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Universidade Estadual de Campinas

Doutorado

Instituto de Artes

2010
LUIZ FERNANDO NÖTHLICH DE ANDRADE

A LIMINARIDADE NA PROFISSÃO DO ATOR:


A EXPERIÊNCIA DO LUME-UNICAMP.

Tese apresentada ao Instituto de Artes, da


Universidade Estadual de Campinas, para
obtenção do Título de Doutor em Artes.

Orientadora: Profa. Dra. Suzi Frankl Sperber.

CAMPINAS
2010

iii
iv
v
Dedico esse trabalho a todos aqueles, homens e mulheres, que, através dos tempos,
buscaram ou buscam pelos práticos motivos e reais significados
da existência humana neste planeta.

vii
Agradecimentos
Na ordem cronológica dos eventos curvo-me repetidamente e agradeço infinitamente:

À minha irmã Adriana de Andrade que, num dia de 1989, vendo-me largado assistindo
televisão, convidou-me – gentilmente – para participar de um encontro do seu grupo de
teatro amador.

À Marcelo Gianini, primeiro mestre, que me fez conhecer o teatro a partir da sua essência:
o jogo.

Aos meus pais, Mauro Villela e Gerda Nöthlich, por me permitirem escolher e
experimentar o Teatro e a Vida. E por me apoiarem e por compartilharem sobre as nossas
descobertas, sempre.

Aos meus irmãos Carlos Eduardo de Andrade e Paulo Márcio de Andrade. Pela Amizade
construída e compartilhada.

À Maria Thaís Lima Santos pela Escola Livre de Teatro de Santo André, pelos anos na
Unicamp e por fazer Vsevolod Meyerhold reviver entre nós.

Ao Jean Pierre Kaletrianos, pelos anos na E.L.T e no E.T.R.A. Agradeço-lhe, eternamente,


pela ‘História das Mariposas’ que nos contou e propôs para encenar, numa noite de 1991,
durante o curso de formação da E.L.T..

Ao Carlos Augusto Carvalho, pelos ensinamentos na E.L.T. e pelos ‘Anos de Aprendizado’


que se seguiram.

À Andreia Almeida, primeira companheira de Viagem. Pela transformação conquistada.

Aos Amigos Fraternais, à Robert Burton e à todos os outros buscadores: tanto os que se
foram quanto os que permanecem.

À Joana Lopes pelos anos de trabalho no Grupo Interdisciplinar de Teatro e Dança na


Unicamp.

À Marcos de Souza Queiroz pelos anos de orientação acadêmica e intelectual na iniciação


científica dos tempos da Graduação e pela colaboração no Mestrado.

À Theda Cabrera. Por aquilo que aprendemos juntos e sozinhos.

À João Araújo. Pelo ‘Princípio do Espanto’, pela Grande Amizade e pelos anos de
aventuras através do Teatro de Bonecos junto com ‘Jacó’, ‘Robertinho’ e companhia.

ix
À Rosângela Pedroso. Pelas aulas de Yoga Clássico, pelas conversas inspiradoras e pelo
Amor compartilhado.

À familia Burg pela amigável e sempre excelente vizinhança: Guga, Brisa, Rosa, Ivens,
Joana, Anaí e Maria.Também ao Guga e à Brisa pelas conversas artísticas e pelos auxílios
acadêmicos.

À Tatiana Motta Lima, por acolher de forma tão receptiva aos meus interesses sobre a sua
pesquisa e pelos seus admiráveis esforços na concretização do Congresso Grotowski 2009
na UNIRIO.

Aos colegas do grupo de literatura e dramaturgia coordenado por Suzi Sperber: Régis
Closel, Liliane Negrão, Marília Gomes Henrique, Jorge Henrique Romero e Jaqueline
Castilho que, juntos e a seus modos, se dispuseram a participar dessa fantastica aventura
que é estudar a obra de William Shakespeare. Algo que, por vias indiretas, muito contribuiu
para a finalização desse texto.

À Suzi Frankl Sperber. Pela Orientação, pela Sabedoria, pela Coragem e acima de tudo
pela sua Dignidade Humana.

Agradeço muito à José Barbosa e à todos os funcionários do LUME que, atenciosamente,


sempre se colocaram à disposição quando se fez necessário à pesquisa.

Agradeço, muitíssimo, a todos os atores-pesquisadores do LUME junto dos quais essa


pesquisa pôde ser realizada: Luís Otávio Burnier (em memória), Carlos Simioni, Ricardo
Puccetti, Ana Cristina Colla, Jesser de Souza, Raquel Hirson, Renato Ferracini e Naomi
Silman. Ao Tadashi Endo também e à Suzi Sperber novamente.

Agradeço, em especial, à FAPESP, pelo auxílio financeiro que permitiu que


prosseguíssemos a pesquisa até o ponto requerido.

x
“Como olhar para o outro com este aspecto “nunca antes”, este aspecto momentâneo,
instantâneo, com essa atenção que não comporta nenhum julgamento,
mas que é imediata: você é tal como você é ?
Só se o outro não se esconder, em nenhum sentido da palavra,
quer psíquico, corporal ou carnal;
e se nós mesmos não nos escondermos.”
(Conferência de Jerzy Grotowski no Teatro Nacional de Comédia – Rio de Janeiro, 1974.)

A história das Mariposas.

Uma noite as mariposas reuniram-se atormentadas pelo desejo de unir-se à vela.


Disseram todas: "Temos de encontrar alguém que possa dar-nos notícias do objeto de nossa
busca amorosa". Uma mariposa foi então até um distante castelo e avistou no interior a luz
de uma vela. Ela retornou e contou o que havia visto; pôs-se a fazer a descrição da vela de
acordo com sua inteligência. Porém a sábia mariposa que presidia a reunião advertiu que a
mariposa exploradora nada sabia sobre a vela. Outra mariposa aproximou-se da luz e tocou
com suas asas a chama: a vela foi vitoriosa, e a mariposa vencida. Esta última também re-
tornou e revelou qualquer coisa a respeito do mistério; explicou, segundo sua própria
experiência, em que consistia a união com a vela. Porém a sábia mariposa lhe disse: "Tua
explicação não é melhor que aquela que foi dada por tua companheira".
Uma terceira mariposa voou, ébria de amor, e atirou-se violentamente contra a chama da vela:
impulsionada por suas patas traseiras, ela estendeu ao mesmo tempo suas patas dianteiras em
direção à chama. Perdeu a si mesma e identificou-se alegremente com a chama; abraçou-a por
completo e seus membros tornaram-se vermelhos como o fogo. Quando a sábia mariposa,
chefe da reunião, viu ao longe que a vela havia identificado o inseto consigo mesma e lhe
havia dado sua aparência, disse: "A mariposa conheceu o que queria saber; porém somente
ela o compreende, e eis tudo". (A linguagem dos Pássaros – Farid ud-Din Attar – século XII
d.C.)

À escuridão estão destinados os que cultuam somente o corpo, e a uma escuridão


ainda maior os que veneram apenas o espírito.
Cultuar somente o corpo leva a um resultado, venerar apenas o espírito leva a
outro. Assim falaram os sábios.
Os que veneram tanto o corpo como o espírito, pelo corpo vencem a morte, e pelo
espírito atingem a imortalidade.
(UPANISHADS - Isha.)

xi
Resumo da Tese
Resumo - “Utilizando e desenvolvendo o conceito de “liminaridade” e
“communitas” de Victor Turner, estuda-se o processo pelo qual um ator se afasta da sua
personalidade social cotidiana e descobre, nele mesmo, novas perspectivas e qualidades de
ser e estar até então desconhecidas ou esquecidas, que o capacitam ao processo criativo.
Procura na filosofia e na religião (oriental e ocidental) e em algumas tradições esotéricas
(em Gurdjieff e na Yoga, por exemplo) registros que possivelmente sejam precursores deste
processo que, não sendo propriamente do teatro, chegou ao teatro em alguns momentos da
sua história.
Investiga-se sobre a existência e a importância desse processo dentro da pesquisa
artística desenvolvida pelo LUME - Unicamp, a qual foi vivenciada na prática e na teoria.
Luís Otávio Burnier – fundador do LUME - em sua tese, por exemplo, fala em acordar a
‘pessoa’ do ator e dinamizar suas ‘energias potenciais’ mais profundas utilizando o
‘treinamento energético’. Procurando estudar o processo psicofísico que está por detrás do
trabalho com a exaustão física promovido por este ‘treinamento energético’ investiga-se a
razão pela qual ele poderia ser chamado de uma espécie de técnica psicofísica vertical.
Estudando os contextos e experiências através dos quais essa técnica foi transmitida a
Burnier, investiga-se também como este interesse por técnicas verticais, que promovem a
dimensão criativa do ator, esteve presente em diversas pesquisas cênicas do século XX.
Nesse sentido, também é feito um breve estudo das trajetórias de Stanislavski,
Grotowski e Peter Brook que, a seus modos, aproximaram a arte teatral de um trabalho
sistemático de busca por uma qualidade humana no momento da realização do evento
artístico. ”

Palavras-chave: Representação teatral, Criatividade, Atores – trabalho, Antropologia social,


Espiritualidade.

xiii
Abstract
Abstract - “Using and developing the concept of “liminality” and "communitas" by
Victor Turner, this studies the process by which an actor departs from his daily and social
personality, discovering in himself new perspectives and qualities of being, unknown or
forgotten, that enable him in the creative process. Looking to philosophy and religion
(Eastern and Western) and some esoteric traditions (Gurdjieff and Yoga, for example) we
look for records that could be precursors of this process, which were not quite theater, but
became theater in a few moments of its history
Then, we investigate the existence and importance of this process within the art
research developed by LUME - Unicamp, which was experienced both practically and
theoretically. Luís Otávio Burnier – the LUME founder - in his thesis, for example, talks
about how to awaken the 'person' of the actor and how to activate his deeper 'potential of
energy' using a kind of ‘energetic training’. By studying the psychophysical process that
lies behind the work and the physical exhaustion entailed by this 'training', we realize why
it could be called a kind of vertical psychophysical technique. Studying the context and the
experiences through which this technique was passed on to Burnier, we see how this
interest in vertical techniques, that promote the creative dimension of the actor, can be
found in several studies of the performing arts in the twentieth century.
A brief study is also made of the trajectories of Stanislavski, Grotowski and Peter
Brook who, in their own ways, brought theatrical art to a systematic search for a human
quality in the moment of the artistic event.

Keywords: Acting, Creativeness, Actor´s work ; Social anthropology ; Spirituality.

xv
Sumário
I - Introdução - LUME: como o conheci e como me propus a (re) conhecê-lo
1.1 Primórdios._________________________________________________________01
1.2 Objetivos.__________________________________________________________07
1.2.1 Sobre a representação no teatro e na vida. _________________07
1.2.2 O estudo do Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas Teatrais em sua dimensão artística.
______________________________________________________________09
1.2.3 O estudo do Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas Teatrais em sua dimensão
institucional. ___________________________________________________10

Parte I – A liminaridade na Profissão do Ator

II – O trabalho sobre si mesmo.


2.1 - Sobre a Arte do Ator. ________________________________________________12

2.2 - A Possível Mudança do Estado de Consciência. ___________________________17


2.2.1 - O mito da caverna de Platão.___________________________17
2.2.2 - George Gurdjieff e Peter Ouspensky. ____________________28

III - Liminaridade e “Communitas”.


Introdução_____________________________________________________________77
3.1 – Do Ritual ao Teatro. ________________________________________________79
3.1.1 - O Processo Ritual.___________________________________81
3.1.2 - O Ritual, a “Communitas”, a Liminaridade e o Teatro. ______84
3.1.3 - O Drama Social ou o Drama Ético.______________________98
3.1.4 - O Drama Social e o Drama Estético._____________________102

3.2 – Arte, Ciência, Filosofia e Religião. _____________________________________106

IV – O trabalho do ator sobre si mesmo.


4.1 – Konstantin Stanislavski.______________________________________________107
4.1.1 – Redescobrindo Stanislavski.___________________________107
4.1.2 Sobre a passagem da literatura dramática à cena viva do jogo teatral no último
experimento de Stanislavski sobre “O Tartufo” de Molière.________116

4.2 – Jerzy Grotowski.____________________________________________________131


4.2.1 – Redescobrindo Grotowski.____________________________131
4.2.2 - Técnica 1 e Técnica 2.________________________________147

Parte II – A experiência do LUME – Unicamp.

Introdução.____________________________________________________________158
Material e Métodos._____________________________________________________159
V –- O LUME e a liminaridade – A perspectiva atual.
5.1 – “Você” ___________________________________________________________166
5.1.1 - Pequenas Notas sobre o “Butoh”. _____________________166

xvii
5.1.2 - As circunstâncias do projeto._________________________170
5.1.3 - A matéria prima. __________________________________174
5.1.4 - A escolha do olhar. ________________________________177
5.1.5 - O Vazio Liminar no Trabalho do Ator._________________184
5.1.6 - Pequena Conversa Final.____________________________213

5.2 – “Não tem “Flor Quadrada” ___________________________________________218


5.2.1 – Trajetória. _______________________________________219
5.2.2 – O Processo de Criação. Dias de trabalho._______________229
5.2.3 - Estudos sobre a Liminaridade no trabalho do Ator.__257
Vida, forma e matéria no trabalho do ator.____ 257
O portão estreito._____________________________267

VI - O LUME e a liminaridade - Os Dramas Sociais e a ‘Communitas Normativa’


6.1 - Pequenas notas da trajetória artística de Burnier. __________________________279
6.2. Pequenas notas da trajetória artística do LUME. ___________________________291

VII - O LUME e a liminaridade – Da prisão à liberdade.


7.1 – Prisão para a Liberdade – O Primeiro LUME. ____________________________ 321
Primeira Tese: As energias potenciais do ator.___________________321

7.2 – Experiências práticas com o treinamento ‘energético’ nos cursos do LUME. ____329
7.2.1 - Para que serve o ‘treinamento energético’?______________329
7.2.2 - Descrição.________________________________________334
7.2.3 – Pontos de vista sobre o trabalho com a exaustão._________347
A exaustão do ponto de vista do desenvolvimento humano.__348
A exaustão do ponto de vista do processo artístico criativo.__360
Experimentos. _____________________________________370

7.3 – A liminaridade nas linhas de trabalho do LUME. __________________________378

7.3.1 - O Corpo a Mente e o Coração Dilatados no ‘Clown’.______378


7.3.2 - Os Corpos Dilatados na ‘Mimesis Corpórea’.____________387
7.3.3 - Perspectivas e possibilidades. _______________________394

7.4 – Prisão para a Liberdade – O Segundo LUME._____________________________399


Segunda Tese: O estado da fonte criadora.____________________400
7.4.1 – O Ato. __________________________________________401
7.4.2 – Apagando a musculatura e libertando o prisioneiro._______403
7.4.3 – Liberando-se do ‘ego’.______________________________404
7.4.4 – “Communitas”. ___________________________________406

VIII - Conclusão. _______________________________________________________410


IX - Bibliografia. ________________________________________________________416
X – Anexo 1 – Estudos auxiliares.__________________________________________422
Anexo 2 - Estudos auxiliares. _________________________________________449

xviii
I - INTRODUÇÃO - O LUME: como o conheci e
como me propus a (re) conhecê-lo.

1.1 -Primórdios

Em 1991, há 18 anos atrás, estive, por 10 dias, em uma fazenda no município de


Louveira, interior de São Paulo, com mais 15 pessoas. Acordávamos cedo, cinco ou seis da
manhã; logo tínhamos, em uma grande e única mesa, o café e em seguida saíamos para uma
leve corrida pelas estradas de terra da região. Retornávamos para a Casa Grande e numa
sala no segundo andar, começávamos uma espécie de treinamento físico. Treinamento do
corpo e sua capacidade de articulação; explorando novas possibilidades de movimentos,
seus limites, suas qualidades de energia. Pulávamos, saltávamos, rolávamos pelo chão,
caminhávamos de diferentes formas, corríamos pela sala cada vez mais velozes, parávamos,
escutávamos a nossa respiração ofegante, procurávamos controlar seu barulho e seguíamos.
Superando várias vezes o cansaço e a falta de vontade para continuar, depois de quatro
horas experimentando dinâmicas corporais diferentes, tínhamos uma pausa para o almoço.
À tarde, retomávamos o treinamento e em seguida iniciávamos com a representação de uma
longa cena que duraria quase toda a semana: o dono de um circo precisava de palhaços para
trabalhar em seu picadeiro e todos que estavam ali eram candidatos que deveriam
apresentar suas habilidades cômicas. Um por um, os candidatos passavam pelo olhar atento
e severo do dono do circo: atentamente revelador do potencial cômico natural a cada
candidato; mas também severamente expositor dos clichês e das falsas representações
cômicas que eles traziam consigo. A representação terminava e já eram por volta das seis
da tarde, hora de descansar, tomar banho e retornar para a grande mesa de jantar. A cada
noite, após a janta, tínhamos uma atividade diferente (caminhada noturna, filmes cômicos,
canções coletivas, criação de um personagem bufão, etc.) após a qual íamos dormir. E a
cada nova manhã, um pequeno grupo de 3 a 4 pessoas deveria criar um modo diferente de
despertar todo o restante do grupo que dormia pelos quartos da fazenda. Tudo isto durante
um pouco mais de uma semana.

1
O motivo da minha ida a esta fazenda era o meu interesse pelo teatro. Tinha 21 anos
de idade e havia acabado de deixar os estudos na faculdade de Física, para me tornar um
ator. Estudava teatro na Escola Livre de Teatro de Santo André e, através de alguns
contatos que tive ali, foi possível me inscrever e participar em Louveira deste "Retiro de
Clowns"; que era um curso de uma semana de introdução à técnica e construção do
“clown”, oferecido pelo grupo LUME da Universidade Estadual de Campinas. Quem
coordenava o curso, atuando também como dono do circo, era Luís Otávio Burnier, o
diretor artístico do LUME.
Após alguns dias de trabalho na fazenda, num determinado momento em que
tínhamos terminado o treinamento da manhã, Burnier reuniu o grupo e propôs que a
atividade noturna daquele dia seria fazer uma viagem até São Paulo, ao teatro municipal,
para assistir a uma peça de Ibsen, dirigida por Bob Wilson: "Quando nós, mortos,
despertamos", num festival internacional. O grupo aceitou a proposta e fomos.
Era um domingo. Após o almoço, andamos a pé até a saída da fazenda, que ficava
numa estrada vicinal de terra. Ali esperamos a carona que logo veio na caçamba de um
caminhão que passava. Chegamos à antiga estação de trem da região, que cortava a
pequena cidade e, num comboio de vagões antigos puxados por uma "maria fumaça",
seguimos viagem à estação de trem de Jundiaí, cidade mais que grande comparada à
anterior. Do contato com as pessoas da estação de Louveira, ao contato com as pessoas de
Jundiaí, que pegavam o trem subúrbio para a metrópole São Paulo a sensação vivida já era
diferente, mas não sabia ainda explicar porquê. A viagem foi longa, sentado nos bancos de
plástico duros, olhando de frente às pessoas do outro lado do trem. Lembro, então, de ter
reparado nas pessoas como nunca havia feito. "Quem eram elas?"; perguntava-me, ao
mesmo tempo em que notava uma flagrante ausência em seus olhos. Ausência de pessoas
que se sentam tão próximas umas das outras, mas permanecem tão distantes, alheias, como
se uma barreira invisível impedisse um possível contato. Se na estação de Louveira a
barreira invisível entre os passageiros era menor, tive a nítida sensação que na fazenda,
através do trabalho diário, estivemos enfraquecendo a existência de tal barreira em nossos
olhos. Lembro de ter-me surpreendido com a feiúra da paisagem que vinha se
transformando pela janela do trem, conforme chegava a São Paulo. E pegamos o metrô e
nunca pensei que fosse tão rápido como eu o via e o sentia estando dentro dele, naquele dia.

2
Mais pessoas no vagão do metrô e estas estavam vestidas diferentes, eram mais ricas ou
vinham de lugares de melhor condição social. Mas me lembro de tê-las percebido
igualmente ausentes entre si. Estação do Anhangabaú, a cidade gigante, e finalmente
estávamos em frente do teatro municipal. A entrada na platéia, as cadeiras, o tapete
vermelho e olhando para o alto, aquele teto imenso nas alturas. Da peça “Quando nós,
mortos, despertamos”, que era falada em inglês e eu não conhecia a estória, lembro do
cenário e de algumas cenas isoladas. Lembro de ter adormecido ao sentar na confortável
cadeira da platéia, exausto pela experiência de ter assistido à minha vida chegando a São
Paulo como se fosse a primeira vez. Após o teatro, voltamos de ônibus a Jundiaí e depois a
Louveira. O espetáculo da vida voltava à cena.
Após a conclusão do curso, deveríamos escrever um relatório sobre a experiência
vivida naquela semana. Transcrevo, aqui, algumas linhas daquilo que pouco tempo atrás,
encontrei como rascunho do relatório, num antigo caderno guardado no armário e que dá
seqüência à narrativa:
"Quebras periódicas no ciclo cotidiano de vida dos seres humanos são
fundamentais para a descoberta de um ser interior escondido e sufocado. A monotonia do
dia a dia, em seu caráter minimalista, nos coloca continuamente em situações e relações
estabelecidas, em lugares conhecidos e com pessoas conhecidas; o que faz com que nossas
reações humanas tendam a ser mecânicas, irrefletidas nos seus princípios e reprimidas na
sua exteriorização.
Um fato ocorrido durante a semana clown e que ilustra isso muito bem, ocorreu no
domingo à noite, quando voltávamos para a fazenda. Compramos passagens de ônibus
para Jundiaí no horário das 20:30 e, na hora de embarcar, notamos junto ao motorista que
a minha passagem e a de mais duas pessoas tinha saída marcada para as 20:15, de modo
que já havíamos perdido o ônibus. A primeira reação que brotou entre o grupo foi de
revolta com o motorista e em seguida uma certa agressividade no diálogo. Quem estava
errado, o vendedor que havia se enganado no horário ou o grupo que não havia conferido
a passagem?
A tendência que temos em nos armarmos até os dentes e deixar-nos levar pelo
falatório interior das nossas mentes em situações como essas, resultou em frases absurdas
como: “A gente vai nesse ônibus nem que seja à força” ou “Pra sair o senhor (motorista)
vai ter primeiro que passar por cima de nós” ou coisas parecidas. Afinal, o ônibus partiu
sem nós e acabamos por admitir nosso erro. Voltamos ao guichê, e mais calmos
conseguimos trocar as passagens estouradas.
A semana de retiro em uma fazenda, como proposta de trabalho é muito
interessante pois existe uma situação nova, num lugar desconhecido, com pessoas
desconhecidas. A situação é desafiante e me leva a refletir no meu modo de agir, no meu
modo de me relacionar, no meu modo de ser... e chega-se a uma fase de estar consigo
mesmo, um processo de auto-conhecimento que sinto serem fundamentais para o trabalho
do ator.” (Relatório da Semana Clown - 2° semestre de 1991.)

3
Todas as impressões deste dia ficaram gravadas na minha memória de maneira
muito nítida, como se eu tivesse experimentado a vida deste dia mais do que a de muitos
outros, tanto antes, como depois dele. Acho que só o vivi assim, pois tinha me submetido às
condições exteriores exigidas para fazer o curso. Eram condições totalmente diferentes da
minha vida diária naquela época: acordar muito cedo, treinar por horas, submeter o corpo a
inúmeras superações de cansaço e descobertas de camadas escondidas de energia, viver
todo o tempo em uma fazenda com um grupo de pessoas que quase não havia tido contato
anterior, respeitar regras de horários para iniciar e terminar as atividades e outras regras
internas de comportamento do grupo. Mas também, e principalmente, porque havia me
submetido às condições do processo de construir um “clown”, um ser cômico a partir das
minhas próprias características pessoais. Este processo foi como que “descascando”
camadas daquilo que eu era, ou daquilo que eu supunha ser; e revelando novos modos de
agir e me comportar que surgiam de dentro de mim, e encontravam expressão através das
representações diante do dono do circo. Se havia algo que a experiência com o LUME me
havia mostrado, este algo era o fato de que eu não conhecia a mim mesmo. Conhecia a mim
mesmo enquanto ser social nos meus aspectos mais exteriores e nos meus comportamentos
cotidianos, mas pude, então, visualizar claramente que a experiência com o teatro e com o
“clown” estimulava capacidades e características da minha pessoa que eu simplesmente
desconhecia e não eram utilizadas no dia a dia.
Fora justamente esta percepção que me havia atraído para as artes cênicas, um ano e
meio antes, mas nesta ocasião ela se tornou especialmente nítida. Isto por que a partir desta
atmosfera e deste estado criado pelo encontro na fazenda, saí em direção à vida social
cotidiana que eu mesmo experimentava todos os dias andando de trem e andando apressado
pelas ruas da cidade. E deste confronto de situações notei, em mim mesmo, que eu não era
aquilo que havia me acostumado a ser: era alguma coisa a mais.
A partir desta experiência até chegar ao mestrado e, em seguida, ao doutorado direto
em Artes na Unicamp se passaram mais de dez anos, nos quais tive a oportunidade de
estudar, trabalhar e me aprofundar na atividade teatral, tanto como ator, assim como na
qualidade de diretor e professor de oficinas de iniciação artística. Muitas vezes me
surpreendi com esta possibilidade que o fazer teatral possibilita àqueles que a descobrem e
não a temem. E percebi que ela podia acontecer tanto em atores profissionais já

4
consolidados e amadurecidos, como em jovens e adultos sem qualquer experiência artística
anterior. De certa maneira ela direcionou as minhas opções e decisões como artista e
pesquisador e está diretamente conectado ao tema e ao motivo pelo qual escolhi escrever
esta tese.
Há uns oito anos atrás, quando terminava a graduação em artes cênicas, me deparei
com um livro de um antropólogo inglês chamado Victor Turner. Num dos capítulos de seu
O Processo Ritual, livro que estuda os processos rituais de tribos africanas, encontrei a
definição do conceito de “communitas” que, lido como está, se aproxima muito desta e de
outras experiências práticas que tive com o teatro. Transcrevo o trecho onde reconheci a
similaridade com estas experiências:
“Essencialmente, a “communitas” consiste em uma relação entre indivíduos
concretos, históricos, idiossincrásicos. Estes indivíduos não estão segmentados em função
e posições sociais, porém defrontam-se uns com os outros mais propriamente à maneira do
“Eu e Tu”, de Martin Buber 1, um confronto direto, imediato e total de identidades
humanas.” (Turner, O Processo Ritual, 1974, p.161.)

A palavra: “idiossincrásico”, que se refere à “idiossincrasia” significa:


“1. Disposição do temperamento do indivíduo, que o faz reagir de maneira muito
pessoal à ação dos agentes externos. 2. Maneira de ver, sentir, reagir, própria de cada
pessoa.” (Aurélio Buarque de Holanda, Dicionário Básico da Língua Portuguesa)

e imediatamente me remeteu à experiência de construir um ser cômico, um “clown”


a partir das próprias características naturais, físicas e psicológicas, expondo-as diante dos
outros, dentro de um espaço de confiança e respeito mútuo, e se alçando acima de todo tipo
de vergonha e pudor, que normalmente sentimos na vida em sociedade. Isto é, me dei conta
de que através do teatro, através da experiência em um retiro de “clowns”, através da
experiência artística, as pessoas envolvidas, lenta e progressivamente, podiam se aproximar
de “um novo e possível estado de relacionamento entre seres humanos” ao qual Turner dá o
nome de “communitas”.
Turner utiliza esse termo “communitas”, em seu livro, inicialmente em referência a
rituais de iniciação e cura por ele observado nos anos em que viveu junto à tribo dos
“Ndembo”, na África. Aqueles que participam dos rituais religiosos organizados dentro de

1
Martin Buber (1878-1965)
Um dos maiores representantes do pensamento judáico no século XX, foi sobretudo um grande estudioso e
expoente do hassidismo, corrente do judaismo que floresceu a partir do século XVIII.

5
uma tribo “desvestem-se” da sua condição e papel na sociedade e passam a viver num novo
espaço-tempo, um espaço-tempo recluso e sagrado de “liminaridade” social. É através dos
rituais que uma tribo estabelece e recupera o equilíbrio do “drama social” vivido por seus
membros:

“... à medida que nos tornávamos cada vez mais parte do cenário da aldeia
descobrimos que com grande freqüência as decisões de executar um ritual estavam
relacionados com crises na vida social das aldeias... ... que a multiplicidade de situações
de conflito estava correlacionada com uma alta freqüência de execuções rituais.” (Turner,
O Processo Ritual, 1974, p.24.)

Seguindo a sua linha de estudo em “O Processo Ritual”, após descrever uma série
de diferentes exemplos de rituais, encontrando os símbolos e o modo de operação destes
símbolos dentro da vida dos “Ndembu”, ele passa a tentar reconhecer a existência de
“communitas” em diversos períodos históricos tanto na civilização ocidental como na
oriental reconhecendo que:
“A “communitas” irrompe nos interstícios da estrutura, na liminaridade; nas
bordas da estrutura, na marginalidade; e por baixo da estrutura, na inferioridade. Em
quase toda a parte a “communitas” é considerada sagrada ou “santificada”,
possivelmente porque transgride ou anula as normas que governam as relações
estruturadas e institucionalizadas, sendo acompanhadas por experiência de um poderio
sem precedentes... ...A liminaridade, a marginalidade e a inferioridade estrutural são
condições em que freqüentemente se geram os mitos, símbolos rituais, sistemas filosóficos e
obras de arte.(Turner, O Processo Ritual, 1974, p.156.)

E é a partir deste ponto de vista que conecto o termo “communitas” com a minha
experiência com o teatro, e mais especificamente com a minha experiência naquele retiro
de “Clowns” organizado pelo LUME. Deste modo, surgiu o tema desta tese que se propõe a
estudar, através de diferentes perspectivas (artística, filosófica, antropológica e esotérica), o
trabalho do ator no teatro de arte, o trabalho do ser humano no teatro da vida, e, mais
especificamente, o caso da trajetória de trabalho de pesquisa artística realizado pelo Núcleo
Interdisciplinar de Pesquisas Teatrais, o LUME.

6
1.2 – Destes que são os objetivos da tese.
1.2.1 Sobre a representação no teatro e na vida.
Quando entrei para uma faculdade de artes cênicas em 1998, já tinha estudado e
pesquisado sobre o trabalho do ator em diferentes tipos de experiências artísticas. Havia a
necessidade de ser um ator reconhecido legalmente, tirar um D.R.T., como se diz, e havia o
interesse de me aproximar novamente da universidade. Mas quando de fato passei no
vestibular da faculdade, me propus o objetivo de realizar uma investigação de caráter
pessoal sobre o ato humano de representar um papel, fosse este como ator dentro de um
contexto poético e artístico, fosse este como ator social dentro de um contexto institucional
e quotidiano. Durante os quatros anos em que freqüentei a faculdade de artes cênicas da
Unicamp, tive em mente o objetivo de tentar estar ciente de que, naquele contexto, estava
vestindo “o papel de estudante universitário” dentro de uma turma de alunos de artes
cênicas. Gostaria de fazer observações e aprender das minhas experiências não só dentro do
exercício da arte do ator de teatro, mas também e principalmente dentro da cena que
acontece entre os personagens sociais de uma faculdade de artes cênicas: alunos,
professores, pesquisadores, funcionários, a direção do instituto e outros personagens
secundários e não menos importantes que entram e saem da construção dramatúrgica da
vida de uma faculdade de artes, estando o próprio LUME, com alguns dos seus atores-
pesquisadores, dentro dessa categoria.
Antes de chegar à universidade quis muito encontrar um grupo de atores que
vivessem financeiramente do seu próprio trabalho e que ao mesmo tempo o realizassem
com uma certa qualidade ética e estética. Mas a não ser por algumas experiências e
encontros que havia tido com pessoas e grupos de teatro em que podia reconhecer esta
certa qualidade ética e estética, por mim mesmo eu não a sabia definir nem a realizar. Após
algumas experiências difíceis e alguns bons resultados pontuais, verifiquei que muitas
vezes a maior dificuldade que um grupo de atores empenhados em fazer teatro enfrenta não
acontece dentro da cena, mas sim fora dela, nas cenas da vida social, no relacionamento
cotidiano entre eles próprios. Em nenhum lugar é fácil manter um nível de respeito,
confiança, entendimento e compreensão no relacionamento entre as pessoas; mas no
ambiente teatral, que geralmente já é carente de uma estrutura financeira e institucional que
o ampare, quando acontece a crise e a ruptura emocional entre os atores, a qualidade do

7
trabalho e da criação artística torna-se notadamente prejudicada. Um ambiente emocional
ruim parece ser incompatível com a boa qualidade artística. Ao mesmo tempo crises,
desafios, inquietações, desassossegos e descondicionamentos das relações estabelecidas
consigo próprio e com os outros parecem ser ingredientes determinantes do processo
artístico criativo. Qual seria o ingrediente suplementar que faz com que atores, diretores e
produtores, em meio a crises, desafios, inquietações, desassossegos e descondicionamentos,
consigam produzir sustento; não só o de sobrevivência básica mas também, sustento com
propriedades e qualidades criativas para si e para o público?
Entendia que a qualidade ética e estética que almejava não era tanto uma questão de
mais ou menos conhecimento, ou mais ou menos experiência, mas muito mais uma certa
qualidade de ser que podia reconhecer em certas pessoas e em outras menos, mas que eu
mesmo não possuía. Entendia que as minhas limitações enquanto pessoa dificultavam os
meus anseios enquanto artista e que definitivamente o ator e a pessoa do ator se
influenciavam reciprocamente. Portanto, gostaria de observar e aprender sobre a minha
representação social cotidiana, não só sobre a minha, mas sobre a dos outros também.
Decidi, assim, que iria fazer graduação em Artes Cênicas na Unicamp, continuando
a desenvolver a minha experiência e aprendizado como ator, ao mesmo tempo em que
trabalhava sobre a minha qualidade de atuação enquanto pessoa. Quando estava em cena
como ator, onde eu estava? Quando estava vivendo a minha vida com os colegas e
professores, eu também estava atuando? Por que não conseguia viver com a mesma
qualidade de atenção que conseguia quando estava em cena? Quando estava sozinho, na
minha própria existência cotidiana, ainda assim eu estava em cena? Quem era eu na vida de
todos os dias? Afinal, quem sou eu? Quem é você?
Inevitavelmente, esta experiência acabou tendo uma forte influência no como
desenvolvi esta pesquisa de mestrado e doutorado direto. Foi a partir dela que encontrei os
escritos dos antropólogos Victor Turner, Martin Buber, Richard Schechner, Irwing
Goffman, George Gurdjieff, Peter Ouspensky, e muitos outros, que escapam às
classificações científicas daquilo que se entende por ‘antropologia’, mas que também
vieram a se somar e se encaixar com aquilo que já havia lido de Jerzy Grotowski, Thomas
Richards, Eugenio Barba, Peter Brook e Konstantin Stanislavski; pesquisadores que direta

8
ou indiretamente influenciaram atores e diretores de teatro que orientaram o meu
aprendizado prático como ator e pesquisador de teatro.
Estudando o processo pelo qual um ator se afasta da sua personalidade social
cotidiana e, através do espaço tempo poético (treinamento, ensaio, pesquisas e
apresentação), descobre, nele mesmo, novas perspectivas e inesperadas qualidades de ser e
estar até então desconhecidas ou esquecidas por ele; o primeiro objetivo dessa tese será,
portanto, aquele de comparar esse processo a um "processo ritual", como aquele estudado
por Turner. Auxiliado pelos escritos dos referidos autores da antropologia, da filosofia, do
teatro e de tradições esotéricas de diferentes épocas e contextos; se tentará organizar e
expressar algumas perspectivas sobre o ato humano de representar um papel dentro e fora
do teatro, dentro e fora da vida cotidiana, delimitando com precisão as margens que
separam a arte da vida, a vida ritual da vida social, mas encontrando um ponto de
comunhão e influência recíproca entre ambas. A partir daí, é que começa o estudo sobre o
Núcleo de Pesquisa Teatrais da Unicamp – o LUME.

1.2.2 O estudo do Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas Teatrais em sua dimensão


artística.
O Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas Teatrais – LUME, fundado em 1985,
portanto hoje com mais de 20 anos de atividades, chama a atenção dentro do cenário
cultural brasileiro não só pela continuidade, mas pela qualidade de suas pesquisas sobre a
arte do ator. Com sede na Universidade Estadual de Campinas, o LUME faz um trabalho de
pesquisa original, de eminente caráter prático, que está arvorado na tradição da pesquisa
sobre a arte do ator iniciada por Stanislavski e continuamente desenvolvida ao longo de
todo século XX pelos mais diversos pesquisadores: Meyerhold, Decroux, Grotowski,
Eugenio Barba, Peter Brook entre outros.
Dialogando com esta tradição, Luís Otávio Burnier e seus colegas buscaram uma
metodologia de elaboração, codificação e sistematização de uma técnica pessoal de
representação através da dilatação e dinamização das energias potenciais do ator (suas
vibrações corpóreas), e em como transpor essa técnica pessoal para um processo de
montagem de espetáculo: A “Dança Pessoal”, a “Mímesis Corpórea” e o “Clown” são as
três linhas básicas deste trabalho.

9
Por trás das palavras e dos conceitos sabemos que a experiência do LUME é, desde
o seu início, permeada por valores liminares e experiências que nos remetem à
“communitas” de Turner. Sobre seu primeiro contato com a proposta de pesquisa de Luís
Otávio Burnier e sobre a compreensão do cerne desta proposta, Carlos Simioni, co-
fundador do LUME nos conta:
“... para a maravilha dos meus olhos, dos meus sentimentos, e das minhas sensações, era o
físico do ator, era a alma do ator, era o sentimento do ator, era uma inteireza... Pela
primeira vez eu vi um ser humano em estado de plenitude. Eu estou dizendo tudo isso só
para dizer que é aqui que está o cerne, o primeiro cerne de todo o trabalho artístico do
LUME. É nesse tópico: da plenitude e da presença do ator, e dentro do trabalho físico que
engloba físico, espiritual, energético, sensorial, engloba toda a potencialidade do ator. E o
Luís queria exatamente isso: trabalhar a técnica da arte do ator.” (Entrevista com Carlos
Simioni, 2000.)

Utilizando e desenvolvendo o conceito de liminaridade e “communitas”, instituído


por Turner, investigaremos sobre a existência e a importância deste processo - pelo qual um
ator se afasta da sua personalidade social cotidiana - dentro da pesquisa artística
desenvolvida pelo LUME, comparando-a com outras correntes históricas e pesquisas da
arte do ator, fundamentadas pelo mesmo processo. Mais especificamente, estudaremos a
trajetória de três pesquisadores do século XX que, a seus modos, aproximaram a arte e o
fazer teatral a um trabalho sistemático de busca por uma qualidade humana na
concretização do evento artístico: Konstantin Stanislavski, Jerzy Grotowski e Peter Brook.

1.2.3 O estudo do Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas Teatrais em sua dimensão


institucional.
No momento em que a Unicamp abriga o LUME de forma institucional como
Laboratório vinculado ao Instituto de Artes e oito anos mais tarde, em 1993, como Núcleo
Interdisciplinar de Pesquisas Teatrais; esta experiência passa a ser um “communitas
normativo”. Vale dizer, isto ocorre “quando a “communitas” existencial passa a organizar-
se em um sistema social duradouro,” (TURNER, 1974), com uma estrutura fundamentada
em princípios internos e próprios de gestão e convivência social. O LUME passa a ter uma
existência dupla: tanto para se estabelecer enquanto instituição de pesquisa, lidando com as
normas e os parâmetros ditados pela universidade, mobilizando e organizando recursos e

10
criando papéis sociais internos; quanto para manter a pesquisa artística na direção dos
valores e princípios que a geraram, organizando-a e desenvolvendo-a.
Deste ponto de vista, a situação atual do LUME mostra-se como um interessante
campo de estudo para uma tese que transita entre dois meios de pesquisa complementares,
o artístico e o social. Aquele da representação de um drama estético, e a “communitas” que
pode ser gerada através dele; e aquele da representação cotidiana de um “drama social”
com suas crises, expectativas, anseios e lutas. Tal opção justifica-se na medida em que é um
dos interesses principais desta pesquisa, observar e dimensionar as influências recíprocas de
um meio sobre o outro. Isto é: como a busca pelo “estado liminar”, em sua pesquisa
artística acaba influenciando ou não as relações sociais internas e externas que o grupo, o
“communitas normativo” mantém, e vice versa.
A tese escolhe estudar o fenômeno cultural da “communitas” e suas repercussões
sociais e culturais, pois o entende como um fenômeno não só pertencente à esfera de
interesse das Artes ou da Antropologia, mas que pertence à esfera de interesse de toda e
qualquer área de pesquisa e produção de conhecimento humano, sejam elas acadêmicas ou
não.

11
PARTE I – A liminaridade na profissão do ator.

Cap. II – O Trabalho Sobre Si Mesmo.

2.1 - Sobre a Arte do Ator

O Sujeito e o Objeto na arte do ator.


Um escritor organiza idéias, palavras e frases e produz um livro. Um artista plástico
organiza cores e formas e produz uma tela pintada, uma escultura, ou uma instalação. Um
músico produz vibrações de inúmeras freqüências nas moléculas de ar que, unidas pelo
tempo e por silêncios farão deles uma música. Em todos estes exemplos, o sujeito (aquele
que faz) e o objeto (o que é feito) estão materialmente separados. No caso das artes cênicas
ou corporais; do teatro ou da dança, ou mesmo das performances e happenings, sujeito e
objeto ocupam o mesmo espaço, o objeto artístico está no corpo e na presença do seu autor.
Um dançarino produz e organiza movimentos nele mesmo. É um fato notável perceber que
todos nós, assim como o dançarino, temos um corpo que, de um modo ou de outro, é
utilizado e se movimenta todos os dias.
No teatro, em sua expressão mais clássica, realista ou social, teremos atores em
cena, diante de espectadores que os observam. Para estes espectadores, os atores estarão
representando personagens que vivem dentro de um contexto ficcional, proposto pelo
espetáculo. O ator (o sujeito) e o personagem de sua criação (o objeto) ocupam o mesmo
espaço e tempo; no nível da materialidade, o sujeito e o objeto se confundem. De igual
modo, na expressão teatral mais pura e simples e talvez mais próxima da sua provável
origem ritual - naquela por onde andaram alguns pesquisadores do séc. XX como Peter
Brook e Jerzy Grotowski - temos um ator-performer em um espaço vazio, que organiza e
executa ações com seu corpo e voz diante de uma testemunha.
Talvez este fato tão evidente, no caso do teatro, tenha feito com que o nível
psicológico da questão virasse tema de muitas discussões históricas: Quais são os processos
interiores que o ator vive em relação ao seu personagem, durante o ato de preparação,

12
criação e representação? Que tipo de relação é estabelecida entre o artista criador e a sua
obra? Acredito que a pergunta poderia ser feita, com igual nível de interesse, para qualquer
tipo de artista e expressão; no entanto, para o caso do ator, talvez por causa de tal
sobreposição, pareceu ganhar contornos ressaltados.

“Depois de Stanislavski é fácil distinguir o “trabalho interior” do


ator e a “construção exterior do personagem”. O primeiro define a
parte da imaginação, análise, invenção criadora que sustenta a
interpretação. A segunda caracteriza o conjunto de processos que
desembocam na composição formal e na legibilidade desta
interpretação... ... Por temperamento, certos atores tendem a
privilegiar o trabalho interior, outros a composição formal.”
(Roubine, 1990, p.76.)

Em seu “Paradoxo do Comediante”, Diderot formula a questão histórica: qual das


duas abordagens seria preferível a um ator; a abordagem daquele que encarna a personagem
ou a daquele que compõe tecnicamente a sua obra. Tal questão sempre esteve presente no
teatro ocidental, e numa visão superficial, parece ser uma espécie de luta incessante entre
posições opostas. A espontaneidade ou a técnica, o fluxo de vida ou a precisão, a criação
interior ou a composição exterior, a emoção ou a regra.

“A primeira, à custa de imaginação, sensibilidade, de mimetismo, se


identifica com seu personagem tanto quanto se identifica consigo
próprio: sendo intensamente um outro, ele é, paradoxalmente,
intensamente ele mesmo. A segunda “fabrica” seu personagem, e
dele mantém distância para melhor controlá-lo... No primeiro caso,
a interpretação se torna uma arte que se origina nos estados
emocionais e os utiliza. O ator corre o risco de deixar se atropelar
por eles... No segundo caso, a composição é maduramente
preparada pelo ator. Ela se afirma na inteligência e no domínio de si
mesmo.” (Roubine, 1990, p.76.)

Sabemos que, no segundo caso, o ator também corre um risco: aquele de


permanecer demasiadamente formal, controlado, frio e distante. De qualquer modo,
acredito que apenas aparentemente e quando apegadas a determinada estética, as duas
abordagens parecem ser opostas. Independente de qual se comece por privilegiar, cedo ou
tarde, se perceberá que cada uma das duas tem seu lugar garantido dentro de qualquer
expressão artística madura. Uma parece sustentar a outra, e a falta de uma prejudica todo o
esforço feito em favor da outra. Afinal de contas, a meta final de uma e de outra abordagem

13
não é a mesma, isto é, não é buscar a verdade em cena? Forma e conteúdo, dimensões
distintas do objeto artístico, necessitam de uma conexão ou de um mínimo diálogo que seja
para suscitar a credibilidade alheia. Muito interessante seria citar estas palavras de Eugenio
Barba sobre Stanislavski:
“Ele buscava a verdade no palco, como sinceridade total,
como autêntica vitalidade. O ator não deve “parecer” o personagem
que representa. O ator deve ser o que representa. Essa é a palavra
chave: ser, tornar-se unidade, indivíduo, não dividido. Ele odiava no
teatro “o teatro”, os signos mecânicos de um sentimento ausente.
Segundo suas próprias palavras: “O teatro é meu inimigo”.
Igualmente seu inimigo era o ator, o homem que mostrava
exteriormente o que não sentia interiormente. Queria chegar a um
estado criativo, no qual o ator estivesse animado por uma
concentração total de sua natureza moral e física.” (Barba, 1991, p.
91.)

Na tradução em português do livro “Minha Vida na Arte”, de Stanislavski, o trecho


em negrito a que se refere E. Barba e que está no capítulo: “A descoberta de verdades há
muito conhecidas” (Stanislavski, 1989, p. 414.); é traduzido como: “... a criação é acima de
tudo a plena concentração de toda a natureza espiritual e física.” Na versão castelhana do
mesmo trecho temos: “...el proceso creador es, antes que otra cosa, “la absoluta
concentración de toda la naturaleza espiritual, mental y física de uno””.
‘Corpo’, ‘mente’, ‘emoção’, ‘alma’, ‘espírito’, ‘inconsciente’, ‘subconsciente’,
‘supraconsciência’ são palavras que, assim colocadas nesta ordem, nos remetem a naturezas
que passo a passo, dentro de um ser humano, vão se tornando menos evidentes aos sentidos
e aos pensamentos. Por isso, vão ganhando uma miríade de significados subjetivos (isto é,
do sujeito) – muitas vezes contraditórios - que ocorrem no processo associativo mental de
cada um. Sobre a anatomia do corpo humano e seu funcionamento, as ciências biológicas já
mapearam com exatidão cada milímetro dos nossos corpos, chegando até o DNA. Mas
sobre as emoções, os pensamentos, suas conexões com o corpo físico, a ‘alma’ e o
‘espírito’, muito desse assunto não é conhecimento socialmente aceito e negociável entre
todos nós. No entanto, para nos aproximarmos dos objetivos dessa pesquisa iremos ter que
lidar com o problema.
Diz-se que ‘espiritual’ não é uma palavra “objetiva”, e que traz consigo muitos
significados desnecessários ao teatro. Talvez por isso, Barba ou o tradutor da edição

14
brasileira, Luís Otávio Burnier, tenha preferido utilizar a palavra “moral” no lugar de
“espiritual” como tencionava Stanislavski, trazendo uma dimensão mais voluntária ao
trabalho do ator.
Iremos investigar o problema em outro lugar. Por ora, aceno para o fato de que não
existe lugar mais incerto e desconhecido do que o próprio funcionamento interior e
psicológico de um ser humano. O que dizer de um ser humano que passa a representar algo
que não é ele mesmo, mas uma criação artística?
No caso do teatro mais do que em qualquer outra arte, o grau de conhecimento do
ator sobre si mesmo parece ser fator fundamental e determinante da forma final de sua
criação artística.
Stanislavski, perseguindo a verdade na criação artística, fez interessantes
observações a respeito:
“De fato, se você for arrastado num vendaval de inspiração,
ele poderá levar o seu ‘avião criativo’ acima das nuvens, em linha
vertical, sem fazer manobra prévia na pista, mas infelizmente esses
vôos inspirados não dependem de nós, e não podemos fazer regras
para eles. A única coisa que está em nosso poder é preparar o
terreno, lançar nossos trilhos, isto é, criar nossas ações físicas
reforçadas pela verdade e pela fé.” 2 (Stanislavski, A Criação do
Papel, 1987, p.247.)

No início, privilegiou o trabalho sobre as emoções e, no fim da vida, encontrou um


meio termo entre o trabalho interior e exterior do ator. Tal contribuição, apoiada num
preciso e rigoroso trabalho corporal chamou-se o método das ações físicas, ao qual
estudaremos com mais detalhes num próximo capítulo. Em síntese, o ator não poderia viver
em função da turbina de sua inspiração emotiva, pois sobre ela, tinha pouco ou nenhum
controle. Seu trabalho girou em torno de encontrar métodos e técnicas de construção onde
os esforços intencionais do ator e a sua vontade pudessem se fazer presentes na elaboração
e execução de um material muito concreto e tangível: as ações físicas criadas a partir da
lógica de comportamento do personagem retratado pelo texto teatral. Em cena, no momento
do ato teatral, através da execução ininterrupta de uma linha de ações físicas lógicas, o ator
estaria livre para se conectar com o seu estado criativo, sua “natureza espiritual”, doando

2
O mesmo trecho em italiano: “Nelle nostre possibilitá rientra preparare il terreno, stendere i binari, formare
cioé le azione fisiche rinforzate dalla veritá e dalla convinzione (convicção)” (Konstantin Stanislavskij, Il
lavoro dell’ attore sul personaggio, Roma-Bari, Editori Laterza, 1988, p.224)

15
vida e credibilidade ao personagem. O trabalho técnico formal e de composição exterior
serviria, então, como pista de lançamento para estados mais criativos e poéticos, onde a
emoção, o fluxo de vida e a verdade interior se manifestariam livremente. Forma e
conteúdo vital, esforço intencional e inspiração interior, ordem e desordem conviveriam,
assim, em interdependência mútua.
A vulgarização e mecanização do ato do ator parece ser o processo do qual
Stanislavski estava tentando escapar, conduzindo-o à percepção da necessidade do trabalho
do ator sobre si mesmo.
No teatro, uma das artes que mais tem por tema a ação de viver dos seres-humanos,
tanto socialmente como existencialmente; um ator mal preparado, enrijecido nas suas
próprias emoções e pensamentos, seria elemento tão limitador e inaceitável como um
instrumento musical que, numa orquestra, não alcança ou desafina as notas mais altas e
baixas da escala. Sabemos como é mais fácil lidar com esta questão quando o instrumento
não coincide com o próprio artista. A característica efêmera da arte teatral, que
necessariamente deve ser refeita a cada nova vez, leva inevitavelmente às questões da
qualidade da atenção do ator no momento imediato e presente da ação, da manutenção
desta qualidade de atenção e da construção e manutenção da motivação íntima que sustenta
a vida dessa ação. Sabemos o quanto é difícil fazer, na vida do dia a dia, ações com um alto
grau de atenção e presença e, como o contrário, acidentes de desatenção, falta de vontade,
ou esquecimentos nos acontecem tão freqüentemente. Ninguém vai ao teatro para assistir
acidentes de desatenção, falta de vontade ou excitação nervosa desarticulada, mas vai para
ver uma criação viva e intencionalmente elaborada.
E de fato, só assim bem preparado, lidando com o previsível e o imprevisível de
cada momento, um ator pode utilizar os imprevistos a seu próprio favor, transformando-os
em poesia e significado.
Diante destas considerações, aquilo que me parece ser verdadeiro para a arte do ator
é que mesmo se o método e a técnica pareçam impessoais e distantes, ao trabalharem com
os aspectos mais externos e visíveis da atuação, estes apenas estão abrindo espaço para a
entrada e a participação de uma dimensão pessoal, volitiva e emocional que o ator necessita
em sua arte e profissão. Certamente, esta dimensão não pode ser confundida com um

16
comércio vaidoso e sentimentalista da vida privada do ator. Ao contrário, trata-se aqui, de
uma possível qualidade do ator a serviço da sua Arte.
E dentro do universo de pesquisa e tradição desta Arte, muitos caminhos foram,
estão sendo e serão abertos em direção ao cume de sua montanha (desta montanha,
excelência). A experiência de um indivíduo com alguns desses caminhos e exploradores
(Zeami, as técnicas orientais de atuação, a commedia dell’arte, a tradição clássica ocidental,
Stanislavski em suas diferentes fases, Meyerhold, Decroux, Gordon Craig, Brecht,
Grotowski, Lee Strasberg, Peter Brook, Eugenio Barba, entre uma infinidade de outros)
pode ou não levá-lo ao cume desta montanha. A natureza da pessoa do ator sempre estará
presente e sempre será determinante. O mundo que o cerca: as referências históricas que
são apreendidas pela documentação da experiência do outro e também o contato direto e
prático com o trabalho do outro; acabam servindo como orientação até o momento em que
o ator percebe que ele mesmo deve percorrer e construir o seu próprio caminho. “Esta é a
palavra chave: Ser”, diz Barba sobre Stanislavski. E o processo evolutivo do ser é único e
individual, ainda que possa ser amparado e nutrido ou contrariado e desnutrido por toda
uma teia social e cultural. Na arte do ator, como em qualquer arte, ao que me parece, a
qualidade do sujeito (o ator e o estado de sua natureza psicofísica) e a qualidade do seu
objeto (a imagem poética e suas ações), são variáveis dependentes. E por ser assim, é que
outros aspectos precisam ser evidenciados. Assim também acha Thomas Richards no livro
que conta sobre sua experiência de trabalho com Grotowski:
..., somente um ator que pode comandar aquilo que faz sobre
o palco será capaz de criar uma vida sobre o palco. E para
comandar aquilo que faz deve entender nele quais forças controlam
o seu comportamento na vida cotidiana. Como pode um ator fazer
algo de claro sobre o palco se é cego em relação ao seu próprio
comportamento na vida cotidiana? (Richards, 1993, p.112.)

2.2 – A possível mudança do estado de consciência.

2.2.1 - O mito da caverna de Platão.


Neste ponto, gostaria de citar, do trecho inicial do capítulo VII da República de
Platão, as principais passagens da alegoria da caverna, escrita através das palavras de
Sócrates e interlocução de Glauco. A alegoria, imagem simbólica da possível mudança do

17
estado de consciência do homem, será o ponto de partida para todos os enfoques de estudo
desta tese, a saber:

- Sobre o trabalho sobre si.


- Sobre o drama social, o processo ritual, a “liminaridade” e a “communitas”.
- Sobre o teatro e o trabalho do ator sobre si mesmo.
- Sobre o papel do teatro e da arte.

Utilizo a alegoria como ferramenta auxiliar para a compreensão do conceito de


mudança de estado de consciência de si e percepção do outro, ou “communitas”, conceito
que utilizaremos para nos aproximar de algumas das principais transformações almejadas
pelos reformadores do teatro no século XX.
A tradução que transcrevo é aquela feita por J. Guinsburg, editada pela “Difusão
Européia do Livro” em 1973:
LIVRO VII
“Sócrates - AGORA, representa da seguinte forma o estado de nossa natureza
relativamente à instrução e à ignorância. Imagina homens em morada
subterrânea, em forma de caverna, que tenha em toda a largura uma entrada
aberta para a luz; estes homens aí se encontram desde a infância, com as pernas
e o pescoço acorrentados, de sorte que não podem mexer-se nem ver outro lugar
exceto diante deles, pois a corrente os impede de virar a cabeça; a luz lhes vem
de um fogo aceso sobre uma eminência, ao longe atrás deles; entre o fogo e os
prisioneiros passa um caminho elevado; imagina que, ao longo deste caminho,
ergue-se um pequeno muro, semelhante aos tapumes que os exibidores de
fantoches erguem à frente deles e por cima dos quais exibem as suas maravilhas.

- Glauco - Vejo isso.

- Sócrates - Figura, agora, ao longo deste pequeno muro homens a transportar


objetos de todo gênero, que ultrapassam o muro, bem como estatuetas de
homens e animais de pedra, de madeira e de toda espécie de matéria.
Naturalmente, entre estes portadores, uns falam e outros se calam.

- Glauco - Eis um estranho quadro e estranhos prisioneiros!

- Sócrates - Eles se assemelham a nós, mas primeiro, pensa que em tal situação
jamais hajam visto algo de si próprios e de seus vizinhos, afora as sombras
projetadas pelo fogo sobre a parede da caverna que está à sua frente?

18
- Glauco - E como poderiam se são forçados a ficar a vida toda com a cabeça
imóvel?

- Sócrates - E com os objetos que desfilam, não acontece o mesmo?

- Glauco - Incontestavelmente.

- Sócrates - Se, portanto, conseguissem conversar entre si não julga que tomariam
por objetos reais as sombras que avistassem?

- Glauco - Necessariamente.

- Sócrates - E se a parede do fundo da prisão tivesse eco, cada vez que um dos
portadores falasse, creriam ouvir algo que não viesse da sombra que passasse
diante deles?

- Glauco - Não, por Zeus.

- Sócrates - Seguramente tais homens só atribuirão realidade às sombras dos


objetos fabricados.

- Glauco - É inteiramente necessário.

- Sócrates - Considera agora o que lhes sobrevirá naturalmente se forem libertos


das cadeias e curados da ignorância. Que se separe um desses prisioneiros, que o
forcem a levantar-se imediatamente, a volver o pescoço, a caminhar, a erguer os
olhos à luz: ao efetuar todos esses movimentos sofrerá, e o ofuscamento o
impedirá de distinguir os objetos cuja sombra enxergava há pouco. O que acha,
pois, que ele responderá se alguém lhe vier dizer que tudo quanto vira até então
eram apenas vãos fantasmas, mas que agora, mais perto da realidade e voltado
para objetos mais reais, vê de maneira mais justa? Se, enfim, mostrando-lhe
cada uma das coisas passantes, o obrigar, à força de perguntas, a dizer o que é
isso? Não crê que ficará embaraçado e que as sombras que via há pouco lhe
parecerão mais verdadeiras do que os objetos que ora lhe são mostrados?

- Glauco - Muito mais verdadeiras.

- Sócrates - E se o forçam a fitar a própria luz, não ficarão os seus olhos feridos?
Não tirará dela a vista, para retornar às coisas que pode olhar, e não acreditará
que estas são realmente mais nítidas do que as outras que lhe são mostradas?

- Glauco - Seguramente.

- Sócrates - E se o arrancam à força de sua caverna, o compelem a escalar a rude


e escarpada encosta e não o soltam antes de arrastá-lo até a luz do sol, não
sofrerá ele vivamente e não se queixará destas violências? E quando houver

19
chegado à luz, poderá, com os olhos completamente deslumbrados pelo fulgor,
distinguir uma só das coisas que agora chamamos verdadeiras?

- Glauco - Não poderá ao menos desde logo.

- Sócrates - Necessitará, penso, de hábito para ver os objetos da região superior.


Primeiro distinguirá mais facilmente as sombras, depois as imagens dos homens
e dos outros objetos que se refletem nas águas, a seguir os próprios objetos.
Após isso, poderá, enfrentando a claridade dos astros e da lua, contemplar mais
facilmente durante a noite os corpos celestes e o céu mesmo, do que durante o
dia o sol e sua luz.

- Glauco - Sem dúvida.

- Sócrates - Por fim, imagino, há de ser o sol, não suas vãs imagens refletidas nas
águas ou em qualquer outro local, mas o próprio sol em seu verdadeiro lugar,
que ele poderá ver e contemplar tal como é.

- Glauco - Necessariamente.

- Sócrates Depois disso há de concluir, a respeito do sol, que é este que faz as
estações e os anos, que governa tudo no mundo visível e que, de certa maneira, é
a causa de tudo quanto ele via, com os seus companheiros, na caverna.

- Glauco - Evidentemente, chegará a esta conclusão.

- Sócrates - Ora, lembrando-se de sua primeira morada, da sabedoria que nela se


professa e dos que aí foram os seus companheiros de cativeiro, não crê que ele
se rejubilará com a mudança e lastimará estes últimos?

- Glauco - Sim, decerto.

- Sócrates - E se estes últimos, então, se concedessem entre si honras e louvores,


premiassem àquele que captasse com olhar mais vivo a passagem das sombras,
que se recordasse melhor das que costumavam vir em primeiro lugar ou em
último, ou que caminham juntas, e que, por isso, fosse o mais hábil em adivinhar
o aparecimento delas, pensa que o nosso homem sentiria ciúmes destas
distinções e alimentaria inveja dos que, entre os prisioneiros, fossem honrados e
poderosos? Ou então, como o herói de Homero, não preferirá mil vezes ser
apenas um servente de arado, a serviço de um pobre lavrador, e sofrer tudo no
mundo, a voltar às suas antigas ilusões e viver como vivia?

- Glauco - Sou de tua opinião; ele preferirá sofrer tudo a viver desta maneira.

- Sócrates - Imagina ainda que este homem torne a descer à caverna e vá sentar-
se em seu antigo lugar: não terá ele os olhos cegados pelas trevas, ao vir
subitamente do pleno sol?

20
- Glauco - Seguramente sim.

- Sócrates - E se, para julgar estas sombras, tiver de entrar de novo em


competição, com os cativos que não abandonaram as correntes, no momento em
que ainda está com a vista confusa e antes que seus olhos se tenham
reacostumado (e o hábito à obscuridade exigirá ainda bastante tempo), não
provocará riso à própria custa e não dirão eles que, tendo ido para cima, voltou
com a vista arruinada, de sorte que não vale mesmo a pena tentar subir até lá? E
se alguém tentar soltá-los e conduzi-los ao alto, e conseguissem eles pegá-lo e
matá-lo, não o matarão?

- Glauco - Sem dúvida alguma.

- Sócrates - Agora, meu caro Glauco, cumpre aplicar ponto por ponto esta
imagem ao que dissemos mais acima, comparar o mundo que a vista nos revela
à morada da prisão e a luz do fogo que a ilumina ao poder do sol. No que se
refere à subida à região superior e à contemplação de seus objetos, se você a
considerar como a ascensão da alma ao lugar inteligível, não se enganará sobre o
meu pensamento, posto que também deseja conhecê-lo. Deus sabe se ele é
verdadeiro. Quanto a mim tal é a minha opinião: no mundo inteligível, a idéia do
bem é percebida por último e a custo, mas não se pode percebê-la sem concluir
que é a causa de tudo quanto há de direito e belo em todas as coisas; que ela
engendrou, no mundo visível, a luz e o soberano da luz; que, no mundo
inteligível, ela própria é soberana e dispensa a verdade e a inteligência; e que é
preciso vê-la para conduzir-se com sabedoria na vida particular e na vida
pública.

- Glauco - Partilho de tua opinião na medida em que posso.”

“Mudança de Estado.”
O intuito da construção desta imagem serve para Platão definir a “realidade” em que
estão imersos a sua República e todos os seus cidadãos. Escreve, neste capítulo, sobre a
necessidade de encontrar as pessoas mais capacitadas para o governo de sua cidade, que
seriam evidentemente aqueles que suficientemente se esforçaram para, saindo da condição
primeira de cativo morador do fundo da caverna, experimentassem a vida em níveis que
conduziriam, por fim, à contemplação do bem em si e da natureza como ela realmente é;
separado de toda a virtualidade e vicissitude das relações instituídas dentro da caverna por
aqueles que nunca a deixaram. Este seria o filósofo, por excelência, aquele que teria por
dever retornar para a caverna, acostumar-se novamente com a sua escuridão e governar a
cidade sem nunca mais perder sua conexão com o bem e a verdade que adquiriu sobre a

21
realidade. Uma imagem muito coincidente com o “estado liminar” vivido pelos “Ndembus”
em seus rituais de cura e iniciação para manter o equilíbrio da vida social, conforme
poderemos ver no estudo de Turner.
A “Communitas” pressupõe uma “mudança no estado de percepção” de um
indivíduo sobre si mesmo, sobre o outro e sobre o lugar que ele ocupa na realidade que o
circunda.
“Quando duas pessoas acreditam que elas experimentaram a
unidade, todas as pessoas são sentidas por aquelas duas, mesmo que
só por um instante, como uma só. A grande dificuldade é manter esta
intuição viva.” (Turner, 1982, p. 47.)

A experiência humana comum, diz Turner, com a reclusão iniciatória e a religião,


com a arte e a literatura, com o sexo e com as drogas podem apenas momentaneamente
produzir esta mudança de estado perceptivo.
Na própria alegoria podemos reconhecê-la: ao conseguir virar a cabeça para o lado,
o homem verá que todos ao seu redor estão com suas cabeças fixas e presas, olhando os
supostos objetos que passam pelo fundo da caverna. Ao virar a cabeça para trás, terá seus
olhos cegados pela luz da fogueira que arde numa eminência da caverna; mas ao acostumar
os olhos a esta nova posição e levantar-se e olhar seguidamente para frente e para trás,
perceberá que aquilo a que antes chamava de realidade são apenas sombras projetadas, por
objetos que passam por entre a fogueira e a multidão cativa, na parede do fundo da caverna.
Ao conseguir caminhar e se locomover até perto da fogueira, compreenderá de forma mais
completa o mecanismo que cria aquilo a que antes suponha ser a realidade, entendendo os
pormenores dos efeitos produzidos por esse mecanismo. No entanto, percebe, agora, as
reais dimensões do lugar que ocupa, dando-se conta que é uma caverna e que possui uma
estreita passagem, uma saída por onde chega uma nova luminosidade à qual ele poderia
tentar começar a subir. Deste modo, na alegoria, um homem muda de estado e compreende
a parcial realidade das relações que mantinha com seus semelhantes antes de chegar até a
sua atual posição.
Um conceito paralelo, esta é a nossa suposição, foi muito utilizado no teatro
ocidental do séc. XX. Está no trabalho de Artaud, Stanislavski, Grotowski e Peter Brook. A
mudança de estado das condições psicofísicas do ator, através de uma técnica concreta e
precisa de trabalho, o contato com novas percepções de si, do outro e da realidade que os

22
cerca, são algumas das principais características do trabalho de criação artística dos atores-
pesquisadores do LUME também. O termo técnico que os pesquisadores do LUME
utilizam para este fato é “estado extra-cotidiano de dilatação corpórea do ator” ou estado de
“presença corpórea do ator”, ou ainda “ estado de trabalho.” Se, normalmente, uma pessoa
age e se comporta na vida cotidiana pela lei de menor esforço, mantendo seu estado de
energia e atenção em um grau mínimo que seja suficiente para cumprir e realizar
obrigações sociais e ocupações diárias; na vida em sala de trabalho, os atores buscam viver
sob uma nova lei de organização psíquico-corporal que poderia ser chamada de lei do
máximo esforço; não sempre um esforço externamente visível, mas muitas vezes um
esforço invisível, no máximo grau de controle interno de atenção e energia corporal, mental
e emocional. Muitas vezes ocorre que, para se aproximar dessa lei psíquico-corporal, se faz
necessário uma libertação ou um desprendimento da energia cotidiana que chega com os
atores de suas representações sociais diárias. Uma qualidade de energia renovada é
alcançada por um processo de exaustão física chamado “treinamento energético”. É uma
mudança de estado energético instintivo e corporal como qualquer um pode experimentar
ao lutar contra algum perigo real que ameaça a própria vida, mas também é uma mudança
de estado energético emocional, intelectual e cognitivo. É deste estado psicofísico que o
LUME, como veremos, faz a sua arte. Veremos também que no teatro do século XX, ainda
que a idéia da ‘mudança do estado psicofísico do ator’ esteja presente em todos
pesquisadores acima citados, as técnicas, as gradações e as utilizações de tais mudanças,
variam enormemente. Estudaremos algumas destas técnicas, graus e utilizações.

A representação do ‘eu’ na vida cotidiana.


Voltemos agora às palavras de Sócrates a respeito “do estado de nossa natureza
relativamente à instrução e à ignorância.” Ignorância diz respeito àquele que sentado no
fundo da caverna desde a infância, com as pernas e o pescoço acorrentados, acredita que a
“realidade” que vê diante de si é de fato a única existente. Instrução diz respeito àquele
que, de algum modo, conseguiu livrar-se dos grilhões, virar a cabeça para trás e subir até
perto da fogueira, em uma eminência da caverna, suportando a dor nos seus próprios olhos,
e descobrindo, assim, a manipulação das estatuetas e o mecanismo de projeção das
sombras. Ainda, diz respeito também àquele que, após descobrir que estava dentro de uma

23
caverna, começou a empreender a escalada da rude e escarpada encosta, em direção à saída,
e a ter contato com uma nova e desconhecida “realidade.” Conclui-se que: se Sócrates está
falando do estado da natureza humana relativamente à ignorância e à instrução, existe uma
diversidade de estados mais ou menos ignorantes das realidades que a cerca e estados mais
ou menos instruídos destas realidades.
Mas, o que poderiam vir a ser, de fato, estas correntes que prendem um ser humano
pelo pescoço e pelas pernas desde a infância, impossibilitando-o de ver algo de si próprio,
de seus vizinhos e de sua morada? O que são esses grilhões, que o obrigam a acreditar
nessas sombras e ecos que chegam até seus olhos e ouvidos do fundo da caverna?
Após narrar o inteiro mito, Sócrates diz a Glauco que cumpre “comparar o mundo
que a vista nos revela à morada da prisão e a luz do fogo que a ilumina ao poder do sol.”
Seria interessante fazer duas suposições a respeito. Poderia começar pela compreensão
literal das palavras de Sócrates de que o próprio espaço tempo de nosso planeta é a ‘morada
da prisão’; ou, dito de outra maneira, a superfície do planeta Terra é o fundo frio e obscuro
de uma caverna iluminada por uma fogueira eminente, a estrela que chamamos ‘Sol’.
Haveria algo por entre a Terra e o Sol que produziria toda uma espécie de corpos – sombras
- que habitaria a superfície terrestre, e neste caso podemos apenas lembrar que pelo espaço
existente entre o Sol e a Terra circulam, interna e externamente, uma diversidade de corpos
celestes, Planetas e Lua, com tamanhos e características diferentes.
Estamos adentrando o território da “Astrologia Antiga”, que estudava a influência
dos astros sobre a vida orgânica terrestre. Infelizmente, por alguma razão, este ramo do
conhecimento humano, separado da moderna “Astronomia Científica”, chegou até nós
apenas de forma fragmentada e parcial. Vestígios mais ou menos banalizados dele são
encontrados em horóscopos de jornais e revistas atuais, mas também encontramos alusões à
Astrologia Antiga em muitas obras de arte da antiguidade, em Shakespeare ou nos poetas
persas.
Em “The King Lear”, por exemplo, há uma interessante seqüência que dá uma
amostra de como tal conhecimento era negociado na época de Shakespeare. Logo após a
conhecida primeira cena onde o Rei abdica de seu poder, renega sua filha mais nova e
reparte seu reino entre as duas outras; o Conde de Gloucester, fiel servidor do Rei, ao saber

24
também da suposta conspiração de seu filho mais velho, ardilosamente inventada pelo seu
filho bastardo Edmundo, comenta a sós com este:
Gloucester – Esses últimos eclipses do sol e da lua nada de
bom nos anunciam; embora as leis da natureza possam explicá-los
de diversos modos, a própria natureza é castigada pelos seus efeitos.
O amor esfria, a amizade se rompe, os irmãos se dividem. Na cidade,
revoltas, nos campos, discórdia; nos palácios, traição; e se
arrebentam os laços entre pais e filhos [...].

Edmundo, vilão e conhecedor das fraquezas humanas como Iago de “Othelo”, em


seguida e a sós, dá voz a outra perspectiva:

Edmundo – Eis a sublime estupidez do mundo; quando


nossa fortuna está abalada – muitas vezes pelos excessos de nossos
próprios atos – culpamos o sol, a lua e as estrelas pelos nossos
desastres; como se fôssemos canalhas por necessidade, idiotas por
influência celeste; escroques, ladrões e traidores por comando do
zodíaco; bêbados, mentirosos e adúlteros por forçada obediência à
determinação dos planetas; como se toda perversidade que há em
nós fosse pura instigação divina [...]. 3

Não sendo os astros celestes a fonte da perversidade humana, qual seria, então, a sua
origem?
Cito também um poema de Omar Khayam de seu Rubayat, que muito se assemelha
a esta primeira suposição que fizemos:
“For in and Out, above, about, below, ‘Tis nothing but a Magic Shadow-show, Play’d
in a Box whose Candle is the Sun, Round which we Phantom Figures come and
go.”
—Omar Khayam (by Edward J. Fitzgerald -1859)
"Por dentro e Fora, acima e abaixo, isto nada mais é do que um espetáculo Mágico de Sombras, representado
em uma Caixa, do qual a Vela é o Sol, ao redor do qual nós, Figuras Fantasmas, chegamos e partimos."

Para aqueles que se interessam pelo ‘espetáculo Mágico de Sombras’ sugiro a


leitura do livro: The Theory of Celestial Influence de Rodney Collin, onde além de um
revelador estudo sobre as correlações entre Vida (Sol), Forma (Planetas) e Matéria (Terra)4;
há, também, um pioneiro estudo sobre a influência do grau de atividade das glândulas
endócrinas na determinação de tipos de essências humanas e uma suposta correlação entre

3
Em O Rei Lear / William Shakespeare; pg.22 - tradução de Millôr Fernandes.
4
(Collin, 1993, cap IV).

25
o grau de atividade dessas glândulas no indivíduo e a posição dos planetas do sistema solar
no momento do seu nascimento.5 Estudaremos logo adiante sobre a idéia de essência e
personalidade no homem e sobre a idéia de que existem diferentes tipos de essências e
diferentes qualidades de personalidades em torno a essas essências.
Podemos ainda, para concluir, pensar numa segunda suposição que seria tomar as
palavras de Sócrates num possível significado interno e psicológico. Sócrates diz a Glauco
que cumpre “comparar o mundo que a vista nos revela à morada da prisão e a luz do fogo
que a ilumina ao poder do sol.” Ora, se a vista voltada para fora nos revela um mundo
exterior formado por corpos de matéria mineral, celular e molecular permeados pela luz do
Sol; quando voltada para dentro nos revela um mundo interior - particular ao indivíduo -
que é formado por pensamentos, emoções, sonhos, sensações dos corpos externos, desejos e
aversões por esses corpos, e também, além de muitas outras coisas, por impulsos e
necessidades instintivas de seu próprio corpo celular. Seguindo tal suposição a morada da
prisão, a Caverna, seria o nosso mundo interior particular. Em um lugar eminente deste
mundo interior um fogo o iluminaria e num lugar intermediário haveria os passantes
manipulando objetos por cima de um tapume. Mas os cativos aprisionados tomariam a
realidade deste mundo apenas pelas ausências da luz desse fogo, isto é, as sombras
projetadas pelos objetos manipulados. Segundo essa suposição o homem ou a mulher que
possuísse essa alegórica configuração em seu mundo interior particular ignoraria, por
completo, a real configuração dessa sua dimensão, isto é, ignoraria o seu próprio
funcionamento psicológico. Ele estaria adormecido para a sua condição interior.
Ampliando, agora, o leque das questões sobre a Alegoria da Caverna, a partir desta
segunda perspectiva: O que é este fogo que arde na eminência de nosso mundo interior
particular, que seria comparável à luz do sol? Sempre seguindo essa segunda suposição: o
que são estes homens que desfilam seus objetos por cima de um tapume? O que são estes
objetos e suas sombras? O que são estes cativos? O que é que lhes impede de se mover, e os
aprisiona numa mesma perspectiva desde a infância? O que é o homem que se liberta?
Claro que as respostas a essas perguntas não podem ser, satisfatoriamente, dadas
somente pelas ciências exatas e racionais; pois, naturalmente, estão conectadas a elementos

5
Em português há ainda “Em Busca do Paraíso Perdido: A Teoria dos Tipos Humanos” (Queiroz, 1995) e
“Tipos Humanos – Essência e Eneagrama.” (Zannos, 2004).

26
da nossa própria psique no seu sentido lato: corpo, sensações, pensamentos, sentimentos,
alma e espírito.
Se tomarmos a última destas questões, deixando, provisoriamente, as outras de lado;
o “homem” que, liberto das correntes, descobre o mecanismo das sombras e é arrancado à
força de sua caverna, não se referirá, em absoluto, ao corpo humano materialmente visível
e fadado a morte, mas sim a uma possível segunda natureza humana que seria liberta. Diz
Sócrates: “No que se refere à subida à região superior e à contemplação de seus objetos,
se você a considerar como a ascensão da alma ao lugar inteligível, não se enganará sobre
o meu pensamento, posto que também deseja conhecê-lo. Deus sabe se ele é verdadeiro.”
Desta frase de Sócrates decorre, nesta segunda suposição e perspectiva, que no homem há
uma alma – uma identidade interior – que deve ser liberta, posta em movimento e instruída
na direção de um autoconhecimento inteligível e, quem sabe, além dele próprio em direção
à “idéia do bem”, que representando o sumo deste autoconhecimento inteligível, no seu
limiar, “dispensaria” até mesmo “a verdade e a inteligência.”
A despeito de todas as leituras críticas, filosóficas e religiosas, acumuladas durante
séculos sobre a obra de Sócrates e Platão no Ocidente, utilizaremos a alegoria da Caverna,
nesta tese, sem fazer nenhuma referência ou discussão prévia sobre elas. Por exemplo: diz-
se que a perspectiva do pensamento socrático e platônico induziu o homem ocidental a uma
separação dicotômica entre corpo, de um lado; e pensamento alma e espírito, de outro. Como se
o mundo sensível dos fenômenos, da multiplicidade e do movimento no tempo e no espaço
fosse ilusório e estivesse em oposição e separado de um mundo puro e real do espírito e das
idéias. Com um pouco mais de embrutecimento e rudeza de pensamento, logo se chegaria à
idéia de que a dimensão externa do corpo e aquela interior da mente, alma e espírito seriam
não só independentes e opostas, mas tão opostas como o vício e o pecado são da virtude e
da bem-aventurança.
A intuição me leva a formular a seguinte pergunta: não haveria vícios e virtudes que
seriam relativos a cada uma dessas naturezas? Assim como podemos entrever uma
utilização viciada do corpo, não podemos entrever, também, uma utilização viciada dos
sentimentos e dos pensamentos? Não haveria a instrução e a ignorância do corpo, a
instrução e a ignorância da alma, e a instrução e a ignorância do espírito? Neste sentido a
Alegoria da Caverna parece tratar de um tema muito bem definido: sobre a instrução e a

27
ignorância da alma, isto é, sobre o homem e a mulher que estariam adormecidos para a sua
condição interior.
Pois, como diz Sócrates, é através da ascensão desta alma a este lugar de
autoconhecimento inteligível – que no seu limiar se torna ininteligível - que o homem pode
conduzir-se com sabedoria tanto na vida particular quanto na vida pública, isto é, conduzir-
se na sua vida cotidiana com todo o seu organismo, sem exceção.
Para abordar o problema, vamos introduzir um conhecimento que não tem sua
origem nas leituras críticas ocidentais: nem naquelas vindas da tradição religiosa nem
naquelas vindas da tradição filosófica. Não digo que elas sejam falsas, muito longe disso;
mas para o estudo que está sendo proposto uma outra abordagem será mais apropriada.

2.2.2 George Gurdjieff e Peter Ouspensky

O conhecimento da tradição esotérica trazido do Oriente e divulgado no Ocidente


por George Gurdjieff e Peter Ouspensky, através de livros e grupos de trabalho, na primeira
metade do século XX, fala desta mesma perspectiva que introduzimos através da Alegoria
da Caverna para nos aproximarmos da questão do trabalho sobre si mesmo na arte do ator.

“Bem-aventurado aquele que tem uma alma; bem aventurado também aquele que
não a tem, mas desgraça e desolação a todo aquele que dela só tem o germe.” (Gurdjieff,
2003, p.245) 6

Peter Brook, diretor de teatro e cinema, que fez um filme a partir de um dos livros
de Gurdjieff: Encontro com Homens Notáveis 7 escreve a respeito:

“Em todas as tradições esotéricas, há uma divisão entre um nível superior e um


nível inferior, entre o corpo e o espírito. Gurdjieff coloca esta divisão em um contexto
muito diferente. O homem, ele diz, não nasceu com uma alma pronta e feita; ele nasceu
incompleto. A alma é material como o corpo, matéria é energia, e cada ser humano pode
desenvolver, por si mesmo e através de esforços conscientes, substâncias mais sutis dentro
do corpo. Mas isto não é fácil, e nem uma devota intenção nem uma austera determinação

6
'Blessed is he that hath a soul, blessed also is he that hath none, but grief and sorrow are the lot of him who
hath in himself only its conception.' (Beelzebub's Tales to His Grandson - Chapter 21)
7
"Encontro com Homens Notáveis" de G. Gurdjieff foi publicado no Brasil pela Editora Pensamento S.P.

28
é suficiente.” (Brook, P. - The Secret Dimension artigo em: “Gurdjieff: Essays and
Reflections on the Man and His Teaching.”1996 p. 33)

A viga mestra da alegoria da Caverna (aquela de que um cativo deve esforçar-se de


maneira voluntária para livrar-se da ignorância a respeito de si próprio e aproximar-se da
‘idéia do bem’, isto é, do conhecimento de si mesmo) é, para mim, semelhante à que
sustenta o ensinamento veiculado por Gurdjieff e Ouspensky. As duas perspectivas que
supomos para ler a Alegoria - aquela externa, que se refere aos mundos dos corpos, e
aquela interna que se refere ao mundo interior - são utilizadas, simultaneamente, no
caminho de materialização ou desenvolvimento desta alma de que nos fala Brook. O
elemento do ‘esforço’ para a materialização de uma ‘vontade da alma’ que, no homem,
deve ser conquistada, é a característica que aproxima ambas as perspectivas e também, o
que me fez preferir essas abordagens para estudar sobre o trabalho do ator. Uso, aqui, a
palavra ‘alma’, sem dar maiores atributos à sua materialidade, mas logo adiante, quando
estudarmos alguns dos princípios deste conhecimento, ela será convenientemente
caracterizada. Antes, porém, de investigar alguns importantes princípios deste
conhecimento será proveitoso dar seqüência a uma pequena e esclarecedora introdução
sobre a vida de G. Gurdjieff e também sobre aquela de P. Ouspensky.
Pequenas notas biográficas
George Ivanovitch Gurdjieff nasceu, provavelmente, em 1866 perto da fronteira da
Rússia com a Turquia, numa cidade chamada Alexandropol. Nascido de pai Grego e mãe
Armênia - como conta em sua autobiografia Encontro com Homens Notáveis - ele foi,
desde muito cedo, marcado pelas estórias ouvidas de seu pai, um cantor-narrador de
poemas, canções e lendas tradicionais; que o introduziam, por vezes, a um passado remoto
ligado à origem da humanidade. Foi de seu pai que ouviu pela primeira vez, por exemplo, a
lenda do herói babilônico Gilgamesh; a mesma que seria redescoberta pela humanidade,
anos mais tardes, por achados arqueológicos em pequenas tábuas de argila datadas de pelo
menos quatro mil anos antes. “Estas histórias”, diz Gurdjieff, “imprimiram sua marca por
toda a minha vida.”
De suas experiências na infância e na juventude, em casa, na escola e na Igreja
Ortodoxa da qual fez parte como cantor-noviço; nasceu-lhe uma intensa ânsia por encontrar
respostas sobre perguntas que, geralmente, as pessoas têm como certas: quem ele realmente

29
era e qual era o significado da existência da vida sobre a Terra? Tendo questionado
especialistas das religiões tradicionais e dos métodos científicos que circulavam pela
sociedade da época; tendo buscado, em livros, explicações para fenômenos psicofísicos das
mais diversas ordens como a morte do corpo, a vida depois da morte, curas milagrosas,
premonições de eventos futuros, comunicação com espíritos, etc.; Gurdjieff não se mostrou
satisfeito com nenhuma das explicações que obteve por meios comuns. Decidiu, então,
partir a procura de respostas, realizando buscas e viagens que se estenderam por um
período de quase vinte anos por remotos lugares situados no Oriente Médio e na Ásia.
Nestes lugares, entrou em contato com algumas antigas tradições esotéricas preservadas
dentro de mosteiros e fraternidades. Algumas dessas suas buscas, viagens e contatos
também estão relatados em seu livro Encontro com Homens Notáveis.
Em 1912, Gurdjieff chega a Moscou com um maduro conhecimento a respeito do
mundo, do homem e suas possibilidades nele e decide organizar grupos de trabalho com
pessoas que se interessassem por essas possibilidades. Em 1914, encontra o jornalista e
filósofo Peter Demianovitch Ouspensky que se torna um dos seus principais alunos e
colaboradores, organizando esses mesmos grupos de trabalho na cidade de São
Petersburgo. Para se ter uma mínima idéia da qualidade do conhecimento adquirido por
Gurdjieff, basta dizer que nessa época Ouspensky, como renomado escritor russo, já havia
publicado dois livros em que estudava questões filosóficas, religiosas e científicas de modo
muito sério e abrangente; inspirado por inquietantes questões a respeito do homem e sua
posição no Universo8. Ele próprio, Ouspensky, havia feito viagens à Índia e ao Oriente
Médio tentando encontrar alguma fonte de conhecimento antigo que pudesse servir de
apoio às suas investigações. Após o primeiro encontro com Gurdjieff diz Ouspensky: “eu
experimentara de imediato, ao contato com esse homem, um sentimento extraordinário e, à
medida que a reunião se prolongava essa impressão só se reforçara.” 9
De 1914 a 1917, Gurdjieff segue com esses grupos, realizando encontros
preparatórios sobre diversos aspectos do ensinamento que havia encontrado. No final de
1916, o bem-conhecido compositor russo Thomas de Hartmann e sua esposa passam a

8
Esses livros são: “Tertium Organum” (1912) e “Um Novo Modelo do Universo” (1913-1929). Ambos
servem de material para alguns estudos auxiliares que se encontram nos Anexos. O segundo deles foi rescrito
após o encontro com Gurdjieff,
9
(Ouspensky, 1998, p. 26.)

30
freqüentar esses encontros com Gurdjieff. Anos mais tarde, Ouspensky relataria toda a
seqüência dos eventos desses anos em seu livro Fragmentos de um Ensinamento
Desconhecido. Com admirável lucidez e clareza narrativa, Ouspensky descreve como
Gurdjieff vai, passo a passo, introduzindo e desenvolvendo os diversos aspectos e
princípios daquilo que chamava de ‘trabalho do homem sobre si mesmo’. Thomas de
Hartmann, por sua vez, viria a se tornar um fundamental colaborador no resgate e
partituração de inumeráveis músicas e melodias que Gurdjieff havia coletado em suas
viagens pelo Oriente. Algumas destas músicas eram usadas para acompanhar as Danças
Sagradas e os Movimentos que, também coletados em suas viagens, ocuparam parte
essencial do ensinamento transmitido por ele.
Em 1917, pouco tempo antes de eclodir a revolução de outubro na Rússia, Gurdjieff
decide partir para a região do Cáucaso, em busca de melhores condições para prosseguir o
trabalho. Parte com ele um pequeno grupo dos seus alunos e colaboradores, esperando
regressar após os distúrbios sociais. Em Tíflis, no sul da Rússia, em 1919, Gudjieff funda
pela primeira vez seu Instituto para o Desenvolvimento Harmônico do Homem. Entram em
contato com o grupo o casal Alexandre e Jeanne de Salzmann, o primeiro, um conhecido
artista cenógrafico e a segunda, uma estudiosa e professora do sistema de dança rítmica de
Dalcroze. Jeanne de Salzmann viria a se tornar uma estreita colaboradora de Gurdjieff e em
1949, após a morte dele, a principal responsável por dar continuidade à transmissão do
ensinamento.
Por conta da dimensão que ganha a crise social e a revolução bolchevista, nesses
anos seguintes, o grupo decide empreender uma viagem sem retorno para além das
fronteiras do seu país. Alcançam Constantinopla em 1920, seguem para Alemanha em 1921
e chegam à França em meados de 1922.
Desde a época em que conheceu Gurdjieff, Ouspensky era articulista colaborador de
uma renomada revista inglesa chamada The New Age cujo editor, Alfred R.Orage, era
reconhecido e admirado na Inglaterra. Sua revista, especializada em política, literatura e
artes, foi modelo de inovação no meio editorial da época. Através de Ouspensky, que havia
seguido em paralelo o itinerário de exílio de Gurdjieff e fixado residência na Inglaterra, é
que Orage se encontra pela primeira vez com Gurdjieff. Influente na alta sociedade inglesa,
Orage organiza encontros públicos que ajudam a angariar fundos para a compra de uma

31
propriedade onde Gurdjieff e seu grupo pudessem se instalar. Foi em Fontainebleau, perto
de Paris, que Gurdjieff funda a versão definitiva de seu Instituto, que veio a ser, enquanto
durou, uma espécie de comunidade dedicada a criar às condições de vida necessária para
que os seus integrantes dessem início, em si mesmos, a um efetivo processo de
autoconhecimento.
Ouspensky faz algumas visitas ao Instituto na França, mas decide, por fim,
conforme ele mesmo relata em seu livro, empreender o trabalho na Inglaterra com grupos e
reuniões lideradas por ele próprio, através de um modo que lhe parecia mais conforme a sua
natureza de pensador, escritor e intelectual. Não era, de fato, um trabalho só de natureza
teórica. Ao conseguir juntar um grupo de adeptos mais dedicados, abriu, com eles, uma
espécie de casa de campo comunitária, Lyne Place, em que buscava criar condições para
um efetivo ‘trabalho sobre si’ dentro das atividades da vida normal, como em
Fontainebleau.
Foi neste período, na Inglaterra, que reescreveu seu livro Um Novo Modelo do
Universo renovado pelas suas experiências com Gurdjieff e, logo depois, escreve o relato
destas experiências no, já mencionado, Fragmentos de um Ensinamento Desconhecido.
Este livro, publicado em 1949, viria a se tornar, com a total aprovação de Gurdjieff sobre
seu conteúdo, um dos principais meios de divulgação destas idéias pelo mundo até os dias
de hoje. Antes ainda, em 1935, já havia publicado cinco pequenas conferências que
introduziam o leitor às principais idéias do sistema esotérico que havia aprendido de
Gurdjieff, sob o nome de: Psicologia da Evolução Possível ao Homem.
Pouco depois da eclosão da Segunda Guerra Mundial, primeiro a sua esposa e,
depois, ele próprio partiram para os Estados Unidos onde, com ajuda financeira de amigos,
instalaram essa mesma espécie de comunidade de campo nos arredores de Nova Jersey. Ali
permaneceram juntos durante quase seis anos. Um dos mais próximos colaboradores de
Ouspensky, Rodney Collin, prossegue com seus estudos e, após a morte de Ouspensky, em
1947, escreve e publica A Teoria da Influência Celestial, obra já mencionada acima, e, logo
depois, a Teoria da Vida Eterna. Ambos os textos podem ser considerados como uma
continuidade da linha de trabalho inaugurada por Ouspensky. Rodney Collin falece,
precocemente, em 1956; e em seguida os americanos Alex Horn e Robert Burton dão
posterior continuidade a este ramo da tradição esotérica no Ocidente.

32
Volto à trajetória de Gurdjieff. Em 1924, numa bem sucedida viagem aos Estados
Unidos, um pequeno núcleo do Instituto faz demonstrações de suas Danças Sagradas em
Nova Iorque. Gurdjieff apresenta uma série de conferências públicas onde consegue atrair a
atenção de um numeroso grupo americano, interessado na espécie de trabalho que
propunha. Ele começa, então, a planejar a abertura de filiais de seu Instituto em diversas
cidades da Europa e da América, encaminhando-se, talvez, para a meta à qual havia se
proposto quando, em 1912, chegara a Moscou. A. Orage, que havia vendido sua revista
para seguir o trabalho com Gurdjieff em Fontanebleau, é nomeado como líder dos grupos
americanos e se transfere para Nova Iorque.
Logo quando retorna à França, em uma tarde de julho de 1924, ao percorrer de
automóvel o trajeto entre as cidades de Paris à Fontainebleau, Gurdjief sofre um violento
acidente de automóvel; acidente, quase fatal, que o deixaria de cama, muito doente e
debilitado, por um longo tempo. Torna-se evidentemente impossível para ele cumprir
aquilo que, então, planejara em relação às filiais e, meses depois, quando volta a retomar os
sentidos, decide terminar todas as atividades do seu ‘Instituto’ na França. À medida que vai
recuperando sua saúde opta por tornar-se um escritor.

De 1925 a 1935, Gurdjieff se dedicou quase que exclusivamente a escrever três


séries de livros que deveriam garantir a transmissão do conhecimento que coletou através
daquelas viagens à Ásia e que foi aprofundado no período Russo e Europeu de suas
pesquisas e ensinamentos. A Primeira série em três livros foi chamada de: Relatos de
Belzebu a seu Neto - Crítica Objetivamente Imparcial da Vida dos Homens. A Segunda
série em dois livros é, justamente, a obra a que nos referimos no início: Encontros com
Homens Notáveis. A Terceira e última série A vida só é real quando "Eu sou", que devia
constar de cinco livros, foi deixada inacabada.
Uma breve apresentação de seus fundamentais propósitos, escritos pelo próprio
autor, nos trará algumas pistas sobre o seu conteúdo:
“PRIMEIRA SÉRIE - Extirpar do pensar e do sentimento do leitor, sem piedade e sem a
menor concessão, as crenças e opiniões, arraigadas há séculos no psiquismo dos homens, a
propósito de tudo que existe no mundo.
SEGUNDA SÉRIE - Fazer conhecer o material necessário a uma reedificação e provar sua
qualidade e solidez.

33
TERCEIRA SÉRIE - Favorecer, no pensar e no sentimento do leitor, a eclosão de uma
representação justa, não fantasiosa, do mundo real, em lugar do mundo ilusório que ele
percebe.” (GURDJIEFF, 2003)

A forma literária que Gurdjieff deu a seus escritos, principalmente àqueles contidos
na primeira série, é de notável interesse e singularidade. Muito diferente da leitura de um
relato sobre as idéias do trabalho, como faz Ouspensky ainda que de modo admirável, a
leitura dos escritos de Gurdjieff permite ao leitor quase que uma experiência direta do
trabalho que ele pretendia evocar em seus adeptos. São ‘livros vivos’ - de modo algum
fáceis - escritos num estilo que obriga o leitor a esforçar-se para, superando seus próprios
automatismos nas dimensões do pensamento e sentimento, conquistar o seu significado que
vai se ampliando a cada nova leitura. Por exemplo: escolhendo Belzebu, o anjo decaído,
como o herói de suas aventuras, Gurdjieff se contrapõe a preconceitos de longa data
incrustados na mente coletiva ocidental; levando o leitor a rever concepções de mundo
profundamente enraizadas em sua psicologia. Segue-se que, justamente, por conta de
alguns inapropriados questionamentos sobre ordens divinas é que Belzebu, expulso das
vizinhanças do Absoluto, é exilado em um sistema solar de uma distante e periférica
galáxia do Universo, conhecida por “Via Láctea”. Condenado a passar inumeráveis anos de
sua existência neste sistema solar, Belzebu escolhe para sua morada o planeta Marte e,
através de um potente telescópio, passa a observar todo o processo de constituição e
desenvolvimento histórico do planeta Terra e dos seus curiosos habitantes ‘seres tri-
cerebrais’, até os dias atuais.
Ainda neste período em que se consagrou à escrita, Gurdjieff realizou mais duas
viagens aos Estados Unidos, 1929 e 1933, para manter contato com os grupos de adeptos
formados por ocasião de sua primeira viagem e que estavam, desde então, sob a liderança
de A. R. Orage. Estas viagens e o tipo de trabalho que desenvolveu ali são parte do material
introduzido nesta última e terceira série de seus livros.
De 1935 até seu falecimento, em 1949, Gurdjieff não escreveu mais. Nesses últimos
14 anos de vida, sempre em Paris, continuou a se encontrar com seus adeptos, mas já num
novo estilo, em pequenos grupos que freqüentavam seu apartamento, em reuniões, jantares e
leituras, onde buscava focar e efetivar o ensinamento em torno do seu principal eixo, aquele
da ‘lembrança de si’. Mesmo durante o período da Segunda Guerra Mundial, quando Paris
foi ocupada pelos nazistas, estes encontros continuaram a acontecer de modo discreto e

34
invisível. Após a guerra, os grupos voltaram a se expandir com a freqüente visita de alunos e
colaboradores estrangeiros, entre eles John Bennet, John Pentland e Cristopher Fremantle -
todos eles diretos colaboradores de Ouspensky nas décadas de 30 e 40 - que partiram para a
França logo após a morte de Ouspensky em 1947. Pentland e Fremantle foram indicados por
Salzmann, pouco tempo depois da morte de Gurdjieff, para coordenar atividades nos
Estados Unidos e México, respectivamente.10
Tradição esotérica
Desta breve introdução de dados biográficos sobre Gurdjieff e Ouspensky; duas
palavras merecem um ulterior cuidado, pois são elas, hoje em dia, utilizadas sem
necessariamente expressarem o mesmo sentido dado a elas por Gurdjieff ou mesmo por
Brook, na citação inicial que fiz. Essas duas palavras são: tradição esotérica.
No dicionário Aurélio, encontrei algumas definições para a palavra “esotérico”
como sendo:

1. Filos. Diz-se do ensinamento que, em escolas filosóficas da Antiguidade grega, era


reservado aos discípulos completamente instruídos.
2. P. ext. Todo ensinamento ministrado a círculo restrito e fechado de ouvintes.
3. Filos. Diz-se de ensinamento ligado ao ocultismo.
4. Fig. Compreensível apenas por poucos; obscuro, hermético. [Cf. exotérico].

Embora relacionada ao sentido de ‘oculto’, ‘restrito’, ‘hermético’, ‘fechado’ como


se pode ler acima, poderia adicionar um ulterior significado: ‘interno’. Conhecimento
‘esotérico’ é aquele que possui um duplo significado: um primeiro significado mais
externo, lógico e sensorial; e, ao mesmo tempo, um segundo significado mais interno,
psicológico e simbólico. Neste sentido, a qualidade ‘esotérica’ de um conhecimento nasce
da sua capacidade de estimular no ser humano um modo de pensar simbólico e intuitivo
que capta, também, aquilo que é invisível aos sentidos e à razão. O pensamento ‘esotérico’
é capaz de realizar inúmeras conexões internas com fatos e coisas que são ilógicas se
tomadas apenas pela aparência.
Como Moisés poderia ter sido capaz de abrir o ‘Mar Vermelho’ para que o povo
judeu se libertasse da escravidão imposta pelo Faraó? O que entender quando lemos nos

10
Para a elaboração destas pequenas notas introdutórias, além das leituras diretas da obra de Gurdjieff de
muito auxílio foi G.I.Gurdjieff – Biographical Sketch em: “Gurdjieff: Essays and Reflections on the Man
and His Teaching.”

35
Evangelhos que Cristo caminhou sobre as águas? A estória de Pinocchio de Carlo Collodi e
as estórias de Hans Christian Andersen teriam sido criadas só para fazer as crianças
dormirem? E o que dizer dos contos de fadas da tradição oral? Será que as mitologias dos
povos, do Ocidente e do Oriente, foram criadas apenas como passatempo para as horas de
descanso das atividades relacionadas à sobrevivência instintiva do ser humano?
Um conhecimento com qualidade ‘esotérica’ nos leva a ter certas compreensões
emocionais de nós mesmos e do mundo que não poderiam ser realizadas, sozinhas, pela
lógica racional. Uma bela melodia que nos toca, também, possui a mesma capacidade.
Nos tempos dos grupos russos em que Ouspensky aprendia com Gurdjieff, este
último lhe dizia11 que existem três tipos de influências encontráveis na humanidade.
Ouspensky chamou-as de A, B e C. As influências A são criadas, dentro do nível da vida
comum, pela própria vida e são tais como a necessidade de comida, proteção, educação,
posição social, profissão, riqueza, saúde, sexo, família, cultura e sociedade. São influências
consideradas legítimas, mas mecânicas no sentido que acontecem por si mesmas; possuindo
um estreito vínculo com a natureza instintiva do homem.
As influências B originaram-se de uma fonte consciente fora do nível da vida
comum, isto é, são esotéricas na sua origem, mas não têm mais contato direto com ela. São
influências introduzidas e misturadas no fluir geral da vida e chegam à humanidade através
da literatura, filosofia, música, ciência, religião e arte. Possuem estreitos vínculos com a
utilização da plena capacidade da natureza física, intelectual e emocional humana: os
Evangelhos, as catedrais Góticas, os textos hindus do Upanishads, o Bhagavad Gita, as
pirâmides do Egito, a obra de Shakespeare, as cartas do Tarot, a obra de Aleijadinho, os
derviches girantes Sufis, o teatro Nô japonês, a alegoria da Caverna de Platão, são outros
prováveis exemplos desse segundo tipo de influência.
Inevitavelmente, as influências B, ao se destacarem da sua fonte consciente, vão se
tornando mais e mais enrijecidas e estéreis pelo modo como são externamente
compreendidas. Acabam perdendo seu significado interno, original, ao se adaptarem,
exclusivamente, às exigências da lógica instintiva dos homens. Nos dias atuais, por
exemplo, a própria palavra ‘esotérico' tornou-se uma espécie de logomarca utilizada de

11
(OUSPENSKY, 1998, p.230-236)

36
forma ampla e irrestrita no comércio de produtos místicos e livros de auto-ajuda que
sugerem segredos ocultos para adquirir sucesso material e bem estar físico.
A influência C, diretamente conectada ao correto sentido da palavra ‘tradição
esotérica’, vem de um nível superior de existência que tanto é consciente na sua origem,
como na maneira como é transmitida. Esse tipo de influência só pode agir diretamente de
uma pessoa a outra, por meio da transmissão oral. Quando efetivada, pode instruir um
homem a conhecer a si próprio e o mundo que o cerca não só de maneira lógica e sensorial,
mas também de maneira intuitiva, psicológica e espiritual. É o que lhe abre as portas para o
contato com novas realidades, internas e externas a ele.
Desse modo chega-se também à palavra ‘tradição’. Consultando o dicionário
Aurélio, novamente, pude encontrar algumas definições para ela:
1. Ato de transmitir ou entregar.
2. Transmissão oral de lendas, fatos, etc., de idade em idade, geração em geração.
3. Transmissão de valores espirituais através de gerações.
4. Conhecimento ou prática resultante de transmissão oral ou de hábitos inveterados.

Para todos os efeitos, a palavra “tradição” conforme utilizo aqui, refere-se a uma
cadeia de transmissão de conhecimentos feita não só por livros, mas, fundamentalmente,
por uma prática e aprendizado diretos, sustentados por um determinado período longo de
tempo. Posso, por exemplo, pensar em uma tradição religiosa, ou uma tradição culinária, ou
uma tradição artística; na medida em que a sua transmissão se dá pelo contato direto entre
aquele que sabe fazer e aquele que está aprendendo determinada atividade. Aquele que
aprende o deve aprender com tal nível de qualidade e compreensão que ele próprio se torna,
por sua vez, capaz de transmitir o conhecimento que lhe foi dado sem alterá-lo, de nenhum
modo, em seus princípios; mas sim, expandindo-o e adaptando-o, criativamente, às suas
próprias condições presentes. Neste sentido, ao estudar com mais atenção a obra deixada
por Gurdjieff, percebi que o papel assumido por ele foi aquele de transmitir os
ensinamentos que vinham de tradições espirituais antigas para as condições da vida
moderna sem, no entanto, diluir ou adulterar o seu aspecto ‘esotérico’. Visto desse modo,
compreende-se um pouco mais o valor daquilo que foi realizado.
Claro que para que esta transmissão se efetive, de fato, tal como se percebe ao
estudar Gurdjieff, o contato direto não pode ser negligenciado. Mas todos os livros que citei
acima, tanto aqueles de Ouspensky e Collin como aqueles de Gurdjieff provêem um

37
excelente material preparatório. Logo a seguir, introduzirei alguns princípios destes
ensinamentos que me pareceram chaves para a compreensão de alguns aspectos do trabalho
do ator. Para isso, utilizarei principalmente a obra Fragmentos de um Ensinamento
Desconhecido, isto é, os relatos de Ouspensky sobre os ensinamentos de Gurdjieff do
período russo. Ao me referir a este conhecimento vou me utilizar da expressão: “Gurdjieff
– Ouspensky”.
Todos estes princípios poderão parecer estranhos e incomuns no início. Eles não se
referem a uma “Verdade Absoluta” que deva ser aceita por todos, e, por isso, também não
precisam ser imediatamente negados. Ouspensky, a esse respeito, recomendava: “Não
acredite em nada: duvide de tudo até que você próprio verifique. Deve-se encontrar provas,
para todas as coisas.” 12
A primeira dessas idéias-princípios esteve presente no texto acima quando escrevi a
palavra “consciência” em itálico; procurando distingui-la da palavra consciência, que é a
usual consciência que temos de nós mesmos e do mundo, principalmente, através do
pensamento lógico, externo e sensorial. Esta consciência usual que temos de nós mesmos
nos acontece. De modo diferente, a “consciência” a que se está referindo é algo ligado a um
processo de instrução, cultivado através de um esforço intencional, pessoal e intransferível.

Estados de consciência
Como definir a palavra consciência, então?
“Na realidade, a consciência é uma propriedade que muda continuamente. Ora
está presente, ora não. E há diferentes graus, diferentes níveis de consciência. A
consciência e os diferentes níveis de consciência devem ser compreendidos em nós
mesmos através da sensação, do sabor que temos dela. Nenhuma definição pode nos
ajudar e nenhuma definição é possível, enquanto não compreendermos aquilo que
devemos definir.” (OUSPENSKY, 1998, p.141)

O ensinamento de Gurdjieff - Ouspensky - conforme eu o compreendi13 - nos alerta


para o fato de que o homem que costumamos chamar de “consciente”, na verdade, está num
estado de sono desperto. O conhecimento comum, habitualmente reconhecido como
definitivo e suficiente, atesta que existem apenas dois estados de consciência: aquele de
descanso e reposição das energias que ocorre a cada noite e é chamado de sono; e aquele

12
(Ouspensky, 1995, p.100.)
13
(Ouspensky, 1998,166-170)

38
que se inicia quando despertamos a cada manhã para a execução de todas as nossas
atividades cotidianas. Nesse estado de consciência, dito “consciência lúcida”, as pessoas se
encontram e se relacionam umas com as outras, prosperam e cuidam de seus afazeres,
negociam bens de consumo, produzem obras de arte, constroem e manipulam os mais
variados tipos de máquinas, escrevem livros e organizam-se em famílias, grupos,
sociedades e nações – ou não... Mas todas essas atividades podem ser realizadas, segundo
Gurdjieff-Ouspensky, de modo mecânico, sem a consciência. Neste segundo estado, dito
estado de consciência parcial, um homem é irresistivelmente governado pelas atitudes e
hábitos que adquiriu por imitação do meio social em que viveu e vive – e que estão
profundamente enraizadas na lógica de comportamento instintivo de sua natureza.
A principal característica desse estado de consciência – como pude observá-lo
várias vezes - é que perco a ciência de mim mesmo no momento presente em que estou
“agindo”, ou como diria agora, no momento presente em que estou reagindo
automaticamente às influências externas. Eu simplesmente reajo, sem dar-me conta do
como e do porque estou reagindo de determinado modo, sem dar-me conta dos processos
internos que me levam a esta reação. Neste sentido, este estado de consciência é chamado
de sono desperto e nele o homem é incapaz de agir ou fazer qualquer coisa que seja; tudo
nele acontece de modo involuntariamente “voluntário”. Guerras, revoltas, traições, crimes,
assassinatos, discórdias, ciúmes, ira, preguiça, luxúria, egoísmo e toda espécie de miséria e
perversidade humana observável, levaram-me a considerar a idéia do ‘sono desperto’ como
algo muito plausível.
Segundo aquilo que pude compreender desse ensinamento, existem três grandes
ilusões que eu precisaria superar para começar a ver que eu me encontro adormecido. São
elas: a ilusão de que possuo unidade, vontade e consciência. Unidade, vontade e
consciência seriam características pertencentes a um terceiro e quarto estados de
consciência. No terceiro estado de consciência, chamado também de lembrança de Si, eu
estaria presente no aparato psicofísico, podendo, assim, objetivamente testemunhar o meu
funcionamento e estudar o porquê da existência de tantas ações, sentimentos e pensamentos
contraditórios, que simplesmente refletem a minha desorganização e falta de unidade.
Compreendi, também, que não deveria confundir esse testemunho com aquele de uma
mente intelectual que, separada do corpo físico, o observa e tece considerações a respeito.

39
Esta auto-observação mental poderia ser útil no início para corroboração do conhecimento;
mas se, de fato, permanecesse por muito tempo neste nível, isto produziria um impasse,
uma espécie de estéril dicotomia entre o corpo e a mente. Trataremos disso mais adiante.
No segundo estado, estado de consciência parcial, a força resultante de vários
desejos e impulsos, muitas vezes contraditórios, é o que se chama de “vontade” e esta se
modifica com o tempo e o espaço, isto é, com a impermanência das circunstâncias externas.
Se conseguisse alcançar o terceiro estado de consciência, a vontade atuaria sobre os
desejos, pensamentos, atrações e repulsões e ainda que eles continuassem dentro do meu
mundo interior, já não teria a minha identidade colada a eles de modo que perderiam força
e deixariam de me atirar de um lado para o outro como um barquinho numa tempestade em
alto mar. No quarto estado de consciência, também chamado de consciência objetiva, um
homem poderia conhecer toda a verdade sobre si, sobre o mundo e as coisas ao seu redor. 14
Outra coisa que verifiquei daquilo que li em Gurdjieff - Ouspensky é que estes
quatro estados de percepção possíveis a um ser humano não se excluem, mas se
acrescentam e se mesclam entre si. Assim, ao acordar, pela manhã, uma pessoa continua a
ter um fluxo de imagens e pensamentos desconexos como em seus sonhos noturnos. Ao
lembrar-se de Si, ou ao alcançar o terceiro estado de consciência, uma pessoa continua a se
movimentar, falar, escrever e a interagir de maneira natural com o mundo exterior que a
circunda, embora testemunhando aquilo que faz a cada momento. Ao ter vislumbres da
consciência de todas as coisas, uma pessoa necessariamente se lembra de Si, sem,
necessariamente, deixar de perder contato direto e imediato com sua mente, seu corpo
físico e o mundo sensorial. E ainda que as palavras e as idéias não possam dar conta do que
seja “o quarto estado de consciência objetiva”, o caminho que leva até esse grau de
consciência e o custo do trabalho que deve ser feito são perfeitamente compreensíveis e
práticos. Cito, por exemplo, um belo trecho de Jeanne de Salzmann, aquela que se tornou
responsável por dar continuidade ao trabalho de Gurdjieff no Ocidente:

Eu tenho o poder de alçar-me acima de mim e ver a mim mesma livremente ... ser vista.
Meu pensamento tem o poder de ser livre. Mas para que isso ocorra, ele deve se livrar de

14
Na psicologia hindu comum também é considerada a existência de 4 estados de consciência, só que de um
modo ligeiramente diferente, ainda que suas relações mútuas continuem próximas do que está acima. Na
tradição Védica, como pode ser lido no ‘Mandukya - Upanishads’, eles são chamados: sono profundo, sono
com sonhos, estado desperto e Turiya ou estado de iluminação.

40
todas as associações que o mantêm preso, passivo. É preciso cortar os fios que o ligam ao
mundo das imagens, ao mundo das formas; ele deve libertar-se dos constantes puxões das
emoções. Ele deve sentir seu poder para resistir a esse puxão; seu poder objetivo de
vigiar este puxão enquanto, gradualmente, vai elevando-se acima dele. Neste movimento,
o pensamento torna-se ativo. Ele se torna ativo enquanto purifica a si mesmo. Assim, a
sua verdadeira meta é revelada, uma meta única: pensar Eu, perceber quem sou Eu,
entrar dentro deste mistério. (Salzmann, J. - The Awakening of Thought - em: “Gurdjieff:
Essays and Reflections on the Man and His Teaching.”1996 p. 2)15

O título do trecho citado: “O Despertar do Pensamento”, tirado de um caderno de


notas datado de 1950, dá uma idéia do trabalho a ser feito. Como se a maioria dos
pensamentos com os quais estamos acostumados a lidar em nossas mentes não fossem mais
do que ‘sombras’: um fluxo contínuo de associações automáticas que segue, passivamente,
sem nenhuma meta definida. O mesmo parece ser verdade tanto na dimensão dos
sentimentos, como na dimensão das sensações e movimentos corporais. Não lidamos com o
sentimento e a sensação imediata do mundo à nossa volta; mas com as suas sombras:
projeções imaginárias, repletas de palavras, imagens, noções preconcebidas, medos,
desconfianças, desejos obscuros, conhecimento aproximado, sonhos e um perpétuo derivar
de uma atenção sem objetivo. Uma vez que notamos o estado das coisas em nós, sem
fingimentos ou justificativas, aquilo que deve ser feito para se aproximar dessa lembrança
de Si começa a ficar claro. Antes de se despertar a consciência se deve despertar,
concomitantemente, o corpo, o pensamento e o sentimento: torná-los intencionalmente
ativos.
Uma segunda característica que compreendi desses quatro possíveis estados de
consciência no homem é a sua constante impermanência. Não existe o ‘estar parado’ ou a
obtenção de um estado definitivo que signifique o fim da evolução ou o fim do trabalho
sobre si. A cada instante da existência de um indivíduo, a cada respiração, ou ele está se

15
Do original: “I have the power to rise above myself and to see myself freely . . . to be seen. My thought has the
power to be free. But for this to take place, it must rid itself of all the associations which hold it captive, passive. It must
cut the threads that bind it to the world of images, to the world of forms; it must free itself from the constant pull of
the emotions. It must feel its power to resist this pull; its objective power to watch over this pull while gradually
rising above it. In this movement thought becomes active. It becomes active while purifying itself. Thereby its true aim
is revealed, a unique aim: to think I, to realize who I am, to enter into this mystery.”

41
aproximando de um novo grau de ‘instrução’ ou está se aproximando de um acostumado
grau de ‘ignorância’16.
Uma última característica importante a ser mencionada à qual cheguei a verificar
não só comigo mesmo, mas também conversando com pessoas comuns, de diferentes
origens e meios, é que esses dois estados de consciência superiores podem ocorrer por um
choque acidental produzido por casuais configurações das circunstâncias externas ou
internas.
Quando tinha cerca de quatro anos de idade, por exemplo, fui submetido a uma
cirurgia no coração. Mais do que todos os outros dias da minha infância, tenho memória
nítida e clara dos momentos que antecederam a essa cirurgia: o hospital, a enfermeira, a
injeção de anestesia, a maca em movimento, o teto dos corredores que escorria pelo meu
campo de visão, a trajetória da maca, a entrada na sala, os holofotes sobre a mesa de
operação, médicos mascarados vestidos de um tom verde claro e.... Durante a minha vida
que se seguiu, em minha memória, muitas vezes revisitei esta cena que permanecia com um
frescor e uma riqueza de detalhes impressionantes. Por que é assim, me perguntava com
alguma freqüência? A resposta que encontrei, através desse ensinamento17, pareceu-me
interessante, pois possibilitava a quase todas as pessoas um reconhecimento pessoal, ainda
que fortuito, da sensação e do sabor desses ulteriores estados de consciência: quando
ocorrem eles geram uma qualidade de memória muitíssimo mais aguda do que a média das
vagas e diluídas recordações que temos da maioria de nossos dias, quando, de fato, as
temos.
Apartir desta leitura de Gurdjieff, entendo que se olharmos novamente para as
correntes dos cativos da caverna de Platão e notarmos essas correntes como sendo o próprio
homem - corpo, pensamentos e emoções incluídos - a idéia se esclarece: o ser humano, ou o
germe de sua alma, está acorrentado, desde a infância, a um estado parcial de consciência
que o leva a ter uma representação fantasiosa e ilusória do mundo e dele próprio. Suas
funções psicofísicas anestesiaram-se em torno de um estado padrão e automático de
funcionamento, produzindo uma falsa identidade que em nada corresponde àquilo que ele é.

16
In reality consciousness is a property, which is continually changing. Now it is present, now it is not
present. And there are different degrees and different levels of consciousness. * Gurdjieff – Ouspensky.
(Ouspensky, 1998, p.141)
17
(Ouspensky, 1998, p.144)

42
Poderíamos chamar esta falsa identidade de ‘ser inferior’, ‘falso ego’, ou seu ‘retrato
imaginário’18.
“O que nós chamamos de vida cotidiana é desempenhado dentro de um campo de
energias cujos limites estão estritamente circunscritos, e que, usando a metáfora musical,
erguem-se e decaem dentro de um pequeno número de escalas. Assim o nível de nossa
consciência é baixo, nosso poder de pensamento é limitado, e estas energias produzem
pouca visão, pouco propósito.” (Brook, P., 1996 p.32)

O Amo, o Mordomo e a Casa.


Qualquer pessoa pode perceber que tem um limite de energia que define e determina
a qualidade de suas ações, pensamentos e sentimentos a cada dia. Se conseguíssemos
observar o funcionamento de nossa máquina biológica, perceberíamos que esta energia está
conectada a uma qualidade de atenção que conseguimos obter num determinado momento,
ou não. Às vezes somos mais dispersos e inertes, às vezes somos mais impulsivos e
entusiasmados, às vezes somos mais organizados e intencionais. Depende muito das
circunstâncias externas, da nossa capacidade de encontrar a energia e a atenção certa para
executar aquilo que temos que executar, e da força de nossa vontade em não desperdiçar
esta energia expressando-a em espasmódicos e erráticos movimentos, pensamentos e
sentimentos. O nosso nível de energia, durante um dia inteiro, ‘ergue-se e decai dentro de
um pequeno número de escalas’, justamente por causa destes desperdícios involuntários. E
nesse ponto o trabalho sobre si, também se torna absolutamente prático, concreto e visível.
O ensinamento de Gurdjieff – Ouspensky19 - conforme eu o compreendi - me
alertou que se estivéssemos de fato acordados, ficaríamos perplexos de testemunhar como,
literalmente e na maior parte do tempo, nós, identificados com este ‘falso ego’ que
representamos para nós e para os outros, jogamos combustível fora. Não o deixaríamos
acontecer, se de fato soubéssemos como conduzir-nos ao invés de sermos manipulados pela
nossa interna reatividade aos eventos externos.
Comecei a verificar, por exemplo, que em minha mente havia um contínuo fluxo de
imagens gastas, preocupações passadas, expectativas futuras, devaneios prazerosos e
pensamentos automáticos, chamados de imaginação ou divagação mental; acontecia nela,
me roubava a vida no momento presente e parecia ser completamente inútil e dispensável.

18
(Ounspensky, 1998, p-171-174)
19
(Ouspensky, 1998, p.134-136)

43
Só muito mais tarde, comecei a dar-me conta da extensão e da gravidade deste processo
que, de fato, é muito difícil de ser localizado enquanto não nos convencemos do seu caráter
involuntário e inútil.
De modo muito mais evidente, também comecei a verificar que não tinha percepção
do meu corpo, dos meus hábitos físicos, dos meus automatismos posturais, e, portanto, não
podia impedir-me de gastar uma grande quantidade de energia em movimentos corporais e
tensões musculares absolutamente desnecessários, que eram sustentados por essas
preocupações e expectativas mentais. Fui me dando conta do por que, em geral, uma das
principais dificuldades de um ator em cena, por exemplo, se revela através de uma
excessiva e involuntária tensão muscular:
Há a tensão contínua e completamente supérflua dos músculos de nosso organismo.
Nossos músculos são contraídos, mesmo quando não fazemos nada. Para o mínimo
trabalho, uma parte considerável de nossa musculatura entra imediatamente em ação,
como se se tratasse de efetuar o maior esforço. Para apanhar uma agulha do chão, um
homem despende tanta energia quanto para levantar um homem de seu próprio peso.
Para escrever uma carta de duas palavras desperdiçamos uma força muscular que
bastaria para escrever um grosso volume. Mas o pior é que gastamos nossa energia
muscular continuamente, mesmo quando não fazemos nada. Quando andamos, os músculos de
nossos braços ficam tensos sem a mínima necessidade; quando estamos sentados, os músculos
de nossas pernas, de nosso pescoço, de nossas costas e de nosso ventre estão contraídos não
menos inutilmente; mesmo dormindo, contraímos os músculos dos braços, das pernas, do
rosto e de todo o corpo e não compreendemos que, nesse perpétuo estado de alerta em
vista de esforços que nunca teremos que fazer, gastamos muito mais energia do que seria
necessário para realizar um trabalho útil, real, durante toda uma vida. (Ouspensky,
Fragmentos de um Ensinamento Desconhecido, 1998, p. 227.)

Também comecei a perceber que todas as minhas emoções de evidente caráter


negativo como ciúmes, raiva, indiferença, tédio, depressão, sentimento de injustiça, auto-
depreciação e auto-piedade, entre outras, não eram absolutamente necessárias nem reais,
tendo elas sido artificialmente inseridas em meu mundo interior por imitação e reação à
negatividade dos outros.
Comecei a perceber que a verdadeira causa destas emoções estava em mim, e que
fora existiam apenas causas aparentes. Identificando-me com as minhas reações emocionais
às condições externas e internas adversas, acreditando que estas últimas eram culpadas pelo
meu mal estar e que, por isto, precisavam ser modificadas; eu expressava minhas emoções
negativas sobre os outros ou sobre mim mesmo e chegava a sustentá-las por dias e até por
semanas, tendo a mais plena convicção de que estava sendo sincero comigo mesmo.

44
De modo algum estava sendo sincero: nem comigo nem com os outros.
A expressão das emoções negativas e a lembrança de Si - fui descobrindo com o
tempo – eram incompatíveis. No entanto, não era questão de reprimir estas emoções e fingir
que elas não estavam lá. Muito pelo contrário, ao conseguir encará-las de frente, mantendo-
as voluntariamente sob controle, conseguia transformar sua obscura densidade em uma
sutil compreensão emocional que me levava a localizar a consciência em mim e nos outros.
Muitas vezes, de modo conseqüencial, este processo transformava também, criativamente,
as adversidades conflituosas dos contextos externos.
Obviamente esta transformação não acontece por si mesma acidentalmente, e
requer muita vontade e instrução sobre si; mas a expressão da negatividade era um hábito
que além de impedir este processo, literalmente, jogava fora todo combustível e condenava-
me a viver num limitado padrão de vibração energética. O homem - dizia Gurdjieff -
Ouspensky20 - inventa e constrói máquinas complicadíssimas, mas não se dá conta de que
ele mesmo é uma espécie de máquina, mais complexa que qualquer outra que tenha
inventado.
Essa era uma afirmação contundente. No início, aquilo que me incomodava - dentro
do meu entendimento - era o uso absoluto do verbo ‘ser’: os homens são máquinas de
estímulo-resposta, nascem máquinas e morrem máquinas. Na realidade, instruído com mais
cuidado e relendo a afirmação, fui reformulando-a para mim mesmo: “Se somos máquinas,
somos um tipo de máquina especial que pode vir a saber que é uma máquina. E uma
máquina que se descobre máquina não é mais uma máquina; assim como um animal que se
descobre animal não é mais um animal. Nesse sentido, cheguei a reformular a minha
compreensão: “o Ser humano não é, mas está, como uma semente, plantado numa espécie
de máquina biológica psicofísica destinada a perecer.”
Verifiquei a notável diferença de atitudes e reações entre a máquina humana em que
eu estava e entre o ser humano que eu era quando me deparava, em algumas ocasiões, com
a possibilidade da minha própria morte. Havia medo e repulsa da morte toda vez que me
encontrava num estado de funcionamento psicofísico automático, onde prevaleciam as
reações da mente instintiva. Mas, nesta mesma situação, toda vez que conseguia lembrar-
me de Mim, não havia medo nem repulsa, mas um grande despertar para a experiência

20
(Ouspensky, 1998, p.33-35.)

45
imediata da vida como ela é no agora: através do meu corpo, pensamentos, emoções, mas
também, fundamentalmente, através do olhar da consciência. Toda a questão, para mim,
passou a ser, então, como acessar o ser humano que existe nessa máquina e como
desenvolvê-lo.
Gurdjieff se utilizava de uma alegoria para explicar o processo de desenvolvimento
de um homem que se ergue em direção à verticalidade. Vamos ler:
"Os ensinamentos orientais estão cheios de alegorias dedicadas a retratar, desse
ponto de vista, a natureza humana.
Em um deles, o homem é comparado a uma casa sem Amo nem mordomo, ocupada por
uma multidão de serviçais. Esses esqueceram completamente seus deveres; ninguém quer
cumprir sua tarefa; cada qual se esforça por ser o amo, ainda que por um minuto e, nessa
espécie de anarquia, a casa fica ameaçada pelos mais graves perigos. A única
possibilidade de salvação é um grupo de serviçais mais sensatos se reunir e eleger um
mordomo temporário, isto é, o mordomo-provisório. Esse mordomo-provisório pode,
então, pôr os outros serviçais nos seus lugares e obrigar cada um deles a fazer o seu
trabalho: a cozinheira na cozinha, o cocheiro na estrebaria, o jardineiro na horta e assim
por diante.
Desse modo, a "casa" pode estar pronta para a chegada do verdadeiro mordomo que, por
sua vez, preparará a chegada do verdadeiro Amo.
A comparação do homem com uma casa à espera do Amo é freqüente nos ensinamentos
orientais que conservaram traços do antigo conhecimento e, como sabem, essa idéia
também aparece em formas variadas em numerosas parábolas dos Evangelhos.
Mas, ainda que o homem compreendesse, mesmo do modo mais claro, suas
possibilidades, isso não poderia fazê-lo progredir um passo no sentido de sua realização.
Para estar em condições de realizar essas possibilidades, deve ter um desejo muito ardente
de libertação, deve estar pronto a tudo sacrificar, a tudo arriscar para sua libertação."
(Ouspensky, Fragmentos de um Ensinamento Desconhecido, 1998, p. 79.)

O que chamei de ‘ser inferior’ ou ‘falso ego, fica claro pelo exemplo: é a casa sem
Amo nem mordomo, onde cada um da multidão de serviçais se esforça para ser o amo do
momento.
Mordomo e mordomo-provisório são termos importantes nesta passagem, e
importantes também no contexto do ensinamento de Gurdjieff – Ouspensky conforme eu o
compreendi. Percebi que eles demarcavam o início de novos níveis de instrução possíveis
em mim mesmo.
São termos importantes também para a seqüência de nossos estudos.
Intuo que Mordomo, Alma e Vontade sejam palavras sinônimas. Se existe apenas
uma porção de pequenos desejos contraditórios e febris, muitas vezes inconciliáveis, que

46
nos levam de cá para lá, sem uma direção forte e intencionalmente estabelecida, então não
há Alma nem Vontade. A Alma no ser humano me parece ser, assim como na alegoria
acima, um elemento absolutamente tangível e consciente. Mas não é espontâneo – muito
pelo contrário – é um elemento construído, acumulado, conquistado. O Espírito humano é
dado, mas é demasiado sutil, invisível e não desenvolvido (a ponto de ser possível a
"opinião" humana de que ele não existe de forma alguma). O Corpo humano é dado e é
visível (ainda que muito de seu comportamento ocorra de forma inconsciente) – mas a
Alma, a escada que cria um eixo único de ligação direta entre corpo e espírito - num
momento dado – deve ser voluntariamente construída no ser humano.
Suponho que um bom e amadurecido ator - aquele que é capaz de representar muitas
vezes, todas as noites, um mesmo personagem de uma cena dramática em um teatro, quase
sempre com um nível alto de atenção e energia - possa ter conseguido adquirir ou um ou
outro. Isto é, se não uma Alma - um Mordomo - ao menos um mordomo provisório eleito
por um agrupamento provisório de serviçais mais sensatos – um princípio de Alma. Ao
menos nos limites de um pequeno cômodo desta casa onde conseguiram montar uma
barricada, protegendo-o da investida dos serviçais anárquicos. Quando está em cena, este
ator sabe que cada momento da sua representação deve ser recriado no tempo e no espaço
conforme ensaiou. A partir desse seu compromisso, é que sente a anarquia interna de seu
aparato psicofísico, e começa a tentar agir, trabalhando intuitivamente sobre si. Este
pequeno cômodo limpo e bem cuidado, o teatro de arte ou o espaço tempo de suas
pesquisas artísticas, pode ter sido local de algumas visitas do Amo, enquanto o restante dos
serviçais dormia, pelo resto da casa, em sono profundo. Suponho, também, que os
pesquisadores teatrais do século XX, aqueles sobre os quais iremos fazer um breve estudo,
utilizaram o teatro em suas vidas - cada um a seu modo - como um laboratório de pesquisa
sobre as possibilidades de utilização dessa ‘casa’ num contexto artístico teatral e, num ou
noutro caso, extrapolando até mesmo os limites desse contexto.

O início das leituras de Gurdjieff e Ouspensky em torno das minhas


experiências do teatro.
Desde que iniciei a fazer teatro, em 1990, na Escola Livre de Teatro de Santo
André; muitos dos meus professores ou iniciadores - fui sabendo com o tempo – tinham e

47
mantinham contato com os escritos e os ensinamentos de Gurdjieff e Ouspensky. Nunca de
forma declarada e aberta, mas sempre como um conhecimento de ordem pessoal, que lhes
inspirava e dava suporte na própria prática e experimentação em teatro. Para mim, começar
a ler e a estudar sobre estes autores era algo quase que natural, que deveria chegar numa
hora ou outra. De início, talvez intuitivamente, tentei privilegiar mais a experiência prática
com estes atores e diretores, do que me interessar em saber sobre aquilo que sentia que
sabiam a mais do que eu, ou a maioria das pessoas em geral. Só fui começar a ler sobre
Gurdjieff em 1996, mas foi em 1998, que comecei um estudo sistemático e prático dessas
idéias e conceitos.
Era perto do Natal de 1996 - estava já de férias - e decidi ir a Biblioteca do Centro
Cultural São Paulo. Lembrava dos nomes de Ouspensky e Gurdjieff, pois tinha acabado de
ler um livro de Maurice Nicoll, chamado: “L’Uomo Nuovo”, que, acredito, ainda não tenha
tradução em português.21 Nicoll havia trabalhado e estudado com Ouspensky na Inglaterra
e escreveu um livro sobre o significado interior de algumas das parábolas e símbolos do
Evangelho. Na biblioteca, naquela tarde, não encontrei livros de Gurdjieff, mas encontrei
um que dizia ser de Peter Ouspensky. Abri “O Quarto Caminho” e o primeiro parágrafo
dizia:

“Antes de começar a expor, de modo geral, do que se trata este sistema, e a falar
dos nossos métodos, quero incutir, expressamente, no espírito dos leitores que as idéias
e princípios mais importantes do sistema nao são meus. É isto principalmente que lhes
dá valor; se fossem meus, seriam como todas as outras teorias inventadas por
inteligências comuns: apenas uma visão subjetiva das coisas.
Em 1907, ao começar a escrever ‘Um Novo Modelo do Universo’22, declarei a mim
mesmo, como muitos outros fizeram antes e desde então, que há alguma coisa muito maior
e mais importante por trás da superfície da vida que conhecemos.” (Ouspensky, O Quarto
Caminho, 1995, p. 13.)

E já na segunda página li essas frases que até hoje me ressoam na memória:


“Se começamos a estudar a nós mesmos, nos deparamos, antes de tudo, com uma
palavra que usamos mais do que outra qualquer: a palavra "eu". Dizemos: "Eu estou
fazendo", "Eu estou sentado", "Eu sinto", "Eu gosto", "Eu não gosto" e assim por
diante. Essa é a nossa ilusão principal, pois o erro fundamental que cometemos em
relação a nós é nos considerarmos um; sempre falamos de nós como "eu" e supomos

21 L'Uomo Nuovo - Interpretazione di alcune parabole e di alcuni miracoli di Cristo - Maurice Nicoll
22 Um Novo Modelo do universo – Princípios do Método psicológico. São Paulo : Ed. Pensamento, 1990.

48
que nos referimos o tempo todo à mesma coisa, quando, na verdade, estamos divididos
em centenas e centenas de diferentes "eus". Num momento em que digo "eu", uma parte
de mim está falando e, noutro momento, quando volto a dizê-lo, é outro "eu" diferente
que está falando. Não sabemos que não temos um "eu", mas muitos "eus" diferentes
ligados aos nossos sentimentos e desejos, e que não temos nenhum "eu" que comande.
Esses "eus" mudam continuamente; um elimina o outro, um substitui o outro e toda essa
luta constitui a nossa vida interior.
Os "eus" que vemos em nós se dividem em vários grupos; alguns são legítimos,
fazem parte das divisões corretas do homem; outros são completamente artificiais e
criados pelo conhecimento insuficiente e por certas idéias imaginárias que o homem tem
sobre si mesmo.” (Ouspensky, O Quarto Caminho, 1995, p. 14.)

Eu estava com 26 anos, já havia sido instruído até o segundo grau, já havia feito três
anos de uma faculdade incompleta, e tido 6 anos de experiências com teatro e ninguém
nunca havia me dito algo tão direto e verdadeiro sobre mim e sobre os outros.
Já havia intuído, por experiência e prática, que um ator que se identifica
completamente com o papel que representa, seja o personagem de um texto teatral ou o
personagem de uma máscara de ‘Commedia dell’Arte’, perde capacidade de adaptação
criativa ao momento poético presente. Certa distância da imagem projetada seria muito
salutar e conveniente, desde que não comprometesse o pulsar vital daquela imagem. Na
época, era só uma intuição misturada a muitas dúvidas sobre a natureza dessa distância.
Diderot, Brecht, Meyerhold, Stanislavski e Grotowski, referências com que havia tido
contato na Escola Livre de Teatro de Santo André, ainda falavam e discutiam dentro do
meu corpo e da minha cabeça.
Então, no teatro, a questão da identificação com o personagem já era conhecida,
mas a transposição dessa idéia para a vida “real”, para uma suposta identificação com ‘eus’
que compunham ‘personagens’ de mim mesmo que eram diferentes e contraditórios em
suas próprias convicções e opiniões; sobre isso nunca ninguém havia me instruído. Era
como se estivesse entrando e descobrindo territórios que estavam por detrás do
comportamento humano na vida do dia a dia.
Certas situações conflituosas acontecem em nossa experiência pessoal e, de repente,
nos damos conta de que não sabemos absolutamente nada sobre como proceder conosco e
com as situações. A vida nos é dada e ninguém nos ensina o porquê ela nos foi dada e nem
como devemos vivê-la. O grau de instrução comum que existe na vida socialmente
negociada não nos fornece nenhuma idéia clara a esse respeito. Como se, de fato, todos

49
estivessem hipnotizados pela “realidade” das sombras que passam no fundo da Caverna que
há pouco visitamos.
Na época da leitura desse livro, o impacto sobre mim foi muito íntimo e pessoal,
isto é, ressoou sobre a minha vida como um todo, passado e presente. Olhei e me debrucei
sobre ela toda, revendo muitas experiências contraditórias e confusas de contato comigo
mesmo e relacionamento com os outros, que nunca haviam sido bem digeridas. A frase
acima jogava luz em lugares completamente obscuros de mim mesmo e da minha
experiência de viver. A experiência com o teatro já me fazia intuir algo nessa direção, e
talvez por isso tenha sido tão impactante ver uma obscura desconfiança ser refletida e
revelada com tamanha clareza. Saí da biblioteca entusiasmado e naquela mesma tarde fui a
uma livraria, pois queria imediatamente comprar aquele livro.
Meses depois, quando comecei a me dar conta de todo o nível de instrução que
havia nesse livro, foi que me ocorreu a pergunta: como um ator pode entrar em cena para
representar um personagem ou uma faceta da natureza humana sem nem ao menos saber
sobre aquilo que se passa interiormente em si mesmo, sem ter um mapa do seu mundo
interior com o qual possa se orientar, com o qual possa ler o ‘personagem’ que quer
representar? Aquilo que nos atrai em Shakespeare, por exemplo, não seria justamente o fato
de que seus ‘personagens’ são elaborados a partir de um mapa como este, com a
compreensão de certas leis que regem as facetas da natureza humana?
Foi então que resolvi, em 1998, entrar numa faculdade de artes cênicas, tentando
aplicar os princípios daquilo que aprendia não só na vida prática da representação artística -
que me propus a reaprender sobre a perspectiva desses princípios - como também na vida
prática de todo dia, aquela das representações sociais e das relações humanas. Por essa
experiência, sei hoje, que assim como não há um término na instrução humana, não pode
haver um término na instrução do ator.

O estudo da psicologia da atividade artística.


Em uma entrevista à revista ‘Studia’, feita em 1922, Stanislavski afirma que
“começou ‘o estudo da psicologia da atividade artística’ ao descobrir, durante a décima
quinta representação de uma obra que tinha grande êxito de público, que desempenhava
seu papel pensando em temas alheios à peça” (STANISLAVSKI, 1977. p. 17. No prefácio

50
de G. Kristi). Provavelmente referia-se às representações da peça “Inimigo do Povo”, de
Ibsen, onde fazia o papel de Dr. Stockman e cuja décima quinta representação ocorreu em
março de 1906. Segue Stanislavski em Minha Vida na Arte:
"Paso a paso iba escudriñando el pasado —escribía— y me daba cuenta cada vez
más claramente de que el contenido interior que yo había incorporado al papel al
crearlo por vez primera y la forma exterior en que éste se había convertido con él
correr del tiempo, estaban tan alejados entre sí como el cielo y la tierra. Primeramente
surgía de la bella verdad interior. Ahora sólo quedaban los restos, que seguían en el
alma y el cuerpo por motivos azarosos, sin ninguna vinculación con el arte verdadero."
(Stanislavski, 1982, p.310.) 23

Interessei-me pelo termo utilizado por Stanislavski na entrevista dada em 1922: “estudo
da psicologia da atividade artística.” Estou interessado a dar continuidade precisamente a
este estudo e, relendo este pequeno trecho das memórias de Stanislavski pode-se notar como
as suas observações e interesses apontam para o amplo círculo de interesses aberto pelas
pesquisas de seus conterrâneos e contemporâneos: Gurdjieff e Ouspensky. Veremos isso
num outro capítulo.
Mas segue-se, pelas nossas investigações até aqui, que tal estudo da atividade artística
deve começar pelo estudo da psicologia humana. Não podemos estudar o ‘artista’ sem
estudar o ‘homem’ que se encontra por detrás dele. E não somente o ‘homem’ em seu estado
de consciência habitual, mas também as possibilidades de desenvolvimento do ser humano
neste ‘homem’. É para este fim que vamos nos aproximar um pouco mais especificamente de
alguns conceitos básicos que suportam o ‘sistema de psicologia’24 organizado por Gurdjieff-
Ouspensky.
Além da fundamental idéia da possível transformação do estado de consciência de
uma pessoa em quatro diferentes graus que se acrescentam um sobre o outro; e daquela, não
menos fundamental, de que o homem desperdiça de modo involuntário a sua própria

23
Passo a passo eu fazia uma retrospectiva do meu passado e se me afigurava cada vez mais claro que o
conteúdo interior que punha nos papéis na sua primeira criação e a forma exterior em que estes degeneravam,
com o tempo, distavam entre si como o céu e a terra. Antes tudo partia de uma verdade interior bonita e
inquietante, da qual só restavam uma casca externa afetada pela erosão, a carcoma, o lixo encravados no
corpo e na alma por várias causas acidentais, sem nada a ver com a arte autêntica.” (Stanislavski, 1989,
p.408.)
24
‘Psicologia’, aqui, refere-se ‘ao estudo dos princípios, leis e fatos relativos à evolução possível ao homem’.
(Ouspensky, 1998, p.5.)

51
energia; algumas outras idéias serão, também, muito úteis na perspectiva desse nosso
estudo.
O que veremos a seguir são palavras-idéias que complementam um mapa de estudo
do homem: “funções inferiores e graus de atenção”, “divisão de atenção e lembrança de
Si”, “essência e personalidade” e “níveis de homens e suas manifestações”.
Vamos tentar abordar esses conceitos assim como Gurdjieff, Ouspensky, Collin e
Bennet os definiram, utilizando o máximo possível da linguagem e das definições dadas em
seus livros. Não vou citar a fonte de cada uma em separado, mas utilizá-las e compô-las
livremente. Um último e importantíssimo conceito deixado por esses autores, aquele de
‘energia’, será abordado somente no último capítulo da tese, quando o confrontaremos com
a prática do ‘treinamento energético’ elaborado por Luís Otávio Burnier nos primórdios do
LUME.
Psicologia da evolução possível ao homem
Complementando a definição do termo ‘psicologia’, Ouspensky refere-se a ele como o
estudo de si. Ninguém pode estudar ‘psicologia’ do mesmo modo que estuda Física,
Botânica, ou Astronomia; isto é, estudando apenas os fatos, leis e fenômenos que ocorrem
fora de si próprio. O estudo da natureza humana e dos fenômenos humanos externos ao
pesquisador deve ser mantido par e passo com o estudo de si e dos fenômenos do seu próprio
aparato psicofísico.
Ele deve estudar e observar este aparato do mesmo modo como faria se quisesse estudar
qualquer máquina nova e complicada. Neste sentido estuda as peças e funções principais
dessa máquina, o seu funcionamento correto, o seu mal funcionamento, as causas que a levam
a um funcionamento deficiente e assim por diante.
O sujeito é ele e o objeto de estudo é ele mesmo. No início esta divisão pode parecer com
uma espécie de ‘dualismo’ entre mente e corpo. De fato, para que se progrida no estudo de si,
todas as observações devem girar em torno da experiência da lembrança de Si e da sua
intensificação em tempo e qualidade. O sujeito, desse modo, vai progressivamente tornando-se
presente e separando-se da mente e do corpo do sujeito-objeto pesquisado.25

25
We try to be aware of ourselves by holding the sensation of 'I am here'--nothing more. And this is the fact
the all Western Psychology, without the smallest exception, has missed. Peter Ouspensky

52
Todas as informações e fatos dados aqui são apenas suposições que não precisam ser
aceitos nem rejeitados enquanto não tiverem sido colocadas à prova pela própria experiência e
verificação do investigador. Para ‘lembrar-se de Si’ não é preciso conhecer nenhuma destas
informações, mas o seu aprendizado, além de ser um excelente meio preparatório, explica
como muitas das suposições e teorias que são aprendidas através da educação geral e são
estabelecidas como sendo verdadeiras para si, como indivíduo, muito dificultam a experiência
da ‘lembrança de Si’ e a sua intensificação.

Funções e Níveis de atenção.


O aparato psicofísico humano, é dito, tem sete funções diferentes. São elas:
l.a) O pensamento (ou o intelecto).
2.a) O sentimento (ou as emoções).
3.a) A função instintiva (todo o trabalho interno do organismo).
4.a) A função motora (todo o trabalho externo do organismo, o movimento no espaço,
etc.).
5.a) O sexo (função dos dois princípios, masculino e feminino, em todas as suas
manifestações).
Além dessas cinco funções, existem duas outras para as quais a linguagem
corrente não tem nome e que aparecem somente nos estados superiores de consciência:
uma, a função emocional superior, que aparece no estado de consciência de si, e outra,
a função intelectual superior, que aparece no estado de consciência objetiva. (Ouspensky
– Psicologia da Evolução Possível ao Homem, 1998, p. 17.)

Assim chegamos à idéia de que o homem comum é um ser constituído não só de


uma mente, ou de um cérebro; mas de quatro cérebros ou funções inferiores que funcionam
simultaneamente em seu interior. A quinta função, a sexual, trabalha em conjunto com
todas as outras quatro. Se olharmos separadamente para cada uma delas veremos que:
l.a ) A função instintiva compreende todo o trabalho interno do organismo: a
digestão, a respiração, a circulação do sangue, o trabalho de células, tecidos, órgãos e
assim por diante. Inclui também os "cinco sentidos” e todos os outros como o sentido
de peso ou de temperatura, de secura ou de umidade. Responsável pela manutenção da
vida em todos os seres vivos, grande parte de sua atividade, mesmo em nós, permanece
inconsciente ao nosso estado de consciência parcial, o segundo estado de consciência.
2.a) A função motora compreende todos os movimentos exteriores, tais como
caminhar, escrever, falar, dirigir, comer, dançar e as lembranças que disso restam. A

53
diferença entre a função instintiva e a função motora é muito clara e fácil de
compreender; basta recordar que todas as funções instintivas, sem exceção, são inatas
e, embora possam ser educadas, não é necessário aprender como utilizá-las. Nenhuma
das funções de movimento é inata e é necessário aprendê-las todas; assim, uma criança
aprende a escrever, a amarrar seus sapatos; nós aprendemos a dirigir um automóvel, a
cantar no tom afinado, a imitar o comportamento dos outros.
3.a) A função intelectual, a mais estimulada entre nós, compreende todos os
processos mentais: percepção de impressões, formação de representações e conceitos,
raciocínio, comparação, afirmação, negação, formação de palavras, linguagem,
imaginação, e assim por diante.
4.a) A função emocional, a menos desenvolvida e compreendida entre nós, envolve
o sentimento ou as emoções: alegria, tristeza, medo, surpresa. É responsável pelas
emoções que vão desde aquelas mais coletivas àquelas mais íntimas e perceptivas de
determinada situação humana. Em parceria com as funções intelectuais e corporais é a
função que tem a capacidade da criação artística.
Sobre a função sexual, ela tem a capacidade de trabalhar com atividades criativas e
regeneradoras em todos os quatro centros inferiores. É apenas porque nossas vidas são
governadas pelo centro instintivo, que vemos o centro sexual quase exclusivamente em
termos de acasalamento e procriação. Ouspensky indica que o centro sexual não pode ser
observado ou estudado até que os quatro centros inferiores tenham sido suficientemente
observados e consigam funcionar sem inúteis e desnecessários dispêndios de energia. Num
momento posterior e mais adequado, vamos nos aproximar da estreita ligação que há entre
fluxo da energia sexual pelos centros e o termo ‘organicidade’, utilizado na perspectiva do
teatro de pesquisa.
Gurdjieff, como vimos, considerando o cérebro instintivo e o motor como um só,
chamava o homem de um ser tri-cerebral. Notamos que por essa definição nenhum cérebro
é mais importante que outro: não há uma escala hierárquica que define o pensamento como
superior às emoções ou aos instintos, por exemplo. No ser humano em desenvolvimento,
tudo tem o seu lugar e sua específica importância. No entanto, na medida em que a
lembrança de Si é acrescentada à experiência com as funções nota-se, como conseqüência,

54
que pensamentos, emoções e corpo ganham novas e inesperadas possibilidades, pela
simples razão de nossa identidade não estar mais vinculada a eles.

Velocidade dos centros


Um dos princípios mais importantes a ser notado ao estudarmos as funções é a
grande diferença que existe entre as suas velocidades de funcionamento:

O mais lento é o centro intelectual. A seguir, embora muito mais rápidos, vêm os
centros instintivo e motor, que têm mais ou menos a mesma velocidade. O mais
rápido de todos é o centro emocional e, no entanto, no estado de "sono desperto", só
muito raramente trabalha com uma velocidade próxima de sua velocidade real; em
geral, trabalha com a velocidade dos centros instintivo e motor. (Ouspensky –
Psicologia da Evolução Possível ao Homem, 1998, p.54.)

Que os centro motor e instintivo são mais rápidos que o centro intelectual todos nós já
vivenciamos. Quando se tenta pegar um objeto que está caindo, os movimentos são muito
mais rápidos do que o pensamento. O fisiologista sabe quantos processos complicados se
efetuam entre o momento em que se ingere um gole de vinho ou um copo de água e o
momento em que se sentem os efeitos. É espantosamente imediato. Cada substância que entra
no organismo pela boca deve ser analisada, submetida a provas diversas, antes de ser aceita
ou rejeitada. E tudo isso se passa em menos de um segundo. Os centros motor e instintivo
podem pensar independentemente do pensamento e o fazem numa velocidade
espantosamente mais rápida que o processo intelectual: é dito que seja cerca de 30.000
vezes.
Em seu livro, Gurdjief - Ouspensky26 explica como chega a esse número, e não nos
interessa aqui. Um simples cálculo mostra que a experiência que temos do tempo de um
segundo pela nossa perspectiva ordinária e intelectual, significariam um pouco mais de 8
horas para os movimentos e instintos que assim podem realizar as suas proezas e
habilidades ‘miraculosas’ como quando no futebol, por exemplo, os goleiros se tornam
‘santos’ ao defenderem chutes e cabeçadas à queima roupa. Essa diferença de velocidades
também explica muito bem a razão pela qual sentimos que um ator não está sendo
espontâneo em cena. Independente da estética, logo se percebe uma falta de ‘organicidade’
que nada mais é do que o pensamento dando comandos e interferindo na natural
26
(Ouspensky, 1989, p.382-384)

55
velocidade de funcionamento do corpo. Pode ser útil quando estamos aprendendo a dirigir
um automóvel, mas, em geral, tanto na vida como no teatro, quando isto se torna um
hábito, virá exemplo de um mau funcionamento de si mesmo.
O centro emocional, quando trabalha livre do hábito da expressão das emoções
negativas pode chegar a funcionar, é dito, 30.000 vezes mais rápido do que o centro
instintivo e motor. Isso nos leva a entrever a existência de um mundo que, impermeável a
palavras, conceitos e pensamentos, nos proporciona, em níveis sutilíssimos, uma grande
quantidade de experiência de vida em muito pouco tempo.

Parte negativa e positiva dos centros.


Se nos escutarmos enquanto escutamos outra pessoa falar poderemos notar que os
nossos próprios pensamentos reagem e funcionam sob duas perspectivas: afirmação e
negação; sim e não; concordo e discordo. Ouspensky diz que não só o centro intelectual,
mas todos os centros estão divididos em duas partes: uma positiva e outra negativa. A
parte negativa de cada centro é tão útil quanto a parte positiva e o menor enfraquecimento
da força de uma com respeito à outra pode gerar dificuldades na experiência com o
mundo externo. Os casos extremos levam à tolice e à ingenuidade ou ao pessimismo e à
desconfiança.

No trabalho do centro instintivo, a divisão também é muito clara de ser observada e as


duas partes, positiva e negativa, são ambas necessárias para uma orientação justa na vida.
As sensações positivas ou agradáveis, de paladar, olfato, tato, calor, frescor, ar puro,
todas atestam condições salutares à existência; e as sensações negativas ou desagradáveis, de
mau sabor, de mau cheiro, de contato desagradável, a impressão de calor sufocante ou de frio
excessivo, todas atestam condições prejudiciais à existência.
No centro motor, a parte positiva indica movimento e a negativa é simplesmente
repouso. O centro emocional, à primeira vista, parece estar dividido em emoções positivas
como a alegria, compaixão, afeição, e em emoções negativas, tais como a impaciência,
medo, tédio, e ciúme. No entanto, como vimos, a maioria das nossas emoções negativas
são imitadas de fora ou tem origem nas percepções ou sensações negativas do centro
instintivo. Devido ao erro sobre a nossa real identidade e completa dependência das
condições externas, elas são automaticamente transferidas para o centro emocional que as

56
expressa por fraqueza e ignorância. É desse modo que um grande “amor” ou “afeição” por
alguém pode, em minutos, degenerar-se em “indiferença”, “ciúme” e “ódio” intensos.
Ao livrar-nos desse hábito nefasto, podemos sentir a nossa própria função
emocional como um refinado e imediato órgão de percepção e discriminação emocional
que nos possibilita a correta relação de contato com o outro, quem quer que seja este outro.
Neste sentido faz discriminações emocionais positivas e negativas de situações e
relacionamentos. É, portanto, indispensável para o trabalho de qualquer ator vinculado a
qualquer técnica ou estética; sejam aquelas que privilegiam o trabalho sobre o corpo físico,
como aquelas que privilegiam o trabalho sobre o texto e o discurso.

Níveis de atenção

Além da divisão em duas partes, positiva e negativa, — que, como vimos, não é a mesma
nas diferentes funções — cada um dos quatro centros é dividido em três partes que se
referem aos níveis de atenção do seu funcionamento.
As cartas de um baralho comum servem muito bem para representar esses níveis
juntamente com tudo o que foi dito até agora sobre as quatro funções inferiores.

(Zannos, 2004, p.60)


Reconhecemos os quatro naipes do baralho como as quatro funções inferiores. O
naipe de paus correspondendo à função instintiva; o naipe de espadas à função motora; o

57
naipe de ouros à função intelectual e o naipe de copas à função emocional. Cada carta do
baralho com duas figuras idênticas e opostas representam os lados positivo e negativo de
cada centro. Os números de 2 a 10 de cada naipe – não mostrados aqui - representam uma
divisão ulterior e análoga àquela que podemos ver pelas figuras colocadas em ordem
crescente de posição: valetes, damas e reis contêm em si conjuntos de níveis de atenção
ternários divididos respectivamente em 2, 3, 4; 5, 6, 7 e 8, 9, 10. Será suficiente, aqui,
compreendermos o que cada figura representa dentro de uma função.
A organização espacial das cartas, como mostra a figura, nos dá uma fotografia da
‘casa’ da alegoria oriental de Gurdjieff no momento em que um mordomo definitivo já foi
estabelecido, isto é, representa uma etapa avançada do trabalho sobre si onde cada parte do
homem faz o trabalho que lhe é legítimo e necessário.
No homem que nunca trabalhou sobre si, essas cartas estariam espalhadas, viradas
ao contrário, estariam umas sobre as outras, com os naipes misturados, e custaríamos a
encontrar os ‘Reis’. Estariam sempre sem uma ordem interna própria, mas com um
contínuo fluxo de desordem reativo às mudanças das condições externas. Se algo externo
deixasse este homem entusiasmado, ele ficaria entusiasmado; se algo o deixasse irritado,
ele ficaria irritado. Não serviria para o nosso estudo, apesar de ser um fiel retrato do nível
humano que estamos habituados a ver, em nós, nos outros e em muitos atores sem
formação técnica e ética.
A idéia, aqui, é que cada centro funciona com níveis de atenção que se acrescentam
um sobre o outro:
- No nível dos ‘Valetes’ funcionamos sem atenção ou com pouca atenção, isto é,
estamos na parte mecânica. É nesta parte que se encontram as manifestações
automáticas das funções, tanto as necessárias, como as desnecessárias.
Nos ‘Valetes’ está armazenada a memória do corpo, da mente e das emoções. Só
falamos fluentemente uma língua porque nos utilizamos deste nível de atenção no centro
intelectual e motor. Os movimentos automáticos também são necessários – mas não
suficientes – para se tocar qualquer instrumento sonoro bem, como os músicos
demonstram saber e por isso passam horas se exercitando.
O fenômeno da ‘imaginação’ que falamos acima, o hábito de deixar-se vaguear
em pensamentos introspectivos e aleatórios, é um exemplo de trabalho errado e

58
desnecessário que acontece nesse nível. Também, por falta do cultivo da atenção em
nossa vida diária é o pensamento e o sentimento automático que se expressam
imediatamente através de nós, criando mal entendidos de todo gênero em situações
com as quais só as partes superiores destes centros poderiam lidar.
- No nível das ‘Damas’ estamos com uma atenção plena, mas atraída e mantida, sem
esforço, por um forte interesse em algum acontecimento ou fenômeno, seja de ordem
interna ou externa. É nesta parte que se encontram as manifestações reativas das
funções isto é, estamos na parte emocional: instintos, movimentos, pensamentos e
emoções de caráter passional. Na parte emocional do centro instintivo, por exemplo,
estão localizados os cinco sentidos de tato, sabor, visão, cheiro e audição que nos
orientam pelo ambiente, nos afastando do desagradável e desconfortável e nos
aproximando do agradável e prazeroso. Na parte emocional do centro emocional,
temos percepções emocionais agudas, extremas e voláteis a respeito de pessoas,
lugares, crenças e situações humanas em geral. Sentimos arrebatadora simpatia ou
antipatia pelas coisas, apaixonados ou em completa aversão.
As ‘Damas’ são impulsivas, focadas, unilaterais e é aquilo que chamaríamos numa
pessoa de ‘interesse’, ‘entusiasmo’, ‘paixão’ ou ‘devoção’. Podem ser necessárias e naturais
em situações de urgência, por exemplo, mas tendem a nos levar a uma identificação com o
fenômeno que o origina, fazendo-nos perder a dimensão geral do todo. A expressão das
‘Damas’ também tem a tendência de transformar-se em seu contrário, quando mudam as
condições externas. Poderíamos usar essa intensidade de energia, mas, sem a vontade e a
atenção cultivada, geralmente, é essa intensidade descontrolada que nos usa. Em situação
de representação, quando um ator inexperiente se vê diante de grande platéia podemos ver,
através de sua qualidade de atuação exagerada, como se desencadeia esse processo.
- No nível do ‘Reis’ estamos com uma atenção controlada e mantida, momento a
momento, por meio da vontade e do esforço. As partes intelectuais dos centros comportam
a faculdade de criar, construir, inventar, descobrir, aprender, desfazer hábitos, atuar,
desconhecer o conhecido, formular idéias, compreender o outro e entre outras tantas, aquela
de fazer uma pessoa permanecer sensitiva às impressões do momento presente. Quando
todas as funções se encontram nesse nível existe maior poder de escolha, liberdade e

59
adaptação em relação às condições externas imediatas. A experiência intencionalmente
criada da ‘lembrança de Si’ e a sua intensificação também começam neste nível.
Observando a atenção e tentando controlá-la, obrigamo-nos a trabalhar nas partes
intelectuais dos centros. A única exceção é a parte intelectual do centro instintivo, que pode
funcionar sem o nosso conhecimento, isto é, de modo inconsciente. Esta parte é a mente
animal que está por trás da máquina biológica e quando estamos doentes, por exemplo, é
esta parte que detém a atividade dos centros intelectual, emocional e motor e canaliza toda
a energia disponível para a cura do organismo. É esta parte, também, que, por falta de
atenção voluntariamente cultivada por um trabalho sobre si, invade território alheio,
manipula os níveis inferiores das outras funções e produz nossa identidade egocêntrica que
chamamos de ‘ser inferior’ ou o estado habitual de nós mesmos.
Na psicologia Hindu, esses três níveis correspondem de modo muito aproximado aos
três ‘gunas’, que são como três qualidades de vida, as três tendências constituintes da
substância primordial da qual são feitos todos os fenômenos vivos no universo, isto é, o
prakriti. No texto tradicional hindu do Bhagavad-gita todo o seu décimo quarto capítulo é
dedicado à questão dos “Três Modos da Natureza Material”. Em respostas diretas dadas em
“Self-Enquiry” Ramana Maharshi, sábio hindu do século vinte, nos introduz ao tema:

Desde que o ‘guna-sattva’ (o constituinte de ‘prakriti’ que leva à pureza, à


inteligência, etc.) é a natureza da mente, e desde que a mente é pura e não-poluída como o
éter, o que se chama mente é, na verdade, da natureza do conhecimento. [...]. O que era
(originalmente) a pura mente ‘sattva’, da natureza do puro conhecimento, esquece sua
natureza-conhecimento devido à ignorância, se transforma no mundo através da influência
do ‘guna-tamas’ (isto é, o constituinte do ‘prakriti’ que leva ao torpor, a inércia, etc.); está
sob a influência do ‘guna-rajas’ (isto é, o constituinte do ‘prakriti’ que leva à atividade, às
paixões, etc.), imagina “sou o corpo, etc.; o mundo é real”, adquire o conseqüente mérito e
demérito através do apego, a aversão, etc., e através das impressões residuais (vasanas),
por estas coisas, padece o nascimento e a morte. (Maharshi R., Self-Enquiry- 1994.)

Se olharmos para a disposição espacial das cartas de baralho mostradas na figura


acima, notaremos que os ‘Reis’ estão mais próximos e as ‘Damas’ e ‘Valetes’
gradualmente mais afastados. É porque as partes intelectuais, ou ‘sattivcas’ seguindo a
suposição feita, tendem a se integrarem umas às outras mais do que as outras partes. As
partes mecânicas funcionam com maior desconexão entre elas.

60
Em relação ao trabalho do ator, como veremos no capítulo III, esses dois primeiros
níveis de atenção juntos, as ‘Damas’ e ‘Valetes’, compreendidas as suas manifestações
equivocadas e algumas isoladas visitas aos ‘Reis’, podem corresponder àquilo que
Stanislavski chamou de ‘estado típico de ator’. Aquilo que ele chamou de ‘estado criativo’
pode corresponder a um trabalho integrado dos ‘Reis’:

“O poder que os atores possuem de imitar “à vontade” a voz, as entonações e os


gestos dos outros, provém da parte intelectual do centro motor; mas, quando esse poder de
imitação atinge um grau superior, exige ao mesmo tempo o trabalho da parte intelectual
do centro emocional.” (Ouspensky, 1998, p.78.)

Podemos ler o mesmo através das palavras de Stanislavski, sobre o processo


criativo do ator na construção de um personagem de ‘O Inspetor Geral’ de Gogol:
“O processo de que estou falando é executado simultaneamente por todas as forças
intelectuais, emocionais, espirituais e físicas de nossa natureza. Isso não é uma pesquisa
teórica, e sim prática, visando a um objetivo autêntico, que atingimos por meio de ações
físicas. Absorvidos nas ações físicas imediatas, não pensamos nem temos consciência do
complexo processo interior que, natural e imperceptivelmente, vai ocorrendo dentro de
nós.” (Stanislavski, 1987, p. 249.)

Quando estudarmos seu ‘método das ações físicas’ notaremos como Stanislavski,
através de muitos anos de prática e estudos, elaborou uma técnica que requisitava as
partes intelectuais dos centros nos atores. Uma cultivada atenção nos centros motor-
instintivo e intelectual se materializava na ‘linha das ações físicas’ de cada ator.
Aprendeu que não deveria manipular a emoção, mas, simplesmente, que deveria deixá-la
reagir naturalmente de acordo com sua própria inteligência e velocidade.
O estudo da atenção, melhor que qualquer outra coisa, revela as partes dos centros
que estão operando, mas o estudo do corpo, dos pensamentos e emoções exige, por sua vez,
certo grau de ‘lembrança de Si’. Só têm valor real as observações obtidas durante a
‘lembrança de Si’, de outro modo, todo esse conhecimento leva ao, bem noto, beco sem
saída do dualismo entre mente e corpo.
Desse modo, se olharmos para os quatro ‘Reis’ notaremos que há um único que possui
uma espada levantada. A parte intelectual do centro emocional corresponde à figura do
‘Mordomo’, aquele que prepara e organiza a casa à espera do Senhor. É a sede das

61
emoções inteligentes que têm a capacidade de compreender o sentido da vida humana. 27 O
‘Rei de Copas’, junto com os outros ‘Reis’, consegue controlar as manifestações
automáticas e reativas dos centros - a ‘inércia’ e as ‘paixões’ - criando as condições
propícias para o estudo de si, o trabalho sobre si, a relação com os outros e o contato com
os centros superiores. No entanto, o ‘Rei de Paus’, a sede da mente animal humana,
permanece como a parte que, quando não vigiada, invade território alheio e manipulando
os níveis inferiores torna a ativar a ‘inércia’ e as ‘paixões’. Há, portanto, no mundo interior
do ser humano um constante atrito entre naturezas opostas que competem pela supremacia:
“Às vezes, o modo de bondade (sattva) se torna preeminente, derrotando os modos da
paixão (rajas) e da ignorância (tamas), ò filho de Bharata. Às vezes, o modo da paixão
sobrepuja a bondade e a ignorância, e outras vezes a ignorância derrota a bondade e a
paixão. Dessa maneira, há sempre competição pela supremacia.” (MAHĀBHĀRATA -
Bhagavad-Gītā, 1995, p.660.) 28

Gurdjieff, em seu modo peculiar, nos fala desta situação conflituosa de nossa natureza
através de um aforismo antigo que lhe chegou às mãos em uma de suas viagens.
Transcrevo, também, o seu elucidadtivo comentário:
“Só merecerá o nome de homem e somente poderá contar com algo que foi preparado para
ele, desde O Alto, aquele que tiver sabido adquirir os dados necessários para conservar
indenes tanto o lobo como o cordeiro que foram confiados à sua guarda.

Ora, a análise filológica dita "psicoassociativa", à qual essa máxima de nossos ancestrais
foi submetida, em nossos dias, por alguns verdadeiros sábios — nada tendo em comum, é
claro, com os que habitam o continente da Europa — demonstra claramente que nela a
palavra lobo simboliza o conjunto do funcionamento fundamental e reflexo do organismo
humano e a palavra cordeiro, o conjunto do funcionamento do sentimento. Quanto ao
funcionamento do pensar humano, é este representado aqui pelo próprio homem — o
homem capaz de adquirir, no curso de sua vida responsável, por seus esforços conscientes
e seus sofrimentos voluntários, os dados que conferem o poder de criar sempre condições
que tornem possível uma existência comum para essas duas vidas individuais, estranhas
uma à outra e de naturezas diferentes.
Só um homem como esse pode esperar tornar-se digno de possuir o que é
designado nessa máxima como lhe estando preparado desde O Alto e que, de maneira
geral, é destinado ao homem.
[...] É impossível deixarmos de admitir com a cabeça e reconhecer com o
sentimento, que todo ser que se atribui o nome de homem deve dominar sua preguiça
e, inventando sem cessar novos compromissos, lutar contra as fraquezas que descobriu
27
When acceptance starts turning in the sky, all griefs turn into joy. – Rumi (Sufi do século XII)
28
MAHĀBHĀRATA. O Bhagavad-Gītā como ele é – Tradução e significado elaborados por Swami
Prabhupāda. Capítulo XIV, verso 10.

62
em si, a fim de chegar à meta que se fixou: conservar indenes esses dois animais
independentes que foram confiados à guarda de sua razão e que são, por sua própria
essência, opostos um ao outro. (Gurdjieff – Encontro com Homens Notáveis, 1990,
p.14-15)

Através de toda a obra deixada por Gurdjieff podemos notar que há diferentes
“qualidades” de performance da vida humana, mais ou menos mecânicas, mais ou menos
conscientes, todas elas ocorrendo dentro de um mesmo e único jogo mestre: a evolução ou
degeneração da própria individualidade dentro de um espaço tempo socialmente
estruturado. “Decifra-me, ou devoro-te” é o enigma que todo homem e mulher,
independente da cultura a que pertença, carrega consigo e, indistintamente, a esfinge que
proclama o desafio está nele ou nela mesmo: a sua natureza instintiva.
Não é "destrua-me ou devoro-te", mas decifra-me, aprenda a tomar conta de mim,
descubra a minha natureza, ou eu te devorarei. A natureza animal no ser humano será um
obstáculo que ele deverá decifrar - e este obstáculo assume formas diferentes para cada tipo
de pessoa - cada vez que iniciar, por seu próprio e intransferível impulso, um novo
movimento da ignorância para a instrução, da mecanicidade para a consciência, da
imaginação para a presença.

Essência e personalidade.
De certa forma, todos aqueles que vamos estudar, na seqüência das nossas
indagações, tocaram, de uma forma ou de outra, no princípio universal de que o homem é
constituído por um tipo de essência que lhe é inato e num conjunto de instruções, técnicas e
modos de funcionamentos apreendidos que formam sua personalidade. Há traços
deliberados desta percepção em Turner, Stanislavski, Grotowski, e Burnier. Em “O
Processo Ritual” de Victor Turner podemos ler:
[...] em matéria de religião, assim como de arte, não há povos “mais simples”, há
somente povos com tecnologias mais simples do que as nossas. A vida “imaginativa” e
“emocional” do homem é sempre, e em qualquer parte do mundo, rica e complexa. Faz
parte da minha incumbência exatamente mostrar quanto pode ser rico e complexo o
simbolismo dos ritos tribais. Também não é inteiramente correto falar da “estrutura de
uma mentalidade diferente da nossa”. Não se trata de estruturas cognoscitivas diferentes,
mas de uma idêntica estrutura cognoscitiva, articulando experiências culturais muito
diversas. (Turner, 1974, p. 15).

63
Na introdução de Stanislavski ao seu livro: “O Trabalho do ator sobre si mesmo no
processo criador das vivências”:
“O que trato no meu livro não se refere a uma época determinada e à sua gente,
mas à natureza orgânica de todas as pessoas do mundo da arte, de todas as nacionalidades
e todas as épocas.” (Stanislavski, 1977, p. 43.)

Em Grotowski:

Há uma importante área para mim onde eu uso diretamente um termo de Gurdjieff;
que é quando eu falo de essência. (Grotowski, entrevista em: “Gurdjieff: Essays and
Reflections on the Man and His Teaching”, 1996.)

L'essenza: etimologicamente si tratta dell'essere, dell'esserità. L'essenza mi


interessa perché non ha niente di sociologico. È ciò che non si è ricevuto dagli altri, quel
che non viene dall'esterno, che non si è imparato. Per esempio, la coscienza (nel senso di
‘the conscience’) è qualcosa che appartiene all'essenza, e che è del tutto differente dal
codice morale che appartiene alla società. Se infrangi il codice morale, ti senti colpevole,
ed è la società che parla in te. Ma se fai un atto contro coscienza, senti rimorso - questo è
fra te e te, e non fra te e la società. Poiché quasi tutto quello che possediamo è sociologico,
l'essenza sembra poca cosa, ma è tua. 29 (Grotowski, Il Performer – In Teatro e Storia n. 4,
1988)

Ao interagir com uma criança de 3 a 6 anos podemos observar, em geral, que o


número de escalas de sua qualidade energética é naturalmente maior que o de um adulto,
que carrega sua identidade em torno ao próprio ‘nome’. Organicidade dos movimentos,
vivacidade, espontaneidade, interesse pelo ambiente presente, rica variedade emocional e
criatividade são características que podemos notar empiricamente.

No ensinamento de Gurdjieff, as funções com suas qualidades e talentos


individuais, conforme as recebemos da natureza e por hereditariedade, somadas ao seu
destino pessoal30 fazem parte daquilo que é chamado de essência de uma pessoa ou seu tipo
de máquina biológica; enquanto que tudo aquilo que ela vier a aprender e receber do meio
externo, por imitação, reação ou por esforço de aprendizado, fará parte da sua
29 A essência: etimologicamente se trata do ser, daquilo que se é . A essência me interessa porque não tem nada de
sociológico. É aquilo que não é recebido dos outros, aquilo que não vem do exterior, que não é aprendido. Por exemplo, a
consciência ( no sentido de the conscience, a “consciência moral”) é algo que pertence a essência, e que é de todo diferente do
código moral que pertence à sociedade. Se você infringe o código moral, se sente culpado, e é a sociedade que fala de você. Porém,
se comete um ato contra a consciência, sente remorso – isto é entre você e você mesmo, e não entre você e a sociedade. Porque
quase tudo aquilo que possuímos é sociológico, a essência parece pouca coisa, mas é tua.
30
Aqui, ‘destino pessoal’ equivale ao ‘prarabdha-karma’ hindu, isto é, o destino que o homem constrói para si
próprio segundo a lei de causa e efeito, incluindo o karma passado que começou a frutificar na forma do
corpo presente. (Maharshi R., Self-Enquiry- 1994.) Também em: (Ouspensky, 1998, p.188)

64
personalidade. Nota-se que essência e personalidade são imprescindíveis para o
desenvolvimento individual, em todos os graus de instrução possíveis
Por exemplo, um homem é por natureza o que se chama de bom cozinheiro, outro não
o é; um tem ouvido musical, outro não tem; um tem o dom das línguas, outro carece dele. Eis
aí a essência. E se uma criança nasce com ouvido musical, com gosto e talento para
produzir sons, ritmos e silêncios; em torno desse gosto e talento se agrega uma
personalidade, um conjunto de técnicas e conhecimentos apreendidos que irão levar essa
criança a desenvolver e aprofundar essa aptidão e tornar-se um músico ou instrumentista,
conforme suas inclinações, sua época e cultura: um flautista zen, um percussionista de
umbanda, um pianista clássico, um tocador de rabeca ou um sambista do morro.
A essência é o que é inato no homem.
A personalidade é o que é adquirido.

O exemplo que demos é um caso de relação correta entre a essência e a


personalidade, isto é, a segunda apoiando e servindo a primeira. Nelson Freire,
Pixinguinha, Luís Gonzaga e Mestre Salustiano são exemplos ao alcance de nossos
ouvidos.

Não são de modo nenhum os exemplos mais comuns.

Além de se formar por esforço intencional de aprendizado, a personalidade que


formamos em torno das várias áreas de experiência de nossa vida também se faz por
imitação inconsciente de influências que nos chegam das mais variadas fontes e contatos
formando, inclusive, aquilo que acima, mencionamos como ‘falso ego’ ou ‘ser inferior’.
Mesmo nas funções instintivas que, por natureza, deveriam ser isentas de persona-
lidade, existem geralmente muitos "gostos adquiridos", isto é, toda espécie de "eu gosto" e
"eu não gosto" artificiais, adquiridos todos por imitação ou imaginação. Esses "gosto" e
"não gosto" artificiais desempenham um papel muito importante e desastroso na vida do
homem. Por natureza, o homem deveria gostar do que é bom para ele e detestar o que é mau
para ele. E assim é, enquanto a essência domina a personalidade, como deveria fazê-lo ou,
dito de outro modo, enquanto o homem é são e normal. Mas, quando a personalidade
começa a dominar a essência e o homem já é menos são, começa a gostar do que é mau
para ele e a detestar o que lhe é bom. (Ouspensky – Psicologia da Evolução Possível ao
Homem, 1998, p.30.)

Há casos e casos. No homem simples do campo onde a essência prevalece sobre a


personalidade, para que prossiga seu desenvolvimento, pode ser que lhe falte alguma instrução.

65
Mas que tipo de instrução pode lhe ser realmente útil? Que tipo de instrução não oprime aquela
que a própria experiência de vida lhe deu?
“O senhor... Mire veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas
não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas – mas que elas vão sempre mudando.
Afinam ou desafinam. Verdade maior. É o que a vida me ensinou. Isso que me alegra, montão.
E, outra coisa: o diabo, é às brutas; mas Deus é traiçoeiro! Ah, uma beleza de traiçoeiro – dá
gosto! A força dele, quando quer – môço! – me dá o medo pavor! Deus vem vindo: ninguém
não vê. Ele faz é na lei do mansinho – assim é o milagre. (Rosa, G. – Grande Sertão: Veredas,
1956, p. 24.) 31

Ou ainda:
“O certo é que, como eu já disse pra vocêis: hoje bonito, amanhã duente, adepois
morre. Depois... prepara o caixão, adepois de um caixão, vai pro cemitério. E lá do cemitério,
então, depois de quatro dia, vai cavá, verdadeiramente aquele sujeito, pasto dos vermes. É ou
não é? Num é assim? Num é assim mesmo? Olha a senhora, tão bonita, e os bichinhos... (ri)
Os dedo tudo podre... (ri) a toa... – Seu Marcelino em texto do espetáculo ‘Café com Queijo’
do Lume Teatro . (Ferracini, 2006, p.332.)

Depois há as famílias que deixaram suas terras rumo às grandes cidades, às metrópoles, às
megalópoles.... Como é a relação entre a essência e a personalidade nessas pessoas? Aquilo que
são, aquilo que aprenderam deixando a fonte de influência para trás e aquilo que aprendem nos
grandes centros urbanos e modernos? E há também a influência dos meios de comunicação de
massa que, hoje em dia, penetram até mesmo em aldeias e comunidades indígenas no meio do
Amazonas.
A personalidade está cheia de idéias falsas sobre si mesma. Não quer nunca
permanecer em seu lugar, porque seu verdadeiro lugar é secundário e subordinado à
essência; não quer conhecer a verdade sobre si mesma, porque conhecer a verdade
significaria abandonar a situação usurpada e ocupar a situação inferior que, na realidade,
lhe compete. (Ouspensky – Psicologia da Evolução Possível ao Homem, 1998, p.32.)

Se olharmos para uma pessoa culta comum, da cidade grande - por todos os lados de sua
vida - veremos que, não sempre, mas muito freqüentemente, a sua personalidade, seu ‘nome’
(uma colcha tecida por retalhos de hábitos e atitudes sedimentadas) é que prevalece sobre a
sua essência, e essa permanece num estado de subdesenvolvimento miserável. O dinheiro,
a profissão, a ‘correria’, as emoções negativas, a ambição, a vaidade, a expectativa social,
o desejo de poder, o desejo de sucesso, o desejo de estabilidade atravessam e manipulam
31
Uma nota interessante a ser revelada aqui é que Rosa leu não só obra de Gurdjieff e Ouspensky, mas
também inúmeras outras que remetem diretamente à tradição esotérica e filosófica Ocidental e Oriental. Em
(Sperber, 1976.)

66
os valores de sua personalidade que já não comporta o simples e o natural, que já não
admite servir à própria individualidade. A falsa personalidade, o ‘ser inferior’, é a
ignorância que sufoca no homem aquilo que são seus bens próprios: sua essência e sua
consciência. A personalidade real, o ‘Mordomo’ é o fruto da sua instrução. Há casos e
casos: na cidade e no campo. Muito diferentes entre si. Também nas ciências, nas artes, na
filosofia e religião.
Mas em torno de todos os casos podemos reconhecer dois estágios bem demarcados
dessa instrução. No primeiro, que chamamos de estágio preparatório – aquele que corresponde
ao despedaçar das correntes dos cativos e a compreensão do mecanismo que produz as
sombras – aprendemos a reconhecer o que é falso em nossa personalidade e abrimos
caminho até a nossa essência.
Em seu estágio avançado – aquele que corresponde à aproximação do fogo
eminente, à escalada da encosta e saída da caverna – a personalidade verdadeira já serve a
essência e, juntas, as duas partes abrem caminho até as possibilidades de fusão com a
consciência. São etapas bem demarcadas e seqüenciais. Impossível a segunda sem a
primeira.
Então, pela primeira vez, uma nova qualidade aparece, a qual Gurdjieff chama
“presença.” Assim que a intensidade da presença cresce, a rede das nossas reações e
desejos, a qual chamamos ego, gradualmente torna-se elástica e transparente, e no centro de
nossa estrutura automática de comportamento um novo espaço é formado no qual uma
verdadeira individualidade pode surgir. (Brook, 1996, p.33)

Técnica da divisão da atenção e lembrança de Si.


Vamos reunir, a seguir, uma coletânea de exemplos dados por Gurdjieff, Ouspensky,
Collin e Bennet sobre a técnica da divisão da atenção e a experiência da lembrança de Si. Como
veremos no próximo capítulo, aquilo que o antropólogo Victor Turner localizou como a
“liminaridade” e a “communitas” no processo ritual individual e coletivo de tribos africanas
concordam em grande parte com esta experiência.

O estudo psicológico da consciência mostra que é somente a partir do momento em que o


homem vê que está adormecido que se pode dizer dele que está a caminho do despertar. Jamais
poderá despertar-se antes de ter visto que está adormecido.
(Ouspensky – Psicologia da Evolução Possível ao Homem, 1998, p.25.)

67
Podemos, por exemplo, pensar no nosso corpo e no modo como se move ou perceber os
pensamentos que estão atravessando as nossas mentes. Tudo isso é apenas a observação, por um
centro, do funcionamento do outro. Nessa observação, nós não nos vemos; são partes nossas que
estão se vendo mutuamente. A verdadeira observação de si exige o que se chama a ‘separação de si
mesmo’. Isso quer dizer uma separação de toda atividade do pensamento, sentimento e corpo. A
nossa atividade é, então, ainda parte de ‘nós’, mas ‘nós’ não somos mais apenas uma parte dela.
Uma vez que tenhamos tido essa experiência, o sabor é inconfundível, quando volta novamente.
Mas quando não está presente, podemos, com muita facilidade, nos iludir que está. (Bennet, 1986,
p. 53. grifo do autor.)

"Nas condições da vida comum, n ã o nos lembramos de nós mesmos; não nos lembramos,
isto é, não temos sensação de nós mesmos; não somos conscientes de nós mesmos no momento
da percepção de uma emoção, de um pensamento ou de uma ação. Se um homem compreende isso
e tenta lembrar-se de Si mesmo, cada impressão que receber durante essa lembrança de Si será, de
certo modo, duplicada. Num estado psíquico comum, eu olho simplesmente a rua, por exemplo.
Mas se "me lembro de mim mesmo", não olho mais simplesmente a rua, sinto que a olho como se
dissesse a mim mesmo: "Eu olho". E, em lugar de uma impressão da rua, tenho duas
impressões: uma da rua e outra de mim mesmo olhando a rua. (Ouspensky, Fragmentos de um
Ensinamento Desconhecido, 1998, p. 219.)

Falo da lembrança de si, enquanto divisão da atenção: é o seu traço característico.


Quando observo alguma coisa, minha atenção é dirigida para o que observo.
Eu o fenômeno observado.
Quando tento, ao mesmo tempo, lembrar-me de mim mesmo, minha atenção é dirigida
simultaneamente para o objeto observado e para mim mesmo.
Eu o fenômeno observado.
Definido isso, vi que o problema consistia em dirigir a atenção para mim mesmo sem deixar
enfraquecer ou desaparecer a atenção dirigida para o fenômeno observado. Além disso, este
"fenômeno" pode estar tanto em mim como fora de mim. (Ouspensky, Fragmentos de um
Ensinamento Desconhecido, 1998, p. 143.)

As primeiras tentativas que fiz para obter tal divisão da atenção mostraram-me sua
possibilidade. Ao mesmo tempo, fiz duas outras constatações.
Em primeiro lugar, vi que a "lembrança de si", obtida desse modo, nada tinha em comum
com a "introspecção" ou com a "auto-análise". Tratava-se de um estado novo e cativante, com
sabor estranhamente familiar.
Em segundo lugar, eu compreendia que momentos de lembrança de si ocorrem de fato,
na vida, mas raramente, e que só a produção deliberada desses momentos criava a sensação de
novidade. Tinha, aliás, a experiência de tais momentos desde minha mais tenra infância; eles
acontecem em circunstâncias novas ou inesperadas, num lugar inacostumado, entre pessoas
estranhas, durante uma viagem, por exemplo; olha-se em torno de si e diz-se a si mesmo:
"Como é estranho! Eu, e neste lugar!” ou em momentos de emoção, de perigo, em que não se
pode perder a cabeça, em que se ouve a própria voz, em que se vê e se observa a si mesmo de fora.
(Ouspensky, Fragmentos de um Ensinamento Desconhecido, 1998, p. 144.)

68
A prática da lembrança de Si ou da divisão da atenção está conectada à tentativa de
produzir um certo fenômeno: o nascimento da consciência em si mesmo. E, quando isso começa a
acontecer, a atenção reconhece com alívio e alegria não dois, mas três fatores – o próprio
organismo, sujeito do experimento, a situação na qual esse organismo está exposto no momento e
algo permanente situado num nível superior a ambos e que, sozinho, pode resolver a relação entre
os dois.
O que é esse terceiro fator que deve ser lembrado?
Cada pessoa deve encontrá-lo por si mesmo, assim como sua própria forma para ele – seja
sua escola, seu mestre, seu propósito, os princípios que aprendeu, o Sol, algum poder superior no
universo ou Deus. Deve lembrar-se que ele e sua situação estão na presença de poderes superiores,
estão ambos banhados pela influência celestial. Fascinado, ele está plenamente absorvido pela
árvore que nota. Com a atenção dividida, vê tanto a árvore quanto a si mesmo olhando para ela.
Lembrando-se de Si, dá-se conta da árvore, de si mesmo e do Sol brilhando imparcialmente sobre
ambos. (Collin, 1952, Cap. 14-2)

A vida só é real quando “Eu sou”. Como vimos, é o título do terceiro e último livro
de Gurdjieff.
Eu leio o texto, e ao invés de só ter a impressão do texto, tenho ao mesmo tempo a
impressão do texto e a impressão de mim mesmo lendo o texto.
É como se ao mesmo tempo em que lemos, uma pergunta ficasse ressoando: “Quem
está lendo?” A resposta é imediata: “Eu estou lendo.”
Mas quem sou Eu?
Se corpo e mente são formas efêmeras, quem sou Eu além destas formas?
Talvez de início esse diálogo permaneça como pensamento, mas, a seguir, torna-se
como uma percepção simples, imediata e vazia de pensamentos. E no início é difícil, muito

69
difícil. Enquanto for só um pensamento, o estudo que fizemos das funções nos ajuda a
entender porque é tão difícil. Em nossa vida diária não temos o hábito de controlar a nossa
atenção. Talvez em alguma ou outra ocasião especial, quando falamos para um público,
quando encontramos a pessoa amada, quando vamos a um templo, num lugar ou outro;
mas na rotina de nossas vidas funcionamos preponderantemente na ‘inércia’ e nas
‘paixões’ de nossos corpos, pensamentos e emoções. Significa que quando um pensamento
tenta dar um comando como esse: “Quem está lendo o texto?”, um oceano agitado de
outros interesses com contínuos fluxos de devaneios, imaginações, negatividades,
discordâncias, inseguranças, incômodos, antipatia, simpatia, fome, pressa, cansaço, etc.;
viram a ordem do pensamento, o encharcam e este logo submerge e naufraga nestas águas.
Um pensamento não é suficiente, mas corpo, pensamento e emoção juntos são. Isto é, três
cartas fortes de um baralho, três ‘Reis’ são suficientes para montar um barco bem
construído com velas novas e um bom Marinheiro-Mordomo de modo a fazer essa ordem
flutuar e navegar por oceanos e tempestades, conduzindo-a até águas mais tranqüilas. Isso
é trabalho e ocupação para muitos anos, já que podemos esperar inúmeros naufrágios e
perdas até que este Marinheiro-Mordomo saiba navegar por todas as águas deste oceano,
sob quaisquer condições.
Mas aqui e agora, com o texto na mão e sozinhos, estamos em águas mansas. E de
repente, repetindo a pergunta: “Quem está lendo o texto?”, podemos chegar a perceber que
há dois, em nós: aquele que lê o texto e aquele que testemunha tanto o texto como aquele
que lê o texto. Há o Marinheiro-Mordomo no barco que, depois de cruzar oceanos e
tempestades, avista a terra firme de uma ilha, e há o sol que por cima deles ilumina tanto a
ilha como o Mordomo e o seu barco. O Sol, a Luz, a Consciência é o terceiro fator que
testemunha tanto fora como dentro de nós. Lembrança de Si é estar presente aos mundos
externo e interno ao mesmo tempo, com o sentido de identidade fora deles. A interconexão
e unidade de todas as coisas se desvelam a partir daí.
Sem luz não leríamos o texto porque não enxergaríamos as letras. Sem a
consciência parcial não conseguiríamos ler o texto porque não entenderíamos as letras,
palavras, frases e sentidos. Sem consciência não leríamos o texto como ele é, mas como ele
nos chega depois de ser distorcido pelas nossas associações acidentais, preconceitos,
preferências, repulsões, preguiça, etc.

70
Há algo que vai nos interessar, aqui. Todos nós que estamos lendo este texto agora
passamos por um treinamento especial para aprender a distinguir as letras, formar palavras
e frases, aprender a gramática correta da língua portuguesa e deste modo formar sentido
em nossas mentes. Uns mais bem treinados que outros, mas todos alfabetizados. Se o texto
estivesse na língua russa de Ouspensky, Gurdjieff ou Stanislavski, ele não faria o menor
sentido para nós. Existe, portanto, uma técnica de leitura do português que está incorporada
em nosso ‘Valete’ de ouros e assim conseguimos ler fluentemente o texto, com maior ou
menor qualidade de atenção.
Digamos que nesse momento perdemos nossa atenção e nos damos conta que nada
do que estamos lendo está sendo retido e digerido. Estamos lendo automaticamente e sem
compreensão. Sentimo-nos cansados. Fazemos uma pausa e, logo em seguida, chega a
vontade de tomar um café. Levantamos e vamos para a cozinha preparar um. É claro que
alguém, um dia, nos ensinou a fazer um café, ou então aprendemos sozinhos apenas
observando alguma pessoa que o fazia. Os primeiros saíram ‘fracos demais’, os seguintes
saíram ‘fortes demais’, até que um dia desenvolvemos nossa própria técnica de preparar
um café. Existem várias técnicas para se preparar um bom café, os mineiros o sabem bem.
Na cozinha, qualquer um acaba se virando, mas existem técnicas mais complexas
que requerem algum tipo de preparo especial. Em geral passa-se este conhecimento de
geração para geração, em casa, ou então, alguns mais talentosos e interessados se fazem
aprendizes ou seguem para um curso de culinária e tornam-se cozinheiros de profissão.
Ensinam-se ali muitas técnicas de como cozinhar, mas em nenhum lugar ensina-se a como
cozinhar lembrando-se de Si. A ‘lembrança de Si’ é uma segunda espécie de técnica que
pode muito bem ser adicionada às técnicas culinárias trazendo uma notável diferença ao
resultado final. Isto porque estaremos vendo como o alimento está sendo preparado, com
que nível de atenção os alimentos estão sendo descascados e limpos, temperados e
cozinhados. Há ainda a organização da cozinha e a qualidade das relações humanas entre o
chefe e os assistentes envolvidos, a preparação da mesa, a recepção dos convidados, o
serviço e por aí segue.
A situação no teatro é, analogamente, a mesma. Qualquer pessoa pode querer
montar uma cena e apresentá-la, do mesmo modo como qualquer um vai para cozinha
preparar algo para comer. Alguns mais talentosos e interessados querem tornar essa

71
atividade uma profissão, um ofício, e saem em busca de uma formação, um aprendizado
técnico. Mais antigamente as técnicas de representação eram passadas de geração a geração
entre artistas de um determinado meio, mas mais recentemente surgiram diversos cursos de
teatro que ensinam técnicas de como representar em cena, como utilizar o corpo, a voz,
como construir personagens, como representar tragédias, comédias, dramas, como
representar no cinema, na televisão, etc. E, hoje em dia - desde Stanislavski - existem
muitas abordagens e técnicas diferentes para o ator em cena. Ensinam-se, nesses cursos,
muitas técnicas de como atuar, mas em nenhum lugar ensina-se como atuar lembrando de
Si mesmo. E se na cozinha já faz diferença, para um ator que está em cena pública nas
vestes de um personagem, ou de uma imagem poética, faz toda a diferença possível. Há
dois nele: aquele que atua na cena e aquele que testemunha tanto a cena como aquele que
atua na cena. Um ator que vê a si mesmo no papel e, ao mesmo tempo, se relaciona com a
cena, com os personagens e com o público possui uma qualidade que nenhum outro ator
possui, independente da técnica e estética de representação a que ele está vinculado.
Também no teatro, dividir a atenção e ‘lembrar-se de Si mesmo’ é como uma segunda
espécie de técnica que pode verdadeiramente ser adicionada às técnicas de representação.
Tanto Konstantin Stanislavski, Jerzy Grotowski como Peter Brook se
profissionalizaram e se desenvolveram no teatro até se darem conta desse fato: existe uma
espécie de ‘técnica 2’32, uma segunda técnica que nos leva da consciência parcial à
consciência e esta técnica, assim como a primeira, também é imprescindível ao trabalho do
ator se queremos alçar o nível de qualidade da cena artística.
Como veremos adiante: Stanislavski a procurou na psicologia de sua época, mas
também, hoje comprovam as informações, principalmente na filosofia Hindu. Grotowski
foi enormemente influenciado pela filosofia Hindu, pelo sábio indiano Ramana Maharshi e
empreendeu uma série de pesquisas psicotécnicas para o ator, algumas relatadas em seu
livro: “Em Busca do Teatro Pobre”33, até, por fim, abandonar o meio teatral espetacular e
direcionar sua pesquisa para a objetividade do ritual. Peter Brook - já diretor profissional -

32
Uso o termo inspirado pelo próprio J. Grotowski que segundo E. Barba o utilizava para distinguir das
técnicas originárias e pertencentes à esfera da atividade teatral. É um termo muito útil na medida em que
constatamos que esta técnica pode se articular a qualquer outra técnica, mesmo aquelas da vida cotidiana.
Falaremos sobre a questão mais adiante. Em (Barba, 2006, p.50.)
33
Outras, muito valiosas, foram publicadas recentemente no Brasil sobre o título de: ‘O Teatro Laboratório de
Jerzy Grotowski 1959 – 1969 – Textos e Materiais de Jerzy Grotowski e Ludwik Flaszen com um escrito de
Eugenio Barba’. Iremos utilizá-las num momento posterior.

72
encontrou o livro de Ouspensky: “Fragmentos de um Ensinamento Desconhecido” -
aproximou-se de grupos de ‘trabalho sobre si’ ligados à tradição de Gurdjieff e anos depois
empreendeu uma série de pesquisas e espetáculos inovadores em seu Centro Internacional
de Pesquisas.
“Gurdjieff freqüentemente usa a imagem do ator como uma metáfora para o
completo desenvolvimento do ser humano. Ele fala de desempenhar um papel na vida,
preenchendo todas as exigências que modificam situações presentes, entrando nelas
completamente, enquanto retém sua liberdade interior. Isto é, exatamente, o que é
requerido que um bom ator faça.” (Brook, P., 1996, p.34)

Esta ‘técnica 2’, que aqui é chamada de divisão da atenção e lembrança de Si, não
pertence ao teatro34; é uma técnica especial de desenvolvimento da consciência humana
que existe no interior de tradições filosóficas, religiosas e artísticas de inúmeras
civilizações e culturas em todo o mundo.
Como chegar à superfície do oceano de nossa ‘inércia’ e nossas ‘paixões’ e em
seguida, como construir um barco com velas novas e formar um bom Marinheiro-
Mordomo? Como, sem naufragar nas tempestades, atravessar oceanos em busca de terras
desconhecidas sob a luz do Sol?
Como despedaçar as correntes que prendem pescoço e pernas de um cativo que está
no fundo da caverna? Como, a despeito da dor nos olhos, avançar em direção ao fogo
eminente? Como empreender a escalada da encosta rumo à realidade que existe fora da
caverna? E como, enfim, voltar a viver na caverna sem jamais esquecer de atualizar a visão
do todo?
O que está sendo chamado de ‘técnica 2’ responde a essas questões. Em seu estágio
preparatório – aquele que corresponde ao despedaçar das correntes dos cativos e à
compreensão do mecanismo das sombras - essa ‘técnica 2’ aparece travestida sob
diferentes atividades e formas psicotécnicas: algumas trabalham a partir da superação e
controle do corpo, em cantos, danças, jejuns, controle respiratório, posturas e movimentos;
algumas trabalham a partir da mente, em meditações, repetições de mantras, controle dos
pensamentos, ou através do estudo e conhecimento do universo – incluindo aí o estudo
daquele que estuda; e outras trabalham a partir das emoções, através da renúncia do
mundo, estudo de textos sagrados, através da devoção a um sentimento da existência
34
"A sign of the fact that a man has touched on perfect prayer is that he is no longer disturbed, even though
the whole world might come against him." * Philokalia

73
divina, preces e orações individuais e ou contato com seres humanos carentes e à margem
da sociedade. Neste estágio preparatório, a ‘técnica 2’ trabalha sobre a preguiça, o descaso
e a negligência habituais de uma pessoa em relação a si própria, em cada uma das suas
funções. A imaginação sendo fenômeno causado por preguiça intelectual, a expressão das
emoções negativas, por preguiça emocional, e os excessos do corpo e a sua má utilização
como fenômeno causado pela ignorância de Si. De modo geral, neste estágio preparatório o
trabalho caracteriza-se como um fortalecimento de hábitos favoráveis ao cultivo da
atenção.
Em seu estágio avançado – aquele que corresponde à aproximação do fogo
eminente, a escalada da encosta e saída da caverna – a ‘técnica 2’ deixa de estar
necessariamente vinculada a uma forma e situação externa, envolve todas as funções
simultaneamente - com a máxima velocidade da função emocional - e ocorre a cada novo
momento de existência, a cada nova respiração. O real trabalho sobre si não é só descobrir
a existência de novos graus de consciência, mas ansiar por viver, a cada novo momento,
com a presença da consciência em si.
Nesse estágio avançado, a ‘técnica 2’ é uma única e mesma técnica porque, ainda
que as técnicas e conhecimentos humanos acumulados no tempo não o sejam, a alta
psicologia humana é uma única e mesma em qualquer mulher ou homem de qualquer
tempo da história desse planeta, inclusive o pré-histórico. Afirmo isso, claro, por
experiência própria depois de ter tido contato com diversos tipos de textos vindos de
épocas e sociedades diferentes: a Filocalia, textos egípcios, textos sufis, textos budistas, os
Upanishads, o Bhagavad-Gita, os Evangelhos e outros. Nessas literaturas podemos
encontrar esse estágio de trabalho com os nomes de: contemplação, meditação, o encontro
do amante com o Amado, embriagar-se, o subir e descer da escada, oração, trabalho,
lembrança de Si, prática da lembrança, auto-indagação, ‘dhyana’, ‘sartori’, ‘samadhi’ e
outros.35
Assumo a suposição, aqui, que na sua essência, uma verdadeira ‘técnica 2’ pode ser
incorporada a qualquer técnica psicofísica de qualquer atividade humana, cotidiana ou

35
É claro que existem particularidades e diferenciações entre as perspectivas de abordagem, os sistemas de linguagens e a
cultura original de cada uma destas tradições espirituais. Um tipo de estudo que levasse em conta esse fato também seria
importante de ser feito, ainda que o tornasse mais extensivo e especializante. No capítulo X, nos Anexos, encontram-se
alguns pequenos estudos auxiliares que seguem nessa direção. No capítulo VII introduzirei algumas citações, em inglês,
vindas destas diferentes fontes; que tratam desta ‘alta psicologia humana’.

74
extra-cotidiana. Aquilo que Grotowski chamou de presença silenciosa36, Gurdjieff chamou
de lembrança de Si, e o Budismo, como veremos, chamou de vazio, envolve a plena
utilização dessa ‘técnica 2’, e leva à instrução do homem sobre quem ele, de fato, é.
Podemos praticar a divisão da atenção e a lembrança de Si não só em momentos e
lugares especiais, não só cozinhando ou representando no teatro, mas em todas as
atividades e cenas da peça de nossas vidas; tanto naquelas solitárias - como a leitura de um
texto - como naquelas coletivas: na “communitas” ou na vida pública e social.
Níveis de ‘homens’ e níveis de ‘teatro’
Uma conseqüência de todas essas idéias que estudamos será importante para a
seqüência deste texto.
Como vimos, apesar de aparentemente assemelharem-se entre si, as pessoas são
extremamente diversas no que diz respeito ao próprio grau de instrução. Assim, queremos
utilizar uma palavra como ‘arte’ e ‘artista’, mas ela, em si, não se refere diretamente à
possível qualidade da consciência da pessoa que a realiza.
Existem pessoas que nunca estão conscientes e nem sequer suspeitam ou querem
saber disso. Existem pessoas que, percebendo a situação, trabalham sobre si para tornarem-
se mais conscientes ao menos no âmbito artístico, e existem pessoas que encontraram a
consciência em si e vivem através e em função dela em todas as situações de sua vida.
Na arte, na filosofia, na religião e na ciência vamos encontrar manifestações dessas
três categorias de pessoas. Haverá uma quantidade de qualidades de religiões, por exemplo,
pois provêm de homens e mulheres que vivem em diferentes níveis de realidade e instrução
de si. E a palavra ‘religião’ querendo significar uma única e mesma coisa se referirá a
fenômenos humanos bastante distintos. Do mesmo modo, podemos prever encontrar uma
quantidade de qualidades teatrais, pois elas provêm de ‘artistas’ - dramaturgos, diretores,
atores e atrizes - que vivem em diferentes níveis de realidade e instrução de si.
Independente da estética à qual pertencem haverá, portanto, diferentes tipos de
teatro. Haverá o teatro daqueles que estão acorrentados às suas falsas representações

36
Il Performer - Sentirsi guardati dall'altra parte di se, quella che è come fuori del tempo, dà l'altra dimensione. Esiste un
Io-Io. Il secondo Io è quasi virtuale; non è, dentro di noi, lo sguardo degli altri, ne il giudizio: è come uno sguardo
immobile, presenza silenziosa, come il sole che illumina le cose – e basta. (Grotowski, Il Performer– In Teatro e Storia n.
4, 1988)

75
cotidianas, o teatro da falsa personalidade, exterior e ligado em prevalência à motivação
vaidosa e egocêntrica. Haverá o teatro espontâneo, simples e sincero, das pessoas que
movidas por algum tipo de busca recusam-se a reproduzir clichês e os vícios da cena e do
mundo. E haverá o teatro daqueles que entraram no processo de instrução de si através da
própria arte. O teatro da perseverança e da disciplina diária, que luta para ser feito a partir
da essência e da intuição criativa de seus artistas, auxiliados por uma técnica precisa que
explora suas mais altas possibilidades psicofísicas e por uma técnica de trabalho sobre si
mesmo.
Se o teatro pode ser relativamente comparado a um ritual sagrado ou semi-sagrado,
onde os espectadores são suspensos da esfera cotidiana de suas vidas e transportados para
um espaço tempo poético, direto, aberto, sincero, duro - ainda que cômico, e belo - ainda
que trágico; não estamos falando naturalmente de todos estes tipos de teatro. Esta negação
não pretende excluir ou diminuir outros tipos de motivações e impulsos para o fazer teatral.
Se são feitos para transmitir uma mensagem a uma “realidade” social específica e utilizam
o teatro como um meio, que tipo de ressalva se poderia fazer? Chamo a atenção para a
existência de um tipo de teatro que busca simplesmente uma relação e sintonia com seu
público, abrindo caminho através de uma ou outra estética, uma ou outra "realidade
poética” para adentrar numa realidade mais simples, íntima, imediata e humana de cada um
dos envolvidos, atores e público. Ele é físico, corporal e instintivamente articulado, mas
também é emocional e intelectualmente desenvolvido. Quando atinge suas metas e
aspirações, consegue criar uma esfera mágica de silêncio e de presença nos atores e no
público, um contato muito similar àquele descrito por Turner em referência à
“communitas”. Esta aproximação entre o ritual sagrado de tribos e sociedades tradicionais e
o teatro de arte, foi objeto do seu estudo e disto nos ocuparemos nesta próxima secção. O
seu estudo antropológico se encaixa notavelmente bem ao conhecimento esotérico que
tratamos neste capítulo.

76
Cap. III – Liminaridade e “Communitas”.

Espaço Tempo Liminar


Anti- Estrutura
2 – Liminaridade, à margem, Espaço Liminar
Área e período de ambigüidade
e marginalidade Communitas

________________ __________________________________________ ________________________


Separação da 1– 3 – Reincorporação na Estrutura
Estrutura Social Social
Pré-liminar Pós-liminar
Estrutura Social

Espaço Tempo Cotidiano


Estrutura Normativa Social

“A liminaridade, a marginalidade e a inferioridade estrutural são condições em que


freqüentemente se geram os mitos, símbolos rituais, sistemas filosóficos e obras de arte.
Estas formas culturais proporcionam aos homens um conjunto de padrões ou de modelos
que constituem, em determinado nível, reclassificações periódicas da realidade e do
relacionamento do homem com a sociedade, a natureza e a cultura. Todavia, são mais que
classificações, visto incitarem os homens à ação tanto quanto ao pensamento.” (Turner, O
Processo Ritual, 1974, p.24)

“Anti – Estrutura é a dissolução da Estrutura social Normativa, com seus papéis, status, deveres e
obrigações jurídicas, etc.” (Turner, 1986, p.60)

“A Estrutura Normativa representa o estado de equilíbrio vigente, a “Anti-Estrutura” representa o


sistema latente de alternativas potenciais do qual o novo surgirá quando as contingências no sistema
normativo o requererem.... É a fonte da nova cultura.” (Brian Smith em Turner, 1986, p.60)

77
Estamos num pátio cimentado de uma Escola. É visível certa rachadura no meio
deste cimentado. Choveu muito nas últimas duas semanas, e por entre o espaço aberto
nasce uma pequena planta. Se nos aproximarmos um pouco mais da rachadura, a cor de
uma terra forte, escura e amarronzada se torna visível. Observando-a, podemos sentir que
por baixo de toda aquela camada de cimento, que dá forma ao pátio do Colégio, existe
terra, a possibilidade de uma outra realidade.
Do ponto de vista da estrutura organizada do pátio de cimento, o surgimento da
rachadura evidencia uma certa desordem, a pequena planta não estava prevista, não tem
nenhuma função dentro da estrutura e portanto surge como um elemento estranho e até
perigoso. Do ponto de vista da terra, surge uma nova perspectiva de ordem, pois àquilo que
já estava lá, antes do (nas) cimento, foi dada uma oportunidade de manifestação. Seguindo
o primeiro ponto de vista, o diretor da Escola chegaria à conclusão de que deveria chamar
alguns pedreiros que pudessem reparar o cimentado; seguindo o segundo ponto de vista, o
diretor da Escola, chamaria um jardineiro, que pudesse abrir espaço por entre a rachadura, a
ponto de instalar ali, no meio do pátio, um canteiro com plantas e flores. Tanto o
cimentado, quanto o canteiro, passariam a fazer parte do mesmo pátio, compondo entre eles
a paisagem final. Não tomando nenhum ponto de vista, o diretor simplesmente poderia
ignorar a questão, que continuaria a se desenvolver de modo acidental.
Este pequeno exemplo nos faz tocar nas relações estabelecidas entre o espaço –
tempo da vida cotidiana, local onde se ergue a estrutura social normativa com suas regras,
papéis, expectativas, deveres, e obrigações; e o espaço – tempo liminar, local da anti-
estrutura, local do espaço onde muitas possibilidades se fazem possíveis, por justamente
suspender ou dissolver as bases que sustentam a estrutura da representação social, e abrir
espaço para o novo e esquecido. O liminar irrompe nas margens, ou nos interstícios do
espaço estruturado, não só podendo trazer à tona novas e frescas perspectivas de olhar a
realidade e de intervir onde houve algum processo de enrijecimento e crise, como também
podendo causar o medo, o preconceito e a desconfiança daquilo que não se conhece, não foi
classificado e é potencialmente transformador.

78
3.1 – Do Ritual ao Teatro.

A Antropologia
A metáfora teatral surge como excelente método para se estudar o homem e a
organização do meio social aonde ele vive. Alguns antropólogos do séc XX a utilizaram em
suas pesquisas científicas e dois, entre aqueles que tive a oportunidade de ler as obras, me
chamaram a atenção: o primeiro foi Erwing Goffman do livro “A representação do eu na
vida cotidiana” e o segundo foi, como já havia mencionado, Victor Turner a partir do seu
“O Processo Ritual” e em seguida do desenvolvimento de sua pesquisa que foi se
aproximando mais e mais do estudo do teatro propriamente dito e da performance.
Ao lê-los, tive a impressão de que estes estudos, embora distintos, fossem de
natureza complementar. Enquanto Goffman, neste livro, estuda a representação de papéis
sociais nas cenas da vida cotidiana moderna, apontando mecanismos, regras e convenções
que as regem; Turner, por sua vez, se interessou pelo estudo das sociedades industriais ou
pré industriais, nas situações em que há uma suspensão da estrutura normativa do status
quo cotidiano, isto é, nos rituais e similares destas sociedades.
Turner reconheceu, através de sua pesquisa de campo entre os Ndembos africanos, a
importante influência que a execução de ritos sagrados exerce dentro da estrutura social
vigente e passou a tentar localizar e a estudar este processo dentro de diferentes épocas e
culturas incluindo a sua própria. Ainda que Goffman faça um interessante estudo da vida
social cotidiana como um espaço de jogo e representação de cenas, com suas regras e
convenções muito bem definidas, a perspectiva de Turner é, para os objetivos desta tese, de
muito mais utilidade na medida em que prevê a existência de um modo de relacionamento
humano à parte da estrutura social.
Há uma evidente coincidência entre os “processos rituais” observados por Turner,
na África, e este processo artístico pelo qual um ator ou artista se afasta de sua
personalidade social cotidiana, muda seu estado de atenção e consciência (na duração e
profundidade que lhe é acessível) e passa a dar vida e forma a um personagem ficcional,
criando um espaço tempo poético, rico em valores, símbolos e significados
transformadores, capazes de se comunicar a uma dimensão mais íntima e pessoal do outro,
seja ele quem for, com uma maior capacidade intelectual, emotiva e corporal. É desta

79
coincidência, evidenciada pelo olhar do próprio antropólogo, que nos ocuparemos nesta
secção.
O eixo central de toda pesquisa antropológica desenvolvida por Turner reside na
constatação de que o estudo do homem e da sociedade humana, sela ela qual for, nunca será
satisfatório se abranger única e exclusivamente a uma dimensão mais exterior e visível da
estrutura social, classificada pela moderna ciência social como “uma combinação mais ou
menos distintiva de instituições especializadas e mutuamente dependentes” ou “uma
combinação de posições ou situações sociais que implica numa persistência temporal de
grupos e relações que procuram enfrentar e se adequar ao meio ambiente” ou ainda, numa
visão mais aguerrida, definida em relação ao conceito de conflito “desde que a
diferenciação das partes se torna oposição entre as partes, e a situação insuficiente se
torna objeto de lutas entre pessoas e grupos que pretendem alguma coisa.”37 Há uma outra
dimensão da sociedade que é mais invisível e fugaz, sendo portanto mais difícil de se
definir que, no entanto, possui enorme poder de influência nas aparentemente estáveis
relações da estrutura. À diferença de muitas correntes e tendências das modernas ciências
sociais, Turner se interessou por esta dimensão social e a colocou no centro de seus
estudos. Vale a pena citar um trecho inteiro de “O Processo Ritual” onde ele confronta as
características destas duas dimensões da “realidade” social:

“Todas as sociedades humanas implícita ou explicitamente referem-se a dois


modelos sociais contrastantes. Um deles é o da sociedade como uma estrutura de posições,
cargos, “status” e funções jurídicas, políticas e econômicas, na qual o indivíduo só pode
ser ambiguamente apreendido atrás da personalidade social. O outro modelo é o da
sociedade enquanto “communitas” formada de indivíduos concretos e idiossincrásicos
que, apesar de diferirem quanto aos dotes físicos e mentais, são, contudo, considerados
iguais do ponto de vista da humanidade comum a todos. O primeiro modelo é o modelo de
um sistema de posições institucionalizadas diferenciado, culturalmente estruturado,
segmentado e freqüentemente hierárquico. O segundo apresenta a sociedade como um todo
indiferenciado e homogêneo, no qual os indivíduos se defrontam uns com os outros
integralmente, e não como “status” e funções “segmentadas”.” (Turner, O Processo
Ritual, 1974, p.214.)

Injustiça, desigualdade, inércia, marasmo, acomodação, burocracia, corrupção,


competição e egoísmo são termos negativos que se agregaram a concepção geral que

37
O Processo Ritual, pg. 153-154.

80
habitualmente se tem, em nossos dias, do primeiro modelo, este que representa a estrutura
hierárquica de posições sociais e políticas. Por outro lado, termos como justiça, harmonia,
esperança, transformação, cooperação, altruísmo, igualdade, fraternidade e liberdade se
agregaram, na concepção geral da vida cotidiana, a um plano utópico, idealizado e
inacessível da vida humana coletiva prática.
Ingênua e superficialmente, pode-se colorir o primeiro modelo com adjetivos
negativos e depreciativos, ou ao contrário, de modo modernamente prático, eficaz e liberal;
colorimos o segundo como um apêndice impraticável e afuncional. Estas projeções
extremadas são comuns na moderna sociedade ocidental pós-revolução industrial. Ao
estudar as sociedades pré-industriais, tribos e agrupamentos sociais de cultura tradicionais e
antigas, Turner revelou a interdependência orgânica e vital destes dois modelos e como isso
ocorre na dinâmica social.

3.1.1 - O Processo Ritual


A tradição cultural e religiosa desses povos está na base formativa da sociedade e
prevê que esta possui vínculos e obrigações irrevogáveis com um mundo de forças divinas
atemporais, com o espírito dos antepassados e com uma dimensão cósmica superior; ao
mesmo tempo em que avança, lenta e progressivamente, no espaço tempo profano pela lei
da reprodução e sobrevivência instintiva. É dessa tradição cultural e religiosa que são
organizados os diferentes tipos de processos rituais, sagrados e obrigatórios a todas as
células deste organismo social vivo que é uma tribo.
São processos que, certamente, também liberam energias instintivas agregativas,
mas que fundamentalmente estão organizadas em torno de faculdades exclusivamente
humanas tais como a memória, a vontade, a emoção e o pensamento, estimulados por
símbolos e códigos especiais. Turner nos dá inúmeros tipos destes rituais entre os Ndembos
e outros povos, exemplificando e descrevendo as específicas situações em que cada um é
executado:
Para uma mulher que não consegue ter filhos, é previsto um ritual que a faz re-
estabelecer ligações com o espírito de uma ancestral de linhagem materna que estaria
descontente com a atenção dada aos seus descendentes. Para uma mulher que concebe
filhos gêmeos - considerado como a partição de uma alma e grave acontecimento entre os

81
Ndembos - é previsto outro tipo de ritual. Existem os rituais de iniciação e crises da vida,
relativo às fases de nascimento, puberdade, casamento e morte; existem os rituais de
investidura de poder nos quais são distribuídos os cargos hierárquicos da vida política, e
existem os rituais coletivos ligados ao calendário e as mudanças climáticas naturais ou
quando algum tipo de desgraça aflige toda a comunidade.
De um modo geral, os rituais estão relacionados a situações de crise e conflito
nascidos dentro da estrutura segmentada do espaço tempo profano, e podem ser agrupados
como ritos de elevação ou ritos de inversão de status. Estudando suas características,
Turner entrevê um possível paralelo com os gêneros teatrais da tragédia e da comédia,
como são conhecidos na cultura ocidental.

Os rituais de reversão de status


De início, os rituais de reversão de status tendem a envolver toda a coletividade. São
realizados de acordo com o calendário anual e relacionados a períodos de mudanças
climáticas onde o ritmo e a atividade do trabalho profano - plantação, colheita, caça, pesca,
etc - de toda a tribo será alterado. São também relacionados a eventos perturbadores de tais
atividades que podem se manifestar através da seca, do frio, escassez, guerras, doenças e
pragas que – pelos olhos da tradição religiosa da “communitas” em sociedades tribais -
estão intimamente interligadas e entendidas como promovidas pela ação invisível de
espíritos, deuses, feiticeiros e bruxas, descontentes com as atitudes de um membro ou com
o relacionamento de todo grupo. São, por exemplo, atritos e mal-entendidos entre grupos de
posições sociais, entre aqueles que possuindo maior privilégio e poder abusam de suas
regalias ou destratam aqueles de posições inferiores, confundindo sua pessoa com a posição
que ocupa. No ritual, a estrutura normativa é, então, dissolvida e, por certo período de
tempo, ocorre a inversão das posições sociais. Os inferiores e os fracos ganham voz e um
simbólico poder. Eles imitam as regras hierárquicas e brincam com seus superiores como se
estivessem no comando. Insultam e até maltratam fisicamente a casta governante que,
mesmo exposta ao ridículo, aceita de boa vontade.
“Os rituais de reversão de “status”, quer estejam colocados em pontos estratégicos
no ciclo anual, quer sejam provocados por calamidades, consideradas como o resultado de
graves pecados sociais, são tidos como reestabelecedores da estrutura social e da
“communitas”, mais uma vez, em sua correlação mútua.” (Turner, O Processo Ritual,
1974, p. 215)

82
Isto porque, após o período liminar, toda a coletividade retorna a posição
hierárquica inicial. Mas, de fato, a força da “communitas” agiu sobre os grandes atritos e
mal-entendidos da comunidade que passa por um processo de eliminação da carga negativa
e conflituosa armazenada e por um processo de cura dos relacionamentos sociais
estruturados rompidos, estando revigorada para enfrentar os imediatos e futuros desafios da
sobrevivência instintiva. Os absurdos, o paradoxo, a diversão, o comportamento ilícito ou
extravagante temporariamente permitido e aceito nos rituais de reversão, são mecanismos
que reafirmam a ordem da estrutura e restauram as relações entre os indivíduos que
representam papéis sociais.
São rituais que nos remetem às festas dionisíacas, à origem das festas carnavalescas
com seus abusos e descomedimentos compensatórios; que nos lembram dos comediantes,
bufões, idiotas e dos “bobos da corte” que expunham as contradições dos governantes e das
classes estruturadas e lembram os palhaços de circo e os “clowns” com a saudável e
grotesca exposição do ridículo da natureza humana.

Os rituais de elevação de status.


De outro modo, os ritos de elevação de status também influem na dinâmica da vida
cotidiana social da tribo. São mais freqüentemente cumpridos por indivíduos que
amadurecem no tempo e recebem novas responsabilidades perante o grupo seja para
cumprir um cargo político, seja para se tornar um iniciado de alguma sociedade secreta,
seja para passar a uma nova condição de relacionamento familiar ou social. O indivíduo
“morre” para sua condição estruturada anterior, para a sua personalidade social e entrando
no espaço tempo liminar é submetido a provas de resistência, humilhações e insultos. No
entanto, ao passar por esta fase, o sujeito do ritual é elevado irreversivelmente a uma
posição hierarquicamente mais alta que se lhe trarão privilégios estruturais, também lhe
trarão maiores responsabilidade, deveres e obrigações. Estas provações, diz Turner, não só
tem o intuito de ensinar resistência e obediência, mas também, e principalmente, de
rebaixá-lo a uma espécie de “matéria prima” humana que sem uma forma específica pode
ser moldada e instruída por um novo conhecimento e prática que são sagrados, esotéricos, e
conectados a uma ordem superior do cosmos:

83
“... os noviços são confrontados pelos mais velhos no rito, mito, música, instrução
de uma linguagem secreta e vários gêneros simbólicos não-verbais tais como dançar,
pintar, modelar, esculpir, mascarar-se, etc.; que juntos ensinam sobre a estrutura do
cosmos e a cultura deles como parte e produto deste cosmos.” (Turner, 1982, p. 27)

Além das situações de submissão, humilhação, despojamento e dor, o processo


catártico da aceitação e transformação do sofrimento modifica e re-alinha toda a dimensão
psíquica organizacional de sua individualidade. Espera-se assim que este novo homem
social saiba atuar com humildade, respeito e justeza através do cargo a ele concebido, não
se excedendo, mas agindo de acordo com valores religiosos da "communitas".
Há uma espécie de embate entre as forças que regem e influenciam a estrutura
hierárquica da sociedade, e as forças da tradição religiosa que a permeia, que muito nos faz
lembrar de algumas tragédias gregas como, por exemplo, a "Antígone" de Sófocles.

3.1.2 Ritual, a “Communitas”, a Liminaridade e o Teatro.


A origem do teatro é e sempre foi relacionada a ritos antigos, ritos de caça, ritos e
festejos dionisíacos, mistério e iniciação em escolas secretas. Pode-se ler a respeito em
qualquer enciclopédia moderna mas, para mim, de fato, nunca havia ganho real significado
na medida que o contexto histórico e social dentro dos quais aconteciam estes ritos
permaneciam abstratos e teóricos, tão distantes da minha própria experiência de mundo
moderno. Mesmo o estudo dos processos rituais dos Ndembos e outros povos
exemplificados por Turner, como acabei de expô-los acima em uma breve e simplificada
introdução, deixa-nos pelo meio do caminho, apartados da experiência prática que,
supostamente, nunca tivemos com a vida intencionalmente organizada e equilibrada pelas
dimensões da estrutura e da “communitas” de uma sociedade pré-industrial.
Mas o processo da “communitas”, diz Turner, ocorre independentemente da sua
prática oficial, obrigatoriamente instituída na raiz de uma sociedade; ele ocorre em toda e
qualquer sociedade humana, permeando inclusive, toda a sociedade moderna. Sejamos mais
claros aqui: há "communitas" quando uma ou mais pessoas estão tentando lembrar Delas
mesmas num dado momento e local, sendo este local o espaço do ritual, o espaço teatral ou
o espaço social. Isto deve corresponder ao relacionamento "EU - TU" de Martin Buber,
significando que "Eu" me relaciono com "Você", o Ser, quando "Eu" encontro "Você" em
uma pessoa, animal ou objeto. Em contraposição, está o que ele chamou do relacionamento

84
"EU" - "ISSO", ou seja, quando se trata com pessoas, animais ou objetos vendo-as como
"coisas" para a própria experiência e uso. "Eu", neste modo de relação, coloca aquela
pessoa, animal ou objeto em uma categoria familiar dentro da mente, que as pensa e julga a
partir dos próprios conceitos e atitudes estruturadas, e não como eles mesmos são. Esses
dois modos de relacionar-se não são excludentes, nem opostos, e o primeiro pode
acompanhar ou não o segundo. Relacionar com "Você" significa relacionar-se com uma
pessoa ou cena que está diante de mim neste momento inteiramente novo, já que ele nunca
ocorreu antes. Diz Buber:
Aquele que diz TU não tem coisa alguma por objeto. Pois, onde há uma coisa há
também outra coisa; cada ISSO é limitado por outro ISSO; o ISSO só existe na medida em
que é limitado por outro ISSO. Na medida em que se profere o TU, coisa alguma existe. O
TU não se confina a nada. Quem diz TU não possui coisa alguma, não possui nada. Ele
permanece em relação. (Buber, 1979, p.5)

E é a partir deste ponto de vista que a pesquisa de Turner sobre a natureza do


processo teatral continuou e se aproximou de uma forma nova, para mim, àquilo que eu
penso seja o calor da questão:
“Toda formação sócio-econômica tem sua forma dominante de “espelho-
estético-cultural”. Sociedades não industriais tendem a enfatizar o imediato contexto-
sensitivo do ritual; sociedades industriais pré-eletrônicas tendem a enfatizar o teatro...
...tanto o ritual como o teatro envolvem crucialmente eventos e processos liminares e tem
um importante aspecto de meta-comentário social.” (Turner, 1993, p. 8)

A experiência artística teatral, em relação à vida social moderna, poderia ser vista
como herdeira deste espaço liminar ritual, desde que, mais ou menos, se reconheça algum
grau de "communitas" nela, além de semelhanças em algumas de suas características.
Vejamos algumas delas:

85
A estrutura do processo ritual e as suas semelhanças com o processo teatral.
Espaço e Tempo Ritual/Poético
Communitas Espaço Liminar
2 – Liminaridade, à margem,
Área e período de ambigüidade
e marginalidade
espetáculos, ensaios, treinamentos, workshops
________________ __________________________________________ ________________________
Separação do 1– 3 – Reincorporação à Estrutura
Público e Atores Social após o espetáculo, ensaios,etc.
Da Estrutura Social Pós liminaridade
Pré-liminaridade
Estrutura Social Espaço e Tempo Cotidiano
Estrutura Normativa Social

Todas as espécies de ritos, como aqueles que estudamos acima, seguem o mesmo e
único processo temporal de imersão e emersão de um espaço liminar. "Liminaridade" é um
termo emprestado por Turner do estudo de Arnold Van Gennep, publicado pela primeira
vez na França em 190938, a respeito dos ritos de passagem, ritos que acompanham toda
mudança de lugar, estado, posição social ou qualquer tipo de condição estável ou recorrente
e culturalmente reconhecida. Segundo o autor, ocorrem sempre através de três fases
distintas: separação, margem (limem) e agregação, se estamos olhando o processo do
ponto de vista da estrutura normativa e cotidiana ou através das mesmas fases, mas agora
indicando uma posição periférica da estrutura, denominando-as pré-liminar, liminar e pós
liminar.
Na primeira fase, um grupo ou indivíduo passa por um processo de afastamento das
condições culturais e vínculos sociais que se agregaram em torno ao seu sentido de
identidade. Ele, então, vive um período liminar dentro de um novo e imediato domínio
cultural que lhe proporciona novos valores e experiências: "é uma terra de ninguém no
meio e entre o passado e o futuro estrutural já antecipado pelo controle biológico evolutivo
da sociedade normativa" 39diz Turner a respeito desta fase, e é o que faz nascer, dentro do

38
Van Gennep, Arnold. "The Rites of Passage". University of Chicago Press, 1960.
39
Turner – By means of Performance, 1993, p.11.

86
imaginário da estrutura social, toda espécie de medo, preconceito, restrição e tabu que se
associa a liminaridade. É uma fase transitória de maior ou menor duração que se encerra
quando o grupo ou o indivíduo, marcado pela experiência vivida, retorna às condições
iniciais estabelecendo novos vínculos com a estrutura social. O homem destinado a ser
filósofo e político na República de Platão, que é arrancado de sua posição fixa no fundo da
caverna e instruído sobre a própria condição, passa por estas três fases.
Há algumas propriedades intrínsecas nestes valores e experiências proporcionados
ao sujeito ritual na fase liminar, que estão em clara oposição aos hábitos e costumes
socialmente negociados na estrutura cotidiana. Turner faz uma lista destas propriedades da
liminaridade e seus opostos, que nos estimulam a pensar numa espécie de lista dos
sintomas visíveis da manifestação de determinada energia ou influência invisível e
imaterial, como quando passamos energia elétrica por um fio de cobre ligado a uma
lâmpada de filamento. Ao ligarmos a eletricidade observamos as manifestações externas
desta força, visíveis aos sentidos, e quando desligamos a corrente fazemos novas
observações. Reproduzo estas características a seguir:

Liminaridade Estrutura Social


Transição Estado
Totalidade Parcialidade
Homogeneidade Heterogeneidade
"Communitas" Estrutura
Igualdade Desigualdade
Anonimia Sistemas de nomenclatura
Ausência de propriedade Propriedade
Ausência de "status" "status"
Nudez ou uniformidade de vestuário Variedade de vestuário
Continência sexual Sexualidade
Subestimação das distinções sexuais Alta importância das distinções sexuais
Ausência de classe Distinções de classe
Humildade Justo orgulho da posição
Descuido com aparência pessoal Cuidado com a aparência pessoal
Nenhuma distinção de riqueza Distinções de riqueza
Altruísmo Egoísmo
Obediência total Obediência apenas à classe superior
Sacralidade Secularidade
Silêncio Fala

40
Nascentes, Antenor - Dicionário da Língua Portuguesa.

87
Suspensão dos direitos e obrigações de Obrigações e direitos de parentesco
parentesco
Referência continua aos poderes místicos Referência intermitente aos poderes místicos
Insensatez Sagacidade
Simplicidade Complexidade
Aceitação de dores e sofrimentos Evitação de dores e sofrimentos
Heteronomia (Fil. Sistema de ética em que Graus de autonomia
se considera o indivíduo como submetido a
leis externas de conduta.)40
(Turner, O Processo Ritual, 1974, p.131.)
Agora que leio e organizo esta lista de características em duas colunas separadas,
me ocorre que o inevitável evento da morte e sua direta e sincera confrontação conduzem
uma pessoa da estrutura à liminaridade e da liminaridade de volta para uma nova
perspectiva da estrutura. A percepção da morte no sentido do organismo pode conduzir à
"morte" de uma personalidade social. Pode levar a percepção de que se uma personalidade
social, legitimamente, cumpriu, no passado, a função de proteger, articular e organizar a
experiência da vida, ao perder o contexto, enrijecer-se ou ser confundida com a própria
identidade, passou a limitar e sufocar esta mesma experiência. A morte é uma experiência
comum aos Ndembos, aos gregos da antiga Grécia e aos brasileiros da sociedade moderna
atual. De fato, não se trata de organismos humanos diferentes, mas de um idêntico
organismo humano, articulando experiências culturais diferentes.
O processo ritual é fundamentalmente um processo humano, isto é, envolve inteira e
plenamente o organismo psicofísico de um homem ou uma mulher, a única estrutura
complexa que irá permanecer durante as três fases. Isto é, aquilo que é real e original a este
homem ou mulher permanece, aquilo que é imaginário e auxiliar desaparece, ao menos
momentaneamente. Olhando para este organismo humano como para uma lâmpada, acho
que aquilo que Turner chama de liminaridade é como a possível circulação de uma força
elétrica, invisível e imaterial que quando é estimulada através das mais diversas
impressões, mitos, símbolos, códigos e eventos, originais do espaço tempo ritual de uma
cultura, podem suscitar sintomas visíveis de "communitas": luz e calor como quando uma
lâmpada é acesa. Ao reunir-se novamente à estrutura normativa, a força elétrica é desligada
e – na grande maioria dos homens - resta apenas a lâmpada. Mas é claro, permanece a
memória da experiência, lembrança da luz e permanência do calor que lentamente se esfria.
Isto é: as emoções, pensamentos e o corpo funcionando num máximo grau de atenção -

88
produzindo memória num organismo humano que depois se dirige às atividades previstas
pelo controle biológico evolutivo da vida cotidiana, se não transformado - e aí, me parece, é
que está a diferença entre o ritual de origem tribal e o teatro - ao menos influenciado pela
experiência.
Todos aqueles que já se permitiram ter a experiência de ver um bom espetáculo
teatral, não importando o gênero ou a estética, devem ter sido, mais ou menos,
influenciados desta maneira. Deve ser assim porque "communitas" é uma experiência
universal e possível a toda humanidade, desde a queda do "gênesis" bíblico, quando se
passou da condição de "lâmpadas" permanentemente acesas à condição de "lâmpadas" que
procuram por energia elétrica, ou "lâmpadas" que esqueceram que o são.
Se observarmos os símbolos e códigos que são articulados dentro do ritual podemos
ver que eles não são apenas significativos para o contexto local da cultura onde foram
elaborados, mas são comparativamente semelhantes à símbolos e códigos de outras culturas
distantes no espaço e no tempo. Evidentemente, eles vêm como que vestidos pela roupagem
da tradição e da cultura local e podem também ser estudados e analisados em suas relações
internas. Joseph Campbell, que também foi influenciado pela obra de Van Gennep,
escreveu extenso e rico material a partir da perspectiva da mitologia comparada
demonstrando tais semelhanças. Turner cita algumas das quais observou:
"Todos estes processos rituais são caracterizados pela presença de idéias
ambíguas, imagens monstruosas, símbolos sacros, provações, instruções esotéricas e
paradoxais, o surgimento de “tipos simbólicos” representados por mascarados e
“clowns”, reversões de gênero, anonimato, e muitos outros fenômenos e processos que
eu descrevi como liminares." (Turner, 1993, p. 11.)

ou

"... muito freqüentemente símbolos expressivos de ambígua identidade são


encontrados em diferentes culturas: andrógenos, masculino e feminino ao mesmo tempo,
figuras teriomórficas, homens ou mulheres ao mesmo tempo animais, anjos, sereias,
centauros, leões com cabeças humanas, e assim por diante, combinações monstruosas de
elementos retirados da natureza e da cultura. Alguns símbolos representam ao mesmo
tempo nascimento e morte, útero e tumba, tais como cavernas e campos apartados dos
olhos cotidianos." (Turner, 1993, p. 11.)

Assim como o espaço tempo ritual com seus objetos, estrutura, ordem temporal de
eventos, textos e rezas e toda sua organização interna são estruturados por um organismo

89
humano já estimulado por esta energia liminar, seja o xamã, o feiticeiro, o líder religioso,
ou o mais velho e mais sábio de uma comunidade; do mesmo modo, o espaço tempo
poético do espetáculo teatral (com sua duração temporal, organização de cenas, textos,
cenários e objetos, e a linha da trajetória das ações dos atores) é organizado pelo trabalho
do diretor, dramaturgo e do ator que entram em contato, eles mesmos na medida de suas
possibilidades, com essa dimensão liminar da "communitas" e seus símbolos e imagens,
traduzindo-os para o seu meio social e cultural. O dramaturgo que se inspira neste extenso
imaginário liminar, e consegue compreende-lo em sua própria experiência pessoal, bem os
articulando em sua tradução dramática, terá mais chances de encontrar-se com o espectador
e produzir bom teatro. A obra de Shakespeare, por exemplo, é repleta deste imaginário
liminar. O ator, é claro, é aquele que faz o espetáculo acontecer, e, portanto, aquele que
mais se aproxima do papel do xamã, do feiticeiro ou daquele que executa o ritual. Não em
relação a todas as conotações e significados simbólicos ligadas a estes papéis sociais, pois
estes são contextuais e pertencem a situações muito diferentes; mas pura e simplesmente no
sentido de que são organismos humanos com as emoções, os pensamentos e o corpo
funcionando num máximo grau de atenção e harmonia, distanciado em relação à estrutura
de sua personalidade cotidiana e aceso em relação à "communitas", acercando-se do estado
de consciência de Si, ou lembrança de Si.
Há muitas limitações contextuais exteriores desta comparação entre o poder liminar
do ritual e o poder liminar do teatro e da arte como a conhecemos hoje. Serão abordadas
mais adiante com a ajuda de Turner. Aquilo que gostaria de salientar é o fato de que se
estas limitações existem exteriormente e fora da gente, elas não precisam necessariamente
existir dentro da gente. Uma pessoa, individualmente, pode ter um grau de liberdade e
responsabilidade a respeito do seu próprio mundo e estado interior. Esse é o ponto.
Podemos ver então, como se articulam as três fases do processo ritual - separação,
margem (limem) e agregação - no processo teatral, tanto em relação aos atores, como em
relação ao espectador:

O espectador.
Um espectador, vestido de papel social, vem ao teatro pelos mais diferentes
motivos, que podem não ter nenhuma relação com a busca pela dimensão da "communitas".

90
Vamos supor que este nosso espectador, morador de algum desses nossos grandes centros
urbanos, após um de seus dias típicos de "correria" e agitação, após mais um dia de
trabalho, decidiu procurar, nas suas horas de "lazer", por alguma outra diversão que não
fossem as imagens gastas de sua televisão digital último tipo, e decidiu pelo teatro. Sente
que está distante de seus melhores dias quando, com os amigos, vai acampar e escalar
montanhas no fim de semana. Gosta de escalar montanhas e estar na natureza, sente-se
bem. Ao entrar no prédio do teatro, e sentar-se numa cadeira um tanto quanto afastada do
palco, esperando pelo início do espetáculo; o espectador estará no limiar da separação entre
o espaço tempo cotidiano e o espaço tempo poético. Sua mente está repleta de
pensamentos sobre o seu dia turbulento, um fluxo contínuo de imagens e preocupações
desconexas e um certo mal humor e cansaço indisfarçáveis. O fato de estar espacialmente
separado da vida cotidiana, não significa que ele esteja internamente separado de sua
personalidade social. Apagam-se as luzes, o espetáculo vai começar, e no escuro daquela
sala, uma nova atenção e silêncio começam a ganhar espaço dentro do seu mundo interior,
como quando nas noites, em cima das montanhas de pedra que escalou, senta-se para ver as
estrelas no céu. Ali, neste momento, antes mesmo de começar o espetáculo, nosso
espectador começou a entrar no espaço liminar pondo-se à margem, dentro e fora dele, da
estrutura da vida normativa ou do estado habitual de si mesmo, seu ‘ser inferior’. Se uma
pessoa não quer deixar a estrutura de suas expectativas sociais, ninguém no mundo pode
fazer isso por ela, por mais belo e verdadeiro, por mais duro e provocativo que seja o
espetáculo teatral. Ela irá reagir e ver o espetáculo de acordo com o seu estado no fundo da
caverna e as características de suas limitações. Mas, se há um encontro entre dois impulsos
que buscam e procuram por algo além de si mesmos, então o espetáculo, e o ator dentro
dele, tornam-se como uma força, uma terceira força liminar que ajuda o espectador, por si
próprio, a pôr ordem no seu mundo interior. Por isso, não só o do ator, mas o conteúdo do
espaço tempo poético onde ele está inserido tem fundamental importância. Um estímulo,
uma estória, uma cena, um texto dramático que termina confuso e com pouca energia
liminar, isto é, muito subjetivo e auto centrado, pode mandá-lo inteiramente de volta ao
mundo de suas associações cotidianas passadas e futuras. Do outro lado, se o ator sente ou
vê, quando a distância permite, os olhos atentos, presentes e receptivos do espectador, então
ocorre o mesmo processo para o ator, que encontra mais disposição para manter a sua

91
presença e lutar contra a mecanização de suas ações. Eu nunca estive num ritual Ndembo
ou de índios brasileiros, mas no teatro, como espectador ou como ator, já presenciei
algumas vezes esta sutil e quase imperceptível comunhão. Claro que isto deve ser raro e
difícil. Não sejamos ingênuos quanto às poderosas forças e influências da estrutura social
que atores e espectadores trazem consigo e quando inconscientemente apegados a elas,
tornam-se responsáveis pela subjetividade e pela ausência geral. Mas quando, por outro
lado, ocorre um momento de relação, mesmo que seja um único momento, o teatro renasce
como "communitas", um legítimo herdeiro do processo ritual de toda a humanidade. Turner
o chamou de “communitas” espontânea. É muito simples e ao mesmo tempo muito raro,
mas de uma forma ou de outra é o que motivou, como me parece, a grande empreitada de
muitas das pesquisas teatrais do séc. XX.
"Um senso de harmonia com o universo torna-se evidente, e sente-se todo o planeta
como sendo uma "communitas". Este estado deve ser ganho, conquistado, embora, para
ser uma consumação, será somente após o trabalho através de uma confusão de conflitos e
desarmonias. O teatro, melhor do que tudo, exemplifica o dito de Thomas Hardy: "Se um
caminho para o melhor existe, ele exige um pleno olhar para o pior." Transformação ritual
ou teatral raramente pode ocorrer de outro modo. (Turner, 1993, p. 13.)

Terminado o espetáculo despedimo-nos do nosso espectador, que gostou da peça


desejando voltar mais vezes, quando possível. Ele agrega-se novamente a sua vida
cotidiana e ao seu papel social... ... mas ali... ... ali ele já não está mais no mesmo estado
confuso e desconexo em que chegou. Leva consigo uma certa ordem e conexão que o teatro
somente teve o papel de ajudá-lo a reencontrar. É só isto, mas já é uma imensa conquista e
fruto de muito trabalho. Sem nenhum tipo de "mistério" ou "mistificação", no sentido
pejorativo que é normalmente dado a estes termos, uma missa em uma instituição religiosa
tradicional deveria fazer o mesmo papel, mas hoje em dia, muitas pessoas acabam
encontrando uma dimensão mais legítima em si mesmas, através da arte e do bom teatro.
Talvez o nosso espectador lembre-se dela amanhã, no meio da correria do mundo, e
consiga lidar de uma forma nova e criativa com os habituais conflitos que, hoje, não
conseguiu. A princípio, depende só dele.

O ator e o espetáculo.
Do ponto de vista do ator, as três fases do processo ritual: pré-liminar, liminar e pós
liminar acontecem várias e repetidas vezes, em muitos momentos diferentes da sua

92
trajetória, que vai desde o momento da sua escolha por ser ator, seu aprendizado e
formação, passando por "workshops", treinamentos, até chegar ao momento dos ensaios
para uma montagem e o momento do espetáculo propriamente dito, momento de imersão e
emersão no espaço tempo poético.
O ofício do ator, por mais que, hoje em dia, seja regulamentado, reconhecido e
organizado como uma classe profissional, não é um ofício que se encaixa nos modelos da
sociedade estruturada. Historicamente, sabemos que ele foi marginalizado, estigmatizado e
associado aos "mais baixos status sociais" como o dos malandros, vagabundos, prostitutas,
homossexuais, e errantes sem cargo ou posição fixa. São status que, ao mesmo tempo em
que assustam, fascinam as classes orientadas pela moral e valores reconhecidos pela
maioria. É exatamente por isto, me parece, que surgem as grandes estrelas e celebridades
do negócio artístico.
Seja lá qual for a motivação, um jovem que se decide por este ofício deve de alguma
forma romper com esta moral social e, portanto, dar um passo, logo de início, em direção à
liminaridade. Lembro-me que quando abandonei a faculdade de física para entrar na escola
de teatro, minha família veio ter uma séria conversa comigo a respeito desta decisão, como
se estivesse entrando em uma área de potencial risco e perigo.
"Workshops", pesquisas, treinamentos e ensaios para um espetáculo passam por
fases de relativo afastamento e aproximação do ator em relação à estrutura. Para um ator
que sente o teatro como um caminho para a "communitas", há sempre um interminável
conflito entre estar descontente com o estabelecido, descobrir novas possibilidades, ser
criativo, ser diferente, superar a si mesmo, e entre a necessidade de produzir o seu
espetáculo, mostrá-lo, ser reconhecido, ser mais ou menos financiado, ser mais ou menos
estruturado e amparado pela sociedade. É uma outra espécie de "drama social", que assume
muitas formas e soluções diferentes, mas muito comum entre artistas de todas as épocas e
modalidades. Na segunda parte deste trabalho iremos conhecer interessantes relatos destes
pequenos "dramas sociais" vividos por aqueles que escolheram o teatro como ofício e meio
de vida.
Há certas características nestes eventos, que antecedem ao espetáculo, que
"lembram" aquelas dos processos rituais que estudamos: os atores trocam a roupa de "todo
dia" e vestem uma roupa uniforme, ficam descalços, podem estabelecer regras e normas

93
disciplinadoras entre si mesmos e dentro do espaço de trabalho. Estabelecem não conversar
sobre assuntos cotidianos, utilizam uma forma de comunicação menos verbal e
intelectualizada do que a do dia a dia, escolhem um lugar "especialmente" afastado para
trabalharem, submetem-se a autoridade de um diretor ou líder, pessoas de diferentes origens
e classes sociais podem participar do grupo, etc. Em geral, busca-se um clima de intimidade
e confiança que não é típico à estrutura da sociedade, mas é claro, este clima não acontece
por si só, há sempre a necessidade de um esforço vivo para estabelecê-lo e mantê-lo; mais
uma vez, como um pequeno "drama social", só que desta, entre os próprios atores.
Em relação ao conteúdo destes eventos e do próprio espetáculo teatral, podemos
citar diversas características como: o contato e a descoberta do próprio corpo e suas
possibilidades pouco utilizadas nas condições cotidianas; o contato com técnicas
tradicionais de utilização do corpo, originais ou de outras culturas e tradições; o contato
com textos de origem sagrada, arcaicos, míticos ou poéticos, que estimulam um
pensamento mais intuitivo e emocional; a recombinação lúdica e criativa de valores e
símbolos da sociedade estruturada, criando situações inusitadas, revelando paradoxos
sociais e contradições humanas. De modo geral, ou são conteúdos que vindo da dimensão
da "communitas" ideológica histórica (arte, religião, ciência e filosofia), buscam ser
expressos e traduzidos no "aqui e agora" desses eventos, ou são conteúdos da estrutura
social que reorganizados, abrem uma brecha para a dimensão da "communitas", ou para
revelar as conseqüências geradas pela sua falta.
Em relação ao processo do ator dentro desses eventos e a um possível trabalho do
ator sobre ele mesmo, este será o foco do próximo capítulo quando estudaremos as
trajetórias artísticas de Konstantin Stanislavski e Jerzy Grotowski.
Erving Goffman escreveu várias coisas interessantes sobre “a representação do eu
na vida cotidiana” e sobre as forças que agem e controlam esta representação. Esta
passagem que gostaria de citar, pertencente ao último capítulo de seu livro e foi escrita a
partir da observação da vida de todo dia entre papéis sociais estabelecidos, como se ele
pudesse ter ido observar, por exemplo, um pouco da vida do nosso espectador em seu tenso
escritório de trabalho. Insiro-a aqui, pois é uma excelente observação de um dos obstáculos
que um ator também deve superar em relação a si mesmo e ao seu público, quando entra
para o espaço tempo poético:

94
“Sabendo que seu auditório é capaz de formar más impressões a seu respeito o
indivíduo pode chegar a sentir-se envergonhado de um ato honesto e bem intencionado,
simplesmente, porque o contexto de sua representação fornece impressões falsas que lhe
são desfavoráveis. Sentindo esta vergonha injustificada, pode achar que seus sentimentos
são percebidos; sentindo-se assim observado, pode achar que sua aparência confirma
estas conclusões falsas a seu respeito. Pode, então, agravar sua precária posição
empenhando-se justamente naquelas manobras defensivas que empregaria se realmente
fosse culpado. Deste modo é possível que, todos nos tornemos transitoriamente, para nós
próprios, a pior pessoa que podemos imaginar que os outros sejam capazes de imaginar
que somos. E na medida em que o indivíduo mantém diante dos outros um espetáculo no
qual ele mesmo não acredita, pode vir a experimentar uma forma especial de alienação de
si mesmo e uma forma especial de medo em relação aos outros.” (Goffman, 1975, p. 216.)

É isto o que Turner denominou como "expectativa social" ou "a plena capacidade
humana trancada nestes estreitos e abafados quartos de específicos papéis sociais." E aqui a
observação do mesmo fenômeno, em sua face contrária. Dessa vez por Thomas Richard´s
no meio teatral americano:

"Compreendi que não possuía nenhuma técnica e pensei que talvez deveria ir a uma
escola de arte dramática. Alguns dos atores, que tinham tido mais sucesso, estiveram
naquele gênero de escola, mas algo em mim se sentia desconfortável diante de uma tal
perspectiva. Tinha notado que as escolas de arte dramática ensinavam a seus estudantes
uma técnica que os ajudasse a obter sucesso no “negócio” teatral assim como ele é, mas
tinha fortes dúvidas sobre este “ negócio”. Será que realmente queria trabalhar em
espetáculos na qual o ator ao lado, sobre a cena, poderia não lhe sustentar, mas
representar roubando a atenção, para fazer uma bela imagem diante de um agente, um
“cara quente”, que está no meio do público ? O seu “ super-objetivo” está entre o público.
E isto é algo que Stanislavski combateu toda a vida. Eu não sabia mais pelo que
trabalhava. A que coisa poderia servir com aquele trabalho no teatro?"(Richards, 1993, p.
37.)

Tais observações surgem da falta da dimensão da "communitas" no teatro moderno


e na indústria do entretenimento. Observo que ser sincero consigo mesmo e com o outro
não é tarefa fácil seja lá quando e onde estivermos, pois não significam simplesmente
repetir externamente regras de uma moral ou ética social: comportar-se bem para ser bem
aceito; ou no teatro, repetir externamente um texto e ações demarcadas para "acertar" a
cena. Às vezes deve se romper a estrutura do "espetáculo", simplesmente, para se demarcar
novamente o que é o "espetáculo" e o que é o si mesmo dentro do "espetáculo". O perigo e
a sorte andam juntos, diz Grotowski em seu "The Performer":
"Não existe uma grande lição a não ser com relação a um grande perigo. No
momento do desafio aparece o ritmo das pulsações humanas. O ritual é um momento de

95
grande intensidade. Intensidade provocada." (Grotowski, Il Performer – In Teatro e Storia n.
4, 1988)

A experiência artística teatral poderá ser vista como representante deste espaço
liminar ritual, sempre que produza calor, luz e energia. Mas nunca está garantido que será
assim, pois toda vez haverá um novo obstáculo a ser decifrado. Isto é trabalho dentro do
trabalho de execução do rito ou da estrutura do espetáculo.
A respeito dos obstáculos à “communitas” com origem na situação social externa,
Turner os estudou da seguinte maneira:

Liminar e Liminóide
Nas sociedades tribais, o aspecto mítico e tradicional do rito confere-lhe um valor
liminar com previsão de atingir em plenitude, cada um dos membros da tribo. Nas
sociedades pós-revolução industrial, o teatro e as artes, em geral, não possuem a mesma
perspectiva. É interessante observar a diferença que caracteriza um e outro processo, o que
levou Turner a chamar as artes ocidentais modernas, em geral, de fenômeno liminóide, isto
é, aquilo que se parece ao liminar, mas não o é de fato:
“Rápidos avanços na escala e na complexidade das sociedades pós-industriais
fizeram com que a unificada configuração liminar do ritual passasse através do analítico
prisma da divisão do trabalho, reduzindo cada um dos seus domínios sensoriais, com suas
especializações e profissionalizações, a campos de gêneros de entretenimento florescentes
no tempo de lazer da sociedade. O pronunciado e numinoso caráter sobrenatural do ritual
arcaico foi enormemente atenuado.” (Turner, 1993, p. 12.)

A principal diferença é que o fenômeno liminar ocorre num meio separado e ao


mesmo tempo integrado ao processo social total. O fenômeno liminar, como vimos, é
trabalho sacro e também um processo lúdico de recombinação de valores, que legitima e
equilibra os processos da vida profana. Exige a participação de todos os envolvidos de
maneira plena e obrigatória.
Não é o caso do fenômeno liminóide moderno que ocorre no espaço de lazer, pausa
e descanso das atividades estruturadas, previsto por motivo de recuperação biológico-
instintivo. A palavra "trabalho" é modernamente vinculada a atividade exterior de "ganhar
o próprio sustento", de ter um emprego remunerado que aqueça a circulação de bens de
consumo entre a sociedade e mantenha-a numa certa estabilidade social e econômica.
"Trabalho" perdeu sua significação em quanto possibilidade de trabalho sobre e para si,

96
com e para o outro ou para a "communitas". Os eventos que ocorrem no espaço de lazer,
ainda que o influenciem, são assim, secundários em relação à estrutura de valores
dominantes. Não são atividades obrigatórias e os seus símbolos liminares possuem,
geralmente, um significado mais “psicológico”, individualizado e subjetivo, muito
misturado a símbolos e estímulos ligados às “expectativas sociais” de seu público e a
conflitos de ordem eminentemente estrutural. Eles ainda devem competir com motivações
do mercado livre da indústria do entretenimento capitalista. O fenômeno liminóide também
surge como crítica e sátira da estrutura social, expondo seus defeitos e limitações de uma
forma mais destrutiva e anárquica, mas que se revela presa a interesses dentro do sistema
social estruturado. Quando o fenômeno liminóide, entretanto, é feito em contato com
valores genuinamente liminares, que estimulam os sentimentos ligados a “communitas”,
sabemos o poderoso papel que exerce como catalisador na transformação da consciência
humana. Em toda a cultura e nas artes, inclusive na sétima e mais moderna:
Quão simpático e prazeroso é ver este Carlitos vagabundo, de Charles Chaplin, que
impermeável aos valores da estrutura hierárquica brinca com eles e os manipula como um
poeta malabarista, que transforma o espaço cotidiano em um canteiro de surpreendentes
rosas e risos. É um personagem essencialmente liminar.
Um "mega" e bem mais moderno exemplo, poderia ser o filme “Matrix” (1999) de
Larry and Andy Wachowski, que possuía, em seu primeiro episódio, uma grande e
poderosa carga de energia liminar, resgatada de filosofias e tradições antigas, que conseguia
adentrar nas percepções emocionais e intelectuais do espectador, utilizando-se de um
contexto moderno, atraente e acessível. Um filme que, em tempos de cultura globalizada,
provocou visíveis sintomas de liminaridade em todo o planeta. A seqüência do filme, em
seu segundo e terceiro episódio, ainda que apenas dessem continuidade à estória, já não
possuía a mesma força, possivelmente, porque "detectado" passou a servir aos interesses da
própria Matrix, isto é, a esfinge instintiva do homem. O filme “Guerra nas Estrelas” de
George Lucas, cujo roteiro teve assessoria de Joseph Campbell, também seria um bom
exemplo vindo do grande mercado mundial da indústria do entretenimento capitalista. "Que
a força esteja ao seu lado!", porque é só com ela que reconhecemos o mal por aquilo que
ele é: mecanicidade sufocando a essência do homem, como a pesada e negra máscara de
ferro de ‘Darth Vader’.

97
O Brasil, país que naturalmente deixa-se absorver por culturas e influências das
mais distintas, possui um caldo de cultura liminar dos mais ricos. A tradição da cultura
popular brasileira, que têm influência dos índios, dos negros, dos católicos europeus e dos
mouros, produz festas e manifestações populares de saudável e evidente caráter liminar
como a cavalhada, o cavalo-marinho, o reisado, o maracatu, as festas de todos os santos e
orixás, a festa do divino, entre outras tantas que não conheço por ser da urbanidade
moderna paulista. Sempre podemos ler Guimarães Rosa ou Mário de Andrade, mas cá
comigo, tenho tido crescente interesse de ir conhecer esta cultura.
Numa escala menor e muito mais próxima daquilo que nos interessa, Turner cita
como exemplo, o teatro de pesquisa criado principalmente na segunda metade do século
XX, através dos trabalhos “de Jerzy Grotowski, Julian Beck e Judith Malina, Joseph
Chaikin, Richard Schechner, Peter Brook, Susuki Tadashi, e o “Squat Theater” de Nova
Iorque”. Chama a atenção que estes pesquisadores trataram o espaço tempo do evento
teatral como a “criação deliberada de um espaço separado, ainda quase sagrado e
liminar”, onde um corpo liberto e disciplinado é explorado e utilizado em suas
possibilidades expressivas mais altas, “com seus recursos para o prazer, dor e expressão
destravados” (Turner, 1993, p. 12.). Esta é uma descrição muito boa do trabalho de
pesquisa desenvolvido pelo LUME – Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas Teatrais da
Unicamp, tema da segunda parte dessa tese.

3.1.3 O Drama Social ou o Drama Ético


O mundo de acordo com um sufi.

Um sufi despertou certa noite e disse para si: “O mundo me parece uma arca na qual
somos todos colocados e onde, fechada a tampa, nos entregamos a toda sorte de loucuras.
Quando a morte ergue a tampa, o que conquistou asas alça vôo para a eternidade, mas o
que não conquistou continua na arca, presa de mil tribulações. Certifica-te, pois, de que o
pássaro da ambição adquire asas de aspiração e dá ao teu coração e à tua razão o êxtase
da alma. Antes que se abra a tampa da arca, converte-se num pássaro do Espírito, pronto
para estender as asas.” – (Attar, A Conferência dos Pássaros, 1993, p.87)

Estudando diversas culturas, diversas sociedades, diversos acontecimentos em


diferentes épocas e contextos, Turner reconheceu que a vida humana que se desenvolve

98
através do tempo sempre assume uma forma que é obviamente dramática. Chamou isso de
"Drama Social."
É verdadeiro e espantosamente simples: a mola propulsora da vida é o conflito, a
crise e um impulso por uma melhor situação instintiva e material, mas não só isso como
também uma melhor situação de instrução intelectual, emocional e espiritual, aspectos
exclusivamente humanos. Todos esses elementos lhe conferem o aspecto dramático, pois
esta trajetória através do tempo e estes impulsos podem seguir vários e diferentes caminhos,
desvios, paradas, ascensões e quedas, desdobrando-se em diferentes processos que são,
eminentemente, dramáticos. Lembram os seis processos de toda e qualquer atividade
humana, estudados por Rodney Collin, seguidor das idéias de Ouspensky.41 Há um processo
de nascimento, crescimento e expansão; há um processo de digestão, refinamento e
purificação; há um processo de eliminação, destruição e excreção; há um processo de
doença, corrupção e degeneração; há um processo de cura e restauração do equilíbrio e há
um processo de criação, instrução e regeneração.
Suponhamos uma estrutura social com normas e regras que organizam um inteiro
grupo ou vários grupos dentro de uma instituição central. São pessoas dentro dessa
estrutura social que podem estar na condição de um indivíduo, um casal, uma família, um
grupo de pesquisa, uma universidade, uma organização não governamental ou mesmo uma
civilização inteira. No processo de formação e nascimento desse relacionamento, grupo ou
instituição; houve, provavelmente, um momento mítico, gerador de imagens e símbolos
liminares que concretizaram de forma prática a união destas pessoas em torno de uma
intenção motivadora, que além do aspecto instintivo-biológico poderia possuir também um
aspecto emocionalmente significativo à natureza mais íntima de cada pessoa do grupo. É o
que Turner chamou de uma "Communitas" normativa, pois no decorrer do crescimento
deste grupo e na tentativa de alcançar suas metas e objetivos estabelecidos surgirá,
inevitavelmente, a necessidade de se criar uma estrutura de papéis hierarquicamente
distribuídos, com suas obrigações, responsabilidades, deveres e objetivos. As necessidades
estruturais de sobrevivência do grupo social geram, internamente, o elemento do “conflito”
de interesses.

41
Collin, R. The Theory of Celestial Influence - London & New York: Arkana, 1993

99
Obviamente, os exemplos que sugerimos são tão distantes em termos de escala e
motivações que os interesses em jogo vão assumir inúmeras formas mais ou menos
complexas. Mas aquilo que nos interessa, o elemento do "conflito" de interesses e
pretensões pode surgir em todos eles:
“Como eu escrevi em meu livro Schism and Continuity (1957), no qual eu comecei a
examinar o drama social, “a situação em uma tribo Ndembu é muito paralela àquela
encontrada nos dramas Gregos, onde se testemunha a impotência do indivíduo humano
diante das Parcas; mas neste caso as Parcas são a necessidades dos processos sociais.”
Conflitos parecem trazer aspectos fundamentais da sociedade, normalmente cobertos pelos
hábitos e costumes das relações do dia a dia, em assustadoras proeminências.” (Turner,
Dramas, Fields, and Metaphors, 1974, p. 35.)

Normalmente, o antagonismo de interesses é abafado por costumes, hábitos, normas


e leis sociais que ameaçam e controlam através de algum tipo de punição e repressão vinda
de um papel ou instituição hierarquicamente superior. Algumas vezes, mais muito
raramente, a “communitas” geradora é alimentada adequadamente durante o processo de
crescimento do todo, mantendo um nível mínimo de energia unificadora e liminar em
circulação, que contenha e equilibre-se com as forças institucionalizadoras. Seja como for,
quando menos se espera, um grupo ou indivíduo rompe deliberadamente com uma regra ou
norma estabelecida, desencadeando a primeira fase do "drama social" a qual Turner
chamou de ruptura.
Não é necessariamente um processo de crime contra o grupo, salienta Turner, pois
muitas vezes há uma motivação altruísta na atitude daquele que rompe com uma norma,
acreditando que de algum modo está beneficiando o inteiro grupo no confronto com as mais
altas aspirações. No segundo estágio, o estágio da crise, conflitos entre indivíduos, secções
ou facções seguem a ruptura inicial revelando velados e suprimidos choques de caráter,
interesse e ambição. O conflito, agora, surge publicamente com toda a sua força,
comprometendo seriamente a real continuidade de todo o grupo ou de algum membro dele.
É a "escalada da crise" que segue em passo firme. É nesse momento que surge, na terceira
fase do drama social, uma tentativa de cura ou uma ação remediadora. Aparece
normalmente na estrutura social através de processos políticos, legislativos e judiciários,
mas pode vir também através da religião, ou através dos líderes mais velhos e mais
experientes do grupo, que intervêm com a meta de reacender o espírito coletivo que
inicialmente deu nascimento a todo aquele empreendimento. Este é o “processo ritual”,

100
ação evidentemente de natureza liminar que está conectada com uma lembrança e
presentificação do momento mítico inicial com suas imagens e símbolos unificadores do
grupo ou do indivíduo e a submissão a um cosmos divino e superior a eles mesmos, ou se
quisermos, dentro deles mesmos. Isto corresponde aos rituais, previstos para este fim, nas
sociedades pré-industriais. O sucesso ou não da ação remediadora leva o drama social à sua
quarta e última fase que é a sua consumação ou resultado final. Pode levar a 1) –
restauração da integridade e normalidade do grupo com a dissolução e transformação da
dissidência em um novo e revigorado ímpeto rumo ao ideal e meta coletivos, ou pode levar
a 2) – um reconhecimento público de uma irremediável e irreversível dissidência.
Este é o Drama Social, em seu roteiro mais generalizado. Obviamente há inúmeras
variáveis e as especificidades de cada caso. Por exemplo, se a lei e os valores religiosos ou
liminares perderem sua eficácia simbólica perante a maioria do grupo, e se a estrutura
ganhou uma certa inércia de funcionamento automático, é possível que se retorne
ciclicamente a fase da crise, criando um endêmico e contínuo sectarismo dentro da estrutura
social, que vai, aos poucos, burocratizando-se, enrijecendo-se e degenerando-se por uma
falta de vitalidade transformadora. Pode existir a falha da ação remediadora e uma
subseqüente ação restauradora vinda de uma estância estrutural superior, ou pode haver
uma total transformação de valores, provindos de um processo revolucionário geral. A
dissolução irreversível de um grupo, não, necessariamente, deve ser vista como um
processo negativo ou ruim, pois a "morte", como sabemos e podemos observar, é um
processo natural e, muitas vezes, necessário para a continuação e evolução da vida em
novas formas e expressões.
Se considerarmos a Universidade Estadual de Campinas - Unicamp como um
organismo social vivo, poderíamos reconhecer, desde sua fundação feita por Zeferino Vaz
até os dias de hoje, inúmeros "dramas sociais" de maior ou menor envergadura que foram
revelando a sua história e determinando a sua atual situação. Com certo grau de
afastamento, poderíamos reconhecer, no tempo, as diferentes forças e correntes de interesse
que foram estabelecendo conflitos, rupturas, crises e tipos diferentes de ações restauradoras
geradoras de novas configurações estruturais. Poderíamos estudar sobre o personagem
social responsável pela sua criação, Zeferino Vaz, que me parece, trazia uma carga de
novos valores e motivações para o ambiente universitário. Poderíamos reconhecer como o

101
crescimento de um organismo social produz a necessidade de regras, normas e papéis
sociais, um processo de institucionalização e como ele tende a afastar-se dos valores de
origem. E quando em 1981, a Unicamp abria-se para um processo democrático de escolha
da lista de candidatos a reitor, deu-se a intervenção feita pelo governo estadual. Passada a
crise, surge um novo ímpeto, uma revigorada motivação e novas ações na estrutura: a
pesquisa interdisciplinar, a introdução dos cursos de teatro para alunos universitários, e a
posterior criação do Departamento de Artes Cênicas, pareceram ser sementes deste novo
ímpeto. Logo em seguida, a criação do LUME. Poderíamos estudar sobre o processo de
criação, crescimento e expansão do LUME, as motivações de seu criador Luís Otávio
Burnier e as dificuldades de se estabelecer e ser aceito na estrutura. Seria composta,
também, de uma seqüência de pequenos "dramas sociais". Como já entrevemos
anteriormente, o processo criativo do ator também passa várias vezes por esses quatro
estágios que compõe um "drama social".
"Dramas sociais", portanto, são unidades desarmônicas de processo social que
levam um papel, grupo ou instituição social a situações conflituosas e desafiantes internas e
externas e que, segundo a qualidade de resposta a esta crise, determinarão sua evolução
criativa e regeneradora ou dissidência das partes, com uma série de possibilidades entre
estas duas. Nota-se que os interesses da dimensão da "communitas" geradora, quando
demasiadamente considerados, podem sufocar os interesses da dimensão da "estrutura" e
vice versa.

3.1.4 - O Drama Social e o Drama Estético


Turner acredita que o teatro, e outros inumeráveis tipos e gêneros de performance
culturais do mundo moderno, derivam, justamente, da terceira fase remediadora do "drama
social" e que ele herda e assume o papel do ritual. Deste ponto de vista, o drama estético,
prenhe de simbologia liminar, agiria como terceiro elemento catalisador na transformação
da energia que se acumula nos indivíduos pela fricção e pelo conflito existente nas disputas
entre interesses e expectativas da estrutura social, contribuindo para a sua resolução final no
quarto estágio.
Apesar de ocorrer em território público e profano, o espaço / tempo da cena
cotidiana já foi rompido na terceira fase do drama social moderno. Ali o momento presente

102
se torna perceptivelmente único, histórico e potencialmente gerador de “communitas”. O
ser humano que cotidianamente se encontra em conflitos e dissidências com outros e
consigo próprio e os vela ou os represa em nome de regras e normas coletivas é carregado
de uma energia negativa de enorme poder destruidor ou transformador. O “drama social”
disparado pela ruptura de uma regra, revelando toda a dimensão da crise de um indivíduo,
grupo ou entre grupos, chega ao seu momento único. As cenas extra cotidianas desta
terceira fase que para o grupo, significarão uma seqüência de ações remediadoras, serão
como cenas da vida humana carregadas de alto poder simbólico, significativo e emocional,
a ponto de ficarem registradas na memória dos presentes de forma mais completa e
integrada que todos os outros momentos da vida normal. São as “encruzilhadas da vida”,
momentos potencialmente carregados de definições que determinarão toda a seqüência
posterior dos fatos. São desses processos sociais catárticos da vida real, momentos
históricos e únicos na vida individual ou coletiva de um grupo, que o drama estético é
derivado, inspirado e criado:
“O drama teatral, mesmo quando ele não quer mais do que entreter - embora
entretenimento é sempre uma das suas metas vitais – é um meta-comentário, explícito ou
implícito, intencional ou involuntário, sobre os grandes dramas sociais do seu contexto
(guerras, revoluções, escândalos , mudanças institucionais.) Não somente isto, mas sua
mensagem e sua retórica retro-alimentam a latente estrutura processual do drama social e
parcialmente justificam a sua pronta ritualização. A arte em si torna-se então um espelho
direcionado à vida, e a vida depois atuará suas vidas, pois os protagonistas do drama
social, um “drama da vida,” foram equipados pelo drama estético com algumas das mais
proeminentes opiniões, imagens, metáforas, e perspectivas ideológicas. (Turner, 1993, p.
16.)

A vida como inspiração para a arte, e a arte como um inspiração para a vida. Ambos
os mundos, o mundo da representação social e o mundo da representação estética criando-
se e se nutrindo respectivamente.
Victor Turner e Richard Schechner, juntos, representaram esta relação de
espelhamento segundo a figura abaixo42:

42
Em TURNER, 1993, p. 17.

103
Acima do horizonte está o reino do publicamente visível. Nota-se que o drama
social manifesto, com suas quatro fases, flui e alimenta o latente mundo do drama estético
que flui e alimenta a implícita estrutura de valores que rege a representação da vida
humana. Turner acrescenta que ao invés de drama teatral, ou estético, melhor seria se
pensássemos no repertório total de performances culturais possuídas por uma sociedade.
Esse jogo de reflexibilidade entre drama estético e social, representada por este oito
deitado, não é, de fato, cíclico. Ele não se estabelece num interminável e repetitivo padrão
em torno de si próprio. Respondendo às exigências tanto da dimensão social e horizontal da
vida biológica, como às necessidades da dimensão cosmológica vertical, esta relação seria
mais bem representada por uma espiral ascendente ou descendente, isto é, que promove
maior ou menor instrução, maior ou menor ignorância.
É curioso notar que mesmo um drama estético produzido em épocas passadas, e
transmitido em forma literária, como a dramaturgia de Shakespeare, por exemplo, mantêm-
se prenhe de ricos nutrientes para a latente forma do drama social do dia de hoje. É a força
da ‘liminaridade’ e da ‘communitas que a arte e o drama estético podem conter em si,
principalmente, quando se trata de Shakespeare. Quando se lê ou assiste a Rei Lear ou a
Hamlet, por exemplo, de imediato nos deparamos com um alto meio reflexivo, e aquele que
com este meio venha a ter contato pode vir a iniciar, de algum modo, uma reestruturação de
sua performance no teatro da vida cotidiana.
A idéia não é exatamente de Turner e Schechner, mas fica a eles o grande mérito de
a terem formulado de modo tão didático. Permanecendo em Shakespeare, é possível ver o
próprio personagem de Hamlet, escrito em 1603, falando e fazendo algo parecido. Dentro
da própria peça, ele usa os atores que chegam ao castelo de Elsinor para criar esse
movimento de reflexibilidade. Ele faz eclodir a consciência do rei utilizando uma peça de
teatro:

104
Hamlet: ... O intuito da representação, cuja finalidade, em sua origem e agora, era,
e é, exibir um espelho à natureza; mostrar á virtude sua própria expressão; ao
ridículo sua própria imagem e a cada época e geração sua forma e efígie.
Hamlet Ato III, Cena ii 43

Millôr Fernandes, o tradutor desta versão, usou o termo “ridículo” em sua tradução,
mas a palavra no original é ‘scorn’, o desdém. Mostrar ao desdém ou à falta de respeito a
sua própria imagem torna a idéia mais clara, principalmente, se pensamos no alto teor
reflexivo contido em Rei Lear e no próprio Hamlet.
Toda a questão então, me parece, converge para a qualidade do alimento que o
drama estético, ou a arte em geral, pode oferecer para a vida social. E sem necessariamente
precisar imitar a forma estética de Shakespeare somos levados a crer, por tudo que
estudamos até aqui, que esta qualidade vem de uma determinada concentração de energia
liminar derivada e sustentada pelo real trabalho sobre si mesmo praticada pelos artistas da
cena estética.
Inspirado pela figura de Turner e Schechner termino este item com uma
representação espacial plana das forças que agem sobre um homem, isto é, tudo aquilo que
estudamos até o momento:
Experiência da Vida a partir

Técnica 2 em seu
estágio avançado Técnica 2 em seu
estágio preparatório

trabalho do homem trabalho do ator


Técnica 1- técnicas sobre si mesmo sobre si mesmo Técnica 1- técnicas
psicofísicas da vida vida criativa vida criativa psicofísicas de
humana. representação

representação social representação artística


Drama social Drama estético

entretenimento
vida cotidiana

ser inferior
Experiência da vida organizada pelas necessidades instintivas-biológicas.

43
Em SHAKESPEARE, 2008. p.66.

105
3.2 – Estudos auxiliares
Arte, Ciência, Filosofia e Religião.
A partir desse ponto será traçado uma série de estudos da influência da
‘liminaridade’ e da ‘communitas’ no desenvolvimento do conhecimento humano com
alguns exemplos que remetem à Arte, Ciência, Filosofia e Religião.
Num primeiro item se farão alguns estudos sobre a obra de Deleuze & Guatari, com
um especial enfoque no livro: O que é Filosofia?. Num segundo momento estudaremos
dois livros de Peter Ouspensky que circularam pela mesma Rússia da época de Stanislavski
e que trazem considerações importantes para a nossa perspectiva. São eles: Tertium
Organum e Um Novo Modelo do Universo. Num último e terceiro momento serão
realizados alguns estudos sobre a interessante obra de Giangiorgio Pasqualotto Estetica del
Vuoto: arte e meditazione nelle culture d’Oriente, que traz exemplos de uma religião e de
uma arte que estão intrinsecamente ligadas à pratica meditativa tanto do monge, como do
artista, tanto do adepto como do público.
De fato, eles são apenas estudos auxiliares e, por isso, foram transferidos para o
capítulo XI – Anexos 1 e 2. Eles não são estritamente necessários para o desenvolvimento
da tese, mas considerei importantes mantê-los no todo. No decorrer do trabalho, quando
houver alguma necessidade, aconselharei o leitor a ler algum trecho ou capítulo desses
estudos, indicando a página aonde ele está localizado. No Anexo 2 apresentaremos a
tradução do texto Quem sou Eu?; vinte oito respostas dadas por Ramana Maharshi, sábio
indiano da primeira metade do século XX, a um buscador. Apresento-a como um exemplo
de técnica 2 em seu estágio avançado.
Há, no entanto, uma importante conclusão feita ao final desses estudos que me
parece importante ser mencionada aqui: o conteúdo informativo socialmente negociado
através dessas áreas de conhecimento humano - Arte, Ciência, Filosofia e Religião - deveria
seguir par e passo com o desenvolvimento do ‘trabalho sobre si mesmo’ daquele que o
negocia. Quando não é assim, tanto essas quatro áreas de conhecimento tendem a tornarem-
se inconciliáveis entre si, como, em cada uma delas, surgem, nelas próprias, inúmeras
divisões e tantas facções igualmente inconciliáveis e cada vez mais especializadas em torno
de uma excludente perspectiva.

106
IV - O Trabalho do Ator Sobre Si Mesmo.
4.1 Sobre Konstantin Stanislavski.

“Os artistas que não vão adiante, vão para trás.” 44

4.1.1 – Redescobrindo Stanislavski.


Em novembro de 2007, fiz uma viagem a Buenos Aires de duas semanas, para
visitar uns amigos. Sabendo do rico mercado editorial argentino, que abarca também
publicações espanholas, passei algumas manhãs garimpando livros de teatro em espanhol.
Minha meta era encontrar a tradução espanhola da obra original de Stanislavski, já que no
Brasil, todas as edições publicadas são versões em português das parciais versões
americanas do texto russo. Encontrei o livro: “El trabajo del actor sobre si mismo en el
proceso creador de la encarnación” da Editoria Quetzal de Buenos Aires que seria o
correspondente do nosso “A Construção do Personagem”. Por alguma razão, que não
cheguei a compreender, o primeiro volume do livro, também publicado pela Quetzal só
estava disponível com o título de “Preparación del Actor”, uma tradução que se dizia feita a
partir dos originais russos mas que não continha nem o ‘Prólogo’, nem a ‘Introdução’
escritas por Stanislavski. Só em fevereiro de 2008 fui encontrar a versão correta do texto
argentino, numa edição de 1977 da própria Quetzal, na biblioteca da sede do LUME, em
Barão Geraldo. Ali encontrei também, um “Mi Vida en el Arte” da Quetzal, ambos livros
do acervo pessoal de Luís Otávio Burnier que foi incorporado à biblioteca em 1998. O
título em castelhano é “El trabajo del actor sobre si mismo en el proceso creador de las
vivencias.” Somente o primeiro livro foi finalizado por Stanislavski e estava no prelo
quando veio a falecer em 1938. O segundo foi organizado postumamente com aquilo que já
havia sido escrito e foi publicado pela primeira vez só em 1948. (Stanislavski, 1997.
Prólogo de G. Kristi. p.9). Ainda que vá falar sobre Stanislavski - e algumas pesquisas que
fiz durante o período - apenas no fim desse item, gostaria de começar registrando em
português, o nome correto do segundo e terceiro livros russos de Stanislavski segundo pude
averiguar: “O trabalho do ator sobre si mesmo.”; no primeiro volume segue: “Trabalho

44
Em (Richards, 1993. p.15.)

107
sobre si mesmo no processo da revivência. Diário de um aluno.”; e no segundo: “Trabalho
45
sobre si mesmo no processo da personificação. Diário de um aluno.” Gerações e
gerações de leitores brasileiros – “A Preparação do Ator”, por exemplo, já está na sua
décima quinta edição – nunca souberam disso. Quiçá, em breve, uma inédita e merecida
tradução do livro original seja publicada no Brasil, não só para corrigir o título como os
inúmeros erros de tradução que a edição atual contém em ambos os volumes.
‘O trabalho do ator sobre si mesmo’ é um título bastante sugestivo e de modo
algum transcurável. Há um trabalho que um ator deve empreender sobre si mesmo. Que
trabalho é este? É um trabalho externamente visível? É um trabalho similar àquele
realizado por um atleta de ginástica sobre si mesmo ou será que possui também uma
dimensão invisível e ainda assim importante? O trabalho de um atleta não contém essa
dimensão invisível? Ele é feito apenas no momento da apresentação da obra, ou segue por
todas as fases da vida do ator? Ele se refere somente à profissão ou refere-se a todos os
lados da vida pessoal do ator. São muitas perguntas que esse título instigante é capaz de
gerar.
De onde Stanislavski teria tirado o termo ‘trabalho sobre si mesmo’? De sua própria
prática e vivência de longos anos como ator e diretor? Ou teria sido de alguma outra
influência?
Nos estudos auxiliares do Anexo 146, trazemos algumas suposições e também
algumas recentes pesquisas sobre o assunto. Uma delas, interessante, é aquela de Rose
Whyman que afirma:
“Hindu works were translated into many languages including Russian. Michael
Chekhov famously became an anthroposophist and, most important, Stanislavsky had an
interest in yoga, to which he was introduced by Leopold A. Sulerzhitsky, his close friend
and assistant at the Moscow Art Theatre.” (Whyman, 2008.p. 3.)

De fato, o próprio Stanislavski revela algo a respeito num estudo escrito entre 1916
e 1920, sobre a preparação de um papel a partir da comédia ‘A Desgraça de Ter Espírito’
em A Criação do Papel, versão americana do livro organizado postumamente por G. Kristi
e publicado na Rússia somente em 1956. O trecho está num capítulo que disserta sobre o ‘O
Superconsciente’, afirmando que a essência da arte e a fonte principal da criatividade do

45
Em (RUFFINI, 2005. p.146.)
46
Ver páginas 431 a 434 do Anexo 1

108
ator se ocultam ali, num local intangível que as palavras não podem definir. Começa a
sondar os caminhos e chaves de acesso a esse superconsciente e logo em seguida diz:
Os yoguis da Índia, que fazem milagres no campo do subconsciente e do
superconsciente, podem dar-nos muitos conselhos práticos. Eles também se encaminham
para o inconsciente através de meios preparatórios conscientes, do físico para o espiritual,
do real para o irreal, do natural para o abstrato. (Stanislavski, 1987, p. 95.)

Diríamos nós, aqui: do parcialmente real para o plenamente real.


Ora, encaminhar-se para o superconsciente através de meios preparatórios
conscientes, encaminhar-se para o espiritual através do físico são, também, boas descrições
do trabalho de Gurdjieff. Thomas de Hartmann, músico russo e noto colaborador de
Gurdjieff durante certo período, foi também colaborador do Teatro de Arte de Moscou
tendo composto diversas músicas para o seu repertório. Curiosamente, em fevereiro de
1924, tanto Stanislavski com o T.A.M., quanto Gurdjieff, Hartmann e seguidores estão em
Nova Iorque em turnês de apresentações de seus trabalhos. E ambas as partes estão cientes
do fato.47 Apesar da coincidência nunca encontrei nenhuma evidência de contato direto
entre Stanislavski e Gurdjieff. É muito possível, entretanto, que Hartmann e Stanislavski
tenham se encontrado, excepcionalmente, em território estrangeiro.
Gostaria de inserir aqui três considerações de Stanislavski na ‘Introdução’ que faz
ao primeiro volume de seu “O Trabalho do Ator sobre Si Mesmo”, escrito e organizado a
partir de 192948; e que como já dito, não consta da edição brasileira, traduzida a partir
daquela americana.
A primeira é:
“Um dos objetivos principais perseguidos pelo sistema consiste em estimular
naturalmente a natureza orgânica criadora, com seu subconsciente.” (Stanislavski, 1977.
p. 42. - traduzido do espanhol.)

E segue chamando a máxima atenção para o capítulo XVI do livro, que contém o
desenvolvimento desse tema e a ‘essência da criação e de todo o sistema. ’ Tal capítulo é
intitulado: “O subconsciente e a atitude do ator na cena.”
Nesse capítulo fala em palavras diretas e claras que o ator deve tratar seu trabalho
como algo que não lhe é intimamente exterior e alheio. Deve convocar conscientemente, o
máximo da sua própria pessoa para afrontar a criação e representação de um personagem
47
Em (Hartmann, 1993. p 122-123.)
48
Em (Ruffini, 2005. p.18)

109
em uma peça de teatro. Somente a convocação consciente do máximo de sua própria pessoa
pode criar as condições necessárias para a inspiração, intuição e entrada naquilo que
chamou de ‘terra prometida do subconsciente’; um estado de fusão completa entre a vida
psicofísica pessoal do ator e aquela vida humana fictícia criada pelo autor.
‘Intuição’ e ‘subconsciente’, diz Stanislavski, são termos que surgem da sua própria
experiência prática no papel de diretor, ator e professor. Eles não devem evocar o sentido
‘filosófico’ ou suas ‘raízes científicas’, mas aquele mais simples, aquele da vida diária.
Uma segunda consideração que está no quinto item do prólogo e diz:

“Sobre a arte temos que falar e escrever de um modo sensível, compreensível. As


palavras difíceis assustam ao aluno. Chegam ao cérebro, mas não ao coração. Por essa
razão, no momento da criação o intelecto sufoca a emoção com seu subconsciente, à qual
se concede um importante papel na nossa orientação da arte.” (Stanislavski, 1977, p. 42. -
traduzido do espanhol.)

Neste ponto, chamou-me a atenção que elemento essencial nessa convocação


consciente do máximo de si mesmo, é a emoção. Stanislavski tem clareza de que as funções
motoras, intelectuais e emocionais no ser humano possuem linguagens específicas, que
podem atravancar o processo umas às outras. Mas de forma alguma, elimina uma em
função da outra. Devem funcionar juntas, ainda que cada qual faça o seu papel e seja mais
ou menos acessível à vontade e à consciência. E isto foi escrito e publicado quando ainda
estava vivo.
A forma especial que dá ao livro ‘O trabalho do ator sobre si mesmo’ é um exemplo
prático desse tipo de perspectiva. Não faz uma dissertação teórica e conclusiva sobre as
premissas do trabalho do ator, mas cria um ‘romance’ que narra o dia a dia de uma escola
de formação de atores com tudo aquilo que lhe é inerente: medo, receio, bloqueios, erros,
vaidades, tentativas, fracassos, conquistas, disciplina, conhecimento prático, conclusões e
organização do conhecimento em princípios e fundamentos. Tudo isso coordenado por
Tórtsov, o diretor artístico dessa escola, que se percebe, é o próprio Stanislavski de “Minha
Vida na Arte”.
Mas diz afinal, no prólogo, que o livro só pode se completar, ou ‘as palavras
impressas apenas renascerão através dos sentimentos dos próprios leitores’. O leitor, ele
mesmo, deve trabalhar na convocação máxima de si mesmo. E sem que o coração esteja
desperto, essa convocação nunca estará completa.

110
Stanislavski percebe a existência de uma psicotécnica para o trabalho do ator que só
pode ser compreendida com a presença do sentimento. É uma técnica sobre elementos
tangíveis à consciência que de algum modo levam até a inspiração, a intuição e o
subconsciente; reino de elementos que, apesar de sutis e invisíveis, são imprescindíveis
para a profissão do ator. Na primeira parte da sua pesquisa, Stanislavski considerou a
emoção como um desses elementos tangíveis à consciência e à vontade, que poderia ser
eficazmente utilizado como meio para se alçar às regiões subconscientes; mas numa
segunda fase, já quase no final de sua vida, abandonou essa afirmação e começou a
trabalhar mais diretamente com o corpo físico, as ações físicas e a lógica de comportamento
desse corpo, como sendo elementos mais tangíveis dessa psicotécnica.
Há, aqui, uma interessante correlação entre o conhecimento vindo do sistema de
Gurdjieff-Ouspensky e as observações práticas de Stanislavski sobre o trabalho do ator
sobre as suas emoções. Bennet diz em “O Homem Interior”, coletânea de textos publicada
em 1978:
“É muito difícil trabalhar diretamente sobre as emoções. O corpo é muito mais
fácil. Trazendo simplesmente a atenção para o corpo, este se torna sensível. Chamamos
isso apropriadamente de ‘sentir’ e a energia requerida de ‘sensação’. O trabalho com a
cabeça é também muito mais fácil do que com o centro emocional. É possível, até certo
ponto, manter a nossa atenção numa idéia ou num plano. Associando o pensamento
sensível à presença corporal sensível, algo poderá ser evocado nos sentimentos. O modo
mais prático de superar o automatismo em qualquer centro é unir a ação dos outros dois.
(Bennet, 1986, p.52.)

Se trabalhar diretamente sobre as emoções é muito difícil, isto não quer dizer que
seja impossível. Vimos a razão de ser assim quando estudamos as velocidades de cada
centro em separado e de como eles são postos em movimento através de impressões e
linguagens completamente distintas. Em geral, devemos nos reconhecer como completos
analfabetos no que diz respeito à linguagem no centro emocional. A educação formal que
enfatiza excessivamente o conhecimento intelectual não nos instrui nada a esse respeito e,
quanto à experiência informal de vida, ela é, na maioria das pessoas, quase inteiramente
contaminada e distorcida pela expressão das emoções negativas. Ao ler os textos de
Stanislavski, no entanto, nos damos conta de como ele valorizava e se utilizava dessa
linguagem com desenvoltura:

111
Em arte, o sentimento é que cria, e não o cérebro. O papel principal e a iniciativa,
em arte, pertencem ao sentimento. Aqui, o papel da mente é apenas auxiliar, subordinado.
A análise feita pelo artista é muito diferente da que faz o estudioso ou o crítico. Se o
resultado de uma análise erudita é o pensamento, o de uma análise artística é o
sentimento. A análise do ator é sobretudo a de sentimento, e é executada pelo
sentimento.(Stanislavski, 1987, p.24)

Este trecho foi escrito entre 1916 e 1920 no estudo de A Desgraça de Ter Espírito,
momento em que o autor ainda buscava a composição do personagem através de toda uma
preparação e composição anterior e interior que ocorria no mundo invisível dos
pensamentos, sentimentos e intuições por meio da imaginação criativa. Só então, quando a
vida espiritual do personagem estivesse completa e amadurecida é que de um impulso
interior vindo da alma, o corpo ganharia vida, forma e movimento. O corpo físico,
premeditadamente trabalhado, não ofereceria resistência ou bloqueio a esse impulso. Nas
palavras de Stanislavski:
Il corpo potrá iniziare ad agire solo quando non sarà piú possibile tenerlo a freno,
quando [...] esso percepirá l’essenza spirituale del sentimento rivissuto e del compito
interiore, da lui stesso creato, e nascerá in lui la necessità concreta, istintiva,di portare al
naturale compimento i desideri e le aspirazioni della própria volontá creativa, per mezzo di
un’azione fisica. Ecco dunque che il corpo inizia a muoversi, ad agire. È una vera
disgrazia se non si riesce ad assoggettare il corpo alla volontá del sentimento. (Ruffini,
2005, p.80) 49

Segue Stanislavski-Torstov em duas passagens de seu ensaio de 1930-33 sobre a


montagem de “Othelo” de Shakespeare, já em sua segunda fase, trabalhando não mais de
dentro para fora, isto é, deixando de lado o trabalho direto sobre as emoções e
desenvolvendo o método das ações físicas:

“Quando essas ações físicas estiverem claramente definidas, tudo o que resta a
fazer para o ator, é executá-las. (Observem que eu digo executar as ações físicas, e não
senti-las, porque se elas forem feitas com correção, os sentimentos serão gerados
espontaneamente.) Se trabalharem de modo oposto, se começarem pensando em seus
sentimentos e tentando espremê-los de dentro de vocês mesmos, o resultado será distorcido
e forçado, sua sensação de estar passando pela experiência do papel se transformará numa
atuação teatral, mecânica, e seus movimentos serão distorcidos.
(Stanislavski – A Criação de um papel – 1987, p.213.)
49
Cito o trecho da versão italiana de ‘Il lavoro dell’ attore su se stesso’. Na versão brasileira o mesmo trecho é
traduzido como: “Deixemos que o corpo entre em ação quando já não for possível contê-lo, quando ele sentir
a profunda essência interior das emoções experimentadas, dos objetivos interiores por ela despertados.
Então, voluntariamente, surgirá um anseio natural, instintivo, de executar as aspirações da vontade criadora,
sob a forma da ação física. (Stanislavki, 1987, p.115)

112
“Com o auxílio da natureza – nosso subconsciente, instinto, intuição, hábitos, e
assim por diante -, evocamos uma série de ações físicas entrelaçadas umas com as outras.
Por seu intermédio, tentamos compreender as razões interiores que lhes deram origem, os
momentos individuais de emoções que experimentamos, a lógica e coerência dos
sentimentos nas circunstâncias determinadas da peça. Quando conseguimos descobrir esse
fio, ficamos cônscios da significação interior de nossas ações físicas. Esta percepção tem
origem não intelectual, mas emocional, porque compreendemos com nossos próprios
sentimentos uma parte da psicologia de nosso papel. Entretanto, não podemos representar
essa psicologia, por si mesma, nem seus sentimentos lógicos e consecutivos. Por isso, nos
mantemos no terreno mais firme e acessível das ações físicas, atendo-nos rigorosamente à
sua lógica e coerência. E como o seu traçado está inextricavelmente ligado àquele outro
traçado interior de sentimentos, podemos, por meio delas, atingir as emoções. Esse traçado
passa a fazer parte integrante da partitura do papel.”
(Stanislavski – A Criação de um papel – 1987, p.220.)

Fica claro que em um determinado momento de sua trajetória, Stanislavski inverte a


flecha de orientação do trabalho do ator: ao invés de um movimento que parte da alma e
das emoções intencionais para o corpo físico; o movimento agora nasce da partitura física
intencional e segue para o interior e mais sutil. Apesar de ele próprio ter uma capacidade
inata para lidar e discorrer sobre os sentimentos – é o que me parece ao ler o ensaio “A
Desgraça de Ter Espírito” - abandona o trabalho direto sobre as emoções e explora estas
outras possibilidades mais concretas que o trabalho sobre o corpo físico e o pensamento nos
dá, deixando as emoções reagirem livremente. Essa deve ter parecido ser uma solução mais
prática para alguém que tentava estudar, sistematizar e aprofundar um método de trabalho
para o ator de teatro. O método da ‘memória emotiva’ se tornou muito famoso nos Estados
Unidos a partir da criação do ‘Actor’s Studio’ e muito eficaz na preparação de atores para a
indústria cinematográfica. Mas desse lado da cena, já estamos na era da reprodução
mecânica da obra de arte, algo que nunca chegou a interessar a Stanislavski.
Vamos retomar e desenvolver o tema mais adiante num estudo sobre o último
trabalho de Stanislavski no Teatro de Arte de Moscou.
Importante ressaltar aqui que independente de a emoção ser ou não ser um elemento
tangível à psicotécnica, o trabalho do ator sobre si inclui a participação da função
emocional. Ter a função emocional desbloqueada e desperta parece ser condição necessária
a esse trabalho.
Uma última consideração que nos chamou a atenção, e que já foi citado alhures,
pertence ao penúltimo item do prólogo, o sexto:

113
“Porém o que trato no meu livro não se refere a uma época determinada e a sua
gente, mas à natureza orgânica de todas as pessoas do mundo da arte, de todas as
nacionalidades e todas as épocas.” (Stanislavski, 1977, p. 43.)

Chama a atenção de que esse trabalho do ator sobre si mesmo é valido, necessário e
o mesmo, independente da estética, cultura, linguagem ou forma que a cena possa assumir;
ainda que ele também tenha acentuado a importância de que a arte de cada povo ou nação
‘conserve e reflita seus mais particulares e delicados aspectos’. (Stanislavski, 1977, p. 43 –
Nota de G.Kristi).
Quatro pontos, então, puderam ser evidenciados sobre a natureza desse trabalho do
ator sobre si mesmo, a partir desse importante e desconhecido prólogo - ao menos para nós
brasileiros - deixado por Stanislavski:
1 - É um trabalho de convocação máxima de si mesmo ao trabalho.
2 - É feito através de uma técnica, ou uma psicotécnica, sobre a qual Stanislavski
pesquisou e aperfeiçoou até o fim de sua vida, 1938.
3 - Ter a função emocional desbloqueada e desperta é condição necessária a esse
trabalho, ou quiçá já seja um dos produtos dele.
4 - É um trabalho destinado a qualquer ator, de qualquer época ou nacionalidade.
A partir desse levantamento um possível estudo seria a releitura da obra original em
espanhol, comparando-a com a tradução brasileira, tentando encontrar novos termos,
expressões e perspectivas para esse trabalho do ator sobre si mesmo em diferentes fases do
seu processo criativo. Porque existe toda uma aproximação mais técnica e específica de
Stanislavski ao trabalho do ator, que são justamente os elementos que compõe o seu
sistema. Pode ser dito que Stanislavski elevou a arte cênica ao mesmo nível de
conhecimento técnico e exigência disciplinar que aquela, por exemplo, esperada de um
músico instrumentista de uma Orquestra Sinfônica; ou talvez também, de um ator da
tradição de teatro Nô, como brevemente poderemos encontrar no Anexo 1.50
Seria uma releitura em função do tema de nosso estudo: a “liminaridade na
profissão do ator”. Não o fiz ainda, apesar do interesse. Tomaria muito tempo e talvez nos
distanciasse de nosso ‘super objetivo’ que é a “experiência dos atores do LUME – Unicamp
com o processo da liminaridade.”

50
Anexo 1 p.440. Falaremos de Zeami e do Teatro Nô também no Cap. V, a partir da p.251.

114
No entanto, algum tempo depois, encontrei um recente livro de Franco Ruffini,
professor e pesquisador da Universidade de Roma, que traz uma abordagem da obra de
Stanislavski a partir da sua proposição central: “Stanislavskij: Dal lavoro dell´attore al
lavoro su di sé.”51 O livro foi publicado em 2003.
Ruffini destrincha todos os dois volumes de “O trabalho do ator sobre si mesmo”
colocando-os em perspectiva com a vida biográfica e descobertas artísticas de Stanislavski
narrada em “Minha Vida na Arte” e também com a vida e pesquisa de Stanislavski no
período posterior que vai de 1924 a 1938.
Explica de uma forma definitiva e clara, toda a problemática que envolve a difusão
da obra de Stanislavski no Ocidente. Ruffini, como Whyman, também é um estudioso que
se utiliza da palavra ‘yoga’ em referência ao ‘sistema’ de Stanislavski:
“Além de construir programaticamente um sistema para o trabalho do ator, o
pensamento de Stanislavski constrói objetivamente um ‘yoga’ para o trabalho sobre si
mesmo.” (Ruffini, 2007, p. 4.)

Mais adiante em relação aos livros sobre o ‘sistema’, diz que Stanislavski

‘através de estranhos exercícios e anedotas e divertidos apólogos, explora com


intransigência o território entre corpo e alma. ... Na superfície estão fitas e bandeirinhas
coloridas, “acredito” ou “não acredito”, ministros de marajá, portas inexistentes a serem
abertas e carvalhos sobre a montanha. Num nível profundo se trata de segunda natureza e
ação real, atenção e imaginação, e consciência... As passagens de um ‘yoga’ que
transcende o espetáculo. ’ (Ruffini, 2007, p .37)

O livro de Ruffini contém uma perspectiva de abordagem do teatro no século XX


que muito me incentivou, pois ressoa diretamente com a perspectiva que foi escolhida para
essa pesquisa.
Decidi, a partir de então, fazer um estudo mais aprofundado sobre a obra de
Stanislavski, mas concentrando-me mais nas suas últimas experiências antes de falecer,
aquelas feitas com um seleto grupo de atores do Teatro de Arte de Moscou sobre “O
Tartufo” de Molière. Desse estudo compusemos o artigo que participou, em Julho na USP,
do Congresso da Associação Brasileira de Literatura Comparada - 2008 – simpósio de
Literatura e Dramaturgia: Entre o Palco e a Academia.

51
‘Stanislavski: Do trabalho do ator ao trabalho sobre si. ’

115
4.1.2 Sobre a passagem da literatura dramática à cena viva do jogo teatral no último
experimento de Stanislavski sobre “O Tartufo” de Molière.

Mas como? Você não faz qualquer distinção entre a hipocrisia e a


devoção? Você trata a ambas com a mesma linguagem e presta as
mesmas honras à máscara e ao rosto, iguala o artifício à
sinceridade, confunde a aparência com a verdade, estima a sombra
tanto quanto a pessoa e o dinheiro falso tanto quanto o verdadeiro?
Estranha é a maioria dos homens! Nunca são vistos em sua justa
natureza... (Molière, 2005, p.68).

Na comédia de Molière, Cleante profere essas palavras a Orgon, seu cunhado e


patrão de casa, que está absolutamente convicto de que hospeda um homem santo dentro da
intimidade de seu lar.
A fala, no entanto, poderia ser perfeitamente citada como um trecho de um discurso
de Konstantin Stanislavski, sobre a necessária distinção do que é falso e do que é
verdadeiro no ator. Distinguir entre aquilo que é verdadeiro, orgânico, humano e criativo
no imediato da cena do ator; daquilo que são falsos clichês do hábito, mecânicos
estereótipos da profissão e afetados comportamentos histriônicos, foi uma das metas a qual
Stanislavski se dedicou por toda a vida, dentro dos muros do Teatro de Arte de Moscou
(TAM). Certo, não só distinguir, mas também criar métodos, caminhos, processos para que
a natureza psicofísica de um ator pudesse dar corpo e vida às peças de Tchekov,
Shakespeare, Gogol, Ibsen, Gorki, Maeterlinck, Puchkin, e por fim Molière.

A formulação do problema.

Um dos mais lúcidos capítulos já escrito sobre o problema central da arte do ator -
esse a que estamos nos referindo - está na autobiografia de Stanislavski: “Minha Vida na
Arte,” edição brasileira esgotada, só achada em sebos e bibliotecas.52

52
Há duas versões escritas por Stanislavski do mesmo livro: a primeira foi publicada em inglês como “My
Life in Art” em 1924, a segunda, revisada e complementada pelo autor, publicada em russo dois anos depois.
A tradução publicada em português vem dessa segunda versão, mas chamo a atenção que não possui trechos
inteiros do original – e também possui muitos erros de digitação.
Sobre as versões disponíveis de outros textos de Stanislavski em português, é preciso lembrar também, que
são todas elas feitas das parciais traduções americanas dos textos originais russos.

116
Vamos tentar formular o problema assim como Stanislavski o coloca no capítulo:
“A descoberta de verdades há muito conhecidas,” de Minha Vida na Arte. O capítulo se
refere ao verão de 1906, onde depois de se apresentar com o TAM pela primeira vez no
exterior, em uma bem sucedida excursão à Alemanha, Stanislavski toma alguns dias de
férias e vai à Finlândia. Ali ele, todas as manhãs, sentado em uma rocha diante do mar,
passa em revista a toda sua experiência artística anterior - já tinha 22 anos de profissão - e
formula para si, aquela que seria a questão que o conduziria para todo o restante de sua vida
artística.
Compreende que quando um ator está em cena, doando si mesmo à personificação
de um papel de um texto teatral, por exemplo, este ator está como que envolvido num
determinado estado psicofísico de consciência que, como vimos à cima, tenderá para dois
lados possíveis: ou tenderá a criar vida, verdade e sentimentos autênticos ou tenderá a se
utilizar de truques e artifícios externos que apenas imitam, ilustram o papel para o
espectador. O primeiro estado denominou-o como “estado criador” o segundo como o
“estado típico do ator”, um estado psicofísico que tem como peculiar característica o
desdobramento, o deslocamento ou a ruptura entre a esfera física e a esfera psíquica do
ator. Nas palavras de Stanislavski:

“Assim o estado de ânimo habitual do ator é o estado de uma pessoa


no palco, obrigada a exteriorizar o que não sente em seu interior. É
isto o que chamamos de desdobramento (a palavra utilizada na
versão castelhana do texto é ‘deslocamento’ ou ‘ruptura’) do ator,
quando a alma vive com seus estímulos cotidianos diários, e
corriqueiros, com suas preocupações com a família, o pão de cada
dia, as pequenas ofensas, os sucessos e insucessos, enquanto o corpo
se vê forçado a expressar arroubos mais elevados dos sentimentos e
paixões heróicas da vida espiritual supra-consciente.” (Stanislavski,
1989, p. 411).

A ruptura existe, mas o profissionalismo da cena, diz ele, cria as mais diversas
maneiras de amortecer esta falta através de toda uma variedade de signos, ações
estereotipadas, poses, entonações características, floreios, cadências, truques cênicos e
técnica representativa que expressaria sentimentos e pensamentos em ‘estilo elevado’. Tudo
isso para que? Todos esses signos ou clichês de sentimentos inexistentes servem para que?

117
Para tornar um espetáculo legível para o espectador. O trabalho do ator cindido em
sua plenitude torna-se aquele de ser um meio de legibilidade entre a obra literária, as
intenções do diretor e o público que o assiste: a sua voz como aquela de um alto-falante que
reproduz palavras, o seu corpo como um instrumento ilustrativo de uma intenção ou idéia.
Até o fim de sua vida Stanislavski combateu com vigor esta degeneração do espetáculo.
Degeneração porque o espetáculo não acontece diante dos olhos da platéia, o espetáculo é
um simulacro, uma ilustração - mal ou bem feita - que não permite vivência e que esconde
a simples realidade presencial e palpitante do organismo do ator em cena.
O espetáculo para Stanislavski era um momento único onde o texto deixava de ser
texto e se regenerava em fluxo de vida autêntico. Diante dos olhos da platéia, não acontecia
uma representação, mas a própria reconstituição poética da vida, momento a momento. A
‘pessoa’ do ator e a do espectador, suas ‘qualidades humanas íntimas e pessoais’ deveriam
ser despertadas e participarem do processo comunicativo.
Seguimos um pouco mais com ele:

“Continuando as minhas observações posteriores sobre mim e os


outros, compreendi (isto é, senti) que a criação é acima de tudo a
plena concentração de toda a natureza espiritual e física53. Abrange
não só a visão e a audição, mas todos os cinco sentidos do homem.
Abrange, ademais do corpo, o pensamento, a mente, a vontade, o
sentimento, a memória e a imaginação. Toda a natureza espiritual e
física, no processo criador, deve estar voltada para o que ocorre ou
pode ocorrer na alma do personagem que está sendo representado.”
(Stanislavski, 1989, p. 414).

... que está sendo representado aqui e agora, pela primeira e única vez, concluo eu.
Parece óbvio. É óbvio, mas por hábito, deixamos de entrever as conseqüências desse
fato. Por exemplo, nesse momento em que leio este texto, que poderia ser como uma peça
de teatro, o autor já fez sua parte, seu esforço de composição criativa, e não precisaria ter
vindo a não ser para dizê-lo em voz alta de maneira que todos escutem. Mas há um
universo de possibilidades - não especificadas por um dramaturgo - como o tom de voz,
entonações, intenção, pausas, olhares, gestos, ritmos, ações, energia, relação com os outros
atores, adaptação à relação com os espectadores, adaptação às condições espaciais e
sonoras da sala, etc - que deixa um espaço vazio a ser ocupado, intencionalmente ou não,

53
Grifado pelo Autor.

118
pelo ator que estaria representando o autor do texto. Dito de outra forma, o ator, no
espetáculo, deve criar, das falas e indicações deixadas pelo autor, uma inteira e própria
partitura física e vocal. Partituras que permanecem invisivelmente inscritas na memória de
seu organismo.
Assim, além de retomar o texto do dramaturgo e todos os pontos previamente
criados e fixados em sua partitura física e vocal, o ator, em situação de representação, deve
passar por eles de forma criativa, atualizando-os em relação ao momento presente da cena.
O espetáculo daquele dia, então, será único. Desse modo chegamos ao ponto: posso ler esse
texto para vocês com mais ou menos atenção, de forma mais automática ou de forma mais
criativa, com maior ou menor inspiração. Do mesmo modo, vocês aí, podem ouvi-lo
também, com mais ou menos atenção, de forma mais automática ou de forma mais criativa,
com maior ou menor inspiração.
A pergunta definitiva que Stanislavski destrincha entre “as verdades há muito
conhecidas” lá em 1906 é:
“Eu me pergunto: não haveria alguns meios técnicos para
desencadear o estado criador? Isto não quer dizer, evidentemente,
que eu pretenda criar a inspiração por meios artificiais. Não, isto é
impossível! Gostaria de aprender a criar em mim, ao meu próprio
arbítrio, não a própria inspiração, mas a base propícia para ela, isto
é, aquela na qual a inspiração nos vem à alma com mais freqüência
e vontade.... Todavia, como fazer para que esse estado não apareça
por obra do acaso, mas seja criado ao arbítrio do próprio artista,
“por encomenda” dele?” (Stanislavski, 1989, p. 412).

Esta pergunta chave irá conduzir Stanislavski pelo resto de sua vida, levando-o a
uma série de tentativas e procedimentos experimentais, às vezes, aparentemente muito
contraditórios entre si.
Essa mesma pergunta chave, levou-o também a entrever a necessidade de se criar o
espaço-tempo do laboratório, um espaço de pesquisa que estivesse protegido do contato
com as atividades que o teatro cotidianamente executava para se manter vivo, isto é: a
manutenção do repertório, montagem de novos espetáculos, temporadas, viagens, produção,
54
salário e condições mínimas de infra-estrutura para o trabalho. Desde quase o início do
Teatro de Arte de Moscou, surgem as primeiras tentativas de criar laboratórios de pesquisa.

54
Nota-se a semelhança, ainda que dissolvida, com a suspensão das condições sociais cotidianas intrínsecas
ao processo ritual que Turner definiu como ‘liminaridade’.

119
Não era utilizada a palavra ‘laboratório’ de teatro, mas estúdio. Assim em 1902, a tentativa
do estúdio da Rua Povarskaia junto com Meyerhold, depois o bem sucedido primeiro
estúdio de 1912 a 1915, o estúdio operistico entre 1918 e 22, que segue, após as viagens aos
EUA, em 26. Após o livro autobiográfico e o enfarte de 1928, a maior parte da atividade de
Stanislavski se dirige a algumas montagens no TAM, a escrever os livros sobre o seu
‘sistema’ e à pesquisa prática dentro dos estúdios. Em 1935, monta um estúdio em sua
própria casa que veio a culminar com o período de trabalho sobre o Tartufo. Reúne um
exclusivo e reduzido grupo de atores do TAM, dispensados de toda atividade rotineira, e
em dois andares de camarins cedidos só para eles, atrás do teatro principal, começa a
trabalhar sobre o texto de Moliére: "Tartufo ou O Impostor" conforme nos conta o ator
deste grupo Vasilij Toporkov em seu livro: “Stanislavski nos ensaios: os últimos anos.”

Início e condições da pesquisa – O laboratório e a condição liminar.

STANISLAVSKI (ao reduzido grupo de atores do TAM em 1936) - "Um período


de estudo longo e cansativo é o que teremos pela frente. Peço pela simplicidade e pela
lealdade nos relacionamentos entre vocês. Eu não pretendo de fato montar o espetáculo, e
as questões da direção não me interessam. Aquilo que me interessa, agora, é transmitir a
experiência que eu acumulei em toda a minha vida. Não quero lhes ensinar a representar
um papel, mas o papel.
Peço que respondam francamente. Vocês querem afrontar este estudo? Sejam
sinceros, não há do que se envergonhar, vocês já são adultos, cada um de vocês é um ator
conhecido, cada um de vocês tem o direito de se considerar um profissional e de poder
querer continuar assim até o fim de seus dias. Eu entendo perfeitamente e tenham coragem
de admitir isso.
Mas eu devo salientar que, sem esse estudo, vocês chegarão a um beco sem saída na
criatividade de vocês. Nossa arte não tolera formas e tradições estáticas, por mais atraentes
que estas sejam. Ela requer um trabalho constante e tenaz sobre si mesmo.
Nossa arte é viva e como cada criatura está em contínuo movimento e crescimento.
Aquilo que estava bem ontem pode não servir a nada hoje. Para tal arte é necessária uma
técnica especial não baseada sobre procedimentos padronizados, mas que mire ao domínio
da natureza criadora do ator. É necessário controlar a capacidade desta natureza criadora,

120
guiá-la para que a cada espetáculo se esteja no grau de revelar as próprias capacidades
criativas, a própria intuição.
Agora está clara a tarefa que os aguarda. Se vocês querem estudar, então
começamos, se não nos separamos sem nenhum rancor. "(Texto elaborado a partir de
Toporkov, 1991. p.106).

O Tartufo de Molière – Início dos trabalhos.


Uma das primeiras preocupações de Stanislavski, em relação ao texto de Molière foi
evitar que os atores o decorassem sem antes, terem compreendido a essência de seu
conteúdo. Na época, e ainda hoje em dia, uma prática habitual dos atores era que após a
primeira leitura do texto e uma longa discussão sobre o seu conteúdo, eram definidos os
papéis que cada ator iria fazer e logo se iniciavam os ensaios com os atores trazendo seus
textos inteiramente memorizados.

Stanislavski ci meteva spesso in guardia contro l´approccio freddo e


razionale alla creazione. Da noi voleva azioni, non ragionamenti.
- Quando l´attore teme di mostrare la propria vonlontà, quando
non vuole creare si mette a disquisire.... L´azione dipende dalla
volontà, dall´intuizione; il ragionamento dipende dal cervello,
dalla testa. Il mio sistema serve solo a dare via libera alla
creativitá della natura organica dell´artista. (Toporkov, 1991,
p.106)55.

Outra prática habitual naquela época, mesmo no Teatro de Arte de Moscou, e usual
ainda nos dias de hoje também, é que a encenação de cada parte, isto é, a movimentação de
cada personagem no palco era marcada e fixada antes pelo diretor de cena. Stanislavski
recusou todas essas formas de trabalho que limitavam o vínculo do ator com o processo
criativo. O ator deveria antes de mais nada compreender a essência do conteúdo do texto,
que nada mais era que descobrir a linha lógica das ações tecidas pelo dramaturgo.
No início, foi pedido aos atores que fizessem uma narração simples, clara e concisa
do conteúdo e do tema da comédia, sua trama essencial sem nenhuma divagação. “O que é
55
Stanislavski freqüentemente nos colocava em guarda contra a aproximação fria e racional à criação. Queria
ações de nós, não raciocínios.
- Quando o ator teme de mostrar sua vontade e não quer criar se coloca a discutir. Ação depende da vontade,
da intuição. O raciocínio depende do cérebro, da cabeça. O meu sistema serve a dar caminho livre à
criatividade da natureza orgânica do artista.

121
que aconteceu? Só isso.” Em seguida, o ator deveria narrá-lo não mais como alguém
estranho aos fatos, mas alguém intimamente envolvido nos acontecimentos, como se os
tivesse vivido realmente e agora quisesse capturar o interesse dos ouvintes para o
desenvolvimento dos fatos. O jovem filho de Orgon, Damis, diria:

“Meu pai encontra na igreja um famigerado bandido travestido de homem santo, e o


convida para morar na nossa casa. Eu mesmo ouço com meus próprios ouvidos, esse
canalha do Tartufo dando em cima da minha madrasta Elmira... e dentro da nossa própria
casa. Eu faço um escândalo dentro de casa e acreditem vocês, quando chega papai sou eu
que sou mandado embora, por calúnia e difamação de um mensageiro de Deus na terra.”

Orgon e sua mãe, Madame Pernella, acreditam que encontraram a salvação


espiritual em Tartufo; não só para si próprios, mas para toda a família. Os filhos de Orgon,
Damis e Mariana, a esposa Elmira, o cunhado Cleante e a criada Dorine, isto é, o restante
da família; logo percebem o eminente risco e o absurdo da situação. Toda a peça ganha em
intensidade quando Orgon decidi dar a mão de sua filha, Mariana, à Tartufo.
Após distinguir as forças em luta dentro da casa podia ser colocada a cada um dos
atores a questão: “Se la lotta si evolvesse in questo senso, da quale parte starebbe lei?
Quale sarebbe la sua posizione, la sua strategia, la logica del suo comportamento?"
(Toporkov, 1991, p.106).56
Traduziam cada cena na língua das ações físicas: verbos; e quanto mais simples
conseguissem fazê-lo, melhor seria. Assim, toda essa primeira exploração do texto já era de
natureza criativa. Era ainda um trabalho mental, mas não exclusivamente intelectual. Ele,
justamente, estimulava a participação plena e conjunta de todas as capacidades da natureza
orgânica do ator, isto é, seu instinto próprio, suas emoções e seu pensamento próprio sobre
a situação dada.
A proposta seguinte ia nesta mesma direção:
Os dois andares de camarins atrás do teatro destinado aos ensaios do grupo, foram
transformados na casa de Orgon. “Que quarto é de quem dentro da casa?” Havia 20
cômodos para 12 pessoas, e os quartos deveriam ser dados levando-se em conta o caráter de
56
Se a luta se desenvolvesse nessa direção, de que parte você estaria? Qual seria a sua posição, a sua
estratégia, a lógica do seu comportamento?

122
cada personagem envolvido na trama. Cada ator tinha que defender sua posição, dentro da
lógica de comportamento já construída anteriormente e dentro das relações com os outros,
estabelecidas por essas lógicas.
Em seguida, os atores começam a viver dentro dessa casa, vivenciando situações
cotidianas da família: um almoço coletivo, reuniões nos quartos, saídas para passear, uma
doença da patroa de casa, Elmira; e então, se aproximando da comédia começam a
representar situações como: a primeira aparição de Tartufo na casa, quando todos o tomam
por homem de Deus, o primeiro deslize de Tartufo, Orgon perde a cabeça ao notar a
descrença da sua própria família.
Note-se que estas cenas não existem na comédia de Molière, mas a proposta era
criar um ininterrupto espaço tempo poético nos ensaios que fosse continuamente
provocando situações criativas. Conta-nos Toporkov:

Ognuno di noi conosceva in tutti i dettagli la storia della famiglia di


Orgone. Cominciavamo a credere in quella storia come in una
vicenda reale, e in noi maturò il desiderio di dare vita al più presto a
quegli eventi sulla scena. (Toporkov, 1991, p. 114-115).57

O Método das Ações Físicas


A questão chave de Stanislavski sobre o estado criador começa então a ser
respondida: O ator não interpreta, não representa, não finge, mas age verdadeiramente,
autenticamente, acreditando naquilo que faz. A crença nas próprias ações era a garantia de
que o ator estivesse com seu o estado emocional livre e fluente, característica do estado
criativo. Se o ator não acredita naquilo que faz, como querer comunicar e ser convincente
em relação ao público?
O ator deveria então, para cada cena da peça, criar uma partitura contínua de ações
físicas, lógica e conseqüentemente elaboradas a partir do confronto entre as condições
dadas pelo texto e a sua própria natureza individual concreta e imediata: seus nervos, seu
instinto, seu corpo, sua capacidade de tocar, de olhar, de escutar, de cheirar, de se
movimentar, e também sua capacidade de pensar e imaginar intencionalmente:

57
Cada um de nós conhecia em todos os detalhes a estória da família de Orgon. Começávamos a acreditar
naquela estória como um acontecimento real, e em nós amadureceu o desejo de dar vida o mais cedo possível
àqueles eventos sobre a cena.

123
Non mi parlate di sentimenti, non possiamo fissare i sentimenti.
Possiamo fissare e ricordare solo le azioni fisiche. (Toporkov, 1991,
p.111.)58

Então tomemos um exemplo prático: a cena quando Orgon procura Mariana para
obrigá-la a assinar o matrimônio com Tartufo e a família tenta impedir. Stanislavski
pergunta:

Qual è qui l´azione fisica? In questo caso l`azione può essere definita
dal verbo 'nascondere'. Dovete nascondere Marianna a un padre
crudele. Come farete? Se agirete da attori, secondo i cliche, farete
così: la nasconderete dietro di voi, tenendo le braccia indietro, con
lo sguardo allarmato. Se vorrete creare autenticamente, non so che
ne verrà fuori. Ma quello che conta è 'nascondere'. (Toporkov, 1991,
p. 111.)59

Aqui Toporkov nos conta como os atores tiveram muitas dificuldades em se colocar
numa situação que fosse real para eles. Estavam ainda muito presos na idéia que tinham
elaborado para a cena: Uma reunião de parentes agitados que tomando a defesa da infeliz
Mariana, discutem tempestuosamente sobre como impedir as intenções de Orgon.
Stanislavski dá um passo à frente e começa a criar uma situação em que os atores
possam vivenciá-la fisicamente:

Che cosa state facendo? Un pazzo corre per la casa con un coltello
alla ricerca della figlia per scannarla e voi organizzate un
burrascoso consulto? Bisogna salvarla, non consultarsi...Altrimenti è
tutta una farsa. Qual è qui la linea fisica?... Da che parte può saltar
fuori il pazzo?Dovete concentrare tutta l`atenzione su quella porta,
non sulla porta in sè, ma sulla maniglia di ottone. Nel contempo
pensate a dove nascondere Marianna... Al minimo movimento della
maniglia, Marianna dovrà essere istantaneamente e accuratamente
nascosta. (Toporkov, 1991, p. 119.)60

58
Não me falem de sentimentos, nós não podemos fixar os sentimentos. Podemos fixar e lembrar somente as ações
físicas.
59
Qual é aqui a ação física? Neste caso a ação pode ser definida pelo verbo ‘esconder’. Devem esconder Mariana de um
pai cruel. Como farão? Se vocês agirem como atores, segundo o clichê, farão assim: a esconderão atrás de vocês,
mantendo os braços para trás com o olhar arregalado. Se quiserem criar autenticamente, eu não sei o que acontecerá. Mas
aquilo que conta é ‘esconder’.
60
O que estão fazendo? Um louco corre pela casa com uma faca a procura da filha para rasgá-la e vocês organizam uma
tempestuosa discussão? É preciso salvá-la, não discutir... De outro modo é tudo uma farsa. Qual é a linha física? Da onde
pode surgir o louco? Devem concentrar toda a atenção sobre aquela porta, não sobre a porta em si, mas sobre a maçaneta
de metal. Ao mesmo tempo pensem onde esconder Mariana... no mínimo movimento da maçaneta, Mariana deverá estar
instantaneamente e cuidadosamente escondida.

124
E segue dando novos passos, sempre com a intenção de criar uma autêntica vivência
física para os atores. No limite propõe um jogo simples, sem mais nenhum elemento da
comédia, sem nenhuma fala, sem mais nenhum personagem, mas somente com a pessoa
dos atores. Um ator fica atrás da porta e no momento em que começa a girar a maçaneta
todos imediatamente devem esconder a atriz, aquela que fazia o papel de Mariana, em
algum lugar da sala, antes que o ator possa adentrá-la.
Fica o exemplo. Para seguir adiante, nós mesmos teríamos que começar a jogar e
ver onde tudo isto andaria. De qualquer modo, já deixa clara e nítida a intenção de
Stanislavski que é justamente criar uma situação onde os atores, com toda a natureza
orgânica, possam vivenciar instintivamente as situações propostas pelo dramaturgo. Nada
aqui é de mentirinha, nada é falso e ao mesmo tempo tudo é um jogo.
Como se a lógica interna do comportamento cotidiano do ator - enquanto ser social
– que em grande parte do tempo é inconsciente e acidental, pudesse ser enfraquecida por
seguidas imersões no espaço tempo dos ensaios e ali ser gradualmente substituída pela
lógica do comportamento do personagem na situação dada pelo texto dramático e por ações
físicas derivadas desta situação, em confronto com a natureza imediata do ator.
Stanislavski estava tirando a atenção do ator da esfera psicológica dos sentimentos e
a conduzindo-a sobre a execução de ações puramente físicas. Assim fazendo, o diretor
introduziu aquilo que, a meu ver, foi uma das suas grandes contribuições para a arte do
ator: evidência e compreensão da lógica do comportamento instintivo que está por detrás
daquilo que motiva as ações humanas e, por conseqüencia, também as ações dos
personagens. Se o ator não localiza em si esta lógica, como pode dar criação a algo natural
e orgânico, seja lá qual for a sua estética? Seguimos com Toporkov neste valioso exemplo:
Stanislavskij si rammaricava spesso per il fatto che gli attori trascurano
quel fondamentale processo vitale che è la comunicazione, non lo
studiano e non hanno idea della serie di piccoli anelli che lo compongono
e del suo elemento essenziale: la fase di orientamento che precede
l'azione e che caratterizza il comportamento non solo dell'uomo, ma
anche di tutti gli ammali.
Ci diceva spesso:
—Fate attenzione al modo in cui un cane entra in una stanza. Che
cosa fa prima di tutto? Annusa l'aria, individua il padrone, gli si avvicina,
si fa notare da lui, e solo dopo entra in 'comunicazione' con lui. Le
persone si comportano allo stesso modo, anche se le varianti del
comportamento umano sono innumerevoli.

125
Che cosa fa l'attore invece? Fa il suo ingresso secondo la messinscena, va
dove deve andare, attacca subito discorso senza preoccuparsi se gli altri
sono disposti a ascoltarlo. Mettigli un uomo al posto di una donna , e lui
non si accorgerà neanche e gli dichiarerà il suo amore. Senza un
orientamento corretto si viola il processo vitale organico. L'attore mente,
non crede nelle proprie azioni e cade al livello della recitazione esteriore
e artificiosa. Solo osservando tutte le leggi e le sfumature del
comportamento umano, l'attore può raggiungere la sensazione della
verità sulla scena e la creatività della sua natura organica. (Toporkov,
1991. p. 126.) 61.

O elemento básico e primordial no trabalho sobre as ações físicas era o domínio


sobre o ritmo e suas variações. Todos nós possuímos um ritmo que nos é próprio, e é
predominante quando nos relacionamos com eventos da vida cotidiana. Mas se o ator agir
sempre e somente com o único ritmo que lhe é congênito, como poderá criar com eficiência
diferentes personagens?
Assim, o particular ritmo de execução da ação física era o que determinava sua
eficácia e realidade. Quando uma ação física é executada no ritmo justo, torna-se
psicofísica, pois se relacionando com o presente imediato das circunstâncias da cena,
comunica tanto para fora, para o olhar do espectador, como para dentro, para o olhar da
sensibilidade do ator que reage livre e autenticamente com seus próprios sentimentos.
Precisão na ação e espontaneidade nos sentimentos, neste contexto, são levados ao máximo
da intensidade.
Esta era a perspectiva do método das ações físicas, a última das respostas de
Stanislavski para determinar um caminho concreto e confiável até o estado criador. Um
método essencialmente prático que, no entanto, requer anos de estudo e trabalho cotidiano.

61
“Stanislavski se lamentava freqüentemente pelo fato de que os atores não observam aquele fundamental
processo vital que é a comunicação, não o estudam e não tem idéia da série de pequenos anéis que o
compõem e do seu elemento essencial: a fase de orientação que precede a ação e que caracteriza não só o
comportamento de um homem, mas também o de todos os animais.
Freqüentemente nos dizia:
- Prestem atenção ao modo como um cão entra numa sala. O que ele faz antes de qualquer outra coisa?
Cheira o ar, localiza o dono, chega perto, faz-se perceptível, e só depois entra em ‘comunicação’ com
ele. As pessoas se comportam do mesmo modo, ainda que as variações do comportamento humano
sejam inumeráveis.
O que faz o ator, ao invés? Faz a sua entrada de acordo com a encenação, vai aonde tem que ir, logo dispara
sua fala sem se preocupar se os outros estão dispostos a escutá-lo. Coloque um homem no lugar da mulher, e
ele nem mesmo perceberá e lhe declarará o seu amor. Sem uma orientação correta se viola o processo vital
orgânico. O ator mente, não acredita nas próprias ações e cai ao nível da representação exterior e artificial.
Somente observando todas as leis e detalhes do comportamento humano, o ator pode alcançar a sensação de
verdade sobre a cena e a criatividade da sua natureza orgânica.

126
Estava convicto que nada comunica a condição espiritual de uma pessoa ou personagem
mais nítida e convincentemente que o seu comportamento físico.
Mais adiante, voltando ao processo de trabalho com Tartufo narrado por Toporkov,
há um momento que chama atenção pelo nível de detalhamento e aprofundamento que se
pode chegar, quando se trabalha na reconstituição da vida humana no palco cênico. É
justamente o caminho de volta, onde os atores tornam a lidar com o material de Molière, o
seu texto escrito, suas palavras e seus personagens. Todo esse material agora, pode ser
memorizado, mas Stanislavski exige muito mais dos atores que trabalham com ele.

Non dovete dimenticare i pensieri que vi hanno condotti alla battuta che
pronunciate. Ricordate che l´uomo dice solo il dieci per cento di quello che
gli passa per la testa, il novanta per cento rimane inespresso. Sulla scena
questo si dimentica e tutti si proccupano solo di quello che viene detto,
violando così l`autenticità della vita. (Toporkov, 1991. p. 126.) 62.

Sugeria, então, que além das palavras escritas pelo dramaturgo, o ator criasse os
pensamentos que precediam cada fala do seu personagem. Esses pensamentos não eram
pronunciados, mas vividos como uma espécie de atitude interna do personagem - uma
espécie de imaginação - uma imagem que interna e intencionalmente posta em ação pelo
ator em seu mundo interior projeta a realidade assim como a vê e a escuta o personagem do
dramaturgo. Esta imagem é que faz o amalgama entre ator-personagem dizer aquelas
palavras e não outras, e que faz com que ele tenha aquele comportamento físico, e não
outro qualquer.
Ao mesmo tempo, salienta Stanislavski, toda essa construção deve ser posta em
funcionamento no momento imediato da cena. O ator deve realmente ouvir cada palavra
que está sendo dita pelos interlocutores e ir reagindo segundo a lógica dessa atitude interna.
Tudo deve permanecer e estar ligado ao presente daquilo que ocorre no jogo cênico,
momento a momento.
Toporkov, que trabalhava sobre o personagem de Orgon, nos deixou um exemplo
prático desse tipo de abordagem, escrito em seu livro. Trata-se da quarta cena do primeiro
ato, quando Orgon chega de sua viagem de dois dias no campo. Encontra Dorina, a criada e

62
Não devem se esquecer dos pensamentos que conduzem vocês até a fala que é pronunciada. Lembrem-se
que o homem diz somente dez por cento daquilo que lhe passa na cabeça, noventa por cento permanece sem
expressão. Sobre a cena isto é esquecido e todos se preocupam somente com aquilo que é dito, violando
assim, a autenticidade da vida.

127
quer saber as novidades daquilo que ocorreu na casa em sua ausência. Começa a inquirir
Dorina, que vai logo respondendo que sua esposa Elmira, teve uma terrível febre e dor de
cabeça, e para ser curada submeteu-se a uma sangria. Mas toda a preocupação de Orgon no
momento é dirigida a saber como passou o Santo Homem, seu hóspede, e repetidamente
pergunta: “E Tartufo?” Dorina carrega as tintas, contando as muitas horas de sono de
Tartufo, a quantidade de comida que ingeriu no almoço, e os muitos copos de vinho que
bebeu. A cena é extremamente cômica e bem escrita por Molière, mas muito difícil de ser
realizada na prática. Toporkov conta sobre suas dificuldades como ator e logo, então, como
Stanislavski lhe sugere de ver toda a cena e as falas adicionando uma série de suposições e
imagens internas que não estão na comédia, mas que sustentariam tudo aquilo que é dito e é
ouvido. Em itálico, segue o exemplo de um sub-texto criado por Toporkov:

DORINA - ... e ci ha ringraziati tutti.


ORGONE - Be´, grazie a Dio, è tutto a posto. Immagino come siano stati
tutti felici e soddisfatti! Nella gioia avranno dimenticato il povero Tartufo
che sicuramente ha procurato la guarigione con le sue preghiere. Forse
non gli hanno dato neanche da mangiare a quel pover´uomo e lui, per
umiltà, se ne starà seduto tutto solo nella sua cella. E Tartufo?
DORINA- Per rifondere le vene alla smunta Signora. Da vero uomo si è
dato coraggio.
ORGONE - Che cosa ha fatto, in nome di Dio! Ha dato il suo sangue? O
che altro? Per l`amor di Dio, dimmi presto...
DORINA - Si è attaccato a quel rosso della solita botte.
ORGONE - Dio mio! Lui è astemio! Quanto amore ha per tutti noi! A
dispetto della sua salute...Povero Santo!
(TOPORKOV, 1991. p.125.) 63

O segredo daquela cena estava na capacidade do ator ouvir e reagir com sua
imaginação. Ele deveria preparar o terreno com antecedência, ordenar e treinar os próprios
pensamentos e imagens, isto é exercitar-se sobretudo naquilo que não foi escrito pelo
dramaturgo, mas que estava como que subentendido dentro do texto. A fala do texto de

63
DORINA- Afinal, convencida pelas nossas razões, sua esposa resolveu permitir a sangria, o que logo a
aliviou.
ORGON – Bom, graças a Deus, tudo no lugar. Imagino como todos estejam felizes e satisfeitos! No entusiasmo devem
ter se esquecido do pobre Tartufo que certamente foi pregar pela cura com sua reza. Talvez não tenham dado nada para
comer a ele, que deve estar sentado sozinho no seu quarto... E Tartufo?
DORINA – Recobrou coragem como convém, e fortificando a alma contra todos os males, para compensar o sangue que
a senhora perdeu...
ORGON – O que fez ele em nome de Deus! Doou seu sangue? Ou o que? Pelo amor de Deus, diga...
DORINA - ... bebeu, no almoço, quatro bons copos de vinho.
ORGON – Deus meu! Ele é abstêmio! Quanto amor possui por todos nós! Deixando de lado sua própria saúde... Pobre
Homem!

128
Molière viria, então, naturalmente e com a entonação justa. É de se notar como Stanislavski
tinha uma compreensão intuitiva e prática do funcionamento da psicologia humana e a
utilizava em favor da criação artística.

Morte de Stanislavski e a Montagem do Espetáculo.


São incontáveis, os inspiradores exemplos que podemos extrair do livro de
Toporkov, que bem mereceria uma edição em língua portuguesa. Tanto nesse livro como
naqueles escritos por seu próprio punho, Stanislavski deixou como herança um
conhecimento que viria a influenciar, de um modo ou de outro, quase todo o teatro
ocidental do século vinte e vinte um.
Após dois anos de trabalhos com este pequeno grupo de atores, Stanislavski vem a
falecer no dia 6 de Agosto de 1938. Os atores decidiram encerrar o processo de pesquisa e
iniciar a montagem definitiva do espetáculo sob a direção de Kedrov, o assistente de
Stanislavski que também fazia o papel de Tartufo. Para isto deveriam fazer um ensaio
aberto ao diretor do Teatro de Arte, para que este desse o aval oficial para a montagem do
espetáculo que viria a estrear em Moscou em dezembro do ano seguinte. Vale a pena seguir
o depoimento do diretor ao final do ensaio aberto de dois atos da peça, conforme nos relata
Toporkov:

Non avrei mai pensato che fosse possibile recitare una


commedia molieriana rendendo così convincente la vita sulla cena.
Nel vostro caso, non si direbbe che gli attori entrino in scena dalle
quinte, al contrario, sembra che entrino in una stanza vera per fare
qualcosa di molto importante per loro. Ciascuno di voi è legato agli
altri da una fitta trama di relazione familiari. Ho veramente creduto
che Elmira fosse la moglie di Orgone e Marianna loro figlia, e non
attori e attrici alle prese con dei personaggi... Mi avete davvero
risparmiato la tradizionale stereotipata interpretazione di Moliere,
ancora viva in tutti i teatri del mondo... facendo piazza pulita degli
abiti logori dei clichè. (Toporkov, 1991, p. 141) 64.

64
Nunca poderia pensar que seria possível representar uma comédia 'molieriana' tornando tão convincente a vida sobre a
cena. Não se diria que os atores entrem em cena das coxias, ao contrário, parece que entram em um quarto real para fazer
algo de muito importante para eles. Cada um de vocês está ligado aos outros por uma bem tecida trama de relações
familiares. Eu realmente acreditei que Elmira fosse a mulher de Orgon e Mariana a filha deles e não atores e atrizes
ocupados com alguns personagens...Vocês realmente me pouparam de ver a tradicional e estereotipada representação de
Moliere ainda viva em todos os teatros do mundo, ...fazendo uma faxina completa nos gastos hábitos dos clichês.

129
O diretor artístico não fala algo que difere um mínimo daquilo que Stanislavski
descobriu para si mesmo - sobre as diferenças entre o estado criador e o estado típico do
ator - mais de trinta anos antes, naquelas férias finlandesas. Revela a constância e o
aprofundamento sistemático de uma única e mesma pesquisa que certamente teria
prosseguimento, como ele mesmo afirmou, se pudesse nascer uma segunda vez começando
sua carreira do início.

Conclusão – Os seguidores do trabalho do ator sobre si mesmo.

As inovações experimentais de Stanislavski, em busca de uma técnica criativa para


o ator, estavam como que semeando aquilo que viria com o tempo, isto é, a independência
criativa do ator que vai, no decorrer do século, tornando-se cada vez mais autônomo em
relação à tradição teatral literária.
Como vimos nessas experiências com Tartufo, o resgate da linha física da
dramaturgia; a não memorização do texto; a recusa por uma marcação de cena; a recusa ao
racionalismo; a criação deliberada de um espaço tempo poético nos ensaios com jogos que
estimulassem a plena imersão e vivência dos atores no tema da peça; o trabalho sobre o
ritmo, o incentivo ao ator para inventar subtextos e imagens paralelas ao texto do
dramaturgo; todos esses procedimentos assim como toda a obra de Stanislavski apontavam,
na verdade, para uma única direção: o elemento essencial do teatro é a qualidade da
presença do ator em cena. Em torno dessa plena concentração de toda a natureza
espiritual e física, ergue-se a cena e seu conteúdo poético.
Num certo ponto, percebe-se que não se trata mais somente de trabalho artístico,
nem somente de conhecimento especializado do ator, mas trabalho e conhecimento do
homem sobre ele mesmo. É inevitável. Para se compreender e dar continuidade a pesquisa
de Stanislavski no teatro é inevitável que se ultrapasse as formais especializações
compartimentalizadas do conhecimento e se mergulhe no vazio aberto pela evidente e
desconhecida dimensão criativa do fenômeno humano, assim como pela evidente e
inevitável lógica instintiva deste fenômeno. A fala, a escrita e a linguagem tornam-se
importantes na medida em que podem auxiliar ou bloquear a prática desse processo.
Aqueles que prosseguirão com a pesquisa de Stanislavski no decorrer do século XX, em
maior ou menor grau, irão realizar esta ultrapassagem.

130
4.2 Sobre Jerzy Grotowski

“Não existe o estar parado, só a evolução ou a involução.” 65

4.2.1 – Redescobrindo Grotowski.


Quem deu seqüência a todo este trabalho e conhecimento acumulado por
Stanislavski foi o polonês Jerzy Grotowski, que mesmo não tendo contato direto, não só
repassou por tudo aquilo que Stanislavski descobriu como o aprofundou em uma ordem
exponencial. Basta citar o espetáculo de “O Príncipe Constante” de 1965, disponível em
vídeo, onde Grotowski propõe o rompimento do vínculo do ator com a sua personagem. Se,
como dizia Stanislavski, o teatro começa quando não existe o personagem, mas o ‘eu’ do
ator nas circunstâncias dadas, o teatro se intensifica exponencialmente quando todo o
trabalho de composição está baseado numa vivência real e importante da própria existência
pessoal do ator, sem qualquer vínculo com a estória que está sendo contada ao público. O
trabalho de construção do personagem não é mais um afazer do ator, mas sim do diretor
que cria a ilusão da sua existência através da encenação. Foi o início de uma longa aventura
que culminou na fundação do “Workcenter of Jerzy Grotowsky and Thomas Richards” com
o trabalho sobre a ‘Arte como Veículo’.
Na viagem a Buenos Aires, junto com os livros de Stanislavski, encontrei um
pequeno livro que também deu um novo e significativo impulso a essa pesquisa. Seu nome:
“La parábola de Grotowski: el secreto del “novecento” teatral.”, uma transcrição de um
seminário dado por Marcos De Marinis, pesquisador da Universidade de Bolonha - Itália,
na Universidade de Buenos Aires em Agosto de 2001.
O livro desfaz de modo preciso uma série de preconceitos e mal entendidos
acumulados em torno da figura de Jerzy Grotowski que veio a falecer em 1999.
Alguns trechos esclarecedores sobre o trabalho de Grotowski mostram de que modo
ele pode ser legitimamente considerado como um herdeiro e um prosseguidor dos trabalhos
de Stanislavski:

65
Em (RICHARDS, 1993. p.15.)

131
“O percurso artístico de Grotowski se caracteriza por diversas mudanças de rumo,
o mais importante dos quais é a decisão de não fazer mais espetáculos. Porém, podemos
formular a hipótese de que, mais além destas mudanças e por debaixo delas, existe uma
continuidade profunda que unifica toda a investigação de Grotowski. E este fio condutor
profundo que percorre desde o princípio até o final de seu trabalho dando-lhe unidade, é o
que Stanislavski denominou de o “trabalho sobre si mesmo.”
(De Marinis, 2004, p. 24.)

Com a ajuda de Fernando Taviani e seu artigo ‘Grotowski Posdomani’66, De Marinis


reformula o conceito de Stanislavski e nomeia esse trabalho mais especificamente como
sendo um ‘Ioga do Ator’, um ‘ioga’ a partir do saber profissional do ator.
E novamente nos deparamos com a palavra ‘ioga’, sendo utilizada para caracterizar
uma qualidade de trabalho possível de ser encontrada no trabalho do ator ocidental do
século XX.
Não nos resulta mais forçado falar de ‘Ioga’ no caso de Stanislavski, nem no de
Grotowski, pois ambos parecem terem tido interesse e contato com a cultura hindu.
No caso de Grotowski esse interesse e contato já eram sabidos e visíveis na sua
própria expressão intelectual. De Marinis conta da importante influência que a filosofia
Hindu e a figura do sábio indiano Ramana Maharshi, morto em 1950, teve sobre a vida
pessoal de Grotowski desde muito pequeno quando ganhou de presente de sua mãe o livro
de Paul Brunton: ‘A Índia Secreta.’ Em ‘Aranuchala’, montanha no sul da Índia, onde
viveu Maharshi, estão depositadas as cinzas de Grotowski.
Fernando Taviani em “Grotowski Posdomani”, como nos conta De Marinis, define
quatro principais características essenciais desse ‘ioga do ator’, construído em torno da
trajetória artística de Grotowski:

“1 – Se trata de uma disciplina que conjuga a prática física com a mental.


2 – Se trata de uma disciplina que tende à superação da condição biográfica, que
passa através da dimensão do subjetivo, do pessoal e que propicia a identificação entre
‘brahman’ e ‘atman’ (espírito universal e espírito individual)
3 – Se trata de uma disciplina que se baseia em partituras detalhadas e definidas,
em estruturas técnicas e exercícios que nos permitem sair da mecanicidade, da repetição
da vida cotidiana e reencontrar o fluxo vital no aqui e agora, na ‘experiência do presente
no presente’. Porque, tal como observa Grotowski, praticamente em nenhum momento
conseguimos estar verdadeira e completamente no presente, entregues àquilo que estamos
fazendo, de modo que ou estamos pensando no que devemos fazer ou no que fizemos. O

66
‘Teatro e Storia’ número 20, de 1998-1999.

132
objetivo seria, então, conseguir compenetrar-se com o que se faz e aprender a viver o
presente no presente.
4 – Se trata de uma disciplina que nos provê, em seus estados intermédios, de
certos instrumentos e de certa competência técnica que em seguida poderão ser utilizados
com fins profissionais – no caso do ator – ou com fins pessoais, na própria vida.” (De
Marinis, 2004, p.25 e p.89.)

Interessante confrontar o item 3 com aquela declaração de Stanislavski colhida


numa entrevista, em 1922:

“Em uma conversa com o correspondente da revista ‘Studia’, Stanislavski


afirma, no dia 29 de Abril de 1922, que “começou o estudo da psicologia da atividade
artística” ao descobrir, durante a décima quinta representação de uma obra que tinha
grande êxito de público, que desempenhava seu papel pensando em temas alheios à peça.”
(Stanislavski, 1977. prefácio de G. Kristi à obra. p. 17.)

O mais importante aqui é a coincidência do princípio norteador de ambas as


pesquisas, tanto a de Stanislavski como a de Grotowski: a percepção de um nível
automático da existência humana e a possível transcendência desse nível, pelo menos
dentro da esfera da atividade artística.
Conforme foi assinalado no item dedicado ao prólogo do livro de Stanislavski,
podemos ver que ambos os trabalhos insistem numa ‘convocação máxima de si mesmo’ ou
seja, numa conjugação da prática física, mental e emocional. Sobre o aspecto emocional no
trabalho de Grotowski, principalmente a partir do espetáculo “O Príncipe Constante”,
vamos falar a seguir, utilizando uma referência dada por De Marinis em sua conferência.
Ambos os trabalhos sugerem uma superação da condição biográfica, uma
universalidade; e também a presença marcante de uma técnica ou de uma psicotécnica
específica inerente ao trabalho prático. O método das ações físicas desenvolvido por
Stanislavski em seus últimos anos, irá ser a base técnica sobre a qual Grotowski
desenvolverá todo o seu trabalho artístico, utilizando-o inclusive na sua última fase de
trabalho que culminou com a fundação do “Workcenter of Jerzy Grotowski and Thomas
Richards”, em plena atividade nos dias de hoje.
Ainda que seguindo princípios coincidentes, existem grandes diferenças entre os
dois trabalhos, o que é absolutamente natural e próprio de pesquisadores que de posse das
perguntas certas vão aprofundando e desenvolvendo diferentes respostas ao longo do
tempo, segundo seus interesses.

133
No trabalho de Grotowski, por exemplo, essa percepção e possível transcendência
de um nível automático de existência humana tornam-se - num primeiro momento de sua
companhia, de 1959 a 1963 - o objetivo a ser atingido pelo espetáculo, tornando-o algo que
muito se assemelharia a um trabalho ritual coletivo:

“Uma vez que justamente os ritos primitivos deram vida ao teatro, eu acreditava que, por
meio do retorno ao ritual – em que participam como duas partes, os atores, isto é, os
corifeus, e os espectadores, isto é, justamente os participantes – fosse possível aquele
cerimonial da participação direta, viva, uma reciprocidade peculiar (fenômeno um tanto
raro nos nossos tempos), a reação imediata, aberta, liberada e autêntica.” (‘Teatro e
Ritual’ em Grotowski & Flaszen, 2007, p. 120)

Os espetáculos desse primeiro período eram criados em torno da possibilidade de


‘influir sobre a esfera inconsciente da vida humana em escala coletiva’:

“Eu delinearia os princípios da prática teatral de que se está falando: Encontrar e plasmar
no espetáculo o arquétipo (aquilo que na pré-história do teatro constituía o objeto do
mistério, o ponto “mágico” de convergência de todos os participantes). Revelar a função
do arquétipo no “inconsciente coletivo” 67, “atacá-lo”, colocá-lo em movimento, fazê-lo
vibrar, laicizá-lo, utilizá-lo como uma espécie de modelo-metáfora da condição humana,
tirar o arquétipo do “inconsciente coletivo” e levá-lo à “consciência coletiva”. Para isso
serve no espetáculo o choque dos opostos, dos aspectos contraditórios, das associações e
convenções contraditórias, a dialética da teatralidade, ou – como a definiu Kudlinski – “a
dialética da derrisão e da apoteose”. (Grotowski, 2007, p.53)

Cito o inteiro parágrafo, pois nota-se como, naquele momento, para Grotowski e seu
grupo fosse importante ‘acelerar’, através da ‘dialética da derrisão e da apoteose’, aquilo
que era um valor comum para a sociedade polonesa da época como um todo - ‘a
transcendência’ da religião cristã, por exemplo - que sentiam como um valor asfixiado e
preso dentro de uma estrutura social. Tentam fazê-lo com o máximo de cautela, criatividade
e jogo político de modo a não provocar reações contrárias e explosivas vindas da Igreja e
do Estado Socialista. Os termos ‘atacá-lo’, ‘colocá-lo em movimento’, ‘fazê-lo vibrar’
coincidem bastante com a terminologia de Deleuze & Guattari que estudamos68; como se o

67
Grotowski não se refere exatamente à Jung. Diz na pg.51 “... funciona como uma metáfora operacional;
trata-se da possibilidade de influir sobre a esfera inconsciente da vida humana em escala coletiva.” Entendi o
‘inconsciente coletivo’ no seu sentido literal. Um arquétipo que age sobre o coletivo humano de uma forma
inconsciente, sem que as pessoas, elas mesmas, percebam que estão sendo influenciadas por ele.
68
Ver estudos auxiliares, Anexo 1, p. 428.

134
‘valor’ pudesse ser arrancado do Plano de Organização e ‘posto em movimento’ numa
Zona de Intensidade, através do espetáculo.
E para ‘fazer vibrar’ o mito como um verdadeiro rito, a ‘dialética da derrisão e da
apoteose’, evidentemente, rompia com aquela estética realista cara a Stanislavski. Desde os
primeiros anos, desfazendo-se das tradicionais convenções do teatro tradicional europeu,
símbolos e códigos foram livremente explorados dentro das áreas de cenografia, figurino,
iluminação, disposição e relação entre palco e platéia, texto, etc. Tal escolha, naturalmente,
recaiu diretamente sobre o alargamento das possibilidades expressivas do corpo e da voz do
ator, inaugurando um amplo campo de pesquisa sobre o trabalho técnico psicofísico. Anos
mais tarde, todas essas explorações se aglutinariam em torno daquele princípio
ético/estético fundamental e caro a Grotowski: o ‘Teatro Pobre’, o teatro onde, de fato, só é
essencialmente necessária a presença do ator e do espectador.
Por algumas razões, Grotowski e seu grupo, com o tempo, decidem abandonar a
idéia do espetáculo como ritual coletivo. Dentre estas razões, uma delas surge como uma
definida percepção das sociedades modernas ocidentais, exatamente a mesma percepção a
que chega Victor Turner nos seus estudos sobre Teatro, Ritual, o liminar e o ‘liminóide’. 69:

‘A um certo momento cheguei à conclusão de que era preciso abandonar essa


concepção de teatro ritual, porque hoje ele não é possível, por causa da falta de crenças
professadas universalmente. [...] Eu considerava, então, que não teria sido mais possível
ressuscitar no teatro o ritual pela ausência de uma fé exclusiva, a ausência de um sistema
único de signos míticos e de um sistema único de imagens primárias.’ (Grotowski, 2007, p.
127)

E sempre nesse texto de Grotowski: ´Teatro e Ritual’; constituído a partir de uma


conferência feita em 1968 na Polônia, desenvolve a idéia da “Torre de Babel” com uma
grande lucidez antropológica e psicológica:

“Parece-me de fato que hoje não só cada coletividade tradicional tenha se tornado
uma torre de Babel, na qual as línguas sofreram uma nova mistura e na qual se esvaíram
as crenças comuns, mas também cada homem é uma torre de Babel, porque na base do seu
ser não há um sistema uniforme de valores...; depois, (vocês) têm essa vida dividida entre
diversos círculos sociais, pequenos pensamentozinhos, diria crenças pela metade para uso

69
Justamente a questão que já abordamos na página 87, sobre as diferenças entre o ‘liminar’ e o’liminóide’.
Em ‘Liminal to Liminoid, in Play, Flow, and Ritual’ na página 54 desta que foi sua ultima publicação: From
Ritual to Theatre: The Human Seriousness of Play. New York: PAJ.1982.

135
da família, dos colegas, do ambiente de trabalho; mas na base disso tudo há no profundo
do seu ser algo como um esconderijo secreto, onde turbilhonam aspirações, crenças
autênticas, a fé abandonada; eis a verdadeira Torre de Babel. Vocês são assim porque
nenhum de vocês quer reconciliar-se com o próprio ser.” (Grotowski, 2007, p. 126)

Localiza a condição do ‘homem dividido’. Está em completa ressonância com o


ensinamento de Gurdjieff-Ouspensky que estudamos; mesmo que Grotowski não tenha sido
diretamente influenciado por estes, e só os tenha conhecido, como ele mesmo afirma, após
ter preparado o seu livro ‘Em Busca de um Teatro Pobre.’ 70
De Marinis, em sua conferência chama atenção sobre o fato de que as motivações
originais que levaram Grotowski ao teatro não eram teatrais nem vinculadas a um interesse
artístico; sempre foram vinculadas a um interesse pelo ser humano, pelo outro e por si
mesmo. O teatro foi só um meio para realizar esse interesse.
Da percepção de um nível automático da existência humana e a possível
transcendência desse nível numa escala coletiva, Grotowski segue dando passos cada vez
mais circunscritos sobre a resolução desse problema numa escala individual. Como se a
cisão do indivíduo - e não a da sociedade - fosse despontando, mais e mais, como principal
questão a ser resolvida.
Por essa razão, me parece, é que Grotowski chega ao rompimento do vínculo do ator
com a sua personagem em “O Príncipe Constante” de 1965. O espetáculo levou dois anos
para ser preparado e especificamente com Ryszard Cieslak, que fazia o papel do príncipe,
Grotowski trabalhou por meses a fio num processo completamente isolado dos outros
atores.
A questão da cisão do indivíduo - e a conseqüente cisão do ator - aparece, de uma
forma ou de outra, em quase todos os textos do livro Em Busca do Teatro Pobre. São
muitos os termos cunhados por Grotowski, na década de 60, para tentar cercar o processo
pelo qual o ator deveria passar para chegar a uma alta qualidade humana no momento da
realização do espetáculo. ‘Rasgar as máscaras’, ‘auto-penetração’, ‘confissão pessoal’, ‘ir
além de si mesmo’, ‘transe’, ‘via negativa’, ‘auto-revelação’, ‘ato total’, ‘ator santo’; são
alguns desses termos que vão sendo utilizados, descartados e desenvolvidos durante a fase
teatral do Teatro Laboratório. Há um admirável trabalho feito por Tatiana Motta Lima da

70
Na entrevista ‘A Kind of Vucano.’ (Grotowski, entrevista em: “Gurdjieff: Essays and Reflections on the
Man and His Teaching”, 1996.)

136
UNIRIO que estuda justamente o processo de evolução desses termos nos escritos de
Grotowski. Tese de doutorado recente e ainda não publicada, cujo título é: “Les Mots
Pratiques: relação entre terminologia e prática no percurso artístico de Grotowski entre os
anos 1959 e 1974.”
E Grotowski segue fechando o círculo em torno de experiências que envolvem cada
vez mais a pessoa do indivíduo e a qualidade das relações dentro do Teatro Laboratório.
Isso ocorre no processo de criação de ‘Apocalypsis cum figuris’, o último espetáculo do
grupo, ocorre ao abandonar a criação de novos espetáculos e propor as experiências
Parateatrais, e depois no Teatro das Fontes, estudando com grupos de iniciados em técnicas
rituais de diferentes tradições; até chegar à fase final de sua pesquisa: “A Arte como
Veículo” – que é o momento culminante desta concepção do teatro como trabalho sobre si
mesmo.
Turner em seu livro ‘From Ritual to Theatre’ de 1982, faz em seu último artigo - “A
representação na vida cotidiana e a vida cotidiana na representação”- uma crítica
contundente ao período de trabalho parateatral de Grotowski, revelando uma suposta falta
de cuidado com os participantes no período pós-liminar da experiência, algo que não
ocorreria numa tribo onde o ritual é socialmente previsto e cuidadosamente acompanhado
até as suas últimas fases. Essas críticas, interessantes para a perspectiva do olhar
antropológico de Turner, perdem a relevância ao seguirmos a trajetória do restante trabalho
de Grotowski que, a seu modo, percebe a vulnerabilidade e as limitações das atividades
parateatrais.71
Segue sua pesquisa e afastando-se, intencionalmente, da forma externa do ritual
chega, vinte anos depois, naquilo que chamou de objetividade do ritual: o aspecto da
verticalidade no trabalho individual, não mais do ator, mas do atuante, o ‘Performer’.
Afastando-se do ritual como forma exterior sedimentada, chega ao seu significado mais
interno e invisível, que talvez constitua a função de origem de todos os autênticos rituais
executados pela espécie humana em sua história.

71
Em “Da Companhia Teatral à Arte como Veículo” (Grotowski & Flaszen, 2007, p. 231)

137
Se compararmos o material que levantamos sobre as práticas artísticas influenciadas
pela tradição zen budista e o estado de Vazio72, com uma colocação de Grotowski sobre o
aspecto da verticalidade na ‘Arte como Veículo’, iremos notar essa grande semelhança:

“Não se trata de renunciar a uma parte da nossa natureza; tudo deve ter o seu
lugar natural: o corpo, o coração, a cabeça, algo que está “sob nossos pés” e algo que
está “sobre a cabeça”. Tudo como uma linha vertical, e esta verticalidade deve ser
esticada entre a organicidade e o ‘the awareness’. Awareness, quer dizer a consciência
que não é ligada à linguagem (à máquina para pensar), mas à Presença.” (Grotowski,
2007.p. 235.)

Stanislavski e Grotowski – método das ações físicas e organicidade


Mais especificamente sobre a técnica herdada de Stanislavski, e utilizada como base
primordial do trabalho prático da época teatral - o método das ações físicas - De Marinis
chama a atenção para fundamentais diferenças que estão analisadas e aprofundadas no livro
de Thoma Richards: “Al Lavoro com Grotowski sulle azione fisiche.” São elas:
1- A primeira grande diferença é aquela que já mencionamos, isto é: a
centralidade do personagem no método de Stanislavski desaparece do
trabalho de Grotowski a partir de “O Príncipe Constante”.
2- A segunda grande diferença, estreitamente ligada à primeira é o fato de
que Stanislavski, como vimos, coloca as ações físicas sobre um plano
cotidiano e social vinculado às circunstâncias da peça e do personagem,
enquanto que para Grotowski as partituras físicas são construídas - desde o
Príncipe Constante - em torno a uma importante experiência da vida
pessoal do sujeito. Mais especificamente em “O Príncipe Constante”,
utiliza um momento passado que criou vívida memória no corpo do ator,
isto é, no seu corpo-memória, como pretexto ou trampolim para a criação
do espetáculo. Diríamos nós, passou a utilizar como matéria prima da cena
a própria experiência liminar da pessoa do ator.
3- O objetivo do método de Stanislavski era criar uma ‘vida real’ e
‘verdadeira’ no espetáculo, enquanto que para Grotowski, principalmente
a partir de ‘O Príncipe Constante’ torna-se um instrumento psicofísico de
busca do ‘Ato Total’ do ator. Precisão e espontaneidade - levadas ao

72
Ver estudos auxiliares, Anexo 1, página 440.

138
máximo de intensidade dentro da partitura do ‘ator’ - criam o paradoxo
necessário para acender o seu ato que segue numa direção que vai muito
além do ator, da profissão e do espetáculo. É o que Turner chamou de
experiência quase sagrada e liminar através de um corpo liberto e
disciplinado, utilizado em suas possibilidades expressivas mais altas.
Em conseqüência desses três aspectos, há uma distinção fundamental no conceito
de ‘organicidade’ utilizado por ambos, Stanislavski e Grotowski, quando se referiam à
qualidade de execução de uma partitura de ações físicas. Enquanto que para Stanislavski a
‘organicidade’ estava relacionada ao ritmo natural das ações de um comportamento social
lógico e seqüencialmente composto73; para Grotowski a ‘organicidade’ indica algo como
um potencial no corpo humano, uma espécie de corrente quase biológica de impulsos
viventes que nascem da base da coluna, são corporais, e, ao mesmo tempo, são ligados à
possibilidade de mudança do estado de consciência.
Para compreender corretamente a ‘organicidade’ no sentido dado por Grotowski,
deve-se ler esta importante passagem que se refere contemporaneamente ao conceito de
‘essência’ e ‘personalidade’ o mesmo que apresentamos a partir da obra de Gurdjieff-
Ouspensky,:

O que é a organicidade? É viver de acordo com as leis naturais, mas isto em um


nível primário. O nosso corpo é um animal, não nos esqueçamos. Não estou
dizendo: somos animais, digo: o nosso corpo é um animal. Então a organicidade é
ligada ao aspecto criança. A criança é quase sempre orgânica. A organicidade é
algo que se tem mais quando se é jovem, menos quando se envelhece.
Evidentemente é possível prolongar a vida da organicidade lutando contra os
hábitos adquiridos, a alienação da vida corrente, quebrando, eliminando os clichês
de comportamento e, antes da reação complexa, retornando às reações primárias.
(Grotowski em “A Kind of Volcano”, 1996. - traduzido do original inglês.)

E de posse desses conceitos podemos entender com mais clareza a distinção entre a
‘organicidade’ de Stanislavski e aquela de Grotowski. Porque a primeira refere-se à
‘organicidade’ que um dado ator consegue obter ao colocar-se nas condições dadas a um
personagem fictício, mas social, no sentido que está dentro do contexto de uma peça dramática

73
“O esquema das ações físicas é o esqueleto sobre o qual se desenvolvem os elementos que constituem a
essência do personagem. Ao mesmo tempo ele age como instrumento de controle da organicidade do
comportamento cênico e como revelador de todos os sentimentos e as revivescências do personagem.”
(Toporkov, 1991. p.146.)

139
realista. O ator está trabalhando na ‘organicidade’ da composição que faz desse ‘personagem’,
um emaranhado de reações complexas que devem ser estudadas a fundo pelo ator a partir da
dramaturgia. Stanislavski adverte seus atores de que o teatro começa quando não existe o
personagem, mas o ‘eu’ do ator nas circunstâncias dadas, mas não sabemos, de fato, se
estava se referindo ao ‘eu’ do ator do mesmo modo que esse estado que apresentamos como
essência. É muito provável que sim, que aquilo que chamava de ‘natureza orgânica’ do ator
corresponda à sua essência que consegue plasmar-se, fundir-se com essas reações
complexas da ‘personagem’ do dramaturgo. Acredito que é a esse evento que Stanislavski
nomeava como processo da personificação, isto é, a concepção e nascimento de um novo
ser: a pessoa no papel.74
Para Grotowski que abandonou o vínculo entre ator e personagem, esse sentido de
‘organicidade’ já não é mais utilizável, e menos ainda quando deixa de fazer espetáculos.
É muito provável que aquilo que descobriu com a experiência de ‘O Príncipe
Constante’, mais adiante, o tenha levado a deixar de lado os espetáculos e o
profissionalismo da cena em direção à ‘Parateatralidade’, ao ‘Teatro da Fontes’ e enfim à
‘Arte como Veículo’. Diz Ludwik Flaszen no prefácio de um livro de textos de Grotowski
da época teatral, publicado postumamente:

No início era a partitura de signos corporais e vocais, composta artificialmente.


Depois a partitura das “reações fixadas”, dos “pontos de contato”, enfim a reproduzível
‘corrente de impulsos visíveis’. A organicidade no estado puro que é a zona intermédia
entre o que é corporal e o que é espiritual. O santo Graal de Grotowski. (‘Grotowski &
Flaszen, 2007, p. 27)

Assim, ‘organicidade’ refere-se mais ao ator e ao ‘performer’ que num processo


continuado de trabalho sobre si mesmo consegue entrar em contato com seu corpo-vida -
uma condição psicofísica que privilegia mais as suas reações primárias, a sua essência, o
seu instinto animal primário, a criança que ainda possui dentro; e menos as suas reações
complexas, a sua personalidade. Thomas Richards fala desse momento em seu trabalho
com Grotowski:
“Naquela caminhada Grotowski tinha visto as sementes de algo que ainda nem
mesmo podia perceber. Disse que eram as sementes da ‘organicidade’. Não sabia
exatamente o que isto significava. Entendia somente que queria dizer não forçado, algo de

74
Stanislavski, 1999, p.323.

140
natural, natural como são os movimentos de um gato. Se observo um gato noto que cada
um dos seus movimentos está no seu lugar, porque o corpo pensa por si mesmo. No gato
não tem uma mente discursiva, bloqueando a reação orgânica imediata. A organicidade
pode existir também no homem, mas é quase sempre bloqueada por uma mente que não
está fazendo o próprio trabalho, uma mente que tenta conduzir o corpo, que está pensando
rapidamente, dizendo ao corpo o que fazer e como.” (Richards, 1993, p. 76 - traduzido do
original italiano.)

O surgimento da corrente de impulsos viventes na ‘essência’, pode ser vislumbrado


por qualquer um na vida comum, diante de algum forte choque externo, uma situação
emergencial ou de grande felicidade, quando simplesmente fluímos, quando não comparece
nenhum pensamento e não temos a pretensão de ser ou parecer qualquer coisa. Quando
liberto do medo, do apego e de inúmeras e ‘complexas’ expectativas da personalidade, a
experiência sexual pode ser um bom exemplo de organicidade psicofísica no ser humano.
Não é à toa que o momento passado que criou vívida memória no corpo de Cieslak, e que
foi usado como trampolim para a criação do ‘Príncipe Constante’, foi um momento da sua
juventude onde teve contato com sua sensualidade na intensidade de uma ‘prece carnal’.75
Em maio de 1969, um ano e meio antes do Teatro Laboratório anunciar o abandono
da atividade profissional espetacular, Grotowski faz duas conferências para estagiários
sobre fundamentos da técnica expressiva do ator: os exercícios para corpo e a utilização da
voz.
Nestas conferências Grotowski faz um traçado cronológico das buscas e indagações
experimentais que ele e seu grupo fizeram, ao longo dos anos, dentro dessas duas áreas de
trabalho. Com um admirável conhecimento do ofício, expõe, historicamente, como tanto o
ator ocidental quanto o oriental lidaram com essas questões técnicas em diferentes estéticas
e tradições. E, em ambas as conferências, após discorrer por inúmeros problemas práticos e
objetivos que surgem para aquele que tenta adquirir técnicas psicofísicas para a sua
profissão, técnicas essas, muitas vezes, inapropriadamente importadas de outros contextos e
culturas; chega ao ponto central do paradoxo da técnica em arte e a fragilidade daquilo que,
usualmente, se pensa como ‘formação’ do ator:

75
No depoimento de Grotowski em RYSZARD CIESLAK, Acteuremblème des années soixante. Obra
coletiva sobre a direção de Georges Banu. Editora: ACTES SUDPAPIERS-1992.

141
A presença da técnica não é o mesmo que a presença do Ato. A técnica pode ser
(em graus diversos) um sintoma de um Ato sub-rogado. Se executamos o Ato, a técnica
existe por si mesma. A técnica fria, consciente serve para evitar o Ato, para nos esconder,
para nos cobrir. (‘Exercícios’ em Grotowski & Flaszen, 2007, p. 179.)

Claro que quando está falando em Ato, está falando da dimensão criativa do ator.
E não há, aí, nenhuma negação do trabalho sobre a precisão, estruturação e
elaboração técnica formal por parte do ator. Combate esse lado da margem, chamando a
atenção de que sem isso a expressão se torna como ‘uma espécie de plasma’ que tende ao
histerismo e à excitação nervosa por um lado ou, por outro, à astenia e à frouxidão amorfa.
Do outro lado da margem, entra, por assim dizer, no combate ao perfeccionismo, à
especialização e ao auto-aperfeiçoamento de uma coleção de habilidades psicofísicas que se
encerram em si mesmas.
A estruturação é somente o primeiro passo; encontrar a semente da criatividade é o
segundo. Como numa brincadeira de criança ou num jogo cativante, quem vai fluir no
tempo e no espaço, desestruturando e reestruturando criativamente as formas psicofísicas
apreendidas, é o, assim chamado, “corpo-memória” ou “corpo vida”: a corrente de
impulsos viventes do “rio de nossa vida” orgânica cujos afluentes e nascentes se ligam a
territórios ‘liminares’ dentro de nossa própria pessoa. O trecho que selecionamos a seguir
aponta para esta ulterior passagem:
Aqui não se trata da precisão externa que existe nos detalhes dos exercícios
plásticos, mas os elementos estão presentes e não ditamos a nós mesmos a natural
pulsação durante as evoluções. “Isto” se dita; “Isto” se faz. Por fim, começam a intervir
os conteúdos viventes do nosso passado (ou do nosso futuro?) (‘Exercícios’ em Grotowski
& Flaszen, 2007, p. 177.)

“Isto” se dita, “Isto” se faz; significa que nem é a mente que está comandando e
nem acontece por acaso, mas “Isto” acontece em relação com a nossa vida, com o nosso
“corpo-vida”, um corpo que é a memória da nossa existência psicofísica, mas também é a
memória do Ser da nossa existência. Criar e aperfeiçoar a memória de habilidades técnicas
em nosso corpo, se encerrando nelas, torna-se ínfimo diante dessa nova perspectiva.
Na conferência que faz sobre a utilização da voz, tema caro a Grotowski, ele nos dá
uma dimensão desta inversão de prioridades quando nos conta do processo de descoberta
dos ‘ressonadores’ ou ‘vibradores’ vocais dentro do Teatro Laboratório.

142
À medida que ia coletando conhecimento das mais diversas fontes sobre o assunto
(ópera italiana, ópera de Pequim, escolas de teatro da tradição, cantores famosos, anônimos
professores de voz, etc.) começa a se dar conta que uma das principais dificuldades que um
ator enfrenta ao lidar com sua voz é a racionalização, isto é, tratá-la como um instrumento
que devesse ser observado e manipulado com a mente. Descobre também, pela observação
empírica, que diferentes tipos de som, vozes e cantos naturais fazem ressoar determinadas
partes do corpo. A língua chinesa com seus agudos, o mugido da vaca com seus graves e a
voz de Louis Armstrong demonstravam que o som se produzia nas cordas vocais, mas que
ele ressoava e se expandia em determinadas regiões do corpo como aquela posterior e
superior da cabeça, ou no abdômen, ou no peito, ou até mesmo na laringe. Começou a
encontrar, tecnicamente, junto com seus atores, as mais diversas possibilidades de
“ressonadores” no corpo descobrindo, assim, uma fantástica gama de tonalidades e matizes
para a voz. Mas num determinado momento começa a desconfiar da dureza e mecanicidade
daquelas vozes. E revela:
[Essa voz]: não era viva. Observei que, no trabalho, os atores podiam usar – se
procuravam certas formas vocais – as cores premeditadas da voz. Mas se começavam a
agir com a totalidade do seu ser, era uma outra coisa completamente diferente, [...] (‘A
voz’ em Grotowski & Flaszen, 2007, p. 154.)

E mais adiante complementa:

Trabalhar com os vibradores tem, na base, uma única finalidade: fazer-nos


entender que nossa voz não é limitada e que, na verdade, podemos fazer qualquer coisa
com a voz, experimentar que o impossível é possível. E todo o resto pertence à esfera dos
impulsos vivos. (‘A voz’ em Grotowski & Flaszen, 2007, p. 161.)

Chama a atenção, também, que estavam cometendo, numa outra escala, o mesmo
erro que, no início, descobriram ser necessário evitar; isto é, a auto observação. Só que,
agora, estavam imersos num processo de controle e observação das partes do corpo, o que,
ainda que fosse mais natural, também produzia a divisão interna entre a mente e o corpo.
Descobre, finalmente, que quando criava imagens externas e concretas em que os
atores podiam, inteiramente, agir e se relacionar com elas; isto, por si só, já fazia com que a
voz e o corpo encontrassem os ‘ressonadores’ corretos. Ao tirar a atenção fixa do ator sobre
ele próprio e colocá-la a serviço de um objetivo concreto, como falar para o teto ouvindo a

143
reverberação do eco, o ‘ressonador’ da cabeça estaria lá, como se a boca ali estivesse. Era
um problema de qualidade da atenção.
A questão da cisão do indivíduo - e a conseqüente cisão do ator – aparecem aqui,
novamente, agora no âmbito do mais elementar e mais concreto do trabalho do ator: as
técnicas operativas. Quem está buscando descobrir e assimilar tal e tal técnica psicofísica?
Por qual motivo? Estas indagações estavam reestruturando toda a aproximação aos
fundamentos do ofício e prevendo a necessidade de uma segunda espécie de técnica:

A técnica criativa é o contrário da técnica no sentido corrente da palavra: é a


técnica daqueles que não caem no diletantismo e no plasma e que, ainda assim,
abandonaram a técnica. (‘A voz’ em Grotowski & Flaszen, 2007, p. 162.)

Não é de se admirar que, no final do ano seguinte, o Teatro Laboratório anuncia sua
retirada do âmbito profissional espetacular. Queriam investigar e se aprofundar sobre o
fenômeno da ‘criatividade humana’. E para tanto passaram a trabalhar e promover
experimentos não só com atores e especialistas da área; mas, também, com gente comum e
simples, interessada por este mesmo fenômeno. Foi o início da fase ‘Parateatral’.
Ainda assim, até hoje, essas conferências permanecem como grandes lições para
aqueles que encaram a arte e o teatro como um ofício e profissão: “O que devem fazer é
desbloquear o ‘corpo-memória’, o ‘corpo-vida’”. “Não estar dividido - é essa a semente.”
Como realizar isso?
Qual é o modo de desbloquear esse fluxo psicofísico criativo? Existe uma técnica
para isso? É uma técnica geral ou individual? Se existe, ela é restrita somente a atores em
sala de treinamento e pesquisa ou pode ser aplicada a todos, na vida em geral? E nesse
ponto, começamos a entrar na dimensão vertical do trabalho do ator sobre si mesmo,
motivo que nos levou às considerações do capítulo II, quando estudamos algumas técnicas
do trabalho do homem sobre si. Vimos como estas técnicas estão fundamentadas em torno
do surgimento e maturação de um ‘mordomo’ dentro da ‘anárquica’ casa do homem e como
este, organizando-a, prepara-a para a chegada do ‘Amo’. Dissemos, ali: um ‘mordomo’, a
escada que cria um eixo único de ligação direta entre corpo e espírito - num momento dado
– deve ser voluntariamente construída no ser humano. Através da paciente e perseverante
construção desta concreta escada psicofísica descobrimos como não estar divididos.

144
Num trecho do final de uma destas conferências que estudamos, Grotowski cita
Teófilo de Antioquia (II séc. D.C.) quando, respondendo a um pagão, diz: “Mostra-me o
teu homem e eu te mostrarei o meu Deus.” Chama a atenção para o termo “o teu homem”:
“Penso que com isso Teófilo de Antioquia tenha tocado algo de fundamental na
vida do homem. Mostra-me o teu homem – é, ao mesmo tempo, tu – “o teu homem” - e
não-tu, não-tu como imagem, como máscara para os outros. É o tu-irrepetível, individual,
tu na totalidade da sua natureza: tu carnal, tu nu. E ao mesmo tempo, é o tu que encarna
todos os outros, todos os seres, toda a história.
Se se pede ao ator para fazer o impossível e ele o faz, não é ele - o ator que foi
capaz de fazê-lo, porque ele-o ator pode fazer somente aquilo que é possível, que é
conhecido. É o seu homem que o faz. Nesse momento, tocamos o essencial: “o teu
homem”. (‘Exercícios’ em Grotowski & Flaszen, 2007, p. 176.)

Nesse momento toca-se na essencial questão da ‘liminaridade na profissão do ator’.


Nas condições de trabalho que propunha Grotowski em sua última fase, na ‘Arte
como Veículo’, já trabalhando com Richards, o contato com a ‘essência’ e a ‘esfera dos
impulsos vivos’ era uma passagem natural do processo de evolução do ‘performer’, para
seguir em direção à verticalidade. É a mesma passagem que apresentamos como a ‘técnica
2’ que abre caminho a partir de seu estágio preparatório, seguindo até o seu estágio
avançado.76

Stanislavski, Grotowski, Lume e a Ioga do Ator.


Todo esse material coletado que diz respeito à trajetória artística de Stanislavki e
Grotowski é muito importante para esse trabalho, desde que percebi tanto na prática como
nos trabalhos escritos, como a proposta de Luís Otávio Burnier ao fundar o LUME se
apoiava em princípios semelhantes.
Burnier e seus colegas buscaram uma técnica pessoal de representação através da
dilatação e dinamização das energias potenciais do ator (suas vibrações corpóreas), e em
como transpor essa técnica pessoal para o processo de montagem de espetáculo. A ruptura
com o texto dramático foi quase que radicalmente explorada, assim também como a ruptura
do vínculo entre ator e personagem. No espetáculo “Kelbilin, o Cão da Divindade” de
1989, o ator em nenhum momento aproxima sua vivência interna com aquela dada pelas
circunstâncias do espetáculo: a luta de Agostinho contra os desejos e ímpetos da carne.
Toda a composição poética do ator é construída a partir da “Dança Pessoal”, um material

76
Ver pg. 73.

145
resgatado após contínuas imersões e vivências do ator num estado extra-cotidiano de
dilatação e presença corpórea.
Um dos trabalhos básicos no LUME que gera esse estado extra-cotidiano de
dilatação e presença corpórea é o treinamento ‘energético’ e a vivência e superação de
estados de exaustão física. Isso, por exemplo, é muito similar ao método encontrado no
Hatha Yoga, que diz:

“O método principal do Hatha-Yoga, aquele que torna possível subordinar o corpo


físico e até as funções físicas "inconscientes" à vontade, é o trabalho contínuo sobre o
domínio do sofrimento. O domínio do sofrimento, do medo do sofrimento físico, do contínuo e
incessante desejo de tranqüilidade, bem-estar e conforto; cria a força que transfere um
Hatha-iogue para outro nível de ser.” (Ouspensky, 1990. p. 205. grifo meu.)

Sabemos e reconhecemos intuitivamente que temos, em nossa experiência de vida


cotidiana, movimentos, pensamentos, sentimentos e sensações de maior ou menor
qualidade e coesão, mas a experiência de fazê-los unificados e intensificados num
determinado momento é muito rara e difícil, requerendo grande concentração de vontade,
atenção e energia.
Na minha experiência de trabalho nos cursos do LUME, vi que essa grande
quantidade de vontade, atenção e energia era liberada a cada vez que passava pelo trabalho
energético, ultrapassando os limites imaginários de exaustão. Ir além do limite energético
cotidiano, doando energia para si mesmo e para os outros sem restrições; modificava meu
próprio estado psicofísico, e obtinha novas e frescas percepções sobre mim mesmo, as
pessoas, e o ambiente ao redor, isto é, entrava em contato com as partes intelectuais dos
centros que, funcionando ao mesmo tempo, não se atrapalhavam umas às outras. Um corpo
elevando-se da energia automática, abrindo caminho para as reações primárias da ‘essência’
e para energias ainda mais sutis que estão muito relacionadas às experiências liminares
possíveis ao ser humano.
Então, assim como os estudiosos utilizaram a palavra ‘ioga’ para caracterizar o
trabalho de Stanislavski e Grotowski, também nós poderíamos usá-la no caso do LUME.
Não no que diz respeito à utilização da técnica da ‘ioga’ no treinamento e na representação
dos atores, mas sim, como uma técnica de instrução criativa dos atores.

146
Também não estou dizendo com isso, que os três processos sejam os mesmos,
mesmo porque o LUME pouco se utilizou de textos da literatura dramática na sua produção
artística como o fez Stanislavski, e nunca rompeu com a profissão deixando de produzir e
apresentar espetáculos como o fez Grotowski; mas todos os três processos se apóiam em
princípios muito semelhantes, que coincidentemente estão presentes também nas tradições
esotéricas da humanidade.
Nas oficinas feitas e nos processos de trabalho que testemunhei no LUME, em
seguida a esses estudos, pude fazer observações que se conectam diretamente com todo
esse material levantado: ‘estado típico do ator’, ‘estado criador’, a organicidade, ‘corpo-
vida’, a qualidade de atenção, a convocação máxima de si mesmo, energias densas,
energias sutis, as ações físicas, o papel das emoções e da psicotécnica, a ‘personalidade’, a
‘essência’, e assim por diante.

4.2.2 - Técnica 1 e Técnica 2


“Terra de Cinzas e Diamantes”, editado no Brasil pela Ed. Perspectiva, é uma
narração biográfica de Eugênio Barba sobre período que passou em Opole, na Polônia,
junto do recém fundado Teatro onde Grotowski era diretor artístico. Este período vai dos
fins do ano de 1961 até o início de 1964. Quando chega a Polônia, Eugênio Barba tem 25
anos e entra na Escola de Teatro de Varsóvia para estudar direção teatral. É nas suas
andanças pela província polonesa que chega a conhecer o então “Teatro das Treze Filas” de
Opole. Conhece a Grotowski de quem se torna amigo, abandona a escola em Varsóvia e
decidi acompanhar o trabalho do teatro como observador, aluno e assistente de direção. Em
um dado momento do livro conta sobre como, ele e Grotowski, falavam sobre diferentes
tipos técnicas psicofísicas que eram utilizadas no teatro:

“Eu e Grotowski falávamos, entre nós, de dois tipos de técnicas, definindo-as como
"técnica 1" e "técnica 2". A "técnica 1" se referia às possibilidades vocais e físicas e aos
vários métodos de psicotécnica transmitidos desde Stanislavski. Era possível dominar
esta "técnica 1", que podia ser complexa e refinada, através do ‘rzemioslo’, o
artesanato teatral.
A "técnica 2" tendia a liberar a energia "espiritual" em cada um de nós. Era um
caminho prático que levava o Eu ao Eu, onde todas as forças psíquicas individuais se
integravam e, superando a subjetividade, permitia o acesso às regiões conhecidas pelos

147
xamãs, pelos iogues, pelos místicos. Acreditávamos profundamente que o ator pudesse ter
acesso a essa "técnica 2". (Barba, 2006, p. 50.)

Há muita coisa que podemos entrever a partir desses dois parágrafos.


A primeira delas é a diferença entre os caminhos artísticos adotados por Eugênio
Barba e Grotowski no decorrer do tempo. A grande contribuição de Eugenio Barba ao
teatro ocidental, como pensador e autor, foi a constituição da antropologia teatral que é
uma ciência pragmática que estuda as bases técnicas do trabalho do ator a partir de um
processo comparativo com os vários estilos de interpretação do teatro oriental e ocidental.
Refere-se principalmente à “técnica 1” citada, expandido-a em direção às psicotécnicas
utilizadas no teatro oriental, pouco conhecidas no Ocidente daquela época
Pelo que estudamos da trajetória de Grotowski, vemos que ele segue com algumas
técnicas do teatro, como o método de Stanislavski, mas continua e se aprofunda na busca
das “técnicas 2”, concentrando-se nelas, aprendendo-as e utilizando-as como base do
trabalho prático em seu Workcenter sobre a ‘Arte como Veículo’. Os cantos vibratórios
tradicionais haitianos é um exemplo dessa busca e utilização.
As “técnicas 2”, ainda que possam inspirar técnicas de representação teatral, como
vimos no caso do Teatro Nô, no de Stanislavski e no Grotowski da fase espetacular, não
pertencem originalmente a essa esfera, mas às chamadas tradições esotéricas da
humanidade. Elas possuem uma dimensão formal exterior, mas também possuem uma
dimensão sutil, que, como vimos ao estudar sobre a lembrança de Si, se torna evidente e
central quando a ‘técnica 2’ chega a seu estágio avançado. Assim, aprender uma ‘técnica 2’
não se restringe a aprender uma fórmula externa, seja uma postura, um canto, um mantra,
uma prece devocional, etc.; mas significa fundamentalmente aprender a lembrar-se de Si
com cada vez mais freqüência, duração e intensidade, ao mesmo tempo em que se executa a
fórmula externa, recriando-a. Por esta razão é que, em seu estágio avançado, tanto a
meditação zen budista como os cantos haitianos ou a lembrança de Si, só são transmitidos e
aprendidos por via direta, com um mínimo de palavras, numa relação entre aquele que sabe
e faz internamente, e aquele que se coloca numa posição de aprendiz.
Sobre o trabalho do Workcenter existem algumas recentes publicações que o
esclarecem de modo pleno e satisfatório, ao menos no limite que um livro é capaz de fazê-
lo. Cito por exemplo: “Opere e Sentieri 1 – Il Workcenter of Jerzy Grotowski and Thomas

148
Richards” organizado por Antonio Attisani e Mario Biagini, de 2007 e “The Heart of the
Practice” que contém três entrevistas diferentes com Thomas Richards. Neles se discutem
várias questões interessantes sobre fazer teatral e trabalho sobre si, inclusive os
experimentos que a equipe do ‘Workcenter’ fez ao voltar a propor obras de gênero
espetacular como “One breath left” e “Dies Irœ: The Preposterous Theatrum Interioris
Show.”
Em janeiro de 2009, na “Casa Laboratório para as Artes do Teatro” em São Paulo,
pude participar do seminário “XING ZHE – Homem em Ação”, ministrado pela atriz
cingapuriana Gey Pin Ang, que foi direta colaboradora de Jerzy Grotowski nos anos finais
de sua vida entre 1994 e 1999 e, entre outros trabalhos, participou deste grupo dedicado à
criação de performances previstas como espetáculo público.
Com Gey Pin, durante os oito dias de seminário, pudemos experimentar, na prática,
alguns importantes princípios práticos do ‘trabalho do ator sobre si mesmo’ conforme
Grotowski o desenvolveu desde Stanislavski. Além de trabalharmos sobre a criação de uma
cena individual, fazíamos exercícios diários de “Tai Chi Chuan”, “Yoga”, alguns
experimentos com cantos antigos e também praticávamos exercícios ligados diretamente
aos princípios da ‘organicidade do ator’. Se pudesse definir estes princípios em sucintas
palavras, a partir da minha experiência, elas seriam: privilegiar as 'reações primárias' - dar e
receber no presente imediato - e menos as 'reações complexas', mecânicas e desprovidas
de contato consigo e com o outro. O termo que ela usou para isto foi 'vida'. Agir com 'vida',
jogar com ‘vida’. O nível de atenção e precisão requeridos eram sempre muito acima do
acostumado.
Mais particularmente, vejo que o estudo do conhecimento e das técnicas tradicionais
possa ser buscado e feito por qualquer ator interessado em elevar o nível de sua arte, assim
como já Stanislavski havia sugerido.
Na pesquisa prática que tinha feito até então, dentro dos cursos oferecidos pelo
LUME, notei que a técnica da superação da exaustão física, que gera um estado de
dilatação e presença corpórea, pertence a esse grupo denominado como “técnica 2”. Notei
também que esse estado de dilatação e presença é ‘impermanente’ e ‘interdependente’77, no
sentido que ele deve passar por um constante processo de manutenção e no sentido de que

77
Ver estudos auxiliares sobre o Budismo Zen - ‘Anexo 1’ pg.440.

149
num grupo de pessoas abertas e disponíveis entre si, a qualidade da relação ajuda a
prolongar e a aprofundar esse estado. Já havía notado o quão importante era no trabalho do
LUME, a suspensão dos papéis e comportamentos sociais de cada participante, e a entrada
num espaço tempo outro, um espaço tempo ‘liminar’.
A pergunta que me coloquei foi: como manter o impulso da ‘técnica 2’, não só no
momento do treinamento energético, onde ele se formaliza como exaustão, superação e
descoberta de energias latentes, mas também no decorrer de todos os outros momentos do
curso, inclusive fora dele, durante os dias da semana que o envolve. Significa pensar que o
princípio de toda ‘técnica 2’ é invisível e interior, mas acaba se formalizando em diferentes
procedimentos práticos imediatos, como a ‘exaustão’, o ‘canto vibratório’ ou a ‘meditação’
de acordo com as condições internas e externas dos envolvidos. Na sala de trabalho do
LUME, por exemplo, faz todo o sentido que este princípio se desenvolva como ‘energético’
e mexa com a nossa condição motora-instintiva. Acorda não só o corpo, a ‘organicidade’,
mas também as emoções, o pensamento e a Presença. Mas como criar, invisível e
internamente, uma ‘técnica 2’ pessoal que nos acompanhe em todos os momentos do curso
e possa ser utilizada sempre, ou pelo menos sempre que lembramos de que ela existe?
A pergunta não é fora de propósito, nem mesmo no âmbito teatral tradicional, se
pensarmos que, num espetáculo, um ator deve manter uma qualidade de atenção e energia
acima da média de todos os seus momentos restantes do dia. Porque não pensar que nas
quatro horas de trabalho diário de um curso de treinamento técnico, por exemplo, um ator
não esteja em cena todo o tempo? E porque não estender essa qualidade para a vida de todo
dia? Onde está a diferença? Na presença do olhar externo? Mas não deve o ator treinar sua
vontade e disposição para a ‘convocação máxima de si mesmo’ independente do olhar
externo, independente de estar agradando ou desagradando sua platéia? De outra forma,
como já dizia Stanislavski, ele nunca poderá ser autonomamente criativo.
Tentando formular um objetivo para essa ‘técnica 2’ pessoal, que fosse expresso em
simples palavras cheguei à expressão do ‘Eterno Agora’. A similaridade que podemos
encontrar entre o trabalho do ator, do clown, do performer, do xamã, do iogue, do sábio e
do místico é que todos eles atuam muito próximos do eixo do ‘Eterno Agora’. Em graus de
proximidade diferentes, em condições externas que podem ser muito diferentes, em funções
diferentes; mas todos eles, com suas psicotécnicas específicas, tendem a se aproximar deste

150
eixo que é a ‘experiência do presente no presente’ ou aquilo que Turner cercou como sendo
a “liminaridade”. Suponho que esse fato é que tenha atraído o olhar do antropólogo para a
‘liminaridade’ no teatro.
Deste ponto de vista, nenhum método ou técnica de representação teatral estarão
completos se não forem adicionados a eles este simples - mas de modo algum fácil -
objetivo da ‘técnica 2’.
Por outro lado, parece ser impossível realizar plenamente esse objetivo se ele não
surge a partir de algum contato imediato e prático, momento a momento, com aquilo que se
está fazendo interna e externamente: seja respirando, meditando, cantando, agindo,
relacionando-se, ouvindo, vendo ou sentindo (tocando). Prático porque exige não perder a
ciência e a contagem sobre a respiração, exige silenciar todo e qualquer pensamento
intruso, exige manter o tom e a melodia do canto, exige conduzir com precisão a partitura
de ações físicas, ouvir e escutar o som, olhar e ver o que está diante, tocar e sentir o toque;
relacionar-se com a pessoa do companheiro. Só uma atenção cultivada a partir do mais
físico e tangível pode conduzir à sutileza da vida no ‘Eterno Agora’. E não é nada fácil,
porque algo parece constantemente estar, como um véu, se colocando entre o sujeito e o
imediatamente concreto e sensível. Como se a intuição última de que as nossas vidas
ocorrem sempre e continuamente no ‘Agora’ fosse de algum modo insustentável e
insuportável para o nosso organismo biológico.
As ‘técnicas 2’, plenamente executadas, nos mostram que só podemos nos conectar
com o númeno de qualquer fenômeno78, nosso organismo humano incluído, num único e
mesmo ponto: no imediato e eterno agora. O nosso mundo (sujeito) e o mundo externo
(objeto) passando diante deste ponto como um filme de fenômenos impermanentes e
interdependentes.

O papel da Emoção.
‘La Stanza Vuota – uno studio sul libro di Jerzy Grotowski’ é uma segunda
referência dada por De Marinis que me trouxe novas conexões com a experiência prática da
pesquisa. O texto foi publicado na edição número 20 de ‘Teatro e Storia’ uma anual revista

78
Ver Anexo I, p.437, a partir da citação de Kant.

151
de teatro italiana. É uma edição que traz vários artigos publicados sobre Grotowski, que
havia falecido no início daquele ano, 1999.
Além do texto já citado de Ferdinando Taviani, também este, escrito por Franco
Ruffini, faziam parte desta edição que já se encontrava esgotada. Escrevi aos autores que,
gentilmente, me enviaram cópias de seus textos.
O livro de Grotowski que conhecemos como “Em Busca de um Teatro Pobre” foi
publicado pela primeira vez em 1968, em inglês, como um fascículo de uma revista sobre
teatro que o, já existente, Odin Teatret de Eugenio Barba editava.
Dois dos quatro artigos, assinados por Grotowski nesse livro-revista, já haviam sido
publicados em 1965, num livro chamado “Alla Ricerca del Teatro Perduto. Una proposta
dell´avanguardia polacca.” um livro de Eugênio Barba.
Aquilo que faz Franco Ruffini em seu artigo é comparar as versões finais desses
dois textos que aparecem em ambos os livros. São eles: “O Novo Testamento do Teatro” e
“Treinamento do Ator”. O fato que chama a atenção de Ruffini é que nas versões destes
textos, separados por 3 anos, existem cortes e correções feitos por Grotowski, que parecem
significativamente intencionais. Como se estivesse omitindo coisas que fossem
demasiadamente diferentes do trabalho teatral tradicional da época.
Sugere que o trabalho empreendido para o espetáculo ‘O Príncipe Constante’-1965,
principalmente aquele desenvolvido entre Grotowski e Cieslak a partir de 1963, contivesse
um nível de psicotécnica interior além do espetáculo, que ainda não pudesse ser
satisfatoriamente exposto num livro. Sugere também que o livro de Thomas Richards ‘Al
Lavoro com Grotowski sulle azione fisiche’ publicado em 1993, é o texto que supre essa
lacuna. No fundo, está chamando a atenção para a extrema coerência da pesquisa de
Grotowski; isto é, que a ‘Arte como Veículo’ é só o desenvolvimento de uma descoberta
que havia feito em seus tempos de ‘Teatro Laboratório’.
Para mim, em relação à pesquisa, encontrei bastante significado num longo trecho
que foi cortado de “O Novo Testamento do Teatro”. No texto como conhecemos, este
trecho está imediatamente após o momento em que Grotowski confronta o ‘ator cortesão’
com o ‘ator santo’ e sugere que este último, ao invés de exibir seu corpo e relativas
habilidades ao público, ‘age em estado de transe’. Explica o ‘transe’ como sendo ‘a
capacidade de concentrar-se... ...de dar-se em modo total, na própria intimidade mais

152
profunda, com confiança, como nos damos no ato do amor.” (Grotowski, 1970. p.46. -
traduzido do original italiano.)
‘Transe’ não é, de fato, uma boa palavra porque traz uma série de associações
provenientes de outros contextos. Numa destas, quando uma pessoa entra em ‘transe’,
significa que ela perde a consciência, que não está mais ciente daquilo que faz. Nem
mesmo se lembra daquilo que fez. Certamente isto não se refere ao termo utilizado por
Grotowski. Podemos ver o filme do espetáculo: era o máximo de precisão e o máximo de
abertura emocional.
O trecho seguinte, que foi cortado, ilustra os ‘exercícios de concentração’ que o ator
pode praticar para obter o ‘transe’. Apresento-o a seguir, numa tradução do original italiano
de 65, publicado no artigo de Ruffini:

“Existem três elementos do transe, inseparáveis e intimamente unidos.


1) Atitude introspectiva
2) Relaxamento físico (relax)
3) Concentração de todo o organismo na região do coração.
O ator pode conseguir o estado de transe e apreender tal técnica de concentração
partindo de um dos elementos acima mencionados. Cada um destes, desenvolvido a fundo,
contêm, em definitivo, em si, os outros dois. A sucessão deles e a arte de obtê-los são
particulares individuais ligados à personalidade do ator. Eu direi somente que para se
obter que o ator ‘revele-se nu’, é necessário encontrar nele, ou melhor, tornar possível
nele a descoberta em si dos seus motivos psicanalíticos, da calma e dolorosa verdade de si
mesmo. Descobrir (algo) como os ‘slogans’, as fórmulas entorno às quais se dispõe todo
um casulo de reações instintivas ligadas à sua particular personalidade, por exemplo: sou
“feio”, “ninguém me ama”. Se este motivo é tomado convenientemente, se ali se concentra
toda a atenção, ele não provoca um sentimento de exasperação, mas ao contrário o de uma
dor “quente”, uma sensação similar a um grande mar morno. Depois da descoberta de tal
motivo, se constata muito freqüentemente um relaxamento automático e isto nos prova que
o centro deste casulo, deste fulcro elementar, vive em nós em alguma parte na região do
coração.
Pode-se igualmente começar do relaxamento físico, da posição do “cocheiro”,
sentado com as costas e as pernas relaxadas, por uma ação reguladora do respiro e um
acalmar do pensamento, pela eliminação do quanto não é essencial, de modo que a
tranqüilidade do pensamento apareça como algo já existente que tivesse sido velado e se
sujado. Esta posição leva alguns atores à descoberta do seu motivo psíquico pessoal. Em
outros termos: a calma, o aplacar dos pensamentos, tornam-se idênticos àquela boa e
“quente” dor que já estava ali pronta, que é o motivo psíquico, e dá a sensação de um
formigamento, de um despertar da vida na região do coração.
Pode-se também começar pela sugestão, isto é, com a transferência do nosso eu
consciente da cabeça à região do coração, região que se identifica com sentimentos
positivos como o amor, a bondade, a compaixão, etc., e que nós designamos quando

153
dizemos “tenho em mim, está em mim”. Não é uma região que a anatomia poderia definir
mais precisamente; freqüentemente é colocada entre o coração e o esterno, mais no alto ou
mais abaixo, às vezes mesmo um pouco a direita do esterno. Depois de tal transferência do
sentimento do próprio eu, convém estabelecer como que um diálogo progressivo entre a
região do coração e as principais regiões do organismo, como se a região do coração se
voltasse, por exemplo, às pernas, aos braços: “paz, estou com vós”; e quase quisesse
confortá-las. Este diálogo pode ser acompanhado de um toque, nas partes às quais ele se
volta, com as palmas da mão ou ponta dos dedos: espécie de verificação feita com micro
movimentos. É essencial examinar o interno das coxas e a parte entre o plexo solar e o
esterno, isto que provoca freqüentemente a sensação de uma onda quente que se rompe em
direção ao alto.
Não é necessário informar antecipadamente ao ator sobre o quanto ele deva
esperar no momento de cada um dos exercícios psíquicos, porque a experiência é a cada
vez diversa e uma imagem pré-estabelecida seria um obstáculo. De modo igual não convém
fixar nenhuma fórmula rígida. Pode-se levar o ator à elaboração em si de reflexos de
concentração com o único meio de um oportuno mecanismo de trabalho durante os ensaios
normais, ou ajudá-lo a executar a sua partitura de maneira delicada, “quente”, não
perdoando a mentira e cuidando sem descanso que esse processo seja delicado e “quente”.
O entusiasmo dado por uma reação delicada e “quente” de quem dirige os ensaios, leva
igualmente ao caminho de uma “conveniente concentração”. (Ruffini, 1999. p. 458 -
traduzido do original italiano.)

‘Um casulo de reações instintivas ligadas à particular personalidade de uma


pessoa’ é uma excelente descrição daquilo que estudamos como ‘ser inferior’.
Logo nos damos conta que se trata de ‘técnica 2’, algumas passagens até muito se
assemelham às descrições de Pasqualotto sobre a meditação zen budista que trouxemos à
tona79, ou aos exercícios descritos na ‘Filocalia’. É de extrema ressonância com o
ensinamento de Ramana Maharshi.80 Exercícios para despertar o coração, pois as ‘técnicas
2’ só podem atingir seu objetivo final, com a plena e livre energia dos sentimentos mais
sutis.
Fica claro: não se trata de ‘técnica 1’, de técnica e artesanato teatral. Talvez por essa
razão Grotowski tenha cortado esse trecho inteiro da edição definitiva do livro. Poderia
levar atores e atrizes, os leitores em potencial do livro, a uma série de mal entendidos e
confusões. Tais ‘exercícios de concentração’ parecem levar a uma introspecção do ator, ao
mesmo tempo em que não trabalham a dinamização do corpo. Ainda assim, me parece que
tais exercícios foram importantes no processo do espetáculo. Se não foram na relação de
trabalho entre ‘ator’ e ‘diretor’, certamente o foram para a qualidade da relação humana
79
Ver estudos auxiliares, Anexo 1, p.440.
80
Ver estudos auxiliares, Anexo 2, p. 449.

154
entre os dois. E esse quesito foi o ponto fundamental do processo de trabalho em ‘O
Príncipe Constante’, como o próprio Grotowski veio a ressaltar anos depois.81
Quando as cenas de representação do ‘eu’ na vida social entre atores, atrizes,
diretores e produtores não são mais governadas por esses ‘casulos de reações instintivas’
ligados a cada particular personalidade, é então que os níveis das qualidades artística e
humana podem de fato entrelaçar-se e explorar territórios desconhecidos do ofício. O santo
Graal da ‘organicidade’ parece ter sido uma dessas explorações e descobertas.82
O período do trabalho de Stanislavski que mais interessou a Grotowski é aquele
último, onde Stanislavski definitivamente afasta a ‘emoção’ como sendo um elemento
tangível à vontade e que pudesse ser utilizado na partitura de ações.
Em uma conferência intitulada ‘Resposta a Stanislavski’ diz a respeito da ‘memória
emotiva’:
“(Stanislavski) Supunha ainda que retornar a lembrança de diferentes sentimentos no
fundo significasse a possibilidade de retornar aos próprios sentimentos. Aqui estava o
erro: acreditar que os sentimentos dependessem da vontade.” (Grotowski, 2007. p.51 –
traduzido do original italiano.)

Mas como vimos em Stanislavski e agora a pouco no ‘Novo Testamento do Ator’,


não podemos concluir que no método das ações físicas não se utilize as emoções. É
indispensável para que uma partitura se integre à intimidade do ator e produza cena
pulsante e viva. Significa dizer que as emoções cuidam delas mesmas muito bem, se o
corpo e a mente funcionam com alta qualidade de atenção dentro de suas respectivas
tarefas. Significa ter um coração desperto e livre para reações imediatas, que podemos
observar, são muito mais velozes que as reações da mente e do corpo. A mente é útil para
despertar o coração, para que ele se livre da ferrugem depositada ali pela expressão
cotidiana da negatividade para com outros e para consigo mesmo. Nesta área é útil e pode
forjar atitudes que o limpam até a qualidade de espelho. Mas depois de desperto ele é capaz
de seguir sozinho com sua própria inteligência e linguagem. E é capaz, como sabemos, de
articular essa linguagem em forma de palavra ou dança, ou num harmonioso trio entre os
três: corpo, pensamento e emoção.

81
É o que podemos observar pelo depoimento de Grotowski em RYSZARD CIESLAK, Acteuremblème des
années soixante. Obra coletiva sobre a direção de Georges Banu. Editora: ACTES SUDPAPIERS-1992.
82
“A organicidade no estado puro que é a zona intermediária entre o que é corporal e o que é espiritual. O
Santo Graal de Grotowski.” (Grotowski J. & Flaszen L, 2007, p. 27.)

155
Olhando numa perspectiva mais prática, a mente é útil ao método de Stanislavski
que como vimos, no seu último experimento, a utilizava como parte do vínculo que se
estabelecia entre ator e personagem. Grotowski e Cieslak rompem esse vínculo e começam
a trabalhar com o corpo num nível de possibilidade mais dinâmico, justamente aquela da
‘organicidade’, que exige mente mais pura e silenciosa. Mas em ambos os casos, a
necessidade de um ‘coração desperto’ com emoções livres de interferências inúteis e
estranhas parecem ser fundamentais.
É a mesma conclusão que chega Ruffini no fim de seu artigo:
“Alto intelecto, alta psique, e também “alto corpo” deve-se dizer, dado que no
“processo” o corpo cotidiano se incendeia na transparência ao impulso. Na tripartição
corpo – coração - cabeça, de declarada consonância com Gurdjieff , está o ser humano na
sua integralidade que se encontra vivendo num nível “alto”. (Ruffini,1999. p.474. -
traduzido do original italiano.)

No LUME, não só o treinamento energético e a exaustão limpam e despertam o


coração dos atores, mas também a atitude ética que cada ator-pesquisador forjou dentro de
si ao entrar em sala de trabalho. Ao menos foi assim nas experiências que tive. O modo
como criam as condições de trabalho nas oficinas, por exemplo, lembram muito ‘o
entusiasmo dado por uma reação delicada e “quente” de quem dirige os ensaios’ que
alude Grotowski no fim do texto cortado. Thomas Richards também fala desse modo de
relacionar-se com o outro em sala de trabalho em seus livros e experiências.
Quando fiz as oficinas com o LUME, nos anos anteriores a 2008, ainda não tinha
em mãos esse texto de Ruffini, mas por essas experiências anteriores e pela minha própria
com uma miríade de técnicas de representação que são oferecidas em cursos e oficinas para
atores, sempre intui a falta da qualidade emocional íntima que poderia transformar um
conhecimento técnico em ato criativo. Portanto, uma das minhas novas metas no último ano
desta pesquisa foi trabalhar sobre o despertar do coração, observando os choques internos e
externos que o acordavam ou o adormeciam.
Um fato que observei, muito similar à descrição de Grotowski em seus ‘exercícios
de concentração’ é a capacidade de ‘aceitar a si próprio’, um desapego da imagem que se
constrói de si, neste casulo de reações instintivas habituais. Medo de errar, medo de
fracassar, ansiedade por acertar ou ser o melhor, ciúme e inveja de outros atores, ser o
melhor, ser o pior; todos esses traços que parecem reais quando o coração está adormecido,

156
e são muito comuns no meio teatral. O antídoto prático que vislumbrei foi, novamente,
estender a ‘técnica 2’ e seu objetivo central, não só por toda a oficina, mas por todos os dias
da semana, inclusive nas situações sociais e particulares que se apresentavam diante da
minha pessoa. Como se estivesse, invisivelmente, em cena o tempo todo.

157
PARTE II – A Experiência do LUME – Unicamp.

Introdução
Entre as inumeráveis e importantes informações organizadas por Eugênio Barba e
Nicola Savarese a partir de diversos encontros da ISTA (International School of Theatre
Anthropology) sobre leis e princípios existentes em técnicas de representação teatral no Oriente
e no Ocidente, e que foram publicadas no livro “A Arte Secreta do Ator”, está uma pequena
nota que nos chama a atenção:
Segundo Grotowski, que abandonou já há muitos anos o trabalho de interpretação
teatral, existem, em diferentes culturas, certos estados de ser (tais como o transe, fenômenos
extáticos, etc.), que anunciam ou nos auxiliam a explicar os estados do ator: nascentes que são
encontradas na base das várias culturas teatrais. A transculturalidade das fontes evidenciadas
por Grotowski é, por sua vez, a confirmação histórica e antropológica das técnicas pré-
expressivas que governam o nascer do poder criativo. (Barba & Savarese, 1995, p. 236.)

Entendendo que existe, hoje em dia, muito material sistematizado, prático e teórico,
sobre o alargamento das possibilidades expressivas e pré-expressivas do ator, através de
treinamentos e técnicas de representação provindas de muitas e diferentes perspectivas
estéticas; sentimos que o mesmo não ocorre no que diz respeito ao alargamento das suas
possibilidades criativas.
Aprofundando nossa pesquisa principalmente sobre essa dimensão vertical,
pudemos ver como ela extrapola os domínios das artes cênicas e das artes, adentrando em
estudos psicológicos, antropológicos, filosóficos, religiosos e de autoconhecimento.
Escolhemos a palavra ‘liminaridade’, provinda da antropologia de Victor Turner, para
definir o tema central de nossas investigações: “A liminaridade na profissão do Ator”. Tal
conceito se mostrou um excelente conector de todos os estudos e indagações que fizemos
até aqui. No caso das artes cênicas, a definimos como o processo pelo qual um ator se
afasta da sua personalidade social cotidiana e, através do espaço tempo poético
(treinamento, ensaio, pesquisas e apresentação), descobre nele mesmo novas perspectivas e
inesperadas qualidades de ser e estar até então desconhecidas ou esquecidas por ele e as
articula no tempo e no espaço.
Nesta segunda parte, estudaremos uma singular experiência de pesquisa em artes
cênicas, feita no Brasil, que segue as mesmas e fundamentais questões lançadas por

158
Stanislavski e Grotowski. Fundado em 1985 por Luís Otávio Burnier, em Campinas,
veremos porque o trabalho do Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas Teatrais da Unicamp, o
LUME, foi e continua sendo um continuador e herdeiro daquela revolução teatral ocorrida
no século XX.
Material e Métodos
Além de todo o material bibliográfico e visual produzido pelo LUME, ao longo dos
anos, o material utilizado para a escrita desta segunda parte do trabalho provém de
diferentes experiências práticas e contatos que tive com a equipe de trabalho do LUME ao
longo dos anos, em diferentes contextos e situações, e que podem ser divididos,
cronologicamente, em antes e depois da formalização deste projeto de pesquisa.
Conforme informei na introdução geral, devido ao meu interesse pessoal pelo teatro
e querendo me formar ator de profissão, tive a oportunidade de realizar diferentes estágios e
cursos com os atores-pesquisadores do LUME, incluindo aí o próprio Luís Otávio Burnier,
antes mesmo de entrar na Universidade. Todos eles, de certo modo, formam um corpo de
observações e experiências que criaram em mim certa familiaridade com o meio a que me
propus estudar. Por exemplo, durante os anos de 1991 e 1992, quando começava a estudar
teatro, participei do grupo ETRA – Equipe de Treinamento do Ator, coordenado por Jean
Pierre Kaletrianos: pesquisador e colaborador do LUME nos primeiros anos de sua
atividade. Kaletrianos montou, no ETRA, uma base de treinamento de seis horas diárias
quase toda ela vinda do seu processo de investigação dentro do LUME. Foi nesse ano de
1991 que experimentei, pela primeira, vez o ‘treinamento energético’, aprofundando-o
durante todo o ano de 1992. Mesmo na minha graduação na UNICAMP, a partir de 1998,
realizei vários cursos e estágios com o LUME que me fizeram acumular um grande número
de experiências e observações de caráter ‘informal’ que estão registradas na minha
memória física, mental e emocional. Todas essas experiências, somadas àquelas realizadas
como aluno especial da pós-graduação e, a seguir, do mestrado; aliás, germinaram o
interesse de pesquisar o tema que ora se apresenta. Informo, a seguir, cinco importantes
eventos desse período preliminar de coleta de dados, que vai da época após a graduação até
os primeiros anos do mestrado:
1 – Participação como aluno especial da disciplina oferecida por Renato Ferracini e Suzi Sperber –
LUME, no curso de pós graduação - 1˚ Semestre de 2002.

159
2 – Participação como ator do Workshop sobre o trabalho do ator, oferecido ao DAC – Unicamp,
por Carlos Roberto Simioni – 2˚ Semestre de 2002.

3- Participação como ator-pesquisador no Grupo “Ínterim” de pesquisa sobre a voz e o corpo do


ator, coordenado por Carlos Roberto Simioni. - LUME (Agosto 2002 – Julho 2003)

4- Observador do Workshop ministrado por Raquel Scotti Hirson para atores e interessados na
sede do LUME. (Fevereiro 2004)

5 – Observador do Workshop ministrado por Ana Cristina Colla para atores e interessados na sede
do LUME. (Fevereiro 2004)

Ao entrar no mestrado pelo Instituto de Artes tive que formalizar certas técnicas que
utilizaria para coleta de dados em meu projeto de pesquisa. Essas técnicas estiveram
amparadas por conceitos e conhecimentos que provinham das áreas das Ciências Humanas,
aos quais tive acesso e orientação através do Prof. Dr. Marcos de Souza Queiroz,
antropólogo da UNICAMP. De Outubro-2000 até Agosto de 2003 fui auxiliar de pesquisa
do Projeto: “Avaliação de uma experiência em interdisciplinaridade acadêmica: os Núcleos
e Centros da Unicamp”, coordenada por Queiroz. Esta pesquisa gerou o recém publicado
livro: Universidade, interdisciplinaridade e memória – uma análise antropológica da
experiência acadêmica dos centros e núcleos da Unicamp. As entrevistas que realizei com
os pesquisadores do LUME dentro do período acima mencionado foram feitas dentro do
âmbito de sua supervisão acadêmica, e todo nosso trabalho de campo, daí por diante, foi
amparado por esta experiência.
O principal conceito utilizado foi aquele de “Representação Social” definido por
Moscovici (1976) como um tipo de saber, socialmente negociado, contido no senso comum
e na dimensão cotidiana, que permite ao indivíduo uma visão de mundo e o orienta nos
projetos de ação e nas estratégias que desenvolve em seu meio social. “Representações
sociais” referem-se, portanto, a conhecimentos culturalmente carregados, que adquirem
sentido e significado pleno no contexto sócio-cultural e situacional em que se manifestam.
O indivíduo é percebido como um ator que manipula as regras e os papéis sociais, ao
mesmo tempo em que cria novas regras e papéis. No caso desta pesquisa, focalizo as
representações sociais de atores de teatro envolvidos em práticas alternativas de criação
artística dentro de um Núcleo de Pesquisas Teatrais Universitário.
As entrevistas constituíram-se como um dos principais instrumentos de coleta de
dados desta pesquisa. Todas elas foram gravadas e, em sua grande maioria, transcritas.

160
Duraram cerca de uma hora e meia cada uma, e cada ator-pesquisador pôde ser entrevistado
mais de uma vez de acordo com o interesse sobre um ou outro aspecto que necessitou ser
aprofundado. O conjunto total dessas representações, compreendendo consenso e dissenso a
respeito de vários tópicos relativos ao universo vivido e experimentado, nos ofereceu uma
compreensão da realidade que dificilmente uma pesquisa feita exclusivamente sob o viés
quantitativo e bibliográfico poderia se propor.
A seguir apresento uma lista com todas as entrevistas realizadas desde o curso de
graduação em Artes Cênicas e que serviram, direta ou indiretamente, de material para a
pesquisa que deu origem a esse texto.

1 – Entrevista com Raquel Scotti Hirson (1998) – “Sobre a formação do ator no DAC – Unicamp e o
trabalho do LUME.” – para o trabalho final da disciplina de graduação ‘Teatro Brasileiro II’.

2 – Entrevista com Douglas Araújo (1998) - “Sobre a formação do ator no DAC – Unicamp.” – para
o trabalho final da disciplina de graduação ‘Teatro Brasileiro II’.

3 – Renato Ferracini, Jesser de Souza, Ana Cristina Colla e Raquel Scotti Hirson (1999) - “Sobre o
LUME e a efervescência cultural teatral em Barão Geraldo.” para o trabalho final da disciplina de
graduação ‘Teatro Brasileiro IV’.

4 – Carlos Roberto Simioni – 1(2000) – “Sobre a trajetória pessoal e o processo de criação do


LUME.”

5 – Carlos Roberto Simioni – 2 (2001) - “Sobre o LUME como Núcleo Interdisciplinar de


Pesquisas Teatrais e suas atividades.”

6– Ricardo Puccetti – 1 ( 2001) – “Sobre a trajetória pessoal e o LUME: a pesquisa artística e os


vínculos institucionais com a Unicamp.”

7 – Ricardo Puccetti – 2 (2002) - “Sobre a trajetória pessoal e o LUME: a pesquisa artística e os


vínculos institucionais com a Unicamp.”

8 – Renato Ferracini - (2002) – “Sobre a trajetória pessoal e o LUME: a pesquisa artística e os


vínculos institucionais com a Unicamp.”

9 – Suzi Sperber – (2003) “Sobre sua aproximação com o LUME e a organização institucional do
Núcleo.”

10- Ana Cris Colla – (2004) “Sobre a pesquisa artística do LUME, liminaridade e o Workshop
oferecido a atores em fev. 2004.”

11 – Jesser de Souza – (2008) “Sobre a oficina “Treinamento Técnico do Ator” da qual fui
participante e sobre o seu percurso artístico.”

12 – Naomi Silman – (2008) “Sobre a oficina “Da Energia à Ação” da qual fui participante e sobre o
seu percurso artístico.”

13 - Naomi Silman - 2 – (2008) “Sobre as técnicas de trabalho do LUME, a liminaridade e a


‘communitas’.

161
14 – Jean Pierre Kaletrianos – (2008) – “Sobre seus anos no LUME, Luís Otávio Burnier e a
experiência de ambos com Grotowski.”

15 – Tatiana Motta Lima – (2008) – “Sobre a importância do processo de liminaridade nas pesquisas
de Jerzy Grotowski e naquelas do LUME.”

Além das entrevistas, a pesquisa empregou, também, o método da observação


participante introduzido pela Antropologia Moderna a partir de Malinowski (1976). Nesse
espaço, qualquer proposta metodológica fechada estaria fadada ao fracasso. O método teve
que abrir-se num processo de negociação perene com a realidade estudada, o que significou
adotar uma postura maleável, capaz de adaptar o método a cada oportunidade da
investigação. Tal processo incluiu não só uma dimensão intelectual, mas também
emocional, de sensibilidade e intuição na observação de fatos imponderáveis da vida social,
uma série de fenômenos de suma importância que escapam ao viés quantitativo.
Para Malinowski, o sentido profundo do fato social só pode ser capturado a partir
desse envolvimento do pesquisador, que se torna também um participante do meio cultural
estudado. A realidade, assim dimensionada, torna-se um objeto de apreensão científica, na
medida em que o pesquisador explicite pormenorizadamente as condições de obtenção de
dados, ou seja, o modo de produção de sua experiência, organizando-as em um diário de
campo. O método introduzido por Malinowski é considerado como o método de excelência
na produção do conhecimento antropológico moderno.
Como observador acompanhei diversas atividades do LUME como cursos,
espetáculos, palestras, processos de pesquisa e processos de montagem de espetáculo,
conforme as situações o permitiram. Após um primeiro momento em que as entrevistas
com os atores-pesquisadores tiveram sua importância e quando também acompanhei a
alguns cursos apenas como observador; surgiu-me a necessidade de experimentar o método
de trabalho artístico do LUME na prática. Em épocas passadas já o tinha feito, mas, agora,
com a perspectiva do tema da ‘liminaridade’ e com as técnicas da antropologia, poderia
tornar essa experiência uma rica fonte de material para a pesquisa. Participei, então, de 7
cursos oferecidos para atores. A cada dia de trabalho tentava fazer observações práticas
sobre conceitos que utilizo no corpo teórico da pesquisa: a liminaridade, a “communitas”, o
estado de presença do ator, organicidade, a representação artística e a representação social.
Foram eles:

162
1 - Participação como ator do Workshop “A construção do corpo dilatado”, ministrado por 5
diferentes atores-pesquisadores do LUME (Renato Ferracini, Jesser de Souza, Ricardo Puccetti,
Naomi Silman e Raquel Hirson) em sua sede. (Fevereiro 2007)

2 - Participação como ator do Workshop “Voz e Ação Vocal”, ministrado por Carlos Simioni no
teatro Nelson Rodrigues - Caixa Cultural – Rio de Janeiro. (Abril 2007)

3 - Participação como ator do Workshop “Mímesis Corpórea”, ministrado por Ana Cristina Colla no
Espaço Caixa Cultural – RJ. (Maio 2007)

4 - Participação como ator do Workshop “Treinamento Técnico do Ator”, ministrado por Renato
Ferracini no Departamento de Artes Cênicas da Universidade de Londrina. (Julho/Agosto 2007)

5 - Participação como ator do Workshop “O Clown ou a utilização cômica do corpo”, ministrado por
Ricardo Puccetti no Espaço Crisantempo – São Paulo. (Outubro 2007)

6 - Participação como ator do Workshop “Treinamento Técnico do Ator”, ministrado por Jesser de
Souza na sede do ‘Teatro de Tábuas’ – Campinas. (Fevereiro 2008)

7 - Participação como ator do Workshop “Da Energia à Ação”, ministrado por Naomi Silman na sede
do LUME – Campinas (Fevereiro 2008)

Tendo decidido relatar estas experiências em um diário de trabalho, após as


primeiras tentativas descobri que conseguiria ser mais fiel às minhas experiências e
observações diárias se eu não utilizasse a forma escrita nos relatos, mas sim a forma falada.
Isto é, o fato de, a cada dia, sentar-me numa mesa e escrever ou digitar um texto, que
resgatasse intelectualmente a memória daquilo que havia vivenciado no dia, estava me
afastando da memória em si. Experimentei o registro de minha voz falada em um gravador,
recordando não só fatos ocorridos ou observações feitas, mas também, permitindo ao meu
corpo, livre e de pé, que se recordasse e atualizasse a memória daquilo que foi vivenciado
no dia; percebi que desse modo estava sendo mais pleno em relação à minha própria
experiência. Além disso, muitas vezes, consegui, com esse método, produzir estados
energéticos similares àqueles produzidos em sala de trabalho, e gerar a energia criativa
necessária para fazer interligações e pontes intuitivas imediatas entre a prática e o material
de leitura a que vinha me submetendo por todo o processo da pesquisa.
Fiz também experiências com a minha própria memória, tentando resgatar, um mês
depois, os momentos que foram mais marcantes e nítidos de cada dia de trabalho. Aqui me
interessava, a partir de um momento temporal distanciado, recuperar momentos de
memória vívida que tinha de cada dia da oficina. Momentos de memória vívida estão
sempre intimamente relacionados a “estados liminares”, isto é, momentos em que se vive e

163
se percebe a própria vida de maneira mais intensa e unificada que a média geral de nossa
atividade cotidiana. Mais unificada, pois existe contato e concordância entre as impressões
imediatas recebidas e elaboradas pelas janelas de percepções que possuímos: as corporais
(instintivo-motoras), emocionais e intelectuais.
Isso ocorreu, por exemplo, na oficina “O Clown ou a utilização cômica do corpo”
onde preferi não utilizar o método de gravação diária do relato, pois intuí que, de alguma
forma, ele poderia romper com o período de imersão que vivenciávamos no curso,
produzindo um distanciamento crítico e racional que prejudicaria, durante a semana, a
qualidade de entrega que o trabalho de ‘clown’ exige. A experiência de 1991 com o retiro
de ‘clown’ em Louveira certamente influenciou nessa minha escolha. Não queria pensar ou
fazer conexões com os conceitos chaves da pesquisa, durante a própria semana de trabalho.
Isso foi feito depois, tendo tido algum tempo para digerir e elaborar toda aquela
experiência. Assim, no mês seguinte à experiência, aquilo que realmente lembrava com
precisão, após esse tempo, foi aquilo que era mais significativo e que gerou novos dados e
percepções para a pesquisa como um todo.
Num terceiro momento, começaram a surgir oportunidades de acompanhar o
próprio processo de trabalho dos atores do LUME. Pude, então, acompanhar o processo de
elaboração da demonstração técnica de Naomi Silman, que comemorava seus 10 anos no
LUME, e, em seguida, acompanhar o processo de criação do espetáculo “Você” com Ana
Cristina Colla, sob direção de Tadashi Endo. Considero este período final da coleta de
material como sendo de extrema importância e todo ele está concentrado no capítulo que se
segue: “O LUME e a liminaridade – A perspectiva Atual.”
Estes últimos dados foram fundamentais porque uma coisa é captar o relato verbal
dos atores descrevendo suas experiências, e outra, bem diferente, é ver e presenciar o
próprio processo do trabalho do ator ocorrendo. Algo similar à experiência de Turner que,
criando laços de confiança e respeito recíprocos com os Ndembos africanos, passou,
finalmente, a poder freqüentar e testemunhar a execução dos rituais da tribo. Na escala de
nosso contexto pude, neste terceiro momento, ser a testemunha do ato criativo e foi dessas
vivências que nasceram os textos. Sobre os métodos e técnicas de observação utilizados
nestas experiências, elas serão relatadas no próprio capítulo.

164
No sexto capítulo: “O LUME e a liminaridade - Os Dramas Sociais e a
‘Communitas Normativa’” apresentarei um estudo das trajetórias artísticas e sociais de
Luís Otávio Burnier e do LUME, utilizando a perspectiva antropológica de Victor Turner.
No último e sétimo capítulo: “O LUME e a liminaridade – Da prisão à
liberdade”; organizando e selecionando todo o material coletado, escreverei a respeito da
experiência do LUME com o treinamento energético, que é, por assim dizer, um dos eixos
técnicos de sua metodologia, que possui um maior e mais nítido caráter ‘vertical’, e que o
aproxima das chamadas ‘técnicas 2’ já mencionadas. Falarei sobre sua origem, sua
aplicação, os mal-entendidos de sua aplicação, seus riscos, e o objetivo principal do seu uso
junto às técnicas de ator desenvolvidas e utilizadas no LUME. Assim, também, será
abordada a dimensão da ‘liminaridade’ e da ‘communitas’ em suas, assim convencionadas,
três linhas de trabalhos: a Dança Pessoal, O Clown e a Mímesis Corpórea.
Após estudarmos as perspectivas de trabalho do ator praticadas por Jerzy Grotowski
e Konstantin Stanislavski veremos, agora, algumas das atuais experiências dos atores do
LUME – Unicamp.

165
Cap. V – O LUME e a liminaridade
– A perspectiva Atual -

5.1 – Você.
De 10 de Março a 09 e Abril de 2009 pude testemunhar o processo de criação do
espetáculo teatral “Você”. Produzido pelo LUME, com atuação de Ana Cristina Colla, o
espetáculo, que estreou em agosto de 2009, tem a direção do japonês radicado na Alemanha
Tadashi Endo.
Tadashi Endo é um ator-dançarino de ‘Butoh’, uma expressão cênica japonesa
moderna, nascida nos anos 50 e 60, que atravessa e dissolve as convencionais “fronteiras”
comumente demarcadas e estabelecidas para a Dança, o Teatro e a Performance. No
trabalho ‘Butoh’ de Tadashi referências importantes e constantes são Kazuo Ohno e
Tatsumi Hijikata, ambos considerados como fundadores desta forma estética. Tadashi Endo
teve contato direto com ambos.
Para melhor compreendermos todo o relato do processo de criação do espetáculo
“Você”, que será feito a seguir; concederei uma pequena quantidade de tempo e espaço
para uma breve introdução sobre o “Butoh”. Ademais, esta espécie de dança tem estreita
relação com o tema desta pesquisa: a dimensão da vida liminar no ser humano artista.

5.1.1 - Pequenas Notas sobre o “Butoh”.


Há todo um contexto social, político e cultural específicos ao Japão - e ao mundo -
da década de 50 em meio ao qual surge, pela primeira vez, a expressão cênica que viria
mais tarde a ser chamada de ‘Butoh’. A segunda guerra mundial, separada por apenas 20
anos da primeira grande guerra, havia terminado com a eclosão de duas explosões atômicas
em território japonês. Havia, então, em todo mundo, um espontâneo clima de rebelião que
confrontava os valores sociais e éticos que haviam levado as nações a tal ordem de eventos.
As artes tornam-se principal meio expressivo dessa rebelião. Há um definido
impulso de desconstrução das convenções estéticas estabelecidas pela história e a
vanguarda manifesta-se, sobretudo, em radical oposição ao realismo da representação.

166
No Japão, grupos de artistas se expressam através de ‘happenings subversivos’ e
manifestações de rua. Os artistas reagem, então, contra a presença americana em seu solo e,
ao mesmo tempo, contra as estruturas fixadas pelas suas próprias tradições e sistemas de
valores. É no decorrer desses anos de turbulências que se forjam as idéias que darão início
ao ‘Butoh’, que, ademais, não permanece tão fundamentado às questões políticas da época.
Mais que um protesto e mais que uma dança, o ‘Butoh’ surge como uma filosofia da
percepção da existência humana. O ‘Butoh’ não somente sobreviveu aos anos de tumultos
generalizados, como conseguiu iniciar uma reflexão que ultrapassa a dança e a
83
especificidade japonesa. Tal transbordamento fez com que a prática do ‘Butoh’ se
espalhasse pelo Ocidente chegando inclusive ao Brasil por diversos meios, sendo os
intercâmbios de trabalho do LUME apenas um dentre estes.84
Em 1959, Tatsumi Hijikata apresenta num festival de dança, uma primeira peça
daquilo que denominou como Butoh: Kinjiki (Forbidden Colours) baseado numa novela de
Yukio Mishima que explorava alguns chocantes ‘taboos’ sexuais da época. Yoshito Ohno,
filho de Kazuo, começa sua carreira nesta peça, mas o encontro artístico de seu pai com
Hijikata se dá somente em 1960 quando os dois trabalham juntos na montagem da obra
"Nossa Senhora das Flores" (de Jean Genet). A partir de então, tornam-se freqüentes
colaboradores, ainda que cada um desenvolva seu próprio estilo e concepção de ‘Butoh’.
Hijikata vem a falecer no ano de 1986, enquanto Ohno vive hoje seu centésimo quarto ano
de existência.
É realmente difícil enquadrar o ‘Butoh’ numa ou noutra categoria reconhecível em
nossas mentes porque, diferentemente das danças clássicas e modernas convencionais, esta
não é uma dança que possa ser apreendida pelo corpo através de técnicas e formas externas.
Ela justamente pretende o contrário: uma dissolução e desconstrução do corpo, até que se
encontre um centro de pulsação de vida que revele um novo corpo expressivo e individual,
consciente e pleno de toda sua impermanência e interdependência. É o que se pode

83
Escrevo essa pequena introdução, principalmente, orientado pelas palavras de Nourit Masson-Sékiné, estudiosa de
Butoh que publicou o livro: “Dancing in the Dark”. O trecho se refere à palestra ministrada na Fundação Japão, São
Paulo, em 2 de fevereiro de 2006. Tradução de Bernard Aygadoux. (http://www.fjsp.org.br/agenda/06_03_nourit.pdf)
consultado em junho de 2009.
84
Desde 1991 foram convidados inicialmente por Luís Otávio Burnier e, depois de sua morte, pelos atores do LUME
especialistas em butoh como Natsu Nakajima, Anzu Furukawa e, finalmente, Tadashi Endo.

167
entender quando se ouve Kazuo Ohno respondendo à pergunta sobre o significado do
“Butoh”:

“Cada dançarino tem seu próprio ‘butoh’. Não existe um método, porque a dança é
a expressão do interior de cada um. Por isso é singular em cada pessoa. Para mim, o
‘butoh’ é, com palavras simples, apreciar a vida, minha e dos outros.” 85

E segue na mesma direção quando continua nos falando a respeito do seu processo
de transformação para chegar àquele ‘Butoh’ que lhe é próprio:

“Eu penso que há algo em comum entre a energia de nascimento de uma vida e a
do nascimento do Universo. Existe uma força centrípeta entre mãe e filho, como entre o Sol
e os planetas do sistema Solar. Tudo o que existe nesse mundo é ligado profundamente com
o Universo. Mas a dança moderna não incluía esses fenômenos básicos da natureza, as
relações entre ser humano, morte, vida, amor, universo, natureza e outros temas
essenciais; nem (mesmo) o expressionismo alemão. O envolvimento com estas questões
foram nossos mestres e crescemos com elas. É isto que expresso no meu ‘butoh’.86

Hijikata trabalhou com seu corpo explorando os limites do erotismo, do grotesco, do


animalesco, da escuridão, da doença e da decadência. Trechos de conferências e textos de
Hijikata também indicam direções e imagens que nos levam a sentir, mesmo
aproximadamente, princípios básicos de uma ‘não-dança’:

“... o corpo humano, desde o seu nascimento, é conduzido à domesticação para


responder a esquemas sociais específicos. Para que a dança se cumpra, os esquemas,
profundamente ancorados, deveriam ser radicalmente destruídos” 87

Ou ainda em “O Butoh da Discípula (carta a Natsu Nakajima)” quando diz:

“O ‘butoh’ deve ser apreciado tão enigmaticamente quanto a vida. [...] Quando
criança, você também foi abandonada numa vida de impressões que, vistas e ouvidas,
permaneceram na memória. Essas impressões agradáveis e desagradáveis, misteriosas e
peculiares são naturalmente as bases do ‘butoh’. Como nós ainda não somos seres totais,
estas impressões devem ser o conteúdo e a fonte do ‘butoh’.” 88

85
Fonte: Jornal: International Press- Entrevista de Mário Kodama - intérprete, Kunihiro Otsuka, Seção: Lazer e Cultura -
Página 5-B - Japão, 24 de setembro de 1995.
86
Idem.
87
Hijikata,Tatsumi & Kurihara,Nanako. From Being Jealous of a Dog's Vein
TDR: The Drama Review - Volume 44, Number 1 (T 165), Spring 2000, pp. 56-59
88
REVISTA DO LUME. UNICAMP–Universidade Estadual de Campinas/ LUME–Núcleo Interdisciplinar de
Pesquisas Teatrais–COCEN–UNICAMP. Campinas, n° 2, ago 1999. p.11.

168
Também disse Hijikata: "Butoh is a corpse standing straight up in a desperate bid
for life."89 Muito dos temas do ‘Butoh’ reúnem essa busca pelas origens a partir das
polaridades: vida/morte, infinitamente pequeno/infinitamente grande, feiúra/beleza,
sombra/luz, masculino/feminino, a inocência, a criança, a mãe, o feto, o cosmos, a doença.
“O Butoh - escreve Hijikata - é trevas, é luz, é a mistura dos dois. E, de um a outro, repleto
de metáforas, torna o feio bonito, o obscuro luminoso, o absurdo grotesco.” 90

-Tadashi Endo
Ao longo dos ensaios ocorridos no LUME de 10 de Março a 9 de Abril de 2009,
Tadashi Endo freqüentemente nos relatou frases, histórias e experiências tanto de Hijikata
quanto de Kazuo Ohno com o qual trabalhou desde 1989. Mais adiante, neste capítulo, será
possível dar seqüência a essa pequena introdução, utilizando o próprio material relatado por
Tadashi durante os ensaios com a finalidade de auxiliar a pesquisa artística de Ana Cristina.
No decorrer dos seus 60 anos, em sua trajetória de ator-dançarino que experimentou
tanto das tradições cênicas japonesas (Nō e Kabuki), quanto daquelas ocidentais modernas
(formando-se como ator em Viena), Tadashi chega a desenvolver o seu próprio estilo de
‘Butoh’: o ‘Butoh Ma’. Uma breve idéia desta concepção também nos ajudará a
compreender muito do processo que pude testemunhar nos ensaios. Cito o próprio Tadashi:

“MA no ZEN-Budismo significa “vazio” e “espaço entre as coisas”. Butoh MA é o


caminho que torna o invisível visível. O mínimo de movimentos permite que a expressão
das sensações e das situações cresça à máxima intensidade. É mais importante manter o
equilíbrio entre energia, tensão e controle, do que preocupar-se com a estética dos
movimentos. MA significa estar “NO ENTRE”. MA é o momento logo no fim de um
movimento e apenas antes do começo do próximo. MA é como estar de pé nas margens de
um rio, olhando a água que flui adiante. Você quer alcançar o outro lado, mas o outro lado
significa morte. Você quer terminar sua vida neste lado, mas não ainda, você está metade
aqui e metade lá. Sua alma está esperando por aquele último passo – completamente calma
– sem respirar – completamente quieta – nem morto e nem vivo – isto é MA.91

Algumas semelhanças de princípios entre o “Butoh” e o trabalho de pesquisa do


LUME levaram o grupo a alguns encontros com mestres e expoentes dessa forma de

89
Butoh é um cadáver de pé, numa tentativa desesperada de vida. Citado por Tadashi Endo no LUME.
90
Nourit Masson-Sékiné. Palestra ministrada na Fundação Japão, São Paulo, em 2 de fevereiro de 2006.
Tradução de Bernard Aygadoux. (http://www.fjsp.org.br/agenda/06_03_nourit.pdf)
91
Site Oficial de Tadashi Endo. (http:// www.tadashi-endo.de)

169
expressão cênica, desde o início da década de 90.92 Basta citar uma única frase dos escritos
de Luís Otávio Burnier para termos uma boa noção destas semelhanças. O trecho está em
sua tese, quando faz referência ao período de trabalho que os atores do LUME tiveram com
o ‘Butoh’ de Natsu Nakajima, discípula de Tatsumi Hijikata, em 1991:

“Houve vários pontos de encontro entre nosso trabalho e o de Natsu Nakajima. O


mais relevante dentre eles foi a noção da não-interpretação. O ator não interpreta, ele é.
Ele não expressa nada, mas simplesmente é com plenitude. A busca dessa plenitude, desse
estado presente, desse ser, revela-se algo tão importante quanto difícil e vai ao encontro de
nossa dança pessoal.” (Burnier, 2002, p. 149.)

5.1.2 – As circunstâncias do projeto.


“Você” é o terceiro espetáculo do LUME dirigido por Tadashi. Os dois primeiros
foram: “Shi-Zen - 7 cuias” (2004) - com todos sete atores do LUME e “Sopro” (2006) solo
com o ator Carlos Simioni.
No ano anterior, em meados de abril de 2008, Ana Cristina e Tadashi já haviam
iniciado uma semana de encontros práticos em torno do tema que Cris havia escolhido para
o trabalho: a memória. Não participei nem pude acompanhar esses encontros, mas no final
deles - após ajudar a filmar, na época, a conversa de encerramento entre Cris e Tadashi -
manifestei meu interesse em acompanhar o prosseguimento daquele processo, o que
resultou no convite de Cris em fevereiro desse ano. Na prática, eu e Cris faríamos uma
troca de favores. Ao mesmo tempo em que estaria livre para assistir a todos ou quase todos
os ensaios deste novo período de trabalho, trabalharia tanto na coleta áudio-visual, quanto
na coleta de anotações de indicações importantes dadas pelo diretor em referência ao
trabalho da atriz. Sendo o espetáculo parte do projeto de doutorado em Artes de Cris, ela
precisaria do máximo de apoio para a coleta de dados que fossem significativos para a
escrita e elaboração final de sua tese. Deste modo, além de filmar em vídeo trechos
importantes do processo, decidi gravar todo o áudio de todos os encontros em um discreto
gravador MP3. Tal decisão se mostrou importante na medida em que muitas das
importantes falas e diálogos travados entre Tadashi (T.) e Cris (C.), durante o processo,
puderam ser reconstituídos na íntegra.

92
Com Natsu Nakajima (1991) e Anzu Furukawa (1996).

170
Além deste meu papel, outras pessoas estiveram presentes nos ensaios,
desempenhando outros papéis auxiliares ou de criação. Carlos Simioni (S.), ator-fundador
do LUME, que já havia trabalhado com T. no espetáculo “Sopro” estava tanto auxiliando
nas traduções como acompanhando e auxiliando C. no processo de compreensão daquilo
que estava sendo requerido no trabalho prático criativo. Suzi F. Sperber, que também
ajudou nas traduções em sala, estava na condição de orientadora da tese de doutorado de C.
e, portanto, também como observadora de todo o processo. Um músico instrumental e um
cenógrafo – que se juntou ao grupo por alguns dias apenas - também participaram do
processo de criação do espetáculo.
Da minha parte, em relação à pesquisa sobre a liminaridade no trabalho do ator,
coloquei-me a seguinte meta assim definida nas anotações do dia 12 de Março: terceiro dia
de trabalho:
“Há uma meta muito bem definida para esse trabalho diário de observação:
encontrar e observar momentos quando a dimensão criativa de C. surge, conecta-se àquilo
que faz e conduz suas ações e expressões em cena. De que maneira surge? Através de qual
situação específica? Qual é o papel de T. neste processo? Encontrar como a técnica
psicofísica da dimensão horizontal artesanal do ator se entrelaça com a técnica psicofísica
da dimensão vertical criativa.” (Anotações sobre o Áudio Gravado – Projeto Memória –
12/03/2009)

Por tudo que foi estudado e escrito na primeira parte da tese cheguei a entrever uma
conexão direta entre “liminaridade”, “communitas”, “lembrança de Si” e “estado criativo
do ator”. Como já havíamos visto em Stanislavski, um ator não é feito apenas de técnicas e
hábitos mais ou menos incorporados nele próprio. Algo nele, que ressoa e vibra no “Eterno
Agora” deve fazer-se presente e dar vida aos elementos psicofísicos selecionados e
elaborados para a peça. De outra forma, a arte cênica, de fato, não acontece.
Assim, portanto, tentaria observar e registrar algumas situações do processo de
criação onde o trabalho na dimensão vertical e criativa que existe no ser humano C. se
entrelaçaria com o trabalho da dimensão horizontal e psicofísica que está elaborada e
acessível na experiência de atriz de C. ou, se não ainda, potencialmente presente e latente
como possibilidade a ser descoberta.
No decorrer do processo, pude também travar conversas com C. sobre as
observações que fazia, denominando-as para ela como “a observação da dimensão habitual
e da dimensão criativa dentro do seu processo artístico”. Algumas dessas conversas junto

171
com uma conversa final sobre todo o processo foram gravadas e as apresentarei mais
adiante, quando nos aprofundarmos na questão.
O tempo do processo e as fases bem definidas do trabalho.
Um fator importante que influenciou diretamente todo o processo artístico foi o
tempo. Quando T. chegou para iniciar os ensaios em 10 de Março, ele já tinha a passagem
de volta para a Alemanha comprada, de modo que acontecesse o que acontecesse no dia 10
de Abril o processo se interromperia. Este fator foi decisivo para a delimitada forma
processual do trabalho que se estabeleceu com fases muito bem definidas. T. conduziu o
processo por momentos de profunda investigação e experimentação, por momentos de
acurada construção e elaboração do material cênico da atriz e finalmente por momentos de
concretização e refinamento do espetáculo como um todo. Foi estabelecido logo no início
dos encontros, por exemplo, que se faria um ‘ensaio aberto’ do espetáculo para os
estudantes de artes cênicas da Unicamp no dia 08 de Abril. O fato a ser relevado, aqui, é
que tanto Tadashi, como Cris e Simioni disponibilizaram um mês de suas vidas para se
dedicarem inteira e completamente ao processo de trabalho artístico. Nenhuma outra
incumbência, dever ou compromisso social deveria ser tão premente a ponto de interferir na
dedicação e na atenção dada ao período criativo que, assim, poderia se estender no tempo
conforme a sua própria necessidade circunstancial. Normalmente, os trabalhos começavam
às 10 da manhã com 45 minutos de um aquecimento coletivo – aberto a todos do LUME,
inclusive aos funcionários – e se estendia até ás 18 h, com uma hora e meia a duas horas
para o intervalo do almoço. No entanto, quando o processo se aproximou do seu final, 3 a 4
horas de trabalhos noturnos foram incorporados para ensaios extras, montagem de luz e
confecção do cenário.
Dentro de uma escala de tempo de um ano, por exemplo, nota-se que na vida dos
principais envolvidos no processo, houve como que uma janela espaço temporal de um mês
que, nitidamente, destoa das regras e hábitos comumente estabelecidos para a vida
cotidiana dos mesmos; e que muito faz lembrar, como notou Turner e foi descrito na
primeira parte deste trabalho, a fase liminar do processo ritual em tribos e sociedades
ancestrais. Dentro desse período liminar e criativo de um mês pude notar como o processo
de ensaios se afastou do espaço tempo da estrutura social e como, do meio para o fim, as
suas fases internas foram se orientando para uma re-agregação a ele, o que se deu, de certa

172
forma, com o ‘ensaio aberto’ para os estudantes; que de fato já era uma apresentação
completa, ainda que provisória, do trabalho como um todo.
Essas fases internas do período liminar de ensaios e criação poderiam ser divididas
em:
1 – Conversa inicial no dia 10/03 com todos da equipe, estabelecendo os papéis de
cada um, regras internas, horários e um plano de abordagem ao processo criativo.
Estabelecendo o tema e a matéria prima a disposição para o trabalho de investigação diário.
2 – De 11 a 19 de Março. Período inicial de assimilação do tema e da matéria prima
textual que inspiraram a maior parte dos experimentos psicofísicos práticos. Em relação a
todas as fases do processo, foi o período de maior imersão liminar, onde se procurou
alargar, com maior ênfase, as possibilidades expressivas e criativas de C.
3 – 19 de Março – Idealização e Concepção da estrutura formal do espetáculo e seu
conteúdo.
4 – 19 a 25 de Março – Criação e Concretização de um primeiro esboço da estrutura
formal do trabalho da atriz: três trajetórias similares realizadas por três corpos de
características diferentes: uma mulher idosa, uma mulher jovem e uma criança.
5 – 25 a 7 de Abril – Refinamento e Detalhamento da estrutura formal do trabalho
da atriz. Criação e Concretização de todo o espaço-tempo poético: a iluminação, o cenário,
figurinos, músicas.
6 – 08 de Abril – ‘Ensaio aberto’ para convidados e estudantes de artes cênicas da
Unicamp. Conversa com os espectadores.
7 – 09 de Abril - Conversa final e encerramento do período.
Importante dizer que o processo de criação do espetáculo não se encerrou ainda, e,
talvez, de fato, como veremos, nunca se encerre. A estréia oficial de “Você” aconteceu
somente no dia 21 de agosto e um mês antes T. e C. voltaram a se encontrar por 8 dias para
trabalhar sobre o espetáculo que iria estrear. Mais adiante veremos como, segundo a própria
proposta do diretor, inerente à criação de uma forma estrutural definida, há, por parte do
ator, a incumbência criativa de que ele a recrie a cada nova vez que a for realizar. Desse
modo, a estrutura formal de um espetáculo, como esse, cujo processo acompanhei, torna-se
como que - utilizando as palavras de Stanislavski - a pista de lançamento para as turbinas
criativas do ator que deverão complementar e dar vida ao espaço-tempo estético concebido

173
tanto pela expressão psicofísica da atriz, como pela luz, cenografia, música, etc. Vida
criativa e forma estética concebida, quando conectados, formam aquilo que chamei de
espaço-tempo poético. Mais adiante voltaremos a esse ponto.
5.1.3 A matéria prima.
“Memória” foi a proposta inicial de C. como tema de trabalho para o espetáculo.
Dois tipos de matéria-prima básicos seriam utilizados para abordar esse tema. O primeiro,
matéria-prima de caráter textual, estava organizado na forma de 30 poemas escritos pela
própria atriz. O segundo tipo, matéria prima de caráter psicofísico, era o trabalho sobre as
possibilidades expressivas do corpo da própria atriz.

A matéria prima textual.


No encontro prático inicial de oito dias, em 2008 - que não testemunhei – C. propôs
a T. que trabalhassem sobre: “A Mulher Desencarnada” um dos relatos contidos no livro de
Oliver Sacks: “O homem que confundiu sua mulher com um chapéu.” A proposta acabou
não se firmando e surgiu, então, uma segunda proposta de C. de que trabalhassem a partir
de uma coletânea de poemas escritos por ela própria, já adulta, sobre sua experiência de
vida na infância, com a avó, mãe, pai e família. Esta proposta foi acatada por T., de modo
que a matéria prima textual para a criação do espetáculo foi a própria vida e memória de C.
expressas nestes quase 30 pequenos poemas. Os poemas foram traduzidos para as duas
línguas mais familiares a T.: o japonês e o alemão. Desses poemas-memórias muitos temas
comuns a qualquer ser-humano foram investigados e desenvolvidos em diálogos, tanto
através de relatos e experiências guardadas na própria memória dos envolvidos, como
através da experiência tirada da literatura, filmes e obras de arte em geral. Alguns dos
temas que foram surgindo conforme seguiam os dias de ensaio e que, de certo modo,
delimitam o universo pelo qual transitamos são: ‘solidão’, ‘loucura’, ‘feminino’, ‘medo’,
‘non-sense’, ‘morte’, ‘infância’, etc.
Ainda sobre as circunstâncias iniciais do trabalho, vale lembrar que, resultante do
trabalho anterior, havia desde o início uma idéia daquilo que poderia ser o espetáculo. Ele
se dividiria em 3 estações de uma trajetória que começaria do fim para o início, da
proximidade da morte para a aurora da vida. Com mais ou menos 20 minutos, cada uma
destas estações seria construída com ações e movimentos que se assemelhariam, porém

174
adquirindo diferentes tonalidades em relação direta com a idade, a passagem do tempo e o
fluxo da memória.
Relato estas circunstâncias iniciais e sua matéria prima, pois elas, em si, apontam
para a criação de um espetáculo, que é mais que simplesmente um espetáculo; é mais que
um empreendimento profissional e financeiro. Há uma certa intensão de busca, um projeto
de investigação pessoal em torno de um determinado tema: a memória. Investigação e
busca remetem a lugares e resultados incertos e desconhecidos que, novamente a partir de
Turner, nos lembram a fase liminar dos processos rituais, na sua característica de
dissolução e recombinação lúdica e criativa de valores e traços da vida social estruturada. É
uma característica pertencente ao teatro de arte e ocorre tanto numa clássica e boa
dramaturgia de Shakespeare, como a de “Rei Lear”, por exemplo; como nos projetos da
modernidade que criam seus próprios espaços-tempos com suas próprias trajetórias
poéticas.
A matéria prima textual deste projeto de montagem - o projeto “Memória” - ainda
que expressa em forma poética e com evidentes pitadas de caráter ficcional, também
provinha da experiência de vida real da própria atriz. No encontro inicial do dia 10, C.
apresentou a todos do grupo uma cena onde utilizava livremente tanto dos seus poemas
biográficos, quanto de imagens filmadas, por ela própria, de sua filha recém nascida ainda
no hospital. Esse fato levou T. a fazer uma observação a respeito de uma certa ‘distância
necessária’ entre a criação do artista e os fatos da sua vida pessoal, de modo que a sua
criação ganhasse autonomia e vida própria. De outro modo poderia ser um pouco perigoso
e limitante em termos artísticos. Alguns dias depois ele se aprofundou neste comentário
dizendo:

Alguns poemas são a sua própria experiência. Em alguns, você pensa como devem
ter sentido sua mãe ou sua avó. Eles não são próprios. Mas você quer ser a sua avó e como
ela deve ter-se sentido [num momento em que nem você era ainda nascida]. Você não sabe
realmente como ela era: é a sua interpretação. Em outros poemas, é a sua própria
experiência. Você se lembra como foi. É interessante que se você tenta ser outra pessoa,
como a mãe ou a avó... ou o pai, e então atuá-la; isto é mais interessante, porque é teatro.
Se você representa a si mesma, não é interessante, porque é realidade. Psicodrama talvez
seja interessante ou importante, mas eu não gosto de psicodrama [na arte]. (Transcrito do
registro de áudio do dia 12 de março de 2009 – LUME).

175
É um comentário importante que revela a preocupação de T. em garantir uma
‘dissolução e recombinação lúdica e criativa’ da memória contida nos poemas. Sem a
‘distância necessária’, sem o vazio da qualidade liminar, a realidade daquela vida social
retratada poderia levar todo o processo a um demasiado ‘subjetivismo’; a uma identificação
do ator consigo próprio - suas dificuldades e incompreensões de vida - apartando-o da vida
poética ficcional. Na prática, uma das propostas de T. para esse ‘distanciamento necessário’
foi trabalhar sobre cada poema, reduzindo-os a um limitado número de palavras que
refletiriam somente a essência do seu tema. Por exemplo, no primeiro dia de trabalho
(11/03) ele pediu que C. reduzisse seu poema, escolhendo apenas as palavras mais
importantes. Seguem o poema original e as palavras sublinhadas que formavam o poema
essencial:

MEMÓRIA I
Dia de chuva
na roça, em dia de trovoada, a vó botava a mãe e seus irmãos embaixo da mesa da cozinha. e
rezava, pedindo proteção.
na cidade, em dia de trovoada a mãe me trancava no quarto escuro, espelho coberto, eletricidade
desligada.
e rezava, pedindo proteção.
eu, em dia de trovoada, olho pro céu e penso na mãe e na vó.
e rezo, pedindo proteção.

Em torno de cada um dos 30 poemas-memória como esse, T. dispendeu uma boa


quantidade de tempo conversando com a atriz a respeito das memórias pessoais, imagens e
do tema essêncial por ele suscitado.

A matéria prima psicofísica


Quanto ao segundo tipo de matéria prima, as possibilidades expressivas do corpo do
ator, seria interessante relatar como o tema foi abordado por T., também na conversa inicial
no dia 10 de Março:

“É claro que o trabalho com o corpo é o principal para mim. Corpo e


também respiração. Este é o trabalho principal. Indepentente de termos os seus poemas, ou
não, esse é o meu estilo. Na última vez que estive aqui começamos a tocar e trabalhar com
diferentes e pequenas partes do corpo: o pescoço, o dedo, barriga, orelha. Eu ainda estou
pensando em trabalhar nesta direção. Mas nós temos, também cinco sentidos. Para o
trabalho com o corpo nós não usamos todos os cinco sentidos. Estes sentidos devem ser
importantes para o ator-dançarino, mas nós esquecemos de ‘cheirar’, de ‘sentir’, de

176
‘ouvir’. Então existe um mal entendido muito grande sobre o que é o trabalho com o corpo.
Eu gostaria de tentar conectar novamente com esses cinco sentidos do corpo e talvez
também com um possível sexto sentido do corpo.” (Transcrito do registro de áudio do dia
10 de março de 2009 – LUME)

Alargando os limites sensoriais e expressivos do corpo de C., eles eram colocados


em confronto com os temas e palavras importantes dos poemas, de modo que esses
auxiliassem na investigação de ulteriores possibilidades expressivas do corpo. Muito do
material do espetáculo final foi gerado por esse processo.
Foi novamente Turner, como vimos alhures, que chamou a atenção para estes
pesquisadores que tratam o espaço-tempo do evento teatral como a “criação deliberada de
um espaço separado, ainda quase sagrado e liminar”, onde um corpo liberto e disciplinado
é explorado e utilizado em suas possibilidades expressivas mais altas, “com seus recursos
para o prazer, dor e expressão destravados” (Turner, 1993, p. 12.). Gostaria de confirmar
que T., com seu “Butoh Ma” - ancorado nas suas próprias experiências com o Butoh de
Kazuo Ohno e Tatsumi Hijikata - se encaixa perfeitamente nesta descrição. Alguns
testemunhos em relação ao trabalho com o corpo, tanto provindo da experiência de T.,
como da própria experiência de C. e do LUME durante o processo revelarão que, de fato,
os dois trabalhos possuem princípios e anseios muito similares. Daí, por certo, esta certa
continuidade de colaboração artística entre eles.
Na primeira etapa do processo, portanto - período que notei como sendo o de maior
imersão liminar que foi do dia 11 ao dia 19 de março - o trabalho prático com a atriz,
basicamente girou em torno desses dois tipos de matéria-prima: o textual ligado aos poemas
biográficos e o psicofísico ligado ao alargamento das possibilidades expressivas do corpo e
o confronto deste com as imagens dos próprios poemas.

5.1.4 - A escolha do olhar.

Seria interessante, aqui, aprofundar um pouco mais sobre a questão da perspectiva


do olhar que me propus a ter durante esse um mês de ensaios. Como disse acima, queria
encontrar e observar momentos quando a dimensão criativa de C. surgia, conectava-se
àquilo que estava fazendo, conduzindo suas ações e expressões em cena. De que maneira

177
surge esta dimensão criativa? Através de qual situação específica? Qual foi o papel de T.
neste processo?
Gostaria de tentar refinar ainda mais o nosso entendimento, utilizando o próprio
contexto da realidade que vivenciei.
A liminaridade é elemento importante no processo criativo, pois possibilita que um
indivíduo encontre, em si mesmo, um espaço vazio dentro e fora do cheio de suas
possibilidades. É paradoxal por natureza. A qualidade liminar tem estreita conexão com a
identidade do sujeito, onde reside a identidade de certa pessoa em certo contexto. Por
exemplo, no caso de um ator que entra em sala de trabalho por um mês para a montagem de
um espetáculo, por quais limites a sua identidade é capaz de transitar? Se a identidade do
ator reside principalmente em torno de um hábito formalizado e cristalizado, adquirido no
seu modo de operar na vida cotidiana, então o número destas possibilidades será de certo
modo restrito, isto é, tem-se uma baixa qualidade criativa. De fato, todos nós temos um
‘modo de operar’ reconhecível diante das circunstâncias da vida cotidiana. A mente e o
corpo – que são áreas mais dadas à auto-observação do que as emoções – normalmente
funcionam de uma determinada maneira reconhecível e habitual. Mente e corpo, em geral,
funcionam com um nível e qualidade de atenção baixo, suficiente para o cumprimento
funcional de certas atividades habituais. Mas quando um ator entra em sala de trabalho
deve começar a se desfazer desses hábitos de baixa atenção, a se desvencilhar dele mesmo
– se chamamos esses ‘modos de operação cotidiana’ de uma parte dele próprio. E ele
começa a expandir as possibilidades de utilização da sua percepção, do seu corpo e da sua
mente em torno de experiências concretas e práticas que o remetem a níveis de qualidade
de atenção cada vez mais altos.
C., por exemplo, vinha de sua casa ao local de ensaio de automóvel, todas as
manhãs. Ao mesmo tempo em que cumpria com todos os movimentos de condução do
automóvel nessas viagens, ela poderia acrescentar um nível de atenção à sensação imediata
do toque do pneu que rolava pelo chão na superfície do asfalto, ou do toque de sua pele
com o fluxo de ar que entrava pela janela de seu carro. Ela poderia fazê-lo sem nenhum
prejuízo à qualidade da sua condução, como um simples exercício para a sua atenção e
presença; mas é claro que, em geral - conforme ela própria me contou - isso não acontecia.
Era somente na sala de trabalho, quando assumia o papel de atriz-pesquisadora, que este

178
tipo de experiência passava a estar mais disponível; quando T. fazia experimentos com um
ventilador que criava um fluxo de ar que envolvia seu corpo e todo o seu trabalho e sua
atenção era direcionada a sentir e movimentar seu corpo com este fluxo de vento.
Por certo ângulo, então, nós poderíamos relacionar a ‘liminaridade’ com este ato de
se desvestir, ou melhor, desvencilhar, separar a identidade pessoal destes ‘modos de
operações’ habituais do corpo psicofísico que, em geral, se aglutinam em torno de papéis
sociais definidos e restritos.
A ‘experiência liminar’ tanto está ligada a um processo de amadurecimento humano
– presente, por exemplo, num verdadeiro ritual - como a um processo artístico criativo; e
fundamentalmente tem como função, em ambos os casos, gerar vida criativa dentro do
próprio ato de viver. Na arte do ator do teatro ocidental do século XX, como pude concluir
na primeira parte da tese, ela certamente existe pelo menos desde Stanislavski. E pelos
estudos auxiliares feitos, embora de modo ainda não tão aprofundado, vê-se que há
significativos indícios desta experiência no teatro tradicional japonês, o teatro Nō -
conforme descrito por Zeami - desde o século XIV.93
Tanto no ‘trabalho do homem sobre si mesmo’ como no ‘trabalho do ator sobre si
mesmo’ pode-se notar essa característica: o desvencilhar-se de certo ‘modo de operação’ de
si mesmo, e a entrada num espaço vazio que é ao mesmo tempo cheio de novas
possibilidades de experiências e reconfigurações. É uma característica do ‘estado criativo’
no ator. É um processo que lida ao mesmo tempo com a desconstrução e a reconstrução de
comportamentos psicofísicos. Você se desveste de um modo enrijecido e ao mesmo tempo
vai recriando um novo modo de operação mais sensível e adaptável às exigências do
contexto imediato. No teatro, esse contexto imediato assume a forma de ensaios e
experimentações em torno de um texto dramático ou tema como aquele da ‘memória’. No
nosso caso, esse contexto imediato gerou o espetáculo teatral “Você”.
Assim como Stanislavski, podemos entrever, também, que esse processo de
‘trabalho do ator sobre si mesmo’ nunca pode ter um fim. Porque, tomando ainda como
exemplo o processo artístico que observei no LUME, notei que a própria atriz C. após 15
anos de vivências em sala de trabalho e em palcos – sempre como atriz do LUME -; havia
estabelecido um ‘modo de operação’ organizado e cotidiano – ou, como diria Stanislavski
93
A um item sobre o assunto no Anexo I, a partir da página 440. Traços da obra de Zeami serão estudados
mais adiante, na parte final desse capítulo.

179
em seu teatro, um ‘estado habitual do ator’ - do qual ela e T. estavam deliberadamente
tentando se afastar durante o processo.
Portanto, há, aqui, certa precisão a ser feita sobre o termo ‘estado habitual do ator’,
quando usado em referência ao termo ‘modo de operação’ de si mesmo, como utilizado
aqui.
É como se fosse um duplo desvencilhar-se de si mesmo. Primeiro, o ator
intencionalmente se afasta do seu ‘modo de operação habitual’ cotidiano e social; e em
seguida, já em sala de trabalho, começa a se afastar do seu ‘modo de operação habitual’
cotidiano e artístico. É realmente mais simples de se visualizar quando colocamos a
pergunta usada no início: por quais espaços a identidade do ator é capaz de transitar?
Porque no ‘estado habitual de ator’ é como se sua identidade, em sala de trabalho,
começasse a cristalizar e revolver em torno das técnicas e habilidades psicofísicas que ele,
como ator, dura e penosamente conseguiu adquirir através dos anos. Tal identificação do
ator com uma parte de si mesmo receia ter que entrar novamente no desconhecido vazio do
espaço liminar arriscando perder suas certezas e conquistas. Mas a ‘criatividade humana’,
que é sempre inesgotável, exige tal separação. Nesse caso, para entrar em ‘estado criativo’,
sua identidade terá que, todas às vezes, dissolver-se no vazio liminar. Ali, o ator se utilizará
ou não, livremente, das técnicas e habilidades psicofísicas adquiridas, podendo, inclusive,
como é mais característico no Ocidente, desenvolver e criar novas técnicas e habilidades
que estejam mais relacionadas ao contexto criativo do espetáculo.

- Corpo e Pensamento.

Tanto o corpo quanto o pensamento são fenômenos, em nós mesmos, muito mais
observáveis e controláveis que os fluxos e refluxos da atividade emocional. Foi essa a
grande descoberta de Stanislavski, na última parte de sua vida.
Uma das maneiras da gente operar na vida habitual é ouvir os nossos pensamentos quase
que ininterruptamente durante as atividades e relações humanas diárias. Uma qualidade de
pensamento interno e descontrolado fica se manifestando automaticamente em quase todos
os momentos dessa existência cotidiana. Uma espécie de imaginação descontrolada se
instala entre o sujeito e a realidade do contexto imediato em que ele está envolvido. Esse

180
‘modo de operação’ imprime limites muito bem definidos às ações e às possibilidades
expressivas do corpo cotidiano, incluindo, aí, a sua capacidade de utilização dos sentidos.
Foi muito interessante poder observar, cotidianamente, nas relações de trabalho entre T.
e C. que existia a preocupação da supressão dessa qualidade de pensamento, que é
comumente aceitável para os ‘modos de operação’ de si na vida cotidiana. Freqüentemente
T. se utilizou das expressões: “Too much thinking; let feel really the body” ou “too much
intellectual control over the body.”
T. chamava a atenção de que C., em alguns momentos do trabalho corporal, ‘não estava
realmente sentindo o próprio corpo’ e que para isso ela deveria limitar o próprio
pensamento que, de algum modo, estava bloqueando a utilização plena do corpo. T.
estimulava a C. para ‘concretamente falar com o corpo’.
Esse espaço que o pensamento descontrolado ocupa na vida de todo dia é bastante
extenso e normalmente uma pessoa pouco se disponibiliza a ir, internamente, contra esse
‘modo de operação’. É um ‘modo de operação’ comum a quase todos os lugares do
cotidiano: se você está dirigindo um automóvel, lá está ele; e você vai almoçar e continua
pensando em coisas alheias àquilo que está fazendo; e você vai tomar banho e segue
pensando em alguma situação que durante o dia não lhe pareceu bem resolvida. E você
pode estar conversando com alguém e, ao mesmo tempo, estar mantendo um ruído interno
de comentários, opinião e julgamento por sobre a fala da outra pessoa; como se estivesse, a
todo o momento, interrompendo-a interna e invisivelmente.
Na cena do teatro, um ator não deveria poder manter esse hábito, esse ‘modo de
operação’. Quando um ator entra em cena e começa a agir dentro de um contexto fictício e
poético, de qualquer espécie estética, então, de fato, essa espécie de pensamento precisa ser
silenciada. O pensamento em si não necessariamente precisa ser suprimido e vimos como
Stanislavski incentivava aos atores a criação de subtextos por detrás da obra do dramaturgo;
mas, certamente, esta sua descontrolada característica caótica deve ser limitada. Quando
isso é alcançado, o pensamento torna-se criativo ao lado do corpo e das emoções, deixando
de interferir no funcionamento livre e correto destes últimos. O pensamento fica conectado
com o trabalho do corpo. Ele não se antecipa ao corpo, não critica aquilo que ocorreu ou se
aflige com o que acontecerá. Pelo contrário, se apresenta com comandos curtos e precisos
que, quando corretamente cultivados no ator, auxiliam e são fundamentais na construção do

181
espaço-tempo poético. Este é o pensamento criativo sem o qual a imaginação criativa,
intuitiva e espontânea se desvanece em ‘subjetivismos’ ou ‘esterilidade’. Esse tipo de
pensamento também não permite que a identidade social cotidiana da pessoa do ator seja
elemento ativo durante a representação da peça, ou durante o processo criativo. À imagem
comportamental que ele tem de si como pessoa no espaço tempo social não é dado caminho
de expressão. O ator necessita do Vazio liminar, dentro e fora, de sua mente.
Em muitos momentos pude observar T., tentando ou sinalizar a presença deste
equivocado ‘modo de operação’ do pensamento em C., ou tentando criar as condições
externas necessárias para que o pensamento de C. se tornasse ele mesmo criativo.
É possível utilizar o conceito de corpo subjétil desenvolvido no próprio LUME por
Ferracini, para avançar um pouco mais na questão; entendendo que a criação psicofísica do
ator em cena tanto possui a dimensão do sujeito (daquele que o está criando) como a
dimensão do objeto (daquele que está sendo visto).

“[...] o corpo-subjétil, estando primeiramente nesse “entre” objetividade - subjetividade,


dualidade que poderíamos facilmente levar para forma X expressão ou mecanicidade X
“vida”, ou mesmo comportamento cotidiano X comportamento extracotidiano, não é nem
um nem outro exatamente, mas os perpassa pelo meio, englobando as duas pontas da
polaridade e todos os outros pontos que passem por essas linhas opostas.” (Ferracini,
2004, p.77)

O corpo subjétil, ou a imagem poética, pode perder o foco se vai demasiadamente


para o território do sujeito ou se vai demasiadamente para o território do objeto, tornando-
se muito vago e “subjetivo” (no sentido de uma expressão demasiadamente exclusiva ao
sujeito) ou muito funcional e “objetivo” (no sentido de uma expressão demasiadamente
exclusiva ao objeto, sem dimensão poética). Qualquer ‘modo de operação habitual’ social
ou artístico que se cristalize em torno do trabalho do ator em situação de representação,
deve levá-lo a um desses extremos, conforme a sua própria tendência pessoal.
Nesse contexto, um ‘modo de operação artístico habitual’ é toda e qualquer técnica
artística aprendida pelo ator, necessária ao seu ofício, mas que perdeu contato com sua
dimensão criativa, tornando-se um empecilho à sua expressão poética. Ou ela é utilizada
como fim e não como meio criativo, ou ela permanece no corpo psicofísico do ator como
um vício de expressão involuntário. E é importante lembrar, aqui: não só um vício no uso
do corpo, como também no uso da mente e das emoções.

182
Há um momento, no entanto, em que acontece uma justa composição entre sujeito e
objeto, entre imaginação criativa e concretização estética. E este corpo torna-se subjétil,
isto é, um corpo-imagem nitidamente focado e em sintonia com a dinâmica do momento
presente da cena poética. Nem demasiadamente “objetivo” nem demasiadamente
“subjetivo”. É um momento-fruto de grande rigor técnico junto de uma grande disposição
criativa. O ator, com seu corpo poético projetado para o público, mantêm uma refinada
atenção perceptiva tanto sobre seu mundo interno como sobre seu mundo externo imediato.
Quando ele encontra e sustenta, momento a momento, o foco justo entre esses dois
territórios, ali ele começa a revelar um terceiro elemento que sempre esteve presente,
apesar de mais ou menos velado e invisível. É a dimensão liminar do Ser que é não-sujeito
e não objeto: a dimensão que não é corpo, não é mente nem é emoção; não é o papel social,
nem é a personagem fictícia. Uma dimensão que escapa tanto do espaço-tempo social
cotidiano, quanto do espaço-tempo poético criado, embora sustente a vida dos
“personagens” em ambas. Uma dimensão vertical que pulsa a existência num ‘Único e
Eterno Agora’ fora do tempo, mas que infla, no tempo, a forma social e a forma poética
com vida e existência. No âmbito artístico, me parece ser esta a dimensão criativa do ator
que Stanislavski buscava e que é, em qualquer caso, independente da estética formal que se
escolhe para a expressão cênica. No âmbito da sabedoria humana, é onde reside a real
identidade de qualquer pessoa, esteja ela ciente disso ou não.
No segundo dia de trabalho prático entre C. e T., após uma extensa e interessante
conversa sobre o trabalho do ator-dançarino - que será relatada mais adiante - T. a
sintetizou e finalizou dizendo:

I don’t know if you understand what I mean: To be, don’t to play. To be. This
is a simple sentence, but is so difficult. And it is so important. I don’t know for myself
how is real possible… we have to try many different ways…
(Transcrição do registro de áudio -12/03/09 – Tarde)

Tendendo a me ater principalmente aos 8 primeiros dias desse processo criativo,


tentarei relatar e detectar estas muitas e diferentes maneiras pelas quais Tadashi, Cris e
Simioni experimentaram, entre eles mesmos, para que “Você”, o espetáculo, realmente
contivesse essa dimensão de Ser.

183
5.1.5 - O Vazio Liminar no Trabalho do Ator.

Relatar é o que será feito neste item. Seguindo a ordem cronológica dos eventos e as
falas e diálogos diretamente transcritos do registro de áudio, vamos detectar algumas
passagens relevantes onde o espaço vazio da liminaridade permeia e fundamenta o trabalho
do ator do LUME. Para este capítulo será suficiente o estudo dos primeiros quatro dias do
processo criativo, com uma pequena conclusão final. Para as falas e diálogos transcritos do
registro de áudio mantive o traço de oralidade. Quando necessário complemento o
entendimento do trecho com uma breve explicação ou detalhamento da situação dentro de
[colchetes]. Todas as fotos utilizadas foram extraídas das gravações de vídeo realizadas.

a- O primeiro dia de trabalho – 11/03 – ‘O grande trabalhador do corpo.’

Nesse primeiro dia de trabalho as propostas e exercícios gravitaram em torno da


expressividade do corpo de C.. Como tema para o trabalho com o corpo foram utilizadas
apenas as palavras essenciais do poema 1, que já apresentamos acima:

Trovoada... ...embaixo da mesa... ...trancada no quarto... ...rezava... ...olho pro


céu... ...pedindo proteção.

No início C. trabalhava apenas com a voz, tentando criar um novo poema que fosse
além da lógica contida no original: “Trancada na mesa, rezo pedindo proteção, proteção...
pedindo trovoada. Trancada na mesa rezo, rezo...”
Mas logo a seguir também o corpo começava a ser requerido:

“Você deve não só falar com sua boca, mas com seu dedo, com seu estômago,
trovoada na sua barriga, nos seus olhos, falar com outro corpo. Eu falo intencionalmente
ao céu com meu joelho... Você deve colocar todas as partes da voz no corpo, mas não
mostra, não deixa ver... ...como se estivesse trancada: só sai a voz, mas usando todas as
partes do corpo... ...visualize com qual parte do corpo você está falando...” (Transcrição
do registro de áudio -11/03/09 – Tarde)

E logo a voz da fala foi deixada de lado e todo o trabalho centralizou-se nas
possibilidades expressivas da voz do corpo. Permaneceram os estímulos vindos de fora: o
poema lido por S. e as improvisações sonoras do violino de Greg (G.), o instrumentista.

184
Como esse corpo poderia começar a falar uma nova língua tendo palavras e sons
como estímulos? Não só com uma ou outra parte corporal recorrente ou não só com a parte
frontal como fazemos no cotidiano; mas falar com todas e as mais mínimas partes do
corpo, para toda a tridimensionalidade ao seu redor. Sugeria que notássemos a plenitude do
movimento que um deficiente físico possui, ao ter que enfrentar e vencer a sua própria
dificuldade. Cito T.:

“T - Hijikata disse uma vez que quando o corpo é preso, comprimido, estreitado, é a partir
desse momento que o corpo começa a falar. É um pouco como quando eu vejo os
deficientes físicos (handicapped people)... O corpo deles é deficiente, não é livre; o espaço
é reduzido, é algo como partido, limitado. Então eles movem algo e esta é a linguagem
[corporal] deles. Eles falam assim [envolvendo todo o corpo]. Ninguém que tenha o corpo
saudável e confortável fala assim com o corpo, porque nós falamos com a parte. Mas estas
pessoas falam assim [com todo o corpo]: é a língua deles. Eu posso ouvir esta língua. E
para os dançarinos, nós precisamos exatamente desta língua, desta linguagem do corpo. O
que significa que as partes vão cada uma para uma direção e todo o corpo fica muito
desconfortável. Reduzido. Isto não é um corpo saudável, simétrico e confortável. É
desconfortável, mas tem tensão: eu quero ir para lá, mas eu não consigo... Eu quero ir
para lá, mas eu não posso e então o corpo começa a falar.” (Transcrição do registro de
áudio - 11/03/09 – Tarde)

E segue logo adiante:

E para esse jogo você precisa mais de cada articulação em especial, não uma linha.
Isto é contemporâneo. Não... Espaço, aqui tem espaço, aqui, aqui; cada articulação de

185
dedo busca por espaço. De outro modo tudo vira uma ginástica contemporânea muito
rapidamente. Assim cada espaço no teu corpo, entre as conexões dos ossos - os ossos são
conectados e entre os ossos tem este espaço - isto é o que serve para falar. Certamente que
temos que ser um pouco como os deficientes físicos: com espasmos. Quando você vê esses
movimentos espasmódicos destas pessoas com dificuldades, eles falam com cada detalhe e
é tão fantástico. [...] É tão fantástico porque ali tem detalhe, detalhe. Nós temos todas
essas possibilidades e nós não usamos todas essas línguas, e usamos só uma parte frontal.
Você deve usar mais cada articulação. Cada mão tem muitos dedos: um dedo para o céu e
ao mesmo tempo outro dedo vai para as costas e outro para o centro da terra. E aí você vê
como está o ponto de conexão em cada articulação, articulação, articulação... [em cada
uma delas, ao mesmo tempo] (Transcrição do registro de áudio -11/03/09 – Tarde)

Conforme os exercícios expressivos iam sendo propostos, T. começava a reconhecer


e localizar algumas recorrências e dificuldades do corpo de C., algumas mais específicas a
ela e outras mais comuns a todos atores-dançarinos, tanto os principiantes, quanto os mais
experimentados:

Para mim não é tão louvável se alguém diz que eu sou grande artista, mas é
louvável se alguém me chama de um grande trabalhador braçal. (homeworker). Nós
precisamos de muito trabalho para começar a falar com o nosso corpo. Esse é o nosso
dever de casa (homework). Arte possui um nível intelectual que não é tão interessante. Se
você realmente tenta falar com uma parte do seu corpo, você deve realmente tentar.
Permita falar, não sinta como você deve falar. Tentar significa permitir falar. Você fala
sempre para frente, nunca fala para trás, nunca fala para baixo, para o lado... Muito
pensamento... Você não está realmente sentindo o seu corpo. Para isto ponha o seu corpo
em um maior desconforto, um corpo mais estúpido, mais desequilibrado, descontrolado,
menos controle intelectual, algo mais errado. Algumas vezes a sua boca vai para as costas
e dali você fala... Mais desconfortável... ...depois a boca vai a cabeça... ...diferentes
estilos... Não é pensar sobre: é menos o pensamento. (Transcrição do registro de áudio -
11/03/09 – Tarde)

Sobre a manipulação e o bloqueio do corpo pelo pensamento – comum à maioria


absoluta dos atores e dançarinos - T. voltaria a trabalhar sobre essa dificuldade em várias
outras oportunidades, como se ela tivesse que ser vencida a cada novo dia. Muitas vezes,
para trabalhar concretamente com o problema, T. acenava para a criação deliberada de
tensões contrárias ao movimento, ocultas e no interior do corpo, uma técnica bem
conhecida dentro do próprio LUME:

É claro que todos estes movimentos têm uma espécie de resistência, porque eles não
são confortáveis. Você quer ir adiante, mas algumas vezes você não deve, você deve ir para
trás. Quer dizer que há uma resistência, não é um caminho fácil. Mas você insiste: eu

186
quero, eu quero... Não vá, não vá. Sim eu quero. No lado de dentro você está lutando com
você mesmo. Isto é resistência. Às vezes a resistência fica grande e algumas vezes pode se
tornar muito leve. (Transcrição do registro de áudio -11/03/09 – Tarde)

A imagem de que o corpo do ator-bailarino é como um ‘instrumento musical’ que


precisa soar nas mais variadas notas vindas das mais altas até as mais baixas escalas
também foi muito explorada por T.. Com a percepção intuitiva de que existe uma vida
existencial pulsante em torno de qualquer forma expressiva, os atores dançarinos do
‘Butoh’ não fazem nenhuma ressalva em considerar o próprio corpo como um instrumento,
como se ele fosse um boneco e o fluxo interior de suas energias explorasse e conduzisse
suas possibilidades de movimento:

T - Os movimentos têm cheiros, são quentes, mornos, frios. E também existem


muitos outros elementos que a gente pode pôr junto do movimento, mas tecnicamente você
deve – e isso é trabalho duro – descobrir como eu posso fazer uma outra posição da
perna? Como? Você deve tentar realmente mover. Não pensar sobre isto [mas mover] e
então finalmente o seu movimento da perna se torna diferente, pois a perna está diferente.
Também com cada uma das outras partes. E então, quando o instrumento está completo,
então você pode tocar com este instrumento e você fica surpresa pelo som que ele produz.
“Oh, isto soa muito ruim.” E então você tenta outro jeito de tocar. E então: “Oh, isto é
bom!” Eu gosto disso. E você pode experimentar por um longo tempo. (Transcrição do
registro de áudio -11/03/09 – Tarde)

Certo que o nível artístico e técnico do trabalho que T. propunha era de


elevadíssima exigência, desafiante até mesmo para uma experimentada atriz-pesquisadora

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como C.. Na verdade, o processo como um todo teve essa qualidade desafiante, propondo-
se a romper e a ultrapassar com os limites e hábitos adquiridos na própria trajetória da atriz.

b - O segundo dia de trabalho – 12/03 – ‘Ser, somente ser.’

Se o desafio no primeiro dia foi aquele de descobrir novas possibilidades no


instrumento cênico (físico e mental), o desafio do segundo dia foi descobrir qualidades de
ser do instrumentista cênico. ‘Artesanato’ e ‘atmosfera’ eram as palavras utilizadas por T.
para fazer referência a essas duas dimensões do trabalho do ator-dançarino. Durante todo o
período de ensaios, ele sempre as repetia quando necessitava levar a atenção do trabalho de
C. para uma ou outra dessas dimensões. Enquanto que a primeira fazia referência à
dimensão horizontal do ‘fazer’ com o corpo, a segunda fazia referência à dimensão vertical
do ‘fazer’ com o espírito.
Nesse dia, a porta de entrada para o trabalho veio através do terceiro poema de C.,
lido e condensado conforme segue:

MEMÓRIA III -Tirinhas de tecido


a vó de velha caducou.
caducar é quando a pessoa enruga tanto que perde as forças pra viver nesse mundo e cria
um outro muito mais divertido, sem regra e hora pra dormir.
de manhãzinha a vó lavava o rosto na privada, ela se encantava com aquela aguinha pouca
com seu rosto dentro e nela mergulhava.
eu ria. A mãe corria.
a caixinha de tesouro da vó tinha botão, barbante, meia e tirinha de tudo que encontrava,
um amarrado no outro.
o cordão crescia a cada dia, teia tramada e sonhada,
de cores infinitas.

T. toma a palavra e comenta:

Para mim é um poema que tem um sentido muito diferente. A primeira parte, eu
posso imaginar uma pessoa velha. Deve ser o paraíso. [...] Se as pessoas ficam muito
velhas: ‘caducou’. Elas criam outro mundo para elas. Elas fazem aquilo que querem no
tempo delas. Têm uma sensação de tempo diferente da nossa. Como uma criança. Você
existe e não tem plano e não precisa ter planos. [...] É o mesmo que... Como quando você
quer estar aqui e isso é tudo. Como fazer isso? Você não precisa ficar fazendo isto e isto...
Você está aqui e isto é tudo. Mas você deve de fato porque você é a pessoa que está
atuando diante do público. [...] Eu penso algumas vezes como ser... Não como uma
metáfora... [mas] ser... Existir para nada... algo parecido como iluminação... E isso é mais

188
como budismo... Mais espiritual. Não pensar em nada e ser livre. Mas poderia, também, o
nosso corpo estar numa situação similar? Você move, mas você não precisa mover, e ainda
assim você move. Este movimento não conectado com algo que você necessite fazer. Você
pode fazer qualquer coisa que quiser... ...e você ainda existe. (Transcrição do registro de
áudio -12/03/09 – Manhã)

Esse é o ponto em questão nesta tese sobre a ‘liminaridade na profissão do ator’.


Reformulo-o novamente para este contexto: junto com o elemento técnico e artesanal
próprio a toda criação espaço-temporal, necessita-se uma dimensão de existência que em
última instância extrapola os limites entre arte e vida humana. Segue necessária a utilização
de uma técnica; mas esta já é uma técnica que difere, em essência, daquela primeira. No
trabalho, T. a enxerga como uma espécie de ‘exercício extremo’ e chama a atenção de que
ela sempre esteve de algum modo presente entre os artistas. Segue um interessante diálogo
entre T., C. e S. sobre a razão de ser desses ‘exercícios extremos’ durante o processo e
sobre a questão de ‘ir além de si mesmo’:
T - Alguém chegou a falar sobre a relação que existe entre ‘tarantismo’ e a dança
Butoh. ‘Bu’ significa dança e ‘toh’ passos. É claro que de fato não tem relação. Mas um
ponto que realmente está conectado é que, através dos passos, a pessoa chega a uma
espécie de loucura. A feiticeira da tarantela faz uma espécie de exorcismo. Ela deve tirar
esse veneno... E ela faz isso através dos passos da dança. E se não é suficiente, se deve ir
mais e mais... neste tipo de situação. Por que Hijikata fez exercícios tão extremos até as
pessoas ficarem loucas? Aí eu vejo alguma relação paralela com o ‘tarantismo’... Também
com Antonin Artaud... Também com Nijinsky... O que é este êxtase ou situação extrema e
radical? [...] Por que nós desejamos chegar a este ponto? Por que nós queremos chegar
neste êxtase ou nessas situações extremas? Por quê?

C – Não sei... Acho que é um lugar de intensidade, de limite... Como se fosse interessante
esse desafio de ver até onde eu chego. E esse desconhecido a que eu só vou chegar quando
eu ultrapassar o limite.

T – Mas nós não queremos que seja real, não é? Isto significa que tudo é teatro, não é
real...

C – São situações controladas, né?

T – Mas no teatro nós precisamos dessas situações extremas quase reais... Mas nós
sabemos que é teatro. Por que nós precisamos dessa realidade, no teatro? Acho que
porque nós não queremos ficar no nível da vida cotidiana... Quase todos artistas ou
pessoas geniais são loucas, realmente loucas, não só no teatro. Nijinsky, Artaud... Também
Hijikata. O que significa: nós desejamos realmente isso? É esse o nosso destino, nossa
meta? É a minha questão pessoal também. Eu desejo algumas vezes, mas eu não quero
ficar nesta situação por toda a minha vida. Eu gosto de alguma privacidade. Mas

189
[também] se eu danço, eu não quero ser algo como que um produto... ...um Tadashi Endo...
Não. Por que não existe uma maneira oposta de ser dentro da vida cotidiana? Algum
espaço de tempo para se tomar e ser louco ou ser...? [...]Por que nós queremos isso, no
teatro? Por que no teatro o palco não é como na vida cotidiana? Alguém que vai cozinhar,
e comer, ou fazer xixi? O que é esta realidade teatral? Por que tão extrema, tão diferente?
O que você acha? O que você precisa? Ah... E se você fizer isso, pode acontecer um
acidente, você pode quebrar algo... Ninguém faz isso no teatro, mas nós queremos... O que
é esse desejo na realidade? Como conectá-lo em você mesmo? Eu posso falar por mim
mesmo... Mas se eu falo a uma outra pessoa: “Vai mais fundo até que você morra!” Eu sei
que ninguém deve morrer, mas eu falo aquilo e isso significa que todo mundo é capaz de
fazer mais. Se você pensar: “Esse é o meu limite! Eu não posso mais” Então eu falo: sim,
você pode. Assim esse passo a passo: “Mais, mais, mais!” Só que algumas vezes acontece
mesmo. Durante um ‘workshop’ que dei, um rapaz caiu e teve epilepsia. Este momento foi
realmente verdadeiro e eu tive que chamar o médico... De outro modo podia ser muito
perigoso. Eu não sou médico eu não sabia o que fazer... E então eu chamei. Mas ele, o
rapaz, quis ir até aquele estado. Por que eu não pude aceitar? Eu chamei o doutor porque
era realidade, uma situação de perigo real. Você quer um tipo de situação assim durante
os ensaios? Chegar ao seu limite e ultrapassá-lo?

C – (Risos) – Eu gostaria de ultrapassar os limites, mas não chegar ao limite de ir ao


hospital. [...] Porque dentro você também, de alguma maneira, conduz e sabe e tem um
nível de consciência que acompanha. E de fora também: quem vê também sabe o limite e
como retornar pelo caminho.

T – Eu não sou um mágico... Às vezes eu digo ‘stop’ e você não pode mais parar. Eu quero
e você também quer chegar numa intensidade muito profunda. É claro que até agora não
foi suficiente e nós vamos: mais, mais. Ao mesmo tempo eu penso: “Quão capaz é você?”
Você alguma vez teve esse tipo de experiência dessas de extrapolar?

S – Posso falar. Também para mim essa é uma questão muito boa de responder. Não nesta
maneira... Nesta maneira de chegar a um ponto em que você perde a si mesmo. Mas de
chegar num ponto em que eu digo: “Oh meu Deus, isso é louco para mim, mas eu ainda
tenho controle para continuar. Mas é claro que eu sei que é maior que eu.” (Transcrição
do registro de áudio -12/03/09 – Tarde)

‘Controle para continuar’ um processo que ‘eu sei que é maior que eu’. Foram as
palavras de Simioni sobre a questão dos ‘exercícios extremos’. No início do LUME, em
1985, ele, junto com Burnier, experimentara profundamente essa questão desenvolvendo
aquilo que Burnier, em sua tese, chama de ‘treinamento energético’, um treinamento que:
[...] visa a uma limpeza de energias primeiras, dinamizando e permitindo o fluir de
energias mais profundas que se encontram em estado potencial no indivíduo. (Burnier,
2002, p. 64)

190
Mas, ‘exercícios extremos’ não são necessariamente apenas de ordem física e
qualidade ativa. Na proposta prática de T., a experiência ia numa direção completamente
oposta: C. deveria estar parada - de pé ou sentada – mas real e absolutamente relaxada.
Nenhuma tensão desnecessária, nenhum movimento que não fosse o resultado de um
profundo anseio pelo movimento. Como dançar com essa absoluta liberdade que
encontramos nas crianças - muito crianças - e nos velhos - muito velhos - que simplesmente
existem e nada mais?
O trabalho corporal proposto também ia, justamente, numa direção completamente
oposta àquela do dia anterior, já que aqui C. não precisava fazer absolutamente nada. Este
era o extremo: o nada.
Segue T. explicando um pouco mais da sua proposta:

“Deixe tudo muito relaxado e então mantenha isso. Nenhum movimento. [...] Você está
aqui, você está relaxada, mas você não é você. Você é um objeto como uma escultura. É
muito claro, mas para você é absolutamente indefinido. Seus ombros podem ter dois metros
de largura, sua cabeça pode ser como um balão que é tão leve. Uma figura mais vazia.
Mas para nós você é um objeto muito nítido e podemos ver toda a sua silhueta, todas as
suas linhas. Mas se você põe a alma neste objeto, então ele começa a nos revelar algum
modo de atmosfera ou retrato. Isto é a nossa imaginação. Nós colocamos algum tipo de
fantasia nisso que vem de você. Antes que você tente fazer algo, você nos deu a grande
chance de criar alguma coisa da nossa imaginação sobre o objeto.
[...] nós vamos tentar que você mantenha essa posição o tanto quanto consiga. Para
manter isso por um longo tempo, certamente que o seu corpo vai ter que encontrar outra
tensão. E o corpo vai querer fazer algo. Somente se o corpo quiser fazer algo você faz, mas
você pode ficar aí parada, você não precisa fazer nada. Mais tarde talvez o corpo queira
fazer algo. (Transcrição do registro de áudio -12/03/09 – Manhã)

191
Do intervalo de mais ou menos 30 minutos que durou a experiência, mostrarei, a
seguir, seis imagens que dão, em alguma medida, a ‘atmosfera’ criada por C. com sua
corporeidade. Nos primeiros quinze minutos de absoluto relaxamento, S. leu em voz alta os
3 primeiros poemas-memórias de C. – aqueles que traziam imagens da avó. O primeiro e o
terceiro já puderam ser lidos acima. O segundo chamava-se: “Navio”.
a vó veio de navio. grávida do primeiro filho Manuel, que nasceu durante a travessia.
travessia é quando uma pessoa sai do seu lugar e busca outro, longe dali, pra ver se
encontra algo que nunca encontrou. e sempre leva consigo um pedacinho do que deixou.
a vó trouxe xícara, camisola e máquina de costura.
o baú, que devia ser cheio de lindezas, roubaram no caminho.
na ilha da madeira, lugar da vó e do vô, eles moravam num moinho.
devia ser apertado demais.

Após esse tempo, T. disse que, então, ela poderia movimentar o corpo, ficar de pé
ou deitar, disse que poderia fazer aquilo que ela realmente quisesse fazer. As fotos a seguir
correspondem a 6 momentos dos últimos 15 minutos de experiência:

192
T., bastante satisfeito com o resultado do experimento, chamava a atenção para o
fato de que ali o invisível havia se manifestado através do visível. O corpo de C. havia se
deixado mover por algo que não era uma sua ansiedade ou motivação superficial. E como
um corpo-canal fez com que víssemos, no transcorrer dos muitos minutos de exercício,
rostos e corpos que remetiam a idades diametralmente opostas. Quem ali estava assistindo
viu uma ‘velha’ e depois viu como esse rosto, com a mesma delicadeza da luz de um
amanhecer, foi se tornando jovem e mais jovem à medida que o corpo ia, vagarosamente, se
deitando. Não só as fotos acima indicam estas ‘atmosferas’, mas uma notável coincidência
fez com que todo o exercício ganhasse uma qualidade extraordinária. Por que teria C.
escolhido exatamente aquele lugar da sala para se sentar? Por um jogo de espelhamento no
pára-brisa de um carro estacionado, a luz do sol do meio dia entrava por uma fresta da
cortina da entrada que abaixava e levanta ao sabor da suavidade do vento. E foi, justamente,
na direção desse facho de luz que C. se sentou no início do exercício, quando ainda nem o
espelhamento nem o vento ocorriam.

Mais tarde T. fez esse importante comentário:

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“Você estava sentada hoje de manhã, então nós vimos a sombra. Se você não
estivesse ali nós não veríamos a sombra. É a sombra que move, não é você... Este é um
ponto muito importante: não é que o dançarino vem ao palco e começa a se mover... E
todos podem seguir estes movimentos... São belos movimentos, um belo estilo... Mas não é
nada. O dançarino vem, mas, através da sua existência algo ao redor dele surge...o vento
vem...ou a chuva...ou qualquer coisa que ele se transforme. Se você cria essa situação,
[isto] é muito maior do que se você vem explicar algo... Ou vem dizer: “olhe como eu
danço”... Não! Olhe atrás de mim como a sombra existe! Olhe agora: a chuva está
chegando. Esta criação, esta situação eu gosto muito mais. E neste momento você já
desaparece, você já não está aqui, mas na realidade [...] isto é tudo. O que nós podemos
fazer mais? Nós não precisamos de mais nada. (Transcrição do registro de áudio -
12/03/09 – Tarde)

É pelo visível movimento das folhas que se revela a qualidade da presença do vento;
é pela opacidade de corpos e objetos, que formam sombras ao fundo, que se revela a
presença de uma fonte de luz. Na arte, é através da sensível construção artesanal dos
fenômenos que ulteriores dimensões, que alargam e aprofundam a qualidade simbólica
destes, são reveladas. É através da concretude do ‘artesanato’ que se produz a ‘atmosfera’.
Na vida humana, é através da corajosa e sincera condução da dimensão social que o sopro
de vida criativa da dimensão liminar dá sentido à existência. A foto acima, tomada logo
após o experimento, é uma imagem exemplar de tais relações, tanto na arte quanto na vida.
Que importa dar alguma explicação lógica e racional para o fato? Diria,
simplesmente, que a Natureza brincava, junto com a Atriz, de fazer e desfazer poesias. O
fato importante é que C. criou as condições necessárias, internas e externas, para que se
produzisse a assim chamada ‘atmosfera’ e esta atraiu a coincidência simbólica. Para nós,
que assistíamos, o tempo da vida de todo o dia se dissolveu, dando lugar aos primeiros
sinais daquilo que viria a ser o espaço-tempo poético da primeira cena do espetáculo:
‘despedida da velha mulher.’ Já na tarde deste dia, C. e T., a partir desse estado psicofísico
descoberto, começaram a fazer pequenas experiências de deslocamentos, ações e relações

194
cênicas contextuais, como por exemplo, ‘lentas caminhadas’, ‘dar comida aos pombos’,
‘descascar cebolas’ ou ‘falar sozinha’.
Todas as três cenas do espetáculo, aliás, foram geradas a partir de uma experiência
limite e liminar como essa. Não exatamente iguais na proposta externa do ‘exercício
extremo’, mas sim na sua proposta interna de criar vivências e experiências ‘esserais’ para
a atriz. Mais tarde - numa conversa com C., quando o processo já tinha terminado – ela me
contou das inúmeras e diferentes formas e imagens pelas quais T. propunha experimentos
que levavam o ator a entrar na dimensão poética e extraordinária do espaço-tempo. Eles já
haviam trabalhado juntos e sozinhos, conforme informei, por uma semana em 2008, e as
propostas daquela época ainda ressoavam fortemente no trabalho de C. que testemunhei.
Segue um pequeno trecho dessa conversa onde ela fala sobre esses experimentos:

“C - No primeiro trabalho - não essa vez, da outra vez - foi o trabalho da árvore
que era [...]: ‘Ok, faz uma árvore’; ele não me falou nenhuma postura! ‘Ok, uma árvore’.
Faço com o corpo uma árvore [risos]. Aí, dessa imobilidade, ele me perguntava do vento,
de que direção vem o vento, coisas assim [...] e eu já começava a achar que estava
acertando. Aí ele me disse: ‘Ah, mas uma árvore não faz assim, assim... Ela fica quase
absolutamente imóvel. O que move são as folhas, porque o vento passa!’ Ok! Ele tanto foi
me limando [...] dizendo: ‘Não tô vendo...não tô vendo...não tô vendo...não to vendo!’. Até
que eu fiquei completamente parada. Mas aí ele me pergunta: ‘Ok! Mas cadê o vento?’
‘Cadê as folhinhas? Se o vento está vindo daqui pra que direção vão as folhinhas?...’. Ao
ponto de chegar naquilo [...] que ele quer que é que eu mova o [que está] em volta, e não o
corpo. Só que para o [que está] em volta mover, dentro está movendo muito... Até chegar
nesse momento em que você ‘vê’ as folhinhas, e em que direção, inclusive, o vento vem
vindo e com que intensidade [ele vem]. Ali, me levou a um estado muito... Porque ele me
deixou um tempão [e foi] me limando, me limando... Até a gente sentir algo que era a
vibração.

P – Expande a percepção muito forte?

C – Exato! E que veio de novo de algo concreto, de algo absolutamente concreto –


para mim, pelo menos, não sei se só eu preciso disso – mas era algo absolutamente
concreto, porque a minha musculatura lá dentro era agitação pura para poder chegar a
essa vibração. Dali ele me conduziu, dessa qualidade para essa [qualidade] que veio da
‘velha’. Como esse corpo se move? Para mim ficou conectado muito diretamente com esse
corpo [e com essa vibração], porque eu lembro que ele até me fez fazer ações da velha
mesmo. [...] Para mover esse corpo, carregando essa vibração, não era simplesmente: eu
movo a perna, né? Dali surgiu a raiz do que foi a velha depois.
(Conversa com Ana Cristina Colla – 30/04/2009 – LUME)

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‘Artesanato’ e ‘atmosfera’ - conforme percebi - tinham igual importância para o
processo artístico conduzido por T. Não isolava nem negligenciava nenhuma dessas
dimensões. Ambas tinham seu valor. No entanto, por várias vezes, fez questão de enfatizar
que no fim de tudo, na hora do espetáculo acontecer, aquilo que a gente quer ver é a
dimensão vertical criativa do ‘ser’: o bom ‘artesanato’ vem junto com a ‘atmosfera’.
Para ilustrar esse ponto, termino com uma pequena estória de Zeami que T. nos
presenteou durante as conversas em torno aos experimentos desse dia, e que nos faz
lembrar diretamente do período de Stanislavski com ‘O Tartufo’, que estudamos na
primeira parte desta tese:

Zeami é um mestre de teatro Nō e escreveu Kadenshō – o segredo da flor e escreveu


também 14 livros, depois da morte de seu pai. Ele encontrou dois jovens estudantes atores
que deveriam representar a ‘avó’ a ‘mulher velha’. E eles tomaram algum tempo – eu não
sei quanto tempo, talvez 3 semanas ou 3 meses e então, finalmente, veio o teste de
avaliação. O primeiro jovem ator aprendeu realmente como uma ‘mulher velha’ é. E
praticou um estilo de corpo, com a voz modificada. O segundo estudante não fez o estilo
‘velha mulher’, não modificou a voz da mulher; mas Zeami escolheu este segundo
estudante. Ele era melhor que o primeiro. Por quê? Este segundo estudante, nestes 3
meses, visitou sua própria avó. Sua avó explicou a sua vida para ele; às vezes saíam para
um passeio, olhavam os pássaros, o lago, os peixes. Todos os dias ele estava apenas
olhando e escutando, mas ele não imitava o seu jeito. O primeiro estudante aprendeu
realmente. Ele era tecnicamente perfeito em como reproduzir o corpo, a face, o modo como
a ‘velha’ falava: tudo, tudo! Por que Zeami escolheu o segundo estudante? O que nós
queremos ver não é esse estilo perfeito que o estudante fazia como ‘velha mulher’. Ele
podia representar fantasticamente. Mas o segundo estudante... Ele era ‘avó’. Ele não era
mais ele. Ele não representava, mas– ele era como uma figura dupla – e sua existência se
modificou completamente por causa da sua coleta de memória, estórias antigas, exercícios
passados... E este é o ponto mais importante. Então ele escolheu esse segundo estudante.
(Transcrição do registro de áudio -12/03/09 – Tarde)

c - O terceiro dia de trabalho – 13/03 – ‘‘Vendo’ além dos olhos.’

“Por que nós desejamos chegar a este ponto? Por que nós queremos chegar neste
êxtase ou nessas situações extremas? Por quê? Por que nós precisamos dessa realidade no
teatro? Seria porque nós não queremos ficar no nível da vida cotidiana? Por que não existe
uma maneira oposta de ser dentro da vida cotidiana? Algum espaço de tempo para se tomar
e ser louco ou ser simplesmente? Por que nós queremos isso, no teatro? Por que, no teatro,

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o palco não é como na vida cotidiana? Alguém que vai cozinhar, e comer, ou fazer xixi? O
que é esta realidade teatral? Por que tão extrema, tão diferente?”
O que você acha?
Parece-me, cada vez mais, que criar espaços de desconstrução e reconfiguração da
realidade ordinária seja uma das principais funções do Teatro e da Arte. Certo que cada ser
humano poderia criar, por si próprio, algum espaço de tempo para ser simplesmente, para
cozinhar e comer não só de modo funcional, mas acrescentando, a este, modos e graus de
vida e criatividade como, por exemplo, comer e mastigar a comida, alimentando-se também
do seu sabor sempre único e imediatamente presente. Ou invisivelmente, sem platéia,
poderia também brincar de ‘ver’ sem os olhos, abrindo seus outros sentidos e deixando de
se tornar cego para aquilo que não é visível, mas existe.
Mas isso - como pudemos estudar até aqui – apesar de simples, não é de nenhum
modo fácil: necessita-se de muita ajuda externa. A Arte e o Teatro são uma espécie e grau
dessa ajuda. E, para isso, os artistas, eles mesmos, devem vivenciar esta experiência de
desconstrução de si próprios em máximo grau de intensidade, para que, então, suas obras,
contenham real e concretamente esta possibilidade. E no encontro do público com este
poético e reconfigurado espaço-tempo que é o espetáculo a cada um dos espectadores é
dada a chance não só da desconstrução do seu olhar rotineiro, mas também da
reconfiguração de novos modos de olhar e experimentar a vida e a existência.
‘Ver’ sem os olhos foi o ‘exercício extremo’ proposto por T., neste dia. A proposta
nasceu novamente de um dos poemas escritos por C.. Foram quatro os poemas lidos neste
dia, que geraram muitas conversas em torno de memórias pessoais tanto de C. como de T..
Mas, foi um único que T. escolheu como motivação para o trabalho prático. Vamos lê-lo, já
com as palavras essenciais escolhidas por C.:

MEMÓRIA V - Miopia

a mãe nasceu assim, de vista curta.


e nem sabia.
só sabia que o mundo era confuso, de tardinha escurecia e o mundo partia.
só sombra e um medo danado.
diziam 'olha o rio, vai pela pinguela.'
pinguela?
sabe o que é? é aquela ponte estreita que cabe um só.

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a mãe sabia o que era mas não via e não entendia.
depois ganhou óculos, já menina grande.
aí entendeu.
o mundo tava todo ali, o problema era ela.

T. toma a palavra e, explorando possibilidades em torno ao poema, diz:

Para mim essa ‘pinguela’, esta ponte estreita, é muito simbólica. Quando tem um
rio e uma ponte, todos devem ir para o outro lado e então eles usam essa ponte. Se você
não vai para o outro lado, você não precisa desta ‘pinguela’. Este lado e o outro lado. Este
mundo e o outro mundo. No Japão, se você morre, você tem que ir para outro mundo e
para isto você tem que nadar para alcançar o outro lado. E algumas pessoas que não
sabem nadar muito bem, elas não podem morrer e então elas retornam. Assim, você deve
nadar para morrer. Então tem este lado e o outro lado e você tem que cruzar este rio.
Cruzar o rio significa ‘morrer’. E para mim é muito simbólico. Por que ela não podia ver
‘pinguela’? Talvez porque ela não precisasse ver a ‘pinguela’. Nós temos medo quando
nós não vemos a pinguela e podemos cair no rio, [mas se a vemos] mantemos o equilíbrio e
seguimos. Se ela não podia ver, talvez não fosse um problema, talvez ela não precisasse,
essa foi a minha impressão. O que ela via e o que ela não podia ver só ela podia [saber]...
Algumas pessoas cegas podem ver muito mais do que a gente pode ver. Porque elas nunca
estão orientadas pelas coisas reais e visuais, de modo que eles não precisam ver
exatamente... Mas nós que dependemos das coisas visuais, de repente fica escuro e nós
temos medo, porque não podemos ver. As pessoas cegas não têm essa dependência... Há
um ‘mundo visual’ existente para elas num outro nível de percepção, disponível todo o
tempo. (Transcrição do registro de áudio -13/03/09 – Manhã)

Aquilo que aparentemente era um ‘problema’ para a ‘Mãe’, talvez o fosse para os
outros, acenava T. Ela via, mas ninguém entendia o que ela via. A partir desta suposição é
que começaram alguns exercícios de olhos vendados.
C. veste uma venda, é girada em torno de si, e começa a caminhar pela sala de olhos
tapados. A princípio ia andando e explorando o espaço com os sentidos que lhe restavam
(foto 1). Num momento, T. pede que a atriz corra de olhos vendados para direções variadas
até que ele diga “Stop” para evitar a colisão. Num outro momento, T. pede que a atriz se
dirija à janela no fundo da sala e se deite diante dela. C. se deita na parede lateral direita
(foto 2).

198
(1) (2) (3)
A partir daquela posição, agora inicial, mas completamente errada, T. pede que ela
se levante e vá a determinados pontos definidos na sala: tomada, câmara, cortina preta,
cortina verde, mesa. A um determinado ponto, após várias tentativas fracassadas, T. liga o
ventilador (foto 3) e constrói um ponto de orientação para C., que começa, então, a
encontrar toda a sala com precisão: tomada, câmara, cortina preta, janela. De um único
ponto de orientação sensorial, o vento do ventilador, toda a sala é ‘visualizada’. Do
invisível chegava-se ao visível.
Foram muitas variações em torno desse jogo de “cabra-cega”. Quase meia hora de
experimentações. Mas o que narramos acima é suficiente para revelar as intenções de T. no
decorrer do processo. ‘Ver’ sem os olhos não era só um alargamento de percepção nos
outros modos sensoriais, como de fato aconteceu; mas era também ‘ver’ através da
imaginação. Ao sentir o vento ou ouvir o barulho do ventilador ligado, C. criou a imagem
espacial da sala em sua mente, e foi por essa imagem que passou a ‘enxergar’.
Era isso o que lhe havia chamado a atenção no poema 5: pelo fato da ‘Mãe’ míope
não enxergar como os outros, que outra realidade ela poderia construir através da
imaginação? O restante do trabalho seguiu precisamente nesta direção: o trabalho sobre a
imaginação do ator no teatro. Seguimos com T.

‘Assim, quando você foi para a posição errada: a janela. Não tinha janela e você
deitou sob a janela... Por que não? O vento vem da janela. O brilho do sol... E isso
acontece no teatro. Nós fazemos a decoração teatral... Não uma decoração de teatro
naturalista, e [ainda assim] o público pode ver... Isso tudo é possível no teatro. Se você
acredita que ali tem uma janela então a janela existe. E se você acredita que aqui existe
uma flor, então realmente existe a flor. Mas todo mundo sabe... Você não é louca... Todo
mundo sabe que não existe uma flor real. Mas no teatro é possível e acontece a realidade.
Isto é uma borboleta! Então, é um pouco louco se você faz isso no meio da cidade [segue
uma borboleta imaginária]... Mas no teatro todo mundo aceita... Esta é a mágica e
depende dos atores e bailarinos... Se você acredita naquilo que faz... existe. Se você
acredita que aqui está a janela, então esta é a janela. Então, finalmente, o público aceita

199
também. Mas se você não acredita... “hum! talvez não seja uma janela!” Então nós
também perdemos a orientação: “O que ela está fazendo?” e nós não podemos seguir
aquilo que você faz. Assim é importante acreditar naquilo que você faz e as pessoas cegas
sabem fazê-lo porque têm outra possibilidade que é ver aquilo que nós não podemos ver.
(Transcrição do registro de áudio - 13/03/09 – Manhã)

A proposta seguinte era que C., ainda trabalhando com a venda, construísse com sua
imaginação e seu corpo uma segunda realidade no espaço daquela sala. Como estímulo
eram ditas em voz alta por S. as palavras essenciais dos sete primeiro poemas de modo que
elas serviriam como uma orientação, assim como a orientação espacial do ventilador dada
no exercício anterior. Por exemplo, a imagem abaixo foi tirada logo após S. ter dito a
palavra “pinguela”:

.
Ao terminarem as palavras dos poemas, após uma longa pausa seguiram diálogos como
este:

T - O que você vê agora?


C – Um riacho, um rio.
T – A água está fria?
C – Sim.
T – O quanto ela está fria?
C – Fresca.
T – O sabor da água é bom?
C – Sim.
T – Você realmente acredita que o gosto é bom?
T – De onde vem a água?
C – Da montanha.
T – Onde está a montanha? Onde? Olhe para ela?

200
T – Quão alta é a montanha?
T – Do córrego que desce da montanha: água fresca, gosto bom, paz feliz...
(Transcrição do registro de áudio -13/03/09 – Manhã)

Não sabemos exatamente o que ocorria com C.. Talvez não tivesse compreendido o
exercício plenamente, talvez a sua natureza de atriz se sentisse incomodada com a falta
daquele ‘algo absolutamente concreto’ que acenou acima; mas o fato foi que T. ficou muito
insatisfeito com aquilo que viu. As imagens internas que C. dizia estar vendo não
comunicavam concretamente através do seu corpo. A impressão era de que C., ela mesma,
não acreditava nelas, deixando-nos sem orientação objetiva dentro desta segunda realidade
criada. Conto essa dificuldade de C., pois ela gerou um importante material sobre a
‘memória pessoal’ no trabalho do ator.

T - Sobre a água. Quão fria era a água? Quando você teve essa experiência?
Alguma vez você bebeu água de um rio que vem das montanhas? Ponha essa imaginação
[memória] desta sua experiência de vida. Esta seria uma real orientação que você pode
acreditar porque você viveu... Não é uma espécie de fantasia. E você pode descobrir
naquele momento que há três anos atrás você teve essa experiência. Talvez em Belo
Horizonte ou em Rio Preto, num riacho de que você pôde se aproximar e experimentar:
“Oh! Água fresca, gosto bom e tudo aquilo que você fez”. [...] Assim começa a sua própria
fantasia memória, mas vinculada à realidade do passado. De outro modo é tudo aleatório.
[...] Quando você trouxe pinguela, você conhecia e viu a pinguela. Não foi uma fantasia.
Você deve lembrar deste dia que você caminhou e atravessou o rio por uma pinguela. E
então toda essa experiência de vida é útil quando surge aqui na realidade teatral: nisto
você pode acreditar. Existe realmente o riacho. Alguns momentos eu não acreditei
realmente naquilo que você fez. Você tentou imaginar, mas você não acreditava naquilo.
(Transcrição do registro de áudio -13/03/09 – Manhã)

Chamo a atenção, com as cores vermelha e azul, que T. faz uma grande distinção
entre duas qualidades de imaginação que podem, internamente, influenciar o trabalho do
ator (e não só a do ator!). Uma primeira, que no texto acima ele chamou de ‘fantasia’, por
ser vaga, confusa, volúvel e aleatória não conduz o ator a acreditar na sua própria imagem
interna, levando-o a perder, conseqüentemente, muito da sua capacidade concretizadora.
Claramente, e diferentemente da experiência do dia anterior, C. se encontrava com essa
qualidade de ‘imaginação’, muito semelhante a esse fluxo de imaginação cotidiana que
atravessa nossas mentes e forma um véu, mais ou menos espesso, que obscurece a realidade
presente imediata.

201
Uma segunda, que acima ele chamou tanto de ‘imaginação’ como de ‘fantasia
memória’, por estar ancorada na concreta ‘memória do corpo’ pessoal, é ponto de partida
confiável para a criação de novas realidades espaciais. Quando normalmente usamos a
palavra ‘imaginação’, não fazemos a distinção entre essas duas qualidades tão diversas. A
esta segunda qualidade, que não só está vinculada a experiências sensoriais concretas como
referido acima, mas também a experiências ficcionais ou de sonhos noturnos; poderíamos
adicionar o adjetivo “criativa”. A distinção é muito evidente: existe ou não existe a
‘organização significativa das imagens e pensamentos’. O trabalho que vimos Stanislavski
realizar com os atores de “Tartufo”, criava um subtexto imaginário para o ator que era
organicamente significativo.94
E aqui abro um pequeno parêntese, pois tal constatação nos leva também a estudar o
uso que normalmente se faz da palavra ‘meditação’, que é uma palavra derivada de práticas
de trabalho sobre si mesmo vindo de tradições espirituais como a ‘Yoga’ ou o próprio ‘Zen
Budismo’. A ‘meditação’ é uma ‘técnica 2’ que tem por meta, num primeiro momento, o
‘controle’ das imagens e pensamentos da mente e num segundo momento a ‘silenciosa e
vazia dissolução’ dessas imagens e pensamentos da mente. É possível que um ator seja
criativo em cena sem que controle a qualidade dos seus pensamentos e da sua
‘imaginação’? Concluiríamos que a ‘meditação’ é uma técnica que auxilia o trabalho do
ator. No entanto, há ainda uma segunda questão que deve ser posta. A forma externa da
prática da ‘meditação’ inclui ou exclui a plena utilização do corpo físico? Obviamente,
aquelas ‘técnicas 2’ que excluem a plena atividade do corpo físico não são diretamente
úteis ao trabalho do ator. Várias vezes T. utilizou a palavra ‘meditação’ neste último
sentido, afirmando que aquilo que estava pedindo não era uma ‘meditação’. Por exemplo,
ao propor o exercício de relaxamento total a C. – aquele do dia 12/03 - fez questão de frisar
que aquilo que pedia ‘não era meditação’. Ainda que chame seu ‘Butoh’ de uma ‘filosofia
de existência espiritual’, uma ‘dança no agora’, afirma logo em seguida que ‘ela não é uma
meditação’ mas um ‘duro trabalho com o corpo’. Outras vezes, ainda, o ouvi se referindo à
palavra em seu sentido negativo como, por exemplo: um movimento meditativo; isto é,
encharcado de pensamentos introspectivos e subjetivos que bloqueiam a expressividade do
corpo. Mas algumas vezes chegou a utilizar, nos ensaios, a palavra ‘meditação’ num

94
Ver página 128.

202
sentido positivo, isto é, no seu significado interno real. A frase, que será dita só no dia
16/03, cabe perfeitamente no contexto prático que estamos estudando aqui. Disse T.:

Eu não sei, mas se você não fala somente por você mesmo, se você não move
silenciosamente – e silenciosamente significa em meditação – então para o público é muito
difícil de entender e também, você não comunica realmente. Mas, no fim, o que você quer é
contar para nós, não para você mesma. Você quer nos contar. Como, se você não usa a
linguagem real das palavras? É absolutamente silencioso e é somente através dos
movimentos que você nos conta esta sensação. E não é uma pantomima da “Chuva forte”.
Como fazer? Com esta questão você deve mover-se, mover-se de maneiras diferentes.
(Transcrição do registro de áudio -16/03/09 – Manhã)

Fechando o parêntese, claro está, então, que a imaginação no seu sentido criativo
porque em relação imediata com o contexto do espaço tempo poético – ao contrário da
outra - não se interpõe como um obstáculo entre a intenção poética do ator e a
concretização espaço temporal desta.
Seguimos, com T., mais uma vez compartilhando importantes e práticos segredos
sobre a ‘imaginação criativa’ no trabalho do ator:

–“Não conte uma mentira. ‘To be’ é também crença real como aquela de uma
criança pequena que brinca com os brinquedos [...] uma ambulância [brinca de carrinho].
Mas eles tentam realmente dirigir e brincar de carrinho [...] e quando num choque quebra
um brinquedo eles choram e ficam tristes não só porque o brinquedo quebrou. Não! Foi um
acidente, causa dor e eles acreditam. Quando nós fazemos isso, como adultos, vira um
pouco de loucura, mas não nas crianças, não é loucura. Essa importante ingenuidade das
crianças! É importante... acreditar na brincadeira. [...] Também Zeami escreveu algo
parecido com seu “Ken Kotsi Da Tai”. “Ken Kotsi” significa: trocando os ossos. “Da
Tai” significa: escapando do corpo... Você encontra um gato...[faz algo e se aproxima de
um gato imaginário se relacionando com ele] ... Neste momento você troca os seus ossos
por aqueles de um gato, então neste momento você escapa do seu corpo e o coloca naquele
de um gato. E o gato vê você: “Ah, sim chegou meu amigo, então podemos brincar juntos.”
Neste momento acontece “Ken Kotsi Da Tai”; alguma coisa acontece, é uma metamorfose
real. Não é uma maneira intelectual de mudar seu estilo ou posição do corpo... Você
realmente é um tipo de louco... E o seu corpo muda, neste momento, e acontece algo que
nós não podemos entender, e causa uma fascinação. E o público diz: “O que aconteceu
com Cris, o que ela está fazendo? Parece tão louco! O que está acontecendo?” E isto é
fascinação: ser gato. E você acredita. (Transcrição do registro de áudio -13/03/09 –
Manhã)

Não é fácil, não é fácil, mas as crianças o fazem tão bem! Por que será? Porque elas
fazem para elas mesmas. Não fazem para a expectativa dos outros, diz T., que termina o dia

203
de trabalho dando mais uma dica: não fixar a imagem, mas vivê-la transformando-a
continuamente, junto com a ação. Imaginação: ‘imagens em ação’:

“[...] você põe a mão dentro d’ água e neste momento a água não existe ainda, mas
logo em seguida você pode encontrar outra coisa [...] não é só água [...] mas o que tem no
fundo? Tem areia. E nesta areia tem um inseto e você começa a brincar com ele... E este
também é um modo de você ir criando mais, mais e mais. [...] Você continuamente deve
procurar. Você não pode manter por um longo tempo uma imagem: areia [...] e só. Nunca.
Muitas vezes vem a imagem e ela deve estar mudando. (Transcrição do registro de áudio -
13/03/09 – Manhã)

É comum ouvir, entre as pessoas, que elas vão ao cinema, ao concerto ou ao teatro
para ‘esquecer a realidade’, entendendo a vida de todo dia como ‘realidade’. Talvez seja
válido dizer isso para certo tipo de lazer e entretenimento; mas parece-me que esta
expressão não contém toda a possibilidade inerente a uma completa e madura experiência
artística. Para esta, talvez seja mais correto dizer que as pessoas vão ao cinema, ao concerto
ou ao teatro para - auxiliado pelo trabalho dos artistas - ‘criar e recriar suas próprias
realidades’. Ora, pois, não será verdade que a ‘realidade’ de vida que experimentamos com
os sentidos e com a mente surge da nossa própria ‘imaginação’? Não será que a vida, então,
não seja nada mais do que um sonho?

“Como vos preveni, eram espíritos todos esses atores; dissiparam-se no ar, sim, no ar
impalpável. E tal como o grosseiro substrato desta vista, as torres que se elevam para as
nuvens, os palácios altivos, as igrejas majestosas, o próprio globo imenso, com tudo o que
contém, hão de sumir-se, como se deu com essa visão tênue, sem deixarem vestígio. Somos
feitos da matéria dos sonhos; nossa vida pequenina é cercada pelo sono.” William
Shakespeare – ‘A Tempestade’. Ato IV – Cena 1.95

d – Quarto dia de trabalho – 14/03. – ‘O espetáculo e a refeição’.

Fazer um espetáculo é como preparar uma refeição, diz T.. Primeiro temos a idéia
do que vamos servir e então vamos à feira ou ao super mercado. Escolhemos os alimentos

95
Tradução para o português: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/cv000082.pdf
“These our actors, As I foretold you, were all spirits and Are melted into air, into thin air: And, like the baseless fabric of
this vision, The cloud-capp'd towers, the gorgeous palaces, The solemn temples, the great globe itself, Yea, all which it
inherits, shall dissolve And, like this insubstantial pageant faded, Leave not a rack behind. We are such stuff As dreams
are made on, and our little life Is rounded with a sleep.”
(http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/gu001540.pdf)

204
mais frescos, tomates frescos, verduras frescas, carnes ou peixes frescos e com as cores
mais vibrantes. Sentimos que devemos combinar bem essas cores e também os sabores,
formas e disposições.
Os atores-dançarinos chegam e eles dançam diferente, movem-se diferente, agem
diferente; isto é, com cores e sabores diferentes. Mas esses atores-dançarinos devem estar
‘frescos’, o que não significa serem jovens, mas estarem motivados, preparados. Esse é o
ponto de partida. Depois há o corte das formas e as suas combinações. Às vezes alguns
atores-dançarinos são muito rígidos e trabalhamos em movimentos que os desbloqueiem,
outros são muito relaxados e vamos noutra direção. Então criamos exercícios para que esses
diferentes corpos sejam modificados em uma forma apropriada. Finalmente juntamos tudo
e levamos ao fogo. Então surge a necessidade dos temperos e do sal. De outro modo tudo
pode ficar insosso. É uma parte muito importante, pois temos que ter uma espécie de
intuição para ir pondo temperos nas quantidades certas. E vamos provando para ver como
está! Quando os atores-dançarinos não agem com essa intuição, então tudo se torna um
pouco mecânico e inconsistente. É necessária está intuição, esta ‘atmosfera’. Um tempo
depois, a comida está pronta! Você gosta do que fez e então você quer oferecer aos outros.
Por favor, sirva-se! Mas a refeição está boa? Os próprios atores-dançarinos apreciam a
refeição servida? Certo que esse é um parâmetro importante. É preciso, então, apresentar e
apresentar o espetáculo, porque, às vezes, os atores-dançarinos não estão muito seguros
desta intuição, e tudo pode parecer um pouco artificial. Às vezes, o espetáculo não é uma
refeição que todos gostam. Você gosta e fez bem o seu trabalho, mas alguns não gostam
daquela comida, preferem outro estilo. Não temos o que fazer a não ser sugerir que eles
provem dessa comida que está sendo feita agora, neste momento. Porque se você cozinha,
atua ou dança, você deve estar cozinhando, atuando e dançando absolutamente agora. Isto é
o mais importante e é assim que eu sinto um espetáculo, finaliza T.
No dia de hoje não houve um trabalho prático. Conversou-se muito sobre memórias
e imagens suscitados por mais 6 dos poemas de C.. A fala acima, por exemplo, surgiu
depois do poema 8:

MEMÓRIA VIII

Cebola

205
a cebola guardada no pilão, com palha por cima escondidinha, era das crianças.
essa era a 'mistura', a parte saborosa da comida, que acompanhava o arroz de todo dia.
pilão cheio, uma cebola pra cada uma.
pilão quase vazio, cebola ao meio,
metade metade
pra demorar mais pra acabar o gosto bom que acompanhava o arroz.

E assim foi por toda a manhã. A constante recorrência da ‘cebola’ nos poemas-
memória de C. fez com que T. desenvolvesse o tema em relação ao ‘Butoh’. Nota-se a
presença da dimensão liminar na sua concepção de dança, muito parecida ao ‘vazio’ no
centro da roda de Lao Tse.96 Vale a pena acompanhar:

“As cebolas têm quase sempre o mesmo estilo, a mesma forma. Então, por exemplo, uma
cebola é Butoh. Todo mundo quer ver dentro do Butoh. O que é esta dança Butoh? Se você
quer ver dentro, nós podemos descascar a cebola e assim deixamos a cebola menor. Mas
ainda aquilo que nós podemos ver está do lado de fora, não do lado de dentro. Ok, nós
queremos ver mais do lado de dentro. Então descascamos mais e a cebola se torna ainda
menor, mas ainda só vemos o lado de fora. Não é possível, ainda, ver dentro! Ok, vamos
mais dentro, dentro, dentro, dentro...dentro. Eu quero ver o lado de dentro. O que
acontece? No fim, não há nada dentro. Algumas vezes é assim que eu sinto o Butoh. Nós
queremos ver dentro e vamos dentro. Se nós chegamos realmente a descascar, de cada um
destes movimentos que descascam vem lágrimas. Parece difícil para uma outra pessoa que
pergunta: “Porque você está sofrendo, você está triste? Porque você chora quando você
dança? Para uma pessoa que olha de fora parece triste, mas é só o trabalho que dá esta
atmosfera, igual com a cebola. Se você não faz isso ninguém chora. Só se você descasca!
Mas você segue indo mais e mais e mais dentro e no fim, realmente, não tem nada. Tudo
aquilo que vemos está só do lado de fora. O lado de dentro nós não podemos ver... Mas eu
sinto algo... Eu não sei o que seja realmente este vazio. Talvez Butoh seja isso que todo
mundo quer ver, todo mundo quer sentir, todo mundo quer pegar, mas no fim não há
nada.” (Transcrição do registro de áudio -14/03/09)

Mais adiante, tocamos no tema da morte. Veio do poema 12:

MEMÓRIA XII - Dick

segunda feira, o Dick morreu atropelado.


um homem na esquina foi atropelado, segunda feira.
o Dick era o meu cachorro.

96
Trinta raios convergem ao vazio do centro da roda/ Através dessa não-existência/ Existe a utilidade do
veículo/ A argila é trabalhada na forma de vasos/ Através da não-existência/ Existe a utilidade do objeto/
Portas e janelas são abertas na construção da casa/ Através da não-existência/ Existe a utilidade da casa/
Assim, da existência vem o valor/ E da não-existência, a utilidade. (Lao Tse - Tao Te Ching - Tradução do
Mestre Wu Jyn Cherng Sociedade Taoísta do Brasil (http://www.taoismo.org.br)

206
o homem era o homem da esquina.
chorei pelo Dick, demais, o homem eu nem conhecia,
era só o homem da esquina.
o pai ralhou comigo.
eu entendi a bronca do pai,
mas o que eu podia fazer se não sobrou lágrima pro homem da esquina?

Coincidentemente, dias antes deste sábado dia 14/03, o ‘Tutu rajadinho’, o gato da
casa onde moro apareceu morto no quintal. Na noite anterior, o Tutu entrou no meu quarto
e fiquei brincando com ele. Depois ele se estendeu no tapete e dormiu relaxadamente. Mais
tarde foi que acordou e foi dar um passeio. Só voltei a vê-lo no dia seguinte, duro e
completamente sem vida. Na hora em que o vi, pensei: cadê o ‘Tutu’ que veio ontem aqui
em casa? Ali naquele corpo é que ele não estava mais. Cavamos um buraco e levei o corpo
morto do gato para dentro. Estava completamente inflexível, do focinho até o rabo.
Impossível esquecer a memória do corpo rígido do gato em minhas mãos.
T. nos contou uma estória parecida de quando ele era criança e que estava indo para
escola fazer um exame e encontrou seu cachorro morto na rua. Ficou muito, muito triste, e
tomou-o nos braços para levá-lo para casa e depois não conseguia mais se esquecer da
sensação do peso do cachorro em seus braços. Parecia muito leve aquele corpo de cachorro
morto. Na hora teve uma intuição: “Ah, pode ser que se você morre, tudo vai para fora e
você se torna muito leve?” Nem conseguiu fazer o exame direito e teve nota baixa. Até hoje
a memória-sensação do cachorro morto era para ele muito acessível.
Conto as referidas memórias porque muito se falou de uma distinção nas qualidades
de imagens que surgiam dos poemas-memórias de C. que se relacionava diretamente com a
origem dessas memórias. Os poemas nasceram tanto de memórias contadas - que se
referiam a um tempo anterior ao nascimento de C., portanto, contadas a ela – quanto de
memórias vividas – aquelas que se referiam a uma vivência da atriz em sua infância. Havia
também as memórias híbridas onde a vivência da criança se misturava à narração posterior
e tardia dos pais, onde imagens vividas e imagens imaginadas pela fala do outro se
misturavam na memória, não se sabendo dizer mais o que era vivido e o que era contado.
As imagens que vinham desses três tipos de memória possuíam maior ou menor intimidade
com C., gerando certa distinção de qualidade.

207
Há certamente, uma ulterior distinção que pude perceber nas conversas entre C. e
T.. Chamei-a de memória vívida e corresponde a esse tipo de memória vivida que
permanece para sempre conosco, sempre muito acessível e nítida. A memória do cachorro
morto de T. quando criança era um exemplo deste tipo.
Dias após, houve uma interessante pergunta dirigida a C. sobre o tema:

“T: De agora até o início [da vida] se você tivesse que escolher apenas uma única
memória forte, somente uma, qual seria ela? Para mim certamente viria da infância? A
infância é o período mais importante para mim. Como é para você? Se você escolhesse
apenas uma única forte experiência de vida ou memória de qual idade ela viria? Foi de
quando você estava grávida? Quando você teve sua filha? [C. fica em dúvida sobre a
resposta]. Eu posso imaginar que também para você ela viria de um período quando você
tinha 4, 5 ou 6 anos de idade, não é? [C. confirma que sim]. Isto mostra quão importante
são as memórias da idade jovem...” (Transcrição do registro de áudio -18/03/09 - Manhã)

Certo que certas memórias importantes também podem vir de outras fases da vida.
Seja como for, notei, durante todo o processo, que as memórias que mais serviam como
material criativo para o ator provinham dessa espécie de memória: a memória vívida.
Também percebi que os ‘exercícios extremos’ que T. estava diariamente propondo a C.
tinham uma função bem definida: criar ‘memórias vívidas’ que serviriam de alimentos
frescos, isto é, material criativo para a composição final do espetáculo.
Interessante notar, por fim, como o contato com a experiência da morte - que por si
só já é um ‘exercício extremo’ de intensa qualidade liminar - produz experiências de
memória vívida de alto teor criativo. Foi T., que logo depois de narrar sua experiência de
infância, nos revelou:

“Hijikata disse: Este corpo morto começa a andar… Um corpo morto de pé. Esta é uma
das frases mais famosas de Hijikata: “Butoh é cadáver... Um corpo morto de pé... Corpo
morto caminha. E Kazuo Ohno disse: “Butoh está todo tempo carregando a morte. Nós nos
movemos e todo o tempo a morte está aqui... Por isso nós podemos [mover]. Este ponto
básico entre os dois é similar, mas o estilo e a maneira de trabalhar são diferentes.”
(Transcrição do registro de áudio -14/03/09)

Dei três exemplos, aqui, de como o processo criativo prático deste período dos
ensaios era entremeado com conversas sobre os mais variados temas que surgiam da leitura
dos poemas-memória. Essas conversas conduzidas por T., aparentemente casuais, eram, na
realidade, como fontes provedoras de imagens de alto poder criativo tanto para C. como

208
para T.. Mas talvez o mais importante a se notar era como as conversas maturavam uma
relação de confiança e intimidade artística que ia se estabelecendo, passo a passo, dentro do
grupo de trabalho.
Mais do que isso, talvez seja o momento adequado de revelar e sublinhar que
durante todo esse mês de trabalho, por mais difíceis que tenham sido as experiências
limites, por mais sinceros que tenham sido os comentários de T. sobre aquilo que C. fazia,
por mais fracassos e insucessos que C. tenha colecionado no decorrer do processo; em
nenhum momento sequer, houve algum tipo de expressão de negatividade entre os
participantes do processo. Muito pelo contrário: ambos os lados cultivaram uma atitude de
extremo respeito e confiança pelo outro. Fato, esse, que foi gerando, passo a passo, uma
relação de confiança e intimidade humana que ajudava diretamente no nível da qualidade
criativa do grupo. Níveis baixíssimos de ‘adulação’, ‘amor-próprio’ e ‘negatividade’ geram
um ambiente de altíssimo estímulo criativo. Como não salientar isso! Se não fosse assim,
certamente a refeição final, por mais que estivesse temperada e bem servida, traria em seu
fundo certo traço característico e bem conhecido de ‘comida azedada’.
Para encerrar o relato desses primeiros quatro dias, a primeira semana do processo,
gostaria de apresentar um pequeno estudo sobre uma coleta de material psicofísico que
serviu diretamente à composição do espetáculo. Ela ocorreu no dia anterior, dia 13/03 à
tarde. Depois de ir ao mercado comprar verduras, legumes e peixes frescos, T. e C.
começaram a criar diferentes corpos que eram modificados em uma forma apropriada
segundo um determinado caráter de movimento. É uma pequena amostra do tipo de
‘artesanato’ psicofísico pelo qual transitou o processo.
No início, de cada poema, da sua palavra título ou de uma sua palavra forte, C.
deveria encontrar um som que por essa palavra fosse inspirado. Em japonês, dizia T., para
cada tipo de chuva se usa uma sonoridade que revela a intensidade da chuva. ‘Existe algo
assim em português?’ perguntou. Não exatamente assim. Existem palavras diferentes que
conotam tipos diferentes de chuva. T. não queria uma palavra, queria um som para cada
poema. Queria, também, que C. reconhecesse e expressasse as características desses sons
que ela estava criando. ‘Como um cego que vê a morte, você vê o som e expressa o seu
caráter’, disse T. Apresento, abaixo, uma lista com esses três itens ordenados por C.:

‘Chuva forte’ = “TUÓHHHHH” - (aspirado, amplo, branco que cega)

209
‘Navio’ = “ÓÓÓNNNNNNN”- (cortando iceberg no meio, muito preciso e lento, fora
gelado com dentro um quente rasgando)
‘Tirinhas’ = “HÁ Haa!” – (agudíssimo. Peso de pedra na água que espirra gotas.)
‘Martelo’ = “tuinnnnnnnnn” - (metálico, preciso, reto e fino. Capaz de acertar um grão de
areia. )
‘Miopia’ = “hahhhhhhhh” - (aspirado, eu espalhando em muitas direções suspensas.)
‘Sapato’ = “krrruck kack” - (pernas moles sem osso que não param de pé.)
‘Trancado no quarto’ = “cagui”- (espasmo que vai, mas não vai, num espaço muito
reduzido)

Feito isso T. pediu que a atriz traduzisse diretamente estes sons em movimento
mecânico do corpo. Este som era a sua língua, seu vocabulário sonoro. Ela o usaria para
criar movimentos que tivessem o mesmo caráter:

“T – Coloque o seu corpo nesse som. Cada som gera uma espécie de movimento que segue
o caráter do som.” (Transcrição do registro de áudio -13/03/09)

Em seguida pediu que C., ao mesmo tempo em que experimentava com o corpo, fosse
traduzindo em palavras o caráter de cada movimento criado. Apresento-os novamente:

a) ‘Chuva forte’: movimento condensado dentro, quente, tensão dentro.


b) ‘Navio’: movimento contínuo, reto, fino, frontal, afiado como faca.
c) ‘Tirinhas’: movimento raio intenso e repentino. Com queda.
d) ‘Martelo’: movimento alongado, metal, pontiagudo e fino.
e) ‘Miopia’ casou com ‘Chuva Forte’ e viraram juntos: movimentos independentes das
partes (dedo, pé, ombro, cotovelo) ligadas por fios a corpos celestes e que tendem a
centrifugar no centro do corpo. Reunir com grande resistência, grande tensão.
f) ‘Sapato’: Perna mole. Movimento esqueleto entre os ossos, mole, controlado e
quebrado na articulação.
g) ‘Trancado no quarto’: – Movimento quebrado, rápido, espasmódico e metálico. Nas
bordas.

Em seguida a esse trabalho, T. pediu que C. criasse, em torno de cada caráter,


diversos movimentos diferentes, como se estivesse criando um vocabulário de uma língua.
Chamo a atenção para esse ponto, pois ele revela o nível de aprofundamento técnico do
‘artesanato’ psicofísico de T.. Como se ‘Sapato’ fosse uma língua estrangeira assim como

210
‘alemão’, ‘italiano’, ‘chinês’. Mesmo que não entendamos uma única palavra de ‘alemão’,
sabemos que uma pessoa fala alemão porque por trás das palavras reconhecemos um
caráter comum à sonoridade da língua alemã. Do mesmo modo, podemos reconhecer um
italiano de um japonês, apenas pelos gestos que acompanham a sua fala: são, em geral,
completamente diferentes. T. estava nos ensinando a como criar diferentes línguas com o
corpo, cada uma delas podendo ter um extenso vocabulário em torno de um mesmo caráter.

Assim, voltando à sala de trabalho, T. explicou que ‘Navio’, por exemplo, possuía
um caráter, de modo que deveria tentar criar diferentes movimentos que mantivessem esse
caráter. Na prática, o modo como o trabalho se desenvolvia era igualmente interessante e
refinado. Para cada caráter, S., do lado de fora, fazia a sonoridade correspondente, de
modo que C. não utilizava o intelecto para pensar no ‘caráter’ enquanto criasse novas
palavras. O seu sentido auditivo era imediatamente estimulado pelo caráter do som que ela
mesma havia sugerido. E deste estímulo é que o vocabulário da ‘língua’ se expandiria. Na
imagem acima C. retoma o corpo na posição e no movimento associado ao som de ‘Navio’
(andar num fio de navalha, com braços e olhos que apontam afiadamente para o chão) e
tenta criar novos movimentos.
Dito de outro modo, T. estava pedindo que C. ‘dançasse em torno de um caráter’,
como alguém que improvisa em um ‘gramelô’, numa língua inventada. Segue o próprio T.
explicando sobre seu ‘artesanato’ psicofísico:

“Você sabe o que isso significa? [...] Se você dança livre – e muitas pessoas têm problemas
em dançar livre - é fácil se você utiliza este vocabulário. Ok, é livre. Pego uma música de
Tchaikovsky ou Strauss. [Canta uma valsa de Strauss] Se me movimento deste modo com a

211
música, é chato. [Segue os passos de uma valsa comum] Mas eu quero falar com uma
outra língua. [Faz a mesma música dançada agora com os movimentos retorcidos do
caráter ‘Sapato’ de C]. Então eu me movo, mas eu falo com este vocabulário. E mais tarde,
num próximo nível, você deve misturar “Chuva forte” com “Martelo” juntos. O que
acontece? Esta tensão [interna] com “tinnnnn”. Uma parte, outra parte, outra parte, cada
uma delas fazendo algo diferente. Mais tarde você deve falar esse vocabulário
continuamente. Não ‘a’...’e’...’i’...; mas “aiu ieuo oiu a”. É isto que eu chamo de zona
“entre” os elementos.97 (Transcrição do registro de áudio -13/03/09 – Tarde.)

Acho que é suficiente. Dá uma boa visão do trabalho ‘artesanal’ do processo que,
mais adiante, ainda iria se conectar ao trabalho com a ‘atmosfera’. Pois:

“[...] o dançarino deve fazer isso com vida... [como] uma espécie de poema. Se você move
de um jeito, nós temos que ver o ‘background’, nós temos que ver a atmosfera. Nós temos
que ver o estado de espírito (mood). Assim você precisa ter mais zona “entre.” [...] Se você
dança a ‘Chuva forte’ do poema, isto é uma coisa. Mas o que é que você sentia num dia de
chuva forte. Daí surge outra transformação, não é? De outro modo a dança só existe aqui,
agora, no cotidiano e nada mais. Mas na dança cada um leva algo que você dá. Isto é
muito mais importante que qualquer outra coisa.” (Transcrição do registro de áudio -
13/03/09 – Tarde.)

Gostaria de encerrar esse item, mostrando algumas imagens. Vamos contrapor


imagens desses vocabulários corporais no dia em que foram criados (13/03), com imagens
já do final do processo (03/04), quando o espetáculo estava quase ‘pronto para servir’:

‘Tirinhas’

97
Ver nota 91. “É mais importante manter o equilíbrio entre energia, tensão e controle; do que preocupar-se
com a estética dos movimentos. MA significa estar “NO ENTRE”. MA é o momento logo no fim de um
movimento e apenas antes do começo do próximo.”

212
‘Sapato’

‘Navio’

5.1.6 Pequena Conversa Final.

Para esse capítulo, o estudo dos quatro primeiros dias de processo criativo já dá
conta das nossas indagações no que se refere à experiência de uma atriz do LUME em seu
processo criativo. Ainda assim os quatro dias finais desse primeiro período que elegi como
prioritário para a pesquisa foram tão ricos e intensos quanto os primeiros. Depois, a partir
do dia 19 de março, nono dia de trabalho, todo o processo rapidamente se dirigiu à
construção e lapidação da estrutura formal do espetáculo, um capítulo não menos
interessante do trabalho do ator-dançarino, mas que não procurarei estudar, pela própria
praticidade e particularidade da sua natureza. Digo apenas que, mantendo-se sempre muito
ancorado nas experiências liminares geradoras dos 8 primeiros dias, esse período também
foi intensamente criativo. Não só por isso, mas também pela própria perspectiva de direção

213
de T. que - na medida em que as partituras de ações e movimentos iam se consolidando -
tentava evitar que C. se cristalizasse em torno de uma estrutura fixa, que não a estimulasse
à criatividade do ‘momento presente’ - sempre inerente ao trabalho do ator. Dizia T.

“Você deve tomar cuidado – e isso não é apenas para dançarinos, mas também para atores
– porque agora você quase que já conhece o seu estilo, sua forma; e você está mais
confortável porque você já os conhece. Agora cada ensaio é um desafio: “Ok, hoje eu vou
tentar algo ligeiramente diferente, uma máscara facial ligeiramente diferente, uma
respiração ligeiramente diferente. Você tem que tentar encontrar, a cada vez, alguma coisa
nova, alguma coisa diferente. De outra maneira, a cada dia antes da estréia, tudo vai se
tornando mais automático, mais confortável e certamente depois de 5 apresentações do
espetáculo, ele já não estará bom. Portanto, agora, você tem a chance de investigar e de
tentar coisas...” (Transcrição do registro de áudio -30/03/09 – Manhã.)

Neste pequeno cuidado inerente ao ofício do ator ou dançarino, simples e concreto,


encontramos novamente um importante tema do ‘trabalho do ator sobre si mesmo’ a que se
referiu Stanislavski: há um embate de forças provindas da dimensão habitual e da dimensão
criativa do ator. Foi esse tema que foi desenvolvido na introdução no item 1.4. - A escolha
do olhar; tendo sido estendido inclusive aos ‘modos de operação habitual’ da pessoa do
ator.
Olhando para esse mesmo fato – descrito por T. - em muitas escalas que englobam
toda a trajetória artística de um ator, parece ser sempre necessário criar algum tipo de
‘atrito’ ou dar algum tipo de ‘choque’ na dimensão horizontal da técnica para que essa
nunca possa definitivamente se consolidar em si própria, rompendo o contato com a
dimensão liminar e criativa do artista. Naturalmente é desconfortável e traz à tona uma
série de aparentes ‘crises’ e ‘fracassos’ que contrastam com a auto-imagem e a posição já
consolidada do artista.
Ana Cristina, conforme me revelou na conversa do dia 30/04, tinha consciência de
que isso deveria acontecer. No convite feito a Tadashi para a direção do espetáculo, estava
já embutida tal expectativa, comum ao modo de trabalho desenvolvido no LUME. Inclusive
parte do tema da sua pesquisa de doutorado sobre aspectos da ‘memória’ na sua experiência
de atriz viria a abarcar essa sua expectativa. Transcrevo suas palavras:
“Interesso-me pelo trabalho do ator sobre si mesmo. [...] É desse trabalho do ator
que eu, atriz com 38 anos, preciso. Dentro da construção de uma técnica pessoal -
chamando de técnica a minha própria e única trajetória particular nem melhor ou pior que

214
a dos outros, mas única no mundo porque só eu a vivenciei com meu corpo. Eu queria
muito ter um olhar para esse momento. Várias vezes durante o processo, eu pensava: ‘qual
é o passo que eu preciso dar para sair desse degrau que me levou a uma cristalização?’
Quero dizer: de um nada me veio um processo de trabalho [todo ele no LUME]: eu
construí coisas, eu tenho ferramentas - ainda que não goste dessa palavra – eu tenho
maneiras de trabalhar, desde maneiras para chegar a lugares [psicofísicos] até modos de
como meu corpo se move – que para mim isso é quase como a construção de uma memória
que chegou a um lugar. Só que chegou a um lugar onde ela se sedimentou. Ela se
organizou de uma maneira que deu uma cristalizada. Esse é o meu olhar, é aquilo que eu
vejo. Aí, o que eu precisava era de uma nova desconstrução e eu vejo que essa nova
desconstrução, ela é mais difícil do que a primeira construção. Sair do nada foi mais fácil
do que desconstruir esse que eu tenho. Eu queria falar sobre isso, e isso eu enquadro
dentro do que eu acho que é memória. E, aí, chamar alguém como o Tadashi, porque aí
seria possível essa desconstrução. Uma pessoa que me dá algumas ferramentas e este
processo pode começar. Quer dizer: ele me deu um primeiro dedo, e agora depende de
anos de trabalho sobre esses elementos.”
(Conversa com Ana Cristina Colla – 30/04/2009 – LUME)

Gostaria de concluir transcrevendo uma pequena conversa entre todos nós, que
ocorreu no final do dia 19-03, dia da concepção estrutural do espetáculo e finalização do
período de experimentações. Ela nos dá certa visualização desses pequenos e necessários
processos de ‘crises’ e ‘fracassos’ pelos quais os atores devem passar, se querem se manter
próximos à sua dimensão vertical criativa. Chamei-os de ‘aparentes’, porque, de fato, se
bem assimilados, parecem que se tornam responsáveis pelo contínuo amadurecimento
artístico do ator:

C – Gente, ontem eu saí com a sensação... Não é querendo que vocês passem a mão na
minha cabeça, nada disso... Mas ontem eu saí com essa sensação de: “Puta, eu sou um
engodo! Sabe... Assim!” De verdade, saí com essa pergunta: “Será que eu menti o tempo
inteiro para mim e para as outras pessoas?”

S – Quando você me perguntou no restaurante: “Você está desapontado comigo?” Não, eu


estava desapontado mais comigo, porque eu vi exatamente isso, ontem: “Meu Deus do céu!
Como que eu não vi esse tempo todo que a Cris tem essas grandes dificuldades?...” E como
que eu que não ajudei a Cris?!... Eu que ensinei assim... Essas coisas. Claro, tem isso
também que a gente bate com os limites da gente e aí cresce ou não cresce... Mas também
tem que estar cercando de todos os lados.

C – Cerceando. Eu sei disso. Por isso que estou falando que eu não preciso de “Ah,
coitadinha!” Não, não é assim! Mas eu saí realmente com essa sensação de: “Cara, como
é que eu ensino? Como é que eu dou curso, sabe?” Juro que eu saí com essa questão.

215
S – Eu também cheguei a pensar nisso: “Como é que a Cris ensina?”

L – Mas é que não tem fim esse processo, né? Eu acho, sinto que ele não tem fim.

S – Tem fim o processo de estourar a pedra.

L – É, mais o processo de estourar a pedra vai criar coisas novas... E isso vai se
estratificar e aí você vai ter que fazer de novo. Talvez alguma pessoa que trabalhasse com
o Tadashi olhasse e, se tivesse um olhar bem afiado – ainda que ela já tivesse uma idade
avançada – começasse a trabalhar com ele por um outro lado que ele mesmo não consegue
trabalhar sobre si. E talvez, para ele, daria essa mesma sensação de engodo, que é normal.
Deve ser normal para todo ator...

S – Claro, exatamente.

C – Mas eu sinto que tem coisas que você vai indo e vai digerindo e digerindo. Mas existem
alguns nós, como a sensação que eu estou agora, que é como se fosse uma explosão. Tem
que pôr uma dinamite ali e explodir. Aquilo tem que ser explodido pra de novo, então, você
ir lentamente desenvolvendo até que, sei lá... daqui a quantos anos, passe por uma outra
explosão, né! Mas é como se... Esse é um momento de explodir coisas, né?!

S – Veja bem Cris. Você se lembra do Tadashi quando trabalhou com a gente no ano
passado com aquele projeto que não deu certo?... “Imigration”... Que ele pediu para cada
um - estávamos em 7, aqui – e ele pediu para cada um fazer um movimento e falar alguma
coisa. Foi como se cada um de nós estivesse falando de nós mesmos. Ele disse: “Ah, eu já
sabia que o Simi ia fazer aquilo, que o Ric ia fazer aquilo, que a Cris ia fazer aquilo, etc...”
É,... É muito difícil! Porque a gente desenvolveu nosso estilo e nosso estilo ficou. É só de
um outro jeito, quebrando...

[Entra Tadashi na Sala]

S – Estávamos falando sobre ontem que Cris saiu completamente desapontada com ela
mesma. E ela pensou ontem: “Oh meu Deus, eu sou uma falsa, eu engano a mim mesmo e
os outros. Meu trabalho não funciona!”

T – É? Você está desapontada?

C – Sim! Não! Eu estou bem, mas é que eu tive essa sensação de engodo comigo mesma.

T – Para mim é bom sinal. Se você está desapontada, ou um pouco na descendente então é
certamente esse o ponto inicial para que você suba. Se todos os ensaios são fantásticos,
fantásticos e fantásticos; então chega na estréia e é tudo muito ruim.
(Transcrição do registro de áudio - 19/03/09 – Tarde.)

216
Foram várias estréias. A primeira, duas sessões de pré-estréia abertas para amigos e
os alunos do Departamento de Artes Cênicas da Unicamp, aconteceu nos dias 08 e 09/04.
Particularmente, no segundo dia, o trabalho ‘artesanal’ de Ana Cristina conectou-se de
forma mais plena ao trabalho sobre a ‘atmosfera’ que descrevemos no decorrer desse nosso
relato. No debate que se seguiu entre amigos e espectadores convidados, todos eram
unânimes a respeito de um ponto: a última cena, aquela da criança, não continha a mesma
qualidade cênica que as duas primeiras, aquela da velha e a da mulher. O próprio grupo já
havia detectado esse desnivelamento, e sabia que o tempo dado a essa primeira etapa do
processo criativo não seria suficiente.
O espetáculo voltou a ser retrabalhado no fim do mês de Julho, com uma nova pré-
estréia apresentada no dia 01 e 02 de Agosto e uma definitiva estréia no dia 21 de Agosto, o
que abriu uma temporada em São Paulo que se estenderia até o dia 11 de Outubro. Para dar
um encerramento à minha própria experiência de testemunha do processo, assisti aos
espetáculos dos dias 01 de Agosto e aquele do dia 10 de Outubro, início e fim da
temporada.
Sobre as decisões estéticas e formais que Tadashi, como diretor, deu ao todo do
espetáculo, não temos nenhum comentário que seja significativo e que possa entrar em
relação com o nosso tema. Repito, apenas, que o ‘artesanato’ é de uma qualidade muito
refinada. Mas, usando a própria metáfora do Tadashi, um espetáculo é como uma refeição:
uns gostam de ‘sushi’, outros nem tanto; uns gostam de ‘bem passado’, outros nem tanto;
uns gostam mais da ‘dança’, outros mais do ‘teatro’, etc. “Enfim, cada um o que quer
aprova, o senhor sabe: pão ou pães, é questão de opiniães... O sertão está em toda
parte.”98
O que afirmo é: sim, senti que aquela dimensão da ‘atmosfera’, a ‘dimensão
criativa’ da atriz, como previu T. na pequena conversa final, se intensificou numa trajetória
nitidamente ascendente. “O prazer de habitar o entre que me liga a você”99 estava lá,
desabrochado e maturado pelo tempo.
O que mais se pode esperar do trabalho do ator?

98
Guimarães Rosa – Do início de Grande Sertão: Veredas.
99
Frase de Ana Cristina Colla, utilizada no programa do espetáculo “Você”: “Convoco meus mortos para
dançarem comigo. Um a um, os percebo chegando. Habitamos juntos o espaço “entre”, tempo dilatado. Você
sou eu ou é você? Ou somos todos nós? Será isso importante? Saber o espaço que me separa do outro? Meu
prazer é habitar o entre que me liga a você. Você me lembra eu.”

217
5.2 – “Não Tem Flor Quadrada”.

Se a experiência com o processo criativo de ‘Você’ mostra clara e nitidamente a


importância da ‘liminaridade na profissão do ator’; ela, no entanto, ainda não apresenta o
trabalho de pesquisa desenvolvido pelo LUME de uma forma representativa. O relato que
se segue nos aproximará mais detalhadamente dos princípios técnicos e éticos desta
singular experiência de pesquisa da arte do ator desenvolvida pelo LUME.
Duas conversas que tive com Naomi Silman, após ter feito a sua oficina “Da
Energia à Ação” no LUME, em fevereiro de 2008, me levaram à “Não Tem Flor
Quadrada”. A primeira, abordando sua história pessoal até chegar ao LUME, e a segunda
mais sobre o curso ‘Da Energia à Ação’ e seus trabalhos atuais no LUME, em confronto
com o tema de nossa pesquisa: ‘a liminaridade na profissão do ator’. Interessou-me,
naquela época, o fato de Naomi ter montado um grupo de pesquisa que trabalhava com as
técnicas do LUME e as posturas corporais da ‘Hatha Yoga’ - os ‘asanas’– simultaneamente.
Havia interrompido os trabalhos desse grupo em 2007 devido à gestação de sua primeira
filha.
Dessas conversas que tivemos é que surgiu o convite para que eu acompanhasse e
auxiliasse no processo de trabalho em torno da criação de sua ‘demonstração técnica’
pessoal, o que marcaria e comemoraria a passagem dos seus 10 anos de trabalho no LUME.
Os ensaios que pude acompanhar, sob a direção de Carlos Simioni (S.), começaram no fim
de Agosto de 2008 e duraram até meados de Outubro, quando, então, partiram em uma
turnê para o norte do Brasil, já com apresentações públicas do material elaborado neste
período. Mas mesmo dentro desse período de ensaios houve algumas janelas de interrupção
em que, por causa de compromissos de viagem, Naomi e Simioni não trabalharam na
‘demonstração’.
Inicialmente, o convite que me foi feito era bastante livre: eu poderia vir quando
quisesse, simplesmente para testemunhar o desenvolvimento do trabalho e ir, aos poucos,
me familiarizando com o processo prático para, então, auxiliar com algumas funções
teóricas. Ajudei na elaboração do texto de apresentação da ‘demonstração técnica’, uma
espécie de texto ‘release’, e logo em seguida colaborei na coleta, transcrição e montagem
do texto final que seria decorado e dito por N. nas apresentações de sua demonstração.

218
Durante o período de testemunho fiz registros de áudio com aquele mesmo pequeno
e discreto aparelho de MP3; o que se mostrou muito útil tanto para nossa pesquisa, como
para S. e N., que podiam fixar termos e conceitos que surgiam espontaneamente durante o
trabalho prático. O fato de N. ser inglesa e ter relativa familiaridade com a língua
portuguesa colaborou para essa estratégia de direção de S.; mas também foi determinante a
sua perspectiva em criar certo rigor e precisão em torno do roteiro, dos conceitos e das
palavras-chave que seriam expressos por N. para explicar o seu processo pessoal de
treinamento dentro do LUME.
Em nossos estudos utilizaremos, também, algumas imagens extraídas do registro
visual da demonstração técnica feitos no evento TERRA LUME em 05 de fevereiro de
2009, na sede do grupo, registradas por Eduardo Albergaria.

5.2.1 - Trajetória

Antes de estudar o processo de criação desta ‘demonstração técnica’, estudar a


trajetória artística de ‘Naomi Silman’, que é de origem inglesa, será enriquecedor para a
nossa pesquisa. A atriz chega ao LUME só em 1997, após ter passado por muitas
experiências de formação no âmbito do teatro europeu. Fez teatro experimental em Paris
com uma discípula de Lee Strasberg; formou-se como atriz no Goldsmith's College,
Universidade de Londres, em 1995; estudou com Philipe Gaulier e Jacques Lecoq e só
então é que conheceu e entrou no LUME como atriz. Além de possibilitar ter um pequeno
quadro do ambiente teatral europeu dessa época, também nos trará certa perspectiva para
avaliar o grau de importância das pesquisas que Burnier realizava na Unicamp, no mesmo
período.
O curso na Universidade londrina, diz ela, primava mais pela qualidade da
informação e da pesquisa teórica do que pela formação do ator:

“Eu entrei na faculdade e a faculdade, para mim, resumindo, foi praticamente, em


geral, uma perda de tempo. Ao mesmo tempo foi o lugar onde eu pude conhecer quão
grande eram as possibilidades dentro dessa idéia de fazer teatro. Era um ambiente que
deixava bastante informação à minha disposição: tinha acesso à biblioteca, arquivos,
vídeos, aos professores que também tinham boas pesquisas, mas mais teóricas do que
práticas; e isto abriu possibilidades de conhecer o que tem lá fora, o que as pessoas estão
fazendo. [...] Também, no primeiro ano, cada um tinha que passar por diversos módulos:

219
luz, som, cenário, direção, atuação [...] e assim foram passando os três anos em que eu
pude entender muito melhor o que é essa grande coisa que se chama teatro. [...] Quando
eu falo que foi uma perda de tempo é porque em termos de aprofundamento do trabalho do
ator era extremamente superficial. (Entrevista com Naomi Silman – 17/04/08)

No meio destes anos de formação acadêmica, Naomi pôde fazer um seminário


teatral, oferecido aos alunos da faculdade, que utilizava a perspectiva de trabalho de
Grotowski - o que para ela foi uma experiência marcante e norteadora. O curso era dado
por um ator que não tinha propriamente trabalhado na companhia de Grotowski, extinta em
1982, mas que havia feito vários treinos e cursos diretamente com Grotowski. Seguimos
com ela:

“Foi um momento único, porque nessas três horas, pela primeira vez -
durante todo o tempo na faculdade - a gente não conversou; a gente não
discutiu; a gente não tentou entender o que a gente estava fazendo... A gente
fazia. Ele propunha os exercícios e a gente tinha que correr atrás. E eram muito
difíceis, sofridos, doloridos. Tudo [ficava] doendo... Eu tinha muita dificuldade
com o corpo, não tinha agilidade, flexibilidade, nada... E aquilo foi me
desafiando de um jeito, dando um nó, assim, na minha cabeça e no meu corpo; e
chegou um momento que eu senti diferente de todos os outros momentos que eu
tinha passado até então, porque eu tinha uma sensação dentro do meu corpo que
era única. Uma vibração, uma vida, uma pulsação que me marcou muito. Eu
falei: “O que é isso?”Quando eu terminei a faculdade eu resolvi [...] construir o
meu caminho para trabalhar como atriz e [decidi] que iria investir numa
maneira de trabalhar a partir do corpo.”
(Texto da demonstração técnica de Naomi no evento ‘Terra LUME’ – 05/02/09)

Na conversa que tivemos em abril de 2008, Naomi descreveu essa marcante


experiência nesse seminário como “um fio de trabalho contínuo... que usava o trabalho
físico colocando o corpo em situações de risco e de dificuldade.... E que você precisava se
colocar dentro daquilo e não parar.”
Chamo a atenção para este depoimento, que traz à tona o importante elemento da
descoberta de si: o estranhamento e a percepção de possibilidades psicofísicas até então
desconhecidas para a experiência cotidiana de uma aluna regular de um curso de
bacharelado em ‘artes cênicas’. “O que é isso?” pergunta a atriz a ela mesma, e dessa
indagação sem resposta nascem todas as suas futuras escolhas e posterior trajetória. Sem
resposta porque ali, na sala de trabalho, o entendimento lógico e racional cortaria o contato
imediato e marcante com a experiência do seu próprio corpo. O que era esta vibração, esta

220
vida, esta pulsação, esta sensação dentro do corpo que era única entre as muitas horas de
aulas e estudos universitários? Sem resposta. Porque para os atores aprenderem a realizar
esta vida e pulsação é muito mais importante do que conseguir explicar conceitualmente o
que ela é. A necessidade da conceituação e do entendimento intelectual para uma possível
comunicação a outros surge, por último, e após anos de trabalho prático. É o mesmo tanto
para S., com 24 anos de pesquisas no LUME, quanto para N., que só depois de 12 anos de
atuação como atriz, consegue elaborar a demonstração técnica “Não tem Flor Quadrada”,
que iremos estudar a seguir. Antes, porém, seguimos um pouco mais com sua trajetória
artística.
Além de uma formação intelectual excessiva, ‘partindo sempre do raciocínio, do
conceito, da discussão’, Naomi conta, também, que o teatro inglês, ainda em sua época, era
predominantemente o teatro da tradição do texto falado, baseado muito mais na
interpretação de ‘tipos’ característicos e na declamação das palavras do dramaturgo do que
nas possibilidades expressivas e criativas do corpo do ator. Aquela experiência no
seminário a colocava não só diante de um novo canal expressivo, mas também lhe
possibilitaria vir a ser uma atriz profissional. Seguimos com Naomi no relato de um
importante acontecimento que marca o final da sua graduação universitária:
“[...] no final da faculdade a gente teve uma avaliação de cada um com os
professores. Cada um tinha um professor que o orientava. Eu fui conversar com meu
orientador e era aquele tipo de conversa: “O que você pretende fazer depois da faculdade?
O que você imagina que você vai fazer?”E era claro, para mim, que eu queria ser atriz.
Todas as disciplinas que eu escolhi foram sempre em cima da opção de atuar. E ele sabia
[disto], ele que tinha me dirigido em um dos trabalhos... A gente se deu super bem... Eu
devo ter falado: “Eu quero ser atriz. Vou sair, vou começar a fazer audição, vou tentar
conseguir um trabalho.” Ele falou: “Olha, eu entendo, mas eu vou te dizer o que eu acho:
que vai ser muito difícil para você. Porque você tem que saber que no teatro convencional
você vai ser definida por tipo. Aqui, o teatro, na Inglaterra, funciona por ‘tipos’. E você
não tem um tipo definido e então as pessoas não vão saber o que fazer com você. Você não
é a ‘loira gostosa’ – [ele] falou bem assim - você não é velha suficiente pra fazer papel
sério, dramático, de conteúdo; você não tem um biótipo muito inglês...” Porque tem a ama,
tem a servente, tem os papéis mais cômicos, e tem um tipo que é tipo ‘inglês’ mais
rechonchudo [...]. “Você tem um biótipo que é diferente. Eu não sei como vai ser isso.
Qual papel você vai fazer?”Eu sai de lá indignada [...] 3 anos para alguém me dizer isso!
Pensei: “então eu vou fazer o que, agora?” (Entrevista com Naomi Silman – 17/04/08)

O teatro ‘oficial’, teatro convencional e institucionalizado, é aquele que se encaixa


nos parâmetros ditados pela estrutura de uma sociedade. É um ‘teatro’ constituído e

221
elaborado por camadas e camadas de tradição e história; e, no caso inglês – acrescentaria -
diretamente influenciado pela extraordinária dramaturgia de William Shakespeare. Diante
das perspectivas da dimensão da ‘estrutura’, utilizando o termo no sentido de Turner, não
posso dizer que o professor de N. tenha sido perverso. Muito pelo contrário: ele foi sincero
e realista, ainda que pareça ter sido duro. N. não se encaixava nos parâmetros do teatro
‘oficial’. A questão emergente, então, seria outra: Será que a única perspectiva de se fazer
teatro seja aquela imposta pelos parâmetros convencionados por uma sociedade? Será que a
universidade, sendo tanto um local voltado para o ensino quanto para a pesquisa, não
deveria fomentar espaços de investigação, tanto teórica como prática? Justamente, a
excelência de uma investigação não é, muitas vezes, o desvelar de possibilidades? E
novamente, aqui, nos deparamos com o processo liminar da possibilidade do novo,
lapidarmente descrita por Turner. Vamos relê-lo:

“A liminaridade, a marginalidade e a inferioridade estrutural são condições em que


freqüentemente se geram os mitos, símbolos rituais, sistemas filosóficos e obras de arte.
Estas formas culturais proporcionam aos homens um conjunto de padrões ou de modelos
que constituem, em determinado nível, reclassificações periódicas da realidade e do
relacionamento do homem com a sociedade, a natureza e a cultura. (TURNER, 1974)

Diria, ao seu lado, de outro modo: o conhecimento se organiza e se estrutura na


mente dos homens e estes organizam e delimitam a ‘realidade’ oficial; mas, que homem
consegue organizar o conhecimento mantendo o espaço do não-conhecido, infinito, que
existe tanto nele como fora dele?
É importante ressaltar, aqui, que o fato da atriz ter sido ‘marginalizada’ não nos
confere o direito de tiranizar o teatro ‘oficial’. O teatro ‘oficial’ tem seu lugar, segue seu
curso histórico, e dentro, mesmo, das limitações de seus parâmetros, pode produzir arte da
mais alta qualidade. O mesmo tipo de raciocínio pode também ser aplicado ao teatro dito
‘de texto’, aquele que organiza seu ‘espaço-tempo poético’ principalmente em torno das
determinações dramatúrgicas do autor.
O fato de ser de um tipo diferente daquele comumente aceito pelos parâmetros do
teatro ‘oficial’ também não nos confere o direito de fazer coincidir o teatro de
experimentação com a marca de ‘boa qualidade’. Muitas vezes, justamente por causa da
falta desses novos parâmetros bem constituídos e estruturados é que esse tipo de teatro se
torna tão desinteressante quanto aquele a que se pretende opor.

222
Por último, seria interessante coincidir o depoimento de N. com aquele que pude
ouvir de Raquel Hirson, atriz-pesquisadora do LUME, quando de uma entrevista que fiz
sobre seus anos de formação acadêmica na Unicamp e a descoberta do fazer teatral através
do seu próprio corpo e pessoa; prática estimulada, nos anos de faculdade, por Luís Otávio
Burnier, professor do departamento de artes cênicas na época, 1991. Também para ela, ter
contato com possibilidades desconhecidas da sua própria corporeidade foi um marco em
sua trajetória:

“Porque primeiro, acho assim: essa sensação física foi interessante porque foi a
primeira vez que eu tive essa sensação de estar em contato comigo. Porque antes, o teatro
me dava muito medo por isso. Porque o teatro, ele era uma coisa como se fosse fora de
mim. Então, o que é que era fazer teatro? Era eu ter relações externas. [...] Essas relações
com as pessoas era muito difícil, sempre foi complicado [...] As relações: você tem que
saber se relacionar bem com as pessoas, você tem que achar as maneiras certas, não
magoar aqui, etc. [...] Outra coisa era a forma: como é que eu quero que seja o meu
teatro; então, tem uma determinada linguagem, uma determinada forma. Sei lá o que
mais? E com isso, eu tenho que tentar ganhar dinheiro com isso: era outra coisa. Mas
eram todas coisas externas a mim. Era como se o teatro estivesse fora de mim. E aí, nesse
momento, era como se o teatro tivesse entrado em mim. E aí nada mais disso importava,
porque só importava o que estava aqui dentro. Então, eu acho que daí eu fui reconstruindo
uma outra visão. E aí, depois, que essa coisa já estava em mim, é que foi mais tranqüilo,
assim, encontrar as pessoas, e estar junto com as pessoas e descobrir de que maneira você
tem que falar ou o que é que você quer falar, como que é o contato com o público.”
(Entrevista com Renato Ferracini, Jesser de Souza, Ana Cristina Colla e Raquel Scotti
Hirson -1999.)

O novo parâmetro que encontrável tanto acima, quanto no depoimento de N. e que


servirá de orientação para as futuras escolhas, é o corpo. O trabalho do ator, a partir da
vivência com seu próprio corpo. Estética à parte, é o mesmo parâmetro a que chega
Stanislavski no fim de sua vida, quando se convence de que nada comunica a condição
espiritual de uma pessoa ou personagem mais nítida e convincentemente que o seu
comportamento físico. (TOPORKOV, 1993. p. 112). E desta convicção traça o seu ‘método
das ações físicas’; ainda hoje tão mal conhecido pelas mentes e corpos do ensino do teatro
‘oficial’. Mas não só o trabalho de Stanislavski. Nas escolas de teatro ‘oficiais’ há ainda
muito pouco conhecimento prático efetivo daquilo que, sobre o corpo, pesquisaram
Meyerhold, Copeau, Decroux, Grotowski, Laban e outros. E chegamos à década de 90 onde
encontramos tal disposição de fatos numa universidade inglesa.

223
N., seguindo a sua intuição se aproxima das escolas teatrais alternativas do assim
chamado ‘teatro físico’. Com Philippe Gaullier, na Inglaterra, descobre ferramentas
importantes no âmbito do Jogo, do Bufão, do Melodrama e do Palhaço. No ano
seguinte segue à escola de Jacques Lecoq, na França. Ali também é provida de várias
técnicas de representação enraizadas na experiência do corpo do ator. Ela mesma nos conta
um pouco sobre Jacques Lecoq:

Ele pesquisou toda a questão do trabalho do ator de várias e várias


maneiras, com um aprofundamento muito grande no trabalho de máscara,
resgatando todas as figuras da ‘commedia dell’arte’ junto com outros mestres
europeus. Ele desenvolveu a máscara neutra, que é uma ferramenta para o ator
muito importante, a mímica, [...] a criação de personagem através de animal,
dinâmica de materiais, de cores, de música... Muitas e muitas coisas. (Texto da
demonstração técnica de Naomi no evento ‘Terra LUME’ – 05/02/09)

Mas em ambas as experiências com o ‘teatro físico’ N. nos revela suas


próprias dificuldades como atriz para lidar com o aparato técnico recebido:

[No] trabalho com o Phillippe, com o Lecoq e outros trabalhos que eu fiz... Eu
entendia aonde eles queriam chegar, mas eles não propunham nenhuma maneira clara
para chegar naquilo, porque sempre tinha um elemento ou outro que atrapalhava... Por
exemplo, no Lecoq, a gente fazia muitos trabalhos técnicos. Pegava a mímica como uma
ferramenta que, na verdade, é ótima porque trabalha precisão, fora do equilíbrio, a base, o
impulso para o movimento que vem lá do centro, não é sua mão que faz, parada, olhar;
tudo isso trabalha. Só que ele exigia que você fizesse aquilo... “Ah, você não pode fazer
isso mecanicamente.” Só que ele não oferecia nenhum caminho para você não fazer aquilo
mecanicamente, porque ele só ensinava você a fazer esse gesto... E então era muito na
sorte: ou eu estou inspirada ou não estou inspirada. Estou triste hoje e então não
deu certo. (Entrevista com Naomi Silman – 17/04/08)

Pouco a pouco que vamos conhecendo a trajetória de N., estamos nos


aproximando, novamente, do tema central dessa tese: a dimensão criativa e
liminar do trabalho do ator. Grifei propositadamente acima ‘suas próprias
dificuldades’ porque, justamente, a importante questão da criatividade é avessa a
receitas e métodos fechados. Outro ator poderia ter tido a mesma experiência na
escola de ‘Lecoq’ e não ter tido nenhum tipo de dificuldade em fazer o requerido
de modo criativo. Não porque ele soubesse algum caminho consciente para lidar
criativamente com a técnica da ‘mímica’; mas, simplesmente, por ter uma
predisposição vocacional para ela, a sua intuição criativa lhe permanecia mais

224
acessível. O próprio fundador do LUME, Luís Otávio Burnier, é um exemplo a
ser considerado porque ele, ainda adolescente e sozinho, montava números
inteiros de ‘mímica’ – eu mesmo assisti recentemente a alguns vídeos dessa
época, registrados por ele próprio - sem nunca ter estudado em escola, mas
apenas copiando algumas apresentações de Marcel Marceau que assistia em
filmes.100 Deste modo, entendo que aquilo que era difícil à natureza de N., poderia
não o ser à natureza de outra pessoa.
Na primeira parte desta tese chamei a atenção de que essa natureza, essa
predisposição vocacional, é inata e está localizada na ‘essência’ de um indivíduo.
É em torno da ‘essência’ que se aglutinam ‘personalidades’ - um conjunto de
conhecimentos apreendidos de fora - favoráveis ou desfavoráveis ao desenvolvimento
dessa aptidão.101
Parece, antes de mais nada, que o trabalho técnico da ‘mímica’ era, para
N., como uma espécie de ferramenta que explorava e alargava possibilidades
expressivas corporais que não lhe eram próprias. Ela mesma me revelou que
apesar de ‘odiar’ as aulas de mímica, ainda assim, reconhecia uma série de
princípios técnicos expressivos que tinha ganhado com a experiência. Mas este
adestramento corporal, esse armazenamento de fundamentos e princípios técnicos
que um ator pode adquirir em um período intensivo de cursos, workshops e
seminários são, por eles mesmos, suficientes para chegar-se à plenitude da
expressão artística?
Outra questão que o depoimento de N. me leva a fazer, então, é: será que
existe algum caminho consciente para o ator onde mesmo diante de um conjunto
de conhecimentos técnicos aprendidos de fora e armazenados em seu corpo, ele
ainda possa manter-se criativo com eles? Existe uma segunda técnica psicofísica
através da qual nos conectamos com a nossa dimensão criativa? Os escritos do
próximo capítulo irão se aprofundar mais sobre essas questões, mas me parece

100
Cafiero, C. Revista do LUME N-5, 2003 p.24.
101
Ver página 65. Há traços deliberados desta percepção em Turner, Stanislavski e Grotowski, mas o conhecimento
específico a que me refiro pode ser encontrado em “Fragmentos de um Ensinamento Desconhecido”. (Ouspensky, 1998,
p. 188.)

225
que foram essas as principais questões de Burnier quando da criação do seu
próprio laboratório de investigação na Unicamp.
Podemos vislumbrar essa suposição seguindo ainda com N., que nos conta
do seu primeiro encontro com o trabalho do LUME, ainda na Inglaterra, em 1996.
“Foi justo no sexto módulo do curso do Philippe, aquele de clown, que o Ricardo
aqui do Lume participou também. E aí era impressionante ver o trabalho dele no curso.
Depois do trabalho do Philippe ele fez um trabalho de 3 a 4 dias comigo e mais duas
pessoas lá do curso.” (Entrevista com Naomi Silman – 17/04/08)

E segue:

Foi exatamente igual àquele dia em que eu trabalhei com o discípulo do


Grotowski: foi um encantamento total, porque de repente eu conseguia vivenciar
com o meu corpo algo que trazia as duas coisas: o rigor técnico, a disciplina, o
ampliar as possibilidades do corpo e ao mesmo tempo trabalhar isso que era
meu, essa presença, essa pulsação que preenche o que a gente faz. (Texto da
demonstração técnica de Naomi no evento ‘Terra LUME’ – 05/02/09)

Acredito que nesse encontro de poucos dias novamente tenha surgido a


questão do seminário: “O que é isso?” Sem respostas intelectuais certas, mas com
uma chance de desenvolvê-la de modo empírico num espaço dedicado a
experimentações do trabalho do ator, foi desse encontro que surgiu a
possibilidade de N. vir ao Brasil e, em 1997, começar a fazer parte do LUME.
Mas no momento de sua chegada o LUME já existia havia 12 anos. Seis
atores faziam parte do grupo, sendo dois da primeira geração – aqueles que
fundaram o LUME e, junto com Burnier, empreenderam as pesquisas de
codificação de uma técnica pessoal de representação para o ator – e quatro da
segunda geração – aqueles que entraram no grupo a partir da graduação da
Unicamp e foram instruídos já dentro desta codificação técnica.102 Além disso, o
repentino e ainda recente falecimento de Burnier em 1995, catalisava uma urgente
necessidade de afirmação do já Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas Teatrais da
Unicamp, que ocorria através de uma crescente exposição de seus métodos, seja
em cursos, em palestras ou em espetáculos. N. nos conta sobre a sua entrada no
grupo:

102
Outros atores-pesquisadores ainda faziam parte, mas deixariam o grupo no ano seguinte.

226
“Eu não tive nem a experiência de descobrir, nem a experiência de receber a coisa
esmiuçada, detalhadamente, parte por parte. Quando eu cheguei em 97, eles já estavam em
um outro momento da pesquisa. Já estavam pensando nas possibilidades de cena, em
viajar, em ensinar, em dar cursos. Então, a minha formação, aqui no LUME, foi muito
intuitiva, muito improvisada, porque eu já tinha começado a trabalhar num dos
espetáculos, ao mesmo tempo eu estava construindo meu trabalho enquanto treinamento.
Então eu fazia de todas as formas, fazia todos os cursos dos atores do LUME, trabalhava
muitas horas sozinha na sala, me perdendo... Aí chamava um, chamava outro para assistir
o meu trabalho. [...] E diziam: “Não, não é nada disso, vem mais para cá, foca mais nisso,
olha o seu problema aí.” E assim eu fui construindo meu trabalho em cima das técnicas
que já existiam. Eu tive que pegar aquilo que já estava bem formalizado e transformar em
algo meu. (Texto da demonstração técnica de Naomi no evento ‘Terra LUME’ – 05/02/09)

Além de chegar fora da estação de cultivo e formação de novos atores, um outro


dado interessante da trajetória de N. é, como ela já havia apontado mais acima, a sua inata
dificuldade para a livre utilização do corpo. Aquilo que à primeira vista poderia ser um
contra-senso - isto é, uma atriz que não tem facilidades com o corpo entrar num grupo de
pesquisas teatrais que se fundamenta no trabalho corporal - acabou tornando-se uma das
principais vias de sua maturação.

“Eu não sei o que é viver dentro de um corpo que tem uma facilidade para fazer as coisas,
de pular do muro ao chão como se fosse um passo, isso de ter o seu corpo fisicamente à
disposição para fazer o que você quer. Lembro de momentos de grande frustração que eu
tive no treinamento, de chegar a chorar porque era impossível fazer aquilo, porque meu
corpo não reagia... [...] Ao mesmo tempo, eu vejo que isso, para mim, é um dos motores
que mais motivam o meu trabalho enquanto atriz. A dificuldade, a frustração, quase como
que uma briga com meu próprio corpo que, claro, eu tive que aceitar e no lugar de ficar
dizendo: “Ah, eu não consigo!”, eu tive que aceitar aquilo. [...] Tive que aceitar que essa
incapacidade, minha. pode ser um lado forte... E, claro que foi através do trabalho da sala
que eu consegui aceitar isso que é: a emoção e a sensação que vem, você abraça ela e
tenta expandir essa sensação, trabalhar essa sensação e ela, então, vai ser explorada, vai
desaparecer e vai entrar outra.” (Entrevista com Naomi Silman – 17/04/08)

E aqui volta-se ao tema da exploração dos limites. Uma das principais


características desse processo que N. descreve, acima, é a interdição da palavra falada, da
explicação, da justificação de uma dificuldade que, sorrateiramente, surge para tentar
acomodar o corpo em terrenos conhecidos e reconhecidos. Daí uma das principais regras de
trabalho do LUME, muito similar com aquela vivenciada por N. no seminário com o
discípulo de Grotowski na faculdade, é nunca parar, ou pelo menos, evitar ao máximo que a

227
dificuldade seja contornada por outro caminho que não seja o lidar com o imediato da
situação psicofísica requerida:

Nesses momentos, percebia o quanto o elemento da dificuldade era importante,


porque todo esse processo mexia comigo, mexia com a minha pessoa. Não era fácil, mas
eles diziam que o Burnier falava assim: “Está sofrendo, está sentindo dor, está difícil...
“Põe no corpo”. Põe no corpo tudo isso, e vai gerando possibilidades através da
dificuldade.” Para mim foi o diferencial. Quando eu conheci o trabalho do LUME esse
ponto foi divisor de águas. Não foi a raiz, ou o ‘koshi’, ou o ‘salto’ [elementos de
treinamento técnico cotidiano do corpo do ator. O diferencial foi este: “Por no corpo toda
e qualquer dificuldade, sem pensar.” (Registro de áudio dos ensaios – 14/10/08)

E para ilustrar com mais clareza a que tipo de dificuldade N. estava se referindo,
posso citar, ainda, um último trecho de uma das conversas que tivemos:

“O meu processo sempre foi muito da sensação interior para fora, porque eu tenho
dificuldade com a forma. Conheço muito bem o jeito que o Jesser [ator-pesquisador do
LUME] trabalha e ele consegue chegar ao mesmo resultado. Só que ele trabalha muitas
vezes partindo da forma para chegar na sensação interior. [...] Sempre essa primeira parte
do treino que a gente trabalha com o energético onde tem esse turbilhão, esse ‘borbulho’,
esse deixar o corpo livre, aquilo sempre foi o mais prazeroso, que sempre me chamava
para querer ficar naquilo. Só que comecei a perceber que com aquilo eu ia chegar só até
um ponto e eu não ia conseguir avançar se eu não exigisse de mim, também, outras partes
menos prazerosas, como todos os elementos técnicos que trabalham outras coisas, como a
amplitude do corpo no espaço, para depois esses impulsos poderem caminhar, né?! Eu
lembro, até, de ter feito um trabalho com o Jesser de uns 5 dias, só de elementos técnicos e
eu sofria muito. [...] Mas depois você vê que o trabalho minucioso sobre os elementos
técnicos... De repente cai uma ficha e eles viram outra coisa. [...] O ator não pode ficar
naquilo que é só a sua tendência, só ficar naquilo que é prazeroso, só ficar naquilo que é
forte, porque você não descobre... Claro, você descobre até certo ponto, mas o desafio tem
que ser contínuo, contínuo até o fim da vida artística.” (Entrevista com Naomi Silman –
17/04/08)

Esse último depoimento de N. ilustra muito bem a tese de que atores diferentes com
predisposições vocacionais diferentes vão ter dificuldades e necessidades bem
particulares em sua trajetória artística e que essas nunca terminam, mas vão se
modificando conforme a maturação do próprio ator. Talvez, num estágio bem
avançado deste processo, a maior dificuldade que todo e qualquer ator possa
encontrar convirja para o tema que os grandes reformadores do teatro do século
vinte desde Stanislavski pesquisaram: o acesso à dimensão do estado criativo.

228
“E agora? Como que eu continuo me desafiando?” Claro que tem várias
possibilidades. Uma delas é quando a gente chama outra pessoa. A vinda do Tadashi foi
um grande e novo passo, que alimentou muito todo o nosso trabalho, porque daí ele já
trouxe outras questões... Tanto questões técnicas, quanto questões de... Porque se a gente
pensa que esse nosso trabalho é uma descoberta infinita das nossas possibilidades
psicofísicas.... E você tem várias portas, pode abrir várias portas para fazer essas
descobertas e várias portas a gente já experimentou com o nosso trabalho. O Tadashi, por
exemplo, traz uma coisa que vem muito mais da dança dele: o ritmo, a coreografia, a
música... Só que ele exige que isso seja feito com total presença, com total sensibilidade,
com a ativação de toda nossa gama de sensação, imaginação e preenchimento, [...] que a
gente consegue por causa do nosso trabalho. Mas ele coloca vários desafios corporais
para a gente... Ele traz exercícios que parece que a gente volta a um estado como aquele
de uma criança que não sabe nada e isso é muito bom. ” (Entrevista com Naomi Silman –
17/04/08)

Com todas essas questões levantadas em torno da trajetória artística de N.,


estamos prontos para estudar o processo de criação da sua demonstração técnica:
‘Não tem flor quadrada’; que, justamente, trata da relação entre técnica e
criatividade nesses 10 anos de suas experiências com o LUME.

5.2.2 – O Processo de Criação. Dias de trabalho.

Não foram muitos os dias de trabalho que pude acompanhar deste processo, quando
comparado ao período de criação de “Você”, com Cris e Tadashi. Na primeira entrevista
que fiz com N., 17 de Abril de 2008, ela já havia me revelado que estava trabalhando com
S. numa demonstração técnica. Mas com as atividades rotineiras do LUME, viagens para
cursos e espetáculos, o fato é que eles só intensificaram o processo a partir de agosto de
2008. Em Junho tivemos uma segunda conversa - como disse - que foi totalmente dedicada
ao tema da ‘liminaridade na profissão do ator’ e como N. conseguia perceber o tema em sua
própria experiência de atriz. Em Julho N. me escreveu fazendo a seguinte proposta já em
referência à demonstração técnica:

Começamos [N. e S.] a pensar sobre o que falar e explicar verbalmente antes ou
durante a parte prática, e lembrei-me de algumas coisas que conversamos sobre o trabalho
do Lume, até de termos que você trouxe da sua pesquisa falando das coisas que a gente
tenta realizar na sala de trabalho. E daí surgiu uma vontade minha de te perguntar se você
teria interesse em assistir e acompanhar o trabalho e nos ajudar a pensar nessa parte mais
"teórica" para que ficasse bem claro para as pessoas o que estamos tentando mostrar,

229
usando termos bem precisos. Até pensei em você escrever algo sobre este trabalho, se
achar interessante. (e-mail recebido de N. em 18/07/08.)

Tanto achei interessante que decidi tecer este capítulo da tese com as experiências
de N. e S. juntas. Apesar de o convite ter sido feito em 18 de Julho, por conta do calendário
interno do LUME o primeiro encontro que pude testemunhar ocorreu só em 27 de Agosto
de 2008. Os dias que se seguiram foram: 28 e 29 de Agosto, 01 de Setembro; 03, 13, 14 e
15 de Outubro. Oito dias ao todo. No dia 16 de Outubro enviei a eles a parte que me coube
da primeira versão do texto que seria decorado por N. e dito durante a demonstração,
acompanhando os exercícios práticos. Minha função, portanto, era ser uma espécie de
‘dramaturgo’ da técnica de trabalho que N. e S. estavam tentando demonstrar. Pude, para
isso, não só coletar os termos e conceitos que eram ditos durante os experimentos práticos,
mas também fazer sugestões e observações em função daquilo que testemunhava. O
trabalho que apresento a seguir pôde ser feito, principalmente, pelas anotações do diário de
campo e pela transcrição do registro de áudio desses encontros.

27/08 e 28/08 - A demonstração técnica como um ‘drama ético’.

No dia 27/08, Carlos Simioni (S.) não pôde comparecer. Era ele que estava
dirigindo a criação da demonstração técnica e aquilo que Naomi (N.) me mostrou foi uma
espécie de seqüência de elementos técnicos do treinamento para o ator - coletados pelo
LUME - que eles tinham estruturado juntos, quase como uma coreografia, para ser
apresentada no início da demonstração. Estavam trabalhando sobre os princípios técnicos e
físicos de cada elemento, tentando avançar sobre as dificuldades e deficiências de N.,
aprofundando a elaboração deles em seu corpo. Algo tão concreto e prático que aqui nos
será útil um pequeno exemplo. Tomemos o primeiro elemento técnico da seqüência de N.: a
‘raiz’.

230
O elemento técnico da ‘raiz’, como se vê acima, é um exercício de transferência de
peso de uma perna para outra, percorrendo um demarcado caminho de contato do pé com o
chão, que começa pelo dedão, passa pelo restante dos dedos e segue pelo metatarso até o
calcanhar; de modo que o pé se abra e finque no chão como uma raiz. É um exercício, a
princípio, de absoluta modelação física e conformação dos ossos da perna e articulações
que auxiliam na utilização plena de todo o pé. Desse modo, cria-se uma base para que o
corpo do ator possa andar e correr com agilidade, saltar com impulso e cair sem impacto e
sem barulho; o que protege a coluna e aproveita a energia abdominal gerada pela contenção
da queda.
É um elemento técnico que treina a utilização do corpo para situações extra-
cotidianas de representação. De fato, a utilização cotidiana do corpo, principalmente do
indivíduo nascido nas grandes cidades, privilegia a atenção na parte superior das
extremidades: mãos, braços, cabeça; relegando o pleno uso e contato do pé com o chão.
Chamo a atenção para a estruturação de N. e S. do início da demonstração com os
elementos técnicos, isto é, o tema de maior conflito e dificuldade na trajetória da atriz. E
ainda hoje era assim. Uma das coisas que N. me revelou, nestes dias, foi como que para ela,
mesmo depois de 10 anos, ainda era difícil encontrar os corretos comandos e a justa
disciplina para treinar-se tecnicamente quando se encontrava sozinha em sala de trabalho.
Portanto, a questão que tanto a ela como a S. interessava era: ao invés de criar uma
demonstração com aquilo que de melhor a atriz tinha, encerrando-o com certo ar virtuoso,
queriam explorar justamente o elemento da dificuldade, da deficiência e a superação destas.
Porque no fim, mesmo ao mais virtuoso dos atores a sua elaborada técnica não seria
suficiente para a criação, ainda lhe faltaria algo; e este algo, - sentia ela - estaria justamente
correlacionado com o princípio da superação da dificuldade. Mais tarde, nesse dia, escrevi
para mim mesmo:

“E o trabalho técnico produz os seus opostos: aquele que consegue o virtuosismo


técnico e se torna vaidoso de sua obtenção ou aquele que se identifica com as deficiências
e dificuldades de seu próprio corpo. Dois lados de uma mesma moeda. Existe uma terceira
opção que libertando o ator da identificação com o corpo, tanto no triunfo como no
fracasso, mantém aberta a porta para dimensão criativa, que pode, por assim dizer,
utilizar a ambos.” (Diário de Campo – 27/08/08)

231
Seguindo essa linha de pensamento, no dia seguinte, dados a abertura e o papel que
me foram atribuídos, conversamos sobre a possibilidade de que a demonstração fosse
criada toda ela em torno da idéia do ‘drama ético’. Um drama pessoal e ético da própria
atriz sobre suas experiências, desafios, medos, dificuldades, auxílios e conquistas nesses
seus 10 anos de formação. Obviamente que não sendo um seminário falado, todos esses
aspectos deveriam ser entremeados num diálogo conciso entre experiência pessoal, fazer
prático e conceituação teórica.
O termo ‘drama ético’ me havia sido inspirado pela demonstração técnica de S., que
havia assistido no ano anterior, no Rio de Janeiro. Chamada ‘Prisão para a Liberdade’ essa
demonstração traça a trajetória do ator desde seus tempos com Burnier até os dias de hoje.
Numa segunda parte deste capítulo, procurarei abordá-la mais acuradamente, levantando
uma série de elementos ali contidos que revelam a importância da ‘liminaridade’ na
experiência do LUME. Ainda assim, somente pelo conteúdo do trabalho aqui analisado
poderemos já entrever esses elementos.

29/09 – A dimensão sutil da presença. Transmissão do mais velho a mais jovem.

Um fato interessante nesse processo de trabalho foi poder acompanhar o aspecto da


transmissão da experiência que ocorria entre o ator mais antigo do LUME, S.; e a atriz mais
nova. A princípio o projeto era simplesmente o de construir uma demonstração da técnica
pessoal elaborada por N. ao longo dos anos, e nada mais, Ito é, como N. recebeu todo o
material da proposta do LUME e o transformou para o seu uso pessoal enquanto atriz. Mas
conforme o tempo foi passando – e isso eu notei logo que cheguei para ver aos ensaios – a
proposta foi ganhando mais e mais uma vertente de pesquisa e transmissão de
conhecimento interna ao LUME. Isso porque S. já havia lidado com o problema da
aquisição da ‘técnica pela técnica’, ela como um fim em si mesmo. Isso ele nos conta na
sua demonstração: “A Prisão para a Liberdade”:

Hoje se fala muito no mundo teatral de pesquisa sobre o ator técnico e se a técnica
serve ou não serve para o ator. E eu gostaria de hoje mostrar para vocês, a fragilidade do
ator que abandona a técnica, criada por ele mesmo em 12 ou 15 anos. Se eu tiver coragem
eu gostaria de chegar até o fim, e poder me mostrar desnudo com a coisa que eu estou
vivendo agora que é: a técnica na realidade ela não serve para nada, mas para jogá-la

232
fora eu preciso conhecê-la, eu preciso ter ela no meu corpo. Ou então: a técnica, ela até
serve para mim, mas ela serve como um trampolim para a transcendência. (Trecho
transcrito de uma apresentação de “Prisão para a Liberdade” no Rio de Janeiro, 2002)

E em outro trecho, de outra apresentação, ele nos conta dos seus procedimentos e
tentativas:

O Carlos [Simioni] ouviu falar que ator técnico é uma porcaria. Então eu comecei,
dentro da sala de trabalho, a me desvencilhar da técnica. “O que é que eu faço?” Isso eu
quis fazer sozinho, sem os meus colegas, porque nem coragem eu tinha pra mostrar isso.
Eu queria me desvencilhar da técnica. Então eu entrava em sala de trabalho e: “Ok, não
quero mais, quero tirar essa técnica...” Percebi que ao tentar tirar a técnica eu estava
usando da minha técnica que era corporal. Como fazer? “Ok, já sei – depois de alguns
meses – já sei, eu vou debochar daquilo que eu sempre fiz, vou dessacralizar tudo isso...”
Ao mesmo tempo, também estava utilizando o meu corpo e as minhas técnicas. Pensei: “Se
até agora eu usei muitas tensões, se eu trabalhasse com meu corpo completamente
relaxado...” (Trecho transcrito de uma apresentação de “Prisão para a Liberdade” em
Brasília, 2006)

Se na época a que ele se refere, 2002, nem coragem ele tinha para experimentar com
os colegas; nestes encontros com N. ele já havia traçado um caminho próprio para fazer
com que a técnica apreendida estivesse a serviço de algo que fosse além dela mesma. E
assim, paralelamente à direção artística da demonstração, parte do processo se
desencadeava em experimentos que levavam N. a ir um pouco além da simples mecânica
física e apreensão orgânica de um elemento técnico como a ‘raiz’, que vimos acima,
entrando através da prática deste elemento numa dimensão psicofísica, sutil e energética
fundamental ao trabalho de qualquer ator. O terceiro dia de trabalho que pude testemunhar -
29/08 - foi quase todo ele dedicado a isso.
Com vistas a trabalhar nessa dimensão sutil, notei que S. sempre se certificava de
que os princípios mecânicos e técnicos estavam sendo executados corretamente. Assim foi
que boa parte do início do trabalho desta manhã foi dedicada a corrigir um pequeno hábito
de N.: ao entrar no elemento técnico dos ‘saltos’, após ativar a ‘raiz’, N. utilizava,
inconscientemente, o braço para ajudar seu corpo a ganhar impulso. “Não” - dizia S. –
“todo o impulso vem do abdômen e da energia de impulsão conquistada pela base da ‘raiz.
O braço é independente.” A precisão com a dimensão mais concreta e visível dos elementos
garantia a eficácia do trabalho quando este adentrava em dimensões mais sutis e
energéticas. Neste nível superior e menos visível, toda a ‘pessoa’ do ator - suas ‘sensações’,

233
‘emoções’, ‘atenção’, ‘energias’ - era evocada através da precisão com a dimensão concreta
e física. O caminho de S. para transcender a técnica não passava, portanto, nem por um
debochar da técnica nem por um culto da técnica, mas por uma nova perspectiva de sua
utilização. Mas qual era ela?
Antes de transcrever alguns importantes diálogos que ocorreram nesse dia, gostaria
de salientar que nada do que se falou e se praticou ali é um segredo ou uma novidade. S.,
desde 2002 em suas demonstrações técnicas, realiza este caminho diante dos olhos da
platéia – a maioria sempre ela formado por atores e estudiosos – tentando evidenciar que ao
criar certa ‘prisão’ para o seu nível físico ele ‘libera’ qualidades energéticas sutis de sua
‘pessoa’, que são fundamentais para a expressividade da forma. Interessa-nos aqui, pois,
justamente, essas qualidades energéticas sutis da ‘pessoa’ do ator estão diretamente
correlacionas com a invisível e liminar dimensão do seu Ser. O termo que S. utilizou para
denominar esta dimensão em seu trabalho é significativo: “estado da fonte criadora”.
Mesmo não tendo o registro visual do trabalho desse dia, algumas imagens colhidas
da apresentação da demonstração em fevereiro e algumas descrições podem nos ajudar a
visualizar o trabalho dos dois naquele dia. Seguimos. Feita a correção do hábito
inconsciente do braço de N., S. pediu, em seguida, que ela também não o bloqueasse, mas o
deixasse reagir livre e passivamente ao impulso do salto. Continuaram o trabalho com um
elemento técnico conhecido como o ‘pulo do tigre’. É um tipo de salto não totalmente
direcionado ao alto, mas muito mais para frente. Nasce em baixo, com o pé da raiz, e faz o
corpo deslocar-se rápida e horizontalmente a diante como o bote de um tigre. Após repassar
e corrigir os fundamentos desse elemento técnico da seqüência S. começou a propor que ela
realizasse o salto ‘sem o corpo’, só internamente:

S - É mais a energia do que a musculatura. Você já está indo para o impulso, mas
não é nem o impulso é uma preparação para o impulso. Pode tentar com o impulso desde
que você tenha a consciência que esse ‘com’ é uma preparação para ficar ‘sem a
musculatura’. [...] É uma surpresa. É isso que é o princípio do tigre. Se eu vou dar um bote
para frente eu tenho que começar desde aqui [abdômen].. (Transcrição do registro de áudio
dos ensaios – 29/08/08)

S. chama a atenção que quando prepara e executa o ‘bote’ desta maneira, ‘sem o
corpo’ é como se estivesse gerando em si próprio um fluxo energético sutil, invisível, mas

234
absolutamente perceptível para ele próprio, provenientes de um abdômen ‘aceso’ e em
ebulição:

S – [...] eu descobri isso na ‘Gilda’ [Uma das figuras ‘clown’ que faz em ‘Cravo,
Lírio e Rosa’.] Em cena, quando eu estou parado eu fico fazendo esse exercício e quando
eu salto é mais que um salto, é uma explosão de energia... O público até aplaude. [...] É um
princípio fundamental do corpo. É um princípio anterior a qualquer expressão, salto ou
arranco... Uma acumulação de energia antes do movimento... Um movimento gerado por
acumulação de energia sem comando do corpo.

N – Sinto que é muito parecido com alguns dos princípios do Butoh que eles falam:
Ah, você não dança, você é dançado... Não é você que levanta o braço. É o braço que se
levanta. Está vinculado a uma estética também, mas o princípio é esse. Tem a ver. Porque
não tem comando: “eu vou levantar meu braço”. É passivo, mas dentro, na verdade, você
está gerando esse movimento sem comando, ele tem que ir.
(Transcrição do registro de áudio dos ensaios – 29/08/08)

E seguindo com o trabalho do salto ‘sem corpo’ S. propõe o mesmo princípio sendo
utilizado para diferentes elementos técnicos da seqüência já estruturada:

S – Continua isso agora. Pega esse princípio todo e passa para o acúmulo. A tua
presença triplicou! Continua. Quero que você dê o salto sem dar o salto... Lá por esse
acúmulo de energia. Eu quero que você faça os giros... Não, não... É só o impulso
energético... Pelo peito, pelo abdômen também... Pelo impulso energético agora, sem ir
com o corpo. (Transcrição do registro de áudio dos ensaios – 29/08/08)

Logo a seguir fica claro, para nós, que esse ‘salto’ existe no interior do corpo, isto é,
ele é energeticamente denso e concreto e não provém de nenhuma espécie de manipulação,
devaneio ou imaginação criada pela mente.

S - Enquanto você está fazendo, como é uma experiência, veja se não está só na
imaginação, quando você perceber isso, você corta e vai para o trabalho anterior que é o
impulso que já está gravado no corpo e dele você pode fazer muito bem o fluxo energético.
(Transcrição do registro de áudio dos ensaios – 29/08/08)

Era muito interessante e cativante de testemunhar, porque não era a imaginação do


elemento técnico, era o elemento técnico da seqüência que estava lá concretamente, só que
se acumulando em estado energético. Com isso ficava mais assegurado que a mente
discursiva e manipuladora não bloquearia o conexão do corpo com a dimensão liminar do
Ser. Essa imaginação residual, aleatória e automática da mente é um dos maiores

235
obstáculos encontrados tanto no trabalho do ator sobre si mesmo, como vimos ao estudar o
trabalho de Cris e Tadashi; como no trabalho do homem sobre si mesmo; como vimos ao
estudar Gurdjieff, Ouspensky, a Yoga e o Zen Budismo.103
Nesta experiência com N., o fluxo energético denso vindo do abdômen ‘aceso’,
contido fisicamente e não manipulado pela mente, começa a acordar e conectar-se com
dimensões sutis da pessoa. No contexto esotérico se diria uma conexão com o ‘Si Mesmo’
de si; no contexto teatral aqui testemunhado se diria uma conexão com a ‘fonte criadora’. O
mesmo fenômeno visto por diferentes perspectivas:

S - “É impressionante, não é? Quando ela começou [algo] fez assim e era


impressionante. Você não fazia nada, mas era como se tivesse fazendo milhões de
movimentos... milhões eu não sei... mas muitos movimentos. É uma coisa que é
impressionante enquanto estado de presença e de qualidade de presença. Porque presença
pode ser uma coisa [faz algo exagerado com o corpo], mas [estou falando] de qualidade
sutil de presença que você fica, mas que envolve o espectador. O espectador poderia ficar
vendo você ali... porque não é só essa posição, tem um estado acontecendo dentro de você
e como é sutil, é um fluxo energético que parece que vem [até nós]. Ao mesmo tempo, é
nítido quando às vezes você perde e vai para o comando mental. Isso é nítido, e é legal
perceber isso. (Transcrição do registro de áudio dos ensaios – 29/08/08)

A seguir S. explica que esse é só o princípio da sua descoberta. Para chegar àquilo
que chamou de ‘estado da fonte criadora’ teria que realizar todo um longo desenvolvimento
prático deste trabalho. Iremos analisá-lo quando estudarmos a “Prisão para a Liberdade”.
Interessante acrescentar que foi através do desenvolvimento desse princípio que ele e
Tadashi montaram o espetáculo “Sopro” em 2006:

N – Não é muito esse caminho que você usou no ‘sopro’?

S – Sim, mas aqui foi só pra gente vivenciar isso, se não a N. vai fazer uma
demonstração técnica da técnica do S.. Mas não é isso que eu quero. Só pra você perceber
que se você fala: “Isso é do “Sopro”? É, mas por que é do ‘Sopro’? Porque cada vez que
eu vou trabalhar eu estou derrubando toda a técnica, [e descobrindo] quais são as coisas
dentro da técnica... É importante ir até onde a gente foi agora para que você realmente
tenha a noção corporal pra não ser só ‘pedrinhas rolando’ mental. Eu tenho certeza que
agora, nesse momento está bem mais claro corporalmente para você o que é o ‘fluxo
energético’. Só que, daí, teria que desenvolver, desenvolver, desenvolver. Só que não é o
caso. Só pra fechar essa parte aqui, então. O não-comando é só um princípio pra você

103
Assuntos desenvolvidos no capítulo X – Anexo 1.

236
deixar acontecer. Mas chega um momento, que você pode fazer o comando e ir do mental
para o corporal. (Transcrição do registro de áudio dos ensaios – 29/08/08)

Sobre essa última frase de S. poderíamos interpretá-la assim: estabelecida a conexão


com o ‘estado da fonte criadora’ este tanto se torna a fonte condutora da expressão mental
como daquela corporal. Chega um momento, num determinado nível do trabalho, em que a
imaginação residual torna-se como um ruído de fundo, incapaz de bloquear a criação e a
expressão psicofísica no ‘Eterno Agora’. Corpo e mente não mais se obstruem
reciprocamente, mas agem juntos. Não é uma experiência exclusiva só a atores de teatro,
sabemos disso.
Para concluir, gostaria de propor uma experiência. Vamos assistir a quatro quadros
de um ‘salto’ dado por N., quando ela fez a apresentação de sua ‘demonstração técnica’
apresentada no evento TERRA LUME em fevereiro de 2009:

4 3 2 1
Estamos no início da demonstração, quando a atriz executa ininterruptamente a
seqüência de elementos técnicos previamente estruturados. Nesse momento 1 está para
realizar um ‘salto’ lateral, que não é exatamente o mesmo ‘pulo do tigre’ que descrevemos
acima, mas é um elemento similar. Da direita para esquerda seguimos o ‘salto’
demonstrado por N.. Seguindo a explicação de S. dada em sala de trabalho, talvez tenhamos
maior clareza em visualizar e experimentar aquilo que ele chamou de ‘salto sem corpo’.
Seguimos com S.

“É quase como se fosse: você comanda para dar o salto, mas antes do corpo se preparar
para atender o teu comando, ele trava o corpo – não é travar – é como você engana o seu
corpo. Eu vou saltar, vou tentar fazer, saltar seria isso e isso. [Podemos rever as imagens
de 1 a 4]. Quando o corpo se prepara pra saltar, você trava esse corpo e deixa a energia.
Vamos chamar isso de ‘fluxo energético’, movimento com acumulação de energia sem
comando do corpo. ‘Fluxo energético’. Só pra gente saber que ‘fluxo energético’ é esse
princípio que está dentro do bote (pulo do tigre).

237
N – Pra mim é como se a energia vai lá pra cima.

S- Certo! E é nítido para quem está vendo. [...] Teve um momentinho ali que eu percebi,
teve uma emoção?

N – Teve!
(Transcrição do registro de áudio dos ensaios – 29/08/08)

Acrescento esse pequeno diálogo ocorrido na seqüência, porque ele toca num ponto
bem importante para o prosseguimento dos trabalhos que pude testemunhar: a questão da
emoção. Porque, como já foi apontado, neste nível superior e menos visível do trabalho,
toda a ‘pessoa’ do ator é evocada, inclusive as emoções de caráter mais sutil que, num fluxo
livre e imediato, libertam a musculatura, o pensamento e a presença do ator, em cena, da
entalhada mecanicidade de sua técnica. Sobre a questão da emoção no trabalho do ator já
apresentamos algumas considerações e análises tanto em referência aos experimentos de
Stanislavski quanto àqueles de Grotowski.104
Nos experimentos que pude testemunhar no LUME, o trabalho desenvolvido no dia
de hoje apareceria, mais adiante, como sendo denominado de a ‘posição da emoção’. A
‘posição da emoção’ significava a síntese do treinamento técnico e uma conseqüente
transcendência deste, pois acordava, dinamizava e convocava o máximo da ‘pessoa’ do ator
ao trabalho. Sem debochar da técnica nem cultuá-la, era esse o caminho que S. estava
transmitindo a N.:

S - Com isso de hoje, a gente está entrando já no [próximo daquilo] que vai
acontecer. Até a gente corrigir a técnica – corrigir a técnica você sabe do que eu estou
falando, né? – a gente vai entrar em temas como esses, que são além da técnica em si;
talvez seja o que comanda [a técnica], etc... Vamos deixar acontecer isso, que estamos
mexendo no ponto. A próxima correção – de trabalhar a técnica –vai ser já com outro
elemento: ‘os elementos plásticos’. (Transcrição do registro de áudio dos ensaios –
29/08/08)

01/09 – Mantendo os pés no chão. A estrutura da seqüência técnica.

O dia 01 de Setembro de 2008 foi uma segunda feira, dia que marcava o início de
um período longo de interrupção dos encontros por exigência das atividades coletivas do

104
Em especial, faço referência ao trecho que se inicia na página 151.

238
LUME. Era também o fim de um período de proveitosos avanços nos trabalhos. S. propôs,
então, que eles se concentrassem mais no trabalho sobre a estrutura da seqüência de
elementos. Fariam uma passagem mais técnica de esboço e fixação da estrutura. Às vezes
essa seqüência quase que tomava a forma de uma coreografia minuciosamente marcada
com detalhes de ‘olhares’, ‘posição’, ‘número de repetições da execução de um elemento’,
‘passos em direções definidas’; outras vezes tomando um elemento técnico criava-se um
bolsão de espaço-tempo livre para experimentações.
Em algumas passagens começavam a trabalhar também sobre os problemas técnicos
detectados no corpo de N. quando este executava determinados elementos; aquilo que,
acima, S. denominou como ‘correção da técnica’. Não é um tema de menor importância;
mas, reconhecidamente, é um tema mais específico e árido do trabalho do ator, sendo de
difícil reconstrução e transmissão através do meio escrito.
É relevante sublinhar o modo como S. apuradamente trabalhava sobre a forma para
então propor exercícios que despertavam a dimensão criativa da atriz. Cito uma pequena
frase de S. quase já no fim do encontro - ao propor a N. uma última passada na estrutura –
que, de certa forma, retrata este tipo de dupla perspectiva:

Vamos... Você quer repetir de novo? Só para fixar a seqüência. Você pode fazer
técnico, eu sei que é duro fazer técnico, né! (Transcrição do registro de áudio dos ensaios –
01/09/08)

A palavra ‘técnico’ aqui significa frio, distanciado, mas ainda com atenção. Parece
ser ‘duro’, ‘difícil’ porque se entende que é uma execução técnica sem a utilização da
técnica de máxima convocação de si mesmo ao trabalho, característica essencial do trabalho
do LUME. Segue, no entanto, que a máxima convocação de si mesmo ao trabalho é pessoal
e relativa a cada ator, dependendo diretamente daquilo que ele possa englobar em seu
‘máximo’ particular. Assim, por essa perspectiva de trabalho, o ator que trabalha sobre si é
como vinho: quanto mais velho e vivido, melhor e mais vívido fica.

03/10 – A Posição da Emoção.

O mês de setembro passou e não tive notícias sobre a retomada dos trabalhos,
provavelmente a causa da agenda dos espetáculos do LUME e também por uma

239
necessidade deles se aprofundarem sozinhos na pesquisa em sala. Da minha parte, refiz a
leitura da tese de Burnier apresentada em 1994 e que posteriormente tornou-se o livro: “A
Arte de Ator: da Técnica à Representação.” No dia 29 de Setembro escrevi a seguinte
mensagem para N.:

“Terminei esses dias de ler a tese do Burnier, e fui coletando uma série de termos
e percepções que gravitam em torno da palavra 'técnica' dentro do trabalho do LUME,
pelo menos até aquela época que foi 1994. Como a técnica nasce da dimensão íntima e
pessoal do ator, sustentada por princípios técnicos apreendidos de
técnicas tradicionais onde o corpo humano está em situação de representação. Chama
atenção a importância definitiva que Burnier dá à presença da dimensão mais íntima e
pessoal do ator.
Talvez os termos que ele utiliza possam ser úteis no texto da sua demonstração.
Também encontrei e estou trabalhando com um texto sobre Zeami, que traz algumas
imagens da 'flor' que Zeami utilizou nos seus escritos. Podem servir também, talvez.” (e-
mail enviado a N. em 29/09/08)

Estavam trabalhando naquela semana e logo N. me respondeu convidando-me para


que retomasse o testemunho dos ensaios, o que aconteceu no dia 03/10.
Haviam avançado. Toda a primeira parte da demonstração ligada à seqüência de
elementos técnicos já estava pronta e nesse dia faziam algumas experimentações com o
repertório pessoal de ‘matrizes’ de N.
O que é uma ‘matriz’, qual a sua origem? Vamos chegar lá, porque uma das metas
da demonstração técnica era, justamente, explicar isso para o espectador. Por ora diria que é
uma espécie de repertório de expressões psicofísicas pessoais derivadas do treinamento do
ator que podem ser lapidadas e refinadas para utilização direta na criação cênica. O nome
dado pelo ator a uma sua determinada ‘matriz corporal’ remete a uma característica
particular e qualitativa dessa expressão psicofísica; mas serve mais como uma etiqueta
distintiva e organizadora desse repertório.
É curioso poder tomar contato com essas etiquetas distintivas, ainda que tenham
sido excluídas do texto final da demonstração para evitar desnecessárias associações na
mente do espectador. Cito alguns dos nomes das ‘matrizes corporais’ do repertório pessoal
de N., e a imagem de duas delas que nos serão úteis mais adiante:

• Gueixa com asas


• Michele Pfeiffer

240
• Charlotte
• Dante
• Duende puto
• Riso do diabo
• Vazio

Michele Pfeiffer Duende puto

Esse é parte do material de trabalho acumulado por N. em seus 10 anos de trabalho


e treinamento dentro do LUME. ‘Matriz’ é um termo antigo no trabalho do LUME. Foi
cunhado já nos primeiros anos de codificação dos experimentos corporais de Simioni e
tornado público por Burnier em sua tese. É importante entender que uma ‘matriz’ existe
enquanto fluxo de impulsos psicofísicos gerado por uma exploração e descoberta do ator
sobre si mesmo. É uma característica da ‘matriz’ que nos interessa particularmente porque
remete ao ‘acordar, dinamizar elementos adormecidos, latentes e potenciais do ser.’
(BURNIER, 2002, p.24), ou, ao processo do ator ‘entrando em contato consigo mesmo’.
(BURNIER, 2002, p.178)
Era justamente o ponto que havia chamado a atenção de N. no início de sua
formação, quando se deparou com o desconhecido em seu próprio corpo: “O que é isso?” A
definição que S. deu de ‘matriz’ durante os trabalhos com o texto da demonstração é
didática e clara para que se entenda esse processo:

Matrizes são estados corporais, energéticos e sensoriais. E aí eu pensei que esse


nome ‘estado matriz’ [...] é o primeiro momento, é o estado da matriz que vem com toda a
força. Mas a matriz, a matriz corporal é o que se desenvolve dali. Então eu escrevi aqui. O
que é uma matriz: “A matriz nada mais é do que [algo] que vai abrindo canais para o ator,
ela surge para abrir canais para que depois se desenvolva num fluxo corporal.” [...] Ok,
surgiu. Porém se você não se permite repetir várias vezes você perde. Então isso tem que

241
ficar claro nesse momento: surgiu a sua ‘matriz’, eu tenho que repetir essa matriz para que
ela fique realmente no meu corpo, para que depois, sim, eu possa retomá-la e possa
desenvolver a matriz [corporal].” (Transcrição do registro de áudio dos ensaios –
13/10/08)

...desenvolver a ‘matriz corporal’ lapidando-a e refinando-a para utilização direta na


criação cênica. Longe de ser um processo racional a criação de um ‘estado matriz’ - esse
‘primeiro momento’ - é muitas vezes provocado pela condução do ator além do seu limite,
ou como vimos no caso de Cris e Tadashi, por alguma espécie de ‘exercício extremo’.
Seguimos com N.

N - Porque na hora da matriz aparecer, uma questão muito importante é que o ator
tem que estar totalmente inteiro e focado naquele momento, sem pensar: “Ah estou
trabalhando tal elemento, vou aumentar o fluxo de energia... Vou buscar isso...” Não! E as
‘matrizes’ surgem muito em função de uma pessoa de fora, na maioria dos casos, que
ajuda o ator a aprofundar mais e chegar nesses lugares onde ele não controla mais, onde
ele não sabe o que vai acontecer e ele está aberto a esses impulsos. Então a pessoa de fora
acaba provocando. (Texto da demonstração técnica de Naomi no evento ‘Terra LUME’ –
05/02/09)

Outro importante papel da condução externa é fazer com esses impulsos vindos de
camadas mais íntimas da humanidade do ator não fiquem em si próprios, introspectivos,
mas percorram e abram novos canais de expressividade psicofísica:

N - Por exemplo: é um momento de treinamento, e eu estou fazendo alguma coisa


em que aparece um impulso ou algo que vale a pena aprofundar. Então a pessoa de fora
começa a ajudar: “Oh! Péra aí! Repete, volta àquilo que você acabou de fazer. Mais,
maior, menor... Tira a tensão do ombro: joga mais para a parte baixa do corpo. Muda de
nível!. Foco para fora!” Várias coisas que vão ajudando o ator a dar forma e coerência a
esse impulso que está nascendo. (Texto da demonstração técnica de Naomi no evento
‘Terra LUME’ – 05/02/09)

Feita essa pequena introdução vamos voltar a acompanhar a pesquisa que N. e S.


desenvolviam nesse dia 03/10 em torno do repertório pessoal das ‘matrizes’ da atriz. É
particularmente interessante porque coloca em confronto dois momentos diferentes do
desenvolvimento da técnica de representação do LUME: aquela da ‘matriz’ desenvolvida
por Burnier ainda em vida com aquela da ‘fonte criadora’ que como vimos, foi
desenvolvida anos depois por Simioni.

242
Após um breve aquecimento de N., S. propôs que eles não iriam passar pela
primeira parte da demonstração, aquela da seqüência dos elementos técnicos; mas que, no
entanto, N. iria começar pela ‘posição da emoção’. Ela deveria construir o estado da ‘fonte
criadora’ apenas através daquela posição. De todo o treinamento técnico a posição da
emoção era como uma síntese pratica de vários princípios técnicos, vindos do treinamento,
postos contemporaneamente no corpo. Vamos tentar senti-la através de uma imagem de N.
e da fala de S. que veio até nós, sussurrando em voz baixa, explicar aquilo que estava
acontecendo:

“Ah, temos que mostrar para o espectador, o que o treinamento gera para o ator.
Ele tem que gerar alguma coisa, ele não pode ser só um expert, um ginasta, um virtuoso.
[...] o que é que eu tiro, além da maleabilidade do corpo; o que é que eu ganho como ator?
O que é que eu levo para o teatro? Então N. entra na posição. Ela vai construindo a
posição dela pouco a pouco: 1- busca uma posição de desequilíbrio, o corpo numa posição
fora do eixo. 2- usa a força do ‘abdômen’ para segurar o corpo. 3 – busca um equilíbrio
precário. 4 – faz uma oposição de forças: calcanhar querendo ir para baixo e coluna
querendo ir para cima. 5 –– Mantém todas essas forças trabalhando juntas, ao mesmo
tempo. (Transcrição do registro de áudio dos ensaios – 03/10/08)

Todas essas forças e tensões musculares juntas começam a gerar também um fluxo
de energia contínuo no interior do corpo. N., então, tenta voltar com seu corpo para a
posição normal, mantendo essas forças internas e carregando esse fluxo de
energia consigo. Em posição normal, sempre de pé, ela se mantém em atividade
contínua ‘sem o corpo’; do mesmo modo que vimos naqueles experimentos com o
‘salto do tigre’. S. então diz alto:

“Tome o seu tempo N., quando você sentir que está, que você conseguiu entrar no estado...
ainda tem um tempo livre no estado... fazendo movimentos livre...”

243
(Transcrição do registro de áudio dos ensaios – 03/10/08)

Através do esforço invisível para, sinceramente, manter-se na ‘posição da emoção’,


N. atingia uma determinada mudança no seu estado de ativação psicofísica que a levava a
entrar em pleno contato com a sua pessoa, evocando ‘sensações’, ‘emoções’, ‘atenção’ e
‘energias’ que criavam certo grau sutil de dilatação da sua Presença. Foi nesse ponto que
veio a proposta de S. para aquele dia:

“As matrizes vão entrar nessa fonte aí! Você vai fazer as duas coisas: vai permanecer
construindo e fazendo a manutenção do estado e [ao mesmo tempo] as matrizes. Tem o
tempo. Pode ser que elas fiquem mais lentas... mas é importante que você veja... vou
começar com uma que vai te ajudar eu acho: gueixa suave com asas.”

E a atriz, em estado dilatado de Presença sutil, começava a evocar em seu corpo a


musculatura da matriz correspondente. A imagem acima não corresponde a esse momento
mais foi retirada da apresentação no ‘TERRA LUME’. Serve como ilustração. Enquanto
isso S. vem novamente sussurrar em nossos ouvidos para tentar explicar aquilo que
acontecia:

S. - Esse estado da ‘fonte criadora’ que ela acabou de construir... Ele é gerado pelo
normal da estrutura humana que pode ser igual em mim, na N. e em você. Isso é uma base,
uma super-base. Quanto mais o ator tem desenvolvido esse estado super-dilatado... melhor.
Mas a matriz ela é particular, pessoal, individual...
(Transcrição do registro de áudio dos ensaios – 03/10/08)

Estava querendo separar os dois trabalhos, como se eles se referissem a dois eixos
distintos do trabalho do ator sobre si mesmo. O primeiro, referente ao estado da ‘fonte
criadora’, encontrava-se em um eixo vertical que conforme se desenvolvia ia se tornando
cada vez mais inconspícuo, sutil, energético e impessoal. O segundo, referente à ‘matriz

244
corporal’, referia-se a um eixo horizontal de descoberta e armazenamento de possibilidades
de expressão psicofísicas de ordem energética densa, mais corporal e muito particular à
natureza orgânica de cada ator.
Claro que os dois eixos estão em mútua correspondência e as ‘matrizes’, como
concebidas na primeira fase do LUME, já estavam vinculadas a certo grau dessa dimensão
vertical de Presença. Mas o trabalho com a ‘posição da emoção’ era uma espécie de ‘matriz
corporal’, originada do treinamento técnico, dedicada exclusivamente à ‘acordar,
dinamizar elementos adormecidos, latentes e potenciais do ser’ sem a pressão coerciva da
expressividade artística que vimos, por exemplo, nas imagens das matrizes “Michele
Pfeiffer” e “O Duende puto”. Visto dessa perspectiva, pode-se entender um pouco mais do
ulterior passo dado por S. em relação ao LUME de Burnier: esteve alargando a dimensão
vertical do trabalho do ator sobre si mesmo sem precisar criar nenhuma incompatibilidade
com o caminho já antes percorrido. Dentro dessa perspectiva a ‘posição da emoção’ se
assemelharia a certas posturas do Hatha Yoga hindu, por exemplo. Não exatamente na
forma ou na dinâmica da forma; mas na motivação pelo qual é feito: auxiliar o surgimento
da dimensão vazia e liminar do Ser, tão imprescindível ao trabalho do ator, independente da
estética a que ele esteja vinculado. A ‘posição da emoção’ era muito mais uma ‘técnica 2’
do que uma ‘técnica 1’.
Esta era a aproximação particular de S. ao problema, e nesse dia 03/10 mais do que
trabalharem na criação estrutural da ‘demonstração técnica’ estavam realizando
experimentos de pesquisa avançada. Esse tipo de preocupação não era de modo algum
exclusivo aos interesses de S. Quando, em 1997, N. montou seu extinto grupo de trabalho
com a Hatha Yoga e as técnicas do LUME – grupo ao qual S. não fazia parte – ela tinha
essa mesma preocupação em mente. Interessante ouvir aqui as sua palavras:

“A idéia da pesquisa que a gente começou era justamente usar a Yoga como uma
preparação para você entrar nesse estado, que a gente chamou de estado de trabalho, e a
partir daí deixar o corpo livre e ver por onde ele ia navegar. Usando mais os nossos
princípios do Lume [na segunda parte] e na primeira parte usando mais os princípios da
Yoga.” (Segunda conversa com Naomi em 06/08)

Todo o restante do trabalho deste dia se desenvolveu de modo similar a esse que
descrevi acima. S. propunha uma ‘matriz corporal’ para N., que ia ativando-a em seu corpo
sem perder o trabalho vertical.

245
Segue uma anotação do diário de campo:

Matrizes –
• Dante
• Gueixa com asas.
Estado Fonte Criadora
• Michele Pfeiffer
• Mulher espanhola
• Velhinha
• Charlotte
50% / 50% Posição da Emoção

É realmente difícil e árduo descrevê-las todas e talvez não seja tão interessante por
não termos o conhecimento e a visualização prévia de cada matriz. Uma das propostas, em
especial, chamou-me a atenção e gostaria de reproduzi-la pelo seu caráter inusitado e
paradoxal. A certa altura do trabalho, S. pede que Naomi seja corporalmente ela mesma,
enquanto dentro mantém a matriz ‘Dante’ pulsante, espirrando energia:

S. : “Eu não posso ver o Dante! O Dante espirra em energia, não em corpo. Quem
espirra em corpo é a Naomi.” (Transcrição do registro de áudio dos ensaios – 03/10/08)

Ainda mais interessante seria citar um diálogo final entre N. e S., após a experiência, no
que diz respeito ao resgate do material psicofísico das matrizes e a qualidade da evocação
de sua pessoa ao trabalho:

N - “Nas primeiras vezes que eu estava até tentando lembrar: “como era a matriz,
mesmo?” eu não tinha nem o estado e nem a matriz conseguia ser verdadeira. Para mim
foi como se fosse uma imitação mecânica do que eu lembrava, aqui, da matriz. E aos
poucos... Engraçado que um alimenta o outro também... Tanto a matriz gera o estado,
como o estado ajuda a matriz. Por exemplo: ontem, quando a gente trabalhou o estado e
depois a matriz por cima dela, aí eu consegui retomar algumas matrizes que eu não tinha
conseguido retomar como elas deveriam ser. Porque eu não lembrava mesmo. Mas aí com
essa via de entrada, aí o corpo foi. Aí abriu o quarto certo. Eu não estava conseguindo
achar a chave, né.”

S – “Claro, está na memória do seu corpo. Então, é como você tivesse que abrir a
memória.”
(Transcrição do registro de áudio dos ensaios – 03/10/08)

246
N. chamava atenção também que algumas das suas matrizes que tinham qualidades
e traços parecidos estavam sendo mais bem distinguidas e resgatadas com a introdução da
‘posição da emoção’ a cada novo dia de trabalho. Sua percepção, dizia, ficava bem mais
acurada.
Resta-nos uma última questão de particular interesse: o uso do termo “posição da
emoção”. No, capítulo anterior, no item a que me dediquei a isso, ‘O Papel da Emoção’, o
fiz a partir desse relato:

Pelas experiências anteriores [que tive em cursos e oficinas] com o LUME e pela
minha própria com uma miríade de técnicas de representação que são oferecidas em
cursos e oficinas para atores, sempre intui a falta da qualidade emocional íntima que
poderia transformar um conhecimento técnico em ato criativo. Portanto, uma das minhas
novas metas nestes dois cursos [que fiz no ano anterior] foi trabalhar sobre o despertar do
coração, observando os choques internos e externos que o acordavam ou o adormeciam.
Um fato que observei, muito similar à descrição de Grotowski em seus ‘exercícios de
concentração’105 é a capacidade de ‘aceitar a si próprio’, um desapego da imagem que se
constrói de si, neste casulo de reações instintivas habituais: medo de errar, medo de
fracassar, ansiedade por acertar ou ser o melhor, ciúme e inveja de outros atores, ser o
melhor, ser o pior; todos esses traços que parecem reais quando o coração está
adormecido, e são muito comuns no meio teatral.
(Relatório Fapesp – Bolsa de Doutorado Direto Ano 2 – agosto de 2007 a julho de 2008. p.
67.)

Mais adiante, no mesmo relatório, em relação a essas ‘novas metas’ descrevi certas
observações colhidas em campo de trabalho. Elas pertencem ao dia 26 de fevereiro de
2008, quando fazia o curso conduzido pela própria Naomi: “Da Energia à Ação” e se
referem à utilização das ‘ações físicas’ (o material criativo do ator) coletadas durante o
curso:
As energias vão se somando. Para chegar à energia superior, você precisa ter
gerado certa qualidade daquelas inferiores. Energia automática, energia sensitiva, energia
consciente. A energia automática é útil no sentido que você organiza e estrutura o seu
material criativo de modo repetível e preciso. A energia sensitiva é necessária no sentido
de que você faz a partitura de maneira inteligente, com atenção imediata mantida por
esforço voluntário: o pensamento atua no pensamento, o movimento atua no movimento, a
emoção atua na emoção. Atuar significa ser inteligente, e não só mecânico, em relação ao
que se faz num dado momento imediato. Cada um fazendo o seu sem bloquear o outro, mas
funcionando juntos. E a energia consciente é a que liga tudo isso, a energia consciente é
aquela que flui pelo eixo do ‘eterno agora’, conectando aquilo que se faz no plano visível

105
“Alla Ricerca del Teatro Perduto. Una proposta dell´avanguardia polacca.” de E. BARBA-1965 em
Ruffini,1999. p. 458 - traduzido do original italiano.)

247
àquilo que se é no plano invisível. Em definitivo, se o coração do ator não está acordado,
não há possibilidade para esta conexão.” (Relatório Fapesp – Bolsa de Doutorado Direto
Ano 2 – agosto de 2007 a julho de 2008. p. 63.)

O termo ‘posição da emoção’ que vim a ouvir, pela primeira vez, durante o processo
da criação desta ‘demonstração técnica’ ressoava bastante com essas minhas próprias
observações. Porque se através dessa ‘posição’ eu “consigo perceber que construo energia
e percebo um segundo corpo energético e esse corpo energético afeta também a minha
pessoa, com mais profundidade” 106; significa dizer que toda a minha pessoa se faz mais
presente; principalmente esse aspecto dela que infunde certa qualidade emocional íntima e
sensível, capaz de transformar qualquer conhecimento técnico em ato criativo.
Um ator de ‘coração acordado’ é capaz de não se identificar com a forma. E é
através desse não apego que ele ao invés de atuar, é atuado; ao invés de dançar, é dançado.
Dançado e atuado pelo ‘Si mesmo’ de si, que perpassa muito além de seu sentido de
identidade social e habitual de ator. Remete diretamente às experiências que assistimos
entre Cris e Tadashi.
O termo ‘posição da emoção’ ressoava também com a própria experiência prática de
N. dentro do LUME conforme ela nos contava, 3 meses antes, numa de nossas conversas.
Uma nova perspectiva de um mesmo processo. Perguntei:

P - “Existe na sua experiência de atriz esse momento em que o ‘coração abre’?

N – “É real, isso é de fato. É real e aí também são níveis porque tem um primeiro
momento em que... Num primeiro momento as coisas não estão interligadas; então você
pode fazer muito bem com o corpo, você pode ter muita emoção mas é uma emoção que ela
não é desenhada no espaço. Você pode ter muita imagem que você não consegue
concretizar ou você pode não ter domínio do corpo..., você pode não ter força suficiente
para sustentar o seu corpo, não ter a capacidade de trabalhar o impulso que seria
produzido para uma ação... Todas essas coisas num primeiro momento.
Aí, depois, a gente vai trabalhando e aquilo tudo vai, aos poucos, se interligando e
vai criando uma maneira orgânica de agir e reagir. Uma maneira orgânica de se
comportar, de existir na sala. E aí você começa a se acostumar com um certo padrão de
emoções, de movimentos, de ações, lógica, imagem, relações... e aí aquilo já começa a
ficar quase como se o próprio treinamento do ator já começasse a ter uma série de
‘clichês’, que podem ser ‘super-vivas’, mas aquilo já não queima mais....Mas isso já existe,
pode ser codificado, pode se tornar material, pode até ser pensado como matriz; só que daí
você tem que ir mais um nível para baixo... [...] Até em termos de treinamento, não só

106
Transcrição do registro de áudio dos ensaios – 13/10/08. Fala de Simioni.

248
pensando no espetáculo. Ou seja, como a gente pode desafiar o corpo a fazer algo que ele
não está acostumado a fazer?
Só para contar uma experiência interessante: a gente começou agora, desde
maio, abril; a gente voltou a trabalhar na sala, nós sete [os sete atores do LUME], meio
que em busca de algo novo. Uma das coisas que a gente tem experimentado é a questão
dos paradoxos. Só para pegar um exemplo que fica muito claro isso que a gente está
falando: trabalhar com o abdômen completamente relaxado. Totalmente ao contrário de
tudo que a gente fazia até agora. Como trabalhar um corpo extremamente denso por fora,
e sem nenhuma tensão dentro. Agora que você está tão acostumado a trabalhar com o
abdômen, isso tira você do [conhecido] e esse desafio, por si mesmo, já coloca o seu corpo
num outro quarto, num outro lugar que você não conheceu ainda....

P – Num sentido não só do corpo físico, mas também no aprofundamento de um


estado de presença, como se existisse a criação de um corpo sutil de energia – um estado
de presença – que começa também a dilatar?

S – Sim, sempre quando eu falo [...] um corpo diferente, quando eu falo isso, para
mim é tudo. Quando eu falo ‘um corpo diferente’ é o corpo físico, o corpo emocional, o
imagético, o sensitivo, tudo junto. (Transcrição da segunda conversa com Naomi –
06/2008)

Notamos, decididamente, por essas suas observações, a necessidade vital do


elemento desconhecido no trabalho do LUME. É a necessidade daquilo que é ‘liminar’, isto
é, daquilo que escapa ao plano organizacional de uma estrutura: seja a estrutura codificada
de uma técnica, seja a estrutura habitual do comportamento de um ator, seja a estrutura de
um organismo social inteiro como aquele de um grupo de pesquisas teatrais.
Nestas diferentes escalas sempre haverá uma espécie de ‘drama ético’, uma espécie
de dinâmico embate entre as forças que estruturam a matéria em uma forma e as forças que
reestruturam a forma em função da vida. Ambas necessárias, mas opostas e
complementares entre si. Se a forma que estrutura a matéria é demasiadamente aberta a
vida criativa se dilui num caos de possibilidades; se a forma é demasiadamente fechada a
vida criativa é sufocada num rígido dogmatismo, um estreitamento de possibilidade. Há,
portanto, um embate dinâmico necessário, um contínuo trabalho de vigília sobre a
tendência da forma em ir a um ou outro desses extremos. É a vigília de uma terceira força
que, livremente, ora se alia a primeira, ora se alia a segunda num posicionamento fluido e
inteligente que sente a urgência das necessidades imediatas da vida da forma. Essa terceira
força no trabalho do ator é a ‘dimensão criativa’ ou como a chamou S., o estado da ‘fonte
criadora’.

249
A máxima convocação do “Si mesmo” de si ao trabalho.

13, 14, 15 e 16/10 – Elaboração da estrutura final e dos textos.

A última semana de trabalho foi totalmente dedicada à estrutura da ‘demonstração


técnica’ em si: qual seria a seqüência dos elementos práticos apresentados e qual seria o
texto que - dito por N - se entrelaçaria a esses elementos. Como já havia dito, a necessidade
de construção desse texto estava ligado não só a uma insegurança da atriz com a correta
articulação gramatical do português, mas também a um importante trabalho de precisão
conceitual.
Até aqui havia a seguinte proposta de estrutura que estava dividida em 4 partes.

0 – Introdução
• Trajetória artística da atriz: suas buscas, dificuldades, escolhas e descobertas.
1 – Treinamento Técnico
• Seqüência de elementos técnicos
• A Posição da Emoção
2 – O trabalho com as Matrizes
• Apresentação das ‘matrizes’.
• Improvisação com as ‘matrizes’
3 – Apresentação de uma cena final.

Havia certa linha lógica de raciocínio por trás dessa organização de elementos. A
direção dada por S. era:
S - Nas outras demonstrações técnicas do Lume mostrávamos o treinamento como:
“agora tem a dança pessoal, mergulhamos profundamente ativando a vida, as energias
corporais e temos essas matrizes.” Mas é muito difícil para quem assiste perceber de onde
vem [as matrizes]. É pouco explorado o processo para chegar na matriz e aqui nossa
preocupação é tentar deixar claro como é o procedimento e mostrar que não é tão oculto,
que seja impossível comunicar.
(Transcrição do registro de áudio dos ensaios – 13/10/08)
Na prática, S. gostaria de criar uma ponte entre o treinamento dos elementos
técnicos e o surgimento de cada matriz; como se, por exemplo, o encontro entre o elemento
técnico dos ‘saltinhos’ e da ‘raiz’ e esse contato do ator com ele mesmo - intensificado aqui
pela ‘posição da emoção’ - gerasse uma matriz corporal expressiva como aquela da
“Michele Pfeiffer”.

250
Apesar de ser verdade para esse caso, N. dizia que esse raciocínio lhe parecia um
pouco artificial:
“Uma coisa importante de dizer [...] é que é uma coisa um pouco anti-natural
aquilo que a gente está fazendo. É pegar um percurso de trabalho muito longo, muito
tempo, horas de trabalho e experimentação e tentar demonstrar: “Olha, é assim que faz.”
Não é realmente assim! É só uma tentativa de colocar alguns princípios que podem ser
coerentes para uma outra pessoa. O perigo é achar que: “Ah é isso! Faço a parte técnica,
ativo o meu estado e vou recebendo essas coisas.... Dos elementos plásticos eu expando e
vejo a sensação no corpo e dessa sensação eu tento colocar isso no corpo.” Na verdade,
não é assim que funciona! Estou só mostrando! Eu percebi conforme a gente foi
trabalhando, tudo acontece ao mesmo tempo. Não tem como chegar nesse lugar se estou
pensando: “Ah, agora vou ativar o meu estado, deixa ver o que acontece...”. (Transcrição
do registro de áudio dos ensaios – 13/10/08)

Desse modo, em alguma parte da ‘demonstração’ deveríamos criar e inserir um


texto que alertasse para o risco que ali se apresentava: reduzir um processo que era lento e
orgânico numa receita rápida e fácil. De forma geral, é o risco que correm quase todas as
assim chamadas ‘demonstrações técnicas’ de atores. Mas o título que N. – já a essa altura -
havia escolhido para a sua demonstração: ‘Não tem flor quadrada’; alertava para esse
problema. Afinal de contas, todos sabem que o desabrochar de uma flor exige todo um
lento e orgânico processo de maturação.
S., também de acordo com essa imagem, desenvolveu a lógica de seu raciocínio
quando nos disse:
Como que agora todo esse trabalho anterior já está impregnado em meu corpo, não
preciso pensar mais, já tenho uma segunda natureza, meu corpo já reage como trabalho.
Eu não detecto mais a técnica, ela foi esmiuçada suficiente, e agora é apenas a sensação
causada no meu corpo. O ator não precisa mais discernir o que está acontecendo no
corpo. O trabalho foi necessário e já trabalhei tanto justamente para chegar a esse
momento. Livre. (Transcrição do registro de áudio dos ensaios – 13/10/08)

A imagem da flor se inseriu em nosso universo através dos escritos de Zeami. Sugeri
a N. e S. a leitura do capítulo sobre o Teatro Nō em a ‘Estetica del Vuoto’ (Pasqualotto,
1992) capítulo que havia traduzido para o português. Começamos a reconhecer que - apesar
das grandes diferenças estéticas e culturais - Zeami tratava dos mesmos problemas em
torno aos mesmos princípios que estávamos lidando.
Há pouco tempo adquiri um exemplar de “Il Segreto del Teatro Nō” (Zeami, 2002) e
pude ler a obra original, compreendendo melhor a semelhança destes princípios. Por

251
exemplo: entendido que o conhecimento da flor é o supremo e fundamental conhecimento
que pode ser obtido por um ator, chamou-me muita atenção lá onde Zeami responde à
pergunta de como se pode alcançar este conhecimento.
É justamente nesse momento em que ele faz a distinção entre duas espécies de flores:
a flor virtuosa e a flor autêntica. A primeira, diz ele, refere-se à flor da graça, a flor que
desabrocha daquela notável e inquestionável desenvoltura natural de um principiante, isto
é, sua predisposição vocacional inata. Esta flor dura só um momento, é perecível. Quando
fala do conhecimento da flor refere-se a uma espécie de flor conquistada. O que seria esta
flor? Como alcançar esse conhecimento? Responde Zeami:
“Não imaginem que seja muito complicado. De fato quando a partir do sétimo ano
compreenderem e assimilarem as ‘Observações sobre os exercícios idade por idade e as
diversas formas da mímica’107, aplicando a fundo as suas mentes; quando vocês exaurirem
[os diversos] tipos de nō; e concretizarem os recursos, então saberão como não perder a
flor. Um esforço consciente para levar à perfeição o conjunto do repertório, tal será a
semente da flor. Estando as coisas assim, se queremos conhecer a flor, é necessário
conhecer antes a sua semente. A flor está numa disposição da mente, a semente deve ser o
ofício.” (Zeami, 2002, p.107.)

Neste trecho, René Sieffert, aquele que primeiro versou o texto original para uma
língua ocidental, traz um importante esclarecimento sobre o termo ‘concretização dos
recursos’. O sentido de ‘recursos’ (kufū) é bastante próximo àquele de kōan108. Diz ele que
“quando pela ‘meditação’, se descobrem os ‘métodos’, ficam dispostos os ‘recursos’
necessários para lidar com qualquer circunstância.” Pela leitura dos estudos do Anexo 1109
fica evidente que o teatro de Zeami estava ancorado na experiência com o Zen Budismo e é
propriamente com o termo ‘recursos’ que ele faz referência a um ator que explora e alarga a
dimensão vertical e sutil do Ser. Ainda que o tradutor não avance no assunto, sabe-se que a
‘solução do problema’ no Zen Budismo está sempre relacionada com a produção do vazio
da mente. Aplicando-se a uma espécie de ‘técnica 2’ - neste caso, alguma espécie de
meditação – o ator é levado a fazer o vazio até mesmo da idéia de si mesmo.

107
Primeiro e segundo capítulo que se referem, respectivamente, aos exercícios de formação do ator e aos tipos de
personagens representados no teatro Nō.
108
Das notas de Sieffert da p. 100 e 101: “Koan, termo de origen zen, indica a meditação sobre um problema dado e por
extensão, o resultado da meditação, ou seja, a solução deste problema.” Ainda que o tradutor não avance no assunto,
sabemos que a ‘solução do problema’ no Zen Budismo está sempre relacionada com a produção do vazio da mente. Ver p.
423.
109
Anexo 1 – Estudos auxiliares. p. 440.

252
Não é necessário conhecer a fundo a estética do teatro Nō para perceber que a flor
autêntica refere-se a uma disposição ética do ator para consigo mesmo e o seu trabalho. E
ainda que não seja complicado, é um lento e orgânico processo de maturação.
Em outro trecho, Zeami nos dá outra perspectiva sobre a flor dizendo que esta nada
mais é que o insólito como o experimenta o espectador: “A Flor, o interessante, o insólito,
estes três conceitos refletem um idêntico espírito.” (Zeami, 2002, p.136.)
E, em seguida, chama a atenção de que uma flor cria interesse não por ser
extravagante ou diferente do seu meio; mas, justamente porque nasce do meio que lhe é
próprio e no momento certo é que produz o insólito. As mais belas flores sempre nascem
das mesmas dez mil formas conhecidas de jardins e árvores.
Assim é possível entrever que nesta predisposição ética do ator de Zeami há, ao
menos, dois tipos de diretrizes. A primeira, disposta no eixo horizontal, diz respeito à
disciplina do ator na formação de seu embasamento técnico e também no seu esforço
consciente para levar à perfeição o conjunto de seu repertório110. A segunda diretriz,
disposta no eixo vertical, nasce da capacidade do ator de ‘concretizar os seus recursos’, isto
é, fazer o vazio dentro de si. Através deste vazio, tirando seu sentido de identidade da
dimensão da forma conhecida, o ator está livre para improvisar sobre esta forma conhecida
e produzir o insólito, o interessante, a flor. É curioso notar que Zeami, num capítulo
posterior, procura refinar ainda mais o conceito da flor acrescentando a ele a palavra
‘emoção’:

Portanto, aquilo que se chama ‘flor’ não possui uma existência própria. Quando se
conhece todo o ‘repertório’ e se possuem os ‘recursos’, compreender a ‘emoção’ [que
suscita] o ‘insólito’, isto é a ‘flor’. (Zeami, 2002, p.138.)

A mesma forma executada de uma maneira única, porque feita agora, gera a emoção
que suscita a flor.
De volta à ‘demonstração técnica’ percebemos, rapidamente, que tanto o trabalho
com os ‘elementos técnicos’ quanto o trabalho com o repertório de ‘matrizes corporais’
pertencem à dimensão da forma conhecida. Devem ser explorados e alargados em seus

110
O repertório de personagens do teatro nō, que, geralmente, se associa a um tipo específico: mulher, velho, guerreiro,
demônio, etc. No livro sobre a mímica no parágrafo sobre o demônio diz Zeami: “Aquele que interpretasse corretamente
somente o demônio não saberia nem mesmo reconhecer no que consiste o interesse do demônio.” (ZEAMI, 2002, p.138)

253
limites, trazendo ampla possibilidade técnica e variedade expressiva para o ator. Ambos, no
entanto, em algum momento deverão ser transcendidos para que se produza a flor do
momento cênico. É aquilo que S. quis dizer quando disse acima: “O trabalho foi necessário
e já trabalhei tanto justamente para chegar a esse momento. Livre.”
Não era tão importante evidenciar que os ‘elementos técnicos’ geravam ‘matrizes’.
Ambos sendo do gênero das ‘sementes’, tanto os ‘elementos técnicos’ quanto as ‘matrizes
corporais’ deveriam manter em si certa predisposição para tornarem-se flor. É a linha lógica
de raciocínio que queriam demonstrar ao apresentar as matrizes’. É N. quem o sintetiza a
partir da sua prática:

N - Aquilo que permeia [e está] na base de tudo é a conexão que se estabelece entre
sensação interior, corpo muscular e corpo energético; e essa trindade, ela deve existir na
matriz também. E nesse momento que a gente sente que a matriz não chegou, ou que está
falso, é porque um desses elementos está defasado... .(Transcrição do registro de áudio dos
ensaios – 14/10/08)

‘Corpo muscular’ como os princípios técnicos, inerentes a uma ‘matriz’, que


nascidos do treinamento cotidiano impregnaram-se no ator como uma sua segunda
natureza; a ‘sensação interior’ como o confronto entre a forma muscular de uma ‘matriz’ e
a psicofísica da natureza pessoal do ator; e o ‘corpo energético’ como um segundo corpo,
constituído de uma gama de freqüências de energias que vão desde aquela mais densa, com
o abdômen ‘aceso’ e em ebulição; até aquela mais sutil como o ‘estado da fonte criadora’.
Portanto, tentando escapar do raciocínio rápido e fácil de uma receita, a segunda
parte da ‘demonstração técnica’ passou a ser elaborada de modo a trazer um maior número
de exemplos diferentes de como uma ‘matriz’ é gerada e memorizada; e, mantida a sua
vida, como se pode trabalhar a partir dela em improvisações e cenas.
O texto da demonstração que redigimos foi todo ele compilado pela técnica do
registro de áudio. No dia 13/10, N. fez uma apresentação da demonstração utilizando um
texto improvisado. Depois conversamos sobre o trabalho. No dia 14/10 continuamos a
desenvolver uma conversa sobre a prática vista e aquilo que seria mais importante de
permanecer. Neste próprio diálogo, cada um ia se esforçando para expressar de forma cada
vez mais clara suas idéias ou mesmo levantando questões e dúvidas conceituais.

254
Transcrevemos o registro do texto desses dois dias no dia 15/03 e no dia seguinte
cada um trabalhou sobre uma parte do roteiro, com a incumbência de sintetizar da melhor
forma possível tudo aquilo que tinha sido gravado. Desse modo, juntando as partes,
chegamos a uma primeira versão do texto da ‘demonstração técnica’ que depois foi sendo
melhorado e gradualmente refinado através de ensaios abertos que eram feitos durante as
viagens artísticas de N. e S.. Deste momento já não mais acompanhei o processo, mas todas
as citações de texto utilizadas até aqui, que se referem à apresentação no evento ‘TERRA
LUME’ em fevereiro de 2009, já são amostras desse texto final.
Por exemplo: no dia 06/11, um mês mais tarde, N. fez uma apresentação interna aos
membros da equipe de atores do LUME, na qual não pude estar. Houve em seguida uma
espécie de debate com o grupo e a partir dela o termo “posição da emoção” foi suprimido
do texto. Conforme N. e S. me explicaram depois, o grupo achou que a utilização deste
nome poderia levar a uma série de mal-entendidos desnecessários, associando-se, por
exemplo, à questão da ‘memória emotiva’ e as freqüentes dúvidas e inquietações que a
palavra ‘emoção’ gera nos atores. Ao invés de dar um nome a esta ‘posição’ N. deveria
simplesmente descrevê-la externa e internamente. Como pudemos notar depois, o termo
‘fonte criadora’ também foi eliminado.
Ainda que fundamentais durante todo o processo de criação da ‘demonstração
técnica’ ambos os termos foram suprimidos do texto publicamente dito. Parece-me que há
certo receio em conceituar determinados processos do trabalho do ator que, por
conectarem-se com a ‘dimensão criativa’, vão se tornando cada vez mais íntimos e
pessoais. Talvez este receio também possa estar ligado a uma necessária proteção da
experiência dos atores. Os textos de Zeami, por exemplo, não foram escritos para o público
em geral. Eram textos secretos que deviam circular apenas entre os atores herdeiros da
companhia. Somente cinco séculos depois, no início do século XX, é que foram, pela
primeira vez, publicados e revelados ao público geral. No capítulo anterior também já
havíamos flagrado um acontecimento semelhante ocorrido no Teatro Laboratório de
Grotowski. Ali, os ‘exercícios de concentração’ que haviam sido publicados no livro de E.
Barba - em 1965 - foram suprimidos para a primeira edição de “Em Busca de um Teatro
Pobre.” 111 Mas ali a explicação fica evidente quando nos damos conta de que os ‘exercícios

111
Ver página 153.

255
de concentração’ são uma espécie de ‘técnica 2’ que foge completamente da esfera do
artesanato teatral. No caso testemunhado, ao contrário, a ‘posição da emoção’ havia sido
desenvolvida com os próprios elementos do treinamento técnico.
De qualquer modo, o que mais me chamou a atenção no fim, apesar dos riscos
associativos, do receio, e da suposta necessidade de proteção; é a notável semelhança
existente entre os conceitos da ‘flor’ de Zeami, aquele da ‘dimensão criativa’ de
Stanislavski e o da ‘fonte criadora’ utilizado por S. e N. nessa experiência do LUME.
No final do trabalho do dia 03/10, S. propôs que cada um de nós escrevesse algumas
linhas sobre aquilo que tínhamos presenciado até então para que desses três textos fosse
compilado um único que serviria para ‘release’ para a produção e divulgação da
demonstração técnica.
Termino esse item citando esse texto na íntegra, que traz uma perspectiva desta
semelhança de princípios artísticos utilizados em diferentes épocas:

“Não Tem Flor Quadrada”

Demonstração técnica da atriz-pesquisadora, Naomi Silman para comemorar


10 anos de atividade dentro do LUME Teatro, o aprendizado da técnica de
treinamento, sua apropriação e seu desenvolvimento.
A verdadeira técnica da arte de ator é aquela que consegue esculpir o
corpo e as ações físicas no tempo e no espaço acordando memórias, dinamizando
energias potenciais e humanas, tanto para o ator como para o espectador.
Luís Otávio Burnier

“É o mesmo que dizer que não existe oposição entre técnica e arte, isto é, o valor
artístico emerge e se desenvolve pela e com a perícia técnica. Trabalha-se ao mesmo tempo,
com dois eixos perpendiculares e complementares: o horizontal, de desenvolvimento de
capacidades e habilidades psicofísicas necessárias a um corpo em situação de
representação; e o vertical, de um trabalho de convocação máxima de si mesmo ao
trabalho.
Este é um antigo princípio encontrado tanto no teatro ocidental, como no oriental:
Stanislavski perseguia a “plena concentração de toda a natureza espiritual e física” do ator;
Zeami Motokiyo mestre do teatro Nō, chamava simplesmente de “Flor”, o máximo valor
artístico que não pode ter existência, senão em função e em relação ao todo de um
organismo vivo.
Nesta demonstração técnica, veremos a trajetória da atriz na criação de uma técnica
pessoal de representação. Um confronto intransferível do ator consigo mesmo, no âmbito
de suas específicas dificuldades e facilidades com o trabalho prático. O contato com vários
elementos e princípios técnicos do treinamento corpóreo. A criação de repertórios de

256
matrizes corporais, vocais, e sensoriais e em seguida, o trabalho de improvisação e criação
para a cena.
5.2.3 - Estudos sobre a liminaridade no trabalho do Ator.

Os textos que se seguem são alguns estudos e observações que me


ocorreram quando assisti ao vídeo da demonstração técnica de Naomi no evento
‘TERRA LUME’ em fevereiro de 2009, evento ao qual não pude comparecer.
Destacando-me do período de trabalho com os atores e também do período de
investigação e testemunho do processo, procuro, num primeiro momento,
distinguir possíveis significados para a palavra ‘presença’ quando se refere ao
trabalho do ator, aprofundando um pouco mais sobre as possíveis relações que
existem entre vida, forma e matéria dentro deste trabalho.
A seguir - já como uma introdução para o último capítulo da tese -
evidencio como o termo ‘portão estreito’ pode ser entendido dentro do contexto
do trabalho do ator sobre si mesmo e como ele é, por assim dizer, um conceito
prático determinante para a existência de qualidade liminar dentro desta
perspectiva. Então, com “Prisão para a Liberdade”, chegaremos ao capítulo final
dedicado ao estudo do ‘treinamento energético’ visto como uma técnica vertical
do trabalho do ator sobre si mesmo. Posteriormente, virá um ulterior estudo sobre
a demonstração técnica de Simioni, quando ele trabalha na direção da
transcendência desta própria técnica, encontrando um novo nível de liminaridade.

A - Vida, forma e matéria no trabalho do ator.


Supondo que estes três diferentes níveis de energia são três qualidades
intercambiantes de forças que devem estar presentes em qualquer fenômeno do
mundo, é fácil intuir que a matéria por si só, é uma força que possui uma
qualidade de energia vibracional mais densa e inerte. Também é fácil intuir que a
vida em relação à matéria inerte possui uma qualidade de energia vibracional
muito mais alta e que a forma é uma força intermediária entre essas duas. Estes
três nomes de forças não devem ser tomados de forma literal e estática, mas sim
de forma processual e relativa à escala do fenômeno observado. Entre a matéria

257
mais densa e a energia mais sutil do Universo existem muitos níveis e
combinações ternárias de energia.
Um ‘organismo vivo’ qualquer, sendo uma criação da Natureza terrestre, é
necessariamente existente através de formas constituídas de matéria química. A
matéria é organizada em uma particular forma celular, mais ou menos complexa,
que é capaz de reproduzir a si mesma. De algum modo, que até hoje permanece
velado ao conhecimento humano, o Sol que é a fonte de vida no sistema
planetário cria e sustenta uma miríade de formas na Terra, dentre as quais o ser
humano é uma delas. Sem a presença do Sol não existiriam as formas orgânicas
terrestres. Lembra o fogo eminente na Caverna.
Mas uma peculiaridade do ser humano é que ele próprio possui a
capacidade de manipular a matéria e produzir formas. Qualquer objeto criado
pelo homem, incluído aí qualquer obra de arte, também é uma relação entre vida,
forma e matéria. No caso do teatro, dado que o ator (o sujeito) e a imagem poética de
sua criação (o objeto) ocupam o mesmo espaço e tempo, estas relações se tornam
duplamente significativas.
Se tivermos um objeto como uma escultura em nossas mãos estaremos diante de
uma forma que foi criada e construída a partir de um determinado tipo de matéria.
Digamos que essa escultura seja feita de mármore. O mármore que existe debaixo da terra é
matéria em estado bruto e ainda não serve para construirmos uma forma mais elaborada de
escultura. A matéria em si deve ser extraída, limpa, polida, refinada a ponto de nos
encontrarmos diante de um bloco sobre o qual podemos iniciar o trabalho de esculpir uma
forma. Que tipo de analogia poderíamos fazer com o teatro se entendermos que o corpo, o
pensamento e a emoção de um ser humano qualquer se tornam como esta espécie de
matéria em estado bruto quando ele, ou ela, decide, pela primeira vez na vida, tornar-se um
ator, ou atriz?
Certamente existem, desde Zeami e Stanislavski, inúmeros métodos de preparação
do ator para lidar com a questão da criação cênica. Neste estudo que fizemos,
acompanhando um pouco da trajetória artística de N. no LUME, vimos que o treinamento
com os elementos técnicos e a incorporação de alguns novos princípios de trabalho que

258
levam o ator a explorar seus limites e dificuldades psicofísicas são perfeitamente análogos à
preparação que se realiza sobre qualquer tipo de matéria em estado bruto.112
Eugênio Barba113 utilizou o termo ‘estado pré-expressivo do ator’ para configurar
esse processo de preparação técnica anterior ao espetáculo. Num determinado momento da
‘demonstração técnica’, já na parte em que N. demonstrava algumas de suas ‘matrizes’, ela
introduz o termo ‘segunda natureza’, que nos parece análogo com aquele do bloco de
mármore pronto para ser esculpido.

“Daí chega um momento em que eu não preciso mais ficar passando pelos
elementos técnicos, pelos princípios do treinamento, porque aquilo já foi
esmiuçado tanto, tanto, tanto no corpo, praticado tanto, que ficou impregnado no
corpo até que se torna uma segunda natureza.” (Texto da demonstração técnica de
Naomi no evento ‘Terra LUME’ – 05/02/09)

É muito significativa a comparação com um bloco de mármore, porque sabemos que


nos limites de sua extensão um bloco de mármore contém, em si, todas as possibilidades de
formas, sendo necessário, no entanto, uma suficiente qualidade de vida criativa para retirar
aquilo que as excede.
Assim, o treinamento do ator pode ser comparado a uma espécie de alargamento das
possibilidades psicofísicas de seu corpo na direção de um corpo que conterá muitas
possibilidades de forma. Fica claro, também, que essa preparação do ator, seu treinamento,
ainda não é arte. Continuamos com N.:
E a partir daí eu consigo, através de uma sensação provocada no meu
corpo – qualquer estímulo que for – essa sensação já ativa uma série de tensões e
forças musculares que vão gerando esse fluxo de energia, que em torno também
gera novas sensações, novas tensões musculares; e é um fluxo contínuo que vai
gerando o material que acaba fazendo parte do meu trabalho de ator.

“Charlotte” é o nome de uma ‘matriz’ de N. Recapitulemos que ‘matrizes’


no vocabulário de trabalho do LUME, são “estados corporais, energéticos e
sensoriais” descobertos e memorizados, em sala de treinamento, em períodos de pesquisa
de possibilidades expressivas para o corpo e a voz do ator, no caso do LUME, ainda não
necessariamente ligadas a escolha de um tema cênico. Pode ser qualquer estímulo e vimos,

112
Lembremos que Tadashi em “Você” usou uma analogia semelhante quando disse que fazer um espetáculo é como
preparar uma refeição, onde os alimentos frescos são adquiridos e preparados para só então se iniciar o cozimento. Página
204.
113
(BARBA, 1994, p.151.)

259
por exemplo, como o confronto psicofísico da ‘pessoa’ da atriz com um dos elementos
técnicos levou-a à descoberta de uma forma expressiva particular nomeada por ela de
“Michelle Pfeiffer”. Após um longo período de pesquisa, o ator compõe, então, uma
espécie de repertório dessas formas expressivas que passam a estar disponíveis para a
criação de uma cena ou improvisação A seguir, vemos algumas imagens de N. tentando
reproduzir o caminho que a levou até a matriz da “Charlotte”:
“Então, só pra dar um exemplo disso: eu posso pegar qualquer coisa. No
caso, eu vou pegar a figura de um quadro pintado. Então, a figura era assim
[faz]

Agora, a partir dessa figura, o que isso traz para o meu corpo e qual fluxo
que surge a partir dessa figura?

(Texto da demonstração técnica de Naomi no evento ‘Terra LUME’ – 05/02/09)

Sendo mais do que mármore, os ossos, o sangue, a respiração, os músculos,


as sensações, movimentos, pensamentos e emoções do ator começam a pulsar
juntos e a criar uma espécie de fluxo contínuo de forma orgânica psicofísica
inspirada pela imagem inicial do quadro. Ao contrário da forma esculpida no
mármore, essa forma deve se desenvolver no espaço e no tempo realizando ações,

260
relações, contatos, variações de energia comportamental; do mesmo modo como
qualquer ‘ser humano’ faria. De certo que a forma processual da vida humana é
da mesma natureza que a forma da arte teatral.
Se um músico segue uma partitura de notas e silêncios seqüenciais
organizadas no tempo, um ator segue uma partitura de ações psicofísicas
organizadas no tempo e no espaço.
Mas reproduzir mecanicamente essa partitura é suficiente para o ator ou
para o músico? Rapidamente intuímos que não. Às máquinas, aos computadores e
ao ‘modo de operação habitual’ do ator faltam, justamente, aquela força que
chamamos no início de vida. Vida, nas formas mais elaboradas de arte, é a
dimensão criativa que age diante dos olhos do público, aproximando-o
coletivamente da percepção de que a forma está pulsando e existindo naquele
momento, sempre pela primeira e única vez.
Neste sentido é que nos referimos antes àquele dinâmico embate entre as
forças que estruturam a matéria em uma forma e as forças que reestruturam a forma em
função da vida. Ambas necessárias, mas opostas e complementares entre si. No caso do ator
de teatro, a forma deve ser viva, ativa e inteligente em selecionar e repetir a
matéria psicofísica que lhe é própria, mas esta deve ser passiva em relação à vida
criativa do momento cênico processual único.
Esse embate de forças torna-se muito evidente tanto quando observamos a vida
humana cotidiana mais atentamente, ou quando assistimos a qualquer peça de teatro; mas se
torna muitíssimo evidente numa improvisação teatral. E percebemos porque uma
improvisação que se faz sem elementos formais pré-constituídos torna-se
extremamente limitada, tendendo sempre ao ‘lugar comum’.
O termo que, como vimos, Zeami utiliza para descrever essa qualidade de
vida criativa é flor. Um ator passa por um longo e orgânico processo de
maturação e desenvolvimento de suas sementes – de seu ofício – até atingir um
nível sutil e invisível de Presença que pode desabrochar e acompanhar as formas
que constrói e reconstrói a cada noite no teatro. Isto ocorre, é claro, desde que ele
restabeleça a cada vez a conexão com a dimensão vertical e criativa do ‘Si
mesmo’ de si; esta ação interna que não é de modo algum fácil, apesar de ser

261
desconcertantemente simples. Como vimos, Grotowski chamava esse processo de
Ato, diferenciando a técnica de criação das formas expressivas da técnica criativa
em si.114
A seguir acompanharemos uma improvisação apresentada por N. utilizando
a matriz “Charlotte”. Transcrevo o texto dito e improvisado a partir da relação
imediata com o público e o contexto; e também apresento algumas imagens que
revelam um pouco da vida que pulsava ali, por detrás daquela forma orgânica
pré-constituída. A vida orgânica da forma junto com a vida pulsante da criação,
que como uma mariposa, girava em torno do ‘Eterno Agora’.
A dilatada presença da forma e a Presença sem forma da vida:

“[A figura da imagem acima levanta da cadeira e vai ao fundo incomodada com
algo, passa uma motocicleta na rua e ela reage] Shhhhh! Pára com isso! Pára
com isso! Tôoo...chega! [O fotógrafo do evento tira fotos compulsivamente e é
essa a causa do seu incômodo. Pára e fica parada, muito tempo. Os ‘flashes’
continuam. Figura curva com voz lamentosa]

Eu não vou sair daqui. Eu não vou fazer mais nada se você não parar.
Incomoda! Só um pouco! [O fotógrafo para] Isso, relaxa, relaxa! [A figura corre,
curvada, passos rápidos e curtos, ao canto da sala] Aaahhaahhaahhh! [o que era
um choro lamentoso, no momento seguinte vira um sorriso de felicidade]
Aaahhaahhaahhh!

114
Ver página 142.

262
[e de um máximo vira, sem razão de ser, novamente choro e incômodo. Vai para
o outro canto da sala. Senta-se ao lado de um homem na platéia] Não! Não quero
ficar do teu lado.

[Sai correndo e vai, incomodada para o fotógrafo que havia voltado a bater fotos
compulsivamente. Pára diante da câmera e grita, bocas e olhos arregalados]
Aaaaaaaahhhh!

263
[A máquina emperra. O filme acabara naquele exato momento, avisa o fotógrafo]
Merece, merece! [E sai ao centro do palco rindo e chorando ao mesmo tempo]
Cada um recebe o que merece! [Começa a se relacionar com a platéia com acenos
e diz para um] Fica à vontade! Pode comer. Eu não me importo! Ohhhoohhoh
[chorando e tremendo a mão. Diz uma frase em inglês ininteligível e vai para a
lateral do palco. Olha para a platéia e diz] É isso, é isso, cada um faz o que quer!
Tira foto, tira bastante, tira, tira, tira... [O fotógrafo continua] Depois, depois,
você que vai levar tudo embora,né. Ahhhahh! [Ri para a platéia meio sem jeito]
É isso pessoal, alguém quer falar alguma coisa? Agora é a hora de falar, alguém
quer?

[A mão treme compulsivamente enquanto procura alguém que se manifeste] Eu


estou me sentindo assim... Alguém mais está se sentindo assim, meio...
[lamentosa] eu meio... [grita]

Alguém mais tem a sensação de estar meio assim o tempo inteiro?... Assim,
meio... meio...não totalmente 100% bem, sabe?
[Vai ao centro] É isso, né! Alguém quer falar?

264
[Aguarda um tempo e sempre com voz lamentosa conta] 1! 2! 3! Acabou!

[Fim da improvisação]
(Texto da demonstração técnica de Naomi no evento ‘Terra LUME’ – 05/02/09)

Porque não tem flor quadrada?


Afinal de contas, por que não existem ‘flores quadradas’? É a própria N.
que o explica já quase no final de sua ‘demonstração técnica’. Chamo a atenção
para o emprego do verbo ‘criar’ olhando-o sob a perspectiva da vida criativa do
ator:
“O motivo do título: ‘Não tem “Flor Quadrada”’ Por que esse título?
Porque eu queria que ficasse claro que as técnicas por mais formalizadas que
elas sejam, por mais rígidas que elas possam parecer, com regras e princípios
claros, elas em si não servem para o trabalho do ator. Porque se eu fico nessa
rigidez e nessa forma fechada, eu não consigo transformar aquilo para estar,
depois, a serviço da arte. Ou seja: se a gente quer construir essa flor, já no
treinamento não adianta eu tentar realizar os elementos técnicos do treinamento
de uma forma certinha. Eu tenho que me colocar, eu tenho que criar dentro
daquilo, eu tenho que quebrar essas formas quadradas e tentar achar em todos
os momentos que eu trabalho uma criação dentro: como que eu me coloco
naquilo? Como que eu dialogo com aquilo? Para depois conseguir fazer isso com
as matrizes, para depois conseguir fazer isso com a cena. E esperando que um
dia a gente consiga de tudo isso criar uma flor, uma expressão artística, e
compartilhar isso com as outras pessoas.
(Texto da demonstração técnica de Naomi no evento ‘Terra LUME’ – 05/02/09)

Cena MacBeth

265
Gostaria de encerrar esse capítulo mostrando alguns momentos da cena sem
palavras criada por N., utilizando suas ‘matrizes’ corporais confrontadas com um tema
cênico de Shakespeare: o momento em que Lady MacBeth enlouquece ao se dar conta do
assassinato do Rei cometido junto com o marido. Uma bela síntese de sua trajetória artística
onde a situação dramática, do texto inglês, ganha vida e qualidade apenas através da
expressão psicofísica do corpo da atriz, sem a utilização das palavras. Seria possível
acrescentá-las?

266
B - O portão estreito.

Como conhecemos a trajetória artística de N. até chegar ao LUME, podemos


entender bem o significado das seguintes palavras escolhidas e ditas por ela no
final da breve introdução que fez antes da demonstração propriamente dita:

E assim que eu fui construindo meu trabalho em cima das técnicas que já
existiam. Eu tive que pegar aquilo que já estava bem formalizado e transformar
em algo meu. Durante toda essa época teve uma coisa que todos os atores do
LUME, na época, falavam pra mim: “Não adianta pensar, não adianta pensar,
tem que fazer com o corpo.” (Texto da demonstração técnica de Naomi no evento
‘Terra LUME’ – 05/02/09)

Esse princípio de trabalho do ator do LUME que tanto captou o interesse de


N. foi muito bem descrito pelo próprio Burnier em sua tese de 1994. Transcrevo-
o a seguir porque nos será útil logo adiante:

“Quando Carlos [S.] tentava “entender” o que estava fazendo, eu o


impedia e assegurava, assim, a “proteção” do material que resultava desse fazer
de qualquer interpretação. Era importante que ele encontrasse a liberdade de
criar. A liberdade real de uma criação, que “conversasse” com seu ser, que o
deixasse emanar, sem vergonhas ou pudores. Algumas regras foram rapidamente
se delineando:

1 – Não pensar com a razão; fazer com o corpo.


2 – Nunca interpretar o que se está fazendo, sentindo, vivenciando. Não associar o que se
vivência no treinamento a problemas ou dificuldades pessoais de ordens diversas, emotivas
ou psíquicas. Não tentar entender problemas pessoais por meio do trabalho. Estamos
fazendo arte, não terapia.
3 – Ter sempre presente que estamos fazendo teatro. Portanto, o que se vivencia com o
corpo deve ser projetado, ampliado, dilatado. Deve-se dar, grande e generosamente.
4 – Jamais parar o trabalho quando invadido por emoções fortes. Sempre jogá-las no
próprio trabalho, projetando-as com o corpo. ” (Burnier, 2002, p. 92.)

Nota-se, aí um paradoxo muito próprio ao processo liminar, seja ele artístico ou não.
Ao mesmo tempo em que cria uma interdição em relação às normas, regras e
comportamentos socialmente negociados, o processo em si deve gerar suas próprias regras
e estruturas muito bem definidas e seguidas de acordo com as suas necessidades imediatas.
Burnier e Carlos (S.) haviam se esvaziado de todo e qualquer conhecimento socialmente
negociado entre os profissionais do meio teatral, e então, tiveram que redefinir novas regras

267
para eles próprios. As regras do ‘não pensar com a razão’, do ‘nunca interpretar’, do ‘não
associar com problemas pessoais ou contextos terapêuticos’, do ‘jamais parar o trabalho,
mas projetar as dificuldades no corpo’; criam uma espécie de portão estreito pelo qual toda
a experiência vai sendo purificada de interferências acidentais e aleatórias. Postas como
estão estas regras são interferências diretas no modo de operação habitual do mundo interno
do ator e são muito similares às regras internas previstas para qualquer processo
‘meditativo’ real. Se um ator obtém o domínio sobre o seu processo intelectual a ponto de
intencionalmente utilizar um comando intelectual como esse: ‘não pensar’; para justamente
interromper o processo intelectual e fazer com que seu corpo se expresse, ele está
inerentemente dentro de um processo ‘meditativo’. Porque ao ‘não pensar’ ele não só entra
em contato imediato com seu corpo, mas também e fundamentalmente, ele entra em contato
com os ‘recursos’ criativos do silencioso e indescritível vazio liminar: a ‘fonte criadora’,
assim nomeada por S. anos mais tarde.
E essa mesma regra de modo algum exclui o ato de pensar. Muito pelo contrário.
Transposta para o exercício intelectual, diríamos que só podemos realmente pensar quando
formos capazes de ‘não pensar’. Quando o fluxo de imaginação acidental e aleatório deixa
de fazer ruído em nossas mentes entramos em contato imediato não só com os ‘recursos’
que catalisam experiências e vivências do corpo, mas também com a plena capacidade
criativa dos nossos sentidos, pensamentos e emoções. Tal é o sentido real da palavra
‘meditação’. Meditar é a capacidade humana de ‘não pensar’ para então, e só então, pensar,
falar, sentir, agir ou dançar utilizando a matéria-prima e as formas disponíveis. É uma
capacidade prática e tangível, mas que requer disciplina e treinamento através de uma
‘técnica 2’ apropriada que pode estar ligada ao teatro ou não, isto é, associado à
‘organicidade’ do corpo ou não. O termo ‘prisão para a liberdade’ que, como vimos, dá
título à ‘demonstração técnica’ de S. descreve de maneira muito apropriada todo esse
processo de imposição de novas regras e limitações dentro de um contexto teatral.
Um último comentário é sobre a frase: “Estamos fazendo arte, não terapia.” O fato
é que a palavra ‘terapia’ se vincula mais a um recente conceito científico de psicologia e
menos à ancestral psicologia do ‘trabalho do homem sobre si mesmo’. O indivíduo
moderno que se submete a uma terapia de natureza psicológica, geralmente se encontra
num estado patológico e, portanto, submete-se a um processo de cura. A arte também pode

268
ser utilizada como um excelente instrumento de cura e ordenação do estado psíquico tanto
para quem faz, como para quem testemunha. Mas aqui, no nosso âmbito, trata-se de uma
outra espécie de processo para o qual a palavra ‘terapia’, entendida como tratamento de
distúrbios psíquicos, não encontra eco. Utilizando a palavra ‘instrução’, utilizada também
no mito da Caverna, tentamos fazer uma clara distinção entre estes dois processos.
Operacionalizar as técnicas 2 no âmbito do teatro parece estar relacionado com obter um
grau desta possibilidade de instrução utilizando-a como um melhor canal de comunicação
com o público dentro da esfera espetacular.

Fora do equilíbrio, a ‘voz’ do ator e a sua maturação.

Há um momento muito interessante, já na demonstração da seqüência de


elementos técnicos, em que N. cria uma espécie de diálogo entre ela e ela mesma,
entre a atriz que dá comandos e a atriz que os executa. É um bom exemplo daquele
contínuo trabalho de vigília sobre a tendência da forma em ir a um ou outro dos extremos
de dissolução ou enrijecimento, que aludimos num item anterior. Aqui, esta vigília se dá
sobre a qualidade da forma de um elemento técnico da seqüência chamado de ‘fora do
equilíbrio’:

1 2 3
O exercício começa com o ator desequilibrando o seu corpo, lentamente, até que a
queda – frontal, lateral ou para trás – seja iminente. No meio da queda do corpo, partindo
de um impulso abdominal, o ator deve recuperar o controle acionando uma das pernas que
irá amortecer a queda. Nota-se que pelo esforço exigido para a recuperação o abdômen
adquire certa quantidade de energia potencial que pode imediatamente ser utilizada para
uma posterior ação, como esse ‘lançamento’ na foto 3. Basicamente, este exercício revela
de imediato a confiança que o ator possui sobre o seu corpo e suas habilidades motoras.
Também é excelente para ‘acordar o abdômen’, revelando essa região do corpo como a

269
fonte geradora dos impulsos de energia necessários para toda e qualquer ação. Subir uma
escada carregando o corpo pelo abdômen potencializado é muito mais eficiente e menos
cansativo que fazê-lo arrastando os membros sem uma conexão com o centro do corpo.
Para atores em situação extra-cotidiana de representação, a falta desta conexão evidencia
um corpo adormecido, impreciso e lento em suas reações imediatas. O princípio técnico
associado a esse exercício é a utilização plena do ‘abdômen’ no movimento e nos impulsos
internos anteriores ao movimento externo.
Na seqüência abaixo selecionada N. revela algumas de suas dificuldades, através
dos comandos que dá a si própria a cada nova tentativa do exercício:

“[Dando novos comandos a cada nova tentativa] Não! Não! Isso, mas sem parar o
impulso no meio. Sem despencar [na queda]. Sem soltar o som da expiração [no
lançamento]. Pequeno. Sem hesitação. Pequeno. [Começa a narrar ao mesmo tempo em
que continua com o exercício] Esse exercício que a gente chama de ‘fora de equilíbrio’ era
um dos que eu tinha mais dificuldade em realizar, o que mais me frustrava... [Volta a dar
comandos] Sem soltar o barulho da respiração! Melhor! Sem despencar....
(Texto da demonstração técnica de Naomi no evento ‘Terra LUME’ – 05/02/09)

Esta ‘voz’ que fala e dá precisos comandos a si mesmo – que tanto podem ser para o
corpo como para o próprio pensamento ou imaginação – é um bom exemplo de como a
função intelectual pode ser utilizada de maneira positiva dentro do trabalho do ator. Nesse
exemplo da demonstração essa ‘voz’ aparece amplificada para o público; mas em sala de
trabalho, nos treinamentos diários e mesmo em situação de representação; um ator deve
cultivá-la de modo que ela se torne cada vez mais concisa e potencialmente criativa para
lidar com qualquer circunstância ou mudança repentina do contexto imediato, interno ou
externo.
Quando chega ao limite de sua capacidade, frente a uma dificuldade ou uma
limitação ainda não assimilada, fica evidente a necessidade da ajuda externa vinda daqueles
que já enfrentaram passagens ou dificuldades semelhantes. Essa ‘voz’ do ator então se cala
e ele abre seus os ouvidos para ser conduzido por uma ‘voz’ externa mais experiente e
potencialmente criativa.

[N. segue sua narração junto com os exercícios] E um dia... Pequeno! ...enquanto eu fazia e
não conseguia e me frustrava... Pra trás![queda para trás] Sem medo! Sem medo! Segura!
...um desses dias, provavelmente um dos atores que assistia às minhas tentativas falava pra
mim: “Não para, o importante é não parar, coloca isso que você está sentindo no corpo.

270
Deixa que essa sensação permeie o que você está fazendo... nunca [siga] a idéia de
realizar o treinamento de uma forma mecânica... coloca essa sensação no trabalho...”
(Texto da demonstração técnica de Naomi no evento ‘Terra LUME’ – 05/02/09)

Seguem algumas imagens onde N. começa a utilizar a energia criada, pela superação
do exercício, não mais para ‘lançamentos’, mas para exploração do seu próprio corpo e
pessoa:

Óbvio que nesse limiar já se evoca a necessidade que aludi anteriormente com o
termo ‘coração desperto’. Porque sem a recíproca confiança e mais alta sinceridade entre os
atores-pesquisadores envolvidos, toda a experiência se deterioraria pela interferência de
influências acidentais e aleatórias vindas do auto-orgulho e egoísmo das partes. Relações de
poder que evocam o inseparável binômio opressor-oprimido, tão comum nas representações
sociais cotidianas onde aparecem travestidas pelos mais diferentes tipos de papéis, são
absolutamente nefastas e desnecessárias a qualquer processo realmente criativo. Neste
sentido, a ‘liberdade’ que um ator pode obter, ao transcender suas fraquezas e limitações,
também está diretamente conectada à sua capacidade de se ‘aprisionar’: ouvir e executar
comandos e indicações externas daqueles que são mais experimentados e descobriu poder
confia. Deve ser assim até o momento em que, para aquela determinada dificuldade, esta
sua própria ‘voz’ torne-se suficientemente definida, amadurecida e concisa para dar

271
comandos que se originam da sua própria ‘dimensão criativa’. É curioso notar que esse
auxílio externo para o amadurecimento ocorre de forma semelhante tanto em atividades
ligadas ao ‘trabalho do ator sobre si mesmo’ quanto em atividades ligadas ao ‘trabalho do
homem sobre si mesmo’. Em ambos os casos o papel da função emocional é decisivo.
Numa das primeiras oficinas do LUME da qual participei, quando, junto com os
demais atores, estava vivenciando o treinamento energético, ocorreu-me um momento de
dificuldade muito parecido a esse de N., quando ouvir a voz externa daquele que
comandava o treinamento propiciou um salto para um novo nível de ‘mim mesmo’:
“Assim, a relação e “troca de energia” entre os participantes do energético sempre
é fundamental, um ajudando o outro a passar por este limiar da exaustão que normalmente
se transforma, em seguida, em fonte de energia renovada. É como se fôssemos, ao passar
por estes limiares de exaustão, descobrindo camadas de energia mais profundas,
renovadas e desconhecidas dentro de nós mesmos. Chega-se a elas apenas na prática da
sala de trabalho, pois, por nós mesmos, supomos que seja impossível que após esta
sensação de desgaste físico possamos encontrar tal fonte renovada de energia. O momento
de vívida memória a que me refiro veio de uma indicação do instrutor. Após o forte
aquecimento coletivo e uns 30 minutos de energético, muitas pessoas na sala, assim como
eu, estavam muito cansadas. O instrutor percebeu a situação e disse algo mais ou menos
nessa direção: “Aceite o cansaço, não lute contra ele, assuma o cansaço. Eu estou
cansado, e daí?” Esta frase produziu, em mim, um efeito extremamente benéfico, pois me
permitiu relaxar e sentir todo o cansaço que sentia e continuar a partir dos estímulos que
vinham dele. Havia uma parte em mim, algo que poderia chamar de um “condicionamento
social”, que não queria demonstrar externamente que estava cansado e que todo o meu
desejo, naquele momento, era realmente parar e deixar aquilo de lado. Foi então que
percebi efetivamente que era justamente esta parte que causava um empecilho ao meu
desenvolvimento rumo a um estado energético mais próximo do “corpo dilatado”. Após
assimilar o conteúdo da indicação do instrutor, soltei-me completamente pelo espaço,
ainda em movimento, e aquilo foi justo o necessário para encontrar novas e concretas
motivações para continuar o trabalho. Ao assumir o cansaço, sem vergonha e culpa,
descansei muito mais do que se me sentasse parado em uma cadeira. Senti, ali, um fluxo de
emoções imediatas que começaram a se manifestar juntamente com os movimentos,
sentindo um prazer em realizá-los que começou a superar o desconforto instintivo de
manter-me em trabalho.” (Diário de Campo - Oficina - A Construção do Corpo Dilatado.)

Esse fluxo de emoções imediatas que começa a se manifestar, juntamente


com os movimentos, refere-se também ao ‘despertar do coração’ e é uma
característica essencial de toda e qualquer ‘técnica 2’, no seu estágio preparatório
ou avançado, no teatro ou fora dele. Nunca conseguiremos superar nosso ‘ser
inferior’, nossa máscara para os outros - como diria Grotowski – sem encontrar
esse ‘portão estreito’ para a sinceridade conosco mesmos. Não é fácil porque as

272
muitas vozes que nos conduzem pela larga via da facilidade, do descompromisso
e da hipocrisia estão em nós, vêm de dentro de nós e chamam-se de ‘nós’. Sem
ajuda externa e sem a abertura para o outro, construindo uma espécie de
confiança recíproca, é definitivamente impossível.
É um trabalho contínuo e cotidiano de autoconhecimento do ator que, no
decorrer do tempo, passa a ser, cada vez mais, capaz de colocar sua mente e seu
corpo em contato direto com a ‘dimensão criativa’. Renato Ferracini se utiliza de
uma imagem muito fértil para descrever esse processo em sua tese: “Café com
Queijo: Corpos em Criação”:

“Peço permissão para usar uma metáfora que uso para explanar a utilidade do
treinamento energético quando ministro workshops de curta duração e utilizo pequenas
“doses” de energético: realizar o trabalho energético é adentrar em uma sala escura e
tatear uma porta de entrada para outra sala escura. Podemos ficar muito tempo dentro de
uma sala buscando essa porta até que encontramos uma “saída”, mas uma saída para
outra sala escura e iniciamos novamente a busca pela segunda porta e assim
sucessivamente. Quando encontramos algumas dessas portas, durante um período longo de
tempo, imprimimos em nossa musculatura, de maneira virtual, um estado de vivência desse
encontro. Terei, portanto, como ator, a memória dessa busca em estado virtual. Depois de
alguns anos de trabalho buscando essas “portas”, o caminho para elas se torna mais
“fácil”. É como se soubéssemos entrar nesse estado através de nossa musculatura, ou, em
outras palavras: acabamos adquirindo micro pontos de entrada para esse estado virtual,
que, quando ativados, se expandem e recriam a ação física ou o estado, tanto em sua
materialidade quanto em sua organicidade [...]” (Ferracini, 2004, p.157)

Acredito que sustentando a potência de todo micro ponto muscular


descoberto, que dá entrada à ‘dimensão criativa’, está um micro ponto de natureza
mental e vice versa. E quando digo mental, falo numa atitude ética para aquilo
que está ocorrendo no imediato da sala de trabalho, do treinamento ou do
espetáculo. Quem quer atingir a expressividade orgânica da forma? Quem quer
atingir a dimensão criativa? Por qual motivo? Pela minha experiência prática,
durante a pesquisa, é essa sutil e inteligente concatenação entre mente e corpo
que ‘desperta o coração’ e nos torna acessível uma vastidão de possibilidades
expressivas orgânicas e plenas. Mas antes disso, antes disso há a paciente e
artesanal construção desses ‘portões estreitos’ ou ‘micro pontos de potência’.
Porque estreita é a porta e apertado o caminho que conduz à vida criativa.
A oculta posição da emoção.

273
Na demonstração técnica elaborada por N. e S. intuo que a assim chamada
‘posição da emoção’ criava uma espécie de exercício condensado que evocava
todas essas vivências e memórias - musculares e mentais - de superação de si
pelas quais os atores já amadurecidos, neste tipo de perspectiva, tiveram que
passar. Um ator novato que tentasse realizar a forma externa da ‘posição’ jamais
iria obter o mesmo benefício que outro já amadurecido pelos anos de vivência e
prática com o treinamento energético e os princípios técnicos. É bem possível que
também por esse motivo o termo ‘posição da emoção’ tenha sido excluído da
demonstração. O surgimento e a maturação de um ‘mordomo’, mesmo no
contexto do trabalho do ator, é um processo lento e gradual que exclui fórmulas e
receitas rápidas.
A seguir será apresentado o trecho da demonstração técnica em que a
‘posição da emoção’ é, ocultamente, realizada. Aqui os comandos internos que
constituem a ‘posição da emoção’ são revelados no início. É interessante notar
que, estabelecida a posição inicial em (1), há a permanência dos comandos
internos até o final da experiência.
De modo algum é trivial manter intencionalmente uma série de tensões e
impulsos escondidos pelo corpo por tanto tempo. Exige um elemento de vontade
e qualidade de atenção para sinceramente mantê-los ali, o que estabelece o
próprio portão estreito de toda a experiência. O estado da ‘fonte criadora’ é forte
se os comandos básicos mantêm-se carregados com vontade, adaptabilidade e
atenção. No início do processo de criação da demonstração, que pude
acompanhar, N. era incapaz de criar e manter este estado por si mesma,
precisando da presença e da ajuda externa de S.. Neste trecho a seguir podemos
verificar a conquista de um novo nível de ‘trabalho de convocação máxima de si
mesmo ao trabalho’:

“Se eu conseguisse em algum momento desconstruir [...] os elementos que estão


sendo trabalhados. Pegando primeiro os elementos técnicos de treinamento.

274
1 2 3
Eu coloco meu corpo numa posição fora do eixo, eu utilizo a força do ‘abdômen’
para segurar o corpo, eu busco um equilíbrio precário; eu faço uma oposição de forças:
calcanhar querendo ir para baixo, coluna querendo ir para cima; e mantenho todas essas
forças e tensões ao mesmo tempo. (1) [narrando e fazendo] Eu começo a perceber que
essas forças e tensões musculares geram também energia num fluxo contínuo. Eu
tento voltar meu corpo para a posição normal, mantendo essas forças internas e
carregando esse fluxo de energia comigo, essa outra camada. (2) [narrando e
fazendo]. Forças e tensões musculares junto com o fluxo de energia também
provocam sensações dentro do meu corpo. Eu tento ampliar essas sensações para
percorrer mais a musculatura do meu corpo. [faz] (3) Posso tentar focar essa
sensação numa região específica do corpo como o rosto, por exemplo. [trabalha
com a face] (4), as mãos [trabalha as mãos] (5), a coluna [trabalha a coluna] (6),
o corpo inteiro [trabalha o corpo inteiro. Imagem p.229].
(Texto da demonstração técnica de Naomi no evento ‘Terra LUME’ – 05/02/09)

4 5 6
Muito interessante foi comparar este momento com o trecho inicial da
demonstração técnica “Prisão para a Liberdade”, de Carlos Simioni, apresentada,
em 2006, no Festival Internacional de Teatro de Brasília. Ali, após explicar
brevemente o que era o ‘treinamento energético’ referiu-se, ocultamente, à
mesma ‘posição da emoção’:
“O estado energético é você dar um mergulho dentro de você mesmo e trazer à
tona, através do corpo todo, um estado de ser que você não tinha... não tem domínio. E
pouco a pouco isso vai aflorando no corpo e vai lhe dando uma dilatação corpórea e
energética. E, através da memória muscular é possível, depois de algum tempo de
trabalho, você – só pelos impulsos - retomar esse estado de dilatação e entrar em trabalho
em pouco tempo. É o que eu vou fazer aqui e logo em seguida eu já passo para a primeira

275
fase do nosso trabalho, que se chama ‘Dança Pessoal’”. (Demonstração Técnica – Carlos
Simioni – Brasília 2006)

E então, entrou na posição corporal abaixo, com uns poucos movimentos externos
de ajustes e transferências de peso, em silêncio, por um minuto e meio:

(Imagem retirada do registro de vídeo - Arquivos do LUME)

E, feito isso, ‘esse mergulho interno direto’, ele já começou a presentificar


todo o leque de matrizes vocais e físicas dos seus primeiros 10 anos de trabalhos,
aqueles que passou ao lado de Luís Otávio Burnier.
O ‘treinamento energético’, utilizado no trabalho artístico do LUME desde a sua
fundação, é uma ‘técnica 2’ em seu estágio preparatório. Na ‘posição da emoção’ ele já se
apresenta organizado em uma forma condensada e simples, de maneira a fazer o ator
acessar uma sua segunda natureza psicofísica, própria ao estado de representação teatral,
em muito pouco tempo.
No capítulo sétimo: “O LUME e a liminaridade – Da prisão à liberdade”;
organizando e selecionando todo o material coletado se escreverá sobre a experiência do
LUME com o treinamento energético. Sua origem, sua aplicação, os mal-entendidos de sua
aplicação, seus riscos, deficiências e vantagens e o objetivo principal do seu uso junto às
técnicas de ator desenvolvidas no LUME. Deste primeiro LUME, em seguida, estudaremos

276
as descobertas feitas por Carlos Simioni e suas inquietações éticas em “Prisão para a
Liberdade”.
Salvaguardadas as devidas proporções, especificidades e contextos, veremos alguns
questionamentos que muito se assemelham, em sua natureza, àqueles questionamentos
sobre a técnica do ator que Grotowski passou a manifestar a partir daquelas duas
conferências de 1969 que, brevemente, estudamos. Quais são os limites entre a técnica e a
criação na arte do ator? O que é o Ato? Nas palavras de Simioni:
“Seria muito interessante mostrar para vocês o que é um ator hoje – [com] 18
anos, por assim dizer – que enfrentou técnica, que trabalhou técnica, que desenvolveu
técnica, que é técnico; que tentou construir espetáculos altamente técnicos e [...] chegou
um momento em que ele se viu totalmente técnico e ele tinha que extrapolar essa técnica e
não conseguia mais se livrar dessa técnica. Aí a grande questão: como, se eu trabalhei dez
anos para ter uma técnica, agora, eu quero me livrar da técnica, e não consigo? Bom,
morre o orientador das técnicas e eu fiquei com essa herança [...]: como transcender a
técnica? (Demonstração Técnica – Uni Rio – 2002.)

277
Cap. VI – O LUME e a liminaridade. – Os Dramas
Sociais e a ‘Communitas Normativa’

“Foi Píndaro que disse:


‘Torna-te aquilo que tu és, ou aspire a te tornares aquilo que vais aprendendo que tu
és. O homem é apenas a sombra de um sonho.’ São frases de Píndaro do quinto
século antes de Cristo. Aqui nós temos a essência da psicologia, da psicanálise, da
busca do ser humano. [...] Eu acho que a busca de realizar uma arte que tenha um
significado mais humano, tem essas conseqüências: psicológicas, de evolução, de crescimento,
de desenvolvimento. [...] Para mim, é muito importante, por meio da arte, do fazer
artístico, eu poder estar me descobrindo (além da vida, a arte inserida dentro da
minha vida), estar descobrindo o sentido da minha vida, o sentido daquilo que eu
estou fazendo.” (DVD da Defesa da Tese – PUC-SP 11/94)

Esta frase foi dita por Luís Otávio Burnier na defesa de sua tese de doutorado na
PUC/SP em novembro de 1994, durante as respostas que dava à banca examinadora. Parou
um raciocínio que estava desenvolvendo para responder a uma pergunta, abriu seu
caderninho de anotações e foi encontrar as palavras de Píndaro para mostrar um dos
princípios que o acompanharam durante toda a pesquisa de trabalho no Laboratório
Unicamp de Movimento e Expressão, fundado em 1985.
Começo por essa transcrição da citação de Píndaro, porque ela é de evidente caráter
liminar. Se o homem é apenas a sombra de um sonho, o que dizer do homem que se torna
um ator para representar um personagem diante de uma platéia? Seria esse homem como
aqueles imitadores que Sócrates distingue no capítulo X da República, aqueles que se
afastam três graus da verdade produzindo sombras da sombra de um sonho? Não sei.
Depende. Que tipo de homem é este? Talvez este ator se esforce para, através de sua arte, ir
se tornando aquilo que ele é, ou, pelo menos, aspirando a tornar-se aquilo que ele vai
descobrindo que seja. Talvez este ator, através da sua profissão, possa estar quebrando as
correntes que fixam seu olhar no fundo da Caverna, ou que já tenha quebrado e esteja,
agora, entendendo o mecanismo que projeta as sombras em seu fundo. Talvez este ator já
perceba toda a dimensão da Caverna e esteja, ao lado do calor do fogo eminente, agora,
começando a tentar escapar por aquela íngreme e escarpada saída que, recentemente,
descobriu.

278
Seja como for, fica evidente, pelo comentário feito, em seguida, que para Luís
Otávio Burnier o fazer teatral comportava a dimensão do trabalho do ator sobre si mesmo.
Não só o trabalho sobre a dimensão da descoberta e alargamento das possibilidades de sua
técnica de expressão psicofísica, mas também sobre a dimensão da descoberta e
alargamento das possibilidades de sua própria pessoa, de seu ser. O profissional, o artista e
o ser humano se entrelaçando vão descobrindo o sentido da própria vida através da
produção artística. No segundo item deste capítulo vamos estudar os termos que Burnier
utilizou em sua tese para apontar para tal dimensão.

6.1 - Pequenas notas da trajetória artística de Burnier


Não será nossa preocupação fazer um tratado histórico da trajetória de Luís Otávio
Burnier e nem mesmo do LUME. No entanto, algumas informações biográficas podem ser
úteis ao nosso trabalho e também aos leitores. Luís Otávio, nascido em 1956, veio a falecer
alguns poucos meses depois da defesa da tese a que nos referimos acima, portanto com
apenas 38 anos de idade.
Quando adolescente teve sua primeira experiência como ator no grupo Teatro do
Estudante de Campinas. Uma nota curiosa é que esse espetáculo, ‘Via Sacra Hoje’,
apresentado em espaços não convencionais, foi concebido a partir de um laboratório de
pesquisa que a diretora de seu grupo introduziu baseado nas pesquisas de Jerzy Grotowski.
Sabemos que ‘Em Busca de um Teatro Pobre’ foi lançado no Brasil em 1971.
Já com 15 anos, através do seu grupo, entra para o Curso Livre de Teatro e é ali que
Luís Otávio descobre sua aptidão e talento para se expressar com o corpo através da
mímica. Certa vez, nesses anos de adolescência, o mímico francês Marcel Marceau veio a
São Paulo apresentar um de seus espetáculos. Burnier foi a São Paulo e voltou encantado
com o que viu. A partir de então, através de filmes de Marceau que conseguia emprestado,
o jovem passava horas, sozinho, na frente de um espelho, aprendendo as pantomimas de
Marceau em seu corpo.
Em 1973, dada sua vocação, Burnier foi estudar mímica, durante seis meses, na
Fitzgerald High School em Michigan, Estados Unidos. Voltou a Campinas e no ano
seguinte, num festival de teatro da cidade, encantou platéia e especialistas com um
espetáculo de uma hora e meia e seis quadros onde mostrava as aventuras de Burna, o seu

279
personagem mendigo. No fim desse mesmo ano, 1974, prestou testes na Escola de Artes
Dramáticas de São Paulo onde passou em primeiro lugar, ganhando uma bolsa de estudos
para ir estudar na França. Seu projeto era ir aprender mímica com Marceau.
Não foi o que aconteceu. Após estudar por algum tempo com Jacques Lecoq,
alguém o convenceu a ir aprender com o professor de Marceau, já que se estava na França
para estudar e se formar em mímica deveria. Esse era Etienne Decroux que, à época, já
estava com pouco mais de 75 anos de idade e mantinha uma Escola de Mímica Dramática
em Paris. Aceito como aluno, Burnier estudou, ali, por quatro anos seguidos e iniciou,
contemporaneamente, a sua formação acadêmica no ‘Institut d’Etudes Théâtrales’ da
Sorbonne Nouvelle, também em Paris.
Etienne Decroux estudou na escola de Jacques Copeau, contemporâneo de
Stanislavski, que também se ocupou com a reformulação do teatro no início do século XX,
propondo uma humanização e dignificação da profissão do ator. Foi nas aulas de máscara
da escola de Copeau que, aos 26 anos de idade, Decroux descobriu sua predisposição inata
para se expressar artisticamente com o corpo. Interessando-se pelas aulas de mímica, pouco
tempo depois, viraria professor dessa disciplina na escola teatral de Charles Dullin. Antes
de se tornar célebre como ‘fundador da mímica moderna’ é curioso notar que Decroux foi,
profissionalmente, um ator muito ativo tanto no teatro de prosa – com mais de 65 peças -
como no cinema – com mais de 30 filmes. Foi só a partir dessa sua estabilidade profissional
que pôde desenvolver a sua própria proposta de trabalho.
Alguns princípios éticos, estéticos e técnicos dessa sua proposta merecem atenção
porque vão reaparecer, através de Luís Otávio Burnier, como fundamentos e traços do
trabalho do LUME.
Apesar de ser ator de prosa estabelecido, Decroux sustentava que o espetáculo, antes
até mesmo do texto, deveria ser criado a partir da corporeidade do ator. Neste sentido, dizia
que a peça deveria, antes, ser criada pela linguagem corporal dos atores e só depois
complementada, se necessário, com as palavras que o autor dramaturgo escrevesse.
Foi exatamente esse o caminho de criação trilhado por Simioni e Burnier em
“Kelbilin, o cão da divindade”, por exemplo. Só depois que o ator havia acumulado oito
horas de material psicofísico criativo em forma de ‘matrizes corporais e vocais’ e que esta

280
quantidade havia sido selecionada em uma partitura de uma hora é que eles começaram a se
perguntar quais seriam: o tema do espetáculo e os textos que se adequariam a ele.
Decroux defendia, portanto, a autonomia da criação cênica do ator através da poesia
de sua ação corporal. Mas a mímica de Decroux e a mímica de Marceau, duas referências
na vida de Burnier até aqui, navegavam por propostas muito diferentes de poesia.
Podemos fazer o experimento de ver Decroux e Marceau atuando, de modo a
perceber essa grande diferença que Burnier assimilou em seu período de formação artística
e explorou em profundidade em seus anos de LUME. Há belos vídeos de Marcel Marceau
na Internet, produzidos para homenageá-lo pelo advento de sua morte que ocorreu em
2007.115 De Decroux, que faleceu em 1991, podemos encontrar alguns registros antigos de
exercícios técnicos e expressivos atuados por ele próprio.116
Se Marceau pareceu predispor-se a ilustrar situações, objetos e pessoas, exagerando-
as a partir de situações conflituosas do senso comum; Decroux pareceu predispor-se a dar
um passo para dentro, dilatando não a superfície, mas as energias vitais que regem as ações
físicas e as relações humanas. Assistindo aos vídeos podemos notar que, de fato, se o
primeiro, ainda que sem palavras, comunica uma idéia da ação de modo extensivo; o
segundo, sem palavras, realiza a ação intensificada, amplificada e estilizada. É interessante
notar, também, a diferença da expressividade facial de um e de outro. Se para Marceau a
expressão facial e as mãos eram predominantes, talvez mais ainda quando passou a ser
registrado pela mídia visual; para Decroux a expressão do tronco era primordial, dando
também atenção aos braços, mas apenas uma pouca e relativa atenção à face.
Para, de fato, afastar-se da palavra falada em direção à linguagem pura do corpo em
ação, Decroux organizou e sistematizou toda uma estrutura de fundamentos e códigos
corporais, organizando-os em uma espécie de gramática. Dentre estes fundamentos chamo
a atenção para alguns deles que me parecem importantes no desenvolvimento da ‘técnica
pessoal de representação’ dos atores do LUME que estudamos no capítulo anterior:
.

115
No site ‘Youtube’ há vários como: http://www.youtube.com/watch?v=BDEhi8H_hZY. (II ENCUENTRO
NACIONAL DE MIMOS – 2008) Consultado em outubro de 2009.
116
No site ‘Youtube’ como:: http://www.youtube.com/watch?v=hYlbNS4-Tas. (Etienne Decroux - la Grammarie - le
toucher - 5/6) Consultado em outubro de 2009.

281
• A própria noção de sistematização de uma ‘técnica codificada’ através de
fundamentos e princípios expressivos é, talvez, o mais importante conceito
que Burnier herdou de Decroux. (Burnier, 2002, p. 66.)
• A noção de que o teatro é a arte de ator e não do ator; reforçando a noção de
que é “uma arte que emana do ator, algo que lhe é ontológico, próprio de sua
pessoa-artista, do ‘ser ator’.” (Burnier, 2002, p. 18.) Vale dizer, já, que a
exploração das potencialidades criativas da pessoa do artista não foi uma
herança que veio de Decroux.
• O conceito de corpo dilatado que potencializa a presença do ator, inscrito na
máxima de Decroux de que na arte para o menor efeito precisamos efetuar o
maior esforço. (Burnier, 2002, p. 67.)
• O raccourci que é a contração e condensação de uma ação no espaço e no
tempo de modo a dilatá-la energeticamente. A condensação de ações físicas
é um artifício amplamente utilizado no LUME para explorar, por exemplo,
qualidades expressivas de uma mesma ‘matriz’. (Burnier, 2002, p. 141.)
• O equilíbrio precário, em oposição ao equilíbrio estático do corpo cotidiano;
que é também fundamento de quase toda técnica corporal de representação
codificada. (Burnier, 2002, p. 154.) Como vimos, é fundamento básico na
‘posição da emoção’.
• A sistematização e acumulação de formas expressivas como as figuras de
estilo – desenvolvimento de pequenos temas no tempo e no espaço - tipo de
andares, sentares, estatuárias móveis, posições básicas para os braços, etc.;
que poderíamos associar à sistematização e acumulação de ‘matrizes
corporais e vocais’ do ator, ao seu ‘cabedal’ ou ‘léxico’. (Burnier, 2002,
p.105)
Sobre esse último fundamento, comum às formas codificadas do teatro oriental onde
o ator já possui um repertório pré-fixado de códigos e ações físicas, essa não é uma visão de
teatro que nos é muito comum. Olhando da perspectiva do ‘clown’, por exemplo, é possível
visualizar que, independente do contexto, a dramaturgia gira em torno do ‘modo’ de reagir
específico do tipo cômico. Aceitamos bem o ‘Carlitos’ de Charles Chaplin independente de
qual seja o contexto que se apresente. Mas pensar que um grupo de atores trabalhe sobre o

282
tema da ‘loucura’ em Rei Lear; e já leve consigo todo o seu repertório de ações físicas e
vocais prontos e que só os adapte criativamente à peça; isto já não é, de modo algum, um
modo operativo consensual no ocidente. Foi nessa direção que o LUME investiu:

“Por isso que é bom trabalhar com grupo e com grupo contínuo, porque esses
atores já têm muito material. A gente treina e não joga fora. A gente treina e vai ficando. É
o nosso material de ator. Todos os tipos de vozes que a gente já descobriu, qualidades de
energias e movimentos, feroz, suave, gestos, estátuas, estados de alma; somos atores que
estamos sempre trabalhando nisso. Têm tudo isso e o que a gente, agora, faz é bem
tradicional. [Se o tema é] sobre as pessoas que moram na rua. [...] pega material desse
ator, dessa atriz e junta e cola etc. Vai construindo a peça já com o material do ator.
Constrói no papel, porque já tem [o material]. Cada material de cada ator já está numa
partitura. Aí, depois de montado, vai cada vez fixando melhor, vai montando. Aí é partitura
e não tem mais improviso.” (Seminário de Carlos Simioni – Porto Alegre – 2002)

No processo de criação do espetáculo ‘Você’, que pudemos acompanhar no capítulo


anterior, o trabalho foi numa direção bem diferente desta, justamente porque se propunha a
reciclar as possibilidades expressivas da atriz, não trabalhando com o já conhecido e
acumulado. Estavam desestruturando a técnica para gerar nova vida criativa.
Há quase um capítulo sobre a técnica de Decroux na tese de doutorado de Burnier,
apresentada como um exemplo de ‘técnica codificada’. Desde o início das pesquisas do
LUME, paralelamente ao ‘treinamento energético’ e ao mergulho do ator nas suas energias
potenciais criativas, existia a preocupação de que esse ator adquirisse, em seu corpo, uma
série de princípios e leis inerentes ao trabalho do corpo em situação de representação, isto
é, em situação psicofísica extra-cotidiana. Exemplos desses princípios e leis foram vistos
em ‘Não tem Flor Quadrada’. Muitos exercícios vieram da experiência de Burnier com
Decroux ou Yves Lebreton, um de seus precursores na mímica. Mas, nesta área, tão ou
mais importante foi o contato do LUME com a prática de exercícios técnicos organizada
pelo Odin Teatret de Eugenio Barba e Iben Rasmussen, com quem Simioni trabalha,
sistematicamente, desde 1989.
Seguindo sobre os preceitos de arte de Decroux, existem também, na tese de
Burnier, várias citações suas de caráter estético onde proclama quase uma cruzada radical
contra o ‘império do texto’ nas artes cênicas do seu tempo, chegando a parecer um tanto
quanto exageradamente polêmico. Fala, por exemplo: “Quanto mais rico é o texto, tanto
mais pobre deverá ser a música do ator; quanto mais pobre é o texto, tanto mais a música

283
do ator deve ser rica” (em Burnier, 2002, p. 183.) complementando com a idéia de que um
ou outro necessariamente deverá ser possuído, numa inevitável homossexualidade. Como
se ação física e palavra não pudessem se fundir em vida indivisível. Lendo os experimentos
de Stanislavski em ‘O Tartufo’, pudemos vislumbrar que não necessariamente acontece
desta maneira. O texto literário e o trabalho dos atores foram, ali, perfeitamente unificados
num processo criativo, e não opressor. Há, também, muitos outros experimentos modernos
de excelência, nesta direção, que fundiram ambas as linguagens, como é o caso do Teatro
Laboratório de Jerzy Grotowski ou de Peter Brook com seu Centro Internacional de
Pesquisas Teatrais, fundado em 1970, na mesma Paris de Decroux.
Esse certo radicalismo de Decroux contra a literatura dramática influenciou o
pensamento de Burnier e também um pouco da trajetória do LUME que em 24 anos de
existência montou apenas a ‘Valsa n° 6’ de Nelson Rodrigues e pretendeu adaptar uma obra
literária, Cem anos de solidão, de Gabriel García Márquez, que se converteu em “Afastem-
se vacas que a vida é curta”; espetáculo de curtíssima carreira. Nunca, de fato, assisti uma
obra inteira de mímica dramática seguindo a proposição estética do mestre francês, mas, em
relação ao LUME, apesar do radicalismo, este nunca me pareceu intransigente ou
obsessivo. O depoimento a seguir contextualiza a situação:

Nós, do LUME, temos um grande sonho que é montar Shakespeare, por exemplo.
Nós não vamos contra o texto, não dá para falar assim: “Shakespeare foi um inimigo do
ator”. Nunca eu vou falar isso. Eu acho que um texto de Shakespeare é alguma coisa
absolutamente... não só moderna... mas para o ator, um puta de um exercício. Eu só não
sei ainda, ainda, como pegar tudo isso que a gente desenvolve aqui e relacionar com a
criação de um autor que é um Shakespeare. Como é que eu jogo a criação do ator em cima
da criação do Shakespeare? Como eu consigo, sem matar a criação do ator, impor um
texto para ele, e, ao mesmo tempo, como eu não mato a criação de Shakespeare impondo a
criação do ator? Até agora, no LUME, a gente está pesquisando esta criação do ator e por
isto a gente tirou o texto fora. Até a dramaturgia que a gente coloca nos espetáculos, é uma
dramaturgia baseada no ator. É ele que coloca o texto. Se tiver texto, é ele que vai criar,
gerar e vai manipular esse texto. (Entrevista com Renato Ferracini – 2002.)

Há espetáculos como ‘Café com Queijo’, que trabalham de modo muito natural e
orgânico com a palavra de registro outrem, e num espetáculo recente, como ‘KAVKA’,
dirigido por Naomi Silman e atuado por Ricardo Puccetti, há um intenso mergulho sobre a
palavra escrita de Franz Kafka, fundindo-a de modo efetivo com a criação do ator. Além
disso, vejo, também, que com o trabalho dos atores nascendo de um direto mergulho nas

284
suas próprias energias potenciais criativas, o LUME levou a polêmica da questão do
texto palavra e do texto do corpo para outro nível, bem mais sutil e importante, que está,
sim, além das palavras; mas está, também, além da própria forma corporal expressiva. Fica
evidente, quando o ator se propõe a dar este mergulho, que tanto a palavra quanto o corpo
podem ser obstáculos ou, de modo oposto, podem ser como pontes de entrada na dimensão
liminar inerente a toda obra artística.
Lendo a tese de doutorado de Burnier é notável a positiva influência que Etienne
Decroux deixa em seu trabalho. No fim dela, define Decroux como tendo sido o seu mestre:

Com ele aprendi duas coisas fundamentais: uma primeira foi que, para que exista
arte, é necessária a técnica; e uma segunda, que a técnica de nada serve se não trabalhar
com energias e vibrações mais profundas do indivíduo que atravessem as emoções. O
curioso é que Decroux pouco falou desse segundo elemento. (Burnier, 2002, p. 249)

E complementa que Decroux ‘não precisava dinamizar suas energias potenciais’


pois ‘já as tinha em pleno vigor e exercício. A técnica foi a maneira de ele canalizar,
disciplinar, adestrar este fogo volumoso que tinha em si.’’ (Burnier, 2002, p. 249)
Para ilustrar essa sua constatação, usa uma analogia que criou para caracterizar
aquilo que entendia como ‘técnica de ator’. O ator seria equiparável a um domador de leões
que carrega consigo um chicote e uma cadeira. ‘A cadeira serve para atiçar, acordar a fera;
o chicote, para controlá-la, domá-la.’ (Burnier, 2002, p. 82) Para que o espetáculo aconteça,
o leão precisa estar ativo, acordado; mas acordado de tal modo que ele nunca seja superior
à ordem imposta pelo chicote. Com essa imagem, Burnier procurava expandir o significado
da palavra ‘técnica’, geralmente associada a algo frio e controlado. É uma imagem muito
rica e foi também freqüentemente utilizada nos cursos que fiz com os atores do LUME para
explicar os princípios do trabalho que iríamos experimentar. Mais adiante, confrontando-a
com a ideia de ‘técnica 2’, tentarei desenvolver um pouco mais essa imagem. Sobre
Decroux, dizia que ele já era como que habitado por um ‘leão’ selvagem e ativo quando
trabalhava; o que dava à sua técnica um caráter mais controlador.
Além desta formação artística e humana com Etienne Decroux, Burnier teve, na
Europa e no Brasil, outras experiências artísticas, antes de vir a conceber e realizar o
projeto LUME. Vejamos agora, resumidamente, quais foram elas:

285
Como já disse, entre 1976 e 1980 Burnier fez o curso acadêmico na Sorbonne
Nouvelle, em Paris. E noto que os cursos acadêmicos das universidades européias são
eminentemente teóricos, desvinculados de uma prática e fazer artístico curricular; sendo
estes, em alguns casos, promovidos e apoiados pela Universidade, mas sempre de forma
paralela e eventual. Foi na Sorbonne, em 1979, que Burnier, por exemplo, conheceu o
trabalho da Ópera de Pequim e no mesmo ano, num centro de estudos das artes tradicionais
da Índia, também em Paris, fez um curso de ‘kathakali’. Mas nesses anos o tempo livre de
Burnier era investido, principalmente, na Escola de Mímica, onde também realizou
pesquisa e espetáculo sob orientação de Maximilian Decroux, filho de Etienne.
A volta definitiva de Burnier ao Brasil ocorre em 1983, após ter vivido no Equador,
onde montou o espetáculo solo ‘Macário’, a partir de um conto do escritor mexicano Juan
Rulfo e da observação do comportamento psicofísico de crianças carentes.
Sobre as suas experiências artísticas na Europa consta, ainda, que em 1983 fez um
estágio com Tereza Nawrot, atriz ‘parateatral’ do ‘Teatro Laboratório’ de Grotowski,
ingressante em 1972; e que, no ano seguinte, fez estágio com Torgeir Wethal e Roberta
Carreri, ambos, atores do Odin Teatret de Eugênio Barba.
Em 1984, sob direção de Celso Nunes, trabalha no espetáculo ‘Rei Lear’ como
preparador de atores. Neste período, recebe convites de algumas universidades brasileiras
para se tornar docente e acaba por optar pela UNICAMP, tornando-se professor do curso de
extensão. Sob a coordenação de Celso Nunes este curso de teatro, livre e aberto para a
comunidade universitária, foi a primeira semente daquilo que viria a se tornar, no ano
seguinte, o Departamento de Artes Cênicas do Instituto de Artes. Ao mesmo tempo, neste
mesmo ano de 1984, Burnier oferece cursos de trabalho corporal para atores em escolas
alternativas como a Escola Teatro Macunaíma, em São Paulo e a Casa das Artes de
Laranjeiras, no Rio de Janeiro.
Em 1985, volta à França para obter o mestrado na Sorbonne Nouvelle com uma
dissertação sobre a formação do ator, onde já relata algumas de suas experiências com os
estudantes dos cursos de extensão da UNICAMP.
Neste mesmo ano, 1985, também participa do seu primeiro ISTA (International
School of Theatre Anthropology) em Blois, na França; o que voltaria a acontecer em 1990,
em Bolonha, Itália. Após o mestrado, Burnier volta à Europa nos três anos seguintes para

286
fazer novos cursos de mímica nas escolas de Etienne Decroux e Jacques Lecoq, além de
uma experiência de dança moderna com Cynthia Briggs.
Eis, portanto, um pequeno traçado biográfico da formação do artista que fundou o
LUME em 1985.117

Uma nota biográfica suplementar.


Vamos fazer o seguinte experimento.
Se voltarmos à internet, podemos encontrar algum vídeo do treinamento de Ryszard
Cieslak, ator do ‘Teatro Laboratório’, ou mesmo alguns fragmentos de registros de o
‘Príncipe Constante’. Há uma excelente seqüência de vídeos: ‘Ryszard Cieslak on the
Plastiques 1, 2 e 3’ e ‘Ryszard Cieskak on Corporals 1, 2, 3’ que são as partes de um
especial de televisão feito em 1975: ‘The Body Speaks’; com trechos de entrevistas a
Margaret Croyden onde o próprio Cieslak fala sobre o treinamento corporal do ator nestes
dois tópicos: os exercícios plásticos e os exercícios corporais. Em um dado momento da
entrevista Cieslak diz a respeito dos exercícios para atores:
Important thing is, in exercises, to do them not mechanically, not automatically, to
do them with your […] if it is possible […] if it is possible! […] with your pleasure, to play
with them. To discover […] each day to discover another new thing, to discover yourself.
118

Não é muito diferente da proposição ética de ‘Não tem Flor Quadrada’.


Se juntasse esse material àqueles de Marceau e Decroux e tivesse que optar por um
que mais se parecesse com a via de canalização expressiva do ator do LUME com a qual
pude ter contato durante a pesquisa, é certo que escolheria a última opção. E ainda que Luís
Otávio Burnier tenha sido amigo de Eugenio Barba e participado de algumas sessões do
ISTA e estágios com o Odin Teatret; e ainda que Carlos Simioni esteja, anualmente,
estagiando com Iben Nagel Rasmussen, atriz do Odin, por quase duas décadas; ainda assim,
o trabalho do LUME contém uma trajetória técnica que me parece muito mais similar
àquelas percorridas pelo ‘Teatro Laboratório’ nos anos 60, do que àquelas desenvolvidas

117
Para este texto me serviram de fontes a Revista do LUME N05/2003, edição especial escrita por Carlota Cafieiro; o
site da Cia Luis Louis: www.cialuislouis.com.br/tf-decroux.htm, consultado em outubro de 2008; o site da enciclopédia
Itaú Cultural: www.itaucultural.org.br, consultado em outubro de 2009; e o site do LUME teatro: www.lumeteatro.com.br,
consultado em outubro de 2009.
118
No site ‘Youtube’ Ryszard Cieskak on Corporals 1 (2:17) Em: http://www.youtube.com/watch?v=1VCyGPm1VJM.
Consultado em outubro de 2009.

287
pelo ‘Odin Teatret’ nos anos seguintes. Por que se afirma, nas conversas informais
socialmente negociadas do meio teatral, que o LUME está mais próximo de uma linha de
trabalho ‘grotowskiana’ do que ‘barbiana’, quando, de fato, o mestre de Luís Otávio
Burnier foi Etienne Decroux?
A resposta a essa pergunta me foi esclarecida quando descobri a origem daquilo que
em sua tese e em sua dissertação de mestrado Burnier chamou de ‘treinamento energético’.
Nesses seus anos de Europa participou de um ‘workshop’ conduzido por alguma atriz do
‘Teatro Laboratório’ de Grotowski, que, no início da década de 80, já estava em vias de
dissolução. Foi ali que teve contato, pela primeira vez, com esse tipo de superação de ‘si
mesmo’ através do trabalho sobre a exaustão do corpo. A informação ‘informal’ que obtive
foi que esse ‘workshop’ foi ministrado pela atriz Rena Mirecka, mas nas biografias oficiais
acessadas jamais encontrei referência a esse curso ou contato. Poderia ter sido, talvez, que
esta experiência tenha ocorrido no estágio de Burnier com a atriz parateatral Tereza
Nawrot, em 1983, mencionada acima. Seja como for, nesse curso ou estágio houve um
trabalho de 18 horas ininterruptas de treinamento energético. E este foi um pequeno, mas
importantíssimo, fato biográfico que, visivelmente, influenciou toda a formação artística e
todo o trabalho de pesquisa de Burnier sobre o trabalho do ator. Aquilo que descobriu
nestas 18 horas de trabalho energético deve ter sido radicalmente liminar e transformador, a
ponto de fecundar, nele próprio, um primeiro vislumbre do que seria seu trabalho quando
voltasse ao Brasil.
Afirmo isso apenas pela seqüência dos fatos que pude averiguar.
Luís Otávio não se tornou um professor especialista em mímica corporal de
Decroux, algo que poderia muito bem ter acontecido quando começou a dar aulas nos
cursos de extensão da UNICAMP. Já na sua dissertação de mestrado, “A formação do
ator”, escreveu sobre experimentos que realizava com esses alunos durante o curso:

“Foi elaborado, à medida que o trabalho prosseguia, um treinamento que mais


tarde chamei de “energético”. Trata-se de um treinamento físico intenso, em que o ator,
após um aquecimento prévio, após estabelecer um contato com seu corpo, com o chão, o
piso, o ar e, também com os seus colegas, atinge um estado de esgotamento físico. Uma vez
ultrapassada esta fase, ele será capaz de recuperar um novo fluxo energético, uma
“organicidade” rítmica, própria de seu corpo e de sua pessoa, que dará lugar ao livre

288
119
curso entre seus impulsos interiores e a forma expressiva do corpo. (Burnier, 1985,
p.31)

Chamo a atenção para o uso da palavra ‘organicidade’ em perfeita ressonância com


aquela que estudamos dentro da trajetória artística de Grotowski. Não poderia ser diferente,
pois ainda que Burnier tivesse elaborado a seqüência do ‘treinamento’ e o nomeado como
‘energético’, a experiência geradora que teve ocorreu dentro do âmbito das pesquisas de
Grotowski que sempre - desde o ‘Príncipe Constante - as reteve em torno e a partir da
experiência com a ‘organicidade’. Certamente que as técnicas psicofísicas para se chegar a
tal estado e além dele, no caso de Grotowski, variaram muito no decorrer de sua pesquisa,
tendo sido o trabalho sobre a exaustão física apenas uma delas e de uma determinada fase.
Mas foi exatamente essa que Burnier vivenciou, assimilou e a transformou dentro
de sua própria experiência de pesquisador:
[...] Tal sessão de trabalho dura uma média de 3 horas. Mas o tempo não é
prefixado. Diria que respeitamos menos o tempo do dia e mais aquele do indivíduo. [...]
Por exemplo: Nós tínhamos vivenciado uma sessão de treino energético que durou 6 horas
contínuas. Assim que a interrompi, os atores me disseram que não se sentiam cansados e
desejariam até continuar o treino ou iniciar um outro trabalho. 120 (Burnier, 1985, p.36.)

Nessa sua dissertação de mestrado fala também do treinamento técnico e, inclusive,


já fala de como esses dois tipos de treinamentos poderiam se articular na experiência do
ator para desenvolvimento de uma técnica pessoal; mas no curso que ministrou na CAL-RJ,
em 1984, por exemplo, não só não se propôs a ensinar mímica, como não se interessou por
trabalhar nenhuma perspectiva técnica para os atores. Foi esse curso que uma professora de
Carlos Simioni, na época, estudante de graduação em Curitiba, aconselhou-o a fazer,
devido às suas dificuldades com a expressividade de seu corpo. Ali, conheceu Luís Otávio:

119
Il a été élaboré, au fur et à mesure, un nement que j'ai appellé plus tard, d’"énergétique". Il s'agit d'un entraînement physique
intense, où l'acteur après un échauffement individuel, après établir contact avec son corps, le sol, la pesanteur, l'air, ainsi qu’ avec
ses compagnons, atteint un état d'épuisement physique. Une fois dépassé cette phase, il serait capable de retrouver un nouveau flux
énergetique, une organicité ry-thmique propre à son corps et à sa personne, donnant place au libre cours entre ses impulsions
intérieures et de son corps. Il s'agit donc, de laisser ses impulsions "prendre corps".
120
Une telle séance de travail dure une moyenne de trois heures. Mais le temps n'est pas fixé à l'avance. Je dirais que l'on
respect moins le temps du soleil et plus celui de l'indi- vidu. Par exemple: [...] Nous avons vécu une séance d'en traînement
énergétique qui a duré six heures continues. Lorsque je l'ai interrompue, les acteurs m'ont dit qu'ils ne se sentaient pas fatigués et
sonhaitaient même repren dre l'entraînement ou commencer un autre travail.

289
O nome do trabalho era: ‘A linguagem do corpo’, aonde o Luís Otávio vinha com
esse curso, na época somente o trabalho energético. Um mês, quatro horas por dia,
energético puro. Só! Nenhuma técnica, nada. Era só o processo do esgotamento físico e a
partir do esgotamento físico ele construía alguma coisa, mas sempre a partir de
improvisação, sempre do que esse estado de esgotamento gerava na pessoa dos atores, e o
que ele poderia ir construindo, não em matéria de cena, nem de personagem, mas sim em
matéria de presença viva do ator latejante, pulsante. (Entrevista com Carlos Simioni,
2000)
No final do curso vão à aldeia de Arcozelo e experimentam uma sessão de trabalho
contínuo de 24 horas seguidas (Burnier, 2002, p.86):

Ficamos lá uma semana, ou quatro dias, não me lembro. Trabalhos intensivos, daí.
Intensivos. Aí também me pegou muito por causa da loucura do Burnier [...] no sentido de
ele ver o teatro mais como uma espécie de ritual. Por exemplo: sempre ultrapassando
limites... A ponto de ele trabalhar com o bastão [...] em uma roda por duas horas. Ou
então de ele acordar todo mundo às duas horas da manhã com vela e... cada um com uma
vela, em fila, ia explorar a aldeia de Arcozelo lá embaixo, na antiga casa de escravos,
cheio de quartos, lá embaixo, no porão... Quartos, quartos, quartos [...] E daí acabava e
estava preparada uma sala, [...] e uma grande dança, uma grande dança e ele com
atabaque, um outro com atabaque e você [dançando e] se expressando. E o fogo das velas
que todos traziam no meio. E iam assim acontecendo maravilhas cênicas com o ator, só
com o ator, indo além, sempre além. (Segunda entrevista com Carlos Simioni – 2001).

Para quem passou quatro anos de estudos na Escola de Mímica de Etienne Decroux
e volta ao Brasil com uma carta de recomendação do mestre, tudo aquilo que, logicamente,
não deveríamos esperar são experiências liminares como essas de Arcozelo ou aquelas do
curso de extensão. E, no entanto, elas eram apenas o princípio de algo que iria se
aprofundar ainda mais quando Burnier conseguiu uma promessa da UNICAMP de que
receberia verba para um laboratório de pesquisas.
Concluo: o treinamento energético e o ‘trabalho do ator sobre si mesmo’ em sua
dimensão vertical de descoberta e revelação haviam se tornado, para Burnier, ponto de
partida para as suas mais íntimas inquietações artísticas.
No decorrer desse capítulo vamos, exclusivamente, estudar a nomenclatura utilizada
para significar essa dimensão vertical, os experimentos do LUME com o treinamento
energético e as conseqüências desse tipo de treinamento em seu trabalho artístico.
Seguimos, agora, com algumas pequenas notas biográficas do organismo social LUME.

290
6.2 - Pequenas notas da trajetória artística e social do LUME.
É nesse ano de 1984 que Luís Otávio Burnier começa a articular a possibilidade de
criação de um centro de pesquisa da ‘arte de ator’. Ao mesmo tempo em que constatava a
situação de penúria técnica do ator brasileiro, não queria importar nenhum tipo de técnica
estrangeira que valorizasse outras culturas em detrimento da nossa. Sua experiência na
Europa lhe havia feito intuir a possibilidade de que a partir da natureza orgânica e criativa
de cada ator, seria possível a edificação de uma técnica de representação teatral pessoal e
única.
Como nos conta em sua tese, começou um tipo de trabalho, nesta direção, com sete
atores brasileiros121, mas teve dificuldades em lidar com a ‘expectativa social’ deles, isto é,
um modo de operação comportamental socialmente aprendido que lhes dificultava a
entrada em territórios desconhecidos. Para empreender a sua pesquisa precisava encontrar
atores que estivessem dispostos a abandonar regras, valores e comportamentos da estrutura
social do ‘meio teatral’; e que se dispusessem a enfrentar um período de profunda e ampla
‘liminaridade’ para a criação de uma nova cultura profissional. Nas suas próprias palavras,
detectamos a segunda fase do processo ritual:

“A melhor maneira de se adquirir uma nova língua é afastar-se da anterior. [...]


Assim, o ator deve “abandonar” sua “língua natural” para aprender-desenvolvendo sua
língua de ator. Por “abandonar sua língua natural” entendo, no contexto específico deste
trabalho, a busca de um outro “pensar”, recuperar uma forma de pensamento mais
orgânica que ele possa ter tido quando criança. (Burnier, 2002, p. 88.)

E para concluir o pensamento, no fim do parágrafo cita um exemplo vindo de


Tatsumi Hijikata, contido numa de suas cartas à sua discípula Natsu Nakajima, com quem
havia trabalhado: “No butoh, o pensamento cotidiano desaparece e o pensamento mais
profundo vem à tona.” 122
O processo é similar àquele dos rituais africanos analisados por Turner, mas em
ambos os casos, tanto no do ‘butoh’ quanto na proposta de Burnier, tal processo ocorre
dentro de um contexto artístico. E podemos entender melhor a razão de ser das experiências
na aldeia de Arcozelo a ponto de Simioni ter utilizado da palavra ‘ritual’ para descrevê-la.

121
Burnier, 2002, p.89. (Dos sete ficou um.)
122
Revista do LUME N-02/1999, p. 15.

291
Possivelmente, Burnier estivesse fazendo experimentos para encontrar pessoas que fossem
adequadas para o objetivo que tinha em mente.
Chamo a atenção, também, para o uso que faz do termo ‘pensamento mais
orgânico’, aproximando-se muito do conceito de ‘essência’ utilizado, como vimos, por
Grotowski e Gurdjieff. Queria edificar uma técnica de representação que tivesse suas raízes
no nível da ‘essência’ do ator e não naquele da sua ‘personalidade’ habitual e cotidiana. E
Burnier estava certíssimo em suas convicções. No limite, nenhum real processo de
instrução pode se desenvolver se não for a partir do nível da essência. É assim nas
experiências humanas de trabalho sobre si, na formação de um ‘mordomo’ e é assim nas
experiências humanas de trabalho sobre si na formação de um ‘artista’.

Carlos Roberto Simioni


Após o curso na CAL e as experiências em Arcozelo, Simioni convida Burnier para
ir a Curitiba, onde estudava e morava com a família, dirigir a montagem de um espetáculo a
partir de um texto do ‘teatro do absurdo’ com o seu grupo de sete atores. Burnier vai e
realiza um trabalho intensivo de quinze dias. É justamente após esse trabalho que Simioni
se dirige a Burnier e se coloca nestes termos:

“Oh, Luís, eu quero dizer uma coisa pra você. Eu acho um absurdo! Eu nunca ouvi
falar isso em teatro, mas eu preciso dizer isso: eu quero ser o seu discípulo. Eu só ouvi falar
isso em coisa de religião, mas pra teatro nunca ouvi, mas é o que eu sinto.” (Entrevista com
Carlos Simioni – 2000.)

Burnier havia encontrado a pessoa que estava procurando para o seu centro de
pesquisas, mas nessa época ainda estava decidindo-se a respeito de seu futuro profissional e
universitário. Sabia que sem subvenção econômica não iria muito longe na direção que
previa ser artisticamente possível:

“Bom, para que um grupo de pessoas pudesse fazer isso de desenvolver esse
sistema e começar do zero, era preciso que esse grupo tivesse uma dedicação. Esse grupo
não iria poder se agregar ao teatro convencional, pois, palavras do Luís Otávio: ‘eu não
posso ter atores que trabalhem comigo de manhã, tentando se aprofundar num trabalho
cujo o resultado não sabemos, e à tarde ou à noite tendo que ensaiar outros espetáculos
convencionais, trabalhar em outros lugares, num comércio, banco, etc. Para que eu possa
fazer isso, eu preciso de subvenção. Algum lugar ideal para isso é a universidade, que
possibilita pesquisa’. (Entrevista com Carlos Roberto Simioni – 1 (2000))

292
Optou pela UNICAMP: uma estrutura universitária, na época, sem nenhuma
tradição acadêmica na área das artes cênicas e que, justamente, havia convidado Celso
Nunes e integrantes do seu grupo profissional paulista ‘O Pessoal do Victor’, para
implementar o departamento de artes cênicas. Celso Nunes também havia se formado
artisticamente na Europa, na Sorbonne em 1968, e havia feitos estágios e cursos com Jerzy
Grotowski. Sua dissertação de mestrado de 1982, apresentada na ECA-USP, teve como
título: “O Treinamento Psicofísico do Ator”. Dentro desse macro contexto, a UNICAMP
certamente parecia surgir como um espaço muito propício para a criação de um centro de
pesquisas.
Simioni começa a ir periodicamente a Campinas, nos finais de semana, para
participar dos cursos de extensão que Burnier dava à comunidade e, em seguida, aprofundar
o trabalho iniciado. Isto durou até o fim de 1984 quando Burnier conseguiu a tal promessa
da Universidade de que seria possível a implementação de um Laboratório de Pesquisas da
Arte do Ator.

O LUME – 1985
Há dois nascimentos para o LUME: um formalmente contemplado pela
Universidade, sucedido em 1986; e outro que ocorreu um ano e meio antes com a vinda
definitiva de Carlos Simioni para Campinas. Naturalmente, este segundo é que se
estabeleceu como o oficial porque, nesta vinda definitiva a Campinas, Simioni e Burnier
estavam firmando laços informais de mútuo compromisso e confiança. Para termos idéia do
contexto extraordinário, ou ‘liminar’, em que tais laços foram travados, poderíamos dizer
que não só Simioni havia largado todos os compromissos em sua cidade - o curso
universitário, o emprego, a família - como também aceitou a condição de permanecer na
pesquisa por um mínimo de 20 anos. A princípio, não receberia salário ao mesmo tempo
em que se dedicaria inteiramente ao trabalho:

Foi um grande mergulho. Por quê? É tudo muito circunstancial, mas eu estava aqui
para isso. Eu não tinha nem dinheiro para sair de Barão Geraldo. Literalmente era isso,
porque eu não tinha dinheiro nem para pegar ônibus para ir para Campinas, ir ao cinema,
por exemplo. Mas era uma opção minha. Das 5 da manhã até meio dia na sala de trabalho.
De tarde, eram leituras [...] ler, ler, ler [...] pensamento humano, por exemplo; mas nada

293
de teatro. O Luís me proibiu de ver qualquer coisa de teatro. Eu não tinha nenhuma
influência. Era esse mergulho ali... (Entrevista com Carlos Simioni – 2000)

Não havia coerção externa de nenhuma natureza. A opção pessoal e voluntária de


aceitar as condições de trabalho, por ambas as partes, parece ter sido fundamental. A
necessidade de abrigo e alimentação, únicos fatores realmente indispensáveis, ficaram por
conta de Burnier e sua esposa Denise Garcia - música e também fundadora do LUME - que
haviam cedido um quarto da própria casa.
A natureza prática do início desta pesquisa era de completa imersão num espaço
tempo liminar onde nenhum dos dois sabia aonde chegaria. A base era a mesma daquela
que descrevemos no curso da CAL: o treinamento energético. Corriam riscos? Certo que
corriam, porque estavam avançando limites psicofísicos que nenhum dos dois jamais havia
experimentado. Usando a analogia de Burnier: estavam provocando o ‘leão’. Em certo
momento da defesa da sua tese, em novembro de 2004, ele justamente comenta o fato de
que se não fosse o compromisso com a Arte, no sentido de trazer à tona material criativo
concreto e tangível para uma montagem teatral, todo o experimento poderia ter acabado
numa clínica terapêutica.’ (BURNIER –DVD 1 - Defesa de tese - 11/94.)
Correr riscos faz parte da essência do processo de instrução humana. No teatro e na
vida. Aquilo que sei e descobri por conta própria é que o homem não consegue instruir-se
sozinho. Ele precisa de ajuda e contato direto com outros que já trilharam pelo mesmo
caminho e mesmas dificuldades. Mas descobri, ainda, outra coisa: mesmo quando sozinho,
se o homem é sincero e honesto consigo próprio e com a sua experiência, ele nunca está
sozinho.
No caso do experimento artístico de Burnier e Simioni, sinto que além de existir
sinceridade e confiança recíproca, havia o fato de Burnier estar olhando o processo de fora,
ao mesmo tempo em que mantinha seus compromissos profissionais e pedagógicos com a
Universidade. Deste modo, a experiência liminar estava muito bem ancorada e amparada
pela estrutura social à qual, sabiam, deveriam retornar e se reintegrar. O processo de
instrução, neste caso, se completaria na concretização de uma nova forma de expressão
cênica. Possível, portanto, de ser socialmente compartilhada.
E por último. Além de Burnier ter acumulado experiência em suas viagens, também
fez vários importantes contatos com pessoas ligadas a esse tipo de pesquisa. Foi Eugênio

294
Barba, por exemplo, que sugeriu a Burnier que tivesse um encontro de trabalho com Jerzy
Grotowski, o que veio a se realizar em 1988, assinalando-o como um contato
‘insubstituível’. Mais adiante falaremos deste encontro.
Interessante comparar os relatos, de uma e outra parte, desses primeiros meses de
imersão na fase liminar do processo. Primeiro, o lado do ator:
Os primeiros três meses foram como se eu tivesse que me desvestir de tudo ou do
pouco que eu tinha aprendido enquanto ator, na escola de teatro. Ou isso, ou toda a minha
ansiedade enquanto ator [...] eu tinha que jogar para fora. Foram 3 meses de limpeza, de
limpeza pura, porque eu comecei a ficar puro. Eu nem me relacionava com as pessoas
mais. Eu ia para a sala, me desvestia de todas as minhas máscaras, e comecei a ficar num
estado puro, e foi só aí, 3 meses depois, que o Burnier começou a perceber que eu podia
então avançar no mergulho interno. (Entrevista com Carlos Simioni – 2000)

E agora o lado do diretor e condutor do processo:

“Aos poucos nos deparávamos com uma realidade cruel de nossa escolha:
pesquisar buscando o novo, ou vasculhando o muito antigo, significa ter diante de si uma
longa e profunda escuridão. A sensação de vazio vinha de termos de retirar algo para
podermos ter o espaço limpo para criar o novo, ou reencontrar o antigo. Retirávamos, mas
não colocávamos, ainda, nada no lugar. O momento era de limpeza. Uma espécie de
preparação do campo, concomitantemente com o contato com uma outra estrutura de
pensamento. (Burnier, 2002, p. 89)

Ainda podemos nos perguntar: mas o que se faz dentro de uma sala de treinamento,
oito a dez horas por dia? O que estavam buscando exatamente? Para que? O ator faz
exercícios físicos? Improvisa sobre um tema? Dança? Canta? O que estavam, de fato,
buscando? O que é esta outra ‘estrutura de pensamento’? Burnier salienta que Simioni, ele
próprio, fazia repetidas vezes essa pergunta: “O que eu faço?”
A parcial descrição do treinamento energético que foi dada dá uma primeira noção
daquilo que se fazia praticamente. Algumas outras indicações de Burnier, em sua tese,
podem nos aproximar das respostas a essas perguntas ou, ao menos, de uma idéia mais
aproximada daquilo que faziam.
E eu lhe dizia que não [improvisasse], que deixasse acontecer, que deixasse seu
corpo guiar as ações, que não pensasse, não premeditasse, simplesmente cedesse ao louco
e delirante universo das sensações físicas e musculares, permitindo que seu corpo desse
forma às energias. (Burnier, 2002, p. 91)

E em seguida nos oferece um exemplo de indicação que deve ter, recorrentemente,


dado durante o processo:

295
Não improvise! Faça! Deixe as emoções fluírem, não as provoque nem as freie, não
se ocupe delas. Simplesmente vivencie e sinta. Permita-se penetrar neste desconhecido.
(Burnier, 2002, p. 91)

Particularmente, vejo que a indicação mais preciosa e útil para entrevermos o que
seria esta ‘outra estrutura de pensamento’ e o caminho que seguiam está descrita na página
seguinte quando Burnier diz:
“O que nos importava era justamente a plenitude no fazer decorrente da conexão,
do contato entre o corpo e a pessoa.” (Burnier, 2002, p.92.)

‘Deixar acontecer’, ‘não pensar’, ‘não premeditar’, ‘permitir-se vivenciar e sentir


emoções e sensações que fluíam livremente pelas tensões e distensões musculares do
corpo’; tudo isso se refere a uma possível conexão entre o denso e o sutil no ser humano.
Um contato cada vez mais imediato entre o corpo e a pessoa, onde ‘impulsos mentais eram
imediatamente corporificados; os impulsos físicos imediatamente ecoavam na dimensão
humana e já não se sabia discernir o que vinha da onde’ (Burnier, 2002, p. 92).
Podemos entender que estavam buscando um corpo não dividido, um ser humano
que operasse num estado psicofísico imediato, presente e pleno: ‘alto intelecto’, ‘alta
emoção’ e ‘alto corpo’.
É muito simples e similar àquilo que vimos nas primeiras experiências de
Grotowski sobre a “organicidade” 123, mesmo que não estivessem trabalhando ainda sobre a
‘segunda margem do rio’, isto é, os detalhes, a precisão e a repetição de elementos
concretos. Isto aconteceria numa segunda fase do trabalho, quando passaram à
memorização e sistematização dos fluxos físicos e vocais que, recorrentemente, surgiam
nessa série de mergulhos na dimensão existencial do próprio ator.
Permito-me citar um relato muito interessante que exemplifica e “desmistifica” esta
questão da ‘organicidade’; afastando-a da atmosfera abstrata que as palavras teóricas
tendem a estimular. Trata-se de um episódio da juventude de um aluno secundarista:
“A gente montou o “Auto da Compadecida” e eu fazia o João Grilo que é um
palhaço. E teve um dia numa apresentação, lá... Para mim é muito claro que naquele dia,
naquele momento eu decidi que eu tinha que ser ator. E a partir de então eu mudei e fui em
busca disso. Era no segundo ano, mesmo. Eu não me lembro do texto exatamente, mas eu
me lembro que tem um diabo no texto e o diabo sempre que ele falava, sempre que o meu
amigo falava ele batia o tridente: Pah! E, então, estava o João Grilo com o diabo, se

123
A ‘prece carnal’ de uma experiência na adolescência.

296
relacionando. Eu me lembro que nessa apresentação, essa escola lotada, eu fui próximo do
diabo e ele estava segurando o tridente dele com a mão esquerda. Eu estava aqui [ mostra
com o próprio corpo na sala] e quando ele bateu, foram “flashes” de segundo. Quando eu
vi que ele ia fazer a ação que ele sempre fazia de bater; eu tive um “insight” de que eu
podia pôr o meu pé próximo e ele podia bater no meu pé. Então ele foi bater e aí eu
improvisei com isso de ele ter acertado o meu pé e continuei a cena usando isso. Então
naquele momento eu me senti tão em casa, e para mim isso ... Enquanto ator, hoje ... Isso
sou eu enquanto ator. Fazer esse tipo de coisa sou eu. Assim... de ter esse impulso e fazer.
Porque quando eu atuo fazendo qualquer coisa, fazendo o espetáculo de clown ou não, eu
trabalho muito assim ... e no LUME eu abri isso de que é ter o impulso e fazer, impulso e
fazer.” (5 – Entrevista com Ricardo Puccetti – 1 (2001))

A situação nos remete também a ‘Pirlimpsiquice’, conto de Guimarães Rosa em


Primeiras Estórias. O conto, sendo já exemplo de ‘organicidade’ literária na escrita, tem por
tema, justamente, o encontro com a ‘organicidade’ cênica numa peça de teatro também
feita por meninos de uma escola. No ápice deste encontro, descreve o narrador:

“Palavras de outro ar. Eu mesmo não sabia o que ia dizer, dizendo, e dito – tudo
tão bem – sem sair do tom. Sei, de, mais tarde, me dizerem: que tudo tinha e tomava o
forte, belo sentido, esse drama do agora, desconhecido, estúrdio, de todos o mais bonito,
que nunca houve, ninguém escreveu, não se podendo representar outra vez, e nunca mais.”
(Rosa, 1985, p. 45)

Mesmo não sendo possível repetir esse ‘drama do agora’, seria possível aprender e
repetir os passos que nos levam até ele?
O LUME, como laboratório de pesquisas, nasceu, de fato, desta profunda imersão
na simplicidade do espaço-tempo liminar que Burnier e Simioni ousaram dar. Um
mergulho no desqualificado e esquecido ‘agora’ para trazer novas possibilidades ao
conhecimento do mundo estruturado. E só porque aquilo que trouxeram era forte, legítimo
e original que o laboratório de pesquisas não sucumbiu diante das inúmeras dificuldades
que teria que passar nos anos seguintes, mesmo depois de se estabelecer como Núcleo
Interdisciplinar da UNICAMP.

Jean Pierre Kaletrianos


Jean Pierre Kaletrianos, músico e ator de origem greco-francesa, conheceu Luís
Otávio Burnier em 1984 quando realizava uma montagem de Aristófanes com alunos do
Teatro Escola Macunaíma. Era a mesma época em que, recém chegado da França, Burnier

297
propunha a já citada oficina de trabalho corporal fundamentada no treinamento energético.
Os dois se conhecem, simpatizam-se artisticamente e, no ano seguinte, quando Burnier
funda o Laboratório Unicamp de Movimento e Expressão, Kaletrianos é convidado para
tomar parte no grupo, junto com Denise e Simioni. “H2Olos” (1988) e “Nostos, Um Sonho
de Ó (1990)”, ambos dirigidos por Luís Otávio Burnier e atuados por Jean Pierre, foram
produções oficialmente feitas pelo LUME. Esta parceria prosseguiu até 1990-1991, quando
Kaletrianos funda seu próprio grupo de pesquisa do trabalho do ator em São Paulo. Foram,
portanto, pelo menos cinco anos de convivência, dois espetáculos teatrais, viagens
internacionais e inúmeras horas de treinamento e pesquisas. Um considerável intercâmbio
artístico de modo algum desprezível para as nossas investigações.124
Como vimos, uma das questões que chama a atenção a respeito da trajetória artística
de Burnier é que, tendo sido discípulo direto de Decroux, na França, o trabalho sobre a
mímica se manteve apenas como uma disciplina auxiliar dentro de sua pesquisa.
Fundamental e primordial foram suas experiências com o ‘treinamento energético’.
Kaletrianos, que era - desde antes da época do seu encontro com Burnier - um
estudioso e praticante dos ensinamentos de Gurdjieff, certamente deve ter se interessado
pela perspectiva do ‘treinamento energético’; possível e quase certo motivo da simpatia
artística nascida entre os dois. De onde Burnier tirou esta perspectiva de trabalho?
Foi Jean Pierre uma das fontes que me confirmou a informação de que Burnier teve
este tipo de vivência pela primeira vez na Europa, num ‘workshop’ que fez com Rena
Mirecka, atriz do extinto Teatro Laboratório de Wroclaw de Jerzy Grotowski. Voltaremos a
outros importantes depoimentos de Kaletrianos mais adiante.

O LUME – 1986 – “Communitas Normativa”.


Passado pouco mais de um ano daquela primeira promessa da Universidade de que
receberia verba e condições para a instituição do laboratório, nada ainda havia oficialmente
ocorrido. Mas foi então que houve um primeiro e importante contato com a dimensão da
estrutura social.
Eis que um dia, Burnier e Simioni trabalhavam numa sala emprestada do
departamento de dança, vizinho ao de artes cênicas; e o recém assumido reitor da

124
Atualmente Kaletrianos é colaborador da Cia de teatro Balagan. Ver: www.ciateatrobalagan.com.br

298
UNICAMP125 fazia visitas às obras de reforma dos departamentos. Num determinado
momento Burnier se aproxima do reitor e diz:
“Eu preciso que você veja o que a gente está fazendo. Eu preciso fazer você
entender o porquê abrir o Laboratório Unicamp de Movimento e Expressão.” Ele convidou
o reitor e o reitor entrou na sala, para o meu espanto. Ele falou: “Simioni, mostra isso,
mostra aquilo, etc.” Só que, sabendo que o Luís Otávio era uma pessoa altamente séria,
que aprofundava e tinha um [grande] conhecimento da arte corpórea do ator; e eu, uma
pessoa completamente entregue a uma arte completamente desconhecida, mergulhado,
dilacerado, dilatado; então [...] tudo isso fez com que eu ficasse, [...] enquanto ator,
dilatadíssimo ao extremo. Era um farol, vamos assim dizer, bruto. Sabe, um farol bruto,
assim. A gente já estava tentando aplicar essas coisas em algumas cenas. Na época era o
“Meu tio o iauaretê”, do Guimarães Rosa. Ele me fez mostrar tudo isso, e daí... Eu
acredito que foi uma coisa estrondosa, porque o reitor falou o seguinte: “Bom, eu vim, as
pessoas vão me chamar de louco, mas eu vou abrir esse laboratório. O que é que vocês
precisam?” (Entrevista com Carlos Simioni – 2000)

Na prática, obtiveram a institucionalização do LUME, que ficou vinculado como


laboratório ao Instituto de Artes; e conseguiram também, duas vagas, com salário.
Continuaram sem espaço; algo que improvisadamente resolveram através do empréstimo de
um salão de festas da Igreja da Vila Santa Isabel, em Barão Geraldo. Este foi o advento que
promoveu o nascimento oficial do LUME na UNICAMP. Como podemos notar, foi como a
institucionalização oficial de um laboratório que já estava, por conta própria, em pleno
funcionamento.
Nasceram também, desde então, uma série de fluxos e refluxos reativos, contrários e
favoráveis, dentro da estrutura política e social da Universidade que, na época, ainda vivia
amplo processo de institucionalização promovido pelo reitor José Aristodemo Pinotti,
1982-1986. Tal processo tentava criar mecanismos mais racionais e democráticos para as
deliberações universitárias, tentando diminuir deliberações de caráter mais ‘informal’ e
‘despótico’, como esta que deu nascimento ao LUME.126 Interessante notar a intrínseca
contradição que existe entre crescimento, espontaneidade e estrutura tantos nos organismos
humanos como naqueles sociais. E como sem certa maleabilidade e inteligência para lidar
com essa contradição, a legítima e necessária dimensão da estrutura social - com suas
regras, valores e leis - lenta e gradualmente pode ir sufocando iniciativas criativas e
espontâneas dentro desses organismos.

125
É um dia de maio de 1986, portanto o reitor em questão é Paulo Renato de Sousa que acabara de assumir o cargo.
126
Fizemos menção a este processo na p. 101, quando estudamos o conceito de ‘Drama Social’ de Victor Turner.

299
O fato é que com um laboratório institucionalizado, Burnier e sua equipe
começaram também a promover eventos de natureza artística e científica, abertos à
comunidade universitária. Organizaram e produziram, em 1987, a primeira vinda ao Brasil
de Eugenio Barba e seu grupo, o ‘Odin Theater’, que apresentou espetáculos, seminários e
demonstrações técnicas pela UNICAMP, em São Paulo e no Rio de Janeiro. Deste primeiro
evento, uma série de outros grupos de teatro de pesquisa estrangeiros viria ao Brasil através
do LUME; o que culminaria, em 1990, com a parceria na organização do primeiro Festival
Internacional de Teatro de Campinas, o FIT. Ressalta-se aqui que muitos dos eventos
promovidos com grupos estrangeiros eram também compartilhados com a comunidade do
departamento de artes cênicas da Unicamp, o que trazia novos horizontes e perspectivas
para os alunos de graduação. Foi a equipe do LUME, também, que traduziu as edições
brasileiras dos livros de Eugênio Barba: “A Arte Secreta do Ator” (1995) e “Além das Ilhas
Flutuantes” (1990). Paralelamente a esse trabalho na dimensão da estrutura, continuaram
por mais um ano e meio as pesquisas liminares na dimensão artística até que em 1988
surgiria a primeira versão do espetáculo “Kelbilim, ou o cão da divindade.” Com o
espetáculo pronto, o LUME começou também outro processo de abertura a dimensão social
através do oferecimento de cursos e oficinas práticas em festivais e encontros de teatro pelo
Brasil e América Latina. Foi neste período que o ator Ricardo Puccetti, aluno regular do
departamento de artes cênicas, abandona o curso e entra no LUME comprometendo-se com
aquelas mesmas condições de vinte anos de trabalho. O interesse de Ricardo pelo trabalho
do palhaço e do ‘clown’ fez com que Burnier abrisse uma nova trilha de pesquisas cênicas,
dessa vez em torno da utilização cômica do corpo. Logo o LUME também começaria a
oferecer cursos de ‘clown’; os assim chamados ‘retiros’ que atraiam pessoas de todo o
Brasil para se isolarem por uma ou duas semanas em uma fazenda na cidade de Louveira.
Foi de onde começamos com o texto.
Mesmo institucionalizado como Laboratório, os processos para operacionalizá-lo
plenamente sempre foram vagarosos e difíceis. Isto porque vinculado ao Instituto de Artes,
o Laboratório não tinha autonomia para decidir sobre a utilização de verbas e patrimônio,
dependendo dos trâmites burocráticos internos da instituição. É interessante constatar como
a autonomia do laboratório vinha de uma outra dimensão, justamente, aquela do

300
comprometimento pessoal de cada um dos seus envolvidos que, agora, tanto se dedicavam
aos compromissos de ordem artística como àqueles de ordem estrutural e organizacional:

Então, essa insegurança com relação à Unicamp, fez com que a gente
desenvolvesse uma coisa que hoje é nossa prática; de que a gente não depende de ninguém,
não espera ninguém. O importante é: você tem uma idéia, você tem um projeto, você
realiza esse projeto. As condições você cria. Não tinha o espaço: criou-se o espaço. Tem
um ator que não tem como ganhar, então tira daqui, põe ali. Toda essa coisa foi muito boa,
eu acho, porque a gente se criou e cresceu independente da Unicamp. Porque se a gente
fosse esperar, você conhece como é a academia, que tudo fosse ocorrer dentro dos
trâmites? Não iria acontecer, a gente não ia conseguir realizar, porque o tempo é outro.
Nós nunca poderíamos funcionar no esquema ‘funcionário público’ da Unicamp. (5 –
Entrevista com Ricardo Puccetti – 1 (2001))

É paradoxalmente necessário que a experiência liminar geradora ou a “communitas


espontânea” (TURNER, 1974) se organize, ela mesma, numa pequena estrutura social. Ao
mesmo tempo em que seus participantes se relacionam com a estrutura social externa,
cumprindo regras e funções normativas, eles próprios criam, internamente, relações e
funções que protegem e promovem a experiência liminar que lhes deu origem. O
“communitas normativo” seria uma forma de sobrevivência ética dos participantes desta
nova e pequena estrutura social, os quais, num constante estado de esforço e superação,
tentam não trair suas próprias e comuns motivações originais. Este tipo de empenho
sobressalente não sendo empreendido por algum tipo de expectativa financeira ou
recompensa material é possível, somente, na medida em que existe, nas ‘communitas’, um
certo tipo de ‘entusiasmo’ por uma causa, uma espécie de ‘doação’ a um projeto de vida
que vai além dos básicos interesses de subsistência material do indivíduo. O LUME, neste
sentido, parece ser, desde o seu início institucional, um bom exemplo de uma “communitas
normativa”.

Influências da liminaridade na estrutura social.


Seguindo um pouco mais com essas influências da liminaridade na estrutura social,
seria interessante notar que Luís Otávio Burnier era contratado não só para fazer sua
pesquisa laboratorial, mas também para dar aulas no Departamento de Artes Cênicas.
Dentro da grade curricular do curso de 1988, por exemplo, ele era responsável pelas
disciplinas de Dança, Música e Ritmo I e II; e Expressão Corporal I e II. A distribuição da

301
carga horária desses cursos, espalhadas pela semana com aulas que duravam cada uma duas
horas, eram inconcebíveis para a sua perspectiva pedagógica de aprofundamento
expressivo:

Então o que ele fazia? Ele condensava: “Oh, na minha matéria, eu tenho que dar
40 horas, 50 horas por semestre; então vamos pegar aqui direto: 8 horas por dia, todos os
dias em uma semana.” Ele fazia uns trâmites lá, e aí me colocava junto com o Ric na
fogueira, o que era bárbaro para nós e para os alunos; porque nós não tínhamos o que a
gente tem hoje de sabedoria, de treinamento, de sistematização técnica. Nós éramos os
mergulhadores e aí colocar-nos em confronto com eles era maravilhoso porque crescíamos
muito. E eles, conosco, também era maravilhoso porque os atores viam: “Nossa, então
também ser ator pode ser isso, tem essa possibilidade”. 3 – Carlos Roberto Simioni –
1(2000)

E assim surgia uma nova perspectiva de trabalho do ator, no meio daquelas


concepções mais consagradas e tradicionais ancoradas, principalmente, no teatro do texto e
da interpretação de papéis.
O estudo das perspectivas de Stanislavski, Brecht e mais recentemente aqueles de
Meyerhold, Grotowski ou algumas inserções na linguagem da máscara, como a ‘Commedia
dell´Arte’ por exemplo, são alguns pilares comuns dos cursos de graduação voltados para a
formação de atores. O curso de Artes Cênicas da Unicamp foi, desde seu princípio, um
desses cursos que privilegiou tanto a formação prática quanto a teórica, muito
provavelmente por ter sido implementado por um grupo de atores profissionais. Mas, pela
minha própria experiência de aluno que fui, sempre quando abordados de modo
excessivamente formal, esses pilares pedagógicos começam a fossilizar as possibilidades
criativas da relação entre aluno e professor. Como se aprender um ou outro método fosse
um fim em si mesmo e não mais um meio de atingir e desenvolver a capacidade criativa do
próprio aluno. Neste sentido, geralmente, um curso acadêmico de formação de atores tende
a decair para o ordinário nível da informação, onde os alunos raramente conseguem
desvestir-se do papel de ‘alunos’ e travar contato com a semente de criatividade neles
próprios; o que, certamente, detonaria um processo de formação. Ocorre não sempre por
responsabilidade dos professores, posso dizer, mas muito também pela própria mentalidade
dos jovens que, hoje em dia, chegam à universidade pública com um sentido de
responsabilidade incipiente.

302
Relembrando o estudo que fizemos da trajetória artística de Naomi127, quando
introduzimos o depoimento da atriz Raquel Hirson128, interessante seria lermos alguns
depoimentos vindos da parte de alunos que tiveram contato, nessa época, com as tais
disciplinas de Expressão Corporal ministradas por Burnier no departamento. O ator
Douglas Araujo, ingressante no ano de 1991, nos conta, por exemplo, um pouco sobre uma
reação contrária a estas aulas, entre os alunos da sua turma:

Quando o Burnier dava aula de expressão corporal como matéria obrigatória,


muitas pessoas não gostavam daquilo. Se pudessem não fazer, elas prefeririam. Mas,
enfim, como era uma aula acadêmica, curricular e você não pode ter um número "x" de
faltas, era obrigado a estar lá e fazer. [...] Então isso era um revés: a pessoa estava lá
dentro da sala de aula se enganando, fazendo de conta que estava fazendo aquilo. Ela não
estava descobrindo nada, ela estava fazendo volume e estava ocupando o espaço das
pessoas que gostariam de fazer [o curso]. (Entrevista feita com Douglas Araújo para
monografia apresentada na graduação do DAC em 1998.)

Favoráveis ou desfavoráveis, o fato é que as reações surgiam e vinham à tona;


revelando a motivação e o comprometimento dos alunos com a carreira que haviam
escolhido. De algum modo o nível morno e inerte da perspectiva ‘informativa’ e
‘burocrática’ do ensino, onde professores fingem ensinar e alunos fingem aprender, era
perturbado. O depoimento a seguir, que também caracteriza essa perspectiva, é do ator
Jesser de Souza que, ao ingressar no curso, em 1990, já havia adquirido ampla experiência
teatral na cidade de São Paulo:

Eu sempre tive muita facilidade técnica, destreza física; então, com isso para mim
era muito fácil maquiar todas as minhas deficiências; eu tinha um rol de truques na manga
que facilitava: “Tinha que fazer alguma coisa, tinha que fazer a prova do semestre; ah
então vou fazer alguma coisa que eu fiz na “Carrêra do Divino”, ou aquilo que eu fiz no
outro espetáculo... Está bom e aí tirava 9”. [...] E aí com o Burnier eu fui, aos poucos,
desenvolvendo uma outra mentalidade que é: quais são as minhas deficiências, os lados
que eu não trabalho e que são maquiados com as minhas habilidades técnicas. (2- Renato,
Jesser, Ana Cristina e Raquel - 1999)

Seguimos com Renato Ferracini, também ingressante na turma anterior a Douglas,


que nos dá um melhor entendimento da estratégia didática de Burnier:

127
Página 219.
128
Página 223.

303
Eu conheci o Luís Otávio no segundo semestre do segundo ano da faculdade. Foi o
único mestre que eu tive que me falou: “você não precisa seguir nenhuma receita, você
precisa sim, ter uma técnica apurada, ter um domínio completo do seu corpo, da sua voz,
da manipulação das suas energias e da sua organicidade. Você vai ter que entrar em sala e
conseguir descobrir como você consegue fazer isso.” Quando ele me falou isso, me caiu a
ficha, entende. [...] Basicamente, por isso que eu estou aqui hoje. Só que isso é uma
conclusão que você tira, mas o Luís Otávio, ele não lhe dava a conclusão, ele não falava
exatamente a coisa. Ele não explicava nada. Ele chegava pra dar aula, quatro horas de
aula, e ele dava energético pra gente durante quatro horas e ia embora sem falar uma
palavra. O que é uma grande sacada dele, porque fazia com que todo mundo começasse a
pensar sobre o que era aquilo, entende? (2- Renato, Jesser, Ana Cristina e Raquel - 1999)

Havia críticas e acusações, no Departamento, na época, que se fundamentavam na


idéia de que um curso de artes cênicas deve, de fato, apontar diferentes caminhos estéticos
para o aluno que, em seguida, formado, opta pela sua trajetória. Essas vozes se levantaram,
principalmente, na época em que Burnier assumiu a direção do departamento e tentou dar
ao curso uma cara mais corporal e menos textual:

Se o Luís Otávio não fosse professor do Departamento, nem existiria uma relação.
Mas o Luís Otávio, ele queria impor uma maneira teatral, [um modo de] fazer corporal
que diferenciasse o departamento de outras escolas de teatro. Ele queria que fosse um
departamento que primasse pelo técnico, de treinamento mais do que teórico. O
Departamento se formava enquanto um todo, o que é correto. E olhando, hoje, é lógico:
tinha que existir LUME separadamente e Departamento separadamente. O LUME existe
para pesquisar algo profundo. (Entrevista com Carlos Roberto Simioni – 2(2001))

Eu mesmo me pergunto sobre o assunto: como seria uma disciplina acadêmica que
adentrasse a fundo nas investigações de Stanislavski? Não para ensinar uma ‘receita’ e
aplicar exercícios de manual; mas para investigar a natureza da dimensão criativa do ator
através do material que nos deixou. Nessa perspectiva, de modo algum Stanislavski
pareceria decadente e ultrapassado. Só por aquilo que estudamos podemos prever um curso
instigante, não menos provocativo e desafiante do que essas propostas de Burnier.
Como não colocar Stanislavski na grade curricular de um curso de formação de
ator? Mas como estudá-lo a fundo, com apenas dois encontros na semana? É compatível
com a perspectiva do ensino acadêmico tradicional?
Sigamos com a seqüência dos fatos. A grande maioria dos ingressantes da turma de
1990 teve uma opinião favorável em relação aos cursos condensados de Expressão
Corporal, pois a turma, em seu quarto e último ano, convida Luís Otávio para dirigir o

304
espetáculo de formatura. A contraproposta apresentada por Burnier à turma nos dá
novamente, uma boa imagem da sua perspectiva de educador e formador de atores.
Rompendo com as normas e hábitos convencionados entre papéis sociais universitários, sua
contraproposta foi eminentemente artística, desafiante e liminar:

[...] A gente só aceitava se os alunos topassem entrar no esquema do LUME. Até


nisso o Burnier foi firme. “Se quiser fazer, vai ter que ser no esquema do LUME. Não vão
ser só 4 horas por dia, não. Tem que ser 8, no mínimo, por dia. Sem sábado e com um
domingo de folga...” Então a gente teve uma reunião seriíssima com os 11 alunos e foi
assim: “Vocês querem trabalhar com o LUME, então não vai ser em março que vai
começar. Vai ser no dia 2 de janeiro que vai começar e com dedicação exclusiva. Ninguém
trabalha aqui? Se ninguém trabalha, então com dedicação exclusiva para a montagem.” O
que é que a gente pensou? Claro: era uma oportunidade também para o LUME testar
todas as suas experiências de pesquisa em uma montagem com outras pessoas, que não
tinham nada, nenhuma técnica do LUME. (Entrevista com Carlos Roberto Simioni – 1-
2000)

Sobre o processo de trabalho, a montagem do espetáculo e seus desdobramentos


dentro do LUME, há amplo material escrito pelos próprios atores que utilizaram a
experiência da formatura, anos depois, como tema de suas dissertações e teses de pós-
graduação. Mais adiante, ainda será feito um breve estudo sobre a importância da
experiência liminar na ‘Mimesis Corpórea’, o método utilizado neste espetáculo de
formatura, que viria se tornar uma forte linha de trabalho dentro do grupo.

O Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas Teatrais: um novo ato do ‘Drama’.


Seis dos onze atores formados viriam a ingressar no LUME, como estagiários, no
ano de 1994. No fim deste ano, com a tese de doutoramento de Burnier, o LUME consegue
uma maior autonomia e reconhecimento da Unicamp, galgando à posição de Núcleo de
Pesquisas Interdisciplinares. Conseguiram um espaço de trabalho definitivo, alguns
funcionários e maior acesso aos recursos materiais da Universidade. Concomitantemente
com essas conquistas, o LUME começava a perceber que era o momento de inverter o eixo
de suas pesquisas, e entrar plenamente na fase pós-liminar do processo artístico: aquele de
agregação e reagrupamento à dimensão da estrutura social através de espetáculos:

Tivemos uma reunião eu, Ricardo e o Luís, uns 15 dias antes de ele morrer. Ele nem
estava doente ainda. Era uma avaliação dos 10 anos do LUME e aquilo que a gente queria

305
agora. Tudo conseguido: o Núcleo [...] o espaço, tese pronta, ele doutor. Então falamos
assim: “O LUME até agora, em seus 10 anos, foi muito fechado. A gente se voltou muito
para o trabalho de pesquisa [...] muito para a sala de trabalho e muito para ensinar outras
pessoas. Só 2 espetáculos, em 10 anos. O que é que se está querendo? (Entrevista com
Carlos Roberto Simioni – 1 - 2000)

Segue Ricardo falando-nos do mesmo momento:

Não mudou porque ele morreu. A gente conversava os três, a gente já sabia que a
balança estava se invertendo. Os dez anos seguintes seriam: Que teatro a gente constrói
com isso? De 95 para cá a gente montou quase dez espetáculos diferentes. Muito mais do
que a gente fez em dez anos. (Entrevista com Ricardo Puccetti – 1 - 2001)

Podemos imaginar que o falecimento de Burnier, como não poderia deixar de ser,
tenha gerado uma imensa crise interna no grupo, imergindo-o, por força do destino, num
novo e mais acentuado estado de liminaridade. Como se a estrutura social fosse desafiada a
superar novos limites de exaustão numa espécie de ‘treinamento energético’ da vida
humana. Deve ter liberado uma enorme quantidade de energia criativa. Foi o marco de um
novo ato deste notável ‘drama social’; não menos pleno de desafios, superações e
conquistas; muito difíceis de serem empreendidos se ali, de fato, não estivesse consolidada
uma ‘communitas normativa’.
“Porque quando ele morreu, a gente pensou: “Acabou tudo, né. Acabou núcleo, não
existe mais o núcleo.” E pensávamos assim. Tanto é que depois a gente ficou sabendo que a
Unicamp apostava mesmo que o Núcleo não ia... achava que o LUME era o Luís Otávio
Burnier, que sem ele a coisa ia se desfazer... E a gente conseguiu dar a volta por cima.”
(Entrevista com Carlos Roberto Simioni – 1 - 2000)

Estas ‘pequenas notas da trajetória artística e social do LUME’ poderiam se alongar


a ponto de tornarem-se um estudo à parte. Tal é a quantidade de eventos e fatos
significativos que construíram essa história e puderam ser levantados através das
entrevistas feitas durante a pesquisa. Por outro lado, tudo aquilo que foi narrado até aqui já
seria suficiente para exemplificar o notável valor da perspectiva de estudo antropológico de
Victor Turner; visto que o principal objetivo é estudar a ‘liminaridade’ no trabalho artístico
dos atores-pesquisadores do LUME. Ponderando ambas as possibilidades, achei que pelo
menos alguns fatos e considerações deveriam ainda ser apresentados.
Ao se tornar Núcleo Interdisciplinar da Unicamp, o LUME passou a fazer parte de
um contexto muito mais amplo daquele que vimos até aqui, pois ele se envolveu

306
diretamente com a questão da interdisciplinaridade na universidade. De certo modo, na
UNICAMP da década de 80, ocorreram diversas iniciativas de pesquisas acadêmicas
comparáveis a esta empreendida por Burnier. Docentes e pesquisadores das mais diferentes
áreas de Exatas, Humanas, Biológicas e Artes deram-se conta de que o conhecimento
científico e acadêmico estava tendendo a um grau de especialização e
compartimentalização que, por produzir fronteiras enrijecidas, reduzia a capacidade de
diálogo com os problemas que a sociedade moderna estava apresentando. A questão
ecológica é o exemplo mais revelador de que diferentes áreas do conhecimento devem
trabalhar conjuntamente para solucionar problemas sérios e emergentes; mas existem
inúmeras outras situações como a questão da saúde humana, planejamento alimentar,
política social, tecnologia aplicada à medicina, ervas medicinais, exploração petrolífera e
outras que também mereceriam destaque. Se percebermos a Arte não só como atividade de
lazer e recreação para as horas vagas, mas como uma atividade humana de caráter
eminentemente transformador e instrutivo; logo nos damos conta de que também essa área
é uma potencial contribuinte para a solução dos problemas mais emergentes e concretos da
humanidade atual. Cito:

Por exemplo: uma vez eu fiz uma apresentação improvisada de clown na psiquiatria da
Unicamp, há muitos anos atrás. Os pacientes, dois deles, começaram a se relacionar comigo, e
eu comecei a trabalhar com eles. Foi muito legal, e um deles falava o tempo todo comigo.
Quando acabou, vieram dois médicos, psiquiatras, impressionados, e falaram assim: “Meu
Deus, o que foi que você fez, porque aquele rapaz... ele não fala, ele é catatônico, não
fala?!!!”. Então esse potencial, por exemplo, de um trabalho desse tipo na área de medicina -
não pode ser a gente, eu não sou médico - mas existe um potencial muito grande de interação.
Então, enquanto Núcleo Interdisciplinar, dentro do estatuto, isso é possível. A gente construiu
o estatuto de modo a preservar essa idéia de interdisciplinaridade.” (Entrevista com Ricardo
Puccetti – 1 ( 2001)

O fato é que do mesmo modo que Burnier procurava por um espaço independente e
livre da tradição acadêmica dos departamentos de ensino para realizar sua pesquisa, muitos
outros docentes faziam o mesmo a partir das suas áreas de origem. Essas iniciativas, que
receberam apoio direto e pessoal dos seguidos reitores que a universidade teve nos anos 80,
deram origem à maioria dos chamados ‘Centros e Núcleos Interdisciplinares da
UNICAMP’, uma iniciativa pioneira no Brasil e na América Latina. É impossível seguir a
trajetória do ‘Drama Social’ do LUME a partir de 1995, sem entendermos o contexto

307
político, econômico e acadêmico no qual ele se inseriu e pelo qual a UNICAMP transitou
nestas décadas de 80 e 90.
‘Universidade, interdisciplinaridade e memória – uma análise antropológica da
experiência acadêmica dos centros e núcleos da Unicamp’ livro escrito por Marcos Queiroz
e Ítala D’Ottaviano, publicado em 2009, é o estudo a que se deve recorrer para entender a
origem de toda uma série de forças reativas e contrárias à experiência interdisciplinar dos
Centros e Núcleos dentro da UNICAMP. Seguimos com ele:

“A grande maioria dos centros e núcleos surgiu na UNICAMP concomitantemente


ao processo de institucionalização da universidade, que pôs fim ao período inicial
autoritário de sua formação. Em tal processo, o reitor passou a perder poder em favor de
uma estrutura descentralizada, cuja base passou a ser o departamento, que funciona por
intermédio de um sistema colegiado. O CONSU, órgão decisório máximo da universidade,
passou a ser formado por representantes de cada uma das categorias da carreira docente,
de outras carreiras e também de alunos.
Em tal contexto de conquistas democráticas, em que havia em cada departamento
um forte senso de união contra qualquer indício de regresso ao autoritarismo, o
surgimento de um centro ou núcleo após o outro, implementado pela Reitoria, contrariou
profundamente a maioria dos docentes da universidade. Tais estruturas foram percebidas
como instâncias estranhas, perigosas e distantes da cultura que se forjou no meio
departamental hegemônico.” (Queiroz & D’ottaviano, 2009, p. 246)

Relembro aqui, que o LUME, enquanto laboratório do Instituto de Artes, também


foi criado por um decreto do reitor, contrariando esse movimento de descentralização de
poder. Essa prática havia sido instituída desde os primórdios da UNICAMP, em 1966, pelo
seu próprio fundador, o prof. Zeferino Vaz. Era considerada, pela época e pelo contexto
político vivido, como natural e necessária para assegurar a rapidez e a excelência do
processo de formação da universidade. Apesar de em 1982, o prof. Pinotti ter dado início,
como reitor, ao processo de institucionalização da UNICAMP, abdicando de seu próprio
poder político pessoal, essa prática de implementação de propostas paralelas, muitas vezes
inovadoras e pioneiras, permaneceu. Foi o caso tanto do Laboratório Unicamp de
Movimento e Expressão, em 1986, quanto aquele da maioria dos centros e núcleos
interdisciplinares de pesquisa. Os centros e núcleos eram também, periodicamente,
questionados como um poder paralelo e desnecessário, no que tange o desenvolvimento de
pesquisa científica que, de certa forma, já era prevista de ser elaborada pela própria
estrutura departamental.

308
Seguindo o nosso estudo com Queiroz e D’Ottaviano:
Até pouco tempo atrás, era freqüente mencionar um determinado núcleo pelo nome
do seu líder: “Núcleo do Fulano”, “Centro do Sicrano”, com um sentido pejorativo. [...] O
coordenador do núcleo passou a ser visto como uma espécie de cacique, que, por não ter
conseguido se impor em um determinado departamento, abandona-o e, obtém por seus
laços políticos com a Reitoria, um espaço institucional para poder exercer seu poder. [...]
Os núcleos defendem-se dessa acusação argumentando que administrar os seus convênios,
as suas pesquisas, em departamento, seria impossível, principalmente devido à ingerência
política nessa área. (o corporativismo, a ineficiência, o excesso de burocracia e a baixa
produtividade.) (Queiroz & D’ottaviano, 2009, p. 202)

O trecho acima dá uma dimensão do problema, mas existem muitos outros níveis e
perspectivas deste nó político e acadêmico que ocorreu dentro da universidade. Há a
questão da carreira de pesquisador TPCT, criada para diferenciar o profissional que
trabalhava nos centros e núcleos daquele que trabalhava nos departamentos; sendo, esta,
uma carreira que não necessariamente se vinculava às atividades de ensino, sempre
prioritárias no contexto geral universitário. Há a questão sobre a real necessidade de se criar
estruturas paralelas àquela departamental e o custo sobressalente que isto acarretava para a
universidade. Há a questão da periódica e rigorosa avaliação pelas quais os centros e
núcleos passaram - o que já levou à dissolução de quatorze deles, ao longo dos anos – e, por
outro lado, a falta de avaliação das atividades departamentais. Discute-se, ainda, o
problema do acomodamento do funcionalismo público, que se escora na estabilidade de
emprego e muitas outras questões que são abordadas neste estudo extremamente
abrangente. O livro de Queiroz e D’Ottaviano acaba nos dando um excelente quadro
histórico da UNICAMP. Ele também vai, passo a passo, tentando desatar todos esses nós
políticos e acadêmicos criados com a interdisciplinaridade. Faz isso, com muito bom senso
e equilíbrio, ouvindo tanto as partes favoráveis como aquelas desfavoráveis ao movimento
interdisciplinar.
No que tange ao LUME, sabemos que desde 1993 Burnier e alguns docentes, de
diferentes áreas da UNICAMP, estavam trabalhando na implementação do Núcleo. Havia
uma psicóloga corporal e pesquisadora da Faculdade de Educação Física, Barbara
Iwanowicz, que realizou intercâmbio e experiências práticas com os atores a respeito de
desbloqueio de tensões corporais. Régis de Moraes, professor da faculdade de Educação, se
interessou pelo trabalho de construção de textos a partir da pesquisa corporal dos atores.

309
Burnier e Simioni já empreendiam estudos sobre a corporeidade existente nos rituais do
Candomblé e, também, já havia o contato de trabalho com Eugênio Barba e a ‘Antropologia
Teatral’. Em certo momento, todos perceberam que o projeto de criação de um Núcleo
Interdisciplinar serviria muito bem para amparar essas diversas linhas de pesquisas.
Somado a isso tudo, a experiência com os alunos de graduação no Departamento, em 1993,
maturou uma linha de trabalho no LUME de evidente caráter interdisciplinar:
O Luís Otávio não foi desonesto quando ele pensou em aproveitar elementos da
antropologia verdadeira, da antropologia não teatral, mas da antropologia propriamente dita.
Ele foi honesto com respeito a isso. Então, houve tanto isso como houve a pesquisa; ele
encaminhou o grupo em 1993, que foi quando ele dirigiu os formandos de 93. Ele os
encaminhou para fazer pesquisa de campo no interior do Brasil e aí a hipótese era não mais
ritualística, mas a busca de lendas e mitos, causos, contos e músicas do interior do Brasil.
Portanto, era uma pesquisa histórica e antropológica que ocorreu, verdadeiramente, tanto
assim que houve peças que foram criadas a partir daí. Houve o “Taucoauaa panhé mondo
pé” que foi a primeira. Depois houve “Contadores de estórias” e depois o “Café com
Queijo”. Assim, na verdade, uma das linhas de trabalho da pesquisa do LUME, é uma
derivação de um elemento interdisciplinar que é verdadeiramente histórico, cultural e
antropológico. (Entrevista com Suzi Sperber – 2003)

No ano de 1995, quando o Núcleo Interdisciplinar foi aprovado e oficialmente


aberto, quase concomitantemente com o falecimento de Burnier, muitos projetos técnicos
que estavam em tramitação paralela começaram também a ser aprovados e, de uma hora
para outra, o LUME começou a crescer em termos infra-estruturais e administrativos.
Seguimos novamente com Simioni:

“E começou, depois da morte dele, a sair os projetos que a gente pediu. Estavam sendo
aprovados os projetos dentro da Unicamp: você pediu computador, você pediu fax, você pediu
funcionário... e começou a vir e isso foi muito diferente: “Nossa, que legal, isto é uma
estrutura de núcleo e a gente tem essa possibilidade!...” Só que começou a exigir mais e eu e o
Ricardo, sozinhos, não dávamos conta da demanda. [...]
Então, chegou um momento, 5 meses depois da morte do Luís, que era inviável a
gente ter esses atores, só meio expediente, e com um pouquinho de ajuda da administração.
Então foi um dia fundamental no LUME, quando a gente chegou e propôs: “Quanto cada um
ganha dando aula?” “Eu me sustento com 500 reais. Você também?” Fizemos uma base do
que seria o ideal para se sustentar e propusemos: “Vocês topam arriscar junto comigo e com o
Ric, arriscar abandonar o emprego de vocês e viver do nosso trabalho aqui? Não é melhor se
ao invés de você dar aula na escola tal, você dar aula aqui no LUME, ou em Fortaleza, quando
o LUME é chamado?”
Daí foi quando todos abandonaram seus empregos e vieram para cá com
exclusividade. Foi aí a grande sacada, porque daí éramos 8 atores com dedicação
exclusiva, ‘full time’, sem ser funcionário público. Se precisássemos trabalhar até a meia

310
noite, e se quiséssemos trabalhar sábado e domingo, trabalhávamos. Também eles
começaram a se inteirar e a se apaixonar pelo projeto do LUME. (Entrevista com Carlos
Roberto Simioni – 2000)

Poucos anos depois o LUME se firmaria como um grupo de teatro mundialmente


reconhecido e forte referência nacional na formação de artistas cênicos; fato evidenciado
pela quantidade de atores e atrizes que vêm a Barão Geraldo a cada ano, em fevereiro, mês
instituído como período dos cursos abertos.
Mais uma vez, aqui, verificamos o poder do entusiasmo que se vincula à
‘communitas’. Do mesmo modo como Simioni e Puccetti, esses atores se incorporaram ao
LUME, primeiramente, de modo informal, na base da confiança mútua conquistada e
firmada através do trabalho dos anos anteriores. Como com Simioni e Puccetti, as
conquistas estruturais e profissionais de vínculo com a universidade deveriam vir,
naturalmente, com o tempo. Só que, paralelamente a esse movimento informal, no entanto,
ocorria na UNICAMP todo esse processo de questionamento e resistência aos Centros e
Núcleos Interdisciplinares que evidenciamos acima.
Somado a ele, na segunda metade da década de 90, com o agravamento da situação
econômica nas universidades, novos ataques foram desferidos contra os centros e núcleos,
sob o pretexto de contenção de verbas. A cada novo reitor que assumia na Unicamp as
ameaças aos centros e núcleos, em geral, voltavam a circular pelos corredores do poder
universitário. Sendo de área com pouca tradição acadêmica, o LUME era freqüentemente
cogitado na lista dos mais irrelevantes.
Seguimos um pouco mais com a pesquisa de Queiroz e D’Ottaviavo:
“A resistência promovida pelos departamentos contra os centros e núcleos é a
principal razão que levou as últimas administrações da UNICAMP a praticamente
interromper a grande expansão inicial dessas instituições nos anos 1980. Este fator
contribuiu também para explicar o retardamento da implementação da carreira de
pesquisador. A postura das gestões das reitorias mais recentes tem sido no sentido de
consolidar a posição institucional dos centros e núcleos de um modo lento, mas seguro.”
(Queiroz & D’ottaviano, 2009, p. 248.)

De fato, a situação só começa a se normalizar em outubro de 1998, quando a


reitoria, demonstrando interesse e reconhecimento pela atividade interdisciplinar, funda a
COCEN, um órgão administrativo especialmente criado para lidar com a questão dos
centros e núcleos. No ano de 2000, por exemplo, é que essa pesquisa antropológica de

311
Queiroz tem início, com total apoio e colaboração da FAPESP, da COCEN, e da
UNICAMP.
O ponto acima explicitado explica, portanto, a razão de ser das dificuldades e
entraves burocráticos que o LUME e uma grande maioria dos centros e núcleos
interdisciplinares tiveram com a estrutura universitária no decorrer dos anos. A velocidade
de reação, adaptação e maleabilidade de um organismo social do porte da UNICAMP é
incomparavelmente mais lenta que aquela de um centro ou núcleo de atividade
interdisciplinar, um micro-organismo social que quando também permeado pelo fenômeno
da ‘communitas’ e da liminaridade, pode aumentar sua velocidade de dinâmica interna a
níveis exponenciais. O depoimento a seguir, coletado em 2001, evidencia essa grande
diferença de velocidade de reação:

Hoje, por exemplo, existem cinco atores que não têm remuneração. Há alguns anos
atrás eles nem tinham vínculo com a universidade. Então, do Núcleo de pesquisas teatrais da
Unicamp, que leva o nome da Unicamp para o Brasil e o mundo, que é reconhecido no Brasil e
no mundo pelas pessoas de teatro, que publica, que faz relatórios, que recebe verba da
FAPESP, 90 % dos pesquisadores desse Núcleo trabalham e não recebem um salário.
(Entrevista com Ricardo Puccetti – 1 - 2001)

O impulso institucional para a resolução do problema já estava lá desde 1998, mas é


como se a Universidade estivesse, lenta e gradualmente, tentando absorver uma estrutura
que escapava totalmente aos parâmetros normatizados a partir do modelo departamental
tradicional. E esse parece ser um processo ainda em evolução, visto o sucesso da grande
maioria dos centros e núcleos da UNICAMP, como evidenciado nas conclusões de Queiroz
e D’Ottaviavo:

“Os centros e núcleos, por se constituírem em estruturas leves, flexíveis e


adaptáveis à realidade, poderiam constituir-se em importante conexão da universidade
com o fenômeno da modernidade e globalização. A possibilidade de a universidade
catalisar um processo de desenvolvimento socioeconômico e cultural em âmbito regional
só pode ocorrer por meio de instituições muito mais parecidas com os centros e núcleos do
que com os departamentos.
No entanto, para que esse mecanismo realmente pudesse funcionar a contento,
seria necessário fortalecer o sistema de centros e núcleos, uma vez que, na UNICAMP, a
comparação desse sistema com o de departamentos é completamente desproporcional. Os
centros e núcleos representam uma parcela ínfima da estrutura universitária global; eles
teriam que se fortalecer muito para que pudessem exercer papel de contrapeso. ” (Queiroz
& D’ottaviano, 2009, p. 253.)

312
Um último ponto sublinhado pelos autores revela uma interessante analogia e
paralelismo com um problema chave do trabalho do ator. Conforme apontamos no capítulo
V, este problema reside no fato de que o ator deve acumular estruturas expressivas precisas
e codificadas para que depois, no momento vivo da criação e da representação, ele possa
conduzir livremente estas estruturas, reagrupando-as de modo poético e criativo. Disse lá,
na página 251 que “Vida, nas formas mais elaboradas de arte, é a dimensão criativa
que age diante dos olhos do público, aproximando-o coletivamente da percepção
de que a forma está pulsando e existindo naquele momento, sempre pela primeira
e única vez. Neste sentido é que me referi a este dinâmico embate entre as forças que
estruturam a matéria em uma forma e as forças que reestruturam a forma em função da
vida. Ambas necessárias, mas opostas e complementares entre si.” Queiroz e D’Ottaviano,
no contexto da questão da interdisciplinaridade na Unicamp, revelam e concluem algo que
vai nesta mesma direção:

“A importante lição extraída da pesquisa que produziu este livro está no fato de
que não se trata de abolir abruptamente a estrutura departamental e introduzir centros de
pesquisa interdisciplinar em seu lugar. [...] A universidade deve conter tanto
departamentos como centros e núcleos, porque todos organizam o conhecimento de modo
válido, mas inteiramente diferente. Os departamentos podem e devem desenvolver
conhecimento novo, mas o seu foco estará sempre dirigido e condicionado pelo passado,
que se institucionaliza nas disciplinas. [...] A proposta da pesquisa interdisciplinar pode e
deve preservar a experiência acumulada dos departamentos, ao mesmo tempo em que
propõe a geração de conexões vivas entre eles.” (Queiroz & D’ottaviano, 2009, p. 252-
254.)

Coordenação Administrativa e Acadêmica.

Uma das questões mais difíceis enfrentadas pelo LUME, a partir de 1995, foi a
questão da coordenação do Núcleo. Ainda que os dois atores mais experientes tenham se
responsabilizado, inicialmente, pela direção artística do grupo, eles não tinham como
preencher as obrigações acadêmicas e administrativas que Burnier exerceria como doutor e
docente da UNICAMP. Para que o Núcleo prosseguisse era inevitável que alguém ocupasse
esse cargo. Durante o ano de 1995 e os primeiros meses de 1996 esse papel ficou a cargo de
Barbara Iwanowicz, a docente da Faculdade de Educação Física que, como mencionado,

313
havia desenvolvido algumas experiências com os atores e que também já estava muito bem
inteirada do projeto artístico do grupo por ter sido membro titular da banca de doutorado de
Burnier nos fins de 1994.
Nos fins de 1995, Suzi Sperber, docente do Instituto de Estudos Lingüísticos, entrou
em contato com o LUME de modo quase casual. Após assistir a uma apresentação do
espetáculo ‘Contadores de estórias’, na sede do LUME, foi convidada para o conselho pela
própria Barbara que pretendia deixar a função e acreditava que mais gente da universidade
deveria participar e se empenhar pela causa do LUME. Após as primeiras reuniões das
quais participou, foi convidada por Barbara e confirmada em eleição do conselho científico,
para se tornar coordenadora do Núcleo, posição que assumiria e desenvolveria ao longo de
muitos anos, a partir de diversas perspectivas e papéis. Algumas destas perspectivas e
papéis nos interessarão, aqui, por serem responsáveis pela definitiva inclusão do LUME no
âmbito acadêmico e administrativo da UNICAMP, estabelecendo uma consistente e
condizente dimensão normativa para a qualidade da ‘communitas’ que havia sido parida
nos anos anteriores:

“A coordenadora teve que mudar; a Barbara não quis mais ser coordenadora, e aí
encontramos a Suzi que topou ser uma coordenadora. Não é uma artista de teatro. Suzi foi
espertíssima, de uma inteligência, de uma sabedoria, porque ela chegou e ficou um ano e meio
sem dar palpite, sem nada. Ele só chegou e falou assim: “Confiem que eu confio em vocês. Eu
estou aqui para orientar vocês academicamente nesses trâmites da universidade, nessa ponte
entre a universidade e o LUME.” E ela foi sublime, porque ela não interferiu de maneira
nenhuma no andamento do LUME, tanto artístico como administrativo, ela não interferiu
nada. Ela só olhava.” (Entrevista com Carlos Roberto Simioni 1 – 2000)

Com a nossa pequena introdução sobre a crise que se instalou na década de 90 na


UNICAMP, podemos visualizar que o primeiro e mais imperativo papel assumido por
Sperber foi aquele de defender o LUME da pressão causada pelas forças acadêmicas que
incompreendiam o movimento interdisciplinar:

“Então houve esse tipo de jogos, ao longo do período, sempre sob uma ameaça teórica.
Mas eu tinha comentado, com o pessoal do LUME, que na medida que eu não tinha “know-
how” político, a minha forma de agir era ser cristalina e clara nas ações, tanto naquilo que eu
diria, como nos documentos. Eu faria aquilo que correspondia ao que estava acontecendo e
não a outra coisa. Como, além disso, a melhor arma e a maior arma de convencimento das
autoridades administrativas era a qualidade e a quantidade de trabalho, [dizia] que não
haveria jogo político que pudesse chegar a derrubar um bom trabalho. Então era em cima
disto que eu estava apostando. (Entrevista com Suzi Sperber – 2003)

314
Suzi se referiu, naturalmente, a uma época anterior à fundação da COCEN, quando
existia maior interferência dos jogos políticos, apesar de a Comissão de Avaliação
Interdisciplinar – CAI já existir e aplicar periódicos relatórios de avaliação das atividades
dos centros. Após a fundação da COCEN esses jogos políticos perderam força e as
avaliações de qualidade passaram a ser, de fato, os efetivos medidores da viabilidade de
continuação de um ou outro núcleo129. Neste sentido, outro importante papel de Sperber,
desde o início, foi orientar e melhorar a qualidade dos relatórios apresentados à UNICAMP.
Na primeira avaliação realizada pela COCEN no triênio 1997-1999, por exemplo, numa
escala de um a cinco o LUME foi aprovado no Grupo II, “o que significa um órgão muito
bom, com pequenos desequilíbrios em sua produção.” 130
Segundo a pesquisa de Queiroz e D’Ottaviano, na medida em que os centros e núcleos
recebem uma parte ínfima da dotação orçamentária da universidade, eles são obrigados a obter,
por intermédio de projetos, os recursos de que necessitam. Assim, uma outra forma natural de
avaliação dos núcleos acontece através da quantidade de projetos aprovados e financiados pelas
agências de fomento à pesquisa e também pelo número de parcerias que se realizam com
órgãos e instituições governamentais a nível municipal, estadual e federal. Essas são as duas
principais fontes de recursos que permitem o dinamismo da atividade interdisciplinar.
Não é diferente com o caso do LUME que, freqüentemente, veicula seus espetáculos e
cursos através de projetos culturais governamentais ou através de instituições como o SESC e
outras fundações culturais pelo Brasil. Em relação às agências de fomento, cito Ferracini:

“Toda a grande infra-estrutura que o LUME tem hoje, é via FAPESP. A UNICAMP dá
a infra estrutura básica nossa de força, água, aluguel, material de limpeza... Em função dos
projetos que a gente desenvolve aqui, que são aceitos na FAPESP, eles dão grana e infra-
estrutura para gente. Todo trabalho de biblioteca, essas coisas, é tudo via FAPESP. O que é
muito bom academicamente para gente porque a FAPESP é também um órgão muito exigente
a nível acadêmico e significa que se nós estamos sendo balizados e tendo aval da FAPESP,
significa que a pesquisa acadêmica que está sendo feita aqui, está sendo muito bem
reconhecida, no meio acadêmico também.” Entrevista com Renato Ferracini - (2002)

129
Apesar desta nova fase decorrente da criação da COCEN, houve um momento de impasse sério, em novembro de
2000, quando a universidade se deu conta, oficialmente, da situação trabalhista irregular do Núcleo, e procurou um
responsável [a coordenadora] que não fosse a própria universidade. Como já demonstrado, a contradição entre o ímpeto
dos atores em manter a pesquisa num mesmo patamar de qualidade e a lentidão do organismo social universitário foram
os responsáveis por essa situação.
130
Queiroz & D’ottaviano, 2009, p. 191.

315
Como se pode supor deve ter sido importante, também, contar com uma
coordenadora que assinava as solicitações de projetos, que tivesse muitos títulos,
experiência e fosse bem aceita pelas agências de fomento.131
Mas, voltando ao parecer do COCEN do triênio 1997-1999, acima mencionado,
citei-o, pois, após um paciente entrosamento com a dinâmica de funcionamento do LUME,
uma das primeiras e fundamentais colaborações de Sperber, foi na direção de ampliar os
horizontes daquilo que se deveria considerar como ‘produção’; o que já ressoava
perfeitamente com os ‘pequenos desequilíbrios’ que viriam a ser apontados pela avaliação
do triênio. Como atores de formação eminentemente prática, segundo as diretrizes de
Burnier, os membros do LUME entendiam que a produção artística e prática que
efetivamente cumpriam através de pesquisas de campo, montagens, cursos e apresentações
de espetáculos; já se constituía como a sua real e verdadeira produção.
“A Suzi, ela vem da literatura, e a partir da entrada dela, ela nos abriu a cabeça para
começar a ver as outras áreas. Foi ela quem nos incentivou e nos mostrou que tudo que a gente
fazia na prática, tinha um valor muito grande, também, teoricamente. A gente sempre viu que a
nossa publicação eram os espetáculos, os cursos e as demonstrações técnicas. Só que para
uma grande parte de pessoas da academia, não vale como publicação; tem que escrever. Por
muito tempo a gente resistia. Ninguém queria escrever. Então, a Suzi nos abriu para esse
gosto. Logo já veio a idéia, que também foi dela, de se publicar uma revista. E isso nos deu
outra penetração dentro da academia. Agora qualquer um, alguém da antropologia, por
exemplo, pode pegar a revista do LUME e ler artigos. Isso amplia a coisa.” Entrevista com
Ricardo Puccetti – 1 - 2001.

Foi assim que em 1998 foi publicado o primeiro número da revista do LUME, com um
artigo de cada ator-pesquisador somado a artigos de vários diferentes pesquisadores, de
diferentes áreas, que de alguma forma tiveram contato com Luís Otávio Burnier e ou o trabalho
do LUME. Entre estes: Eugenio Barba, Jean Marie-Pradier, Jean Pierre Kaletrianos, Norval
Baidelo Jr., Ubiratan D'Ambrósio e Luís B. L. Orlandi. Foi o início de um espaço de
produção intelectual voltado ao trabalho do ator que permanece até os dias de hoje, e que,
de certa forma, serviu como uma espécie de iniciação acadêmica a boa parte dos atores-
pesquisadores do grupo, já sinalizando o futuro caminho que empreenderiam na pós-
graduação.

131
Desde o doutorado de Renato Ferracini a situação mudou, mas não totalmente, visto ele não ter sido, definitivamente,
contratado até o dia de hoje.

316
No ano de 2000, Sperber se credencia no programa de pós-graduação do Instituto
de Artes para orientar o projeto de mestrado das atrizes Ana C. Colla e Raquel S. Hirson, e,
assim fazendo, dá início a uma longa lista de orientação de projetos de iniciação científica,
mestrado e doutorado em Artes Cênicas que vinham de alunos que optavam por ter o
trabalho do LUME como referência principal. Neste sentido, tanto Puccetti como Simioni,
os atores da primeira geração que não eram graduados em artes cênicas, passaram a poder
co-orientar, junto com Sperber, projetos de iniciação científica e pós-graduação que eram
eminentemente práticos. Esse foi um viés de pesquisa que a pós-graduação do Instituto de
Artes da UNICAMP, justamente nestes anos, começou a fomentar, criando, por exemplo,
linhas de investigação mais específicas e adaptadas às questões e realidades práticas da
pesquisa cênica.
A colaboração do LUME com o departamento de graduação em Artes Cênicas foi muito
estreita e intensa desde 1998, posso afirmar com segurança, pois esse foi meu primeiro ano
como aluno do curso. Fiz pelo menos três cursos do LUME neste período, tendo, um deles, sido
oferecido para suprir a repentina saída de um dos professores do quadro de docentes. Em 2002,
por conta desse credenciamento de Sperber no Instituto de Artes, é que o LUME oferece, pela
primeira vez, um curso na pós-graduação que era de caráter eminentemente criativo, chegando-
se a ele tanto através da prática corporal do ator, quanto através das argumentações de natureza
intelectual:
“O Renato considerou que já que eu tinha conseguido ser útil para o encaminhamento
e o debate de questões acadêmicas junto a eles, que eu poderia fazer isso em nível maior e que,
portanto, poderia dar curso lá dentro [da pós-graduação em Artes]. Aí ele se apresentou como
PED, eu acho, que é programa de estágio docente, e ele ofereceu uma semana de workshop
prático e eu achei que aquilo que eu pretendia fazer precisava do mesmo tempo regulamentar
de aulas. (Entrevista com Suzi Sperber – 2003)

Mais tarde, com o doutoramento de Renato Ferracini, tanto o número de orientações


na pós-graduação como o número de cursos oferecidos aumentou substancialmente,
trazendo um ainda maior contato entre as atividades de pesquisa do Núcleo e as atividades
de graduação e pós-graduação da UNICAMP.
No decorrer desses primeiros anos como coordenadora do Núcleo, houve várias
outras colaborações e ações efetivas, por parte de Sperber, que foram fundamentais para a
sobrevivência do LUME, tanto a nível estrutural, como acadêmico. Poderíamos comentar
ainda, por exemplo, a respeito dos seus constantes esforços para que a equipe de

317
funcionários, estagiários e pesquisadores formalmente alocados através da instituição do
núcleo, viesse a operar com um nível de qualidade e doação que fosse compatível com a
qualidade artística e humana que a pesquisa dos atores revelava; mas para aquilo que
pretendemos nosso relato já foi suficiente.
Através desse pequeno panorama histórico, já é possível entrever que o processo
liminar que gerou o LUME, em 1986, através dos esforços de Burnier e Simioni e do
amparo dado pela UNICAMP e, mais tarde, pela FAPESP, só pôde, efetivamente, se
completar através do papel de coordenação acadêmica assumido por Suzi Sperber. A
terceira fase do processo ritual, que se caracteriza por uma plena precipitação dos
benefícios e descobertas do período liminar nas mais diferentes dimensões da estrutura
social; pôde ocorrer, de modo pleno, a partir da sua entrada no núcleo. Certamente que não
só a partir da sua entrada na dimensão estrutural do núcleo, mas, fundamentalmente, a
partir da sua entrada na dimensão da ‘communitas’, e da execução de uma série de ações
remediadoras sobre o processo do drama social.
As ações iniciadas por Luís Otávio Burnier num tempo e espaço distantes puderam,
então, concluir-se.
Um diálogo final com Victor Turner.
Encerramos aqui essas pequenas notas biográficas sobre o LUME. Como pudemos
notar, a origem do LUME foi toda ela, interna e externamente, permeada por valores
liminares gerados num processo de pesquisa artística muito similar aos processos liminares
estudados por Victor Turner.

“Quando esse estado de espírito, esse estilo, ou esse “impulso” da ‘communitas


espontânea’ está sobre nós, damos um alto valor à honestidade pessoal, à abertura, à falta
de pretensão ou pretensiosidade. Sente-se que é importante se relacionar diretamente com
a outra pessoa como ela se apresenta no aqui e agora, entendê-la de um modo positivo,
livre das incumbências culturalmente definidas por seu papel, status, reputação, classe,
casta, sexo, ou qualquer outro nicho estrutural culturalmente definido.” (Turner, 1982, p.
48)

No material que coletamos pudemos notar como Luís Otávio persistentemente


buscava por este “impulso”, tanto em seu projeto de pesquisa no LUME como em seu
projeto de ensino dentro do departamento acadêmico. Localizamos este ‘impulso’ como
uma espécie de ‘entusiasmo’ ou uma ‘doação’ a um projeto de vida, que perpassa os

318
interesses de subsistência material do indivíduo e vimos como ele teve que crescer e se
fortalecer, paralelamente, ao crescimento da dimensão estrutural.
Vimos, também, como a liminaridade e, por conseqüência, a interdisciplinaridade
são estados ambíguos para a estrutura social, e ao invés de serem tomadas como o lugar em
que podemos nos desenvolver humana e criativamente; podem ser detectados como uma
afronta, uma ameaçadora intromissão caótica e desordenada ao bem estar social. A
experiência liminar da ‘communitas’ pode gerar muito desconforto dentro da estrutura
porque ela, em si, é inclassificável, foge a todos os parâmetros catalogados pelo
conhecimento; ainda que possa ser vida humana em seu teor mais criativo.
Quando surge um novo olhar, uma nova prática ou um novo paradigma, a ‘vida
organizada pelas necessidades instintivo-biológicas’ sente-se ameaçada e reage. Assim, é
paradoxalmente necessário que, para perdurar no tempo, a experiência da ‘communitas
espontânea’ tenha que tornar-se, ela mesma, uma pequena estrutura social protetiva. Isso
parece ser um fato observável tanto no mundo interior humano, com o nascimento e
maturação de um ‘mordomo’ que tem que levar em conta todas as forças reativas em jogo
(instintivas, intelectuais, emocionais), como no meio humano social, no caso do nascimento
de uma ‘communitas normativa’:
A origem de um grupo criado a partir da ‘communitas’, mesmo nesta modalidade
‘normativa’, apresenta um caráter que o distingue daqueles grupos que surgem a partir de
uma “necessidade”, “natural” ou técnica, real ou imaginaria, tal como um sistema de
relações de produção ou um grupo de pessoas conectadas biologicamente: a família, os
parentes ou a linhagem. Um certo caráter de “liberdade”, “liberação” ou “amor” (para
usar termos comuns ao vocabulário teológico e político-filosófico do ocidente) adere-se à
‘communitas normativa’, muito embora, freqüentemente, esquemas mais rígidos se destoem
daquelas que, evidentemente, são as mais espontâneas experiências da ‘communitas’. Este
enrijecimento deriva do fato de que, inicialmente, os grupos da ‘communitas’ se sintam
muito vulneráveis em relação aos grupos institucionalizados que os circundam. Eles
desenvolvem uma armadura protetora institucional, a qual se reforça na medida
proporcional ao aumento da pressão para destruir a autonomia do grupo inicial. (Turner,
1982, p. 49)

É esta espécie de micro-organismo social, sobrevivente às culturas de massa de


nossa modernidade, que mais parece se aproximar daquela condição de equilíbrio notada
por Turner em algumas sociedades tribais africanas da década de 50 do século passado.
Como notou, naquele tempo e naquele lugar, o sagrado e o profano, a ‘communitas’ e a
estrutura social, o vertical e o horizontal do ser humano conviviam numa relação

319
simbiótica, cada espaço cumprindo o seu papel e contribuindo, a seu modo, para o todo de
um organismo cosmológico.

“Nas sociedades tribais, e outras formações sócias pré-industriais, a liminaridade [do


ritual] provê uma área propícia para o desenvolvimento destas diretas, imediatas e totais
confrontações de identidades humanas. Nas sociedades industriais, isto acontece dentro do
espaço do lazer, e algumas vezes, auxiliada pelas projeções da arte, é que este modo de
experimentar uma outra pessoa pode ser representado, compreendido e algumas vezes
realizado.” (Turner, 1982, p. 46.)

É no momento em que a Unicamp abre o Laboratório de Pesquisas de forma


institucional, que esta experiência do LUME passa a ter uma existência dupla, como a
descrita para a ‘communitas normativa’: a luta para se estabelecer enquanto instituição de
pesquisa, lidando com as normas e os parâmetros de produção da universidade; e ao mesmo
tempo, a luta para manter a pesquisa na direção dos valores e princípios que a geraram,
aprofundando-a e sistematizado-a. Mas é somente quando se torna Núcleo Interdisciplinar
da UNICAMP que esta dupla existência começa a ser desempenhada de forma mais
madura. E foi o cultivo e o aprofundamento deste tipo de atenção dupla e equilibrada,
fluindo tanto para o ‘meio externo’ quanto para o ‘meio interno’, que acabou, ao longo dos
anos, dando ao LUME o direito de se consolidar como Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas
Teatrais, papel que ele representa até os dias de hoje dentro da Universidade.

320
Cap. VII – O LUME e a liminaridade
- Da prisão à liberdade.

Nos próximos itens desse último e sétimo capítulo vamos nos ocupar,
exclusivamente, com a questão da liminaridade no trabalho do ator do LUME.

7.1 – Prisão para a Liberdade – O Primeiro LUME.


Primeira Tese: As energias potenciais do ator.
Uma investigação necessária e interessante, que servirá como introdução para o
estudo que será apresentado em seguida, é apreendermos as palavras e os termos que
Burnier, em sua tese, utilizava quando queria se referir àquilo que chamamos de dimensão
vertical e criativa do ator. Sei que sobre esse tema não foi articulado nenhum estudo ou
aprofundamento interdisciplinar que envolvesse a filosofia, a antropologia, a psicologia
moderna ou a psicologia ancestral das tradições. Sua pesquisa e suas intenções eram de
natureza essencialmente prática:
Não nos interessavam as possíveis interpretações, leituras psicológicas, sociais ou
culturais, mas simplesmente a fluidez orgânica entre a pessoa, seu corpo e o fazer artístico.
(Burnier, 2002, p. 92)

Trata-se, antes de qualquer coisa, de realizar, concretizar, atualizar esta possível


‘fluidez orgânica entre a pessoa, seu corpo e o fazer artístico’ e, portanto, como já vimos no
capítulo anterior ‘Não pensar com a razão; mas fazer com o corpo’ tornou-se uma das
principais regras diretivas dentro da sala de treinamento. Outra distinção importante para
ele foi separar o campo da ‘arte’ daquele da ‘terapia’; enfatizando assim que o fim da fase
de mergulho liminar sempre estaria ligado a uma precipitação de formas artísticas
articuláveis na dimensão da estrutura social através do espetáculo e do contato com o
público.
O termo ‘pessoa’ ou a ‘pessoa’ do artista, ou ainda, o ator e a sua ‘pessoa’ é
utilizado com alta freqüência por Burnier em sua tese. Conecta-se diretamente a outra gama
de termos também bastante utilizado: as ‘energias potenciais do ator’, ou o ator e suas
‘potencialidades’.

321
Mas quando utiliza o termo ‘energias potenciais’ do ator, ao que é que está se
referindo? A que tipo de qualidade de energia? Ainda que Burnier não tenha se ocupado
com possíveis leituras psicológicas na pesquisa, é certo que se utilizava de algum mapa,
mesmo intuitivo, da natureza psicológica humana do ator. Podemos ter certa noção desse
mapa analisando as articulações que a sua linguagem escrita faz com esses dois principais
termos: a ‘pessoa’ do ator e suas ‘energias potenciais’.
Logo no início da redação de sua tese, comunica ao leitor os dois principais eixos da
pesquisa que desenvolveu no LUME desde os seus primórdios. Para fazê-lo articula essas
duas palavras na seguinte frase:
A nossa busca de elaboração, codificação e sistematização de técnicas corpóreas e
vocais de representação para o ator tenta dois mergulhos: um no interior da pessoa, para
buscar contato capaz de dinamizar seu potencial de energia, suas vibrações; e outro na
técnica, na capacidade objetiva de se articular essas energias e convertê-las em signos
codificados e estruturados. (Burnier, 2002, p.20)

Segue-se que as ‘energias potenciais’ do ator estão como que estáticas, represadas,
guardadas, veladas e através de um possível contato interior podem e devem ser
dinamizadas. Nota-se, também, o uso da palavra ‘vibrações’, que não são quaisquer
vibrações, mas aquelas de tal específico ator. A palavra chave é, no entanto, ‘dinamizar’
essas energias potenciais. Devem existir meios operativos concretos para que essa
dinamização energética ocorra e, depois de alcançada, devem existir meios operativos
concretos de articulá-la em signos corporais codificados e estruturados.
Mais adiante, utilizando-se de um termo de Eugenio Barba, diz que uma das
preocupações do ator, além de executar ações, diante de um público que as interpreta e lhes
afere significado, ‘é estar íntegro no seu fazer, permitindo o livre fluxo de vida entre seu
corpo e sua pessoa. Ele trabalha, portanto, com o corpo e a mente dilatados como coloca
Eugenio Barba.’ (Burnier, 2002, p. 24) A citação que Burnier utiliza refere-se ao capítulo
‘Dilatação’ em ‘A Arte Secreta do Ator’.
Constitui-se de dois escritos: o primeiro é de Eugênio Barba que tem por título ‘O
Corpo Dilatado’ e o segundo é de Franco Ruffini, já nosso conhecido, e tem por título ‘A
Mente Dilatada’. Os dois artigos se complementam e se aproximam de uma mesma
conclusão por caminhos diferentes. Isso porque o primeiro, trabalhando sobre os princípios
pré-expressivos observados no teatro oriental e ocidental, encontra que há um modo de

322
funcionamento mental que corresponde a uma espécie de ‘dilatação’ com princípios
análogos àqueles do corpo dilatado. A peripécia ou as mudanças imprevistas na linha de
uma ação junto do ‘princípio da negação’132; a desconstrução de hábitos e automatismos ou
a construção de um equilíbrio precário; e a utilização de uma coerente incoerência lógica ou
um sistema de valores que escapa do senso comum caracterizam a ‘dilatação’ tanto no
domínio do corpo como no do pensamento. É neste texto que Barba afirma que a dilatação
do corpo físico é de fato inútil se não vem acompanhada por uma dilatação do corpo
mental. (Barba & Savarese, 1991, p. 58)
Ruffini, por sua vez, parte da obra deixada por Stanislavski, principalmente ‘O
trabalho do ator sobre si mesmo’, e mostra como Tórtzov, o diretor artístico da escola de
atores, utilizando-se de um processo parecido àquele da maiêutica socrática - os ‘se’
mágicos - leva seus alunos ao estado de ‘dilatação mental’ propício para a o surgimento da
dimensão criativa. Neste sentido, sugere que o conhecido termo ‘revivescência’ ganharia
um sentido mais justo se fosse compreendido como ‘vitalização da própria mente do ator’.
Assim, do mesmo modo que Barba, conclui que quando o ator se trabalha alargando suas
possibilidades psicofísicas está, de fato, adquirindo uma segunda natureza dilatada tanto
mental, como corporalmente.
O termo dilatado, aqui, corresponde ao nível dos Reis dos centros motor e
intelectual no mapa da psicologia de Gurdjieff - Ouspensky133. Significa elevar-se dos
níveis de atenção inertes e passionais, os ‘Valetes’ e as ‘Damas’ automáticos e habituais,
em direção aos ‘Reis’, a parte intelectual de cada uma das nossa quatro janelas psicofísicas:
sensações, movimentos, pensamentos e emoções. Neste estado de dilatação, somos
imediatamente sensitivos ao processo de estímulo-resposta que, momento a momento, entra
e sai por cada uma dessas janelas. Também, utilizando o limite de nossa força de vontade
acumulada conseguimos ser mais organicamente fluidos, maleáveis e criativos com os
conteúdos e formas armazenadas e expressas. Uma única citação deste interessante capítulo
sobre a “Dilatação” nos evidenciará a coincidência:
“Assim como existe uma forma preguiçosa, previsível, cinza de se movimentar, há
também um modo cinza, previsível, preguiçoso de se pensar. As ações de um ator podem

132
Antes de realizar uma ação, o ator a nega executando seu oposto complementar. Na vida, ações que
requerem grande dispêndio de energia imediata são naturalmente antecipadas por uma ‘negação’ e um
conseqüente acúmulo de energia potencial. Por exemplo: atirar uma pedra num lago.
133
Ver página 60.

323
tornar-se pesadas e bloqueadas por estereótipos, assim como o fluxo de pensamento pode
ser bloqueado por estereótipos, julgamentos e questões pré-resolvidas. Um ator que se
fundamenta apenas no que já sabe involuntariamente se submerge numa poça estagnada,
usando sua energia de uma forma repetitiva.” (Barba & Savarese, 1995, p.55.)

Se, agora, voltarmos a Burnier e a uma das expressões mais recorrentes em sua tese:
‘a dinamização das energias potenciais do ator’; perceberemos mais claramente aquilo que
ele pretende com o verbo ‘dinamizar’: uma convocação da máxima capacidade psicofísica e
energética do ator; sem ainda nenhuma preocupação com o teatro, a representação e a cena.
É interessante ressaltar que o ‘treinamento energético’ tem como um dos seus primeiros
objetivos ‘limpar’ o corpo do ator de uma série de energias ‘parasitas’, preparando-o para
encontrar um novo fluxo energético. (Burnier, 1985, p. 31) É justamente esse primeiro
objetivo que traz à tona a sensação de ‘terapia’, visto que expelimos impurezas e resíduos
acumulados nas vidraças de nossas quatro janelas psicofísicas. De fato, é só um processo de
eliminação, sempre necessário a qualquer pessoa para se evitar doenças e distúrbios em
diferentes escalas de nosso organismo. Uma simples e boa caminhada diária é sempre
muito saudável, mas o ‘energético’ se inicia com uma intensificação desse processo.
Deu-se conta daquilo que Burnier se referia quando utilizava o termo ‘energias
potenciais’ do ator? No mapa psicológico intuitivo de Burnier, a ‘mente’ e o ‘corpo’
dilatados correspondem àquilo que chamou de ‘pessoa’ do ator? Acredito que ainda não
totalmente e é sobre isso que vamos nos ocupar em seguida.
Em alguns momentos da tese, Burnier acena para uma ulterior relação entre a
‘pessoa’ do ator e suas ‘energias potenciais’, numa freqüência de onda um pouco mais
aguda, um pouco mais liminar. Nestes momentos ele se utiliza do verbo ‘acordar’ ou então
da fórmula ‘dinamizar elementos adormecidos ou esquecidos’. Há, por exemplo, esse
interessante trecho que dá uma explicação de uma segunda etapa do treinamento
energético:
“O treinamento energético ao provocar esta espécie de expurgo das energias
primeiras do ator, dinamiza energias potenciais, induz e provoca o contato do ator consigo
mesmo e ensina-o a reconhecer, na escuridão, após uma caminhada cada vez mais profunda
em seu interior, recantos desconhecidos, "esquecidos", que podem vir a ser uma das fontes
para a criação de sua arte. (Burnier, 2002, p.140)

Notamos que o reconhecimento de “recantos desconhecidos” e “esquecidos” no


mundo interior do ator já é fruto de um período prolongado de repetidas e cotidianas

324
investidas no treinamento energético. Este ator não só começou a adquirir uma segunda
natureza psicofísica dilatada e educada pelos princípios técnicos pré-expressivos, mas,
também, começa a experimentar o contato com aquilo que permanecia ‘esquecido’ em si
próprio.
É nesses momentos que Burnier se afasta um pouco das perspectivas artísticas de
Decroux e Barba e vai encontrar maior apoio e referência nas perspectivas deixadas tanto
por Artaud, por Grotowski quanto pelo Butoh. Chega, até mesmo, a enveredar por Santo
Agostinho, para dar-nos uma dimensão mais ampla daquilo que descobria, nas experiências
liminares dos atores, como sendo níveis cada vez mais profundos de ‘memória’.
Atendo-nos às perspectivas artísticas, Burnier reconhece, de início, algumas
similaridades entre o trabalho feito nos 10 primeiros anos no LUME e aquele de Grotowski
da sua primeira fase. Usa uma citação do livro de Grotowski, um texto chamado
‘Investigação Metódica’ de 1967, lá onde este último define os essenciais objetos de
pesquisa dos atores em sua arte. No primeiro destes itens listados aparece: Estimular um
processo de auto-revelação, indo até o fundo do subconsciente, canalizando em seguida
esta estimulação para obter a reação desejada. (Burnier, 2002, p. 21) Cito, assim, como
traduzido por Burnier de sua versão francesa de ‘Em busca de um teatro pobre’, pois nas
versões brasileira e italiana, ambas feitas da versão inglesa original, não encontrei o termo
‘indo até o fundo do subconsciente’, mas apenas ‘indo até o subconsciente’. Mais
importante, no entanto, parece ser o termo ‘processo de auto-revelação’ que Burnier se
permite usar para identificar a sua própria experiência e que, em algumas versões, é
traduzido também por ‘auto penetração’.
Claro que estamos entrando num terreno de estudos onde as palavras já não dão
conta satisfatória daquilo que querem significar, e por isso mesmo, muitos preferem evitar a
entrada. Uma cadeira é uma cadeira, um corpo em equilíbrio precário é um corpo em
equilíbrio precário, mas o que é um ‘processo de auto-revelação’? Todo o nosso estudo da
primeira parte desta tese permite-nos dizer que é um lento, gradual e individual processo
que faz com que um ser humano comece a ‘lembrar do Si mesmo em si’. Toda criatividade
humana vem desta dimensão; e no teatro comum, sempre de forma indireta e inconsciente
aos atores, é ela que sustenta a possível qualidade do espetáculo. O ‘ato total’ de
Grotowski, fruto do processo de auto-revelação, é uma articulação psicofísica que inclui

325
esta dimensão de forma direta e intencional por parte dos atores. Nas suas próprias
palavras, traduzido por Burnier da versão francesa e citado na íntegra em sua tese, página
146:
Trata-se da própria essência da vocação do ator, de sua reação que lhe permita
revelar, uma após a outra, as diferentes camadas de seu ser, desde a fonte biológica do
canal da consciência, até o pico, que é difícil de definir, e no qual tudo vem a ser unidade.
Este ato de desvelamento total de um ser se transforma numa oferenda que beira a
transgressão de barreiras e o amor [qui jouxte la transgression de barrières et l´amour].
Chamo isto de um ato total. Se o ator agir assim, ele vem a ser uma espécie de provocação
para o espectador (Grotowski, 1971, p. 99).

É interessante notar que sob essa perspectiva, a arte teatral deixa de estar tão
pressionada pela efervescente ânsia pela inovação da forma e pode, então, se ocupar um
pouco mais com a qualidade humana que a forma expressiva evoca tanto no ator como no
espectador. É característica dos laboratórios cênicos do século XX.
Em sua tese, Burnier cita essa passagem logo depois de narrar que o ator Ricardo
Puccetti, após semanas de árduos esforços para vencer a seus estereótipos na sala de
treinamento, havia atingido, de fato, ‘níveis mais significativos de energia’ (BURNIER,
2002, p. 146) Isto é bastante relevante para a nossa circunscrição dos significados possíveis
para as ‘energias potencias’ do ator.
É viável chamá-la, também, de a dimensão do ‘ser’. É exatamente este termo, vindo
da experiência com o Butoh, que Burnier utiliza para nos falar mais diretamente sobre
aquilo que o trabalho do ator pode ‘acordar’. Uma importante passagem já citada em
‘Você’:
“O ator não interpreta, ele é. Ele não expressa nada, mas simplesmente é com
plenitude. A busca dessa plenitude, desse estado presente, desse ser, revela-se algo tão
importante quanto difícil e vai ao encontro de nossa dança pessoal.” (Burnier, 2002, p.
149.)

Para encerrar esse esclarecimento do mapa psicológico intuitivo usado por Burnier,
há uma interessante passagem em que dialoga com Artaud, lá onde esse sustenta que o ator
é como um ‘atleta afetivo’, um ‘atleta do coração’.
Cito o trecho de ‘O teatro e seu duplo’ utilizado, que é um dos trechos mais
importantes e fundamentais, a meu ver, da psicologia adotada por Burnier em seu trabalho
artístico:

326
“O ator dotado encontra em seu instinto o modo de captar e irradiar certas forças;
mas essas forças, que têm seu trajeto material de órgãos e nos órgãos, nos espantariam
com a revelação de sua existência, pois nunca se pensou que um dia pudessem existir. [...]
A crença em uma materialidade fluídica da alma é indispensável à profissão do
ator. Saber que uma paixão é matéria, que ela está sujeita às flutuações plásticas da
matéria, dá sobre as paixões uma ascendência que amplia nossa soberania. [...]
Saber que existe uma saída corporal para a alma permite alcançar essa alma num sentido
inverso e reencontrar o ser através de analogias matemáticas (Artaud, 1984, pp. 164-65 –
“Le Théâtre et son Double.”)” (em Burnier, 2002, p. 142)

Logo em seguida Burnier sugere que neste trecho a palavra ‘alma’ pode ser
traduzida por universo interior, mas vai um passo além e sugere que ‘por alma deve-se
entender o que anima, dá vida e é, portanto, fonte de energia interior e potencial,
dinamizada na medida das necessidades do homem’. (Burnier, 2002, p.142)
Sempre que leio ‘Ele não era inteiramente Ele’, texto de Jerzy Grotowski sobre o
legado deixado por Antonin Artaud para a cultura teatral, texto de 1967, sinto que, apesar
da exatidão, Grotowski tenha sido, neste texto, um atleta da palavra não tão afetivo. Ao
terminar a leitura não nos sentimos irresistivelmente atraídos por ler a poesia de Artaud,
como deveríamos, de fato, estar. Se Artaud não foi um prático da ação artística foi,
seguramente, um verdadeiro profeta através da sua escrita. Digo isso porque, por tudo que
sei, Grotowski fundou seu ‘workcenter’ para realizar a prática das palavras citadas acima na
medida de suas necessidades.
De fato, ‘reencontrar o ser através de analogias matemáticas’ é o fundamento
prático central das escolas de desenvolvimento humano e do trabalho sobre si mesmo. Esse
trecho de Artaud, que Burnier adota como fundamento do seu ‘estudo da psicologia da
atividade artística’ paralelo e oculto, é uma das frases mais instruídas que se pode
encontrar dentre aquelas com origem no meio cultural teatral, de um nível abundante de
instrução que extrapola, em muito, as necessidades dos atores e a da vida artística. Por quê?
Porque sugere que quando acordadas as ‘energias potenciais’ de níveis mais
significativos, se uma forma psicofísica dilatada vier se associar a esses níveis, ela
possibilitará, num momento posterior, o retorno a elas. Claro que nunca pode ser operado
como um processo inteiramente frio e mecânico, mas é por isso mesmo que Artaud fala
sobre o ‘atleta afetivo’, sublinhando a necessidade de que o ator, assim como o buscador,
tenha não só o corpo e a mente, mas também o coração dilatado.

327
É como se Burnier tentasse sintetizar a visão de teatro oriental, que se utiliza de um
léxico de códigos e símbolos corporais tradicional e culturalmente fixados, junto com a
perspectiva do trabalho do ator sobre si mesmo e suas potencialidades. É como se tentasse
concretizar a errônea visão de Artaud, como salienta Grotowski em seu texto134, quando
assistiu aos espetáculos de Teatro Balinês e sugeriu que os elementos da representação
eram ‘gestos evocando poderes superiores’ quando eram somente signos e códigos de um
alfabeto universalmente compreendido pelos balineses. Digo isso porque o conjunto de
‘matrizes’ de um ator forma, na concepção de Burnier, um léxico de ações físicas que
evocam suas energias potencias mais íntimas e criativas, ao mesmo tempo em que são
utilizadas para estabelecer direto contato com o público.
Burnier o explica assim na defesa de sua tese:
Eu acho que Artaud coloca algumas coisas que são muito interessantes. Ou seja: a
capacidade de nós acordarmos, no público, suas energias mais profundas e verdadeiras está
diretamente ligado com a capacidade do ator de acordar, em si, essas energias. E aí nós temos
um grave problema: [...] no caso do ator [...] o desnudamento do artista é público, ele é ao
vivo. E além de ser ‘ao vivo’, ele deve se repetir: 360 vezes se forem 360 representações.
Evidentemente que o momento do desnudamento pleno do ator é dentro de uma sala
de trabalho [...] Mas ele deve aprender a repetir esse desnudamento, aprender a encontrar
meios operativos e objetivos pelo qual isso se operacionaliza, se transforma em artefato
[...] para que ele possa percorrer o caminho inverso. Artaud coloca isso também, não é?
Artaud diz: a crença numa materialidade da alma é fundamental para a arte de ator. E ele
coloca a relação no caminho inverso da matemática que eu interpreto: se 2 + 1 = 3; então
1 + 2 = 3. Então, quer dizer, numa linguagem artaudiana, se dá alma eu chego no corpo,
no código, então do código, eu também posso chegar na alma. (Defesa da Tese de Burnier
– 11/94)

Diga-se de passagem, é também a mesma lógica psíquica que Ferracini usaria em


sua tese, muitos anos depois, para definir aquilo que chamou de ‘punctuns’ ou os ‘micro
pontos de entrada num estado virtual’135. É também a mesma psicologia utilizada por
Stanislavski no seu método de ações (psico) físicas, mas ali o comprometimento com a
estética realista do texto literário reenviava as energias criativas diretamente para a
concretização de uma imagem poética muito similar à imagem cotidiana que temos de nós
mesmos; o que fazia com que todo o processo permanecesse com um ‘teto’ de liminaridade
um pouco mais baixo e restrito. Rompendo com o vínculo entre ator e personagem,

134
Grotowski, 1971, p. 72.
135
Ver página 273.

328
liberando o ator de ‘interpretar’ um papel e deixando esse encargo para o público, Burnier,
assim como Grotowski, potencializaram a liminaridade na profissão:

Na verdade, todo o nosso treinamento, toda essa busca de encontrar o trabalho de


cada um é encontrar a própria cara... O que ele faz é que cada ator ele aprenda, ele se
treine a atuar no limite, mas [num limite] muito extrapolado [em relação àquele] do limite
cotidiano. Extrapolado fisicamente, porque o investimento físico é muito grande e
energicamente porque ele trabalha... digamos, elevando essas energias que todos temos
diferentes que podem ser sensações, emoções, o que for... ... A gente chama de energia
muito mais dilatada do que no dia a dia. Quando o público vê um espetáculo do LUME, ele
vê o ator em estado limite, atuando. Aquele maestro louco da banda que pode dar um beijo
na boca do público, ou pode cuspir no pé do outro, sou eu; é aquilo que não pensa, sou eu
no sentido mais da essência. Então, não é o personagem: é o Simi teatralizado, sou eu
teatralizado. Essa é a nossa cara. (5 – Ricardo Puccetti – 1 - 2001)

Não tem personagem interpretado, tem o corpo psicofísico do ator e um segundo


corpo energético que o dilata em suas possibilidades físicas, mentais e emocionais. Este
corpo dilatado artisticamente articulado numa imagem poética envia impressões ao
espectador que, se aberto para o espetáculo, fazem evocar nele próprio – pela lei de
estímulo-resposta – a sua própria possibilidade de ‘pessoa dilatada’ e a sua própria
possibilidade de vivenciar o momento presente.
Acredito que seja suficiente para a nossa investigação vocabular da tese a respeito
do ator, sua ‘pessoa’ e suas ‘potencialidades’. Este é o primeiro LUME.

7.2 – Experiências práticas com o treinamento ‘energético’


nos cursos do LUME.

Vamos nos dedicar, agora, a um estudo mais aprofundado sobre o ‘treinamento


energético’, de modo a justificar integralmente a conclusão de que esta espécie de prática é
uma “técnica 2” em seu estágio preparatório; comum às mais diferentes expressões culturais da
humanidade que lidam com o trabalho do homem sobre si mesmo, entre estas, a Ioga hindu, os
Cantos Afro Caribenhos, o Budismo Zen, ou o ‘Quarto Caminho’ de Gurdjieff – Ouspensky.

7.2.1 Para que serve o ‘treinamento energético’?

329
Nada melhor que ouvir aquele que, entre todos, mais praticou e se aprofundou nesta
espécie de treinamento e na ‘dança pessoal’ dele derivado:

Durante esses 10 [primeiros] anos foi elaborada a técnica da dança pessoal. Cada
ator através de exercícios que levavam a um esgotamento físico – 4 horas de esgotamento
físico – o ator conseguia, finalmente, romper com o intelecto. Romper com a razão que é o
que mais domina no nosso cotidiano, é o que mais está desenvolvido. Romper porque o
corpo está num estado alterado e aí, então, esse ator pode mergulhar dentro dos seus
sentimentos, das suas sensações e poder trazer o que estava adormecido, ou escondido à
tona; trazer para o corpo. E aos poucos a gente foi codificando, isto é, elaborando,
decorando, repetindo e fazendo com que esse material que saía de dentro do ator,
[material] que estava adormecido pudesse se tornar corpo e então falar com o corpo para
a platéia. (Seminário em Porto Alegre – Carlos Simioni. 2002)

Ao estudar as práticas de meditação Zen Budistas, contidas no Anexo-2136, vimos


que romper com o predomínio do intelecto e da razão também é uma das metas desta
técnica; mas ali o praticante se senta com a coluna reta, com as pernas cruzadas, as mãos na
forma de ‘mudra’, e fica de olhos fechados, em silêncio, em estado meditativo e passivo.
Vimos também que no Zen Budismo, a prática da meditação sentada é apenas uma espécie de
atividade central que concretizando o máximo de vazio, potencializa o mesmo em todas as
outras dimensões que estruturam a vida do praticante. Isto deu origem e influenciou inúmeras
formas de expressão cultural como, por exemplo, o ‘Chanoyu’ (a cerimônia do chá), o ‘Sumie’
(a arte da caligrafia ou pintura), o ‘Haiku’ (escritura poética) e o Teatro Nô.
Ainda assim, o corpo passivo e sua principal característica de ‘suspensão dos processos
vitais’ coincidem com o máximo grau de intensidade da técnica meditativa. Podendo ser de
grande utilidade para a ‘pessoa’ do ator ocidental, certamente não seria para o treinamento
psicofísico desse ator que querendo explorar as suas possibilidades expressivas deve permitir
que este corpo esteja móvel e ativo. Poderia-se denominar, portanto, o ‘treinamento energético’
como uma espécie de meditação em movimento especialmente adaptada para as necessidades
do ator?
Um dos que mais profundamente pesquisou sobre essa questão foi Jerzy Grotowski e na
apresentação de seu projeto de ensino ao ‘Collège de France’, em 1996, falou sobre essa
questão de maneira muito elucidativa. Cito duas passagens que distinguem e explicam a
diferença que notou entre duas espécies de técnicas rituais provindas das mais diferentes

136
Pagina 440.

330
expressões culturais da humanidade. A primeira que chamou de práticas rituais ‘artificiais’ se
afastam, em muito, da ‘organicidade’ que descobriu na época da sua atividade teatral:
Nas formas de caráter mais individual, como as práticas yogue (onde, é preciso
observar, a relação inter-humana tem seu papel, somente nas relações entre instrutor e
aprendiz), eu observei a orientação em direção a “um ralentar dos processos vitais”
através da imobilização do corpo, o ralentar da respiração e a manipulação de seu ritmo
(isto pode reverberar também sobre os batimentos do coração e o tempo-ritmo do processo
mental). Trata-se teoricamente (eu repito: teoricamente), da suspensão de um “triplo
processo”: do movimento, da respiração e do pensamento. Os sentidos, a percepção
sensível, devem ser retirados do contato espontâneo com a realidade exterior. O objetivo
que se colocam os yogues desta orientação clássica é “o descondicionamento”, para
utilizar o termo de Mircea Eliade, ou seja, “o descondicionamento da dependência do
tempo e do espaço”.137

Uma segunda espécie que chamou, justamente, de práticas ‘orgânicas’ permitiu que
ele fundisse sua pesquisa dos tempos teatrais, o método das ações físicas incluído, com uma
série de técnicas psicofísicas de caráter vertical, executadas coletivamente e ligadas,
predominantemente, à movimentos, posturas especiais, à dança e ao canto. Se
perguntássemos a ele, agora, para que servem essas técnicas rituais, ele nos responderia:

Digamos que se trate mais da transformação da energia cotidiana, pesada, mas


plena de vida, algumas vezes violenta, ligada à sensualidade – em energias mais leves,
digamos, sutis. O corpo é veículo desta passagem. O corpo, com seus impulsos, sua fluidez,
sua organicidade. Na falta de algo melhor, eu tomo emprestado este vocabulário de uma
tradição hindu nesta organização. Ela evoca as qualidades energéticas e uma hipotética
passagem da energia pesada (tamas), ou da energia das atividades vitais (rajas), para a
energia sattva: leve, transparente, dita “espiritual”. No Hinduismo, fala-se até mesmo de
um passo à diante “acima do sattva”.138

‘Tamas’, ‘Rajas’ e ‘Sattva’ devem corresponder às partes motora, emocional e


intelectual dos centros, isto é, os ‘Valetes’, ‘Damas’ e ‘Reis’ dos naipes de um baralho de
cartas comum; algo que descobrimos quando estudamos o sistema de Gurdjieff-
Ouspensky.139 Assim as técnicas rituais de caráter ‘orgânico’ requerem uma dilatação
psicofísica do praticante muito similar àquelas do ‘trabalho do ator sobre si mesmo’

137
‘Antropologia Teatral’ foi o título do projeto apresentado ao Collège de France como parte do processo de
inclusão de Jerzy Grotowski no corpo dos professores daquela instituição (do arquivo pessoal da professora
Tatiana Motta Lima. Cedido à professora por Mario Biagini).
138
Idem.
139
Ver página 60.

331
propostas por Grotowski no cume de seu período teatral; lugar de origem do ‘treinamento
energético’ de Burnier.
Em alguns dos textos deste período Grotowski faz menção direta sobre o trabalho de
extrapolação dos limites exaustivos do homem como uma possibilidade a ser utilizada no
teatro e no processo criativo. Cito, a seguir, alguns deles.
Um exemplo bem conhecido está em Em Busca de um Teatro Pobre, quando
Grotowski diz:
“Quando digo “ir além de si mesmo”, estou pedindo um esforço insuportável. A
pessoa é obrigada a não parar, apesar da fadiga, e a fazer coisas que bem sabe que não
pode fazer. Isto significa que se é obrigado a ter coragem. Isto conduz a quê? Há certos
pontos de fadiga que derrubam o controle da mente, controle que nos bloqueia. Quando
encontramos a coragem de fazer coisas impossíveis, fazemos a descoberta de que o nosso
corpo não nos bloqueia. Fazemos o impossível e a divisão, dentro de nós, entre conceito e
aptidão do corpo, desaparece. Esta atitude, esta determinação, é um treinamento de como
ir além dos nossos limites. Não se trata de limites da nossa natureza, mas do nosso
desconforto. São os limites que nos impomos que bloqueiam o processo criativo, porque a
criatividade nunca é confortável.” (Grotowski, 1971, p. 191.)

No teatro e na vida a criatividade nunca é confortável. Mas o desconforto criativo e


o ‘ir além de si mesmo’ não necessariamente precisam estar vinculados a um processo
corporal e visível de extrapolação física. Mais adiante apresentarei algumas experiências
que fiz para dar invisível continuidade ao ‘treinamento energético’ durante todas as 4 horas
diárias de uma oficina voltada mais para o ‘treinamento técnico’, utilizando a invisível
técnica do controle e da divisão da atenção, técnica adaptável a qualquer situação cotidiana
ou extra-cotidiana.
Há uma segunda boa citação de Grotowski também em “A Voz”, texto de 1967,
interessante também porque está dentro do contexto da oficina ‘Voz e Ação Vocal’ que fiz
com Simioni, onde a base do trabalho era o ‘treinamento energético’ e logo adiante será
usada como exemplo.
Às vezes vocês deveriam cansar o ator e até mesmo fazer com que ele faça
exercícios que o cansem muito – no sentido físico – até que ele não interfira mais no
processo orgânico. Ao mesmo tempo é perigoso: podem provocar complexos, traumas, etc.
Esse trabalho requer uma grande experiência. Mas há alguns casos nos quais somente com
o cansaço o ator pode liberar-se de certos tipos de resistência. (Grotowski & Flazsen,
2006, p.141.)

332
Uma última citação que encontrei e considero importante de transcrever, aqui,
revela explicitamente que Grotowski, na última fase de seu trabalho, deixa de utilizar o
método da exaustão como um procedimento prático de entrada no processo criativo. Está
num livro de Thomas Richards, numa entrevista feita pela pesquisadora Tatiana Motta
Lima, da UNIRIO. Cito partes da pergunta e da resposta, ambas interessantes, pois parece
que a pergunta se encaixa diretamente à técnica utilizada pelo LUME para a mudança do
estado psicofísico do ator:

“TML – [...] No meu trabalho no teatro eu percebo que às vezes começamos a


criticar a nós mesmos através de um ordenar a nós mesmos que não deveríamos pensar um
dado pensamento. Nós queremos negar a mente com a mente, e pouco a pouco nos
distanciamos daquilo que estamos fazendo. Em seu trabalho, você utiliza estratégias para
confrontar isso? Eu sei que algumas pessoas consideraram a exaustão física como um
caminho para resolver este problema. O que você acha disso?

TR – [...] Eu estou contente que tenha feito esta questão, porque em relação a este
ponto existe um profundo mal entendido sobre o trabalho de Grotowski conosco. Eu já vi
grupos de teatro que aplicam as assim chamadas técnicas ´grotowskianas’ utilizando a
exaustão física como método: “Se aplicarmos a exaustão física, nós chegaremos à
verdadeira criatividade” Mas quem sabe, pode ser que deste modo eles simplesmente
fiquem exaustos. O que conduz à descoberta criativa é freqüentemente uma questão. Não é:
“Está é a técnica”; mas ao invés: “Isto ajuda, ou não?” Uma questão não é um dogma, e
ela permite a nós uma resposta e um julgamento por nós mesmos.”140 (Richards, 2008, p.
67-68.)

É uma resposta no mínimo interessante, pois deixa espaço para a investigação do


próprio indivíduo em relação a um tema que, em última estância, diz respeito só a ele
próprio. Verifique por si mesmo.
Depois de anos de trabalho e pesquisa sobre o LUME, não tenho dúvidas de que o
método de romper com o predomínio do intelecto através da exaustão física foi uma grande
porta de entrada para a descoberta criativa dos seus atores-pesquisadores. Diria, também,
140
Traduzido do original ingles: “TML – […] In my theatre work I notice that at times we start to criticize ourselves by
telling ourselves that we should not think a given thought. We want to negate the mind with the mind, and little by little
we get further away from what we are doing. In your work, do you utilize strategies to confront that? I know that some
people have considered physical exhaustion a way to resolve this problem. What do you think about it? TR – […] I'm
happy that you have asked this question, because concerning this point there is a deep misunderstanding
about Grotowski's work with us. I have seen theatre groups that apply so-called 'Grotowskian' techniques utilizing
physical exhaustion as a method: 'If we apply physical exhaustion, we will arrive at true creativity!' But who
knows, maybe in this way they will simply become exhausted. What leads to a creative discovery is often a
question. It's not, This is the technique!' but rather, 'Does this help or not?' A question is not a dogma, and it permits
us to answer and judge for ourselves.”

333
que tal método não se transformou num dogma entre o próprio grupo; tendo sido
questionado e transformado em várias linhas de trabalho individuais, que foram
encontrando as suas próprias perspectivas. A seguir serão apresentadas algumas
experiências que tive com esse treinamento nos cursos.
7.2.2 - Descrição.
Dentro dos 7 cursos que fiz com os atores-pesquisadores do LUME em nenhum
deles o ‘treinamento energético’ deixou de ser utilizado. É verdade que em uns foi mais
utilizado que em outros. Nestes últimos apresentou-se mais como uma ferramenta auxiliar
dentro do trabalho de composição expressiva de uma imagem ou ação poética. Ocorreu
especificamente nos ‘workshops’ de ‘Clown - a Utilização Cômica do Corpo’, ‘Mímesis
Corpórea’ e ‘Da Energia a Ação’. O número de horas diárias de trabalho nas oficinas
sempre foi de quatro, chegando a cinco somente na oficina de ‘Clown’ por motivos
específicos ao processo da oficina.
Dentre as muitas vivências que tive com esse treinamento gostaria de apresentar a
descrição da experiência que tive sob a condução de Carlos Simioni no seu curso ‘Voz e
Ação Vocal’ realizado em abril de 2007 no Rio de Janeiro. Opto pelo material que colhi,
através de registro da minha própria voz poucas horas depois do trabalho, no primeiro e
também no terceiro dia da oficina, pois neste segundo momento já havíamos aprofundado
as possibilidades desta espécie de técnica 2. O texto foi deixado com seu traço de oralidade
e foram feitas algumas inserções posteriores que se encontram [entre colchetes].

Relato registrado em fita cassete horas depois do primeiro dia do trabalho (17/04)

[...] Começamos, então, o trabalho físico em um círculo e o Simioni começou a


dar regras, regras que deveriam ser seguidas durante o trabalho para não se
perder tempo.
- Quando ele dissesse, por exemplo, para se movimentar pela sala, não era para
se movimentar com a coluna inteira como um bloco, mas, muito pelo contrário,
articular a coluna e o quadril, articular essa coluna e os braços. E o movimento
acabaria sendo decorrente dessa articulação da coluna.
- Disse, também, que o movimento partia sempre da base da coluna, do quadril
para cima, para baixo, para frente, para trás; mas pelo quadril, pelo abdômen.
- Disse para que não se abaixasse a coluna, não se largasse a coluna enquanto
estivesse se movimentando. Que isso não seria interessante para o trabalho.

334
- Disse outras coisas, como trabalhar a tridimensionalidade do corpo, que isso
era importante; não deixar o corpo bidimensional, mas trazer várias direções
para o corpo. O quadril para baixo, o ombro para o lado, a cabeça para cima, o
peito para frente, tudo ao mesmo tempo.
- Durante muitas vezes, no trabalho, ele iria pedir para parar e quando se
pedisse para parar deveríamos fazê-lo em posições sustentadas, por exemplo,
em desequilíbrio; e que se mantivesse a energia produzida. Disse que isso era
um grande fator no trabalho. Não produzir [e lidar com a] energia como faz um
esportista, mas como conservar essa energia, mantê-la dentro e fazê-la
crescer.
Essas foram algumas indicações. Ele disse, também, que inventava muitas
palavras porque, fazendo junto o trabalho, o corpo dele ia sempre mais à
frente e o cérebro ficava sempre tentando traduzir em palavras aquilo que
estava acontecendo... E então, muitas vezes, ele inventava palavras ou as
palavras não vinham. Esse seu trabalho segue primeiro pelo corpo.
Então começamos o trabalho físico efetivamente, depois dessas
instruções, seguindo para o energético tradicional. Começamos todos ao chão,
depois esticando as pernas [como se fosse] até as paredes, esticando a cabeça
até o outro lado. Esticando os braços nas suas direções. Esticar, esticar.
Depois começávamos a nos espreguiçar como se estivéssemos saindo da cama,
espreguiçar grande, espreguiçar grande, para os lados, para o outro. Depois
levantávamos o quadril, se tirávamos o quadril do chão, tirávamos o dorso do
chão e começávamos a trabalhar os apoios: mãos e pés apoiando e transferindo
o peso do corpo sempre sem parar. [Seguindo essa transferência de peso] Dos
apoios se passava ao plano baixo, já em duas pernas, se passava ao plano médio
e ao plano baixo novamente. Depois se começava a se movimentar pela sala no
plano alto, e começava a ser dinâmico e depois [mais] dinâmico, dinâmico e até o
máximo e do máximo em 20 segundos até zero, cada ator deveria cuidar de si e
dar o máximo nesse tempo de 20 a 0 em contagem regressiva. Sem nos
enganar; mas nos doando completamente ao movimento de maneira que
conseguíssemos produzir o máximo de energia possível, sem restrições. Então,
a parada. E nesse momento a respiração era importante. Foi uma das indicações
lá do começo, a respiração. Sustentar a respiração, não largar a respiração, não
esbaforir, mas sustentar a respiração... ... ... ...alargando-a, e respirando maior
e sustentado... E sem barulho, o mínimo de barulho possível. Esse era um ponto
importante. Depois, sempre com essas paradas e controlando a respiração,
voltávamos a controlar o abdômen e a energia, e manter... É a questão

335
importante, de não só produzir a energia, mas como [...] manter a energia acesa
e cultivar essa energia.
Então começavam movimentos lentíssimos com o corpo e com a energia
construída. Isso se repetiu duas a três vezes. Sobre a “liminaridade” esse é um
ponto para mim fundamental, porque depois da parada, segue-se que a relação
que você tem com o seu corpo é completamente diferente da relação cotidiana
[que você tem] com o próprio corpo. Porque no cotidiano é como se você tivesse
certeza que você tem o seu corpo e ele está ali para fazer todas as funções
mecânicas e automáticas que o dia a dia vai sugerindo ou pedindo. Mas ali, nesse
estado, quando você acende esse estado com o corpo, quando você, de fato,
sente uma energia diferente, uma energia que vem do abdômen, um corpo
energético que circula pela musculatura, então ali é diferente. Porque é como
se ... Não é certo que você tem o corpo. É como se você tivesse que manter um
certo grau de atenção para manter esse estado, essa relação com o corpo. Para
manter essa atenção e presença sobre o corpo. Um espaço vazio, porque não se
pode fazer isso tendo outros pensamentos em mente. Não se pode fazer isso
tendo imaginação, devaneio, pensamentos aleatórios e automáticos. Deve-se
criar um espaço vazio dentro. Muita energia focada para que se consiga manter
esse corpo energético. Necessita-se de muita atenção. Então, aqui, já é um
espaço que eu entendo que é liminar e chave para todo o trabalho do LUME.
Porque ele coloca o corpo numa situação extra-ordinária, porque não é só o
corpo, mas é o corpo e a energia do corpo, o corpo e a atenção do corpo. Uma
[qualidade de] atenção já diferenciada, acesa, sobre o corpo e sobre o
movimento, sobre as possibilidades de movimento a partir do abdômen e a
construção corporal no espaço [tridimensional].
Seguindo, essa seqüência foi repetida umas duas ou três vezes e a cada
vez que parava era uma dificuldade, uma dificuldade manter e segurar a
respiração. Queria-se soltar o corpo, queria-se soltar pelo cansaço, após a
contagem de 20-0 no máximo da dinâmica. Mas logo em seguida quando você
conseguia sustentar a sua respiração, eu pessoalmente, sentia um calor que
vinha do abdômen que começava a se espalhar rapidamente por todo o corpo,
por toda a musculatura das pernas e dos braços e do dorso... ... E isso criava
uma tensão muito positiva, um calor energético que permeava cada movimento
que eu começava a fazer. Isso é a criação do ‘corpo dilatado’ o termo que é
utilizado ou ainda se diz ‘entrando em estado de trabalho’. Nesse estado,
depois de várias vezes repetindo essa seqüência que eu acabei de falar,
descíamos ao chão completamente até se deitar; carregando esse corpo. Com o
corpo energético, com o corpo dilatado, sem nunca afrouxar ou soltar-se.

336
Íamos completamente estirados no chão e logo quando chegássemos ao chão
retornávamos para o alto. Isso, sempre como que ‘conduzindo’ o corpo para
baixo. Nunca largando ou sendo vencido pela gravidade.
Se você vai fazendo aquilo que ele pede, não tem espaço para a
dispersão, mas, pelo contrário, tem espaço para muita atenção controlada,
muito no centro motor e também no centro intelectual, porque você deve
acompanhar o que ele está falando. Deve entender o que ele está falando [...] E
essa energia que circula pelo corpo não dá espaço para os pensamentos
automáticos, ainda que eles aconteçam [...], ainda que eles tentem aparecer.
Depois de feito isso, fizemos um exercício que era soltar tudo, ir para o
andar cotidiano, completamente normal. Andar pela sala normalmente e então
parávamos e fazíamos a memória muscular de tudo que havíamos feito até
agora, internamente. [...] Não. Fizemos, antes, uma coisa que era de 20-0
internamente. Tudo rápido e dinâmico como havíamos feito externamente,
passava a ser feito internamente, só dentro. Fazíamos de 20-0, depois de 15
até zero, depois de 10 segundos até 0... Era muito dinâmico, como se tudo
fosse concentrado e isso se chamou de ‘restauração interna’. Várias vezes
fomos utilizando, durante o trabalho, dessa dinâmica de 20-0 internamente. É
o mesmo esforço muscular que, no entanto, não é extravasado, não é
exteriorizado.
Certo! Então entramos no andar cotidiano, nos largamos completamente
e de repente nos ligamos. [Sempre de pé] nos ligamos refazendo a memória
muscular [de tudo] desde o momento em que estávamos no chão. Então
[fazendo só internamente] estirávamos o braço, a perna, a cabeça e depois
espreguiçávamos, depois o quadril, depois saía do chão o dorso, o quadril.
Depois começávamos os apoios, o plano baixo, plano médio e baixo de novo e
médio, o movimento pela sala, a dinamização e depois o 20 até 0 e pum...
Entrávamos no corpo dilatado. Entretanto, externamente não havíamos feito
nenhum movimento, mas só acionado a memória muscular daquilo que havíamos
realmente feito a 20 ou 30 minutos antes. Fizemos várias vezes esse liga e
desliga com o corpo, com esse andar cotidiano pela sala, olhando as pessoas. E
terminamos por aqui. Toda essa primeira parte deve ter durado uns 55 minutos.
(Relatório “Voz e Ação Vocal” – 2007 – Diário de Campo)

Relato registrado em fita cassete horas depois do terceiro dia de trabalho (19/04)

Começamos o energético como sempre deitados no chão, e deitados no


chão começamos a esticar as pernas, a cabeça, os braços, a estirar. Depois

337
começamos a nos espreguiçar grande. Depois tirávamos o dorso e o quadril do
chão, usávamos, então, os quatro apoios, como sempre; os dois apoios e
trabalhávamos mais livremente, acima e abaixo, acendendo e então dinamizando
pelo espaço quando, chegamos ao alto. E então [com movimentos livres e
aleatórios] íamos mais rápido e mais rápido, mais rápido, mais rápido, mais
rápido, mais rápido [...] e chegávamos à contagem de 20-0 no máximo. Nesse de
20-0 não ocorriam as explosões ainda. Era a dinamização de 20-0. Depois se
parava. Respiração. A respiração é um ponto chave. Vou repetir o que
aconteceu nos outros dias, mas a respiração é um ponto chave para que haja
conexão com o corpo energético. Porque até então havíamos liberado um monte
de energia ao fazer toda essa seqüência, muito rápido e muito rápido até o
limite da exaustão em 20 tempos. Um monte de energia. O que acontece
depois, quando você para? O corpo quer largar-se [...] largando a respiração e
toda essa energia. Então o que acontece é que o abdômen apanha essa energia e
começa a respirar controlando a energia, não deixando ela se esvair, mas
controlando a energia. Acontece, então, um contra-ponto, um contra tempo, um
choque intencional dentro do corpo e ocorre aqui a conexão com o corpo
energético. É impossível fazer isso sem que o abdômen esteja plugado, aceso,
controlando. E é a partir do abdômen então que começa a haver o contato com
esse corpo energético. Como, depois, aprender a caminhar com esse corpo
energético? [...] Mas ainda não chegamos no ‘fantasma’. Então, voltávamos ao
trabalho de dinamização e fazíamos de novo de 20-0 e ‘stop’. Parávamos e aí
começávamos... Sim. Depois de uma ou duas vezes começamos com a ‘estátua de
pedra’ e dentro tremelique, tremelique, tremelique. Dentro [a afetação era]
muito forte e fora também muito forte. Dentro queria agitar e fora queria
manter-se estático, porque de pedra. Então é esse concreto desafio entre as
forças de fora e de dentro, e as de dentro acabam rompendo e destruindo a
estátua de pedra. Mas gera muita, muita, muita energia fazer isso. A
resistência. A corrente elétrica, quando passa pelo filamento de uma lâmpada,
sofre resistência e assim fazendo libera elétrons e fótons, gera-se muito calor
e luz. Acontece uma coisa muito parecida com isso dentro do corpo físico. A
resistência interna libera luz e calor, libera o corpo energético. Certo.
Seguimos adiante.
Em um determinado momento chegamos às explosões para fora. Então de
20-0 seriam as explosões. 20 era uma, 19 era outra, 18 outra e assim por
diante até 0. Explosões duplas em pontos definidos do espaço, jogando
[projetando] essa energia [para fora] agora que você já a havia acumulado

338
dentro, acendendo, acendendo. Eu realmente não lembro se fizemos flechas141
hoje, mas havia uma comparação de que a explosão eram flechas que iam para
todos os lados; enquanto que no trabalho da véspera a gente localizava um
ponto no corpo para acender especificamente aquela parte do corpo com uma
flecha. E a explosão é simplesmente um conjunto de flechas para todas as
direções ao mesmo tempo. Então trabalhamos já na parte final do energético
de 20 a 0 com as explosões, muitas explosões e “pum”! Parávamos no zero.
Respirávamos e aí surgiu isso que era [...] porque a presença já estava muito
mais forte [...] “o fantasma”. A imagem do ‘fantasma’ vem da televisão que,
quando a antena não está na posição certa, não produz uma imagem nítida, mas
produz uma imagem dupla, com um ‘fantasma’ em torno dela. Isso que foi
chamado de ‘fantasma’ é o corpo energético, o corpo aceso, o corpo energético
aceso. Há um corpo de matéria orgânica e sobre o corpo de matéria orgânica há
esse segundo corpo de matéria energética. Ele é feito daquilo que eu entendo
por energia sensitiva e está a um passo da energia consciente, um passo da
energia consciente; ainda não é a energia consciente.
Trabalhamos, então, como deixar a vontade do corpo físico passiva, e a
vontade desse ‘bebê’ - que foi uma expressão usada pelo Simioni para
denominar esse corpo energético recém nascido – ativa, isto é, o corpo
energético que acabara de nascer estaria ativo. Havíamos acabado de entrar
em contato com ele, e ele deveria conduzir o corpo físico no espaço. Isso era
muito sutil, era muito delicado, requerendo uma grande escuta para conduzir o
corpo físico pelo corpo energético.
Então, depois, o grupo foi dividido em dois grupos menores. Cada um
partiu do zero; e um grupo assistia o outro. Fomos acendendo, acendendo e
fizemos toda a seqüência em 20 segundos, desde o chão até o corpo energético
aceso; e então caminhávamos pelo espaço. Era uma energia muito clara e muito
nítida, na minha experiência. Presença. Presença é simples, mas é difícil. Sutil,
fácil de esvair-se, difícil de conter e absolutamente simples. Porque a
presença, o corpo energético vive, existe aqui e agora, aqui e agora novamente,
novamente [...] novamente; ou seja, em cada momento, como manter contato
entre o corpo físico e o corpo energético. A presença tem graus. Aqui, eu
associo a presença à porta [aberta] do centro emocional. É muito claro quando
existe energia emocional sutil conectada ao movimento presente, e quando não

141
Estamos num curso de ‘Voz e Ação Vocal’ e a ‘flecha’ é um principio que une a experiência do corpo energético com
a voz. Assim sendo uma flecha é um impulso energético, um fluxo energético que sai do abdômen e caminha pelo corpo
até chegar na boca, por exemplo. E dali através do som, ‘hummm’, você encontra o ressonador da boca. E depois a testa,
depois nariz, peito, abdômen, a voz baixa; depois na nuca, nas costas, todas essas vozes acendidas individualmente
mandando flechas que abrem caminho para determinada parte do corpo ressoar.

339
existe. Por isso é um degrau que fica entre a energia sensitiva e a energia
consciente, mas é quase lá.
Havia uma lâmpada no teto, que ficava piscando. Era uma lâmpada da
platéia, mas ela estava com algum defeito, de modo que ficava piscando; ela não
era contínua, mas ela piscava. E essa era, para mim, uma imagem muito boa do
que é a presença [consciente]. A presença vai e desaparece e aparece de novo e
vai e desaparece de novo, e vai e aparece de novo; e quando ela aparece, fica
tremelicando como uma fonte de água, por que tudo acontece nessa velocidade,
o momento é preenchido por essa velocidade de percepção que é muito maior
que a projeção da mente racional, a projeção que o centro intelectual faz sobre
a realidade. Por isso o centro intelectual [quase que] desaparece quando você
entra em contato profundo com o corpo energético. E um bom sintoma do
momento em que você perde o corpo energético é que a imaginação, o
pensamento associativo, o devaneio, ‘eus’ não relacionados ao momento
aparecem [e começam a grudar]; e aí, então, você começou um processo de
desconexão. Claro, muito claro. Como se você tivesse parado de tocar o
instrumento e tivesse apenas imaginando [sonhando mentalmente] que está
tocando o instrumento.
Um grupo viu o outro e as imagens que um grupo teve do outro foram
muito claras, tanto que os comentários que um grupo fez do outro, no final,
foram muito claros também. Teve um que eu achei o melhor deles: “É muito
nítido e muito sutil, não é Simioni, ou está ou não está. É muito claro.” E o
Simioni disse: “Sim, está ou não está e a gente só pode ver que é simples
porque a gente chegou nesse estado e nesse estado, na margem dele, você está
ou não está, é muito simples.” Essa me parece uma descrição do estado de
presença: a gente está mais ou está menos a cada instante. Está indo em
direção à presença ou está indo em direção ao sono, ao automatismo dos
movimentos, pensamentos, sensações e emoções, ou seja, à atenção mecânica. E
isto a cada instante. Essa é a vida, essa é a vida do ator.
E tivemos outros bons comentários, vários: alguém comentou sobre o
corpo aceso, que falava da lâmpada. Claro, pois uma lâmpada recebe energia
elétrica e daí surgiu o exemplo que utilizei antes, pois eu lembrei, da física, que
quando uma corrente tem dificuldade, quando existe uma resistência a seu
fluxo, eletros e fótons são emitidos, o filamento emite luz e calor. Nesse
estado parece que as impressões entram pelos olhos diretamente e é como se
com o olhar e com o corpo a gente tocasse as coisas [distantes]. Ou seja, a
qualidade das impressões que chegam até nós é de uma qualidade muito maior
do que quando no início do trabalho, por exemplo, onde não havia ainda contato

340
com o corpo energético. É um estado de percepção das coisas ao nosso redor
que vai abrindo, desabrochando. As coisas e a qualidade das coisas sempre
estão lá, mas no estado de atenção automática nós simplesmente não as
percebemos.
Bom, tivemos mais outros comentários interessantes. Quando alguém
fala em conexão real com esse estado que vivenciou, a própria presença vibra,
ressoa em resposta àquele que está falando. Isso porque essa não é uma
experiência subjetiva, no sentido de que cada um a imagina como quiser. Mas é
sim objetiva, no sentido que mais ou menos todos experimentam um fato
[psicofísico] concreto que sempre segue numa mesma direção. Isso aconteceu
diversas vezes nesta sessão de comentários. As pessoas descreviam processos
pelos quais eu havia passado também.

Os encontros dessa semana ocorreram de terça a sábado, sempre no período da


manhã, das 9:00 às 13:00. Uma pergunta interessante a ser feita: quem, entre os
participantes desta oficina, seria capaz de realizar este treinamento sozinho dentro de uma
sala, numa manhã de quinta-feira, por exemplo, e chegar aos mesmos resultados? Acredito
que ninguém. Estávamos conseguindo superar a nós mesmos e ao nosso cansaço por nos
colocarmos sob a influência da ‘vontade’ adquirida por Simioni em 22 anos de trabalho.
Estávamos respirando dentro da atmosfera do seu trabalho, ou seja, estávamos sendo
conduzidos pela sua ‘alma de ator’, pelo seu ‘mordomo’ construído no âmbito teatral.
Nesse sentido todo o experimento era muito bem controlado e com reduzidas possibilidades
de acidentes e traumas entre os participantes. E éramos em cerca de 30 pessoas trabalhando
num mesmo espaço, fazendo movimentos dinâmicos, aleatórios e livres. O risco de um
choque involuntário era grande, mas a qualidade de atenção que a condução de Simioni
evocava em nós também era grande. Digo que, em todos os cursos que fiz, afora algumas
leves indisposições dos participantes como tontura, problemas digestivos e as dores
musculares que surgiam na manhã do dia seguinte ao trabalho, não presenciei nenhum
incidente ou trauma de maior risco.
Uma segunda observação: essa ‘presença’ que tão nitidamente distinguíamos como
se fosse uma ‘luz’ acesa ou apagada possui, evidentemente, vários níveis de qualidade.
Vimos que quando o ‘abdômen’ acorda, ele passa a ser a fonte de uma energia que percorre
livremente a musculatura, acordando também sensações, emoções e percepções. Se
estivéssemos no meio da rua sob a pressão externa de algum comportamento ou postura

341
psicofísica socialmente aceitável, esta energia não teria o livre curso que teve e todo
experimento seria paralisado. Daí a importância do espaço liminar.
Parece, portanto, que ao despertar no corpo uma energia de natureza vital e física se
desperta também a energia sensitiva. Isso nos leva a encontrar uma nova qualidade
expressiva para esse nosso corpo que vibra mais próximo do simples e fluido estado de
essência e menos próximo do complexo e dividido estado da personalidade. De fato, vimos
que a ‘imaginação’, o pensamento alheio e estranho à experiência imediata, se torna um
fenômeno visível, irritante e contrário a esse fluxo psicofísico imediato. O corpo dilatado
do ator é, portanto, um nível de sua presença, mas não o único. Gostaria de usar as figuras
abaixo para ilustrar, geometricamente, 3 graus desses níveis, suas características e as
qualidades de energia que, no relato, associei a eles:

1 2 3
Energia automática Energia sensitiva Energia consciente
(ou criativa)
Num primeiro momento, quando chegávamos da rua e nos trocávamos para ir à sala
de trabalho estávamos vestidos com esse modo de funcionamento habitual que
acostumamos como nossa identidade: a personalidade social cotidiana que, no capítulo II,
também chamamos de ‘ser inferior’. Notadamente, nas sociedades modernas, possui como
traço e característica comum uma prevalência do uso do centro intelectual sobre os demais
centros, um controle coercivo do pensamento sobre o comportamento do corpo e uma
deficiência no uso e desenvolvimento do centro emocional. É a experiência da vida
organizada, fundamentalmente, pelas necessidades instintivo-biológicas de conforto e
sobrevivência material, o mesmo princípio que organiza a estrutura social de Turner.142

142
As figuras são representações daquele mesmo desenho que propusemos na página 105, mas vistas sobre uma nova
perspectiva: de baixo para cima.

342
Represento esse estado, caracterizado de forma um tanto quanto geral, como um
quadrado cinza e opaco em 1. Ali prevalece uma energia de caráter automático que ativa
tanto as estruturas psicofísicas legítimas e necessárias, quanto aquelas ilegítimas e
desnecessárias; o que gera o cotidiano estado de confusão e despropósito que
freqüentemente se associa à nossa identidade. Conforme vamos adentrando na experiência
do energético, na sala de trabalho, eliminando as estruturas parasitas e atravessando
estágios e barreiras de cansaço e superação de si mesmo; essa identidade habitual, inútil ao
contexto, vai se tornando passiva e enfraquecida. Nesse momento, o corpo psicofísico
começa a arredondar suas pontas e dissolver suas divisões hierárquicas arbitrariamente
impostas pela personalidade. O dinâmico e fluido estado psicofísico da essência começa a
se revelar e esse estado, em relação ao cinza do quadrado, fica mais bem representado em 2
como um círculo de cor. Uma cor para cada tipo de essência, pois nesse estado as
características psicofísicas próprias e únicas da pessoa, sua idiossincrasia, começam a
ganhar a frente e tornam-se ativas. Este é o corpo dilatado em estado bruto.
É possível que a experiência se conecte, ainda, com um nível mais sutil de presença.
Isso porque com a abertura do centro emocional, esse corpo começa a se tornar também
como que translúcido, transparente. No relato, disse que, para mim, era muito claro quando
existia energia emocional sutil conectada ao movimento presente e que era uma passagem
entre a energia sensitiva e aquela consciente. São nesses momentos que a experiência com a
‘lembrança do Si mesmo em si’ tornam-se possíveis. Acrescenta-se ao corpo expressivo
uma nova qualidade de energia sutil, invisível mais evidente. Uma certa radiância
fundamental.
Se colocarmos lado a lado uma pedra comum opaca e uma pedra semipreciosa
translúcida na frente de uma fonte de luz pode-se entender melhor esse segundo estágio de
‘presença’, representado pela figura 3. O corpo, antes de começar o treinamento com a
técnica 2, assemelha-se a uma pedra opaca; mas com a abertura do centro emocional é
como se essa pedra fosse se tornando translúcida em maior ou menor grau. A luz que vem
do outro lado atravessa essa pedra e traz uma nova qualidade ao corpo e àqueles que o
observam. A fonte de luz é a dimensão do ‘ser superior’, a silenciosa presença da
Testemunha que, potencialmente, já existe em todo e qualquer indivíduo.

343
Mas visto de fora, como vemos a figura 3, compreendemos que esse nível de
‘lembrança do Si mesmo em si’ permanece identificado com o corpo psicofísico dilatado
dos atores. Ainda não há separação interna entre aquilo que é observado e Aquilo que
observa, como se a ‘presença consciente’ fosse um fenômeno do “meu” corpo psicofísico
dilatado e não ao contrário. Por esse motivo o ‘treinamento energético’ corresponde a uma
técnica 2 em seu estágio preparatório e não avançado. Para as necessidades imediatas da
atividade artística esse estágio inicial de ‘energia potencial’ do ator parece ser mais do que
suficiente porque cria o vazio necessário para que ele efetivamente trabalhe a dilatação pré-
expressiva e expressiva do seu eixo psicofísico horizontal. Ainda assim, se olharmos numa
escala temporal de maior amplitude saltará fora a irrevogável necessidade de novos avanços
no eixo vertical. Isso porque com o tempo o ‘ser inferior’, o ‘ego’ e a ‘vaidade’ do ator,
começam a manipular esse estado psicofísico dilatado a partir dos seus próprios interesses
autocentrados e todo o processo artístico risca bloquear-se.
Uma nota vinda da psicologia praticada por Gurdjieff e Ouspenky explica bem esse
fato:
O automatismo de nossos pensamentos e de nossos sentimentos corresponde de
maneira precisa ao automatismo de nossos movimentos. Um não pode ser mudado sem
o outro. De maneira que, se a atenção do homem se concentrar, digamos, na
transformação de seus pensamentos automáticos, os movimentos e atitudes habituais
intervirão imediatamente no novo curso de pensamento, impondo-lhes as velhas
associações habituais. (Ouspensky, 1998, p. 398)

Por exemplo, toda a dificuldade e desgraça em lidar e verbalizar sobre um assunto


como esse da ‘presença consciente’ no âmbito do teatro é que a índole preguiçosa de nossa
natureza informa-se sobre essa possibilidade e começa a discursar sobre ela sem antes
avançar da posição 1 para as posições 2 e 3; isto é, sem nos desnudar das nossas
expectativas e fantasias sociais e experimentar a real dilatação de nossas possibilidades
psicofísicas no contexto social imediato em que ocorre a verbalização. Na verdade, sem
antes aprendermos a realizar um ‘treinamento energético’ de caráter mental, nunca
conseguiremos nos expressar adequadamente sobre esse assunto. O tema, então, ou é
tratado como um tabu pelo meio teatral ou desce às raias da especulação “mística”, barata
e prolixa gerando, obviamente, opositores ferrenhos a esse fato que é tão simples e
evidente para aqueles que o vivenciaram.

344
A seguir cito mais um trecho do diário de campo, dessa feita vinda do quarto
encontro de uma oficina feita em agosto de 2007: ‘A utilização cômica do corpo’. Nesse
curso estávamos sendo orientados pelo ator Ricardo Puccetti.

Sobre o quarto dia (30/08/07), escrito em 16/10.

Dos quatro primeiros dias de trabalho, este foi o mais intenso. Certo que
ele é uma conseqüência dos esforços e das experiências vividas nos dias
anteriores que acabam desembocando num lugar novo dentro de nós mesmos.
‘Intenso’, no sentido da permanência de uma memória vívida de muitos
momentos dentro das apenas cinco horas de trabalho. O tempo aparece
dilatado dentro das mesmas cinco horas diárias.
Na primeira parte, fizemos um treinamento energético livre, no sentido
que podíamos utilizar das energias e estruturas dos dias anteriores. 'A meta
do trabalho é acender o corpo', dizia Ricardo, 'e hoje vocês vão sozinhos sem
ter ninguém de fora conduzindo'. Na prática, apesar de sozinhos, muitas vezes
as músicas que Ricardo colocava interferiam diretamente na dinâmica do grupo.
Uma delas foi uma música de bateria que ressoava nos ossos e fazia o corpo se
movimentar quase que espontaneamente. Neste momento da oficina, já no
quarto dia, o grupo tinha conquistado uma qualidade de confiança interna
recíproca e as relações de troca entre as pessoas aconteciam com fluência. A
expressão ‘um lugar novo dentro de nós mesmos’ é boa para representar o
estado que se chega ao realizar em si as transformações de energia e atenção
que a estrutura do energético possibilita, ao ultrapassarmos estágios e
barreiras de preguiça e cansaço físico-instintivo. Uma dimensão da vontade do
ator aparece e se impõe diante destas forças naturais e contrárias ao
funcionamento do corpo no limite de suas possibilidades de atenção, energia,
escuta e abertura para si, para o outro e para o coletivo. A dimensão da
vontade traz à tona a dimensão mais íntima e individual de cada um, com toda
sua potencialidade intelectual e emocional juntas. Cria-se, através da
experiência com o corpo físico, um lugar de vida intensa no momento presente,
no fluxo contínuo do momento presente. O trabalho energético possibilita a
entrada nestes quartos desconhecidos dentro do nosso próprio corpo. Não
trabalhamos sobre os clowns diretamente, mas nas relações e trocas que
aconteceram entre nós, durante o energético. Às vezes, eles (os clowns)
apareciam de forma espontânea e conduziam as relações para uma exploração
de algo que era grotesco e cômico no mais alto grau, aberta e francamente,

345
com pouco pudor ou vergonha. Ricardo usou a imagem de uma casa, na qual
habitamos, e que têm muitos quartos e cômodos que não conhecemos.
Da minha parte, num determinado momento deste dia, a percepção era
de que estava movimentando o meu corpo pela primeira vez, como se nunca o
tivesse percebido com tamanha clareza e nitidez; como se tivesse acordado
para a realidade que estava diante dos meus olhos naquele momento e com esse
corpo novo, com seus sentidos abertos para o sutil eu podia explorar a sala
desconhecida que tanto estava dentro como fora de mim. Dentro e fora como
uma coisa só. A consciência expandida unindo ambos os mundos, interno e
externo. Uma música de chuva começou a cair e o tempo parou... Ao cruzar os
olhos com uma moça na sala, percebi que ela estava dentro de mim e que eu
estava dentro dela. Apesar dos corpos físicos estarem separados de 3 a 4
metros de distância, a percepção era de que estávamos num único corpo.
“Nós do LUME, atualmente, fazemos muitos espetáculos, viajamos muito,
lidamos com muitas pessoas diferentes e isso cria certo desgaste no trabalho.
Periodicamente, no ano, nós separamos duas semanas em sala fazendo um
treinamento como este que vocês fizeram hoje; e isto nos dá novas reservas de
energia para a criação e o trabalho.” Mais ou menos assim falou Ricardo no fim
deste energético.
Fizemos um intervalo e depois com roupas de treino e ‘nariz de clown’
fomos trabalhar num parque infantil que havia ali perto do espaço. Antes
fizemos uma pequena experiência em sala que era de colocar e tirar o nariz
como se fosse um código que ligava e desligava a lógica interna do ‘clown’ que
estávamos desenvolvendo. Era esse o código que utilizaríamos para manter a
ordem no nosso passeio. Ao ser ordenado que se tirasse o nariz, o nariz deveria
ser tirado e o ‘clown’ era posto de lado, era posto para dormir, enquanto um
novo exercício ou proposta seria feita para os participantes da oficina. O
mesmo corpo posto para funcionar por lógicas internas de comportamento
diferentes: a do ‘clown’ e aquela que nos faz funcionar como ‘nós mesmos’.
Fomos ao parque, sem nariz, caminhando pelas ruas da Vila Madalena
como ‘nós mesmos’. Lembro-me de ter tido um pequeno diálogo com uma das
participantes, que me contava que havia chegado de Belo Horizonte há apenas
dois meses, que era casada, morava com o marido e viera a São Paulo na
esperança de que iria ter mais oportunidade de trabalho como atriz. Esta
pessoa era aquela que não muito tempo antes, quase no fim do energético, eu
havia cruzado o olhar. Estávamos já em mundos diferentes e nesta caminhada
até a praça, a força da estrutura social pressionava e fazia com que
funcionássemos de outra maneira, completamente diferente. Legítima,

346
necessária, irrevogável e diferente. No momento do diálogo, uma pequena voz
dentro de mim lançava a inevitável questão: certo, nós, 'pessoas', aqui fora nos
apresentamos desta maneira. É justo e natural, mas não seria ainda mais
legítimo e necessário que mantivéssemos a percepção de que também isto é
uma representação, e de que sendo uma representação, ela não é a realidade
última de nossa existência, mas tão e somente uma representação parcial da
nossa realidade? Seria possível atuar nossas vidas com essa percepção? Como
fazer? No trabalho teórico da pesquisa, tenho tentado desenvolver essas
questões a partir das considerações de Turner, Brook e Gurdjieff-Ouspensky.
(Clown- Quarto dia – (30/08/07)

7.2.3 - Pontos de vista sobre o trabalho com a exaustão.

Nesta seção, serão tecidos alguns comentários a partir de pontos de vista sobre o
‘treinamento energético’ daqueles que tiveram contato aprofundado com essa técnica no
LUME. Começamos com alguns interessantes depoimentos de Jean Pierre Kaletrianos que
desde 1984, antes mesmo do LUME ter início, já acompanhava os experimentos de Burnier
nessa área:

“O energético é como se fosse, realmente, uma meditação ativa [em movimento].


Serve, basicamente, para enfraquecer a ditadura do mental e para você entrar em contato
[...] fazer circular os três centros Gurdjeffianos: o mental, o emocional e o ‘bio-sexual’
como se fala, que seria o corporal. Nesse sentido, ele funciona porque realmente você vai
para um momento onde é uma questão de sobrevivência do seu corpo, de tão cansado que
você está. [...] Então, não dá para pensar mais. Você não pensa mais. E nesse sentido pode
ser que realmente saiam coisas interessantes. Mas é um caminho. Quer dizer, o que eu
acho que precisa muito claramente ter diante de si é que é um caminho, que não é o
caminho. Você não precisa sempre entrar em exaustão para poder [chegar nesse estado].
Aliás, é também um caminho até certo ponto elitista. Quer dizer, que não é para todo
mundo. Não é todo corpo que suporta. Então, como você pode ver essa presença fantástica,
por exemplo, em atores idosos ou com problemas, onde existe uma presença, um contato
consigo mesmo fantástico, que não tem nada a ver com a exaustão? Quais são os outros
caminhos?” (Entrevista com J. P. Kaletrianos em 06/10/2008)

A primeira parte deste trabalho foi justamente na direção desta pergunta, tentando
encontrar alguns princípios instrutivos que pudessem servir de eixo para esses outros
caminhos operacionalizados no trabalho do ator. A divisão da atenção, a não expressão das
emoções negativas, o controle sobre o giro sem direção do pensamento em direção a nomes
e formas estranhos à experiência, isto é, o enfraquecer da ditadura da ‘imaginação’ mental;

347
são três poderosas técnicas do trabalho sobre si que minimizam o trabalho incorreto dos
centros e que poderiam estruturar esses outros caminhos.
Será que Burnier havia, em algum momento, tomado contato com princípios do
‘trabalho do homem sobre si mesmo’, assim como tinha ocorrido com Stanislavski,
Grotowski, Brook, Barba, entre outros? Que ele lera ao menos um livro de Ouspensky, isto
eu já sabia, pois “Um Novo Modelo do Universo” consta da bibliografia de sua tese.

“Sobre essa questão justamente da verticalidade, eu conversava muito com ele


sobre o Gurdjieff que ele não conhecia. Eu não sei por onde ele chegou no Ouspensky. Não
sei se foi através das nossas conversas ou por outros canais. (Entrevista com J. P.
Kaletrianos em 06/10/2008)

O trabalho com a exaustão do ponto de vista do desenvolvimento humano.


Uma constatação interessante sobre o trabalho nas escolas de desenvolvimento
humano, como aquelas abertas no Ocidente por Gurdjieff, é que elas próprias utilizam a
superação da exaustão corporal como um dos métodos para derrubar o controle da mente e
ativar o estado de essência. Foi justamente essa a suposição inicial da pesquisa, isto é, que o
‘treinamento energético’ é derivado de uma técnica 2 que é comum nas tradições esotéricas.
Mas, diferentemente do trabalho dos atores, esta ‘dilatação corporal’ resultante, não sendo
projetada para fora através dos princípios pré-expressivos artísticos, permanece como
suporte para ulteriores níveis de trabalhos sobre si. Ouspensky nos explica sobre o trabalho
físico:

O trabalho físico — não os esportes, mas o trabalho duro, uma espécie para uma
pessoa, outra para outra — põe os centros em boas condições. Os centros estão ligados de
um certo modo e as energias se distribuem de uma certa forma. Quando as pessoas estão
ociosas, os centros procuram fazer o trabalho um do outro, e, por causa disso, o
trabalho físico é um método muito seguro para fazê-los trabalhar melhor. Esse método é
muito usado nas escolas. Na vida moderna, sobretudo em algumas pessoas, o trabalho
incorreto dos centros solapa toda a energia. Mas, naturalmente, mesmo no trabalho
organizado, se trabalharmos identificados, ele não terá nenhuma significação. (Ouspensky,
1995, p. 274.)

Fazê-los trabalhar melhor significa fazê-los trabalhar com atenção controlada e


mantida por esforço voluntário, momento a momento, isto é, nos ‘Reis’. Um cirurgião
cardíaco com um paciente na mesa de operações deve, por força das circunstâncias, conseguir
trabalhar com esse nível de atenção, de modo que estamos falando de algo que é

348
absolutamente concreto e prático. Mas nas Escolas esse trabalho físico não é feito somente por
força das circunstâncias. Ele é organizado de modo que a vontade daquele que o realiza crie
uma pressão interna que seja semelhante ou até maior do que a natural pressão das
circunstâncias externas e das expectativas sociais. Dito de outro modo, se para determinado
buscador foi dada a tarefa de varrer a sala, a sala deve ser varrida como se ele estivesse
realizando uma delicada operação do coração. Ou ainda, varrer a sala torna-se uma ação
prática e objetiva tanto no mundo externo como no mundo interno do sujeito.
Isso nos leva ao ponto e nos aproxima, imediatamente, do trabalho do ator sobre si
mesmo. Interna e externamente, ambos os trabalhos evocam processos muito similares e
comparáveis entre si. Essa fundamental semelhança entre eles cunhada por Artaud através do
termo ‘atleta afetivo’ é revelada, aqui, nas palavras de Ouspensky:
[...] o trabalho físico organizado precisa de esforço emocional. Essa é a razão pela qual o
trabalho físico não pode realmente ser chamado de físico, porque é emocional também. Se
fosse unicamente físico, não seria proveitoso. Se não houver nenhum esforço emocional no
trabalho físico que estivermos fazendo, devemos aumentar a sua velocidade ou aumentar o
tempo ou o esforço para torná-lo emocional. Procurem fazer algum trabalho físico mais
difícil e de maior duração do que quando o fazem com facilidade e verão que isso exige um
esforço emocional. Daí a razão por que o trabalho físico é importante. (Ouspensky, 1995,
p. 274.)

Esse mesmo princípio é utilizado tanto no ‘treinamento energético’ como na


‘posição da emoção’ no trabalho que vimos com Simioni e Naomi. De fato, a lei do maior
esforço para o menor efeito é comum a ambos.
Um outro aspecto desse trabalho é: digamos que a tarefa de varrer a sala deva ser
executada não por uma, mas por três pessoas. Sabemos que é sempre mais cômodo fazer
algo sozinho do que trabalhar coletivamente. No trabalho organizado de uma escola a idéia
de que cada um possui um ‘papel’ dentro da atividade é fundamental. O primeiro e mais
experiente, então, poderia ser o líder e os outros dois seus ajudantes. Aí começamos a
notar que trabalhar em relação com os outros, adaptando-se criativamente às suas
imediatas dificuldades, facilidades e reais necessidades é sempre mais sutil e difícil do que
quando trabalhamos sobre os outros, impondo a eles nossas opiniões e maneiras de ver as
coisas. Neste último modo de operação logo se estabelece um binômio de relação
opressor-oprimido que se ativa rápida e reciprocamente; sempre sustentado por nossas
características mais automáticas e obscuras. Como as escolas são feitas para estudantes de

349
si mesmos; isto é, pessoas que descobriram que pouco ou nada sabem sobre si mesmos, a
relação entre esses estudantes, geralmente, segue uma forma processual muito parecida
com aquela do ‘Drama Social’ de Turner, com suas quatro fases (ruptura, crise, ação
remediadora e reconciliação ou dissidência) escancaradamente dilatadas. Nas escolas as
relações humanas nunca são fundamentadas por um ‘amor idealizado’; mas isso só pode
ser assim porque a ação remediadora sempre tem uma carga liminar exponencialmente
maior do que na vida comum, seja pelas circunstâncias do contexto seja pelos motivos que
os buscadores trazem dentro de si. Assim, uma simples atividade física como esta de
varrer o chão começa a ser também um instrumento que revela, momento a momento, a
qualidade das relações afetivas que estabelecemos com os outros.
E então podemos nos instruir praticamente sobre a verdade de que a expressão das
emoções negativas e as relações criativas nunca andam de mãos dadas. Pessoalmente,
pude experimentar, em diversas ocasiões, essa espécie de trabalho físico organizado. Uma
delas, talvez a mais marcante porque a primeira, foi ter passado pouco mais de 30 dias
trabalhando diariamente na anual colheita de uma vinícola. Ali, colher uvas para a
produção de vinhos não era somente um trabalho externo, mas, fundamentalmente,
representava também um possível processo interno que estávamos aprendendo a realizar.
Ouspensky fala acima, também, em variações de ritmo, aumentar a velocidade, o
tempo ou a dificuldade e isso nos remete novamente aos jogos competitivos, ao esporte e
aos atletas. Aqui, como em Artaud, estamos tratando de ‘atletas afetivos’. Obviamente
que, se a motivação fosse vencer o concorrente, já seria a ‘pressão das circunstâncias
externas’ e a expectativa social que estariam trabalhando por nossa vontade e todo o
processo poderia deixar de ter esse acentuado caráter liminar de jogo consigo mesmo; este
‘jogo mestre’ que se dá entre a parte em nós que quer trabalhar e aquela que nos faz
esquecer o trabalho, muito embora possa estar varrendo a sala de modo muito natural ou
colhendo uvas de modo muito eficiente como uma máquina.143 É, justamente, quando
localizamos essas duas forças opostas e contraditórias em nós mesmos que surge a
possibilidade do esforço emocional. E se ele, de fato, se efetiva, independente do resultado
externo, a vitória será dada à nossa vontade e não à nossa preguiça e hipocrisia. Teremos
ganho o jogo. Poderíamos dizer que é justamente o constante embate e fricção entre essas
143
"Do not forget the covenant. Struggle with your lower self. Either you ride it, or it will ride you." Al-Jilani (Sufi sec.
XII)

350
duas forças opostas, que existem em nossa natureza, que dá nascimento e faz amadurecer
144
um ‘mordomo’ dentro do âmbito do ‘trabalho sobre si mesmo’. No entanto, como o
‘mordomo’ não é o ‘Senhor’ da casa, este embate caracteriza-se por ser um estágio apenas
preparatório. Imprescindível, mas preparatório para um novo nível de ‘jogo’ onde se
operacionalizaria uma constante atualização da identidade de si no “Si mesmo”. É o que
quis dizer Ouspensky quando escreveu acima que ‘mesmo no trabalho físico organizado, se
trabalharmos identificados, ele não terá nenhuma significação’. A prática da ‘divisão da
atenção em 3’, que vimos no capítulo II, deve, portanto, ser constantemente restaurada e
ativada através de toda a limpeza da sala ou colheita da uva.
É muito curioso notar que traços deste ‘jogo mestre’ são, também, perfeitamente
localizáveis no âmbito do trabalho artístico instituído pelo LUME sendo o ‘treinamento
energético’ como uma lupa que o evidencia inteiramente. Eu só posso ir além da exaustão
porque vou descobrindo que minha identidade está além do corpo e além do pensamento.
No ‘trabalho sobre si mesmo’, aqueles que foram designados a varrer a sala devem
encontrar uma motivação para realizar a tarefa que evoque integralmente a ‘pessoa’ deles.
Devem criar um modo de varrer a sala, de trabalhar com seu aparato psicofísico e a
vassoura, que acenda as suas ‘energias potenciais’, e devem fazê-lo estando também
abertos emocionalmente para os outros, como se todos fossem partes de um só todo
coletivo. Isto é, ao mesmo tempo em que trabalham com uma tarefa aparentemente comum
e cotidiana é como se realizassem, interna e invisivelmente, um constante ‘treinamento
energético’.
A seguir vamos ler o relato de uma experiência prática individual feita pelo próprio
Ouspensky sob as circunstâncias do trabalho sobre si mesmo organizado por Gurdjieff.
Ponho em negrito, partes do texto que se correlacionam com a questão da exaustão:
[...] quando começamos nosso jejum, G. não nos deixou em paz um só segundo.
Fazia-nos correr no auge do calor três ou quatro quilômetros ou ficar de braços
estendidos ou marchar no lugar num ritmo acelerado ou executar toda uma série de
curiosos exercícios de ginástica que nos mostrava.
Durante todo esse jejum, ele não cessou de insistir no fato de que não se tratava, aí,
de exercícios reais, mas simplesmente de exercícios preliminares e preparatórios.

144
"One must study how the soul can reverse the situation, and use those things through which it had formerly sinned to
generate and sustain the virtues." * Philokalia

351
Uma experiência que fiz, relativa ao que G. dissera a respeito da respiração e da
fadiga, permitiu-me explicar muitas coisas, notadamente porque é tão difícil chegar
seja ao que for nas condições comuns da vida.
Tinha ido para um quarto onde ninguém podia me ver e começara a marcar o
passo num ritmo acelerado, tentando ao mesmo tempo regular minha respiração,
contando: inspirava durante certo número de passos e expirava durante outro
número de passos. Um pouco cansado, depois de certo tempo, observei ou, para ser
mais exato, senti com toda clareza que minha respiração se tornara artificial e instável.
Senti que dentro de muito pouco seria incapaz de respirar desse modo continuando a
marcar o passo e que minha respiração habitual — acelerada, é claro — retomaria o
comando, apesar de qualquer contagem.
Tornava-se cada vez mais difícil, para mim, continuar a respirar e a marcar o passo,
observando ao mesmo tempo a contagem das respirações e dos passos. Estava
banhado em suor, minha cabeça começava a rodar e eu pensava que ia cair. Começava
a perder a esperança de obter o menor resultado e estava a ponto de parar, quando de
repente pareceu-me que algo se partia ou se deslocava dentro de mim; então, minha
respiração voltou tranqüila e normalmente ao ritmo que eu queria, mas sem nenhum
esforço de minha parte e sem deixar de me fornecer a quantidade de ar de que
necessitava. Era uma sensação extraordinária e das mais agradáveis. Fechei os olhos e
continuei a marcar o passo, respirando fácil e livremente;
Parecia-me que uma força crescia em mim e eu me tornava mais leve e mais
vigoroso. Pensei que se pudesse correr dessa maneira durante certo tempo, obteria
resultados ainda mais interessantes, porque começara a sentir ondas de fremente alegria
invadir meu corpo. E isso — sabia por experiências anteriores — sempre precedia o que
eu denominava abertura da consciência interior.
[...] essa experiência mostrou-me com precisão que um exercício dado podia ser
transferido para o centro motor, ou seja, que era possível fazer o centro motor
trabalhar de maneira nova. Ao mesmo tempo, tinha-me convencido de que a condição
dessa transferência era uma extrema fadiga. Começa-se um exercício com a cabeça —
e só quando se atinge o último estágio de cansaço é que o controle pode passar ao
centro motor. Isso explicava as palavras de G. a respeito dos "super-esforços" e tornava
inteligíveis suas últimas recomendações.
Mas, depois, por mais esforços que fizesse, não consegui mais repetir essa
experiência, isto é, provocar as mesmas sensações. É verdade que o jejum terminara e o
sucesso de minha experiência era, em grande parte, devido a ele.
Quando contei a G. o que experimentara, disse-me que, sem um trabalho geral,
sem um trabalho de todo o organismo, tais fatos só podiam acontecer por acidente.
(Ouspensky, 1998, p. 204-205.)

No final da experiência, Ouspensky nos alerta que não aconselharia este tipo de
exercício para cardíacos ou pessoas com deficiências de saúde. Naturalmente, esse mesmo
tipo de recomendação foi feito em todos os cursos do LUME que participei.
Cito como exemplo comparativo mais uma passagem de nosso diário de campo
também ela da oficina de ‘Clown’; mas agora já no quinto dia de trabalho, quando o

352
treinamento energético também não foi conduzido de fora, mas dependia do esforço de
cada um dos participantes e da interação do grupo como um todo:

O desafio do energético deste dia, livre como o do dia anterior, era


conseguir alcançar a mesma qualidade. "Não queremos chegar às mesmas
coisas, mas no mesmo nível de qualidade de energia e relação.", disse Ricardo.
Duas lembranças, eu tenho, do experimento energético deste dia. A
primeira:
Logo no início, quando paramos após a primeira dinamização, vi que não
havia gerado energia suficiente para voar por cima da cadeia montanhosa do
desânimo, que é gerada pela fadiga e cansaço. Digo que era como se tivesse
tirado uma fotografia do meu estado psicofísico do momento, e ela revelava
distância e apatia. Percebi a mim mesmo distante e apático, com pouco contato
e relação com aquilo que fazia. Mas no energético não há tempo para pensar
sobre as coisas, simplesmente segue-se fazendo. Segui fazendo, pulando,
dinamizando e movimentando-se pelo espaço. Num determinado momento
Ricardo pôs uma música com uma pulsação rítmica intermediária: não era lenta,
nem rápida; mas estimulava a movimentação.
Quando num estado de expansão energética, vejo que o corpo é capaz de
seguir a música com seus próprios impulsos rítmicos, entrando ou não em
relação com ela. Num estado de energia parada, o corpo não tendo força
criativa para o diálogo, acaba sendo comandado pelo ritmo da música, pelo
estímulo externo.
Achei que se seguisse naquela pulsação, simplesmente continuaria no
lugar onde estava; que, dito de maneira precisa, era controlado pela economia
da lógica instintiva que nunca dá além do mínimo aceitável. Comecei a dançar
dentro do ritmo da música, numa pulsação duas vezes mais rápida daquilo que a
música estimulava. Um pensamento instintivo rapidamente reagiu dizendo que
não iria ser possível fazer aquilo naquele dia. Disse comigo mesmo: "... pelo
menos até o fim da música." Funciona, porque você estipula uma meta que sabe
que vai acabar num tempo determinado - uma música não é uma hora - e isto, de
algum modo, acalma as reações contrárias. Foi o que aconteceu, e a música, que
não era nada curta, levou um tempo suficiente para acender novas reservas
energéticas que não imaginava possuir. O fato é que ao terminar a música, já
não tinha nenhum desejo de parar ou economizar energia. O corpo
simplesmente seguia seu próprio ritmo e fluxo interno conquistados.
A expressão: "ir além de si mesmo", parece representar uma premissa do
trabalho do ator de qualquer tipo de teatro, nos seus mais distintos e possíveis

353
sentidos. Aqui, no trabalho com o LUME, o sentido é bastante concreto e
tangível; pois quer dizer: ir além daquilo que você imagina ser o seu limite de
cansaço físico. Ao ultrapassar esse limite, vão surgindo outras dimensões desse
sentido. (Clown – Sobre o quinto dia de trabalho (31/08/07), escrito em
19/10/07).

Níveis de energia
Mas, do ponto de vista do ‘trabalho sobre si’ e do ponto de vista energético e esotérico
o que significa a expressão “ir além de si mesmo”?
A idéia básica é que o corpo humano é uma espécie de refinaria energética. Da matéria
prima que lhe chega sob a forma de ‘alimento’, ele deve produzir qualidades de energia que
ponham em funcionamento seus cérebros inferiores. Este ‘alimento’ lhe chega através da
alimentação diária de comestíveis, através do ar que respira, e através das impressões que lhe
chegam pelos sentidos. Uma obra de arte, nesta perspectiva, é considerada como um alimento
de natureza energética refinada. Um espetáculo de teatro com atores representando no mesmo
espaço tempo que os espectadores é uma completa refeição de impressões que lhes chegam por
todos os sentidos. Assim, através do alimento, da respiração e das impressões, a vida do nosso
organismo é mantida desde o nascimento até a morte e isso produz, ao longo dela, diversos
fenômenos de natureza instintiva, motor, intelectual, emocional e sexual. Vejamos a seguir o
que a psicologia de Gurdjieff explica quando ocorre o fenômeno da superação da exaustão
como relatado por Ouspensky e por mim mesmo ao experimentar o treinamento energético.
Até certo ponto, essa refinaria funciona sem a nossa participação voluntária
acumulando uma grande quantidade de energia e todas as nossas funções recebem desta,
quantidades que as colocam em atividade. Para cada função psíquica há pequenos
acumuladores energéticos que são periodicamente abastecidos por uma espécie de acumulador
energético central. Para uma utilização cotidiana e funcional dos nossos corpos esses pequenos
suprimentos energéticos são mais que suficientes, mas se prosseguimos numa atividade,
exigindo de nós mesmos uma maior qualidade de realização, algo diferente começa a ocorrer:
Suponha que o homem comece a pensar e use a energia de um dos pequenos
acumuladores do centro intelectual. A energia no acumulador diminui cada vez mais, e, ao
chegar ao seu nível mais baixo, o homem se sente cansado. Faz, em seguida, um esforço ou
descansa um pouco ou boceja, e se liga ao segundo pequeno acumulador. É muito interessante
como o bocejo é uma ajuda especial da Natureza para a passagem de um acumulador a outro.
O homem continua pensando e consumindo energia do segundo acumulador, fica novamente
cansado, boceja ou acende um cigarro, e se liga outra vez ao primeiro pequeno acumulador.

354
Este, porém, pode estar carregado apenas pela metade e rapidamente se esgota. O homem se
liga, uma vez mais, ao segundo acumulador, que está carregado apenas uma quarta parte, e
assim continua até que pode chegar o momento em que ambos os acumuladores estejam vazios.
Se, então, o homem fizer um esforço especial de tipo adequado, poderá se ligar diretamente
ao grande acumulador. Essa é uma explicação dos milagres, pois então o homem terá um
enorme suprimento de energia. Isso, no entanto, requer um esforço muito grande, não um
esforço comum. (Ouspensky, O Quarto Caminho, 1995, p. 223.)

Seja através do trabalho físico, seja através do trabalho intelectual ou de ambos


contemporaneamente; quando, passo a passo, superamos a ilusão da fadiga e da falta de
ânimo, entramos em conexão direta com isto que Ouspensky chamou de ‘grande
acumulador’ energético. A partir desse momento temos acesso a uma grande quantidade de
energia psíquica que é como que represada e armazenada pelo nosso organismo para ser
utilizada em reais situações de risco e sobrevivência. É, portanto, como se estivéssemos
ludibriando nosso instinto de sobrevivência, criando uma pressão contextual artificial a ele
(que pode ser artística, teatral, esotérica, existencial) que dará acesso e inimagináveis
possibilidades psicofísicas. No entanto, este tipo de energia ainda não tem uma
concentração significativa de energia da consciência:

Devemos distinguir quatro energias que circulam em nós: a energia física ou mecânica,
como, por exemplo, aquela com que movemos esta mesa; a energia vital, que faz o corpo
absorver o alimento, reconstruir os tecidos, etc.; a energia psíquica ou mental, com a qual os
centros trabalham, e a mais importante de todas, a energia da consciência.
(Ouspensky, O Quarto Caminho, 1995, p. 72.)

A energia da consciência só pode ser produzida em maior escala por esta refinaria desde
que, como vimos, um grau de divisão de atenção voluntário seja evocado. Cultivando a atenção
sobre a qualidade da atividade das funções, fazendo escolhas sobre a qualidade dos tipos de
‘alimento’, e, sobretudo através da ‘lembrança do Si mesmo em si’, o organismo-refinaria pode
prosseguir seu funcionamento em direção ao mais sutil, veloz e invisível, gerando combustíveis
que colocam em funcionamento funções e potenciais desconhecidos ao homem ordinário
comum.
E aqui ocorre algo muito curioso. Ao dividir a atenção um homem começa a ter uma
dupla impressão: tem a impressão de si mesmo e daquilo que observa e isso o ‘alimenta’ mais.
Ao lembrar-se do Si mesmo em si, ele começa a ver as impressões diretamente como são sem a
interferência do véu da sua imaginação. Ao invés de associarmos um ‘nome’ à impressão da
árvore que nos chega e passar a receber a impressão filtrada por esse nome, podemos ver a

355
impressão da árvore diretamente como ela é, com todas as suas qualidades de cor, sons,
movimentos, odor e existência que pulsam e jorram, momento a momento, como uma fonte de
água ininterrupta. A expressão ‘abrir as portas da percepção’ significa que um sentido sutil
pode perceber, ao mesmo tempo, de todos os níveis de impressão que lhe chegam.
Por ter produzido o sutil em si, começamos a ver e nos ‘conectar’ com o sutil que já existe em
todas as impressões externas. Desse modo a refinaria inaugura alas de produção energética
extraordinárias.
A prática cotidiana da não expressão das emoções negativas, da não-identificação com
o ‘ser inferior’ e suas manifestações automáticas e passionais; é a preparação para um segundo
e novo choque que possibilita energias ainda mais refinadas:
“Nenhum crescimento real, isto é, nenhum crescimento dos corpos superiores no
organismo é possível sem a transformação e uma mutação das emoções [...] A idéia dessa
transmutação era conhecida de numerosos ensinamentos antigos e até de alguns ensinamentos
mais recentes, a alquimia da Idade Média, por exemplo. Mas os alquimistas falavam dessa
transmutação sob a forma alegórica de uma transmutação de metais vis em metais preciosos.”
(Ouspensky, Fragmentos de um Ensinamento Desconhecido, 1998, p. 223.) 145

A transmutação de metais vis em metais preciosos, a transformação de energias densas


(vitais e psíquicas) em energias sutis (energia consciente e criativa), a transformação do
sofrimento psicofísico em ‘Presença sem palavra’, é a tudo isso que se refere o termo
‘verticalidade’, o mesmo utilizado por Grotowski. Sempre vamos um pouco mais ‘além de nós
mesmos’ quando conseguimos concentrar e conter uma quantidade de atenção e de energia com
qualidades mais sutis do que aquelas que circulavam em nós num momento precedente.
John Bennet, um engenheiro e buscador inglês que trabalhou e colaborou com
Ouspensky e seguiu Gurdjieff até o final de seus dias, foi, parece-me, quem melhor
organizou um material de estudo sobre o tema das energias, tentando resgatar um antigo
sistema tradicional, presente no Budismo e no Sufismo, que coordena todos os tipos de
energia que circulam pelo Universo. É um estudo muito interessante porque une, através da
perspectiva das energias, interesses de investigação que vão desde as Ciências Exatas até a
Psicologia, desde as Ciências Biológicas até a Filosofia, a Arte e a Religião.146
Esse sistema agrupa 12 categorias de energias diferentes, divididos em três
diferentes grupos, que tratam dos fenômenos físicos da matéria (Energias Físicas); dos

145
Continuous remembrance produces the gradual transmutation of the attributes of the lower self into the Attributes of
God. – Nurbakhsh (Sufi do século XX.)
146
BENNET, 1986, p.33.

356
fenômenos orgânicos e psicofísicos (Energias Vitais); e segue, indo além dos limiares da
capacidade psicofísica humana, chegando num último grupo de energias que denominou
‘Cósmicas’ e que contém, em seu primeiro nível, essa energia da consciência da qual nos
fala Ouspensky.
Para uma melhor visualização dessa classificação cito-as na íntegra com alguns
exemplos, entre parênteses, relacionado a cada uma delas. Elas estão em ordem crescente
de transformação; isto é, das mais básicas e desorganizadas às mais sutis e elaboradas.
Energias Físicas: 1- Energia dispersa (segunda lei da termodinâmica); 2 – Energia
direcionada (eletricidade, gravidade, fluxo de calor); 3 – Energia coesiva (energia da
estrutura da matéria); 4 – Energia plástica (maleabilidade da estrutura da matéria).
Energias Vitais: 5 – Energia construtiva (DNA: material genético, estrutura
celular); 6 – Energia vital (manutenção da sobrevivência do corpo, alimentação e
reprodução); 7 – Energia automática (O padrão de organização da vida: colônia de
abelhas); 8 – Energia sensitiva. (Capacidade de contato com o meio-ambiente e
reorganização do corpo vivo em relação às mudanças desse meio: olfato de um cão.)
Energias Cósmicas: 9 – Energia consciente; 10 – Energia criadora; 11 – Energia
unitiva; 12 – Energia transcendente.
Cada nível de energia desses é o resultado das concentrações e interações entre
aquele do tipo imediatamente acima e aquele do tipo imediatamente abaixo.
Um exemplo simples pode nos dar uma idéia de como operam esses categorias de
energia em nosso mundo físico material: a argila, quando seca, perde a sua capacidade de
ser modelada, articulada e adaptada. Se, quando úmida, ela se mantém como um corpo
físico único, isso é devido à presença da ‘energia coesiva’, esse tipo de energia que une os
núcleos atômicos, os átomos e as moléculas e constituem todos os corpos físicos que
conhecemos. Mas a sua maleabilidade só é possível por conter suficiente quantidade de
‘energia plástica’, isto é, uma densidade de vibração nas suas moléculas que é, por
exemplo, bem característica do estado líquido da matéria. Ao ir perdendo essa energia,
através da evaporação da água, a argila também vai, gradativamente, se enrijecendo. Nossas
cordas vocais, nossos músculos, nossas mãos, nossas artérias são, também, exemplos de
corpos físicos que contém a maleabilidade da ‘energia plástica’. Outro exemplo: se
tomarmos um pedaço de chumbo, para que ele derreta liberando sua ‘energia plástica’ é

357
necessário fornecer-lhe uma grande quantidade de calor, um tipo de ‘energia direcionada’
que permita certa densidade de vibração em suas moléculas. Ao pararmos de fornecer esse
calor, a interação com o meio e a segunda lei da termodinâmica garantem que essa energia
será dispersa e o chumbo voltará a ser um pedaço sólido; muito embora, agora, numa outra
possibilidade de forma.
No nível psicofísico humano das Energias Vitais vemos, analogamente, esses
mesmos tipos de relação. Num primeiro momento, quando somos muito crianças,
sensações, movimentos, pensamentos e sentimentos são dinamizados pela ‘energia
sensitiva’ sempre muito disponível ao estado de essência. Com o passar dos anos, na vida
adulta, a concentração de ‘energia automática’ pode passar a ser maior, o que diminui as
possibilidades de variação e adaptação em todos os quatro centros inferiores. As técnicas 2
em seu estágio preparatório devem liberar uma grande quantidade de ‘energia vital’; e se
essa energia é corretamente direcionada de volta para nós mesmos, ela aumentará a
concentração de nossa ‘energia sensitiva’ que passa a ser, novamente, dominante.
Tornamo-nos, então, sensitivos, maleáveis e inteligentes sobre nosso modo de operação
psicofísico. É verdade que um choque acidental, um incidente repentino, pode disparar o
mesmo tipo de interação. Mas, aqui, no âmbito das técnicas 2, os choques são
intencionalmente aplicados. Cria-se uma densidade de vibração nas moléculas das nossas
estruturas psicofísicas e nos descobrimos num novo corpo como se fôssemos uma nova
pessoa. No trabalho do ator do LUME esse choque chama-se ‘treinamento energético’ e o
processo como um todo é chamado de ‘A construção do corpo dilatado’.
A seguir, usando apenas as 5 energias em cor vermelha, faço uma tentativa aproximada
de coordenar esses possíveis níveis com as experiências de ‘trabalho do ator sobre si mesmo’
feitas no LUME, na segunda coluna; e com as experiências de ‘trabalho sobre si mesmo’ a
partir da psicologia de Gurdjieff e Ouspensky na terceira coluna:
Saúde geral do corpo
Energia vital – Alimentação básica.
(e/ou energia física) Ar e Impressões
(Prana ou Chi)
Ser inferior
Energia automática – - Corpo cotidiano. Segundo estado de
(ou psíquica 1) consciência.
Estado habitual do ator. Entre a inércia e as paixões.
Entre os Valetes e as Damas.

358
Liberação de Energia vital Treinamento energético
Do grande acumulador – (primeira fase) Processo de eliminação de
(ou da energia física) -Eliminação das energias material (psicofísico) inerte.
parasitas. Ascensão aos Reis dos
“Acordar do Leão” Centros.
-Despertar do abdômen

Treinamento energético Controle da atenção.


Energia sensitiva – (segunda fase) Reis de Paus, Espadas e
(ou psíquica 2) - Indo além da exaustão. Ouros
- Construção do Acesso intencional
Corpo Energético. aos Valetes e Damas
Corpo Dilatado. do corpo mente dilatado.
Segunda natureza do ator.

- Indo além da exaustão. -primeiro choque consciente.


estado de essência em fluxo.
- Despertar do Coração esforço emocional.
Corpo Mente e Coração
Estado criativo do ator. dilatados (Mordomo)

Energia consciente – -Lampejos de Presença que Lampejos do Terceiro estado.


atravessam o Corpo dilatado Lembrança do Si mesmo em
e transparente. si. (que sempre esteve
potencialmente presente.)
- Divisão da atenção em 3.
? - segundo choque consciente
- transformação do
sofrimento.

Energia criativa – - Estado da Fonte Criadora Separação entre o Si mesmo


eo
corpo psicofísico dilatado
Mordomo maduro.
Constante atualização da
identidade de si no Si mesmo.

Aquilo que está em verde, está sendo tratado nesse capítulo. Aquilo que está em
azul, será tratado no último item deste capítulo: “Prisão para a Liberdade”; sobre os
experimentos de Carlos Simioni.
Nada nessa tabela deve ser considerado de modo estanque ou separado como a
própria forma e separação de linhas poderiam levar a entender. Cada novo grau de energia
ascendido é acrescentado sobre os demais, misturando-se aos anteriores e transformando-

359
os. Não vamos desenvolver o tema das ‘energias’ psicofísicas além deste ponto, mas todo
ele deve estar em correspondência direta com a teoria do ‘chakras’ da psicologia Hindu e as
diferentes qualidades de ‘prana’ que circulam pelo corpo através dos ‘nadis’, os canais
meridianos de fluxo energético. Para um estudo comparativo sugiro a leitura de “Teoria dos
Chakras” de Hiroshi Motoyama, Ph.D. em Filosofia e Psicologia Clínica; em especial, o
capítulo VIII.

O trabalho com a exaustão do ponto de vista do processo artístico criativo.


Seguindo com a pesquisa em torno ao tema do ‘treinamento energético’ veremos
como os próprios atores-pesquisadores do LUME observam algumas das suas
características essenciais e também alguns freqüentes mal-entendidos inerentes a esse tipo
de técnica. Interessante abordar algumas das suas colocações nesse momento.
Traços característicos
Ana Cristina Colla há muitos anos atrás já falava sobre esse ‘jogo mestre’ que
localizamos como a essência do ‘treinamento energético’ e que nos leva ‘além de nós
mesmos’. Na época ela se utilizou dos seguintes termos:
O treinamento energético foi o responsável por acordar o leão que vivia
adormecido em mim. Foi de fundamental importância para o surgimento do meu trabalho;
através dele visitei recantos nunca antes explorados. Fez o leão sair da toca. De tempos em
tempos é necessário a ele retornar, já que medroso ou preguiçoso, o leão insiste em se
esconder. (Ana Cristina Colla, entrevista, 1997). (Revista do LUME N-3, 2000, p. 100)

Parece-me que o sentido do termo ‘acordar o leão’ utilizado por ela e por Burnier
possa estar relacionado com este ludibriar o organismo para acessar o grande acumulador
energético, que foi explicado acima. De tempos em tempos teríamos que refinar nossos
métodos para ‘enganá-lo’ para que o nosso padrão de exigência psicofísica se mantivesse
alto. Seja como for, quando dois artistas que se encontram para trabalhar têm, eles
próprios, contato e experiência com esse característico ‘jogo mestre’ da natureza humana
todo o processo torna-se mais rico, produtivo e simples. De modo algum mais fácil ou
confortável. Foi o que pude observar, por exemplo, no processo de criação do espetáculo
“Você” com Tadashi e Ana Cristina.
No caso do ator do LUME um traço básico e característico desse ‘leão fora da toca’
está relacionado com o fato de ele ter um abdômen aceso que pulsa energia vital para todo

360
o organismo atingindo, inclusive, o espectador. Numa entrevista recente, Jesser de Souza
tenta descrever sua experiência de espectador quando assiste a um corpo que está
energeticamente dilatado. Conecta-se diretamente com o fato, evidenciado há pouco, de que
um espetáculo de teatro pode ser uma completa refeição de impressões que chegam por
todos os sentidos:
Mesmo na sala, vendo os alunos durante o exercício, se eles estão conectados com
o abdômen, com o ‘chi’, com essa energia vital, com essa concentração de energia; [ela
se] ativa em mim. Vendo. Quando eu vejo o Tadashi dançando ou mostrando alguma coisa,
[isto] ativa em mim porque eu reconheço, é familiar, é orgânico, é humano. [...] A
sensação é de suspensão. É como se eu estivesse aqui, sentado e quando eu vejo alguém
fazendo alguma coisa isso parece que me tira desse estado em que a terra me puxa para
baixo. E me coloca num estado mais suspenso, muito mais [leve]. Digo que a sensação
física é essa: no dia a dia a gente está para baixo, assim. Quando eu vejo isso, parece que
suspende aqui [no abdômen]. Para mim é isso. Quando eu ativo esse abdômen me conecta
com a minha humanidade. E aí a gente começa a ter um discurso de ator-espectador, ou de
alguém que age e alguém que vê a ação feita pelo outro, que ela não é exclusivamente
racional. É lógico que se eu estou vendo, eu quero entender. Mas, às vezes, eu não entendo,
e aquilo ainda assim me afeta. Porque essa relação subliminar que é humana e mais
primitiva, está ativada. (Entrevista com Jesser de Souza – Abril de 2008)

Jesser está nos dizendo que a impressão causada pelo ator em cena é carregada por
uma qualidade de energia que é reciprocamente estimulada naquele que assiste. O contrário
também é verdadeiro: um corpo largado e uma mente preguiçosa produzem impressões que
evocam o mesmo em quem a recebe. Daí a necessária construção do Corpo Mente dilatado
do ator, um corpo aquecido por uma grande quantidade de energia vital que, direcionada,
aumenta a densidade de vibração nas ‘moléculas’ do seu funcionamento psicofísico,
liberando energia sensitiva (adaptabilidade, maleabilidade e inteligência) em todas as
funções. Naturalmente, ao parar de fornecer esse calor, a interação com o meio cotidiano e
essa lei de recíproca estimulação energética garante que essa densidade de vibração será
dispersa e o Corpo Mente voltará ao seu estado mais habitual, como o chumbo derretido
volta a ser um pedaço sólido.
Interessante comparar esses estudos energéticos com a seguinte passagem descrita
por Renato Ferracini:
Certamente a esmagadora maioria das ações “expressivas” que são trabalhadas
pelo ator em um treinamento energético são expressões “vazias” e que mostram apenas
clichês e a estratificação singular por que passa o corpo cotidiano, e perceber isso é
extremamente angustiante para qualquer ator. Mas existem pequenos momentos de

361
“revolução”, momentos em que adentramos em um campo desconhecido. Não mais luta
contra os clichês, não mais exaustão, mas apenas um fluxo corpóreo que nos percorre:
ações físicas fluem, relações com outros atores acontecem de maneira extremamente
orgânica. Não significa pensarmos ingenuamente que, nesse momento, conseguimos
ultrapassar a linha dos estratos e relações de forças que nos aprisionam e que atingimos
uma certa essência humana pura, fixa e imutável, ou seja, que nesse estado somos nós
mesmos e encontramos nossa “pura identidade”. Não há absolutamente nada de
imutabilidade e nem de identidade nesse estado, mas existe justamente o oposto: nesse
momento estamos navegando em linhas de fuga através desses estratos e relações.
(Ferracini, 2004, p. 155)

Assisti às aulas do Curso Teórico ‘Corpo-em-arte - Corpo Subjétil: busca de


conceituação’, ministrado por Renato Ferracini, de agosto a novembro de 2007, na USP,
em São Paulo. E foi uma grata surpresa poder ter um contato mais aprofundado com o
corpo teórico que sustenta e ampara a sua pesquisa acadêmica. A neurobiologia de
Damásio, Maturana e Varela, a memória de Bergson; a alegria de Spinoza; o virtual, o
Plano de Organização, a Zona de Intensidade e o Corpo Sem Órgãos de Deleuze &
Guattari; o corpo dócil e as micro-relações de Saber e Poder de Foucault - são algumas
linhas de conhecimento que, juntas, ajudam Ferracini a criar e reformular conceitos teórico-
práticos bastante pertinentes como: o corpo-subjétil, os punctuns, a zona de turbulência, o
espetáculo como máquina auto-poiética e ainda outros. Vi que muitas dessas linhas de
conhecimento e conceitos utilizados serviam perfeitamente para o trabalho que vinha
desenvolvendo, e vieram a me dar novas perspectivas de estudo ao corpo-teórico dessa
pesquisa.147
Foi através da citação acima, por exemplo, no momento em que ele, corretamente,
questiona a existência de uma ‘essência humana pura, fixa e imutável ou seja, que nesse
estado [energético] somos nós mesmos e encontramos nossa “pura identidade”’; que
percebi, plenamente, como o pensamento lógico tende a esfriar e enquadrar conceitos que,
na prática, são dinâmicos e fluídos: um fenômeno que Deleuze & Guatarri localizam e
destrincham, intensivamente. O estado psicofísico da ‘essência’, conceito utilizado por
Gurdjieff e Grotowski, é tão fluido e dinâmico que além de o compreendermos
intelectualmente através da leitura deveríamos realizar a experiência de nos relacionarmos
com uma criança de 3 a 4 anos, que não nos é familiar. Sentiremos, na prática, as diferenças

147
Desse corpo teórico visto no curso, fiz algumas aproximações e diálogos com Victor Turner que estão no Anexo I
p.422.

362
de velocidade de vibração molecular entre a água e o gelo, entre o estado de ‘essência’ e
aquele da ‘personalidade’. Os adjetivos ‘fixo’, ‘puro’ e ‘imutável’ são, é verdade,
freqüentemente utilizados nos ‘Upanishads’ da tradição Hindu, por exemplo; mas
raramente podem ser utilizados na situação do ator: pertencem a um contexto liminar muito
mais agudo. Ali, como em outros textos sagrados, são sempre usados em referência a uma
técnica 2 em seu estágio avançado; o que muda, radicalmente, toda a perspectiva.148
O corpo-subjétil de Ferracini é o mesmo que localizei como uma primeira e
necessária mudança no estado psicofísico do ator. O ‘corpo cotidiano’ provém de uma
concentração de qualidade energética que não é a mesma daquela que surge em sala de
trabalho, no espetáculo, ou num espaço tempo liminar cultivado voluntariamente por um
buscador. Falamos, então, em ‘corpo dilatado’, ou ‘corpo-subjétil’, ou ‘mordomo’; mas
estamos falando, de fato, de novas concentrações de qualidades de energia e atenção que
permitem o fenômeno da dilatação subjétil. A necessidade de mudança do estado
psicofísico do ator é assim expressa por Ferracini:
“Nosso trabalho prático não é “matar” o corpo cotidiano para fazer nascer dele
um corpo-subjétil, mas, pelo contrário, é buscar transformar, transbordar e
desautomatizar o corpo cotidiano, expandi-lo em sua potencialidade para que dele nasça o
corpo artístico enquanto suporte e ser de sensação existente per se naquele momento
efêmero do Estado Cênico.” (Ferracini, 2006)

Para finalizar, Raquel Hirson nos dá dois depoimentos interessantes a respeito do


‘treinamento energético’ que dialogam muito bem com o estudo energético apresentado.
São duas respostas dadas numa conversa final que ocorreu no último dia de uma oficina
que ministrou em 2004, a qual eu pude acompanhar como observador. Apresento-as como
foram feitas:

Pergunta – Você trabalha a exaustão para chegar mais ou menos nesse estado?
Raquel – É. Na verdade é para você transpor uma coisa que é cotidiana, chegar num outro
estado de percepção, para que você, então, nesse outro estado, deixe as coisas o
penetrarem, ou encontre esses vazios também, que é aonde... De repente parece que está
vazio, mas é no vazio que alguma coisa encontra espaço. Se a gente preenche, preenche,
preenche o tempo inteiro, chega uma hora que não cabe mais. Então, como é que eu me

148
Cito de ISHA: “O Eu é um só. Sendo imóvel, ele se move mais rápido do que o pensamento. Os sentidos
não o alcançam, pois ele sempre vai primeiro. Permanecendo imóvel, ultrapassa tudo o que corre. Sem o Eu,
não há vida.” (UPANISHADS, 1993, p.23)

363
esvazio também para que chegue alguma coisa, e quando chega, chega preciso. Eu percebi
isso aqui. (Raquel Hirson – Conversa Final – Curso – Fevereiro - 2004)

O diálogo continua como segue:

Pergunta – Vocês, com a pesquisa diária, vocês conseguem entrar nisso num modo mais
fácil?
Raquel – Sim, essa é uma pergunta importante. Sim. Isso é uma questão de treinamento, a
exaustão e tudo isso é uma coisa que realmente o seu corpo vai aprendendo e vai
acumulando e vai ficando na memória. Eu jamais vou fazer isso antes de entrar em cena.
Não precisa. É memória mesmo que vai ficando. Depois de muitos anos fazendo esse
treinamento, a idéia é que realmente em cena você não precise lembrar de nada disso. Isso
está, aciona automaticamente... ... E o treinamento é justamente para isso que ele serve. É
essa abertura, é esse alerta, você está atento a tudo, recebendo e também podendo doar. É
essa generosidade, essa troca com o espaço, com o espectador, com o colega. (Raquel
Hirson – Conversa Final – Curso – Fevereiro - 2004)

O treinamento permite que o ator adquira um padrão de sensitividade nas funções


cada vez mais desenvolto e acessível, de modo que ele o ‘aciona automaticamente’. Essa
resposta é curiosa e interessante porque mostra como o fenômeno do Corpo Mente dilatado
e educado é uma condição preliminar, preparatória, que não deve ser tomada como um fim
em si mesmo, mas um meio para algo além, isto é, para aquilo que me parece ser,
justamente, o ato criativo. Acho que o mesmo entendimento aparece no corpo-subjétil,
quando lemos que ele é um “corpo artístico enquanto suporte e ser de sensação”. De outro
modo, os espetáculos se pareceriam com exposições de molduras de quadro sem as
pinturas. Se nas artes plásticas a diferença é visível, no teatro a diferença não é tão trivial
assim. É um risco a que todos nós estamos sujeitos, tanto no trabalho do ator como no
trabalho sobre si. Acho que é assim porque o dispêndio de energia e tempo nessa primeira
etapa de ambos os trabalhos é tão grande, que, facilmente, nos apegamos aos seus primeiros
resultados.

Riscos e mal-entendidos
A seguir apresento alguns relatos que apontam para os mais comuns e freqüentes
mal-entendidos que surgem entre aqueles que começam a experimentar o trabalho com a
exaustão nos cursos ministrados pelos atores-pesquisadores do LUME. Começo com o
próprio Renato, num trecho coletado de uma conversa final entre participantes da sua
oficina: “Treinamento Técnico”, realizada em Londrina em 2007.

364
As pessoas têm uma imagem do que seja [o] energético, de que [o] energético é
algo que você tem que entrar num estado de exaustão física, como [se] o objetivo fosse a
exaustão física. A exaustão física não leva a nada. [...] A exaustão não é o objetivo, o
objetivo é você trabalhar num estado limite. Eu conheço pessoas que dão [...] um
treinamento energético cujo objetivo é matar os alunos. Chega num limite e depois que
chega ao limite vai mais, vai mais, vai mais. Quando na verdade, para mim, o trabalho
começa quando vocês param. Aí que começa o trabalho. É dali que eu vou conduzir vocês
para um lugar x, y, z, porque vocês estão num estado de potência, de pulsação. O que
interessa é o estado de pulsação. (Renato Ferracini – Conversa Final - Treinamento I –
Agosto de 2007)

Como também participei deste curso como ator, dou a seguir um exemplo daquilo
que x,y ou z possam significar. Ocorreu no quinto dia de encontro, após diárias e crescentes
imersões no treinamento energético:
“O aquecimento coletivo terminou e aí andamos pela sala fazendo um
trabalho [muito] parecido com aquele dado pela Cris no penúltimo dia de oficina
lá no Rio. Começávamos pelo pescoço, pela primeira vértebra que junta o
pescoço com a cabeça; e havia uma dança por ali. ‘Vértebra’ foi uma palavra
chave nesse trabalho. Até o fim foi usado a palavra vértebra, uma vértebra
como um elemento de um conjunto. Então, começávamos a dançar pela primeira
vértebra, com olhos fechados, parados e de pé. Dançando e ouvindo as
possibilidades de movimento ali naquela vértebra e aí se expandia para a
segunda vértebra e para terceira e depois a quarta vértebra, e isso dava o
pescoço inteiro. Aí experimentávamos movimentos, ritmos e velocidades
diferentes. Passávamos, então, daqui do fim do pescoço até o peito e essa seria
toda uma nova possibilidade de movimento; que se experimentava... Só isso. Do
pescoço até o peito. Depois foi incluída a cintura, até a cintura, sem o quadril,
mas com a cintura e todo o resto, experimentando as possibilidades. Depois foi
incluído o quadril e assim por diante. O quadril como uma nova vértebra desse
corpo; e depois o ombro direito como uma nova vértebra que eu tenho
possibilidade de mexer. O resto nada. Depois a perna esquerda, o ombro
direito, perna direita, o ombro esquerdo; e depois tivemos, numa hora, os
braços e mãos como vértebras; depois tivemos o pé direito sem o esquerdo; e
depois os dois pés. Aí a vértebra do olhar. O olhar como vértebra, como
participante ativo de toda essa dança. Eu não olho vagamente, mas eu olho para
algum lugar quando o olho está aberto. E aí o espaço foi a vértebra seguinte: eu
posso caminhar pelo espaço, utilizando o espaço como uma vértebra; e depois,
por fim, o tempo foi uma vértebra, o tempo e o espaço como vértebras. Onde

365
eu posso acelerar, diminuir, crescer, condensar, sempre pensando nessa
estrutura de vértebras que se movimentam e dançam. Sim, aí veio... ...a última
vértebra: a relação com o outro. E aí se começou um jogo de quase meia hora
onde existia a questão da relação com o outro. A princípio a relação era com o
todo, com o grupo todo, não só com aquele que estava ao lado. Era uma
qualidade de atenção como aquela da ‘pantera’149, onde se percebia o grupo
inteiro e você como parte desse coletivo. E aí começou esse jogo de não ser
ativo em relação ao movimento, não ser passivo; mas ouvir o que o coletivo está
propondo; o que o coletivo pulsa, o que o coletivo dança. Existe uma espécie de
improvisação onde a gente deve ouvir o todo. Depois foram colocadas algumas
músicas, onde dançávamos isso. E não era fácil. Não era fácil, por que não é
fazer igual ao outro que está do lado, não é simplesmente acompanhar aquilo
que está sendo feito, mas é ser parte integrante desse corpo; ou seja, você faz
parte do coletivo, mantendo a sua individualidade. E isso é um espetáculo de
teatro. Nós terminamos o exercício com essa frase: “O que nós trabalhamos,
hoje, é o treinamento que um ator deve fazer.” E é teatro puro, porque a
relação com você mesmo e você mesmo fazendo a parte de um todo que é um
espetáculo, sem se sobressair sobre o espetáculo, mas servindo ao espetáculo,
servindo ao grupo coletivo; isso é teatro. Dois focos de atenção, dentro e
atenção no grupo, no todo. Foi um exercício e um trabalho bastante
interessante, muito bom [...]”(Diário de Campo - ‘Treinamento Técnico I’ -
03/08/2007 (Quinto dia). Registro de áudio feito horas depois.)

Em seguida, dividimo-nos em dois grupos e aprofundamos ainda mais este último


jogo de dançar dentro de um coletivo, dançando como uma parte do todo que nem é ativa
demais nem passiva demais; mas que varia a conduta e mantém a escuta no presente
imediato daquilo que ocorre com o todo. ‘X’, ‘y’ e ‘z’ são, portanto, lugares que treinam a
sensitividade nascente deste ator, suas mais sutis percepções de si e dos outros dentro de
um espaço-tempo dado. Entende-se, claramente, que objetivo do ‘treinamento energético’ é
fazer o ator trabalhar num estado limite.
Ana Cristina Colla fala sobre o risco de encantar-se e não evoluir além da primeira
fase do ‘treinamento energético’. Chama a atenção para a necessidade do ‘treinamento
técnico’, isto é, a educação deste Corpo Mente dilatado:

149
“Pantera” – Uma pessoa no centro de uma roda de cinco pessoas fecha os olhos e se torna uma ‘pantera’ que deve
proteger seus ‘filhotes’ dos ataques dos agressores que os ‘atacam’ com estímulos táteis nas pernas, braços e traseiro
baixo da ‘pantera’. A ‘pantera’ deve se proteger atacando os estímulos com vigor e violência, enquanto os outros cinco
devem manter-se atentos para não serem atingidos. Os cinco devem variar ritmos de ataques e pausas intencionais. 2 a 3
minutos para cada pessoa no centro.

366
Se você não passa pelo burilamento, pelo refinamento [...] porque às vezes as pessoas
se apegam a esse primeiro estágio, porque ele é muito forte para quem o faz, é muito intenso,
você se sente talvez mais vivo do que nunca na sua vida. Só que isso, em si, não é o que na
cena vai poder interessar. Você tem que entender a profundidade a que o outro lugar também o
leva. Como botar uma embalagem para isso, como refinar isso para isso chegar [no público].
Como lapidar essa qualidade que foi tão intensa também na suavidade, também em outras
qualidades... E ser [ainda] tão intenso quanto. Mas é que é um caminho: imagina 7 dias, 6 dias
não dá para nada. Dá para você dar a notícia. (Entrevista com Ana Cristina Colla -
Fevereiro de 2004)

Uma grande dificuldade que eu próprio vivenciei foi a de como encontrar o mesmo
estado psicofísico do ‘treinamento energético’, durante um treinamento mais técnico onde
se trabalha com estruturas e princípios apreendidos de fora. Dou um exemplo a seguir,
coletado do curso “Treinamento Técnico II” que fiz com Jesser de Souza em fevereiro de
2008:
“Depois na segunda parte começamos com o trabalho de ‘raiz’150, que era um
trabalho de base para que o corpo se coloque no estado necessário para poder
saltar, sem fazer barulho; saltar e cair sem impacto - o que protege a coluna -
e saltar e cair promovendo energia abdominal. Todo esse trabalho foi o que eu
poderia chamar de motor-instintivo. É como um modelar do corpo. Usa muita
energia, disposição. Precisa de muita disposição. Dá pra fazê-lo enganando, e eu
fui quase até a metade enganando... Depois que eu comecei a ‘raiz’, isto é, logo
no começo, entrou um pensamento paralelo de uma conversa que eu tive na
noite do dia anterior e que ficou perturbando a minha atenção de modo que
muitas das coisas que fiz no treinamento da segunda parte foram automáticas,
sem conexão com a minha própria pessoa, que estava preocupada em resolver
essa questão relativa a uma perturbadora conversa que havia tido no dia
anterior. Em boa parte do tempo eu não estava lá, ou nem mesmo tinha
disponibilidade instintiva – isso é importante – não havia disponibilidade
instintiva real para se fazer. É como se o corpo fizesse [a sua parte], mas não
pleno, não pleno, sem disponibilidade inteira. Só no momento em que percebi
que o Jesser estava falando alguma coisa importante, reparei que eu não havia
pego nenhuma palavra do que ele estava dizendo. O meu corpo estava lá, eu
estava ali como se eu estivesse ouvindo, como se eu tivesse prestando atenção,
mas tinha uma nuvem de pensamentos que não se relacionavam com o imediato
do presente, mas com um assunto que passava pela minha cabeça, e não parava
de falar... um argumentar com alguma questão estranha.

150
A ‘raiz’ foi vista em ‘Não tem Flor Quadrada’: exercício de lenta transferência de peso de uma perna para outra,
percorrendo um lento caminho de contato do pé com o chão. Ver página: 230.

367
A atitude que deu certo foi colocar de fato o abdômen no jogo. Comecei
a querer saltar de fato, saltar de fato e cair de fato. E ter o esforço para
parar o corpo com precisão, com equilíbrio – ou seja, cair e ficar, ou parar no
centro e ficar... Porque isso tudo minava o pensamento estranho e me trazia
para as condições imediatas. Essa atitude foi que me retornou para sala e criou
energia, tanto que eu terminei o exercício com... ... Não só com um grau de
atenção melhor, mas com um grau de disponibilidade, como se o abdômen
estivesse acordado... E era a partir dele então que eu estava inteiro no
exercício. E fazendo isso, os pensamentos começaram a se conectar com aquilo
que estava acontecendo... Ou o silêncio interno começou a prevalecer e eu
comecei a receber as impressões: aquilo que estava sendo dito, aquilo que
estava acontecendo começou a penetrar e criar memória. Tanto que não foi
fácil recuperar toda essa segunda parte do trabalho hoje, porque muitos
momentos do trabalho não criaram memória interna. Foi muito interessante.”
(Diário de Campo - ‘Treinamento Técnico do Ator II’ - 11/02/2008. Registro de áudio feito
horas depois.)

Há em nós, em todos nós, uma enraizada e profunda tendência em viver de forma


dissociada e fragmentada. No teatro não é diferente. Quando, trabalhando mais
tecnicamente, esqueço as possibilidades energéticas e quando trabalho com estas últimas os
princípios técnicos ficam como que trancados em algum quarto esquecido dentro da minha
pessoa. As duas experiências que relatei acima, aquela da ‘Dança Coletiva’ e essa última
com a ‘Raiz’ poderiam fundir-se numa só; de modo que a precisão e a espontaneidade seriam
levadas ao máximo da intensidade no indivíduo e no coletivo. Trabalhar a ‘Raiz’ dentro de uma
‘Dança Coletiva’ criaria um paradoxo muito fértil, uma pressão de trabalho que conduziria
todo o experimento às margens do ‘trabalho sobre si mesmo’.
A seguir, Ana Cristina detecta o mesmo fenômeno da dissociação, agora, entre os
participantes de uma sua oficina realizada em 2004, quando eles tentavam levantar material
cênico a partir do contato com imagens e textos previamente escolhidos:

Então me dá um pouco de nervoso como as pessoas dissociam as coisas. Quando se


está num momento da condução [...] do energético, em que ela [a pessoa] vai e mergulha...
de um momento que ela vai pegar algo que é a ela externo [um estímulo externo como uma
fotografia] e que poderia carregar para ali [para aquele estado]. Parece que a pessoa
dissocia esses momentos... Como se agora [nesse segundo momento] fosse hora de eu
descansar, ou de eu ficar mecânico. [...] Por mais que eu digo para deixar orgânico parece
que a pessoa não tem notícia de que isso é possível. Eu ainda não entendi como fazer isso
sem ser em longo prazo... (Entrevista com Ana Cristina Colla - Fevereiro de 2004)

368
Eu vivenciei algo muito parecido com isto, quatro anos depois desta entrevista, no
curso “Da energia à ação” com Naomi Silman. Como o próprio nome do curso revela,
trabalhamos primeiro na construção energética do corpo para depois coletarmos
possibilidades de ações físicas:
Foi aí que começaram a entrar os objetos. A Naomi começou a distribuir
um para cada um e recebi duas plumas de cor rosa. E comecei a trabalhar com
elas. E aí era uma descoberta de [como] jogar para cima, de pegar [...] o que na
verdade era: o que a pluma fazia com o meu corpo e não ao contrário. Não o que
o meu pensamento fazia com a pluma, mas como dançar com a pluma, receber
ela pelo corpo. E saíram muitas coisas legais, interessantes. Carregar as duas
juntas, fazer um pássaro, jogar para cima e receber. Depois recebi um xale
bem fininho e amarelo que parecia uma cobra e também como isso trabalhava
com o corpo. [...] Uma coisa que eu notei no trabalho de hoje, por exemplo, foi
que o trabalho com os objetos estimula muito o centro motor... E eu me diverti
muito com o cajado e me diverti muito com as plumas, ‘motoramente’ falando;
mas depois de meia hora trabalhando nos dois, eu percebi que faltava uma
qualidade emocional para aquilo que eu fazia. Eu tenho facilidade no movimento,
então tendo a ir para o virtuosismo sem coração. Naturalmente não veio, e tive
que fazer essa observação, em trabalho, para que a janela do coração fosse
estimulada. Interessante essa observação. (Diário de Campo - ‘Da Energia à Ação’
- 27/02/2008 (Quinto dia). Registro de áudio feito horas depois.)

Entendo que essa dissociação e fragmentação não existem fora de nós, elas estão em
nós; e nós a levamos para todas as atividades que participamos como ator: para o
treinamento cotidiano, o treinamento técnico, o levantamento de material cênico, a
construção do espetáculo e para a apresentação do espetáculo. Na verdade, convivemos
com ela diariamente no ‘espetáculo da vida’. O ‘treinamento energético’ vinculado a
superação da exaustão física é uma poderosa técnica para dar alguma direção e unidade
psicofísica para nós mesmos: ser mais pleno é ser menos fragmentado, no sentido que
vamos, na medida de nossa vontade, aproximando os opostos que existem em nós. Uma
parte quer aperfeiçoar a técnica da ‘raiz’, outra quer discutir com pensamentos alheios; uma
parte contenta-se em fazer malabarismos, outra procura descobrir ações psicofísicas; uma

369
parte está disposta a ‘ir além da exaustão’, outra procura um relógio para ver as horas.
151
Quem sou eu, no meio de todo esse tráfego?
Experimentos
Entendendo que a essência do ‘treinamento energético’ é esta espécie de ‘jogo
mestre’ com nós mesmos, procurei fazer alguns experimentos numa oficina voltada
exclusivamente para o ‘treinamento técnico’ e em outra voltada mais para a ‘ação teatral’
propriamente dita. Isto ocorreu, de forma mais intencional, nos cursos “Treinamento
Técnico II” ministrado em fevereiro de 2008 por Jesser de Souza e, dias depois, nesta
oficina “Da Energia à Ação” ministrada por Naomi Silman. A meta era criar estruturas
similares ao ‘treinamento energético’ que pudessem ser mantidas mesmo quando parado,
ouvindo alguma explicação, assistindo a apresentação de outros, ou aguardando a vez para
um exercício. O ‘jogo mestre’, o revelar e o aproximar das atitudes opostas em mim,
deveria estar ativado durante todas as quatro horas da oficina, acontecesse o que
acontecesse. Acreditava que isso poderia criar a pressão de trabalho necessária para a
produção de novas qualidades de energia em meu corpo-refinaria; e que estas pudessem me
aproximar desta ‘dimensão criativa do ator’ formulada por Stanislavski, deste ‘ato criativo’
formulado por Grotowski, ou das ‘energias potenciais de nível mais significativo’ como
formulado por Burnier.
Na oficina de “Treinamento Técnico” Jesser utilizou o ‘treinamento energético’
várias vezes, mas com tanta ou maior freqüência utilizou-se de jogos para atores, o que de
algum modo, foi muito propício para a meta à qual havia me proposto. Mas a respeito das
perspectivas didáticas de Jesser com a oficina seria interessante, antes, citar uma parte do
relato que fiz da conversa inicial que teve com os atores:
“O teatro mudou para ele, Jesser, quando entendeu a capacidade do
corpo se expressar sem ser conduzido pelas palavras de um texto, mas quando
por si próprio o corpo ganhava vida. Então, o trabalho, como ele entendia, era
como que o ator poderia gerar uma qualidade de atenção e energia, como
descobrir essas qualidades dentro dele mesmo e como levar elas para a cena
extra-cotidiana? Mas, continuava ele, mesmo num teatro realista com cenas
cotidianas numa sala de chá, por exemplo; um ator nunca poderia fazer a cena
com a mesma qualidade da vida cotidiana, isto é, quando ele mesmo está na sala

151
Who am I, standing in the midst of this thought-traffic? - Rumi

370
de chá. Ele descobriu que para que a cena pareça cotidiana e natural o ator,
ainda assim e por trás, deveria ter essa qualidade de energia e atenção extra-
cotidiana, diferente da vida de todo dia.
Então ele chegou na questão do treinamento. Disse que o treinamento
físico é só um pretexto, na verdade o treinamento técnico envolve a pessoa. Ele
é de uma maneira geral ético: porque envolve a atitude do ator em relação a
muitos pontos diferentes seja fora do trabalho, seja no treinamento, seja em
cena, seja na vida ou na relação com as pessoas em geral. E era assim como ele
entendia o treinamento técnico, com essa amplitude ética ”(Diário de Campo -
‘Treinamento Técnico do Ator II’ - 11/02/2008. Registro de áudio feito horas depois.)

Logo no primeiro dia, então, vi que estava nas condições ideais para realizar os
meus experimentos. Falávamos a mesma língua só que, para a meta a que tinha me
proposto, as cenas diárias e socialmente negociadas entre atores, atrizes e um instrutor na
‘sala de trabalho’ - e fora dela - eram a ‘cena realista da sala de chá’ de uma peça de
Tchekov.
Em relação aos jogos, fizemos de muitos e diferentes tipos. Tinham os mais
‘motores’ como ‘pular corda’ e ‘pega-pega de bastão’; e tinham os híbridos, que eram tanto
‘motores’ como ‘verbais’, como o ‘Jia Ca Di’, o ‘Nome e Toque’ e o ‘pega-pega de
nomes’. A oficina propunha um relacionamento entre a técnica de representação e a
disponibilidade psicofísica que um ator deve adquirir, com a técnica e a disponibilidade que
um jogador deve conquistar dentro do contexto de um jogo:
Dei-me conta de como os jogos que trabalhamos hoje foram importantes
para se ter ciência das oscilações de qualidade de atenção no jogador. Em
fases distintas, quando o jogador está aprendendo o jogo, ele tem certa
apreensão em não errar, o que faz com que ele erre no sentido de não permitir
que seu corpo vivencie o jogo na imediaticidade daquilo que está acontecendo.
Por exemplo: os erros, enganos no jogo do nome-toque.152 É um nome e um
toque, um nome e um toque, muito simples. Muitas vezes o impulso sai fora
daquilo que está acontecendo no imediato. É muito simples: um nome e um
toque, um nome e um toque. Se o ator conseguisse manter-se no presente, ele
seguiria a ordem: um nome, um toque, um nome, um toque. Mas não é fácil,
apesar de simples, não é fácil. Poderíamos desenvolver todo um capítulo sobre
152
“Jogo do nome e toque” (Jogo dos dois neurônios) – Em roda, um jogador inicia tocando no corpo de alguém, este
alguém reage dizendo o nome de um terceiro que por sua vez deve tocar no corpo de um quarto, e assim por diante,
seguindo-se um toque e um nome até que alguém erre. Um jogador nunca pode retornar o estímulo àquele que o
estimulou. Ao errar o participante deixa a roda.

371
quanto se pode aprofundar num simples exercício de pular corda, ou num
simples exercício de pega-pega de nomes; onde tudo é puro acontecimento
imediato, e onde algo no ator impede que ele viva o instante imediato do
exercício. Ou é falta de cultivar a atenção em si, ou é ansiedade, ou é medo de
errar, ou é querer acertar... e em vários modos é como se esse algo tolhesse do
corpo a sua reação espontânea e imediata ao contexto externo espontâneo e
imediato. [...]
Stanislavski, no seu livro, no capítulo sobre ‘a atenção na cena’ disse: ‘Se il
mondo sensibile, materiale che ci circonda sulla scena esige un ´attenzione ben
allenata, gli instabili oggetti dell´immaginazione esigono attenzione ed
allenamento centuplicati.’153
Tudo gira em torno do agora, mas é como se o ator trouxesse o ontem e o
amanhã como véus que tornam difícil, primeiro: a relação imediata com o
contexto externo; segundo: a plena apreensão da técnica de representação em
seu corpo e mente; e terceiro: a percepção de que existe algo tão ou mais
importante quanto se adestrar numa técnica. Como criar conexões, linhas de
fuga, portais que lançam o ator além da técnica, mais perto e cada vez mais
perto do eixo central da cena: o Eterno Agora? ” (Diário de Campo - ‘Treinamento
Técnico do Ator II’ – 11 e 15/02/2008. Registro de áudio feito horas depois.)

Entendendo que as técnicas de representação como as técnicas de jogo pertencem


àquela espécie que nomeei como técnicas 1 de caráter horizontal, as psicofísicas do teatro e
as psicofísicas do jogo; tentava iniciativas para acrescentar alguma dimensão de técnica 2.
Segue um relato nesta direção:
“O jogo de corda proporcionou um despertar da energia física. Quando
terminou o jogo de pular corda eu me sentia com essa energia vital, instintiva e
física, pulsando. No jogo da corda fizemos a mesma seqüência de ontem, isto é,
cada jogador entrava pulava 3 e saía; quando todo o grupo havia passado, na vez
seguinte, dois e assim por diante até completar a seqüência 3210123. É quase
como um espetáculo de teatro com entradas e saídas de cena. Depois pulando
contra o movimento da corda fizemos: 4321234. De novo um espetáculo.
De novo nesse jogo, a meta foi como criar a técnica 2 por cima da
técnica 1. Depois de certo tempo a técnica 1 está completamente automatizada.
Podemos fazê-la perfeitamente, podemos pular a corda sem errar nenhuma
vez, qualquer criança pode. Mas podemos fazer isso sem estar presente, sem
estar conduzindo, sem estar vivendo cada momento. [...] O que se faz, por

153
Em (Stanislavski, 1977, p.139)

372
exemplo, quando se saí da corda e se entra na fila para esperar a vez de
entrar? O que acontece ali, dentro do jogador? Esse momento era um princípio
do treinamento ético do ator, explicitado inclusive pelo Jesser: se faz alguma
coisa ali, o que se faz?
Particularmente eu comecei a ouvir os sons seguidos feitos pelos pés dos
outros quando caiam no chão ao pular a corda. Então eu contava a corda
batendo e o pé logo em seguida também batendo como 1, e em seguida 2, e 3 e
nesse momento, desde que estava na fila, eu tentava fazer o impulso pelo
abdômen como se fosse já a minha vez de pular. Já contava toda terceira
queda como sendo a minha vez de entrar, ainda que não o fizesse, mas usasse o
impulso para caminhar para frente junto com a fila. Isso criou uma boa
qualidade de atenção, que me manteve com a técnica 1, me relacionando com o
imediato do presente através dela. Ao mesmo tempo, criava uma condição
interna para inaugurar a técnica 2. A técnica 2 diz respeito a fazer tudo isso
que a técnica 1 exige [no caso: pular corda no tempo] sem deixar qualquer outro
pensamento pular na frente, fazê-lo sem perder contato com o seu próprio
corpo, com aquilo que ele está fazendo, ou perder contato com as impressões
do momento, com os acontecimentos do momento, tanto interna quanto
externamente. [...] Porque é absolutamente possível pular corda perfeitamente,
seguindo a seqüência perfeitamente, e, ao mesmo tempo, estar adormecido na
conexão interna entre você e a sua ‘pessoa’, a Presença. Então, parece-me,
chega-se aí no cerne de todo e qualquer trabalho do ator. Como conduzir o
corpo no jogo de pular corda? Como ser criativo no jogo de pular corda? Atingir
o ‘estado criativo’ num jogo de pular corda. É possível?
A técnica 2 toca numa questão de identidade: sem ela, quando o corpo
está pulando a corda e se esforçando ao máximo para pular no tempo, a
identidade está toda ela no corpo. No segundo momento, o corpo pula a corda
esforçando-se ao máximo para seguir a imediatez do jogo, mas a identidade
não está no corpo [...] ele é somente um veículo. Pular corda com essa qualidade
é desconhecido. Toda vez que o veículo não é mais a identidade, pular corda
torna-se pular corda pela primeira vez na vida, é como pular corda com todo o
ser, nas suas dimensões visíveis e invisíveis. (Diário de Campo - ‘Treinamento
Técnico do Ator II’ - 12/02/2008. Registro de áudio feito horas depois.)

A seguir, a curiosa observação de que, às vezes, errar o jogo de forma desastrosa


pode levar mais rapidamente a se ter contato com o ‘jogo mestre’:

373
O terceiro jogo não foi a ‘corda’, mas o do ‘pega-pega dos nomes’154. Esse
sim foi mais interessante. Passamos a prestar mais atenção não só às
estratégias como também à plástica do jogo. Na teatralização do jogo. Isto é:
não pegar por pegar, mas pegar criando relação. Aqui teve um momento que foi
interessante e para mim, pessoalmente, ocorreu o salto. Foi o momento em que
alguém foi me pegar e eu disse: ‘Júlio’. Não havia ‘Júlio’ na sala, mas o nome veio
à tona. Risada espontânea e geral de todos. De algum modo, e por alguma razão
- aceitando o erro e rindo, gostando - isso abriu um canal de conexão para
chegar mais perto da técnica 2, para chegar mais perto do início da percepção
do estado ‘adormecido’ e conseqüente entrada na relação imediata com o
presente. E em seguida, estar presente ao corpo e a essas relações imediatas,
ao mesmo tempo. Então, hoje, o jogo do nome foi o melhor, para mim foi o
melhor. Sim, e nitidamente quando estava sentado no chão por ter errado
estupidamente, olhando os outros e tomando sol... ...ali surgiu uma nova
qualidade de atenção que até então não tinha. (Diário de Campo - ‘Treinamento
Técnico do Ator II’ - 14/02/2008. Registro de áudio feito horas depois.)

O que estava, de fato, fazendo?


O que fazia era tentar ativar a ‘divisão da atenção em 3’ a cada respiração completa.
Na época, tentava manter uma seqüencia de comandos monossilábicos ditos, internamente,
a cada respiração. Essas palavras curtas, em si mesmas, devem evocar uma grande
quantidade de energia liminar e isto só é possível quando se acumula e se concentra
conhecimento e prática sobre o funcionamento da própria natureza humana contraditória.
Ao pronunciá-los internamente, para si mesmo, esses ‘eus’ de trabalho conectam-se,
imediatamente, com o ‘jogo mestre’. Não há nada de introspectivo. Parte da atenção está
lidando com o contexto externo imediato, outra parte está lidando com o contexto interno
imediato e uma terceira está investigando: “Quem sou eu no meio desse tráfego?” 155
Alguns meses depois desses experimentos, deparei-me com dois escritos que me
permitiram uma melhor explicação sobre aquilo que estava tentando fazer. O primeiro é “A
Nuvem do Não Saber” de um monge inglês anônimo que viveu no século XIV. Se
dissolvermos todos os nossos arbitrários, acidentais e ocidentais preconceitos com o

154
“Vilão, vítima e salvador” (jogo dos três neurônios) – Esse é o jogo pega-pega de nomes. O vilão inicia o jogo
indicando sua vítima através do olhar e indo para tocá-la. Para escapar a vítima pode dizer o nome de um salvador, que
passa imediatamente a ser o novo vilão, tendo por nova vítima o antigo vilão. E assim por diante, não podendo nunca que
a vítima repita o nome para ser ‘salvador’ de alguém que antes estava no papel de vítima.
155
"The miracle consists in tearing oneself away from the concerns of the world and relentlessly seizing hold of the
kingdom of heaven within us." * Philokalia

374
contexto religioso, ‘A Nuvem do Não Saber’ torna-se um riquíssimo livro de instrução
humana. O segundo texto é “Quem sou Eu?” deixado pelo sábio hindu Ramana Maharshi,
sobre quem já falamos, e que contém um exemplo muito prático e acessível de técnica 2 em
seu estágio avançado.
O pensamento ‘quem sou eu?’ irá destruir todos os outros pensamentos, e como a
vareta usada para excitar a pira ardente, ele próprio no fim será destruído. Então, surgirá
a realização do Ser (Auto-realização). (MAHARSHI, 1982, p. 4)

A partir de “Quem sou Eu?” e tentando expressar em frases inteiras aquilo que fazia
na ‘sala de trabalho’, resultaria uma espécie de diálogo interno como o que se segue:
1 - (na inspiração) Quem sou eu, agora? (na expiração) Eu não sou o corpo ‘cadáver’.
2 - (na inspiração) (na expiração) Mantenha.
3 – (na inspiração) (na expiração) Mova-se no presente.
4 - (na inspiração) Quem sou eu, agora? (na expiração) Eu não sou a mente que pensa.
5 – (na inspiração) (na expiração) Sem pensamento, mova-se Agora.
6 - (na inspiração) Quem sou eu, agora? (na expiração) Eu sou a Testemunha (Presença
sem palavras que sozinha permanece, à parte do mundo, do corpo e do pensamento).

7-10 - ∞ (4 respirações completas com a Presença sem palavras).


Parte decisiva para a ativação desse processo é despertar o ‘atleta afetivo’156 que
existe, ao menos como uma semente, em todos nós. Sem ele, a primeira e mais evidente
contradição de nossa condição humana - aquela de que nosso corpo é, potencialmente, um
cadáver – torna-se insuportável de ser sentida. Quando compreendida essa condição de
157
impermanência e todas as suas profundas conseqüências, ela torna-se uma abundante
fonte de liminaridade e de instrução dentro de nós mesmos. Em ‘Você’ vimos como o
‘Butoh’ de Hijikata e Ohno soaram numa freqüência de nota muito próxima dessa.
Pela importância do texto de Maharshi, publicado pela primeira vez em 1923,
reproduzo uma versão integral no Anexo II. Aqui, será suficiente compreendermos como
ocorre a operacionalização desta técnica psicofísica de caráter agudamente vertical:
11. Qual são os meios para se manter constantemente no pensamento ‘Quem sou eu?’?
Quando (outros) pensamentos surgem, não devemos persegui-los, mas sim perguntar:
“Para quem eles surgem?” Não importa quantos pensamentos surjam. Para cada

156
"Every prayer must come from the heart, and any other prayer is no prayer at all." * Philokalia
157
Ver estudo sobre o Budismo Zen no Anexo I, p. 440.

375
pensamento que surgir, deveria ser questionado com diligência: “Para quem este
pensamento surgiu?”. A resposta que emergiria seria “Para mim”. Logo em seguida se
perguntamos “Quem sou eu?”, a mente irá retornar para sua fonte; e o pensamento que
surgiu ficará quieto. Com repetida prática nesta maneira, a mente desenvolverá o
conhecimento para permanecer em sua fonte. Quando a mente que é sutil vai através do
cérebro e dos órgãos sensitivos, os nomes densos e as formas aparecem, quando ela fica no
coração, os nomes e formas desaparecem.
Não deixar a mente fugir, mas mantê-la no Coração é o que é chamado
“intimidade” (antar-mukha). Deixar a mente fugir do Coração é conhecido como
“exteriorização” (bahir-mukha). Portanto, quando a mente fica no Coração, o ‘eu’ que é a
fonte de todos os pensamentos passará, e o Ser que sempre existiu brilhará. Qualquer coisa
que se faz deveria ser feita sem o “eu” egoísta. Se alguém age deste modo, tudo surgirá
como da natureza de Shiva. (Deus). (Maharshi, 1982, p. 4)

A técnica 2 de estágio preparatório sugerida por Maharshi é o controle respiratório


instruído na Ioga Clássica, o ‘pranayama’. Controlar a respiração em cada uma das suas
fases, inspiração - retenção – expiração, em contagens matemáticas e precisas; promove,
natural e gradualmente, um maior controle sobre os pensamentos. Se de um lado esse
controle permite uma maior independência em relação ao vaguear da mente em direção aos
nomes e formas estranhos a experiência; por outro, cria um ‘chão’ confiável para apoiar a
escada da verticalidade. Paul Brunton, um dos mais conhecidos divulgadores da instrução
de Ramana Maharshi no Ocidente, traz muitas informações confiáveis e práticas sobre o
controle respiratório em seu livro: “A Busca do eu superior” (Brunton, 1992, p.145-179.),
algo que não trataremos aqui.158
Na experiência que relatei acima, não utilizava nenhum tipo de controle sobre a
respiração. Ela estava livre, acompanhando, natural e organicamente, as exigências
psicofísicas do contexto imediato. Seguir as regras do jogo externo alargando e criando
novas exigências dentro do meu mundo interno imediato criava, de modo muito similar ao
controle respiratório, um chão psicofísico confiável para apoiar as palavras monossilábicas
(construídas a partir daquelas que apresentei em negrito) que utilizava como degraus da
escada. No exemplo dado vinculei o processo à ação de mover; mas, obviamente, de acordo
com as condições externas ele pode ser adaptado para outros verbos como: sentir, olhar,
cheirar, ouvir, saborear, agir, ler, escrever, etc.159 No fim, restringir todo o processo a quatro

158
Ver também Self-Enquiry. de Maharshi.(Questão 20 a 27.) em
http://www.sriramanamaharshi.org/bookstall/downloadbooks.html. Consultado em junho de 2008.
159
Think that each deed may be your last act, each prayer your last. If you do this, it will be a motivation for becoming
heedful. - Ibn Arabi

376
respirações com a ‘Presença sem palavras’ para retomá-lo em seguida, é um meio de
assegurar o retorno àquilo que é mais confiável em nós, enquanto não concentramos
quantidade suficiente de energia sutil. O estágio evoluído da técnica 2 - a escada - num
determinado momento avançado e final, ‘como a vareta usada para excitar a pira ardente’,
poderá ser descartado e ‘tudo surgirá como da natureza de Shiva. (Deus)’. O jogo externo
continua sendo jogado, mas estará sendo jogado pela primeira e única vez.
Sobre a última frase de Maharshi, que remete a ‘Shiva’, o aspecto divino da trindade
hindu ligado intrinsecamente a ‘destruição’ ou ‘transformação’ de todos os fenômenos do
Universo; digo que ela também nos remete ao ‘Shiva’, em nós mesmos, que dança a nossa
própria existência, na Vida e na Arte, em torno do “Eterno Agora”. Na linguagem do teatro
de Stanislavski entendo ‘Shiva’ como sendo a ‘dimensão criativa do ator’. Tanto como as
relações psicofísicas imediatas do jogador são mantidas; também o ator, num espetáculo,
mantém-se atrelado à sua partitura de ações psicofísicas pacientemente pré-elaborada. Mas,
nessa nova condição, ele não só repete essa partitura interna e externamente como também
a recria pela primeira e única vez.
Vocês foram tomados pela onda da intuição e atuaram a cena de modo excelente. É
a coisa mais preciosa na arte, sem isto a arte não pode existir. Vocês não atuarão mais
assim. Poderão atuar pior ou melhor, mas aquilo que fizeram agora não é repetível e nisto
está o seu valor. Se tentassem atuar do mesmo modo não encontrariam nada. Isto não pode
ser fixado. É possível fixar somente os percursos que lhe conduziram a este resultado.
Vasilij Osipovic, eu o torturei para que você procurasse a sensação de verdade nas ações
mais simples. Isto conduz ao despertar da intuição. Eu o lancei sobre a estrada da simples
lógica conseqüencial, sobre a estrada da comunicação autêntica e orgânica. Quando
percebeu a lógica do seu comportamento, começou a acreditar nas suas ações e deu vida,
sobre a cena, à autêntica vida orgânica. Esta lógica está ao nosso alcance e conduz à
intuição. Segue essa estrada, tenha a sempre presente e os resultados surgirão como que
sozinhos. Ajudei Vasilij Osipovic a completar somente os primeiros passos, o resto ele
prosseguiu sozinho, sem nenhuma ajuda. (Dito a Toporkov (V.O.), por Stanislavski, após
uma cena do ensaio de “Almas Mortas”, uma adaptação do texto de Gogol que estreou em
1932 no TAM.) (Toporkov, 1993, p. 94)

Grotowski também falou sobre esse aspecto no trabalho do ator numa passagem que
citamos alhures, um texto de 1969. Se estudássemos seus posteriores textos, aqueles da fase
parateatral e do ‘teatro das fontes’ encontraríamos conexões muito mais diretas e
significativas. Mas, vamos terminar aqui, repetindo a frase já citada:
Aqui não se trata da precisão externa que existe nos detalhes dos exercícios
plásticos, mas os elementos estão presentes e não ditamos a nós mesmos a natural

377
pulsação durante as evoluções. “Isto” se dita; “Isto” se faz. Por fim, começam a intervir
os conteúdos viventes do nosso passado (ou do nosso futuro?) (‘Exercícios’ em Grotowski
& Flaszen, 2007, p. 177.)

7.3 – Liminaridade nas linhas de trabalho do LUME.

7.3.1 - O Corpo a Mente e o Coração Dilatados no Clown


– Liminaridade nas linhas de Trabalho do LUME -

Os relatos que se seguem dizem respeito ao curso de ‘Clown: a utilização cômica do


corpo.’ que fiz com Ricardo Puccetti em agosto de 2007 na cidade de São Paulo.
Apresento-os aqui como um primeiro exemplo de um processo eminentemente liminar de
produção de material cênico para o ator dentro do trabalho do LUME.
Além do ‘treinamento energético’ veremos que o próprio processo de trabalho de
construção do ‘clown’ pessoal, pelo qual Ricardo nos conduziu, contêm, em si, traços
daquilo que chamamos de ‘jogo mestre’. É um processo liminar que revela, em público e
sem piedade, a confusão e o desajeitamento dessa parte em nós que quer fingir ser aquilo
que não somos. É como se o ‘ser inferior’, o ‘ego’, fosse escancaradamente exposto através
de jogos e exercícios, revelando suas características de automatismo, preguiça, obstinação,
presunção, arrogância, vaidade, hipocrisia, etc. Ao mesmo tempo, quando essas barreiras e
couraças psicofísicas começavam a se dissolver, surgia essa parte em nós que é como uma
‘criança do agora’, às vezes mais ingênua, às vezes mais singela, às vezes mais brava, às
vezes mais intransigente; mas que, fundamentalmente, se expressava de modo livre e
independente daquilo que os outros pensassem ou deixassem de pensar. Nesse sentido,
durante a semana, o grupo como um todo foi se aproximando desse estado de ‘communitas’
à qual Turner se referiu. Sem medos, receios e julgamentos, aceitávamos a nós mesmos e
aos outros brincando e nos divertindo com essa descoberta. Deste processo é que surge a
lógica de comportamento psicofísico de um ‘clown’ pessoal no LUME; uma lógica
construída que pode ser vestida e desvestida livremente, assim como colocamos e tiramos o
nariz vermelho que o caracteriza. Todo esse jogo se processa de forma prática e relacional,
sem ‘psicologismos’, ‘verbalizações’ ou ‘teorias’: é ou não é engraçado, o riso acontece ou
não acontece. E mergulhando abertamente e sem restrições nas mais inusitadas situações
fomos aprendendo a reconhecer as diversas qualidades do riso: desde aquele mais barato,

378
fácil e apelativo; quando o riso ocorre mais à custa dos outros do que de si próprio; até
aqueles mais singelos, ingênuos e emocionais, quando todos riem e se divertem com a
nossa própria e comum condição humana.
Num curso de apenas sete dias tivemos a chance de apenas vivenciar os primeiros
passos da construção dessa ‘espontaneidade’ pessoal que caracteriza o ‘clown’. Numa
segunda fase essa lógica de comportamento é testada e experimentada em saídas por
espaços públicos tais como ruas, praças e feiras. Chegamos a isso no último dia de
encontro. Numa terceira fase, após muitas horas de testes e vôo sob a influência dessa
lógica é que ela chegará a ser estruturada, organizada e projetada para o público dentro de
um espetáculo artístico.
No entanto, no que concerne ao argumento deste texto, posso afirmar que toda essa
primeira fase do processo é ela também muito semelhante àquela que ocorre no
preparatório ‘trabalho sobre si mesmo’ organizado nas escolas. Só podemos aceitar e
transformar o ‘idiota’ e o ‘ridículo’ que existe em nós porque intuímos que há um duplo em
nós mesmos que testemunha, observa e ri com essa condição.
No final desses relatos, que por razões de espaço não representam nem dez por
cento daquilo que vivenciamos e relatei, apresento dois ‘e-mails’ que circularam entre nós
na semana seguinte ao encerramento do curso. De certo modo, caracterizam o sentimento
de ‘communitas’ que envolveu a todos durante aquela semana.

Sobre o primeiro dia (27/08/07), escrito uma semana depois.

“Começamos sem nenhuma conversa anterior sobre nossa origem e


ocupação principal, ou interesse e expectativa em relação ao curso. Após um
aquecimento pessoal, simplesmente começamos. Caminhando pela sala, andando.
Andando para frente e depois para trás e depois para frente com olhos
fechados e para trás com olhos fechados, tentando não bater ou tropeçar com
os outros. Desenvolver um sentido de percepção que substituísse os olhos. ‘Sem
as mãos! Sem as mãos protegendo!’ E andávamos de olhos fechados, receosos
pelo choque que às vezes conseguíamos evitar por sentir um calor, um ruído do
chão ou uma brisa ligeira vindos de algum lugar. Ali, já não tínhamos lugar para
pensar, já estávamos em uma situação concreta de relação direta e imediata
com os outros e com o espaço: uma das principais características positivas do
estado de “clown” que viríamos a desenvolver no decorrer da semana. Não

379
haviam se passado cinco minutos dos seis dias de curso que teríamos pela
frente.”
“Em um dado momento: ‘Parou, público!’ Confusos uns olharam para a
platéia da sala no Crisantempo, outros ficaram sem saber o que fazer, outros
ainda ficaram paralisados na posição. ‘Olhar!’ ‘Olhar para fora.’ E então o
“professor”, como ficou sendo chamado durante a semana o Ricardo, começou a
caminhar e certificar-se da qualidade do olhar que cada um mantinha, ali
parado. Parava diante de cada um, um por um, e ficava olhando nos olhos.
Algumas vezes, ele dava um aceno e ajudava a pessoa a trazer a atenção para
olhar o que lhe estava adiante: o próprio Ricardo, a sala, as paredes.
Interessante que os nossos olhos podem olhar sem estar enxergando. Como se
estivessem fingindo que estão... E o “professor” ajudava-nos com acenos a
simplesmente focalizar aquilo que estava bem diante dos nossos narizes: os
seus grandes olhos castanhos.
E voltávamos a caminhar. Olhos fechados, frente, trás. “Público.” Todos
nós paramos e então escolheu um entre nós. Parou adiante, mandou que todos
fossem para trás dele e ficassem de público diante da pessoa. Apenas
olhávamos a pessoa que também olhava e se deixava ser vista. Tarefa
supostamente fácil, mas muito incômoda e difícil para todos, sem exceção. Por
que o incômodo? Até o fim, no sexto dia, todos sentiam esta espécie de tensão
ao ter que ir lá pra frente e ser observado pelos outros. Comentávamos,
diariamente, sobre a tensão que esta situação de ser observado produzia. Algo
em nós não se sentia nada confortável.
Perguntas esporádicas estimulavam respostas e reações involuntárias na
pessoa. Deixava-se tempo entre cada pergunta para que a resposta ressoasse
dentro da pessoa. O cômico e o ridículo da situação apareciam, naturalmente,
nas respostas; outras vezes, não pouco freqüentemente, Ricardo induzia nosso
olhar a perceber um ou outro trejeito ou reação que o observado disparava a
fazer. Sim, disparava, pois o movimento nascia desta tensão que a própria
situação de ser observado gerava. Neste espaço de jogo, neste cantinho de
exposição, fez-se perguntas sobre temas muito variados: idade, profissão,
nome, lugar de origem, trajetória, interesses e gostos, o que cada um sabia
fazer, etc. Pedia-se para cantar uma canção, soltar o cabelo, fazer alguma
coisa; mas toda vez voltava-se ao vazio que a própria situação suscitava, isto é,
olhares, silêncios, risadas e vazios.”

380
Depois fizemos mais ‘cantinhos’ e depois ainda uma outra diagonal só que
agora pulando mana-mula e na seqüência dando um chute disfarçado no traseiro
da mula. Fizemos mais ‘cantinhos’ até que todos tivessem ido.
Fui o último: “A situação é desconfortável porque você se sente exposto
aos olhares de todos, mas vi que é mais desconfortável porque quase sempre
achamos que algo deve acontecer. Você dá respostas e faz alguma coisa já com
a expectativa que vai e deve agradar aos outros: as pessoas devem rir e ao não
rirem surge o vazio ou o desconforto. Então parece que você e as pessoas que
te olham não estão no mesmo lugar. Você faz coisas que parecem que são ocas
ou desprovidas de conteúdo relacional, e desse vazio surge uma tensão que se
manifesta nos músculos, na respiração e no olhar. A mim foi pedido uma canção
e cantei em alemão uma música de infância: a do patinho com a cabeça dentro
da água e o rabo para fora. Achei que ia ser engraçado e ninguém riu. Um
tapete foi puxado e comecei a ficar sem chão. Ricardo disse para continuar
cantando a canção internamente e seguir fazendo aquilo que o corpo havia
disparado a fazer enquanto cantava as primeiras vezes. Ninguém ria. Parei e
fiquei olhando. Todos já estavam um pouco cansados, pois estávamos fazendo
aquilo há quase duas horas. Havíamos rido muito, mas naquele momento ninguém
ria e isso incomodava: parece que não estava agradando. [...] O fato de não
causar nenhuma risada na minha vez de ir ao ‘cantinho’ deu vez a uma série
inteira de pensamentos descabidos que diziam que eu não deveria estar ali, que
eu não tinha dom para a comicidade, um sentimento de inferioridade,
problemático por que não era engraçado como os outros. Outras vezes, esses
pensamentos atacavam o “professor” dizendo que este curso era coisa de quem
não tinha o que fazer. Sabia que esses pensamentos não poderiam de forma
alguma ganhar peso e realidade e saber isto me ajudou enormemente, mesmo
que eles, em alguns momentos, fossem incrivelmente sedutores e
convincentes.”

Sobre o segundo dia (28/08/07), uma semana depois.

“Começamos brincando: jogos de pega-pega, duro ou mole e cabra-cega.


Houve um momento bom que “saiu” quando alguém estava encurralado pelo
pegador. Já não tinha como escapar e vindo o pegador sobre ele, o corpo
curvou-se e se escondeu como um caramujo. Isso fez com que o pegador fosse
surpreendido, desse meia volta e fosse embora. “Isso! Fingindo-se de pedra pra
escapar; isso é a lógica do ‘clown’”. Claro que aos poucos, todos fomos
percebendo que o mais importante não era pegar ou ser pego, ganhar ou

381
perder; mas o como se pegava e se fugia, dando espaço para o jogo e para o
corpo “reagir naturalmente com impulsos imediatos”. Isto é: sem pensamento,
cálculos, ou freios comportamentais. Perto do momento de ser pego ou pegar,
cria-se uma tensão geradora de impulsos entre os jogadores, que escapam ao
controle da mente. O ‘clown’ começa a aparecer quando começamos a entrar
num estado de funcionamento que escapa ao controle comportamental da
mente, que é a força que, me parece, determina nosso comportamento
cotidiano habitual e social.
Em outro momento, outro se esticou ao lado da cortina para se esconder
fingindo-se de cortina. O pegador olhou, olhou e simplesmente estendeu o
braço e pegou este outro. “Isso! Lógicas diferentes: numa hora o pegador é
enganado, noutra o pegador evidencia a estupidez do truque.”

A seguir, fizemos uma roda grande e aí então Ricardo propôs um desfile


de moda. Andares, caminhadas, paradas e giros, todos eles nascidos do
exercício que havíamos apenas feitos. Parecia fácil, mas logo vimos a
dificuldade de se utilizar o material que tínhamos em relação com as pessoas
em volta. ‘Em relação’ quer dizer que aquilo que se faz entra em relação com o
outro, se faz e deixa que o outro veja a figura, veja o caminhar ou o giro. O
olhar é fundamental para o ‘clown’ porque é através dele que toda a ação
respira. Inspirar e fazer, expirar e permitir ser visto. Por isso o ‘Público!’,
expressão que nos acostumamos ouvir desde o começo, desde os primeiros
cinco minutos de oficina. O olhar também vê e enxerga; não é fingir que vê, é
ver e enxergar, criando cumplicidades por onde passa. Então a ação é viva e
ressoa por toda a sala.
Tivemos bons desfiles, cada um descobrindo possibilidades diferentes
de trajetória dentro da arena formada pela sala. Mas aqui ainda vimos que os
mais engraçados do ‘cantinho’, ou seja, aqueles que naturalmente eram
engraçados em sua figura cotidiana eram os que mais evocavam o cômico. Aos
poucos esta situação iria se equilibrar, durante a semana.
Fui o último novamente. Um desastre. Havia perdido completamente o
estado de fluxo psicofísico dos meus caminhares e giros. Ao ver uma infinidade
de desfiles a minha frente, automaticamente fui planejando mentalmente
aquele que deveria ser o mais engraçado dos desfiles. De novo, estávamos
todos já um poço cansados, eu particularmente. A risada é um escape de
energia quando ela é constantemente evocada. Entrei e fui ao centro e mais do
que tudo precisava dar uns bocejos. Bocejei. “Ah, aquele que já perde o
emprego de primeira” foi o comentário do Ricardo. Estava tentando acordar,

382
mas logo na primeira sensação de vazio o impulso que veio foi rapidamente
executar meu plano mental de desfile. De novo, começando a caminhar percebi
a distância entre o corpo e o plano mental. Não ressoava, era oco, vazio de
significado relacional. Bom, o que fazer além de se manter em cena e continuar
até o fim. Na saída, ouvi: “Falta entrega, falta motivação.” Internamente fiquei
bravo porque estava motivado e disposto, mas ficar ali antes quase vinte
minutos parado assistindo aos outros havia me esvaziado. Claro que não
expressei minhas reclamações. No intervalo, a agitação foi passando, ainda que
me sentisse negativo com toda a situação anterior. Escrevo agora todos estes
movimentos internos porque vejo que eles são importantes, fundamentais na
evolução do trabalho. Aquilo que acontece dentro, as dificuldades, as fraquezas
e as frustrações vão sendo trabalhado a favor da construção do ‘clown’. No
fundo, vejo que elas são material bruto para se construir o ‘clown’ que aparece
ao se ter a coragem de atravessar o fracasso, o medo e a auto-imagem, todos
estes do reino da expectativa social, e ir em direção a uma figura que é
essencialmente como uma criança ‘construída’ que se relaciona com o ambiente
imediato que se apresenta diante dela momento a momento... a cada momento.
Todas as dificuldades que surgem tendem a fazer você responder pelo seu mais
baixo, tomando elas de modo sério. O ‘clown’ surge quando você começa a
demolir o sério, o pesado, a preocupação com o efeito que se produziu ou se
deixou de produzir. Não! O ‘clown’ existe num eterno agora de relações, causas
e efeito com pessoas, objetos e ambientes; sendo criado a partir de uma lógica
de comportamento que, como pude perceber, é própria a cada pessoa.

No intervalo desde dia lembro-me de ter ficado calado e distante dos


outros; tenho a imagem fotográfica do meu estado negativo, um tanto quanto
pesado e desanimado. Voltamos e a proposta era fazer o mesmo trabalho
energético do dia anterior só que com uma energia suave e depois circular.
Partimos das raízes e depois fomos acrescentando os elementos plásticos. Meu
estado era confuso. Não tinha nenhuma vontade de me ficar ali movimentando
por nada. Fazia externamente, mas internamente queria ir embora, ou parar e
ficar sentado. No entanto, por experiência própria, sabia que tinha que
continuar e transformar a situação. Por trás de toda dificuldade esconde-se
um tesouro. Começamos a trabalhar com os elementos plásticos em movimentos
redondos, tudo redondo com movimentos estimulados por uma música; e logo a
seguir começamos uma seqüência onde deveríamos dançar 'O corpo feliz', 'O
corpo triste', 'O corpo excitado', 'O corpo formal', 'O corpo bravo'... ...o
corpo bravo! ... era exatamente o estado interno que carregava comigo. “Por

383
que não expressá-lo através do corpo, agora, com essa proposta.” Foi o que fiz.
Dei uns urros pela sala, e percebi instantaneamente que era tudo o que
precisava: um espaço para ficar bravo dentro do espaço de trabalho, não
deixando que eu mesmo - a minha pessoa - se contaminasse, se acinzentasse
com este sentimento. Foi o que fiz e logo todo meu estado foi se modificando,
liberando canais de energia criativa e disponibilidade. Encontrava novamente o
duplo em mim mesmo. Logo fomos ao ‘corpo feliz’ e eis que vejo meu corpo
saltitante pela sala dando saltos e vôos como uma borboleta. Íamos então
exagerando esse corpo e suas qualidades sentimentais até o máximo,
descobrindo novas e frescas qualidades de expressão desse corpo que pulsava
em um fluxo energético contínuo. Em seguida fomos descobrindo andares com
esses corpos em seus limites. Voltava gradualmente a me divertir com aquilo
que fazia, era muito bom estar ali novamente.

Sobre o quarto dia (30/08/07), escrito em 16/10.

Chegamos à praça e devo dizer que as quase duas horas que ficamos por
ali foram muito prazerosas. A proposta do Ricardo é que os ‘clowns’ deveriam
agora começar a lidar com situações espaciais e objetos concretos. A sala de
trabalho do espaço não era muito rica neste aspecto. O parque infantil nos
daria os estímulos necessários para a descoberta do ‘como’ o meu ‘clown’ lida
com problemas concretos e específicos como aquele proposto imediatamente
quando nos colocamos a subir e descer de uma escada ou de uma árvore, por
exemplo. O ‘clown’ não desce qualquer escada, como ‘nós’ fazemos no dia a dia: o
‘clown’ desce a escada, aquela escada, desce-a de uma forma única, brinca com
aquele brinquedo de uma forma única. Na primeira parte do trabalho,
trabalharíamos sozinhos tentando resolver estes pequenos problemas
concretos. Depois, aos poucos e com tranqüilidade, acrescentaríamos relações
com os ‘clowns’ que nos acontecessem de se aproximar.
Colocamos o nariz e seguimos. O parque era em um morro. A rua que
levava até ele terminava sem saída. Do alto do morro, a calçada com alguns
bancos de concreto espalhados, dava para uma longa escada de concreto que
terminava numa área de areia com diversos brinquedos infantis: tinha balanço
de madeira sustentado por correntes, um trepa-trepa daqueles que
atravessamos sustentados pelos braços e com as pernas a balançar, e tinha
também umas gangorras de ferro com bancos de madeira, daquelas que ficam
duas pessoas uma de cada lado. Todas pintadas com cores de esmalte colorido.
O aspecto deste parquinho dava a entender que crianças vinham brincar ali,

384
mas também havia vestígios de moradores de rua, gente que havia feito
daquele parque a sua morada. Segue uma pequena narração dos
acontecimentos, escrita pela lógica do clown que me guiava pelo espaço-tempo:

‘[...] Encontrei no chão um nariz todo estropiado e fui levar ao Professor.


Alguém tinha caído de cabeça e perdido o nariz, mas não consegui descobrir
quem foi. (Havia achado uma tampinha de plástico vermelha do tamanho de um
nariz de clown toda arrebentada e carcomida) Aí passaram duas moças lindas
com ameixa, me oferecendo. Eu comi a ameixa que tava amarga, amarga, muito
ruim. Fiquei ali mesmo assim porque elas eram bonitas, mas a ameixa tava muito
ruim. [...] Subi o morro e aí vi três que tavam lá embaixo na quadra do futebol.
Uma delas já era a Dona Abigail que fiquei amigo, quase namorado. Desci
correndo o morro até o futebol. Foi legal. Dona Abigail tava com um caderno de
estudo grande e vi que ela tava estudando uns negócios de estória do Brasil.
Tinha mais uma moça gordinha e mais uma moça que eu não me lembro. Aí foi
legal descer pra quadra que a gente tinha que pular de uma altura grande sem
machucar. Aí encontramos uma televisão e a moça gordinha pegou pra ela. Era
só um pedaço. Tentamos encontrar o outro pedaço pra poder assistir, mas não
encontramos. A moça gordinha ficou com metade da televisão pra ela e nem me
deu muita bola. Aí fomos atrás da Dona Abigail que gostava muito de dar
ordens pra todo mundo. Acho que ela se achava mais inteligente porque
estudava estória. Voltamos para o parquinho pelas costas, por uma passagem
secreta que só a Abigail conhecia. Foi legal chegar no parquinho pelas costas.
Fizemos surpresa pra todo mundo. Ai o Professor já tava lá mandando a gente
fazer alguma coisa que eu não me lembro [...] (tirar o nariz).’

Depois fizemos ainda a apresentação daqueles que ainda não tinham


passado pelo exercício dos palavrões. O exercício que havia me perturbado
tanto no dia anterior e que havia visualizado o jeito de fazer enquanto tomava
banho. Eu mesmo fiquei rindo sozinho com aquela idéia e achei que não devia
descartá-la. Então apesar de já ter a idéia não queria perder o ‘estado’ que
tinha conseguido instalar lá no parque. É difícil, pois ao sentar, para assistir os
outros, a tendência é que o funcionamento de ‘nós mesmos’ vá se instalando
automaticamente e tomando espaço até que não conseguimos mais estabelecer
conexão com o funcionamento do ‘clown’, com a linha lógica de comportamento
do clown. Sabia disso e sentado na platéia ficava tentando manter a atenção no
momento sem dispersá-la em associações caóticas. Até que chegou minha vez.
Tinha a estrutura mais ou menos delineada e tinha o estado mais ou menos

385
ainda disponível. Da somatória dos dois é que surgiu a ação: uma aula do Lorde
Inglês Professor. O texto da apresentação foi mais ou menos assim:

[...] ‘Eu ... cago


Tu ... cagas
Ele caga, ela caga... nós todos ... cagamos
Vós cagais... vós cagais !!!
Eles cagam
Eu bosteio
Tu bosteias... feliz
Ele bosteia e ela também bosteia... olha só!
Nós bosteamos todos
Vós bosteais... satisfeitos
e finalmente eles bosteiam [...] (Sai rindo, feliz e satisfeito por ter dado a
aula.)

Por fim, dois últimos exercícios. No primeiro, o 'clown' deveria dar


entradas e saídas rápidas cavalgando um cavalo imaginário. Como o 'clown' de
cada um andava a cavalo? No segundo, cada 'clown' sozinho entrava em cena
para dar um susto na platéia. Entrava, disfarçava, disfarçava fazendo qualquer
coisa até que de repente, do nada, dava um susto que realmente deveria
assustar a platéia. Dois só fizeram, pois já era tempo de terminar. Em todos
nós, os estados gerados tanto no energético deste dia como no parque ainda
ressoavam e os exercícios desta segunda parte foram muito engraçados e
espontâneos.

- Mensagens dos participantes da oficina nos dias que se seguiram ao seu término:

“Queridos palhaços:
Para mim foram maravilhosos esses dias com vocês aprendendo tantas coisas a
respeito da vida. Eu senti que essa semana foi uma das que eu mais vivi
verdadeiramente e por isso saio transformada.
É muito interessante não conhecer quase nada de vocês no sentido superficial,
onde trabalha, onde mora, é casado, etc.; e por outro lado ter visto momentos
tão íntimos, verdadeiros... Saber realmente quem são. Foi um luxo!
Que tal combinarmos mais uma saidinha?”

“Oi queridos,

386
Quero agradecer imensamente a todos pela presença, pela companhia, pela
confiança!
Foi uma semana só, mas super intensa pra mim e é esquisito voltar ao meu ritmo
de vida normal. Sinto que nossa despedida não foi compatível com a intensidade
do curso, rs, muito rápida! Depois que cheguei em casa é que senti vontade de
chorar e de abraçá-los todos!
Mas enfim, segue então o e-mail fazendo essa função.
Sintam-se beijados e abraçados!
Muito grata por tudo! Mesmo!”

7.3.2 - O Corpo a Mente e o Coração Dilatados na ‘Mimesis Corpórea’ –


Liminaridade nas linhas de Trabalho do LUME

Os relatos que seguem dizem respeito ao curso de ‘Mímesis Corpórea’ que fiz com
Ana Cristina Colla em maio de 2007 na cidade do Rio de Janeiro. Apresento-os aqui como
um segundo exemplo de um processo eminentemente liminar de produção de material
cênico para o ator dentro do trabalho do LUME.
Percebi que o trabalho ‘energético’, a passagem pelo estado de exaustão e a
construção do corpo dilatado foi, no processo todo, fundamental e influente na qualidade
das nossas observações nas ruas do centro do Rio de Janeiro.
Aquilo que normalmente nos parece comum, cotidiano e sem importância maior,
torna-se único e de alto valor significativo. Uma cena social, um gesto cotidiano ou uma
pessoa podem ser vistos, sentidos, pensados e emocionalmente percebidos, momentânea e
concomitantemente. Certamente que isto esta relacionado com aquilo que Ana Cris nos
falava na conversa inicial: como desenvolver uma ‘certa qualidade de olhar’?
Vamos direto aos relatos:

Conversa Inicial

Relato escrito no diário do primeiro dia de trabalho (01/05)

Ana Cris começou dizendo que o trabalho com a ‘mímesis corpórea’ havia
traçado sua história no LUME e grande parte de sua formação como atriz.
Disse que iríamos sair às ruas para observar e coletar manifestações externas
de pessoas, mas que o mais importante era desenvolver uma certa qualidade de
olhar, um olhar profissional. O que ver nas pessoas? Existe o olhar do

387
historiador, o olhar do antropólogo, mas qual seriam as especificidades do
olhar do ator?
Alguns elementos foram definidos como pontos-chaves da observação:
pontos de tensão no corpo observado, projeção, da onde iniciavam os
movimentos deste corpo, o peso e a idade do corpo, o seu ritmo. O que
faríamos na próxima uma hora seria uma primeira experiência, onde
descobriríamos as dificuldades deste trabalho já na sua própria prática.
Gestos, andares e ações deveriam ser coletados em uma hora de caminhar
pelas redondezas. A coleta deveria ser feita somente com o olhar, sem
registro fotográfico, anotando os diversos materiais em um caderno para
posterior regate, já em sala de trabalho. O trabalho neste primeiro momento
seria feito sozinho. “Quais são as dificuldades? O que é que chama a atenção
do seu olhar? O que não é interessante?” Estas seriam as questões que
travaríamos contato, durante o trabalho nesta primeira hora de observação.
(Oficina – Mímesis Corpórea – primeiro dia)

O estado de “communitas” na ‘mímesis corpórea’

Relato do registro gravado sobre o segundo dia de trabalho (02/05)


“Sim, depois se falou um pouco da questão ética na mímesis. A Cris disse
que se você apresentar aquilo que você trabalhou para a pessoa original, ela vai
gostar, porque não é um deboche, não é uma imitação. É um trabalho sobre
aquilo que foi observado. Tem esforço, tem atenção, não é um deboche. Ainda
que seja engraçado, algumas vezes, tem sempre esse respeito. Você quer e
gostaria de mostrar aquilo que você observou da pessoa para a própria pessoa.
São palavras da Ana Cris. É um tipo de relacionamento com o outro que lembra
muito o ‘Eu e Tu’ de Martin Buber. Se você vai para a rua e se relaciona com o
outro numa relação ‘Eu’ - ‘Isto’, ou seja, tratando a pessoa como algo ou um
objeto que me serve de material; a qualidade do seu trabalho vai tender mais
para a imitação exterior ou o deboche satirizado, pela simples razão de que a
relação ‘Eu’ - ‘Isto’ exclui a dimensão emocional que coloca ambos, você e a
pessoa, num mesmo nível de existência; uma característica essencial da relação
‘Eu e Tu’ de Buber. A relação ‘Eu’ - ‘Isto’ possui distanciamento, mas é um
distanciamento frio, racional e calculista; de alguém que se coloca acima do
objeto observado, sem perceber a sua própria natureza de objeto observável.
A relação ‘Eu e Tu’ é emocional e inteligente e, por sua vez, também possui
distanciamento, um distanciamento que vai a tal ponto que amaina, ou mesmo
exclui, uma identificação emocional com a pessoa com a qual você está travando

388
contato. Há uma percepção emocional de si e do outro que não permite nem
atrações ou repulsões desmedidas, subjetivamente projetadas pela imaginação.
Por outro lado, ciente desses impulsos possíveis e contrários, essa percepção
emocional contida em uma relação ‘Eu e Tu’ faz escolhas claras e tem uma meta
muito precisa e objetiva. O trabalho de hoje foi difícil porque, logo de início,
não havia me simpatizado muito pela figura daquele homem com os documentos
no Largo da Carioca. Isso me obscureceu os olhos para observar como ele
realmente era e as ações que consegui resgatar para compor uma
representação eram vagas e cheias de associações dispersivas.
Falamos, então, da energia da pessoa, que cada pessoa tem uma espécie
de aura, que a gente deveria começar a observar. É uma espécie de ritmo que
cada pessoa tem, e são ritmos diferentes. Cada pessoa é diferente da outra,
cada pessoa tem um jeito de fazer determinada coisa, um jeito de se
expressar, uma energia que dela emana. Cada pessoa emana certa energia que é
diferente de outra. Então não é só copiar as ações ou copiar determinada
projeção: “Ah, já sei, a projeção vem aqui dos ombros.” Não! Você deve
encontrar esse corpo, esse corpo que é orgânico e que tem sua própria energia.
Falou-se do velho e da criança. Ninguém aprende a fazer ‘velho’ ou ‘criança’;
mas você trabalha com ‘aquela criança’, ou ‘aquele velho’, aquele com o qual você
começou a travar contato, a relacionar-se e a trocar com ele. Certo: amanhã
teremos outros trabalhos na rua, já, agora, com o gravador e com a máquina
fotográfica também.”
(Oficina – Mímesis Corpórea – segundo dia)

O encontro com o outro na “mímesis corpórea”.

Relatos do terceiro e quarto dias de trabalho (03 e 04/05), escrito um mês e


meio depois – dia (14/06)

Não fiz um registro gravado desse dia de trabalho, mas tenho muitas
impressões dele gravadas em minha memória. Foi o dia chave de toda a oficina.
Fazer o ‘energético’, acordar o abdômen e através dele acessar o corpo
energético é despertar sensações, movimentos, pensamentos e emoções que se
unificam no momento presente, e seguem criando as mais ricas e vivas
conexões entre as impressões externas: o espaço, o chão, as cores, as pessoas,
a luz, o ar, os sons; e as suas próprias impressões internas: os cinco sentidos,
as energias e qualidades de uso da musculatura, o movimento que parte do
abdômen, o controle sobre pensamentos involuntários e dispersivos, o silêncio
das vozes internas, o acesso a percepções emocionais instantâneas de si e dos

389
outros. Todas essas conexões podendo, ainda, no limite do trabalho, ser
observadas e sentidas por uma nova camada de si mesmo, uma qualidade de
atenção concentrada, sutil e refinada; que não pertence nem ao mundo externo,
nem ao mundo interno, mas que existe por si só. Um observador interno, uma
testemunha.
Digo que transformar o próprio estado de consciência e sair às ruas de
uma cidade grande para observar pessoas é uma experiência única e não
repetível.

Terceira e Última Saída à rua


“As duplas do dia anterior foram mantidas. Eu e T. saímos, após pequena
pausa de intervalo, pelas ruas do centro do Rio munidos, dessa vez, de gravador
de voz e câmera digital. Não fomos ao largo da Carioca, mas seguimos até a
Candelária, onde ali ficamos rondando pelas praças e bancos, observando o
movimento, os transeuntes e as pessoas que por aquela região se sentavam ou
paravam.
Desde que andei pelas ruas do Rio, no primeiro dia da oficina, um certo
receio ou medo havia se estabelecido em mim: a minha aparência física, cor dos
olhos e cabelos não sugere, em nada, que eu seja brasileiro. Então, era como se
um turista alemão andasse pelas ruas do centro com uma máquina fotográfica e
um aparelho gravador. Sendo a cidade a do Rio de Janeiro e ciente de toda a
onda de violência que a atravessa há alguns anos, fiquei, de certa forma,
preocupado. Mas com a experiência dos primeiros dois dias, já quase não sentia
mais relevância nesta desconfiança.
Havia outro receio ou medo. Não. Era mais certa expectativa em mim
quanto a como abordar alguém e fazer com que a gravação e o registro
fotográfico coubessem naturalmente na situação e na relação estabelecida.
Pensar ou arquitetar sobre isso foi inútil e paralisante; algo que ocorreu na
primeira meia hora de observação, quando não conseguimos contato efetivo
com nenhuma pessoa. Queria estabelecer contato com alguém que não fosse
exatamente um típico ‘morador de rua’, mas alguém que estivesse passando ou
descansando em algum lugar acessível em uma praça, por exemplo. Como havia
notado, muitas das pessoas abordadas no dia anterior por nós, que fazíamos a
oficina, ou moravam na rua ou trabalhavam na rua como ‘camelôs’. Minha meta
era tentar abordar alguém fora dessas situações sociais. Mas era difícil, pois
quando chegávamos em duas pessoas, isso causava um certo desconforto e
desconfiança na pessoa abordada. Quando vi o relógio avançando após a
primeira meia hora, senti que deveria ser mais ativo e senti também que em

390
dois o contato seria mais difícil de se estabelecer, mais difícil de ser algo
natural. Passei a não esperar ou tentar coordenar iniciativas com T. e comecei a
tomar iniciativas mais inusitadas. Também abandonei a meta relativa à origem
da pessoa e passei a querer abordar qualquer pessoa que me chamasse atenção:

“Caminhava pela Av. Rio Branco quando vi três moradores de rua


sentados e deitados no chão da calçada. Eram uma mulher e dois homens. Um
dos homens, um negro de cabelo trançado e longo vestido com calças e
camiseta preta, deitava-se em cima de um saco e na sua frente escrevia algo
num caderno de caligrafia. Sem pensar e tentando estabelecer, logo de início,
uma relação de igualdade, sentei-me ao lado dele. Os muitos transeuntes
passavam à nossa frente. Sei que sentar-me no chão sujo daquela calçada e do
lado daquele homem foi um choque muito positivo para a minha qualidade de
observação. Estava vencendo um impulso automático do meu instinto de
proteção que queria evitar ou tinha receio de abordar qualquer tipo de pessoa.
Ao sentar-me ali, me senti mais inteiro, sem medo e pronto para o momento
seguinte. Fiz uma saudação ao homem que, para minha surpresa, soltou um
palavrão, levantou-se, pegou seu caderno e o saco e saiu caminhando em direção
à Av. Beira Mar. Ia caminhando e soltando palavrões. Percebi, então, que ele
xingava não exatamente a mim, mas xingava o ‘vazio’, assim em qualquer
direção. Levantei-me e fui atrás dele, ainda na esperança de descobrir algo
sobre ele e as coisas que escrevia em seu caderno.
Alcancei-o no farol da Av. Rio Branco com a Beira-Mar, quando o sinal
estava fechado aos pedestres. Parei ao lado e olhei para ele. Ao perceber-me
instintivamente, sem me olhar, saiu atravessando pelo meio do cruzamento,
chegando à rotatória central da Avenida, que não tinha nenhuma calçada para
pedestres. Olhei e vi que ainda continuava xingando o ar e o vazio.
Vi que T. (participante da oficina) não havia seguido junto e resolvi
também não mais retornar. Mais confiante e aberto a novas situações
possíveis, desisti do homem com seu caderno e peguei à minha esquerda, indo
em direção a uma praça com uma estátua central. Não havia caminhado 5
metros, quando vi um sujeito já de certa idade sentado nas escadarias em
torno da estátua. Fui me aproximando e me aproximando e vendo um homem já
com seus 55, 60 anos de idade, que estava ali sentado, aparentemente
descansando.
Fiz uma saudação, à qual ele me retribuiu naturalmente. Disse-lhe que
era da universidade e estava fazendo uma pesquisa sobre pessoas que moravam
na região central do Rio. Perguntei se poderia conversar com ele e registrar a

391
nossa conversa no gravador, que já havia tirado do bolso e colocado ao seu lado.
Ele consentiu e sem muita desconfiança começou a conversar comigo, contando
sobre o seu trabalho e a sua vida.
Seu Luís Miguel, nome que vim a saber lá pelo meio da conversa,
trabalhava com ‘reciclagem’, como ele mesmo dizia. Catava papelão, latinha,
madeira, metal e outros tipos de recicláveis. Ele morava na rua, trabalhava de
noite e dormia depois do trabalho em baixo de umas marquises num prédio ali
perto. Àquela hora do dia, mais ou menos entre 11 e meio dia, era a sua hora de
descanso. Ele vinha de Goiás e já estava no Rio havia nove anos.
Muito diferente do dia anterior, a minha empatia com Seu Luís havia sido
imediata. Apesar de nove anos morando na rua, não apresentava nenhum sinal
de perturbação ou agitação mental. Era muito lúcido, e mais do que isso, tinha
uma qualidade emocional que circulava pela sua pessoa. Rapidamente ficamos
mais próximos e confiantes. O meu foco, como já havia concluído pela
experiência dos outros dias, não podia se restringir a colher material a
qualquer custo, como fazem, hoje em dia, certos repórteres e jornalistas
apressados. Não. O foco seria criar certa abertura emocional com seu Luís e
deixar que ele mesmo contasse aquilo que quisesse. No início ainda o estimulava
com perguntas, mas logo a conversa foi se tornando mais orgânica e natural, a
ponto de estarmos, os dois, somente conversando numa praça do centro do Rio.
Em certo momento, ao olhar para Seu Luís, senti que éramos dois seres-
humanos semelhantes; sem mais nenhuma diferença ou barreira social nos
limitando ou separando. Eu o olhava nos olhos e ele, igualmente, me olhava nos
olhos. Havíamos criado uma cumplicidade. Contou-me de Goiás, de sua família,
de seu trabalho, a morte do pai, a ida ao serviço militar em Brasília, o trabalho
na lavoura, suas decepções como trabalhador agrícola e a sua vinda ao Rio, onde
se dizia feliz. Ganhava dinheiro vendendo o material que colhia ou recolhia
pelas ruas do centro. Em especial, me contou sobre o cobre que às vezes
conseguia catar e que tinha um preço de venda muito bom, dos melhores.
Mostrou-me seu dedo ferido que havia cortado ao enfiar a mão num saco de
lixo que tinha uma lâmpada quebrada, mas o dedo já estava realmente melhor, e
cicatrizando.
Era um homem saudável e equilibrado, que possuía uma postura corporal
muito firme e íntegra, característica de alguém que trabalhou muito tempo no
campo. Há uma foto, logo abaixo, onde Seu Luís aponta para o prédio onde
costuma dormir sob as marquises. Ali podemos ver as linhas bem definidas de
seu dorso, de suas pernas bem apoiadas no chão e seu braço que aponta com
precisão o local mencionado. Era um prazer estar ali com ele e ouvir suas

392
histórias. Poderia ficar ali por mais tempo, mas a hora combinada para o grupo
retornar à sala de trabalho estava se aproximando. Pedi para tirar algumas
fotos suas, coisa que o deixou feliz e sorridente. Abraçamo-nos e nos
despedimos. Ele ainda me disse para voltar outras vezes, se quisesse, mas o
trabalho em sala tomaria novos rumos, e esta ficou sendo a última saída à rua.”

De volta à sala e o dia seguinte.


Naquele dia ainda, ao retornarmos à sala, cada um deveria criar um
esboço de uma pequena estrutura meio improvisada, onde pudesse reproduzir
de memória o texto, as entonações de voz, os gestos e ações da pessoa que
havia observado. Não tínhamos tanto tempo e logo fizemos uma roda onde cada
um de nós pode apresentar aos outros, esse pequeno trecho.
Após a apresentação individual deste pequeno esboço, Ana Cris pediu que
escolhêssemos, para o dia seguinte, algum trecho do registro sonoro e o
transcrevêssemos em uma partitura sonora com as palavras, pausas, altura da
voz e ressonadores vocais que poderiam ser identificados. Sobre esse trecho
trabalharíamos a construção de uma estrutura mais precisa, junto com as fotos
e as impressões vivas que permaneciam em nossa memória.
No dia seguinte, de posse da partitura sonora com as palavras, pausas,
entonações e ressonadores, das fotografias, e da nossa própria memória da
experiência do dia anterior, começamos um trabalho de relojoeiro para montar
uma estrutura cênica que fosse repetível e seguisse fielmente o texto
escolhido e transcrito. Sim, poderíamos fazer colagens com passagens do texto
distantes entre si, ou mesmo com gestos e posturas observados em outros
momentos que não aquele onde o texto era dito. A seguir seguem o texto e as
fotografias que serviram de material para a cena.

Trecho Transcrito do Texto de Luís Miguel Registrado na Rua e Utilizado


para a Construção da Mímesis.

“Agora, trabalhar em roça... trabalhar com café, amigo. Olha! Pelo amor de
Deus, aquilo não existe... verdura... pior! Você não sabe nem o que é isso!... Cê é
brasileiro?... [Digo que venho de São Paulo] Ah!, então você deve entender
desse negócio de café. Dá um trabalho do caralho! ... He!He!
Claro... capiná... Não, nem arrancar! Por exemplo: você, essa semana... vai
trabalhar... por exemplo, nessas fileiras de café aqui.
Sabe que café dá rua pra todo lado, né? Cê sabe, né?... Café é triangular, dá
rua pra todo lado...

393
Você vai nessa rua aqui... Aí vai jogando o café pra esquerda... Quando você
chegar no final da rua... você vai jogar... pra direita... Mas já vem outro
atravessando, jogando pra esquerda e outro pra direita. Oh rapaz, aquilo...
E pra colher o café, maninho! Abelha, cobra e o caralho! Quando o café
madurece... as abelhas cai em cima e as cobra... fica embaixo. Tu mete a mão,
as abelha te ataca; embaixo as cobra! Hi, hi, hi (risadas) Isso não existe!
Mas o café dá muito trabalho, cara; o café dá muito trabalho! O café dá muito
trabalho! ”

Fotos de Luís Miguel utilizadas para a Construção da Mímesis

7.3.3 - Perspectivas e possibilidades.


No Brasil existem alguns grupos de teatro de pesquisa com qualidade e
profundidade artística tão significativa e notável como a do LUME, sem sombras de
dúvida, mas listá-los aqui não seria o caso.
Certo é que ao sair do âmbito de um trabalho como esse do LUME, e ao olhar o
trabalho dos atores no teatro comum, e em geral, logo percebe-se que eles têm uma
enorme dificuldade em criar estruturas de treinamento e de trabalho que ativem este ‘jogo
mestre’ humano e o façam ir ‘além de si próprios’. A vaidade, o egoísmo, a preguiça, a
fama, o público, a imprensa, a expectativa social entram e agem no lugar da motivação e
da afetividade pessoal que eles próprios não conseguiram desenvolver ou conservar dentro
de si, degenerando boa parte do processo artístico quando não a inteira saúde psíquica da
pessoa do artista.
A preocupação com a independência criativa do artista, que estava no cerne do
‘trabalho do ator sobre si mesmo’ desenvolvido por Stanislavski, deveria se constituir
como uma disciplina essencial a todas as disciplinas de uma faculdade ou escola de artes

394
cênicas; mas é, realmente, muito raro que se consiga uma pressão de trabalho uniforme
entre todos os professores e um real incentivo aos alunos nessa direção.
É raro também encontrar grupos de teatro que contenham eles próprios essa pressão
uniforme de trabalho. Pude notar, no entanto, que ali nas condições de trabalho criadas e
conquistadas pelo LUME há uma espécie, bem saudável, dessa árvore chamada ‘trabalho
do ator sobre si mesmo’.
Mas vejo também que Kaletrianos está corretíssimo, em sua colocação, quando diz
que o ‘treinamento energético’ é apenas um dos caminhos possíveis para se chegar nesse
estado dilatado e potencialmente criativo para o ator. Na escola de Gurdjieff de que tomou
parte, por exemplo, Jean Pierre experimentou o trabalho com os movimentos e danças
tradicionais também estes uma espécie de técnica 2 em seu estágio preparatório. São
posturas e movimentos que envolvem uma divisão na atenção entre a cabeça, o tronco, as
pernas e os braços que podem seguir movimentos com contagens diferentes. Há uma boa
seqüência desses movimentos nas cenas finais do filme “Encontro com Homens Notáveis”
filmado por Peter Brook:

Pode ser um caminho muito interessante para o ator podendo chegar a algo muito
parecido ao estado do energético. [Isso] porque você justamente desnorteia e enfraquece o
mental, mas é pelo caminho de sobrecarregá-lo, que é um dos caminhos do ator também.
Na partitura do ator [...] tem tanta coisa para pensar que não dá para pensar em mais
nada e aí a coisa vai sozinha. Então, você tendo essa divisão de atenção, essas contagens
diferentes, que não batem, nas pernas, nos braços, na cabeça; você faz uma meditação
ativa [em movimento] que leva a uma ‘meditação’ no próprio sentido dessa palavra, ou
seja, que não é pensamento. [Meditação] é uma palavra totalmente distorcida: “Se eu
estou meditando, eu estou pensando”. É exatamente o contrário: “eu não estou pensando.”
(Entrevista com J. P. Kaletrianos em 06/10/2008)

Mesmo dentro do LUME, sabe-se que Burnier tinha interesses em aprofundar e


alargar seus conhecimentos sobre as técnicas 2. Sobre essa questão e o princípio da
“verticalidade”, Jean Pierre Kaletrianos nos conta:
[...] Sim, ele tinha muito interesse na verticalidade, mas as vias eram mais pelo
candomblé e através de uma mãe de santo de Campinas para onde eu fui, uma vez, e
depois o Simioni entrou e participou também. Então, o seu contato com a verticalidade foi
mais através dessa tradição e ele queria, de alguma maneira, relacionar isso com o
trabalho do ator. Mas me parece que na prática isso nunca se consolidou.” (Entrevista com
J. P. Kaletrianos em 06/10/2008)

395
De fato, essa é uma das linhas de investigação que Burnier começa a desenvolver
em 1987, mas que não avança dentro do LUME após seu falecimento. Ele nos dá alguns
vislumbres daquilo que tinha em mente no final de sua tese, quando tece algumas
conclusões e perspectivas a respeito de estabelecer uma ponte entre as práticas rituais do
candomblé e a busca de uma técnica para o ator.

“Suspeito que o ato de possessão encontrado no candomblé não seja “um espírito
que baixa em nós”, mas o desencadeamento de energias interiores e profundas. Resta
ainda comprovar isto.” (Burnier, 2002, p. 251.)

Sobre a experiência com o candomblé, Burnier não se interessava tanto pelo


contexto religioso envolvido no culto dos orixás, mas sim pelo processo que estava por trás
do fenômeno, isto é: “como se operacionalizava a ‘dinamização das energias potenciais dos
filhos e filhas de santo’”? (Burnier, p. 251.) Dito de outro modo, parece-me que Burnier, ao
se aproximar do candomblé estava realmente investigando sobre aquilo que, aqui, chamou-
se de ‘técnica 2’.
A experiência que tinha com “o desencadeamento de energias interiores e
profundas” tinha se aprofundado na experiência teatral que realizou com os atores Carlos
Simioni e Ricardo Puccetti; mas, talvez, estivesse interessado por ainda alargar a pesquisa
nesse domínio da ‘técnica 2’ buscando novas formas e métodos de “dinamização” destas
energias.
Tal interesse pela dilatação da dimensão vertical do trabalho do ator deve estar
relacionado com esta segunda aproximação que Burnier teve com o trabalho de Jerzy
Grotowski: um ‘workshop’, de 17 dias, conduzido pelo pesquisador polonês na “Irvine
University”, na Califórnia, em 1988.
Burnier, Kaletrianos e uma diretora carioca160 fizeram parte do grupo de brasileiros
que participou desse ‘workshop’. Trabalharam diretamente com Grotowski e sua assistente
na época, a haitiana Maud Robart, sobre diversos elementos psicofísicos provindos de
rituais da tradição. Jean Pierre, assim como Richards, contou-me que nessa época
Grotowski já não utilizava mais a ferramenta da “exaustão” para o trabalho sobre a
verticalidade:

160
Celina Sodré, que fundou no Rio de Janeiro um instituto de pesquisa da arte do ator. Ver: www.institutodoator.com.br

396
“Naquela época, o Grotowski não trabalhava mais nesse sentido [da exaustão]. Nós
fazíamos um treinamento extremamente exaustivo, mas que durava 20 minutos, todo ele
feito com ações precisas. Tinha os ‘motions’ [...] que são movimentos lentos de tensão e
relaxamento muscular virados para os quatro pontos cardeais, que lembram as posturas de
“Yoga”, mas não exatamente [porque] no próprio treinamento tinha as práticas de Yoga
também. Então, o [treinamento] seria, por exemplo, como se fosse uma condensação,
vamos dizer, e o recado era o seguinte: “Não é o tempo, a questão. Você precisa conseguir
num mínimo de tempo possível, o máximo de contato consigo mesmo e trabalho sobre si
mesmo.” (Entrevista com J. P. Kaletrianos em 06/10/2008)

Além do período de treinamento, durante os 17 dias de experiência, os grupos de


diversos países trabalhariam sobre a montagem de uma “Action”; isto é, uma partitura de
ações físicas, cantos e músicas ligadas a algum rito da tradição do próprio país. Mas mais
interessante do que contar detalhes práticos dos acontecimentos destes 17 dias de trabalho
seria deixar Jean Pierre externar o proveito que a experiência lhes trouxe. Nas suas
palavras:

“Foi uma experiência extremamente marcante, porque eu entendi que o grande


lance é realmente a presença e a simplicidade das ações. Você pode estar malhando, se
descabelando em treinamentos; e você pode estar com o ‘ego’ lá em cima. A
horizontalidade realmente não é suficiente. Essa questão do confrontar-se com o ego e a
queda do ego é uma ‘coisa’, é um bicho que nunca adormece. Ele sempre está à espreita
para nos pegar. Neste sentido, o contato com um mestre, alguém tão amadurecido como
Grotowski, foi realmente marcante para nós.”
(Entrevista com J. P. Kaletrianos em 06/10/2008)

E aqui, novamente, nos deparamos com a questão do ‘jogo mestre’.


Seguindo uma linha histórica evolutiva, ‘o trabalho do ator sobre si mesmo’ de
Stanislavski leva Grotowski a aprofundá-lo extrapolando-o em direção a uma sistemática
pesquisa sobre as técnicas rituais vindas da tradição. Estas são organizadas em torno ao
trabalho do Performer naquilo que Peter Brook nomeou como ‘Arte como Veículo’161; mas
este Performer em última estância, nada mais é do que um buscador, um homem que
trabalha sobre si utilizando técnicas psicofísicas altamente especializadas.
Pessoalmente tive pouca experiência com essas técnicas rituais especializadas.
Muito pouca, na verdade, quando comparada com os vinte anos de experiências com o
teatro, incluindo todas as experiências com o LUME, e os doze anos de trabalho em uma

161
Através do texto: Grotowski Art as a Vehicle. (Schechner, R. E Wolford, L., 1997, p. 381)

397
escola. Mas as experiências que tive mostraram-me que todas estas técnicas psicofísicas de
posturas, controle respiratório, movimentos, danças e cantos, altamente especializados,
sejam as orgânicas como as artificiais, são, de fato, técnicas preparatórias.
Numa dessas, num Workshop de “Introdução à Experiência Direta dos Cânticos
Vibratórios Tradicionais Haitianos” com a mesma Maud Robart citada acima; num dado
momento em que executava os movimentos de uma espécie de dança coletiva haitiana; ela,
observando-me, chegou ao lado e disse:
“Você deve mover-se com o Coração? Você me entende?”
Sim, eu entendia perfeitamente o que ela estava dizendo. No mesmo momento,
corpo, mente e coração uniram-se, e uma nova a qualidade de movimentação me foi
possível.
E as experiências que tive com a Hatha Yoga e a Yoga clássica não foram
diferentes. As posturas, o controle da respiração, a meditação e os mantras são somente
meios preparatórios para que se consiga manter a mente no Coração, impedindo que ela vá
em direção à pluralidade dos pensamentos, nomes e formas.
Acredito, hoje, que todas as técnicas de ativação das ‘energias potencias’ do
homem devem conter, em sua essência, esse ‘jogo mestre’ interno que descrevemos aqui:
confrontar-se com o ‘ego’, despertar o ‘Coração’, tornar o ‘ser inferior’ passivo, dar
nascimento e maturação a um ‘mordomo’ que arruma a desordem em todos os quartos
dessa nossa casa. E mesmo isso, que não é pouco, também é um estágio preparatório.
De fato, o processo que conduz à queda do ego deve ser atualizado e efetivado no
interior do ser humano a cada dez respirações, isto é, a cada minuto aproximadamente. Só
depois de concentrar uma alta qualidade de atenção e energia sutil este processo pode ser
deixado de lado por um tempo maior, na medida do grau de instrução experimentado. A
fonte que dá existência ao ‘ego’ ainda que possa estar momentaneamente adormecida,
logo, novamente, se fará ativa e sentiremos sua força. Também por causa do contínuo
fluxo de interações com o meio que o ‘Ator’, e o buscador que trabalha sobre si mesmo
nas condições da vida diária comum; aceitam estabelecer, essa técnica 2 em estágio
avançado sempre deve estar à disposição.162

162
Be present at every breath. Do not let your attention wander for the duration of a single breath. Remember yourself
always and everywhere. - Gujduvani (Sufi do sec. XII). Sobre a mente animal que está por detrás da máquina biológica e
é a fonte do ‘ego’, ver p.59-63.

398
Portanto, voltando à pergunta de Kaletrianos: Quais são esses outros caminhos?
Em relação à Arte do Teatro, parece-me que, por exemplo, a experiência de Peter
Brook tenha sido muito correta e produtiva. O que fez ele? Entrou em contato com os
princípios do ‘trabalho sobre si mesmo’, aproximando-se de uma escola de trabalho
esotérico e procurou desenvolver criativamente esses princípios em seu meio profissional
de origem. O resultado é que não só sua pesquisa e seus espetáculos, bem como todo o
material que já deixou publicado em livros, tornaram-se uma excelente e rica referência
para a formação do ator e o crescimento da arte teatral. Nesse aspecto é muito instrutiva,
por exemplo, a leitura dos seus textos “A Radiância Fundamental” em O Ponto de
Mudança (Brook, 1995, p. 306) e A Porta Aberta. Foi Peter Brook uma das influências que
me levaram a essa pós-graduação em Artes Cênicas.
Da minha parte, diria: o caminho é você quem faz, passo a passo, através da sua
experiência prática como artista e ser humano. O que aprendi é que qualquer técnica
representativa do ator, criada ou assimilada, vinculada a uma ou outra opção estética;
deveria estar sempre de alguma forma ligada a esse ‘jogo mestre’, a esse processo de
instrução humana que na sua essência é invisível, sendo ele, talvez, a verdadeira arte
secreta do ator.

7.4 – Prisão para a Liberdade – O Segundo LUME.


O que eu mostrei até aqui são resultados que funcionam para o ator, para o
espectador, funcionam para criar cenas, funcionam para construir obras teatrais; mas eu
queria não estar diante de vocês com essa vantagem de estar aqui com tanta técnica e
poder me exibir para vocês nesse aspecto. Ainda vou desenvolver mais um pouco para
depois mostrar [...] e o meu interesse aqui não é mostrar se deu certo, se funciona; mas eu
queria mostrar o caminho solitário do ator. (Demonstração Técnica - “A Prisão para a
Liberdade” – UNIRIO – 2002)

Lembrando da frase de Píndaro citada por Burnier no início do capítulo VI, e se o


ator começasse a revelar no espetáculo, aquilo que ele vai descobrindo ser além da
espontaneidade da essência; além da sua segunda natureza técnica, dilatada e construída;
além de suas ‘matrizes’ expressivas? Há um fim para a descoberta das ‘potencialidades’ do
ator e da sua ‘pessoa’?

399
Com um estudo preparatório sobre os avanços posteriores e pessoais de Carlos
Simioni já feito, será transcrito, a seguir, a sua “tese de doutorado” defendida e apresentada
pela primeira vez na UNIRIO em 2002, numa reestruturada versão de sua demonstração
técnica: “Prisão para a Liberdade”.
Segunda Tese: O estado da fonte criadora
Indo até o fundo da alma descobre-se que ela não tem um fundo, descobre-se que
ela não é a fonte de energia interior e potencial que anima e dá vida, mas é somente um
meio psicofísico que reflete a luz dessa fonte. Ou então, a alma se caracterizaria mais por
ser um espelho, uma passagem, um meio, uma ponte, uma escada de ida e volta entre aquilo
que é denso, visível e limitado no tempo e no espaço e algo que é sutil, invisível e ilimitado
tanto pelo tempo como pelo espaço. Quando fazemos crescer a semente de alma que nos é
dada chegamos ao “fundo” da alma. Mas esta alma, em grau avançado de instrução, é
apenas um ‘mordomo’ e não o ‘Senhor’ da casa e, psicologicamente, deve ser transcendida.
Este é o princípio da transcendência, característica daquilo que foi chamado de ‘técnica 2’
em seu estágio avançado.
Assim como no trabalho sobre si mesmo o ‘mordomo’ é somente uma identidade
provisória que prepara e arruma a casa para a chegada do ‘Senhor’, no ‘trabalho do ator
sobre si mesmo’, está segunda natureza dilatada e educada, esta ‘alma’ do ator, não pode se
constituir como uma identidade definitiva. Ela também é provisória e deve ser,
periodicamente, descartada se o ator quiser avançar em seu trabalho criativo. Dito de outro
modo, esta segunda natureza do ator - sua técnica enraizada na espontaneidade de sua
essência - não se constitui num fim, mas num meio que sempre deverá ser transcendido,
ultrapassado, relativizado para que ele se defronte integralmente com o Ato criativo: a
‘terceira margem do rio’.

3 - Energia Consciente 4 – Energia Criativa

400
Seguindo com as analogias geométricas, se para a ‘técnica 2 em seu estágio
preparatório’ o ator tem a impressão de possuir a ‘Presença’; ao operacionalizar uma
‘técnica 2 em seu estágio avançado’ o ator começa a ter ciência de que ele e sua criação
poética são fenômenos da ‘Presença sem palavras do Si mesmo’ que sempre existiu nele
próprio e em todas as coisas. O ‘Si mesmo’ sendo tanto imanente como transcendente a ele
próprio.
Esta é a tese. Vamos à comprovação dos fatos, a sua defesa e o depoimento de
algumas testemunhas.
Como já foi feita uma introdução dos caminhos tomados por Simioni em ‘Não tem
Flor Quadrada’, vamos diretamente ao texto, coletado do registro em vídeo da
demonstração técnica que ocorreu em junho de 2002, na UNIRIO.

7.4.1 - O Ato

“Técnica e mais técnica e mais técnica. Ótimo para o ator. Importantíssimo. O ator
abre o seu leque de possibilidades. Como, agora, se desvencilhar da técnica?
Chega um momento do trabalho onde a minha possibilidade, agora sim, é livrar-me
da técnica. O que eu vou tentar mostrar para vocês é ‘eu’ pesquisando comigo mesmo. Não
estou interessado se funciona ou não funciona para o espectador. Não estou interessado
ainda se vou fazer certo ou errado. Só vou dar a possibilidade de vocês verem o ator se
trabalhando, depois de tantos anos e com toda essa bagagem. [...]

A primeira barreira que eu encontro e, ao mesmo tempo, que eu descubro é que eu me


tornei prisioneiro do meu corpo. Eu posso não querer fazer nenhum movimento daqueles
que eu já fazia, daqueles que já estavam codificados; mas eu me tornei prisioneiro do
corpo. Tudo que eu faço, tudo que eu faço, eu estou sempre atento ao corpo. Como
transcender isso? Até que chegou um momento em que eu pensei: “E se eu apagasse a
musculatura do meu trabalho? Como é apagar a musculatura do trabalho? Significa não
pensar, não sentir, não olhar, não perceber a musculatura. Ela vai trabalhar ao mesmo
tempo, mas a minha percepção agora vai ser outra. Vai ser outra percepção? Não sei, vou
descobrir, não sei, não vai ser no corpo.” Aí eu começo a perceber que o corpo, ele
mesmo, começa a dar freios, começa a dar paradas. Comecei a perceber que o meu corpo,
ele tinha vida própria e não precisava mais que eu o dominasse, que eu ficasse atento a
ele, que eu o ficasse aprisionando. Que ele já dizia, que ele já falava [...] Oh meu Deus,
mas como segurar tudo isso? [...]

[...] Chega um momento aonde, realmente, o corpo some do meu controle. Ele não quer
mais, não quer mais [...] Oh meu Deus, eu cheguei no vazio! O que é que eu fui fazer
comigo? Quinze anos trabalhando, e agora, eu resolvo tirar a técnica.

401
[...] Dentro de um enorme vazio, o meu corpo já não responde ao meu controle. Ao mesmo
tempo, não sei se isso funciona para o espectador. [...] Mas, pouco a pouco, fui percebendo
que esse vazio só deu asas a outro patamar de trabalho mais difícil, que é se revelar a si
mesmo. E mais difícil ainda é se revelar ao espectador. Sempre foi muito fácil, apesar de
árduo o trabalho, sempre foi muito fácil estar diante da platéia, carregado de técnicas.
Ótimas, fundamentais, mas que me escondiam [...]
Esse estado do nada, eu não sei como vocês estão recebendo porque é a primeira
vez que eu mostro e eu o não estou tendo a coragem ainda de mostrá-lo totalmente, porque
eu estou de cabeça baixa, olhos baixos, pelo menos [...] [alça os olhos]

Acreditem ou não, isso me faz ligar com vocês muito mais profundamente do que até
então. O que fazer com isso? Infelizmente, tentar aprisionar pra ter comigo, pra depois
transcender de novo. Hoje é isso. (Demonstração Técnica - “A Prisão para a Liberdade” –
UniRio – 2002)

Seguem algumas explicações dadas por Simioni sobre o seu processo de trabalho. Além
dos textos ditos na UNIRIO, acrescento algum material de um seminário teórico dado em
Porto Alegre, quinze dias antes; e também algum material da mesma demonstração técnica
realizada em 2006, no Festival Internacional de Teatro de Brasília. Procurarei,
simplesmente, transcrever suas explicações e quando necessário, ressaltar uma ou outra
coincidência com as nossas argumentações teóricas anteriores, repetindo-as. Os títulos em
cor azul completam a tabela das energias que elaboramos na página 349, onde havia

402
deixado um sinal de ‘?’: estágios do trabalho de Simioni que deveriam corresponder a
definidos estágios do ‘trabalho sobre si mesmo’ na psicologia de Gurdjieff e Ouspensky.
Começo relembrando as circunstâncias e motivações iniciais de Simioni:

Outra coisa que aconteceu foi: “técnica, o LUME e a técnica, o ator tem que
vencer, superar, transcender a técnica. Usar a técnica como um trampolim para alguma
coisa.”
Eu sempre ouvia isso e também [ouvia] que nós éramos ‘técnicos’, sempre
‘técnicos’. Aí o Luís Otávio Burnier - criador do LUME e o nosso mestre - morreu. E eu
era o ‘ator técnico’. Eu fiquei, então, incumbido de selecionar os escritos do Burnier o que
era uma honra, mas, também, uma responsabilidade muito grande. Deparo-me com a
seguinte frase do senhor Luís Otávio Burnier, escrevendo em seu diário pessoal: “O
Simioni é um ator técnico! Ele tem muita técnica. Meu Deus, o que é que eu vou fazer com
isso?” E ele morre [...]. (Seminário de Carlos Simioni – Porto Alegre – 2002)

7.4.2 Apagando a musculatura e libertando o prisioneiro – ‘Divisão da atenção em 3’.

“Quem está lendo o texto?”, podemos chegar a perceber que há dois, em nós: aquele
que lê o texto e aquele que testemunha tanto o texto como aquele que lê o texto. Há o
Marinheiro-Mordomo no barco que, depois de cruzar oceanos e tempestades, avista a terra
firme de uma ilha, e há o sol que por cima deles ilumina tanto a ilha como o Mordomo e o
seu barco. O Sol, a Luz, a Consciência é o terceiro fator que testemunha tanto fora como
dentro de nós. ‘Lembrança do Si mesmo em si’ é estar presente aos mundos externo e
interno ao mesmo tempo, com o sentido de identidade fora deles. A interconexão e unidade
de todas as coisas se desvelam a partir daí. (p. 61)

Você faz o energético e você está se mexendo no espaço, pulando, rolando no chão,
segurando, retendo, trabalhando, lançando; e tudo isso [faz] você estar sempre atento no
que você está fazendo. De repente: “Eu não vou mais prestar atenção na musculatura. Vou
prestar atenção em outra coisa.” Inclusive eu nem faço força com a musculatura. É como
se eu tivesse abandonado a musculatura. Eu estou aqui fazendo isso [faz movimentos
amplos e externamente impulsionados] e eu estou muito atento a musculatura. Se eu quiser
esquecer a musculatura eu largo a musculatura e começo a pensar em alguma outra coisa.
Largo e aqui é diferente. [Faz sem espasmos]. Eu não estou direcionando como eu fazia
com o meu corpo. Eu largo a musculatura, mas o meu corpo começa a trabalhar. Mas eu
não estou dando a atenção para o meu corpo e ele faz outras coisas e, aí sim, começa a
aparecer o que tem lá dentro. Apagar [o corpo] é não pensar mais nele. (Seminário de
Carlos Simioni – Porto Alegre – 2002)

“Eu vou fazer exatamente o que eu faço no meu treinamento - eu vou dilatar, dilatar,
dilatar – mas vai chegar um momento em que eu vou ‘apagar a musculatura’.” Aí, surgiu
uma coisa muito interessante. Ao ‘apagar a musculatura’, sem parar de trabalhar, surgiu

403
dentro de mim, uma força que eu chamei-a de ‘prisioneiro’. Eu me perguntei: “Meu Deus,
como que essa força esteve aprisionada durante esses 17 anos?” E essa força começou a
emergir do meu corpo e eu comecei a fazer coisas que eu nunca fazia, e era uma comunhão
tão forte comigo, com o espaço, uma comunhão com as árvores, os pássaros, o ar no
espaço, etc; e a partir daí começo um novo enfoque do trabalho. E comecei a desenvolver
isso. (Seminário de Carlos Simioni – Porto Alegre – 2002)

O que eu percebi? É lógico que não foi ‘apagar a musculatura’ porque é impossível
‘apagar a musculatura’ porque eu estava inclusive me mexendo. Em 16 anos de trabalho, o
enfoque do LUME foi acender o seu corpo, estar atento à musculatura, o intelecto estar
enraizado com a musculatura do seu corpo. Isso fez com que a gente adquirisse todas essas
técnicas, toda a precisão e todo o domínio do corpo. Agora, quando você resolve apagar a
musculatura - que significa: não dar mais bola para isso; acreditar que finalmente, depois
de 16 anos, o corpo é vitorioso, que o corpo pode, sim, trabalhar sozinho sem que eu,
Simioni, fique sempre atento às coisas, mesmo às coisas codificadas, às coisas da
partitura. Quando eu resolvi abandonar isso e não mais me preocupar com o corpo, mas
[deixar] o corpo fazer, aconteceu essa grande coisa que eu acho que é essa
‘transcendência’. E esse ‘prisioneiro’, esse outro lado que estava aprisionado – eu não o
deixava sair devido a toda carga em cima do corpo, das técnicas e energias – quando esse
prisioneiro se vê livre, a gente percebe o primeiro passo do que é ‘transcender a técnica’.
Transcender a técnica significa abandonar o corpo, não abandonar a técnica, e estar
pronto para ver o que dá.
Esse ‘prisioneiro’ foi se desenvolvendo de tal forma que eu não dava mais bola para aquilo
que o físico fazia e sim para a força do prisioneiro que se expandia dentro de mim, dentro
da sala, com os pássaros lá fora, com o todo. Então, eu poderia estar quase que parado e,
ao mesmo, tempo tendo contato com o todo, com todo o universo. (Seminário de Carlos
Simioni – Porto Alegre – 2002)

7.4.3 Liberando-se do ‘ego’ – ‘Segundo choque consciente’.

Obviamente que se a motivação fosse vencer o concorrente já seria a ‘pressão das


circunstâncias externas’ e a expectativa social que estariam trabalhando por nossa vontade
e todo o processo poderia deixar de ter esse acentuado caráter liminar de jogo consigo
mesmo; este ‘jogo mestre’ que se dá entre a parte em nós que quer trabalhar e aquela que
nos faz esquecer o trabalho, muito embora possa estar varrendo a sala de modo muito
natural ou colhendo uvas de modo muito eficiente como uma máquina. É, justamente,
quando localizamos essas duas forças opostas e contraditórias em nós mesmos que surge a
possibilidade do esforço emocional. (p. 340)

Uma das coisas que eu descobri é que para que eu consiga [o que procuro], eu tenho que
me isolar completamente do meu ego. Se eu achar que eu vou conseguir e isso vai ser

404
maravilhoso para mim, eu não consigo. Outra: existe um desencadeamento muscular na
região do peito que precisa ser desfeito, aberto, para que eu consiga chegar até vocês...
...ainda não... ... ainda não que eu tenho medo... ... ainda não... (Demonstração Técnica –
Carlos Simioni – Brasília - 2006)

Transformação do Sofrimento

Não tem como [não passar pela dor]. Infelizmente é um parto. Infelizmente. Mas é
necessário, é necessário. Depois ela é transformada. Ela é transformada em prazer. Então
fica, ainda, essas duas coisas. Pra descobrir é um parto. É como se fosse um parto. [...] É
dor, sempre é dor. (Demonstração Técnica - “A Prisão para a Liberdade” – UNIRIO –
2002)

A Fonte Criadora – Agindo junto com a ‘lembrança do Si mesmo em si’.


Sempre vamos um pouco mais ‘além de nós mesmos’ quando conseguimos concentrar e
conter uma quantidade de atenção e de energia com qualidades mais sutis do que aquelas que
circulavam em nós num momento precedente (p.346.)

Aos poucos, sem deixar nada me influenciar, eu comecei a perceber que o


prisioneiro era nada mais nada menos que a ‘fonte criadora’ pura que existe dentro de
nós. Daí o título da minha palestra que é o ator escultor. A partir dessa ‘fonte criadora’
que é uma fonte que eu ainda não consigo descrever para vocês - porque é absolutamente
nova, tem 6 meses – mas é você entrar em contato com a real ‘fonte criadora’ que não é
sua, você sabe que não pertence a você e que é parte de uma grande força criadora. Foi
aonde eu comecei a construir outros movimentos, através da força criadora. Movimentos
que não tem nada a ver com o que eu fazia antes e movimentos que [...] não se formam
assim de uma vez por toda. A fonte criadora vai construindo cadeia por cadeia. Para
chegar a esse movimento, por exemplo: [faz um movimento] a ‘fonte criadora’ ela constrói
isso assim: um ‘inchaço’. É o oposto do que a gente faz no LUME: que agente faz os
movimentos e aí a gente vai reduzindo, reduzindo, reduzindo, até chegar à essência de tudo
isso. A fonte criadora ela constrói [...] como se você entendesse, percebesse como que é
construído, como que foi construído, como que está sendo construído o universo.
(Seminário de Carlos Simioni – Porto Alegre – 2002)

405
A Fonte Criadora e a Energia Criativa.

Sobre a última frase de Maharshi, que remete a ‘Shiva’, o aspecto divino da trindade
hindu ligado intrinsecamente a ‘destruição’ ou ‘transformação’ de todos os fenômenos do
Universo; digo que ela também nos remete ao ‘Shiva’, em nós mesmos, que dança a nossa
própria existência, na Vida e na Arte, em torno do “Eterno Agora”. Na linguagem do teatro
de Stanislavski entendo ‘Shiva’ como sendo a ‘dimensão criativa do ator’. Tanto como as
relações psicofísicas imediatas do jogador são mantidas; também o ator, num espetáculo,
mantém-se atrelado à sua partitura de ações psicofísicas pacientemente pré-elaborada. Mas,
nessa nova condição, ele não só repete essa partitura interna e externamente como também
a recria pela primeira e única vez. (p. 367.)

S – Exatamente. O que você está falando, é exatamente isso! Você larga todos os ‘tralalás’
e a sua percepção se amplia e você entra no nada – vamos chamar assim, né?- e de repente
[...] isso que vem acontecendo comigo, nos dois últimos meses, mas isso eu nem quis
mostrar, porque isso nem eu domino muito bem. Mas depois desse estado que vocês viram
aqui, de repente esse nada se transforma no que eu chamo – nas minhas anotações – de
‘fonte criadora’. Mas de uma maneira outra de como eu iria criar com os movimentos, ou
as ações, o criar, etc. Então, por exemplo, eu estou no momento que é o meu ‘nada’ e
essa ‘fonte criadora’ vai me mostrar – vocês acreditem ou não acreditem – que essa
‘fonte criadora’ já não sou mais só eu. Eu estou ligado à ‘fonte criadora’ e eu não sei o
que é essa ‘fonte criadora’, que está dentro de mim, mas que me perpassa. E ao mesmo
tempo é como se eu conseguisse – olhe, eu vou falar, mas não tenho como provar isso: é
como se fosse o ato de criação na forma. Não sei. Isso ainda está me assustando um
pouco, mas eu estou indo a fundo nisso aqui pra ver, porque eu caio no risco, lógico, de
cair no corpo de novo. E eu não quero fazer isso, então tem que ser aos poucos, aos
poucos. Então, eu fico só nessa pequena construção ainda. Se eu fosse mostrar todas as
coisas que eu já tenho, fazendo [os movimentos] só mecanicamente: é isso, é isso, é isso
[...] [faz os pequenos gestos parados do fim da apresentação]. Não estou conseguindo ir
adiante ainda. Mas isto é outro tipo de energia, é outro tipo de qualidade. (Demonstração
Técnica - “A Prisão para a Liberdade” – UNIRIO – 2002)

7.4.4 “Communitas”

Ao invés de associarmos um ‘nome’ à impressão da árvore que nos chega e passar a


receber a impressão filtrada por esse nome, podemos ver a impressão da árvore diretamente
como ela é, com todas as suas qualidades de cor, sons, movimentos, odor e existência que
pulsam e jorram, momento a momento, como uma fonte de água ininterrupta. A expressão

406
‘abrir as portas da percepção’ significa que um sentido sutil pode perceber, ao mesmo tempo,
de todos os níveis de impressão que lhe chegam. Por ter produzido o sutil em si, começamos a
ver e nos ‘conectar’ com o sutil que já existe em todas as impressões externas. (p.345):

É como se, por exemplo – também vou dizer outra coisa que parece absurda – é
como se, quando eu estou nesse estado, junto com a ‘fonte criadora’, eu me ampliasse, não
só fisicamente, mas perceptivamente, sensorialmente. Amplio-me e – agora posso garantir,
porque hoje eu experimentei – eu me atei a vocês [...] Eu e vocês éramos um. Mas, quando
eu estou em sala de trabalho lá no LUME é muito legal, porque você tem as árvores e tudo.
E eu me ato, eu me junto às folhas das árvores – olha, já vem o místico falar e não é isso –
mas eu me ato às folhas, às arvores, ao vento, ao pássaro, ao céu, às nuvens, ao ruído, a
mim lá dentro. (Demonstração Técnica - “A Prisão para a Liberdade” – UNIRIO – 2002)

Três depoimentos de Testemunhas Presentes.

A Semente e a Flor

1 – T - Você parte de uma técnica, de uma demonstração, aonde tinha razão no fazer. Ao
mesmo tempo em que você falava, você fazia – até chegar numa entrega absoluta aonde
com o teu silêncio houve um silêncio pleno em toda a sala. Até as pessoas que iam se
levantando voltaram para sentar. E observar esse silêncio... Que foi o momento do
silêncio. Eu acho que foi um momento muito poético e queria lhe agradecer por isso.
Lindo. Que a gente vê exatamente o momento de transcendência da técnica. A
transcendência da técnica, no meu entender, ela não está somente no esquecimento da
técnica. “Eu não quero mais ela!” Ela existe como um adubo. Você foi adubando todo esse
momento, esse terreno; para semear e para tirar esse fruto que foi essa relação plena, sua,
desse momento de uma pequena confissão. (Testemunha de “A Prisão para a Liberdade” –
UNIRIO – 2002)

Ato Total

2 - T – Uma observação. Você fez a pergunta: dali para onde é que vai? Uma coisa que
aconteceu comigo, enquanto eu estava vendo, é que durante toda a demonstração eu estava
aqui vendo você fazendo, interessada no que você estava fazendo, mas tinha um [...] eu
[só] estava assistindo [...]

S – Uma barreira, né?

T – É! Era o lugar da coisa. Eu estava assistindo ao treinamento, a demonstração disso.


Num certo momento, final, eu não estava mais vendo o exercício. Tinha alguma coisa que
me conectava àquilo que estava acontecendo com você. É que eu refletia alguma coisa.
Tinha alguma coisa que me dizia algo, que me criava uma imagem. Era um homem na

407
minha frente que fazia alguma coisa que dizia respeito a mim. Sabe? Não era mais
separado. Não tinha separação.
(Testemunha de “A Prisão para a Liberdade” – UNIRIO – 2002)

Yoga

3 – T – Eu trabalho com meditação. Há 11 anos eu faço meditação. E a meditação, com


meu mestre, é [feita] com dinâmicas que trabalham com o corpo. E chega a estados de
‘satori’, a esse estado – depois do vazio. O ‘satori’ seria o vazio e esse vazio quando se
torna permanente, ele seria o ‘samadhi’. Depois desse ‘vazio’ você tem um movimento, que
é um movimento que não vem da mente, que se chama ‘latihan’. Você chegou a todos esses
estados através do teatro. O meu mestre diz que é a arte mais espiritualizada que tem e que
leva realmente à iluminação. Quando você diz: “eu não sei aonde isso vai me levar?” Meu
mestre diria que é à iluminação. Aí é o caminho que você percebe e já vislumbra em
relação ao teatro. É esse desejo do homem de chegar nesse estado de iluminação. Essa
bem-aventurança que você mostrou aqui e que está ligada à totalidade e que não tem como
dizer, é difícil. Não tem palavras para dizer e isso teria que ser dito de outra forma,
expresso de outra forma. Então, eu fiquei muito satisfeita de ver que através do teatro você
está chegando a esses estados meditativos.
(Testemunha de “A Prisão para a Liberdade” – UNIRIO – 2002)

408
Sobre o espetáculo “Sopro”.
O “Sopro”- acreditem se quiser - ficou pronto em 9 dias. Do zero até o estado que está
hoje com cenário e figurino. Isso, trabalhando 4 a 5 horas por dia. Claro que eu já tinha
todo o material, tudo, tudo, tudo. [...]
Eu sou um ator-pesquisador. Eu estou sempre buscando coisas, eu estou sempre
avançando, sempre indo além, sempre aprofundando... E uns cinco anos atrás, começou a
surgir um estado, um estado físico, energético, sensorial etc.; que eu comecei a me
interessar, e era diferente de tudo que eu tinha feito em quinze anos. Eu comecei a ir atrás
desse estado. Aí fui desenvolvendo, fui encontrando mais, e esse estado é o estado do
“Sopro”. Então, eu fiquei quatro anos desenvolvendo esse estado do “Sopro” em sala de
trabalho, para mim mesmo. Só para mim mesmo, até eu ter a confiança e adquirir a
técnica de poder reproduzir isto quando eu quisesse. Mas esse estado do “Sopro”, eu
pensei: “o que é que eu faço com isto?” Aí eu pensei: (o Tadashi já tinha trabalhado
conosco no ‘Shi-Zen – Sete Cuias) “então eu vou chamar o Tadashi, porque a
sensibilidade do Tadashi é enorme...” Então eu pensei: “Eu vou chamar o Tadashi”. E no
dia em que o Tadashi chegou... ele tinha dez dias mesmo para ficar no Brasil [...]
Aí eu peguei o “Sopro”, a técnica do “Sopro”, e mostrei. Aí o Tadashi disse (o que
foi um super elogio) ele falou assim: “Simioni, eu nunca vi um ator no Ocidente fazer isso.
O que você faz só os atores da tradição, os atores Nô, japoneses, que é de tradição para
tradição, fazem aquilo que é essa qualidade de energia. [...] Como eu já tinha o estado, a
gente só foi brincando de ir colocando ele na moldura. Então, às vezes fazia, às vezes eu
olhava e o Tadashi só foi arrumando. Daí, eu me coloquei nas mãos [dele], porque a
minha contribuição já era outra, era o estado. (Conversa Final – Voz e Ação Vocal, abril
de 2007, Rio de Janeiro.)

409
Cap. VIII – Conclusão.

Há alguns anos, desde que resolvi fazer a graduação em Artes Cênicas até hoje, que
uma questão recorrentemente surge diante de mim: Fazer teatro serve para que?

A pergunta surge com bastante freqüência entre atores e para mim sempre foi muito
incômoda. Se for só para ter um emprego com algum rendimento financeiro há, certamente,
inúmeras outras alternativas muitíssimo mais rentáveis. Logo a seguir me ocorria um
número grandioso de respostas ‘quixotescas’, que mais serviam para encobrir uma ardilosa
vaidade sobre a possibilidade de ser algum ator famoso, reconhecido e estimado.
Em 1996, quando Grotowski veio a São Paulo fazer conferências públicas sobre o
seu trabalho com ‘A Arte como Veículo’, no programa distribuído pelo SESC, patrocinador
e realizador do evento, estava um texto de Peter Brook. Uma frase daquele texto, que não
consegui encontrar na versão feita para a ocasião, fazia referência ao Teatro Laboratório da
década de 60, época em que eu nem mesmo havia nascido:

I gruppi di teatro che condividevano il desiderio di andare verso un teatro di


intensità diversa cominciarono a seguire le orme di Grotowski, senza rendersi conto che,
se non possedevano la sua stessa qualità di comprensione, tutto il lavoro che facevano,
invece di avvicinarli all'ideale, faceva discendere l'ideale al loro livello, che era il livello
contro il quale erano in rivolta.(Attisani & Biagini, 2007, p 22)163

Como fazia parte, eu próprio, de um grupo de teatro que ainda tinha este desejo como
meta, reconheci, dolorosamente, a minha situação. Foi isso que me levou ao projeto
pessoal de entrar para uma faculdade de ‘artes cênicas’ e entrar, concomitantemente, numa
escola de desenvolvimento humano, o que veio a ocorrer em 1998.

Com o passar dos anos, reconhecer que, em mim, quase todo o impulso ao fazer
teatral, seja como ator ou diretor, vinha desta ardilosa expectativa social foi beneficamente
devastador. Há poucos anos atrás havia chegado à conclusão de que o teatro não servia a
meus propósitos como pessoa. Curiosamente, foi do vazio desta devastadora constatação

163
Os grupos de teatro que compartilhavam o desejo de ir em direção a um teatro de diferente intensidade começaram a
seguir os rastros de Grotowski (da fase espetacular), sem darem-se conta que, se não possuíssem a sua mesma qualidade
de compreensão, todo o trabalho que faziam, ao invés de aproximá-los do ideal, faziam com que o ideal descesse até o
nível deles, que era o nível contra o qual estavam em revolta.

410
que começaram a surgir novas e inesperadas respostas a essa questão. O texto que apresento
nesta tese de doutorado é, para mim, uma destas respostas.
Nesse sentido sou muito grato a Turner. Através de sua pesquisa antropológica pude
estabelecer uma conexão entre dois campos de interesses aparentemente distintos dentro da
minha pessoa: o trabalho sobre si mesmo e o fazer artístico.
Se escolhi os termos que Turner adotou, aqueles da ‘estrutura’, da ‘liminaridade’ e da
‘communitas’, foi, justamente, porque eles se aplicam a muitos outros contextos além
daqueles dos rituais de tribos e comunidades arcaicas. É possível aplicá-los a qualquer
contexto que envolva seres da espécie humana, pois, onde há espécie humana há, ali, como
que enraizado, aquilo que chamamos de um ‘drama ético’ a ser dinamizado pelas relações
entre vida, forma e matéria. Turner, em seu O Processo Ritual dizia:

“A “communitas” espontânea é ricamente carregada de sentimentos,


principalmente os prazerosos. A vida na “estrutura” está cheia de dificuldades objetivas:
devem ser tomadas decisões, as inclinações precisam ser sacrificadas aos desejos e
necessidades do grupo e os obstáculos físicos e sociais só são superados a custa de
esforços pessoais. A “communitas” espontânea tem algo de “mágico”. Subjetivamente, há
nela o sentimento de poder infinito. Mas esse poder não transformado dificilmente pode ser
aplicado aos detalhes de organização da existência social. Não é sucedâneo para o
pensamento lúcido e para a vontade firme. Por outro lado, a ação estrutural prontamente
se torna árida e mecânica se aqueles que nela estão envolvidos não forem periodicamente
imersos no abismo regenerador da “communitas”. A sabedoria consiste sempre em achar
a relação adequada entre estrutura e “communitas”, nas circunstâncias dadas de tempo e
lugar, em aceitar cada modalidade quando é dominante sem rejeitar a outra, e em não se
apegar a uma quando seu ímpeto atual está esgotado. (Turner, 1974, p. 170)

Num mesmo e único ser dessa nossa espécie, seja você ou eu, há a tendência à
acomodação em torno de alguma forma ou pensamento conhecido, ao mesmo tempo em
que há, também, um impulso de vida em direção àquilo que é, desconcertantemente,
desconhecido e novo. Do inicial antagonismo entre os pensamentos “Eu sou o Corpo”, “Eu
sou a Mente” e “Eu sou o Espírito”, surge, finalmente, a conciliadora, mas não menos
exigente perspectiva: “Eu que estou neste Corpo e Mente, através deles, adaptando-os às
circunstâncias imediatas, Ajo.” ‘Hamlets’, ‘Arjunas’ e ‘Riobaldos’ que nos ensinem sobre
atuar com coerência e simultaneidade tanto no eixo vertical quanto naquele horizontal.

411
Em vários momentos da sua tese defendida em 1994, Luís Otávio Burnier nos deixou
indícios das suas próprias respostas a essa pergunta sobre a razão pela qual fazer teatro.
Numa delas disse:
A verdadeira técnica da arte de ator é aquela que consegue esculpir o corpo e as
ações físicas no tempo e no espaço acordando memórias, dinamizando energias
potenciais e humanas, tanto para o ator como para o espectador.
(Luís Otávio Burnier – A arte de ator – da técnica à representação p.160)

Essas energias potenciais e humanas poderão ser dinamizadas tanto por um ‘drama
estético’ quanto por um ‘drama social’, desde que haja suficiente densidade de vibração
molecular no ‘jogo-mestre’ dos envolvidos.

Ao estudar a pesquisa de Stanislavski mais a fundo, escapando das questões de


ordem estética, dei-me conta de que o LUME foi, e continua sendo, um legítimo herdeiro e
continuador da pesquisa que Stanislavski empreendeu em torno de suas inquietações mais
caras: a pesquisa sobre a dimensão criativa no ator e no homem.

O termo criado por Stanislavski e utilizado também no título original de sua obra
didática ‘o trabalho do ator sobre si mesmo’, ganha consistência e significado quando lido
sobre a perspectiva da psicologia divulgada por seus conterrâneos: Gurdjieff e Ouspensky.
O estudo da trajetória artística de Jerzy Grotowski o reforça ainda mais. Um estudo
detalhado da trajetória de Peter Brook, conforme havia planejado no início, soou um pouco
excessivo visto a quantidade de material ‘vivo’ coletado para a segunda parte da tese. Além
disso ‘Fios do Tempo’, sua autobiografia, já nos dá uma boa perspectiva da influência de
Gurdjieff em sua vida e obra. O estudo sobre Grotowski me pareceu fundamental não só
pela incompreensão generalizada criada em torno a sua trajetória, como também por ter
sido uma das influências diretas e marcantes na experiência artística de Luís Otávio
Burnier.

Também, diante dessa perspectiva, olhar para o trabalho de Stanislavski e deixá-lo


mofando nas ilegítimas traduções correntes, ou deixá-lo à parte por preconceitos de ordem
estética ou política, é desprezar a capacidade de nossa própria dimensão criativa. A ‘cena
da sala de chá’ está acontecendo aqui e agora na estética realista de nossas vidas cotidianas.
Como não investigar sobre isso?

412
Acredito que o homem, mesmo quando sozinho na intimidade de seu lar, está em
situação de representação. Pode ele não estar consciente deste fato, mas ele está. Cada dia é
uma cena da representação do seu personagem, o ‘eu’, na vida pública e privada. Corpo,
sensações, pensamentos e emoções são sombras projetadas no fundo de uma Caverna onde
o fogo eminente é o ‘Si mesmo’ de si. A terra, os mares, os rios, as plantas, os animais, os
homens, as tribos e as civilizações são sombras projetadas no fundo de uma Caverna onde o
fogo eminente é o ‘Sol’. O que está em cima é como o que está embaixo, e o Universo é
uma seqüência de cosmos contidos uns dentro dos outros, todos eles resultantes das
mesmas forças e leis.164
Para um homem escapar da situação de representação, o único momento possível é
quando ele se funde com o fogo eminente da Caverna, o ‘Si mesmo’ nele mesmo. Dali,
dissolvido na fonte de luz, ele deixa de fazer sombras sobre as paredes frias e escuras da
caverna. Esta é a condição da terceira mariposa, aquela que se ‘identificou alegremente’ com a
chama da vela. Na imagem platônica, é o mesmo que subir a escarpada encosta e escapar
rumo à luz do dia, a identificação entre ‘brahman’ e ‘atman’ (o espírito universal e o espírito
individual) da Yoga.
Mas de volta à Caverna, os mesmos antagonismos e contradições observados no
‘trabalho sobre si’ e ‘no trabalho do ator’ são exponencialmente revelados dentro dos
organismos sociais, nos macros e nos micros. Os maiores tendem ao engessamento e à
rigidez e carecem, notavelmente, de muita energia sensitiva nas suas estruturas relacionais.
São os micro-organismos sociais - parece-me – que, com maior possibilidade de imersão no
abismo regenerador da ‘communitas’, conseguem, na sua idiossincrasia, estruturar,
dinamizar e arejar tanto as suas relações internas como as suas relações na vida social. É a
dita ‘communitas normativa’ de Turner.

O fato de que ao longo dos anos o LUME tenha se mantido e que cada ator-
pesquisador tenha avançado a pesquisa de forma individual já é, por si só, um fato notável
e, sinto, um indício claro da presença de um alto grau de ‘liminaridade’. O LUME,
segundo minhas observações, tem se tornado um grupo onde coletividade e

164
“The thousand shadows that surround you disappear in a single ray of the celestial sun.” [Fariduddin Attar]

413
individualidade podem respirar e conviver criativamente. Óbvio que há um preço a ser
pago por esse tipo de situação especial; mas é visível que o LUME o está pagando.
Porque mesmo os projetos mais bem estruturados e avançados - como este do
LUME que foi escolhido para campo de observação desta pesquisa - devem conter, em si,
todas essas forças e tendências, de modo que foi natural encontrarmos ali todos os aspectos
desta dinâmica processual. O processo criativo ocorre através das dificuldades e não com
uma idealizada eliminação e purificação destas. Também ali, conhecendo a trajetória social
e artística dos atores-pesquisadores, vimos que nenhuma conquista ou descoberta passada
determinou e justificou uma acomodação definitiva. Nesse sentido, o Núcleo
Interdisciplinar de Pesquisas Teatrais da Unicamp, o LUME, revelou-se como um Centro
de Excelência.
Que os aprendizados da Arte possam servir também para a Vida, para as Ciências e
para a Universidade.

UNICAMP e o eixo do “Eterno Agora”.


“A História do Logotipo da Unicamp. Idealizado pelo Prof. Zeferino Vaz e criado pelo
artista plástico Max Schiefer e pelo arquiteto João Carlos Bross, na década de 70, o
logotipo da UNICAMP foi desenhado a partir do Plano Diretor da universidade, e o
significado é o conhecimento numa forma amorfa e sem contorno.

A bola branca, dentro das treze listras que representam a bandeira paulista, é o símbolo da
unidade, grande ponto de encontro de pessoal e principalmente do conhecimento humano,
simbolizado pelas três circunferências vermelhas: Ciências, Exatas e Humanidades.
Atuando em conjunto, essas três áreas do conhecimento irradiam-se para a coletividade,
cumprindo as três funções da Universidade: Ensino, Pesquisa e Extensão.” 165

165
Reproduzido da Internet no site http://www.35anos.unicamp.br/logo-unicamp_z_vaz.htm Consultado em Novembro
de 2009.

414
"Universidade: palavra derivada da expressão grega uni-versitas, ou seja unidade na
versatilidade, ou, ainda, unidade na universatilidade dos conhecimentos humanos. Sempre
unidade, um só organismo com a função básica de transmitir, gerar e aplicar
conhecimentos, e sempre no encalço do objetivo maior e também razão de ser da
imprescindível unidade: o bem estar físico, espiritual e social do homem."

– Zeferino Vaz –

Ponto Central da Unicamp

Não existe ontem.


Não existe amanhã.
Existe só o Agora.
Tudo gira em torno deste Eixo.
(Diário de Campo - ‘Treinamento Técnico do Ator II’ – 14/02/2008.
Registro de áudio feito horas depois.)

E nós, como atores munidos com “ações”, “poesias” e “personagens”, mesmo


quando equipados com a excelência do conhecimento humano desenvolvido e acumulado
no tempo e no espaço, existimos mais ou existimos menos, de acordo com nossa
proximidade Dele.

415
Cap IX – Referências e Bibliografia . 166

8.1 – Teatro e Literatura.

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Merege. Créditos da digitalização: Membros do grupo de discussão Acrópolis (Filosofia)
Homepage do grupo: http://br.egroups.com/group/acropolis/

MAHĀBHĀRATA. O Bhagavad-Gītā como ele é – Tradução e significado elaborados por


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_____________, Self-Enquiry- Publicado por V. S. Ramanan - Tiruvannamalai - Índia,
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PEQUENA FILOCALIA (autores vários) – o livro clássico da Igreja oriental, São Paulo:
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PASQUALOTTO, G. Estetica del Vuoto – Arte e Meditazione nelle culture d´Oriente.


Venezia: Marsílio Editori, 1992.

PLATÃO. A República. Trad. J. Guinsburg, São Paulo:Difusão Européia do Livro,1973.

QUEIROZ, M. Em busca do paraíso perdido. São Paulo: Mercuryo, 1995.

RAMACHARAKA, Hatha Yoga ou Filosofia do Bem-Estar Físico. São Paulo: Editora ‘O


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UPANISHADS – Sopro Vital do Eterno – De acordo com a versão inglesa de Swami


Prabhavananda e Frederick Manchester. São Paulo: Editora Pensamento, 1993.

VIVEKANANDA, Karma-Yoga. São Paulo: Editora ‘O Pensamento’, 1956.

ZANNOS, S. Tipos Humanos - Essência e Eneagrama, São Paulo: Eneagrama, 2004.

421
X – Anexos – Estudos auxiliares

ANEXO 1

Arte, Ciência, Filosofia e Religião.

10.1 – A liminaridade e a Communitas de Turner, a Zona de Intensidade de Deleuze


& Guattari e o Vazio Zen Budista.

Começamos pelo Caos. Não o caos da forma que dissipa toda a sua atenção e
energia. Mas o Caos como potência infinita de possibilidades.
O Caos da Energia da onde derivam todas as formas ordenadas e caóticas.
O Caos Solar como Energia que dá possibilidade a todas as formas planetárias e terrestres.
Caos: zona de potência de pensamentos não formados, zona de experiência completamente
aberta, partículas aceleradas de pensamento. Energia que se precipitará na forma. Caos
Potencial como o Vazio Potencial.
O Caos como a Consciência desvinculada da Forma.
Podemos claramente localizar o pensamento esotérico ou psicológico não como um
pensamento ‘místico’, obscuro, universalista, arbóreo, dualista ou religioso – no sentido
estático dado por Deleuze e Guattari a este último, em ‘Mil Platôs’. O esotérico é um tipo
de pensamento que desacelera partículas do Caos Potencial da Zona de Possibilidades,
tendo a preocupação prática de evitar perder contato, momento a momento, com a dinâmica
original destas Possibilidades. Como sabemos pela nossa própria experiência com a arte, e
pelos estudos anteriores, isso exige uma grande quantidade de vontade, disciplina e
qualidade de atenção.
O ‘Koan’ do budismo zen japonês é um exemplo deste tipo de pensamento:
“Koan” (chinês: Kung-mês) literalmente significa “documento público”; de fato
designa uma palavra ou uma frase priva de um sentido lógico comum proposta ao aluno do
mestre para quebrar os limites do seu pensamento discursivo e as leis da lógica comum,
obtendo assim uma intuição da realidade que vá além das classificações normais fundadas
sobre o dualismo.

422
Muito freqüentemente um ‘koan’ constitui-se como a última resposta do mestre em
um ‘mondo’, ou seja, ao interno de um breve, mas intenso diálogo com o aluno, onde este
último é conduzido aos limites extremos das suas capacidades racionais, isto é, ao ponto
crítico no qual não pode mais utilizar de nenhuma noção, nem de nenhum conceito já
conquistados: lá onde, isto é, o aluno é levado a fazer o vazio até mesmo da idéia de si
mesmo; e é, portanto, colocado em melhores condições para conhecer a realidade no
estado puro, sem mais filtros ou esquemas. (Pasqualotto, 1992. p.67.)

Se o pensamento científico desacelera as partículas e propõe fórmulas e equações


universais, criando conceitos duros e exatos para lidar com a realidade material; se a
filosofia propõe conceitos não totalmente universais, não totalmente desacelerados, mas
conceitos dinâmicos que se entrelaçam e se ramificam em todas as direções possíveis como
rizomas que se espalham, perfurando a rigidez do solo material de conhecimento
armazenado; e se a arte coloca o próprio Caos Potencial em uma moldura, fazendo um seu
enquadramento – diríamos que o pensamento esotérico ou psicológico, suportado por uma
prática meditativa ou um trabalho interno pessoal intransferível, está mais perto desse
último, pois traz o Caos Potencial em si.

“Quando todo resquício de pensamento é eliminado, o princípio do vazio surge


claramente, de si mesmo, como a própria origem da mente.” [Mestre Zen So Sahn]

“Não pense sobre o que pode ser pensado, e não pense sobre o que não pode ser pensado.
Quando não se pensa sobre o pensável nem sobre o impensável, o vazio será visto.”
[Gampopa]

Espaço e Tempo Liminar


Anti- Estrutura
2 – Liminaridade, à margem, Espaço Liminar
Área e período de ambigüidade
e marginalidade Communitas

_________________ __________________________________________ ____________________


Separação da 1– 3 – Reincorporação na Estrutura
Estrutura Social Social
Pré-liminar Pós-liminar
Estrutura Normativa Social
Espaço e Tempo Cotidiano

423
Há um evidente paralelo entre o conceito de liminaridade e aquele de Zona de
Potência ou Caos de Possibilidades e também poderíamos chamar o próprio processo ritual,
indicado por essas três fases, como uma linha de fuga dos adensamentos, estratos,
agenciamentos e linhas molares duras que estruturam um Plano de Organização
Deleuziano.
O plano de organização e a zona de potência.

Plano de Organização Plano de Intensidade


(Zona de potência)
A vida no presente através das
As cenas do teatro da vida social micro-percepções
cotidiana. O conceito de ‘essência’ pertence ao
(Níveis de Caos, ordem, atenção e energia plano intensivo. As cenas do teatro do
no plano de organização) aqui e agora. (Níveis de Caos, ordem,
atenção e energia na zona de potência)
Tristeza de Spinoza (re-configuração do plano de organização)
Forças de Poder A zona de potência está num rizoma.
Conhecimento estruturado Pensamento é criação.
Relação “Drogar-se tomando um copo d’água”
Comunicação Deleuze.
‘Senso comum’ “Escovar os dentes todos os dias como
Sujeito estático – uma estrutura alegre (de Spinoza).”
Dualidades (Homem/mulher, Bom/Mal, )
Tempo – Cronos Pré- existe enquanto potência mas
Espaço – Cartesiano deve ser criado, ativamente buscado
Organiza e Estrutura a Vida A existência como obra de Arte.

Mas contém em si, potências de fuga, dobra A alegria de Spinoza.


do poder e fissuras - zona de possibilidade (devir) de
(o ritual vivo institucionalizado) processo e de experiência
O sujeito enquanto vontade de fuga
linha de fuga Sujeito: hecceidade
para a zona de potência Tempo: aiônico
Relação com o outro. Espaço: Spatium (Espaço de Escher)
Relação “Eu- Isto” Buber Relação com o outro
Relação “Eu-Tu” Buber

A Zona de Potência ou Plano de Intensidade Deleuziano se orienta no mesmo


sentido do Espaço-Tempo Liminar de Turner, fortificando esse conceito e dando a ele uma
qualidade dinâmica e uma velocidade que a escrita de Turner aponta, mas não a concretiza
como o faz a escrita rizomática de Deleuze e Guattari que rompem deliberadamente com
hábitos e padrões de formulação de pensamentos, hábitos e padrões arquivados em nosso

424
‘Valete’ de ouros. Do mesmo modo, o Plano de Organização com seus agenciamentos e
estratos (ou os Diagramas de Poder e Saber de Foucault) orienta-se paralelamente às
posições estáticas da ‘Estrutura Normativa Social’ de Turner e dá a este conceito uma
qualidade que o amplifica como idéia.
Por diversas vezes, enquanto lia algum capítulo dos “Mil Platôs” não me perdia na
leitura por que a seguia de perto, junto com os conceitos de Turner.
Deleuze sugere, do mesmo modo que Turner, que a experiência no Plano de
Intensidade (Espaço-tempo liminar) deva irrevogavelmente precipitar-se e recriar o Plano
de Organização (estruturas normativas) e que do mesmo modo este último conterá em si,
potências de fuga, dobras de poder e fissuras que levam à experiência na Zona de Potência.
Ambas as formulações, tanto a de Turner como a de Deleuze & Guattari são muito
bem complementadas pelo estudo que fizemos das idéias esotéricas formuladas através de
Gurdjieff e Ouspensky. Aquilo que estes últimos chamaram de ‘Self-Remembering’ é o
terceiro elemento que impede que os dois lados da coluna não se degenerem em um
dualismo estéril de posições inconciliáveis. E o que é mais interessante e fundamental é que
as idéias esotéricas nos fazem compreender que ambos os lados da coluna existem tanto
dentro como fora, tanto no mundo das relações sociais possíveis, como no funcionamento
do nosso mundo interior que abriga uma população inteira de ‘eus’ originários dos
‘Valetes’, ‘Damas’ e ‘Reis’ dos naipes de paus, espadas, ouros e copas – as funções
inferiores. Como pudemos notar acima e veremos ainda, a noção de lembrança de Si ou
lembrança do Ser e a noção de Vazio no Budismo são uma única e mesma coisa.
O homem que não pensa, mas é pensado, é, certamente, aquele que está
completamente identificado com seu ‘ser inferior’ ou imerso num modo de relação “EU” –
167
“ISSO”, conforme Martin Buber descreve (Buber, 1979.) Ou diríamos ainda, com as
palavras de Foucault, um homem de corpo dócil, um homem moldado pelas formas
dominantes de saber e poder de uma época. Interessante notar, a partir do que entendi da
perspectiva de Foucault, o surgimento do mesmo fenômeno social em escalas diferentes: há
uma macro-física do poder definida pela relação e disputa política entre grupos e
instituições sociais com a conseqüente definição de normas, leis, saberes e forças que
regulamentam e mantêm uma ordem estabelecida para o estado social; e há uma micro-

167
Ver página 84.

425
física do poder, onde sujeitos estratificados e moldados em seu comportamento segundo
essas normas, leis, saberes e forças entram em relação num momento de vida comum.
Seguindo aquilo que entendo deste tipo de relação micro-física entre homens
docilizados, há uma sufocação das suas qualidades idiossincráticas, isto é, uma sufocação
da maneira de ver, sentir e reagir, própria de cada pessoa, isto é, da essência de cada pessoa.
Não há espaço interno para a escolha do modo de agir; não há espaço vazio interno
para que o indivíduo escolha e atue a sua vida social e neste sentido um homem é pensado
e atuado por forças externas que estão estruturadas dentro dele. Vê a realidade externa não
com seus olhos, mas com os olhos do saber que lhe foi dado de fora. Discursa sobre si e a
realidade externa não com sua boca, mas com a boca do saber que lhe foi dado de fora. Um
sujeito docilizado é um sujeito que à medida que vai sendo ‘educado’ e ‘informado’, vai
perdendo contato com o seu espaço vazio interno. Vazio necessário para que possa
compreender de forma pessoal este saber, escolher como utilizá-lo e também sobre aquilo
que quer ou não quer manter em si mesmo.
O estado liminar da lembrança de Si cria espaço vazio dentro do sujeito, dando-lhe
possibilidade e responsabilidade pessoal de escolha diante das normas, leis, saberes e forças
externas; mas não só isso, o espaço vazio criado pelo estado liminar possibilita a criação de
normas, leis, saberes e forças pessoais, íntimas e internas que fazem frente à mecanicidade
e automatismo de sua própria pessoa. É neste ponto que pessoalmente me oriento com as
escolhas antropológicas de Turner, na medida em que ele prevê que nenhuma sociedade –
grupo social de pequeno, médio ou grande porte – pode ser sã se não é organizada por
individualidades desenvolvidas e fortificadas através das relações da “communitas”.
Nas relações entre indivíduos em estados liminares os afetos tendem a aumentar a
capacidade de ação um do outro. Na micro-física da “communitas”, o agir a partir do
espaço vazio gera espaço vazio no outro. Ao invés, como podemos verificar cotidianamente
na nossa própria experiência, quando deixamos colar completamente nossa identidade em
algum papel ou expectativa socialmente estruturada, logo percebemos que ou somos
superiores ou somos inferiores; ou dominamos ou somos dominados; ou somos opressores
ou somos oprimidos. Ao pagar as contas de uma simples ida ao supermercado, podemos
sentir como estamos nos relacionando com o outro ser humano, que faz o papel de ‘caixa’.

426
Na micro-física do poder “estruturado”, o agir de uma pessoa sem contato com o
espaço vazio interno tende a se relacionar com a falta de espaço vazio no outro, diminuindo
sua capacidade de ação. Se este último protege, em um esforço pessoal e intransferível, seu
espaço vazio ou não; o fato é que a relação externa termina precipitando-se
irrevogavelmente, em um tipo de agenciamento e território estruturado. Estamos falando de
relações humanas estáticas ou dinâmicas, de sujeitos definidos e presos em cenas
cotidianamente estabelecidas ou de sujeitos indefinidos que criam, em processo, suas
próprias cenas, atuando suas próprias vidas em contato com o Vazio Potencial. Intuo que
sejam estas as Alegrias e as Tristezas Spinozianas.
O corpo da vida cotidiana é um corpo que está, normalmente, com sua capacidade
de ação limitada e diminuída; e pensar o trabalho do ator e da arte a partir deste ponto já é
meio caminho andado.

O que é a Filosofia?
Terminado o curso teórico ‘Corpo-em-arte – Corpo Subjétil: busca de
conceituação’, decidi que deveria ler pelo menos um texto completo de Deleuze &
Guattari, já que eram esses os autores que estavam na base do conhecimento auxiliar usado
por Ferracini em sua tese. Spinoza, Bergson, Leibniz e Foucault surgem justamente porque
a dupla sugere uma releitura desses autores, criando uma teia rizomática de relações e
pensamentos entre eles. Escolhi o livro “O que é a Filosofia?” que não só trata da questão
de seu título, mas também busca mapear e distinguir qualidades de pensamentos e suas
naturezas intrínsecas diversas: o pensamento científico, o pensamento filosófico e o
pensamento artístico; isto é, as relações entre ciência, filosofia, arte, incluindo também uma
perspectiva sobre a religião.
É sempre delicado entrar numa área de conhecimento em que não se tem
familiaridade e formação especializada; e mais delicado ainda é falar e discorrer sobre ela.
Mas não poderia me deixar sentir inibido a esse respeito, principalmente depois de ter lido
este livro, onde o filósofo e o psicanalista entram no território das artes e discorrem sobre
ela com tanta força e lucidez.
Duas questões que me chamaram a atenção ao ler este livro:

427
1- A perspectiva dos autores de enxergarem a arte como um lugar que produz, a seu
modo próprio, conhecimento e pensamento; não em forma de conceitos, de idéias ou
opiniões, mas na forma de um bloco de sensação. Seria um ‘ser de sensação’ construído
através de ‘perceptos’ e ‘afectos’ que servem de ponte e relação imediata e regeneradora
entre o Caos Potencial e o sujeito que percebe este ‘ser’ e deixa-se por ele ser afetado e
também o afeta, no caso das artes performáticas. Cito esta passagem do texto que fala por si
só e ressoa com grande exatidão em relação à pesquisa que estamos fazendo:

“Será preciso sempre outros artistas para fazer outras fendas, operar as
necessárias destruições, talvez cada vez maiores, e restituir assim, a seus predecessores, a
incomunicável novidade que não mais se podia ver. Significa dizer que o artista se debate
menos contra o caos (que ele invoca em todos os seus votos, de uma certa maneira), que
contra os “clichês” da opinião. O pintor não pinta sobre uma tela virgem, nem o escritor
escreve sobre uma página branca, mas a página ou a tela estão já de tal maneira cobertas
de clichês preexistentes, preestabelecidos, que é preciso de início apagar, limpar, laminar,
mesmo estraçalhar para fazer passar uma corrente de ar, saída do caos, que nos traga a
visão.” (Deleuze & Guattari, 1992. p. 262)

2 – A segunda questão refere-se aos termos, ‘transcendente’ e ‘imanente’. Os


autores intencionalmente diferenciam e separam os territórios de investigação que
pertencem à filosofia e à religião ao distinguirem e oporem entre si os conceitos de
imanência e transcendência, o primeiro termo, como plano de todo pensamento
verdadeiramente filosófico e o segundo, como eixo de toda expressão do pensamento
arbóreo, dualista, moral e religioso. Cito duas passagens com as quais acho importante
dialogar:

“Numa palavra, os primeiros filósofos são aqueles que instauram um plano de imanência
como um crivo estendido sobre o caos. Eles se opõem, neste sentido, aos Sábios, que são
personagens da religião, sacerdotes, porque concebem a instauração de uma ordem
sempre transcendente, imposta de fora por um grande déspota ou por um deus superior aos
outros... Há religião cada vez que há transcendência, Ser vertical, Estado imperial no céu
ou sobre a terra....” (Deleuze & Guattari, 1992. p. 262)

e a segunda:

“Cada vez que se interpreta a imanência como “a” algo, produz-se uma confusão do plano
com o conceito, de modo que o conceito se torna um universal transcendente, e o plano, um
atributo no conceito. Assim mal entendido, o plano de imanência relança ao transcendente:

428
é um simples campo de fenômenos que só possui secundariamente o que se atribui de início
à unidade transcendente.
Com a filosofia cristã a situação piora... [...]. Cada filósofo deve demonstrar, com o risco
de sua obra e por vezes de sua vida, que a dose de imanência, que ele injeta no mundo e no
espírito, não compromete a transcendência de um Deus ao qual a imanência não deve ser
atribuída senão secundariamente (Nicolau de Cusa, Eckhart, Bruno).” (Deleuze &
Guattari, p. 62)

Gostaria de fazer um confronto entre as citações escolhidas: a primeira que se


relaciona à luta do artista para romper com a camada de clichês preexistentes e
preestabelecidos e conseguir uma golfada de ar fresco vindo do Caos Potencial, ainda que
seja uma única; e a segunda que relaciona toda forma moral e religiosa a uma
‘transcendência imposta de fora por um grande déspota ou por um deus superior aos
outros.’ Aquilo que Deleuze & Guattari vêem com tanta clareza no campo da arte, deixam
de ver no campo da religião e da moral. Porque de fato, ao referir-se a elas, ele está se
referindo mais à sua institucionalização histórica do que a uma prática moral e religiosa
viva e legítima, acessível ao homem tanto quanto à ‘arte que nos traz visão’. No que diz
respeito à religião, a institucionalização e normatização é o momento em que ela, muitas
vezes, já perdeu sua capacidade de gerar, em seus membros internos e em seus adeptos e
fiéis, o ‘estado’ de graça pelo qual foi gerada, independente de qual religião seja esta.
Talvez o fenômeno seja, em comparação com a religião, mais clamorosamente visível na
área das artes, por esta sempre de alguma forma ocupar um lugar marginal em relação aos
interesses sociais mais pungentes; e por isto, como nos revela a história da arte ocidental,
poder ser, periodicamente, mais confrontada e reestruturada em movimentos e tendências
inovadoras. O poder político e a religião institucionalizada, no entanto, sempre geraram,
através dos tempos, duradouros e opressivos pactos, aos quais, me parece, se referem
Deleuze & Guattari no livro.
No que diz respeito à moral, poderíamos dizer que há dois tipos distintos de moral: a
moral social e a consciência moral. A primeira é aquela que é socialmente negociada por
uma comunidade; a segunda é aquela que é intimamente forjada dentro de um indivíduo.
As duas podem até existir concomitantemente e concordarem entre si, mas quando a
primeira existe na ausência da segunda, ela parece gerar, justamente, a matéria prima da
qual são constituídos os territórios e as linhas molares duras do plano de organização: o
pensamento arbóreo, dualista, moral e religioso.

429
Mas deve existir também, um verdadeiro pensamento religioso. Aquele que não se
deixa asfixiar pela leitura superficial e compreensão externa que se sedimentam, ao longo
dos anos, numa grossa camada de preconceitos e opiniões estáticas protegidas pela idéia e
pelo conceito de ‘Deus’ e de ‘transcendente’. Assim como com a Arte e a Filosofia, não
deve ser diferente com a Religião. Há religião cada vez que há transcendência: uma
realização individual, concreta e possível que dissolve todas as palavras e conceitos que
possam interferir na sua imediata e prática vivência. A transcendência, neste sentido, é
imanência, pois provém de um ser específico que desejou por vontade e esforço próprio
realizá-la através da prece, da meditação ou do serviço religioso. Ela não é dada a priori,
mas é fruto de um determinado trabalho do homem sobre ele mesmo, que o leva a entrar em
contato com aquilo que, nele mesmo, transcende qualquer noção ou conceito lingüístico de
si ou de Deus. Este processo de trabalho do homem sobre si mesmo é aquilo que foi
chamado na filosofia antiga de ‘conhece-te a ti mesmo’.

“O primeiro princípio da filosofia é que os Universais não explicam nada, eles próprios
devem ser explicados. Conhecer-se a si mesmo — aprender a pensar — fazer como se nada
fosse evidente — espantar-se, “estranhar que o ente seja”..., estas determinações da
filosofia e muitas outras formam atitudes interessantes, se bem que fatigantes a longo
prazo, mas não constituem uma ocupação bem definida, uma atividade precisa, mesmo de
um ponto de vista pedagógico. Pode-se considerar como decisiva, ao contrário, a definição
da filosofia: conhecimento por puros conceitos.” (Deleuze & Guattari, p15)

Vejo que de fato, os universais não só devem ser explicados, mas antes de tudo
devem ser realizados. E esta, parece ser uma dificuldade comum e intrínseca não só à
religião, mas também à filosofia e à arte ocidental. ‘Conhecer e trabalhar sobre si mesmo’
não só é uma atividade pedagógica precisa, como também deveria ser uma ocupação
definida do filósofo, do artista, assim como do religioso e do cientista. Talvez seja esse o
‘elo’ perdido que nos capacitaria a transitar livre e imparcialmente por todas estas áreas de
naturezas de conhecimentos bastante específicos.
Além do Zen Budismo, os Sufis, a Ioga, e os monges ortodoxos da igreja oriental
que produziram a coletânea de textos chamada ‘Filocalia’, são outros bons exemplos disso.
Neles, Arte, Ciência, Filosofia e Religião se aproximam, se encontram, às vezes até não se
misturam, mas também não se excluem. Os dois próximos estudos que apresento, tratarão
justamente dessa questão.

430
10.2 Um Novo Modelo do Universo e ‘Tertium Organum’.
Peter Ouspensky era jornalista, filósofo e matemático; mas, antes e acima de tudo
Ouspensky se caracterizou por ser um buscador. Ao encontrar Gurdjieff já havia escrito e
publicado uma série de textos de altíssima qualidade, tratando do assunto das quatro
principais áreas de produção de conhecimento da humanidade e suas peculiaridades. Após
ler “O que é a Filosofia?” e “Estetica del Vuoto – Arte e Meditazione nelle Culture
d’Oriente”, li os livros “Tertium Organum” e “Um Novo Modelo do Universo” de
Ouspensky. Um dado curioso é que esse último faz parte da bibliografia da tese de
doutorado de Luís Otávio Burnier, um dos fundadores do LUME. Nunca encontrei qualquer
referência direta ou citação do livro na sua tese, mas faz parte da bibliografia utilizada.
Outro dado curioso é que Ouspensky viveu na mesma Rússia em que viveu
Stanislavski, com certeza, pelo menos até antes da revolução de 1917; e fez, tanto em São
Petersburgo como em Moscou, inúmeras conferências públicas sobre suas viagens e
pesquisas sobre as tradições esotéricas do Oriente. Sendo também jornalista, era
publicamente conhecido como um especialista no assunto. Jamais ouvi qualquer registro de
que os dois tenham se conhecido pessoalmente, mas seria muito provável que, de alguma
forma, um possa ter tido contato com o trabalho do outro, seja nessas conferências, seja nos
espetáculos do Teatro de Arte de Moscou, ou por artigos e livros. Essa informação não é
irrelevante, principalmente hoje, quando surgem estudos mais acurados da obra de
Stanislavski, que reportam a algumas influências que possam ter contribuído de forma
direta ou indireta ao desenvolvimento de sua pesquisa, entre elas livros e conhecimento
referentes à Ioga Hindu.
Muito recentemente, encontrei em buscas pela internet, dois livros que tratam do
assunto. Um deles é: “The Stanislavski System of Acting: Legacy and Influence in Modern
Performance” de Rose Whyman, publicado em 2008 pela ‘Cambridge University Press’,
que diz em sua introdução:

“Hindu works were translated into many languages including Russian. Michael
Chekhov famously became an anthroposophist and, most important, Stanislavsky had an
interest in yoga, to which he was introduced by Leopold A. Sulerzhitsky, his close friend
and assistant at the Moscow Art Theatre.” (Whyman, 2008, p. 3.)

431
Em sua pesquisa, Whyman diz que o único livro encontrado nos arquivos do Teatro
de Arte de Moscou sobre ‘Ioga’ é o “Hatha Yoga, or the Yogi Philosophy of Physical Well-
being”168, publicação americana, traduzida e publicada em russo em 1909.
Gostaria de citar aqui, alguns trechos retirados de um texto de Ouspensky sobre
Ioga, publicado na Rússia em 1912, e que faz parte de ‘Um Novo Modelo do Universo’.
Ainda que o texto tenha sido revisto em 1934, devemos supor que a sua base tenha
permanecido a mesma. O fato é que em 1912, Ouspensky ainda não havia conhecido e
trabalhado com George Gurdjieff, de quem se tornaria mais tarde – como vimos – amigo e
colaborador.
A citação aqui se justifica na medida em que é um dos possíveis textos que
Stanislavski tenha entrado em contado na época. Também o incluo, porque ao desenvolver
o estudo sobre o trabalho de Grotowski, encontrei mais evidências, desta vez abertamente
divulgada, da influência da Ioga sobre a preparação psicotécnica do ator. Servirá também
para esclarecer alguns aspectos desta Tradição Oriental, que não nos é de modo algum
familiar. No senso comum associamos a palavra ‘Ioga’ a posturas físicas e a meditação.
Como veremos a Ioga é um sistema completo que possui cinco diferentes tipos de
abordagens:

O que é Ioga?
“Podemos traduzir a palavra Ioga por unidade, união ou submissão; no primeiro
significado, ela corresponde à palavra “arreamento”, do termo sânscrito yug, ao qual
corresponde a palavra inglesa yoke (jugo, opressão) e a russa ИГО.
Um dos sentidos da palavra “Ioga” é “ação correta”.
Seguir a Ioga significa submeter ao controle de um ou outro sistema de Ioga o
pensamento, o sentimento, os movimentos internos e externos, etc., isto é, as funções, que na
sua maioria trabalham sem controle.
“A ciência dos iogues”, isto é, os métodos usados pelos iogues para desenvolverem em si
poderes e capacidades extraordinários, vem da Antigüidade remota. Há milhares de anos, os
sábios da Índia antiga sabiam que os poderes do homem, em todas as esferas e campos de sua
atividade, podem ser grandemente aumentados por meio de um treinamento correto e
habituando o homem a controlar seu corpo, intelecto, atenção, vontade, emoções e desejos.

168
O livro foi publicado no Brasil: RAMACHARAKA, Hatha Yoga ou Filosofia do Bem-Estar Físico.
Editora ‘O Pensamento’: São Paulo, 1956. O autor desse livro é William Walker Atkinson, um americano,
nascido em 1862, que passou a usar o pseudônimo de Iogue Ramacharaka após ter contato com o Hinduísmo,
não se sabe ao certo porque meios. Site consultado: http://www.ramacharaca.com.br/autor.htm (em março
2010)

432
O homem não era considerado um ser completo, mas um ser que tinha em si uma porção
de poderes latentes. A idéia era de que, na vida comum e no homem comum, esses poderes
estavam adormecidos, mas poderiam ser despertados e desenvolvidos por meio de certo modo
de vida, certos exercícios, certo trabalho sobre si mêsmo. Isso é o que se chama Ioga.
Em geral, falando a respeito de Ioga, é necessário salientar que a relação entre suas
partes prática e teórica é análoga à relação entre os aspectos prático e teórico da arte. Há
uma teoria da pintura, mas o estudo dela não capacita ninguém a pintar. Existe uma teoria
da música, mas o estudo dela não capacita ninguém a tocar qualquer instrumento musical.
Na prática da arte, como na prática da Ioga, há alguma coisa que não existe nem pode
existir na teoria. A prática não é construída de acordo com a teoria. A teoria deriva da
prática.
A Ioga ajuda o homem a lutar contra a ilusão das palavras, mostra-lhe claramente que
um pensamento expresso por palavras não pode ser verdadeiro, que não pode haver verdade
nas palavras, que, na melhor das hipóteses, elas podem somente sugerir a verdade, revelá-la
por um momento, e ocultá-la.
A Ioga tem cinco divisões:
Raja-Ioga ou a Ioga do desenvolvimento da consciência.
Jnana-Ioga (Gniana ou Gnana-Ioga), a Ioga do conhecimento.
Karma-Ioga ou a Ioga das ações corretas.
Hatha-Ioga, a Ioga do poder sobre o corpo.
Bhakti-Ioga, a Ioga da ação religiosa correta.
As cinco Iogas são cinco caminhos que conduzem à mesma meta: à perfeição, à
transição para os níveis mais elevados de conhecimento e de vida.
As divisões das cinco iogas dependem da divisão de tipos do homem, suas capacidades,
preparação, etc. Um homem pode começar pela contemplação, pelo estudo do seu próprio
“eu”. Outro precisa do estudo objetivo da Natureza. Um terceiro deve, antes de tudo,
compreender as regras de conduta na vida comum. Para um quarto, antes de mais nada, é
necessário adquirir o controle do corpo físico. Para um quinto é necessário “aprender a
orar”, compreender seus sentimentos religiosos e aprender a dirigi-los.
O estudo das Iogas, com exceção da Karma-Ioga, é impossível nas circunstâncias da
vida. O estudo da Ioga é igualmente impossível sem um mestre, sem sua constante e incessante
vigilância sobre o aluno.
Do ponto de vista dos princípios da Ioga, o homem é um simples material sobre o qual é
possível e necessário trabalhar.
O desabrochar da consciência superior é a meta de todas as Iogas.
Seguindo o caminho da Ioga, o homem deve alcançar o estado de samadhi, isto é, de êxtase
ou iluminação, somente no qual a verdade pode ser compreendida.” (OUSPENSKY, 1995.
p.196-201.)

O texto segue explicando mais detalhadamente, cada um dos tipos de Ioga. Ramana
Maharshi fala dos vários tipos de Ioga também acentuando como todas elas são caminhos que
conduzem a um único e mesmo objetivo:
D: É possível a experiência do Si mesmo (o Ser) acima dita, mesmo no estado de
experiência empírica, para a mente que tem que cumprir funções de acordo com seu
‘praradha’ (o karma passado que começou a frutificar)?

433
M : Um ‘brahmin’ (buscador) pode representar diversos papéis num drama; entretanto, o
pensamento de que é um ‘brahmin’ (buscador) não deixa sua mente. Do mesmo modo,
quando se está ocupado em diversos atos empíricos, deve-se estar com a firme convicção:
“Sou o Si mesmo (o Ser)”, sem permitir que surja a idéia falsa “Eu sou o corpo, etc.” Se a
mente se desvia de seu estado, então, imediatamente, se deve indagar: “Oh! Oh! Nós não
somos o corpo, etc.! Quem somos?” e assim se deve reinstalar a mente nesse estado (puro).
A indagação “Quem sou eu?” é o meio principal para a eliminação de toda a miséria e
para a obtenção da felicidade suprema. Quando desta maneira, a mente torna-se quieta em
seu próprio estado, a experiência do Si mesmo (o Ser) surge por si mesma sem nenhum
obstáculo. Depois disso, os prazeres e sofrimentos sensoriais não afetarão a mente. Todos
(os fenômenos) aparecem então, sem apego, como um sonho. Não esquecer nunca a
própria experiência do Si mesmo (o Ser) é a verdadeira ‘bhakti’ (devoção), o verdadeiro
‘yoga’ (controle da mente), o verdadeiro ‘jnana’ (conhecimento) e todas as demais
austeridades. Assim dizem os sábios. (Maharshi R. – ‘Self-Enquiry’, 1994)

O que chama atenção é que a expressão ‘trabalho sobre si mesmo’, utilizada no título
original do livro de Stanislavski sobre o seu ‘sistema’ é um dos princípios básicos inerentes às
cinco Iogas.
Gostaria de citar ainda aqui alguns outros trechos escritos e publicados por
Ouspensky em 1914, em ‘Um Novo Modelo do Universo’ e em ‘Tertium Organum’ que
tratam de Arte, Ciência, Filosofia e Religião:
“Se tentarmos definir o significado dos quatro caminhos da vida espiritual da
humanidade, veremos, antes de tudo, que se dividem em duas categorias. A filosofia e a
ciência são caminhos intelectuais; a religião e a arte são caminhos emocionais...
...Essa divisão não explica tudo que nos pode parecer ininteligível ou enigmático na
esfera da religião, da arte e do conhecimento, visto que, em cada uma dessas esferas da
atividade humana, há fenômenos e aspectos que são completamente incomensuráveis e que
não se fundem. E, no entanto, só quando se reúnem num todo é que deixam de desfigurar a
verdade e de afastar o homem do verdadeiro caminho.” (Ouspensky, 1990, p. 34.)

E segue dizendo sobre a arte, algo que muito se assemelha àquilo que lemos em
Deleuze & Guattari:
“Como a ciência e a filosofia, a arte é um caminho de conhecimento definido. Ao
criar, o artista aprende muita coisa que não conhecia antes. Mas uma arte que não revele
mistérios, que não conduza à esfera do Desconhecido, que não produza um novo
conhecimento, é uma paródia da arte, e, ainda, com mais freqüência, não é sequer uma
paródia, mas simplesmente um comércio ou uma indústria.” (Ouspensky, 1990, p 34)

Em ‘Tertium Organum’, a partir das considerações de Kant sobre os númenos e os


fenômenos, Ouspensky faz uma série de interessantes observações sobre a esfera do
Desconhecido e o papel do específico conhecimento produzido pela Arte. Ouspensky não é

434
um ‘kantiano’; mas reconhece que Kant pôs questões certas nos lugares certos, ainda que
não as tenha respondido, nem apontado um caminho para as suas soluções. Lidando com
essas ‘questões certas’ Ouspensky leva-nos a pensar em problemas que são atualíssimos
nas áreas científica, filosófica e artística.
Devo dizer também que comecei a entender um pouco mais de Kant e filosofia
ocidental moderna, ao ler Ouspenky explicando essas ‘questões certas’ de maneira didática.
Como a filosofia não deve ser –como se espera – só interesse de acadêmicos e especialistas,
mas de qualquer ser humano que comece a pensar sobre a natureza do mundo, da vida, das
coisas e de si mesmo; gostaria de tentar traçar algumas explicações dadas por Ouspensky
nessa área. Intuo que um artista que conseguir compreender essas explicações entenderá, de
uma vez por todas, a importância e a responsabilidade de ser artista, independente de
sucessos e fracassos – financeiros e de público – que possa obter como um profissional ou
pesquisador desta área. Vamos a elas:

Tertium Organum
Tudo começa pela questão mais básica: O que nós realmente sabemos e o que nós
não sabemos de modo algum?
Há algo que sabemos que de modo algum pode ser negado ou provado por quem
quer que seja, porque é fato evidente na experiência pessoal de qualquer pessoa. Sabemos,
primeiro, que o mundo existe e, segundo, que também nós existimos nele. São dois fatos.
Sabemos que quando deixarmos de existir, nem por isso o mundo deixará também
de existir, assim como antes de existirmos, o mundo já existia. Vemos claramente que há
um mundo relacionado a um ‘sujeito’ e um mundo relacionado a um ‘não sujeito’.
Chamamos este último de mundo objetivo, isto é, tudo aquilo que existe fora de nós.
Chamamos de mundo subjetivo, tudo aquilo que existe dentro de nós, isto é: a nossa vida
psíquica, sensações, percepções, sentimentos, idéias, desejos, consciência, etc.
Nossa relação com o mundo objetivo pode ser mais bem definida através das coisas
e os fenômenos que percebemos fora de nós. São coisas que existem no espaço e mudanças
no estado dessas coisas que ocorrem no tempo. São através destas categorias de percepções
que localizamos a existência do mundo objetivo.

435
Surge então a questão: Será que conhecemos o mundo objetivo como ele realmente
é, ou será que tudo que conhecemos são apenas as sensações e percepções que nós temos
do mundo objetivo?
É uma questão tão simples que passa completamente despercebida. Porque parece
que vamos conhecendo o mundo através das coisas e fenômenos que entramos em contato,
e que por comparação e acumulação desses contatos, podemos pensar e definir leis e
comportamentos que pertencem ao mundo fora de nós. Mas de fato, não sabemos nada a
respeito daquilo que existe separado de nós. As nossas sensações são o único meio de
contato direto com o mundo externo.
Pode ser que o mundo fora de nós não exista então, que as causas das nossas
sensações estejam dentro de nós, que aquilo que causa a percepção do mundo esteja em
nós. Ou ainda e por outro lado, pode ser que as causas dos fenômenos que sentimos existam
sim, que elas estão fora de nós, e se constituem de outros fenômenos com os quais só não
podemos entrar em contato pela debilidade dos nossos aparelhos sensoriais. Isto é, que
através da observação e acumulação de dados e experiências sensoriais, obtidos por
aparelhos cada vez mais refinados, e pela comparação e raciocínio sobre esses dados,
chegaremos enfim a descobrir e a observar o fenômeno que é a causa do mundo externo.
Na Antiguidade, acreditava-se que a causa de todos os fenômenos estava no
movimento dos ‘átomos’ e nas ‘oscilações’ do éter. Hoje, acredita-se que a causa tenha sido
uma grande explosão que ocorreu a 13,7 bilhões de anos atrás e deu origem a todo ‘espaço
e tempo’ do universo: o ‘Big Bang’.
Kant diz algo que está entre essas duas posições, não partilhando com nenhuma
delas. Diz que a causa das nossas sensações do mundo externo não está em nós, e ao
mesmo tempo diz que não podemos conhecê-la, podemos conhecer apenas os seus
fenômenos. Isto porque tempo e espaço, isto é, a duração das coisas e a extensão das coisas
não são propriedades do universo, mas do nosso conhecimento sensorial dele.
As percepções do espaço e do tempo surgem em nosso intelecto durante o seu contato
com o mundo externo por meio dos órgãos dos sentidos, e não existem no mundo externo sem
o nosso contato com ele.
Dito de outro modo: impomos às coisas as condições de tempo e espaço que
pertencem à nossa forma de percepção, e de modo algum representam propriedades do

436
mundo em si. E quando Kant fala ‘nós’, esta falando de toda a raça humana, em todos os
tempos:

“Para nós é completamente desconhecida qual possa ser a natureza das coisas em si,
independentes de toda receptividade da nossa sensibilidade. Não conhecemos delas senão
a maneira que temos de percebê-las; maneira que nos é peculiar; mas que tampouco deve
ser necessariamente a de todo ser, ainda que seja a de todos os homens.” (Kant, 1781,
versão eletrônica, p. 25.)

E conclui,

“Por mais alto que fosse o grau de clareza que pudéssemos dar à nossa intuição, nunca
nos aproximaríamos da natureza das coisas em si; porque em todo caso só conheceríamos
perfeitamente nossa maneira de intuição, quer dizer, nossa sensibilidade, e isto sempre sob
as condições de tempo e espaço originariamente inerentes no sujeito.” (Kant, 1781, versão
eletrônica, p. 25.)

Não é que o nosso conhecimento experimental seja uma percepção confusa de um


mundo real. É uma percepção muito viva de um mundo completamente irreal que surge em
volta de nós no momento de nosso contato com o mundo de causas verdadeiras para o
qual não podemos encontrar o caminho. Kant chamou as coisas em si mesmas de númenos.
Númenos não se restringem a um universo tridimensional que existe no tempo. O avanço
das ciências objetivas não nos aproximaria nem um pouco do conhecimento das coisas em
si mesmas, porque elas estudam os fenômenos e não os númenos.
É uma proposição bastante fecunda. Toda a nossa ciência erguida pelo paradigma
mecanicista – a física, a química e a biologia que aprendemos na escola – está construída
sobre hipóteses que contradizem as teses de Kant. É uma ciência que lida e interage muito
bem com fenômenos, mas não com a realidade dos fatos e as suas relações invisíveis. Foi só
a física quântica, no início do século vinte, que começou a lidar com essa contradição, na
teoria e na prática, observando coisas e fenômenos numa escala atômica do mundo.
Descobriu que o observador não é passivo em relação àquilo que observa, ele interage e
interfere no fenômeno no momento da observação. Como? Por quê?
Diante dessas, as perguntas que se seguem, então; e que também são bastante
fecundas são: nós podemos interferir sobre o modo e a maneira como percebemos e nos
relacionamos conosco, com os outros e com o mundo à nossa volta? Se a interferência do
observador na realidade observada é um fato científico no mundo quântico, qual é a sua

437
relevância no mundo da vida do dia a dia do homem? Não deveria o físico estudar
psicologia e o psicólogo estudar física?
Afinal, todos nós, físicos e psicólogos incluídos, devemos concordar que sabemos
que não sabemos nada sobre a razão de estarmos nesse mundo e o porquê nós deveremos
forçosamente deixá-lo. Há e sempre houve um grau de desconhecido na esfera do
conhecimento humano, que de modo algum é irrelevante e este grau corresponde
justamente à existência numenal do mundo.
No entanto, deve ficar claro que o númeno, a “coisa em si” é a coisa como existe,
independentemente de nós. O “fenômeno da coisa” é a coisa como a percebemos. É
importante, porque o númeno é aquilo que está na nossa frente, aqui e agora, mas do qual
apenas percebemos o fenômeno visível.
Como se fôssemos um ser bidimensional, que se encontra num plano, a observar dois
círculos visíveis e semelhantes. Como os nossos sentidos não captam a altura, por mais que
observemos os círculos, não poderemos ver que na verdade, diante de nós, naquele momento,
estão as seções de uma moeda e de uma vela acesa; fenômenos semelhantes, mas númenos
completamente diferentes, que possuem funções específicas e bem diferentes. O desconhecido
ao qual estamos nos referindo não é algo ‘sobrenatural’, ou do mundo do ‘além’, ou ‘místico’,
ou algo que não seja concreto. É absolutamente concreto, mas invisível, se permanecermos
com sentidos que só enxergam em duas dimensões.
Mas uma coisa é olharmos com olhos bidimensionais acreditando que o que vemos é
real, definitivo e habitual; e outra coisa completamente diferente é olharmos com os mesmos
olhos, sabendo que vemos apenas uma pequena parte da realidade. No nosso exemplo acima,
talvez tivéssemos o interesse e a paciência para, depois de muitas observações, começar a
notar que uma espécie de luz – a vela estava acesa – passava no plano bidimensional logo ao
redor dos círculos.
Descobrir e verificar que somos seres de visão deficiente, muda completamente a
disposição e a atitude interior do observador em vista do fenômeno. E mais do que isso, muda
a sua relação interna com o fenômeno visível, porque ele mesmo, sendo um fenômeno do
mundo, começa a suspeitar de que conhece, sente e vê apenas a parte bidimensional de si
próprio.

438
Entendido o númeno, uma das observações que faz Ouspensky, que muito se alinha
com todo material levantado até aqui, mas também com o tema de nossa pesquisa, cito na
íntegra, a seguir:

“Se queremos conhecer o mundo numenal, devemos procurar o significado oculto


de tudo. No momento estamos acorrentados, de maneira pesada demais, pelo hábito
do método positivista de buscar sempre a causa e o efeito visíveis. Sob o peso do
hábito positivista, nos é extremamente difícil compreender certas idéias. Entre outras
coisas, temos dificuldade de compreender a realidade da diferença, no mundo numenal,
entre objetos do nosso mundo que são semelhantes, mas com funções distintas.
Mas se desejamos nos aproximar de uma compreensão do mundo numenal, devemos
tentar com todas as forças observar todas essas diferenças aparentes, “subjetivas” entre
os objetos, que às vezes nos surpreendem, das quais muitas vezes dificilmente nos
damos conta: as diferenças expressas nos símbolos e metáforas da arte, que
freqüentemente são revelações do mundo da realidade. Essas diferenças são as
realidades do mundo numenal, muito mais reais que toda a maya (ilusão) dos nossos
fenômenos.
O ator compreende isso melhor do que ninguém, ou pelo menos deveria
compreender melhor.
O poeta compreende que o mastro de um navio, a forca e a cruz são feitos de
madeira diferente. Percebe a diferença entre a pedra da parede de uma igreja e a da
parede de uma prisão. Ouve “as vozes das pedras”, entende os sussurros das velhas
paredes, dos túmulos, das montanhas, dos rios, dos bosques e das planícies. Ouve a “voz do
silêncio”, compreende a diferença psicológica entre os silêncios, sabe que um silêncio pode
ser diferente de outro. E essa compreensão poética do mundo deveria ser desenvolvida,
intensificada e fortalecida, porque só desse modo podemos entrar em contato com o
verdadeiro mundo da realidade.
Toda arte, em essência, consiste na compreensão e representação dessas diferenças
impalpáveis. O mundo fenomenal é apenas um meio para o artista, como as cores para o
pintor e os sons para o músico; um meio para a compreensão do mundo numenal e para a
expressão dessa compreensão. No estágio atual do nosso desenvolvimento, não possuímos
nada tão poderoso quanto a arte, como instrumento de conhecimento do mundo causal. O
mistério da vida se encontra no fato de que o númeno, isto é, o significado oculto e a
função oculta de uma coisa, se reflete no seu fenômeno. Um fenômeno é apenas o reflexo de
um númeno em nossa esfera. O FENÔMENO É A IMAGEM DO NÚMENO. É possível
conhecer o númeno através do fenômeno. Mas nesse terreno, os reagentes químicos e os
espectroscópios não podem fazer nada. Só esse aparelho sutil chamado a alma de um
artista pode compreender e sentir o reflexo do númeno no fenômeno.” (Ouspensky, 1993,
p. 132)
Peter Ouspensky termina esse capítulo de seu livro ‘Tertium Organum’, citando,
quase que na íntegra, a imagem da ‘Caverna de Platão’ descrita no livro VII da
República. Coincidentemente, é o mesmo texto que utilizamos lá no início para introduzir

439
mais especificamente as idéias do Quarto Caminho desenvolvidas por ele, Gurdjieff,
Rodney Collin e John Bennet conjuntamente.

No mais, a citação da República nos remete a um próximo estudo que deveríamos


fazer, que seria afrontar as idéias de Sócrates contidas no capítulo X, aquelas que se
referem à mimese e a arte. Ali Sócrates distingue entre os imitadores, aqueles que com
sua obra se afastam de três graus da verdade, dos artífices que produzem com seus
ofícios, objetos afastados em dois graus da verdade. E afirma que os poetas, a começar de
Homero, incluindo os trágicos, são todos eles imitadores da imagem da virtude e que não
necessariamente compreendem aquilo que retratam.

Se pensarmos em um artista que trabalha apenas no nível do fenômeno, e outro que


tenta capturar o númeno através da sua arte, trabalhando sobre si mesmo, talvez
estivéssemos mais perto de compreender a razão de ser do livro X da República. A idéia
poderia nos remeter diretamente a Stanislavski, por exemplo, e à sua insistência em
distinguir duas qualidades de arte teatral: aquela que trabalha a partir de imitações
externas, e não se ergue além de estereótipos da cena e do texto dramático e aquela que é
forjada com palavras, carne, alma e espírito a partir daquilo que chamou de ‘estado
criativo’ do ator. O estudo e algumas descobertas, sobre a obra de Stanislavski no que diz
respeito à ‘liminaridade’, foram apresentados no capítulo IV.

10.3 - A Estética do Vazio


O livro que citei no trabalho final do curso teórico: “ Estetica del Vuoto: arte e
meditazione nelle culture d’Oriente,” de Giangiorgio Pasqualotto, traz exemplos de uma
religião e de uma arte que estão intrinsecamente ligadas à pratica meditativa tanto do
monge, como do artista, tanto do adepto como do público. Trabalhei na tradução para o
português de parte da introdução e parte de capítulos que tratam de manifestações
tradicionais da cultura japonesa como: o ‘Chanoyu’ (a cerimônia do chá), o ‘Sumie’ (a arte
da caligrafia ou pintura), o ‘Haiku’ (escritura poética), o ‘Ikebana’ (composição vegetal), o
‘Karesansui’ (composição de jardins) e o Teatro Nô.
Na primeira parte, Pasqualotto – docente da Universidade de Padova na Itália – faz
um estudo sobre o conceito de ‘Vazio’ no Taoísmo, no Budismo Indiano, e na sua variação
chinesa e japonesa, o Budismo Chan e o posterior Budismo Zen. Encontramos algumas

440
colocações muito oportunas em relação ao tema de nosso estudo, e dentre elas, algumas
colocações que germinaram, meses depois, em uma nova perspectiva de trabalho dentro dos
novos cursos práticos que faríamos no LUME em fevereiro de 2008.
A função do vazio é de primária e fundamental importância no Budismo, no
Taoísmo, e nas artes inspiradas por eles, direta ou indiretamente. O Budismo Zen posterior,
como veremos, focaliza e ressalta essa importância em níveis ainda mais altos.
Não sendo o ‘vazio’ como um conceito ou uma teoria, mas um estado psicofísico
muito particular; vimos que para essas tradições religiosas e artísticas aquilo que surge
como premissa básica é a prática de uma técnica específica que consinta de produzir e
aprofundar o estado do vazio; isto é a prática da meditação. ‘Contempla o mundo como
vacuidade, sempre se mantendo rememorativo’ diz um aforismo de Buda.
Mas o que é exatamente a ‘vacuidade do mundo’?
Surgem duas características: a vacuidade do mundo é contemplada no momento da
percepção da interdependência de todos os elementos que constituem o mundo (anattā – em
sânscrito), não só o mundo externo, mas também o mundo interno daquele que contempla;
e também pela percepção da impermanência (anicca – em sânscrito) de todos os elementos,
ou existências, que constituem esses mundos.
‘Anattā’ ou a interdependência de todas as coisas, é uma percepção ‘espacial’ que se
refere aos limites físicos que as coisas ocupam no mundo, isto é, a substancialidade de cada
coisa. Diz então, sobre a percepção última do contemplador, de que todas essas coisas não
possuem existência autônoma, não podem ser constituídas por limites fechados.
‘Anicca’ ou a impermanência de todas as coisas, é por sua vez, uma percepção
‘temporal’ que diz respeito ao tempo de duração de cada coisa no mundo, isto é, a sua
durabilidade. O contemplador verá então que todas as coisas, não só os fenômenos físicos,
mas também suas sensações, sentimentos e estados de consciência são impermanentes,
todas as coisas constituídas por incessante mutação.
Essas características da ‘vacuidade do mundo’ dão um significado da idéia do vazio.
Mas esse significado é a tal ponto fecundo, que a compreensão dessas características reflete
imediatamente na própria consciência do contemplador, ou do escritor que colhe e expressa
essa idéia, ou do leitor que as lê; impedindo o absolutismo e a permanência do conceito.

441
Chega-se à conclusão inevitável da ilusão e do sofrimento que existem atrás de todo
sentimento de conquista ou possessão de algo, qualquer que seja este algo.
Como veremos mais adiante, no relato das nossas descobertas, esta conclusão e
atitude que um ser humano pode forjar para si – na sua relação consigo mesmo, com os
outros e com o mundo – era eixo sustentador das pesquisas cênicas desenvolvidas tanto por
Konstantin Stanislavski, quanto por Jerzy Grotowski no âmbito do teatro.
Retomando nossa experiência com a leitura de ‘Estética do Vazio’, o que podemos
aprender dessas tradições orientais e suas formas expressivas é a intrínseca e direta conexão
que existe entre níveis de conhecimento e modos de colocar-se em experiência de vida. Não
há cisão entre conhecimento prático e conhecimento teórico. Há uma teoria da prática e
uma prática da teoria. Saber e fazer são indissociáveis. Mas ambos não podem deixar de
cindir-se, e esse é o ponto crucial, se não há a concreta realização do vazio, através de uma
prática e de uma técnica meditativa.
Pasqualotto, então, nos leva a conhecer algumas das características da meditação,
principalmente daquela Zen Budista que focaliza de modo mais intenso em torno da
concretização e experiência do vazio.
Traz à tona a diferença que existe entre a prece, como entendida no Ocidente e a
meditação, salientando que esta última não é uma conversa: nem com ‘Deus’, nem com
outros, e nem mesmo consigo mesmo; onde não se amaldiçoa nem se agradece por algo
recebido ou recusado. Na meditação budista o uso e a eficácia das palavras não são
eliminados, mas suspensos, de modo a diminuir ao máximo seu poder condicionador.
Não é o caso de aprofundar, aqui, sobre o assunto, mas existe uma semelhança
muito grande entre o sentido da ‘meditação’ Zen Budista, o sentido de ‘trabalho sobre si’
que exploramos através de Gurdjieff e Ouspensky e o sentido de ‘contemplação’
encontrado, por exemplo, na obra dos monges ortodoxos da tradição cristã oriental
chamada ‘Filocalia’, que citamos acima. Existe, em português, uma pequena, mas muito
boa seleção de textos desta extensa obra, e há também um pequeno e notável escrito
anônimo inglês do século XIV intitulado: A Nuvem do Não-Saber, que nos instrui com
grande clareza e simplicidade sobre o tema. 169 Os textos do sábio hindu Ramana Maharshi,
que viveu de 1897 a 1950 nas encostas do monte Arunachala, sul da Índia, e que foi
169
Pequena Filocalia – o livro clássico da Igreja oriental, São Paulo: Paulus, 1985.
A Nuvem do Não-Saber – anônimo do século XIV, Petrópolis: Editora Vozes, 2007.

442
influência marcante na formação humana de Jerzy Grotowski, também tratam o tema com
definitiva clareza.
Mas o que é, então, a meditação?
A associação de imediato senso comum que vêm à nossa mente ocidental produz a
idéia de que a meditação ocorra quando alguém se senta com a coluna reta, com as pernas
cruzadas, as mãos em forma de concha, e fica de olhos fechados, em silêncio, em estado
meditativo e passivo. Mas aquilo que de fato sustenta o ato meditativo é uma função
fisiológica elementar e dinâmica: a atenção à respiração. Para o budismo, não existe a
possibilidade de um exercício espiritual externo e estranho à corporeidade com suas
imediatas sensações, percepções e consciência.
A respiração, que é o mais imediato dos processos corporais, traz em sua dinâmica
as duas características essenciais do vazio: a impermanência do processo e a ininterrupta
troca e relação com o meio.
Além disso, o fato da respiração sustentar o ato meditativo faz com que a produção
dos seus efeitos benéficos, o estado de vazio, não se limite a ocasiões especiais e formais,
mas se desenvolva por todos os tempos e espaços da vida cotidiana, já que não podemos
estar neles sem estarmos, ao mesmo tempo, respirando. No Zen Budismo, a prática da
meditação sentada é uma espécie de atividade central que concretizando o máximo de
vazio, potencializa o mesmo, em todas as outras dimensões que estruturam a vida do
praticante.
Fundamentalmente, a meditação não é um controle ativo ou uma interferência direta
sobre o processo da respiração, mas uma qualidade de atenção que permanece e se mantém
ciente de que o processo está imediatamente e a cada vez ocorrendo. Neste sentido, a
concentração na respiração é somente relativa e instrumental, pois:
“consegue colocar a mente em condições de abandonar toda interferência
produzida por conteúdos empíricos, intelectuais ou culturais, de modo que, na seqüência
de tal ‘purificação’, sensações, idéias e pensamentos possam desdobrar-se plenamente,
sem obstáculos erguidos por preconceitos e pressupostos; em poucas palavras: a
concentração sobre a respiração é um meio para fazer o vazio, que não se identifica com a
condição do vazio.” (Pasqualotto, 1992. p. 61 – traduzido do original italiano.)

Quando a mente se identifica com a condição do vazio, ele, o vazio, deixa de ser um
estado e torna-se uma ‘coisa’ a ser conquistada; um dever a ser cumprido, ou um
comportamento exibidamente afetado. Mas o vazio não é a mente, nem um comportamento,

443
nem uma coisa visível; e no ‘cume’ da prática meditativa percebe-se que é necessário fazer
o vazio também do vazio, ou seja, purificar-se também da idéia de purificação. A
meditação torna-se uma técnica que se liberta da própria técnica. É o que chamamos lá atrás
de ‘técnica 2’ em seu estágio avançado.170
Outro dado importante: muito ao contrário do que se possa imaginar e dos
preconceitos do senso comum ocidental em relação à experiência meditativa, ela não é nem
alienante, nem letárgica, nem introspectiva. Ao realizar o vazio em si, o praticante passa a
experimentar de forma direta e imediata tanto os fenômenos do seu mundo externo como os
do seu mundo interno: seu corpo, sua mente e seus sentimentos. Trata-se do mais simples e
óbvio, mas de forma alguma do mais fácil: um exercício de atenção, momento a momento,
que favorece a eliminação de tensões e pensamentos estranhos àquilo que se está fazendo.
Neste ponto, estando atento mais aos atos do que às palavras sobre os atos, o
budismo zen vai inspirar uma série de diferentes expressões artísticas e eventos ritualísticos
que nascem em torno da experiência e concretização do vazio.
A obra de arte inspirada pelo budismo zen, não surge quando o artista se liga ao
budismo como a um patrimônio cultural exterior; mas nasce somente quando a sua mente,
purificada ao máximo pelo exercício da meditação e prática no cotidiano, se torna
disponível a receber a realidade como se fosse a primeira vez que a encontra.
Karesansui
Com os exemplos trazidos no livro, senti-me bastante atraído pela arte ‘Karesansui’,
aquela de composição de jardins, ou mais precisamente, a arte de dispor pedras sobre um
fundo de areia. Primeiro, pela simplicidade e escassez de elementos constitutivos; segundo,
pela semelhança com a posição do espectador num teatro; e terceiro por ser uma arte que de
forma direta convida seu contemplador a ter uma experiência ativa sobre aquilo que vê, no
sentido de defrontar-se e desafiar-se sobre sua própria condição ou falta de conexão com o
vazio em si mesmo.
Explico-me melhor:

170
Página 73.

444
Este é o jardim Ryōanji que fica em Kyoto no Japão. Idealmente criado para ser
observado e percorrido somente com os olhos, como mostra a imagem, é formado por
quinze pedras dispostas em três grupos, circundadas por areia branca rastelada em forma de
ondas, que circundam as pedras como se fossem ilhas.
‘Karesansui’ significa literalmente: kare (seco ou pobre) e sansui (montanha-água)
e, por conseguinte, formam uma palavra que poderia ser traduzida literalmente por
‘paisagem seca’. É uma das expressões artísticas que mais evidenciam o princípio comum
traçado pela estética do vazio zen budista em exprimir o máximo com o mínimo.
O convite que a composição formula não é de entrar no jardim, mas de fazer-se
vazio de modo que seja o jardim a entrar na mente.
Na realidade o Ryōanji é um objeto de meditação: não no sentido que seja um
objeto sobre o qual meditar, mas no sentido que é uma ocasião para colocar à prova o grau
e a qualidade do vazio realizado pela mente de quem contempla. Mais a disciplina da
meditação é bem sucedida no trabalho de limpeza da mente, mais se forma nela um espaço
livre para hospedar, experimentar ou “fazer entrar” este tipo de jardim na própria
experiência.
Ao observar o Ryōanji, podemos ver com a máxima evidência o sentido que demos
à anattā (interdependência) e anicca (impermanência). Um espaço vazio criado pela areia
branca, onde quinze pedras massivas ocupam determinadas posições. Cada pedra ainda que
única, não pode ser vista separadamente das outras, confirmando o caráter relacional da
realidade e da existência. Por outro lado, a cada novo momento, se olha para uma nova

445
disposição de sombras e tonalidades que refletem as constantes mudanças na posição do sol
ou da lua, nas condições do ar ou do céu, ou nas estações do ano.
Tudo isso somado ao próprio fazer-se vazio do contemplador gera o vazio único,
vazio que é universal e possível a todo ser humano, de qualquer época e lugar, capaz de
compreender os infinitos jogos de ‘anattā’ e ‘anicca’ que se dão no mundo e nas nossas
vidas.
Por exemplo: olhar-se periodicamente no espelho como se tivesse diante dos olhos
um Ryōanji, e pintar, imparcialmente, aquilo que se vê, longe de ser um mero capricho de
vaidade, poderia ser uma forma de arte que muito se aproximaria dos intuitos da estética do
vazio zen budista: revelar a impermanência de todos os fenômenos visíveis deste mundo, a
começar do fenômeno de si próprio. Quiçá tenha sido este o propósito que foi se
amadurecendo nos seguidos auto-retratos que Rembrandt produziu ao longo de sua vida.
Aquilo que me interessou, particularmente, nesse exemplo, está relacionado com a
possibilidade do aprendizado e desenvolvimento de como ver e observar os fenômenos –
particularmente o fenômeno teatral – de forma ativa, ou melhor, de forma meditativa. Uma
qualidade de olhar que nós, que somos de uma geração crescida diante da televisão,
deixamos de ter ou se enfraqueceu sensivelmente. Na minha experiência pessoal, a alguns
anos atrás deixei de ir ao teatro, justamente porque não conseguia mais entrar em contato
direto com aquilo que era atuado. Assistia mais a uma densa camada de associações,
críticas, julgamentos, preconceitos, preferências, atrações e pensamentos acidentais que
reagiam ao espetáculo; do que ao próprio espetáculo como ele se apresentava. Este tipo de
arte zen budista evidencia que a condição de espectador ou contemplador de um evento
nunca é passiva como pode se chegar a concluir pela sua imobilidade. Ao contrário, não só
é uma posição ativa como é uma relação ética imediata aquela que se estabelece entre o
espectador e o evento estético que se apresenta diante dos seus olhos.
Teatro Nô
Não menos interessante o capítulo sobre teatro nô que entre outras coisas, trata da
sua principal figura: o ator, dramaturgo, pensador e escritor Zeami Motokyo; e a sua
relação direta com a prática meditativa das escolas Zen Budistas.
Diferentemente dos ‘Karesansui’ mas numa mesma relação espacial entre obra e
contemplador, o teatro nô se revela uma arte complexa e plena de detalhes contextuais que

446
não permitem ao leigo, menos ainda a um leigo ocidental – numa primeira aproximação –
uma completa fruição. Não é somente porque as pedras imóveis no jardim tornam-se
músicos e atores que cantam, narram, dançam e atuam, mas também porque existe uma
estória que se desenrola entre personagens mascaradas, criadas em torno de convenções
corporais precisas, que se relacionam a um texto que ora é narrado, ora é dramatizado. É
todo um universo que demanda um estudo mais aprofundado.
Deste ‘jardim’ muito mais complexo que aquele nosso sereno e seco jardim,
consegui extrair do livro, ainda assim, algumas considerações que entram em ressonância
direta com o tema de nossa pesquisa, e que de algum modo também influenciaram as
experiências práticas que viriam a ocorrer no ano de 2008 dentro dos workshops do LUME.
Sobre o papel da máscara no teatro nô, sua relação com o ator e a eficaz presença do
vazio podemos citar as palavras de Umewaka Rokuro, herdeiro direto da tradição de Zeami,
seguido dos comentários de Pasqualotto:
“‘Quando um mestre veste uma máscara, isto não significa que coloca a máscara
sobre a sua face, mas a intenção é que ele coloque o seu espírito na máscara. ’ Esta citação
se reveste de uma notável importância exatamente no que se refere à função do vazio: quer
dizer que, de fato, a “identificação” com o papel do personagem implica numa
despersonalização do ator. A máscara, então, além de ser, em geral, o objeto que evidencia
a presença do vazio, é o instrumento que permite a dialética entre vazio e cheio.
Consentindo que o ator esvazie-se, de fato, da própria personalidade, produz a condição
necessária à operação de preencher-se com a personalidade do personagem.” (Pasqualotto,
1992, p.131- traduzido do original italiano.)

Máscara Nô, Período Edo, Século XVIII, coleção Münsterberg, New Paltz, Nem York.

447
Numa máscara como essa, o vazio torna-se evidente e ativo também como força que
reduz ao mínimo a forma das expressões da face, em modo tal que este “mínimo” adquira o
máximo de relevância. O jogo de sombras e luz incidindo na superfície da máscara,
delicadamente movimentada pelo rosto do ator, dá a ela infinitas nuances e possibilidades
de expressão. Por outro lado, a máscara também serve como um meio de reduzir a presença
dos movimentos da face, em modo da salientar aqueles do corpo.
Os movimentos dos atores são codificados e reduzidos ao mínimo tanto em sua
forma no espaço como na sua velocidade no tempo. Deste modo, mais uma vez, o vazio age
como força que reduz ao mínimo a área dos significados dados, em modo a permitir o livre
surgimento de significados possíveis.
Notamos que apesar da utilização de um texto e de um contexto dramático inspirado
em contos e lendas populares da época, o teatro nô e sua técnica promovem a relação
imediata e livre que o espectador possa ter com o personagem no momento da performance.
Nota-se também o papel primordial dado ao corpo e às suas capacidades expressivas não
vinculadas às palavras e à linguagem.
Termino com essa citação, que ressoando também com nossa pesquisa, dá uma idéia
do nível artístico promovido pelo teatro nô e seu mais conhecido representante: Zeami
Motokyo:
“Antes de qualquer coisa, como foi visto; no teatro nô o ator deve saber e poder
separar-se dos próprios hábitos gestuais, das movimentações corporais estereotipadas,
das inflexões rígidas da voz; em fim, deve saber e poder abandonar a própria identidade
para estar em grau de assumir aquela do personagem, assim como quem pratica a
meditação deve saber e poder abandonar o apego às próprias paixões, aos próprios
preconceitos e aos próprios julgamentos para estar em grau de acolher e viver a
experiência em seu estado puro. Além disto, no teatro nô, é necessário que o ator saiba
separar-se também destas técnicas de representação, de canto, de dança e de mímica;
que o liberaram dos limites da sua identidade e do bloqueio dos seus hábitos, assim
como, no zen, é necessário que o estudante saiba superar também o apego à meditação.
Então, no teatro nô o ator, no máximo da sua maturidade e da sua habilidade, quando
colheu a “flor” do “desprendimento” máximo; consegue não necessitar até mesmo da
própria mente, isto é, da percepção de ter sabido separar-se das técnicas de
representação; como no ápice do exercício meditativo, o estudante alcança a
possibilidade de superar até mesmo o apego ao ‘eu’ que sabe ter sido capaz de liberar-
se do apego à meditação. Neste ponto de ápice as duas experiências, aquela do nô e
aquela do zen, não somente se encontram, mas se identificam: aqui, de fato, ambas
encontram, ou melhor, produzem mushin, que literalmente significa ‘não-mente’.
(Pasqualotto, 1992, p. 140)

448
ANEXO 2
Ramana Maharshi
e um exemplo de técnica 2 em seu estágio avançado:
A auto-indagação.
Quem sou eu?171

Como todos os seres vivos sempre desejam ser felizes, sem miséria, como no caso
de qualquer um que tenha celebrado o supremo amor por si mesmo, e como só a felicidade
é a causa para amar, para obter aquela felicidade que é sua natureza e que é
experimentada no estado de sono profundo onde não há mente, uma pessoa deveria
conhecer a si própria. Por isto, o caminho do conhecimento, a investigação na forma de
“Quem sou eu?”, é o principal meio.

1. Quem sou eu?


O denso corpo que é composto dos sete humores (dhatus) 172, eu não sou; os cinco
órgãos de cognição sensitiva, a saber: os sentidos de ouvir, tocar, ver, saborear, e cheirar,
que apreendem seus respectivos objetos, a saber: som, toque, cor, sabor, e odor, eu não sou;
os cinco órgãos sensoriais cognitivos, a saber: os órgãos da fala, locomoção, compreensão,
excreção, e procriação, que têm como suas respectivas funções aquelas de falar,
movimentar, compreender, excretar, e desfrutar, eu não sou; os cinco ares vitais, prana, etc.
que atuam respectivamente nas cinco funções do inspirar, etc...; eu não sou; mesmo a mente
que pensa, eu não sou; e também a ignorância, que só com as impressões residuais dos
objetos já é provida, e nas quais não há objetos e nenhuma função, eu não sou.

2. Se eu não sou nenhum destes, então quem sou eu?


Depois de negar todos os acima-mencionados como ‘não sou isto’, ‘não sou isto’,
aquela Ciência de Si que sozinha permanece – isto sou Eu.

3. O que é a natureza da ciência de si?


A natureza da Ciência de Si é existência-consciência-bem aventurança.

4. Quando a realização do Ser será obtida?


Quando o mundo que é aquilo-que-é-visto for removido, haverá realização do Ser
que é o observador.

5. Não haverá realização do Ser mesmo enquanto o mundo estiver lá (sendo tomado
como real)?
Não haverá.

171
A versão original do texto, em inglês, pode ser encontrada em
http://www.sriramanamaharshi.org/bookstall/downloadbooks.html. Consultado em junho de 2008.
172
Os sete dhatus são as seguintes: Rasa: (Plasma); Rakta: (sangue); Mansa: (músculos); Meda: (gordura); Asthi: (osso);
Majja: (medula óssea) Shukra: (líquido seminal ou sêmen).

449
6. Por quê?
O observador e o objeto visto são como a corda e a cobra. Assim como o
conhecimento da corda, que é o substrato, não surgirá a menos que o falso conhecimento da
ilusória serpente saia; assim a realização do Ser, que é o substrato, não será ganha a menos
que a crença de que o mundo é real seja removida.

7. Quando o mundo, que é o objeto visto, será removido?


Quando a mente, que é a causa de todas as cognições e de todas as ações, tornar-se
quieta, o mundo desaparecerá.

8. O que é a natureza da mente?


O que é chamado ‘mente’ é um notável poder que reside no Ser. Ele causa o
surgimento de todos os pensamentos. À parte dos pensamentos, não existe tal coisa como a
mente. Portanto, o pensamento é a natureza da mente. À parte dos pensamentos, não há
uma entidade independente chamada mundo. No sono profundo não existem pensamentos,
e também não há mundo. Assim como uma aranha emite o fio (da teia) fora de si mesma e
de novo o recolhe para dentro de si, da mesma forma a mente projeta o mundo fora dela e
de novo o analisa dentro de si mesma. Quando alguém persistentemente investiga a
natureza da mente, a mente terminará deixando o Ser (como o resíduo).
O que é referido como Ser é o Atman. A mente sempre existe somente em dependência de
algo denso; ela não pode ficar sozinha. É a mente que é chamada de corpo sutil ou de alma
(jiva).

9. Qual é o caminho de investigação para compreender a natureza da mente?


Aquilo que surge como ‘eu’ neste corpo é a mente. Se alguém perguntasse qual o
primeiro lugar no corpo em que o pensamento ‘eu’ surge, ele descobriria que surge no
coração. Aquele é o lugar da origem da mente.
Mesmo se alguém pensa constantemente em ‘eu’ ‘eu’, ele seria conduzido àquele lugar. De
todos os pensamentos que surgem na mente, o pensamento ‘eu’ é o primeiro. É somente
depois de seu surgimento que outros pensamentos surgem. É depois do aparecimento do
pronome da primeira pessoa que os da segunda e terceira pessoa aparecem; sem o pronome
da primeira pessoa não haveria os da segunda e terceira.

10. Como a mente se tornará quieta?


Pela investigação de ‘Quem sou eu?’. O pensamento ‘quem sou eu?’ irá destruir
todos os outros pensamentos, e como a vareta usada para excitar a pira ardente, ela própria
no fim será destruída. Então, surgirá a realização do Ser (Auto-realização).

11. Qual são os meios para se manter constantemente no pensamento ‘Quem sou
eu?’?
Quando (outros) pensamentos surgem, não devemos persegui-los, mas sim
perguntar: “Para quem eles surgem?” Não importa quantos pensamentos surjam. Para cada
pensamento que surgir, deveria ser questionado com diligência: “Para quem este
pensamento surgiu?”. A resposta que emergiria seria “Para mim”. Logo em seguida se
perguntamos “Quem sou eu?”, a mente irá retornar para sua fonte; e o pensamento que
surgiu ficará quieto. Com repetida prática nesta maneira, a mente desenvolverá o
conhecimento para permanecer em sua fonte. Quando a mente que é sutil vai através do

450
cérebro e dos órgãos sensitivos, os nomes densos e as formas aparecem, quando ela fica no
coração, os nomes e formas desaparecem.
Não deixar a mente fugir, mas mantê-la no Coração é o que é chamado “intimidade”
(antarmukha).
Deixar a mente fugir do Coração é conhecido como “exteriorização” (bahir-mukha).
Portanto, quando a mente fica no Coração, o ‘eu’ que é a fonte de todos os pensamentos
passará, e o Ser que sempre existiu brilhará. Qualquer coisa que se faz deveria ser feita sem
o “eu” egoísta. Se alguém age deste modo, tudo surgirá como da natureza de Shiva (Deus).

12. Não existem outros meios para fazer a mente aquietar-se?


Além da investigação de si, não existem meios adequados. Se através de outros
meios pudéssemos buscar o controle da mente, a mente pareceria estar controlada, mas de
novo seguiria adiante. Também através do controle da respiração, a mente se tornará quieta;
mas ela estará quieta somente durante o tempo que a respiração permanecer controlada; e
quando a respiração retomar (seu fluxo) a mente também começará a mover-se de novo e
irá vagar como impelida por impressões residuais.
A fonte é a mesma tanto para a mente como para a respiração. Pensamento, de fato, é a
natureza da mente. O pensamento ‘eu’ é o primeiro pensamento da mente; e isto é egoísmo.
É dali que se origina o egoísmo e também a respiração. Portanto, quando a mente torna-se
quieta, a respiração é controlada, e quando a respiração é controlada a mente torna-se
quieta. Mas, em sono profundo, embora a mente torne-se quieta, a respiração não pára. Isto
ocorre pela vontade de Deus, de modo que o corpo possa ser preservado e outras pessoas
possam não estar sob a impressão de que ele está morto. No estado desperto e no samadhi,
quando a mente torna-se quieta a respiração é controlada. Respiração é a forma densa da
mente. Até o momento da morte, a mente mantém a respiração no corpo; e quando o corpo
morre a mente leva a respiração junto com ela. Portanto, o exercício de controle-
respiratório é somente um auxílio para deixar a mente quieta (manonigraha); ele não
destruirá a mente (manonasa).
Assim como a prática do controle-respiratório, meditar sobre as formas de Deus, repetição
de mantras, restrição de comida, etc.; são apenas auxiliares para render a mente quieta.
Através da meditação das formas de Deus e através da repetição de mantras, a mente torna-
se focada. A mente sempre estará vagando. Assim como quando uma corrente é dada a um
elefante para segurá-la em sua tromba, ele seguirá agarrado à corrente e nada mais; do
mesmo modo quando a mente está ocupada com um nome ou forma ela apenas agarrará
aquilo. Quando a mente se expande na forma de incontáveis pensamentos, cada pensamento
torna-se fraco; mas assim que os pensamentos conseguem decidir-se, a mente torna-se
focada e forte: para uma mente assim a Auto-investigação se torna fácil. De todas as regras
restritivas, aquela relacionada a comer comida ‘sattvic’173 em quantidades moderadas é a
melhor; através da observação desta regra, a qualidade ‘sattvic’ da mente crescerá, e isto
será útil para a Auto-investigação.

13. As impressões residuais (pensamentos) de objetos parecem ir como as ondas de


um oceano. Quando todas elas serão destruídas?
173
Uma dieta ‘sattva’, também referida como uma dieta iogue ou dieta sensível, é uma dieta baseada em alimentos que,
segundo o Ayurveda e a Yoga, são fortes no ‘guna sattva’, e levam à clareza e a serenidade de espírito, enquanto também
é benéfica para o corpo. Água, frutas, cereais, pão, a maioria dos legumes, feijões, castanhas, grãos, leite e derivados
(queijo, manteiga, nata, iogurte), e mel referem-se à comida ‘sattvic’.

451
Quando a meditação no Ser se elevar mais e mais alto, os pensamentos serão
destruídos.

14. É possível que as impressões residuais de objetos que vêm de tempos


imemoriais, como elas eram, sejam dissolvidas, e que uma pessoa permaneça como puro
Ser?
Sem submeter-se à dúvida “É possível, ou não?”, uma pessoa deveria
persistentemente manter-se na meditação do Ser. Mesmo que seja uma grande pecadora, ela
não deveria nem se preocupar e nem chorar: “Oh! Eu sou um pecador, como posso ser
salvo?; ela deveria renunciar completamente ao pensamento “Eu sou um pecador”; e
concentrar-se agudamente na meditação do Ser; então, ela certamente seria bem sucedida.
Não há duas mentes – uma boa e outra má; a mente é apenas uma. São as impressões
residuais que são de dois tipos – favoráveis ou desfavoráveis. Quando a mente está sob a
influência de impressões favoráveis ela é chamada boa; e quando está sob a influência de
impressões desfavoráveis é considerada má.
Não deveríamos permitir que a mente vagasse em direção a objetos mundanos e nem àquilo
que concerne a outras pessoas. Não importa quão ruim as outras pessoas possam ser não
deveríamos sustentar nenhuma aversão para com elas. Tanto o desejo quanto a aversão
deveriam ser evitados. Tudo aquilo que se dá aos outros se dá a si mesmo. Se essa verdade
é compreendida quem não dará aos outros? Quando alguém se eleva tudo se eleva; quando
alguém se torna quieto, tudo se torna quieto. Na medida em que nos comportamos com
humildade, nesta medida haverá bom resultado. Se a mente torna-se quieta, a pessoa pode
viver em qualquer lugar.

15 Por quanto tempo a investigação deveria ser praticada?


Enquanto existir impressões de objetos na mente, a investigação “Quem sou eu?” é
necessária. Assim que surgem os pensamentos, eles devem ser destruídos ali mesmo no
exato lugar de sua origem, através da investigação. Se alguém faz uso da contemplação do
Ser ininterruptamente, até que o Ser seja obtido, só isso já é suficiente. Enquanto houver
inimigos dentro da fortaleza, eles continuarão atacando; se eles são destruídos assim que
emergem, a fortaleza cairá em nossas mãos.

16. Qual é a natureza do Ser?


O que existe na verdade é somente o Ser. O mundo, a alma individual, e Deus são
aparências, aspectos dele. Como prata em madrepérola, esses três aspectos aparecem ao
mesmo tempo e desaparecem ao mesmo tempo. O Ser é o lugar onde não há absolutamente
nenhum pensamento de ‘eu’. Isto é chamado “silêncio”. O Ser, ele mesmo, é o mundo; o
Ser, ele mesmo, é ‘Eu’; o Ser, ele mesmo, é Deus; tudo é Shiva, o Ser.

17. Não são todas as coisas o trabalho de Deus?


Sem desejo, decisão, ou esforço, o sol surge; e em sua mera presença, a pedra-sol
emite fogo, o lótus floresce, a água evapora; as pessoas executam suas várias funções e
então descansam. Assim como só pela presença do magneto a agulha já se move, é pela
virtude da mera presença de Deus que as almas, governadas pelas três funções (cósmicas)
ou pelas cinco atividades divinas, executam suas ações e então descansam, de acordo com
seus respectivos karmas. Deus não tem intenção; nenhum karma se ata a Ele. São como

452
ações mundanas que não afetam o sol, ou como os méritos e deméritos dos quatro
elementos que não afetam o espaço todo abrangente que eles ocupam.

18. Dos devotos, quem é o maior?


Aquele que entrega si mesmo ao Ser que é Deus é o mais excelente dos devotos.
Entregar a si mesmo a Deus significa permanecer constantemente no Ser sem dar espaço
para o surgimento de quaisquer pensamentos além daquele do Ser. Quaisquer cargas são
largadas em Deus, Ele as carrega. Já que o supremo poder de Deus faz todas as coisas se
moverem, porque deveríamos, sem nos submeter a ele, constantemente nos preocupar com
pensamentos sobre aquilo que deveria ser feito e como, e aquilo que não deveria ser feito e
como não deveria? Nós sabemos que o trem carrega todas as cargas, e assim depois de
pegá-lo, por que deveríamos carregar nossa pequena bagagem em nossa cabeça para nosso
desconforto, ao invés de colocá-la no chão do trem e sentir-se aliviado?

19. O que é não-apego?


Assim que os pensamentos surgem, destruí-los sem qualquer resíduo no exato lugar
de sua origem, isto é não-apego. Assim como um catador de pérolas amarra uma pedra na
sua cintura, submerge para o fundo do mar e lá pega pérolas, assim cada um de nós deveria
ser dotado com o não-apego, mergulhar dentro de si mesmo e obter o Ser-Pérola.

20. É possível para Deus e para o Guru efetuar a libertação de uma alma?
Deus e o Guru somente mostrarão o caminho para a libertação; eles não levarão a
alma, por si mesmos, ao estado de libertação. Na verdade, Deus e o Guru não são
diferentes. Assim como a presa que caiu na jaula de um tigre não tem escapatória, assim
aqueles que chegaram dentro do âmbito do gracioso olhar do Guru serão salvos pelo Guru e
não ficarão perdidos; ainda assim, cada um deve por seu próprio esforço percorrer o
caminho mostrado por Deus ou pelo Guru e obter a libertação. Uma pessoa pode conhecer a
si mesma somente com o próprio olho do conhecimento, e não com o de outra pessoa.
Aquele que é Rama precisa da ajuda de um espelho para saber que ele é Rama?

21 – É necessário para aquele que anseia pela libertação investigar sobre a


natureza das categorias (tattvas)?
Assim como alguém que quer jogar o lixo fora não precisa analisá-lo e ver o que ele
é, do mesmo modo, aquele que quer conhecer o Ser não tem que contar o número de
categorias ou investigar sobre suas características; o que ele tem que fazer é rejeitar todas
as categorias que escondem o Ser. O mundo deveria ser considerado como um sonho.

22 Não há diferenças entre a vigília e o sonho?


A vigília é longa e o sonho é curto, além desta não há outras diferenças. Assim
como os acontecimentos da vigília parecem ser reais enquanto estamos despertos, do
mesmo modo nos parecem aqueles de um sonho enquanto sonhamos.
No sonho a mente toma outro corpo. Tanto no estado de sonho como no de vigília
pensamentos, nomes e formas ocorrem simultaneamente.

23. Ler livros é de alguma utilidade para aqueles que desejam a libertação?
Todos os textos dizem que para obter a libertação uma pessoa deve tornar a mente
quieta; portanto, o ensinamento conclusivo é de que a mente deve se apresentar quieta; uma

453
vez que isto tenha sido entendido, não há necessidade de intermináveis leituras. Para
aquietar a mente, uma pessoa tem somente que investigar dentro de si aquilo que é o Ser;
como essa busca poderia ser feita em livros? A pessoa deve conhecer o seu Ser com o seu
próprio olho de sabedoria. O Ser está dentro dos cinco invólucros; enquanto que os livros
estão fora deles. Já que o Ser tem de ser investigado através do descarte dos cinco
invólucros, é fútil procurar por ele em livros. Chegará um momento que a pessoa terá que
esquecer tudo aquilo que aprendeu.

24 – O que é felicidade?
Felicidade é a real natureza do Ser; felicidade e o Ser não são diferentes. Não há
felicidade em qualquer objeto do mundo. Nós imaginamos através da nossa ignorância que
recebemos felicidade dos objetos. Quando a mente vai para fora, ela experimenta miséria.
Na verdade, quando seus desejos são satisfeitos, ela retorna ao seu próprio lugar e desfruta
da felicidade que é o Ser. Do mesmo modo, seja nos estados de sono (profundo), no
samadhi, e no desfalecimento, e quando o objeto desejado é obtido ou quando o objeto
desgostado é removido, a mente torna-se internamente direcionada, e desfruta a pura
felicidade do Ser. Assim, a mente move-se sem descanso indo para fora do Ser e retornando
a ele. Sob a árvore, a sombra é agradável; fora dela, em área aberta, o calor é ardente.
Uma pessoa que esteve sob o sol, sente-se fresca quando entra na sombra. Alguém que
insiste em ir da sombra ao sol e logo volta à sombra é um tolo. Um homem sábio fica
permanentemente na sombra. Similarmente, a mente de alguém que conhece a verdade não
deixa Brahma. A mente do ignorante, ao contrário, revolve-se no mundo, sentindo-se
miserável e por um breve tempo retorna a Brahma para experimentar felicidade. De fato,
aquilo que é chamado de mundo é somente pensamento. Quando o mundo desaparece, isto
é, quando não há pensamento, a mente experimenta felicidade; e quando o mundo aparece,
ela passa por miséria.

25. O que é sabedoria-intuitiva (jnana-drsti)?


Permanecer quieto é chamado de sabedoria-intuitiva. Permanecer quieto é dissolver
a mente no Ser. Telepatia, conhecer acontecimentos passados, presentes e futuros, e
clarividência não se constituem como sabedoria-intuitiva.

26. Qual é a relação entre ausência de desejo e sabedoria?


Ausência de desejo é sabedoria. Os dois não são diferentes; eles são o mesmo.
Ausência de desejo é evitar o giro da mente em direção a qualquer objeto. Sabedoria
significa que nenhum objeto comparece. Em outras palavras, não buscar qualquer outra
coisa além do Ser é desapego ou ausência de desejo; não deixar o Ser é sabedoria.

27. Qual é a diferença entre investigação e meditação?


Investigação consiste em reter a mente no Ser. Meditação consiste em pensar que o
próprio ser é Brahman, existência-consciência-bem-aventurança.

28. O que é libertação?


Investigar sobre a natureza do ser que está escravizado; e realizar sua verdadeira
natureza; isto é libertação.

SRI RAMANARPANAM ASTU

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