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"A Missão: Lembrança de uma Revolução ", de Heiner Müller - "Der Auftrag: Erinnerung an

eine Revolution" (1978)

"A Missão" é a adaptação e estilização de motivos da novela de Ana Seghers "Das Licht auf
dem Galgen" ("A Luz sobre a Forca"). Certamente, um dos textos mais belos, em sua
plasticidade, do repertório dramatúrgico alemão contemporâneo dos anos setenta em sua fuga
metafísica no manancial romântico da tradição. Ao lado de Botho Strauss, Heiner Müller foi
capaz de tecer um imaginário robusto das ruínas e das sombras dessa herança sobre o
presente. Se em Botho Strauss predominava a nostalgia daquela peregrinação romântica ao
vazio do coração de gelo da República Federal na trajetória emblemática de Lotte, um
impasse já desfeito pela história real, mas também aquela ambição científica e cosmológica
de cartografar o lugar orgânico do humano diante do abismo da Grande Ciência e seus
"lógicos" poderosos e novas descobertas extraordinárias, como em "O Grande e o Pequeno",
Müller, sempre projetou suas imagens contra o zênite da imobilidade mítica das utopias e seu
terror paralisante, pois somente assim é possível "ler" a tessitura histórica a contrapelo,
naquele sentido que assimilou da filosofia da história de Walter Benjamin. É quase que um
réquiem existencial imaginar que foram estas mesmas imagens que me seduziram e me
conduziram, finalmente, ao exílio na Alemanha. Lembranças difusas de uma outra vida.

"A duras penas recuperaremos as lágrimas", afirmou certa vez Strauss, citando a prece
noturna de Heine. Contudo, insone, na zombilandia, tenho todas as noites um encontro
marcado com o anjo do desespero.

Sou o anjo do desespero. Com minhas mãos distribuo a embriaguês, o atordoamento, o


esquecimento, prazer e dor dos corpos. Meu discurso é o silêncio, meu canto é o grito. Sob a
sombra de minhas asas vive o horror. Minha esperança é o último alento. Minha esperança é a
primeira batalha. Eu sou a faca com a qual o morto abre o caixão. Sou aquele que será. Meu
vôo é a revolta, meu céu é o abismo de amanhã.

Galloudec a Antoine. Escrevo esta carta no meu leito de morte. Escrevo em meu nome e em
nome do cidadão Sasportas, que foi enforcado em Port Royal. Informo-lhe que fomos
obrigados a desistir da missão que a Convenção nos confiou por seu intermédio, já que não
nos foi possível cumpri-la. Talvez outros tenham melhor êxito. De Debuisson o senhor não
ouvirá mais falar, ele vai bem. É sempre assim, os traidores vivem bem quando os povos são
banhados em sangue. O mundo é assim e não está certo. Desculpe a minha letra, me
amputaram uma perna e estou escrevendo com febre. Espero que esta carta o encontre com
boa saúde e subscrevo-me com saudações republicanas.

[MARINHEIRO, ANTOINE, MULHER)

MARINHEIRO
O senhor é o cidadão Antoine. Então aqui está uma carta para o senhor. De um tal de
Galloudec. Não é culpa minha se a carta já é velha e o assunto talvez já esteja resolvido. Os
espanhóis nos prenderam em Cuba, depois os ingleses em Trinidad. Depois fui roubado,
numa rua, em Londres, porque estava bêbado, mas não encontraram a carta. Quanto a este
Galloudec, não vai envelhecer mais. Morreu num hospital em Cuba, um meio prisão meio
hospital. Ele estava lá com gangrena, eu com febre. PEGUE ESTA CARTA ELA TEM QUE
CHEGAR E MESMO QUE SEJA A ÚLTIMA COISA QUE VOCÊ FAÇA TEM DE FAZER
ISTO POR MIM foram suas últimas palavras. E também o endereço de um escritório e o seu
nome, se o seu nome é esse mesmo, Antoine, ninguém sabe do senhor lá onde fica o
escritório. Um que mora num porão atrás do andaime me mandou a uma escola, onde dizem
que um tal de Antoine trabalhou como professor. Mas lá também não sabiam nada dele. Então
uma faxineira me disse que o sobrinho dela viu o senhor por aqui. Ele é carroceiro. E ele me
descreveu o senhor, se o senhor for mesmo o tal.

ANTOINE
Não conheço nenhum Galloudec.

MARINHEIRO
Não sei o que havia de tão importante para ele na carta. Alguma coisa a ver com uma missão.
Da qual ele tem que desistir, para que outros continuem o seu trabalho. Que trabalho era esse,
não sei. No fim ele não falava mais de outra coisa. A não ser quando gritava, e gritava de dor,
por causa da ferida. A dor vinha em ondas. E demorou bastante tempo, até que terminou
morrendo. O doutor disse que ele tinha o coração muito forte, já devia ter morrido umas dez
vezes. Às vezes o homem não aguenta muito, às vezes demais. A vida é uma porcaria. O
outro, de quem ele fala na carta, um negro, teve uma morte mais rápida. Ele me leu a carta,
Galloudec, para que eu soubesse de cór, caso ela se perdesse. E se o senhor ainda não lembra
dele, vou lhe contar o que fizeram com ele e como ele morreu, o senhor não estava lá.
Primeiro cortaram a perna dele até o joelho, depois o resto. Era a esquerda. Então

ANTOINE
Não sei de nenhuma missão. Não confio missões, não sou nenhum senhor. Ganho meu
dinheiro dando aulas particulares. É pouco. Massacres, já vi bastante. Conheço bem a
anatomia do homem. Galloudec

[MULHER COM VINHO PÃO QUEIJO]


MULHER
Você tem visita. Eu vendi uma condecoração. Aquela de Vendéia, onde vocês massacraram os
camponeses pela república.

ANTOINE
Sim.

MARINHEIRO
Pelo que vejo, o senhor ainda tem tudo. Ao contrário deste Galloudec, que o senhor não
conhece e que está morto como uma pedra. O outro chamava-se Sasportas. Foi enforcado em
Port Royal, se é que isso lhe interessa, por causa dessa missão, essa sobre a qual o senhor não
sabe nada, na Jamaica. A forca está em cima de um penhasco. Quando eles estão mortos, a
corda é cortada e eles caem no mar. Os tubarões se encarregam do resto. Obrigado pelo
vinho.

ANTOINE
Sasportas. Eu sou o Antoine que você procurava. Tenho de ser cuidadoso, a França não é
mais uma república, nosso cônsul tornou-se imperador e conquista a Rússia.
De boca cheia é mais fácil falar sobre uma revolução perdida. Sangue, coagulado em
medalhas de metal. Os camponeses também não tinham uma solução melhor, não é. E talvez
tivessem razão, não é. O comércio floresce. Quanto aos do Haiti, agora entregamos a eles
terra para comer. Era a república dos negros. A liberdade leva o povo às barricadas, e quando
os mortos ressuscitam, veste uniforme. Agora vou lhe confessar um segredo, ela também não
passa de uma puta. E já consigo rir disso tudo. Ahahah. Mas agora, aqui, há uma coisa vazia,
que antes vivia. Eu estava lá quando o povo assaltou a Bastilha. Eu estava lá quando a cabeça
do último Bourbon caiu na cesta. Nós colhemos a cabeça dos aristocratas. Nós colhemos a
cabeça dos traidores.

MULHER
Bela colheita. Você está bêbado de novo, Antoine.

ANTOINE
Ela não gosta quando eu falo da minha época gloriosa. Diante de mim, a Gironda também
tremia. Olhe só para ela, a minha França. Os seios secos. Entre as coxas, o deserto. Um navio
morto na rebentação do século. Olhe só como ela se afunda. A França precisa de um banho de
sangue, e o dia chegará.

(Antoine derrama vinho tinto sobre a cabeça.)

MARINHEIRO
Não entendo nada disso. Sou marinheiro, não acredito em política. O mundo é diferente em
toda parte. Essa é a carta. (Sai.)

ANTOINE (grita)
Cuidado, marinheiro, quando sai de minha casa. Os policiais de nosso ministro Fouché não
perguntam se você acredita em política. Galloudec. Sasportas. Onde está a tua perna,
Galloudec Por que a tua língua está fora da tua boca, Sasportas. O que vocês querem de mim.
Sou responsável pelo teu pedaço de perna. E pela tua corda. Devo cortar uma perna. Quer que
eu me enforque ao teu lado. Pergunte ao imperador pela tua perna, Galloudec. Mostre a
língua ao teu imperador, Sasportas. Ele vence na Rússia, posso mostrar o caminho a vocês. O
que querem de mim. Pra fora. Desapareçam. Diz a eles, mulher. Diz para irem embora, não
quero mais vê-los. Vocês ainda estão aí. Tua carta chegou, Galloudec. Está aqui. Em todo
caso, para vocês já acabou tudo. VIVA A REPÚBLICA. (Ri.) Vocês pensam que eu vou bem,
não é. Estão com fome. Tomem. (Joga comida sobre os mortos.)

MULHER
Vem para a cama, Antoine.

ANTOINE
ESTA É A ASCENÇÃO POR POUCO
DINHEIRO
ENQUANTO AGÜENTA
NAS GRADES DO PEITO
O CÃO O CORAÇÃO

(Durante o ato sexual surge o anjo do desespero.)


ANTOINE (voz) Quem é você.

MULHER (voz)
Sou o anjo do desespero. Com minhas mãos distribuo a embriaguês, o atordoamento, o
esquecimento, prazer e dor dos corpos. Meu discurso é o silêncio, meu canto é o grito. Sob a
sombra de minhas asas vive o horror. Minha esperança é o último alento. Minha esperança é a
primeira batalha. Eu sou a faca com a qual o morto abre o caixão. Sou aquele que será. Meu
vôo é a revolta, meu céu é o abismo de amanhã.

Chegamos à Jamaica, três emissários da Convenção francesa, nossos nomes Debuisson


Galloudec Sasportas, nossa missão uma revolta de escravos contra o domínio da coroa
britânica em nome da República da França. Que é a mãe-pátria da revolução, o terror dos
tronos, a esperança dos pobres. Onde todos os homens são iguais sob a arma da justiça. Que
não tem pão para aplacar a fome de seus subúrbios, mas tem mãos suficientes para levar a
tocha da liberdade igualdade fraternidade a todos os países. Estávamos na praça do porto. No
meio da praça havia uma jaula. Ouvíamos o vento do mar, o duro rumorejar das folhas das
palmeiras, o arrastar das vassouras de palmeira com as quais as negras varriam a poeira da
praça, os gemidos do escravo na jaula, a queimada. Víamos os seios das negras, o corpo
riscado de sangue do escravo na jaula, o palácio do governador. Dissemos: isto é Jamaica,
vergonha das Antilhas, navio negreiro no mar do Caribe.

SASPORTAS
Até termos acabado o nosso trabalho.

GALLOUDEC
Você pode começar logo. Você não veio para cá para libertar os escravos. Este que está na
jaula é um escravo. Amanhã será o que era, se não for libertado hoje.

DEBUISSON
Eles expõem os escravos nas jaulas quando tentam fugir ou por outros crimes, como
exemplo, até que sejam torrados pelo sol. Já era assim quando fui embora da Jamaica, há dez
anos. Não olhe para lá, Sasportas, não podemos ajudar um só.

GALLOUDEC
Sempre o que morre é um só. Depois se contam os mortos.

DEBUISSON
A morte é a máscara da revolução.

SASPORTAS
Quando eu for embora daqui, outros vão estar nas jaulas, de pele branca, até que o sol os
queime até ficarem pretos. Então muitos terão sido ajudados.

GALLOUDEC
Talvez seja melhor nós instalarmos uma guilhotina. E mais limpo. A Viúva Vermelha é a
melhor mulher de limpeza.

DEBUISSON
A amada dos subúrbios.
SASPORTAS
Continuo achando que para uma pele branca uma jaula é uma coisa boa, quando o sol está
bem alto.

GALLOUDEC
Não estamos aqui para jogar um contra o outro a cor de nossas peles, cidadão Sasportas.

SASPORTAS
Nós não seremos iguais enquanto não tivermos arrancado a pele um do outro.

DEBUISSON
Esse foi um mau começo. Coloquemos nossas máscaras. Eu sou aquele que fui: Debuisson,
filho de senhor de escravos na Jamaica, herdeiro de uma plantação com quatrocentos
escravos. Voltando ao seio da família para tomar conta de sua herança, regressando do
sombrio céu da Europa, escurecido com a fumaça dos incêndios e o vapor de sangue da nova
filosofia, para o ar puro do Caribe, depois que os horrores da Revolução lhe abriram os olhos
para a verdade eterna, de que tudo que é velho é melhor que tudo que é novo. Além disso, sou
médico, benfeitor da humanidade, sem distinguir ninguém, senhores ou escravos. Curo um
para o outro, para que tudo fique como está, enquanto dure, meu rosto é o rosto rosado do
senhor de escravos, que nada tem a temer deste mundo a não ser a morte.

SASPORTAS
E seus escravos.

DEBUISSON
Quem é você Galloudec.

GALLOUDEC
Um camponês da Bretanha que aprendeu a odiar a Revolução na chuva de sangue da
guilhotina, que queria que a chuva tivesse sido mais abundante e não somente sobre a França,
fiel servidor do senhor Debuisson, creio na ordem sagrada da monarquia e da igreja. Espero
não ter que rezar demais por isso.

DEBUISSON
Você saiu duas vezes do papel, Galloudec. Quem é você.

GALLOUDEC
Um camponês da Bretanha que aprendeu a odiar a Revolução na chuva de sangue da
guilhotina, fiel servidor do senhor Debuisson, creio na ordem sagrada da monarquia e da
igreja.

SASPORTAS (parodiando)
Creio na ordem sagrada da monarquia e da igreja. Creio na ordem sagrada da monarquia e da
igreja.

DEBUISSON
Sasportas; Sua máscara.
GALLOUDEC
Para você não deveria ser difícil representar o papel de escravo, Sasportas, com a tua pele
negra.

SASPORTAS
Fugindo da revolução negra triunfante no Haiti, me juntei ao senhor Debuisson, porque Deus
me criou ara a escravidão. Sou escravo dele. Isso basta.

(Galloudec aplaude.)

SASPORTAS
Da próxima vez vou lhe responder com a faca, cidadão Galloudec.

GALLOUDEC
Sei que você faz o papel mais difícil, Sasportas. Um papel que está escrito no teu corpo.

SASPORTAS
Com os chicotes que nas nossas mãos escreverão um novo alfabeto sobre outros corpos.

DEBUISSON
Revolução triunfante não é bom. Não se diz uma coisa dessas diante dos senhores. Revolução
negra também não é bom. Negros fazem tumulto, quando chega a hora, não revolução.

SASPORTAS
A revolução não venceu no Haiti. A revolução negra.

DEBUISSON
Foi a ralé que venceu. No Haiti domina a ralé.
(Sasportas cospe.)

DEBUISSON
Você está cuspindo na direção errada: sou o teu senhor. Diz isso agora.

SASPORTAS
Fugindo da ralé, que transformou o Haiti numa cloaca.

GALLOUDEC
Cloaca é bom. Você aprende depressa, Sasportas.

DEBUISSON
Tire as mãos do rosto e olhe para a carne que morre nesta jaula. Você também, Galloudec. E a
tua carne, a tua e a minha. Esse gemido é a Marselhesa dos corpos, sobre os quais será
construído um mundo novo. Aprendam a melodia. Vamos ouvi-la ainda por muito tempo,
queiramos ou não, é a melodia da revolução, da nossa missão. Muitos vão morrer nesta jaula
antes que o nosso trabalho esteja concluído. Muitos vão morrer nesta jaula porque cumprimos
o nosso trabalho. Isto é o que fazemos pelos nossos semelhantes com o nosso trabalho, talvez
apenas isso. Nosso lugar vai ser na jaula, se nossas máscaras se rasgarem antes da hora. A
revolução é a máscara da morte. A morte é a máscara da revolução.
(Um negro gigantesco entra.)

DEBUISSON
Este é o escravo mais antigo da minha família. É surdo e mudo, uma coisa entre o homem e o
cão. Ele vai cuspir na jaula. Talvez você devesse fazer o mesmo, Sasportas, para aprender a
odiar a tua pele negra, para o dia em que tivermos necessidade dela. Então ele vai beijar meus
sapatos, já lambe os lábios, olhem, e vai me carregar sobre as costas, a mim, seu velho e novo
senhor, até a casa de meus pais, grunhindo de prazer. A família abre seu seio, amanhã começa
o nosso trabalho.

(O negro gigantesco cospe na jaula, olha para Sasportas, inclina-se diante de Galloudec, beija
os sapatos de Debuisson, carrega-o nas costas. Galloudec e Sasportas seguem um depois do
outro.)

A REVOLUÇÃO É A MÁSCARA DA MORTE A MORTE É A MÁSCARA DA


REVOLUÇÃO A REVOLUÇÃO É A MÁSCARA DA MORTE A MORTE É A MÁSCARA
DA REVOLUÇÃO A REVOLUÇÃO É A MÁSCARA DA MORTE A MORTE É A
MÁSCARA DA REVOLUÇÃO A REVOLUÇÃO É A MÁSCARA DA MORTE A MORTE
É A MÁSCARA DA REVOLUÇÃO A REVOLUÇÃO É A MÁSCARA DA MORTE A
MORTE É A MÁSCARA DA REVOLUÇÃO A REVOLUÇÃO É A MÁSCARA DA
MORTE A MORTE É A MÁSCARA DA REVOLUÇÃO A REVOLUÇÃO É A MÁSCARA

(A volta do filho pródigo. Pai e mãe no armário aberto. Num trono, o Primeiro Amor.
Debuisson Galloudec Sasportas são despidos e fantasiados por escravos; Debuisson como
senhor de escravos, Galloudec como feitor com açoite, Sasportas como escravo.)

PRIMEIRO AMOR
O pequeno Vítor brincou de revolução. Agora volta ao lar, regressa ao seio da família. Ao lar
para papai com a cabeça cheia de vermes. Ao lar para mamãe com seu cheiro de flores
podres. Você está ferido, pequeno Vítor. Chegue mais perto, mostre as feridas. Você não me
conhece mais. Não precisa ter medo, pequeno Vítor. De mim, não. Não do teu primeiro amor.
Que você enganou com a revolução, teu segundo amor sujo de sangue. Com o qual você
rolou pela sarjeta durante dez anos, fazendo concorrência à plebe. Ou pelas capelas
mortuárias, onde ela conta suas presas. Sinto o perfume dela, estrume de estábulos. Lágrimas,
pequeno Vítor. Você amou tanto a ela. Ah Debuisson. Eu tinha te dito, ela é uma puta. A
serpente com a vagina sedenta de sangue.

A escravidão é uma lei da natureza, velha como a humanidade. Porque diante dela deveria
parar. Olhe para os meus escravos, e os teus, nossa propriedade. Durante toda a vida foram
animais. Porque deveriam se tornar homens, só porque na França está escrito,num papel.
Quase ilegível de tanto sangue, mais ainda do que aquele que foi derramado aqui pela
escravidão na tua e na minha bela Jamaica. Vou contar a você uma história: em Barbados, um
proprietário de lavoura foi morto dois meses depois da abolição da escravatura. Seus antigos
escravos voltaram. Ajoelharam-se como na igreja. E sabe o que queriam. Voltar à proteção da
escravidão. Isto é o homem: seu primeiro lar é sua mãe, uma prisão. (Escravos levantam as
saias da mãe, no armário, sobre a cabeça dela.) Aqui está aberta a pátria, aqui boceja o seio da
família. Diga uma única palavra, se você quer voltar, e ela te enfia para dentro, a idiota, a mãe
eterna.

O pobre homem de Barbados não teve tanta sorte. Seus Não-Mais-Escravos mataram ele com
cacetes, como se fosse um cão raivoso, porque ele não os trouxe de volta da fria primavera da
sua liberdade para o jugo de seu amado chicote. Agrada-lhe a história, cidadão Debuisson. A
liberdade mora nas costas dos escravos, a igualdade sob o machado. Você quer ser meu
escravo, pequeno Vítor. Você me ama. Estes são os lábios que te beijaram. (Escrava pinta
nela uma grande boca.) Eles se lembram da tua pele, Vítor Debuisson. Estes são os seios que
te aqueceram, pequeno Vítor. (Escrava pinta o bico dos seios etc) Eles não esqueceram nem a
tua boca nem as tuas mãos. Esta é a pele que bebeu teu suor. Este é o colo que recebeu o teu
sêmem, que me queima o coração. (Escrava pinta um coração azul.) Você está vendo a chama
azul. Você sabe como em Cuba se pegam os escravos fugitivos. São caçados com cães
sangüinários. E assim, cidadão Debuisson, quero retomar o que tua puta, a revolução, roubou
de mim, a minha propriedade. (Escravos-cães, acompanhados por Galloudec e seu chicote,
pelo fantasma do pai com gritos de acuo, caçam Debuisson.)

Com os dentes dos meus cães eu quero arrancar de tua carne manchada, os vestígios das
minhas lágrimas, meu suor, os meus gritos de prazer. Quero do teu corpo, com as lágrimas de
suas garras, talhar meu vestindo de noiva. Teu hálito, que tem gosto dos corpos mortos de
reis, quero traduzir para a linguagem da tortura, que é apanágio dos escravos. Quero comer
teu sexo e parir um tigre, que devore o tempo, com o qual os relógios batem meu vazio
coração atravessado pelas chuvas dos trópicos. (Escrava coloca-lhe uma mascara de tigre.)
ONTEM COMECEI / A MATAR-TE MEU CORAÇÃO / AGORA EU AMO / TEU
CADÁVER / QUANDO ESTIVER MORTA / MEU PÓ GRITARÁ POR VOCÊ. Quero te
dar de presente esta cadela, pequeno Vítor, para que você a encha com meu sêmem
corrompido. Mas antes quero que ela seja açoitada para que o sangue de vocês se misture.
Você me ama, Debuisson. Não se deve deixar uma mulher sozinha.

(Escravos tomam o chicote de Galloudec, fecham o armário, tiram a maquilagem do Primeiro


Amor, instalam -Debuisson no trono, o Primeiro Amor serve como banquinho para os pés,
transformam Galloudec e Sasportas em Danton e Robespierre. Está aberto o teatro da
revolução. Enquanto os dois atores e o público tomam seus lugares, ouve-se o diálogo dos
pais no armário.)

PAI
Isso é a ressureição da carne. Já que o verme rói eternamente e o fogo nunca se apaga. MÃE
— Outra vez ele está fornicando por aí. Criquecraque, vejam, agora o meu coração está
quebrado. PAI — Eu ofereço a você, meu filho. Te ofereço as duas, preta e ou branca. MÃE
— Tirem a faca do meu ventre. Putas pintadas. PAI — De joelhos, canalha, pede a benção à
tua mãe. MÃE — LÁ EM CIMA SOBRE A MONTANHA / SOPRA O VENTO / LÁ
MARIA SACRIFICA / O FILHO DE DEUS. De volta para a Groenlândia. Venham, meus
filhos. Lá o sol aquece todos os dias. PAI — Fechem a boca dessa idiota.

SASPORTASROBESPIERRE
Vá para o seu lugar, Danton, no pelourinho da história. Olhem só o parasita, que engole o pão
dos que têm Eome. O libertino, que estupra as filhas do povo. O traidor, que torce o nariz
diante do cheiro de sangue com o qual a revolução purifica o corpo da nova sociedade. Devo
te contar por que você não pode mais ver sangue, Danton. Revolução, você disse. Pegar a
panela da carne, essa foi a tua revolução. Entrada grátis no bordel. Para isso você se
pavoneou nas tribunas sob o aplauso do populacho. O leão que lambe as botas dos
aristocratas. Você gosta da saliva dos Bourbons. Também se sente quente no cu da
monarquia. Você disse audácia. Vá, sacode tua juba empoeirada. Você não vai desprezar a
virtude mais tempo que o que leva para a cabeça cair sob a lâmina da justiça. Você não pode
dizer que eu não te preveni, Danton. Agora a guilhotina vai falar com você, a sublime
invenção da nova era vai passar sobre você como sobre todos os traidores. Você vai entender
a linguagem dela, você que falou tão bem dela em setembro. (Escravos cortam a cabeça de
Danton dos ombros de Galloudec, jogam-na uns para os outros. Galloudec consegue pegá-la,
colocando-a debaixo do braço.) Por que você não coloca a tua bela cabeça no meio das
pernas, Danton, onde está a sede da tua inteligência, entre os piolhos da tua libertinagem e as
úlceras do teu vício.

(Sasportas arranca a cabeça de Danton dos braços de Galloudec. Galloudec vai atrás da
cabeça. Coloca—a novamente.)

GALLOUDECDANTON
Agora é a minha vez. Olhem o macaco com a queixada quebrada. O bebedor de sangue que
não consegue conter sua baba. Você encheu demais a boca, Incorruptível, com teu sermão
sobre a virtude. E este o agradecimento da pátria: o punho de um gendarme. (Os escravos
arrancam de Sasportas a atadura da cabeça de Robespierre, a queixada cai. Enquanto
Sasportas procura a atadura e a queixada.) Deixou cair alguma coisa. Está sentindo falta de
alguma coisa. A propriedade é um roubo. Você sente o vento no pescoço. Is-to é a liberdade.
(Sasportas encontrou novamente a atadura e a queixada e completa a cabeça de Robespierre.)
Cuide para que por amor ao povo você não perca completamente a cabeça, Robespierre.
Revolução, você disse. A lâmina da justiça, não é. A guilhotina não é uma fábrica de pão.
Economia, Horácio, economia. (Escravos derrubam a cabeça de Robespierre dos ombros de
Sasportas e jogam com ela, como se fosse uma bola de futebol.) É isto a igualdade. VIVA A
REPÚBLICA. Eu não disse a você: você é o próximo. (Entra no jogo de futebol dos
escravos.) É isto a fraternidade. (Sasportasrobespierre chora.) O que é que você tem contra o
futebol. Cá entre nós: devo dizer-te porque você se mostrava tão ansioso pela minha bela
cabeça. Aposto que se você baixar as calças, cai pó. Damas e cavalheiros. O teatro da
revolução começou. Atração: o homem sem abdômem. Maximiliano o Grande. Max o
Virtuoso. O que peida na poltrona. O punheteiro de Arras. Robespierre o sangüinário.

SASPORTASROBESPIERRE (recolocando a cabeça)


Meu nome está no panteão da história.

GALLOUDECDANTON
NA FLORESTA UM HOMENZINHO
ESTÁ MUDO E PARADO
USANDO UM MANTINHO
DE PÚRPURA PINTADO

SASPORTASROBESPIERRE
Parasita sifilítico criado de aristocrata.

GALLOUDECDANTON
Hipócrita eunuco lacaio de Wall Street.

SASPORTASROBESPIERRE
Porco.

GALLOUDECDANTON
Hiena.

(Derrubam mutuamente as cabeças. Debuisson aplaude. Escravos tiram-no do trono,


colocando Sasportas em seu lugar, Galloudec serve como banquinho para os pés. Coroação
de Sasportas.)

SASPORTAS
O teatro da revolução branca está no fim. Nós te condenamos à morte, Vítor Debuisson.
Porque tua pele é branca. Porque teus olhos viram a beleza de nossas irmãs. Porque tuas mãos
tocaram a nudez de nossas irmãs. Porque teus pensamentos comeram seus seios seus corpos
seus sexos. Porque você é um proprietário, um senhor. Por isso te condenamos à morte, Vítor
Debuisson. Que as serpentes devorem tua merda, os crocodilos teu cu, as piranhas teus
testículos. (Debuisson grita.) A miséria de vocês é que não sabem morrer. Por isso matam
tudo ao redor de vocês. Pelas vossas regras mortas, nas quais o êxtase não tem lugar. Pela
vossa revolução sem sexo. Você ama esta mulher. Nós a tomamos para que você morra mais
facilmente. Quem nada possui, morre mais facilmente. O que ainda te pertence. Diz depressa,
nossa escola é o tempo, ele não volta e nenhum alento para a didática, quem não aprende
também morre. Tua pele. De quem você arrancou ela. Tua carne nossa fome. Teu sangue
esvazia nossas veias. Teus pensamentos, não é. Quem sua pelas vossas filosofias. Mesmo tua
urina e tua merda são exploração e escravatura. Do teu sêmem, nem se fala, uma destilação
de cadáveres. Agora, nada mais te pertence. Agora, você não é nada. Agora, você pode
morrer. Enterrem-no.

Estou cercado de homens que não conheço, num velho elevador de armação metálica que
range durante a ascenção. Estou vestido como um empregado de escritório ou como um
operário em dia feriado. Até mesmo pus uma gravata, o colarinho incomoda o meu pescoço,
estou transpirando.

Quando mexo a cabeça, o colarinho me aperta o pescoço. Tenho hora marcada com o chefe
(em pensamento, chamo-o de Número Um), seu escritório fica no quarto andar, ou será que é
no vigésimo, é só pensar nisso e já não tenho mais certeza. A notícia da minha entrevista com
o chefe (que, em pensamento, eu chamo de Número Um) me alcançou no subsolo, uma área
extensa com compartimentos vazios de concreto e placas indicativas de abrigo anti-aéreo para
caso de bombardeio. Suponho que deve ser uma missão que me será confiada, verifico se a
minha gravata está bem colocada e aperto o nó. Eu gostaria de ter um espelho para poder
verificar a posição de minha gravata. E inconcebível perguntar a um estranho como está o nó
da própria gravata. As gravatas dos outros homens dentro do elevador estão impecáveis.
Alguns deles parece que se conhecem. Falam em voz baixa sobre alguma coisa que não
entendo.

Mesmo assim, a conversa deles deve ter-me distraído: na parada seguinte, leio, assustado, no
painel que indica os andares em cima da porta do elevador, o número oito. Subi muito, a não
ser que ainda tenha mais da metade do trajeto pela frente. O fator tempo é decisivo.
CHEGAR CINCO MINUTOS ANTES DA HORA / ESSA É A VERDADEIRA
PONTUALIDADE.

Quando olhei da última vez o meu relógio de pulso, marcava dez horas. Me lembro que senti
um alívio. Faltam ainda quinze minutos para o meu encontro com o chefe. Quando olhei
outra vez, só tinham passado cinco minutos. Agora, entre o oitavo e o nono andar, olhando
outra vez para o meu relógio, ele marca exatamente dez horas, quatorze minutos e quarenta e
cinco segundos. Não é uma questão de verdadeira pontualidade, o tempo já não trabalha mais
a meu favor.

Rapidamente reflito sobre a minha siftuação: posso saltar na próxima parada e descer pela
escadaria, três degraus de cada vez, até o quarto andar. Se for errado, naturalmente, isso vai
ser uma perda de tempo irrecuperável. Posso também subir de elevador até o vigésimo andar
e se não for lá o escritório do chefe, posso descer outra vez ao quarto andar, isso se o elevador
não enguiçar, ou então descer a pé pela escada (três degraus de cada vez) com o risco de
quebrar uma perna ou o pescoço, justamente por estar com pressa. Já me vejo estendido numa
padiola que, a pedido meu, é levada ao escritório do chefe e depositada diante da sua
escrivaninha, ainda desejando servir porém não mais apto.

Por enquanto, tudo se concentra na questão que é impossível de ser respondida a priori por
causa da minha negligência, em que andar o chefe (a quem, em pensamento, eu chamo de
Número Um) me espera com uma importante missão. (Deve tratar-se de uma missão
importante, senão teria encarregado um subordinado de transmiti-la).

Uma olhada no relógio me afirma de maneira irrefutável que há muito tempo, até para a
pontualidade mais elementar, é tarde demais, ainda que o nosso elevador, como se vê a um
segundo olhar, ainda não tenha alcançado o décimo segundo andar: o ponteiro das horas está
marcando as dez, o dos minutos está marcando cinqüenta, o dos segundos há tempo que já
não importa mais. Parece que tem alguma coisa errada no meu relógio, mas nem para ver que
horas são há mais tempo: estou sozinho no elevador, sem ter notado quando os outros
cavalheiros desceram. Com um terror que me pega na raiz dos cabelos, olho os ponteiros do
meu relógio, não consigo mais tirar os olhos deles: estão girando em torno do mostrador cada
vez mais depressa, de forma que entre uma e outra piscada de olhos, passam cada vez mais
horas. Estou percebendo que já há muito tempo alguma coisa não andava certa: com o meu
relógio, com este elevador, com o tempo. Me abandono a fantásticas especulações: a força da
gravidade diminui, uma perturbação, uma espécie de gagueira na rotação da terra, como um
cãimbra nas pernas no futebol. Lamento não ter suficientes conhecimentos de física para
poder resumir numa fórmula científica a gritante contradição entre a velocidade do elevador e
o passar do tempo indicado pelo meu relógio. Eu devia ter prestado mais atenção na escola.
Ou então li os livros errados: poesia, em vez de física. O tempo está fora dos eixos e num
lugar qualquer do quarto ou do vigésimo andar (o OU corta como uma faca o meu cérebro
negligente), numa sala provavelmente ampla, recoberta com um pesado tapete, atrás de sua
escrivaninha, que provavelmente está instalada na parte mais estreita, no fundo da sala, de
frente para a entrada, o chefe (a quem, em pensamento, chamo de Número Um) espera por
mim, o fracassado, com minha missão.

Talvez o mundo esteja se despedaçando e a minha missão, que era tão importante que o chefe
quis transmiti-la pessoalmente, talvez tenha perdido o sentido por causa de minha
negligência. SEM EFEITO no linguajar das repartições públicas, que aprendi tão bem
(ciência supérflua!),

NO ARQUIVO, que ninguém mais virá consultar, porque justamente ela se referia às últimas
providências possíveis para deter o fim do mundo, cujo inído estou vivendo prisioneiro deste
elevador enlouquecido com o meu relógio enlouquecido. Sonho desesperado dentro do
sonho: tenho a capacidade, sobre mim mesmo, de transformar meu corpo num projétil que,
atravessando o teto do elevador, ultrapassa o tempo. Despertar frio no lento elevador, olhar
para o relógio em disparada. Imagino o desespero do Número Um.

Seu suicídio. Sua cabeça, cujo retrato enfeita todas as salas de repartição, sobre a
escrivaninha. Um fio de sangue correndo de um buraco de bordas escuras na fronte
(provavelmente à direita). Não ouvi nenhum tiro, mas isto não prova nada, as paredes de seu
escritório naturalmente são à prova de som, imponderáveis devem ter sido levados em
consideração durante a construção e o que se passa no escritório do chefe não é da conta da
população, o poder é solitário. Eu saio do elevador na parada seguinte e me encontro sem
missão, a gravata agora inútil ainda ridiculamente amarrada debaixo do queixo, numa rua de
uma aldeia do Peru.

Barro seco com marcas de rodas. De ambos os lados da rua, uma planície árida com marcas
estranhas de capim e manchas de mata cinzenta procura alcançar indistintamente o horizonte,
sobre o qual pairam montanhas na névoa. A esquerda, um barraco que parece abandonado, as
janelas, buracos negros com restos de vidro. Diante de uma parede coberta com cartazes de
propaganda de produtos de uma civilização estranha, dois gigantescos indígenas parados. De
suas costas nasce uma ameaça. Me pergunto se devo regressar. Ainda não fui visto. Nunca,
durante minha ascenção desesperada até o chefe, teria imaginado que ia ter saudades do
elevador que foi a minha prisão. Como explicar a minha presença nesta terra-de-ninguém.
Não tenho pára-quedas para mostrar, nem avião, nem a carcaça de um carro. Quem poderá
acreditar que eu vim ao Peru num elevador, à minha frente e atrás de mim a rua, flanqueada
pela planície que procura alcançar o horizonte.
E como pode haver comunicação, eu não conheço a língua deste país, poderia muito bem ser
surdo-mudo. Talvez fosse melhor se eu fosse surdo-mudo: talvez exista compaixão no Peru.
Só me resta a fuga para um lugar deserto, talvez a fuga de uma morte para outra, mas prefiro
a fome à faca do assassino. De qualquer maneira, estou sem recursos para me resgatar com
meus parcos recursos em moeda estrangeira. Mesmo morrer em serviço me é recusado pelo
destino, minha causa é uma causa perdida, empregado de um chefe defunto, minha missão
decidida em seu cérebro que não dirá mais nada até que os cofres-fortes da eternidade sejam
abertos, cuja combinação os sábios do mundo se esforçam para desvendar no lado de cá da
morte. Espero que não seja demasiado tarde, desfaço o nó da minha gravata, cuja posição
correta tanto me preocupou quando estava a caminho do encontro com o chefe, e faço
desaparecer este detalhe insólito do meu vestuário. Quase joguei fora, uma pista. Ao me
voltar, vejo pela primeira vez a aldeia; barro e palha, uma rede numa porta aberta. Suor frio
ao ocorrer-me que eu poderia estar sendo observado, mas não consigo distinguir nenhum
sinal de vida, a única coisa que se move é um cachorro que remexe num monte de lixo
fumegante. Hesitei muito tempo: os homens afastam-se da parede de cartazes e atravessam a
rua em diagonal, na minha direção, a princípio sem olhar para mim. Vejo o rosto deles perto
de mim, um deles preto, olhos brancos, olhar indefinido: os olhos não têm pupilas. A cabeça
do outro é de prata cinzenta. Um longo, tranqüilo olhar, olhos cuja cor não consigo
determinar, um vermelho cintila neles. Pelos dedos da mão direita, que pende pesada e que
igualmente parece ser de prata, corre um tremor, as veias brilham através do metal. Depois o
prateado passa por trás de mim, seguido do preto. Meu medo se dissipa e cede lugar à
decepção: não mereço nem mesmo uma facada nem ser estrangulado por mãos de metal. Não
havia desprezo no olhar tranqüilo que estava voltado para mim há uma distância de cinco
passos. Em quê consiste o meu crime. O mundo não acabou, supondo-se que isso aqui não
seja um outro mundo. Como cumprir uma missão desconhecida. Qual poderia ser a minha
missão nessa região desolada, longe da civilização.

Como o empregado poderia saber o que se passa na cabeça do patrão. Nenhuma ciência no
mundo seria capaz de arrancar a minha missão perdida das fibras do cérebro do morto. A
missão será enterrada com ele, os funerais de estadista, que talvez neste momento já estejam
sendo realizados, não asseguram a ressurreição. Uma espécie de alegria se apodera de mim,
penduro o casaco no braço e desabotoo a camisa: estou dando um passeio. Na minha frente o
cachorro atravessa a rua, uma mão no focinho, os dedos voltados para mim e parecem
queimados. Jovens cruzam o meu caminho com um ar de ameaça que não me diz respeito. Lá
onde a rua se perde na planície, numa atitude que parece de alguém que está esperando por
mim, está uma mulher. Estendo os meus braços para ela, há quanto tempo eles não tocam em
mulher, e ouço uma voz de homem dizer ESTA MULHER É A MULHER DE UM HOMEM.
O tom é definitivo e continuo o meu caminho. Ao me voltar, a mulher estende os braços em
minha direção e desnuda os seios. Sobre um aterro ferroviário recoberto pelo capim, dois
meninos estão mexendo numa mistura de máquina a vapor com locomotiva que está parada
sobre um trilho interrompido.

Como europeu, vejo à primeira vista que é um esforço inútil: este veículo não vai se mexer,
mas nada digo às crianças, o trabalho é a esperança, e continuo meu caminho na paisagem
que não tem outra tarefa senão esperar o desaparecimento do homem. Agora sei qual é o meu
destino. Tiro a minha roupa e jogo fora longe, as aparências não importam mais. Algum dia O
OUTRO virá ao meu encontro, o antípoda, o sósia com meu rosto de neve. Um de nós
sobreviverá.

[DEBUISSON, GALLOUDEC, SASPORTAS]

DEBUISSON
(Dá um papel a Galloudec. Galloudec e Sasportas lêem.) O governo que nos confiou a missão
de organizar aqui em Jamaica uma rebelião de escravos, não está mais no poder. O general
Bonaparte dissolveu o Diretório com as baionetas de seus granadeiros. A França se chama
Napoleão. O mundo será o que foi, uma pátria para senhores e escravos. (Galloudec amassa o
papel.) Porque vocês estão arregalando os olhos. A nossa firma não está mais registrada.
Faliu. A mercadoria que temos para vender, pagável em moeda do país lágrimas suor sangue,
não está mais sendo negociada neste mundo. (Rasga o papel) Eu os liberto da nossa missão.
Você, Galloudec, o camponês da Bretanha. Você, Sasportas, o filho da escravidão. Eu,
Debuisson.

SASPORTAS (em voz baixa)


O filho dos senhores de escravos.

DEBUISSON
Cada um com sua própria liberdade ou com sua escravidão. Nosso espetáculo terminou,
Sasportas. Cuidado quando tirar a maquilagem, Galloudec. A tua pele pode sair junto. Tua
máscara, Sasportas, é o teu rosto. Meu rosto é a minha máscara. (Cobre o rosto com as mãos.)

GALLOUDEC
Isso está indo depresa demais para mim, Debuisson. Sou um camponês, não consigo pensar
tão ligeiro. Arrisquei o meu pescoço durante um ano e meio, arrebentei a boca de tanto pregar
em reuniões secretas, contrabandeei armas através de cães sangüinários, tubarões e espiões,
fiz o papel de idiota nas mesas dos usurários ingleses, aceitando fazer o papel de cachorro,
queimado pelo sol e sacudido pela febre nesta maldita parte do mundo sem neve, tudo para
esta massa preguiçosa de carne preta que não quer se mexer a não ser quando pisada pela
bota, e o que importa a mim a escravidão na Jamaica, vendo as coisas como são, eu sou
francês, espera Sasportas, mas eu quero virar negro na hora, se eu vier a entender por que
tudo isso não é mais verdade, deve ser riscado, e nada mais de missão, só porque em Paris um
general está pedindo uma lição. Que não é nem mesmo francês. Mas escutando você falar,
Debuisson, a gente podia pensar que você estava só esperando por esse general Bonaparte.

DEBUISSON
Pode ser que na realidade eu tenha esperado esse general Bonaparte. Assim como a metade da
França esperou por ele. Fazer revolução cansa, Galloudec. Durante o sono dos povos, os
generais se levantam e quebram o jugo da liberdade, que é tão pesado de carregar. Você vê
como ele curva os teus ombros, Galloudec.

SASPORTAS
Acho que eu também não te compreendo, Debuisson. Não te compreendo mais. O mundo,
uma pátria para senhores e escravos. Os escravos não têm nenhuma pátria, cidadão
Debuisson. E enquanto houver senhores e escravos, não estamos liberados da nossa missão.
Que relação tem um golpe de generais em Paris com a libertação dos escravos na Jamaica,
que é a nossa missão. Dez mil homens estão esperando por nossas ordens, pela tua ordem, se
você quiser. Mas não é preciso que seja tua a voz que dê esta ordem. Eles não estão
dormindo, não estão esperando um general. Eles estão prontos para matar e morrer por teu
JUGO DA LIBERDADE, com o qual sonharam a vida inteira, que é uma morte cotidiana,
como de uma amante desconhecida. Eles não se preocupam com a forma de seus seios nem
com a virgindade da vagina. Que importa para eles Paris, um amontoado de pedra distante,
que durante um curto espaço de tempo foi a metrópoie de suas esperanças, e a França, um
país onde o sol não pode matar, onde o sangue teve a cor da alvorada durante um curto
tempo, num continente pálido além da sepultura de Atlântida. Do general de vocês, já esqueci
o nome dele, ninguém mais falará dele quando o nome do libertador do Haiti estiver em todos
os livros escolares.

(Debuisson ri.) SASPORTAS Você ri.

DEBUISSON
Estou rindo, Sasportas, não me pergunte por que. SASPORTAS
Pode ser que mais uma vez eu não tenha te compreendido. Não sei se devo te matar ou se
devo te pedir desculpas.

DEBUISSON
Faça o que você quiser, Sasportas.

SASPORTAS (Ri.)
Ora, Debuisson. Durante um instante eu pensei que você dizia o que estava pensando. Eu
deveria ter duvidado. Eu deveria ter imaginado que era um teste. Eu não passei no teste, não
é. Cada um de nós precisa ser frio como uma faca quando o sinal for dado e a batalha
começar. Não é medo que faz os meus nervos tremerem, é a alegria da expectativa pela
dança. Escuto os tambores antes que batam. Escuto com os poros, minha pele é negra. Mas eu
duvidei de você, e isto não está certo. Me perdoe, Debuisson. Você mergulhou as mãos no
sangue pela nossa causa. Eu vi como isso te custou. Eu te amo por ambas as coisas,
Debuisson, porque aquele que precisava ser morto, para que não traísse a nossa causa, era
meu semelhante, e ele precisava morrer antes da tortura seguinte, para a qual você, enquanto
médico e benfeitor da humanidade, deveria curá-lo das conseqüências da primeira, mas ele
disse: me matem, para que eu não possa trair, e você o matou pela nossa causa, enquanto
médico e revolucionário. (Sasportas abraça Debuisson.)

DEBUISSON
Você não precisa se desculpar, Sasportas, não era um teste. Os nossos nomes não estarão nos
livros escolares e o teu libertador do Haiti, onde agora os nossos libertados investem contra
os mulatos libertados, ou vice-versa, vai ter que esperar muito para ter o seu lugar no livro da
história. Enquanto isso, Napoleão vai transformar a França numa caserna e a Europa talvez
num campo de batalha, de qualquer forma o comércio floresce, e a paz com a Inglaterra não
vai tardar, o que une a humanidade são os negócios. A revolução não tem mais pátria, isso
não é novidade sob esse sol que talvez nunca iluminará uma nova terra, a escravidão tem
múltiplas faces, nós ainda não vimos a última, nem você, Sasportas, nós também não
Galloudec, e aquilo que tomamos pela alvorada da liberdade talvez não seja senão a máscara
de uma nova e mais terrível escravidão, comparada com a qual o reino do açoite nas Caraíbas
e em outros lugares não seja senão uma prova amável da felicidade do paraíso, e talvez a tua
amante desconhecida, a liberdade, quando as suas máscaras tiverem sido desgastadas, não
tenha outra face senão a traição:

o que você não trair hoje, matará você amanhã. Do ponto de vista médico, a revolução é um
aborto, Sasportas: da Bastilha à Conciergerie, o libertador passa a ser guarda da prisão.
MORTE AOS LIBERTADORES essa é a última verdade da revolução. E no que concerne ao
assassinato que cometi a serviço da causa: o médico como assassino não é um papel novo no
teatro da sociedade, a morte não tem tanta importância para os benfeitores da humanidade:
um outro estado químico, até a vitória do deserto, toda ruína é um terreno para a construção
contra a voracidade do tempo.

Talvez eu só tenha lavado as minhas mãos, Sasportas, quando mergulhei as mãos no sangue
pela nossa causa, a poesia foi sempre a linguagem da inutilidade, meu amigo negro. Temos
agora outros cadáveres nas costas e eles serão a nossa morte, se não os empurrarmos para a
cova. Tua morte se chama liberdade, Sasportas, tua morte se chama fraternidade, Galloudec,
minha morte se chama igualdade. Como foi bom montar nelas enquanto ainda eram nossos
corcéis, envolvidos pelo vento do amanhã. Agora sopra o vento de ontem. E os corcéis somos
nós. Vocês sentem as esporas na carne. Nossos cavaleiros têm bagagem: os cadáveres do
terror, as pirâmides da morte. Vocês sentem o medo. A cada dúvida que percorre os meandros
de nosso cérebro pesam ainda mais. Uma revolução não tem tempo para contar seus mortos.
E nós precisamos de todo nosso tempo para desarmar a revolução negra que preparamos tão
cuidadosamente em nome de um futuro que já passou a ser passado, como os outros antes
dele.

Porque o futuro aparece na nossa língua somente como singular, Galloudec. Talvez nos
mortos seja diferente, se o pó tem voz. Pensa nisso, Sasportas, antes de arriscar o teu pescoço
pela libertação dos escravos num abismo que não tem mais fundo desde esta notícia que vou
assumir agora, para que não fique nenhum vestígio de nosso trabalho.

Vocês também querem um pedaço. Essa foi a nossa missão, agora só resta o gosto de papel.
Amanhã terá sido seguido o destino de outros, toda a ascenção segue a mesma direção, e
talvez a estrela já esteja a caminho, vinda do frio do espaço sideral, um bloco de gelo ou de
metal, que abrirá um buraco definitivo no terreno da realidade onde sempre voltamos a
plantar nossas frágeis esperanças.

Ou o próprio frio que gela o nosso ontem e o nosso amanhã num eterno hoje. Porque não
nascemos como árvores, Sasportas, que nada têm a ver com tudo isso. Ou preferes ser uma
montanha. Ou um deserto. O que você diz, Galloudec. Porque vocês me fixam o olhar como
duas pedras. Porque não estamos simplesmente aí e contemplamos a guerra das paisagens. O
que vocês querem de mim. Morram suas próprias mortes, se não mais possuem o gosto pela
vida.
Eu não vou ajudar vocês a entrarem no túmulo, isso também não me agrada. Ontem sonhei
que estava caminhando por Nova York. O lugar, em ruínas, não era habitado por brancos.
Diante de mim, na calçada, erguia-se uma serpente dourada e, quando atravessei a rua, ou
antes a selva de metal em ebulição que era a rua, na outra calçada, havia outra serpente. Era
de azul luminoso. No meu sonho eu sabia: a serpente dourada era a Ásia, a azul a Africa.
Quando acordei, tinha esquecido tudo. Nós somos três mundos: o motivo, agora eu sei.
Escutei uma voz dizer: VEJA UM GRANDE TERREMOTO ACONTECEU POIS O ANJO
DO SENHOR DESCEU DOS CÉUS APROXIMOU-SE E AFASTOU A PEDRA DA PORTA
E SENTOU-SE SOBRE ELA E SUA IMAGEM ERA COMO O RAIO E SUA
VESTIMENTA BRANCA COMO A NEVE. Não quero saber mais nada disso tudo. Há mil
anos que riem das nossas três amadas. Rolaram em todas as sarjetas, jogaram esgoto abaixo
em todo mundo, arrastaram por todos os bordéis, nossa puta a liberdade, nossa puta a
igualdade, nossa puta a fraternidade. Agora eu quero estar sentado lá onde há riso, livre para
tudo que me aconteça, igual a mim mesmo, irmão de mim mesmo e de mais ninguém. Tua
pele continua preta, Sasportas. Você, Galloudec, continua um camponês. Riem de vocês. Meu
lugar é lá, onde riem de vocês. Eu rio de vocês. Rio do negro. Rio do camponês. Rio do negro
que quer ficar branco com a liberdade. Rio do camponês que anda com a máscara da
igualdade. Rio da imbecilidade da fraternidade que me deixou cego, a mim, Debuisson,
senhor de quatrocentos escravos, que só tenho que dizer sim, sim e sim, à ordem sagrada da
escravatura; cego, Sasportas, à tua pele suja de escravo, à tua rotina quadrúpede de camponês,
Galloudec, tendo no pescoço o jugo com o qual os bois caminham sobre os sulcos dó teu
campo, que não te pertence. Quero a minha fatia do bolo do mundo. Vou cortar da fome do
mundo, a minha fatia do bolo. Vocês, vocês não têm faca.

SASPORTAS
Você rasgou uma bandeira que era minha. Vou cortar uma nova para mim, na minha pele de
negro. (Corta com a faca uma cruz na palma da própria mão.) Esta é a despedida, cidadão
Debuisson. (Espalma sua mão que sangra sobre o rosto de Debuisson.) Gosta do meu sangue.
Eu disse que os escravos não têm pátria. Isso não é verdade. A pátria dos escravos é a revolta.
Eu vou ao combate armado com as humilhações da minha vida. Você me deu uma arma nova,
te agradeço por ela. Pode ser que o meu lugar seja na forca e talvez a corda já esteja à volta
do meu pescoço enquanto falo com você em vez de matar você, a você a quem não devo mais
nada a não ser a minha faca. Mas a morte não tem importância, e na forca eu vou saber que
meus cúmplices são os negros de todas as raças, cujo número cresce a cada minuto que você
passa na gamela dos senhores de escravos, ou entre as coxas da tua puta branca. Cada
pulsação da revolução fará renascer carne em seus ossos, sangue em suas veias, vida em sua
morte. A revolta dos mortos será a guerra da paisagem, nossas armas as florestas, as
montanhas, os mares, os desertos do mundo. Eu serei floresta, montanha, mar, deserto. Eu,
isto é, a África. Eu, isto é, a Ásia. As duas Américas sou eu.

GALLOUDEC
Vou contigo, Sasportas. Todos nós temos que morrer, Debuisson. E isso é tudo o que ainda
temos em comum. Depois do massacre de Guadalupe, em meio a um monte de cadáveres,
todos negros, encontraram um branco que estava tão morto quanto eles. Isto, pelo menos, não
pode mais acontecer com você, Debuisson. Você está fora.
DEBUISSON
Fiquem. Tenho medo da beleza do mundo, Galloudec. Sei bem que ela é a máscara da traição.
Não me deixem sozinho com a minha máscara, que já penetra na minha carne e não dói mais.
Me matem antes que eu traia vocês. Tenho medo, Sasportas, da vergonha de ser feliz nesse
mundo.

Disse cochichou gritou Debuisson. Mas Galloudec e Sasportas foram embora um com o
outro, deixando Debuisson só com a traição que se aproximara dele como a serpente saída da
pedra. Debuisson fechou os olhos resistindo à tentação de olhar de frente para seu primeiro
amor, que era a traição. A traição dançava. Debuisson pressionou os olhos com as mãos.
Ouvia seu coração bater ao ritmo dos passos da dança.

As batidas do coração se tornavam mais rápidas. Debuisson sentiu as pálpebras estremecerem


contra as palmas das mãos. Talvez a dança já tivesse terminado e era apenas seu coração que
batia, enquanto que a traição, os braços talvez cruzados sobre o peito, ou as mãos nos quadris
ou já encravadas no colo, o sexo talvez já estremecendo de desejo, olhava-o através de olhos
marejados, a ele, Debuisson, que agora pressionava os olhos com os punhos fechados,
apertando as órbitas, resistindo à sede de sua vergonha de felicidade. Talvez a traição já o
tivesse abandonado. Suas mãos ávidas recusavam obedecer. Abriu os olhos. A traição
mostrava seus seios, em silêncio abria as coxas. Sua beleza atingiu Debuisson como um
machado. Ele esqueceu a tomada da Bastilha, a marcha da fome dos oitenta mil, o fim da
Gironda, sua ceia, um morto à mesa, Saint Just, o anjo negro, Danton, a voz da revolução,
Marat curvado sobre o punhal, o queixo quebrado de Robespierre, seai grito, quando o
carrasco lhe arrancou a venda, seu último olhar de compaixão sobre o júbilo da multidão.
Debuisson agarrou-se à última recordação que ainda não o havia abandonado: uma
tempestade de areia diante de Las Palmas, grilos chegando junto com a areia ao navio o
acompanharam na travessia do Atlântico. Debuisson protegia-se contra a tempestade de areia,
esfregou os olhos para tirar a areia, fechou os ouvidos para não escutar o canto dos grilos. Aí
a traição se jogou sobre ele como um céu, a felicidade dos lábios de uma vagina vermelha.

Portuguese: A Missão. Translated by: Peixoto, Fernando. Published in: Quatro textos para
teatro. Editoria Hucitec. Sao Paulo. 1987, p. 35-56.

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