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Possidônio Cachapa
Mãe e filho abraçados, viram-no consumir-se aos gritos, cada vez mais negro
e disforme. Agradecidos por a casa ser longe das outras,amarram-lhe um
saco de pedras aos pés e mandaram-no para dentro do poço. Só descansaram
quando o jovem Vital mandou tapar de pedras o buraco infecto, inutilizado
pela chegada da água canalizada. A quem perguntava pelo pai, mandavam
dizer que se tinha pisgado com uma galdéria e que nunca mais dera notícias.
(CACHAPA, 1988, p. 18)
Essas memórias irrompem, surgem, não são buscada caracterizando nmémé e, além
disso, elas surgem voltadas à figura materna. Vital recorda a morte de seu progenitor que,
certa noite, fora pego por Vital violentando sua mãe. Em uma ação embebida no ódio, ele com
7 anos de idade, e, sobretudo, com complexo edipiano em curso, o filho bate em seu
progenitor com a lamparina. Essa ligação que Vital mantêm com a figura materna,
corroborada pela lembrança da morte do pai, são os “fios” que conduzem a memória no
romance de Cachapa. Outro aspecto interessante da obra do escritor português contemporâneo
são as inúmeras lacunas no enredo como, por exemplo, o porquê de Vital ter sido preso e/ou
como ele conseguira alcançar seu atual status dentro da prisão.
Tal como a memória que irrompe, a narrativa de Cachapa faz vários desvios como o
que ocorre já na primeira parte. O foco narrativo fica entre Sacha e José Augusto, mais
conhecido como Professor. Após, Sacha e Professor convivem durante um tempo estreitando
laços paternos até, enfim, a morte do Professor. Ainda, ele se desprende de ambos para
focalizar Marguerite e seu filho com Sacha, Le Petit Lapan, após a separação dramática de
ambos. A relação entre Sacha e o Professor é construída no romance por meio de encontros e
desencontros, mas desde o primeiro, em Falésias do Mar, em que Sacha fora passar suas férias
com a mãe Gracinha e seu atual padrasto Waldemar Guimarães.
O rapaz olhou para ele um breve instante, antes de baixar a cara e enxugar o
nariz à mão. Mas nessa fria fracção de segundo ele soube que o choro não
vinha de alguma queda fortuita, ou briga com outro. Era coisa de briga
consigo e queda profunda. (CACHAPA, 1998, p. 63)
Desde então, eles se encontram outras duas vezes: Uma no tribunal, assim que Sacha é
preso por matar Waldemar à dentadas, e no seu reencontro na França, quando Sacha vira
morador de rua. Sacha e o Professor compreendem, pela primeira vez, o significado das
palavras “pai” e “filho”. Essa relação, apesar de manter fortes laços de afeto, é rompida
constantemente, principalmente por Sacha. O segundo reencontro é o que estreita ainda mais
os laços: Waldemar Guimarães havia assassinado Gracinha em um acesso de ira na frente de
Sacha. O menino, já adolescente, não aceita a morte da mãe e, então, mata seu padrasto a
dentadas, a polícia conta que fora preciso muita força para separar o menino do corpo morto
da mãe. O Professor, advogado reconhecido por defender os que não tinham como pagar,
reconhece os “Olhos azuis” de Sacha.
Foi só quando viu o corpo, agora mais longo, mas mesmo assim enfezado, a
cruzá-lo no corredor do tribunal, os olhos azuis e sem expressão a contar as
lajes do pavimento é que soube afinal a História lhe estava destinada desde o
princípio. (CACHAPA, 1998, p. 81)
Essa marca dos “Olhos azuis” será recorrente no romance de Cachapa, inclusive como
forma de comprovar que o menino nascera com sorte. Seus olhos azuis serão o atrativo que
lhe concederam algumas “ajudas” ao longo da sua vida, em especial, quando estive em solo
estrangeiro, na França. Esse segundo reencontro é marcado pelo silêncio de Sacha, pelo luto
fechado, pela tristeza que se arrasta e o arrasta. O Professor tenta defender Sacha, mas o
tribunal é inflexível acerca do futuro do menino, só há uma possibilidade para que Sacha, o de
olhos azuis, seja liberto: Que José Augusto se responsabilize por ele, e assim acontece. Esse
(re) encontro entre Sacha e o Professor é marcado pela ferida que ambos carregam: a falta de
uma figura maternal. O tempo só reforça os laços que já tinham sido construídos entre os dois
no primeiro encontro em Falésias do Mar, local de memória que será marcado por outro
encontro, dessa vez entre Sacha e seu filho francês.
Tal luto pela figura ausente da mãe, o objeto faltoso freudiano, é compartilhado e
compreendido pelo professor pela morte de Munanga, sua mãe. Contudo, esse luto
compartilhado não é encerrado, mas transforma-se em fantasma que assombra ambos: Sacha e
Professor:
-Mãããããeeee...!
Esse grito rouco apanhou o Professor desprevenido. Vieram-lhe de novo à
memória as noites em que chamava pela mãe, mas só Munanga respondia ao
apelo. Até que se habituou e meteu a figura da sua amiga negra no lugar da
pálida mãe. (CACHAPA, 1998, p. 83)
O luto que gera esses fantasmas é objeto de pesquisa, em especial, do casal austríaco
Nicolas Abraham (1919-1975) e Maria Törok (1925-1998) que reatualizam os estudos de
Sigmund Freud (1856-1939) e Sádor Ferenczi (1873-1933). Esse luto indizível de Sacha e os
constantes sonhos com sua mãe, inclusive após a morte do Professor, geram esse fantasma
que só encerra seu ciclo de ritos exigidos quando Sacha consegue gravar os filmes do seu
projeto “Pornografia Maternal”.
A figura materna é um fantasma que ronda Sacha, mas é, também, sua tentativa de
fuga da crueldade do mundo ou da desumanidade. A perda da identidade tem duplo
significado, ela representa o documento, roubado junto de sua carteira, e perda da sua
identidade, marcando o início de sua degradação. Essa degradação é, também, marcada no
início da descrição de Sacha que dormira “como bicho”. Se na cadeia ele compreende que há
três grupos definidos: os fortes, os fracos e os protegidos, no submundo ele também
compreende esse substrato classificando-se como sub-humano e como rato de sarjeta. Sacha,
devido a perda da esposa Marguerite cai no que ele chama de “buraco” e, resgatando as visões
dantescas afirma que: “A minha descida aos infernos fez-se pelas escadas. E possivelmente
sem qualquer bilhete.” (CACHAPA, 1998, p. 146), escadas que o levam para o mais fundo
não apenas do metrô, mas também de si.
Envolto pelos moradores do subsolo, Sacha se depara, ainda, com sujeitos mais
desumanizados do que ele, sujeitos que roubam inclusive os “moradores do subsolo”: os
drogados. Ele, como forma de fugir do frio e de poder tornar a realidade menos dura ou mais
palpável, passa seus dias bebendo. “E foi assim, quase sem me dar conta, num entorpecimento
de álcool e frio crescente, que me tornei sub-humano. E que esqueci, por muito tempo, o
nome dos que me amaram” (CACHAPA, 1998, p. 148). Essa é uma das formas de sobreviver
e, talvez, preservar o que ainda resta de humano nele. Além de querer esquecer toda essa fase,
Sacha utiliza a bebida como forma de esquecer, como forma de atenuar sua queda, mas,
mesmo assim, consegue refletir sobre seus pares, sobre a comunidade subterrânea.
Será que eles podem falar? Quando falam alguém lhes ouve? Suas lembranças são
validadas? A desumanização a que passam não relembram a desumanização do genocídio do
povo judeu na Segunda Grande Guerra cujas lembranças são legitimadas? Cachapa (1998)
não questiona essas lembranças e esse testemunho, mesmo que ficcional, mas nos deixa a par
para pensarmos e inferirmos que essa comunidade subterrânea existe e que os motivos que os
levam a essa vertiginosa queda nem sempre ocorrem pelo vício de alguma droga, ilícita ou
lícita, mas principalmente de estrangeiros que perdem suas “identidades”, seus referenciais
em solo estranho e hostil. Retomo o questionamento de Ricoeur (2007) ao refletir acerca dos
escritos de Primo Levi ao pensar se é mesmo possível testemunhar a monstruosidade em grau
superlativo. A pergunta não tem uma resposta, é mais uma aporia acerca da memória e do
esquecimento, mas Cachapa traz as lembranças de Sacha entrecortadas com a narrativa do que
acontece com o Professor ainda em Portugal. Como descrever ou testemunhar o monstruoso
de forma fluída? Não é possível, é preciso tempo e distanciamento para que o leitor consiga
compreender a queda, ler um testemunho monstruoso advindo de um processo de
desumanização não pode ser um “grande soco” e, dessa forma, Cachapa nos traz “doses
homeopáticas” da queda e desumanização de Sacha.
Assim, as partes destacadas em itálico que “testemunham” e reverberam essas vozes
da comunidade subterrânea são comparadas com outro genocídio, amplamente divulgado e
recordado: aquele que instaura e legitima a “literatura de testemunho”. Assim, Sacha recorda
de uma senhora que lhe coloca 100 francos nas mãos, questiona o porquê dele estar ali e não
procurar emprego e então retira a nota de sua mão e critica os moradores de rua classificando-
os como apátridas que deveriam ser eliminados e sugere o uso da câmara de gás. Acerca da
memória traumática que Ricoeur (2007) afirma ser ela a mais rememorada, Sacha faz questão
de afirmar que não recorda de todos os dias, mas de pequenos lapsos de memória. Sendo
assim, a personagem ficcional de Cachapa não pode ser classificada como “testemunha”,
apesar de conseguir ser salvo, mas, utilizando a classificação de Primo Levi (2004), é um
afogado, visto que a queda vertiginosa bate em uma profunda pedra.
Não lhe vou falar muito do que foi a minha vida durante estes anos, porque
nem eu próprio tenho consciência (no sentido mais literal do termo). Terá
sido uma sucessão de carruagens esverdeadas a enfiarem-se, vertiginosas,
em corredores medonhos. Ou a procissão de deserdados que me
acompanhava; olhar incomodado das pessoas face aos meus cabelos
pestilentos e à minha barba crescida. (CACHAPA, 1998, p. 155)
A marcação de que Sacha não tem consciência literalmente dessa passagem evidencia
que os dias que se sucederam ele encontrava-se bêbado demais para compreender o que
ocorria. Mesmo assim, recorda que seus cabelos e barbas cresceram e tornaram-se pestilentos.
A falta de água e das condições mínimas de higiene faz com que sua queda se complete na
desumanidade, além disso, a reação das pessoas é sempre de incômodo. Nessa passagem de
lembranças de Sacha, há pequenas figuras que o auxiliam para que ele não perca por completo
sua humanidade. A primeira é Janine, menina de 11 anos, de origem cigana que se prostituía
na gare de Saint-Lazare. É Janine quem lhe empresta dinheiro para Sacha tomar banho. Nesse
instante Sacha afirma em seu relato que: “O cheiro a limpo acendeu-me as luzes vermelhas de
perigo (...) perante dois objectos a evitar; coisas que me poderiam tirar do entorpecimento (...)
Para já não falar das memórias que me poderiam despertar...” (CACHAPA, 1998, p. 163-
164). Outra figura é Michel, morador de rua que vira traficante e é a ponte a que o Professor
viaje para França em busca de Sacha.
Em meio aos substratos dessa comunidade submersa que vaga nos subsolo há sujeitos
perversos que roubam o pouco que cada um consegue nas esmolas diárias. Dos mais temidos,
Sacha cita a gangue do Kléber, uma gangue que faz arrastões constantes roubando a todos,
inclusive aos sub-humanos que vagam pelo metrô. Em uma das cenas a gangue tenta assaltar
Janine que se nega a entregar o pouco que carrega, como forma de represália a gangue leva o
filho de Janine, Pitoshe. Após a busca pelo menino, Sacha e Janine descobrem que o menino
fora morto e desde então Janine é “afogada” e torna-se o que Levi (2004) chama de
muçulmano, não ri mais, não tem mais a pouco e rara esperança que carregava.
Nesse mundo não há moral, não há coragem em defender os menos favorecidos, até
porque os menos favorecidos são eles próprios. Assim, Sacha conta no seu “diário”
improvisado uma vez que tentaram roubar as moedas que conseguira durante o dia todo.
Desta vez não era a temida gangue de Kléber, mas dois drogados que tremiam com a falta da
droga. Quando Sacha entrega suas poucas moedas, os assaltantes insistem para que ele
esvazie seus bolsos, mas Sacha não tem nada além das poucas moedas.
Sumiram-se os dois pelo corredor da direita. Por um momento, tudo ficou
em silêncio e eu recuperei a respiração que tinha deixado esquecida. Depois
ouviu-se um grito terrível, de mulher, e foi minha vez de fugir. Para fora,
para a superfície, onde a noite dominava e os prédios tudo envolviam.
(CACHAPA, 1998, p. 158)
Interessante notarmos que a fuga não é para as regiões mais baixas, para os fundos do
metrô, mas na verdade para a superfície. Retoma-se a reflexão que Sacha faz sobre essa
comunidade a que ele se inclui e cuja fé professada é apenas uma: a sobrevivência. Assim,
Sacha não pensara em salvar o mundo, mas em salvar sua própria pele fugindo. É, também, na
superfície que Sacha encontra o “poubelle” em que escreve os fade in e os fade out que opera
exatamente no aparecimento gradual, como memórias que irrompem a narrativa e o foco que
se centra no Professor e o fade out, seu desaparecimento. As memórias não se interligam, não
são lineares são, como podemos perceber, memórias. Quando fala sobre o caderno de notas
quase novo, com apenas duas folhas escritas, Sacha também reflete sobre a necessidade de
escrever e tentar descrever o processo de desumanidade a que passa e o período em que vive
com a comunidade subterrânea.
Há um tom melancólico na escrita de Sacha que escrevera para o Professor assim que
pode e logo após ter de volta sua humanidade pelos banhos que Janine lhe pagava. Contudo, o
professor vendera seu apartamento e fora morar em outro lugar, no quarto antigo do professor
um senhor de idade avançada promete ao antigo morador que reenviaria as cartas que
chegassem, contudo, basta o professor virar as costas para o atual morador lhe maldizer. As
cartas de Sacha chegam, mas assim que são depositadas são colocadas no lixo. O argumento
do morador atual é a vida desregrada do professor no meio das prostitutas a quem sempre
defendeu e onde ganhara seu apelido.
Ao saber da existência de Sacha ao defender Michel, o Professor decide que irá
resgatar, mais uma vez, seu filho de coração. De carro e com algum dinheiro no bolso parte
para a França, passa por Bordéus que conta com uma numerosa comunidade de portugueses
fugidos da Ditadura Salazariana. Nesse ínterim encontra Jean-Baptiste que cego lhe guia pelo
submundo de Paris. As buscas pelos substratos da cidade luz vão diminuindo a esperança do
Professor que, já com pouco dinheiro, percorre com o cego os hospitais em busca de Sacha. O
encontro entre Sacha e o Professor ocorre em um hospital em que Jean-Baptiste rodopia no rol
de entrada, chamando atenção dos guardas, escutando um barulho de vômito, o Professor
identifica a forma frágil de seu filho amado e ausente então: “E foi aí que José Augusto, dito,
o Professor, viu que segurava nos braços o corpo de Sacha. O-dos-Olhos-Azuis.”
(CACHAPA, 1998, p. 192).
Ambos retornam a Portugal, mas o Professor acaba morrendo por complicações de um
tumor. O pouco tempo que ambos tiveram serviu para Sacha se ressentir pelos anos perdidos
longe da figura paterna. Ainda, em um sonho recorda do enterro do Professor, contudo,
quando abre a tampa do caixão para ver a face do pai o que vê é a face de sua mãe, ou seja, o
fantasma da mãe ainda assombra a Sacha. O romance ainda envereda para a criação da
pornografia maternal e, após, focaliza na vida da ex-esposa de Sacha, Marguerite de Lys.
Marguerite é a última figura materna que conduz a trama de Cachapa, ela conta sua história
em forma de relato, desde a vida solitária com Edith, sua mãe que sofrendo de Alzheimer e
acaba explodindo a casa junto de Patrícia (a babá portuguesa) e arrancando os braços do filho
de Marguerite e Sacha.
Sacha tem acesso aos relatos de Marguerite ainda na cadeia e envia cartas à editora
para a autora que não se identifica. Após a morte da mãe, Edith, Marguerite muda-se para
Portugal e escolhe a praia de Falésias do Mar. No mesmo lugar em que Sacha e o Professor se
encontram, Sacha encontra seu filho e recorda do primeiro encontro com a velha figura
paterna. Essa memória é, também, mnémé, uma memória que surge, que irrompe e que não é
rememorada, buscada, mas surge “engatilhada” por algum fato ou, nesse caso, pelos lugares
de memória.
Considerações finais
Retomando Sarlo (2007) as memórias não são sempre boas e, ainda, algumas delas
não merecem ser relembradas, mas sublimadas na tentativa do esquecimento. Será, mesmo,
que escrever é uma forma de lembrar ou, então, é uma forma de esquecer?
Referências
ABRAHAM, Nicolas; TÖROK, Maria. A casca e o núcleo. Trad. Maria José R. Faria
Coracini. São Paulo: Escuta, 1995.
PLATÃO. Fedro. Trad. Maria Cecília Gomes dos Reis. São Paulo: Penguin Classics
Companhia das Letras, 2016.
SARLO, Beatriz. Tempo passado: Cultura da memória e guinada subjetiva. São Paulo:
Companhia das Letas; Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2007.