmente numa político florentino o aconselharam a insistir na
construção de madeira situada na Praça Pedro II temática de batalha e pintar uma tela sobre um
no Rio de Janeiro. Para admirar a pintura, que havia assunto italiano. Américo concordou e escolheu
feito tanto sucesso na Europa, o visitante devia como tema a batalha de San Martino que havia
pagar sua entrada. sido travada contra a Austria e vencida pela Itália.
Uma vez tomada essa decisão e com a perspectiva
Após essa mostra Pedro Américo tornou-se ainda de uma futura aquisição por parte do governo
mais popular. Seu objetivo, naquele momento, era italiano ele deixou Florença e partiu para
retornar o mais rápido possível para a Europa onde Montecantini, cenário da batalha a ser pintada, para
o aguardava sua família. Antes, entretanto, estudos. A pintura, entretanto, ficou em estágio de
necessitava receber o pagamento referente à esboço. As mudanças da política italiana não
encomenda da tela A Batalha do Avaí do governo permitiram seu desenvolvimento, ou seja, a
imperial. No que se refere a essa etapa o artista possibilidade de aquisição por parte do governo.
passou por algumas dificuldades. O contrato
celebrado entre ele e o governo de Pedro II previa Durante esse período florentino Pedro Américo
que o preço da obra deveria ser estabelecido por produziu bastante. Enviou para o Brasil onze
profissionais expressamente convidados para essa quadros executados “durante os intervalos de meus
tarefa (CARDOSO DE OLIVEIRA J. M., 1943: pp. sofrimentos físicos”. Desejava que o conjunto fosse
100-102) e o governo deveria aceitar essa exposto na próxima exposição da Academia
avaliação. Pedro Américo havia contatado Imperial de Belas Artes “nas mesmas condições
membros da Academia de Florença para exercer que a dos outros concorrentes”. Nesta mesma
essa função e a obra foi avaliada por eles em 53 correspondência, ele informa o título das obras
contos de réis. O governo brasileiro considerou o enviadas: David em seus últimos dias é aquecido
preço excessivo e pagou somente parte da quantia: pela jovem Abisag; Dona Catarina de Atahyde;
40 contos de réis. Inconformado com o resultado, Judith rende graças a Jeovah por ter conseguido
o artista apelou para suas amizades e para a livrar sua pátria dos furores de Holophernes; uma
imprensa. Seu amigo, o deputado Fernando Ozório, reprodução com variações do quadro A Carioca; A
por exemplo, defendeu com tenacidade seus noite acompanhada dos gênios do amor e do
direitos junto à Assembléia Legislativa, fato que foi estudo; Joana D´Arc ouve pela primeira vez a voz
noticiado em matéria do Jornal do Commércio do que lhe prediz o seu destino; D. João IV, Duque de
Rio de Janeiro de 2 de setembro de 1877. Bragança em 1608; Rabequista Árabe; Retrato de
menina em costume espanhol de 1600; A virgem
Apesar de não receber o resto do montante dolorosa; Estudo de perfil; Moysés e Jacobed e
estabelecido pela avaliação da academia florentina, um trabalho intitulado Contemporâneo de Van
Pedro Américo retornou àquela cidade após obter Dyck, cópia do mestre executada por seu discípulo
nova licença do governo. Instalado na Via di Mezzo Décio Villares. (ZACCARA. P, MADALENA. 1995:
n. 4, ele continuou a pedir e a obter novas licenças p. 94. Volume I).
e a tentar conseguir novas encomendas. Propôs,
na época, através de carta endereçada ao Marques Os títulos dos trabalhos produzidos no período, que
de Herval, seu amigo e detentor, no momento, de não eram resultantes de encomendas, nos indicam
grande influência política no governo brasileiro, que a temática de Pedro Américo difere
pintar a batalha travada no dia 24 de maio (outra completamente daquela que o tornou conhecido:
batalha acontecida durante a guerra do Paraguai) a pintura de batalhas. Neste conjunto de obras, que
405
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

mais tarde foi vendido ao governo brasileiro, os Brasil um romantismo, já em declínio na Europa,
assuntos abordados variam entre história, mitologia mas ainda polêmico no contexto brasileiro.
e literatura com ênfase para o Antigo Testamento. Entretanto, essa produção, que nas circunstancias
Algum tempo depois, o próprio artista vai afirmar representava um avanço no universo das artes
ser o tema bíblico o seu preferido. A produção visuais brasileira, representou para ele sempre um
posterior a essa coleção, também vai estar negócio, uma alternativa para a sobrevivência. Ele
significativamente mais ligada à história sagrada não retornou mais a essa temática quando o filão
ou profana, a temas mitológicos e às alegorias. se esgotou, característica de um país pouco bélico
e, portanto, possuidor de um universo reduzido de
O historiador e crítico de arte brasileira do século temas abordando batalhas. Abriu seu caminho com
XIX Luis Gonzaga Duque Estrada, contemporâneo elas e o fez com eficiência e grandiosidade.
do pintor, já enfatizava essa falta de interesse do
artista pela pintura militar justificando-a como uma Referências bibliográficas
espécie de oportunismo natural em um jovem pintor
em início de carreira. (DUQUE ESTRADA, 1888 BAUDELAIRE, Charles. Critique d´art. Paris:
p.p.111-112). A produção madura de Américo Editions Gallimard. 1992
confirma a análise do historiador. A temática de BECHERUCCI, Francesco. Brasile e Itália.
batalha configura-se assim como um meio de Illustrazione del quadro La Bataglia di Avahy Dell
inserção do artista no mercado de arte da época insigne pittore Pedro Américo. Florença, 1877.
aproveitando a euforia patriótica brasileira ligada à BOCAYUVA, Quintino de Souza. A Batalha de
vitória na guerra do Paraguai e que, graças a um Campo grande (quadro histórico) Rio de Janeiro:
direcionamento bem planejado através da mídia, Henrique Brow e João de Almeida Editores.
gerou uma espantosa e rápida popularidade. OLIVEIRA, Cardoso de. J. M. Pedro Américo, sua
vida e suas obras. Rio de Janeiro: Imprensa
Pedro Américo nunca foi um militar que fazia pintura Nacional, 1943,
como disse Baudelaire de Horace Vernet COTRIN, Álvaro. Pedro Américo e a caricatura.
(BAUDELAIRE, 1992). Ele detestava a guerra, não Rio de Janeiro: Edições Pinakotheke, 1983.
tinha interesse pelo Brasil e relutou a vida toda em GONZAGA, Duque Estrada L. A Arte Brasileira:
retornar ao país natal. Só o fazia para conseguir pintura e escultura. Rio de Janeiro: H. Lombaertz,
encomendas ou para a rápida investida no cenário 1888.
político nacional como deputado eleito pela sua GUIMARÃES JR, Luis. Perfil Biográfico. Pedro
província natal, a Parahyba do Norte, após a Américo. Rio de Janeiro: Henrique Brow e João de
proclamação da República. Morreu em Florença Almeida Editores. 1871
e, até seus últimos dias, hesitou ante os convites REIS, Everaldo Oliveira. O conde d´ Eu e o exército
de dirigir uma escola com seu nome na província brasileiro. Anuário do Museu Imperial. Vol. 32.
do Pará, atividade proposta pelo então senador da ZACCARA PEKALA, Madalena. Pedro Américo:
República Antonio Lemos (OLIVEIRA. V. Vie et oeuvre. Son rôle dans la peinture du Brésil
CARDOSO. 1902: p.16). Suas poucas pinturas de au XIX ème siècle. Thèse de Doctorat de
batalha foram importantes para a sua carreira. Eram l´Université . Toulouse: Université Toulouse II, 1995,
necessárias naquele momento e ele as 3 Volumes.
desenvolveu de forma eficaz e corajosa investindo,
com o ímpeto da juventude e de quem retornara Notas
de outro universo de informações, contra regras 1
Madalena Zaccara é doutora em História da Arte pela
aceitas e impostas por grande parte do meio
Université Toulouse II, Toulouse, França e professora
artístico e intelectual brasileiro o que acarretou adjunta do Departamento de Teoria da Arte e Expressão
grande polêmica na época. Américo trouxe para o Artística da Universidade Federal de Pernambuco.

406
O pintor oitocentista Pedro Americo de Figueiredo
e Mello (1843-1905) representou em grande
formato o protomártir da República brasileira,
conhecido sob a alcunha de Tiradentes1. A tela
possui trajetória muito diferente dos demais
quadros históricos do artista. Embora pintada em
Florença (Itália), lá não foi exposta, não participando
também de nenhuma exposição internacional. No
Brasil, não integrou a Exposição Geral de Belas
Artes. Apresentada em julho de 1893, na capital
federal, a tela não foi adquirida pelo Estado, a
exemplo de seus quadros históricos anteriores.
Vendida a município do interior do país, por
ingerência de um amigo, permaneceu oculta aos
olhos do público por longo tempo. De 1893 até
1969, a tela não circulou como imagem, não foi
reproduzida em gravuras, não ilustrou livros e
pouco foi citada nas biografias do pintor. Por que
uma das primeiras representações do principal
herói brasileiro foi esquecida?

O quadro

Tiradentes fora enforcado e desmembrado em


1792, acusado de liderar uma conspiração contra
a metrópole portuguesa. Pedro Americo fez uma
escolha difícil para um pintor de história: ao invés
de representá-lo vivo e glorioso sob o cadafalso,
a recusa ao corpo fragmentado: a recepção de
no momento de maior tensão, apresentou,
“tiradentes esquartejado”
simplesmente, as partes do cadáver ocupando
maraliz de castro vieira christo quase a totalidade da tela.

Se o quadro surpreende ao exibir um herói aos


pedaços, a sua assepsia causa igual estranheza.
Ela rompe com a ação do tempo, nos remetendo
ao corpo manipulado pela ciência, próprio, no dizer
do pintor, a uma época de dissecação e análise.

Pedro Americo procurou, na organização dos


fragmentos, alguma coerência com a estrutura
corporal humana, incentivando a recomposição
mental do corpo. Manteve a cabeça ao alto, tratada
dignamente, próxima das imagens de São João
Batista, produzidas na Europa meridional do séc.
XVI, e distante das representações das cabeças
sofridas e cadavéricas de guilhotinados do séc. XIX,
apresentadas por Géricault (1791-1824), Jacques-
Raymont Brascassat (1804-1867) ou Denis
Auguste Marie Raffet (1804-1860)2.

Pedro Americo afasta sua representação do “Teatro


da guilhotina”, a cabeça de Tiradentes não está
suspensa pela mão do carrasco para ser exposta
ao público. Ela repousa sobre o chão do cadafalso,
a exemplo das representações do séc. XIX, mas
não a percebemos como “coisa” num plano
horizontal. A perspectiva, situando o observador
bem abaixo do nível do assoalho, nos impede a
visão do plano, transformando-o apenas numa

407
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

“linha” onde a cabeça, respeitando sua posição os membros parecem privados de volume,
natural ocupada no corpo, situa-se entre dois eixos tornando-se quase uma figura abstrata. A relação
(o assoalho e o mastro), metamorfoseando o entre o braço direito de Tiradentes com sua perna
cadafalso em cruz. direita causa estranheza, mas não a repulsa que
provocaria a exibição dos cortes, caso Pedro
Em Tiradentes esquartejado o tronco, pousado Americo se inspirasse nos fragmentos expostos em
sobre o cadafalso, não foi fracionado em dois. Rouen.
Pedro Americo preferiu ignorar o texto da sentença,
que ordenava ser, após o enforcamento, a cabeça Na organização espacial dos fragmentos, Pedro
cortada e o corpo dividido em quatro partes. O Americo objetivou a verticalidade como o tradicional
artista não só manteve o tronco intacto, impedindo caminho para a espiritualidade. O olhar parte da
que fosse reduzido a um pedaço de carne cortada, perna esquerda - presa a uma haste de madeira,
como obstruiu a visão do corte do quadril com a como um estandarte da barbárie humana -, alcança
túnica azul. Conservando o tronco, Pedro Americo o tronco, se eleva à cabeça levemente inclinada,
buscou sua associação simbólica com o braço cujos olhos semi-abertos vislumbram a luz. Porém,
pendente da Pietá de Miguelangelo ou do Marat nesse caminho, algo nos perturba: a carne
assassinado de Jacques-Louis David. esgarçada, espetada e amarrada da coxa
esquerda. É o “detalhe-dettaglio”, retomando o
O tronco de Tiradentes nada possui da conceito proposto pelo historiador francês Daniel
representação clássica das esculturas da Arasse, que captura o olhar.4
Antigüidade, a exemplo do Torso do Belvédére, de
Apollonios (Musei Vaticani, Roma). Seu realismo Todos os cuidados anteriores, ao ocultar os cortes
nos traz à memória obras de italianos e posicionar respeitosamente as partes, foram
contemporâneos de Pedro Americo, como Abel esquecidos. A carne esgarçada da coxa rouba a
morrendo, escultura de Giovanni Dupré (1817- atenção destinada pela verticalidade à cabeça.
1882), exposta no Pallazzo Pitti, ou Santa Nosso olhar fica pendente entre uma e outra. O
Felicidade e o martírio dos Maccabei, de Antonio vermelho do sangue presente, mesmo não em
Ciseri (1821-1891) pertencente à Igreja de Santa excesso, na coxa e na base da cabeça, titubeia o
Felicidade; ambos em Florença, na mesma olhar.
margem do Arno, onde Pedro Americo trabalhava
em seu ateliê, na via Maggio, número 11. Vale A disposição dos fragmentos de Tiradentes foi
ressaltar o contato de Pedro Americo com Antonio inspirada, em parte, no grupo inferior esquerdo de
Ciseri, professor de Aurélio de Figueiredo, entre A balsa da Medusa. Esse grupo representa a morte
1873 e 1875, período em que este último morou e a desilusão, contrapondo-se àqueles que acenam
em Florença com o irmão. ao fundo por socorro. A perna esquerda de
Tiradentes recorda as pernas que se projetam para
A perna direita, situada atrás do tronco, sugere o fora da jangada, pertencentes ao filho morto seguro
pé representado por Géricault em Fragmentos pelo pai. Traspassada pela haste de madeira, a
anatômicos (1888), exposto no Musée Fabre, em perna nos lembra igualmente os corpos atados ou
Montpellier. Didaticamente, Géricault pintou o traspassados por galhos de árvores nas gravuras
mesmo grupo de fragmentos (um braço esquerdo da série Desastres da guerra de Goya.
decepado na altura da clavícula e duas pernas) em
três ângulos diferentes. A comparação entre o Ao fixar a perna esquerda na haste, Pedro Americo
quadro de Montpellier e o exposto no Musée des a distancia do restante do corpo dando-lhe certa
Beaux-Arts de Rouen é reveladora. No quadro de autonomia. Ela ocupa um espaço indefinido, quase
Montpellier, o ângulo de visão e a penumbra surreal, entre o observador e o restante do corpo,
dissimulam as mutilações, o braço enlaça-se ao revelando um aspecto negado aos outros
pé, num jogo romântico capaz de seduzir o olhar, fragmentos: a carne. A autonomia da perna
ao passo que o quadro de Rouen provoca o efeito esquerda é a grande inquietude do quadro.
contrário. Ele nos permite observar o lado oposto
da representação de Montpellier. Em primeiro Pedro Americo sobrepõe em sua tela referências
plano, iluminado, reconhecemos, antes de tudo, antagônicas: o corpo de Cristo, o corpo do herói
os cortes, como se estivéssemos diante de uma republicano Marat e o corpo da vítima anônima, a
mesa de açougue; ali toda a humanidade dos exemplo das retratadas por Géricault e Goya. Se a
membros fragmentados se perdeu. Por cabeça e o tronco estão prenhes de significação
curiosidade, o terceiro ângulo, pertencente à positiva - a salvação da humanidade, os ideais
coleção particular de Robert Lebel, em Paris 3, republicanos...- a perna esquerda, reduzida à
mostra uma visão lateral, sem profundidade, onde condição primordial de carne, de testemunho da

408
A recepção de “Tiradentes Esquartejado”

barbárie humana, contamina a visão das outras perceber o quanto o artista desafiou antigos
partes do corpo, negando sua positividade. pressupostos da arte, que, pela posição da crítica
na época, parece-nos possuírem ainda alguma
Tiradentes não tivera a mesma sorte das divindades ressonância. Para o escritor do século XVIII,
Osires e Dionysos, cujos corpos fragmentados
foram recompostos, respectivamente, por Isis e [...] as formas feias não devem ser
Rhéa. Fracionado e perdido no caminho sua representadas, porque as sensações
ressurreição é impossível. A imagem que desagradáveis, fixas, imobilizadas e
permanece é a do corpo esquartejado. eternizadas, produzem um sentimento
inestético: a repugnância. Podemos abstrair
A recusa esta fealdade e considerar apenas a arte do
pintor, mas achamos que é uma arte mal
No Rio de Janeiro, o quadro foi apresentado no empregada. A fealdade só é pois legítima para
salão do jornal A Cidade do Rio, de 2 a 17 de julho produzir o ridículo, por exemplo na caricatura,
de 1893 e, até o findar do mês, na Glace Elegante5, e para produzir o horrível, por exemplo na
uma das poucas galerias de arte da cidade 6. tragédia, que leva a emoção até ao último
grau.11
Embora exposto em uma conjuntura de
controvérsias, quando, no Congresso Nacional, Foi como repugnante que parte da crítica
ainda debatia-se calorosamente o projeto de considerou o quadro de Pedro Americo.12
monumento à memória de Tiradentes, sancionado
em 13 de julho, a tela de Pedro Americo atraiu, Pedro Americo rebateu as acusações escrevendo
relativamente, pouca atenção. Levantamos, na ao jornal. Em sua defesa, aponta para o
imprensa, quatorze notícias sobre o quadro: seis planejamento inicial, onde o quadro finalizava uma
informativas, quatro contrárias à representação do série: o trabalho que agora exponho, teria produzido
herói esquartejado, três em defesa de Pedro no meio dos outros impressão diversa e porventura
Americo e uma escrita pelo próprio artista. menos terrível13. Quanto ao caráter repugnante,
esclarece:
Para alguns críticos, a representação criada por
Pedro Americo reforçava o discurso do herói cívico- [...] não me parece que eu haja revestido o fato
religioso, ao aproximar o martírio de Tiradentes com de cores mais vivas do que a crua verdade
o de Cristo.7 comportava. Um homem enforcado e
imediatamente decapitado e esquartejado por
Como visto anteriormente, de fato, a composição carniceiros ignorantes devia oferecer aos
elaborada por Pedro Americo leva o observador a colonos aterrorados um espetáculo muito mais
esta interpretação. Entretanto outra leitura se repugnante do que o da pintura exposta.
sobrepunha à do mártir religioso. Parte da crítica [...] evitei de propósito a representação das
acusava Pedro Americo de ter apresentado uma contrações da morte, a um tempo por
página demasiadamente eloqüente de propaganda estrangulamento e sufocação, n’aquela face
republicana. 8 Não se tratava de uma censura à destinada á respeitosa contemplação dos
temática, Tiradentes, mas ao momento escolhido pósteros; e não quis pintar (com os efeitos aliás
pelo artista para representá-lo. Pedro Americo não tão fáceis de obter n’uma tela realista) os
deixou ao encargo da imaginação o total intestinos, e as vísceras todas, e até as fezes
cumprimento da sentença. Se a verticalidade da do supliciado, ali derramadas com a mesma
composição apontava para a liberdade da vida brutalidade e a mesma irreverência com que
eterna, a visão do esquartejamento aprisionava a foram decepados e dispersos os seus
imaginação na morte, na denúncia da repressão membros, e salgada a sua cabeça.
colonial. Entretanto tê-lo-ia feito Zola, que digo? tê-lo-ia
feito Homero, uma vez que não hesita em nos
Pedro Americo, ao ser fiel ao destino de Tiradentes,
exibir os seus louros e olímpicos heróis, cegos
rompe com os cânones do ‘belo ideal’. Embora
de cólera ou loucos de dor, lutando corpo a
obedecendo aos rigores do desenho neoclássico,
corpo pela possessão de um cadáver, ou
fazendo um detalhado estudo anatômico, o artista
espojando-se por terra, com a face e os cabelos
provoca um grande desconforto ao apresentar o
lustrosos de suor, lacerando as próprias vestes,
corpo em fragmentos. Se compararmos as
e esfregando o corpo no pó e no lodo das
decisões tomadas por Pedro Americo ao
estradas, em sinal de extrema consternação.
pensamento de Gotthold E. Lessing (1729-1781)
9 Sem duvida por deficiência de talento poderei
, cujo texto o pintor conhecia 10 , poderemos
não ter atingindo o fim que me propus, mesmo

409
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

julgando-se esse quadro isoladamente; mas, humano, não um ato da justiça, que temos diante
evitando a exibição de contrações e outros de nós!18 O articulista, a seguir, faz uma digressão
efeitos fisiológicos na face serena do grande sobre a pintura histórica:
mártir, e o abuso do sangue e das exibições
anatômicas em quase toda a figura, sem Pondera-se que o autor do quadro pudera ter
contudo recusar a essa pagina da historia o escolhido outro episodio da vida do mártir que
cunho do realismo, que deve caracterizar as não causasse tanto horror, que despertasse
produções de uma época de dissecação e melhor a piedade pelos que sofrem! Há aqui
análise em todos os assuntos, creio ter uma completa aberração das leis da critica.
oferecido á consideração publica um Se fosse verdadeiro semelhante principio, ele
espetáculo próprio para tornar patente a importaria nada menos do que a supressão de
hediondez da barbaria humana, no tempo em uma das manifestações mais poderosas da arte
que viveu, cheio de angélicas esperanças e – o gênero da pintura histórica.
heróicas ilusões patrióticas, o mártir de cuja Neste gênero, verdadeiro trabalho de
grandeza moral ainda alguns duvidam.14 restituição do passado, o ponto capital é a
fidelidade perfeita, o respeito sagrado á
Respondendo àqueles que o censuravam por ter verdade histórica, que neste caso é tanto dever
retalhado o herói e também àqueles que, ao do artista, como do historiador.
contrário dos primeiros, lhe criticavam a não
fidelidade às agonias da morte 15, Pedro Americo Por fim, Homem de Mello argumentou ser o horror
nos faz ver como o corpo de um herói, embora fiel sentido diante da obra e sua rejeição uma reação
ao seu destino, deveria ser tratado com respeitosa contrária à justiça de matadouro, ali representada,
contemplação e reverência. Interessante o e não ao artista; assim como destacou o caráter
contraponto entre a pintura e a literatura provocado místico da obra, apesar do grito de revolta nela
por Pedro Americo em sua defesa ao citar Zola e contido.
Homero. Entretanto, Lessing nos mostra que:
Contrário à posição expressa por Homem de Mello,
[...] a poesia não fixa, faz passar rapidamente Carlo Parlagreco, imigrante italiano e professor de
a fealdade. É por isso que poderemos verificar Estética da Escola Nacional de Belas Artes, no dia
nos poetas antigos coisas feias ou que nos seguinte, escreveu ao Jornal do Brasil. Seu longo
inspiram repugnância, mas elas continuam a artigo inicia-se com uma afirmação provocadora:
servir em associação para dar o horrível: as “(...) a maneira com que o artista quis erguer o seu
sânies de Filocteto, a fome em Ovídio e hino ao glorioso mártir mineiro liga-se a um dos
Calímaco, por exemplo. 16 maiores problemas da arte de todos os tempos” 19,
ou seja, o verismo e a falta de efeito moral:
Nos dias 14 e 15 de julho de 1893, os leitores
acompanharam o confronto de dois críticos sobre [...]
o quadro de Pedro Americo, através dos únicos O que não posso, porém, apesar de minha boa
artigos assinados sem o uso de pseudônimos. vontade, louvar, nem admitir no quadro de que
se trata é a sua composição e a sua
No primeiro, o Barão Homem de Mello17, amigo apresentação estética.
pessoal do pintor ligado à Escola Nacional de Belas Qualquer pessoa que não conheça a fisionomia
Artes, defende no Jornal do Commercio o trabalho do Tiradentes apenas verá nessa tela um
realizado pelo artista. Repetindo a informação açougue de carne humana.
apresentada por Pedro Americo, em sua carta à O artista dirá, talvez, que foi fiel á historia; pois
Gazeta de notícias, lembra a intenção do pintor de sim, mas que quer dizer isso?
reproduzir não um, mas cinco episódios da Si a arte tivesse apenas de reproduzir, com
Conjuração Mineira. Define a pintura histórica como todas as particularidades, o que acontece na
um processo de restauração, revelando as fontes natureza, ou na vida, não passaria de uma
documentais que embasaram o trabalho do artista: reprodução banal de impressões fotográficas,
o processo original da Conjuração e a sentença a que poderia faltar esse poder misterioso e
reproduzida pelo próprio Homem de Mello na intangível da inspiração criadora.
Revista do Instituto Histórico e Geográfico Si assim fosse, deveríamos preferir a Macbeth
Brasileiro. O Barão define a cena pintada e Othelo os resumos taquigráficos dos
reproduzindo livremente a exclamação do escritor processos criminais.
francês, Charles de Ribeyrolles, ao transcrever em Eis porque eu penso que esse quadro pode
seu livro, Brasil Pitoresco (1859), a sentença suscitar, mesmo aqui, uma discussão sobre um
condenatória de Tiradentes: É um matadouro dos maiores problemas da arte.

410
A recepção de “Tiradentes Esquartejado”

Procuraremos demonstrá-los. não por sugestão imediata, como acontece nas


Os principais elementos de cada grande obra grandes obras.
de arte são dois: Estes efeitos são regulados por leis fisiológicas
1 o . Sínteses e idealização de tipos, infalíveis. [...] 20
acontecimentos e sentimentos da vida.
2o. Sugestão educativa. Enquanto Homem de Mello aponta Jacques Callot
[...] e Georges-Antoine Rochegrosse – artistas que, em
Para ter uma intuição correspondente à idéia períodos e com intenções diferentes, expuseram
moral que representa o Tiradentes na historia realisticamente a violência -, como aval para
brasileira é preciso considerá-lo no ato mais Tiradentes esquartejado, Parlagreco escuda-se em
solene de sua vida, no momento épico em que escritores do final do século, que advogam a
afirma o seu apostolado, e levanta-se acima perfeição e o fim moral da obra de arte. Apoiando-
do comum dos homens, desprezando a morte, se em Souriau 21 e Bourget 22 reafirma a má escolha
confiado na força do seu espírito, coligado a do momento para a representação do herói da
todas as grandezas morais da humanidade, e Conjuração Mineira, assim como o desgosto e o
proclamando acima do poder opressor a horror provocado pela visão do açougue de carne
supremacia do ideal, a manifestação mais pura humana, em que o artista teria transformado a sua
da dignidade humana. tela.
Si me apresentassem pintado o suplicio de
Jordano Bruno em Campo di Fiori, o cadáver O debate entre Homem de Mello e Parlagreco
carbonizado, não me seria possível reconhecer expressa com clareza as mudanças ocorridas na
naqueles destroços alguma coisa do grande pintura histórica no momento de seu ocaso. Ela
espírito, que apavorava o inquiridor com essa não consegue mais capitalizar emoções coletivas;
apostrofe sublime: “Terás tu mais medo em ler abandonou os grandes projetos ideológicos e
essa sentença de morte, do que eu em ouvi- passou a narrar os acontecimentos, num registro
la”. minucioso, porém, frio e distante.
Eu desejaria então que esta apostrofe
A violência revelada contaminou qualquer leitura
irrompesse da tela, por assim dizer, e me fosse
do quadro. Nesse aspecto, a tela recebeu forte
sugerida por um traço de pincel digno de Miguel
critica por ir contra a pretensa índole pacífica do
Ângelo e Rembrandt.
povo brasileiro. 23
O verismo intransigente nunca compreendeu
essa superioridade de espírito, porque teve em Em defesa do quadro, um articulista, que assina
geral na critica uma geração de eunucos, que simplesmente F.C., assim se expressa:
enganaram a si mesmos e ao publico, em nome
da ciência moderna, que não compreenderam, [...]Segundo o entender dos que tão
ou mal interpretaram nas suas principiais rigorosamente o criticam, o artista, mesmo
conclusões. recorrendo á Inconfidência e ao seu chefe,
Si toda a evolução da vida é um movimento devia ter procurado um assunto mais suave;
continuo para a perfeição ideal, como pode a mas, uma vez que se decidiu a tratar o episodio
arte, representação mais nobre e genuína mais horroroso da conjuração mineira, é
desse movimento, deixar de lado suas lastimável que o não tenha atenuado ad usum
manifestações mais salientes e duráveis, para delphini.
limitar-se a exterioridades insignificantes e O delphim neste caso é o povo brasileiro, cuja
comuns? índole não suporta a exibição fiel de um homem
[...] esquartejado. Realmente é pena que Pedro
Resta ver a segunda parte, a sugestão. Americo de tal modo houvesse atentado contra
[...] os nervos de uma população que não pode ver
No caso que examinamos, qual o efeito moral, um homem esquartejado numa tela, mas que
que por meio da sugestão poderá produzir corre em massa ao necrotério para ver na infeliz
sobre o publico o quadro de Pedro Americo? Maria de Macedo como é possível reconstruir
Um só: o desgosto. um corpo mutilado, sem braços, sem pernas e
Não sai da tela nenhuma idéia de heroísmo, sem cabeça. 24
de grandeza, de patriotismo, nem mesmo de
martírio. A ironia de F.C., contrapondo as diferentes reações
Á vista de um homem esquartejado, seja qual frente à representação pictórica do
for o seu nome, a primeira impressão é de esquartejamento do herói e a visão de um corpo
horror. A piedade vem depois, como reflexo, e real igualmente esquartejado, acaba por relevar

411
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

qual parâmetro orientou a recepção de Tiradentes pelo Estado da Paraíba. Visando recuperar o lugar
esquartejado. ocupado no Império, na produção de bens
simbólicos, o artista integraria o esforço por
Maria de Macedo foi uma mulher comum, transformar Tiradentes em herói republicano e
assassinada em 1892, cujo corpo a polícia nacional, numa perspectiva crítica, em que enfatiza
encontrou dentro de um cesto, sem a cabeça e a fragilidade interna da sedição. Entretanto, Pedro
membros, só depois localizados. Crime que se Americo não concluiu a série proposta, expondo
manteve presente, por muito tempo, na memória Tiradentes esquartejado isoladamente da narrativa
popular. Dos seis artigos de conteúdo sobre o que lhe dava sentido; o projeto de criação da
quadro de Pedro Americo, três relacionaram-no ao Galeria Nacional não foi aprovado, privando seu
corpo esquartejado de Maria de Macedo. quadro de um lugar de consagração. Por fim, o
público não aceitou a visão anti-heróica proposta
A Revista Ilustrada apresenta apenas uma pelo artista.
pequena, mas significativa, nota sobre a exposição
do quadro: “Está exposto no salão da Cidade do A partir da representação, por Manet, do
Rio um quadro alegorico ao esquartejamento de fuzilamento do imperador mexicano (A execução
Maria de Macedo da Silva Xavier, original do Sr. de Maximilienm, 1867) como um gesto banal,
Timotheo Americo de Figueiredo”25. A sobreposição percebe-se a desconfiança nutrida pelo século XIX
quer do nome do herói (Joaquim José da Silva quanto aos heróis. Se Pedro Americo aproximava-
Xavier), ao da mulher esquartejada (Maria de se da pintura européia de seu tempo - que não
Macedo), quer do nome de um de seus assassinos mais acreditava em heróis e expunha sem pudor a
(Timotheo) ao do pintor (Pedro Americo de violência, a exemplo do pintor francês
Figueiredo e Mello), não é apenas um modo jocoso Rochegrosse, com o qual o pintor brasileiro foi
e irreverente de noticiar o evento, próprio à Revista comparado -, distanciava-se do contexto brasileiro,
Ilustrada. Indica, sim, a aproximação entre a onde esforços se concentravam na montagem do
violência sofrida por Tiradentes e a vivida pela panteão nacional republicano.
população em seu cotidiano.
Aurélio de Figueiredo, igualmente pintor,
O Antigo Regime dilacerou incontáveis heróis, mas acompanhou as dificuldades do irmão, Pedro
os jornais preferiram ligar Tiradentes ao Americo, quanto à venda do quadro ao município
assassinato de uma mulata, ocorrido um ano antes. de Juiz de Fora, Minas Gerais. Autor da, provável,
A aproximação entre o herói e Maria de Macedo primeira representação de Tiradentes com corda
acentua a fragilidade do primeiro, relegando-o a ao pescoço, cabelos e barbas longos, exposta no
uma situação social paralela, na época, à mulher: Salão de Belas Artes de 1884, Aurélio, ainda em
vítima. 1893, projeta outro quadro, agora em grandes
dimensões, sobre a execução de Tiradentes.
Até que ponto, invertendo-se afirmativamente a Assim, Aurélio de Figueiredo criou o modelo
provocação de F.C., Pedro Americo poderia ter iconográfico oficial para a morte do herói,
objetivado atentar contra os nervos da população? Tiradentes no patíbulo 26, onde, retomando as lições
de Lessing, privilegiou o momento precioso; nele,
O esquecimento
Tiradentes aparece vivo, no patíbulo, a caminho
Pedro Americo, privilegiando o esquartejamento, do mito.27 Essa imagem, aceita pelo público, tornou-
objetivava não só denunciar a violência da se hegemônica, circulando amplamente nas
repressão colonial, mas também a debilidade do publicações referentes ao herói.
movimento sedicioso, conhecido como Conjuração
Quanto à tela de Pedro Americo, esquecida por
Mineira, que Tiradentes fora acusado, pelos
mais de meio século, permaneceu imune aos
próprios companheiros, de liderar. Na realidade, a
momentos em que a história brasileira lançou mão
conjuração limitou-se a algumas reuniões e foi
do mito de Tiradentes. Apenas a partir de 1969
abortada sem o disparo de um tiro, antes mesmo
atingiu o grande público, reproduzida em
da prisão de seus integrantes. O artista,
enciclopédias; mas esse locus tendeu a obscurecer
inicialmente, planejara pintar uma série de cinco
a percepção de seu poder corrosivo ao vinculá-lo,
quadros sobre a conjuração, que evidenciasse seu
na maioria das vezes, a um discurso oficial.
descrédito quanto à viabilidade do movimento.
Entretanto, na década de 70, ainda em plena
Possivelmente, Pedro Americo pensava expor a
ditadura militar, os artistas Arlindo Daibert, Sandro
série numa Galeria Nacional, cujo projeto de lei para
Donatello Teixeira, Wesley Duke Lee e,
criação, apresentado à Câmara em 15 de julho de
posteriormente, Adriana Varejão nos revelaram um
1892, era de sua própria autoria, como Deputado
olhar diferente sobre a tela de Pedro Americo. Seu
412
A recepção de “Tiradentes Esquartejado”

15
potencial contestatório foi percebido pelos artistas Segundo as crônicas, antes de ser esquartejado, foi o
que, ao dialogarem com o quadro oitocentista, Tiradentes enforcado, e a cabeça que ali está, não mostra
destacaram a perna dilacerada, a materialidade do os efeitos anteriores ao corte, as contrações nervosas,
ocasionadas pela estrangulação. O Tiradentes supliciado.
cadafalso ou a fragmentação do corpo, refletindo
Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 10/07/1893, p.1.
sobre seu próprio tempo, sobre a violência e a 16
BAYER, Raymond. História da estética. Lisboa: Editorial
fragilidade dos heróis. Estampa, 1979, p. 194.
17
Francisco Inácio Marcondes Homem de Mello (1837-
Notas 1918), foi um político influente do Partido Liberal,
Presidente de várias províncias, Deputado Geral por São
1
Tiradentes esquartejado, 1893. Óleo sobre tela, 270 x Paulo e Ministro do Império e da Guerra no Gabinete
165 cm., Museu Mariano Procópio, Juiz de Fora. Saraiva, Conselheiro do Império com participação atuante
2
Géricault, Cabeças de supliciados, 1818-19 (Estocolmo, na campanha abolicionista. Com a República, afastou-se
Nationalmuseum) – Géricault pintou vários quadros com da vida política, tornando-se professor de História Universal
cabeças, como também várias cópias foram feitas desses e de Geografia do Colégio Militar, diretor da Biblioteca
quadros por outros artistas-, Jacques-Raymont Brascassat, Nacional e membro do Instituto Histórico e Geográfico
Tête de Fieschi, à Bicêtre (Musée Carnavalet), Denis Brasileiro. Em 1896, falecendo Raul Pompéia, sucedeu-
Auguste Marie Raffet, Dois estudos da cabeça de um lhe no ensino de Mitologia na Escola Nacional de Belas
homem morto, 1833. Artes, da qual se fez professor catedrático de História das
3
Conhecemos o quadro apenas pela reprodução contida Artes desde 1897.
na obra Tout l’oeuvre peint de Géricault, Paris: 18
Charles Ribeyrolles (1812-1860). Brasil Pitoresco. São
Flammarion, 1978, PL. XL B Paulo: Livraria Martins, 1941, v. 1, p. 55.
4
ARASSE, Daniel. Le détail, pour une histoire 19
Bellas-artes, Tiradentes suppliciado, Jornal do Brasil,
rapprochée de la peinture. Paris: Flamarion, 1996, p. 12. 15/07/1893.
5
Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 24/07/1893, p. 1. 20
PARLAGRECO, Carlo. Bellas-artes, Tiradentes
6
DURAND, José Carlos. Arte, privilégio e distinção; artes suppliciado, Jornal do Brasil, 15/07/1893. Grifos nossos.
plásticas, arquitetura e classe dirigente no Brasil, 1855/ 21
Paul Souriau (1852-1925). Parlagreco refere-se à obra
1985. São Paulo: Perspectiva/EDUSP, 1989. p. 44. La Suggestion dans l’art Paris: F. Alcan, 1893.
7
SOMEL, Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 24/07/1893, 22
Paul Charles Joseph Bourget (1852-1935), autor de
p. 1. Essais de psychologie contemporaine, études
8
OLIVEIRA, J.M. Cardoso de. Pedro Américo sua vida e littéraires (publicado inicialmente em dois volumes: o
suas obras. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1943, p. primeiro, em 1883, e o segundo, em 1885).
178. 23
Tiradentes supliciado. Gazeta de Notícias. Rio de
9
LESSING, G.E. Laocoonte ou sobre as fronteiras da Janeiro: 10/07/1893. p. l.
pintura e da poesia, São Paulo: Ed. Iluminuras, 1998. 24
Tiradentes supliciado. Diário de Notícias. Rio de Janeiro:
(1766). 18/08/1893. p. 1.
10
Pedro Americo à obra de Lessing se refere em: 25
Coluna Pequenos Echos, assinada pelo pseudônimo S.
Considerações philosophicas sobre as Bellas-Artes Thomé. Revista Illustrada, Rio de Janeiro, julho de 1893.
entre os antigos, estudo sexto. Manuscrito, 1864, p. 119 26
Aurélio de Figueiredo, Tiradentes no patíbulo, 1898. Óleo
e 121. Destacamos uma das passagens em que o cita: A sobre tela, Palácio Pedro Ernesto, sede do Poder
bela expressão de moral visível, aplicada por Lessing à Legislativo do Município do Rio de Janeiro.
escultura antiga, convém, pois, perfeitamente a essa arte 27
Como o descreve Frederico de Moraes: Na tela de Aurélio
dos gregos, em que, apesar de nua, a humanidade aparece Figueiredo, Tiradentes veste uma túnica branca, tem barba e
debaixo da sua mais agradável fisionomia, corrigida, cabelos longos, em desalinho, testa larga e olha firmemente
enobrecida e divinizada, como se lhe fora dado celebrar o horizonte. Ajoelhado junto a ele, o monge franciscano
na terra as divinas somnidades de sua gloriosa apoteose! Raimundo da Anunciação Penaforte ergue o crucifixo e clama
Esse manuscrito fora ofertado pelo autor ao Imperador, D. aos céus, enquanto o carrasco improvisado, de pele negra,
Pedro II. Museu Imperial de Petrópolis, Arquivo Histórico, cobre os olhos com as mãos, horrorizado. No céu voejam
Doc. 6622 –M.135. corvos, mas em primeiro plano, sob o cadafalso, aparece uma
11
BAYER, Raymond. História da estética. Lisboa: Editorial pomba branca. Toda a cena é “tomada” de baixo para cima,
Estampa, 1979, p.174. Grifos nossos. ganhando monumentalidade. Ou seja, Aurélio Figueiredo
12
O Tiradentes supliciado. Gazeta de Notícias. Rio de focaliza os minutos que antecedem o enforcamento.
Janeiro: 10/07/1893. p.1. Grifos nossos. Tiradentes está vivo, é ainda o homem Joaquim José da Silva
13
Sobre a série ver: As fontes literárias da narrativa de Xavier, a caminho do mito, mas ainda não o mártir . MORAIS,
Pedro Américo sobre a Conjuração Mineira. BORGES, Frederico. Tiradentes nas artes plásticas brasileiras. NEVES,
Célia Maia (org.). Narrativas e imagens. Juiz de Fora: José Alberto Pinho (coord.). Tiradentes. Brasilia, MEC, 1993.
EDUFJF, 2006, pp. 13-38. pp. 77-116.
14
O Tiradentes supliciado. Gazeta de Notícias. Rio de
Janeiro: 11/07/1893. p.1.

413
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República
Quando chegam ao Rio de Janeiro em 1816, os
artistas Jean Baptiste Debret e Nicolas Antoine
Taunay vêm acompanhados de epítetos que bem
definem seu papel no Novo Mundo: o primeiro é
nomeado “pintor de história e decoração”, enquanto
o segundo, vem como “representante do Instituto
de França” e deveria se dedicar ao gênero da
paisagem. Na recém convertida capital do Império
luso, Debret cumpriria, portanto, a tarefa de
representar oficialmente a realeza, fornecendo-lhe,
igualmente, um cenário mais adequado, mais
“civilizado”, mais de acordo com os valores
estéticos europeus. Taunay, por sua vez, traria sua
autoridade de artista acadêmico, contribuindo
especialmente para a fundação da pretendida
Escola Real de Ciências, Artes e Ofícios. A
participação desses artistas no sistema acadêmico
francês era ponto central na argumentação a favor
de sua vinda ao Brasil. A ponto eclipsar o fato de
terem trabalhado diretamente para Napoleão –
inimigo de Portugal –, apesar dos protestos
veementes por parte do cônsul francês no Rio ao
monarca luso. A despeito disso e levando em conta
que os ventos já não sopravam tão favoravelmente
para Bonaparte, o que parecia contar acima de tudo
era justamente o fato de que

traziam na valise uma arte neoclássica


taunay e debret: pintura e história nos trópicos acostumada a buscar na Antigüidade os rastros
das glórias perdidas e os modelos de virtude.
vera beatriz siqueira * Estavam habituados também a guardar uma
certa hierarquia de gêneros artísticos, estando
a pintura histórica acima das demais e sendo
seguida pelos retratos, a paisagem, a natureza
morta e a pintura de gênero. Conheciam, por
fim, os rigores da estrutura acadêmica
francesa, imbatível na sua tentativa de dar rigor
e centralizar as artes. (SCHWARCZ, 2003: 16)

Essa combinação de domínio formal neoclássico


com uma estrutura rígida e centralizadora era
essencial para os planos do então príncipe regente.
A hierarquia dos gêneros pictóricos era um dos
fundamentos de todo esse sistema, devendo se
repetir na Escola a ser fundada no Rio. Mas o que
vemos é que essa hierarquia, que no século XVII
assumia a autoridade do dogma, como nas
Conferências de André Félibien, cerca de vinte anos
após a fundação da Academia francesa, na virada
dos séculos XVIII e XIX, desempenhava cada vez
mais um papel conservador, de manutenção da
própria estrutura de poder acadêmico. Já desde
meados dos setecentos, vários artistas e críticos
começam a questionar não apenas essa
hierarquização, mas também a própria definição
dos gêneros artísticos, propondo uma fusão de
suas qualidades.

414
Taunay e Debret: pintura e história nos trópicos

É o caso de Denis Diderot, em um de seus textos Jacques-Louis David assume na Academia


críticos, que chega a sugerir a superioridade da francesa, depois de sua célebre representação de
pintura de natureza-morta ou de gênero quanto à Marat assassinado (óleo/tela, 1793). Mas mesmo
representação de elementos particulares e essa autoridade davidiana não se construiu de
verdadeiros. Segundo ele, por ser basicamente forma unânime. David era um jacobino, tendo se
uma arte imaginativa, a pintura histórica corria o destacado como coreógrafo de massa da seção
risco de não parecer verossímil ou de ser fria e do Museu, durante o período da Convenção, e sua
distante. O antídoto seria, portanto, a pintura de posição na Academia oscilava de acordo com as
pequenas cenas ou dados particulares de cenário, incertezas revolucionárias.
capazes de nos aproximar da imagem apresentada;
a fidelidade na representação dos pormenores ou O próprio Taunay sustentava desconfianças com
cenas secundárias concederia verdade à narrativa: relação ao seu papel de líder da Academia. Desde
“Ah!, se um sacrifício, uma batalha, um triunfo, uma que o encontrara em Roma – para onde foi como
cena pública pudessem ser apresentados com a pensionista da Academia francesa em 1784 –,
mesma verdade, em todos os seus detalhes, recusava-se a adotar seu classicismo rígido, que
quanto uma cena de Greuze e de Chardin!” preconizava o retorno aos modelos da Antigüidade
(DIDEROT, 1766: 83). Vemos aí a conjunção de e do Renascimento, encontrando na pintura de
dois sentidos de verdade: por um lado, a paisagem (gênero francamente desprezado por
verossimilhança, por outro, o apelo moral de algo David) a possibilidade de desenvolvimento do seu
realmente sentido ou experimentado. estilo pessoal. Ironicamente, será chamado de
“David dos pequenos quadros”, pelo crítico e
Diderot não está só nesse debate. O artista admirador Charles Blanc. Debret, por sua vez,
acadêmico Charles Nicolas Cochin – gravador aparentado a David, submete-se a sua influência
aceito por aclamação pela Academia francesa após direta, trabalha no seu ateliê parisiense desde 1768
voltar da Itália, em 1751 –, em seus Discursos de e viaja com ele à Itália, entre 1784 e 1785. Muitas
Rouen (1777), defende a fusão dos gêneros de suas obras do período mostram a proximidade
pictóricos. Chega mesmo a dizer que não se devia temática e plástica com as pinturas do primo mais
mais separá-los. Usa o exemplo das “grandes velho. Após o retorno a Paris, Debret estuda na
escolas italianas”, nas quais o “pintor era tão Academia e dirige o ateliê dos alunos de David.
competente no retrato quanto em tudo que se
propunha a pintar”, como base para o seu conselho De qualquer maneira, a hegemonia davidiana não
de praticar todos os gêneros. E adverte: “com a significou a adoção de uma concepção única da
separação que ocorreu em nossas escolas, seguiu- pintura histórica. Mesmo David mostrava diferentes
se que o pintor de história passaria a se contentar (e antagônicas) visões sobre o que seria “histórico”
com o ‘quase’, nem sempre sendo capaz de em seu Marat assassinado e em sua cena da
representar as coisas em detalhe, enquanto o pintor coroação de Napoleão. Ambas diversas, por sua
de retratos se entregaria, muitas vezes, a detalhes vez, da idéia apresentada por Taunay em seu
extremamente minuciosos”, tornando-se quadro O exterior de um hospital militar, exibido no
paulatinamente “impossibilitado de abordar temas Salão de 1798, no Palácio de Versalhes. Neste, a
históricos”. Para evitar o risco de cair num estilo escolha do tema e as opções formais apontam para
precioso e fácil, de um lado, ou na execução muito um classicismo moralista. Da ambiciosa campanha
ampla e fria, de outro, o pintor deveria retomar a militar de Bonaparte na Itália, consolidação do seu
capacidade de circular livremente entre os gêneros. poderio no Mediterrâneo, o artista escolhe um
Afinal, conclui, se os “grandes pintores, que fizeram momento particular, no qual uma charrete traz
a glória da Itália, são mais notáveis do que nós na feridos de guerra para um hospital militar. Cabe
execução, é porque eram melhores pintores de lembrar que Taunay não acompanhou a campanha
gênero, e em todos os gêneros” (COCHIN, 1777: napoleônica. Sua imagem, portanto, como na
103-5). maioria das cenas históricas, tem origem
imaginativa, ainda que submetida às rígidas
Descontado o tom polêmico dos discursos – convenções e ao forte controle bonapartista. As
proferidos num momento em que Cochin foi sendo anotações que faz durante sua estada na Itália, os
colocado de lado na Academia Real, razão pela croquis que recebe para basear suas composições,
qual assume um posto na Academia em Rouen –, bem como a minudência descritiva das cenas que
ainda assim podemos ver como a unidade aparecem na tela, ajudam na formulação de uma
discursiva das Belas Artes vinha sendo fraturada. imagem plausível. Numa praça italiana, mais de
O privilégio da pintura histórica é inegável, cem figuras são articuladas em ocupações mais
especialmente a partir da proeminência que

415
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

ou menos corriqueiras: do transporte dos feridos forçado a povoá-lo com um exagerado número
para o hospital de campanha ao descanso dos de figuras, sobretudo tendo em vista as grandes
soldados sob a sombra da árvore, da faina dos que proporções da tela. [...] Enfraquecida pela
se ocupam com os lençóis no terraço à mãe que ausência de uma ordenação que coordene e
carrega um filho no colo e outro na mão, sem falar dê sentido às partes da tela, a cena aparece
nos cachorros que observam os feridos ou naquele meio solta, incapaz de estabelecer vínculos
que se deita no chão da praça, no primeiro plano. entre passado e futuro. O que se queria modelo
reverte então novamente ao episódio. (NAVES,
Taunay consegue conjugar essas cenas triviais à 1996 : 56).
disciplina formal e moral, destacando virtudes como
equilíbrio, retidão, dignidade humana, generosidade Este era um dos problemas centrais da pintura
e graciosidade. A abundância de detalhes e figuras, histórica desenvolvida durante a Revolução
de escorços e arquiteturas solenes aponta para a Francesa. Na passagem de uma pintura que
confluência de ideal clássico e gosto típico do reverenciava, como modelos de ação, fatos
século XVIII. A veracidade de seu pincel está na históricos do passado clássico (mais
fusão de guerra e drama doméstico, referindo-se especificamente romanos) para uma representação
ao momento em que soldados franceses e de fatos contemporâneos, precisava lidar com uma
cidadãos italianos se unem em torno de ideais de suas muitas contradições: como construir o valor
humanitários. Assim, como dizia Diderot, “nos “histórico” de um acontecimento recente? Em seus
mostrando coisas mais conhecidas e mais melhores momentos, como o Marat assassinado,
familiares, tem mais e melhores juízes” (DIDEROT, de David, a pintura combinou instantaneidade com
1766: 88). Pela fusão de gêneros pictóricos, a tela eternidade. Marat acabou de ser esfaqueado, mas
combina elevação moral e proximidade sentimental. já morreu há séculos, confirmando o destino
heróico do mártir da história. Para o historiador T.
As telas napoleônicas de Debret também J. Clark, essa obra de David é a primeira pintura
sustentam, em outro tom, essa moralidade modernista, justamente por enfrentar este que seria
clássica. Em sua grande maioria, pertencem à o dilema de toda a arte na modernidade: lidar com
tradição de pinturas que buscam construir a idéia as circunstâncias, deixar-se subjugar pela
do Imperador como um herói humanitário. Em contingência, na impossibilidade da transcendência
Napoleão presta homenagem à coragem infeliz, (CLARK, 2007 : 106). Debret e Taunay, cada qual
apresentada ao Salão de 1805, que trata da mesma a seu modo, também deixam-se subjugar pelas
campanha militar na Itália, um comboio de soldados circunstâncias: primeiro na própria França, onde
austríacos feridos é surpreendido pelo gesto pintam cenas napoleônicas; depois no Brasil, onde
magnânimo de Bonaparte, que ergue o chapéu e aportam com seus esquemas culturais e estéticos,
reconhece a honra da coragem dos inimigos. com funções precisas de representação do Mundo
Novamente, os valores universais, humanitários, Novo e encontram-se diante de uma realidade
são a tônica discursiva. Entretanto, as diferenças inédita. Aqui, parecem ver justamente na
são igualmente grandes. Na obra de Debret – cuja confluência dos gêneros, na fusão da pintura
formação artística se deu diretamente sob a histórica com o particularismo e a parcialidade das
influência de David – a composição se divide entre cenas menores e da paisagem, a possibilidade de
as duas tropas rivais, uma engrandecida pela vitória ceder às contingências sem comprometer os
e pelo altruísmo, a outra sombreada pela debilidade princípios de sua arte.
física e moral. A cidade italiana ao fundo, sobre
uma colina, comparece apenas como cenário História e natureza
possível, um elemento circunstancial que deveria
situar o evento contemporâneo. A glória da pintura histórica passava a conviver,
desde o final do século XVIII, com uma série de
Curiosamente, a composição de Taunay, muito defesas de um gênero até então menosprezado: a
mais variada e descentralizada, espalhando-se em paisagem. A disseminação do hábito cultural das
pequenas cenas, alcança uma ordenação formal e viagens contribui para esse novo interesse pelo
moral mais impregnante, ainda que diversa da elemento característico, particular da natureza.
pintura histórica difundida pela Academia durante Idéias filosóficas, especialmente românticas,
o período bonapartista. A centralidade da figura de também encontram na natureza um objeto de
Napoleão, em Debret, não parece conseguir se representação destacado, fonte de estímulos a
difundir pela tela. Como já analisou Rodrigo Naves: experiências morais e sentimentais. A partir de
Jean-Jacques Rousseau, o moralismo didático do
“Na ausência de uma ordenação que de fato estilo clássico vai assumir tons cada vez mais
articule a totalidade do quadro, Debret se vê sentimentais, e a vida rural, próxima da natureza,

416
Taunay e Debret: pintura e história nos trópicos

vai ser associada a elevados valores morais: a uma história a ser escrita, uma terra inédita – tudo
grandeza da simplicidade, a beleza da ingenuidade, isso mobilizava o valor ético e sentimental da
a altivez estóica do homem rude. Mas também própria missão artística a ser realizada. Debret, em
Hegel chega a admirar a natureza-morta e as cenas sua Viagem pitoresca e histórica ao Brasil, livro
de gênero flamengas, pois encontra naquela publicado após seu retorno à França,
representação da “prosaica realidade”, uma repetidamente definiu seu trabalho como uma
aparência criada pelo espírito, “um milagre de coleção, como uma “lembrança” sua aos artistas
idealidade”, uma elevada ironia romântica, que franceses, pintores de paisagem e de história que
retira das coisas o seu sentido material, acanhado, procuram assuntos inéditos nas descrições do
de objetos reais, para transformá-las em Novo Mundo:
abstrações, uma “aparência ideal” oferecida “à
contemplação puramente teórica” (HEGEL, 1835: “tive à minha disposição todos os documentos
109). Assim concebida, a pintura de gênero ou a relativos aos usos e costumes do novo país
natureza-morta ganhava inusitada elevação que eu habitava e que constituíram o ponto de
espiritual no sistema das artes hegeliano, não por partida de minha coleção”;
sua fidelidade ao natural, mas pelo dado “tive a oportunidade de manter,
especulativo e abstrato que implica a passagem constantemente, por intermédio de meus
do real à imagem pintada: “a representação deve alunos, relações diretas com as regiões mais
aqui parecer natural; mas o que, do ponto de vista interessantes do Brasil, relações que me
formal, constitui o poético e o ideal não é o natural permitiram obter, em abundância, os
como tal, mas o ato que reduz a nada a documentos necessários ao complemento de
materialidade sensível e as condições exteriores” minha coleção já iniciada”;
(Id.,1835 : 110). “O acaso levou-me assim a iniciar, no centro
de uma capital civilizada, essa coleção
Todo esse quadro teórico está no horizonte do particular dos selvagens”;
processo de valorização da pintura de paisagem. “Essa lembrança é uma coleção de desenhos
Não podemos, entretanto, deixar de mencionar uma versando especialmente a vegetação e o
circunstância histórica especialmente relevante. Ao caráter das florestas virgens do Brasil”.
estender seu domínio sobre a Holanda, o império (DEBRET, 1978: 27 e 347)
napoleônico possibilitou a incorporação da Escola
de Arte Holandesa, que privilegiava a pintura de Numa das obras que envia do Brasil ao seu irmão,
paisagem, ao sistema acadêmico francês. A partir o arquiteto F. Debret, o artista reúne essa coleção
de então, vemos a presença destacada de pintores de figuras numa natureza-morta bastante curiosa.
de paisagem na Academia de França. A ponto de, Atualmente no museu Magnin de Dijon, a tela As
em 1815, o seu então diretor Lebreton – futuro líder frutas do Novo Mundo, feita no Rio em 1822,
da Missão Artística Francesa no Brasil – sugerir a confirma o destino colecionista das suas imagens.
instituição de uma competição trienal de pintura Sobre uma mesa se espalham vários frutos
de paisagem, aos moldes do que era feito na brasileiros, combinando preocupação descritiva
Holanda. Buscou-se, é verdade, reduzir o impacto com um arranjo decorativo luxuriante. Alguns
dessa pintura de paisagem na Academia, limitando toques de representação botânica – como a
seu interesse à “paisagem histórica”, ou seja, apresentação do fruto simultaneamente fechado e
valorizando menos o naturalismo ou o pitoresco aberto, mostrando suas sementes – conciliam-se
do que a idealidade dos cenários solenes, com recursos acadêmicos característicos da
geralmente relacionados à Antigüidade clássica. tradição das naturezas-mortas – tais como o caule
Mas a crescente popularidade e institucionalização cortado da folha de bananeira que se projeta à
desse gênero é um dado importante a ser frente do limite da mesa, a cana, cuja linha diagonal,
considerado. cria a distância necessária para o arranjo, ou ainda
a verticalidade do bulbo do cacho de bananas, que
Especialmente quando tentamos compreender as faz nosso olhar voltar para o conjunto das frutas.
obras desses artistas “missionários” vindos ao Sem a austeridade do gênero desenvolvido por
Brasil. A própria viagem aos trópicos não deixa de Chardin, a natureza morta de Debret combina a
participar desse quadro de referências culturais, fidelidade descritiva ao mito romântico da fartura
sendo compreendida por Debret e Taunay, cada natural de uma terra ainda desconhecida.
qual a seu modo, como um refúgio provisório, bem Lembremos que o Brasil começa a ser mais
como um acréscimo de experiência importante para conhecido do público europeu apenas a partir de
seus antigos esquemas representativos. Um novo 1830, com a publicação dos primeiros livros e atlas
contexto objetivo, novas situações de paisagem, de viajantes, sendo visto, no período da chegada

417
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

da Missão Artística Francesa como um lugar Afinal, fazer história do Brasil seria fazer a história
exótico, formado por florestas virgens e indígenas dessa natureza. Na incorporação das contingências
seminus, visão que Debret parece endossar. históricas do país, os dados da natureza e da
cultura tropical são essenciais. A questão da
Taunay também se insere, de outra maneira, nesse existência desse Novo Mundo era basicamente um
problema da coleção. Ao chegar ao Brasil, encontra problema de representação, no qual os gêneros
algumas dificuldades de lidar com esse novo de história e paisagem se fundiam. Muitas vezes,
quadro objetivo. E resume todos os seus dilemas as imagens de divulgação desse mundo se
com a interrogação: “Como prender o sol dos impunham sobre a realidade, a ponto de ter gerado
trópicos, que rouba o tempo e insiste em correr?” mal entendidos acerca da veracidade das pinturas
(Apud SCHWARCZ, 2005: 132). O pôr do sol, que de Taunay, por exemplo. Lilia Moritz Schwarcz, em
na Europa tem duração longa, tingindo com tons dois de seus textos, refere-se a esse “mal
avermelhados o horizonte por várias horas, é, no entendido” cultural: “Ninguém compreendia o
Rio, acontecimento breve. Em alguns minutos o colorido das ‘vistas da América’: os tons rubros
sol se esconde e cai a noite súbita. Da luz intensa incandescentes, os verdes e azuis ofuscantes, os
passa-se à escuridão, formas polares de amarelos ferozes tão distantes das escalas
turvamento da visão. O pintor, acostumado à regra cromáticas dos holandeses” (SCHWARCZ, 2003:
paisagística de escolher um momento em que cada 40). Ou ainda: “O que via como realidade era
elemento da natureza reflita o mesmo tom, precisa compreendido, nos salons de Paris, como excesso;
se refugiar exatamente nos instantes fugidios em o que admirava na etnografia passava por fantasia
que o sol fornece uma luz menos ofuscante. Como sem chão”.(Id., 2004).
fazer para prender o tempo abreviado? Como fazer
para que a fidelidade descritiva consiga se realizar O problema do excesso de realidade era, a rigor,
quando não há a possibilidade de maturação da intrínseco à pintura histórica e a seu compromisso
experiência? com a veracidade. De variadas formas os pintores
tentavam compensar o realismo excessivo. David
Uma das estratégias adotadas pelo artista é a teria, segundo T. J. Clark, transposto o domínio da
repetição de elementos, a formação de uma pura materialidade retirando do corpo de Marat
coleção de dados típicos que, ao se repetirem, assassinado “todos os detalhes confusos de seu
dariam conta da caracterização do particular. Há martírio, todo o desalinho da cena”, apresentando-
em suas paisagens cariocas a recorrência a certos o como uma generalidade (CLARK, 2007:132).
elementos: palmeiras, animais, barcos, igrejas, Além disso, contrabalançava, na tela, a insistência
religiosos, casas brancas com telhados cor de tijolo, na caracterização dos objetos (banheira, carta,
montanhas, negros, homens e mulheres da corte, pena, faca, tinteiro, caixote etc.) com o vazio
luz de fim de tarde, caminhos interrompidos. Tudo aparente da metade superior, na qual a pintura se
formava uma espécie de repertório iconográfico representa como pura atividade. O historiador
que, ao mesmo tempo em que correspondia ao real, italiano Giulio Carlo Argan também teria visto nessa
criava um teatro em miniatura. Dispondo desses parede vazia ao fundo a passagem da vida para a
elementos típicos, Taunay resolve o problema da morte, da realidade ao nada, numa transfiguração
descrição verossímil. O fato de vir a utilizar alguns histórica e não sublime (ARGAN, 1992: 44). Mas
dos dados paisagísticos brasileiros em cenas podemos citar outros pintores de história, como
religiosas como Predicação de são João Batista, Géricault, em A jangada da Medusa (óleo/tela,
enviada do Rio para o salão de 1819, e Moisés 1818), cujo realismo o faz apropriar-se de um fato
salvo das águas, pintada após seu retorno à França preciso – o naufrágio de uma fragata francesa e o
e exposta no salão de 1827, confirma essa abandono da tripulação à própria sorte na costa
estratégia de utilizar a coleção de dados africana –, investigando-o minuciosamente, para
particulares para acrescentar veracidade à que, ao final, como resultado de uma composição
narrativa, no caso bíblica. profundamente clássica, seja capaz de imantar toda
a obra e ameaçar toda a humanidade, com um
Tudo isso nos mostra como a representação da senso superior de tragédia, quase mitológica. Ou
natureza vai assumindo um sentido quase ainda Delacroix, em sua tela célebre A liberdade
etnográfico, de descrição de um mundo “selvagem”, guiando o povo (1830), na qual o impulso de
no qual entram em jogo tanto as características caracterização social dos personagens (o povo
particulares desse mundo quanto os esquemas envolvido na insurreição de julho de 1830, que põe
representativos acadêmicos. No caso brasileiro – fim à monarquia dos Bourbon) se funde com a figura
diante dessa natureza sem história, de acordo com alegórica da Liberdade.
o entendimento da época – a fusão dos gêneros
dos debates acadêmicos ganhava nova direção.

418
Taunay e Debret: pintura e história nos trópicos

A pintura histórica, portanto, vive nesse início do frente. Ao fundo, quadros pendurados em todo
século XIX uma situação peculiar: mantém-se no espaço vago de parede e livros e pranchas
posto principal da hierarquia dos gêneros guardadas num suporte de madeira. Apesar da
acadêmicos, imersa, porém, em suas contradições. fonte luminosa que ilumina a tela frontalmente,
Em solo pátrio, essa contradição ganhou, por advinda de uma abertura à esquerda e da porta
vezes, o sentido de um contra-senso. As semi-aberta à direita, o espaço é nitidamente
decorações que Debret fez para a coroação de d. fechado e, mais particularmente, fechado em si
João VI, por exemplo, mostram essa disparidade mesmo.
entre o fato e o seu sentido histórico. A exuberância
quase bizarra de seus arcos de triunfo, fachadas Podemos ver aí uma interessante combinação de
falsas, obeliscos e templos consagrados a figuras realismo e imaginação pictórica. Pois parece que
mitológicas não conseguiam camuflar o vazio cada detalhe do quadro evoca uma ausência. Na
dessas alegorias numa cidade que, apesar de ser realidade a obra é a soma de várias faltas, entre
a sede da monarquia lusa, sustentava sua condição as quais se destacam as ausências dos dois
de colônia. Poderíamos colocar esse exagero personagens envolvidos na cena: o retratado e o
decorativo na conta da ausência de familiaridade retratista. É recurso comum aos pintores de retrato
de Debret com a vida no Brasil. Afinal, ele e o uso de manequins como modelos, especialmente
Grandjean de Montigny foram encarregados de para o corpo do retratado, deixando para o contato
coreografar a aclamação tão logo desembarcaram direto com a pessoa o registro das expressões
por aqui (a rainha d. Maria I falecera pouco tempo fisionômicas. Entretanto, nessa pequena aquarela,
antes da chegada dos artistas franceses). sua presença serve para reforçar esse discurso
sobre a falta. As suas características de imobilismo
Mas mesmo nas pinturas que faz mais tarde, após e inexpressividade irão fundir-se à desolação e
convívio cotidiano com o Brasil, como na Coroação precariedade das instalações e à presença
de d. Pedro I (óleo/tela, 1828), não consegue flagrante de uma ausência fundamental: o próprio
esconder essa disparidade. Diferente de d. João artista. Os quadros pendurados, a tela inacabada,
VI, cuja figura discreta lembrava sempre a decisão o manequim, os instrumentos de pintura, afirmam
pouco heróica de fugir de Napoleão, a de seu filho a centralidade desse artista que, entretanto, não
podia ser insuflada com novo idealismo, devido a aparece. A figuração de uma ausência anuncia e
opção em aqui permanecer e capitanear a fornece as condições para a sua própria existência.
independência. Debret escolheu uma perspectiva
mais ampla, com o monarca visto de lado, em Já nesse momento inicial de contato com o Brasil,
comparação com a perspectiva frontal e rígida que o futuro professor de pintura histórica da Academia
havia escolhido para a Aclamação de d. João VI. É parece sentir o peso da ausência de um
visível a influência da tela da coroação de fundamento cultural para a sua ação. Ao se deixar
Napoleão, de seu primo David (Coroação do invadir pelas circunstâncias, pelas contingências
Imperador e da Imperatriz, 1805-7). Porém, de uma cidade marcada pelas contradições, Debret
paradoxalmente, a grandiosidade, combinada com manifesta o traço cultural do abandono e da
as figuras gggubhormam a caracterização dos rejeição. Sua visão de história vai ser formada por
personagens presentes na cena, bem como do essa sensação de “exílio às avessas”, nas palavras
cenário em que esta acontece, numa espécie de de Rafael Cardoso (CARDOSO, 2003: 31). O
índice da estranheza da situação. A descrição recolhimento se vê nas aquarelas que faz
realista não encontra um sentido histórico maior e livremente pelo Brasil, sempre retratando cantos
se perde em sua própria artificialidade. urbanos, pequenas cenas, particularidades que,
contudo, jamais alcançam o sentido típico.
Debret manifesta claramente esse problema da
discrepância entre realidade e sentido nas suas Registros
aquarelas. Vejamos, por exemplo, a obra Meu ateliê
do Catumbi, no Rio de Janeiro (aquarela, 1816), Taunay, por sua vez, escolhe um exílio dentro do
feita alguns meses depois de chegar ao Brasil e próprio exílio. Um ano após chegar por aqui,
enviada para o irmão, na França. Na representação reconhece o “retardo cultural do Brasil, que estaria
de seu ateliê, o príncipe regente d. João VI é ainda submetido ao domínio religioso e longe da
evocado através de um manequim agigantado, influência do espírito das Luzes” (Apud
uniformizado, que serve de modelo para o retrato SCHWARCZ, 2003: 35). Decide habitar ao lado da
que está sendo pintado. A tela, apoiada cascatinha da Floresta da Tijuca que, mais tarde,
precariamente sobre uma cadeira e amarrada pelo irá herdar seu nome. Possui razões econômicas
chassi em um móvel, inclina-se levemente para para essa escolha: pretende cultivar café. Mas isso
não elimina – ou antes, reforça – a percepção da

419
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

mesma ausência de base cultural para sua a descrição objetiva não chega a dominar, pois a
profissão. Recolher-se na natureza, contudo, composição pictórica é cuidadosamente calculada.
significava admitir, simultaneamente, o fracasso de Dessa forma, os leves toques de cor local não
seu discurso e a possibilidade (ainda que fugidia) chegam a contrariar os princípios formais europeus,
de sustentá-lo. Toda aquela mitologia da pintura desde que se mantenham apartados de aspectos
de paisagem – a imagem do pintor diante de seu mais ameaçadores da natureza ou da cultura
cavalete, ao ar livre, de posse de seus instrumentos tropical.
particulares, devotado à seleção de um motivo e à
sua representação pitoresca – ancorava-se numa Esta parece ser a qualidade específica da pintura
longa experiência cultural de conversão da natureza de Taunay: a insistência em fazer identificar a busca
em paisagem. da verdade da experiência nos trópicos ao
compromisso moral com os padrões acadêmicos.
Diante de sua falta, o seu retrato na Floresta da Afinal, a sua vivência em terras brasileiras só
Tijuca, ladeado por dois de seus escravos, poderia ser verdadeira se fosse a prova, a um só
buscando representar uma palmeira, ganhou tempo, da realidade exterior e de seus princípios
sentido peculiar. Muitos já analisaram a sua pintura formais e morais. Se a opção por flexibilizar os
da Cascatinha da Tijuca. Houve quem chamasse valores plásticos acadêmicos não lhe parece válida,
atenção para o aspecto diminuto da figura do pintor tampouco o mero registro lhe interessa. A solução
diante da pujança natural. Houve quem notasse a será afirmar uma verdade de fundo moral sobre a
presença dos escravos admirando o ofício do pintor, veracidade descritiva. Pois só assim a verdade
numa reflexão sobre a presença do trabalho deixaria de ser uma ilusão, uma simples hipótese
artístico numa sociedade escravocrata. Houve construída pela pintura de dados particulares de
quem visse na tela a representação de seu esforço uma cultura estranha, para se tornar existência e
em representar o mundo inédito dos trópicos com memória.
os procedimentos artísticos europeus. Tudo isso
mostra como Taunay precisava realizar certos Nesse sentido, difere da opção de Debret por uma
deslocamentos de sentido para dotar a natureza forma capaz de incorporar algo característico da
tropical de sentimento moral. Ela não era fonte de cultura carioca, como afirma Rodrigo Naves,
sentimentos líricos, nem arquitetura solene para levando-o inclusive a abrir mão de alguns de seus
ações grandiosas, tampouco a manifestação esquemas neoclássicos para poder melhor retratar
concreta da Arcádia. uma realidade estranha e adversa. A longa
convivência do artista com a cidade do Rio leva-o
A sombrinha aberta pousada no chão é elemento a buscar, nas aquarelas que faz de forma livre, um
pitoresco a evocar a luz que se põe. Assim como registro mais fiel que acaba por desafiar as regras
os toques quentes de vermelho nas roupas do pintor da pintura acadêmica. A começar pela própria
e do escravo e nos reflexos luminosos da parte mitologia do ateliê. Fazendo breves anotações
baixa do rochedo. Uma massa vegetal escura e diretas, agachado no chão, ou enfrentando a
densa interrompe a continuidade entre a cena do precariedade de seu próprio ambiente de trabalho
primeiro plano e a cascata. Montanhas azuladas (comparável à precariedade do gabinete do
ao fundo conferem grandeza e absorvem a cientista, que também retrata), cria imagens que
atmosfera iluminada pelo sol. A unir os planos da parecem requerer, em sua contemplação, o próprio
tela, a silhueta diminuta de um homem montado esquecimento de sua artesania original. Ou melhor,
num burro, possivelmente um tropeiro, estabelecem uma relação bifronte com o
acompanhado por outro, certamente um escravo, artesanato: de um lado, remetem ao trabalho
a pé, cujo movimento recoloca distância e prévio, ao esboço, aos croquis que serão
morosidade na articulação espacial. Na realidade, retrabalhados nas gravuras que virá a publicar; de
nada nas figuras desses negros ou daqueles que outro, enfatizam o registro, a recolha e a
aparecem junto ao pintor os identifica à prática consignação da realidade, fazendo-nos identificar
social da escravidão. Ao contrário, estes últimos esse mundo e dificultando nosso acesso a seus
estão postados placidamente ao seu lado; procedimentos formais.
apreciando a tela a sua frente, agem como seus
espectadores. A sua simples presença ao lado do A idéia de que aquelas imagens seriam recriações
artista, que deveria evocar a submissão, é literais do Novo Mundo, faz parte da ficção que
transfigurada numa sorte curiosa de alegoria do mobiliza Debret: de que ele teria reunido uma
público e do destino social da arte. Se a floresta, a coleção significativa de paisagens, flora, tipos
luminosidade e alguns elementos pitorescos humanos, cidades, que, ao ser contemplada pelo
ajudam a criar uma sensação de verossimilhança, público europeu, seria capaz de produzir o contato
indireto com o outro, com a alteridade (o que a

420
Taunay e Debret: pintura e história nos trópicos

combinação com legendas e textos explicativos Na tela encontramos dados característicos de sua
reforça ainda mais). Mais do que o tema, a História obra. A começar pela escolha do tema: a realeza
é o princípio metodológico de leitura dessas obras. vista em ação banal de deslocamento a partir do
Apenas ela é capaz de criar os vínculos entre palácio na Quinta da Boa Vista. Depois, a seleção
memória e verdade, fundamentais para que as desse trecho de paisagem, um ambiente
imagens de Debret assumam a sua significação intermediário, entre o urbano e o rural, tomado a
cultural. Mesmo as aquarelas menos pretensiosas partir de um ponto de vista elevado que, embora
– aqueles registros breves e quase inconseqüentes mais largo do que suas usuais vistas, impõe uma
de elementos prosaicos – acabaram tornando-se escala diminuta para as figuras e nos faz percebê-
um discurso histórico relevante, especialmente por las como em um único golpe de vista. Estas se
sua autoridade de registros fidedignos de um ordenam em pequenas cenas, nas quais a
mundo remoto. estranheza advém de sua trivialidade ou
indeterminação. Sem uma ação central, histórica
Para Taunay, entretanto, que por aqui fica bem e moralmente impregnante, a narrativa multiplica-
menos tempo, a História vai ganhar outro sentido. se em ações que se dobram sobre si mesmas e
Associa-se a um valor ético que, no Brasil, o artista criam aquela circularidade que se repete no espaço
irá encontrar apenas na natureza. E numa natureza pictórico. E não podemos deixar de mencionar a
que, ao ser representada, deixasse de ser um opção pelo instante de sol baixo, com sombras
acúmulo de elementos reais para adquirir essa pronunciadas, figuras em contraluz, reflexos
dimensão moral e sentimental, combinando alaranjados e pinceladas de branco que se
realismo e sentimento moral. A paisagem carioca, espraiam nas águas, nas lâminas dos sabres, na
a princípio, poderia ser vista como ideal para essa aba dos chapéus ou nas rodas da carruagem,
representação. Até o fato de ser pouco conhecida configurando a experiência sensível da luz.
dos seus conterrâneos o ajudaria nessa tarefa,
transformando-a não em fato presente, mas em Para fazer corresponder imagem e sentimento,
recordação ou rememoração. Assim, sua paisagem Taunay precisa dedicar-se à representação da
seria “histórica”, como sempre frisou o artista – que vagueza e indeterminação da nossa realidade. A
gostava de se autodefinir como um “pintor de veracidade da cena não é, portanto, de ordem
paisagem histórica” –, não por seu mero realismo, objetiva e sim correspondência sensível com a
e sim por sua capacidade de se desvincular das experiência do real. Suas imagens não pretendem
circunstâncias e se colocar num mundo oferecer respostas à curiosidade européia sobre
perpetuamente distante e diverso, ainda que os trópicos, mas sim evocar o caráter existencial
presente. de seu contato com esse mundo inédito. Daí a
opção por não nos oferecer nem a natureza
Na pintura em que retrata a Passagem do Cortejo exuberante, nem a violência plástica ou histórica.
Real por uma ponte sobre o rio Maracanã (óleo/ Se ele cedesse aos dados peculiares da natureza
tela, s/d), o artista se esforça para fazer coincidir e da cultura dos trópicos, não apenas teria que abrir
realismo e composição pictórica, compensando o mão de seus princípios morais e estéticos como
excesso de realidade com uma sensação pictórica também sua obra perderia a potência figurativa que
de bucolismo, equilíbrio e diálogos sutis entre os veio a adquirir. Se ainda hoje incluímos as suas
elementos representados. A metade superior da tela pinturas na imagem geral que fazemos do Brasil
é ocupada pelo céu com nuvens rosadas. Na ou do Rio – apesar de seu aspecto sempre artificial
metade inferior, toda a narrativa se desenvolve em – é porque Taunay dedicou-se a criar um registro
cenas particulares e triviais: o cortejo segue pela capaz de transformar a memória e a vivência
ponte, à esquerda, com d. João e sua esposa particular em existência pública, para todos, para
conversando no interior da carruagem; no lado o porvir.
oposto, seis vacas pastando; no centro do rio, um
barco transportando lenha, em escorço, cujos * * *
mastro e remo encarnam as principais linhas da
perspectiva; um pouco atrás, outro barco, guiado As imagens de Taunay e Debret revestem-se de
por um negro, afasta-se da margem do rio, grande potência figurativa e cultural. O último
estabelecendo a relação de distância com o tornou-se, nas palavras do bibliófilo Rubens Borba
primeiro plano. Nessa última cena, um fato intriga: de Moraes, “um símbolo”, “o padrão de uma época”,
um homem da corte acena com seu chapéu para o sendo transformado no objeto de desejo de todos
barco, sem sabermos exatamente se o chama ou os colecionadores brasileiros a partir da década
enxota. de 1940 (MORAES, 1998: 58). O primeiro também
encontra-se presente em todas as grandes
coleções de Brasiliana, apesar de ter pintado

421
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

apenas 15 telas com temas brasileiros entre as 45 Capivara; Rio de Janeiro: Museus Castro Maya,
que produziu nos anos em que aqui ficou. E está 2003.
colado à história da Floresta da Tijuca, nomeando COCHIN, Charles-Nicolas. Segundo e terceiro
a pitoresca Cascatinha ou participando do processo Discursos de Rouen (1777). LICHTENSTEIN,
de exploração da floresta, que resultou em seu Jacqueline (org.). A pintura. V.10: Os gêneros
esgotamento e no posterior reflorestamento levado pictóricos. São Paulo: Ed. 34, 2006,
a cabo pelo Barão de Escragnole, e descrito CLARK, T. J.. A pintura no ano II. ________.
poeticamente pelo Visconde de Taunay, ambos Modernismos: ensaios sobre política, história e
seus descendentes que por aqui ficaram. teoria da arte. São Paulo: Cosac Naify, 2007.
DEBRET, Jean-Baptiste. Viagem pitoresca e
A despeito das divergências que separam as obras histórica ao Brasil, Belo Horizonte: Itatiaia: São
dos dois artistas, podemos dizer que a cidade do Paulo: EDUSP, 1978.
Rio de Janeiro deve muito a eles, assim como DIDEROT, Denis. A apologia do grande estilo e
nossa história da arte. Se Debret nos fornece os as seduções dos gêneros menores (1766).
elementos de uma urbanidade característica, de LICHTENSTEIN, Jacqueline (org.). A pintura.
um tipo de sociabilidade muito peculiar, Taunay V.10: Os gêneros pictóricos. São Paulo: Ed. 34,
contribui para a instituição de um perfil urbano que 2006.
inclui a natureza. Afinal, o Rio parece ser uma das HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Estética (1835).
raras cidades cuja imagem ainda hoje inclui, para LICHTENSTEIN, Jacqueline (org.). A pintura. V.10:
além da silhueta dos prédios, o contorno dos Os gêneros pictóricos. São Paulo: Ed. 34, 2006.
morros, a curva da praia, o encontro de céu e mar. MORAES, Rubens Borba. O bibliófilo aprendiz.
Se o primeiro forma vários artistas nacionais em 3.ed. Brasília, DF: Briquet de Lemos/Livros: Rio de
sua atuação na Academia, o segundo deixa, com Janeiro: Casa da Palavra, 1998.
sua retirada rápida após a morte de Lebreton, o NAVES, Rodrigo. Debret, o neoclassicismo e a
modelo de um comportamento artístico esquivo, escravidão. ________. A forma difícil: ensaios
de uma obra que se processa lateralmente e que sobre arte brasileira. São Paulo: Ática, 1996.
insiste em se aproximar de forma não violenta de SCHWARCZ, Lilia Moritz. Cascatinha da Tijuca, de
uma realidade nem sempre acolhedora. E se Nicolas Antoine Taunay. Revista Nossa História.
Debret gerou ao menos um estudo crítico que o Ano 1, nº 4, fev. 2004.
aproxima de alguns dos problemas centrais da ________. A natureza como paisagem e como
visualidade brasileira em A forma difícil de Rodrigo emblema da nação: uma reflexão sobre a arte
Naves, faltam ainda reflexões que entendam a neoclássica no Brasil do século XIX e acerca da
pintura de paisagem que Taunay aqui realiza como produção de Nicolas Taunay. Working Paper
parte de uma série histórica que o relacione, por number CBS-49-04. Oxford: Centre for Brazilian
exemplo, com alguns artistas modernos igualmente Studies, University of Oxford, 2003
marcados por uma relação recatada e lírica com a ________. Questões de Fronteira. Novos estudos,
natureza, como Pancetti ou Volpi. Tarefa cultural nº 72, julho/2005.
importante para futuros estudos históricos.
Notas
Referências bibliográficas
* Vera Beatriz Siqueira é doutora em História pelo IFCS/
ARGAN, Giulio Carlo. Arte Moderna. São Paulo: UFRJ, professora de História da Arte no Instituto de Artes
Cia das Letras, 1992. da UERJ, onde também é vice-diretora. Esta pesquisa
CARDOSO, Rafael. Cultura de exílio: a aventura integra o projeto Estilo e instituição: arte e cultura
contemporânea no Brasil, vinculado ao Programa Pro-
brasileira de J.B.Debret. ________. et.al. Castro
Ciência (UERJ).
Maya colecionador de Debret. São Paulo:

422
capitulo 10
iconografia: cenas e tipos brasileiros

423
O tema da cristandade nas representações de dois
artistas viajantes que visitaram o Brasil no início
do século XIX permite acompanharmos mais de
perto a complexidade de um trançado cultural para
a imaginária que identifica o país. Nesse contexto,
a cidade do Rio de Janeiro será o alvo dos registros
que divulgam o processo de transformação ativado
desde a presença da Corte.

Duas pesquisas realizadas separadamente, sobre


temas similares, reafirmam a realidade distante da
colônia, escravista, cuja cultura híbrida tornou o
grupo social refém do imaginário da cristandade e
do paradigma europeu. A análise das imagens de
Debret presentes na obra Viagem pitoresca e
histórica ao Brasil – que tratam do tema- é
confrontada com a análise da imagem produzida
por J.M.Rugendas – Família de Fazendeiros. O
resultado do confronto é a afirmação de uma
pesquisa pela outra e a reafirmação das evidências
dos simulacros, dos valores simbólicos, dos
códigos europeus e das interferências
(sobreposição de universos simbólicos) no
imaginário social.

As imagens de Debret são contundentes no


desnudamento da imaginário da cristandade
sobreposta aos habitantes negros na cidade. A
o imaginário da cristandade no rio de janeiro do
construção de Rugendas analisada é, do mesmo
século xix nas pinturas de rugendas e debret
modo, importante, porque delata o espaço da Igreja
heloisa pires lima e rosana ramalho de castro no seio dos lares descrevendo seu autoritarismo e
poder indiscutível. Vamos a elas!

A cristandade e os habitantes negros:


representações debretianas

Heloisa Pires Lima1

A cristandade é um dos eixos que organiza os


assuntos que evidenciam os contornos de uma
imagem política do país nos três volumes da
Viagem pitoresca e histórica ao Brasil (1834-39),
assinada por Jean Baptiste Debret. Exemplar é a
forma como o autor integra os habitantes negros
nas solenidades cristãs. Este é o aspecto que
selecionamos para contribuir com a reflexão acerca
da complexidade da produção imaginária de início
do século XIX.

Quem representa as virtudes?

Pedintes das confrarias, devotos, a primeira missa


do dia..., são alguns dos assuntos que traduzem o
hábito da caridade cristã sugerido na obra. O
testemunho do autor credita à prática da humildade,
o que impõe a obrigação da coleta, sendo uma
regra constitutiva mantida com severidade pelas
paróquias do Rio de Janeiro. Mas a peculiaridade
do relato aparece numa distinção envolvendo os
personagens coletores referidos. Coletores da

425
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

corporação seriam “homens salariados(...) cuja Observemos, ainda, que a “pessoa remediada” que
remuneração é proporcional ao produto da coleta” se impõe “a mortificação de sair descalça” está
Caracterizados com sinais negativos, tratados acompanhada por um moço negro, elegantemente
como “especuladores”, que treinam para “exercer vestido e bem calçado. O negro elegante é um
certo domínio sobre os transeuntes” e que saberiam tipo que circula por entre as estampas. Sempre
como conseguir “acolhimento nas casas de gente pertence a uma família rica, o que indica que a
rica e generosa”, além de buscar por “irmandades abastança das famílias é extensiva a alguns
opulentas”. [134-5/v.3] escravos. Nesse caso, o jovem negro, bem
apresentado, realça mais ainda a condição de
O personagem, na verdade, é pretexto para o pedinte da moça. [136/ v. 3]
relator desenvolver outro tema: o da astúcia que,
no “país novo, desenvolveu-se com a civilização”. O escravo bem tratado e impregnado de qualidades
Comentários que aludem à existência de “homens morais um dos elementos recorrentes para passar
perversos” que agiriam sem remorsos valendo-se a idéia de uma escravidão cristã, enquanto
de “subterfúgios criminosos” informam o leitor sobre argumento, fundamental nessa autoria. O fato de
falsos pedintes. O “pedinte malandro vestido como a moça ter um escravo não enfraquece seus
o outro e arrecadando em seu benefício as esmolas atributos morais. Esta moral cristã não exclui ou
destinadas ao santo patrão que finge servir” dá recrimina a escravidão. A mensagem parece
trabalho à polícia que num só dia teria prendido evidente: a população negra, mesmo idosa e pobre,
mais de vinte desses falsos pedintes no Rio de pode ser protagonista da prática cristã da caridade.
Janeiro. A outra personagem caridosa, embora pobre, é
trabalhadora e tem a disposição de auxiliar os mais
O “vigarista” terá como contraponto a construção necessitados, enquanto a menina reforça a idéia
do tema sobre a “verdadeira humildade”, que “se da educação moral ser ministrada desde cedo.
nem sempre predomina no exercício dos deveres
de uma confraria religiosa encontra-se, entretanto Voltando ao “pedinte assalariado”, aquele que lucra
sempre fervorosa entre as pessoas da sociedade, com tal prática cristã, em novo trecho, Debret o
no cumprimento da promessa bastante comum de define da seguinte maneira: “conhecido na cidade
oferecer à igreja uma missa paga com esmolas pelas suas facécias e que neste momento dá
recolhidas nas ruas da cidade. ” [136/v.3] provas de presença de espírito, estendendo o
guarda-chuva entreaberto para receber uma esmola
A sociedade que vai surgindo na redação, é dividida jogada por uma senhora, da janela do sobrado”.
em classes sociais. Assim, a mulher da “classe Eis o não tão verdadeiro caridoso, revelado na
abastada” e a moça da “classe indigente” serão as prancha de nº 4 do terceiro volume, que concentra
representantes da verdadeira caridade. Na opinião a fase final da linha de evolução iniciada no
do autor, esta última classe não é menos caridosa primeiro.
no Brasil e “compõe-se em sua maioria de negros
livres e pobres vivendo de seu trabalho mas sempre Portanto, é por intermédio população negra que o
dispostos a auxiliar seus parentes menos autor estampa a moralidade cristã existente no país.
afortunados ainda.”
Igrejas e mais igrejas
Acompanhemos agora o tratamento visual dado ao
tema. A “litografia mostra no grupo do primeiro plano As igrejas, nas tintas de Debret são partes
uma pedinte descalça, cujo traje revela tratar-se integrantes das vistas que procuram demonstrar
de pessoa remediada”. A moça, na história narrada como o brasileiro é “submetido desde à infância às
pela estampa, fica frente a frente com o açougueiro, práticas religiosas.” A devoção aparece
dito “comerciante em geral pouco estimado”, para disseminada, da mesma forma, por entre as
mostrar o seu grau de sacrifício, ou quanto tem classes sociais que acabam qualificadas pelo autor.
que se humilhar na função de pedinte. Porém, quando associada ao rico, é pouco
exemplar, pois “(...) o ato de humildade e de
Mas o autor coloca num segundo plano do quadro gratidão para com o Criador adquire no homem rico,
uma mulher negra, com “uma menina de cor”, nos um caráter de ostentação.” [132/ v3] Os pobres,
seus termos. A indigência destas duas obrigou-as que acreditam agradar mais a Deus quando a oferta
a solicitar à vizinha, também caridosa, a toalha e a é entregue por uma criança, são ironizados pelo
bandeja de estanho, necessárias para a coleta. Na autor, que tece comentários sobre a prática de
conclusão do tema, ambas as classes, apesar de pagar aos santos. O personagem que dá título à
“bem distintas”, cumprem a mesma promessa, ou prancha Primeira saída de um velho convalescente,
seja, a de serem caridosas. [137/v. 3 ] embora apareça de pés descalços compondo o

426
O imaginário da cristandade no Rio de Janeiro nas pinturas de Rugendas e Debret

centro da cena visual, não será o representante do testemunho da cristandade como fator de
caráter exemplar: a “verdadeira compreensão da civilização.
caridade cristã observa-se diariamente na classe
indigente” [139-140/ v3] O pintor de história, Jean Baptiste Debret, na sua
autoridade acerca do Brasil elenca a cristandade,
No texto explicativo é a figura desenhada “embaixo ao lado de outras construções como a idéia de
de uma escadaria” que recebe o julgamento moral harmonia social quando oferece o país como
de Debret. Trata-se de “uma velha negra indigente possibilidade ao público de sua obra: os franceses.
[que] antes de entrar com sua vela dá um vintém
de esmola a outra mais pobre ainda”. Imagens e evidências do imaginário - a
cristandade no interior de uma residência no
O relacionamento dos habitantes negros com as século XIX
igrejas também forma um pólo importante na
narrativa. Um par de pedintes, por exemplo, media Rosana Ramalho de Castro2
informações sobre organizações religiosas e
evidenciam a nuança racial da população. O processo de colonização da América portuguesa
caracterizou-se pela presença de diferentes estilos
O“irmão pedinte” branco exerce tal função para a arquitetônicos. O híbrido cultural apresentava-se
confraria da Santa Casa de Misericórdia . O outro, nas representações do maneirismo, do clássico
um “irmão pedinte” negro, trabalha para a pombalino e do barroco português. Também o estilo
Irmandade de São Benedito, que foi um “ santo rococó de Luiz XVI, a riqueza da cultura africana e
negro como os irmãos que lhes são devotados e a cultura material indígena, natural das regiões do
moderno protetor da raça preta, pois foi canonizado extenso território. Todas eram visíveis na cidade
há pouco”. [137/ v. 3] do Rio de Janeiro no início do século XIX.

Nova notícia, em nota, revela a existência da Para aparelhar a colônia e transformar na sede da
irmandade dos mulatos, conhecida como a monarquia portuguesa na América foram adotadas
irmandade de N. S. da Conceição. diversas providências a partir de 1808, logo após
aportar no Arsenal de Marinha Dom João VI e um
Entre a cruz e a liturgia grande número de ilustres senhores. A corte
passava a ocupar as moradias disponíveis e outras
Mas, nada é tão singular na construção debretiana que “se fizeram” disponíveis. As casas eram
como a cena -Negras novas a caminho da igreja construções simples, de acabamento precário.
para o batismo. Por ela, cita um “artigo da primitiva
lei sobre a escravidão” que dizia respeito à Segundo relata J. B. Bury na obra-A Arquitetura e
cristianização dos africanos recém-chegados, cujo a Arte do Brasil Colônia: “A modesta amostragem
objetivo, em sua opinião, seria moral.O autor se da arquitetura civil no Brasil do século XVI ao XVIII
coloca como testemunha que essa lei produziu é um reflexo da condição colonial do Brasil. Não
resultados, visto que seria “raro, encontrar-se hoje houve um monarca residente no Brasil antes de
em dia um negro que não seja cristão.” Da mesma 1808, de modo que não havia palácios reais”.
forma discorre sobre a“educação cristã dos
negros”, que “do ponto de vista político” seria uma Excluindo as Igrejas e edifícios públicos, a cidade
garantia para os senhores e suas “centenas de apresentava marcas coloniais nas construções
escravos reunidos”. Alguns dos “velhos negros simples, de singelo estilo composto em portas e
livres”, apreciados por saber falar várias línguas janelas construídas de tábuas rústicas e telhados
africanas, seriam professores dos princípios da que destacavam as peças realizadas nos moldes
religião católica. [147/ v. 3] das cochas dos escravos.

O catolicismo como forma de progresso também é A mudança de status na cidade evidenciou a


retratado, visualmente. O pároco que recebe os simplicidade da arquitetura das residências
novos catecúmenos pertence às igrejas servidas acrescida da estética da metrópole. As paredes
por “padres negros”.Todavia Debret ironiza a rústicas caiadas de branco e os pisos de tábua
cerimônia que considera cristandade forçada. corrida abrigavam os móveis de estilo e os hábitos
europeus dos novos moradores. A transformação
A cristianização dos habitantes negros é bem abrupta trouxe à cidade uma visualidade de aspecto
evidente no pescoço de uma cena do cotidiano ou tão peculiar que despertava o interesse de artistas
quando eleitos para representar ícones como a dos estrangeiros.
reis magos, todos os três negros, os inclui no

427
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

As representações em nada apontavam para os Rugendas realizou uma ilustração do interior de


modos e hábitos adotados no continente europeu, uma casa de fazenda que, a nosso ver, é
pois, apesar das contribuições culturais havia o emblemática, pois representa um aspecto que
imaginário da cristandade que se mantinha dentro perdura desde a vida colonial na América
e fora dos lares, nas casas da sede da monarquia, portuguesa. São perceptíveis as paredes rústicas,
nas residências dos fazendeiros ou nas ruas da o piso de terra batida e o teto feito com ripas de
cidade do Rio de Janeiro. madeira aparente que serviam de sustentação para
as telhas canal, forradas com palha na parte interior.
Podemos dizer que os elementos do estilo
neoclássico histórico, introduzidos pela missão O cômodo retratado apresenta vários feixes de
francesa na arquitetura efêmera dos cenários palha, um deles fixado por um instrumento que
realizados para a Família Real, tiveram um define o tamanho padrão de corte. Na cena,
emprego destinado a mostrar a sede da monarquia provavelmente a palha seria destinada ao
para ser vista pelos europeus e, por serem pagamento do dízimo à Igreja.
utilizados fora do contexto de sua concepção inicial,
o conjunto dos elementos parecia sem sentido para Um rapaz negro anuncia a visita de um membro
a realidade local. O universo simbólico original, da comunidade e quem parece admitir sua entrada
rejeitado pelos artistas franceses não serviram no recinto é o padre, conforme indica a posição de
como referência para constituir novos valores mão do sacerdote. A cena denota a situação
estéticos na visualidade da cidade. A desrealização hierárquica: o padre é a principal figura retratada,
da realidade cotidiana imperava nos simulacros além de ser o centro de atenção da família ali
produzidos aqui e espelhados no paradigma representada em atitude de submissão e respeito.
europeu. No encontro das linhas estruturais do quadro - as
diagonais da composição – encontra-se a figura
Para compreendermos o distanciamento entre o do padre como principal destaque. A porta
estilo refletido nos projetos efêmeros e a visibilidade entreaberta nos permite ver o avarandado, da
existente na cidade, analisaremos os aspectos esquerda para o centro encontram-se os familiares.
coloniais no Rio de Janeiro do início do século XIX
observando a obra pictórica de Johann Moritz Em primeiro plano, destacam-se as crianças, os
Rugendas chamada Família de Fazendeiros (1825). negros e a mulher que serve leite à ama. A seguir,
os senhores da fazenda: um homem sentado numa
A imagem estudada também apresenta o modo de cadeira e uma senhora acomodada na rede. Atrás
convivência entre os colonos e o imaginário da do homem, uma senhora da família se apóia no
cristandade da época, representada na figura do encosto da cadeira. Vê-se o tocador de banjo além
padre em visita à sede de uma fazenda. do padre e um rapaz negro que acaba de entrar. À
direita destaca-se a palha, os instrumentos de
O desenho faz parte da obra Viagem pitoresca trabalho, o banquinho rústico e a porta entreaberta,
através do Brasil na qual o autor relatou suas com um visitante à espera.
experiências no território brasileiro e registrou
imagens da região. Nos relatos de Rugendas O dedo do negro indica na direção do visitante e a
encontramos informações a respeito da residência mão do padre demonstra aquiescência à entrada
de um fazendeiro. de um homem cujo traje é semelhante ao usado
pelo senhor, sugerindo ser ele outro fazendeiro que
A casa do colono abastado tem apenas um aguarda a atenção do representante da Igreja. A
andar; as paredes são de taipa e algumas vezes posição do homem de fora da casa demonstra
caiadas. Os alicerces, que se erguem a mais respeito e submissão. A cabeça tendida para o
ou menos dois pés acima do solo, são formados ombro esquerdo revela apreensão e tentativa de
de blocos de granito bruto. O telhado, recoberto ver, além da porta, entreaberta.
de largas telhas convexas, ultrapassa de 8 a
12 palmos os muros do edifício e é suportado A família, o padre e a palha representam a relação
por vigas de madeira. Em torno da casa, familiar, a cristandade e o preço pago por ela. Ao
estende-se uma varanda [...] Entra-se lado direito, vê-se uma cadeira de estilo marquesa
primeiramente numa grande peça [...]. E (detalhe do espaldar inclinado para trás), móvel
somente num dos quartos laterais se português encontrado nos interiores das
encontram, assim mesmo raramente, móveis residências, antes da chegada da corte à cidade.
mais elegantes, espelhos, etc. A cena evidencia características coloniais, pelo
acabamento da construção, pelos móveis e uso
de objetos da estética indígena e africana. O dono

428
O imaginário da cristandade no Rio de Janeiro nas pinturas de Rugendas e Debret

da casa e o visitante usam o mesmo tipo de Por sua vez, os habitantes negros, no olhar de Jean
vestimenta: calças, camisolas e um casaco curto. Baptiste Debret examinado por Heloisa Pires Lima
Estão sem sapatos ou botas, por isso, concluímos aparecem, da mesma forma, como simulacros para
ser o visitante um fazendeiro vizinho. Rugendas a representação de uma harmonia social e o devir
relata a forma de vestir dos fazendeiros. de uma civilização sob a influência da pátria
francesa.
A indumentária do homem consiste em uma
camisa de algodão e uma calça do mesmo Estes registros estrangeiros na sua dimensão
tecido. Andam descalços, embora com grandes realista ou idealizada se servem do argumento
tamancos muitas vezes munidos de esporas, acerca da cristandade, destacando-o conforme
de modo a estarem sempre prontos a montar o demonstraram as autoras.
cavalo, pois é raro que o colono faça a pé o
mais curso trajeto. Pressupondo o real sempre muito mais complexo
que sua representação, a circunscrição de uma
Além dos indícios da cultura portuguesa, indígena leitura do real também desafia por sua
e africana, destaca-se, na parede central do recinto, complexidade. Tendo como perspectiva o leitor
a moldura maneirista com a imagem da santa dessas construções, os ambientes que aparecem
protetora. Ao lado, vê-se o crucifixo. A moldura referidos, os personagens mais ou menos
apresenta os elementos de folhagens e flores, mas destacados, a posição que ocupam no cenário, tudo
destacam-se na parte superior e inferior elementos faz parte de uma lógica que orienta seus
antropomorfos, do período maneirista. julgamentos. Por sua vez, as categorias em cena
resultam do que o autor conhecia daquela realidade
À esquerda da cena, uma janela é adornada com observada, o que selecionou ou o que lhe chamou
pesadas cortinas, presas conforme os modelos dos a atenção para registrar. A autoria decodifica ou
altares das igrejas barrocas do século XVIII. A realiza a tradução a partir de repertórios conhecidos
representação do panejamento pode ter sido ou reconhecidos pelo público desses retratos
escolhida pelo pintor com a intenção de reforçar sociais. Afinal, o relator é um informante das
as linhas estruturais que convergem para o padre, peculiaridades da nação descrita.
para a imagem maneirista e para o crucifixo,
destacando, assim, a força da Igreja no interior da O Brasil na conjuntura de início do XIX era um
residência. recém reino ou império. Portanto, na perspectiva
européia uma sociedade em formação. Certamente
Mesmo distante do centro da cidade do Rio de o potencial econômico geraria aspectos relevantes
Janeiro, a família mantinha a cultura européia nos para os relatos. Mas, sobretudo os hábitos e os
elementos maneiristas e no mobiliário português. habitantes da terra visitada forneceriam o potencial
Mas, além disso, causa impacto o modo de deste devir. E a cristandade aparecia como degrau
representação da submissão dos colonos à figura para a civilização: na imagem de Rugendas, no
representante da cristandade. Enquanto na fazenda centro da cena, o pároco com quem se dá a
via-se a presença da Igreja e os efeitos produzidos interlocução com os demais figurantes; nas de
nos colonos, na sede da monarquia, na mesma Debret, a alma cristã nos habitantes negros do país.
época, ilustravam-se os modos e hábitos franceses.
Como exercício de relação é importante perceber
Conclusão que todas acabam, também, evidenciando a
escravidão no país. Porém, associada à idéia de
Como discute Rosana Ramalho de Castro, a uma cristandade que não a condena. Nos relatos,
mudança da Corte para a cidade do Rio de Janeiro, os autores não se indignam, apesar dessa não ser
gesta uma espécie de desrealização que ativa a uma experiência social nos seus países de origem.
produção de simulacros espelhados em
paradigmas europeus. Em contrapartida, a análise Referências bibliográficas
da estampa assinada pelo alemão Johan Moritz
Rugendas, vai revelando na reunião de elementos BAXANDALL, Michel. O Olhar Renascente –
híbridos, seja o cesto indígena, na imagem Pintura e Experiência Social na Itália da
maneirista na parede seja no mobiliário de gosto Renascença. RJ, Paz e Terra, 1991.
português, a extrema rusticidade da vida dos BETHELL, Leslie. História da América Latina.
habitantes no país. América Latina Colonial. Vol II cap: A arquitetura e
a arte do Brasil Colonial. SP, Edusp. 1999.

429
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

DEBRET, Jean Baptiste. Viagem pitoresca e Notas


histórica ao Brasil. Belo Horizonte, Itatiaia; São
1
Paulo, Edusp, 1972, 3 vols. O presente texto é desdobramento das reflexões
realizadas na tese – Negros debretianos: Investigação
LIMA, Heloisa Pires. Negros debretianos:
sobre um repertório cultural presente na obra Voyage
Investigação sobre um repertório cultural presente pittoresque et historique au Brésil (1834-39), defendida
na obra Voyage pittoresque et historique au Brésil no ano de 2006 no Departamento de Antropologia-
(1834-39), tese doutorado, Departamento de FFLCH-USP sob a orientação da profª Drª Lilia K. M.
Antropologia- FFLCH-USP. 2006. Schwarcz.
2
RAMALHO DE CASTRO, Rosana. Imagens e O texto faz parte da tese de doutorado: Imagens e
Evidências: a missão francesa, a Academia Evidências – a missão francesa, a Academia Imperial
de Belas Artes e a identidade monárquica,
Imperial de Belas Artes e a constituição da
apresentada ao Programa de Pós Graduação em História
identidade monárquica. Tese de doutorado da UFF em 2004.
defendida no Programa de Pós Graduação em
História / UFF. 2004.
RUGENDAS, Johan Moritz. Viagem Pitoresca
através do Brasil. Trad. Sérgio Milliet. SP, Círculo
do Livro, s/d.

430
Ao se pronunciar Saudade e Nhá Chica, títulos de
duas cenas de gênero pintadas em 1899 e 1895,
respectivamente, por José Ferraz de Almeida Júnior
(1850 – 1899), imediatamente se forma no imenso
arcabouço imaginário de cada fruidor, uma
infinidade de imagens trazidas da memória.
Entretanto, pode-se ter certeza de que nenhuma
dessas faz justiça ao que Almeida Júnior realizou.

Dito isto, agora é chegado o momento de observar


e proceder à análise das obras em questão. Na
presente comunicação não se pretende estabelecer
uma seqüência cronológica colocando Nhá Chica
primeiramente, por ter sido pintada em 1895 e
Saudade, por último em 1899, ano da morte trágica
do pintor. Antes se prefere definir o padrão de
escolha pensando nas afinidades que as obras em
questão estabelecem entre si e com outras
produções européias privilegiando, sobretudo, as
cenas de gênero holandesas do século XVII, em
especial, de Johannes Vermeer van Delft (1632-
1675) e de Pieter de Hooch (1629-1684) e as
italianas, portuguesas, espanholas, húngaras e
russas do século XIX, através de Francesco Paolo
Michetti, José Vital Branco Malhoa, José Villegas
Cordero, Mihály Munkácsy e Andrei Popov,
respectivamente, revelando nestas uma
saudade e nhá chica: duas cenas de gênero de constância, ou melhor, uma permanência nos
josé ferraz de almeida júnior temas dentro das Academias de Arte.

karin philippov1 O óleo sobre tela Saudade pintado em 1899 traz a


representação de uma mulher que chora olhando
para um “cabinet portrait”. Note-se como ela está
posicionada dentro de um ambiente doméstico
rústico, retratado realisticamente com o mesmo
grau de minúcia de uma cena de gênero do século
XVII holandês de Vermeer e de Pieter de Hooch.
Pois, para Almeida Júnior o que parece importar é
a representação de uma realidade inerente ao seu
viver. Assim, o pintor ituano dispõe sua figura contra
uma janela, cuja parede de tijolos traz um chapéu
tornado diáfano pela ação do tempo. Do lado
esquerdo da figura, ao fundo da cena, há uma
canastra encimada por um álbum de fotografias e
por um xale branco, cumprindo, dessa forma, um
comentário ao provável luto da mulher. Nota-se,
além disso, como Almeida Júnior compõe a cena
mediante um sagaz jogo de ortogonais presentes
na janela, na parede, no chão e na canastra, as
quais são contrabalançadas pelas diagonais da
tramela, dos braços da mulher e da luz que invade
a cena. Almeida Júnior aqui articula perfeitamente
seu esquema de ortogonais à fatura cromática, ou
seja, o pintor empasta a tinta justamente aonde
quer que haja maior carga dramática, como por
exemplo, na face de Saudade e em suas mãos.

A segunda tela dessa comunicação é Nhá Chica,


executada em 1895. Nessa obra tem-se novamente

431
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

a inserção da figura feminina dentro de um conforme a observação de Saudade e Nhá Chica


ambiente caseiro rústico. Porém, se em Saudade atesta.
a mulher é retratada de corpo inteiro, em Nhá Chica
a figura é revelada até um pouco abaixo da linha Mas, qual é a origem de seus diálogos? Como
da cintura. Nota-se que aqui a figura não chora, localizar sua produção? Por que Almeida Júnior
fuma seu cachimbo enquanto olha para fora da opta por esse caminho? Quem são os artistas com
janela e para dentro de si, concomitantemente. Já os quais dialoga? Primeiramente, é necessário que
em Saudade, tem-se a figura olhando para a o olhar do observador seja cuidadosamente guiado
fotografia e não para o mundo exterior, fato até o século XVII holandês, auge do esplendor das
corroborado por estar de costas para a janela e, cenas de gênero produzidas na Holanda, através
por esta nada representar além de seus limites. O de dois de seus maiores expoentes, Johannes
que há de comum em ambas as telas é que em Vermeer van Delft e Pieter de Hooch.
nenhum momento o pintor permite que o
observador seja percebido pelas personagens Do mesmo modo como Vermeer e Pieter de Hooch
retratadas. descrevem minuciosamente suas cenas, embora
com pequenos formatos, Almeida Júnior também
Novamente, ao se pensar na estruturação da o faz, inserindo suas personagens dentro de
imagem, pode-se perceber que em Nhá Chica espaços caseiros rústicos, desempenhando ações
existe a forte presença das ortogonais na janela banais e sem qualquer traço de idealização.
correspondentes ao grau de saturação das Entretanto, percebe-se que na produção do ituano
pinceladas. Dessa forma, tanto em Saudade quanto não há qualquer sentido moralizante, de pureza,
em Nhá Chica percebe-se o jogo estabelecido pelas de vânitas ou de memento mori. A intenção de
ortogonais e vetores internos e externos às figuras, Almeida Júnior reside muito mais na descrição do
os quais desempenham papel sinalético nas mundo visível inerente a si, do que em qualquer
narrativas. Na primeira obra, tem-se a forte forma de ensinamento moral, pois na arte e na
verticalidade da janela complementada pelas sociedade laica do século XIX não faz mais sentido
horizontais da canastra e do chão. Como ponto de tratar de assuntos moralizantes. Deve-se ressaltar
equilíbrio da cena, a diagonal do chapéu de palha dentro das academias um forte clima de época, o
e a tramela que apontam para a figura, além da qual atinge tanto a práxis quanto a teoria, pois
estrutura interna dos braços – o direito apontando através do resgate da tradição holandesa do século
até os olhos lacrimejantes enquanto o esquerdo, XVII, artistas como Vermeer e de Hooch são
meio na penumbra, traz a fotografia. Já na segunda recuperados e estudados em suas técnicas e
obra, as verticais dos batentes da janela são produções. Por exemplo, segundo Maria Cecília
contrabalançadas pela horizontal em perspectiva França Lourenço, o pintor Eugène Fromentin
do peitoril. Além disso, note-se como o bule repete publica em 1876 seu célebre livro Les Maîtres
o formato do corpo da figura. Aqui, novamente d’Autrefois (LOURENÇO, 2007: 170).
percebe-se como Almeida Júnior posiciona os
braços, tendo o direito a função de quase revelar o Além disso, é preciso ressaltar a importância das
mundo exterior, enquanto o braço esquerdo faz um pinturas narrativas de Almeida Júnior dentro dos
triângulo com o longo pito e o corpo de Nhá Chica. Salões tanto parisienses quanto brasileiros, uma
vez que a temática caipira, considerada pitoresca
Biograficamente, sabe-se que o pintor ituano foi pelo público dos salões, faz parte do imaginário
agraciado pelo Imperador D. Pedro II, com uma realista do pintor. Entretanto, a representação de
bolsa de estudos em Paris, entre os anos de 1876 temas banais, cotidianos em espaços domésticos,
a 1882. Pois bem, durante sua estada na referida não constitui marca exclusiva. Há outros pintores
cidade, Almeida Júnior além de ser discípulo de contemporâneos à Almeida Júnior que exploram o
Alexandre Cabanel, entra em contato com o que mesmo tipo de representação, como por exemplo,
existe de mais contemporâneo artisticamente seu amigo Belmiro de Almeida (1858-1935), pintor
falando, uma vez que as academias de arte de A Tagarela, 1893. Porém, aqui existe uma
européias estão em profundo diálogo com a diferença fundamental na fatura da obra, diferença
tradição européia. Assim, ao se considerar a esta revelada na pose sorridente que a figura faz
produção realizada dentro destas academias, deve- ao se lançar em direção ao fruidor como se
se destacar a convergência de tendências quisesse conversar ou contar algo, muito embora
marcadamente realistas, tanto de denúncia social, seja uma humilde empregada doméstica, conforme
quanto de descrição minuciosa do cotidiano. a vassoura e o uniforme revelam. Almeida Júnior
Almeida Júnior, portanto, se posiciona nesta última, traz figuras simples e humildes, mas não as coloca
posando francamente para o fruidor. Suas atitudes

432
Saudade e Nhá Chica: duas cenas de gênero de Almeida Júnior

são sempre ensimesmadas, as figuras agem sem 2000:143). As observações das obras de Malhoa e
se darem conta de que estão sendo observadas. de Almeida Júnior ajudam a esclarecer.

Um outro fator a ser destacado nesta comunicação Pensando ainda na produção realizada no universo
se refere à passagem de Almeida Júnior pela Itália, ibérico, deve-se destacar um outro artista que
sobretudo, por Roma, durante sua primeira viagem. também esteve na Itália e que traz para suas
Embora não haja documentos que provem seu representações, o mesmo imaginário camponês e
contato com os artistas, pode-se propor que o humilde, cujo grau de realismo se aproxima do de
artista se alia à produção italiana, no que tange a Almeida Júnior, embora não tenha a mesma força
representação de cenas banais. Assim, pode-se narrativa e nem a mesma estruturação compositiva
tentar estabelecer um diálogo entre o ituano e do ituano. Trata-se do pintor espanhol José Villegas
Francesco Paolo Michetti, em Pastorella, 1887, Cordero (1844-1921). A observação da aquarela
muito embora este último ressalte o lado Camponesa Italiana, 1874, permite perceber no
melancólico dos camponeses e possua um teor modo de representação do artista, a descrição
adocicado de tendência romântica em sua obra. pitoresca durante sua viagem à Itália, porém, com
Em contrapartida, em Almeida Júnior não há um toque macchiaoli em sua anotação colhida en
qualquer exploração sentimentalista ou idealizada plein air. Já em Almeida Júnior, embora não execute
da figura, conforme a análise e observação de suas Saudade e Nhá Chica empregando o recurso
Saudade e Nhá Chica revelam. Apesar da figura adotado pelo espanhol, propõe uma simulação de
feminina de Saudade chorar, não se percebe uma cena colhida ao acaso, como se fossem
qualquer traço de melancolia adocicada nem de instantâneos fotográficos, conforme a observação
explosão. Tampouco Nhá Chica apresenta qualquer das obras em questão revela.
sentimentalismo bucólico, como Michetti representa
em sua obra. Ou seja, Almeida Júnior se aproxima Segundo Lourenço, um outro pintor que produz uma
muito mais de um realismo de cunho naturalista, arte semelhante à de Almeida Júnior, no que
do que de qualquer forma de romantismo. concerne ao realismo adotado em suas
representações, é o artista húngaro Mihály
Ao se estabelecer um cotejo entre Almeida Júnior Munkácsy (1844-1900). E aqui eu cito as palavras
e o pintor português José Vital Branco Malhoa de Lourenço (LOURENÇO, 2007:174).
(1855-1933), deve-se destacar as condições
político-sociais tanto brasileiras quanto Munkácsy realiza uma tela notável, [...],
portuguesas, pois o Brasil ainda mantém relações denominada Mulher Carregando Fardo (1873),
com Portugal no final do II Reinado e início da trazendo uma jovem sentada no chão e sendo
República relações estas que influenciam os tomada bem de perto; tem as mãos entre as
costumes e tradições locais de ambos. Além disso, pernas, os olhos baixos, como se fizesse uma
deve-se salientar a situação decadente das prece ou uma pausa. Carrega um fardo nas
Monarquias brasileira e portuguesa, as quais costas, amarrado com panos e a tela
vinculadas ainda às Academias, as enfraquecem integralmente reflete os tons terrosos, à
favorecendo a busca de novos temas centrados exceção do lenço vermelho mantido na cabeça.
na população camponesa, gênero antes Particulariza os traços com riqueza de minúcias,
considerado baixo e que assume crescente conforme também ocorre em cenas
importância nas representações. A busca de temas assemelhadas de Almeida Júnior, em que
camponeses, caipiras, ciganos se torna mecanismo conduz o olhar do fruidor para o conteúdo
de estudo da condição humana, nesse momento. enxuto e direto.
Aqui cabe mais uma vez lembrar a forte presença
de estudos vinculados ao passado holandês, Ao estabelecer o cotejo entre Almeida Júnior e
propondo que os artistas da Academia, em face à Munkácsy, pode-se propor que ambos retratam
falência da Monarquia, devem e precisam encontrar suas cenas com luz e paletas semelhantes, embora
temas que retratem a realidade falida da sociedade. o artista húngaro ultrapasse os limites da descrição,
Desse modo, alguns denunciam as duras rumando em direção à denúncia social das
condições de trabalho, outros optam por descrever explorações do trabalho camponês, justamente o
o que vêem como Almeida Júnior, além daqueles contrário do que Almeida Júnior realiza em Saudade
que ironizam, questionam e interrogam como e Nhá Chica.
Malhoa, conforme Luciano Migliaccio, que também
Por fim, o último artista a ser analisado na
afirma que “o realismo de Almeida Júnior parece
presente comunicação é Andrei Popov (1832-
ter afinidades com os quadros de tema camponês
1896), por produzir uma arte que dialoga com
pintados pelo português Malhoa...” (MIGLIACCIO,
Almeida Júnior, embora haja enormes distâncias

433
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

geográficas entre russos e brasileiros. Entretanto, DASHKINA, Raisa et allii. 100 Unknown Pictures
Popov estudou na Alemanha, na França e na from the Depositories of The State Russian
Itália, além de expor nestes mesmos países na Museum. Saint Petersburg: Palace Editions, 1998.
época em que Almeida Júnior esteve na Europa. ESTRADA, Luís Gonzaga - Duque. A arte
Popov, autor de Um Pequeno Quintal, 1870, se Brasileira (introdução e notas de Tadeu Chiarelli).
caracteriza por cenas de gênero como esta que Campinas, SP: Mercado de Letras, 1995.
representa uma camponesa russa correndo atrás GUSYEV, Vladimir et allii. The Russian Museum
de seus cachorros, os quais, por sua vez, caçam from the Icon to Modernism. Saint Petersburg:
um galo. Aqui também se nota um caráter jocoso Palace Editions, 2005.
e anedótico na cena, muito embora seja esta a LOURENÇO, Maria Cecília França &
grande diferença entre o russo Popov e Almeida NASCIMENTO, Ana Paula. Almeida Júnior: um
Júnior, pois tanto em Saudade quanto em Nhá criador de imaginários. Catálogo da Exposição
Chica, não é possível encontrar esse sentido. realizada na Pinacoteca do Estado de São Paulo
de 25 de janeiro a 15 de abril de 2007. SP:
Portanto, as cenas de gênero de José Ferraz de Pinacoteca do Estado de São Paulo, 2007.
Almeida Júnior não são resultantes de uma MIGLIACCIO, Luciano. O Século XIX. Catálogo
produção isolada, mas sim de uma produção da Mostra do Redescobrimento. SP: Fundação
perfeitamente conectada aos ensinamentos da Bienal de São Paulo – Associação Brasil 500 Anos
academia, bem como são frutos de um programa Artes Visuais, 2000.
pedagógico estabelecido durante a crise do PHILIPPOV, Karin. Saudade. Monografia de
regime monárquico, crise esta que rege e reflete Conclusão de Pós-Graduação em História da Arte,
os gostos da burguesia tanto no Brasil quanto realizada na Fundação Armando Álvares Penteado,
na Europa. Assim, a presente comunicação é sob orientação da Profa. Dra. Elaine Dias. SP:
concluída através da proposição de um olhar FAAP, 2006, 104 páginas.
renovado para a produção realista naturalista do
final do século XIX, a qual foi bastante relegada Notas
ao segundo plano pelo modernismo brasileiro,
1
com a utilização da alcunha pejorativa Mestranda pelo Instituto de Filosofia e Ciências
acadêmico. Humanas IFCH – Unicamp. Bolsista do CNPq, mas
não pelo tema apresentado aqui.
Referências bibliográficas

COLI, Jorge. Almeida Júnior: o caipira e a violência.


Como Estudar A Arte Brasileira do Século XIX?.
SP: Senac, 2005, pp.101-114.

434
1. Nos comentários que acompanham as pranchas
de Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil, é
ambíguo o olhar que Debret lança aos negros.
Embora reconheça que neste país “tudo assenta
no escravo negro” e condene os castigos públicos
- “revoltantes para um europeu” (DEBRET, 1954:85-
86) -, o pintor segue descrevendo os negros sob a
ótica racista própria ao século XIX. Em suas
aquarelas, contudo, há uma empatia com os
escravos, uma decidida humanidade. Se nos
comentários, o negro é tratado de forma genérica,
em várias pranchas, sua singularidade é notável.

Em comentário sobre os castigos dados aos


escravos, destacado por vários autores, Debret diz
que “o negro é indolente, vegeta onde se encontra,
compraz-se na sua nulidade e faz da preguiça sua
ambição; por isso a prisão é para ele um asilo
sossegado, que pode satisfazer sem perigo sua
paixão pela inação [...].” (Id.: 256-257) Essa
descrição cruel corresponde, na verdade, a uma
patologia. Rubim de Pinho, psiquiatra que
pesquisou doenças mentais em sua relação com
a cultura, lembra que a vocação para a tristeza era
de fato própria aos negros importados da África.
“A partir da viagem até a chegada às nossas costas,
[os africanos] apresentavam estados de
melancolia à brasileira: a aquarela negra tatuada definhamento, ficavam parados, e a própria
vendendo caju, de debret expressão Banzo, suposta de procedência
angolana, reflete seguramente uma nostalgia, uma
leila danziger 1 saudade da terra”.

[...] o banzo é apresentado como um tipo de


nostalgia ou melancolia mortal dos negros da
África, se tomados cativos e ausentes de suas
pátrias. O antecedente do africanismo “banzar”
é encontrado [...] no verbo cubanza, de língua
angolana, significativo de “pensar”. (De Pinho,
1982: 20)

A descrição dos males do banzo corresponde


àqueles que acometem os melancólicos,
mencionados desde a Antiguidade. A teoria humoral
de Hipócrates definiu durante séculos os sintomas
da melancolia: “ânimo entristecido, sentimento de
um abismo infinito, extinção do desejo e da fala,
impressão de hebetude”. (ROUDINESCO, 1998:
506) Nas primeiras décadas do século XIX, Esquirol
quis livrar-se da palavra melancolia, que
considerava demasiado literária e vaga. Chamou-
a “lipemania”, pretendendo em vão confiná-la ao
domínio médico (PIGEAUD, 1988: 62).

Mas a melancolia só pode ser compreendida como


doença da cultura, e, por sua vez, doença
culturalizante. O banzo é assim um dos nomes da
melancolia, que na Idade Média adquiriu contornos
particulares sob o termo acedia (que atingia os
monges e era vista como pecado) ou spleen,

435
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

indissociável da poesia de Baudelaire e do poliedro, a escada, que oferece o risco de queda


Romantismo. A melancolia já despertara, de forma no abismo. No lado direito, predomina o aspecto
positiva, o interesse de Aristóteles, e a melaina sólido e estável, em que prevalece a forma
kholé - a bile negra – faz parte da teoria dos arquitetônica que sugere uma torre e a figura
humores de Galeno, físico que viveu em Roma no maciça da mulher alada - alegoria da geometria
primeiro século da Era Cristã, e sintetizou para Klibansky, Panoksky e Saxl (1964) e da
conhecimentos que foram surgindo ao longo dos astronomia para Peter-Klaus Schuster (2005). Para
cinco séculos anteriores. Embora tenha sido vista esse último autor, Dürer retoma, na composição,
como um desequilíbrio provocado pelo excesso de minuciosamente construída, a antítese Virtus-
bile, a melancolia parece insubordinar-se à Fortuna, recorrente no repertório alegórico
separação entre a matéria e o espírito. Para Yves humanista. Para Schuster, Melencolia I é uma
Bonnefoy, ela é um “estilhaço na carne da exortação à virtude, endereçada ao melancólico
modernidade” que desde os gregos não teria para que seu espírito superior se forme e se eleve,
cessado de nascer. (BONNEFOY, 1989: 7-8) apesar de todas as adversidades. A dignidade do
homem no humanismo consiste em ser criador de
Sua mais célebre representação é certamente a si mesmo e, “pelo uso virtuoso de seus dons
gravura de Dürer, Melencolia I realizada em 1514, intelectuais, pela prática das artes e das ciências
que possui exaustiva fortuna crítica. Em 1989, guiada na medida justa, só assim se faz
Raymond Klibansky escrevia que o número de verdadeiramente justo à imagem de Deus”.
publicações relativas a essa obra é tal que um (SCHUSTER, 2005: 93-94)
bibliotecário penaria em classificá-las. “A
quantidade de escritos é proporcional à dificuldade A interpretação de Schuster concilia a leitura de
das explicações” (KLIBANSKY e al.,1989: 13). Essa Aby Warburg às realizadas pelo círculo de seus
afirmação é extraída da nota introdutória da alunos Klibansky, Panofsky e Saxl. Segundo
tradução francesa da imensa obra que Klibansky Warburg, a gravura de Dürer mostra a
escreveu junto a Erwin Panofsky e Fritz Saxl - personificação da melancolia ao sair vitoriosa na
Saturno e Melancolia - cujo processo de criação luta com as sombras potentes que a habitam: a
estende-se ao longo de cerca de cinco décadas e loucura, a aflição, a preguiça e o luto. A mulher
domina a recepção da obra no século XX. alada conseguiria superar todos os males que a
afligem, explorando as disposições particulares do
O que nos interessa aqui é tomar a gravura como temperamento saturnino para as ciências e as
matriz para olharmos a aquarela de Debret, Negra artes. A ligação entre a melancolia, a filosofia, a
tatuada vendendo caju, de 1827, que não foi poesia e as artes já aparece em Aristóteles, que
incluída em seu livro célebre. Aluno e sobrinho de perguntava: “Por que razão todos os que foram
Jean-Louis David, com passagem pela Academia homens de exceção (...) são manifestamente
Real de Pintura e Escultura, em Paris, formado em melancólicos?” (PIGEAUD,1988: 81) Para o filósofo
contado com as idéias de Winckelmann e Mengs, e também para Marsilio Ficino, fundador da
não há de se duvidar que Debret conhecesse essa Academia Platônica de Florença, o temperamento
gravura de Dürer. melancólico é a condição de todo grande espírito.
2. Em Melencolia I, o anjo imóvel e de rosto sombrio Retornando a Warburg, ele defende que Melencolia
parece não suportar o próprio peso, sustentando a I é uma obra reconfortante, pois mostra justamente
cabeça inclinada sobre o punho, na postura a vitória do temperamento melancólico sobre o seu
característica do melancólico. Ao seu redor, os lado sombrio e a superação da aflição que o
objetos do conhecimento, que deveriam medir o ameaça em permanência. Ao longo de uma
tempo e o espaço, jazem obscurecidos e inertes. minuciosa análise iconográfica, Panofsky e Saxl
O espaço da gravura é constituído pelo acúmulo, vêem, por sua vez, a personificação da melancolia
pela descontinuidade entre os objetos, que resignada, vencida em sua aspiração ao
estabelecem nexos obscuros entre si, levando-nos conhecimento, pois percebe os limites de seu
a constituir uma lista para nomeá-los: o anjo, o espírito em relação ao Divino e, assim recai no
compasso, o livro, o quadrado mágico, a abatimento e no desespero.
ampulheta, o cão, o putto, o morcego, a escada, o
poliedro, a esfera, o cometa, e vários outros Independente das eventuais falhas nas
elementos. Há uma desordem que é fruto de um interpretações iconográficas de Panoksky e dos
embate silencioso que envolve todas as coisas. No demais historiadores, apontadas por Schuster, a
lado esquerdo, os objetos sugerem instabilidade e recepção da gravura pela arte e pela literatura
perigo: o mar em suas mudanças incessantes, a contemporâneas parece ter esquecido o debate
esfera instável, a sombra de um crânio na face do humanista – a oposição entre a Virtude e a Fortuna
436
A aquarela Negra tatuada vendendo caju, de Debret

- e percebe-a como um signo da fragmentação e realizada por inúmeros artistas, que ao longo de
da consciência da incompletude, tão próprias à cinco séculos enfrentaram o caráter enigmático da
modernidade. Contudo, para um artista formado na obra e atestaram sua contínua atualidade.
poética neoclássica como Debret, a recepção da
gravura na chave da Virtude é certamente muito 3. Em Negra tatuada, a figura da mulher, sentada
atrativa. Sua expressão é o cumprimento do dever diretamente ao solo, inscreve-se num quadrado, o
cívico, a heróica superação dos afetos pessoais, que potencializa a sensação de peso próprio à
temas de suas obras na França. melancolia. O panejamento volumoso da saia, em
tonalidades escuras, confere maior estabilidade à
Em Negra tatuada vendendo caju, Debret traduz a negra, que parece inamovível. À esquerda da
observação da paisagem humana do Rio de Janeiro composição, o céu da recém-fundada nação
em termos conceituais. Embora o formato da brasileira é completamente esvaziado das
aquarela - horizontal, como todas as pranchas referências simbólicas presentes na representação
dedicadas aos escravos - seja distinto da gravura do céu do Renascimento alemão. Nenhum sinal
de Dürer, mantém-se, em sua ideação, fiel à divisão da reconciliação de Deus com os homens,
entre duas partes opostas como em Melencolia I. simbolizada pelo arco-íris, tampouco a
O pintor francês situa a escrava à direita da ambigüidade do morcego e a deriva do astro
imagem, em um espaço externo e urbano, próximo errante, como eram chamados os cometas, cuja
a elementos sólidos e estáveis, como os degraus trajetória não era ainda passível de ser calculada
de uma escada, à frente de uma construção em 1514, o que era causa de angústia e prova dos
semelhante a uma casa. E o que lhe confere limites do conhecimento humano.
particular estabilidade é o marco vertical de pedra,
que a supera em altura, da mesma forma que a A presença do mar na aquarela é mais importante
torre é mais alta que a mulher alada na gravura do que na gravura. Debret mostra uma vista da
alemã. A negra foi representada na postura baía de Guanabara, e suas águas falaciosamente
tradicional da melancolia: o braço esquerdo tranqüilas e pacíficas. Como escreveu Roberto
sustenta o peso da cabeça e a mão direita Conduru, ao analisar a pintura Pesca da baleia, de
descansa ociosa sobre a saia. Mas sua atitude é Leandro Joaquim: “A baía de Guanabara foi o berço
toda mais frontal, ereta, clara e aberta do que a de uma cultura da violência” (...). Desde o
criada por Dürer. extermínio dos índios e da expulsão das baleias,
instalou-se “um processo contínuo de destruição e
A representação da cabeça apoiada sobre a mão construção de referências culturais”. (CONDURU,
é muito antiga e aparece até mesmo em sarcófagos 2004:1).
egípcios, para significar a tristeza e o luto, mas
aparece em outros momentos associada ao No plano intermediário, entre a vendedora de cajus
cansaço ou ao pensamento criador. (KLIBANSKY, e o mar, duas escravas conversam, fazem
op.cit.:450) Este motivo teria sido quase esquecido negócios, tratam de assuntos mundanos. Embora
durante a Idade Média; manteve-se, contudo, possuam o mesmo estatuto social e exerçam as
presente em várias representações de Cronos, e mesmas funções de ambulante, as negras que
ressurge com vigor nos séculos XV e XVI. conversam parecem pertencer a uma dimensão
distinta à da vendedora de cajus, que permanece
“Ao melancólico dos manuscritos e gravuras alheia e indiferente no primeiro plano da imagem.
germânicas posando com a cabeça sobre a mão, Como observou Rodrigo Naves, a quem devo a
responde, na Itália, por um lado, a figura de descoberta da obra central deste ensaio, a
Heráclito, na Escola de Atenas de Rafaël, e, por vendedora de cajus encarna perfeitamente “o
outro, Saturno numa gravura de Campagnola: eis alheamento tristonho dos escravos”. (NAVES:
a encarnação majestosa da contemplação de um 1996,77) Em seu rosto, traços de pintura branca
Deus, o que apenas mais tarde influenciaria os sublinham os olhos, enquanto pequenos círculos
retratos da contemplação humana em geral”. (Id.: marcam a linha que vai da testa ao queixo. Uma
452) tatuagem em forma de bracelete é visível logo
abaixo de seu ombro nu. Os contornos de seu corpo
Ao criar Melencolia I, Dürer extrai elementos de e sua sensualidade explícita destacam-se contra o
diversas tradições e os reorganiza em um nova fundo da paisagem. À sua frente, uma grande
configuração, que dá forma e inteligibilidade aos bandeja de cajus reforça a sua sensualidade triste
intensos conflitos que atravessavam a Europa do e a exposição de seu corpo, que compartilha com
Norte e do Sul. A menção à imensa fortuna crítica a fruta - cuja iguaria é situada externamente - o
da obra inclui não apenas a sua recepção no campo mesmo destino: mostrar-se, expor-se, ou, mais
das disciplinas humanistas, mas também aquela exatamente, vender-se.
437
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

A associação entre sensualidade e melancolia está negros e brancos, em O Vendedor de arruda, as


presente numa pintura de Lucas Cranach que trocas se dão exclusivamente entre os negros,
pertence ao raio de propagação da obra de Dürer. como a sugerir que aquele tipo de prática restringia-
La Mélancolie, de 1532 tem composição se a eles. Mas se a crença que envolve a arruda
semelhante à Melencolia I e retoma vários de seus teria sido introduzida no Brasil pelos africanos,
elementos: o cão, a esfera, o putto (que se tornam estes são os transmissores de uma tradição bem
vários). Mas o anjo de Cranach possui acentuados mais antiga, que remonta à Antiguidade. Na gravura
seus atributos femininos e detém algo de lúbrico. de Dürer, um dos temas centrais, é justamente a
Sobre a mesa a seu lado, uma grande travessa transmissão, a permanência e o conflito entre
com frutas diversas possui afinidades com o prato diferentes formas de saber, grosso modo, entre a
de frutas na aquarela de Debret. Para Yves Hersant, magia e a geometria. Observe-se, por exemplo, que
a pintura de Cranach é uma alegoria do desejo, a coroa de plantas sobre a cabeça do anjo é
sempre ameaçado pelo pecado: formada por dois tipos de ervas aquáticas
(renoncule d’eau e cresson de fontaine). Essas
“a melancolia, segundo Cranach, vem menos de ervas eram emplastros que deveriam combater a
Saturno do que de Satan; e longe de oferecer aos secura do temperamento melancólico. Na gravura,
olhos do pintor, como aos de Marsílio Ficino, a esta prática da medicina, baseada na teoria dos
promessa intelectual de uma realização criadora, quatro humores, convive com os diversos signos
ela é denunciada como a pior ameaça a pesar sobre da Geometria, tais como o poliedro, a esfera e o
a salvação dos homens”. (HERSANT, 2005:117) compasso.

Creio que a postura altiva com que a negra, em De volta à Negra tatuada, a presença dos amuletos
sua tristeza, é retratada por Debret constitui-se num na cintura da escrava, sem outros elementos que
contraponto à sensualidade, e visa minimizar seu signifiquem a superação de um sistema de crenças
poder de sedução, em certa medida, ‘humanizar’ a associado à magia, esvazia a tensão que alimenta
escrava, posto que a sexualidade dos negros é a imagem do século XVI. Por outro lado, a própria
descrita por Debret como algo fora de controle: “O escolha de Debret ao construir a aquarela,
amor é menos uma paixão do que um delírio informado pela potência da gravura alemã, é muito
indomável que induz [o escravo] muitas vezes a significativa dos propósitos de sua obra realizada
fugir da casa de seus senhores, expondo-se, no Brasil. Vale lembrar que na mesma época em
subjugado pelos sentidos, aos mais cruéis castigos” que Debret criou essa imagem, o Romantismo
(DEBRET, op.cit.: 257). alemão redescobria Dürer e Melencolia I foi
valorizada como a imagem mesma da Bildung,
Observe-se que a escrava sentada leva à cintura processo de formação da cultura alemã, em sua
um conjunto de amuletos, do mesmo modo que o vocação de afirmar o nacional para atingir o
personagem alegórico de Dürer leva em seu universal. Como percebeu Sérgio Alcides, a gravura
cinturão uma bolsa e um molho de chaves, à pena “traduz um ato de insubmissão humanista ao
discernível nas reproduções da obra, pois se determinismo cosmológico” (ALCIDES, 2001: 160);
confunde às dobras do vestido do anjo. Sobre ela é uma afirmação do Humanismo ocidental.
esses elementos temos a única anotação de Dürer.
As chaves e a bolsa, atributos do vestiário feminino Ao tomá-la como modelo, em sentido muito distante
em Nüremberg, são associados pelo próprio artista daquele que a gravura terá na Alemanha, Debret
ao poder e à riqueza. Em sua ‘tradução’ de reafirma os ideais missionários dos artistas
Melencolia I, Debret substitui esses elementos por franceses, e seu firme propósito de “acompanhar
amuletos da cultura afro-brasileira – a vendedora a marcha progressiva da civilização no Brasil”.
tem à cintura uma ‘penca de balangandãs’. Entre Embora inexistam signos da Geometria em sua
os objetos que carrega, destaca-se visivelmente aquarela, a racionalidade ordena o espaço, e a
uma figa, associada à sexualidade e à fertilidade, própria postura erguida da negra, em sua tristeza
cuja função é proteger contra as doenças físicas e digna e altiva, parece inseri-la por si só na ‘marcha
espirituais. da civilização’, superando o estado de natureza que
Debret - em seus comentários, e apenas neles -,
Práticas dos negros consideradas supersticiosas reserva aos escravos. “Sem o consolo do passado,
por Debret aparecem em outras imagens. Em O sem a confiança do futuro, o africano esquece o
vendedor de arruda, o comércio da planta, à qual presente, saboreando, à sombra dos algodais, o
atribui-se variados poderes de proteção, é realizado caldo da cana-de-açúcar” (DEBRET, op.cit.: 86).
numa esquina da cidade, entre o vendedor e três Nessa frase, Debret descreve a plena barbárie da
negras. Ao contrário da aquarela Os refrescos do ausência de um tempo colocado em perspectiva
Largo do Palácio, em que há negociação entre

438
A aquarela Negra tatuada vendendo caju, de Debret

pela história, no qual o escravo viveria entregue a Uma outra importante obra de Tarsila inscreve-se
prazeres sensuais. Sua aquarela, contudo, aponta decididamente na tradição ocidental da
caminhos bem mais complexos. representação melancólica, orientada, contudo,
pela descoberta do inconsciente e a falência
4. Negra tatuada não é um documento que nos daquela idéia de sujeito, cujos primórdios
revele a vida dos negros, embora se alimente da informavam a gravura de Dürer. Em Abaporu, a
observação e da experiência efetiva do artista no cabeça minúscula do personagem apóia-se sobre
Rio de Janeiro, mas sim uma construção que o punho esquerdo – na tradicional postura
prescreve valores para a nova nação, um quase- melancólica - e sugere estar a uma enorme
manifesto sutil, carregado dos ideais civilizatórios distância dos pés. A imagem afirma a valorização
e humanistas que trouxeram os artistas da Missão do elemento mítico, recalcado “pela marcha da
Artística Francesa ao Brasil. A imagem mostra um civilização” e possui uma opacidade que a vem
espaço secularizado, em que as referências ao mito fortalecendo ao longo dos anos.
aparecem controladas pela ideação. É verdade que
o espaço representado - sobre o qual as mulheres Abaporu foi pintado no mesmo ano em que Paulo
negras se destacam, assim como a bandeja de Prado publica Retrato do Brasil: ensaio sobre a
cajus - guarda algo não plenamente estruturado e tristeza brasileira, ao qual Oswald reage, e, em seu
realizado, algo em falta, à espera. Manifesto Antropófago responde: “a alegria é a
prova dos nove”. Ainda em 1928, Mário de Andrade
Mas não há banzo na aquarela Negra tatuada, - publica Macunaíma e instaura-se a preguiça, que
mesmo porque este é um termo ainda a ser é ainda um dos nomes de nossa produtiva
pensado, construído, habitado -, e sim uma melancolia tropical.
melancolia informada pela cultura européia, sem
referências específicas às formas como foram Referências bibliográficas
vividas e representadas a tristeza e o mal-estar de
tantos exílios nas culturas africanas transportadas ARISTÓTELES. O homem de gênio e a
para o Brasil. Teríamos que esperar, creio, o melancolia: o problema XXX.1; tradução do grego,
modernismo para que algo de mais específico neste apresentação e notas Jackie Pigeaud; trad. Alexei
sentido ganhasse forma. Suspeito que a melancolia Bueno, Rio de Janeiro: Lacerda Ed., 1998.
da vendedora de cajus só se torne efetivamente BONNEFOY, Yves. Introduction. Starobinski, Jean.
banzo – um sentimento mais singular, gerado pelas La Mélancolie au miroir – trois lectures de
trocas que nos são próprias - cerca de cem anos Baudelaire, Paris: Ed. Julliard, 1989.
depois, quando encarnada na Negra, de Tarsila do DEBRET, Jean Baptiste. Viagem Pitoresca e
Amaral, uma pintura alegórica, como é a gravura Histórica ao Brasil, trad. e notas de Sérgio Milliet,
de Dürer e também a pintura de Cranach. Como tomo I (volume I e II), 3ª. Edição, São Paulo: Livraria
escrevia Gulhermino César, em Leite Criolo, texto Martins Fontes, 1954.
de 1929: “Nós todos mamamos naqueles peitos DE PINHO, Rubim. Aspectos Históricos da
fartos de vida e estragados de sensibilidade. Em Psiquiatria Folclórica no Brasil. Universitas, vol.0,
vez da alegria, nos pegou foi a tristeza banzativa nº 29, 1982. Disponível em: http://
que não cuida de melhorar. Até hoje não tivemos a www.portalseer.ufba.br/index.php/universitas/
peneiração de quanta coisa nos amolece a vontade article/view/1263/846. Acesso em 25/02/08.
de responder à terra” (apud TELES: 1978, 308). CÉSAR, Guilhermino. Leite criolo. TELES, Gilberto
Mendonça. Vanguarda européia e modernismo
A tela de 1923 possui o conflito, que percorrerá a brasileiro. Rio de Janeiro: Vozes, 1978.
breve obra de Tarsila em seus momentos mais e CONDURU, Roberto. A destruição como princípio.
menos felizes, entre a aspiração à grade cubista e Rio de Janeiro: Site Caetano Veloso, 2004. http:/
a afirmação da curva, entre a tarefa de apreender / www.erratica.com.br/ index.php? page=12>.
o estrangeiro e construir uma “entidade” nacional, Acesso em 25/02/08.
na expressão feliz de Mário de Andrade. Contra o FARIA, Valéria. J.-B. Debret: historiador e pintor:
fundo geométrico da pintura, opõem-se as formas a viagem pitoresca e histórica ao Brasil (1816-
arredondadas e monumentais do corpo intumescido 1839), Campinas: Ed. Da Unicamp, 2007.
da negra, carregado de conflitos formais que HERSANT, Yves. Mélancolie rouge. CLAIR, Jean
marcam o esforço da artista em espacializar (org.) Mélancolie, génie et folie en Occident.
experiências que se transmitiram em silêncio,
práticas que deixaram poucos vestígios em
documentos.

439
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

O escultor Rodolfo Bernardelli (Guadalajara,


México, 1852 – Rio de Janeiro RJ, 1931),
juntamente com os pintores Rodolfo Amoedo (1857-
1941) e seu irmão Henrique Bernardelli (1858-
1936), integrou uma geração de alunos da
Academia Imperial de Belas Artes do Rio de Janeiro
que buscou a renovação da arte no país, ligando-
se a uma nova estética, realista e simbolista. A
compreensão de suas propostas irá permitir
conhecer melhor as características da produção
artística brasileira do final do século XIX. A análise
de trajetória de Bernardelli é tema de minha tese
de doutorado no Departamento de História do
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da
UNICAMP.

O artista ingressou na Academia de Belas Artes


em 1870, tendo como professor de estatuária
Francisco Manoel Chaves Pinheiro (1822-1884).
Em 1874, naturalizou-se brasileiro. Foi premiado
na Exposição Internacional de Filadélfia de 1876
com as esculturas Saudades da Tribo (1874) e À
Espreita (1875), ambas de tema indianista.
Recebeu no mesmo ano o Prêmio de Viagem ao
Estrangeiro. Permaneceu em Roma de 1877 a
1885, onde estudou com o escultor Giulio
a propósito de três esculturas de rodolfo
Monteverde (1837-1917) e conheceu, entre outros,
bernardelli: a baiana (1886), o retrato de negro
os escultores Achille D’Orsi (1845-1929), Vincenzo
(1886) e o túmulo de josé bonifácio (1888-89)
Gemito (1852-1929) e Eugenio Maccagnani (1852-
maria do carmo couto da silva 1 1930).

Ao retornar ao Brasil em 1885, aprovado pela


Congregação de Professores, assumiu o cargo de
professor de estatuária da Academia Imperial de
Belas Artes. Em 1888, com Rodolfo Amoedo,
Henrique Bernardelli e Zeferino da Costa, fundou
o Atelier Livre, que era uma forma de protesto ao
ensino tradicional da Academia.

Após a proclamação da República foi nomeado


diretor da Escola Nacional de Belas Artes, dirigindo
a instituição de 1890 a 1915. Orientou numerosos
alunos, tanto na Escola como no ateliê particular
que manteve com o irmão Henrique, alguns dos
quais se tornaram escultores destacados, como
José Otávio Correia Lima (1878 - 1974), Nicolina
Vaz de Assis (1874 - 1941) e Amadeu Zani (1869 -
1944). Bernardelli tornou-se o escultor oficial do
novo regime. No entanto, apesar da sua
importância no cenário artístico brasileiro, pouco
se conhece acerca do escultor.

Iniciaremos nossa comunicação a partir da


discussão sobre um trabalho de juventude de
Bernardelli, realizado na Itália. Nele o artista retoma
de forma inovadora a temática indianista. A
escultura Faceira, em gesso, foi realizada em 1880

440
A propósito de três esculturas de Rodolfo Bernardell

e recebida pela Academia no ano seguinte. Apenas árvores, as mãos deveriam ser descuidadas, e os
em 1921 ela foi passada para o bronze.2 músculos rijos pelas atividades desenvolvidas, o
que, no entanto, não acontece. A Faceira, para o
A Faceira é a representação de uma índia, com crítico, é excessivamente adornada, tendendo
uma forte carga de sensualidade e muito “inclinada dessa forma a uma imagem caricatural. Gonzaga
a um exotismo amaneirado”, como aponta Luciano Duque assim descreve a Faceira:
Migliaccio3. Bernardelli realizou vários estudos da
Faceira, nos quais é possível perceber a sua De mais, a estrutura da ‘Faceira” é flácida. Há
preocupação em definir a posição do corpo da no seu corpo molezas de uma carne já cansada
mulher. A obra é descrita no parecer da Seção de pelas noites febris do deboche; existe em seu
Escultura de 1882, assinado por Chaves Pinheiro sorriso a untura do carmim e a palidez da
e João Maximiano Mafra: perversidade; seus olhos miúdos têm o brilho
tentador da lascívia, e a posição em que está,
Esta estátua de grandeza natural é uma apoiada com ambas as mãos em um cepo de
belíssima figura de mulher lúbrica e provocante árvore que lhe fica às costas, empinando todo
da raça americana. O movimento é gracioso, o tronco, faz lembrar mulheres experientes em
as proporções ficaram bem observadas, o seduções e que estudam ao espelho atitudes
modelado executado com saber. Pertencendo provocadoras.6
pelo assunto esta estátua a Escultura de
gêneros é tolerável a Escola realista em que O tema do índio representando a nação brasileira
tem continuado o pensionista, entretanto o já integrava o imaginário nacional e nessa obra é
talento peregrino que a concebeu e executou tratado pelo artista quase como uma paródia de
com tanta galhardia se tivesse concentrado na representações tradicionais. Uma fotografia
Escola idealista, poderia [ter] bem produzido publicada na monografia de Celita Vaccani sobre o
um primor d’arte.4 escultor nos leva a refletir sobre as intenções do
artista e sobre certa irreverência que predominava
A Faceira foi a obra mais elogiada pelos professores nas obras dessa geração7. Henrique Bernardelli
no parecer. Entretanto, a nosso ver, sua boa vestido de frade e portando um pequeno livro em
aceitação se deveu ao fato de ser considerada suas mãos, olha para a figura da Faceira, ainda
como uma escultura de gênero, na qual eram em barro, em fotografia realizada provavelmente
permitidas maiores inovações. no ateliê do escultor. A foto nos leva a pensar acerca
da relação histórica existente entre o índio e a
A crítica, por ocasião da sua apresentação na catequização, como forma de civilização. Mas uma
Exposição Geral de Belas Artes de 1884, ressaltou outra imagem, um trabalho de Félicien Rops, As
além da qualidade do trabalho, a sensualidade da tentações de Santo Antonio (1878), pode ter sido
figura, como em texto de Nimil, na Gazeta da Tarde, referência para a “montagem” da cena. Para
de 24 de agosto de 1884: Luciano Migliaccio há uma correspondência entre
a foto e o quadro de Rops, em que o crucifixo se
Aquela mulher de contornos opulentos e
transforma numa imagem lasciva aos olhos do
seductores, de seios redondos e grandes, de
eremita ajoelhado8.
olhar lascivo e desafiante, com o corpo
arqueado sobre um tronco a pedir adorações, Outra escultura bastante polêmica de Bernardelli
a provocar sensualidades que se casem com é Santo Estevão realizada em Roma em 1879. A
a sensualidade que de seu corpo dimana: escultura encontra-se assim descrita no parecer
aquela mulher índia, em plena nudez, deixando da Seção de Escultura:
ver a descoberto as mil bellezas, os mil
segredos que ela não teme desvendar, provoca O protomártir da religião de Jesus Cristo está
do visitante todas as attenções. moribundo, o excesso das dores que lhe causa
[...]. o martírio exprime-se perfeitamente na
S. Antônio, o casto, não resistiria á Faceira.5 fisionomia, e em todas as fibras de seu corpo
ainda jovem, neste transe supremo ele volve
Já o crítico Gonzaga Duque, em texto de 1888, para o céu olhos repassados de mais pulsante
ressalta o fato que a figura não apresenta angústia, e a dor física, e [ilegível] da esperança
características étnicas. Além disso, para ele, os da glória, que se desenha com rara perfeição,
seus cabelos estão presos em penteados em toda esta estátua, desde os cabelos
caprichosos demais para a representação de uma desalinhados e revoltos da cabeça aos dedos
índia, os pés deveriam ser espalmados pelas encolhidos dos pés. Esta expressão, por
caminhadas contínuas e pelo exercício de subir em demais realista, substitui aqui aquela de

441
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

sentimento ascético que deveria predominar estereótipo cultural de um povo primitivo, vizinho
na alma dos mártires cristãos e da natureza e instintivamente feliz. A junção entre
principalmente na do Santo, escolhido pelo o pitoresco e a fiel documentação de costumes e
pensionista por ter sido o primeiro que dos tipos do mundo napolitano tornou-se na época
derramou seu sangue como confessor de Jesus um sucesso comercial. Na pintura, podemos
Cristo. Na opinião da Seção d’Escultura é isto encontrar uma referência similar em pinturas de
resultado natural e quase inevitável de Francesco Paolo Michetti (1851-1929).
filiação do pensionista na escola realista,
escola que actual Congregação da Academia Em 1886 Gonzaga Duque se refere a uma escultura
Imperial das Belas Artes não aceita, como de Bernardelli intitulada Hue!, que representa “uma
guarda fiel das boas tradições da arte negra crioula da Bahia, trazendo a mão um
clássica, que nela felizmente deixaram seus pequeno balaio de frutos, que num ademane
talentosos fundadores.9 gracioso, faz aquela exclamação”, exposta na
Livraria Faro & Nunes, em 1886 12. É possível que
Podemos perceber que a Academia desaprovou a seja a Baiana do acervo da Pincacoteca do Estado
expressão excessivamente realista do santo, de São Paulo. Ao representar uma pessoa do povo,
entendendo que isso se devia a filiação de a vendedora de frutas, o artista introduz uma
Bernardelli à escola moderna. Entretanto na inovação na escultura do país. Além disso, a
maneira detalhada como ela é descrita nesse estatueta revela proximidade formal com algumas
documento oficial, principalmente nos trechos em representações femininas presentes na escultura
que os professores se referem ao corpo do italiana contemporânea. Para o Gonzaga Duque,
personagem, podemos notar que eles percebem entretanto, a obra é elaborada demais. Para o autor
que ela foi muito bem executada, transmitindo o esse gênero de escultura reclama, como a
sentimento na representação do corpo. caricatura, muita espontaneidade e simplicidade,
no entanto: “vê-se claramente que ali andou a mão
Em trabalhos de menor porte, que não faziam parte de um grande artista a procurar o rigoroso
das obrigações de pensionista, notamos que o modelado das formas”.
artista apresentou uma maior liberdade na
execução. Segundo Corrado Maltese as Já o Retrato de Negro (1886) se insere entre as
transformações que marcaram a escultura italiana, poucas obras em que se representam pessoas
significaram, assim como na pintura dos machiaiolli, negras no Brasil oitocentista. A meu ver, tratava-
a eliminação do desenho acadêmico. A modelagem se provavelmente de uma pessoa do circulo de
vibrante substituiu a superfície lisa e polida, com amizades do escultor e o busto foi elaborado com
áreas elaboradas para refletir a luz de modos grande liberdade de execução. Seu retrato revela
diversos, excluindo qualquer resíduo de limite ideal expressividade e simpatia, aliadas a uma certa
dos corpos 10 . A tendência já se insinuava em informalidade na maneira com que foi representado
algumas obras de Giulio Monteverde, professor de pelo escultor.
Bernardelli em Roma. Essa forma de modelar
caracterizou primeiramente a escultura de Vincenzo França Júnior e Gonzaga Duque escreveram em
Gemito e posteriormente encontrará maior 1886 sobre os bustos executados por Bernardelli
desenvolvimento nos trabalhos de Medardo Rosso nesse período. França Júnior destaca alguns
(1858-1928). Em alguns bustos realizados por bustos do artista exibidos na Exposição Vieitas:
Bernardelli nos anos seguintes, como o busto da
Checa (1877), a figura do médico Montenovesi Como discípulos de escultura apparecem no
(c.1882) ou o retrato de Modesto Brocos (1883), o catálogo Emmanuel LacailLe, Xisto Messias e
artista apresenta proximidade formal com retratos Benevevuto Berna.
realizados por Gemito, como em Retrato de Michetti A influência poderosa de Rodolphho
(1873). Bernardelli, o revolucionário que em boa hora
entrou para a academia, sente-se naquelles
Uma outra obra do artista intitulada Cabeça de bustos que ali figuram, estudados do natural!
aldeã da Ilha de Capri (s.d.) nos leva a pensar em Que diferença entre esses barros e gessos e
alguns aspectos da escultura napolitana daqueles os da antiga escola.
anos. Nessa obra Bernardelli mantém diálogo com A maneira de ver e de modelar já não é a
obras de Achille D’Orsi como Cabeça de Marinheiro mesma.
(c.1878). Como aponta Mimita Lamberti 11 , a É que a escultura, como as outras
escultura de D’Orsi corresponde ao gosto verista manifestações da arte, passou por salutar
de uma aproximação direta entre a pesquisa transformação.
folclórica e a classificação cientifica. Confirma o

442
A propósito de três esculturas de Rodolfo Bernardell

Como apóstolos da nova idéa figuram na Itália, foi inaugurado em Santos o mausoléu dos irmãos
donde tem partido a luz, Monteverde, Vela, Andradas, a partir de um programa iconográfico
Ercole, e principalmente D’Orsi...”13 idealizado por Affonso Taunay e contando com
painéis em relevo relativos à história do Brasil. O
Já Gonzaga Duque escreve: trabalho de Bernardelli foi transportado então para
aquele local para compor o Panteão dos Andradas.
Logo à entrada, não sei se por acaso ou por
premeditação, vê-se sobre uma coluna de Segundo Costa e Silva Sobrinho “o monumento
mármore negro um busto em bronze, cinzelado representa José Bonifácio tal como foi conduzido
por Rodolfo Bernardelli. É o retrato da falecida da rampa do Paço para a eça mortuária da Igreja
esposa de Luís Guimarães Júnior. Nada posso do Carmo: revestido das insígnias de Cavaleiro do
dizer da cópia, da semelhança do retrato. Nessa Paço, dentro do caixão aberto.” 15
produção, na parte que importa diretamente ao
escultor e que se chama “expressão e estilo” Sobre o modelo do túmulo encontramos
encontro tudo que se pode exigir: anatomia, comentários na Revista Illustrada:
movimento e corte. Aquela doce fisionomia, a
maneira graciosa de posar a cabeça, os secos Visitando o atelier de Rodolpho Bernardelli, ahi
cabelos anelados; o meigo olhar contemplativo vimos o bello tumulo de José Bonifácio, o velho.
que o artista tão bem conseguiu esculpir e É uma verdadeira obra de ate, na qual não se
espiritualizar no bronze, deviam ser bem sabe que mais admirar, se a execução d’essa
peculiares à bem-amada do poeta. [...] Isto serena figura, em cujas linhas fisionômicas se
conseguiu Bernardelli no bronze. Porém quanto desenha o sonno da morte, se a concepção do
não o teria conseguido no mármore? [...] O conjunto artístico, que dá ao túmulo um
modelado macio, a pureza das linhas nas aspeccto grandioso e que impressiona
formas femininas, surgem mais rápidas e mais profundamente.
belas no mármore...”14 Tanto a figura do patriarcha da Independência,
como a tapeçaria que cobre metade do
Dessa forma notamos que os retratos realizados sarcophago, estão feitas pela mão do mesmo.16
por Bernardelli nos anos 1880 foram muito
destacados na imprensa carioca. Nesse período o A escultura jacente de José Bonifácio é
artista dedica-se ainda a realização de retratos da extremamente inovadora na relação que estabelece
Família Imperial, como busto da Princesa Isabel com o espectador. Pensada para ser observada
(c.1888) e da Imperatriz Teresa Cristina (1889), em no interior de uma igreja, sua figura provoca
que se demonstra um notável escultor. comoção e admiração. A recorrência à máscara
mortuária, em uma imagem impressionantemente
Por outro lado, uma das encomendas importante realista, traz um apelo novo à estatuária brasileira.
que Rodolfo Bernardelli recebeu nesses anos foi a Até onde nos foi possível conhecer, trata-se ainda
execução do Túmulo de José Bonifácio, localizado de um modelo escultórico novo no Brasil, cujas
atualmente no Panteão dos Andradas, em Santos referências prováveis são esculturas existentes em
(SP). Nascido em Santos, Bonifácio havia sido igrejas italianas, como Santo Stanislaus Kostka
sepultado em 1838 na Capela da Igreja de Nossa (1703), de Pierre Legros, em mármore colorido.
Senhora do Carmo na mesma cidade. Em 1886
foi encomendado a Rodolfo Bernardelli pelo Já o emprego da policromia, com uso de materiais
Conselheiro João Alfredo Correia de Oliveira um diversos, confere à obra um outro significado. O
túmulo para o Patriarca da Independência. A corpo morto de Bonifácio, em mármore branco,
escultura foi executada na Itália por volta de 1888 contrasta com o bronze do panejamento. Segundo
e enviada ao Brasil no ano seguinte, quando os relata a historiadora Ana Rosa Cloclet da Silva, em
jornais publicam notícias de que 19 caixas que a seu leito de morte José Bonifácio olha para a colcha
continham se encontravam presas na Alfândega de retalhos que o cobria e aludindo à
de Santos. heterogeneidade de classes, cores e etnias que
compunham o corpo nacional, afirma: “O que afeia
O trabalho fora concebido inicialmente para ser estes bordados é apenas a irregularidade do
colocado na capela-mor da Igreja de Nossa desenho...”.17 É possível concluir que a existência
Senhora do Carmo. Como a possibilidade de do panejamento na obra possa ser entendido como
colocação no interior da igreja não se concretizou, uma alusão a essa frase, uma síntese do
a escultura foi disposta em uma área rebaixada no pensamento social de Bonifácio.
claustro do Convento do Carmo, para onde foi
trasladada a sepultura de José Bonifácio. Em 1923

443
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

3
Nos anos 1880 a luta pela abolição, que fora MIGLIACCIO, Luciano. Rodolfo Amoedo. O mestre,
encabeçada por José Bonifácio nos anos 1820, se deveríamos acrescentar. MARQUES, Luiz (org.). 30
tornara um fator político importante, contando mestres da pintura no Brasil. São Paulo: Masp, 2001
p.33.
inclusive com o apoio da Casa Real. É importante 4
PARECER da Seção de Escultura sobre os trabalhos de
lembrar que a Família Real participou das Rodolfo Bernardelli, estudando em Roma, 13 jan. 1882.
subscrições para a realização do túmulo de José Arquivo Histórico do Museu Nacional de Belas Artes/
Bonifácio. A Princesa Isabel havia conseguido com Arquivo Pessoal de Rodolfo e Henrique Bernardelli. APO
o papa a autorização especial para colocação da 196.
5
obra no interior da Igreja. Isto entretanto não chegou NIMIL. Nas Bellas-Artes. Gazeta da Tarde. Rio de Janeiro,
a ocorrer. Segundo o próprio Bernardelli, que fora ano 5, n.199, 27 ago. 1884. p.2. Grifo nosso.
6
Ibid., p.253.
ver o trabalho em 1921, ou seja, antes da criação 7
VACCANI, Celita. Rodolpho Bernardelli: vida artística e
do Panteão dos Andradas, a obra se encontrava características de sua obra escultórica. Rio de Janeiro:
um pouco desfigurada devido a sua exposição ao [s.n], 1949.Tese de concurso para a cadeira de Escultura
ar livre e ele, que muito trabalhara contando com da ENBA. p.80
8
um efeito, percebe que ao final não se MIGLIACCIO, Luciano. Aula ministrada aos alunos de Pós-
concretizara... Graduação do IFCH/UNICAMP, em outubro de 2007.
9
PARECER da Seção de Escultura sobre os trabalhos de
Podemos concluir que a realização do túmulo de Rodolfo Bernardelli, estudando em Roma, 13 jan. 1882.
Arquivo Histórico do Museu Nacional de Belas Artes /
José Bonifácio, no qual o personagem político foi
Arquivo Pessoal de Rodolfo e Henrique Bernardelli. APO
fixado pelo artista no momento das suas exéquias, 196. Grifos nossos.
criando dessa forma uma monumentalização de 10
MALTESE, Corrado. Storia dell’arte in Italia: 1785-1943.
seu velório, estivesse vinculada a uma clara 2ª ed. Torino: Giulio Einaudi editore, 1992.
mensagem política, assim como ao contexto dos 11
LAMBERTI. Mimita. Aporie dell´arte sociale: il caso
últimos anos da monarquia católica no Brasil. Nesta Proximus Tuus. Annali della Scuola Normale Superiore
comunicação procuramos abordar alguns aspectos di Pisa. Pisa, ´serie III, v. XIIi, 4, p.1088.
12
Cf. DUQUE-ESTRADA, Luis Gonzaga. Impressões de
menos conhecidos da produção do escultor Rodolfo
um amador / textos esparsos de crítica (1882-1909). Belo
Bernardelli, visando compreender a trajetória do Horizonte: Editora UFMG; Rio de Janeiro: Fundação Casa
artista nos anos finais do Segundo Império e a de Rui Barbosa, 2001. pp.111-112.
relevância de algumas obras que executou nesse 13
JÚNIOR, França. Echos Fluminenses. O Paiz, Rio de
período. Janeiro, 9 ago, 1886, p.2. Grifo nosso.
14
DUQUE-ESTRADA, Luis Gonzaga. Impressões de um
Notas amador / textos esparsos de crítica (1882-1909). Belo
Horizonte: Editora UFMG; Rio de Janeiro: Fundação Casa
1
Doutoranda em História da Arte pelo Departamento de de Rui Barbosa, 2001. pp. 94-95.
15
História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da SOBRINHO, Costa e Silva. Um túmulo para o Patriarca
Universidade Estadual em Campinas, desenvolvendo da Independência. Santos, s.n., p.18.
16
pesquisa sobre a produção do escultor Rodolfo Bernardelli PEQUENOS Echos. Revista Illustrada, Rio de Janeiro,
na Primeira República e a sua atuação na direção da Escola ano 12, nº 451, 19 fev. 1887.
17
Nacional de Belas Artes, no Rio de Janeiro, sob orientação SILVA, Ana Rosa Cloclet da. O homem que inventou o
do Prof. Dr. Luciano Migliaccio. Bolsista de Doutorado da Brasil. Nossa História, Rio de Janeiro, ano 1, n. 9, julho
Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo. de 2004, pp. 84-87
2
Consta da coleção do Museu Nacional de Belas Artes e
uma cópia integra ainda o acervo da Pinacoteca do Estado
de São Paulo.

444
A representação de afro-descendentes é uma
questão que caracteriza o processo de
modernização artística no Brasil. É um tópico para
o qual a divisão da arte em tipos, estilos e
segmentos – acadêmica, moderna, sacra, popular
e contemporânea, entre outras divisões – ainda
muito cristalizada na história da arte no Brasil,
implica algumas diferenças, mas não com sentido
evolutivo, nem qualitativamente hierárquico.

A relação entre arte e afro-descendência no Brasil


tem um capítulo especial no final dos oitocentos e
no início do século XX, na conjuntura constituída
pelo acirramento do processo abolicionista, com o
fim da escravatura e a proclamação da República.
Presente desde a transposição forçada de africanos
à América para serem escravizados, a questão da
representação de africanos e afro-descendentes
no Brasil é uma que só se complexificou com o
passar do tempo e a difusão dos mesmos pelo
extenso território brasileiro. Imagens de si e do
outro elaboradas por negros, ou não, em processos
intricados de representação e auto-representação.1

Desde o início da colonização, durante e após a


vigência da escravidão, a questão da auto-
representação pode ser observada em realizações
nas quais autorias individuais ou coletivas de
afro-modernidade - representações de afro-
africanos e afro-descendentes abordam temas
descendentes e modernização artística no brasil
afros ou não. Uma vertente é constituída por obras
roberto conduru * nas quais os negros participam da construção do
aparato de poder dos colonizadores, manipulando
os códigos artísticos dominantes, se representando
com modos mais ou menos enviesados,
subreptícios. Outro caminho é o de resistência à
dominação cultural, com a manutenção às
escondidas de práticas artístico-religiosas com
origens africanas, que constituem auto-imagens
mantidas em segredo ou camufladas.

No processo de domínio dos princípios e da


linguagem da arte ocidental, os artistas afro-
descendentes precisaram se adaptar, ainda no
primeiro quartel dos oitocentos, à novidade que
significou a implantação do sistema de ensino de
arte acadêmico. Contudo, foi a partir no final do
século XIX que a questão da representação artística
dos afro-descendentes no Brasil nesse sistema
alcançou maior relevo com as obras de artistas
negros atuantes a partir da década de 1860 e até a
de 1930.

Pode ser dito que a auto-imagem não parece ser a


questão central, nem mesmo uma muito relevante
nas obras dos artistas negros que se formaram na
Academia Imperial e, depois, na Escola Nacional
de Belas Artes, a partir do último quartel dos
oitocentos. Estevão Silva (ca.1844 - 1891), Antônio

445
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

Firmino Monteiro (1855 - 1888), Antônio Rafael Walmir Ayala, na década de 1970, reitera a imagem
Pinto Bandeira (1863 - 1896), os irmãos João (1879 do artista como uma personalidade tumultuosa ao
- 1932) e Arthur Thimótheo da Costa (1882 – 1922) dizer:
parecem ocupados em exibir o domínio das ditas
belas artes para atender aos anseios de uma “Era de gênio irrequieto e turbulento. De uma vez,
clientela ocupada principalmente em mimetizar o em plena solenidade de distribuição de prêmios
gosto europeu, em constituir uma imagem da nação na Academia, levantou-se e queixou-se a D. Pedro
segundo o modelo civilizatório ocidental. Sem II, presente ao ato, de que tinha sido vítima de
parecerem ter se preocupado com questões injustiça não sendo premiado. A comissão
culturais africanas, eles se distinguiram no campo designada para apurar o incidente, após ouvi-lo,
da arte por dominarem as referências artísticas puniu-o com a pena de suspensão dos estudos por
européias contemporâneas, se afirmaram um ano”.3
socialmente atendendo às demandas e gostos da
elite sócio-cultural brasileira. Se a afro- Contudo, caso se atente como esses textos
descendência desses pintores não obriga suas reiteram e estimulam o entendimento
paisagens, retratos e naturezas-mortas a preconceituoso dos afro-descendentes como
imediatamente delinearem um estilo afro-brasileiro, ameaças à paz social, inimigos da civilização, é
vincula suas obras à problemática cultural afro- possível perceber quão operativos são discursos
descendente justo por serem complexas auto- como esses para a manutenção contemporânea
representações, além de serem representações do da condição marginal dos negros na sociedade
outro. Suas obras não figuram temas afro-referidos, brasileira.
mas externam suas visões da cultura ocidental, os
Em conjunto, as obras desses pintores abarcam
modos como as apreendem e são por ela cativados.
os gêneros da pintura na época, transitam entre
Sobre Estevão Silva, que é considerado “o primeiro paisagem, retrato, natureza-morta, pintura histórica,
pintor negro de destaque formado pela Academia temas religiosos e cenas de costume, embora a
Imperial de Belas Artes”, 1 Gonzaga Duque natureza-morta seja um destaque na obra de
escreveu: Estevão Silva, a pintura histórica, na atuação de
Firmino Monteiro e a paisagem, nas pinturas dos
Quem, como ele, vem de uma rude raça irmãos Timótheo da Costa. No arco de tempo
oprimida, e vem sofrendo, e vem lutando [...] delineado pelo conjunto de obras desses pintores
vê sempre sanguíneo, vê sempre negros, é possível observar a influência crescente,
desesperadamente amarelo. Repare-se, agora, embora en retard, além de neutralizadas pela lógica
o contraste brusco das sombras cuja cor nunca acadêmica, de tendências artísticas de renovação
conseguira perder, apesar do tom pesado, provenientes da França, especialmente o caminho
algumas vezes muito violento que punha nos do Realismo ao Impressionismo. Natureza-morta
seus quadros. É negro, sem leveza, sem e paisagem são figuradas com sentido mais realista
transições. do que simbólico. Aos poucos, também os
elementos próprios à pintura vão ganhando
No mesmo texto, de 1891, publicado dias após a proeminência na representação, notadamente a
morte do pintor, o crítico afirma: “Essa prodigalidade configuração de coisas e espaços com cores e luz
de vermelhos, de amarelos e de verdes não é nem mais naturalistas e a evidência da pasta de
pode ser mais do que um reflexo transfiltrado do pigmento e do gestual do pintor.
seu instinto colorista, vibrátil às sensações bruscas,
como é peculiar à raça de que veio.”2 Trata-se de Além de lhes garantir a sobrevivência, suas obras
um juízo explicitamente calcado em determinismos alcançaram reconhecimento público e lhes
raciais, como se o pintor, por ser negro, escolhas possibilitaram inserção social mais destacada,
não tivesse, opções não fizesse. Juízo derivado embora nunca nas instâncias mais altas do meio
de uma visão dos negros como humanos inferiores artístico. Nenhum deles conseguiu o
aos outros humanos porque mais próximos dos reconhecimento máximo: o prêmio de viagem ao
animais e, portanto, inexorável e compulsivamente estrangeiro, concedido na Exposição Geral de
atados às “sensações bruscas”. A princípio, causa Belas Artes. Talvez a afro-descendência fosse um
estranheza menos encontrar esse obtuário crítico empecilho para se alcançar a láurea máxima no
no final do século XIX, na esteira do processo sistema de arte acadêmico. Disto o fato mais
abolicionista, e mais a persistência de juízos desse significativo é a recusa de Estevão Silva, na 25ª
tipo algum tempo depois (ainda hoje?). O verbete Exposição Geral de Belas Artes, de 1879, diante
sobre o pintor no Dicionário Brasileiro de Artistas do Imperador D. Pedro II, de receber um prêmio
Plásticos, organizado por Carlos Cavalcanti e outro que não o máximo, como era suposto por

446
Representaçõ1es de afro-descendentes e modernização artística no Brasil

muitos então. Recusa que lhe custou a suspensão Um segundo caminho pode ser delineado com
das atividades discentes durante um ano. Apesar obras nas quais africanos e afro-descendentes
de também terem atuado na docência, nenhum dos trazidos forçadamente ao Brasil como escravos,
cinco artistas negros aqui destacados chegou a se em vez de autores, são temas, tendo suas imagens
tornar professor na instituição mor no sistema de e seus modos de viver representados por outros.
ensino de arte à época: a Academia Imperial, Essas obras fazem parte de um conjunto mais
depois Escola Nacional de Belas Artes. Por volta amplo, que foi produzido desde o início da
de 1880, Estevão Silva atuou como professor no colonização européia da América com o intuito de
Liceu de Artes e Ofícios, no Rio de Janeiro; em conhecer, documentar e dominar o Novo Mundo.
torno de 1887, Firmino Monteiro foi professor de Além de mapas e vistas da paisagem americana,
pintura, na Escola de Belas Artes da Bahia, e de se encontram registros de características físicas e
perspectiva e teoria da sombra, no Liceu de Artes culturais das populações nativas e dos povos que
e Ofícios da Bahia, em Salvador; entre 1887 e 1890, emigraram para a América. Nesse conjunto, se
Pinto Bandeira lecionou desenho no Liceu de Artes destacam os registros dos tipos corpóreos e hábitos
e Ofícios de Salvador; em 1919, Arthur Timótheo culturais dos africanos e afro-descendentes, os
da Costa fundou com outros artistas a Sociedade quais foram produzidos, em sua maioria, por
Brasileira de Belas Artes, no Rio de Janeiro. estrangeiros, que dominavam os sistemas
europeus de representação: Jean-Baptiste Debret,
Nas obras de Pinto Bandeira e Arthur Timótheo da Johann Moritz Rugendas e Thomas Ender, entre
Costa, encontram-se alguns retratos de mestiços outros.
e afro-descendentes que podem ser conectados à
questão da (auto-)representação dos negros Esse interesse pelos negros e suas culturas
naquela conjuntura. Os retratos feitos por ambos manteve-se após o fim da escravidão, persistindo
de um garoto e um jovem negro sugere a até hoje a atração, estrangeira e nativa, pela
investigação sobre a recorrência do tema da paisagem física e cultural de origem africana no
infância e da juventude negra até hoje, passando Brasil. Entre muitos outros, é possível citar autores
pela pintura de José Pancetti e a fotografia de Paula como José Medeiros, Pierre Verger, Madalena
Trope, entre outros. Schwartz e Sebastião Salgado, cujas obras oscilam
entre a documentação histórico-antropológica e a
Digna de destaque é a tela de Pinto Bandeira, de criação artística. Apesar da diversidade de modos
1890, cuja imagem de uma mulata finamente de representação, derivadas de diferentes
vestida, penteada e adornada, de acordo com interesses artísticos, da maior ou menor empatia
costumes e gostos ditados a partir da Europa, deixa com o tema e dos posicionamentos sociais desses
a dúvida sobre a pertinência em ler sentidos artistas, os afro-descendentes continuam sendo
múltiplos, abrangentes, possivelmente conectados tratados, dominantemente, como elementos
às práticas culturais afro-descendentes, tal como exóticos.
aludidos em seu título: Feiticeira. A mulher em tela
enfeitiça apenas com seus encantos femininos ou Se a problemática sócio-cultural afro-descendente
também com poderes mágicos disfarçados com no Brasil não parece ser tematizada clara e
trajes e enfeites civilizados? Especiais também são decididamente nas obras dos artistas negros no
os auto-retratos de Arthur Timótheo da Costa: se final do século XIX e início do XX, ela é apresentada
na pintura de 1908 ele foca em seu rosto, na obra em obras de outros artistas vinculados ao sistema
de 1919, aparece quase de corpo inteiro; enquanto acadêmico. Com efeito, a representação artística
na primeira ele encara decididamente o espectador, dos afro-descendentes no Brasil tem uma etapa
na segunda, a sombra de uma boina ajuda a especial, perceptível em um conjunto de obras que
arrefecer seu olhar; em ambas as telas, aparece abordam de variados modos algumas questões da
trajado elegantemente, portando indumentária e cultura afro-descendente no Brasil. O que apenas
instrumental característicos dos pintores parcialmente indica outro rumo para a
acadêmicos à época. Assim, constitui sua auto- representação dos negros em relação ao que foi
imagem menos como um negro e mais como um feito anteriormente. No entender de Heloisa Pires
artista civilizado e bem-sucedido. Como signos Lima:
culturais, esses retratos e auto-retratos parecem
querer defender a possibilidade de integração dos “A presença negra no espaço visual da década de
negros à cultura civilizada com o abandono de suas 1880 esteve entre o desprezo e o desejo, entre o
práticas sociais prévias, tanto a escravidão quanto centro e fundo. Porém a imagem republicana
as de seus antepassados na África.2 revigora as conotações depreciativas numa nova
oficialidade que vai estruturando uma ideologia que
se consolida como força social”.4

447
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

No final do século XIX, persiste a visão da afro- brasileiras. O olhar é um tanto etnográfico, embora
descendência como problema para a sociedade pouco neutro, ao figurar os elementos usados pela
brasileira. O quadro emblemático a esse respeito mulher no processo de adivinhação e outras
é Redenção de Cã, de Modesto Brocos, de 1895. práticas religiosas: serpente, ramo vegetal, cesto,
O pintor com certeza se preocupou com a tradução tabuleiro e outros estranhos utensílios, delineando
visual em duas dimensões de formas, cores e um cenário desequilibrado, possivelmente à rua.
texturas dos elementos representados, de modo a Presa ao chão, a mulher negra parece circunspeta
retratar fidedignamente as condições efetivas de (à espera de clientes?), enquanto a outra (sua
vida nos extratos mais baixos da população. assistente ou cliente?) se apóia encurvada sobre
Entretanto, para além de seu aparente realismo, a o móvel, configurando um clima indolente, algo
obra é alegórica. O título é a chave de leitura, torpe.
aludindo à possibilidade de salvação dos negros,
a partir da suposição de que Cã, o filho mais jovem Em contraposição a essas obras de desqualificação
de Noé e pai do servo Canaã, seria a origem dos visual nada sutil, que participam do processo de
camitas e dos demais povos da raça negra, todos marginalização social dos afro-descendentes,
destinados à servidão. Na tela, uma senhora negra podem ser destacadas algumas obras que
parece agradecer a Deus pelo nascimento em sua procuram configurar outra imagem dos afro-
família de uma criança de pele clara, a partir do descendentes no Brasil. Um pouco antes do
cruzamento de sua filha mulata com o genro período aqui em foco, deve ser ressaltada a
branco. No centro do quadro, na mão da criança, a excepcionalidade de uma obra: Retrato do intrépido
laranja redonda e luminosa é um signo de perfeição marinheiro Simão, carvoeiro do vapor
em meio ao ambiente degradado, com suas Pernambucana, de 1853, pintada por José Correia
paredes carcomidas e coisas gastas, signo das de Lima. Esse “retrato a óleo de um herói negro”
desejadas gerações futuras: na mão do membro está, no entender de Rafael Cardoso, conectado
mais novo da família, a fruta guarda as sementes ao “interesse de Paula Brito em produzir e divulgar
de descendentes mais e mais alvos. Essa cena é a imagem de Simão”, o marinheiro africano que
uma alegoria do desejo, difundido à época, de salvou 13 pessoas em um naufrágio ocorrido ao
purificação racial por meio do progressivo sul de Laguna naquele mesmo ano, como parte da
branqueamento da população e, assim, de militância do editor visando a “abolição da
liberação dos estigmas vinculados às condições escravatura e a eliminação do preconceito de cor
sociais dos negros. Como disse Rafael Cardoso, a no Brasil.”6
tela é “uma ilustração didática de uma aspiração
comum à sociedade brasileira da época – a terrível Entre as representações de figuras públicas, de
ideologia do branqueamento da população, personagens destacados na sociedade brasileira,
imperativo que ainda vigora em alguns recônditos pode ser destacada a tela Príncipe Obá, de 1886,
da mentalidade nacional.”5 na qual Belmiro de Almeida se vale de referências
recentes na arte do retrato, particularmente da obra
Também é possível perceber o sentido de de Édouard Manet e de pintores do
desvalorização e de construção de um lugar Impressionismo, para representar a figura polêmica
secundário, marginal, para os negros na conjuntura do alferes Cândido da Fonseca Galvão, que
social, na idéia do processo abolicionista que Pedro participou da Guerra do Paraguai como membro
Américo ajuda a forjar visualmente. Em Libertação do Corpo de Voluntários da Pátria e se tornou
dos escravos, de 1889, ele compõe uma alegoria próximo ao Imperador. Vestido segundo os padrões
pomposa do fim da escravidão no Brasil: ocupando de elegância da época: fraque, luvas, cartola,
o centro inferior do quadro, três negros (uma bengala etc., “a figura negra, embora difusa sob
criança nua e um casal seminu, mal coberto por pinceladas numa direção impressionista, dá nome
maltrapilhos) estão inferiorizados – agachados, ao quadro e ganha o centro da tela. A identidade,
encurvados, estão à mercê da graça de alvas não mais genérica, evidencia um certo lugar como
musas, sob a proteção da igreja católica, suplicam patrimônio a ser representado.” Ainda segundo
pelo fim da condição de cativos, agradecem Heloisa Pires Lima:
submissamente pela conquista da liberdade, pelo
processo de emancipação no qual parecem só ter O quadro de Belmiro de Almeida [...] carrega uma
papel passivo. ambigüidade notável. Os contornos definem uma
postura corporal principesca, onde as luvas, a
Com autoria de Modesto Brocos, Macumbeira exibe cartola no estilo d. Pedro II, a bengala, o pince nez
o misto de atração e repulsa, preconceito e de ouro, articulam uma nobreza negra. Nesse
encantamento gerado pelas religiões afro- esquema, até o guarda-sol, um motivo estrutural
de certos reinos africanos, reforça a composição.

448
Representaçõ1es de afro-descendentes e modernização artística no Brasil

Todavia, a face está sombreada. A construção torna problemas devido a suas ambigüidades. Por um
imprecisa, inclusive uma humanidade, pois o rosto, lado, o erotismo reforça a visão do negro como
a barba, sombreados não alcançam definição. Obá uma máquina sexual, próximo da animalidade. Por
pisa sobre sua sombra, a imagem refletida, talvez, outro, ao afastar a vinculação da negritude à
dos ainda não inteiramente cidadãos naquele escravidão, a pintura de Almeida Júnior pode ser
ambiente ou o negativo de uma cidadania qualificada tanto como alienada, quanto como um
pretendida.7 esforço para recuperar e constituir referências
positivas para os afro-descendentes, ao evidenciar
Pode ser acrescentado que a indumentária a presença negra em outras conjunturas históricas
elegante, de elite, ocidental, apesar de sua alcunha que não as sociedades tidas então como primitivas
articulá-lo a tradições africanas, contrasta com o na África. Outra tela de Almeida Júnior – Negra, de
entorno, mal definido, sem estruturação clara e 1891 –, é difícil não ler como uma crítica explícita
firme, evidentemente tosco, mal formado, já do pintor à condição marginal dos afro-
degradado, ou ambos. E que a sombra confortável descendentes após o fim da escravatura.
propiciada pelo guarda-chuva alivia apenas o seu
portador da luz excessiva e, provavelmente, do Não deixa de ser crítico também o tom adotado
calor inclemente. Ou seja, o Príncipe Obá é uma por Modesto Brocos em Engenho de mandioca, de
exceção social. É uma exceção que deve 1892, que é um retrato realista das precárias
permanecer às escuras. condições de trabalho e vida dos afro-descendentes
no Brasil, ao representá-los sentados no chão, a
Algumas décadas adiante, pode ser destacada a descascar mandioca, quase como continuidades
configuração retrospectiva e ambígua de um dos da terra, das raízes, das coisas. Paisagem com
heróis da negritude que continuaria a ganhar outras lavadeiras, do mesmo autor, também apresenta
representações a partir de então8: o Zumbi pintado trabalhadores rurais vinculados à terra, à procura
por Antônio Parreiras em 1927. Na tela, o líder e de algum conforto à sombra no intervalo (roubado?)
mártir do Quilombo de Palmares é figurado como do trabalho sob o sol. Nesse sentido, em Mãe preta,
um guerreiro quase natural. Vestido de modo de 1912, Lucílio de Albuquerque aborda a figura
simples, Zumbi é um guerreiro sério e altivo que, social da mulher afro-descendente no Brasil, mais
de pé, apóia no chão a arma que segura com especificamente a da mãe preta, apresenta a dor
firmeza tranqüila, enquanto olha ao longe, em vigília de uma ama-de-leite, também presa ao chão, que
contra os inimigos. É uma figura cuja solidez deve dividir vitalidade e amor entre uma criança
contrasta com a indefinição multicolorida da negra (seu filho?) e uma branca (filho dos senhores,
paisagem, a qual é um tanto estranha às exigências dos patrões?). A figuração crítica conduz ao retrato
sóbrias e perenes de um retrato histórico, além de resignado. Nesse caminho, é possível destacar
injusta: sem indícios de arquitetura e outros bens Cabeça de preto, na qual Henrique Bernardelli
produzidos pelo engenho humano dos ex-escravos, configura um perfil da sabedoria humilde dos
reduz as condições socioculturais do Quilombo à negros idosos, derivada da mistura de culturas
natureza. Assim, o pintor reitera o entendimento ancestrais ao sofrimento, resistência e
dos afro-descendentes como seres próximos, se marginalidade gerados pela escravidão, a partir da
não pertencentes, ao mundo animal. Embora esteja qual é fácil chegar à figura social do preto velho e
vivo, apto à luta, em prontidão contra os inimigos, ao universo religioso afro-descendente no Brasil.3
o Zumbi de Antonio Parreiras parece um tanto
animalesco. Como é sabido, a passagem do tempo não
significou mudanças minimamente positivas, seja
No processo de constituição de outra imagem dos na condição social dos afro-descendentes, seja no
afro-descendentes, devem ser consideradas modo como são representados. Ainda na década
representações de figuras anônimas e tipos sociais. de 1930, é possível encontrar a visão pejorativa
Na pintura de José Ferraz de Almeida Júnior, há dos africanos e afro-descendentes em uma obra
variação no tom de abordagem da questão étnica de Belmonte, ou Benedito Carneiro Bastos Barreto.
no Brasil. Pode-se ler um elogio velado à negritude Apesar de ter incomodado a muitos com suas
em Príncipe negro, que figura um negro altivo, críticas veiculadas em ilustrações, caricaturas e
sentado em tecidos alvos, portando uma única peça charges, Belmonte parece ter defendido
de indumentária, um turbante, o qual é suficiente visualmente o mito da hierarquia entre as raças.
para evocar o clima oriental. Nessa tela, o Em As três raças, com poucas cores, dois pares
orientalismo parece é só aparentemente escapista, de tons opostos no espectro cromático – preto e
pois ajuda a configurar uma alteridade múltipla: um branco, verde e vermelho –, aplicados em chapadas
negro não submisso em tempo e lugar remotos, homogêneas, ele recorta planos que, mais do que
quase indefiníveis. O que não está isento de

449
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

delinear figuras, configura uma paisagem cultural: nosso carnaval”.9 Ela os exibiu na Pró-Arte
diferenças, interações, hierarquias. Sociedade de Artes, Letras e Ciências, no Rio de
Janeiro, em 1933, e no Clube Brasileiro, em Lisboa,
A economia das cores é simbólica: elas identificam em 1934, onde proferiu uma conferência destinada,
e atribuem valores aos seres e objetos segundo sua autora, “a servir de legenda aos
representados. O vermelho usado para o índio é desenhos”. Exposição e fala que tiveram grande
um indício da natureza, à qual os nativos repercussão em Portugal e foram publicadas em
americanos parecem eternamente vinculados, pois separata da revista Mundo Português, no ano
remete ao Pau-Brasil, a árvore sanguínea que, além seguinte. Desenhos e palavras que só foram
de ter gerado muita riqueza para os colonizadores, publicados no Brasil 50 anos depois, como livro,
deu o nome à colônia e, depois, ao país. O africano em cuja introdução Lélia Gontijo Soares defende
é representado em preto, em referência óbvia à que
pele dos nativos na África, o que reitera a fixação
dos mesmos como uma única raça em vez de “tanto os estudos de folclore como a prática do
pertencentes a diferentes sociedades. O plano desenho corresponderam, em Cecília, a uma
verde configura mar e montanha: tanto, necessidade de entendimento e de expressão do
especificamente, o oceano Atlântico e o continente mundo íntegra, una. Àquela necessidade de ‘saber
americano, locais do jogo sócio-cultural, quanto, o nome certo das coisas’ referida por ela, e que
de modo geral, a natureza a unificar as raças. pode ser atingida ‘mais especificamente pela
Pequenos toques brancos aparecem no cocar do palavra’ mas também, acrescentamos, pelo
índio, em componentes do navio e na orelha do desenho, pelo gesto, ou pela ‘arte de um educador
negro. O europeu é representado pela caravela, de se fazer presente na alma de seus alunos’ para
que surge em negativo, a partir do delinear das usar ainda uma expressão sua”.10
outras figuras, e tem a cor do papel – modo de
figurar que associa embarcação e papel como O sentido de inovação não deriva apenas das
símbolos civilizatórios em oposição aos elementos instituições nas quais Cecília Meireles apresentou
dominantemente naturais que os circundam. seus desenhos e palavras. Dados novos em sua
produção, essas reflexões gráficas e textuais
Não está a potência gráfica da obra a serviço da também são inovadoras no campo de estudos
“fábula das três raças”? Não é ela uma ilustração sobre a cultura negra. Ainda que não tenha se
da idéia de superioridade dos europeus brancos constituído como uma pesquisadora específica da
sobre os nativos e os africanos? Sim, em As três cultura afro-descendentes no Brasil, seus desenhos
raças, Belmonte ilustra e defende os preconceitos e o texto a eles correspondente estão entre as
persistentes à época: a inferioridade dos africanos realizações pioneiras nesse campo, como as de
e afro-descendentes frente aos índios e, sobretudo, Modesto Brocos, Nina Rodrigues e Artur Ramos,
aos portugueses. As tão bem aplicadas cores que abriram caminho para outras tantas desde
delineiam estereótipos: o africano é um guerreiro então.
cabisbaixo, cujas armas pouco se diferenciam de
seu corpo – sinal da fraqueza de sua cultura, vista O texto exibe o misto de repulsa e atração,
como primitiva –, e está subjugado pela caravela encantamento e preconceito, que pode ser
portuguesa – signo da moderna tecnologia européia observado em grande parte das abordagens das
–, pela montanha e pelo indígena – símbolos da manifestações culturais afro-brasileiras. Juízo que
natureza pujante e atemporal americana. causa estranheza atualmente, quando é exigido
que o pensamento seja politicamente correto,
A obra é, portanto, uma expressão visual do procurando entender as razões dos outros. A meu
racismo pseudocientífico vigente quando foi ver, entretanto, o que deve ser focado nessa obra
produzida, que defendia o branqueamento da é o valor positivo que a autora atribui às práticas
população brasileira. Como não há o tom crítico culturais afro-descendentes, as quais ela parece
usualmente atribuído ao trabalho de Belmonte, com ter que efetivamente observado, provado – se não,
essa imagem ele se perfilou àqueles que defendiam como poderia ela dizer ser “uma papa consistente”
(e defendem) uma hierarquia das raças, a qual o angu e “muito ardentes” as pimentas do molho
asseguraria a superioridade dos brancos como feito pela baiana?
grupo dominante na sociedade brasileira.
Cecília Meireles evidencia compreensão da
No pólo oposto está o conjunto de desenhos que importância da plasticidade concreta das mesmas,
Cecília Meireles fez, entre 1926 e 1934, procurando cuja cultura material é fundamental na estruturação
fixar “o ritmo do batuque, do samba e da macumba simbólica e na ritualística. Também tem consciência
– e a indumentária característica da ‘baiana’ do da necessidade de seu registro visual. Se o tom

450
Representações de afro-descendentes e modernização artística no Brasil

do texto é objetivo, os desenhos trilham um A negra, obra de Tarsila do Amaral de 1923, foi
caminho entre a etnografia e a ilustração artística criada em Paris, no contexto de descoberta pela
que pode ser conectado aos desenhos e pinturas artista do interesse europeu pela arte negra, do
de Carybé, à fotografia de Pierre Verger, José incentivo de Mário de Andrade para que não se
Medeiros e Adenor Gondim, que oscilam, cada qual subjugasse às referências européias, dos exemplos
a seu modo, entre objetividade e subjetividade em na obra de Fernand Léger. Nessa pintura, a
suas abordagens de mitos, elementos e práticas monumentalidade é tão crítica quanto afetiva, além
rituais da cultura afro-brasileira. de algo laudatória, ao explicitar por meio da
dissociação entre fundo abstrato decorativo e figura
Conectados, desenhos e texto não estão simbólica, da articulação de signos ambíguos que
subordinados hierarquicamente, pois se iluminam, se referem a membros corpóreos devido às
esclarecendo alguns pontos, deixando outros tanto posições que têm na figura, as manipulações
à sombra. Se o texto é descritivo, enumerando sociais, afetivas e sexuais impingidas às mulheres
elementos que compõem figuras, coisas, cenas, negras. Vinicius Dantas sintetizou a complexidade
espaços e acontecimentos, os desenhos os da tela ao dizer que
ilustram de modo mais livre, sugestivo. Ecoando
seus temas – as “danças negras” e a “baiana” – os A negra é uma alegoria (cristã?) da maternidade e
desenhos não só fixam gestos de grande (afro-brasileira) da terra, um totem pagão cuja
significação cultural. Algumas vezes, deixam poesia emana da estranheza em face do Outro
evidentes os gestos que os constituíram. Assim, primitivo e latente, mas é também alegoria nacional,
exalam um “ar contidamente erótico” que deriva cartaz publicitário, artigo de exportação, cromo
tanto da cena figurada quanto do ato gráfico, do patriarcal, mãe ancestral, “contraste de formas”,
gestual íntimo de Cecília Meireles nos desenhos fetiche sexual, manifesto modernista.11
que a enlaçam ao universo afro-brasileiro, pelo qual
ela foi evidentemente seduzida e ao qual ela Outras obras de Tarsila do Amaral da mesma
pretende atrair os que seduz com suas imagens e década de 1920, como Carnaval em Madureira e
palavras. Morro da Favela, dão continuidade ao processo de
miscigenação de elementos pictóricos e temas
A atenção dada então à cultura popular incentivou ocidentais e afro-descendentes.
os artistas a olharem de modo especial algumas
práticas e figuras oriundas das culturas africanas, Menos focados na linguagem pictórica do que no
as integrando ao ideário artístico formador da nação tema são os elogios à mestiçagem nas visões de
brasileira. Entretanto, é preciso ver como, no Brasil, Di Cavalcanti e Cândido Portinari, cujas obras
esse interesse por questões culturais afro- participam ativamente do processo de construção
descendentes foi de segundo grau, em boa parte de afro-descendentes como tipos sociais míticos.
estimulado e filtrado pela valorização européia das Tema dominante na obra do primeiro, a mulata é
culturas entendidas então como primitivas. por ele apresentada como paradigma de beleza
nacional. Suas pinturas se querem elegias
Além disso, o interesse por questões culturais afro- pictóricas às mulheres afro-descendentes que
descendentes não estava isento de preconceitos, subvertem os padrões estéticos ocidentais
nem imune a mitificações e cerceamentos. impostos pela cultura bel artística, embora
Persistiu o olhar etnográfico, mais interessado na raramente os enfrente plasticamente, insistindo na
caracterização de tipos e costumes vinculados a objetificação sexual da mulher negra. Em Mestiço,
classificações étnicas do que na absorção de de 1934, o segundo apresenta o fruto da mistura
práticas culturais e artísticas, que continuaram étnica como emblema da pujança nacional. Na
sendo marginalizadas. Contudo, é evidente como, extensa obra de Portinari, tão dedicada à
imiscuída à estranheza, emerge uma empatia que cristalização monumental e mistificadora de tipos
produz outras visadas. populares nacionais, os negros aparecem também
como a mulher sofredora, o boêmio, além da figura
Se atitudes diferentes se somaram à visão dos do bravo e forte trabalhador.
negros como uma raça inferior, elas não foram
sempre, nem necessariamente positivas, pois Nesse sentido, obras como as de Modesto Brocos,
também descambaram para mitos, estigmas e Pedro Américo, Belmonte, Cecília Meireles,
caricaturas, os quais até podem ter facilitado a Cândido Portinari e Tarsila do Amaral permitem
assimilação social dos afro-descendentes, mas dizer que o diferencial maior entre o modernismo
também foram e são aprisionadoras, imobilistas. vinculado à arte acadêmica e aquele que a ela
pretendeu se opor é o valor do componente africano
na formação da cultura brasileira. Em vez de

451
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

2
negativa, degeneradora, a miscigenação étnica Apud op. cit.
3
tornou-se positiva. E mais: a miscigenação passou CAVALCANTI, Carlos; AYALA, Walmir (org.). Dicionário
a ser paradigma e até emblema das relações Brasileiro de Artistas Plásticos. Brasília: MEC/INL,
1973-1980.
culturais, artísticas. Foi questão de tempo, nada 4
LIMA, Heloisa Pires. “A Presença negra nas telas: Visita
curto (en retard...), a partir da ação pioneira de às exposições do circuito da Academia Imperial de Belas
Rubem Valentim, na década de 1940, os artistas Artes na década de 1880”. 19&20, Rio de Janeiro,
afro-descendentes tomarem a si a tarefa de DezenoveVinte, volume III, n. o 1, jan. 2008. http://
misturar referências da arte ocidental e da cultura www.dezenovevinte.net/obras/obras_negros.htm.
afro-descendente em suas obras, complexificando Acesso em fevereiro de 2008.
5
suas representações. CARDOSO, Rafael. A Arte Brasileira em 25 Quadros
(1790-1930). Rio de Janeiro: Record, 2008, pp. 106-107.
6
Id., Ibid., pp. 49-50.
Notas 7
LIMA, Heloisa Pires. Op. cit.
8
* Sobre as representações de Zumbi, ver CONDURU,
Roberto Conduru é graduado em Arquitetura e Urbanismo
Roberto. “Zumbido alegórico – o monumento no Rio de
(UFRJ) e doutor em História (UFF). É professor de História
J a n e i r o e o u t r a s r e p r e s e n ta ç õ e s d e Z u m b i d o s
e Teoria da Arte na Universidade do Estado do Rio de
Palmares”. FREIRE, Luiz Alberto; RIBEIRO, Marília
Janeiro, onde dirige atualmente o Instituto de Artes. É autor
Andrés (org.) Anais do XXVII Colóquio do Comitê
de Arte Afro-Brasileira (C/Arte, 2007), Willys de Castro
Brasileiro de História da Arte. Belo Horizonte: C/Arte,
(CosacNaify, 2005) e Vital Brazil (CosacNaify, 2000) co-
2008.
autor de Brazil’s Modern Architecture (Phaidon, 2004) e 9
MEIRELES, Cecília. Batuque, Samba e Macumba.
A Missão Francesa (Sextante, 2003), além de ensaios
Estudos de gesto e de ritmo, 1926-1934. São Paulo:
sobre arte e arquitetura, publicados no Brasil e no exterior.
Martins Fontes, 2003.
É pesquisador do CNPq e Pró-cientista Uerj/Faperj. É 10
SOARES, Lélia Gontijo. “Introdução”. MEIRELES. Op.
membro e atual presidente do Comitê Brasileiro de História
cit., p. 13.
da Arte. 11
1 DANTAS, Vinicius. Que negra é esta? SALZTEIN,
“Silva, Estêvão (ca.1844 - 1891). Comentário Crítico”.
Sônia (Org.). Tarsila anos 20. São Paulo: Galeria de
Enciclopédia Itaú Cultural Artes Visuais. http://
Arte do SESI, 1997, p. 48.
www.itaucultural.org.br/aplicexternas/enciclopedia_ic/.
Acesso em fevereiro de 2008.

452
capitulo 11
iconografia: intimidade e representações do feminino

453
A tela A Carioca foi realizada pelo pintor Pedro
Américo entre 1862 e 1863 – período em que o
artista fazia sua formação em Paris graças ao
famoso “bolsinho do Imperador” Pedro II. Em 1865,
a tela é enviada à Exposição Geral da Academia
Imperial de Belas Artes, no Rio de Janeiro, onde
recebe a medalha de ouro. Pedro Américo em
agradecimento ao Imperador o presenteia com a
tela que, para a surpresa do artista, é recusada
pelo Mordomo Mor da Casa Imperial, Paulo
Barbosa, por considerá-la licenciosa. A tela retorna
para o ateliê do artista em Florença, onde viveu
grande parte de sua vida. O destino da obra, após
a sua recusa, é curioso, já que A Carioca
despertando o interesse do Imperador Guilherme
Primeiro da Prússia é por ele adquirida, alguns anos
depois. Esta que vemos e que atualmente está
exposta no MNBA é uma réplica com variações,
pintada em 1882. Em 1884 esta réplica foi
apresentada na Exposição Geral de Belas Artes
do Rio de Janeiro, quando, então, foi incorporada
à pinacoteca da Academia, passando em 1937 a
integrar o acervo do Museu Nacional de Belas
Artes.

A história do percurso acidental desta tela nos


aponta para questões extremamente complexas no
imagens da nação: a carioca de pedro américo campo da recepção que as obra de arte em geral,
entre o ufanismo e a licenciosidade e esta em particular, podem arte brasileira no século
XIX – produção realizada suscitar nos circuitos
claudia de oliveira pelos quais atravessa. Pois, como veremos, a
primeira condenação da tela, por licenciosidade,
parece ter bloqueado a sua recepção por parte do
público e da crítica. Contudo, teria sido esta
condenação por licenciosidade a razão pela qual a
recepção da obra por parte do público e da crítica
teria se divergido da intenção do autor? Neste texto
pretendemos apresentar algumas digressões sobre
a relação entre a criação da obra e sua recepção
junto ao contexto artístico e cultural, levando em
conta que a interpretação de uma obra não é uma
atitude passiva ou estável, mas, ao contrário, por
estar imbuída no contexto cultural é atitude
interativa, dinâmica, colocando a obra em
constante transformação.

Tomando o programa seguido pelo artista, a tela


nos apresenta uma alegoria do Rio Carioca que
nasce no Silvestre, desce o bairro do Cosme Velho,
atravessa as Laranjeiras e deságua na Praia do
Flamengo. Em 1503, a mando do Governador Geral
Gonçalo Coelho, foi construída uma casa em sua
foz, que marcaria para sempre a memória do curso
d‘água no cotidiano da cidade. Os índios Tamoios
que viviam na região passaram a chamá-lo de
Carioca (que etimologicamente significa Casa de
Homem Branco), termo que daria nome não só ao
Rio como ao povo da cidade. O Rio ganhou
importância ainda maior por ser a principal fonte

455
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

de abastecimento de água da cidade durante três cruzamento entre a tradição européia, naquele
séculos, sendo que no século XVI ele começou a momento expressa na linguagem Neoclássica, com
ser canalizado entre a sua nascente, no final da as apreensões românticas do Brasil.
Rua Almirante Alexandrino, no Silvestre, até o
Centro, onde a água era levada até o Largo da A Carioca, ao contrário do que se esperava das
Carioca, passando por sobre um aqueduto – os pinturas na época, ou seja, imagens evocadoras
Arcos da Carioca – até chegar ao grande Chafariz de virtudes que exaltassem o patriotismo e a moral,
da Carioca, construído posteriormente para que a mostrava uma mulher sedutora e, ao que parece,
população da cidade tivesse acesso à água do Rio. indigna da posição que desejava ocupar no
conjunto das alegorias que valorizavam a história,
O que teria ocorrido na interpretação da tela que, o povo e a Nação. A tela parecia representar apenas
de uma alegoria ufanista, foi interpretada como uma a beleza física, mostrando um corpo nu, objeto de
representação ofensiva e licenciosa da mulher escândalo e corrupção deste mundo e da natureza,
carioca? em conseqüência da depravação e privação da
virtude. Ao contrário de uma figura ideal a forma
A partir do programa seguido pelo artista, física desta mulher a reenviava para o território
percebemos que a forma plástica por ele criada humano, erótico, temporal, inteiramente distante
para apresentar a alegoria ao Rio Carioca foi à da idealidade artística e patriótica desejada na
imagem de uma banhista exuberante, uma náiade, época.
uma ninfa, que, como sabemos, na tradição
mitológica clássica é uma divindade dos rios e das A imagem, como uma evocação de um cenário das
fontes, mas, no contexto da tela foi “abrasileirada” delícias parecia realçar um mundo escarnecido. O
para expressar uma das mais caras imagens de erotismo exótico que esta mulher parecia despertar
exaltação da Nação: a exuberância e a soava como uma ofensa moral, destoando-se
potencialidade da natureza brasileira, um dos inteiramente do projeto artístico mais extenso
temas centrais do projeto romântico oitocentista – centralizado pelo Estado Imperial e pela Academia
idealizado pelo Estado Imperial e encampado pela de Belas Artes. Sobretudo, A Carioca no seu
Academia Imperial de Belas Artes, sobretudo na erotismo incorporava um ritual de celebração que
gestão de Manuel Araújo Porto Alegre, diretor da introduzia no clássico e no apolíneo um elemento
Academia entre 1854 e 1857, e sogro do artista. inegavelmente dionisíaco. Portanto, estava
Assim, a forma plástica criada por Pedro Américo, diretamente relacionada ao irracional. Encarnava
no contexto exposto acima, não se constitui apenas o “selvagem”. A Carioca ao incorporar uma intensa
num fato estilístico, mas, ao contrário, assumiu produção simbólica, apresentava uma carga
outras funções, adquiriu novos sentidos, os quais dramática moral que a afastava da construção dos
romperam com a intenção primeira do artista. A novos padrões de uma Nação que se queria
tentativa de dar uma nova vida à tradição clássica, civilizada. O simples e constante recurso aos
buscando antigos modos e caminhos para exemplos gregos, a obrigatória exaltação da virtude
expressar novos objetos, parece, no contexto desta antiga, modelo da famosa virtù renascentista, do
obra, ter sido frustrada. saber antigo, do antigo valor e grandeza de ânimo,
parecia, neste caso, levar precisamente a
Como sabemos, o Estado Imperial investiu não só pesadelos humilhantes para os modernos.
nas Belas Artes, mas particularmente, elegeu a
pintura como um emblema de valorização das Tomando a caricatura de Henrique Fleius
virtudes morais e cívicas da comunidade nacional apresentada na Semana Ilustrada de 5 de março
em formação, e também como um instrumento de de 1865, a recepção da obra pelo público e pela
refinamento do gosto nacional e de exaltação de crítica fora também escandalosa e ofensiva, mas
amor à Pátria: funções extremamente importantes suscitava o erotismo. Pois, como podemos ver na
na construção do orgulho, da Civilização e da caricatura, Fleius nos apresenta um casal que olha
Cultura Nacional em formação. A Arte traduziria e a imagem no seguinte contexto. A mulher que olha
consubstanciaria uma “memória” necessária à a tela zangada e ofendida puxando o marido que
identificação e afirmação dos valores culturais da olha para o nu através de seu pince-nez com
Nação que se organizava. A virtude deveria extrema curiosidade, diz -: “vejam que desaforo!
conduzir a uma criação artística voltada para a Mandar-me pintar sem ter roupa para vestir”.
exaltação do patriotismo e da ordem. Neste aspecto Deixando de lado o sarcasmo de Fleius com
a Arte empenhava-se em criar uma imagem na relação à tela, A Carioca de Pedro Américo parecia
qual, a Pátria brasileira deveria vincular-se à mesmo não se enquadrar nas noções de virtude e
tradição européia e, por conseqüência, caminhar moralidade Palaciana e Acadêmica, e muito menos
na direção oposta à barbárie. A Arte faria o nos padrões morais da sociedade carioca Imperial.

456
A carioca de Pedro Américo entre o ufanismo e a licenciosidade

Mas, do ponto de vista do artista este criara um Carioca teve como seu principal mestre o pintor
programa que seguia uma concepção de arte neoclássico Dominique Ingres. Ingres, é conhecido
empenhada em exaltar a natureza local. Seria então não só por seu famoso Banho Turco, repleto de
apropriado definir como intencionalmente erótica odaliscas opulentas, sedutoras e licenciosas, como
a imagem criada por Pedro Américo? por suas inúmeras alegorias mitológicas,
igualmente sedutoras, como A Fonte, obra que se
Creio que para respondermos a esta pergunta comunica muito de perto com A Carioca. Ingres,
deveríamos nos colocar uma outra: como atua uma discípulo de David, era então o artista mais influente
imagem erótica? A princípio, o espectador fruidor da Academia Francesa. Ingres era um cultor da
identifica na figura representada (na mulher nua) a clareza e da precisão da forma. Embora estivesse
parceira de uma imaginária relação sexual – neste entre os expoentes da escola neoclássica, era um
contexto podemos imediatamente nos remeter ao admirador de Rafael mais que do que dos clássicos
marido da senhora ofendida, que minuciosamente da Antiguidade. Tanto que, para Ingres, a obra não
escrutinava a mulher representada. O papel do era apenas um veículo de uma idéia moral e
expectador fruidor, neste contexto, é virtuosa, mas era sim uma experiência em si
substancialmente o do flaneur. Papel que mesma.
corresponde ao expectador masculino que
acabamos de mencionar. Aprofundando ainda mais Percebemos também que Pedro Américo inspirou-
a questão das imagens eróticas, colocamos ainda se em Miguelangelo para criar o corpo d‘Carioca,
uma outra pergunta: o que é uma imagem erótica? já que podemos notar uma ênfase na anatomia.
É uma imagem que se propõe de modo deliberado Miguelangelo era artista extremamente admirado
(mesmo que não exclusivo) excitar o expectador por Pedro Américo. A inspiração nos corpos criados
fruidor. pelo artista italiano, fez Pedro Américo desenhar
um corpo de mulher extremamente carnalizado,
Contudo, ao tomarmos o programa seguido por grandioso, com peso e volume, marcado por uma
Pedro Américo, verificamos que a intencionalidade musculatura tensa e expressiva.
da imagem não é difícil de decifrar. Neste caso,
nos parece óbvio que para além das intenções do Quando estivera na França, Pedro Américo, visitara
autor, as quais, a partir do programa por ele a famosa exposição impressionista, denominada
seguido, não nos indicam que o mesmo Salão dos Recusados, onde estava exposto o nu
pretendesse despertar sentidos eróticos, a tela, de Édouard Manet “Piquenique na Grama”. Pedro
ainda assim, acabou por assumir significações Américo era também a favor da fotografia e utilizava
diversas quando saiu de suas mãos e atingiu outros as imagens técnicas como modelo. Para pintar o
circuitos. rosto d`A Carioca usou como modelo, segundo
Wladmir Machado, uma fotografia da esposa de
Os sentidos, interpretações e compreensões de um funcionário do consulado brasileiro, em Paris.1
uma obra conformam uma complexa rede de Embora saibamos que A Carioca não é uma
símbolos e figurações. A imagem, d‘Carioca, em fotografia, a imagem oferece um grau de realismo
sua aparência clamorosamente erótica, esconde extremo. Nos parece, então, que Pedro Américo
na realidade uma mensagem bem mais complexa nesta tela estava intimamente ligado a cultura
que uma mera representação erótica feminina. Esta artística de seu tempo, ou seja: as várias tendências
imagem não representa apenas a vulgarização de européias e ao projeto artístico nacional. Pedro
um corpo. Pedro Américo extraiu sua inspiração Américo parecia sentir-se livre para empregar
da tradição da pintura clássica, e criou uma alegoria vários modelos visuais, antigos e modernos,
mitológica para abrigar um tema nacional. Contudo, buscando, ao mesmo tempo, combiná-los com a
segundo no informa Guillio Argan, para o século tradição específica que florescia na pintura
XIX o extremo realismo das alegorias mitológicas brasileira: as alegorias que valorizavam a história,
passaram a ter um caráter essencialmente erótico– o povo e a natureza local.
vide as inúmeras Vênus de Cabanel que parecem
nus de mulheres do cotidiano, e mesmo a própria O que ocorre então com esta imagem que como
enchente de alegorias mitológicas femininas que primeira impressão suscitada aos olhos do publico
assolaram o mercado de fotografias eróticas na é a de uma mulher extremamente real, sedutora e,
mesma época. Percebemos, então, que os nus acima de tudo, o retrato de uma carioca desnuda e
mitológicos na era do voyeurismo tomam outro não uma alegoria do Rio Carioca?
sentido.
Sabemos que a arte de um período está
Finalmente, sabemos que Pedro Américo, no profundamente enraizada na história, na língua, na
período em que esteve na Europa e pintou A estrutura de classes, nos modos específicos de

457
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

produção e recepção. A obra não é somente um O extremo realismo da imagem parece ter se
produto cultural, mas uma força cultural. Por outro tornado não só um modo de significação mas
lado, uma representação corporifica um conceito também um estilo pictórico. Estilo que, como
que funciona como um símbolo. Coisas sabemos, foi à forma visual dominante na cultura
representadas nos remetem ao original. Assim, o burguesa, sendo introjetada pela pintura e pela
sentido representacional de uma obra não pode ser fotografia. O Realismo oferece uma forma de
inteiramente entendido a menos que os objetos imagem que apresenta um prazer particular, na
mostrados pelo artista pertençam a uma medida em que sustenta ilusões, despertando
experiência compartida, já que o sentido temático para um conjunto de fantasias que parecem ser
literal muitas vezes não conta toda a história satisfeitas por meios que asseguram, de certo
representada. Toda obra tem vários sentidos modo, a credibilidade da cena imaginada.
figurativos sobrepostos: contexto, estilo, indivíduos, Portanto, são imagens que evocam um culto e
etc. Toda interpretação implica julgamento, o que detêm uma qualidade icônica. São imagens que
pode esvaziar o sentido e não permitir que a obra contêm uma combinação particular: fisicalidade
revele o seu sentido. e olhar à distância. Mas que papel tem essas
imagens no jogo do prazer visual?
Em A Carioca nos parece que a carga erótica e o
desejo desperto pela imagem são os principais Como as faces icônicas detêm o poder do olhar
elementos fomentadores deste ruído no circuito que sobre o espectador. Imagens como esta parecem
liga a criação à recepção. Esta carga erótica é tão impulsionar para uma troca de sensações, onde
marcante que faz com que os espectadores o desejo é pictoricamente articulado. A imagem
fruidores praticamente esqueçam que a imagem é da mulher nua parece despertar o sentido de ser
a alegoria de um Rio importante do cotidiano da inteiramente possuída. Assim fetichismo e
cidade na época. Contudo, o desejo desperto por voyeurismo vão construindo esta imagem do
este corpo nu representado vai se condensando desejo moderno. O olhar fetichista pode existir
em torno de uma silhueta de mulher e parece flutuar fora do tempo linear como um instante erótico,
como uma aura em torno do seu corpo. A força localizado somente na fantasia. Sua significação
deste desejo é duplicada pelo artifício da pose: os é paralisada, porque o olhar do espectador fruidor
cabelos negros que se entrelaçam ao braço, os é fixado sobre a forma fetiche.
dedos contorcidos que sugerem graciosidade. O
braço sinuoso que promove uma certa ação Assim desejar definir a fascinação resultaria no
dramática elevando o teor emocional da obra e desencanto total: uma realidade plana e sem
seduzindo, ainda mais, o espectador fruidor. relevo. Pois, arte e sedução escapam ao discurso
e o encantamento se renova, mas também se
Esta mulher que posa parece desafiar aquele que renova a perda, pois ao voltar-se para a imagem
a vê, pois seu olhar intenso parece comprometer que lhe suscita o desejo o espectador fruidor
inteiramente o observador. Seus olhos castanhos volta-se para a presença do ausente, neste
são teatrais e, embora não mirem o espectador seu sentido, o modelo, além de sua realidade
olhar é extremamente expressivo e duro. Estes tangível, corporal ponderável, também é
olhos atraem o olhar do espectador fruidor e o dirigi construído de vazio e de ilusão: abole o real.
para o corpo da figura. A relação daquele que olha Assim podemos entendê-lo como um simulacro,
e daquele que se projeta ao olhar é um meio de inteiramente fetiche, espelho.
acesso privilegiado para algo inacessível: é território
particular de afinidades, de sensações, da sedução. Para concluir, se no auge do Império A Carioca
não correspondeu à exaltação do nacional pela
Por outro lado, sabemos que esta forma de via do nativismo romântico, permaneceu
exposição do desejo relaciona-se diretamente com transgressora, e t ambém acadêmica,
uma certa economia particular do olhar que opera representação idealizada e corpo pulsante. O
com um regime de representação que expressa erotismo d‘Carioca se oferece como um problema
uma certa forma visual. Primeiramente, apóia-se não somente estético mas também político e
em uma cultura do olhar que é própria da cultural, uma provocação, talvez involuntária,
modernidade. Olhar de cobiça, de desejo e que mas saída de dentro mesmo dos mais severos
explicita uma idéia do ver como possuir à distância. limites da arte oficial. Contudo, como apontei
Assim, parece que a imagem criada se transforma anteriormente, desejar definir a fascinação desta
em uma forma fetiche gerada por uma economia obra resultaria no desencanto total: uma
ocular que produz uma forma erótica significante. realidade plana e sem relevo, já que a arte e a

458
A carioca de Pedro Américo entre o ufanismo e a licenciosidade

sedução escapam ao discurso, promovendo, neste Notas


sentido, a renovação de seu encantamento.
1
MACHADO, Vladimir. Pedro Américo. Disponível em: http:/
/www.dezenovevinte.net/bios/bio_pa.htm Acesso em 1 jul.
2008.

459
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República
1. Entre os anos 1890 e 1910 houve um constante
afluxo de pintores italianos ao meio artístico de São
Paulo. Seja em busca de ‘fazer a América’, seja
em fuga das mazelas que atingiam o continente
europeu, esses artistas tiveram uma presença
marcante no cenário das artes no Estado,
sobretudo na capital paulista. Realizavam
freqüentes exposições, recebiam encomendas da
elite local, circulavam em suas festas e salões,
lograram incluir seus trabalhos nos acervos locais,
privados e públicos.

Como exemplo dessa trajetória, é interessante


investigar a presença do pintor italiano Giuseppe
Amisani (1881-1941) em São Paulo, entre os anos
1900 e 1930. Pintor formado em Milão, na
Academia de Brera, retratista de fama razoável,
atingiu uma posição de destaque no meio artístico
italiano da primeira metade do século XX e galgou
uma carreira internacional medianamente bem
sucedida (obteve várias encomendas da família real
italiana, trabalhou no Egito e na Inglaterra, foi tema
de uma monografia redigida pelo importante crítico
Giorgio Nicodemi, em 1924).

Embora não tenha aderido ao vanguardismo de


seus contemporâneos na Academia (que serão
alguns dos protagonistas das experiências do
pintores italianos em são paulo – o caso da culla
futurismo italiano, como Carlo Carrà (1881 - 1966)
tragica de giuseppe amisani
e Umberto Boccioni (1882 - 1916)), convive no
fernanda pitta1 ambiente moderno da Itália do início do século e
escolhe a pintura de retratos, paisagens e nus,
exercitando-a com um estilo influenciado pelo
decadentismo, o Art Nouveau, o simbolismo, e o
divisionismo italiano, tendências em voga no
período.

2. Giuseppe Amisani nasce em Mede Lomellina,


Itália, em 1881. Freqüenta, segundo consta em
suas biografias, a academia de Brera, em Milão,
como aluno dos pintores Vespasiano Bignami (1841
- 1929) e Cesare Tallone (1853 - 1919), no início
da década de 1900 2.

O primeiro, além de apreciado retratista e


caricaturista, foi escritor e historiador milanês. O
segundo3, pintor de relativa fama no final do XIX,
colega de Giovanni Segantini e Gaetano Previati
na mesma Academia de Brera, é hoje quase
esquecido, apenas lembrado como professor de
Giuseppe Pellizza da Volpedo e o já citado Carlo
Carrà.

Os primeiros trabalhos reconhecidos de Amisani


são retratos de mulheres que trazem boa dose
daquela sensualidade aceitável, característica do
erotismo fin-de-siècle. Dentre eles, o de Lyda
Borelli, famosa atriz italiana de teatro e cinema, é
o mais destacado4, tendo recebido por ele o prêmio

460
Pintores italianos em São Paulo – O caso da Culla Tragica de Giuseppe Amisani

Fumagalli da Academia de Brera em 1912, fato acontecimentos que fornecem interessantes


esse que será divulgado com insistência quando indícios de seu entrosamento no meio de arte
de sua estada no Brasil. paulistano e de seu envolvimento com figuras de
destaque desse cenário, como Pereira da Silva,
3. No país, passa algumas temporadas entre o responsável pelos murais do Theatro Municipal de
início do século e os anos trinta, embora poucos São Paulo nesse mesmo período.
registros além dos jornais possam nos dar certeza
do período exato em que aqui esteve. Por esses Embora o meio artístico paulistano fosse tímido,
veículos, tem-se o registro de dois períodos pelo dada a relativa escassez de espaços de formação
menos, entre 1905 e 1908 e posteriormente, entre e circulação artística em comparação ao meio
1913 e 19145. carioca no mesmo período, Amisani consegue
inserir-se próximo à clientela composta pela elite
Em seu artigo sobre os circuitos artísticos de São paulistana. São freqüentadores de seu ateliê e
Paulo na Belle Époque, Miriam Rossi fornece as compradores de seus trabalhos figuras como o
datas de 1905 a 1908 para a estadia de Amisani, Senador José Freitas Valle (1870 - 1958), o
na qual mantém um ateliê no quarto 62 do Hotel presidente do Banco de Comércio e Indústria de
Bela Vista, onde se realizaram exposições de Oscar São Paulo, Numa de Oliveira (1870 – 1959), o
Pereira da Silva, Peregrino de Castro e Augusto jornalista Nestor Pestana (1877 - 1933), o Ministro
Crotti. A autora também menciona a data de 1913 da Agricultura e Senador Pádua Salles (1860-1957),
para uma exposição individual na Casa Mascarani o engenheiro e jornalista Samuel das Neves (1863-
e uma exposição coletiva, em 1914, na mesma 1937), o advogado e futuro deputado Silvio de
casa (sua fonte aqui é o Correio Paulistano de 30/ Campos (1884-1962, irmão de Carlos de Campos,
12/1912 e de 8/01/1914). Em Fanfulla, segundo e filho de Bernardino de Campos) e Jorge de Souza
relatório de Maria Cecília Gonçalves para a Freitas, dono da Galeria Jorge 11. Membros de
Pinacoteca do Estado, Guido Maragoni comenta famílias tradicionais locais, políticos influentes e
que o pintor veio ao Brasil de passagem, quando homens de negócios, estavam ligados a diversas
convidado a fazer um retrato de um membro da iniciativas culturais, como, respectivamente, o
colônia italiana em Buenos Aires.6 O artigo “Vita Pensionato Artístico do Estado de São Paulo, o
Sociale”, do dia 24/08/1913, comentado no mesmo Theatro Municipal e a Sociedade de Cultura
relatório, afirma que a nova estadia trata-se de uma Artística12.
volta de Amisani ao Brasil, para uma exposição a
ser realizada em São Paulo.7 Não sabemos como se deu a aproximação entre
Amisani e o senador Freitas Valle, o que sabemos
Sua pintura torna-se muito apreciada no ambiente é que ele encomenda um afresco para a sala de
de São Paulo do início do século XX, tendo entre banho da Villa Kyrial, sua residência situada na Vila
seus compradores políticos e personalidades Mariana e local do principal salão do início do século
influentes da sociedade paulistana. XX em São Paulo. Intitulado A alma das flores, sd.,
o afresco é uma “alegoria com traços art nouveau
São escassos os indícios que possam explicar o exibindo uma ninfa em êxtase”13. Valle também fica
porquê da vinda de Amisani para São Paulo. O responsável pela intermediação da compra e venda
pouco que sabemos do contexto das visitas do de suas obras em suas constantes idas e vindas
pintor lombardo nos é informado pelos jornais, ao do estrangeiro.
contrário de seus compatriotas N. de Corsi, N.
Fabbricatore, e Antonio Petrilli, dos quais restaram Além do afresco da sala de banho, uma das
alguma correspondência trocada com o Senador pinturas de figuras femininas de Amisani, tema
Freitas Valle 8, pelas quais podemos conhecer freqüente de sua produção, compunha a famosa
alguns dos motivos de viagem, tais como convites, Galeria do Senador. Centro nervoso da Villa Kyrial,
visitas a parentes, aventuras e novas alternativas9. a galeria é o aposento onde se realizam os saraus
O que podemos inferir, a seu respeito é que essas que reúnem “a nata da sociedade, além de poetas
vindas foram bem-sucedidas, já que logo sem recursos, buscando apoio e proteção sob as
estabelece relações com os pintores locais, vende asas da oligarquia”14, freqüentado também pelo
seus trabalhos e obtém comissionamentos. pintor italiano.
A inusitada empreitada de montar um ateliê em seu É possível que o prestígio de Amisani entre a elite
quarto de hotel, onde expõe trabalhos de Oscar paulista tenha se consolidado em 1912 (período
Pereira da Silva (1867 - 1939), em 1905, Peregrino imediatamente anterior à estada de 1913-1914),
Castro (sd. – sd.), 1906 e Augusto Crotti (sd. – quando recebe o prêmio Fumagalli pelo retrato da
sd.) 10 , em 1908, faz parte de uma série de atriz italiana Lyda Borelli. O fato certamente

461
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

contribui para sua boa acolhida no Brasil, já que A ambos os seus professores poderíamos tributar
Borelli, primeira atriz da companhia teatral que uma preocupação com a questão da unidade
mantém com Ruggero Ruggeri, havia estado na italiana – Bignami, além de pintor era também
cidade em 1909, numa série de apresentações no historiador diletante, muito interessado nos feitos
teatro São Pedro de Alcântara, no Rio de Janeiro e do lombardo Garibaldi e seus homens21. Cesare
no Teatro Santana, em São Paulo15. A tela, ou uma Tallone, por sua vez, teve o pai lutando na guerra
versão dela, foi adquirida pelo Conde Silvio da independência. Mas nenhum indício
Penteado, segundo uma reportagem do jornal comprovava essa associação, e a expressão
Fanfulla, de 07/09/1913 16. parece não ser corrente como forma metafórica de
alusão a esse processo histórico22.
Amisani também escolheu a representação do nu,
retratando mulheres de aspecto não raro dotando- Outro caminho foi encontrar alguma referência
as de uma volúpia desafiadora, como em Estate, literária ao termo. Nesse percurso chega-se a
s.d. 17 , ou Signora in poltrona, s.d. 18 . Essa Gabriele D’Annunzio, mas um exame nas suas
sensualidade está presente mesmo em telas obras não permitiu encontrar uma alusão direta ao
alegóricas, como a simbolista La Culla Tragica, termo. Somente a pesquisa iconográfica forneceu
1910, pertencente à Pinacoteca do Estado de São a chave para uma hipótese sobre a temática do
Paulo. Aqui o modelado da figura feminina é feito quadro.
de pinceladas que dão à carne um aspecto pastoso.
O forte contraste de luz e sombra atribui à cena Inicialmente identificamos, de maneira
um caráter dramático acentuado, embora o fundo completamente fortuita, o parentesco com a
receba o mesmo tratamento de pinceladas breves iconografia de um desenho de Giovanni Segantini,
e ligeiras do retrato de Borelli. encontrado na capa do catálogo de leilão da casa
Sotheby’s de Zurique 23. O trabalho, um esboço
La Culla Trágica preparatório para o tríptico Werden, Sein,
Wergehen (Natureza, vida, morte), intitulado
O livro tombo da Pinacoteca do Estado de São Edelweiss, apresentava evidente parentesco com
Paulo dá notícia da entrada do quadro em 1918, a representação feminina da Culla Tragica de
com a estranha anotação, posteriormente riscada, Amisani. Descrita no catálogo como “uma das
de que o autor havia sido Pensionista do Estado 19. imagens mais singulares na tradição da Art
Não há documentação de compra, não foram Nouveau, A cabeleira abundante e fluente é
encontradas justificativas na imprensa da época20, interpretada como o movimento rotatório de uma
embora sejam abundantes as notícias a respeito força natural, como a água ou o vento”24.
de Amisani, de suas exposições e aquisições por
particulares. As descrições da obra resumem-se a Com relação a Segantini, o único ponto de contato
identificá-la como uma tela simbolista. Mas até hoje até o momento é o fato dele ter sido professor em
não há registro de uma análise mais sistemática Brera na mesma época que Amisani estudava com
do quadro, de sua temática, bem do seu contexto Cesare Tallone na mesma academia, mas não até
de entrada para a referida coleção. o momento não foi possível armar um contexto mais
articulado entre as duas obras.
Na tentativa de responder a indagação a respeito
da entrada dessa obra na coleção da Pinacoteca Fazendo um levantamento da pintura
do Estado, na falta de registros mais precisos sobre contemporânea a Amisani, encontramos no
ela, nossa hipótese de trabalho foi tentar catálogo da exposição Italies, realizada pelo Musée
compreende-la a partir do interesse despertado pela d’Orsay e a Galleria Nazionale d’Arte Moderna di
obra nos possíveis intermediadores de sua compra. Roma, em 2001, uma análise do díptico de Giulio
Aristide Sartorio, Diana de Êfeso e os escravos e
Algumas suposições, baseadas na inferência a A Górgona e os Heróis. Na primeira parte do díptico,
respeito do gosto e dos costumes em voga na São representando a figura mitológica grega da
Paulo do início do século XX, perguntamo-nos: Górgona, encontramos novamente semelhanças
poderia tratar-se de uma alegoria histórica? Culla muito intensas entre o arranjo formal do corpo, dos
Tragica, berço trágico, por analogia poderia cabelos e dos gestos da personagem feminina de
significar nascimento trágico. Alguma alusão à Culla Tragica.
unificação italiana? À Guerra da Independência
contra a Áustria (1848), da qual participaram com A fonte literária confessa de Sartorio para esses
empenho os lombardos? trabalhos foi o Trionfo della Morte, de Gabriele
D’Annunzio 25. Estruturada em sete partes, a obra
é centrada na relação ambígua e contraditória entre

462
Pintores italianos em São Paulo – O caso da Culla Tragica de Giuseppe Amisani

os amantes Giorgio Aurispa e Ippolita Sanzio. então prefeito Washington Luís, realizado pelo
Giorgio volta à casa natal, em Abruzzo, em resposta poeta Guilherme de Almeida e o pintor Washt
ao chamado da mãe para que salve o pai da vida Rodrigues, também um “motto” d’annunziano? Non
de descaminhos, fato que dá ensejo para uma série ducor, duco.29
de observações sobre a paisagem, os costumes e
modo de vida de Abruzzo. O personagem principal Referências bibliográficas
oscila entre o nihilismo e a aspiração por uma vida
nova, feita de perfeição espiritual. Sente a relação BANTI, Alberto Mario. Il Risorgimento italiano.
com a amante como um obstáculo, um limitador, Roma-Bari: Laterza, 2004.
dada a força irresistível de sua fascinação erótica. COMANDUCCI, M. Dizionario illustrato dei pittori
Ippolita Sanzio simboliza a “nemesis”, o exato e incisori italiani moderni. Milão: 1962.
oposto do herói, seu espelho, a força primogênita DELLA PERUTA, Franco. L’Italia del
da natureza que torna o homem escravo, e só a Risorgimento: problemi, momenti e figure.
morte pode libertá-lo de tal condição. Milano, Angeli, 1997.
MARTINS, Wilson. Mundo Antigo. A Gazeta do
Segundo Gianna Piantoni, no catálogo da Bienal Povo. Curitiba: 11 de junho de 2001.
de Veneza de 1899, que expõe o tríptico de Sartorio, PINACOTECA DO ESTADO (SÃO PAULO, SP)
o artista afirma que havia desejado: (org.). Dezenovevinte: uma virada no século.
Apresentação Jorge da Cunha Lima; texto Ciça
representar ‘dois aspectos da profunda vaidade França Lourenço, Ruth Sprung Tarasantchi, Carlos
da existência humana’, a Górgona, ‘que tem a Alberto Cerqueira Lemos, Maria Inez Turazzi, Anna
forma sedutora da Beleza e que é ao mesmo Carboncini, Maria Cristina Castilho Costa. São
tempo Vida e Morte, pois ela suscita e abate Paulo: Pinacoteca do Estado, s.d.
os heróis’ e a Diana de Êfeso, que nutre ‘os PINTORES italianos no Brasil. Comentário
homens e suas quimeras’. Pois os homens, Augusto Carlos Ferreira Velloso, Gilberto de Mello
segue Sartorio (inspirando-se nos célebres Kojalwski; apresentação Cunha Bueno. São Paulo:
versos de Shakespeare, ‘Somos da mesma Sociarte, 1982.
matéria que nossos sonhos, e nossa vida ínfima ROSSI, MIRIAM SILVA. Circulação e mediação da
está coberta de sono’26, citados por Gabriele obra de arte na Belle Époque paulistana. Anais do
D’Annunzio no Triunfo da Morte), são ‘feitos da Museu Paulista. Ano/volume 6/7. Número 7. São
mesma substância que seus sonhos e são Paulo, Brasil. Pp.83-122.
representados aqui adormecidos, encerrando SCIROCCO, Alfonso. L’Italia del risorgimento:
em suas mãos os símbolos de suas 1800-1860. Bologna: Il Mulino, 1990.
‘ambições’.27 TARASANTCHI, Ruth Sprung. Pintores
paisagistas em São Paulo: 1890-1920. São Paulo,
Ora, temos aqui elementos que podem começar a ECA/USP, 1986. Tese (doutorado). Artes, ECA/USP,
ser cruzados com as próprias referências de 1986. Frederic Michael Litto, orientador.
Amisani. Sabemos que muitos de seus quadros
foram inspirados em D’Annunzio. O contexto do Notas
decadentismo os liga por diversos laços, inclusive
1
através da diva Borelli, mais de uma vez descrita Professora do curso de História da Universidade Cidade
de São Paulo – Unicid/SP. fpitta@cidadesp.edu.br
como “D’Annunziana”. A imagem da Culla Tragica 2
Não foi possível até o momento fazer essa verificação
parece corresponder àquela da mulher que acolhe nos arquivos da Academia de Brera. Um elenco dos alunos
e submete os homens, em suas suplicas vãs, de Tallone na Academia entre 1905-1995 pode ser
simbolizadas pelos punhos cerrados. consultado on-line em http://www.archiviotallone.com
3
Cf. CARAFOLI, Dominizia. “Cesare Tallone, una figura a
A outra etapa, agora, é claro, deve se desenvolver riconstruire”, il Giornale.it. 28 novembro 2005. Disponível
na busca por indícios que comprovem essas em: http://www.ilgiornale.it/a.pic1?ID=46162, consultado
hipóteses, meramente conjecturais. As em 20/02/2008. Ver também TALLONE, Gigliola. Cesare
semelhanças formais são o esboço de um Tallone. Milão: Electa Mondadori, 2005. Em março de 2008
o Museo Villa dei Cedri, na Suíça, abre uma retrospectiva
problema de pesquisa, de um insight, como nos de sua obra.
lembra Carlo Ginzburg28. Perguntas, não soluções. 4
Tallone, um ano antes, também havia retratado a artista.
E seria prudente retomar mais uma, ainda, o início Cf. http://www.archiviotallone.com
dessas indagações: Como essa tela foi parar na 5
ROSSI, Miriam Silva. Circulação e mediação da obra de
Pinacoteca do Estado? Aqui, pelo pouco espaço arte na Belle Époque paulistana. Anais do Museu Paulista.
que nos resta, podemos lançar um outro enigma, Ano/volume 6/7. Número 7. São Paulo, Brasil. P.104.
que talvez possa nos servir de chave: não leva o ROSSI, Miriam Silva. op.cit. p.106.
dístico da cidade de São Paulo, encomendado pelo

463
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

6
A Biblioteca da Pinacoteca do Estado de São Paulo tem, fosse de origem brasileira. Mas sabe-se que mais de uma
na pasta dedicada a Amisani, o relatório de pesquisa de vez essa regra foi quebrada, como no caso de Brecheret,
Maria Cecília Gonçalves, realizado para a Pinacoteca do que a recebeu em 1921. Cf. ARAÚJO, Marcelo Mattos. Os
Estado em 1978, no qual consta um elenco de notícias do Modernistas na Pinacoteca: o Museu entre vanguarda e a
jornal Fanfulla, da comunidade italiana em São Paulo, que tradição. Tese de Doutorado apresentada na Faculdade de
comentam de sua chegada, exposições, e retornos. Lá Arquitetura e Urbanismo da USP. Orientadora: Profª. Drªa.
também é possível encontrar alguns preciosos cartões Maria Cecília França Lourenço. Universidade de São Paulo,
postais com a estampa de algumas obras de Amisani. Cf. FAU-PRG-USP, 2002. Infelizmente não foram localizados
MARAGONI, Guido . Un pittore del sentimento. Fanfulla, até o momento documentos que possam comprovar ou
13/07/1913 Apud GONÇALVES, Maria Cecília. Relatório descartar a relação de Amisani com o Pensionato no
de Visita, datiloscrito, 21/08/1978, p.1 (cf. pasta Giuseppe Arquivo do Estado de São Paulo. Márcia Camargos, em
Amisani, Biblioteca da Pinacoteca do Estado de São Paulo). seu estudo pioneiro sobre a Villa Kyrial, afirma que a
7
Apud GONÇALVES, Maria Cecília. Relatório de Visita, documentação referente a essa política estatal foi queimada
datiloscrito, 21/08/1978. p.6. O resumo da entrevista feita junto com a quase totalidade de documentos de Freitas
pela autora com Inoccencio Borguese, pintor, em 25/02/ Valle, quando, depois de sua morte, a Villa Kyrial é vendida,
1978 (também parte do relatório de pesquisa), afirma que em 1959 cf. CAMARGOS, Márcia. Villa Kyrial: crônica da
Amisani teria organizado uma exposição em um salão Belle Époque Paulistana. São Paulo: Editora SENAC, 2001.
20
alugado na Av. São João, próximo à Av. Rio Branco, e que Foram pesquisados artigos no Estado de São Paulo e
tal exposição teria propiciado seu contato com a sociedade Correio Paulistano para o referido ano de 1918. Nos
da época (cf. GONÇALVES, Maria Cecília. Relatório de comentários acerca da exposição de 1913 no jornal
Visita, datiloscrito, 21/08/1978. p.1), porém, é de se notar Fanfulla, nos artigos de 13/07/1913 e 24/08/1913 são feitas
que esse contato e seu estreitamento já deveriam haver menções ao quadro, apud GONÇALVES, Maria Cecília.
acontecido já na estadia de 1905-1908. A estadia de 1913- Relatório de Visita, datiloscrito, 21/08/1978, pp 5-6. Na
14 parece ser o momento no qual sua inserção no meio pasta Amisani da Pinacoteca existe uma listagem de 104
paulistano do período já está consolidada. obras, possivelmente um catálogo de exposição, onde se
8
Hoje parte do AFV, sob tutela de Márcia Camargos, que identifica uma “Alcova Trágica” e um “Studio per l’Alcova
pude consultar, por gentileza da pesquisadora, a quem Trágica”, porém não há como comprovar até o momento
agradeço. que se trata da mesma obra ou se essa é a listagem das
9
Por exemplo obras expostas em 1913.
10 21
ROSSI, Miriam Silva. op.cit, p. 104. Van Buren, A. W. “Art activities in Italy – necrology”.
11
Id. Ibid. Parnasus, n.1, vol.4, abril de 1929. p.9.
12 22
Para esse tema, cf. o esclarecedor artigo de ROSSI, Indagando colegas historiadores como Luigi Biondi, ele
Miriam Silva. Op.cit. mesmo italiano, não consegui nenhuma pista para essa
13
CAMARGOS, Márcia. Villa Kyrial: crônica da Belle hipótese.
23
Époque Paulistana. São Paulo: Editora SENAC, 2001, p.51. “Schweizer Kunst – Art Suisse”, Sotheby’s Zurich
14
Id. Ibid. Dienstag, 10 dezembro de 1996. Biblioteca da Pinacoteca
15
Cf. Celebridades & Mitos - O Mundo do Teatro em Antigos do Estado de São Paulo.
24
Cartões-Postais. Painel 7 – Atrizes e atores italianos. “Schweizer Kunst – Art Suisse”, Sotheby’s Zurich
Disponível em: http://www.brasilcult.pro.br/teatro/ Dienstag, 10 dezembro de 1996. p.46.
25
painel07.htm, acesso em 20/02/2008. Romance publicado na “Tribuna illustrata” e no “Mattino”
16
Arte e artisti: l’exposizione Amisani apud GUIMARÃES, de Nápoles, e posteriormente na forma de livro, em 1894.
Maria Cecília. Op.cit., p.6. Não foi possível apurar o destino Gabrielle D’Annunzio. Trionfo della Morte. Milão:
dessa obra até o momento. Em se tratando da mesma tela Mondadori, 1894.
26
“Figura feminile o ritratto di Lyda Borelli”, faz parte da “We are such stuff /As dreams are made on; and our
exposição atualmente em cartaz no Palazzo Roverella em little life/ Is rounded with a sleep”. SHAKESPEARE, W. The
Rovigo (Vêneto, Itália), La belle époque: arte in Italia – 1880- Tempest. Ato 4, cena 1, 148–158.
27
1915, de 10 de fevereiro a 13 de julho 2008. No elenco de PIANTONI, Giana. Roma/Byzance. Italies L’art italien a
obras consta apenas “coleção particular”. l’epreuve de la modernité 1880-1910.. Roma/Paris:
17
Lote 400 do leilão da Christie’s Rome, Arte del XIX Secolo Galleria Nazionale d’Arte Moderna/ Reunion des Musées
,Terça, 30 Novembro, 1999. Disponível em: http:// Nationaux/ Musée d’Orsay, 2001.
28
www. a r t n e t . c o m / A r t i s ts / L o t D e ta i l P a g e . Para essa questão cf. “GINZBURG, Carlo. De A. Warburg
aspx?lot_id=76020EAAC0C5C20C, acesso em 20/02/ a E. H. Gombrich: Notas sobre um problema de método”.
2008. Micro-História e outros ensaios. Lisboa: DIFEL, 1989
18 29
Acervo da Galeria Ricci Oddi de Arte Moderna, Piacenza, Lema introduzido no dístico de São Paulo na gestão do
Itália. Disponível em: http://www.riccioddi.it/ prefeito Washington Luís (O Brasão de Armas do Município
collezione_opere_arte/00008, acesso em 20/02/2008. de São Paulo, instituído pelo Ato nº 1.057, de 08 de março
19
Segundo as regras formalizadas a partir de 1912, isso de 1917), a partir de proposta vencedora em concurso, do
seria impossível, já que se requisitava que o pensionista poeta Guilherme de Almeida e do pintor Wasth Rodrigues.

464
Devemos apresentar nesta comunicação uma
análise da obra Desdêmona1 executada pelo pintor
Rodolpho Amoêdo (1857-1941) e Efeitos de Sol2
executada pelo pintor Belmiro de Almeida (1858-
1935). Não se trata de uma análise comparativa,
trata-se, ao contrário, de demonstrar a originalidade
dos dois pintores que seguiram semelhante
formação artística na segunda metade do século
XIX.

A trajetória artística do pintor Rodolpho Amoêdo é


marcada por uma excelência técnica, atendendo
às expectativas do rígido sistema acadêmico, no
qual seguiu com maestria, desde a formação na
Academia Imperial de Belas Artes e principalmente
durante o período de estudos em Paris, onde
executou suas obras mais notórias.

Após cumprir o período de pensionato, em que


permaneceu nove anos na capital francesa,
Amoêdo retorna ao Brasil em 1887. No ano
seguinte, o pintor realiza na Escola Nacional de
Belas Artes a primeira e única exposição de suas
obras executadas na Europa. A consequência do
absoluto sucesso da exposição é sua nomeação
como professor honorário da Seção de Pintura
Histórica da Academia Imperial de Belas Artes.
Rodolpho Amoêdo estabelece-se então, no Brasil,
dois pintores. duas gerações. em comum, a dedicando-se ao magistério, principalmente como
paixão pela pintura professor de pintura.

márcia valéria teixeira rosa * Da mesma forma, a produção do artista executada


a partir deste período permanecerá em estreita
sintonia com o que era mais atual no ambiente
artístico europeu, garantindo portanto a
originalidade e individualidade de seu trabalho.

Portanto, devemos salientar que seu talento e


principalmente sua atenção para as várias
linguagens artísticas que surgiram na passagem
do século XIX para o XX, determinaram a produção
de variada temática.

Em Parecer datado de 18 de fevereiro de 1888, o


pintor Zeferino da Costa indica a estratégia a ser
tomada pelo recém chegado pensionista em
relação à sua carreira:

... se se nota nos seus quadros a falta de


individualidade que tanto distingue as obras dos
artistas, sendo de suppôr que só a sujeição dos
preceitos do Mestre que o guiou será devida
essa falta, não quer isso dizer que d’ora em
diante livre como deve considerar-se o ex-
Pensionista, não procurará imprimir em suas
obras esse cunho que é, um dos principaes
objectivos do artista. (Parecer datado de 18 de
fevereiro de 1888.)

465
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

Considerando este Parecer, Ana Cavalcanti affirmando o soberano valor de um artista que, entre
justifica que “os mestres brasileiros compreendiam os seus pares, é um grande Mestre”.
o período de estudos na Europa como uma etapa (DUQUE,1929:18)
de aprendizagem. Eles anteviam em seguida uma
liberação do estudante, que deveria conquistar sua Ou seja, Gonzaga Duque percebe que tais
independência artística”.(CAVALCANTI, 2001/ modificações na fatura de Amoêdo só concorrem
2002:82) para que o pintor seja considerado um grande
mestre entre seus contemporâneos e não
Para fazer jus à esta independência artística, determinado apenas pelas pinturas históricas que
destacamos a obra Desdêmona, cuja fatura compuseram os envios obrigatórios.
confere esta modernidade do artista, tendo em
vista a aplicação da pincelada pontilhista para Em 1890, Amoêdo participa das discussões e
criar o efeito de sombra na composição. Na posterior transformação e atualização do ensino
opinião de Quirino Campofiorito, ao utilizar esta acadêmico. O agravamento da polêmica tem como
técnica Amoêdo ... demonstra alguma conseqüência o desligamento do grupo moderno
inquietação em suas últimas produções ... das aulas. Por conseguinte, Rodolpho Amoêdo e
(CAMPOFIORITO,1983:186) os irmãos Bernardelli fundam um Atelier Livre,
localizado no Largo de São Francisco e inspirado
A tela original de Desdêmona foi executada em na Academia Julian, da capital francesa.
Paris em 1891 e esta cópia no Brasil, em 1892. A
narrativa foi inspirada em Othelo, escrita por William Apoiado por professores e intelectuais, o grupo
Shakespeare, entre 1604 e 1605. Na tragédia, promove, ainda em 1890, uma exposição dos
Othelo é um guerreiro que se apaixona pela nobre trabalhos executados por seus integrantes,
Desdêmona. Muito ciumento, Othelo desconfia da exposição que teria sido comparada a um ‘Salon
traição de sua esposa, culminando no assassinato des Independants’. As idéias dos modernos são
de sua amada, sufocando-a na cama. Arrependido, assimiladas e finalmente se realiza uma reforma
ele decide se matar. na AIBA no final do ano.

Na obra de Amoêdo, as pinceladas são aparentes Ao argumentar sobre o suposto autoritarismo dentro
conferindo à pintura uma qualidade diferenciada da Academia, Luis Marques pergunta-se quem
em relação às produções do pintor em períodos realmente era “acadêmico” e “moderno”,
anteriores. Francisco Acquarone atribui este principalmente depois de deflagrada a crise entre
recurso do artista na iluminação do quadro à um 1888 e 1889 em que o “’Atelier Livre’ de Amoedo e
“efeito de penumbra que se acha mergulhada quase Visconti”, mesmo como grupo dissidente, não tinha
toda a composição. O autor afirma que nesta obra nenhuma “divergência estética” com a instituição.
O duplo efeito de luz, isto é, o do luar que banha (MARQUES,2001:22)
em cheio o primeiro plano e o da candeia, cujo foco
está oculto, lambendo escorregadio os contornos Devemos salientar a participação do pintor Belmiro
da figura é positivamente, obra de mestre”. de Almeida neste episódio que marcou
(ACQUARONE,1949:113) definitivamente o cenário artístico brasileiro em fins
do século XIX. Desde jovem, deixou transparecer
Podemos observar o jogo de cores existente em seu descontentamento com o sistema acadêmico
toda a composição, a partir da figura de vigente, frequentando as aulas no Atelie Livre no
Desdêmona; um jogo de luzes opostas, envolvendo qual Amoêdo era um dos professores.
todo o cenário, que iluminam e destacam a mulher.
Amoêdo cria vários efeitos de sombra. A pincelada Mesmo submetido às convenções técnicas e
fina e delicada sugere um efeito de transparência. portanto atento aos preceitos metodológicos, a
trajetória artística de Belmiro de Almeida é marcada
Em relação às obras executadas por Amoêdo a por uma afinidade às correntes estilísticas de
partir de 1888, Luis Marques afirma que elas vanguarda. Dividiu-se entre a Europa e o Brasil,
mostram “uma modernidade insuspeitada, produzindo obras de excepcional qualidade técnica,
sobretudo pela violência e materialidade da cor e participando dos Salões, conquistando inúmeras
pela rapidez gestual do traço, por vezes não premiações.
distante do expressionismo”. (MARQUES,2001:29)
Ao traçar o perfil de Belmiro de Almeida, Gonzaga
Esta liberdade artística é apontada por Gonzaga Duque destaca o comportamento do artista dividido
Duque como “um desviamento que impressionaria entre a boêmia e sua carreira artística. “Quando
muitissimo”. O crítico afirma que: [...] “ficará solteiro foi um boêmio desregrado, um perfeito tipo

466
Desdêmona de Rodolpho Amoêdo e Efeitos de Sol de Belmiro de Almeida

à murger ... tinha na cabeça um cento de assuntos procedimentos não tinham aceitação do meio
para pintar e em casa um cento de quadros para artístico e da sociedade. (REIS JR., 1984:29-30)
concluir “ . Mas o crítico reconhece que como artista
Belmiro possui “uma feliz compreensão de seu O autor defende que a obra Efeitos de Sol
tempo e do destino da pintura moderna”. (DUQUE, representou para a sociedade republicana um
1995) “passo gigante na compreensão do modernismo,
mostrando-nos em primeira mão a nova técnica que
Este perfil boêmio muda quando o pintor casa-se revolucionava a pintura e as artes em geral”.(REIS
e viaja com certa frequência principalmente para JR, 1984:36).
Paris, para seu aperfeiçoamento e a partir deste
momento, sente a necessidade de uma dedicação Sobretudo nas opiniões de seus biógrafos,
maior à pintura. verificamos o reconhecimento que os dois artistas
alcançaram ainda no auge de sua respectivas
O professor Celso Kelly atribui uma sinceridade de carreiras. Angyone Costa traça o perfil sobre a vida
execução, enfatizando “o gosto do cotidiano, e obra de Rodolpho Amoêdo, tecendo-lhe inúmeros
resultado da observação sempre atenta para tudo elogios, ressaltando sua vitalidade, vontade de
quanto o cercava”. O autor reconhece o talento de vencer e personalidade combativa. A impressão
Belmiro principalmente no que diz respeito à que o repórter tem do pintor é a de um homem de
dedicação como pintor e desenhista. Por outro lado, conceito e expressões amargas. Um artista que
discordamos de sua opinião quando refere-se às aos 70 anos “... impõem-se-nos como um luctador
pinturas pontilhistas como “alguns ensaios tímidos de vinte. [...] Nelle, apesar da forte descarga de
de inovação”, considerando que tais obras são scepticismo e ironia, nota-se a individualidade que
exemplos de um ineditismo na arte brasileira. quiz e soube vencer”. [sic] (COSTA, 1927:59)
(KELLY, 1958:164).
No ensaio escrito em 1905, Gonzaga Duque
Por isso, destacamos na produção artística de identifica a “rotina do ensino archaico”, mas salienta
Belmiro de Almeida a obra Efeitos de Sol, a modificação de Amoêdo quanto à teoria da cor.
apresentada na primeira exposição do artista em (DUQUE,1905:11) O crítico tece muitos elogios aos
1893. Executada na Itália, a composição é marcada trabalhos executados por Amoêdo, classifica sua
pela pincelada pontilhista, cuja figura feminima de pintura como perfeita, dotada de
pé entretida com a leitura destaca-se sob a
paisagem. Portanto, tecnicamente, a obra segue ... um equilibrio de sobriedade e brilho, que só
os mesmos parâmetros formais da escola francesa elle possue em tão justas proporções e que
instaurada por Seurat e Signac, sobretudo a perfeito lhe sáe das longas mãos claras - ...,
escolha das tintas e pincelada constituída por que são indicativas do pensamento como a
toques curtos e justapostos. forma espatulada inculca a ordem, o methodo
e a perseverança, não obstante o idealismo do
Considerando que na França a pintura pontilhista typo chirognomonico. [sic] (DUQUE, 1905:12)
causava grande repercução para a crítica e o
público, José Maria dos Reis Jr, no livro dedicado Observamos que Gonzaga Duque sempre refere-
à trajetória artística do pintor, surpreende-se que se ao pintor com entusiasmo. Utilizando uma
Belmiro de Almeida, ao expor sua obra no Brasil, linguagem erudita, descreve todo o aprendizado
não tivesse qualquer comentário dos dois principais de Amoêdo e as obras executadas principalmente
críticos na época, Angelo Agostini e Gonzaga em Paris, apontando em cada uma delas os
Duque. O historiador aponta esta indiferença com detalhes formais e comparando-as de maneira
perplexidade, sobretudo porque compara a reação poética.
de ambos em relação à obra Arrufos, executada
em 1887 e largamente exaltada pelo seu caráter Em relação ao pintor Belmiro de Almeida,
realista. assinalamos a conferência, igualmente entusiasta,
de Celso Kelly na comemoração de centenário de
No entanto, para Reis Jr, o silêncio da crítica não nascimento de Belmiro de Almeida, em que destaca
minimizam a posição vanguardista ocupada por os principais méritos do pintor, quanto à sua
Belmiro de Almeida na história da pintura brasileira, universalidade. Na opinião do professor, Belmiro
cuja obra foi o resultado de suas várias viagens à era um “rebelde de temperamento, irreverente de
Paris, em que esteve atento para os “círculos atitude” (KELLY, 1958:164)
expressivos e atuantes além dos limites
convencionais da École de Beaux Arts e da Interessante observarmos aspectos semelhantes
Academie Julien”, enquanto no Brasil tais no perfil de ambos, o humor mordaz, o prazer em

467
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

pintar, o espírito empreendedor e principalmente o a composição é estabelecida no interior do luxuoso


talento reconhecido. Rodolpho Amoêdo foi um leito da protagonista. As pinceladas finas são
incansável professor, mantendo sua carreira a aplicadas para criar um efeito de sombra como na
serviço da arte, sempre preocupado com os mão direita de Desdêmona, que pende sobre o
variados processos técnicos. lençol. A cabeleira ruiva da personagem destaca-
se na composição e é composta por variada gama
No particular de sua atuação, devemos destacar o de cores aplicadas com uma delicada pincelada,
ensino de variados processos de pintura, como que à distância criam o efeito “cor de fogo”.
têmpera a ovo, afresco, encáustica e aquarela. Na Considerando as obras que o pintor executou
exposição organizada por Elza Ramos Peixoto em anteriormente, é surpreendente a reação de críticos
comemoração ao centenário de nascimento de e historiadores ao se defrontarem com esta
Amoêdo, foram exibidas não somente as principais produção.
produções de Amoêdo ao longo de sua carreira,
mas aquelas em que o pintor utilizou diferentes Em Efeitos de Sol, a ambientação ‘plein air’
técnicas e suportes. denuncia uma tradição desde a pintura
impressionista. Nota-se a preocupação do pintor
Alfredo Galvão destaca a erudição de Amoêdo, com a distribuição e organização da luz,
posto que o pintor estendeu seus conhecimentos submetendo cada elemento do quadro ao seu
sobre a química dos produtos utilizados nas telas, critério pessoal. Para tanto, utiliza pinceladas curtas
como “os pigmentos coloridos, dos óleos, dos emparelhadas, aplicadas com espessa camada de
solventes, dos vernizes”. (GALVÃO, 1980:55). tinta, “construindo” toda a composição,
subordinando a cor ao desenho, suavizando os
Belmiro de igual talento, dividiu-se entre a pintura, contornos.
a caricatura, a imprensa onde colaborou em
diversos periódicos, a poesia e a escultura. O Reis Jr insiste em atribuir ao pintor um pioneirismo
temperamento inquieto do pintor necessitava de e uma ousadia na utilização do pontilhismo naquele
constante atualização. No entanto, para atender às momento, considerando que Efeitos de Sol estava,
opiniões dos professores, a quem Belmiro por seu tratamento pictórico, muito afinada com a
respeitava, ele não rompe o vínculo com a vanguarda européia, muito embora o autor
Academia. Ao contrário, submete-se às diretrizes reconheça que somente em obras posteriores
da instituição participando das Exposições Gerais Belmiro irá aprimorar os procedimentos técnicos
e atuando no exercício do magistério em curtos difundidos por Seurat.
períodos sem, contudo, abandonar seu desejo de
modernização. Ao escolhermos os dois pintores de distinta geração
para este I Colóquio dedicado ao estudo da arte
Novamente um ponto comum entre os dois artistas brasileira no século XIX, esboçamos alguns pontos
que desejaram, cada a seu modo, favorecer o de suas trajetórias artísticas, sua conquistas, mas
processo de modernização da instituição. Ambos principalmente destacar obras estreitamente
trabalharam para a melhoria das condições de ligadas à produção realizada na França no mesmo
trabalho dos artistas. Em 1890, juntamente com período.
Rodolfo Bernardelli, Amoêdo participou da
reformulação curricular da Academia transformada Devemos concluir que tanto a dedicação de
em Escola Nacional de Belas Artes. Em 1930, a Rodolpho Amoêdo quanto de Belmiro de Almeida
convite de Gelabert de Simas, Belmiro fundou o em suas produções, estabeleceram certamente
Sindicato dos Artistas, fato que representou o uma inovação formal no cenário artístico brasileiro
primeiro sindicato de profissões liberais no Brasil. no oitocentos.

A atuação firme e apaixonada de Amoêdo à frente Referências bibliográficas


do ensino e igualmente apaixonada e irreverente
atitude de Belmiro, legitimam uma posição ACQUARONE, Francisco. Mestres da Pintura no
marcante destes dois artistas na arte brasileira. E Brasil. Rio de Janeiro: Ed Paulo de Azevedo Ltda
na análise das obras destes dois mestres podemos (Livraria Francisco Alves), 1949.
também estabelecer semelhante preocupação às BRAGA, Theodoro. Artistas Pintores no Brasil.
atualizações técnicas, buscando a perfeita São Paulo: Editora Limitada, 1942.
assimilação de seus procedimentos. CAMPOFIORITO, Quirino. História da Pintura
Brasileira no Século XIX. Rio de Janeiro: Edições
Em Desdêmona, Amoêdo ainda mantém-se tanto Pinakotheke, 1983.
fiel ao desenho, quanto a narrativa, e portanto toda CAVALCANTI, Ana Maria Tavares. Os Prêmios de

468
Desdêmona de Rodolpho Amoêdo e Efeitos de Sol de Belmiro de Almeida

Viagem da Academia em Pintura. PEREIRA, Sônia MARQUES, Luiz. Introdução. Catálogo de


Gomes (org.). 185 Anos de Escola de Belas Artes. Exposição 30 Mestres da Pintura no Brasil.
Rio de Janeiro, PPGAV EBA/U.F.R.J.: Anais do Mai.2001.
Seminário da Escola de Belas Artes, 2001/2002. MIGLIACCIO, Luciano. O Século XIX. Mostra do
COSTA, Angyone. A Inquietação das Abelhas. Rio Redescobrimento. Fundação Bienal de São Paulo.
de Janeiro: Pimenta de Mello & Cia, 1927. São Paulo, 2000.
DUQUE-ESTRADA, Luis Gonzaga. Rodolfo REIS JR., José Maria dos. Belmiro de Almeida
Amoedo. Kosmos: revista artística, scientífica, e (1858-1935). Rio de Janeiro: Edições Pinakotheke,
literária. Rio de Janeiro, jan 1905. n.1, 2o ano. 1984.
_____. Contemporâneos (Pintores e RUBENS, Carlos. Jornal Bellas Artes. Ano II. Rio
Esculptores). Rio de Janeiro: Typ. Benedicto de de Janeiro, jul-ago, 1936, nos 17-18; set-out, 1936,
Souza, 1929. nos 19-20.
_____. A Arte Brasileira. Introdução e Notas Tadeu
Chiarelli. Campinas: Mercado de Letras, 1995. Notas
GALVÃO, Alfredo. José Ferraz de Almeida Júnior
* EBA/UFRJ. Mestre. Professora do Curso de Pós
e Rodolfo Amoedo. SOUZA, Wladimir Alves de et
Graduação da Veiga de Almeida.
alii. Aspectos da Arte Brasileira. Rio de Janeiro: 1 Coleção Museu Nacional de Belas Artes, 1892, óleo sobre
Funarte, 1980. tela, 97 x 130,5 cm.
LEITE, José Roberto Teixeira. Dicionário Crítico 2 Coleção Museu Nacional de Belas Artes, 1892, óleo sobre
da Pintura no Brasil. Rio de Janeiro: Artlivre,1988. tela, 100 x 65 cm.
KELLY, Celso. Belmiro de Almeida. Arquivos da
Escola de Belas Artes. 1958.

469
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República
Apesar dos avanços inegáveis entre pesquisadores
e especialistas nos últimos dez anos, ainda se
costuma presumir excessiva continuidade entre a
Academia Imperial de Belas Artes e a Escola
Nacional de Belas Artes, sua sucedânea. A noção
de uma emenda perfeita entre as duas instituições
está subsumida na grafia “AIBA/ENBA”,
freqüentemente adotada por estudiosos para
facilitar generalizações aplicáveis a ambas as
siglas. Precisamos problematizar essa barra. Há
continuidade, sim, entre as duas entidades, sem
dúvida; mas há também diferenças suficientes para
que mereçam discussão e análise como
instituições distintas, produtoras de práticas,
estruturas, discursos e sentidos diversos em
termos de ensino, exposição e até mesmo
posicionamento estético e político. Felizmente,
novas pesquisas estão em curso que tenderão a
esclarecer melhor os meandros da transição entre
AIBA e ENBA, dando conta das rupturas e
mudanças, talvez pela primeira vez na historiografia
dessa área.2

Os únicos interessados em manter a falta de


diferenciação entre essas instituições são os
grupos comprometidos com a desgastada
contraposição entre um ‘academismo’ retrógrado
intimidade e reflexão: repensando a década de e um ‘modernismo’ revolucionário, ambos
1890 reduzidos a categorias monolíticas e portanto
enganosas.
1
rafael cardoso
O presente texto não pretende discutir a reforma
da Academia e sua transformação em Escola
Nacional, ocorrida no período crítico da transição
republicana entre 1889 e 1890. Basta lembrar que
essa mudança não foi imediata, e nem fruto de
qualquer unanimidade. Como todo o resto do
processo de consolidação da República, deu-se
aos trancos e barrancos. Passou quase um ano
entre a nomeação da comissão encarregada de
elaborar projeto de reforma da AIBA, em 30 de
novembro de 1889, e os dois decretos que deram
existência legal à ENBA, ambos datados de
novembro de 1890. Nesse período de interinidade,
surgiram pelo menos três projetos de reforma,
apoiados por grupos concorrentes. Agravando
ainda mais a precariedade desses doze meses,
foi deflagrada em abril a revolta aberta contra a
Academia que resultou na criação de cursos livres
no barracão do Largo de São Francisco, realizados
entre os meses de julho e outubro, segundo relatos
em jornais da época. Contando com Rodolpho
Bernardelli e Rodolpho Amoedo como principais
articuladores entre os professores e com Eliseu
Visconti e João Baptista da Costa como lideranças
estudantis, o chamado episódio do ‘Ateliê Livre’
configura o que há de mais próximo a uma
dissidência, propriamente dita, na longa história do
ensino oficial de arte no Brasil.3

470
Intimidade e reflexão: repensando a década de 1890

Os embates institucionais costumam atrair bastante cidade efervescente, oferecendo diversas opções
interesse da parte dos historiadores, porquanto de lazer e de entretenimento. Escrevendo em 7 de
evidenciam as fissuras do sistema. No presente julho de 1872, n’A Semana Ilustrada, o colaborador
caso, no entanto, faz-se importante não perder de que assinava ‘Ninquem’ emitia o juízo: “Agora o
vista que a crise de transição entre AIBA e ENBA povo fluminense não tem razão de queixa. Há
reflete um panorama maior de expansão e divertimentos para todas as classes.” Dentre estas,
fortalecimento do meio artístico como um todo. A ele destaca a “exposição de belas-artes para os
relativa decadência da Academia tem por paralelo competentes” e a “rua do Ouvidor para os
a ascendência de outras instâncias e instituições, vagabundos e elegantes”. Com um misto bem
correspondendo a uma maior diversidade, carioca de ironia e otimismo, o articulista assevera:
complexidade e amadurecimento de público, crítica, “O Rio de Janeiro é na verdade uma Babilônia pela
artistas e outros agentes novos como galerias. variedade das distrações que proporciona, quando
Entre 1880 e 1890, a AIBA se afundava em não o seja pela quantidade dos portentos de pedra
dificuldades orçamentárias e imbróglios políticos e de carne que encerra.”4 Esta opinião não era
que impediram a realização regular das exposições compartilhada por todos, é claro. Em seu grande
gerais e dos prêmios de viagem, além de sofrer livro O Rio de Janeiro: Sua história, monumentos,
queda de matrículas e supressão do curso noturno. homens notáveis, usos e curiosidades, de 1877,
O pedido de demissão do moribundo diretor Nicolau Moreira de Azevedo critica duramente a falta de
Antônio Tolentino, em março de 1888, deu lugar à “gosto artístico” prevalente e denuncia os próprios
direção pouco convincente do engenheiro Moreira artistas, que “vivem essa vida de indiferença e
Maia, o qual permaneceu no cargo até sua própria marasmo que nada concebe e produz.”5 Contudo,
morte em julho de 1890 (exaurido, possivelmente, a simples existência de um livro como o seu
pelo esforço heróico de realizar a primeira demonstra uma consciência que é reflexo do
Exposição Geral em seis anos, inaugurada em amadurecimento cultural característico da década
março daquele ano), deixando a casa acéfala. de 1870. Talvez a avaliação de Moreira de Azevedo
Enquanto isso, o meio artístico local experimentava fosse menos severa se ele tivesse escrito após a
uma efervescência e um pluralismo nunca antes “batalha das Batalhas” que dominou a percepção
vistos. Após o retumbante sucesso das exposições jornalística do Salão de 1879, colocando em
do Liceu de Artes e Ofícios, a qual revelou a obra confronto as obras A Batalha de Avahy, de Pedro
de Georg Grimm, e da individual de Almeida Júnior, Américo, e Primeira Batalha dos Guararapes, de
recém regressado da Europa, ambas em 1882, os Victor Meirelles. O furor público em torno dessas
amantes de arte da Corte imperial assistiram a uma obras gerou uma freqüência impressionante aos
sucessão de exposições em galerias como as salões da Academia e suscitou a publicação dos
casas De Wilde, La Glace Élégante e Insley textos que consolidaram a crítica de arte no Brasil.6
Pacheco, dentre as quais vale citar as individuais
de Arsênio da Silva, Aurélio de Figueiredo e Firmino É possível identificar um amplo movimento, entre
Monteiro, em 1883. A partir de 1886, esse as décadas de 1870 e 1890, de progressiva
movimento intensificou-se, com a realização das intensificação da vida cultural e intelectual da Corte
exposições de Facchinetti e Henrique Bernardelli, que corresponde ao ingresso do Brasil – ou, pelo
nas salas da Imprensa Nacional, e de Castagneto, menos, de uma parcela de suas elites – no mesmo
na galeria Vieitas, assim como exposições regime de modernidade que era irradiado a partir
estudantis na própria Academia. O circuito de centros como Londres e Paris desde a década
expositivo paralelo aos Salões já estava de 1850, pelo menos. Essa gradativa mudança de
definitivamente consolidado a essa altura, hábitos envolve a busca consciente do lazer e do
permitindo inclusive a maior regularidade de uma entretenimento, conceitos fundamentais para a
crítica de arte que revelou, nesses anos, Felix construção da própria idéia de modernidade, assim
Ferreira, Gonzaga Duque e Oscar Guanabarino, como uma ênfase crescente no espetáculo como
entre outros. forma de organização social. De modo
concomitante, o meio artístico do Rio de Janeiro
Na verdade, é preciso recuar no tempo mais um foi palco de uma liberalização de costumes, quase
pouco ainda para localizar a origem desse silenciosa, mas nem por isso menos
movimento. Se o meio artístico brasileiro mostrava impressionante. A recepção dada à tela A
sinais de amadurecimento no final dos anos 1880, pompeiana, de João Zeferino da Costa, quando de
já era possível antever a promessa desse fruto na sua exposição no Salão de 1879, surpreende pelo
década anterior. As páginas das principais revistas pouco escândalo provocado por um nu tão gratuito
ilustradas da década de 1870 traem uma percepção e ousado. Em comparação com o frisson causado
nova e surpreendente do Rio de Janeiro como uma cerca de quinze anos antes pela pequena A carioca,

471
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

de Pedro Américo, passou batido o grande nu de de representação e até de auto-representação.


Zeferino, mesmo sendo claramente provido de Após a aparição, em 1862, do volume, Brasileiras
carga sexual. Tirante a bombástica censura de célebres, de autoria de Joaquim Norberto de Silva
Gonzaga Duque – emitida oito anos depois do fato e Souza, sobreveio a tentativa de dar consistência
– A pompeiana foi alvo mais de elogios do que de histórica ao papel da mulher na formação social
críticas, evidenciando o relaxamento de velhos brasileira, culminando com a publicação, em 1899,
padrões moralistas que passava a vigorar na Corte do livro influente Mulheres ilustres do Brasil, de
no período pós-Guerra do Paraguai. Ignez Sabino. Em paralelo a essa consciência
incipiente da mulher como agente da história
O sentido de traçar esse lento movimento ocorrido nacional, surge toda uma série de representações
ao longo das décadas anteriores é de chamar a de protagonistas femininas nas páginas da
atenção para a existência de um novo público literatura brasileira – geralmente, escritas por
consumidor de arte e cultura, o qual se encontrava homens –, as quais buscam explorar a intimidade
consolidado na década de 1890. Geralmente e a psicologia das mulheres. São bons exemplos
englobado por termos genéricos como ‘elite cultural’ dessa tendência alguns romances de José de
ou ‘burguesia urbana’, esse segmento social Alencar, como Lucíola (1862) e Senhora (1875),
corresponde melhor à idéia de “uma ilha de ou do Visconde de Taunay, como Manuscrito de
letrados”, desenvolvida por José Murilo de Carvalho uma mulher (1873) e O declínio (1899), entre
em A construção da ordem (1980). 7 Grupo por outros. Acompanhando esse olhar masculino para
demais reduzido para figurar com destaque das o universo feminino, o mesmo período também
análises socioeconômicas ortodoxas, essa camada testemunhou o surgimento de um número razoável
constituída por grandes comerciantes prósperos, de mulheres artistas, as quais participaram em
funcionários públicos, militares de alto patente, crescente número das Exposições Gerais da AIBA
profissionais liberais, homens de letras, seus – a partir de 1844, quando a pioneira Emma
familiares e agregados, exerceu contudo um papel Gabrielle Piltegrin Gros de Prangey expôs cinco
primordial nos rumos políticos da época. Foi, obras. Dentre as muitas mulheres cujos nomes
notoriamente, em seu seio que o abolicionismo e aparecem nos catálogos dessas exposições, até o
o republicanismo encontraram seu primeiro abrigo, final do período imperial, estão: Adele Moreau,
refundindo os próprios parâmetros de nação e Amelia Moreau, Angela Hoxse, Cornélia Ferreira
estado nos anos 1888 e 1889. É curioso reparar o França, Delphine Malbert, Francisca Breves,
quão pouco esse grupamento social tem sido Guilhermina Tollstadius, Henriette Gudin, Isabel
considerado na historiografia da arte brasileira, Alberto, Isabel Henninger, Isabel Labourdonnais
dada sua importância inegável na imprensa, na Gonçalves Pinho, Joana Teresa Alves de Carvalho,
literatura e em outros campos afins. Afinal, os Josefina Houssay, Júlia Labourdonnais Gonçalves
primeiros colecionadores particulares de arte eram Roque, Julieta Adelaide dos Santos, Julieta
oriundos precisamente desse segmento, ao lado Guimarães, Luiza Hoxse, Madame Saint de Julien,
da nobreza propriamente dita, com a qual muitas Margarida Fortunata de Almeida, Maria Adelaide
vezes ele mantinha vínculos por casamento ou Portugal Saião Lobato, Maria Adelaide de
pelos meandros intrincados do sistema de Vasconcelos, Maria Antônia Abreu Lima, Matilde
honrarias imperiais.8 Ademais, diferentemente do Bosísio, Maria Cochrane de Araújo Gondin, Raquel
grupo conhecido pela alcunha “homens de letras”, Haddock Lobo, Rosa da Mota, Virginia Lombardi,
o público freqüentador de exposições e consumidor e ainda diversas senhoras e senhoritas listadas sob
de obras de arte era de gênero misto. O anonimato, ou somente pelas iniciais ou pelo
amadorismo – ou apreciação de arte e sua prática primeiro nome. Em alguns poucos casos, uma
em âmbito privado – era visto como uma ocupação expositora era identificada como “artista amadora”,
aceitável para mulheres, dentro da rígida separação designação atribuída, por exemplo, a Francisca A.
de gêneros da época, e era até incentivado. Isto Torres, filha do Visconde de Itaboraí, quando de
posto, o meio artístico fornece um estudo de caso sua participação no Salão de 1866. Merece
de extrema relevância para iluminar um dos mais destaque, nessa considerável seara de artistas
obscuros “recônditos do mundo feminino” na mulheres, Abigail de Andrade, cuja aparição,
história da sociedade brasileira.9 primeiramente na exposição do Liceu em 1882 e
depois no Salão de 1884, obteve merecido
Vale ainda uma pequena digressão, a título de reconhecimento, dando ótimo início a uma carreira
definir melhor a especificidade desse novo público interrompida por sua morte precoce em 1889.10
de arte. O mesmo período entre as décadas de
1870 e 1890 compreende a cristalização no Brasil A existência desse público ilustrado – não somente
de uma noção distinta de universo feminino, digno letrado, mas ilustrado, no mais perfeito sentido do

472
Intimidade e reflexão: repensando a década de 1890

termo – explica o paradoxo aparente da sob o título brasileiro de O descanso da modelo, e


ascendência e fortalecimento do meio artístico no a obra de maior sucesso da exposição.14
exato momento em que a Academia enfrentava seu
período mais crítico de declínio e crise, chegando De modo geral, nota-se um aumento de cenas de
quase à extinção. A tirar pelas indicações de interior doméstico, ao longo do último quartel do
propriedade e proveniência que figuravam dos século 19 brasileiro, pelo menos tirando pelos
catálogos dos Salões, os novos colecionadores de dados disponíveis nos catálogos dos Salões. É
arte eram não somente Suas Majestades e Suas notável que tenham ganhado popularidade, nas
Altezas Reais, viscondes, barões e comendadores, décadas de 1880 e 1890, quadros que retratam
mas um número nada desprezível de pessoas sem cenas de ateliê. Além das produções citadas de
título algum, inclusive umas poucas mulheres. Isto Almeida Júnior – e ainda outras do mesmo pintor
só pode ter afetado a produção artística, à medida como Ateliê em Paris (1880) e O importuno (1898)
que os artistas vivem de sua arte e, por –, diversos outros artistas renderam-se aos
conseguinte, são obrigados a produzir aquilo que encantos dessa temática, na esteira do sucesso
o público consumidor é desejoso de adquirir e de Descanso da modelo. Enquanto nenhuma cena
capaz de absorver. Na hipótese plausível de que de ateliê figura da lista de quase 400 obras expostas
tenha se repetido, no Brasil, a mesma tendência no Salão de 1879, a Exposição Geral seguinte, de
das classes médias européias de preferir quadros 1884, inclui obras desse subgênero de autoria de
menores de paisagem, natureza-morta e costumes Abigail de Andrade, Almeida Júnior, Belmiro de
às grandes telas históricas, religiosas ou Almeida e Oscar Pereira da Silva (cópia d’O
mitológicas, deveria ser possível detectar um descanso do modelo). Em anos seguintes, o
aumento de obras do primeiro tipo.11 A predileção mesmo assunto renderia obras marcantes do pincel
pela pintura de costumes e assuntos domésticos, de artistas como Henrique Bernardelli, Pedro
em detrimento dos grandes temas históricos, é Weingärtner, Raphael Frederico e Rodolpho
claramente sinalizada como prova de atualidade Amoedo, entre outros, tornando-se corriqueira após
por Gonzaga Duque, em A arte brasileira (1888), 1900.
como parte de sua avaliação da tela Arrufos (1887),
de Belmiro de Almeida: As cenas de ateliê são especialmente interessantes
por serem representações auto-reflexivas: obras
Os assuntos históricos têm sido o maior que falam sobre o fazer artístico e geralmente se
interesse dos nossos pintores que, dirigem a quem se interessa pelos bastidores do
empreendendo-os, não se ocupam com a ofício. Guardadas as diferenças, sua recepção tem
época nem com os costumes que devem formar algo em comum com o modo como o público de
os caracteres aproveitáveis na composição cinema hoje aprecia e consome os chamados
dessas telas. Belmiro é o primeiro, pois, a making of’s, filmes que documentam a produção
romper com os precedentes, é o inovador, é o de outros filmes. No complexo panorama de
que compreendendo por uma maneira clara a relações de gênero do último quartel do século 19,
arte do seu tempo, interpreta um assunto novo. as cenas de ateliê também detêm um interesse
Vai nisto uma questão séria – menos a de uma peculiar pelo modo em que retratam as relações
predileção do que a de uma verdadeira entre homens e mulheres. O aspecto mais
transformação estética. O pintor desprezando chamativo do quadro O descanso do modelo é a
os assuntos históricos para se ocupar de um contraposição entre o pintor vestido e as costas
assunto doméstico, prova exuberantemente nuas da “bela rapariga morena como a casca da
que compreende o desideratum das sociedades caneleira”, no dizer de Felix Ferreira.15 Não por
modernas [...]12 acaso, esse confronto entre vestido e despida
recorre n’O importuno, do mesmo Almeida Júnior.
Gonzaga Duque erra, intencionalmente ou não, ao Pela atipicidade da situação retratada, a cena de
atribuir a Belmiro o pioneirismo nessa atitude. ateliê apresenta uma das poucas instâncias, à
Outros o fizeram antes: notadamente, Almeida época, em que a intimidade do espaço privado era
Júnior, que causou furor no Rio de Janeiro com dada a ver publicamente, com o agravante de
sua exposição individual de 1882, atraindo mais misturar homens e mulheres em relações ambíguas
de mil visitantes por dia, segundo o relato de Felix e francamente sugestivas de uma transgressão das
Ferreira. Duas obras de destaque nessa exposição normas convencionadas para a convivência
eram justamente pinturas de gênero – ambas, aliás, respeitável entre os sexos. Para quem duvida do
representações de cenas de ateliê – Um cantinho potencial explosivo dessa combinação de homens
de atelier,13 e Pendant le repos, tela consagrada trajados e mulheres peladas, é só lembrar que a
transferência dessa situação de um interior para o

473
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

ambiente externo condicionou um dos grandes representação das figuras femininas, até então
embates do século 19 sobre a imoralidade das bastante rígido, quando não ausente. Surgem na
imagens: o caso do quadro Le déjeuner sur l’herbe arte brasileira das décadas de 1880 e 1890, talvez
(1863), de Manet.16 pela primeira vez, numerosas representações de
mulheres, com direito à profundidade e à agência
Quão fascinante, então, é constatar a existência psicológicas. Tal constatação aplica-se às já citadas
de cenas de ateliê pintadas por artistas brasileiros, cenas de ateliê e, com maior perfeição, a imagens
nesse período, em que o gênero é invertido e a de contemplação feminina como Moça na janela
mulher representada como pintora! É o caso de (1891), de Aurélio de Figueiredo (Coleção Fadel),
pelo menos duas telas bem conhecidas: No ateliê Retrato de senhora (1895), de Henrique Bernardelli
(1884), de Pedro Weingärtner (hoje na coleção (Pinacoteca do Estado), ou às absortas leitoras de
Sérgio Fadel), e Moça pintando (1894), de Almeida Almeida Júnior em Leitura (1892) e Saudades
Júnior, pequeno óleo sobre madeira em que o (1899) (ambas, Pinacoteca), todos estes
espectador observa por cima do ombro de uma representativos da geração de pintores que então
pintora absorta no esforço de evocar uma chegava ao reconhecimento popular. De modo
paisagem. Se a ‘economia de trocas simbólicas’ menos evidente, ela poderia ser aplicada também
usual das cenas de ateliê costumava passar pela a imagens nada inovadoras, em termos estilísticos,
oportunidade de franquear ao olhar masculino a como os quadros de Pedro Américo, Judith rende
representação de um corpo feminino despido e graças a Jeova por ter conseguido livrar sua pátria
vulnerável, como entender esses quadros em que dos furores de Holofernes (1880) e Moisés e
mulheres aparecem não somente completamente Jocabed (1884) (ambos, Museu Nacional de Belas
vestidas, mas ainda engajadas ativamente na Artes). Embora mostrem mulheres de ação e
produção da própria obra de arte? Nitidamente, atitude, essas telas ainda estão fortemente
existe aí uma inversão de valores que não pode comprometidas com o regime antiquado de pintura
ser dissociada do surgimento do público ilustrado histórica e mitológica, e foram produzidas lado a
citado acima, compreendendo a participação lado com exemplos os mais descarados de
constante de mulheres no mesmo, ainda que voyeurismo pictórico como a nova versão d’A
minoritária. Esse novo público buscava uma outra carioca (1882), O noviciado (1894) e A primeira
representação da mulher, condizente com sua culpa (1898), todos do mesmo pincel. 18 Não é
crescente sofisticação e cosmopolitismo. possível – e nem desejável, aliás, por ser
maniqueísta – sugerir uma dualidade rígida opondo
A existência de recônditos femininos dentro do meio uma geração ‘acadêmica’, de saída, a uma nova
artístico dessa época demanda uma avaliação do geração, sensível ao universo feminino.
fenômeno sob a ótica daquilo que Griselda Pollock
definiu como “espaços da feminilidade” na arte Sem querer exagerar a contraposição, mesmo
oitocentista: assim, é notável o engajamento da pintura brasileira
nas décadas de 1880 e 1890 com a representação
Os espaços da feminilidade são aqueles a partir desses “espaços da feminilidade”, reflexo
dos quais a feminilidade é vivida como certamente de mudanças mais amplas nas práticas
posicionamento no discurso e na prática social. sociais que cercavam a visibilidade das mulheres
Eles são produtos de uma sensação vivenciada na sociedade – em especial, na chamada ‘boa
de localização, mobilidade e visibilidade sociais, sociedade’. Um quadro como Más notícias (1895),19
inserida nas relações sociais de ver e ser visto. de Rodolpho Amoedo (MNBA), é simbólico não
Formados no interior das políticas sexuais da somente desse olhar diferenciado para a psicologia
visão, eles delimitam uma determinada feminina, como também de uma nova pintura,
organização social do olhar que, por sua vez, elegante e mundana, que então despontava com
se volta para assegurar uma determinada grande força nas principais capitais do mundo. Os
ordenação da diferença sexual. A feminilidade nomes mais representativos dessa tendência são
é tanto condição quanto efeito.17 James Tissot e John Singer Sargent, artistas que
compartilhavam um olhar atento às nuanças do
No caso brasileiro, não se está a falar de estratégias
universo feminino e da alta sociedade, recheando
de representação especificamente femininas,
seus quadros de evocações ricas de moda e
discerníveis no espaço pictórico pela recorrência
interiores, retratando com grande sensibilidade as
de cacoetes de proximidade e compressão, como
alegrias das noites de gala e o tédio dos dias de
aquelas que a autora atribui às produções de
ócio. São representações freqüentemente
artistas como Mary Cassatt e Berthe Morisot. Por
decorativas, às vezes frívolas, nas quais a mulher
espaços da feminilidade, entende-se aqui uma
é vista como objeto de fruição masculina, sim, mas
relativa flexibilização do regime tradicional de

474
Intimidade e reflexão: repensando a década de 1890

com direito a alguma agência e muita profundidade primeiro passo em direção a uma nova organização
psicológica. Em contraponto com as auto- social que permitisse maior pluralidade, diversidade
representações femininas que passaram a grassar e heterogeneidade.
com maior desenvoltura nos salões europeus,
essas obras vêm sendo resgatadas pelos Se a dimensão psicológica de algumas obras de
historiadores da arte como uma preciosa arte dessa época continua a ser subestimada ou
documentação visual de uma das mudanças mais até negada, isto tem muito mais a ver com os
importantes dessa época: o início da emancipação preconceitos da historiografia posterior do que com
da mulher na sociedade industrial.20 qualquer deficiência das obras. Do movimento
republicano em diante – passando por positivistas
Sargent e Tissot moviam-se ambos no circuito e marxistas, desenvolvimentistas e neoliberais, com
internacional de arte que então começava a igual fervor – a aposta ideológica de muitos tem
despontar entre Paris, Londres e Nova York, movido sido na história do Brasil como fruto de movimentos
por crescentes interesses mercadológicos – em coletivos e de forças impessoais como raça e
especial, o influxo de ricos colecionadores classe ou geografia e economia. Tal postura
americanos no cenário artístico europeu. Como pressupõe a reificação do conceito abstrato que
eles, muitos outros – artistas franceses, ingleses, atende pelo nome de ‘Povo’ (com direito à
americanos e de outras nacionalidades, inclusive maiúscula inicial). Para boa parte de nossa tradição
brasileiros – passavam a integrar um meio artístico estudiosa da sociedade, tudo que fosse outro do
cosmopolita, de fato. Treinados de modo geral que isso seria alienação. Renegada foi e continua
pelos mesmos mestres parisienses, esses artistas a ser a história de nossas diferenças e
participavam de um circuito de ensino e exposição individualidades, das idiossincrasias que
cujas partes se comunicavam e permeavam cada demarcam a identidade de cada um, da solidão
vez mais, ainda que tenha permanecido altamente essencial que nos eleva acima da nacionalidade e
segmentado e hierarquizado até a eclosão nos remete à condição humana. A própria noção
consciente do moderno, por volta de 1900.21 Em de uma cultura brasileira, una e autônoma, presume
torno do sistema mundial de academias, começava a existência de um substrato ‘popular’, o qual
a existir uma comunidade de estruturas e práticas, precisa ser problematizado, em especial no que
o que propiciava a possibilidade de repercutir diz respeito à arte, à criação e à memória.22
discursos e tendências em escala internacional.
Será tão surpreendente assim constatar que alguns Ainda rege nossas idéias sobre cultura um mito de
artistas brasileiros, bebendo diretamente nas morenice normativa, mais afeito às aspirações
mesmas fontes que seus colegas de outras nacionalistas de românticos e modernistas do que
nacionalidades, tenham trazido de volta ao Brasil sensível às transformações inegáveis da
as mesmas preocupações que então agitavam o contemporaneidade globalizada. Diante do colossal
resto do mundo ocidental? constructo histórico da brasilidade, folclórica e
genérica, o individual e o particular perdem qualquer
Examinando mais detidamente um quadro como relevância. Face a tão gigante paradigma, tudo
Más notícias, além dos outros citados que tratam aquilo que passa pela cabeça da moça do quadro,
da temática de contemplação feminina, percebe- a que recebeu as más notícias, seriam tolices e
se uma nova busca pela interioridade, pela futilidades. A primeira ironia disso é que essa
intimidade e pela reflexão. A voga das cenas de brasilidade ‘de raiz’ foi inventada e incensada por
ateliê atesta igualmente a esse movimento. A arte uma intelectualidade urbana e minoritária, para
brasileira começava a se voltar para dentro: não aplicação seletiva ao ‘outro’ rural e majoritário. A
somente para o interior do país (os caipiras de segunda ironia é que essa moça e seu criador
Almeida Júnior), conforme sempre destacou nossa somos nós: os ilustrados produtores e
historiografia, mas para o interior das casas e das consumidores da cultura erudita no país do
almas também. Aí, temos uma informação preciosa populacho. A ironia maior é que nem por isso a
sobre a transformação da elite ilustrada da legítima criação popular é respeitada, de fato. Será
sociedade brasileira nessas primeiras décadas que não está na hora de nos permitirmos perguntas
republicanas. Vencidas as etapas de consolidação mais matizadas, a fim de obtermos respostas mais
da nacionalidade e de engajamento com um projeto precisas? Afinal, a afirmação exacerbada da
de mudança política, o meio artístico finalmente nacionalidade fazia sentido em uma época quando
refletia o amadurecimento suficiente para se a identidade pátria sofria ameaças de
dedicar a explorar aquilo que é mais propriamente desagregação, fosse por regionalismos ou por
do âmbito da arte: as agruras da condição humana. concorrência externa. Hoje, a existência da cultura
O olhar diferenciado para o universo feminino é um brasileira não é mais mero objeto de anseio ou

475
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

especulação, mas uma realidade incontornável e Rio de Janeiro: Pinakotheke, 1990. Cf. Miriam Andrade de
poderosa. Diante dessa constatação, o melhor que Oliveira, As pintoras das Exposições Gerais da Academia
se faz por nossa história cultural é parar de entoar Imperial das Belas Artes e Escola Nacional de Belas Artes
na Primeira República. 180 Anos de Escola de Belas
o coro triunfal e prestar atenção aos acordes
Artes: Anais do Seminário EBA180. Rio de Janeiro: UFRJ,
menores, até agora abafados. Se o Brasil quer 1997. pp. 333-340.
mesmo ser um país de todos, é necessário que se 11
Seria interessantíssimo, como projeto de pesquisa, que
reconheça o valor de cada um... ou, no caso, de se fizesse uma tabulação estatística entre os assuntos dos
cada uma. quadros e a condição social de seus donos, para averiguar
se realmente existe qualquer correlação, nesse sentido.
12
Notas Gonzaga Duque. A arte brasileira. Campinas: Mercado
de Letras, 1995. p.212.
13
1
Professor associado da PUC-Rio, Departamento de Artes Este quadro, em coleção particular, depois ganhou o título
& Design. espúrio O modelo e teve sua data erroneamente atribuída
2
Promete, nesse sentido, o projeto de doutorado de Camila como 1897 no livro Almeida Jr. (1985), editado pela Art
Dazzi, “A Reforma de 1890” – Da polêmica em torno de Editora como parte da série popular, “Grandes artistas
sua concepção à forma como se deu sua implementação brasileiros”.
14
na Escola Nacional de Belas Artes (1889-1900), em curso Felix Ferreira. Belas artes: Estudos e apreciações. Rio
na EBA/UFRJ. Para o estado da arte sobre esse assunto, de Janeiro: Baldomero Carqueja Fuentes, 1885. pp.116-
ver Arthur Valle, A pintura da Escola Nacional de Belas 123.
15
Artes na 1ª República (1890-1930): Da formação do artista Ibid., p.120.
16
aos seus modos estilísticos. (Tese de doutorado inédita, Para um aprofundamento dessa discussão, ver Marcia
EBA/UFRJ, 2007), esp. pp.40-47. Pointon, Naked Authority: The Body in Western Painting
3
Ver Ana Maria Tavares Cavalcanti, Os embates no meio 1830-1908 (Cambridge: Cambridge U.P., 1990), pp.113-
artístico carioca em 1890 - antecedentes da Reforma da 134.
17
Academia das Belas Artes, 19&20: A Revista Eletrônica Griselda Pollock, Vision and Difference: Femininity,
de Dezenovevinte, v.2, n.2 (abril 2007) Disponível no site: Feminism and the Histories of Art (Londres: Routledge,
http://www.dezenovevinte.net/criticas/embate_ 1890.htm. 1988), p.66. [tradução minha]
Acesso em 1 jul. 2008 18 Ver Liana Ruth Bergstein Rosemberg, Pedro Américo
4
Ninquem, Um pouco de tudo, A Semana Ilustrada, n.604 e o olhar oitocentista (Rio de Janeiro: Barroso Edições,
(07/07/1872), pp.4827, 4830-4831 2002).
19
5
Moreira de Azevedo. O Rio de Janeiro: Sua história, Para uma análise desse quadro, ver meu livro A arte
monumentos, homens notáveis, usos e curiosidades. Rio brasileira em 25 quadros (1790-1930) (Rio de Janeiro:
de Janeiro: Brasiliana, 1969. v.2, p. 215. Record, 2008), pp.108-115.
20
6
Para uma discussão mais alongada desse episódio, ver Ver, entre outros, Elaine Kilmurray & Richard Ormond,
meu artigo Ressuscitando um velho cavalo de batalha: orgs., John Singer Sargent (Princeton: Princeton U.P.,
Novas dimensões da pintura histórica do Segundo Reinado, 1998); e Nancy Rose Marshall & Malcolm Warner, James
19&20, a revista eletrônica de Dezenovevinte, v.2, n.3 (julho Tissot: Victorian Life/Modern Love (New Haven: Yale
de 2007). Disponível no site: http://www.dezenovevinte.net/ University Press, 1999).
21
criticas/rc_batalha.htm. Acesso em 1 jul. 2008 Uma idéia da complexidade desse circuito pode ser
7
José Murilo de Carvalho. A construção da ordem: A elite depreendida de livros como: John Milner, The Studios of
política imperial. Rio de Janeiro: Ed.UFRJ & Relume- Paris: The Capital of Art in the Late Nineteenth Century
Dumará. 1996. pp. 55-82. (New Haven: Yale U.P., 1988); Annette Blaugrund et alii,
8
Sobre a formação social desses clãs aristocráticos, ver Paris 1889: American Artists at the Universal Exposition
Eul-Soo Pang. In Pursuit of Honor and Power: Noblemen (Philadelphia & Nova York: Pennsylvania Academy of the
of the Southern Cross in Nineteenth-century Brazil. Fine Arts & Harry N. Abrams, 1990); e Rafael Cardoso
Tuscaloosa: U. Alabama Press. 1988. esp. parte II. [Denis] & Colin Trodd, orgs., Art and the Academy in the
9
Embora falem de outra época, o termo é pego emprestado Nineteenth Century (Manchester & New Brunswick:
de: Marina Maluf & Maria Lúcia Mott, Recônditos do mundo Manchester U.P. & Rutgers U.P., 2000).
22
feminino. Nicolau Sevcenko, org. História da vida. privada Ver Lélia Coelho Frota, Pequeno dicionário da arte do
no Brasil 3. República: Da Belle Epoque à Era do Rádio. povo brasileiro, século XX (Rio de Janeiro: Aeroplano,
São Paulo: Cia das Letras, 1998. 2005), pp.16-18. Cf. Afonso Carlos Marques dos Santos, A
10
Carlos Roberto Maciel Levy. Exposições Gerais da invenção do Brasil: Ensaios de história e cultura (Rio de
Academia Imperial e da Escola Nacional de Belas Artes. Janeiro: Ed. UFRJ, 2007), pp.59-69, 87-95.

476
O quadro Arrufos de Belmiro de Almeida é da virada
do século, 1887, e causou escândalo na época.
Acostumado com quadro de batalhas ou retratos
de senhoras e senhores respeitáveis, o público
achou um escândalo apresentar emoções íntimas
num quadro. A pintura realmente comenta uma
cena de casal, em que há uma briga de ciúmes. A
mulher chora para um lado, enquanto o homem
enrola nos dedos o charuto, um tanto frio,
indiferente ao pranto. O ambiente é bem século
dezenove, coberto de panos e tapetes, o que Walter
Benjamin considerava uma tentativa de mascarar
o caráter de mercadoria dos objetos no interior
doméstico. O modelo para a cena é Gonzaga
Duque, crítico de arte carioca, então com 22 anos,
e amigo, companheiro de boêmia do artista.
Belmiro, além de pintor, foi caricaturista, escultor,
autor do Manequinho da Praia de Botafogo, e viveu
entre o Rio e Paris no período entre o final do século
XIX e os anos 30.

Na tela se pretende pintar o jogo das emoções entre


homem e mulher, um espaço de intimidade,
deslocando o interesse da arte para uma notação
de movimentos menores, mais sutis, talvez
inapreensíveis para o indivíduo não acostumado à
introspecção e a uma visão psicológica do mundo
que toma forma nessa virada do século.
a intimidade em cena
Gonzaga Duque, em A arte brasileira, comenta o
1
vera lins quadro, mostrando o quanto é inovador:

Ainda no Rio de Janeiro não se fez um quadro


tão importante como é este. Os assuntos
históricos têm sido o maior interesse dos
nossos pintores que, empreendendo-os, não
se ocupam com a época nem os costumes que
devem formar os caracteres aproveitáveis na
composição dessas telas. Belmiro é o primeiro
, pois a romper com os precedentes, é o
inovador, é o que compreendendo por uma
maneira clara a arte do seu tempo, interpreta
um assunto novo. Vai nisto uma questão séria
– menos a de uma predileção do que a de uma
verdadeira transformação estética. O pintor,
desprezando os assuntos históricos para se
ocupar de um assunto doméstico, prova
exuberantemente que compreende o
desideratum das sociedades modernas e
conhece que a preocupação dos filósofos de
hoje é a humanidade representada por essa
única força inacessível aos golpes iconoclastas
do ridículo, a mais firme, a mais elevada, a mais
admirável das instituições – a família. (DUQUE,
1998: 212)

Eu queria comentar o que observa Gonzaga Duque


com a ajuda de três autores contemporâneos:

477
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

Jacques Rancière, Jurandir Freire Costa, e Richard ser valorizadas e nasce a família nuclear moderna
Sennet. no Brasil. E com isso uma série de mecanismos
de controle disciplinarizam os indivíduos. Fala
Rancière fala da modernidade como de uma dessa mudança na vida familiar dos tempos
transformação do regime representativo para um coloniais com a urbanização, como uma política
regime propriamente estético. Desde o romantismo que tenta unir o interesse pela família ao interesse
alemão busca-se a autonomia da arte. No regime pelo Estado. Na família patriarcal rural não havia
estético as coisas da arte são identificadas por sentimento de privacidade, porque nada havia a
pertencerem a um regime específico do sensível esconder, portanto dominava entre seus
que a libera de qualquer regra específica, de toda componentes uma psicologia rasa. A idéia de
hierarquia de temas, gêneros e artes. Valoriza-se personalidade se opõe ao caráter natural. A
a arte como forma e a auto formação da vida. situação, a cena íntima, que o quadro apresenta,
Rancière lembra Schiller na Educação estética do é, portanto, índice de uma modernidade trazida pela
homem, que propunha a partir do livre jogo da arte urbanização do século XIX.
uma transformação do homem e do Estado. A
revolução estética produziu uma nova idéia de O pensamento autoritário da elite cosmopolita que
revolução política como realização sensível de uma tentava “civilizar” o país alimentava-se do ideário
humanidade comum existindo ainda somente positivista e evolucionista-naturalista. À noção de
enquanto idéia. Essa modernidade para ele começa uma realidade externa observável e suscetível de
com o realismo de Flaubert e Zola e vai ser apreensão junta-se a de evolução histórica como
radicalizada nas propostas das vanguardas de ligar adaptação do organismo social ao meio externo
arte e vida. Consistiu numa mudança que passou extra-histórico. Assim se pretende uma política
da literatura e das artes para a história: objetiva, orgânica e racional, em que se trata de
encontrar e colocar em prática modelos corretos.
Passar dos grandes personagens à vida dos A valorização da intimidade começa a acontecer
anônimos, identificar os sintomas de uma quando a família é assaltada por dispositivos
época, sociedade ou civilização, explicar a normalizadores, que, desde a transferência da
superfície pelas camadas subterrâneas e corte, começam a organizar a vida urbana. O
reconstituir mundos a partir de seus vestígios, indivíduo se torna introspectivo, a cultura burguesa
é um programa literário, antes de ser científico. dos sentimentos condiciona a mentalidade de seus
[...] ... a lógica estética de um modo de intelectuais e artistas, refina suas sensibilidades e
visibilidade que, por um lado, revoga as escalas gera seus problemas. Mas é com o fim do Império
de grandeza da tradição representativa e, por e a tentativa de construção de um Estado-Nação
outro, revoga o modelo oratório da palavra em moderno no Brasil, que o novo modelo de
proveito da leitura dos signos sobre os corpos urbanização faz surgir na cultura brasileira o
das coisas, dos homens e das sociedades. interesse pelo eu, o psiquismo e o corpo. Ao mesmo
(RANCIÉRE, 2005: 49-50) tempo que essa valorização da intimidade, da
personalidade e da família nuclear retirava o
Assim, a revolução estética não está no indivíduo do espaço público e lhe impunha outras
rompimento com a figuração, mas no abandono formas de controle, dava-lhe também novos
do sistema representativo. Gonzaga Duque fala instrumentos para entender esse espaço de onde
dessa mudança quando aponta no quadro de o retiravam. Essa visão psicologizada do real é
Belmiro uma “verdadeira transformação estética”. também uma visão subversiva do mundo liberal
racionalista.
O crítico, ao apontar essa mudança a partir da
preocupação do artista com o tema da família, está Gonzaga Duque imagina toda uma narrativa onde
chamando atenção para uma transformação na insere a cena pintada, descrevendo-a
sociedade brasileira que o psicanalista Jurandir minuciosamente e nomeando-a como um
Freire Costa estuda no livro Ordem médica e norma “tempestuoso momento de rusga”. Tudo nessa
familiar. Ele mostra no seu livro como a família cena fala, tudo aí significa como no sonho:
nuclear se forma no século XIX brasileiro em
oposição à família patriarcal rural em que conviviam É um episódio doméstico, uma rusga entre
filhos, agregados e serviçais que misturavam o cônjuges. O marido, um rapaz de boa fortuna,
público e o privado. Mostra um movimento chega em companhia da esposa à bonita
semelhante ao que Philippe Ariès descreve na habitação em que viviam até aqueles dias como
França do século XVII para o XIX.. É com a dois anjos. Tudo em redor demonstra que
intervenção dos higienistas e médicos e da política aquele interior é presidido por um fino espírito
imperial que a criança e a intimidade começam a feminino, educado e honesto. Ela, o encanto

478
A intimidade em cena

desse interior à bric-a-brac depõe o toucado Nasce também uma contradição, há mais pessoas
de palha sobre um mocho coberto por um belo nas ruas , mas as relações sociais são mais
pano de seda e entra em explicações com o impessoais. O espectador, que toma o lugar do ator
esposo. E ele, muito a seu cômodo em um no século XIX, não quer se envolver, se defende
fauteuil de estofo sulferino, soprando o fumo através do retraimento e do silêncio. À medida que
do seu colorado havana, responde-lhe palavra o desequilíbrio entre vida íntima e vida pública foi
por palavra às explicações pedidas. Há um aumentando, as pessoas tornaram-se menos
momento em que ela excede-se, diz uma frase expressivas. Têm medo da emoção espontânea
leviana; ele reprova, ela retruca, ele repele; que pode irromper e revelar a personalidade. Há
então ela não se pode conter, é subjugada por uma necessidade de conter as emoções. Começa
um acesso de ira, atira-se ao chão, debruça- a ser possível estar na multidão como mero
se ao divã para abafar entre os braços o ímpeto espectador. Sentar num café e ficar em silêncio,
do soluço. É este o momento que o artista como voyeur. A rua se torna uma gastronomia para
escolheu. Da esposa, debruçada sobre o divã, os olhos, mas o comportamento em público é
vê-se apenas o perfil, mas ouvem-se-lhe os contido, retraído.
soluços que fazem estremecer o seu corpo.
Debaixo de seu vestido foulard amarelo Segundo Sennett, entre os séculos XVIII e XIX,
percebe-se o colete, o volume das saias, os houve uma transformação das regras cognitivas:
artifícios exteriores que a mulher emprega para de uma ordem transcendente, em que os fatos
dar harmonia‘a linha do corpo. Na fímbria do eram referidos a um sistema de valores
vestido a ponta do sapatinho de pelica inglesa transcendentes, para uma ordem dos fenômenos
ficou esquecido, sobre o tapete do assoalho, naturais, ordem imanente, em que os fatos são
como se propositalmente, animado por compreendidos em si mesmos, e a ordem da
estranho poder, tomasse aquela atitude para mercadoria é companheira da crença no significado
contemplar a rosa que caiu do peito da moça e imanente do mundo. Uma vida na imanência
jaz no chão, melancólica, desfolhada, quase privilegia as sensações imediatas, sentimentos
murcha, lembrando a olorente alegria que se imediatos. Sem deuses os homens passaram a
despegara do coração da feliz criatura naquele acreditar na sensação, na imediatez , no concreto
tempestuoso momento de rusga. E o esposo, As aparências se tornam semelhantes, já que as
um guapo rapaz delicado e forte, num gesto de roupas são feitas à máquina. A marca Singer é de
indiferentismo, atende à tênue fumaça que se 1825. Passa a ser de bom tom usar roupas como
desprende do charuto, levantando-o entre os produção de anonimato. Vestir-se de maneira
dedos, em frente do rosto.(DUQUE, 1998: 211) sofisticada, à maneira cosmopolita significava
aprender como baixar o tom de sua aparência e
Eu queria trazer também Richard Sennett para como passar desapercebido. Só por detalhes,
comentar o quadro e desenvolver estas questões.. sutilezas, revela-se algo, dá-se pequenas pistas
Em O declínio do homem público, as tiranias da para o reconhecimento com uma cor, uma gravata.
intimidade, ele fala de como no século XIX há um Se fazia necessário um processo de decodificação
retraimento do homem enquanto ator, do público para reconhecer quem é aquela pessoa. A leitura
para o âmbito privado da família. Lembra também das roupas e dos detalhes se tornou uma busca
Philipe Ariès na sua História da família e da criança, de pistas reveladoras. Na família, também a
em que trata do início da família burguesa, modelo vigilância quanto às emoções mantinha a ordem
nesse momento. É quando surge o homem familiar. O principio da personalidade criava
psicológico, que começa a se ocupar de suas instabilidade em um domínio – a família, onde as
emoções e recolhê-las para a intimidade. Vale pessoas estavam decididas a fixar-se como num
lembrar que a interpretação dos sonhos é de 1900. quadro. A desordem tinha de ser varrida das ruas,
Sennett diz que da família, mas irrompia nos corpos como histeria,
neurastenia, nevrose.
Por volta de 1870 parecia plausível estudar uma
emoção como algo contendo um sentido Há também a erosão de uma vida pública forte. O
independente, como se fosse possível que no caso do Brasil é marcado com a desencanto
descobrir todas as circunstâncias tangíveis nas com a República. Os jovens republicanos vão dizer
quais a “emoção” surgiria e os sinais tangíveis que a República não é a de seus sonhos e se
por intermédio dos quais a emoção se tornaria refugiam nos cafés, na vida em pequenos grupos
manifesta. (SENNETT, 1988: 37) e na vida familiar que se torna refúgio contra o
domínio publico. Com a ênfase na autenticidade
É aí que nasce a privacidade, nos tornamos mais psicológica as pessoas tornaram-se desprovidas
absortos em nós mesmos, a psique é privatizada.

479
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

de arte na vida cotidiana, pois são incapazes de Num fim de século como este, pavoroso e
recorrer à força criativa do ator. Teatralidade, uma sinistro, em que a flor do Ideal pende, fanada,
vida pública vigorosa, se opõem a intimidade. Os sobre um Lethys de indiferentismo, em que as
boêmios cariocas se caracterizam por um nobres e supremas aspirações da alma humana
comportamento oposto ao do burguês. São dândis caem cerceadas, levadas a ombro pela chatice
como B.Lopes, o poeta que se veste burguesa que tudo avassala e a tudo envolve,
espalhafatosamente e faz declarações de amor no timbrando por se apresentar obtusa, urdindo a
espaço público de uma confeitaria, ou como o intriga do desprezo contra os raros que ainda
próprio Belmiro de Almeida, do qual Gonzaga estudam; em que a grande e inúmera
Duque diz que comunidade dos sensitivos e passionais
perece, sufocada pelo positivismo prático dos
Entre camaradas, na rua do Ouvidor, com o devotos do deus Milhão; - faz-se urgente a
narizinho arrebitado e atrevido farejando os palavra inspirada dos levitas da Arte,
pacatos burgueses para lhes agarrar o ridículo, procurando elevar acima da vaza das paixões
tinha na cabeça um cento de assuntos para deprimentes, a alma vencida de toda uma
pintar e em casa um cento de quadros para geração extraviada nos labirintos da
concluir. A sua predileta musa era a que inspirou indiferença. (CAROLLO, 1980: 73)
e imortalizou Daumier e Gavarni, e, a bem da
verdade, deve-se dizer que depois de Contra a contenção e a indiferença ligadas ao
Borgomainero e Bordallo Pinheiro ninguém tem positivismo e ao dinheiro, cabe cuidar da alma e
feito, no Brasil, melhores caricaturas. Só depois da sensibilidade.
de casado e depois de viajado; depois de ter
Sennett liga o aparecimento da personalidade e
visto de perto quanto trabalho e quanta
sua contenção ao capitalismo industrial. Por
dedicação são precisos para o artista
exemplo, o desaparecimento do comportamento
conquistar um nome foi que ele abandonou a
teatral do ator se acompanha da fixação do preço
boêmia, de uma vez para sempre. A única
das mercadorias. Não se barganha e pechincha
cousa que ele jamais abandonará é a toilette...
mais, o que necessitava de um comportamento
(DUQUE, 1998: 209)
mais teatral, do jogo que instabiliza as regras. O
Esses boêmios se revelam contra a contenção comprador passa a ter um papel passivo, não
dentro dos moldes do comportamento calculado precisa barganhar preços e se torna mais um
burguês. Se opõem à ordem dominante na própria voyeur, atraído pelo caráter de espetáculo que os
aparência e no comportamento. A espontaneidade comerciantes começam a acrescentar às
se coloca em oposição à convenção social e faz mercadorias através das vitrines decoradas com
com que os espíritos livres se sintam divergentes. fantasia. É interessante que uma das lojas que
A boêmia dos cafés do Rio, pelo comportamento expunham quadros nesse momento no Rio se
indisciplinado, a forma de vestir singular, vai ser chamava “Ao preço fixo”.2
considerada transgressora – traz a desordem a uma
Sennett afirma também, que apesar da valoração
sociedade que queria ser organizada de acordo
da emoção, do homem psicológico, a contenção a
com os moldes europeus, no que significavam de
que era submetido fazia com que, em contrapartida,
contenção dentro de uma racionalidade burguesa.
nos anos 1890, fosse por uma transgressão, que
A liberdade de expressão não estava mais nas ruas,
uma mulher, ou um homem como Oscar Wilde,
nem nos cafés – seu lugar cada vez mais se
podia ser livre.
restringia à arte. A acusação de boêmios encobria
a aversão à divergência que artistas e intelectuais Sentir-se livre para expressar-se a si mesmo,
opunham à ordem que queria se impor, uma reação desvio, anormalidade: esses três termos
a essas modificações no público e no privado. Os passaram a ser vistos como completamente
rebeldes queriam ainda ser atores e ter a rua como interligados, uma vez que o medium público se
palco e público. Atuando a partir do que tinha sido tornara um campo para a abertura da
recalcado, quando a personalidade invade a esfera personalidade. [...] Numa cultura da
pública, estão próximos à arte que agora é o único personalidade, a liberdade se tornara uma
território onde ainda se pode falar, onde se dá forma expressão idiossincrática, mais do que uma
à desordem. imagem de como a humanidade poderia viver.
(SENNET, 1988: 237)
O poema em prosa de Dario Velloso, poeta
simbolista de Curitiba, mostra sua percepção do Ao mesmo tempo que se valorizava a
momento em que viviam: personalidade no espaço público, ela passava a

480
A intimidade em cena

ser objeto de um intenso controle: qualquer E aqui gostaria de fazer uma analogia entre Arrufos
demonstração espontânea ou involuntária tinha de e a A noiva do vento de Kokoschka de 1914.
ser dominada. O autocontrole passava a ser Também uma cena íntima - um auto-retrato do
imprescindível no mundo civilizado. pintor com Alma Mahler, em que o homem se
mantém impassível, arredio, nele a intensidade
Aqui, em Arrufos, o conflito com essa nova ordem aumenta nesses panos que envolvem os dois
é apresentado e estudam-se as emoções, atenta- corpos, construindo uma cena tempestuosa. A
se à sensibilidade. Sennett vai dizer que, no relação homem /mulher é assim também fonte de
entanto, esse interesse pelo estudo da emoção leva conflitos, mostrando a impossibilidade da relação
também ao narcisismo contemporâneos. Mas o do indivíduo solipsista com o outro. Schorske
artista deveria expressar verdades para uma comenta o quadro e outros retratos pintados por
humanidade que desesperava da ordem social Kokoschka como tentativas de apresentar o lado
enquanto tal. A desordem, o conflito, eclodem na oculto, espiritual e doloroso do individualismo
família, cuja solidez é tão enfatizada pela sociedade burguês. Confunde o título do quadro, chamando-
burguesa. Solidez, estabilidade, serenidade, vão o de Tempestade, como num ato falho, pois a tela
ser questionadas por algo que é reprimido nessa é mesmo tempestuosa:
nova ordem familiar e que explode na cena íntima.
A exaltação higiência do corpo trouxe-o à cena, mas Em “A tempestade”, os corpos dos amantes
ele agora vai ser tensionado. deitam-se juntos, mas a “consciência
visualizada” de Kokoschka diz-nos como é
O quadro estabilizado se mostra nas pinturas de impossível esse amor. O corpo de textura macia
Modesto Brocos e Almeida Junior. No primeiro, a de Alma está adormecido em eloqüente
nova família nuclear é um modelo de tranqüilidade. contentamento, junto ao peito coruscante de
No segundo aparece a questão da nacionalidade paixão de seu amante. Oskar estira-se
também, numa família de várias cores, chamando tensamente desperto, com o maxilar travado,
a atenção para o convívio multiracial na família a cabeça tão rígida sobre os ombros como se
brasileira, antecipando as idéias de um Gilberto estivesse de pé. Os olhos cansados, muito
Freyre. Em Belmiro se instabiliza o quadro da abertos, fixam imóveis o vazio; as mãos
ordem, se suspende essa ordem familiar que foi calejadas e inchadas, cruzadas frouxamente
imposta com a disciplinarização e a contenção. sobre a virilha, manifestam a tumescência de
seu espírito, tão irremediavelmente defasada
Sua irreverência me surpreendeu também na tela da serenidade de alma. Da dissonância, da
Os descobridores, de 1899, em que tratando de disjunção afásica desses dois seres com o
um tema histórico é bastante crítico: foge à espírito encarnado, eleva-se o furacão. Do seu
monumentalidade em que poderia louvar a mar enluarado de amor selênico, a tempestade
nacionalidade, colocando os descobridores como carrega-os como um barquinho. Será uma
dois desgarrados e solitários, degredados, talvez. nuvem de esperança, um meio resistente da
O que lembra o monólogo de Dario Fo, A fantasia barroca, a erguê-los? Ou é a
descoberta da América, que desloca o foco do depressão de uma onda de desespero que
descobrimento de uma narrativa heróica para uma engolirá o seu amor condenado? As
história de invasão e pilhagem. Aqui não se chega ambigüidades do cenário reforçam as
a tanto, mas há um transtorno da representação ambigüidades dessa poderosa experiência
habitual. Nesse quadro também estamos fora do erótica, em que nenhum dos parceiros
neoclássico da Academia que ainda estava no possivelmente conseguiria distinguir entre o
regime da representação e acontece uma revolução físico e o psicológico, mas onde a posição
estética – os descobridores são dois homens solipsista nunca poderia ser transcendida.
comuns, não mais heróis. O regime estético das (SCHORSKE, 1988: 320)
artes desfaz a correlação entre tema e modo de
representação. Segundo Schorske, para os artistas, a afirmação
do que é recalcado pela civilização lhes reabria a
Em Arrufos, o inconsciente, esses impulsos porta para a vida da ação e da sociedade. Se a
reprimidos vão anunciando a dissonância , a civilização repousa sobre a repressão da natureza
impossibilidade e a posição solipsista dos homem – a morte, trabalhar com o recalcado é afirmar a
que depois as vanguardas surrealistas e vida contra a morte. Para ele, os modernistas são
expressionistas irão colocar em cena com maior aqueles que ousam dizer que as coisas não são o
intensidade. que parecem.

481
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

Os dois quadros falam de emoções, mostrando FREIRE COSTA, Jurandir. Ordem médica e norma
uma recusa a se curvar à ordem e, ao mesmo familiar. São Paulo: Graal, 2004.
tempo, com a promessa de outras possibilidades LINS, Vera. Gonzaga Duque: a estratégia do
de configuração do sensível, pelo que está faltando franco-atirador. Rio de Janeiro: Tempo brasileiro,
e que o conflito aponta. O que as vanguardas vão 1991.
buscar na tentativa de ligar arte e vida. RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível.
Trad. Monica Costa Netto. São Paulo: Editora 34,
Rancière faz uma diferença entre uma concepção 2005.
estratégica de vanguarda e outra estética, REIS JÚNIOR, José Maria dos. Belmiro de
mostrando a falência da primeira, que se Almeida, 1958-1935. Rio de Janeiro:
considerava um partido, que marcha à frente, mas Pinakotheque, 1984.
a continuidade da segunda como a invenção de SCHORSKE, Carl. E. Viena fin-de-siècle, política
formas sensíveis e dos limites materiais de uma e cultura. Trad. Denise Bottmann. São Paulo:
vida por vir, como uma metapolítica. Companhia das Letras, 1988.
SENNETT, Richard. O declínio do homem
Nem todo quadro é político, nem todo quadro é público, as tiranias da intimidade. Trad. Lygia
arte. Mas estética e política se juntam no sentido Araújo Watanabe. São Paulo: Companhia das
de que, quando há arte, ela é política, na medida Letras, 1988.
em que opera um novo recorte no espaço material
e simbólico. Um trabalho de criação de dissenso Notas
na partilha do sensível opera uma reconfiguração
1
polêmica deste. Faculdade de Letras da UFRJ, professora adjunta de
Teoria da Literatura e Literatura Comparada.
2
É intensificado no quadro expressionista o que já Ver no diário de Gonzaga Duque (LINS, 1991: 162)
se delineia na tela do final do século XIX, uma passagem em que conta de uma exposição do pintor
Roberto Mendes na loja “Ao preço fixo”.
profunda visão crítica da ordem que fora
implantada.

Referências bbliográficas

DUQUE, Luiz Gonzaga. A arte brasileira Org.


Tadeu Chiarelli. Campinas: Mercado das Letras,
1995.

482
capitulo 12
iconografia: a paisagem

483
1. Nas páginas que se seguem, pretendemos
apresentar algumas considerações a respeito de
como se estabeleceu a relação entre Paisagem e
Nacionalismo no debate artístico brasileiro, quando
da passagem do Império à República e nos anos
imediatamente posteriores ao advento desse último
regime. Analisando as apreciações críticas
publicadas em periódicos e as declarações dos
próprios artistas, podemos verificar que a
Paisagem, na medida em que era um indício da
natureza brasileira e de suas especificidades - suas
formas, suas cores, sua luz local - foi entendida,
muitas vezes, como o motivo ideal para plasmar
imagens que pudessem funcionar como sínteses
visuais da pátria brasileira. Para os diversos críticos
e artistas cujos nomes desfilarão aqui, as
representações da paisagem estavam então
estreitamente vinculadas aquilo que o escritor e
filósofo francês Ernest Renan chamara “a alma
nacional”, estando carregadas de um potencial
capaz de constituir, por si só, o imaginário de uma
nação desejosa de afirmar a sua identidade.

Embora nos centremos aqui nas agitações


artísticas que ocorreram a partir da década de 1880,
é importante frisar que a associação entre
paisagem e brasilidade não era então propriamente
“as bellezas naturaes do nosso paiz”: o lugar uma novidade: já nos primeiros estatutos da
da paisagem na arte brasileira, do império à Academia Imperial das Belas Artes, redigidos em
república 1820, o gênero era louvado justamente por isso,
assim como era frisado o quanto as próprias
arthur valle e camila dazzi condições físicas do território brasileiro convinham
e mesmo exigiam o amplo desenvolvimento da
pintura paisagística 1. Durante todo o período
Imperial, ao lado de uma cadeira dedicada à Pintura
Histórica, houve sempre na Academia fluminense
uma outra dedicada explicitamente ao estudo da
Pintura de Paisagem, Flores e Animais.
Analogamente, na política de unificação nacional
e cultural proposta nos anos de 1860 pelo segundo
monarca brasileiro, D. Pedro II, as figurações da
natureza brasileira, aí incluída de maneira
destacada a pintura paisagística, cumpriram um
relevante papel nos esforços de construção de uma
identidade nacional, bem como na configuração da
imagem da nação e do próprio Imperador, que, em
muitas representações, aparecia cercado de
palmeiras, abacaxis e outras frutas tropicais,
destacando-se ao fundo a exuberância de uma
natureza sem igual2.

2. Todavia, já em finais dos anos de 1870,


mudanças políticas, sociais e culturais que
anunciavam o republicanismo demandavam um
novo tipo de arte, que atendesse as exigências de
gosto de uma elite burguesa, avessa ao
monarquismo, ligada ao plantio do café e aos novos
investimentos que surgiam na então Capital do

485
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

Império. Se tornava, assim, necessário reformular O sr. George Grimm, professor de paisagem
a iconografia da Pintura de Paisagem brasileira. na Academia, bom professor e bom paizagista,
expôs quatro quadros. O maior é uma vista de
Sintomáticos desse desejo de renovação eram já parte da cidade do Rio de Janeiro, tomada do
certos aspectos do debate crítico que eclodira casario de Santa Thereza. O pintor escolheu
quando da Exposição Geral de 1879, momento no um dia de chuva, desprezando exatamente o
qual a proposta da Academia do que seria a “Escola que constitui a belleza natural do nosso paiz: a
Brasileira” de pintura - “uma produção idealizada, limpidez da atmosfera, os dias brilhantes e
voltada para a valorização da tradição acadêmica luminosos. [...] Em compensação é bem alegre
mesclada por valores atenuados do romantismo e e bem serena, e bem da nossa natureza, a Vista
do realismo” 3 -, foi alvo de virulentos ataques. do Cavallão, com seu portão arruinado, os
Escritores como Félix Ferreira, Gonzaga Duque, pilares de tijolos, a sua areia luzidia [...] Foi
Oscar Guanabarino e França Jr. opuseram à nesse quadro que o sr, Grimm espaljou a mãos
proposta da Academia uma alternativa que cheias o ar e a luz. A gente sente-os entre as
valorizava a produção dos paisagistas brasileiros, arvores, respira-o e aquece-se. É neste quadro
em um registro realista/naturalista. Defendia-se a que mais fielmente o Sr. Grimm reproduz a
idéia de que a Pintura de Paisagem devia capturar nossa natureza.5
o “característico” da natureza brasileira, sobretudo
no que dizia respeito à sua luminosidade e às suas No entanto, um artista como Grimm possuía uma
cores típicas. Esta idéia se distanciava séria desvantagem com relação às expectativas
decisivamente do partido usual até então, que dos nossos críticos: simplesmente, ele não era
subordinava a paisagem à história, e no qual o brasileiro. Na citada crítica de L. S. não faltam os
primeiro gênero se constituía essencialmente como indícios de uma parcial desaprovação às suas
pintura de atelier, como pode ser verificado em escolhas, como quando, por exemplo, se faz
obras de pintores ilustres com Victor Meirelles ou referência a sua eleição de um dia chuvoso, com a
José Maria de Medeiros. qual o artista desprezava justamente aquilo que
constituía “a belleza natural do nosso paiz”: o brilho
Em meados dos anos 1880, vários fatores e a luminosidade atmosféricas. Foram então os
testemunham a afirmação dessa nova concepção novos nomes da pintura brasileira, como Antonio
de Pintura de Paisagem. Tomemos como exemplo Parreiras e Giovanni Battista Castagneto -
a seguinte passagem do Bellas Artes: Estudos e discípulos de Grimm - ou Henrique Bernardelli,
Apreciações de Felix Ferreira, que comenta a surgidos em meados da década de 1880, que
Exposição Geral de 1884: encarnaram os anseios e esperanças dos críticos,
não somente pelo tratamento “moderno”, vitalizado
Notamos com prazer que nesta exposição pela pintura ao ar livre, que davam as suas obras,
predomina a paisagem; que os nossos pintores mas, principalmente, por revelarem, o potencial
voltam-se para a natureza e começam a para representar uma suposta natureza tipicamente
compreendê-la e admirá-la. [...] brasileira.
É da natureza que os nossos pintores têm de
haurir todo o nosso engrandecimento artístico A necessária complementação artística européia
futuro; é na contemplação e no estudo desses desses artistas deveria, ela própria, se moldar em
primores que o Criador derramou a mãos função de tais prerrogativas. É o que nos deixa
pródigas por esta terra em que nascemos, que compreender, por exemplo, a recepção
o artista encontrará os elementos da verdadeira extremamente positiva que receberam os quadros
Escola Brasileira. enviados da Itália por Henrique Bernardelli, em
1886, os quais, apesar de não retratarem a natureza
Artistas como J. G. Grimm, paisagista bávaro brasileira, indicavam uma afinidade com o nosso
radicado no Brasil entre 1882 e 1887, passam a cenário natural e apontavam um caminho a ser
encarnar o tipo ideal de artista “moderno”, seguido pelos novos paisagistas. A escolha de
modelado de acordo com as críticas européias dos outros artistas brasileiros, como Antonio Parreiras,
anos 1870, que, pintando diretamente do natural, de aperfeiçoarem seus conhecimentos artísticos
era capaz de capturar o típico da paisagem e de na Itália, seria elogiada justamente por permitir o
romper com os supostamente enrijecidos padrões contato com uma natureza que, no entendimento
acadêmicos4. Um trecho de uma crítica publicada dos críticos, em muito se parecia com a brasileira.
na Gazeta de Notícias do Rio de Janeiro, datada Nesse sentido, em um artigo publicada na Gazeta
de setembro de 1884 e assinada com o de Notícias, em fevereiro de 1888, Gonzaga Duque
pseudônimo L. S., se referia da seguinte maneira afirmava:
à produção de Grimm:

486
O lugar da paisagem na arte brasileira, do Império à República

É digna de louvor a escolha que fez Antonio Pintura de Paisagem. Mas esse fato não
Parreiras da Itália como sede de seus estudos significava, em absoluto, que a prática do gênero
[...] O estudo de paisagem em França, onde tivesse sido abolida do curriculum da instituição:
encontram-se mestres de uma reputação pelo contrário, esta então se encontrava mais
universal, como Harpignies e Zuber, tem um firmemente do que nunca estabelecida na rotina
pequeno inconveniente para os artistas pedagógica dos alunos do curso de pintura da
brasileiros, sempre dispostos a imitação servil ENBA como comprova, por exemplo, a análise de
do que aprendem no estrangeiro. alguns programas de curso posteriores à Reforma
Sob esse ponto de vista a Itália apresenta de 1890. Já em 1891, por exemplo, Henrique
grandes vantagens, e entre muitas acha-se a Bernardelli, um dos renovadores da Pintura de
de uma certa semelhança com o nosso paiz, Paisagem na década anterior, prescrevia como
mormente pela persistência do tom e a estudos de segundo ano nas aulas de pintura por
immutalidade da luz. Aqui, como no sul da Itália, ele ministradas a realização de “cabeças de modelo
pode um paisagista voltar duas ou três vezes a vivo em luz de interno e ao ar livre e estudos de
um mesmo ponto de estudo que, empregando paysagem bem apurados”9. Em 1896, Rodolpho
uma frase de Taine, encontrará o tom posto há Amoêdo estipulava de forma análoga, como
um mez sobre a palheta. [...] ora, habituando- exercício de “2º anno”, o “estudo de paisagem
se o pintor a estudar ao ar livre a isolada simplesmente e com figuras” 10 , sendo muito
natureza italiana, com a maior destreza e provável que tais exercícios fizessem parte das
facilidade produzirá a nossa paisagem. [...] aulas propostas por Amoêdo desde que reassumiu
No meu modo de ver, para quem dispõe de o cargo de professor, logo após a Reforma de 1890.
poucos annos de aprendizagem, a Itália é o
único paiz em que um paisagista brazileiro póde Um outro aspecto interessante com relação aos
se aperfeiçoar.6 programas de Bernardelli e Amoêdo acima
referidos, diz respeito especificamente ao fato de
3. Em finais de 1889, o ‘golpe’ de Estado que tanto um quanto o outro prescreviam propostas
republicano que extingui o regime monárquico no de trabalho que fundiam a pintura de figura e a de
Brasil não abalou em nada o prestígio crescente paisagem. A afirmação feita por Bernardelli de que
que o gênero da Pintura de Paisagem gozava já “para o estudo da figura humana é necessário
há anos. Na verdade, poderíamos mesmo afirmar contemporaneamente todos os estudos,
que a importância do mesmo se tornou ainda maior, especialmente a paysagem com a figura e a figura
uma vez que o gênero servia igualmente bem, tanto com a paysagem” 11 é um indicativo dessa
aos antigos anseios da criação de imagens-síntese orientação, marcada não só por uma valorização
da nação brasileira - com a República, mais da pintura paisagística, tida na mais alta estima,
difundidos do que nunca -, quanto como locus como também por um hibridismo explícito dos
privilegiado para a manifestação das exigências gêneros tradicionais12.
modernas de individualidade e originalidade dos
artistas. Outro professor da Escola, Modesto Brocos y
Gomez, que assume cadeiras como as de Desenho
A proclamação da República assistiu igualmente Figurado e Modelo Vivo a partir de 1893, foi por
uma mudança de rumos na tradicional Academia sua vez elogiado por Oscar Guanabarino,
das Belas-Artes fluminense. Ainda em 1889, o justamente pela ligação entre paisagem e
recém-formado Governo Provisório elegeu uma brasilidade que suas telas apresentavam. O pintor,
comissão composta por, entre outros, o escultor embora de origem espanhola, estava então, nos
Rodolpho Bernardelli e o pintor Rodolpho Amoêdo, dizeres de Guanabarino, “perfeitamente identificado
com a incumbência de elaborar um projeto de com a nossa natureza”13, e procurava “nacionalisar
reforma da instituição. Depois de inúmeras a arte”, sobretudo através da fixação em suas
querelas 7 , com um Decreto promulgado em paisagens da “côr do nosso ambiente, tão difficil
novembro de 18908, foram aprovados os novos de ser apanhada pela inconstancia da luz”14.
estatutos da instituição, que passou a se chamar
Escola Nacional das Belas Artes (ENBA); Rodolpho A atuação desses professores teve reflexos claros
Bernardelli foi nomeado, ainda nesse mesmo mês na produção dos alunos que freqüentaram a Escola
de novembro, como o primeiro diretor da Academia Nacional de Belas Artes nos anos de 1890, e que
reformada, cargo no qual se manteria por quase passaram a atuar com maior presença no meio
25 anos. artístico carioca após seus retornos da Europa, já
nos primeiros anos do século XX. Alguns desses
Nos novos estatutos da ENBA, deixava de constar pintores deram continuidade as concepções sobre
nominalmente a tradicional cadeira destinada à Pintura de Paisagem formuladas no século anterior,

487
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

sobretudo no que se refere a tentativa de criação descrever, em uma longa écfrase, a fisiognomia
de uma identidade cultural nacional, que por vezes da paisagem brasileira, como especificada nos
se impregnava de traços marcadamente panoramas fluminenses:
regionalistas.
A caracterização da nossa paizagem, a que elle
4. Evidências da grande difusão que a prática a [Baptista da Costa] nos acostumou e que seus
Pintura de Paisagem conheceu nos anos iniciais pinceis dia a dia vão conseguindo fixar da
da República podem ser fornecidas se analisarmos maneira mais impressionante, esse
o movimento de obras nas exposições do período, inconfundível, por ser hybrido, sentimento de
muito particularmente nas Exposições Gerais de força e de melancolia que resumbra da
Belas Artes, que continuavam a ser, como no natureza, por elle interpretada e ao de mais o
período imperial, os principais certames artísticos brio, a luminosidade de suas tintas fundem-se
brasileiros. Novamente, os textos críticos, como os nesse quadro, e delle fazem uma bella obra de
do indefectível Gonzaga Duque, nos aproximam de verdade e de arte. [...]
um entendimento do quadro que então se Sobre este mérito ella reproduz bem
configurava. Quando, por exemplo, logo na primeira approximadamente o caracter da paizagem
página da sua resenha à Exposição Geral de 1904, fluminense - a roça - que não é o bravio sertão
Gonzaga Duque afirmava, algo desapontado, que nem a matta virgem, mas um meio termo entre
“nesta exposição como nos anteriores Salões, só o villarejo e a floresta, intermédio á cultura de
encontro pintores de figuras e paizagistas”15, não uma civilização meã e á rusticidade fecunda
deixava de indicar, de maneira inequívoca, que o da natureza livre.18
gênero da paisagem era um dos mais freqüentes
no evento. Em 1905, Baptista da Costa expunha mais “oito
admiráveis trechos desta nossa brilhante natureza
As resenhas de Gonzaga Duque sobre as por elle surprehendida com o segredo da sua arte”,
Exposições Gerais evidenciam claramente que os das quais o crítico destacava A Prisioneira e uma
laços entre paisagem e brasilidade continuavam Paizagem de Poços do Caldas, louváveis
atados na primeira década do século XX. São especialmente por conseguir capturar a intensidade
bastante reveladoras, nesse sentido, as referências da luz brasileira, “num verde que é
elogiosas que o crítico constantemente tece à caracteristicamente o verde da nossa natureza”19.
Pintura de Paisagem de João Baptista da Costa, Analogamente, em 1906, Gonzaga Duque punha
um artista que se destacara na cena artística na boca de seu interlocutor, Polycarpo, a
fluminense ainda nos anos 1890, tendo sido exclamação “Olha aquilo, olha a nossa luz n’aquelle
laureado com o Prêmio de Viagem ao Estrangeiro, quadrinho”, referindo-se à uma paisagem do
na segunda Exposição Geral republicana, a de Baptista da Costa, novamente celebrado por ter
189416. No quadro então agraciado com o prêmio, descoberto “o segredo de reter na téla a cor, a luz,
chamado Em repouso, Baptista da Costa já o contorno pittoresco da nossa natureza”20. Por fim,
prefigurava o seu interesse pelos aspectos na último resenha, referente ao “Salão” de 1907,
pitorescos do Brasil, ao representar, em um registro não poderia deixar de faltar a referência às “bellas
inspirado na estatuária antiga, mas, paizagens” de Baptista da Costa, justamente por
significativamente, contra uma paisagem serem elas, literalmente, “pedaços destacados da
ensolarada, nada mais nada menos do que um nossa formosa terra”21.
caipira, o célebre motivo ‘inaugurado’ não muitos
anos antes pelo pintor ituense J. F. de Almeida Mesmo quando fazia suas considerações a respeito
Júnior. das paisagens de Roberto Rowley Mendes, um
pintor de índole bastante diversa da de Baptista da
Nos trechos de seus ‘Salões’ que se referem às Costa, em cujas obras Gonzaga Duque louvava não
obras de Baptista da Costa, Gonzaga Duque repete o realismo, mas sim o pendor simbólico e
sem cessar o topos crítico que equaciona a “espiritualista” de um autêntico “discípulo de
qualidade de uma paisagem ao fato dela ser uma Ruskin”22, o crítico não conseguia se furtar ao elogio
figuração fiel da natureza brasileira. “Esta de qualidades que decorriam justamente da
conseguida qualidade, já notável, de reter na tela fidelidade da obra ao que havia de irredutível na
a feição da nossa pittoresca paisagem (a do Rio, paisagem brasileira. Assim comentando um Estudo
São Paulo e Minas)”17 estava presente, segundo de mangueiras de Mendes, Gonzaga Duque
Gonzaga Duque, em todas as paisagens expostas louvava a fixação do “verde” nacional, “o verde
por Baptista da Costa em 1904. Ao aprofundar sua caracteristicamente nosso, que embaraça e cança
análise da tela Fim de Jornada, exposta nessa os paizagistas não familiarisados com a nossa
mesma mostra de 1904, O crítico procurava

488
O lugar da paisagem na arte brasileira, do Império à República

vegetação e, tantas vezes, escapa ou compromette designação equívoca26, é possível perceber um


aos nossos próprios artistas”23. verdadeiro renascimento da antiga aspiração pela
criação de uma “Escola Brasileira”, entrelaçada
Pelo contrário, quando percebia a ausência da nota com a fixação das belezas naturais do país.
brasileira em uma paisagem, Gonzaga Duque não
poupava a sua ironia mordaz, como ao comentar Seguindo de perto as concepções de teóricos e
um quadro de Belmiro de Almeida exposto em 1907, artistas oitocentistas, como John Ruskin e Owen
uma “paisagem de Theresopolis”, que deixava o Jones27, se acirrou no Brasil da aurora do século
crítico na dúvida “se o meu velho amigo Belmiro XX o debate moderno sobre o ornamento. Era
fel-o do alto de uma aeronave Santos Dumont, nas polemizada a apropriação historicista dos motivos
proximidades da Torre Eifel ...”24. decorativos de estilos e épocas heterogêneas que
fora até então muito comum, em favor de uma
5. Sem dúvida, se encontra ausente, mesmo nas inspiração obtida diretamente da natureza - no
críticas elogiosas de Gonzaga Duque às caso, como não poderia deixar de ser, de uma
interpretações supostamente bem-sucedidas dos natureza tipicamente brasileira. Em certa medida,
panoramas naturais brasileiros, um certo tom esse debate reatava com idéias esboçadas no meio
ufanista que fora usual nos textos dos anos 1880: artístico nacional ainda em meados do século XIX28:
ao que tudo indica, cerca de quinze anos após o a “Escola Brasileira” deveria surgir na esteira da
15 de novembro de 1889, a consolidação de um difusão, em todas as esferas sociais, do ornamento
modelo oligárquico de República, controlado por inspirado na nossa flora e fauna, bem como -
poderosos grupos estaduais e que mantinha postulou-se posteriormente - em algumas de
qualquer oposição afastada das decisões nossas manifestações culturais autóctones, como
legislativas, bem como o seu correlato estético - a cerâmica marajoara.
as novas ortodoxias estabelecidas na direção dos
rumos da Escola Nacional de Belas Artes 25 -, Novamente, podemos perceber a mídia impressa
haviam feito murxar os entusiasmos renovadores como um campo de debates privilegiado dessa
que outrora derrubaram o poder Imperial e os seus campanha pela nacionalização da arte brasileira.
porta-vozes artísticos. Durante as primeiras décadas do século XX,
escritores e articulistas como o citado Gonzaga
Simultaneamente, é certo que os interesses dos Duque, Manoel Campello, Plínio Cavalcanti, Flávio
pintores paisagistas progressivamente se Brandt e Flexa Ribeiro, além dos próprios artistas,
alteravam, deixando de lado a preocupação com a defendiam em artigos de jornais e de revistas a
pura e simples caracterização de aspectos relação - supostamente necessária - entre a tão
pitorescos para se concentrar em questões que desejada criação de uma “Escola Brasileira” e o
poderíamos designar como mais especificamente desenvolvimento de um arte decorativa baseada
pictóricas. Seguindo uma via prenunciada já nas em motivos nacionais.
últimas pinturas de Castagneto, afirmava-se
claramente na Pintura de Paisagem brasileira, a Vários artistas se engajaram nesse projeto.
partir da primeira década do século XX, uma Provavelmente, o esforço mais conhecido foi
tendência lírica, que muitas vezes chegava às raias aquele empreendido por Eliseu Visconti: desde os
da abstração e para a qual os elementos naturais, primeiros anos do século XX, após seu retorno da
observados en plein air na paisagem, pouco mais Europa, onde estagiara na condição de pensionista
eram do que um pretexto para que o artista da ENBA e estudara com o mestre Art Nouveau
executasse um exercício pictural pessoal e dos Eugène Grasset, Visconti já se dedicava a
mais livres: neste, as próprias delineações execução de obras calcadas em motivos da
essenciais do motivo freqüentemente se paisagem nacional, estilizando elementos da flora
encontravam dissolvidas e eram exaltadas, em como a flor do maracujá e do cajueiro, a
troca, as propriedades materiais e de fatura da samambaia, entre outros29. Esse era o caso de
própria técnica pictórica empregada. alguns de seus trabalhos mostrados no Rio de
Janeiro em 1901, em uma exposição cuja fria
6. Nesse contexto, é significativo que o interesse recepção foi comentada à época por Gonzaga
pela paisagem como um motivo privilegiado na Duque30 e rememorada, um tanto amargamente,
consolidação da identidade cultural brasileira pelo próprio Visconti em uma entrevista dada,
renovasse suas forças em um campo que julgar- quase 30 anos depois, à Angyone Costa31.
se-ia inesperado, o das chamadas artes aplicadas
ou decorativas. No espírito dos mais diversos Logo, porém, em um vigoroso crescendo que
artistas envolvidos durante as primeiras décadas atingiria seu ápice nos anos 1920, o desejo de criar
da República com esse segmento artístico de uma arte decorativa nacional ecoaria muito além

489
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

da Capital Federal: do norte ao sul do país podemos Castagneto ou Baptista da Costa, com as quais
encontrá-lo, mais ou menos matizado por traços iniciamos o presente texto. Ao interesse pela
regionalistas. Cremos que dois artistas bastam aqui sugestão de envolventes efeitos de atmosfera e
para ilustrar a amplitude do fenômeno. O primeiro pela transcrição fidedigna da natureza brasileira,
é o paraense Theodoro Braga, aluno em Recife do se substituía uma fazer artístico eminentemente
famoso paisagista Telles Junior, e que depois analítico e intelectual, com ênfase na fragmentação
cursou com destaque a ENBA, conquistando o e na estilização depurada de seus motivos. Todavia,
Prêmio de Viagem em 1899. Braga teve na Europa por trás de todas essas manifestações, cremos ser
uma trajetória de estudos semelhante à de Visconti possível reconhecer um único e mesmo impulso:
e, quando de sua volta ao Brasil, em 1905, teria o de elaborar, através da representação das
concluído seu interessantíssimo repertório belezas naturais do país, uma arte genuinamente
ornamental, intitulado A planta brazileira (copiada brasileira, na qual a essência da pátria pudesse
do natural) applicada à ornamentação, hoje na ser vislumbrada.
Seção de Obras Raras da Biblioteca Mário de
Andrade, em São Paulo32. Referências bibliográficas

Nas 18 pranchas d’A planta brazileira ... dedicadas BRUNHAMMER, Y. Le beau dans l’utile: un musée
exclusivamente à nossa flora, sucedem-se estudos pour les arts décoratifs. Paris: Gallimard, 1992.
de diversas plantas - feitos a partir da observação CAVALCANTI, Ana Maria Tavares. “Os embates no
do natural e tratados em um registro estilístico que meio artístico carioca em 1890 - antecedentes da
remete à objetividade das ilustrações botânicas - Reforma da Academia das Belas Artes”, 19&20,
com sugestões de composições ornamentais, feitas Volume II, n. 2, abril de 2007.
a partir da estilização dos motivos originais e CHIARELLI, Tadeu. “Gonzaga-Duque: a moldura e
pensadas para diversas técnicas “industriais”. Nas o quadro da arte brasileira”. In: Duque Estrada, Luiz
décadas seguintes, apesar de não ter conseguido Gonzaga. A Arte Brasileira. São Paulo: Mercado
concretizar em grande escala seus projetos, de Letras, 1995.
Theodoro Braga continuaria divulgando suas COSTA, Angyone. A inquietação das abelhas - O
concepções, tanto através da sua atuação como que dizem nossos pintores, escultores, arquitetos
professor, quanto em palestras avulsas e e gravadores, sobre as artes plásticas no Brasil.
publicações. Rio de Janeiro: Pimenta de Mello & Cia, 1927.
DUQUE ESTRADA, Luiz Gonzaga.
Quase no extremo oposto do país, o paranaense Contemporâneos - Pintores e esculptores. Rio de
João Turim desenvolveria, a partir de inícios dos Janeiro: Typ. Benedicto de Souza, 1929.
anos 1920, logo após o retorno de uma estadia na Exposição “Eliseu Visconti – Arte e Design”. De
Europa, esforços afinizados com os de Theodoro 27 de agosto a 30 de setembro de 2007. CAIXA
Braga, no sentido de criar um estilo decorativo Cultural Rio de Janeiro RJ (Catálogo de Exposição).
baseado em elementos da paisagem natural GALVÃO, Alfredo. “Manuel de Araújo Pôrto-Alegre
paranaense, como o café, a erva mate, as frutas – Sua influência na Academia Imperial das Belas
silvestres, e, especialmente, o pinheiro local 33. Artes e no meio artístico do Rio de Janeiro”, Revista
Juntamente com artistas como Lange de Morretes do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Rio
e João Ghelfi, Turim desenvolveria projetos naquilo de Janeiro, n.o14, 1959.
que denominou “estilo paranista” - próximo das GODOY, Patrícia B. “O nacionalismo na arte
manifestações Art Déco - para modalidades decorativa brasileira - de Eliseu Visconti a Theodoro
artísticas tão díspares como indumentária, baixo- Braga”. CARDOSO, R.; DAZZI, C.; DAZZI, Camila;
relevo, ilustração gráfica, decoração de interiores, MYIOSHI, Alex; et all. (org). Revisão
mobiliário urbano e arquitetura. Alguns dos prédios historiográfica: o estado da questão. Atas do I
concebidos por Turim foram efetivamente Encontro de História da Arte do IFCH – UNICAMP.
construídos, como, por exemplo, a residência do Campinas, SP: UNICAMP/IFCH, vol.3, 2005.
Dr. Bernardo Leinig, hoje demolida, na qual era ________. “Arte Decorativa Brasileira: Theodoro
possível apreciar as colunas inspiradas no pinheiro, Braga e A planta brazileira (copiada do natural)
verdadeiros ícones do “estilo paranista”, com seu applicada à ornamentação”, Revista de história
capitéis decorados com grimpas, pinhas e pinhões. da arte e arqueologia, Campinas, vol. 5, 2005.
HESKETT, John. Industrial design. London:
A transcrição dos aspectos da natureza brasileira Thames and Hudson,1980.
encontrada nas obras decorativas de artistas como MIGLIACCIO, Luciano. “Rodolfo Amoedo. O
Visconti, Braga, Turim, e outros mais, certamente mestre, deveríamos acrescentar”. MARQUES, Luiz
possuía contornos diversos daquela encontrada (org.). 30 Mestres da Pintura no Brasil. São Paulo:
nas Pinturas de Paisagem como as de Parreiras,
490
O lugar da paisagem na arte brasileira, do Império à República

MASP / Rio de Janeiro: MNBA, 2001 (Catálogo de Gonzaga. A Arte Brasileira. São Paulo: Mercado de Letras,
exposição). 1995, pp.18-19.
4
SCHWARCZ, Lilia. As Barbas do Imperador - Um A idéia do pintor moderno como “sinônimo” de pintor de
paisagem é recorrente na critica de arte francesa já no início
monarca nos trópicos. Rio de Janeiro: Companhia
da década de 1870. Em um comentário às pinturas de
da Letras, 1999. gênero expostas no Salon parisiense de 1870, Théodore
TURIM, Elisabete. A Arte de João Turim. Campo Duret, faz a seguinte consideração: “Se, na escola
Largo, PR: INGRA, 1998. moderna, os pintores naturalistas representam sobretudo
a criação individual, os pintores de gênero personificam o
Fontes Primárias - Artigos em periódicos pastiche e a imitação. Nossos paisagistas percorrem o
campo, e lá, face a face com a natureza, procuram a
“ARTES E ARTISTAS / Escola Nacional de Bellas- interpretar livremente. Entre os pintores de gênero, ao
Artes / EXPOSIÇÃO GERAL”, O Paiz, Edição n. contrario, a invenção e a originalidade são raras [...] e
3653, 1 de outubro de 1894, p.2. Autor: Oscar quando um descobre um filão original, logo lhe seguem os
copistas e os imitadores”. Tal concepção reverbera pela
Guanabarino. década de 1880 afora, como atesta um texto de Charles
Gazeta de noticias, sábado, 27 de setembro de Ephrussi, dedicado a Exposição dos Artistas
1884. Autor: L. S. Independentes, publicado em 1880 na Gazette des Beaux-
Gazeta de Notícias, fevereiro de 1888. Autor: Arts, e no qual o autor postulava l’idéal de la nouvelle école:
Gonzaga Duque. “Compor seu quadro não no ateliê, mas na natureza; em
“Salão de 1904”, Kósmos, Ano 1, nº , setembro de presença do assunto tratado se desembaraçar de toda
1904. Autor: Gonzaga Duque. convenção; se colocar face a face com a natureza e a
interpretar sinceramente, sem se preocupar com a maneira
“Salão de 1905”, Kósmos, Ano 2, nº 9, setembro oficial de ver; traduzir escrupulosamente a impressão, a
de 1905. Autor: Gonzaga Duque. sensação, cruamente, por mais estranha que ela possa
“Salão de 1906”, Kósmos, Ano 3, nº 10, outubro parecer”.
de 1906. Autor: Gonzaga Duque. 5
Gazeta de noticias, sábado, 27 de setembro de 1884.
Autor: L. S.
6
Fontes Primárias - Documentos Gazeta de Notícias, fevereiro de 1888. Autor: Gonzaga
Duque.
7
Acervo arquivístico do Museu Dom João VI EBA/ Conferir CAVALCANTI, Ana Maria Tavares. “Os embates
UFRJ. Notação 4750: Programa da aula de Pintura, no meio artístico carioca em 1890 - antecedentes da
Reforma da Academia das Belas Artes”, 19&20, Volume II,
do professor Rodolpho Amoêdo.
n. 2, abril de 2007. Disponível em: http://
Acervo arquivístico do Museu Dom João VI EBA/ www.dezenovevinte.net/criticas/embate_1890.htm Acesso
UFRJ. Notação 4996: Programa para aula de 01 ago. 2008.
Pintura, do professor Henrique Bernardelli. 8
Decreto n. 983 - de 08 de novembro de 1890, deferido
Decreto n. 983 - de 08 de novembro de 1890, pelo chefe do governo provisório, o General Deodoro da
deferido pelo chefe do governo provisório, o Fonseca e assinado por Benjamin Constant, Ministro dos
General Deodoro da Fonseca e assinado por Negócios da Instrução Pública, Correios e Telégrafos.
Disponível em: http://www.dezenovevinte.net/documentos/
Benjamin Constant, Ministro dos Negócios da
docs_primeira_republica.htm. Acesso 01 ago. 2008.
Instrução Pública, Correios e Telégrafos. 9
Acervo arquivístico do Museu Dom João VI EBA/UFRJ.
Estatutos da Imperial Academia e Escola das Belas Notação 4996: Programa para aula de Pintura, do professor
Artes, estabelecida no Rio de Janeiro por Decreto Henrique Bernardelli. Disponível em: http://www.
de 23 de Novembro de 1820. dezenovevinte.net/documentos/programas_enba. html.
Acesso 01 ago. 2008.
10
Notas Acervo arquivístico do Museu Dom João VI EBA/UFRJ.
Notação 4750: Programa da aula de Pintura, do professor
1
“Este genero de pintura [Paisagem] he um dos mais Rodolpho Amoêdo. Disponível em: http://www.
agradaveis da Arte e o vastissimo terreno do Brasil offerece dezenovevinte.net/documentos/programas_enba. html.
vantagens aos Artistas que viajarem pelas Províncias, Acesso 01 ago. 2008.
11
fizerem uma collecção de Vistas locaes terrestres como Acervo arquivístico do Museu Dom João VI EBA/UFRJ.
maritimas”. Estatutos da Imperial Academia e Escola das Notação 4996: Programa para aula de Pintura, do professor
Belas Artes, estabelecida no Rio de Janeiro por Decreto Henrique Bernardelli. Disponível em: http://
de 23 de Novembro de 1820. Uma transcrição desse www.dezenovevinte.net/documentos/
documento, feita pelo Prof. Alberto Cipiniuk, se encontra programas_enba.html. Acesso 01 ago. 2008.
12
disponível em: http://www.dezenovevinte. net/documentos/ Luciano Migliaccio mencionou como essa corrosão dos
estatutos_1820.htm. Acesso 01 ago. 2008. gêneros era já perceptível em obras pintados nos anos
2
Conferir SCHWARCZ, Lilian. As Barbas do Imperador - 1880, como as de Amôedo; cf. MIGLIACCIO, Luciano.
Um monarca nos trópicos. Rio de Janeiro: Companhia “Rodolfo Amoedo. O mestre, deveríamos acrescentar”.
da Letras, 1999. MARQUES, Luiz (org.). 30 Mestres da Pintura no Brasil.
3
CHIARELLI, Tadeu. “Gonzaga-Duque: a moldura e o São Paulo: MASP / Rio de Janeiro: MNBA, 2001 (Catálogo
quadro da arte brasileira”. DUQUE ESTRADA, Luiz de exposição). Disponível em: http://

491
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

www.dezenovevinte.net/artistas/ra_migliaccio.htm. Acesso les arts décoratifs. Paris: Gallimard, 1992, pp.18 e 32). No
01 ago. 2008. Brasil, esses diversos termos - utilitária,
13
Modesto Brocos passou boa parte dos anos 1870 no industrial,decorativa, ou ainda, menor - eram empregados
Brasil, freqüentando, inclusive, a Academia Imperial, antes simultaneamente e, por vezes de maneira indiscriminada,
de se estabelecer definitivamente no Rio de Janeiro, no para se referir ao mesmo segmento de atividades artísticas.
27
início dos anos 1890, convidado para lecionar na reformada John Ruskin, crítico da distinção hierárquica entre artista-
ENBA pelos irmãos Bernardelli, dos quais se tornara intelectual vs artista-artesão, foi um defensor emblemático
amigo, quando da sua temporada de estudos na Itália. dessa visão que unia ornamento e natureza, equacionando
Portanto, diferente da de outros artistas estrangeiros como a concordância com essa última à beleza: na medida em
Grimm, a experiência brasileira de Brocos não foi que os objetos se distanciavam da alusão à natureza,
temporária; ele aqui se radicou até a sua morte, em 1936. discordando dela, eles estariam fadados a serem feios (cf.
14
“ARTES E ARTISTAS / Escola Nacional de Bellas-Artes HESKETT, John. Industrial design. London: Thames and
/ EXPOSIÇÃO GERAL”, O Paiz, Edição n. 3653, 1 de Hudson,1980, p.85); já Owen Jones, arquiteto e desenhista,
outubro de 1894, p.2. Autor: Oscar Gaunabarino. na sua The Grammar of ornament, apresentava a história
15
“Salão de 1904”, Kósmos, Ano 1, nº , setembro de 1904, do ornamento com objetivo declarado de educar o artista
p.18. Autor: Gonzaga Duque. Disponível em: http:// para que este pudesse plasmar suas próprias soluções
w w w. d e z e n o v e v i n t e . n e t / a r t i g o s _ i m p r e n s a / ornamentais, a partir do natural.
28
saloes_gd_arquivos/saloes_gd_1904.htm. Acesso 01 ago. Cf., por exemplo, algumas das premonitórias teses
2008. lançadas por Manoel de Araújo Porto-alegre ainda em 1855:
16
A primeira Exposição Geral republicana ocorrera em “28. - Nas formas especiais das nossas plantas, flores e
1890. frutas não terá a arte cerâmica, principalmente a Mitecnia
17
“O Salão de 1904”, Kósmos, Ano 1, nº , setembro de um manancial fecundo para novas inspirações? / 29. - A
1904, p.21. Autor: Gonzaga Duque. ornamentação e decoração dos edifícios, principalmente a
18
Id., p.21. executada pela pintura, deverá substituir os protescos e
19
“Salão de 1905”, Kósmos, Ano 2, nº 9, setembro de 1905, arabescos pelos objetos da nossa natureza americana; e
pp.40-41. Autor: Gonzaga Duque. Disponível em: http:// qual tem sido a causa por que este caminho novo, apenas
w w w. d e z e n o v e v i n t e . n e t / a r t i g o s _ i m p r e n s a / encetado por Sr. Debret e Francisco Pedro do Amaral, nos
saloes_gd_arquivos/saloes_gd_1905.htm. Acesso 01 ago. seus últimos dias, ainda não tomou o sen necessário e útil
2008. desenvolvimento?” GALVÃO, Alfredo. Manuel de Araújo
20
“Salão de 1906”, Kósmos, Ano 3, nº 10, outubro de 1906, Pôrto-Alegre – Sua influência na Academia Imperial das
p.53. Autor: Gonzaga Duque. Disponível em: http:// Belas Artes e no meio artístico do Rio de Janeiro, Revista
w w w. d e z e n o v e v i n t e . n e t / a r t i g o s _ i m p r e n s a / do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Rio de
saloes_gd_arquivos/saloes_gd_1906.htm. Acesso 01 ago. Janeiro, n.14, 1959, pp.57-61; disponível em: http://
2008. www.dezenovevinte.net/txt_artistas/mapa_teses.htm.
21
DUQUE ESTRADA, Luiz Gonzaga. “O Salão de 1907”. Acesso 01 ago. 2008
29
Contemporâneos - Pintores e esculptores. Rio de Janeiro: Conferir nesse sentido o recente Catálogo Exposição
Typ. Benedicto deSouza, 1929, p.154. Disponível em: http:/ “Eliseu Visconti – Arte e Design”. De 27 de agosto a 30
/ w w w. d e z e n o v e v i n t e . n e t / a r t i g o s _ i m p r e n s a / de setembro de 2007. CAIXA Cultural Rio de Janeiro RJ.
30
saloes_gd_arquivos/saloes_gd_1907.htm. Acesso 01 ago. DUQUE ESTRADA, Luiz Gonzaga. “Elyseu Visconti”.
2008. Contemporâneos - Pintores e esculptores. Rio de
22
“O Salão de 1905”, Kósmos, Ano 2, nº 9, setembro de Janeiro: Typ. Benedicto de Souza, 1929, pp.19-26.
31
1905. Autor: Gonzaga Duque. COSTA, Angyone. A inquietação das abelhas (O que
23
Id., p.151. dizem nossos pintores, escultores, arquitetos e gravadores,
24
Id., p.153. sobre as artes plásticas no Brasil). Rio de Janeiro: Pimenta
25
Ao menos é o que deixa entrever outro dos textos de de Mello & Cia, 1927, p.82. Texto disponível no site
Gonzaga Duque, o famoso “o Aranheiro da Escola”, escrito DezenoveVinte : http://www.dezenovevinte.net/
em 1906; cf. DUQUE ESTRADA, Luiz Gonzaga. artigos_imprensa/artigos_ac.htm. Acesso 01 ago. 2008
32
Contemporâneos - Pintores e esculptores. Rio de Janeiro: GODOY, Patrícia B. O nacionalismo na arte decorativa
Typ. Benedicto de Souza, 1929, pp.215-225. brasileira - de Eliseu Visconti a Theodoro Braga. In: DAZZI,
26
As variadas designações que as artes aplicadas Camila.; MIYOSHI, Alex. (org). Revisão historiográfica:
conheceram, especialmente a partir do século XIX, são um o estado da questão. Atas do I Encontro de História da
indicativo eloqüente do seu status ambíguo no quadro geral Arte do IFCH – UNICAMP. Campinas, SP: UNICAMP/
das artes ocidentais: na França oitocentista, por exemplo, IFCH, v.3, 2005, p.80; cf. também, da mesma autora, “Arte
a designação artes industriais foi a mais comum até 1863, Decorativa Brasileira: Theodoro Braga e A planta brazileira
quando passou a ser empregada outra, mais lisonjeira, (copiada do natural) applicada à ornamentação”, Revista
belas artes aplicadas à indústria; por volta de meados dos de história da arte e arqueologia, Campinas, vol. 5, 2005.
33
anos 1870, um novo adjetivo - decorativa - passaria a ser Conferir TURIM, Elisabete. A Arte de João Turim. Campo
freqüentemente associado às artes aplicadas. (cf. Largo, PR: INGRA, 1998.
BRUNHAMMER, Y. Le beau dans l’utile: un musée pour

492
A pintura de paisagem tornou-se, desde o século
XVIII, um espaço privilegiado para projeções de
identidades nacionais, em grande parte graças às
idéias de uma ligação essencial entre clima,
paisagem e povo, propagada, entre outros, pelos
escritos de Winckelmann. Nesta chave
interpretativa, as características peculiares da
paisagem de um país eram tratadas como
constituindo a base do caráter moral de seu povo.
Representar a paisagem significava, portanto,
exaltar a singularidade da nação.

A pintura de paisagem produzida no Brasil, ao


contrário daquela realizada na América do Norte e
em alguns outros países latino-americanos, nem
sempre foi marcada por tal repertório romântico.
Como observa Luciano Migliaccio (MIGLIACCIO,
2000), nos tempos da colônia, as representações
da paisagem brasileira associavam-se
freqüentemente a fins militares, ou econômicos e,
mesmo após a independência, elas foram
fortemente marcadas pelo universo da ilustração
científica, característico da maior parte da pintura
de viajantes europeus que transitavam pelo país.
Apesar disso, entre as décadas de 1840 e 1850
podemos identificar alguns artistas que usaram a
paisagem como veículo para a constituição de um
paisagem, monumento e crítica ambiental na discurso sobre o Brasil. Dentre eles, Félix-Émile
obra de félix-émile taunay Taunay (1795-1881) ocupa uma posição de
destaque, entre outras razões, por ter sido por um
claudia valladão de mattos1 longo tempo diretor da Academia Imperial de Belas
Artes, uma instituição que, ao lado de outras como
o SAIN (Sociedade Auxiliadora da Industria
Nacional, criada em 1827) e o IHGB (Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro, criado em 1838),
tinha como programa fundamental contribuir para
a introdução da jovem nação brasileira no hall dos
países civilizados.2 Na década de 1840, Félix-Émile
Taunay realiza dois quadros intitulados
respectivamente “Vista da Mãe D’Água” (EGBA
1840) e “Vista de um mato virgem que está se
reduzindo a carvão” (EGBA 1843), que se
concentram na temática da natureza brasileira. De
acordo com Migliaccio (MIGLIACCIO, 2000: 76),
as duas obras demonstram a intenção do artista
em fazer do embate entre natureza selvagem e
civilização o verdadeiro tema de uma pintura de
caráter nacional. 3 Sem descordar em princípio
dessa interpretação, o presente artigo pretende
apontar para um vínculo entre os projetos de Taunay
para uma pintura de paisagem nacional e um
importante debate sobre o destino das florestas
brasileiras que tinha sido reavivado nas décadas
após a independência, especialmente nos círculos
intelectuais do Instituto Histórico Geográfico
Brasileiro, ao qual pertencia Félix Taunay. Um dos
pontos centrais desse trabalho será propor uma
interpretação mais detalhada e talvez mais “política”
das obras “Vista de um mato virgem que se está

493
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

reduzindo a carvão” e “Vista da Mãe D’Água”, do Brasil, as questões referentes à preservação e


entendendo-as como uma tomada de posição do correta utilização desses recursos voltaram à pauta
artista com relação a debates específicos que durante os anos imediatamente anteriores e
marcaram o período entre o final do primeiro posteriores à Independência. Naturalmente, o novo
reinado e o início do Segundo Império. país precisava considerar o uso de seus recursos
Demonstraremos que o compromisso de Taunay naturais e alguns intelectuais empenharam-se no
com esses debates levou-o a desenvolver um sentido de promover mudanças políticas que
conceito bastante original de monumento, pusessem fim às práticas de desperdício.
desenhado para responder a questões específicas Certamente o principal militante desta causa foi
da realidade brasileira. José Bonifácio de Andrada e Silva, um ex-aluno de
Domenico Vandelli que, ao retornar ao Brasil em
Em seu livro Um sopro de Destruição, José Augusto 1819, após 36 anos na Europa, procurou utilizar
Pádua (PÁDUA, 2004) aponta para a existência de sua posição de grande influência para levar adiante
um debate ambiental no Brasil que remonta à algumas reformas que pudessem colocar o país
influência de Domenico Vandelli sobre diversos nos trilhos do progresso.
membros da elite colonial que estudaram na
universidade de Coimbra ao longo do século XVIII. José Bonifácio compartilhava a visão utilitarista de
Alvo principal da crítica de Vandelli e seus seu professor italiano, porém suas vastas leituras
discípulos eram as formas rudimentares adotadas de outros autores europeus e em especial de
na agricultura brasileira, especialmente a prática Alexander von Humboldt, ampliara muito a sua
das queimadas, que, de acordo com eles, levaria compreensão dos problemas ambientais a serem
inevitavelmente ao rápido esgotamento dos enfrentados pela jovem nação. Em seu livro sobre
abundantes recursos naturais da colônia lusitana. as Américas, com o qual Bonifácio estava bastante
A crítica à destruição da natureza, não aparecia, familiarizado, Humboldt havia feito observações
portanto, num viés romântico, como conseqüência importantes a respeito da relação entre a destruição
de um respeito, ou veneração à natureza, mas por das matas nativas e a diminuição das águas vivas
razões utilitárias e políticas. Diria Vandelli, por de uma região, fornecendo uma visão dinâmica dos
exemplo: efeitos devastadores dessa prática:

Entre as plantas das conquistas existem muitas Ao cortar as árvores que cobrem o topo e as
espécies desconhecidas dos botânicos, encostas das montanhas, os homens de todos
principalmente árvores de muita utilidade, ou os climas produzem de uma só vez duas
para a construção de navios, casas e trastes, calamidades: a falta de combustível e a
ou para a tinturaria. Porém, no Brasil muitas escassez de água. Quando as florestas são
delas com o tempo se farão raras e dificultoso destruídas, como o são em toda parte da
o seu transporte. Pelo costume introduzido de América pelos plantadores europeus, com uma
queimar grandes bosques nas bordas dos rios imprevidente precipitação, as fontes de água
para cultivar a maior parte do milho ou secam e se tornam menos abundantes; os
mandioca, e acabando-se a fertilidade deste leitos dos rios, ficando secos uma parte do ano,
terreno em poucos anos passam a fazer novas se convertem em torrentes sempre que uma
queimas, deixando inculto o que antes foi forte chuva cai nas suas cabeceiras. [...] Desta
cultivado. E assim se destroem árvores úteis e forma o desflorestamento, a falta de fontes e a
de fácil condução. (VANDELLI, apud PÁDUA, existência de torrentes são três fenômenos
2004: 43) estreitamente conectados. (BONIFÁCIO, apud
PÁDUA, 2004: 49)
Ao longo de todo o século XIX, a crítica ambiental
no Brasil seguiu esse mesmo curso pragmático. Essa mesma visão sistêmica que vemos em
Apesar da autoridade de intelectuais românticos Humboldt aparece muito cedo na obras de José
com Humboldt, ou Chamberlain, por vezes citados Bonifácio. Em 1815, quatro anos antes de retornar
pelos autores brasileiros envolvidos com a questão, ao Brasil, ele escreveria em defesa das matas
a preocupação com a natureza permaneceu européias: “Se os canais de rega e navegação
marcada pela necessidade de implementar um uso aviventam o comércio e a lavoura, não pode havê-
racional dos recursos do país de forma a permitir los sem rios, não pode haver rios sem fontes, não
um progresso seguro no presente e no futuro. há fontes sem chuva e orvalho, não há chuva e
orvalhos sem umidade, e não há umidade sem
Como demonstra Pádua, ainda que, desde os matas.” (BONIFÁCIO, apud PÁDUA, 2004: 139).
tempos da colônia, houvessem vozes dispostas a
protestar contra a destruição dos recursos naturais

494
Paisagem, monumento e crítica ambiental na obra de Félix-Émile Taunay

O retorno de Bonifácio ao Brasil e seu envolvimento essas instituições, a Sociedade Auxiliadora da


político com os rumos do país tornou o seu Indústria Nacional (SAIN), fundada em 1827, e o
pensamento ainda mais complexo. Ao lado da Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB),
dinâmica da natureza, José Bonifácio passou a que iniciou atividades em 1838, tiveram papel de
considerar as estruturas sociais que contribuíam destaque. É importante mencionar os estritos laços
para o estado das coisas no Brasil, dando o que existentes entre essas duas instituições, pois o
talvez tenha sido a sua mais importante IHGB nasce de um desdobramento da SAIN, e
contribuição para a crítica ambiental do período, lembrar novamente que Félix Émile Taunay era
através da associação entre destruição das membro fundador do Instituto, assim como outros
florestas e o sistema escravocrata. Essa relação artistas, como Araújo Porto-Alegre. No contexto
apareceria de forma explícita em alguns de seus dessas duas instituições, houve uma importante
textos dos anos de 1820, como o sobre a inovação quanto ao pensamento sobre a questão
“Necessidade de uma academia de agricultura no das florestas nacionais: os novos autores que ali
Brasil”, publicado em 1821, ou “Representação à atuavam deixaram de preocupar-se apenas com a
Assembléia Constituinte e Legislativa do Império questão agrícola, para abordar com maior
do Brasil sobre a Escravidão”, de 1823. Em uma freqüência e coerência temas diretamente
importante passagem deste último texto, lemos, por relacionados à cidade do Rio de Janeiro. Januário
exemplo: da Cunha Barbosa, primeiro diretor da SAIN,
publica, por exemplo, em 1833 um texto intitulado:
Se os senhores de terras não tivessem uma “Discurso sobre o abuso das derrubadas de árvores
multidão demasiada de escravos, eles mesmos em lugares superiores de vales, e sobre o das
aproveitariam terras já abertas e livres de queimadas”, onde o problema da destruição das
matos, que hoje jazem abandonadas como matas não era mais visto como um fato prejudicial
maninhas. Nossas matas preciosas em apenas para a realidade rural, mas estava muito
madeiras de construção civil e náutica não mais próximo, prejudicando a vida da cidade. Para
seriam destruídas pelo machado assassino do comprovar tal fato, de acordo com o autor, bastava
negro e pelas chamas devastadoras da escutar:
ignorância. (...) e desse modo se conservarão,
como herança sagrada para a nossa as observações de pessoas inteligentes
posteridade, as antigas matas virgens que pela encarregadas do encanamento das nossas
sua vastidão e frondosidade caracterizam o águas para as fontes públicas, que a sua
nosso belo país. (BONIFÁCIO, apud PÁDUA, notável diminuição procede em grande parte
2004: 150). de se haverem destruído as matas nos terrenos
de sua nascença e passagem. O que vemos
A campanha de José Bonifácio pela abolição da ... confirma o princípio de que o abuso da
escravatura e pela reforma agrária foi, de acordo derrubada de árvores, em certas
com Pádua, um dos principais motivos para sua circunstâncias, concorre a esterilizar terrenos
perseguição e exílio, ocorridos em 1823, pouco que têm sido férteis e que ainda poderão
depois de sua ascensão ao cargo de ministro do produzir como dantes, se lhes forem
Império. Sua volta ao poder em 1831, como tutor conservadas as águas ao abrigo das árvores
dos filhos de D. Pedro I e em seguida como que o homem tão insensatamente destrói.
deputado, em 1835, marcaram o retorno de (CUNHA BARBOSA, apud PÁDUA, 2004: 175)
Bonifácio à defesa pública da causa ambiental,
porém sem a energia e a eficácia de antes. Nas É nesse contexto que surge o personagem que
décadas após a sua morte, no entanto, ao mesmo talvez esteja mais próximo de Félix-Émile Taunay,
tempo em que ocorria a regeneração de sua fazendo a ponte (se é que não existiram outras)
imagem e sua ascensão à posição de herói da entre seu pensamento sobre paisagem e o grupo
independência, suas idéias preservacionistas foram de intelectuais empenhados em preservar as matas
ganhando popularidade, até chegarem a seu auge do Brasil. Em 1837, Carlos Taunay, um dos irmãos
exatamente nos anos 40 e 50. de Félix-Émile Taunay, escreveu um pequeno livro
intitulado Manual do Agricultor Brasileiro, no qual
As décadas posteriores à independência do Brasil ele dedicava longas passagens às conseqüências
marcam também o momento de fundação de da destruição das matas nativas, em especial nas
algumas instituições que se tornaram “instâncias regiões em torno do Rio de Janeiro. Este livro nos
coletivas de atuação cultural e social”, contribuindo parece uma fonte de extremo valor para
grandemente para o aquecimento do debate crítico analisarmos aspectos importantes dos dois
sobre o desperdício de recursos naturais com os quadros de Félix-Émile Taunay: “Vista da Mãe
sistemas de queimadas adotados no Brasil. Dentre
495
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

D’Água” e “Vista de um mato virgem que está se troncos para queimá-los. A relação entre escravidão
reduzindo a carvão.” e derrubada das matas tornou-se, como vimos, um
tema recorrente da crítica ambiental, desde José
Em seu Manual, Carlos Taunay assume um tom Bonifácio. Carlos Taunay também enfatiza essa
de denúncia urgente contra a destruição das matas ligação, ainda que não defendesse como Bonifácio,
próximas ao Rio de Janeiro. Ele recomendava aos a abolição imediata dos negros.4 Félix-Émile, por
agricultores “não abusar deste manancial de sua vez, incorpora em seu quadro, essa mesma
riqueza quase inesgotável que a natureza nos crítica ao efeito nocivo do trabalho cativo. A
outorgou, não só pela razão da economia a favor brutalidade dos movimentos dos machados e a
dos nossos vindouros, como mesmo para a boa indiferença dos negros com relação ao destino da
conservação da terra e temperamento da nossa floresta torna-se ainda mais evidente pela
atmosfera”, criticando “o sistema permanente de presença, no quadro, de um único homem branco,
devastação que assola e desguarnece as fraldas de braços estendidos que, como bem observou
da serra do Corcovado e das serras da Tijuca.” Elaine Dias (DIAS, 2005: 405), medindo-se com a
(TAUNAY, apud PÁDUA, 2004: 239) Ainda em sua imponente obra da natureza, evoca concepções
opinião, a devastação das florestas estava românticas do sublime.
destruindo o clima na capital:
O horizonte livre de árvores, na parcela esquerda
a grande extensão que a cultura tomou nas da obra, deixa entrever uma região montanhosa
vizinhanças da cidade, e o indiscreto corte de que faz lembrar as serras ao redor da cidade do
matas que causou, originaram sem dúvida esta Rio de Janeiro. Estamos certamente em um lugar
alteração. O calor está notavelmente mais elevado, acima do vale que se delineia no plano
intenso. As trovoadas, outrora diárias, são médio da obra, local que, de acordo com o texto
raríssimas, e finalmente, de tantas fontes de Carlos Taunay, deveria permanecer intocado. A
próximas à cidade, umas já secaram de todo e região central do quadro configura-se como o
outras correm mais escassas. (TAUNAY, apud espaço de fronteira entre a floresta e os campos
PÁDUA, 2004: 239) devastados pelos machados dos negros e pelo
fogo. É nesse espaço que se acumula alguns dos
Em seu texto, Carlos Taunay enfatizava o elementos centrais à narrativa proposta pelo artista.
importante papel das matas no processo de Salta aos olhos, em primeiro lugar, a grande
fertilização dos solos, bloqueio de ventos, figueira, cuja frondosa copa ocupa quase toda a
conservação das fontes de água e purificação da parte superior direita do quadro. Ela é o
atmosfera, papel que era ainda mais crucial nos “personagem principal” do drama. Ao seu lado,
morros, pois o “descortinamento de grande porção como a ampará-la, vemos um pau-mulato, uma
deles pode ocasionar uma sensível alteração do árvore cuja madeira era muito usada na fabricação
clima e notável diminuição das águas.” (TAUNAY, de móveis. A posição estratégica que as duas
apud PÁDUA, 2004: 238). árvores ocupam no quadro lhes dá um aspecto de
resistência heróica. Um pouco mais à esquerda, já
A leitura dessas passagens do Manual do Agricultor
ocupando a região da queimada, encontramos um
Brasileiro não deixa dúvidas quanto à afinidade de
riacho que corre com dificuldade entre pedras e
Félix-Émile Taunay com as idéias defendidas por
entulhos, exposto ao sol e ao vento, em direta
seu irmão. O quadro “Vista de um mato virgem que
contraposição ao leito invisível, porque protegido
se está reduzindo a carvão” põe diante dos olhos
pela densa mata, do rio à direita. Entre a enorme
de seu público o próprio drama da destruição das
figueira e o rio agonizante à esquerda, vemos uma
florestas, causadora de todos os males descritos
estrada lamacenta por onde caminha um negro ao
no livro. O quadro divide-se em duas partes. À
lado de um jumento arqueado sob o peso de sua
direita encontramos uma floresta majestosa e
carga. A dramática narrativa descortina-se diante
centenária, de configuração complexa e repleta de
dos nossos olhos: Escravos negros derrubam as
espécies úteis (podemos ver, por exemplo, um
matas nativas nas cercanias do Rio de Janeiro,
grande jatobá no canto superior direito do quadro).
provavelmente visando o estabelecimento de uma
Vindo de dentro da mata densa, e desembocando
lucrativa lavoura de café e nem mesmo a mata é
em um poço natural em primeiro plano, corre um
abatida e já podemos intuir suas conseqüências
rio de águas límpidas.
nefastas: a esterilidade do terreno, representado
À esquerda, essa bela parcela de mata atlântica é pelo aspecto espinhoso que ele adquire com a
contraposta a uma paisagem desoladora, onde presença dos restos de tronco abatidos, a
homens negros trabalham sem cessar derrubando diminuição das águas expostas a céu aberto e a
a mata a machado e empilhando os enormes

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Paisagem, monumento e crítica ambiental na obra de Félix-Émile Taunay

lama que corre pela estrada, como se ela mesma A presença dessa inscrição, que reapareceu
fosse um rio ameaçador. também na exposição de 1841 levou a crítica,
desde o século XIX a ver no quadro uma celebração
Confrontado com a tradição de crítica às práticas do importante monumento arquitetônico doado pela
agrícolas brasileiras, o quadro de Taunay e seu casa de Bragança ao povo do Brasil. A aparência
projeto para a construção de uma paisagem do quadro, no entanto, não corresponde à inscrição.
brasileira a partir de elementos locais, parecem Vários elementos apontam em outra direção: a
adquirir um sentido menos abstrato e mais político construção, que é supostamente o tema principal,
já que tocava em questões que atingiam encontra-se deslocada do centro da obra e
diretamente a vida da população do Rio de Janeiro. desvalorizada, parecendo mais um casebre simples
A inscrição que acompanhou o quadro na sua do que um “monumento duradouro”. As figuras dos
primeira apresentação na Exposição Geral de 1843 escravos descansando ao redor do reservatório
parece confirmar essa hipótese: “A desaparição dos também não parecem corresponder a idéias
mais belos exemplares do reino vegetal nos celebrativas.5 E, principalmente, por que Taunay
arredores da cidade ameaça a esta, segundo não representou os Arcos da Lapa, citado na
cálculos irrefutáveis, com diminuição das águas “notícia”, este sim, uma obra passível de ser
vivas e elevação do grau médio de calor, dois males considerada “monumental?
reciprocamente ativos.”
Devemos nos perguntar, portanto, como seria
Desde o século XIX a crítica de arte sempre tendeu possível conciliar a visualidade do quadro e a nota
a considerar este quadro em uma relação de explicativa que o acompanha desde sua primeira
proximidade com a obra de Taunay: “Vista da Mãe aparição pública. Talvez uma forma eficiente de
D’Água”. De fato, suas temáticas são semelhantes, abordar a questão seria indagarmos a respeito dos
assim como as datas em que provavelmente foram interlocutores de Félix Èmile Taunay. Para quem
criados. O quadro “Vista da Mãe D’Água” ele teria pintado esse estranho quadro? Se
representa o mais antigo reservatório de água da pensarmos nas data da obra, a resposta só pode
cidade do Rio de Janeiro, situado no alto do morro ser uma: Para o imperador D. Pedro II que em 1840
de Santa Teresa. O que domina, no entanto a adquirira sua maioridade e assumira o comando
paisagem não é a construção, mas a mata virgem da jovem Nação. A 12 de Dezembro de 1840, o
que rodeia o reservatório e sua tubulação. À próprio Taunay acompanhou D. Pedro II em sua
semelhança do outro quadro de Taunay, também visita oficial à primeira exposição Geral da
essa obra fez-se acompanhar de uma “notícia” no Academia, fazendo o seguinte comentário diante
momento de sua primeira aparição na exposição da “Vista da Mãe D’Água:
Geral da Academia em 1840, com o seguinte
conteúdo: Se, como fora o nosso intento, aparecesse mais
extenso a notícia do encanamento da Carioca,
Lê-se a seguinte inscrição sobre a caixa, na não ligaria ela à lembrança atual de um passado
qual principia o encanamento das águas: de benefícios ao justo amparo que
‘Reinando El-Rei Dom João V, nosso Senhor, testemunham os fluminenses para a
e sendo Governador o Capitão General desta descendência dos príncipes de Bragança?6
Capitania e das Minas Gerais, Gomes Freire
de Andrade, do Seu Conselho, Sargento-mór O próprio Taunay explicitava, com essas palavras
de batalha dos seus Exércitos. Ano de 1744. portanto a ligação entre o tema da obra e a
Outra inscrição lapidar sobre um dos arcos de ascensão de D. Pedro II ao trono.
Santa Teresa diz assim: El-Rei Dom João V,
nosso Senhor, mandou fazer esta obra pelo Sabemos que Félix-Émile Taunay tornara-se
Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor Gomes professor de desenho e de francês de D.Pedro II e
Freire de Andrade, do Seu Conselho, Sargento- suas irmãs em 1835 e que em meados de 1839 foi
mór de batalha dos seus exércitos, Governador nomeado sub-preceptor do futuro imperador, ao
e Capitão Geral das Capitanias do Rio de lado do bispo de Chrysopolis. De acordo com o
Janeiro e Minas Gerais. Ano de 1750’. A testemunho de seu filho, Alfredo Taunay (o
grandeza das obras e magnificência sem par Visconde de Taunay), que publicou em 1916 alguns
dos sítios que elas atravessam, correspondem fragmentos de memórias do seu pai na revista do
aos paternais desvelos dos reis da Casa de IHGB, no cumprimento dessa tarefa, a natureza
Bragança, atestados pelas muitas Cartas brasileira desempenhou um papel central: “Ao
Régias e Provisões que existem a respeito imperador menino, então, foram os desvelos de
daquelas águas, desde 1672 até o mencionado meu pai inexcedíveis e, ajudado pelos esplendores
ano de 1759. da natureza brasileira, em cuja adoração viveu

497
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

sempre, por aí é que buscou e conseguiu impingir Ainda que igualmente comprometido com as idéias
na alma do jovem soberano o culto do Belo (...).” preservacionistas às quais ele era simpático, o
(TAUNAY, 1916: 96) De fato, tais memórias de Félix quadro “Vista da Mãe D’Água” parece desenvolver
Èmile revelam um programa pedagógico de um discurso mais complexo. Nessa obra, Taunay
inspiração roussoniana. Em vários trechos preocupa-se em indicar um caminho viável para
percebemos a convicção de Taunay de que o conciliar o desenvolvimento da nação brasileira,
desenvolvimento de uma sensibilidade com relação sua entrada plena para a comunidade de países
à natureza levaria à possibilidade de apreciação civilizados, e uma política de preservação das
das artes e ao refinamento cultural em geral. A matas nativas ainda intocadas. Como o próprio
narração de um pequeno episódio ocorrido durante Taunay, enquanto diretor da Academia,
um passeio ao jardim botânico com seus pupilos, reiteradamente afirmara, a medida e a história de
em que D. Francisca, irmã de D. Pedro II, rira de uma civilização estaria corporificada em seus
suas exclamações constantes de admiração diante monumentos e portanto era necessário pensar a
da natureza, serve bem para ilustrar sua posição: tradição do monumento em sua relação com a
realidade local. Nas cidades valia as regras da
Então lhes expliquei que a admiração pelos Europa: deveria-se construir monumentos imortais,
grandes espetáculos da natureza e a de inspiração clássica, pois deles “dependem os
manifestação das impressões que eles nos destinos da fama das sociedades humanas (...)
incutem, são só próprias do homem civilizado. quando já quaisquer outros vestígios
Os selvagens e entes primitivos não as sentem desapareceram.” (TAUNAY, apud DIAS, 2005:
ou, se as sentem, tem especial cuidado em 248)7. Porém ao lado desse conceito tradicional
ocultá-las. (TAUNAY, 1916: 97) de monumento, em “Vista da Mãe D’Água”, Taunay
parece conceber um outro, no qual ocorreria uma
A observação da natureza também seria um simbiose entre monumento e natureza, isto é, entre
caminho privilegiado para o aperfeiçoamento moral. natureza e história. De acordo com essa
Taunay relata que deixou um marimbondo pousar concepção, a ocupação ponderada dos sítios
sobre sua mão, diante dos jovens pupilos, para naturais (da forma proposta por Bonifácio e seus
provar que ele era inofensivo quando não se sentia discípulos), sem destruí-los, levaria à construção
ameaçado, concluindo: de um monumento, símbolo da grandeza de seu
soberano. Como estratégia retórica, isto é, como
D’aí a reconhecer que o mal para o mal pouco
forma de sugerir esse caminho como o mais
se produz na natureza, não há grande distância.
legítimo para a atuação do próprio D. Pedro II, em
Assim também a desconfiança ou o temor de
“Vista da Mãe D’Água”, Taunay apresenta sua nova
ser molestado gera mais violências e crimes
visão de natureza como monumento, sob as vestes
do que a maldade inata, a malignidade
de uma herança da casa Bragança a seu herdeiro.
gratuita...” (TAUNAY, 1916: 98)
A simbiose entre construção (reservatório e
Poderíamos aventar a hipótese dessa idéia de aqueduto) e mata é assim louvada como o grande
educação através da natureza, tal como ela legado da casa de Bragança ao Brasil. A passagem
aparece nas memórias de Félix Èmile Taunay, da “notícia” que vincula “a grandeza das obras” à
encontrar-se também na origem das duas “magnificência sem par dos sítios que elas
paisagens de Tauany que estamos analisando. O atravessam” parece muito relevante desse ponto
artista teria concebido-as pensando em seu pupilo de vista.
e no importante papel que ele estava para assumir
A integração entre monumento e natureza é um
à frente da nação. Podemos imaginar que “Vista
tema romântico de grande relevância para a
de uma mata virgem reduzida a carvão” visava atrair
paisagem, tal como ela se reinventa ao longo do
a atenção do jovem imperador para a voraz
século XVIII. Caspar David Friedrich possui
destruição da natureza brasileira que ocorria em
diversos quadros onde um pequeno túmulo
todo o país e também nos arredores do Rio de
incorpora-se ao cenário monumental da floresta,
Janeiro, como conseqüência do plantio da
ou se esconde sob as pedras colossais de uma
monocultura do café, abrindo uma porta de
gruta. Nesses quadros, o Stimmung, ou tom
comunicação direta entre o poder imperial e os
emocional da paisagem orienta nossa aproximação
intelectuais do SAIN e do IHGB que lutavam pela
ao monumento. Uma compreensão talvez mais
preservação das florestas. Nesse contexto é
próxima da de Taunay, no entanto, parece ser a do
importante também lembrar que 1843 está em
artista Jacob Philipp Hackert. O importante
discussão a primeira lei de terras para o Brasil.
paisagista, primeiro pintor de Ferdinando IV, rei de
Nápoles, realiza em 1780, uma série intitulada “Dez

498
Paisagem, monumento e crítica ambiental na obra de Félix-Émile Taunay

Vistas da Casa de Campo de Horácio” onde vemos PÁDUA, José Augusto. Um Sopro de Destruição.
ocorrer uma simbiose entre monumento clássico e Pensamento Político e Crítica
paisagem. Ambiental no Brasil Escravista (1786-1888). Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 2004.
Porém aqui, ao contrário do que ocorre em TAUNAY, Alfredo. D. Pedro II e o Barão de Taunay.
Friedrich, é a presença do monumento histórico Revista do Instituto Histórico e Geográfico
que dá significado e valor à paisagem. A questão Brasileiro, vol. 77, parte II, 1916, pp. 94-102.
ocupou o artista também do ponto de vista teórico.
Em uma passagem de seu texto sobre “Pintura de
Paisagem” podemos ler: “Muitas regiões agradam, Notas
em primeiro lugar, apenas por causa de condições
morais, ainda que elas não sejam as mais belas, 1
Doutora e História da Arte pela Universidade Livre de
pois outras idéias do observador se juntam a elas.” Berlin e professora de História da Arte do Instituto de Artes
(HACKERT, apud MATTOS, 2008: 147-48) da Unicamp.
2
Outro artista de igual importância é Manuel Araújo Porto
Em “Vista da Mãe D’Água”, também a obra dos Alegre, que sucedeu Taunay como diretor da AIBA em 1855.
3
Elaine Dias propõe uma análise semelhante em sua tese
Bragança tornou aquele trecho da natureza de doutorado: Félix- Émile Taunay: Cidade e Natureza no
memorável, um monumento relacionado à grande Brasil, defendida no IFCH/Unicamp em 2005.
história do país. Confrontado com a realidade 4
De acordo com Pádua, Taunay “criticou a imoralidade do
brasileira e com todos os desafios envolvendo a trabalho forçado, sem defender a necessidade imperiosa
construção da nova nação brasileira, Felix-Émile da abolição.(...) Mesmo assim, apesar desses atenuantes,
Taunay reinventa a pintura de paisagem propondo a realidade era que a escravidão contribuía para o atraso
um conceito novo de monumento que pudesse da agricultura.” O problema deveria ter uma solução
paulatina, no futuro. A solução seria a adoção do arado.
servir também a seu engajamento político em (p.241)
defesa da bela natureza dos trópicos. 5
Existe uma outra versão deste tema que se encontra no
MASP, onde as figuras dos escravos estão ausentes e a
Referências bibliográficas construção recebe maior destaque.
6
Félix-Émile Taunay, “Discurso na visita do Imperador à
DIAS, Elaine Cristina. Félix-Émile Taunay: Cidade Primeira Exposição Geral”, 12 de dezembro de 1840.
e Natureza no Brasil. Tese de Doutorado defendida 7
Taunay prevê um processo de adaptação dessa
no Departamento de História do IFCH/Unicamp, arquitetura européia à realidade brasileira. Em discurso
2005. pronunciado na Sessão Pública da Academia em 1834,
Taunay diria: “quem a ela se dedicar (à arquitetura), por
________. A Pintura de Paisagem de Félix-Émile
esse simples fato, torna-se benemérito do Brasil, cujas
Taunay. Rotunda, n.o 1, abril, 2003, pp. 5-18. cidades carecem tão evidentemente de construtores hábeis
MATTOS, Claudia Valladão de (org.). Goethe e capazes de aplicare os princípios eternos do bom gosto
Hackert. Sobre a pintura de paisagem. São Paulo: consagrados na arte Grega às circunstâncias peculiares
Ateliê, 2008. do clima brasileiro.” Taunay, apud. Elaine Dias, op.cit.,
MIGLIACCIO, Luciano. A Arte do Século XIX, p.248. (Grifo meu).
catálogo da Mostra do Redescobrimento. São
Paulo: Fundação Bienal, 2000.

499
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República
Eu oscilo entre realidade e irrealidade, entre
natureza e não-natureza, entre verdade e
aparência. Meus pensamentos e meus espírito
são postos em movimento, forçados a balançar
de um lado para outro, com se estivessem
girando e sendo sacudidos em um barco. Essa
é a única maneira que encontro para explicar
a tontura e o enjôo que acometem o observador
despreparado para o panorama. Citação de
Johann Augusto Eberhard (GRAU, 2007: 94)

Esta reflexão que ora apresentamos compõem-se


de uma reavaliação crítica da figura e da obra de
Victor Meirelles em particular, e por extensão, da
produção artística do século XIX no Brasil. Tanto
Meirelles quanto Pedro Américo estiveram no
centro da produção pictórica brasileira com suas
telas históricas e retratos relacionados à arte oficial
do país. Entretanto nas últimas décadas dos
oitocentos, principalmente a obra de Meirelles foi
avaliada por muitos críticos seus coetâneos como
convencional, sem criatividade e atada à uma
tradição artística ultrapassada e destituída de
verdade.

Identificamos nessas considerações uma mescla


de influências mais de caráter político do que
artístico; que procuravam desqualificar o trabalho
victor meirelles e os panoramas de Meirelles a partir de sua ligação com o regime
Imperial ao qual sua obra se fundia, não só devido
cristina pierre de frança1 à contribuição imagética que perpetuaram na
construção de uma iconografia nacional, como
também, nos laços de amizade entre o artista e o
Imperador D. Pedro II. Essas críticas se inserem
no interior de uma disputa entre Republicanos e
partidários do antigo regime Imperial dissolvido em
1889 como conseqüência da Proclamação da
República. Nesse sentido, principalmente a figura
de Victor Meirelles era relacionada ao sistema
anterior e a construção de uma iconografia que
consolidava o projeto civilizatório implantado de
forma mais incisiva com a vinda da Família Real
para o Brasil, na primeira década do século XIX.

No âmbito de questões propriamente artísticas,


tanto Gonzaga Duque quanto Oscar Guanabarino,
apresentavam críticas que se alicerçavam sobre
a mudança nos paradigmas da representação que
estavam se operando. O modelo idealista-
romântico consolidado em obras como ‘A Primeira
Missa no Brasil’, ‘Independência ou Morte’ ou ‘O
Último Tamoio’ além das diversas cenas de batalha
já não atendem a expectativa de grande parte da
crítica nacional.

Havia um clamor pelo verdadeiro, pela


representação da cor local, pela verdade na pintura.
Estas reivindicações anunciam a presença, ainda
que não nomeada, do movimento artístico que se

500
Victor Meirelles e os panoramas

seguiu ao Romantismo na Europa. Indicam as como ela é”, eliminando toda ilusão, fantasia ou
concepções do Realismo, o qual se encaminha tendências do gosto. O seu realismo “ desfaz-se
como uma tentativa de exibir uma representação de todos os esquemas, preconceitos, convenções,
meticulosa da realidade vivida sem idealidade, tendências do gosto. Para tocar a verdade, ele
embebida em objetividade e imparcialidade. Assim, elimina a mentira, a ilusão, a fantasia.Tal é o seu
os artistas que caminham no interior dessa poética realismo, [...] pura e simples constatação do
privilegiam a autenticidade e a sinceridade de suas verdadeiro” (ARGAN, 1992: 92).
obras.
Apesar da posição crítica a favor da representação
O Realismo traz uma nova atitude diante da arte, realista, não podemos entender a arte brasileira
certamente herdada de uma mentalidade empírica, que se desenvolve nos oitocentos se não
profundamente norteada por um apreço pela compreendemos a diferença de propostas entre
visualidade e por uma nova concepção de tempo esse momento – o das últimas décadas do século
imediato, que incide sobre essa produção. O que XIX e aquele da chegada da Missão Artística
estava em jogo era a “importância do confronto com Francesa em 1816, relacionando-a ao projeto de
a realidade fresca, conscienciosamente despindo civilização do país sob a égide de um modelo
suas mentes e seus pincéis de um conhecimento modernizador europeu.
de segunda mão e de fórmulas prontas”.(NOCHLIN,
1978: 20) A vinda da Corte Portuguesa ao Brasil em 1808,
especificamente ao Rio de Janeiro, determinou uma
Além desse caráter de presentidade, de absoluta transformação não só no âmbito civil do país, mas
fidelidade a um tempo e a um lugar definido, que é também definiu uma mudança em seu estatuto
um dos aspectos essenciais do Realismo, cultural; houve uma adequação da cidade à sua
encontram-se também outras motivações, as que nova função de capital do Reino Unido de Portugal,
são esclarecidas nos textos e declarações do pintor Brasil e Algarves.
Courbet, um de seus principais representantes.
Numa afirmação de 1861 Courbet afirmou: A chegada de um grupo de artistas franceses para
fundar uma escola de artes nos moldes da
A pintura é essencialmente arte concreta e pode Academia Francesa, que viria a ser denominada
unicamente consistir na apresentação do real de Missão Artística Francesa, estava inserida no
e das coisas existentes. Ela é como uma seio de medidas, de caráter iluminista
linguagem física completa, as palavras das concretizadas pelo governo português no Brasil,
quais consiste são todos os objetos visíveis, com o objetivo de civilizar a cidade. Nessa
um objeto que é abstrato, não visível, não é perspectiva fundavam-se as “Academias da
existente e não está dentro do reino da pintura. Marinha, de Medicina, Militar, de Belas Artes, as
(NOCHLIN, 1978: 23) escolas do Comércio, de Agricultura e de Botânica
além da Biblioteca e Museus” (GUIMARÃES, 1922:
As atitudes dos realistas relacionadas às questões 425). Estas instituições visavam implementar as
como imediatismo e materialidade delimitam o fato atividades culturais e integrar o país ao modelo
dos artistas desse movimento trabalharem com os europeu.
aspectos visíveis e tangíveis dos objetos. Seu
compromisso era de “libertar a sensação visual de O modelo pensado a priori com a implantação da
qualquer experiência ou noção adquirida e de Academia pretendia a inserção do país nas
qualquer postura previamente ordenada que ‘modernidade’ daquele momento, introduzindo no
pudesse prejudicar sua imediaticidade,” (NOCHLIN, país as correntes contemporâneas de arte daquele
1978: 75) determinando sua imposição de trabalhar período e capacitando uma mão de obra para
apenas com o contemporâneo. atuação na indústria.

Courbet afirmava que a natureza da arte era a Nesse processo a Academia buscava
contemporaneidade e que os artistas eram simultaneamente, inscrever o país num projeto de
incapazes de reproduzir algo que não fosse relativo instrução, de âmbito bem mais amplo do que a
ao seu tempo, fosse do passado ou do futuro, numa formação artística, e a construção de um imaginário
clara condenação à pintura histórica. Desse modo, que correspondesse aos ideais do império
a realidade teria que ser mostrada exatamente brasileiro, calcado na figura do Imperador e de fatos
como ela se apresentava, com a máxima históricos marcantes na constituição do país
sinceridade, não importando a inexistência de (SANTOS, 1998: 128). Retratos, bustos, pinturas
beleza ou de riqueza, sem idealizações ou históricas e de paisagem passam a integrar com
dramatizações. Courbet quer viver a “realidade vigor os temas da arte no cenário nacional.

501
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

Além disso, a Academia tinha o dever de “promover partindo em 10 de abril de 1853 para a cidade de
o progresso das Artes no Brasil, de combater os Roma.
erros introduzidos em matéria de gosto, de dar a
todos os artefatos da indústria nacional a Como todos os alunos que obtinham este prêmio,
conveniente perfeição, e enfim o de auxiliar o “devia prestar contas de suas atividades aos
Governo em tão importante objeto”. 2 Esses professores brasileiros durante toda sua estadia
propósitos estavam claramente delineados na na Europa” (CAVALCANTI, 2001-2002: 70), já que
Reforma Pedreira, implantada em 1855. como pensionista era subvencionado pelo governo
brasileiro. Victor Meirelles foi vencedor do oitavo
Assim para a Academia Imperial de Belas Artes, prêmio de viagem. 3 Na Europa esteve como
os aspectos pedagógicos da arte ultrapassariam o estudante em duas cidades: Roma e Paris,
circuito do ensino artístico e se estenderia a toda permanecendo no exterior por oito anos. Manteve
população. As referências à elevação desse gosto correspondência com o Manuel de Araújo Porto-
popular circulavam nas crônicas de diversos Alegre, que como diretor da Academia Imperial,
articulistas do período, em jornais como ‘O País’ e deveria se inteirar dos estudos dos pensionistas,
‘O Diário Ilustrado’. Nos textos veiculados até por força do decreto que em 1855 instituiu a
encontravam-se freqüentemente alusões à Reforma Pedreira, que define os novos estatutos
educação artística e desenvolvimento de um da Academia Imperial e determina entre outras
determinado gosto na população; corroborando que coisas, obrigações dos artistas pensionistas e valor
as implicações e influência do ensino acadêmico de sua pensão anual.
superavam em muito a questão técnica e educativa
restrita aos alunos inscritos em seus cursos. Entre as tarefas definidas pela congregação para
Victor Meirelles, estava o envio de trabalhos que
Entre os artistas da Missão Francesa, coube comprovassem sua aplicação nos estudos. Nesse
principalmente Jean Baptiste Debret a sentido, foram exigidos tanto cópias de bons
responsabilidade por essa pintura histórica oficial, autores, quanto obras originais do pintor.
que representava os grandes atos oficiais da Corte Cumprindo suas tarefas com rigor Victor Meirelles
no Brasil, o Desembarque da Imperatriz Dona envia ao Brasil diversos estudos de pintura à óleo,
Leopoldina ou ainda, o Retrato de D. João VI, de desenhos e obras originais e os seguintes
registraram fatos marcantes da Corte portuguesa trabalhos originais: A Degolação de São João
no Brasil. Além disso, junto com o arquiteto Batista, A Flagelação de Cristo, A bacante e A
Auguste-Henri Victor Grandjean de Montigny foi Primeira Missa no Brasil (FERNANDES, 2001/
responsável pela decoração dos eventos festivos. 2002: p.21).

Com a efetiva fundação da Academia em 1826, a A obra pela qual Victor Meirelles é mais
instrução referente à pintura histórica ficou a cargo amplamente conhecido A Primeira Missa no Brasil
de Debret, o ensino de pintura de paisagem sob a é realizada entre 1859 e 1860. Inscreve-se sob a
responsabilidade de Nicolas Antoine Taunay e o égide de uma pintura emblemática, que retrata um
de arquitetura com Grandjean de Montigny. momento original e único brasileiro. Constitui uma
imagem que determina uma identidade nacional,
Os artistas brasileiros discípulos da Academia, em e atende ao programa de consolidação e criação
meados dos oitocentos seguiam o caminho de uma imagética brasileira. Constrói no imaginário
iconográfico, definido pela por seus mestres, o de a idéia de uma nação pacífica, imersa numa
configurar uma memória e uma identidade nacional. natureza amigável e sem conflitos – portanto
apresenta um programa de caráter idealista e
Dentre estes artistas destacamos Victor Meirelles romântico, que configura um mito que aproxima a
(1832-1903). Nascido na cidade de Desterro, hoje idéia de civilidade – representado pela ação
Florianópolis, desde cedo mostrou pendor para religiosa européia - e de natureza – a partir da
as artes. Matriculou-se na Academia Imperial de integração dos índios nascidos nesta terra edênica,
Belas Artes em 1847, com a ajuda do Conselheiro circundando a cena. Nesse sentido, pode-se
Jerônimo Francisco Coelho e alguns amigos da entender o porquê de sua apreciação no Salon de
família que custearam sua vinda para o Rio de Paris.
Janeiro. Em 1849 matricula-se na cadeira de
pintura histórica, ministrado pelo pintor José Correia A Primeira Missa é inaugural no sentido da
de Lima, discípulo de Debret, freqüentando o curso construção de uma iconografia de pintura histórica
por três anos. Em 1852 apresenta a obra São João que atende a uma demanda de configuração de
no Cárcere, vencendo o concurso para obtenção uma pátria que estava se constituindo naquele
do Prêmio de Viagem a Europa daquele ano, momento.

502
Victor Meirelles e os panoramas

O outro viés na construção desse ideário imagético Essa via de aproximação com a natureza provoca
brasileiro pode ser assinalado na pintura de duas atitudes que serão marcantes durante o
paisagem e de natureza morta. No caso da século XIX e que podem ser entendidas como o
paisagem podemos identificar o pintor Nicolas arcabouço de toda representação de paisagem
Antoine Taunay antigo professor de paisagem da moderna4: uma francamente naturalista, baseada
Academia como um incentivador dessa na realidade empírica e na luz objetiva – a
representação da terra brasileira, como um gênero representação flamenga; e outra que busca
autônomo. submeter essa realidade a uma certeza que,
decerto, provém de uma realidade externa à arte
O termo paisagem é de origem francesa e remonta como a matemática - que é configurada pela
a 1549. (HOUAISS, 2001: 2105) Inicialmente alude representação da paisagem na arte florentina. Esta
a idéia de “conjunto de países” e “de extensão de última se caracterizava, segundo Clark, pelo uso
terra que a vista alcança”. A acepção da palavra da “perspectiva científica, inventada por
em seu sentido moderno se materializa durante o Bruneleschi”.5
Renascimento, quando se inicia um processo de
domínio da natureza de maneira mais efetiva e ela Essa acepção de uma obra segundo leis externas
se transforma em matéria-prima para a paisagem. a sua própria existência, que regem a pintura de
paisagem italiana, configuram o nascimento do
A primeira instância imediatamente percebida homem moderno que pretende o domínio da
nesse gênero de pintura, ainda durante a Idade natureza, submetendo-a à razão e a uma
Media, foi a exacerbação ou aguçamento da via construção inicialmente mental.
sensória a partir das sensações que a paisagem
evocava. A segunda esfera diz respeito à questão A paisagem natural só ganha mais espaço a partir
local, que já está inclusa em sua origem do final do século XVIII, não obstante ter havido
etimológica, mas que só posteriormente iria ser uma corrente de artistas que deram continuidade
destacada nas paisagens – quando elas aludem a a esse modo de representação. A base
determinados locais em determinado período de desse tipo de pintura certamente está assentada
tempo. sobre a observação direta da natureza, no prazer
empírico da observação. Esse período coincide
Por outro lado, a pintura de paisagem na com o movimento romântico,6 quando a paisagem
representação dos elementos da natureza se opõe se ergue como um gênero autônomo de pintura de
a idéia de urbanidade, uma idéia que é apresentada maneira mais consistente. A paisagem que se
pela primeira vez por Francisco Petrarca (1304- definia anteriormente ora natural, ora ideal se
1374), que segundo Keneth Clark é “o primeiro a configura durante esse período sob o domínio do
expressar [...] o desejo de escapar do torvelinho pitoresco e do sublime. Giulio Carlo Argan7 define
das cidades para refugiar-se na paz do campo esses dois modos de representação como uma
solitário”. (CLARK, 1984: 21). Ainda de acordo com forma complementar de visão de mundo.
Clark, o poeta italiano foi o primeiro a descrever a
idéia de panorama, de uma visão aérea de um local Na visão de Argan a questão do pitoresco se
num ângulo de trezentos e sessenta graus e do relaciona inicialmente a uma idéia de jardim,8 que
deleite que essa visão transmite ao espectador. por sua característica construtiva aproxima os dois
Essa idéia é muito importante para a compreensão conceitos. Nesse sentido, Argan nos apresenta os
da ampliação dos sentidos na arte brasileira do séc. fundamentos do pitoresco definidos pelo teórico do
XIX. termo, o pintor tratadista Alexander Cozens.9 Para
ele, a fonte de estímulos do artista é a natureza, e
Formalmente Clark identifica a luz como principal nesse sentido é sua função apresentar esses
elemento da pintura de paisagem, e essa estímulos de maneira clara, a partir das sensações
luminosidade pode ser obtida quando o pintor fica visuais, sem a interferência de esquemas
diante da natureza. Esta pintura luminosa deve ser geométricos como a perspectiva. Uma outra
resultado da observação direta dos fatos propriedade do pitoresco é a busca do variado, do
“dificilmente poderiam haver sido pintadas de diferente, do característico e singular em detrimento
memória, tinham que estar baseadas em estudos do belo ideal, “o característico não se capta com a
feitos diretamente do natural, [...] de uma cena real” contemplação, e sim com a argúcia ou a presteza
(CLARK, 1984: 36), que se atém à representação da mente, que permite associar ou ‘combinar’
direta de um acontecimento e de uma dada idéias-imagens, mesmo muito diversas e distantes”
situação da natureza. (ARGAN, 1992: 18).

503
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

As poéticas do sublime foram definidas um pouco truques e maquinações, assimilando as novidades


posteriormente às do pitoresco e refletem um mecânicas e a tecnologia.
pensamento algo diferenciado. A relação do sujeito
diante da natureza se transforma. No sublime, o Podemos descrevê-los como grandes telas, de
sujeito está diante de um ambiente hostil, forma circular, que se instalavam em grandes
desmedido, misterioso e fundem-se nele medo e espaços fechados, construídos especificamente
fascínio, bem próximos do sentimento trágico, para esse fim Tanto nomeiam o edifício construído,
encontrados nas obras de Henri Fusili, William quanto a pintura representada
Blake e Caspar Friedrich. Argan descreve essa
poética da seguinte maneira: Panorama: edifício, geralmente circular, no
qual pinturas chamadas de panorama são
O ‘sublime’ é visionário, angustiado: as cores, exibidas na parede da rotunda cobertas por
às vezes foscas, às vezes pálidas, desenho de uma cúpula ou um telhado de forma
tacos fortemente marcados; gestos excessivos, cônica.Estes pinturas são fieis reproduções
bocas gritantes, olhos arregalados, mas a figura da aparência de um determinado lugar quando
sempre fechada num invisível esquema visto de todos os ângulos, tão perto ou longe
geométrico que aprisiona e anula seus quanto o olho pode enxergar. Para este fim, o
esforços. (ARGAN, 1992: 19) espectador é colocado em uma plataforma ou
galeria circular que simula uma torre localizada
Essa distinção entre o pitoresco e o sublime é no centro da rotunda, a luz flui pelo alto, através
importante para divisar em que âmbito essas de uma área de vidro fosco encaixada na parte
poéticas instigaram a pintura de paisagem mais alta do telhado caindo sobre as pinturas.
brasileira do século XIX. A natureza do nosso país Um imenso guarda-sol, suspenso sobre a
oferece um caráter misterioso e assustador, na plataforma de madeira mantém o espectador
medida em que nossas florestas simultaneamente no escuro ao mesmo tempo que ocultam as
apresentam uma grande variedade e abundância fontes de luz. (COMMENT, 1999: 7)
de cores e formas, além de uma luminosidade
intensa que, encoberta pela copa e pelas folhas De acordo com Stephan Oettermann o termo
das árvores, apresenta efeitos dramáticos e Panorama remete diretamente a construção das
obscuros. palavras híbridas cunhadas na era moderna, para
designar as novas tecnologias, engrenagens
Apesar disso, grande parte de nossa paisagem se mecânicas e avanços científicos. (OETTERMANN,
apresentava sob a forma de panoramas, 10 que se 1997: 6) Segundo ele, a palavra foi construída pela
constituíam a partir do pitoresco, que não junção de dois termos gregos: pan (todo) e horama
despertavam medo ou angústia, nem os (visão) para significar uma forma específica de
sentimentos inomináveis e desmedidos da poética representação de uma paisagem pintada a sob
do sublime. Nessa paisagem tropical parecia existir um ângulo de 360º.
uma harmonia com a natureza, um sentimento de
bem estar e contemplação serena diante da Os Panoramas podem ser descritos como a pintura
paisagem. de uma paisagem - de caráter idílico ou histórico –
em uma tela de grandes dimensões de forma
Os panoramas brasileiros tinham a característica circular que mantinham o espectador imerso no
de uma paisagem composta, (CONSIDERA, 2000: interior da imagem pintada. Esse caráter imersivo
287-294) de um simulacro da cidade no qual se era potencializado não só pela construção
condensava a vista, unindo e aproximando locais arquitetônica circular, mas também por toda uma
mais distantes. ambientação que obscurecia os espaços até a
chegada ao foco do interesse, a própria pintura.
Os panoramas como construção específica do
século XIX, embora partam da idéia já descrita Entre as características desse meio de arte, pode-
anteriormente, de uma visão estendida do espaço, se afirmar que diferente das outras formas de
apresentam algumas peculiaridades. Neles havia pintura (como os afrescos ou a pintura de cavalete),
uma multiplicação dos ângulos de visão, buscava- o Panorama exigia uma participação ativa do
se um olhar total, de maneira que o espectador se espectador, através não só de deslocamentos na
sentisse absolutamente envolvido. área da pintura, mas também, por sugerir a
realização de operações de síntese do espectador
Constituíam-se em uma forma de espetáculo que para completar o efeito panótico da obra, uma vez
exigiam uma contemplação que superava os que se apresentavam também sob a forma de
aspectos visuais, iludiam os sentidos através de painéis que recortavam o espaço de maneira

504
Victor Meirelles e os panoramas

sucessiva. O espectador se colocava no centro, Esse era um dos motivos, pelos quais estes
“sobre uma espécie de mirante”,11 e poderia existir produtos não eram reconhecidos plenamente como
uma ilusão de realidade, de se sentir como se arte, afinal toda estética do século XVIII, era
estivesse observando a paisagem exposta ao ar fundamentada na questão do desinteresse, que
livre,12 uma atitude bem similar aos momentos de pregava a não funcionalidade do objeto artístico.
lazer, de contemplação da natureza. Além disso, o Panorama encaminhava uma tensão
interna, que aludia simultaneamente ao Belo e ao
Reconheço que fiquei agradavelmente surpreso Sublime. Quando representava uma paisagem com
com a vista que se me oferecia à entrada do ângulo de 360º abarcava uma vista impossível
Panorama [...] Eu me vi genuinamente de ser visualizada pelo olho, a qual passava pela
transportado em pleno ar, sobre a plataforma idéia de uma forma ilimitada, de uma continuidade
do pavilhão central das Tulherias, e Paris e suas perene, de uma grandeza a que aludem todas as
redondezas descortinaram-se ante meu olhar questões relacionadas ao Sublime. Por outro lado,
maravilhado; quando, após toda uma hora, havia uma busca por representações da natureza,
emergi do Panorama, vendo novamente a vistas consideradas belas e adequadas. Nesse
natureza, tive dificuldade de distingui-la da ponto de vista o Panorama não era uma produção
pintura que acabara de deixar.( MANNONI, confortável,
2003: 192)
O outro motivo pelo qual, essa produção
Essa invenção com o nome de “la nature à coup encontrava-se no limiar da produção artística,
d’oeil” foi patenteada em 17 de junho de 1787 relacionava-se com a utilização das maquinarias
pelo irlandês Robert Barker, que a descreveu em sua execução, geralmente para efeitos de
como um processo de representação de iluminação.
paisagens com uma “perspectiva correta, uma tela
completamente circular”(GRAU, 2007: 85). Entre Ao observarmos a constituição do edifício do
suas finalidades estava o entretenimento da Panorama detectamos dois pontos importantes; em
população, transformando a visita a em um primeiro o lugar de um lugar específico para o
espetáculo semelhante ao do prestidigitador.13 espectador que se colocava no centro, “sobre uma
espécie de mirante”, 15 dali, poderia ampliar a ilusão
A nosso ver o panorama pode ser compreendido de realidade, podia se sentir como se estivesse
como um espaço ambiental, que apresenta a observando a paisagem exposta ao ar livre. 16 Em
mobilidade como uma de suas características. segundo lugar a presença de um lugar específico
Nesse sentido, pode ser deslocado, por não estar para a colocação de objetos que confluem na
fixado a um lugar específico. Podem ser montados tangência entre o espaço do espectador e a tela
e desmontados de acordo com a conveniência do exposta. Esses objetos aumentam a confusão
artista ou do público. Dessa maneira, nos entre realidade e virtualidade, potencializam o
reportamos a uma produção artística que não tem aspecto ilusório dos panoramas e de seu ambiente
um caráter tão móvel como a pintura de cavalete, imersivo, são chamados de false terrain ou faux
que apresenta uma intervenção pontual no terrain na Inglaterra e na França respectivamente.
ambiente, nem tão fixo como a arquitetura, que o Podemos aquilatar seu impacto sobre o espectador
determina; não nos referimos também aos afrescos no depoimento abaixo, escrito num jornal carioca
nem a pintura mural, que ilusoriamente configuram por Arthur Azevedo:
um ambiente, ampliando-o ou implementando uma
realidade artificial. Por esta característica os Há pouco mais de dois anos, achando-se o
Panoramas apresentam similaridade com autor destas linhas em Paris, teve ocasião de
produções da contemporaneidade como as maravilhar-se diante do panorama da batalha
Instalações e Videoinstalações que como estas de Chantilly, primorosamente executado por
últimas também apresentam a configuração de um dois eminentes pintores militares: Detaille e o
ambiente virtual móvel. 14 malogrado Neuville.
Quem nunca viu um panorama, não pode fazer
Essas produções também oferecem um caráter a menor idéia do que aquilo é. O observador
híbrido, pois agregam às imagens expostas, que entrar no respectivo edifício, depois de
objetos e situações que por vezes, destinam-se a atravessar um espaço escuro, preparando,
confundir o espectador imersos fisicamente nos desse modo o orgão visual para receber o efeito
ambientes virtualmente construídos. Deixando da pintura, é tão completamente iludido, que
claro, a ambivalência desses ambientes, que se supõe achar-se realmente no mesmo ponto de
prestavam de maneira contundente a lazer e ao vista d’onde o pintor copiou a paisagem. Os
brincar. primeiros planos são engenhosamente
505
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

arranjados com aspectos naturais, o Simultaneamente, eles também estavam


espectador abaixava-se e apanha um punhado relacionados a uma padronização que preconizava
de terra; entretanto, por mais esforços que a industrialização, 17 que se iniciava em escala
empregue, não descobre onde acaba o palpável ampliada, e a vida feérica dessa população do
e principia o pintado, tal é a ilusão ótica século XIX, assimilando paralelamente a natureza,
produzida por uns tanto efeitos de luz, a modernidade e a civilização.
admiravelmente combinados.
No panorama da Batalha de Chantilly há (para A opção por pintar Panoramas feitas por Victor
citar alguma coisa) uma carroça natural a que Meirelles indicam que o artista estava sensível às
se acha atrelado um jumento visto de costas. inovações que as Artes Plásticas apresentavam,
Por mais que m’o explicassem, custou-me a apesar de se descrédito e desvalorização artística
compreender o engenhoso processo pelo qual no país. Estas pinturas foram produzidas nos
chegou o artista a tão maravilhoso resultado. últimos anos do século XIX, e eles podem nos
[...] ( JORNAL DO COMERCIO, 1885: 1) mostrar que apesar de pertencer ao círculo
acadêmico, o artista também era interessado nas
Essa produção alia a ciência e a tecnologia às novas mídias e na pesquisa da imagem e sua
artes visuais e utilizam-nas para programar seu recepção.
projeto ilusório e imersivo de representação,
determinando uma realidade virtual vivenciada O pintor realizou três panoramas, todos tratavam
(GRAU, 2007: 30). Combina ao vocabulário da história do Brasil e de sua paisagem. As
imagético, uma série de artifícios de base exposições foram visitadas por grande parte da
tecnológica mecânica, que estimulam os domínios população, que as olhavam como um lugar de
perceptivos do espectador, através de ambientes entretenimento, algo que não era entendido pelos
herméticos, geralmente em espaços de 360º, que meios artísticos. Talvez esta seja uma das causas
coíbem as impressões externas, e apresentam- da negligencia com seu trabalho, que apodreceu
se de forma totalizadora. Estes espaços imersivos em pleno Museu Nacional.
promovem uma exacerbação de realismo e
segundo Oliver Grau: Os Panoramas se incluem na linhagem de
invenções e produções que anteciparam a
podem ser classificados como variantes configuração do espaço cinematográfico, com suas
extremas de mídias imagéticas que, por conta grandes telas, causando impacto sensorial no
de sua totalidade, oferecem uma realidade espectador.
completamente alternativa. Por um lado, elas
dão forma às ambições que ‘abrangem tudo’ Além disso, seu lógica de expositiva de itinerância
dos fazedores de mídia e, por outro, oferecem por diversos locais, de padronização de dimensões
ao observador, em particular através de sua de tela, de separação e divisão das atividades
totalidade, a opção de se fundir com a mídia pictóricas, que já apresentavam configurações que
da imagem, a qual afeta as impressões e a aludiam a idéia de industrialização, seriação e de
consciência sensorial. Essa é uma grande veículo da comunicação de massas.
diferença em relação aos efeitos não
Nesse sentido, a opção de Victor Meirelles por esta
herméticos da pintura ilusionista, como a tromp
forma de produção artística é inquietante porque
l’oeil, na qual a mídia é prontamente
no mínimo contribui para relativizar a idéia que o
reconhecível, e às imagens ou aos espaços
artista se atinha em sua obra apenas a temáticas
imagéticos delimitados por uma estrutura
históricas ou paisagísticas já consagrada. Não
aparente ao observador, tais como o teatro ou,
obstante ser um pintor comprometido com a
até certo ponto, o diorama, a a televisão em
tradição acadêmica, esse fato não obstaculizou sua
especial. [...] (GRAU, 2007: 31)
inserção nas novas mídias que se apresentavam,
Pelas razões já expostas de conjunção entre arte com todos os riscos que essa escolha lhe trazia
e técnica não é por acaso que os panoramas e naquele momento, financeira e fisicamente.
seus similares estavam relacionados às grandes
Victor Meirelles, mostra uma abertura conceitual
exposições internacionais. Essas “invenções”
que apresenta conexões com meios de arte mais
estavam perfeitamente sintonizadas com esse novo
modernos da Europa, que investiam num novo
mundo que se avizinhava. De certa maneira, eles
paradigma imagético, que os panoramas já
eram uma apresentação do progresso, do engenho
apresentavam, como a imagem fotográfica e a
das novas tecnologias aplicadas a artefatos cada
questão mecânica envolvida em sua execução. O
vez mais complexos.
interesse pelo meio novo que os panoramas

506
Victor Meirelles e os panoramas

representavam afiançam o olhar moderno de após camadas de pintura para cria quase um
Victor em relação a pintura. baixo-relevo. Eu repito, que de qualquer modo,
o todo apresenta uma agradável impressão.
Victor realizou três panoramas: O Panorama do Rio (OETTERMANN, 1997,173)
de Janeiro, que pintou em conjunto com o pintor
H. Langerock; A Entrada da Esquadra legal no Quanto da exibição no Rio de Janeiro, assim como
Porto do Rio de Janeiro e finalmente na França e na Bélgica, Meirelles acompanhou
Descobrimento do Brasil. essa realização de um panorama explicativo no
qual apresentava as dimensões e a sua relação
Para construção do Panorama o artista criou uma com a tecnologia escrevendo no folheto; como
companhia, a Cia. Grande Panorama Nacional que um artefato de “forma cilíndrica- giratória, medindo
pretende operar com um panorama na cidade do de diâmetro 36,66 m., de comprimento 115 m.,
Rio de Janeiro e de Niterói, o anuncio da aludida de altura 14,5 m ou sejam 1667 m2”
companhia foi publicado no dia 2 de outubro de (PEIXOTO,1982: 108) além disso nomeava todos
1884. No anúncio os futuros associados são os acidentes geográficos e assinalando também
instados a comprarem ações da empresa e elenca a posição do espectador.
entre as razões para essa aquisição motivações
patrióticas, infelizmente não teve êxito ficando O Panorama foi motivo de grande assistência de
endividado quando do fechamento da mesma. acordo com a notícia publicada no Jornal O Paiz,
em 11 de janeiro de 1891, assinada pelo articulista
Embora tenha pensado na produção desse J.R. pseudônimo de João Ribeiro
Panorama do Rio de Janeiro por um longo tempo,
sua efetiva produção vai acontecer apenas a partir O Panorama é a great attraction do público
de 1886, quando viaja para a Bélgica, juntamente fluminense. Lá fui, era a primeira vez que via
com H. Langerock para sua efetiva realização, a um panorama. Gostei enormemente,
qual se estende por dois anos. imensamente. Belo e admirável como a própria
natureza. Creio que consumi duas horas de
O Panorama é inaugurado em Bruxelas na alegre contemplação.
presença do rei e da rainha da Bélgica com a Abro agora um novo período. Elogiei até os
presença de todo o corpo diplomático. Chega a ser museus (sem metáfora) para ter o direito de
visitado por cinqüenta mil pessoas ficando em criticar.
exposição por seis meses. Não falo do colorido, nem da sombra que
mergulha uma parte da cidade e que muitos
No ano seguinte é exposto na Exposição Universal acham extremamente cinzenta.
de 1889, não conseguindo local para expô-lo nos Mas eu notei que as opiniões exageradas a
pavilhões oficiais, instala o panorama na Avenida propósito reduzem-se a duas. Primeira a parte
Suffren. Em 14 de março ele é inaugurado. O marítima, as montanhas, os últimos planos são
Panorama de V. Meirelles foi agraciado com magníficos, segunda a cidade, o largo do
medalha de bronze na grande Exposição Roccio, o teatro, alguns momentos são
parisiense, a qual se encontra no Museu Nacional mesquinhos. (O PAIZ, 1891: 1)
de Belas Artes.
Na perspectiva das questões relacionadas a
Transcrevemos abaixo uma crítica feita por percepção do espectador em relação as sensações
Germain Bapst apresentada no livro de S. são assinaladas no artigo que apresentado na
Oettermann Gazeta de Notícias publicado em 5 de janeiro de
1891, no qual os aspectos ilusionísticos da
O Panorama do Rio de janeiro é ... pleno do
produção de Meirelles são destacados
encanto da tarde. O observador é colocado na
montanha entre a cidade e as montanhas que Dedicamos ontem, cerca de uma hora à
a cercam como um anfiteatro, por traz da contemplação do Panorama da baía e cidade
cidade descortina-se o porte e o mar; As vistas do Rio de Janeiro, pintados pelos artistas Victor
distantes são bem apresentadas e os matizes Meirelles e Langerock e exposto no antigo largo
verdes das montanhas fazer um belo contraste do Paço.
com o azul do oceano. A cidade e seus edifícios, Na pintura, o panorama constitui como que um
ruas e monumentos estão bem apresentados gênero especial e separado. A cenografia entra
para o olhar do contemplador. Este panorama por muito nele, mas o gênero é mais complexo,
usa algumas tecnicas decorativas de Ciceri, mais difícil, porque o pontar de vista gira com
certos efeitos são obtidos adicionado camadas o espectador e porque não há meio de recorrer

507
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

aos efeitos de luz das gambiarras, que são, na arte, estava apostando numa nova forma de
nas cenografias, as poderosas e decisivas visualidade, que só viria a se concretizar no século
efeitos(?) do claro. vinte.
A arte, no que respeita a composição e
equipamento, por pouco entra também num Referências bibliográficas
gênero que, acima de tudo, demanda verdade
minuciosa, ligeiramente modificada pela ARGAN, Giulio Carlo. Arte Moderna. Tradução de
convenção, imprescindível num gênero que tem Denise Bottman e Federico Carotti. São Paulo,
por base a ilusão ótica do espectador. Companhia das Letras, 1992.
No panorama de que agora nos ocupamos, o ________. História da Arte como História da
visitante, assim que chega ao terraço de Cidade.Tradução Píer Luigi Cabra. São Paulo,
observação, que tem apenas cinco metros de Martins Fontes,1998.
elevação, tem a sensação da vertigem que nos BOLETIM BELAS ARTES . “A voga dos
acomete na altura de cinqüenta metros. cosmoramas”. Rio de Janeiro, Sociedade
A grande tela circular, que apresenta os últimos Brasileira de Belas Artes, 1945. nº 1. p. 5.
planos a grande distância, funde-se embaixo CAMPOFIORITO, Quirino. Arte Brasileira no Séc.
sem que lhe perceba solução de continuidade, XIX. Rio de Janeiro. Ed. Pinakoteke, 1983.
nos primeiros planos reais, sólidos, CAVALCANTI, Ana Maria T. Os Prêmios de Viagem
verdadeiros, cobertos de palmeiras da Academia em Pintura. 185 Anos da escola de
verdejantes, de arbustos vivos, de grama verde Belas Artes. Rio de Janeiro:UFRJ,2001/2002.
e viçosa cortada por veredas e picadas, que COMMENT, Bernard. The Painted Panorama .New
despertam a vontade de descer e observar o York: Harry N. Abrams, Inc,Publishers,1999.
que é realmente verdadeiro e o que é CONSIDERA,Eliane. Uma Modernidade Bem-
artisticamente fingido. comportada. O Panorama da baía e da cidade do
O espectador deve destinar os dois ou três Rio de Janeiro de Victor Meirelles e Langerock, in
primeiros minutos, para preparar os olhos e o Paisagem e Arte . I Colóquio Internacional de
espírito para a impressão por assim dizer nova História da Arte – CBHA/CIHA. Coordenação
(?) que vai sentir. [...] Heliana Salgueiro. São Paulo, H. A. Salgueiro,
A gente pisca insensivelmente os olhos, limpa 2000.
involuntariamente a testa com o lenço e sente CLARK, Kenneth. El Arte Del Paisage. Barcelona,
satisfação, quando julga ficar ao abrigo do sol, Ed. Seix-Barral, 1984
virando-se, vira-se para os lados da Tijuca, já FERNANDES, Cybele V. O ensino de pintura e
envoltos nas projeções frias e azuladas das escultura na Academia Imperial de Belas Artes. 185
montanhas. Julgamos sentir as lufadas Anos da escola de Belas Artes. Rio de
refrigerantes, que nos mandam os morros e Janeiro:UFRJ,2001/2002
colinas de Santa Tereza e Paula Matos. Aí, ESTRADA, Luis Gonzaga Duque. A Arte
pouco distante de nós está um naturalista, de Brasileira. Campinas. São Paulo, Mercado das
óculos e cabelos brancos, como todo Letras 1995.
naturalista que se preza examinando GRAU, Oliver. Arte Virtual da ilusão à imersão.
preciosidades mineralógicas, que parece ter São Paulo: Editora Unesp:Editora Senac São
apanhado no Morro de Santo Antonio, onde Paulo, 2007.
nunca apanhamos senão furiosas calças(?) e GUIMARÃES, Argeu. História das Artes Plásticas.
estopadas, quando lá subimos, [...] Rio de Janeiro. Revista do Instituto Histórico e
O trabalho dos Srs. Victor Meirelles e Geográfico Brasileiro, Vol. IX, 1922.
Langerock realiza absolutamente o seu HOUAISS, Antonio. Dicionário Houaiss da
desideratum. Com os segundos e últimos Língua Portuguesa. Rio de Janeiro, Ed. Objetiva,
planos pintados, com os primeiros em relevo e 2001.
ornados por árvores, plantas e pedras MANNONI, Laurent A Grande Arte da Luz e da
verdadeiras com os passarinhos voando e Sombra- Arqueologia do Cinema. São Paulo. Ed.
chilreando por entre as folhas, os dois artistas Senac: Ed. UNESP, 2003.
apresentam um espetáculo muito para ver-se NAVES, Rodrigo. A Forma Difícil:ensaios sobre
e pelo qual lhes cabem os maiores elogios. a arte brasileira. São Paulo:Editora Ática, 1997.
(GAZETA DE NOTÍCIAS, 1891: 1) NEVES, Margarida S.. Panoramas in Visão do Rio
de Janeiro na Coleção Geyer. Curadoria Lourdes
Apenas nesses comentários observamos que o P. Horta. Petrópolis/Rio de / Janeiro: CCBB, 2000.
artista ao escolher esse meio artístico, estava OETTERMANN,Stephan. The Panorama: History
vislumbrando uma nova vertente que se constituiria of a Mass Medium. New York:Zone Books, 1997.

508
Victor Meirelles e os panoramas

NOCHLIN, Linda. Realism. Londons, Peguin qual a arte não nasce da natureza, mas da própria arte, e
Books, 1978. não somente implica um pensamento da arte, mas é um
PEIXOTO, Elza. Os Panoramas in Proença Rosa, pensar por imagens não menos legítimo que o pensamento
por puros conceitos.”
Angelo (org.) Victor Meirelles de Lima. Rio de 7
Ver G. C. Argan, Op.cit., cap. 1 e 2.
Janeiro. Ed Pinakotheke, 1982. 8
De certa maneira o jardim representa uma metáfora da
RUBENS, Carlos. Victor Meirelles sua vida e sua natureza dominada, porque nele há sempre uma
obra. Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1945. interferência humana, nas espécies cultivadas, no desenho,
SANTOS, Afonso Carlos M.. A Academia Imperial na sua projeção que deixa bem claro que é um projeto
de Belas Artes e o Projeto Civilizatório do humano conduzido pela experiência humana e não pelo
Império. Anais do Seminário Escola de Belas Artes, divino. Por outro lado existe uma tradição medieval que
relaciona paraíso a jardim: “Paraíso significa em persa
180 anos. UFRJ, 1998.
‘recinto amuralhado’ e é muito possível que esse valor
especial que cobria os jardins no final da Id. Média seja
Periódicos herança das cruzadas...”
9
Argan, G. C. Op. cit., p. 18.
A Gazeta de Notícias , Rio de Janeiro, 1889 -1891 10
Os panoramas aos quais nos referimos aqui, são aqueles
Jornal do Comércio, Rio de Janeiro, 1885 definidos na visão de Petrarca, paisagens vistas do alto e
O Paiz, Rio de Janeiro, 1884 e 1891. num ângulo de 180º.
11
A voga dos cosmoramas. Boletim Belas Artes. Rio de
Notas Janeiro, Sociedade Brasileira de Belas Artes, 1945. nº 1.
p. 5.
12
1
Mestre em Artes Visuais – EBA –UFRJ, Professora de De acordo com Margarida Neves, já existiam dois
Artes Visuais Ensino Fundamental e Médio Colégio Pedro cosmoramas no centro do Rio de Janeiro pelos anos de
II; do Curso de Licenciatura em Artes Visuais da 1837, estes eram colocados por Martins Penna numa peça
UNIGRANRIO, Doutoranda em História e Crítica da Arte/ como exemplos de encantamentos. Ver Margarida Neves.
EBA-UFRJ. Panoramas. Visão do Rio de Janeiro na Coleção Geyer.
2
Estas afirmações encontram-se no texto da Reforma Curadoria Lourdes P. Horta. Petrópolis/Rio de / Janeiro:
Pedreira, 14-05-1855, título IV, art. 10. CCBB, 2000, p. 28.
13
3
Os prêmios foram concedidos anualmente a partir de O Panorama faz parte de uma lista de eventos do
1845 sem interrupções até o ano de 1852, após essa data período, como a câmara escura e a fantasmagoria que
só foram concedidos a partir de 1860 sem uma periodização tinham a função de entreter o publico a partir da
mais regular. Ver Tabela dos Pensionistas da Academia disponibilização de imagens. Ver livro de Laurent Mannoni,
Imperial de Belas Artes, apresentada por Ana Maria T. no qual o autor faz um estudo dos avanços de captura e
Cavalcanti in 185 anos da Escola de Belas Artes, p. 72. fixação da imagem até o advento do cinema.
14
4
O termo moderno utilizado aqui se refere à classificação A origem etimológica do termo virtual., tem seu ponto de
histórica que define os momentos que sucedem o partida na Idade Média, na palavra latina virtualis – uma
renascimento como era moderna. derivação de um outro termo virtus, que significa força,
5
Clark, K. Op. cit., p. 38. Podemos antever nas questões potência. Desse modo o virtual remete a idéia de vir a ser,
da arte renascentista uma relação muito aproximada com de devir. Ver Pierre Levy. O que é Virtual? São Paulo, Ed.
aquelas suscitadas durante os séculos XVIII e XIX entre o 34, 1996.
15
pitoresco e o sublime. A voga dos cosmoramas. Boletim Belas Artes. Rio de
6
Para G. C. Argan não existe uma oposição, mas sim uma Janeiro, Sociedade Brasileira de Belas Artes, 1945. nº 1.
complementaridade entre o romantismo e o neoclássico, p. 5.
16
o autor considera ambos como facetas diferentes de um De acordo com Margarida Neves, já existiam dois
mesmo movimento de revivescência histórica em curso e cosmoramas no centro do Rio de Janeiro pelos anos de
que supera as divisões anteriores entre clássico e 1837, estes eram colocados por Martins Penna numa peça
romântico. Por conta disso vai identificar intercâmbios como exemplos de encantamentos. Ver Margarida Neves.
formais entre os dois movimentos. No texto de Arte Op. cit., p. 28.
17
moderna, p. 12, escreve: “Pode-se, pois, afirmar que o Em seu relato, Margarida Neves alude ao fato de se
Neoclassicismo histórico é apenas uma fase do processo construir telas padronizadas com as seguintes dimensões:
de formação da concepção romântica: aquela segundo a 15 metros de altura e 220 metros de largura.

509
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República
A presente comunicação aborda a produção de
pintura de marinha no Brasil entre o final do século
XIX e o início do século XX e tem como intuito
compreender o desenvolvimento do gênero no país
e seus diálogos com a arte internacional. A
pesquisa realizada no mestrado sobre o pintor
Giovanni Castagneto (1851-1900) permitiu elencar
duas vertentes de paisagística marinha na
produção artística brasileira: a pintura histórica, que
tem na batalha naval, sua representação mais
imponente, e a pintura de temática cotidiana, que
apresenta no ambiente dos pescadores, uma
renovação do gênero. Ambas proporcionam
exemplos de apropriação da tradição européia
reinventada no país, em um período que abrange
desde obras produzidas por ocasião da Guerra do
Paraguai até as inovações artísticas ocorridas com
o surgimento da pintura ao ar livre e de novas
linguagens formais, que não as mesmas propostas
pelas vanguardas, mas originais em suas
experimentações.

A pintura de marinha tem uma longa tradição que


remete, principalmente, à Holanda do século XVII2,
devido a existência de artistas que se
especializaram no gênero, e também à Itália e
Flandres3. Notamos nesta produção que a distinção
por sobre as águas: um estudo sobre a pintura de uma pintura como marinha é dada pela presença
de marinha no brasil1 do barco. De maneira geral, são encomendas de
eventos históricos, como, por exemplo, as batalhas
helder oliveira navais ou os “retratos” de grandiosas embarcações,
cujo o intuito é celebrar o orgulho das frotas
mercante e de guerra. Muito comum na produção
holandesa, como podemos detectar em Slive
(1998:213), mas não somente nesta, as batalhas
navais, portos, naufrágios e cenas de estuário são
assinalados por David Cordingly (1986:424) como
os motivos mais populares do gênero. George
Keyes (1990:04) menciona, basicamente os
mesmos motivos, presentes na marinha holandesa,
só que divididos em três grupos. São eles: (a)
bíblicos, mitológicos e de temáticas morais; (b)
eventos históricos; e (c) ‘retratos’ de navios. Essa
divisão demonstra, novamente, o barco como
personagem central das pinturas de marinhas, em
importantes momentos narrativos. No entanto, no
decorrer do século XVII, outros motivos como os
barcos anônimos e a tensão atmosférica entre o
mar e o céu são incorporados ao gênero (SLIVE,
1998:216), trazendo o ambiente corriqueiro como
parte integrante da paisagem marinha. Cordingly
(1986:424) apresenta o cenário cotidiano, durante
o século XIX, quando cenas da beira-mar, barcos
de pesca, iates e vistas do mar aberto são
retratados por pintores do período.

No texto de Alexei Bueno (2004: 31-63), o autor


destaca o mar como um importante tema que
dominou principalmente a produção artística do Rio

510
Um estudo sobre a pintura de marinha no Brasil1

de Janeiro durante o século XIX, porém notamos pintura brasileira do século XVIII com a tradição
nos exemplos imagéticos de Bueno, a inexistência européia do gênero de marinha, que desde o século
de obras sem a presença do barco. Neste sentido, XVII desperta o interesse em inúmeros pintores.
há uma similaridade com o ponto de vista de Slive, Outra grande contribuição para se avaliar a história
já que para este autor, – que provavelmente do gênero é a presença dos artistas viajantes7 e
pressupõe o mar na pintura de marinha – a dos pintores vinculados à implantação da AIBA, no
presença do barco é algo que define o gênero. A início do século XIX, quando estes realizaram uma
definição de marinha em Gonzaga Duque (1997:55) intensa produção de imagens das costas litorâneas
é compreendida através dos exemplos citados pelo do Brasil, principalmente do Rio de Janeiro: as
autor, pois este considera marinhistas apenas os pinturas de vistas. Geralmente associada à
artistas que se dedicavam, especialmente, a construção de uma iconografia da paisagem
representação de barcos e do mar4. nacional, a pintura de vista é uma das principais
referências imagéticas sobre o país, como
Percebemos que desde o cenário holandês dos podemos notar nas obras dos viajantes Thomas
seiscentos coexistem essas duas vertentes de Ender (1793-1875) e Charles Landseer (1799-
marinhas, as quais denominamos: (a) marinha 1979), e em alguns exemplos realizados por artistas
histórica e (b) marinha cotidiana. A primeira abrange vinculados a AIBA, como Praia de Botafogo (1816)
a representação dos barcos para demonstrar a de Nicolas-Antoine Taunay (1755-1830); Vista da
superioridade naval militar ou comercial de uma cidade do Rio de Janeiro tomada da ilha das Cobras
nação e em cenas que envolvem a força do mar (c.1835), de Félix-Émile Taunay (1795-1881); e A
sobre o homem. E a segunda retrata pequenas baía do Rio de Janeiro vista da ilha de Villegaignon
atividades de trabalho ou atividades prosaicas, (1840), de August Muller (1815-c. 1890). Isto sugere
como a pesca, o transporte de cargas e o lazer na claramente a proximidade das relações artístico-
praia. De qualquer maneira, o barco permanece culturais travadas entre os artistas viajantes e os
como elemento identificador do gênero, associado, artistas fundadores da AIBA e que, de certo modo,
tanto ao cenário histórico quanto cotidiano. Apenas influenciará toda uma produção realizada a
a partir de meados do século XIX, o mar passa a posteriori. A atuação de Félix-Émile Taunay merece
ser empregado como elemento exclusivo em uma um destaque ainda maior, por ter ele sido,
pintura de marinha. Deste modo, o barco como provavelmente, o primeiro artista responsável por
personagem central, passa a dividir a atenção com um importante exemplo de motivo utilizado para a
o próprio mar, pois este se torna um motivo para a representação das marinhas históricas: o porto. A
expressão subjetiva do artista. obra Paisagem Histórica de um Desembarque no
Largo do Paço (1829) permite uma aproximação
A partir dos autores abordados, observamos que a com a série Portos da França realizada pelo pintor
definição do gênero ocorre a partir da relação entre Claude-Joseph Vernet (1714-1789), na qual Vernet
o mar, o barco e o homem. Inicialmente, esse faz um retrato fiel da paisagem urbana e dos
mesmo entendimento será adotado em nossa costumes contemporâneos. Taunay, assim como
pesquisa sobre a produção paisagística marinha. Vernet, descreve uma cena portuária
Esta abordagem é importante para fazer um contemporânea, na qual o desembarque de um
levantamento dos motivos a ela associados grupo de nobres apresenta-se a um público curioso
presentes na produção brasileira, e na qual sobre o espetáculo.
destacamos, o diálogo entre o barco, o homem e
os grandes rios – característica hidrográfica do país O foco principal, em nossa pesquisa, são os objetos
–, que permitiu a apropriação da tradição de artísticos, isto porque privilegiaremos os estudos
representação de batalhas navais em obras de das imagens para entendermos as transformações
Victor Meirelles5. artísticas na história do gênero. Para tanto,
iniciamos o trabalho ordenando os exemplos mais
No Brasil, uma das primeiras contribuições para significativos, em três grandes conjuntos:
uma visão mais precisa da constituição do gênero
de marinha é o conjunto de quatro pinturas em - Encomendas oficiais que objetivavam a
formato oval 6, atribuídos ao Leandro Joaquim glorificação da nação.
(1738?-1798?) e realizado no final do século XVIII.
Vista da Igreja e Praia da Glória, Visita de uma - Representações líricas cujo motivo é o cotidiano
Esquadra Inglesa na Baía de Guanabara, Procissão à beira-mar.
marítima e Pesca da Baleia na Baía de Guanabara,
demonstram a grande riqueza de motivos - Experimentações artísticas realizadas nas
retratados pelo artista e revela um diálogo da primeiras décadas do século XX.

511
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

O primeiro grupo inclui as batalhas navais de nação, iniciada com as pinturas históricas de
Passagem de Humaitá (1868-71) e Combate Naval Jean-Baptiste Debret (1768-1848)10.
de Riachuelo (1882-83) de Victor Meirelles e as
representações de Eduardo De Martino (1838- Eduardo De Martino (1838-1912) também pintou
1912) sobre a Guerra do Paraguai, pois importantes registros da atuação da Marinha
consolidaram a promoção das artes pelo Estado brasileira na Guerra do Paraguai, assim como,
(MIGLIACCIO, 2000) a partir do final da década de representações detalhadas de grandes barcos
1860, em especial por realizarem grandes como Barco no mar em Salvador (1873) e chegadas
exemplos de pintura histórica do país. Estas obras de membros da família real ao Brasil, por exemplo,
suscitam uma investigação sobre as a tela Chegada da Fragata Constituição ao Rio de
representações artísticas vinculadas ao gosto Janeiro em 1843 (1872), na qual narra o
oficial, pois se tratam de pinturas feitas dentro de desembarque da Imperatriz Teresa Cristina no
um programa que visava a construção de uma Brasil. No contexto da tradição de pintura de
iconografia histórica que relatava os principais – e marinha vinculada aos “retratos” de grandes
mais emblemáticos – momentos da história do embarcações, podemos ainda citar Carlos
Brasil no período do Segundo Império. Balliester (1870-1927) que mantém essa tradição
Encomendadas, em 1866, por Affonso Celso de em pleno século XX, por exemplo, Navio
Assis Figueiredo, então Ministro da Marinha, as encouraçado Barroso (1916) e Marinha com regata
obras Passagem de Humaitá (1868-71) e Combate a velas e rebocador (1919).
Naval do Riachuelo (1883) de Victor Meirelles
correspondem a embates da Guerra do Paraguai O segundo conjunto de obras – as representações
que visavam dignificar a atuação naval do Brasil. A líricas do cotidiano à beira-mar – demonstra a
primeira obra retrata um cenário bélico “cheio de originalidade de pintores como Castagneto, que
manchas negras e clarões vermelhos”, como bem constrói uma tradução lírica do ambiente dos
observa Gonzaga Duque (1995:174), embora, diga- pescadores. O foco de suas obras são os barcos
se de passagem, de maneira negativa, pois deixa que, indiretamente, acusam a existência humana,
entrever a sua opinião em relação a um tema mais precisamente do pescador, que em algum
histórico sem personagens, na qual o cenário bélico momento pode aparecer, pegar seu barco e entrar
de navios envolvidos pelos vermelhos e negros, no mar. O barco se torna, de fato, a possibilidade
não satisfaz, do ponto de vista artístico, a de expressão dos sentimentos do pintor. É o que
representação de um evento histórico. Essa acontece, por exemplo, em Marinha com barco
posição do crítico faz com ele não perceba, neste (1895), na qual notamos a tentativa de compor uma
quadro, o lirismo da cena noturna de batalha, obra que concentrasse toda a atenção na relação
desprezando o teor moderno da pintura. Por outro que o barco, e só ele, pode expressar através de
lado Combate Naval do Riachuelo (1883) dignifica um lirismo que intui a presença física desse
o papel da Marinha 8 por trás da vitória nacional ambiente praiano.
contra as forças paraguaias, pois, o momento
A representação de praias e do ambiente dos
escolhido é justamente aquele no qual o Almirante
pescadores pode ser vista, já a partir dos anos
Barroso aparece no passadiço do navio Amazonas,
1860-70, em obras como Ilha da Boa Viagem com
após a vitória da marinha brasileira. Nesta obra,
o Rio de Janeiro ao fundo (s/d), de Henry-Nicolas
percebemos a representação da imponência dos
Vinet (1817-1876), uma cena de praia, na qual os
navios brasileiros, já que o vapor Amazonas é
pescadores possuem uma importância tão grande
retratado à frente dos demais, passando ao lado
quanto os camponeses da paisagem clássica de
de um grupo de paraguaios, a bordo de uma
Claude Lorrain (1600-1682), da qual a obra de Vinet
embarcação a pique. Estes quadros tornaram-se
é devedora. Ou na obra Vista da enseada de
imponentes construções imagéticas sobre a
Botafogo (1868), na qual observamos uma
memória visual à respeito deste embate bélico e
abordagem direta da realidade visual tropical
se encaixam perfeitamente na tradição de pintura
(MIGLIACCIO, 2000:128), resultado da prática da
histórica de marinha, “bebendo” na fonte européia
pintura en plein air, que será difundida, no início
para criar e definir seus modelos9. As marinhas de
dos anos 1880 na AIBA por Grimm. O contato direto
Victor Meirelles representam, em grandes
com o motivo é significativo para analisar a
dimensões, eventos históricos contemporâneos,
renovação ocorrida na concepção da paisagística
vivenciados pelo artista e que visavam criar um
brasileira (Eulálio, 1984, Migliaccio, 2000), inclusive
importante conjunto de imagens da guerra
de marinhas, já que, primeiramente, os artistas
(MIGLIACCIO, 2000:109). E, assim, dar
tomavam como referência os padrões consolidados
continuidade à divulgação de uma imagem coletiva
da tradição européia.

512
Um estudo sobre a pintura de marinha no Brasil1

A estética que Grimm “trazia da Europa [como] um de Calixto, especialmente nas obras aqui
esquema cultural, um modo particular de ver o selecionadas, uma preocupação com o realismo e
mundo, um saber enfim” (SOUZA, 1980:229) detalhismo da cena, com a criação de uma imagem
possibilita criar um cenário de pintores que se que seja tão fidedigna quanto possível do mundo
conectam com Castagneto e demais integrantes empírico, talvez por influência da fotografia, com a
do grupo Grimm, tendo a pintura en plein air como qual tomou contato e que possibilitava a
referência para as transformações técnicas e reconstituição do local, naquele momento, como
temáticas na pintura de marinha. Esse círculo de em um álbum de viajantes.
pintores é formado por artistas que apresentam,
tanto obras vinculadas a representação Além de Calixto, há em São Paulo uma série de
iconográfica da paisagem local quanto buscam algo pintores paisagistas que realizaram também
de lírico em seus quadros. Podemos citar, Nicolao pinturas de marinha: Antonio Ferrigno (1863-1942),
Facchinetti (1824-1900), pintor de origem italiana Clodomiro Amazonas (1883-1953), Dario Villares
radicado no Brasil a partir de 1849 e que retratou Barbosa (1880-1952), José Marques Campão
várias vistas da orla do Rio de Janeiro, por exemplo, (1892-1949), Túlio Mugnaini (1895-1975), Paulo
Enseada do Botafogo (1869), na qual associa a Vergueiro Lopes de Leão (1889-1964), entre outros.
vida urbana e o mar da cidade de maneira bastante A maioria retratou trechos conhecidos de praias
minuciosa. Merecem destaque também, Jerônimo paulistas, mas necessitam de estudos mais
José Telles Júnior (1851-1914) e Rosalvo Ribeiro precisos para uma melhor avaliação da sua
(1865-1915) e suas representações de praias. A produção artística no contexto do gênero.
cena do que parece ser o passeio de algumas
pessoas na praia de Telles Júnior em Praia Por fim, o último grupo destaca as experimentações
nordestina (c.1895) evidencia a renovação do tema artísticas realizadas nas primeiras décadas do
e uma combinação de manchas de cor obtidas século XX, a partir de um conjunto de obras de
através de espessas camadas de tinta, que bem Mário Navarro da Costa (1883-1931), pintor que
pode dialogar com a produção de artistas consolida a representação de temas cotidianos
posteriores como Garcia Bento e Navarro da Costa. aliados às novas práticas de pintura que dialogam
A obra Praia (s/d) de Ribeiro retrata uma cena que com movimentos artísticos europeus surgidos no
privilegia a praia como elemento central e tanto final do século XIX, como o impressionismo, o pós-
pode se relacionar com a obra de Teles Júnior, em impressionismo. Suas experimentações pictóricas
sua similaridade de composição e tons quanto com de cor através do uso de espátula podem ser vistas
Marinha com barco (1895) de Castagneto, pela em obras denominadas Marinha realizadas em
utilização de largas pinceladas que criam manchas 1911, 1912 e 1920. Além de Navarro da Costa é
de cores e por ser de pequenas dimensões. O importante citarmos, para a melhor compreensão
mesmo ocorre com os artistas Presciliano Silva desse conjunto, a produção de Antonio Garcia
(1883-1965) que retratam cenas litorâneas da Bento (1897-1929), que também realizou
Bahia, Raimundo Cela (1890-1954) que experimentações com a espátula em Saveiros
representou em suas obras a vida dos pescadores (1925) e Porto de Valença (1927) e, a obra
do Ceará e Aurélio Figueiredo (1854-1916) que Paisagem com Canoa na Margem (1922) de Alfred
realizou algumas cenas da paisagem nordestina, Emil Andersen (1860-1935), que possibilita
entre elas uma cena de praia no Ceará. visualizar um intenso lirismo na cena ocupada pelo
barco, traduzida por suas cores e composição
Em São Paulo, as representações litorâneas com simples. A atuação desses artistas nas primeiras
características iconográficas estão presentes na três décadas do século XX é de extrema
produção de Benedito Calixto (1853-1927), célebre importância, devido ao fato de trazerem novas
pintor de marinhas que retratou em suas obras a propostas formais para produção do gênero de
paisagem do litoral de Santos e São Vicente. Em marinha.
Entrada do Porto de Santos (Forte) (s/d), vemos
um típico exemplo de representação vinculada ao Considerações Finais
ambiente cotidiano pesqueiro, com seus barcos na
A pintura de marinha ocupa um grande espaço na
beira da praia. O artista também retratou muitas
produção artística brasileira. Um olhar atento a essa
cenas de portos – motivo caro à pintura histórica
produção – a partir da pesquisa realizada no
de marinha –, essencialmente de Santos, como
mestrado – nos fez perceber que muitos artistas
podemos constatar no quadro Rampa do Porto do
se dedicaram, em algum momento de suas
Bispo em Santos (c.1900), na qual é possível notar
carreiras, a representação de inúmeros motivos
a detalhada descrição de uma cena portuária
relacionados aos barcos e/ou ao mar, praia e rio.
associada a vista urbana. Observamos na produção
Diante dessa realidade, esta pesquisa inicial

513
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

dedica-se a um estudo sobre o gênero de marinha, Campinas: dissertação de mestrado (História da


já que a produção de paisagens marinhas Arte) – IFCH, Unicamp, 2007.
apresenta questões que se encontram num tecido SLIVE, Seymour. A Marinha In Pintura Holandesa
histórico internacional (COLI, 1999:124). Ou seja, 1600-1800. São Paulo: Cosac & Naify, 1998.
não estão desvinculadas dos debates artísticos que SOUZA, Gilda de Mello. Pintura brasileira
ocorrem fora do país, permitindo analisar através contemporânea: os precursores In Exercícios de
do gênero, as inovações formais presentes no Leitura. São Paulo: Duas Cidades, 1980.
conjunto da história da pintura brasileira. TOLEDANO, John Lionel. Marinhas em Grandes
Coleções Paulistas. Rio de Janeiro: Diretoria do
Referências bibliográficas Patrimônio Histórico e Cultural da Marinha/ Sociarte,
2000 [catálogo de exposição].
BUENO, Alexei. O onipresente mar. O Brasil do
século XIX na Coleção Fadel. Rio de Janeiro: Notas
Edições Fadel, 2004.
1
COLI, Jorge. Como estudar a arte brasileira do século Comunicação baseada em pesquisa de doutorado
XIX?. MARTINS, Carlos, CARVALHO, Anna Maria F. iniciada em 2008. Doutorando em História da Arte
M. de, BANDEIRA, Júlio, KURY, Loreai, DÓRIA, pelo Instituto de Filosofia e Ciências Humanas,
Renato Palumbo, PICCOLI, Valéria, SIQUEIRA, Vera UNICAMP.
2
Beatriz (curadores). O Brasil Redescoberto. Rio de Os primeiros exemplos de pintura de marinha são,
Janeiro: Paço Imperial/MinC, 1999 [catálogo de na verdade, realizados no final do século XVI, na
exposição]. Itália e Países Baixos. Manoeuvre (2003:01)
CORDINGLY, David. TURNER, Jane (ed.). The considera o surgimento do gênero nesses locais,
dictionary of Art. London: Grove, 1996 (volume 20). no século XVII.
3
EULÁLIO, Alexandre. O século XIX. FUNDAÇÃO Segundo Slive (1998:214), o holandês Hendrick
BIENAL DE SÃO PAULO. Tradição e Ruptura: Cornelisz Vroom (1566-1640) foi o primeiro pintor
síntese de arte e cultura brasileira. São Paulo: a especializar-se no gênero, por isso é considerado
Fundação Bienal de São Paulo, 1984 [catálogo de o fundador da pintura de marinha européia. Antes
exposição]. dele, devemos citar as obras Carracas Portuguesas
GONZAGA DUQUE. A arte brasileira. São Paulo: (1520; National Maritime Museum, Londres),
Mercado de Letras, 1995. pintada, provavelmente, por Cornelis Anthonisz;
________. Graves e Frívolos (por assuntos de arte). Vista de Nápoles (Galeria Doria-Pamphili, Roma)
Rio de Janeiro: Livraria Sette Letras e Fundação Casa de Pieter Bruegel o Velho e Tempestade no mar
de Rui Barbosa, 1997. (Kunsthistorisches Museum, Viena), atualmente
KEYES, George S. Mirror of Empire: Dutch Marine atribuída a Josse de Momper II, como precursoras
Art of the Seventeenth Century. Cambridge: da grande era da pintura de marinha que estava
Cambridge University Press, The Minneapolis Institute centrada nos holandeses no século XVII (Cordingly
of Arts, 1990 [catálogo de exposição]. In: Turner, 1986: 423-426).
4
LEITE, José Roberto Teixeira. Dicionário crítico da Os pintores marinhistas citados por Gonzaga
pintura no Brasil. Rio de Janeiro: ArtLivre, 1988. Duque são: Eduardo De Martino (1838-1912),
LICHTENSTEIN, Jacqueline. A Pintura: os gêneros Gustave James (?-1884), Émile Rouède (1850-
pictóricos. São Paulo: Editora 34, 2006 [coleção A 1912) e Giovanni Castagneto.
5
Pintura, vol. 10]. Ver p. 05.
6
MARQUES FILHO, Luiz César. Catálogo MASP – As obras atribuídas a Leandro Joaquim têm como
Museu de Arte de São Paulo ‘Assis Chateaubriand’. hipótese terem sido pintadas para fazerem parte
São Paulo: MASP, 2001 [catálogo de museu]. de um dos pavilhões do Passeio Público do Rio de
________; MIGLIACCIO, Luciano. 30 mestres da Janeiro (Migliaccio, 2000).
7
pintura no Brasil. São Paulo: MASP, 2001 [catálogo De maneira geral, são artistas viajantes aqueles
de exposição]. que realizaram diversas representações dos
MIGLIACCIO, Luciano (curador). Arte do Século XIX. aspectos naturais (paisagem) e dos hábitos e
AGUILAR, Nelson (org.). Mostra do costumes (culturais, sociais), cujo fim, na maioria
Redescobrimento. São Paulo: Fundação Bienal de das vezes, era o registro documental dos mesmos.
São Paulo/Associação Brasil 500 anos, 2000 Estes participaram de expedições científicas ou
[catálogo de exposição]. produziram álbuns iconográficos cuja intenção era
OLIVEIRA, Helder. Olhar o Mar: Um estudo sobre o de serem ‘lembranças’ ou ‘guias’ de viagem. Mais
as obras ‘Marinha com Barco’(1895) e Paisagem sobre o assunto: Belluzzo (1994), Ades (1997),
com rio e barco ao seco em São Paulo “Ponte Martins (2000) e Galard, Lago (2000).
Grande” (1895) de Giovanni Castagneto.

514
Um estudo sobre a pintura de marinha no Brasil1

8
Neste projeto, quando referenciamos as Forças retrataram em suas obras diversas vitórias navais
Armadas da Marinha, esta aparecerá sempre de seus encomendantes, promovendo, por meio
grafada com ‘M’ maiúsculo, enquanto ao das batalhas, a glória bélica da
referenciarmos a pintura de paisagem que trata da marinha de seus países.
10
representação do mar e dos rios, a grafia será com A pintura histórica do Brasil se inicia com a vinda
a letra ‘m’ minúscula. da missão francesa e a instalação de um formato
9
Pintores como Willen van de Velde, o jovem (1633- acadêmico de arte aliada ao poder político, isto é,
1701), Samuel Scott (c.1702-1772) e Théodore ao imperador. Mais sobre o assunto: Dias (2000).
Gudin (1802-1879) são exemplos de artistas que

515
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República
Sabemos que o olhar dos viajantes que
percorreram o Novo Mundo estava marcado pelo
sentido do exótico e do singular e que a produção
iconográfica entre os séculos XVI e XIX dividiu-se
entre o relato fantasioso, o registro científico e a
representação do que identificamos como hábitos
e costumes, além dos inúmeros registros da
paisagem brasileira. Grosso modo, a produção
iconográfica associada às experiências de viagem
pode ser dividida em dois conjuntos: um deles
reuniria imagens cujo destino seria o de ilustrar,
exemplificar e acompanhar textos também
originados da experiência do deslocamento; o
outro, por sua vez, agruparia as imagens que
manteriam sua autonomia em relação a registros
não visuais. O que definiria a destinação de cada
um dos trabalhos seria, justamente, a intenção de
quem os produzia ou demandava, conforme a
finalidade que se desejava imprimir às
representações elaboradas por desenhistas,
artistas amadores e profissionais, bem como por
indivíduos sem formação artística. No longo trajeto
de sua fortuna crítica, esse grande conjunto a que
se denomina iconografia de viagem, viu construir-
se ao redor de si, de uma maneira indiscriminada
e generalista, o atributo do registro documental.
Reconhecer seu papel documental, capaz de
traduzir, aos olhos de quem não esteve diante da
iconografia de viagem à luz da história da arte realidade “reapresentada”, o essencial do que ali
se havia instituído em termos naturais e humanos,
valéria alves esteves lima *
remete para um aspecto da arte desde os seus
primórdios e que diz respeito à sua capacidade
mimética. Remete, de resto, à capacidade atribuída
a toda imagem, de ser a “presença de uma
ausência” (BELTING, 2004: 13). É justamente desta
capacidade e das possibilidades que dela derivam
que a iconografia de viajantes retira seu poder de
instituir-se enquanto discurso que autoriza a
História1.

Não apenas para os contemporâneos das imagens,


mas para grande parte dos que as utilizariam em
suas reflexões e trabalhos, tais exemplares
parecem ter sido prioritariamente utilizados para
confirmar teses e opiniões, bem como construir
conhecimento a partir da similaridade proposta
entre realidade observada e representada. Na
perspectiva deste trabalho, tal poder não nasce da
reprodução precisa e exaustiva dos motivos que
“representariam” uma realidade ausente, mas da
eficácia do processo de construção das imagens,
levado a cabo pelos chamados “artistas-viajantes”.

Já tem sido por demais discutida a condição da


produção imagética nos países de tradição colonial,
onde se identificam práticas e usos da imagem
diretamente associados à história de dominação
destes territórios. 2 Assim, a fim de mapear os
territórios e estabelecer estratégias de exploração

516
Iconografia de viagem à luz da história da arte

e controle, as metrópoles passaram a realizar ou a imagens produzidas por viajantes, vale retomar as
permitir viagens em que os registros visuais foram reflexões de Jacques Aumont, que destaca a
adquirindo cada vez maior importância, sobretudo dificuldade de encontrar o artístico nas imagens
a partir de meados do século XVIII, diante da que “veiculam uma referência direta, de tipo
urgência de fixar, transportar e utilizar os saberes documentário, ao mundo visual” (AUMONT,
recolhidos. A partir do século XIX, com o avanço 1993:260). Os elementos formais e estéticos
da impressão litográfica e a mudanças operadas subordinam-se à ótica documental, sob a qual se
no campo da produção visual, relacionadas tanto têm estudado e valorizado a produção iconográfica
à imagem, quanto aos meios (suportes e veículos) dos “artistas-viajantes”, transformando-as em
e à sua recepção, a iconografia produzida pelos referências fundamentais para a investigação dos
viajantes que, sempre em maior número, deixavam mais variados aspectos da história brasileira: tipos,
a Europa e alcançavam diferentes partes do costumes, paisagens, eventos políticos, práticas
planeta, assume um papel fundamental para a culturais e religiosas, formação urbana, entre
expansão do conhecimento e para a consolidação outros.
de políticas voltadas ao “desenvolvimento” dos
territórios visitados. No caso do Brasil, mais O que se busca, nesse trabalho, é escapar um
especificamente, sabemos das profundas pouco desse cenário e colaborar para um debate
alterações vividas pela colônia, após a transferência que apenas se inicia6, buscando rever o papel desta
da Corte portuguesa, em 1808. 3 A curiosidade iconografia a partir de seus exemplares particulares
despertada pelas informações que anteriormente e pensando-a na perspectiva da história da arte.
chegavam à Europa a respeito das terras Como indica Marta Penhos, as ferramentas da
brasileiras, ainda mais instigada pelo longo período história da arte permitem ao estudioso das imagens
de fechamento do território à entrada e produzidas por viajantes “estudiar los mecanismos
permanência de estrangeiros, tornou o cenário formales, compositivos e iconográficos, los
muito favorável e convidativo, após as medidas préstamos y apropiaciones de soluciones eficaces,
tomadas pela Corte em sua nova sede. Não é la elaboración de modelos.” (PENHOS, 2005: 20)
estranho, portanto, que se tenha verificado, já Em particular, as análises que aqui estão
desde as primeiras décadas do século, uma desenvolvidas, refletem uma preocupação com a
extensiva produção de imagens que configuram um capacidade destas imagens no sentido de
dos maiores conjuntos iconográficos produzidos por despertarem emoções e percepções a partir das
viajantes. O que chama a atenção, não obstante, escolhas estéticas e formais de seus autores.
é que estas imagens tenham sido, em geral, Enquanto conjunto ou individualmente, essas
classificadas como um conjunto à parte da imagens produzem sentidos para um território que
produção artística brasileira, como se pouco ou passou por profundas alterações ao longo de todo
nada tivessem a nos dizer a respeito da evolução o século XIX, momento em que, assim como vários
da sensibilidade artística no país. Seja porque países europeus e seus vizinhos americanos, o
muitos de seus autores não tivessem, efetivamente, Brasil busca definir sua identidade nacional, num
uma formação artística, seja porque estas imagens complexo movimento que viria complementar o
fossem produzidas fora do ambiente propriamente processo de delimitação de suas fronteiras
artístico ou acadêmico 4 , seja porque territoriais e de redefinição de sua condição política.
demonstrassem pouca qualidade estética (segundo Os sentidos acima referidos não derivam, portanto,
critérios questionáveis, muitas vezes), nota-se certo apenas do tema tratado ou das motivações para
desconforto ou certa inadaptação quando se pensa sua elaboração. Vários desses artistas estavam
em considerar esta iconografia como parte efetiva envolvidos em projetos muito mais complexos do
da história da arte brasileira. que a simples exploração naturalista, daí ser
inevitável encontrar nessas imagens intenções que
Como já sugerido, um provável motivo para que a ultrapassam claramente a preocupação
história da arte tenha negado à iconografia dos documental. A investigação que ora se apresenta,
viajantes um olhar mais atento parece residir na ainda que de forma bastante embrionária, entende
dificuldade em reconhecer seu estatuto artístico. A que o sentido das imagens, nomeadamente
discussão sobre o caráter artístico ou não de aquelas produzidas em experiências de contato de
determinadas imagens vincula-se a questões muito estrangeiros em contextos que não lhe eram
polêmicas e complexas que derivam, familiares, está intimamente associado ao efeito
essencialmente, de uma única e constante produzido pelas diferentes escolhas estéticas que
preocupação: o contínuo esforço para definir o que orientaram a sua elaboração. Preocupo-me com
seja Arte e, no contexto artístico brasileiro, o que os mecanismos através dos quais um desenho,
seja uma arte nacional.5 No caso específico das uma aquarela, uma litografia ou uma pintura a óleo

517
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

podem ter sugerido ao espectador uma Tomemos como exemplo duas obras do artista
determinada compreensão a respeito do universo austríaco Thomas Ender: “Vista da Glória e da
que lhe era oferecido visualmente. Obviamente, cidade do Rio de Janeiro” (pena e sépia sobre
esse poder não reside apenas na imagem, se a papel; 27,2 x 43,3 cm; 1817-18) e “Rio de Janeiro
considerarmos simplesmente como o tema ou o com portos e cercanias” (ol/t; 126,5 x 189 cm; c.
motivo representado. Em seu Bild-Anthropologie: 1836-37), figuras 1 e 2, respectivamente. O primeiro
Entwürfe für eine Bildwissenschaft7, Hans Belting desenho serviu de esboço para a segunda obra,
aponta claramente para a intrínseca relação entre uma tela em óleo feita em seu ateliê em Viena,
imagem (de natureza mental), meio (imagem visível como vários outros trabalhos elaborados pelo
– a fabricação) e corpo (que observa e dá sentido artista, a partir dos desenhos e aquarelas realizados
à imagem – a recepção), justificando, assim, a durante sua curta estada no Brasil, entre julho de
perspectiva antropológica adotada em sua análise. 1817 e junho de 1818.
O argumento é simples: ce sont les hommes qui
ont fabriqué et qui continuent encore de fabriquer Ender estudou na Academia de Belas Artes de
des images (BELTING, 2004: 8). Belting afirma que Viena e recebeu um importante prêmio de
as imagens só existem porque existem meios que paisagismo que lhe valeu a recomendação para
as veiculam e corpos/olhares que as admiram. O viajar ao Brasil na comitiva da Arquiduquesa
que condiciona sua existência é, portanto, externo Leopoldina, como pintor oficial. Foi, sobretudo,
a ela. Para ele, se temos dificuldade em aquarelista e desenhista, talentos que muito
compreender tal argumento é porque nos facilitaram o exercício de suas funções no Brasil.
distanciamos das imagens, ou melhor, isolamos as Seus trabalhos demonstram um gosto pelas
imagens como entidades simbólicas, afastadas das paisagens vazias, por amplas tomadas do espaço
condições históricas e materiais de sua existência. urbano e recortes pitorescos da paisagem natural.
Estas reflexões parecem adequadas para pensar Em geral, seus cenários indicam uma percepção
a iconografia dos chamados “artistas-viajantes”, linear do espaço e dos motivos selecionados,
uma vez que seus trabalhos materializam imagens destacando o contorno dos objetos e assegurando
mentais (impregnadas de sentidos simbólicos), uma nitidez que permite facilmente atribuir a estas
associadas com elementos da realidade local, imagens a função documental de grande parte da
gerando interpretações/sentidos (também imagens, iconografia produzida pelos artistas que, como ele,
se assim as quisermos nomear) relacionadas ao integravam uma missão de reconhecimento e
contexto e à história local. Considerando que os registro da “realidade” brasileira. Esta ênfase na
meios da materialização (papel, tela, água, lápis, linha estimula a apreensão do real concreto, como
tinta a óleo, matriz litográfica, etc.) impõem às se pudéssemos tocá-lo. No entanto, o traço
imagens mentais condicionantes que são delicado de Ender, sugere uma leitura mais
intrínsecos à sua (dos meios) natureza, e que o profunda de seus trabalhos. Permite-nos, por
espectador vai, por sua vez, reelaborar a imagem exemplo, perceber uma poética dos espaços
no campo próprio dos elementos que definem sua vazios, vazios sobretudo da presença humana, do
condição de observador, podemos concluir que as isolamento dos homens quando inseridos no
obras produzidas pelos “artistas-viajantes” devem, espaço urbano construído e do isolamento dos
necessariamente, receber o olhar antropológico homens entre si. Não parece haver narrativa em
proposto por Belting. É um determinado suas imagens, mas uma composição que orquestra
observador, com uma precisa bagagem e motivos submetidos, justamente, a essa poética
repertório, com expectativas particulares, quem vai dos espaços vazios. É assim que esta “Vista da
admirar e dar sentido à imagem produzida, Glória e da cidade do Rio de Janeiro” deixa de ser
orientado pelas características específicas do meio apenas um registro objetivo da realidade observada
que a veicula. Obviamente, a orquestrar todo esse e estabelece possibilidades para uma percepção
movimento, está novamente o homem (o artista), sensível da paisagem e do espaço carioca. A
com suas intenções mais ou menos declaradas, precisa definição da Igreja de Nossa Senhora da
em maior ou menor grau eficazes, no sentido de Glória do Outeiro, tomada lateralmente, acima da
conduzir a leitura do observador ou dirigir sua colina que lhe dá o perfeito destaque barroco,
percepção. Nas palavras de Wollheim, “as funciona como uma passagem entre a rica
maneiras de pintar coincidem com os tipos de natureza, ainda que desordenada, do primeiro
intenção” (WOLLHEIM, 2002: 18) e são estas plano, e a paisagem construída ao fundo, onde se
escolhas que nos permitem chegar mais perto da podem identificar os grandes elementos da
compreensão do(s) sentido(s) das imagens. civilização que já se fazia presente no território que
adquiria um indissolúvel laço com a Corte austríaca.
O grande aqueduto, torres de igrejas e edifícios

518
Iconografia de viagem à luz da história da arte

importantes da cidade destacam-se no contorno adquire sentidos próprios, deslocados daquela


da baía e no alto de suas colinas. A uniformidade experiência.
cromática reúne, num mesmo conjunto, a paisagem
natural do primeiro plano e a igreja, concedendo Tomando o desenho em sépia como um modelo
ao observador o privilégio de um duplo ponto de para esta tela, Ender aumenta a importância do
visão: situando-se no espaço livre do primeiro primeiro plano, preenchendo o espaço com figuras
plano, admira a igreja, um ponto particular da e plantas, construindo um equilíbrio diferente para
paisagem, como se estivesse no interior de uma a composição e estabelecendo uma narrativa que
veduta; posicionando-se na beira do adro da igreja, não estava presente na primeira imagem. Seguindo
tem diante de si um amplo panorama da cidade e uma importante convenção da pintura de paisagem,
seu entorno, numa relação marcada pela distância. Ender demarca os limites laterais de sua
O mesmo partido, portanto, de grande parte de suas composição com duas altas árvores, preenchendo
obras brasileiras: Ender parece não se identificar o espaço abaixo delas com outros exemplares
com estas paisagens e suas gentes, mantendo-se vegetais, recantos construídos e personagens –
distante e reservado. Não se trata do olhar à homens e animais. A tela divide-se em quatro partes
distância adotado por vários outros artistas em iguais, passando a linha vertical, de baixo para
nome de uma fidelidade ou abrangência cima, pelos escravos sentados, pelo pé do outeiro
documental, mas de um distanciamento de ordem onde está a igreja e, no alto, pelo pássaro que revoa
sentimental. “O olhar do vedutista é um olhar no céu azul. A linha horizontal parte da pequena
próximo, em busca de particularidades, visão que construção entre as árvores à esquerda, encontra
especifica seu objeto, variando a intimidade a igreja no alto da colina, atravessa a baía para
desfrutada em função do grau de aproximação do recortar as altas árvores do canto direito.
observador com o objeto, de seu interesse na
singularidade do observado.” (SALGUEIRO, 1998: A igreja, vista do mesmo ângulo, está mais
86) A falta de intimidade que parece transparecer distante, e alguns recantos da paisagem no primeiro
das aquarelas e desenhos de Ender, pelo plano dão à imagem um tom decididamente
distanciamento em que mantém o observador, pitoresco. Parece que, aí, a intenção foi mesmo
certamente traduz a reservada aproximação que criar uma narrativa que faz o cotidiano normal dos
este possuía com seu objeto, para usar os termos escravos (que conversam, deslocam-se,
da autora acima citada. Não obstante, seu talento descansam, em poses que dialogam com a tradição
artístico e uma poética altamente sensível à clássica) ser interrompido pela chegada de um
captação do valor intrínseco das paisagens, fossem jovem a cavalo, que surge subindo pela colina e
elas naturais ou urbanas, abrem caminho para a provavelmente já anunciado pelo cão que vem à
apreensão de sentidos outros em suas imagens. sua frente. O instante escolhido, porém, não nos
permite dizer da surpresa ou incômodo dos
Anos mais tarde, quando já estava de volta em escravos, pois parecem não ter ainda percebido a
Viena, Ender elaborou a segunda imagem aqui presença do cavaleiro. De toda forma, tendo sido
apresentada: uma tela a óleo, cuja composição a parte urbana e construída deixada para o terceiro
apresenta o “Rio de Janeiro, com portos e plano, onde mal se podem identificar os traços da
cercanias”. Vemos, neste trabalho, Ender realizar presença humana civilizada, ao contrário do que
uma prática típica dos “artistas-viajantes”: dar vemos no desenho, o artista parece privilegiar a
significação às paisagens reais, introduzindo nelas tranqüila convivência dos escravos nesta paisagem
elementos que aproximassem o público de suas pitoresca, que acolhe igualmente o visitante que
obras, através da criação de uma narrativa que chega a cavalo. Essa prática era recorrente entre
dava à imagem um sentido que ultrapassava o da os pintores de paisagem, que utilizavam o primeiro
simples documentação dos tipos e paisagens plano como um palco para suas intenções
locais. A imagem em questão, no entanto, foi narrativas.
executada anos depois de sua volta à Áustria,
dentro de contextos pessoais e profissionais muito Após o exemplo particular de algumas imagens de
distintos. Ainda assim, constitui um exemplar da Thomas Ender, abordarei, a seguir, uma questão
vastíssima iconografia do viajante Ender. Faz-se que afeta diretamente a forma como as imagens
necessário, parece-nos, buscar uma chave dos artistas atuantes no Brasil dentro do contexto
interpretativa que evite conceitos como os de aqui privilegiado criam significados para a realidade
“artista-viajante”, ou mesmo, de “iconografia de que inspira seus trabalhos. Trata-se da discussão
viajantes”, pois é evidente que, em 1836-37, sobre o linear e o pictórico, entendidos como modos
momento da realização da tela, Ender já deixara de ver que definem formas de representar e
há muito sua experiência de viajante e esta imagem estimulam condições particulares de percepção das
imagens. Em texto clássico sobre este tema, “O

519
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

linear e o pictórico” (WÖLFFLIN, 1984), o autor executou durante sua permanência no Brasil. Como
atribui à representação linear a capacidade de seus outros desenhos, esta imagem recupera uma
traduzir as coisas como elas são, enquanto que a visão concisa, esquemática e pouco provocativa
representação pictórica traduz o que parecem ser. da cascata.
Segundo ele, da visão linear à visão pictórica,
estaríamos aptos a perceber o mundo de uma Em seu estudo, Wölfflin afirma que o modo de ver
forma respectivamente tátil e visual. Ao perceber linear constrói uma realidade abstrata, onde
como operam tais mecanismos na produção e predominam elementos que sugerem a
recepção da iconografia de viajantes é possível universalidade de conceitos como linha e superfície
indicar novos caminhos para a compreensão uniforme. Tal universalidade estava, como
dessas imagens. Determinados pontos e vistas de sabemos, entre os pressupostos da arte de Jean-
localidades brasileiras, principalmente da cidade Baptiste Debret, herdeiro do neoclassicismo
do Rio de Janeiro, foram repetidas vezes tomados davidiano e aplicador de seus princípios no contexto
como fontes de inspiração para os artistas que brasileiro. 10 O registro rápido e sintético que
estiveram no Brasil a partir do início do século XIX. caracteriza muitas de suas aquarelas no Brasil
A Cascata da Tijuca, o Largo do Palácio, a Igreja traduz um modo de ver linear, através do qual
de Nossa Senhora da Glória, o Largo do Rocio, muitas vezes buscou inventariar temas da realidade
entre outros, foram objetos de olhares que, observada. O traço fino recorta os elementos da
informados pela experiência prévia que os marcou, paisagem na figura 4, “Cascata Grande da Tijuca”
acolheram as impressões causadas pela (c. 1816-1820; aquarela; 8,8 x 16,8 cm), permitindo
experimentação do local e do cenário brasileiro. A uma visão perfeita da cachoeira e seu entorno mais
fim de operar metodologicamente com essa imediato. Em outros momentos, a mesma catarata
questão, foram selecionados exemplares da tornou-se objeto de um olhar pictórico, por parte
produção de artistas-viajantes que denunciam do mesmo artista, como na imagem aqui
essas recorrências temáticas, manifestando reproduzida. A clara definição da paisagem dá lugar
igualmente sua diversidade poética.8 às massas de cor e contrastes entre claro e escuro,
estimulando uma experiência mais subjetiva e
Tal diversidade faz-se perceber tanto entre particular da natureza.
exemplares da paisagem natural – como nos
exemplos selecionados, cujo tema era a Cascata O modo de ver pictórico estimula o visual e a
da Tijuca - quanto nas imagens que privilegiam a apreensão do real nasce, então, da percepção da
paisagem construída, aqui exemplificadas pelas imagem como uma massa de reduzida nitidez. As
versões do Largo do Palácio. Considerando que a partes da composição deixam de ser
arte linear resulta de uma visão condicionada independentes e a ênfase é atribuída a um motivo
plasticamente9, que tende a apresentar a realidade principal, em torno do qual se estabelece uma
com mais objetividade, vendo e interpretando o unidade absoluta, sem a autonomia das partes.
mundo por linhas que definem plenamente a nitidez Ainda dentro do quadro das conclusões do teórico
de cada elemento da composição, é quase uma suíço, o modo de ver pictórico indica um maior
conseqüência imediata pensar na relação entre sentido decorativo da imagem e exclui, com
essa forma de ver e as imagens elaboradas na recursos plásticos, a analogia direta das imagens
perspectiva do registro científico e/ou por artistas com o real. Isso não significa que a referência não
cujo estilo individual é marcado pelo olhar que tende seja mais a realidade observada pelo artista, mas
a enxergar a realidade como um todo construído a o resultado de seu trabalho não se subordina ao
partir da união de várias partes que, ainda que olhar que tudo classifica e define no interior de
constitutivas de uma unidade, mantém sua contornos muito marcados. Da experiência com o
independência em relação ao conjunto da real, o artista que enxerga o mundo dentro da
representação. Estas características da arte linear categoria do pictórico demonstra interesse pela
estão presentes, por exemplo, no modo de ver do superfície do objeto, estimulando o desejo de saber
tenente inglês Henry Chamberlain, cuja estada no que tipo de sensação os corpos (volumes)
Brasil deu origem à publicação de Vistas e transmitem. É dessa forma que podemos, por
Costumes da cidade e arredores do Rio de Janeiro exemplo, compreender o que caracteriza a versão
em 1819-1820, na cidade de Londres, em 1822. de M. A. Porto-Alegre11 para a “Grande Cascata da
Suas cenas estimulam o sentido tátil, preservando Tijuca” (1833; ol/t; 65 x 81,2 cm), bem como o
a autonomia de cada um dos elementos da imagem registro do “Paço da Cidade”, de Karl von Theremin.
e indicando um maior sentido descritivo. Tal é a Nesta litografia de 1818, o edifício recebe uma luz
impressão provocada por esta “Cascata da Tijuca” quase dramática, contrastando com o dinamismo
(água-tinta colorida; 1822), uma das imagens que das nuvens e o forte tom azulado das águas da

520
Iconografia de viagem à luz da história da arte

baía. Os volumes assim representados são AUMONT, Jacques. A Imagem. 9ª ed. Campinas,
capazes de despertar, no receptor, uma experiência SP: Papirus, 1993.
mais sensível daquela paisagem. Nas imagens BELLUZZO, Ana Maria de Moraes. O Brasil dos
seguintes, o edifício e o largo do Paço recebem Viajantes. 3 vols, São Paulo/Salvador: Metalivros/
uma leitura mais descritiva. Mais uma vez, Fundação Emilio Odebrecht, 1994.
podemos dizer que as gravuras de Chamberlain e BELTING, Hans. Pour une Anthropologie des
Debret traduzem uma poética que valoriza o Images. Paris: Éditions Gallimard, 2004.
desenho, a linha definidora dos motivos da BURKE, Peter. Testemunha Ocular. História e
composição, criando uma sensação tátil, como diria Imagem. Bauru/SP: EDUSC, 2004.
Wölfflin. A clareza e objetividade destes registros COLI, Jorge. O que é Arte. 10ª ed. São Paulo:
são resultados das intenções de seus autores, Editora Brasiliense, 1989.
impossíveis de serem desenvolvidas no âmbito GRUZINSKI, Serge. A Guerra das Imagens. São
desse trabalho, ainda que seja importante ressaltar Paulo: Companhia das Letras, 2006.
que estas intenções adquirem materialidade a partir HAAR, Michel. A obra de arte. Ensaio sobre a
do exercício de seus talentos, portanto, de suas ontologia das obras. Rio de Janeiro: DIFEL, 2000.
opções estéticas e formais. Há, nestas imagens, a HASKELL, Francis. History and its Images. New
força de uma narrativa produzida pelas Haven: Yale UP, 1993.
preocupações dos artistas; contudo, sua expressão LIMA, Valéria. J.-B. Debret, historiador e pintor:
não apela para o sentimento, mas para a razão, a Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil (1816-
que deve dar sentido às leituras que colaborem 1839).Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2007.
com as expectativas daqueles que, como Debret, MIGLIACCIO, Luciano. O Século XIX. Arte do
estavam empenhados no avanço da civilização no Século XIX. Catálogo da Mostra do
Brasil. Redescobrimento. São Paulo: Fundação Bienal de
São Paulo, 2000.
Naturalmente devem ser feitas distinções, na PENHOS, Marta. Ver, conocer, dominar.
produção de um mesmo artista, entre sua produção Imágenes de Sudamérica a fines del siglo XVIII.
em aquarela ou a óleo, por exemplo. Da mesma Buenos Aires: Siglo XXI Editores Argentina, 2005.
forma, podemos perceber a adoção de categorias SALGUEIRO, Valéria. Paisagens de Sonho e
distintas ao comparar os desenhos de campo dos Verdade: RJ, BA e cidade do México nos álbuns
naturalistas e as gravuras que deles se originam. ilustrados de oito artistas viajantes. Rio de Janeiro:
As variáveis são muitas e os itinerários a seguir a Fraiha, 1998.
partir da proposta aqui esboçada parecem ser WÖLFFLIN, Heinrich. Conceitos fundamentais da
numerosos. Como conclusão a esse pequeno texto, História da Arte. O problema da evolução dos
com questões absolutamente preliminares a estilos na arte mais recente. São Paulo: Livraria
respeito do tema, vale retomar o historiador da arte Martins Fontes Editora Ltda, 1984.
austríaco, E. H. Gombrich, e relembrar que não WOLLHEIM, Richard. A pintura como arte. São
existe um olho inocente (apud WÖLLHEIM: 2002, Paulo: Cosac & Naify, 2002.
16). Voltando ao universo dos artistas-viajantes que
experimentaram a realidade brasileira no século Notas
XIX, esse olhar esteve certamente dividido entre o
peso incontestável do pensamento e dos avanços * Mestre em História da Arte e da Cultura e Doutora em
História Social da Cultura pela UNICAMP. Professora do
científicos da época e o desejo íntimo de fazer uma
Curso de História da Universidade Metodista de Piracicaba
arte pitoresca, onde o mundo a ser representado – UNIMEP.
não era o mundo ‘como tal’, mas sim ‘como deveria 1
Para o debate sobre imagem e história, ver os trabalhos
ser’. A experiência da viagem altera a relação entre fundamentais de BURKE, 2004 e HASKELL, 1993.
observador e observado, levando-nos a questionar 2
Ver, por exemplo, PENHOS, 2005 e GRUZINSKI, 2006.
3
qual o significado, para o artista estrangeiro, daquilo Importante análise do desenvolvimento das artes no
que ele via e experimentava. Da resposta a essa Brasil, ao longo de todo o século XIX, encontra-se em
MIGLIACCIO, 2000.
questão nasce a possibilidade de entender as 4
Desde 1816, com a chegada dos artistas franceses e,
opções adotadas pelos artistas em suas mais especificamente, após a criação da Academia de
composições, pois, como afirma Ana Maria Belas Artes do Rio de Janeiro, em 1826, configurou-se na
Belluzzo, “na relação cotidiana entre o homem e a corte um espaço qualificado para o exercício das belas
paisagem, as significações são pressupostos artes.
5
inerentes à ação” (BELLUZO: 1994/v. III, 11). Para essa discussão, COLI, 1989, WOLLHEIM,2002 e
HAAR, 2000.
6
Referências bibliográficas Importantes reflexões a este respeito têm sido
apresentadas, em eventos acadêmicos, pela Profª Drª
Claudia Valladão de Mattos (IA-UNICAMP).

521
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

7 11
Publicado em 2001, pela Wilhelm Fink Verlag, de Munique, Ainda que se trate de um artista brasileiro, não
foi traduzido para o francês em 2004. identificado como “artista-viajante”, sua formação e
8
Para respeitar as dimensões deste texto, as imagens atuação está intimamente associada ao contexto de
selecionadas serão comentadas enquanto conjunto, não p r o d u ç ã o d e s t e s a r t i s ta s n o B r a s i l e p e r m i t e a
sendo possível desenvolver análises particulares de cada reflexão a respeito da execução e recepção da arte
uma delas. no período.
9
A referência para as caracterizações de linear e pictórico
nesse texto é a obra já citada de WÖLFFLIN, 1984.
10
Sobre Debret, ver LIMA, 2007.

522
capitulo 13
dosssier pedro weingärtner

523
O que é de lamentar profundamente é que o
rico material de desenhos, pequenos estudos
a óleo e aquarela que deixou, feitos no Rio
Grande do Sul, em Santa Catarina, em Roma,
em Antícoli, em Nápoles, em Pompéia, em
Herculano e Portugal, esteja atualmente tão
disperso, que se tornará quase impossível
reuni-lo de novo. (GUIDO,1956,p.76)

Este estudo, que encontra-se em fase inicial, tem


como um de seus objetivos contrariar as palavras
pessimistas do importante crítico e artista Angelo
Guido, tentando reunir novamente o maior número
possível de desenhos de nosso grande artista
Pedro Weingärtner.

Para tanto a obra de Weingärtner esta sendo objeto


de uma pesquisa mais aprofundada: foram
organizadas exposições e estamos procedendo a
um levantamento de suas pinturas. A sua produção
de gravuras já mereceu um estudo, com
catalogação e mostra de tudo que se conhece, em
2006 no Museu de Arte do RGS, em Porto Alegre.
Mas o segmento menos estudado e mostrado, por
enquanto, são seus desenhos. Talvez as
explicações estejam na tradição de somente se
valorizar a pintura, ao desconhecimento deste
segmento da produção do artista ou ao fato desta
os desenhos de pedro weingärtner obra estar extremamente dispersa e não
documentada, como nos lembra o professor Guido.
1
alfredo nicolaiewsky É esta situação que pretendemos, dentro do
possível, corrigir através desta pesquisa, e sobre
algumas questões já levantadas me deterei neste
momento.

Adotaremos como ponto de partida uma certa


liberdade conceitual, e denominaremos de desenho
toda sua produção sobre papel, com exceção das
gravuras. Ou seja, incluiremos na categoria de
desenho, não só os trabalhos feitos a grafite, conte,
carvão e nanquim, mas também aqueles à aquarela
e à pastel.

A maior parte desta produção gráfica não foi feita


com o objetivo de ser exposta, e é esta sua principal
característica: a de serem desenhos feitos para
aprimoramento da técnica, para registros ou como
projetos, que hoje os tornam tão interessantes para
serem estudados. Através deste levantamento
poderemos entender um pouco melhor seu método
de trabalho e visualizar o seu desenho como parte
desse processo.

Sobre os primeiros desenhos feitos, quando de sua


chegada à Alemanha, na Real Academia de Berlin
em 1880, e considerando o material produzido a
partir daquele momento que fazemos nossa
pesquisa, sobre o qual escreve Angelo Guido que

525
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

guarda-se um pequeno caderno de desenho Correndo o risco de cometermos equívocos,


onde talvez se encontrem as primeiras decidimos organiza-los pelo que entendemos terem
anotações de detalhes da figura e de objetos sido suas intenções, e não por técnicas, temas ou
que ele fez na escola. São desenhos sem a datas, ou seja, um grande grupo de exercícios e
maior importância do ponto de vista artístico, outro, bem menor, de obras finalizadas. O
mas significativos como documentos da conjunto de exercícios comporta também uma
orientação para o traço claro, firme e sutil para subdivisão em academias, os estudos e as
a qual já se encaminhavam os estudos anotações.
acadêmicos do nosso artista. Esses primeiros
desenhos mostram que o aluno de (Theodor) Mesmo imaginando a possibilidade de cometermos
Poeckh e de (Ernest) Hildebrand já tinha alguns enganos, pois pode ocorrer que um
apreciável maestria de traço, bom golpe de vista determinado trabalho que classificarmos como uma
e linha incisiva e limpa. Dois retratos a lápis, obra acabada, posteriormente, possamos descobrir
datados respectivamente de 1879 e 1880, que ela é um estudo para uma pintura, faremos
demonstram que firmeza Weingärtner já tinha desta maneira. Mas estas retificações somente
alcançado no desenho da figura. virão à tona através das pesquisas e de
Além de estudos de objetos e detalhes de levantamentos mais exaustivos.
figuras, caprichosamente feitos, nos diz dos
progressos realizados por Weingärtner um Um último aspecto que deve ser citado é que
interessante desenho a lápis que ele fez da diversos destes trabalhos não puderam ser
casa onde nasceu seu pai, na localidade de examinados pessoalmente, ou seja, somente
Pfaffenroth, em Baden. Era uma casa de tivemos o acesso a eles através de reproduções,
madeira de um único piso, com escada externa muitas vezes sem informações sobre medidas,
de material, cercada de arvores, de aspecto técnicas, etc. o que também pode provocar algum
pitoresco. Este trabalho talvez seja a mais equivoco.
antiga paisagem que de Weingärtner se
Vejamos então algumas características destes
conservou. Já se vê com que cuidado, carinho
desenhos, começando pelos exercícios, que são
mesmo, o talentoso filho de Inácio Weingärtner
em maior número:
desenhou com traço limpo e firme, a casa onde
seu pai nasceu e talvez morou até vir para o 1. Academias
Brasil. (GUIDO,1956: 21 e 22)
Segundo Étienne Souriau (1999, p. 566) entre
Voltando então ao material encontrado até o outros sentidos o termo
presente momento, já percebemos que:
academia designa um quadro ou um desenho
- Existe um número relativamente reduzido de representando um nu, executado para adquirir,
desenhos localizados (45, apesar de termos desenvolver ou manifestar um bom
conhecimento de pelo menos outros 15, aos quais conhecimento plástico e anatômico do corpo
ainda não tivemos acesso); humano, e o interesse se coloca sobre a
maneira como são obtidas as formas dos
- Há falta de depoimentos escritos do artista sobre
corpos mais do que sobre as aparências ou as
seu trabalho, pois a maior parte de sua
qualidades de expressão. Por extensão, e um
correspondência foi queimada pela viúva, segundo
pouco pejorativamente, academia designa
nos informa Angelo Guido “porque estas cartas
também um nu, em uma composição pictórica,
‘continham referências a coisas íntimas e de
que mais parece um trabalho de escola ou um
familia’. Salvaram-se alguns postais, que não
pedaço de exibição técnica, do que uma obra
deixaram de servir para o nosso trabalho de
inspirada.
pesquisa.” (GUIDO, 1956:154);
Já localizamos dez academias, algumas delas
- E considerando, por último a inexistência de um
magníficos desenhos, que demonstram seu
levantamento exaustivo de sua obra pictórica, torna-
domínio no desenho da figura humana. Dentre
se difícil saber com exatidão as intenções e
estas podemos enumerar algumas características
objetivos dos desenhos de Weingärtner. Alguns são
que nos chamam a atenção:
indiscutíveis tais como as academias, os desenhos
anatômicos ou os retratos. Mas sobre a maior parte - Weingärtner utiliza diversos materiais nestes
somente podemos tecer suposições: se são trabalhos, como conte, carvão, grafite e bico-de-
simples registros ou projetos para alguma pintura
ou, ainda, exercícios de observação.

526
Os desenhos de Pedro Weingärtner

pena (técnica esta que não é usual em academias Temos mais um desenho com uma cabeça de velho
por ser mais demorada); a bico-de-pena, que parece ter sido feita a partir
de uma escultura, pela rigidez dos traços. Na
- algumas destas academias são extremamente mesma folha, temos dois pequenos desenhos à
elaboradas, inclusive com a utilização de elementos grafite feitos com traços rápidos: a cabeça de um
gráficos de fundo, como forma de valorizar a luz e homem (ao que tudo indica um auto-retrato)
sombra nos modelos; parcialmente atrás de um elemento, que
entendemos ser uma tela em um bastidor e uma
- outras, apesar do requinte da elaboração de partes outra cabeça masculina de costas.
do desenho, estão inacabadas;
E por último temos uma série de pequenos
- em uma delas, com fatura bastante simplificada, trabalhos à grafite, provavelmente retratos. Se
vê-se que ele não estava satisfeito com o resultado estes são estudos para trabalhos posteriores,
do desenho dos pés, pois os refez ao lado, uma exercícios ou mesmo obras finalizadas, por
prática bastante comum, até hoje, nas aulas de enquanto, não temos como saber. Boa parte deles
modelo vivo; chama a atenção pelo grau de detalhamento e
requinte do desenho das cabeças e pela
- em mais de um exemplo, a bico de pena ou a
incompletude do restante das figuras, apenas
grafite, vemos uma série de traços, próximos da
esboçadas. E também pelo fato de algumas serem
borda do papel, como testes, para ver como está a
assinadas e datadas, o que indicaria um trabalho
linha (se muito grossa ou com excesso de tinta),
finalizado. Quem sabe não são retratos de
prática também bastante comum, até hoje, nos
conhecidos, aos quais presenteava?
ateliês.
3. Anotações
- em uma, vale a pena chamar a atenção como um
registro da maneira como ocorriam as sessões de Para definir as características deste terceiro
desenho no final do séc. XIX, vê-se um gancho conjunto de desenhos que tem também
pendurado, no qual o modelo se segura, para poder características bastante variadas, valho-me da
ficar mais tempo imóvel, com o braço levantado. definição de croquis, que é um
Esta prática se perdeu, e estes ganchos não
existem mais, na maior parte dos ateliês ou Desenho rápido, representando por meios
academias. muito simplificados um objeto qualquer que
mereça a atenção do desenhista [...] feitos em
2. Estudos condições que obriguem a uma extrema rapidez
de execução. Por exemplo, se tratar de um
Este grupo se compõe de desenhos feitos com
personagem em movimento, ou de um animal,
intenções bastante variadas. Encontramos estudos
de um edifício percebido em uma viagem ao
anatômicos, como as pranchas com um crânio e
qual não se pode ficar longamente a estudar; é
outra com uma estrutura óssea, ambas com uma
por isso que os croquis são feitos seguidamente
série de anotações com a nomenclatura das
sobre pequenos cadernos. [...] Muitos dos
diversas partes e ainda uma terceira que representa
croquis são feitos pelo artista para ser utilizado
um modelo, provavelmente em gesso, da
posteriormente como documentação e servir
musculatura humana.
sobretudo como ajuda para a memória.
Dentre os estudos também encontramos, até o (SOURIAU,1999: 531)
momento, dois desenhos feitos a partir de estátuas
Vamos aos desenhos localizados até o presente
como, por exemplo, a do “Escravo”, de
momento:
Michelangelo, e mais outros dois, nos quais o
modelo é uma mão apoiada sobre uma base, - são 5 desenhos feitos ao ar livre registrando
modelo este provavelmente de gesso. Nestes paisagens ou construções simples. Um único tem
últimos, além da mão de gesso se vê em um, uma a referência que foi feito em Roma e um outro, pelo
cabeça de um homem jovem em escorço, debaixo tipo de paisagem representada, podemos supor
para cima, aparentemente feita a partir de modelo que também foi feito na Europa. Um terceiro parece
vivo. Na outra um detalhe de arquitetura, que ser uma anotação feita no sul do Brasil, pelo tipo
poderia ser um detalhe de fachada, mas acredito de construção apresentada;
que seja um móvel com duas luminárias de parede
ao lado. - um desenho de vegetação a nanquim;

527
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

- uma folha com diversas anotações à grafite, com Para reforçar nossas palavras acima, quando
certeza feitas no campo, mostrando um homem falamos das anotações, valho-me da referência que
com gado, outros com enxadas e um cavalo e que Ângelo Guido faz dos hábitos de Weingärtner:
lembram bastante as figuras de homens
trabalhando em diversas de suas pinturas, Não compunha nunca diretamente na tela. A
principalmente as paisagens de Antícoli; composição era antes demoradamente
meditada; [...] A medida que no espírito o
- há um delicado esboço de um cachorrinho nos quadro se formava, as fases dessa elaboração
braços de alguém, sobre o qual talvez seja a iam sendo acompanhadas por schizzi ou
referência que Guido faz quando escreve sobre os esbocetos, desenhos de figuras humanas, de
desenhos feitos em 1882 e 1883 em Paris ao animais, de objetos, feitos do natural, a lápis
descrever “... vários estudos de nus femininos e ou bico-de-pena.
masculinos, cabeças do natural, alguns animais, Diversos de seus pequenos cadernos estão
como uma cabeça de cão finamente desenhada...” cheios de rápidos projetos de composições, de
(GUIDO, 1956: 31); desenhos de figuras ou detalhes das mesmas,
em que se vê que vai reunindo o material para
- uma folha, que supomos ter sido feita em um quadros que está compondo na mente antes
zoológico, dividida em quatro partes: há a de passar a realizá-los na tela. No mesmo
representação de um macaco; de um tigre e temos caderno, na mesma página, às vezes, figuram
também um homem descansando sob um guarda- em desenhos de traços, delicados elementos
chuva (o que nos leva a confirmar a suposição de que iremos encontrar neste ou naquele quadro
um passeio ao zoológico), a quarta Figura parece ou, em alguns casos, em mais de um quadro.
ser a de um porco, e considerando os outros Pelo que se pode deduzir de vários cadernos
desenhos, deve ser de um porco do mato, ou algo que examinamos, não viajava nunca, não
semelhante; realizava mesmo um passeio, como os que
fazia, aos domingos, em geral, em companhia
- neste conjunto temos um desenho que pode ter do íntimo amigo Carlos Magalhães de Azeredo,
sido um estudo para a figura masculina da pintura então cônsul em Roma, sem levar o seu
Tempora Mutantur, pois apresenta um homem com pequeno caderno em que ia anotando o que
uma enxada, como na pintura, e que tem alguma lhe interessava ou podia servir-lhe para uma
semelhança na postura, apesar de estar invertida. composição. E os desenhos miúdos, cuidados
Reforça esta possibilidade as colocações de Guido ou rápidos, mas sempre reveladores de perícia
quando comenta que Weingärtner fez uma série surpreendente e da elegância conquistada pelo
de estudos de paisagens e pessoas para executar seu traço, iam enchendo páginas e páginas,
a obra. “Os estudos das posições, várias vezes constituindo um dos aspectos da sua obra
mudadas, das duas figuras, encontram-se em sumamente interessante, não só pelo que nos
algumas paginas de um velho caderno” (GUIDO, revela do seu valor como desenhista, como
1956: 91). Mesmo considerando que este desenho observador agudo e estudioso apaixonado do
foi feito alguns anos antes da execução da obra conteúdo estético das coisas, mas também pelo
finalizada, entendemos ser possível que tenha sido que documenta relativamente aos seus
um dos elementos de estudo preparatório; processos de trabalho, ao cuidado e
honestidade com que era a sua obra de arte
- existe também um desenho com um detalhe que
elaborada. (GUIDO, 1956: 75 e 76)
a mim chama a atenção: a representação, em
traços rápidos, de uma figura masculina vestida Vejamos agora alguns trabalhos que supomos
com uma espécie de túnica. O que o torna curioso sejam obras finalizadas.
é o ponto no qual foi colocada a assinatura, isto é,
a folha de papel é retangular e foi usada na É um conjunto, por enquanto, pequeno e com
horizontal, e a figura encontra-se na extrema características bastante variadas:
esquerda, com a assinatura na extrema direita. Isto
indica que o espaço branco do papel (mais ou - Temos duas aquarelas, sendo que uma representa
menos a metade direita da folha) faz parte do uma escada junto a uma construção. Pela
trabalho, provavelmente uma maneira de equilibrar descrição feita por Guido em seu livro (conforme
o desenho. Este é um tipo de raciocínio que citação acima), esta poderia ser a casa dos pais
ocorreria normalmente em uma obra acabada, e do artista, na Alemanha, que ele teria visitado e
não em uma anotação, como parece ser devido ao desenhado em sua primeira ida a Europa.
tratamento da figura.

528
Os desenhos de Pedro Weingärtner

- Uma paisagem a pastel, que talvez seja um estudo qualidade dos desenhos de nosso artista e o quão
para uma pintura, da qual ouvimos falar, mas não significativo será este levantamento amplo para
tivemos acesso. compreendermos sua produção como um todo.

- Temos quatro retratos. Um aparentemente a bico Referências bibliográficas


de pena e grafite, provavelmente um auto-retrato,
em pequeno formato. Três retratos a grafite sendo GUIDO, Angelo. Pedro Weingärtner. RS: Diretoria
um deles do Presidente Prudente de Moraes, sendo de Arte da Divisão de Cultura, 1956.
que aos outros somente tivemos acesso por SOURIAU, Etienne. Vocabulaire d’esthétique.
arquivos digitais de baixa qualidade. Paris: Presses Universitaires de France, 1990.

Finalizamos este texto, repetindo nossa colocação Notas


inicial. Este estudo encontra-se em um estágio 1
Artista plástico e professor. Mestre (1997) e Doutor (2003)
inicial e com certeza outras obras serão incluídas.
em Artes Visuais – Poéticas Visuais, ambas pela UFRGS.
Na continuidade da pesquisa poderemos Professor Adjunto no Departamento de Artes Visuais do
apresentar, em um futuro próximo, um quadro mais Instituto de Artes da UFRGS. Diretor do Instituto de Artes
detalhado deste importante segmento da obra de da UFRGS.
Pedro Weingärtner. Mas já é possível perceber a

529
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República
Este artigo resulta de um olhar dirigido para um
recorte específico na extensa e diversificada obra
de Pedro Weingärtner, artista nascido em Porto
Alegre em 1853 e nesta mesma cidade falecido,
no ano de 1929. Pintor, desenhista e gravador,
Weingärtner explorou temas diversos, passando
pelas cenas de costumes, pelo retrato, interessado
em temas da antiguidade e da mitologia pagã em
particular e especialmente pela paisagem, nela
registrando aspectos da natureza, da vida e
trabalho rural, pelas diversas regiões onde andou,
na Europa e no Brasil.

Concentramos nosso estudo no interesse de


Weingärtner pela paisagem e apresentamos no
texto a seguir algumas hipóteses para uma
pesquisa que consideramos ainda em estágio
inicial, tendo em conta o volume de dados
encontrados e necessidade imperiosa de
sistematizá-los ao mesmo passo em que
formulamos a estrutura teórica e metodológica mais
adequada à análise. Cumpre observar que, embora
integremos o grupo de trabalho reunido pelo projeto
de resgate da obra de Pedro Weingärtner2, nosso
interesse extrapola os limites monográficos e está
diretamente vinculado ao exercício da coordenação
do Arquivo Geral do Instituto de Artes da UFRGS e
a paisagem em pedro weingärtner (1853-1929): da galeria da Pinacoteca Barão de Santo Ângelo,
algumas hipóteses de trabalho órgãos do Instituto de Artes da UFRGS que reúnem
preciosos acervos em documentos e obras
ana maria albani de carvalho1 fundamentais ao conhecimento da história da arte
em âmbito regional. Lembrando que o atual
Instituto de Artes (UFRGS) foi fundado em 1908 –
neste ano completando seu centenário –, o volume
de documentos históricos e de acervo artístico é
considerável e demanda inúmeros estudos, ainda
por realizar em sua forma sistemática. Nestes
termos, a questão da paisagem foi assumida como
um possível recorte neste universo diversificado,
cuja análise poderá contribuir para o esclarecimento
de determinadas especificidades percebidas na
configuração do campo artístico local, tanto no que
diz respeito aos vínculos com o que de forma
genérica denominou-se como “arte acadêmica”,
quanto – entre outros aspectos – ao que diz respeito
ao papel desempenhado pelas artes plásticas na
constituição de uma identidade cultural regional.

Para sermos mais precisos, entendemos que o


estudo sobre a produção gráfica, pictórica e
fotográfica realizada pelos artistas gaúchos entre
o final dos oitocentos e as primeiras décadas do
século XX poderá ensejar uma reflexão sobre as
relações entre as artes visuais e o processo de
constituição de uma identidade cultural regional e
nacional. No atual estágio de nossa investigação,
nos concentramos em levantar e analisar a
produção artística propriamente dita, considerando
as questões relativas ao lugar ocupado pela arte

530
A paisagem em Pedro Weingärtner

na cultura local com atenção aos aspectos determinadas cenas e paisagens serviam tanto a
históricos envolvidos em tal processo. realização de pinturas, como para gravuras, como
é o caso da já mencionada “Pousada” (1914), cujo
Tendo em vista nossos objetivos de pesquisa grupo de figuras serve de tema central para uma
trabalhamos com uma definição ampliada de água-forte datada de 1917 (GOMES, 2006: 29).
paisagem, englobando as representações da
natureza, o espaço urbano e ainda obras em que o Observando a pintura “Pousada” (1914) vemos que
tema principal pode ser de outra ordem. Nossa a estrutura da composição destaca um grupo de
construção da noção de paisagem colhe seus figuras – os gaúchos, carreteiros – em primeiro
fundamentos teóricos tanto no campo das artes plano, à esquerda no quadro. O olhar do espectador
plásticas, quanto no da geografia, no que diz é conduzido para a direita, no sentido da leitura, e
respeito ao conceito propriamente dito e as diversas ao fundo da cena, através de outras figuras
formas de operá-lo3. cuidadosamente dispostas. A paisagem ocupa a
maior porção da tela, em cores e formas bem
A paisagem desempenha um papel significativo na definidas e delineadas. O peso visual entre o lado
produção artística de Pedro Weingärtner, assim esquerdo e direito do quadro é contrabalançado
como na de outros artistas regionais do período por um artifício, que esconde o desnível na linha
representado pelo final dos oitocentos e pelas do horizonte, como podemos verificar observando
primeiras décadas do século XX. Entre estes, a quebra de continuidade na mesma a partir da
podemos citar Libindo Ferrás (Porto Alegre, RS, carreta de bois. Como em outras obras de
1887 – Rio de Janeiro, RJ, 1954), professor e diretor Weingärtner, a composição é meticulosamente
do Instituto Livre de Belas Artes do Rio Grande do estudada, os elementos (figuras, arquitetura,
Sul – atual Instituto de Artes, desde sua fundação texturas) são facilmente reconhecíveis, pelo
em 1908, até o ano de 1937 ou Francis Pelichek emprego das cores e linhas. É interessante
(Praga, República Tcheca, 1886 – Porto Alegre, RS, observar a gravura de 1917 que explora o mesmo
1937), também professor no IA, desde 1922. O conjunto de figuras, eliminando a expansão da
acervo da Pinacoteca Barão de Sto. Ângelo (IA – paisagem. Mais instigante ainda será comparar
UFRGS) possui diversas obras exemplares deste este conjunto com a fotografia de Locara,
tema e período, em pintura, desenho e aquarela. pseudônimo do fotógrafo Luiz Nascimento Ramos
(Porto Alegre, 1864 – 1837), contemporâneo do
Encontramos em Weingärtner uma atenção artista e segundo informações, seu amigo4.
especial e, nestes termos, um protagonismo, na
representação da paisagem como “materialização Outras obras, como a “Vista do Prado”, datada de
de um instante da sociedade” (SANTOS, 1997:72), 1922 e pertencente a um colecionador particular,
onde o gaúcho, o imigrante, o trabalhador rural como o título indica, apresentam a paisagem de
aparecem como sujeitos de diferentes relações uma região específica da cidade, hoje
sociais. Observe-se neste caso, o exemplo dado razoavelmente modificada pelo desenvolvimento
pela pintura “Pousada”, um óleo sobre tela datado urbano. Outras, ainda, como a água-forte “Quintal”,
de 1914, medindo 37 por 73cm, atualmente no situada em Roma e datada de 1918, nos oferecem
acervo da Pinacoteca APLUB de Arte Rio- um cenário cujo ponto de vista é mais próximo ao
grandense, a qual será objeto de comentário mais observador, com um pequeno açude, galinhas,
adiante neste texto. plantas e outros elementos pictóricos. Estes últimos
permitiam ao artista manifestar sua maestria
O mundo do trabalho rural também é foco de técnica e formal através dos grafismos e texturas
atenção em obras realizadas a partir do cenário característicos dos mais variados detalhes de
europeu, como “Ceifa”, óleo situado em Anticoli, plantas e animais.
Itália, datado de 1903. Convém observar que Pedro
Weingärtner embora estabelecido na Europa Em Weingärtner podemos ainda encontrar uma
(Alemanha, França, Itália) entre os anos 1878 e pintura de paisagem dentro de uma cena de interior,
1902, realizou viagens freqüentes ao Brasil, observando atentamente a pequena jóia da arte
realizando exposições (Porto Alegre, São Paulo, pictórica denominada “Bailarinas”, datada de 1896
Rio de Janeiro) e obras. Nestas incursões à terra e pertencente ao acervo da Pinacoteca Barão de
natal realizava muitos apontamentos (manchas, Sto. Ângelo, do Instituto de Artes da UFRGS. Nesta
croquis, desenhos), os quais davam origem a obra medindo 23 x 36cm, encontramos três
pinturas e mesmo gravuras, geralmente realizados personagens – as referidas bailarinas – em um
em solo europeu, posteriormente expostos e momento de descanso, em um cenário ricamente
vendidos no Brasil. Como veremos logo mais, adornado. Na parede de fundo, como ponto central
ao qual se dirige o olhar do espectador,
531
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

encontramos a representação de um pequeno fosse o caso de Weingärtner – de uma obra de


quadro de paisagem, que neste caso, deve medir arte com identidade cultural regional, ainda que de
aproximadamente três ou 4cm de largura. Com o alcance universal. No caso do artista gaúcho – e
auxílio de uma lupa é possível observar que a de outros brasileiros que exploraram o tema da
pintura dentro da pintura inclui um pequeno paisagem, durante o período em questão – tal
conjunto de casas, vegetação rasteira, árvores, céu temática ensejava uma maior empatia com o
e nuvens. público. Para além de um sentimento cívico ou da
demonstração da maestria artística, a emoção que
Os comentaristas da obra de Pedro Weingärtner a obra viesse a causar no espectador parece ser
enfatizam o apreço do artista pelo detalhe e pela um elemento significativo para estes artistas e para
miniatura, geralmente percebidos como um artifício Weingärtner em especial.
empregado para demonstrar seu domínio da
técnica em geral e do desenho, em particular. Em resumo, e para os limites do presente artigo,
Sabemos que o domínio do desenho era apenas consideramos que o apreço de Weingärtner pela
um dos elementos que caracterizavam a arte paisagem em geral e pelo cenário gaúcho em
acadêmica, ao lado da “intelectualização do métier particular, confere complexidade à obra do artista,
(...) condição essencial do movimento acadêmico” exigindo que as vinculações entre sua produção e
aspecto essencial no embate travado pelas artes o academismo sejam investigadas com grande
plásticas para ascender ao patamar das artes rigor teórico e conceitual.
liberais (HEINICH, 1996: 21) desde a época do
Renascimento. A trajetória profissional de Weingärtner pode ser
acompanhada através de documentos esparsos e
A importância concedida à pintura histórica e especialmente através das publicações de Ângelo
também à temática mitológica estava associada a Guido “Pedro Weingärtner”, editada em Porto
este processo de intelectualização, na medida em Alegre pela Divisão de Cultura – Diretoria de Artes
que tais temáticas exigiam do artista sólidos da Secretaria de Educação e Cultura, em 1956 e
conhecimentos de perspectiva, da teoria das cores de Athos Damasceno, “Artes Plásticas no Rio
e suas harmonias, de composição, assim como de Grande do Sul”, esta última mencionada na
anatomia humana e animal, somados à bibliografia deste artigo e datada de 1971.
representação dos elementos da paisagem natural.
Tudo isto era necessariamente acompanhado pelo Weingärtner nasce em Porto Alegre, no ano de
conhecimento sobre o tema histórico, mitológico 1853 – poucos anos após o término da Revolução
ou religioso, o qual permitiria ao artista encontrar a Farroupilha, em 1845 – filho de um imigrante
representação ideal para o mesmo, além de alemão com gosto pelas artes plásticas, como nos
demonstrar sua erudição. Tais temáticas informa Damasceno (1971: 196), irmão dos
demandavam estudos diversos, realizados responsáveis pela Litografia Weingärtner,
essencialmente no recinto do atelier. considerada – como no informa Damasceno – “uma
das mais importantes do Rio Grande do Sul e do
A paisagem propriamente dita, em contraponto, Brasil (id.: 356). Não detalharemos sua biografia
exige – em princípio – um trabalho realizado ao ar ou trajetória nos limites deste artigo, mas interessa
livre em contato direto com um “modelo” cambiante, caracterizar sua formação artística, iniciada em
o que não facilita o acabamento demorado da 1878 no Liceu de Artes e Ofícios de Hamburgo,
pintura, preconizado pela academia. As regras da Alemanha. É interessante observar que outros
geometria que permitem a realização da artistas gaúchos ou aqui radicados, provavelmente
perspectiva – adequada aos ambientes internos - por questões de origem, realizam sua formação
não são suficientes para resolver o problema da artística na Alemanha ou na Itália e não na
representação do espaço, no caso da paisagem. Academia brasileira. Retomando a cronologia de
Seguindo esta linha de raciocínio, a pintura de Weingärtner, ainda em 1878 desloca-se para a
paisagem esteve muito mais associada à perda de Nobre Escola de Belas-Artes de Baden, dirigida por
hegemonia da Academia em favor de uma estética Ferdinand Keller e na qual, sempre segundo
de cunho mais realista ou naturalista. Damasceno, terá Hildebrandt como mestre. Ângelo
Guido e Damasceno mencionam que nesta época
No caso brasileiro em particular, o enfoque realista seus “ensaios de paisagem” já denotavam sua
e especialmente a paisagem funcionaram como via “característica preocupação” com o detalhe
de afirmação para uma determinada concepção de (GUIDO, apud DAMASCENO, 1971: 199).
arte brasileira. Mais precisamente – talvez este

532
A paisagem em Pedro Weingärtner

Depois de passar por Berlim em 1880 – não era usual, nem divulgada em outros centros,
acompanhando o mestre Hildebrandt – mesmo nacionais. Lembramos aqui o relato de
encontraremos Weingärtner em Paris no ano de Ângelo Guido (1893, Cremona, Itália – 1969,
1882. Os comentaristas são unânimes em observar Pelotas, RS5) – pintor, professor no Instituto de
que o pintor gaúcho se manteve fiel a sua Artes e iniciador da disciplina de história da arte
concepção estética e artística tradicional, imune nesta instituição em 1936 – datado de 1925:
ao debate provocado pelo Impressionismo. Vindo
de uma família humilde, até então Weingärtner Quando, em setembro de 1925, chegamos a
lutara com dificuldades para manter-se fiel ao seu Porto Alegre, tivemos a impressão de que o
projeto de formação artística. Finalmente em 1884 Rio Grande do Sul, no setor da cultura, vivia
a sorte lhe sorri e é agraciado com uma pensão isolado, quase que inteiramente desconhecido
oficial do governo brasileiro, capaz de lhe sustentar dos demais centros culturais do território
os estudos e a manutenção nas cidades da França nacional.
e da Itália. Roma, Tirol, Munique e novamente Conhecia-se a política do Rio Grande do Sul,
Roma, onde instalará seu atelier em 1886, para ali os seus embates revolucionários, mas os seus
produzir as “obras mais salientes de sua carreira”, intelectuais e artistas, salvo algumas exceções,
segundo Damasceno (1971: 201). Entre 1889 e como Alcides Maya e Weingärtner, eram
1892 realizará diversas viagens de estudos – ignorados (GUIDO, 1957: 178).
Nápoles, Herculano, Pompéia, Anticoli, sem
esquecer de Paris – participando também de Por sua vez, Damasceno cita textos de época e
exposições. Em todos estes lugares Weingärtner reforça o depoimento sobre a empatia gerada por
tomará a paisagem como tema para o tais obras junto ao público, em contraponto a
desenvolvimento de sua pintura. escassez de colecionadores entre seus
contemporâneos. Em resumo, o público visitante
Em 1891 será nomeado professor para a cadeira contempla e admira, porém em várias ocasiões
de Desenho Figurado na Escola Nacional de Belas- suas obras não encontram compradores junto à
Artes, atuando no Rio de Janeiro até o final de 1893. comunidade local. Cumpre observar que o que
Durante este período realiza diversas visitas ao Rio poderia ser denominado como um mercado de
Grande do Sul, onde nunca deixaria de expor. Mais artes no sentido mais convencional, com o
uma vez segundo Damasceno, no ano de 1892 surgimento de galerias e marchands, só ocorrerá
realizará, no Rio de Janeiro, uma exposição de efetivamente em Porto Alegre durante as décadas
obras: de 1960 e 1970. Podemos traçar diversas teses e
reflexões em relação à tradicional resistência das
[...] que é salientada por seus críticos, elites gaúchas – especialmente no período em
principalmente pela circunstância de questão, relativo ao final dos oitocentos e início do
representar o primeiro conjunto de trabalhos século XX - em consumir ou apoiar a produção
do pintor, tratando de assuntos nossos. A artística contemporânea. Os filhos desta elite –
coleção, em que figuram, além de telas cuja sustentação estava diretamente vinculada à
menores, os quadros intitulados Kerb, Fios posse da terra e à criação de gado – via de regra,
Emaranhados e Carreteiros, torna-se na quando dirigia seus interesses para o campo das
realidade, particularmente significativa, porque artes, escolhiam a literatura e a poesia, repetindo
marca, por assim dizer, o retorno do artista à a antiga relação de valores que estigmatizava o
querência, ao chão nativo, a cujos apelos se trabalho manual. Convém lembrar que os estudos
rende e de cujas vivências se deixa envolver, nesta época e neste segmento social valorizavam
após tantas e tão prolongadas andanças por o exercício da advocacia ou da medicina. Nas artes
terras estranhas [...] (DAMASCENO, 1971: plásticas encontraremos os imigrantes ou seus
203). filhos. Através de relatos – mais uma vez,
Damasceno – lembramos que as lições de pintura
Como observam os comentaristas, Weingärtner e afazeres do gênero eram consideradas
ainda pintará “muitas telas inspiradas em paisagens adequadas à formação das moças de boa família,
e costumes da Europa, principalmente da Itália. ao lado do piano e do bordado. O desenvolvimento
Mas a partir de então (1882), o Rio Grande do Sul de tais questões, porém, exigiriam um desvio em
será uma de suas mais constantes preocupações” relação aos objetivos do presente artigo.
(Id.; Ibid). A possibilidade de representar a
paisagem, a arquitetura e os tipos regionais é Tendo retornado a Itália em 1896, o ano de 1913
percebida por Weingärtner não apenas como uma encontrará Weingärtner em Porto Alegre, segundo
renovação em sua obra, mas como uma efetiva Damasceno, “decidido a renovar-se em sua arte –
contribuição ao campo da arte, já que tal temática senão em técnica, pelo menos em temas e
533
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

ambientes” (Id.: 213). A paisagem regional – GUIDO, Ângelo. Trinta anos de pintura (1925 –
arredores de Porto Alegre, interior e Santa Catarina 1955). BECKER, Klaus. Enciclopédia Rio-
– servirá como fio condutor para este processo de grandense. Canoas, RS: Regional, 1957.
renovação enunciado por Damasceno. Depois de HEINICH, Nathalie. Être artiste. Paris: Klincksieck,
mais algumas viagens a Itália e Roma em particular, 1996.
fixa residência em Porto Alegre, expondo também SANTOS, Milton. Metamorfoses do Espaço
no Rio de Janeiro e em São Paulo. Habitado. São Paulo: Hucitec, 1997.

No ano de 1925, contando com 72 anos, Notas


Weingärtner realiza aquela que será sua última
1
exposição, na Casa Jamardo, apresentando UFRGS, Professora adjunto no Departamento de Artes
Visuais do Instituto de Artes. Doutora em Artes Visuais –
cinqüenta e três peças (Id.: 215). Embora a abertura
História, Teoria e Crítica.
tenha sido festiva e noticiada pela imprensa local, 2
Os primeiros resultados foram apresentados em 2006,
a exposição foi considerada um fracasso de vendas através de uma exposição no Museu de Arte do Rio Grande
e de visitação, tendo encerrado antes do prazo do Sul, de uma publicação – A Obra Gravada de Pedro
estipulado inicialmente. A este fim melancólico Weingärtner, com texto de Paulo Gomes e comentário
associa-se, em 1927, uma doença que o deixa técnico de Anico Herskovits – e um seminário, do qual
hemiplégico até seu falecimento em 1929. participaram diversos pesquisadores, entre os quais, a
autora. O conteúdo destas palestras será objeto de uma
Referências bibliográficas publicação específica, atualmente em preparação. O
estudo da produção pictórica de Weingärtner encontra-se
– por parte da mesma equipe e sob coordenação do dr.
A Obra Gravada de Pedro Weingärtner. Porto
Paulo Gomes – em fase de levantamento e registro.
Alegre: Núcleo de Gravura do Rio Grande do Sul, 3
Nos referimos especialmente às contribuições da
2006. (texto de Paulo Gomes e comentário crítico geografia humana, disciplina que tem aberto inúmeras
de Anico Herskovits). perspectivas instigantes para as abordagens
DAMASCENO, Athos. Artes Plásticas no Rio interdisciplinares de questões relativas aos conceitos de
Grande do Sul (1755 – 1900) (Contribuição para o espaço, lugar, local e especialmente, paisagem.
4
estudo do processo cultural sul-rio-grandense). Sobre Lunara consultar: SERRANO, Eneida. Lunara
amador 1900. Porto Alegre, edição do autor, 2002.
Porto Alegre: Globo, 1971. 5
Ângelo Guido é o iniciador da disciplina de História da
GOMES, Paulo (org.) Artes Plásticas no Rio Arte no Instituto de Artes, em 1936, tendo chegado a São
Grande do Sul: uma panorâmica. Porto Alegre: Paulo em 1895 e ali iniciado seus estudos. Vem a Porto
Lahtu Sensu, 2007. Alegre em 1925, passando a integrar o corpo docente do
IA.

534
O texto que se segue está longe de ser uma
elaboração definitiva dos diversos contextos
históricos e culturais dos quais Pedro Weingärtner
participou. Deve ser entendido como uma
contribuição para o estudo da obra deste artista
brasileiro ainda não devidamente entronizado nos
textos que pretendem dar conta de uma história
geral das artes visuais no Brasil. Parte deste
material foi utilizado numa tese de doutorado1 que
tratou de tema mais amplo. Evidentemente, há
ainda muitas informações lacunares, e que
necessitam ser completadas, para que o conjunto
da obra do artista possa melhor ser compreendido.

No que concerne ao levantamento da sua produção


artística, há muito por ser feito. No Rio Grande do
Sul, depois do extraordinário empenho inicial
realizado por Angelo Guido para organizar a
cronologia e a biografia de Pedro Weingärtner, um
longo período se passou sem que as atenções dos
pesquisadores se voltassem para o assunto. Há
cerca de uma década e meia um grupo de artistas,
pesquisadores e colecionadores gaúchos vem se
debruçando sobre cada um dos aspectos da
produção do artista. Este grupo, que costuma
percorrer os locais expositivos da cidade, tem
encontrado uma quantidade significativa de obras
realidades simultâneas - contextualização à venda, que deveriam, ou pelos menos, poderiam
histórica da obra de pedro weingärtner pertencer a coleções públicas. Em 2005 foi
organizado um seminário sobre Pedro Weingärtner
neiva maria fonseca bohns * no Studio Clio 2, com a participação de artistas,
historiadores, colecionadores e restauradores,
oriundos ou não do meio acadêmico. Dito isso,
vamos às informações factuais disponíveis até o
momento.3.

Nascido em Porto Alegre, em 1853, de uma família


de desenhistas e litógrafos, Pedro Weingärtner teve
sua iniciação artística no próprio núcleo familiar,
através do convívio com o pai, com o tio e com os
irmãos. Ainda muito jovem chegou a freqüentar
ateliês dos artistas que residiam na capital (é
possível que, entre 1870-74, tenha recebido lições
de desenho e de pintura do artista fluminense
Delfim da Câmara). Depois da morte do pai, em
agosto 1867, tornou-se funcionário do comércio,
trabalhando como balconista. Nesta época, passou
a alentar o sonho de estudar arte na Alemanha.
Reunindo suas parcas economias, conseguiu
realizar a viagem tão desejada. Em 1878 instalou-
se na cidade de Hamburgo, matriculando-se na
Kunstgewerbeschule. Alguns meses depois,
deslocava-se para Karlsruhe, ingressando na
Grossherrzöglich Badische Kunstschule, então
dirigida por Ferdinand Keller. Lá foi aluno do
professor Theodor Poeckh. Em meados de 1880,
transferiu-se para Berlim, matriculando-se na
Königliche Akademie der Bildenden Künste.

535
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

Em 1882, já em Paris, freqüentou as classes dos 1910 expôs em São Paulo quarenta e seis pinturas.
artistas Tony Robert-Fleury e Adolfe Bouguereau. Em 1911 expôs na Casa Voelker, em Porto Alegre,
Datam dessa época numerosos ensaios de vendendo apenas duas obras. Realizou exposição
paisagem e figura, a lápis, a bico-de-pena, a óleo, no Rio de Janeiro em outubro, com sucesso de
bem como as primeiras experiências no campo da vendas e de crítica. Em 1913, uma associação
gravura e da composição de quadros de gênero. porto-alegrense formada por um grupo de
incentivadores da arte, auto-denominada Centro
A partir de 1884 passou a receber pensão do Artístico, promoveu uma exposição de Pedro
governo brasileiro. Retornou à Alemanha, Weingärtner na qual foram vendidas quinze obras.
instalando-se em Munique. Em 1886 já estava em No mesmo período, voltou a fazer estudos de
Roma. Voltou ao Brasil em agosto de 1887, consta motivos regionais no Rio Grande do Sul. Em 1922
que tenha lecionado por algum tempo na Academia expôs no Rio de Janeiro. Em 1925, pouco antes
de Belas-Artes do Rio de Janeiro. Em 1893 retornou de adoecer, realizou várias exposições em Porto
ao Rio Grande do Sul, passando por Santa Alegre: no Clube Caixeiral, na casa Jamardo e no
Catarina, onde documentou cenas da Revolução Salão de Outono.
Federalista. Em 1895 retornou à Itália. Em 1897
morria sua mãe. Algum tempo depois, contando já Na Europa, assim que tomou pé dos movimentos
com cinqüenta e sete anos, viria a se casar com artísticos mais importantes, a opção de Pedro
Elisabet Schimitt. No período de 1905 a 1909, Weingärtner não foi por um centro de grande
manteve correspondência com o embaixador ebulição cultural. Depois de realizar o aprendizado
brasileiro em Washington, Joaquim Nabuco. Em inicial na Alemanha, ao invés de radicar-se na
1909 passou uma temporada em Portugal. Em movimentada Paris, como seria de se esperar,
1912 estava em Roma. Em 1920 retornava preferiu estabelecer-se em Roma. Sucede que
definitivamente ao Brasil, montando ateliê em Porto desde o século XVIII, a arte e a cultura italianas
Alegre. Faleceu em 26 de dezembro de 1929. viviam um grande eclipse. A crise da sociedade
italiana, e mais ainda a debilidade do país no quadro
Quanto à profícua produção deste pintor, é geral das potências européias, impediram que um
importante notar que em 1881, Pedro Weingärtner, paradigma artístico global se impusesse a partir
da Europa, já enviava trabalhos para a Exposição da península, como tinha acontecido num passado
Brasileiro-Alemã, realizada em Porto Alegre. Em não muito distante, quando era inconteste o
agosto de 1884, suas pinturas eram aceitas no prestígio artístico e extra-artístico de Roma, capital
Salão da Academia de Belas-Artes do Rio de da cristandade. Até mesmo o paradigma
Janeiro. Na capital brasileira realizou, em fevereiro neoclássico atingiu a Itália menos pelo impacto das
de 1888, sua primeira exposição individual. Passou transformações artísticas do que pela hegemonia
a ser incluído entre os mais destacados nomes da política e militar da França napoleônica. Na altura
pintura brasileira da época. Em 1892, mostrava, em que Jacques-Louis David executou, em Roma,
também no Rio de Janeiro, suas primeiras pinturas o Juramento dos Horácios (1784), a tela não
com temas gauchescos. Em princípios de 1897 suscitou grandes curiosidades, porque a cidade já
expôs na “galeria de arte” do bazar Ao Preço Fixo, não era o centro propulsor que tinha sido no
em Porto Alegre. Em dezembro de 1898, novas passado. Era antes uma espécie de “centro
telas foram expostas na capital gaúcha. Em junho fantasmático” onde se concentravam os desejos,
de 1899, expôs Tempora Mutantur na Litografia as esperanças e os projetos de muitos artistas
Weingärtner, em Porto Alegre. estrangeiros, que trabalhavam totalmente alheios
da vida artística local, empenhados em procurar
Em 1900 participou da Exposição Universal de nos monumentos do passado as chaves de um
Paris. No mesmo ano, de volta ao Rio Grande do futuro novo. Num período de conflito de classes,
Sul, pintou diversos retratos. Expôs duas pinturas de tensões ideológicas, de lutas entre paradigmas,
nas vitrines do bazar Ao Preço Fixo. Realizou como foi o século XIX, as relações com o resto da
exposição em São Paulo. Participou da Seção de Europa não se deram através dos grupos mais
Artes da Exposição Comercial e Industrial realizada avançados, mas com aqueles que gravitavam em
em Porto Alegre, em 1901, com diversas telas, torno dos salons oficiais (como artistas, críticos e
tendo recebido Medalha de Ouro. Em 1902 mercadores de arte). Quando o aparecimento das
executou pintura que evocava um episódio da vanguardas desencadeou na França a crise da arte
Revolução Federalista. Em 1905, entregou o retrato dos salons, muitos artistas, e até muitos centros
de Júlio de Castilhos, pintado em Roma. Expôs em artísticos italianos, ficaram completamente
Porto Alegre a tela Rodeio, encomendada pelo Dr. marginalizados.4
Carlos Barbosa Gonçalves, presidente do Estado,
que seria duramente criticada pela imprensa. Em

536
Contextualização histórica da obra de Pedro Weingärtner

As causas deste processo estariam, além da convenções sociais, e adaptados a uma natureza
crescente decadência econômica de Roma, numa embriagante, mostram-se à vontade, e seus
atualização com base em experiências francesas corpos, freqüentemente desnudados, não parecem
mal selecionadas e mal compreendidas, uma agredir princípios morais da sociedade européia
tendência ao compromisso entre realidade e novecentista, embora possam ter sido
idealização, uma subserviência às expectativas perturbadores para a parcela da conservadora
“quer de um público de largas disponibilidades sociedade gaúcha que os conheceu, ainda sem
financeiras e gosto fácil, quer de mercadores repertório suficiente no que se refere aos assuntos
internacionais em busca de virtuosismos técnicos da cultura clássica.
e luxos profissionais”. 5 Nesta mesma Roma
retardatária, várias escolas tradicionais eram ainda De 1896 a 1902, sem demonstrar interesse pelas
mantidas por países estrangeiros, como a novas tendências estéticas, continuou pintando
academia francesa da Villa Medici, que recebia cenas de gênero, cenas clássicas e cenas
estudantes de diversas partes da Europa e da gauchescas. No campo da pintura de costumes,
América. Naquele ambiente favorável ao gosto são dignas de menção, pelo tom anedótico que
tradicional, com redutos que se mantiveram fiéis à assumiram, as cenas que representou sobre o
tradição clássica, Pedro Weingärtner filiou-se ao trabalho dos caixeiros-viajantes, na incansável
grupo In Arte Libertas, interessado em temas missão de levar mercadorias aos estabelecimentos
mitológicos, na vida popular ou em paisagens comerciais do interior do Estado. Tanto na pintura
rurais.6 Não viu – ou não quis ver – os movimentos Chegou tarde, como no estudo O Bolicho, decididas
artísticos revolucionários que se desencadeavam comerciantes mulheres atendem os vendedores,
em outras partes. que aparecem para trazer as novidades da indústria
de tecido, de linhas, de botões e demais
Em Roma, ainda no final da década de 1880, Pedro aviamentos. As amostras dos produtos se
Weingärtner realizou pinturas de gênero como Má espalham pelo chão, enquanto as peças são
Colheita, Arrufos, Ciúmes ou Convalescente. No escolhidas. Estas pinturas e esboços funcionam
Rio de Janeiro, em 1888, realizou exposição como verdadeiros registros iconográficos. São
individual no estúdio do pintor-fotógrafo Insley documentos históricos, que dão seu testemunho
Pacheco. Eram dez pinturas minuciosamente sobre as atividades comerciais nos mais remotos
executadas, a ponto de parecerem, segundo rincões do Rio Grande do Sul. O detalhismo das
comentários da época, fotografias. A crítica cenas permite identificar vestuário, mobiliário, e
recebeu-a favoravelmente, e até foi chamado de hábitos que dizem respeito ao modo de vida dos
“o primeiro pintor brasileiro”, pois que “nenhum habitantes rurais.
compatriota nosso chegou, com o pincel, a tanta
perfeição no desenho, tanta fineza no acabado e No ano de 1897, apesar do interesse despertado
tanta observação no estudo.7 no público visitante por uma exposição de dois
quadros de Pedro Weingärtner no bazar Ao Preço
Suas incursões na área da representação Fixo, as obras precisaram ser rifadas, recurso
mitológica também ficaram conhecidas. Realizou freqüentemente lançado para compensar o esforço
pinturas com temas clássicos, como Flauta de Pã, dos artistas. Essa situação revela que a sociedade
e Bacanal. Data de 1891 a tela Daphnis e Cloé, sulina não estava ainda estruturada de maneira que
em que o artista dá existência a um encontro pudesse abrigar em seu seio um público
imaginário entre dois personagens míticos. A cena consumidor que garantisse o sustento dos
campestre, meticulosamente construída, descreve profissionais dessa área. Tão gritante era a situação
uma agradável paisagem outonal, em que os dois de desamparo dos artistas, que, em 1898, quando
pastores enamorados dividem o espaço com um Pedro Weingärtner expôs novamente suas obras
pacato rebanho de cabras. A bela Cloé delicia-se em Porto Alegre, o médico pediatra, que também
com a música tocada por Daphnis, inventor, ocupava a posição de único crítico de arte local,
segundo a narrativa mitológica, da poesia bucólica.8 Olinto de Oliveira, sentiu-se na obrigação de
Nada poderia alterar aquele estado de harmonia desfraldar uma campanha francamente
com a natureza. “civilizatória”, escrevendo incitante artigo no jornal
Correio do Povo:
Gravuras em metal, certamente realizadas no ateliê
de Roma, também mostram o interesse do artista Por diversas vezes têm estado expostos aqui
por temas da mitologia greco-romana. Nestas trabalhos do notável pintor rio-grandense
gravuras, os personagens aparecem sempre em [Pedro Weingärtner] e outras tantas vezes têm-
estado contemplativo, ou de perfeita integração se manifestado uma certa dificuldade, por parte
com o ambiente natural. Inteiramente livres das do público, na aquisição das interessantes telas

537
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

que o artista de quando em quando envia para de personagens destacados. Ao contrário, optou
cá, como atestado de seu entranhado amor por retratar uma cena de trabalhadores do campo,
pátrio. A meu ver, não é tanto a relativa pobreza como estavam fazendo, na mesma época, muitos
no nosso meio a causa daquela dificuldade. pintores realistas europeus. Mas, diferentemente
Reside ela, antes, na falta de compreensão do de outras pinturas realísticas (vide As
verdadeiro valor da obra de arte, considerada respigadeiras, de François Millet, 1857), a situação
como uma coisa frívola, cujo preço de cotação em que este casal foi retratado era diferente da
seja exageradamente encarecido pelos dos campesinos comuns. Tanto a indumentária,
interessados diretos ou não. [. . .] Os como a postura ainda altiva diante do desafio que
proprietários do conhecido bazar Ao Preço Fixo tinham pela frente, revelam uma origem social
parecem ter compreendido assim as razões da diferente daquela dos campesinos comumente
atitude de nosso público e, nessas condições, retratados por François Millet, cujas feições se
resolveram-se a um ato que bem se pode perdiam no anonimato do trabalho embrutecido.
chamar de heróico, nesses tempos: mandaram
vir por conta de sua casa três dos mais recentes De acordo com Angelo Guido,
trabalhos de Weingärtner e lá os expuseram,
como a desafiar a apática indiferença do meio A tela representa um casal de colonos num
semibárbaro em que vivemos. Se, momento de descanso, ao cair da tarde, após
comercialmente falando, fizeram aqueles um dia inteiro de penoso trabalho na terra em
cavalheiros um mau negócio, é incontestável, que foram abertos sulcos para as sementes.
por outro lado, que foram otimamente Os troncos abatidos da derrubada no segundo
sucedidos na escolha dos trabalhos. [. . .]”9 plano, ali estão a testemunhar o tamanho do
esforço já feito por aquelas duas criaturas que
A importação de obras de arte da Europa para sul vieram de longe, para uma região selvagem
do Brasil, mesmo de um artista brasileiro, deve ter ainda, mas onde se propuseram começar nova
envolvido custos substanciais, e um investimento vida e construir novo destino. A fumaça que
desse porte realizado por comerciantes só se sobe, ao longe, contra a encosta do morro; a
justifica analisado num contexto mais amplo. Sem mata ao fundo sobre a qual parece ter descido,
dúvida, por trás da iniciativa “individual” e “heróica” com as sombras, a quietude melancólica do
dos proprietários do bazar que importou as telas, entardecer; as árvores que ainda ficaram de
já se pode sentir a existência de um grupo social pé, junto à aguada, entre as suas companheiras
legitimador da atividade artística, do qual faz parte que tombaram aos golpes do machado
o próprio comentarista. implacável; a atitude daquele homem de
cabeça enérgica e pensativa, sentado sobre o
O papel desempenhado por Olinto de Oliveira, carrinho rústico a meditar; a mulher de nobre
nessa questão, é fundamental para afirmar a perfil, apoiada à enxada e a olhar a palma da
existência de poder de compra da sociedade mão que se vai tornando áspera e calosa; tudo
gaúcha, a despeito da falta de percepção que essa isto, sente-se, encerra um conteúdo de emoção
mesma sociedade demonstrava possuir sobre o e de poesia que se vai infiltrando, profunda e
valor da arte. A constante presença de Pedro sutil, em nossa sensibilidade. Aquela tarde é
Weingärtner em Porto Alegre endossa a idéia de bem uma tarde brasileira; brasileira aquela luz
que o contato do público com seu trabalho não era macia, a magia triste da paisagem e do silêncio
tão raro como se supunha, e que inúmeras que sobre as coisas e as criaturas desceu na
situações favoreceram a divulgação de seu nome hora indefinida em que a alma se sente mais
e de sua atividade. Lentamente, o público profundamente a si mesma e parece entrar em
medianamente instruído tomava conhecimento da comunhão com a grande alma da natureza. [. .
existência da figura do artista, e começava a ser .] Ele evoca e medita sobre o que foi, sobre o
convencido sobre sua importância social. que ficou para trás nos anos que passaram;
ela pensa no que eram e no que as suas pobres
Datada de 1898, e fundindo pintura de paisagem mãos delicadas e lindas se tornaram, talvez no
com pintura de gênero, a tela Tempora Mutantur que sonhou quando uniu o seu destino ao do
apresenta alto nível de realismo, tendo sido homem que está ali, a seu lado, a começar tudo
executada no ateliê do artista em Roma, a partir de novo na terra selvagem e desconhecida...
de anotações tomadas em Santa Catarina e no Rio “Nessun maggior dolore, che ricordarsi del
Grande do Sul, e pode ser interpretada sob o ponto tempo felice nella miseria.10
de vista político. Afinal, o pintor não elegeu nenhum
assunto grandioso, que colocasse em relevo fatos Os dois personagens de Pedro Weingärtner, que,
marcantes da história brasileira recente, pelo viés exauridos pelo trabalho braçal, fazem uma pausa

538
Contextualização histórica da obra de Pedro Weingärtner

na árdua missão de preparar a terra virgem, têm torno das façanhas dos casais transplantados da
identidade reconhecível. Embora seus nomes não Europa para o sul do Brasil, e que enfrentaram toda
nos tenham sido informados, seus rostos não estão sorte de obstáculos para sobreviver.
ocultos. O artista, colocando-os em posição de
destaque na composição, esforçou-se em A essa altura, alguns grupos de descendentes de
representar um momento da vida desse alemães, que dispunham de forte poder econômico,
emblemático casal, em que parece pairar a dúvida estavam perfeitamente integrados à realidade
sobre continuar ou desistir. Seu ponto de vista era brasileira, e procuravam maior inserção social e
evidente: queria ressaltar que o esforço necessário representatividade política. Para um governo
de preparar o solo bruto para receber as sementes, empenhado em consolidar as bases simbólicas de
que viriam a ser a base de uma promissora uma tradição regional, era vantajoso o incentivo
economia agrícola, dependeu da força e da da produção de imagens capazes de narrar as
coragem desses pioneiros. Tratava-se, portanto, de façanhas que colaboraram para a constituição do
um tema histórico, que tinha como base fatos imaginário do povo gaúcho. Sob o ponto de vista
realmente acontecidos, e não temas mitológicos, do artista, o reconhecimento oficial num ambiente
extraídos da literatura. Em termos mais genéricos, tido como inóspito, significava a derradeira vitória
a tela representava a incessante luta humana para sobre as adversidades. Essa simbiose entre arte e
criar, no meio de uma natureza ainda exuberante política, embora descontínua, desencadeou um
de um país de recursos aparentemente lento processo de valorização das artes plásticas.
inesgotáveis, um ambiente culturalmente propício Assim, por algum tempo, Pedro Weingärtner
à sobrevivência. passaria a ser tratado como respeitável
personalidade local, digna de diversas
Em carta dirigida a um amigo, o artista revelava homenagens.
suas intenções ao pintar Tempora Mutantur:
Pedro Weingärtner também foi autor de admiráveis
Este quadro fiz expressamente para nós, retratos, dentre os quais o Retrato de Dona
porque aqui na Europa não se compreende Angélica, datado de 1894, em que as feições da
facilmente o assunto; inspirei-me, para fazê- velha e austera senhora, fixadas em algum ponto
lo, em certo tipo que encontrei em nosso caro do infinito, que nunca encontrarão o olhar o
Brasil, homens que aqui na Europa faziam observador, mostram muito da capacidade
figura, de famílias nobres, que por qualquer perceptiva do artista. No impecável tratamento da
motivo abandonaram a pátria atrás da fortuna face rugosa, assim como da expressiva mão
na América e caíram no caminho e lá se foram colocada sobre o peito, deformada pelos maus
água abaixo e ficaram reduzidos ao que vi. [. . tratos de uma vida de dificuldades, vê-se a
.] Eu quis fazer um tipo [. . .], que, não aplicação de conhecimentos aprendidos pelo
encontrando ocupação, foi obrigado a retirar- convívio com o melhor da tradição pictórica
se para uma colônia, e esta é a cena que ocidental. Nesta pintura, o observador atento
reproduzi no quadro, o primeiro dia de trabalho, poderá perceber o cuidadoso tratamento das
a pobre mulher vendo as mãos que foram belas diferentes texturas, que variam do delicadamente
e alvas, hoje queimadas pelo sol e calejadas aveludado ao sutilmente áspero.
pelo primeiro labor.11
Com uma abordagem bem diferenciada da anterior,
Em 1898, o presidente Campos Sales, ao passar é de 1918 o Retrato de Elisabeth Schmitt, esposa
por Roma, visitara o ateliê de Pedro Weingärtner, do artista. De forte caráter realístico, este já é um
demonstrando interesse em adquirir a tela Tempora retrato moderno, que representa uma mulher do
Mutantur, que já tinha sido destinada ao Rio Grande início do século XX, perfeitamente integrada ao seu
do Sul. A mesma obra obteve repercussão muito tempo, em dia com os padrões femininos de
positiva ao ser exposta em Porto Alegre, em junho elegância disseminados por Paris, o mais
de 1899. Compareceram à mostra Júlio de importante centro de produção de moda da época.
Castilhos, chefe do Partido Republicano Rio- O rosto muito alvo, de feições severas e olhar frio,
Grandense, e Borges de Medeiros, Presidente do que revela uma personalidade forte, aparece
Estado, que se encarregou de adquiri-la para o emoldurado pelo elegante chapéu com plumas, e
Palácio do Governo, configurando a primeira pela estola de pele, sobre um fundo difusamente
grande demonstração pública de interesse do escuro. O contraste entre a pele, os cabelos claros
governo republicano, na esfera regional, pelas artes e os diferentes tons de negro presentes na
plásticas. Observe-se que, não apenas o artista indumentária da mulher retratada, denotam o
digno dessa honraria era descendente de refinamento – e a adesão a certos parâmetros da
imigrantes, como o tema central da tela girava em pintura moderna – a que chegara o já experiente

539
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

pintor. A pintura que fizera de Inácio Weingärtner, se considerava a litografia uma arte menor, sua
alguns anos antes, em 1913, também deixava família, constituída por litógrafos, foi pioneira, no
patente sua grande capacidade como retratista. Rio Grande do Sul, na utilização de técnicas de
reprodução. 14 Segundo Carlos Scarinci, Pedro
Em 1900, numa de suas visitas a Porto Alegre, o Weingärtner também foi pioneiro na divulgação de
jornal Correio do Povo assim se referia ao já ilustre gravuras em metal. Suas primeiras águas-fortes
artista: datam de 1909. Mas como não existiam meios
técnicos necessários para realizar gravuras no Rio
Encontra-se de novo entre nós o insígne pintor Grande do Sul, sua produção gráfica, quase
rio-grandense Pedro Weingärtner que volta da sempre baseada em temas regionais, foi realizada
Itália, a repousar do trabalho junto da família, em Roma, a partir de estudos feitos durante suas
na terra que se orgulha de tê-lo como filho. O visitas à província.15
nosso patrício, que descende de uma família
de modestos artistas, tem sabido honrar no Durante a exposição Comercial e Industrial,
Velho Mundo o nome brasileiro e dar lustre a inaugurada em 24 de fevereiro de 1901, a imprensa,
seu estado natal. Ao mérito indiscutível de que cuidou de fazer uma detalhada cobertura do
artista exímio, considerado por muitos como o evento, teve a atenção despertada para o fato de
primeiro pintor brasileiro, Weingärtner junta a não ver “o tipo rio-grandense bem representado,
glória de se haver feito por si, iniciando sua figurando, entretanto, retratos de estrangeiros
carreira desajudado da fortuna, sem proteção mundanos”.16 Isto significa que, a esta altura, as
estranha e não confiando mais que no próprio artes plásticas não tinham se apropriado das
esforço, alentado por uma grande força de representações simbólicas da cultura sulina, como
vontade. Nascido em Porto Alegre, onde ainda viria a acontecer, algum tempo depois, com
recebeu a instrução elementar, teve ele de o desenvolvimento das temáticas regionalistas.
abraçar a vida comercial, como simples caixeiro
de uma loja de fazendas. Contrariando sua Um significativo incidente causado por diferenças
vocação, num meio que não lhe convinha, de opinião dos membros do júri, composto por
vexado pelas exigências de uma profissão que figuras eminentes do meio cultural, chama a
estava longe de satisfazer suas inclinações, atenção por assinalar o início de um debate próprio
sujeitou-se, entretanto, às verdadeiras torturas ao campo da arte, que começava a se formar.
dessa posição, convencido de que, acima de Novamente entraria em cena Olinto de Oliveira,
tudo, o trabalho se lhe impunha como um dever conhecido como fervoroso defensor de Pedro
imperioso. Não estavam, porém, sufocadas as Weingärtner, e que constantemente usava o espaço
suas aspirações, e o modesto caixeiro começou dos jornais para divulgar e defender a importância
a fazer economias que deveriam ser o ponto do seu trabalho. Mas desta feita o crítico, alegando
de partida para futuro cometimento. Assim, logo uma questão de justiça, não achou adequado que
que conseguiu fazer um pecúlio, pequeno artistas experientes concorressem, em pé de
embora, Pedro Weingärtner partiu para a igualdade, com artistas iniciantes. Por essa razão,
Baviera, no intuito de fazer sua educação e só por isso, opôs-se à premiação de Pedro
artística.12 Weingärtner. Advogava que os prêmios deviam
servir para revelar novos talentos, e que eram
A teoria do “self made man”, ou do “homem que se inúteis para quem já tinha obtido consagração.
faz por si próprio” é comumente aplicada para
descrever a situação dos imigrantes de origem O debate, divulgado pela imprensa, mostra a
humilde que, exclusivamente pelos seus esforços importância da distinção pública no processo de
pessoais obtém sucesso profissional. 13 Embora legitimação do iniciante, que vê neste artifício a
essa teoria costume ser aplicada ao caso dos possibilidade de encontrar público comprador de
homens de negócio, percebe-se seu uso também suas obras. Como se sabe, o processo que levava
no campo artístico, para expressar a capacidade à consagração de um artista, num sistema
de superação dos indivíduos, a despeito das suas acadêmico devidamente estruturado, devia
condições iniciais. Na verdade, Pedro Weingärtner obedecer certas regras, como a passagem por
descendia de uma família modesta, mas bastante escolas importantes, o acúmulo de experiência, a
enfronhada no trabalho artístico e artesanal, o que, quantidade de prêmios já obtidos. O problema que
de alguma maneira, permitiu-lhe uma iniciação se colocava para a situação provinciana é que nem
profissional e indicou-lhe o caminho para o mesmo os artistas tidos como “consagrados”
aprimoramento de sua vocação fora do Brasil, no chegavam a obter pleno reconhecimento. As
lugar que servia de referência cultural mais forte chances de um artista jovem encontrar público
do grupo ao qual pertencia. Numa época em que comprador, ou simplesmente apreciador de suas

540
Contextualização histórica da obra de Pedro Weingärtner

obras, era mínima. Essa situação dá conta da ser considerado como um sinal de gestação do
instabilidade do processo de consagração de um discurso em defesa do tradicionalismo e do
artista num meio provinciano: ou ele nada merece regionalismo. Pedro Weingärtner recebera de
por ser um ilustre desconhecido, ou precisa abrir Carlos Barboza Gonçalves, então presidente do
espaço para as novas gerações por já ser Estado, a incumbência de pintar um quadro de
“consagrado”. No conceito de “consagração”, da costumes gaúchos destinado ao salão de honra
maneira como era aplicado, não estavam incluídas de um dos navios da Marinha Brasileira, ao qual
as condições materiais de trabalho e de auto- seria dado o nome de Rio Grande do Sul. A tela,
sustentação de que o artista dispunha. Mesmo que representava uma “parada de rodeio” 19 , foi
aqueles mais famosos enfrentavam dificuldades de exposta numa vitrina da Rua da Praia em 1909,
sobrevivência. tendo sido impiedosamente criticada pelo público
e pela crítica jornalística por, supostamente,
Quase quarenta anos depois, o crítico e historiador apresentar erros na indumentária e nos apetrechos
de arte Angelo Guido, ao fazer uma revisão geral rurais. Como resultado de tal celeuma, capaz de
sobre as mostras coletivas acontecidas na capital provocar fortes discussões na imprensa, o quadro
gaúcha, comentaria, com admiração, o perfil ético acabou não sendo adquirido pelo governo do
de um dos julgadores da mostra de 1901, ao Estado. 20 Justificável ou não, o fato inaugura o
considerar impróprio que um artista consagrado primeiro debate público sobre arte (ou melhor, sobre
disputasse prêmios num meio tão pouco formas de representação pictórica) que se tem
desenvolvido artisticamente.17 De fato, este dilema notícias no sul do país, com intensa participação
não se esgotou com o fértil debate do início do de setores populares, que detinham maior ou
século XX. Nas décadas subseqüentes, a atitude menor conhecimento sobre as lides campeiras – e
de premiar aqueles artistas que tinham vencido pelo muito pouco sobre pintura – e identificavam as
próprio esforço, obtendo o aval de comunidades falhas de representação. É claro que se pode
artísticas mais organizadas, tornou-se uma prática também entender esta rejeição coletiva à obra de
comum. Os artistas jovens, que demonstravam Pedro Weingärtner como um prenúncio de seu
potencial a ser desenvolvido, continuariam sendo declínio artístico e social, já que um artista tão
submetidos a um regime de total indiferença por fortemente ligado ao projeto imperial não tinha
parte da sociedade e dos poderes governamentais. condições de ser incorporado com facilidade à era
Fossem eles suficientemente audaciosos para republicana. Mas estes podem ter sido os primeiros
seguir seus próprios destinos, até poderiam sinais de gestação de uma cultura visual
merecer uma maior atenção da elite política e compartilhada por grupos locais, que acabaria por
economicamente ativa. Do contrário, as suas estabelecer uma gramática própria, baseada nos
atividades seriam relegadas ao mesmo plano do “valores tradicionais do povo gaúcho”.
trabalho braçal, desempenhado pelos obreiros e
pelos trabalhadores técnicos e artesanais. A primeira tentativa de reabilitação de Pedro
Weingärtner aconteceria no início do século XX,
Segundo Angelo Guido, Pedro Weingärtner era um quando uma nova geração com aspirações
artista conservador, que preferia a segurança das intelectuais aumentava seu interesse pelas artes
atitudes convencionais, fossem elas políticas, plásticas. Em 1913, uma associação porto-
ideológicas ou artísticas. Sua amizade com o alegrense formada por um grupo de incentivadores
Imperador, D. Pedro II, permitiu-lhe tornar-se da arte promoveria uma exposição do artista. O
pensionista, e garantiu-lhe boa receptividade no Rio Centro Artístico, criado com a finalidade de
de Janeiro por algum tempo. Durante a República, desenvolver o gosto pelas artes, também se
estreitou laços de amizade com outras dedicava à aquisição de obras.21
personalidades políticas importantes, como o
presidente Campos Sales e o diplomata Joaquim Até o falecimento de Pedro Weingärtner, aos
Nabuco, mas não conseguiu manter invicto o setenta e seis anos de idade, o público gaúcho teve
prestígio que adquirira no período imperial.18 Apesar muitas oportunidades de conhecer e admirar sua
da respeitabilidade adquirida pelos estreitos pintura, e, pelo menos por mais uma década, sua
contatos que manteve com o Rio Grande do Sul, obra continuaria a ser a mais significativa para o
Pedro Weingärtner recebeu poucas encomendas Rio Grande do Sul. O fato de não ter deixado
oficiais durante o período republicano. discípulos, nem criado escolas, parece ter evitado
que uma tradição de pintura clássica tardia se
Um episódio, em especial, envolvendo a tela preservasse e se difundisse no circuito local.
Rodeio, executada em Roma, no ano de 1908, traz Decididamente, Pedro Weingärtner não aderiu aos
à tona um debate que, se não for tratado procedimentos modernistas que atribuíam novo
exclusivamente sob o ponto de vista político, pode

541
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

significado ao que, pela ótica acadêmica, consistia apresenta certa dificuldade de enquadramento nas
em etapas da preparação das telas (como os categorizações tradicionais da história da arte
esboços e os croquis), e teve dificuldade em aceitar brasileira.23 Mas se dá no interior de uma complexa
a crescente valorização da individualidade e da rede de relações entre os campos político,
criatividade, e em romper com o processo criativo econômico e artístico, pontuados pela mudança de
baseado em composições estudadas, que regime político e o surgimento de novos parâmetros
obedeciam a regras definidas, e efeitos regulares de apreciação da arte. 24 Infelizmente, a história
de coloração e iluminação.22 deste artista, como de muitos outros que não
aderiram aos procedimentos modernistas, ficou
Não obstante, em sua última exposição em São estigmatizada por uma classificação em que tudo
Paulo, em 1910, exibiu quinze paisagens e pinturas o que se refere ao academicismo parece lembrar
feitas em Portugal. Tais pinturas, a que chamava conformismo, subserviência aos padrões
de impressionistas, revelam uma sensibilidade estrangeiros e espírito conservador.25
mais aguçada, a expressar-se por uma palheta
mais clara e despojada. A grande atração da Referências bibliográficas
exposição, foi o tríptico La Faiseuse d’Anges,
executado dois anos antes em Roma. A presença A FEDERAÇÃO. Porto Alegre, p. 2, 05 ago.1908.
das obras do artista em Porto Alegre por diversas A REFORMA, Porto Alegre, p. 3 et seq., 20 set.
vezes quebrou a monotonia cultural da cidade, 1871.
provocando discussões em torno de um assunto ALVES, Caleb Faria. Benedito Calixto e a
ainda pouco conhecido, e sobre o qual raras construção do imaginário republicano. Bauru:
pessoas dispunham de repertório suficiente para EDUSC, 2003.
opinar. Se o circuito de apreciadores era restrito, BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas
muito mais restrito era ainda o de compradores. simbólicas. 3. ed. São Paulo: Perspectiva, 1992.
Nem mesmo a subordinação cultural em relação DAMASCENO, Athos. Artes plásticas no Rio
ao centro, manifestada na admiração por aqueles Grande do Sul: 1755-1900: contribuição para o
que obtinham o aval de outros grandes artistas, estudo do processo cultural sul-riograndense. Porto
era suficiente para permitir o aparecimento de Alegre: Globo, 1971.
público consumidor. Até 1920, Pedro Weingärtner DURAND, José Carlos. Arte, privilégio e
residiu em Roma, mas fez freqüentes e longas distinção: artes plásticas, arquitetura e classe
viagens ao Brasil, para executar, no interior do Rio dirigente no Brasil, 1855/1985. São Paulo: EDUSP,
Grande do Sul, paisagens, quadros de gênero e 1989. (Coleção Estudos, 108).
retratos. Seu último quadro, uma Paisagem, data GINZBURG, Carlo. A micro-história e outros
de 1926; no ano seguinte, o artista era acometido ensaios. Lisboa: Difel; Rio de Janeiro: Bertrand
de paralisia, falecendo em Porto Alegre, a 26 de Brasil, 1989. (Memória e sociedade). Publicado
dezembro de 1929. originalmente em Storia dell’Arte Italiana. Turim:
Einaudi, 1979. v. 1.
De certa maneira, sua morte sepultou, no Rio GUIDO, Angelo. Os grandes ciclos da arte
Grande do Sul, o interesse por certos temas ocidental. São Leopoldo: Faculdade de Direito Rio
clássicos e pelos procedimentos acadêmicos que dos Sinos, 1968.
já não despertavam a atenção dos jovens artistas GUIDO, Angelo. Um século de pintura no Rio
e dos estrangeiros que se radicavam no estado e Grande do Sul. ENCICLOPÉDIA Rio-Grandense.
disputavam espaço no incipiente mercado de arte Porto Alegre: Sulina, 1968. 5 v. V. 2: O Rio Grande
local. Mas também se pode supor que, com o antigo.
desaparecimento de Pedro Weingärtner, o IGLÉSIAS, Francisco et al. As artes plásticas de
naturalismo pictórico que poderia ter se 1808 a 1889. HOLANDA, Sérgio Buarque de (Dir.).
desenvolvido na direção do realismo, ficou História geral da civilização brasileira. Rio de
interrompido sem ter alcançado um ponto de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002. t. 2: O Brasil
maturação. As gerações posteriores, que, monárquico; v. 3: Reações e transações.
motivadas a buscar suas próprias formas de KRAWCZYK, Flávio. O espetáculo da
expressão, desejaram romper com a tradição legitimidade: os salões de artes plásticas em Porto
pictórica acadêmica, sentiram dificuldades para Alegre: 1875/1995. 1997. 416 f. Dissertação
encontrá-la. Precisaram buscá-la, novamente, nos (Mestrado) – Instituto de Artes, UFRGS, Porto
grandes centros de produção artística. Alegre, 1997.
MICELI, Sérgio. Imagens negociadas: retratos da
A biografia artística de Pedro Weingärtner, de forma elite brasileira:1920-40. São Paulo: Companhia das
semelhante a de outros artistas brasileiros que não Letras, 1996.
seguiram a formação acadêmica tradicional,

542
Contextualização histórica da obra de Pedro Weingärtner

SCARINCI, Carlos. A gravura no Rio Grande do para o estudo do processo cultural sul-riograndense. Porto
Sul: 1900-1980. Porto Alegre: Mercado Aberto, Alegre: Globo, 1971. p. 206-207.
10
1982. (Documenta, 10). GUIDO, Angelo. Pedro Weingärtner. Porto Alegre:
Secretaria de Educação e Cultura, Divisão de Cultura e
SIMON, Círio. Origens do Instituto de Artes da
Diretoria de Artes, 1956. p. 90.
UFRGS: etapas entre 1908-1962 e contribuições 11
GUIDO, Angelo. Pedro Weingärtner. Porto Alegre:
na constituição de expressões de autonomia no Secretaria de Educação e Cultura, Divisão de Cultura e
sistema das artes visuais no Rio Grande do Sul. Diretoria de Artes, 1956. pp. 92-93.
12
2002. 561 p. Tese (Doutorado em História) - DAMASCENO, Athos. Artes plásticas no Rio Grande
Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, do Sul: 1755-1900: contribuição para o estudo do processo
PUCRS, Porto Alegre, 2002. cultural sul-riograndense. Porto Alegre: Globo, 1971. p. 197-
198.
SODRÉ, N. W. História da literatura brasileira: 13
De acordo com essa visão, o colono teria progredido
seus fundamentos econômicos. Rio de Janeiro: com o seu trabalho agrícola, começando a praticar também
Civilização Brasileira, 1969. um rudimentar artesanato, e, graças às suas virtudes
SQUEFF, Letícia. O Brasil nas letras de um intrínsecas como o esforço, a dedicação e a obstinação,
pintor: Manuel de Araújo Porto Alegre: 1806-1879. teria “evoluído” para a atividade industrial. Esse modelo
Campinas: Unicamp, 2004. poderia corresponder, em alguns casos, à constituição das
TEIXEIRA LEITE, José Roberto. Entre a pequenas indústrias. Mas a grande indústria se formou por
meio dos investimentos do capital comercial, ou seja, os
proclamação da república e a eclosão do
grandes comerciantes é que se tornaram industriais de
Modernismo: a festa requintada de uma elite renome. KÜHN, Fábio. Breve história do Rio Grande do
confiante no progresso. Arte no Brasil. São Paulo: Sul. Porto Alegre: Leitura XXI, 2002. p. 92
Abril Cultural e Industrial S/A, 1979. p. 569-572. 14
Carlos Scarinci, no livro A gravura no Rio Grande do Sul
(1900-1980), descreve o desenvolvimento histórico das
Notas artes plásticas no decorrer do século XIX, partindo da
hipótese de que a gravura constituiu uma prática artística
* Doutora em história, teoria e crítica das artes vinculada fundamental, mesmo quando não estava vinculada a
ao Instituto de Artes e Design da Universidade Federal de processos não-artísticos, industriais e comerciais, de
Pelotas, RS. produção de imagens. Segundo o autor, a gravura,
1
BOHNS, Neiva Maria Fonseca. Continente Improvável: diferentemente da pintura, participou mais diretamente das
Artes Visuais no Rio Grande do Sul do final do século XIX transformações da sociedade rio-grandense e brasileira,
a meados do século XX. Porto Alegre: Universidade Federal no que se refere à aquisição tanto de novas técnicas como
do Rio Grande do Sul/ Instituto de Artes/ Programa de Pós- de novas idéias estéticas. Vide SCARINCI, Carlos. A
Graduação em Artes Visuais, 2005. 383 p. Tese (Doutorado) gravura no Rio Grande do Sul: 1900-1980. Porto Alegre:
UFRGS. IA. PPGAV. Mercado Aberto, 1982. p. 11. (Documenta, 10).
15
2
O Studio Clio é um Instituto de Arte e Humanismo fundado SCARINCI, Carlos. A gravura no Rio Grande do Sul:
em setembro de 2005, em Porto Alegre, RS, que conta 1900-1980. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1982. pp. 25-
com a coordenação cultural do Prof. Dr. Francisco Marshall. 26. (Documenta, 10).
16
3
Vide DAMASCENO, Athos, p. 208. GUIDO, Angelo. Pedro Cf. KRAWCZYK, Flávio. O espetáculo da legitimidade:
Weingärtner. Porto Alegre: Secretaria de Educação e os salões de artes plásticas em Porto Alegre: 1875/1995.
Cultura, 1956. pp. 72-73. 1997. 416 f. Dissertação (Mestrado) – Instituto de Artes,
4
GINZBURG, Carlo; CASTELNUOVO, Enrico. História da UFRGS, Porto Alegre, 1997. f. 25.
17
arte italiana. GINZBURG, Carlo. A micro-história e outros GUIDO, Angelo. Exposições coletivas de arte em Porto
ensaios. Lisboa: Difel; Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, Alegre. Diário de Notícias, Porto Alegre, 05 nov. 1940.
1989. pp. 87-93. (Memória e sociedade). Publicado Suplemento, p. 10.
18
originalmente em Storia dell’Arte Italiana. Turim: Einaudi, Tratando do problemático vínculo de Pedro Weingärtner
1979. v. 1. com a República emergente, Círio Simon levanta a hipótese
5
Ibid. p. 91. de que a causa da curta permanência do artista como
6
Cabe lembrar que esse movimento, contrário às inovações professor de Desenho Figurado na Escola Nacional de
na forma de representação pictórica, não tinha relação com Belas Artes, nos anos de 1891 e 1892, estaria ligada ao
as correntes de “retorno à ordem”, que, praticando um contraste entre a política cultural republicana e a política
modernismo ameno, influenciaram o aparecimento das cultural do Império. SIMON, Círio. Origens do Instituto
correntes modernistas no Brasil. O “retorno” propugnado de Artes da UFRGS: etapas entre 1908-1962 e
pelo In Arte Libertas não tinha qualquer viés modernizante, contribuições na constituição de expressões de autonomia
e, ao contrário, inspirava-se nos conceitos estéticos da no sistema das artes visuais no Rio Grande do Sul. 2002.
Antigüidade Clássica. 561 p. Tese (Doutorado em História) - Faculdade de
7
TEIXEIRA LEITE, José Roberto. Entre a proclamação da Filosofia e Ciências Humanas, PUCRS, Porto Alegre, 2002.
república e a eclosão do Modernismo: a festa requintada f. 69.
19
de uma elite confiante no progresso. ARTE no Brasil. São Chama-se “rodeio” o ato de reunir o gado em local
Paulo: Abril Cultural e Industrial S/A, 1979. p. 569-572. determinado para marcar, curar, ferrar etc. Cf. HOUAISS,
8
Cf. DICIONÁRIO de Mitologia Greco-Romana. São Paulo: Antônio. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio
Abril, c1973. p. 44. de Janeiro: Objetiva, 2001. p. 2467.
9
OLIVEIRA, Olinto citado por DAMASCENO, Athos. Artes
plásticas no Rio Grande do Sul: 1755-1900: contribuição

543
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

20 23
Cf. GUIDO, Angelo. Pedro Weingärtner. Porto Alegre: De modo similar, o pintor paulistano Benedito Calixto,
Secretaria de Educação e Cultura, Divisão de Cultura e objeto de estudo de Caleb Faria Alves, não freqüentou
Diretoria de Artes, 1956. p. 112-114. Academia Imperial de Belas Artes do Rio de Janeiro nem
21
O grupo era formado por Vitor Silva, Benjamin Flores, se alinhou com os preceitos defendidos pelos protagonistas
Emílio Kemp, Mansueto Bernardi, Leonardo Truda, Mário da Semana de Artes Moderna de 1922. ALVES, Caleb Faria.
Totta, Raul Totta, Pedro Weingärtner, Fábio Barros, Irineu Benedito Calixto e a construção do imaginário
Trajano Lima e Lauro de Oliveira. Cf. DOBERSTEIN (1999) republicano. Bauru: EDUSC, 2003. p. 22.
24
citado por SIMON, Círio. Origens do Instituto de Artes da ALVES, Caleb Faria. Benedito Calixto e a construção
UFRGS: etapas entre 1908-1962 e contribuições na do imaginário republicano. Bauru: EDUSC, 2003. p. 33-
constituição de expressões de autonomia no sistema das 34.
25
artes visuais no Rio Grande do Sul. 2002. 561 f. Tese Sobre tema similar, vide DURAND, José Carlos. Arte,
(Doutorado em História) - Faculdade de Filosofia e Ciências privilégio e distinção: artes plásticas, arquitetura e classe
Humanas, PUCRS, Porto Alegre, 2002. f. 70. dirigente no Brasil, 1855/1985. São Paulo: EDUSP, 1989.
22
Sobre a relação entre academicismo e modernismo, vide p. 5 (Coleção Estudos, 108).
BOIME, Albert apud ALVES, Caleb Faria. Benedito Calixto
e a construção do imaginário republicano. Bauru: EDUSC,
2003. p. 42

544
Quem foi Pedro Weingärtner? Qual a sua
formação? Como foi sua carreira? Qual a
importância de sua obra para a arte brasileira? E
para a arte sul-rio-grandense? Onde se encontra
sua obra? Foi a certeza da importância da sua obra
que criou esta aura impenetrável de consagração
e silêncio? Muitas perguntas e poucas respostas.

Pintor, desenhista e gravador, um dos mais


importantes artistas brasileiros do período de
transição entre os séculos XIX e XX, Pedro
Weingärtner fez sua formação inicialmente em
Porto Alegre, com o pintor Delfim da Câmara e
depois, na Europa, onde foi aluno de E. Hildebrand,
Ferdinand Keller e Theodor Poech na Alemanha e,
de Robert-Fleury e Adolphe Bouguereau, na
França. Após seu período de estudos na Europa,
como bolsista do Imperador Pedro II, estabeleceu-
se, finalmente, na Itália, de onde retornaria só muito
próximo do final da sua vida.

Sua obra pictórica culmina nas paisagens e nas


cenas de gênero e fez também grande sucesso
como retratista da aristocracia nacional e,
principalmente, local. Também tem um trabalho de
grande valor e importância como desenhista e
como gravador.
alguns comentários sobre pedro weingärtner
Sua carreira se desenvolveu na Europa e no Brasil,
paulo césar ribeiro gomes *
simultaneamente e, nas inúmeras vezes que cruzou
o Atlântico, levava daqui informações que
alimentariam seu trabalho desenvolvido na Itália.
Posteriormente esses trabalhos eram trazidos e
comercializados no Brasil, principalmente em São
Paulo e no Rio de Janeiro.

Seu prestígio foi crescente até o início do pré-


modernismo brasileiro quando deixa então de
despertar um interesse maior. Atualmente, com o
processo de resgate da produção plástica brasileira
do século XIX e do início do século XX, seu nome
torna-se novamente obrigatório. Sua numerosa
obra esta dispersa em coleções privadas e públicas
e, calculamos, que só nas coleções públicas de
Porto Alegre, dispomos de aproximadamente uma
centena de seus trabalhos de todos os gêneros.

Referência obrigatória para a compreensão da arte


brasileira e sul-rio-grandense, Weingärtner tem sua
reputação atual fundada principalmente na sua
antiguidade, o que se configura como uma grande
injustiça para com um artista responsável pela
consolidação de uma auto-imagem plástica,
fundada principalmente nas pinturas de paisagens.

Situação atual

545
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

A inexplicável escassez de estudos, sobre a vida e as águas-fortes a ele atribuídas. Infelizmente não
obra de Pedro Weingärtner, tem diversas razões, reproduz qualquer uma delas, não informa as
mas acreditamos que a causa principal seja talvez medidas, não descreve conteúdos, não indica
devido ao descaso com que ele tem sido tratado tiragem, não diz se estão ou não assinadas (nas
pelas instituições e pelos estudiosos. Acreditamos matrizes) e tão pouco descreve as imagens”
que a certeza da importância da sua obra criou uma (GOMES, 2006: 7).
aura impenetrável de consagração e também de
silêncio. Em livro temos a sua biografia, obra Inventários
pioneira e referência obrigatória, escrita por Angelo
Guido e o estudo de Athos Damasceno Ferreira1. As investigações sobre a vida e a obra do artista
O texto fundador dos estudos sobre a gravura no sempre foram fonte de inesgotáveis problemas,
Rio Grande do Sul, de Carlos Scarinci 2 , traz conforme podemos ler em nota publicada por
algumas informações precisas e muitas Angelo Guido. Esse autor explicita a quase total
especulações sobre a obra gráfica de Weingärtner3. ausência de informações fidedignas sobre a obra
Revendo a reduzida fortuna crítica de Pedro de Weingärtner ao escrever que
Weingärtner contamos ainda com dois textos de
Das fotografias guardadas dos seus quadros
Gonzaga Duque (1863-1911) que, sob o
Weingärtner nunca anotou o título, nunca tomou
pseudônimo de A.P. (Alfredo Palheta), publicou no
nota das pessoas, museu ou associação a que
Rio de Janeiro4, páginas que enfatizam o caráter
vendeu numerosas das suas obras, cujo
dispersivo da sua pintura. É evidente que a obra
destino ignoramos. O trabalho para elaborar
de Weingärtner não poderia interessar ao crítico
uma lista, embora incompleta, das obras
pré-modernista, naquele momento envolvido com
pintadas por Weingärtner foi enorme. (GUIDO,
artistas voltados para uma pintura de gênero
1956: 154)
contemporânea, dedicada a crônica do cotidiano e
com grande intensidade dramática. 5 Mas Ele lista um total de 196 obras pictóricas, 15
atentemos que Gonzaga Duque, ao destacar o gravuras e reproduz (em preto e branco) 28
miniaturista em Weingärtner, está somente pinturas. Já Athos Damasceno Ferreira, em 1971,
antecipando o que mais tarde será dito por Angelo propõe uma outra lista. A soma total das obras
Guido. Além disto faltam estudos sobre seus listadas pelos dois autores chega a 289. Isso não
desenhos, que estão esparsos, sabemos pouco da significa que seja esse o número de obras do
sua obra pictórica além de eventuais mostras e, artista, pois a tentativa de comparar as duas listas
finalmente, quase nada conhecemos sobre sua – a de Guido e Damasceno – resulta num imbróglio
história de vida com precisão, sua formação, sua inacreditável devido à discordância de dados,
atuação como professor no Rio de Janeiro, suas principalmente dos títulos, além da ausência de
exposições, sua peregrinação pelo interior do Rio medidas e descrição dos temas, impedindo assim
Grande do Sul e de Santa Catarina e as uma lista definitiva.
inumeráveis viagens entre a Europa e o Brasil.
Considerando as dificuldades encontradas, que só
A obra poderão ser minimizadas após um cadastramento
das obras procedemos a um levantamento das
A par dessa carência de estudos temos a quase
peças encontradas em coleções públicas de Porto
total ausência de levantamentos sobre sua
Alegre. A lista da Tabela I em anexo foi publicada
produção plástica. Conforme já assinalamos, sua
no Jornal do MARGS, em julho de 2003, juntamente
pintura, assim como seus desenhos estão sem
com notícia biográfica e cronologia, organizadas
estudo e esparsos. Com a ambição de estabelecer
por Neiva Bohns 8. O levantamento de obras de
um catálogo sistemático da obra gravada de Pedro
Pedro Weingärtner nas coleções públicas de Porto
Weingärtner 6 saímos em busca das fontes
Alegre tem, atualmente, os resultados nela
primárias sobre sua vida e obra. A cinqüentenária
exibidos.
monografia de Angelo Guido ainda é o documento
mais consistente (o texto de Athos Damasceno é Gêneros
posterior). Quanto às gravuras, Guido lista, ao final,
uma série de quinze águas-fortes e, fora isso, são Pedro Weingärtner praticou quase todos os
poucas as referências à técnica, como podemos gêneros pictóricos: a paisagem, os retratos, as
ler as páginas 54, 75 e 144, conforme cenas históricas, as cenas de gênero, em
transcrevemos em “A Obra Gravada de Pedro praticamente todas as técnicas: pintura, desenho,
Weingärtner” 7. Conforme informamos no citado gravura, escultura9. Conforme Angelo Guido, ele
texto “Angelo Guido na sua lista somente enumera “preferiu a mais modesta pintura de gênero, da

546
Alguns comentários sobre Pedro Weingärtner

paisagem e do retrato” e destacou-se pelo “[...] qualquer outra explicação. O que podemos sobre,
gosto pelo pequeno quadro, minucioso, bem por exemplo, seu humor, visível em uma pintura
acabado, de assunto sugestivo, com umas tintas como Chegou tarde!?
de romantismo” (GUIDO, 1956: 29), ao invés de
dedicar-se aos temas grandiosos, dignos da Aos poucos vamos descobrindo detalhes,
chamada pintura de história. informações, facetas desconhecidas. Descobertas
recentes são as fotos de seu ateliê em Roma, de
Talvez a ausência de grandes narrativas visuais propriedade do senhor Percy Becker, seu sobrinho-
de caráter histórico deva-se ao temperamento neto, gentilmente cedidas para serem apresentadas
quieto e calmo do artista, diversas vezes declarado aqui.
em Guido. Sua obra está quase que totalmente
fundada na observação direta do real, mas Na primeira delas vemos a possível modelo que
Weingärtner tem, entretanto, uma reduzida mas podemos encontrar na tela intitulada Caçadora de
importante parte de sua obra, dedicada as Borboletas. Observem a caixa de borboletas,
experiências pictóricas com base histórica e presente na tela As Borboletas. Na segunda ,
literária. Podemos citar aqui a notável temos, acima das figuras, algumas obras expostas,
Revolucionários, de 1893, além daquela que lhe inclusive a Academia Julien (coleção MARGS).
rendeu fama, o tríptico intitulado Faiseuse d’anges, Abaixo vemos o modelo masculino da primeira
exposto com enorme sucesso na São Paulo de versão de Flauta de Pã, com suas ninfas nuas e
1910. tão festivas e podemos ainda ver ao fundo, à direita,
o próprio Weingärtner! Estamos tratando apenas
Angelo Guido nos explica as razões desse sucesso de um artista plenamente inserido no contexto de
como resultado da publicação, algumas semanas um público moralista e burguês, principalmente as
antes da exibição da tela, de uma reportagem sobre classes abastadas, mas, e os outros Weingärtners?
a terrível indústria das faiseuses d’anges em Paris, Vamos descobrir...
o mesmo assunto da tela (GUIDO, 1956: 120-123).
A ecfrasis praticada por Guido no seu texto é Referências bibliográficas
enriquecida com comentários entusiásticos e por
uma reconstituição detalhada da narrativa. DUQUE, Gonzaga. Impressões de um amador:
textos esparsos de crítica (1882-1909). Belo
A Faiseuse d’anges é obra evidentemente inspirada Horizonte: Editora da UFMG, Fundação Casa de
por fonte literária10, talvez menos pelo episódio de Rui Barbosa, 2001.
Margarida, no primeiro Fausto, de Goethe, mas FERREIRA, Athos Damasceno. Artes Plásticas no
mais provavelmente no romance de folhetim. Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Editora Globo
Lembremos aqui aquele intitulado La Faiseuse em 1971.
d’anges, de Mie d’Aghonne, cuja frase resumo “O GOMES, Paulo. A Obra Gravada de Pedro
corolário da humilhação da mãe solteira é a Weingärtner. Porto Alegre: Núcleo de Gravura do
impunidade da parteira”, nos é informado por Rio Grande do Sul/FUMPROARTE, 2006.
Marlise Meyer, em seu ensaio intitulado Folhetim, GOMES, Paulo. Artes Plásticas no Rio Grande
uma história (MAYER, 1996: 247). Escreve a do Sul: uma Panorâmica. Porto Alegre: Lahtu
mesma autora que dentro do desenvolvimento da Sensu, 2007.
temática da sedução e do abandono “O aborto pode GOMES, Paulo. “Registros Precários nas Coleções
ser a única solução encontrada tanto pela seduzida Públicas”. Jornal do MARGS, Julho de 2003, p. 5.
– principalmente se for casada – como pelo sedutor GUIDO, Angelo. Pedro Weingärtner. Porto Alegre:
que deseja, antes de casar-se burguesamente, Divisão de Cultura – Diretoria de Artes da Secretaria
apagar os resquícios de uma vida dissoluta” de Educação e Cultura, 1956.
(MEYER, 1996: 247). Guido, conclui que “[...] Tudo MEYER, Marlise. Folhetim, uma história. SP:
isso poderá parecer mais assunto de literatura que Companhia da Letras, 1996, p. 247.
de pintura, mas o certo é que por meio de SCARINCI, Carlos. A Gravura no Rio Grande do
elementos plásticos o artista nos faz sentir o que Sul. Porto Alegre, Editora Mercado Aberto, 1982.
através da sua composição quis comunicar. [...]”
(GUIDO, 1956: 122). Notas
1
As obras são: “Pedro Weingärtner”, de Angelo Guido, e
Considerações finais
“Artes Plásticas no Rio Grande do Sul”, de Athos
Damasceno (ver Referências Bibliográficas).
Pedro Weingärtner era um pintor moralista? É difícil 2
Conforme Referências Bibliográficas
afirmar, pois sabemos tão pouco sobre seu 3
A estes devem ser acrescentadas as recentes
pensamento que poderíamos aceitar essa ou contribuições de Susana Gastal e Maria Lucia Bastos Kern

547
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

em ensaios publicados em “Artes Plásticas no Rio Grande temática greco-romana (Angelo Guido usa o termo
do Sul: uma Panorâmica (Conforme Referências “temática clássica”), retratos, temática gaúcha, um convite
Bibliográficas). Além destas podemos acrescentar as e uma monotipia, obras predominantemente de pequenos
produções acadêmicas (dissertação e teses) de Susana formatos e foram localizadas ainda algumas matrizes,
Gastal, Maria Lucia Bastos Kern e Neiva Maria Fonseca conforme o catálogo da mostra.
8
Bohns. Em julho de 2003, marcando os 150 anos de nascimento
4
Publicado originalmente no Diário de Notícias (Rio de do artista, o Jornal do MARGS publicou meu texto intitulado
Janeiro, 9 de setembro de 1888) foi republicado em 2001 “Registros Precários nas Coleções Públicas”, no qual
(conforme Referências Bibliográficas). Escreve ele que: apresento um levantamento das obras pertencentes a
“Vendo os quadros do Sr. Pedro Weingärtner lembro-me algumas coleções públicas em Porto Alegre (MARGS,
do trabalho daquele obscuro construtor naval. Todos esses Pinacotecas Municipais da Prefeitura de Porto Alegre,
alfarrábios, panos, escrínios, leques, rosários, carteiras de Pinacoteca Barão de Santo Angelo, Pinacoteca APLUB,
colecionador, todas essas recordações de viagens, de Museu Júlio de Castilhos, Assembléia Legislativa do Rio
tempos, de história, de artes, de arqueologia, e essas Grande do Sul). Toda esta produção, de fácil localização e
cabeleiras empoadas, esses rostos, esses corpos, do bastante conhecida, até hoje não mereceu um catálogo.
9
Espólio, custaram ao artista um trabalho fatigante, um ano Angelo Guido (op. cit., p. 144) escreve que Pedro
de existência dispendido (sic) em alguns meses de Weingärtner, “[...] Em 1920 chega ao Sul, com seus
paciência, de observação e de cuidados. E tudo isso quadros, inúmeros desenhos, águas-fortes, seus livros e
reunido, dificilmente dá uma impressão intensa”. Mais todas aquelas coisas guardadas com tanto carinho que
adiante, no mesmo texto, ele explica-se melhor “não quero as não poderia nunca abandonar, como os retratos e as
dizer com isso que os quadros do Sr. Pedro Weingärtner cartas dos amigos, documentos das escolas freqüentadas,
sejam defeituosos. As suas telas têm incontestável valor, diplomas, medalhas, recortes de jornais, os cadernos com
tomadas como reunião de acessórios escrupulosamente estudos de paisagens, se figuras e esboços de
concluídos, e, sobretudo muito recomendáveis são o composição, as pequenas esculturas que ele fez e as
Almoço em Capri e a Passagem. Em outras, posto que o recordações de uma vida nobre e clara, toda consagrada
desenho nem sempre corresponda à verdade anatômica à arte”. (destaque meu). Temos informações ainda, não
de um corpo, cousas apresentam-se à curiosidade do comprovadas, de peças escultóricas do artista em Porto
amador que tornam-se dignas de estima”. Alegre. Seu sobrinho-neto, o senhor Percy Becker possui,
5
Como na celebérrima Arrufos, de Belmiro de Almeida, entretanto, duas peças de artes aplicadas – um cinzeiro
para a qual o crítico aparece como o marido indiferente. em majólica, e uma placa cerâmica – ambas pintadas e
6
Não temos, e não tivemos, em qualquer momento, a assinadas pelo artista, peças a que tivemos acesso e
ambição de ir além de um levantamento sistemático e das quais possuímos documentação fotográfica.
10
cuidadoso. A ausência de expectativas e do rigoroso No mesmo texto, na p. 121, Guido escreve que
aparato científico, que caracteriza tal tipo de publicação, Weingärtner criou uma “linda fantasia evocadora da
nos interdita nomeá-lo de catalogue raisonné. romântica Margarida de Goethe, [que] desce do carro para
7
As gravuras do artista foram objeto da pesquisa intitulada entrar num palácio em festa”. Na mesma página, um
“A Obra Gravada de Pedro Weingärtner”, projeto do Núcleo pouco mais adiante ele explica-se, afirmando que a figura
de Gravura do Rio Grande do Sul, com apoio do pintada estava “Fantasiada assim de Margarida”. Como
FUMPROARTE (produzido por Marisa Veeck, com podemos ver a obra é inspirada e não uma ilustração do
curadoria e ensaio de Paulo Gomes e ainda comentários Fausto. Em outra passagem do mesmo texto (p. 123)
técnicos sobre as gravuras, de Anico Herskovits), com Guido escreve informando sobre “alguns esboços num
mostra apresenta no MARGS, em 2006. O resultado caderno de desenho de 1881 – projeto de um quadro em
apresentou 27 imagens gravadas, entre paisagens, torno da Margarida do Fausto”.

548
1. Introdução

Preconceito, medo, deslumbramento, são alguns


dos sentimentos que marcam a inter-relação entre
as artes e a fotografia. Se nos dias de hoje ainda
se assiste, com mais freqüência do que seria
esperado, a discussões quanto à fotografia ser ou
não uma forma de Arte, ao longo do século XIX as
relações eram ainda mais emaranhadas.

À fotografia como documento, opõe-se a idéia


de fotografia como ramo das belas-artes, uma
idéia já em discussão em fins do século XIX.
As intervenções no registro fotográfico por meio
de técnicas pictóricas foram amplamente
realizadas numa tentativa de adaptar o meio
às concepções clássicas de arte, no que ficou
conhecido como fotopictorialismo.

Os fazeres também se emaranhavam. Daguerre,


o iniciador da fotografia – embora muito antes,
Leonardo da Vinci já houvesse feito experiências
com a câmera escura – foi originalmente pintor,
com prêmios pelo seu trabalho plástico, e
cenógrafo. Depois das experiências de Daguerre
com a fotografia, iniciadas pela primeira metade
do século XIX (STELZER, 1981), a técnica
espalhou-se rapidamente. Em 1861 já haveria 33
pedro weingärtner: sob o olhar fotográfico mil pessoas vivendo da produção de fotografias em
Paris (KOSSOY, 1980: 38).
1
susana gastal
Se muitos foram os que realizaram experiências
com a fotografia, alguns as fizeram com alto grau
de maestria e competência, criando maior
aproximação com a pintura. Segundo Stelzer
(1981), o fotógrafo Gustave Le Gary, por exemplo,
teria sido o primeiro a fotografar nuvens. Em 1880,
estas fotos podiam ser compradas em vários pontos
de Paris, e teriam servido de inspiração a Coubert,
para a execução de suas marinhas. Outro que
utilizou fotos, embora houvesse participado de um
abaixo assinado ao governo francês, pedindo a
proibição da fotografia, seria Ingres. Delacroix foi
membro de uma das primeiras sociedades
fotográficas, e há registros que teria utilizado
fotografias como base para alguns de seus
desenhos. Degas foi outro fotógrafo apaixonado,
para não citar os impressionistas, cuja primeira
exposição em 1874 – que serviu inclusive para
caracterizar o movimento –, foi realizada no estúdio
do fotógrafo Nadar. Para Stelzer (1981:59-60), no
caso do uso da fotografia pelos impressionistas:

[...] não há nada de estranho, já que estes,


pintores do ar livre que ´descobriram´ a luz
solar, que buscavam captar o ´momento´ nas
cenas fugazes, tinham que sentir em relação
aos fotógrafos uma aproximação muito
diferente da sentida pelos inumeráveis pintores

549
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

acadêmicos e ´oficiais´, os quais utilizavam a de 1901, realizada na Capital, havia um setor


fotografia – às escondidas e com consciência dedicado às Artes Plásticas – transformando-a no
suja – unicamente como substituto de seus segundo grande evento de artes, realizado na
modelos. Estes empregavam as fotografias cidade – do qual participaram vários fotógrafos. A
como modelos, para poder copiá-las, pois só começar pelo artista Santiago da Costa, vindo da
eram capazes de empregar as fotos derivadas cidade de Rio Grande, que mesmo inscrito na
de das pinturas, ou seja, as convencionais. categoria pintura, juntou à mostra várias de suas
fotografias.
2. O Rio Grande do Sul no final do século XIX
Mas outros fotógrafos estiveram presentes na
O sistema de artes no Rio Grande do Sul é tão Exposição de 1901, entre eles Balduíno Röhrig, que
recente como presença européia na região. Ele apresentou “grande quadro contendo retratos
começa a se constituir entre o final do século XIX fotográficos de alto estilo e, para dar-lhes maior
e as primeiras décadas do século XX, período em saliência, colocou-o como tal procedera com sua
que surgirão os primeiros artistas nascidos na experiência a óleo, sobre avantajado cavalete”
região, como Pedro Weingärtner, ou que ali se (DAMASCENO, 1971:191). Röhrig chegara a Porto
fixaram de maneira mais permanente. Alegre em 1865 e estabelecera-se como fotógrafo.
A partir de 1869 esteve com um atelier bem
Este período também será concomitante a entrada freqüentado na Rua da Praia, a principal da cidade.
da região na Modernidade, se por tal entender-se Só depois de consagrado como fotógrafo,
que a sociedade regional, no período que vai em conquistaria espaço como pintor.
especial de 1890 a 1930, consolidou um processo
de modernização iniciado nas décadas anteriores, Apesar destes registros, no cuidadoso estudo de
com a inserção regional em um capitalismo mais Athos Damasceno sobre as Artes no Rio Grande
sofisticado e de mercado exportador, e o do Sul, há poucos registros sobre presença da
surgimento de uma classe burguesa local. Seu fotografia. Essas rápidas referências à fotografia,
trabalho tornou o sistema econômico mais quando acontecem, vêm antecedidas de uma
complexo, a partir da produção agrícola e da explicação constrangida do pesquisador (que,
implantação de uma indústria artesanal. Houve, destaque-se, lança seu tratado em 1971,
ainda, uma aceleração dos processos de mostrando a permanência dos ranços do século
urbanização, em especial da capital, Porto Alegre, XIX em relação à fotografia):
e a presença no local de uma forte indústria cultural,
marcada não só pela proliferação de salas de Aos rigoristas há de parecer pouco cabível, em
cinema já na primeira década do século XX, mas notícias sobre Artes Plásticas, o registro de
também, por exemplo, da primeira gravadora de fotógrafos e fotografias presentes ao certame
discos do Brasil – a Casa Elétrica – e da primeira (refere-se à exposição de 1901). Mas, como
grande editora, responsável pela Revista do Globo, para tudo há explicações, queremos dizer que
primeira revista de variedades de circulação assim procedemos por três motivos: primeiro,
nacional. Ou seja, embora os artistas plásticos do porque a inclusão, na galeria artística, de
período ainda fossem fortemente influenciados pelo profissionais do ramo e obras do gênero
academicismo, as lógicas culturais locais estariam obedeceu critério adotado pelos organizadores
associadas não só a um viés erudito clássico, mas da mostra [...]; segundo, porque a arte
muito influenciadas pela presença de fotográfica não deixa de ser paraplástica e –
manifestações da indústria cultural, que na falta olhem lá! – bastante difícil...; e, terceiro, porque
de uma tradição erudita mais arraigada no local, – e isto vai por nossa conta! – sendo certo que
ali encontraram solo fértil. há fotógrafos que são verdadeiros pintores e
pintores que não são mais do que fotógrafos,
Quanto à fotografia, ainda há poucas pesquisas não vemos razão para que não vivam em
sobre a presença de fotógrafos em Porto Alegre e perfeita harmonia debaixo do mesmo teto...
no Rio Grande do Sul, ao longo do século XIX e (DAMASCENO, 1971, p. 191).
das primeiras décadas do século XX. Além dos
conhecidos Irmãos Calegari, de Terragno, de certa Ou seja, o pesquisador reconhece que a fotografia,
Mme Reeckel – que participara da Exposição em mãos talentosas, transforma-se em expressão
Comercial e Industrial de 1875, em Porto Alegre - artística, mas estes artistas só entrarão no seu livro
e de Lunara, sabe-se pouco sobre aqueles sobre as Artes Plásticas, nos vieses do texto.
profissionais que estiveram na cidade e no Estado,
no período (ALVES, 1998). Segundo Athos Seguindo ainda as anotações de Damasceno, vê-
Damasceno (1971), na Exposição Brasileiro-Alemã se que, se os fotógrafos eram tidos pela sociedade

550
Pedro Weingärtner sob o olhar fotográfico

com certo desdém, a aproximação dos artistas com Pedro Weingärtner (1853-1929), o mais importante
a fotografia, em Porto Alegre, não foi rara. O italiano artista do Rio Grande do Sul entre o final do século
Frederico Trebbi, por exemplo, acabou optando por XIX e as duas primeiras décadas do século XX,
residir no sul em 1869. Ex-aluno da Academia de não ficou imune a esta aproximação com a
Belas Artes de Roma, foi responsável pela fotografia, em que pese à desconfiança que tal
formação de muitos artistas locais, alunos em suas afirmação possa causar entre os teóricos e os
aulas. Trebbi associava ao ofício da pintura, o de historiadores mais tradicionais. Weingärtner é fruto
fotógrafo, tendo atuado com esta última atividade, da primeira geração de imigrantes, já nascida no
inclusive, na Guerra do Paraguai. Mas Trebbi Brasil, onde a família chegara alguns anos antes.
realizou poucas experiências com a pintura de Uma família que se estabeleceu com uma
observação, preferindo trabalhar no atelier, a partir importante litografia, em Porto Alegre.
de moldes em gesso, ou cartões. Segundo
Damasceno, Trebbi reconheceria a superioridade No Rio Grande do Sul, é a partir de 1849 que
da pintura a partir da observação direta, mas quase começam a surgir oficinas litográficas, onde
não a realizava porque “muito difícil lhe seria opor- atuavam artistas gravadores, desempenhando
se a certos escrúpulos do meio, pois falar, então, as atividades de desenhistas, ilustradores,
em pintura ao ar-livre constituiria um desfrute e retratistas e caricaturistas. Aqui no RS, a oficina
pensar em modelo vivo – o nu, por exemplo, que era a um só tempo gráfica comercial e
horror!.... – produziria escândalo” (DAMASCENO, jornalística, ateliê e escola. [...] Uma das
1971:221). litografias mais famosas do Brasil e do Rio
Grande do Sul foi a Litografia Weingärtner, que
Os fotógrafos também valorizavam a aproximação começou a funcionar em 1885. Tinha como
com os artistas. Os Irmãos Ferrari, fotógrafos gravadores o próprio (Inácio) Weingärtner e
reconhecidos, sempre mantiveram artistas Antonio Francisco Ribeiro e contava com
trabalhando em seu atelier. No final do século XIX, desenhistas da qualidade de João Petersen e
o mercado de retratos, associando pintura e Faustino Ladeira (TIBURSKI, 1995: s/p).
fotografia, era tão próspero que certa Sociedade
de Artes, de Buenos Aires, angariava encomenda Esgotadas as possibilidades do meio local, e com
de trabalhos em Porto alegre. Estes trabalhos, muita habilidade para desenho e pintura, Pedro
depois, seriam pintados na Argentina, a partir de Weingärtner voltou à Europa para aprimorar-se
fotografias. A concorrência argentina deve ter se como artista. Estudou na Alemanha, passou por
tornado perigosa porque, em 1897, o estúdio Ferrari Paris, e por fim estabeleceu-se – por muitos anos
contratou o artista Giusuppe Boscagli2, que vinha – na Itália. Sobre seu modo de vida, marcado por
seguidamente à cidade, a serviço do atelier constantes deslocamentos, Bohns (2006:403)
argentino3. A crítica da época, entretanto, registrou registra:
suas desconfianças em relação a este tipo de
proposta, quando de uma exposição de dois [...] Pedro Weingärtner pertence a uma geração
retratos, assinados por Boscagli: em que os acontecimentos precipitaram de
maneira mais vertiginosa e, embora os relatos
Os dois retratos referidos são cópia fotográfica, sobre sua personalidade dêem conta de um
e nesse gênero não é possível exigir mais de sujeito pacífico e pouco inclinado a aderir a
um artista que tem de se subordinar à fotografia revoluções no plano político ou artístico, um
que o cliente escolhe. Entre nós ainda há quem rápido olhar sobre sua biografia nos faz ver que
queira submeter à exigência artística de pousar a facilidade com que se deslocava entre
para ser retratado por um pintor, durante quatro diferentes países, estando ora no Brasil, ora
ou cinco sessões, como seria para desejar, não na Itália, ora na Alemanha, já era coisa dos
só para as condições do retrato, mas ainda tempos modernos.
como conveniência do próprio interessado
(apud DAMASCENO, 1971: 413). Nas vindas periódicas ao Brasil – e a Porto Alegre
– apresentava seu trabalho ao público local.
Enfim, são alguns exemplos de como a pintura e a Aproveitava as visitas ao Sul para percorrer e
fotografia imiscuíam-se, numa Porto Alegre que cidade e o interior, fazendo anotações que serviriam
dava seus primeiros passos em termos plásticos, para futuros trabalho. Mesmo quando não visitava
em especial no que se refere a produção de a região pessoalmente, Weingärtner se fazia
retratos. presente enviando telas que aqui deveriam ser
vendidas pela família, ou fotos de trabalhos que
3. Weingärtner e a fotografia estivesse realizando, para conhecimento dos
possíveis interessados:

551
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

Weingärtner continuará a fazer-se lembrar, da composição atenda aos padrões clássicos da


mesmo quando pouco esperançoso de deixar pintura: a imagem coloca o observador à distância
em mãos de seus co-estaduanos os frutos mais e predomina a centralização da linha do horizonte.
valiosos de seu labor. Em setembro de 1897, Nesta mesma imagem, ainda há a visão de um
por exemplo, os jornais da capital voltam a ponto de vista elevado, o que, segundo os autores,
ocupar-se do artista e o Correio do Povo também seria uma conquista da estética
registra: ‘A um dos nossos repórteres foram fotográfica, já que a pintura em seus padrões
mostradas fotografias [grifo meu] de acadêmicos priorizaria a visão de mesmo nível do
admiráveis telas que estão fazendo sucesso observador/paisagem. Este é apenas um caso e,
em Roma [...]’. As fotografias, a que as notícias repita-se, este estudo deva ser aprofundado. O que
aludiam, eram as dos quadros Frauta (sic) de se propõe ressaltar, aqui, é a intimidade de
Pan, A sentença de Páris e Um banho em Weingärtner com a fotografia, um fato que talvez
Pompéia, fotos que, apesar de reproduzirem venha sendo menosprezado pelos pesquisadores,
as telas apenas em preto e branco, davam, na pelos mesmos preconceitos que, como colocado,
opinião do crítico do jornal de Caldas Júnior, acompanharia os críticos das artes.
prova cabal do extraordinário mérito do seu
autor (DAMASCENO, 1971: 204-5). Os primeiros passos para reconstruir a intimidade
de Weingärtner com a fotografia podem ser
Quando iniciei a pesquisar as Artes Plásticas em garimpados no texto de Ângelo Guido (1956), o
Porto Alegre no século passado, as evidências – principal biógrafo do pintor. Guido registra, por
como as aqui apresentadas – indicavam que os exemplo, que nos seus primeiros tempos de
artistas em atuação no sul do país não estavam Europa, com dificuldade para sobreviver em Berlim,
imunes à presença da nova tecnologia para “sem recursos algum, passando privações de toda
obtenção de imagens, com destaque para a sorte, desesperado, resolveu empregar-se numa
máquina fotográfica, e que esta aproximação traria fotografia e abandonar os estudos” (GUIDO, 1956:
conseqüências diretas na construção das imagens 25). Weingärtner foi salvo de destino tão cruel –
na pintura. abandonar a Academia, onde estudava, e tornar-
se fotografo ou colorista de fotografias, ou ainda,
A lente fotográfica introduziu uma maneira nova pintor de retratos a partir de fotos – pela
de reproduzir o mundo em imagens. Por suas generosidade de amigos, que passaram a auxiliá-
características, as imagens fotográficas produzidas lo financeiramente.
na segunda metade do século XIX “são marcadas
por fortes contrastes, traços sintéticos, ênfase no Aliás, pintar retratos a partir de fotografias não era
primeiro plano, exploração de planos diagonais, atividade desconhecida para o artista. Na carta que
enquadramento fechado, corte abrupto e o gosto dirigiu ao Imperador D. Pedro II, em 13 de abril de
pela geometrização espacial. Características 1883, solicitando auxílio financeiro concluir seus
presentes, porém quase nunca simultâneas [...]” estudos na Europa, salienta, referindo-se a mesada
(CARVALHO, 1991:208). Na pintura, por outro lado, recebida dos amigos, que “somente com ajuda de
alguns negociantes brasileiros residentes em
[...] a composição é ampla. O tratamento de Hamburgo, foi habilitado de continuar nos estudos
conjunto prevalece e com ele a captação de até agora”. No mesmo documento lê-se o seguinte
imagem de um ponto de vista distante, onde parágrafo:
predomina o plano médio e a centralização da
linha do horizonte. [...] Na esteira das inovações O Suplicante, Senhor tomou a liberdade de
fotográficas, a pintura do final século começa pintar um retrato a oleo de Vossa Majestade
a explorar o primeiro plano aproximado Imperial baseado em n´um pequeno cartão
(CARVALHO, 1991:209). photographico de Alberto Haenschel da Corte,
e tambem do Exmo Vosso Conselheiro
Estudar como estas características estariam ou não Henrique d´Avila, actual Ministro da Agricultura,
presentes na produção pictórica de Pedro para mostrar os progressos que fez na parte
Weingärtner, é um trabalho exaustivo que está por techina d´arte, sendo alias bastante diffícil
ser feito. Entretanto, verifica-se, mesmo pintar um retrato sem presença da pessoa o
aprioristicamente, que o pintor do Rio Grande do que pode ter dado lugar a erros graves a
Sul não ficou imune à questão do primeiro plano. respeito das cores e da semelhança [...].
Na pintura intitulada Morro do Chapéu, por exemplo,
há um morro, recoberto de vegetação em primeiro Por via das dúvidas, e para não comprometer o
plano, e deste morro em relação ao resto da bom nome do seu trabalho, Weingärtner anexou à
composição há um corte abrupto, embora o fundo

552
Pedro Weingärtner sob o olhar fotográfico

missiva um estudo feito na Academia alemã, a partir do início do século XX. Comerciante bem-
do modelo vivo. sucedido, dono de um Secos e Molhados, saía
pelos arredores para fotografar a rua, as
Se a utilização de fotografia como base para o pessoas comuns, os namorados, os ex-
trabalho em pintura não lhe era totalmente escravos, os aguateiros, os imigrantes alemães
estranha, como se pode ver, a aproximação com o do Vale dos Sinos e, claro, gaúchos a cavalo.
meio fotográfico era uma constante. Como registra Congelou, em preto e branco, a Capital de 70
Guido, em suas voltas ao Brasil, Weingärtner mil habitantes que seguia, passo a passo, o
realizaria sua primeira exposição no Rio de Janeiro: receituário positivista da modernização ainda
“Esta exposição foi realizada em 1888, à rua do com a delicadeza das grades rendilhadas nas
Ouvidor, no salão do estabelecimento fotográfico fachadas. Como bem disse o cronista da
Insley Pacheco & Cia4, onde freqüentemente se Gazeta do Comércio, em 1903, Lunara é um
expunham quadros e outras obras de arte” (GUIDO, “incorrigível amador da fotografia, que trata
1956: 41). Esta exposição foi muito bem sucedida simultaneamente de açúcar e de tudo que
e, como o Imperador não pudesse visitá-la passa... pela Praça”. Seu olho jornalístico não
pessoalmente, “resolveu Weingärtner ir ao passo deixou passar a tradicional exposição festiva
imperial, em São Cristovão, mostrar ao Imperador de abertura do século (1901), junto à Escola
alguns trabalhos e fotografias de outras telas” (Id.: de Engenharia, revelando em panorâmicas os
42). primórdios do nosso Parque de Redenção, um
campo sem maiores atrativos onde os
Se até aqui parecer ficar demonstrada a carreteiros comercializavam mercadorias do
aproximação de Weingärtner com os fotógrafos e interior. [...] O fotógrafo era um grande amigo
a fotografia, restaria a dúvida sobre se ele teria do pintor Pedro Weingärtner, uma das
utilizado, ou não, a máquina fotográfica como referências fundantes da arte no sul. (GOLIN,
instrumento de registro e levantamento de 2002:3)
informações para futuros trabalhos. Ângelo Guido
(1956: 76) registra: “Pelo que se pode deduzir de Sobre o processo de trabalho de Weingärtner,
vários cadernos que examinamos, não viajava Guido (1956:63) registra:
nunca, não realizava mesmo um passeio, como os
que fazia aos domingos, em geral em companhia A série de telas inspiradas na paisagem, as
do íntimo amigo Carlos Magalhães de Azeredo, cenas, tipos e ambientes do Rio Grande do Sul
então cônsul em Roma, sem levar o seu pequeno e de Santa Catarina, verá representar uma
caderno em que ia anotando o que lhe interessava parte muito importante no forte e variado
ou podia servir para uma composição”. O que Guido conjunto das obras pintadas por Pedro
não informa é se, além do caderno, Weingärtner Weingärtner. Não poucas dessas telas foram
também carregaria sua máquina fotográfica. Esta pintadas no próprio ambiente que representam;
dúvida, entretanto, pode ser desfeita por um cartão, diversas, porém, resultaram de composições
cuidadosamente guardado por seus descentes, posteriores, feitas em Roma, mediante
assinado pelo cônsul em Roma, Azeredo, e datado numerosos estudos de desenho e pintura
de 5 de maio de 1905. No cartão se lê: executados no local.. Esses desenhos,
esbocetos, manchas e pequenas impressões
Meu caro Amigo, muito te agardeceria se de paisagem e figuras, mostram com que
pudesses vir abraar domingo, trazendo contigo meticulosidade e espírito de fidelidade ao real
a máquina fotográfica, para desejo que me tires Pedro Weingärtner reunia o material para os
uns retratos do nosso camarada Micello. Teu seus quadros de costumes de assuntos rio-
de coração, Azeredo. grandenses.
Nas visitas a Porto Alegre, os passeios eram feitos Como se vê, em diferentes momentos e por
na companhia do fotógrafo Lunara. Os dois diferentes razões Weingärtner esteve muito
costumavam percorrer locais dos morros da Glória próximo da fotografia. Repita-se: o quanto esta
e Teresópolis, e as margens do arroio Dilúvio, nas aproximação condicionou ou influenciou o seu
cercanias da cidade mas, novamente, as pesquisas processo de trabalho diretamente, está por ser
não registram se nestas ocasiões Weingärtner averiguado. Mas, com certeza, a sensibilidade do
também fotografaria. século XIX, de modo geral, não ficou imune ao olhar
fotográfico. Por que um artista, que justamente se
Lunara, pseudônimo de Luiz Nascimento marca por seu olhar sensível, ficaria?
Ramos (1864-1937), deixou para a
contemplação do futuro a pequena Porto Alegre Referências bibliográficas

553
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

2
ALVES, Hélio Ricardo. A fotografia em Porto Alegre: Boscagli, Giuseppe (Floreça, 1862 – Rio de Janeiro.
o século XIX.ACHUTTI, Luiz E.R. Ensaios (sobre 1945). Pintor, desenhista, discípulo de Morini e
o) Fotográfico. Porto Alegre: Unidade Editorial/ Massani ca.1897 - Porto Alegre RS - Pinta retrato de
Júlio de Castilhos, a serviço do Atelier Ferrari. ca.1899
SMC, 1998, pp.9-21.
- Porto Alegre RS - Faz alguns trabalhos para a
BOHNS, Neiva M.F. Os primeiros pintores – Sociedade de Artes de Buenos Aires, que mantinha
Presenças desapercebidas, ausências sentidas. uma agência em Porto Alegre, e recebia encomendas
LIN, Tau et al. História geral do Rio Grande do de retratos a óleo, aquarela e crayon, copiados de
Sul. V. 2 – Império. Passo Fundo: Méritos, 2006. fotografia. ca.1909 - Torna-se pintor oficial das
CARVALHO, Vânia C. As representações da expedições do Marechal Rondon ao interior do Brasil
natureza na pintura e na fotografia brasileira do ao interior do Brasil e fixa inúmeros aspectos da
natureza, fauna, população e costumes da região
século XIX. ABRIS, A. (org.). Fotografia: usos e
amazônica (Enciclopédia Itaú Cultural Artes Plásticas).
funções no século XIX. São Paulo: Edusp, 1991 3
Como se vê na nota anterior, segundo a Enciclopédia
DAMASCENO, Athos. Artes Plásticas no Rio Itaú Cultural Artes Plásticas, a situação seria inversa
Grande do Sul. Porto Alegre: Globo, 1971. a apresentada por Athos Damesceno: Boscagli teria
GOLIN, Cida. Lunara. Jornal do MARGS, nº 78, primeiro trabalhado para o Atelier Ferrari e depois sido
abril de 2002, p. 3 contratado pelos argentinos.
4
GUIDO, Ângelo. Pedro Weingärtner. Porto Alegre: Insley Pacheco: “Fotógrafo y litógrafo brasileño activo
en Río de Janeiro desde 1854 hasta fines del siglo
Secretaria de Educação e Cultura, 1956.
XIX. [...] En Nueva York trabajó primero como aprendiz
KOSSOY, Bóris. Origens e expansão da fotografia de Mathew Brady y luego con Jeremiah Gurney, donde
no Brasil. Século XIX. Rio de Janeiro: Funarte, 1980. se puso al tanto de los últimos adelantos fotográficos.
STELZER, Ott. Arte e Fotografia – Contactos, Además estudió pintura con el paisajista Grazoffre. (..)
Influencias y Efectos. Barcelona: Gustavo Gili, 1981 Por mucho tiempo tuvo su estudio en la rua do Ouvidor
TIBURSKI, João C. Boletim Informativo do 102. Participó de varias exposiciones nacionales e
MARGS, nº 23, out/dez de 1995 internacionales y obtuvo 14 medallas por sus retratos
y paisajes. Fue fotógrafo de la Casa Imperial y
Caballero de la Orden de Cristo de Portugal. Practicó
Notas
también la fotopintura. http://www.geocities.com/
1 alloni1/biografiaslatin.htm
Doutor. Pontifícia Universidade Católica do RS
Universidade de Caxias do Sul

554
Ao longo deste artigo, pretenderemos analisar: as
referências ao pintor Pedro Weingärtner (1853-
1929) 2 em dicionários biográficos; o círculo de
amizades e a cultura internacional no qual estava
inserido além da análise de dois trípticos de sua
obra enfocando o tema da mulher. Ademais, o
tríptico Chez la Faiseuse D’Anges (Roma, 1908) é
foco do nosso trabalho de Doutorado intitulado A
mulher na obra de Pedro Weingärtner. Citamos Coli,
em Como estudar a história da arte brasileira do
século XIX: “Como vencer os escolhos de uma
análise que exige os próprios meios mentais da
cultura na qual o artista encontrava-se banhado?
Buscando-se alimentar dessa cultura. Que tipo de
leitura podiam ter? Que contatos intelectuais?”3.

Partindo dos princípios sugeridos por Coli,


primeiramente buscaremos nos imbuir das
influências na obra de Weingärtner, começando por
referências em dicionários biográficos de pintura e
em menções que o artista fez em cartas, referindo-
se a pintores que influenciaram de alguma forma a
sua obra.

No dicionário biográfico de artistas alemães de


Thieme-Becker 4 , encontramos uma referência
sobre o artista, que remete a uma notícia em uma
revista inglesa datada de 1900 e também à
as influências na obra de pedro weingärtner exposição Universal de Paris em 1900.
(1853-1929)
1
Na revista The Studio de 19005, encontramos uma
vivian s. paulitsch crítica interessante e uma reprodução de um quadro
de Weingärtner. O título da obra é La Moisson ou
Harvesting Wheat e trata claramente de uma cena
de colheita em Antícoli6. Ademais, a crítica refere-
se a alguns quadros de temas gregos e romanos
dos anos 1897-98, do que se presume certa
erudição do pintor ao ter conhecimento dessas
civilizações. No entanto, vamos nos ater ao quadro
reproduzido, uma pintura de gênero aproximando-
o do regionalismo italiano e de pintores da
‘campanha’ romana.

A crítica salienta que Weingärtner também pinta


“sujets modernes” como podemos ver na citação
abaixo:

Pedro Weingärtner, qui vient de rentrer


d’Europe aprés un longue séjour dans l’Ancien
Monde, se plait à peindre des sujets antiques,
et, dans la peinture de ces scénes empruntées
à la Gréce ou à Rome, il fait preuve d’une parfait
conaissance de ces civilisations disparues.
Nous citerons parmi ses principales oeuvres:
Sapho, Daphnis & Chloe, un jardin pompèien,
Vengeance de Bachus. M. Weingärtner a aussi
peint des sujets modernes. Nous reproduisons
de lui un tableau intitulé la Moisson, dont on ne

555
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

manquera pas d’apprécier la sobre ordonnance (Roma, 1904) observamos pontos em comum, tais
et la savante composition. como o uso de diversas diagonais enlaçando as
composições de uma forma simples e natural.
No mesmo ano, também na revista The Studio,7
um artigo intitulado Some Modern Italian Artists, Dois pontos parecem fundamentais: primeiro, que
de Romnaldo Pantini, trata do desenho e de temas Weingärtner era descendente de imigrantes
de vários artistas italianos dando um panorama do alemães que colonizaram o Rio Grande do Sul e
que ele chamou réveil artistique dos artistas que se localizaram na zona de São Leopoldo.
italianos desta época. O texto é claro: Segundo, em sua obra a proposta regionalista foi
adotada como estímulo para introduzir no Brasil
Le réveil artistique de l’Italie ne date um realismo estilístico de grande significado no
veritablement que de la seconde moitié du XIXe momento da passagem do Império para a
siècle.[...]Prenons par exemple, trois de plus República.
puissantes et des plus heureuses personnalités
artistiques que l’Italie ait produites en ces Assim, não surpreende que a temática regionalista
dernières années. [...] Au Grand Palais, à Paris, introduza-se modernamente na sua pintura de
ont été exposés nombre des dessins de gênero, um regionalismo representando a vinda dos
Giovanni Segantini et de Luigi Serra. De ce imigrantes no sul do Brasil, conforme vemos na
dernier, on a dit et trop souvent répété qu’il citação abaixo:
dessinait pour le plaisir de dessiner; il est vrai
que son inlassable souci de faire et de refaire Derrubada, do gaúcho Pedro Weingärtner,
son ouvre peut, au premier abord, donner à talvez seja a obra de maior êxito entre todas
cette opinion quelque couleur de raison; mais, as que se inserem no filão da retomada da
comme Serra s’attachait toujours à rendre le paisagem nacional baseada no exemplo de
contour avec une exactitude absolue et à placer Taunay. Contudo, nos troncos retorcidos e nas
les moindres détails dans la vraie raízes revoltas, expostas a uma luz crua, o
perspective,on ne peut guère le blâmer, à cet artista soube captar as consonâncias
égard, d’avoir consacréant de soins et de peine simbólicas do tema, ao passo que resolve os
à ses oeuvres. Quant aux dessins de Segantini planos e os contrastes luminosos mediante
- artiste malheureusement ravi à notre densos empastes de cor na superfície. Em sua
admiration dans toute la force de sa réputation pintura de gênero, Weingärtner fundou um novo
- ces oeuvres attirent l’attention du spectateur e vigoroso regionalismo na pintura brasileira,
par des qualités tout à fait différents de celles representando o mundo dos emigrantes no sul
de Serra. Les types et les scènes procèdent do país com uma viva sensibilidade para a
d’une toute autre manière d’interpréter la realité. anedota de costume e, por vezes, com rara
On peut observer que l’artiste regretté s’efforçait concentração formal, como em Desolada,
de donner à ses personnages une expression atualmente no Masp.8
trés complexe, plutôt qu’à réaliser leur exacte
représentation; et il cherchait toujours à No entanto, o pintor e muitos de seus
empreindre ce caractère d’un charme tout contemporâneos, neste período de dois séculos,
spécial, fait de poésie et de mystére. imbuídos da orientação do divisionismo e das
influências mútuas e complexas do positivismo e
A referência no artigo de que vários desenhos de do simbolismo que colocam aos artistas
Giovanni Segantini e de Luigi Serra teriam sido interrogações novas a propósito de sua criação,
expostos no Grand Palais, em Paris, nos conduzem questionamentos estes e pesquisas que
obviamente a inferir que Weingärtner deve ter visto compreeendem também sua relação com a
essas obras. Desde cedo, Pedro tinha uma fotografia. Pedro Weingärtner, assim como Liebel
evidente e forte ligação ao desenho, talvez por e os demais, utiliza a fotografia como um substituto
pertencer a uma família de litógrafos. A distinção do desenho, através de uma arte capaz de dar
entre os desenhos de Segantini e Serra, da forma forma às emoções, concomitantemente à pesquisa
como os tipos e cenas provêm de uma outra expressiva e formal.
maneira de interpretar a realidade, contrapõe-se
ao aspecto em que Weingärtner trabalha, ou seja, Como já foi dito, no itinerário artístico os contatos
de maneira sutil. Em suas cenas de colheita, o do círculo de amizade são parte integrante da
artista retratauma paisagem carregada de compreensão da atividade pictórica do pintor. O
detalhismo mas com expressões de caráter pintor aragonês Mariano Barbasán Lagueruela9,
regional. Nas obras Le moisson (Roma, 1899), (Zaragoza, 1864 – Id., 1924), segundo o biógrafo
Ceifa em Antícoli (Roma, 1901) e Fim de ceifa de Weingärtner, foi um dos principais contatos dele

556
As influências na obra de Pedro Weingärtner (1853-1929)

desde que Roma se tornou sua residência fixa, medalhas são muito bons, mais agora se paga
embora temporariamente se ausentasse do ateliê mais a firma - Vi uma exposição delle em Köen
para breves excursões a Pompéia, Herculano, (n’allemanha) onde tinha 70 quadros mas
Nápoles; para passar o verão em Antícoli Corrado, gostei so de 4 ou 5 trabalhos, o resto era bem
com o seu colega Barbasán, ou para mais mediocre, tanto que o resultado pecuniario foi
demoradas viagens ao Rio Grande do Sul e bem modesto. - para os compradores allemães
exposições em São Paulo e no Rio de Janeiro. faltava a alma nos quadros de Sorolla, muitos
admirarão a técnica,o bom colorido, o desenho
Em La procesión del Santo Sacramento, de Mariano correcto.
Barbasán,de 1887, tem-se uma paisagem com uma
procissão em primeiro plano, em que os Retornando à Espanha, Sorolla instala-se em Madri
personagens, neste pequeno quadro, povoam o clareando a palheta. Faz viagens freqüentemente
ambiente em uma cena típica desta região. Assim a Valência, onde a paisagem e o cotidiano dos
como no quadro Cena de Anticoli (Roma, 1890), pescadores o fascinam. Na produção italiana de
de Weingärtner, onde homens e mulheres também Sorolla, dominam as paisagens com um marcado
estão integrados e, por assim dizer, submetidos acento realista, características presentes também
ao meio nesta paisagem de campanha. na obra de Weingärtner principalmente nas obras
de ceifa em Anticoli e também em paisagens do
As obras Ceifa em Anticoli Corrado (Roma, 1901) interior de Santa Catarina e do Rio Grande do Sul.
e O retrato dos noivos, (Roma, 1904) apresentam
o mesmo imediatismo carregado de verdade A obra Desolada (Roma, s/d),de Pedro Weingärtner
humana nestes grupos de camponeses no trabalho pertencente ao acervo do Museu de Arte de São
da terra, na pose para uma foto em uma festa, Paulo, é um exemplo desse tipo de paisagens
respectivamente retratados nestas composições. realistas em pequeno formato numa cena com uma
Ou seja, nos dois pintores vê-se claramente que palheta suave. Sabe-se que Sorolla expôs
se interessam pelas relações culturais, pelos freqüentemente na Espanha e na França, no Salão
gestos, pelo meio e pelos objetos que caracterizam de 1895, na Galeria Georges Petit em 1906, na
a região representada. Além da máquina fotográfica Alemanha e nos Estados Unidos, ele colecionou
poder representar no quadro de Weingärtner a medalhas e triunfou na exposição Universal de
simbologia do advento da modernidade, da Paris em 1900.
fotografia como auxiliar do desenho, a aprovação
de seu aporte educativo que permite ver adiante, Ao contemplar Mes enfants, um dos quadros que
tendo lentamente consciência que ela gera novos Sorolla expôs na Galeria Georges Petit em 1906, e
hábitos visuais, remetendo a novas convenções da recentemente exposto no Petit Palais10, levantamos
imitação. a hipótese de que Weingärtner possa também ter
freqüentado esta exposição. A palheta escura,, as
Seria interessante tomar uma obra precisa de pinceladas finas, o acentuado claro-escuro
Barbasán, Las hormigas, de 1910, para colocá-la contrastando os vermelhos dos vestidos das
em relação com a Ceifa em Anticoli (1903) de meninas, e a dimensão desta tela, que representa
Weingärtner. Nas duas telas temos uma atitude com realismo uma cena de interior, podem ter
semelhante: a colheita na campanha romana. Se influenciado Weingärtner mais tarde nos trípticos
as posturas são, portanto, muito parecidas, os que produziu.
tratamentos picturais opõem-se de modo radical.
Barbasán modela com pinceladas mais como as No Estudo de figura (Roma, s/d), de Pedro
manchas do divisionismo italiano. Ao contrário de Weingärtner, pertencente ao Museu de Arte do Rio
Weingärtner, onde temos uma superfície mais Grande do Sul, vê-se claramente uma similaridade
uniforme, lisa. A presença dos cavalos no centro com a obra de Sorolla. A composição é mais escura,
fundamenta a qualidade construtiva da porém mais carregada nas cores quentes,
composição, cuja força neutraliza a paisagem proporcionando contrastes.
infinita. Em Barbasán isso dá-se pelo grupo de
camponeses, cujos gestos estabelecem um ritmo O tríptico As três fases da vida 10a, (Roma, 1919)
elegante e diversificado no conjunto. deve ter sido parte de uma das últimas obras que
executou no seu atelier da Via Margutta, pois em
[...] Aqui nós soubemos do sucesso do pintor 1920 Pedro Weingärtner se translada
Sorolla, e dizem que ele ganhou dois milhões definitivamente ao Rio Grande do Sul.
de francos. Eu conheci aqui em Roma o Sr.
Sorolla e na realidade, ele tem muito mérito, Teria sido esse tríptico mais uma obra baseada em
os primeiros trabalhos com os quais ele teve um fato cotidiano? Seria essa mulher uma italiana

557
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

ou a cena representaria algum fato de que ele tenha Na primeira parte, temos em primeiro plano uma
ficado sabendo em uma de suas viagens ao Rio menina de perfil, mendigando; atrás dela um idoso
Grande do Sul? Poderia fazer alguma referência a segurando um chapéu, e ao fundo da composição,
uma obra literária? uma vitrine, aparentemente de uma joalheria. O
mais importante nesta obra não é a origem, mas a
O contexto do que está representado seria da imagem por ela mesma, onde o pintor mascara-a
“mulher fatal”, que a literatura apresentava como ou a desvenda.
dotada de exacerbada sexualidade, perigosa, má,
bela, sedutora e ameaçadora para a civilização. O quadro Suzanne au bain, que se baseia no texto
No imaginário do pintor, essa “mulher fatal” torna- do livro de Daniel do Antigo Testamento 13, nos
se uma figura relevante, ocupando lugar destacado aproxima da iconografia desta primeira parte. Assim
na parte central. como Weingärtner pode ter feito alusão, outros
pintores simbolistas da mesma época, como
Os escritores naturalistas, ao se volta para o estudo Gustave Moreau, fizeram obras sobre esta
da condição feminina, podem ter criado de certa temática. Como o quadro de Antoine van Dyck que
forma um código discriminatório das mulheres pertenceu à antiga Pinacoteca de Munique, onde
prostitutas, mulatas, lascivas assim como daquelas o pintor Weingärtner pode ter tido contato com a
melancólicas e decaídas. Desde os romances que esta obra.
registram o perfil da mulher casada insatisfeita com
a mesmice do casamento e da vida doméstica, a O “velho” que está por trás da menina mendigando
exemplo de Júlia em a Mulher de Trinta Anos, de se parece muito com um dos velhos que acusavam
Balzac, ou de Emma Bovary, de Flaubert, até os Suzanne mas que na verdade a desejavam e que
romances que abordam a vida cortesã, com seus tentam forçá-la a relacionar-se com eles. O homem
prazeres, vícios e decepções, a exemplo dos “maduro” que corrompe a menina, fazendo-a perder
Esplendores e Misérias das Cortesãs, de Balzac, sua “pureza” e a “honra”, e assim entrar no mundo
A Dama das Camélias, de Dumas, os Mistérios de da prostituição mostrando a degenerescência
Paris, de Eugène Sue, os inúmeros contos de Guy provindo do temor do fim dos tempos.
de Maupassant, dos irmãos Goncourt, de Zola, a
sexualidade feminina se torna um objeto de Na parte central, temos um ambiente interno,
preocupação neste período que, paralelamente, provavelmente o quarto, onde vemos uma mulher
investe num campo da medicina destinado à saúde com luxuoso vestido, sentada de costas e se
e ao corpo da mulher, a ginecologia.11 olhando no espelho do toucador em um gesto de
estar colocando um colar parecido com o da vitrine
‘Provenientes de antigas mitologias, de terras representada na primeira parte. À direita, observa-
longínquas ou fantásticas, revelam as fantasias de a um homem em pé, elegantemente vestido.
uma época que fez do sexo a chave da explicação Poderíamos aproximá-la com a Nana, de Émile
dos atos e comportamentos humanos, como ensina Zola. Em vários momentos a vemos contemplar-
Foucault, e que associou de maneira indissolúvel se diante do espelho, admirar seu corpo:
sexualidade e subjetividade.’12
Um dos prazeres de Nana era despir-se em
No contexto em que está representada em As três frente ao armário de espelho,onde podia ver
fases da vida, a figura feminina encarna o tipo da seu corpo inteiro. [...] Era uma paixão do corpo,
‘mulher fatal’, figurada na literatura como dotada um arrebatamento pelo cetim de sua pele e
de super-sexualidade, perigosa, má, bela, sedutora pelas linhas delicadas do seu busto, que a
e ameaçadora para a civilização. No imaginário de deixava séria, atenta, absorta num amor de si
Weingärtner, esta ‘mulher fatal’, torna-se uma figura própria.14
relevante, e ocupa um lugar destacado na parte
central do tríptico. Na terceira parte, temos uma mulher idosa,
provavelmente a mesma, vestida de preto. Ela
O pintor, aos 66 anos, utiliza pela segunda vez o espera pacientemente por um homem no segundo
formato de tríptico, criando desta vez uma narrativa plano que examina a jóia entregue por ela. Trata-
evocando as fases da vida de uma mulher. O se da última parte desta narrativa, que seria
tamanho da obra nos remete possivelmente ao simbolicamente o fim da vida, a velhice e a
interesse do pintor em vender para um colecionador degeneração do corpo. Nas gravuras do jornal
particular, devido às dimensões pequenas. O pintor anarquista francês Assiette au Beurre 15, no número
oscila na representação do ambiente externo, especial sobre prostituição La prostitution ilustrado
interno (privado) e externo novamente. por Kees Van Dongen, vemos a mesma seqüência

558
As influências na obra de Pedro Weingärtner (1853-1929)

de representação das etapas da vida das tema é uma revisitação numa chave simbólica das
prostitutas. três fases da vida feminina: infância, maternidade
e a inevitável velhice.
Em algumas pinturas do século XIX, principalmente
de bordéis, além das pessoas representadas, o No entanto, temos nos nus uma evocação
espaço pictural e arquitetural ocupa posição de impressionante da secura esquelética dos corpos
destaque. O desenho nos serve como uma das mulheres. A idéia diretriz da Idade Média, Media
informação destes espaços de diferentes maisons vita in morte sumus, é prudentemente representada
closes e de tipologias de construções que são nesta obra com a evocação desta natureza
lugares eminentemente modernos e efêmera. Em Weingärtner, a semelhança com
contemporâneos dos grandes magazins, das gares Klimt, afora o título da obra, encontra-se no mesmo
e das arquiteturas coletivas. tema revisto, ou seja, infância, vida adulta e velhice.
Porém a distinção está na maternidade não
A representação de três mulheres em ambientes evocada. A supressão da maternidade dá-se pelo
privados, ou seja, o espaço feminino, é recorrente fato de a narrativa referir-se possivelmente às três
em outros pintores. Em Trois femmes (1909-1910), fases da vida de uma prostituta.
de Umberto Bocciono (1882-1916), são
representadas a mãe e a irmã de Boccioni e ao A pintura Homme et femme (1926), de George
centro uma mulher com a qual o pintor tinha vivido Grosz, mostra um quarto com a persiana fechada,
uma relação tumultuada. onde uma prostituta se admira com um espelho
em primeiro plano, vestindo uma roupa
As três mulheres estão representadas com uma transparente. Porém, Grosz não mostra a imagem
luminosidade descendente e as formas são refletida no espelho. Em segundo plano, um homem
compostas como em raios oblíquos. Os olhares não sentado na cama, fumando um cigarro e
se cruzam e cada uma está com uma expressão provavelmente terminando de vestir-se, amarrao
distinta. A obra testemunha uma assimilação deste sapato. Grosz vai mais além de Weingärtner nesta
pintor pela técnica do divisionismo com zonas obra: ele representa o mundo privado, o íntimo de
monocromáticas e tratadas com degradês. forma mais realista, e pode-se até mesmo
considerá-lo como uma continuação do que foi
No caso da obra de Weingärtner, as mulheres não representado por Weingärtner.
estão no mesmo plano e temos uma luminosidade
mais saliente na figura feminina da parte central A mulher infanticida- O filho ilegítimo
que seria a representação da femme au miroir. É
possivelmente a fase mais próspera da vida dela. Em dezembro de 1910, Pedro Weingärtner retornou
O pintor não aderiu nem ao impressionismo, nem ao Brasil e em São Paulo expôs 52 obras de sua
ao divisionismo, e manteve neste quadro um jogo autoria entre as quais La Faiseuse d’Anges (Roma,
delicado de pequenas pinceladas sutis e vibrantes, 1908). Entre 1905 e 1911, graças à regulamentação
para sugerir uma impressão mais realista. jurídica própria e a figura de José de Freitas Valle,
foram incorporadas ao patrimônio da Pinacoteca
Em Três mulheres na igreja, de W. Leibl16, a fortuna 33 pinturas sempre com iniciativa do governo
crítica desta obra comparou-a em relação aos Estadual de São Paulo. O tríptico La Faiseuse
detalhes à obra de Emile Zola. Neste temos d’Anges foi uma delas, adquirida por uma soma
representadas três mulheres na igreja em primeiro bastante elevada, passando a integrar o acervo da
plano – uma jovem, uma madura e outra mais Pinacoteca do Estado a partir de 1911. A obra foi
idosa. Assim como na obra de Weingärtner, é a objeto de diversos artigos publicados na imprensa
representação simbólica do tempo que passa e das como a reportagem : Exposição de Arte no Diário
fases da vida. As três mulheres têm expressões Popular em 28 de dezembro de 1910 e no Estado
do rosto, vestimentas e posições de oração de São Paulo nesta mesma data de um autor
distintas. No caso do tríptico, temos a mesma desconhecido na parte Arte e Artistas.
mulher representada também em posições, idade
e expressões diferentes. Em uma seqüência de fatos, o tríptico cria uma
narrativa: na primeira parte, à esquerda, o artista
Apesar de não ser a obra de Liebl um tríptico como aborda o que poderíamos chamar, na falta de
é o caso de Weingärtner, a ligação mais sólida entre palavra melhor, a fase da sedução, fazendo
as obras dá-se pela tríade de mulheres. Na obra referência ao Fausto de Goethe; na parte central,
do austríaco Gustav Klimt denominada Les trois revela a transcendente melancolia da mãe no
âges de la femme, de 1905, as representações são momento da entrega do filho, e por último, na
sintéticas e de um decorativismo geométrico. O terceira parte do quadro, à direita, as características

559
Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

essenciais simbolicamente representadas do ato conciliou engajamento artístico e social, jogando


do infanticídio - a nuvem de querubins saindo do com a noção de decadência. A primeira ligação
forno e o dinheiro recebido. mais pertinente entre as três obras é a forma física
de representação, o tríptico, mas também o fato
Na trajetória de Weingärtner anterior a esse tríptico, de trazer uma narrativa com um fundo social.
não encontramos elos sólidos com qualquer motivo
relacionado a esse tema. Numa carta enviada por Na primeira parte do tríptico, observamos a
Pedro Weingärtner a Joaquim Nabuco, o artista representação da sedução. Nela temos no plano
anuncia que fez um quadro grande, um tríptico, de fundo uma evidente ambientação de festa pagã,
intitulado Chez la faiseuse d’anges, de 4,20m x o carnaval; em primeiro plano, duas mulheres
2,20m. Weingärtner diz que se inspirou em um fait descem de uma carruagem e se dirigem à entrada
divers ocorrido em Paris. É pertinente salientar que de um edifício, provavelmente a uma festa privada.
o título da obra refere-se ao aborto, praticado Em segundo plano, uma figura masculina acena
sobretudo por parteiras, então popularmente com um chapéu para a primeira mulher que está
denominadas faiseuses d’anges na França. descendo da carruagem. Atrás deste personagem,
vemos abaixo somente a cabeça de outro
Pedro Weingärtner redefine o tema do infanticídio personagem masculino, em atitude que sugere
baseado nesse fait divers, com originalidade e estar espiando o acontecimento.
ponto de vista particular. Analisando o formato do
quadro de Weingärtner, salientamos primeiramente Nessa parte da obra, Weingärtner cita a obra
sua forma de tríptico. No catálogo da Exposição Fausto, de Goethe. O pintor se coloca na posição
Universal de 1900 em Paris, inúmeros são os de explorador desse tema, e se aventura num
pintores que apresentaram obras nesse formato. território de diálogo entre a pintura e a literatura.
Na obra de artistas contemporâneos a Weingärtner, Assim como Weingärtner, outros pintores
como o pintor françês Jean Geoffroy (1853-1924), recorreram a essas mesmas referências no final
podemos encontrar a mesma forma de do século XIX, talvez porque a lenda de Fausto
representação em tríptico, mas com um tema representasse a luta em que eles mesmos estariam
oposto. Esta obra está localizada no Musée de engajados. A relação proposta pelo pintor entre o
l’Assistance Publique de Paris e retrata o seu personagem e a Margarida de Goethe remete
aleitamento dos recém-nascidos, relacionado à ao vasto campo de relações entre as artes plásticas
grande taxa de mortalidade infantil em Paris no e a literatura.
começo do século XX. No quadro, encomendado
para o Hospital Laborisière, em 1908, Geoffroy Na edição de Fausto publicada em Paris em 1828,
homenageia o dispensário da Gota de Leite, há dezessete litografias de Eugène Delacroix
fundado em Bellevile pelo Dr. Gaston Variot, para (1798-1863) que a ilustram. Ao relacionarmos a
ensinar às mulheres das camadas populares os litografia de 1827 intitulada Fausto tentando seduzir
métodos modernos de higiene dos recém-nascidos. Margarida com a obra de Weingärtner, notamos
Esses métodos exaltam os valores de uma que Delacroix mudou a cenografia: Mefistófeles
representação democrática, igualitária, progressista está ausente neste curto encontro de Fausto e
e científica, valorizando a maternidade. Margarida - ele está chegando da igreja, onde
acabou de escutar a confissão de Margarida.
Outro tríptico, de autoria de Léon Fréderic (1856- Weingärtner, assim como Delacroix, quis
1940), é uma obra de vertente social denominada representar o episódio mais conhecido de Fausto,
Les âges de l’ouvrière e pode ser igualmente o de sua paixão por Margarida, quando, tocado
comparado ao de Weingärtner. O pintor, que não por sua beleza e virtude, pede a Mefistófeles (o
não hesita em sua obra de recorrer à forma antiga diabo) para ajudá-lo a conquistá-la.
do tríptico, tratou na composição,os modelos como
retratos, desconsiderando o caráter individual em A parte central do tríptico apresenta um espaço de
relação ao caráter da linha das reivindicações interior mobiliado e com dois personagens em
sociais do fim do século XIX. A poesia da miséria, destaque. A hierarquia das posições também é
da resignação, da cumplicidade silenciosa e do evidente, a esquerda temos a mãe com a criança
dever em atos de heroísmo escondidos. Essa obra no colo, com seu vestido elegante, apoiando seu
se encontra no Museu D’Orsay, em Paris. cotovelo em uma mesa e com o olhar perdido em
direção oposta à outra mulher. Ao lado desta que
Portanto, em Chez la faiseuse d’anges, o se pode denominar ‘Mulher de Luvas’, dita a
excepcional dá-se pelo fato de que podemos inserir parisiense, temos um banco com um lenço e uma
o quadro não somente em um debate moralista, carteira cheia. A outra mulher em postura decidida,
mas igualmente científico dessa época. O artista está em um segundo plano e claramente aguarda

560
As influências na obra de Pedro Weingärtner (1853-1929)

a mãe com uma das mãos apoiada na cintura. Na Notas


cadeira vemos uma mamadeira, um chale e uma
1
tijela. Estes elementos, foram dispostos pelo pintor Arquiteta e Urbanista pela Universidade Federal de
Pelotas-RS-UFPel, Mestre em história da Arte pela
pois são necessários à interpretação do quadro.
UNICAMP, Diplôme de Recherche Appliquée de L’École
Ao invés de esconder, propositadamente estão à du Louvre (mestrado) e Doutoranda pela UNICAMP-
frente dos nossos olhos e é impossível não História da Arte sob a orientação do Prof.Dr. Jorge Coli.
percebê-los. 2
Pedro Weingärtner era filho de imigrantes alemães. Sua
formação dá-se então primeiramente com o pai, o irmão,
Weingärtner, constrói uma ambientação que remete Inácio Weingärtner,c om o português Araújo Guerra e com
a pintura de gênero holandesa do século XVII, o pintor Delfim Câmara entre 1870 e 1872. Em 1877,
através de uma representação do íntimo e da vida dispondo de recursos financeiros decide partir para a
doméstica. A melancolia representada na Europa. Em 1878, embarcou para a Alemanha. Em
Hamburgo, matriculou-se na Escola de Arte de Baden, na
expressão da mãe remete aos pensamentos do
cidade de Karlsruhe, em outubro de 1878. Nessa escola,
passado, a primeira parte do tríptico (sedução), a Pedro ingressou na turma do Prof. Theodor Poeckh e após
miséria e a idéia de decadência que subtende o na de Ernest Hildebrandt. Em outubro do ano seguinte já
olhar moral posto pela própria sociedade da época. era admitido na Real Academia de Belas Artes de Berlim.
Paris e especialmente a academia Julien atraem-o de 1882
Na terceira parte do tríptico de Weingärtner coloca a 1884, antes de se fixar em Roma, subsidiado por D. Pedro
em primeiro plano, plátanos europeus e outros dois II. Dois professores o orientaram durante sua estada na
tipos de plantas comuns existentes na época na França: Tony Robert-Fleury (1837-1912) e Adolphe
Bouguereau (1825-1905). Sua transferência para a Itália
cidade de Paris são representadas. Em segundo
deve ter se verificado durante os primeiros meses de 1886.
plano, temos a figura da criminosa contando Daí por diante Roma se tornará sua residência fixa, embora
moedas na mesa à sua frente. Ela se volta para temporariamente se ausente do ateliê para breves
trás e se surpreende com uma nuvem de anjos excursões a Pompéia, Herculano, Nápoles; para passar o
que saem do forno. verão em Antícoli Corrado, com o seu colega e amigo
Barbasan, ou para mais demoradas viagens ao Rio Grande
Salientam-se as afinidades entre as faces desta do Sul e exposições em São Paulo e no Rio de Janeiro.
infanticida de Weingärtner e da Medusa decapitada Durante cerca de três anos, entre 1891 e 1893, foi professor
em cima de uma mesa, de autoria de Rubens, hoje de desenho figurado na Escola Nacional de Belas Artes,
no Rio de Janeiro, depois retornou a Roma, cidade onde
no Kunsthistorisches Museum, em Viena. A passou a maior parte da vida. Em 1920, volta para o Rio
iconografia que também seria de uma mulher Grande do Sul. Viveu os últimos anos de sua atividade em
comum da época,nos parece ter sido reutilizada Porto Alegre, onde realizou mais duas exposições na cidade
pelo pintor, ligando-se às idéias associadas ao no ano de 1925 e faleceu em 1929. A obra de Pedro
maléfico e o crime. Assim, seria possível talvez ter Weingärtner não possui numerosos estudos, praticamente
sido a finalidade do pintor em mostrar uma certa seu principal biógrafo - Ângelo Guido, foi quem mais tratou
erudição em termos de técnica e referência aos de recolher fontes primárias. Porém, não fez análises da
obra e nem a relacionou com fatos sociais, tornando-se
grandes ‘mestres’ da pintura. necessário um estudo mais aprofundado de sua obra.
3
Coli, Jorge. Como estudar a arte brasileira do século
Por ser um ato clandestino, o infanticídio era XIX? São Paulo: Editora Senac,2005.pg 17
praticado principalmente em lugares com 4
THIEME,Ulrich & BECKER,Felix. Allgemeines Lexikon
condições deploráveis, por pessoas incompetentes der bildenden Kunstler von der Antike bis zur
ou pela própria mãe, para escapar à rejeição da Gegenwart. Band 1-4 Leipzig : E. A. Seemann, cop. 1980-
sociedade ante a condição de mãe solteira, ou para 1989.Tomo XXXV pag. 292.
5
livrar-se de um filho gerado em relações de The Studio - Studio Talk . London Paris : The Studio:
Librairie Ollendorff ,1901. Pgs.137-38 pertencente ao
adultério. Sem dúvida, trata-se de uma escolha
acervo da Biblioteca do INHA-Institut National d’Histoire
de um emblema petrificante da morte que é dada de L’art, collection Jacques Doucet-Paris-França.
aos recém- nascidos através da combustão. 6
Atualmente, este quadro faz parte da coleção da APLUB
- Associação dos Profissionais Liberais Universitários do
O percurso do olhar do espectador, nesta obra, se Brasil, foi intitulado Ceifa em Antícoli Corrado.
torna uma aventura extraordinária onde o pintor, 7
The Studio - Quelques artistes italiens modernes. London
por meio da citação dos mestres que o precederam, Paris : The Studio: Librairie Ollendorff ,1901. p.162
8
transforma um tema mórbido em fascinante. MIGLIACCIO, Luciano. O século XIX. MOSTRA DO
REDESCOBRIMENTO, 2000, SÃO PAULO. Arte do século
Weingärtner nos instiga a uma profunda
XIX. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo: Associação
consciência da decadência, do fim do mundo, tão Brasil 500 anos Artes Visuais, 2000. p. 180.
forte na sensibilidade daquele começo do século 9
PANTORBA, Bernardino de. Mariano Barbasán. Madrid,
XX. 1939 (ed., Mariano Barbasán Lucaferri). PANTORBA,
Bernardino de. Mariano Barbasán. Edición crítica de
Manuel García Guatas. Zaragoza: CAZAR, 1984. Barbasán

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Oitocentos - Arte Brasileira do Império à Primeira República

10
teve sua formação na Academia de Bellas Artes de San Recentemente, este quadro foi exposto no Petit Palais;
Carlos de Valencia, onde se matriculou em 1880, mantendo cf. Exposition Sorolla et Sargent, peintres de la lumière,
una estreita relação com seus condiscípulos Joaquín au Petit Palais du 15 février au 13 mai 2007.
10a
Sorolla e Salvador Abril. Em 1887, mudou-se para Madrid Este quadro encontra-se em uma coleção particular e
onde realiza suas primeiras obras, pequenos quadros de somente tivemos acesso a imagem reproduzida em um
gênero. Em 1889 obteve uma pensão da Diputación de slide pertencente à documentação do MARGS-RS e
Zaragoza para completar sua formação na Academia através de uma entrevista com o Antiquarista Jorge Karam
Espanhola de Roma, decidindo estabelecer-se que já viu a obra e nos informou as dimensões do quadro.
11
permanentemente na Itália. Mesmo tendo um atelier em RAGO, Margareth. Amores Ilícitos na Paris de Émile Zola,
Roma, demorava-se longas temporadas todos os anos na in Revista de História e Perspectiva, Uberlândia, n.o 1
campagna romana, em Subiaco e Anticoli Corrado. Sua julho-dezembro, 1988. p. 15
12
pintura adquiriu uma difusão na Europa devido à RAGO, Margareth. Op cit. p.14
13
intervenção de marchants ingleses e alemães, assim como Ver Bíblia on-line sobre A casta Susana
pelas exposições realizadas em Berlim, Munique, Viena e http://www. o f i c i n a d e e m o c o e s . o r g . b r /
em Montevideo. Na América latina, mais precisamente em texto.asp?cod_testamento=1&cod_livro=34&capitulo=13
Montevidéo, chegou em 1912 para realizar duas exposições ou
individuais no Círculo de Bellas Artes. No entanto, sua obra http://www.insecula.com/contact/A009589.html
14
foi pouco conhecida na Espanha: apesar de uma ZOLA, Émile. Nana. São Paulo: Ed. Hemus,1982.
participação na Exposição Nacional de 1887, não retornou 15 Assiette au Beurre, n. 30 - 26 octobre 1901 por Kees
a expor em seu pa~is natal até seu regresso definitivo a Van Dongen. Ver em
Zaragoza, onde celebrou em 1923 uma mostra antológica http://www.assietteaubeurre.org/vdg/vdg_f1.htm Acesso em
no Centro Mercantil. Em 1925, sua obra póstuma foi 01 jul. 2008
16
exposta no Museo de Arte Moderno de Madrid, seguida, A evolução da pintura de gênero em Munich se deu
em anos sucessivos, por outras retrospectivas, organizadas principalmente graças a atividade de Wilhelm Leibl. O
pelo seu filho Mariano Barbasán Lucaferri. Seu estilo circulo de artistas de Leibl, possuiam tendências
destaca-se por um esplendoroso colorido e sensitiva realistas que emanavam da França com as
luminosidade, mediante una técnica de pincelada abreviada contribuições de Millet, Courbet e Manet. O grupo de
e de pequenos toques de cor, derivada do estilo de Fortuny Leibl se afastou nos anos 1880, mas influenciou a arte
e dos macchiaioli e pré-impresionistas italianos. em Munique nos anos de 1890. Sabe-se que
Weingärtner continuara a manter contato com a
Alemanha e estará tematicamente muito próximo deste
grupo de Leibl.

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