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trabalhadoras1
RESUMO
ABSTRACT
A partir deste estudo teórico, que se fundamenta numa concepção de sujeito como
uma rede de crenças e desejos, que constrói significações pessoais a partir de auto-
narrativas, foi abordada a solidão em dois campos férteis para sua manifestação: o
primeiro está relacionado ao desenvolvimento do individualismo e o segundo à
esfera do trabalho e as mudanças vindas a partir do modelo de organização
‘ flexível’ .
O objeto de estudo deste artigo, a solidão, não está sendo entendido como uma
vivência inerente ou existencial humana, mas um estado que se percebe ou
descrimina a partir de fatores históricos e sociais, uma realidade lingüística que
serve como modelo de identidade para os sujeitos, para a construção de
significação pessoal, que os faz se descreverem e sofrerem como ‘ solitários’ . A
problemática da solidão será aqui tomada como uma construção historicamente
datada, que a determina como um dos grandes problemas subjetivos
contemporâneos e como fonte constante de mal-estar entre indivíduos que buscam
assistência em clínicas de saúde mental.
Seria possível, então, pensar que as vivências atuais da solidão que possuem uma
carga negativa de sofrimento, envolveriam a noção de que as relações com os
“ outros eus” , de que o compartilhamento de experiências é algo positivo,
esperado e valorizado. No entanto, muitas das tentativas de explicação da
emergência da solidão como mal-estar contemporâneo, tomam-na como um
sintoma cultural que se associa ao desmoronamento do espaço público e a uma
crescente valorização da preocupação com a ‘ interioridade’ e a personalidade –
decorrentes da evolução da sociedade individualista. Os sujeitos que sofrem e se
queixam da solidão estariam, então, impreterivelmente inseridos nesta cultura
individualista, cultuando suas privacidades, personalidades, desinvestindo a vida
pública, as éticas coletivas e, ao mesmo tempo, vivendo os infortúnios da “ falta”
deste espaço coletivo, já que este permite o reconhecimento de si. A desarticulação
das vivências neste espaço público, espaço de iguais, parece criar, também,
dificuldades na tessitura das auto-narrativas, uma vez que elas têm origem
relacional e discursiva.
Um percurso que pode vir a esclarecer este aparente paradoxo quanto às
configurações da solidão como sintoma cultural é o acompanhamento das
transformações do individualismo na cultura ocidental e suas relações com os
significados associados à solidão.
A mudança de uma organização holista para uma individualista vai apontar para
uma mudança significativa também nas matrizes de identificação. Se antes a
vinculação e os laços sociais formavam as subjetividades, como os sujeitos teriam
que fazer agora para se significarem, construir suas identidades? Este papel passa
a ser desempenhado pela experiência da intimidade. As pessoas começam a
acreditar que cada um é autêntico único. Uma idéia decorrente é a de que o espaço
em que o indivíduo é mais autêntico é na sua intimidade, no seu espaço de
privacidade, não invadido pelos comportamentos e ações da vida social. A
intimidade, autenticidade e o segredo vão ser, neste momento, a base da
constituição dos novos indivíduos.
Desta oposição entre o íntimo e o mundo, entre privado e público destaca-se que
era ainda uma oposição necessária para definir os dois termos. Uma oposição onde
cada esfera tinha seu lugar. Precisava-se até da privacidade e da intimidade para
contrapor o espaço público, a vida social e o trabalho.
O foco de análise de Foucault (op.cit.) é o poder não como exercício do Estado, mas
como uma prática que a ele se articula e que participa, inclusive, de sua
sustentação. Seria o poder ao nível dos mecanismos mais regionais e concretos,
formando uma rede de poderes, que se expressam através de técnicas de
dominação, as quais visam, sobretudo, um controle detalhado do corpo, dos
gestos, atitudes, hábitos, discursos etc.
Esse tipo específico de poder, que envolve relações e práticas dentro de uma
técnica, um dispositivo, incidindo sobre os indivíduos e seus corpos, foi o que se
chamou de disciplina ou poder disciplinar.
Também poderia se dizer, que a lógica disciplinar tende a tornar sem objetivo ou
sem prazer qualquer produção no âmbito do trabalho, até porque se excluiu do
trabalhador a legibilidade de seu trabalho. Esvaziam-se, assim, aos poucos, as
possibilidades de atribuir sentidos à experiência do trabalho. Esse ‘ esvaziamento’
teria um peso maior para as classes desfavorecidas, cuja única participação pública
é como massa, onde se é assujeitado, despersonalizado.
Neste sentido, o que resta aos indivíduos é fechar-se sobre si mesmos, num ‘ eu
mínimo’ , onde a individualidade se restringe ao mínimo que proporcione
sobrevivência psíquica ao eu. Como afirma Lasch (1990: 09):
A ‘ fortaleza’ que era o espaço público, o mundo comum, não se pode mais
perceber, fazendo com que se visualize mais claramente o quanto se necessita
dele. Essa falência da vida em comum deteriorou também a vida privada, fez com
que a imaginação, a capacidade de bem julgar e pensar sucumbisse às tiranias da
intimidade, às compulsões e ansiedades internas.
Essas ‘ soluções para dentro’ , são muito mais impactantes ao nível dos setores
excluídos da sociedade: o consumo só se faz presente pelo negativo: ‘ não ter…
’ , a insegurança da família com o alcoolismo, a intimidade do lar é ‘ invadida’
pela promiscuidade ambiental. E, o trabalho, que daria um sentimento de
pertencimento, já não é tão seguro.
No entanto, neste momento, uma questão se coloca: será que se pode tomar essas
formas de lidar com a solidão como uma experiência válida para os ‘ sujeitos
contemporâneos’ de uma forma geral? Será possível considerar esta, uma
experiência constituinte e caracterizadora também no contexto das classes
trabalhadoras?
A luz das discussões apresentadas por Costa (1989) no seu livro Psicanálise e
Contexto Cultural foi sendo feita essa leitura da solidão. Costa, buscando abordar a
questão da psicoterapia para a população de baixa renda, discutiu também uma
particularidade sócio-cultural na forma de adoecer mentalmente, a doença dos
nervos, e assim, também, trata das peculiaridades quanto a representação das
identidades psicológicas.
O trabalho se constitui como tão importante neste setor que, muitas vezes, a
inserção na família aparece como uma ‘ via’ em que o trabalho é a tônica. Pois,
na família os sujeitos se constituem através do que o trabalho pode oferecer (em
melhoria de vida, em possibilidade de oferecer estudos aos filhos etc.), se
constituem como provedores; ou, quando não conseguem essa melhoria de vida,
ou mesmo no desemprego, é aqui, também, que vai ser vivido o fracasso. Fracasso
pessoal por não ser um provedor, não ser bom pai etc. Enfim, é o trabalho que está
suportando, como eixo, a construção dessas identidades.
Um terceiro aspecto dessa conjuntura do trabalho, sem dúvida o que provoca mais
indignação, é a manifestação de um “ déficit de lugares” na estrutura social, ou
seja, não existem tantas posições com reconhecimento público e utilidade social,
quantos sujeitos que poderiam ocupá-las . São os jovens em busca do primeiro
emprego, os trabalhadores “ velhos” , os desempregados de muito tempo, enfim,
uma grande quantidade de indivíduos que terminam por ser considerados
irrelevantes, ou mesmo, não serem considerados. Castel (1998) aponta ainda que
essa irrelevância social desqualifica esses sujeitos também nos campos cívico e
político. São diferentes dos escravos ou classes subordinadas da sociedade
industrial, que eram explorados, mas indispensáveis. Como afirma Castel
(1998:530):
Estes indivíduos perdem não só a importância como produtores, mas também como
consumidores, passando a ser um fardo para a sociedade do trabalho, um “ lixo
industrial” . É o que Nascimento (1994) chama de nova exclusão, que seria mais
do que o não-reconhecimento de direitos, uma própria “ recusa ao espaço de
obtenção do direito” , seria o não-reconhecimento enquanto iguais, sendo
totalmente desnecessários do ponto de vista econômico, passam a ser considerados
“ ameaçadores” , “ marginais” .
O que Nascimento (op.cit.) chama de nova exclusão é o que Fridman (1999), num
comentário ao livro de Zygmunt Bauman, chama de ‘ refugo humano’ .
Concordam ao caracteriza-lo a partir da impossibilidade de contribuir enquanto
consumidores, sendo “ consumidores falhos” , portanto, não podem exercer a
liberdade, cuja nova perspectiva é a da liberdade de escolha ligada ao mercado
consumidor, são pessoas que não consomem e não realizam desejos.
“ Gente dispensável, pobres e famintos que contribuem com nada, apenas tiram o
dinheiro do contribuinte para financiar políticas sociais que não diminuem o
incômodo de vê-los ‘ poluindo’ a visão da classe média e dos ricos. Esses
‘ consumidores falhos’ não serão reabilitados para o mundo do trabalho porque a
sociedade não precisa deles” (Fridman, 1999: 217).
A análise de Fridman aponta para esse refugo humano como um dos limites mais
dramáticos da globalização. Considerando que esse processo de globalização não
ocorre uniforme e homogeneamente, mas, ao contrário, aumenta a separação entre
quem participa e quem é somente atingido pela globalização. Parecem se instalar
dois pólos opostos: de um lado, o capital volátil e sem fronteiras, a intensa
revolução tecnológica em curso, a comunicação instantânea on-line e, de outro
lado, no pólo oposto, está uma grande parcela da população mundial que não
participa desse arranjo, e que, segundo o autor, vai progressivamente, estar sob a
guarda dos sistemas penais, sem nenhuma intenção de correção ou integração,
estando apenas para definhar, desaparecer ou imobilizar-se.
Não são poucas as conseqüências desses processos sobre os sujeitos, como aponta
Sennett (1999) no seu livroA Corrosão do Caráter. Uma das mudanças
fundamentais trazida por esses processos foi a perda da possibilidade de se criar
uma narrativa de vida linear, onde o tempo é linear, as conquistas são
acumulativas e a própria vida faça sentido. Hoje, com a idéia de se atacar a
burocracia a partir das experiências de risco, enfatizando-se a flexibilidade e a
capacidade de mudanças rápidas, perde-se o solo onde se constroem metas a longo
prazo e instala-se a vivência de deriva. Parece, então, que a flexibilidade, com
todos os seus riscos e incertezas não poderá remediar o ‘ mal’ que está
atacando: a rotina.
Um dos aspectos que Sennett (op.cit.) observa como principais é uma mudança na
forma de organizar o tempo, principalmente o tempo de trabalho. Não há mais
longo prazo, os profissionais não têm papel fixo a desempenhar, não podem dizer
“ é isso que eu faço” , e então, perde-se o sentido de uma carreira a se seguir, de
um ofício que se exerce. No entanto a prerrogativa de ‘ não há mais longo prazo’
termina também por fazer ruir a confiança, a lealdade e o compromisso mútuo, que
são expressões que levam um certo tempo para se construírem, para que se crie
um laço.
Essa relação com o tempo de maneira imediatista é o que mais estaria afetando a
vida afetiva dos indivíduos fora do trabalho, uma vez que a ausência de
investimentos a longo prazo na esfera familiar, por exemplo, simbolizaria
‘ mudar’ , ‘ não se comprometer’ e ‘ não se sacrificar’ .
Sennett (op.cit.) centra os seus questionamentos num problema tido como efeito
de toda essa organização do capitalismo atual, e podemos também toma-lo como
central na problemática da solidão: o quanto as experiências de deriva,
fragmentação, superficialidade etc. dificultariam aos sujeitos a organização de suas
histórias de vida, a construção de suas auto-narrativas.
Então, poderia se evocar uma dificuldade na organização das teias narrativas que
estruturam os sujeitos e uma dificuldade de construir as auto-narrativas.
Observando a determinação social destas narrativas e seu caráter relacional,
discursivo, poderíamos, por operação inversa, falar de uma vivência do sentimento
de solidão ligado a essa desestruturação na construção das auto-narrativas para os
sujeitos intensificada também pela esfera do trabalho.
“ A presença de outros que vêem o que vemos e ouvem o que ouvimos garante-
nos a realidade do mundo e de nós mesmos; e, embora a intimidade de uma vida
privada plenamente desenvolvida, tal como jamais se conheceu antes do
surgimento da era moderna e do concomitante declínio da esfera pública, sempre
intensifica e enriquece gradativamente toda escala de emoções subjetivas e
sentimentos privados, esta intensificação sempre ocorre às custas da garantia da
realidade do mundo e dos homens” (Arendt, 1993: 60).
Assim, a pluralidade é a condição da ação humana. Esta ação, por sua vez,
corresponde a uma das atividades humanas fundamentais, junto com o labor e o
trabalho, mas só a ação não pode ser pensada fora da sociedade dos homens. A
ação se relaciona com a pluralidade e então, com a política, sendo a única atividade
que se exerce sem a mediação das coisas ou matéria, que se exerce
exclusivamente entre os homens e não ‘ pelo Homem’ .
A ação, em sua relação com a política, traz a questão do discurso como central,
pois, segundo Arendt (op.cit.), o discurso é que torna o homem um ser político. É a
possibilidade de serem discutidas que atribui sentido às experiências dos homens, a
tudo o que fazem e o que sabem. Os homens que vivem no mundo comum, que se
movem e agem nesse mundo só conseguem experimentar o significado das coisas
porque podem falar e ser inteligíveis entre si e para si mesmos.
Essa situação se torna ainda mais difícil para os desfavorecidos, cuja única
participação pública é como massa, onde se é assujeitado, despersonalizado, não
se tem ‘ voz’ . Talvez seja importante buscar se proteger de ser massa, proteger
seu segredo, redescrever a solidão.
Discussão
O ponto que merece ser aprofundado no desenrolar dessa discussão sobre a solidão
como um dos efeitos destas fortes transformações no âmbito do trabalho
‘ flexível’ e da reestruturação produtiva, é o questionamento sobre “ o que fazer,
então?” . Que caminhos podem ser oferecidos como saídas, ou alternativas para
uma organização tão danosa e causadora de sofrimento?
Sennett (op.cit.) afirma que a ligação social nasce do senso de mútua dependência.
E que essa dependência deve ser pensada com sua face positiva, que é relativa
também ao fato de que os outros podem contar conosco e, portanto, temos
responsabilidades para com os outros e para com nossas ações para eles. A falta de
responsividade parece ser uma contrapartida ao sentimento de que não se é
necessário, e isso vale tanto para as comunidades de trabalho, quanto para os
mercados de mão-de-obra.