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Solidão e contemporaneidade no contexto das classes

trabalhadoras1

Julia Coutinho Costa Lima*

Universidade Federal de Pernambuco

RESUMO

A solidão é o tema que conduz este artigo, considerada sintoma cultural de um


cenário de desvalorização do espaço público e de crescimento da preocupação com
a interioridade e a personalidade. Foram analisadas as peculiaridades da solidão
nas classes trabalhadoras e os fatores envolvidos em sua constituição. Considerou-
se a solidão mais especificamente no universo das classes menos favorecidas,
levando em conta as fortes transformações ocorridas no mundo do trabalho. Neste
sentido, tanto para a esfera do trabalho de uma forma geral, quanto para os
desfavorecidos de uma maneira mais dramática, o desemprego, subemprego e a
dificuldade de solidificar a identidade pelo trabalho parecem estar intensificando o
sentimento de solidão.

Palavras-chave: Solidão, Classes trabalhadoras, Transformações no mundo do


trabalho.

ABSTRACT

Solitude, considered as a symptom of a scenery in which the public space loses


valor and grows the concerns about the interiority and personality, is the subject
that directs this article. There were analyzed the singularities of solitude especially
in the worker classes and the factors involved in its constitution. The debate
considers specifically solitude in the universe of the lower wealth Brazilians,
knowing that in the last years occurred lots of changes in the work culture. To the
workers in general and more dramatically to the lower wealth: unemployment,
informal jobs and the difficulty to solidify the identity by the work seem to intensify
the feelings of solitude.

Keywords: Solitude, Worker classes, Changes in the work culture.

O objetivo deste artigo foi o de analisar as peculiaridades das vivências de solidão


nas classes trabalhadoras e os fatores envolvidos na sua constituição. Entendendo
a solidão como sintoma cultural contemporâneo, que reflete um cenário de
fragmentação e desvalorização do espaço público por um lado, e, por outro, de
crescimento da preocupação com a interioridade e a personalidade.

foi dado um recorte na temática, enfocando, mais especificamente o universo das


classes menos favorecidas, que, na continuidade de um processo histórico,
possuem como instâncias privilegiadas de agenciamento das identidades
psicológicas, o trabalho e a questão de ser bom trabalhador.

A partir deste estudo teórico, que se fundamenta numa concepção de sujeito como
uma rede de crenças e desejos, que constrói significações pessoais a partir de auto-
narrativas, foi abordada a solidão em dois campos férteis para sua manifestação: o
primeiro está relacionado ao desenvolvimento do individualismo e o segundo à
esfera do trabalho e as mudanças vindas a partir do modelo de organização
‘ flexível’ .

O objeto de estudo deste artigo, a solidão, não está sendo entendido como uma
vivência inerente ou existencial humana, mas um estado que se percebe ou
descrimina a partir de fatores históricos e sociais, uma realidade lingüística que
serve como modelo de identidade para os sujeitos, para a construção de
significação pessoal, que os faz se descreverem e sofrerem como ‘ solitários’ . A
problemática da solidão será aqui tomada como uma construção historicamente
datada, que a determina como um dos grandes problemas subjetivos
contemporâneos e como fonte constante de mal-estar entre indivíduos que buscam
assistência em clínicas de saúde mental.

Solidão Enquanto Sintoma Cultural

O solo para a aparição do sentimento de solidão – no seu sentido estrito – somente


existiu quando se pôde falar de um “ eu que está entre outros eus” , quando se
pôde opor o eu à esfera coletiva. O conceito de solidão – e portanto o próprio
sentimento – tem uma raiz paralela ao conceito de eu, ao conceito moderno de
indivíduo como um ser autônomo e diferente dos demais. A raiz destes conceitos se
situa no momento em que a ‘ identidade-eu’ das pessoas passou a ser mais
valorizada do que a ‘ identidade-nós’ , com uma inversão na ‘ balança nós-eu’
que constitui as identidades (Elias, N., 1994). A solidão estaria, assim, relacionada
ao surgimento das sociedades individualistas, nas quais o indivíduo se torna o valor
supremo.

Seria possível, então, pensar que as vivências atuais da solidão que possuem uma
carga negativa de sofrimento, envolveriam a noção de que as relações com os
“ outros eus” , de que o compartilhamento de experiências é algo positivo,
esperado e valorizado. No entanto, muitas das tentativas de explicação da
emergência da solidão como mal-estar contemporâneo, tomam-na como um
sintoma cultural que se associa ao desmoronamento do espaço público e a uma
crescente valorização da preocupação com a ‘ interioridade’ e a personalidade –
decorrentes da evolução da sociedade individualista. Os sujeitos que sofrem e se
queixam da solidão estariam, então, impreterivelmente inseridos nesta cultura
individualista, cultuando suas privacidades, personalidades, desinvestindo a vida
pública, as éticas coletivas e, ao mesmo tempo, vivendo os infortúnios da “ falta”
deste espaço coletivo, já que este permite o reconhecimento de si. A desarticulação
das vivências neste espaço público, espaço de iguais, parece criar, também,
dificuldades na tessitura das auto-narrativas, uma vez que elas têm origem
relacional e discursiva.
Um percurso que pode vir a esclarecer este aparente paradoxo quanto às
configurações da solidão como sintoma cultural é o acompanhamento das
transformações do individualismo na cultura ocidental e suas relações com os
significados associados à solidão.

A passagem de um tipo de sociedade que privilegia a ‘ identidade-nós’ , mesmo


com a experiência do indivíduo fora do mundo, para uma outra que privilegia a
‘ identidade-eu’ , ou seja, a experiência do indivíduo no mundo, foi uma marca do
Renascimento associado ao protestantismo. A doutrina protestante inverteu a
lógica do ascetismo cristão, da culpabilidade, para a lógica da ética salvacionista
pelo trabalho, o esforço pessoal e o livre arbítrio. Faz-se importante considerar o
protestantismo, pois, pode-se dizer que a partir daí o valor do trabalho para a
formação de identidades foi fortemente intensificado. Somente o trabalho trazia
salvação e valorizava os homens à vista de Deus, portanto, esse trabalho foi sendo
relacionado também com disciplina e adiamento das satisfações. Ou seja, a
importância do protestantismo se dá porque pela primeira vez o trabalho vai ser
associado a uma ética; é o que Sennett (1999) aborda, comentando a obra A Ética
Protestante e o Espírito do Capitalismo, de Max Weber:

“ O protestante do século dezessete buscava apresentar prova de seu valor à vista


de Deus disciplinando-se, mas, ao contrário do penitente católico num mosteiro,
mostrava que era digno com o seu trabalho, negando-se o presente, acumulando
pequenos sinais de virtude pelo sacrifício diário. Essa autonegação tornou-se então
o ‘ ascetismo leigo’ da prática capitalista do século dezoito, com sua ênfase mais
em poupar que em gastar, sua ‘ rotinização’ da atividade do dia-a-dia, seu medo
do prazer” (1999: 123).

A partir de então, e cada vez mais, as pessoas puderam ascender de suas


comunidades tradicionais para outras posições sociais partindo de um progresso e
esforço individual e não mais relacionado com o grupo de parentesco ou
comunidade de que se faz parte. Anteriormente as pessoas se constituíam pelo seu
pertencimento a determinados grupos (a partir do nascimento ou desde certo
momento da vida). O pertencimento tinha uma força tal que a ‘ identidade-eu’
era permanentemente associada à ‘ identidade-nós’ . Esta última foi passando
desde a Idade Média na Europa e mais fortemente no Renascimento com o
protestantismo, a ser desvalorizada e obscurecida.

A mudança de uma organização holista para uma individualista vai apontar para
uma mudança significativa também nas matrizes de identificação. Se antes a
vinculação e os laços sociais formavam as subjetividades, como os sujeitos teriam
que fazer agora para se significarem, construir suas identidades? Este papel passa
a ser desempenhado pela experiência da intimidade. As pessoas começam a
acreditar que cada um é autêntico único. Uma idéia decorrente é a de que o espaço
em que o indivíduo é mais autêntico é na sua intimidade, no seu espaço de
privacidade, não invadido pelos comportamentos e ações da vida social. A
intimidade, autenticidade e o segredo vão ser, neste momento, a base da
constituição dos novos indivíduos.

Assim, surge o ideal de se aprender a viver só no meio da multidão e o exercício da


privacidade é entendido como a verdadeira liberdade. O que se percebe é uma forte
ênfase na oposição entre o íntimo e o mundo. Soares Neto (1999) aponta este novo
sentido de intimidade como um dos vetores da vivência angustiada da solidão
contemporânea.

Desta oposição entre o íntimo e o mundo, entre privado e público destaca-se que
era ainda uma oposição necessária para definir os dois termos. Uma oposição onde
cada esfera tinha seu lugar. Precisava-se até da privacidade e da intimidade para
contrapor o espaço público, a vida social e o trabalho.

Com a Revolução Francesa, quando se instauraram os ideais de liberdade,


igualdade e fraternidade, algumas mudanças se processaram para regular as
subjetividades que de repente estavam postas sob estes ideais. É neste espaço que
pôde-se desenvolver o ideal de vida familiar, tão bem cristalizado por Rousseau que
passa a ser eixo do individualismo sentimental.

Como a constituição da família – agora fundada na liberdade de escolha


sentimental dos parceiros, na reprodução e educação dos filhos sob a base do amor
e na união sexo/amor - se torna um ideal a ser perseguido, os solteiros vão sendo
excluídos do “ mundo dos felizes” , vão sendo tidos como desviantes. A solidão
como negação da família vai tendo, cada vez mais, a conotação e a carga de algo
desaprovável. A família como eixo da vida privada e condição para o contrato
social, investe num espaço de sociabilidade restrita. A garantia da manutenção da
preocupação e do investimento nos ‘ outros’ / coletividade é, agora, dada pela
família.

A exaltação da vida privada e da família refletia também e por oposição, a


percepção burguesa da sociedade como algo impessoal e alheio. A família viria a
ser o último refúgio para compensar as ‘ amarguras’ da vida pública. Com a
revolução industrial e a, cada vez maior, alienação do homem frente ao seu
trabalho, perde-se a crença no seu papel de produtor ativo na sociedade, e ao
mesmo tempo, assujeita-se a uma ordem social vista como externa e impessoal.
Parece, então, que se ampliam as fendas entre a “ casa” e a “ rua” , que vão ser
as bases para a construção de significações pessoais, radicalizando a distinção
entre a constituição de identidade pelo trabalho e identidade pela família.
Oferecendo o solo para a aparição, posteriormente, da diferença entre a construção
da identidade centrada na questão de ser trabalhador, ser bom trabalhador e a
construção fundada no modelo de heterosexualidade, de ter uma família e das
questões afetivas.

Neste caminho, o movimento de evolução do individualismo chega a configuração


de uma sociedade intimista. O espaço público vai perdendo o seu valor e fazendo
menos parte da vida dos indivíduos é o que Sennett (1989) abordou como erosão
da vida pública.

Nesta cultura, despojada da crença no público e governada pelo sentimento


intimista, as relações sociais vão mobilizar o narcisismo como um modo de
organização do indivíduo neste contexto. O narcisismo seria fruto do resultado
combinado do secularismo e do capitalismo na psiquê. Essa cultura narcísica traz a
tona a impossibilidade de sentir e a experiência do vazio não como sintomas
psicopatológicos, mas como vivências amplamente difundidas. Como um ápice do
individualismo, o narcisista não consegue sentir porque não tem referentes, não
tem contato com um outro diferente, somente procura sentido em sua interioridade
e acaba por encontrar a ‘ experiência do vazio’ . Toda expressão torna-se
dependente do sentimento autêntico, mas sempre haverá o problema de não
conseguir cristalizar o que há de autêntico nos sentimentos.

A insatisfação constante perturba esse indivíduo, é como se ele dissesse: “ nada é


o bastante para que eu possa sentir” . O eu narcísico é alheio e indiferente aos
outros, não há possibilidade de solidariedade social. O que se percebe nessa cultura
do narcisismo é uma aversão à impessoalidade, com uma ênfase na autenticidade
dos sentimentos. Nesse cenário já se pode perceber como narcisismo e solidão
então entrelaçados. Com essa perda dos referentes do ‘ outro’ , do ‘ diferente’ ,
“ cava-se” um poço sem fundo de que a solidão angustiada vai fazer parte.

Paralelo a todo este desenvolvimento da sociedade intimista, que desemboca na


cultura do narcisismo, uma outra forma de organização teve papel substancial na
formação das subjetividades e dos modos de constituição dos indivíduos
contemporâneos – o que remete às vivências da solidão. Trata-se da ‘ sociedade
disciplinar’ que veio a discussão a partir de Michel Foucault (1990) e seu enfoque
da questão do poder como prática social nas sociedades modernas.

O foco de análise de Foucault (op.cit.) é o poder não como exercício do Estado, mas
como uma prática que a ele se articula e que participa, inclusive, de sua
sustentação. Seria o poder ao nível dos mecanismos mais regionais e concretos,
formando uma rede de poderes, que se expressam através de técnicas de
dominação, as quais visam, sobretudo, um controle detalhado do corpo, dos
gestos, atitudes, hábitos, discursos etc.

Outra especificidade da análise genealógica de Foucault está no fato de distinguir o


poder como não unicamente repressivo, não associado a castigo, punição. Assim,
se refere a um lado do poder, que seria sua face transformadora e criadora de
realidade, de verdades. É justamente por essa face que as técnicas disciplinares
têm como foco privilegiado o corpo humano, com o intuito de adestrá-lo ou
aprimorá-lo. O que se torna de interesse central é a possibilidade de controlar a
vida dos homens, no sentido de maximizar sua utilidade econômica e minimizar a
sua força política. Esta visão meramente instrumental do corpo no limite é
opressora. Assim, a separação entre o pensar o trabalho e executa-lo é uma forma
de alienação para a maioria dos trabalhadores. Portanto, a análise aponta que a
dominação capitalista não conseguiria se manter somente pelas técnicas
repressivas, ela precisava criar espaço, tempo, sujeito, saberes e verdades
adequados para si.

Esse tipo específico de poder, que envolve relações e práticas dentro de uma
técnica, um dispositivo, incidindo sobre os indivíduos e seus corpos, foi o que se
chamou de disciplina ou poder disciplinar.

Nos modelos tradicionais de organização produtiva do capitalismo essa lógica do


regime disciplinar tem uma ampla penetração. Seja na criação e estabelecimento
de atitudes e destrezas necessárias para cada indivíduo trabalhador, o ‘ saber
fazer’ e o ‘ saber-ser’ (comportamento correto) da mão de obra, em suas
qualificações e mesmo no arranjo de quando e onde ser criativo; seja no
estabelecimento de estratégias de controle do trabalho e da produção, muitas
vezes de modo coercitivo.

Também poderia se dizer, que a lógica disciplinar tende a tornar sem objetivo ou
sem prazer qualquer produção no âmbito do trabalho, até porque se excluiu do
trabalhador a legibilidade de seu trabalho. Esvaziam-se, assim, aos poucos, as
possibilidades de atribuir sentidos à experiência do trabalho. Esse ‘ esvaziamento’
teria um peso maior para as classes desfavorecidas, cuja única participação pública
é como massa, onde se é assujeitado, despersonalizado.

A relação entre modo de organização disciplinar e modo de organização


narcísico/intimista não se configura como estática ou em separado, muito pelo
contrário, os dois regimes juntos estão constantemente influenciando um
determinado movimento ou prática social. Participam, ambos, do processo de
ascensão e declínio da família como eixo privilegiado de estruturação social.
O seu processo de ascensão, configurado no auge da sociedade intimista foi
marcado pelo isolamento e ênfase na família nuclear. Retomando agora a idéia de
que essa família nuclear seria o centro da vida privada e representaria o refúgio
afetivo de uma vida pública desgastante e fria. reafirma-se que esta
supervalorização da família reflete o auto status da privacidade em detrimento à
vida do trabalho. No entanto, tomando o ponto de vista de Cristopher Lasch (1983;
1991) é possível perceber que quando se institui o poder à família, de ser refúgio
das amarguras do mundo público, já se estabelece a impossibilidade dessa
condição pois:

“ quando as relações pessoais são conduzidas sem outro objetivo além da


sobrevivência psíquica, o ‘ privatismo’ deixa de proporcionar o refúgio de um
mundo sem coração. Pelo contrário, a vida privada assume as próprias qualidades
da ordem social anárquica, para qual supõe-se que ela proporcione refúgio”
(Lasch, 1983: 50).

Num movimento próprio à organização capitalista, a família com sua função


primordial de provedora do conhecimento sobre a educação e socialização dos
filhos, foi sendo destituída deste lugar. Neste momento a ordem disciplinar foi a
condutora desta perda, uma vez que propiciou a substituição da autonomia
familiar, pelo conhecimento e saber dos técnicos e especialistas. “ Invadia-se”
agora o próprio núcleo da privacidade, com o intuito de moralizar, controlar,
higienizar etc. A família deve-ria, assim, recorrer sempre a estes especialistas,
sendo considerada, cada vez mais, incapacitada para desempenhar seu papel.

Junto a essa destituição de funções, gradativamente foi à falência a idéia de uma


compatibilidade entre amor-paixão e preocupações matrimoniais e, foi também
desacreditado o valor atribuído à experiência sensível, inclusive enquanto
possibilitava a manutenção da crença na família como ideal. A partir desse declínio
da família, a solidão passou a expressar tanto a insuficiência, o desvio da norma
tida como natural do humano, quanto o fracasso desse projeto. Soares Neto
(1999) aponta como constituintes para o sentido de solidão como insuficiência do
eu, esta falência dos ideais de conjugalidade românticos e o processo paralelo de
exacerbação do individualismo, da perda da crença no espaço público como
propiciador de segurança, da ausência de ideais comuns.

Neste sentido, o que resta aos indivíduos é fechar-se sobre si mesmos, num ‘ eu
mínimo’ , onde a individualidade se restringe ao mínimo que proporcione
sobrevivência psíquica ao eu. Como afirma Lasch (1990: 09):

“ Em uma época carregada de problemas, a vida cotidiana passa a ser um exercício


de sobrevivência. Vive-se um dia de cada vez. Raramente se olha para trás, por
medo de sucumbir a uma debilitante nostalgia; (… ) Sob assédio, o eu se contrai
num núcleo defensivo, em guarda diante da adversidade. O equilíbrio emocional
exige um eu mínimo, não o eu soberano do passado” .

Tudo isto é posto em cheque, ou se redescreve quando buscamos recortar essa


situação sob o viés das classes trabalhadoras. Pois, aqui, soma-se uma série de
transformações vividas no trabalho: antes, o proprietário/patrão era reconhecido,
tinha um rosto, um nome: ‘ Trabalho para Dr. Fulano’ ; antes os sindicatos, as
mobilizações coletivas que concretizavam demandas tinham vez e voz; havia um
estado que regulava e negociava; havia contratos duradouros etc. Todo esse
movimento leva ao desaparecimento da solidariedade de classe e, cria uma outra
via para o individualismo.
Sobre a individualidade mínima, Lasch (1990) ainda acrescenta que esta não é
somente o resultado de uma postura defensiva, mas também surge de uma
transformação social mais ampla e profunda, a mudança de um mundo em que os
objetos eram duráveis, mundo confiável, para uma era de imagens mutáveis que
dificultam a distinção entre realidade e fantasia.

A ‘ fortaleza’ que era o espaço público, o mundo comum, não se pode mais
perceber, fazendo com que se visualize mais claramente o quanto se necessita
dele. Essa falência da vida em comum deteriorou também a vida privada, fez com
que a imaginação, a capacidade de bem julgar e pensar sucumbisse às tiranias da
intimidade, às compulsões e ansiedades internas.

Nesta época de inseguranças e futuro desacreditado, resta aos indivíduos


preocupar-se com a própria sobrevivência. Segundo Figueiredo (1995), esse quadro
faz com que os sujeitos passem a exercer uma ética do sobrevivente, fruto da
‘ desterritorialização’ que o atinge, vivendo a partir de códigos morais e
prescrições de condutas que privilegiam a restrição do eu a um mínimo ‘ espaço’
de movimentação.

Com esta ética do sobrevivente, os sujeitos contemporâneos parecem estar


vivendo, cada vez mais, em redomas individuais, isolados, ‘ gradeados’ , enfim,
solitários. Estariam, desse modo, satisfeitos na segurança de seus espaços
interiores? Quando se traz à tona a questão solidão como uma vivência negativa e
angustiante para esses mesmos sujeitos poderia se perceber o quanto – ao menos
ilusoriamente – procura-se uma saída para essa situação.

As soluções buscadas, ou os caminhos encontrados para lidar com o que se percebe


como problemas existentes nesta montagem – e aí, a solidão – parecem ter se
configurado sempre ‘ soluções para dentro’ , ou seja, saídas que privilegiaram o
investimento no eu, em espaços privados, sociabilidades restritas etc. (como foi a
busca de segurança na família, na intimidade, no ‘ mergulho psicológico’ , na
posse de bens de consumo… ). A construção desses caminhos parece ter sido
marcada pela ‘ lógica’ do próprio contexto, do qual ela sofria as consequências: o
individualismo exacerbado, o narcisismo, a perda do sentimento de pertencimento;
é como se as soluções buscadas para enfrentar a solidão tivessem assumido as
próprias qualidades da ordem social, para a qual supõe-se que elas
proporcionassem uma saída.

Essas ‘ soluções para dentro’ , são muito mais impactantes ao nível dos setores
excluídos da sociedade: o consumo só se faz presente pelo negativo: ‘ não ter…
’ , a insegurança da família com o alcoolismo, a intimidade do lar é ‘ invadida’
pela promiscuidade ambiental. E, o trabalho, que daria um sentimento de
pertencimento, já não é tão seguro.

No entanto, neste momento, uma questão se coloca: será que se pode tomar essas
formas de lidar com a solidão como uma experiência válida para os ‘ sujeitos
contemporâneos’ de uma forma geral? Será possível considerar esta, uma
experiência constituinte e caracterizadora também no contexto das classes
trabalhadoras?

A questão surge principalmente quando se leva em consideração a realidade dos


setores menos favorecidos ou classes trabalhadoras, seu contexto cultural e
singularidades de discurso. A partir do momento em que se adota como posição
norteadora da investigação uma concepção de sujeito que (re)descreve o mundo e
se descreve, narra sua história em função de regras socialmente partilhadas, não
se pode deixar de se questionar se, no contexto das classes trabalhadoras, a
problemática da solidão se coloca tal como foi aqui discutida.

A luz das discussões apresentadas por Costa (1989) no seu livro Psicanálise e
Contexto Cultural foi sendo feita essa leitura da solidão. Costa, buscando abordar a
questão da psicoterapia para a população de baixa renda, discutiu também uma
particularidade sócio-cultural na forma de adoecer mentalmente, a doença dos
nervos, e assim, também, trata das peculiaridades quanto a representação das
identidades psicológicas.

Costa vem apontar que diferentemente do modelo hegemônico de construção da


identidade psicológica masculina fundada na heterosexualidade, os pacientes
masculinos doentes dos nervos centravam a construção de suas identidades na
trajetória profissional, na questão de ser trabalhador ou não, bom trabalhador ou
não, ficando os elementos relativos à família, sexualidade, afetividade em segundo
plano. Essas bases identificatórias não se expressam da mesma maneira para
homens das classes altas e baixas. Nas palavras de Costa (1989:27):

“ Ao rebatermos nesta tecla, tentamos mostrar que a subjetividade que muitos


terapeutas têm em mente está longe de representar a totalidade dos indivíduos
brasileiros. A representação de subjetividade que prevalece nas teorias psicológico-
psiquiátricas espelha uma realidade sócio-histórica datada e culturalmente
circunscrita” .

O trabalho se constitui como tão importante neste setor que, muitas vezes, a
inserção na família aparece como uma ‘ via’ em que o trabalho é a tônica. Pois,
na família os sujeitos se constituem através do que o trabalho pode oferecer (em
melhoria de vida, em possibilidade de oferecer estudos aos filhos etc.), se
constituem como provedores; ou, quando não conseguem essa melhoria de vida,
ou mesmo no desemprego, é aqui, também, que vai ser vivido o fracasso. Fracasso
pessoal por não ser um provedor, não ser bom pai etc. Enfim, é o trabalho que está
suportando, como eixo, a construção dessas identidades.

Apesar de se compreender que a mídia televisiva e a convivência interclasses


produzam certos padrões homogenizadores de condutas, parece possível considerar
que o universo cultural e lingüístico das camadas pobres é bem diverso do das
classes média e alta. Assim, as possibilidades das ‘ histórias’ oferecidas por cada
cultura são também diversas, fazendo com que as auto-narrativas se elaborem com
diferenças fundamentais. Esta consideração traz a riqueza de proteger contra a
‘ captação’ de nossos olhares por um viés universalista e busca assegurar que
não se recaia sobre uma posição dogmática.

No entanto, é importante afirmar que não há a intenção de transformar essa


solidão em predicado fixamente vinculado às classes média e alta, ‘ a solidão das
classes abastadas’ , nem tampouco associar – nem como hipótese – que se sente
solitário quem está pensando sempre em questões “ mais profundas” , “ mais
subjetivas” , quem não se preocupa com o trabalho. Tendo sido necessário um
‘ deslizamento’ ou uma ampliação no conceito de solidão, para se compreender
este cenário no âmbito do trabalho.

As Transformações no Mundo do Trabalho/ as Classes


Trabalhadoras e a Solidão
A situação atual do próprio campo do trabalho também vem sofrendo
transformações marcantes que se refletem nas experiências de vida dos sujeitos. O
crescimento vertiginoso do desemprego é, no momento, um problema que atinge a
grande maioria das nações e das classes sociais. No entanto, Robert Castel no seu
livro As Metamorfoses da Questão Social (1998) desenvolve a idéia de que o
desemprego é somente o fenômeno mais visível de uma mudança profunda na
conjuntura do emprego, que envolve, sobretudo a precarização do trabalho.

Os contratos de trabalho por tempo determinado, os trabalhos de tempo parcial e


uma série de ‘ formas particulares de emprego’ que estão em ascendência,
parecem estar elevando a diversidade e a descontinuidade em detrimento ao
emprego homogêneo e estável. Castel afirma ainda que essa precarização do
trabalho é uma questão mais importante do que o aumento do desemprego, uma
vez que sua observação possibilita a compreensão dos processos que estimulam a
vulnerabilidade social e produzem o desemprego e a desfiliação.

Também sobre essas mudanças no universo do trabalho, Bárbara (1999) - em seu


artigo sobre o indivíduo trabalhador na qualificação, requalificação e desemprego -
afirma que se caracterizaram basicamente pela: diminuição dos ciclos de produção,
mudança na divisão do trabalho dentro das empresas, consolidação das tecnologias
da computação e da informática, polivalência e treinamento dos trabalhadores
como requisitos essenciais aos novos processos produtivos, que trouxeram como
conseqüência a diminuição de muitos postos de trabalho formal.

Neste contexto, agravam-se as condições do mercado de trabalho, além do


desemprego, no Brasil, está ocorrendo uma ampliação do setor informal na
economia. Com todas essas mudanças, tem crescido também a insegurança no
trabalho, uma vez que a diminuição de postos de trabalho faz com que a qualidade
desses empregos se afaste dos padrões desejáveis, fazendo crescer também o
trabalho precário, incrementando e ‘ engrossando o caldo’ das desigualdades
sociais e da exclusão (Bárbara, 1999).

Dentro das empresas a busca da eficácia e competitividade através da


‘ flexibilidade interna’ , faz com que se procure conjugar as qualificações dos
trabalhadores com as transformações tecnológicas. Assim, termina-se por invalidar
a experiência adquirida do sujeito, excluindo os trabalhadores que envelhecem e ao
mesmo tempo, não se integrando a força de trabalho dos jovens, já que aumenta-
se o nível das qualificações para admissão. Neste sentido, o problema atual, mais
do que a consolidação de uma “ periferia precária” é o da “ desestabilização dos
estáveis” . Esse fenômeno diz respeito à situação de uma parte da classe operária
e de assalariados da pequena classe média que estão vivendo constantemente sob
ameaça de oscilação. (Castel, 1998).

Uma outra ordem de fenômenos específicos da situação atual é a “ instalação na


precariedade” . A impossibilidade de conquistar um emprego estável faz com que
os sujeitos estabeleçam suas trajetórias de trabalho numa alternância de emprego
e não-emprego (atividade e inatividade), aceitando tarefas de curta duração,
descontínuas e insignificantes e sendo potencialmente demitíveis, ou seja, tendo a
“ precariedade como destino” . Como essas pessoas poderiam, então, construir
para si mesmas a projeção de um futuro? E também, como poderiam rever seus
passados e construir auto-narrativas sobre esse passado? Resta, portanto, a
utilização de estratégias de sobrevivência pautadas no presente.

Um terceiro aspecto dessa conjuntura do trabalho, sem dúvida o que provoca mais
indignação, é a manifestação de um “ déficit de lugares” na estrutura social, ou
seja, não existem tantas posições com reconhecimento público e utilidade social,
quantos sujeitos que poderiam ocupá-las . São os jovens em busca do primeiro
emprego, os trabalhadores “ velhos” , os desempregados de muito tempo, enfim,
uma grande quantidade de indivíduos que terminam por ser considerados
irrelevantes, ou mesmo, não serem considerados. Castel (1998) aponta ainda que
essa irrelevância social desqualifica esses sujeitos também nos campos cívico e
político. São diferentes dos escravos ou classes subordinadas da sociedade
industrial, que eram explorados, mas indispensáveis. Como afirma Castel
(1998:530):

“ Ocupam, na estrutura social atual, uma posição homóloga à do quarto mundo no


apogeu da sociedade industrial: não estão ligados aos circuitos de trocas
produtivas, perderam o trem da modernização e permanecem na plataforma com
muito pouca bagagem. Desde então, podem ser o objeto de atenções e suscitar
inquietação, porque criam problema. Porém, o problema é o próprio fato de sua
existência. Dificilmente podem ser considerados pelo que são, pois sua qualificação
é negativa – inutilidade, não-forças sociais – e em geral são conscientes disso” .

Estes indivíduos perdem não só a importância como produtores, mas também como
consumidores, passando a ser um fardo para a sociedade do trabalho, um “ lixo
industrial” . É o que Nascimento (1994) chama de nova exclusão, que seria mais
do que o não-reconhecimento de direitos, uma própria “ recusa ao espaço de
obtenção do direito” , seria o não-reconhecimento enquanto iguais, sendo
totalmente desnecessários do ponto de vista econômico, passam a ser considerados
“ ameaçadores” , “ marginais” .

O que Nascimento (op.cit.) chama de nova exclusão é o que Fridman (1999), num
comentário ao livro de Zygmunt Bauman, chama de ‘ refugo humano’ .
Concordam ao caracteriza-lo a partir da impossibilidade de contribuir enquanto
consumidores, sendo “ consumidores falhos” , portanto, não podem exercer a
liberdade, cuja nova perspectiva é a da liberdade de escolha ligada ao mercado
consumidor, são pessoas que não consomem e não realizam desejos.

“ Gente dispensável, pobres e famintos que contribuem com nada, apenas tiram o
dinheiro do contribuinte para financiar políticas sociais que não diminuem o
incômodo de vê-los ‘ poluindo’ a visão da classe média e dos ricos. Esses
‘ consumidores falhos’ não serão reabilitados para o mundo do trabalho porque a
sociedade não precisa deles” (Fridman, 1999: 217).

A análise de Fridman aponta para esse refugo humano como um dos limites mais
dramáticos da globalização. Considerando que esse processo de globalização não
ocorre uniforme e homogeneamente, mas, ao contrário, aumenta a separação entre
quem participa e quem é somente atingido pela globalização. Parecem se instalar
dois pólos opostos: de um lado, o capital volátil e sem fronteiras, a intensa
revolução tecnológica em curso, a comunicação instantânea on-line e, de outro
lado, no pólo oposto, está uma grande parcela da população mundial que não
participa desse arranjo, e que, segundo o autor, vai progressivamente, estar sob a
guarda dos sistemas penais, sem nenhuma intenção de correção ou integração,
estando apenas para definhar, desaparecer ou imobilizar-se.

Configura-se, assim, uma nova estratificação social, “ segundo capacidades de


movimento no tempo e no espaço” , que instauram a elite numa ‘ extra-
territorialidade’ e a territorialidade forçada do resto da população. Neste sentido,
a globalização vem aumentar o fosso entre os que estão ‘ dentro’ (vivendo em
seus condomínios fechados, e protegidos com as últimas novidades na segurança) e
os de ‘ fora’ , que, impotentes, só podem observar o único espaço que habitam,
“ movendo-se sob seus pés” .
A análise de toda esta situação nos obriga a nos remetermos às questões já
esboçadas sobre a identidade pelo trabalho e impõe novos questionamentos: o que
se modificaria no processo de construção de identidades quando mudanças tão
radicais ocorrem na sua principal instância agenciadora, o trabalho? Como os
indivíduos das classes menos favorecidas, que têm o trabalho como base da
identidade psicológica, estão construindo suas identidades em meio a vivências de
desemprego, precarização, desestabilização etc?

Sobre este aspecto Castel (1998) avança situando também a ausência de


mobilização social, coletiva desses sujeitos, uma vez que estaria faltando a própria
base sobre a qual se estrutura a identidade, ou seja, o trabalho, e, nesse contexto,
“ é difícil falar em seu próprio nome, mesmo para dizer não” . A conclusão possível
a que chega é a de que, para números cada vez maiores da população ativa e
“ inativa forçada” , a identidade pelo trabalho está perdida. Sob que bases a
identidade se constituirá, então? Que conseqüências e efeitos nos sujeitos essa
mudança acarreta?

Torna-se difícil estabelecer precisamente a amplitude das consequências da perda


desse “ grande integrador” , pois a identidade pelo trabalho não quer dizer
condicionamento pelo trabalho, já que pode-se dizer que existem vários círculos de
identidade coletiva, fundados na integração familiar, escolar, social, religiosa etc.
No entanto, principalmente para as classes populares, o trabalho seria como um fio
condutor, que estaria presente em todas essas áreas e faria a “ integração das
integrações” .

Poderia se aproximar todos estes questionamentos sobre o poder integrador do


trabalho, suas relações com a integração promovida pela rede familiar e relacional,
com os referenciais da construção de identidades psicológicas e suas matrizes (eixo
do trabalho em primeiro plano e eixo ‘ familiar’ e afetivo, em segundo plano, para
as classes desfavorecidas) traçando um paralelo entre integração social e
construção de identidade.

Partindo desse paralelo, há um campo aberto para se refletir sobre a experiência de


solidão no contexto das classes trabalhadoras. Sem trabalho, ou com trabalho
precário, com a integração social também precária, e a identidade psicológica se
debatendo nessa situação, não estaria em jogo, também, um sentimento de não
pertencimento? Acredito que esse não reconhecimento e não pertencimento pode
ser considerado uma experiência de solidão, um sentimento de estar só, não se ver
entre os demais. E aqui já caberia se pensar num deslizamento do conceito de
solidão, para a situação das classes trabalhadoras. Será que dentro desta
conjuntura de desestabilização, precariedade, insegurança quanto ao futuro,
desintegração, não reconhecimento, os sujeitos estariam vivendo isso tudo como
um fracasso pessoal, e contribuindo para uma vivência de solidão?

Não são poucas as conseqüências desses processos sobre os sujeitos, como aponta
Sennett (1999) no seu livroA Corrosão do Caráter. Uma das mudanças
fundamentais trazida por esses processos foi a perda da possibilidade de se criar
uma narrativa de vida linear, onde o tempo é linear, as conquistas são
acumulativas e a própria vida faça sentido. Hoje, com a idéia de se atacar a
burocracia a partir das experiências de risco, enfatizando-se a flexibilidade e a
capacidade de mudanças rápidas, perde-se o solo onde se constroem metas a longo
prazo e instala-se a vivência de deriva. Parece, então, que a flexibilidade, com
todos os seus riscos e incertezas não poderá remediar o ‘ mal’ que está
atacando: a rotina.
Um dos aspectos que Sennett (op.cit.) observa como principais é uma mudança na
forma de organizar o tempo, principalmente o tempo de trabalho. Não há mais
longo prazo, os profissionais não têm papel fixo a desempenhar, não podem dizer
“ é isso que eu faço” , e então, perde-se o sentido de uma carreira a se seguir, de
um ofício que se exerce. No entanto a prerrogativa de ‘ não há mais longo prazo’
termina também por fazer ruir a confiança, a lealdade e o compromisso mútuo, que
são expressões que levam um certo tempo para se construírem, para que se crie
um laço.

Essa relação com o tempo de maneira imediatista é o que mais estaria afetando a
vida afetiva dos indivíduos fora do trabalho, uma vez que a ausência de
investimentos a longo prazo na esfera familiar, por exemplo, simbolizaria
‘ mudar’ , ‘ não se comprometer’ e ‘ não se sacrificar’ .

Coloca-se, assim, uma incompatibilidade entre as características que são mais


geralmente atribuídas à vivência familiar – a obrigação formal, o compromisso,
senso de objetivo, estabilidade, amizade etc. – e as características do
comportamento que levam ao sucesso no trabalho. Não seria demais refletir
novamente: como, então, poderia se buscar objetivos a longo prazo numa
sociedade pautada no curto prazo? Ou, ainda, como acrescenta Sennett (1999:27)
“ como pode um ser humano desenvolver uma narrativa de identidade e história de
vida numa sociedade composta de episódios e fragmentos?” . Essa nova ‘ versão’
do capitalismo, capitalismo de curto prazo atinge os indivíduos, desintegrando as
suas qualidades de caráter que ligam um ser humano a outro e que permitem a
cada um, ter um senso de identidade sustentável. Aqui poderíamos tangenciar essa
questão e somente nos perguntar se essa dificuldade de desenvolver uma
narrativa de identidade e de manter os laços com outros sujeitos não
estaria potencializando também uma experiência de solidão.

O ‘ comportamento flexível’ em que estão imersos os sujeitos nesta nova ordem


do trabalho envolve a busca de mudanças irreversíveis, além de uma falta de apego
ao que se construiu – a possibilidade de destruir concretizações do passado pelas
demandas do momento -, isto é, uma verdadeira ausência de apego temporal,
solidificando assim, uma permissividade e tolerância com a fragmentação.
Sennett (op.cit.) vem colocar que quem obtém sucesso com esse comportamento
flexível são os sujeitos que ‘ estão por cima’ nas relações de poder, não sofrem
por permanecer na desordem e fragmentação. Enquanto que, para os que
trabalham mais embaixo do regime flexível, esses mesmos traços de caráter
passam a ser autodestrutivos.

Um outro elemento sentido como pessoalmente degradante para esses sujeitos é a


maneira como trabalham, que, muitas vezes, com o uso das novas tecnologias e de
máquinas sofisticadas podem vir a ser operacionalmente fáceis, mas passam a ser
também emocionalmente ilegíveis, sendo muito difícil entender o que estão
fazendo. Com essa dificuldade de compreensão do trabalho e também com o
afastamento da participação nas discussões que marcam a reestruturação
produtiva, instaura-se um sentimento deestrangeridade, de não pertencimento do
trabalhador (Grisci,1999).

A falta de legibilidade nas modernas formas de trabalho cria um problema: como


definir o que faz cada um ser um bom trabalhador? Sennett (1999) observou que a
idéia de ser um bom trabalhador parece ainda se constituir num importante
elemento para ser respeitado, no entanto, o que se entende por um bom
trabalhador está mais difícil de definir com a experiência da ilegibilidade nas formas
de trabalho. Desse modo, a identificação com o trabalho – um trabalho que não se
entende – se torna fraca, e as leituras que os sujeitos fazem a respeito desse
trabalho passam a ser de experiências pessoais, o trabalho parece ser uma
experiência pessoal.

A ilegibilidade dificulta, para os sujeitos, a distinção das características atribuídas


para ser um bom trabalhador, e ainda não deixa claro quais as medidas objetivas
que indicam o que é um bom serviço. A descentralização do poder e o trabalho em
equipe também podem levar os indivíduos a não saberem exatamente em que
posição estão nas relações de trabalho.

Tudo isso viria a aumentar a sensação de deriva, de falta de ancoramento. A


vivência da incerteza se torna uma condição nesse novo regime, já que a rotina é
fortemente atacada através da experiência do “ risco” . Entretanto, o risco não
possui a qualidade de uma narrativa, em que um acontecimento condiciona e gera
o acontecimento seguinte; persistindo, assim, a questão da fragmentação e
descontinuidade.

Com essa transformação do “ tempo” na esfera do trabalho, intensificam-se as


experiências de superficialidade. Superficialidade na ética do trabalho e nas
relações humanas, pois os sujeitos passam a sentir a ausência de relações
constantes, de objetivos e metas duráveis, bem como do compromisso, lealdade e
confiança compartilhados, os quais precisam de mais tempo para se construir.

Sennett (op.cit.) centra os seus questionamentos num problema tido como efeito
de toda essa organização do capitalismo atual, e podemos também toma-lo como
central na problemática da solidão: o quanto as experiências de deriva,
fragmentação, superficialidade etc. dificultariam aos sujeitos a organização de suas
histórias de vida, a construção de suas auto-narrativas.

Então, poderia se evocar uma dificuldade na organização das teias narrativas que
estruturam os sujeitos e uma dificuldade de construir as auto-narrativas.
Observando a determinação social destas narrativas e seu caráter relacional,
discursivo, poderíamos, por operação inversa, falar de uma vivência do sentimento
de solidão ligado a essa desestruturação na construção das auto-narrativas para os
sujeitos intensificada também pela esfera do trabalho.

A dificuldade para construir identidade pelo trabalho e a experiência de deriva das


novas formas de trabalho, que criam obstáculos na organização das narrativas de
história de vida, trariam outras formas de desfiliação e de não-reconhecimento.
Toda essa combinação levaria a quê? Estaria levando também a um fechamento
num eu-mínimo, como para as classes médias e altas? Ou poderia estar gerando
sofrimento pela permanência daquele ideal de trabalho, bom trabalho – trabalho
estável, de carteira assinada etc -, gerando sofrimento por levar a uma
identificação negativa? Neste caso, restaria, portanto como única possibilidade, a
identidade do fracassado, sendo esse fracasso introjetado como fracasso pessoal,
que pode se coadunar com a configuração da solidão como fracasso do eu (Soares
Neto, 1999).

Assim, toda essa combinação poderia estar, também, potencializando um


sentimento de solidão. Porém, neste momento já fica mais claro que para poder se
afirmar que esses sujeitos vivenciam o não-reconhecimento e a fragmentação das
bases de suas identidades psicológicas como solidão, seria preciso admitir uma
premissa anterior, subjacente: de que o investimento num espaço coletivo e numa
ética que privilegie o compromisso e a vida em comum sejam necessários. Isto é, a
falta ou o desligamento dessa esfera “ do outro” é que estaria incidindo na
vivência da solidão como uma queixa, um problema.
Neste sentido, poderíamos trazer as contribuições de Hanna Arendt (1993) sobre a
condição humana, quando discute o papel da esfera pública, da política. O termo
‘ público’ significa o próprio mundo, uma vez que é comum a todos. E é esse
convívio num mundo comum, em que outros podem passar pelas mesmas
experiências que nós, que poderá respaldar o nosso sentido do quê é a realidade e,
portanto, de como nos constituímos.

“ A presença de outros que vêem o que vemos e ouvem o que ouvimos garante-
nos a realidade do mundo e de nós mesmos; e, embora a intimidade de uma vida
privada plenamente desenvolvida, tal como jamais se conheceu antes do
surgimento da era moderna e do concomitante declínio da esfera pública, sempre
intensifica e enriquece gradativamente toda escala de emoções subjetivas e
sentimentos privados, esta intensificação sempre ocorre às custas da garantia da
realidade do mundo e dos homens” (Arendt, 1993: 60).

Assim, a pluralidade é a condição da ação humana. Esta ação, por sua vez,
corresponde a uma das atividades humanas fundamentais, junto com o labor e o
trabalho, mas só a ação não pode ser pensada fora da sociedade dos homens. A
ação se relaciona com a pluralidade e então, com a política, sendo a única atividade
que se exerce sem a mediação das coisas ou matéria, que se exerce
exclusivamente entre os homens e não ‘ pelo Homem’ .

A ação, em sua relação com a política, traz a questão do discurso como central,
pois, segundo Arendt (op.cit.), o discurso é que torna o homem um ser político. É a
possibilidade de serem discutidas que atribui sentido às experiências dos homens, a
tudo o que fazem e o que sabem. Os homens que vivem no mundo comum, que se
movem e agem nesse mundo só conseguem experimentar o significado das coisas
porque podem falar e ser inteligíveis entre si e para si mesmos.

É com esta concepção da esfera pública enquanto espaço da política e do discurso


por excelência que Hanna Arendt faz suas críticas à moderna sociedade de massas.
Nesta última perde-se um aspecto essencial da esfera pública enquanto mundo
comum: sua característica de reunir os homens na companhia uns dos outros e
ainda evitar que se ‘ colidam’ uns com os outros. Na sociedade de massas, o que
é difícil de suportar é que o mundo entre as pessoas perdeu sua força de mantê-las
juntas, de fazer com que se relacionem entre si e de separá-las. Nas condições da
sociedade de massas:

“ Os homens tornam-se seres inteiramente privados, isto é, privados de ver e ouvir


os outros e privados de ser vistos e ouvidos por eles. São todos prisioneiros da
subjetividade da sua própria existência singular, que continua a ser singular ainda
que a mesma experiência seja multiplicada inúmeras vezes. O mundo em comum
acaba quando é visto somente sob um aspecto e só se lhe permite uma
perspectiva” (Arendt, 1993: 67).

Essa situação se torna ainda mais difícil para os desfavorecidos, cuja única
participação pública é como massa, onde se é assujeitado, despersonalizado, não
se tem ‘ voz’ . Talvez seja importante buscar se proteger de ser massa, proteger
seu segredo, redescrever a solidão.

Discussão

O ponto que merece ser aprofundado no desenrolar dessa discussão sobre a solidão
como um dos efeitos destas fortes transformações no âmbito do trabalho
‘ flexível’ e da reestruturação produtiva, é o questionamento sobre “ o que fazer,
então?” . Que caminhos podem ser oferecidos como saídas, ou alternativas para
uma organização tão danosa e causadora de sofrimento?

Em resposta a esses questionamentos Benilton Bezerra (1998) aponta a construção


da solidariedade como um norte e um marco para a possibilidade de articular em
conjunto realidades mais democráticas. Nas palavras do autor:

“ A família, a religião, a tradição, fontes de significação relevante para a vida em


outras épocas, têm tido seu papel cada vez mais restringido na função de
ordenamento dos processos de subjetivação dos indivíduos. As relações de
trabalho, e o próprio papel do trabalho na construção das imagens identificatórias
dos sujeitos, também provavelmente continuarão a sofrer os efeitos das
transformações político-econômicas e tecnológicas em andamento. Nada resta a
fazer, então? Creio que não. Uma tarefa – certamente gigantesca – que temos
todos é a de multiplicar e ampliar os espaços de tolerância e exercício da
solidariedade. (… ) Só se pode sonhar com um mundo melhor e menos violento se
formos capazes de recuperar a imaginação política para os jovens (… ). A
construção progressiva da solidariedade como valor central no projeto democrático
é a resposta mais duradoura que podemos oferecer ao quadro que viemos
observar” . (1998: 145)

Essa construção conjunta da solidariedade proposta por Bezerra (op.cit.) envolve,


ainda, uma ampliação/multiplicação dos espaços de tolerância, através do uso da
imaginação, da vontade e de uma identificação ‘ viceral’ com esse projeto e não
somente de uma racionalidade. O caminho proposto por Sennett (1999) não destoa
desse da solidariedade, se refere ao uso do pronome “ nós” , à busca de regimes
que ofereçam aos seres humanos motivos para se ligarem uns aos outros. Sennett
(op.cit.) vai concluindo que dentro dessa situação que o capitalismo moderno nos
coloca, em especial nas condições emocionais nos locais de trabalho, de incertezas
da flexibilidade, de falta de confiança e compromisso, de não se conseguir inserir o
seu trabalho num sentido de vida, o que resta é a busca – até defensiva – de
outras formas de ligação e de profundidade, um desejo de comunidade.

Sennett (op.cit.) afirma que a ligação social nasce do senso de mútua dependência.
E que essa dependência deve ser pensada com sua face positiva, que é relativa
também ao fato de que os outros podem contar conosco e, portanto, temos
responsabilidades para com os outros e para com nossas ações para eles. A falta de
responsividade parece ser uma contrapartida ao sentimento de que não se é
necessário, e isso vale tanto para as comunidades de trabalho, quanto para os
mercados de mão-de-obra.

“ Está faltando o Outro, e assim estamos desligados. (… ) Esse é o problema do


caráter no capitalismo moderno. Há história, mas não narrativa partilhada de
dificuldade, e portanto tampouco destino partilhado. Nessas condições, o caráter se
corrói; a pergunta: ‘ Quem precisa de mim?’ não tem resposta imediata”
(Sennett, 1999: 175,176).

Tanto o caminho da solidariedade construída, quanto o da ligação de uma narrativa


partilhada, do uso do ‘ nós’ , estão em plena consonância com a problemática da
solidão e sua escalada para a condição de fracasso pessoal. Desse modo, também
acredito que essas saídas possam refazer, reescrever essa história da solidão e sua
forte inserção como mal estar contemporâneo. No entanto, é importante que se
pense esse uso do ‘ nós’ respeitando as realidades construídas e necessidades de
diferentes atores sociais, diferentes sujeitos.
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