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0 curso "Introdução à filosofia",


publicado agora pela primeira vez no
Brasil, foi ministrado em 1928-29, na
Universidade de Freiburg.

A primeira seção desenvolve a diferença


entre ciência e filosofia a partir da
essência da verdade. A positividade da
ciência e sua verdade fundamentam-se
na transcendência como estrutura
essencial do ser-aí, a saber, como a
manifestação do ente que permite ser.
A segunda seção discute a relação entre
filosofia e visão de mundo nas
determinações fundamentais do
ser-no-mundo, da transcendência e da
compreensão do ser. Da falta de
proteção e do ser-aí inconstante na
renúncia à supremacia do ente
resultam duas possibilidades básicas
de visão de mundo: aquela como
salvação (mito, religião] e aquela como
a titude..com suas formas de
degeneração. A filosofia, conforme
conclui Heidegger, está contida como
atitude num notável sentido çla visão de
mundo: deixar acontecer eform ar a
transcendência (ser-no-mundo) como
liberdade.
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA
MARTIN HEIDEGGER

INTRODUÇÃO À FILOSOFIA

Tradução
Marco Antonio Casanova

Revisão de tradução
Eurides Avance de Souza

Revisão técnica
Tito Lívio Cruz Romão

,1
wmfma rtinsfontes
SÃO PAULO 2009
Esta obra foi publicada originalmente em alemão com o título
EINLEITUNG IN DIE PHILOSOPHIE
por Verlag Vittorio Klostermann, Frankfurt, Alemanha, 1996.
Copyright © Vittorio Klostermann GmbH - Frankfurt am Main.
Copyright © 2008, Editora WMF Martins Fontes Ltda.,
São Paulo, para a presente edição.

V. edição 2008
2a. edição 2009

Tradução
MARCO ANTONIO CASANOVA

Revisão da tradução
Eurides Avance de Souza
Tito Lívio Cruz Rotnão
Acompanhamento editorial
Luzia Aparecida dos Santos
Revisões gráficas
Luciana Veit
Marisa Rosa Teixeira
Produção gráfica
Geraldo Alves
Paginação/Fotolitos
Studio 3 Desenvolvimento Editorial

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Heidegger, Martin, 1889-1976.
Introdução à filosofia / Martin Heidegger; tradução Mar­
co Antonio Casanova ; revisão de tradução Eurides Avance
de Souza ; revisão técnica Tito Lívio Cruz Romão. - 2' ed. -
São Paulo : Editora WMF Martins Fontes, 2009.
Titulo original: Einleitung in die Philosophie.
Bibliografia.
ISBN 978-85-7827-218-0
1. Filosofia - Introdução 2. Filosofia e ciência I. Título.

09-10736______________________________ _______CDD-101
índices para catálogo sistemático:
1. Filosofia : Introdução 101

Todos os direitos desta edição reservados à


Editora WMF Martins Fontes Ltda.
Rua Conselheiro Ramalho, 330 01325-000 São Paulo SP Brasil
Tel. (11) 3293.8150 Fax (IV 3101.1042
e-mail: info@iomfmartinsfonies.com.br http://www.wmfmartinsfontes.com.br
ÍN D IC E

Apresentação à tradução brasileira................................................................ XI

INTRODUÇÃO
A tarefa de uma introdução à filosofia

§ 1. Ser homem já significa filosofar........................................................ ]


§ 2. Introduzir significa: pôr o filosofar em curso.................................. 4
§ 3. Pré-compreensão da filosofia............................................................ 6
§ 4. Como a filosofia se relaciona com a ciência, com a visão de mun­
do e com a história?............................................................................ 9

PRIMEIRA SEÇÃO
FILOSOFIA E CIÊNCIA

Primeiro capítulo
O que significa filosofia?
§ 5. A filosofia é uma ciência?.................................................................. 15
§ 6. As concepções antiga e moderna de filosofia................................. 20
§ 7. O termo “filosofia”............................................................................... 22

Segundo capítulo
A pergunta sobre a essência da ciência
§ 8. Pergunta provisória sobre a essência da ciência a partir de sua crise 28
a) A crise na relação do indivíduo com a ciência........................... 29
b) A crise da ciência em vista de sua posição no todo do ser-aí
histórico-social................................................................................ 33
c) A crise na estrutura interna da própria ciência......................... 37
§ 9. Nova meditação sobre a essência da ciência................................. 42
a) Ciência como conhecimento metódico, sistemático, exato e
universalmente válido.................................................................... 45
b) Ciência e verdade —adaequatio intellectus ad rem.................... 47
§ 10. Verdade como verdade proposicional............................................... 48
a) O conceito tradicional de verdade............................................... 52
b) Verdade como caráter de uma proposição: ligação de sujeito e
predicado......................................................................................... 53
c) Os primórdios do problema da verdade na Antiguidade.......... 59
§11. Sobre o problema da relação sujeito-objeto. Relação predicativa
e relação veritativa............................................................................... 64

Terceiro capítulo
Verdade e ser
Da essência originária da verdade
como desvelamento
§ 12. A essência originária da verdade..................................................... 71
a) Retrocesso por detrás da relação sujeito-objeto: o ser junto a... 74
b) O ser junto a... como determinação existencial do ser-aí......... 75
c) O anunciar-se do ente em contextos conjunturais.................... 78
d) Verdade como desvelamento. Modos diversos de manifesta­
ção do e n te ...................................................................................... 81
§ 13. Modo de ser e manifestação. Diversos modos de serdo ente....... 87
a) Subsistir-por-si-conjuntamente- ser-um-com-o-outro.............. 90
b) Ser-um-com-o-outro: o comportar-se de muitos em relação ao
m esm o.............................................................................................. 93
c) M esmidade...................................................................................... 97
d) O mesmo como algo compartilhado............................................ 102
e) Participação significa compartilhamento?.................................. 106
f) Do deixar-ser as coisas................................................................... 107
§ 14. Compartilhamos o desvelamento do e n te ....................................... 111
a) Ser-um-com-o-outro é um compartilhamento da verdade....... 113
b) O desvelamento do ente por si subsistente ............................... 115
c) O pertencimento da verdade ao ser-aí não implica que a ver­
dade seja algo “subjetivo”.............................................................. 119
d) Ser junto ao ente por si subsistente e ser-um-com-o-outro per­
tencem co-originariamente à essência do ser-aí........................ 123
e) O ser descobridor do ser-aí. Verdade do ente por si subsistente
e o ente que está à mão como o ter-sido-descoberto................ 127

Quarto capítulo
Verdade - Ser-aí —Ser-com
15 .O ser descobridor do ser-aí das crianças e do ser-aí dos primór­
dios da hum anidade............................................................................ 129
l(>. O ter-sido-descoberto do ente por si subsistente e a manifes­
tação do ser-aí...................................................................................... 133
^ 17. A manifestação doser-aí qua ser-aí.................................................... 140
18. Ser-aí e ser-com.................................................................................. 145
t) 19. A monadologia de Leibniz e a interpretação do ser-um-com-o-
outro..................................................................................................... 150
20. A comunidade sobre a base do um-com-o-outro............................ 154

Quinto capítulo
O âmbito essencial da verdade
e a essência da ciência
t) 21. Resumo de nossa interpretação da verdade.................................... 159
22. A determinação da essência da ciência a partir do conceito ori­
ginário de verdade............................................................................... 167
a) Ciência, um tipo de verdade?...................................................... 169
b) Ser-aí pré-científico e ser-aí científico........................................ 171
c) Verdade científica.......................................................................... 176
^ 23. Ciência como postura fundamental possível da existência hu­
mana. píoç Of,(j)pr|xiKÓç - vita contemplativa.................................. 178
^ 24. A implicação recíproca originária existente entre teoria e prática
no Orcoprív enquanto ato de tornar manifesto o e n te ................... 185
íj 25. Construção da essência da ciência.................................................. 191
a) Ser-na-verdade em virtude da verdade........................................ 191
b) A ação primordial. O deixar-ser o e n te ....................................... 196
26. A mudança da compreensão de ser no projeto científico. A nova
determinação do ente como natureza.............................................. 198
a) O caráter prévio da compreensão de ser em relação a todo
conceber.......................................................................................... 203
b) Mudança da compreensão de ser: um exemplo da física......... 207
c) A positividade da ciência. O projeto prévio, não-objetivo, de-
marcador do campo da constituição de ser................................ 209

Sexto capítulo
Sobre a diferença entre ciência e filosofia
§ 27. O projeto da constituição ontológica do ente como possibilita-
ção interna da positividade, isto é, da essência da ciência. Com­
preensão de ser pré-ontológica e ontológica.................................... 212
§ 28. Verdade ôntica e ontológica. Verdade e transcendência do ser-aí 217
§ 29. Filosofar como transcender faz parte da essência do ser-aí humano. 229
§ 30. Os diferentes âmbitos de questionamento da filosofia e da ciência 232
§31. Um resumo do que foi anteriormente visto. Compreensão de ser
como fato originário do ser-aí: a possibilidade da diferença ontoló­
gica. A diferença ontológica e a diferença entre filosofia e ciência 236

SEGUNDA SEÇÃO
FILOSOFIA E VISÃO DE MUNDO

Primeiro capítulo
Visão de mundo e conceito de mundo
§ 32. O que é visão de m undo?.................................................................. 245
a) A expressão “visão de mundo” ..................................................... 246
b) Interpretações da visão do mundo: Dilthey - Jaspcrs - Scheler 251
§ 33. O que significa mundo?..................................................................... 255
a) O conceito de mundo na filosofia antiga e no cristianismo pri­
mitivo................................................................................................ 257
b) O conceito de mundo na metafísica escolar............................ 261
§ 34. O conceito kantiano de m u n d o ........................................................ 265
a) O conceito kantiano de mundo na Crítica darazão pura.......... 270
b) Excurso: a fundamentação kantiana da m etafísica.................... 275
a) As teses centrais....................................................................... 276
P) A fundamentação...................................................................... 281
c) Excurso: a dialética kantiana........................................................ 293
il) () conceito kantiano de “ideia” .................................................... 296
<■) Mundo como idéia da totalidade dos fenômenos: como corre­
lato do conhecimento humano finito.......................................... 306
I) Idéia e ideal. A determinação plena do conceito de mundo
como ideal transcendental............................................................ 308
g) A significação existencial do conceito de m u n d o .................. 316

Segundo capítulo
Visão de mundo e ser-no-mundo
t) 35. Ser-aí como ser-no-mundo................................................................. 324
l(i. Mundo como “jogo da vida”.............................................................. 329
a) O ser-no-mundo como jogo originário da transcendência........ 331
l>) Transcendência qua compreensão de ser como jo g o ................ 335
c) A correlação entre ser e pensar. Seu estreitamento na inter­
pretação “lógica” da compreensão de se r.................................... 337
t) 17. Obtenção de uma compreensão mais concreta da transcendência 344
a) O caráter-de-si-mesmo (em virtude de si mesmo) como deter­
minação ontológica do ser-aí. O ser-entregue como determi­
nação intrínseca ao ser-no-mundo............................................... 344
b) Estar entregue como o ter-sido-jogado........................................ 350
c) Facticidade e ter-sido-jogado. Nulidade e finitude do ser-aí.
Dispersão e singularização............................................................ 354
d) A ausência de apoio do ser-no-mundo........................................ 361
38. O caráter estrutural da transcendência............................................ 362
a) Retrospectiva do caráter estrutural conquistado pelo ser-no-
mundo .............................................................................................. 362
b) Visão de mundo como manter-se no ser-no-mundo, como apoiar-
se no ser-no-mundo........................................................................ 366

Terceiro capítulo
O problema da visão de mundo
39. Questões fundamentais referentes ao problema de princípio in­
trínseco à visão de m undo................................................................. 369
a) Visão de mundo como ser-no-mundo faticamente assimilado ... 369
b) O conceito de visão de mundo em D ilthey............................... 371
§ 40. Como a visão de mundo se relaciona com ofilosofar?.................. 379
a) A forma vulgar do problema: a filosofia pode e deve formar
uma visão de mundo científica?.................................................. 379
b) Sobre a historicidade das visões de m u n d o ............................... 381
§ 41. Duas possibilidades fundamentais da visão de m undo................. 382
a) Visão de mundo no mito: concessão de abrigo como apoio ante
a supremacia do próprio e n te ....................................................... 382
b) Degeneração da concessão de abrigo: visão de mundo trans­
formada em estrutura de funcionamento.................................... 388
§ 42. A outra possibilidade fundamental: visão de mundo como postura 392
a) A visão de mundo como postura e a confrontação com o ente
daí em ergente................................................................................. 392
b) Visão de mundo como postura e a mudança da verdade como
t a l ..................................................................................................... 397
c) Formas de degeneração da visão de mundo como postura.... 399
§ 43. Da relação interna entre a visão de mundo como postura e a fi­
losofia.................................................................................................... 403
a) Sobre a problemática dessa relação............................................. 403
b) Filosofia é a visão de mundo como postura em um sentido
insigne.............................................................................................. 406
§ 44. Na visão de mundo como postura irrompe o problema do ser.... 409
a) O despertar do problema do ser a partir da visão de mundo no
mito como concessão de abrigo................................................... 411
b) Formas históricas da formação da filosofia a partir da visão de
mundo como concessão de abrigo e como postura................... 413

Quarto capítulo
A conexão entre filosofia e visão de mundo
§ 45. O problema do ser e o problema do m undo.................................. 419
a) A pergunta acerca do ser como pergunta acerca do fundamen­
to e o problema do mundo............................................................ 420
b) No problema do ser e no problema do mundo a transcendên­
cia ganha a forma de uma elaboração conceituai..................... 423
§ 46. Filosofia como postura fundamental: deixar acontecer a trans­
cendência a partir de seu fundamento............................................. 425

Posfácio da edição alemã............................................................................... 431


A P R E S E N T A Ç Ã O À T R A D U Ç Ã O B R A S IL E IR A

A recepção do pensamento de um filósofo é sempre marcada


por circunstâncias históricas que definem os acentos regionais e
Iruçam ao mesmo tempo o perfil geral das compreensões de sua
obra. Em verdade, não é difícil perceber como épocas e lugares es­
pecíficos tendem a apresentar uma grande homogeneidade inter-
protativa que reflete em muito o modo como uma determinada
vertente de leitura foi aos poucos se estabelecendo e sedimentan­
do. Esse é um fato hermenêutico fundamental, que pode ser cons­
tatado a partir dos desdobramentos do pensamento de qualquer fi­
lósofo: Platão ou Aristóteles, Kant ou Hcgel, Husserl ou Wittgen-
slein. No entanto, se é correto afirmar que ele é válido para todo
e qualquer filósofo, não é menos correto notar que ele possui uma
vigência paradigmática no caso do pensamento heideggeriano.
Quatro me parecem ser aqui as razões gerais para tanto. Em pri­
meiro lugar, como as preleções heideggerianas da década de 1920
só começaram a ser publicadas por volta do final dos anos de 1970
com o advento da Gesamtausga.be [Obra completa], foi só a partir
dessa época que os intérpretes de Heidegger se viram em condi­
ções mais favoráveis para uma apreensão adequada do teor próprio
ao projeto filosófico em jogo em Ser e tempo e para uma reconstru­
ção efetiva do longo labor conceituai que aí encontra o seu ponto
de culminação. Em segundo lugar, as diversas correntes que foram
surgindo no século XX a partir de um diálogo direto com a filoso­
fia heideggeriana trouxeram consigo modos característicos de se
apropriar de elementos de seu pensamento. Assim, é possível falar,
XII Introdução à filosofia

por exemplo, de uma leitura fenomenológica (Merleau-Ponty, Held,


Sallis, Figal), existencialista (Sartre), desconstrucionista (Derrida,
Krcll), pragmatista-wittgensteiniana (Dreyfus, Haugeland, Bran-
don) e histórico-crítica (Põggeler, Gethmann-Siefert) da obra de
Heidegger. Em terceiro lugar, a difícil imbricação entre o envolvi­
mento político de Heidegger com o nacional-socialismo e as deter­
minações fundamentais de seu pensamento sempre funcionaram
uma vez mais como um mobilizador de novas interpretações. Por
fim, a mudança radical de estilo presente no período posterior à
assim chamada viragem [die Kehre] do pensamento heideggeriano
no interior da década de 1930 também contribuiu de maneira exa­
cerbada para a produção de formas diversas de recepção de sua fi­
losofia1. Desses quatro fatores decisivos para a recepção da obra de
Heidegger, dois interessam-nos aqui de maneira particular porque
dizem respeito diretamente ao modo como a interpretação do pen­
samento heideggeriano foi se constituindo no Brasil e porque de­
sempenham um papel determinante em algumas posições de prin­
cípio assumidas na presente tradução da preleção do semestre de
inverno de 1928-1929, ministrada por Heidegger na Universidade
Albert Ludwig de Freiburg. Esses dois fatores são aqui a história
da publicação de sua obra e a mudança de estilo característica dos
textos heideggerianos a partir da década de 1930.
A dinâmica de publicação das obras de Heidegger na Alemanha
possui uma correlação direta com o movimento de tradução des­
sas obras em português. Exatamente como a maior parte das pre­
leções dos anos de 1920 só começaram a ser publicadas muito re-

1 Falo aqui intencionalmente em mudança de estilo, porque não me parece ha­


ver nenhuma grande quebra temática no pensamento heideggeriano que nos per­
mitisse falar de um Heidegger 1 e um Heidegger 2. Como Hans Georg Gadamer
escreve cm um texto em homenagem ao aniversário de 75 anos dc Heidegger, o
que muda na viragem é apenas o ponto de partida da questão do ser: “Na viragem
parte-se do ser, ao invés de se partir da consciência que pensa o ser ou do ser-aí
para o qual está em jogo o seu ser, que se compreende em vista de seu ser e cui­
da de seu ser." (H. G. Gadamer, "Martin Heidegger 75 Jahrc”, in: Gesammelte
Werke 3, p. 191)
Apresentação à tradução brasileira XIII

centemente em alemão e como o corpo dos textos editados em


vida pelo próprio Heidegger compreende quase que exclusivamen­
te os textos do período posterior à década de 1930, as traduções
brasileiras e portuguesas de Heidegger se restringiram durante
muito tempo a essas obras. A primeira tradução em português de
uma preleção da década de 1920 foi feita por mim mesmo em
2003. Trata-se da preleção de inverno de 1929-1930 intitulada Os
conceitos fundamentais da metafísica: mundo —finitude —solidão.
Além dessa preleção, não temos senão o presente texto da Introdu­
ção à filosofia e, se alargarmos um pouco mais o período de tempo
até o início da década de 1930, a recém lançada tradução da pre­
leção de verão de 1931 Metafísica de Aristóteles Q 1-32. Um tal fato
poderia dar a impressão de não passar de uma curiosidade históri­
ca, sem qualquer implicação mais profunda para as compreensões
específicas do pensamento heideggeriano. No entanto, esse não é
aqui de modo algum o caso por uma peculiaridade desse pensa­
mento. Diferentemente de alguns outros pensadores, cuja obra de
juventude desempenha um papel restrito na constituição da obra
tardia, Heidegger pressupõe constantemente contextos teóricos
inicialmente desdobrados nessa primeira fase de sua filosofia em
formulações posteriores que muitas vezes parecem incompreensí­
veis à primeira vista. Há, por exemplo, uma clara ressonância en­
tre as noções inicialmente desenvolvidas de projeto de mundo [Wel-
tentwurf], descerramento [Erschlossenheit] e compreensão de ser
| Seinsverstandnis] e as noções posteriores de abertura de ser [Sein-
soffenheit], clareira [Lichtung] e acontecimento apropriativo [Ereig-
nis]; uma ressonância que precisa ser considerada de maneira
atenta, se quisermos escapar de uma simples repetição irrefletida
de expressões heideggerianas que só compreendemos sob a condi­
ção de ninguém nunca nos perguntar o que elas propriamente sig­
nificam. Dito de maneira mais explícita, um acesso direto ao pe-

2 Há ainda uma tradução portuguesa do ensaio póstumo O conceito de tempo


(1924) e as traduções de alguns textos curtos da primeira fase do pensamento de
Heidegger.
XIV Introdução à filosofia

ríodo posterior à viragem me parece tender 3a provocar alguns efei­


tos indesejáveis. Ou bem um mimetismo quase exotérico de ex­
pressões em si extremamente complexas, ou bem uma apropriação
por assim dizer “livre” de densas construções filosóficas. Alguém
poderia certamente apontar para o fato em si correto de Ser e tem­
po ter sido publicado há mais de vinte anos no Brasil. Todavia, o
que me parece ter acontecido muito freqüentemente com a obra
central do pensamento heideggeriano é, por um lado, uma certa
contaminação pelo pensamento tardio de Heidegger e, por outro,
uma concentração na experiência existencial contida em alguns
parágrafos do livro. E é nesse ponto também que as preleções da
década de 1920 podem desempenhar um papel importante. Con­
tra a predominância da linguagem aterminológica do segundo Hei­
degger, elas funcionam como uma espécie de elemento de equilí­
brio que permite a reconstrução das tênues linhas argumentativas
e a rearticulação de conceitos em seu horizonte originário de apa­
rição. Contra o acento na interpretação existencial de Ser e tempo,
elas revelam o interesse heideggeriano primordial pela própria
constituição dos espaços de manifestação dos entes, pelo surgi­
mento de visões de mundo, pela gênese de ontologias. Bem, mas
em que medida esse fato repercute em decisões relativas à presen­
te tradução?
Não posso naturalmente considerar palavra por palavra as posi­
ções que foram sendo tomadas durante toda a presente tradução.
O que me interessa aqui é apenas tratar da postura geral assumi­
da em relação ao texto de Heidegger, do realce dado às constru­
ções que envolviam o termo “ser” e da opção de tradução de Da-
sein por “ser-aí”. No que concerne à postura geral, há muito tem­
po venho procurando desenvolver um modo de tradução da obra
heideggeriana que consiga escapar do risco em muitos casos evi­
dente de inflacionar o tom por vezes “hermético-encantatório” do

3 Falo aqui intencíonalmente de uma “tendência” porque esse fato não impe­
diu o surgimento de trabalhos cuidadosos e extremamente relevantes sobre o pen­
samento de Heidegger no Brasil e no exterior.
Apresentação à tradução brasileira XV

texto e evitar, assim, uma repercussão indesejada desse tom sobre


passagens onde a contenção seria muito mais adequada. Não há a
meu ver nada pior para a interpretação da filosofia de Heidegger
do que a homogeneização da obra heideggeriana como um todo a
partir do tom de certas passagens específicas. Essa é, aliás, a meu
ver, a tarefa mais difícil de um tradutor: não apenas restituir de ma­
neira fiel o sentido presente no original, mas conquistar, além dis­
so, uma tonalidade para o texto« traduzido que seja similar à tona­
lidade da experiência de pensamento do filósofo. No caso de Hei-
ilegger, a serenidade me parece ser o tom mais adequado. Mas o
que significa afinal serenidade? Em que medida a serenidade é in­
compatível com o frisson entusiástico diante de termos que usamos
como se fossem dotados de uma certa aura mágica —para citar a
crítica adorniana padrão ao texto de Heidegger? Serenidade [Ge-
lassenheit\ é um termo que possui em Heidegger uma relação com
o verbo deixar [lassen], O que ele procura designar com esse ter­
mo, porém, não possui nenhuma relação com um acolhimento pas­
sivo e à distância do que se mostra. Ao contrário, a serenidade
aponta aqui para a difícil manutenção de si em meio ao aconteci­
mento no qual os entes se configuram como tais e vêm ao mesmo
tempo ao nosso encontro como os entes que são. Serenidade é par­
ticipação efetiva na emergência do mundo e no desdobramento in­
sistente dos elementos envolvidos nessa participação. Um texto se­
reno, portanto, não pode ser um texto marcado por uma fetichiza-
ção de certas palavras e pela construção de uma linguagem refra­
tária a todo desdobramento conceituai, mas precisa ser muito mais
um texto capaz de dar voz a cada um dos momentos de uma tal
participação. De certo modo, o que está em questão aqui é algo si­
milar ao bom e velho “espírito científico” em sua busca pela boa e
velha “objetividade”. O que se busca é, claro, uma nova “objetivida­
de”, porquanto essa “objetividade” precisa ser conquistada agora
em uma experiência específica de mundo. Não obstante, ainda
fala aqui um anseio por uma objetividade ao mesmo tempo herme­
nêutica e fenomenológica. Heidegger descreveu certa vez essa se-
XVI Introdução à filosofia

renidade de maneira paradigmática: “A serenidade em relação às


coisas e a abertura para o segredo sc compertencem. Elas confe­
rem-nos a possibilidade de nos mantermos de uma maneira total­
mente diversa no mundo.”4 Exatamente essa nova possibilidade de
manutenção no mundo e a tonalidade afetiva daí proveniente pre­
cisam encontrar na tradução uma experiência similar, uma conten­
ção análoga, uma afinação condizente. Essa tarefa primordial da
tradução levou-me a uma opção quanto a todos os termos forma­
dos a partir do verbo ser.
O texto Introdução à filosofia possui uma série de termos com­
postos a partir do verbo ser [sein ]: Dasein [ser-aí], Miteinandersein
[ser-um-com-o-outro], Sein bei [ser junto a], Zueinandersein [ser-
um-para-o-outro], Zuhanãensein [ser-à-mâo] entre outros. Cada um
desses termos descreve uma possibilidade específica de o ser-aí
humano se comportar em relação ou bem aos outros seres-aí e a si
mesmo, ou bem em relação aos entes que vêm ao seu encontro no
interior do mundo. Não é por acaso, porém, que Heidegger forja
as construções desses termos a partir de uma ligação com o verbo
ser. Ao contrário, essa ligação procura evidenciar desde o princípio
o fato de todos os comportamentos possíveis do ser-aí humano em
relação aos entes intramundanos, aos outros seres-aí e a si mesmo
estarem originariamente fundados em uma relação do ser-aí com o
ser, em uma finitização do ser no interior de um projeto de mun­
do específico e na constituição daí derivada de uma ontologia de­
terminada. Para mantermos explícito esse fato, optamos por uma
tradução mais literal das palavras em alemão que envolviam o ter­
mo “ser”. Uma dessas palavras é o termo alemão Dasein, utilizado
por Heidegger para designar fundamentalmente o modo de ser
próprio ao homem. Como um dos termos centrais do pensamento
heideggeriano, a tradução de Dasein carece de uma análise espe­
cífica. No presente volume, optamos pela tradução canônica de
Dasein por “ser-aí”. Algumas foram as razões que nos levaram a to­
mar essa opção. Em primeiro lugar, a já mencionada posição de

4 Martin Heidegger, Gelassenheit [Serenidade], p. 24.


Apresentação à tradução brasileira XVII

princípio quanto à manutenção de “ser” nas construções em ale­


mão que possuíssem a palavra sein. Como nos decidimos a realçar
a presença de ser em todas as expressões alemães que continham
sein, não faria sentido deixar de fazer isso exatamente quando essa
presença é mais significativa. Em segundo lugar, o anseio por
acompanhar da maneira mais fidedigna possível o intuito de Hei-
degger com a concepção do homem como Dasein. Ao se valer des­
se termo para uma tal concepção, Heidegger tem primordialmen­
te em vista a explicitação do homem como um ente que conquis­
ta todas as suas determinações essenciais a partir das relações e
somente a partir das relações que respectivamente experimenta
com o espaço de realização de sua existência. Esse espaço não é
por sua vez um espaço qualquer, mas antes o mundo como campo
de manifestação dos entes em geral. E somente por intermédio do
descerramento do mundo que o homem encontra a si mesmo como
Da-sein. O advérbio de lugar “Da”, que significa literalmente “aí”
em alemão, aponta justamente para essa abertura: para o mundo
como horizonte originário de configuração das possibilidades de
ser do homem. Assim, Da-sein possui por correlato natural uma ou­
tra expressão usada pelo próprio Heidegger em Ser e tempo e em
outras preleções que gravitam em torno de sua obra central: a ex­
pressão In-der-Welt-sein [ser-no-mundo]. Como o próprio Heideg­
ger afirma em uma pequena passagem de um seminário dado em
sua casa em Zãhringen no ano de 1973, uma passagem que expli­
cita o conteúdo significativo do termo “ser-aí” e possui uma resso­
nância essencial com o conceito de mundo: “Ser-aí —ser-em-uma-
amplitude-aberta; ser-clareira. O aí é justamente a palavra para a
amplitude aberta.”'5E certo afirmar que a palavra “aí” em português
envolve uma certa indeterminação e que mesmo a expressão “ser-
aí” possui uma artificialidade em sua construção. Essa indetermi­
nação e essa artificialidade, no entanto, não aparecem apenas na
tradução, mas são intencionalmente acentuadas pelo filósofo. Boa
parte do pensamento heideggeriano pode ser descrita como uma

5 Martin Heidegger, Seminare, GA 15, p. 380.


XVIII Introdução à filosofia

tentativa de pensar o sentido do termo Dasein e o modo próprio do


acontecimento de mundo a contrapelo do significado sedimentado
desse termo tanto na tradição filosófica quanto na língua alemã co­
tidiana. Para a tradição, Dasein era um sinônimo imediato de exis­
tência, concebida como presença fática; para a língua alemã coti­
diana, por outro lado, Dasein é uma palavra usada para designar a
simples presença de alguém. Tudo isso indica que a indetermina-
ção inicial do termo precisa ser superada em meio à compreensão
dos seus contextos de aplicação. Em terceiro lugar, é preciso res­
saltar o fato de a tradução por “ser-aí” permitir uma passagem sem
quebras dos textos até o final da década de 1920 para os textos do
período posterior à viragem. Na medida em que Heidegger procu­
ra pensar em seus textos tardios o acontecimento mesmo do aí, o
modo como um mundo vem à presença por meio de uma inter-re-
lação específica de apropriação mútua entre ser e ser-aí humano;
na medida em que ele passa consequentemente a tomar a noção
de ser-aí de uma forma mais ampla do que apenas a partir da res­
trição do termo ao ser do homem; e na medida em que investiga o
aí como lugar de constituição de uma relação quadripartida entre
céu e terra, mortais e deuses, é fundamental acentuar o caráter lo-
cativo do termo alemão Dasein. Por fim, não podemos deixar de
mencionar os problemas relativos a algumas outras opções de tra­
dução. Duas dessas opções merecem uma consideração mais aten­
ta. A primeira diz respeito à mera manutenção do termo alemão
Dasein na tradução. Essa opção, que procura se justificar a partir
de uma menção à necessidade de compreender os conceitos em
sintonia com as suas notas conceituais e com os seus contextos de
uso, tende a inviabilizar a qualidade mesma da escolha heidegge-
riana do termo Dasein. Se esse termo não possuísse nenhuma qua­
lidade específica, ele poderia ser substituído na própria língua ori­
ginal por qualquer outro sem prejuízo algum para a compreensão.
Como ele possui uma tal qualidade específica, a tradução não pode
simplesmente se desonerar da necessidade de encontrar um termo
correlato na língua final —e isso para não falar na tendência de fe-
tichização que uma tal manutenção do vocábulo alemão acaba por
Apresentação à tradução brasileira XIX

l>rockizir. A segunda opção diz respeito à tradução de Dasein por


"presença ”. Essa tradução parece-me problemática em vários sen-
lidos. De início, há uma clara dissonância entre o termo “presen­
ça" e a palavra alemã Dasein: não há em última instância nenhu­
ma correlação direta entre a formação etimológica de um termo e
do outro. Enquanto Dasein se forma a partir da junção entre o ver­
bo ser e o advérbio de lugar aí, “presença” envolve um prefixo tem­
poral que indica anterioridade e o particípio presente do verbo ser.
E verdade que, de acordo com o dicionário Grimm da língua ale­
mã, Dasein significava originariamente estar presente e era mesmo
utilizado como um sinônimo do tempo presente. Todavia, há uma
grande diferença entre o movimento de se fazer presente e a pala­
vra “presença ”. No primeiro caso, temos um anseio por determinar
os elementos em jogo na dinâmica do presentar-se, enquanto no
segundo caso já se trabalha com a presença constituída. Esse fato
encontra respaldo em um contexto teórico analisado pelo próprio
1leidegger. No parágrafo 21 da preleção do semestre de verão de
ll)27, Os problemas fundamentais da fenomenologia, Heidegger se
vale do termo Praesenz [presença] para designar o ser daquilo com
o que nos ocupamos de início e na maioria das vezes no mundo, o
ser do ente à mão, um ser que nasce de um projeto extático daqui­
lo que pode ganhar a presença. Ele nos diz expressamente em uma
passagem paradigmática do texto: “O presentificar, seja um presen-
tificar próprio no sentido do instante ou um presentar impróprio,
projeta aquilo que ele presentifica, aquilo que possivelmente pode
vir ao encontro em e para um presente, em vista de algo assim
como presença. A ekstase do presente é enquanto tal a condição de
possibilidade de um ‘ir além de si mesmo’ determinado, da trans­
cendência, do projeto com vistas à presença”.6 Essa passagem dei­
xa claro que a dinâmica do ser-aí se constrói a partir da projeção de
campos de presença e não é ela mesma marcada por presença. Em
seguida, não há como deixar de mencionar o fato já evidenciado

*' Martin Heidegger, Os problemas fundamentais da fenomenologia, § 21, GA 24,


|>. 435.
XX Introdução à filosofia

acima de o termo Präsenz existir em alemão. Se o intuito de Hei­


degger fosse pensar o homem como presença, é difícil imaginar
por que ele não teria usado diretamente esse termo. Ao mesmo
tempo, há ainda o fato de Heidegger ter incessantemente utiliza­
do o termo latino Präsenz para designar o caráter próprio ao pensa­
mento metafísico. Metafísica é para Heidegger “metafísica da pre­
sença”, justamente porque se orienta desde sempre a partir do
ente presente e porque tenta pensá-lo em sua presença. Além dis­
so, ele mesmo afirma expressamente em um pequeno trecho de
uma preleção do primeiro trimestre de 1941, intitulada A metafísi­
ca do idealismo alemão (Schelling ), que a palavra francesa “présen-
ce” não poderia ser utilizado como tradução de Dasein , uma vez
que não traduziría senão o sentido tradicional do termo, ou seja, a
“significação habitual que equipara ser-aí = realidade efetiva = pre-
sentidade [Anwesenheit]”7. E naturalmente possível questionar até
mesmo a compreensão heideggeriana de presença e apontar para
uma significação originária ainda velada. A meu ver, porém, só se
justificaria usar um tal questionamento como ponte para a utiliza­
ção do termo “presença” em uma tradução de Dasein se o ganho
real compensasse com sobras os transtornos imediatos que essa
utilização traz consigo. Mas esse ainda não é, contudo, o ponto
principal. Mais importante é antes o obscurecimento de toda de­
terminação locativa do ser-aí. Considerando atentamente o termo
“presença”, só muito dificilmente nos aproximamos das intenções
primordiais de Heidegger com a escolha de Dasein: pensar o ho­
mem a partir da projeção de campos existenciais que nunca sur­
gem por si mesmos do nada, mas sempre encontram as suas orien­
tações prévias no mundo fático que é o seu ou nas articulações his­
tóricas das ontologias epocais. Dasein é uma palavra que designa
antes de mais nada o ser jogado abruptamente e o se ver assim ab­
sorvido por um mundo específico, com uma ontologia sedimenta­
da e uma semântica constituída. Mais tarde, ele se mostra como

7 Martin Heidegger, A metafísica do idealismo alemão (Schelling), §11, GA 49,


p. 62.
Apresentação à tradução brasileira XXI

termo para pensar o acontecimento mesmo do surgimento dos pro-


ji'los históricos de mundo. O tempo é naturalmente o horizonte de
estabelecimento de cada uma dessas ontologias possíveis, de cada
mundo íático particular. No entanto, a temporalidade se inscreve
luslamente nas inter-relações entre o ser-aí e a semântica sedi­
mentada de seu mundo, entre o ser-aí e o seu aí e entre o ser-aí e
o ser. Nesse contexto, presença é um termo que não designa senão
parcialmente a partícula Da- e obscurece por completo as inter-re­
lações em jogo entre ser-aí, ser e mundo. Exatamente por isso, não
seguimos a opção de tradução de Dasein por “presença”, mas nos
ativemos à tradução de Dasein por “ser-aí”.
1’or fim, gostaria de dizer apenas algumas poucas palavras sobre
a importância da presente obra. Como já mencionei acima, as pre­
leções da década de 1920 possuem todas um papel central na
compreensão do projeto filosófico de Heidegger. Introdução à filo ­
sofia, porém, não é apenas uma entre outras preleções. O livro en­
cerra em si uma riqueza temática que raramente se encontra mes­
mo nas obras de Heidegger. Exatamente por isso, sua leitura ten­
de a promover naturalmente uma abertura de horizontes e pers­
pectivas em relação ao pensamento heideggeriano. Além disso, o
título do livro possui uma ambigüidade digna de nota. O livro não
nos introduz na filosofia por meio da veiculação de um conjunto
de informações que vão paulatinamente permitindo a reconstru­
ção dos grandes problemas da história do pensamento filosófico.
Introdução significa aqui convite à participação na vida da filoso­
fia. O convite está aberto. Está em nossas mãos agora ir ou não ao
seu encontro.

M a r c o A n t o n io C asanova
INTRODUÇÃO

A tarefa de um a in trod u ção à filosofia

§ 1. Ser homem já significa filosofar

A tarefa desta preleção é empreender uma introdução à filoso­


fia. Se os senhores tiverem a intenção de se deixar introduzir à fi­
losofia, então essa intenção mesma já pressupõe que nos encontra­
mos inicialmente “fora” dela. E por isso que se carece de um ca­
minho capaz de conduzir dessa posição localizada fora da filosofia
para o interior de seu âmbito.
Esse parece um estado de coisas tão simples que basta mencio­
ná-lo para que possamos compreendê-lo como um ponto de parti­
da óbvio para a introdução à filosofia. O caminho da introdução
deveria conduzir para o interior do âmbito filosófico. Para que não
erremos a direção do caminho, porém, precisamos conhecer de
antemão a meta. Portanto, antes mesmo da introdução e para que
ela possa ser levada a termo, já carecemos de uma idéia prévia do
que é a filosofia. Com isso, surge uma dificuldade em nosso pro­
pósito como um todo. No entanto, só aparentemente, pois não es­
tamos completamente desligados do âmbito da filosofia. Temos
certos conhecimentos do que hoje é tido por filosofia ou, de certo
modo, podemos nos orientar pela literatura filosófica quanto ao
significado da filosofia. Além disso, nos manuais de história da fi­
losofia encontramos um meio dc nos informarmos sobre esse ou
aquele filósofo, sobre esse ou aquele sistema. A tarefa certamente
se complica uma vez mais, se nos vemos ante a decisão acerca de
que filósofo deve ter agora influência decisiva: Kant ou Hegel,
2- Introdução à filosofia

Leibniz ou Descartes, Platão ou Aristóteles. Todavia, esse proble­


ma também pode ser remediado, na medida em que buscamos —e
é isso que deve fazer justamente a introdução - obter uma visão
panorâmica de todos os filósofos e de toda a história da filosofia, ao
menos em seus traços principais.
Mas não queremos apenas um conhecimento historiográfico1
do que foi a filosofia, queremos sim passar a conhecer os “proble­
mas” intrínsecos ao âmbito filosófico. Não que queiramos nos in­
serir mais minuciosamente nos diversos domínios de problemas
das disciplinas filosóficas - lógica, teoria do conhecimento, ética
e estética. Ao contrário, interessam-nos somente os contornos mais
salientes, de modo que possamos ver como as disciplinas são or­
denadas entre si, como se encontram reunidas, como formam um
sistema da filosofia. Ao lado do aspecto historiográfico, a introdu­
ção à filosofia necessita ter assim um aspecto sistemático, e esses
dois aspectos precisam se completar da maneira mais harmônica
possível.
Se, no final do semestre, tivermos conseguido alcançar uma tal
introdução historiográfica e sistemática, seremos felizes detento­
res de conhecimentos acerca do âmbito historiográfico e sistemá­
tico da filosofia. Sem dúvida não desaparecerá totalmente a im­
pressão de que esse âmbito é em verdade muito multifacetado,
além de igualmente incerto e instável. Sobretudo, porém, será for-

1 Heidegger estabelece uma distinção fundamental entre dois termos normal­


mente tomados como sinônimos na língua alemã e traduzidos consequentemente
com o auxílio da palavra “história”: o termo latino Historie e o termo germânico
Geschichte. Enquanto o primeiro designa para ele a história concebida em sua di­
mensão ôntica, como a instância relativa aos acontecimentos que se dão no inte­
rior de um âmbito simplesmente subsistente chamado tempo, e funciona como
base para o que podemos denominar historiografia, o segundo é reservado apenas
para a dinâmica existencial de temporalização característica do ser-aí em sua rela­
ção originária com o mundo e com o ser. Para acompanharmos os intuitos teóricos
do autor, optamos pela tradução desses dois termos por “historiografia” [Historie]
e “história” [Geschichte], Essa tradução repercute naturalmente nos adjetivos his-
torisch e geschichtlich que vertemos correspondentemente por “historiográfico” e
“histórico”. (N. do T.)
Introdução 3

lalecido o sentimento mais ou menos confesso de que não pode­


mos fazer nada propriamente com o que acabamos de ouvir. “Filó-
solos de cátedra” podem se ocupar com isso e podem mesmo acre­
ditar que 6 possível afastar de uma vez por todas a barafunda das
opiniões.
Já 6 certamente muita coisa quando uma tal meditação se faz
sentir. No entanto, em geral nada mais é suscitado. E claro que já
assistimos alguma vez a uma preleção sobre filosofia - afinal, não
devemos descuidar completamente de nossa cultura geral, ainda
que boje seja muito mais importante estar informado sobre os mais
novos modelos de carros de corrida ou sobre os mais recentes es-
íurços no âmbito da arte cinematográfica.
I;,ssa é a situação em relação à filosofia, e, apesar das muitas in-
Iroduções, em uma certa medida, ela sempre permanecerá assim.
Mas, afinal, por que ela é assim apesar das muitas introduções?
Forque as introduções à filosofia do tipo mencionado não fazem ou­
tra coisa senão conduzir para fora da filosofia —e não apenas isso,
mas também despertam a opinião de que se foi conduzido para o
interior da filosofia. E por que é que a habitual introdução à filoso­
fia, tal como foi caracterizada acima, precisa necessariamente fra­
cassar? Porque, em seu ponto de partida, ela repousa em uma ilu­
são fundamental. Tal ponto de partida pressupõe o seguinte: nós
que devemos ser introduzidos à filosofia inicialmente temos nosso
lugar fora dela, e a própria filosofia seria um âmbito para o interior
do qual devemos nos encaminhar (cf. pp. 234 s.).
A questão é que não estamos de forma alguma “fora” da filoso­
fia; e isso não porque, por exemplo, talvez tenhamos uma certa ba­
gagem de conhecimentos sobre filosofia. Mesmo que não saibamos
expressamente nada sobre filosofia, já estamos na filosofia porque
a Iilosofia está em nós e nos pertence; e, em verdade, no sentido de
que já sempre filosofamos. Filosofamos mesmo quando não sabe­
mos nada sobre isso, mesmo que não “façamos filosofia”. Não filoso-
famos apenas vez por outra, mas de modo constante e necessário
porquanto existimos como homens. Ser-aí como homem significa
4 Introdução à filosofia

filosofar. O animal não pode filosofar; Deus não precisa filosofar.


Um Deus que filosofasse não seria um Deus porque a essência da
filosofia é ser uma possibilidade finita de um ente finito.
Ser homem já significa filosofar. Segundo sua essência, o ser-aí
humano como tal já se encontra na filosofia, e isso não de modo
ocasional. Como o ser-homem tem, contudo, diversas possibilida­
des, múltiplos níveis e graus de lucidez, o homem pode encontrar-
se de diversas maneiras na filosofia. De modo correspondente, a fi­
losofia como tal pode permanecer velada ou manifestar-se no mito,
na religião, na poesia, nas ciências, sem que seja reconhecida
como filosofia. E, visto que a filosofia como tal também pode se
constituir de modo efetivo e expresso, parece que aqueles que não
tomam parte no filosofar expresso estão fora da filosofia.
Mas, se o ser-aí humano já se encontra essencialmente na filo­
sofia, então não faz sentido uma introdução do tipo acima caracte­
rizado: uma condução para o interior do âmbito da filosofia a par­
tir de um lugar situado fora dela. Nesse caso, para que ainda pre­
cisamos afinal de uma “introdução à filosofia”? Por que não rom­
per com essa prática?

§ 2. Introduzir significa: -pôr o filosofar em curso

Se apesar disso tomamos como tarefa uma introdução à filosofia,


então ela precisa ter um outro caráter. Em verdade, parece que nos
encontramos inicialmente fora da filosofia. A questão é: qual o fun­
damento dessa impressão e dessa aparência? Se a filosofia já reside
em nosso ser-aí como tal, então essa aparência só pode surgir do
fato de a filosofia estar como que dormindo em nós. Ela reside cm
nós, ainda que agrilhoada e intrincada. Ela ainda não está livre, ain­
da não está no movimento que lhe é possível. A filosofia não acon­
tece em nós da forma como poderia e deveria por fim acontecer.
Por isso, carece-se da introdução. Nesse caso, introdução não
significa mais: conduzir para o interior do âmbito da filosofia a par-
Introdução 5

1ir de um lugar situado fora desse âmbito. Ao contrário, introduzir


signilica agora muito mais: pôr o filosofar em curso, deixar a filo-
solia acontecer em nós. Introdução à filosofia significa: introduzir
(pôr cm curso) o filosofar. Mas como devemos realizar uma tal ta­
refa? Não podemos ser de modo algum transpostos para o estado
do lilosofar por meio de um truque qualquer, uma técnica ou um
passe de mágica.
A lilosofia deve tornar-se livre em nós, ela deve tornar-se a ne­
cessidade interna de nossa essência mais própria, de modo a con-
Icrir a essa essência a sua dignidade mais peculiar. No entanto, é
preciso que venhamos a acolher em nossa liberdade aquilo que
deve se tornar livre em nós dessa maneira: nós mesmos precisamos
lomar e despertar livremente o filosofar em nós.
Para tanto, já precisamos uma vez mais conhecê-lo. Em outras
palavras, carecemos de uma pré-compreensão da filosofia. Assim,
r possível que precisemos nos ater à história da filosofia. Talvez a
história em geral —e não apenas a história da literatura filosófica -
seja, em um sentido muito mais originário, essencial para o filoso-
lar. Por razões que ainda iremos examinar, seria um grande equívo­
co pensar que sempre poderíamos conformar a filosofia a partir de
uma recusa completa da tradição histórica.
Todavia, tudo isso não resulta em que o caminho usual, consti­
tuído a partir de uma visão panorâmica e historiográfica da histó­
ria da filosofia, poderia contribuir com algo essencial para o nosso
intuito de introduzir o filosofar. Adquirir conhecimentos, mesmo
conhecimentos eruditos e abrangentes quanto ao que e como os fi­
lósofos pensaram, até pode ser útil. No entanto, sua utilidade não
se reverte para o filosofar. Ao contrário: a posse de conhecimentos
sobre filosofia é a principal causa da ilusão de que com isso esta­
ríamos alcançando o filosofar.
De que outra maneira podemos então conquistar uma com­
preensão prévia da filosofia, uma compreensão de que carecemos,
se é que o filosofar não deve ser um processo cego, mas um agir
levado a termo em meio à liberdade? Precisamos evidentemente
6 Introdução à filosofia

buscar essa pré-compreensão do filosofar na forma que já está pré-


delineada para nós pela própria essência do filosofar. Nosso saber
quanto a isso se resume agora a uma afirmação: o filosofar perten­
ce ao ser-aí humano como tal. Nesse “como tal", ele acontece e
tem a sua história (cf. pp. 241 s.).
No ser-aí, o filosofar deve ser posto em curso. O ser-aí huma­
no, porém, jamais existe em termos universais. Ao contrário, ao
existir, cada ser-aí sempre existe como ele mesmo. Em nosso pró­
prio ser-aí, o filosofar deve ser levado a acontecer. Em nosso ser-
aí - não no sentido universal, mas em nosso ser-aí aqui e agora,
nesse instante e nas perspectivas que esse instante, em que nos
preparamos para tratar da filosofia, apresenta. A filosofia deve tor­
nar-se livre em nós, em nós e nessa conjuntura. Em que conjun­
tura? Naquela que determina agora de forma primária e essencial
a existência de nosso ser-aí, isto é, nosso escolher, nosso querer,
fazer e omitir.

§ 3. Pré-compreensao da filosofia

Por meio de que nossa existência como um todo é agora deter­


minada de modo decisivo? Por meio do fato de podermos reivindi­
car nosso direito de cidadão de ter acesso à universidade. E com o
exercício desse direito conferimos ao nosso ser-aí um liame. Com
esse liame orientamos nosso ser-aí para uma determinada direção,
algo se decidiu em nosso ser-aí. Isso pode acontecer tanto quando
temos uma visão clara de nossa existência como também quando nos
falta tal visão —podemos ter caído no círculo existencial da univer­
sidade por convenção, ou até mesmo por algum embaraço.
Mas se não estamos simplesmente vagando por aí, em parte
para aprender toda a sorte de coisas úteis, em parte para nos diver­
tirmos de uma maneira nova, então é preciso que algo tenha se de­
cidido em nós. Toda e qualquer decisão relativa à existência é uma
irrupção no futuro do ser-aí.
Introdução 7

( ) que se decidiu? Nossa vocação profissional2. Por vocação pro-


iissiiin.il não entendemos, contudo, a posição social exterior e
mesmo a sua alocação em uma classe social determinada e quiçá
elevada. Por vocação profissional compreendemos a tarefa interna
que n ser-aí reserva para si no todo e no essencial de sua existên-
i la ( ) eleito histórico e fático da vocação profissional carece sem-
pic di' uma posição social exterior. No entanto, essa posição con­
tinua lendo, em primeira e última escalas, um sentido secundário.
I .m que medida, porém, demos uma vocação profissional parti-
111lar ao nosso ser-aí, ao exigirmos nosso direito de acesso à univer­
sidade? Com o exercício desse direito —até o ponto em que em ge­
lai o compreendemos —estabelecemos em nosso ser-aí o compro­
misso de assumir algo como uma liderança no todo corresponden-
le de nosso ser-um-com-o-outro2histórico. Com uma tal liderança
não estamos nos referindo à assunção exterior de um, por assim di­
zer, posto de chefia no âmbito da vida pública - o que está em jogo
nesse caso não é que precisemos desempenhar aqui e acolá o pa­
pel de superiores ou diretores. Ao contrário, a liderança é o com­
prometimento com uma existência que, em certa medida, com­
preende de maneira mais originária, global e definitiva as possibi­
lidades do ser-aí humano, devendo, a partir dessa compreensão,
funcionar como modelo. Para ser um tal modelo, não é de forma
alguma necessário que a pessoa pertença ao círculo dos proemi-

í',m seu sentido corrente, a palavra alemã Bem/pode ser traduzida simples­
mente por “profissão”. Nesse contexto, contudo, essa tradução obscureceria um
rlcmenlo decisivo no modo de compreensão heideggeriano. A palavra alemã Beruf
i nmpõe-se a partir do verbo rufen, que significa literalmente “chamar”. Com isso,
llrnif 6 uma palavra que não indica uma mera profissão, mas uma profissão que
Masco da escuta a um chamado específico, a uma vocação. Assim, optamos por tra­
duzir Boro/por “vocação profissional”. (N. do T.)
1Como toda a preleção gira em torno de termos centrais compostos a partir do
verbo “ser”, optamos por não buscar soluções simplificadoras que facilitassem a
Irilura, mas acabassem por obscurecer o foco central do pensamento heideggeria-
iio. Mileinandersein poderia ser normalmente traduzido por “convivência”. No en-
liiulo, essa tradução acabaria produzindo uma espécie de turvamento dos intuitos
primordiais do texto. (N. do T.)
8 Introdução à filosofia

nenles. Nem se pode dizer que essa liderança já comporte facil­


mente uma superioridade moral diante dos outros. Ao contrário, a
responsabilidade que justamente uma tal liderança incontrolável e
absolutamente não manifesta traz consigo acaba por se mostrar
como uma ocasião constante e muito propícia ao fracasso moral do
indivíduo.
E por que justamente o fato de pertencer realmente à universi­
dade comporta então um direito do indivíduo de requerer uma tal
liderança? Isso decorre do fato de a universidade, ao cultivar a pes­
quisa científica e ao transmitir uma formação científica, conferir
ao ser-aí a possibilidade de alcançar uma nova posição na totalida­
de do mundo. Nessa nova posição, todas as relações do ser-aí com
o ente podem experimentar uma mudança e ele pode conquistar
assim uma nova familiaridade com todas as coisas (ainda que isso
não precise necessariamente acontecer), porque o ser-aí é tomado
por uma transparência e um esclarecimento próprios.
O fato de determos mais conhecimento do que outros e de sa­
bermos algumas coisas melhor, na medida em que nos achamos na
posse de autorizações e certificados, é completamente insignifi­
cante. No entanto, o fato de o ser-aí como um todo ser dominado
por um primado interno que em si nenhum de nós conquistou, o
fato de, portanto, em um fundamento mais originário, a ciência
desenvolver cm nós a possibilidade de uma liderança discreta e por
isso tanto mais eficaz no todo da comunidade humana determina
o instante de nosso ser-aí atual.
Ciência e liderança, formando uma unidade, são por conseguin­
te os poderes aos quais o nosso ser-aí está agora sujeito —se é que
ele possui realmente alguma clareza quanto a isso. E tal sujeição
não deve ser entendida no sentido de um episódio fugaz, mas
como um estágio único que determina essencialmcntc o caráter
peculiar de nosso ser-aí. Se quisermos deixar a filosofia se tornar
livre aqui c agora em nosso ser-aí e se a tarefa da introdução é co­
locar o filosofar em curso, então também conquistaremos a partir
dessa situação uma certa compreensão do que significa filosofia. E
Introdução 9

1‘hhii i nmprecnsão prévia de que necessitamos inicialmente preci-


«ii «ri reliriula do esclarecimento da essência da filosofia em sua
n laç iln com a ciência e com a liderança.
A liderança já determina a vocação de vosso ser-aí unicamente
pelo liilo de os senhores terem agora suas existências ligadas à uni-
veivldade. Mas liderança significa aqui: o dispor de possibilidades
itials elevadas e mais ricas da existência humana que não se im-
prtein aos outros, mas, de maneira discreta, são exemplares e, as-
«lin, parlíeularmente eficazes. No entanto, esse caráter exemplar e
velado da autêntica liderança carece de sua própria clareza e segu-
laiiça, ou seja, o próprio ser-aí carece de uma meditação continua-
iiienie nova sobre as suas posturas fundamentais em relação ao
lodo do ente, uma meditação, porém, que seja diretamente deter­
minada pela respectiva situação histórica do ser-aí e atue sobre
•'nnii situação. Aquilo que subjaz assim na liderança - mas certamen­
te mio apenas nela —denominamos visão de mundo.
Assim, a tarefa de conquistar uma pré-compreensão da filosofia
a partir tios poderes que determinam agora o nosso ser-aí não im-
plli a senão levantar a seguinte questão: como a filosofia se relacio­
na ai mal com a liderança, com a visão de mundo e com a ciência?

§ 4. Como a filosofia se relaciona com a ciência,


com a visão de mundo e com a história?

leremos especialmente de perguntar: a filosofia é uma ciência


enlie outras, é a ciência “universal” em contraposição às ciências
pai titulares, é a “ciência fundamental” em contraposição às ciên-
i las tlerivadas ou não é absolutamente nenhuma ciência, ou seja,
mio conseguimos de maneira alguma tocá-la em sua essência, se a
alot amos e a incluímos na ordem do conceito universal de ciência?
I in relação à filosofia c à visão de mundo, teremos de pergun­
tai icspectivamcnte: é tarefa da filosofia formar uma visão de mun-
iloi1Será que a filosofia c a doutrina de tais visões de mundo ou
10 Introdução à filosofia

será que ela não tem primariamente nenhuma relação com uma
formação-de-mundo? A filosofia repousa sobre uma visão de mun­
do ou essa conexão entre filosofia e visão de mundo não é absolu­
tamente decisiva?
Por fim, tomemos conjuntamente os dois grupos de questões:
será que a filosofia é ou bem ciência ou bem visão de mundo, será
que ela é tanto ciência quanto visão de mundo ou será ainda que
ela não é nem ciência nem visão de mundo?
Mas não queremos discutir todas essas questões sobre a relação
entre filosofia e ciência, filosofia e visão de mundo, ciência e visão
de mundo como se estivéssemos, por assim dizer, contrapondo gran­
dezas fixas —ainda não sabemos de maneira alguma o que é a filo­
sofia. Partindo dos poderes determinantes que são a ciência e a vi­
são de mundo, perguntamos muito mais o que elas próprias signi­
ficam: por que e com que justificativa afinal estabelecemos uma li­
gação da filosofia justamente com elas? Desse modo conquistamos
uma primeira pré-compreensão da filosofia a partir dos poderes
que são determinantes para nós, isto é, ao voltarmo-nos para nos­
so próprio ser-aí.
Ao mesmo tempo, essas discussões têm por intuito tornar trans­
parente em alguns traços fundamentais a situação de nosso ser-aí
atual. Nelas nos depararemos incessantemente com um contexto
ao qual cabe uma significação essencial: a filosofia e o filosofar,
justamente em sua automeditação, remontam sempre ao que de­
nominamos história. E isso se dá antes de tudo porque a filosofia
se nos oferece inicialmente na e por meio da tradição historiográ-
fica. Por história não tenho em vista aqui a ciência histórica, mas
o acontecimento do próprio ser-aí. Mostrar-se-á que não é apenas
a filosofia que se encontra em uma confrontação interna peculiar
com a história.
Já ouvimos que a filosofia sempre já se nos oferece como algo
de certo modo conhecido na e por meio da história. Melhor ainda:
na tradição historiográfica. No entanto, o mesmo vale para a ciên­
cia e para a visão de mundo. As duas são, cada uma a seu modo,
fundamentalmente históricas. Mas isso significa o seguinte:
Introdução 11

I mi nossas considerações sobre filosofia e ciência, sobre filoso-


llii I» vlsilo de mundo subjaz ao mesmo tempo a seguinte questão:
i iiinn a lilosolia se comporta afinal em relação à história, ou seja,
•'iii leliição a essa determinação essencial do ser-aí humano que é
i'iii st histórico?
<mm isso, encontramo-nos diante de três grupos de questões:
I ( 'orno a filosofia se relaciona com a ciência?
II ( !omo a filosofia se relaciona com a visão de mundo?
III 1 mmo a filosofia se relaciona com a história?
A discussão desses três grupos de questões caracteriza o primei-
io estágio de nossa preleção. Percorreremos esse estágio, a fim de
i iilocar em curso o filosofar.
Não queremos aprender aqui filosofia, não queremos apenas
alimentar o nosso histórico escolar com mais uma disciplina. Até
porque lilosofia não é nenhuma “disciplina”. Filosofar não é coisa
de habilidade e técnica, muito menos um jogo de incursões desor­
denadas. Filosofia é filosofar e nada além disso. Trata-se de com-
preender esse algo deveras simples.
Dissemos: o ser-aí nunca se encontra fora da filosofia, mas a
piopria filosofia pertence à essência da existência do ser-aí. Por­
tanto, precisamos colocá-la em curso no próprio ser-aí: ou seja, é
preciso penetrar no ser-aí que nós mesmos respectivamente so­
mos. Assim, parece que caímos em uma auto-investigação psicoló­
gica, como se o filosofar acabasse por se tornar uma ocupação
egoísta consigo mesmo, uma dissecação da própria vida anímica.
Formulado inicialmente de maneira apenas negativa, a libera-
çáo do filosofar no ser-aí não tem nenhuma relação com um olhar
psicológico embasbacado e mesmo egoísta de si mesmo. Todavia,
deixar o filosofar liberar-se em nós tampouco se confunde com
uma contemplação moralmente edificante do próprio eu.
Nossas reflexões não têm nenhuma relação com tudo isso. Não
se trata nem de psicologia nem de moral. E certo que com essas
lellcxões o ser-aí chega a um centro próprio, mas esse assim cha­
mado ponto de vista antropocêntrico tem algo de curioso. A partir
12 Introdução à filosofia

dessa consideração antropocêntrica chegamos à seguinte intelec-


ção: quando esse ser chamado homem, supostamente apaixonado
por si mesmo, se encontra no centro, ele se mostra, de acordo com
sua mais profunda interioridade, como ex-cêntrico. Ou seja: justa­
mente devido à essência de sua existência, o homem nunca pode
estar objetivamente no centro do ente. Pois é justamente isso que
o filosofar tornará manifesto: o fato de que, por conta dessa sua es­
sência, o homem é expelido para fora de si mesmo e para além de
si, não sendo de maneira alguma uma propriedade de si mesmo.
Para que essa intelecção de que o ser-aí jamais se tem como um
centro possa ser conquistada, é preciso que, de uma certa manei­
ra, ele chegue justamente ao centro.
O subjetivismo não é superado porque alguém se indigna mo­
ralmente contra ele. Ao contrário, a superação só acontece no mo­
mento em que colocamos de modo real e radical o problema do su­
jeito, no momento em que levantamos a questão sobre a subjetivi­
dade do sujeito. Assim, há uma grande verdade na exigência que a
filosofia antiga já expunha: Fvcm'H oeairtóv, conhece-te a ti mesmo,
isto é, conhece o que tu és e sê como o que tu te reconheceste.
Esse autoconhecimento como conhecimento da humanidade no
homem, ou seja, da essência do homem, é filosofia. Ele está por sua
vez tão distante quanto possível da psicologia, da psicanálise e da
moral. De qualquer modo, junto a uma tal meditação sobre o pró­
prio ser-aí pode acontecer de apreendermos a nulidade total da es­
sência humana desde o seu fundamento.
Portanto, o primeiro estágio de nossa introdução é determinado
por três questões: a relação da filosofia com a ciência, com a visão
de mundo e com a história. Começaremos pela primeira questão.
PRIMEIRA SEÇÃO

FILOSOFIA E CIÊNCIA
PRIMEIRO CAPÍTULO

O que significa filosofia?

§ 5. A filosofia é uma ciência?'

A ciência é um dos poderes que determinam o que podemos em


ii ila medida chamar a atmosfera da universidade. No entanto,
•ii' iii las não são uma acumulação ou um amontoamento de saber
t|iie e ensinado e aprendido de maneira técnico-disciplinar. Ao
i imliário, pertence primariamente ao conceito de ciência que ela
urja investigação. A ciência só existe em meio à paixão do pergun­
tai, em meio ao entusiasmo do descobrir, em meio à inexorabilida­
de da prestação de contas crítica, da demonstração e da funda­
mentação.
Não é apenas uma peculiaridade extrínseca da universidade ale­
mã, mas constitui seu primado interno e a fonte de energia de sua
esislèneia histórica o fato de ela não ser nenhuma escòla especia­
lizada. Ao contrário, mesmo o necessário saber especializado é
adaptado em seu transcurso por meio do trabalho investigativo, di-
m< lonando-se de modo mais ou menos sério e penetrante ao trato
dns problemas, nos quais a ciência efetivamente se encontra.
Visto que a ciência determina dessa maneira a universidade e
visto que a filosofia é ensinada como uma matéria entre outras,
prip,untamos pela relação da filosofia com as ciências. Ela é uma
disc iplina entre outras ou será que ela se distingue pelo fato de ser
,i i iéiuia universal? Ou será, ainda, que ela não é de maneira al-

( il . pp. 232-6.
16 Introdução à filosofia

guma apenas a ciência que colige todas as demais, mas aquela que
até mesmo as fundamenta, a ciência fundamental?
Todas essas questões se movimentam sobre o solo da pressupo­
sição geral de que a filosofia é em todos os casos uma ciência. De
fato, é uma característica da filosofia moderna desde Descartes que
ela, em investidas sempre novas, tente se elevar à categoria de uma
ciência, aliás, à categoria da ciência absoluta. Precisamos deixar de
lado as perguntas específicas sobre como a filosofia se relaciona
com as demais ciências e responder inicialmente ao seguinte: afi­
nal, a filosofia é uma ciência? Faz sentido falar de uma filosofia
científica e querer fundamentar a filosofia como “ciência, rigorosa’’?
Quanto à pergunta sobre se a filosofia é uma ciência, precisamos
dizer de antemão: não, a filosofia não é nenhuma ciência. Será que
a filosofia é então, por natureza, não-científica, será que ela não
pertence à universidade, será afinal que têm razão aqueles que, se­
guindo Schopenhauer e Nietzsche, tomam a “filosofia universitá­
ria” por um construto extremamente questionável? Sim e não. Será
que o empenho da filosofia moderna desde Descartes, passando
por Kant e Hegel, e chegando até Husserl, o empenho por elevar
a filosofia à categoria de ciência não é apenas vão, mas fundamen­
talmente equivocado em seu intuito? Sim e não. Será que o título
“filosofia científica” é afinal tão absurdo quanto o conceito “ferro
lígneo”? Sim e não. Com a tese de que a “filosofia não é nenhuma
ciência” também não se está negando e contestando justamente o
esforço que a fenomenologia vem fazendo há décadas para funda­
mentar a “filosofia como ciência rigorosa” (é esse o título de um co­
nhecido ensaio de Husserl, publicado na revista Logos I, 1910)? Sim
e não.
Portanto, a nossa tese de que a “filosofia não é nenhuma ciên­
cia” permanece inicialmente ambígua, e isso precisa ser assim, uma
vez que ela só se enuncia por meio de uma negativa e diz apenas
de modo genérico o que a filosofia não é. Do fato de a filosofia não
ser ciência talvez não resulte absolutamente que ela precise ser ou
mesmo apenas possa ser “não-científica ”.
Filosofia e ciência 17

Mim ii i|tli' significa agora essa tese de que a filosofia não é qiên-
1Mi I >*« Inicio, ela não significa mais do que o seguinte: a filosofia
ttilu | ii ii li- sei subsumida ao conceito de ciência como um gênero
*u| ii'i li ii Não podemos dizer que a filosofia é uma ciência como
illn mm. i um razão: o vermelho é uma cor, o verde é uma cor ou a
llili a é uma ciência, a filologia é uma ciência.
Iiiiliiviu, sc- declaramos de maneira tão resoluta que “a filosofia
tutu i' nenhuma ciência”, então de modo não menos decidido sur­
to liilnbem a contrapergunta: mas, então, o que ela é afinal? Nós
li "pundemos: filosofia é filosofar. De qualquer forma, essa é uma
Inlm mação que não diz nada, uma informação que parece dizer
•iinlii quanli) a sentença: uma mesa é uma mesa. No entanto, não
•‘Hto11ii is simplesmente dizendo que a filosofia é a filosofia. Ao con-
IMilu, eslamos dizendo que a filosofia é filosofar. Assim, parece
havei por fim uma resposta em meio a essa tese positiva: a filoso­
fia iiilu pode ser definida em consideração a algo diverso - algo
1oiim a idéia de ciência, ou então algo como a idéia de "poesia” ou
aiie Se a equação filosofia = filosofar procede, então isso signifi-
1 ii *|iie a filosofia precisa ser determinada a partir de si mesma.
Aieniii se pouco demais para a problemática peculiar oriunda
'In liiln de a filosofia ter de ser determinada a partir de si mesma.
Mesmo que a filosofia - em certa medida —fosse impossível, so-
inenie ela mesma poderia mostrá-lo. Somente ela mesma pode de-
1idli se e como ela é possível. Não é senão uma conseqüência de
"eu eiiráier originário que a filosofia se volte para si própria e esta-
l" leça uma ligação consigo mesma.
I'oilauto, se dizemos que a filosofia não é nenhuma ciência, e
se a i iência não é a idéia ou o ideal a partir do qual a filosofia pode
e deve ser medida, então a tese que recusa à filosofia o caráter de
i inicia não pode afirmar sem dificuldades que a filosofia está to­
m ada por uma falta de cientificidade. Sc algo não pode e não deve
m i ciência, então a falta de cientificidade não lhe pode ser impu­
tada como uma falha grave. Já ouvimos, porém, o seguinte: a aiir-
inação de que a “filosofia não é ciência” não diz que ela é acientí-
18 Introdução à filosofia

fica; se é que acientífico significa chocar-se com as normas e os


métodos da ciência. A filosofia não é acientífica porque também
não é “científica” —em um sentido primário, esses não são predi­
cados possíveis da filosofia. E a única coisa clara por enquanto é a
seguinte. A tese diz: a filosofia não pertence ao “gênero” ciência,
se é que podemos fazer uso desse termo lógico-formal.
Porém, por mais unívoca que seja essa informação, ela não é sa­
tisfatória, tendo em vista o fato histórico de que pensadores como
Kant e Hegel se empenharam em elevar a filosofia à categoria de
ciência. Justamente se a filosofia não for redutível a nada diverso,
contudo, a sua relação com a ciência talvez se mostre como uma
relação totalmente peculiar que nem de longe conseguimos apreen­
der com a declaração de que “a filosofia não pertence ao gênero
ciência”.
De fato, a razão pela qual a filosofia não é nenhuma ciência não
repousa sobre a sua incapacidade de se aproximar do ideal de uma
ciência e sobre a necessidade de permanecer abaixo dela porque
lhe faltaria o que determina a ciência como tal. Ao contrário, ela
não é nenhuma ciência porque o que a ciência só possui em um
sentido derivado lhe advém de uma maneira originária. A filosofia
não é nenhuma ciência —e isso não por carência, mas por um ex­
cesso que é aqui principiai e não apenas quantitativo.
Já dissemos que a expressão “filosofia científica” é tão equívoca
quanto a expressão “ferro lígneo”. A designação “círculo arredonda­
do” corresponde de maneira muito melhor à expressão “filosofia
científica”. Aqui é atribuído ao círculo algo que não lhe convém;
pois o círculo não é, afinal de contas, arredondado; ele não é mais
ou menos redondo, ou seja, não é redondo apenas em alguma par­
te. Ao contrário, ele é pura e simplesmente redondo. No entanto,
também se está atribuindo ao círculo algo que convém exatamen­
te a ele em um sentido insigne, uma vez que ele representa perfei­
tamente a idéia do redondo. De maneira correspondente, na ex­
pressão “filosofia científica” é atribuído à filosofia algo que não lhe
convém —ela nunca é pura e simplesmente uma ciência. Ao mes-
Filosofia e ciência 19

mu lempo, porém, se lhe atribui algo que ela já possui em um sen-


llilo originário: ela é mais originária do que toda ciência porque
luda ciência está enraizada na filosofia e é dela que primeiramen-
lr emerge.
I nunciar que o círculo é arredondado é ao mesmo tempo supér-
llun e inadequado. E esse fato, esse não-poder-ser mais ou menos
iiiiedondado, não é fruto de uma incapacidade. E sim muito mais
uma supercapacidade: o círculo é essencialmente dotado de muito
mais. I)izer da filosofia que ela é ciência é ao mesmo tempo supér-
lluo e inadequado. De modo correspondente vale afirmar: a razão
pela qual a filosofia não é nenhuma ciência não está calcada em ne­
nhuma incapacidade, mas em uma supercapacidade essencial.
No entanto, como a filosofia é em certa medida ciência tal
i uniu a própria ciência nunca pôde ser, como a filosofia é mais ori­
ginária do que a ciência, e como a ciência tem a sua origem na fi-
lusolia, pôde-se designar a origem da ciência, a saber, a filosofia,
ela mesma como ciência, sim, até mesmo como a ciência originá­
ria e a ciência absoluta, determinando-a como tal.
Nao se deve compreender a filosofia científica como um “ferro
ligneo”, como uma expressão em que os termos se encontram em
uma relação mutuamente excludente. Ao contrário, é preciso com-
pieeiulê-la como um “círculo arredondado”. Contudo, por mais
elucidativa que possa ser essa comparação, ela também acaba por
i I.indicar e dá assim ensejo a uma perigosa incompreensão que
precisamos afastar logo no começo. Não podemos nem devemos
designar o círculo como “arredondado” porque ele é pura e sim­
plesmente redondo, porque “arredondado” não seria senão uma
equiparação deficiente com “redondo”. Ele não pode ser definido
por meio de algo que em certa medida só apresenta um decrésci­
mo, uma privação de sua essência.
Analogamente, a ciência encontra-se em uma equiparação defi-
i lente com a filosofia, com essa que é a ciência maximamente
pura e primeira. Aqui deparamos com o ponto dos erros mais fa­
lais, dos erros que também poderiam apoiar a mencionada compa-
20 Introdução à filosofia

ração. Pois a filosofia não é precisamente ciência, nem mesmo a


ciência mais pura e rigorosa. De fato, ela não é a ciência mais ri­
gorosa e, além disso, ainda algo mais. A única coisa que podemos
dizer é: o que a ciência é por sua parte reside na filosofia em um
sentido originário. Filosofia é em verdade origem da ciência. Exa­
tamente por isso, contudo, ela não é ciência - não sendo também
ciência originária.
Convém reter exatamente essa idéia porque sem ela sempre vol­
ta a se impor uma vez mais a tendência de determinar a filosofia
como ciência, ou seja, a tendência de equipará-la mesmo inopina­
damente a uma ciência determinada; por exemplo, à matemática
como a ciência mais elevada e rigorosa. Sempre que se dá o passo
em direção à idéia de ciência, desconhece-se a essência da filoso­
fia. Pode-se tomar a ciência da maneira mais rigorosa possível e
anexar-lhe em seguida uma visão de mundo: em sua soma e fusão,
as duas não tocam a essência da filosofia.
Tal como já enfatizamos reiteradas vezes, a determinação da fi­
losofia em vista da idéia de ciência, sobretudo em vista da mate­
mática - tomando o elemento “matemático” naturalmente em um
sentido muito amplo —, é uma tendência caracteristicamente mo­
derna. Na filosofia antiga, porém, nos primórdios decisivos de nos­
sa filosofia ocidental, notamos justamente o intuito oposto —e isso
não é nenhum acaso. Na Antiguidade, a filosofia não recai no gê­
nero das ciências. Ao contrário, são as ciências que se mostram aí
como “filosofias” de um tipo determinado.

§ 6. As concepções antiga e moderna de filosofia

Para o termo cpiAoootpía, os gregos, de um modo característico,


dispõem de um plural: (piÂooocpíai,. A matemática e a medicina,
que já gozavam na Antiguidade de um elevado florescimento e de
uma elevada autonomia, foram consequentemente denominadas
"filosofias”. Diante delas, o que chamamos simplesmente filosofia
é, segundo a designação de Aristóteles, a irpámi cpiXoaocpía, a “fi-
Filosofia e ciência 21

IiimiIiu primeira”. Essa lilosofia é primeira não em meio às discipli­


na'! Illosóficas, mas é simplesmente filosofia em sentido originário.
Na maioria rias vezes interpreta-se a expressão “prima philosophia"
In» Nrnlido de que com ela seria designada a primeira disciplina em
lúcio ao conjunto das disciplinas filosóficas, a disciplina que vem
anlcs da ótica, da estética etc. Essa é uma concepção errônea que
n nana ainda mais equivocada quando se reinterpreta esse con-
i ello dr primeira filosofia de uma maneira moderna: como primei-
ia i léncia, como ciência originária. O autor desse erro fundamen­
tal r I icscartcs, que requisita o antigo conceito da jtpónx| cpiXoaocpíct
paia a lundamentação da filosofia como ciência —segundo o ideal
•la matemática como a ciência propriamente dita —e denomina ex-
pirsMimcnte a sua obra capital Meditationes de prima philosophia1.
( !om essa concepção de filosofia primeira, Descartes tenta, em
Mia segunda obra principal, os Principia philosophiaef sistematizar
de uma forma nova o conteúdo global da filosofia tradicional, por-
lanlo, da escolástica. É daí que provém a associação feita desde
eiiláo da metafísica tradicional com a idéia peculiar de filosofia pri­
meira como ciência fundamental.
<) empenho derradeiro e certamente velado de Kant dirige-se à
suspensão4de toda essa conexão. Seu intuito não é tanto fundamen-

Hoiié Descartes. Meditationes de prima philosophia, Paris, 1641, 2? ed., Ams-


li nl.iiii, I(i42.
1Heue Descartes. Principia philosophiae, Amsterdam, 1644.
1I I lermo utilizado por Heidegger nesse ponto é o termo central do pensamen-
I•i liegeliano: Aufhebung. Em função da complexidade desse termo, ou seja, em
liiiição do fato de ele indicar um movimento simultâneo de eliminação, de conser-
\ nr, m■c de elevação, alguns tradutores optam pelo neologismo “suprassunção”.
I ><sii solução não me parece adequada porque não traduz em primeiro lugar ple-
iiiimi iilc essa complexidade e não dá senão a impressão de conter os três momen-
lii'. i nados. “Suprassumir” significa literalmente colocar alguma coisa sobre o seu
l'oiloi e só designa eliminação e conservação a partir de uma interpretação espe-
■llii ,i Em contrapartida, o termo vernacular “suspensão” mantém uma relação
■um os três momentos visados por Hegel: suspender é por um lado elevar e as-
1111 • onservar de algum modo o que se eleva. No entanto, por outro lado, suspen­
di i i.iinbém possui a significação de eliminação. (N. do T.)
22 Introdução à filosofia

tar uma nova metafísica ante a metafísica tradicional, mas muito


mais romper a unificação cartesiana do ideal matemático de co­
nhecimento com a metafísica tradicional. Esse intuito maximamen­
te intrínseco a Kant não foi mais concebido por seus sucessores.
Na filosofia moderna, por conseguinte, encontra-se a tendência
de determinar a filosofia como ciência. Na filosofia antiga, ao con­
trário, vemos a tendência de determinar as ciências como filoso­
fias. Por qual concepção devemos nos decidir? Ou devemos achar
um meio-termo entre essas duas tendências? E possível que haja
meios-termos em um lugar qualquer, mas não na filosofia.
Encontramo-nos diante da tarefa de formular novamente o pro­
blema da relação entre filosofia e ciência. “Novamente” não signi­
fica aqui repelir o velho e inventar algo novo. Ao contrário, signifi­
ca repetir os velhos problemas em meio à proteção da autêntica
tradição. Portanto, se quisermos realmente determinar como é que
a filosofia se relaciona com a ciência, então está mais do que na
hora de levarmos a termo primeiramente uma explicitação do que
significa o termo “ciência”. Antes de respondermos a essa que de
fato é uma questão das mais prementes, o termo “filosofia” deve
ser rapidamente esclarecido.

§ 7 . 0 termo "filosofia”

A explicação mais detalhada do significado da palavra qpiXocrocpía


ainda não traz à tona nenhuma definição da essência da filosofia.
Por outro lado, porém, não se pode deixar de levar em conta justa­
mente a explicação de vocábulos tão fundamentais. A partir desse
termo, já extrairemos dados indicativos sobre a essência da filoso­
fia, mesmo que esses dados ainda permaneçam indeterminados e
oscilantes.
A designação grega (piAoaoqáa é composta a partir de aoqpíot e
cpiAelv (cpíÁ.oç), ou seja, a partir de sabedoria e amor; costuma-se
traduzi-la de modo um tanto sentimental e bonachão: amor à sa-
Filosofia e ciência 23

liodorlu. No fundo, essa expressão não diz nada. Precisamos ten-


liii Iriizer à tona o sentido em que os gregos a compreendiam em
orii uso prático. A oocpía pertence o adjetivo aocpóç; por sua vez,
i *<iipoç; (' aquele que tem o paladar certo para algo, que tem “olfa­
to" o instinto para o essencial, e, por isso, tem facilidade em lidar
illielnmonte com esse algo, compreendendo-o de modo profundo,
Isto (\ Irata-se de alguém que consegue se colocar diante de uma
i olsii do uma maneira exemplar e, portanto, sobrepujante. Por isso,
itui|ií(t iclere-se originariamente ao trabalho artesanal. Na Ilíada
do I lomero (XV, 410-12)5, encontramos assim a seguinte afirma­
ndo acerca do carpinteiro: àX kw çxt oráópir] ôópu vf|iov l^iíhjVEi,
im ovoç Èv Jta/uáuqai ôarjpiovoç, oç pá te jtáariç etj eíójj aocpír|ç
iijiu(h||rocTÚvpotv ’Aárjvriç [assim como o prumo dá uma forma ple­
na a viga do navio nas mãos do carpinteiro habilidoso, que conhe-
io a fundo sua arte em virtude dos ensinamentos de Atenas]; e
I losíodo designa aquele que é perito em navegação ou em navios
i nino outé xi vauTiÂír|ç aeaoqpiapévoç ou té t i vr|ã>v (Opera et dies,
f o i ' ) ) “.
r.ssc termo oocpía também é depois transposto para a poesia e
pata a música, e, em geral, para tudo o que pode ser em algum sen­
tido compreendido e, por conseguinte, realizado. Primevamente, o
Icimo oocpiotrjç também tinha a mesma significação que oocpíç, e
11ii assim que os sete sábios foram chamados. “Sofista” não tinha
oi iginariamente a significação negativa, depreciativa. Os termos
alemães que melhor correspondem a esses termos gregos aocpóç,
iinipíu, aocpicmrjç são Verstehen [entender/compreender] e Verstãnd-
iils |compreensão], ainda que essa correspondência não se repita
na formação da palavra Verstand [entendimento].
Três coisas estão manifestas no termo oocpía: em primeiro lugar,
ui ompreender desde o fundamento; em segundo lugar, o compreen-I

I Unneri opera, Scriptorum classicorum Bibliotheca Oxoniensis. Oxonii e


lV|M>|'ia|>heo clarendoniano Londini et novi eboraci apud Humphredum Milford.
“ I lesiodo. Opera et dies, verso 649. Die Hesidiodische Gedichte [org. por Dr.
11,nr. I'lach], Berlim, 1874, p. 27.
24 Introdução à filosofia

der como um instinto imediato; e, em terceiro lugar, o compreender


enquanto algo exemplar e, por isso, enquanto conhecimento de
e capacitação para realizar algo decisivo. Portanto, o compreender
estava inicialmente circunscrito à esfera da atividade artesanal.
Nesse caso não podemos perder de vista que inicialmente o arte­
sanato tinha no ser-aí, ou seja, com respeito à sua relação funda­
mental com as coisas, uma posição e uma função centrais totalmen­
te diversas do que um atual literato de uma grande cidade conse­
guiría ao menos suspeitar. Somente porque o compreender artesa­
nal já era de maneira latente um compreender imediato e normativo
da totalidade do mundo, somente por isso o termo oocpía pôde ser
ampliado, passando a significar todo e qualquer compreender, em
particular o compreender das possibilidades fundamentais do ser-
aí na totalidade, o todo das coisas que se manifestam aos homens.
Isso precisa ser compreendido como Jtcuôeía. Foi por isso que na
Antiguidade, durante muito tempo, os termos “filosofia” e jrcuôeía
koivõiç estiveram equiparados. Podemos traduzir essa expressão

mais ou menos por “formação”, mas não pela nossa “formação ge­
ral” de hoje. Assim, em vista da antiga cunhagem do conceito de
“filosofia”, Cícero constata: Omnis rerum optimarum cognitio atque
in iis exercitatio philosophia nominata est7. “Tudo o que se constitui
como uma compreensão das coisas em sua essência própria e como
um saber lidar com essa essência foi chamado de filosofia.”
A essa ampliação da esfera daquilo que pode ser compreendido
e a essa extensão do conceito de aoqpía não apenas à música e à
poesia, mas também à ciência e a todo tipo de possibilidade de for­
mação está associada, porém, de maneira característica, uma limi­
tação: esse compreender experimenta limites em si mesmo. Quan­
to mais o homem aprende a compreender o mundo na totalidade,
tanto mais experimenta que esse compreender não está simples­
mente aí e que tampouco é possível tomar posse dele sem maiores

7 Cf. M. Tullii Ciceronis, libri tres, with introduction and notes by August S.
Wilkins, Oxford 1892, III, 60 (16), p. 439.
Filosofia e ciência 25

till It uldades. O compreender carece de um esforço particular e


i mi'.limlc que precisa ser previamente empreendido no sentido de
imin Inclinação originária para as coisas. Essa inclinação, essa ami-
/iMIf interior com as coisas mesmas é o que está designado com o
lei mo (|)t>úa —uma amizade que, como toda amizade autêntica e
ilnilii a sua própria essência, luta pelo que ama.
(Jiianlo mais o aotpóç se mostra como alguém que compreende,
i num alguém que, em uma relação originariamente livre, em uma
lelaçiio de confiança com as coisas, luta incessantemente por sua
i umpreensão, tanto mais esse alguém se descobre como cpiXóaotpoç.
I'm isso, esse compreender não é algo que se concretize sem inter­
venção. Ao contrário, ele é algo que precisa ser acolhido na liber­
dade da existência e somente dessa forma passa a existir.
A primeira vez em que o emprego do termo tpiXócrocpoç aparece
documentado é em Heráclito (Diels, Fragmento 35)8. Nos séculos
V e VI depois de Cristo, nas “Introduções à filosofia” das escolas de
CHcgetas em Alexandria, encontramos seis definições diferentes9:

I yviiKTi.ç xcõv bvtrov f| ôvxa éoxí


àjtò xenj
|conhecimento dos entes como entes] ÍO TO K EipÉV O U

[segundo o
yviDinç f)c,ío>v -te koci ávftpocwúvcov jtpaypáxcov seu objeto]
leonhecimento das coisas divinas e humanas] ,

I iirXírce Owváxou [meditação sobre a morte]


£K xoü xéXouç
[a partir de
I iipoíwoiç itera mxct xò Òuvaxòv cxvOpomm
’ seu fim]
fissimilação ao divino de acordo com o que é
possível ao homem]I

I Icrmann Díeis. Die Fragmente der Vorsokratiker, primeiro volume, 4? ed., Ber­
lim. 1022, p. 85.
9 Ammon, in Porph. Isag. (Comm. in Arist. Graeca IV, 3), p. 1; David Prol.
u 'iiinm, in Arist. Gr. XVIII, 2), pp. 20, 25; Elias (Comm. in Arist. Gr. XVIII, 1),
PP A
26 Introdução à filosofia

5. xÉyyr\ xexvròv K a l èmcrtr||j,Ti f,jacTrr|uõ)v I èk xfjç


[arte das artes e ciência das ciências] í xOTepoxíjç
J [a partir de
6. cpiÀía oocpíaç [amor à sabedoria] sua excelência]

Como a filosofia tem essa inclinação livre e é por isso mesmo


uma livre possibilidade fundamental da existência, ela se encontra
diante do perigo de ser mal utilizada e pervertida. A filosofia pode
comportar-se como se fosse uma tal possibilidade, mesmo quando
efetivamente não o é. Nesse caso, ela se torna aparência e é justa­
mente como aparência que ela conquista o seu maior poder e se­
dução. Ou seja: com o despertar da compreensão de que esse
compreender o mundo na totalidade requer a <piXíct - a inclinação
livre, combativa, autêntica - , também se torna manifesto o contrá­
rio, a aparência. E nesse momento que, em contraposição ao ter­
mo cpitáaocpoç, a palavra aocpicrrfiç passa a receber a significação de
pseudofilósofo, de adversário do filósofo, de alguém que parece fi­
lósofo mas não é, de alguém que com essa aparência, porém, leva
a cabo os seus negócios. Onde quer que a filosofia se apresente, aí
também aparece necessariamente a sofística. E isso não apenas no
tempo de Platão, mas em qualquer tempo - hoje talvez mais do
que nunca. Mais ainda: quando tudo se dá como se não houvesse
aparentemente nenhuma sofística, então é aí que as coisas vão mui­
to mal com a filosofia. Por isso, talvez não seja o pior sinal o fato
de o jornalismo começar hoje a se apoderar da filosofia. Todavia,
as coisas não são de um tal modo que de um lado tenhamos o fi­
lósofo e, de outro, o sofista; mas, como a filosofia é essencialmen­
te uma possibilidade humana, isto é, uma possibilidade finita, por
isso se esconde em cada filósofo um sofista.
O termo grego é ao mesmo tempo um indício da essência mais
intrínseca da filosofia, da essência que há muito não é tomada em
sua função central: ele é um indício de sua finitude. Nessa finitu-
de não está implícito que tenhamos enfim admitido de forma apa­
rentemente modesta e sempre com uma certa comoção que nosso
Filosofia e ciência 27

Niiltci seria uma obra fragmentária. Não é por nunca chegar ao fim
i|iie a Iilosofia é finita. A finitude não reside no fim, mas no come-
t,n dn Iilosofia; ou seja, a finitude precisa ser assumida em sua es-
sDirla no conceito de filosofia. Decisivo não é querer trilhar infi-
iillnmenle, porém até o fim, os caminhos uma vez conquistados,
mus sempre voltar a traçar a cada vez um novo caminho.
Podemos obter uma clara e derradeira caracterização do concei­
to e da palavra “filosofia” por meio de uma comparação com ter­
mos correspondentes, utilizados para designar ciências como a
Mo logia, a teo-logia, a antropo-logia ou a filo-logia. O sufixo “logia”
i onesponde à palavra grega Xóyoç, que significa tornar manifesto,
npieeiidcr, determinar algo. Com isso, zoologia significa o tornar
mimileslo, o apreender e o conhecer dos animais; antropologia, o
mesmo com respeito ao homem; teologia, o mesmo com respeito
a I )eus. Aqui, Xóyoç, -logia, é o termo para o tipo de apreensão le-
vmIn :i cabo em determinados âmbitos de objetos. No termo “filo­
logia", em contrapartida, Xóyoç é o objeto da ciência mesma, a lin­
guagem, o discurso; com certeza reside aqui uma certa <pi?úa. Por
analogia com a filologia, o objeto da filosofia seria a aocpía. No en­
tanto, Iilosofia não é o conhecimento da sabedoria.
filosofia não designa o que deve ser aí tratado e reconhecido,
tilas o modo, o tipo fundamental do comportamento. Daí dizermos:
lllosolia c filosofar. Mas, por mais importante que essa explicação
leimmológica possa ser, não podemos nos agarrar a ela e achar que
|it conquistamos por meio disso uma compreensão da filosofia.
SEGUNDO CAPÍTULO

A p ergu n ta sobre a e ssên cia da ciên cia

§ 8. Pergunta provisória sobre a essência


da ciência a partir de sua crise

Pois bem, para clarificar o modo como a ciência como tal está
presente na filosofia, ao mesmo tempo em que, porém, a filosofia
jamais pode ser denominada ciência, precisamos determinar pro­
visoriamente a essência da ciência.
A pergunta acerca do que é a ciência foi freqüentemente formu­
lada pelos gregos. Ela é uma questão antiga, ou seja, uma questão
sempre nova. Ela constitui uma daquelas questões que não se
aquietam quando dela já temos à mão uma definição. Ao contrá­
rio, a pergunta acerca da essência da ciência nos impele a uma me­
ditação fundamental. Se, como afirmamos, a ciência é um dos po­
deres de nosso ser-aí, então ela não apenas o determina, mas,
como tudo o que é essencial, ela traz uma in-quietude específica
para o cerne do ser-aí.
Não é nenhum acaso, embora seja motivado por uma série de
relações extrínsecas, o fato de muito se falar, em nosso tempo, da
crise da ciência; não apenas da crise dessa ou daquela ciência, por
exemplo, a crise da física ou a crise das ciências humanas cm meio
ao abalo momentâneo causado por Oswald Spcngler. Pressente-se
uma crise da ciência pura e simplesmente. Comparando-se com a
situação vigente poucos anos atrás, não há dúvida de que hoje já
se consegue perceber novamente com maior clareza a tentativa de
escapar dessa crise ora emergente e de manter afastada toda in-
Filosofia e ciência 29

i|iiiclação. A probidade geral novamente prevalece. Com certeza,


isso não é nenhuma razão para que também fechemos agora os
olhos ante a crise. Menos ainda porque essa crise não é nenhum
lenômcno casual do pós-guerra1, tal como a maioria pensa, mas re­
side de modo latente na própria ciência. Se a crise pertence à es­
sência da ciência, uma meditação sobre ela pode nos aproximar de
l.il essência. Por meio de uma caracterização da crise atual da
ciência, não queremos apenas averiguar algo sobre a atual situação
intelectual. Ao contrário, também queremos tentar apreender algo
da essência da ciência.
Podemos falar de uma crise tripla da ciência. Essa crise encon-
l ra-se hoje faticamente sedimentada de maneiras diversas nas di-
lerentes ciências particulares, sendo aí expressa e intensificada em
graus distintos.
1. A crise na estrutura essencial interna da própria ciência.
2. A crise da ciência no tocante à sua posição no todo de nosso
ser-aí histórico-social.
•i. A crise na relação do indivíduo com a própria ciência.
Certamente ultrapassaria em muito os limites desta preleção e
exigiria um exame das forças obstaculizadoras e motrizes mais ín-
timas de nosso tempo se quiséssemos tentar descrever de maneira
minuciosa a crise nesses três aspectos. Algumas indicações acerca
da necessária caracterização da essência da ciência deverão ser su­
ficientes. No entanto, ao mesmo tempo notamos que um aprofun­
damento também nos será importante para reflexões ulteriores
quanto à filosofia como tal.

a) A crise na relação do indivíduo com a ciência

Iniciaremos pela crise que foi citada por último: a crise da posi­
ção do indivíduo ante a ciência. Depois da guerra difundiu-se o
lema da revolução da ciência. Uma juventude romântica queria er-

1 I Ieiclegger tem em vista aqui a Primeira Guerra Mundial (1914-1918).


(N. doT.)
30 Introdução à filosofia

radicar da noite para o dia a antiga ciência acadêmica e substituí-la


por uma nova. O que se exprimiu aqui de uma maneira algo ruido­
sa não foi apenas um fenômeno do pós-guerra, mas algo que veio
se preparando nos anos imediatamente anteriores a 1914. Nesse
tempo, quando nossa geração cursava a faculdade e quando pare­
cia que não nos faltava absolutamente nada, despertou em nós uma
inquietude. Suspeitamos a presença de uma paralisia no funciona­
mento da ciência acadêmica e, juntamente com essa paralisia, o ad­
vento de uma especialização que, por exemplo, não fazia esforços
supremos de apropriação —o emprego de tais esforços pode ainda
hoje ser salutar - , constituindo-se como uma especialização por de­
trás da qual se escondia uma impotência: a impotência de transmi­
tir, de uma maneira simples e em direta comunicação com a exis­
tência, o conteúdo ontológico primário e originário da ciência.
A essa paralisia e a essa busca de especialização no funciona­
mento da ciência acadêmica veio se aliar algo mais que só podía­
mos pressentir e expressar de maneira obscura: não podia perma­
necer velado por mais tempo que, em meio aos progressos das
ciências particulares, a conexão entre as ciências e seu conteúdo,
por um lado, e um vivo ideal de formação efetiva, por outro, tinha
se rompido, e que essa ruptura só permanecia encoberta de manei­
ra artificial.
Assim, surgiu uma crescente incerteza quanto à posição da
ciência como tal, tanto no período em que frequentávamos a uni­
versidade quanto em suas repercussões posteriores sobre a exis­
tência. Antes da guerra, contudo, essa incerteza em relação à po­
sição existenciária2da ciência no interior do ser-aí ainda tinha para

2 Heidegger faz uma distinção entre os termos alemães existenziell e existenzial.


O primeiro designa a dimensão ôntica da existência, o fato de o ser-aí sempre en-
contrar-se em meio a situações determinadas e conjunturas específicas. Assim, op­
tamos por traduzi-lo pelo neologismo “exislenciário”. O segundo refere-se à própria
dinâmica ek-stática do ser-aí, ao seu ek-sistir a partir de um determinado compor­
tamento em relação ao mundo, à abertura do ente na totalidade. Para esse termo
reservamos o adjetivo "existencial”. (N. do T.)
Filosofia e ciência 31

mós uma íncisividade particular porque estávamos convencidos das


possibilidades positivas, intrínsecas à ciência, bem como de sua
Iunção existencial central, não deixando que a intensidade do tra­
balho fosse atenuada, mesmo nos âmbitos paralisados e especiali­
zados. Por fim, essa incerteza não foi de modo algum eliminada
pelo fracasso da filosofia porque a interpretação filosófica da ciên­
cia, da qual ainda iremos ouvir falar, parecia esquecer e esconder-
nos algo que apenas pressentíamos, mas não estávamos em condi-
çòcs de captar. Não obstante, gostaria de reter nesse ponto a fun­
ção positiva da teoria da ciência elaborada por Heinrich Rickert
que dominara normativamente a filosofia alemã na época anterior
ã guerra; ela era fundamentalmente superior a todo positivismo, tal
como esse havia se difundido por toda parte. E foi nessa situação,
que aqui caracterizei de maneira totalmente genérica a partir de
uma experiência pessoal e hoje, num olhar retrospectivo, pode ob­
viamente ser visualizada de modo mais claro do que o modo como
milrora estava manifesto, que irrompeu a guerra.
1)epois da guerra, essa situação crítica não se agravou, mas, de
i crio modo, apenas se popularizou. Essa penúria interna com res-
pcilo à ciência, penúria que não conseguimos usar como um trun-
lo contra essa ciência, tornou-se então tema de folhetos e, na me­
dula cm que um tal contágio se propagou, todos ficaram insatisfei-
los com a ciência. Todos acreditavam já deterem os meios neces-
sdrios para poder melhorar e reestruturar a universidade. A aversão
geral em relação à ciência e o clamor pela revolução científica ti-
iiham se intensificado; não porque a era dos especialistas e a para­
lisia tinham se ampliado, mas por causa da busca de inovação e da
i tença fantástica de poder alterar a ciência com o auxílio de cer-
11is programas. Esqueceu-se, porém, de primeiro obter ingresso na
i lêneia, a fim de, nela penetrando, reestruturá-la a partir de seu in-
Ii i jnr. A crise não se tornara mais incisiva e séria, mas apenas mais
undosa. No entanto, o que já nos faltava antes, ou seja, a possibi­
lidade de uma compreensão da ciência como tal no todo de sua es­
sência, mostra-se agora em suas amplas consequências, sem que
no fundo se tenha conseguido reconhecê-la até hoje com clareza.
32 Introdução à filosofia

A posição da existência do indivíduo em relação à ciência poder


entrar em crise. Isto se funda no fato de estar absolutamente inde­
terminado e inexplicado como é que algo como a ciência encontra-
se disposto no ser-aí humano como algo próprio à sua essência. Ê
esse o problema da essência existencial da ciência.
Por outro lado, se conseguíssemos fazer com que essa questão
sobre a essência da ciência se tornasse visível e perceptível como
um problema real e se pudéssemos então alcançar um esclareci­
mento essencial acerca da essência existencial da ciência, a crise
fática do indivíduo não seria com isso absolutamente suprimida.
Ao contrário, ela seria intensificada de uma maneira tal que seria
possível verificar como as tentativas românticas de querer refor­
mular a ciência a partir de uma posição situada fora dela, por meio
de uma subjugação e de uma superação artificiais, e mediante uma
visão de mundo e coisas do gênero são desde o início impossíveis.
Não decorreu nem mesmo uma década desde que a crise se di­
fundiu publicamente por meio de folhetos —e tudo parece ter se
aquietado uma vez mais e estar seguindo nos velhos trilhos - , mas
não como outrora; pois, sem querer hoje emitir nenhum juízo so­
bre os senhores e sem querer caracterizar nossa geração como me­
lhor, a intensidade e a seriedade do trabalho científico eram outro­
ra diversas, diferentemente configuradas, por mais que atualmen­
te talvez se continue a fazer provas tão boas quanto antes. Todavia,
não é essencial saber se a crise é ou não tratada publicamente por
meio de folhetos. Ela também está presente quando parece que
tudo está em ordem.
A crise citada no item três indica-nos que a essência da ciência
precisa ser manifestamente compreendida no contexto do ser-aí
humano como tal e a partir de sua constituição fundamental, e que,
por conseguinte, todas as definições da ciência que não são obtidas
nessa direção fracassam em um ponto essencial. Segue-se daí que
a ciência não é uma estrutura qualquer com a qual se estabelece
então naturalmente uma relação pessoal; uma relação ante a qual o
melhor que poderíamos fazer seria deixar ao arbítrio do indivíduo.
Filosofia e ciência 33

( lerlamente, o indivíduo precisa decidir a cada vez a sua relação


i onereta e fática com uma ciência determinada. No entanto, isso
m i ó realizável no círculo das possibilidades que dizem como de fato

aparenta ser a margem de manobra, no interior da qual o indivíduo,


de modo autêntico, se decide de um modo ou de outro.

b) A crise da ciência em vista de sua posição


no todo do ser-aí histórico-social

A crise citada em segundo lugar diz respeito à posição da ciên­


cia no todo do ser-aí histórico-social. Já foi aludido aqui que há al­
gum tempo se pressente mais claramente como foi rompida a co­
nexão entre a ciência e um ideal eficaz de formação. Já não está
i Iam à primeira vista de que maneira não apenas os resultados da
«iôncia, mas também a própria formação científica devem ser trans-
mitidos e incorporados ao plácido desenvolvimento de uma forma­
ção autêntica das comunidades humanas. A perplexidade ante a
ciência e sua função no todo da “cultura” se mostra tanto mais im­
portuna porque as forças de formação e do ser-aí que ainda deter­
minavam a existência no século XIX, mesmo que com frequência
não se mantivessem senão como boa convenção, perderam em
grande escala sua possibilidade de efetivação. Elas constituem
duas forças históricas: o ideal clássico de formação que é caracte­
rizado por nomes como Goethe e Schiller e a religiosidade cristã,
qualquer que fosse o seu credo.
Uma vez que a ciência se tornou agora questionável para si mes­
ma em sua própria significação, não subsistindo mais um ideal de
lormação e um estabelecimento originário de metas, ela cai como
que no vazio. Certamente tememos admitir sem reservas e para
iHis mesmos essa conjuntura. Em todas as situações essenciais que
podem se tornar críticas, o homem tenta se salvar por meio da fuga
para o interior da convenção ou de algum substitutivo. Por que
agora o empenho intransigente e indiscriminado pela populariza­
ção das ciências? Esforços no sentido da formação do povo que, do
34 Introdução à filosofia

ponto de vista social, podem ser necessários nunca são mais do


que pretextos e ocasiões para se tirarem vantagens. Quando essa
tendência de popularização partir das próprias ciências e for ati­
vamente acionada por elas - muitos eruditos só continuam traba­
lhando em manuais e coletâneas de terceira e quarta categorias (o
que é bem sintomático) —, então ela também precisará ter seu
fundamento nas próprias ciências. Esse fundamento é duplo: 1. a
penúria interna, ou seja, a ausência de significação da ciência; e
2. a falha.
Essa tendência para a popularização iria remediar uma penúria
claramente pressentida e compreendida, iria criar um modo de su­
prir uma falha e conferir uma vez mais significação à ciência; e isso
por meio de um caminho que é quase óbvio, na medida em que
seu efeito prático pode ser mais expressamente documentado. No
entanto, não seria a mesma coisa tornar a ciência algo prático ou
popularizá-la? Por que é que a popularização da ciência deveria ser
tão prejudicial?
De fato, a popularização da ciência é um mal, e isso não por
causa de suas consequências ruins, mas por ela fazer com que a
ciência seja fundamentalmente mal compreendida em sua essên­
cia, ou seja, por ela promover uma destruição interna da essência
da própria ciência, uma aniquilação e um soterramento crescente
das possibilidades de devolver-lhe sua posição originária na histó­
ria do ser-aí.
Por mais que possa ser pautada por motivos sérios, toda popu­
larização da ciência é uma agressão contra a essência da ciência.
Isso se dá, uma vez que toda popularização desconhece o fato de
a ciência não poder ser equiparada a seus resultados, que são en­
tão continuamente transmitidos de mão em mão em uma apresen­
tação qualquer. Essa equiparação não deve ser rejeitada simples­
mente porque a ciência, no assim chamado progresso científico,
sempre vai além de seus resultados, mas porque ela realmente nun­
ca se manifesta como ciência nos resultados. Popularização não
constitui apenas necessário nivelamento da ciência, mas também
Filosofia e ciência 35

desvalorização interna dela. A popularização choca-se contra a es­


sência da ciência porque o essencial da ciência não reside no que
(• meramente transmissível, no que pode ser passado de mão em
mão, mas no que é sempre apropriado novamente. Contudo, essa
apropriação originária do essencial só é possível em meio ao méto­
do que é entrelaçado de maneira inseparável ao conteúdo técnico
0 ao resultado. Método certamente significa mais aqui do que o
que geralmente é designado com esse termo; o próprio método é
mais do que técnica.
Na desorientação geral quanto à significação da ciência, porém,
a popularização não é somente uma saída por meio da qual ainda
ê lornecida então uma significação para a ciência; e, até mesmo,
uma significação tal que, nos assim chamados “amplos círculos”,
pode incluir uma avaliação universal e, por isso, efetivamente du­
vidosa. Ela também é a tentativa de suprir uma falha supostamen-
le autêntica, a fim de concretizar o que, com efeito, pertence à es­
sência da ciência, a saber, o fato de ela ser em si mesma prática.
() que se pretende é uma reaproximação da vida com a ciência,
que hoje é censurada com o bordão “distante da vida”. Nessa ten­
dência reside algo autêntico, na medida em que se pressente que
as ciências possuem em verdade caráter puramente teórico, ou
seja, que elas têm a tarefa primária de investigar primordialmente
a verdade em função da verdade, abstraindo de toda e qualquer
utilidade. Os resultados da ciência, contudo, também precisam,
por lim, servir a algo —precisam de uma argumentação que seja
elucidativa para todos.
Todavia, resta questionar se o caráter verdadeiramente prático
da ciência consiste na possibilidade de usufruí-la. Com base na
1iência natural e por meio dos assim chamados triunfos da técni­
ca, isso se nos tornou uma obviedade. Essa concepção do caráter
pialico da ciência pressupõe uma vez mais que sua verdade con­
sista nos resultados que então ainda são aplicados e utilizados. Só
que a ciência não se torna primeiramente prática pela aplicação de
seus resultados. Ao contrário, ela é prática em si mesma e atua
36 Introdução à filosofia

como tal de modo imediato, contanto que se compreenda em que


consiste sua verdade. Assim, a crise relativa à posição da ciência no
todo da cultura também emerge de um desconhecimento peculiar
da essência da ciência, da essência da verdade que lhe é peculiar.
O caráter prático das ciências particulares é diverso, mas não é
fácil de determinar. Com o exemplo da medicina ou da antropolo­
gia médica é possível explicitar como o caráter prático da medici­
na se transformou em problema, apesar de ela ser eo ipso uma
ciência prática. Em verdade, seus resultados são incontestáveis.
No entanto, eles despertaram questões quanto a se afinal todo o
conhecer médico estaria colocado em um horizonte tal que, no in­
terior do todo desse conhecimento, uma tal forma de existência
como a do médico pode surgir imediatamente. Subsiste o fato cu­
rioso de que homens jovens possuem conhecimentos médicos,
mas nunca experimentam o que significa ser um médico, subsiste
o fato de que o conhecimento médico e a existência como médico
estão intimamente relacionados e de que, portanto —se podemos
falar assim - , enquanto essa relação não for clarificada, haverá um
ponto fraco em algum lugar da medicina. O mesmo problema -
com as variações correspondentes —surge e está latente em todas
as ciências, mesmo naquelas que aparentemente não possuem ne­
nhuma relação com a práxis.
Se nossa afirmação de que a ciência é em si mesma prática real­
mente procede, essa essência prática precisa apresentar uma con­
formidade própria com o caráter teórico da ciência. É preciso de­
terminar então o significado do termo “teórico’’ a partir da essên­
cia da verdade da ciência.
Assim já se anuncia que a crise citada em segundo lugar tem a
mesma raiz comum que a citada cm terceiro lugar e discutida an­
teriormente; que em algum lugar precisa estar fundamentado ori-
ginariamente o porquê de tanto a posição do indivíduo ante a ciên­
cia quanto a posição da ciência no todo da cultura serem respecti­
vamente apreendidas como um suplemento à ciência; suplemento
esse que, embora seja necessário, constitui um acréscimo ulterior
Filosofia e ciência 37

e extrínseco a ela. Portanto, à ciência “também” foi, por assim di­


zer, anexado algo de fora, a saber, uma relação pessoal com a ciên­
cia, sendo que a ciência “também tem ainda” uma ligação prática
com as outras possibilidades da existência. Contudo, esse “também
tem ainda” é o sinal de que isso de que se trata aqui não é compreen­
dido a partir da essência da ciência, pois não pode ser com­
preendido a partir da concepção dominante de ciência.
A raiz comum das duas crises não pode ser apreendida porque
a essência da ciência não é suficientemente determinada de ante­
mão, ou seja, porque ela é subdeterminada. Assim, o horizonte que
se abre para a possível determinação da essência da ciência tanto
é por demais estreito quanto por demais obscuro. Por conseguin­
te, se meditamos sobre a crise citada em primeiro lugar, a crise
que, segundo nossa formulação, diz respeito à construção essen­
cial e interna da ciência, parece que tocamos imediatamente a raiz
da crise. Nas considerações feitas até aqui, contudo, já vimos que
as crises nunca fornecem mais do que uma indicação sobre o lu­
gar em que temos de procurar sua raiz. Elas jamais dizem onde te­
mos de encontrá-la.

c) A crise na estrutura interna da própria ciência

A crise na estrutura essencial da ciência anuncia-se por meio do


que se gosta de designar hoje com o bordão “crise dos fundamen­
tos”. Assim, fala-se de uma crise dos fundamentos da matemática.
Apesar de essa crise ainda se mostrar hoje como completamcnte
obscura para matemáticos e filósofos, justamente ela alcançou
uma certa popularidade porque a crise diz respeito aqui a uma
ciência que se toma há milênios como pura e simplesmente inaba­
lável, uma ciência na qual se passava —segundo a idéia de uma
ciência a-histórica - de uma descoberta para a seguinte. No entan­
to, essa crise de fundamentos não subsiste apenas na matemática,
tampouco se iniciou somente agora. Ao contrário, ela reside em
Ioda ciência desde que há ciência. Isso significa: o que está sendo
38 Introdução à filosofia

apontado com o bordão “crise dos fundamentos” pertence à essên­


cia da ciência.
Visto de fora é inicialmente estranho que as ciências submetidas
à crise dos fundamentos não caiam por terra, mas, muito ao con­
trário, com freqüência —pensemos na física atual e mesmo na bio­
logia - se achem em um grande desenvolvimento. Fala-se de cri-
se-de-fundamentos, abalo dos fundamentos - e, não obstante, a
construção não parece prestes a ruir. Como a imagem de bases, de
fundamentos e de construções não diz muita coisa, é importante
determinar aqui mais proximamente o significado da expressão
“fundamentos de uma ciência”.
As ciências movimentam-se dentro de determinados enuncia­
dos, proposições e conceitos. Esses são determinados em seu con­
junto por meio de proposições fundamentais (princípios)3 e con­
ceitos fundamentais. Dessa forma, fala-se que os conceitos de cau­
salidade, de causa e de causação tornaram-se inúteis por meio da
física mais recente, exatamente como o conceito de matéria. Na
biologia cresce a intelecção da necessidade de circunscrever nova­
mente ou mesmo pela primeira vez o que quer dizer ser vivo, orga­
nismo. Começa-se a ver que a química é uma ciência rica e ex­
traordinariamente elevada, mas que o que interessa não é querer
apreender o organismo e sua essência por meio do mero quimica-
lismo. Na filologia desperta por todos os lados uma nova medita­
ção sobre a essência da linguagem, sobre uma nova formação da
idéia e da estrutura da gramática, assim como sobre o conceito e a
essência da “literatura” e dos “gêneros literários”. Na história cres­
ce a intelecção de que a compreensão do elemento histórico não 6
arbitrária e está sim submetida a mudanças essenciais que as ciên­
cias naturais não estão em condições de conhecer, embora estas

3 O termo alemão Grundsatz é normalmente traduzido por “princípio”. No en­


tanto, ele diz em seu sentido literal o mesmo que “proposição [Saíz] fundamental
[Grund]". Como Heidegger acentua acima o caráter fundamental dos princípios
sobre os quais a ciência já sempre se movimenta, optamos por explicitar mais lite­
ralmente o termo. (N. do T.)
Filosofia e ciência 39

disponham de leis próprias para a sua formação. Na teologia cris­


tã, naturalmente apenas na protestante, busca-se uma nova com­
preensão dos conceitos de fé e de revelação.
Esses são exemplos casuais e extrínsecos de que tais conceitos
que funcionam como diretrizes para as ciências particulares se tor­
naram vacilantes e de que é preciso obter uma nova circunscrição,
com maior ou menor parcela de boa sorte, com maior ou menor
parcela de boa visão dos caminhos possíveis.
Com certeza, as coisas não se acham agora de um modo tal que
os pesquisadores estariam, por exemplo, empenhados de comum
acordo em obter uma nova clarificação e consolidação dos concei­
tos lundamentais, ou mesmo estariam admitindo de modo unâni­
me a necessidade de uma tal tarefa. Ao contrário, a maioria se
opõe a ela e vê em tais tentativas uma imiscuição da mística e da
metafísica em sua ciência. Não se quer saber nada sobre essas
loisas difusas e genéricas, sobretudo quando essa suposta revisão
dos fundamentos da ciência é empreendida juntamente com uma
certa visão de mundo exaltada, e quando é defendida mais com
um páthos ruim do que com boas razões. Ante esses experimentos
questionáveis, as pessoas costumam apelar para a solidez e para a
constância da investigação específica e recusar todas as inovações
dessa natureza. Quando admitimos que é necessário uma tal me­
ditação, acreditamos, porém, que os meios da própria ciência até
aqui, uma ciência tão elevadamente desenvolvida, são suficientes
para cumprir essa tarefa —acreditamos, portanto, que é possível
conceber matematicamente a essência e os fundamentos da ma­
temática.
Assim, dá-se o caso de que, por um lado, as ciências e os seus
icpresentantes apelam para os fatos e métodos consolidados -
uma teimosia que se entrincheira por detrás do acúmulo de resul­
tados - e, por outro lado, operam rápido demais com idéias e con-
i eitos lilosóficos tomados de empréstimo em algum lugar qualquer
e trazidos de fora para o interior da ciência. Em meio à crise da
i lencia, as ciências e seus representantes são jogados para cá e
40 Introdução à filosofia

para lá entre aquela teimosia e a efusividade de uma atmosfera ávi­


da por inovação, sendo que, com isso, nunca saem do lugar. Des­
sa forma, 6 preciso confessar que essas crises dos fundamentos
não são seríamente abordadas e compreendidas, que elas só mos­
tram o quão extraordinariamente longe as ciências estão hoje - em
todos os progressos e todos os resultados —de uma compreensão
ainda que apenas da crise como tal, isto é, o quão distantes elas es­
tão da intelecção da essência da ciência.
Uma tal autocompreensão da ciência talvez não seja, porém, ab­
solutamente necessária, contanto que o assim chamado progresso
científico continue avançando todos os dias sem qualquer entrave.
Em que pode contribuir, por exemplo, uma definição da física para
os seus progressos se ela é, de mais a mais, tão incompreensível
para os físicos quanto todas as teorias filosóficas? “O que podemos
fazer com isso?”: essa é a pergunta usual e quase espontânea que
surge nas ciências particulares ante tais empenhos principiais. O
matemático não precisa de maneira alguma saber em que consis­
te a essência da matemática, contanto que ache resultados corre­
tos e úteis. No entanto, o progresso objetivo no âmbito dos fatos,
progresso esse que é considerado tão importante, constitui por fim
justamente a razão para esse não-saber-o-que-fazer com uma me­
ditação principiai, ao mesmo tempo em que constitui também a
razão para a penúria interna da ciência, que só muito raramente
é confessada e, contudo, se insinua em todos os caminhos que
aludimos.
Assim, as pessoas se esquivam dessa crise interna da ciência
porque já não compreendem absolutamente como as coisas podem
ser aqui questionadas de maneira séria e frutífera. Talvez as coisas
se dêem de fato de um tal modo que nem a ciência particular por
si mesma, em meio ao autoconhecimento habitual, nem uma filo­
sofia trazida de fora possam mesmo apenas despertar a crise. Com
essa tentativa de utilizar uma ou outra coisa, a raiz da crise não é
de modo algum atingida. A questão certamente permanece centra­
da em saber se são apenas o fracasso da filosofia, por um lado, e o
Filosofia e ciência 41

liilu querer ila ciência, por outro, que impedem que a crise autên-
lli a iif|a deflagrada - ou se, contudo, isso se deve ao fato de tanto
a llItiMilia quanto as ciências operarem com uma idéia de ciência
11Hi* não é suficiente para compreender o problema. Esta última
hipótese vem a ser de fato o caso.
Nau nos encontramos tão originariamente no cerne da ciência
piiia apreender sua crise desde o seu fundamento, ou seja, para
»rimos envolvidos pela própria crise de modo crítico e no senti­
do mais sério possível. Não nos apropriamos da ciência de modo
Mo elementar e transparente para poder deparar com os limites
da própria ciência, para compreender junto a esses limites por
que ela não está casualmente, mas necessariamente delimitada
( mui) ciência. Enquanto não chegarmos ao ponto em que os pes­
quisadores que atuam nas ciências particulares percebam que, com
os meios de sua ciência, eles nunca estarão em condições de
( oneeber os fundamentos dessa ciência e de perscrutá-la nesses
lundam entos, toda investigação de fundam entos será em vão.
A matemática não pode ser concebida matematicamente, e ne­
nhum lilólogo pode iluminar a essência da filologia com métodos
lllológicos.
I.m primeiro lugar, precisamos aprender a compreender o que
significam os fundamentos de uma ciência e em que medida a cri­
se dos fundamentos revela justamente os limites essenciais da
i iene ia como tal. Não é essencial saber se a crise das ciências hoje
i onlinua ou não sendo publicamente tratada e o modo como isso
se dá; decisivo, porém, é se estamos suficientemente dispostos e
lorles para atravessar a crise, ou melhor, para penetrá-la. Pois a cri­
se não deve ser superada. Ao contrário, ela deve se tornar vital; e
isso não apenas para que as ciências se tornem melhores, mais de­
sobstruídas e mais rápidas em seus progressos, mas para que elas
possam em geral se tornar tão existentes quanto, de acordo com a
sua essência, quiserem.
Essa mudança na posição da existência ante a ciência não é, po-
iem, uma questão de organização e de funcionamento, tampouco
42 Introdução à filosofia

acontece da noite para o dia. E característico do tempo atual que,


mesmo quando concebemos certas possibilidades e tarefas autên­
ticas, ainda não aprendemos o que pertence à sua realização. Não
sabemos mais esperar e isso significa que desaprendemos que a
primeira tarefa de toda geração que quer algo consiste em que ela
se sacrifique pela geração seguinte, sem resignação, mas muito
mais com a força interior e com a segurança daquele que com­
preendeu que em todas as realizações autenticamente humanas
cada um não pode ser “senão” precursor para algum outro.
Essenciais não são o programa e a estrutura de funcionamento,
mas sim o crescimento interno da história em uma determinada
geração. O que importa não é falar, mas atuar. O que tentamos
compreender aqui é justamente o modo como isso se dá. Não está
em minhas mãos se os senhores irão compreendê-lo e se realmen­
te agirão. Somente uma coisa ainda pode ser dita antes de parar­
mos de falar sobre a crise: não passaria de um afã cego se os se­
nhores agora começassem repentinamente a afirmar, por exemplo,
nos seminários de sua especialidade, que as ciências se encontram
propriamente em uma crise, e se os senhores tentassem reformular
sua ciência com o auxílio de uma terminologia heideggeriana.

§ 9. Nova meditação sobre a essência da ciência

A discussão das três crises trouxe à tona as seguintes perguntas:


1. Qual é afinal a posição de algo assim como a ciência na exis­
tência humana?
2. Em que sentido a ciência é “prática”?
3. O que significa fundamento da ciência e até que ponto reve­
la-se nesse fundamento um limite intrínseco à essência da ciência?
A caracterização da crise concernente à posição do indivíduo
em relação à ciência mostrou que não subsiste apenas uma obscu­
ridade quanto a como o indivíduo deve se comportar em relação à
ciência, mas que não se questiona de modo algum em que senti­
do a ciência se encontra na existência humana.
Filosofia e ciência 43

I 'i' ..... lo adequado, a crise da ciência quanto à sua posição no


indo da realidade histórica pode ser formulada como a indagação
mine o euráler essencialmente prático da ciência. Pressente-se que
a I leni ia. juslamente quando é teórica no sentido próprio e autên-
•I* ", min pode, apesar disso, ficar pairando livremente diante da
i'0'iK'iieia concreta da história. Assim, procura-se uma saída para
eiiii obscuridade e indeterminação da finalidade da ciência por
un lo Il.i tendência hoje particularmente forte de popularização. Vi-
.... 'o <nnludo, que essa não é uma falha casual da ciência, mas uma
»loliiç.lo de sua essência interior. De acordo com o seu sentido, a
I lem l,i não pode ser popularizada. O que se quer, no fundo, com
I'•h*«e lornar a ciência prática, sem que se compreenda propriamen-
le em que consiste o caráter prático da ciência. No entanto, somen-
le m‘ clariliçarmos esse caráter, poderemos dizer também em que
medida uma certa técnica pertence a toda ciência e que posição e
papel ela lem na existência prática da própria ciência.
I'm lim, a crise na construção essencial e interna da ciência, ou,
I muiI se diz hoje, a “crise dos fundamentos da ciência”, deixou cla-
iii paia nós que o que está propriamente em questão nessa crise é
I miligiunr a autocompreensão das ciências de maneira tão clara e
iiilglnaria que as ciências reconheçam aí seu próprio limite, a fim
de ver reluzir ao mesmo tempo o que determina esse limite, isto é,
h milrii, aquilo que, embora seja trazido pela própria ciência, não
pude porém ser concebido por ela como ciência, ou mesmo ques-
IImiado como tal. Essa crise dos fundamentos é aquela crise que,
,i lm corretamente compreendida, deixa clara a finitude da ciên-
I i ,i em um sentido originário; ou seja, ela torna manifesto que a
, lem ia e uma possibilidade essencial da existência do homem.
A discussão revelou ao mesmo tempo que essas perguntas não
I" Klem ser respondidas nem pelas próprias ciências, nem por uma
liliisulía qualquer trazida de fora para junto da ciência.
( ) que importa é antes defrontar-se com os limites da ciência,
• ui meio à iluminação de sua essência, a fim de encontrar na de-
llmlliição algo diverso.
44 Introdução à filosofia

Todavia, as perguntas não devem ser respondidas agora na ordem


em que foram formuladas. Ao contrário, mantendo em mente as
perguntas, começaremos antes com uma nova meditação sobre a
essência da ciência.
Se partimos de uma colocação direta da pergunta “O que é ciên­
cia?”, então ficamos bastante desorientados. Em verdade, ofere­
cem-se imediatamente todos os tipos de resposta —um sinal de
que isso, cuja essência buscamos, não nos é pura e simplesmente
desconhecido.
Desse modo, podemos nos valer de um exemplo para responder
à pergunta sobre o que é ciência: a ciência existe onde há institu­
tos nos quais, com a ajuda do aparato técnico, são realizadas inves­
tigações. Talvez esse enunciado seja válido para todas as ciências
naturais e para a medicina, mas não para as ciências humanas. E
como se dão as coisas em relação à ciência da música, que com­
putamos às ciências históricas? Ela também possui institutos e até
mesmo “instrumentos” como o cravo e o piano. Entretanto, esses
instrumentos possuem uma função completamente diversa do
que, por exemplo, um eletroscópio ou um termômetro. No fundo,
porém, todas as ciências necessitam de instrumentos técnicos -
mesmo que sejam apenas livros. A ciência está impressa em livros.
E certo que o livro possui na filologia uma função diversa do códi­
go civil na ciência do direito ou da bíblia na teologia. É questioná­
vel se com esse instrumento, com os livros —de qualquer modo
não são todos os livros que se mostram como instrumentos —, a es­
sência da ciência é caracterizada. Talvez se possa mesmo concluir
a partir da essência da ciência que ela depende de uma tal técni­
ca, de institutos, de livros, de aparatos etc. Todavia, a conseqüên-
cia da essência não se confunde com a própria essência, e, assim,
indicar a concreção técnica na ciência pode ser muito essencial e,
contudo, pode ser algo apenas extrínseco. Em contrapartida, exigi­
mos uma determinação interna e talvez a encontremos ao pergun­
tarmos para que serve todo esse dispositivo técnico.
Os aparatos só têm sentido e meta se estiverem a serviço da pes­
quisa. O pesquisar não é um querer conhecer de um tipo qualquer,
Filosofia e ciência 45

I iii ii | m)i k -o um querer conhecer relativo a objetos quaisquer. Ao


i niilutiio, ele é um conhecer investigador que procede metódica e
Hlulrmalicamente na esfera de uma ordenação de perguntas dcli-
inllmliis de modo determinado e visa antes de tudo a um conhcci-
inrnlo (pie deve ser demonstrado com a maior exatidão e elabora-
ilii em lermos universalmente válidos.

u) Ciência como conhecimento metódico, sistemático,


exato e universalmente válido

l >x predicados áKpipqç e KaffóXou foram atribuídos desde há


miilln ao conhecimento intrínseco à ciência. Assim, podemos di-
n i ciência é conhecimento metódico, sistemático, exato e univer-
»almenlo válido. Justamente os dois últimos predicados valem des­
de sempre como determinações insignes da ciência. As pessoas re-
poilain se freqüentemente a Kant, que disse certa vez: “Afirmo,
• oi iludo, que em toda doutrina particular da natureza só se conse­
gue encontrar tanta ciência propriamente dita quanto se puder en-
1 1 mliar aí matemática.’’4 Uma ciência só é científica na medida em
que for matematizável. Dessa forma, as ciências humanas de modo
algum são ciências, uma vez que se opõem por princípio à mate­
rnal i/.ação. Por outro lado, a matemática se mostra como a ciência
piupi iamente dita, pois é de fato a mais exata das ciências e seus
lesullados são, de modo puro e simples, universalmente válidos.
I >.sa ê a interpretação corrente da sentença kantiana. Mais tarde,
pinem, veremos se tudo isso resulta dessa sentença; se, considera­
da d«' maneira correta, ela tem efetivamente o sentido que lhe é aí
uiiibuído.
A exatidão é tomada como marca característica da ciência e de-
nionslrações exatas são a finalidade e o orgulho da fundamentação
i lenlifica. Todavia, a exatidão repousa sobre o caráter matemático 1

1Immanuel Kant. Metaphysische Anfangsgründe der Naturwissenschafl, prefácio,


\ l\ In: Immanuel Kants Werke, ed. Ernst Cassirer, vol. IV, Berlim, 1922, p. 372.
46 Introdução à filosofia

da ciência em questão. Não obstante, esse caráter matemático não


pode ser simplesmente impingido a uma ciência porque alguém se
propôs a conformá-la como uma ciência exata. O que deve ser ob­
jeto em tal ciência precisa antes de mais nada permitir ou recha­
çar de per si uma possibilidade de determinação matemática.
Desse modo, se a possibilidade de matematização de uma ciên­
cia reside no conteúdo objetivo e no modo de ser do âmbito do ob­
jeto, então ainda se carece, além disso, da motivação inerente à ne­
cessidade de uma tal possibilidade. Assim, os seres vivos como cor­
pos extensos admitem uma certa determinabilidade matemática,
mas a realização ilimitada dessa possibilidade faria com que se per­
desse de vista o intuito de apreender e de determinar o organismo
como tal. Portanto, a exatidão do conhecimento pode ser justamen­
te inadequada no que concerne ao objeto a ser conhecido. Essa
in-adequação, essa não-conformidade com aquilo que o objeto re­
quisita, é uma forma fundamental de não-verdade.
Em uma ciência, a exatidão pode trazer a não-verdade consigo.
Por conseguinte, a exatidão não pertence de maneira essencial­
mente necessária à verdade. Se por “rigor da ciência” compreende­
mos o modo como o conhecimento adequado ao objeto pode ser
conquistado e determinado, então a exatidão não está necessaria­
mente na base desse rigor. Com isso, a tentativa empreendida no
século XIX de equiparar o conhecimento historiográfico ao conhe­
cimento científico-matemático significava uma violação essencial
do rigor específico do conhecimento historiográfico. Para ser con­
siderada rigorosa, uma ciência não precisa ser exata. Não obstan­
te, é certo que o ideal de toda ciência é o rigor de seus conheci­
mentos. Talvez o rigor como exatidão intrínseca às ciências natu­
rais seja muito mais facilmente conquistável do que o rigor intrín­
seco às ciências especificamente inexatas, que nem por isso são
menos rigorosas. Mesmo que digamos que é inerente à ciência o
rigor de seus conhecimentos, não teremos encontrado a determi­
nação essencial da ciência, a determinação que estávamos buscan­
do. O caráter do rigor talvez possa ser um caráter necessário para
Filosofia e ciência 47

,i i |Oiu la, Entretanto, a pergunta persiste: esse caráter seria tam-


Imiii nma ilelerminação originária da ciência? Esse caráter do rigor
lilliilirin podo ser apenas uma conseqüência da constituição es-
ui lai e interna da ciência.

I>) Ciência e verdade - adaequatio intellectus ad rem

I lácil depreender que as coisas se dão assim devido ao modo


1 1 tiiio caracterizamos o rigor: a saber, o modo como pode ser con-
quMado e determinado o conhecimento adequado ao objeto. Ri-
|iiii e consequentemente um determinado caráter da apropriação
n leieiile à adequação do objeto do conhecimento. Essa adequa­
d o do conhecimento está apreendida na definição escolástica de
ti nladc: Adaequatio intellectus ad rem.
liigor c o modo de conquista da verdade. Portanto, ele só tem sen­
tido e função no interior da ciência, uma vez que essa tem por meta
a iipiecnsão da verdade. Pesquisa e doutrina científicas são conhe-
i iincnto investigador, um modo determinado do buscar, encontrar,
manter, comunicar a verdade, bem como do apropriar-se dela.
A caracterização da ciência como um determinado tipo de co­
nhecimento, de uma determinada forma de tomar a verdade como
mela é por fim incontestável, mas, ao mesmo tempo, nada diz em
meio a essa generalidade. Tudo dependerá de como conhecimen­
to e verdade forem de fato tomados e de onde é procurada a pe-
i uliaridade específica do conhecimento científico e da verdade cien-
i ii o a,
( !<>m o cumprimento dessas tarefas encontramo-nos na encru­
zilhada em que se decide se iremos tocar a essência da ciência ou
■a' essa está irremediavelmente perdida —e isso de tal modo que
essa perda ainda continue trazendo consigo a aparência da verda­
de Pois, se em geral a ciência é estabelecida como conhecimento
e verdade, então o essencial parece assegurado; sobretudo porque,
em um aspecto, vigora um amplo consenso quanto ao que é a ver­
dade, a saber, quanto à opinião de que a verdade é algo que, como
piopriedade, seria primariamente inerente ao enunciado, ao juízo.
48 Introdução à filosofia

§ 10 . Verdade como verdade proposicional

A verdade é naturalmente verdade do juízo, verdade do enun­


ciado. Juízos e enunciados expressam-se lingüisticamente em pro­
posições. Verdade é verdade preposicional. “Essa lâmpada está
acesa”, “esse giz é branco” são exemplos simples de uma verdade
preposicional. Palavras isoladas ou composições de palavras como
“essa lâmpada” ou “está acesa” não podem ser nem verdadeiras
nem falsas. Ao contrário, só a proposição em seu todo, só a ligação
do predicado “está acesa” com o sujeito “a lâmpada”, pode ser ver­
dadeira ou falsa. Essa reflexão é elucidativa. A verdade reside nas
ligações de representações, não nas representações isoladas. O
fato de a verdade possuir o seu lugar no enunciado, na proposição,
está acima de qualquer dúvida: até mesmo Platão e Aristóteles po­
dem ser chamados como testemunhas capitais de sua validade.
Desde então essa concepção de verdade permaneceu inabalada:
ela pertence às poucas coisas que são unanimemente assentes na
história da filosofia.
Nossas reflexões ulteriores irão se orientar por esse problema e
irão centrar-se nele. Por isso, é mister documentar brevemente
essa importante concepção da verdade como verdade preposicio­
nal: Aristóteles, De interpretatione, 4, 17a 1 ss.: écnx ôè ÀÓYoçcbtaç
pèv ar|po.VTLKÓç,... àrcocpavTiKDÇ ôè oò jtãç, à/./J 8V(Òt ÒÓA.TfdeÚ£iv f|
ajieúôeaffaibrtápxeL; ib. 1, 16a 12: ftepí yàp aúvOxaiv Kaí ôiaípeaív
Êcrritò tJjeõôóçte Kaí tò àA.riíféç. (crupjiAoKÍ|). De anima, 430a 27 ss.:
év oiç ôè Kcxi, tò apeèôoç Kaí tò d/cqúéç, crúvílraíç xiçfjôr) voquáxcov
roajtép ev ovxoov. Todo discurso, todo falar tem significação, isto c,
todo ato de exprimir um desejo, um pedido, uma indagação, uma
ordem, uma enunciação, significa algo. Nem todos esses discursos,
porém, são Àóyoç, ou seja, nem todo discurso é discurso mostrador.
Um pedido a alguém não tem o sentido e a função significativa in­
terna de deixar algo claro para esse alguém, de comunicar-lhe algo.
Ele só visa justamente solicitar algo dessa pessoa. De maneira cor­
respondente, a ordem também não passa nenhum conhecimento
Filosofia e ciência 49

iiillunle cm sentido próprio, mas é apenas uma intimação a agir.


ISiiliinli), nem todo discurso é mostrador de um tal modo que se
pudesse afirmar que o ato de mostrar algo seria a tendência pro-
pil.imciilc dita do discurso. Mostrador é somente aquele Àóyoç,
|imlii ao (|iial sucede a algo ser falso ou ser verdadeiro. Naquele
illsi insu que é verdadeiro ou falso, isto é, no enunciado, na propo-
nlçftn, icside algo assim como uma síntese, uma composição. Aris­
tóteles di/. com isso em uma passagem posterior: só há verdade e
liilsldude na esfera da síntese, da ligação, da composição de sujei-
l o e pirdieado. Ele também denomina essa síntese cn)p.jt^oicf|, isto
I', o cnlrelaçamento, o entretecimento de duas idéias ou de dois
i OIIIvil os.
1'niii que o efeito dessa concepção de verdade como verdade
pnipusicional e da proposição como ligação de representações pos­
tai lli ai clara, podemos nos remeter agora a uma definição de ver-
•I.hli1 dada por Leibniz: “Semper igitur praedicatum seu conse­
illions inest subjecto seu antecedenti”, sempre, portanto, o predi-
I ui lo ou a palavra subsequente está no interior do sujeito [inest],
I nI o é, na palavra precedente, dita em primeiro lugar: “et in hoc

Ipso consistât natura veritatis in universum”, e nisso consiste a na-


lilic/a tia verdade no universal, a “natura veritatis in universum seu
ï oiincxio inter términos enuntiationis, aut etiam Aristóteles obser­
vant ", a natureza da verdade no universal é a conexão dos termos
da enunciação, como também observou Aristóteles5. Com isso,
I ciliniz denomina aqui a verdade da proposição como connectio e
essn palavra é simplesmente a tradução latina de GÓvífeaiç. A ver-
■l.o lo é connectio de dois conceitos ou termos. A verdade pertence
a nimitiatio, ao enunciado.
IW fim, podemos nos remeter a um testemunho de Kant na pre­
leção Lógica, § 17: “Um juízo é a representação da unidade da cons-
I leneia de representações diversas ou a representação da relação

' ( ipuscules et fragments inédits de Leibniz, Paris, ed. Louis Couturat. 1903,
|>|i S18-9. Primae veritates. Phil. VIII, 6.
50 Introdução à filosofia

delas, na medida em que elas perfazem um conceito.”'’ Kant tam­


bém diz de maneira totalmente sucinta: Eu penso = eu julgo = eu
ligo; a saber, eu ligo predicado e sujeito. Conforme a concepção
geral, o lugar da verdade está, portanto, no ligar.
O que se pode depreender então dessa caracterização da ver­
dade como verdade proposicional para a determinação da essên­
cia da ciência? Se a ciência como conhecimento visa à verdade,
mas a verdade reside na proposição, então a ciência como uma co­
nexão de conhecimentos é uma conexão de proposições verdadei­
ras; essa conexão é determinada pelo fato de as proposições não
serem simplesmente alinhadas uma ao lado da outra, mas se fun­
damentarem reciprocamente. A conexão das proposições é uma
conexão de fundamentação. Com isso, à essência da ciência per­
tence, como Husserl também o diz, a unidade da conexão de fun­
damentação67 de proposições verdadeiras. Essa é a definição da
ciência, tal como ela é hoje usual na doutrina da ciência e na teo­
ria do conhecimento.
Daí deduzimos duas coisas: 1. uma determinada concepção da
verdade como verdade proposicional, 2. ao mesmo tempo, porém,
a concepção da ciência a partir do que em certa medida se sedi­
menta como o seu resultado. A ciência, de certo modo, sedimen­
ta-se em proposições e essa sedimentação da investigação torna-se
concreta nos ensaios e livros publicados. Assim, Hermann Cohen,
fundador da escola de Marburg, uma escola que é marcada por uma
determinada concepção da filosofia kantiana, da crítica kantiana
em particular como uma teoria da ciência e do conhecimento, dis­
se que “o factum da ciência se faz presente nos livros impressos”8.

6 Immanuel Kant. Gesammelte Schriften, org. pela Königlich preussischen Aka­


demie der Wissenschaften, vol. IX, Berlim, 1923, p. 101.
7 Cf. Edmund Husserl. Logische Untersuchungen, primeiro volume, 3.a ed. inal­
terada, Halle a.d.S. 1922. § 6, p. 15.
8 Observação do editor: E de supor que essa seja uma formulação burilada por
Heidegger. Cf. Hermann Cohen, Ethik des reinen Willens (System der Philosophie,
Segunda Parte), Berlim, Cassirer, 1904, p. 62. Cf. ainda Hermann Cohen, Kommen­
tar zu Immanuel Kants Kritik der reinen Vernunft, Leipzig, Meiner, 1907, p. 53.
Filosofia e ciência 51

Mas u horizonte dominante permanece inexpresso para a pergun­


ta ai eiva da essência da ciência. No entanto, o que está sendo jus-
liiiiicnic questionado é se essa visualização do resultado da ciência
iil tuge primariamente a essência dessa mesma ciência.
( ) resultado é sempre aquilo que em certo ponto se desprende
da piodução e da confecção, é a obra que se libera do processo de
tua fabricação. E esse processo de fabricação não pode ser facil­
mente conhecido em sua totalidade a partir da obra. O resultado é
tal qual o cadáver que, como disse Hegel, deixou para trás a ten­
dência |a vida]9. Todavia, não queremos o cadáver, não queremos
u que é passado de mão em mão e já se acha estagnado. Quere-
11li is sim o imediato da própria atuação, de modo que compreen­
damos, a partir da essência da atuação científica e do ato de criar
n nbra, em que sentido e de que maneira o resultado pertence à
i leni ia. Queremos compreender a essência da ciência como o en-
i nutro e a determinação da verdade, de tal forma que essa com-
pieeiisão acabe por dar pela primeira vez um esclarecimento sobre
ilc que maneira os resultados e as proposições se comportam em
0 laçai>à ciência, ou seja, de tal forma que compreendamos a ciên-
1la em sua essência não como resultado, não como obra, mas no
pnii esso de sua atuação.
Mas, se a ciência deve ser o encontro e a determinação da ver­
dade, então se torna simultaneamente questionável se o concei­
to basilar de verdade como verdade proposicional é suficiente
pai a esclarecer a essência da verdade científica. Talvez resida até
mesmo na caracterização da verdade como verdade proposicional
e na determinação da ciência a partir de seu resultado um único
r mesmo erro fundamental. Por meio de uma apreensão mais ra­
dical da essência da verdade, precisamos nos colocar em condi-
inrs de, desde o começo, ver também a essência da ciência de1

1( I. W. F. Hegel. Phänomenologie des Geistes, Edição de Jubileu. Texto re­


visado com organização e introdução de Geord Lasson, Leipzig, 1911, p. 5 (Pre-
I>11lo).
52 Introdução à filosofia

modo mais originário. Precisamos chegar até o ponto em que evi­


taremos desde o princípio tomar a ciência como um contexto
proposicional.

a) O conceito tradicional de verdade

Com isso perguntamos agora de maneira totalmente genérica:


como se acham as coisas em relação ao conceito de verdade,
conceito esse que rege de modo normativo a determinação anti­
ga e atual da essência da verdade? A resposta não poderá ser ou­
tra senão: o conceito tradicional de verdade não toca a essência
originária da verdade. No entanto, surge daí a seguinte pergunta:
como a verdade deve ser então determinada de modo mais origi­
nário? Como é possível determiná-la de um modo tal que se tor­
ne compreensível o motivo pelo qual se toma habitualmente a
verdade como verdade proposicional? Não empurraremos sim­
plesmente para o lado essa concepção dominante já tão antiga e
com uma significação mais do que amplamente difundida. A par­
tir da clarificação positiva da essência da verdade precisamos en­
contrar sim, ao mesmo tempo, o fundamento para essa concep­
ção dominante, e, com isso, conquistar a intelecção de seu direito
relativo.
Portanto, temos de mostrar duas coisas: em primeiro lugar, que
a verdade tomada tradicionalmente como propriedade do juízo,
como adaequatio intellectus et rei [adequação do intelecto à coi­
sa], está fundada em algo diverso, ou seja, que o que se toma
como verdade no juízo é uma determinação autêntica, mas a pos­
sibilidade interna da verdade reside em algo mais originário; e, em
segundo lugar, devemos caracterizar mais precisamente esse algo
originário.
Ao que parece, essas são simples reflexões, nas quais com cer­
teza ganha voz algo completamente essencial. Em face de tais re­
flexões aparentemente triviais temos a impressão de que, sobretu­
do se já as tivermos repetido várias vezes, poderíamos simplesmen-
Filosofia e ciência 53

Ir i niiliccer de- uma vez por todas uma tal conexão entre a verda-
■lii di iivuda e a verdade originária. Uma característica de todas es-
«itc i luio.xnes essenciais é que nunca podemos ter conhecimento
•li Iiin ilii mesmo modo que detemos um conhecimento qualquer.
\u i uni itirio, sou sempre eu que preciso me apropriar delas uma
w / mais e, em meio a essa nova apropriação, sempre me deparo
i um um novo ahismo. A essência do simples e do auto-evidente é
iiur 1 1 iiislit11i o lugar propriamente dito para o caráter abismal do
mundo r, esse abismo só se abre se filosofamos, mas não se acre-
illliiiuos já saber do que estamos falando.

b) Verdade como caráter de uma proposição:


ligação de sujeito e predicado

A lese da lógica e da teoria do conhecimento tradicionais em


■icnildo maximamente amplo é a seguinte: a verdade é uma proprie­
dade do enunciado. Gostaríamos de explicitar inicialmente essa
li m por meio de um exemplo que colocaremos à base de todas as
u llexòes ulteriores. Em sua forma mais simples, a verdade como
i u l u l e i de uma proposição se mostra como uma ligação entre su-
|i li o e predicado, S - P. Nessa ligação estaria o lugar para o que
denominamos a verdade de uma proposição. Tomemos um exem­
plo simples: “Esse giz é branco." Nesse enunciado, a determinação
liiiinco", o predicado, é atribuído ao sujeito “giz”. Os gregos, espe-
i inlinenle Aristóteles (De interpretatione 5, 17a 8; 6, 17a 25), têm
puiu essa atribuição a designação Kcreácpaai,ç. Esse termo quer di-
/ei "(Sair) de cima para baixo em direção a algo.” Desse modo, ele
designa um certo movimento de cima para baixo, que se dirige
puiu o giz e diz que ele é branco, atribuindo-lhe essa determina­
rão, esse predicado. Se digo do mesmo objeto: esse giz não é azul,
■iiUn o “azul” lhe é negado. Os gregos denominam essa forma do
enunciado ourócpaaiç, ou seja, eu nego algo de uma coisa, coloco
esse algo à parte. No final da Antiguidade e no começo da Idade
54 Introdução à filosofia

Média, essa distinção passou então para a terminologia latina e,


desde então, Kaxácpaoiç significa affirmatio, ou como Boethius diz
ainda: adfirmatio101; e cuíócpaaiç significa negatio. Portanto, esses ter­
mos significam na lógica tradicional um juízo afirmativo ou nega­
tivo (verum —falsum). As duas formas, tanto a Kaxáçpacriç quanto a
ajrócpaoiç, podem ser então verdadeiras ou falsas, ou seja, há juí­
zos afirmativos verdadeiros ou falsos e, do mesmo modo, juízos ne­
gativos verdadeiros ou falsos. O juízo afirmativo como o juízo ver­
dadeiro é: “O giz é branco.” O juízo afirmativo como o juízo falso é:
O giz é azul. O juízo negativo como o juízo verdadeiro é: O giz não
é azul (o giz é não azul). O juízo negativo como o juízo falso é: O giz
não é branco (o giz é não branco). Assim, a determinação peculiar
do negativo e a do positivo se cruzam, sendo que na fórmula do juí­
zo negativo reside uma duplicação peculiar" que não se expressa
em alemão, uma vez que só se coloca a negação aí uma vez12, ao pas­
so que no enunciado positivo “o giz é branco” não possuímos ne­
nhum termo correspondente à negação; precisaríamos dizer efeti­
vamente que o giz é realmente branco.
Todavia, interessa aqui uma outra relação, a saber, o caráter da
verdade no enunciado e o seu lugar. Se permanecermos agora jun­
to ao juízo positivo, isto é, junto ao juízo positivo verdadeiro “esse
giz é branco”, por conta de sua simplicidade, então a verdade des­
sa proposição consistirá na conveniência do predicado ao sujeito
ou na implicação recíproca dessas duas representações “branco” e
“giz”, de modo que a verdade passa a ser uma questão dessa rela­
ção do predicado com o sujeito.
O juízo que tomamos por base como exemplo pode ser apresen­
tado da seguinte forma:

10 Cí. Boethius, De interpretatione. Patrologia Latina, ed. J.-P. Migne, vol. 64,
Paris, 1891, p. 364, A.
11 Como fica claro a partir da formulação indicada entre parênteses. (N. do T.)
12 Em português também só colocamos uma vez a negação, mas temos duas
possibilidades de posicionar o advérbio de negação. (N. do T.)
Filosofia e ciência 55

veritativo

A direção vertical e a direção horizontal das relações devem in-


di) .11 que elas são de um tipo totalmente diverso e que sua cone-
não se dá de um tal modo que elas estejam entrelaçadas umas
ai uniras em uma corrente relacional indiferente (“proposição” -
olijcio).
Mas o que decide afinal que esse P “branco” seja atribuído ao S
"gl/"? I)e onde é que o direcionamento da seta vertical no esquema
n'liia a sua legitimidade? Onde reside o fundamento para o fato de
"biiinco” e “giz” se implicarem mutuamente, de essa ligação ser
iim.i ligação pertinente, legítima? Na representação de giz não está
ms cssariamente implícito que ele é branco; ele também poderia
m i vermelho ou azul. A implicação recíproca de S e P só subsiste
piirquo como tal ela já é “dependente”, como que já está submeti­
da a uma outra e, com efeito, ao giz branco sobre o qual enuncia­
mos algo. Assim, vem à tona que a proposição “o giz é branco” apre-
si ula inicialmente uma relação de S com P. Toda essa relação pro-
posieional, porém, encontra-se ainda em uma relação com o que já
se acha diante de nós, a saber, com o giz branco. Só podemos rea-
li/ai o enunciado em vista do que se encontra diante de nós.
Vemos, portanto, que há na proposição uma ambigüidade fatal:
I>iii um lado, a relação formal de S com P, e, então, a relação de
Ioda essa ligação S-P com o “sobre o quê” do enunciado. Denomi-
56 Introdução à filosofia

namos a relação do predicado com o sujeito a relação predicativa


no interior da proposição; ela retira a sua legitimidade de uma re­
lação com aquilo sobre o que se enuncia. Desse modo, temos aqui
duas coisas: por um lado, a predicação do sujeito e, logo em segui­
da, a enunciação de toda essa predicação sobre o que se encontra
diante de nós, o giz branco. Portanto, precisamos fazer uma distin­
ção entre o sujeito da predicação e o objeto do enunciado. Objeto
do enunciado e sujeito da predicação são duas coisas essencial­
mente diversas. Todo predicado tem um sujeito, e esse predicado
é enunciado do sujeito. Contudo, toda predicação, isto é, o todo da
relação sujeito-predicado - não, por exemplo, todo predicado - tem
um objeto sobre o qual é feito um enunciado. Não podemos per­
der de vista que essa ligação de toda a predicação relativa ao giz
não é a única, pois também posso fazer um outro enunciado sobre
aquilo que é aqui o objeto do enunciado. Por exemplo, posso dizer:
“Esse corpo material é leve.”
Com a teoria usual da proposição e do enunciado não se conse­
gue de maneira alguma interpretar nem proposições como “chove”
ou “relampeja”, ou seja, as assim chamadas proposições impes­
soais, nem proposições como “esse homem existe”, isto é, os enun­
ciados existenciais. No momento em que deixamos de ver o todo
dos problemas inerentes à proposição e à verdade, essa simples de­
finição da proposição passa a se mostrar questionável. No decurso
do desenvolvimento da lógica moderna, antes de tudo em Leibniz,
essa relação do predicado com o sujeito, essa connexio, é tomada
mais exatamente como determinatio , de modo que o predicado tem
a função fundamental da determinação. Ele determina o sujeito e,
de maneira correspondente à distinção entre o juízo positivo e o
negativo, também distingue uma determinatio negativa e uma po­
sitiva. Essa distinção é essencial, na medida em que abriga em si
dois conceitos que são de uma significação particular para a meta­
física moderna, antes de tudo para a metafísica kantiana e pós-
kantiana, a saber, os conceitos de realidade e de negação. Baum-
garten determina o que compreende por determinatio e determina-
Filosofia e ciência 57

i»' de ler minando ponuntur in aliquo, (notae et praedicata) sunt


ih'li'iiiibiiiliones, altera positiva, et affirmativa, quae si vere sit, est
ifiilihis, altera determinatio negativa, quae si vere sit, est negatio
A•|mI<>que c estabelecido em algo por meio do determinar, a sa­
iu i, .is características e os predicados, são as determinações. Um
llpodc delerminação é a positiva. Essa determinação positiva, afir­
mai iva do sujeito por meio do predicado, quando é uma determi-
M.H,ilo positiva verdadeira, significa realidade. Um outro tipo de de­
li iininação é a negativa, e essa determinação negativa, quando é
vi tdadeira, é negação.”
I preciso reter desde o princípio esse conceito de realidade
i omo um predicado positivo verdadeiro, a fim de compreender a
pioMemática da Crítica da razão pura. O conceito contrário ao de
ir.ilidnde é o conceito de negação, apesar de hoje, na teoria do co­
nhecimento, usarmos o conceito de realidade em um sentido to-
l.ilmente diverso do de Kant e da metafísica antiga. Aliás, esse con-
i cilo de realitas remonta à Escolástica, antes de tudo à Escolásti-
i n tardia, a Suarez; realitas não significa nada além de essentia: es­
sência, conteúdo objetivo, positivo, essência atribuída a algo. Com
vIslas a importantes reflexões ulteriores, é digno de nota o fato de
esse conceito de realidade estar correlacionado à proposição, à de-
tniuinatio, e, ainda, à proposição positiva.
IWtanto, se dizemos que a verdade tem o seu lugar no enuncia-
iln nu na proposição, essa tese é inicialmente ambígua. Não se sabe
nnde a verdade está situada agora, na relação predicativa ou na re-
l.içao do predicado com aquilo sobre o que se faz um enunciado,
t iunludo, já ouvimos que a implicação recíproca de P e S como re-
laçào predicativa em certa medida só tem esse seu caráter impli-
i ativo manifestamente normatizado por meio da relação com aqui-
ln sobre o que se faz um enunciado. Essa relação predicativa só é
uma relação pertinente ao equipararmos, ao adequarmos a coisa, a1

11 Alexander Gottlieb Baumgarten. Metaphysica, 2‘ ed., Halle, 1743, § 36,


58 Introdução à filosofia

“res”, sobre a qual é predicado e enunciado algo, àquilo que se en­


contra presente. Adequação [Angleichung] em latim é adaequatio,
e “adaequatio intellectus ad rem” é a antiga definição escolástica
para veritas. Com isso, denominamos a relação da predicação com
o sobre-o-quê do enunciado relação veritativa, sem que por meio
dessa denominação já estejamos dizendo que essa relação deriva­
da constitua a essência da verdade.
A verdade não reside, assim, na relação do predicado com o su­
jeito, mas na relação de toda a relação predicativa com aquilo so­
bre o que é feito um enunciado, com o objeto do enunciado. Na
proposição podemos distinguir a relação predicativa daquela que
diz respeito à adaequatio e à veritas, e que denominamos, por isso,
relação veritativa da proposição.
O peculiar é que a relação predicativa é em certa medida inde­
pendente do conteúdo objetivo daquilo que enuncio. Essa relação
continua existindo independentemente de eu dizer “esse giz é
branco” ou “esse corpo material é leve”. Portanto, a relação predi­
cativa tem uma certa independência em relação àquilo que é res­
pectivamente enunciado sobre um objeto. Denomina-se, por sua
vez, formal o que se acha assim livre do conteúdo objetivo e não 6
determinado pelo aspecto material do objeto do enunciado. Como
essa relação nos informa sobre o conteúdo objetivo do que o obje­
to é, ela também é denominada verdade material em contraposi­
ção à verdade formal. Mas só se pode designar a relação predica­
tiva por meio da expressão “verdade formal” sob o pressuposto de
que a verdade, tal como acontece na lógica tradicional, caiba pri­
mariamente à predicação, ao enunciado, ao juízo. Preferimos cha­
mar essa “verdade formal” de “correção”, a fim de não incorrer no
erro de tomar a verdade como se ela tivesse primariamente sua
morada na predicação. Na medida em que o predicado se guia
pelo sujeito, esse guiar-se do predicado pelo sujeito está submeti­
do de maneira totalmente independente da verdade ou da não-ver­
dade possível a regras determinadas e, com efeito, às regras da as­
sim chamada lógica formal. Assim como na proposição distingui-
Filosofia e ciência 59

mos a relação predicativa da veritativa, precisamos distinguir tam­


bém as regras de correção na proposição, ou seja, as regras que di-
/«•in o que precisa ocorrer para que de algum modo um P possa se
n‘ferir a um S, das exigências e normas da verdade do enunciado.
Essas reflexões trouxeram então inicialmente uma coisa à tona:
o enunciado já abriga em si uma multiplicidade de relações e a
ai i ibuição da verdade como caráter do enunciado é por conseguin­
te precária e insegura. Como se chega então ao ponto em que a
verdade passa a ser primariamente atribuída à proposição? Por que
essa atribuição da verdade como caráter da proposição é tão auto-
evidente? Em que medida justamente essa atribuição da verdade à
pmposição faz emergir a confusão na qual ainda hoje toda teoria
do conhecimento e toda lógica se movimentam —uma confusão
que não pode ser destrinçada por nenhuma teoria reinventada,
mas somente se retrocedermos à origem e à fonte da interpretação
errônea?
Por que é natural partir da proposição quando questionamos a
essência da verdade? Desde cedo ficou claro que a verdade está,
em algum sentido, em conexão com o conhecimento, com o pen­
samento. Para apreender a essência da verdade, tentar-se-á encon-
11ar no conhecimento, em cujo conceito já reside a verdade —pois
um falso conhecimento não é um conhecimento —, o momento da
verdade e, com isso, a estrutura da verdade.

c) Os primórdios do problema da verdade na Antiguidade

Nos primórdios do filosofar, em sua sensibilidade originária e


plena de frescor, surge a aspiração por objetivar a pergunta pela
verdade que pertence ao conhecimento, naquela forma que é
acessível a qualquer um de modo imediato e sensível —e essa for­
ma é a da palavra proferida. Portanto, a verdade e o conhecimen­
to apresentam-se imediatamente na palavra audível e escrita. Nes­
se caso é preciso atentar ainda para o fato de os gregos, como to­
dos os povos do sul, terem vivido muito mais intensamente na lin-
60 Introdução à filosofia

guagem e no discurso público do que estamos acostumados a la­


zer. Pensar significava para eles propriamente discutir em público,
Nem o livro nem mesmo o periódico desempenhavam aí algum pa­
pel. O pensar como confrontação, como decisão sobre a verdade c
a falsidade, é diálogo público. Com isso, o discurso falado, a pro­
posição proferida é em certa medida a realidade efetiva da verda­
de, o palpável no qual ela se apresenta; a verdade é efetivamente
real no tóyoç.
Esse primórdio do problema da verdade encontra-se exposto de
maneira totalmente clara na filosofia pré-platônica, em Platão e
mesmo ainda em Aristóteles. Na medida em que a pergunta pela
essência da verdade e do conhecimento tem o seu início na pala­
vra falada, isto é, no Aóyoç, o conhecimento da essência da verda­
de é conhecimento do lógos, isto é, lógica. Portanto, só consegui­
remos compreender o ponto de partida, os limites da lógica antiga
e, com isso, da lógica ocidental em geral se partirmos desse esta­
do de coisas, ou seja, se aceitarmos o fato de verdade e conheci­
mento se apresentarem primariamente na palavra falada. E por
isso que a lógica antiga em Platão e Aristóteles se encontra em
uma conexão íntima e totalmente estreita - uma conexão que ató
hoje certamente ainda permanece mal aclarada - com aquela ciên­
cia e conhecimento que se ocupam em particular do discurso pú­
blico, a saber, a retórica. Assim, todos os problemas fundamentais
da lógica platônica são ao mesmo tempo problemas de retórica.
Dessa forma, a verdade apresenta-se na proposição falada. No
entanto, a proposição falada tem inicialmente a forma de uma se-
qüência de palavras. E por isso que Platão coloca o que é dito cm
seqüência - TctècpE^riç Xeyópeva (Platão, O sofista, 261 d) —na base
da determinação essencial da verdade. Assim, na investigação do
que é dito em seqüência, ou seja, na seqüência proposicional de
palavras, é preciso que a verdade venha à luz. Platão vê então —e
essa é uma de suas descobertas mais emocionantes, que para nós
talvez pareça uma obviedade - que as palavras ditas em seqüência
não são apenas palavras isoladas pelas quais passamos saltando de
Filosofia e ciência 61

mim para a outra, mas que subsiste aí uma unidade peculiar, ape-
NiiI de procurarmos em vão por um laço que conecte os fonemas
uns aos outros.
Assim, surge para Platão o problema de como as palavras, essas
i|.invi|, encontram-se nessa estranha e ainda obscura comunidade
liilerna e como mantêm uma unidade entre si, isto é, o problema
■111 comunidade e da unidade interna [Koivoovía] oriundo da mul­
tiplicidade de palavras na proposição. Para Platão, a unidade pecu-
lliii dessa seqüência de palavras consiste no fato de as palavras não
neiern meros sons, não serem meras fonações, mas sim signos que
qgnilicam algo; no fato de elas não serem apenas (provfp mas Àóyoç
hi|\nüv. A proposição é uma unidade de significação, ela é, segun­
do Plalão e Aristóteles, um signo de algo, crqpelov. A proposição,
0 Mryoç, não significa apenas algo. Ao contrário, em seu significar,
ela lambem quer dizer algo, sobre o qual ela faz então um enun-
1lado: o giz branco, a coisa mesma, o jTpãypa ou, como também
podemos dizer, o objeto. Portanto, em razão de sua unidade de sig­
nificação, que significa algo, a proposição se encontra ao mesmo
Iempo cm conexão com a coisa por ela visada, conexão esta desig­
nada por Platão pela primeira vez como conhecimento fundamen-
lal, esse Xóyoç é Xóyoç-uvòç ôqtaópa, discurso, enunciado. Esse
enunciado é enunciado sobre algo e, com efeito, ele o é de modo
essencial e não apenas ocasional. O que e sobre o que versa um
enunciado é em contrapartida variável. No falar reside com isso
um rico contexto relacional, que ainda não exaurimos de maneira
alguma. Pois essa unidade da significação, a unidade do que é pen­
sado, é determinada pelo pensamento daquilo que a possibilita. O
pioprio pensar enquanto atividade, enquanto estado tjtáffqpa] re­
mei e uma vez mais para a alma ativa.
I )isso decorre uma crescente junção de relação a relação, partin­
do da proferiçâo do juízo como posição primordial. Ouvimos que e
cm que medida essa junção é “natural”. No fundo, essa seqüência
lelacional também irá oferecer-se ainda hoje para uma primeira
deierminação. Se todos os elementos da relação estão completa e
62 Introdução à filosofia

inteiramente alinhados numa seqüência, então de maneira media­


ta, ou seja, através dos elementos que se encontram no meio dos
dois pólos extremos, é estabelecida uma relação entre esses pólos:
a relação sujeito-objeto. Isso corresponde ao estado de coisas geral
que estabelece o fato de nós, os sujeitos, travarmos, de certa ma­
neira, relação com objetos,ávxiKEÍpeva (Aristóteles), com algo que
está diante de nós ou com algo que nos está próximo. A questão 6
que, justamente quando aproximamos o nosso olhar dessa conexão
e nos dispomos a determiná-la, uma série de relações mediadoras
se introduzem. Portanto, temos diante de nós uma pluralidade de
relações conectadas entre si que percorrem todos os elementos da re­
lação, os quais, por sua vez, são fornecidos de alguma maneira.

ipu/ri Pensar Unidade de Xóyoç jtpàyfAa


significação proposição,
seqüência de
alma voelv palavras coisa
Sujeito Jtáíh]|iu crqpeiov cpcovíj objeto

V V V V
Relação sujeito-objeto

No entanto, algo estranho se mostra imediatamente. As rela­


ções que acrescentamos continuamente desde o início a partir dos
dois pólos da relação são afinal contingentes e arbitrárias? Será
que as coisas se dão de um tal modo que acabamos por cindir uma
vez mais as relações que se foram acrescentando e podemos supri­
mir tudo até atingirmos novamente o ponto de partida? No último
caso: afinal, temos ainda realmente a proposição da qual no fundo
partimos? Ou será que, no sentido estrito da palavra, temos ape­
nas um monte de sons? Será que partimos afinal de meros fone­
mas, de meras imagens fônicas, “ei”, “e”, “i”, e de outras conforma­
ções delineadas dessa forma, ou não será, muito mais, que parti-
Filosofia e ciência 63

mus d,i proposição, uma vez que a compreendemos? De fato. Se


pnillmos da proposição proferida, então não partimos inicialmen-
!•■ «• por si só de fonemas. Quando ouvimos alguém proferir uma
piuposição tal como a citada, vemo-nos espontaneamente dirigidos
i um a nossa escuta para ouvir o que o falante diz e, por assim di-
mi, só secundariamente para escutar os sons das palavras. Com
eleito, carece-se de uma abstração particular e de uma mudança
de poslura radical para ouvir de maneira pura e simplesmente acús-
lli a os complexos de sons das palavras, permanecendo mesmo mui-
10 difícil ouvir esses complexos puramente como tais. Portanto,
mim .1 partimos faticamente do som da palavra; uma proposição
piulcrida é sempre mais. Somente porque a unidade da proposição
|il linha sido compreendida, foi possível mesmo para Platão se im-
pui a pergunta que questiona de onde afinal a seqüência de pala-
vias l ira essa unidade.
I ,m outras palavras: a pluralidade de relações não se deixa de
maneira alguma restringir ao som da proposição, de modo que este
eniilo ainda seria a proposição que no fundo temos diante de nós.
I iiiu de outro modo: a proposição = ponto de partida já se encon-
11 a no contexto dessas relações; elas não são acopladas a esse pon-
ln de partida, mas constituem o que a proposição proferida e viva
i lelivamente é. Essa proposição significa algo e, em sua significa-
V•><I, está relacionada a um objeto, e, em seu ser-proferida e ser-
i nmpreendida, ela pertence a um sujeito; tudo isso está em corre-
lni,ilo e se acha à base dos fonemas de uma proposição. Essa mul­
tiplicidade relacional é um todo que não surge apenas a partir da
luiiçáo das peças umas às outras, mas se mostra como o funda­
mento exclusivo que confere às partes sentido e função. O som das
palavras só é um tal som enquanto som das palavras, e palavra não
i nenhum barulho, mas algo significativo, compreensível. O fone­
ma. a conformação lingüisticamente fonética da proposição só tem
apoio e sentido nesse todo relacional no qual se encontra e pelo
qual a proposição é envolvida. Esse todo é o elemento primário e
mais originário, e apenas sobre o seu pano de fundo é possível to­
mai as partes como tais e em suas relações.
64 Introdução à filosofia

Será que esse horizonte abrangente da formulação do problema


não garante desde o começo que se tocará a essência da verdade?
Apesar de toda a sua riqueza, esse horizonte padece de uma carên­
cia fundamental que acaba por impedir que a pergunta acerca da
essência da verdade saia do lugar.
No entanto, vemos agora que desde a Antiguidade todas as par­
tes e a conexão dessas relações eram efetivamente conhecidas em
seus traços centrais e foram mesmo discutidas segundo múltiplos
aspectos. Porém, justamente o todo abrangente, ou melhor, o todo
eficaz e organizador, o todo prevalecente em vista de sua totalidade
permaneceu indeterminado. Sim, a pergunta acerca do todo origi­
nário, do qual todas as partes recebem a sua essência, não é nem
mesmo colocada de maneira fundamental e unívoca como proble­
ma. Contudo, esse todo no qual se encontra a proposição verdadei­
ra também precisa co-determinar manifestamente a verdade.
Como sempre nos movimentamos apenas no interior do citado
contexto das relações proposicionais, sem perguntar pelo todo ori­
ginário, que é o que primeiro possibilita essas relações como tais,
e não estamos em condições de tomar originariamente a essência
da verdade que é pertinente à proposição. Todavia, precisamos nos
ocupar aqui da pergunta em torno da essência da verdade no que
diz respeito à clarificação da essência da ciência.

§ 11. Sobre o problema da relação sujeito-objeto.


Relação predicativa e relação veritativa

Com que direito podemos afirmar que esse todo das relações ci­
tadas não é determinado em sua totalidade, não é nem mesmo pro-
blematizado? Esse todo de relações é, porém, conquistado se olha­
mos o laço que congrega todas as relações que se acham entre os
dois pólos extremos, se conectamos os dois pólos extremos desse
todo de relações, ou seja, alma e coisa, ou, como se diz hoje, sujeito
e objeto. Desse modo, é na relação sujeito-objeto que reside a to­
talidade específica desse todo.
Filosofia e ciência 65

Será que existe algo que tenha sido mais freqüentemente dis-
i ululo e problematizado desde o começo da modernidade e parti-
i uliirmente hoje do que a relação sujeito-objeto? E justamente
dessa relação que se originam os dois pontos de vista centrais da
lllosoíia, realismo e idealismo, assim como as suas modalidades e
mediações.
( IcTtamente, tudo isso é incontestável. Mas a questão é saber
se, ao tomarmos conjuntamente os dois pólos extremos, o todo é
lealmente abarcado, se essa totalidade pode ser apreendida a par­
iu dos dois pólos extremos e de sua conexão. Uma tal apreensão é,
i oi iludo, impossível - já pelo único fato de que exatamente esses
dois pólos, assim coligados como pólos extremos, surgem sobre o
solo de um ponto de partida que até aqui esqueceu de levar em
i onsideração o todo fundante. Os dois pólos extremos, sujeito e
objclo, eles mesmos o resultado de um ponto de partida não-escla-
11 ’cido e inadequado, não podem reconquistar e determinar a tota­
lidade antes indeterminada por meio do fato de eles agora —de que
m.moira for —se acharem interligados.
Precisamos antes dizer, inversamente, o seguinte: justamente o
l.io discutido problema da relação sujeito-objeto com todas as suas
variantes é o indício de que não se foi além do velho ponto de par-
lula da Antiguidade e de que ainda não se tocou o problema cen-
lial Esse problema só pode ser formulado depois que se tiver com­
preendido que a questão da relação sujeito-objeto e, com maior ra-
/a<>, Ioda “teoria do conhecimento” repousam sobre o problema da
verdade e não —como reza a opinião usual —o inverso.
Sempre podemos inventar novas teorias para a solução do pro­
blema sujeito-objeto. No entanto, essas invenções só têm o méri­
to duvidoso de aumentar a confusão e fornecer sempre novas pro­
vas de que não se está manifestamente de posse do problema de-
i isivo. Todavia, esse problema não consiste senão na formulação
da pergunta pela essência da verdade, isto é, ao mesmo tempo na
pergunta pelos pressupostos e pelo problema originário da deter­
minação essencial da verdade. A “conjuntura” supostamente “nova
66 Introdução à filosofia

do problema da teoria do conhecimento” pode ser efetivamente in­


teressante. Pode-se mesmo distrair o leitor com todo o tipo de coi­
sas sobre isso. O único ponto a ser salientado é que nada dizemos
ao leitor quando silenciamos sobre aquilo que está contido nessa
problemática em relação à essência da verdade.
É importante ver agora positivamente que esse problema da ver­
dade não pode ser formulado, orientando-nos exclusiva e primaria­
mente pela proposição.
Ficou claro que a proposição só tem sentido e apoio em um todo
que a tudo penetra e envolve. Essa totalidade precisa ser determi­
nada de antemão. Quando ocorre na proposição algo como a ver­
dade, então essa também precisa determinar-se a partir desse todo;
sim, ainda mais: talvez seja justamente a essência da verdade aqui
lo que co-determina essa totalidade buscada.
Vemos agora: 1. É natural e quase forçoso buscar em meio à per­
gunta pela verdade do conhecimento essa verdade em sua forma
mais imediatamente acessível, na proposição proferida, e desen­
volver a partir desse ponto de partida as perguntas ulteriores. Vi
mos, além disso: 2. Que o Àóyoç se encontra em múltiplas relações.
Mas vimos: 3. Ao mesmo tempo: que com toda a auto-evidência
desse ponto de partida, ou justamente por isso, permanece não
formulada uma pergunta fundamental e prévia, a pergunta sobre o
todo no qual o caracterizado contexto de relações necessariamen­
te se encontra, a pergunta que questiona aquilo que, de modo ge­
ral, torna internamente possível aquele todo de relações.
Mas como é que devemos determinar ou mesmo considerar
agora esse todo? Inicialmente tentamos responder a essa pergun­
ta, apoiando-nos no exemplo: “esse giz é branco”. No fundo já de­
mos um primeiro passo nessa direção com a análise da proposição
como predicação e enunciado. Vimos imediatamente que o con­
ceito de proposição como relação predicativa do predicado com o
sujeito e como relação enunciativa de toda a relação predicativa
com aquilo sobre o que versa um enunciado é ambíguo; com elei­
to, essa ambiguidade quer dizer: a estrutura da proposição é uma
Filosofia e ciência 67

i•••1111 111ra mais rica e remonta a um todo estrutural que só funda-


inenla aquilo que é inicialmente visualizado. Uma vez que a estru-
luia proposicional é mais rica, o ponto de partida dessa conforma-
«,ilo ('• plurissignificativo.
I )e início chamou-nos a atenção algo estranho: a natureza di-
versa dos dois tipos de relação, da relação predicativa e da verita-
lIva. A proposição como predicação é ao mesmo tempo enuncia­
do sobre..., ou melhor: a proposição é enunciado sobre objetos, de
modo que essa enunciação sobre... possui ela mesma uma estru-
Ium predicativa. O enunciado como tal é enunciado sobre obje-
los; no próprio enunciado reside uma relação com o objeto. Nós
a denominamos relação veritativa, simplesmente para indicar que
nessa relação com o objeto vem à tona a verdade. A essência da
verdade só poderá ser determinada se investigarmos essa relação
i oin o objeto de modo mais incisivo e perguntarmos: 1. Em que
i onsisie essa relação do enunciado com o objeto? 2. Essa relação
i abe ao objeto do enunciado enquanto enunciado? Essa rela-
Vilo com o objeto constitui-se do enunciado como tal ou o enun-
i lado apenas faz uso dessa relação com o objeto? Essas duas per-
gunlas estão intimamente relacionadas e, com a resposta à pri­
meira, se responde à segunda.
Ouanto à primeira questão: se quisermos determinar a essência
di' uma relação, então a primeira coisa que vem à tona é o fato de
piec isarmos antes de tudo estabelecer entre que elementos se dá
a relação. Uma relação possui seus elementos relacionais {relata):
u m dos elementos relacionais do enunciado é o objeto, o outro é o
Mi|eiio enunciador. Cada um de nós é um sujeito que se relaciona
i u m esse giz na realização do enunciado, acompanhando o desen-
inlnr de sua execução ou coexecutando-o.
lodavia, com essa constatação trivial de que a relação seria a
lel.içào sujeito-objeto, conquistou-se muito pouco quanto à ca-
lui lerização da relação do enunciado com o objeto - ao contrá-
iln, ela tornou-se o tema de uma cadeia de problemas e teses ques­
tionáveis.
68 Introdução à filosofia

Por meio da exposição da multiplicidade de relações que subsis­


tem entre o sujeito e o objeto, porém, não nos colocamos em con­
dições de determinar agora mais proximamente essa relação? Se rã
que esse todo relacional não mostra como a relação universal su­
jeito-objeto é mediada no indivíduo? Ela é mediada por pensamen­
to, por unidade de significação, por elementos fonéticos entre ou­
tras coisas, de modo que nós, sempre como sujeitos psíquicos, nos
relacionamos inicialmente com representações e, a partir delas,
com significações e, a partir das significações, com o objeto; por­
tanto, por meio desse caminho, a partir de nós mesmos, de nossa
consciência, alcançamos o objeto. Certamente é possível que con­
tinue sendo uma tarefa especial investigar e explicar mais precisa­
mente essas relações mediadoras em detalhes. Contudo, já ficou
em princípio claro como temos de esclarecer a relação sujeito-ob­
jeto e, com isso, a relação veritativa e, portanto, a verdade.
Por outro lado, sabemos, contudo, que o ponto de partida da de­
terminação da essência da verdade, viabilizado pela proposição
proferida, embora natural, é, no entanto, extrínseco e questioná­
vel, de tal modo que tudo aquilo que decorre desse ponto de par­
tida é concomitantemente afetado pela questionabilidade de tal
ponto de partida: toda a multiplicidade de relações entre sujeito c
objeto. Só que não podemos apelar para essa questionabilidade do
ponto de partida, no momento em que precisamos mostrar positi­
vamente por que ele é questionável.
Entretanto, esse contexto relacional (sujeito enunciador, repre­
sentação, significação, objeto) é tão elucidativo e veio à tona do
maneira tão natural que sempre voltamos a recorrer a ele.
E, porém, o que se mostra tão elucidativo não é senão mera apa­
rência! A relação com o objeto, uma relação que reside no enun­
ciado realizado de maneira viva, não tem absolutamente o caráter
que a teoria desse contexto relacional lhe atribui. No enunciado
“esse giz é branco’’, nós, os enunciadores, não percorremos aquele
contexto relacional; não nos voltamos primeiramente para uma ou
duas representações que, então, ligamos com o intuito de, por
Filosofia e ciência 69

meio dessa ligação representacional, nos relacionarmos com esse


y\/ branco. Ao contrário, tudo se dá de maneira totalmente diver­
sa antes da enunciação da proposição já estamos imediatamente
irlacionados com a coisa mesma, com o giz branco, e, em verda­
de, não de um modo tal que só teríamos desse giz uma “represen­
tação” em nossa alma. Ao fazermos a enunciação, já estamos antes
nos mantendo junto ao giz. Já estamos junto ao próprio giz, sendo
ele essa coisa simplesmente subsistente. Ao fazermos a enuncia­
ç ã o , visamos de antemão e de modo direto o próprio giz. Nós, os
sujeitos, nos relacionamos diretamente com esse ente (giz) mes­
mo; estamos junto a ele. A nossa, do sujeito, relação com o objeto
e um direto “estar junto ao” giz. De início e de maneira natural não
encontramos absolutamente nada daquele contexto relacional
confuso e problemático.
Não chegamos primeiramente ao giz por meio do caminho do
enunciado e do contexto relacional ao qual esse enunciado está su­
postamente atrelado, mas, inversamente, somente na medida em
que já estamos junto ao giz, na medida em que já nos mantemos
junto a ele, ele pode ser um objeto possível do enunciado. Só po­
demos transformar em um “sobre-o-quê" possível de enunciação
aquilo junto ao que já nos encontramos. O enunciado não é abso-
lulamente o modo de acesso a esse giz. Somente porque antes do
enunciado já estamos junto ao giz e não o alcançamos primeira-
mente por meio do enunciado como tal, somente por isso o enun-
ciailo, enquanto enunciado predicativo, pode se adequar à qüidi-
d. ide e ao modo de ser daquilo sobre o que esse enunciado deve
versar.
Vimos que a relação do enunciado como enunciado de objetos
e, de acordo com a antiga definição de verdade, a adaequatio intel-
Icclus ad rem, a adequação do enunciar pensante à coisa. Essa ade­
quação da predicação ao objeto, adaequatio, na qual se vê tradicio-
n.ilmcnte a verdade, pressupõe, contudo, para a sua possibilidade
interna, que já nos mantenhamos previamente junto ao ente sobre
o qual deve ser realizado um enunciado que seja adequado a ele.
70 Introdução à filosofia

Com isso, a nossa segunda pergunta também já está respondi­


da: a relação sujeito-objeto constitui-se no enunciado ou o enim
ciado só faz uso dessa relação? Vemos que a última hipótese é n
hipótese procedente. O enunciar sobre... já se movimenta no in­
terior e, de certo modo, sobre a via de nossa permanência junto
ao giz.
TERCEIRO CAPÍTULO

Verdade e ser
I )a essên cia originária da verdade co m o desvelam ento

§ 12. A essência originária da verdade

Assim, no que se refere à nossa primeira pergunta central —em


que medida o conceito tradicional de verdade não é originário, mas
nos remete a algo distinto? —, veio à tona o seguinte: a concepção
tradicional de verdade estabelece a sua sede na proposição. Toda-
M.i, essa determinação locativa é ambígua porque a proposição é
•ii >mesmo tempo predicação e enunciado. Se a verdade é realmen-
11• inerente à proposição, então ela só pode residir no enunciado.
I ,ssa relação enunciativa, a relação com o sobre-o-quê, funda-se,
• unindo, na própria permanência junto ao ente, uma permanência
que está necessariamente na base dessa relação. É apenas no in-
lerinr de uma tal permanência que um sobre-o-quê é acessível e
determinável por meio do enunciado predicativo.
Se, com um certo direito, a verdade já é atribuída à proposição
enquanto enunciado, então a verdade se funda em algo mais origi-
lurio que não possui o caráter de enunciado. O que precisamos fa­
zei agora é examinar mais detidamente essa outra instância mais
uiíginária, a fim de penetrar assim na essência mais originária da
verdade.
( a>m isso, chegamos à segunda pergunta central: como deve­
mos apreender essa essência originária da própria verdade? O que
■e nos mostrou inicialmente foi o seguinte: o enunciado sobre o giz
•.mge a partir de uma permanência junto a..., de um ser junto a...
I sse modo de estar advém a nós, os enunciadores. Esse ser direto
72 Introdução à filosofia

e imediato junto ao próprio giz não foi concebido por nós por meio
de qualquer teoria sobre os enunciados ou sobre a relação sujeito-
objeto, mas essa relação se revelou justamente quando deixamos
de lado todas as teorias e nos lançamos simplesmente em direção
ao que reside na enunciação natural. Questionamos aquilo para o
que o enunciado sobre o giz aponta, conforme a sua opinião pró­
pria, conforme a opinião viva no enunciado. Nada de consciência,
alma, ou mesmo apenas representações, imagens de coisas, mas
somente nós mesmos, tal como nos conhecemos, estamos relacio­
nados com o giz, nosso ser junto a um ente por si subsistente em
sentido maximamente amplo. Com certeza, essa é uma vez mais
uma constatação deveras trivial. Já se sabia algo desse gênero havia
muito tempo: à v x tK e íp e v a . De fato, algo desse gênero já tinha sido
freqüentemente visto. A dificuldade não está no fato de que tería­
mos deixado de ver esse “relacionar-se” com objetos, de que o le­
riamos deixado faltar, mas no fato de que sempre tomamos de ma­
neira muito aligeirada sua trivialidade - por exemplo, com a argu­
mentação habitual que faz com que mesmo o realismo se deixe in­
timidar e com isso incorra em equívocos principiais - e de que
passamos rápido demais adiante na busca por explicações. O que
de certa maneira constatamos - o ser junto a... - não conquistou
absolutamente o seu direito e foi logo coberto por teorias.
A dificuldade e o ponto decisivo residem, aqui e em todas as
correspondentes constatações triviais, no sentido de reter também
agora o que é aí constatado, de tal modo que os problemas venham
à tona pela primeira vez a partir do que se mostra inicialmente v
do modo como é mostrado. Acreditamos poder afastar essa trivia­
lidade e elevá-la ao nível do conhecimento, precipitando-nos sobre
a questão de saber como a alma pode se relacionar com as coisas,
expondo-nos a toda uma sorte de teorias. E isso se dá de uma ma­
neira tal que - para empregar uma analogia —se desenvolve um
sistema terapêutico cuidadosamente elaborado e em si talvez mes­
mo valioso, sem que se tenha feito antes qualquer diagnóstico.
Com um gasto descomunal de teorias e argumentos sagazes bus-
Filosofia e ciência 73

i >t xe explicar essa relação, sem que nos tenhamos primeiramente


itum |iiii ii<l<i du lato real que deve ser problematizado. Desse modo,
liiHt ui ui empenhamos na solução de problemas que sequer exis­
ti m. e nau enxergamos aqueles problemas que surgem justamen-
li i|iiniti lii não deixamos a trivialidade de lado, mas passamos a
i Xilllll la
Nu enliinlo, o que explica que essas teorias e argumentações ló-
iili h luiiniiís sempre obtenham prioridade sobre o que precisa ser
•o iilliiiln e Ininado de modo imediato é justamente o fato de todas
>1« |i ihlus filosóficas, no momento mesmo em que elas estão se
t iiiiHllliilutln, misturarem-se a outras teorias, numa ampla conexão,
ht/i oi li i assim com que o sistema se consolide, no mau sentido do
H i iihi A isso se alia ainda o fato de que, por meio da influência fu-
•IInl ii e da má imitação das ciências, a filosofia acaba curiosamen-
li | hii aspirar a só considerar como conhecimento aquilo que é de-
iiii'iisliado racionalmente por meio de algum caminho argumenta-
llvn, ile modo que não se vê mais a instância de uma intuição ime­
diata em sua imediatidade.
I Importante concentrar os esforços para reter e realmente man-
li i lume aquilo que está se mostrando, o fenômeno; e, quanto mais
•amples ele for, tanto mais persistentes precisam ser esse reter e esse
maiilci lirmo. Somente assim o fenômeno desenvolve toda a incisi-
i idade dos problemas nele velados. Pois tão essencial quanto o es-
loiçn pela primeira apreensão do fenômeno é a intelecção de que
i s*ie cslbrço ainda não é suficiente para a solução de um problema,
•dm, nem mesmo quiçá para a sua colocação e elaboração. Tão fa-
lldli a quanto a subestimação de uma tal primeira determinação e
apieensáo do fenômeno é também a superestimação de uma mera
dl si i Içáo. Justamente essa opinião funesta prevalece dentro do âm-
lilln d.i lenomcnologia, onde todo o empenho se volta para a mos-
liiiçilii imediata das coisas. Aí surgiu a opinião de que, se tivésse-
i i i i i s an menos descrito inteiramente como as coisas são, tudo esta­
it i hem ( lom isso, porém, não se ganha nada, apenas se abre o es­
paçe para o erro de que filosofia e botânica seriam a mesma coisa.
74 Introdução à filosofia

a) Retrocesso por detrás da relação sujeito-objeto: o ser junto a...

Se frisamos: um ser junto a... já se encontra à base da enuncia­


ção, então se impõe a pergunta acerca de como se deve esclarecer
esse ser junto a... no que diz respeito à sua possibilidade interna.
Ser junto a..., permanecer junto a... caracterizam inicialmente um
modo, em conformidade com o qual nós, os homens, somos. O
ente que, como homem, cada um de nós mesmos é, denominamos
o ser-aí humano, ou, de maneira sucinta, ser-aí. Denominamos
existência um caráter fundamental do modo como o ser-aí é 1. O
ser-aí e somente ele existe. Somente o homem tem existência. Mes­
mo aqui o termo “existência” continua sendo ambíguo. Ele significa:
1. O modo de ser genérico do ser-aí; 2. e o próprio ser-aí, porque
o modo de ser prevalecente nos diversos aspectos não é o único,
mas é acompanhado ao mesmo tempo por outros.
Isso não significa que outro ente não seria efetivamente real,
mas apenas que o modo de ser junto a um outro ente é fundamen­
talmente diverso. Animais e plantas vivem; as coisas materiais, a
“natureza” em um sentido totalmente definido, subsistem por si; as
coisas de uso são à mão. Terminologicamente resulta daí o parado­
xo de que o homem não vive, mas existe. Certamente, uma inter­
pretação mais exata da existência é capaz de mostrar que o homem
“de mais a mais também vive”, mas que o que constitui o modo de
ser do animal e da planta como vida recebe no interior da existên­
cia do homem, porquanto ele possui um corpo, um sentido total­
mente diverso e próprio12. Diferentemente do modo de ser das coi-

1Deus - essentia - existentia. A essência de Deus pertence a existência (realida­


de efetiva); segundo sua essência, ele c aquele que não pode não ser. Sua essên­
cia: ens realissimum. Se Deus não fosse efetivamente real, lhe faltaria algo; como
nada pode lhe faltar, ele precisa existir. Prova ontológica da existência de Deus, ou
seja, a prova da realidade efetiva de Deus a partir de sua constituição ontológica,
a partir de sua essência. Crítica desse argumento por Tomás de Aquino, Kant <•
Schelling.
2 Heidegger tratou explicitamente do modo de ser do vivente na segunda par­
te de sua preleção de 1929-1930, Os conceitos fundamentais da metafísica (Mundo
- Finitude - Solidão). (N. do T.)
Filosofia e ciência 75

mu i timo, |><tt exemplo, as pedras e os cascalhos, coisas como o giz,


0 iipiiH.nliii, o quadro-negro, a porta, a janela possuem um modo de
m i luliilmuilc diverso que designamos como o seu seràm ão. Além
illimii, lia i uisas do gênero do espaço e do número que tampouco
«»• niiinlnim como um nada e, uma vez que são algo, acabam de al-
piiiiiit 11Dina sendo; deles dizemos que são consistentes; eles pos-
>m ui i iinsíslôncia. Desse modo, considerando esses diversos tipos
ili- uri do cnlc, podemos realizar a divisão da seguinte forma: o
t nMriilr, (>s liomens; o vivente: as plantas e os animais; o ente por
M»iilixMonte: as coisas materiais; as coisas que são à mão: as coi-
».n de uso no sentido mais amplo possível; as coisas que são con-
nlMinles. o número e o espaço. Segundo esses tipos fundamentais
di1«n i. podemos caracterizar âmbitos ônticos, apesar de o aspecto
di N»»r*. âmbitos não ser essencial e primário. O existente, o viven-
| i i , o poi si subsistente, o que é à mão não são âmbitos impelidos

•I iiillleliur-sc um ao lado do outro. Ao contrário, eles são apenas


1 1 iiti rilos metódicos de apreensão. Completamente diversa dessa
ii|tiri'iisâo da natureza é a “natureza” no sentido de cosmos ou como
1mu filo oposto à arte; esse problema tem, contudo, um lugar to-
lalmrnle distinto.

li) () ser junto a... como determinação existencial do ser-aí

A icsposla à pergunta sobre o que constituiria a essência da ver-


diidr depende de o quão amplamente conseguimos esclarecer o
1'inpiiu ser-aí, ou seja, nós mesmos em nossa existência, e isso de
mt u mii,i tão originária que, a partir da essência de nossa própria
i qsIfiK ia, vejamos em que medida lhe pertence essencialmente
hI|io i orno a verdade.
Si*i |imto a... é um modo de ser que advém ao ente que existe,
o qual tem justamente esse modo fundamental e específico de ser,
iiiii mudo fundamental de ser que se manifesta, mesmo que ape-
liiii n u um aspecto, nesse ser junto a... Se esse ser junto a... é uma
modalidade da existência do ser-aí, então é preciso que a possibi-
76 Introdução à filosofia

lidade interna dessa modalidade seja esclarecida, sendo que essa


possibilidade só se deixa esclarecer na medida em que compreen­
damos de modo satisfatório a existência do ser-aí, isto é, o ser-aí
como tal. Todavia, o ser-aí não é nada além do que designamos até
aqui por “sujeito”, o sujeito que se encontra na dita relação com
objetos.
Será que não estabelecemos simplesmente uma outra palavra
para o mesmo ente, ser-aí em vez de sujeito? Ou será que ganha­
mos alguma outra coisa com essa mudança? Ê fácil ver que não
podemos operar facilmente com a relação sujeito-objeto, enquan­
to não estiver claro o que significa “sujeito” aqui. Contudo, só ex­
perimentamos isso na medida em que problematizamos a subjeti­
vidade do sujeito, isto é, em que perguntamos o que determina o
ser-aí como ente em sua constituição originária, o que é esse ente
como tal, esse ente do qual já se constatou que existe de um modo
tal que, em sua existência, ele se mantém junto a um outro ente.
Precisamos reter esse ser junto a... como determinação existen­
cial e perguntar: como precisa ser efetivamente determinada a
existência do ser-aí, para que na constituição originária desse ente
venha à luz a possibilidade interna de um tal ser-junto-a? Não po­
demos e não devemos pressupor aqui um conceito qualquer de
sujeito e explicar a partir dele o enunciado e a relação sujeito-ob­
jeto. Ao contrário, temos de fazer o seguinte: o que fixamos ini­
cialmente como fenômeno precisa ser retido como uma determi­
nação do ser-aí, e, de acordo com essa determinação, com esse
ser junto a..., é preciso determinar então o próprio ser-aí, a subje­
tividade do sujeito.
No entanto, essa aclaração do ser junto a..., ou seja, esse retro­
cesso ao ser-aí, acontece em meio ao intuito prevalecente de en­
contrar a essência originária da verdade e de compreender a partir
dela a essência da ciência como um tipo de verdade. Em meio á
discussão da crise da ciência veio à tona o fato de estar sem expli­
cação que posição a ciência ocupa na existência do homem, ou
seja, no próprio ser-aí. A pergunta em torno da ciência ou da ver-
Filosofia e ciência 77

tlfiili t niiduz
nos de volta à pergunta peculiar acerca de nós mes-
tlin» ludiivia, isso é inicialmente apenas um a caracterização ante-
i Ipalõiia o genérica do horizonte no qual temos de nos inserir de
•huiH lia queslionadora e que vai se esclarecendo pouco a pouco,
*•■* medida em cpie as questões vão progressivamente se tornando
MIiiIn determinadas.
1'un'm, para <|ue vejamos mais concretamente esse horizonte em
11 Uai estruturas centrais, a fim de podermos esclarecer mais es-
pei titi amenle o ser junto a..., precisamos determinar ainda mais
i uia telamenle o ponto de partida de nosso questionar sobre a pos­
sibilidade interna do ser junto a... Mas o que ainda pode ser dito
i|iiatili) a isso?
Iletninemos ao nosso enunciado “Esse giz é branco’’. Essa enun-
i laçiln sobre... é realizada e só é realizável com base no fato de já
nos mantermos junto ao giz. Se realizamos esse enunciado sobre o
gW e, ao fazê-lo, em certa medida o abarcamos com a vista, não
apenas nos mantemos junto a ele, mas também junto a outras coi-
mh Antes de proferirmos o enunciado, não estamos de maneira al­
guma ocupados com o giz. Só dirigimos a atenção de nosso olhar
paia o giz no momento em que co-executamos ou acompanhamos
n desmiolar da execução do enunciado proferido.
Assim, resulta daí que nossa permanência junto às coisas pos-
• til i ui tosas modificações, e que essa permanência não implica ne-
i emnii lamente ocupar-se de tais modificações. Nós nos mantemos
iiqui n.i sala, isto é, também nos mantemos junto à porta, junto às
luiiilnaiias, junto ao cabideiro, sem que nos ocupemos com essas
i ninas A ocupação com as coisas constitui, portanto, apenas um
mudo tolalmente determinado do permanecer junto a elas. Se di-
......... . a atenção de nosso olhar para as coisas, ou seja, se em
melo ao enunciado sobre o giz dirigimos a atenção de nosso olhar
paia a <oisa mesma, então podemos apreender nessa coisa a deter­
minada propriedade de ela ser branca; nessa atenção do olhar para
a i nha experimentamos ao mesmo tempo que essa coisa, que so-
nn 111 e agora apreendemos expressamente, já era antes por si sub-
78 Introdução à filosofia

sistente. Reside no caráter desse prestar atenção na coisa o fato do


a coisa mesma nos dizer em certa medida: eu já estava aí, antes do
tu me apreenderes. Nesse prestar atenção nas coisas não trazemos
nada a elas nem —como diríamos - lhes contrabandeamos nada
por meio do discurso, mas são elas, as coisas mesmas, que vêm ao
nosso encontro dessa forma. O prestar atenção nas coisas, aparen­
temente uma atividade desenvolvida por nosso turno, um tornar
aparente, ou, utilizando as palavras de Kant, uma espontaneida­
de aparente de nós mesmos, não é, contudo, segundo sua essên­
cia propriamente dita, senão justamente um deixar-vir-ao-encon-
tro, uma passividade peculiar, uma receptividade peculiar. Em meio
a esse deixar-vir-ao-encontro não há nem a “impressão” de algo de
fora nem um sair de dentro para fora a partir de nós mesmos; por­
tanto, tampouco algum espaço interior; ele não é nem uma relação
causal nem transcendência às avessas. Esse deixar-vir-ao encontro
é, em certa medida, espontaneidade, mas uma espontaneidade tal
que possui intencionalmente o caráter do acolher, do aceitar, do
receber.
Kant foi induzido pela espontaneidade do pensamento e em ge­
ral de toda a atividade da consciência no sentido mais amplo a di­
zer que apenas onde a espontaneidade está presente o pensamen­
to está presente —ou seja, está presente uma determinação com
relação às coisas, uma atribuição de determinados caracteres lógi­
cos. Esse é um erro fundamental. Onde há espontaneidade não
está necessariamente excluído que haja precisamente aí uma re­
ceptividade peculiar. Justamente no prestar atenção em algo que <5
desperto em nós há uma libertação das coisas que visa a que elas
possam se mostrar como são.

c) O anunciar-se do ente em contextos conjunturais

Em nossa —ainda que desatenta —permanência junto às coisas


sempre já temos diante de nós uma multiplicidade: não apenas giz,
mas apagador, quadro-negro, cátedra, cabideiro, gorros, bancos,
portas.
Filosofia e ciência 79

Mu* será que com essa enumeração conquistamos algo por mais
luliiliuu que seja para a aclaração do ser junto a... e, por conseguin­
te, ili* nosso comportamento em relação às coisas? Certamente
qui', no aspecto específico, a adequada ocupação com o giz ou o
"Ui lever no quadro-negro pode ser algo diverso do modo como eu
lido i oui um gorro, que apenas coloco ou tiro da cabeça. Depreen­
demos daí que há um modo determinado de trato com essas coi­
sas de uso ao lidarmos com elas. No entanto, ainda não esgotamos
lildo o que há no fato de que não é apenas esse giz sobre o qual fa­
li mos expressamente um enunciado que subsiste por si, mas mui­
tas oi il ias coisas. As coisas, porém, não subsistem por si para nós
• oitto em um ferro-velho ou em um brechó, onde se acham enfi-
li liadas em uma confusão desordenada. Em verdade, o giz talvez
"s|e|a ao lado do apagador e os dois ao lado do quadro-negro. To­
davia, esse estar um ao lado do outro é um estar próximo um do
iiiilio lolalmente determinado. Esse é co-determinado pelo con-
|i ildo objetivo, pelo que e pelo modo como as coisas são. O giz ser­
ve para escrever sobre o quadro-negro, o apagador, para apagar o
que loi escrito. Essas coisas não subsistem por si lado a lado jun-
lo i oui várias outras apenas sob o ponto de vista espacial, mas es-
lito xiluadas em um contexto de serventia para... No meio desse
i oulexio, elas travam entre si relações específicas. Para as coisas,
pui su.i vez, esse contexto é algo anterior que já subjaz fundamen-
liilinenle a elas. O fato de ter essa conjuntura composta pelo giz,
pi lo apagador, pelo quadro-negro determina-se no todo porque aqui
nessa sala faz-se uso da oportunidade para escrever, um escrever
que serve para comunicar de maneira mais determinada aquilo
■1111' esla sendo exposto, ou seja, aquilo que está em conexão com
Hplijeção.
i nul udo, essa sala já está de antemão determinada no todo por
essa tarefa: uma totalidade de relações conjunturais perpassa e do-
iiilna a multiplicidade das coisas que aqui subsistem por si, bem
i moo o modo aparentemente óbvio com que todas essas coisas
subsistem aqui por si —um modo a que inicialmente não damos
80 Introdução à filosofia

absolutamente atenção expressa. A multiplicidade desse ente, tal


como ele se nos anuncia diretamente, só pode ser apreendida por
nós porque e na medida em que já compreendemos de antemão
algo como um auditório, quando temos isso claro para nós. Sob a
luz de um determinado contexto conjuntural que é como que di­
tado pela tarefa - preleção pública —, o ente por si subsistente tor­
na-se manifesto para nós nele mesmo, naquilo justamente que elo
é aqui.
Um contexto conjuntural não consiste no fato de uma coisa de­
terminar-se incessantemente por meio de outra, mas no fato de
tudo sempre estar respectivamente relacionado ao todo, mostran­
do uma referência a ele e devendo o seu si “mesmo” a essa referen-
cialidade. Todo indivíduo acolheu em si o todo. E é só dessa for­
ma que o todo conjuntural vem uma vez mais à tona; ele não é nada
que se encontre por si, como que ao lado ou por detrás das coisas,
como mais um ente por si subsistente entre essas coisas.
Se supuséssemos por um instante não conhecermos as coisas
que fazem parte do contexto de um auditório, então veríamos cer­
tamente coisas que subsistem por si. No entanto, não conseguiría­
mos apreender essas coisas como tais naquilo que elas mesmas
são. O que se nos mostra aí não se nos anunciaria de maneira me­
nos real, menos importuna e por si subsistente. Ao contrário, jus­
tamente na medida em que não estamos familiarizados com esse
contexto, o ente por si subsistente aparece para nós como enigmá­
tico e, nesse caráter enigmático, tanto mais importuno e imediata­
mente real. Como, porém, estamos familiarizados, não sabemos
absolutamente que, na verdade, sempre só apreendemos essa coi­
sa particular sobre o pano de fundo da compreensão desse todo
conjuntural: escrever, preleção, auditório e coisas do gênero. Cada
coisa com a qual nos ocupamos aqui e que de algum modo se pres­
ta ao uso deixa transparecer por si mesma esse todo de relações
conjunturais que são determinadas pelo auditório.
Inopinadamente acabamos, assim, por alcançar algum esclare­
cimento sobre o nosso ser junto às coisas, a saber, que ele não pre-
Filosofia e ciência 81

t Im ni'i necessariamente uma ocupação expressa com elas. No en-


liiulii, mesmo quando o giz não está sendo utilizado por nós e só
•i ai lia |ogado por aí, ele, como giz, se acha presente no todo con-
|milmal caracterizado. E é só após já termos descortinado o con­
testo t imji ml tirai que o ente pode se tornar manifesto para nós.
\sslm liiliimos de uma manifestação do ente em seus contextos.
IStlliiulo, o nosso ser junto a... é em primeira linha um ser junto a
lima multiplicidade de entes perpassada e dominada por uma de­
li imlnada totalidade conjuntural.
Nesse nosso ser junto à multiplicidade de coisas, o ente é ma-
nlleslo no todo e, em verdade, de um golpe só. Por isso, a esfera
desse ente consegue se mostrar nele mesmo. O objeto singular que
\Isiiall/amos é justamente esse objeto individual apenas no todo
do i onlexlo. Esse caráter manifesto do ente em uma tal totalidade
fi piiui nós tão óbvio que, em princípio, nem sequer nos damos
i oulii dele; não é casual que não tenhamos expressamente cons-
i irm la desse todo e, com isso, persistentemente o desconsidere-
......... ... meio à reflexão sobre objetos desse âmbito.

d) Verdade como desvelamento. Modos diversos


de manifestação do ente

liulavia, a manifestação do ente nele mesmo torna-se muito


mais expressiva quando descrevemos esse fato de modo negativo e
ill/emos que esse ente, assim como ele subsiste por si aqui nesse
i uulcxii) conjuntural, não está velado para nós, embora pudesse
ctlei, ele está desvelado nele mesmo. E, visto que ele está desve-
liiilu dessa forma, podemos fazer enunciados sobre ele e mesmo
...... provar esses enunciados. A manifestação do ente é um desve-
lumeiiio. Desvelamento realmente é expresso em grego por meio
•l.i palavra àA.f|itero'., que costumamos traduzir, embora não dizen­
do eíei ivamente nada com essa tradução, por “verdade”. Verdadei-
lo, isio é, desvelado, é o próprio ente. Por meio do quê e como ele
c desvelado, essa é uma outra pergunta. Assim, não é a proposição
82 Introdução à filosofia

nem o enunciado sobre o ente, mas o ente mesmo que é “verdadei­


ro”. Somente porque o ente mesmo é verdadeiro, as proposições
sobre o ente podem ser verdadeiras em um sentido derivado.
Na tradição metafísica medieval também há, porém, uma con­
cepção da verdade —veritas —, segundo a qual ela advém ao ente
mesmo, ao ens. Uma certa tese diz: omne ens est verum, todo ente é
verdadeiro. No entanto, essa proposição tem um sentido total­
mente diverso de nossa afirmação; a saber, o sentido de que todo
ente, na medida em que é, é criado por Deus. Porquanto ele é
criado por Deus, ens creatum, ele precisa ser pensado por Deus.
Uma vez que é pensado por Deus, ou seja, por aquele que não
erra, pela verdade absoluta, ele é, como produto do pensamento
de Deus, algo verdadeiro. Porque todo ente é ente criado, ele é
como ente algo verdadeiro, verum qua cogitatum a Deo. Esse con­
ceito de verdade do ente repousa, portanto, sobre pressuposições
totalmente diversas das que estão presentes em nossa exposição
da verdade.
Verdade significa, portanto, desvelamento; os gregos, esses se­
res que filosofaram apaixonadamente, têm no conceito daquilo
que é tido como o maximamente positivo e como o bem supremo,
isto é, no conceito de verdade, uma determinação negativa, um
a-privativo. Se esse roubo pertence ao conceito de verdade, então
isso quer dizer que o ente, antes de mais nada, precisa ser arran­
cado do velamento ou que dele, do ente, seu velamento precisa
ser tomado. Mas, se o ente reside assim no velamento, então ele
precisa estar envolto em um tal velamento, sobretudo porque não
é de maneira alguma compreensível por que afinal algo que é pre­
cisa estar velado. Que tipo de acontecimento é esse, porém, por
meio do qual o ente é envolto em um velamento? De que modo
“é ” esse velamento do ente, com o qual todo conhecer como en­
contro da verdade, como descoberta do desvelamento está em
conflito?
Com isso, suscitamos perguntas que não ocorreram nem aos
gregos nem com maior razão àqueles que vieram depois deles. Os
Filosofia e ciência 83

gtegos e aqueles que lhes sucederam não conheceram essas per-


gnulas porque a Antiguidade, apesar da palavra àÀ,f|t)eia, não viu
cquessamente que na essência da verdade reside algo negativo e
assim os antigos não puderam, por isso, ser inquietados por essa
negai ividade. De certo modo apenas na criação primeira da pala-
vni, por meio da qual os gregos se expressavam sobre a verdade, tal
i laililade brilhou rapidamente sobre a essência da verdade, uma
essência perpassada por uma negação. A palavra permaneceu, mas
aquela claridade da qual ela proveio se voltou para a obscuridade
•' passou a ser mantida ali. Na medida em que a verdade é expres­
sa, ela se torna publicamente acessível na proposição falada en-
qiianlo entretecimento de palavras, significações e representações.
Assim, a figura primária e única da verdade é a síntese predicati­
va t 'omo essa caracterização da verdade continua sendo ainda
boje a mais óbvia e como ela é ao mesmo tempo a caracterização
sancionada pela respeitável tradição filosófica, inicialmente não
subsiste mais nenhum pressentimento de que por instantes algo
elementar ficou claro nessa palavra áA.fj-úeta.
I)essa forma, precisamos em primeiro lugar restituir novamen-
le a essa palavra originária o seu conteúdo originário que se per­
deu, ou melhor, colocá-lo, antes de mais nada, propriamente sob a
In/ <) fundamental sobre a verdade como des-velamento do ente,
i nino privação e roubo, assim como sobre a superação do velamen­
to do ente e a liberação do ente de seu velamento, pode ser acom­
panhado por meio de uma leitura de Ser e tempo I, pp. 212-30. Aí
e leíla pela primeira vez a tentativa de discutir esse sentido da ver­
dade em sua significação principiai e em toda a amplitude que
ei.se conceito tem. Ainda se carece totalmente de uma exploração
Investigativa da história do conceito de verdade nesse sentido ra-
dti al e originário, tanto em relação à história do conceito de verda­
de na filosofia e nas ciências, quanto também no sentido do con-
i eito de verdade em geral, que diz respeito à verdade prática, ao
agli Apesar disso, tivemos nos últimos tempos uma investigação
desse tipo que também parte de uma problemática de um modo
84 Introdução à filosofia

principiai bem semelhante à minha: Rudolf Bultmann, Untersuchun­


gen zum fohannesevangelium [Investigações sobre o evangelho de
João], em: “Zeitschrift für die neutestamentliche Wissenschaft
und die Kunde der älteren Kirche”, 1928, vol. 27, pp. 113-63. Bult­
mann publica aqui trabalhos preliminares que mais tarde compo­
rão sua grande obra de comentários, e tenta discutir alguns concei­
tos fundamentais, entre outros e em primeiro lugar o conceito de
áXrjítewx. O ensaio é dividido em duas partes centrais. Em primei­
ro lugar é discutido o conceito de verdade do Antigo Testamento e
o modo de sua tradução na Septuaginta. Aí ganham voz conceitos
aparentados com a verdade: firmeza, fidelidade, confiabilidade,
justiça e outros do gênero. Todos esses conceitos, com os quais as
pessoas até então se confrontavam desorientadas em virtude de
sua adesão ao conceito tradicional de verdade, encontram agora
uma primeira interpretação adequada. Em seguida é tratado o con­
ceito de verdade na literatura judaica e judaico-cristã. O ensaio da
segunda parte, àX.rj-&€i,a na literatura cristã e helenística, é impor­
tante não apenas porque pela primeira vez se tenta trazer à tona
em uma investigação concreta essa história do conceito de verdade,
mas também porque Bultmann apresenta, com a consistência e
clareza que lhe são próprias, novos materiais que ele trata com uma
profundidade inaudita, de modo que esse ensaio é de uma signifi­
cação essencial tanto em termos histórico-científicos, quanto his­
tórico-filosóficos.
Iremos reter esse caráter elementar da essência da verdade e
tentaremos de agora em diante compreender por verdade algo
como des-velamento, sabendo muito bem que ainda não consegui­
mos apreender corretamente esse des-velamento, quem dirá com­
preendê-lo. Reflexões posteriores terão de nos auxiliar nisso. Tra­
temos agora de prosseguir no caminho que iniciamos, isto é, de le­
var adiante a clarificação do ser junto a... (permanecer). Temos de
prosseguir nesse caminho até o ponto em que conquistemos uma
primeira intelecção suficiente da essência da verdade; uma inte-
Filosofia e ciência 85

IrcçAo tino seja suficiente para, sob a luz da essência da verdade,


irspondor à pergunta pela essência da ciência3.
Tivemos a oportunidade de ver o seguinte: em nosso ser junto
ilk coisas, estas se tornam manifestas para nós; elas mesmas vêm
mi nosso encontro desveladamente e, com efeito, de um modo tal
i |ue se anunciam no todo de um contexto conjuntural4. O círculo
dos contextos conjunturais que transparecem faticamente a cada
momento, as perspectivas daquilo que está precisamente mani-
leslo para nós são alteráveis e de fato se alteram constantemente:
se dizemos “giz, apagador, quadro-negro e auditório”, então nos
obrigamos de certa maneira a ficar no círculo desse espaço deter­
minado. No entanto, o próprio auditório está imediatamente no
prédio da universidade, esse prédio nesse lugar da cidade, a cida­
de de 1’reiburg em uma determinada região, e essa região sob o céu,
quer seja dia ou noite, sempre em uma certa determinação climá­
tica. lodo esse contexto nos é imediatamente desvelado e presen­
te quando dizemos que esse giz aqui encontra-se sobre a nossa
mesa. Todos esses círculos inerentes ao contexto do ente não pos­
suem nenhum limite fixo; eles não estão enfileirados um ao lado
do outro, mas os círculos mais amplos sempre aparecem a cada
vez como um todo através dos mais restritos e se imiscuem nes­
ses últimos.
Todavia, isso quer dizer que um ente múltiplo sempre se torna
manifesto para nós de muitos modos. Todos nós nos movimenta­
mos em certos círculos em média iguais, em parte quiçá os mes-1

1 Não apenas suficientemente genérica; pois genérica é também a idéia da ver­


dade proposicional e precisamente ela, mas a generalidade que ela possui é a ten-
l.iitora generalidade do indeterminado. A essência originária dá-se de tal modo que
Iodas as variações essenciais e o modo da variação mesma, os deslocamentos e as
aOiíiciosidades em relação à “verdade prática”, a verdade da proposição, são reti­
dos c então transportados! Com isso, não se consegue apreender a verdade do es-
(iriiir, do desejar, do perguntar dentre outras coisas do gênero.
1 í.ssência da verdade: manifestação do ente por si subsistente até agora. Será
■|iu- os entes possuem todos a mesma manifestação? O caráter de verdade perma-
i■<■>c intocado pelo modo de ser do ente? Como se dá a conexão dos dois?
86 Introdução à filosofia

mos, intrínsecos aos entes cotidianamente manifestos. Examiná-


los não é nossa tarefa atual. Aqui questionamos simplesmente a
manifestação como tal, o desvelamento dos entes. Em verdade, pa­
rece ser suficiente nos mantermos junto a um exemplo qualquer,
a manifestação do giz como aquilo que viabiliza o fato de esse giz
ser objeto de um enunciado. Já ouvimos, porém, que nem todo
ente tem o modo de ser das coisas de uso. O ente que subsiste por
si (pedra), o ente que vive (planta, animal), o ente que existe (ho­
mem) também são reais. Por isso, questionamos agora a manifes­
tação de todos esses entes que, de acordo com o seu modo de ser,
certamente podem ser diferentes.
Mas será que essa manifestação dos entes é uma manifestação
inteiramente homogênea, sem prejuízo do respectivo modo de ser
dos entes manifestos? Assim o parece. Pois facilmente podemos
seguir constatando da mesma maneira o fato de estarem aí: pedras,
árvores, cães, automóveis, “transeuntes” (seres humanos). Do mes­
mo modo também podemos conversar diretamente e realizar enun­
ciados verdadeiros sobre tudo isso porque tudo isso está manifes­
to da mesma maneira. Essa possibilidade enunciativa homogênea
sobre todo o ente que se nos apresenta é também a prova de uma
forma homogênea da manifestação, do desvelamento, da verdade
do ente.
No entanto, ficamos muito desconfiados em relação àquilo que
o enunciado é capaz de fornecer à essência da verdade. Talvez
seja justamente a homogeneidade, a ausência de diferenças do
enunciado e do discurso, que suscite aqui uma vez mais a aparên­
cia de que a verdade sobre os entes é igualmente indistinta e de
um mesmo caráter, de que o desvelamento dos entes em seus mo­
dos diversos não é determinado pelos respectivos modos de ser
dos entes.
De fato, há uma aparência de que todo o ente que justamente
nos é acessível é desvelado a partir de um mesmo modo de mani­
festação, uma aparência que tem certamente a sua razão de ser.
Como essa aparência é uma aparência muito tenaz, como ela até
Filosofia e ciência 87

mesmo pertence à essência de nosso ser-aí cotidiano, a clarifica-


çrto tios fundamentos e da possibilidade dessa aparência exige am­
plas reflexões. Não obstante,.sempre vemos novamente que o
enunciado não nos sugere apenas uma idéia determinada da ver­
dade, mas também dá a entender que, em certa medida, todo o
enle sobre o qual se pode fazer um enunciado é do mesmo tipo.
Pntretanto, a manifestação (verdade) do ente que nos é acessí­
vel cotidianamente em sua multiplicidade não é agora indistinta­
mente homogênea, mas diversa e sempre dependente do modo de
ser tios entes que se anunciam. Justamente porque inicialmente
itito atentamos e, na maioria das vezes, nunca chegamos mesmo a
alentar para a diversidade do ente, precisamos examiná-la. Pois
níto devemos determinar a essência da verdade orientando-nos
pelo enunciado e por sua indiferença, nem por seu caráter nivela­
do e nivelador.

\\ 13. Modo de ser e manifestação. Diversos modos de ser do ente

Só podemos elucidar a diversidade da verdade do ente nela ma­


nifesto se caracterizarmos mais proximamente os diversos modos
de ser do ente e demonstrarmos como, por meio desses diversos
modos, é a cada vez exigido um modo próprio da verdade. Para
liinlo, porém, não seria necessária apenas uma interpretação dos
diversos modos de ser (ente por si subsistente, vida, existência,
i onsistência). Ao contrário, também seria necessária, ao mesmo
tempo, uma compreensão suficientemente ampla da essência da
verdade para ver como essa se modifica por meio daqueles modos
do ser.
Para realizar tais considerações, ainda nos falta agora pratica-
incnlc tudo. De modo que precisamos remediar de alguma forma
esse problema. Uma caracterização rudimentar e que não diz res-
pciio a todos os modos de ser deve ser suficiente para nos familia-
il/.n antes de mais nada com as diferenças em seus traços gerais.
88 Introdução à filosofia

Nosso tema é, assim, inicialmente o seguinte: modos de ser e sua


diversidade, considerando-se apenas as duas formas extremas: ente
por si subsistente e existência. Portanto, o problema da verdade
precisa ser de início deixado para mais tarde (cf. pp. 113 ss.).
Como veio à tona, o ente sempre se encontra no interior de um
contexto e esse contexto expressa justamente algo do modo de ser
do ente em questão: conjuntura, serventia para..., coisas de uso,
aquilo que está à mão. Isso quer dizer que a multiplicidade do ente
manifesto para nós não é uma mera ocorrência homogênea e si­
multânea de coisas alinhadas umas ao lado das outras, a saber, pe­
dras, plantas, animais e homens. Se todos esses entes, uma vez
que estão no espaço, já ocorrem uns ao lado dos outros ou uns na
frente dos outros ou uns atrás dos outros ou uns sobre os outros,
então esse alinhamento, esse um-ao-lado-do-outro aparentemente
homogêneo é, contudo, diverso em relação ao ente singular e, com
efeito, não apenas espacialmente.
Gostaríamos de tentar ver de uma maneira algo mais incisiva
esse um-ao-lado-do-outro do ente múltiplo que é manifesto coti­
dianamente e em meio ao qual de fato nos movimentamos, ou seja,
ao qual pertencemos. Escolhemos para tanto dois modos extremos
do estar um-ao-lado-do-outro: subsistência por si e existência.
Dentre o ente múltiplo, em meio ao qual nós mesmos aparecemos,
encontram-se entes que possuem o mesmo modo de ser que nós,
seres-aí, e entes que possuem um outro modo de ser. Daí resulta
a dicotomia de que todo o ente que encontramos e ao qual nós
mesmos pertencemos ou bem é um ente dotado do caráter de ser-
aí ou um ente não dotado do caráter de ser-aí.
O ente que possui nosso modo de ser, mas que nós mesmos não
somos, o ente que é a cada vez o outro, o outro ser-aí, o ser-aí dos
outros, não está simplesmente ao nosso lado como um ente por si
subsistente e, entrementes, talvez ainda ao lado de outras coisas.
Ao contrário, um outro ser-aí está conosco aí: ele é um co-ser-aí.
Nós mesmos somos determinados por um ser com os outros. Ser-
aí e co-ser-aí são um-com-o-outro.
Filosofia e ciência 89

Mas será que o quadro-negro e o giz não são ao mesmo tempo


tão reais quanto nós? Tomados isoladamente, eles também não são
afinal conosco, conosco ao mesmo tempo aí? E eles não são todos
juntos uns com os outros conosco aí e nós com as coisas? Tomado
estritamente, não se pode dizer que esses entes são uns com os ou-
11os, apesar de precisarmos admitir que o apagador e o giz também
subsistem por si ao mesmo tempo com o nosso ser-aí. Um ente
que possui o modo de ser do ente por si subsistente nunca pode,
contudo, ser-aí conosco porque não lhe advém o modo de ser do
ser-aí. Somente o que por si mesmo é ser-aí pode ser um co-ser-aí.
Co-ser-aí não significa apenas: ser também ao mesmo tempo, ape­
nas justamente qua ser-aí. É muito mais o modo de ser do ser-aí
que traz pela primeira vez para o interior da preposição “com” o
sentido propriamente dito. “Com” deve ser tomada como partici­
pação, ao passo que estranheza ou estrangeiridade devem ser to­
madas como ausência de participação, constituindo apenas uma
modulação da participação. O “com” tem, assim, um sentido total-
mente determinado e não significa simplesmente “junto a”, tam­
pouco ser junto a um ente que possui o mesmo modo de ser.
“Com” é um modo próprio de ser.
Realidade simultânea, isto é, ser-real simultaneamente a outros
entes, não significa necessariamente ser-um-com-o-outro. O giz e
o apagador ou mesmo o homem e o giz podem ser ao mesmo tem­
po reais. No entanto, não podemos dizer desses dois pares que eles
são um com o outro. Só o homem e o homem podem ser um com
o outro. Portanto, diferenciamos de maneira totalmente genérica o
ser real do ente, o que ainda não diz absolutamente nada sobre o
modo como eles são juntos e, ao mesmo tempo, o ser real do ente
que possui o mesmo modo de ser. Se ele tem o modo de ser do
ente por si subsistente, então falamos de um subsistir-por-si-con-
liiníamente. Se o ser ao mesmo tempo real tem o modo de ser do
ser-aí, falamos de um “um-com-o-outro”.
Perguntamos agora pela diferença do um-ao-lado-do-outro no
sentido do subsistir-por-si-conjuntamente das coisas e do um-ao-
l.ido-do-outro como ser-um-com-o-outro dos homens.
90 Introdução à filosofia

a) Subsistir-por-si-conjuntamente —ser-um-com-o-outro

Tomemos como um exemplo simples dois blocos de pedra que


se encontram na encosta de uma montanha. Podemos dizer: eles
são juntos, mas não subsistem por si um com o outro. Em contra­
partida, dois viandantes que sobem a encosta são um com o outro.
E fácil de perceber a diferença: as duas pedras são corpos mate­
riais, os dois viandantes seres vivos; e, com efeito, seres vivos ra­
cionais que, com o auxílio de sua razão, se apreendem mutuamen­
te. Os homens também subsistem sem dúvida por si um ao lado
do outro. Além disso, porém, eles têm uma consciência desse um-
ao-lado-do-outro e um apreende o outro. Por conseguinte, seu ser-
um-com-o-outro não seria nada além de um subsistir-por-si-con­
juntamente de maneira consciente.
Essa caracterização da diferença entre subsistir-por-si-conjunta-
mente e ser-um-com-o-outro é à primeira vista elucidativa e pare­
ce ser pertinente, uma vez que indica claramente uma diversida­
de. Os blocos de pedra não são apenas desprovidos de consciên­
cia, como se tivessem perdido sua consciência e não pudessem
mais por isso fazer uso dela. Ao contrário, conforme a sua própria
essência, eles não têm consciência. Pode haver entre eles um efei­
to recíproco, mas lhes é pura e simplesmente vedado transformar
seu um-ao-lado-do-outro em um apreender-se mutuamente. Como
seres vivos racionais, os dois homens são capazes de uma tal
apreensão. Ora, mas será que por meio da apreensão mútua o um-
ao-lado-do-outro se transforma em um-com-o-outror Imaginemos
que, depois de uma curva da trilha em que caminham, os dois
viandantes se deparem com uma vista inesperada da montanha, de
modo que os dois são repentinamente arrebatados e silenciosa­
mente passam a estar um ao lado do outro. Não há nenhum rasto
de uma apreensão mútua, cada um se encontra antes absorvido
pela vista. Será que os dois estão agora apenas um ao lado do ou
tro como os dois blocos de pedra ou será que justamente nesse ins­
tante eles são um com o outro de uma maneira em que não po-
Filosofia e ciência 91

diam ser quando juntos falavam à toa e sem parar ou mesmo


quando se apreendiam mutuamente e se punham a sondar seus
complexos?
Se, portanto, nesse arrebatamento pela vista repentina da mon­
tanha - em meio ao qual não faz mais sentido algum falar de uma
apreensão mútua - reside precisamente um ser-um-com-o-outro
originário, então esse ser-um-com-o-outro não pode se constituir
por meio de uma apreensão mútua. E, para perceber como esse
não é de maneira alguma o caso, basta ter em mente que toda
apreensão mútua entre ser-aí e ser-aí já pressupõe, inversamente,
o ser-um-com-o-outro dos dois. A apreensão mútua está fundada
no ser-um-com-o-outro.
Nesse sentido, o ser-um-com-o-outro significa mais, ele signifi­
ca de fato algo diverso de: dois homens aparecem em algum lugar
ao mesmo tempo. Até aqui obtivemos por meio da negativa o se­
guinte: 1. O ser-um-com-o-outro não é um também-ser-ao-mesmo-
tempo, com a única diferença de que esse ser seria justamente o
ser-aí. 2. O um-com-o-outro tampouco aponta para um subsistir-
conjuntamente, de modo que os entes por si subsistentes aí teriam
além de tudo um saber mútuo acerca de si mesmos; ele não é ne­
nhum também-ser-ao-mesmo-tempo, só que agora acompanhado
de consciência.
Onde reside, porém, agora positivamente, a essência do um-com-
o-outro? A última coisa que ouvimos foi: a apreensão mútua já
pressupõe o um-com-o-outro. Isso significa: a apreensão mútua só
é antes de tudo possível em razão do um-com-o-outro. Isso parece
ser uma trivialidade que não diz nada, pois, se dois homens preci­
sam se apreender mutuamente, então cada um deles certamente
precisa, além disso, ser real aí. Mas é isso que temos em vista ao
dizermos que o um-com-o-outro é o pressuposto para a apreensão
mútua? De modo algum. Esse pressuposto de que dois homens
precisam ser faticamente reais para realmente se apreenderem
inutuamente como reais não carece ser discutido. Não pergunta­
mos pelo que precisa ser real para que algo diverso possa se reali-
92 Introdução à filosofia

zar, mas sim pelo que precisa ser possível para que algo diverso
seja possibilitado. Para que uma apreensão mútua em geral seja
possível como tal, é preciso antes que o um-ser-um-com-o-outro
seja possível. Somente em razão dessa possibilidade do um-com-o-
outro há a possibilidade secundária da apreensão mútua entre ser-
aí e ser-aí.
De qualquer modo, já vimos em um outro contexto como toda
apreensão pressupõe a manifestação. Naquele momento o que es­
tava em questão era a apreensão do ente por si subsistente, agora
o que está em jogo é a apreensão do ser-aí. O ser-aí já precisa ser
antes manifesto para o ser-aí, para que seja possível a apreensão
mútua. Esse ser-manifesto-um-para-o-outro referente aos seres-aí
toca a essência do um-com-o-outro ou será que ele não pertence
essencialmente ao ser-um-com-o-outro? Em todo caso precisamos
tentar discutir o um-com-o-outro a partir da orientação por esse
ser-manifesto-um-para-o-outro.
Se o ser-manifesto-um-para-o-outro não equivale à apreensão
mútua, então todos os modos de apreensão mostram-se desde o
princípio insuficientes para o esclarecimento do um-com-o-outro.
Ser-manifesto-um-para-o-outro não consiste, portanto, em que eu
conheça o outro - e inversamente que o outro me conheça - em
sua assim chamada vida interior, em que eu saiba o que está ocor­
rendo em sua interioridade, que tipo de disposições, peculiarida­
des e manias ele tem; tampouco consiste, por conseguinte, na
apreensão de sua constituição externa ou de seu comportamento.
Se o ser-manifesto-um-para-o-outro deve conter uma indicação da
essência do um-com-o-outro, então nós a encontraremos por lim
lá onde constatamos um um-com-o-outro; por exemplo, em meio
ao arrebatamento exercido pela vista da montanha sobre os dois
viandantes. Aqui vigoram exatamente uma não-apreensão-mútua
e, não obstante, um com-o-outro peculiar. O “com” aponta nesse
contexto para compartilhamento. O que é compartilhado reside
aqui no fato de que um é tão arrebatado quanto o outro, de que
algo vale igualmente para os dois. Assim como um se comporta, <>
Filosofia e ciência 93

iiiilm também se comporta. O ser-um-com-o-outro dos dois con­


diste então em os dois se comportarem e poderem se comportar de
lp.ti.il maneira? Isso, porém, também é válido para os dois blocos de
pedra. () que é possível em um bloco também pode suceder com
0 nutro. Sim, essas coisas se igualam no modo como são, muito mais
do que os homens. Apesar de os dois blocos de pedra serem de um
Igual modo, eles não são absolutamente um-com-o-outro.

b) Ser-um-com-o-outro: o comportar-se de muitos


em relação ao mesmo

( !om os homens, contudo, trata-se de um comportamento igual


em relação às coisas. Por exemplo, o comportamento junto à vista
da montanha. Ser-um-com-o-outro significa ser de igual maneira,
e ser quer dizer: comportar-se em relação a. Ser-um-com-o-outro
slgnil ica se comportar de igual maneira em relação a... Mas será
que há algo, afinal, desse gênero? Será que há efetivamente algo
em relação a que os homens se comportam de igual maneira?
Retomemos o nosso exemplo de sempre! Em vista desse giz, nós
lodos levamos a termo agora —uns com os outros - o enunciado:
"esse giz é branco”. Essa enunciação está fundada em nosso ser
|unlo a esse ente por si subsistente. Ainda que tomemos apenas
duas pessoas entre todos nós, esse nosso ser junto ao giz nunca é
Igual. Abstraindo de todo o resto, a orientação espacial na qual a
1ada vez. nos encontramos de maneira diversa junto ao giz já mos-
tia por si só que todo ser junto a... é, para cada indivíduo em par-
tti ti lar, um ser junto a... diverso. Mais ainda: não é apenas agora
que um ser junto a... não se dá faticamente para nenhum de nós
......... algo igual, mas nunca pode haver indistintamente o igual,
nem sob o ponto de vista fático nem sob o ponto de vista da essên-
i ia A diversidade da orientação espacial pode ser, contudo, reme­
diada. Cada ser-aí pode, por exemplo, assumir o meu lugar e ter o
giz diante de si a partir de minha posição. Certamente cada um de
nos pode se pôr no lugar de um outro. No entanto, nunca no mes-
94 Introdução à filosofia

mo momento. O momento no tempo é necessariamente um mo­


mento diverso, e, se ele for o mesmo, então o lugar é necessa­
riamente diferente.
Portanto, não há nenhum ser junto a... e correspondentemenU*
nenhum comportar-se em relação a... que pudesse ser igual. Se
ser-um-com-o-outro significasse o mesmo que: comportar-se de
igual maneira em relação a uma coisa, então não haveria nenhum
um-com-o-outro. Todavia, digamos agora de modo compreensível
que nós todos nos comportamos “uns com os outros” em relação
ao giz. Assim, o que é igual não é o nosso comportamento em re­
lação a..., mas igual é aquilo em relação ao que nos comportamos.
Mas, afinal, será que vemos de fato o mesmo giz? Alguém na últi­
ma fileira lá atrás vê um giz que é igual àquele que eu vejo? Eu afir­
mo: não! Os senhores concordarão e dirão: naturalmente não. O
que para o observador da última fileira lá atrás é a parte da frente
do giz é para mim inversamente a parte de trás. Aquilo que vemos
aí, aquilo em relação ao que nós nos comportamos, também é, en­
tão, algo diverso. Mas digo ainda mais: no ser junto ao giz que se
encontra aí defronte, alguém que se acha lá no fundo do auditório
não apenas não vê de maneira realmente igual o giz que eu vejo; e,
com efeito, não apenas porque isso que estamos vendo aí mostra
efetivamente diferenças, mas porque algo do gênero, no caso pre­
sente, está essencialmente fora de questão. Para que alguém lá
atrás pudesse ver um giz igual, ou seja, um giz que é igual ao que
eu vejo, seria preciso que pelo menos dois gizes subsistissem por
si. De acordo com a sua essência, igualdade pressupõe pluralida­
de. Portanto, cada um de nós não vê o giz igual, mas todos vêem
uns com os outros o mesmo giz. Mesmidade e igualdade são coi­
sas diversas.
Encontramo-nos junto à pergunta pela essência da verdade. A
verdade veio à tona para nós inicialmente em sua determinação ge­
nérica como desvelamento do ente. Desse modo, de uma maneira
que ainda não está determinada, ela advém ao ente. Daí se de­
preende que a verdade é provavelmente determinada de alguma
Filosofia e ciência 95

maneira pelo ente mesmo. No entanto, sabemos agora que os en-


los são diversos de acordo com o seu modo de ser. Daí surgiu a
questão de saber se, conforme a sua essência, a verdade também
não variaria por fim sempre segundo o modo de ser daquilo de que
da é desvelamento, desencobrimento. Assim, se nos apresenta a
larefa de tornar inicialmente compreensível de que maneira os en­
tes são diversos em vista de seu modo de ser, a fim de deduzir daí
como a verdade do ente também se altera em razão desses diver­
sos modos de ser.
Para a comprovação da diversidade de tipos de ente escolhemos
dois casos extremos: a subsistência por si das coisas e a existência
do homem. Se tomarmos essa escolha no sentido da tradição, en­
tão teremos com isso de um lado —formulado em termos cartesia­
nos - a res extensa, as coisas corporais extensas, e, de outro, a res
co^itans, a coisa pensante; ou, como diz Husserl, a realidade, isto
<\ a realidade efetiva de todos os objetos, por um lado, e a cons­
ciência por outro. Para Husserl, essa divisão é a divisão categorial
mais fundamental —e ela também é central para Kant e para todo
0 idealismo alemão. Não continuaremos mais nos detendo sobre o
pano de fundo histórico dessa diferença entre o ente por si subsis­
tente e o existente, entre as coisas e o homem. Ao contrário, a par­
tir da análise do fenômeno mesmo, procuraremos tornar inicial­
mente visíveis certas diferenças no modo de ser do ente por si sub­
sistente (das coisas) e do existente (dos homens).
Já perguntamos pelo ser-um-ao-lado-do-outro característico do
ente por si subsistente e pelo ser-um-ao-lado-do-outro intrínseco
mis homens. Este último denominamos ser-um-com-o-outro. Se
letomarmos agora uma vez mais a tentativa precedente de uma de­
terminação do um-com-o-outro, então teremos de dizer: ele não
leside nem no fato de nós nos comportarmos de igual maneira em
telação a algo, nem no fato de aquilo em relação ao que nós sem-
pie a cada vez nos comportamos ser algo igual. Ao contrário, o um-
1nm-o-outro pode agora significar, quando muito, que várias pes­
soas se comportam de maneira diversa em relação ao mesmo. Com-
96 Introdução à filosofia

portamento em relação ao mesmo não exclui, mas até mesmo im­


plica que o comportamento seja diverso. Mas não estamos, por
exemplo, uns com os outros quando alguém assume um compor­
tamento em relação ao giz, o outro em relação ao quadro-negro ou
ao caderno, e ainda um outro talvez em relação aos seus esquis
que estão em casa? Quanto ao último exemplo, certamente diría­
mos que quem assume um tal comportamento está ausente, por
mais que esteja aqui sentado em algum dos bancos do auditório.
Desse modo, podemos nos comportar em relação ao diverso c,
nesse processo, ainda assim continuamos uns com os outros. Não
obstante, há algo que imediatamente nos chama a atenção: supon­
do-se que cada um de nós se ocupe agora com algo diverso, cada
qual com um objeto diferente nesta sala, estamos com efeito jun­
tos nesse auditório, mas não propriamente uns com os outros; nós
todos como que existimos em separado, apartando-nos uns dos ou­
tros —com isso, surgiria um não-ser-uns-com-os-outros privativo.
Em última instância, porém, será que um tal fato reside na diver­
sidade dos objetos aos quais nos entregamos? Tomemos o caso em
que os dois viandantes mencionados chegam à noite em sua caba­
na; um deles corta lenha, o outro descasca batatas. Sem hesitação
iremos dizer aqui: os dois estão um com o outro - e isso não ape­
nas porque eles estão na proximidade um do outro. Eles estão um
com o outro porque, apesar de se ocuparem com coisas diversas,
têm por intuito o mesmo: o preparo do jantar e, em seguida, a ar­
rumação para a sua permanência na cabana; o intuito voltado para
o mesmo pertence à essência do ser-aí.
Se, de forma correspondente, tivermos presente para nós que
cada um nesse auditório está voltado a um objeto qualquer e sem­
pre a um outro, então existiremos de certa maneira uns para fora
dos outros. Se supusermos, contudo, que esse ser-voltado a um ob­
jeto diverso, relativo a cada um de nós, consistiria na tarefa de des­
crever o auditório, o um-com-o-outro será mais próprio do que an­
tes por meio da mesmidade da tarefa. Um tal comportamento de
muitos em relação ao mesmo é um modo no qual o ser-um-com-o-
Filosofia e ciência 97

outro se manifesta; talvez seja esse o modo que pertence necessa-


i iamente ao ser-um-com-o-outro humano.
Portanto, um intuito dirigido para o mesmo é de fato essencial
para o um-com-o-outro.

c) Mesmidade

Mostrou-se: a mesmidade daquilo em relação a que assumimos


um comportamento em meio ao um-com-o-outro desempenha um
certo papel para esse um-com-o-outro. Que papel? Isso é obscuro;
realmente não está de maneira alguma claro o que se tem em men­
te aqui por mesmidade. Esse termo carece evidentemente de uma
determinação mais detida, se é que deve se tornar compreensível
em que medida pode ser questionado de modo justo: em que sen-
lido nos comportamos em relação ao mesmo e o que significa aqui
o mesmo? Para a mesmidade temos o termo “identidade”. Essa pa­
rece ser a coisa mais simples do mundo. Algo é idêntico a si: isso
pode ser dito de todo e qualquer objeto. Apesar disso, a suposta in-
lelecção do sentido da palavra “identidade” não é de maneira algu­
ma suficiente para nos dar um esclarecimento sobre o que temos
em mente quando dizemos que muitos se comportam em relação
ao mesmo, de modo que esse seu comportamento é um ser-um-
com-o-outro. Portanto, precisamos tratar de nos convencer con­
creta e paulatinamente de que esse conceito corrente de identida­
de simplesmente não é suficiente aqui, isto é, precisamos colocar
a prova os conceitos singulares de identidade em vista de sua ca­
pacidade conceituai a partir do fenômeno que ora tratamos, o ser-
um-com-o-outro como comportamento em relação ao mesmo.
Aquilo em relação ao que nos comportamos e aquilo junto ao
que somos é para nós o mesmo. E pode significar: como o ente, ele
não se altera. Mas será que algo, para ser um mesmo, precisa ali-
jar de si toda alteração? Absolutamente não. Tudo o que se altera
e está se alterando só é respectivamente assim, uma vez que ele, o
mesmo, se torna outro. Se ele não permanecesse o mesmo, nunca
98 Introdução à filosofia

poderíamos dizer: ele se alterou, mas precisaríamos dizer: um ou­


tro entrou em seu lugar. Não teríamos nenhuma alteração desse
ente, mas apenas a troca desse ente por um outro. Mesmo nesse
processo de troca, porém, um e outro são sempre idênticos a si
mesmos. Portanto, mesmidade não significa simplesmente ausên­
cia de alteração. Nós também nos comportamos efetivamente em
relação a um mesmo quando vemos um carro passar por nós, ou
seja, um ente por si subsistente que a cada momento altera seu lu­
gar. Alteração —por exemplo, um carro que passa —não exclui mes­
midade, mas a inclui. Alteração sempre pressupõe que algo perma­
nente, algo idêntico, persevere.
Mas o que significa então o fato de assumirmos um comporta­
mento em relação a um mesmo, de tal modo que em tal compor­
tamento o ser-um-com-o-outro venha de fato a se manifestar? Não
significa: nós nos comportamos em relação a algo que não se alte­
ra. Um mesmo em relação ao qual nos comportamos, de modo que
esse comportamento seja um ser-um-com-o-outro junto a..., pode
estar em movimento ou em repouso, sim, ele pode também pura e
simplesmente se encontrar fora dessas possibilidades, tal como se
dá, por exemplo, com o número 5, que não se movimenta. E não
é que ele não se movimente porque está em repouso. Ele não pode
estar em repouso: somente o que se movimenta pode estar em re­
pouso. Repouso é apenas um modo de movimento. Nosso ser jun­
to ao giz é um ser junto a algo que está em repouso, isto é, dito em
termos principiais, algo que está em movimento. Esse repouso das
coisas não é tão insignificante como poderia parecer.
Já vimos de passagem que nos comportamos em relação ao mes­
mo, apesar de, nesse processo, cada um ver justamente esse mesmo
de maneira diversa. Mesmidade não exclui alteração e, em geral,
tampouco diferença. A diversidade dos aspectos que esse giz ole-
rece para cada um de nós não nos perturba. Como ela poderia
perturbar se por fim é exatamente a diversidade de aspectos que
contribui para que realmente vejamos uns com os outros o mes­
mo giz?!
Filosofia e ciência 99

Suponhamos por um instante que nós todos víssemos, ouvísse­


mos e experimentássemos as coisas ao nosso redor constantemen­
te segundo um aspecto inteiramente igual. Isso provocaria o surgi­
mento de um “mundo” fantástico - ou, por fim, não provocaria o
surgimento dc mundo algum. Essa ficção de que todas as coisas se
ofereceriam a todos da mesma maneira reside na idéia kantiana da
coisa em si. A coisa em si só é pensada como objeto de um conhe­
cimento absoluto, de um conhecimento intrínseco a Deus. Esse
conhecimento não vê as coisas por meio de alguma relatividade,
por meio de alguma perspectiva. Em razão dessa suposição da coi­
sa em si precisar-se-ia conseqüentemente dizer que, para Deus,
não há de maneira alguma algo assim como um mundo. Mais tar­
de, em meio à análise do conceito de mundo, consideraremos no­
vamente de modo mais minucioso essa idéia que não é pensada
cm Kant até o fim. Agora apenas constatamos que a multiplicida­
de e diversidade de aspectos nos quais a coisa se nos oferece não
nos perturba e que essa diversidade talvez possua mesmo uma fun­
ção essencial.
No entanto, se não contabilizamos essa diversidade em meio à
apreensão das coisas, mas todos atravessamos a diversidade dos
aspectos e nos comportamos conjuntamente em relação à mesma
coisa, em relação ao que nos comportamos então, afinal? Não re-
t iramos daí a diversidade de aspectos. Em primeiro lugar, nada sa­
bemos de uma tal retirada; em segundo lugar, não comparamos de
modo algum os aspectos que se nos oferecem com os que se ofe­
recem aos outros. O que restaria de mais a mais depois da dedu­
ção dc todos os aspectos diversos? Poder-se-ia dizer: justamente o
que resta é o giz em si. Pode ser que, em algum modo determina­
do de consideração da natureza - por exemplo, na consideração
loórica intrínseca à física ou à química possamos tomar o giz
dessa maneira como exemplo de uma coisa material. Todavia, é
certo que esse giz não é então o giz que temos em mente uns com
os outros; esse giz se dá para nós muito mais como a mesma coi­
sa de uso que serve para escrever. O que o giz é enquanto coisa
100 Introdução à filosofia-

material não tem peso algum para nós —abstraindo-nos comple­


tamente do fato de haver uma grande possibilidade de esse resto
que supostamente se mantém idêntico, esse resto da substância
material da coisa, ser a cada momento do tempo algo diverso, de
ele ser concebido em um constante deslocamento de suas partí­
culas elementares. Portanto, o mesmo não se confunde com essa
substância material em sentido físico. Assim, parece que, com to­
das essas perguntas pela mesmidade desse mesmo em relação ao
qual nos comportamos no um-com-o-outro, somos lançados em
um abismo.
O que ainda resta então que possa ser chamado de mesmidade
e de comportamento em relação ao mesmo? Apreendemos, por
exemplo, o mesmo como mesmo nesse estar conjuntamente junto
ao giz? Com efeito, estamos junto ao mesmo giz, mas não o
apreendemos como o mesmo; não estamos voltados para ele em
sua mesmidade ou quiçá para a mesmidade em si. Será talvez que
apreendemos como algo visado o fato de o giz ser idêntico a si mes­
mo? Não. Afinal, tampouco se tem em vista com essa mesmidade
a identidade da coisa.
Até aqui já ouvimos falar tanto e tão variadamente sobre essa
mesmidade enigmática que tudo transcorreu de modo confuso,
sem que tivéssemos experimentado o menor esclarecimento sobre
o um-com-o-outro. Todavia, a confusão é inicialmente intencional.
Ela procura mostrar que esses conceitos aparentemente auto-evi­
dentes como o conceito de mesmidade não são satisfatórios. Ao
que parece, só conquistamos uma vez mais resultados meramente
negativos:
1. O mesmo não designa inalterado e inalterável. Portanto, ele
não designa inalteração.
2. O mesmo não designa algo que se mantém igual em meio il
diversidade dos aspectos. Portanto, ele não significa constância
substancial.
3. O mesmo não designa a identidade formal do ente consigo
mesmo.
Filosofia e ciência 101

Com isso exaurimos os conceitos centrais de mesmidade. E tudo


parece indicar que não conseguiremos seguir adiante desse modo;
mais ainda, que a mesmidade aqui é algo original.
Quanto mais diversamente indagarmos o que poderia significar
aí mesmidade em meio ao ser-um-com-o-outro junto ao mesmo,
lanto mais distantes pareceremos estar daquilo que devemos es­
clarecer. Resumindo todos os resultados negativos, vemos o seguin­
te: no que diz respeito à mesmidade, o que está em questão não é
um conceito de mesmidade que convenha ao ente, simples e pri­
mariamente em consideração a ele mesmo.
Partimos da constatação de que não vemos gizes diversos, mas
um e o mesmo. Esse ser junto a um e mesmo giz que é pertinen­
te a todos nós deve expressar um certo um-com-o-outro. Somos
junto ao mesmo; ele é inteiramente o mesmo para todos e não ape­
nas a cada vez um giz igual, ele é o mesmo para cada um de nós.
I)aí resulta que falamos de uma mesmidade que é relativa a nós.
Essa relação conosco pertence por fim à essência dessa mesmida­
de. Se, em que medida e por que motivo a toda mesmidade e iden-
t idade pertence um caráter relacional, isso não deve ser discutido
agora. É fácil mostrar como algo do gênero também tem lugar na
mesmidade vazia e formal de algo consigo mesmo; essa identidade
e uma característica da relação de algo consigo mesmo.
A mesmidade de algo expressa o seguinte: a relação de algo con­
sigo mesmo. Contudo, isso é apenas uma primeira versão da iden-
l idade. Com essa idéia de mesmidade não conseguimos ir além,
muito menos nos aproximamos absolutamente do fenômeno que
nos inquieta. Mesmidade é uma relação que, justamente segundo
0 seu sentido, se retrojeta para o que aí é dotado do caráter de mes­
mo, uma relação que não aparta e não conduz para fora do algo em
questão, mas precisamente apenas segue de volta para si mesma.
Pois bem, o que temos em mãos é então o seguinte: aqui se acha
um mesmo que é assim denominado não por ser idêntico a si mes­
mo talvez ele também o seja - , mas por ser o mesmo para mui-
1os. Agora parece que o nó está se desatando. Essa relação com
102 Introdução à filosofia

muitos é justamente apenas a relação do apreender. Essa relação


do apreender nâo pertence à essência dessa mesmidade, mas algo
idêntico é apreendido por muitos. Dessa forma, porém, consegui­
mos seguir adiante com o conceito habitual de mesmidade. A úni­
ca coisa que não podemos fazer é refletir exclusivamente sobre
isso. Ao contrário, precisamos atentar concomitantemente para o
fato de muitos apreenderem algo idêntico. Podemos dizer agora
que a mesmidade é certamente uma determinação do próprio ob­
jeto, mas esse ente idêntico a si mesmo se encontra além disso em
uma relação na qual é apreendido. Essa relação acaba então por
tornar o ente por si subsistente um ente relativo a muitos outros
entes com o caráter do ser-aí. Consequentemente, temos o seguin­
te estado de coisas: um ente que é idêntico a si mesmo e, como
esse ente idêntico, é ainda um ente que pode ser apreendido por
muitos.

d) O mesmo como algo compartilhado

Mas, se muitos apreendem algo idêntico, então isso não é ab­


solutamente o que temos diante de nós como o fenômeno a sor
esclarecido. O primeiro caso acontece constantemente: alguém
em Berlim vê um automóvel, e um fazendeiro na Floresta Negra
vê uma vaca. Há muitos aí que apreendem a cada vez algo idênti­
co. No entanto, eles não apreendem um com o outro o mesmo,
ainda que haja também aqui um certo um-com-o-òutro. Assim,
não podemos perder de vista que, no ser-um-com-o-outro junto
ao mesmo, a mesmidade expressa uma relação essencial e, com
efeito, uma relação que não se volta simplesmente para trás, na
direção do ente mesmo, mas justamente se evade e se move na cli
reção de muitos.
Mas como é que isso se dá? Para nós, o ente por si subsistente
junto ao qual somos é algo compartilhado. Ele é o mesmo para
muitos, de modo que esses muitos se tomam um “nós” em função
desse “o mesmo para eles”. Deixamos inicialmente em aberto se o
Filosofia e ciência 103

nós c ou não o resultado de uma reunião de muitos. O que signi­


fica, porém: nesse um-com-o-outro, o ente por si subsistente jun­
to ao qual nos mantemos é para nós algo compartilhado? O que
significa aqui compartilhamento?
Nós falamos que cores específicas como o vermelho, o verde, o
a/.ul possuem o caráter comum da “cor”. A cor é nesse caso o gê­
nero, assim como as espécies carvalho, faia e abeto têm o caráter
da “árvore”. Dessa maneira, manifestamente o giz nada tem em co­
mum no que diz respeito a nós enquanto muitos. Pois, por um
lado, esse giz não é nenhum gênero, mas uma determinada coisa
de uso singular, por si subsistente, dada aqui e agora. Não obstan­
te, se pensássemos o giz como um gênero em relação a exempla­
res e espécies diversas de pedaços de giz, então o gênero giz não
seria nada que compreendesse entre si nós, homens, como espé­
cies, pois não somos efetivamente nenhum giz, assim como faias e
abetos são árvores. Isso é por demais auto-evidente! Contudo, per­
manece enigmático o que significa: para nós, esse giz é algo com­
partilhado.
Se nos lembrarmos por um instante do que queremos propria­
mente clarificar, a saber, um conceito prévio de filosofia, então pa­
rece que tomamos caminhos curiosos. Ao buscarmos uma solução
para a questão de saber o que afinal significa filosofia, chegamos
ao problema que questiona como um giz pode subsistir por si para
nós, em nosso ser-um-com-o-outro, como algo compartilhado. De
falo, isso parece inicialmente um grande desvio. Nesse sentido, é
necessário que nos mantenhamos agora conscientes da conexão
interna de nossas considerações ou que tenhamos presente essa
conexão. Uma tal tarefa não é necessária para que os senhores
consigam recontar simplesmente os passos singulares da preleção
não há nada aqui para inculcar. A atualização da conexão de nos­
sas considerações, uma atualização que é necessária a cada seção,
não aponta para nenhuma conexão como a que se dá, por exem­
plo, na matemática, onde deduzimos determinados teoremas de
determinados axiomas. A importância da conexão das considera-
104 Introdução à filosofia

ções revela-se muito mais em função do vínculo com a coisa de


que continuamente se está tratando. Assim, mostrar-se-á que não
precisamos retroceder nesse longo caminho, a fim de alcançarmos
novamente a filosofia, mas podemos dar a todo instante a respos­
ta, contanto que estejamos suficientemente preparados. Desse
modo, à guisa de auxílio externo, a conexão é elucidada justamen­
te no instante em que nos encontramos em meio a uma pergunla
que aparentemente se encontra muito afastada do tema propria­
mente dito.
Partimos da pergunta acerca da essência da filosofia e buscamos
caracterizar a filosofia segundo três pontos de vista: segundo a sua
relação com a ciência, segundo a sua relação com a visão de mLin­
do e segundo a sua relação com a história. Tomamos o primeiro ca­
minho - o caminho da relação entre filosofia e ciência - para, m e­
diante uma clarificação da essência da ciência, experimentar o que
é filosofia. Essa pergunta pela essência da ciência reconduziu-nos
à pergunta pela essência da verdade. A verdade deu-se para nós
inicialmente como verdade proposicional. Vimos logo que o enun­
ciado pressupõe um ser junto àquilo sobre o que se está enuncian­
do algo e que, nesse ser junto ao ente por si subsistente, o próprio
ente por si subsistente é desvelado para nós. Em um conceito pre­
liminar, o desvelamento do ente significa verdade. Procuramos,
então, tornar inteligível a essência da verdade mostrando de que
forma ela é multifacetada em sua estrutura: de maneira correspon­
dente ao ente em relação ao qual ela é desvelamento.
Nosso tema atual é a análise da diversidade do modo como o
ente é. Nesse contexto, ele se orienta por dois âmbitos do ente:
o ente por si subsistente e o ser-aí. Nessa análise vimos como a
verdade sobre o ente precisa se modificar através da diversidade do
ser do ente. Portanto, em certa medida deixamos de lado, por um
tempo, a pergunta acerca da essência da verdade e nos ocupamos
agora com a diversidade do ser do ente. Para tanto, tomamos por
base exemplar o ser-um-ao-lado-do-outro dos entes por si subsis­
tentes e o ser-um-com-o-outro dos seres-aí.
Filosofia e ciência 105

De diversos modos já tentamos compreender o fato simples e


em princípio trivial de que nos mantemos juntos uns dos outros
junto à mesma coisa. Vimos inicialmente que a tentativa de escla­
recer o que significa aqui a mesmidade do ente em relação ao qual
nos comportamos fracassa, enquanto fazemos uso dos conceitos
correntes de mesmidade e identidade. Somos uns com os outros
junto ao mesmo e, nesse contexto, mesmidade não significa nem
ausência de alteração, nem substancialidade da coisa ou constân­
cia como substância, nem ainda identidade formal de um objeto
consigo mesmo.
A pergunta é: o que significa positivamente para nós a mesmi­
dade de um ente por si subsistente? Deparamo-nos por fim com a
determinação de que mesmidade significa aqui inicialmente o mes­
mo que compartilhamento. O giz é algo compartilhado por nós to­
dos em um sentido que ainda precisa ser determinado. Dessa for­
ma, encontramo-nos diante dessa pergunta especial pelo compar-
tilhamento de uma coisa para nós.
Em que medida - assim precisamos novamente perguntar —o
giz pode ser algo compartilhado em nosso ser junto a ele? E pos­
sível que isso signifique algo como o seguinte: partilhamos entre
nós o giz, o que pode equivaler a dizer que o distribuímos entre nós,
que o repartimos. Por um lado, porém, não podemos fazer isso de
maneira alguma porque o giz não nos pertence. Ele é proprieda­
de do Estado. Com isso, ele não pertence a todos nós, ou seja, não
c algo nosso no sentido de que sua posse nos estaria livremente
disponível. Não temos o direito de quebrá-lo em pedaços e distri­
buí-lo, e tampouco o fazemos. Nós o deixamos indiviso e, não obs-
lante, o partilhamos entre nós. Compartilhar algo sem dividi-lo aí
cm pedaços significa: entregar-se mutuamente algo para o uso e
no uso. Esse giz nos é algo compartilhado no uso que fazemos ou
podemos fazer dele. Determinamos, assim, em que medida ele é
algo compartilhado por nós. Todavia, ainda não está claro o que sig­
nifica esse compartilhamento mesmo, no que consiste a sua es­
sência e em que medida o um-com-o-outro deve ser elucidado por
meio dele.
106 Introdução à filosofia

e) Participação significa compartilhamento?

Essa é uma pergunta que questiona se o caráter compartilhado


do giz está constituído primariamente no uso, no ser-um-com-o-
outro junto a...
Só podemos partilhar entre nós o uso do giz se o giz estiver à dis­
posição de todos nós, isto é, se ele estiver pronto e acessível para o
uso possível e legítimo. Fazer uso dele implica que ele está além
disso manifesto para nós, que já somos uns com os outros junto a
ele, que ele é algo compartilhado no e para nosso ser junto a...,
mesmo quando esse ser junto a não é nenhum ocupar-se expressa­
mente com ele. Para que possamos partilhar o uso do giz, ele já pre­
cisa ser antes algo compartilhado em um sentido mais originário. Já
precisamos compartilhá-lo antes de um modo tal que tenhamos
ainda a liberdade de fazer ou não uso dele. Antes mesmo do uso c
para ele, precisamos todos ser compartilhadores do giz para que ele
possa se nos entregar reciprocamente no uso ou para que possamos
tomar conjuntamente o mesmo distanciamento de um uso.
Que tipo de compartilhamento é esse e segundo que ponto de
vista o giz é nessa partilha algo compartilhado para nós? De início
é importante clarificar o que afinal compartilhamos quando todos
nós temos aí defronte o mesmo giz, essa coisa de uso determina­
da, e, em verdade, mesmo então e justamente então quando não
fazemos nenhum uso dele, quando não estamos expressamente
ocupados com ele, mas o deixamos estar tal como ele é nele mes­
mo. E preciso encontrar o que buscamos justamente nesse nosso
deixar-ser o giz, no que e como ele é enquanto essa coisa de uso:
é preciso encontrar aí o ter-parte no giz, esse compartilhamento
originário do giz de acordo com o qual ele é algo compartilhado e
nosso ser junto a ele, um certo um-com-o-outro.
Nosso ser junto ao giz é, digamos, um deixar o giz ficar assim
como ele é, um deixar-ficar, justamente porque ele é algo e é de
um tal modo que se encontra aí defronte. O encontrar-se defron­
te, o ser por si subsistente diante da mão é o modo como esse giz
Filosofia e ciência 107

t> nrlr mesmo enquanto essa coisa de uso, ele é o seu modo de ser.
N......deixamos íicar, nós o deixamos ser assim como ele é e o que
ele i' Nosso ser junto ao giz é algo assim como um deixar-ser o giz.
I ielxamos esse ente ser, não tiramos nada dele e não damos
liada a ele. Não o repelimos para longe de nós nem o atraímos para
p e i i o de nós; entregamos esse ente a si mesmo e justamente nes-
Hii entrega sucede ao giz ser o que e como ele é como esse giz.

f) Do deixar-ser as coisas

I )eixamos as coisas serem como elas são, entregamo-las a elas


mesmas, mesmo se e justamente se nos ocupamos delas com a
iiiiilot imensidade possível. Sim, justamente no uso e para o uso,
piei iso deixar a coisa ser o que ela é. Se eu não deixasse o giz ser
0 que é, se o triturasse, por exemplo, em um pilão, então não o
iiMiria.
Tanto no usar quanto no não-usar tem lugar esse deixar-ser as
1olsas. (dom efeito, ele está à base de toda lida utilitária com as coi-
xus Mas não apenas no comportamento inerente ao fazer uso das
i olsas. Mesmo em todos os comportamentos totalmente diversos
no relação a entes de natureza completamente diferente, por
exemplo, no comportamento estético, há um deixar-ser totalmen-
le determinado, por exemplo, de um quadro ou de uma escultura,
e, em verdade, abstraindo do fato de se a obra de arte em questão
pioilii/. ou não uma impressão particular em mim.
I.sso deixar-ser as coisas em sentido maximamente amplo é em
pi incípio anterior a todo interesse particular ou a toda indiferença
determinada. Esse nosso deixar-ser, essa nossa entrega das coisas
a cl.is mesmas e a seu ser é uma indiferença própria de nossa par­
le, uma indiferença do ser-aí que pertence à sua essência metafí­
s i c a . Essa “indiferença” só é possível no cuidado. Um descuido

inerente a essa entrega não é nenhum deixar-de-fazer pura e sim­


plesmente. Deixar o ente ser não é um nada; certamente nada fa­
zemos para que, por exemplo, a natureza seja o que ela é e como
108 Introdução à filosofia

ela é, nada podemos fazer para tanto, e, contudo, esse deixar-scr 6


um “fazer” do tipo mais elevado e originário e só é possível em ra­
zão de nossa essência mais íntima, em razão da existência, da li­
berdade. Essa indiferença metafísica em relação às coisas ainda
exigirá muito de nós em nosso caminho.
De início, uma coisa nos veio à tona: nosso ser junto às coisas -
permaneçamos no âmbito do ente por si subsistente —é, no fundo
de sua essência, um deixar as coisas serem no sentido caracteriza­
do. Donde advém que, do ser junto a..., tampouco pode fazer par­
te, necessariamente, um ser ocupado de maneira interessada com
o ente; e, em segundo lugar, inversamente, que um comportamen­
to desinteressado ou contrafeito em relação às coisas, sim, mesmo
todo abandono das coisas, também constitui um ser junto a...
Mostrou-se então o seguinte: já é preciso que tenhamos antes
parte nas coisas, para que elas se nos entreguem no uso e para o
uso. No entanto, em todo uso já se acha à base um deixar-ser as
coisas.
Aquela participação nas coisas consiste então no caracterizado
deixar-ser o ente? O deixar-ser de algo como ele é e o que ele é já
não encerra em si um compartilhamento mútuo do ente? Com
isso, é preciso que deixemos antes a cada vez o ente ser no que ele
é e como ele é, para que possamos então partilhar o ente entre
nós? Ou não seria muito mais o inverso: precisamos partilhar an­
tes o ente entre nós para que possamos então deixar que ele seja
nele mesmo? Deixar-ser pressupõe participação ou é inversamen­
te a participação que pressupõe o deixar-ser? O que significa aqui
pressupor? De início resta ser esclarecido o que significa partici­
pação. Em que estamos tomando parte? O que, nesse processo, é
o compartilhado e como é que aquilo que partilhamos entre nós se
mostra como algo compartilhado?
Partilhamos o ente por si subsistente entre nós; isso quer di­
zer que:
1. Não o despedaçamos e o distribuímos entre nós, mas o dei­
xamos indiviso;
Filosofia e ciência 109

-í Ni is o entregamos mutuamente a nós no uso e já o partilha-


luiin entro nós mesmo no mero deixar-ficar que não implica uso.
I 'llu posilivamente: partilhamos entre nós o ente sem que, nes-
*•' puililhar, aconteça algo com ele, sem que ele se altere. Partilha-
miihi entre nós o ente, sem que transmitamos, entreguemos ou re-
| »'luiiims algo que advém ao ente, algo que o ente é e, contudo, é
mesmo tempo nosso..Partilhamos um tal ente como algo com-
|'«ii Ilibado, de modo que esse algo compartilhado co-possibilita o
«" • um com-o-outro.
*>que é isso então no ente que - se podemos dizer assim - lhe
ituveiii de certa maneira e que partilhamos entre nós, sem que por
m e i o ilaí o ente seja minimamente alterado? Algo que advém ao
•Mie e, contudo, também precisa estar à nossa disposição, se é que
«levemos poder partilhá-lo entre nós. Como coisa de uso e como
«oipo material, ao ente - ao giz - advêm determinadas proprieda-
•Ioh ele icm urn determinado modo de ser. Mas é justamente nes-
*ie sentido que o deixamos ser o que e como ele é. Nosso ser jun­
to ao ente por si subsistente é um deixâr-ser. Daí não retiramos
liaila e nada requisitamos além de nossa obra junto a ele. Todavia,
tiíln e isso que está à nossa disposição. Ao contrário, se me permi-
Ili em lalar assim, o que está à nossa disposição é o giz; ele justa­
mente é um tal ente e ele justamente é desse modo.
l o m el eito, porém, em meio à interpretação de nosso ser junto
a esse ente por si subsistente, já ouvimos que tal ente seria desve­
lado nesse processo, ou seja, que ele seria verdadeiro em sentido
nilglnário. O desvelamento (verdade) advém ao ente; o ente é pri­
mai lamente verdadeiro; só posteriormente a proposição sobre ele
e vetdadcira. Esse desvelamento é algo que não perturba o giz cm
sua qllididade e em seu modo de ser. Ele permanece o que é e
i orno e, mesmo que ninguém se mantenha no auditório e esteja
I m i t o a esse ente por si subsistente. Ele tampouco se torna diverso
p oi meio do fato de ser desvelado para nós. Por meio de nosso ser
pliilo ao giz, ele não é, por exemplo, gasto. O giz é verdadeiro em
110 Introdução à filosofia

nosso ser junto a..., ele é desvelado. Portanto, a verdade é algo que
advém ao giz e, contudo, não pertence à consistência por si sub
sistente de suas propriedades qua giz.
É nesse desvelamento do giz que o giz se mostra nele mesmo
como essa coisa de uso, que ele se maniíesta como o ente que ele
é. Com isso, não é senão por intermédio do desvelamento (verda­
de) que deixamos justamente esse ente enquanto ele mesmo ser o
que e como ele é.
Percebemos agora, porém, que esse deixar-ser as coisas se en­
contra em uma relação de condição com o ter parte no ente. Dei-
xar-ser só acontece e só pode mesmo acontecer de um modo tal
que se torne manifesto para nós, ou seja, que se mostre como ver­
dadeiro aquilo que deixamos ser-aí. Deixar-ser encontra-se em
uma relação de condição com a verdade. Mais além, essa verdade
(desvelamento) é algo “no ente”, algo que lhe advém, mas, não obs­
tante, não o altera. Quando o giz é desvelado, quando ele é mani­
festo como o ente que é, nada ocorre nele, não entra em cena nele
nenhum processo natural, e, todavia, acontece algo com ele: ele
entra em uma história.
Nós perguntamos por uma participação no ente, participação
essa em que partilhamos algo entre nós que advém ao ente, sem
que no ente algo acabe por se perder ou seja alterado. O que par­
tilhamos entre nós nesse curioso tomar parte no ente? Partilha­
mos entre nós o seu desvelamento, a sua verdade. Somente por­
quanto partilhamos entre nós o desvelamento do ente podemos
deixar o ente ser assim como ele se manifesta. E, se partilhamos
entre nós o desvelamento, algo que não constitui um pedaço do
giz e não poderia se mostrar jamais como o objeto de uma mera
posse se nos torna compartilhado. O desvelamento tampouco é
uma propriedade por si subsistente do giz, tal como, por exem­
plo, a sua cor branca, uma propriedade que poderia ser dissocia­
da do giz.
Filosofia e ciência 111

§ 14. Compartilhamos o desvelamento do ente

Partilhamos entre nós o desvelamento do ente. O compartilha­


mento é a verdade do ente. A verdade é aquele mesmo que está­
vamos buscando, e esse mesmo também é o que possibilita, como
desvelamento, que o que está manifesto no desvelamento se mos-
11 e ( nino o próprio mesmo; e, em verdade, se mostre a todos os que
|0m em comum o desvelamento.
I’ml imos do seguinte fato: o ser-um-com-o-outro se expressa no
i omporlamento de muitos em relação ao mesmo. Mesmidade para
mtillos é compartilhamento, é ter algo em comum, é partilhar en-
lie si o desvelamento. Ser-um-com-o-outro junto ao ente é com-
paililbar do desvelamento (verdade) do ente em questão.
( >s enigmas foram então resolvidos? De maneira alguma! Ape­
nas eslamos agora diante de um fato, sem que talvez já o tenhamos
v i s t o de modo totalmente claro, a saber, o fato de que o elemento
i nuipartilhado por nós é o desvelamento. Vemos de forma tosca que
lai algo compartilhado por nós e, em verdade, de um modo tal
que o próprio ente, por um lado, permanece intocado nesse pro-
i e s s o e, por outro lado, pode se manifestar para nós justamente
i nino ele mesmo nesse compartilhamento.
I;, a verdade que partilhamos entre nós. Com essa formulação,
a essência da verdade como desvelamento só se tornou mais pro­
blemática - e ela deve mesmo se tornar mais problemática! Parti­
lhamos entre nós o ente, isto é, seu desvelamento. Esse desvela-
meiilo c justamente o desvelamento do ente em questão, o desve-
lamenlo que lhe advém —o modo como isso se dá é algo que é e
pcim.mece inicialmente obscuro. Isso que partilhamos entre nós
advem, por um lado, ao ente e é, por outro lado, algo que se en-
i u n i i.i a nossa disposição qua homens, como nossa posse.
A pergunta é: como nos achamos ante algo assim como o des-
vrlomenlo de um ente por si subsistente? Como temos parte em
algo desse gênero? Ter parte no desvelamento do ente é —através
do desvelamento —ter parte no ente. E esse nosso ter-parte no des-
112 Introdução à filosofia

velamento - de onde retiramos esse ter? Esse ter-parte na verdade


(desvelamento) se funda em um tomar parte? E somente nessa ca­
racterização mais próxima desse tomar parte na verdade é que se
torna inteligível de que forma e por que motivo nós partilhamos
entre nós algo assim como a verdade?
Ser-um-com-o-outro junto a... é um compartilhamento do des­
velamento (verdade) do ente por si subsistente. A verdade perten­
ce ao ente por si subsistente e, no entanto, ela não é uma proprie­
dade por si subsistente nele. Ela não é nada subsistente por si;
mas, ao mesmo tempo, ela é algo que o ser-aí compartilha com o
ser-aí, algo que, portanto, pertence uma vez mais ao ser-aí.
O desvelamento do ente por si subsistente ocupa uma dupla po­
sição curiosa: ele pertence em certa medida ao ente por si subsis­
tente e, ao mesmo tempo, ao ser-aí. O que é afinal a verdade do
ente por si subsistente para que ela tenha e possa ter essa dupla
posição? Se vamos ou não chegar a um esclarecimento satisfatório
do compartilhamento da verdade, a fim de conquistarmos a procu­
rada intelecção do ser-um-com-o-outro, um modo de ser específi­
co do ser-aí, é algo que depende da solução desse problema.
Antes de adentrarmos nesse problema, isto é, antes de adentrar­
mos na pergunta sobre a essência da verdade, uma pergunta que,
como os senhores podem ver, continua nos impelindo para a fren­
te, gostaríamos de interromper por um instante nossa investigação
e tornar presente uma vez mais o curso e o contexto de nossa con­
sideração: a partir do problema da essência da ciência veio à tona
a pergunta acerca da essência da verdade, que se apresentou ini­
cialmente como desvelamento do ente. Uma vez que há entes de
diversos modos de ser, também há correspondentemente modula­
ções da verdade. Com isso, precisamos tornar visível, de início, a
diversidade das maneiras de ser do ente e pospor, pelo tempo em
que esse movimento durar, o problema da verdade. O modo de ser
do ente por si subsistente e o modo de ser do ser-aí precisam ser
clarificados em vista de seu estar-um-ao-lado-do-outro, de seu scr-
por-si-conjuntamente-subsistente e de seu um-com-o-outro. A per- {
Filosofia e ciência 113

giinlii acerca da essência do ser-um-com-o-outro, ou seja, a pergun-j


Iii n u torno da estrutura de um certo modo de ser, do modo de seri
do mm aí existente, precisou ser colocada. Como resposta obtive-j
llloH o seguinte: o ser-um-com-o-outro constitui um compartilha-’;
llteiilo da verdade.

a) Ser-um-com-o-outro é um compartilhamento da verdade

(Jue tipo estranho de resultado é esse? Na análise do ser-um-


i um o outro, nós o caracterizamos provisoriamente como um ser
Iiiii Io ao mesmo, junto a algo comum, que interpretamos mais exa-
lamnile como um compartilhamento de algo. Esse compartilha­
mento de algo veio à tona para nós inicialmente sob a forma de um
iiiliegar-sc mutuamente algo no uso. No entanto, evidenciou-se
que de certa maneira já temos o ente, o ente por si subsistente, o
t tile que se encontra aí presente diante de nós como algo compar­
tilhado, sem que precisemos fazer uso de algo. Portanto, esse com-
patlllhamento de algo no ser-um-com-o-outro junto a um ente por
tl subsistente não pode residir na concretização do próprio uso,
mas em uma maneira de ser do ser-aí que é anterior a todo uso e
possibilita pela primeira vez o fazer um uso comum de algo.
A pergunta passa a ser, então, a seguinte: o que é esse algo co­
mum que partilhamos entre nós? Somos agora obrigados a mostrar
i sse algo comum na linha de consideração que afirma que não es­
tamos aparelhados para um uso, mas para um comportamento
ante aquilo que caracterizamos como um deixar-ficar o ente em
sua essência, um deixar-ser as coisas. Nesse deixar as coisas se-
n m, i es ide uma indiferença originária do ser-aí que se apresenta
ainda antes de todo estar-interessado e não-estar-interessado. To­
davia, mesmo que suponhamos esse deixar-ser as coisas como o
Hat,o característico de nosso compartilhamento de algo comum, a
pi igiinla sempre vem à tona uma vez mais: o que é propriamente
l*i*ai que partilhamos entre nós? Esse compartilhamento do ente
nsili/a se em nosso ser junto a... e caracterizamos esse ser junto
114 Introdução à filosofia

a... por meio do fato de o ente por si subsistente ser desvelado. As­
sim, o que a tese por fim defende é o seguinte: o que partilhamos'
é a verdade sobre o ente, seu desvelamento, de modo que surge o;
problema de determinar mais exatamente em que medida partilha­
mos entre nós, no um-com-o-outro, a verdade sobre as coisas, e
como é possível um compartilhamento da verdade, do desvela­
mento do ente por si subsistente.
Tentando cumprir a tarefa de caracterizar um certo modo de ser
e, com efeito, abstraindo-nos do problema da verdade, deparamo-
nos com a verdade. Ao ser-uns-com-os-outros, à estrutura desse
ser, à estrutura da maneira como o ser-aí é em relação ao ser-aí per­
tence a verdade, se é que ser-um-com-o-outro quer dizer: compar­
tilhamento da verdade.
0 que significa isso? Ao “ser” desse ente que denominamos ser-
aí e que nós mesmos somos pertence a verdade. O que é sua es­
sência? Somente quando essa essência estiver clarificada o “ser”
do ser-aí também o estará. Sem nos darmos conta, a pergunta acer­
ca do modo de ser de um ente transformou-se na pergunta acerca
da essência da verdade. Pois, somente se ficar claro o que é a es­
sência da verdade, tornar-se-á apreensível o compartilhamento da
verdade; e isso significa: o ser-um-com-o-outro como modo de ser
do ser-aí. Discutimos a essência da verdade com o intuito de ca­
racterizar o modo de ser do ser-aí em contraposição ao modo de ser
do ente por si subsistente. Agora temos necessariamente de carac­
terizar a verdade com o intuito de uma clarificação de um modo de
ser específico: temos de discutir o fato de precisarmos caracterizar
justamente dessa maneira a verdade como algo pertencente ao ser
do próprio ser-aí. Esse não é um fato qualquer, mas é algo que já
aponta de antemão para uma determinação essencial da verdade
em geral: para o fato de que seu lugar não é a proposição, mas o
ser-aí (ou mesmo o inverso)1. Daí já extraímos uma intelecção to-

1 Observação do editor: na cópia feita à máquina encontra-se uma nota aditiva


escrita à mão por Hildegard Feick, que não possui uma correspondência nem no
manuscrito nem nas cópias posteriores. Essa nota diz respeito ao sentido mais exa-
Filosofia e ciência 115

talmente fundamental e uma resposta à pergunta diretriz acerca de


como se comporta a verdade como desvelamento do ente em rela­
ção ao ente, acerca de se e como a verdade se modifica com o modo
de ser do ente.
Procuramos determinar o modo de ser do ser-aí em contraposi­
ção ao modo de ser do ente por si subsistente orientando-nos pelo
ser-um-com-o-outro entre ser-aí e ser-aí. O ser-um-com-o-outro
revelou-se como um compartilhamento do desvelamento (verda­
de) do ente por si subsistente (uma maneira possível do ser-um-
com-o-outro ou necessariamente pertencente a ele), como um de­
terminado modo de ser. A verdade é, por conseguinte, constitutiva
para a estrutura do ser-um-com-o-outro como um modo de ser es­
sencial do ser-aí.

b) O desvelamento do ente por si subsistente

Verdade (desvelamento) pertence conseqüentemente ao ser-aí


mesmo, ao que esse ente é e como ele é, existe. Como é que a ver­
dade (desvelamento) pertence então ao ser-aí que nós mesmos so­
mos? Se buscamos responder agora a essa pergunta, então temos
de nos lembrar que antes disso atribuímos a verdade qua desvela­
mento ao ente por si subsistente. Dissemos porém: o ente mesmo
é primariamente verdadeiro e não a proposição sobre ele. O desve­
lamento “pertence” por conseguinte ao ente por si subsistente e,
agora, ele deve pertencer ao ser-aí como elemento constitutivo de
seu ser-um-com-o-outro. Ele “pertence” tanto ao ente por si sub­
sistente quanto ao ser-aí ou ele reside mesmo como que “entre” o
ente por si subsistente e o ser-aí? Como é que o desvelamento per­

to de “ou mesmo o inverso” e responde à pergunta aí colocada a partir da posição


fundamental posterior do pensamento de Martin Heidegger. Com esse comple­
mento que provém presumivelmente do tempo da feitura da cópia à máquina, o
texto diz assim: "... uma determinação essencial da verdade em geral: o fato de que
seu lugar não é a proposição, mas o ser-aí, a clareira (ou mesmo o inverso: que o
lugar essencial do ser-aí é a verdade como desvelamento)”.
116 Introdução à filosofia

tence ao ente por si subsistente? Ele lhe pertence de alguma for­


ma? E o que significa aqui “pertencer”?
Veio à tona, contudo, o seguinte: o desvelamento do giz não é
nada que esteja por si subsistente nele; não podemos constatar o
desvelamento como algo por si subsistente no giz, como algo que
se movimenta para cá e para lá com o giz ou que utilizamos quan­
do escrevemos com ele. Sim, com base no desvelamento do giz,
apreendemos justamente que esse ente não se torna o que é e
como é porque é desvelado para nós e que ele tampouco cessa
correspondentemente de ser o que é e como é porque está velado
para nós.
Se tivéssemos de determinar o que de fato é um giz, então cer­
tamente não inseriríamos nessa definição o desvelamento. O giz
não é necessariamente desvelado; sua essência permite que ele
também seja velado; desvelamento não é nenhuma determinação
essencial do giz como giz, tampouco do apagador como apagador.
Mas será que talvez o desvelamento seja uma determinação essen­
cial do ente por si subsistente, na medida em que é um ente por
si subsistente?
Levemos isso em conta: se tomarmos uma pedra qualquer que
se acha em um lugar qualquer, por exemplo, em um barranco que
nunca foi pisado por pés humanos, então esse ente pode estar por
si subsistente de maneira efetiva como isso que é e do modo como
é, sem que jamais se precise arrancá-lo do velamento, sem que ele
jamais seja desvelado, sim, permanecendo mesmo sem ser de
modo algum afetado por velamento e desvelamento. Talvez, den­
tro de certos limites, seja mesmo necessário que o ente por si sub­
sistente seja desvelado, para que se possa apreender o seu modo
de ser; mas daí não se segue que o ente por si subsistente de fato
esteja necessariamente manifesto em sua qüididade e em seu
modo de ser. Desvelamento não é nenhuma determinação essen­
cial do ente por si subsistente. Por isso, não podemos dizer: o des­
velamento (verdade) “pertence” ao ente por si subsistente. A úni­
ca coisa que podemos dizer é: o desvelamento advém ao ente por
Filosofia e ciência 117

si subsistente ou pode advir a ele. O ente por si subsistente não o


possui a partir de si mesmo qua ente por si subsistente.
Com certeza ainda há aqui um problema. Tínhamos passado até
aqui ao largo desse problema em nome de uma simplilicação. No
entanto, mencioná-lo-ei agora em uma breve observação e ocupar-
nos-emos posteriormente dele. Talvez tenha chamado a atenção o
fato de ter sido demonstrado que o desvelamento não pertence ao
ente por si subsistente, no que diz respeito a uma pedra qualquer
em um barranco situado em um lugar qualquer, e não em referên­
cia ao giz. Isso foi necessário porque o giz, tal como se encontra
diante de nós como coisa de uso, se tomado estritamente, não
constitui nenhum ente por si subsistente; e isso não significa que
ele só seria aparentemente real. Ao contrário, ele tem, como coisa
de uso, o modo de ser próprio das coisas que estão à mão. Inten-
cionalmente deixamos de considerar a diferença entre ente por si
subsistente e ente à mão, tomando o ente por si subsistente em
um sentido mais amplo, no sentido das coisas cm contraposição ao
ser:aí. Agora, a indeterminação sc vinga de nós - como sempre
acontece —, uma vez que justamente o ser por si subsistente em
sentido estrito (a pedra) e a manualidade (o giz) são modos diver­
sos do ser que se comportam também diversamente com a sua ver­
dade. Por fim, advém necessariamente verdade ao ente à mão; ao
ente por si subsistente, porém, ela pode advir, mas não precisa ad­
vir. No entanto, esse advir necessário do desvelamento ao ente à
mão e esse advir possível do desvelamento ao ente por si subsis­
tente precisam ser nitidamente diferenciados do fato de a verdade
pertencer ao ser-aí.
Verdade do ente por si subsistente: como advir possível do des­
velamento.
Verdade do ente à mão: como advir necessário do desvelamcn-
to, a) necessariamente perpassado pela verdade, b) não necessaria­
mente como ente à mão e que se encontra faticamente cm uso
(verdade histórica!).
Verdade do ser-aí: pertencímento da verdade ao ser do ser-aí.
118 Introdução à filosofia

Portanto, o desvelamento do ente por si subsistente não perten­


ce tanto ao ente por si subsistente quanto ao ser-aí. Ao contrário,
ele apenas advém ao ente por si subsistente, e, com efeito, não ne­
cessariamente; “e” pertence efetivamente ao ser-aí. Sim, o desve­
lamento advém ao ser-aí e só pode advir a ele porque e na medida
em que esse desvelamento pertence ao ser-aí. Mas como é que o
desvelamento do ente por si subsistente pertence ao ser-aí? De iní­
cio veio à tona o seguinte: desvelamento do ente por si subsisten­
te é aquilo que partilhamos entre nós. Mas é afinal necessário que
nós, na medida em que existimos como homens e somos como se-
rcs-aí, partilhemos entre nós o desvelamento desse giz? Manifes­
tamente não, pois podemos de qualquer forma existir sem que o
desvelamento desse giz seja algo comum para nós. Portanto, o des­
velamento do ente por si subsistente não pertence essencialmen­
te ao ser-aí. Por fim, contudo, não é necessário que nos mantenha­
mos uns com os outros junto a esse giz, mas sim junto ao ente por
si subsistente, que é então para nós o mesmo. Não é o desvela­
mento de um giz que pertence à essência do ser-aí; mas não será
talvez o desvelamento de um ente por si subsistente que necessa­
riamente partilhamos entre nós em meio ao ser faticamente jun­
tos? Sim, mas somente em meio a este último! Ao ser-um-com-o-
outro, ou seja, ao ser-aí dos homens, talvez pertença necessaria­
mente um compartilhamento do desvelamento do ente por si
subsistente, na medida em que exatamente homens sejam fatica­
mente juntos com homens. Ao ser-um-com-o-outro entre ser-aí e
ser-aí pertence o desvelamento, mas não ao ser-aí "em si e por si”.
Pois um ser-aí não precisa estar junto com os outros necessária
e constantemente de maneira fática, ele também pode estar sozi­
nho, solusl
Se em algum lugar o ser-aí existe sozinho, então ele não está,
contudo, faticamente com outros. Isso é claro como a luz do dia.
Portanto, o ser-aí não precisa compartilhar necessária e constante­
mente com outros o desvelamento do ente por si subsistente. Mas
segue daí que o desvelamento do ente por si subsistente não per-
Filosofia e ciência 119

tence essencialmente ao ser-aí? Mesmo que um homem exista sozi­


nho em algum lugar, ele se mantém junto ao ente por si subsisten­
te. Nisso temos o seguinte: o ente por si subsistente lhe é manifes­
to. Mesmo o existir solitário é um ser junto às coisas, de tal modo
que respectivamente dentro de certos limites, mas em todo caso de
algum modo, tais coisas são sempre manifestas, isto é, desveladas.
Por conseguinte, o desvelamento pertence essencialmente ao ser-
aí, ou seja, a todo ser-aí como tal, enquanto o ente por si subsisten­
te nâo é necessariamente desvelado como tal. Desvelamento advém
pura e simplesmente ao ente por si subsistente; ele pode ser assim,
mas não precisa ser assim. Em contrapartida, ao scr-aí pertence ne­
cessariamente o desvelamento do ente por si subsistente.

c) O pertencimento da verdade ao ser-aí não implica


que a verdade seja algo “subjetivo”

Se a verdade no sentido do desvelamento do ente por si subsis­


tente pertence, porém, ao ser-aí e não ao ente por si subsistente;
se a verdade conseqüentemente não se acha nem no ente por si
subsistente nem “entre” esse e o ser-aí, mas somente no ser-aí, ain­
da que esse esteja totalmente isolado por si, então a verdade sobre
o ente por si subsistente não se torna algo “subjetivo”, uma pura
questão do sujeito? E, se a verdade é algo subjetivo, então com a
tese do pertencimento essencial da verdade ao ser-aí não se está
negando de antemão toda verdade objetiva, toda verdade em si?
Se negamos que há uma verdade em si e dizemos que ela perten­
ce essencialmente ao ser-aí, ao sujeito, então a verdade é sempre
apenas relativa ao ser-aí respectivamente fático e, a partir dessa
negação da objetividade da verdade, emerge, então, o assim cha­
mado relativismo. Todo relativismo, contudo, é ceticismo, e todo
ceticismo traz consigo a morte de todo conhecimento e, como
também se diz, da existência do homem em geral. Essa é uma ar­
gumentação muito em voga que quase nunca erra seu alvo. Ao que
parece ela é completamente inteligível! No entanto, ela se susten-
120 Introdução à filosofia

ta menos na força de argumentos objetivos e reais do que em uma


espécie de intimidação levada a termo por meio de um delineamen­
to prévio e detalhado de consequências.
Se a verdade pertence ao sujeito enquanto sujeito e apenas a
ele, ou seja, se de acordo com sua própria essência a verdade resi­
de no sujeito, então ela é necessariamente algo “subjetivo”. Contra
essa idéia é difícil objetar alguma coisa e seria de fato equivocado
tentar mostrar que a verdade não pertence ao sujeito. Apenas há e
resta ainda a pergunta: o que significa aqui o termo “sujeito” e o
que quer dizer correspondentemente “subjetivo’? E preciso que
haja clareza quanto a isso, sobretudo se tiramos conclusões tão
abrangentes sobre o caráter subjetivo da verdade. A argumentação
acerca do caráter subjetivo e relativo da verdade não pode - por
mais convincente que possa se apresentar - esconder que sua base
é totalmente frágil. E fácil mostrar como a relação entre verdade e
sujeito, que se encontra à base dessa argumentação, não é aí de
maneira alguma suficientemente clarificada; e isso porque o con­
ceito de sujeito permanece indeterminado.
Poderia muito bem ser o caso de que, justamente por não per­
tencer ao ser-aí, a verdade não pudesse ser “subjetiva” —“subjeti­
va” no sentido de subjetivo e de sujeito que é pressuposto na argu­
mentação usual. No sentido tradicional, o sujeito é um eu inicial­
mente encapsulado em si e cindido de todos os outros entes, um
eu que se comporta de maneira bastante auto-efervescente no in­
terior de sua cápsula. Denominamos essa concepção do mero su­
jeito a má subjetividade; má porque ela não toca absolutamente a
essência do sujeito. Designamos terminologicamente o sujeito
com a palavra “ser-aí”. Por fim, a essência da subjetividade não é
justamente algo “subjetivo” no mau sentido. A essência da verdade
e seu pertencimento essencial ao ser-aí podem nos mostrar isso.
Pois se a verdade pertence ao sujeito, mas verdade significa desve-
lamento do ente por si subsistente, então desvelamento do ente por
si subsistente pertence essencialmente ao sujeito; isto é, pertence
essencialmente ao sujeito o fato de cie não estar encapsulado em
si, mas sempre já ser junto ao ente por si subsistente.
Filosofia e ciência 121

Se, de certo modo, retirarmos do sujeito inicialmente o ser jun­


to a um ente por si subsistente, então não teremos mais nenhum
conceito de sujeito. Esse ponto de partida não representa nenhum
conceito de eu, de sujeito e de subjetividade. Ao contrário, ele não
traz consigo senão um fantasma e uma construção arbitrária de um
eu. Como a verdade - e aqui inicialmente tomada apenas como
desvelamento do ente por si subsistente - pertence ao ser-aí, isto
é, ao sujeito, o ser-aí, segundo sua essência, é sempre respectiva­
mente junto ao ente por si subsistente. Esse ser junto ao ente por
si subsistente pertence ao conceito de sujeito. Deparamo-nos, as­
sim, com o seguinte resultado: a tese acerca do pertencimento da
verdade ao sujeito não explica a verdade como algo “subjetivista”,
mas determina justamente a subjetividade em seu ser junto ao ente
por si subsistente, que é desvelado. Portanto, a essência da verda­
de qua áX.rj-0-enx dá uma indicação para a clarificação do conceito
de subjetividade. Em contrapartida, procedemos inversamente de
outro modo. Temos um conceito qualquer de subjetividade, na
maioria das vezes orientado, no pano de fundo, por Descartes, e
buscamos deixar claro o que significa verdade, como é preciso pen­
sar a sua relação com esse sujeito - um sujeito que não é determi­
nado mais amplamente. Agora vemos então: a própria essência da
verdade impele-nos para uma revisão principiai do conceito de su­
jeito tal como ele foi sustentado até aqui. O pertencimento da ver­
dade ao sujeito no sentido corretamente compreendido não torna
a verdade algo subjetivo no mau sentido, mas inversamente. Esse
pertencimento da verdade ao sujeito pode se tornar justamente a
ocasião para determinar pela primeira vez o conceito de sujeito de
modo correto.
No entanto, mesmo que recusemos dessa forma uma objeção
tão natural quanto essa, uma objeção que traz no início uma leve
perturbação e segundo a qual o pertencimento da verdade ao ser-
aí encerra em si uma subjetividade da verdade no mau sentido,
permanece, de qualquer modo, sem ser esclarecido o objeto pro­
priamente dito de nossa pergunta: como, afinal, a verdade como
122 Introdução à filosofia

desvelamento do ente por si subsistente pertence ao ser-aí? Que­


remos ter clareza quanto a esse ponto, para que possamos com­
preender como o ser-aí está em condições de compartilhar, com
outros seres-aí, algo do gênero da verdade. Todavia, esse comparti­
lhamento da verdade é uma característica do ser-um-com-o-outro
e o ser-um-com-o-outro se mostra justamente como o nosso tema.
Já conquistamos uma intelecção essencial, a saber, a intelecção
de que o pertencimento da verdade ao ser-aí não é necessariamen­
te um compartilhamento de algo, de que um ser-aí também pode
se comportar sozinho em relação ao ente por si subsistente. Por­
tanto, o desvelamento do ente por si subsistente pode pertencer ao
ser-aí sozinho. O pertencimento da verdade ao ser-aí é possível
sem um ser-um-com-o-outro, sem um compartilhamento da verda­
de. O compartilhamento da verdade não é fator constitutivo para
o modo como a verdade reside no ser-aí. Isso também pode ser
lundamentalmente formulado da seguinte maneira: o ser-um-com-
o-outro não é constitutivo para o ser junto ao ente por si subsisten­
te. O ser-aí também pode se manter sozinho junto ao ente por si
subsistente. Desse modo, uma caracterização do ser-um-com-o-
outro não nos conduz a uma intelecção do modo de ser primário
do ser-aí.
No entanto, há sempre ainda uma possibilidade de justificar o
nosso procedimento por meio da seguinte afirmação: o ser-um-
com-o-outro resulta primeiramente do fato de que dois seres-aí ou
vários seres-aí estão juntos. Assim, ela sempre implica um ser-jun-
to de um ser-aí com um ser-aí, e não um ser-junto de entes por si
subsistentes. Nesse sentido, mesmo no ser-um-com-o-outro pode
vir à tona o modo de ser específico do ser-aí. Isso nos é suficiente
para a distinção preliminar de um modo de ser em contraposição
ao outro.
A questão é que, se o ser-um-com-o-outro é a única coisa que
particularmente nos ocupa agora e se constatamos que ele é um
compartilhamento da verdade, não devemos tomar de maneira tão
aligeirada o resultado antes conquistado de que o scr-um-com-o-
Filosofia e ciência 123

nutro, na verdade, não é constitutivo para o ser junto ao ente por si


subsistente. Daí resultou que o pertencimento da verdade ao ser-aí
ii,in c necessariamente determinado por um compartilhamento da
verdade, porque o ser-aí também pode existir faticamente sozinho.
I . nisso reside, porém, uma constatação essencial acerca da essên-
i ia da verdade em geral, a cujo esclarecimento almejamos.

d) Ser junto ao ente por si subsistente e ser-um-com-o-outro


pertencem co-originariamente à essência do ser-aí

Na crítica do conceito corrente de sujeito evidenciou-se que


pertence ao ser-aí um ser junto ao ente por si subsistente. No en­
tanto, esse ser junto a... não é necessariamente um ser-um-com-o-
uiilro. Um ser-aí também pode, como já dissemos reiteradamente
e o que é incontestável, estar sozinho. Todavia, talvez tenhamos
nos contentado rápido demais com essa constatação aparentemen­
te elucidativa.
Se alguém está sozinho, então outros não estão aí, então não há
nenhum ser-um-com-o-outro. O que significa aqui, porém: estar
sozinho? Significa que só está um indivíduo aí em vez de muitos?
Será que “sozinho” significa o mesmo que “único”? Manifestamen-
le não. Pois senão um ser-aí só poderia estar sozinho se existisse
como um único. A questão é que posso estar sozinho, mesmo que
outros e muitos estejam concomitantemente aí. Sim, até mesmo
em meio a uma multidão posso estar sozinho e ser sozinho, como
nunca o posso ser quando outros não estão aí.
Portanto, estar sozinho não é de maneira alguma equivalente ao
nao-ser-aí fático dos outros. Estar sozinho sempre quer dizer: estar
sem os outros. Quem existe sozinho está com certeza, em um de­
terminado sentido, nesse sem os outros necessária e essencialmen-
le relacionado com os outros. Sozinho pode significar: 1. abando­
nado por outros, 2. não molestado por outros, 3. não carente dos
outros. Isso quer dizer que: no estar sozinho há um ser-um-sem-
o outro; o ser-um-sem-o-outro, contudo, é um modo específico de
124 Introdução à filosofia

ser-um-com-o-outro. Por conseguinte, todo estar sozinho também


é um ser-um-com-o-outro, e, assim, ser-um-com-o-outro não equi­
vale ao também-ser-aí fático de outros.
Com isso, porém, toda a consideração precedente cai por terra,
e seu resultado passa a ser nulo. Formulamos o resultado assim: o
ser-um-com-o-outro não é constitutivo para o ser junto ao ente por
si subsistente, isto é, o modo como o desvelamento do ente por si
subsistente pertence ao ser-aí não é necessariamente um compar­
tilhamento da verdade. Agora, no entanto, vem à tona o seguinte:
se estar sozinho qua estar-um-sem-o-outro é essencialmente um
ser-um-com-o-outro, então também reside em um estar sozinho
junto ao ente por si subsistente um ser-um-com-o-outro. Todavia,
isso significa então: o modo como o desvelamento do ente por si
subsistente (verdade) pertence ao ser-aí é necessária e essencial­
mente um compartilhamento da verdade.
Todo ser junto a um ente por si subsistente, mesmo o solitário,
é um ser-um-com-o-outro. O ser junto ao ente por si subsistenle
não é consequentemente uma possibilidade isolada na qual o ser-
aí existe, e o ser-um-com-o-outro uma outra possibilidade, mas
todo ser junto a... é um ser-um-com-o-outro. Inversamente, todo
ser-um-com-o-outro é, segundo a sua essência, um ser junto ao
ente por si subsistente. O último não é menos essencial do que o
primeiro. Na essência do ser-aí, o ser junto ao ente por si subsis­
tente e o ser-um-com-o-outro não possuem nenhuma primazia um
em relação ao outro. Os dois pertencem necessariamente à essên­
cia do ser-aí: eles são co-originários.
A partir da tese de que o ser junto a... assim como o ser-um-
com-o-outro pertencem essencialmente ao ser-aí, quer ele esteja
sozinho ou faticamente com os outros, vemos que o conceito de
subjetividade ou o conceito de ser-aí encerram em si uma plenitu­
de peculiar e que é preciso estar precavido quanto a tomar o con­
ceito de ser-aí ou de sujeito de maneira por demais indetermina­
da, sim, por demais subdeterminada. Esse é o erro fundamental do
desenvolvimento do conceito de sujeito desde Descartes. Com ele
Filosofia e ciência 125

i omoça propriamente a fatalidade da filosofia moderna, porque


nele o ego , o eu é de tal forma empobrecido que não é mais ne­
nhum sujeito. O ego sum em Descartes é sem o ser junto a..., sem o
\er um-com-o-outro. Pois Descartes não chega nem mesmo a colo-
t ,11 a pergunta fundamental, digo, ele não chega nem mesmo a
questionar como esse ego é, o que significa esse sum no ego sum
■ mi contraposição ao ser, por exemplo, da res extensa. Desde o prin-
i ipio, esse conceito de eu é em certa medida reduzido. Não obs- \
liinte, Descartes tem o mérito de ter colocado a pergunta sobre o |
sujeito, enquanto a época a ele precedente em verdade descobriu j
lodo tipo de determinações sobre o sujeito, sobre o homem, mas |
essas determinações se concentraram mais em evidenciar certos j
modos fundamentais de comportamento do sujeito, as assim cha
madas faculdades da alma.
I.nquanto ser junto a... respectivamente fático, ser junto ao
ente por si subsistente não é necessariamente um ser-com fático
i um outros seres-aí faticamente presentes. Todavia, segundo a sua
essência, o ser junto ao ente por si subsistente é um ser-um-com-
..... ilro. Daí fica claro o seguinte: o ser-um-com-o-outro não quer
dl/er o existir fático junto com outros seres-aí faticamente presen­
tes, () scr-um-com-o-outro não advém pela primeira vez ao ser-aí
por meio da aparição fática de outros. Ao contrário, todo ser-aí qua
s e i ,ií é determinado em seu ser como ser-um-com-o-outro. Por
Isso e somente por isso, ele também tem a possibilidade de estar
so/íubo; isto é, mesmo que outros faticamente não estejam aí, o
s e i aí não é essencialmente apenas um indivíduo, mas ele está so­
zinho. Se o ser-um-com-o-outro é um modo essencial do ser-aí e
ii .i o lhe advém apenas de maneira condicionada, então todo ser-aí
singular e singularizado é sempre ainda nesse modo, a saber, no
modo do estar só.
( ) erro fundamental do solipsismo é que, em meio ao solus ipse,
ele se esquece de levar realmente a sério que todo “eu sozinho” já
e, enquanto um estar sozinho, essencialmente um ser-um-com-o-
11111 io. Somente porque o eu já é com os outros, ele pode com-
126 Introdução à filosofia

preender um outro. No entanto, as coisas não se dão de um tal


modo que o eu, inicialmente sem os outros, seja um ente único e,
então, por meio de um caminho enigmático qualquer, chegue até
o ser-um-com-o-outro.
Ora, mas se o ser-aí enquanto tal é essencialmente determina­
do em seu ser como ser-um-com-o-outro, se todo ser junto ao ente
por si subsistente é um ser-um-com-o-outro, então o modo como
o desvelamento do ente por si subsistente pertence ao ser-aí en­
quanto um modo determinado de verdade é sempre necessaria­
mente um compartilhamento da verdade. Nesse caso, porém, o que
é a verdade e como ela é, se seu pertencimento ao ser-aí é deter­
minado por meio de um compartilhamento da verdade?
A verdade meramente advém ao ente por si subsistente, não
pertence à sua essência; no entanto, a verdade pertence à essên­
cia do ser-aí. Por isso, perguntamos: “como?” e não fomos de iní­
cio aparentemente adiante. Com efeito, pertence necessariamen­
te a esse “como” o ser-um-com-o-outro. Contudo, tampouco con­
seguimos sair do lugar com essa constatação se a própria verdade
não for antes apreendida de maneira mais originária. O desvela­
mento compartilhado pelo ser-aí é algo essencialmente comum
que pertence ao ser-aí e, porém, nesse pertencer-lhe, não é e nun­
ca pode ser justamente uma propriedade sua, uma propriedade do
indivíduo singular.
Mas em que medida a verdade precisa ser tomada de modo
ainda mais originário? Falamos do desvelamento do ente por si
subsistente. O desvelamento não pertence ao ente por si subsis­
tente como tal, mas meramente lhe advém. Quem deixa o desve­
lamento advir ao ente por si subsistente? Evidentemente o ente a
cujo ser pertence a verdade, o ser-aí. Mas, do fato de a verdade
pertencer à essência do ser-aí, pode-se concluir que o ser-aí dei­
xa advir a verdade ao ente por si subsistente? Como isso pode
acontecer? O ser-aí não decide de maneira alguma o que deve ad­
vir ao ente. O que ocorre é antes o inverso: o ser-aí se guia justa­
mente por ele.
Filosofia e ciência 127

Já apontamos para o fato de o ser-aí, na medida em que existe


qua ser-aí, já sempre se manter junto ao ente por si subsistente em
sentido maximamente amplo. Não é apenas faticamente que o ser-
aí não é algo fechado em si, restrito ou reduzido a um espaço com
barreiras bem fechadas. Ao contrário, segundo sua própria essên­
cia, ele nunca se mostra puramente assim. Antes de mais nada, ele
está essencialmente aberto para o ente por si subsistente. Também
podemos caracterizar esse estado de coisas da seguinte forma: o
ser-aí é, segundo sua essência, des-cobridor.

e) O ser descobridor do ser-aí. Verdade do ente por si subsistente


e do ente que está à mão como o ter-sido-descoberto

O ser-aí como tal des-cobre o ente por si subsistente. Isso não


significa que ele faz ocasionalmente a descoberta de que há tam­
bém o ente por si subsistente, mas que, como ser-aí, ele já sempre
des-cobriu o ente por si subsistente, isto é, o retirou do encobri­
mento. Na medida em que o ser-aí existe, acontece algo assim
como a des-coberta do ente por si subsistente. Mesmo o ser-aí que
durante todo o tempo de sua existência nunca fez uma assim cha­
mada “descoberta” é des-cobridor, uma vez que se mantém junto
ao ente por si subsistente. Descobertas em sentido mais restrito,
descobertas, por exemplo, de uma ilha até aqui desconhecida, só
podem ser feitas pelo ser-aí humano porque ele já se mantém qua
ser-aí junto ao ente e, assim, transita, por exemplo, no mar. De
acordo com sua essência, o ser-aí é, quer faça descobertas em sen­
tido mais restrito ou não, des-cobridor; o ente por si subsistente já
vem sempre ao seu encontro na medida em que foi descoberto.
Conferimos, portanto, ao desvelamento do ente por si subsistente,
da verdade desse ente dotado do modo de ser do ente por si sub­
sistente uma determinada designação: a verdade do ente por si
subsistente é o ter-sido-descoberto. Insinua-se por meio disso o se­
guinte: nem todo desvelamento do ente é um ter-sido-descoberto,
mas apenas o desvelamento daquele ente que possui o modo de
128 Introdução à filosofia

ser do ente por si subsistente ou do ente que está à mão. O ter-


sido-descoberto (o desvelamento) do ente por si subsistente acon­
tece pelo fato de o ser-aí existir, e o ter-sido-descoberto do ente por
si subsistente só é se e enquanto o ser-aí existir; o ser-aí que, em
sua existência, é des-cobridor.
Portanto, na medida em que o ser-aí existe, o ente por si subsis­
tente é manifesto. Sempre retornamos uma vez mais a esse ele­
mento básico da essência do ser-aí porque ele possui uma signifi­
cação central. O ente por si subsistente é manifesto junto com a
existência do ser-aí, mas isso não significa necessariamente que
ele é apreendido ou mesmo que ele precisaria ser concebido como
ente por si subsistente. Ao contrário, significa apenas o seguinte:
na medida em que o ser-aí existe, ele está junto ao ente desvelado
que ele mesmo não é, como quer que possa fazer uso desse desve­
lamento. Ou seja: o ser-aí nunca passa primeiramente, no decurso
de sua existência, de uma imanência para um outro ente. O ser-aí
nunca é de um modo tal que, em certa medida, viva no interior de
uma cápsula; ele nunca é apenas sujeito no mau sentido.
QUARTO CAPÍTULO

Verdade - S er-aí - S er-com

§ 15. O ser descobridor do ser-aí das crianças


e do ser-aí dos primórdios da humanidade

Se essa tese possui uma significação central, então o elemento


fundamental também precisa ser assegurado. Antes de tudo, ele
precisa se mostrar de fato como pertinente.
Mas como se encontram as coisas em relação à essência do ser-
aí das crianças e dos primórdios dos povos? As observações meto­
dológicas que se seguem sobre o papel do ser-aí nas etapas iniciais
da existência dos homens e nos primórdios dos povos precisam ser
compreendidas a partir da interpretação em princípio ontológico-
fundamental do ser-aí, e não, por exemplo, como antropologia.
Também é preciso distinguir aqui pri-mordial de primitivo: esses
dois termos não querem dizer a mesma coisa. Seria totalmente
equivocado equiparar o tempo heróico dos gregos com o ser-aí dos
cafres atuais.
Quanto à pergunta pelo ser-aí pré-histórico, pelo ser-aí nos pri­
meiros tempos ou pelo ser-aí nas primeiras etapas da existência do
homem, precisamos dizer basicamente o seguinte: se é que todos
esses também devam ser entendidos como homens, eles não po­
dem ser simplesmente diversos em essência. E parece ser exata­
mente isso que se quer dizer com a réplica: um outro ser-aí huma­
no. Aqui também se trata de um ser-aí humano. Se a expressão “ou­
tro ser-aí” é usada com algum sentido, então o conceito intrínseco
à essência do ser-aí também precisa estar na base. No entanto, se
130 Introdução à filosofia

os graus e períodos do estágio primevo do homem, seja como crian­


ça ou como ser de tempos pré-históricos, são diversos —o lato de lhes
faltar uma clareza específica não constitui nenhuma falha —, então
vem à tona a pergunta metodológica principiai acerca de como de­
vemos afinal apreender esse outro ser-aí. Uma tal apreensão só
acontece de uma maneira privativa; isto é, partindo de uma con­
cepção positiva basilar do ser-aí e não sem o fio condutor de uma
idéia geral de homem. O que uso como medida precisa ser deter­
minado anteriormente e esse critério não é, por conseguinte —
como todo fundamento de uma privação —, inessencial. Ao contrá­
rio, ele é co-determinante para o que deve ser determinado de ma­
neira privativa.
Com base na pesquisa psicológica, psicanalítica, antropológica
e etnológica, temos hoje possibilidades mais ricas de visualização
de determinados contextos do ser-aí. Todavia, os fatos e fenôme­
nos que se podem aduzir a partir dessas investigações carecem de
uma revisão crítica fundamental, se forem pleiteados para eles mo­
dos essenciais do ser-aí. Essa revisão deve guiar-se pela seguinte
tese fundamental: se em relação ao ser-aí infantil, assim como em
relação ao ser-aí dos povos primitivos, o que está em questão é um
ser-aí humano, encontra-se à base desse ser-aí humano um caráter
essencialmente histórico, ainda que simplesmente não reconheça­
mos esse caráter. Não obstante, residem aqui problemas de um
tipo inteiramente peculiar cujo caráter passaremos a conhecer.
Já fui muitas vezes questionado, em geral à guisa de objeção,
por que eu, na investigação do ser-aí, só insiro a questão da morte,
ignorando a do nascimento. Procedo assim porque não considero
que o nascimento seja pura e simplesmente o outro pólo extremo
do ser-aí, que pudesse e devesse ser abordado na mesma proble­
mática da morte. Ao se investigar o ser-aí, tampouco se pode ape­
lar, sem mais nem menos, para o nascimento em lugar da morte,
do mesmo modo que um botânico, ao averiguar uma planta, em
vez de começar pela florescência, pode começar por sua outra ex­
tremidade, a raiz. Justamente considerando-se o fato do nascimcn-
Filosofia e ciência 131

to, que, em certa medida, não se encontra, na verdade, atrás de


nós, vale dizer que aquilo que primeiramente nos parece ser o que
fomos primeiro é, em meio ao conhecimento, o mais tardio. Preci­
samos necessariamente retroceder ao nascimento. No entanto,
esse retrocesso não é simplesmente a inversão do ser para a mor­
te. Para esse retrocesso, é mister uma elaboração do ponto de par­
tida totalmente diversa da que se empreende em relação a todos
os outros processos limítrofes1no ser-aí. O mesmo vale, de manei­
ra análoga, para a interpretação da infância, se é que essa interpre­
tação não tem intuitos simplesmente psicológicos ou pedagógicos
quaisquer.
Se, de maneira totalmente elementar, presentificarmos para nós
o modo do ser-aí de uma criança no primeiro momento de seu ser-
aí terreno, então nos depararemos com o choro, com o movimen­
to agitado no mundo, no espaço, sem qualquer finalidade e, con­
tudo, dirigido para... Ausência de finalidade não é desorientação, e
orientação não significa estar voltado a uma finalidade. Ao contrá­
rio, orientação significa em geral estar-direcionado a..., estar-dire-
cionado para..., estar-direcionado para fora de...
0 que determina inicialmente esse ser-aí é a quietude, o calor,
a alimentação, o estado de sono e de sonolência. Concluiu-se a
partir daí que esse ser-aí, em um primeiro momento, ainda estaria
em certa medida enrolado e encerrado em si, que o sujeito ainda
estaria, nesse caso, totalmente imerso em si. Esse ponto de parti­
da já é fundamentalmente equivocado, uma vez que a reação da
criança - se tivermos o direito de nos orientar por essa expressão
- tem efetivamente o caráter do choque, do susto. Talvez o primei­
ro choro já seja um choque bem determinado. Susto é uma sensi-

1 A expressão “processos limítrofes” tem por correlato no original o ter­


mo Grenzgang. Traduzido ao pé da letra, esse termo significa “curso limítrofe”.
No entanto, pode-se perceber facilmente que aqui estão em questão as silua-
ções-limite tematizadas por KarI Jaspers em Psicologia das visões de mun­
do. Para realçar essa proximidade, optamos pela expressão “processos limítrofes”.
(N.doT.)
132 IntrodiA ção à filo s o fia

bilidade à perturbação, uma forma originária do deter-se e reparar


em algo, um comportamento inerente ao deixar algo ser. Todavia,
ele também aponta para um ser surpreendido e desconcertado
por algo, para um ficar perplexo com algo, sendo que aquilo que
nos deixa perplexos ainda está velado. Essa perplexidade já é, con­
tudo, uma disposição de ânimo. A essência do choque só pode ser
esclarecida em conexão com o fenômeno do susto e do medo. O
choque significa que o encontrar-se em uma disposição de ânimo
é perturbado, que entra em cena um desconforto, que deverá ser
repelido.
As coisas não são de um tal modo que a criança somente venha
a passar de um sujeito encerrado em si mesmo para os objetos no
decurso das primeiras semanas. Ao contrário, ela já está voltada —
e não apenas quando é arrancada do estado de sonolência - para
fora...; ela já está fora junto a... Um ente qualquer já está manifes­
to para a criança, apesar de ainda não ocorrer nenhum comporta­
mento em relação a esse ente, nenhum voltar-se especificamente
para ele. A aversão, a defesa e essa necessidade autocentrada de
quietude, calor, sono têm um caráter negativo totalmente peculiar.
Enquanto esses fenômenos como a repulsa, a rejeição, a defesa
não forem esclarecidos em sua estrutura ontológica, não podere­
mos começar a interpretar um estado dessa natureza como o esta­
do da criança em sua essência. O estado de sonolência no qual se
acha um tal ser-aí primevo não significa que ainda não haveria aí
uma relação com o ente. Ao contrário, ele apenas indica que esse
comportar-se em relação a... ainda não tem uma finalidade deter­
minada. O ser junto ao ente ainda está, em certa medida, envolto
em nuvens, ainda não está aclarado, de modo que esse ser-aí ain­
da não pode fazer uso do ente, junto ao qual, de acordo com sua
essência, ele já sempre se encontra.
Ser arrancado do estado de sonolência não significa sair da es­
fera subjetiva. Ser arrancado do estado de sonolência significa ape­
nas que o ser-fora junto a... dissipou as nuvens em torno de si, tor­
nou-se claro. E é então em meio à claridade que acontece a pri-
Filosofia e ciência 133

meira visão. O junto-ao-quê emerge para o ser-aí. Esse é um emer­


gir do ter antes já existente.
Em primeiro lugar, a interpretação primária precisa começar a
mostrar como a mera repulsa por parte da criança distingue-se de
uma rejeição. A repulsa é um mero esquivar-se de... No entanto,
no esquivar-se já está presente uma determinada rejeição, uma re­
cusa a... Ao nos esquivarmos de algo já está presente uma contra­
posição, ainda que não ativa. Precisamos fazer uma distinção en­
tre repulsa, rejeição e defesa, defesa junto à qual se inicia o con-
tramovimento propriamente dito, o contrapor-se. Todos esses fe­
nômenos da intencionalidade são ao mesmo tempo de um tal
gênero que trazem à tona, em seu vir a termo, a primeira situação
na qual se encontra um tal ser-aí em sua entrega ao mundo inicial­
mente desvalida.

§ 16. O ter-sido-descoberto do ente por si


subsistente e a manifestação do ser-aí

Vimos o seguinte: o ter-sido-descoberto, o desvelamento (verda­


de) do ente por si subsistente depende de modo decisivo do ser-
descobridor, do ser-aí, ou seja, de sua existência. Por conseguinte,
ao ser-aí como um ente essencialmente descobridor, pertence a
verdade. Na medida em que o ser-aí se mantém junto ao ente por
si subsistente, ele se detém no ter-sido-descoberto de tal ente.
Ora, anteriormente também concluímos que o modo como a ver­
dade (desvelamento do ente por si subsistente) pertence ao ser-aí
é necessariamente um compartilhamento da verdade. Ora, será
que o deter-se no ter-sido-descoberto do ente por si subsistente,
presente no ser junto a esse ente, realmente constitui um compar­
tilhamento da verdade? Supõe-se que todo e qualquer ser junto ao
ente por si subsistente, mesmo o solitário, encerra em si um scr-
um-com-o-outro. Segundo a sua essência, todo ter-sido-descober­
to de um ente por si subsistente deve ser um acontecimento que
134 Introdução à filosofia

o ser-aí compartilha com outros. Por conseguinte, o ter-sido-des-


coberto deve ser um acontecimento tal que o ser-aí nunca retenha
para si, como uma posse encerrada em si mesma. Todo ter-sido-
descoberto do ente por si subsistente já deve se mostrar essencial­
mente como compartilhado com...
Será que essas não são teses efetivamente curiosas e arbitrárias,
que os fatos nus e crus simplesmente contradizem? Para que al­
guém constate algo, descubra algo anteriormente desconhecido, é
preciso que os outros ainda não o saibam. Esse alguém pode guar­
dar a verdade tranquilamente para si. Dessa maneira, em face des­
sa possibilidade inegável, pergunto-me como podemos fazer a se­
guinte afirmação: a verdade sobre o ente por si subsistente é ne­
cessariamente algo que o ser-aí compartilha com os outros.
Suponhamos que alguém faça uma descoberta especial, uma
planta rara e o seu habitat; poderia acontecer de o feliz descobri­
dor guardar para si, ao longo de sua vida, a sua descoberta, sem que
ninguém viesse a saber algo sobre ela. Nesse caso, a planta rara e
habitat desconhecido se tornariam manifestos para esse ser-aí sin­
gular, e tal desvelamento pertenceria unicamente a esse ser-aí. Com
isso, é de fato possível que o desvelamento de um ente por si sub­
sistente pertença a um ser-aí como indivíduo singular.
Se o feliz descobridor guarda para si a verdade durante toda a
sua vida, então isso certamente significa que ele a preserva cuida­
dosamente dos outros, evitando comunicá-la aos outros. Isso já re­
vela que ele compartilha tal verdade com os outros. A única dife­
rença é que ele a compartilha agora sob o modo da retenção; e ele
só a compartilha dessa maneira com outros porque, segundo sua
essência, o desvelamento do ente por si subsistente é algo compar­
tilhado. O descobridor não tem nenhuma outra alternativa a não
ser guardar essa verdade para si ou comunicá-la. Em todo caso,
essa verdade não se mostra como sua propriedade, embora ele pos­
sa reivindicar ter sido o primeiro a encontrá-la. Guardar para si
equivale a proteger-se de... Mas o que significa dizer: ele não tem
nenhuma outra alternativa, a não ser escolher entre apenas duas
Filosofia e ciência 135

coisas? Significa: essa verdade é algo que ele necessariamente


compartilha com os outros. Como é, porém, que ela pode ser des­
sa forma e por quê? Em que medida o desvelamento do ente por
si subsistente é necessariamente algo que o ser-aí compartilha com
o ser-aí? Ao menos uma coisa está clara: esse compartilhamento de
uma tal verdade não significa que outros necessariamente dela se
apropriem de modo expresso. Por outro lado, o fato de alguém
guardá-la para si não quer dizer que a verdade, de início, efetiva­
mente seja uma propriedade exclusiva. Ela não pode ser algo des­
se gênero porque, segundo sua essência, encontra-se à disposição
de outrem e nunca pode pertencer ao indivíduo de outra torma se­
não pelo fato de ele a proteger. Mas o que significa isso? Esse ser-
aí precisa se fechar diante de outros. O que ele torna inacessível?
Esse desvelamento do ente por si subsistente em questão, o fato
de ele, esse ser-aí, se manter no ter-sido-descoberto do ente por si
subsistente; o ser-aí torna inacessível seu ser descobridor junto a
esse ente por si subsistente. Não é tão importante agora saber por
qual caminho e com que meios uma inacessibilidade dessa estirpe
acontece faticamente. Essencial é, antes de tudo, uma outra coi­
sa. Se o ser-aí quiser permanecer sozinho com essa verdade, ele
precisa fechar aos outros o acesso a seu ser junto à planta em
questão. Precisa fechá-lo porque, de outra forma, esse ser junto ao
ente por si subsistente se descerrará a todos, porque, de outra for­
ma, se desvelará a todos.
O ser-aí como tal está desvelado em seu ser junto ao ente por si
subsistente. O que significa isso? Já fizemos referência a em que
medida o ser-aí já sempre saiu de si mediante o ser junto ao ente
por si subsistente. Em outras palavras: o ser-aí não é, de maneira
alguma, algo que se manteria inicial e ocasionalmente em uma es­
fera chamada interna. Por isso, tomado estritamente, tampouco
podemos dizer que ele saiu de si (esse “para fora de si" também
não é pensado, então, numa referência àquele caráter interior,
àquela imanência). Mas isso já basta. O ser-aí como ser junto ao
próprio ente por si subsistente está manifesto: ou seja, seu próprio
136 Introdução à filosofia

ser-aberto para o ente por si subsistente já traz consigo o fato de


ele mesmo, o ser-aí assim aberto, ser manifesto. O ser-aí é descer­
rado por si mesmo e não apenas de modo ocasional, mas sim es­
sencial; ele é desvelado qua ser-aí, mesmo que um outro ser-aí não
o apreenda faticamente.
Embora essas conexões sejam tão elementares na constituição
essencial do ser-aí, no início é muito difícil visualizá-las de modo
totalmente claro —e as razões para tanto não são, por sua vez, ra­
zões contingentes. Visto que só estamos no início de nossas consi­
derações, isto é, visto que temos um horizonte ainda relativamen­
te restrito da problemática aqui em jogo, a compreensão apropria­
da das estruturas que se acham em questão está particularmente
dificultada. Mais tarde, os senhores certamente irão espantar-se
com o porquê de não termos proposto logo de uma vez relações as­
sim tão simples.
Tentaremos contribuir com alguma ajuda por meio da discussão
de um exemplo. Antes disso, porém, é importante fixar ainda uma
vez mais o nosso problema e a nossa tese: conforme dissemos, se­
gundo sua essência, o desvelamento do ente por si subsistente é
algo que o ser-aí compartilha com o ser-aí, podendo um outro ser-
aí estar faticamente presente ou não e podendo ele se apropriar fa­
ticamente da verdade ou não. O desvelamento do ente por si sub­
sistente é essencialmente algo compartilhado, algo que pertence
ao ser-aí. Entretanto, ele pertence ao ser-aí de um tal modo que
nunca pode ser tomado como uma propriedade privada, demarca­
da com cercas e barreiras. Segundo sua essência, o desvelamento
pertence antes ao ser-aí de um tal modo que ele é justamente pas­
sado adiante. E isso significa: o desvelamento nunca é primeiro
propriedade privada para, só então, ser passado adiante.
Como isso é possível? Ou seja: o que é esse desvelamento do
ente por si subsistente? Ter-sido-descoberto. O ente por si subsis­
tente dá-se no ser junto a... como algo desvelado, uma vez que o
ser-aí é fundamentalmente descobridor. Como ser junto a..., o ser-
aí é ser-descobridor. Como um ente assim, o ser-aí é o próprio ser-
Filosofia e ciência 137

aí manifesto em si. Mas como ocorre isso? Ser-aí significa: trazer


consigo de maneira primordial o círculo do possível vir-a-ser-mani-
festo, o “aí” no qual o ente por si subsistente, ente este que se en­
contra no interior desse âmbito, se torna, então, pela primeira vez
manifesto. No entanto, o manifestar-se acontece de modo essencial,
e não de modo ocasional e ulterior. Ser-aí é comunicar participan­
do, descerrando, descobrindo e, desse modo, trazendo consigo.
O desvelamento nunca pertence a um indivíduo singular como
tal. Enquanto algo compartilhado, o desvelamento se encontra
como que publicamente à disposição de qualquer um. Com isso,
precisa ser liberado por todo ser-aí. O desvelamento do ente por si
subsistente é, por seu lado, ele mesmo necessariamente desvela­
do. Contudo, visto que o desvelamento do próprio ente por si sub­
sistente não é nada por si subsistente, sendo, porém, que o desve­
lamento do ente por si subsistente é denominado o ter-sido-desco-
berto, o desvelamento do ente por si subsistente, na medida em
que ele mesmo está desvelado, nunca pode ser algo que foi desco­
berto. No entanto, se o desvelamento do ente por si subsistente
pertence ao ser-aí, e de um modo tal que ele mesmo é desvelado,
então isso significa: o ser-aí é, na medida em que existe como ser-
aí, na medida em que é desvelado como tal. Todavia, em contrapo­
sição ao desvelamento do ente por si subsistente, em contraposi­
ção ao ter-sido-descoberto, denominamos o desvelamento do ser-
aí descermmento.
O ser-aí como tal é descerrado a partir de si. Ele não é primei­
ramente desvelado mediante o fato de um outro ser-aí o arrancar
do velamento. Na medida em que o ser-aí existe, ele já foi arran­
cado do velamento, ou seja, ele de certo modo traz consigo o seu
desvelamento.
No que concerne ao ser-aí, só discutimos até aqui preponderan­
temente o ser junto ao ente por si subsistente. Precisamos tentar
ver inicialmente, embora apenas na perspectiva de nosso ser jun­
to às coisas, em que medida o ser junto ao ente por si subsistente
é necessariamente desvelado como aquilo que é. Contrapomos
138 Introdução à filosofia

agora os seguintes fatores: o ser-por-si-subsistente-em-conjunto


das coisas e o modo do ser-um-ao-lado-do-outro do ser-aí e dessas
coisas. Um banco acha-se junto a uma casa. Do ponto de vista es­
pacial, o banco e a casa podem estar até mesmo colados. O banco
pode, como dizemos, estar encostado na casa. Não obstante, nes­
se “junto a”, a casa não está, de maneira alguma, manifesta para o
banco, e vice-versa. Tampouco podemos dizer que a casa está ve­
lada para o banco. Na relação que travam entre si, essas coisas es­
tão, muito mais, pura e simplesmente fora da possibilidade do ve­
lamento e do desvelamento mútuo. Para falar de modo totalmente 7
cauteloso: não temos o mínimo critério para supor sequer algo di­
verso, mesmo que apenas como possibilidade. Em contrapartida, o
camponês que se encontra diante de sua casa no campo também
está ao lado da sua casa e do banco contíguo a ela. Todavia, nessa
contigüidade, a casa e o banco estão manifestos, o que não signi­
fica que agora o camponês precisasse apreender expressamente
sua casa e o banco que se encontram diante dele. A contiguidade
do camponês é um scr junto ao ente descoberto. E no caso inver­
so: como é que a casa se encontra junto do camponês? Ela se en­
contra junto a ele assim como está junto ao banco; pois ela não
tem diante de si o camponês como algo desvelado. Por outro lado,
o camponês tampouco é um ente por si subsistente. Podemos di­
zer preliminarmente: em relação ao camponês, a casa subsiste por
si no círculo do ente por si subsistente que está descoberto para
ele. Esse círculo do descoberto pode mudar no indivíduo. No en­
tanto, o ser-aí sempre leva consigo, de certo modo, um tal círculo
do descoberto. Onde quer que se mantenha, sempre se movimen­
ta em um tal círculo, e esse movimentar-se é sempre um ser jun­
to a...; o “junto ao quê” pode estar mais ou menos próximo.
Isso é tudo muito elementar. Suponhamos agora que estamos
vindo de muito longe em direção à casa e vemos na frente dela algo
que está em pé. Esse algo tem a aparência de um largo mourão ou
de alguma coisa enterrada no campo diante da casa. De repente,
esse mourão começa a se mexer e, com efeito, ele sc movimenta
Filosofia e ciência 139

em direção à porta da casa, desaparecendo lá dentro. Enquanto ex­


perimentamos em seu movimento esse ente por si subsistente se
movimentando, veriticamos tratar-se de um homem. Como chega­
mos ao ponto de tomar por um homem um ente por si subsisten­
te que se encontra em movimento e desaparece por um certo bu­
raco se, dada a grande distância, não conseguimos ver nem o ros­
to nem as mãos, nem conseguimos tampouco ouvi-lo falar? Mas
ele se colocou, por si mesmo, em movimento. No entanto, mesmo
presumindo que não tivéssemos visto o suposto mourão no mo­
mento em que começou a se movimentar —nós o vemos agora no
movimento em direção ao vão da porta e o vemos desaparecer aí.
E, quando acompanhamos algo em movimento, então atentamos
para a sua direção. Com isso, ao mesmo tempo vemos faticamen-
te a direção, vemos aquilo em direção ao que o movimento é rea­
lizado. Em nosso caso, um buraco? Não, de modo algum! Mas a
porta da casa. A partir dessa porta que é conjuntamente vista por
nós desde o princípio como aquilo em direção a que o movimento
é realizado, apreendemos mais além o que e como esse ente que
se movimenta é: apreendemos o fato de ele usar a entrada da casa.
Na medida em que faz uso da porta da casa, o ente em questão não
leva a termo apenas uma mudança de lugar, mas, como dizemos,
ele se comporta de uma determinada maneira. Assim, é justamente
esse comportamento em relação a uma coisa de uso que é apreen­
dido por nós.
Portanto, o que apreendemos não é nem um ente por si subsis­
tente que está se movendo nem um mero espaço intermediário en­
tre ele e algo diverso que poderíamos então denominar um bura­
co, tampouco tudo isso só que agora tomado conjuntamente. Ao
contrário, o que no fundo apreendemos é um ser junto ao ente por
si subsistente: esse ente que nos é desvelado em seu desvelamen-
to específico para esse ser junto a..., por assim dizer o fato de a
porta ser porta para aquele ente que se movimenta - a porta em
seu desvelamento, em seu ter-sido-descoberta para aquele que se
movimenta, para esse ser enquanto ser descobridor junto a... Nes-
140 Introdução à filosofia

se ser descobridor junto à casa, anuncia-se o ente como ser-aí. No


entanto, esse ser junto à casa já está descerrado para aquele ser-aí
(camponês) mesmo.

§ 17. A manifestação do ser-aí qua ser-aí

Empreendemos uma série de tentativas para clarificar o ser-um-


com-o-outro enquanto ser junto ao mesmo. Com elas, não alcan­
çamos diretamente nossa meta. E, no entanto, essas tentativas não
ficaram completamente sem resultado. Ao contrário, a cada vez
vieram à tona intelecções essenciais para o domínio correto de
nossa tarefa: a intelecção de que a verdade pertence ao modo de
ser que está em questão, a de que o termo “ser-aí” não é equivalen­
te ao termo “sujeito”, a de que a subjetividade tem sido sempre sub-
determinada até aqui, de modo que - em razão do conceito insu­
ficiente de sujeito - se pôde mesmo acreditar que é possível obter
esses elementos essenciais da subjetividade tais como o ser junto
a... e o um-com-o-outro como suplementos ulteriores. No todo, ti­
vemos como resultado, por conseguinte, um afrouxamento múlti­
plo dos elos de ligação do problema. Assim, futuramente, não pre­
cisamos tanto ampliar esses elos, mas sim radicalizá-los. No que
diz respeito à nossa intenção mais imediata, o que fizemos até aqui
forneceu-nos uma preparação adequada. Com o auxílio dessa pre­
paração podemos ousar apresentar, agora positivamente, o tipo de
pertencimento que a verdade qua desvelamento do ente por si sub­
sistente possui em relação ao ser-aí.
Nossa tese, segundo a qual o ser-um-com-o-outro deve ser ca­
racterizado como um modo de ser peculiar do ser-aí, pode ser for­
mulada da seguinte forma: de acordo com sua essência, o desvela­
mento do ente por si subsistente (o ter-sido-descoberto) sempre é
compartilhado por um ser-aí com outros seres-aí, quer um outro
ser-aí esteja faticamente presente ou não, quer o outro ser-aí se
aproprie expressamente da verdade ou não. O desvelamento do
Filosofia e ciência 141

ente por si subsistente é essencialmente algo compartilhado, ele


nunca pertence a um ser-aí singular como indivíduo. De maneira
peculiar, o desvelamento encontra-se à disposição de qualquer
um. Por conseguinte, todo ser-aí como ser-aí descobridor sempre
precisa já ter liberado e passado adiante o ter-sido-descoberto do
ente descoberto. O desvelamento do ente por si subsistente não
pertence ao ente por si subsistente. Ao contrário, ele pertence ao
ser-aí. Mas de um tal modo que, entretanto, não reside nele como
uma propriedade individual cercada. O desvelamento tampouco se
mostra inicialmente como uma propriedade individual que seja en­
tão passada adiante, mas o pertencer-ao-ser-aí já traz sempre con­
sigo um passar adiante. Como é que algo desse gênero é possível
e por que as coisas se dão necessariamente assim?
Vimos o seguinte: o ente por si subsistente se nos entrega como
algo desvelado em meio a nosso ser junto a..., uma vez que esse ser
junto a... é por si mesmo descobridor. Assim, o ser-aí não pode es­
tar de maneira alguma ao lado de e junto a um ente por si subsis­
tente, tal como um ente por si subsistente está “junto” a um ente
por si subsistente. Toda e qualquer contiguidade é um ser junto
a... descobridor. No interior dela o junto-ao-quê é mantido em
meio ao ter-sido-descoberto. A palavra “junto” presente na expres­
são “ser junto a...” aponta para um espaço aberto que essencialmen­
te se abre para... Por várias vezes já visualizamos esse estado de
coisas, e ainda assim ele nada perde de seu caráter maravilhoso.
Por enquanto, porém, atentamos apenas para o junto-ao-quê e para
o fato de esse junto-ao-quê ser manifesto no e para o nosso ser jun­
to a... Todavia, ao direcionarmos toda a nossa atenção para esse
ponto, desconsideramos intencionalmente algo não menos essen­
cial: esse nosso próprio ser junto a..., nós, como entes que são as­
sim junto a..., “também” estamos concomitantemente manifestos
juntamente com a manifestação do ente por si subsistente. Ainda
que um ser-aí se mantenha sozinho junto a um ente por si subsis­
tente, seu ser junto a... está manifesto; e, com efeito, também no
caso de o ser-aí em questão não apreender absolutamente a si mes-
142 Introdução à filosofia

mo ou refletir sobre si, de ele não estar absolutamente voltado e


virado para si, de ele não pensar em si ao ser junto ao ente por si
subsistente. Portanto, o ser junto a... está manifesto antes de toda
objetivação por meio de outros e antes de toda objetivação para si
mesmo.
Podemos tornar isso visível mostrando um estado de fato ele­
mentar, no qual permanentemente nos movemos como entes que
são-aí. Esse estado de fato é de tal forma cotidiano e auto-eviden-
te que não parece absolutamente ser aí. Tomemos o nosso exem­
plo: assim como uma pedra subsiste por si mesma ao lado de uma
outra pedra, um ser-aí está junto de um outro ser-aí, um ser junto
a... ao lado de outro um ser junto a.... De maneira alguma! Ao con­
trário, se um ser-aí aparece ao lado de um outro ser-aí, então ele
surge no espaço de manifestação do outro; ou ainda mais exata­
mente: seu ser junto a... movimenta-se no mesmo círculo de ma­
nifestação. O que se quer dizer com isso?
O ser junto ao ente por si subsistente não é, por exemplo, algo
assim como um sensor que o ser-aí estende até as coisas e em se­
guida volta a recolher. Ser-aí significa, antes de tudo, ser junto a...
Mas esse ser junto às coisas, que é algo essencial, também não se
constitui agora como uma espécie de periscópio permanentemen­
te instalado e em cujo interior o sujeito se encapsula e se arrasta
até as coisas, de tal modo que todo ser-aí se manifestasse, a cada
vez, por si em seu periscópio. Ao contrário, esse ser junto a... é ma­
nifesto como tal. Ele nunca está fechado em si, nem mesmo quan­
do o ser-aí está sozinho junto a algo. O ser junto a... é essencial­
mente de um tipo tal que a qualquer momento um outro ser-aí
pode entrar nele —como algo manifesto. Se o ser-aí quiser impe­
dir que isso aconteça, então precisa primeiramente fechar-se. Isso
significa o seguinte: o ser-aí já é anteriormente e essencialmente
aberto, uma vez que fechamento é sempre apenas uma privação.
O ser junto ao ente por si subsistente como tal nunca é fecha­
do em si, mas é, antes de mais nada, algo descerrado. Juntamente
com o ser junto a... aberto ao ente por si subsistente, esse junto a...
Filosofia e ciência 143

mesmo é desvelado. E o inverso também é verdadeiro: somente


um ser manifesto, ele mesmo, como tal é um ser junto a... Ele é o
que é, a saber, um ser que é junto a..., enquanto algo que se des­
cerra. A essência desse ser, pertence o descerrar-se. De maneira
descerradora o ser junto a... é algo descerrado e, porquanto o ser
junto ao ente por si subsistente pertence essencialmente ao ser-aí,
isso significa apenas: o ser-aí é como tal algo descerrado.
Mas o que significa isso? O ser-aí não é descerrado primeira­
mente em função de ter sido apreendido por um outro (e isso já
não procede porque apreender o ser-aí significa: apreender um
ente que por si mesmo está descerrado). O ser-aí descerra a si mes­
mo. Portanto, dir-se-á, se ele não se descerra para outros, ele o faz
ao menos para si. Deparamo-nos nesse caso com um fato há mui­
to conhecido: o homem tem consciência de objetos e também tem
concomitantemente uma consciência de si, uma autoconsciência.
Toda consciência é também autoconsciência. Um princípio discu­
tido à exaustão no idealismo alemão, tomado por base também em
Kant e conhecido por Descartes, reza: cogito aliquid = cogito me co­
gitam aliquid [penso em alguma coisa = penso para mim mesmo o
pensar alguma coisa]. Se justamente o conceito de consciência im­
pediu a conquista do conceito correto de subjetividade, então são
necessárias aqui todas as precauções críticas —mesmo quando e
justamente quando se falar de autoconsciência. No entanto, tive­
mos a oportunidade de ver que o ser junto a... não encerra absolu­
ta e necessariamente um saber acerca de si mesmo, um voltar-se
para si. Sim, justamente o ser junto a... elementar e autêntico
emerge em meio às coisas e não é dificultado por nenhuma refle­
xão. Todavia, precisamos dizer: ele se descerra justamente nesse
caso. O descerrar-se que enunciamos como determinação essen­
cial do ser junto a... não significa necessariamente tornar-se obje­
to para si, nem mesmo tornar-se manifesto para si mesmo.
Afirmamos que o ser descobridor junto ao ente por si subsisten­
te descerra-se. Essa afirmação não quer dizer que o “ser-aí se tor­
na manifesto por meio de outros e para outros”, nem que “o ser-aí
144 Introdução à filosofia

apreende além do ente por si subsistente descoberto também a si


mesmo’’. A tese de que: “o ser descobridor junto ao ente por si sub­
sistente descerra-se” significa algo muito mais originário. Significa
que o ser-aí traz consigo, pela primeira vez, justamente no ser jun­
to a... e como tal, algo assim como um círculo de manifestação. Na
medida em que existe, esse ente que não infundadamente deno­
minamos ser-aí, pela primeira vez em seu ser e por meio de seu
ser, deixa ser algo do gênero de um “aí”. O ser-aí é aquele ente que
consiste em ser algo assim como um “aí”. O “aí”: um círculo de ma­
nifestação em direção ao qual pela primeira vez o ente por si sub­
sistente também pode se tornar manifesto, isto é, descoberto.
O “aí” não é uma posição, um lugar em contraposição ao “lá”.
Ser-aí não significa estar aqui em vez de lá, também não estar aqui
e lá. Ao contrário, ele é a possibilidade, a viabilização do ser orienta­
do ao aqui ou ao lá. O “aí” é, entre outras coisas, o espaço que emer­
ge em si, mas não se fragmenta e esfacela em meio a essa emergên­
cia. Ser-aí é uma irrupção que se abre no espaço. E não apenas no
sentido de que uma coisa material extensa ocupa um lugar no es­
paço. O ser-aí irrompe de um tal modo no espaço que esse espaço
mesmo se manifesta em sua espacialidade; mas o ser-aí não é ape­
nas isso. Mais exatamente: o espaço que se abre em meio a uma tal
irrupção nada mais é que uma determinação essencial do aí, junto
à qual primariamente demonstramos um elemento essencial do
ente que somos. Certamente não é por acaso que muitos significa­
dos da língua, que não se referem absolutamente a conteúdos es­
paciais, acabam possuindo um significado espacial. Com isso é posv
sível ver que o espaço desempenha um papel central no interior da
metafísica, um papel que só pode ser problematizado numa relação
originária com o tempo concebido de modo radical. Nenhuma físi­
ca e nenhuma geometria jamais são capazes de desencobrir a es­
sência do espaço; as duas permanecem eternamente fora dessa pro­
blemática e, expresso em termos metafísicos, só captam algo que é
indiferente ao espaço. À ciência natural e à física, revela-se, dessa
problemática, apenas um broto inteiramente vazio de conteúdo.
Filosofia e ciência 145

Em contrapartida, a arte como escultura ou pintura consegue em


certa medida se assenhorear do espaço.
O ser-aí é um ente que essencialmente se descerra. Isso signi­
fica: ele é um ente que promove, no e com o seu ser, pela primei­
ra vez a emergênçia de uma esfera de manifestação; não de modo
ulterior e ocasional, mas ao longo do tempo em que existe. Ele
forma (de modo ambíguo) essa esfera de manifestação: qua ser-aí,
ele a constitui e lhe confere forma. Com a existência do homem
ocorre essa irrupção súbita no ente, de modo que o ente se intro­
duz no círculo de manifestação como algo manifesto, bem como
no aí manifesto, como aquilo que o ser-aí também pode manifes­
tar em si mesmo.

§18. Ser-aí e ser-com

O ser junto a... é descerrado de maneira descerradora. Ele traz


consigo a esfera do aí e se movimenta no interior dela. E, se um ou­
tro ser-aí está faticamente presente, então esse outro ser-aí tam­
bém nunca está meramente aí. Ao contrário, segundo a sua própria
essência, ele é co-ser-aí; ou seja, ele não está sendo também, mas
sendo com; e isso porque é ser-aí, porque se coloca no mesmo cír­
culo de manifestação. E possível que uma pedra seja muito pare­
cida ou mesmo igual a uma outra. Ainda assim, elas nunca co-sub-
sistem por si: em outras palavras, entes por si subsistentes não po­
dem ser de modo algum uns com os outros. Na presença de um
outro ser-aí, o ser-aí não está com esse outro porque os dois pos­
suem a mesma constituição. Eles estão, sim, muito mais um com
o outro porque são seres-aí, porque eles, na medida em que são,
trazem consigo um aí e, dessa forma, como entes que trazem con­
sigo necessariamente um aí, entram no círculo do outro, de modo
que compartilham esse círculo.
Só há um “com” onde há um “aí”. Cada um dos muitos que são
junto a... é um ser-com; não que um e outro estejam junto ao ente
146 Introdução à filosofia

por si subsistente, mas o um e outro é um ser-um-com-o-outro. Os


seres-aí não podem ser faticamente de nenhuma outra forma: eles
sempre são respectivamente o aí, enquanto a distância espacial fá-
tica dos lugares em que se mantêm é completamente inessencial.
No entanto, ser sempre a cada vez o aí já significa justamente o se­
guinte: passar as coisas adiante em meio ao mesmo círculo de ma­
nifestação.
Ao considerarmos o fenômeno do ser junto a..., já acentuamos
reiteradamente que o ser-aí não se mantém em uma esfera inte­
rior e experimenta então, por meio de manipulações quaisquer,
algo do exterior. Bem mais, o ser-aí como tal já se encontra fora
junto a..., ele já saiu de si; ou melhor: ele é saindo de si. Ele nun­
ca é qua ser-aí de outro modo —e isso naturalmente sem abando­
nar a si mesmo; o próprio ser-aí é esse sair em direção a..., esse
sair em direção a... perfaz a sua essência. O ser-aí não precisa
abandonar “a si mesmo” porque como movimento para fora ele é
ele mesmo. ‘‘Para fora”: a isso parece, então, corresponder um “in­
terior”. Certamente! A única questão é como esse interior é deter­
minado e se ele precisa ser tomado assim como o faz a doutrina
tradicional da imanência, da permanência da consciência dentro
de si. O modo como o ser-aí é junto a si co-determina-se pela ma­
neira como ele, todavia, enquanto junto a si, é ser-aí essencial­
mente saindo de si.
Não obstante, se os seres-aí nunca existem um ao lado do ou­
tro, significa que cada um, como ente que essencialmente sai de
si, também já adentra a esfera de manifestação do outro. Como se­
res-aí que são, eles se mantêm necessariamente, mesmo quando
não se preocupam minimamente um com o outro, na mesma esfe­
ra de manifestação; trazer essa esfera consigo qua ser-aí significa
compartilhá-la com seus semelhantes. Na essência de um ser-aí,
reside o ser-com, mesmo quando faticamente não existe um outro
ser-aí. O ser-aí já traz consigo a esfera de uma vizinhança possível;
ele já é por si mesmo vizinho de... Em contrapartida, por exemplo,
duas pedras jamais podem ser avizinhadas. O ser-com implica: um
Filosofia e ciência 147

liberar e um passar adiante o aí —como algo que manifestamente


irrompeu e em que o ente pode por sua vez se anunciar segundo o
seu modo de ser.
Conseqüentemente, o ter-sido-descoberto do ente por si subsis­
tente que aflora no ser descobridor junto a... é um ter-sido-desco­
berto que pertence ao descerramento do aí. Somente um ente que
se descerra no sentido descrito pode, ou melhor, precisa ser des­
cobridor. Com isso, todo ter-sido-descoberto do ente por si subsis­
tente também já foi - como elemento pertencente ao descerra­
mento de um ser-aí - necessariamente passado adiante e compar­
tilhado; e isso porque o descerramento do aí, isto é, porque o ser-
aí é necessariamente um ser-com. O ser descobridor pertence ao
descerramento e, assim, ao ser-aí. Na medida em que o descerra­
mento pertence dessa maneira ao ser-aí, na medida em que ao des­
cerramento do ser pertence algo compartilhado e, por isso, tal
descerramento comporta indicações do ser-com, ele nunca pode
ser demarcado com cercas e barreiras, nunca se mostra como uma
propriedade privada, mas é, em si mesmo, ser-com que se descer­
ra, algo já sempre compartilhado por cada ser-aí.
Assim, acha-se esclarecida a possibilidade interna do ser-um-
com-o-outro como um modo de ser essencial do ser-aí. Tivemos a
oportunidade de ver por meio de um tal esclarecimento como a
verdade qua desvelamento do ente por si subsistente é constituti­
va para o um-com-o-outro e pertence originariamente ao ser-aí, de
maneira que o ter-sido-descoberto, por sua vez, só é possível no
descerramento do ser-aí, isto é, naquele desvelamento que traz
consigo o ente que denominamos ser-aí.
Tornamos visível o ser-um-com-o-outro como estrutura essen­
cial do ser-aí, e, com efeito, por meio de um caminho determina­
do, escolhido de forma intencional. Esse caminho encerra em si
necessariamente uma certa unilateralidade que não tem aqui, con­
tudo, grande importância. Precisamos falar agora rapidamente
dessa aparente unilateralidade porque ela pode facilmente dar lu­
gar a incompreensões e porque a determinação do um-com-o-ou-
148 Introdução à filosofia

tro como determinação essencial do ser-aí está em parte subesti­


mada e em parte superestimada.
Demonstramos o ser-um-com-o-outro por meio de um ser-um-
com-o-outro junto ao giz que subsiste por si, ou seja, por meio de
algo que está assim bem próximo de nós. Certamente os senhores
já se viram às voltas com a seguinte objeção: o ser junto a um mes­
mo ente por si subsistente pode apresentar um “modo” do ser-um-
com-o-outro; em nosso caso, porém, o que está em jogo é um um-ao-
lado-do-outro completamente extrínseco e indiferente, um um-com-
o-outro bem frouxo. Não há dúvida quanto a isso. No entanto, esse
fato não impede absolutamente que a essência do um-com-o-ou-
tro ou uma parte dessa essência se tornem visíveis mesmo em um
frouxo um-com-o-outro. Pois, tomado estritamente, o ser junto a
um mesmo não é um modo do ser-um-com-o-outro: um tipo par­
ticular entre muitos outros. Ao contrário, ele é um elemento essen­
cial de cada um-com-o-outro; isto é, nosso ser junto ao giz, junto
ao apagador e junto ao que subsiste aqui por si mesmo pertence
essencialmente a nosso um-com-o-outro que ainda é constituído
por outra coisa —minha preleção, a vossa escuta de minha prele­
ção; mas a essa escuta pertence o ser junto ao ente por si subsis­
tente, mesmo que não necessária e precisamente esse; mesmo lá
fora em algum lugar nas montanhas o um-com-o-outro é um ser
junto a..., um ser junto a algo que se acha aí justamente manifes­
to e subsiste a qualquer momento por si.
Ora, já ouvimos o seguinte: no conceito tradicional de sujeito, o
ser junto a... é deixado de lado. Como ainda veremos, ele não che­
ga a ser tomado nem mesmo como um momento essencial da sub­
jetividade quando o sujeito é considerado como consciência inten­
cional. A intencionalidade não conquista sua eficácia verdadeira e
central, enquanto ela continua sendo “consciência”, e não é exata­
mente com o auxílio da intencionalidade que a interpretação dada
pelo homem à consciência é calcada. No entanto, na medida em
que o sujeito é pensado como que cindido desse ser junto a...,
como uma espécie de sujeito parcial, a pergunta acerca do ser-um-
Filosofia e ciência 149

com-o-outro e por sua essência também acaba ficando confusa.


Como os dois sujeitos (o eu e o outro) estão subdeterminados, para
estabelecer uma comunicação entre os dois é preciso buscar um
expediente mais rico do que, de acordo com sua essência, seria ne­
cessário. A subdeterminação da subjetividade provoca uma super-
determinação da relação entre sujeito e sujeito. Pois agora temos
dois sujeitos —mas esses dois sujeitos se acham inicialmente de
uma tal maneira que nenhuma comunicação é possível - e o pro­
blema se volta então para o modo como esses dois sujeitos parciais
podem se encontrar.
O sujeito que acreditamos ter com segurança é o próprio eu, o
sujeito-eu que certamente não é estabelecido como único em seu
estar sozinho; o outro se torna, por isso, o sujeito-tu, ao qual falta
igualmente aquela determinação, ou seja, um segundo eu. Assim,
coloca-se a pergunta acerca de como um primeiro eu pode chegar
a um segundo eu e acerca de como pode surgir um um-com-o-ou-
tro a partir da reunião desses dois “eus”. Quando esses dois “eus”
estão juntos, abre-se um espaço para que eles possam debater como
é que podem se comportar em relação a uma coisa comum lá fora.
Em seu ponto de partida, o problema do um-com-o-outro se torna
o problema da relação-eu-tu e o modo de constituição dessa rela­
ção é designado como empatia; essa empatia é a porta por meio da
qual um sujeito que se encontra fechado em uma couraça passa de
certo modo para o outro lado.
Mas, na medida em que o um-com-o-outro como problema per­
manece reduzido ao denominador comum da “empatia” - como
quer que essa empatia seja concebida —, não se conquista a inte-
lecção decisiva de que o um-com-o-outro já pertence à essência do
ser-aí como tal, de modo que esse ser-aí como tal também já é um
ser junto a...
Ser-aí é ser-um-com-o-outro junto a... E, assim, se o um-com-o-
outro é tomado como algo pertencente à essência de cada ser-aí,
então isso não significa que não há mais nenhum problema. Ao
contrário, mostramos, sim, como justamente agora precisa ser co­
locada a pergunta acerca da possibilidade interna do um-com-o-
150 Introdução à filosofia

outro, e como essa pergunta encontra sua resposta na elucidação


do ser-aí como tal.
Já mostramos ao menos em um aspecto como cada ser-aí é por
si mesmo um ser-com. E é somente porquanto cada ser-aí como
tal é por si mesmo um ser-com, um um-com-o-outro, que a comu­
nidade e a sociedade humanas, em suas diversas variações, está­
gios e graus de autenticidade e inautenticidade, duração e fugaci­
dade, são possíveis.
Mas algum dos senhores talvez venha a me dizer: será que o ser
junto a... não possui nenhuma primazia? E se é assim: como é pos­
sível destacar desse ser junto a... o co-ser-aí como o a priori do que
é compreendido no ser-com? Nunca se consegue mostrar senão
como um outro é onticamente conhecido como tal. Todavia, mes­
mo no que concerne a essa possibilidade, o caminho husserliano é
impraticável. Em primeiro lugar, porque Husserl ainda permanece
exilado em uma esfera egológica pensada de maneira idealista e
obscura; e, em segundo lugar, porque ele está orientado para a
apreensão pura das coisas e dos dados, e não para as relações exis­
tenciais concretas.
Se tomarmos o ser junto a... de maneira totalmente ampla como
ser junto ao “outro”, junto a um ente indiferente que nós mesmos
não somos, então justamente essa indiferença não aponta para a
indeterminação do espaço vazio, mas para a indeterminação do es­
paço cheio; já se inclui nesse caso o projeto que reside no ser-com.
E fácil comprovar a primazia do ser-com se tivermos em vista a re­
lação fática segundo a qual o “primitivo” toma o “outro”, e também
as coisas, de maneira personificada e viva.

§ 19. A monadologia de Leibniz e a interpretação


do ser-um-com-o-outro

O problema do ser-um-com-o-outro não é primordialmente


uma questão da relação entre sujeitos, mas, antes de tudo, um pro­
blema que pertence à determinação essencial do sujeito como tal.
Filosofia e ciência 151

Fatos do ser-um-com-o-outro sempre foram conhecidos. Aristóte­


les mesmo já falava do homem como Çròov jroXirtiKÓv, como um ser
vivo que pode ser em comunidade. Somente porque o homem se
constitui como um tal ser, ele pode ser também um animal de re­
banho, como Nietzsche costuma dizer. Portanto, esse problema da
comunidade tem sido reiteradamente tratado na filosofia, especial­
mente no âmbito da Ética. Entretanto, ele não tinha sido coloca­
do como problema da metafísica do ser-aí.
A relação de troca entre os sujeitos só foi colocada em questão
pela primeira vez por Leibniz em sua Monadologia2 —e mesmo as­
sim apenas de modo indireto. Esse questionamento é efetuado de
modo indireto porque mesmo nesse caso o que está inicialmente
em jogo é a determinação do conceito de sujeito no sentido tradi­
cional, a determinação do conceito de sujeito como sujeito par­
cial3, mas certamente em um aprofundamento e em uma amplia­
ção essenciais. Em conseqüência dessa interpretação monadológi-
ca do sujeito, Leibniz acede a uma determinada concepção sobre
o intercâmbio possível entre os sujeitos, sobre a sua relação entre
si. O um-com-o-outro entre os homens é um caso de relação entre as
substâncias em geral.
Aqui podemos examinar somente de maneira sucinta a M ona­
dologia lcibniziana. Nosso exame visa apenas realçar, em contrapo­
sição a ela, a mencionada interpretação do ser-aí e do ser-um-com-
o-outro e assim, por meio da comparação, elucidar resumidamen­
te o que foi dito. Com certeza, também se poderia mostrar como a
Monadologia só revela a riqueza e a profundidade de sua concep-

2 Com relação à Monadologia de Leibniz e à interpretação do ser-um-com-o-


outro, cf. a Preleção Logik do semestre de verão de 1928, nas páginas 25-35 do
manuscrito (Martin Heidegger, Metaphysische Anfangsgründe der Logik im Ausgang
von Leibniz. Preleção de Marburg, semestre de verão de 1928. Obra completa,
vol. 26, organizado por Klaus Held. Frankfurt a. M. 1978; 2? ed. revista, 1990,
p p . 8 6 -1 2 2 ) .
1 Traduzido ao pé da letra, o termo alemão Rumpfsubjekt significa um sujeito-
tronco, um sujeito reduzido a apenas uma parte de si mesmo. Exatamente por isso,
optamos pela expressão “sujeito parcial”. (N. do T.)
152 Introdução à filosofia

ção quando se busca apreendê-la a partir do conceito tradicional


de sujeito que o próprio Leibniz não superou por meio de tal Mo-
nadologia, um conceito, aliás, que ele inclusive pressupôs ao ela­
borá-la. Abstraindo-se disso, porém, dentro da filosofia, a mônada
leibniziana se mostra como uma das idéias mais ousadas que ga­
nharam corpo desde Platão.
Leibniz designa as substâncias como mônadas —em grego mo­
nas = unidade: como unidades. Unidade significa: simplicidade, o
originário, o determinante do todo, singularidade; t ó ô e t i , a oúaía
de Aristóteles, ev - ov - oúaía, cf. Metafísica, T2, 1003b 23/b 32.
Segundo a antiga doutrina de Platão e Aristóteles, todo ente como
ente é, a cada vez, um; ele é constituído por uma unidade totalmen­
te específica. De acordo com Leibniz, é nessa unidade específica
de cada ente que está fundado propriamente o seu ser. Para Leib­
niz, monas é aquilo que originariamente confere unidade, o elemen­
to simples que dá unidade e, como unificador, singulariza. Por isso,
ele designa como mônada todo ente que é, por si, em vista dessa
determinação primária da unidade: a unidade que, sendo de ante­
mão e de maneira simplesmente unificadora, singulariza.
Portanto, o problema das mônadas não é outra coisa senão uma
retomada do problema da substancialidade da substância ou, como
também podemos dizer, da subjetividade do sujeito; pois sujeito
significa em Leibniz, tal como no fundo também em Kant, subiec-
tum, aquilo que se encontra à base, újioiceípEvov, aquilo que é a
partir de si. De acordo com Leibniz, todas as mônadas, todas as
substâncias —mesmo as substâncias corpóreas —, ou seja, todas
as partículas elementares de um corpo, são animadas.
Dizer que a mônada é animada significa: a monas possui vis, ím­
peto, nisus; appetitus, repraesentatio. Ela é fundamentalmente uni­
ficadora, ela confere e mantém de antemão a unidade daquilo que
ela representa. Toda mônada sempre espelha, uma de cada vez, o
todo do ente. No entanto, cada uma sempre produz esse espelha-
mento a partir de um ponto de vista diferente que possui um grau
de verdade diverso. Há mônadas opacas, crepusculares, dormitan-
Filosofia e ciência 153

tes que constituem o elemento corpóreo como tal. A partir dessas


mônadas há uma espécie de gradação até a mônada central, até
Deus - pensado no sentido da teologia cristã. A partir daí se com­
preende por que Leibniz designa toda mônada como um speculum
vitale, como um espelho vivo.
Em meio ao ímpeto mesmo, em meio ao que é e ao modo como
é, a mônada sempre constrói para si a cada vez uma visão do todo,
uma visão que observa a partir de um determinado ponto de vista.
Na medida em que representa por si mesma, o todo a partir de um
determinado ponto de vista, cada mônada é, em certa medida, o
universum. Por essa razão, Leibniz designa a mônada mundus con-
centratus.
Toda mônada singulariza como tal a si mesma; toda mônada é a
cada vez por si, na medida em que “forma” o todo. Mesmo os se-
res-aí, mesmo os homens são tomados como mônadas. Formando
a si mesmas, as mônadas não carecem de recepção, sua essência
não inclui nenhuma receptividade oriunda de fora. Mônadas não
têm janelas porque não precisam de nenhuma janela; não preci­
sam de nenhuma janela porque têm tudo em si, porque são pura e
simplesmente fechadas, porque não são abertas. Não carecem de
nenhum intercâmbio, de nenhuma relação com os outros. Ao con­
trário, o todo sempre está, a cada vez, em todas, e todas são entia
criata por meio do todo no sentido da mônada suprema. Em con­
trapartida, a empatia dá uma janela às mônadas, ou melhor, a em­
pada mesma é, por assim dizer, a janela.
Em contraposição a isso, nossa interpretação segue Leibniz: a
mônada, o ser-aí não tem janelas porque não precisa de nenhuma
janela. Todavia, a nossa fundamentação é diversa: os homens não
precisam de nenhuma janela, não porque não precisem ir para
fora, mas porque já estão essencialmente fora. No entanto, essa
fundamentação é um indício de uma determinação totalmente di­
versa da essência do sujeito. Não se trata de completar o ponto de
partida monadológico e melhorá-lo por meio da noção de empatia,
mas sim de radicalizá-lo.
154 Introdução à filosofia

§ 20. A co m u n id a d e sobre a base do u m -com -o-o u tro

A comunidade só se torna possível sobre a base do um-com-o-


outro e não o contrário. Ou seja: não é a comunidade de “eus” o
que primeiro constitui o um-com-o-outro. Entretanto, falar em
“constituição” do um-com-o-outro é algo ambíguo, uma vez que o
próprio conceito de constituição facilmente se torna ambíguo: a)
se esse conceito quer dizer, como no caso do neokantismo, cons­
trução no sentido de deixar-surgir a partir de elementos simples,
certamente não psicológicos, então esse conceito não tem aqui o
mínimo sentido; b) contudo, se o conceito de constituição designa
a comprovação da estrutura essencial em si sempre integral e não
fragmentada, então ele é um conceito justificado em nosso contex­
to, que, com certeza, precisa ser fundamentado em termos meto­
dológicos. O um-com-o-outro não pode ser deduzido como algo
elementar, mas precisa ser, sem dúvida alguma, aclarado em vista
dos elementos essenciais que lhe são pertinentes e são todos co-
originários. No interior dessa consistência essencial que pertence
a todo ser-aí singular não sobra nenhum lugar para a empatia. Pois,
se essa expressão ainda possuir algum sentido, então ela só o terá
sob a pressuposição de que precisamente o “eu” pode estar de iní­
cio em sua esfera “egóica” e passar a partir daí para o interior dos
outros e de sua esfera. O “eu” nem começa saindo de si (saindo de
sua janela), porque já está fora, nem irrompe em meio aos outros,
porque já está fora com os outros. Como se mostrará, ele é justa­
mente a i em um sentido autêntico.
Portanto, o um-com-o-outro não deve ser explicado por meio da
relação eu-tu e a partir dela. Ao contrário, é essa relação eu-tu que
antes pressupõe para a sua possibilidade interna o fato de o ser-aí
—tanto o ser-aí que se mostra como eu, quanto o que se mostra
como tu - já ser sempre a cada vez determinado como ser-um-
com-o-outro; sim, mais ainda: mesmo a auto-apreensão de um eu
e o conceito de egocidade só surgem com base no um-com-o-ou-
tro, mas não como relação eu-tu.
Filosofia e ciência 155

Assim como é um erro fazer com que o um-com-o-outro aflore


apenas de um eu parcial, é também um erro acreditar que a rela­
ção eu-tu seja a base a partir da qual o ser-aí como tal deva ser de­
terminado. Mas se, em vez de um ponto de partida egoísta e solip-
sista, optamos por uma posição altruísta - então o erro é, nesse
caso, apenas duplicado e passamos a dispor de um solipsismo num
grupo binário. Igualmente errôneo é considerar o um-com-o-outro
como princípio único.
Em sua essência, o ente que nós mesmos respectivamente so­
mos, o homem, é um neutro. Denominamos esse ente: o ser-aí4.
Todavia, faz parte da essência desse ente neutro o fato de ele, con­
tanto que exista, a cada vez, de maneira fática, necessariamente
romper a sua neutralidade. Ou seja: como um ente fático, o ser-aí
sempre é, a cada vez, masculino ou feminino, ou seja, ele é um ser
sexuado; esse fato encerra em si um um-com-o-outro e um um-
em-relação-ao-outro totalmente determinados. Os limites e a am­
plitude da atuação desse caráter sempre são a cada vez faticamen-
te diversos; não se pode aqui senão mostrar que possibilidades da
existência humana não são determinadas pela relação de sexos ou
pela relação de gêneros1. Por si só, justamente essa relação de se­
xos (relação de gêneros) só é possível porque o ser-aí já é determi­
nado em sua neutralidade metafísica pelo um-com-o-outro. Se todo
e qualquer ser-aí, sendo sempre a cada vez faticamente masculino
ou feminino, já não estivesse um-com-o-outro segundo sua essên­
cia, então essa relação de sexos ou essa relação de gêneros perma­
neceria puramente impossível como relação humana.

4 Heidegger vale-se aqui do fato de o substantivo Dasein em alemão ser do gê­


nero neutro, isto é, não ser nem masculino nem feminino. (N. do T.)
4 Heidegger joga aqui com uma ambiguidade constitutiva do termo alemão
Geschlecht. Esse termo designa em alemão tanto sexo quanto gênero. Para acompa­
nhar essa ambiguidade do termo alemão, traduzimos acima a expressão Geschlechts­
verhältnis por "relação de sexos ou relação de gêneros”. Com isso, o “ou” é para ser
entendido nesse contexto como uma explicitação e não como uma disjunção. Jacques
Derrida discutiu minuciosamente as reticências heideggerianas presentes no texto
acima em seu excelente De L'es-prit. Heidegger et la question que em português re­
cebeu o título Da questão. (N. do T.)
156 Introdução à filosofia

Por isso, o contra-senso mais tosco que se pode imaginar é


tentar explicar inversamente o um-com-o-outro como determina­
ção essencial do ser-aí a partir da relação de sexos ou a partir da
relação de gêneros. Em sua cega e insuficiente oposição ao idea­
lismo alemão, Ludwig Feuerbach levou esse erro a termo. Hoje
se tenta renová-lo. No entanto, ele não passa a ser verdade por­
que procuramos tornar mais palatáveis os materialismos toscos
de Feuerbach com o auxílio da fenomenologia atual. A tese fun­
damental da antropologia feuerbachiana, de sua doutrina do ho­
mem, é a seguinte: o homem é aquilo que come6. Essa tese tem
algo de correto. Contudo, sempre que algo semiverdadeiro é de­
clarado um princípio universal, o resultado não é outro senão
confusão.
À essência do homem pertence essa neutralidade rompida de
sua essência. Todavia, isso significa que essa essência só pode ser
problematizada primariamente a partir dessa neutralidade e so­
mente com relação a essa neutralidade é possível a quebra da neu­
tralidade mesma. Nesse problema, a questão do sexo ou do gêne­
ro é apenas um momento e, com efeito, não o momento primário
(o estar-jogado). Na medida em que o ser-aí existe agora como ser-
aí corpóreo, a apreensão fática do outro por um ser-aí e de um ser-
aí pelo outro se acha submetida a condições determinadas. As re­
lações corporalmente co-condicionadas de apreensão mútua entre
os seres-aí não constituem, porém, o um-com-o-outro, mas o pres­
supõem e são, por sua vez, determinadas por ele.
Para deixar claro desde o começo que o um-com-o-outro nem
chega a termo primariamente por meio do caminho que leva para
além de um eu individualizado, nem pode ser esclarecido a partir
da relação eu-tu, a análise foi iniciada no ser junto a um ente por
si subsistente. Mas, se o ser junto a... é um momento essencial do
um-com-o-outro, então o ser junto a... também precisa continuar

6 A sentença acima contém uma homofonia entre os verbos ser e comer em ale­
mão que não tem como ser traduzida de maneira similar para o português: Der
Mensch ist, was er isst. (N. do T.)
Filosofia e ciência 157

sendo determinante para as diversas possibilidades fáticas do ura-


com-o-outro, ou, a título de exemplo, da comunidade.
Sabemos de sobra que uma amizade grande e autêntica não tem
surgimento nem consiste no fato de um eu e um tu se vislumbra­
rem mútua e sentimentalmente em sua relação eu-tu, alimentan­
do-se das penúrias banais de suas almas, mas cresce e se mantém
firme a partir de uma paixão autêntica por uma coisa em comum,
o que não exclui, mas antes talvez exija, que cada um tenha sem­
pre a sua obra diversa e siga diferentes caminhos até a obra. Lem­
bremos apenas da amizade entre Goethe e Schiller.
Por outro lado, não é decisivo o que cada um faz, mas como o
faz. No entanto, ele só pode existir em um “como” determinado se
apreendeu um certo “quê” que deve prevalecer sobre o “como”. To­
davia, o ser junto ao que é comum é sempre essencial para o um-
com-o-outro.
Certamente não se exaure com isso a interpretação da essência
do ser-um-com-o-outro; já se explicitou em que direção essa inter­
pretação precisa ser elaborada e, assim, ela ainda nos ocupará. O
ente qua homem é um ente tal que traz consigo o seu “aí”, a ma­
nifestação no interior da qual pela primeira vez o ser-aí pode se
comportar expressamente em relação a si mesmo e ser ele mesmo
de diversas maneiras. Si próprio e eu não são termos equivalentes.
Esse ser si próprio do ser-aí, porém, não chega uma vez mais a ter­
mo prímeiramente por meio de uma reflexão sobre si; o emergir ir-
reflexivo junto a algo também é um ser si próprio. A partir daí fica
claro que o ser-aí sempre já é co-originariamente um ser junto a...,
um ser-com e um ser si próprio. Resta a pergunta pela unidade
dessas e de ainda outras determinações essenciais.
No tocante às nossas próximas intenções, deve bastar o fato de,
por meio da interpretação preliminar do um-com-o-outro, sempre
orientada para o todo, termos elucidado o modo de ser do ser-em-
conjunto que ocorre entre seres-aí em contraposição ao subsis-
tir-conjuntamente-por-si de duas coisas. Ser-aí e ente por si sub­
sistente são as duas formas extremas de ser.
158 Introdução à filosofia

Prescindimos completamente da pergunta acerca de essência


da “vida”, da “animalidade” e do ser vegetal. Se formos totalmen­
te sinceros, então precisaremos confessar que não sabemos hoje
nem mesmo como devemos colocar essa pergunta, e muito menos
a resposta7.

7 Heidegger tematiza justamente a essência da vida, da animalidade e das plan­


tas na segunda parte de sua preleção do semestre de inverno de 1929-1930: Os
conceitos fundamentais da metafísica: mundo -finitude - solidão. Essa preleção foi
apresentada no semestre seguinte à presente preleção. (N. do T.)
QUINTO CAPÍTULO

O âm bito essen cial da verdade e a e ssên cia da ciên cia

§21. Resumo de nossa interpretação da verdade

Precisamos esclarecer a diferença entre o modo de ser do ser­


ai e do ente por si subsistente para mostrar que, de maneira equi­
valente à diversidade do modo de ser, a correspondente verdade
sobre o ente em questão também é diversa. Inquirimos a essência
da verdade a fim de responder à pergunta: o que é ciência? E o
que curiosamente obtivemos foi o seguinte: ao respondermos à
primeira pergunta, estávamos ao mesmo tempo respondendo à se­
gunda. Em relação à correlação entre verdade e ente (representa­
do aqui por meio do ser-aí e do ente por si subsistente), encontra­
mos uma série de intelecções essenciais que abriram, ao mesmo
tempo, o espaço para uma primeira visualização da essência da
verdade em geral.
Podemos sintetizar o que foi visto até aqui em oito teses1:
1. A verdade está de tal modo correlacionada ao ente por si sub­
sistente que ela pode, mas não precisa advir a esse ente. No en­
tanto, a verdade não pertence, em hipótese alguma, à consistência
essencial do ente por si subsistente. Todavia, denominamos desco­
berta ao desvelamento do ente que possui o modo de ser do ente
por si subsistente.
2. Se o ente por si subsistente é desvelado, ou seja, se a desco­
berta existe faticamente, então isso só acontece porque um ser-aí

1 De antemão, lembremos mais uma vez: verdade é desvelamento, manifestação


do ente, qualquer que seja o seu modo de ser.
160 Introdução à filosofia

descobridor existe, isto é, um ente a cuja constituição ontológica


pertence o ser descerrado, ou seja, o ser-um-aí. O ser-aí é um ente
que é desvelado a partir de si mesmo. Denominamos descerra-
mento a esse desvelamento do ser-aí.
3. Resultam, assim, dois modos fundamentais de desvelamento
do ente: verdade como descerramento e verdade como descober­
ta. Esses dois modos também estão correlacionados ao ente em si
manifesto de maneira totalmente diversa.
4. Essa diversidade da correlação da verdade com o ser-aí e o
ente por si subsistente remonta ao fato de que também a verdade
do ente por si subsistente, a descoberta, se funda no descerramen­
to que, por sua vez, pertence à constituição ontológica do ser-aí. A
descoberta do ente por si subsistente só é possível junto com um
ser-aí, isto é, enquanto pertencente ao descerramento de um ser-aí.
5. Mas, como o ser-aí é essencialmente descerrado, o caráter de
conjunto próprio aos seres-aí sempre aponta, a cada vez, para um
ser-um-com-o-outro. O ser-aí é qua ser-aí e é essencialmente ser-
com junto a.... Somente com base nesse “com” de cada ser-aí sin­
gular são possíveis os diversos modos do um-em-relação-ao-outro,
um-pelo-outro, um-contra-o-outro e um-sem-o-outro.
6. No entanto, como a descoberta é sempre essencialmente
descerrada, e só assim pode ser o que é, o desvelamento do ente
por si subsistente é algo que o ser-aí necessariamente sempre já
passou adiante. A descoberta é compartilhada na abertura do ser-
aí, mesmo quando não há nenhum participante faticamente pre­
sente.
Mediante a interpretação da verdade reunida nessas seis teses,
já estamos em condições de determinar a essência da verdade de
modo mais tundamental, mesmo que ainda não de maneira sufi­
cientemente completa e universal. Formulamos essas determina­
ções em duas outras teses:
7. O ser-aí é essencialmente na verdade (cf. pp. 218 s.).
8. A verdade existe, isto é, seu modo de ser é a existência e esse
é o modo no qual algo assim como o ser-aí é.
Filosofia e ciência 161

As duas teses estão inter-relacionadas da maneira mais íntima


possível, mas não significam a mesma coisa. De início, só as expli­
citaremos até o ponto necessário para o que constitui o nosso pró­
ximo intento, a saber, a determinação essencial da ciência.
Ad 7. A sentença pode significar inicialmente: o ser-aí está de
posse da verdade, de posse dos primeiros e últimos conhecimen­
tos decisivos. Mas não é isso que se tem em vista. A tese não pre­
tende dizer nada sobre que verdades o ser-aí possui faticamente,
mas sim sobre o fato de a constituição ontológica do ser-aí ser o lu­
gar da essência da verdade. A verdade não significa aqui o decisi­
vamente verdadeiro nem todo o verdadeiro junto, mas quer dizer
tanto quanto a essência da verdade qua desvelamento. A afirmação
de que o ser-aí é o lugar da verdade significa: o ser-aí mantém-se
como tal em meio ao desvelamento do ente. A esse ente perten­
cem no mínimo o ente por si subsistente, o ente que está à mão,
o outro ser-aí e o ser-aí de cada um como próprio. Irrupção do aí,
desvelamento do ente pertencem à essência do ser desse ente.
Com essa sentença, porém, ainda não está dito de que maneira
é propriamente apreendido, ou mesmo apenas diferenciado e cin­
dido2, esse ente que é manifesto essencialmente com a existência
do ser-aí. Desse modo, o fato de essa sentença ser um enunciado
essencial não é suficiente para decidir nada em relação a quais são
as verdades determinadas que se conquistam, a em que medida,
com que justificativa e por meio de que intelecção elas são con­
quistadas.
Nessa ocasião podemos tomar rapidamente nota da ambigüida-
de que reside no conceito de “verdade” e freqüentemente induz as
discussões ao erro. Em primeiro lugar, a verdade pode significar: a
verdade sobre algo, isto é, uma verdade, o verdadeiro sobre esse

2 Nessa passagem, Heidegger se vale do fato de o verbo alemão unterscheiden


(diferenciar) se mostrar como um derivado de scheiden (cindir). Traduzida ao pé
da letra, a palavra “diferença” aponta para uma "subcisão”. A idéia expressa na pa­
lavra é a de que a diferença produz ao mesmo tempo um afastamento disso de que
ela se difere. (N. do T.)
162 Introdução à filosofia

algo. Em segundo lugar, a verdade também pode significar: tudo o


que há no verdadeiro, a totalidade do verdadeiro. Toma-se a pala­
vra nessa significação quando se diz: Deus é a fonte de toda ver­
dade. Em terceiro lugar, a verdade significa a essência do verdadei­
ro como verdadeiro. Usamos a palavra nesse terceiro sentido ao di­
zermos que, segundo sua essência, o ser-aí é na verdade.
Além disso, contudo, a sentença poderia significar: o ser-aí é na
verdade e, por conseguinte, é fora do erro. Essa interpretação da
sentença também não condiz com aquilo a que ela visa. A senten­
ça não diz nem que o ser-aí é faticamente fora do erro, nem mes­
mo que, segundo sua essência, o ser-aí não pode errar. Ao contrá­
rio, a sentença expressa pela primeira vez justamente a condição
de possibilidade do erro e da não-verdade. Pois algo só pode perma­
necer velado para um ente que se mantém por si mesmo no des-
velamento.
Mas velamento como contrafenómeno em relação ao desvela-
mento qua verdade não é, por sua vez, necessariamente não-verda­
de qua erro. Exatamente por isso, precisamos fixar um conceito es­
sencial de não-verdade, segundo o qual a não-verdade qua vela­
mento significa tanto quanto não-desvelamento. Em contraposi­
ção a esse conceito genérico de não-verdade, é importante agora
determinar o conceito específico de não-verdade no sentido de fal­
sidade, erro, mentira e embuste. Pois, em sua significação habi­
tual, não-verdade não quer dizer apenas a falta de desvelamento,
isto é, velamento. Não-verdade é aí muito mais um desvelamento
deficiente, isto é, um desvelamento que se faz passar e é tomado
por desvelamento de algo, mas não é nenhum desvelamento pro­
priamente dito. A não-verdade nesse sentido mais estrito apresen­
ta-se sempre juntamente com a pretensão de verdade como desve­
lamento e nisso reside sua aparência. No entanto, mesmo essa
não-verdade não é, por sua vez, necessariamente uma mentira, ou
seja, a não-verdade não precisa ser comunicada como tal, não pre­
cisa vir à tona com o intuito de iludir e ser comunicada em contra­
posição a um saber melhor. A mentira, por sua vez, também não é
Filosofia e ciência 163

equivalente ao embuste. Todavia, justamente essa possibilidade do


não-ser-verdadeiro deixa claro em que medida o embuste como
um ocultar específico pressupõe necessariamente manifestação,
desvelamento. Pois o embusteiro não oculta pura e simplesmente,
ele não apenas omite a verdade dos outros; tampouco conduz ape­
nas faticamente para o que não é verdadeiro. Ao contrário, esfor­
ça-se para se passar por alguém que traz consigo a verdade, mani-
festa-se como tal.
Todos esses fenômenos, diversos entre si, da não-verdade, fenô­
menos tais como a falsidade, o erro, a ilusão, a mentira e o embus­
te, só são possíveis porque o ser-aí em geral traz consigo no ser do
aí manifestação; e isso significa: ele é na verdade. Mas, se advêm
agora ao ser-aí humano possibilidades diversas de existência, então
o modo como o ser-aí é na verdade também precisa ser co-deter-
minado a partir de cada existência respectiva. Se o ser-aí existe, ele
é como tal na verdade, no desvelamento; necessariamente, ele é na
verdade e na não-verdade ao mesmo tempo. Ele sempre se movi­
menta faticamente em uma livre opção entre duas coisas. O ente
já se tornou manifesto e já se tornou respectivamente manifesto na
totalidade, por mais estreita que seja a esfera em que isso venha a
ocorrer e por mais manifestamente rudimentar e desarticulado que
seja o modo das determinações.
Ad 8. A verdade existe. A verdade mesma tem, com isso, o modo
de ser do ser-aí; na medida em que o ser-aí é determinado como
existência, precisamos dizer: o desvelamento só pode ser o que ele
é enquanto existente. Ora, mas a verdade não está nas proposi­
ções, nas proposições que possuem validade;5 Desde Lotze se diz
que proposições verdadeiras possuem validade, independente­
mente daquele que as reconhece. Verdades são algo em si. Há en­
tes em si e verdades em si; ou, quando se nega os entes em si, en­
tão essas (verdades em si) passam a valer como um substitutivo,
apesar de permanecer obscuro de onde elas obtêm essa validade.
Proposições verdadeiras são válidas, mas isso não quer dizer que a
verdade seja determinada pela validade. O que se tem é muito
164 Introdução à filosofia

mais o inverso: já que proposições não são originariamente verda­


deiras, a “validade” também não é o modo de ser originário da ver­
dade. A verdade não vale primária e meramente, ela existe. Somen­
te porque a verdade qua manifestação (descerramento) do ser-aí
existe sob o modo de ser desse ente, sim, somente porque ela co-
perfaz a existência, somente por isso enunciados sobre os entes
podem ser também verdadeiros, e somente por isso uma vez mais
proposições verdadeiras podem ser válidas. Falar de proposições
verdadeiras e de validade em si é algo sem sentido e superficial. Se
não existe nenhum ser-aí, também não há nenhuma verdade e, por
conseguinte, também não a não-verdade. Nesse caso, reina a noi­
te absoluta na qual, como Hegel diz, todos os gatos são pardos;
sim, visto de modo mais preciso, nem mesmo isso é possível.
No entanto, se a verdade se encontra em conexão e coincide
mesmo com a existência do ser-aí humano em geral e se, além dis­
so —segundo a tese de número 7 —, o modo como a verdade se tor­
na existente é sempre, a cada vez, co-determinado pelo ser-aí, en­
tão não seria a verdade um mero assunto do homem, independen­
temente do fato de se poder tomar o seu ser qua sujeito ou como
ser-aí? Nesse caso, o homem não se torna a medida de todas as
coisas? Pois a tese de que a “verdade existe”, de que ela “tem o
modo de ser do homem” parece ser equivalente a uma sentença já
proferida pelo sofista Protágoras. Platão relata-nos essa sentença
em seu diálogo Teeteto (152a), na medida em que abre espaço para
Sócrates dizer: (pqai yáp nov jtávtíov xpripátrov pétpov avflpawcov
eivai, Tròv pèv óvtcov coç eoxt, tròv ôè pq ovtgov coç ouk ecrov3. “Diz
Protágoras: o homem é a medida de todas as coisas, das que são
do fato de que são, das que não são do fato de que não são.”4

’ Platonis opera. Recognovit brevique adnotatione critica instruxit Ioannes Bumet.


Oxonii e typographeo Clarendoniano 1899 sqq. Tomus I.
4 A tradução heideggeriana da sentença protagórica citada por Platão traz con­
sigo uma peculiaridade específica. Usualmente traduz-se oÕ)ç presente na senten­
ça acima por "como” ou “enquanto”. Nesse caso, a sentença é entendida da se­
guinte forma: “O homem é a medida de todas as coisas, das que são como (en­
quanto) são, das que não são como (enquanto) não são.” No entanto, (Qç também
Filosofia e ciência 165

O homem como a medida do que as coisas são e do modo como


elas são: não se entrega com isso a verdade ao arbítrio e ao gosto
dos homens? Essa conclusão tirada pelos gregos não atinge justa­
mente a nossa interpretação da verdade, uma vez que nos orienta­
mos efetivamente pela significação originária dessa palavra antiga?
Por si só, o sentido corretamente compreendido de verdade qua
desvelamento já aniquila essas dúvidas. Pois o fato de o ser-aí “ser”
essencialmente no desvelamento não significa outra coisa senão:
ele só pode ser na medida em que se relaciona com o ente que se
anuncia no desvelamento. Precisamente porque o ser-aí é na ver­
dade, isto é, precisamente porque ele é junto ao ente e em relação
com o ente manifesto, por isso e somente por isso é possível e ne­
cessária uma vinculação ao ente.
Além disso, mencionamos logo na introdução desse conceito
de verdade que os próprios gregos não conseguiram fixar e elabo­
rar em seu conteúdo essencial a intelecção fundamental que se
manifesta na construção da palavra àA-fi-dÊia. A aludida sentença
protagórica é antes um exemplo incisivo do modo como a orienta­
ção pelas faculdades fisiológicas e psicológicas do homem se in­
terpôs na interpretação da verdade. Isso significa em princípio: os
gregos não conseguiram —apesar das grandes intelecções de Pla­
tão e Aristóteles - clarificar a essência da verdade de uma manei­
ra ampla o suficiente para que essa essência clarificada da verda­
de levasse justamente a determinar a partir dela o conceito de ho­
mem e o conceito de essência humana de modo adequado. Con­
forme mostramos, a interpretação da essência da verdade trilha,
inversamente, o caminho de uma explicação psicológica em sen­
tido lato.
As teses de que “o ser-aí é na verdade” e de que a “verdade exis­
te” não designam uma má relativização da verdade em relação ao
homem. Ao contrário, elas colocam o homem, segundo sua essên-

pode ser traduzido pela conjunção integrante “que". Nesse contexto, ele indica o
fato de ser. Exatamente essa é a opção utilizada por Heidegger. O homem é a me­
dida do fato de que as coisas são e do fato de que elas não são. (N. do T.)
166 Introdução à filosofia

cia, diante do ente; e de um tal modo que ele —como ente essen­
cialmente descerrado - pode se guiar pela primeira vez pelo que
necessariamente se tornou manifesto com o descerramento de seu
aí. Somente se o ser-aí como um ente descerradamente descobri­
dor puder se guiar pelo ente, ele poderá construir adequadamente
enunciados sobre o ente. A partir dessa clarificação da essência
originária da verdade, fica evidente algo que é originariamente dis­
tinto dessa construção de enunciados: o descerramento do aí —as­
sim como fica evidente que e como a verdade enunciativa se fun­
da nesse descerramento. O enunciado sobre... é viabilizado pelo
ser junto ao ente por si subsistente, descobridor do ente por si sub­
sistente, pelo ser-aí descerrado como um ente enunciador. A per­
tinência essencial da verdade qua desvelamento ao ser-aí garante
uma possível objetividade da verdade. Não há dúvida de que há
uma relatividade da verdade e, com efeito, uma relatividade mui­
to essencial. Todavia, essa relatividade não coloca em risco a obje­
tividade, mas, ao contrário, viabiliza justamente a riqueza e a mul­
tiplicidade da verdade objetiva.
Somente porque é essencialmente na verdade, o ser-aí pode
construir enunciados sobre os entes. O lugar da verdade não é a
proposição, mas ao contrário: a proposição tem seu lugar, sua pos­
sibilidade interna na “verdade” qua desvelamento do aí. Não é a
proposição que é o lugar da verdade, mas sim a verdade que é o lu­
gar da proposição. O “lugar” é aquilo por meio do que a possibili­
dade interna de algo é determinada. Daí resulta a recondução do
conceito tradicional de verdade, de verdade proposicional, ao des­
velamento originário do ser-aí que denominamos sinteticamente o
descerramento.
Teremos a comprovação de que as coisas se dão dessa forma se
e na medida em que conseguirmos delimitar o conceito de ciência
a partir da determinação essencial da verdade que conquistamos.
Essa interpretação da essência da ciência precisa se dar de um
modo tal que ela nos auxilie a compreender realmente as questões
obscuras que se escondem em meio à crise da ciência tal como a
Filosofia e ciência 167

caracterizamos no início deste curso: as questões que dizem res­


peito justamente à relação possível da ciência com a existência do
homem, do indivíduo e da comunidade cultural histórica.

§ 22. A determinação da essência da ciência a partir


do conceito originário de verdade

Partimos da definição dominante de ciência. Segundo essa defi­


nição, a ciência se mostra como um contexto de fundamentação de
proposições verdadeiras que possuem validade, um contexto de ver­
dades na medida justamente em que a verdade é equivalente a uma
proposição verdadeira. Ciência é um tipo de verdade. Retivemos
essa caracterização, mas o fizemos de um modo tal que pergunta­
mos o que a verdade mesma significaria e se a verdade seria prima­
riamente verdade proposicional. Em função disso veio à tona o se­
guinte: a essência da verdade é o desvelamento do ente e esse des-
velamento pertence à existência do ser-aí. Somente porque a verda­
de em sentido originário é desvelamento do ser-aí, ela também
pode se tornar, em sentido derivado, uma determinação do enun­
ciado sobre o ente; e esses enunciados são levados a termo pelo ser-
aí em seu ser junto ao ente, em relação ao ente e com o ente.
Assim, em uma reflexão puramente antecipativa, o resultado
inicial que se mostra é o seguinte: se a ciência em geral é de algu­
ma maneira um tipo de verdade e se, contudo, a verdade como
desvelamento pertence à constituição ontológica do ser-aí existen­
te, então a ciência é, em sentido originário, algo que necessaria­
mente pertence à existência do ser-aí. Isso quer dizer: a ciência
não está ligada ao ser-aí humano apenas de modo incidental e ul­
terior, tampouco é produzida pelo ser-aí humano. Ao contrário,
como um tipo de verdade, ela é uma determinação essencial do
ser-aí; não significa outra coisa senão um modo particular do ser-
na-verdade. Com isso não está dito que todo ser-aí como tal preci­
saria necessariamente impulsionar a ciência. A afirmação de que a
168 Introdução à filosofia

ciência pertence à existência do homem quer dizer: a possibilida­


de interna da ciência, e não em primeiro lugar a produção fática da
ciência, está fundada na essência da verdade como um componen­
te essencial da constituição ontológica do ser-aí. Pertence à essên­
cia dessa possibilidade interna o fato de a ciência mesma ser uma
vez mais uma possibilidade livre do ser-aí, isto é, uma possibilida­
de não pura e simplesmente necessária; pois vimos que o ser-na-
verdade é essencial e que, por meio dele, o ente já se acha mani­
festo. Verdade significa desvelamento do ser-aí e a ciência é um
tipo de verdade. Portanto, a ciência é um tipo de desvelamento do
ser-aí, ou seja, um modo da existência humana. Por meio disso se
conquista o horizonte fundamental para uma interpretação da
ciência a partir da constituição ontológica do ser-aí ou, em suma,
o horizonte fundamental para um conceito existencial de ciência.
Todavia, é a tendência incompreendida para uma tal clarificação
da idéia de ciência que no fundo provoca e permeia a crise da
ciência.
O que importa agora é elaborar o conceito existencial de ciên­
cia a fim de, por meio da elaboração desse conceito, encontrar no
interior da própria ciência um limite que permita ver concreta­
mente que, para que, a ciência seja justamente aquilo que, segun­
do sua essência, ela pode ser, já é e ainda será, ela precisa ser algo
diverso e mais originário. E esse algo diverso se revela como filo­
sofia. Portanto, como já foi acentuado aqui, não comparamos ciên­
cia e filosofia como grandezas fixas, mas, no seio da e por meio da
interpretação essencial da ciência, nos deparamos com a filosofia.
A interpretação da essência da ciência que em seguida vamos
levar a termo é certamente uma interpretação fundamental. Sim,
no que concerne à nossa intenção, ela é a interpretação mais fun­
damental possível. No entanto, isso não significa que ela é uma in­
terpretação completa em todos os aspectos. Não vamos esboçar
uma sistematização das ciências possíveis — sistematização das
ciências não consiste em uma ordenação das ciências por si sub­
sistentes, mas em uma livre construção das ciências possíveis, ou
Filosofia e ciência 169

seja, em uma livre construção das ciências que são necessárias se­
gundo sua essência —, tampouco pode estar aqui em jogo uma dis­
cussão de todas as questões concretas que se impõem em meio à
crise das ciências. Em consideração a essas questões, contudo, o
decisivo precisa vir à luz, e, com efeito, porque, com a comprova­
ção do caráter essencial da existência, intrínseco à ciência em ge­
ral, uma série de perguntas que se costumam colocar quanto à re­
lação do indivíduo com a ciência resolve-se por si mesma.

a) Ciência, um tipo de verdade?

A ciência é um tipo de verdade. A verdade, porém, pertence es­


sencialmente ao ser-aí. Esse existe na verdade; a verdade é existen­
te. A ciência como possibilidade da existência do ser-aí é uma pos­
sibilidade do ser-na-verdade. A verdade do ser-aí é desvelamento e,
com efeito, descerramento e descoberta simultaneamente. O ente
é manifesto juntamente com a existência do ser-aí. No entanto,
não um ente qualquer, mas o ente por si subsistente em um senti­
do mais amplo: a “natureza”, assim como também o ente à mão, o
ser-aí e o co-ser-aí; e todos esses entes, contudo, sempre de certa
maneira no todo. De modo fático, esse todo é determinado diver­
samente em sua totalidade; frequentemente ele é mesmo deixado
indeterminado, mas, de um modo característico, também é justa­
mente a í em meio a essa indeterminação. O próprio ente manifes­
to não é agora necessariamente diferenciado segundo os diversos
modos de ser: também aqui todos os entes manifestos são indeter­
minados e indiferentes entre si. Todavia, todo ente é assim per­
meado por esse todo que permanece ele mesmo indeterminado.
Indeterminação é uma forma própria de determinação (represen­
tação do mana).
Ademais, o ente pode estar, a cada vez, manifesto com uma am­
plitude totalmente diversa, com estágios respectivamente diversos
de clareza e distinção —e tudo isso é anterior a toda ciência. Pois,
na medida em que o ser-aí existe, o ente já é manifesto na totali-
170 Introdução à filosofia

dade. Como a ciência é apenas uma possibilidade livre e determi­


nada do ser-aí e, com efeito, uma possibilidade cuja realização se
encontra sob determinadas condições, a ciência nunca se desen­
volve senão com base em uma manifestação do ente já co-existen-
te com o ser-aí. Com isso, se falamos de uma verdade pré-científi­
ca, então não temos em vista, com essa expressão, conhecimentos
dispersos quaisquer, rudimentares e sem fundamentação rigorosa.
O “pré” presente no termo “pré-científico” tampouco designa sim­
plesmente um grau menor de verdade, como se a verdade científi­
ca fosse, sem mais nem menos, a mais elevada. Ao contrário, à luz
do conceito de verdade exposto, o termo “pré-científico” significa
que o ser-aí já é na verdade anteriormente à ciência. O ser-aí pré-
científico antecede necessariamente ao ser-aí científico e, em vez
de ser subordinado a esse, sucede, antes, o inverso: é ele quem pri­
meiro fornece ao ser-aí científico a sua base. Verdade pré-científi­
ca expressa justamente o fato de a ciência não ser nenhuma neces­
sidade existenciária, de a existência do homem não poder ser de­
terminada nem primária nem unicamente pela ciência.
O ser-aí pré-científico é um ser-aí que ainda não foi transpassa-
do pela ciência; o ser-aí científico é um ser-aí determinado pela
ciência, o que não significa que ele próprio, como indivíduo, co­
nheça a ciência como tal ou mesmo que ele a coloque expressa­
mente em funcionamento. Nosso atual ser-aí europeu-ocidental é
um ser-aí científico, na medida em que o desvelamento do ente é
concomitantemente determinado e marcado pelos conhecimentos
científicos. Nesse sentido, mesmo o ser-aí de um homem atual
sem formação científica é um ser-aí científico. O chamado radio­
amador trabalha, por exemplo, com determinados aparelhos em
vista de determinadas metas, sem que tenha qualquer idéia do que
está propriamente acontecendo aí. Ou tomemos um camponês in­
teressado que tem, por exemplo, vontade de ler a “Canção dos
Niebelungos”. Se lhe arranjarmos uma boa edição, então o modo
como a obra chega às suas mãos é um modo científico, ou seja, to­
talmente determinado pelo trabalho filológico. Mesmo a compreen-
Filosofia e ciência 171

são atual da crença cristã é perpassada por uma teologia influen­


ciada pelas ciências.

b) Ser-aí pré-científico e ser-aí científico

Por conseguinte, o ser-aí científico significa: ser-aí cujo desvela-


mento do ente é co-determinado pelo conhecimento científico,
sem que essa determinação do desvelamento como tal seja reco­
nhecida ou mesmo apenas conhecida; e isso para não falar de ela
ser conquistada pelo próprio ser-aí em questão. Portanto, a dife­
rença entre ser-aí pré-científico e ser-aí científico não equivale de
maneira alguma à diferença entre ser-aí primitivo e ser-aí não-pri­
mitivo, abstraindo-sc totalmente do fato de essa diferença mesma
ainda ser plurissignificativa. Primitivo pode significar; simples, em
contraposição a complicado. No entanto, essa diferença não é a
mesma que a diferença entre cultura inferior e cultura superior,
entre barbárie e civilização. O ser-aí primitivo pode muito bem
possuir uma posição hierárquica superior e uma autenticidade e
originariedade própria: ele não precisa ser bárbaro. Em contrapar­
tida, o ser-aí não-primitivo, o ser-aí complicado, pode muito bem
ser bárbaro e, além disso, inautêntico. Essas duas diferenças que
não coincidem entre si, a saber, a diferença entre simples e com­
plicado e a diferença entre bárbaro e civilizado, também não equi­
valem à diferença entre o ser-aí pré-científico e o ser-aí científico
em sentido particular. O ser-aí científico não é necessariamente
culto, tampouco precisa ser complicado. Portanto, o ser-aí cientí­
fico não é necessariamente um ser-aí com uma posição hierárqui­
ca elevada e não exclui a barbárie. Apesar da ciência, ou quiçá jus­
tamente com o seu auxílio, tem-se expandido entre nós uma barbá­
rie anônima que talvez só seja pressentida por poucos, pois a maio­
ria se sente bem nessa barbárie. Não é preciso desejar a volta das
diligências para poder ver o que uma técnica, impossível sem a
ciência, é capaz de produzir hoje para o embrutecimento interior e
para a degradação do gosto.
172 Introdução à filosofia

Nosso atual ser-aí fático é um ser-aí científico e não estamos


mais em condições de riscar essa cientificidade de nosso ser-aí.
Todavia, isso não significa dizer que estamos irremediavelmente
abandonados às suas pérfidas conseqüências ou que precisaríamos
desejar o retorno a um ser-aí pré-científico. Pois esse ser-aí tam­
bém encerra em si a possibilidade da barbárie e da cultura, uma
vez que a formação científica ainda não implica necessariamente
cultura. Já a partir dessas observações fica claro que a ciência
como tal não traz necessariamente consigo uma elevação do ser-aí
humano, sim, que a ciência, na medida em que é uma possibilida­
de do ser-aí, pode ser necessariamente dessa ou daquela maneira,
pode atuar dessa ou daquela forma.
No entanto, o fato de nosso ser-aí atual ser um ser-aí científico
condiciona o modo como alcançamos o conhecimento e a inter­
pretação do ser-aí pré-científico. Se o ser-aí científico só é possível
com base no ser-aí pré-científico, então esse último também con­
tinua sempre necessariamente presente no ser-aí científico, uma
vez que justamente a ciência, como um modo da verdade, trans­
forma o desvelamento do ser-aí em um desvelamento de um outro
tipo. Mostrar-se-á onde residem os limites fundamentais de uma
tal transformação. Todavia, se quisermos conhecer o ser-aí pré-
científico, teremos de escolher o caminho de uma reconstrução.
Não devemos discutir agora o que significam reconstrução e cons­
trução. Em todo caso, porém, uma reconstrução do ser-aí pré-cien­
tífico não é algo que possa ser obtido por meio da apresentação de
relatos sobre o ser-aí primitivo numa forma universalizante; e isso
não apenas porque o termo “primitivo” não coincide com o termo
“pré-científico”, mas também porque, ainda nos casos em que es­
ses dois termos poderiam coincidir, os relatos, ou mesmo apenas o
modo do questionamento e articulação linguística de seus resulta­
dos, já se encontram submetidos à interpretação atual, ou seja, já
se acham co-determinados pela ciência.
A interpretação do ser-aí pré-científico não é de maneira algu­
ma uma questão empírica inerente à investigação acerca da pré-
Filosofia e ciência 173

história. Ao contrário, os relatos etnológicos e as tradições mitoló­


gicas só estarão em condições de falar a sua língua se antes disso
já tiver sido determinado o modo de ser essencial do ser-aí sobre o
qual eles fornecem informação. Para isso, esses relatos decerto se
mostram indicadores indispensáveis.
Na pergunta sobre a constituição ontológica do ser-aí pré-cien­
tífico, é preciso, além disso, separar duas coisas: a concepção que
um tal ser-aí faz de si mesmo e a concepção oriunda de uma inter­
pretação reconstrutiva. A essa interpretação reconstrutiva perten­
ce aquela autoconcepção coimplicada no objeto como a autocon-
cepção expressa coimplicada no ser-aí pré-científico. Para nós,
contudo, o que está em questão não pode ser naturalmente um des­
dobramento minucioso desse problema, mas somente uma carac­
terização de alguns traços centrais do ser-aí pré-científico que de­
verá nos auxiliar nessa distinção.
Por ser-aí pré-científico entendemos o ser-aí cuja verdade (des-
velamento) não é em princípio co-determinada pelo conhecimen­
to científico. Com isso não está dito que um tal ser-aí não dispo­
ria de informações e conhecimentos, mas, ao contrário, que ele os
tem de uma maneira totalmente originária. No sentido em que
usamos o termo “descoberta”, o que é descoberto é a terra em meio
ao cultivo do campo, o mar em meio à navegação. O cultivo do
campo, assim como a navegação, desempenham o papel de inter-
mcdiadores de informações sobre certas condições meteorológi­
cas, sobre as estações do ano, a astronomia, o cômputo do tempo.
Do mesmo modo, a arte de curar os homens pertence ao ser-aí;
tudo isso surgiu da confrontação direta do ser-aí com o ente ao
qual ele sempre já se vê referido qua ser-aí. E o que, de início, foi
enumerado assim não é nem o primeiro nem o único; antes de to­
das as possibilidades de enumeração e permeando todas as coisas,
a totalidade do ente está manifesta em uma mitologia que nos in­
forma sobre o curso do mundo e o destino dos homens. Essa notí­
cia não consiste em certas informações e proposições, mas encon­
tra sua concreção primária no culto e no sacrifício. No tempo pri-
174 Introdução à filosofia

mevo, todos os outros modos de o ser-aí se portar e todas as for­


mas de descoberta do ente, tais como a agricultura, a navegação, a
arte de curar, a astronomia, são dominados inteiramente por essa
concepção fundamental e mítica do ser-aí. Esse descerramento
pré-científico específico do ser-aí sempre ganhou a palavra e foi
expresso, sempre se pronunciou por meio da palavra, pinloç, e
como tal também já cria para si uma forma própria de tradição, an­
terior a toda historiografia como ciência da história. Da mesma
maneira, o que chamamos arte encontra-se totalmente a serviço
dessa determinação e interpretação do ser-aí. Mais além, o ser-
um-com-o-outro no clã e na tribo é regulado por ritos sacros; nas­
cimento, morte e continuidade da vida após a morte encontram a
sua interpretação a partir da totalidade do ente assim descerrado.
Assim sendo, o ente por si subsistente, o ente à mão, o co-ser-
aí dos outros, o ser-aí-próprio estão manifestos no ser-aí pré-cien-
tífico; e tudo isso é permeado pelo ente na totalidade e por seus
poderes míticos tomados a cada vez como diversos (cf. a represen­
tação do mana). Desse modo, o ser-aí pré-científico tem a sua ver­
dade específica. Se a ciência é, pois, um tipo de verdade e se ela
pressupõe a verdade pré-científica, é preciso que uma transforma­
ção da verdade ocorra com ela e através dela. Conseqüentemente,
a essência da ciência torna-se visível no momento em que visuali­
zamos a conversão do ser-aí pré-científico no ser-aí científico. Se
nos indagarmos acerca dessa conversão como uma transformação
da verdade do ser-aí, então estaremos questionando o surgimento
da ciência. Mas, nesse caso, não estaremos investigando como cer­
tas ciências particulares surgiram e se desenvolveram no decurso
da história. Tampouco estaremos perguntando, a partir da perspec­
tiva historiográfica, sobre as reais ocasiões, motivos e estágios di­
versos da formação fática de uma ciência ou sobre as causas da es­
tagnação ou do declínio de certas disciplinas particulares.
Para nós, a pergunta acerca do surgimento da ciência significa
agora o seguinte: o que pertence à possibilidade interna daquilo
que denominamos ciência? O que precisa necessariamente acon-
Filosofia e ciência 175

tecer para que a ciência, abstraindo-se completamente de seu modo


de ser, possa vir a ser do modo como ela é em particular?
Ao que parece, essa conversão do ser-aí pré-científico ao ser-aí
científico pode ser facilmente determinada. Para tanto, só precisa­
mos comparar o ponto de partida com o ponto final desse aconte­
cimento; ou, traduzindo para a nossa situação mais imediata, só
precisamos avaliar o ser-aí pré-científico a partir do ser-aí científi­
co. Mesmo que só venhamos a obter o ser-aí pré-científico por
uma via reconstrutiva, não há dúvida de que dispomos do ser-aí
científico uma vez que nós mesmos somos determinados como um
tal ser-aí em nosso ser-aí íático. Todavia, aqui facilmente se imis­
cui uma ilusão. Afinal de contas, o fato de o nosso ser-aí ser deter­
minado faticamente pela ciência ainda não garante que já saiba­
mos e compreendamos o que significa ciência. E possível que
aquilo que hoje assim denominamos possa ser, de fato, ciência au­
têntica. No entanto, ela ainda não nos fornece, sem mais nem me­
nos, o conceito de ciência. Talvez seja necessário um certo conhe­
cimento da ciência para determinar a sua essência; mas esse co­
nhecimento não é de maneira alguma suficiente. Desse modo, no
lundo não nos encontramos em uma melhor situação em relação
ao ser-aí científico do que nos encontramos em relação ao ser-aí
pré-científico. Sim, o risco de interpretarmos equivocadamente a
essência do ser-aí científico talvez esteja mais próximo de nós jus­
tamente porque nós mesmos somos determinados por ele. Há o
risco de tomarmos certas características extrínsecas e não perti­
nentes à ciência como sendo a sua essência. A essência da ciência
e a essência do ser-aí científico não precisam ser menos construí­
das por nós do que a essência do ser-aí pré-científico.
Essa é uma situação deveras peculiar: não temos absolutamen­
te o que queremos comparar. Para a consideração dessa transfor­
mação do ser-aí pré-científico no ser-aí científico não temos nem
o ponto de partida nem o ponto final. Só chamo agora rapidamen­
te a atenção para o caráter totalmente peculiar de nossa conjuntu­
ra e de nosso procedimento. Não continuaremos a refletir sobre
176 Introdução à filosofia

isso; em vez disso, realmente seguiremos em frente e ousaremos


algo bem surpreendente: obter o que precisa ser comparado me­
diante a comparação daquilo que no fundo ainda não temos.
A partir da comparação entre o ser-aí pré-científico e o ser-aí
científico, ao menos uma coisa aflora de modo evidente. No tocan­
te à sua verdade, ou seja, no tocante ao modo do desvelamento do
ente, o ser-aí pré-científico repousa amplamente sobre equívocos
ingênuos, superstição, arbitrariedade e inadvertência. Somente a
ciência traz consigo a autêntica verdade sobre o ente. Um simples
exemplo pode deixar claro esse estado de fato: tomemos o modo
como é descoberto o Sol. Para os gregos dos primeiros tempos, em
seus primórdios, ele era o deus Hélios, o deus que atravessava o es­
paço celeste em sua carruagem de fogo e submergia no oceano.
Mais tarde, essa interpretação foi perdendo força, e o Sol tornou-se
um disco que percorre sua trajetória. Logo o disco se mostrou como
uma esfera de fogo, como uma bola que se movimenta em torno da
Terra. Depois disso, foi a Terra que se tornou uma esfera que se
movimenta em torno do Sol, que é o centro. E por fim, esse siste­
ma solar apareceu como um sistema entre muitos outros. Nosso Sol
foi então amplamente investigado por meio do espectro solar.
Onde está então a verdade? Será que a física e a astronomia
atuais conseguem afirmar que elas descobriram o cosmos tal como
ele é? Onde se acha o critério para que a concepção atual do sis­
tema solar possa se mostrar como a única concepção verdadeira,
para que ela possa ser assumida ao mesmo tempo como mais ver­
dadeira do que as concepções mais antigas e até mesmo como
mais verdadeira do que a concepção mítica? No entanto, não con­
tinuamos, ainda assim, a falar do pôr-do-sol? Seria esse apenas um
modo de falar? Realmente não o vemos se pôr, e esse desvelamen­
to do Sol não domina nosso ser-aí cotidiano?

c) Verdade científica

Com que direito decretamos simplesmente que o mito é uma


superstição? Mas, se não há razão alguma para que façamos isso,
Filosofia e ciência 177

haveria razão para afirmar a subsistência de verdades diversas em


relação ao ente? E como essas verdades se comportam e se rela­
cionam umas com as outras? Se aceitarmos ou compreendermos
fundamentalmente que também há no mito uma verdade própria,
então não mais haverá, evidentemente, nenhuma diferença essen­
cial entre a verdade pré-científica e a verdade científica. Nesse
caso, essas duas verdades só se mostrarão como diversas segundo
o grau; e, com efeito, somente na medida em que a ciência con­
tém mais conhecimentos, em que o indivíduo é determinado mais
exatamente e é mais bem fundado em seu contexto. Mas a partir
de que grau se inicia a verdade científica, e onde cessa a verdade
pré-científica? Não é justamente a verdade do mito que tem a
prerrogativa de uma coerência única, e seu poder não repousa exa­
tamente no fato de que tudo está uniformemente fundamentado,
ao passo que nós, diante dos fatos manifestos, não vemos mais em
algumas ciências a realidade efetiva do ente?
Assim, a verdade científica não é nem a única espécie de ver­
dade nem a mais elevada. Mesmo a essência dessa verdade não
pode consistir no fato de que uma gama supremamente numero­
sa de fatos se torne manifesta e em que a determinação desses fa­
tos comporte em si um grau mais elevado de exatidão. Por meio
de tais comparações, não alcançamos a essência da ciência nem
uma caracterização da essência do ser-aí científico; no máximo
vemos que não podemos de maneira alguma atribuir-lhe a distin­
ção que se gostaria de lhe imputar, apoiados em um certo pensa­
mento esclarecido.
De que outro modo, porém, podemos lançar luz sobre a essên­
cia da ciência e do ser-aí científico? Ciência é um tipo de verdade.
A verdade pertence ao ser-aí. Na medida em que esse ser-aí exis­
te, ele é no seio da verdade. Se retivermos essa idéia de verdade,
se tomarmos assim a ciência como um modo do ser-na-verdade,
imediatamente nos depararemos com algo conhecido; a ciência
consiste justamente em uma atitude particular. Sabemos, desde a
Antiguidade, que a ciência é uma atitude considerada teórica —
178 Introdução à filosofia

teórica em contraposição à prática. Teoria e prática significam: o


mero pensar e especular de um lado, a execução e aplicação do
que foi pensado e conhecido do outro lado.
No entanto, a ciência não é apenas um mero modo de compor­
tamento. Ao contrário, ela é uma possível postura fundamental da
existência humana, um píoç, um ítecopeTucòç píoç. Como a partir
desse ponto não é determinada apenas a idéia da ciência ociden­
tal, mas também essencialmente a idéia da filosofia, precisamos
discutir mais exatamente o que a Antiguidade compreendia por
essa idéia —ainda que aqui, naturalmente, somente o que há de
mais essencial para o nosso intuito particular. Uma discussão mais
abrangente teria de responder a uma série de perguntas inter-rela­
cionadas.

§ 23. Ciência como postura fundamental possível da existência


humana. Bíoç beojpiynKÓç —vita contemplativa

Na época de florescimento da cultura antiga, a postura teórica


representava o supremo ideal de vida. Esse ideal exerceu sua in­
fluência sobre a gênese de toda a ciência ocidental. Por isso, esse
píoç continuará “vivo” enquanto a ciência ocidental existir. Os ho­
mens sempre se sentiram continuamente impelidos a um processo
de renovação a partir desse ideal de vida - a única questão é saber
“como isso se deu?”. E se tal fato foi suficientemente interpretado.
Se o nosso cientista de hoje se tornou conscientemente um
cientista diferente de outrora, se ele se distanciou da origem, se
nós mesmos não estamos mais absolutamente preparados para a
interpretação da Antiguidade, então é preciso levantar as mais se­
veras dúvidas quanto à tentativa de renovar esse ideal de vida em
meio a um assim chamado neo-humanismo. Uma tal tentativa não
passa de um assunto estéril de eruditos que talvez estejam reuni­
dos agora em torno de uma revista (Antike). No entanto, ela não
atinge as raízes da existência atual. Ao contrário, o que se quer é
Filosofia e ciência 179

escapar do caráter abismal do ser-aí atual, em vez de escutar o livre


chamado ou criar pela primeira vez um canal de escuta para ele.
Problematizar o píoç ff£(Dpf|TUCoç exige que façamos muitas per­
guntas: 1. Como surgiu essa postura fundamental do ser-aí? 2.
Como se realizou a auto-interpretação desse píoç? 3. Que concep­
ção de vida, de ser-aí, de existência se acha à base desse surgimen­
to e dessa interpretação? 4. Como esse píoç pode ser distinto dos
outros e que posição hierárquica ele possui entre os demais? 5.
Quais são as pressuposições metafísicas particulares para a con­
cepção desse píoç como o mais elevado?
A seguir, somente será possível esclarecer a parte principal des­
sas cinco perguntas. Antes de tudo, são necessárias algumas expli­
citações terminológicas que já fornecem acenos para a compreen­
são da coisa mesma. 0£Cúpr|Tucóç píoç, vita contemplativa, é a pos­
tura fundamental contemplativa inerente ao ser-aí. Bíoç significa
“vida”: a partir daí temos a palavra “biologia”; de Çonrj deriva-se
“zoologia”. O homem é o Çõãov Xóyov e/ov, o animal racional5. Tan­
to o píoç quanto a Çcorj denominam a vida, mas freqüentemente o
píoç tem uma significação acentuada: biografia, história de vida,
“vida” não no sentido biológico-zoológico, mas qua “ser-aí”, qua
existência. Bíoç ’iqaoõ, a “vida de Jesus” é uma narrativa, é a apre­
sentação da história de sua vida. Em nosso caso, não se trata da
narração da história de vida, tampouco dessa história de vida como
história real com todos os seus acontecimentos e circunstâncias;
trata-se, muito mais, da orientação fundamental de um ser-aí, con­
tanto que seja determinado por uma postura essencial que ele
pode dar a si mesmo; trata-se, portanto, de uma postura funda­
mental possível da existência humana. Constitutiva para esse píoç
é a jtp oaíp E oiç, a antecipação, a livre antecipação ou escolha de
uma determinada possibilidade do ser-aí. Ao ser-aí pertencem

5 Traduzida literalmente, a expressão aristotélica Çròõv Âóvov £Xov significa “o


ser vivo que possui linguagem”. Heidegger vale-se aqui da tradução latina tradicio­
nal dessa sentença. (N. do T.)
180 Introdução à filosofia

muitos píoi, assim como a possibilidade de escolha entre diversas


orientações fundamentais.
©EcopiyuKÓç, ftewpóç, 'Oeoopía remetem etimologicamente a Oca
e a Eóp (opaco). Em primeiro lugar, Oecopóç quer dizer o especta­
dor junto a algo que oferece uma visão ou um aspecto, por exem­
plo, o turista que vai a uma cidade para assistir aos jogos olímpi­
cos; Occapeív é olhar, contemplar, imergir na contemplação, deter-
se na visão sobrepujante; por isso, em particular, Ocwpijcrai xòv
aupavòv Kai xrjv jtepi xòv dXov KÓapov xáíjiv [contemplação do céu
e da ordem que impera em todo o cosmos]6.
Em Heródoto (I 29), theoría designa a contemplação do mundo.
Em Platão, -deropeiv é o ato de olhar e de contemplar o mundo
sensível e o mundo supra-sensível. O conceito da idéia platônica
surgiu a partir dessa postura fundamental da theoría, do ôccopelv.
©ECDprytiKÓç ainda não é um termo usado por Platão e aparece pela
primeira vez em Aristóteles, significando o poder comportar-se des­
sa forma, ou seja, a contemplação como possibilidade.
Portanto, píoç ffEcopqxiKÓç é uma nova postura fundamental do
ser-aí humano, uma postura que se mostra como uma contempla­
ção detida da totalidade do mundo. Aristóteles dá à Occopía o sen­
tido de comportamento “teórico” (no sentido grego). A palavra
-dccopqxLKÓç é uma cunhagem sua. Ele vê na ífewpía a mobilidade
própria da vida, o sentido mais puro daÉvépyEia, ou seja, o “primei­
ro” movimento como tal, xò $x!ov. O que vem a seguir é o c c e í .
É característico da etimologia dos filólogos antigos posteriores a
Aristóteles7 o fato de terem relacionado í í e ó ç e ^Ewpía à contem­
plação das coisas divinas, ao que nos subjuga, a Deus, ao í í e Ó ç .
Logo depois de Aristóteles, o próprio conceito aristotélico de Deus
é reinterpretado em termos ético-religiosos, ou seja, esse seu con-

6 Hermann Díeis. Die Fragmente der Vorsokratiker, grego e alemão, voi. I, 4.“ ed.,
Berlim, 1922, p. 382. Cf. mais além os relatos sobre Anaxágoras (vida e doutrina).
Loc. cit. pp. 375 ss.
7 Alexandros Aphrodisias, em Aristóteles, Analytica priora I, ed. Wallies, pp.
3, 20.
Filosofia e ciência 181

ceito fornece a estrutura conceituai a tal reinterpretação. O de­


senvolvimento da fteorpía na escola cética de Antióquia leva en-
tão ao fato de não se diferenciar o “âmbito teórico” apenas do “âm­
bito prático”, mas de diferenciá-lo também da interpretação con-
sonante com a fé, ou seja, ele passa a ser compreendido como o
âmbito das coisas que se dão “a partir da mera razão”. Assim, a eti­
mologia dada por Alexandre de Afrodísia é compreensível e cons­
titui-se como um documento importante para a história tanto do
significado do conceito aristotélico de Deus quanto do sentido do
termo Hecopía: xò yap Hearpeív / Kai cm’ aúxoõ xoí> òvóuaxoç òíjXov
/áiç ecm jrepi xqv xcòv Heícov ói|)iv xe Kai Yvôòaiv. / aq p a ív e i yàp xò
òpãv xà He Ta [Pois o theorein, como o nome indica, refere-se ao
conhecimento das coisas divinas, uma vez que significa ver as coi­
sas divinas]8. Na escola exegética de Antióquia (que, do ponto de
vista filosófico, achava-se uma vez mais sob uma influência pura­
mente aristotélica), Hecopía é o mesmo que iaxopía; íoxopía: no­
tícia do ente, não no sentido particular do termo “histórico”; even­
tos naturais também contam nesse caso, como terremotos e coi­
sas do gênero.
Assim como íoxopía, a {harpia é investigação científica dos fa­
tos em contraposição àaÂAriYopía como interpretação místico-his-
lórico-salvítica, origenes. Tipologia cncià xcòv pDJnvxorv (sombra das
coisas que estão por vir) por oposição a oròpa (por oposição ao
real)9.
A tradução latina de He ia é vita contemplativa-, templum, xépveiv,
xépevoç [tempus] é o âmbito distinto e pensado como o lugar do
augúrio; e, ao mesmo tempo, a abóbada celeste junto à qual o áu-
gure delimita os âmbitos e define os sinais dos deuses. Contempla-
ri significa: “abarcar com a vista o âmbito divino sobre a terra e no1

11Loc. cit. Prooem., pp. 3, 19.


9 Cf. H. Kihn, "Über íkoipía undàX/criyopía nach den verlorenen hermeneu-
tischen Schriften der Antiochier’’, Theolog. Quartalsschrift LXII (1880), pp. 531-58;
cf. H. Kihn: 'Theodorus Magnésia und Innitius Afr. ais Exegeten”, 1880, Institu­
ía regularia divinae legis (Bdtg.-f.M.A.).
182 Introdução à filosofia

céu”. Mais tarde o céu deixa de ser o derradeiro e o derradeiro pas­


sa a ser Deus. Por isso fala-se então de contemplação e de visão de
Deus, submersão na luz da divindade. Contemplari torna-se um
termo especificamente religioso e teológico; vita contemplativa e
vita activa designam comportamentos religiosos.
Tomás de Aquino: Contemplatio aliquando capitur stricte pro actu
intellectus divina meditantis et sic contemplatio est sapientiae actus,
alio modo communiter pro omni actu, quo quis a negotiis exteriori-
bus sequestratus soli deo vacat, quod quidem contingit dupliciter, vel
inquantum homo Deum loquentem in Scripturis audit, quod fit per
lectionem, vel inquantum Deo loquitur, quod fit per orationem'0.
Por um lado, a contemplação é tomada em sentido estrito como
aquele ato do intelecto que, divina meditantis, se dedica a pensar
o divino, se quisermos falar assim. Desse modo, a contemplatio é o
actus próprio da sabedoria, da sapientia. Em um sentido mais am­
plo, porém, a contemplatio é tomada por aquele ato no qual alguém,
que se tornou livre dos negócios externos, se liberta, libera seu tem­
po, somente para Deus. Tanto no sentido mais estrito como no
sentido mais amplo contemplari quer dizer contemplar, significa
meditação sobre as coisas divinas. Este último significado também
pode, por sua vez, ser duplo: leitura das Escrituras ou oração".
Do conceito de contemplatio já se distingue, na Idade Média,
aquele conceito que é utilizado na modernidade para a designação
do âmbito teórico, a saber, o conceito de speculatio, de speculari.1

111 Tomás de Aquino, Scriptum super libros sententiarum magistri Petri Lom-
bardi episcopi Parisiensis (1253-1255). 4. sent., dist. 15, quaest. 4, art. 1, solutio 2,
ad primum.
11 Ou traduzindo diretamente do latim de maneira diversa da proposta por
Heidegger: Por vezes, contemplação pode ser entendida em sentido estrito como
o ato do entendimento que medita sobre as coisas divinas. Nesse caso, a contem­
plação é um ato de sabedoria ou um ato da sabedoria. Outras vezes, considera-se
contemplação todo ato com o qual alguém, apartando-se dos negócios exteriores,
se dedica somente a Deus. Isso pode acontecer de duas maneiras: ou bem na me­
dida em que o homem escuta Deus falando nas Escrituras, o que acontece por
meio da leitura, ou na medida em que se fala a Deus, o que acontece por meio
da oração. (N. do T.)
Filosofia e ciência 183

Quando no idealismo alemão Fichte, Schelling e Hegel falam de


especulação, eles não têm em vista nada além do conhecimento
teórico. A diferença entre contemplatio e speculatio consiste no
fato de, na contemplatio, Deus ser diretamente contemplado a par­
tir de uma postura religiosa, ao passo que a speculatio é caracteri­
zada pelo fato de que ela divina in criaturis inspicit, isto é, de que
ela contempla o divino na medida em que este se anuncia no que
foi criado, quasi in speculo, como em um espelho, como se a cria­
tura fosse um espelho de Deus. Aqui o termo speculari (que pro­
vém do termo latino species, vista: puros conceitos da esfera do
ver) apresenta, apesar de ainda estar orientado para as coisas divi­
nas, a tendência para aquele conhecimento que o homem adquire
espontaneamente, ou seja, o conhecimento que não é primaria­
mente determinado pela fé. Especulação significa então a livre
meditação sobre as coisas. Especulativo torna-se mais tarde, como
já acontece em Kant, simplesmente uma designação para o teóri­
co: metafísica especulativa em contraposição à metafísica prática.
É preciso não perder de vista essas significações fundamentais
do termo “teórico” e o contexto no qual elas surgiram, a fim de che­
garmos efetivamente a compreender em que direção a interpreta­
ção da ciência se movimenta com o auxílio da assim chamada pos­
tura teórica e, em seguida, a fim de também podermos tornar cla­
ro em que medida há um limite nessa interpretação da ciência; e
isso significa: a fim de tornarmos inteligível o fato de precisarmos
dar passos decisivos para que nos deparemos com uma compreen­
são mais originária da essência da ciência, em contraposição à sua
interpretação habitual desde a Antiguidade - uma interpretação
que se tornou pura e simplesmente óbvia.
O importante é elucidar inicialmente o que significa píoç
'becopriTi.KÓç em contraposição aos outros pior possíveis.
Aristóteles fala dos pior logo no começo da Ética nicomaquéia A
3, e, com efeito, em um contexto característico. A tarefa é delimitar
o que determina originária e propriamente a existência do homem
como tal. Tò àyaOóv, eúóatpovía, Çonj como Tipácjiç, não como
184 Introdução à filosofia

Jtoíqcaç. n p ã iiç é a atuação que chega a term o no próprio sujeito


atuante; o homem é a m eta para si mesmo. Mas o que precisa ser
então o txKpóxaxov «yaíióv, o em-virtude-de no homem e no ser-
homem para que esse possa apreender e concretizar a possibilida­
de fundamental do ser-homem de acordo com sua essência? E qual
é o caminho para encontrar esse áyaüóv?
O píoç ítecopriTiKÓç não é discutido em conexão com uma clari­
ficação da essência da ciência, mas sim em meio à pergunta pelo
ávífpwjuvov âyaOóv, pelo bem do homem. No entanto, a essência
da ciência também é inquirida na Metafísica A l e 2. xò yàp cr/abòv
Kai xf|v eúôoapovíav ouk «A t/ioç eoÍKacriv, Èk xròv f’>íotviwt/.apPávEiv...
[No que diz respeito ao bem e à felicidade, não parece sem senti­
do estudá-los a partir dos modos de vida —Ética niconiaquéia A3,
1095b 14 s.]12. Dessa maneira, precisamos apreender o que se acha
à base dos |3íoi, determinando-os. No que diz respeito a esse pon­
to, os |3ioi que se destacam especialmente sobre os demais são os
mais apropriados, xpsíç yàp eíai pàXxoxa oi Jipoòxovteç, ó xe võv
elpqpÉvoç [curoXuv crtucóç] K aib jto>axucòç K aixpíxoçò ,ÔECopr|xiKÓç
[sobressaem-se principalm ente três, aquele de que acabamos de
falar, o dos prazeres, a política e, em terceiro lugar, a vida teórica —
1095b 17-19], E, quanto aos xéXq inerentes a esses modos de vida,
pode-se dizer: ôi’oòxà yàp àyajtãxoa [eles são desejados por si m es­
mos - 1096 a 8 s.].
Tàyaílòv ôè o Íke ióv xi Kai ôucroupaipexov Eivar pavxEoópEÍkx [O
bem é algo próprio e difícil de arrebatar - 1095b 25 s.]. Quando bus­
camos o bem supremo, já o suspeitamos e presumimos como sen­
do algo que esteja por natureza em nós mesmos qua homens e só
muito dificilmente pode ser arrancado de nós. Ele é consequente­
m ente uma propriedade que reside na existência como tal. Cf. Éti­
ca nicomaquéia A6: xò apicrtov: 1. Çcorj, 2. jrptoíjiç xiç, 3. Kai xò ev,
o àyaflòv que é determinado por meio de um a apreensão simples,
na qual a possibilidade suprema se realiza. TéXoç é a instância na

12 Aristóteles, Ethica Nicomachea. Recognovit Franciscus Susemihl. Lipsiae in


aedibus B. G. Teubneri 1882.
Filosofia e ciência 185

qual algo é levado à consumação. No entanto, é justamente ao ser


levado à consumação que algo se toma pela primeira vez real: o
xéÀoç não é a instância na qual esse algo se interrompe. EÓnpaÇía,
omxapKÉç é um agir e um existir que têm seu fim em si mesmos,
isto é, que são levados em si mesmos à consumação, justamente
quando se age pura e simplesmente. Nisso reside uma diferença
entre 7to íq a iç como fazer produtor e TtpõcÇiç como agir existenciário.
No processo de produção de algo, a obra é separada e passa a sub­
sistir por si. Com isso, o àyoalóv não pode residir no p ío ç que foi
primeiramente citado; nesse píoç, os homens se vêem entregues ao
prazer - exatamente como as vacas. Com efeito, o “puro prazer”
também é algo que ocorre em virtude de si mesmo. No entanto, ele
só é possível em meio à entrega de si às ocasiões e aos objetos do
prazer possível, sem constância e sem consistência.
O segundo p ío ç o à y a ttó v no prestígio público, xtpfj, mas SokeÍ...
Èv toíç xípcòcn pc/ZÂov e ív a if i èv xcpxiptopÉvq) [Mas parece que está
mais em quem honra do que em quem é honrado - 1095 b 24], O
que aí é buscado parece estar mais radicado naquele que prestigia
do que naquele que conquista o prestígio, ou seja, esse último de­
pende da opinião pública, sub-repticiamente ele é escravo dessa
opinião. Na medida em que, também nesse caso, o ser-aí não pos­
sui a plena autonomia sobre si mesmo, o á y a ító v não pode residir
aqui, pois não existe a possibilidade para isso. Os dois p ío i não
apreendem o à y a ííó v àicpóxaxov. tp ír o ç 5’èoxív ò íteorpqxi kóç, wrèp
ou xèv È7tíaK e\|nv èv xoíç è 7topévoiç n o tq a ó p e ú a [O terceiro é a vida
teórica que examinaremos depois —1096 a 4 s.]. Cf. Ética nicoma-
quéia Z 13 e K 7ss.

§ 24. A implicação recíproca originária existente entre teoria


e prática no úeropéiv enquanto ato de tornar manifesto o ente

A postura fundamental teórica é a postura mais elevada possível.


Por quê? Na Ética nicomaquéia deparamo-nos com a seguinte for­
mulação, K6 (1176b 1 ss.): [euôcapovía] d ç èvépyeuxvxivattexéov...
186 Introdução à filosofia

[1. KmT amó.ç, 2. 56 êxepa.] m í)’ abxàç 5’ eícriv aípexai àqf rov
pqSèv erctÇqxeixai Ttapà xqv evépyeiav [A felicidade deve ser antes
considerada como uma atividade, e, no que diz respeito às ativida­
des, umas são escolhidas por si mesmas, e outras por causa de ou­
tras. Por si mesmas são escolhidas aquelas que não visam a outra
coisa senão ao exercício da própria atividade].
K 7: eúôatpovía rax àpexq v èvé.pyeia, aAoyov Kaxàxqv Kpaxíaxqv
[Se a felicidade é uma atividade conforme à virtude, então é razoá­
vel dizer que ela é conforme à virtude mais excelente —1177 a 12 s.].
KpaxÍCTTq xe yòcp afrxq éaxív q évépyeta... [ifeoopqxiKq ]... ò voüç xcõv
évqpiv... Ttepí a ò voõç [Pois essa atividade teórica é a mais exce­
lente... O pensamento é mesmo o mais excelente em nós... assim
como os objetos do pensam ento- 1177a 19 ss.]. ifelovò voüçtrpòç
xòv avüpamov (Em comparação ao homem, o pensamento é algo
divino —1177b 30). A postura teórica fundamental é aquela rrpà^iç
na qual o homem pode ser propriamente homem. Com certeza é
preciso atentar para o fato de a Oecopía não ser apenas uma rcpãípç
em geral, mas a rtpaçiç mais própria.
E possível que Aristóteles tenha pressentido aqui a existência
de algo à primeira vista incompatível, a ■ôeropía como aptcrxoç
píoç e esse rtpccKxiKÓç Na Metafísica A 1 e 2, Aristóteles expõe
detalhadamente como a postura teórica vai se formando por meio
da abstração cada vez maior da utilidade e do emprego “práticos”,
até não ter por meta outra coisa senão a consideração do ente nele
mesmo, pf) npòç xPhmv (não por utilidade). Como é então que a
Vecopía ainda pode ser denominada prática? Todavia, não seria
preciso que ela fosse prática se o aptoxoç píoç éò TtpaKXiKÓç? Aris­
tóteles responde a essa objeção de maneira totalmente unívoca na
Política H (VII) 3, 1325b 16: áÀÀà xòv 7tpaKxiKÒv oÒKàvayraiov
eivai tcpòç exépouç ícaíiárop oívovxai xiveç, oòSè xàç ôtavoíaç eivai
póvaç xaóxaç TtpaKxiKcxç, xàç xròvàTcopatvóvxrov %ápiv ytvopévaç
k,K xau ícpáxxeiv. áÀ.Àà rco/tò pãXÀov xáç abxoxe/xiç Kai xáç anxcbv
eveKev riecopuxç Kai Stavoqaeiç' q yàp eiOTpaçía xéXoç, tòcrxe Kai
Filosofia e ciência 187

jxpã^íç T i ç 15. Mas tampouco é necessário que o agente estabeleça


as suas ações em relação com os outros, como alguns pensam; as
coisas também não se dão de um tal modo que somente as refle­
xões que acontecem em vista do que emerge de uma ação seriam
reflexões práticas. Ao contrário, práticos são, antes, aquele agir que
apresenta em si mesmo a sua própria consumação, assim como
aquelas considerações que são realizadas em virtude de si mesmas.
Pois o téXoç do homem é a eimpaÇía [a ação plena].
Dessa passagem deduzimos que a essência do agir não consiste
em sua ligação com os outros. Não é apenas aquele pensamento
que tem por meta um resultado prático emergente e é levado a ter­
mo tendo em vista esse resultado, ou seja, a produção de algo, que
é “prático”. Ao contrário, a contemplação e a determinação que são
auxoxr^ç aíraõv eveicev, que encontram em si mesmas a consu­
mação e são realizadas em virtude de si mesmas, são “práticas”
JTOÀ.-U [xãXXov, ou seja, elas são “práticas” em um grau muito mais
elevado, isto é, no grau do agente. A consumação reside no bom
agir em seu grau maximamente elevado, ou seja, no modo como a
ação se dá. Por isso, para que esse modo de realização seja possí­
vel, é preciso que esteja presente uma qüididade correspondente
a essa ação possível.
A partir daí fica claro o seguinte: irpcucrucoç e Jtpà|iç, prático e
práxis não significam ser ativo na aplicação e no emprego de algo,
mas designam o agente e a ação. O que é prático não é a obra, o
resultado da ação, mas essa ação mesma. Nesse conceito de
Ttpã^iç, não podemos de maneira alguma conceber o termo “práti­
co” em seu sentido atual. O agir propriamente dito é justam en­
te aquele agir que não recebe primordialmente o seu sentido por
meio de um emprego possível e do assim chamado valor prático,
mas realiza antes aquela mobilidade intrínseca ao agir —pôr em13

13 Aristóteles. Política, Nova impressio, ed. Franciscus Susemihl, Bibliotheca


Teubneriana, Lipsiae, 1894.
188 Introdução à filosofia

obra14 uma vez que esse próprio pôr em obra qua tvèpytia é o pró­
prio téXoç.
Assim, fica claro que a contemplação pensante é também um
agir. Mas por que justamente a frecopía deve ser o píoç supremo, a
eújtpa^ía pura e simplesmente? Em que medida, então, o Oeropelv,
a postura teórica é a jtpãÇtç mais elevada, o agir propriamente dito?
De início poder-se-ia dizer que toda contemplação é contemplação
de algo, de um ente. Portanto, esse agir também depende daquilo
com o que ele se relaciona. Ouvimos, além disso, que o àya-dóv
cucpÓTotov deveria permanecer supostamente estável. Todavia, o
ente muda, surge e perece, de modo que não oferece, sem maio­
res problemas, um bem estável. Como é que Aristóteles responde­
ria a isso? Certamente, o "becopElv se relaciona com os x à dvra. No
entanto, a única coisa que é em sentido próprio é aquela que nun­
ca deixa de ser, que sendo é sempre, Ó e í bv. Somente na medida
em que a contemplação pura se dirige para o que é sempre ela pode
conferir a si própria, enquanto se detiver junto àquilo que perma­
nece, o caráter da presença constante.
Contudo, está claro que apenas se mostrou com mais ênfase que
a i&Eoopía como Jípcdjiç depende do EXEpov, do outro. Em que me­
dida ela pode ser então avcoTEXrjç e, somente em razão desse cará­
ter, chegar a se mostrar como um oLkelov (XYccdòv ávffpcímoTj [um
bem próprio do homem]? Em que medida a ■ÔEtopía é uma Jtpãíjtç
(xijoteX.Í|ç, uma jtpãÇiç dirigida para o ente, mas que, não obstante,
possui o téXoç no seu ser-aí, uma jxpãÇiç que possui a consumação
em si justamente ao estar dirigida para o ente, para fora de si, para
fora da ação? Precisamente a essência da ação, para que essa ação
mesma possa se mostrar como xá^oç, não precisa ser apreendida
nesse processo. Todavia, os objetos são efetivamente exEpov.

14 O verbo alemão bewerkstelligen é normalmente traduzido por "realizar”, “efe­


tuar”. No entanto, Heidegger hifeniza esse verbo e procura através disso realçar a
sua proximidade com o termo grego ÉvÉpYSia. Exatamente por isso optamos por
traduzi-lo pela expressão “pôr [stellen] em obra [Werk]”, que acompanha bem o
sentido literal desse termo em alemão. (N. do T.)
Filosofia e ciência 189

Que caráter possui, então, o -ftecopeív? Aristóteles mostra de ma­


neira muito clara na Ética nicomaquéia Z que o caráter do ■ôcropeív
consiste noáXqíleóeiv, no tornar manifesto o ente. Nessa Jtpãíjiç,
não é o ente que é elaborado, mas sim o desvelamento que é al­
cançado por meio do agir. Em outras palavras: a ação promove o
acontecimento do desvelamento, o acontecimento da verdade. Po­
rém, essa verdade é uma determinação essencial do ser-aí —isso
segundo a nossa interpretação, não segundo a interpretação tradi­
cional —como ser-aí agente e existente e como ser-na-verdade. O
Aecopelv é de fato um tal agir que, como ato de tornar manifesto,
só deixa acontecer a manifestação que, pertencendo ela mesma ao
ser-aí, leva esse ente àquilo que ele pode ser, uma vez que ele é
qua existente na verdade. Ele é uma possibilidade essencial do ser-
aí. Se esse acontecimento mesmo se apreende como “fim" e con­
sumação, então acontece justamente a manifestação do ente.
Com certeza, o •ôccopEtv está dirigido para o ente; com certeza,
esse agir está assim dirigido para algo que ele mesmo não é; no en­
tanto, o -bgcopelv não tem por finalidade produzir, por assim dizer,
o ente ou conformá-lo em um sentido qualquer. Ao contrário,
como a própria designação diz, a sua finalidade é pura e simples­
mente contemplar o ente. O que está em questão para ele é ape­
nas o conhecimento do ente como tal, ou seja, a manifestação do
ente, uma contemplação que se desenvolve apenas no conheci­
mento contemplativo. Agora fica claro o quão decisiva é a elabora­
ção correta do conceito de verdade; somente agora o ÉrópaKEv, bpã
se torna compreensível: deixar justamente o ente ser como ele é, o
que significa, porém, conceder-lhe o desvelamento, mantê-lo em
um tal espaço de manifestação como ser-aí contemplador.
Ê do ente em seu desvelamento, tò dvóX.TvdÉç, que trata o dccopeív.
É por isso que os gregos diziam muito freqüentemente, quando fa­
lavam dessas coisas, que o conhecimento contemplativo investiga
o ente, que ele investiga a verdade, o que significa em termos gregos:
o ente em seu desvelamento. A verdade nesse sentido é o xétajç, o
âmbito no qual esse agir se consuma como o ser-na-verdade.
190 Introdução à filosofia

áyaOóv, ob evem, o bem em virtude do qual se age é o desvelamen-


to. No entanto, esse desvelamento é a determinação essencial do
próprio ser-aí.
Não podemos discutir aqui em detalhes por que o flíoç ftewpriTiKÓç
se tornou para os gregos (Platão, Aristóteles) a forma de vida mais
elevada, se esse píoç é o mais elevado pura e simplesmente e em
que sentido ele o é. No entanto, ficamos com dois resultados es­
senciais para nós: em primeiro lugar, o ftecopEÍv se encontra, por
sua própria essência, em conexão com a jtpcújiç [existência, ser-aí]
e a verdade, com o desvelamento; e, em segundo lugar, ele é conhe­
cimento do óv com oàei Ôv, ele é conhecimento do que é sempre.
Uma ambiguidade ainda subsiste: a) essa expressão não se refere
apenas a um determinado âmbito do ente que possui esse modo
de ser —falta de clareza fundamental sobre a ontologia como ônti-
ca geral —, mas também b) ao ser de todo ente como “essência”, o
que permanece sempre em todo ente, o que já é sempre encontra­
do nele.
Não obstante, após a definição tradicional de ciência, já trata­
mos desse assunto, na medida em que tomamos mais a fundo o
conceito tradicional de verdade e vimos: a ciência é um tipo de
verdade, um modo de ser-na-verdade. Mas o que buscamos é jus­
tamente a peculiaridade desse modo de ser. Será que a caracteri­
zação desse modo de ser porquanto “teórico” nos fornece a clareza
suficiente?
O termo “teórico” significa: comportamento contemplativo —mas
nem toda contemplação e exame de algo é chamada por nós de
ciência. (Um ser-aí voltado para o exame e a contemplação não é
por si só científico.) Mesmo quando tomamos o termo “contempla­
ção” em um sentido insigne, isto é, como visão e como imersão no
que está sendo contemplado, ou seja, como comportamento mís­
tico, já estamos dizendo com a última designação que justamente
essa contemplatio está muito longe da ciência, sim, que ela está mes­
mo em princípio cindida da ciência, ou ainda que a ciência perma­
nece realmente a inimiga de toda mística.
Filosofia e ciência 191

Mas, mesmo que tomemos o comportamento teórico em um sen­


tido não místico e interpretemos o termo “teórico” como mera con­
templação das coisas, ele não se coaduna plenamente com o com­
portamento científico. Pois também nas ciências há manipulação
técnica e “prática” - toda a investigação experimental o comprova,
assim como o trabalho historiográfico-filológico em edições de ma­
nuscritos ou as escavações arqueológicas. Tais atividades perten­
cem ao que denominamos ciência; elas não são dispositivos extrín­
secos, mas, antes, dispositivos exigidos pelos próprios objetos das
respectivas ciências.
Assim, novamente se evidencia: a ciência que é denominada ati­
tude teórica é primeiramente prática enquanto ação e, em segundo
lugar, prática no sentido da realização e da manipulação técnicas. A
designação da ciência como “teórica” esconde justamente esse seu
duplo caráter ativo. Não obstante, contudo, tal designação não
pode ser casual. Ela indica um fator essencial da ciência, sem to­
mar esse fator em seu cerne. Pois esse cerne não será apreendido
quando interpretarmos o termo “teórico” como “apenas contempla­
tivo”, e, em verdade, inserindo concomitantemente aí a influência
do caráter prático. De fato, esse cerne não é apreendido quando in­
terpretamos o "apenas contemplar” como uma ação levada a termo
“em virtude do conhecimento”, “em virtude da verdade”. Por fim, só
nos aproximaremos do comportamento “teórico” e de sua essência
se perguntarmos pela jtpã^rç, pelo caráter específico de ação intrín­
seco ao conhecimento que é levado a termo em virtude da verdade.

§25. Construção da essência da ciência

a) Ser-na-verdade em virtude da verdade

Todo comportamento do ser-aí - assim já o sabemos - é, como


tal, um ser-na-verdade. Nem todo ser-na-verdade, porém, já é pro­
priamente um tal comportamento levado a termo em virtude da
192 Introdução à filosofia

verdade. Manter-se no espaço de manifestação do ente e compor-


tar-se em relação a esse ente não significa necessariamente conhe­
cer esse espaço de manifestação propriamente como tal ou mesmo
se esforçar primariamente por conquistar esse espaço. Conhecer
em virtude da verdade é, por conseguinte, uma forma totalmente
específica de manter-se-no-desvelamento em virtude de um desve-
lamento do próprio ente.
Com isso deparamo com um problema central para uma inter­
pretação essencial da ciência. E preciso que se pergunte: onde re­
side o traço distintivo daquele tipo de existência do ser-aí em que
algo assim como o ser-na-verdade acontece em virtude da verda­
de? O que isso significa? Também podemos reduzir esse problema
a uma fórmula que torne visível o fato de o problema não ser al­
cançado se nos orientarmos pelo “teórico” e por seu sentido literal.
Nesse caso é preciso perguntar: qual é a ação originária, qual é a
ação primordial do ser-aí na qual se torna possível algo assim como
a atitude aparentemente livre da práxis e unicamente contempla­
tiva que é característica da ciência? Na primeira fórmula15também
se expressa claramente a pergunta acerca de um conceito existen­
cial de ciência. E o que tentaremos fazer agora é construir a essên­
cia da ciência.
Ciência significa: ser no desvelamento do ente em virtude do
desvelamento. Partimos desta última determinação: em virtude da
verdade significa em virtude do desvelamento do ente. O que im­
porta ao ser-aí existente é que o ente é desvelado e ele (o ser-aí) se
comporta em relação ao ente em seu desvelamento. O que está em
questão é a verdade: ou seja, não é primariamente a proposição vá­
lida, mas o desvelamento do próprio ente. O que importa é deixar
o ente ser o que e como ele é.
No entanto, já não tínhamos encontrado esse deixar-ser o ente,
ao caracterizarmos nosso ser junto às coisas ao nosso redor? Se
esse for o caso, esse comportamento em relação às coisas não pode

15 Ser no desvelamento do ente em virtude desse desvelamento mesmo. (N.


doT.)
Filosofia e ciência 193

ser denominado um comportamento científico. Certamente, em


todo comportamento em relação ao ente, reside um certo deixar-
ser esse ente mesmo. Agora, porém, o que está propriamente em
questão é o desvelamento, isto é, o fato de o ente se manifestar
nele mesmo e de acontecer esse vir a ser manifesto. O deixar-ser
o ente não reside agora apenas no comportamento do ser-aí, mas
o ser-aí enquanto existente desloca-se exatamente para o interior
desse deixar-ser o ente. O ser-aí realiza um determinado movimen­
to existenciário fundamental, no qual ele prescreve a si próprio ex­
pressamente a tarefa de permitir que o ente obtenha a partir de si
mesmo o seu direito e a sua voz. Com efeito, o ente já está mani­
festo mesmo sem e antes da ciência; sim, aquele deixar-ser o ente,
que se supõe como característico da ciência, deve, enquanto um
deixar-ser totalmente peculiar, até mesmo fazer desde sempre uso
da manifestação do ente. Pois só assim ele pode deixar ser esse
ente, a saber, o ente nele mesmo. O ente já precisa estar manifes­
to antes do deixar-ser especificamente científico e para esse dei­
xar-ser. A ciência precisa poder encontrar previamente o ente. É
próprio da ciência que ela tenha desde sempre o ente presente
diante dela e, por certo, manifesto de uma forma ou de outra. De­
nominamos esse ente presente diante de nós e, por isso, o ente já
sempre encontrável previamente pela ciência, o positum.
Todavia, se o ente já se encontra presente diante de nós e, com
efeito, como ente manifesto, então para que ainda serve a ciência?
Mas, se a ciência é possível, então precisa existir ainda em toda
manifestação do ente, na qual o ser-aí já sempre se mantém, um
velamento específico que apenas a ciência como tal pode superar.
Tomemos um exemplo elementar: no cultivo do campo torna-se
manifesto, entre muitas outras coisas, que o terreno arável ofere­
ce resistência ao arar e que, por conseguinte, a relha precisa ter
uma determinada dureza e uma determinada firmeza. No entanto,
não se dá atenção ou mesmo não se observa essa conexão entre o
solo arável e a relha; ela só é conhecida no âmbito de uma deter­
minada exploração e de um determinado trabalho do solo, da ter-
194 Introdução à filosofia

ra. A mesma relação de pressão e de contrapressão pode suceder


na construção de uma casa, onde é requerida uma firmeza corres­
pondente do alicerce; do mesmo modo é requerida uma firmeza si­
milar dos pilares na construção de uma ponte e assim também em
muitos outros contextos da lida com as coisas, nos quais fazemos
uso delas ou as produzimos.
Dessa maneira, para a lida com as coisas se constitui um certo
saber fazer, no qual passamos a entender delas16: normalmente as
coisas se encontram de tal ou tal modo. Essa regularidade, contu­
do, mostra-se menos como um caráter das coisas mesmas do que
como fios condutores do comportamento em relação a elas. Com
efeito, as coisas estão manifestas de uma certa maneira. Não obs­
tante, elas não precisam, nesse processo, entregar completamente
aquilo que elas são nelas mesmas. Pois subsiste a possibilidade de
visualizar as citadas relações de pressão e contrapressão sem levar
em consideração que, ao utilizá-las, prestamos atenção a elas. Es­
sas relações podem vir à tona como relações que advêm a toda coi­
sa material, a toda massa, e, em verdade, de um modo tal que elas
estão submetidas à lei universal da gravidade.
O que acontece quando os entes, as coisas materiais, eviden­
ciam-se de uma tal forma? O que precisa acontecer para que as
coisas possam se manifestar dessa forma? E suficiente dizer: a
experiência técnico-prática foi ampliada para além do campo de
visão mais restrito que é oferecido pelo cultivo do campo, pela
construção de casas e pontes? Ora, o que significa, nesse caso,
ampliar? Quer dizer, por um acaso, que relhas e alicerces corres­
pondentes também precisariam ser produzidos em outros lugares
e junto a outros objetos, que todos os homens precisam ter em

16 A expressão alemã sich anskennen in significa em termos gerais "conhecer


um determinado contexto e saber encontrar os modos adequados de comporta­
mento para uma certa circunstância”. Ela serve, por exemplo, para designar a ca­
pacidade do artífice experiente de se movimentar em sua oficina e constitui assim
preponderantemente a lida prática. E nesse sentido que utilizamos aqui a expres­
são “entender de alguma coisa”. (N. do T.)
Filosofia e ciência 195

conta essa regra? Nesse contexto, porém, a única coisa ampliada


é o âmbito de aplicação da regra e não se trata aí de maneira al­
guma de massa, de densidade ou de gravidade. Portanto, uma
mera ampliação da experiência técnico-prática não ajuda em
nada.
O que está em questão aqui não é mais absolutamente uma re­
gra para o comportamento em nossa confrontação técnica com as
coisas. Por conseguinte, não se trata de uma ampliação do âmbito
de aplicação das regras. Se é que uma ampliação desempenha aqui
primariamente algum papel, então isso se dá manifestamente no
sentido de dizer que essas relações não subsistem por si apenas
onde arranjamos uma serventia para o solo e para as pedras no pro­
cessamento prático, mas também onde não logramos chegar, de
modo algum, com nossos negócios e onde não precisamos mesmo
chegar. Agora não se trata mais meramente de uma ampliação do
âmbito de aplicação das regras de comportamento, pois também
estão implicadas aqui as coisas que não podem e não precisam ser
de maneira alguma afetadas por um tal comportamento. Ao con­
trário, todo o âmbito de que se fala agora aparece sob uma luz di­
versa; o âmbito do processamento prático-técnico mais imediato
passa a ser apenas um pequeno recorte de um âmbito mais abran­
gente. Alvorece agora a compreensão de que as medidas práticas
foram tomadas porque todas as coisas materiais têm por fim tais
propriedades.
Na ampliação atual, trata-se tão pouco de uma tal ampliação
das regras práticas de comportamento que nos abstraímos justa­
mente do comportamento prático-técnico e só fixamos o olhar no
modo como precisamente as coisas são nelas mesmas. Em outras
palavras: a suposta ampliação da experiência técnica é no fundo
uma completa transformação da postura fundamental em relação
ao ente. Mas o que significa essa fixação do olhar nas coisas ma­
teriais e o distanciamento em relação a um processamento práti­
co-técnico?
196 Introdução à filosofia

b) A ação primordial. O deixar-ser o ente

Será que esse “só” da expressão “só fixar o olhar” significa que
não arranjamos mais uma serventia para as coisas e nos abstemos
da lida prática? O ente com o qual lidamos não se torna já nele
mesmo manifesto de modo característico simplesmente porque
nos abstemos de manipulá-lo? Ao contrário, o não fazer nada en­
quanto abster-se de uma ocupação talvez torne as coisas muito
mais manifestas justamente naquele aspecto, segundo o qual elas
precisam ser resolvidas, isto é, enquanto tais objetos que requerem
um processamento específico.
O “só fixar o olhar” nas coisas tal como elas são nelas mesmas
não é de maneira alguma idêntico ao mero não fazer nada. O “só”
não designa de modo algum algo a menos ou uma restrição, ou,
ainda, algo negativo, mas algo eminentemente positivo. Limitar-
se a fixar o olhar significa unicamente transpor-se para o lugar em
que as coisas se oferecem nelas mesmas. Com isso se está expres­
sando ao mesmo tempo o fato de as coisas não fazerem absoluta­
mente por si mesmas algo desse gênero, por mais solidamente
que elas possam subsistir por si. E preciso que lhes sejà propicia­
da a ocasião para que elas se manifestem como os entes que são.
Essa é a ação primordial. A contemplação detida junto às coisas
não se confunde de forma alguma com um não fazer nada; mas
carece-se certamente de ócio para desenvolver essa atividade em
sentido extremo.
Mas o que significa dizer que precisamos ajudar as coisas a se
tornarem manifestas? Se o ente deve se mostrar nele mesmo, en­
tão não podemos nos meter no processo de sua aparição; não po­
demos alterar nada no ente, mas devemos justamente nos retrair
para que ele, o ente, possa se tornar manifesto a partir dele mes­
mo. Justamente agora a única coisa que importa é que deixemos o
ente ser como ele é e o tomemos assim como ele se dá.
Portanto, reside no agir científico uma atividade que possui o
caráter do retrair-se diante do ente. Precisamente essa curiosa ati-
Filosofia e ciência 197

vidade do retrair-se começa a se tornar hoje estranha para nós por­


que estamos cada vez mais convencidos de que o “agir” e a “ativi­
dade” estariam simplesmente ou preponderantemente aí onde as
coisas estão acontecendo, onde os negócios estão girando, onde o
poder se impõe, e isso porque desaprendemos que o respeito às
coisas exige uma força de dedicação muito mais elevada do que
todo esse atropelo e todo nivelamento.
Assim, justamente esse deixar-ser o ente, no qual se trata uni­
camente do desvelamento do ente, carece por fim de um “empe­
nho” particular, se é que o mero abster-se (o mero não fazer nada)
não é suficiente para deixar que o ente venha a ser nele mesmo
manifesto. Portanto, a mera permanência contemplativa não é ne­
nhum comportamento quietivo. No entanto, o que significa dizer
que, em um sentido insigne, devemos deixar o ente ser como o que
ele é? Mas não podemos aniquilá-lo e, se isso não é possível, en­
tão o deixar-ser também não possui sentido algum. O fato de o
ente ser o que e como ele é não se dá de maneira alguma por meio
da concessão de uma graça de nossa parte. Ele já se acha aí de­
fronte, ele é um positum, e não podemos fazer outra coisa senão
encontrá-lo aí. O que ainda pode significar então a expressão “dei­
xar-ser”?
Essa é a mesma questão que já tínhamos colocado acima quan­
do perguntamos: o que precisa acontecer para que as coisas se tor­
nem manifestas de modo característico? As coisas não se mostram
mais como terra de cultivo, como alicerces e pilares, mas como
corpos materiais, pontos dotados de massa, que se encontram em
determinadas relações. O ente mostra-se sob uma outra luz; isso
significa o seguinte: o ser do ente é agora determinado de uma ou­
tra maneira; ele não é mais terra de cultivo, alicerce ou pilar, mas
uma coisa "simplesmente” material. No entanto, essa qüididade
contém em si uma série de determinações: coisa material, coisa
móvel, movida no sentido da alteração do lugar no tempo. Junta­
mente com essa outra determinação do ser da qüididade temos
também uma outra concepção do modo de ser: ele não está mais
198 Introdução à filosofia

à mão para o processamento prático-técnico, mas - para além des­


se modo de ser - se mostra puramente como uma coisa apenas
presente, o ente qua natureza. A qüididade e o modo de ser das
coisas são determinados de maneira diversa; essa qüididade e esse
modo de ser, considerados em sua implicação recíproca, podem
ser designados de forma sucinta como o ser do ente em questão.

§ 26. A mudança da compreensão de ser no projeto científico.


A nova determinação do ente como natureza

De que maneira se realiza, porém, essa determinação diversa do


ente? Já vimos que juntamente com ela se dá uma curiosa amplia­
ção de seu âmbito, o qual passa a não estar mais restrito às coisas
de uso mais próximas. Ao contrário, a resistência, a pressão, o peso
e a gravidade são enunciados agora em relação a todas as coisas
materiais.
A nova determinação do ente como natureza surge por meio da
ampliação de seu âmbito ou, inversamente, a ampliação de seu
âmbito se mostra uma conseqüência necessária da nova determi­
nação do ente? Manifestamente, é a última opção que procede.
Uma mera ampliação do âmbito da experiência só conduz constan­
temente a novas coisas de uso. Na determinação particular qua na­
tureza, porém, acontece nitidamente algo diverso. Por mais que
comparássemos um número enorme de coisas de uso entre si, nun­
ca chegaríamos à “natureza” se já não tomássemos, de antemão, as
coisas dessa maneira. No entanto, como se realiza então essa nova
determinação do ente, se é que ela não resulta primeiramente de
um processo de ampliação, mas se mostra mesmo antecedente a
ele? Com certeza, ela não pode anteceder a ampliação de um
modo tal que todos os entes comecem sendo comparados qua coi­
sas naturais; pois essa comparação já pressupõe a nova determina­
ção. Somente sob essa luz, uma tal comparação seria possível, se
é que seria efetivamente possível.
Filosofia e ciência 199

Se procurarmos deixar claro como essa nova determinação do


ente se mostra antecedente, precisaremos antes de mais nada ver
com maior acuidade o que acontece aí. Ela é uma determinação
do ente qua natureza. Não acrescentamos um novo ente, não nos
voltamos para outras coisas. Ao contrário, as próprias coisas já ma­
nifestas são determinadas de uma maneira nova, e, em verdade,
em vista de sua qüididade e de seu modo de ser, em vista do ser.
O ente que se acha à nossa frente não é mais tomado como uma
coisa de uso à mão (giz), não é mais tomado como objeto do pro­
cessamento e do zelo técnicos, mas como um corpo material por
si subsistente. O que o ente é e como ele é, a qüididade e o modo
de ser do ente, sua constituição ontológica, o ser são determinados
de maneira diversa; e, com efeito, de um modo tal que a partir de
então o ente que se encontra à nossa frente se torna pela primeira
vez passível de questionamento como o ente por si subsistente no
que diz respeito àquilo que ele é e como ele é em particular, em
seus pormenores e sob determinadas condições reais.
Recapitulando: não é um outro ente que é anexado e descober­
to, mas o ser do ente já manifesto que é visto, tomado e determi­
nado de antemão de maneira diversa; e, com efeito, de um modo
tal que essa determinação do ser antecede a experiência do ente.
Podemos ilustrar esse estado de coisas com um exemplo bastante
instrutivo, a saber, apontando para o surgimento da física matemá­
tica na modernidade, tal como ela é fundamentada por Galileu.
Todavia, não tomamos esse exemplo como uma instância que fun­
damenta a nossa interpretação da essência da ciência, mas apenas
como uma prova de seu surgimento fático.
A física moderna é denominada física matemática, e o fato de
ela proceder indutivamente é visto como um traço particular ante
a física medieval. A física moderna observa os fatos tal como eles
são, enquanto a especulação medieval buscava obter para si um
conhecimento da natureza a partir de meros conceitos genéricos.
Não obstante, tanto na Antiguidade quanto na Idade Média, já ha­
via uma ciência natural que observava os fatos. Dessa forma, o ca-
200 Introdução à filosofia

ráter indutivo não toca a essência da física moderna. Indo além,


costuma-se dizer que, em contraposição à antiga ciência natural, a
moderna ciência natural trabalha com o experimento. Enquanto a
antiga ciência natural dependia de observações contingentes, no
interior do experimento a natureza é em certa medida obrigada a res­
ponder a determinadas perguntas. Mas sabemos que a antiga ciên­
cia natural também já trabalhava com experimentos e, contudo,
não tinha o caráter alcançado pela física por meio de Galileu. Em
terceiro lugar, a diferença parece consistir no fato de a física atual
ser matemática, enquanto o conhecimento medieval da natureza
não podia fazer uso algum da matemática nesse sentido; e de fato não
podia fazer um tal uso porque o desenvolvimento da m atemáti­
ca moderna acontece juntamente com o surgimento da física ma­
temática.
Em primeira linha, o termo “matemático” não significa aqui o
fato de a matemática calcular e obter resultados numericamente
exatos; isso é apenas uma conseqüência. Matemática é um cami­
nho e um meio de tomar a natureza assim estabelecida, de expres­
sar o ser da natureza. Essa é estabelecida como determinada e de­
terminável por meio de quantidades. Quantum - extensio , espaço,
tempo, movimento, força. A física moderna é matemática porque
o a priori está, de certa maneira, determinado. Todo experimento
(juntamente com os instrumentos de medição aí utilizados) é esta­
belecido e interpretado sob a luz de uma determinação prévia do
ser do ente.
A intelecção epocal de Galileu foi reconhecer que, caso eu
queira, por meio do experimento, interrogar a natureza quanto ao
que ela é e como ela é, já preciso ter antes de tudo um conceito do
que compreendo por “natureza”: que uma delimitação do que é
compreendido por natureza precisa anteceder toda investigação
dos fatos, todo experimento. No entanto, Galileu não formulou
essa pergunta de maneira puramente platônica. Ao contrário, ele
fixou um conceito de natureza segundo o qual a natureza é toma­
da como uma conexão de corpos móveis, de entes cujo caráter fun-
Filosofia e ciência 201

damental reside na extensão espacial e temporal, sendo que movi­


mento não é outra coisa senão alteração de lugar no tempo. Por
meio dessa determinação fundamental da natureza, a multiplicida­
de do ente é imediatamente homogeneizada, isto é, ela assume um
mesmo modo de ser no sentido de que a natureza é determinada
de uma maneira uniforme em termos quantitativo-matemáticos
tanto em relação ao seu caráter espacial quanto em relação ao seu
caráter temporal.
Com isso, porém, também não tocamos a essência propriamen­
te dita da fundamentação da física matemática. Essa realização de
Galileu só constituiu uma fundamentação da física porque o ele­
mento matemático, a determinabilidade quantitativa, não é outra
coisa senão uma determinação essencial do corpo como um ente
extenso que se movimenta. A física matemática tornou-se uma
ciência autêntica porque, por meio do caráter do elemento mate­
mático, ela determina de antemão a constituição ontológica daqui­
lo que pertence a uma coisa natural. O caráter matemático da fí­
sica coloca à base de todas as suas investigações experimentais um
conceito clarificado da constituição ontológica do ente que é aí
elaborado, a saber, a natureza. E a partir daí que compreendemos
a sentença kantiana: toda doutrina particular da natureza só é ciên­
cia na medida em que contém matemática. Isso significa: uma
ciência só é ciência na medida em que consegue circunscrever pre­
viamente a constituição essencial do ente que ela trata. Esse é o
caráter propriamente matemático da física.
Se compreendermos plenamente a sentença kantiana - não como
se todas as ciências precisassem adotar o método matemático -,
então veremos que ela quer dizer o seguinte: toda ciência precisa
ter em vista o fato de o ente que ela transforma em objeto já pre­
cisar estar, de antemão, suficientemente definido em sua essência,
para que toda questão concreta possa encontrar um fio condu­
tor para localizar o que é objeto nessa ciência. Assim, o exemplo
da física matemática mostra-nos o seguinte: algo como um experi­
mento só é possível com base no caráter matemático assim com-
202 Introdução à filosofia

preendido. Pois o experimento não é uma observação arbitrária de


um evento qualquer, mas produção de um evento natural sob com
dições tais que possam ser medidas com o auxílio de instrumento*
apropriados. O essencial do experimento não é a observação, ma*
a interpretação daquilo que foi observado, daquilo que se dá aqui,
Uma tal interpretação pressupõe que o evento que observo já seja
previamente concebido como um evento natural. Isso não vale
apenas para os experimentos físicos, mas também para todo e
qualquer instrumento que eu venha a empregar na física. Medição
significa constatação de coincidências. Tomemos, por exemplo, o
relógio. Olhamos diariamente para o relógio e constatamos a hora,
Será que a confluência, a coincidência da posição de um ponteiri
nho com um determinado traço na superfície do relógio deve sig­
nificar uma medição do tempo? Essa medição do tempo se nos tor­
nou tão óbvia que não notamos mais absolutamente o mundo de
pressupostos que reside aí quando olhamos para o relógio. Essa
utilização do relógio só é uma medição do tempo se tomo essa coi­
sa como relógio, isto é, se a utilização é orientada pela medição do
tempo, pelo sol. Assim, só se está em condições de utilizar um ins­
trumento que serve para a medição se uma compreensão da natu­
reza se encontra à base de uma tal utilização.
Uma coisa deve ter ficado clara por meio dessa discussão: a de­
terminação do ente como natureza precede toda observação con­
creta. Só posso comparar as coisas como coisas naturais se já sei
de antemão o que é próprio a uma coisa natural. Dessa forma, ve­
mos que essa mudança da determinação do ente se realiza mani­
festamente como uma mudança da determinação da constituição
ontológica do ente, uma mudança da determinação do que o ente
é e de como ele é. Designamos essas duas dimensões juntas como
o ser do ente. Em contraposição às coisas de uso mostra-se repen­
tinamente um âmbito universal das coisas materiais, a chamada
natureza física. E essa transformação repousa, portanto, sobre uma
mudança da determinação do ser do ente; e, com efeito, sobro
uma mudança da determinação do ser que precede toda experiên­
cia concreta desse ente, da natureza.
Filosofia e ciência 203

Ale mjiii estivemos sempre falando do desvelamento do ente, do


lain de nos comportarmos em relação ao ente e de o ente também
pndn sc lornar por fim objeto da ciência. Agora, repentinamente,
iiiln sc Irala mais do ente, mas do ser mesmo e do fato de a apreen-
*ilo c dclcrminação da constituição ontológica do ente tornarem
lai mio acessível ao conhecimento científico. Indo além, isso sig-
Hllli a essa nova determinação da constituição ontológica do ente
iinlei ('(leu a investigação científica concreta do ente.

a) () caráter prévio da compreensão de ser em relação


a todo conceber

<• t|iio significa aqui apreender algo assim como o ser? E mais:
»• que significa apreender previamente o ser? Como é que isso
pude viabilizar justamente a apreensão do ente e, o que diz o mes­
mo, a manifestação do ente?
I )c início parece uma estranha exigência apreender o ser do
• nlc Ente - certamente algo que conhecemos; sim, a todo mo-
mchio nós nos comportamos em relação a entes de múltiplos ti­
pos Pm isso, podemos indicar facilmente e com segurança um
I nlc, dando provas do que temos em vista com esse termo. Entes
Hin I asas, homens, árvores, sol, terra: coisas em relação às quais
podemos construir representações. Todavia, o ser —o que devemos
pensai nesse caso? O ser diferencia-se manifestamente do ente e
iiiio ó d e mesmo nada ôntico; pois senão também precisaríamos
designa lo como um ente. “Ser” - se formos totalmente sinceros e
n io nos deixarmos enredar em ilusões, então precisaremos confes-
■•II que não estamos em condições de pensar nada sob esse termo,
'o I ele se parece de fato com o nada, se é que não deve ser um
• nlc ( ) não-ente é o nada. O ser seria, então, o nada. Hegel não
dl/ nada menos que isso em sua Wissenschaft der Logik, em sua
na lale.ii a ser e nada são o mesmo1 .

' i I I W. I 1legei. Wissenschaft der Logik, Primeira parte: a lógica objetiva,


Niiii iiibeig, IHI2, p. 75 (Primeiro livro, cap. I, C. Devir, observação 2).
204 Introdução à filosofia

Em todo caso é inquestionável que, se não nos deixamos enre­


dar de maneira alguma por nenhuma ilusão, precisamos confessar:
em meio à tentativa de conceber algo assim como o ser, chocamo-
nos com o vazio. Portanto, não há algo assim como o ser. Essa se­
ria uma conclusão apressada. Talvez sejamos nós apenas que não
estejamos agora em condições de conceber algo assim como o ser.
A questão é - não compreendemos afinal algo assim como o ser?
Quando pergunto: “o que é isso?’’, todos respondem: “isso é um
giz”. Daí fica claro: os senhores compreenderam a pergunta. Ques­
tionou-se o que essa coisa é, formulou-se a pergunta acerca de sua
qüididade. Nós compreendemos quando digo: “hoje é sexta-feira”.
O livro “é” razoável. Nós compreendemos esse “é” e, do mesmo
modo, suas modulações “foi”, “será”, “tinha sido".
Um estado de fato deveras curioso: por um lado, não estamos
em condições de apreender o ser e, não obstante, por outro lado o
compreendemos. E não o compreendemos apenas, por exemplo,
quando dizemos e ouvimos a palavra “é”, mas em todos os discur­
sos, chamados, pedidos, perguntas. Se ouvimos o grito de “fogo!”,
então isso significa que se iniciou um incêndio. Todavia, isso não
se dá apenas no sentido de uma constatação do tipo “aqui está
quente”. Ao contrário, o grito é ao mesmo tempo uma expressão de
medo, do estar-amedrontado e contém uma exortação: colocai-vos
em segurança ou ajudai; e isso significa: comportai-vos de tal e tal
modo, isto é, sede em vosso ser momentâneo de tal e tal modo. Ao
escutarmos esse grito, compreendemos conseqüentemente o ser
do fogo e um dever-ser referente a nós mesmos, compreendemos
o ser-por-si-subsístente e o ser-aí. Mas também o compreende­
mos quando não nos expressamos e nos comportamos de maneira
silenciosa em relação ao ente. Precisamos deixar totalmente clara
para nós essa curiosa situação: estamos declarando ao mesmo tem­
po que a exigência de apreender algo assim como o ser em contra­
posição ao ente é uma exigência para a qual não há nenhuma es­
perança, e que, no entanto, o compreendemos. Conseqüentemen­
te, compreender o ser do ente não pode significar o mesmo que
Filosofia e ciência 205

apreender esse ser, nem pode designar tampouco a concepção do


ser assim apreendido.
No entanto, em meio à primeira caracterização da determinação
diversa do ente como natureza —em contraposição às coisas de uso
- não se apontou apenas para o fato de a constituição ontológica
do ente ter sido determinada de uma outra maneira, mas também
para o fato de essa determinação do ser anteceder a experiência
concreta do ente. Portanto, não apenas compreendemos algo as­
sim como o ser, mas esse compreender o ser (compreensão de ser)
c de um tal modo que ele antecede a experiência do ente. Dize­
mos: em relação à experiência do ente, a compreensão de ser é pre­
cedente. Essa precedência se mostra de tal modo que só consegui­
mos encontrar o ente em meio à claridade que surge a partir do
fato de a compreensão prévia de ser nos reter diante de uma luz.
Compreendemos o ser e o compreendemos previamente.
Todavia, se isso é pertinente, então a compreensão de ser não se
laz presente apenas quando empreendemos uma ciência natural
ou qualquer outra ciência, mas por todo o tempo e por toda parte
em que nos comportamos em relação ao ente, em que o ente está
manifesto; por conseguinte, já também no ser-aí pré-científico, as­
sim como no ser-aí científico, sem que esse precise empreender
expressamente ciência. Em nossa lida cotidiana com as coisas, ma­
ximamente irrelevante e extrínseca, já reside e precisa residir uma
compreensão prévia de ser. Quando realizamos, por exemplo, uma
ação para a qual não damos absolutamente nenhuma atenção,
uma ação tal como a de abrir uma porta, o que fazemos diariamen­
te muitas vezes, essa ação implica segurar a maçaneta. Se já não
compreendêssemos de antemão o que significa uma coisa de uso
instrumento, automóvel, utensílio destinado à escrita, à medi­
ção, isqueiro, ou seja, utensílio em geral - , não estaríamos em con­
dições de fazer uso da maçaneta como tal.
Contudo, um macaco ou um cachorro habilidosos também con­
seguem abrir a porta, assim como entrar e sair. Certamente, a
questão é apenas saber se eles, ao tocarem e pressionarem algo, se-
206 Introdução à filosofia

guram uma maçaneta, e se eles realizam algo assim como abrir uma
porta. Com isso, falamos como se o cachorro realizasse o mesmo
que nós. No entanto, não se tem presente o menor critério para
afirmar que o cachorro usa de fato uma maçaneta; sim, ainda mais,
não há o menor critério para dizer nesse caso que ele se comporta
em relação ao ente, por mais que ele se relacione a algo que co­
nhecemos como um ente.
Nunca conseguiriamos reconhecer e utilizar uma coisa que fun-
dadamente denominamos uma faca como uma faca, como uma
coisa para cortar, se não compreendêssemos essa coisa como algo
do gênero de uma coisa para..., um utensílio para cortar. Não
aprendemos o que é um utensílio por meio da utilização de uma
faca, de um utensílio para escrever ou para costurar, mas, inversa­
mente, só podemos nos deparar com entes desse gênero porque e
na medida em que compreendemos algo assim como um utensílio.
Compreendemos isso de antemão, nós já trazemos conosco uma
tal compreensão e somente por isso podemos aprender a lidar com
um utensílio dessa espécie. Compreendemos previamente algo as­
sim como um utensílio e como um ser-à-mão, c, contudo, estamos
muito longe de poder dizer o que significa um utensílio como tal,
de poder dizer como ele deve ser concebido. Compreensão de ser
ainda não é concepção do ser. No comportamento em relação ao
ente, não importa de que tipo seja, movemo-nos em uma com­
preensão prévia de ser e, em verdade, em uma compreensão de ser
pré-conceitual.
Visto que também em um comportamento não-científico em re­
lação ao ente já nos movemos em uma compreensão prévia de ser
desse ente, não notamos de início e por muito tempo de maneira
alguma o que no fundo sucede quando nós, em vez de utilizarmos
coisas de uso, passamos a investigar corpos materiais em vista de
seus contextos de movimento e de suas leis. Não notamos que se
realizou uma mudança da compreensão prévia de ser. Parece antes
que justamente o ente se tornou diverso. Sim, mesmo aqueles pes­
quisadores que são os primeiros a fundamentar uma ciência e a co-
Filosofia e ciência 207

locar em curso, aqueles pesquisadores que, portanto, como que le­


vam a termo pela primeira vez essa mudança da compreensão
prévia de ser —enquanto os outros apenas a co-realizam e a se­
guem —, mesmo eles não têm nenhum conhecimento acerca do
que no fundo acontece aí; em todo caso, eles não precisam ter ne­
cessariamente um tal conhecimento.

b) Mudança da compreensão de ser: um exemplo da física

A mudança da compreensão de ser se lhes apresenta muito


mais sob aquela forma que todas as representações científicas pos­
suem, ou seja, como delimitação de conceitos. A única diferença
é que agora são definidos os conceitos fundamentais e as idéias
mais universais: massa, força, velocidade, movimento, lugar, tem­
po. No que diz respeito ao campo da ciência em questão, eles lhe
fornecem uma caracterização suficiente. Todavia, permanece obs­
curo a que visam, no fundo, esses conceitos; figuram justamente
como os conceitos mais universais em relação ao ente (natureza,
por exemplo). Não se prossegue inquirindo acerca do que é visado
nesses conceitos mesmos. Nas definições, esses conceitos funda­
mentais vêm à tona. A própria definição, porém, não dá senão as
linhas limítrofes e a regra para a investigação do ente em questão.
Se tomarmos uma definição genérica da física: e = v . t (espaço
percorrido é igual à velocidade vezes tempo), então essa fórmula
não representará senão uma delimitação do que na física se com­
preende por espaço percorrido. A pergunta “o que é um espaço
percorrido?” não pode ser respondida por meio de uma reflexão
qualquer sobre a possibilidade da mensuração de um espaço. Ao
contrário, o espaço percorrido é definido segundo o aspecto de sua
extensão quantitativo-espacial porque o corpo físico que percorre
um trajeto é tomado de antemão como uma coisa quantitativa­
mente determinável que altera o seu lugar. Inversamente, pode­
mos determinar “v” por meio dos quocientes e/t. Se estabelecer­
mos t = 1, teremos o conceito de velocidade. Já o fato de expres-
208 Introdução à filosofia

sarmos a definição de tempo por meio de um quociente ou de um


produto mostra que o evento natural é tomado desde o princípio
como uma unidade homogênea de coisas materiais em movimen­
to. Se o físico vai além da definição que é necessária para o seu
questionamento físico, então a determinação subseqüente do que
ele define também é definida a partir do ponto de vista que é dado
aqui por meio da física matemática. E possível ver isso em New
ton, nos seus Principia (1714), pp. 7 e 5: Têmpora et spatia sunt siti
ipsorum et rerum omnium quasi loca. In tempore quoad ordinem
successionis, in spatio quod ordinem situs locantur universa. De illo-
rum essentia est, ut sint loca, et loca primaria moveri absurdum est...
Tempus, spatium, locus et motus sunt omnibus notissima. Tempm
absolutum, verum et mathematicum, in se et natura sua sine relatio-
ne ad externum quodvis, aequabiliter fluit, alioque nomine dicitur
duratio,s. “Os tempos e os espaços são os elementos que guardam
por assim dizer as posições de si mesmos e de todas as coisas. No
tempo, todas as coisas são situadas em vista da ordem da sucessão.
No espaço, em contrapartida, todas as coisas são situadas em vis­
ta da ordem de sua posição objetiva.”
Daí resulta que o espaço tanto quanto o tempo são tomados
como os elementos nos quais os objetos são ordenados como ob­
jetos em movimento; e, com efeito, de um modo tal que eles são
determináveis matematicamente. Isso ainda continua atuando na
tese kantiana: tempo e espaço são os fatores em que a ordem se
estabelece.
Com efeito, Newton ainda acrescenta que pertence à essência
do espaço e do tempo o fato de eles serem loca, lugares, em certa
medida elementos que guardam posições. No entanto, tais posi­
ções e tais meios não estão mais eles mesmos em um outro. Ao
contrário, eles são o meio para si próprios. Na medida em que eles
são os loca primaria, os meios derradeiros e extremos, eles mesmos

18 Isaac Newton. Philosophiae natumlis principia mathematica, Amsterdam,


1714.
Filosofia e ciência 209

()M |,|,(|i'in mais ser movidos, apesar de justamente o tempo ser


I,•i j/ado pelo fluxo regular da sucessão. Newton diz: tempus
ii,t\<ihU'r [Uút, o tempo flui regularmente. Ele introduz a defini-
(|,.ssr s conceitos fundamentais tais como tempus, spatium, lo-
^ a« a" di/cr que esses são objetos que se mostram como os mais
| M., idos para todos; e eles só são definidos até o ponto em que
a, m i|in‘slinnados dentro do campo de atuação do princípio funda-
nu iiial ‘1*' ,ima natureza como um contexto de movimento de coi-
K(.lecionadas.
desse gênero só é discutido até um certo ponto e segundo
(|| ,|,.terminada forma: até o ponto em que, para todo questio-
itiiiucnlo científico-natural concreto, já está previamente estabe-
I , ido o que é compreendido aí por natureza e por evento natural.
\ ,,,,K,Pncia da natureza é delimitada de uma certa maneira prévia;
......... . constituição ontológica do ente (natureza) não é expres-
...iiiiciilo objeto de questão. Mas, afinal, como se faz uso do tem-
l„, ,. do espaço? Na mudança da compreensão de ser, na transi-
. ,|,| d.i apreensão da coisa de uso para a apreensão da natureza
i, ,ill/a se um projeto prévio da constituição de ser. No entanto,
11,1,0 se dá de um tal modo que a própria constituição de ser não
„, ioi o.i objeto. Assim, temos aqui um projeto não-objetivo da cons-
llloli.ao de ser.

i ) A positividade da ciência. O projeto prévio, não-objetivo,


demarcador do campo da constituição de ser

\go ia , porém, é importante ver que com esse projeto não ape-
.............s e i do ente é determinado de antemão de maneira diversa,
in,i'. que, nesse e com esse projeto do ser, é delimitado e demarca-
......... campo ôntico. Pois, com isso, é decidido desde o princípio
ii <1111 pertence ao campo denominado natureza, ainda que todo
. mu' i .impo não seja faticamente mensurado de antemão ou mes-
11111 apenas conhecido. O projeto prévio não-objetivo da constitui-
ii, in de ser é um projeto que demarca um campo.
210 Introdução à filosofia

No entanto, esse projeto não se confunde com o estabelecimen­


to extrínseco de uma linha divisória. Ao contrário, ele é um proje­
to da constituição ontológica do ente. Isso significa: as definições
que esse projeto determina desde o princípio em relação ao ente
“natureza” vêm à tona em todo conhecimento concreto de um de­
terminado evento natural, e, com efeito, de uma tal forma que to­
dos os conceitos e proposições da física remontam implicitamente
a essas definições. Ou seja: os conhecimentos físicos encontram aí
a sua fundamentação derradeira ou primeira, toda demonstração
física específica funda-se na constituição de ser estabelecida. O
projeto da constituição de ser, um projeto prévio não-objetivo e de-
marcador de campo, é com isso um projeto que fornece um fun­
damento, um projeto fundamentador. Conceitos fundamentais são
aquelas representações que, no contexto de sua constituição, for­
necem o fundamento de todo conhecimento do ente.
Assim, no todo obtemos o seguinte: o projeto prévio e não-obje-
tivo, mas demarcador de campo e fundamentador, o projeto da
constituição de ser deixa o ente, cujo ser ele determina, vir à luz
pela primeira vez por meio dessa caracterizada determinação. So­
bre o pano de fundo do ser delineado no projeto, o ente assim de­
terminado ganha relevo pela primeira vez. Nesse e com esse pro­
jeto do ser, o ente em questão torna-se pela primeira vez manifes­
to como algo que se acha e está aí defronte para a contemplação
concreta. O projeto impele o ente pela primeira vez para a luz, sem
nada alterar nele. O ente é manifesto como algo que se acha aí de­
fronte, como o positum. Somente se o ente se torna manifesto des­
sa maneira como algo que se acha aí defronte ele é cognoscível
nele mesmo. O conhecimento do ente nele mesmo —assim carac­
terizamos o conhecimento científico. Por conseguinte, ele é co­
nhecimento do ente como positum ou conhecimento positivo. A
essência do conhecimento científico como conhecimento positivo
consiste então naquilo que perfaz à possibilidade interna desse ca­
ráter “positivo”, nesse achar-se-aí-defronte manifesto nele mesmo.
Denominamos positividade à possibilidade interna desse caráter
Filosofia e ciência 211

positivo da ciência. A essência da ciência reside na positividade.


No entanto, essa positividade consiste por seu lado no que possi­
bilita o achar-se-aí-defronte do ente nele mesmo. Esse elemento
possibilitador é o projeto caracterizado da constituição ontológica
do ente.
Na primeira distinção do comportamento científico ante o pré-
científico dissemos que a ciência não descobre absolutamente
pela primeira vez o ente, de tal modo que antes disso nada seria
manifesto e o ser-aí só se comportaria em relação ao ente em ra­
zão da ciência. Ao contrário, todo comportamento científico assen­
ta-se sobre a base de um comportamento já existente em relação
ao ente. O ente já precisa se achar de alguma forma manifesta-
mente aí defronte, de tal modo que, com efeito, a ciência possa
justamente tornar o ente manifesto como um ente que se acha aí
defronte, como um positum que é nele mesmo.
Como é possível que o ente nele mesmo se ache aí defronte
como um ente manifesto? No que se funda a possibilidade da po­
sitividade do positum'? O projeto da constituição ontológica não é
apenas um projeto prévio, não-objetivo, demarcador de campo,
mas é ao mesmo tempo um projeto fundamentador. Ele constitui
a possibilidade interna —possibilidade = essência —do conhecimen­
to do ente como um ente que se acha aí defronte. Todavia, ciência
é conhecimento positivo. Portanto, o projeto mencionado é a es­
sência da positividade da ciência.
SEXTO CAPÍTULO

Sobre a d iferen ça en tre ciê n cia e filosofia

§ 27. O projeto da constituição ontológica do ente como


possibilitação interna da positividade, isto é, da essência da ciência.
Compreensão de ser pré-ontológica e ontológica

Com efeito, alcançamos agora uma clarificação da essência da


ciência: ela c conhecimento positivo e tem o caráter da positivida­
de. Mas será que com essa clarificação essencial da ciência como
conhecimento positivo não nos desviamos completamente de nos­
sa formulação inicial do problema? A questão diretriz era, porém,
a seguinte (cf. pp. 191 s.): no que reside o traço distintivo daquele
tipo de existência no qual algo assim como o ser-na-verdade acon­
tece em virtude da verdade? A questão apontava para um concei­
to existencial de ciência. Para tal fim começamos por uma discus­
são acerca do que poderia significar a sentença: “em virtude da
verdade”, ou seja, em virtude do desvelamento do ente, em virtu­
de do fato de o ente ser manifesto nele mesmo. Em termos gerais,
vimos anteriormente que isso acontece em um deixar-ser o ente.
No comportamento científico como o ser-na-verdade em virtude
da verdade, o que precisa estar em questão é um deixar-ser o ente,
totalmente específico. Também formulamos a pergunta da seguin­
te forma: qual é a ação originária do ser-aí [jtpãÇiç] na qual algo as­
sim como a atitude teórica é possível? Qual é a essência originária
do teórico?
Em vez de darmos então a resposta à pergunta acerca do que se­
ria esse específico deixar-ser o ente como conhecimento científi-
Filosofia e ciência 213

co, passamos à caracterização do conhecimento científico como


um conhecimento positivo. Será que com isso encontramos o que
procuramos, a ação originária do scr-aí que possibilita a atitude
teórica? Será que a essência do teórico é esclarecida ao dizermos
agora: atitude teórica é conhecimento positivo, ou seja, conheci­
mento do ente nele mesmo, tornar o ente manifesto em virtude da
manifestação mesma?
De fato. Pois não dissemos simplesmente: o conhecimento
científico é positivo enquanto conhecimento teórico. Ao contrário,
destacamos o que é próprio da positividade, isto c, nós encontra­
mos o que possibilita a positividade como tal: o projeto prévio, não-
objetivado, demarcador de campo, fundamentador da constituição
ontológica do ente. Como projeção do ser do ente, o projeto assim
caracterizado não é, por sua vez, outra coisa senão o deixar-ser o
ente, o deixar-ser que estávamos inquirindo. Essa projeção como
deixar-ser o ente é a ação originária do ser-aí que estávamos bus­
cando. Somente ela torna possível a atitude teórica, ou seja, o tor­
nar manifesto o ente exclusivamente em virtude de seu desvela-
mento. No projeto que possibilita a positividade reside a ?tpã§i.ç
originária, o caráter originariamente prático do teórico. Mais ain­
da: o projeto da constituição ontológica do ente como possibilita-
ção interna da positividade, ou seja, da essência da ciência, não é
outra coisa senão a essência originariamente apreendida do teóri­
co. O traço distintivo daquele tipo de existência no qual ocorre o
ser-na-verdade em virtude da verdade, isto é, o traço distintivo da
ciência, reside na ação originária que caracterizamos como o pro­
jeto da constituição ontológica.
No entanto, dir-se-á: não há dúvida de que esse projeto possibi­
lita a positividade, a essência da ciência. Mas o que é afinal esse
projeto mesmo? Com que direito o denominamos uma ação origi­
nária do ser-aí, o traço distintivo de um tipo de existência? O que
precisa ser esse projeto da constituição ontológica mesma para que
possibilite algo assim como o ser-na-verdade em virtude da verda­
de? Nesse caso, ele precisa se encontrar em uma relação interna
214 Introdução à filosofia

com a essência da verdade. Em que relação se encontra esse pro­


jeto da constituição ontológica com o que vimos como a essência
da verdade?
Assim, encontramo-nos junto a uma nova questão central. Nem
bem alcançamos a resposta à pergunta acerca da essência existen­
cial da ciência e essa resposta mesma já se transformou em uma
nova pergunta.
No que consiste esse projeto que possibilita a positividade da
ciência, ou seja, sua essência, e no que consiste sua relação com a
verdade? Tivemos a oportunidade de perceber: em todo o nosso
ser-aí compreendemos algo do gênero do “é”, do “foi”, do “será”, do
“ser” em geral, mas não o concebemos; e isso a um tal ponto que
não estamos nem mesmo em condições de tomar o próprio ser
compreendido de alguma forma. Todavia, essa compreensão de ser
possibilita justamente que estejamos efetivamente em condições
de apreender o ente enquanto ente. A compreensão de ser com­
preende o ser do ente, isto é, ela sempre “interpelou discursivamen­
te” e de antemão o ente enquanto ente, em vista de seu ser.
Os gregos denominavam interpelar discursivamente algo enquan­
to algo com o termo À.éyetv, Xòyoç. Com esse termo não se tem em
vista necessariamente elocução, “conversação exterior”, e|co em
contraposição a eüco Xôyoç; mas ^.óyoç também é tomado como
XeyópEvov. Esse termo kó yoç tem a mesma ambigüidade que os
nossos conceitos correspondentes. Por “discurso” compreendemos
por um lado o que foi dito, e, por outro lado, o próprio dizer1. O “in­
terpelar discursivamente” o ente enquanto ente, a interpelação

1 Passagem de difícil tradução por conta de peculiaridades próprias à língua


alemã. O termo presente no texto original é Spruch. Esse termo deriva-se direta­
mente do verbo sprechen [falar] e é normalmente traduzido por “dito’’, ‘‘sentença’’.
Nesse contexto, Heidegger apela para o fato de, na língua alemã, o termo Spruch
ser entendido tanto em sentido nominal quanto em sentido verbal. Como isso
não acontece em português com os termos correlatos, tivemos de buscar um ca­
minho alternativo. Na medida em que linguagem, discurso e Xóyoç estão em re­
lação direta no interior do pensamento heideggeriano, optamos por essa solução.
(N. doT.)
Filosofia e ciência 215

discursiva do ente, do ov em vista de seu ser pode ser designada


como Xóyoç do ov, Aóyoç xoü ovxoç - onto-logos, ontologia em sua
cunhagem moderna. Compreensão do ser é compreensão ontoló­
gica. Conhecimento do ente, do dv nele mesmo é conhecimento
ôntico.
“Interpelar discursivamente algo enquanto algo” não significa já
conceber o objeto assim interpelado em sua essência; compreen­
der algo como ente em virtude de seu ser não significa já apreen­
der a essência do ser. Certamente usamos o termo “ontológico” —
“ontologia” para a apreensão temática e para a concepção do pró­
prio ser. Sim, no fundo, até hoje e justamente hoje, o uso linguís­
tico tem se mostrado indeterminado e equívoco; ontológico é um
termo freqüentemente utilizado para ôntico - e isso uma vez mais
no sentido de que deixamos o ente viger por ele mesmo e não dei­
xamos que se evapore em termos idealistas. Tendência ontológica
na filosofia atual significa então: tendência para o realismo. Mas
essa tendência ontológica caracteriza-se justamente pelo fato de
não formular o problema da ontologia e de nem mesmo compreen­
dê-lo. Ainda um outro significado: onto-logia, bio-logia; tanto aque­
la como essa são consideradas ciências positivas, com a única di­
ferença de que a ontologia seria ciência positiva de todo ente no
geral. Visto a partir daí, a compreensão de ser que ilumina e dirige
todo o nosso comportamento em relação ao ente ainda não é ne­
nhuma compreensão ontológica, nenhuma concepção de ser. Por
isso, denominamos pré-ontológica a compreensão de ser que ainda
não está apta a uma concepção e ainda não atingiu o conceito de
compreensão.
Poderíamos resumir essa discussão aparentemente apenas ter­
minológica da seguinte forma: conhecimento do ente, do ov, é co­
nhecimento ôntico. Conhecimento científico, conhecimento posi­
tivo do que se acha aí defronte, é um determinado tipo de conhe­
cimento ôntico. Pois também na manipulação técnica das coisas,
na lida com elas, reside um conhecimento que podemos designar
como circunvisão e como saber fazer; em geral, todo comporta-
216 Introdução à filosofia

mento em relação ao ente, ao ov, é um comportamento ôntico. No


entanto, uma compreensão de ser se encontra à base desse com­
portamento e se mostra como o que o dota de luz e o conduz. Essa
compreensão de ser não é já “concepção” do ser —ela é compreen­
são de ser pré-ontológica. Uma tal compreensão de ser pré-ontoló­
gica pode assumir a forma de uma apreensão e de uma concepção
expressas do próprio ser: ela pode se tornar uma compreensão on­
tológica. Precisamos reter essas diferenças cruciais.
Por fim, ainda há aqui estágios intermediários: um tal estágio é
justamente o projeto da constituição ontológica que, ao ser levado
a cabo, por exemplo, por pesquisadores das ciências naturais, de­
limita o campo “natureza”. Pois nesse projeto não fala nem ganha voz
apenas uma compreensão de ser pré-ontológica, nem mesmo uma
apreensão e uma concepção expressas do próprio ser; ele se acha
em um peculiar espaço intermediário entre a compreensão pré-on­
tológica e a ontológica. Ele envolve uma espécie de compreensão
expressa de ser, o que não implica, contudo, que tal compreen­
são também já precisaria ser reconhecida e compreendida como
tal. Com as distinções que acabamos de introduzir, entretanto, con­
quistou-se mais do que uma terminologia. Aguçamos de tal modo
um problema que ele não pode mais ser desconsiderado.
A última coisa que perguntamos foi: em que relação o projeto
da constituição ontológica se acha com aquilo que expusemos
como a essência da verdade? Essa relação precisa ser bem estreita
se é que precisamente esse projeto possibilita o ser-na-verdade em
virtude da verdade. O projeto da constituição ontológica é em ge­
ral uma compreensão de ser pré-ontológica. O ser é compreendi­
do, ainda que não seja expressamente apreendido. Agora sabemos
que o ente também pode estar manifesto para nós, sem que este­
jamos expressamente orientados para ele e sem que o apreenda­
mos; mais ainda, o ente se nos torna manifesto em boa medida des­
sa maneira. Desvelamento do ente não consiste no ser-apreendido
do ente; esse ser-apreendido só é possível com base em um tal des­
velamento; o desvelamento pode subsistir sem a apreensão. Agora
Filosofia e ciência 217

podemos dizer: compreensão do ser, não conhecimento do ente,


tem o caráter de projeto. O traço distintivo do projeto reside no
fato de nele o ser-aí se dar a entender como ser, movimento, lugar,
tempo. O que ele dá a entender no projeto não é aí propriamente
objeto de uma apreensão dirigida a ele. O físico, por exemplo, não
especula sobre o tempo como tal e sobre a sua essência. No entan­
to, ele trabalha simultaneamente com o tempo, pois o tempo está
implícito em todas as suas proposições; ele trabalha com o tempo,
o tempo é dado de certa maneira e, com efeito, necessariamente.
Todavia, ele não é dado como objeto.
Com isso, se, no projeto da constituição ontológica, é compreen­
dido e dado algo como o ser, ainda que não seja concebido, então
nesse ser-compreendido e nesse ser-dado do ser reside um certo
desvelamento do próprio ser. Na compreensão de ser, o próprio ser
é desvelado, ou seja, a compreensão de ser é verdadeira e possui
sua verdade. Designamos o desvelamento do ente como manifes­
tação e, com efeito, diferenciamos a manifestação do ente qua ser-
aí, o descerramento, da manifestação do ente por si subsistente, o
ter-sido-descoberto. Por essa razão, em geral podemos denominar
o desvelamento do ente, a verdade do ov, verdade ôntica. De ma­
neira correspondente, então, o desvelamento do ser significa ver­
dade ontológica ou pré-ontológica.

§28. Verdade ôntica e ontológica. Verdade


e transcendência do ser-aí

Portanto, resulta daí a seguinte distinção:


1. Verdade do ser: desvelamento qua desencobrimento; verdade
pré-ontológica e verdade ontológica;
2. Verdade do ente: desvelamento qua manifestação; verdade
ôntica.
a) Manifestação qua descerramento: desvelamento do ser-aí.
b) Manifestação qua descoberta: desvelamento do ente por si
subsistente, do ente à mão.
218 Introdução à filosofia

Mas agora vejamos: se o ser-na-verdade em virtude da verdade,


isto é, a verdade ôntica e positiva da ciência, só é possível no e por
meio do projeto da constituição ontológica; se, contudo, esse proje­
to prévio é um tipo de compreensão de ser; e se ainda esse tipo de
compreensão enquanto compreensão de ser descortina como com­
preensão de ser algo assim como o ser, ou seja, é verdadeiro nesse
sentido, então o específico ser-na-verdade como ciência, essa ver­
dade ôntica, se funda na verdade ontológica.
Com isso, porém, a verdade científica é apenas um tipo e uma
possibilidade de tornar o ente manifesto, e o ser-aí continua sim se
comportando em relação ao ente sem levar a termo a ciência como
tal. Todo e qualquer comportamento em relação ao ente, toda ver­
dade ôntica de qualquer tipo só é possível com base na verdade on­
tológica. Além disso, se nos mostrou que faz parte da essência do
ser-aí humano ser na verdade, isto é, comportar-se como ente des­
cerrado em relação ao ente manifesto; sim, de posse dessa carac­
terização da verdade, procuramos empreender uma primeira deli­
mitação da essência insigne do ser-aí mesmo —em contraposição
ao ente por si subsistente. É possível que a verdade advenha ao
ente por si subsistente. No entanto, ela precisa pertencer ao ser-
aí, ou seja, ela pertence à essência de sua constituição ontológica.
Como, não foi dito. Essa verdade na qual o ser-aí essencialmente
se mantém vem à tona agora como verdade ôntica, isto é, como
uma verdade tal que só é possível com base na verdade originária:
o desvelamento do ser em meio à compreensão de ser.
Conseqüentemente, reside na essência do ser-aí um ser-na-ver­
dade ainda mais originário ou o inverso: a essência do ser-aí mesmo
precisa ser tomada ainda mais radicalmente em vista dessa verdade
originária da compreensão de ser; e isso de forma tão radical que
possamos dizer: o homem é aquele ente a cuja essência, isto é, a
cuja constituição ontológica pertence originariamente o fato de
compreender algo assim como o ser. A existência só é fundamental­
mente possível na e por meio da compreensão de ser. Pois apenas
essa compreensão possibilita que o ser-aí se comporte em relação
Filosofia e ciência 219

ao ente e, em meio ao comportamento em relação ao ente que ele


mesmo não é, se comporte em relação a si mesmo como ente.
Em face das intelecções agora alcançadas carece-se de uma
breve rememoração do que foi discutido anteriormente. Partimos
de uma caracterização da ciência, segundo a qual a ciência se mos­
tra como um “contexto de fundamentação de proposições verda­
deiras”. Isso tornou necessária a análise da verdade proposicional-
enunciativa. Essa análise trouxe à tona o seguinte: a proposição
não é o lugar originário da verdade, mas a verdade pertence essen­
cialmente ao ser-aí e é inversamente o lugar (a possibilidade inter­
na) das proposições.
As intelecções alcançadas foram resumidas em oito teses. A oi­
tava tese foi formulada da seguinte maneira: a verdade existe. Logo
depois deparamos com o fato de que a verdade não apenas não é
primariamente verdade do enunciado, mas mesmo a interpretação
da verdade como desvelamento do ente ainda não toca a sua essên­
cia originária. Assim chegamos a uma nona tese (Cf. p. 159, te­
ses 1-8).
9. Não obstante, a verdade tomada como desvelamento do ente
só existe se o ser-aí existente compreende algo assim como o ser,
isto é, se pertence à essência da existência do ser-aí desencobri-
mento do ser, verdade ontológica. (Cf. p. 224, tese 10.)
A verdade ontológica é mais originária do que a verdade ôntica;
a verdade ontológica é possibilitadora da verdade ôntica. No entan­
to, em sua distinção em relação à verdade ôntica, só caracterizamos
essa verdade ontológica —o projeto de ser - de maneira muito ru­
dimentar. Não esclarecemos o que é a própria verdade ontológica.
A resposta à pergunta acerca da essência originária da verdade, a
resposta em que afirmamos a verdade ontológica como sendo essa
essência, acaba por se converter uma vez mais em problema, se é
que 6 possível uma elucidação ainda mais profunda desse ponto.
E assim temos: a pergunta acerca da essência da verdade impe­
le a interpretações sempre mais originárias c, com efeito, de um
modo tal que ela comporta, precisamente porque a verdade per-
220 Introdução à filosofia

tence à constituição ontológica do ser-aí, uma interpretação res­


pectivamente mais profunda do ser-aí. O que significa: compreen­
são de ser, dar a entender algo assim como o ser do ente em meio
ao projeto? O que significa e como é possível uma projeção desse
gênero?
Recordemos novamente o fato fundamental várias vezes carac­
terizado concernente ao ser-aí humano: compreendemos algo as­
sim como o ser e não o concebemos. O ser está desencoberto e,
porém, velado. A tentativa de elucidar o que significa ser, como ele
precisa ser concebido e como o projeto de ser dá a entender algo
assim como ser, o que significa compreensão de ser - a elucidação
de tudo aquilo que determina a essência da existência humana
conduz de novo a abismos.
Precisamos tentar apreender a ação originária do deixar-ser o
ente em sua essência, isto é, precisamos perguntar por sua possi­
bilidade interna mais própria, para podermos a partir disso alcan­
çar uma intelecção do que acontece em uma tal projeção do ser.
Em vista de uma tal meta lançaremos provisoriamente luz apenas
à distância sobre esse abismo, a fim de compreendermos ao me­
nos o fato de que ainda há aqui problemas e de que esses proble­
mas são os mais centrais.
Compreensão de ser é um dar-a-entender-o-ser e esse dar-a-en-
tender-o-ser acontece como projeto. Nisso reside em primeiro lu­
gar um caráter de ação e, em segundo lugar, simultaneamente,
uma ação que dá algo para si, que dá algo a entender, que acolhe
esse algo, ou seja, que se mantém nele. No entanto, o agir e o fa­
zer não significam aqui produzir onticamente, mas mostrar indo
mais além. Nós nos aproximamos dessa projeção do ser por meio
de uma caracterização da mudança da verdade ôntica pré-científi­
ca para a verdade ôntica científica, ou seja, positiva. Dissemos que
a positividade da ciência é possibilitada por meio desse deixar-ser
específico; um tal deixar-ser reside, contudo, em todo comporta­
mento em relação ao ente. Não é somente na formação da ciência
que se pressupõe um projeto, mas a todo momento e por toda par-
Filosofia e ciência 221

te, onde e quando o ser-aí se comporta em relação ao ente. Toda­


via, no ser-aí isso não acontece ocasionalmente e de vez em quan­
do, mas essencial e constantemente, na medida em que o ser-aí
existe de maneira fática. E isso quer dizer: o ser-aí é como tal pro-
jetante. Esse projeto —conforme se evidenciou —é prévio. O ser-
aí já precisa ter dado a compreender a si mesmo algo assim como
o ser para que possa se comportar em relação ao ente.
O projeto é, de certa maneira, anterior: ele antecede; e o ente
se nos torna manifesto de uma tal forma que nós —de um modo
ainda encobridor - só nos deparamos com o que deixamos vir ao
nosso encontro como ente a partir do ser já compreendido. Além
disso, somente a partir de uma tal compreensão e sob a sua luz é
possível que esse vir-ao-nosso-encontro se dê. A partir do ser de
antemão compreendido retornamos pela primeiríssima vez ao ente;
mais exatamente: na medida em que já sempre nos comportamos
constantemente em relação ao ente, já sempre retornamos ao ente
em meio a e a partir de um projeto ontológico prévio.
No projeto prévio de ser sempre ultrapassamos de antemão o
ente. Somente com base nessa elevação, somente com base em tal
ultrapassagem, o ente se torna manifesto como ente. No entanto,
na medida em que o projeto do ser pertence à essência do ser-aí,
essa ultrapassagem do ente já precisa sempre ter acontecido e con­
tinuar acontecendo no fundo do ser-aí.
Designamos esse ato prévio de ultrapassagem do ente com a pa­
lavra de origem latina transcendere e denominamos a ultrapassa­
gem como transcendência. O ser-aí como tal é transcendendo —
transcendente. A essência fundamental da constituição ontológica
do ente que nós mesmos somos é a ultrapassagem do ente. Essa
ultrapassagem, essa transcendência implica que ao ser-aí como tal
pertença uma elevação originariamente própria de si mesmo. So­
mente porque na existência do ser-aí reside essencialmente essa
elevação o ser-aí existente pode cair, e isso significa ser determina­
do em seu modo de ser pelo que denominamos (Ser e tempo) a de­
cadência.
222 Introdução à filosofia

Mas se a verdade ontológica, em sentido próprio como projeto


prévio de ser, só é possível agora com base na ultrapassagem, isto é,
na transcendência do ser-aí, então a verdade ontológica se funda na
transcendência, ou seja, ela é transcendental. Por transcendental
entendemos em primeiro lugar tudo aquilo que pertence à trans­
cendência como tal; em segundo lugar, denominamos transcenden­
tal tudo o que remonta, de acordo com a sua possibilidade interna,
à transcendência. Só se consegue discutir o que significa o termo
“transcendental” se a essência da transcendência for determinada.
Em Kant, isso acontece em certo sentido de maneira acidental
e sem clareza quanto aos pressupostos e às exigências de um es­
clarecimento suficiente da essência da transcendência. “Transcen­
dência” significa para Kant: “o que transpõe por meio do vôo, o que
se lança para além de”. Normalmente faz-se uso de conceitos (re­
presentações) que ultrapassam a possibilidade da experiência, do
conhecimento ôntico, e, com efeito, que a superam de modo ilegí­
timo; conceitos (representações) que vão além do ente em si, sem
que sejam dados em uma intuição correspondente (sendo que o
“em si” significa aqui: relativo a Deus). Em contrapartida, “trans­
cendental” é um tipo de conhecimento no qual há “conceitos” que
—em si - não se relacionam a objetos, mas à possibilidade do co­
nhecimento ôntico, à possibilidade do conhecimento sintético a
priori, de um conhecimento que pertence essencialmente ao modo
de conhecimento ôntico; aqui o que está em questão é o conheci­
mento do ente no que diz respeito aos seus limites ou à sua possi-
bilitação; e isso significa positivamente: delimitação.
Conhecimento transcendental é conhecimento ontológico. Com
certeza, essa afirmação ainda é ambígua. Ela pode significar: 1.
Compreensão de ser pré-ontológica como elemento constitutivo
para o conhecimento ôntico e 2. Interpretação expressa dessa
compreensão de ser pré-ontológica como um conhecimento onto­
lógico em sentido estrito.
Mas por que o termo “ontológico” é equivalente ao termo “trans­
cendental”'? Porque ontologia segue lado a lado com a transcen-
Filosofia e ciência 223

dência. Em que medida? Em Kant, o termo “transcendental” é fre-


qüentemente usado de maneira mais restritiva; ele também tem
em vista o vôo ilegítimo. Em Kant, ele é mais um conceito crítico-
negativo ante a metafísica teológico-dogmática. Nós o compreen­
demos positivamente, a partir da essência da transcendência mes­
ma —que Kant nunca problematizou expressamente.
Transcendência é a possibilitação daquele conhecimento que
não transpõe de modo ilegítimo a experiência por meio do vôo que
conduz além, ou seja, que não é “transcendente”, mas é possibili-
tador da experiência mesma. O transcendental certamente forne­
ce a definição restritiva. No entanto, por meio da própria restrição
surge ao mesmo tempo a definição positiva da essência do conhe­
cimento não transcendente, isto é, do conhecimento ôntico possí­
vel como tal.
Ante o conceito tradicional de transcendência é preciso obser­
var o seguinte: 1. Ele não é originário, mas repousa sobre determi­
nações prévias não esclarecidas, as determinações do “sujeito” (cf.
anteriormente e, no que diz respeito ao conjunto, a preleção do se­
mestre de verão de 19272); 2. Além disso, esse conceito permane­
ce confinado e restrito ao conhecimento, sendo que esse conheci­
mento é uma vez mais tomado como conhecimento teórico e esse
ainda uma vez como investigação científica. Transcendência signi­
fica aqui: sair do sujeito e passar para um objeto. O transcenden­
te é o objeto, aquilo em vista do que saímos, aquilo em vista do que
se dá a relação.
Para nós, transcendência não significa sair em direção a um ob­
jeto. O sujeito já está fora e só está fora junto ao ente na medida
em que ele mesmo é descerrado. O ente que ele mesmo é e o ou­
tro ente já são de antemão ultrapassados. O ser-aí é transcenden­
te no sentido correto de transcender e somente porque ele trans­
cende no fundo de sua essência, o ente qua ente por si subsisten-

2 Heidegger refere-se aqui à preleção Die Grundprobleme der Phänomenologie.


(N. do T.)
224 Introdução à filosofia

te e o ente qua ser-aí podem não ser diferenciados inicialmente.


Identificação mítica pressupõe justamente transcendência.
Notemos en passant: aqui é desenvolvido um conceito mais fun­
damental, mais originário e mais expresso do termo “transcenden­
tal” do que em Kant. Kant viu pela primeira vez o transcendental,
ainda que se tenha mantido em um círculo de visão efetivamente
estreito e não o tenha visualizado de maneira suficientemente ori­
ginária. Mas, exatamente porque não determinou e não problema-
tizou intencionalmente a transcendência de maneira central, o seu
conceito de transcendental não pode ser suficiente.
De antemão pode-se dizer em princípio que o problema da trans­
cendência e do transcendental não tem nenhuma relação com a
distinção entre idealismo e realismo, mas é muito mais originário
do que a dimensão na qual essa diferença aparece; e isso a um tal
ponto que essa distinção só pode ser feita com base na transcen­
dência corretamente compreendida. Do mesmo modo, a trans­
cendência também não tem primariamente nenhuma relação com
o conhecimento e com a teoria do conhecimento. Depois de ter
sido apresentada nas teses de 1-8 (ver pp. 159-67) a transição da
verdade do enunciado para a autêntica verdade ôntica originária e
depois de a verdade ôntica ter sido reconduzida na tese 9 à verda­
de ontológica, chegamos assim a uma décima tese relativa à essên­
cia da verdade (cf., pp. 219 s.).
10. A verdade ontológica (desvelamento do ser) só é por sua vez
possível se o ser-aí estiver em condições de, segundo sua essência,
ultrapassar o ente, isto é, se, como ser faticamente existente, ele já
ultrapassou continuamente o ente. Verdade ontológica funda-se na
transcendência do ser-aí; ela é transcendental. No entanto, a trans­
cendência do ser-aí não se esgota inversamente na verdade onto­
lógica (cf. tese 11, p. 225).
A transcendência como constituição essencial do ser-aí acha-se
uma vez mais à base da verdade ontológica. Somente em função
da transcendência é possível o que denominamos a irrupção do
ser-aí como um ser existente no ente. Somente porque o ser-aí é
Filosofia e ciência 225

transcendente no fundo de sua essência a verdade ontológica “e” a


verdade ôntica são possíveis. Dissemos intencionalmente ontológi­
ca e ôntica. Pois o que se tem aqui não é somente uma série de
condições postas umas ao lado das outras, a ôntica apontando para
a ontológica e esta uma vez mais para a transcendência. Ao contrá­
rio, a verdade pré-ontológica, ou seja, a compreensão projetiva do
ser é como tal uma compreensão do ser do ente, quer esse ente
exista efetivamente de maneira fática ou não, quer ele seja por si
subsistente ou não. Inversamente, a experiência do ente, a verda­
de ôntica, só é uma tal experiência em uma compreensão de ser.
Verdade ôntica e verdade ontológica encontram-se em uma co­
nexão originária — correspondente à diferença entre ser e ente.
Essas não são duas esferas estabelecidas simplesmente uma por
meio da outra “e” uma ao lado da outra, mas o problema é a uni­
dade específica e a diferença entre elas em sua implicação recí­
proca. Eles mesmos, ou seja, esses que são diferenciados nessa
distinção, só podem ser concebidos em sua essência a partir do
que essa diferenciação como tal possibilita. Em outras palavras: a
transcendência não é apenas a possibilidade interna da verdade
ontológica e também, indiretamente, da verdade ôntica, mas é
justamente a condição de possibilidade desse “e também” da co­
nexão entre eles; sim, ela é a condição de possibilidade da dife­
renciação entre ser e ente, da diferenciação em função da qual
podemos de algum modo falar de ontologia. Designamos essa dis­
tinção “diferença ontológica” e compreendemos o termo “ontoló­
gico” no sentido apresentado (cf. pp. 214 s.). Daí resulta uma ou­
tra tese fundamental:
11. A transcendência do ser-aí é a condição de possibilidade da
diferença ontológica, do fato de que é possível irromper de algum
modo uma diferença entre ser e ente, de que é possível haver essa
diferença. Mas a essência da transcendência também não se esgo­
ta nesse ponto.
Por mais indeterminado que isso ainda possa ser para nós ago­
ra, a única coisa a que inicialmente aspirávamos precisa ter ficado
226 Introdução à filosofia

clara: perguntamos o que é a essência da ciência e em que medi­


da a ciência possui um limite. Desde então ficou claro o seguinte:
a ciência não é algo que se apresenta juntamente com muitas ou­
tras coisas com as quais podemos nos ocupar, mas, para ser o que
é, precisa ter fincado suas raízes na essência originária do ser-aí
mesmo, na transcendência. Agora já se compreende mais concre­
tamente o que indicamos anteriormente como a definição anteci-
patória da ciência: ela é uma possibilidade da existência do ser-aí.
Mas, se a ciência é realmente uma possibilidade autêntica, ela pre­
cisa necessariamente se autodelimitar, se é que toda possibilidade
traz consigo seu limite em si, ou seja, a delimitação de si mesma.
A pergunta acerca da essência da ciência só se nos tornou uma
questão pungente para que pudéssemos vislumbrar a partir dessa
sua essência em que medida a ciência se autodelimita.
Não se trata manifestamente de uma delimitação de um tipo tal
em que a ciência como que se depararia simplesmente com algo
diverso do qual estaria cindida por meio de uma espécie de cerca.
Não se trata aqui da construção de uma cerca demarcatória em
volta do terreno da ciência, uma cerca em relação à qual ela pu­
desse se mostrar indiferente. Ao contrário, trata-se de uma delimi­
tação que lhe é emprestada justamente como tal pela sua própria
essência. A ciência precisa tomar para si necessariamente o seu li­
mite e dar necessariamente para si uma delimitação. O limite re­
side nela mesma como o outro que ela é e sobre o qual ela não tem
mais poder precisamente como ciência. No entanto, esse outro dá
à ciência a força de sua essência, de modo que esse outro é mais
rico e é capaz de algo além do que ser o mero veículo da possibili­
dade da ciência.
A dedicação especificamente científica ao ente em si mesmo a
partir da vontade de alcançar sua verdade acontece no projeto ca­
racterizado; somente nesse projeto o ente torna-se manifesto como
algo que se encontra aí defronte. Somente a condição de encon­
trar-se aí defronte assim manifesto pode-se tornar objeto de uma
inquirição. Apenas na condição de tornar-se objeto de questiona-
Filosofia e ciência 227

mento pode-se tornar tema de uma investigação possível. Investi­


gação requer colocação de um tema, tematização. Tematização re­
quer antes a objetivação e essa objetivação a presença manifesta de
um ente aí defronte. Uma tal presença só é possível, por sua vez,
no projeto. Todavia, essa projeção que sustenta assim toda a paixão
da dedicação científica à coisa mesma está fundada na transcen­
dência como constituição ontológica do ser-aí.
A ciência transforma o ente em objeto e só consegue fazer isso
por meio do projeto ontológico, por meio do transcender no qual o
ser-aí se “comporta” em relação ao “ser” (mundo entre outras coi­
sas). O transcender é o outro sobre o qual a ciência como tal não
exerce poder e do qual ela justamente carece para ser o que pode
ser. O transcender leva a termo a delimitação da ciência e, por
meio disso, a traz justamente para si mesma. A ciência só se diri­
ge ao ente como o seu objeto, e, com efeito, ela só está em condi­
ções de fazer isso com base no projeto ontológico. No entanto, ou­
vimos que esse projeto já sempre define um campo, fixando e res­
tringindo eo ipso a cada vez toda ciência a um âmbito. Em virtude
do que lhe confere sua essência (projeto), toda ciência precisa li-
mitar-se a um âmbito. A ciência é essencialmente ciência particu­
lar, ou seja, reside na essência da ciência como conhecimento on­
tológico positivo o fato de não poder haver nenhuma assim chama­
da ciência universal. A expressão “ciência particular” já é, por isso,
uma tautologia e pode induzir ao erro porque sugere a idéia de uma
ciência universal.
Dessa maneira, o projeto ontológico leva a termo uma delimita­
ção dupla, em si mesmo unitária: 1. Ciência é conhecimento do
ente e não conhecimento do ser; 2. Como ciência do ente, ela é
sempre, a cada vez, a ciência de um âmbito determinado e nunca
do ente na totalidade. Essa delimitação acontece em meio ao
transcender; e ela acontece necessariamente, se é que a ciência
deve ser existente, deve ser real. Exatamente por meio do fato de
assumir a tarefa de tornar manifesto o ente nele mesmo, a ciência
precisa realizar o projeto ontológico: ela já precisa se comportar es-
228 Introdução à filosofia

sencialmente em relação ao que não se lhe acha mais acessível


com os seus meios, em relação ao que no fundo está velado para
ela. Com isso, a ciência não tem outra coisa a fazer senão atrever-
se a adentrar a esfera do velamento que permanentemente a en­
volve. O ser-na-verdade intrínseco à ciência é justamente um es-
tar-rodeado pelo velamento. Mesmo esse velamento do ser nunca
é para cada ciência mais do que um velamento restrito. A ciência
é de um tal modo e é tão necessariamente delimitada que nem se­
quer possui o velamento-limite em torno de si, o velamento que se
instaura justamente com a realidade efetiva da ciência.
Assim se mostra ao mesmo tempo o que anteriormente só foi in­
dicado de maneira provisória: necessariamente, o desvelamento
sempre segue lado a lado com o velamento. O que confere a cla­
reza à ciência, clareza no sentido da manífestabilidade do ente, a
coloca simultaneamente na obscuridade —no sentido do velamen­
to do ser. A clareza relativa do conhecimento científico do ente
está envolta pela obscuridade da compreensão de ser. Pois mesmo
no projeto ontológico que acontece junto à fundamentação, junto
à formação e em geral na história da ciência, o ser é em verdade
compreendido e em certa medida até de-limitado, mas não apreen­
dido, isto é, ele não é expressamente concebido como ser. Entre­
tanto, a compreensão de ser acontece em meio ao transcender. Se
essa compreensão de ser puder se transformar em determinação e
quiçá em concepção do ser como tal, então precisam residir no
próprio transcender diferentes possibilidades, de acordo com as
quais ele venha a acontecer implícita ou expressamente. Se o
transcender é levado a termo expressa e explicitamente, então isso
significa de início, e entre outras coisas, o seguinte: questiona-se o
que quer dizer esse ser esboçado no projeto ontológico e como se
torna possível algo do gênero da compreensão. Se a transcendên­
cia perfaz agora efetivamente a essência fundamental do ser-aí hu­
mano, então não acontece no interior do transcender expresso
nada menos do que o fato de, ao deixar expressamente acontecer
a transcendência, o ser-aí essencialmente transcendente se tornar
Filosofia e ciência 229

essencial. Esse tornar-se-essencial do ser-aí em meio ao transcen­


der expresso, em meio ao questionar expresso do ser como tal, não
é outra coisa senão o filosofar.

§ 29. Filosofar como transcender faz farte


da essência do ser-aí humano

12. Transcender é filosofar, quer aconteça de maneira implici­


tamente velada, quer seja tomado expressamente.
Mostramos que a essência do teórico reside no deixar-ser o ente
nele mesmo e denominamos esse deixar-ser uma ação originária do
ser-aí. Agora fica claro com que riqueza o deixar-ser acontece no
projeto ontológico, no transcender. Esse é, porém, o acontecimen­
to fundamental da própria existência. Anteriormente denomina­
mos esse deixar-ser o ente indiferença metafísica, uma serenidade
peculiar na qual o ente ganha voz nele mesmo. Contudo, essa se­
renidade precisa emergir de um agir originário; ela não é nada além
disso. Agir, no entanto, é ser livre. Para que a obrigatoriedade pro­
priamente dita seja possível, a obrigatoriedade que parte do ente
em si manifesto e exige uma objetividade específica, é preciso que
um projeto ontológico (um transcender), isto é, uma ação livre,
aconteça. Somente onde há liberdade são possíveis a vinculação e
a necessidade. Assim, o transcender expresso é uma ação originá­
ria da liberdade do ser-aí, sim, o acontecer do espaço de liberdade
do próprio ser-aí, o que significa, todavia, o existir no fundamento
e a partir do fundamento do ser-aí.
Como pergunta acerca do ser como tal, porém, o transcender
expresso é o filosofar. Dessa forma, fica claro o que apenas afirmá­
vamos em nosso primeiro encontro no início do semestre: o ser-aí
humano como tal filosofa; existir significa filosofar. O ser-aí filoso­
fa porque transcende. No transcender reside compreensão de ser.
Todavia, como já ouvimos, a compreensão de ser pertence ao ser­
ai; e, com efeito, na maioria das vezes, ela pertence ao ser-aí de um
230 Introdução à filosofia

tal modo que, embora este efetivamente compreenda o ser, não


obstante, não o concebe. O ser-aí não poderia existir como o que
é e segundo o modo como é se ele, no fundo de sua essência, já
não tivesse desde sempre desencoberto e compreendido algo as­
sim como o ser.
No entanto, a essência e o cerne do homem residem desde a
Antiguidade no que chamamos “alma”. Por isso, Platão diz (Fedro
249e 4-6): jtãou pèv ávffpówtoi) (púoei xeíféaxca xà òvxa, f j o u k
av f|Mfev elç xóôe xò 5pov!. [Todo ser-aí já vislumbrou no fundo de
sua essência o ente, isto é, o que perfaz junto ao ente o ser, ou ele
não poderia ter chegado a esse ser-aí fático] (sem essa visão do ser).
Contudo, não é outra coisa senão esse fato originário do ser-aí
que é problematizado no transcender expresso, isto é, no filosofar.
Com isso mostra-se o seguinte: a filosofia não precisa de início ab­
solutamente imaginar e ir buscar para si muito longe um objeto
qualquer; o próprio ser-aí em sua essência —enquanto transcen­
dente - traz em si a pergunta possível pelo ser e pelo sentido do
ser. Também aqui Platão viu o essencial: ò ôé ye tpiAóaocpoç, xfj xoü
òvxoçàei ôià Xoyiapíòv jipoaKEíuevoç lôéa, òiò. xò Xapjrpòv av xijç
Xcópaç aúôapròç eiOTexíjç òcpíhjvai,, xà yàp xijç xròv jto/ J m v iJ>Lr/r|ç
òppaxa Kapxepeiv rcpòç xò •àeíov àcpopròvxa àôúvaxa (Sofista 254à 8-
b l)4. [O filósofo dedica-se por inteiro à visualização constante do
ente (como ente - o ser), na medida em que, por meio da discus­
são, leva à conceituação do ente. Mantém-se na claridade da com­
preensão de ser e, porque se detém em um tal lugar claro, é difícil
de ser visto. Pois os olhos da alma da multidão, sua compreensão,
não estão em condições de suportar a visão direta do divino que se
encontra para além do ente.]
Deduzimos daí que filosofar pertence à essência do ser-aí hu­
mano, mas que, porém, a multidão não consegue se livrar das
amarras daquilo que precisamente está em voga, daquilo sobre o
que se fala e precisa ter visto. O filosofar não é senão o privilégio

5 Platonis Opera (ed. Burnet), Tomus 1.


4 Idem.
Filosofia e ciência 231

daqueles que estão prontos para compreender que o essencial re­


pousa metafisicamente na simplicidade e no caráter originário do
próprio ser-aí e que ele espera por libertação.
Aristóteles, com seu modo sóbrio, mas em nada menos profundo,
enunciou a mesma idéia de Platão de que o filósofo óei ítpoCTKeípcvoç
xf) xoü Óvxoç íSeoc (Met. Z 1, 1028 b2 s.): kccí 8f| Kat tò nòXai xe
Kat vüv Koctàet Çpxobpevov kcxí àei cxrtopoúpevov, xí xò 6v, xouxo
èoxt, xíçp oúaíah [E assim aquilo que é buscado há muito tempo,
que se busca agora e se continuará buscando em todos os tempos
futuros, e aquilo em relação ao que a busca e o questionamento
sempre fracassam uma vez mais não é outra coisa senão a pergun­
ta acerca do que é o ser.]
Aqui vem à tona a importante intelecção de que essa pergunta
acerca do que é o ser sempre conduz uma vez mais a situações das
quais não parece haver nenhuma saída. Em outras palavras: a per­
gunta fundamental do filosofar, “o que é o ser mesmo?”, é a pergun­
ta que sempre se disporá a ser e necessariamente continuará a ser
pergunta. Na maioria das vezes, temos uma idéia errada da filoso­
fia grega, de Platão e Aristóteles em particular, como se eles tives­
sem criado sistemas perfeitos e fechados que foram legados aos
tempos futuros como conteúdos doutrinais dogmáticos. Não se
encontra, contudo, nada que pudesse indicar terem eles suposto
que teriam resolvido de uma vez por todas o essencial para as ge­
rações vindouras. O que empresta a grandeza interior a Platão e
Aristóteles é essa livre entrega das mesmas tarefas fundamentais
aos que vêm depois, uma entrega que é superior a si própria.
(Hoje, quando a pseudofilosofia e a metafísica são proclamadas
em todas as esquinas, é mais importante do que nunca deixar as
questões fundamentais do filosofar se tornarem questões, ou seja,
lormular uma vez mais a pergunta acerca do ser como tal. Precisa­
mos compreender agora que justamente a formulação dessa ques­
tão já é o próprio filosofar.)

15Aristotelis Metaphysica. Recognovit W. Christ, Lipsiae in aedibas, B. G. Teub-


neri, 1886.
232 Introdução à filosofia

Transcender expressamente enquanto filosofar é um reiterado


perguntar sobre o ser do ente; inquirir o ser como tal significa bus­
car concebê-lo. O filosofar pergunta sobre o conceito daquilo que
já compreendemos. A partir daí torna-se visível que justamente o
filosofar está cercado pelas insinuações de sua mais tenaz oposito­
ra, pelas insinuações da suposta auto-evidência das coisas.
Filosofar significa buscar conceber o ser como tal, formar a
compreensão de ser em sua possibilidade interna e trazê-la para o
seu fundamento, conformar uma compreensão, compreender en­
quanto projetar, realizar expressamente o projeto; e isso significa:
determinar esse projeto mesmo em sua possibilidade interna, de
modo que ele se torne realizável como um projetar conceptivo,
como a formação da compreensão de ser pré-ontológica para a com­
preensão de ser ontológica, de uma tal maneira que a partir dessa
compreensão ontológica aquela compreensão pré-ontológica seja
iluminada pela primeira vez.
Filosofar significa buscar conceber o ser como tal e fundamen­
tar de maneira principiai a ontologia como problema. No entanto,
não dizemos simplesmente: filosofia é ontologia; e, antes de tudo,
não o dizemos no sentido de assumirmos um conceito qualquer de
ontologia, que tenhamos herdado e queiramos persuasivamente im­
pingir à essência da filosofia. A sentença “filosofia é ontologia” no
máximo significa: a filosofia é em sua essência um problema que
brota daquilo que constitui a essência fundamental da existência do
ser-aí; a sentença “a filosofia é ontológica” significa então: se con­
seguirmos compreender isto, então necessariamente iremos deixar
que a tendência interior e plena da essência do filosofar seja desen-
coberta a partir daí, primária e unicamente a partir daí.

§ 30. Os diferentes âmbitos de questionamento


da filosofia e da ciência

Dito isso, temos o seguinte: com a atual caracterização do filo­


sofar como um perguntar sobre o conceito de ser, não esgotamos,
Filosofia e ciência 233

cie maneira alguma, a essência do filosofar, não a tomamos em seu


cerne. Em termos metodológicos, esse caminho uno para a carac­
terização provisória do filosofar é com efeito o inevitavelmente pri­
meiro. No entanto, com todo cuidado assinalamos três caminhos.
Somente atravessando os outros dois caminhos juntamente com o
agora percorrido poderemos nos aproximar de nossa meta.
Todavia, algo essencial veio à luz: como formação da compreen­
são de ser, o filosofar é um transcender, isto é, um deixar-aconte-
cer o que fundamentalmente possibilita a existência. Filosofar é
um existir a partir do fundamento essencial do ser-aí. Filosofar sig­
nifica: tornar-se essencial na transcendência. Pois somente a trans­
cendência possibilita entre outras coisas o projeto do ser. Esse pro­
jeto carece por isso essencialmente da transcendência como hori­
zonte do projetar. A pergunta sobre o ser carece do horizonte trans­
cendental.
(Mas isso requer que a transcendência seja desencoberta em
sua essência. Transcendência é a essência fundamental do próprio
ser-aí, do ente que nós mesmos somos. Por conseguinte, carece-se
de um desencobrimento da constituição ontológica do ser-aí e da
essência da existência. Agora é possível mostrar: a constituição on­
tológica do ser-aí, bem como, ao mesmo tempo, o fundamento da
possibilidade interna da transcendência, é a temporalidade. Por­
tanto, o tempo precisa determinar o horizonte transcendental para
a pergunta fundamental do filosofar, a pergunta sobre o ser. A per­
gunta fundamental da filosofia é a pergunta sobre ser e tempo. Por
isso, a primeira parte da investigação assim intitulada é designada
por meio da seguinte expressão: “A interpretação do ser-aí em vis­
ta da temporalidade e a explicação do tempo como horizonte trans­
cendental da pergunta sobre o ser.”)6
Suponho agora que deve ter se tornado compreensível ao menos
de maneira rudimentar em que medida a tese decisiva proferida

6 Esse parágrafo não possui correspondência nos cadernos de apontamentos.


Mesmo os parênteses laterais que constam no manuscrito indicam que I leidegger
não o apresentou durante a preleção. (N. do E.)
234 Introdução à filosofia

em nosso primeiro encontro nessa preleção era correta: nunca es­


tamos fora nem podemos nos situar fora da filosofia, mas o existir
já está sempre nela porque existimos essencialmente nela, uma vez
que como homens justamente transcendemos. Com isso, introdu­
ção à filosofia não quer dizer condução para o interior de um âm­
bito situado fora dos demais. Ao contrário, introdução à filosofia
implica introduzir no filosofar, colocar o filosofar em curso. Isso
significa agora: expressamente deixar-acontecer a transcendência,
preparação e vinculação daquilo que nosso saber veicula, pergun­
tar conjuntamente sobre a essência do ser. Mas esse introduzir até
aqui não foi mais do que uma primeira investida - uma primeira
investida realizada a partir da clarificação da essência da ciência.
É preciso que agora tenha ficado claro em que medida o concei­
to de uma filosofia científica é um não-conceito, algo como a idéia
de um “círculo redondo”. Ciência é conhecimento positivo, isto é:
1. Conhecimento direcionado para o ente; 2. Juntamente com isso,
conhecimento sempre necessariamente direcionado a um respecti­
vo âmbito do ente. No entanto, a filosofia não é justamente nenhu­
ma dessas duas coisas: 1. Não está direcionada para o ente, mas
para o ser; 2. Não está direcionada para um âmbito, também não
para todos os âmbitos em conjunto, mas, se está direcionada para o
ente, então isso se dá a partir da pergunta sobre o ser, isto é, ela está
direcionada para o ente na totalidade. Todavia, uma ciência do ente
na totalidade é essencialmente impossível. Por quê? Isso ficará cla­
ro mais tarde, ao trilharmos o segundo caminho.
Contudo, o filosofar não se diferencia simplesmente apenas da
ciência. Há ainda algo mais: o que possibilita a essência da ciên­
cia, a saber, a positividade, reside em um transcender, e esse, como
tal, é filosofar. De modo originário e expresso, a filosofia tem no
transcender o que só advém à ciência em um aspecto e, com efei­
to, de um modo tal que ela mesma não tem poder sobre aquilo que
sua essência veicula.
Se a essência da ciência como positividade reside realmente no
transcender, então a filosofia enquanto transcender é mais cientí-
Filosofia e ciência 235

fica do que uma ciência jamais pode ser. É por isso que o adendo
“científico” para a filosofia não é apenas supérfluo - o que pode­
ríamos ainda aceitar —, mas também conduz a erro; e, em verdade,
tal erro surge de uma falta de clareza fundamental quanto à essên­
cia da ciência e, com maior razão, quanto à essência da filosofia.
Filosofia é transcender, isto é, filosofar. Os senhores podem
comprovar o quão amplamente compreenderam esse estado de coi­
sas a partir de uma tentativa de reconhecer por meio da interpreta­
ção aqui realizada da essência da ciência em que medida a crise tri­
pla da ciência é uma crise necessária, assim como o fato de essa cri­
se se acentuar em sentido autêntico justamente no filosofar, isto é,
de ela se tornar uma crise essencial que, por isso, também não pode
se transformar em objeto de discussões jornalísticas.
Por certo, quanto mais seriamente nos empenhamos pelo filo­
sofar, tanto mais se evidencia que o filosofar, apesar de acontecer
na essência do ser-aí, sim, exatamente porque ele acontece aí e so­
mente aí, carece de uma libertação e de uma condução próprias,
de uma libertação junto à qual o ser-aí precisa usar de violência
contra si mesmo. Toda violência, porém, encerra dor em si. E não
se pode falar sobre o que é compreendido [?] e concebido no filo­
sofar como se fala de todas as outras coisas, a saber, como se fala
sobre as coisas que se pode aprender e dominar junto ao ente. Pla­
tão conhecia muito bem tudo aquilo que a filosofia traz consigo
como um direcionamento do olhar para o ser mesmo, tendo apre­
sentado isso com freqüência. Podemos acompanhar uma tal apresen­
tação, levada a termo segundo vários aspectos, sobretudo no Fédon,
no Fedro, na Apologia, na República e na carta 7.
Fedro (247b): A elevação da alma para a visualização do ser traz
kóvoçte Kcci àytóv, fadiga e luta da alma7; Fédon (79d, 81a): jrXávoç,
a odisséia da alma8. Na carta 7 (341c), que ele escreveu na velhice,
encontramos a seguinte formulação: pexòv yàp oúôaprôç ècmvíbç

' Platonis opera (ed. Burnet), Tomus II.


8 Idem, Tomus I.
236 Introdução à filosofia

aXka uaOf|puxu, ÒX/J Ék jroÂ/í|ç cruvouaíaç YiYvopÉvqç jtepi xò


jrpãypa oaixò m i xou ox>Çf|V ÉÇaícpvr|ç, oiovájtò jrupòç jrr|ôf|aavxoç
eíjaqrOèv qxõç, év xf| xpuxfí, ’/cvópr.vov ceúxò laxrtò rjôri xpécpei9. [Aqui­
lo que está em questão para a filosofia não é dizível, isto é, passí­
vel de ser discutido, como as outras coisas que podemos aprender,
mas é algo que acontece e aconteceu na alma, e, com efeito, em
razão e por meio de uma comunhão autêntica, de um autêntico
ser-um-com-o-outro junto à coisa mesma, é algo que cresce a par­
tir de um empcnhar-se-uns-com-os-outros em torno da coisa mes­
ma.] Quando esse empenhar-se-uns-com-os-outros em torno da
coisa mesma acontece, então acontece também o filosofar, “subi­
tamente como um fogo que salta de um ponto para outro, de modo
que a fagulha saltitante traz a claridade e a luz no interior das quais
o ser se torna visível”.

§31. Um resumo do que fo i anteriormente visto.


Compreensão de ser como fato originário do ser-aí:
a possibilidade da diferença ontológica. A diferença
ontológica e a diferença entre filosofia e ciência

Nos encontros anteriores relativos a essa preleção, buscamos


inicialmente uma caracterização genérica daquilo que significa in­
trodução à filosofia; isto é, introduzir ao filosofar, colocar o filoso­
far em curso. Nesse contexto, determinamos esse filosofar provi­
soriamente como uma ação livre a partir do fundamento do ser-aí.
Na medida em que nosso ser-aí aqui c agora, no momento em
que levamos a termo uma tal introdução ao filosofar, é determina­
do entre outras coisas pela ciência, é importante elucidar a filoso­
fia por meio de uma discussão da relação entre ciência e filosofia.
Essa questão tornou-se por sua vez tanto mais pungente, porquan­
to há uma múltipla aspiração a fundamentar a filosofia “como
ciência”, a estabelecer uma filosofia científica como ideal.

9 Idem, Tomus V.
Filosofia e ciência 237

Em contraposição a isso, afirmamos inicialmente: a idéia de


uma filosofia científica é um contra-senso tão grande quanto a de
um círculo arredondado. Com isso, deveria ser expresso o seguin­
te: segundo a sua essência e não apenas segundo uma diferença de
grau, a filosofia é mais científica do que toda ciência possível, e,
com efeito, pelo fato de ela de algum modo possibilitar pela pri­
meira vez algo assim como a ciência. No entanto, o que confere à
ciência a possibilidade dela mesma - e não apenas a ela —é algo
mais elevado e mais originário. Por isso, a filosofia não pode ser cs-
sencialmente determinada a partir daquilo que deve justamente a
ela a sua origem.
Dessa forma, a finalidade da discussão da relação entre ciência
e filosofia era mostrar a partir da essência interna da própria ciên­
cia o fato de residir nela um limite necessário, um limite por meio
do qual, porém, a ciência é justamente delimitada, isto é, possibi­
litada em sua essência; indo além, uma delimitação que se realiza
no que designamos filosofia.
Portanto, a fim de ver na própria essência da ciência o seu limi­
te necessário, era importante determinar inícialmente a essência
da ciência a partir de seu conceito tradicional: um contexto de fun­
damentação de proposições verdadeiras. Isso nos levou à discussão
da essência da verdade. Verdade proposicional é um fenômeno de­
rivado da verdade originária no sentido do desvelamento do ente,
um desvelamento que pertence à essência do próprio ser-aí. Fo­
mos conduzidos para além da idéia de manifestação do ente no du­
plo sentido do ser descoberto do ente por si subsistente e do des-
ccrramento do ser-aí e retornamos a uma verdade mais originária,
ao desvelamento do ser. O ser-aí já é sempre necessariamente nes­
sa verdade mais originária; isso foi demonstrado na compreensão
de ser. A compreensão de ser como constituição fundamental do
ser-aí é tão auto-evidente quanto enigmática.
A partir daí, porém, se nos mostra a essência e a gênese das
ciências como conhecimento do ente e, com efeito, respectivamen-
le, de um ente que já se encontra aí defronte manifesto e circuns-
238 Introdução à filosofia

crito necessariamente a uma região ôntica. Positividade funda-se


no projeto prévio, não-objetivado, demarcador do campo da cons­
tituição ontológica.
Uma investigação científica determinada movimenta-se no inte­
rior de um determinado problema, de uma determinada questão
que é suscitada àquilo que se transforma em tema. Tematização,
colocação de um tema pressupõe que me seja dado um objeto. No
entanto, um objeto só me é dado como objeto no ato da objetiva-
ção. Só posso objetivar algo se esse algo já se encontra antes de­
fronte a mim como um ente manifesto. Mas um ente que se en­
contra manifestamente aí defronte só pode se encontrar aí defron­
te como ente se já for compreendido, isto é, projetado antes em
seu ser, em vista de seu ser. Assim, na estrutura da ciência, temos
uma seqüência de estágios totalmente determinada. O fenômeno
central é esse projeto da constituição ontológica.
O fenômeno decisivo com o qual nos deparamos com isso é o
fato originário na essência do próprio ser-aí, o fato de compreen­
dermos algo assim como ser, ou, dito de maneira mais enfática, de
estabelecermos a diferença entre ente e ser do ente. Compreensão
de ser não é nada além da possibilidade de estabelecimento dessa
diferenciação entre ser e ente, ou, dito de maneira sucinta, nada
além da possibilidade da diferença ontológica.
Mostramos por fim que a possibilidade de uma tal diferencia­
ção entre ser e ente repousa sobre aquilo que designamos trans­
cendência. Para que o ser-aí se mantenha efetivamente na verda­
de mais originária, ele precisa transcender como tal; somente
como tal ele pode se comportar realmente em relação ao ente e so­
mente por isso pode se diferenciar dos outros entes e ser ele mes­
mo como ente, existir. Ser si próprio qua existente só é possível
com base na transcendência. Aqui se abre uma nova possibilidade
fundamental de questionamento: o transcender como compreen­
são de ser e como concepção de ser. Esse transcender como um
transcender expresso não é outra coisa senão filosofar. Dessa for­
ma, a tese de número 12 afirma: transcender é filosofar. A trans-
Filosofia e ciência 239

cendência, porém, é a constituição essencial do ser-aí; transcender


expresso qua filosofar é o ato de o ser-aí se tornar essencial em sua
existência.
Em tudo o que há de essencial, contudo - e essa é uma carac­
terística sua não há nenhum progresso e, por conseguinte, tam­
bém nenhuma desvalorização. De acordo com a sua essência, o
real filosofar nunca pode ser ultrapassado. Ao contrário, ele mes­
mo sempre precisa ser novamente repetido. Onde quer e quando
quer que o real filosofar aconteça, ele sempre se insere diretamen­
te e por si mesmo no diálogo com o passado histórico da filosofia e
vê, então, que não pode haver na filosofia nenhuma novidade, tam­
pouco nada antiquado; ele se encontra para além da dicotomia en­
tre velho e novo. Nesse sentido, partindo do começo decisivo da
filosofia, ou seja, de Platão e Aristóteles, foi importante elucidar
sucintamente que a pergunta acerca do conceito de ser é a pergun­
ta central da filosofia —xí tò Ôv —, que pertence à essência do ser-
aí o compreender o ser - f | xedéaxat xà Ôvxa - e que somen­
te por isso é possível a existência fática do ser-aí. Com certeza, só
se consegue abordar de fato a história quando não se fica repetin­
do simplesmente o que foi dito, ou seja, quando não se apela sim­
plesmente de maneira dogmática para a filosofia anterior, seja a de
Aristóteles ou a de Kant; a história só nos remete ao essencial se
ela mesma é levada a co-filosofar por meio do vivo filosofar.
Por meio da discussão da relação entre ciência e filosofia, a pró­
pria filosofia ainda não foi expressamente determinada no todo,
mas apenas na medida em que foi colocada em relação com a ciên­
cia. Essa relação tem um duplo limite: em primeiro lugar, a ciência
é conhecimento do ente e não do ser; e, em segundo lugar, ela é
sempre necessariamente conhecimento do ente no sentido de uma
área demarcada e não do ente na totalidade. Nem o ser como tal,
nem o ente na totalidade como tal, nem a conexão interna entre
ser e ente são jamais acessíveis a uma ciência ou a todas elas em
conjunto. No entanto, eles não são apenas simplesmente inacessí­
veis. Ao contrário, o fato é que somente com base nessa inacessibi-
240 Introdução à filosofia

lidade e nesse círculo assim limitado é que a ciência pode empreen­


der suas investigações. Uma ciência universal é um não-conceito.
Junto a essa limitação da ciência fica particularmente manifesto o
contra-senso que há em atribuir à filosofia o adendo “científica”
em qualquer sentido que seja.
Com essa interpretação da essência da ciência talvez tenhamos
alcançado o cerne do problema. Todavia, a interpretação não está
com isso completa. Já mostramos anteriormente que o caráter do
termo “teórico” não é apenas indeterminado, mas não é de manei­
ra alguma suficiente para a plena determinação da essência da
ciência; sobretudo quando nos perguntamos: o que pertence es­
sencialmente à concretização fática da ciência?
Decisivo é por um lado o projeto da constituição de ser; por ou­
tro lado, porém, compreensão de ser é sempre compreensão do ser
do ente. Nesse e junto a esse projeto também já precisa subsistir
uma relação com o ente e, com efeito, uma relação própria, carac­
terizada pela tendência à elaboração, ao domínio e à direção do
ente. xé^vq não é apenas a forma prévia da é7ti0xqpq, mas se intro­
duz essencialmente nela; domínio, direção e utilização do conhe­
cimento não são algo almejado apenas na técnica em sentido estri­
to, mas em toda prática profissional. A ciência sempre tem por
meta “desempenho”, enquanto a filosofia sempre tem por meta a
“formação” no sentido fundamental da 7taiÔeía platônica. Na ciên­
cia, que é sempre inconclusa, aberta, há por isso necessariamente
progresso e desenvolvimento, há resultados, ou seja, algo que pode
se tornar obsoleto. Na filosofia, por outro lado, nenhum resultado
pode ser registrado. Por essa razão, ela também nunca pode se tor­
nar obsoleta.
No entanto, justamente por meio dessa nítida divisão entre
ciência e filosofia torna-se patente a necessária conexão da ciência
com a filosofia. Todavia, só se obtém com segurança uma frutífera
determinação recíproca entre elas no momento em que a diferen­
ça essencial se estende até a existência do pesquisador científico
e do filósofo e é aí apreendida. A filosofia no sentido produtivo do
Filosofia e ciência 241

filosofar está enraizada na mais íntima e completa existência do fi­


lósofo de uma maneira totalmente diversa da que a investigação
científica está no pesquisador. O trabalho científico de alguém
sempre pode ser fundamentalmente defendido por um outro; as
descobertas científicas de alguém também poderiam ter sido fei­
tas por um outro. Isso nunca se dá dessa forma na filosofia; cada
um é, nesse caso, um todo único. Por isso, o filosofar só se torna
vivo e efetivo quando é uma vez mais desperto por outros de ma­
neira originária e autônoma e, nesse sentido, repetido. Quando é
autêntica, porém, a repetição renovadora nunca é uma mera cópia.
Desse modo, mesmo a relação do aluno com o pesquisador
científico é essencialmente diversa da relação dos que co-filoso-
fam com o filósofo. Querer transpor aquela relação para o interior
dessa implica desconhecer completamente a essência do filosofar.
A tendência para uma tal transposição, contudo, está constante­
mente muito próxima justamente de nós porque na universidade o
filósofo e o pesquisador atuam externamente com a mesma figura
sociológica e no mesmo âmbito e porque a posição tanto social
quanto profissional dos professores de filosofia ainda não é sufi­
ciente para assegurar que aquele que fala sobre filosofia seja de fato
um filósofo. Mas com o que foi dito já falamos um pouco demais
sobre os filósofos. De qualquer forma, não podemos nos furtar a
uma indicação. Max Scheler, em particular, ocupou-se desse pro­
blema em seu trabalho Probleme einer Soziologie des Wissens [Proble­
mas de uma sociologia do saber]10.
Mais importante, porém, é colocar o próprio filosofar em curso,
assim como se inserir e crescer concretamente dentro de uma ciên­
cia determinada; pois somente então essas diferenças são propria­
mente experimentadas e continuam efetivas por um longo tempo.
No começo dessa preleção, em nosso primeiro encontro (cf. p. 5),
dissemos que a única coisa que sabemos agora e, com efeito, mais

10 Max Scheler. “Probleme einer Soziologie des Wissens”. In: Versuche zu einer
Soziologie des Wissens, org. por Max Scheler. Munique, 1924. Versão revista em
Max Scheler. Die Wissensformen uni die Gesellschaft, Leipzig, 1926.
242 Introdução à filosofia

no sentido de uma afirmação, é que o filosofar é constitutivo do


ser-aí humano, que ele acontece no ser-aí humano como tal. O ser-
aí, na medida em que existe, filosofa, ainda que apenas de modo
implícito e, na maioria das vezes, de modo impróprio. No entanto,
o ser-aí nunca existe assim no universal. Ao contrário, ele existe
sempre como ser-aí concreto em uma determinada situação e sem­
pre arranja para si situações essenciais e não essenciais. Com isso,
se quisermos desenvolver no filosofar o conceito de filosofia, pre­
cisaremos fazer os questionamentos a partir das perspectivas de
nossa situação atual, em vista dos poderes determinados de nosso
ser-aí atual em sua ligação com a universidade.
A introdução deve deixar o filosofar se tornar livre em nós, ago­
ra em nós, uma vez que o nosso ser-aí é determinado por esses dois
poderes que são a ciência e a liderança. Percorremos o primeiro
caminho através da ciência e vimos: filosofar como transcender
não acontece como uma conduta arbitrária entre outras, mas sim
no fundo do ser-aí como tal.
O que no início era apenas uma afirmação tornou-se agora uma
intelecção; certamente, uma intelecção para a qual ainda perma­
nece oculta a essência plena do filosofar - sem dúvida alguma, não
como se estivéssemos de posse de um pedaço do conceito ao qual
precisaríamos acrescentar o outro pedaço. Por isso, estabelecemos
desde o princípio dois outros caminhos que devem nos auxiliar na
tarefa de compreender expressamente o conceito pleno da filoso­
fia: a discussão da relação entre filosofia e visão de mundo e entre
filosofia e história. Se a “visão de mundo” é algo totalmente dife­
rente da ciência, então o segundo caminho também terá um outro
caráter. Não obstante, as intelecções conquistadas por meio do
primeiro caminho podem e devem elucidar e facilitar o segundo.
SEGUNDA SEÇÃO

FILOSOFIA E VISÃO DE MUNDO

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