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VERA CASA NOVA

RODRIGO GARCIA BARBOSA

A TRANSGRESSÃO É UM GESTO RELATIVO que se vê excluído dessa mesma sociedade por – Por que não escreve você?
AO LIMITE; É AÍ, NA TÊNUE ESPESSURA DA estender sua ação de acumulação para além – A mão treme. Sente-se, que eu dito.
LINHA, QUE SE MANIFESTA O FULGOR DE dos limites que estruturam e estabilizam este E assim, durante dias, fui ditando e escre-
SUA PASSAGEM, MAS TALVEZ TAMBÉM SUA sistema. vendo o que se vai ler. (p.39)
TRAJETÓRIA NA TOTALIDADE, SUA PRÓPRIA
ORIGEM. A LINHA QUE ELA CRUZA PODERIA A misteriosa história destas Memórias, insi- A partir desta observação, pode-se concluir
TAMBÉM SER TODO O SEU ESPAÇO. O JOGO nuadas, pelo próprio texto, como a transcri- que as Memórias não surgem como a coorde-
DOS LIMITES E DA TRANSGRESSÃO PARECE ção de entrevistas com o referido criminoso, nação equilibrada de dois trabalhos diferentes
SER REGIDO POR UMA OBSTINAÇÃO SIMPLES: feitas por um jornalista não revelado; um – uma expressão oral e seu registro escrito –,
A TRANSGRESSÃO TRANSPÕE E NÃO CESSA artigo de João do Rio, publicado em jornal da mas como um exercício de transposição dos
DE RECOMEÇAR A TRANSPOR UMA LINHA época, referindo-se ao conhecido ladrão;1 o limites da própria individualidade, um atra-
QUE, ATRÁS DELA, IMEDIATAMENTE SE FECHA desaparecimento do texto e sua redescoberta vessar de subjetividades que têm em comum
DE NOVO EM UM MOVIMENTO DE TÊNUE num prodigioso lance do acaso; o autógrafo o mirar o mundo a partir de uma posição de
MEMÓRIA, RECUANDO ENTÃO NOVAMENTE esquecido no tempo como uma denúncia, exceção. Por isso um só sujeito vai “ditando e
PARA O HORIZONTE DO INSTRANSPONÍVEL. como o testemunho de um antigo crime escrevendo” o que se lê: Paulo, Arthur, João
MAS ESSE JOGO VAI ALÉM DE COLOCAR EM esperando ser desvendado –2 tudo o que diz e Antônio se desdobram, então, num labirinto
AÇÃO TAIS ELEMENTOS; ELE OS SITUA EM UMA respeito a esta narrativa encontra-se sob sus- de autorias que impossibilita a atribuição de
INCERTEZA, EM CERTEZAS LOGO INVERTIDAS peita, todas as definições parecem obscuras e culpa e aproxima suas condições e a dimensão
NAS QUAIS O PENSAMENTO RAPIDAMENTE SE duvidosas, fazendo do próprio texto o objeto de suas atuações como escritor/autor e ladrão

JOAO DO RIO E
EMBARAÇA POR QUERER APREENDÊ-LAS. de uma trama policialesca, na mesma medi- – ambos marginais. Constitui-se, assim, um
Michel Foucault da das aventuras que descreve. A voz que “crime” (o “roubo” de um discurso e a “ocul-
narra é mesmo Artur Antunes Maciel ou o Dr. tação” de identidades) que é o desdobramento
Se todo crime consiste num ultrapassar limi- Antônio, personagem que é a própria razão dos crimes narrados, a materialização de uma
tes – do corpo, da propriedade, da moral – e da narrativa? Quem transcreve o depoimento ultrapassagem de limites que se dá pela pró-
representa um deslocamento rumo a um espa- só o transcreve ou faz dele uma extensão de pria transgressão do texto, que constantemen-

DR. ANTONIO:
ço exterior às fronteiras daquilo que a lei e seu próprio discurso? Seriam Artur Antunes te volta-se sobre si mesmo: “Não há como o
os costumes definem como a normalidade, é Maciel e Paulo Barreto identidades inexpres- medíocre para contar muita coisa a ver se vira
como movimento de ultrapassagem que se dão sivas, imersas na indiferença proporcionada importante” (p.61).
as Memórias de um rato de hotel, narrativa pela cidade grande, e o Dr. Antônio e João
assinada por um certo Dr. Antônio – iden- do Rio suas vozes diferenciadas e representa- Tal como o ladrão que rouba para comparti-

DE
tidade fictícia e criminosa de Artur Antunes tivas de uma humanidade que teima em não lhar os bens e vantagens materiais, o narrador

OS A
Maciel –, mas atribuída, entretanto, a João do se submeter ao distanciamento abstrato e à lança seu discurso para ultrapassar os limites
Rio – pseudônimo literário e jornalístico de disciplina de mentes e corpos que caracteriza de uma condição inexpressiva. Se assim o faz

SS RI A
Paulo Barreto. Afinal, é justamente da inter- a emergente sociedade positiva e racional? Artur Antunes Maciel, que, sob a identidade

E O
relação desses sujeitos anônimos e seus dis- Dr. Antônio e João do Rio seriam máscaras do Dr. Antônio, abandona o caráter vacilan-

V
A A AUT
farces conhecidos, movimento que rompe as diferentes de um só rosto? Como num crime te pela atuação diabolicamente inteligente,
barreiras que delimitam suas individualidades, imperfeito, o próprio texto deixa pistas: é de se perguntar: não seria também o caso
que se articula um discurso que, por sua vez, do inexpressivo Paulo Barreto e sua perso-

UM
manifesta uma condição por si mesma trans- – Além do mais, acrescentou o homem nalidade significativa, João do Rio? Se sim,
gressora e periférica: são as memórias de um do jornal, na manhã seguinte, você foi haveria então uma identificação do escritor/
ladrão de hotel, personagem típico da moder- o nosso primeiro rato de hotel. É preciso autor com a atuação corrosiva e anárquica do
na sociedade capitalista que se desenvolvia no escrever as suas memórias! ladrão, imaginada pelas incertezas da autoria
Brasil na virada do séc. XIX para o XX, mas – Pois escreva. e confessada pelo próprio texto: “Nunca me

12. Janeiro 2009 JOÃO DO RIO E DR. ANTÔNIO VERA CASA NOVA + RODRIGO GARCIA BARBOSA Janeiro 2009 .13
passou pela imaginação iludir a polícia. Eu nunca é aceito nestes círculos de poder, já que vive o facho da anarquia; na sua mão entanto, argumentos afins também podem ser “Visões d’ópio” e “Histórias de gente alegre”, escritor/autor, que busca remodelar as formas
trabalho com a tranquila consciência com que sua fome de acumulação se satisfaz com o esperta e delicada, vibra o arrepio das encontrados na narrativa das Memórias: que ilustram o mundo obscuro e delirante canônicas que definam o dentro e o fora da
um advogado defende um réu, um jornalista bolso – e as bolsas – dos senhores e senhoras reivindicações sociais; no seu sorriso há dos “consumidores” de ilusões e suas relações literatura. Por isso o escritor rouba da realidade
escreve o seu artigo, uma senhora arruma a que comandam esse sistema. Por isso, quando dinamite que não estoura. (p.25) Mas a sociedade séria é por nós conside- tantas vezes perversas e promíscuas com a os fatos com os quais escreve sua narrativa e
sua casa” (p.153). Esta “consciência tranqui- descoberto, ele é perseguido e reconduzido à rada idiota, porque, com raras exceções, é sociedade que só os aceita enquanto serviçais. transveste seu “romance” de memórias; mais
la” é reflexo de um compreensão irônica do marginalidade. Ainda que preenchido de ironias, o texto de falsa e mentirosa. (p.171) Não seria assim também com relação ao nosso especificamente as memórias de um ladrão, o
mundo e seus mecanismos; compreensão que João do Rio sugere aproximações interessan- Hão de notar, como, em se tratando de um ladrão de hotel? que levanta intrigantes questões sobre o pró-
se desenvolve na afirmativa de que “a mentira Se o narrador das Memórias, seja quem ele for, tes. Como não contrapor a sutiliza do gatuno gatuno mais ou menos inteligente e fino, prio estatuto da literatura: falsidade, mentira,
é a base da vida. Nós a vemos através dos deixa transparecer estas concepções, o jornalis- ao poder de fogo da “ladroeira organizada” logo o apelidavam de “doutor”. A razão não Numa leitura lacaniana, se o sujeito busca engano? Aqui, a própria fala do ladrão pode
delegados, dos agentes, e dos advogados. E ta João do Rio, na mencionada crônica publica- armada de “revólver”, à força bruta das estru- é por sermos de um país em que quantos seu significante no outro, não seria a ação do servir de questionamento e crítica:
o público vê-nos a nós através dessa gente e da em A Notícia, reforça tais compreensões ao, turas que submetem o homem à disciplina e não serem coronéis, são doutores. (p.176) ladrão, em alguma medida, uma alegoria dessa
mais das gazetas. Há um grande erro na com- ironicamente, destacar a importância de uma à generalização das classificações coletivas? [...] nunca entendi de política. É outro busca? Se o nosso desejo é o desejo do outro, Porque os criminosos têm duas faces, a que
preensão do roubo. Um dia a espécie humana sociedade possuir “homens representativos” Nesse movimento, ladrão e político se aproxi- gênero... (p.195) o que pode o ladrão desejar mais que a bolsa apresentam ao público e a que apresentam
cairá em si” (p.171). de todos os tipos de atividades: “Não se trata mam ou se distanciam? O gênio, a habilidade, do capitalista? – objeto que é o desejado e, aos companheiros e colegas de crime.
de saber se a atividade é no mal ou no bem, a perspectiva anarquista e revolucionária, é o O tom irônico destas críticas aproxima a crô- ao mesmo tempo, a legitimação desse desejo, Ambas infelizmente são mentirosas. Para
O que o ladrão percebe e o jornalista, ao se divisão inicial das religiões de que o código se que permite a associação entre o criminoso e o nica e a narrativa, o que sugere uma concor- representada pelas leis e normas que garantem o público só há uma preocupação: mos-
identificar com essa percepção, transmite é a apropriou indevidamente para criar a polícia, a artista? Se sim, é possível então desvendar uma dância de opiniões entre o narrador e o cro- o direito – ao capitalista – de propriedade. Visto trar inocência. Para os colegas só há um
artificialidade das normas e valores que esta- garantia dos medíocres e a chicana” (p.21). poética do crime? Uma poética sutil e irônica? nista, reforçando as suspeitas de que, por trás dessa forma, o que o ladrão deseja não é, então, desejo: mostrar uma grande habilidade e
belecem permissões e proibições; a mentira dos do disfarce do depoimento de um criminoso, apenas a posse dessa propriedade mas, também, uma grande sorte cínica. (p.170)
discursos de validação das estruturas políticas, Essa compreensão dos valores a partir dos O caráter crítico desta comparação, empre- desenvolve-se o discurso do próprio João do a legitimação dessa posse, que se dá pela pos-
econômicas e sociais, que são produzidos para quais as forças que ordenam a sociedade defi- endida pela crônica, entre o ladrão e outras Rio, que se apropria de outra identidade para sibilidade de fazer valer seu discurso; validação Não é possível aplicar tal definição também ao
garantir a prevalência de uns sobre outros (os nem suas regras revela um olhar crítico sobre personagens da sociedade é reforçado pela dar voz a uma expressão marginal, à medida que passa pela necessidade de afirmar que escritor/autor? Se o que ele busca, em relação
excluídos dos círculos de poder). Dentre esses as formas como tais poderes se estabelecem, explicação sobre a prisão do Dr. Antônio. que esta revela o mundo a partir de um ponto “– Estas memórias são uma confissão e não ao público/leitor, é convencê-lo da proprieda-
excluídos está o fora-da-lei que, por ver toda surgindo, daí, uma certa simpatia, por parte Destacando a “tradicional desconfiança minei- de vista particular, diferente do que é definido um romance” (p.129). Por trás dessas palavras de de sua narrativa, o que é, afinal, a crítica
esta dinâmica a partir de um ângulo próprio do cronista, em relação ao criminoso; simpa- ra”, o cronista atribui a um “impulso irrefleti- por uma concepção de mundo estabilizada por esconde-se, ironicamente, uma forma de valo- senão a reunião de “ladrões” a se gabarem de
– a condição periférica que o faz estar, ao tia explicitada pela descrição do Dr. Antônio, do” o descuido de cometer “o crime de roubar, leis, normas e costumes. rização que aproxima a verdade da expressão suas artimanhas cínicas e irônicas? Não é sem
mesmo tempo, no mais extremo do fora e do quando o jornalista o observa caminhando depois de se ter intitulado capitalista. Quanta individual desinteressada e a afasta das mani- razão, então, que ambos – ladrão e escritor/
dentro, posições excluídas pelos limites que pela cidade: tolice! Quanta falta de observação!” (p.26). Como entender, então, esta ação de apropria- festações artísticas e literárias. A partir daí é autor – terminam essas Memórias em um dueto
definem uma normalidade flutuante entre a Ao associar a prática do roubo à atividade ção de um discurso e a ocultação da autoria? possível, então, perceber a estratégia de João do definitivo: “Que homem interessante que eu
participação (o suficiente para a manuten- Olhei-o com respeitoso carinho. Só o saber capitalista, essa passagem denuncia a injus- É reconhecida a predileção do jornalista João Rio ao se travestir sob a fantasia do depoente. fui! Que interessante que eu sou!” (p.279).
ção do poder) e a alienação (o bastante para que enganava os outros, sem que a polícia tiça do tratamento dispensado aos ladrões de do Rio pelo submundo marginal onde desfi-
não se envolver diretamente com as mazelas o pudesse prender, dava-lhe uma auréola hotel – como o Dr. Antônio – marginalizados lam prostitutas, trapaceiros e ladrões, o avesso Se o ladrão deseja a bolsa e a legitimação do 1. A Notícia, Rio de Janeiro, 20.8.1911 – o artigo é reprodu-
e contradições inerentes à organização que de superioridade mental. Que diferença por transgressões menos vultuosas que as sombrio da cidade símbolo do poder consti- capitalista, o escritor/autor marginal deseja o zido na edição das Memórias aqui utilizada: MACIEL, Arthur
Antunes. Memórias de um rato de hotel / Dr. Antônio. Rio de
estabelecem) –, compreende mais claramente entre um grande artista, um grande polí- praticadas – e valorizadas – pelos “respeita- tuído e em pleno processo de modernização discurso do ladrão para a legitimação do seu Janeiro: Dantes, 2000, p.21-9).
2. Em nota prévia à citada edição das Memórias, o bibliófilo
as leis de seu funcionamento, reconhecendo tico e um grande gatuno? Mas, no ponto dos” senhores que definem o bem e o mal das positivista. Além disso, sua própria condição próprio discurso. Em ambos os casos, isso não Plínio Doyle narra como, por acaso, encontrou em um sebo
uma antiga edição das Memórias de um rato de hotel, de
os verdadeiros interesses por trás dos concei- de vista da finura para realização de uma apropriações, acumulações e lucros. homossexual era, em relação às normas e se dá para que estes marginais, de posse da autoria de um desconhecido Dr. Antônio, contendo uma
tos de honestidade, moralidade e propriedade; obra precisa, nenhuma. [...] Mas o gatu- costumes da “distinta” sociedade, um estado propriedade legítima, passem a fazer parte do intrigante anotação – “O autor deste livro é João do Rio” –
assinada por Francisco Prisco (figura reproduzida na página
e, por isso, não tem pudor em transgredir os no da cidade é uma flor de estufa. Não Essas concepções pertencem ao próprio João de exclusão e marginalidade. Assim, nada mesmo círculo que os despreza, mas para que, ao lado).

limites estabelecidos e definir suas próprias tem força, tem gênio; não tem revólver, do Rio, e estão assinadas na mencionada mais previsível que o escritor/autor se sentir deslocado o local de legitimação, toda a estru-
regras a partir de suas concepções pessoais tem habilidade; não incute pavor, inspi- crônica, onde revela suas impressões sobre o atraído, e até mesmo identificado, por esses tura excludente e elitista seja transformada por
Vera Casa Nova é Professora da Faculdade de Letras
de bem e mal, certo e errado. No entanto, ra simpatia. A sua obra é sutil e irônica. conhecido ladrão e analisa sua atividade em sujeitos destoantes da prosa comum dos salões um novo paradigma de validade e verdade. Isso da Universidade Federal de Minas Gerais e Doutora em
Semiologia. | Rodrigo Garcia Barbosa é Mestrando em
ainda que conhecedor destes mecanismos, este Ela passa como um imposto ocasional à relação a outras que compõem o quadro social aristocráticos e dos gabinetes de poder. Prova vale tanto para o sujeito social, que procura Literatura Brasileira pelo Programa de Pós-Graduação em
Letras: Estudos Literários da FALE/UFMG e Bacharel em
“contraventor” – o simples ladrão de hotel – ladroeira organizada. No seu vivo olhar, da capital federal do início do século. No disso são, dentre tantas outras, as crônicas novas formas de estabelecer-se, quanto para o Letras/Português (FALE/UFMG).

14. Janeiro 2009 JOÃO DO RIO E DR. ANTÔNIO VERA CASA NOVA + RODRIGO GARCIA BARBOSA JOÃO DO RIO E DR. ANTÔNIO VERA CASA NOVA + RODRIGO GARCIA BARBOSA Janeiro 2009 .15

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