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Junguiana

REVISTA DA SOCIEDADE BRASILEIRA DE PSICOLOGIA ANALÍTICA

CARLOS BYINGTON
EXCELÊNCIA E HONORABILIDADE
Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica (SBPA)
Member of the International Association for Analytical Psychology (IAAP)
Junguiana
REVISTA LATINO-AMERICANA DA SOCIEDADE
BRASILEIRA DE PSICOLOGIA ANALÍTICA
Volume 37-1/2019

Editoral A revista Junguiana tem por objetivo publicar trabalhos originais que
Vera Lúcia Viveiros Sá – editora-geral contribuam para o conhecimento da psicologia analítica e ciências
Fani Goldenstein Kaufman – editora assistente afins. Publica artigos de revisão, ensaios, relatos de pesquisas, comu-
Victor Roberto da Cruz Palomo- editor assistente nicações, entrevistas, resenhas. Os interessados em colaborar devem
seguir as normas de publicação especificadas no final da revista.
Conselho Editorial A Junguiana também está aberta a comentários sobre algum
Augusto Capelo artigo publicado, bastando para isso enviar o texto para o e-mail
Fani Goldenstein Kaufman
artigojunguiana@sbpa.org.br.
Fernanda Gonçalves Moreira
Marfiza Reis
Maria Zelia de Alvarenga
Vera Lucia Viveiros Sá SOCIEDADE BRASILEIRA
Victor Roberto da Cruz Palomo DE PSICOLOGIA ANALÍTICA
Zara Oliveira Freitas Magalhães Lyrio

Conselho Editorial Internacional SBPA-São Paulo


Axel Capriles – Sociedad Venezolana de Presidente Ana Maria Cordeiro
Analistas Junguianos Diretor Administrativo/Tesouraria Priscilla Wacker
Jacqueline Gerson – Asociación Mexicana Diretor do Instituto de Formação Jane Eyre Sader de Siqueira
de Analistas Junguianos Diretora de Cursos e Eventos Maria Beatriz Vidigal
Juan Carlos Alonso – Asociación para el Desarrollo Diretora da Biblioteca Letícia Taboada
de la Psicología Analítica en Colombia – Adepac Diretora da Clinica Dora Eli Martin Freitas
Luis Sanz – Asociación Venezolana de Psicología
Diretora de Comunicação/Divulgação Luciana Bagatella
Analítica
Mariana Arancibia – Grupo de Estudios C. G. Jung São Paulo
de Chile Rua Dr. Flaquer, 63 – Paraíso – 04006-010
Mario E. Saiz – Sociedad Uruguaya de Psicología Analítica Telefax: (11) 5575-7296
Nestor Costa – Asociación de Formación e Investigación E-mail: sbpa@sbpa.org.br
en Psicología Analítica Home page: www.sbpa.org.br
Patricia Michan – Asociación Mexicana de Analistas
Junguianos
Vladimir Serrano Pérez – Fundación C. G. Jung SBPA-Rio de Janeiro
del Ecuador Presidente: Maddi Damião Júnior
Administração e Secretaria: Marcelo Fiorillo Bogado
Publicação e Biblioteca: Alexandre Alves Domingues
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São Paulo, SP Finanças e Tesouraria : Carla Maria Portella Dias Bezerra 
João Frayze-Pereira – Universidade de São Paulo, SP Cursos e Eventos; Ensino: Elizabeth Christina Cotta Mello
Mariluce Moura – revista Pesquisa Fapesp, SP Tel.: (21) 2235-7294
Marisa Müller – Pontifícia Universidade Católica, RS E-mail: sbparj@bighost.com.br
Paulo Vaz de Arruda – Faculdade de Medicina da Home page: www.sbpa-rj.org.br
Universidade de São Paulo, SP

Capa: Ana Gabriela Barth Indexação


São Paulo, 2018 Index Psi Periódicos: www.bvs-psi.org.br
Junguiana Base de dados Lilacs/Bireme – Literatura Latino-
-Americana e do Caribe da Saúde, da Organização
Pan-Americana da Saúde (Opas) e da Organização
Mundial da Saúde (OMS). www.bireme.br
PePSIC http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?lng=pt

Editora CABOVERDE

Junguiana: Revista da Sociedade Brasileira


de Psicologia Analítica – n.1 (1983)
São Paulo: Sociedade, 1983 -
Semestral
ISSN 2595-12971
1.Psicologia – periódicos
CDD 150

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Junguiana
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Editorial

A contribuição da obra de Carlos Byington afirma-se in-


contornável para a difusão do pensamento junguiano. Carl
Gustav Jung procede a seus estudos iniciais sobre a investi-
gação da psique em colaboração com Eugen Bleuler na Zuri-
que do início do século XX e, após a profícua troca missivis-
ta e dos encontros em que coteja sua própria compreensão
da psique com a teoria em construção por parte de Sigmund
Freud, afasta-se da Escola de Viena e estrutura um arcabou-
ço teórico que contaria com seguidores em muitos países.
No Brasil, Byington foi um dos responsáveis pela introdu-
ção desses pressupostos teóricos, constituindo-se como
um dos facilitadores para a recepção das ideias do analista
suíço, tarefa que resultou na formação de muitos núcleos de
estudos. Especialmente, participou como um dos membros
fundadores da Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica
(SBPA), em 1978.
Jung enfatiza a coordenação arquetípica do processo de
individuação na segunda metade da vida, edificando os ali-
cerces para o estudo do desenvolvimento normal e patológi-
co da consciência individual e coletiva. Alguns pesquisado-
res como Michael Fordham, Erich Neumann, Jolande Jacobi e
Edward Edinger aprimoraram pesquisas em que postulavam a formação do eu e da consciência, coordenados
arquetipicamente, desde o início da vida. Todavia, as descrições das estruturações arquetípicas do Ego e da
Sombra, a partir da infância, além da atenção especial aos conceitos de Símbolo, a Funções Estruturantes e
suas fixações – as Defesas –, motivaram Carlos Byington a criar uma sistematização teórica própria, designa-
da como Psicologia Simbólica Junguiana. Ao incluir contribuições modificadas de Jung, Neumann e da Psica-
nálise, além de pressupostos da Ontologia, da obra de Heidegger, das neurociências, entre outras fontes, o
eminente analista paulistano de alma carioca erigiu um conjunto conceitual de fôlego.
O Conselho Editorial da Revista Junguiana homenageia uma obra com tamanha pujança com a seleção de
13 artigos, disponibilizados cronologicamente, o que permite contemplar a complexidade conceitual e a elabora-
ção permanente de mitologemas e complexos culturais feitas pelo autor. Como pórtico a esses textos, publicamos
mensagens de reconhecimento e saudade feitas por colegas que puderam compartilhar da afetividade inerente à
sua presença, assim como da sua experiência. “Uma teoria simbólica da História: o mito cristão”, “A morte e a res-
surreição de Messias” e “Uma explicação arquetípica da crucificação” são artigos em que o mito cristão é amplifi-
cado, de forma a elaborar sua pertinência para a compreensão da Sombra cultural e do dinamismo de alteridade. O
artigo “A democracia e o arquétipo de alteridade” tangencia essas premissas, assim como “A sombra e o mal: o pa-
radoxo do Arquétipo Central”, em que as formulações sobre esse constructo teórico são clarificadas. Outros arran-
jos que contribuem com o aperfeiçoamento dessa argumentação são feitos por Byington nos artigos “Ciência sim-

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bólica: epistemologia e arquétipo” tro obsessivo-compulsivo” e “Arte a desconhecem e promova uma


e “Os sentidos como função estru- e psicopatologia”. Finalmente, nova visita aos que são iniciados
turante da consciência”. selecionamos artigos em que são e se regozijaram pelo privilégio
eloquentes as amplificações sobre de assistir a e conviver com um
A aplicação da Psicologia Sim-
temas instigantes da subjetividade pensador devotado à Psicologia
bólica Junguiana para a compre-
ou da cultura, como “Arquétipo da Junguiana e que defendia, em in-
ensão e o tratamento dos sofri-
vida e da morte”, “Futebol: a gran- flexão emocionada, sua contribui-
mentos da alma constituiu outro
de paixão do povo brasileiro” e ção mais instigante para a clínica
legado desse clínico arguto, como
“A difícil arte de amar”. e para a cultura: o conceito de pro-
se apreende a partir da leitura
cesso de individuação.
dos artigos sobre psicopatologia: Esperamos que essa antologia
“Amadeus: a psicologia da inveja”, desperte o interesse pela obra de Boa leitura!
“A perspectiva simbólica do espec- Carlos Byington para aqueles que
Os Editores

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Sumário
Contents

7 Carlos Amadeu Botelho


Byington
Excelência e honorabilidade
21 Uma teoria simbólica da
história. O mito cristão como
A symbolic theory of history. The Christian
Myth as the main structuring-symbol of the principal símbolo estruturante
Alterity Pattern in Western culture do padrão de alteridade na
cultura ocidental
Carlos Amadeu B. Byington

73 Amadeus. A Psicologia
The psychology of envy and its role in the da Inveja e sua função no
creative process: a study of processo criativo: um estudo
symbolic psychology
da Psicologia Simbólica
Carlos Amadeu B. Byington

115 A ciência simbólica.


Epistemologia e arquétipo:
Symbolic science. Epistemology and
archetype. A holistic synthesis of objective uma síntese holística do
and subjective knowledge conhecimento objetivo e
subjetivo
Carlos Amadeu B. Byington

135 A democracia e o arquétipo da


alteridade
Carlos Amadeu B. Byington

151 A perspectiva simbólica do es-


The symbolic perspective of the obsessive-
compulsive spectrum Freud .
pectro obsessivo-compulsivo.
“Project” revisited by Jung’s archetype O “projeto” de Freud revisita-
do pelo arquétipo de Jung
Carlos Amadeu B. Byington

175 O arquétipo da vida e


The archetype of life and death. A study of da morte. Um estudo da
Symbolic Psychology
Psicologia Simbólica
Carlos Amadeu B. Byington
201 Os sentidos como funções
The archetype of life and death. A study of estruturantes da Consciên-
Symbolic Psychology
cia. Um Estudo da Psicologia
Simbólica
Carlos Amadeu B. Byington

Art and psychopathology: the


209 Arte e Psicopatologia: a
sadomasochistic defense and the
defesa sadomasoquista e a
transcendence of evil. An enigma that transcendência do mal. Um
brings together the life and work of enigma que reúne a vida e
Franz Kafka. A study of Jungian Sym- a obra de Franz Kafka. Um
bolic Psychopathology
estudo da Psicopatologia
Simbólica Junguiana
Carlos Amadeu B. Byington

The Shadow and the Evil. The para-


221 A Sombra e o Mal. O paradoxo
dox of the Central Archetype. A study
do Arquétipo Central. Um
of estudo da ética pela Psicologia
ethics by Jungian Symbolic Psychology Simbólica Junguiana
Carlos Amadeu B. Byington

Football: the great passion of the


231 Futebol: a grande paixão do
Brazilian people. A study of Jungian
povo brasileiro. Um estudo da
Symbolic Psychology Psicologia Simbólica Junguiana
Carlos Amadeu B. Byington
The death and resurrection of the
Messiah. The Shadow, the Evil and the
241 A morte e a ressurreição do
Antichrist. A study of the ethical func- Messias. A Sombra, o Mal e
tion, by Jungian Symbolic Psychology o Anticristo. Um estudo da
função ética, pela Psicologia
Simbólica Junguiana
Carlos Amadeu B. Byington

The difficult art of loving. Limitation of


251 A difícil arte de amar. A
knowledge between man and woman. An inter- limitação do conhecimento
pretation of Jungian Symbolic Psychology entre o homem e a mulher. Uma
interpretação da Psicologia
Simbólica Junguiana
Carlos Amadeu B. Byingto

An archetypical explanation of the crucifix-


261 Uma explicação arquetípica
ion of Jesus by the archetypical da crucificação de Jesus pela
theory of history teoria arquetípica da história
Carlos Amadeu B. Byington

275 Normas
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CARLOS AMADEU BOTELHO BYINGTON


(1933-2019)
EXCELÊNCIA E HONORABILIDADE

Carlos Byington – Criatividade e Sombra

Maria Helena R. Mandacarú Guerra


Email: mhrmguerra@gmail.com 

Quando o amor e a convivência nos aproxi- médico psiquiatra, humanista, pensador, teórico
mam tanto de uma pessoa, fica muito difícil falar e criador da Psicologia Simbólica Junguiana.
sobre ela sem que uma parte de nós mesmos se A primeira vez que li um texto de Carlos foi em
entranhe em nossas palavras e nosso olhar pas- 1975. A revista Planeta publicou sua palestra em
se a ser mais subjetivo que objetivo. homenagem ao centenário de Jung. Passados 10
Ciente deste risco, atrevo-me a escrever so- anos de sua volta de Zurique, onde fez sua for-
bre Carlos Byington, meu marido e companheiro, mação de analista junguiano, várias vezes Car-

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los se referiu a este momento como o retorno de No ano passado, quando estivemos em Bo-
sua criatividade. gotá para aquele que seria seu último congresso
Em 1978 estive no primeiro curso aberto latino-americano, visitamos a Catedral de Sal.
que Carlos ministrou aqui em São Paulo: “De- Fui surpreendida por um pedido de casamento
senvolvimento Arquetípico da Personalidade”. e pela realização de uma cerimônia só nossa,
Entre outubro e dezembro a Academia Paulista testemunhada por Rita, sua filha e minha grande
de Letras, no Largo do Arouche, recebeu por 10 e querida amiga. Era Carlos me surpreendendo
noites inúmeras pessoas ávidas por conhecer uma vez mais.
suas ideias. Em 13 de março, dia de seu aniver- Embora Carlos dissesse que, no fundo, nin-
sário, a SBPA havia sido fundada e o universo guém conhece o Outro, eu o conhecia bastante
junguiano instalava-se em São Paulo causando a ponto de poder imaginá-lo lendo este peque-
um grande frisson. Anos mais tarde, Carlos gos- no texto e dizendo: – “E a Sombra? Onde está
tava de dizer às pessoas que estávamos juntos a Sombra?”
Carlos não gostava de unilateralidade, e
desde então, embora ele sequer tivesse me vis-
menos ainda de imaginar alguém sem Sombra.
to e eu, nem na mais remota fantasia, pudesse
Dourar a pílula, ou – para de novo recorrer a
imaginar o que viveríamos.
uma expressão que ele usava – “passar a mão
Carlos foi muitos. Não à toa assinava seus
na cabeça da defesa”, não era com ele. Enquan-
e-mails para a família como Carlos, papai, vovô
to lhe foi possível, buscou elaborar sua Sombra
e biso. Foi extremamente criativo, vibrante, pro-
como poucos. Tinha tal desenvoltura com este
fundo, gentil, amoroso, exuberante – para usar
processo, que nem sempre agradava seus in-
uma palavra que lhe era cara. Sim, Carlos era
terlocutores, em geral menos familiarizados do
exuberante. Suas aulas e palestras eram mar-
que ele com a própria Sombra e incomodados
cadas pelo entusiasmo próprio de sua natureza
com o que lhes era apontado. O rigor que tinha
dionisíaca. Culto, interessado em aprender, ávi-
com os outros, tinha com ele próprio. Lembro-
do por viver, dedicado a transmitir suas ideias e
-me que, no início do nosso relacionamento,
conhecimento, seu processo de individuação era uma das coisas que mais me atraiu nele foi sua
inseparável da construção de sua obra. capacidade de encarar e elaborar a Sombra e,
Tive o privilégio de viver o século XXI a seu uma vez tendo percebido o erro, transformar
lado. Exceto quando estávamos em nossos sua atitude ou comportamento.
consultórios, passávamos praticamente todo o Carlos viveu intensamente. Permaneci a seu
tempo juntos. Em nossas vidas muitas coisas lado até que partiu para onde não me foi dado
poderiam acontecer – e aconteceram – mas té- acompanhá-lo. Generoso, deixou a todos nós
dio, jamais! Carlos sempre tinha uma ideia a de- uma obra profunda e abrangente. Comigo, den-
senvolver, um livro para escrever, um tema para tre tantas vivências, trago o som de sua voz amo-
elaborar, algo para descobrir e compartilhar. Seu rosa cantando para mim, quando sua chama já
universo era extenso e profundo, e estar com ele estava por se apagar, “é o amor...” e a foto que
era ser constantemente estimulada, desafiada, pediu para tirarmos juntos – símbolos vivos do
incentivada, provocada. amor que nos uniu.

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Passou...
10/02/2019
Gustavo Orlandeli Marques
Email: quironyoda@yahoo.com

Passou a brisa, o dia;


Passou o riso, a alegria;
Passou a letra, a melodia;
Passou o dia, a vida.

Experiência e sabedoria;
Insistência e teimosia;
Inovação, nova teoria;
Dentro e fora da academia.

O que passou mesmo foi a rima;


Poesia agora sem imaginação ativa;
Passou a traquina alma em alquimia;
Um mestre, última lição que nos ensina.

Passou agorinha mesmo por aqui;


Parece que já era eterno quando primeiro vi;
Me fez lembrar que já já me farei ir;
Que passou por mim e mal vi;
E ainda me fez lembrar que me encontrarei com ele ...logo ali.

Ao Mestre Byington
Obrigado 
Abraço

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Ao BYINGTON,
Iraci Galiás
E-mail: imeg@uol.com.br

Partiu dentre nós colega importante, por tan- Byington, seja qual for sua forma de existir.
to tempo amigo, mestre, com Que sua lembrança em nossos
sua criatividade ímpar. corações, pensamento e almas continuem
Receba minha gratidão e reconhecimento dando frutos, fertilizando como
eternos, por todo o aprendido e tantas vezes o fez. Que nossa gratidão che-
por todo o recebido, em momentos tão difí- gue a você.
ceis de minha vida. Um abraço amigo.
Que a criatividade, sua marca registrada in-
tensa, acompanhe você.

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Carlos Byington,
Nairo de Souza Vargas
E-mail: nairosvargas@gmail.com

Faleceu um colega, amigo e mestre. Conhece- Byington, você fará falta. A SBPA sabe disso.
mo-nos em 1975, centenário de Jung. Convidamos Você cumpriu sua missão e realizou seu sonho
professores de outros países, para nossos estu- de vida. Vá em paz e certo de que sua memória
dos. Por sugestão de Guggenbühl, então presi- permanecerá entre nós, que tanto aprendemos
dente da IAAP, fundamos nossa querida SBPA, com você.
motivo de orgulho e realização para todos nós. Um obrigado amigo.

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Homenaje Carlos Byington


São Paulo, 11 de febrero de 2019

Mensaje de la Sociedad Uruguaya-Argentina de Psicologia Analitica (SUAPA)


A nuestro Querido Profesor Carlos Byington, Los infinitos mensajes de cariño y respeto
Desde hace mucho tiempo, Carlos nos acom- que hemos recibido de los colegas, dan cuenta
paña amorosamente con su sabiduría, integridad que su misión fue más que cumplida y a través
y generosidad y le estaremos siempre agradecidos. de sus seminarios, conferencias y libros nos deja
Analista de varios, supervisor de otros, pro- un legado muy importante; el desafío a re-pensar
fesor de tantos pero siempre con una actitud tan el paradigma Junguiano. Ya es hora de disfrutar
aguda como respetuosa. Desde su conciencia de un merecido descanso en paz y en amor.
cósmica nos interpela y nos invita a pensar; des- Honrarlo es celebrarlo como el Maestro que
de las Marionetas del Self a sus ampliaciones en fue pero que seguirá estando vivo en nosotros.
la concepción del psiquismo Junguiano. Infinitas Gracias Querido Carlos! Te vamos
Ante todo, Carlos era un apasionado de la a extrañar …
vida y sabía trasmitir con pasión, creatividad y Los analistas de SUAPA.
humor sus conocimientos, que él mismo cuestio-
naba, con mucho coraje y valentía.

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Mensaje de la Sociedad Peruana de Psicologia Analitica (APPA) – Grupo


de Desarrollo de Peru.
Despedida a un gran maestro
Hoy se nos fue un gran maestro, aquel que bla de éste momento de despedida: “del gran
rodeado de sus marionetas nos hablaba y nos viaje de la encarnación del Ser y de las transfor-
enseñaba sobre la alteridad, las funciones es- maciones por las cuales pasamos desde que na-
tructurantes, los símbolos, las fases de la vida, cemos hasta ir comprendiendo mejor lo que nos
la imaginación activa, las emociones, de Freud, sucedió. El desapego del cuerpo físico no es una
de Jung, construyendo puentes y unificando. despedida, ocurre por sí solo, por el propio cuer-
Siempre desde la mirada creativa, alegre, gene- po que empieza a retirarse. Él ocurre en el Kairos
rosa, exuberante de su personalidad. Tanto por del cenit del Ser que trae la posibilidad de un ex-
agradecerle, su obra y sobre todo su vitalidad, su traordinario aumento de conciencia para cono-
amor por la vida y el Eros que transmitía a todos cer mejor un lugar donde siempre estuvimos…”
los que tuvimos el privilegio de ser sus alumnos. El maestro emprendió su viaje iniciático, el via-
En su libro de El viaje del Ser en busca de la je cósmico para el encuentro con el Espíritu de la
eternidad y el infinito hay un párrafo que nos ha- Creación y de la Totalidad. Buen Viaje Maestro!!

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Mensaje de la Sociedad Uruguaya de Psicologia Analitica (SUPA)

La Sociedad Uruguaya de Psicología Analíti- Cuando quisimos acordar, estaba instalado


ca, haciéndonos eco del sentir de tantos miem- en nuestro corazón, como si se tratase de un
bros de nuestra comunidad,queremos enviarles, destino que no sabíamos que ocurriría, pero que
primero que nada, a nuestros hermanos brasile- aceptamos y que ya nunca nos dejó.
ros un mensaje de unión y de afecto frente a esta Creemos que tampoco nos dejará de ahora
orfandad común. Que el dolor pase y que en el en más, porque dejó instalada en nosotros su
recuerdo de su vida encontremos el consuelo. visión cósmica de la vida humana, en la que la
Hace más de cuarenta años que este hombre de- unidad no se pierde con la muerte y sigue exis-
sembarcó en Uruguay y nos conquistó para siempre. tiendo por los siglos de los siglos.
Nos enseñó, nos peleó, nos animó. Nos reí- A su familia, nuestro más sincero agradeci-
mos, pensamos y nos maravillamos frente a su miento por haberlo sostenido desde siempre.
visión de la Psicología, del mundo y de la vida. En nombre de SUPA, sus amigos y devotos.

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Pilar Amenzaga
Email: pilar.amenzaga@gamil.com

La relación de los uruguayos con Carlos duró Maestría en Psicoterapia Junguiana que se dicta
40 años. Comenzó con el encuentro de Carlos en la Universidad Católica de Uruguay desde 1994.
con Mario Saiz en un Congreso de Psiquiatría en Nos contagió primero que nada de entusias-
Rio de Janeiro y terminó físicamente con las pa- mo, de querer saber más, de imaginar abordajes
labras de Mario, en su nombre y en el nuestro terapéuticos nuevos, de pensar a las personas
durante su velatorio. unidas a la totalidad y por lo tanto participando
Nos fue educando en Psicología Analítica y en el de lo eterno en el hombre. Su Psicología Simbó-
análisis junguiano, como debe ser, a la manera de lico Arquetípica, su obra maestra, ha dejando en
Carlos Byington: gracioso, interesante, profundo, nosotros una profunda huella en la comprensión
cariñoso, siempre asombrado ante el misterio de de la Psicología Analítica.
cada persona y dispuesto a recorrer junto a noso- Podíamos mirar hacia San Pablo y rezar una
tros los caminos nuevos que se nos iban abriendo. oración secreta a Dios por haberlo conocido,
Supo conjugar para nosotros la fiesta brasi- por haber tenido la inmensa fortuna de poder
lera con la seriedad uruguaya. Nos tocó, nos re- contar con é l y con su enorme amor y sabiduría.
ímos, lloramos y nos recostamos en él, siempre Pionero y fundador, guerrero y sabio, buscó
imprevisiblemente confiable. incansablemente él también, como Jung, “aden-
Cuando llegó a Uruguay y dio su primera con- trarse en el secreto de la personalidad humana”
ferencia allá por 1980, supimos que habíamos con una ética de alteridad extraordinaria.
sido conquistados para siempre. Como amigo fiel, Esperemos, los que lo hemos seguido y que-
él volvió todos los años, todas las veces que se rido, que el dolor pase y que en el recuerdo de su
lo pedimos. Contagió al público que asistió a sus vida hallemos el consuelo para la partida de un
conferencias y a sus alumnos de los cursos de la Maestro-Amigo.

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Al Querido Maestro-Amigo
Mario Saiz
Email: esaiz@netgate.com.uy

Ahora quisiera decirles personalmente que es- que marca su desarrollo posterior: su lado crea-
tos mensajes que he leído son ejemplos que nos tivo y lúdico se inicia en su tesis de Zurich, sobre
traen el sentir profundo de tristeza y admiración dos opuestos que se unen, Freud y Jung, y asi
de los analistas y routers de latinoamerica ante la se va introduciendo con fuerza y convicción en
partida Carlos, recordemos que hace más de 35 la importancia arquetípica de la alteridad, alteri-
años viajaba a Montevideo, participando en la dad en las relaciones humanas, en la amistad y
Maestría en Psicoterapia Analítica en Latinoameri- en el pareja, entre los opuestos, y por ahí se va
ca, viajando luego a Santiago de Chile en otra Ma- deshojando un nucleo de saber sobre lo simbó-
estria en Psicología Clínica, a Quito en la formaci- lico que recorre todo su pensamiento y su obra,
ón de los routers, a Caracas en varias ocasiones, asi como también su vida. No hay alteridad sin la
en Lima hace dos años, y finalmente en nuestro dimensión de lo simbólico, y ese es el comienzo
último Congreso latinoamericano en Bogotá… ese de un llamado potente, propio del siglo XXI, que
es el legado de su presencia, sus conferencias, nos impele a continuar explorando y transitando
sus talleres, sus supervisiones, sus analisis con por ese camino…
mucho de nosotros, sus encuentros, recuerdo Carlos ha sido, como lo llamaría Sócrates, un
que hace pocos años en uno de esos encuentros, maestro-amigo. Nos enseño el amor por el co-
luego de terminar un seminario, me decia: a ve- nocimiento, y mejor aún, el amor por el saber,
ces me parece que no leen lo que escribo, y yo le nos trajo a la experiencia del saber al convocar-
decía, bueno no es eso, es que lo tuyo requiere nos a encuentros más personales, más íntimos,
estudiarlo, pensarlo, reflexionar, no solo leerlo. Y pero de la intimidad de quien busca la verdad, la
por ahí nos íbamos… Y se quedaba pensando… plenitud, la conexión cósmica, de esto se trata
Ese es el legado de su presencia, pero ahora su obra sobre la psique humana y la psique del
tenemos ademas el legado de su ausencia que cosmos: el amor por el alma, la psique y la vida.
es otra presencia: la de su obra en el dominio de No hay palabras para despedirlo, hay solo
la psicologia, de la pedagogia, del arte, de la cul- sentires para el maestro-amigo, sentires que
tura, de la historia, y de la clinica… el nos enseño como la naturaleza misma aman ocultarse, para
una manera especial del sentir, del pensar, del un día despertar plenos de fecunda energía, ple-
intuir, con una actitud y un modo propiamente nos de Sophía, plenos de pasión por una vida
simbólico, origen de su pensamiento más crea- nueva, una vida que re-nace con la fuerza del
tivo y más propio, y por momentos el más íntimo. Eros que Carlos encarna en nosotros!
No podemos sintetizar aquí un pensar tan Un abrazo grande y profundo, una abrazo
vasto, pero si podemos hablar de un comienzo cósmico para Carlos, y para todos ustedes.!

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Meu Encontro com Carlos Byington
José Raimundo Gomes
Email: jrgomespsi@yahoo.com.br

“... ele (Jung) gostaria que as pessoas per- 5) Fiquei muito impressionado com o artigo.
cebessem Deus presente nas coisas mais Naquela época eu exibia um comportamento es-
simples da vida como manifestação da tranho. Quando gostava de um determinado livro
sua grandeza absoluta e eterna”.  procurava saber se o autor residia no Rio de Ja-
Carlos Byington no vídeo documentário neiro. E se residisse, ia até um “orelhão”, telefo-
JUNG E O OCULTISMO. Entrevista aos psi- nava para o indivíduo e perguntava se podia me
cólogos José Raimundo Gomes e Carlos receber para entrevista-lo sobre o tema abordado
no livro. Conheci muitas pessoas interessantes
Augusto Silva. 
usando esse estranho método de aprendizagem. 
1) Conheci CARLOS BYIGNTON afundado numa 6) Agi exatamente assim com CARLOS BYIG-
crise existencial. Estava no 4º período do curso NTON. Descobri o telefone de seu consultório e
de psicologia e acabara de me deparar com um marquei uma entrevista com sua secretária. Mas
livrinho chamado FUNDAMENTOS DE PSICOLOGIA neste caso, não se tratava de uma entrevista sobre
ANALÍTICA, de um autor completamente desconhe- o tema abordado na revista. Eu precisava urgente-
cido para mim. Chamava-se CARL GUSTAV JUNG. mente de um “hierofante” que ajudasse a tornar
minha vida angustiada em uma vida possível.
2) Naquela ocasião, minha vida era perambu-
lar pelo centro da cidade do Rio de Janeiro vas- 7) Tinha por volta de 23 anos naquela época.
culhando sebos e livrarias em busca de algum Frente a frente com CARLOS BYIGNTON derramei
conhecimento que inferisse sentido ao meu con- minhas mágoas, elenquei um por um dos meus
turbado mundo interior.  traumas infantis, citei Freud, Adler, Klein e outras
autores para finalmente dizer que um certo CARL
3) Eu devorava toda sorte de literatura psico- JUNG, a quem acabara de conhecer no balcão da
lógica que atravessasse o meu caminho, mas ao livraria Vozes, havia me tocado profundamente e
me deparar com os “FUNDAMENTOS” tive a sen- eu senti que o meu coração ansiava por aquele
sação de que estava diante de um homem que alimento vital.
realmente falava com o coração. 
8) Mas o pior ainda estava por vir. 
3.A) Foi então que Eu quis ler tudo sobre Dr. CARLOS BYIGNTON me escutava atenta-
aquele autor, mas naquela ocasião “FUNDAMEN- mente e mal se mexia em sua cadeira. Depois de
TOS” era o único livro disponível de CARL JUNG derramar todas as minhas neuroses sobre o seu
em língua portuguesa.  colo eu o encarei e respirando fundo busquei co-
4) Eu não tinha a menor ideia de que existiam ragem nas minhas entranhas para dizer: eu não
analistas junguianos espalhados pelo mundo tenho dinheiro para pagar a análise. 
até me deparar com um artigo de um certo CAR- 9) De súbito a sua fisionomia séria e atenta
LOS BYINGTON publicado numa revista chamada cedeu a uma gargalhada estrondosa. Fiquei pa-
PSICOLOGIA ATUAL. O artigo era uma análise jun- ralisado pois não consegui compreender o que
guiana do filme O ILUMINADO do cineasta ameri- exatamente aquela ruidosa gargalhada poderia
cano STANLEY KUBRICK.  significar. Lentamente seu rosto foi perdendo as

14 ■ Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 1º sem. 2019


marcas do sorriso, tornou-se sério e um profun- o aprofundamento nos estudos da psicologia
do silêncio se fez no consultório. Formou-se uma de CARL JUNG. 
certa tensão no ar. Ouvia-se o zunido do silêncio
15) Da juventude dos meus 23 anos até o iní-
e também as batidas do meu coração. Eu não te-
cio de minha velhice nos meus atuais 60 anos há
ria outra chance...
um espaço de tempo importante. Tantas coisas
10) Tinha feito duas ou três tentativas de aná- aconteceram, meu Deus! E eu me sinto tão bem,
lise antes de estar ali, mas abandonei todas elas tão feliz com todas as minhas infelicidades que
imediatamente ao iniciar... careciam de vida. constituem a eterna polaridade LUZ e SOMBRA
Mas diante de CARLOS BYIGNTON, que eu nunca que nos abraça por dentro. 
tinha ouvido falar e que só o conhecia do artigo
16) Através da análise com BYIGNTON pude
que lera na revista que comprei numa banca de
compreender que somos uma espécie de usina
jornal, tive a certeza de que encontraria partes
transformando em luz tudo que nos chega da es-
essenciais de minha alma, que se revelavam a
curidão do nosso ser profundo. Somos um Self
mim sob a forma intolerável de dor psíquica.
que flui, que chega, que nos convida a compre-
11) Ele levantou os olhos e me fitou com uma ender, a sentir, a saber. 
certa violência, como se quisesse vasculhar meu
17) Olhando retrospectivamente esse encontro
inconsciente para em seguida dizer: não sei por
compreendo perfeitamente que CARLOS BYIGN-
que, mas sinto que devo recebê-lo. 
TON não era para mim uma pessoa, se é que algu-
12) Ao ouvir essa declaração experimentei ma vez o foi, e tornou-se um símbolo estruturante
uma felicidade indizível pois tinha absoluta certe- (ele adorava essa expressão!), um anjo bom ou,
za de que aquele espaço sagrado era o lugar fami- se preferimos usar uma linguagem mais rebusca-
liar que a minha alma procurava para revelar-se. da, um objeto mental introjetado com sucesso ou
mesmo, como diria BION, uma FUNÇÃO PSÍQUICA
13) Não tive a impressão de que se tratava de
da ARTE DE COMPREENDER os SÍMBOLOS.
um ato caridoso dele para comigo. Acho que BYIG-
NTON sentiu que havia alma na minha vida. Não 18) Depois que CARLOS BYIGNTON foi para
porque eu me tornaria um arauto da psicologia São Paulo praticamente não o encontrei mais ex-
analítica, ou porque me tornaria analista junguia- cetuando-se quando lhe convidei para gravar um
no, doutor ou pós doutor. Não me tornei nada dis- vídeo documentário que estava produzindo cha-
so! Não sinto que tenha me visto como uma pro- mado JUNG E O OCULTISMO. Ele aceitou o convite
messa futura. Acho que BYIGNTON simplesmente e gravamos esse trabalho aqui no Rio de Janeiro.
me aceitou porque viu que algo em mim queria que
19) Por volta de uns 6 meses atrás pedi a uma
eu me tornasse quem eu sou e isso foi suficiente
amiga da SOCIEDADE BRASILEIRA DE PSICOLO-
para que me aceitasse como seu paciente. 
GIA ANALÍTICA (SBPA) que me avisasse quando
13.A) Ele era um homem completamente se- ele viria ao Rio. Senti vontade de vê-lo. Meditei
duzido pelo Self e jamais viraria as costas para sobre esse desejo e tive certeza de que não mais
sua vocação de grande sacerdote da alma.  o encontraria. Não fiquei triste pois reconheci
claramente que era essa a vontade do destino. 
14) Durante 5 anos fui ao Leblon ser atendi-
do por ele. Um homem extraordinário, de uma 20) Soube da homenagem que seria prestado
sensibilidade igualmente extraordinária. Os a ele na CASA QUINTAL no dia 13 de março, atra-
balbucios do meu ser inconsciente ganharam vés de uma amiga que é bordadeira! Não fosse
locuções límpidas, serenas e conscientes atra- ela me enviar o informativo do encontro eu não
vés das interpretações de CARLOS BYIGNTON e teria sabido desta homenagem. 

Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 1º sem. 2019 ■ 15


21) Como bom junguiano que sou julguei que “salvou a minha vida”!  mas não me incomoda
CARLOS BYIGNTON estivesse por trás da inusi- vez por outra me expressar como um tolo. 
tada situação que envolveu a bordadeira e que
23) Ademais,  CARLOS BYINGTON não foi o
quisesse a minha presença. Desmarquei o con-
único a “me salvar”, mas inegavelmente tudo co-
sultório e fui “ao seu encontro”. 
meçou na RUA ALMIRANTE PEREIRA GUIMARÃES,
22) Por fim, devo dizer que estou muito con- quando um garoto pobre, angustiado e sozinho
tente do destino ter me dado essa oportunidade encontrou alguém que falava com o coração. 
de conhecer esse homem que “salvou a minha”
Que Deus o receba na sua plenitude eterna.
vida. Parece tolo falar assim dessa maneira,

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Sem raiz não há frutos!


Prof. Dr. José Jorge de Morais Zacharias
Associação Junguiana do Brasil - AJB
Email: zacharias@terra.com.br

Como diz a sabedoria, pelos frutos conhece- lítica no Brasil, a SBPA, e a constante atividade
remos a árvore, o que vale considerar o caminho de pesquisa e ensino da Psicologia Analítica
inverso desta reflexão: sem raízes não há frutos! em nosso meio, possibilitou a disseminação da
Nossa tradição de investigação da Alma abordagem de Jung, o conhecimento mais amplo
vem de longa data, oriunda nas práticas tri- de termos analíticos e a formação de analistas
bais, passando pelas correntes religiosas, pela e pesquisadores dando continuidade à constru-
alquimia e subjetividades do conhecimento, ção deste edifício de conhecimento.
chegando à filosofia e à ciência contemporâ- Enquanto esteve entre nós, muito contribuiu,
nea. Um longo caminho que tem nomes bem muito ensinou, com profundidade e simpático
conhecidos como Platão, Agostinho, Boehme, humor inteligente. Minha experiência pessoal
Mesmer e Jung. Um edifício sólido e antigo na com o mestre sempre foi muito agradável e aco-
investigação profunda da psique, como um zi- lhedora. Agora, não tendo mais a presença física
gurate a perscrutar o infinito. do colega e professor, Byington passa a compor
Esta tradição chegou a nós nas obras ini- o corpo histórico da Psicologia Analítica junta-
ciais de Nise da Silveira, Sandor, Bonaventure mente com os luminares que o antecederam. Fi-
e alguns poucos colegas que deram origem ao cam os frutos deste vasto trabalho, de sua Alma;
movimento junguiano no Brasil, dos quais Dr. sua obra, seus ensinamentos, a lembrança dos
Carlos Byington é um importante protagonista. encontros e a gratidão. Agora ele é mais uma es-
Sua fundamental contribuição no estabeleci- trela na grande constelação junguiana, ou inver-
mento da primeira associação de formação ana- samente, na raiz de nossa tradição!

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Querido Byington,
Maria Cecilia Fava Pestana 
Email: ceciliafava@gmail.com

Minha eterna gratidão por ter compartilhado, contínuo processo de ampliação da consciência,
por anos, de sua criatividade, seu pensamento, seu inclusivo e de grande generosidade. Inquestioná-
fascinante percurso pelo simbólico, seja na psico- vel sua valiosa contribuição à Psicologia Analítica. 
logia, nas artes plásticas, na literatura, no cinema. Inspiração eterna!
Um profissional questionador, inovador, fiel ao Descanse em paz.

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Byington
Arnaldo Motta, março/2019
Email: arnaldomotta@uol.com.br

Uma luz,
que a muitos inspirou
com sua vibração intensa
e saber inesgotável.

Uma criatividade,
que soube transformar
a inquietação em palavras
professadas com generosidade,

Um guerreiro,
que muitas lutas lutou
e, com sua força,
abriu caminhos para que pudéssemos seguir.
Obrigado Mestre!

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Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 1º sem. 2019 ■ 17


Susana Toloza
Presidenta Sociedad Chilena de Psicología Analítica, SCPA
Email:susanatoloza@gmail.com

Quiero con estas palabras reconocer y agra- compartió su pensamiento y su quehacer, con
decer al maestro dr Carlos Byington por toda su una gran vehemencia y compromiso con la psi-
sabiduría y experienica compatida, en lo perso- cologia analítica, instándonos siempre a ir más
nal él fue un inspirador, un héroe capaz de inci- allá, buscando construir nuestro propio camino
tar a los junguianos a renovar la mirada y pen- de individuación.
sar-nos , un ejemplo vivo de una vida que logra Fue un gran inspirador y formador de los
profundizar en la capacidad creativa del ser hu- analistas en Chile y un gran motivador para que
mano , con valentía y compromiso. Fue y será un muchos otros profesionales de la psicología y
modelo de ser humano, cercano, disponible, un psiquiatría se interesaran por la formación jun-
maestro que iluminó el camino de la vida simbó- guiana en psicoterapia. Sus enseñanzas estarán
lica arquetípica, la experiencia simbólica, de la siempre presentes al realizar nuestro oficio tan
vida del alma. amado y valioso.
También escribo unas palabras hacienda Una de sus útilmas enseñanzas que tuve el ho-
eco del sentir de Sociedad Chilena de Psicología nor de recibir fue el valor de la meditación en el ca-
Analítica , como presidenta de la SCPA agrade- mino hacia el desapego, para transitar a una nueva
zco el acompañamiento, la formación y la amis- vida, y así haciendo honor a su búsqueda nos ha
tad construida después de al menos 15 años, de dejado para hacer su último viaje hacia la eterni-
frecuentes visitas a Chile, donde generosamente dad y el infinito, tal como tituló su ultimo libro.

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Honrando a Carlos Byington


Carmen Pinto, Psicóloga Sociedad Chilena
de Psicología Analítica, SCPA.
Email: carpinto2000@gmail.com

Apareció con su caminar suave y bondadoso Honro y agradezco el haber tenido el privi-
iluminando la sala. Era como la reencarnación legio de conocerlo y recibir sus enseñanzas.
de Jung, al menos así lo imaginaba y me llega- Profundos y poderosos misterios de la psiquis ,
ba su espíritu. expresados con esa cercanía y simplicidad que
Fue encantándonos con sus palabras y su sa- sólo tienen los verdaderos maestros que han al-
biduría, y empapando todo con su humanidad, canzado la síntesis.
su autenticidad, su ser sin máscaras. Buen Viaje querido Carlos!

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Marilene Rodrigues Fernandes
Analista membro IAAP e Sócia Fundadora S.C.P.A
Email:marilene.rodriguesfernandes@gmail.com

Doutor Byington foi meu professor no Brasil e depois


no Mestrado Junguiano do Chile. Pude assim testemunhar sua entrega e disponibilidade ao levar
seu conhecimento e experiência para muitos alunos e além das fronteiras. Sua didática e carisma
permitia compreender conceitos densos com humor e suavidade transpondo diferenças culturais e
de idiomas, legitimando assim o quanto a emoção também é capaz de integrar.
Meu respeito e agradecimento profundo ao mestre além de fronteiras, que fez de seu exercício de
ensino na experiência de alteridade inspiração para muitos.

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Lagostas
Henrique Torres
Email: torreshim@uol.com.br

No auge dos dezesseis, dezessete anos, Sem saber, minha primeira aula de análi-
percebendo que a vida não é o que as pesso- se: quantas vezes temos que mergulhar para
as diziam, percebendo que a vida é o que a enxergar.
VI-DADÁ. Um detalhe: na volta, rebocando a pequena
O pianista famoso não passeia com seu filho. lancha quebramos na estrada e eu passei três
As famílias não são o que elas parecem ser. horas sentado debaixo da lancha numa estrada
Eis que - um presente - Carlos Byington me no interior da Bahia. Bizarro.
convida para pescar lagostas com ele na Bahia
de São Salvador. Sentado na beira do cais
Uma pequena lancha, motor de popa, um ma- Uma enseada em Angra dos Reis. Numa pon-
rinheiro, e lá vamos nós. ta, a casa que eu ficava, do meu padrasto. Na
Ganchos na mão, lagostas no fundo do mar outra ponta, Carlos Byington e sua família. Entre
Primeiro mergulho: as pontas, muitos barcos. Numa tarde, ele com
Eu: duas varas de pescar, de bambu, me chama para
- Não vi nada. a beira do cais. Logo percebi que ele não estava
Ele: pescando. Como se diz, “estava dando banho na
- Não viu as lagostas no fundo? minhoca”. E chorando. Nada comentei, e nada
-Não. pescamos. A não ser eu aprender que o sal das
- Então vamos mergulhar de novo. lágrimas volta para o mar.
E assim fizemos. Uma, duas, três, quatro ve-
zes. Até que eu vi. Consultório 
Um mar de lagostas no fundo do mar. Freud, Jung e Carlos Byington. Alguns anos.

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Tangerina Amor
Os homens, com seus meridianos, dividiram “Todos os caminhos levam à ROMA”. Isto é,
o mundo em gomos. Como uma tangerina, ou todos os caminhos levam ao AMOR. Espalhado
será mexerica, ou será poncan? O fato é que os pelo mundo, o AMOR nos une. 
paralelos unem os gomos. Não existe pecado do Se o que faz o caminho é o caminhar, não se-
lado debaixo do Equador. Nem do lado de cima, guimos todos a mesma trilha, mas vamos todos
diz alguém no fundo da sala. Equador, Capricór- ao mesmo lugar. 
nio, Câncer. Cada um com seu gomo. Cada gomo Um caminho tem que bifurcar. Do contrário, só
com seu caroço. haveria o caminho de Compostela. Assim é. Que
cada um, em sua ‘derrota náutica’, há de chegar lá. 
Obrigado, nunca.
Grato, para sempre.

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Junguiana
v.37-1, p.21-72

Uma teoria simbólica da história. O mito


cristão como principal símbolo estruturante
do padrão de alteridade na cultura ocidental1

Carlos Amadeu B. Byington*

Resumo Palavras-chave
O artigo busca desenvolver uma conceituação são vistos reintensificando o dinamismo patriarcal antropologia
de Antropologia Simbólica que possa perceber e a ponto de patriarcalizar o Mito Cristão, estabelecer simbólica,
história
estudar o Self Cultural a partir de quatro estru- a dicotomia Cristo-Diabo e levar à dissociação do
simbólica,
turas arquetípicas básicas: matriarcal, patriar- Self Cultural no século XVIII, produzindo uma grave
self cultural,
cal, alteridade e cósmica, na sua transformação fixação cultural no desenvolvimento da alteridade alteridade,
histórico-evolutiva da Consciência Individual e no Ocidente daí em diante. São discutidos alguns patologia
Coletiva por intermédio de símbolos estrutur- aspectos dessa dissociação cultural e enfatizada a cultural,
antes. Esta metodologia nos permite estudar a importância do conceito de Patologia Cultural e de dissociação de
interação dos símbolos estruturantes de cul- resgate do dinamismo matriarcal ferido. ■ self cultural,
turas diferentes nas sociedades pluriculturais inquisição,
em contexto dinâmico e igualitário. renascimento,
defesas
Esta perspectiva simbólica aplicada à História
patológicas do
da Cultura Ocidental se destina a estudar a tran-
self cultural,
sição da dominância patriarcal para a alteridade por histeria.
intermédio dos símbolos estruturantes do Mito Cris-
tão. Simbolicamente, os 14 séculos de Inquisição


1
Este artigo é o resumo de um livro em preparo, com o mesmo
nome, que desenvolve o tema básico do trabalho “Uma Teoria
Mitológica da História”, apresentado no Simpósio Internacional
de Indagação sobre o Inconsciente, Painel Inconsciente e História,
UERJ, 1981, que, por sua vez, já foi a continuação do trabalho
“O Padrão Pós-Patriarcal na Psicoterapia. Uma Aplicação de uma
Teoria Mitológica da História”, apresentado no VIII Congresso
Internacional de Psicologia Analítica em São Francisco, 1980.
Reescrito especialmente para o primeiro número da Revista Jun-
guiana (Revista Junguiana 1, 1983, p. 8-63) e revisado em 2000.
* Médico Psiquiatra e Analista Junguiano. Membro fundador
da Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica. Membro da
Associação Internacional de Psicologia Analítica. Criador da
Psicologia Simbólica Junguiana. Educador e Historiador.
E-mail: c.byington@uol.com.br. Site: www.carlosbyington.com.br

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Junguiana
v.37-1, p.21-72

Uma teoria simbólica da história. O mito cristão como principal símbolo


estruturante do padrão de alteridade na cultura ocidental

1. Introdução 600 mil, vivem na sua cultural riquíssima ainda


Esta Teoria Simbólica da História busca apli- como uma pequena ilha escondida dentro da
car o conceito de símbolo estruturante e Self Cul- realidade nacional. Buscar uma identidade em
tural para compreender os acontecimentos his- meio a tanta dissociação é uma imensa tarefa
tóricos por intermédio da sua função simbólica cultural cuja realização apenas desponta.
na estruturação da Consciência Coletiva de cada Esta problemática de busca da nacionali-
cultura. Trata-se de tentar compreender o fato dade de uma sociedade pluricultural dentro de
histórico na dimensão simbólica como o vínculo um espírito democrático envolve a construção
do aqui e agora e suas raízes históricas com as da identidade em função de relacionamentos
estruturas ou arquétipos do Inconsciente Coleti- nos quais a identidade social do Outro seja tão
vo. Trata-se de um esforço teórico para interagir fundamental quanto a do Eu. A convivência de
metodologicamente na Psicologia, História e Et- culturas sem linguagem originalmente escrita,
nologia por intermédio da dimensão simbólica. como as Culturas Negras e as Indígenas, com a
Um dos grandes empreendimentos em cur- Cultura Ocidental, de imenso desenvolvimento
so nos países do Terceiro Mundo é a busca da tecnológico, nos apresenta uma problemática te-
Identidade Nacional dentro de uma realidade órica difícil à luz da Antropologia moderna, den-
pluricultural. Está aí algo que temos que cons- tro de uma proposta de democracia e alteridade
truir por nós mesmos e que nenhum ensinamen- na qual o Outro seja tão valorizado quanto o Eu.
to importado poderá nos trazer. Um francês ou É que não se trata somente de buscarmos um re-
um alemão tem muitos séculos de história do ferencial teórico que possibilite percebermos e
seu povo se comportando como um todo único estudarmos a riqueza de uma cultura em termos
para referenciar a sua identidade. Um sul-ame- científicos e, ao mesmo tempo, o funcionamento
ricano percebe a imagem idealizada do índio dinâmico-histórico desta riqueza, como condi-
como um protótipo da convivência integrada do ção necessária para analisarmos a interação de
ser humano com esta gigantesca natureza à sua suas forças em desenvolvimento com as das de-
volta, ao mesmo tempo em que convive diaria- mais culturas no todo pluricultural. A busca da
mente com o genocídio indígena e, no Brasil, identidade pluricultural necessita mais que cul-
só recentemente tem notícias de tribos indíge- tivar um ideal social que permita o desabrochar
nas, como, por exemplo, no Parque do Xingu, de culturas diferentes, lado a lado, numa intera-
que estão aumentando de população, em vez ção pacífica. Ela necessita conseguir a convivên-
de sempre diminuírem. A maioria dos brasilei- cia democrática dentro de um referencial teórico
ros, se não mamou numa negra ou foi criado por que nos permita perceber o que está acontecen-
ela, dela descende. A comida brasileira, a liga- do profundamente dentro de cada cultura e entre
ção com o inconsciente, a música e seus ídolos elas durante este conviver, de tal forma que nos
populares frequentemente expressam culturas possamos engajar nessa dinâmica intercultural,
negras, enquanto que os negros brasileiros, propiciando o desenvolvimento criativo e cons-
propriamente, continuam intensamente prete- cientizando a razão da atuação das forças rea-
ridos e seus valores culturais explicitamente cionárias e mesmo patológicas atuando nesse
pouco reconhecidos. Os imigrantes japoneses convívio. Esta Teoria Simbólica da História é um
e seus descendentes brasileiros, que já beiram esforço teórico nesta direção.

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Quem vive nas sociedades pluriculturais do necessidades da sociedade pluricultural, deve-


Terceiro Mundo, e não é um paquiderme enclau- mos assinalar a diminuição do prestígio da lide-
surado em preconceitos, reconhece claramen- rança cultural exercida pela Cultura Ocidental e
te, ainda que de forma somente pragmática, o de seus valores.
quanto usufrui da riqueza cultural das culturas O apogeu do desenvolvimento tecnológico,
componentes da sua nacionalidade. Como, assinalado pela escalada armazenista do mun-
porém, estudar cientificamente este usufruto? do moderno, e o confronto patriarcal das duas
Como caracterizar antropologicamente o que nações mais poderosas que investem fortunas
designamos e sentimos empiricamente como gigantescas em armamentos incrivelmente des-
riqueza cultural? É evidente que estou me refe- truidores para manter a paz, enquanto grande
rindo à riqueza de valores humanos que podem parte do mundo, incluindo partes de suas pró-
até incluir, mas não se limitam de modo algum a prias sociedades, vive miseravelmente, estão
bens materiais e conhecimento tecnológico. nos levando cada vez mais a questionar os va-
O parâmetro referencial deste trabalho é o lores da Cultura Ocidental. O posicionamento
parâmetro de desenvolvimento da Consciência no nível internacional, junto aos países líderes,
Coletiva pelo símbolo estruturante. Uma das cada dia menos nos convida a optar na medida
inúmeras finalidades de uma cultura é, por in- em que observamos os dois lados sofrerem da
termédio dos costumes, hábitos, rituais e cren- mesma doença armamentista, o que faz com
ças, expressos por meios de suas instituições, que a inexistência de um pré-alinhamento ide-
manter operativos os caminhos descobertos e ológico se transforme cada vez mais na atitude
acumulados na sua História, para guiar o desen- mais ponderada. Se não bastasse a Psicologia a
volvimento dos seus indivíduos. Nesse sentido, partir de Freud demonstrar cientificamente que
podemos perceber como símbolos estruturantes os raciocínios do Ego, mesmo que expressando
estas vivências culturais acumuladas. Símbolos um sabor enciclopédico, são por si só incapazes
porque dão sentido a cada fato cultural ligando- de amadurecer a personalidade, vem cada vez
-o significativamente ao Todo ou Self Cultural. mais a Sociologia nos evidenciando que conhe-
Estruturantes porque transformam e estruturam cimento tecnológico e ideologia política não con-
a Consciência Coletiva por intermédio das gera- seguem, por si só, amadurecer socialmente uma
ções. É claro que estes fatos culturais que com- nação. A grande ilusão da razão se desenvolver
põem a cultura servem também para mil outras linearmente em direção à sabedoria, que tanto
funções dentro das atividades de um povo. Um funcionou no século XIX, vai assim se despoten-
enfoque não exclui o outro, apesar dessas fun- cializando progressivamente ao se aproximar o
ções serem aqui consideradas exclusivamente final deste século XX. A partir desta desilusão, a
no seu desempenho como símbolos estrutu- Antropologia tem se aberto cada vez mais para
rantes. Estes símbolos são a riqueza a qual me outros valores culturais, se predispondo até
refiro. Acumulados pelo esforço humano desde mesmo a repensar inteiramente a finalidade do
tempos imemoriais, eles existem em quantidade desenvolvimento cultural.
incalculável em todas as culturas. O símbolo es- A desilusão, com a ideia de que o progresso
truturante permite ver o componente do símbolo tecnológico nos levaria à sabedoria e a comu-
como estrutura arquetípica e, ao mesmo tempo, nicação da economia ao bem-estar social, foi
seu componente histórico-evolutivo na função intensamente aumentada pela certeza cada dia
estruturadora da consciência daquela determi- maior que, a menos que outras forças culturais
nada cultura onde funciona. nos transformem, o progresso tecnológico su-
Sincronisticamente à necessidade de perce- bordinado a ambição conflitiva dos países do-
ber e avaliar os valores culturais, em função das minantes, muito possivelmente, levará à destrui-

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Junguiana
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ção de nossa espécie. De fato, não é necessário de chefe, em Washington, pode confiar no
ser analista para perceber que aqueles que cada que o chefe Seathl diz, com a mesma cer-
dia mais se armam para manter a paz eviden- teza com que nossos irmãos brancos po-
ciam com isso uma mentalidade, cujo princípio dem confiar nas alterações das estações
de funcionamento psicológico é essencialmente do ano. Minha palavra é como as estrelas
repressivo e guerreiro. – não empalidece.
A desilusão com o progresso tecnológico e Como podes comprar ou vender o céu, o
material como a grande meta cultural tornou vi- calor da terra? Tal ideia nos é estranha.
vência inegável o aviso do filósofo dado no início Nós não somos donos da pureza do ar
do processo: “Ciência sem consciência é a ruína nem do resplendor da água. Como po-
da alma” (Montaigne, 1533–1592) e tem aberto a des então comprá-los de nós? Decidimos
Humanidade para a busca de uma mentalidade
apenas sobre o nosso tempo. Toda essa
capaz de englobar o processo tecnológico de for-
terra é sagrada para o meu povo. Cada
ma mais humanista.
folha reluzente, todas as praias areno-
A valorização de outras culturas, então, está
sas, cada véu de neblina nas florestas
ocorrendo, não só como uma necessidade do
escuras, cada clareira e todos os insetos
Terceiro Mundo, mas também do humanismo
a zumbir são sagrados nas tradições e
moderno em busca de uma mentalidade mais
na consciência do meu povo. Sabemos
sábia do que aquela que atualmente conduz os
que o homem branco não compreende o
destinos de nossa espécie. Desiludidos com o
nosso modo de viver. Para ele um torrão
poderio tecnológico, como sinônimo de sabedo-
de terra é igual a outro. Porque ele é um
ria, passamos, já agora por questão de sobrevi-
estranho que vem de noite e rouba da
vência, a buscar a sabedoria onde quer que ela
terra tudo quanto necessita. A terra não é
se encontre. É nesse verdadeiro estado depres-
sua irmã, mas sim sua inimiga, e depois
sivo que se pode abrir mão verdadeiramente de
de a exaurir, ele vai embora. Deixa para
todo um etnocentrismo para ouvir a sabedoria
trás o túmulo de seu pai, sem remorsos
de outras culturas e elaborar suas características
de consciência. Rouba a terra de seus
e seus parâmetros, transformando-os em novos
filhos. Nada respeita. Esquece as sepul-
caminhos de desenvolvimento. Um pequeno e
turas dos antepassados e o direito dos
grandioso exemplo é a divulgação extensa, pro-
filhos. Sua ganância empobrecerá a terra
movida recentemente, da carta que se segue do
e deixará atrás de si os desertos. A vista
Cacique Seathl, endereçada ao Presidente dos
Estados Unidos Franklin Pierce, em 1855, respon- de tuas cidades é um tormento para os
dendo à proposta do seu governo para adquirir o olhos do homem vermelho. Mas talvez
território da tribo Duwamish: seja assim, por ser o homem vermelho
um selvagem que nada compreende.
O grande chefe de Washington mandou Não se pode encontrar paz nas cidades
dizer que deseja comprar a nossa terra. O do homem branco. Nem um lugar onde se
grande chefe assegurou-nos de sua ami- possa ouvir o desabrochar da folhagem
zade e sua benevolência. Isto é gentil de na primavera ou o tinir das asas dos inse-
sua parte, pois sabemos que ele não ne- tos. Talvez por ser um selvagem que nada
cessita de nossa amizade. Porém, vamos entende, o barulho das cidades é, para
pensar em sua oferta, pois sabemos que mim, uma afronta aos ouvidos. E que es-
se não o fizermos, o homem branco virá pécie de vida é aquela em que o homem
com armas e tomará nossa terra. O gran- não pode ouvir a voz do corvo noturno

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Junguiana
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ou a conversa dos sapos no brejo, à noi- los de um povo que um dia foi tão pode-
te? Um índio prefere o suave sussurro do roso e cheio de confiança como o nosso.
vento sobre o espelho d’água e o próprio De uma coisa sabemos, e o homem bran-
cheiro do vento, purificado pela chuva do co talvez a descobrirá um dia: o nosso
meio dia e com aroma de pinho. O ar é Deus é o mesmo Deus. Julgas, talvez, que
precioso para o homem vermelho porque o podes possuir da mesma maneira como
todos os seres vivos respiram o mesmo desejas possuir a nossa terra. Mas não
ar: animais, árvores, homens. Não parece podes. Ele é Deus da humanidade inteira.
que o homem branco se importa com o ar E quer bem igualmente ao homem verme-
que respira. Como um moribundo, ele é lho como ao branco. A terra é amada por
insensível ao ar fétido. Ele. E causar dano à terra é demonstrar
Se eu me decidir a aceitar, imporei uma desprezo pelo seu Criador. O homem bran-
condição. O homem branco deve tratar co vai desaparecer, talvez mais depressa
os animais como se fossem seus irmãos. que as outras raças. Continuas poluindo
Sou um selvagem e nada compreendo que a tua própria cama e hás de morrer uma
possa ser certo de outra forma. Vi milha- noite, sufocado nos teus próprios dejetos!
res de bisões apodrecendo nas pradarias, Depois de abatido o último bisão e doma-
abandonados pelo homem branco que dos todos os cavalos selvagens, quando
os abatia a tiros disparados do trem. Sou as matas misteriosas federem a gente, e
um selvagem e não compreendo como quando as colinas escarpadas se enche-
um fumegante cavalo de ferro possa ser rem de fios que falam – onde ficarão os
mais valioso que um bisão, que nós – os sertões? Terão acabado. E as águias? Te-
índios – matamos apenas para sustentar rão ido embora. Restará dar adeus à ando-
nossa própria vida. O que é o homem sem rinha e a caça; será o fim da vida.
animais? Se todos os animais se acabas- Talvez compreendêssemos se conhecês-
sem, os homens morreriam de solidão semos com que sonha o homem branco,
espiritual, porque tudo quanto aconte- se soubéssemos quais as esperanças que
ce aos animais pode também afetar os transmite a seus filhos nas longas noites
homens. Tudo está relacionado entre si. de inverno, que visões do futuro oferece
Tudo quanto fere a terra, fere também os às suas mentes para que possam formar
filhos da terra. os desejos para o dia de amanhã. Mas
Os nossos filhos viram seus pais humi- nós somos selvagens. Os sonhos do ho-
lhados na derrota. Os nossos guerreiros mem branco são ocultos para nós. E por
sucumbem sob o peso da vergonha. E de- serem ocultos, temos de escolher o nosso
pois da derrota passam o tempo em ócio, próprio caminho. Se consentirmos, é para
e envenenam seu corpo com alimentos garantir as reservas que nos prometes-
adocicados e bebidas ardentes. Não tem tes. Lá talvez possamos viver os nossos
grande importância onde passaremos os últimos dias conforme desejamos. De-
nossos últimos dias. Eles não são muitos. pois que o último homem vermelho tiver
Mais algumas horas, até mesmo uns in- partido e a sua lembrança não passar da
vernos, e nenhum dos filhos das grandes sombra de uma nuvem a pairar acima das
tribos, que viveram nesta terra ou que têm pradarias, a alma do meu povo continua-
vagueado em pequenos bandos nos bos- rá a viver nestas florestas e praias, porque
ques, sobrará para chorar sobre os túmu- nós as amamos como um recém-nascido

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ama o bater do coração de sua mãe. Se nistas eivados de preconceitos. Poucos campos
te vendermos a nossa terra, ama-a como das ciências sociais estão tão minados quanto
nós a amamos. Protege-a como nós a este. Além disto, pretender abordar a história e
protegemos. Nunca esqueças como era a levar em conta a realidade cultural nos confron-
terra quando dela tomaste posse. E, com ta com a problemática da aplicação do conceito
toda tua força, o teu poder, e todo teu co- evolutivo e a grande dificuldade metodológica
ração, conserve-a para teus filhos, e ama- de se tentar conjugar Etnologia e História, que
-a como Deus nos ama a todos. Uma coisa frequentemente se transforma na dualidade
sabemos: o nosso Deus é o mesmo Deus. estrutura-evolução, para muitos uma dicotomia
Esta terra é querida por Ele. Nem mesmo o metodologicamente intransponível.
homem branco pode evitar o nosso desti- O emprego do enfoque simbólico estruturante
no comum (cópia cedida pelo Dr. Marcos à História visa a trabalhar com o prisma histórico
Gebara Muraro). de cada cultura e simultaneamente com a noção
de estrutura arquetípica universal, abrindo, as-
É difícil deixar de admitir a superioridade de sim, a perspectiva para um determinado tipo de
muitos aspectos dos valores cultivados no dis- estudo da interação cultural histórica comparada.
curso desse líder índio sobre os valores tradi- As críticas à dificuldade metodológica de se
cionalmente exercidos pela Cultura Ocidental, empregar a noção evolutiva em Etnologia são
sobretudo na dimensão que concerne a relação bem conhecidas a partir de sua própria funda-
do ser humano com os animais e a natureza no ção por Franz Boaz. Não pretendo resumi-las
dinamismo matriarcal. O parâmetro que nos aqui. Abordarei apenas alguns pontos que julgo
permite esta comparação e avaliação cultural importantes para a introdução posterior do parâ-
não é o tecnológico, nem o econômico, nem o metro simbólico.
religioso, nem o político, nem o científico e nem
o artístico. O parâmetro que nos permite esta 2. O Uso do Conceito Evolutivo e suas
comparação e avaliação é a percepção dos va- Grandes Limitações
lores em função de um todo cultural que propi- A descoberta de Darwin (1809–1882), con-
cia o desenvolvimento de cada parte da cultura siderada a mais revolucionária depois da de
em relação com o todo cultural. É a esta rela- Copérnico (1473–1543), expressou três séculos
ção da parte com o todo cultural que denomi- de articulação do princípio da causalidade com
namos relação simbólica. Por conseguinte, é o o funcionamento da natureza, nele finalmente
parâmetro simbólico que nos permite esta com- inserindo também o ser humano. A Teoria da
paração, pois é a vivência de fatos, atitudes Evolução, ao situar o ser humano apenas como
e ideologias como símbolos que nos permite uma parte diferenciada da vida na Terra provo-
avaliar seu desempenho no todo e nos permite cou resistências que podemos dividir em duas
um termo de comparação com outras vivências etapas. Na primeira etapa, foi grande a resis-
também enfocadas simbolicamente em outros tência em admitir a ascendência comum com
todos culturais. outras espécies, sobretudo com os antropoi-
Um dos fatos que muito dificulta a busca des. Na segunda etapa, continuamos a resistir
de uma teorização antropológica, que permite a nossa inserção funcional dentro da natureza.
estudar a interrelação das culturas em nossa O estudo da Socioecologia, por exemplo, nos
sociedade pluricultural, a ponto de podermos mostra que a civilização industrial tem trata-
passar a escrever juntos uma História Pluricul- do a natureza como se sua sobrevivência dela
tural, é um passado histórico da escravatura e não dependesse. Esse distrato da natureza se
genocídio acompanhado de enfoques evolucio- agravou com o desenvolvimento tecnológico, e

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o despertar ecológico do mundo moderno já é se iniciando muito antes do século XIX e se es-
devido, principalmente, à inconsequência com tendendo muito após. A descoberta de um dos
a qual estamos malbaratando o planeta pelo “Cosmos” evolutivos pela seleção natural foi as-
desmatamento e poluição a níveis ameaçado- sim um grande emergente factual histórico que
res para nós mesmos. representa a extremidade de um iceberg simbó-
É difícil para o ser humano perceber que ele lico no Self Cultural.
se diferenciou e se diferencia dentro de uma es- O evolucionismo, como símbolo estruturante,
trutura psicobiocósmica homeostásica com a se articula com todo móvel da Ciência de inter-
qual terá que manter sempre uma relação de de- -relacionar, significativamente, as partes do todo
pendência produtiva. Esta dependência poderá universal e que necessariamente incluiria, mais
se tornar destrutiva quando agimos, por exem- cedo ou mais tarde, a própria Consciência tam-
plo, nefastamente em nossa relação com o meio bém nesta inter-relação. A aplicação do evolu-
ambiente, mas a dependência, em si. É inerente cionismo à Astronomia, à Geologia e à Biologia,
à existência. forma um todo que se subordina humanistica-
A inserção do ser humano na Teoria da Evo- mente ao “Conheça-te a Ti Mesmo”, do Oráculo
lução foi historicamente um símbolo estruturan- de Delphi, no momento em que reconhecemos
te de tal impacto na Consciência do século XIX por meio do componente simbólico que é a in-
que Darwin somente se referiu explicitamente a teração do componente subjetivo com o compo-
ele, em 1871, na obra “A Descendência do Ho- nente objetivo presente nos símbolos que estru-
mem e Seleção em Relação ao Sexo”, que seria tura a consciência. Não é possível conhecermos
uma de suas últimas. O evolucionismo vinha o mundo sem nele nos situarmos evolutivamen-
sendo elaborado como símbolo estruturante da te. Não é possível aumentar integralmente o nos-
Consciência Coletiva europeia desde o século so conhecimento das coisas, sem aumentarmos
anterior. O próprio Erasmus Darwin (1731–1802), também o conhecimento de nós mesmos.
avô de Charles, já defendia plenamente a tese Paralelamente à admissão da descoberta de
evolucionista, se bem que deixaria o “como” Darwin, o final do século XIX e o início do sécu-
para seu neto. A estruturação da Consciência lo XX testemunham um início da ciência antro-
Coletiva foi intensamente indiscriminada pelo pológica eivada de preconceitos evolutivos, to-
evolucionismo, agindo como símbolo estrutu- dos relacionados com o etnocentrismo. Para se
rante sobre ela, a ponto de respeitáveis homens compreender esta indiscriminação referente ao
de saber universitário se degladiarem publica- emprego do conceito evolutivo, devemos consi-
mente em função de sermos ou não evolucionis- derar três fatores. O primeiro foi como se o euro-
tas, era sinônimo de confessar a existência de peu, em troca da humilhação vivenciada com a
chimpanzés e gorilas na família. Aos poucos a inserção do Homo sapiens na escala evolutiva,
Consciência Coletiva foi se rediscriminando com tivesse inconscientemente que se compensar,
o componente evolucionista estruturado na sua colocando-se acima de todas as demais raças e
Identidade, mas foi deixando de lado a vivên- culturas para preservar algo do status perdido.
cia de integração com o todo psicobiocósmico, Para se compreender o segundo fator, há que se
consequência essencial da Teoria da Evolução considerar que o símbolo estruturante emerge
biológica. Isto nos permite dizer que, do ponto frequentemente à Consciência por intermédio do
de vista da História Simbólica, o conceito evolu- Outro, o que explica porque certos dinamismos
tivo ainda não esgotou sua função estruturante psicológicos profundos, percebidos inicialmente
da Consciência Coletiva como consequência do por antropólogos europeus em outras culturas,
grande ímpeto recebido no século XIX. Devemos foram considerados características exclusivas
pois conceber a ação deste símbolo estruturante destas culturas e de um psiquismo, por eles, de-

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nominado primitivo. O terceiro fator foi a proje- capítulo de Antropologia Estrutural, intitulado
ção sobre outras culturas da Sombra Patológica “Etnologia e História”, Lévi-Strauss afirma a
do Self Cultural europeu intensamente dissocia- importância da História e da Etnologia, mas as
do durante a Inquisição. situa metodologicamente sendo exercidas em
Obras como “Primitive Religion” (1861), de sentido inverso, “como as duas faces de um Ja-
Tylor, na questão referente à função do ani- nus”, a História olhando na direção do Conscien-
mismo (ENCYCLOPÆDIA BRITANNICA, 1961a) te e da Etnologia, em sentido oposto, na direção
nas religiões de culturas ditas primitivas, ou Inconsciente (LEVI-STRAUSS, 1975, p. 41).
“The Golden Bough” (1890, p. 53), de Frazer, O abandono do evolucionismo em Etnologia,
na questão referente a sociedades que empre- pela escola americana seguindo a obra e Boaz,
gam a magia, ou “Les Fonctions Mentals dans deixou um vácuo no relacionamento intercul-
les Societés Inférieures” (1910), de Levy-Brühl, tural. Este espaço teórico foi preenchido par-
na questão referente ao funcionamento do pen- cialmente pelo estruturalismo de Lévi-Strauss,
samento nas culturas por ele chamadas não só que, ao descrever estruturas culturais univer-
primitivas mas, até mesmo, inferiores (CAZE- sais, como Jung havia feito com o conceito de
NEUVE, 1963, p. 53), todas essas obras atribu- Arquétipo, permitiu a reaproximação das cultu-
íram a outras culturas características que uma ras pela análise de suas estruturas. A introdu-
cultura evoluída não possuiria. Podemos dizer ção do conceito de símbolo estruturante visa a
que o erro comum a estas obras foi o emprego operar como um terceiro fator, intermediando
errôneo do conceito evolutivo, como posterior- História e Estrutura em função do desenvolvi-
mente demonstrou a Etnologia pelo convívio do mento da Consciência, aproximando as cultu-
antropólogo com as culturas estudadas. A con- ras também pelo seu dinamismo evolutivo, sem
sagração da Teoria da Evolução na Biologia foi cair nos precipícios evolutivos já identificados.
assim acompanhada por uma grande desilusão O símbolo estruturante é a própria imagem do
científica com o evolucionismo, por seu empre- deus Janus de duas faces de Lévi-Strauss, com
go inadequado na Antropologia. a diferença de ser ele, aqui, percebido com as
A problemática do uso do conceito evolutivo, características milagrosas-simbólicas de um
de forma preconceituosa e etnocêntrica, chegou verdadeiro deus de duas faces, que é capaz de
ao nível delirante no nazifascismo, comprome- usufruir delas simultaneamente. Isto significa,
tendo, já agora de forma terrível e drástica, este conceitualmente, que o símbolo estruturante
conceito no humanismo moderno. pode ser percebido simultaneamente atuante
A obra de Franz Boaz ao estabelecer as ba- na Etnologia e na História, sendo, por isso, pas-
ses científicas da Etnologia teve como um dos sível de estudo e compreensão científica dentro
principais parâmetros metodológicos proteger de uma Antropologia simbólica estruturante,
a Etnologia do evolucionismo usado, até então, tanto com relação à História, quanto com rela-
com características tão etnocêntricas, preconcei- ção a Etnologia.
tuosas e perniciosas para as culturas estudadas. Paralelamente ao abandono do conceito evo-
Sua influência foi fundamental para preservar o lutivo na Etnologia e ao surgimento da Antropolo-
estudo de cada cultura como um todo púnico, gia Estrutural, sobreviveu ainda o uso do conceito
tão necessário para se compreender a indivi- evolutivo em Antropologia num emprego que se
dualidade cultural. Contudo, como assinalou iniciou no século XIX com a obra de Lewis Henry
Lévi-Strauss (1975 p. 21) ao comentar as críticas Morgan “Ancient Society” (1877), e que podemos
de Boaz ao evolucionismo: “esta análise crítica denominar evolucionismo cultural tecnológico.
é decisiva, mas, levada ao extremo conduziria A conceituação evolutiva de Morgan teve
a um agnosticismo histórico completo”. Neste duas características que devemos ressaltar para

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compreender sua sobrevivência no evolucio- seus achados, dados etnocêntricos e errôneos,
nismo moderno, apesar de Franz Boaz ter nela como o “pensamento pré-lógico” de Levy-Brühl
concentrado aquelas críticas já mencionadas ou o “animismo” de Tylor, por exemplo, seu
(LEACOCK, 1974), que baniram o evolucionismo método de escolha evolutivo, ainda que certo
da Etnologia. A primeira é que, apesar de Mor- e objetivo, continua basicamente etnocêntrico,
gan, como seus contemporâneos evolucionistas, pois toma como parâmetro da evolução exata-
ter escrito sobre o evolucionismo das culturas mente aquele referencial que novamente colo-
em geral, no seu aspecto familiar, social e eco- ca a Cultura Ocidental, a priori, no fim da escala
nômico, ele não sentia nenhuma atração pela evolutiva. Para a interação em nossa socieda-
parte mítico-simbólico-religiosa das culturas de pluricultural, por exemplo, ele é um método
estudadas, chegando mesmo a sentir grande que, se usado, estabeleceria uma assimetria
resistência ao seu estudo, o que o levou a escre- etnológica apriorística intensa, muito objetiva,
ver: “A religião lida tão dominantemente com o mas nem por isso menos etnocêntrica. É que,
emocional e o imaginário e consequentemente segundo ele, as Culturas Ocidental e Japonesa
com elementos do conhecimento tão incertos entre nós seriam as únicas civilizadas, enquan-
que todas as religiões primitivas são grotescas e to que as Culturas Negras e Índias estriam ain-
até certo ponto ininteligíveis”. A segunda carac- da em estado bárbaro. Com este parâmetro se-
terística, relacionada com a primeira, é que seu ria muito difícil um relacionamento intercultural
esquema evolutivo tem como principal parâme- democrático de alteridade. Escolhessem as
tro o fazer e o que é feito nas culturas e por isso Culturas Índias o relacionamento com a nature-
foi adotado por Engels (ENGELS, 1977) e por mui- za e as Culturas Negras o relacionamento com
tos antropólogos e historiadores, daí por diante, o corpo como parâmetro e elas, em cada caso,
para quem o parâmetro evolutivo é basicamente estariam muito mais evoluídas, enquanto que
o fator tecnológico e econômico. as Culturas Ocidental e Japonesa ocupariam
De fato, o critério da divisão das fases evolu- um lugar, na escala evolutiva, de bárbaros, ou,
tivas de Morgan é basicamente tecnológico. Os até mesmo, degenerados ou doentes. Nesse
três estados principais são o Selvagem, o Bárba- caso, o confronto também estaria prejudicado
ro e o civilizado. O selvagem se divide em Antigo, pelo etnocentrismo.
caracterizado pela coleta de raízes e frutos, em Outro fato que invalida o uso do evolucionis-
Mediano, pelo aparecimento do uso do fogo e da mo tecnológico, no confronto etnológico-histó-
pesca, e em Tardio, pelo aparecimento do uso rico de uma sociedade pluricultural, é que seu
do arco e da flecha. O estado Bárbaro se divide próprio método, ao ser histórico-evolutivo sem
em Antigo, caracterizado pela cerâmica, em Me- considerar as estruturas culturais, deixa de ser
diano pela agropecuária e a construção de casas etnológico, como já demonstrara Boaz para a
com tijolos e pedras, e em Tardio, caracterizado obra de Morgan. Perfeitamente cônscio desta li-
pelo aparecimento da siderurgia. A Civilização é mitação do evolucionismo tecnológico que ado-
definida pelo aparecimento da linguagem escrita ta, Darcy Ribeiro (1975, p. 19) escreve: “Espera-
(MORGAN, 1974, p. 9). mos que essa tentativa de sistematização e de
Esta aplicação do conceito evolutivo à his- renovação conceitual contribua para determinar
tória das culturas, que denominamos evolu- as etapas básicas de desenvolvimento tecnoló-
cionismo tecnológico, permanece, até hoje, gico distinguíveis no continuum da evolução hu-
sendo usado por muitos historiadores distin- mana”. E adiante acrescenta, imediatamente an-
guindo-se, entre nós, Darcy Ribeiro, com sua tes de explicar seus processos civilizatórios em
obra “O Processo Civilizatório” (1975). Apesar oito etapas tecnológicas, da revolução agrícola
de o evolucionismo tecnológico não contar, em a termonuclear:

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Tudo isto significa que a classificação -se o funcionamento do símbolo estruturante
das sociedades concretas dentro dos es- dentro do Self Cultural de cada cultura.
quemas evolutivos deve ser feita depois
de despojá-las conceitualmente do que 3. Evolução, Self Cultural e Símbolo
têm de peculiar, para atender somente no Estruturante
modo como nelas se conformam as qua- Devido ao seu passado histórico, tão cheio de
lidades diagnósticas atribuídas a cada perspectivas e desilusões, o emprego do concei-
modelo de formação. E também, focalizan- to evolutivo deve ser sempre acompanhado de
do-as em largos períodos, que tornem per- uma explicitação do que se quer com ele dizer.
ceptível o sentido das alterações que estão Evolução não significa simplesmente trans-
experimentando (RIBEIRO, 1975, p. 34). formação. Evolução é um processo de transfor-
mação do organismo com direção e sentido. O
Em suma, como sua própria História nos en- sentido inverso desse processo é a involução.
sina, o conceito evolucionista necessita ser usa- Etimologicamente, evolver significa um volver-
do com a maior consciência de suas limitações -se para fora e envolver, um volver-se para den-
quando aborda culturas diferentes, sob pena, tro. Volver vem do latim volvere que quer dizer
ou de atribuir à cultura estudada algo que per- rolar ou voltar, e o prefixo “e” significa “de” ou
tence à cultura do observador (etnocentrismo), “fora”. A evolução do ser-no-mundo é, então, o
ou generalizar uma categoria para englobar mui- seu processo de desabrochar. Contudo, pode-
tas culturas e com isso deixar de lado a própria mos perguntar: evolver de onde para onde? Vol-
essência das culturas estudadas, descaracteri- tar-se de que para que ou de dentro de que para
zando muito da importância buscada no próprio fora de quê? Ontologicamente a resposta seria
sentido evolutivo. voltar-se de dentro de si mesmo para realizar
Esta Teoria Simbólica da História situa sua seu potencial, crescer, ir em direção exterior a
característica evolucionista na estruturação da si, ultrapassando-se no próximo desabrochar do
Consciência Coletiva a partir da interação do seu desenvolvimento.
Inconsciente Coletivo e dos acontecimentos, e O grande problema do emprego do conceito
situações, dentro do Self Cultural de cada cul- evolutivo, para a Antropologia, foi usá-lo de for-
tura. Não há preocupação nesta teoria em posi- ma unidirecional, ou seja, como se os estágios
cionar culturas neste parâmetro evolutivo para evolutivos devessem, paulatinamente, se afas-
estabelecer qual a mais ou menos evoluída, tar das origens para nunca mais voltar. Tylor,
se bem que a função do símbolo estruturante com o animismo, Levy-Brühl, com o pensamento
em cada Self Cultural pode e deve ser compa- pré-lógico, e Frazer, com a magia como ciência
rada. A própria escolha das quatro estruturas bastarda, falam de estados culturais que impli-
básicas: matriarcal, patriarcal, alteridade e citamente poderiam e deveriam ser ultrapassa-
cósmica impede a comparação total, devido à dos no desenvolvimento da humanidade, e que
impossibilidade prática que ela implicaria, já já o teriam mesmo sido relativamente ultrapas-
que a maioria das culturas, hoje conhecidas, sados pelos europeus, e daí terem esbarrado
apresenta símbolos estruturantes em maior ou na mesma dificuldade. Na realidade, estavam
menor número, operando nestas quatro estru- descobrindo e descrevendo características do
turas. A grande preocupação evolutiva desta dinamismo matriarcal que se apresenta de for-
teoria é quanto à evolução da consciência em mas diferentes durante a evolução cultural, mas
função dos seus símbolos estruturantes, e isto não pode ser nunca inteiramente ultrapassado,
nos permite pesquisar e perceber a História por se tratar de uma estrutura ou arquétipo do
simbólica da interação cultural, considerando- ser humano.

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Esta problemática da antropologia, porém, desestruturação, daí o fato dos símbolos estru-
pode ser relacionada com o próprio processo turantes culturais atuarem em contextos rituais
evolutivo da Consciência humana. É que, na e institucionais, por intermédio dos quais a cul-
medida em que a Consciência se desenvolve, tura oferece à Consciência caminhos de discrimi-
ela tende, até mesmo por um processo de auto- nação e desenvolvimento abertos há séculos e
afirmação, a se considerar autônoma, e aí está, milênios, e aprimorados durante a estruturação
ao mesmo tempo, o seu desenvolvimento, a sua de seus costumes e tradições. Mas a Consciên-
tentação e, frequentemente, seu erro e até mes- cia deve constantemente se afirmar, para man-
mo perdição. É esta tendência ao exagero da ter sua identidade discriminada do Outro a sua
sua autoafirmação que seduz a Consciência, ao volta, e é no exagero desta autoafirmação que a
lidar com o conceito evolutivo, para estabelecer Consciência chega a negar suas origens e o mun-
o evolucionismo unilateral, por meio do qual se do a sua volta, dos quais depende sempre para
admite a matriz evolutiva, mas se nega o relacio- se revitalizar e renovar. Vem daí uma atitude de
namento dialético com ela durante a evolução. É onipotência que pode acometer a Consciência,
como se o cientista, que lida com o conceito evo- durante toda a vida, e levá-la a errar na avaliação
lutivo, sentisse, de repente, que tem nas mãos da realidade. Esse erro e suas consequências
uma arma para assegurar o poder da Consciên- são representados na Mitologia Grega pela ultra-
cia contra qualquer dependência e, ao usá-lo passagem do metron e seu castigo.
com essa finalidade, empobrecesse e até mes- Da mesma forma que o conceito evolutivo foi
mo invalidasse a grande criatividade e extensão usado na Antropologia como se estruturas pu-
do conceito. Não são somente os instintos ou as dessem ser ultrapassadas, na Psicologia também
“pulsões do Id” que estão sujeitos a transforma- isto aconteceu. Desde o início das teorizações
ção, ao passarem do Inconsciente para o Cons- psicanalíticas, notamos uma tendência evolu-
ciente. Qualquer ocorrência psicológica como, cionista unidirecional. A direção do desenvolvi-
por exemplo, o processo de conceituação está mento seria sempre do Id se transformar em Ego.
sujeita ao redutivismo durante sua elaboração A fase oral da libido seria seguida pela fase anal
pela Psique no processo de Conscientização. e esta pela uretra, fálica, e depois pela genital
Assim, a redução do conceito evolutivo ao evo- e qualquer volta atrás seria uma regressão. Por
lucionismo unilateral é apenas um exemplo de isso, muitos analistas acreditam até hoje que,
uma ocorrência psicológica comum. uma vez terminada sua própria análise, podem,
Como leciona Junito de Souza Brandão, os daí por diante, lidar com o Inconsciente dos ou-
Gregos prezavam extraordinariamente o metron, tros sem levar mais em conta a continuação do
a justa medida, e acreditavam que sua ultrapas- desenvolvimento da sua própria personalidade
sagem, a demésure, como por exemplo a hybris a partir do seu Inconsciente. Não prestam mais
dos heróis, fosse irremediavelmente punida pe- atenção aos símbolos dos seus sonhos e fan-
los deuses (BRANDÃO, 1982). A grande hybris tasias e, se por acaso percebem manifestações
do herói é cair na tentação de ser capaz de tudo, dos seus processos inconscientes, que neces-
como se fosse um deus, e aí transgredir seus li- sitam inegavelmente de compreensão analítica,
mites. Já os mortais não podem, sequer, enca- concluem entristecidos que infelizmente ainda
rar um deus na mitologia grega, sem serem pu- estão com problemas e por isso necessitam de
nidos com a cegueira ou com metamorfoses de uma reanálise. Não lhes passa pela mente que
sua identidade. Na dimensão psicológica, isto o Inconsciente é uma estrutura criativa e que
significa que a Consciência, ao vivenciar a for- daí decorre que quanto melhor esteja analisada
ça criativa dos arquétipos, corre sempre o risco uma pessoa, mais apta e aberta ela deverá es-
de indiscriminação (confusão) e, até mesmo, de tar para auscultar seus símbolos em todas suas

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manifestações psíquicas, inclusive seus sonhos, isso, uma das principais preocupações de qual-
única forma de colaborar, conscientemente, com quer um que busque estudar o processo de de-
seus processos inconscientes no desenvolvi- senvolvimento numa cultura é não deixar de re-
mento de sua personalidade. Pai, mãe, criança, conhecer, como tal, nenhuma estrutura presente
adolescente, cônjuge e velhice são estruturas, no processo estudado. Metodologicamente, o
são arquétipos. As vivências pessoais com pai e ideal seria termos uma estrutura que represen-
mãe, por exemplo, podem se esgotar e ser ultra- tasse todas as outras e com a qual pudéssemos
passadas, mas com isso nem se esgotam nem sistematicamente relacionar, desde o início, o
se ultrapassam estas estruturas, e, por isso, com processo de desenvolvimento, pois aí nos as-
elas trabalharemos, enquanto houver vida indi- seguraríamos sempre de estarmos respeitando
vidual e cultural. Coube a Jung introduzir a noção a relação entre o processo de desenvolvimento
de estrutura em Psicologia, com a descoberta do e estrutura. Mas existe uma estrutura que possa
Inconsciente Coletivo e dos Arquétipos, e descre- representar todas as demais numa cultura, ou
ver a relação dialética do Ego com o Inconscien- seja, é possível concebermos uma estrutura da
te, na qual concluiu que quanto mais adiantada totalidade de uma cultura?
estivesse uma pessoa no seu desenvolvimento Uma estrutura de totalidade só é possível de
psicológico, mais ela estaria em condições de se se conceber cientificamente a partir da dimen-
relacionar dialeticamente com seus processos são simbólica que engloba a relação sujeito-
inconscientes (JUNG, 1959, p. 1). -objeto dentro da ciência psicológica. Qualquer
Parece claro, pois, que a grande problemática outro enfoque científico de uma estrutura cultu-
científica no uso do conceito evolutivo se origi- ral não representa a totalidade, porque a estru-
nou no fato de se encadear estruturas sucessiva- tura é objeto de estudo de um observador que
mente, criando com isso um desligamento dis- busca metodologicamente, de alguma forma ao
sociado e alienante entre os estágios atingidos menos, permanecer fora da observação. A me-
e as estruturas que se julgavam ultrapassadas. todologia científica, inclusive a metodologia et-
O conceito evolutivo não deve então ser empre- nológica de Boaz, busca sempre a objetividade,
gado buscando-se o que é no processo que está eliminando os componentes subjetivos como
desabrochando e qual a relação do estruturado contaminação do campo de observação. Na Psi-
com a estrutura que o estruturou principalmente cologia Simbólica, porém, a observação do Ou-
após o fenômeno de estruturação referido. Che- tro faz parte de um todo maior ou Self que englo-
gamos assim ao evolucionismo dialético ou de ba a estruturação do Eu e, por isso, a dinâmica
alteridade, que conjuga processo de desenvolvi- subjetiva é parte operante e indispensável do
mento e estrutura, levando em conta as carac- estudo objetivo. Não se trata somente de invali-
terísticas de cada um. Concluímos, então, que o dar a busca de um objetivismo com a afirmação
grande problema do emprego do conceito evo- de que o sujeito é inseparável do objeto, mas de
lutivo, que o torna unilateral e não dialético, é frisar que sujeito e objeto são inseparáveis, por-
o favorecimento do processo de desenvolvimen- que, psiquicamente, o conhecimento objetivo
to em detrimento das estruturas por que passa. é sempre acompanhado da estruturação do Eu
Isso só pode ser evitado se considerarmos estru- por intermédio do símbolo. Por isso, a busca do
tura e processo de desenvolvimento como pola- objetivismo puro não só é impossível quanto é
ridades dialéticas em qualquer emprego do con- indesejável, pois conduz à alienação do que está
ceito evolutivo. A intenção científica primordial acontecendo com o sujeito, durante a aquisição
do etnólogo, tão bem caracterizada por Boaz, é do conhecimento objetivo.
proteger a integridade das culturas estudadas, Jung (1960) descreveu o Self como o Arqué-
inclusive do etnocentrismo do pesquisador. Por tipo Central da Psique, que corresponde a uma

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estrutura de totalidade englobando o funcio- a algo maior que nunca teve no estrangeiro. Às
namento dos processos conscientes e incons- vezes, as brigas num casamento ou entre irmãos
cientes. Os símbolos do Self são símbolos de têm sua explicação numa necessidade de afir-
totalidade, aparecendo nas formas geométri- mação de identidade contra um fator maior que
cas ou mandalas, como o quadrado, a cruz, o tudo envolve e aglutina. Este fator é muito maior
círculo e a espiral: na natureza, como a árvore, que a identidade grupal, se bem que esta identi-
o diamante, a pérola, o Sol, uma estrela, ou o dade tenha nele a sua origem. Existe algo maior
Cosmos; no próprio corpo humano, como o An- nos fenômenos psíquicos que engloba estes fe-
tropos; na sociedade, como o povo, o governo nômenos dentro de um processo de desenvolvi-
ou o presidente; em ideias, como a eternidade, mento que envolve as pessoas presentes, quer
o infinito, e o conceito de Deus. Estes símbo- elas se deem conta ou não. Torna-se, porém,
los aparecem indicando vivências de totalidade difícil percebermos essa estrutura de totalidade
durante o processo de desenvolvimento e com quando, a priori, já percebemos a psique disso-
isso expressando sua importância fundamental ciada do corpo, presa dentro do crânio e separa-
para o processo. da conceitualmente do mundo.
O desenvolvimento psicológico é, frequente- Se percebermos, porém, o fenômeno psico-
mente, considerado como um processo subjetivo lógico inseparavelmente da hominização do pla-
geralmente situado dentro do crânio, em contra- neta e derivando de um todo cósmico, como viu
posição ao resto do corpo e ao mundo exterior. Teilhard de Chardin (1962), poderemos conceitu-
Isto expressa e cultiva uma dicotomia psique-ma- ar um Self Cósmico como estrutura básica da re-
téria, psique-corpo, dentro-fora e sujeito-objeto, lação do Ser Humano com o Universo e, a seguir,
que se adapta, como uma luva, à dissociação do conceber uma série de processos de totalidade
Self Cultural europeu ocorrida na Inquisição, e im- dentro desta estrutura básica maior, que expres-
pede a percepção do processo psicológico e do saríamos como Self Individual, Self Conjugal,
exercício da própria teoria do conhecimento den- Self Grupal, Self Cultural e, até mesmo, como
tro de um todo dinâmico e significativo. Self Terapêutico (BYINGTON, 1983). A psique
As vivências de totalidade, que englobam his- individual relaciona-se com o cosmos como a
toricamente entidades que se acham separadas Consciência se relaciona com o Inconsciente do
ao nível da Consciência, são, contudo, impres- qual emergiu. A estrutura do Self é difícil de ser
sionantes e necessitam da conceituação de es- compreendida, porque com a Inquisição deu-se
truturas para percebê-las. Inicia-se uma relação a dissociação cultural Ciência-Religião, com a
terapêutica onde conscientemente o terapeuta dissociação subsequente da função totalizadora
nada tem a ver com os problemas do analisando do pensamento europeu. A percepção gestálica
e, no entanto, frequentemente aparecem símbo- da totalidade, que naturalmente apreende a re-
los no decorrer do processo que envolvem o pro- lação sujeito-objeto num todo operacional, ficou
cesso existencial dos dois. Reúne-se um grupo assim seriamente afetada. Esta conceituação
para uma atividade qualquer e, após certo tem- ajuda a nos abrirmos teoricamente para estas vi-
po, começamos a perceber reações em bloco ou vências de totalidade que, na realidade, já estão
mesmo individuais, mas que os indivíduos não presentes em tudo que fazemos. É que o Self In-
as teriam sozinhas. Viajamos e nos sentimos de dividual e Cultural tem um enorme poder criativo
forma diversa de quando estamos com nosso estruturante e, por isso, praticamente qualquer
grupo cultural. Um indivíduo aprende a língua coisa que entre no seu campo operacional, seja
de um país, vive nele anos como estrangeiro e fato, pessoa ou vivência, logo se torna um sím-
ao voltar ao seu núcleo de origem, de repente, bolo ao ser ligado ao todo operativo. Este fato le-
sente uma vivência de pertencer dinamicamente vou a um ditado comum na religiosidade da Ida-

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de Média, segundo o qual, tudo o que é efêmero vi-Strauss (1975 p. 41) que representa, operativa-
expressa a totalidade. É este fenômeno também mente, estrutura e processo de desenvolvimen-
que explica porque os hindus procuram poupar to. Etnologia e História. A grande dificuldade do
tudo o que vive. Sua doutrina da reencarnação, pesquisador em lidar com o conceito evolutivo
vista simbolicamente, inter-relaciona significati- é fascinar-se com a visão de uma só das faces e
vamente tudo o que existe com a finalidade da alienar-se na unilateralidade.
vida humana. Nesse sentido, seu conceito de At- Ainda que possamos e devamos compreen-
man corresponde ao de Self Cósmico. der o funcionamento do símbolo estruturante no
O conceito de Self Cultural é da maior impor- dinamismo matriarcal, patriarcal e cósmico, sua
tância para percebermos o funcionamento articu- concepção vem do dinamismo da alteridade que
lado das partes culturais como um todo e, ao mes- é especializado em manter a firme identidade do
mo tempo, ele nos permite perceber esse todo Eu como uma face e, ao mesmo tempo, defrontar
dinamicamente como algo único. A compreensão plenamente o Outro como a outra face do mes-
do dinamismo do Self Cultural se torna mais aces- mo fenômeno de transformação. Quando o Evan-
sível quando percebemos o seu funcionamento gelho nos fala em “virar a outra face” diante de
pelas suas três grandes partes constitutivas, ou uma ofensa, ele está estruturando a Consciência
seja, o significante (arquétipo-estrutural-incons- Coletiva com o dinamismo de alteridade, pois é
ciente-indiscriminado) o significado (histórico- ao examinar o outro lado da moeda, no momento
-consciente-discriminado) e o símbolo estruturan- em que estamos feridos e mais propensos a nos
te que os vincula no processo evolutivo. entrincheirarmos no Eu ou num só lado da reali-
Erich Neumann (1973, p. 44) descreveu o Eixo dade, que mais podemos nos tornar capazes de
Ego-Self para articular inseparavelmente o signi- compreender a função do Outro na estruturação
ficado arquetípico e o significante-consciente no da Consciência.
desenvolvimento individual. Ao aplicar este con- Muito se tem escrito sobre o conceito de sím-
ceito à cultura, inseri no centro do Eixo Consciên- bolo como representativo de significados ocul-
cia Coletiva-Self Cultura, o conceito de Símbolo tos ou latentes que devem ser decodificados ou
Estruturante como vínculo operativo. Forma-se interpretados. Isto tudo também é válido para o
com isso uma noção de campo estruturante, no conceito de símbolo estruturante quando perce-
qual os objetos são detectados como símbolos, bido dentro de sua função principal de organi-
na medida em que é percebida sua ligação com zação da energia psíquica individual e cultural
o todo, e como símbolos estruturantes, quando para estruturar a Consciência Individual e Cole-
nos damos conta da sua função no Eixo Consci- tiva na construção e transformação permanente
ência Coletiva-Self Cultural (Gráfico 2, p. 16). da identidade. A dimensão simbólica, ou seja,
O símbolo estruturante é essencialmente a estrutura simbólica é de acesso difícil para a
bipolar, abrindo-se nos dois sentidos do Eixo. reflexão e merece toda a atenção e o esforço do
No sentido do Inconsciente ele se abre para pesquisador para poder ser vivenciada e com-
receber a energia psíquica ativada pelas estru- preendida. No entanto, o que se quer enfatizar
turas arquetípicas e veiculá-las à Consciência, aqui é a função estruturante da dimensão sim-
intermediando a discriminação. No sentido do bólica, que expressa a pujança fantasticamente
Consciente, o símbolo estruturante se abre para criativa do Inconsciente Coletivo no indivíduo e
receber a discriminação já gasta e exaurida, na cultura. É o estudo e o alcance da energia cria-
introduzir a energia ainda inconsciente e indis- tiva da dimensão simbólica na sua função estru-
criminar a Consciência no processo criativo que turante que se constituem na essência de uma
conduzirá a uma nova discriminação. O símbolo Teoria Simbólica da História, pois, neste caso, a
estruturante é, pois, o Janus de duas faces de Lé- História não é percebida por intermédio nem só

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dos seus acontecimentos, nem só de suas várias pode ser visto nesta Teoria Simbólica da História
forças dinâmicas, sejam elas econômicas, polí- por intermédio do conceito de símbolo estrutu-
ticas, religiosas, e sim por meio de tudo o que rante como, apenas, uma das estruturas de rela-
acontece numa cultura percebido como Símbolo cionamento de polos do Self Cultural. Da mesma
Estruturante e expressa a atividade do Self Cul- forma, a noção de “mais valia” pode ser aplicada
tural, usando o passado e o presente numa arti- a qualquer transformação social em andamento
culação criativa que orientará o futuro. (BYINGTON, 1980). As relações homem-mulher
A função transcendente, descrita por Jung e branco-negro no Self Cultural brasileiro, por
(1957) como pertencente ao Self e como capaz exemplo, podem ser estudadas, dentro da noção
de unir os opostos para formar sínteses que não de “mais valor” da energia social, como um en-
existiam antes (tertium quod non datur), pode contro de polaridades ocorrendo paralelamente
ser percebida como uma parte da função do à interação de classes econômicas com a função
símbolo estruturante, ao agir sobre uma discri- simbólica estruturante também de grande signi-
minação consciente e criar outra discriminação, ficado na transformação do nosso Self Cultural.
da mesma forma que na lógica de Hegel, o con- O aspecto histórico-evolutivo do Self Cultural
fronto da tese com a antítese dá nascimento à é estudado nesta Teoria Simbólica da História
síntese. Há que se perceber isto tudo, porém, por intermédio da estruturação da Cultura e da
funcionando dentro de uma estrutura de totali- Consciência Coletiva pelos símbolos estruturan-
dade com o sentido e a direção processual do tes. O conceito de desenvolvimento do Self Cul-
Self Individual e Cultural. tural se fundamenta na diferenciação e organiza-
Com isso, podemos compreender a intuição ção das funções culturais subordinadas a quatro
de Hegel (1953) de que “a História é a realização estruturas básicas de organização do Self e da
do espírito do mundo”, se raciocinarmos que o Consciência, denominada matriarcal, patriarcal,
espírito do mundo não é o fantasma de um ve- de alteridade e cósmica.
lho de barbas brancas, organizando a história O conceito de Self Cultural, como conceito
de cima de uma montanha, e sim a intuição de psicológico que é, engloba, por meio da noção
uma estrutura simbólica de totalidade que parti- de Símbolo estruturante, todas as funções da
cipa, estruturalmente, do fenômeno histórico. A cultura e as subordina ao desenvolvimento psi-
argumentação de Marx, seguindo Feuerbach, de cológico humano. Mas por que é que devemos
que a teoria de Hegel seria idealista, e não cien- subordinar o Self Cultural ao psicológico e não
tífica, contrariamente ao materialismo histórico ao econômico, ao jurídico, ao político, ao reli-
que seria científico por fundamentar na História gioso, ao artístico, ao científico ou a qualquer
não na encarnação de um espírito, mas na luta outra atividade humana? Porque percebemos a
de classes econômica (MARX, 1961), pode ser dimensão psicológica abrangendo todas as de-
vista como complementar a Hegel e não neces- mais, por intermédio da concepção simbólica
sariamente invalidante. Para tal, podemos racio- estruturante que reúne subjetivo e objetivo no
cinar que Hegel intuiu o Self Cultural e expressou desenvolvimento da Consciência. A dimensão
simbolicamente pela palavra encarnação sua psíquica é assim concebida como a essência do
relação com a História, enquanto que Marx des- ontológico e, por isso, ao ser tomada como pa-
creveu, pela função consciente da sensação, a râmetro de totalidade, preserva a integridade do
influência das forças econômicas na transforma- ser humano no nível individual e social, evitando
ção do Self Cultural. Podemos também aplicar o os enfoques unilaterais que conduzem ao redu-
enfoque simbólico e a função intuitiva ao mate- tivismo. O mesmo não acontece com as demais
rialismo dialético. Nesse caso, o modelo econô- dimensões que expressam atividades humanas
mico, de Marx, dos relacionamentos das classes setorizadas e que, se tomadas como referencial

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para o desenvolvimento individual ou cultural, como arquétipo. Apesar de Jung não ter construí-
conduzem a um redutivismo ideologicamente do sua Psicologia Arquetípica em torno da função
asfixiante para outras dimensões. estruturante da personalidade e da Consciência
Este equacionamento do psicológico com o do nascimento até morte, ao conceituar o Self,
ontológico, porém, só pode ser feito com uma ele uniu inseparavelmente os processos cons-
Psicologia Simbólica e nunca com uma Psicolo- cientes e inconscientes numa totalidade dinâ-
gia que se restrinja ao subjetivo em detrimento mica que é, justamente, a condição básica para
do objetivo. É o conceito de símbolo, reunindo uma Psicologia Simbólica estruturante. De fato,
o Eu e o Outro na estruturação da personalida- não existe significante, estrutura ou arquétipo,
de e da cultura, que nos permite equacionar o sem um correspondente de significado, estru-
psiquismo com a essência do ontológico numa turante ou egoico. Nesse sentido, a intuição de
Antropologia Simbólica ou psicocêntrica. Nesse Jung pode ser estendida a todos os arquétipos e
sentido, um sábio não é necessariamente um estruturas, exatamente o que se faz ao perceber
autor de grandes descobertas, famosas obras de cada símbolo como símbolo estruturante com
arte ou capaz de intensas vivências místicas. Um uma direção e sentido no desenvolvimento. Não
sábio se caracteriza pelo seu grande desenvolvi- se pode, sobretudo no Self como estrutura da to-
mento psicológico, ou seja, por sua capacidade talidade psíquica, conceber uma estrutura sem
de lidar conscientemente com os fatos e aconte- um componente de interação dialética (feedba-
cimentos como símbolos dentro do processo de ck) ao desempenhar sua função (veja Gráficos 1
desenvolvimento psicológico. Da mesma forma, e 2 do artigo “O Desenvolvimento Simbólico da
a riqueza de um Self cultural não é dimensiona- Personalidade” ou no final deste artigo).
da essencialmente pelo seu poder econômico, Percebendo-se o Self cultural como uma es-
geográfico, tecnológico ou político, mas pela trutura que coordena e padroniza o desenvolvi-
quantidade de símbolos estruturantes que dis- mento individual e cultural, podemos descrever
põe para operacionalizar seu desenvolvimento. quatro estruturas básicas, por intermédio das
Introduz-se, assim, a categoria de valor huma- quais o Self orienta esse desenvolvimento. São
no, unida pelo símbolo ao conceito evolutivo, elas a matriarcal, a patriarcal, a da alteridade e a
ou seja, reúne-se valor e meta, subordinados ao cósmica. Estas quatro estruturas são evolutivas
processo de desenvolvimento simbólico. Com no desenvolvimento individual, quando se cons-
isso surge a problemática da meta ou do para tituem como ciclos estruturantes de implantação
quê do desenvolvimento do Self Cultural e que sucessiva, e perduram durante toda a vida. Es-
deve ser examinada, não como a realização de tes ciclos apresentam duas fases estruturantes,
algo especialmente fora ou além de si mesmo, sendo a primeira caracterizada pela passividade
mas como a realização das potencialidades do do sujeito e a segunda por sua atividade dentro
próprio Self Individual e Cultural. A evolução do do mesmo padrão estruturante. Dentro do Ciclo
Self para fora de si mesmo ultrapassando-se na Estruturante Matriarcal, por exemplo, apesar de
sua autorrealização, já está dentro de sua carac- desde sempre o ser humano ter participado pas-
terística estrutural. sivamente na sua alimentação dentro da natu-
Apesar de conceituar o arquétipo do Self reza, a revolução agropecuária é um gigantesco
como uma estrutura psicológica inconsciente, marco na incrementação estruturante da segun-
Jung frisou, repetidamente, que ele englobava a da fase do ciclo matriarcal, que possibilitou a
Consciência. Isto contrariaria a definição do ar- relação cada vez mais ativa do ser humano com
quétipo, o que levou à sugestão de se empregar a Natureza. Foram necessários milênios de ativi-
a denominação Arquétipo Central e de se usar dade estruturante do Arquétipo da Grande Mãe
Self como um conceito de totalidade, mas não para isso acontecer. O mesmo podemos dizer da

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revolução linguística, com a linguagem escrita, e lidar com o fenômeno do relativamente curto
sua relação com o dinamismo patriarcal. tempo de vida individual na evolução cultural.
O fato de usarmos as mesmas estruturas Evidentemente que este desenvolvimento se faz
para referenciar o desenvolvimento individual e passando por todas as etapas da construção da
cultural pode levar o pesquisador a redutivismos identidade, e sua diferenciação, dentro das ca-
grotescos, sobretudo quando um referencial é racterísticas a nossa espécie, mas se não perce-
usado indistintamente par interpretar o outro. bermos esta possibilidade maior da capacidade
Mantida a discriminação dos contextos coleti- do desenvolvimento individual, não conseguire-
vo e individual, porém, o fato de ambos terem mos perceber a contribuição do desenvolvimen-
o mesmo referencial evolutivo se torna da maior to cultural a esta característica individual. Assim
importância para não desviarmos os propósitos considerando, não devemos continuar repetindo
de desenvolvimento do Self Individual e Cultural, alienantemente a afirmação corrente de que os
um do outro, de forma alienante como tão fre- mitos relacionam os feitos individuais com a
quentemente acontece. Ao sermos gregários, so- eternidade, devido a uma negação fantasiosa da
mos também animais culturais. Ao estudarmos a morte. Precisamos perceber que esta ligação in-
cultura de forma separada do desenvolvimento sere o desenvolvimento individual, por intermé-
psicológico individual, frequentemente, perde- dio dos seus símbolos estruturantes, no desen-
mos de vista seus fatores comuns de desenvol- volvimento cultural que o transcende no tempo
vimento e nos concentramos nos seus conflitos. e, consequentemente, também na morte.
Deixamos, assim, muitas vezes de lado dois fa- É somente quando nos damos conta desta
tos fundamentais. O primeiro é que o símbolo relação permanente do todo com a Consciên-
estruturante não pode prescindir do Outro na for- cia, que compreendemos não só o que é o de-
mação do Eu e da Consciência, e que este Outro é senvolvimento simbólico estruturante, como
corpo, natureza, ideias e emoções, mas também porque o psicológico é a essência do ontológi-
imprescindivelmente pessoa, estando este dado co. Este passo é necessário para não usarmos
presente em toda atividade social. O segundo é a descoberta de Darwin defensivamente, num
que, devido à efemeridade da vida individual em evolucionismo unilateral, segundo o qual a
contraposição à duração da espécie, a cultura Consciência se separaria cada vez mais do todo
se transforma no vínculo entre antepassados e para, finalmente, ser simplesmente destruída
descendentes, numa obra comum que se realiza na morte. Parte da continuidade da psique in-
sempre pelo desenvolvimento individual. dividual após a morte está assim relacionada
A grande obra realizada no desenvolvimento com a inseparabilidade da vida individual e
simbólico da personalidade individual e cultural cultural. Admitir a relação psicológica da Cons-
é a diferenciação paulatina de sua Consciência ciência diferenciada com o todo cósmico no fi-
do todo e, ao mesmo tempo, o estabelecimento nal da vida é indispensável para vivenciarmos
de caminhos simbólicos de relacionamento com o evolucionismo criativamente, num relacio-
esse todo para a realimentação e o desenvolvi- namento dialético progressivo da Consciência
mento criativo permanente da Consciência. O com o todo desde sua origem, durante sua di-
ciclo cósmico é o último ciclo estruturante, exa- ferenciação e até sua inter-relação na morte.
tamente por preparar a vivência direta do Todo A relação da Consciência com o todo é, então,
do qual a Consciência se diferenciou. Ao perce- parte essencial do discurso simbólico estrutu-
bermos a morte na velhice somente como des- rante, que engloba a relação indivíduo-cultural
truição, não estamos percebendo a inter-relação e nos propicia perceber a História individual e
da direção e do sentido do desenvolvimento coletiva, significantemente, como desenvolvi-
simbólico da personalidade e da cultura, para mento simbólico.

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4. As Quatro Estruturas Básicas do Self forma; enfim, que esta lei opera mais ri-
Cultural no Desenvolvimento Simbólico gorosamente no centro que na periferia.
Foi Johan Jacob Bachofen possivelmente Na falta desta tripla e impossível demons-
quem primeiro estabeleceu a precedência do tração, toda teoria de sobrevivência é vã
matriarcado sobre o patriarcado no desenvol- e, neste caso particular, os fatos não au-
vimento cultural ao estudar principalmente a torizam nenhuma reconstrução histórica
cultura Greco-Romana, seus costumes, sua lite- tendente, por exemplo, ao afirmar a ante-
ratura e seus mitos (BACHOFEN, 1967). Ao fazê- rioridade histórica tendente, por exemplo,
-lo, teve o grande mérito de descobrir e chamar a afirmar a anterioridade histórica das
a atenção para a primordialidade do fator ma- instituições matrilineares sobre as insti-
triarcal sobre o patriarcal. Ao situá-los, porém, tuições patrilineares (1975, p. 21).
numa evolução histórica sucessiva, enredou-se
no mesmo evolucionismo unilateral não dialéti- Em seguida cita Boaz:
co e não estrutural de Tylor, Frazer e Levy-Brühl
e, por isso, sua hipótese tornou-se, junto com o Tudo o que se pode dizer é que frag-
pensamento evolutivo de Morgan, um dos alvos mentos de desenvolvimentos históricos
da crítica metodológica de Boaz ao fundar a Ci- arcaicos não podem deixar de subsistir
ência da Etnologia. Como assinala Lévi-Strauss: mas, se é possível e mesmo provável que
a estabilidade inerente às instituições
Tanto entre os Pueblos do sudoeste como matrilineares as tenha frequentemente
nas tribos do Alasca e da Colúmbia Britâ- conduzido, onde existem, a se transfor-
nica, constata-se que a organização social marem em instituições patrilineares ou
toma formas extremas e opostas nas duas bilaterais, disto não resulta de nenhuma
extremidades do território considerado, e maneira e por toda parte que o direito ma-
que as regiões intermediárias apresentam terno tenha representado a forma primiti-
uma série de tipos de transição. Assim, os va (BOAZ, 1924).
Pueblos ocidentais têm clãs matrilineares
sem metades, os Pueblos do Leste têm Esta Teoria da História em função dos símbo-
metades patrilineares sem clãs. A parte los estruturantes e das transformações da Cons-
norte da costa do Pacífico caracteriza-se ciência não se fundamenta em nenhuma prova
por clãs pouco numerosos e uma floração de que o encontro do dinamismo matriarcal
de grupos locais de privilégios nitidamen- numa cultura esteja evoluindo para o patriarcal
te marcados, ao passo que a parte sul tem e, por isso, a argumentação de Lévi-Strauss e de
uma organização bilateral e grupos locais Boaz, por um lado, é perfeitamente compatível
sem privilégios marcados (1975, p. 20). com ela. De um fato, porém, se faz questão e
este é a primordialidade do dinamismo matriar-
Continua Lévi-Strauss: cal psico-mitológico na estruturação da Consci-
ência Individual e Coletiva. Como, todavia, este
O que se pode concluir disto? Que se pro- dinamismo provém de uma estrutura, esta pri-
duziu uma evolução de um tipo ao outro? mordialidade não pode ser usada numa evolu-
Para que esta hipótese fosse legítima, se- ção linear, como fez Bachofen. Assim, também,
ria preciso estar em condições de provar o fato de encontrarmos o dinamismo matriarcal
que um dos tipos é mais primitivo que o dominante numa determinada fase histórica de
outro; que sendo dado o tipo primitivo, uma cultura não nos autoriza a afirmar nem que
ele evolui necessariamente para a outra aquela cultura “ainda” esteja no ciclo matriarcal

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e nem que se esteja diante de uma regressão pa- alimentar e cuidar do bebê vão, aos poucos,
triarcal. O dinamismo matriarcal é uma estrutura estruturando a identidade do Eu e do Outro e
indispensável à vida psíquica individual e comu- discriminando sua Consciência do Inconscien-
nitária e, por isso, sua função estruturante está te Coletivo, teremos um modelo para pensar a
sempre presente onde existe vida humana. O di- função da cultura em estruturar a Consciência
namismo matriarcal é responsável pelo início da Coletiva, na medida em que a diferenciação
estruturação da Consciência, permanece ativo cada vez mais do Inconsciente Coletivo desde
durante toda a vida e é, provavelmente, o último tempos imemoriais. O alimento torna-se um
dinamismo a continuar atuante no pré-coma que modelo do que é o símbolo estruturante no di-
geralmente antecede a morte. namismo matriarcal, quando percebemos sua
Evidentemente que etnologicamente não pujança instintiva e sensorial, com todas suas
podemos provar isso, porque não há maneira ramificações existenciais e culturais, como
de se verificar como funcionava a consciência base da satisfação e da sobrevivência do ser
do Homo sapiens quando nossa espécie surgiu humano, por intermédio da interação do seu
há 100 mil anos (LEAKEY; LEWIN, 1981, p. 84). corpo com o meio. Compreende-se facilmente
Todavia, dentro do conhecimento genético atu- como o alimento se torna um dos símbolos pro-
al, muito possivelmente os bebês nascem hoje tótipos da realização do desejo, mas é preciso
com o mesmo potencial estruturante que nas- um grande esforço da Consciência para perce-
ceu o primeiro bebê, depois que se constituiu bê-lo como símbolo estruturante da Consciên-
o padrão genético de nossa espécie, e tudo cia e do Self, com a miríade de discriminações
indica que as crianças que nascem hoje, em das quais poder-não-poder, certo-errado, vi-
qualquer cultura, iniciam a estruturação de sua da-morte, desejo-frustração, sucesso-fracas-
Consciência dentro do dinamismo matriarcal. so, tarefa-afetividade são apenas algumas. É
Podemos mesmo supor que nenhuma criança, fácil compreendermos como, nos primeiros 90
que nasça hoje, apresente uma capacidade de mil anos de nossa espécie, a fome nos guiou
discriminação que abstraia do desejo imediato pelo mundo como animais coletores, até nossa
e seja capaz de generalizar esta abstração, com- Consciência se tornar capaz de plantar, de fazer
preendendo e exercendo-a de forma planejada com a terra o que a natureza sempre fez com a
(dinamismo patriarcal). Parece assim altamente nossa frente. É muito difícil, porém, imaginar-
provável que, mesmo que certos pais exerçam mos como toda essa atividade funcionou sem-
sobre a criança uma educação radicalmente pre como símbolo estruturante da Consciência
patriarcal, a estruturação inicial da Consciência para diferenciá-la dos processos inconscientes
infantil e suas identificações primárias se farão, e estruturá-la, enquanto iam se constituindo
inevitavelmente, por intermédio do dinamismo os caminhos da cultura. O alimento, como sím-
matriarcal, guiada pelo sentido e pela necessi- bolo estruturante do dinamismo matriarcal, é
dade de alimentação, de carinho e de cuidado, apenas um exemplo, pois todas as atividades
em meio a uma simbiose intensa, sem que os humanas são simbolizadas, cada uma trazendo
limites e as polaridades, que lhe são impostos, inúmeras contribuições.
sejam por ela discernidos e iniciando suas dis- É penetrando na essência do dinamismo ma-
criminações pelo desejo, dentro do princípio triarcal que vamos compreendendo, de dentro
geral da fertilidade. para fora, como ele se estruturou culturalmente
Necessitamos compreender o que é o di- com os Mitos das Grandes Mães e os rituais de
namismo matriarcal psicológico, a nível indi- fertilidade, pois, assim, podemos compreender
vidual, para discerni-lo bem, no coletivo. Ob- como ele provém de uma estrutura que evoluti-
servando como os símbolos estruturantes de vamente não pode ser ultrapassada.

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Não devemos equacionar o dinamismo ma- É difícil acompanhar, porém, a lógica do
triarcal com a família matrilinear ou matrilocal, pensamento matriarcal porque ele é tão pró-
apesar de haver, sem dúvida, um relaciona- ximo do inconsciente que sua lógica escapa
mento entre os três. O dinamismo matriarcal frequentemente à racionalização consciente. O
deve ser essencialmente compreendido no outro fator que dificulta a compreensão da lógi-
seu aspecto psicológico como um padrão de ca matriarcal é que nela predominam geralmen-
organização da personalidade, da cultura, da te as funções conscientes do sentimento e da
Consciência Individual e Coletiva. Sua carac- intuição, contrariamente à lógica patriarcal, por
terística principal é a proximidade da Cons- exemplo, na qual as funções do pensamento e
ciência dos processos inconscientes, o que da sensação tendem a predominar. É impossí-
dá à consciência uma discriminação como se vel, às vezes, explicar porque a mãe sente que
fosse mais compatível com a claridade lunar o filho necessita dela naquele exato momento
do que com a solar (NEUMANN, 1973 p. 20). ou como o lavrador pressente as mudanças do
Suas discriminações, por isso, não são rígidas tempo ou o pescador, quando não deve sair ao
e preservam uma capacidade muito grande de mar. É esta proximidade do Inconsciente que
explica a grande forma ritualística de lidar com
se transformarem frequentemente, invertendo
os símbolos estruturantes por intermédio da
as polaridades discriminadas, quase que in-
possessão e da magia. Não me parece correto
conscientemente, em função das necessida-
dizer que o Xaman ou a Iyalorixá entra em es-
des do momento. São discriminações lábeis
tado de inconsciência total na possessão, mas
essencialmente pragmáticas e, por isso, com
sim que entram em estado de semiconsciência,
pouquíssimo dogmatismo abstrato, sujeitas
pelo qual vão sendo orientados matriarcalmen-
a serem novamente indiscriminadas, ceden-
te por símbolos estruturantes. O Xaman, que no
do lugar a outros símbolos estruturantes com
transe entra no corpo do seu paciente e viaja ao
outras discriminações, quase que como ilhas
mundo (inconsciente) dos espíritos para buscar
que afloram e submergem com o movimento
a cura, ou a Iyalorixá, que recebe um Orixá, ex-
das marés. Seria, porém, erro grave achar que
periencia uma vivência intensamente simbólica
elas sumiriam e que o pensamento matriarcal
que seria destituída de significado e de capaci-
é pré-lógico, pois, logo em seguida, dependen- dade estruturante se eles não a acompanhas-
do da maré, lá estão aquelas ilhas, aqueles sem de alguma forma conscientemente.
núcleos de consciência, firmes como nunca, A prática da magia é comum dentro do di-
discriminados e adequados à realidade de for- namismo matriarcal. A magia reúne e mistura
ma, não raro, surpreendentemente inteligente. os polos subjetivo e objetivo nas suas práticas
Esta habilidade do discurso matriarcal, oriunda e assim sendo, como o dinamismo matriarcal
de sua proximidade do inconsciente, faz com tem a polaridade consciente tão próxima e até
que este dinamismo da Consciência Coletiva mesmo intermeada com a polaridade psíquica
necessite de expressão ritualística, geralmen- inconsciente, ele reúne, confunde e indiscrimi-
te com abundante expressão sensorial rítmica na, facilmente, sujeito e objeto, sendo, por isso,
musicada e dançada, para expressar e manter extraordinariamente propício para a prática da
as discriminações matriarcais. Por outro lado, magia. O mesmo será com o animismo e pelo
porém, é a própria habilidade do dinamismo mesmo motivo.
matriarcal que faz com que ele, uma vez estru- Vemos então que Levy-Brühl, com sua concei-
turado ritualisticamente, se constitua em hábi- tuação da participação mística e do pensamento
tos culturais seculares dos quais a Consciência pré-lógico, Frazer, com sua visão da magia como
Coletiva dificilmente abre mão para mudar. ciência bastarda, e Tylor, ao conceber fenômenos

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religiosos como animismo, estavam se referindo Crescem os distúrbios neurovegetativos e
a fenômenos inerentes ao dinamismo psicológico as síndromes psicossomáticas. Em vez de reco-
matriarcal. Ao se escudarem, porém, no evolucio- nhecermos neles as manifestações milenarmen-
nismo não dialético para explicá-lo, reduziram-no te descritas desde Hipócrates como Histeria,
a uma simples etapa primitiva, sem perceber sua vamos racionalizando e nos defendendo dela,
natureza estrutural característica do Inconsciente batizando-lhe com novos nomes para camuflar
Coletivo. Com isso, estes pesquisadores se redu- seu poderio e lançando mão de um gigantesco
ziram a um etnocentrismo patriarcal europeu e arsenal terapêutico para reprimi-la. O dinamis-
não puderam valorizar suficientemente o imenso mo patriarcal fabrica no momento o maior arse-
potencial estruturante do dinamismo matriarcal, nal armamentista farmacológico com que já se
riquíssimo, expresso em tantas culturas que es- combateu uma doença. Ao corpo que clama, por
tudaram e, sobretudo reaplicaram seus estudos meio de sintomas, por uma vida humana mais
adequadamente em sua própria cultura. íntegra, mais ecológica no sentido da natureza,
A Antropologia moderna, reconhecendo o re- mas também do corpo, da sociedade e das emo-
dutivismo desses pesquisadores, mas não reco- ções, responde-se com centenas de milhões de
nhecendo a função indispensável do dinamismo comprimidos de psicofármacos para reprimi-lo.
matriarcal na estruturação da Consciência e do A Histeria, porém, como o animismo, a ma-
Self Cultural, continua, sem o querer, a não valo- gia e a possessão, jamais será completamen-
rizar adequadamente este dinamismo e as cultu- te reprimida, porque ela é um sintoma que se
ras nas quais ele sobejamente se expressa. Com enraíza numa estrutura, sendo, por isso, mais
isso, não se valoriza devidamente muitas outras inteligente do que a tecnologia industrial. Da
culturas, pois elas são consideradas completa- mesma forma que as histéricas da Inquisição
mente “diferentes” da Cultura Ocidental, e os ficavam diabólicas e transformavam em demô-
postulados de Boaz, feitos para proteger cienti- nios, os padres que as mandavam queimar, e
ficamente o estudo de cada cultura como um or- mais tarde na Salpetrière ridicularizaram Char-
ganismo único, neste caso, se transformam num cot, imitando inconscientemente o quadro epi-
instrumento de desvalorização involuntário das léptico que o mestre fazia questão de nelas ver
culturas estudadas. Ao achar, por exemplo, que para depois enfrentar Freud e sexualizar incons-
a cultura Iorubá-Nagô não pode ser comparada ciente e sedutoramente a transferência para
com a Cultura Ocidental em Antropologia, não “confirmar” sua teoria pansexual das neuroses,
valorizamos devidamente o equilíbrio dinâmico assim, também hoje, o histérico se transforma
que ela mantém entre o dinamismo matriarcal num habituado e dependente, para neutralizar,
(culto dos Orixás) e patriarcal (culto dos Eguns), ainda que patologicamente, a ação repressiva
face à unilateralidade da Cultura Ocidental por da indústria dos tranquilizantes.
dominância patriarcal. Isto tudo já é parte de uma Teoria Simbóli-
Ao não se reconhecer o dinamismo matriar- ca da História. A noção do inconsciente como
cal como estrutura, prejudica-se também extra- desejo, quando desejo quer dizer a vivência da
ordinariamente o estudo do Self Cultural da Cul- pujança sensual do desenvolvimento, é uma
tural Ocidental. Um dos grandes prejuízos que perspectiva matriarcal de se perceber esse de-
daí decorre para a Cultura Ocidental é não se senvolvimento. A força do dinamismo matriar-
poder reconhecer e estudar um dos seus gran- cal, capaz de dominar até mesmo a identidade,
des males, que é a Histeria como a grande dis- está simbolicamente representada num festival
função que é do dinamismo matriarcal ferido, de Afrodite no qual se sacrificavam leitões num
pessimamente expresso e elaborado, devido à poço e ao qual os homens vinham vestidos de
unilateralidade patriarcal cultural. mulher e as mulheres de homem. Significativa-

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mente este festival da deusa era chamado Histe- de 60 milhões de dólares. A negociação foi in-
ria (NIKLEM, 1974). viabilizada, porém, porque os aborígenes que
É o imenso potencial estruturante dos símbo- detêm o título de posse da terra recusaram-se a
los matriarcais que permite à Histeria lutar com o permitir que se mexa naquela terra, que em sua
dinamismo repressivo patriarcal, por intermédio religião é Gabo Djang, ou seja, “o lugar onde
da magia e do princípio homeopático do similia as formigas verdes vêm sonhar”. Segundo sua
similibus. É, porém, a compreensão da Histeria tradição, se este lugar for profanado, as formi-
como disfunção do dinamismo matriarcal que gas se transformarão em monstros devoradores
nos permite compreendê-la lado a lado com a de seres humanos e devastarão a Terra. A com-
possessão, a magia, o animismo e todas as ou- panhia mineradora já está oferecendo aos “sel-
tras formas estruturantes tão básicas, normais e vagens” pela terra 13 milhões de dólares, mas,
indispensáveis para o desenvolvimento primor- estes, apesar de paupérrimos, recusaram-se
dial da Consciência e do Self Cultural por inter- a vendê-la por respeito ao poder das formigas
médio da estrutura matriarcal. A compreensão verdes. Considerando-se as formigas verdes
da expressão psicótica da Histeria nas psicoses um símbolo estruturante do Arquétipo da Gran-
matriarcais é também uma das grandes necessi- de Mãe no Self Cultural destes aborígenes, per-
dades da psiquiatria moderna pelo fato do seu cebemos que sua interação com o dinamismo
tratamento e prognóstico ser inteiramente diver- matriarcal, tem uma função de integração entre
so do das psicoses patriarcais como, por exem- sua sociedade e a natureza. É claro que num en-
plo, o grupo das esquizofrenias. foque meramente tecnológico, ninguém teria a
O fato de uma cultura apresentar um dina- menor dúvida em afirmar que a Cultura Ociden-
mismo matriarcal exuberante não que então, de tal é infinitamente mais evoluída do que a dos
forma alguma, dizer que ela deva ser considerada aborígenes de Nebarlek. Poderíamos afirmar o
menos evoluída que outra que esteja se expres- mesmo em termos comparativos da sabedoria
sando dominantemente por intermédio do dina- do Self Cultural? Poderíamos simplesmente
mismo patriarcal. Apesar de esta Teoria Simbó- negar esta “inteligência” mitológica afirmando
lica da História ser evolutiva, não é esse tipo de tratar-se de uma coincidência? Contudo, quan-
evolução que basicamente lhe interessa, pois sua do admitimos o poder intuitivo do dinamismo
tentativa é uma porta aberta para se recair em et- matriarcal negligenciá-lo metodicamente passa
nocentrismos. Qualquer antropólogo experimen- a ser uma atitude pouco científica.
tado poderá fornecer centenas de exemplos para Pensemos, por exemplo, na construção das
ilustrar a riqueza do dinamismo matriarcal. Cito usinas nucleares brasileiras, na década de 1970,
um, apenas à guisa de ilustração. obedecendo a um dinamismo patriarcal centrali-
Trata-se de um caso ocorrido entre uma com- zador, para atender às necessidades de energia
panhia de mineração de urânio, representante termonuclear do país. Enquanto isso, num dina-
da última fase evolutiva tecnológica, ou seja, a mismo matriarcal negligenciado, observamos
fase termonuclear, e uma tribo de aborígenes milhões de brasileiros mal atendidos quanto à
da Austrália, ainda na idade da pedra, ou seja, casa, escola, saúde e alimentação, sendo que,
em plena selvageria, segundo Morgan, Engels entre eles, milhões de crianças correm o risco de
e Darcy Ribeiro. Conta-nos um artigo da revista deficiência cerebral futura por carência proteica
Time, de 9 de setembro de 1974, que uma com- na alimentação. Não se trata aqui de desvalo-
panhia de mineração descobrira, quatro meses rizar a ciência, ridicularizando-a em função de
antes, na região de Nebarlek, o depósito de suas limitações. Nem tampouco de transformar
urânio mais rico do mundo e apressou-se em o dinamismo matriarcal em ciência esotérica, va-
fazer contratos com firmas japonesas no valor lorizando afirmações intuitivas, como se houves-

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sem passado pelo exame do método científico. apenas a título de ilustração, o fenômeno de se
Trata-se, sim, de valorizar o dinamismo matriar- confundir o Orixá Exú com o Diabo na Cultura
cal como ele realmente é, e levar em considera- brasileira, cujo estudo comecei a desenvolver
ção seus símbolos como expressão autêntica do em outro trabalho (BYINGTON, 1982a). Aparen-
Self Cultural, inclusive para tentar compreendê- temente poderíamos achar que se trata simples-
-los melhor pelo dinamismo de alteridade, que é mente de um sincretismo como outro qualquer.
capaz de estudar, lado a lado, o dinamismo ma- Um estudo simbólico deste sincretismo, porém,
triarcal e patriarcal. Assim fazendo, percebemos nos revela que o Diabo, percebido como símbolo
que o dinamismo matriarcal, mesmo confundin- estruturante no Ocidente, representa exatamen-
do as polaridades entre si, é muitas vezes mais te aqueles componentes sensuais e agressivos
adequado e inteligente que o patriarcal para lidar dissociados do símbolo de Cristo com a ação
com certas situações, devido à frequente rigidez repressiva da Inquisição. Cristo e Exú são símbo-
e unilateralidade do dinamismo patriarcal, que los estruturantes, entre outras coisas, do Arqué-
o impede muitas vezes de atender à situações tipo do herói intermediador do Consciente e do
humanas como um todo. Inconsciente, da vida e da morte, presente em
O que nos interessa no enfoque evolutivo inúmeras culturas e representado, por exemplo,
simbólico é a historicidade de três vertentes. A por Hermes, na Grécia, e Mercúrio, em Roma. O
primeira é a relação entre os símbolos estrutu- sincretismo Diabo-Exú representa, então, o so-
rantes e o Self Cultural de cada cultura, distin- frimento do Self Cultural com a dissociação do
guindo-se onde os símbolos estão atuando livre complexo simbólico Cristo-Diabo e a tentativa
e criativamente no seu funcionamento histórico simbólica estruturante de ultrapassar esta dis-
e onde estes símbolos estão operando dentro de sociação, por intermédio do símbolo estruturan-
defesas, caracterizando verdadeiros núcleos de te Exú, que na cultura Iorubá-Nagô não sofreu
patologia cultural. A segunda vertente caracteri- esta dissociação.
za-se pela interação dos dinamismos estruturais Deve, portanto, ficar bem claro neste traba-
na Cultura, como, por exemplo, os conflitos en- lho que, apesar de tudo indicar que a implan-
tre os dinamismos matriarcal e patriarcal, acima tação dos ciclos estruturantes surge nas cul-
citados no caso de Histeria. A terceira vertente turas evolutivamente, este fato não será aqui
é a reação de uma cultura aos símbolos estrutu- uso para comparar, evolutivamente, as culturas
rantes de outra, o que nos permite o estudo da entre si, devido à dificuldade prática de esta-
Antropologia Simbólica Transcultural e a percep- belecê-lo historicamente. É que estas quatro
ção da formação da identidade nacional numa estruturas são arquétipos da nossa espécie, ou
sociedade pluricultural como a nossa. seja, modalidades de funcionar de nossa men-
A primeira vertente desta Antropologia Sim- te, geneticamente herdadas, e que em determi-
bólica é aqui estudada, no seu aspecto criativo, nadas condições existenciais e históricas são
pela análise da função estruturante de alguns ativadas. Como saber se essa ativação histórica
símbolos do dinamismo patriarcal e de alterida- foi própria da cultura ou chegou a ela pelo difu-
de na Cultura Ocidental e, no seu aspecto patoló- sionismo cultural, se está aparecendo pela pri-
gico, pela fixação e dissociação do Self Cultural meira vez ou se é a reintensificação de algo que
ocorrida, dos séculos XIII a XVIII, em função da já ocorreu no passado? Por isso, seria temerário
Inquisição. A segunda vertente está aqui exem- usar esta teoria para situar, hierarquicamente,
plificada na interação dos dinamismos patriar- culturas que ainda estariam exclusivamente
cal, de alteridade e matriarcal na Cultura Ociden- no padrão matriarcal, diante de outras que já
tal. A terceira vertente não foi especificamente teriam atingido o patriarcal, o de alteridade
estudada neste artigo. Cito como seu exemplo, ou o dinamismo cósmico. Isto só serviria para

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atrapalhar o uso deste enfoque simbólico para triarcais, porém, como dissemos acima, as res-
melhor compreender as três vertentes culturais salvas são muito mais numerosas. É que, como
mencionadas acima, no que ele se me tem mos- esta teoria introduz o Ciclo de Alteridade e o
trado ser de grande utilidade. Cósmico na teorização evolutiva, a classifica-
Uma descrição sumária em conjunto das ção dos mitos em matriarcais e patriarcais so-
quatro estruturas básicas e seus respectivos mente, leva a grandes incompreensões quanto
padrões de Consciência pode ser encontrada da a verdadeira função estruturante destes mitos
página 21 à página 25, no artigo referente ao De- na cultura. Mitos como o de Édipo, incluindo,
senvolvimento Simbólico da Personalidade. sobretudo a segunda parte do Mito descrito
na Antigona, de Sófocles, ou Mitos como Eco e
5. A Implantação do Ciclo Patriarcal Narciso, Os Mistérios de Elêusis, a tragédia dos
na Cultura Judaica. O Conflito Atridas incluindo a Orestéia, Eros e Psique, Te-
Matriarcal – Patriarcal seus e Ariadne, o Mito de Palas Atenas, o Mito
Erich Neumann (1954), ao retomar a desco- do segundo Dionisos e muitos outros, apesar de
berta de Bachofen e descrever psico-mitologica- incluírem elementos matriarcais e patriarcais,
mente “História da Consciência”, empregando são na realidade mitos estruturantes do padrão
mitos por ele e Bachofen designados matriarcais de alteridade na Consciência Coletiva da Cul-
e patriarcais, não chegou em momento algum tura Grega. São mitos que quando abordam os
de sua obra a se referir concretamente à História dinamismos matriarcal e patriarcal não o fazem
propriamente dita, como assinalou criticamente para empregar seus símbolos estruturantes
Giegerich (30). Uma das justificativas que pode- simplesmente como tal, mas para estruturar um
mos dar a Neumann é que, ao centralizar suas estado de Consciência capaz de relacionar dia-
pesquisas nos Mitos Assírio-babilônicos e Egíp- leticamente, e em igualdade de condições, o Eu
cios, restringiu-se a uma área da cultura sobre e o Outro e todas as polaridades entre si, inclu-
a qual temos pouco conhecimento histórico e sive as duas grandes polaridades estruturantes
isto, naturalmente, tornou-se difícil a correlação fundamentais que são o dinamismo matriarcal
mitológico-histórica. Outra possibilidade é que e patriarcal.
Neumann nunca abordou a correlação histórica, Talvez seja a Trilogia de Ésquilo, a Orestéia,
porque, ao escrever sobre “Origens e História da a melhor expressão da cultura grega para nos
Consciência”, havia pensado somente em está- exemplificar como a passagem para o dinamis-
gios simbólico-mitológicos e nunca na História mo de alteridade se originou no antagonismo
propriamente dita. Esta última hipótese talvez entre o dinamismo matriarcal e patriarcal e se
explique porque não se interessou em estudar transformou na sua relação dialética. Trata-se,
sistematicamente o Velho Testamento como a nada mais nada menos, do que a própria trans-
maior expressão de nossa mitologia patriarcal e, formação do julgamento patriarcal generalizado
por conseguinte, a de mais fácil correlação com do “olho por olho, dente por dente”, dentro do
a nossa História. qual o conflito patriarcal-matriarcal não teria fim,
Esta Teoria Simbólica da História reconhece no julgamento de cada caso individual em si,
basicamente a descoberta de Bachofen e seu dentro do seu contexto global.
emprego por Neumann, com as ressalvas que Na primeira peça da Trilogia, denominada
já fizemos sobre a existência de duas fases em Agamemnon, vivenciamos a tragicidade ter-
cada ciclo estruturante e sobre a continuação rível do dinamismo patriarcal na repressão
estruturante do Ciclo Matriarcal durante e após brutal do feminino. Aguardando os ventos da
a dominância do Ciclo Patriarcal. No que tange guerra que conduzirão as naus gregas para pu-
à categorização dos mitos em matriarcais e pa- nir o amor de Helena por Paris e reconstituir

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o casamento patriarcal grego ultrajado, Aga- O julgamento de Orestes termina empatado.
memnon mata o cervo de Artemis cometendo O “voto de Minerva” por intermédio do qual Pa-
sacrilégio no seu santuário. Hiphigênia, sua las Atenas liberta Orestes e, por conseguinte,
filha, é sacrificada e os ventos impulsionam os Electra para viverem suas vidas não deve ser
gregos para arrasar Troia. entendido como mais uma vitória revanchista
O sacrilégio do santuário da grande deusa da patriarcal e sim como o início de uma nova era
caça, ou seja, a violentação ecológica é coteja- na qual o próprio Zeus se apresenta transforma-
do aqui com um golpe mortal no que há de mais do. Palas Atenas, o feminino oriundo da cabeça
precioso na afetividade, na anima, no carinho do de Zeus, ou seja, do Logros da própria divindade
próprio Rei como condição essencial do espírito diminuíra a dominância de Apolo e reassegurara
patriarcal conquistador. o resgate do mundo matriarcal e o seu culto per-
O feminino ferido no amor de Helena arrasa- manente outra vez em solo grego. Esta inovação
do em Troia une-se à irmã-mãe Clitemnestra, que introdutória da interação matriarcal-patriarcal no
não pôde perdoar o assassino de sua filha e le- padrão de alteridade permitiu aos jovens irmãos
vanta-se para a vingança por intermédio de outro Orestes e Electra, sobreviventes da tragédia ori-
assassinato, desta vez do próprio Rei. ginal, buscarem um novo andrógino, um novo
Electra, porém, irmã de Hiphigênia, não se quatérnio hermafrodita, um novo coniunctio
conforma com a morte do pai, pois a alma de Aga- para cada um, já agora libertos da problemática
memnon, ao não receber os ritos funerários, não do hermafrodita parental que lhes deu origem.
pôde descer ao Hades. O amor agora muda de Trata-se de tal inovação cultural que incluirá
lado. Saciada a ira do mundo feminino matriarcal não somente uma nova forma de se conceber o
ultrajado, agora o princípio masculino patriarcal amor, a justiça e a verdade como também até
ferido necessita ser reconhecido e honrado como mesmo uma nova forma da natureza humana ul-
necessário e indispensável que foi no desenvolvi- trapassar o incesto. Este santuário das Erineas
mento da cultura. Orestes se une a Electra repre- transformadas em Euménides representa o res-
sentando a totalidade sob nova forma e ambos in- gate do feminino e o mesmo que será visitado
vestem contra Clitemnestra punindo mortalmente pelo Édipo de Sófocles que quando guiado por
o princípio matriarcal vingador. Antígona atingira a santificação em Atenas. O
Na última peça da trilogia, as fúrias represen- incesto que, depois da homossexualidade de
tantes do princípio matriarcal ferido serão ataca- Laios, não pode mais ser resolvido pela repres-
das por Apolo impiedosamente no julgamento são patriarcal, encontra no resgate do matriarcal
de Orestes e ameaçarão o extermínio da própria e na sua dialética com o masculino no padrão de
espécie humana com mais uma vingança. A peça alteridade uma forma muito mais criativa e efi-
se chamara, porém, as Euménides ou benevolen- ciente para ser elaborado.
tes, pois, por intermédio da sabedoria de Palas A esfinge oriunda da família monstruosamen-
Atenas, as fúrias ou Eurineas serão aplacadas e te incestuosa da serpente Echidna está ligada à
a retaliação fica daí por diante substituída pela homossexualidade de Laios e à decadência da
convivência e interação dialética dos dois princí- unilateralidade do padrão patriarcal. Édipo acre-
pios fundamentais, o matriarcal e o patriarcal, já dita poder bani-la e ao incesto laçando-a aos
agora propiciando o desenvolvimento dos arqué- abismos por intermédio da formulação do enig-
tipos da anima e do animus na estruturação da ma do desenvolvimento existencial por intermé-
consciência coletiva que permitira o surgimento dio do Logos. Este caminho mostra-se, porém,
da democracia, do respeito da individualidade ineficiente, e Édipo, em vez de se livrar do in-
tanto quanto da coletividade e propiciara a inte- cesto, afunda nele irremediavelmente. Somente
ração criativa e dialética do conflito de opostos. após sua imensa tragédia e que Édipo descobri-

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ra o novo caminho da cultura ao purificar-se no buição do Budismo na implantação do padrão
santuário das grandes deusas mães. E o fato de de alteridade e cósmico se enraíza nos Vedas e
reconhecê-las e respeitá-las que as apazigua e Upanishads que já apresentavam inúmeros ele-
transforma em benevolentes sem o que o padrão mentos pós-patriarcais de alteridade.
patriarcal não pode realmente ser transcendido. Cada ciclo do desenvolvimento tem a fina-
A abordagem da transição da dominância lidade de estruturar a Consciência Individual e
patriarcal para a de alteridade, por estar mui- Coletiva com um determinado padrão de rela-
to mais próxima de nossa problemática e, por cionamento do Eu com o Outro. Os ciclos simbó-
isso, conter dados históricos abundantes para licos estruturantes não se diferenciam entre si
sua demonstração, ilustrara melhor esta Teoria pela presença deste ou daquele Símbolo, desta
Mitológica da Historia do que o confronto ma- ou daquela função psíquica, e sim pelo padrão
triarcal-patriarcal sobre o qual trabalharam Ba- que rege a estruturação e que orientara o rela-
chofen e Neumann. cionamento do Eu e do Outro na Consciência
O Velho testamento expressa a implantação por ele estruturada. O padrão patriarcal funcio-
do padrão patriarcal na Cultura Judaica e o iní- na com uma discriminação muito mais rígida e
cio de sua implantação expressa, como seria de maniqueísta dos polos de cada símbolo do que
se esperar, um conflito patriarcal-matriarcal. O o padrão matriarcal. Por isso, em todo padrão
início da implantação apresenta o conflito evo- patriarcal de qualquer cultura ou personalidade
lutivo mitológico como um conflito entre Judeus vamos sempre encontrar um grau determina-
e Egípcios, mas a crise máxima deste conflito, do de rigidez na colocação dos limites de suas
no episódio da adoração do bezerro de ouro no discriminações. Esta rigidez expressa o grau do
deserto, ocasionando a quebra das primeiras componente repressivo sempre presente, que
Tábuas da Lei, nos demonstra de forma exube- traz consigo uma maior ou menor eletrização na
rante que o conflito mitológico-cultural ocorreu discriminação dos polos dos Símbolos. Isto quer
também dentro da Cultura Judaica. De fato, nem dizer que a estruturação ca Consciência pelo pa-
teria cabimento colocar a Cultura Judaica como drão Patriarcal se faz sempre por intermédio de
representante do padrão patriarcal e a Egípcia, uma determinada repressão em nome de uma lei
do matriarcal, pois a própria Mitologia Egípcia e ordem abstratas, que fazem com que a Cons-
nos mostra intensa e extensamente a transição ciência Individual ou Coletiva seja codificada e
matriarcal-patriarcal, e também de alteridade, organizada de forma relativamente repressiva
nos mitos de Ísis, Osíris, Set e Horus. Quero e elitista no relacionamento do Eu e do Outro.
frisar que a transição da dominância matriar- Enquanto que, nas discriminações matriarcais,
cal-patriarcal ocorreu, como expressa o Velho a conotação simbólica de se assenhorizar de
Testamento, também dentro da Cultura Judai- coisas alheias, por exemplo, pode variar inten-
ca. Este fato nos permite acompanhar o Ciclo samente já nas discriminações patriarcais isto
Patriarcal nas raízes judaicas de nossa Cultura tende a ser sempre considerado delito grave e
Ocidental e atestar a radicalidade da sua im- punido severamente. Há sempre uma tendên-
plantação e unilateralidade do seu desenvol- cia a separar nitidamente o que é o Eu e o que
vimento frente ao seu Ciclo matriarcal. Este ra- é o Outro, bem como a separar nitidamente os
dicalismo na implantação do Ciclo Patriarcal e polos antitéticos dos símbolos estruturantes e a
fundamental para que possamos compreender codificá-los de forma elitizada. Na Cultura Judai-
porque nosso Ciclo de Alteridade necessitou ca, esta codificação foi levada a um grau muito
de um Mito Messiânico tão pujante para sua intenso, o que situado no contexto dos demais
implantação, contrariamente, por exemplo, a símbolos estruturantes do Velho testamento, de-
Cultura Hindu na qual, por exemplo, a contri- nota a existência de um componente patriarcal

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repressivo muito rígido para levá-lo a cabo. Um dogmas para todo o sempre. A eletrização na
determinado componente repressivo e sempre discriminação resulta da própria codificação
necessário para levar a cabo qualquer discrimi- repressiva que engloba a codificação ética e
nação patriarcal, pois, caso contrário, o fluxo dogmática, pré-estabelecendo que muitas po-
da vida psíquica, permanentemente criativo e laridades devem ser favorecidas e outras tantas
indiscriminado, facilmente a reindiscrimina. O desfavorecidas. No mandamento “respeitar pai e
dinamismo patriarcal impressionou tanto Freud mãe”, por exemplo, se estabelece uma tal “mais
que sua obra, apesar de partir da pesquisa cien- valia” no uso do poder, ou seja, uma tal assi-
tífica que é baseada no padrão de alteridade, metria elitista no relacionamento entre as duas
descreveu os processos inconscientes quase principais relações, entre os jovens e os velhos,
que exclusivamente dentro da teoria da repres- isto e, entre dois dos principais grupos da so-
são. Os desejos inconscientes, muitos dos quais ciedade, que inúmeros setores dos costumes e
operando dentro do dinamismo matriarcal, te- das leis foram rigidamente discriminados a partir
riam que ser necessariamente reprimidos. Pode- desse mandamento. O fato de os mandamentos
mos associar esta identificação de Freud com o serem gravados na pedra por Deus são também,
dinamismo patriarcal e sua essência repressiva simbolicamente, significativos de sua proposta
sobre o inconsciente com certa desesperança e de duração eterna, de verdade absolutamente
pessimismo que permeia sua obra “O Mal-Estar dogmática, de invariabilidade e de intransigên-
na Civilização”, e que talvez tenha uma explica- cia. As Tábuas da Lei e a jurisprudência talmú-
ção no fato de um gênio, com um grande ideal dica me parecem um grande exemplo da ligação
humanista, não ver outra sadia para a civilização entre o estabelecimento da linguagem escrita e a
a não ser pela repressão incompatível com o pa- dominância do dinamismo matriarcal.
drão democrático e científico de alteridade. O símbolo estruturante das Tábuas da Lei,
Um símbolo estruturante dos mais exemplifi- sem dúvida, central no estabelecimento da do-
cativos desta codificação patriarcal são as Tábu- minância patriarcal no Self Cultural Judaico,
as da Lei do Velho testamento. Elas expressam deve, porém, ser abordado dentro da viagem
uma discriminação de opostos na Consciência heroica por intermédio do deserto, em busca da
típica dos símbolos estruturantes atuando no Terra Prometida, que é, em si própria, a transfor-
Self Cultural por intermédio do Arquétipo do Pai. mação da Consciência Coletiva, da dominância
Estas características típicas de estruturação pa- matriarcal para a patriarcal. Contudo, esta pró-
triarcal são a grande abstração, a generalização, pria viagem, cheia de frustrações e de “desma-
a eletrização, a abrangência temporal e o com- mes” sem conta da fertilidade do seio prazeroso,
ponente repressivo nas discriminações. A gran- sensual e propiciador da fertilidade da Grande
de abstração nos fala, por exemplo, de “Amar a Mãe regente do Ciclo Matriarcal, e um gigantesco
Deus sobre todas as coisas”. Não especifica que símbolo estruturante encadeado em muitos ou-
coisas. São coisas de um modo geral (abstração) tros com os quais forma o grande mito patriarcal
e sem qualquer exceção (generalização). A ca- do Velho Testamento.
racterística repressiva emana da conotação im- O próprio relato da criação do mundo e, so-
perativa de toda generalização, das proibições bretudo, da mulher criada a partir do homem,
e da denominação de “mandamentos” dada as já nos sugere fortemente a dominância do di-
discriminações. A abrangência temporal vem do namismo patriarcal. A sadia do Paraíso incons-
infinitivo e da generalização. Não e preciso es- ciente, repressivamente, na qual o próprio
pecificar, por quanto tempo. Em nenhum manda- símbolo do conhecimento e estruturado junto
mento figura a palavra sempre, porém ninguém com a codificação do bem e do mal, do certo
tem a menor dúvida, ao lê-los, que se trata de e do errado, reforçam esta noção. A corrupção

Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 1º sem. 2019 ■ 47


da humanidade punida pelo dilúvio, seguido der e a forca de vossa amo? [...] E o Senhor
da destruição de Sodoma e Gomorra pelo fogo, se arrependeu das ameaças que tinha
confirma não só a estruturação patriarcal do proferido contra o seu povo (Ex 32:7-14).
Self Cultural, exuberantemente por intermédio
de símbolos estruturantes cósmicos, como con- Os símbolos estruturantes patriarcais, que
firma, também, a intensidade e a radicalidade se seguem, são altamente significativos e se
dessa estruturação que será reconfirmada, mui- centralizam na busca da terra que e prometida
tas vezes por intermédio do Velho Testamento, e na qual se formara a “grande nação”. Perce-
na tendência punitiva extrema, e até mesmo be-se como sendo de fundamental importância a
genocida, do Deus Patriarcal, com a qual tem união do conceito de construção de uma “grande
que se haver muitas vezes o herói implantador nação”, de “terra prometida” e de consciência
do novo padrão para garantir a sobrevivência patriarcal formando uma coisa só no Self Cultu-
do seu povo. Este componente genocida visto ral de um povo. A estruturação do ciclo patriar-
como símbolo estruturante da Consciência Co- cal com estas características nos permite com-
letiva sugere que a constelação da ação estru- preender a importância extraordinária que os
turante do Arquétipo do Pai e aqui tão intensa, símbolos patriarcais ocupam na cultura Judaica.
que sua implantação atinge níveis ameaçado- Outros dois símbolos estruturantes básicos vêm
res de desintegração do próprio Self Cultural. reforçar, ainda mais, esta cadeia simbólica es-
E este perigo que torna a ação heroica implan- truturante. Trata-se da dispensa do sacrifício de
tadora do novo padrão aparentemente ambí- Isaac e da circuncisão.
gua, pois a tarefa heroica deve desempenhar a O sacrifício de Isaac deve ser percebido, para
implantação dos novos símbolos e ao mesmo esta argumentação, a luz do símbolo estruturan-
tempo proteger o seu povo do próprio Deus que te Isaac, como filho único da velhice de Sarah e
a promove, ou seja, da estrutura arquetípica do patriarca Abraão. A idade de 99 anos na qual
que promove a implantação. Esta característica Abraão concebeu Isaac também e numericamen-
de radicalismo do padrão patriarcal influencia te simbólica e sugestiva por ser o último ano
fundamentalmente a Historia de um povo, pois antes do número 100, o que nos dá a noção de
ela lhe predispõe intensamente a polaridade final e de totalidade. A geração de Isaac, a estru-
guerra-submissão ao martírio e ao genocídio. turação patriarcal social da propriedade da terra
e a circuncisão estão vinculadas como símbolos
O Senhor disse a Moisés: Vai, desce por- estruturantes inseparáveis no Mito.
que corrompeu-se o teu povo que tiraste Abraão tinha 99 anos. O senhor apareceu-lhe
do Egito. Desviaram-se depressa do cami- e disse-lhe:
nho que lhes prescrevi; fizeram para si um
bezerro de metal fundido, prostraram-se Eu sou o Deus Todo Poderoso. Anda em
diante dele e ofereceram-lhes sacrifícios minha presença e sê integro: quero fazer
dizendo: Eis o Israel o teu Deus que te aliança contigo e multiplicarei ao infinito
tirou do Egito. Vejo, continuou o Senhor, a tua descendência. Abraão prostrou-se
que este povo tem a cabeça dura. Deixa com o rosto por terra. Deus disse-lhe: este
pois que se acenda minha cólera contra é o pacto que faço contigo: serás o pai
eles e os reduzirei a nada; mas de ti farei de uma multidão de povos. De agora em
uma grande nação. Moisés tentou aplacar diante não te chamaras mais Abrão, e sim
a ira do Senhor dizendo-lhe: Por que, Se- Abraão, porque farei de ti o pai de uma
nhor, se inflama a vossa ira contra o vosso multidão de povos. Tornar-te-ei extrema-
povo que tiraste do Egito com o vosso po- mente fecundo, farei nascer de ti nações

48 ■ Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 1º sem. 2019


e terás reis por descendentes. Faço alian- tabu de incesto pela repressão, mostra o quanto
ça contigo e com tua posteridade, uma Freud edificou sua Psicologia basicamente den-
aliança eterna, de geração em geração tro do padrão patriarcal, o que explica o reduti-
para que eu seja o teu Deus de tua pos- vismo dos símbolos a esse padrão tão frequente
teridade. Darei a ti e a teus descendentes em sua obra.
depois de ti, a terra em que moras como
peregrino, toda a terra de Canaã em pos- Quando chegaram ao lugar indicado por
sessão perpétua e serei o teu Deus. Deus Deus, Abraão edificou um altar. Colocou
disse ainda a Abraão: Tu, porém, guarda- nele a lenha, amarrou Isaac, seu filho,
ras a minha aliança, tu e tua posteridade sobre o altar em cima da lenha. Depois
nas gerações futuras. Eis o pacto que faço estendendo a amo, tomou a faca para
entre mim e vós e teus descendentes e imolar o seu filho. O anjo do Senhor, po-
que tereis que guardar: todo homem den- rém gritou-lhe do céu: – Abraão, Abraão!
tre vós será circuncidado. Cortareis a car- – Eis-me aqui. – Não estendas a tua mão
ne de vosso prepúcio e isso será o sinal contra o menino e não lhe faças nada.
da aliança entre mim e vós... Assim será Agora eu sei que temes a Deus, pois não
marcado em nossa carne o sinal de minha me recusastes o teu próprio filho, o teu fi-
aliança perpétua. O varão incircunciso do lho único (Gen 22:9-12).
qual não se tenha cortado a carne do pre-
púcio será exterminado do povo por Ter Reduzir esta passagem simplesmente a um
violado a minha aliança (Gen 17:1-14). complexo filicida de Abraão por competição do
pai com o filho, e reduzir a Psicologia Coletiva à
Esta passagem plena de símbolos estrutu- Psicologia Individual é reduzir a cultura ao com-
rantes intensamente significativos une descen- plexo de Édipo familiar patriarcal e não perceber
dência patriarcal, posse de terra, herança pa- a função estruturante do sacrifício de Isaac no
trilinear, obediência e circuncisão, sob pena de Self Cultural. Ao ver este sacrifício como símbolo
eliminação. Compreende-se disto muita coisa, estruturante da implantação do padrão patriar-
inclusive porque Freud reduziu o importantíssi- cal, percebemos que se trata da repressão do
mo símbolo estruturante de aniquilamento exis- Arquétipo do Filho em cada homem para subme-
tencial ao Complexo de castração. A ameaça de tê-lo, obediente e domesticado, ao desempenho
castração, como todos os símbolos estruturan- patriarcal. A circuncisão, assim, lhe acompanha-
tes, pode ser vivenciada em qualquer dinamis- ra sempre no seu órgão reprodutor associando
mo estruturante. E sobejamente conhecida em desobediência a Deus com ameaça de castração
mitologia a castração dos jovens deuses Atis, e de morte ao lhe relembrar o que teria aconteci-
Osiris, Tamuz e Adonis, associada aos rituais de do a Isaac se Abraão não houvesse demonstrado
fertilidade Grande Mãe. No caso do Velho testa- obediência absoluta.
mento, porém, este símbolo estruturante expres- Este pacto feito entre Deus e Abraão, no qual
sa o Arquétipo do Pai, porque está associado foi contratado o nascimento de Isaac, nos mos-
com uma ameaça relacionada com a obediência tra muito sobre o símbolo estruturante Isaac, e
a um código ético abstrato e não com o princípio nos permite compreender o significado de evitar
da fertilidade. O fato de Freud tê-lo articulado so- o seu sacrifício em troca da obediência, na estru-
mente com o Complexo de Édipo, ou seja, como turação patriarcal da obediência como condição
casal parental, já discriminado numa nítida es- de sobrevivência, sendo a circuncisão a marca
trutura patriarcal de papéis conjugada ao poder física deste contrato. Trata-se nada mais nada
ameaçador da autoridade do pai, regulando o menos que obediência ou morte, pacto presente

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no pênis de cada homem e no batismo de cada os símbolos a determinadas polaridades e a elas
novo descendente. Isaac e o único herdeiro, não se atém para melhor poder executar sua rígida
só dos bens, como da liderança e da transmis- discriminação. A mais importante discrimina-
são da tradição. Morto ele, não haveria tempo, ção patriarcal, e que é, por isso, executada com
nem condições, para gerar outro e a própria li- maior poder repressivo e elitizante, é a discrimi-
nha de continuidade da implantação patriarcal nação patriarcal-matriarcal. Qualquer elemento
seria interrompida. A morte de Isaac representa- matriarcal como rituais de fertilidade, adoração
ria simbolicamente o próprio genocídio da gran- de ícones, rituais mágicos, supersticiosos ou
de nação israelita na sua raiz. E esta vida que e adivinhatórios, bem como os cultos femininos
pedida em sacrifício pelo Deus Patriarcal e que de um modo geral, se tornam absolutamente ta-
é poupada após ter sido dada. O sacrifício pou- bus. Até mesmo animais ligados às divindades
pado de Isaac se torna assim o símbolo estrutu- matriarcais como, por exemplo, o porco, podem
rante da obediência que assume papel dos mais ser proibidos na alimentação, como pode ter
centrais na implantação patriarcal. A obediên- sido o caso na Cultura Judaica.
cia sem contestação, que é a consequência do A importantíssima discriminação homem-
autoritarismo dogmático e, por isso, e uma das -mulher, fundamental em qualquer processo de
condições essenciais para o funcionamento do formação de identidade, do Eu e do Outro, quer
dinamismo patriarcal, e aqui, porém, levada ao no processo de desenvolvimento individual,
auge de importância. quer cultural, se torna, por isso, no Ciclo Patriar-
Não devemos identificar de forma alguma o cal, a principal polaridade estruturante, devido
Judaísmo moderno como dinamismo patriarcal, principalmente as características biológicas de
pois modernamente tanto o Judaísmo quanto o reprodução da mulher e da dependência do re-
Cristianismo apresentam uma dialética própria cém-nascido que a tornaram desde tempos ime-
entre os dinamismos matriarcal, patriarcal e de moriais um dos maiores símbolos estruturantes
alteridade. Refiro-me, aqui, somente à constela- do feminino e do matriarcal na Psique de cada
ção histórica do dinamismo patriarcal na Cultu- mulher e de cada homem. Este verdadeiro equa-
ra Judaica e o posterior surgimento histórico do cionamento da mulher com o matriarcal e do
dinamismo de alteridade com o Cristianismo. homem com o patriarcal, que reduz o quatérnio
Após a dissociação do Self Cultural do Ociden- homem-mulher à díada homem-mulher restringe
te, concomitante à Inquisição, a dominância do a mulher ao codificá-la como o principal símbo-
dinamismo patriarcal no Cristianismo se tornou lo estruturante matriarcal e a reprime a seguir,
tão essencial quanto a sua proposta de busca intensamente, ao estabelecer a discriminação
de alteridade. patriarcal-matriarcal radical.
A radicalidade da implantação deste Ciclo Neumann e Bachofen não perceberam a per-
patriarcal representada pelos símbolos do Ve- manência do dinamismo matriarcal, após a im-
lho Testamento trouxe uma rígida codificação de plantação do patriarcal, por desconhecerem o
discriminação a Consciência Coletiva, dentre as Ciclo de Alteridade, mas também devido ao fato
quais uma intensa codificação elitizada entre o do dinamismo matriarcal ser intensamente re-
homem e a mulher. Sabemos hoje que a mulher primido no Self Cultural na vigência de um Ciclo
tem as polaridades Yang e Yin, masculino e femi- Patriarcal radical, o que dá frequentemente ao
nino, tanto quanto o homem e que por isso todo pesquisador a impressão de que o dinamismo
casal forma uma relação quaternária e não biná- matriarcal normalmente desaparece. Parece-me
ria. Esta é, porém, uma aquisição da Consciência que o pesquisador, nesses casos, tanto no cam-
de Alteridade. O padrão patriarcal codifica rigi- po mitológico quanto psicológico, quando já não
damente as polaridades e, ao fazer isso, reduz está, fica fascinado pelo dinamismo patriarcal.

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Ao estudar sua luta com o dinamismo matriarcal, mãe frustrada que, muitas vezes sem querer e,
o observador pode se identificar com o padrão até pelo contrário, se esforçando muito para ser
patriarcal e passar daí por diante a identificar a boa mãe, se transforma no símbolo estruturan-
essência do progresso com o predomínio patriar- te matriarcal central da neurose ou psicose dos
cal. Do fascínio à possessão é um passo, e há seus filhos. Isto, porém, é secundário ao fato da
pesquisadores que se tornam vítimas de verda- mulher mandar ou não em casa.
deira possessão pelo Arquétipo do Pai, passan- A atividade repressiva do padrão patriarcal
do a idealizá-lo e denominar primitivo, selvagem, sobre o matriarcal que expressa a intensidade
infantil ou regredido qualquer manifestação do da radicalização da implantação do Ciclo Patriar-
padrão matriarcal. Quando o pesquisador vem cal na Cultura Judaica está expressa, também
de uma cultura predominantemente patriarcal, exuberantemente, no episódio da quebra das
o fator etnocêntrico tem geralmente sua origem primeiras Tábuas da Lei por Moisés.
nessa identificação com o dinamismo patriarcal.
O fato de, frequentemente, em certas fa- Vendo que Moisés tardava em descer
mílias, a mãe mandar no lar e nos filhos, por da montanha... Abraão tomou o ouro em
exemplo, não nos obriga a ver nisso uma do- suas mãos e fez dele um bezerro de me-
minância matriarcal, porque, nesses casos, a tal fundido. Então exclamaram: - Eis, ó Is-
mãe pode estar educando por intermédio da lei rael, o teu Deus que te tirou do Egito... O
patriarcal e não matriarcal. Seria uma grande Senhor disse a Moisés... - Deixa pois que
limitação confundir a mulher com o matriarcal se acenda minha cólera contra eles e os
e o homem com o patriarcal, apesar disto ser reduzirei a nada... (Moisés) -Aplaque-se
a tendência natural no dinamismo da consciên- vosso furor... -E o Senhor se arrependeu...
cia patriarcal. Apesar de nesses casos a mãe se Moisés desceu da montanha segurando
tornar autoritária, isso não quer dizer que ela nas mãos as duas Tábuas da Lei que es-
esteja realizando pessoalmente ou que esteja tavam escritas dos dois lados, sobre uma
conscientemente atuando no dinamismo ma- e outra face. Eram obras de Deus e a es-
triarcal. Pelo contrário, no mais das vezes, o critura nelas gravada era a escritura de
que vemos no caso da mãe autoritária na famí- Deus... Aproximando-se do acampamento
lia patriarcal é que ela exerce seu autoritarismo viu o bezerro e as danças. Sua cólera se
como um comandante patriarcal de saias, em inflamou, arrojou de suas mãos as Tábu-
detrimento do seu desenvolvimento como mu- as e quebrou-as ao pé da montanha. Em
lher. O que observamos também muitas vezes seguida, tomando o bezerro que tinham
em famílias intensamente patriarcais é a cons- feito, queimou-o e esmagou-o até o redu-
telação simbólica do Arquétipo da Grande Mãe zir a pó que lançou na água e fez beber
de forma tão negativa, que a mãe atua de forma aos israelitas... Moisés viu que o povo es-
pejorativa o símbolo matriarcal estruturante, tava desenfreado... Venham a mim todos
seja por intermédio da possessividade da mãe aqueles que são pelo Senhor. Todos os
superprotetora, vítima e santa, seja por inter- filhos de Levi se ajuntaram em torno dele.
médio da rejeição da mãe terrível e bruxa. Nes- Ele disse-lhes: -Eis o que diz o Senhor, o
ses casos, também, o que observamos, não é a Deus de Israel: Cada um de vós meta a
mãe pessoa que atua, pois esta é geralmente espada sobre sua coxa. Passai e repassai
submissa e cumpridora dos mandamentos pa- por intermédio do acampamento de uma
triarcais, mas a mãe tornada símbolo estrutu- porta a outra e cada um de vós mate o seu
rante do Arquétipo da Grande Mãe reprimido e irmão, o seu amigo, o seu parente. Os fi-
ferido tão intensamente, que a transforma na lhos de Levi fizeram o que ordenou Moi-

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sés e cerca de três mil homens morreram no templo que lhe edificou em Samaria.
naquele dia ante o povo (Ex 32:1-29). Acab fez também a Assera e Acab irritou
o Senhor, Deus de Israel, mais ainda que
Vivenciamos nesses símbolos o ressurgimen- todos os seus predecessores no trono de
to do padrão matriarcal em plena transformação Israel (I Reis 16 29-33).
do Self Cultural durante a implantação patriarcal.
Este ressurgimento matriarcal antipatriarcal está Estes eventos e fases de ressurgimento ma-
claramente expresso na adoração do bezerro de triarcal, porém, nunca chegaram a influenciar
ouro, símbolo aqui de sensualidade, fertilidade significantemente o Self Cultural Judaico que
e fausto, com sacrifícios e danças claramente sempre continuou a se estruturar dominan-
indicativos de um festival matriarcal. O padrão temente pelo dinamismo patriarcal radical,
matriarcal emergente foi de poder tão intenso aperfeiçoando, século após século, a sabe-
que indiscriminou as discriminações patriarcais, doria talmúdica, por intermédio da linguagem
indiscriminação essa terrivelmente expressa na escrita, com discriminações cada vez mais
quebra das Tábuas da Lei, ou seja, na indiscrimi- minuciosas e abrangentes do Logos patriarcal
nação da essência do poder estruturante patriar- “transcendente, onipresente e onisciente” de
cal, aqui simbolizado pelo próprio dogmatismo inspiração monoteísta.
da linguagem escrita. A reação a esta indiscri-
minação foi tão violenta que tangenciou o ge- 6. O Mito Cristão e o Ciclo de Alteridade
nocídio e se expressou provavelmente no que na Cultura Ocidental
terá sido uma guerra civil de grandes proporções O início da implantação do Ciclo de Alterida-
fratricidas, expressando simbolicamente o mas- de pelo Mito Cristão na Cultura Ocidental coinci-
sacre repressivo do padrão matriarcal como con- de com o início de nosso calendário, o que bem
dição da implantação cultural da radicalidade do expressa a ocorrência de uma nova era. A pujan-
padrão patriarcal proposto. ça do Mito Cristão, sua imensa riqueza em sím-
A História da Cultura Judaica é plena de epi- bolos estruturantes e sua influência histórica,
sódios e fases de ressurgimento do padrão ma- fácil e abundantemente demonstrável, durante
triarcal por intermédio da adoração de ícones, dois mil anos, o tornam uma ilustração exube-
práticas supersticiosas e mágicas, quando não rante para esta Teoria Simbólica da História. A
diretamente por intermédio do sacrifício às di- enorme deformação do Mito por sua patriarcali-
vindades matriarcais da natureza por rituais de zação defensiva e reacionária na Inquisição, que
fertilidade politeístas, como, por exemplo, o levou a grande dissociação do Self Cultural do
deus Baal dos Cananitas. Ocidente após o Renascimento, torna o funcio-
namento histórico estruturante deste Mito um
No trigésimo oitavo ano de Asa, Rei de exemplo, também muito ilustrativo, do que é a
Judá, Acab filho de Amri, tornou-se rei de patologia do Self Cultural vista a partir de uma
Israel e reinou vinte e dois anos sobre Is- Antropologia Simbólica.
rael em Samaria. Acab filho de Amri fez o A própria implantação do radicalismo patriar-
mal aos olhos do Senhor e mais ainda que cal determinou possivelmente tal sofrimento do
todos os seus predecessores. Como se Self Cultural, que condicionou, após a implantação
não lhe bastasse o andar nos pecados de patriarcal assegurada, o surgimento de símbolos
Jeroboão, filho de Nabat, desposou ainda estruturantes messiânicos no Velho testamento e
Jezabel, filha de Etbaal, rei dos Sidônios e em numerosos escritos apócrifos da religião judai-
chegou até a render culto a Baal, prostran- ca. O Novo Testamento e a paixão de Cristo foram,
do-se diante dele. Erigiu um altar a Baal assim, a principal manifestação messiânica a par-

52 ■ Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 1º sem. 2019


tir do Velho Testamento, mas de forma alguma a cionamento percebe criativa e dialeticamente o
única (BRIERRE-NARBONNE, 1933). desenvolvimento processual do todo, passan-
Os símbolos estruturantes do Novo Testa- do a se tornar coautor consciente e correspon-
mento quando percebidos dentro da conceitu- sável por sua História.
ação do Eixo Ego-Self expressam, sem sombra A importância do reconhecimento da exis-
de dúvida, um padrão de estruturação da Cons- tência do padrão de alteridade, como um de-
ciência muito diferente do padrão patriarcal senvolvimento do Self Cultural além do padrão
e que, ao mesmo tampo, não coincide com o patriarcal, não pode ser subestimada. Podemos
padrão matriarcal. Percebem-se componen- dizer que os grandes problemas do Self Cultural
tes matriarcais e patriarcais interagindo num do Ocidente e, por intermédio de sua influência
padrão de consciência muito mais diferencia- cultural do mundo moderno, dependem dessa
do e desenvolvido que o padrão matriarcal e problemática e abrangem todas as suas dimen-
patriarcal. Denominei-o padrão de alteridade sões culturais.
(alter = outro) porque nele a Consciência se A Física Moderna desenvolve-se cada vez
torna capaz pela primeira vez de perceber o mais no padrão de alteridade, por intermédio do
Outro como a si mesma, ao mesmo tempo em qual o espaço é vivenciado como um Outro que,
que se percebe e ao Outro como expressão do percebido simbolicamente, tem formas possivel-
todo. Alteridade não é simplesmente um pa- mente tão variáveis quanto às da própria Consci-
drão igualitário de relacionamento do Eu com ência. O desafio da Física moderna é estudar um
o Outro isoladamente, mas do Eu com o Outro Espaço que se revela à Consciência de forma tão
relacionados significantemente, ou seja, cons- criativa quanto ela própria. Para tal é necessário
cientemente dentro do processo de transforma- que a consciência abra mão de um posiciona-
ção do todo. Na vivência da alteridade o Eu se mento fixo entre o Eu e o Espaço dentro do qual
torna capaz de vivenciar a dualidade na unida- se revela o conhecimento, ou seja, é necessário
de. No padrão de alteridade, o relacionamen- que a Consciência possa perceber o Espaço não
to do Eu e do Outro inclui, simultaneamente, como um Outro objetivo, fixo e separado intei-
o elemento erótico aglutinador do dinamismo ramente do Ego, mas também como símbolo
matriarcal e o elemento dogmaticamente dis- estruturante capaz de revelar permanentemente
criminador do dinamismo patriarcal no qual a o Outro, à medida que transforma e estrutura o
identidade e a separação do Eu e do Outro são Eu. Assim sendo, o desafio da Física moderna ao
claramente mantidas na Consciência. O relacio- cientista é também metodológico e epistemoló-
namento igualitário e dialético do Eu e do Outro gico, pois não se trata somente do equaciona-
é orientado pela relação da Consciência com o mento do Outro, como na Física Clássica, mas
todo processual. O padrão de alteridade, como também da percepção da transformação do Eu
qualquer outro padrão estruturante, é, assim, e seus novos posicionamentos adquiridos à me-
inseparável do contexto evolutivo. Contudo, dida que o Eu conhece cada vez melhor o Outro.
enquanto que nos padrões parentais (matriar- Paralelamente ao desenvolvimento do conheci-
cal e patriarcal) o todo é percebido coordenan- mento objetivo, cresce também o conhecimento
do a relação do Eu com o Outro por intermédio subjetivo por intermédio de confrontar o próprio
do desejo ou necessidade de sobrevivência e espaço como símbolo estruturante. O desenvol-
vitalidade (matriarcal), ou de subordinação à vimento da Ciência, assim, torna-se inseparável
lei tradicionalmente revelada e dogmatizada, do desenvolvimento de uma determinada men-
para o desempenho de tarefas abstratamente talidade. O grande sonho de Einstein, de unir a
codificadas (patriarcal), na alteridade o Eu se micro e a macrofísica, ou seja, de inter-relacio-
relaciona com o Outro igualmente e desse rela- nar o campo eletromagnético e o gravitacional, é

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também uma problemática típica da alteridade. por intermédio do qual mudam o Eu e o Outro.
O esforço de Einstein ilustra o desenvolvimento Assim, nos abrimos para permitir ao Outro uma
da consciência buscando perceber a interrelação relação dialética com qualquer Outro que lhe
dialética de polos complementares, e aparente- apareça como oposto. A relação doença-saú-
mente excludentes, como expressão simbólica de, sintoma-organismo, vista simbolicamente,
bipolar de um todo processual. passa a ser considerada expressão do todo psi-
Duas das grandes linhas de desenvolvimento cossomático que é o Self Individual e Cultural.
da Medicina Moderna dependem basicamente O sofrimento do doente, visto como símbolo
do desenvolvimento da Consciência de alterida- estruturante necessita, então, ser relacionado
de. A relação Psique-Soma se mostra a principal também com todo o corpo, com a personali-
responsável pela patologia de um sem número dade, com a sociedade, com a ecologia e com
de casos clínicos que perambula pelos consul- a cultura, que em última instância o engloba.
tórios do mundo inteiro com diagnósticos de Este relacionamento não poderá ser compre-
somatização e distúrbios vegetativos, a maior endido somente dentro do princípio da causa-
parte dos quais passa a ser reprimida patriar- lidade, pois todo sintoma, a nível simbólico,
calmente, cedo ou tarde, por tranquilizantes. terá sempre inúmeras causas. Neste caso, o
Qualquer clínico moderno admite francamente modelo médico passa a fazer parte do modelo
que uma grande, se não a maior parte dos seus do processo de desenvolvimento simbólico da
casos cardiovasculares, gastrointestinais, pneu- personalidade. O sintoma, nesse caso, neces-
mológicos, reumatológicos ou dermatológicos sita ser visto também dentro do princípio da
depende de um relacionamento Psique-Soma sincronicidade que permitirá à Consciência não
que o ensino médico começa relutantemente se limitar a uma ou duas causas somente, mas
a admitir. Para abordarmos o relacionamento permanecer aberta operativamente para todas
Psique-Soma de forma conjunta, necessitamos elas. Esta abertura operativa do médico para o
perceber as funções do corpo como símbolos es- sintoma, do religioso para o pecado, do político
truturantes expressando o Self Individual e isso para a disfunção social, do cientista para o erro,
somente conseguiremos plenamente ao exercer, do educador para a inadequação da criança, só
conscientemente, o dinamismo de alteridade. A pode ser atingida no dinamismo da alterida-
relação Psique-Soma aguarda o desenvolvimen- de, posto que no dinamismo patriarcal o Eu e
to da Medicina em direção a uma maior percep- o Outro são codificados restritivamente, o que
ção simbólica do corpo, na qual será reconheci- impede o Ego de perceber o Outro como sím-
do para cada órgão um funcionamento normal e bolo estruturante, e no dinamismo matriarcal o
patológico, com componentes subjetivos e ob- Eu lida com o Outro mágica ou esotericamen-
jetivos. A percepção simbólica plena do Outro, te, o que impede seu relacionamento iguali-
que no caso é o Soma, depende do Eu atingir tário e dialético.
a posição de alteridade. O mesmo acontece na Tivesse Alexandre Fleming simplesmente re-
imunologia, na qual, para se vivenciar o modelo preendido seu ajudante e mandado jogar fora
dialético antígeno-anticorpo na saúde e na do- a placa de cultura contaminada pelo cogumelo
ença como expressão do Self Individual nos sím- penicillium, e a era dos antibióticos teria demo-
bolos estruturantes corporais, se torna necessá- rado um pouco mais. Nesse caso, ele teria agido
rio operar na consciência dialética de alteridade. patriarcalmente em função da pré-codificação,
Percebe-se assim, claramente, que o de- segundo a qual a contaminação seria somente
safio do médico e de qualquer outro cientista indevida e nefasta. Foi sua abertura científica
moderno não é só o do crescimento linear do para o padrão de alteridade que lhe permitiu
seu saber, e sim do crescimento circular deste dar espaço ao Outro e perceber junto ao aspec-

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to negativo da placa contaminada também algo produz explicações mais lógicas e acessíveis à
positivo. Com isso, transformou-se a identidade Consciência, pela explicação causalista e reduti-
do Outro-Cogumelo, mas também do Eu-Médico. vista, mas ao preço da alienação do Self Cultural,
Nunca mais os médicos foram os mesmos no seu que estende suas raízes dentro do passado dis-
posicionamento frente ao universo bacteriano. tante para se nutrir nos símbolos estruturantes
A problemática político-econômica do mundo de mitos milenares.
moderno depende, como as demais acima men- É necessário o funcionamento da Consci-
cionadas, do desenvolvimento da Consciência ência no padrão de alteridade para se compre-
de Alteridade. As ideologias políticas e econômi- ender como os grandes movimentos sociais
cas buscam modelos de interação dialética nas modernos se inspiram diretamente, ou estão
quais política e economicamente as polaridades intensamente influenciados, pelo Mito Mes-
participem do poder. Até mesmo as limitações siânico de Alteridade do Novo Testamento,
patriarcais da praxis desta busca, como as dife- no Ocidente, ou pelo Hinduísmo, Budismo ou
rentes ditaduras do proletariado, passam a ser taoismo, no Oriente, na medida em que lutam
vistas como o movimento histórico em direção à ao mesmo tempo pelo resgate do reprimido e
alteridade. Da mesma forma que a Consciência pela interação democrática da polaridade res-
de Alteridade na Medicina depende da percep- gatada com o todo-social. As reivindicações
ção simbólica do corpo, na Economia Política ela das minorias étnicas, a reformulação da atitude
dependerá da percepção simbólica das fontes de frente à loucura e ao inconsciente, o movimento
produção e detenção da riqueza como expressão de liberação da mulher, o movimento pelo reco-
do Self Cultural. Cada vez nos damos mais conta nhecimento da homossexualidade e uma gran-
que o desenvolvimento material e tecnológico de parte da imensa transformação sociopolítica
unilateral, que não leva em conta o ser humano dos séculos XIX e XX são exemplos da implanta-
como um todo, pode se tornar alienante e danifi- ção institucional da ação milenar dos símbolos
cante. A percepção da transformação, almejada estruturantes da alteridade.
não somente como uma mudança econômica, A implantação mítica da Alteridade no Self
mas como uma alteração de todas as discrimi- Cultural, por intermédio dos símbolos estrutu-
nações da Consciência Coletiva, é que nos per- rantes do Novo Testamento, só pode ser com-
mitirá reunir o materialismo histórico de Marx preendida, nesta teoria simbólica evolutiva,
com o pensamento histórico-religioso de Hegel, se percebermos o quanto o ser humano, tanto
ultrapassando a dicotomia idealista-materialista homem quanto a mulher, se sentem oprimidos
tão nefasta a compreensão dos símbolos estru- pelas características repressivas de um padrão
turantes do Self Cultural. patriarcal radical. Com o advento da Alteridade,
O difícil não é geralmente uma compreensão nossa cultura começa a aprender que, todo sím-
superficial do que seja alteridade, pois o padrão bolo, como todo ser humano, é bipolar; todos
amoroso, criativo e democrático de relaciona- temos as polaridades masculino-feminino ou
mento é algo que no mundo moderno todo mun- Eros-Logos. É preferível usarmos a polaridade
do acha que mesmo quando não pratica, pelo Yang-Yin do taoismo, que é muito mais abran-
menos sabe o que é. O difícil é tentarmos com- gente que masculino-feminino, pois ela engloba
preender profundamente o que é a alteridade a polaridade sexual lado a lado com as outras
como um padrão evolutivo e histórico da Consci- que possamos imaginar. Essa abstração do Yang
ência que somente é possível a partir de uma só- e Yin na Cultura Chinesa, que abrange as polari-
lida estruturação matriarcal e patriarcal. O ime- dades dos símbolos de forma tão ampla, é um
diatismo histórico, que relaciona a problemática exemplo da evolução do Ciclo de alteridade no
individual e cultural somente ao passo imediato, Self Cultural Chinês. Ele nos mostra, ao mesmo

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tempo, nossa limitação ao necessitarmos ainda tão imperialista quanto o Capitalista. Claro está
de uma polaridade muito menos abstrata, como que sempre encontraremos o fator econômico
masculino-feminino, para expressar a polarida- nestes casos intensamente atuante, mas não é
de básica humana, o que expressa o quanto ain- necessário que ele seja sempre determinante,
da estamos predominantemente orientados pelo pois o fator político ou religioso poderá ter igual
redutivismo do dinamismo patriarcal. ou maior importância na motivação e no desen-
À luz desta noção de polaridade em todos cadeamento de ação guerreira. Acima do fator
nós, podemos compreender que no padrão pa- econômico, político ou religioso está o padrão
triarcal radical, o homem, mesmo usufruindo da patriarcal que predispõe à ação guerreira de con-
posição elitista na discriminação homem-mu- quista e à repressão de um modo geral.
lher, sente-se também intensamente oprimido, A busca de liberdade na vigência do padrão
se bem que frequentemente inconsciente, pois patriarcal pode ser exercida, então, numa revolu-
seu compromisso e identificação com o machis- ção e não necessariamente na passagem para a
mo repressor costumam impedi-lo de perceber Alteridade. Esta é até mesmo a norma. Por isso, é
o quanto ele também se sente oprimido no seu sabido politicamente, e a História do dinamismo
lado Eros ou feminino ou Yin. Esta opressão gera patriarcal nos mostra que os tiranos sobrevivem
uma ânsia de liberdade no Self Individual e Cul- mais quando encontram um inimigo externo para
tural que, além de uma certa intensidade, se tor- guerrear, e que é difícil a uma ditadura sobrevi-
na uma causa de luta pela própria sobrevivência. ver em caso de perder uma guerra. Isto nos mos-
É esta identificação de liberação da repressão tra que ou o poder patriarcal mantém reprimida
psicológica com a sobrevivência da humanida- a sua própria ânsia de libertação na repressão
de que se constituiu, em meio às condições ex- de novos inimigos ou investe contra sua própria
traordinárias do Oriente Médio da época, numa cúpula. Mesmo assim, porém, ele tende a per-
mensagem de salvação. Podemos então ler esta manecer no dinamismo parricídio-filicídio. O go-
mensagem à luz desta Teoria Simbólica da His- verno patriarcal mantém-se e reprime os mais jo-
tória como “salvação da opressão do padrão pa- vens ou é por eles derrubado e substituído com
triarcal radical e redenção pela transição do Self outro governo mais ou menos repressivo, sem-
Cultural para atingir o padrão de alteridade”. pre, porém, dentro do padrão patriarcal. Como
Geralmente, o sofrimento, oriundo da opres- mostrou Raskowski, a guerra patriarcal é filicida,
são do patriarcalismo radical, é aliviado, opri- pois são os pais e generais que assinam as de-
mindo-se patriarcalmente com a mulher, os fi- clarações de guerra e os filhos e soldados que
lhos, a sociedade e outros povos. A Lei de Talião, morrem nos campos de batalha (RASCOVSKI,
“olho por olho, dente por dente”, no patriarcalis- 1973). Podemos ver nisto também, a canalização
mo radical não é só exercida para punir, mas se da tendência parricida para um inimigo externo
constitui na própria essência de funcionamento na busca da manutenção do poder patriarcal.
repressivo do dinamismo do padrão patriarcal. Este é o modelo da primeira fase do Mito de
“Eu oprimo e assim me recompenso, na medida Édipo, sobre o qual Freud edificou sua teoria de
exata em que, consciente ou inconscientemente, desenvolvimento da personalidade. Nesta fase,
me sinto oprimido”. Por isso, por sua própria di- porém, Édipo não ultrapassa sua problemática
nâmica repressiva, o padrão patriarcal é um pa- “edípica”. Neste modelo, pelo contrário, ele a
drão guerreiro, sobretudo da guerra de conquis- mantém, pois atua o incesto de forma sombria e
ta, de domínio e de extermínio. Sabemos que a reprimida e ao percebê-lo, cega-se, expressando
interpretação marxista reduz o padrão guerreiro psicoticamente como não consegue confrontá-
ao padrão capitalista. Sabemos, porém, da His- -lo e elaborá-lo. É somente na segunda parte do
tória Moderna, que o Estado Comunista pode ser Mito que Édipo, pela mão de sua filha Antígona,

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peregrina em direção ao Santuário das Erínias de uma forma individual e cultural muito mais
e encontra sua redenção. Ou seja, a ultrapassa- evoluída de se lidar com o incesto. Enquanto
gem do dinamismo patriarcal não está no dina- que no padrão patriarcal o incesto é reprimido
mismo parricida-filicida, por intermédio do qual e a Consciência se identifica com a tradição, na
ele se mantém, mas na peregrinação ao feminino alteridade a Consciência interage criativamen-
para resgatar o matriarcal indiscriminado e feri- te com a tradição, que, assim, se desidealiza
do e estabelecer uma nova relação do princípio e se transforma.
masculino e feminino no Ciclo de Alteridade. A A grande pergunta que devemos confrontar,
Esfinge é um monstro incestuoso resultante da então, é: por que naquele momento histórico o
cópula da mãe-serpente Echidna com seu filho Self Cultural Judaico apresentou essa verdadeira
cão Orthos e é enviada contra Tebas pela grande mutação psicológica que o cindiu entre o dina-
mãe Hera devido a paixão homoerótica de Laios mismo patriarcal e de alteridade?
por Crisipos. Incesto e homossexualidade inter- Como disse acima, o movimento messiânico
ligam-se expressando no mito uma problemáti- judaico é antigo. Moisés como herói patriarcal
ca de desenvolvimento tanto matriarcal quanto foi um grande Messias na passagem do dinamis-
patriarcal na transição para a alteridade. A obra mo matriarcal para o patriarcal. Posteriormente,
de Freud manteve-se basicamente no dinamis- porém, já francamente dentro do dinamismo pa-
mo patriarcal porque sua teoria de formação da triarcal, o messianismo se dividiu numa corrente
Consciência moral (Superego) da personalidade visando a restaurar a glória patriarcal e noutra
advogou como principal tarefa de desenvolvi- almejando a alteridade. Torna-se, assim, impres-
mento psicológico a repressão do Complexo de cindível a distinção entre o messianismo patriar-
Édipo. Ao reprimir o Complexo de Édipo e edifi- cal e de alteridade. Ambos são acionados pelo
car o Superego, a moral e a própria cultura so- Arquétipo do Herói, mas cuidam de implantar
bre esta repressão sublimada, perpetuamos o ou referendar padrões arquetípicos inteiramente
padrão patriarcal e jamais o ultrapassamos. Foi diversos. Sob o impacto da opressão romana, o
por isso que Freud terminou sua teoria de de- Self Cultural do Judaísmo se dividiu. Por um lado
senvolvimento da personalidade na puberdade. havia a tendência patriarcal habitual de resolver
É na adolescência que se constela exuberante- esse sofrimento pelo dinamismo guerreiro parri-
mente o padrão de alteridade, por intermédio cida-filicida. O Messias, aleijado nesse caso, era
do confronto dos Arquétipos do Herói, da Anima imaginado como um poderoso rei guerreiro que
(homem) e Animus (mulher) com os arquétipos devolveria aos Judeus o grande poder patriarcal
parentais. O Complexo de Édipo só é realmente secular conquistado sob o comando de David.
ultrapassado quando adquirimos a capacidade Por outro lado, intensificou-se o messianismo
de ir além do dinamismo patriarcal e nos torna- de alteridade e o Mito Cristão foi encarnado e
mos capazes do dinamismo de alteridade. Para vivido historicamente.
isso são necessários não só a morte da disputa O dinamismo patriarcal é essencialmente
do poder paterno, como também a abdicação repressor, guerreiro e simbolicamente parrici-
não repressiva, mas sim sacrificial e criativa, do da-filicida. O complexo de castração, que Freud
desejo materno e incestuoso. Trata-se da mor- viu em todo filho, corresponde ao componente
te mitológica do casal parental, o que significa filicida estruturante do padrão patriarcal que se
a desidealização do mundo passado, infantil e conjuga ao componente parricida descrito por
parental, e a aquisição da noção de importância ele no Complexo de Édipo. No nível individual,
do presente e do futuro a serem vividos por uma o padrão patriarcal somente se mantém pela
individualidade única, independente e respon- repressão, o que propicia a conquista de situ-
sável como coautora da própria vida. Trata-se ações novas, sobretudo as competitivas, mas

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tende posteriormente a não poder lidar com o mente a reorganização do poder patriarcal judai-
Outro, dialética e criativamente, em igualdade co favorecendo o surgimento do messianismo de
de condições e por isso a estagnar-se no dog- alteridade no Oriente Médio. Foi a mutação ocor-
matismo tradicionalista. No nível cultural, o pa- rida no Self Cultural Judaico, encarnando histo-
drão patriarcal desenvolve-se pela organização ricamente o Mito Cristão, que precipitou, três
repressiva e pela guerra, o que tende levar a séculos depois, a conversão do Império à busca
Cultura à expansão e, posteriormente, à sub- da implantação do dinamismo de alteridade que
missão e até mesmo à destruição quando co- continuaria a obra da Cultura Grega e da Repú-
meça a perder militarmente. blica Romana. Nesse sentido, o “lavar as mãos”
No século que antecede ao Cristianismo, os com que Pilatos enfrenta a condenação de Jesus
Judeus se achavam militar e politicamente opri- é símbolo da impossibilidade da lei romana de
midos sob o jugo patriarcal romano. Contudo, o trazer qualquer participação ao Self Cultural Ju-
próprio Império Romano já apresentava no início deu no drama que nele se desenrolava e que de-
de nossa era praticamente a totalidade de sua ex- terminaria a própria conversão da lei patriarcal
pansão e politicamente não tinha mais nenhuma do Império Romano para o Mito Messiânico da
criatividade expansionista para oferecer ao mun- Alteridade três séculos depois.
do. O assassinato de Júlio César (44 a.C.), pelos O mundo moderno nos mostra sobejamen-
senadores, dentro do próprio Senado e em nome te a relatividade da eficácia do Ciclo Patriarcal
da República, visto simbolicamente, expressou a como padrão estruturante da Consciência Cole-
incompatibilidade de reintensificação patriarcal tiva. Devido ao extraordinário poder guerreiro,
com a evolução da consciência política romana. desenvolvido pela espécie humana, que ultra-
O que Roma havia já atingido do padrão de alteri- passou de muito, em nossa época, a capacidade
dade, no que muito contribuiu a influência grega, de destruir a sua própria vida no planeta, perce-
sofreu uma repatriarcalização intensa com a cen- bemos claramente que a solução repressiva dos
tralização do poder do império e o advento dos conflitos entre as polaridades, como preconiza o
Césares. Enquanto que o padrão patriarcal roma- Arquétipo do Pai, é incompatível com a sobrevi-
no serviu grandiosamente à expansão guerreira, vência de nossa espécie. Vemos que o padrão
sua recrudescência nos Césares, para manter a patriarcal foi de grande valia para estabelecer a
unidade imperial, implodiu durante três séculos hegemonia humana sobre o planeta e teve pa-
na prepotência e no arbítrio. Aos desatinados de pel fundamental no desenvolvimento da Consci-
Tibério (42 a.C.–37 d.C.), contemporâneo de Je- ência Coletiva de todas as culturas com função
sus, seguem-se os governos de Calígula, Cláudio significativa na formação do Mundo Moderno.
e Nero, dos quais Calígula e Nero expressaram Contudo, com o poder destrutivo que atingimos
exuberantemente por intermédio do dinamis- e que está cada dia mais ao alcance de todos,
mo psicopático, megalomaníaco e paranoide, a inclusive dos grupos minoritários, o princípio
desestruturação do Império que se aproximava. patriarcal assimétrico da organização elitista do
Essa desestruturação simbolicamente pode ser poder necessita ser substituído dominantemen-
vista como uma implosão do dinamismo patriar- te pelo encontro dialético criativo das polarida-
cal que, não tendo mais condições de expres- des em conflito, como preconiza o padrão de
sar seu poder repressor estruturante no expan- alteridade, por uma questão de sobrevivência da
sionismo, passa a ser vítima dos seus próprios espécie. Isto que hoje é meridianamente claro,
símbolos estruturantes que, ao não contribuírem como necessidade do Self Cultural, foi provavel-
mais para estruturar a Consciência Coletiva, pas- mente um fator decisivo na constelação do herói
sam a indiscriminá-la e conduzi-la ao caos. Foi o messiânico de alteridade dentro do Self Cultural
poder patriarcal de Roma que bloqueou grande- Judaico, apesar do anseio simultâneo da Consci-

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ência Coletiva também por um herói messiânico cia pela alteridade. Não podemos subestimar
patriarcal. O surgimento do Mito Messiânico de também a contribuição do misticismo Judaico
Alteridade no Oriente Médio e sua difusão pos- para a Alteridade na Cultura Ocidental, para-
terior evidenciam que, na evolução simbólica, o lelamente ao Cristianismo, por intermédio da
aspecto autóctone e difusionista tem igual im- Cabala que se continuou no Hassidismo no sé-
portância. O enfoque simbólico nos permite ver culo XIX do qual emergiram as obras de Buber,
também um componente autóctone na continui- na Filosofia, e Moreno, na Psicologia, sem dú-
dade da evolução do Self Cultural Romano quan- vida duas pérolas da alteridade no século XX.
do sofreu o impacto difusionista dos símbolos Gnosticismo, Cabala e Alquimia podem assim
de alteridade cristãos. De fato, ao vivenciarmos ser vistos como desenvolvimentos do Self Cul-
a dialética do Coliseu e das catacumbas, histo- tural, em direção à Alteridade, paralelos e, ao
ricamente percebemos que o difusionismo da mesmo tempo, consequências do Mito Messi-
alteridade originado no Oriente Médio, no início ânico do Novo Testamento. O maior e talvez o
desta Era, encontrou subsídios fundamentais menos compreendido de todos os fenômenos
nas raízes históricas da própria Roma. resultantes da implantação da alteridade a
O surgimento do messianismo de alteri- partir do Mito Cristão foi o desenvolvimento
dade, a partir do Self Cultural Judaico, pode da mentalidade científica a partir do Renasci-
assim ter-se relacionado com a necessidade mento, que abordaremos a seguir, e que con-
criativa do Inconsciente Coletivo humano de tinuaria no humanismo do século XVIII, no so-
produzir um padrão estruturante mais propício cialismo utópico do século XIX e no socialismo
para o desenvolvimento da cultura, visto que revolucionário-político do século XX.
o padrão patriarcal estruturante dominante no
Self Cultural, tanto do oprimido judeu como do 7. A Implantação da Alteridade até o
opressor humano, se mostrava ineficiente face Renascimento
às necessidades evolutivas, não só das duas Relembro ao leitor que este artigo é apenas
culturas, como já agora da própria espécie. O um resumo de uma teoria para analisar simboli-
símbolo estruturante do “povo escolhido” tão camente a História à luz da qual toda nossa His-
pujante na História do Judaísmo se tornaria as- tória pode ser relida. O que antecedeu e o que
sim duplamente significativo; primeiramente, se segue são, pois, apenas o assinalamento de
na implantação patriarcal e no desenvolvimen- alguns poucos marcos referenciais ao longo de
to de um monoteísmo civilizatório com imenso um imenso caminho.
poder estruturante cultural e, posteriormente, O impacto cultural do Mito Cristão para im-
na constelação da alteridade para continuar a plantar o dinamismo de alteridade como um pa-
transformação cultural europeia e finalmente se drão post-patriarcal de Consciência se deu por
apresentar como proposta humanista de sobre- intermédio das funções do sentimento e da in-
vivência da espécie, lado a lado com as demais tuição e da atitude de introversão. É importante
contribuições de outras culturas para a Consci- estudar se todas as grandes mutações culturais
ência de Alteridade, sobretudo da Cultura Egíp- se introduzem por intermédio destas funções
cia, da Cultura Greco-Romana, da Cultura Hindu para depois passarem ao pensamento e à sen-
por intermédio do Hinduísmo e do Budismo, da sação como aconteceu na Cultura Ocidental a
Cultura Chinesa por intermédio do Taoismo, na partir do Renascimento.
Cultura Japonesa por intermédio do Budismo Os séculos iniciais do Cristianismo se carac-
Zen e hoje cada vez mais também a partir das terizam muito pelo culto da vida monástica. No
culturas do terceiro mundo, que começam a se refúgio das formas longilíneas do estilo gótico,
reorganizar em função da busca da sobrevivên- tem lugar central a vivência introvertida e afeti-

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va do sacrifício do Filho pela redenção dos so- ga. A Consciência Coletiva foi sendo transforma-
fredores e oprimidos, junto com a intuição do da pelo Mito Cristão e ritualisticamente guiada
significado deste sacrifício para o futuro da vida por seus símbolos estruturantes, por intermédio
individual e comunitária. Este Filho sacrificial, da vivência da Paixão na Missa durante sécu-
que é o Messias, é, ao mesmo tempo, o símbo- los. Foi uma longa fase de luto, dentro da qual
lo estruturante ou o protótipo do novo estado se fragmentou o Império Romano e se formou o
de consciência proposto pela alteridade. Trata- Estado Moderno, tendo como modelo as nações
-se do Arquétipo do Filho, oprimido junto com europeias. Muito ainda se terá que escrever so-
o Arquétipo da Grande Mãe no Ciclo Patriarcal, bre isso quando situarmos a Idade Média den-
que ressurge, mostrando, na Paixão, o que foi tro desse luto, que engloba, ao mesmo tempo,
dele exigido durante o dinamismo patriarcal e o símbolos da renúncia à contestação do pai e da
que necessita ser feito para que isso não mais morte do filho reprimido no ciclo patriarcal, da
aconteça. Uma das características essenciais morte do próprio padrão patriarcal e do próprio
do Mito Cristão é a não contestação do passa- Antropos, símbolo do ser humano em geral, que
do, o que o situa inteiramente fora do campo sobe à cruz para assumir na glória da ressurrei-
simbólico patriarcal parricida-filicida. “Não jul- ção a transformação da humanidade e atingir o
gueis que vim abolir a lei dos profetas. Não vim resgate do dinamismo matriarcal e o padrão de
para as abolir e sim levá-las à perfeição. Pois, alteridade, no qual a Consciência humana se
em verdade vos digo, passará o céu e a terra torna coautora do seu próprio processo de de-
antes que desapareça uma letra ou um traço da senvolvimento e passa a atuar eticamente, ou
lei” (Mt 5:17-18). seja, responsavelmente, dentro do processo de
Foi um novo Isaac que subiu, desta vez adul- realização do potencial do Self Individual e Cul-
to e de própria vontade, ao altar sacrificial, para tural. Com isso, a cultura e o indivíduo adquirem
referendar na sua plenitude individual adulta o a noção simbólica da existência do seu proces-
voto de obediência de Abraão, ao mesmo tempo so de desenvolvimento e da sua autenticidade e
em que transcende este voto. A Paixão e o Misté- salvação ou de sua alienação e perdição. O vigor
rio da Trindade constituem-se na transformação do desencadeamento deste processo tem como
do padrão patriarcal para o estabelecimento de símbolo central o herói messiânico de alterida-
uma relação dialética entre o Arquétipo do Pai de, de corpo inteiro na cruz, dinamicamente ins-
e do Filho, essência do padrão de alteridade. Aí pirando o Self Cultural na sua transição do dina-
está representado entre tantas outras coisas, o mismo patriarcal para o de alteridade.
símbolo estruturante da democracia social na Toda esta profunda vivência da morte na Ida-
qual a lei passa a ser transformada pelo próprio de Média já vinha, aos poucos, sendo acompa-
confronto dialético entre o velho e o novo. O sa- nhada paulatinamente por símbolos da ressur-
crifício do homem adulto de corpo inteiro na cruz reição, fosse na vivência da experiência mística
expressa o Símbolo de transformação do Antro- de totalidade de cada um, fosse na transforma-
pos, em sua total integridade, inerente ao ritual ção da sociedade caminhando na direção da
de passagem estrutural. constituição do estado. Estes símbolos estrutu-
Com o filho foi crucificada a Consciência rantes são tão profundos e intensos, e abran-
Coletiva do Self Cultural. Nas grandes transfor- gem tantos séculos de História, que devemos
mações arquetípicas, a Consciência mergulha pensá-los a longo prazo. Costumes como, por
sempre no tema mítico da morte-ressurreição, exemplo, o cavaleirismo e esportes como o fute-
cujos símbolos têm a função de proclamar o sur- bol, que surgem na Idade Média, aparentemente
gimento da nova fase arquetípica e, ao mesmo aleatórios são, pelo contrário, altamente signifi-
tempo, assegurar a sua continuidade com a anti- cativos de um Self Cultural se dirigindo para a

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alteridade e aflorando, aqui e ali, na Consciência de competir, ferindo ou matando o adversário,
Coletiva, por intermédio de fenômenos culturais inerente aos torneios esportivos medievais que
aparentemente pequenos, mas que formam um eram, na realidade, preparatórios para a guerra.
grande todo. A difusão do futebol exemplifica também o po-
A lenda dos Cavaleiros da Távola Redonda, der criativo, espontâneo do Self Cultural, não ne-
que emerge por intermédio de obras literárias ro- cessariamente acompanhado de proselitismo.
mânticas nos séculos XIII e VIV, nos fala dos ide- Seus símbolos de alteridade agiram de forma
ais heroicos de cavalheiros dedicados ao culto estruturante sobre a Consciência Coletiva de ma-
da busca do Cálice do Graal que, segundo a len- neira tão eficiente desde o início, que nada me-
da, teria colhido o sangue de Cristo na Cruz. São nos que cinco reis ingleses, ainda que em vão, o
símbolos do Mito Cristão, vivenciados durante a proibiram, por lei, durante mais de três séculos,
passagem do Feudalismo para os regimes mo- pelo fato de sentirem prejudicados os esportes
nárquicos na França e na Inglaterra, e que abor- patriarcais que treinavam seus exércitos (BYIN-
dam a formação do poder no qual a autoridade GTON, 1982b).
seja subordinada ao Cristo Crucificado, ou seja, A profunda vivência de morte, durante a Ida-
ao padrão democrático de alteridade. Os Cava- de Média, caminhou para uma imensa vivência
leiros da Távola Redonda inicialmente em núme- de ressurreição, acompanhada de uma gigan-
ro de doze sentam-se à volta da mesa junto com tesca explosão de criatividade do Self Cultural
o Rei Arthur. Esboça-se no Self Cultural a imensa em todas as suas dimensões. Apropriadamente
problemática de governar como expressão da in- denominada de Renascimento, seu conteúdo
teração de todos, e que se tornará o tema central simbólico não é percebido se não nos pergun-
das aflições do estado moderno. A tensão entre tarmos, renascimento de que para quê? Renas-
o símbolo do Messias, como porta-voz de todos cimento da morte sacrificial da Consciência Co-
os que sofrem, e a autocracia do poder exercido letiva no seu dinamismo predominantemente
patriarcalmente é, conscientemente ou não, o patriarcal para atingir e se tornar capaz de exer-
símbolo inspirador subjacente, não só à forma- cer livremente o dinamismo de alteridade. O Re-
ção das nações europeias, como também à sua nascimento continua a implantação do padrão
transformação sociopolítica moderna. de alteridade vivenciado, introvertidamente,
O futebol que, ou foi trazido pelos Romanos por intermédio do sentimento e da intuição na
ou se originou de um costume antigo de chutar Idade Média e que agora se extroverte, espeta-
a cabeça degolada do adversário derrotado, foi, cularmente, por intermédio do pensamento e
espontaneamente, adotado como jogo entre da sensação. O Renascimento, simbolicamente,
aldeias da Inglaterra no século XIII, exemplifi- é o momento da encarnação histórica da glória
cando, também significativamente, como foi se da ressurreição. O Renascimento apresentou ao
implantando criativamente a alteridade na Idade universo europeu o resultado da aquisição pelo
Média, por intermédio dos Símbolos Estruturan- Self Cultural da relação dialética do Arquétipo do
tes no Self Cultural. Surgindo inicialmente como Pai e do Arquétipo do Filho.
diversão entre aldeias vizinhas, que competiam Todas as dimensões do Self Cultural foram
com grande número de pessoas, chutando bolas afetadas pelo Renascimento. Os grandes gênios
feitas por seus sapateiros, o futebol foi, aos pou- dos séculos XVII e XVIII que lançaram a base do
cos, se estruturando para se transformar em es- pensamento científico sobre a qual se edificou
porte internacional. Seu padrão de resolver um a ciência moderna nos séculos XIX e XX, todos,
conflito, dialética e esportivamente, é um mode- sem exceção, são frutos da grande árvore renas-
lo social do padrão de alteridade, que vem com- centista como expressão cultural da implanta-
petir e substituir o padrão guerreiro patriarcal ção do padrão de alteridade.

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Esta genealogia da ciência e do humanismo Constantino, transformado na religião oficial do
moderno, todavia, foi obscurecida por um terrí- Império. Ainda que a legislação rigorosa do San-
vel fenômeno que contaminou, historicamente, to Ofício contra a heresia tenha sido iniciada no
a ligação entre o Mito Cristão e a implantação século XII, com Inocêncio III, e atingido a pena
da alteridade no Ocidente, a ponto de tornar de morte legalmente, sob o Rei Frederico II, com
esta ligação irreconhecível a partir do século o apoio dos Papas Honório III e depois Gregório
XIX. Ao passar por esta tragédia, o Self Cultural IX, podemos dizer que seu início data da oficia-
do Ocidente sofreu uma dissociação tal, que a lização do Cristianismo no próprio século IV. A
ligação da continuação da implantação do ciclo institucionalização do Cristianismo nos lembra
de alteridade com as grandes contribuições dos muito os inúmeros movimentos de esquerda de
séculos XIX e XX se tornou inconsciente. A Cul- nossos dias, que pregam a Alteridade, enquanto
tural Ocidental passou a pensar neuroticamente, oposição, mas regridem ao dinamismo patriar-
autorreferenciando-se, como se tivesse nascido cal repressivo quando assumem o governo. Será
no século XIX, e sua Consciência Coletiva per- isto inevitável?
deu o contato com seu enraizamento arquetípi-
co no Mito Cristão, ou seja, passou a funcionar Durante os três primeiros séculos de nos-
dissociadamente do seu Self Cultural. Somente sa era não existe registro de perseguição
um enfoque simbólico pode tornar perceptível oficial pela Igreja e seus Pais, principal-
esta dissociação, pois ela institucionalmente mente Orígenes (185-254) e Lactantius
se apresentou como a cisão entre o Estado e a a rejeitam expressamente. Constantino
Igreja e entre a Ciência e a Religião, o que para pelo Édito de Milão, em 313, inaugurou a
muitos, que olham a vida, a Filosofia e a História era de tolerância oficial ao Cristianismo,
por intermédio da ótica desta dissociação, é até mas do reinado de Valentiano I (321-375)
um bem, porque institucionalmente um deveria e Teodosius I (346-395) em diante, leis
funcionar sem o outro. Devido a este enfoque da contra heréticos começaram a aparecer e
História clássica, a tragédia, a dissociação cultu- aumentaram com surpreendente rapidez
ral produzida, e suas consequências altamente a regularidade. Os heréticos estavam su-
maléficas, continuam a atuar disfarçadamente jeitos ao exílio ou ao confisco de bens,
até hoje. O prisma simbólico, porém, nos revela desqualificação de herança e até mesmo,
toda a extensão desta dissociação e onde, como no caso de alguns grupos de maniqueís-
e porque a Consciência Coletiva se dissociou do tas e donatistas, estavam sujeitos à pena
Self Cultural, formando a grande Sombra Patoló- de morte; todavia, estas penalidades se
gica do Ocidente. A autoidentificação do mate- aplicavam somente à manifestação ex-
rialismo e do positivismo com o progresso, vista pressa de heresia e não incluíam ainda,
à luz do desenvolvimento simbólico, pode assim como na Idade Média, crimes de cons-
ser vista como uma parte dissociada do Self Cul- ciência. Dentro da Igreja, propriamente,
tural que, inconsciente e defensivamente, pre- somente Santo Optatos (De Schismate
tende representar o todo. Donatistarum lib. 3, Cap. 3) aprovou a
repressão violenta da heresia Donatis-
8. A Inquisição e a Dissociação do Self ta; Santo Agostinho (354-430) admitia
Cultural do Ocidente somente temperata severitas, tais como
Duramente perseguido em todo o Império repreensão, multas ou exílio. No final
Romano durante quase três séculos, o Cristianis- do século IV, a condenação do herético
mo foi finalmente tolerado pelo Édito de Milão, espanhol Prisciliano, que foi executado
em 313, e a seguir, após a própria conversão do em 375 por ordem do Imperador Maxi-

62 ■ Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 1º sem. 2019


mus, despertou grande controvérsia. de alteridade no Ocidente, por intermédio dos
São Martinho de Tours, Santo Ambrósio símbolos estruturantes do Mito Cristão, e a se-
(340-397) e São Leo atacaram vigorosa- paração do Mito Cristão das Instituições Cristãs
mente os bispos espanhóis que haviam pelo fenômeno da patriarcalização. Esta separa-
conseguido a condenação de Prisciliano. ção foi tão intensa que deu origem à dissociação
São João Crisóstomo considerava que um do Self Cultural expressa somente em parte pela
herege deveria ser privado da liberdade dissociação Ciência e Religião. A grande dissocia-
de palavras e suas assembleias dissolvi- ção porém ocorreu entre as Instituições Cristãs e
das, mas declarou que matar um herege o Mito Cristão, que, com isso, afastou muito de
seria introduzir na terra um crime sem seus símbolos estruturantes destas instituições.
possibilidade de expiação. Esta dissociação confundiu a Cultura Ocidental
Do século VI ao IX, com a exceção da per- intensamente e deixou toda a criatividade de sua
seguição às seitas maniqueísta em deter- Ciência sem nenhum vínculo moral com suas raí-
minadas regiões, houve pouca persegui- zes históricas no Self Cultural.
ção religiosa... mas da segunda parte do A obra e a vida trágica de Nietzsche são um
século X ao século XII, numerosos here- exemplo ilustrativo desta dissociação e confu-
ges foram queimados e estrangulados na são cultural. Filho de um pastor protestante e
França, Itália, no Imério e na Inglaterra... neto de dois, Nietzsche dedicou boa parte de
Nesse período é difícil discriminar a res- sua obra a atacar Cristo e a ressuscitar Dionisos.
ponsabilidade direta da Igreja nestas con- Seu Cristo é:
denações... De 1220 a 1239, o Imperador
Frederico II, apoiado pelos Papas Honório um Deus das massas, é um democrata
III e especialmente Gregório IX, estabele- abaixo dos deuses, mas não se transfor-
ceu contra a heresia uma clara legislação, mou num orgulhoso deus pagão: ele per-
envolvendo confisco de bens, exílio e maneceu judeu, ele permaneceu um Deus
pena de morte... A Inquisição na Espanha clandestino, um Deus dos lugares escuros
incluiu também a censura... A censura de e doentios da Terra... Seu reino é sempre
livros foi estabelecida por Fernando e Iza- um reino do mundo subterrâneo, um hos-
bel em 1502... Carlos V dividiu a respon- pital, um submundo, um reino do gueto...
sabilidade da censura entre o Conselho E ele próprio, tão pálido, tão fraco, tão
Real, que dava ou recusava o imprimatur decadente... (NIETZSCHE, 1964, p. 17, 20).
a livros, e a Inquisição, que retinha o di-
reito de vetar qualquer livro que achasse Nietzche vê e combate sem se dar conta, não
pernicioso; depois de 1527 ela tinha que o Cristianismo e o Judaísmo no que tem de es-
dar também a licença para a impressão. sencial, e sim o resultado da patriarcalização
Em 1547 a Inquisição produziu na Univer- de Cristo e do Judaísmo pela Inquisição. Ele vê
sidade de Louvain um Index de livros proi- o Cristianismo patriarcalizado no qual foi puri-
bidos. Em 1558 a pena de morte foi decre- tanamente educado e reprimido e contra ele se
tada para qualquer um que mantivesse levanta como um animal ferido. Mesmo se vol-
em seu poder livros proibidos... A censura tando contra todos os valores culturais de sua
de livros foi abolida em 1812 (ENCYCLOPE- época, em momento algum Nietzsche percebe a
DIA BRITANNICA, 1961b). pujança revolucionária do Mito Cristão subjacen-
te e sua patriarcalização. Nem mesmo quando
A História Simbólica do Cristianismo é, simul- importa Dionisos da Grécia, como solução para
taneamente, a História da implantação do padrão todos os males de sua cultura, não percebe que

Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 1º sem. 2019 ■ 63


está lidando também com um Deus que, origi- ção da Cultura Ocidental e de seus descaminhos
nalmente matriarcal, num momento central de na busca de sua reintegração. Na sua busca de
sua mitologia é recriado no próprio corpo do pai Deus e na sua denúncia de falsos valores, iden-
Zeus e nessa segunda existência expressa mui- tificou o Mito Cristão com o Cristianismo institu-
tos símbolos estruturantes do padrão de alteri- cional do Santo Ofício. Sua obra, nesse sentido,
dade. Não percebeu Nietzsche que o bode que é um exemplo de dissociação ao ser, em boa par-
representava sacrificialmente Dionisos na Tra- te, dedicada a atacar o símbolo Cristo sem, em
gédia aparecia como Diabo na missa negra eu- momento algum, denunciar e confrontar a Inqui-
ropeia, expressando características reprimidas sição. O que é enlouquecedor na obra de Nietzs-
de Cristo. Jamais se lembrou dos aspectos dio- che é que, apesar de buscar resgatar o elemento
nisíacos de Cristo, que sem se tornar um Deus matriarcal na cultura em nível de alteridade, seu
da fertilidade matriarcal, nem por isso deixou ataque ao Mito Cristão confundido com as Ins-
de expressar a fertilidade matriarcal como, por tituições Cristãs, termina por impedir o resgate
exemplo, no episódio da multiplicação dos pães Cristo-Dionisos, ampliando assim, sem o querer,
e dos peixes (Mr 6:35-44 e 8:1-9). Poderia Cristo a obra repressora e dissociadora da Inquisição.
ser mais dionisíaco do que quando transformou A obra de Nietzsche nos mostra, exuberan-
a água em vinho nas bodas de Canaan? (João temente, que não se deve associar somente
2:1-11) ou quando na missa seu corpo é o pão e a Inquisição com o estado de dissociação da
seu espírito o vinho? Cultura Ocidental. A partir do século XVIII, seto-
A confusão trágica da obra de Nietzsche é res cada vez mais importantes do Humanismo
que o Cristo morto, decadente e reprimido que Ocidental, situados uns em função do materia-
ele combate, tem muitas características do Cris- lismo científico, outros em função da arte pela
tianismo patriarcalizado pela Inquisição, en- arte, outros do agnosticismo, outros, ainda, do
quanto que Dionisos, que ele invoca, tem muitas esoterismo, todos, lado a lado, passaram a rati-
características do Cristo vivo, mas dissociado na ficar a dissociação cultural que se originou com
dicotomia Cristo-Diabo. Estará, a psicose trágica a Inquisição. Esta dissociação no nível mítico-
de Nietzsche, em parte pelo menos, relaciona- -religioso se expressou na dicotomia Cristo-Dia-
da com a tensão da busca desesperada de um bo, mas, paulatinamente, os conteúdos deste
Deus, que ele só conseguiu cultuar em Dionisos, símbolo estruturante se estenderam às demais
Deus de uma cultura distante, às expensas de dimensões culturais. Institucionalmente, afas-
negar partes importantíssimas de si mesmo e tou-se a Ciência da Religião e, paralelamente,
assim dissociar-se do seu próprio Self Cultural? dissociou-se a possibilidade de conscientização
Nesse sentido, é muito significativo que dois do componente subjetivo que acompanha todo
meses antes de ser internado para sempre, Niet- componente objetivo. O resultado disto foi que a
zsche encerrou o Ecce Homo, sua autobiografia ciência se tornou parcialmente amoral, positivis-
e último livro com as palavras “Dionisos ante o ta e “agnóstica” e assim dissociada do Antropos
crucifixo”. Em Ecce Homo ele repudiou ser um ou Homem Global. Dissociou-se o indivíduo da
dia considerado um mártir. Contudo, é difícil dei- comunidade, na perspectiva simbólica do seu
xarmos de considerar Nietzsche um dos grandes desenvolvimento comum. Dissociou-se o sexo
mártires cristãos, quando associamos sua psi- da integridade humana e, por conseguinte, do
cose com a imensa carga energética do símbolo amor. Dissociou-se a mente do corpo, o trabalho
de Dionisos que reintegrando a dicotomia Cristo- da criatividade e a dialética das classes sociais.
-Diabo traria a salvação ou a ura da dissociação Dissociou-se subjetivo do objetivo, a intuição
do Self Cultural do Ocidente. O drama de Nietzs- da sensação, o pensamento do sentimento e a
che é extremamente representativo da dissocia- introversão da extroversão, e o consciente do in-

64 ■ Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 1º sem. 2019


consciente por intermédio da sinalização reduti- caso contrário, perderemos a perspectiva históri-
va maciça dos símbolos. ca e não perceberemos, nitidamente, o que está
É importante, nesse sentido, que não se con- ocorrendo quando os movimentos sociais são
funda a codificação dogmática da discriminação desvinculados da alteridade e, mais uma vez,
patriarcal com a compulsão-repetitiva das defe- patriarcalizados. Nesses casos, pelo fato de os
sas que mantém esta fixação do padrão de al- movimentos sociais serem algo novo, acredita-
teridade. As codificações patriarcais das Tábuas mos que sua patriarcalização seja também algo
da Lei, por exemplo, são dogmáticas, mas são novo. Quando percebemos a História simboli-
livremente estruturantes do Self Cultural. Não camente, porém, nos damos conta de que esta
existem nem dissociações nem defesas a sua patriarcalização exagerada e inadequada está
volta que dotam os símbolos estruturantes de realmente continuando a ação dissociadora da
características dissociadas e compulsivas. O Inquisição.
matriarcal, o feminino e a mulher são, por exem- A abertura para os polos reprimidos e injus-
plo, discriminados de forma machista e elitista, tiçados pela etilização patriarcal na transição
porém, uniforme e coerentemente. Isto é inteira- para a alteridade é apenas uma parte para a im-
mente diferente do padrão de alteridade disso- plantação da alteridade e que, simbolicamente,
ciado que prega o resgate do feminino, do amor corresponde no Mito à morte e ressurreição de
e da plenitude humana, enaltecendo a Virgem Cristo. Existe uma outra igualmente importante e
Maria e, ao mesmo tempo, deixa a mulher, no inseparável da primeira que é a conquista do es-
culto religioso, numa posição profundamente tado de consciência, no qual o Eu se torna capaz
inferiorizada, que reprime a sexualidade e a atri- de se abrir e se relacionar em igualdade de con-
bui ao Diabo, e que rotula, aprioristicamente, de dições com o Outro. Trata-se de uma transforma-
pecaminosas inúmeras condições psicológicas ção cultural da noção de amor e da aquisição da
necessárias ao desenvolvimento do Antropos. capacidade do relacionamento dialético criativo
A transição do dinamismo patriarcal para o mesmo na adversidade. Esta parte corresponde,
de alteridade envolve o resgate do reprimido e no Mito Cristão, à glória de Cristo na sua intera-
do injustiçado pela elitização repressiva patriar- ção com Deus no Mistério da Trindade e é exata-
cal. A Idade Média, ao vivenciar o luto e se iden- mente o estado de consciência necessário para
tificar com o cordeiro sacrificial que vem salvar a prática da democracia, da conjugalidade, do
os oprimidos, abre as portas do Self Cultural método científico e do socialismo.
para tudo o que estava reprimido e injustiçado Enquanto o resgate dos reprimidos e oprimi-
dentro do dinamismo patriarcal. É nesse mo- dos corresponde aos movimentos de liberação,
vimento simbólico de abertura que se enraíza, por exemplo, da mulher, do proletariado, das
séculos depois, o movimento humanista ideo- minorias étnicas, das colônias e do homossexu-
lógico liberal dos séculos XVIII e XIX que eclode alismo, a conquista da relação dialética corres-
socialmente com o arrefecimento institucional ponde à capacidade de relacionamento demo-
da Inquisição. É inegável que a industrialização, crático e científico após a liberação, o que é igual
com o fortalecimento da burguesia e o surgimen- ou mais difícil. Quando não ocorre esta segunda
to do capitalismo alterou o relacionamento das fase, a Consciência não atinge a alteridade ple-
classes sociais, criando condições para o movi- namente e facilmente volta ao dinamismo pa-
mento socialista. É importantíssimo, porém, que triarcal. É o caso do machismo que se transforma
vejamos a formação e o desenvolvimento do mo- em feminismo ou da revolução socialista que se
vimento socialista como a continuação milenar transforma em “ditadura do proletariado”. Neste
da implantação do padrão de alteridade em luta caso, o dinamismo de alteridade em andamento
permanente com o padrão patriarcal na cultura, é desviado para o dinamismo filicida-parricida,

Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 1º sem. 2019 ■ 65


no qual continua a predominar o dinamismo pa- necessárias para se implantar o relacionamento
triarcal, prejudicando, reacionariamente, a conti- livre e igualitário da Consciência de Alteridade.
nuação de implantação da alteridade. O desenvolvimento da Inquisição paralela-
Outro desvio comum da alteridade, que pre- mente à implantação do padrão de alteridade,
judica sua implantação, é a vivência que fre- por intermédio do Mito Cristão, não é, então,
quentemente ocorre após a liberação do repri- nem uma simples coincidência nem somente
mido-oprimido de que, daí por diante, imperará um malefício, mas basicamente uma ocorrência
a liberdade sem limites. Isto vem ocorrendo histórica estrutural, inerente à implantação de
em ondas inovadoras em várias dimensões da alteridade numa cultura de tradição fortemente
Cultura como, por exemplo, na pedagogia e no patriarcal. É que a alteridade traz uma tal abertu-
casamento. Na década de 1950, por exemplo, ra para a reformulação de polaridades e, se não
a sociedade americana do pós-guerra atraves- houver uma intensificação do dinamismo pa-
sou uma onda de liberalização que propiciou triarcal para manter certas discriminações bási-
a pedagogia sem limites. O resultado não foi cas do Eu e do Outro, a preservar sua identidade,
a felicidade que se esperava e sim a ocorrên- ocorrem a confusão, a perda de identidade e o
caos que impedirão a implantação da alterida-
cia frequente da desorientação do adolescente
de, e suas novas discriminações, o que acabarão
com a exacerbação não rara dos estados delin-
por fortalecer, reacionariamente, as discrimina-
quenciais. O mesmo se tem observado com a
ções patriarcais tradicionais. A própria pujança
sexualidade, tanto do adolescente quanto do
de transformação religiosa que dominou o Impé-
casamento. A liberação total do que era antes
rio Romano, a partir do século IV, foi de tal ordem
reprimido não traz, geralmente, o bem-estar
que, sem uma codificação patriarcal de limites,
esperado, mas, pelo contrário, frequentemente
essa própria criatividade religiosa arriscaria pul-
traz a promiscuidade, a confusão, a perda de
verizar o Cristianismo em uma miríade de seitas
identidade e o caos que acaba ou na dissolu-
que prejudicaria, também, enormemente a sua
ção ou no restabelecimento e até fortalecimen-
institucionalização.
to reacionário das ortodoxas patriarcais que se
Não podemos julgar a História ou a Igreja e
desejava inicialmente ultrapassar.
dizermos que esta patriarcalização foi maior
Isto nos mostra que a alteridade não é uma do que deveria ter sido. O que podemos, e de-
liberação sem limites e sim um padrão de orga- vemos, é identificar os símbolos operando nos
nização da Consciência muito difícil de atingir e vários dinamismos estruturantes e deixar que
preservar. A alteridade é um padrão post-patriar- eles próprios mostrem sua função estruturante
cal. Como sabemos que as estruturas não desa- e suas consequências históricas. No caso da In-
parecem evolutivamente, mas funcionam lado quisição, vemos simbolicamente que sua função
a lado, continuando a estruturação da Consci- inicial foi intensificar o dinamismo estruturante
ência, isto quer dizer que a alteridade só pode patriarcal para permitir a implantação e a opero-
funcionar, plenamente, a partir da estruturação sidade do padrão de alteridade. É inegável, pois,
patriarcal, o que significa não a preservação da que a intensidade dessa padronização patriarcal
repressão e do elitismo, mas a busca da manu- esteja diretamente ligada a pujança da implan-
tenção da discriminação clara do Eu e do Outro, tação da alteridade. De fato, até hoje, decorridos
ou seja, da sua identidade e consequente sen- quase 20 séculos de sua revelação, constatamos
so de responsabilidade igualmente face ao Eu que as propostas de alteridade do Mito Cristão
quanto face ao Outro. Esta responsabilidade e são tão pujantes e revolucionárias que, apesar
discriminação da identidade do Eu e do Outro, de toda transformação ocorrida, seus símbolos
obtidas com a estruturação patriarcal, é que são ainda são capazes de indiscriminar a Consciên-

66 ■ Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 1º sem. 2019


cia Coletiva com uma intensidade difícil de ava- Descartes, Leibnitz e Newton foram homens para
liar. Basta entrarmos nos temas da propriedade quem a religiosidade e a Ciência, seus sonhos,
privada, da fidelidade conjugal, da igualdade suas emoções e o que estudavam se interpene-
racial, de como se educar os filhos, da homos- travam normal e coerentemente. Seus símbolos
sexualidade e da relação com o erro, a doença estruturantes se enraizavam no sujeito e no ob-
e a morte, para que a Consciência Coletiva se jeto de igual maneira.
confunda rapidamente e passe a operar com di- A mensagem de salvação do messianismo de
namismos defensivos. alteridade, ao estabelecer a equivalência dialé-
Há que se reconhecer mais ainda que a im- tica do Eu e do Outro, propiciou exatamente o
plantação da alteridade se faz conflitantemente estado de consciência necessário para a meto-
com o dinamismo patriarcal e que por isso a in- dologia científica. No padrão matriarcal existe
tensificação patriarcal, necessária para propiciar a predominância do princípio da fertilidade, da
a alteridade, pode a qualquer momento passar a sensualidade e do desejo e na patriarcal o saber
reprimi-la. É difícil dizermos a partir de que mo- é, de um modo geral, dogmático e precodifica-
mento a organização da criatividade, em vez de do. Isto, se não impede a Ciência, também não
propiciá-la, passa a reprimi-la. A partir de que a propicia. Já na alteridade, a relação igualitária
momento estamos organizando para realmente e criativa do Eu com o Outro propicia admiravel-
mudar ou manter reacionariamente a tradição? mente o conhecimento científico. Naturalmente
Esta questão é complexa e deve ter sido o gran- que isto, por si só, não explica a imensa criati-
de drama religioso das pessoas realmente cris- vidade renascentista. O que ajuda a explicá-la é
tãs que participaram da Inquisição. Sobretudo, a extroversão intensa da criatividade, após sé-
porque forças reacionárias patriarcais inegavel- culos de introversão preparatória, que buscara
mente contaminaram a implantação da alterida- resgatar não somente o reprimido, mas também
de, a tal ponto que o Self Cultural se dissociou transformar a própria relação dinâmica Vida e
intensamente a partir, principalmente, do século Morte, Consciente e Inconsciente.
XVIII. Foi a função inicialmente protetora e orga- O que é importante perceber também nesta
nizadora da Inquisição, que atingiu uma grande análise simbólica é que a alteridade não só não
intensidade patriarcal e se tornou culturalmente é incompatível como até mesmo impõe a vivên-
repressiva, perseguidora e a tal ponto intolerá- cia do todo, na medida em que o encontro dialé-
vel, que tornou inevitável a dissociação. tico igualitário das polaridades evidencia sem-
pre um processo maior que as abarca. O que se
9. A Ciência, o Mito Cristão e a tornou incompatível com a Ciência não foi a alte-
Inquisição ridade cristã, e sim o dinamismo patriarcal da In-
Hoje, praticamente três séculos após a gran- quisição, devido à sua natureza essencialmente
de dissociação da Cultura Ocidental, é muito autoritária, dogmática, tradicionalista, elitista,
difícil percebermos que o Renascimento e o precodificada e repressora, cuja prática cada vez
desabrochar da Ciência Ocidental são uma con- maior pela Inquisição terminou por gerar a dis-
sequência dieta da implantação da alteridade sociação entre a Ciência, já agora acompanhada
guiada pelos símbolos estruturantes do Mito do Humanismo Liberal Europeu, e as Instituições
Cristão. Todavia, para uma perspectiva simbó- Cristãs. Esta dissociação criou estados de cons-
lica da transformação histórica da Consciência ciência com noções dissociadas e aplicadas ao
Coletiva, este fato é inegável, como era também, todo, gerando concepções absurdas. A dissocia-
até certo ponto, para os grandes sábios que ção das polaridades sujeito-objeto, mundo inter-
lançaram os fundamentos da Ciência Moderna. no-mundo externo, psique corpo-psique matéria,
Leonardo da Vinci, Copérnico, Galileu, Kleper, está inerente a essa grande dissociação cultural.

Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 1º sem. 2019 ■ 67


A filosofia da Ciência desenvolveu o critério de O problema do Self Cultural do Ocidente não
verdade equiparado à de exclusiva objetividade. pode ser percebido em função de uma teoria
A subjetividade passou a ser equacionada com de repressão sexual ou uma teoria econômi-
o irracional e não científico. As funções do sen- ca de exploração de classes, ainda que ambas
timento e da intuição e a atitude de introversão ajudem a compreender uma parte do que está
foram subestimadas em favorecimento do pen- acontecendo com o todo. Precisamos, porém,
samento, da sensação e da extroversão. O mais compreender que se trata de uma fixação e uma
grave de tudo é que a Inquisição arrefeceu insti- dissociação a nível estrutural que atinge não
tucionalmente, mas sua obra continua extraordi- somente o sexual e o econômico, mas todas as
nariamente atuante no Self Cultural sob as mais dimensões da Cultura e o próprio funcionamento
variadas formas de patrulhamento moral, artísti- da Consciência Coletiva. Urge que a Antropolo-
co, afetivo e ideológico não identificadas corre- gia forneça os instrumentos do conhecimento
tamente e que solapam, de forma sub-reptícia, simbólico às demais dimensões da Cultura para
a implantação da alteridade. Por que será que que estas identifiquem e elaborem a Sombra
não conseguimos perceber verdadeiramente Patológica do Self Cultural em cada setor espe-
que a corrida armamentista é essencialmente re- cializado do conhecimento. Nesse sentido, os
pressiva e inviável a longo prazo? Somente uma engajamentos de liberação psicológicos, religio-
força repressora agindo inconscientemente e de sos e políticos, ao reduzir o problema cultural ao
forma dissociada pode explicar como pessoas sexual ou ao econômico, continuam propiciando
da maior cultura e discernimento, ao assumir o e deixando atuar, sob a sua própria bandeira de
poder, se enleiam inevitavelmente na escalada libertação, elementos patriarcais e de alteridade
armamentista. Em suma, a Consciência Coletiva dissociados e não reconhecidos, que frequen-
da Cultura Ocidental continua funcionando so- temente contribuem inconscientemente para a
bre uma grande dissociação, ou seja, neurotica- intensificação das forças reacionárias repres-
mente fixada na sua transição para a alteridade. sivas. Incapazes de uma autocrítica realmente
O século XIX tentou inúmeras buscas de sis- antropológica, estas forças revolucionárias pas-
temas que cobrissem o saber e recuperassem sam a culpar exclusivamente qualquer sistema
a unidade perdida. Aprendemos, porém, com patriarcal vigente, projetando nele seu próprio
Freud, que quando existe uma dissociação, a conteúdo sombrio patriarcal repressor do qual
busca de compreensão do todo, unicamente permanecem inconscientes. Antes de tudo, há
consciente, por maior dedicação e boa vontade que se conscientizar e elaborar esta grande fixa-
que tenha, terminará sempre em mais uma ra- ção cultural na implantação da alteridade com
cionalização, a não ser que perceba e elabore esta dissociação sujeito-objeto e este rico sis-
a dissociação inconsciente e as defesas a sua tema defensivo de repressão, negação, desloca-
volta. Nesse caso, a menos que identifiquemos mento, projeção e racionalização à volta que re-
a dissociação do Self Cultural do Ocidente e tra- quer conscientização e confronto para os quais a
balhemos as defesas a sua volta para resgatar a perspectiva simbólica é imprescindível.
dialética criativa do subjetivo e do objetivo, do A fixação da Cultura Ocidental no dinamismo
Eu e do Outro em todas as dimensões culturais, de alteridade deu ensejo à formação de Símbo-
dificilmente sairemos deste impasse. A perspec- los Estruturantes na Sombra Patológica carac-
tiva simbólica nos evidencia, sobejamente, que terísticos desse dinamismo. Disso resulta uma
a problemática básica da Consciência Coletiva vivência de busca de encontro afetivo, criativo,
da Cultura Ocidental não é somente um confron- sociopolítico, conjugal e, ao mesmo tempo, uma
to entre sistemas econômicos e políticos que sensação profunda da sua impossibilidade.
certamente também existe. Isto fez com que a proposta Cristã fosse trans-

68 ■ Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 1º sem. 2019


formada de um processo ontológico e cultural A grande contribuição que as Culturas Índias
em algo idealizado e transferido “para o outro e Negras do Terceiro Mundo poderão trazer ao
mundo”. Esta fixação é o pano de fundo de um terceiro milênio de nossa Era é devida, entre inú-
pessimismo e de uma desconfiança permanente meras outras coisas, ao fato de elas não sofre-
na relação homem-mulher, subjetivo-objetivo, rem dessa fixação e dissociação e possuírem um
povo-governo e ser humano-planeta, levando a dinamismo matriarcal intensamente elaborado e
uma suspeita insidiosa e terrível de que talvez desenvolvido. Nesse sentido, o fato destas cul-
nossa espécie se torne a médio prazo inviável, turas não terem linguagem escrita deve ser su-
o que em termos simbólicos no dinamismo de ficientemente valorizado, pois está diretamente
alteridade significa que a conjunção de opostos relacionado com a riqueza e a exuberância do
não teria chegado a bom termo e teria ocorrido dinamismo matriarcal que atingiram e que conti-
de forma sombria e destrutiva, acarretando a in- nuarão a cultivar, quando devidamente compre-
viabilidade do Todo. endidas, apoiadas e estimuladas, para investir

Desenvolvimento simbólico da personalidade


Os quatro ciclos arquetípicos

“O 1 se transforma no 2, o 2 no 3, o 3 no 4 que é novamente o 1”

2a fase dos ciclos 1a fase dos ciclos


O Ego exerce o padrão arquetípico – O Ego apreende o padrão arquetípico

4
Ciclo cósmico
CONSCIENTE INCONSCIENTE
3
Ciclo de alteridade

SELF Adolescência SELF


Ciclo patriarcal
o)

l/
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ta
ce

ren
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sc ró
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icl Ciclo matriarcal


– oh
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De

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1
rim qu
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Uroboros 3
Sociedade 2
di
In

1
Natureza

Morte Persona – Ego – Sombra


Corpo

Self
Vida Arquétipo Arquétipo Arquétipo Self
Ideação da grande do pai Anima
Emoções mãe Animus
Coniunctio
s
lo
bo


m

m

bo
lo
s

SELF SELF

Gráfico 1. Desenvolvimento simbólico da personalidade. Os quatro ciclos arquetípicos.

Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 1º sem. 2019 ■ 69


Desenvolvimento simbólico da personalidade
Estrutura do Self Individual

Self Self

Conduta Conduta
parcialmente parcialmente
inconsciente Conduta inconsciente
consciente

Persona Persona Sombra Sombra


patológica normal Consciência normal patológica
Ego – Outro

SE com SE sem SE sem


defesas defesas SE com
defesas defesas

Símbolo
estruturante
SE

Eixo Ego-Self

Corpo Natureza

Self
Arquétipos

Sociedade Emoções e Ideação

Self Self
A estruturação simbólica da Personalidade e do Ego se faz através do Eixo Ego-Self por quatro ciclos arquetípicos, cujos apa-
recimento e dominância são sucessivos, mas cuja função estruturante, depois do seu aparecimento, age simultaneamente
durante o processo.

Gráfico 2. Desenvolvimento simbólico da personalidade. Estrutura do Self Individual.

toda essa riqueza simbólica no Self Cultural da altamente elaborado e desenvolvido, poderá
Sociedade pluricultural. A percepção dos símbo- nos proporcionar uma perspectiva histórica mais
los estruturantes de alteridade, tais como busca criativa do que a atual. ■
de verdade, de conhecimento, de igualdade, de Byington, Carlos. A Symbolic Theory of History.
fraternidade, democracia, ecologia e comunhão The Christian Myth as the Main Structuring-Symbol
internacional, inerentes a pujança do Self Cul- of the Alterity Pattern in Western Consciousness.
tural Ocidental, interagindo criativamente com Junguiana, Ver. Soc. Bras. Psic. Anal., no. 1, 1983.
os Símbolos Estruturantes das Culturas Índias e
Negras, que não possuem sua fixação e disso-
Recebido em: 25/03/2019 Revisão: 24/05/2019
ciação e apresentam um dinamismo matriarcal

70 ■ Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 1º sem. 2019


Abstract
A symbolic theory of history. The Christian Myth as the main structuring-sym-
bol of the Alterity Pattern in Western culture
The article develops a concept of Symbolic An- establishing the Christ-Devil dichotomy splitting the
thropology to study the Cultural Self based on four image of the Christian Godhead and culminating
archetypal structures, matriarchal, patriarchal, in a severe dissociation of the Cultural Self in the
alterity and cosmic as they historically contribute 18th century with an intense injury to the implanta-
side by side to develop Individual and Collective tion of the alterity pattern which affects us greatly
Consciousness through structuring symbols. This today in all cultural dimensions. The importance of
method allows us to study the interaction of struc- the concept of Symbolic Anthropology and History
turing symbols in multicultural societies in a dy- is stressed to study phenomena such as Cultural
namic and equalitarian context even though one Pathology, fixation and dissociation of the Cultural
culture is highly advanced technologically and the Self. The author stresses the importance of matriar-
other has no written language. chal dynamism functioning side by side with patri-
This symbolic perspective is also used to study archal dynamism for society to attain and exercise
the transition of our patriarchal Roman-Judaic tradi- the alterity democratic pattern of Consciousness. The
tion towards the alterity democratic pattern through symbolic richness of Indian and Negro Cultures and
the structuring symbols of the Christian Myth. Sym- the absence in them of a dissociation similar to the
bolically, the fourteen centuries of the Inquisition are Christ-Devil dichotomy is also emphasized as their
seen as a reintensification of the patriarchal pattern possibility to contribute to a healthier Cultural Self in
to the point of patriarchalizing the Christian Myth, our multi-cultural society. ■

Keywords: symbolic anthropology. symbolic history. cultural self. alterity pattern. cultural pathology. inquisi-
tion. renaissance. pathological defenses of the cultural self. dissociation of the cultural self. hysteria.

Resumen
Una teoría simbólica de la historia. El mito cristiano como principal símbolo
estructurante del patrón de alteridad en la cultura occidental
El artículo busca desarrollar una conceptu- ar la transición de la dominancia patriarcal a la al-
alización de Antropología Simbólica que pueda teridad a través de los símbolos estructurantes del
percibir y estudiar el Self Cultural a partir de cuatro Mito Cristiano. Simbólicamente, los catorce siglos
estructuras arquetípicas básicas: matriarcal, pa- de Inquisición se ven nuevamente intensificando el
triarcal, alteridad y cósmica, en su transformación dinamismo patriarcal a punto de patriarcalizar el
histórico-evolutiva de la Conciencia Individual y Mito Cristiano, establecer la dicotomía Cristo-Dia-
Colectiva por intermedio de símbolos estructur- blo y llevar a la disociación del Self Cultural en el
antes. Esta metodología nos permite estudiar la siglo XVIII, produciendo una grave fijación cultural
interacción de los símbolos estructurantes de cul- en el desarrollo de la alteridad en Occidente de ahí
turas diferentes en las sociedades pluriculturales en adelante. Se discuten algunos aspectos de esa
en contexto dinámico e igualitario. disociación cultural y se enfatiza la importancia del
Esta perspectiva simbólica aplicada a la Histo- concepto de Patología Cultural y de rescate del din-
ria de la Cultura Occidental está destinada a estudi- amismo matriarcal herido. ■

Palabras clave: antropología simbólica. historia simbólica. self cultural. alteridad. patología cultural. disoci-
ación de self cultural. inquisición. renacimiento. defensas patológicas del self cultural. histeria.

Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 1º sem. 2019 ■ 71


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Amadeus. A Psicologia da Inveja e sua


função no processo criativo: um estudo da
Psicologia Simbólica1

Carlos Amadeu B. Byington*

Resumo Palavras-chave
O autor analisa a peça de teatro “Amadeus” e e atingindo o psicótico. Descreve a função estru- inveja
estuda a função da inveja na relação de Mozart e turante normal do ciúme para melhor discriminar construtiva
ou normal,
Salieri. Caracteriza a inveja como uma função es- a inveja e exemplificar o ciúme patológico com a
inveja destrutiva,
truturante normal da maior importância no desen- peça Otelo, de Shakespeare. Finalmente, diferen-
patológica ou
volvimento da consciência. Chama atenção para cia a função estruturante normal do ciúme e da in- defensiva,
a dificuldade de se compreender este fato devido veja nos ciclos arquetípicos matriarcal, patriarcal, criatividade
às nossas concepções psicológicas se acharem de alteridade e cósmico. ■ prostituída,
ainda dominadas pela obra repressora-puritana traição da
da Inquisição. Afirma que na apresentação da própria anima,
peça a patologia mental de Mozart é ainda maior ciúme normal
que a de Salieri. Relaciona a inveja patológica de ou criativo,
ciúme patológico
Mozart com um complexo paterno negativo e a de
ou defensivo,
Salieri com a prostituição de sua Anima. Explica
complexo
a deterioração progressiva das personalidades paterno
de Mozart e Salieri: ao não assumirem sua inveja negativo,
normal, esta se tornou cada vez mais sombria e complexo de
patológica, ultrapassando o dinamismo neurótico desadaptação
social.


1
Este artigo foi escrito inicialmente em julho de 1982 para
o Seminário de Psicopatologia Simbólica da Sociedade Bra-
sileira de Psicologia Analítica. Revisto e ampliado para publi-
cação na Revista Junguiana nº 3, 1985 p. 81-120.
* Médico Psiquiatra e Analista Junguiano. Membro fundador
da Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica. Membro da
Associação Internacional de Psicologia Analítica. Criador da
Psicologia Simbólica Junguiana. Educador e Historiador.
E-mail: <c.byington@uol.com.br>
Site: www.carlosbyington.com.br

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Amadeus. A Psicologia da Inveja e sua função no processo criativo:


um estudo da Psicologia Simbólica

A peça de teatro “Amadeus”, na qual foi ba- em “Amadeus” vamos encontrar uma verdadeira
seada o filme do mesmo nome, tem como tema antologia da inveja. Contudo, quando se refere à
central a relação historicamente famosa entre essência do fenômeno da inveja, o personagem
os músicos Antonio Salieri (1750–1825) e Wolf- que representa Salieri expressa de forma exube-
gang Amadeus Mozart (1756–1791) na corte de rante a conotação habitual em nossa cultura de
Viena no final do século 18. Salieri só é conheci- algo ruim e exclusivamente destrutivo, como se
do hoje devido ao escândalo histórico que teve a inveja fosse basicamente pecaminosa. Minha
com Mozart. Na época, porém, Salieri foi um dos intenção aqui é mostrar a natureza preconceituo-
músicos mais famosos da Europa não só por ser sa desta noção, usando algumas cenas centrais
primeiro Mestre Capela na corte de Viena como da peça para teorizar sobre a inveja e sua função
por suas 40 óperas e 12 oratórios que as grandes estruturante na Psicologia Simbólica.
capitais da Europa conheceram e aplaudiram. Esta peça tem sido muito apreciada e critica-
Mozart passou como um cometa musical pela da. Como qualquer criação romanceada de um
Europa no final do século XVIII. Menino prodígio, fato histórico, tão mal documentado como foi a
estudava desde os 3 anos, compunha e tocava vida de Mozart, no que concerne, sobretudo às
desde os 5 anos de idade. Sua trajetória feérica razões de sua pobreza e, mesmo, miséria cres-
teve muitos episódios de glória, mas seu tem- cente no final de sua vida, seguida de sua do-
peramento irreverente e mimado, sua descon- ença e sua morte em circunstâncias obscuras,
sideração para com os valores da sociedade do “Amadeus” é questionável em muito do que
seu tempo e sua incapacidade de promover sua afirma e deixa transparecer. A confissão de Sa-
carreira tiveram papel importante no fato de ele lieri indubitavelmente é um fato histórico. O seu
ter morrido aos 35 anos, abandonado por todos, conteúdo, porém, nunca foi apurado. Afora isso,
na miséria e enterrado como indigente numa o fato mais questionado da peça foi o exagero
vala comum. Salieri uniu-se à glória de Mozart nas irreverências de Mozart, que teria distorcido
na história da música, não devido à sua músi- para muitos a verdadeira natureza de sua perso-
ca, mas por ter confessado na velhice, em meio nalidade. Estes dois aspectos, porém, não pa-
a um episódio psicótico no qual tentou suicídio, recem invalidar as considerações que fazemos
que envenenara Mozart 30 anos antes por inve- sobre os símbolos provavelmente vivenciados
ja. A veracidade do fato nunca foi apurada, mas pelos dois músicos.
o acontecimento passou a fazer parte da glória e Não é necessário se ter visto ou o filme ou a
do fim trágico de Mozart. peça para se acompanhar este estudo. Todos os
A peça, há anos um sucesso nos Estados Uni- símbolos aqui estudados têm um contexto muito
dos e na Europa e atualmente em exibição no Rio claro e quando for necessário, repetirei as frases
de Janeiro, ilustra, por intermédio da competição da peça nas quais eles estão contidos. Apesar
de dois músicos, Salieri e Mozart, o conflito de disso, apresento a seguir um resumo da peça
inúmeras emoções, das quais a inveja sobressai para melhor situar o leitor. A ação decorre em
para dominar o enredo dramático do princípio Viena em novembro de 1182 e evoca a década
ao fim. Da mesma forma que o ciúme permeia de 1781 a 1791.
o Otelo de Shakespeare, e aí podemos perceber Ato 1 Cena 1 (Viena) – Salieri velho, numa cadei-
muitas de suas inúmeras nuances psicológicas, ra de rodas ouve o escândalo causado em Viena

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por seus delírios de ter envenenado Mozart 32 emitindo compulsivamente uma risadinha esga-
anos atrás. niçada e chocante. Mozart, que recebera a enco-
menda de uma ópera há apenas duas semanas,
Ato 1 Cena 2 (Casa de Salieri) – Salieri invoca o
diz que já terminou o primeiro ato (O Rapto do
futuro e começa a contar sua história, preparan-
Seraglio) e choca o Conde Rosemberg, diretor
do sua confissão.
da ópera, pois não lhe submetera o libreto para
Ato 1 Cena 3 (1781 – A corte do Imperador José aprovação, ao mesmo tempo em que ofende os
II) – Salieri relata como os músicos viviam como brios patrióticos de Salieri, referindo-se à ópera
meros criados dos nobres e, no entanto, seriam em voga como “lixo italiano”. A sós, Mozart con-
mais reverenciados pela História do que aque- ta a Salieri que encontrara em Katherina Cavalieri
les. Salieri era o mais bem-sucedido de todos até uma cantora perfeita para o papel em sua ópera.
que se começou a falar em Mozart. Salieri enciuma-se, pois Katherina é sua melhor
Ato 1 Cena 4 (O Palácio de Schönbrunn) – Fala-se aluna. A seguir, toca a marcha de Salieri no pia-
em encomendar uma ópera em alemão para Mo- no de memória. Começa a desenvolver sua melo-
zart, cuja fama de menino prodígio era conheci- dia com incrível criatividade diante de um Salieri
da de todos – Salieri é convidado pelo Barão Van estupefato e a transforma na célebre Marcha do
Swieten para fazer parte de sua loja maçônica. Casamento de Fígaro como a conhecemos hoje.
Mozart também será convidado. Tratava-se de Salieri se despede, mal podendo dissimular o
uma grande honraria. ódio. Imagina Mozart no lugar do personagem de
sua ópera sobre a Lenda de Dannos, que, por ter
Ato 1 Cena 5 (A Biblioteca no Palácio da Baronesa cometido um crime monstruoso, foi acorrentado
de Waldstadten) – Durante uma recepção, Salieri a uma rocha para toda a eternidade com a cabe-
senta-se numa cadeira da Biblioteca e, por aca- ça sendo repetidamente golpeada por um raio.
so, ouve escondido uma cena entre Mozart e sua
noiva Constanze na qual brincam de gato e rato Ato 1 Cena 8 – A estreia do Rapto do Seraglio tem
com grande irreverência. A seguir são chamados relativo sucesso e, pelo papel dado a Katherina,
para ouvir o Adágio da Serenata para 13 Instru- Salieri imagina que Mozart a seduzira, jurando
mentos de Sopro (K-361) de Mozart. Salieri, de que seduziria Constanze em troca.
início, tenta ridicularizar o que ouve, mas, aos Constanze e Mozart casam-se, apesar de não
poucos, é invadido por uma imensa onda de in- haverem ainda recebido o consentimento do pai
veja e de dor. Salieri sai à rua desvairado pela dele. Comenta-se em Viena como Mozart é irre-
natureza divina da música que ouvira e, ao mes- verente e perdulário.
mo tempo, chocado pela infantilidade obscena
Ato 1 Cena 9 – A irreverência de Mozart choca e
da personalidade do artista que a criara.
insulta todos, até mesmo o Imperador, em meio
Ato 1 Cena 6 (Casa de Salieri) – O músico com- à sua risadinha compulsiva. Salieri percebe que
põe e ensina. Tem muitos alunos. É bem-suce- Mozart está em dificuldades financeiras e deci-
dido. À noite, ajoelha-se em desespero e implo- de agir.
ra a Deus a Graça de poder expressá-lo. Evita
Ato 2 Cena 10 (Biblioteca de Waldstadten) – Do
encontrar Mozart.
mesmo esconderijo da Cena 5, Salieri presencia
Ato 1 Cena 7 (Palácio de Schönbrunn) – O Impe- uma briga de ciúmes e ressentimentos entre Mo-
rador aguarda impaciente a chegada de Mozart zart e Constanze, que lhe acusa de seduzir todas
e o recebe, mandando Salieri executar sua Mar- as suas alunas, inclusive Katherina. Afirma que
cha de Boas-Vindas, aplaudida por todos. Mo- Salieri tem alunos porque não tem essa levian-
zart saúda a todos de forma exuberante demais, dade e Mozart revida descompondo-o. Salieri

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finge acordar e cumprimenta o casal estarrecido. lento para o cargo de professor da princesa Eliza-
Mozart sai e Constanze se queixa e pede que Sa- beth, pedido por Constanze para Mozart.
lieri ajude Mozart com um emprego e alunos. Ele
Ato 2 Cena 3 – Mozart compõe genialmente, mas
a convida para ir à sua casa uma tarde.
pouco é ouvido, enquanto Salieri se torna cada
Ato 1 Cena 11 (Casa de Salieri) – Constanze che- vez melhor sucedido.
ga trazendo uma partitura do marido. Grosseira-
Ato 2 Cena 4 – Mozart planeja as Bodas de Fí-
mente, Salieri propõe a sedução de Constanze
garo. Com isso invade a Ópera Italiana, seara de
em troca de um emprego na Corte. Revoltada, ela
Salieri, e se indispõe pela vulgaridade do libreto
o destrata e ele se humilha confessando sua in-
com o Barão Van Smieten, seu protetor e diretor
veja. Ela o espezinha e ele, desesperado, repete
da Biblioteca Imperial, sempre com sua risadi-
sua proposta agressivamente.
nha debochada, impertinente e compulsiva. Sa-
Ato 1 Cena 12 – Culpado e envergonhado, Salie- lieri planeja com o Conde Van Strack, camareiro
ri se recrimina. Apanha a partitura deixada por imperial, impedir as Bodas de Fígaro pelo fato de
Constanze. É a Abertura da 29º Sinfonia em Lá ter um ballet no 3º Ato, o que contrariava uma
Maior. Ela havia dito que se tratava do original. determinação do próprio Imperador.
Maravilhado, ele se dá conta de que não há nada
Ato 2 Cena 5 – Mozart insiste em incluir o ballet,
a corrigir. É uma obra-prima acabada. Em outra
rompe com o Conde Rosemberg e pede a Salieri
partitura, vê a mesma coisa na Sinfonia Concer-
que, mentirosamente, concorda em interceder
tante para Violino e Viola e, a seguir, tudo se re-
junto ao Imperador.
pete com o Concerto para Flauta e Harpa. Súbi-
to, Salieri percebe que a genialidade criativa de Ato 2 Cena 6 – Por coincidência, o Imperador vem
Mozart é de tal ordem que ele compõe a música ao ensaio e mantém o ballet, contra Rosemberg e
já perfeitamente acabada. Ao som do Kyrie da Stratt. Mozart crê ingenuamente dever tudo a Salieri.
Missa em Dó Menor, Salieri é acometido de êx- Ato 2 Cena 7 – As Bodas de Fígaro são executadas
tase. O teatro se inunda de música e de luz. Ele incluindo a Marcha das Boas-Vindas de Salieri
cambaleia com as partituras na mão e desmaia. na célebre ária “Non piu andrai”. O Imperador
Salieri acorda e vocifera contra Deus por humi- boceja no final e pouco elogia Mozart que, deso-
lhá-lo ao ter criado Mozart: infantil, mal-educa- lado, é consolado por Salieri. Rosemberg furioso
do, irresponsável, mas... genial! – “Dio Ingiusto, será doravante um grande inimigo de Mozart.
exclama, vós sois meu inimigo eterno...” Declara Ato 2 Cena 8 (Biblioteca de Waldstadten) – Mo-
guerra a Deus por intermédio de sua criatura pre- zart fala em ir para a Inglaterra. Afirma que o pai
ferida – Mozart, chamado Amadeus. não o ajuda por nunca o ter perdoado por ter me-
Ato 2 Cena 1 (Casa de Salieri) - Estamos em 1823. nos talento que ele. Chega a notícia da morte do
Salieri continua a contar o que aconteceu na sua pai. Mozart desespera-se de culpa por tê-lo de-
luta com Deus para destruir Mozart. Constanze sobedecido ao se casar e, depois, abandonado.
vem a sua casa para cumprir o contrato. Salieri a Salieri o consola e depois, só, afirma que assim
rejeita e a manda embora com as partituras. Con- nasceu o fantasma do pai em D. Giovanni.
fessa para si mesmo que a deseja, mas que isso
Ato 2 Cena 9 – Em relação aos acordes de D. Gio-
atrapalharia seus planos. Dedica-se à sedução
vanni, Salieri afirma ali estar o pai mais acusador
da soprano Katherina, de quem se torna amante
da história da ópera, que condena o libertino cul-
durante muitos anos.
pado ao Inferno. Ele vê na risadinha de Mozart a
Ato 2 Cena 2 (Palácio de Schönbrunn) – Salieri gargalhada de Deus e reitera seu plano de lutar
vai ao imperador e recomenda alguém sem ta- contra ambos.

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Ato 2 Cena 10 – Morre Gluck e o Imperador no- Mozart compõe sem parar. A figura reaparece
meia Mozart para seu posto, mas, por influência e ele a convida para a ceia com as palavras de
de Salieri, com um salário muito menor. Mozart D. Giovanni – “Oh estátua gentilíssima, venite a
iludido e já doente agradece tudo a Salieri que é cena!”. Salieri é agora o personagem e atravessa
nomeado Mestre-Capela Imperial. a rua em direção à casa de Mozart.

Ato 2 Cena 11 – Constanze novamente engravi- Ato 2 Cena 16 – Mozart dirige-se a Salieri como
da e Mozart diz que vê em pesadelos uma figura a figura e promete que já está quase terminan-
mascarada vestida de cinza que lhe chama. Eles do o réquiem. Salieri come o canto de uma par-
passam muita necessidade, mas seus compa- titura dizendo que os dois estão envenenados,
nheiros maçons os ajudam. um pelo outro. Mozart começa a delirar, regride
à infância e chama pelo pai. Chega Constanze,
Ato 2 Cena 12 – Van Swieten (maçom) ajuda
mas Mozart não a vê. Continua compondo, canta
Mozart se este fizer arranjos de Bach. Mozart,
“Gragna figata já!”. É o fim.
mesmo revoltado, concorda, pois os maçons
são agora seu único esteio. Salieri, também Ato 2 Cena 17 – Salieri se dá conta de que a figu-
maçom, quer lhe dar dinheiro. Mozart recusa, ra que amedrontava Mozart havia sido um criado
valorizando ainda mais sua amizade. Schikane- do Conde de Walsegg que, almejando passar por
der, ator e dono de teatro, entra para a loja ma- compositor, encomendara o réquiem para apre-
çônica e oferece a Mozart pagamento para uma sentar como seu. Salieri chegou a regê-lo sob
peça de vaudeville. Mozart pensa escrever so- esta falsa autoria.
bre o amor fraterno. Salieri ficou em Viena e, aos poucos, entendeu o
Ato 2 Cena 13 – O casal passa dificuldades. Cons- castigo de Deus. Ela não havia querido a fama?
tanze acusa o pai de Mozart de ter superprote- Pois bem, ele agora era o músico mais famoso
gido Mozart e de ter feito dele um eterno bebê. da Europa. Viveu para ver sua música esquecida
Diz que, na véspera, devido ao frio, queimara as e a de Mozart glorificada.
cartas do sogro para que se esquentassem. As Ato 2 Cena 18 (Casa de Salieri) – Salieri assina a
mesmas cartas que a atacaram tanto. Mozart fica confissão de ter envenenado Mozart e se declara
furioso. Brigam e, no meio da crise, ele vê a fi- o santo protetor da mediocridade. Tenta o suicídio.
gura chamando. Constanze entra em trabalho de
Ato 2 Cena 19 – No livro de conversas de Bee-
parto. Tem mais um filho e viaja para Baden com
thoven, no qual os visitantes escrevem para o
o pouco dinheiro que lhes resta. A figura volta e
compositor surdo, se lê em novembro de 1823:
lhe pede para escrever um réquiem.
“Salieri cortou a garganta. Está completamente
Mozart encena a Flauta Mágica com libreto de louco, afirmando que envenenou Mozart”.
Schikaneder, incluindo os rituais sagrados. Sa-
Salieri encerra a peça exclamando – “Mediocridades
lieri sente que, na obra, Mozart fazia as pazes
de todo o mundo, eu vos absolvo a todos. Amém!”.
com a figura do pai.
Minha prática como psicoterapeuta e minhas
Salieri avisara o Barão Van Swieten para ir à es-
vivências no meu próprio processo de individu-
treia e este, chocado com a abertura dos rituais
ação têm me levado cada vez mais a discordar
maçônicos para um público tão vulgar, condena
da noção dominante em muitas teorias psicoló-
Mozart veementemente.
gicas de que o Ego se estrutura em meio à tais
Ato 2 Cena 15 (O Teatro em Weiden) – Schikane- ansiedades durante e após o nascimento, que
der engana e rouba Mozart, dando-lhe dinheiro tem que lançar mão normalmente de mecanis-
apenas para beber. mos de defesa que habitualmente encontramos

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na patologia para fazer face a essas ansiedades. dirigida a algo que tem a característica específi-
Aos poucos e por intermédio de dos anos, vou ca de já pertencer a outro.
chegando à conclusão que a vida não é tão ame- É perigoso denominarmos de cobiça e vora-
açadora quanto é apresentada por essas teorias cidade a pujança normal do Self e reservar a in-
psicológicas. Com isso, suspeito cada vez mais veja para denominar esta manifestação no seu
que, frequentemente, a Psicologia está expres- aspecto destrutivo, pois, nesse caso, abrimos a
sando inconscientemente uma atitude cultural porta para o puritanismo maniqueísta patriarcal
puritana, oriunda da repressão da Inquisição que entrar na Ciência. Prefiro buscar minuciosamen-
feriu nossa Alma Coletiva ou Self Cultural inten- te as características psicológicas de cada estado
samente durante séculos, ao considerar pecami- emocional e designá-lo de forma clara na sua ex-
nosas a maioria de nossas emoções normais. De pressão normal e patológica. Assim, voracidade
fato, como a função primordial do inquisidor era é a fome do ser. Cobiça é esta forme, esta ânsia
enquadrar a Consciência Coletiva em noções rí- se dirigindo a um objeto qualquer, enquanto que
gidas e repressivas, as emoções normais foram a inveja é esta voracidade e esta cobiça do Self
frequentemente apresentadas como pecamino- dirigidas para uma característica que pertence
sas e destrutivas como é o exemplo exuberante de forma nítida a outro.
dos “sete pecados capitais”. Isto ainda faz com Cada um destes estados emocionais pode
que muitos, ao viverem ou simplesmente estu- aparecer de forma normal ou patológica, depen-
darem cientificamente estas emoções, o façam dendo de sua maneira de operar. Se a emoção
enfatizando seu aspecto negativo, imiscuindo está operando por intermédio de símbolos que
em suas ações e estudos, suas culpas e seus permitem o livre desenvolvimento da personali-
preconceitos. A Psicologia Simbólica busca per- dade, ela é normal. Se, pelo contrário, ela opera
ceber a atuação das funções psíquicas no seu por intermédio de símbolos que estão dissocia-
papel estruturante da consciência sem rotulá-las dos do desenvolvimento criativo da persona-
com qualquer julgamento de valor apriorístico. lidade e cercados por defesas estereotipadas
Essas funções e seus símbolos, quaisquer que (neuroses) ou por intermédio de símbolos que ir-
sejam, podem atuar construtiva e destrutiva- rompem na personalidade incapazes de pratica-
mente na personalidade e na cultura, em função mente qualquer adequação criativa (psicoses),
da sua forma de agir, mas nunca em função de ela será patológica. Esta parece ser uma maneira
sua natureza. Como escreveu o poeta: “As coisas de ultrapassarmos a dicotomia patriarcal que di-
em si não são boas ou más; é o pensamento que vide, reduz e codifica os símbolos em bons ou
as faz assim”, ou seja, os símbolos em si não maus, destrutivos ou criativos fora do seu con-
são bons ou maus, pois é a função que desem- texto simbólico operativo e, com isso, impede a
penham na Psique que os torna bons ou maus compreensão dinâmica da realidade simbólica.
para o desenvolvimento. A inveja, como as demais emoções, é um
A emoção da inveja é muito próxima da co- fator da maior importância na estruturação da
biça e da voracidade. A diferença está no grau consciência normal. Durante toda a vida, a in-
de diferenciação da expressão emocional do veja desempenha uma importantíssima função
Self. Podemos dizer que a voracidade expressa a do Self que é detectar o Símbolo Estruturante
energia psíquica emergente, enquanto que a co- necessário para determinada fase do desenvol-
biça diz respeito a esta energia psíquica dirigida vimento. Isto faz com que a inveja seja aciona-
por um vetor que lhe dá relativa especificidade da e entre em funcionamento no Self Individual
objetal. A inveja é, nesse sentido, mais diferen- e Cultural com enorme frequência. Contudo, ela
ciada do que a voracidade e a cobiça, pois na in- não é somente o perdigueiro que fareja a caça. A
veja a energia psíquica se encontra nitidamente inveja é ainda a águia que desce sobre sua presa

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num voo certeiro, como é, também, o tigre que puritana e repressora da Inquisição. Ao descre-
se lança de corpo inteiro para abocanhá-la. Es- ver um inconsciente humano instintivamente
tes componentes de busca, espreita, voracidade homicida, reafirmou, “cientificamente” agora, a
e agressividade são necessários para localizar o necessidade da repressão.
Símbolo Estruturante necessitado naquele mo- É impressionante como pais que receberam
mento, e, a seguir, delimitá-lo no seu contexto até mesmo educação universitária, frequente-
e destacá-lo do Todo para torná-lo operativo no mente, não permitem que seus filhos vivenciem
processo de desenvolvimento. A inveja, assim agressividade, ciúmes, inveja, competição, ódio,
sendo, como todas as demais funções psíqui- rebeldia, traição, roubo, vergonha, humilhação,
cas, é imprescindível para o crescimento. Disso mentira, fingimento, covardia, inovação, espon-
nos damos conta plenamente no dia a dia, seja taneidade, para não se falar na sexualidade in-
em função de nossas próprias necessidades, fantil. Ainda que cada vez mais os pais tendam a
seja em função das necessidades dos outros. É ser compreensivos, liberais e não agridam seus
frequente usarmos a inveja dos outros para re- filhos, frequentemente seu código de valores
lacionarmos com eles muitas vezes para nosso não difere, essencialmente daquele da Inquisi-
próprio proveito. Podemos observar, por exem- ção, na medida em que não se dão conta de que
plo, como os políticos usam habilidosamente a todos esses estados psicológicos mencionados
inveja do eleitorado. Muitas vezes, o fazem de são altamente estruturantes e os consideram ex-
boa fé e realmente tentarão satisfazer a inveja clusivamente danificantes à personalidade, ou
genuína depois de eleitos. Outras vezes, porém, seja, essencialmente errados e ruins. Isto não
manipulam demagogicamente a inveja dos ou- quer dizer que eu esteja advogando a educação
tros, prometendo uma distribuição de riquezas com ausência e omissão dos pais, pois isto não é
para todos, que sabem ser inexequível. educação, e sim abandono da criança com resul-
Os componentes da inveja a tornam uma tados geralmente maléficos. Aquilo a que estou
emoção estruturante das mais poderosas e, por me referindo é a uma educação não repressiva,
isso, frequentemente assustadora e dolorosa ao porém, estruturante, que acompanhe e permita
ser vivida, como assinalamos na expressão “a à criança elaborar suas vivências como funções
inveja rói”. Isto não quer dizer que a inveja cause simbólicas estruturantes de sua personalidade.
normalmente ansiedade insuportável que obri- Toda criança aprende muito cedo que em nossa
gue o Ego a lançar mão de mecanismos de defe- cultura a mentira, a covardia, o roubo e a traição,
sa para suportá-la. Talvez, em nossa cultura, nos por exemplo, não fazem normalmente parte da
defendamos e disfarcemos a inveja mais que em vida, mesmo quando não desejadas. Contudo,
outras, devido a obra da Inquisição. O puritanis- é mentiroso e prejudicial transmitirmos às crian-
mo nos fez desconhecer a verdadeira extensão ças noções de que nós adultos somos imunes
da força vital do ser humano. Tratamos nossas ao fingimento, à mentira, à covardia e à traição.
crianças como seres destituídos de emoções e, Quando assim fazemos, criamos uma atmosfe-
com isso, as fragilizamos. Quando percebemos, ra idealizada e facciosa de culpa e repressão
porém, suas emoções vitais e profundas, sejam que impede a criança da vivência e elaboração
elas de agressividade, sexo, inveja ou o que for, estruturante destas funções que, por isso, pas-
tendemos a tratá-las como bichos de sete cabe- sam a formar a parte sombria da sua personali-
ças e, com isso, não lhes damos suficiente vaso dade. A melhor maneira de criarmos um covarde
familiar para elaborar estas funções e se acostu- com aparência de corajoso é reprimirmos o seu
marem a vivenciá-las normalmente na sua finali- medo, como nos mostrou tão bem Joseph Con-
dade estruturante. A Psicologia Moderna, nesse rad em seu romance “Lord Jim”. A covardia repri-
sentido, continuou em muitos aspectos a obra mida na Sombra será de alguma forma atuada

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e a Persona de coragem dificilmente resistirá a valorizei muito o medo como função estruturan-
uma análise existencial mais profunda. te para trazer à consciência a realidade profunda
Lembro-me de um caso de uma família que da vida, exemplificando com a função relevante
orientei, no qual uma menina de 12 anos havia que o medo desempenha na sobrevivência dos
roubado dinheiro de sua mãe. Descoberta e animais ferozes. Acabamos por compreender
severamente repreendida na frente dos irmãos que a fuga do adolescente nos abrira uma por-
e de estranhos, a menina desenvolveu a partir ta para lidar com o medo reprimido do pai que
daí sintomas histéricos com tiques, depressão e todos sentiam e que lhes ensombrecia a vida. O
anorexia (falta de apetite). Elaborei o símbolo do próprio pai, no final, abraçou-se com o filho, ao
roubo em nível individual e familiar e pedi-lhes se conscientizar do quanto ele temia e detesta-
que compreendessem o dinheiro da mãe como va seu emprego pela atmosfera persecutória e
algo simbólico que teve que ser roubado. Con- opressiva na qual o exercia.
tei-lhes o Mito de Prometeu, mostrando-lhes que Vemos com esses exemplos que o conheci-
seu roubo foi por um lado considerado errado e mento do componente estruturante de todas as
punido, mas que, por outro, trouxe o fogo dos funções psíquicas, por mais incômodas que se-
deuses para a humanidade. Durante a elabora- jam, é fundamental não só para o analista como
ção em nível de Self familiar, emergiu o fato que para o educador é mais importante devido ao as-
a mãe dedicava seu afeto preponderantemente pecto preventivo ser mais eficiente que o curati-
ao pai e ao filho mais velho em detrimento dos vo. A noção de que as funções psíquicas são es-
outros filhos. O roubo expressou, assim, uma sencialmente expressões do Arquétipo Central,
necessidade vital daquela filha que não estava ou seja, são símbolos destinados a transformar
podendo conseguir afeto por vias normais. a consciência, estimula o caminho da compreen-
É importante frisar que, em momento al- são da vida antes de julgá-la.
gum, deixei de situar o roubo como uma trans- Um dos grandes problemas do educador ao
gressão, ao mesmo tempo em que estimulei situar a Pedagogia à luz da Psicologia Simbóli-
sua compreensão dinâmica simbólica para ca e substituir a conduta diretiva pela compre-
elaborar e propiciar sua função estruturante ensão sistemática das ocorrências como sím-
da consciência familiar. bolos estruturantes é, sem dúvida, o problema
Em outro caso, elaborei uma situação de co- ético. De fato, muitos educadores progressistas
vardia, também, em nível do Self Familiar. Um se perdem nesse caminho por escolherem uma
pai trouxe-me a situação de seu filho de 14 anos via liberal, mas diretivamente permissiva para
que, no início de uma luta de judô, diante de toda escapar da via diretiva repressiva. Esta foi uma
a academia e seus familiares, fugira em pânico. das dificuldades centrais da pregação do Novo
Humilhado por seu pai, seus irmãos e colegas, o Testamento que até hoje, ao que tudo indica,
menino desenvolvera agorafobia aguda (pânico ainda não conseguimos compreender. Como
de sair em espaços abertos). Elaborei o ato co- agir liberal, amorosa e criativamente e ao mes-
varde como símbolo em nível do Self Familiar e mo tempo preservar os limites e evitar o desre-
emergiu aos poucos a covardia reprimida do pai gramento e o caos?
que superexigia reativamente junto com a mãe Desde o início da pregação de sua mensagem
um comportamento extraordinário na atmosfera de compreensão simbólica acima da ética pa-
familiar, acobertando com isso o intenso medo triarcal diretiva, dogmática e apriorística, Jesus
que o pai vivenciava inconscientemente no seu é confundido com um anarquista. Os próprios
ambiente de trabalho. anarquistas e liberais confundem-se muito a
Se bem que em momento algum retirei da esse respeito. Ao quererem adotar uma mensa-
covardia sua conotação de conduta indesejável, gem sem valores repressivos adotam, frequente-

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mente, uma posição sem valores. Ao condenar o dedo na terra. Como eles insistissem,
a ética repressiva, declaram-se antiéticos. Claro ergueu-se e disse-lhes: – Quem de vós
está que, imediatamente a seguir, necessitam estiver sem pecado, seja o primeiro a lhe
começar a explicar que não são nem caóticos atirar uma pedra (João 8:3-7).
nem libertinos. A dificuldade vem de não reco-
nhecerem que a ética patriarcal dogmática que Simultaneamente, os textos expressam que
combatem de um estado de consciência (regido esta nova ética não é simplesmente alguma ino-
pelo Arquétipo do Pai) e que eles buscam uma vação que brotou na consciência em nível pura-
outra ética regida pela Consciência de Alteridade mente egoico, mas uma revelação da divindade
(regida pelos Arquétipos da Anima, do Animus e (expressão simbólica do Arquétipo Central):
do Coniunctio). Esta dificuldade é exacerbada
pelo fato destes inovadores, apesar de sua co- Os judeus se admiravam e diziam: – Este
ragem contestadora e de suas boas intenções, homem não fez estudos. Donde lhe vem
não se darem conta que estes dois padrões de pois este conhecimento das Escrituras?
consciência, ou seja, o patriarcal e o de alterida- Respondeu-lhes Jesus: – A minha doutri-
de, são regidos pelo Arquétipo Central em sua na não é minha mas daquele que me en-
função ética estruturante e, por isso, atuam eti- viou. Se alguém quiser cumprir a vontade
camente tanto um quanto o outro, variando na de Deus, distinguirá se a minha doutrina é
forma mas sem perder sua essência ética. de Deus ou se falo de mim mesmo. Quem
As pregações do Novo Testamento mostram fala por própria autoridade busca a pró-
essa dificuldade ao tentar expressar a nova éti- pria glória; mas quem procura a glória de
ca sem invalidar a antiga: “Não julgueis que vim quem o enviou é digno de fé e Nele não há
abolir a lei dos profetas. Não vim para as abolir impostura (João 7:15-18).
mas sim para levá-las à perfeição” (MT:5:17).
O mito frisa permanentemente que se trata de Naturalmente, isto não quer dizer que mui-
uma nova ética na qual os fatos não devem ser tas emoções não provoquem ansiedade acom-
julgados de antemão: “Não julgueis para não ser- panhada de patologia e, por isso, necessitem
des julgados” (MT: 7:01). “Não julgueis por apa- a atenção do psicólogo mais que do educador.
rência, mas com julgamento certo (João 7:24). Todavia, nestes casos, vamos encontrar estas
Em várias passagens são apresentadas orien- emoções expressas dentro de estratégias de-
tações invalidando o julgamento pelo fato disto fensivas com seus bloqueios característicos
ocultar a existência do pecado (psicologicamen- por intermédio de das quais poderemos perce-
te o pecado seria o símbolo problemático como ber os quadros psicológicos neuróticos e psi-
do roubo ou da covardia nos casos acima). cóticos. No caso da inveja, vamos percebê-la
como patológica quando ela não estiver mais
Os escribas e os fariseus trouxeram uma contribuindo livre e criativamente para o de-
mulher que fora apanhada em adultério. senvolvimento da personalidade e se encontrar
Puseram-na no meio da multidão e disse- operando num contexto à parte do todo com ca-
ram a Jesus. – Mestre, agora mesmo esta racterísticas compulsivo-repetitivas, inadequa-
mulher foi apanhada em adultério. Moi- das e, por isso, destrutivas.
sés mandou-nos na lei que apedrejásse- A diferenciação do desempenho normal e pa-
mos tais mulheres. Que dizes tu a isso? tológico da inveja só poderia ser feita, então, se
Perguntaram-lhe isso a fim de pô-lo à admitirmos, na profundidade do nosso ser, que
prova e poderem acusá-lo. Jesus, porém, todas as emoções, incluindo a inveja, podem
se inclinou para a frente e escrevia com atingir, dentro do desenvolvimento normal, uma

Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 1º sem. 2019 ■ 81


intensidade estruturante tal que sejam acompa- provinha essencialmente da musicalidade extra-
nhadas de intenso mal-estar, ansiedade e sofri- ordinária com que nasceu dotado. Esta teoria de
mento sem que isso deva necessariamente ser que a inveja normal é proporcional à pujança do
caracterizado como anormalidade. Continuan- crescimento do Self invalida concordamos com
do com Santo Agostinho, poderíamos dizer que o próprio Salieri na peça, quando ele racionaliza
não só “entre fezes e urina nascemos”, como defensivamente sua problemática e se autorrotu-
também com elas vivemos. A convicção de que la um gênio, apenas para reconhecer um grande
o processo existencial é normalmente intenso, musicista (Mozart) e um imbecil absolutamente
sofrido e doloroso, porém, só pode ser adquirida incapaz de sê-lo. A voracidade de qualquer ani-
por intermédio da sua própria vivência, ou seja, mal predador em condições normais é sempre
de forma iniciática. Um dos grandes mal-enten- proporcional a sua vitalidade e a sua pujança
didos originados nas análises pessoais é usar para saltar sobre a presa. Não encontramos na
o sofrimento oriundo do confronto de núcleos biologia, a excitação de um sentido que não en-
patológicos para referendar a noção errônea de contre seu correspondente normal de satisfação.
que a intensidade emocional e o sofrimento se- Dentro desta teoria, devemos, porém, perceber
jam indicativos de patologia. Este fato não deve, que a inveja, como todas as demais manifesta-
porém, de modo algum, servir para estimular ções psíquicas, é de natureza simbólica e, por
aqueles que buscam masoquisticamente o so- isso, não necessita necessariamente se efetivar
frimento e de forma puritana se desobrigam do exatamente da mesma forma que a consciência
prazer e da sensualidade da vida. percebe o objeto que a desencadeou. Na medida
As personalidades de Salieri e Mozart nos em que tudo na psique é símbolo, o objeto da
aparecem como uma antologia da inveja porque inveja também o será e, ao ser vivenciado e ela-
nos permitem percebê-la em nível normal, de- borado simbolicamente, ele próprio multiplicará
pois neurótico e, finalmente, psicótico apresen- as possibilidades por intermédio de das quais
tando assim todas as variações existenciais. poderá se aplacar a inveja criativamente.
A importância de considerarmos a inveja Por isso, o fato de Salieri invejar Mozart não
também como uma emoção normal da perso- quer dizer que, para realizar sua inveja, Salieri
nalidade, expressando sempre um determinado devesse ser igual a Mozart. Ao invejar Mozart,
anseio de desenvolvimento do Self Individual este se transforma em símbolo estruturante na
por intermédio de símbolos estruturantes, faz personalidade de Salieri. O símbolo Mozart re-
com que as interpretações dos Símbolos da presenta alguém dotado de genialidade musical
inveja sejam radicalmente diferentes das inter- que se lança com todo seu ímpeto existencial
pretações de uma Psicologia que reduza a inve- para expressar sua criatividade. Foi este “se lan-
ja a uma noção destrutiva. Para esta Psicologia çar inteiro na criatividade”, a grande característi-
redutivista, Salieri, como grande invejoso, seria ca do símbolo Mozart que Salieri não seguiu no
simplesmente um músico medíocre carregado desenvolvimento de sua personalidade. Mas por
de destrutividade, como é representado do iní- que não o fez?
cio até a última frase da peça. Para a Psicologia Muitos responderão que não o fez porque
Simbólica, porém, a intensidade da inveja de não sabia e não podia fazê-lo, exatamente por-
Salieri é altamente indicativa da pujança cria- que só tinha inveja e não criatividade. Este ra-
tiva de sua personalidade. A destrutividade da ciocínio só seria válido se desvinculássemos a
personalidade de Salieri teria nascido e crescido inveja do desenvolvimento criativo global da
progressivamente na exata medida em que ele personalidade, o que não é aceitável para a Psi-
não soube, não pôde, ou não quis fazer o esfor- cologia simbólica, pois, para ela, a inveja como
ço necessário para desenvolver sua inveja que outra qualquer função psicológica é estruturante

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não só da consciência como de toda a psique, um exemplo explícito. Afinal, Salieri, com sua
tanto individual quanto coletiva. Aceitando isto, imensa inveja, não só se destruiu como, talvez
podemos admitir que o potencial estruturante de mesmo, tenha contribuído diretamente para a
sua inveja era tal que, ao não ser aproveitado, destruição do próprio Mozart. Haveria melhor
invadiu a personalidade de forma inadequada exemplo para a destrutividade da inveja? Já para
conduzindo à desestruturação psicótica e à ten- a tese que defendo na qual a inveja é normal-
tativa de suicídio. Pode-se falar em seca diante mente estruturante e somente se torna destruti-
de tal inundação? Poderia se argumentar que va quando não atendida, o caso Salieri seria um
muitas vezes a desestruturação psicótica ocor- exemplo implícito. Somente se o analisássemos,
re não pela pujança da força criativa, mas pela o confrontássemos com sua criatividade e ele
fragilidade, estruturação defeituosa e predispo- passasse a desempenhá-la com todo seu ser e
sição hereditária à psicose. Isto como sabemos sua inveja aos poucos se aplacasse, na medida
é não somente possível como frequente, mas em que sua obra crescesse, é que poderíamos
não parece ter sido o caso. Pelo contrário, pois usar seu caso como um exemplo explícito desta
toda a história de Salierinos mostra a existência tese. A vivência da criatividade da inveja e, aliás,
de um Ego forte e bem-estruturado. Parece-me de toda a Psicologia Simbólica, é, pois, neces-
altamente improvável que um indivíduo que fos- sariamente iniciática. Somente se acompanhar-
se portador de um ego fraco, com estruturação mos o desenvolvimento dos símbolos na perso-
defeituosa e predisposto à psicose, saísse ainda nalidade em casos de psicoterapia, em pessoas
jovem da Itália, vindo de família humilde e tives- intimamente a nós ligadas ou em nós mesmos é
se a pujança competitiva para atingir em Viena o que perceberemos o funcionamento dos símbo-
posto musical mais alto na corte austríaca. Não los e funções simbólicos ora de forma construti-
pretendo, de forma alguma, com isso dizer que va, ora de forma destrutiva dependendo de como
Salieri foi um gênio musical como Mozart. Isto são aproveitados no todo psicológico ou Self.
seria absurdo, pois meu raciocínio aqui parte do O problema é que a Psicologia é necessa-
pressuposto que Salieri adoeceu, exatamente, riamente iniciática por ser uma ciência do ser
por não realizar a sua genialidade e, por isso, global. Ao ser iniciática, a Psicologia faz parte
ela nunca foi conhecida. O que quero dizer é que da ciência simbólica que engloba a ciência ob-
a inveja de Salieri expressava exatamente esse jetiva e inclui sempre também a parte subjetiva
imenso potencial criativo não realizado. do símbolo. Por conseguinte, a demonstração
O caso Salieri está aqui sendo referido para e a prova da ciência psicológica são a vivência
ilustrar nossa tese sobre a inveja, mas não para que nunca pode ser só comprovada abstrata
comprová-la. Reconheço que com este mesmo e objetivamente e necessita sempre do enga-
caso, algum psicólogo que reduza a inveja a jamento do ser inteiro para comprová-la. Não
uma emoção destrutiva e em nada estrutural- tenho aqui a intenção de demonstrar ou com-
mente possa também ilustrar sua tese. Afinal, o provar esta tese, mas tão somente de ilustrá-la,
que sabemos historicamente é que Salieri sendo deixando a cada um o convite para vivenciá-la
portador de uma inveja avassaladora de Mozart em si mesmo ou no processo de individuação
desestruturou-se progressivamente no final da das pessoas que acompanha intimamente,
vida atingindo um estado psicótico no qual fale- seja no consultório ou fora dele. Esta vivência
ceu. O potencial estruturante e desestruturante é altamente comprovadora na medida em que
desta inveja pode ilustrar ambas as teses sobre a inveja tratada como destrutiva é reprimida e
a inveja. Poderíamos até dizer que a tese sobre leva junto a ansiedade criativa da personalida-
a inveja como fator puramente destrutivo seria de. Deixa-se de ter angústia, em troca de uma
mais plausível pois o caso Salieri para ela seria calma desvitalizada. Por outro lado, podemos

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comprovar como a inveja é criativa, na medida estruturante em questão, não necessitando por
em que a atendemos, a “ouvimos” e ela começa isso de ser buscada fora dele. Isto nos obrigará
a diminuir como a fome diminui durante a re- a buscar o significado sempre no próprio “aqui e
feição vitalizadora. Esta vivência torna-se real- agora” histórico do símbolo, por mais arquetípi-
mente convincente quando sentimos não uma, co que ele seja.
mas inúmeras vezes a ansiedade dolorosa da Esta consideração é muito importante para o
inveja atendida se transformar aos poucos na caso de examinarmos qualquer função psíquica
satisfação da criatividade realizada. Isto tudo como estamos fazendo com a emoção da inve-
é altamente convincente para quem a vivência, ja. Se tivermos em mente somente a noção do
pois esta satisfação é acompanhada da pleni- inconsciente reprimido, buscaremos no símbolo
tude do ser que é completamente diferente do aquilo que achamos que está reprimido. Mas se
vazio que substitui a inveja quando, simples- tivermos em mente a noção de um Self criativo
mente, a reprimimos e a substituímos por uma realizando dia e noite a obra psíquica, como um
noção puritana de bom comportamento. Quem pedreiro que constrói uma casa, buscaremos
reprime ou racionaliza defensivamente sua in- compreender o significado de cada tijolo (símbo-
veja nunca poderá perceber o quanto ela é ne- lo) na função que ele desempenhará na própria
cessária e inerente à aventura do ser em dire- casa que está sendo construída. Por isso, dizer
ção à atualização de sua potencialidade. Pode que as pessoas são invejosas ou que Salieri é
o navegante que equaciona a escuridão com o um grande invejoso é dizer muito pouco. Sur-
perigo e se recolhe sempre ao anoitecer jamais preendo-me frequentemente quando ouço dizer
usufruir da navegação pelas estrelas? que algo é “fálico” ou “incestuoso”, acreditan-
Neste ponto, torna-se necessário refletirmos do, com isso, esgotar o significado simbólico. É
sobre a importância do conceito de Jung de que o mesmo que dizer que algo é alto ou vermelho.
libido é igual a energia psíquica e não deve ser Trata-se de meras qualidades dos símbolos que
reduzido a nenhuma característica humana par- necessitam de muitas outras para se compreen-
ticular como, por exemplo, a sexualidade, como der seu significado. É necessário sempre saber-
quis Freud, ou o poder como preferiu Adler. É mos como os símbolos são e como estão fun-
que, se assim o fazemos, não podemos usar cionando na inveja para compreendermos sua
adequadamente a noção de símbolo estruturan- função estruturante.
te e caímos prisioneiros do redutivismo. Nesses Acredito que haja uma grande resistência
casos, quando vamos intuir prospectivamente individual e cultural para admitirmos a norma-
o caminho do símbolo estruturante em respos- lidade e a função estruturante da inveja, pois,
ta às perguntas “para onde?” e “para quê?”, a aí, não poderemos simplesmente considerá-la
resposta será canalizada forçosamente para o algo ruim que deva ser reprimido. Pelo contrá-
sexo ou o poder, porque nós reduzimos a prio- rio, nesse caso, seremos obrigados a conside-
ri o conceito de energia psíquica ao sexo ou ao rá-la simbolicamente como uma exigência do
poder. O oposto se dá quando equacionamos nosso Self Individual ou Cultural, exigência
libido com energia psíquica, pois com isso libe- essa que deveremos nos esforçar para atender
ramos o conceito de Símbolo Estruturante para adequadamente, sob pena de prejudicarmos
que ele exerça plenamente a realidade psíquica o nosso desenvolvimento e termos que pagar
que a ele corresponde. Nessa eventualidade, mais tarde o preço de nossa omissão. É como
a resposta ao “para onde?” e “para quê?” do o caso das crianças mal-nutridas que comem
símbolo estruturante não reduzido será: para a terra, fato que durante muito tempo atribuímos
expressão da realidade psíquica, qualquer que a sua ignorância, mas que ultimamente desco-
ela seja e que já é inerente ao próprio símbolo brimos que, com isso, a criança está buscando

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inconscientemente o ferro imprescindível à for- mágoa e torna ainda mais dolorosa sua inveja.
mação da hemoglobina dos seus glóbulos ver- Sua consciência da inadequação de Mozart na
melhos e ausente na sua alimentação. A partir corte, em vez de diminuir ou compensar seu sen-
daí aumentamos nossa consciência da desnu- timento de inferioridade, na realidade o aumen-
trição em nosso meio e somos conclamados ta, ao perceber que ele, que tudo consegue na
ainda mais a agir em função do desenvolvimen- corte, tem uma obra musical medíocre, enquan-
to social. Analogamente, a inveja conscientiza- to que Mozart que nada pode, nem por isso dei-
da será indicativa da fome e da carência de um xa de ser um gênio criando de forma exuberante
ser ou de uma sociedade que necessita daquilo uma obra inigualável. A criatividade de Salieri,
para se realizar. Ao seguir a carência alimentar mesmo não realizada plenamente, lhe capaci-
destas crianças, descobrimos sua anemia e o ta de uma consciência musical histórica muito
ferro que falta em seu organismo, da mesma além do seu tempo, por intermédio da qual ele
forma que, ao seguirmos a inveja, descobrire- classifica com grande objetividade sua criativi-
mos os símbolos e as funções estruturantes dade de medíocre e a de Mozart de genial.
para as quais eles estão sendo mobilizados. A inveja não aproveitada criativamente torna
Nossa tese é que a inveja tanto mais rói e Salieri cada vez mais maléfico, diabólico e des-
faz sofrer quanto mais ela expressa algo que é trutivo. Sua inveja não aproveitada dentro do di-
imprescindível à personalidade do invejoso. A namismo criativo, normal, enseja a formação de
própria peça, mesmo sem explicitar esta tese, um quadro neurótico que, mesmo assim, não a
ao menos no que se refere à consciência de contém e caminha, por isso, para o dinamismo
Salieri, nos apresenta com extraordinária ri- psicótico. O fato de somente ele ter conhecimen-
queza quanto Salieri é musicalmente dotado. to da genialidade de Mozart faz com que exclu-
Somente ele percebe plenamente a genialida- sivamente ele tenha a consciência e a responsa-
de de Mozart. Salieri usa sua percepção para bilidade da extensão de sua destrutividade. Ao
humilhar o gênio e prejudicar sua contratação atacar a símbolo e sua inveja, inicialmente de
na corte reservando par si o cargo máximo, en- forma neurótica, ainda contida e relativamente
quanto influencia a contratação de Mozart por adequada, e finalmente de forma avassaladora,
remuneração miserável e humilhante. Lado a delirante e já psicótica, Salieri se autodestrói,
lado com esta agressividade contra o símbolo pois, com isso, inutiliza para sempre simbolica-
invejado, em momento algum Salieri o esquece mente o caminho que seu Self lhe apontara para
ou deixa de valorizar sua criatividade, acompa- criar profundamente. Este caminho era existen-
nhando maravilhado sua carreira e admirando cialmente tão importante que sua destruição
estagiado cada nova composição. arrastou com ela o próprio Ser. Se nos pergun-
Parece-nos mesmo, às vezes, que Salieri tem tarmos agora, admitindo o imenso potencial
até mais consciência da genialidade e da impor- criativo de Salieri porque ele não se realizou, ve-
tância histórica de Mozart do que este próprio. remos que também nisso, o caso Salieri é antoló-
É que, lado a lado de sua enorme sensibilidade, gico. Salieri se perdeu porque, em vez de se de-
Salieri não carrega só a frustração criativa, mas dicar a sua criatividade, se dedicou à detenção
também, a experiência sofrida de quem se fez do sucesso mundano, ou seja, ao preferir o po-
um lugar ao sol, galgando com dedicação e es- der da fama, perdeu sua chance de atingir a gló-
forço cada degrau na corte e adquirindo grande ria. Acima escrevi que Salieri não quis, não pôde
conhecimento mundano da mediocridade huma- ou não soube realizar seu potencial criativo. Sua
na e seus valores. Nesse sentido, Mozart social- gula “infantil e viscosa”, como ele mesmo diz, é
mente para ele é um neófito e um inocente. Um aqui significativa. É muito difícil precisar porque
joguete fácil que, por isso mesmo, aumenta sua uma pessoa se afasta do seu potencial criativo

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se alienando de sua autenticidade. Este tema é vivências criativas. De fato, a maioria delas tem
tão profundo que podemos vê-lo como uma das esta problemática. Se estamos amando alguém,
características de nossa espécie. Psicologica- aparecem sempre sentimentos e ideias que sa-
mente somos entre outras coisas um organismo bemos que não agradarão ao outro e nós as es-
que pode optar entre o poder e a glória. A com- condemos. Em breve chega o momento em que
provação deste fato psicológico é mais uma vez ou arriscamos mostrar estas ideias e emoções e
iniciática. Bastará alguém entrar em contato com perder o outro, ou as escondemos e mantemos
seus símbolos e perceber o sentido do seu cami- a relação sob o nosso poder, mas perdemos sua
nho amoroso, profissional, político ou religioso essência e sua integridade e junto com elas nos
para começar a se dar conta de quantas são as perdemos a nós mesmos. Profissionalmente, o
tentações para trairmos o sentido profundo dos mesmo se dá. Temos nossa vocação, mas somos
nossos passos. Esta tentação é tão frequente e frequentemente obrigados a fazer concessões
significativa que ela desempenha um papel im- para mantermos nossos empregos ou nossa po-
portante até mesmo no mito messiânico Judaico- sição social. Chega um momento, porém, que
-Cristão que é o protótipo de um mito de busca se nós não nos colocamos e defendemos nossa
e autorrealização de gigantesco potencial criati- criatividade profissional, correndo o risco das
vo, visto que seus símbolos continuam até hoje, consequências contrárias a nós, perderemos o
transformando nossa civilização 2 mil anos após contato com essa criatividade. O mesmo ocorre
sua vivência histórica. em nossas atitudes políticas. A linguagem reli-
giosa expressa isto na tentação pelo Diabo, no
Em seguida Jesus foi conduzido pelo afastamento de Deus, no pecado ou na perda da
Espírito para o deserto para ser tentado própria alma, o que simbolicamente quer dizer o
pelo demônio... (pela terceira vez) o dia- afastar-se de si mesmo, de sua integridade, de
bo levou-o a uma montanha muito alta e sua vocação existencial autêntica.
mostrou-lhe todos os reinos do mundo Trata-se da imensa problemática existencial
e o poder sobre eles; e lhe disse: – To- de cada um de nós de perder-se ou de encontrar-
dos estes eu te darei se você a mim se -Se. Chama-se este Se de autenticidade, Deus,
submeter e me adorar. Disse-lhe Jesus: – integridade, servir a glória ou a realização exis-
Afasta-te Satan, pois está escrito: adora- tencial do Ser, não importa. Denomine-se este
rás o Senhor teu Deus e só a Ele Servirás perder-Se de falso Self, imaturidade narcísica,
(MT: 4:1-10). alienação existencial, cair na tentação do poder
mundano, servir ao Diabo, fracassar no caminho
A análise simbólica deste texto mítico nos de sua autorrealização profunda, também não
mostra duas coisas importantes quanto à rea- importa. O que importa é que é inerente ao cami-
lidade psíquica. Primeiro, que a mais forte das nho do desenvolvimento da personalidade e das
tentações aqui apresentadas é a de deixar-se sociedades humanas este corresponder a uma
levar pelo poder sobre o mundo. Segundo, que vocação profunda, apesar da não aprovação do
as tentações são encaminhadas pelo próprio consenso do momento, ou afastar-se dela e ar-
Espírito, ou seja, a tentação pelo poder, o su- riscar a estagnação, a desintegração, a loucura e
cesso mundano e a fama em detrimento da fi- até mesmo a morte prematura e destrutiva.
delidade à integridade da autorrealização plena Com isso, não devemos concluir que o cami-
é inerente ao Todo, isto é, ao próprio caminho nho individual seja mais autêntico e profundo
do desenvolvimento. Isto tudo pode parecer que o caminho social, pois indivíduo e socieda-
muito complicado, mas na realidade se torna de, na sua dialética permanente durante o pro-
simples quando observamos nossas próprias cesso de desenvolvimento, têm a mesma proble-

86 ■ Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 1º sem. 2019


mática de autenticidade e alienação. O indivíduo assinalado pela vivência dos símbolos sem real-
pode negar o seu caminho mais profundo em mente saber para onde vamos. Por isso, pode-
função da tentação imediata de fama e poder mos dizer que o caminho do desenvolvimento
social e a sociedade, também, pode desviar-se simbólico é o caminho do conhecimento, mas,
do seu caminho mais autêntico e seguir mágicos também, é o caminho da fé na sabedoria do Ser.
e demagogos que a tentem com grandezas ime- O grande problema deste caminho é que, devi-
diatistas. Por isso, não devemos separar quali- do a sua própria natureza simbólica, ele não é
tativamente o caminho individual e social e sim claro, discriminado e objetivo. Os símbolos in-
vê-los, cada um a sua maneira, com a mesma cluem, por definição, componentes subjetivos e
problemática de autenticidade e alienação du- objetivos que somente se discriminam durante
rante o seu processo de desenvolvimento. sua vivência, o que levou o poeta a escrever que
É importante perceber que o Self Individual “o caminho se faz ao caminhar”. O caminho dos
e Cultural se expressam por intermédio de sím- símbolos é necessariamente incerto e angustian-
bolos estruturantes a longo prazo e, por isso, te devido a sua própria originalidade e criativida-
a dedicação à integridade do processo requer de, e nos faz atravessar regiões desconhecidas
frequentemente a vivência de grandes frustra- e inóspitas onde não se encontra nem viva alma
ções. A travessia do deserto pelo povo judeu, quanto mais espectadores para nos aplaudir.
que até hoje comemora as frustrações vividas Também não importa se designamos este es-
ao comer o pão não fermentado na Páscoa, no tado psicológico buscado de sintonização com
nível cultural, e a “Noite escura da alma”, des- os símbolos de céu, Nirvana, Tao, estado de
crita por São João da Cruz, no nível individual, Graça, santidade, Zen, plenitude, beatitude e ao
são exemplos dos sofrimentos e tentações do seu oposto de inferno, alienação. Maya, loucura,
caminho de desenvolvimento. A tentação do po- desespero ou frustração existencial. O importan-
der e da fama têm muito a ver com o imediatismo te é reconhecer que eles existem e que são dois
da busca de sucesso e de satisfação de desejos dos parâmetros mais profundos e significativos
em troca de uma fidelidade a símbolos que se par avaliarmos o processo de desenvolvimento
tornarão realidade num futuro mais longínquo. psicológico de um ser humano e de uma cultura.
Estes símbolos, são denominados, frequente- Em termos de desenvolvimento simbólico
mente, de profundos, espirituais ou “não deste da personalidade ou do processo de individua-
mundo”, o que pode confundir a percepção da ção, como o denominou Jung, esta problemáti-
sua natureza psicológica. A satisfação imediata ca de nos mantermos fiéis a nossa integridade
é denominada mundana porque ela está presen- ou de nos perdermos de nós mesmos é de cru-
te e a vista de todos, enquanto que os símbolos cial importância no sentido global. Todo aquele
profundos exatamente por serem intensamente que tem um mínimo sentido da sua individuali-
prospectivos não estão aparentes. Para segui- dade e do que quer dizer a busca de si mesmo
-los, necessitamos do conhecimento e da fé, que ou de sua autenticidade tem uma noção do que
psicologicamente significa a ligação íntima com é perder-se. A escola existencial de filosofia en-
o significado simbólico que muitas vezes é uma fatizou muito a problemática da autenticidade
sensação profunda, mas inexplicável. Ao cre- do Ser. Na vivência religiosa cristã ou taoista, o
ditarmos nos símbolos e segui-los, avançamos estar com Deus ou em Tao, como disse acima, é
de forma racional e irracional. Racional porque praticamente a vivência central do conjunto de
percebemos o caminho desconhecido que entra- ensinamentos dessas religiões. O Budismo Zen
mos e tentamos nos precaver de seus perigos e preferiu afastar-se da linguagem religiosa, que
avançar da forma mais adequada possível. Irra- de tanto falar em Deus, frequentemente o coisi-
cional porque estamos avançando num caminho fica, o separa do sujeito que dele fala e perde

Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 1º sem. 2019 ■ 87


a vivência de totalidade essencial ao relaciona- a Sombra da Personalidade e que sejam atua-
mento místico. O Budismo Zen passou a buscar dos por intermédio da Sombra da Cultura. A
a vivência Zen como uma vivência de ligação Sombra é, então a parte da Personalidade e da
com a totalidade em cada momento existencial Cultura que abriga e atua aqueles símbolos es-
específico, o que necessariamente engloba su- truturantes que não têm acesso à Consciência
jeito e objeto e nos impede buscar a vivência Individual e Coletiva. O Self Individual e Cultu-
do Todo fora de nós. Mas, como tratar este as- ral, além de propiciar e coordenar os símbolos
sunto dentro dos parâmetros da nossa ciência estruturantes, busca sempre também confron-
psicológica, ou seja, à luz do desenvolvimento tar a Consciência com a Sombra e criar mais
da Consciência a partir dos seus símbolos es- Persona por intermédio da modificação e da
truturantes? E, dentro da abordagem científi- ampliação dos papéis existentes ou da criação
ca e simbólica deste tema, como conjugá-lo à de novos para desenvolver o indivíduo e a cul-
criatividade artística e aplicá-lo ao processo de tura. Por conseguinte, a consciência sofre uma
desenvolvimento existencial e profissional de tensão permanente entre a Persona e a Sombra
Salieri para chegar a conclusão que sua loucura que é praticamente inseparável da tensão entre
se explica essencialmente na sua opção pela a Consciência e o Arquétipo Central oriunda da
fama em detrimento da glória? existência contínua de símbolos estruturantes
Para que a fama e a glória sejam percebidas atuando dia (atos, vivências e fantasias) e noite
em relação dialética dentro da ciência psicoló- (sonhos) para alimentar e fazer prosseguir o de-
gica, temos que ter uma compreensão não só senvolvimento da Consciência.
da formação da Consciência como de sua rela- É dentro desta tensão de crescimento que
ção com a totalidade do processo. Para isto, ne- a Consciência pode se apegar a situações na
cessitamos conjugar a descoberta de Freud de vida de forma estereotipada e passar a resistir
que a Consciência é formada a partir do incons- à transformação exigida pelos símbolos estru-
ciente e a de Jung de que o inconsciente tem no turantes que a transformam, na medida que a
seu centro o Arquétipo Central do qual emana a ligam significativamente ao Todo. Uma das for-
vivência e totalidade que orienta o Ego no pro- mas da Consciência apegar-se a uma fase do
cesso de individuação. Necessitamos também processo e passar a resistir à movimentação
acrescentar a essas descobertas a noção de do Todo é o cultivo exagerado de um determi-
que o mesmo fenômeno se passa no desenvol- nado papel no qual obtivemos sucesso. Nesse
vimento do Indivíduo e da Cultura um processo sentido, o sucesso é algo que confirma o nosso
paralelo e interacional. esforço e nos estimula a continuar, mas que,
A Persona é uma função no desenvolvimento ao mesmo tempo, se transforma na grande ten-
da personalidade e da sociedade que regula a tação de nos desviarmos do nosso desenvolvi-
interação pessoal no nível institucional. A Perso- mento. Isto explica porque, na passagem bíblica
na se constitui pelo número e a natureza de pa- citada, é Deus quem guia Jesus pela terceira vez
péis que uma cultura elaborou tradicionalmente ao deserto onde será tentado por Satã. É que, a
durante séculos ou milênios e que coloca à dis- tentação de permanecer exageradamente no su-
posição dos seus membros para o desenvolvi- cesso só existe porque é inerente ao Self o de-
mento de sua Personalidade na interação social. sejo e o incentivo para alcançá-lo. O problema
Quando o Self Individual constela símbolos surge não pelo fato do sucesso em si ser bom ou
estruturantes cujo conteúdo ou forma não en- mau, certo ou errado, e sim devido ao processo
contram uma Persona, ou seja, um papel social de desenvolvimento não parar nunca. Devido a
adequado para se desenvolver, a tendência isto, a meta de hoje pode facilmente se transfor-
será que estes símbolos sejam levados a formar mar na estagnação de amanhã. É nesse momen-

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to que o culto do sucesso obtido pode atrasar o de Mozart destruindo o símbolo central de sua
desenvolvimento e afasta nossa Consciência do obra e com isso a própria pretensão de um Deus
seu relacionamento com o Self, ou seja, é este o justo e harmonioso.
caminho por intermédio de do qual a fama pode Na realidade, Salieri vai aos poucos afundan-
nos separar da glória. Os estados de alienação do no inferno da negação de sua criatividade,
e autenticidade do Ser, de estagnação e de cria- que ele próprio iniciara muito antes de apare-
tividade plena, de pecado e de graça, por con- cer Mozart em sua vida. Existe um momento na
seguintes não são isolados um do outro, mas peça, em que Salieri deixa a Itália e parte para
interagem dinamicamente durante as transfor- sua grande busca existencial em meio à inten-
mações da Consciência. sa insegurança. Nesse momento, ele se dirige a
Nesse sentido, podemos dizer que Salieri Deus e pede o poder e a fama:
não pôde desenvolver sua inveja construtiva-
mente, na medida em que se afastou de sua vo- Salieri – ato 1 cena 2 – Admito que seja
cação musical profunda por haver transformado um tanto repulsivo, mas o primeiro peca-
sua arte num instrumento de obtenção de poder do que devo confessar a vocês é minha
e fama. Ao usar sua criatividade para ganhar fa- gula. Uma gula viscosa, infantil, italia-
vores na corte, obter cada vez mais status e po- na... Dos 3 aos 73 anos toda minha carrei-
der, Salieri submeteu-se paulatinamente à mu- ra foi conduzida ao sabor de amêndoas
sicalidade medíocre reinante e foi se afastando polvilhadas de açúcar cristal, biscoitos
do seu talento e mergulhando em frustrações de Verona, macarrões de Milão, escalo-
cada vez mais intensas. O aparecimento de Mo- pes de Siena, tortas geladas recheadas
zart com sua criatividade genial, mas sobretudo e pistache... Meus pais eram simples
com sua dedicação até mesmo descontrolada a vassalos do Império Austríaco e perfei-
essa criatividade em detrimento de tudo e todos, tamente felizes com essa condição. Sua
incapaz até mesmo por imaturidade e limitação noção de espaço reduzia-se a pequena
de sua personalidade à qualquer adequação so- cidade de Legnano da qual eu queria dis-
cial, transformou Mozart num símbolo de tudo o tância. Sua noção de Deus era a imagem
que estava negado na personalidade de Salieri e de um super Imperador dos Hapsburgo,
acendeu sua inveja, incendiando-a até as raízes morando um pouquinho mais longe que
da loucura. Viena. Tudo o que desejavam desse Ente
Na encruzilhada que poderíamos conside- Supremo é que protegesse o comércio e
rar o fulcro dramático da peça, Salieri resolve os mantivesse perfeitamente anônimos,
destruir Mozart. Sua inveja atinge um ponto, preservados em mediocridade. Já minhas
tão doloroso e mesmo desesperador, que ele necessidades eram um tantinho diferen-
se considera um monstro da criação. Salieri tes. (Pausa). Eu queria a Fama. Para ser
julga sua própria inveja um defeito da criação. sincero, eu queria brilhar como um co-
Inteiramente inconsciente de como prostituiu meta rasgando o firmamento da Europa.
e malbaratou sua criatividade, ele percebe sua Mas por intermédio de uma única coisa:
inveja como um erro de Deus e decide levar este – A Música absoluta. Pois uma nota de
erro às últimas consequências, vingando-se de música está certa ou errada de modo ab-
Deus e fazendo tudo em seu poder para destruir soluto. Nem mesmo a eternidade poderá
Mozart. Nesse sentido, sente-se como a própria mudar isso: A música é a arte de Deus.
sombra de Deus, um ser diabólico e defeituoso, (Excitado pela lembrança). Já quando eu
que assume a criação defeituosa sob a forma tinha só 10 anos, uma simples escala
divina e decide dirigi-la contra o Deus criador musical quase me fazia desmaiar.

Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 1º sem. 2019 ■ 89


Com 12 anos eu contemplava o céu en- -me fama. Em troca, viverei na virtude. Luta-
tre os ramos dos choupos assobiando rei para melhorar a sorte dos meus colegas.
minhas áreas e meus hinos ao Senhor. E vos honrarei com muita música todos os
Minha única aspiração era estar entre os dias de minha vida”. Assim que eu dis-
compositores italianos do passado que se Amém, vi que os olhos dele brilhavam,
haviam celebrado a Sua Glória. Todo Do- como se dissesse – Bene. Vá em frente, An-
mingo na Igreja, eu contemplava o Senhor tônio. Dedique-se a mim e à humanidade
pintado nos murais. Não estou falando de e eu te abençoarei. “Grazie”, eu respondi.
Cristo. Os Cristos da Lombardia são tolos “Serei vosso servidor por toda a vida”.
sorridentes, acariciando cordeirinhos.
Não: eu falo de um Deus com um manto À luz do que dissemos acima, nos damos con-
escarlate no meio de velas enfumaçadas, ta de que um indivíduo com aquela criatividade
contemplando o mundo com os olhos de tinha que pedir ao destino a autorrealização do
um negociante. Foram os comerciantes seu Dom criativo como o que poderia lhe advir de
que o puseram lá em cima. Aqueles olhos mais precioso. Ao desejar, porém, acima de tudo
faziam barganhas reais e irreversíveis. a fama, Salieri confessou sua intenção de negar
“Toma lá, dá cá – nem mais, nem menos”. sua vocação profunda em função do sucesso so-
(Na sua excitação, come um biscoitinho) cial. Naquele momento, em símbolos religiosos,
– na véspera de minha partida definitiva podemos dizer que Salieri não estava rezando
de Legnano, eu fui vê-lo e fiz uma barga- para Deus, mas sim vendendo sua alma ao Dia-
nha com Ele. Era um rapaz ponderado de bo ou, em termos mitológicos, que Salieri foi um
16 anos, repleto de um desesperado sen- artista que rejeitou sua verdadeira musa e, por
so de justiça... isso, seria por ela um dia levado à loucura. Em
símbolos existenciais, isto seria o equivalente
Veem-se aqui duas características impor- a dizer que Salieri estava naquele momento ex-
tantes na personalidade de Salieri: primeiro, a pressando sua propensão de desviar-se de sua
sensibilidade, profundidade e criatividade que integridade criativa profunda em função de um
lhe dão a ambição de crescimento. Segundo, a grande sucesso social.
subordinação dessa criatividade à fama. Seu Por isso, quando muitos anos mais tarde sur-
Deus na realidade é tão farisaico que não po- ge Mozart em sua vida, compreendemos porque
dia ser mais diabólico. Obcecado pelo sucesso, a inveja de Salieri é o tema central da peça e esta
Salieri não percebe o quanto está traindo a sua se chama ambiguamente “Amadeus”. O título da
criatividade ao subordiná-la à fama. Pactua a peça “Amadeus” que, aparentemente, é apenas
clássica venda da alma ao Diabo, assegurando um dos nomes do compositor Wolfgang Ama-
com isso a sua fama, mas também sua loucura. deus Mozart, adquire aqui todo seu significado
Psicológica e existencialmente não podia ser simbólico. Diante de um Salieri entregue de cor-
mais claro o projeto de vida alienante que seu po e alma ao culto do poder e da fama e prosti-
organismo psíquico ou sua alma, como quei- tuído por toda espécie de concessões, aparece
ram, não toleraria a longo prazo e cuja rebelião Mozart na simplicidade de um artista que jamais
eclodiria anos mais tarde ao encontrar Mozart. rejeitou sua Musa, que não faz concessões, não
O personagem continua: prostitua sua arte, e por isso realmente ama a
Deus, o que não impediu de sofrer de uma neu-
Salieri – Me ajoelhei diante do Deus da Bar- rose ainda mais grave que Salieri que se trans-
ganha e orei com todo o fervor. (Ajoelha). formará numa psicose fulminante, só que por
“Signore, fazei de mim um compositor. Dá- outros motivos como descreveremos adiante.

90 ■ Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 1º sem. 2019


Junto com a inveja avassaladora, aparece sua criatividade e transformando a destruição de
também na vida de Salieri sua chance de salvar- Mozart na sua guerra com o Criador.
-se, caso ele pudesse ainda perceber o Símbo- O ponto decisivo do processo analítico de
lo Mozart como a representação de tudo aquilo uma personalidade como a de Salieri, e que ilus-
que ele há anos negara em si mesmo, ou seja, tra a importância da concepção da inveja como
o desvio existencial do seu próprio caminho de fator estruturante no desenvolvimento da perso-
autorrealização. Se ele assim o fizesse, sua in- nalidade, teria sido o confronto com o símbolo
veja, apesar de o corroer e torturar intensamen- Mozart. A amplificação deste símbolo e sua ela-
te, preservaria sua função normal estruturante boração, dentro da própria história do seu de-
e até mesmo salvadora. Porém, ao racionalizar senvolvimento, teriam podido mostrar a Salieri
defensivamente a função de sua inveja, culpan- tudo o que ele havia negado na criatividade do
do Deus por tê-lo criado para humilhá-lo, pela seu Ser e que agora vinha sob a forma do fan-
percepção de uma criatividade em Mozart, da tasma terrível da inveja cobrar dele um acerto de
qual julga não ter nenhuma parcela em si pró- contas. Ao não confrontar construtivamente este
prio, Salieri bloqueia a função estruturante de fantasma, verdadeiro demônio da criatividade
sua inveja e a reprime, transformando-a em in- no sentido grego do “daimon”, o acerto de con-
veja neurótica e por isso destrutiva. Ele não reco- tas se transformou na tragédia de sua loucura e
nhece o quanto prostituiu e bloqueou sua cria- sua morte.
tividade por narcisismo, imaturidade e ambição Do ponto de vista da Psicologia da Inveja,
social. Sua criatividade, porém, era tanta que cabe ressaltar que o grande ensinamento do
o dinamismo neurótico não foi bastante para personagem Salieri para nossa cultura é que o
conter sua inveja. Ela o transpõe e Salieri entra personagem sofre, enlouquece e morre em meio
no dinamismo psicótico de pretender destruir à inveja sem em momento algum haver pensado
Mozart não só profissionalmente como também na possibilidade de a inveja ter função estrutu-
existencialmente. Se ele o fez realmente, não o rante. Seria como se um ser faminto saísse pelo
sabemos. O importante para nós neste contexto mundo afora teorizando e destruindo planta-
é que ele o intencionou com tal intensidade que ções e criações e a seguir enlouquecesse e um
chegou a tentativa de suicídio em meio a crises dia morresse, sem nunca reconhecer que o seu
delirantes de culpa 30 anos depois. problema era sua própria fome. Este fenômeno
Podemos dizer que o dinamismo da inveja de não reconhecer a inveja, que sentimos várias
de Salieri na peça passou a ser neurótico depois vezes por dia durante toda a vida, como uma fun-
que Mozart o humilhou, ridicularizando a peque- ção psicológica e estruturante, não é só de Salie-
na área que Salieri compôs para sua recepção ri, mas de toda nossa cultura. Este problema é
na corte. A partir daí a inveja de Salieri passa apenas uma das consequências da repressão e
a ser quase que exclusivamente antagônica ao dissociação do nosso Self Cultural ocorrido após
símbolo invejado, pouco contribuindo para o o Renascimento em função da vivência traumáti-
crescimento de sua personalidade. Contudo, ca da Inquisição.
este dinamismo neurótico não foi suficiente para O problema se agrava porque esta dissocia-
conter o símbolo da criatividade tão intensamen- ção interrompeu nossa consciência histórica,
te mobilizado pela inveja, o que motivou a ins- o que nos impede até mesmo de reconhecê-lo.
talação de um dinamismo psicótico paranoide, Freud, por exemplo, no final de sua obra tão cria-
megalomaníaco e delirante. Este dinamismo se tiva, ao examinar em “O Mal-Estar na Cultura”
instala na peça, a partir do momento em que Sa- as causas da repressão do Id, chega à conclu-
lieri passa a lutar diretamente com Deus, proje- são de que esta é uma vicissitude da civilização,
tando na divindade o que ele próprio fizera com sem sequer entrar nos “porquês e comos” da

Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 1º sem. 2019 ■ 91


repressão em nossa cultura. Ele que tudo ana- cativo desta tese, porque Mozart, ao menos, era
lisava e buscava enraizar no passado, deixa a um gênio e assim correspondia às resistências
imensa repressão cultural originada na Inquisi- de Salieri para perceber a função da inveja no
ção escapar devidamente racionalizada. Ele, que seu próprio processo existencial. Já Desdêmona
descrevera e denunciara tão magistralmente o jamais conheceu o adultério e, por conseguinte,
puritanismo da era vitoriana que acompanhava percebemos muito mais claramente, que o seu
as manifestações expressivas do Inconsciente, adultério é produto da imaginação de Otelo para
não diferenciou no final de sua obra a sociedade justificar sua dificuldade em confrontar a função
repressiva da sociedade democrática, limitando- estruturante do seu ciúme. Ao acirrar esta resis-
-se a lamentar-se pela necessidade cultural da tência, Ioga atua diabolicamente como o Deus
repressão. Ao não diferenciar a repressão da su- Mercador de Salieri, desviando Otelo cada vez
blimação, ou seja, a repressão da delimitação, mais da função estruturante autêntica do seu
Freud deixa passar a repressão cultural oriunda ciúme, e levando-o a vivenciá-lo de forma repri-
da Inquisição, camuflada lado a lado com a deli- mida e dissociada, primeiramente neurótica e,
mitação, esta, sim, necessária a qualquer cultu- depois, psicoticamente no homicídio.
ra. Até hoje continuamos sendo devorados por Salieri sucumbe à inveja e Otelo ao ciúme
um monstro que não podemos combater por não sem em momento algum confrontá-lo e vivenciar
havermos sequer identificado-o como monstro, seus símbolos, Mozart e Desdêmona, como fun-
posto que o incorporamos ao desenvolvimento ção estruturante de seu processo de desenvolvi-
como normal. mento. Suas tragédias confirmam a expectativa
Grandes liberais, revolucionários e cientis- da moral maniqueísta do nosso Self Cultural, dis-
tas dos mais avançados atuam a dissociação sociado pela Inquisição, de que inveja e ciúme
sujeito-objeto, ser humano-mundo, emocional- são emoções ruins que não devem ser vividas.
-racional oriunda da Inquisição sem nem sequer Em momento algum destas obras percebemos a
percebê-la. Os religiosos cristãos raramente a noção de que seus processos de desenvolvimen-
computam em suas interpretações culturais, to pararam e a desestruturação psicótica de sua
pois a Inquisição é a mancha negra de sua his- personalidade teve lugar a partir da sua incapa-
tória, na qual até hoje se apoiam suas defesas cidade de viver a inveja e o ciúme como funções
repressivas e os cientistas liberais materialistas normais no desenvolvimento e diferenciação de
ou agnósticos deixam-na de lado, pois “Inquisi- suas personalidades.
ção foi coisa de Religião e por isso nada tem a ver Tenho descrito uma Psicologia simbólica na
com a verdade científica”. Quem usufrui disto é qual os símbolos são percebidos como símbolos
a própria dissociação cultural que veladamente estruturantes da consciência e da personalida-
continua sua obra repressiva e maniqueísta. de. O símbolo estruturante tem conteúdos tanto
Os grandes fenômenos emocionais em nos- dos processos conscientes quanto dos proces-
sa cultura que consideramos como o protótipo sos inconscientes. Por exemplo, Mozart, como
de determinadas emoções são, frequentemente, símbolo estruturante na personalidade de Sa-
na realidade, monumentos exemplares de como lieri, tem componentes conscientes, tais como
não nos permitimos e nem sabemos vivenciar tratar-se de um músico prodígio desde os 3 anos
nossas emoções. O drama de Otelo, que Shakes- de idade, ter criatividade exuberante, ser extra-
peare apresentou magistralmente e que se tor- vagante, irreverente etc. Tem, porém, como todo
nou uma antologia teatral do ciúme, por exem- símbolo, também componentes inconscientes.
plo, expressa de forma exuberante que Otelo O componente central inconsciente do símbolo
como Salieri negou a função estruturante de sua Mozart na inveja de Salieri é a criatividade e, so-
emoção. O caso de Otelo ainda é mais exemplifi- bretudo, a criatividade ferida e prostituída, que,

92 ■ Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 1º sem. 2019


por se haver tornado tão sombria, foi aos pou- e o crime existencial que praticou contra o dom
cos sendo cercada por defesas de dissociação, que recebeu.
repressão, projeção e racionalização, formando, As defesas de Salieri são relativamente difí-
assim, uma Sombra intensamente patológica. ceis de perceber porque são sociossintônicas,
Mozart ativa intensamente o inconsciente ou seja, existem também em nossa cultura e por
reprimido de Salieri porque simboliza o oposto isso, até certo ponto, nos parecem normais. O
da sua prostituição musical. Parte importante fato, é que nosso Self Cultural não está tão dife-
do drama da peça surge quando Salieri confes- rente assim do Self Individual de Salieri. O que
sa publicamente como abandonou Cristo por foi que fizemos com Cristo na Inquisição? A partir
um Deus comerciante ao qual prometeu servir do século XVIII não passamos a considerar a na-
em troca da fama. Contudo, em momento algum tureza humana igual à dissociação cultural que
ele se dá conta do que isso significa em termos sofremos? Isto não equivale dizer que a criação
de traição da sua própria criatividade. Podemos do ser humano é que é dissociada e que nossa
dizer que a Sombra de Salieri, ou seja, seus sím- cultura e nós não temos nada a ver com isso, ou
bolos estruturantes que não puderam estrutu- seja, que procedemos como se não tivéssemos
rar integralmente sua Consciência durante seu participado na dissociação e patriarcalização
processo de desenvolvimento e foram mantidos maniqueísta do Mito Judaico-Cristão?
fora da Consciência, está representada na prosti- As guerras religiosas ocorridas na Europa
tuição da sua criatividade em troca da fama. entre católicos e protestantes, enquanto ambos
Este símbolo estruturante, que é a sua cria- dissociavam, reprimiam, projetavam e racionali-
tividade, foi prostituído em meio a tal tensão e zavam o Mito Messiânico, não teriam sido uma
violentarão que se separou do funcionamento expressão psicótica da Sombra Patológica do
normal da personalidade. A partir desse mo- nosso Self Cultural? Da mesma forma, Estados
mento, o símbolo estruturante da criatividade já Unidos e Rússia, gastando tesouros inacreditá-
agora prostituída passou a ser escondido e guar- veis em armas em meio a um mundo miserável
dado por defesas como dissociação (Salieri não e faminto, enquanto se afirmam defensores dos
associa daí por diante o fato de desejar e não mais altos valores humanos e se culpam mutu-
conseguir criar profundamente com a barganha almente e são incapazes de ver seus próprios
diabólica que fez), repressão (o componente co- defeitos, não serão a expressão de uma disso-
varde, desonesto e traidor desta barganha não ciação neurótica do Self Cultural com possibili-
tem mais acesso à consciência), projeção (toda dade de se transformar numa avalanche psicó-
sua criatividade profunda é vista em Mozart) e tica e mortal para nossa espécie? A semelhança
racionalização (Deus criou um mundo deforma- entre nós e Salieri é grande. Resta esperar que
do e torturante para Salieri, pois fez ele nascer não nos defendamos neurótica e psicoticamente
medíocre e almejar ser um gênio), dentro de um e possamos confrontar os símbolos estruturan-
dinamismo megalomaníaco e parodie (não é tes prostituídos do nosso Self Cultural para que
Salieri quem tem problemas e sim o Criador do tenhamos um fim diferente do dele.
mundo a quem ele declara guerra). Estas defe- Estas defesas tão bem organizadas eviden-
sas se combinam entre si para isolar da Cons- ciam que a Sombra de Salieri, formada pelo sím-
ciência o símbolo estruturante da criatividade bolo estruturante de sua criatividade prostituí-
prostituída. A racionalização, por exemplo, coor- da, é patológica. Fosse ela normal, a Consciência
dena e arremata magistralmente a dissociação, de Salieri teria muito mais chances de integrá-la
a repressão, e a racionalização ao colocar a ori- quando o aparecimento de Mozart vem ativá-la
gem de tudo numa organização divina defeituo- tão intensamente por intermédio da inveja. Nes-
sa do mundo e, assim, encobrir a vida de Salieri se caso, Salieri, ao invejar Mozart, sentiria ime-

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diatamente grande culpa de estar prostituindo normalmente o símbolo da criatividade para sua
sua criatividade no seu culto à fama e passaria a função estruturante, as defesas trabalhavam em
buscar sua criatividade profunda com intensida- sentido oposto contendo e ilhando a parte sím-
de proporcional à sua inveja. bolo representada pela criatividade prostituída.
Contudo, mesmos as defesas intensas que O leitor já viu em filmes uma punição dilacerante
ilhavam este símbolo, mostrando se tratar de que consiste em amarrar os tornozelos de um ini-
uma Sombra patológica dentro de um dinamis- migo a duas árvores fletidas em direções opos-
mo neurótico, não foram suficientes para conter tas e de repente soltá-las? Esta me parece uma
a intensidade estruturante de sua inveja que, por analogia do que foi acontecendo com a perso-
isso, ultrapassou o dinamismo neurótico, conti- nalidade de Salieri durante sua convivência com
do e adequado socialmente, para transbordar no Mozart.
dinamismo psicótico delirante atuado por inter- Este caso é um exemplo de como a patologia
médio da desestruturação da personalidade na mental se exacerba frequentemente pela luta da
desadaptação social aguda e no atentado contra criatividade normal com as defesas e não sim-
a própria vida. plesmente pela exacerbação destas. A exacerba-
ção das defesas de Salieri, que passam do dina-
Salieri-Capisco, já conheço meu destino... mismo neurótico ao psicótico, se dá, então, não
Vós me destes a percepção do Incompa- diretamente pela piora dos sintomas, mas pela
rável que a maioria dos homens jamais intensidade das defesas em resposta à pujança
conhece e depois garantiu que eu mesmo do dinamismo criativo normal que tudo faz para
fosse um medíocre... Dio Ingiusto! Vós rompê-las. Este fato demonstra como a psicopa-
sois o Inimigo! E isto eu juro: até o meu tologia só pode ser compreendida a partir do de-
último talento eu vou bloquear Vossa pre- senvolvimento simbólico normal.
sença na Terra. Para que serve o homem, Isto nos mostra como o símbolo estruturante
afinal de contas, senão para ensinar a expressa e veicula normalmente os processos
Deus suas próprias lições? eu lhes conta- conscientes e inconscientes e, no caso da pre-
rei a guerra que travei com Deus por inter- sença de patologia, pode reunir também o in-
médio de sua preferida – Mozart, chama- consciente patológico e o inconsciente criativo.
do Amadeus. Uma guerra na qual, é claro, Não creio que devamos reduzir a atitude pa-
a criatura tinha de ser destruída (fim do ranoide de Salieri a uma fixação homossexual
primeiro ato). em Mozart, apesar de reconhecermos que, mui-
tas vezes, a homossexualidade seja o principal
Mas, como disse acima, o símbolo Mozart símbolo reprimido no dinamismo paranoide. A
na personalidade de Salieri não contém apenas generalização feita por Freud (1969) deste fato,
componentes do seu consciente e do seu in- porém, não se confirma neste caso, pois perce-
consciente reprimido, pois possui também com- bemos claramente que o símbolo central repri-
ponentes do seu inconsciente criativo, qual seja mido é a criatividade e não a homossexualida-
a criatividade plenamente assumida, o despo- de. Nada nos impede de afirmar que, por trás
jamento social e a entrega absoluta ao dom da da criatividade, está escondida a homossexu-
criatividade musical sobejamente representada alidade. Tal afirmação nos parecia, neste caso,
por Mozart. Foi, sobretudo esta parte do símbolo gratuita, sem nada para corroborá-las. A própria
situada fora das defesas da Sombra Patológica heterossexualidade na peça ocupa lugar secun-
que foi veiculada intensamente pela inveja e dário, pois está adlerianamente a serviço do
passou a tencionar exuberantemente a perso- poder. Quando Salieri fica enciumado pelo fato
nalidade de Salieri. Enquanto a inveja conduzia de Mozart seduzir a soprano sua aluna e retalia

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tentando seduzir Constance, ele é guiado pela na medida em que forma e transforma a Identi-
luta de poder oriundo da inveja da criatividade dade do Ego. Parto então da premissa que a psi-
de Mozart e em momento algum pela atração se- que está inicialmente indiferenciada inconscien-
xual. Preferimos, pois, subordinar o dinamismo temente num todo do qual por intermédio de dos
paranoide ao dinamismo repressivo patriarcal símbolos estruturantes vai durante toda a vida
de um modo geral e considerar que, em certos se diferenciando e formando a consciência, a
casos, seu conteúdo simbólico seja a homosse- Identidade e o Ego. O processo de crescimento
xualidade, mas não em todos. é doloroso porque implica sempre numa separa-
O conhecimento da função estruturante dos ção, desintegração (Fordham) ou desgarramento
símbolos combate a tendência reacionária do do Ouroboros (Neumann), ou simbiose original
Ego de se achar inteiramente pronto e acabado (Bleger) para o que contribui cada símbolo estru-
e negar que está sendo dia e noite consciente turante. No que concerne a função estruturante
e inconscientemente transformado. Não foi por das emoções, a inveja e o ciúme não estão sozi-
acaso que nossa cultura reagiu tanto às desco- nhos e atuam em meio ou, às vezes, em combi-
bertas de Galileu e Copérnico. Nosso egocentris- nação com as outras emoções como, por exem-
mo, como assinalou Freud, preferiria que a Terra plo, o amor, o ódio, a competição, a cobiça, a
fosse o centro imóvel do sistema solar, da mes- voracidade, a vaidade, o orgulho, a prepotência,
ma forma que o Ego fosse o centro da Psique. a possessividade, o medo, a covardia, a cora-
Por isso continuamos a reagir às descobertas de gem, a vingança, a falsidade, a traição e todas as
Freud, que o Id é anterior e maior que o Ego, e de demais emoções. Descrevo sucintamente, como
Jung, segundo as quais o inconsciente tem uma exemplo, a função estruturante da inveja e do
capacidade centralizadora e criativa (Arquétipo ciúme em conjunto, pois sendo estas duas emo-
Central) que como um verdadeiro Sol coordena o ções muito próximas, uma evidencia ainda mais
funcionamento da Psique. claramente a função da outra. Seu estudo pode
Como vemos no Gráfico, os símbolos estru- servir de parâmetro para o estudo da função es-
turantes funcionam como vínculo entre a Cons- truturante de todas as outras emoções dentro da
ciência e o Inconsciente ao desempenhar sua Psicologia simbólica.
função criativa no desenvolvimento da persona- A diferenciação do Ego não é aqui pensada
lidade. Todavia, nem sempre os símbolos têm o a partir da relação mundo interno-mundo exter-
mesmo tipo de componentes na sua formação. no ou princípio de prazer-princípio da realidade
Ao observar a pirâmide do Gráfico, vemos que e, sim, a partir de um estado de indiferenciação
Galileu e Copérnico lidaram com símbolos que primordial. A Psicologia Simbólica busca ultra-
podemos situar predominantemente na vertente passar a dicotomia maniqueísta Psique, mundo
ou coluna da natureza, enquanto que a inveja e o interno e subjetivo versus matéria, mundo exter-
ciúme se situam predominantemente na vertente no, não psíquico e objetivo e, para isso, conside-
emocional ideativa. O símbolo estruturante tem, ra que a Psique se diferencia do Cosmos. Assim,
porém, sempre a mesma função coordenadora e para a Psique, como para o Cosmos, não existe
transformadora entre os processos inconscien- dentro e fora. Todas as polaridades inclusive in-
tes e conscientes e somente a maneira como ele terno-externo são polaridades com relação ao
desempenha esta função é diferente em função Ego e não com relação à Psique.
de seus componentes. As polaridades se relacionam com o Ego em
Todo símbolo estruturante, independente- função da polaridade básica do Eu e do Outro.
mente dos seus componentes, deve sempre con- Então, algo pode estar dentro do Eu ou fora do
tribuir para o crescimento da personalidade e da Eu e só nessa medida é que será subjetivo ou
consciência a partir dos processos inconscientes objetivo. Qualquer polo de qualquer polaridade,

Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 1º sem. 2019 ■ 95


Desenvolvimento simbólico da personalidade
Os quatro ciclos arquetípicos

“O 1 se transforma no 2, o 2 no 3, o 3 no 4 que é novamente o 1”

2a fase dos ciclos 1a fase dos ciclos


O Ego exerce o padrão arquetípico – O Ego apreende o padrão arquetípico

4
Ciclo cósmico
CONSCIENTE INCONSCIENTE
3
Ciclo de alteridade

SELF Adolescência SELF


Ciclo patriarcal

o)
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Uroboros 3
Sociedade 2

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In
1
Natureza

Morte Persona – Ego – Sombra


Corpo

Self
Vida Arquétipo Arquétipo Arquétipo Self
Ideação da grande do pai Anima
Emoções mãe Animus
Coniunctio
s
lo
bo


m

m

bo
lo
s

SELF SELF

Gráfico. A estruturação simbólica da personalidade e do ego se faz através do eixo ego-self por quatro
ciclos arquetípicos, cujos aparecimento e dominância são sucessivos, mas cuja função estruturante,
depois do seu aparecimento, age simultaneamente durante o processo.

porém, será sempre psíquico. De fato, para a re- a ser psíquica. Somos animais simbólicos e, por
alidade humana tudo é sempre psíquico. O todo isso, quando lidamos com o mundo objetivo a
universal é a nossa origem, é o meio no qual in- nossa volta, o fazemos por intermédio de sím-
teragimos e é o nosso fim, Ele e nós somos psi- bolos que discriminamos permanentemente em
quicamente um. Nosso Ego e nossa identidade componentes subjetivos e objetivos. Nós não te-
consciente se diferenciam do todo, mas, no fun- mos a capacidade de relacionar com um mundo
do, quer sejamos químicos, físicos ou místicos objetivo em si, dissociado do contexto simbó-
sabemos que o Cosmos e nós somos uma só en- lico. Nossa capacidade de objetividade advém
tidade. A diferenciação de nossa identidade do sempre e de novo da diferenciação da dimensão
todo não interrompe nem elimina a natureza de simbólica que é a fonte da objetividade e da sub-
nosso relacionamento com o todo que continua jetividade. A dificuldade de raciocinarmos den-

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tro da dinâmica estruturante da Psicologia Sim- Sabemos que o Ego se desenvolve a partir de
bólica é que temos que raciocinar em dois níveis uma unidade primordial inconsciente. A relação
simultaneamente. Um é o nível egoico, parcial e primária criança-mãe que se passa praticamen-
aparente e o outro, o nível global profundo. No te dentro dessa unidade primordial, tem, por
nível aparente estamos raciocinando a partir isso, características simbióticas muito intensas
do Ego, e no profundo, a partir do Self, ou seja, que diminuem com a diferenciação da persona-
do todo. É claro que para raciocinarmos a partir lidade da criança e de seu Ego. A relação do ser
da função do Self, temos que fazer um esforço humano com a unidade primordial e o fenômeno
muito maior, pois este raciocínio é relativamen- da simbiose intensa, porém, não se restringe à
te mais difícil. Somente, a partir dele, porém, infância e normalmente não acabam com ela.
podemos ultrapassar a dicotomia maniqueísta A unidade primordial não é uma circunstância;
Psique-matéria, subjetivo-objetivo, que nos li- baseia-se numa estrutura psíquica, isto é, num
mita, sobretudo desde a crise do Renascimento, arquétipo. Ela é oriunda, em última instância,
quando ocorreu a imensa dissociação trazida da atividade globalizadora de, nada mais nada
pela Inquisição. menos, do que do próprio Arquétipo Central e,
O estudo do ciúme nos permite compreen- assim sendo, está sempre presente na matriz
der melhor a inveja. O ciúme é uma emoção que do desenvolvimento psicológico. Todo símbolo
estabelece uma relação estruturante entre três importante tem a capacidade de indiscriminar a
entidades. O Eu, um Outro e um Outro distante. Consciência e reuni-la com o Arquétipo Central e,
O Outro próximo tem uma relação afetiva com o por conseguinte, toda relação simbólica impor-
Eu e é considerado íntimo e conhecido enquanto tante passará por uma fase de simbiose intensa
que o Outro distante é considerado desconhe- durante sua diferenciação. O ciúme terá sempre
cido. O ciúme denuncia a entrada do Outro dis- um papel muito importante nesta diferenciação,
tante como símbolo no campo afetivo do Eu e do sempre que se tratar de um símbolo atuando in-
Outro íntimo e, com isso, ameaça o Eu de trans- tensamente na dimensão interpessoal. Compre-
formação da sua relação com o Outro íntimo, po- ende-se, assim, porque a criança sofre tanto de
dendo advir até mesmo sua perda. A função es- ciúmes quando nascem seus irmãos e, também,
truturante do ciúme é altamente diferenciadora porque a falta de irmãos e desta vivência de ci-
da relação simbiótica do Eu com o Outro íntimo, úmes dificulta o desenvolvimento da persona-
em função da interveniência do Outro distante e lidade do filho único. Compreende-se também
proporciona um crescimento por discriminação porque o ciúme terá um papel diferenciador da
íntima, do Eu e do Outro do campo da Consci- personalidade não só na infância, mas também
ência e da Personalidade. A medida que o Outro durante toda a vida.
distante é envolvido no processo, ele se simbo- Vê-se agora que aqueles dois posicionamen-
liza cada vez mais e, se houver abertura para a tos da Consciência, o superficial e o profundo,
vivência do ciúme, o Outro distante se tornará em função do Ego e do Self, respectivamente,
cada vez mais próximo, íntimo e conhecido, não que mencionados acima, não são algo importan-
só naquilo que ele é como Outro, mas naquilo te só teoricamente, mas também o são na práti-
que ele traz para a estruturação do próprio Eu, ca para compreendermos a realidade simbólica
bem como para a diferenciação e conhecimento e o desempenho estruturantes dos símbolos. É
do Outro íntimo. É importantíssimo nos darmos que, superficialmente, a nível do Ego, no início
conta de que o Outro distante, na medida em da relação triangular de ciúmes, o Outro distante
que se torna símbolo estruturante, contribuirá nada parece ter a ver com a realidade psíquica
para a transformação do Outro íntimo como tam- da personalidade do Eu, mas profundamente,
bém do próprio Eu. em nível do Self, vemos que tem e muito. Esta

Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 1º sem. 2019 ■ 97


percepção profunda, porém, só é possível quan- forma extraordinária e, com isso, acionou o Ou-
do nos abrimos para a realidade simbólica do tro íntimo de forma intensa. O recrudescimento
Outro distante. Ora, quem nos mobiliza para a das defesas em torno do Outro íntimo levou a um
importância do aparecimento do Outro distante, ataque maciço ao Outro distante na ânsia de re-
neste caso é o ciúme e só podemos perceber o primir seu poder transformador. A estrutura psí-
Outro próximo e o Outro distante como símbolos quica de Salieri não resistiu a este conflito e sua
estruturantes nesta situação, se aguentarmos o sanidade mental se desestruturou na psicose.
ciúme com toda tensão e sofrimento que ele nos A diferença entre o ciúme e a inveja reside na
traz. Normalmente, apesar de sofrer com o ciú- dimensão em que atuam, mas sua pujança es-
me e antagonizar o Outro distante, o ego sofre truturante e discriminadora é a mesma. O ciúme
a ação simbólica e transformadora da sua pre- atua fundamentalmente num triângulo interpes-
sença no campo existencial. Este sofrimento é soal, mas não exclusivamente, pois o Outro dis-
difícil de aguentar exatamente devido ao seu po- tante nem sempre é pessoa, podendo ser uma
der diferenciador, e o Self pode circunscrevê-lo atividade ou reação emocional ao Outro íntimo.
patologicamente, principalmente por intermédio Os grandes ciumentos podem sentir ciúmes de
de dois dinamismos defensivos, opostos na sua seus cônjuges no seu apego ao trabalho ou até
maneira de funcionar. O primeiro é a repressão mesmo da sua relação com animais ou objetos.
do Outro íntimo ou do Outro distante e as vezes O ciúme funciona como um termômetro da rela-
dos dois. Otelo reprime o Outro íntimo, ao matar ção simbiótica. Conheci um homem que sofria
Desdêmona. O segundo dinamismo é absorver o muito de ciúmes pelo amor que sua mulher sen-
Outro distante ao Outro íntimo e acabar com a tia por suas joias. Já a inveja, além de funcionar
tensão, como fizeram Jules e Jim com a amante de maneira direta e não triangular, atua sobre
no célebre filme de Truffaut, passando os três a símbolos estruturantes ligados a características
viver juntos. Estas são duas maneiras extremas de outras pessoas. Nesse sentido, os símbolos
de se evadir a função estruturante do ciúme. guiados pela inveja diferenciam o Ego do incons-
Otelo, por possessão pelo ciúme e repressão do ciente, atuando na cobiça de expansão da per-
Outro íntimo e Jules e Jim, por negação do ciúme sonalidade, enquanto que o ciúme age sobre o
e incorporação defensiva do Outro distante. que a personalidade já tem. A inveja é dolorosa
Já na inveja, a relação é direta do Eu com cer- porque funciona por intermédio da Consciência
tas características de um Outro. Na medida em da falta, isto é, do que não temos, ao passo que
que as características desse Outro se tornam o ciúme nos faz sofrer porque é exercido sobre
simbolizadas, pode surgir um Outro íntimo, até nossa ansiedade de perda, ou seja, de sermos
então menosprezado, que estava oculto na Som- privados daquilo que já temos. Estas peculia-
bra do próprio Eu. No caso de Salieri, o Símbolo ridades dão à inveja uma vivência de se tomar
Mozart funciona como um Outro distante que algo do Outro e ao ciúme, a de se ser ameaçado
submetido à ação estruturante da inveja vai aos de roubo pelo Outro. Nesse sentido, a inveja é
poucos se simbolizando intensamente e trazen- uma força que se caracteriza por ser ativa, revo-
do a Consciência um Outro íntimo que é a própria lucionária, corajosa e predadora enquanto que o
criatividade de Salieri. Todavia, como este Outro ciúme é uma força que se caracteriza por ser pas-
íntimo se achava ferido e envolvido em aconte- siva, reacionária, covarde e conservadora. A fun-
cimentos passados traumáticos, situava-se na ção no desenvolvimento simbólico da personali-
Sombra Patológica e encontrava-se cercado por dade da inveja e do ciúme, como disse acima, é
defesas complexas como vimos acima. A inten- muito grande e de igual importância e valor.
sidade da inveja estruturante carregou energi- Não creio que possamos concluir que a inveja
camente o Outro distante (o Símbolo Mozart) de seja uma função primária e o ciúme, secundária

98 ■ Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 1º sem. 2019


devido ao fato de a inveja apresentar uma rela- Outro ameaçador opera psicodinamicamente
ção estrutural binaria (entre o Eu e um Outro) e o em nível binário.
ciúme, uma relação ternária (entre o Eu e um Ou- Por outro lado, a inveja, ainda que operando
tro íntimo e um Outro distante ameaçador). Este estruturalmente de forma binária, pode operar
fato levou Melanie Klein a considerar o ciúme psicodinamicamente em nível triangular. São
como um derivado da inveja (KLEIN, 1974). Esta casos em que o Eu inveja coisas do Outro pelo
mesma consideração levou José Bleger (1977) a poder que adquirirá frente a terceiros e não pe-
situar o ciúme como característica do dinamismo las coisas em si. Assim sendo, estes símbolos
neurótico e a inveja, do dinamismo psicótico da só são invejados pelo fato de se situarem numa
personalidade. A inveja, por ser basicamente bi- dinâmica triangular.
nária, seria mais arcaica, relacionada com a día- A Psicologia da polaridade extroversão-intro-
da primária pré-edipíca boca-seio, criança-mãe. versão de Jung (1960) pode nos esclarecer me-
O ciúme, por ser basicamente ternário, seria uma lhor as diferenças entre a inveja e o ciúme sem
função de aparecimento ulterior, relacionada que tenhamos que recorrer a uma hierarquiza-
com o triângulo edípico. ção. Jung mostra que, no extrovertido, a libido
Acho importante a consideração do compo- flui basicamente em direção ao objeto, enquanto
nente psicodinâmico do ciúme, que, a meu ver, que o introvertido, o inverso se dá. Com isso não
altera esta hierarquização entre a inveja e o ci- quero caracterizar a inveja como um fenômeno
úme e permite considerá-los como funções ar- extrovertido e o ciúme como introvertido, o que
quetípicas de importância equivalente e comple- não seria pertinente, por se tratar, num caso, de
mentar. Este argumento se baseia no fato de que atitudes da Consciência e, no outro, de emoções.
quando o Outro distante ameaça apossar-se do Quero com isso caracterizar que, analogamente
Outro íntimo, este se acha muitas vezes fusiona- à polaridade extroversão-introversão, também a
do com o Eu a tal ponto que a relação triangular polaridade inveja-ciúme se diferencia pela ênfa-
aparente é psicodinamicamente binária. se no objeto (inveja) ou no sujeito (ciúme). Este
Relato, para exemplificar, o caso de um ho- fato faz com que inveja e ciúme tenham igual
mem de 30 anos com componentes homosse- primazia de aparecimento e funcionamento no
xuais intensos e muito dependente de sua mãe. desenvolvimento da Consciência e até mesmo
Quando sua mulher o deixou por outro homem, impede que estabeleçamos entre estas funções
ele apresentou um quadro emocional de impo- qualquer hierarquização.
tência e desespero. Chorava praticamente o dia Da mesma forma que no ciúme, há formas
todo. Não conseguia mais trabalhar. Foi acome- clássicas polares do Self diminuir defensiva-
tido de intensa insônia e buscou a psicoterapia mente a função estruturante da inveja. Uma é
por julgar-se na eminência de autodestruição. a agressão, na tentativa de reprimir a simboli-
Ao descrever o ciúme que sentia, referia-se exu- zação e a função estruturante do Outro como
berantemente ao fato de que, com sua mulher, aconteceu com Salieri. Outra é a negação, co-
o amante arrancava-lhe junto as entranhas. locando-se por exemplo um defeito no Outro
“Não é ela que ele leva”, repetia-me ele com- distante para fingir que não o cobiçamos. “As
pulsivamente. “É meu fígado, meu coração, uvas estão verdes e, por isso, eu não as quero”,
meu pulmão e minha alma. Assim, fico vazio, afirmou a raposa.
sem nada, e não consigo viver”. Este caso é um, Como é o caso de qualquer símbolo ou fun-
dentre inúmeros outros que pude acompanhar, ção estruturante, a inveja e o ciúme são mais
que me demonstrou estar o Outro íntimo ainda ameaçadores que normalmente, quando ativam
de tal forma fusionado ao Eu, numa simbiose símbolos que já estão na Sombra e, sobretudo,
indiferenciada, que a relação triangular com o na Sombra Patológica. Tratam-se de Outros ínti-

Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 1º sem. 2019 ■ 99


mos pelos quais já passamos e deixamos para de Veneza expressa pela oposição do sogro ao
trás devido a fatores diversos. Quanto mais difí- casamento? Seu amor por Desdêmona não teria
ceis e dolorosas foram as vivências que com eles uma imensa Sombra de rejeitado social cerca-
tivemos, tanto mais serão ameaçadores e dolo- da por defesas de repressão, negação e idea-
rosos a inveja e o ciúme que com eles mexerem. lização? E não teria sido o ciúme ativando este
Sentir inveja de algo pelo qual já lutei e fracassei símbolo do rejeitado que descompensou ainda
é muito pior do que sentir inveja por algo pelo mais seu Eixo Ego-Símbolo estruturante-Arquéti-
que nunca tentei lutar. Da mesma forma, ter um po Central, obrigando-o a passar do dinamismo
vínculo ameaçado pelo ciúme com o qual sem- neurótico projetivo, mas ainda adequado do ma-
pre se teve segurança é mais tolerável do que rido ciumento, ao dinamismo psicótico delirante
quando se tem uma relação de insegurança e do marido homicida?
sofrimento. Faz toda diferença se as funções es- A presença da Sombra patológica nos casos
truturantes atuam em terreno livre de conflito ou de Salieri e Otelo evidencia a presença de com-
se reabrem feridas. ponentes do Self parcialmente discriminados
Caso Otelo aguentasse seu ciúme e o con- no passado e que foram remobilizados pela in-
frontasse como unção estruturante, ele desco- veja e pelo ciúme respectivamente. A Sombra
briria primeiro a falsidade e a inveja de Yago e, patológica é, no caso, um Outro muito íntimo
a seguir, sua insegurança e autorrejeição que o para o Ego, mas que se tornou distante devido
levaram a duvidar de Desdêmona e não de Yago. às defesas que o circunscreveram. Este Outro
Desdêmona, Cassio e Yago são símbolos estru- íntimo que se tornou distante pelas defesas é
turantes na vida psíquica de Otelo que, mobiliza- frequentemente muito mais ameaçador do que
do pelo ciúme, forçam o Ego a se diferenciar da qualquer Outro distante.
simbiose com Desdêmona e a se desenvolver. A Existem muitos casos em que o símbolo es-
diferenciação de Otelo traria a descoberta de um truturante mobilizado pela inveja e o ciúme é
novo Outro, ainda mais íntimo que Desdêmona algo inteiramente novo na personalidade. Nes-
e que se achava há muitos anos reprimido for- ses casos, o Outro distante mobilizado é re-
mando uma terrível Sombra Patológica. Quando almente distante e expressa um arquétipo se
encontramos defesas rígidas do Ego diante da apresentando como símbolo estruturante para
mobilização tanto do ciúme quanto da inveja é a continuação do desenvolvimento. É o caso da-
porque o símbolo estruturante mobilizado para o quele personagem nos contos de fadas e mitos
desenvolvimento foi alijado do processo no pas- que aparece sob forma banal, mas que, na rea-
sado e está naquele momento aprisionado pelas lidade, é um Deus disfarçado para desempenhar
defesas na Sombra Patológica. Foi o caso de Sa- uma tarefa da maior importância.
lieri e Otelo. O primeiro por abrigar em sua Som- É evidente que os casos mistos são os mais
bra Patológica sua traição à criatividade e, o se- frequentes. A inveja e o ciúme, como parte das
gundo, pelo fato de nela conter sua insegurança funções psíquicas, mobilizam os símbolos es-
que talvez envolvesse toda sua identidade num truturantes para a diferenciação progressiva da
complexo racial. Se aguentasse o ciúme, Otelo Consciência, e é raro encontrarmos símbolos
confrontaria sua Sombra e, com isso, muito en- estruturantes que não tenham pelo menos algu-
riqueceria seu Ego. Porque idealizou tanto Yago mas de duas facetas envolvidas seja com a Som-
a ponto de se deixar por ele enganar daquela bra normal (sem defesas à sua volta) seja com
forma? A idealização, empregada como defesa a Sombra patológica (com defesas a sua volta).
neurótica, não estaria a serviço de encobrir seu O importante é percebermos que a mobilização
complexo racial e a inveja da posição privilegia- dos símbolos estruturantes nunca é em si pró-
da e preconceituosa dos brancos na sociedade pria doentia e tem sempre o componente sadio

100 ■ Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 1º sem. 2019


que busca propiciar o desenvolvimento da Cons- não se suspeitar da existência de características
ciência e da Personalidade. peculiares na personalidade de Mozart que ex-
Apesar de a peça “Amadeus” estar centrali- pliquem uma decadência socioeconômica tão
zada na inveja de Salieri e em sua patologização intensa. Diante destes fatos, não podemos dei-
progressiva, ela apresenta num segundo plano, xar de imaginar, que algum distúrbio psicológico
mais velado, mas, nem por isso, com intensi- grave deva ter comprometido a personalidade do
dade menor, as características psicológicas de compositor, além do alcoolismo.
Mozart que interagiram com Salieri num envol- Durante a peça, o autor tece as característi-
vimento de complementariedade. Dificilmente cas de um complexo paterno negativo na per-
se vivencia intimamente um estado psicológi- sonalidade de Mozart, com os ingredientes de
co intenso de alguém sem algum envolvimento rejeição, mimo, insensamento, fragilização e su-
emocional correspondente. Não é essa a preten- perexigências ligados a imagem do pai, comple-
são explícita de qualquer espetáculo dramático? xo este responsável pela preservação de traços
Seria praticamente impossível a vivência do sím- infantojuvenis atuados inadequadamente pelo
bolo estruturante da criatividade prostituída de grande músico. Salta aos olhos, no texto dra-
Salieri tão exuberantemente por intermédio de mático, que a irreverência de Mozart apresenta
Mozart, sem que existisse no próprio processo características compulsivas de uma Sombra pa-
de Mozart um símbolo estruturante que atuas- tológica que o Ego do compositor quer conter e
se complementarmente no relacionamento dos não sabe. O enfant térrible em Mozart revela-se
dois artistas. Este símbolo foi veiculado no dra- aos poucos muito mais do que uma gaiatice que
ma, sutilmente no início, para, aos poucos, cres- o gênio não controla, simplesmente porque não
cer e atingir uma força e uma função tão decisi- quer. As características do “menino endiabrado”
vas na peça quanto o que ocorreu com Salieri. vão aos poucos mostrando que, frequentemen-
Trata-se do símbolo estruturante do Arquétipo te, possuem e comandam a conduta do gênio,
do Pai constelado negativamente, ou seja, do obrigando-o a desempenhar diabruras que, ao
Pai Terrível que, na peça, levará Mozart à loucura se acumularem. Vão atuando cada vez mais des-
e à morte, da mesma forma que o símbolo estru- trutivamente com todas as amizades masculinas
turante Mozart enlouquece Salieri. do compositor, sobretudo naquelas que, por es-
A história da música parece coatuar nesta pu- tarem ocupando posição de poder e fama, mais
nição a Mozart, ao desconsiderar praticamente o poderiam lhe proteger e paternalizar.
drama psicológico que o autor deve ter sofrido Uma das críticas feitas à peça, como mencio-
durante toda sua vida. As biografias do musicis- nei, foi o exagero que teria sido dado pelo autor
ta citam sua morte aos 35 anos, provavelmente às características infantis e rebeldes de Mozart.
por cólera, e atribuem a uma tempestade o fato Ainda que não tenhamos dados históricos para
de seus amigos terem se afastado de seu caixão confirmar factualmente estas características, po-
no dia do enterro. Por este fato, explica-se, não demos admitir que a biografia conhecida de Mo-
se sabe até hoje onde está o túmulo de Mozart zart nos mostra condições ideais para a formação
no cemitério de Viena em que foi enterrado. É de uma fixação patriarcal em torno da imagem
evidente, porém, que nem a cólera, nem a tem- do pai, pois como quase toda criança prodígio,
pestade explicam a decadência e a miséria so- Mozart desde cedo chamou para si como músico
cioeconômica que dominou a vida de Mozart nos mais atenção que seu pai. Isto geralmente impe-
seus últimos anos, a ponto de ter passado fome de ao menino crescer protegido pela personali-
e, finalmente, ter sido enterrado numa vala co- dade do pai que idealiza e com a qual competirá
mum, incógnito. Empregado na corte de Viena e muito mais tarde. Ao ser dos 8 anos em diante
no auge de sua esplêndida criatividade, é difícil apresentado em turnês por seu pai e aclamado

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pelas cortes da Europa como prodígio, por si só esposa inconscientemente por ele acumpliciada
já equivaleria para Mozart a um distúrbio da fun- e incitada, ataca o sogro sem mesuras e termi-
ção estruturante da sua função paterna. Alie-se a na por queimar-lhe as cartas. Podemos mesmo
isto o fato de seu pai ter sido, ao menos na peça, aventar a hipótese de que as dificuldades cres-
superexigente e pouco afetivo para termos uma centes do casamento, que culminam com a sepa-
intensa fixação em torno do símbolo estruturan- ração, tenham sua fonte principal nesta atuação
te do Pai. A culpa de Mozart com relação ao pai da Sombra patológica de Mozart, depositada em
associada na peça ao parricídio e à condenação Constance por intermédio da simbiose conjugal.
ao inferno de D. Giovani podem tornar-se menos Nesse caso, a produtividade do seu amor teria
fantasiosas psicologicamente, quando intuímos sido consumida pela destrutividade do comple-
que Mozart, ao sustentar sua família junto com xo paterno negativo que, atuando em conjunto,
sua pequena irmã, desde cedo em concertos inconsciente e defensivamente pelo casal, impe-
pela Europa, deve ter desenvolvido em comple- diu-lhe desempenhar a função provedora para si
xo paterno fixado tanto no dinamismo matriarcal e para seus filhos.
quanto no patriarcal. Ora, talvez o personagem que mais pudesse
Basta aparecer uma possibilidade de ajuda ajudar o jovem músico recém-chegado a Viena
e dependência paternal, para aquele jovem, re- fosse seu colega Salieri, que até mesmo por ser
cém-chegado à corte e tão necessitado de apoio, estrangeiro e de família humilde, havia tido que
que suas defesas e a própria Sombra patológi- aprender todos os meandros do poder da cor-
ca cheia de desamparo e ódio entram em cena te austríaca para galgar os degraus da sua tão
para atacar. Esta tendência é expressa na peça almejada fama e, por isso, se achava em posi-
por uma risadinha compulsiva e demoníaca que ção singular para auxiliá-lo. Podemos dizer, que
Mozart parece não conseguir controlar. A intensi- Mozart ataca Salieri, de saída, porque a estru-
dade desta Sombra e sua defesa é tal, que elas turação de sua identidade mal-resolvida a nível
dominam a vida social do autor, prejudicando a paterno não lhe permite compulsivamente, isto
manutenção de sua família e de sua própria so- é, neuroticamente, dividir qualquer posição de
brevivência. Sabemos que, quando numa neuro- poder com outro homem. Podemos, porém, já
se a Sombra patológica atua de forma coniven- perceber neste ataque, a inveja neuroticamente
te e sincronizada com o Arquétipo da Anima, a exercida, pois Mozart não ataca simplesmente
possibilidade do dinamismo neurótico se trans- qualquer um, e sim, especificamente, aquela
formar em psicótico se torna bem maior que o posição de poder na corte que ele necessita ter,
habitual. De fato, desde o início da peça, Mozart até mesmo, como o drama mostrará, por uma
usa as personalidades de Constance, sua namo- questão de sobrevivência, literalmente, para
rada e mais tarde esposa, como aliada e coni- não morrer de fome na miséria e ser enterrado
vente para debochar, ridicularizar, desrespeitar numa vala comum, como aconteceu. E, apesar
e agredir todos os que dele se aproximam com disso, ou talvez devemos dizer, exatamente por
quaisquer características paternais possíveis. não poder vivenciar esta inveja normalmente,
Até mesmo o próprio relacionamento amoroso Mozart a reprime e ataca Salieri. Ao invés de
se torna depositário das irreverências infantis cultivar sua amizade e lhe pedir ajuda, Mozart
intempestivas reprimidas por uma educação pu- o ataca e, até nisso, demonstra grande sensi-
ritana. Contudo, pelo fato de toda esta sua atua- bilidade, pois ataca Salieri no seu ponto mais
ção ser sombria, Mozart não assume um ataque vulnerável, neuroticamente defendido e extre-
frontal ao pai e, pelo contrário, ajuda a esconder mamente doloroso.
ainda melhor sua Sombra com uma Persona de- Para receber Mozart na Corte, Salieri compõe
fensiva de bom filho, e o defende, quando sua uma pequena marcha, transformada mais tarde

102 ■ Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 1º sem. 2019


na marcha do casamento de Fígaro. Ao acabar da maior gravidade. Mozart tinha sua criativida-
de ouvi-la, Mozart senta-se ao piano e a repro- de livre e assumida e, aí, era normal, onde Salieri
duz para Salieri, tão engrandecida e de forma era defendido e neurótico. Contudo, na parte de
tão ostensiva que o humilha irreparavelmente. sua personalidade que necessitava se compor-
Naquela região da alma de Salieri na qual há tar como adulto, como marido e pai, não só de
muitos anos nenhum raio de luz da sua própria seus filhos mas, até mesmo, de sua própria per-
consciência penetrava, naquela fortaleza, onde sonalidade, de sua profissão e criatividade, ou
estava protegida sua sombra patológica com sua seja, de sua própria Anima, Mozart estava fixado
criatividade profunda abandonada e prostituída, na infância e era ainda mais gravemente doente
é ali que Mozart, aperfeiçoando sua marchinha, que Salieri.
ou seja, recriando a criatividade prostituída do Salieri, ao menos, ainda que sem saber re-
amigo e protetor em potencial, despeja, como almente porque, percebeu o quanto odiava
ácido numa ferida aberta, uma avalanche de Mozart e muito fez para destruí-lo consciente-
humilhação. As defesas de Salieri exacerbam-se mente. Devido a isso, ao menos parte de sua
abruptamente e, do potencial competitivo, mas agressividade foi atuada conscientemente.
cordial, em meio ao qual as invejas recíprocas Quanto a Mozart, não conscientizou, de forma
poderiam ter se exercido produtivamente, incen- alguma sua agressividade à autoridade, basica-
deiam-se a mágoa e a rejeição de Salieri, para mente formada por sua carência e ambiguidade
criar dois inimigos mortais, cujas invejas pas- com relação a imagem paterna, que lhe fazia
sariam do dinamismo neurótico ao psicótico, ridicularizar Salieri compulsivamente. A disso-
levando as duas personalidades à desestrutura- ciação de Mozart era então muito mais grave
ção e à destruição. que a de Salieri, a quem Mozart conscientemen-
Nesta linha de raciocínio, podemos dizer que te chamava seu único amigo e sinceramente
o personagem de Mozart, no plano emocional é buscava proteção, enquanto sobre ele atuava
ainda mais dissociado e neurótico que Salieri, sua Sombra, humilhando e ridicularizando sua
pois era muito mais inconsciente de sua Sombra criatividade sempre que podia. Por isso, quan-
patológica. Mozart atuava sua Sombra patoló- do, devido a sua carência cada vez maior, a in-
gica mas em sua Consciência apresentava so- veja de Mozart mobilizou progressivamente sua
mente motivações opostas a ela, evidenciando necessidade de um símbolo estruturante pater-
um grau de dissociação muito maior. Quando é nal, os mecanismos de defesa de sua Sombra
este o caso e a Sombra, finalmente, por qualquer de exacerbam num dinamismo psicótico franca-
eventualidade, que no caso de Mozart foi à ex- mente paranoide e delirante.
trema miséria e abandono ao qual sua neurose O caso de o Conde Walsegg ter encomenda-
aos poucos o conduzia, invade a Consciência, a do um réquiem a Mozart e mandar buscá-lo por
desestruturação da personalidade geralmente é Leutgeb, que Mozart confunde com a morte e
gravíssima. Mozart não percebia o quanto agre- passa a compor seu próprio réquiem, é um acon-
dia seus protetores de um modo geral, como, por tecimento de sincronicidade. Dentro do campo
exemplo, quando propiciou na Flauta Mágica, a psicológico do símbolo estruturante do pai ter-
abertura pública dos rituais secretos da maçona- rível, operando em dinamismo psicótico, Mozart
ria e, com isso, perdeu o importante apoio dos percebe no emissário do Conde, por intermédio
seus patrocinadores maçons. Sua morte preco- de uma defesa projetiva e delirante, a figura da
ce, pode ter sido factualmente desencadeada própria Morte. Não podemos deixar de associar
pela cólera, como nos refere a História, mas a este episódio, como o faz tão criativamente o
ocorreu em meio a uma crise psicológica de ca- autor na peça, a figura do Comendador assassi-
racterísticas psicóticas, paranoide e delirante, nado por D. Giovani na famosa peça musicada

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por Mozart anos antes. Ao desafiar a estátua da predispõe catastroficamente para o fim. Como
figura paterna justiceira e vingativa no cemitério, relatei acima, os poucos amigos que acompa-
esta adquire vida e lança D. Giovani para a morte nhavam o enterro de Mozart não puderam che-
nas chamas do inferno. A mensagem é freudia- gar ao cemitério, devido a uma tempestade com
namente cristalina, demonstrando a existência relâmpagos. Mozart foi enterrado numa vala de
de um Complexo de Édipo não resolvido que leva indigente que, posteriormente, seus amigos não
a desestruturação psicótica pela culpa do parri- puderam mais localizar (HUGHES, 1950). A cena
cídio. Contudo, a receita para Mozart bem como parece fazer parte da condenação de D. Giovani
para Édipo não seria a repressão do antagonis- pela estátua do Comendador no cemitério, quan-
mo ao pai e a formação de uma personalidade do em meio a relâmpagos, as portas do inferno
bem-comportada e reprimida como concebeu se abrem para tragá-lo.
Freud, e sim confrontar e vivenciar a agressão O relacionamento de Salieri e Mozart, visto
de forma a poder descobrir e se deixar guiar pelo do ponto de vista da Psicologia Simbólica, nos
símbolo estruturante presente no seu conteúdo. oferece, além do que já vimos, a oportunidade
Assim fazendo, Édipo e Mozart descobririam que de analisarmos, a partir de ângulos diferen-
sofriam a rejeição e odiavam seu pai na mesma tes e complementares, o Self Individual e o
medida em que haviam vivenciado a repressão e Self Grupal no seu desempenho tanto normal
a rejeição com sua imagem. Essa descoberta os quanto patológico.
levaria a elaborar essas vivências para resgatar Jung (1960) conceituou o Self como a totali-
a função estruturante do seu complexo paterno. dade dos processos conscientes e inconscientes
A culpa oriunda do complexo paterno não resol- no processo de individuação. Podemos, tam-
vido persegue D. Giovani e só se aplaca com a bém, conceber o Self a nível grupal (BYINGOTN,
morte em meio a torturas terríveis, exatamente 1983a). Isto quer dizer que o Arquétipo Central
como acaba morrendo Mozart, ao se deparar que coordena todos os demais arquétipos do
com a morte, em meio a delírios persecutórios Self tem a propriedade de funcionar engloban-
hediondos, já agora, na peça, conscientemente do e coordenando os símbolos estruturantes do
incarnada por Salieri na figura do homem alto processo de individuação numa só pessoa, como
cobrador-persecutor. também englobar e coordenar os símbolos es-
Esta figura ameaçadora em pé, em frente a truturantes comuns às pessoas que se associam
casa de Mozart, corresponde no seu delírio a fi- em função do processo vital. O mínimo para a
gura do pai vingador que, ataca durante toda sua formação desta associação são duas pessoas e,
vida, vem finalmente cobrar sua dívida e exercer daí, podemos estudar o Self Grupal funcionando
sua vingança. Devido ao agravamento da carên- em relacionamentos íntimos como, por exemplo,
cia do pai e, por conseguinte, a exacerbação da na clássica complementariedade de D. Quixo-
função estruturante criativa do símbolo do pai, te e Sancho Pança, ou num casamento no qual
rompe-se o dique defensivo neurótico formado percebemos o dinamismo do Self Conjugal, ou
pelos dinamismos de repressão, projeção, nega- numa relação transferencial terapeuta-analisan-
ção, formação reativa e deslocamento e instala- do onde identificaremos os símbolos do Self Te-
-se o dinamismo defensivo psicótico visionário, rapêutico e assim por diante. A concepção mais
paranoide e delirante. Dentro deste delírio, so- abrangente deste fenômeno é o do Self Cósmi-
mente sua própria morte seria um castigo a altu- co que os místicos e físicos modernos buscam
ra para tanta vivência de perseguição. Por isso, aprender e a do Self da Humanidade, que é da
a vivência defensiva da morte passa a consolar maior utilidade para mantermos a noção do de-
delirantemente a culpa de forma tão psicótica e senvolvimento global do ser humano no planeta.
suicida que desestrutura a razão do gênio e lhe Antropologicamente, porém, talvez a concepção

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mais frutífera da aplicação desta característica que passaram a fazer parte da Sombra Normal e
de omnipresença e omnisciência do Arquétipo Patológica. Da mesma forma que uma pequena
Central seja a do Self Cultural que nos permite planta encoberta pela sombra de um galho caído
perceber e acompanhar os símbolos estruturan- de uma árvore curva o seu crescimento para bus-
tes de uma cultura na sua interpelação como um car a luz do Sol, assim também ocorre com o Self
todo único significativo (BYINGTON, 1983c). Individual. Só que, o nosso Self cria e coordena
Vista do ponto de vista do Self Grupal, a re- o desenvolvimento psicológico usando os acon-
lação de Mozart e Salieri nos apresenta uma di- tecimentos da vida como símbolos estruturantes
nâmica importante entre o símbolo estruturante do processo de desenvolvimento. É, por isso,
da criatividade musical e a Persona e a Sombra que a Psicologia Simbólica considera o símbolo
tanto normal quanto patológicas. A Persona, estruturante seu conceito central e a função sim-
como sabemos, é o conjunto de máscaras sim- bolizadora como a principal função da Psique.
bólicas ou papéis que uma cultura tem à dispo- Quando qualquer acontecimento advém à Psi-
sição para o desenvolvimento dos seus mem- que individual, o Self Individual usa esse acon-
bros. Já vimos como a criatividade de Salieri tecimento como símbolo estruturante. Qualquer
havia sido prostituída e passara a fazer parte coisa que ocorra, seja o aparecimento de uma
da sua Sombra Patológica. Vimos como Mo- pessoa, um lugar, uma modificação no corpo,
zart também tinha dificuldade em adaptar sua na sociedade ou na natureza a nossa volta, ou
criatividade à sua Persona devido a um intenso mesmo, o aparecimento de uma ideia ou emo-
complexo paterno negativo que fazia parte de ção, o Eu se sente diante de um Outro e o Self
Sombra Patológica e que, invadindo sua per- transforma esse Outro em símbolo estruturante.
sonalidade, dominava compulsivamente sua Caso esse Outro também possua um Self em pro-
conduta e impedia o exercício de sua Persona cesso de desenvolvimento que se imiscua com o
a serviço de sua criatividade. O complexo pater- Self do Eu, passa a se formar o Self Grupal que
no negativo de Mozart impedia-lhe compulsiva- associa simbioticamente o Self do Eu e o Self do
mente de desempenhar o papel social de filho Outro no processo de desenvolvimento.
que usufrui produtivamente de relacionamentos Foi assim que a aproximação de Mozart e Sa-
sociais com pessoas influentes para desenvol- lieri criou um Self Grupal tendo o símbolo estru-
ver partes necessitadas de sua personalidade. turante da criatividade como o símbolo central
No momento em que o símbolo estruturante do do seu desenvolvimento. A inveja mobilizou ime-
Pai bom se constelava socialmente, as defesas diatamente a supercriativa Persona de Salieri e
de sua Sombra patológica, que controlavam o o desembaraço criativo de Mozart a serviço de
símbolo do Pai, sob seu aspecto terrível, entra- desenvolvimento. Em condições normais, teria
vam em cena e impediam o desempenho desse sido um encontro de uma produtividade fabulo-
papel. É que, como os aspectos do Pai bom e sa acrescendo muitas páginas à história da mú-
do Pai terrível fazem parte do mesmo símbolo sica. Mozart, tendo morrido isolado e na miséria
estruturante Pai, a constelação ou ativação do aos 35 anos de idade, teve ao lado de Bach uma
Pai bom forçosamente ativa as defesas que pro- das produtividades mais fecundas de que se
tegem o símbolo do Pai terrível. tem conhecimento. Imaginemos que ele tivesse
O Arquétipo Central, na sua atividade criativa como Bach desenvolvido sua obra musical soli-
e coordenadora do desenvolvimento da Persona- damente apoiado numa corte e assim vivido até
lidade, busca permanentemente criar soluções os 65 anos! Se bem que podemos sempre argu-
para melhor propiciar o desenvolvimento da mentar que se Mozart fosse mais bem-comporta-
personalidade inclusive daquelas regiões preju- do e adaptado, talvez sua criatividade não tives-
dicadas durante o desenvolvimento passado e se nunca atingido tanta exuberância.

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Todavia, a busca de integração da magní- uma personalidade, menos o seu Self se con-
fica Persona de Salieri e da entrega criativa de formará com uma performance truncada por de-
Mozart, unindo produtivamente suas invejas fesas. Por intermédio de novos símbolos estru-
respectivas, esbarrou num sistema defensivo turantes, o Self buscará, dia (fantasias) e noite
arquitetado dento deste Self Grupal. O Self In- (sonhos) ultrapassar as defesas que ele próprio
dividual de cada um deles já possuía defesas um dia criou. Esta criatividade, será sempre
funcionando dentro de suas características pes- uma nova experiência do Self e, ao ativar con-
soais. A simbiose das duas personalidades criou teúdos da Sombra Patológica, poderá desenca-
um Self Grupal com características próprias que dear ameaças de sofrimento e ansiedade que
não só impediram a integração produtiva da sim- farão com que estas defesas recrudesçam e se
biose dos dois processos de desenvolvimento, aprimorem, usando para isso, também, a cria-
como acirraram a luta entre criatividade e defesa tividade do próprio Self. Este é um fato psíqui-
levando a formação de uma simbiose patológi- co paradoxal apenas aparentemente, pois, na
ca que culminou na desestruturação das duas prática, ele é inteiramente compreensível. É
personalidades. A simbiose das duas personali- que o Self, apesar de intuir o futuro, não tem
dades criativas para formar um Self Grupal, que certeza deste e, por isso, ora favorece o advo-
prometia ser das mais fecundas, se transformou, gado de defesa da liberação do conteúdo da
desta maneira, num verdadeiro desastre psicoló- Sombra Patológica, ora o promotor que deseja
gico e existencial. prorrogar a sentença, dependendo da conjun-
Ao lançar mão do Outro como símbolo estru- tura social e da operosidade da função de cada
turante para continuar sua obra psicológica, o um, exatamente como num processo jurídico de
Self tenta sempre, também, resgatar os conteú- longa duração.
dos simbólicos cercados na Sombra Patológica Esta verdadeira guerra que se trava, então,
para reciclar os conteúdos sombrios e fazê-los dentro do Self, entre a criatividade e as defesas,
atuar dentro da criatividade normal do Eixo pode levar ao crescimento da personalidade e,
Ego-símbolo estruturante-Arquétipo Central. As até mesmo, à cura da neurose ou ao desgaste e
defesas, porém, se opõem a essa reintegração, à improdutividade tão comuns na personalidade
posto que a Sombra Patológica se formou, ou neurótica que, apesar de, às vezes, muito ativa
em meio a muito sofrimento, ou devido a algu- psicologicamente, na prática tão pouco produz,
ma disfunção psíquica, que tornou proibitiva ou pode levar a um agravamento tal do sistema
sua atuação normal daí por diante. Todavia, sa- defensivo que de neurótico passa a psicótico ou,
bemos que os conteúdos mentais são funções ainda, pode conduzir a desestruturação total da
psíquicas necessárias à vida e que, por isso, personalidade e à própria morte.
sombrias ou não, são frequentemente desem- É importante dos darmos conta eu o sistema
penhadas. Um neurótico obsessivo, por exem- defensivo também foi criado pelo Eixo Ego-Sím-
plo, que prega compulsivamente o bem para bolo estruturante-Arquétipo Central, fato que nos
esconder (defesa de repressão e negação) sua levou a falar em mecanismos de defesa deste
agressividade está na realidade exercendo uma eixo ou do Self e não de mecanismos de defesa
estratégia para poder atuar sua agressividade, do Ego, como habitualmente o fazíamos. O sis-
ainda que de forma camuflada e distorcida por tema defensivo é geralmente formado num pas-
suas defesas. No caso de o símbolo estruturan- sado infantil, como descreveu Freud (1969), e o
te fazer parte da Sombra Patológica, forma-se Self Individual posteriormente atinge outro nível
uma estratégia no Self para desempenhar o de criatividade, mas preservando o dinamismo
símbolo, mesmo que defensivamente. Quanto estratégico defensivo para atuar junto aos sím-
maior for, porém, a pujança e a criatividade de bolos estruturantes contidos na Sombra Patoló-

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gica. Todavia, quando algum Outro é simboliza- dade, contaminada, porém, por uma tonelada de
do e ativa intensamente conteúdos da Sombra lixo de concessões, bajulações, covardias e um
Patológica, as defesas se exacerbam. O Self monte de rejeição, em suma, uma criatividade
mobiliza o símbolo estruturante em função das denegrida e ferida. Da parte de Mozart, surgiu a
necessidades do desenvolvimento, mas quando necessidade de um pai protetor e provedor, mas
este símbolo ativa outros símbolos contidos na num símbolo estruturante carregado de desam-
Sombra Patológica, a exacerbação dos sinto- paro, rejeição, vivência de exploração, superexi-
mas, frequentemente, é inevitável. Neste caso, gência e um grande número de vivências muito
é o próprio crescimento saudável que exacerba dolorosas. Diante da disfunção angustiante tra-
a doença. As coisas então se passam como se zidas por estes símbolos necessitados, mas con-
o Self intencionasse mobilizar o símbolo estru- taminados e, por isso, malditos, reexacerberam-
turante, mas não o seu distúrbio. No entanto, o -se as defesas. Contudo, da mesma forma que
símbolo, ao ser mobilizado, apresenta-se com o a ativação dos símbolos estruturantes criativos
referido distúrbio, o que tumultua o desenvolvi- no Self Grupal tem um potencial diferente e, às
mento e faz com que o Self não só reintensifique vezes, até mesmo maior que no Self Individual,
as defesas, como, até mesmo, as aperfeiçoe ou assim também, ocorre com a reintensificação
crie outras novas. É como se o Self ao mobilizar o das defesas.
símbolo estruturante necessário ao processo de A humilhação de Mozart e Salieri, vista sim-
desenvolvimento naquela etapa, o fizesse, cada bolicamente dentro do vínculo simbiótico do Self
vez com a esperança que, desta feita, ele possa Grupal, tem assim um significado mais amplo do
ser reintegrado na dinâmica do Eixo Ego-Símbolo que visto exclusivamente no dinamismo do Self
estruturante-Arquétipo Central. Se, porém, isso Individual. A humilhação vista operando na Per-
não acontece, e a disfunção estruturante contur- sonalidade de Mozart foi acima compreendida
ba por demais o processo, o próprio Self propicia como uma defesa de sua inveja diante da mag-
a reintensificação das defesas ou o seu aperfei- nífica Persona de Salieri que, apesar de apenas
çoamento. Há casos, porém, em que o gênio sai seis anos mais velho, já se encontrava tão bem
da garrafa e não só se recusa a voltar como, ao situado na corte. Do ponto de vista de Salieri, a
ser obrigado a voltar, ameaça destruir o mundo humilhação, como vimos anteriormente, atingiu
a sua volta. Nesse caso, o Self lança mãos de re- em cheio seu orgulho e sua autoestima, já tão
cursos radicais que mantêm o gênio cercado por inseguras, devido à sua Sombra patológica da
esforço exaustivo. É o caso do dinamismo defen- criatividade prostituída. Do ponto de vista do
sivo neurótico que se transforma em psicótico Self Grupal, porém, a humilhação de Mozart a
no Self Grupal de Mozart e Salieri. Nesses casos, Salieri atuou como um exocet no meio da ponte
porém, o Self obtém uma vitória de Pirro pois que poderia unir produtivamente suas persona-
mantém a integridade com um terrível desgaste lidades. Vista dentro da psicodinâmica do Self
das funções vitais. É um caso análogo aos do- Grupal, a humilhação, usada defensivamente
entes de câncer que tomam remédios que lhes por Mozart, foi a defesa de maior poder patolo-
prolongam a vida, mas com enormes prejuízos gizador de todo seu longo relacionamento com
de muitas funções vitais. Salieri, pois transformou de forma abrupta, ra-
O Self Grupal de Mozart e Salieri ativou pela dical e irreversível o vínculo simbiótico, que se
inveja de tal forma símbolos estruturantes vitais iniciava com um imenso potencial criativo, num
para as duas personalidades que junto com a vínculo simbiótico defensivo e dissociativo. Por
inveja foi acionada, também, sua respectiva dis- isso, apesar da peça centralizar-se explicitamen-
função de estruturação obrigada na sombra pa- te na psicopatologia de Salieri, do ponto de vista
tológica. Da parte de Salieri, emergiu a criativi- da operatividade do Self Grupal, residiu na pato-

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logia da personalidade de Mozart a característi- velmente, favoreceu sua passagem parcial do di-
ca defensiva decisiva para a desestruturação do namismo neurótico projetivo para o dinamismo
Self Grupal e das duas personalidades. psicopático homicida, evitando assim a entrada
A defesa de Mozart foi tão destrutiva para a franca no dinamismo psicótico, que, tão aguda
união extremamente fecunda que despontava e drasticamente, desestruturou a personalidade
porque invalidou simultaneamente o símbolo de Mozart.
estruturante Salieri, como Pai bom, para Mozart, Não poderia encerrar este estudo, ainda que
e o símbolo estruturante Mozart, como criativi- sumário, da inveja na Psicologia Simbólica, sem
dade assumida, para Salieri. Vemos, aqui, um relacionar sua função estruturante com os dife-
grande exemplo de resistência à criatividade do rentes estágios estruturais-evolutivos da Consci-
Self Grupal, que atua anulando a produtividade ência (BYINGTON, 1983b), ou seja, com os qua-
dos vínculos entre os processos individuais. Ao tro ciclos arquetípicos (Gráfico). Se não fizermos
perceber a produtividade do Self Grupal, que se isso, muitos aspectos normais da inveja poderão
esboçava pela associação das necessidades e ser confundidos com a sua patologia aqui apre-
virtudes da interação dos processos de individu- sentada e isso indiscriminaria muito o nosso es-
ação Salieri-Mozart, o dinamismo defensivo des- tudo. Abordarei a inveja e o ciúme, lado a lado,
te mesmo Self Grupal aplicou uma defesa com porque a compreensão de um facilita, pela com-
um timing, tão perfeito, que contaminou para paração, a compreensão do outro.
sempre todo o potencial criativo nele contido. O A inveja e o ciúme no dinamismo matriarcal
relacionamento produtivo, ferido de morte, deu são, como todas as demais funções estruturan-
lugar ao relacionamento defensivo neurótico, tes, subordinadas ao desejo e ao princípio da
mas, mesmo assim, como já vimos, não conte- fertilidade. Adquirem aqui conotações exube-
ve a luta do Self Grupal para associá-los produ- rantes, fortemente impregnadas de sensualida-
tivamente. Salieri e Mozart, já agora afastados de. (As expressões “babar de inveja” e “morrer
por um abismo de mágoa e ódio, abismo este de ciúme” são muito pertinentes neste dina-
muito mais consciente para Salieri do que para mismo). Esta carga sensual-instintiva é posta,
Mozart, continuaram fascinados um pelo outro e desde o início da vida, a serviço da estruturação
indissoluvelmente ligados até o fim. É que, seus da Consciência, e os símbolos que expressam a
símbolos estruturantes, que se interbuscavam, inveja e o ciúme tem um papel muito importante
estavam carregados com o potencial criativo da na formação da identidade do Eu e do Outro ou
genialidade, da sanidade mental e até mesmo Não Eu. O grande papel da imitação no dinamis-
da sobrevivência. A reintensificação permanente mo matriarcal faz com que a maneira de ser do
desta busca de associação produtiva incremen- Outro invada exuberantemente o Eu. Daí o fato
tou o dinamismo defensivo, de tal forma, que da imitação e da frustração estarem aqui sempre
lançou o Self Grupal no dinamismo psicótico, entremeadas com o desejo, em meio a ação es-
no qual, as defesas passaram da estratégia neu- truturante da inveja e do ciúme.
rótica projetiva ao delírio megalomaníaco per- A importância da coluna social no dinamis-
secutório paranoide bilateral, que terminou por mo matriarcal faz com que o ciúme, por ser uma
desestruturar as duas personalidades. Podemos função estruturante. Essencialmente pertinente
imaginar, para finalizar, que Salieri resistiu mui- ao relacionamento interpessoal, tenha aqui um
to mais do que Mozart, possivelmente, porque, papel muito importante. O ciúme fustiga perma-
estando consciente do seu ódio a Mozart, foi nentemente a relação de possessividade do Eu
mais saudável, menos dissociado e se manteve com o Outro, clivando, como um pedreiro que
muito mais longamente no dinamismo neuróti- trabalha na rocha, a natureza fortemente simbió-
co. Sua Personalidade tão desenvolvida, possi- tica e semiconsciente do dinamismo matriarcal.

108 ■ Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 1º sem. 2019


A inveja opera também basicamente dimensão ao seu poder mobilizador. Sua função estrutu-
interpessoal. Isto faz com que pessoas com di- rante é encaminhada para o desempenho de
namismo matriarcal dominante ou exuberante tarefas e, por isso, ciúme e inveja são canali-
com suas personalidades sejam geralmente zados juntos e subordinados à competição. O
muito invejosas e ciumentas. A inveja investe, Eu tem ciúme de um Outro que funciona como
sobretudo sobre a indiscriminação da relação arbitro da sua importância. A própria autoesti-
Eu-Outro, não tanto no que se refere à posses- ma se torna inseparável do cargo, da tarefa e
sividade afetiva como é o caso do ciúme, mas, do que “os outros vão dizer”. O ciúme de quem
muito mais, no que diz respeito ao poder em si. está perto do chefe subordina o amor à efici-
O ciúme é uma função mais ligada ao amor e a ência, pois aqueles que estão mais próximos à
inveja, ao poder. liderança têm aqui mais direitos e responsabi-
Devido à relação Eu-Outro ser muito simbió- lidades no exercício do poder. A inveja é aqui
tica no dinamismo matriarcal, a inveja age aqui, tão canalizada em função do desempenho da
de forma importante como função estruturante, tarefa, que suas manifestações genéricas ou
por sua capacidade de humilhar o Eu e clivar sensuais são delimitadas frequentemente por
sua relação indiscriminada e onipotente com o proibições. “Não cobiçarás a mulher do próxi-
Outro. “Eu tenho poder sobre as pessoas e as mo”. Nesse sentido, ao excluir a inveja da es-
coisas”, fantasia, magicamente, com frequên- posa do próximo, e, por conseguinte, da dimen-
cia, o Eu no dinamismo matriarcal. Surge então são da sensualidade, intensifica-se a ação da
a inveja e contra argumenta humilhando: “Você inveja sobre as tarefas desempenhadas pelo
não tem isto, aquilo, e aquilo outro e, por isso, próximo. Isto faz com que o ciúme e a inveja se-
você é fraco e pobre. Você é muito pior do que fu- jam canalizados para missões no desempenho
lano e beltrano que têm muito mais que você”. A de tarefas que irão paulatinamente aumentan-
indiscriminação da relação Eu-Outro é elaborada do o poder do Eu e o diferenciando do Outro.
pelo ciúme mais na dimensão afetiva. “O Outro Devido a esta intensa delimitação, porém, res-
é meu e ama só a mim”, fantasia o Eu. O ciúme tringe-se muito a atuação da inveja e do ciúme
entra atuando basicamente não por intermédio no campo psíquico. Como as demais funções
da humilhação, e sim da rejeição: “Esse Outro estruturantes no dinamismo patriarcal, a inveja
não é seu e não te ama nada. Você não viu como e o ciúme atuam dentro de uma malha de codi-
ele olhou e falou com sicrano ou deu tanta aten- ficações regidas pelas polaridades certo-erra-
ção para beltrano? Esse Outro ama a eles e não do, bonito-feio, deve-não deve, bom gosto-mal
a você. Em vez de possuir o amor do Outro e ser gosto etc. que limitam muito sua exuberância
um bem-amado sempre acompanhado, você é operacional. É comum, pois, neste dinamismo
um rejeitado, desamparado e sozinho”. É a natu- a inveja e o ciúme terem que atuar escudadas
reza da intimidade intensamente simbiótica do em alguma justificativa. É o caso, por exemplo,
vínculo Eu-Outro nos símbolos que expressam o do marido ciumento que arma situações estra-
dinamismo matriarcal que torna a função da in- tégicas para provar a infidelidade de sua mu-
veja e do ciúme tão pujantes nesse dinamismo lher e aí, então, atacá-la em nome, não da pos-
e, ao mesmo tempo, faz com que a Consciência sessividade do seu ciúme, mas preservação da
matriarcal sofra tanto de inveja e de ciúme. moral familiar. No caso da inveja atuando no
Pelo fato de o Dinamismo Patriarcal ativar dinamismo patriarcal, é comum percebermos o
basicamente, por intermédio da delimitação invejoso atuar sobre as coisas alheias escuda-
e sublimação a partir de posições dogmáticas do em alguma racionalização religiosa, política
apriorísticas, o ciúme e a inveja são aqui alvo ou humanista. No caso de nossa cultura, tão
de grande enquadramento, exatamente devido dissociada e com a intensa formação defensi-

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va patriarcal oriunda da Inquisição, estas ocor- ciúme, proporcionando uma abertura do Eu para
rências são ainda mais frequentes, pelo fato o Outro que engloba necessariamente o ciúme
da inveja e do ciúme, como funções psíquicas como função estruturante.
serem codificadas em bloco como pecamino- O desapego ao Eu que permeia o Budismo,
sas, indesejadas e prescindíveis no desenvol- também impede, por intermédio de um dinamis-
vimento da personalidade. mo dialético introvertido, o antagonismo siste-
É no terceiro ciclo estrutural-evolutivo, ou Ci- mático do Outro distante no triângulo amoroso
clo de Alteridade, porém, que a inveja e o ciúme do ciúme. Ao desapegar-me do Eu, abdico de
atingem características extraordinárias, pois, qualquer posição de poder assimétrico sobre
junto com os demais símbolos e funções estrutu- o Outro e, assim, exponho-me para confrontar
rantes, tem sua função criativa plenamente reco- qualquer força psíquica, incluindo o ciúme.
nhecida e devidamente avaliada. Podemos mes- Simultaneamente a esta abertura para a vi-
mo afirmar que sem confrontar criativamente a vência plena do ciúme no Ciclo de Alteridade, va-
inveja e o ciúme, a Consciência humana nunca mos encontrar a mesma ocorrência com relação
chega a conhecer a alteridade, ou seja, a impor- a inveja. A abertura para o Outro e o desapego
tância do Outro no desenvolvimento da persona- ao orgulho defensivo do Eu abrem a Consciência
lidade. Confrontar a inveja e o ciúme, porém, na para avaliar e compreender a importância do Ou-
Consciência de Alteridade, certamente não quer tro. Isto permite duas coisas. Do ponto de vista
dizer codificá-los aprioristicamente, como ocorre do Eu, a dor humilhante da inveja é muito melhor
no dinamismo patriarcal, mas também não quer tolerada e assimilada. Do ponto de vista do Ou-
dizer exercê-los à vontade, como ocorre no dina- tro, o amadurecimento das uvas é plenamente
mismo matriarcal. Trata-se de algo maior e mais admitido, por ser esta a verdade objetiva.
complexo. Confrontar a inveja e o ciúme significa Com isto, podemos agora acrescentar, que
admitir a sua necessidade e acompanhar a sua Mozart e Salieri não se abriram para sua inveja
função estruturante buscando compreender sua em sintonia com nossa cultura, na medida em
direção e sentido. Confrontar a inveja e o ciúme que não ultrapassaram suas defesas parentais
significa, pois submeter-se a sua ação em fun- narcísicas e não puderam transcender seu or-
ção da compreensão de sua atuação no todo gulho defensivo, oriundo de uma fixação no
processual da Psique. seu desenvolvimento simbólico. Arquetipica-
No Ciclo de Alteridade, regido pelos Arquéti- mente falando, vemos agora, também, porque
pos da Anima, do Animus e da Conjunção (Co- a inveja destrutiva de Mozart era mais grave e
niunctio), o ciúme e a inveja necessitam ser, inconsciente que a de Salieri. É que a inveja de
então, plenamente aceitos como funções estru- Mozart, ao funcionar patologicamente em tor-
turantes. “Amar ao próximo como a si mesmo”, no de um complexo paterno negativo, era mais
expressa um dinamismo dialético extrovertido, muda do que a de Salieri por ser sociossintôni-
pregado no Mito Judaico-Cristão que significa ca e se ocultar sob defesas parentais, basica-
considerar o Outro distante e abrir-se para ele mente patriarcais. Já a de Salieri tornou-se mais
(este dinamismo é dialético porque propicia a emergente por não ser tão sociossintônica,
interação Eu-Outro em nível de igualdade e é posto que atuante predominantemente dentro
extrovertido porque acentua a importância do das defesas de alteridade. Mozart foi símbolo
amor ao próximo). “Virar a outra face” expressa da Anima de Salieri no seu Processo de Indivi-
um dinamismo dialético introvertido que signifi- duação. Ao negá-la, Salieri desvirtuou defensi-
ca tolerar a presença do Outro distante, ao invés, vamente o poder estruturante do seu Ciclo de
de patriarcalmente antagonizá-lo. Esta atitude Alteridade e perdeu o sentido do seu desenvol-
modifica inteiramente o triângulo amoroso do vimento existencial.

110 ■ Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 1º sem. 2019


No Ciclo Cósmico do desenvolvimento sim- solutamente dominante e as partes, uma sim-
bólico da personalidade, as funções do ciúme ples contingência.
e da inveja, que, normalmente atingem seu ápi- A inveja de Mozart e Salieri e o ciúme de Otelo
ce de reconhecimento e liberação no Ciclo de permaneceram nos dinamismos matriarcal, pa-
Alteridade, diminuem de importância cada vez triarcal e de alteridade. Sua dinâmica não atingiu
mais, na medida em que a Consciência admite a problemática da Consciência Cósmica. ■
a interação Eu-Outro, como uma unidade com
polaridade distensionada, no qual o todo é ab- Recebido em: 25/03/2019 Revisão: 31/05/2019

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Abstract
The psychology of envy and its role in the creative process: a study of
symbolic psychology
The author describes envy as a normal struc- zart’s Shadow. By defensively humiliating Salieri
turing function in the development of personal- through his creativity, Mozart greatly intensified
ity. Envy constellates symbols for development Salieri’s defenses against his own genuine cre-
and helps to discriminate the Ego from the Oth- ativity. Plotting against Mozart’s efforts to sup-
er (the I from not I) in the construction of iden- port his family through music lessons and court
tity. When envy is not given proper attention it services, Salieri significantly strengthened Mo-
becomes part of the Shadow, which may lead to zart’s defenses against social adaptation.
neurotic and even psychotic behavior. An exam- Such complementary defensive behavior pre-
ple is given in the relationship between Mozart vented envy from further creative development
and Salieri such as it was represented in Peter and established a neuro­­tic symbiotic relationship.
Shaffer’s play “Amadeus”. The creative forces of both personalities were so
Envy constellated the symbol of Mozart in powerful, however, that neurotic defenses were in-
the development of Salieri’s personality as an sufficient to express their pathological Shadows.
expression of his betrayed creativity. Since early Psychopathic aggression and psychotic megalo-
youth, social ambition had led Salieri to create maniac dynamism took over Salieri’s personality,
for fame instead of for his own Self. The betrayal while paranoid, persecutory delusion had and ir-
of the Anima formed a powerful symbol of pros- reversible effect on Mozart’s career.
tituted creativity in his pathological Shadow, The author further clarifies the role of envy in
which was constellated through envy when he normal and pathological development by com-
met Mozart. Unable to attend his envy creatively paring it with jealousy as expressed in Shake-
by confronting his Shadow, Salieri acted out his speare’s Othello. Envy is predominantly active,
envy destructively by destroying Mozart, his own Jang and revolutionary. It stimulates growth
Anima and himself. through greed. Jealousy is predominantly pas-
Envy constellated the negative father complex sive, Yin and reactionary. lt stimulates the main-
in Mozart’s personality when he met Salieri. The tenance of the status quo through the threat of
prodigious child soon surpassed his father. Lack loss. Envy functions predominantly through the
of appropriate protection, affection and loving power drive and favors Ego development by
guidance developed a negative father complex limiting omnipotence through self-humiliation
in Mozart’s personality. This prevented social ad- and competitive performance. Jealousy func-
aptation due to a compulsive aggression toward tions predominantly through the erotic drive by
authority figures expressed through defensive rejecting the Ego’s narcissistic self-assurance
irony, ridicule and overall irreverent behavior. through doubt. Both are archetypal structuring
Marriage and fatherhood activated the father functions indispensable for the symbolic devel-
role and strongly intensified these defenses. As opment of Consciousness from its very begin-
an Italian musician successfully serving the Vien- ning. While envy discriminates the Ego from the
nese monarchy, Salieri stood for an extraordinary Other through delimitation of the Ego’s power,
example of social adaptation and success. Envy jealousy discriminates the Ego from the intimate
constellated the negative father complex through Other by introducing a threatening, affectionate
the symbol of social unadaptation present in Mo- foreign Other. The author questions the classical

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psychoanalytical consideration of jealousy as a jealousy but on the threat, which the Other holds
later development of envy due to the triangular for the I in jealousy, which is a complementary
structure of jealousy as compared to the binary psychological function of the threat which the I
structure of envy. The author argues that jealou- holds for the Other in envy.
sy can act through an intimate Other, which is so The paper ends with a brief description of the
closely fused with the I that, psychodynamically different structuring functions of envy and jealou-
speaking, jealousy can function in the primary sy in each of the four archetypal cycles of symbol-
binary relationship as much as envy. The differ- ic personality development (matriarchal-patriar-
ence, then, lies not in the triangular structure of chal, otherness and cosmic). ■

Keywords: normal, constructive or creative envy, pathological, defensive or destructive envy. prostituted
creativity, anima betrayal. negative father complex, social unadaptation complex, normal, constructive or
creative jealousy, pathological, defensive or destructive jealousy.

Resumen
La psicología de la envidia y su función en el proceso creativo: un estudio de la
psicología simbólica
El autor analiza la pieza de teatro “Amadeus” de Salieri con la prostitución de su Anima. Explica
y estudia la función de la envidia en la relación de el deterioro progresivo de las personalidades de
Mozart y Salieri. Caracteriza la envidia como una Mozart y Salieri: al no asumir su envidia normal,
función estructurante normal de la mayor importan- ésta se volvió cada vez más sombría y patológica,
cia en el desarrollo de la conciencia. Llama atención superando el dinamismo neurótico y alcanzando
a la dificultad de comprender este hecho debido a lo psicótico. Describe la función estructurante nor-
que nuestras concepciones psicológicas se hallan mal de los celos para mejor discriminar la envidia y
todavía dominadas por la obra represora-puritana ejemplificar los celos patológicos con la pieza Otelo
de la Inquisición. Afirma que en la presentación de de Shakespeare. Finalmente, diferencia la función
la pieza la patología mental de Mozart es aún may- estructurante normal de los celos y la envidia en los
or que la de Salieri. Relaciona la envidia patológica ciclos arquetípicos matriarcal, patriarcal, de alteri-
de Mozart con un complejo paterno negativo y la dad y cósmico. ■

Palabras clave: Envidia constructiva o normal, envidia destructiva, patológica o defensiva, creatividad
prostituida, traición de la propia anima, celos normales o creativos, celos patológicos o defensivos, complejo
paterno negativo, complejo de desadaptación social.

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A ciência simbólica. Epistemologia e


arquétipo: uma síntese holística do
conhecimento objetivo e subjetivo1

Carlos Amadeu B. Byington*

Resumo
O autor analisa a unilateralidade da objetiv- Demonstrando que o padrão de relação ob-
idade em detrimento da subjetividade no con- jetal Eu-Outro e Outro-Outro no padrão de alteri-
hecimento científico. Contrariamente a muitos dade é quaternário e que este padrão expressa a Palavras-chave
filósofos da ciência que situam esta unilaterali- plenitude simbólica na inter-relação das polari- ciência
dade como decorrente principalmente do próprio dades durante o desenvolvimento da consciên- simbólica,
padrões
desenvolvimento científico, o autor a interpreta cia, o autor propõe um método científico qua-
arquetípicos
basicamente como uma dissociação patológica ternário de relacionamento subjetivo-objetivo
da consciência,
do Self Cultural do Ocidente ocorrida no final do que denomina ciência simbólica e que relacio- padrão de
século XVIII quando da separação ciência-religião. na significativamente o conhecimento objetivo alteridade da
Apresentando sua teoria do desenvolvimento e subjetivo. consciência,
simbólico da consciência individual e coletiva por A seguir, o autor descreve a metodologia da elaboração
intermédio de quatro arquétipos principais (ma- ciência simbólica e a prática de uma pedagogia simbólica
triarcal, patriarcal, alteridade e totalidade), o au- simbólica. Propõe também a releitura de ensina- quaternária,
mentos de outras culturas e de pensadores do causalidade
tor caracteriza a prática do método científico por
mágica,
intermédio do arquétipo de alteridade. Descreve Ocidente antes da dissociação, para que, à luz
causalidade
cinco posições básicas para qualquer elaboração da interação quaternária, seus símbolos possam
demonstrativa,
simbólica (indiferenciada, insular, polarizada, di- ser reelaborados, resgatando muito do saber sincronicidade,
alética e contemplativa) e assinala que o cientista não compreendido devido ao emprego dissocia- via esotérica,
e a pesquisa científica podem percorrer todas es- do das polaridades subjetivo-objetivo. via objetiva,
tas cinco posições na relação sujeito-objeto. Concluindo, o autor assinala que esta disso- método
ciação no padrão de alteridade impede a elab- simbólico
1
Conferência pronunciada no I Congresso Holístico Internac- de pesquisa
ional. Brasília, março 1987, publicada no livro “O Novo Par- oração quaternária simbólica plena e dificulta
adigma Holístico”, São Paulo, Summus Ed., 1991. Publicado a compreensão de símbolos do Arquétipo da científica,
originalmente na Junguiana 5, 1987, p. 5-21.
Totalidade no processo existencial, que prepa- pedagogia
* Médico psiquiatra e Psicoterapeuta, Membro Analista da So-
ciedade Brasileira de Psicologia Analítica. simbólica.
ra a consciência para a morte como vivência
E-mail: <c.byington@uol.com.br>
Site: www.carlosbyington.com.br de transformação. ■

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A ciência simbólica. Epistemologia e arquétipo: uma síntese holística do


conhecimento objetivo e subjetivo

“O símbolo mais transcendente que rarem esta maior ênfase no polo objetivo como
existe é a verdade”. uma consequência natural da avalanche de
descobertas objetivas e da revolução industrial
Quando percorremos os marcos históricos tecnológica (CAPRA, 1982). Estes fatores, ainda
da ciência moderna, nos damos conta que po- que muito importantes, não me parecem a cau-
demos situar a reflexão sobre o conhecimento sa principal da dissociação subjetivo-objetivo,
(COMMINS; LINSCOTT, 1954) em função da re- ocorrida no humanismo ocidental. Como anali-
lação sujeito-objeto e da relação dos objetos sarei adiante, a causa principal disto foi prova-
entre si. Por mais que variem as epistemologias velmente a ruptura ciência-religião no século
(HOUDE; MULLALY, 1960), estes dois parâmetros XVIII e as raízes históricas deste rompimento
são permanentes. Existe um terceiro, inerente na obra persecutória e repressiva da Inquisição.
à metodologia do conhecimento, que também Não se tratou, pois, simplesmente da ocorrência
sempre foi reconhecido. Trata-se da constatação de uma maior ênfase cultural no polo objetivo,
de que a busca da verdade se faz dentro de um o que poderia ser explicado por intermédio da
todo imenso e desconhecido. revolução tecnológica, mas de uma dissociação
Examinando as maneiras como o ser humano patológica do Self Cultural europeu.
desenvolve o conhecimento, sem refletir especi- Acumulou-se assim um enorme saber sobre
ficamente sobre ele, vemos uma mistura desses a natureza, lado a lado com um mínimo conhe-
três parâmetros sob as mais variadas formas. cimento sobre a subjetividade. É comum encon-
Grande parte do desenvolvimento das ciên- trar-se um currículo de 18 anos de estudo (que
cias no Ocidente, porém, se fez seguindo um culminou com diploma universitário), durante o
caminho característico. Principalmente a partir qual não foi estudado, durante um semestre se-
do século XVIII, a polaridade sujeito-objeto foi quer, a formação e o desenvolvimento da cons-
considerada de modo específico, para se afastar ciência e as vicissitudes de amar, criar e morrer.
o componente subjetivo da inter-relação dos fe- Um engenheiro pode se especializar por
nômenos entre si. Isto foi feito, tanto nas chama- mais dez anos sem nunca aprender os padrões
das ciências da natureza, quanto nas ciências arquetípicos que regem o pensamento. Antro-
humanas (BACHELARD, 1960). pólogos, sociólogos e cientistas políticos po-
O polo subjetivo foi identificado com o erro e dem chegar ao mestrado e ao doutoramento
sistematicamente afastado da observação cien- após 25 anos de estudo (18 de graduação, três
tífica, vendo-se nele apenas o que poderia atra- de mestrado e quatro de doutorado) sem saber
palhar a observação e não o que poderia contri- o que quer dizer a estruturação da consciência
buir para ela (MARGENAU, 1950). Criou-se, com através de símbolos a partir de relações indife-
isso, um preconceito contra a subjetividade e um renciadas. Um médico pode se tornar professor
gigantesco viés na epistemologia. titular de Anatomia, Fisiologia ou Clínica Mé-
As dissociações mente-corpo, indivíduo- dica sem ter a menor noção do que é o corpo
-sociedade, psique-natureza e racionalidade- simbólico e sua função na estruturação normal
-irracionalidade (consciente-inconsciente) são da consciência, na formação de sintomas e na
consequências da grande dissociação sujeito- relação médico-paciente. No entanto, todos es-
-objeto. Apesar de muitos historiadores conside-

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tes especialistas trabalham convictos de que mento do cientista diante do bem e do mal tem
sabem como é o ser humano. que acompanhar o desenvolvimento do conhe-
Os resultados produtivos deste caminho es- cimento. O conhecimento atual da formação do
tão aí inegáveis na imensa aquisição de conhe- caráter e dos seus distúrbios situa a ética como
cimento expresso, entre outras coisas, pela tec- uma função arquetípica inata no desenvolvimen-
nologia moderna. Este imenso acúmulo de saber to da personalidade. Nesse sentido, a defesa da
ocorre, porém, com frequência, indiferente ao separação da pesquisa e da responsabilidade
destino humano: fome e miséria em mais da me- moral do emprego do conhecimento adquirido
tade do mundo, devastação e desequilíbrio eco- é claramente uma proposta psicopática, isto é
lógico em larga escala, uso alienante progressivo um distúrbio da formação do caráter do cientis-
de psicotrópicos, envenenamento alimentar com ta. Isto quer dizer que a função ética é inerente
pesticidas e corrida armamentista mundial com à aquisição do conhecimento e que a proposta
potencial genocida aterrador, exaustão progres- da necessidade de se submeter artificialmente a
siva das reservas e contaminação da atmosfera pesquisa científica à ética advém da dissociação
e dos mananciais. anormal da polaridade subjetivo-objetivo.
À volta e no centro desta alienação humanis- A necessidade crescente do estudo do co-
ta e holística, distinguimos a ignorância defensi- nhecimento objetivo como um fenômeno huma-
va e orgulhosa sobre como se forma e desenvol- no, com a participação do parâmetro subjetivo
ve a consciência humana, a principal reguladora no próprio desenvolvimento da ciência a partir
do saber e da conduta. da teoria restrita da relatividade, publicada por
Nesse sentido, quero, neste trabalho, refle- Einstein em 1905, coincidiu significativamente
tir sobre os limites da ciência em duas grandes com as descobertas de Freud e Jung sobre a na-
fronteiras, ambas relacionadas com a negli- tureza da psique.
gência do estudo do polo subjetivo na relação O problema de trazermos a psicologia para
subjetivo-objetivo. socorrer a dissociação subjetivo-objetivo da ci-
A primeira, diz respeito ao próprio conheci- ência é que ela própria – também como ciência
mento do polo objetivo. Damo-nos cada vez mais que é – nasceu e floresceu dentro desta disso-
conta de que o estudo da natureza, da macro e ciação. Assim, as descobertas geniais dos seus
da microfísica, do universo dos átomos e das pioneiros foram por eles mesmos consideradas
galáxias, em meio do continuum espaço-tempo, num conceito de psique identificada com o sub-
para prosseguir, necessita conhecer o funciona- jetivo e dissociada da natureza em sua própria
mento da psique. De fato, o aprofundamento do essência. Como analisaremos adiante, o resgate
conhecimento de categorias básicas como gra- da dissociação subjetivo-objetivo só pode ser
vidade, energia, matéria, eletromagnetismo e feito por uma psicologia que perceba a energia
espaço-tempo implica no aumento do conheci- psíquica como uma das formas de energia física.
mento da imaginação (CAPRA, 1983). Soma-se a É à luz deste enfoque que edificaremos o con-
isso a noção crescente resultante das pesquisas ceito de símbolo, como ponto de união do subje-
em psicologia da criatividade, segundo a qual, tivo e do objetivo, viga-mestra de uma teoria de
a descoberta científica, longe de depender ex- ciência simbólica.
clusivamente da lógica, surge por vias frequen- Com Freud, percebemos a estruturação da
temente irracionais tais como intuições, sonhos consciência a partir do inconsciente e com Jung
e fantasias, ainda dificilmente compreensíveis aprendemos que o inconsciente é formado por
pelo conhecimento atual (KOESTLER, 1964). matrizes criativas de símbolos. A união das duas
A segunda diz respeito à inter-relação ética obras permite relacionar dinamicamente a es-
entre conhecimento e conduta. O posiciona- truturação de padrões operativos da consciên-

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cia, coordenada por arquétipos do inconsciente a interação conjugal e familiar igualitária, a eco-
coletivo do início ao fim da vida através de sím- logia balanceada, a imunologia e a pedagogia
bolos. Isto quer dizer que a consciência opera criativa (BYINGTON, 1981).
arquetipicamente através de padrões de relacio- O dinamismo de alteridade, como padrão
namento independentemente da natureza dos estruturante da consciência coletiva, surge
símbolos em si. culturalmente através de expressões míticas e
As obras psicológicas de Freud e Jung e as históricas do inconsciente coletivo como, por
pesquisas delas decorrentes – desde que pen- exemplo, no Taoismo e no I Ching (oráculo qua-
semos a energia psíquica como uma diferen- drimilenar chinês), na interação consulta-êxta-
ciação da energia física – permitem-nos hoje se-revelação do Oráculo de Delphos e na rela-
perceber o desenvolvimento arquetípico da ção morte-vida dos Mistérios de Eleusis, ambos
consciência, através dos símbolos, do início ao na Grécia, no caminho do meio do Budismo e
fim da vida, como uma atualização do potencial no “amar ao próximo como a si mesmo” do Cris-
do arquétipo central, com suas características tianismo (BYINGTON, 1982).
de criatividade e centralização coordenada. O exposto nos demonstra que a prática do
Permitem-nos, também, descrever quatro ciclos método científico faz parte de um estado de
arquetípicos que regem, lado a lado, esse de- consciência e que, por isso, a mentalidade cien-
senvolvimento e, com isso, diferenciar quatro tífica não pode ser restrita a uma mera busca da
padrões básicos de funcionamento da consci- objetividade, sob pena de não compreendermos
ência: matriarcal, patriarcal, alteridade e cósmi- seu contexto humano. Reduzir a mentalidade
co (BYINGTON, 1983). científica à objetividade por ela estudada é equi-
Estas descobertas nos mostram que a atitu- valente a estudarmos as cores da natureza sem
de da consciência, com a neutralidade neces- jamais nos ocorrer a necessidade da compreen-
sária para o exercício sistemático do método são do fenômeno da visão.
científico, coincide com o terceiro ciclo arque- A formação do Ego, seu amadurecimento e
típico, ou seja, com o ciclo de alteridade. Com sua capacidade de relacionamento com os ob-
efeito, depois de sofrer a estruturação matriarcal jetos como um fenômeno inseparável foi uma
e patriarcal, é somente neste terceiro ciclo que descoberta da Psicanálise e tem sido um tema
a consciência ultrapassa o narcisismo inerente extensamente estudado por sua Escola Inglesa
aos ciclos parentais e se capacita para relacionar através do que passou a ser chamado de teoria
o Ego e o Outro (bem como as coisas entre si) do relacionamento objetal. Nesse sentido, Me-
dialética, criativa e igualitariamente: condições lanie Klein distingue duas posições básicas do
essenciais para o exercício da crítica científica Ego, a esquizoparanoide e a depressiva. Na pri-
sistemática. Percebemos aí, nitidamente, que meira, o Ego é basicamente “maniqueísta”, pois
a permanência da ciência no estudo da relação não consegue se relacionar com os polos ódio e
das coisas entre si, excluindo a subjetividade, amor no mesmo objeto. Na segunda, isto se tor-
não só não é necessária para o método científi- na possível (KLEIN, 1952 p. 292-94).
co, como é mutiladora para o funcionamento da Algo muito importante nas posições de Me-
consciência (BYINGTON, 1986a). lanie Klein é que ela inicialmente as descreveu
O conhecimento da estruturação de padrões como fases evolutivas do Ego. Posteriormente,
da consciência através dos arquétipos nos per- porém, percebeu que podiam ser adotadas dian-
mite ver que o padrão de alteridade, requerido te de qualquer relacionamento objetal, em qual-
para o método científico é o mesmo padrão ne- quer fase da vida, sempre mantendo uma rela-
cessário para as mais diversas atividades huma- ção evolutiva entre elas. Esta noção abre a teoria
nas, tais como a atividade política democrática, de formação da consciência para a noção de que

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Junguiana
v.37-1, p.115-134

o Ego, mesmo adulto, passa necessariamente inadequado e imperfeito. Para Popper, a desco-
por situações “menos lúcidas” para adquirir lu- berta nova contribui para a verdade de duas for-
cidez diante de novas experiências. mas. Uma quando surge e explica novos fenôme-
O psicanalista argentino José Bleger seguindo nos. Outra, quando percebe o que ela ainda não
os trabalhos ingleses de Melanie Klein e de Mar- explica. Nesse sentido, o estado de constatação
gareth Mahler (1958) descreveu uma fase anterior do não saber é tão importante para a busca cien-
à posição esquizoparanoide, como um estado tífica da verdade quanto o saber (POPPER, 1974).
simbiótico, no qual, o Ego não pode perceber o Deste modo, o correspondente psicológico à
objeto por estar em fusão com ele. Denominou a constatação do não saber é exatamente o estado
esta posição gliscocárica (BLEGER, 1977). de indiscriminação do Ego que lhe permite per-
Quando aplicamos, em vez de fases, também correr as posições simbiótica, esquizoparanoide
a noção de posição a esta situação primária do e depressiva diante de objetos a cada nova si-
Ego chegamos, então, a três posições, ou seja, tuação de crescimento e transformação dentro
simbiótica, esquizoparanoide e depressiva. do ciclo arquetípico em que o objeto ou símbolo
Ora, descrevermos posições em vez de fases está naquele momento sendo elaborado.
significa admitirmos que estes padrões de rela- A correlação do conhecimento e dos esta-
cionamento não só se encontram na formação dos de transformação do Ego com os quatro
do Ego, como também na sua maneira de se ciclos estruturantes da consciência (matriarcal,
relacionar diante de vivências novas durante a patriarcal, alteridade e cósmica) permite-nos
vida. É o mesmo que dizer que estas posições perceber os padrões de relacionamento do Ego
do Ego são arquetípicas, ou seja, são formas com objetos (Eu-Outro) de forma mais ampla
inatas de relacionamento, acionadas diante de que as três posições acima referidas (simbió-
determinadas situações existenciais e cultu- tica, esquizoparanoide e depressiva), pois a
rais. Resta-nos, então, procurar a ligação entre forma como estas posições estão descritas tem
estes padrões e os arquétipos do inconsciente três grandes limitações.
coletivo para compreendermos a relação do A primeira é a evidente mistura com a pato-
conceito de arquétipo com a teoria do conheci- logia, presente já na sua denominação. A segun-
mento científico. da é a não percepção de que estas posições do
Esta aproximação entre psicologia e ciência Ego ou padrões de consciência são diferentes
para chegarmos à compreensão do que é ciência em cada ciclo arquetípico, apesar de em cada
simbólica requer admitirmos que o Ego, diante ciclo, passarem pelos estágios de simbiose, com
de situações novas, passa por estados de menor indiscriminação e discriminação, a cada nova
discriminação através dos quais se desenvolve à transformação do Ego. A terceira é a não percep-
medida que adquire conhecimento. Este estado ção de que a posição depressiva, ao caracterizar
de menor discriminação ou de indiscriminação o estado pleno da relação objetal, pela presen-
do Ego não é então uma regressão, pois é ineren- ça dos dois polos no mesmo objeto, permanece
te e, por isso, indispensável ao seu crescimento muito aquém de expressar a capacidade total
normal junto com a aquisição do conhecimento. psíquica de relacionamento.
Dentro da filosofia da ciência objetiva, o filó- Por isso, adoto para caracterizar os graus de
sofo Carl Popper referenda esta possibilidade, diferenciação da relação Eu-Outro durante a ela-
ao descrever as condições necessárias para o boração simbólica cinco posições denominadas
conhecimento objetivo. Segundo Popper, a men- indiferenciada, insular, polarizada, dialética e
talidade científica se abre para a verdade na me- contemplativa.
dida em que admite não só o erro como parte do A posição indiferenciada caracteriza-se por
caminho, mas, também, o próprio saber como tal fusão entre sujeito e objeto que frequente-

Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 1º sem. 2019 ■ 119


mente nem percebem que uma relação está em víamos em relação indiferenciada com os mi-
andamento. Esta posição geralmente dá início a cróbios. Algo que embolorasse ou apodrecesse
toda elaboração simbólica. fazia simplesmente parte da realidade. Com o
A posição unilateral ou insular ocorre geral- advento do microscópio e da microbiologia, co-
mente logo após a relação indiferenciada e aqui nhecemos os microrganismos e muitos dos seus
somente alguns aspectos das polaridades são defeitos nocivos e benéficos (posição insular).
enfatizados separadamente, como, por exem- A partir de Fleming, descobriu-se cada vez mais
plo, nas vivências sexuais para pura satisfação que fungos e bactérias formavam uma polarida-
pessoal, nas reações agressivas que não con- de frequentemente antagônica (posição polari-
sideram suas consequências, nos julgamentos zada). Foram necessários, porém, muitos anos
que dão razão a parentes e amigos independen- de pesquisa com os antibióticos para se chegar
temente do que fizeram etc. à posição dialética, aprofundar o conhecimento
A posição polarizada, antagônica ou confliti- da relação entre fungos e bactérias e descobrir o
va é aquela na qual ambos os polos do símbolo segredo da formação da resistência das bacté-
são discriminados essencialmente em função rias aos antibióticos.
do seu aspecto de oposição. Percebe-se a opo- Finalmente, a posição contemplativa é aque-
sição entre a saúde e a doença mental, a opu- la capaz de perceber as coisas na realidade uni-
lência e a miséria social, o amor e o ódio, a vida tária, na qual o Ego contempla o todo que o en-
e a morte, por exemplo, mas não se percebe a volve em suas relações com o outro.
relação dialética entre seus polos dentro de um Estas cinco posições geralmente operam
todo processual. de forma evolutiva e se relacionam com os
Na posição processual ou dialética, a rela- quatro ciclos arquetípicos da seguinte forma:
ção Eu-Outro ou Outro-Outro é percebida dentro a posição indiferenciada no mais das vezes
de um processo no qual as polaridades intera- está presente no início da elaboração simbó-
gem significativamente dentro de um todo. O lica em todos os ciclos. A insular é caracte-
termo processual provém da obra de Alfred Nor- rística do dinamismo binário matriarcal, mas
th Whitehead intitulada “Process and Reality” e pode também ser exercida evolutivamente nos
o termo dialética foi assim empregado por Marx dinamismos patriarcal, de alteridade e cósmi-
e Engels na interpretação das transformações co. A posição polarizada é característica do
sociais. Esta posição não inclui a teoria política dinamismo patriarcal, mas pode ser exercida
da luta de classes porque esta teoria enfatiza evolutivamente nos dinamismos de alteridade
somente os aspectos conflitantes das classes e cósmico. A posição dialética é básica no di-
sociais e, por isso, pertence à posição polari- namismo de alteridade, mas pode ser exercida
zada da consciência e não à posição dialética evolutivamente no dinamismo cósmico. Final-
(BYINGTON, 1981). mente, a posição contemplativa é característi-
Os termos dialética e processual, a meu ver, ca do dinamismo cósmico.
referem-se a relação Eu-Outro e Outro-Outro na Não podemos subestimar a importância da
plenitude da interação do processo de elaboração passagem do saber pelo não saber no cresci-
simbólica. Esta posição é aquela na qual a cons- mento do conhecimento objetivo, fato que aqui
ciência adquire a capacidade de exercer o relacio- correlacionamos com a passagem e repassagem
namento quaternário das polaridades e por isso, habitual do Ego pela posição indiferenciada du-
ela opera na elaboração dos símbolos predomi- rante suas transformações. Vimos como Popper
nantemente dentro do ciclo de alteridade. se abre na filosofia para este fato, ao valorizar a
No caso do estudo dos antibióticos, por função da constatação do não-saber na busca da
exemplo, na época anterior ao microscópio, vi- verdade objetiva.

120 ■ Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 1º sem. 2019


As dificuldades do saber e sua inter-relação damentar teoricamente a luta armada pelo po-
com o não saber sempre existiram em qualquer der do comunismo. Com isso, a interação não só
reflexão sobre o conhecimento. Lembremos conflitiva, mas também criativa das polaridades
apenas como ilustração, como Zenão de Eléia (indispensável para que qualquer relação seja
explicou o ceticismo de Parmênides, para com- realmente dialética), foi deixada de lado. No en-
preender o movimento, através da corrida entre tanto, sua importância política favoreceu o estu-
Aquiles e a tartaruga. Para chegar ao final, Aqui- do e a difusão da dialética, à qual deu imensa
les deveria chegar à metade do caminho. Mas, importância, a ponto de se autodenominar ma-
para atingir a metade, deveria primeiro atingir a terialismo dialético. Engels, em sua “Dialética da
metade desta e assim por diante, com infinitas Natureza”, chama especial atenção para o fato
metades, de tal forma que Aquiles não sairia do de os opostos serem intercambiáveis (ENGELS,
lugar e jamais ultrapassaria a tartaruga. Ou, en- 1976 p. 7).
tão, o célebre mito da caverna, de Platão, no qual Sob este ângulo, podemos dizer que a Filo-
nosso conhecimento das coisas é comparado à sofia foi muito mais longe que a Psicologia, no
visão que teríamos das sombras das coisas no desenvolvimento do conhecimento da inter-re-
fundo de uma caverna, coisas essas que jamais
lação Eu-Outro, sobretudo se acrescentarmos a
veríamos diretamente.
estes exemplos, os estudos contemporâneos da
A “Crítica da Razão Pura”, de Kant, ao descre-
relação Eu e Tu por Martin Buber (BUBER, 1977).
ver a limitação da razão, continua esta tradição,
No entanto, somente a relação dialética igua-
mas dela se distingue por ter sido escrita em
litária, criativa e intercambiável entre as pola-
pleno século XVIII, quando o saber científico ob-
ridades, mesmo quando trazida para a relação
jetivo se avolumava extraordinariamente. Nesse
Eu-Outro é insuficiente para compreender o que
sentido, a argumentação de que o conhecimento
é o fundamento arquetípico do padrão da cons-
racional é limitado e se apoia num a priori senso-
ciência de alteridade. Não basta sabermos que o
rial que constata intuitivamente o fenômeno do
subjetivo interage com o objetivo em igualdade
espaço e do tempo formou um baluarte do subje-
de condições no conhecimento científico. É pre-
tivo contra a atitude unilateral e preconceituosa
ciso percebermos que a diferenciação de ambos
que tenta até hoje reduzir a verdade ao objetivo
emerge de uma raiz comum que é o símbolo.
no pensamento científico.
Continuando Kant, a lógica de Hegel basea- Para isso, precisamos compreender e reformular
da na dialética dos contrários, segundo a qual o conceito de símbolo, pois a psicologia tradicio-
a tese e a antítese geram a síntese, abre o pen- nal o identificou unilateralmente com o subjeti-
samento para a interdependência ou mutualida- vo, em razão da mesma unilateralidade cultural
de dos contrários, que caracteriza a consciência que equacionou a verdade científica com o polo
quaternária de alteridade. Ao chamar a atenção objetivo do saber.
para o fato de que as polaridades se relacionam A menos que a energia psíquica inclua nas
de tal modo igualitário e criativo e que são até suas apresentações simbólicas uma represen-
mesmo intercambiáveis, Schelling contribuiu de tação igual para o subjetivo e o objetivo, para
forma importante para o tema. o eu e o outro, a descrição dos padrões psi-
Dentro da redução ao socioeconômico, o cológicos de relacionamento será sempre for-
materialismo histórico aplicou a dialética dos çosamente mutilada pela dissociação psique-
contrários abundantemente. Além do redutivis- -mundo e a psicologia nada poderá fazer para
mo do cultural ao socioeconômico, sua grande resgatar a metodologia científica desta dis-
limitação foi reduzir a dialética das classes so- sociação. Mais uma vez, a Filosofia caminhou
ciais exclusivamente à luta de classes para fun- muito na frente da Psicologia.

Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 1º sem. 2019 ■ 121


Paralelamente ao movimento em direção o crescimento do conhecimento objetivo não
ao estudo da subjetividade na Psicologia e na necessita ser exclusivamente racional e pode
Física, registramos na Filosofia, através das naturalmente ser acompanhado do crescimento
obras de Chardin e Heidegger, duas contribui- do conhecimento subjetivo, posto que ambos
ções de grande importância para a interação partem de uma raiz simbólica que os engloba
da polaridade sujeito-objeto, ultrapassando e confunde em sua origem. A partir desse fato,
a dicotomia psique-mundo, em nosso século. não precisamos mais continuar “ignorando” que
Chardin descreve a formação da consciência o conhecimento e a criatividade científica emer-
sem solução de continuidade com a diferen- gem tanto de fontes misteriosas, como fantasias
ciação da matéria (CHARDIN, 1956). Heidegger e sonhos, quanto da mais pura lógica racional.
ultrapassa a dicotomia sujeito-objeto, tornan- Esta função de veicular polaridades para a
do o Ser-no-Mundo a essência da ontologia e transformação da consciência, outorga ao sím-
o conceito central de sua obra (HEIDEGGER, bolo a capacidade de formar a identidade do Ego
1962). A partir destas duas obras, torna-se in- e do Outro na consciência, raiz do conhecimento
correto o estudo de qualquer símbolo expres- subjetivo e objetivo. A partir desta formulação
sivo da energia psíquica que exclua a polarida- emerge o conceito de ciência simbólica que en-
de subjetivo-objetivo. globa o da ciência objetiva.
O conceito de símbolo é antigo, nas ciências, A ciência simbólica amplia, assim, o concei-
tanto físicas quanto humanas, mas a partir dos to de identidade do Eu na Psicologia e do Outro
estudos da formação e transformação da consci- na epistemologia da objetividade nas ciências
ência pertencente a uma realidade psíquica não naturais, ao estudar a formação da identidade
alienada do mundo, percebemos que antes das do Eu junto com a formação da identidade do
polaridades se formarem na consciência, mes- Outro na estruturação da consciência. Desta
mo as polaridades subjetivo-objetivo e Eu-Outro maneira, a ciência simbólica postula que todo
estão reunidas dentro do símbolo. acontecimento humano é sempre também sim-
A partir desta perspectiva, o símbolo se tor- bólico, pois, de alguma forma, inclui consciente
na o conceito central da Psicologia, pois passa ou inconscientemente a vivência da polaridade
a operar como intermediador simultâneo entre Eu-Outro.
os processos conscientes e inconscientes, entre Além do conceito de símbolo, um dos prin-
o individual e o cultural e entre o subjetivo e o cipais conceitos da Psicologia Simbólica é o
objetivo. Nessas funções, o símbolo se torna o conceito de Self que reúne a interação dos fe-
grande transformador da energia psíquica. nômenos conscientes e inconscientes no nível
Sabemos de há muito que a consciência fun- individual e cultural. Ao admitirmos a estrutu-
ciona através de polaridades. Ao descobrirmos ração da consciência coletiva pelos símbolos,
que os símbolos contêm as polaridades, antes junto com a consciência individual, abrimos a
de estas se separarem na consciência, eles de- ciência simbólica para a antropologia e a his-
vem ser considerados a fonte de formação e tória e passamos a compreender a separação
transformação da consciência. Surge, assim, o unilateral da ciência objetiva da subjetividade,
conceito de símbolo estruturante, pois é o sím- no final do século XVIII, não somente como a
bolo que dá origem à formação da polaridade maravilha que o iluminismo supôs, mas tam-
Ego-Outro na consciência, seja este outra natu- bém como uma grave dissociação patológica do
reza, corpo, sociedade ou até mesmo ideias e Self Cultural europeu, pela qual o mundo inteiro
emoções (Gráfico 2). haveria de sofrer.
Assim, em função do conhecimento da estru- A cultura ocidental, no que concerne a suas
turação da consciência, damo-nos conta de que raízes greco-romanas e judaico-cristãs, empre-

122 ■ Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 1º sem. 2019


endeu sua busca do desenvolvimento da alte- O dinamismo matriarcal caracteriza-se pelo
ridade em condições históricas e culturais, nas relacionamento íntimo da polaridade conscien-
quais o padrão arquetípico patriarcal da consci- te-inconsciente e se expressa principalmente
ência coletiva predominava nitidamente sobre o pela afetividade, pelo corpo e pela natureza.
padrão matriarcal. Apesar de dominante no início da vida, é um
Sumariando ao máximo a descrição dos grande erro reduzi-lo à infância. Orientado pelo
quatro grandes padrões arquetípicos, deve- desejo, pela sensualidade e pela fertilidade,
mos iniciar pela descrição do padrão matriar- este dinamismo é coordenado pelo Arquétipo
cal que é o primeiro a estruturar a consciência. Matriarcal (NEUMANN, 1955) e perdura até o final
Seguem-se os padrões patriarcal, de alterida- da vida. A proximidade da polaridade conscien-
de e cósmico. Todavia, é importantíssimo apli- te-inconsciente propicia seu funcionamento nor-
car a estes padrões o conceito estrutural-evo- malmente na possessão, na magia e na vidência,
lutivo, segundo o qual eles são constelados erroneamente confundidas com suas manifesta-
sequencialmente, mas, depois, operam lado a ções patológicas na histeria e delinquenciais no
lado na sua função coordenadora dos símbo- charlatanismo.
As polaridades operam na consciência ma-
los estruturantes da consciência.
triarcal bastante separadas e entremeadas de
Mesmo sucedendo o padrão matriarcal no
inconsciência como um arquipélago de ilhas
seu aparecimento histórico, o padrão patriarcal
no oceano. Isto fez com que o “seio bom” fosse
pode ou não ser dominante mesmo quando in-
descrito como incompatível com o “seio mau” na
tensamente operativo. Na personalidade indivi-
descrição da posição esquizoparanoide. Parece-
dual e nas culturas, podemos até mesmo falar de
-me ter havido aqui uma confusão entre a pato-
uma tipologia matriarcal-patriarcal, formando os
logia e a normalidade. No dinamismo matriarcal,
tipos matriarcal e patriarcal dominante, que não
seja na criança, seja no adulto, é perfeitamente
excluem a presença dos outros dois dinamismos
possível a vivência do ódio e do amor com a mes-
na estruturação da consciência.
ma pessoa. O que acontece é que isso se passa
Isto quer dizer que, ainda que frequentemen-
em momentos diferentes sem que a memória
te sejam intensamente conflitantes, estes qua-
necessariamente registre os dois momentos e os
tro padrões arquetípicos de funcionamento da situe em antagonismo. Não se trata de um split,
consciência não são mutuamente exclusivos na como na patologia, e sim da própria condição in-
psique. Achar que um exclui o outro é tornar-se sular da consciência matriarcal, na qual, ora se
vítima do evolucionismo não estrutural, que tem ativa um polo, ora outro polo de uma polaridade.
contaminado e invalidado o emprego do concei- A criança pode e até mesmo costuma viven-
to evolucionista em inúmeras obras de psicolo- ciar o amor e o ódio com sua própria mãe. O
gia e antropologia, tornando-o instrumento do que ela geralmente não faz é, durante o amor,
redutivismo mutilador. lembrar-se do ódio e refletir sobre como é
O conceito de evolucionismo-estrutural é possível amar assim alguém que, na véspera,
especialmente necessário para se compreen- tanto se odiou. Por isso, o padrão matriarcal é
der a formação da identidade na sociedade binário. O Eu se relaciona com o Outro que é
multicultural brasileira, evitando o racismo polo de uma polaridade numa vivência e com o
pelo etnocentrismo conceitual. Das quatro cul- outro polo, noutra. Cada vivência matriarcal se
turas e raças que compõem nossa sociedade, expressa assim por uma relação Eu-Outro num
as culturas índias e negras são matriarcal-do- contexto binário.
minantes e as culturas japonesa e europeia O padrão ou dinamismo patriarcal é coor-
são patriarcal-dominantes. denado pelo Arquétipo do Pai e nele, a cons-

Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 1º sem. 2019 ■ 123


ciência opera assimetricamente suas polari- ca, ecológica, corporal e ideológica-emocional,
dades, devido a sua estruturação ser feita por e, ao mesmo tempo, são coordenados, em maior
uma delimitação intensa através de fatores ou menor grau, por cada um dos quatro padrões
dogmaticamente codificados. arquetípicos expressos através dos quatro prin-
Um exemplo exuberante da estruturação da cipais ciclos estruturantes: matriarcal, patriar-
consciência coletiva patriarcal é, por exemplo, cal, alteridade e cósmico.
o caso dos Dez Mandamentos no Velho Testa- O padrão de alteridade estrutura a consciên-
mento. Sua característica autoritária é profun- cia individual e coletiva sempre através de pola-
damente estruturante pela delimitação das po- ridades, como nos demais padrões, com a dife-
laridades, mas, ao mesmo tempo, isso torna a rença de que, na alteridade, a inter-relação entre
relação Eu-Outro desigual e incapaz de se rela- as polaridades é simétrica, igualitária, dialética
cionar igualitariamente. Devido a essa codifica- criativa e, até mesmo, intercambiável. Este inter-
ção assimétrica da consciência, o Eu ou o Outro cambiável aqui quer dizer que o relacionamen-
opera geralmente de forma autoritária, não raro to do Eu com o Outro necessita ser igualitário a
despótica. Esta organização abstrata e aprio- ponto de o Eu, ao menos na imaginação, poder
rística dota o dinamismo patriarcal de grande trocar de posição com o Outro.
capacidade planejadora, dirigida pela busca de Um bom exemplo de alteridade é aquele
perfeição e sempre orientada pelo princípio da governo democrático no qual governantes e
tarefa e da causalidade. governados necessitam interagir dentro da no-
Um belo exemplo do dinamismo patriarcal é ção de liberdade, igualdade e fraternidade e,
a interpretação que José dá ao sonho do Faraó, até mesmo, serem capazes de se imaginar um
das sete vacas magras que viriam depois das no papel do outro para interagirem com toda a
sete vacas gordas. Sob a orientação de José, o produtividade da alteridade. Outro exemplo é o
Egito construiu silos por todo o país, que permi- da medicina imunológica, na qual a polaridade
tiram a estocagem da produção e a organização anticorpo (defesa) e antígeno (micróbio) é estu-
da economia a logo prazo. O direito patriarcal, dada em sua capacidade de gerar tanto a saúde
outorgando, exigindo e dirigindo a responsabi- quanto a doença. Com isto, aprendeu-se que a
lidade individual, estriba-se na herança da pro- falta de micróbios em crianças superprotegidas
priedade privada, que enraíza a família e a so- pode diminuir as defesas e propiciar doenças.
ciedade numa organização de classes sociais, Aprendeu-se também que o uso apropriado dos
com uma hierarquia legal de poder e privilégios, micróbios através de vacinas é a maneira mais
rigidamente codificada e hereditariamente man- adequada de se evitar a doença.
tida e aperfeiçoada. O padrão de alteridade estrutura a consciên-
Devido à sua codificação apriorística e, natu- cia através da busca do encontro e do princípio
ralmente tradicionalista e preconceituosa, o di- de sincronicidade que, como descreveu Jung
namismo patriarcal é ternário. O Eu se relaciona (1952), é um princípio de conexão acausal. A
com o outro que, de antemão, deve amar e não consciência de alteridade busca relacionamen-
odiar, por exemplo. A polaridade amar está, as- tos em situações que se lhe acontecem. Pelo
sim, necessariamente determinando o não odiar fato de não ser determinada dominantemente
e o Eu não pode se relacionar exclusivamente pelo desejo ou pela necessidade (fertilidade, so-
com ela. brevivência), ela não é binária como a matriarcal.
Os símbolos do Self individual e cultural Por razão de não ser predeterminada por nenhu-
operam ao longo do eixo simbólico e sofrem ma categorização ideológica, ela também não é
em maior ou menor grau a influência das quatro ternária, como a patriarcal. Assim, para desem-
principais dimensões simbólicas: socioeconômi- penhar seu potencial estruturante, ela necessita

124 ■ Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 1º sem. 2019


deixar acontecer as polaridades do Eu dialetica- pronunciamento de palavras cabalísticas evo-
mente com as polaridades do Outro naquele mo- cando o parto.
mento, o que a torna quaternária. Associo o pa- Temos que analisar a magia sob três aspec-
drão de alteridade com a função estrutural dos tos, o objetivo, o subjetivo e o subjetivo-objeti-
arquétipos da anima, do animus e do coniunctio. vo. Do ponto de vista objetivo, seria errado supor
São estes os arquétipos cuja força é capaz de que o modelo imitativo mágico tenha resultados
antagonizar os arquétipos parentais e diferen- objetivos sistemáticos. Aqui, a magia é realmen-
ciar a consciência individual e coletiva durante te a ciência bastarda e tem sido, por isso, his-
o exercício da consciência quaternária. Assim, toricamente uma das grandes razões para o uso
Beatrice, de Dante e Dulcinea, de Cervantes são indevido do subjetivo sobre o objetivo que tanto
imagens da anima a nível individual e coletivo, pode dificultar e atrasar o conhecimento.
tanto quanto os ideais de liberdade, igualdade e Do ponto de vista subjetivo, porém, a magia
fraternidade (BYINGTON, 1986b). pode ser altamente eficaz. Sua ritualização cos-
Alteridade, assim, não é o hieros gamos ou tuma propiciar um grande reforço do Ego e au-
casamento psíquico entre o matriarcal e o pa- mentar a autoconfiança, a coragem e a esperan-
triarcal, ainda que a alteridade, entre outras ça a ponto de contribuir decisivamente para uma
coisas, o propicie. O padrão arquetípico de al- melhoria extraordinária da performance.
teridade é uma “mutação” no funcionamento O terceiro aspecto importante do fenômeno
da consciência humana, que a permite operar da magia é a ocorrência, não sistemática, mas
de forma quaternária plena e isto a faz conflitar possível, da influência direta do subjetivo sobre
frontalmente com os dinamismos matriarcal e o objetivo na qual situamos, dentre outros, os
patriarcal para se impor e se diferenciar. fenômenos descritos como levitação e materiali-
O fato de situar o exercício sistemático do zação. Esta dimensão ainda é praticamente des-
método científico no padrão de alteridade não conhecida na ciência moderna e seu progresso
quer dizer que achemos que culturas com o pre- dependerá de uma das maiores, senão a maior
domínio da magia, que ocorre predominante- de suas descobertas que será o controle da ener-
mente na vigência do padrão matriarcal, sejam gia psíquica. A partir daí, poderemos registrar e
incapazes de ciência. Estas culturas, como mos- estudar “laboratorialmente” todos os fenôme-
trou Lévi-Strauss (LÉVI-STRAUSS, 1962 p. 3-47), nos psíquicos como a imaginação, as emoções,
mesmo praticando a magia são perfeitamente os sonhos e o próprio pensamento.
capazes de adquirir e exercer o conhecimento A descoberta do controle da energia psíqui-
da natureza. ca desvelará a essência do simbólico e permitirá
Entretanto, podemos parcialmente concordar estudar cientificamente a relação subjetivo-ob-
com James Frazer (1900 p. 52-4), quando afirma jetivo. Nessa perspectiva, ela será uma desco-
que a magia é a ciência bastarda, que, por isso, berta com um significado para nossa espécie
confunde o conhecimento. É que a magia reúne ainda maior do que o da energia atômica. Com
intencionalmente a polaridade subjetivo-objeti- ela, possivelmente, poderemos registrar os so-
vo, em função da realização de um desejo, en- nhos, fantasias e pensamentos mais íntimos
quanto que a ciência procura diferenciá-las para de pessoas à distância, até mesmo sem o seu
chegar ao conhecimento. conhecimento. Devido ao estado de imaturidade
Vejamos um ritual de magia no qual uma psicológica em que se encontra ainda a huma-
garrafa arrolhada é colocada à noite em bai- nidade, porém, apesar de o cientista almejá-la,
xo da cama de uma parturiente, cujo parto se o humanista deseja ardentemente que ela tão
retarda. À meia-noite, a rolha é retirada com o cedo não se realize.

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Jung descreveu muitas vezes o quatérnio que foi feito posteriormente por Chain e Florey,
como símbolo expressivo da totalidade psíqui- sua descoberta inaugurou a era dos antibióticos.
ca. O fato de a relação Eu-Outro no dinamismo O raciocínio triangular predeterminado cau-
de alteridade ser quaternária permite que a salmente estabelecia que o Eu deveria se rela-
elaboração da situação preencha a consciência cionar com uma placa de agar-agar sem fungos.
plenamente com conhecimento, tanto objetivo Caso tivesse fungos, estaria contaminada.
quanto subjetivo. A causalidade pode ser então A causalidade preconcebida excluiria forço-
empregada para a demonstração do fato, mas a samente o 4 e teria bloqueado o insight, mas a
estruturação da consciência se faz pela sincro- sincronicidade permitiu na consciência de Fle-
nicidade. O julgamento de que a causalidade é ming a abertura para o relacionamento com o
o princípio básico do conhecimento científico, fator 4, a placa com bactérias também com fun-
como fez, por exemplo, Comte no Positivismo gos. O raciocínio causal ternário caracterizaria
(COMTE, 1954), é errôneo e contribui para o des- o técnico. A elaboração consciente quaternária
conhecimento do funcionamento quaternário pela sincronicidade consagrou o cientista (Prê-
da consciência na mentalidade científica plena mio Nobel, 1945).
Exemplifiquemos com a descoberta da peni- O funcionamento quaternário da consciência
cilina por Alexander Fleming (Figura 1). As placas de Fleming, dentro do princípio da sincronicida-
de agar-agar estavam semeadas com bactérias de, estrutura a consciência, transformando-se a
e um descuido do técnico do laboratório permi- nível das polaridades Eu-outro (sujeito-objeto),
tiu que elas se contaminassem com fungos. O consciente-inconsciente e indivíduo-coletividade.
raciocínio patriarcal ternário, regido essencial- A nível do Outro, descobre-se que o fun-
mente pela causalidade, determinaria que Fle- go penicillium, até o momento maléfico pelo
ming repreendesse o técnico, mandasse jogar seu poder de contaminação, torna-se agora
fora aquelas placas e semeasse outras, livres de também benéfico quando seu poder é usa-
fungos. Assim procederia o técnico, mas não o do no combate a bactérias. A nível do Eu,
cientista. Aberto para a revelação permanente descobre-se ou reafirma-se que o eu “errado”
do desconhecido, o cientista deixou o erro acon- pode ser cientificamente genial.
tecer criativamente. Ao abrir-se para a sincronici- Com relação à polaridade consciente-in-
dade, pôde ver que aquele “erro” continha tam- consciente, verifica-se que seu não enquadra-
bém um acerto. A contaminação poderia talvez mento apriorístico na causalidade pode ser
ser usada para o combate às bactérias nas infec- muito mais criativo que a sua predetermina-
ções. Mesmo sem ter chegado ao uso clínico, o ção. Já com referência à polaridade indivíduo-

Eu “certo” Eu “errado”
1 3
causalidade sincronicidade

2 4

placa com bactérias placa com bactérias


sem fungos e fungos
outro “certo” outro “errado”

Figura 1. Exemplo " descoberta da penicicina"

126 ■ Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 1º sem. 2019


-sociedade, aprendemos pela sincronicidade são também pode, às vezes, ser catalogada
quaternária que um indivíduo errando isolado como criminosa, parece-me um crime contra a
no seu laboratório, sem nenhuma preocupa- criatividade humana o fato de as universidades
ção social específica naquele momento, pode excluírem os videntes de suas pesquisas cientí-
contribuir significativamente para o prolonga- ficas e das sociedades evoluídas, e perseguí-los
mento da vida de toda a humanidade durante como curandeiros marginais em vez de perce-
as gerações futuras. ber, educar e encaminhar adequadamente seus
Ao exercermos a alteridade plena na consci- dons psicológicos.
ência quaternária, percebemos que é uma disso- O tratamento marginalizado dos sensitivos
ciação absurda equacionarmos a mentalidade expressa de forma exuberante a exclusão das
científica e o crescimento da ciência objetiva funções tipológicas da intuição e do sentimento
com a eliminação sistemática do polo subjetivo. de nossa pedagogia que deu lugar a uma verda-
Na realidade, o contrário deveria ocorrer. À luz deira tirania do pensamento e da sensação. Este
do funcionamento da consciência quaternária, desequilíbrio tipológico da pedagogia, predomi-
mesmo numa pesquisa da maior objetividade nante, sobretudo no curso secundário e univer-
como o tratamento do câncer, por exemplo, ao sitário, por si só, já é uma mutilação sistemática
invés da preocupação com a eliminação da sub- da psique individual e coletiva em nossa cultura
jetividade, deveríamos aguçá-la ao máximo. (JUNG, 1961).
Imaginemos esquematicamente como esta Nesse sentido, a busca de uma identidade na-
proposta poderia se realizar. Paralelamente às cional na sociedade multicultural brasileira, cuja
dosagens químicas e às experiências biológi- diferenciação coincide com a mudança de sua
cas sujeitas ao mais rigoroso controle objetivo, capital para o planalto central, não deve se ater
teríamos, simultaneamente, a parte subjetiva ao reconhecimento da individualidade e riqueza
ativada registrando-se as fantasias e os sonhos de suas quatro grandes culturas formadoras, mas
dos pesquisadores. A meditação, as técnicas também cultivar e exercer o que tem delas de mais
simbólicas expressivas, a vidência e as consul- expressivo através da consciência quaternária.
tas oraculares, como o Oráculo de Ifá, o Tarot e Não basta louvar a sanidade ecológica das
o I Ching, por exemplo, fariam parte do trabalho tribos indígenas. É preciso que a consciência
dos pesquisadores, tanto quanto suas ativida- coletiva do país respeite a natureza e lide com
des em função, especificamente, da pesquisa ela como os índios o fazem. Não basta admirar e
em andamento e não de seus problemas pesso- incentivar a arte popular influenciada pelas cul-
ais, que seriam atendidos, em caso de necessi- turas negras. Por que não introduzir nas univer-
dade, por um analista no departamento pesso- sidades a participação da música, da dança e do
al. A equipe seria formada por pesquisadores corpo no ensino? Não basta louvarmos a minú-
objetivos e sensitivos e o laboratório convidaria cia, a dedicação e a técnica da cultura japonesa.
para seminários, tanto cientistas especializa- Por que não introduzirmos nas fábricas o congra-
dos, quanto videntes para estabelecer suas di- çamento diário entre dirigentes e dirigidos? Por
retrizes de pesquisa. que não transformarmos o bem-estar cotidiano
Neste caso, poderíamos realmente falar em do operário num problema espiritual do empre-
pesquisa científica, pois a consciência do pes- sário, como faz a indústria japonesa? A peda-
quisador seria treinada para gerar quaterna- gogia do oprimido no terceiro mundo tem sido
riamente. No entanto, apesar de este parecer frequentemente reduzida à revolta e à luta de
o óbvio ululante, como diria Nelson Rodrigues, classes, enquanto que as forças criativas quater-
por que é que à luz de nossa tradição científica nárias presentes e negligenciadas são do mes-
universitária isto soa como blasfêmia? Se omis- mo modo ignoradas. Nestes casos, até mesmo

Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 1º sem. 2019 ■ 127


louváveis lutas sindicais são dirigidas alienada- Por isso tudo, ao adquirir o controle das
mente para reivindicar para si modelos empresa- universidades e do saber no século XVIII, os
riais alienados, consumistas e humanisticamen- cientistas inauguraram uma nova era na qual a
te empobrecedores da classe operária. liberdade, o saber, a tolerância, a criatividade,
A dissociação subjetivo-objetivo na meto- a inteligência e a reflexão progressista foram
dologia científica se instituiu no Self Cultural identificadas com a objetividade, enquanto que
europeu no final do século XVIII e permaneceu a subjetividade ficou identificada com a fé, a ir-
camuflada até hoje por uma grande defesa racio- racionalidade, a intolerância, a prepotência, a
nalista autointitulada de iluminismo. superstição, a ignorância e a burrice.
A separação da Igreja Católica do Estado pôs Ora, como vimos, a ciência, ao expressar o
fim ao poder secular do Santo Ofício e da Inquisi- padrão da consciência de alteridade, configu-
ção, encerrando uma longuíssima era de perse- raria não apenas um maior conhecimento do
guição na Europa. Apesar de a Igreja ter oficiali- mundo, mas um novo padrão de funcionamento
zado a Inquisição do século XII e principalmente da consciência coletiva, isto é, um novo huma-
do século XIII em diante, a perseguição religiosa nismo. Assim, os filósofos do século XVIII como,
por exemplo, os enciclopedistas precursores da
às variações da fé acompanharam a institucio-
revolução francesa, estavam num caminho cria-
nalização do Cristianismo desde o seu início. De
tivo quando denominaram este acontecimento
fato, já no ano 385 a.C., isto é, no próprio século
cultural de era das luzes, de iluminismo, pois
IV em que se deu a conversão do Império Roma-
com isso reconheciam, ainda que intuitivamen-
no e a sua institucionalização, o espanhol Prisci-
te, que o novo humanismo configurava um novo
liano foi declarado herege e condenado à morte
padrão arquetípico de consciência. No entanto,
em nome de Cristo.
ao equacionarem este humanismo com a obje-
Se situarmos o início das ciências modernas
tividade e a intolerância religiosa passada com
no Renascimento a partir do século XVI até a Re-
a subjetividade, racionalizaram defensivamente
volução Francesa (1789), temos três séculos em
os fatores dissociativos do Self Cultural europeu
que o pensamento científico emergente foi seve-
que acabaram conduzindo à sua dissociação no
ramente perseguido e cerceado principalmente
final do século XVIII e formando o seu gigantesco
nos dois primeiros. Complexo de Frankenstein.
Fazer ciência e ser vigiado e ameaçado de Esta dissociação foi tão grave e afetou de
morte tornaram-se sinônimo no Self Cultural eu- tal forma o humanismo europeu que dela so-
ropeu católico. O confisco e a queima de livros fremos até hoje, sobretudo porque o extraor-
eram habituais. A prisão, a tortura e a morte de dinário desenvolvimento industrial e tecnoló-
pensadores, às vezes, do maior valor, como no gico da Europa e, posteriormente, dos Estados
caso de Giordano Bruno, mantinham a comuni- Unidos e da União Soviética, encarregou-se
dade científica sob ameaça permanente. O pa- de exportá-la para o resto do mundo, levando
trulhamento ideológico lançado contra Darwin de roldão inúmeras culturas que dela não pa-
pelo Bispo de Wilberforce, em 1860, que teve lu- deciam. A industrialização do terceiro mundo
gar na famosa sessão da Associação de Ciências no século XX tornou a exportação dessa dis-
de Oxford e pôde ser brilhantemente combatido sociação culturalmente devastadora. Cultu-
por T. Huxley, nos séculos anteriores, teria ocor- ras mais antigas como as da Índia e do Japão
rido provavelmente num tribunal eclesiástico e estão aguentando este impacto, mas culturas
provavelmente terminado com a condenação de mais recentes e frágeis como muitas da Ásia,
Darwin, mesmo em se tratando de um país pro- da África e das Américas estão sendo levadas
testante como a Inglaterra. no torvelinho. Diante dessa dissociação, a di-

128 ■ Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 1º sem. 2019


visão atual política econômica do mundo entre Outra consequência é que inúmeros métodos
países capitalistas e comunistas empalidece, de vivência simbólica entre as quais a intuição, a
sobretudo porque tanto o capitalismo quanto imaginação, a premonição e os sonhos, ligados
o comunismo têm em suas raízes a dissocia- desde tempos imemoriais à busca de conheci-
ção subjetivo-objetivo da consciência de alte- mento, estão bloqueados na universidade. A
ridade no Self Cultural europeu. própria formação da consciência através dos sím-
A perseguição cultural traumatizou de tal for- bolos é omitida no ensino “superior” e os fatos
ma o humanismo da ciência que a dissociação objetivos são transmitidos com se a psique apren-
subjetivo-objetivo é até hoje mantida como algo desse exclusivamente através da objetividade. O
natural. Basta dizer que um filósofo como Carl resultado tem sido uma esterilização crescente da
Popper, considerado por muitos o maior filósofo pesquisa universitária, detectada universalmente
da ciência do nosso século, em sua extensa obra pela pouca criatividade de suas teses, acompa-
não percebe esta dissociação como tal. É difícil nhada de um esquecimento quase total do que
para filósofos e cientistas compreenderem esta se aprende em tantos anos de estudo. É eviden-
ideia de uma dissociação do humanismo euro- te que o desperdício deste procedimento para o
peu, posto que ela está baseada na patologia do indivíduo e o estado é incomensurável. Para se
Self Cultural e da consciência coletiva, conceitos manter esta alienação, convencionou-se escrever
novos para a psicologia e a sociologia. Ao con- teses e analisar descobertas científicas, depuran-
frontarem esta dissociação, evidente para todos, do-se as análises de qualquer subjetividade, de
os filósofos tendem a enraizá-la no dualismo de forma a manter a aparência fictícia de que a obje-
Platão e Aristóteles ou no de Descartes. Acho tividade por si só se gera e se mantém.
isso um engano que confunde o dualismo nor- Outra consequência é que pessoas com sub-
mal com o patológico. jetividade muito desenvolvida – como os sensi-
O pensamento dualista não deixa necessa- tivos – são impedidas de se aproximar do saber
riamente de ser unitário, sobretudo quando se objetivo e condenadas à marginalidade cultu-
mantém dialético. De fato, a dualidade na uni- ral. A criatividade da imaginação e da intuição
dade é a base da consciência quaternária de al- perseguida durante a Inquisição como herética
teridade que opera dentro de um todo integrado. continuou marginalizada, durante a era científi-
Isto é completamente diferente da dissociação ca, no esoterismo e no ocultismo. Gênios como
que separa as polaridades e as mantém separa- Helena Blavatsky foram impedidos de partilhar o
das e inacessíveis por mecanismos de defesa do seu saber com os centros de pesquisa vigentes,
Self cultural (BYINGTON, 1986c). pelo fato de predominar a vidência em seu méto-
A psicologia moderna é muito responsável do. Com isso, fundaram-se escolas esotéricas de
por não ajudar filósofos e cientistas a compre- saber como a Teosofia que formam ilhas margi-
enderem a diferença entre dissociação (patoló- nalizadas dentro da cultura.
gica) e dualidade (normal), posto que descreve Isto levou um grande número de pessoas a
a formação da consciência normal por splits e confundir o esotérico com o objetivo. Não perce-
defesas que não diferencia conceitualmente a bendo e diferenciando os componentes subje-
patologia (BYINGTON, 1984). tivos dos objetivos no conhecimento esotérico,
As consequências desta dissociação são inú- estas pessoas tratam o conhecimento intuitivo e
meras e foram exportadas para o mundo junto mediúnico como objetivo. Ao invés de percebê-
com o desenvolvimento industrial e tecnológico. -lo como simbólico e submetê-lo a um escrutínio
Entre estas consequências, figura a pretensão quaternário para diferenciá-lo, passam a afirmar
de que se pode prescindir da subjetividade para o subjetivo como se objetivo fosse e, com isso,
se diferenciar a objetividade (Figura 2). desmoralizam o conhecimento esotérico.

Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 1º sem. 2019 ■ 129


subjetivo subjetivo pensamento
“certo” “errado” intuição
Origem:
sentimento
pensamento lógico
símbolo elaboração sensação
encontro existencial
simbólica extroversão
imaginação
objetivo objetivo introversão
sonho
"certo" "errado" projeção
introjeção etc.

Figura 2. Dissociação subjetivo-objetivo

Estas pessoas podem ser honestas e bem- Dentro da cultura europeia, a ciência sim-
-intencionadas, mas estão privadas do conheci- bólica permite e estimula uma releitura das
mento da prática da objetividade, em parte por obras de cientistas e pensadores anteriores
culpa do método científico-cultural dissociado à dissociação subjetivo-objetivo no final do
que excluiu de sua prática diária a subjetivida- século XVIII, como fizeram Jung (1952) e Pauli
de. Intuem fenômenos e passam a descrevê-los (PAULI, 1955) com as obras de Paracelso e de
por vezes, com tantos detalhes objetivos, que se Kepler, respectivamente.
tornam ridículos perante a comunidade (CHUR- Nesse sentido, os padrões arquetípicos da
CHWARD, 1972). No caso de serem psicologica- consciência, pelo fato de existirem em todos
mente mal estruturadas, a confusão do subjetivo os indivíduos e culturas, podem servir de ins-
com o objetivo pode lhes conduzir a um quadro trumento para se compreender diferenças, em-
mental patológico. preender pesquisas e armazenar conhecimento,
Ainda outra consequência é a barreira cultu- valorizando-se igualmente subjetivo e o objetivo
ral que impede ainda hoje a ciência do Ocidente num todo holístico.
de receber a fertilização cruzada de outras cul- Uma consequência natural de uma teoria de
turas como, por exemplo, culturas antiquíssimas ciência simbólica é, por conseguinte, a pedago-
como as da Índia e da China. Ciências como as gia simbólica. A discriminação quaternária dos
da yoga e da acupuntura, no mais das vezes, símbolos dentro do padrão de alteridade traz
permanecem como práticas ocultas, praticadas um aprendizado da inter-relação criativa subje-
como curiosidades sem poder ser estudadas e tivo-objetivo que caracteriza a teoria do desen-
melhor compreendidas. É que a yoga e a medici- volvimento simbólico comum da consciência
na chinesa, não sofrendo das dissociações sub- individual e coletiva. Dentro de uma pedagogia
jetivo-objetivo e mente-corpo como a medicina simbólica é praticamente impossível o ensino
ocidental, não encontram uma relação compara- objetivo alienado que desconhece o subjetivo e
tiva e de mútua fertilização. ignora o processo de formação e amadurecimen-
O estudo das contribuições de outras cultu- to da consciência.
ras pela ciência simbólica permite a busca da Ao valorizar igualmente os dinamismos ma-
compreensão de suas descobertas objetivas dis- triarcal e patriarcal, a pedagogia simbólica busca
criminando-as das subjetivas. Afora a aproxima- sempre um equilíbrio entre a vivência corporal e
ção intercultural que isso traria, novos caminhos a abstração no aprendizado. Lado a lado com o
seriam abertos para a ciência objetiva somente pensamento e a sensação, são valorizados tam-
pelo reconhecimento da validade desta aborda- bém igualmente a intuição e o sentimento. Com
gem tão diferente. a vivência simbólica, o ensino se torna iniciático

130 ■ Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 1º sem. 2019


e a transferência criativa adquire papel central Einstein, ou místicos, como Ramana Maharshi,
na relação professor-aluno. este ciclo de consciência é aquele que nos inte-
A prática quaternária da consciência de al- gra no todo e, assim fazendo, nos prepara para
teridade, como já mencionei, não engrandece a morte.
somente a ciência, pois se trata de um padrão A dissociação subjetivo-objetivo no Ocidente
de relacionamento dialético que se aplica a to- não paralisou somente a integração da industria-
das as atividades humanas. Sua vivência leva a lização e do desenvolvimento científico-tecnoló-
elaboração dos símbolos ou vivências às suas gico num todo humano. Ao centralizar a proble-
últimas consequências e prepara a consciência mática político-social no regime econômico, esta
para operar no quarto ciclo arquetípico, que é o dissociação impede ideologicamente a busca do
ciclo cósmico. Neste ciclo, a consciência opera regime social-democrático, mesmo quando a
de forma unitária. Em vez de contrapor os polos ela se dedica. Ao bloquear, através da formação
Eu-Outro de formas variáveis como nos outros universitária, a vivência cultural quaternária do
três padrões, aqui a consciência opera integran- conhecimento objetivo e da própria vida, a dis-
do o Eu e o Outro num sentido global que insere sociação subjetivo-objetiva impede a vivência
o significado da vida no cosmos formando um simbólica plena de alteridade, condição essen-
todo inseparável. cial para a prática da consciência cósmica. Isso
Desenvolvida extraordinariamente em civili- nos mutila a sabedoria em vida e nos impede
zações muito antigas como as da Índia, da China o preparo para a morte. Como na lenda do ho-
e do Tibete, a consciência cósmica tem sido des- landês errante de Wagner, vagamos pelo desco-
crita, principalmente no Oriente, mas também no nhecido, condenados por nosso próprio orgulho
Ocidente, como uma consciência além do Eu e a não saber morrer. Ao descobrir a energia atô-
da própria consciência (supraconsciência). Isto mica, chegamos à posse do fogo mais íntimo da
ocorre principalmente quando identificamos o matéria. Incapazes de integrar tamanho segredo
Eu e a consciência com os dinamismos matriar- de forma construtiva na psique individual e co-
cal e patriarcal. Quando entendemos, porém, a letiva jazemos, como Promoteu, acorrentados
diferença entre os quatro padrões arquetípicos na onipotência de nossa objetividade dissocia-
da consciência, podemos perfeitamente admitir da. Enquanto somos devorados pela culpa das
que o Eu e a consciência continuam existindo na consequências crescentes de nossa insanidade,
consciência cósmica, só que de uma forma uni- buscamos ainda no escuro, a integração holísti-
tária com o cosmos, característica esta que os ca da genialidade científica dissociada, cuja vin-
diferencia muito dos demais padrões. Apesar de da se confunde cada vez mais com a esperança
a consciência cósmica poder ser ativada e se de- de sobrevivência de nossa espécie. ■
senvolver muito cedo na vida, sobretudo em de-
terminados indivíduos, sejam cientistas, como Recebido em 25/03/2019 Revisão em 22/05/2010

Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 1º sem. 2019 ■ 131


Abstract
Symbolic science. Epistemology and archetype. A holistic synthesis of objec-
tive and subjective knowledge
The author analyzes the unilaterality of objectivity symbolic fullness in the interrelation of polarities
to the detriment of subjectivity in scientific knowledge. during the development of consciousness, the au-
Contrary to many philosophers of science who situate thor proposes a quaternary scientific method of
this sidedness as arising mainly from scientific de- subjective-objective relationship that denominates
velopment itself, the author basically interprets it as symbolic science and that relates significantly the
a pathological dissociation of the Cultural Self of the objective and subjective knowledge.
West, which occurred in the late eighteenth century at The author then describes the methodology
the time of the separation of science and religion. of symbolic science and the practice of symbol-
Presenting his theory of the symbolic devel- ic pedagogy. He also proposes a re-reading of
opment of individual and collective conscious- teachings from other cultures and thinkers of the
ness through four main archetypes (matriarchal, West prior to the dissociation so that, in the light
patriarchal, otherness and totality), the author of quaternary interaction, their symbols can be
characterizes the practice of scientific method reworked, rescuing much of the knowledge not
through the archetype of otherness. He describes understood due to the dissociated employment
five basic positions for any symbolic elaboration of the subjective-objective polarities.
(undifferentiated, insular, polarized, dialectical, In conclusion, the author points out that this
and contemplative), and points out that scientist dissociation in the pattern of alterity prevents the
and scientific research can traverse all five posi- full symbolic quaternary elaboration and makes
tions in the subject-object relationship. it difficult to understand symbols of the Arche-
Demonstrating that the pattern of object-rela- type of Totality in the existential process, which
tion I-Other and Other-Other in the pattern of other- prepares the consciousness for death as an expe-
ness is quaternary and that this pattern expresses rience of transformation. ■

Keywords: symbolic science, archetypal patterns of consciousness, pattern of alterity of consciousness,


quaternary symbolic elaboration, magical causality, demonstrative causality, synchronicity, esoteric way,
objective way, symbolic method of scientific research, symbolic pedagogy.

Resumen
La ciencia simbólica. Epistemología y arquetipo. Una síntesis holística del
conocimiento objetivo y subjetivo
El autor analiza la unilateralidad de la objetiv- de Occidente ocurrida a finales del siglo dieciocho
idad en detrimento de la subjetividad en el cono- cuando ocurrió la separación ciencia-religión.
cimiento científico. Contrariamente a muchos filó- El autor caracteriza la práctica del método
sofos de la ciencia que sitúan esta unilateralidad científico a través del arquetipo de alteridad, pre-
como resultante principalmente del propio desar- sentando su teoría del desarrollo simbólico de la
rollo científico, el autor la interpreta básicamente conciencia individual y colectiva por medio de cu-
como una disociación patológica del Self Cultural atro arquetipos principales (matriarcal, patriarcal,

132 ■ Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 1º sem. 2019


de alteridad y de totalidad), el autor caracteriza la A continuación, el autor describe la metod-
práctica del método científico por intermedio del ología de la ciencia simbólica y la práctica de
arquetipo de alteridad. Describe cinco posiciones una pedagogía simbólica. También propone una
básicas para cualquier elaboración simbólica nueva lectura de las enseñanzas de otras cultu-
(indiferenciada, insular, polarizada, dialéctica y ras y pensadores occidentales antes de la diso-
contemplativa) y señala que el científico y la in- ciación, de modo que, a la luz de la interacción
vestigación científica pueden recorrer todas estas cuaternaria, sus símbolos puedan ser reelabora-
cinco posiciones en la relación sujeto-objeto. dos, recuperando gran parte del conocimiento
Lo que demuestra que el modelo de objeto no comprendido debido al uso disociado de la
relación Yo-Otro y Otro-Otro en el patrón de al- polaridad sujeto-objeto.
teridad es cuaternario y que este patrón expresa Concluyendo, el autor señala que esta diso-
la plenitud simbólica en la interacción de polar- ciación en el patrón de alteridad impide la
idades durante el desarrollo de la conciencia, el elaboración cuaternaria simbólica plena y difi-
autor propone un método científico cuaternario culta la comprensión de símbolos del Arqueti-
de la relación subjetiva -objetiva que denomina po de la Totalidad en el proceso existencial,
ciencia simbólica y que relaciona significativa- que prepara la conciencia para la muerte como
mente el conocimiento objetivo y subjetivo. vivencia de transformación. ■

Palabras clave: ciencia simbólica, estándares arquetípicos de la conciencia, estándar de alteridad de la


conciencia, elaboración simbólica cuaternaria, causalidad mágica, causalidad demostrativa, sincronicidad,
vía esotérica, vía objetiva, método simbólico de investigación científica, pedagogía simbólica.

Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 1º sem. 2019 ■ 133


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A democracia e o arquétipo da alteridade1

Carlos Amadeu B. Byington*

O século XX abre sua última década pensan-


do o holismo do conhecimento (holos = todo).
Os pensadores da cultura denunciam e repu-
diam o saber especializado, que se enclausurou
em ilhas. É como se houvéssemos recriado a
maldição bíblica da Torre de Babel. Especialistas
de grande gabarito, incapazes de se comunicar
entre si, porque criaram conceitos e expressões
diferentes para descrever o que fazem em terri-
tórios comuns. Perde a ciência e perde a cultura.
Junto com o isolamento das especializa-
ções, descobrimos o fenômeno do redutivismo,
que consiste na redução do todo a uma das
partes, que passa a comandar a explicação do
todo e a impedir a relação de outras partes com
esse mesmo todo. O saber redutivista deixa de

1
Artigo baseado na palestra proferida no Seminário e Fórum
Nacional: Democracia e Diversidade Humana: Desafio Con-
temporâneo. Salvador, 18-21 março, 1992. Publicado origi-
nalmente na Revista Junguiana 10, 1992, p. 90-107.
* Médico Psiquiatra e Analista Membro Fundador da Sociedade
Brasileira de Psicologia Analítica.
E-mail: < c.byington@uol.com.br >,
site: < www.carlosbyington.com.br >

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ser algo criativo e saudável. Neste final de sé- No final do século XVIII, a ciência, finalmente,
culo, descobre-se que o redutivismo é a maior assumiu o poder na universidade europeia, de-
doença do saber. Como no câncer, no qual as pois de três séculos de guerra com a Inquisição.
células jovens de um órgão se espalham e ma- Os vitoriosos foram implacáveis com os venci-
tam a pessoa, o redutivismo é algo novo que dos e exageraram a punição. Junto com a religião
puxa para si, exclusivamente, a compreensão e a prepotência criminosa do Santo Ofício, bani-
do todo e, assim, mata nossa capacidade de vi- ram toda a subjetividade do método científico.
vê-lo. Frequentemente, os gênios pioneiros são Em nome da libertação do saber, tanto tempo
os culpados do redutivismo. Eles descobrem o humilhado, perseguido, torturado e assassina-
novo e com ele se empolgam, a ponto de consi- do, identificaram o subjetivo com a prepotência,
derarem tudo mais uma mera consequência da a ignorância e a superstição e o excluíram da uni-
sua descoberta. Isto é compreensível, como é o versidade. Coroaram a objetividade como dona
caso de quem tem um filho e o considera centro exclusiva da verdade e se sentiram sábios ilumi-
nados, que livraram a humanidade para sempre
do mundo. Muitas vezes, seus seguidores são
do obscurantismo.
ainda mais culpados do redutivismo que eles,
O processo do saber é uma função psicoló-
ao transformarem suas descobertas na única
gica dentro de muitas outras. Ao aclamar exclu-
explicação do todo, de forma puramente racio-
sivamente o objetivo e dissociá-lo do subjetivo,
nal e dedutiva, sem terem, nem mesmo, o en-
o saber se mutilou e se autocondenou ao mate-
volvimento emocional dos pioneiros.
rialismo. A Europa do século XIX se orgulhou do
Por isso, hoje, quem descobre algo precisa
seu objetivismo e sobre ele desenvolveu o imen-
resguardar do redutivismo aquilo que cria, pois,
so poderio tecnológico que exportou para o pla-
quanto maior a descoberta, maior a voracidade
neta. Apesar de fazê-lo em nome do humanismo
do redutivismo para reduzir o todo a ela. Convi-
iluminista, não se deu conta, a princípio, que, ao
ver com a totalidade é conviver com um mistério
dissociar o objetivo do subjetivo no método cien-
infinito. O preço deste convívio é a dúvida per-
tífico, separara o galho industrial-tecnológico
manente da humildade e o engajamento na bus- do tronco humanista que lhe dera nascimento.
ca sem fim do saber. Os grandes pensadores da libertação republica-
O Ego e sua vaidade narcísica de poder fre- na ficaram enaltecidos e mumificados no século
quentemente se cansam. É mais cômodo reduzir XVIII, como pensadores do socialismo água com
tudo a alguma verdade imediata. O redutivismo açúcar. A célebre frase de Montaigne “ciência
traz segurança e comodidade, pela certeza per- sem consciência é a ruína da alma” foi esqueci-
manente de se dominar a verdade e o próprio da no museu do “idealismo”.
processo do conhecimento. No entanto, o todo O século XX foi o palco da atuação da dis-
não pode se subordinar à parte. O todo, assim sociação cultural materialista cultuada no sé-
reduzido, se vinga e se vai. O Ego redutivista fica culo XIX. Ele chega ao fim mostrando de forma
empobrecido, apesar de onipotentemente ilu- insofismável que a democracia não conseguiu
dido por suas pequenas verdades. Ao reduzir o acontecer dentro de uma teoria materialista
todo à parte, o Ego se relaciona com uma ilusão da história e da cultura. Este século termina
caricata do todo e no final perde sua verdadeira forçando a conscientização, através da unifi-
relação com ele. cação planetária do sistema de comunicação,

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que o poderio tecnológico apreendido ameaça para hospitalizá-los, ao mesmo tempo em que
nossa espécie de genocídio e nosso ecossiste- Mesmer chega em Paris eletrizando plateias
ma de exaustão e devastação. É isto que nos com seus bastões de “magnetismo animal”. Na
faz, nesta última década, que é, significativa- própria conjuntura histórica do seu banimento,
mente, a última década também do milênio, o subjetivo começou a ressurgir. A patologia e a
buscar novamente o todo e repensar nossa re- energia psíquica criativa começaram a se apro-
lação com Ele. ximar da ciência, a duras penas, porém. Pinel
Muitos indivíduos e etnias estão voltando quase foi parar na guilhotina e o fenômeno do
ao todo através do reforço do culto das religi- Mesmerismo foi considerado charlatanismo e
ões. A ciência, no entanto, tem o seu caminho “um mero produto da imaginação”. Este pos-
próprio a trilhar. Esse caminho não é o mesmo sível charlatanismo de Mesmer é muito signifi-
das religiões, pois estas jamais submeteram o cativo historicamente, pois era devido a ser ele
questionamento de suas crenças e revelações apresentado como “magnetismo animal”. Para
à análise científica. Mesmo se o tivessem de- assegurar seu reconhecimento, de boa ou de
sejado, não poderiam tê-lo feito, pois a ciência, má fé, Mesmer vestira o subjetivo de objetivo.
tendo reduzido a verdade à dimensão objetiva, Ao constatar que o fenômeno era causado pela
carecia de um método para estudar as manifes- imaginação, a comissão da Academia de Paris
tações subjetivas dentro da dimensão subjetiva concluiu que o Mesmerismo não precisava mais
da verdade. ser estudado. Logo a seguir, porém, o subjetivo
O caminho da ciência, seja ela ciência huma- voltou a se intrometer no espaço científico.
na ou da natureza, é buscar a volta ao todo, atra- No século XIX, surgiu na medicina o hipnotis-
vés do resgate do subjetivo na metodologia cien- mo, que era o Mesmerismo com características
tífica, e inter-relacioná-lo, significativamente, mais subjetivas. Sua natureza foi ferrenhamen-
com o objetivo. É este o desafio do holismo cien- te debatida pelas escolas de Paris e Nancy. Este
tífico. É somente através dele que a ciência po- debate simboliza a retomada do contato com o
derá sair do racionalismo e do materialismo, nos subjetivo, pela ciência médica, até então, redu-
quais foi encarcerada pelo redutivismo da disso- zida ao objetivo.
ciação subjetivo-objetivo. Esta busca inclui, ne- Bernheim, discípulo de Liebault e clínico ge-
cessariamente, a reconexão da ciência com o hu- ral em Nancy, achava que todas as pessoas eram
manismo democrático e socialista que lhe deu hipnotizáveis. Charcot, neurologista e organicis-
origem, antes da dissociação subjetivo-objetivo ta ferrenho, defendia a tese de que somente as
que ocorreu no final do século XVIII. A ferramenta pessoas histéricas eram hipnotizáveis. A Acade-
conceitual que pode empreender esta reconexão mia de Ciências de Paris, depois de relutar por
pode ser a teoria dos arquétipos, formulada por quase um século, finalmente admitiu estudar o
Jung, se esta for devidamente ampliada para in- hipnotismo, abraçando, porém, a tese de Char-
cluir os padrões arquetípicos da consciência in- cot. Quase no final de sua vida, Charcot, para
dividual e coletiva. quem a verdade era maior que a vaidade, final-
Junto com a dissociação cultural subjetivo- mente admitiu que a tese de Bernheim estava
-objetivo que se implantou no Ocidente, no final certa e a sua errada. Por que será que a Acade-
do século XVIII, a ciência começou a se reapro- mia de Ciências de Paris errara tão redondamen-
ximar do subjetivo, ainda que de forma distante te junto com Charcot?
e cautelosa. Foi como se, junto com a doença, Este “erro”, percebido simbolicamente den-
o organismo cultural começasse a formar um tro da História, exemplifica mais um capítulo
anticorpo para combatê-la. Já no final do sécu- do preconceito contra o subjetivo ser admitido
lo XVIII, Pinel retira os loucos das masmorras na ciência. Finalmente, ele foi admitido, mas

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com a condição de permanecer na patologia. O mos antropólogos com grande dificuldade de


“erro” da Academia de Ciências significava que cotejar seus estudos objetivos com as reações
a ciência só podia admitir estudar o subjetivo se subjetivas que vivenciam, quer nas culturas es-
o reduzisse antes ao patológico. Não é preciso tudadas, quer em si próprios.
dizer que este preconceito médico continua até É comum o estudo da evolução da humanida-
hoje, pois ainda são numerosos os médicos que de, exclusivamente em função do objetivo. Nes-
rotulam pejorativamente de somatização qual- se caso, situa-se a humanidade numa escada,
quer manifestação do corpo para expressar um cujo degrau inicial é a pedra lascada e os últimos
estado psíquico. É como se considerassem que são o controle da energia atômica, os computa-
o subjetivo jamais pudesse operar através do dores e os satélites. É como se esses cientistas
objetivo a não ser em casos de doença. Os prati- sociais não necessitassem ou se sentissem in-
cantes do Candomblé sabem o quanto o fenôme- capazes de abordar as transformações subjeti-
no da possessão, integrante normal e corriqueiro vas que acompanharam todo esse progresso. O
do seu ritual, tem sido rotulado de patológico, resultado desastroso dessa ciência reduzida ao
desde que começou a ser estudado pela ciência objetivo é a desconsideração dos valores huma-
psiquiátrica e psicológica.
nos das culturas, que não acompanharam o de-
Um século depois da polêmica entre a Escola
senvolvimento tecnológico, mas que, em muitos
de Nancy e a Escola de Paris sobre a normalida-
casos, têm valores subjetivos e sobretudo uma
de ou não do hipnotismo, o preconceito contra a
integração subjetivo-objetiva muito superior ao
normalidade e a capacidade criativa do subjeti-
modelo ocidental.
vo continuaram. A Psicanálise, baseada na des-
O culto ao objetivo dissociado do subjetivo
crição inicial de Freud do inconsciente reprimido
no século XIX acompanhou o modelo do desen-
e da transferência, como um fenômeno neuróti-
volvimento industrial-tecnológico do Ocidente
co devido ao Complexo de Édipo mal-resolvido,
no seu domínio do Planeta no século XX. A di-
enfatizou, sobretudo os aspectos defensivos da
mensão político-social estruturada na divisão
psique. Em contrapartida, a Psicologia Analítica
entre países capitalistas e comunistas na se-
de Jung privilegia os aspectos criativos da psi-
gunda metade deste século apresentou um re-
que em geral e da transferência, em particular,
dutivismo ao objetivo subjacente a ambos os
subordinando suas manifestações patológicas
às suas manifestações normais. lados. Aparentemente, para alguns, os países
Se passarmos para as ciências sociais, ve- comunistas eram os únicos que haviam assu-
mos quanto esta redutividade do conhecimento mido o redutivismo completo ao objetivo, com
ao objetivo tem limitado sua criatividade. Inca- a teoria do materialismo histórico implantada
paz de perceber sua função subjetiva na orga- político-economicamente no estado monopar-
nização emocional e social, James Frazer rotu- tidário ideologicamente ateu e de economia
lou a magia de ciência bastarda, em função de centralizada. Em realidade, porém, os países
sua análise exclusivamente objetiva. Este é um capitalistas eram igualmente em grande parte
exemplo da Antropologia etnocêntrica e objeti- dirigidos pela redução ao econômico, medin-
vocêntrica do início do século e hoje repudia- do o progresso exclusivamente em função do
da. No entanto, se o etnocentrismo deformador produto interno bruto (PIB) e da renda per ca-
do saber antropológico está hoje bastante re- pita e tendo como Deus último o dinheiro e o
conhecido e denunciado, o mesmo não se dá lucro. Nesse sentido, ambos eram materialis-
com o objetivocentrismo que é, atualmente, o tas e reduzidos ao objetivo. Um bom exemplo
principal viés deformador do etnocentrismo eu- de que um lado não excluía o outro é o Brasil,
ropeu e ocidental. É frequente, ainda hoje, ver- que criou um sistema estatal gigantesco, ao

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mesmo tempo em que professava exercer uma mano-natureza tem todas as características da
economia capitalista. democracia. Quando um padrão de relaciona-
Apesar de a Democracia só ser exequível mento começa a transpor uma dimensão huma-
dentro de um partilhamento da produção na- na para outra, abre-se uma boa oportunidade
cional por sua força de trabalho, ela transcen- de compreendê-lo arquetipicamente, ou seja,
de a dimensão econômica. A Democracia é um como uma estrutura ontológica comum a mais
humanismo. Por conseguinte, não se trata de de uma dimensão.
favorecer o subjetivo em detrimento do obje- Além deste denominador comum ser ob-
tivo, mas de tratar os dois igualmente. Nesse servado na democracia política e na ecologia,
sentido, ao denunciar a objetividade alienada o movimento holístico do saber moderno, ao
da ciência, percebida cada vez melhor nas so- denunciar a setorização estagnante do saber,
ciedades modernas, preocupa-me o retorno do como que prenuncia a necessidade de um pro-
fanatismo religioso e da superstição ocultista cesso de interação permanente da parte com o
e esotérica, que apresentam o subjetivo como todo, que impeça o redutivismo de voltar a se
se objetivo fosse. Esta imposição do subjetivo instalar como antes. Estes vários fatores insti-
sobre o objetivo é tão redutivista, obscurantista gam à concepção do Arquétipo da Alteridade,
e violentadora da verdade, quanto o redutivis- como o Arquétipo da Democracia. No entanto,
mo objetivista professado pelo materialismo. ao concebê-lo, notamos que só podemos fazê-
Democracia é um processo de livre interação -lo se ampliarmos o conceito de arquétipo de
das polaridades em função do todo e não pode Jung para englobar também a consciência além
ser identificada com um dos lados de qualquer do Inconsciente Coletivo. De fato, não podemos
polaridade, sobretudo com um dos lados da po- entender a relação democrática Eu-Outro sem a
laridade subjetivo-objetivo. participação da consciência individual e coleti-
A ideia da democracia na dimensão política, va. Ao dar esse importante passo, descobrimos
que envolve a eleição periódica de represen- que o redutivismo da psicologia ao inconscien-
tantes da nação, os direitos iguais para os ci- te encobria e mantinha a dissociação sujeito-
dadãos e a liberdade, se tornou modernamen- -objeto na epistemologia.
te um tema planetário almejado pela maioria
das nações. Esta ideia se fundamenta na livre 1. O Redutivismo da Psicologia ao
interação das polaridades em função do todo. Inconsciente
É para haver esta interação povo-governo que Como assinalei, a medicação para a disso-
se torna necessária a representatividade elei- ciação do ser cultural em subjetivo e objetivo
toral e sua renovação periódica. A devastação começou junto com sua instalação no final do
ecológica tem causado a inclusão da ecologia século XVIII, quando a ciência tomou o poder na
em todas as plataformas modernas de governo universidade. O subjetivo, aos poucos, dirigiu-se
e tem chamado a atenção para o fato de que, para o reencontro do objetivo. Vimos como à li-
para a sobrevivência da espécie, não basta beração dos psicóticos e à entrada de Mesmer
a interação dialética das polaridades em ní- em Paris, no final do século XVIII, seguiu-se o
vel político. É preciso praticar essa interação reconhecimento do hipnotismo, como fenômeno
democrática Eu-Outro também na relação ser normal, no final do século XIX. Estas foram eta-
humano-natureza, ou seja, em função do ecos- pas importantes na busca da reunião do subjeti-
sistema. É preciso respeitarmos os direitos hu- vo com o objetivo, que, infelizmente, ainda está
manos, mas também os direitos dos animais, longe de acontecer plenamente.
dos rios, do ar e da natureza em geral, para A teorização do inconsciente dinâmico por
sobrevivermos. Essa interação dialética ser hu- Freud teve um enorme impacto, no início do sé-

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culo XX, a ponto de ter sido considerada pratica- vismo ao inconsciente e estendê-lo também ao
mente o marco fundador da Psicologia Moderna. consciente. Somente assim compreendemos o
Freud ampliou os poderes da psique, da imagi- que são os padrões arquetípicos da consciência,
nação, que além de mesmerizar, de hipnotizar dentre os quais descreverei a relação dialética
e ser hipnotizada, podia também sonhar, fazer Eu-Outro, característica da Democracia, como
atos falhos, formar sistemas e defesas, incons- expressão do Arquétipo da Alteridade. Este pas-
cientemente, aos quais conscientizava pela as- so já é muito grande. O segundo, porém, é muito
sociação livre e pela transferência. A resistência maior. Ele consiste em estendermos o conceito
(também descrita por Freud), porém, voltou a de realidade psíquica para abranger a realidade
atuar sobre o subjetivo. Novamente, as caracte- subjetiva (do Eu) e objetiva (dos objetos, concre-
rísticas patológicas do inconsciente foram real- tos e abstratos). Se o primeiro é um passo de gi-
çadas, em detrimento das criativas e normais. gante, o segundo requer uma verdadeira bota de
E pior. O subjetivo foi reduzido, extraordinaria- sete léguas. Concentrarei o restante deste artigo
mente, às suas características inconscientes no primeiro passo. Caso o leitor se interesse pelo
recém-descobertas, em detrimento das suas ca- segundo, que envolve a descrição epistemológi-
racterísticas conscientes já reconhecidas, princi- ca da ciência simbólica, englobando a realidade
palmente pela filosofia. subjetiva e objetiva, peço-lhe para ler meu artigo
“Ciência Simbólica. Epistemologia e Arquétipo”
2. A Descoberta dos Arquétipos não no livro O Novo Paradigma Holístico (São Paulo,
Escapou do Redutivismo Ed. Summus, 1991). Uma cópia xerox deste ar-
Jung desvencilhou a Psicologia do redutivis- tigo se encontra na Secretaria da Sociedade de
mo do patológico, ao descrever os arquétipos Estudos da Cultura Negra do Brasil (SECNEB) à
do Inconsciente Coletivo, como as matrizes da disposição dos interessados.
criatividade psíquica normal, nos sonhos, nas Não vou desenvolver a problemática deste se-
obras de arte e nos mitos. Descreveu os arqué- gundo passo aqui, mas vou lançar mão de algu-
tipos, também na patologia psíquica, como por mas de suas consequências. Assim, o conceito
exemplo, no delírio dos psicóticos. A perspecti- de Self (o si-mesmo), que Jung usou para descre-
va arquetípica, que privilegia a criatividade psí- ver a totalidade psíquica individual, pode agora
quica no desenvolvimento da personalidade, foi ser ampliado para englobar o grupo, seja ele fa-
adotada por Lacan na Psicanálise sob o conceito miliar ou social. Com isto chegamos ao conceito
do imaginário. Os conceitos do imaginário e do de Self cultural que formulei pela primeira vez na
arquétipo são, a meu ver, análogos. conferência que proferi na SECNEB em 1982. O
No entanto, Jung não escapou do redutivismo conceito de Self cultural nos permite perceber os
ao inconsciente e descreveu os arquétipos exclu- vários padrões arquetípicos atuando na consci-
sivamente como parte do Inconsciente Coletivo, ência coletiva e, dentre estes, estudar o padrão
do qual emergiria a consciência, como produto de Alteridade, característico da Democracia.
secundário, da mesma forma que fizera Freud. A possibilidade de percebermos o Self in-
Isto impede o reconhecimento de um arquéti- dividual e Self cultural como um conceito que
po por trás de um padrão de funcionamento da engloba os arquétipos e a relação consciente-
consciência, como descreverei na Democracia. -inconsciente é fundamental para reunir Psico-
Para resgatarmos, definitivamente, o sub- logia, Sociologia e Antropologia. A percepção
jetivo e o situarmos lado a lado com o objetivo da relação Eu-Outro, nestes diferentes níveis,
numa ciência verdadeiramente holística, res- como expressão de arquétipos comuns ao in-
tam-nos dois grandes passos a dar. O primeiro, dividual, ao social e à natureza nos permiti-
é livrarmos o conceito de arquétipo do reduti- rá observar um fato da maior importância, ou

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seja, que o Arquétipo da Alteridade é comum ao para serem ativados. Não os vemos, somente
amor, à Democracia, à Ciência e à Ecologia. Ve- os inferimos. É um grande erro tornar os arqué-
jamos um pouco mais dos padrões arquetípicos tipos agentes e dizer que fizeram isto ou aquilo.
da consciência para depois nos aprofundarmos Quando nos apaixonamos, por exemplo, sabe-
no padrão da Alteridade. mos que estão ativados ou constelados os Ar-
quétipos da Anima na personalidade do homem
3. Os Quatro Padrões Arquetípicos da ou do Animus, na mulher. Esta ativação não é
Consciência que causa o Amor. A ativação ocorre em função
Quando ampliamos o conceito de arquétipo do encontro das duas personalidades, da natu-
para englobar também a consciência, saltam- reza de cada uma delas e do momento existen-
-nos aos olhos com veemência, quatro padrões cial. Todavia, temos certeza que o Arquétipo da
característicos que representam verdadeiros Anima ou do Animus está constelado, pois todo
protótipos da relação Eu-Outro na mente huma- o ser da pessoa apresenta um conjunto de rea-
na. Isto faz com que possamos privilegiar, dentre ções características que identificam o arquéti-
po. Seu Eu, nem que queira muito, pode invocar
a possibilidade infinita de arquétipos, os quatro
ou propiciar, mas não pode produzir esse esta-
arquétipos responsáveis por estes padrões e de-
do. Só o arquétipo pode fazê-lo.
nominá-los arquétipos regentes.
É importante conhecermos cada um dos qua-
Denomino padrão ou dinamismo arquetípico
tro arquétipos regentes e sua interrelação. Nada
regente à forma como cada um destes quatro ar-
no ser humano pode acontecer sem a ativação
quétipos opera na relação Eu-Outro. Temos, as-
de, pelo menos, um desses arquétipos regentes.
sim, o dinamismo ou padrão matriarcal, regido
Quando algo acontece, somente com a ativação
pelo Arquétipo da Grande Mãe. O dinamismo ou
de um, logo os outros também são ativados e
padrão patriarcal, regido pelo Arquétipo do Pai.
respondem. As vivências têm sempre compo-
O dinamismo ou padrão de Alteridade, regido
nentes, objetivos e subjetivos. As vivências são
pelo Arquétipo de Alteridade, que engloba os
todas símbolos do Self, pois expressam uma par-
Arquétipos da Anima, do Animus e do Coniunc-
te da psique. A estrutura do Eu não tem a capa-
tio, descritos por Jung. Finalmente, temos o pa-
cidade de participar de uma vivência, ou seja, da
drão ou dinamismo de totalidade, regido pelo elaboração de um símbolo, isoladamente, pois
Arquétipo da Sabedoria. Estes quatro arquétipos ela é coordenada por um ou mais arquétipos.
operam juntos na psique, podendo cada um se É da maior importância entendermos tam-
tornar dominante em momentos ou em longos bém a recíproca do que foi dito acima. Se o Eu
períodos. Eles constituem o quatérnio arquetípi- individual e coletivo não pode se exercer sem
co regente que é, por assim dizer, o Estado-Maior os arquétipos, a recíproca também é verda-
ou o Ministério da psique. Este quatérnio é, por deira. Os arquétipos sem o Eu e a consciência
sua vez, regido pelo Arquétipo Central da psique nada são. Isto faz com que os arquétipos, como
(também chamado de Self por Jung). O Arquétipo os genes, sejam inseparáveis da história e da
Central é o centralizador e coordenador de todo cultura em que operam. Isto não é fácil de en-
o desenvolvimento psicológico individual e cul- tender porque, ao definirmos os arquétipos e
tural. Ele é o “grande comandante” ou o “presi- os genes como universais, os tratamos como
dente” da psique. trans-históricos e transculturais. No entanto, ao
Estas imagens são muito relativas, pois os admitirmos que eles só podem atuar através de
arquétipos são matrizes de imagens ou pa- indivíduos e culturas, que estão sempre inseri-
drões de relacionamentos. São imaginários e dos na história, concluímos que qualquer em-
dependem da conjuntura individual ou social prego da perspectiva arquetípica indiferente ao

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contexto histórico está teoricamente distorcido de, que é uma das características que permite a
e errado. abrangência do conceito de arquétipo. Devido
Antes de abordarmos diretamente o Arquétipo a isso, emprego todos os arquétipos, inclusive
da Alteridade e a Democracia, vejamos, sumaria- os arquétipos regentes e seus dinamismos com
mente, cada um dos quatro dinamismos arquetí- total bipolaridade.
picos e seus respectivos arquétipos regentes. O redutivismo evolucionista é o que tem
A importância para a cultura de reconhe- mais prejudicado o emprego do conceito de ma-
cermos o fundamento da Democracia como o triarcal e patriarcal, até mesmo, quando usados
Arquétipo da Alteridade não deve ofuscar a im- arquetipicamente. O fato do dinamismo ma-
portância de reconhecermos os dinamismos ma- triarcal ser o mais básico, na vida psíquica indi-
triarcal e patriarcal como arquetípicos. O uso do vidual e muito provavelmente também na vida
matriarcal como matriarcado, reduzido à mulher, coletiva, faz com que ele corra o perigo de ser
às deusas mães, à descendência matrilinear e considerado o mais “primitivo” e logo, inferior
matrilocal, enfim, ao direito materno e do pa- ao patriarcal. Isto é desastroso para a ciência
triarcal ao homem, ao patriarcado e ao direito antropológica, pois se presta ao etnocentrismo
patrilinear têm levado a generalizações e distor- e até ao racismo, sobretudo contra aquelas cul-
ções que muito prejudicaram o emprego destes turas, como a hindu e muitas culturas negras e
conceitos tão valiosos. Estes conceitos se acham índias, que expressam e cultivam o dinamismo
hoje muito difundidos, mas abandonados pela matriarcal exuberantemente.
ciência oficial, o que levou ao seu emprego de A perspectiva arquetípica é muito útil para
forma muito confusa e imprecisa. evitar esse redutivismo ao “primitivo”, pois defi-
A pior consequência deste emprego reduti- ne todo arquétipo como um patrimônio genético
vo dos dinamismos matriarcal e patriarcal foi da espécie, presente em todos os indivíduos e
o redutivismo evolucionista que ocorreu a par- em todas as culturas. Assim mesmo, precisamos
tir da obra de Bachofen. Como sabemos, em nos resguardar do redutivismo do matriarcal ao
“O Direito Materno”, de 1870, Bachofen publi- “primitivo”, quando comparamos os dinamis-
cou a importantíssima teoria, segundo a qual, a mos e nos damos conta que o matriarcal é mais
descendência matrilinear havia precedido a pa- próximo da vida inconsciente e vegetativa, o pa-
trilinear na humanidade. Este fato foi usado pelo triarcal mais abstrato que ele, o de Alteridade
etnocentrismo patriarcal para situar-se de forma mais capaz de diferenciar o padrão de relaciona-
mais evoluída que a matriarcal e contribuiu para mento Eu-Outro que os outros, e o dinamismo de
a desvalorização dessa grande descoberta. Com totalidade, mais capaz de perceber o todo que
o enfoque arquetípico, podemos retomá-la. os demais. Estas características podem e devem
O leitor que conhece as publicações da Esco- ser usadas em cada indivíduo e cultura e, até
la Junguiana poderá exercer a crítica de que Eri- mesmo, comparativamente para perceber o grau
ch Neumann, que estudou muito o Arquétipo da de diferenciação de cada função ou símbolo.
Grande Mãe, o tenha situado antes do Arquéti- Nunca, no entanto, pode-se chegar a usar estas
po do Pai na formação do Ego. Neumann tendeu características para situar um indivíduo ou cultu-
a reduzir o matriarcal ao feminino e o patriarcal ra acima ou abaixo, melhor ou pior que outra, por
ao masculino e o mesmo fez Jung com os con- apresentar mais exuberantemente um ou outro
ceitos da Anima e do Animus. Concordo, perfei- dinamismo arquetípico.
tamente, que, ao tornarmos qualquer arquétipo A comparação valorativa entre os arquétipos
unipolar, principalmente no que se refere a uma é impossível e cientificamente errada, pois todos
polaridade tão importante quanto a polaridade os arquétipos são funções da psique. Estas fun-
masculino-feminina, retiramos-lhe a bipolarida- ções se destinam a atividades diferentes e, por

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isso, uma é melhor ou pior que a outra para de- mos a descrição de cada um deles, em separado,
terminada função, o que não a torna melhor ou antes de percebê-los, junto com o dinamismo de
pior que a outra em sentido absoluto. Alteridade, atuando na Democracia.
Você já viu alguém ensinar uma pessoa dan-
çar pelo dinamismo patriarcal, racional e abs- 4. Dinamismo Matriarcal (Arquétipo da
tratamente, através do “dois pra cá, um prá lá”? Grande Mãe)
No fim, sai um autômato. O melhor dinamismo É o dinamismo mais básico da psique. Seus
arquetípico para a dança é o matriarcal. Solta- princípios fundamentais são os de sobrevivên-
-se o corpo, embalando no ritmo, e um dia o cia e propagação da espécie, daí sua essência
passo acerta, se é que existe o passo certo. Por se expressar pelo prazer da sensualidade e da
outro lado, não se pode vender um computador fertilidade. O estudo e a compreensão do di-
para funcionar um dia de um jeito, outro dia de namismo matriarcal têm sofrido intensamente
outro, em função da sua espontaneidade. O re- com o viés patriarcal dominante no Ocidente.
sultado também seria uma caricatura e a firma A austeridade do dinamismo patriarcal domi-
logo iria à falência. nante reduziu, historicamente, na psicologia,
A dificuldade de se entender os dinamismos o dinamismo matriarcal ao princípio do prazer,
arquetípicos com a isenção científica para inter- ao feminino, ao infantil, ao “bom selvagem” e
pretá-los corretamente é o grande número de si- ao narcisismo primário. Ao mesmo tempo em
tuações difíceis e traumáticas que cada indivíduo que reduzia o dinamismo matriarcal ao prin-
e cultura tem na sua história com cada um deles. cípio do prazer, a dominância patriarcal de
Outro fato que dificulta essa isenção é que, da nossa tradição histórica se identificava com
mesma forma que um indivíduo ou cultura tem o princípio da realidade. Nada mais redutivo
melhor ou pior facilidade para cantar e dançar, e preconceituoso. O dinamismo matriarcal é
assim também indivíduos ou culturas têm maior fundamental na vida desde o nascimento até a
ou menor facilidade para exercer um ou outro di- morte e abrange igualmente o homem e a mu-
namismo arquetípico. Nem tudo, nessa variação, lher, os idosos e as crianças.
pode ser explicado historicamente. Numa família, O Arquétipo da Grande Mãe, que rege o di-
na qual o ouvido musical é péssimo, às vezes namismo matriarcal, se expressa na mitologia
nasce um filho com ouvido musical ótimo. Certas pelas imagens das deusas e dos deuses da fer-
aptidões e deficiências, que vemos nos superdo- tilidade, geralmente representativos das forças
tados e nos subdotados, fazem-nos pensar em da natureza. Na personalidade, o dinamismo
características genéticas diferentes nos próprios matriarcal se expressa pela grande intimidade
arquétipos, referentes à sua capacidade de dife- emocional, pela sensualidade, pela expressivi-
renciação. Isto limita a generalização pura e sim- dade exuberante das emoções em grupos e das
ples dos arquétipos pelo fato de serem universais funções corporais, cultivando o preparo de comi-
e comuns a todos os seres humanos. A compa- das e bebidas, a dança e o canto, a sexualidade,
ração com a genética nos é aqui outra vez muito o sentimento e a intuição.
útil. A habilidade de ver, ouvir e sentir o gosto é O padrão de consciência que caracteriza o di-
genética, como sabemos, o que não evita que a namismo matriarcal é uma grande proximidade
capacidade das pessoas para exercer esses senti- da relação Eu-Outro. A proximidade da polari-
dos seja muito diferente. dade consciente-inconsciente é aqui tão grande
A melhor forma de conhecermos e aplicar- que a relação Eu-Outro forma inúmeras ilhas na
mos corretamente os dinamismos arquetípicos consciência, ligadas entre si por nuances in-
regentes é imaginá-los, sempre presentes, atu- conscientes, que impedem sua integração numa
ando lado a lado na psique como um todo. Veja- lógica racional abrangente. Sua lógica, porém,

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existe e, apesar de frequentemente inconsciente re com a polaridade justiça-injustiça, bom-mau,
e inexplicável, é inegável. Trata-se da lógica da feio-bonito e todas as demais.
vida, da sobrevivência e da fertilidade. É ela que Esta maior capacidade de desapego sensual
permite a intuição, a mediunidade e a possessão e de abstração do dinamismo patriarcal lhe per-
tão comuns neste dinamismo. mite um enorme apego à organização e ao poder
Descrevo a relação Eu-Outro matriarcal como de controle sobre o corpo, as pessoas, as emo-
binária, porque a intimidade psíquica na qual ções e a natureza. O Eu e o Outro, funcionando
ela ocorre, torna difícil uma abstração maior. ternariamente, podem se associar em grandes
Aqui está sua grande vantagem e desvanta- cadeias lógicas e formar sistemas muito abran-
gem. Vantagem no desempenho dos cuidados e gentes de rotulação, planejamento e execução.
atendimento às forças vitais, sejam elas de uma Isto faz com que o dinamismo patriarcal compi-
criança que chora por comida, companhia e cari- ta, antagonize e tenda a bitolar permanentemen-
nho, do corpo que pede expressão, atenção e sa- te o dinamismo matriarcal. É que o matriarcal,
tisfação ou da natureza em geral. Desvantagem pelo próprio imediatismo da força sensual da
porque este intenso apego impede um desape- vida, tende a contrariar o planejamento patriar-
go sensual e afetivo, um afastamento suficien- cal, que passa a lhe temer e rotular preconceitu-
te para o Eu se relacionar além do binário numa osa e pejorativamente.
abstração maior e mais abrangente. Pelo fato da tradição cultural do Ocidente
apresentar forte predominância patriarcal, com
5. Dinamismo Patriarcal (Arquétipo grande repressão do matriarcal, devido às suas
do Pai) raízes romanas e judaico-cristãs, o viés cultural
É o dinamismo da abstração que permite um contra o matriarcal é imenso. Ora, acontece que
grande desapego da sensualidade e dos senti- as culturas afro-brasileiras e índias apresentam
dos, de um modo geral. Ainda que o dinamismo grande exuberância do dinamismo matriarcal, o
matriarcal seja naturalmente preponderante no que contribuiu muito para serem consideradas
início da vida do bebê, não existem limites de inferiores pelo etno-centrismo europeu. Assim,
sexo e idade para o matriarcal e o patriarcal. O o resgate do dinamismo matriarcal reprimido,
matriarcal, a esse respeito, tende a se expressar junto com o reconhecimento do seu importan-
sempre que houver necessidade de cuidado e tíssimo papel na vida individual e social são
aconchego, e é, por isso, naturalmente dominan- uma parte essencial da implantação da Demo-
te na primeira infância e na velhice. cracia no terceiro mundo, através do dinamis-
Devido à capacidade de abstração do dina- mo de Alteridade. É chegado o momento de
mismo patriarcal, ele é o principal arquétipo passar-lhe a palavra.
organizador dos limites, das leis, dos deveres e
metas da vida individual e social. Esta caracterís- 6. O Dinamismo de Alteridade
tica advém do fato dele proporcionar um acentu- Trata-se do dinamismo arquetípico mais di-
ado afastamento entre o Eu e o Outro e entre as ferenciado para o relacionamento existencial e,
polaridades, em geral, inclusive entre a polarida- por isso, seu princípio essencial é o chamado
de consciente-inconsciente. Esta forma de ope- para o encontro através do engajamento pelo co-
rar lhe permite ser frequentemente ternário. O nhecimento, pelo amor e pela entrega.
Eu opera com o Outro em função de polaridades. Esta busca de encontro pleno nos remete
Ao posicionar-se de um lado, o Eu se preocupa a três componentes básicos do dinamismo de
em justificar porque não está do outro. O certo Alteridade: igualdade, liberdade e totalidade.
é adotado com a mesma preocupação com que Igualdade não no sentido de tudo ser a mesma
o errado é definido e proibido. O mesmo ocor- coisa, mas de haver oportunidades iguais para

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a expressividade do Eu e do Outro com suas di- narcisismo para exercerem a interação dialética
ferenças preservadas. Liberdade sem a qual é com suas respectivas dualidades em busca de
impossível a plena expressividade do Eu e do uma síntese que os abrange e transcende.
Outro na sua interação dialética. Totalidade
porque essa busca de expressividade e encon- 7. O Dinamismo de Totalidade
tro pleno impulsiona o Eu e o Outro permanen- Regido pelo Arquétipo da Sabedoria, este
temente a uma realidade que os transcende e dinamismo é o auditor da psique, ou seja, é o
abrange. contador existencial, que quando ativado nos
Ao ser ativado para a busca do encontro, o encaminha para perceber o balanço geral do pro-
Arquétipo da Alteridade tem uma relação muito cesso existencial até aquele momento.
especial com os dinamismos matriarcal e pa- Esta percepção da totalidade envolve uma
triarcal. Por um lado, ele luta pela interação livre grande abstração, na qual figuram, lado a lado,
e igualitária, destes dois dinamismos, junto com as polaridades do bem e do mal, do certo e do
todas as demais polaridades psíquicas. Por ou- errado, da esperança e da frustração, do sucesso
tro lado, ele se esforça para vivenciar a sensua- e do fracasso.
lidade matriarcal e a organização patriarcal, sem Presente e atuante durante toda a vida, como
se identificar ou ser dominado por eles. os outros três arquétipos regentes, o dinamismo
Para se compreender o que é o dinamismo de de totalidade tende a predominar na velhice. Ele
Alteridade, além do que já foi dito acima, é preci- abrange os Arquétipos do Velho Sábio e da Ve-
so conhecer o seu padrão quaternário de relacio- lha Sábia, descritos por Jung.
namento. A esse respeito, é importante registrar Antes de abordarmos mais o Arquétipo de
que Jung descreveu o quatérnio como um dos Alteridade na Democracia, vejamos sucinta-
símbolos da totalidade psíquica. O dinamismo mente a sua expressão na Ciência, no Amor e
de Alteridade, ao ser quaternário, busca a tota- no ecossistema.
lidade do que pode oferecer um relacionamento.
Por isso, o Arquétipo da Alteridade é o Arquétipo 8. Alteridade e Ciência
da Ciência, do Amor, da relação dialética com A dimensão científica que não dissocia a
nosso ecossistema e da Democracia. Trata-se do subjetividade da objetividade só pode ser exer-
Arquétipo que propicia a criatividade psíquica cida, metodologicamente, dentro do padrão de
mais diferenciada para a realização plena do ser Alteridade. O exercício quaternário da interação
humano na dimensão individual, familiar e cul- subjetivo-objetiva permite ao pesquisador em-
tural, inclusive na ecológica. pregar o acerto e o erro para referir a dualidade
O dinamismo de Alteridade é quaternário do subjetivo. Pode também empregar a imagina-
porque nele a personalidade e a cultura adqui- ção para pesquisar a exatidão ou inexatidão da
rem a capacidade de perceber a dualidade do Eu realidade concreta do Outro.
em interação criativa com a dualidade do Outro. Quer se dê conta ou não, o pesquisador cien-
Através da Alteridade, o Self se abre para a dú- tífico está sempre dominantemente influenciado
vida permanente, na qual o Eu revela seu lado pela dimensão da Alteridade. Ao empreender
seguro, conhecido e forte, ao mesmo tempo em sua pesquisa, ele imagina, de algum modo, um
que abre a porta de acesso aos seus aspectos in- fenômeno que quer melhor conhecer. O desen-
seguros, pouco conhecidos e vulneráveis. Como volvimento de sua pesquisa se caracterizará
diria Jung, trata-se de um Eu capaz de apresentar pela interação quaternária da dualidade subje-
sua Persona e também confrontar sua Sombra. A tiva e da dualidade objetiva através da qual o
busca deste encontro profundo e total suscita do subjetivo e o objetivo esclarecerão sua realida-
Eu e do Outro o despojamento do egoísmo e do de através da polaridade erro-acerto inerente ao

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método experimental e ao confronto com a reali- terra devia ser dominada, escravizada e espo-
dade operacional. liada para o gáudio dos seus conquistadores. A
lei da sua escravidão não tinha meias medidas.
9. Alteridade e Amor Nós retiraríamos dela nosso alimento e a despo-
A passagem da paixão para o amor também jaríamos de seus recursos. Além disso, ela deve-
requer o exercício quaternário da Alteridade. Na ria engolir de volta nossos dejetos sem a menor
paixão, a indiferenciação do Eu e do Outro é bem consideração. O fruto dessa relação perversa
conhecida de todo aquele que já se apaixonou. surgiu nos sintomas de seu esgotamento.
Esta fusão idílica é, porém, efêmera, pois logo O Self Planetário está ameaçado, junto com o
começam a surgir elementos do Outro diferen- Self de todas as culturas. É chegado o momento
tes do Eu e vice-versa. Ativou-se o quatérnio. de se atentar para o perigo da dominância pa-
Instala-se a passagem da paixão para o amor, triarcal na relação humana com a natureza. O
na qual sucumbe a imensa maioria dos apaixo- Arquétipo da Alteridade está se ativando pro-
nados. Muitos elementos do Outro são apenas gressivamente. Seu dinamismo quaternário se
diferentes do Eu, mas outros desagradam ao Eu. implanta aos poucos na consciência para exer-
cer a dialética dentro do ecossistema.
O problema se torna complexo e difícil quando o
Eu é ameaçado pelo fato de que muitas dessas
características do Outro, que não lhe agradam,
11. Alteridade e Democracia
A contribuição de Jung do conceito de arqué-
pertencem à sua própria sombra e vice-versa.
tipo no inconsciente coletivo, ampliada para
Ao denunciá-las no Outro, este as aponta tam-
englobar também a consciência, nos permite
bém no Eu. As coisas se complicam. É um fogo
reconhecer os quatro padrões arquetípicos da
cruzado. Há necessidade de abertura, coragem
consciência e perceber sua interação e as conse-
e despojamento narcísico. O encontro profundo
quências da sua dominância.
exige a capacidade de entrega do Eu e do Ou-
O reconhecimento do padrão quaternário de
tro. Negar-se a admitir sua Sombra é fatal, mas
Alteridade, regendo a relação dialética Eu-Outro
para admiti-la, há que confrontá-la e mudar. Ao
dentro do todo, nos admite reconhecer a separa-
confrontar a Sombra, a admiração do parceiro
ção sujeito-objeto na mentalidade positivista do
cresce e o amor frutifica. Ao fugir da Sombra vem
século XIX, como uma dissociação cultural pato-
a decepção e a morte do amor. Nem sempre as lógica que mutilou o ideal democrático humanis-
surpresas vêm pela Sombra. Muitas vezes, a pai- ta do Iluminismo. A percepção da necessidade
xão fusiona as personalidades de tal forma que a da interação dialética dentro do todo cultural
simples percepção do Outro inicia o fim do amor. para a transformação histórica nos permite res-
gatar a dissociação subjetivo-objetiva e reunir as
10. Alteridade e o ecossistema ciências humanas e da natureza dentro de um
A consciência planetária está despertando humanismo científico holista.
para a necessidade de uma interação com a na- Este conceito ampliado de arquétipo nos
tureza que assegure a sobrevivência da espécie. admite também retomar a noção de matriar-
O conceito de ecossistema, que envolve a cons- cal e patriarcal como padrões arquetípicos da
cientização da interação dialética do ser-huma- consciência. Percebemos o quanto sua redu-
no com o meio dentro de um todo é inseparável ção, na Antropologia, exclusivamente a uma
da ativação do Arquétipo da Alteridade. forma de regulamentação social, seja de casa-
A dominância patriarcal histórica comandou mento, distribuição do poder institucional ou
um conflito de agressão e controle do dinamis- da herança, dificultou a identificação da sua
mo matriarcal que envolveu a natureza. A mãe natureza arquetípica.

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A identificação dos dinamismos arquetípicos cidades no quinto milênio a.C. O período de
matriarcal, patriarcal, de Alteridade e de totali- dominância patriarcal emerge nessa época e
dade faz crer que possamos rever a história do propicia a formação dos grandes impérios que
ser humano no planeta de uma nova forma. Lado culminam no Império Romano. O período de
a lado ao progresso tecnológico das culturas do dominância da Alteridade esboçado na Grécia
paleolítico até os satélites computadorizados e e na República Romana, reforçado pelo Mito do
o controle da energia atômica, podemos perce- Buddha no Oriente e pelo mito Judaico-Cristão
ber, desde o início até hoje, as manifestações e no Ocidente, emergente nas ciências modernas
a interrelação destes mesmos arquétipos, nos e no socialismo do humanismo iluminista e re-
costumes e na consciência coletiva da humani- tomado hoje na busca da democracia social e
dade. Com isso, nos libertamos de um pensa- da relação dialética no Ecossistema.
mento evolutivo tecnológico linear como indica-
dor do que é evolução e progresso. Nos damos 12. A Interação Quaternária do
conta que nem sempre o progresso tecnológico Dinamismo de Alteridade
foi acompanhado por uma maior expressividade A complexidade e a dificuldade da dialética
de todos os arquétipos dentro da cultura. Pelo de Alteridade residem no seu padrão quaterná-
contrário. O progresso tecnológico, sobretudo rio, que opera dentro das polaridades humanas.
depois da fusão dos metais, foi, muitas vezes Quando o Outro é reduzido ao “inconsciente
acompanhado de uma maior predominância do reprimido e temido”, como aconteceu na psico-
dinamismo patriarcal sobre o matriarcal, com o logia ou ao “capitalista explorador”, como ocor-
empobrecimento dos rituais, símbolos e costu- reu na economia política, a dialética é patriar-
mes de muitas culturas. Assim, frequentemente, calizada e a Alteridade impossibilitada. Tudo
o progresso tecnológico acentuou o fenômeno fica muito mais simples, mas o todo não muda
da mais-valia na produtividade entre os arqué- realmente. A posição do analista e do político,
tipos e da alienação do Self, se é que Marx nos neste caso, se tornam unidirecionais. Basta-lhes
daria licença para empregar seus conceitos na modificar o Outro. O analista deve vencer a resis-
energética da economia psíquica. tência do seu paciente para enfrentar o incons-
Este enfoque arquetípico da transformação ciente. O político deve propiciar a luta de classes
humana no planeta nos permite reaproximar Et- para que o explorado domine o explorador.
nologia e História e retomar uma Antropologia A patriarcalização do relacionamento torna a
comparada livre do etnocentrismo patriarcal. estratégia de ação muito mais direta e executi-
Tomando como termo de comparação não a va que na Alteridade. O Eu se fixa numa posição
tecnologia, mas o que se faz com ela para a ex- para mudar o Outro de uma posição para outra,
pressividade do Self cultural vemos que muitas as três preestabelecidas. A estratégia de rela-
culturas tribais, têm uma expressividade arque- cionamento patriarcal alimenta o Eu com gran-
típica muito mais exuberante e sofisticada que de certeza operativa e o transforma em dono da
muitas culturas industrializadas. A Antropologia verdade. É a estratégia do poder e da domina-
comparada retoma assim um papel pedagógico ção. Nela, o analista e o político interpretam ro-
do maior significado. tulando a realidade do Outro. Este maniqueísmo
Simplesmente para exercitar sumarissima- necessita permanentemente de um bode expia-
mente este raciocínio arquetípico, podemos tório. O Outro, que resiste à interpretação, é um
perceber três grandes períodos de dominância neurótico para o analista e um fascista reacioná-
arquetípica no Planeta. O longuíssimo período rio para o político. A visão patriarcal é simples
de dominância matriarcal expresso na antigui- de compreender e de exercer, mas conduz inexo-
dade e que vem até o início da fundação das ravelmente a uma estratégia de prepotência, de

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arrogância, de intolerância, de dogmatismo e de te da busca da totalidade, que Jung descreveu
opressão, quando por ventura assume o poder. como o Processo de Individuação.
No dinamismo de Alteridade, o relaciona-
mento quaternário torna as coisas muito mais di- 13. Democracia, Alteridade e Racismo
fíceis, mas, em compensação, e por isso mesmo, A dificuldade do exercício da Alteridade nas
seu potencial de transformação é muito maior. democracias é aumentada, muitas vezes, porque
O Eu não se torna amorfo e sem convicção, lon- as minorias e os oprimidos, frequentemente, pa-
ge disso, mas admite a possibilidade de errar triarcalizam o seu discurso reivindicatório e, des-
quanto ao julgamento do Outro. Aumenta com ta maneira, sem o querer, propiciam o inverso do
isso, extraordinariamente, a respeitabilidade do que pretendem. Ao patriarcalizarem seu discurso,
Eu para com o Outro e a necessidade do exame radicalizam sua posição, estigmatizam o Outro e,
cuidadoso que inclui a escuta do Outro pelo Eu, com isso, fortalecem o dinamismo patriarcal, com
antes de chegar a qualquer rotulação sobre a po- o qual os privilégios dos detentores do poder são
sição do Outro, se certa ou errada, se progressis- mantidos. Esta patriarcalização por parte do opri-
ta ou reacionária. E mais. mido e injustiçado lança-o no território do poder e
A Alteridade é permeada de cabo a rabo e do ódio e dificulta-lhe exercer a Alteridade.
não pode ser exercida, sem a vivência de que o A patriarcalização seduz o injustiçado e opri-
Outro é imprescindível para o Eu chegar ao todo. mido porque, ao menos ideologicamente, lhe
Esta vivência inclui a noção de que o ódio e a re- proporciona uma vivência de força. Seu ódio de-
jeição do Outro acompanham, de alguma forma sencadeado, inflama seu espírito de luta, reúne
misteriosa e secreta, o Amor e a atração por ele. suas hostes e, através do espírito da vingança,
Atração e repulsão, ódio e amor, são movimen- atiça sua sede de reparação e de justiça. Esta ati-
tos presentes na Alteridade, da mesma forma vação do Arquétipo do Pai é da maior importân-
que a sístole e a diástole compõem os batimen- cia no caso do Movimento Negro Afro-Brasileiro,
tos do coração. pois este arquétipo foi violentamente ferido pela
Assim, o consciente e o inconsciente se te- imagem do pai de família submetido às humilha-
mem, se afastam e se atraem. Casam-se e se di- ções da escravidão. Nesse sentido, o esforço de
vorciam permanentemente. Da mesma maneira, reconstituição de sua dignidade ultrajada, atra-
as classes sociais. Sua oposição é proporcional vés do resgate de uma figura heróica revolucio-
à sua atração, pois necessitam interagir para for- nária como a de Zumbi é da maior importância. O
mar o todo social. risco, de desativar com isso o dinamismo de Al-
O inconsciente é temido pelo Eu. Trata-se de teridade, porém, é grande e precisa ser vigiado.
um Outro ameaçador, pois contém o reprimido. A América Latina é um continente plurirracial,
É a caverna perigosa que abriga os terríveis dra- e a Democracia só poderá ser exercida em suas
gões do parricídio e do incesto. É fascinante por- nações se considerar a plurirracialidade e a pluri-
que a agressividade e o sexo são partes da vida, culturalidade um fator de primordial importância
mas aterrorizante, porque sua realização é a ca- na construção da identidade de cada nação. Este
tástrofe. Mas isso não é tudo. Ao lado da Hidra movimento tem que ser assumido por nós inde-
de Lerna e do Leão de Neméia, está o Jardim das pendentemente dos países do primeiro mundo,
Hespérides na busca heroica de Herakles. O in- sobretudo os europeus, cuja direção, neste mo-
consciente também é fascinante, porque contém mento histórico, é oposta à nossa. De fato, sua
o potencial do amor e da criatividade. Ele é dese- preocupação, principalmente depois que a bar-
jado e almejado não só porque contém o inces- reira política do leste europeu desmoronou, é o
to, mas, também, porque abriga as sementes do fechamento de suas fronteiras e a preservação
vir-a-ser, dentre as quais está a grande semen- dos privilégios de suas etnias dominantes. A

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Europa do Ocidente fecha hoje suas fronteiras, Preta é negar a Alteridade e recorrer ao radicalis-
como o fez o Império Romano com os povos ao mo patriarcal para negar uma vivência histórica
seu redor, que considerava bárbaros. O caminho inter-racial que já é um importante alicerce de
das nações latino-americanas para a construção nossa democracia pluricultural futura. Reduzir a
da sua identidade pós-colonialista é exatamente Mãe Preta a um estereótipo exclusivamente ne-
o inverso. Trata-se da busca de um nacionalismo gativo é um movimento de retaliação e vingan-
de abertura ao invés do nacionalismo continen- ça que arranca uma das páginas mais belas do
tal de fechamento, cultivado hoje, mais e mais, movimento anticolonialista na América-Latina.
na Europa do Ocidente. Em 1827, Simón Bolívar, entra triunfantemente
Nesse sentido, o fortalecimento do dinamis- em Caracas, depois de sua libertação espetacu-
mo patriarcal das culturas afro-brasileiras não lar do Peru. Aguardado por dignatários diversos,
pode ser realizado às expensas do enfraque- o libertador consagrado apeia do cavalo e corre
cimento do dinamismo cultural de Alteridade, para abraçar a escrava Hipólita. Órfão de mãe
sob pena de situá-las na contramão de nossa desde cedo, Bolívar nela encontrara sua mãe
história pós-colonialista. Devido ao papel funda- preta que o havia amado e criado. Deveríamos
mental que essas culturas têm no Self cultural, considerar Hipólita simplesmente uma escrava
sobretudo do Brasil e das nações do Caribe, sua alienada, que havia introjetado o escravizador
colaboração na ativação do Arquétipo da Alteri- e, por isso, a ele dedicara o amor de sua ma-
dade é imprescindível para o nosso futuro. ternidade? Se assim o fizéssemos, estaríamos
A prática da Alteridade pelas culturas afro- afirmando o dinamismo patriarcal, às custas da
-brasileiras, além da dificuldade inerente ao mutilação do Arquétipo da Grande Mãe e inviabi-
exercício do relacionamento quaternário, é mui- lizando as culturas afro-latino americanas para o
to dolorosa, pois inclui a elaboração da polari- exercício da Alteridade.
dade amor-ódio com o branco descendente do Junto com o símbolo da Mãe Preta, o outro
escravizador. Há que se abrir o quatérnio para símbolo que vem sendo estereotipado e, fre-
diferenciar os brancos racistas dos não-racistas, quentemente, reduzido patriarcalmente pelo Mo-
única forma de se poder aliar a estes para com- vimento Negro ao seu componente de submis-
bater aqueles. Fechar-se na identidade negra e são é o do Preto Velho. Uma análise quaternária
polarizar patriarcalmente com os brancos, sem do símbolo, porém, nos revela como sempre, e,
diferenciá-los em processos de encontro como o sobretudo neste caso, que seus componentes
de hoje, é perder importantes aliados e sabotar a não são apenas negativos. Pelo contrário, jun-
construção da sociedade pluricultural. to com o estereótipo negativo do negro dócil,
A prática da Alteridade pela comunidade ne- submetido e alienado, existe o componente do
gra brasileira é também muito dolorosa na re- Velho Sábio inerente ao Arquétipo da Sabedoria.
composição pós-colonialista de nossa história. Assim, radicalizar e rotular o símbolo do Preto
Rotular a mãe preta, frequentemente adorada Velho como estereótipo de submissão mutila um
com saudade e gratidão, como babá, mãe de dos dinamismos mais exuberantes das culturas
leite, cozinheira ou simples empregada da famí- afro-brasileiras que é o dinamismo da totalida-
lia branca, com um estereótipo de submissão, de. Isto não quer dizer que o movimento cultural
vergonha e repudio, é reduzir ao seu aspecto ne- antirracista não necessite combater os aspectos
gativo, um símbolo também carregado de amor, de submissão negativa da imagem dos negros
resistência, abnegação, sacrifício e dadivosida- advindas do passado.
de intensamente expressivos, da pujança do Ar- Finalmente, para melhor compreendermos
quétipo da Grande Mãe nas culturas afro-brasi- o exercício quaternário da Alteridade dentro da
leiras. Rejeitar o amor dos brancos por sua Mãe Democracia, no que concerne o racismo, deve-

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mos reconhecer a raiz arquetípica do racismo. tendo posições e mantendo-se a mesma posição
Quando assim fazemos, somos compelidos a ternária e rígida do Eu.
admitir que, na Democracia, o Eu não pode sim- Devido ao dogmatismo ternário do dinamis-
plesmente analisar a presença ou ausência do mo patriarcal, ele é o dinamismo arquetípico do
racismo no Outro, isentando-se de antemão de preconceito e da intolerância individual e dos
qualquer componente racista. Esta deposição regimes coletivos ditatoriais. Elaborar o racismo,
pura e simples da possibilidade do racismo no neste dinamismo, desperta as maiores resistên-
Outro patriarcaliza a compreensão do fenômeno cias. Pessoalmente, tenha a maior dificuldade
racista e dificulta seu confronto democrático. em trocar ideias sobre o racismo com um mem-
A análise quaternária do racismo mostra que bro do Movimento Negro, quando este acredita
o Eu, por mais vítima que tenha sido e seja do que só os brancos podem ser racistas. Nesse
racismo, nunca está vacinado contra ele e os- caso, toda sua possibilidade de ser também ra-
cila, junto com o Outro, numa possibilidade de cista vai para sua Sombra, que seu Eu exclui pre-
posição racista e não racista. Este é o aspecto conceituosamente.
mais difícil e doloroso da análise quaternária O discurso quaternário de Alteridade é a es-
do racismo pelo Movimento Negro, devido a se- sência da Democracia, porque nele não há o
rem os negros as grandes vítimas do racismo no certo e o errado preconcebidos. Devido a isso, o
Brasil. No entanto, esse reconhecimento é fun- padrão democrático requer a abertura do Eu para
damental para compreender o que é o racismo e sua Sombra, tanto quanto a do Outro. A análise
combatê-lo profundamente no Self cultural. da projeção no Outro é inseparável da análise da
O arquétipo por trás do racismo e de todo introjeção no Eu. É um dinamismo difícil de pra-
o preconceito é o Arquétipo do Pai. Em função ticar, pois exige o emprego igualmente do amor
do seu imenso potencial de abstração, organi- e do ódio, do distanciamento e da aproximação.
zação e planejamento, o dinamismo patriarcal Não basta culpar o Outro pelo erro; o Eu precisa
propicia uma tal hierarquização de valores que, continuamente se despojar do narcisismo, da
com o tempo, codifica os relacionamentos na vaidade, da prepotência e se admitir também ca-
psique individual e coletiva com polaridades paz do mesmo fenômeno que imputa ao Outro.
assimétricas: certo-errado, bonito-feio, rico-po- Reconheço que a aplicação da Alteridade ao
bre, sucesso-insucesso, mulher-homem, adul- racismo é muito difícil de ser ouvida por quem
to-criança, negro-branco, estrangeiro-nacional, sofre a discriminação racial, dia e noite, em to-
empresário-operário, homossexual-heterosse- das as situações existenciais, devido à cor de
xual, dia-noite, consciente-inconsciente, todas sua pele. No entanto, o poder de compreensão e
as polaridades, enfim, divididas, codificadas, transformação da Alteridade é de tal ordem, que
hierarquizadas em função da tradição. A difi- todo aquele que almeja transformar a ordem so-
culdade em se lidar com o racismo, no dina- cial na construção de uma sociedade democráti-
mismo patriarcal, é esta disposição ternária ca precisa conhecê-lo.
pré-concebida, na qual o Eu não percebe sua Mais uma vez, obrigado à SECNEB pela opor-
própria Sombra e vivencia a polaridade no Outro tunidade de vir a Salvador e participar deste
de forma preconceituosa. Compreende-se, as- Simpósio. Axé! ■
sim, que o preconceito racial está inserido nos
pré-conceitos do dinamismo patriarcal. Dificil-
Recebido em: 25/04/2019 Revisão: 11/05/2019
mente pode-se combatê-lo, simplesmente inver-

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A perspectiva simbólica do espectro


obsessivo-compulsivo. O “projeto” de Freud
revisitado pelo arquétipo de Jung1

Carlos Amadeu B. Byington*

Palavras-chave
TOC, arquétipo e
sistema nervoso,
Resumo
símbolo,
O autor aborda o espectro obsessivo-compul- que compromete a eficácia de todo o quadro de- arquétipo
sivo através da dimensão simbólica e arquetípi- fensivo e configura sua exuberância sintomática matriarcal,
ca enraizada em três vertentes: neurológica, projetiva e ritualizadora num esforço para suprir arquétipo
psicofarmacológica, e psicodinâmica. Associa a deficiência. O autor tece considerações sobre patriarcal,
os dinamismos arquétipos matriarcal, patriar- a ineficiência da psicoterapia dinâmica exclusi- terapia
cal, de alteridade e de totalidade com estru- vamente verbal no TOC e a relativa eficiência da comportamental
cognitiva,
turas e funções do sistema nervoso. A seguir, o Terapia Comportamental Cognitiva e argumenta
elaboração
autor retoma a hipótese de Katz (1991), segun- que a associação destas duas teorias através
simbólica,
do a qual o TOC apresenta um distúrbio do pro- do conceito de técnicas expressivas poderá técnicas
cesso de repressão (Freud) possivelmente por contribuir com maior eficiência no tratamento expressivas,
uma disfunção neuroquímica, envolvendo neu- não só do TOC, como das fobias e da síndrome projeção,
rotransmissores, principalmente a serotonina. do pânico, desde que seja exercido dentro de introjeção.
A interpretação arquetípica desta disfunção é a um enfoque simbólico e arquétipo que inclua a
debilitação da função de delimitação, de organ- relação terapêutica no nível transferencial criati-
ização e de contenção do Arquétipo Patriarcal, vo e defensivo. ■

1
Trabalho apresentado no Simpósio sobre o Espectro Obsessivo-Compulsivo do Depto. de Psiquiatria, USP, em 08 de abril, 1995.
Revisado em 18/11/2011. Publicado originalmente na Revista Junguiana13, 1995, p. 90-119.
* Médico Psiquiatra e Analista Junguiano. Membro fundador da Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica. Membro da Associação
Internacional de Psicologia Analítica. Criador da Psicologia Simbólica Junguiana. Educador e Historiador.
E-mail: < c.byington@uol.com.br >, site: < www.carlosbyington.com.br >

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A perspectiva simbólica do espectro obsessivo-compulsivo. O “projeto” de


Freud revisitado pelo arquétipo de Jung

Há 100 anos, Kraepelin já reconhecera a neu- distorcendo-a e privilegiando a eficácia de uma


rose obsessivo-compulsiva em sua nosografia, vertente, ou no máximo duas, em detrimento da
mas foi Freud quem destacou sua importân- restante. Com isso, sofre a verdade científica e
cia, ao situá-la, em primeiro plano, junto com sofrem os pacientes que as necessitam para o
a histeria, no seu estudo das psiconeuroses de seu tratamento, especialmente no caso do es-
defesa. Kraepelin e Freud a denominaram Zwa- pectro obsessivo-compulsivo (EOC).
ngsneurose. O substantivo Der Zwang, em ale- Foi durante este simpósio que me dei conta
mão, tem as conotações de contenção e de co- desta limitação em mim mesmo. Como a minha
erção no uso cotidiano. O termo Zwangslos (sem especialização é dominantemente na vertente
Zwang) quer dizer à vontade, sem cerimônia. psicodinâmica, pedi o apoio dos colegas partici-
Zwangsneurose refere-se, assim, ao distúrbio pantes mais versados nas outras duas vertentes,
da função normal de expressar e de conter. Esta que me indicaram valiosa bibliografia atualiza-
conotação é importante para situarmos o espec- da, que consultei para redigir este artigo. Como
tro obsessivo-compulsivo (EOC) lado a lado com sempre, estudar não foi o problema. O mais difí-
o funcionamento normal da personalidade na cil foi constatar a minha limitação no progresso
perspectiva simbólica. recente nas outras vertentes, sobretudo no que
concerne à relação dos núcleos da base com o
1. As Três Vertentes da Psiquiatria EOC dentro da vertente neurológica.
Moderna Para considerar a psicodinâmica do EOC jun-
A psiquiatria moderna opera com variáveis to com a vertente neurológica e psicofarmacoló-
de três vertentes que o psiquiatra necessita gica, proponho um conceito de símbolo que as
saber articular de forma inteligente. A primeira abrange. Emprego este conceito de símbolo para
é a vertente psicodinâmica com as teorias de nomear as características de algo, seja coisa
formação e operação normal e anormal do ego ou vivência, que relacionam subjetiva e objeti-
e da personalidade, empregadas em todas as vamente esta coisa ou vivência com o todo das
linhas da psicoterapia, inclusive na Escola Com- ideias e emoções, da cultura, do corpo e da natu-
portamental Cognitiva. A segunda é a vertente reza (BYINGTON, 1988). Por exemplo, a compul-
neurológica dos núcleos e circuitos nervosos, são de eliminar a sujeira com um ritual minucioso
relacionados entre si e com o córtex cerebral e de lavar-se por longo tempo, percebida simboli-
seu funcionamento bioquímico. A terceira é a camente, inclui todas as características do ato
vertente psicofarmacológica que opera com me- ritual, tanto as objetivas, quanto os significados
dicamentos que agem na neuroquímica e afetam subjetivos, conscientes e inconscientes. Nesta
os componentes psicodinâmicos. A dificuldade perspectiva, o símbolo inclui a psicodinâmica,
de se exercer eficientemente a psiquiatria hoje é a psicofarmacologia e a neurologia, lado a lado
que é pouco frequente o profissional ter conhe- e inter-relacionadas. O fato de que um pacien-
cimento destas três vertentes e, mais raro ainda, te com transtorno obsessivo-compulsivo (TOC)
ter a consciência da necessidade de adquirir apresenta um ritual obsessivo-compulsivo de la-
esse conhecimento. A psicodinâmica desta limi- var-se que melhora com psicoterapia, outro que
tação é que a forma mais fácil do terapeuta não apresenta TOC junto com síndrome de La Touret-
a ver em si próprio é projetá-la na psiquiatria, te que melhoram com penicilina e um terceiro

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caso que só melhora com clomipramina não ex- outro lado, como acentua Albert Camus no seu
cluem a perspectiva simbólica, mas se incluem livro sobre o mito, trata-se da representação da
nela com características objetivas diferentes que essência da condição humana. Controlar a natu-
precisam ser pesquisadas em cada caso. Junto a reza simbolicamente empurrando pedras mon-
estas estarão as características subjetivas, como tanha acima, que rolarão depois e serão outra
a ansiedade e a repugnância de se sentir sujo e vez empurradas por nós e algum dia por outros
contaminado, por exemplo. As características é uma forma de descrevermos o caminho da hu-
subjetivas podem ter componentes conscien- manidade. Bebemos, comemos e dormimos sem
tes e inconscientes. Freud (1909) percebeu que nunca acabarmos com a sede, a fome e o sono.
lavar o corpo no TOC tinha o significado de pu- Erradicamos algumas poucas doenças e logo
rificação de certas emoções projetadas no cor- descobrimos outras mais. Nisso tudo somos Sí-
po, que permaneciam inconscientes, como, por sifos. Seu mito é uma forma de situarmos nosso
exemplo, a agressividade ou a atração sexual. trabalho com a devida humildade e reverência
Chamou especialmente sua atenção nesta sín- diante da imensidão das forças cósmicas dentro
drome a constância da defesa de deslocamento das quais operamos. Afinal, empurramos pedras
no nível objetivo e subjetivo. Uma pessoa com montanha acima, sem nunca chegar a construir
TOC pode controlar compulsivamente o medo de as montanhas que subimos e descemos. Nesse
ser assaltado deslocando rituais de fechar por- particular, o mito de Sísifo nos exemplifica a re-
tas, para janelas, chaves, fechaduras, vigilância latividade e finitude do Eu diante da grandeza do
no prédio e saídas à rua. Da mesma forma, pode Self que o abrange.
obsessivamente deslocar sua ansiedade de uma
modalidade de assalto para outra com grande 2. A Polaridade Histeria/Neurose
versatilidade. Ora pode ser um ladrão, ora um Obsessivo-Compulsiva
terapeuta, ora um empregado, que carregará A argúcia clínica de Freud repartiu a impor-
sua fantasia do assaltante projetada. O mesmo tância da nosografia das neuroses principalmen-
ocorre com as obsessões-compulsões de lim- te entre a histeria e a neurose obsessivo-com-
peza e de simetria. A versatilidade da defesa de pulsiva. Deu importância secundária à neurose
deslocamento no TOC se contrapõe à ideia ob- de ansiedade (síndrome de pânico), às fobias e
sessiva de emagrecimento na anorexia nervosa, à neurose pós-traumática. Situou as perversões
por exemplo. Aqui, a compulsão é de emagrecer em outra categoria. A teoria da repressão e a teo-
o corpo através da dieta, dos eméticos ou dos ria dos instintos de morte e de vida de Freud me
laxativos. Não há deslocamento. dificultam relacionar o EOC com o desenvolvi-
A perspectiva simbólica do EOC é necessária mento normal, porque, a meu ver, são dualistas
para percebê-lo dentro do controle das ativida- (“maniqueístas”) e misturam muitos componen-
des humanas, cujo grande exemplo é o trabalho tes anormais com os normais. Além disso, a teo-
diário. O mito de Sísifo, que conta sua história ria não se mostra apropriada para correlacionar
no Hades, empurrando, dia após dia, uma pedra o sistema nervoso com a psicodinâmica porque
que atinge o cume de uma montanha e rola para ela é centralizada no controle do incesto e da
baixo outra vez é aqui significativo, sobretudo se agressividade dirigida aos pais no início da vida,
lembrarmos que Sísifo não se conformou com o que a torna limitada para expressar a criativi-
sua finitude e enganou a morte quando ela veio dade e as funções psíquicas durante todo o pro-
buscá-lo pela primeira vez. Por um lado, o mito é cesso existencial. A terceira dificuldade é o favo-
o exemplo da improdutividade do TOC. São pes- recimento do Arquétipo Patriarcal, identificado
soas que consomem uma energia e um tempo com o princípio da realidade, em detrimento do
enormes na repetição de seus rituais. Mas, por Arquétipo Matriarcal que é preconceituosamen-

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te equacionado com o desejo, o inconsciente, o caso de histeria psicótica, assim também diag-
princípio do prazer, a imaturidade, o incesto, o nosticado por Breuer.
parricídio e as pulsões instintivas indiferencia- O Arquétipo Matriarcal é caracterizado pelo
das e incapazes de ética e de civilização. prazer, pela sensualidade, pela ludicidade, pela
O conceito de Arquétipo de Jung (1975) pare- intimidade e pela espontaneidade. Sua expres-
ce-me mais útil para situar o TOC no EOC e este, sividade consciente-inconsciente se exerce de
no desenvolvimento normal. Sendo o arquétipo preferência na relação simbiótica e bastante
um padrão de funcionamento psicológico, cuja indiscriminada entre o Eu e o Outro. Essa pou-
principal característica é a criatividade que en- ca diferenciação entre o Eu e o Outro, no nível
globa o desenvolvimento normal e patológico, do corpo, favorece a expressão corporal normal
ele é o conceito ideal para ser ampliado junto das emoções, através do sistema endócrino e do
com o conceito de símbolo para englobar tam- sistema nervoso vegetativo (simpático e paras-
bém as três vertentes: a psicodinâmica, a neu- simpático): sudorese, palpitação, peristaltismo
rológica e a psicofarmacológica na normalidade e secreções salivares, hepáticas, gástricas, pan-
e na patologia. Como parte do genoma humano, creáticas e intestinais, aumento ou diminuição da
os arquétipos correspondem aos padrões de circulação sanguínea em setores específicos do
conduta dos animais na etologia e podem ser organismo através da vasodilatação e vasocons-
compreendidos também como os padrões neu- trição (enrubescimento e palidez emocionais),
rológicos típicos de funcionamento do sistema com variação correspondente da pressão arterial,
nervoso e neuroquímico das neurosinapses, e tantas outras manifestações. A denominação de
onde operam os psicofármacos, também arque- psicossomática e de conversão é imprópria por-
tipicamente, isto é, de forma característica e úni- que ambígua, sobretudo quando não diferencia
ca em nossa espécie. Ampliado desta maneira, o o fenômeno normal do patológico. No nível das
conceito de arquétipo é ideal para retomarmos o ideias, este arquétipo, devido à simbiose do Eu
projeto de Freud (1895 p. 395), que este ano ani- com o Outro, opera grandemente com a magia e, a
versaria um século e associarmos as manifesta- intuição e no nível da natureza, com o animismo.
ções psicodinâmicas às neurológicas, como ele O Arquétipo Patriarcal é caracterizado por
começou a fazer. Para isso, é necessário, primei- funcionar com acentuada separação entre o Eu
ro, compreendermos a relação dos arquétipos e o Outro e entre o consciente e o inconsciente
com a histeria, o EOC e o sistema nervoso. (posição polarizada), que permite abstrair, or-
ganizar e controlar o processo psíquico. Desta
3. A Polaridade Matriarcal/Patriarcal organização nasce a ênfase no dever e na hie-
Retomando a divisão de culturas com dinâ- rarquização dos valores, na moral, na tradição e
mica matriarcal e patriarcal realizada por Bacho- na tarefa. É também esta organização que impõe
fen (1948) no século passado e embasada nos ao Eu os códigos de submissão aos princípios
arquétipos por Erich Neumann (1954), podemos abstratos e o apego ao poder de comandá-los.
reconhecer o espectro histérico (EH) e o EOC Freud (1913) identificou a moral com o superego,
como as duas grandes síndromes patológicas introjetado pela proibição do incesto. A concei-
dos arquétipos matriarcal e patriarcal. Apesar tuação do Arquétipo Patriarcal, tendo como base
de as encontrarmos com muito maior frequên- a organização abstrata que regula o incesto jun-
cia na dimensão neurótica, elas também podem to com o Arquétipo Matriarcal, é bem mais ampla
se apresentar na dimensão psicótica. O famoso que a teoria do superego. Enquanto o Arquétipo
caso de Anna O. (BREUER, 1969), tratado por Jo- Matriarcal se exerce muito melhor através do
seph Breuer (1893) e dez anos depois analisa- sistema nervoso vegetativo e do sistema endó-
do por ele e Freud, se tratava claramente de um crino, devido à forma sensual de simbiose cons-

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ciente-inconsciente entre o Eu e o Outro pela de do Eu e do Outro e da consciência. Assim,


qual funciona (posição insular ou simbiótica), o a consciência e a identidade do Eu e do Outro
Arquétipo Patriarcal se exerce preferencialmente estão em grande parte no córtex, mas eles não
através do sistema nervoso motivacional, posto são o córtex cerebral. A consciência, o Eu e o
que sua função de organização exige uma sepa- Outro são formados e transformados pela fun-
ração muito maior entre o Eu e o Outro e entre ção simbólica que elabora significativamente as
o consciente e inconsciente e, por isso, elege a vivências no córtex. Para isso, o córtex possui
dominância cortical da ação como a modalida- inúmeros circuitos ligados entre si e com as es-
de apropriada para o seu desempenho. No nível truturas subcorticais. As funções estruturantes
das ideias, o dinamismo patriarcal é o grande vitais experienciam as coisas e as transformam
formador de sistemas. No nível da sociedade e em vivências. A função simbólica cortical elabo-
da natureza é principalmente planificador, con- ra as vivências e forma a identidade do Eu, do
trolador e hierarquizador. Outro e da consciência que articulam a conduta
Antes de entrarmos em detalhes sobre a as- inteligente humana. Quanto menos complexos
sociação do EH, dominantemente como uma dis- são os organismos na escala zoológica, menos
função do Arquétipo Matriarcal, e do EOC como ou nenhum córtex têm, menos sua conduta é
uma disfunção dominantemente do Arquétipo inteligente e mais suas respostas são determi-
Patriarcal, é necessário compreendermos que, nadas por reações estereotipadas. São padrões
diferentemente do Id, os arquétipos não são pul- arquetípicos com simbolização muito limitada
sões instintivas, e sim formas de regular sua ex- na sua forma, praticamente literal, que expres-
pressão. Da mesma forma que o sistema nervoso sam os padrões de conduta dos animais. Muitos
nem gera nem exerce totalmente o sexo, o medo, padrões da conduta humana também são assim.
a agressividade, a fome, o humor (bem-estar– Vemos uma cena de agressividade e sentimos
mal-estar), a respiração e o sono, mas apenas os raiva. Vemos uma cena erótica e sentimos exci-
influencia e controla, assim também os arquéti- tação sexual. Enquanto os animais, com menos
pos não geram funções, mas apenas coordenam córtex e função simbólica, reagem com a ação,
sua expressão. nós podemos elaborar a vivência e adotar uma
conduta apropriada e inteligente. Quando não
4. A Função Simbólica e o Sistema elaboramos as vivências, podemos ter uma re-
Nervoso ação direta como os animais. Por outro lado, os
A inteligência humana consciente está base- animais superiores que têm córtex mostram mui-
ada em grande parte na constituição do córtex tas vezes uma conduta inteligente que expres-
cerebral que associa a experiência existencial sa o funcionamento simbólico. O golfinho, por
de forma criativa para aplicá-la à conduta. É esta exemplo, que tem uma complexidade cortical
associação criativa da vivência com o todo exis- muito acentuada, é sabidamente capaz de con-
tencial exercida no córtex cerebral que denomi- duta simbólica inteligente.
no função simbólica. No entanto, esta função Denomino o trabalho exercido sobre as vi-
não age diretamente a partir da percepção das vências pela função simbólica de elaboração
coisas. Se assim fosse, o córtex não precisaria simbólica. É deste trabalho que formam e se
do sistema neuroendócrino e do corpo. A função transformam a identidade da consciência, do Eu
simbólica age a partir das vivências. O corpo e e do Outro. Este trabalho torna as vivências sím-
suas funções experienciam a vida, e a função bolos estruturantes da consciência, do Eu e de
simbólica do córtex coordena as vivências para toda a personalidade. O trabalho de elaboração
a conduta inteligente. É assim que o cérebro simbólica transforma também as funções vitais
contribui para formar e transformar a identida- em funções estruturantes. A afetividade, a agres-

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sividade, o medo, a inveja, o ciúme, a mentira, de repressão. O fato de Freud e Melanie Klein te-
a sexualidade, a fidelidade, o fascínio, a ética, rem descrito o desenvolvimento normal a partir
a transgressão e a vergonha, por exemplo, são da neurose, patologizou muito a psicanálise, con-
algumas das funções estruturantes da psique. fundindo o normal com o patológico. Ao nomear
A elaboração simbólica é assim, o principal tra- as posições normais do Eu de esquizoparanoide e
balho exercido pela articulação criativa do córtex depressiva, Melanie Klein confundiu ainda mais o
cerebral com o resto do sistema nervoso, através normal e o patológico, o que afastou muito a psi-
dos símbolos e funções estruturantes. O concei- cologia dinâmica da psiquiatria clínica. Quando
to de arquétipo é importante, porque como sua situamos, porém, as defesas como funções es-
principal característica é a de um padrão her- truturantes defensivas disputando a elaboração
dado e criativo para elaborar vivências, ele tem dos símbolos estruturantes com funções estrutu-
abertura suficiente para receber, no futuro, as rantes criativas, ambas coordenadas pelos Arqué-
inúmeras descobertas que se anunciam na ver- tipos Matriarcal e Patriarcal, o referencial teórico
tente neurológica e na vertente farmacológica, e fica mais claro para a nossa finalidade.
associá-las à vertente psicodinâmica, principal- Esta separação das funções estruturantes em
mente porque o conceito de arquétipo abriga as criativas e defensivas é muito importante para
variações patológicas dentro do padrão normal. separarmos o normal do patológico. Sua grande
diferença psicodinâmica está no fato de as es-
5. As Funções Estruturantes Criativas e truturas defensivas impedirem a livre elaboração
Defensivas consciente dos símbolos, levando-os à compul-
O principal distúrbio do processo de elabora- são de repetição inconsciente dos quadros clíni-
ção simbólica é a defesa, descoberta e nomeada cos. Deve-se ressalvar que as estruturas defensi-
por Freud inicialmente com a denominação geral vas circunstanciais raramente levam à patologia.

Self Individual, Familiar e Cultural

Conduta

Consciência Inconsciência
Persona Sombra
Ego-Outro Ego-Outro

Funções Estruturantes Funções Estruturantes


Criativas Defensivas

Vivências
Símbolos e Funções
Estruturantes
(Consciência – Inconsciência)
Gráfico 1. As funções estruturantes criativas e defensivas

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Em momentos de ansiedade existencial, po- expressivas de imaginação, desenho e dramati-
demos ter projeções catastróficas imaginárias zação para vivenciar a função ideativa tornada
e adotar rituais evitadores sem formarmos um defensiva e revertê-la ao normal.
quadro obsessivo-compulsivo clínico. É a croni- O que chama atenção neste quadro neurótico
ficação das estruturas defensivas que as tornam é que ele se camuflava defensivamente empre-
a base da psicopatologia habitual. gando inúmeras estruturas criativas operando
A psicodinâmica ajuda muito a psiquiatria patriarcalmente como coadjuvante. Toda a sua
com a separação das estruturas em criativas enorme eficiência existencial operava defensi-
ou normais e defensivas, porque permite que vamente como um ritual obsessivo-compulsivo
ela raciocine sobre os distúrbios clínicos como para neutralizar e esconder a ideia de ser capaz
variações do desenvolvimento normal. Isto é de produzir a morte. Nos casos de TOC, o ritual
fundamental para identificarmos os conteúdos obsessivo de controle é evidente, mas esses ca-
reprimidos e as ideias obsessivas dentro de sos são 2,5% da população, como confirmou del
personalidades com um padrão patriarcal muito Porto (1995) em sua pesquisa. É de se supor que
ativado e que, por isso, desempenham um alto a psicodinâmica obsessivo-compulsiva numa
grau de organização e eficiência. população seja muito mais extensa. Este caso
Uma mulher de meia-idade, viúva (caso A), ilustra que defesas sistematizadas camufladas
desempenhava a posição de executiva e cui- podem aparecer nas neuroses de dominância pa-
dava de toda a família, inclusive filhos e netos. triarcal com a mesma função do ritual. Sabemos
Era imensamente organizada e eficiente. Sofria, por experiência no tratamento destas neuroses
no entanto, de uma neurose que a impedia de que, quanto mais eficiente é a defesa, mais ela
ser feliz. Apesar de sua inegável eficiência, pela é camuflada e menos se mostra como um ritual,
qual era por todos admirada, tinha uma autoes- apesar de ter a mesma função que este. No caso
tima muito baixa, não se permitia nenhuma rega- que acabamos de mencionar, pareceu-me que
lia, não defendia suas causas além de certo pon- todas as funções estruturantes criativas, que a
to e se sentia atraída pela morte para se liberar. empresária exercia, tais como, liderança, organi-
Tinha um sonho de repetição com um desastre, zação e ação foram envolvidas defensivamente
no qual morriam pessoas, e ela era incriminada. para cercear e ocultar a ideia de ser capaz de
Havia feito tratamento medicamentoso antide- causar a morte pelo pensamento. Neste ponto já
pressivo sem resultado. Depois de longa e mi- podemos introduzir algo que desenvolveremos
nuciosa elaboração do seu processo existencial, adiante e que é central na perspectiva simbóli-
um dia revelou o que mostrou ser a chave do seu ca do TOC: seu quadro sintomático é muito mais
sistema defensivo: achava que se insistisse com exuberante que os quadros habituais rigidamen-
alguém para fazer algo, sobretudo se fosse uma te organizados de dominância patriarcal devido
pessoa querida, a pessoa poderia morrer e ela primariamente à debilidade da função arquetípi-
seria culpada. Devido a essa vivência, pensava ca e não à sua intensidade como pode parecer à
que seu poder de fazer mal aos outros era tal que primeira vista.
não merecia nada para si e só seria aliviada pela Algo muito importante que del Porto também
morte. Associou a formação dessa ideia com a assinalou em sua tese é que o TOC nem sempre
morte de seu pai. Tinha sete anos. Sua tia entrou se desenvolve numa personalidade rigidamen-
em casa anunciando uma tragédia. No quarto ao te organizada, como encontramos nas pessoas
lado, a paciente ouviu que alguém morrera de com tipologia patriarcal dominante. A meu ver,
acidente. Numa fração de segundo, desejou que só as aparências permitem empregar este dado
fosse seu pai, por quem sentia restrições, em vez estatístico para negar os componentes psicodi-
de seu tio, que adorava. Entramos com técnicas nâmicos do TOC. Uma explicação psicodinâmica

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para este fato pode ser encontrada na tipologia ao Processo de Elaboração Simbólica para com-
Junguiana (JUNG, 1967). Ela nos ensina que as preendermos melhor as diferenças entre a iden-
defesas nem sempre se organizam pelas fun- tidade do Eu e do Outro na normalidade (funções
ções tipológicas mais diferenciadas. Pelo con- criativas) e na patologia (funções defensivas).
trário, é comum as defesas se organizarem para A função estruturante da introjeção elabora
expressar os símbolos na Sombra a partir das os símbolos centrada na identidade do Eu e a
funções tipológicas menos diferenciadas. Um in- função estruturante da projeção elabora os sím-
telectual, tipo pensamento, que tem esta função bolos centrada na identidade do Outro. No caso
como função mais diferenciada, pode apresen- A, a principal problemática da ideia obsessiva
tar uma neurose sexual com ejaculação precoce, de fazer o mal recaía sobre a projeção defensi-
expressando sua dificuldade com o sentimento, va sobre o Outro, que devia ser protegido pelo
sua quarta função, isto é, sua função tipológica sistema defensivo do trabalho e da proteção aos
menos diferenciada. Isto não impede que encon- membros da família. Esta atividade, apesar de
tremos tipos pensamento cuja racionalização muito criativa, estava no final claramente a servi-
seja a principal defesa dentro da dissociação ço da projeção defensiva de proteger os outros.
neurótica. Falam e explicam tudo para esconder A introjeção defensiva que a deprimia, provinha
sua dificuldade de sentir. Às vezes, o sintoma da função afetiva defensiva através da qual a
surge dentro da própria função superior como, paciente negava seu valor. Apesar de trabalhar
por exemplo, no caso de um brilhante professor, absurdamente, sentia que não fazia mais que
também tipo pensamento, que começou a ter um sua obrigação. O distúrbio da função introjetiva
vazio mental no meio de uma frase. A psicote- também estava presente, no se sentir má e oni-
rapia mostrou que sua agressividade reprimida potentemente capaz de matar os outros, levan-
estava se manifestando por este roubo neurótico do-a à conclusão de que a morte era única forma
do pensamento. de libertar-se. Esta introjeção defensiva, como
De forma análoga, um quadro de TOC pode era de se esperar, produzia um quadro depres-
se manifestar dentro de uma personalidade sivo, mas que funcionava de forma secundária à
muito organizada, de dominância patriarcal ou projeção defensiva. A defesa que regia o quadro
de outra personalidade, sensual e prazerosa de psicodinâmico era a projeção defensiva contida
dominância matriarcal. O EH também pode ma- na ideia de fazer o mal aos outros e que produzia
nifestar a disfunção arquetípica matriarcal que enorme ansiedade.
lhe é familiar, dentro de uma personalidade com Um homem de meia-idade (caso B) procu-
dominância matriarcal ou patriarcal. Um dos ca- rou terapia em função de problemas conjugais.
sos de neurose histérica mais difíceis que tratei Trabalhava muito e de forma eficiente, mas não
apresentava frigidez sexual e anestesia psicogê- se valorizava. Sua mulher nada fazia, posava de
nica de várias regiões do corpo. A paciente era nobre e ainda o ridicularizava. Não tinham mais
do tipo pensamento extrovertido exuberante vida sexual. Ele se sentia neurótico e masoquis-
dentro de uma tipologia arquetípica de intensa ta, um “verdadeiro Sísifo”, dizia, porque, quan-
dominância patriarcal. to mais ela o ridicularizava, mais ele trabalhava
para satisfazê-la. Há meses ele conhecera outra
6. As Funções Estruturantes da Intro- mulher que o admirava e por quem se apaixona-
jeção e da Projeção ra, mas sentia muita culpa que o impedia de se
Antes de diferenciar ainda mais a neurose separar. Tinha duas irmãs mais velhas, mas era o
obsessiva da histeria, através dos dinamismos único filho homem. Quando bebê, pouco dormia
matriarcal e patriarcal, quero acrescentar as fun- e se tornou uma curiosidade médica pelo tem-
ções estruturantes da introjeção e da projeção po que ficava acordado, olhando, sem chorar.

158 ■ Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 1º sem. 2019


Self Individual, Familiar e Cultural

Conduta

Consciência Inconsciência
Persona Sombra Normal e Patológica
Ego - Outro Ego - Outro

Introjeção - Projeção Introjeção - Projeção

Funções Estruturantes Funções Estruturantes


Criativas Defensivas

Símbolos e Funções Estruturantes


Arquétipo Arquétipo
Matriarcal Patriarcal

Gráfico 2. Funções estruturantes da intojeção e da projeção

Nasceu com os pés torcidos e durante a adoles- estão sempre juntos e atuantes. O que diferencia
cência fizera exercícios obstinados até corrigir a sua psicodinâmica é a dominância de um ou
o defeito. Seu pai era mulherengo e jogador e do outro na expressão das estruturas criativas e
pouco ficava em casa. Sua mãe era trabalhadora defensivas. Nos indivíduos normais, encontra-
e “perfeita”. A tipologia do paciente era pensa- mos uma verdadeira tipologia inata, que além
mento sensação extrovertida com acentuada do- das funções da consciência e das atitudes de
minância patriarcal. Numa sessão, trouxe-me um extroversão e de introversão descritas por Jung
sonho no qual saía de um cabeleireiro unissex (1967), apresentam também uma dominância
de peruca e com um pé usando sapato de salto matriarcal ou patriarcal inata na personalidade.
alto. Examinamos sua identidade sexual e, de- O tipo de dominância matriarcal apresenta fre-
pois de muita resistência, confessou-me que se quentemente dominância das funções mais
sentia homossexual e, mais ainda, mulher. Essa atribuídas ao hemisfério cerebral direito e o tipo
ideia absurda era a vivência central, em torno da de dominância patriarcal apresenta também fre-
qual se organizara a neurose, usando todo o seu quentemente dominância das funções mais atri-
trabalho como um grande ritual para escondê-la. buídas ao hemisfério cerebral esquerdo.
As principais diferenças psicodinâmicas e clí- Uma mulher de meia-idade (caso C) procu-
nicas entre o EH e o EOC podem ser melhor com- rou terapia porque sofria de tantos males que
preendidas através da dominância dos dinamis- seu clínico não sabia mais o que fazer. Quan-
mos matriarcal e patriarcal e suas amplificações do melhorava de sua disfunção ovariana, tinha
neurológicas e psicofarmacológicas. Falamos insônia, logo depois sofria de faringite que de-
sempre em dominância, porque estes arquétipos saparecia em pouco tempo. Volta e meia apre-

Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 1º sem. 2019 ■ 159


sentava crises de fragilidade capilar. Tinha um quência cardíaca, a pressão arterial, a osmolari-
leucograma que oscilava do normal ao patológi- dade sanguínea, a ingestão de alimento e água.
co sem uma explicação clara. Era muito intuitiva O hipotálamo exerce sua influência sobre todo
com mediunidade comprovada. Muito afetiva e o organismo para preservar a homeostasia (Can-
querida, era também sedutora, dramática e sa- non) através de três sistemas: o sistema endó-
bia cativar os homens, especialmente seus mé- crino, o sistema nervoso autônomo simpático e
dicos, ora melhorando, ora piorando “irremedia- parassimpático e o sistema motivacional.
velmente” a ponto de desesperá-los. Descrevia Vemos aqui claramente a diferença das ca-
sua mãe como gélida e dizia que sempre havia racterísticas dos espectros histérico e obses-
sido a querida de seu pai. Sonhava de forma exu- sivo-compulsivo no nível neurológico e arque-
berante. Confessou-me um dia que tinha a ideia típico. Enquanto que o Arquétipo Matriarcal e
fixa desde pequena de ser órfã de mãe. o EH se expressam principalmente através do
Uma mulher madura (caso D), divorciada e sistema endócrino e autônomo, o Arquétipo
mãe de dois adolescentes, procurou terapia por Patriarcal e a EOC se expressam basicamente
medo de enlouquecer. Tinha uma ideia recorren- pelo sistema motivacional. É isto que faz com
te de que seus filhos podiam morrer de acidente que no EH encontremos um Eu introjetando de-
ou doença. Ela mesma sofria de enxaqueca, co- fensivamente as funções de vulnerabilidade,
lecistite crônica não calculosa, insônia intermi- impotência, dramatização e sedução. A rela-
tente, dismenorreia frequente e outros sintomas ção íntima consciente-inconsciente do Eu com
físicos que muito a atormentavam. Era dedicada o Outro, acessível ao sentimento e à intuição,
e eficiente e bem-sucedida como comerciante. é muito menos acessível ao pensamento e à
Tinha pesadelos com homens maus. Gostava de sensação. O EH expressa-se principalmente
sexo, mas não suportava a ideia de depender de através da inconsciência e de impotência no
um homem. lusco-fusco “do mundo da lua”, através dos
Todos os quatro casos apresentam defesas hormônios e das vísceras, fora da musculatura
introjetivas e projetivas as mais variadas, mas esquelética e da ação volitiva. Neste território
os dois primeiros diferem claramente do terceiro neurológico o EH apresenta sua patologia sob
e quarto pela organização dos seus sintomas e a dominância do dinamismo matriarcal, daí
de suas defesas dentro de sua personalidade. não ter cabimento referir-se aos seus sintomas
A dominância patriarcal dos dois primeiros pela como conversão ou psicossomatização. Eles
organização abrangente e sistemática de suas são sim a expressão defensiva, neurótica ou
defesas os situa no EOC. Já os dois últimos apre- psicótica com predominância do dinamismo
sentam uma exuberância de sintomas vegetati- matriarcal. As paralisias histéricas que atuam
vos e endócrinos que se manifestam como sinto- sobre a musculatura esquelética formam uma
mas emergentes num mar de sofrimento. Nestes, exceção a esta regra geral. Há que se conside-
a mistura do Eu com o Outro no nível do corpo rar, porém, que as paralisias histéricas eram
e do relacionamento interpessoal expressam ao muito mais frequentes no final do século XIX,
mesmo tempo o Arquétipo Matriarcal e os qua- quando a histeria recebeu grande atenção dos
dros clássicos do EH. neurologistas. Da mesma forma que a síndro-
A amplificação neurológica da constituição me histérica se expressou fortemente através
do hipotálamo nos ensina que ele é uma parte da bruxaria na Inquisição e mais tarde através
importante subcortical do cérebro que se carac- das convulsões, quando Charcot estudou-a em
teriza por conter um grande número de circuitos contato com epiléticos na Salpêtrière, poste-
neuronais relacionados às funções vitais. Estes riormente, se apresentou como paralisias na
circuitos regulam a temperatura corporal, a fre- clínica de neurologistas, ela hoje surge como

160 ■ Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 1º sem. 2019


“depressão” para receber atenção e medicação é a ação, providenciada e exercida, que culmina
nos consultórios de psiquiatria e até de clínica no ritual defensivo do TOC.
geral. Essas variantes são devidas à sugestio- A amplificação neurológica dos espectros
nalidade histérica e ocorrem em função dos histérico e obsessivo-compulsivo não termina no
costumes culturais oriundos grandemente de hipotálamo, mas se comunica com todo o siste-
atitudes patriarcais defensivas. Trata-se assim, ma nervoso central (SNC) e a medula. Sua base
de uma identificação defensiva emprestada do cortical é significativa. São hoje sobejamente co-
opressor e não, de uma característica própria. nhecidas as diferenças entre o hemisfério cere-
É importante reconhecermos a expressão cor- bral direito (HCD) e o esquerdo (HCE). Não é por
poral normal do dinamismo matriarcal, mesmo acaso que o HCE tem o centro da palavra, pois
que ela seja exuberante. Quando não há defe- ele se caracteriza dominantemente pelos aspec-
sas e a expressão corporal pode ser elaborada tos racionais, lógicos e discursivos, enquanto
simbolicamente livremente, devemos ouvir e que o HCD é caracterizado principalmente pela
atender à linguagem do sofrimento do corpo, imagem, pela intuição, pela gestalt e pela mú-
sem acharmos que ela expressa defesas neces- sica. Não é preciso mais dados para fazermos a
associação do dinamismo matriarcal dominante-
sariamente inconscientes. No caso destas exis-
mente com o HCD e o dinamismo patriarcal do-
tirem, isso só pode ser levado a cabo através da
minantemente com HCE.
elaboração das defesas.
Os Arquétipos Matriarcal e Patriarcal não fun-
Já no dinamismo patriarcal temos a ampli-
cionam isoladamente. Neurologicamente, são
ficação neurológica no hipotálamo do sistema
muitos os circuitos que reúnem os dois hemisfé-
motivacional que liga a consciência à muscula-
rios cerebrais e os três sistemas do hipotálamo.
tura esquelética através de circuitos neuronais
A interação da neuro-hipófise e da adenohipófi-
que incluem os núcleos da base do cérebro.
se é significativa, bem como dos circuitos corti-
O Arquétipo Patriarcal, pelo fato de funcionar
cais com os núcleos da base.
através da organização sistemática necessita
da separação Eu-Outro, consciente-inconscien-
7. Os Arquétipos da Alteridade e da
te muito bem delimitada, de tal maneira que
Totalidade
encontra no sistema nervoso motivacional um
Existem dois outros arquétipos que se ex-
tipo de funcionamento que lhe corresponde. Ao
pressam através dessas associações. Eles são
invés da inação da histeria diante do sofrimen- os Arquétipos da Alteridade e da Totalidade que
to, que necessita impressionar e seduzir para formam com os Arquétipos Matriarcal e Patriar-
que alguém a socorra, temos aqui uma relação cal o Quatérnio Arquetípico Regente. Este Qua-
direta entre necessidade e ação. O Eu age so- térnio coordena todo o processo de elaboração
bre a obsessão volitivamente através dos ritu- simbólica junto com os inúmeros outros arqué-
ais, mesmo com a presença de defesas incons- tipos. O Arquétipo da Alteridade é responsável
cientes. Um ritual para evitar a sujeira pode ser por coordenar a interação dialética de situações
muito ativo e ao mesmo tempo esconder defen- incluindo a extensa interação frequentemente
sivamente que essa sujeira se refere à sexua- conflitiva dos dinamismos matriarcal e patriar-
lidade. O Arquétipo Patriarcal foi o dinamismo cal. Já o dinamismo de totalidade representa a
solar arquetípico que organizou e dominou a totalidade da psicodinâmica a cada momento.
natureza, as demais espécies e finalmente todo A amplificação neurológica desses dois arqué-
o planeta. O computador foi sua consequência tipos é conjunta, pois a dialética de alteridade
natural e o EOC é sua resultante patológica. O deve sempre formar um todo. Convido os espe-
que caracteriza o EOC em contraposição ao EH cialistas a situarem estes dois arquétipos nos

Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 1º sem. 2019 ■ 161


circuitos neuroendócrinos. Finalmente, temos o uma atividade genética centralizadora e coorde-
Arquétipo Central à volta do qual opera o Qua- nadora do desenvolvimento e do funcionamento
térnio Arquetípico Regente e todos os demais global nos organismos vivos. Se percebemos as
arquétipos e atividades psíquicas. Sem dúvida, grandes forças da natureza como a gravidade, o
a maior e mais ousada das formulações de Jung, espaço-tempo, a luz e o eletromagnetismo tam-
o Arquétipo Central ou Arquétipo do Self postula bém como arquétipos, podemos conceber a pre-
uma centralização de toda a atividade psíquica. sença do Arquétipo Central em todo o Cosmos.
É este arquétipo que me permite considerar todo Assim formulados os arquétipos centraliza-
e qualquer símbolo representativo da totalida- dos à volta do Arquétipo Central, temos o gráfico
de do Self. Nas células, no corpo e no sistema final do processo de elaboração simbólica.
neuroendócrino, o Arquétipo Central ainda não Acompanhei em análise o caso de uma mu-
foi descoberto. Não temos ideia ainda onde e lher de meia-idade (caso E) que começou a apre-
como situá-lo. No entanto, todos os cientistas sentar intolerância inusitada com as limitações
com quem conversei, sejam eles botânicos, de seus familiares e, concomitantemente, dei-
geólogos, médicos clínicos ou neurologistas, xou de fumar. Isto surpreendeu a família e a si
que refletem sobre o significado global do que própria, pois fumava há 30 anos e nunca conse-
conhecem e pesquisam, concordam que existe guira parar. Passou a exigir muito mais ordem na

Self Individual, Familiar e Cultural

Conduta

Consciência Inconsciência
Persona Sombra
Ego - Outro Ego - Outro

Introjeção - Projeção Introjeção - Projeção

Funções Estruturantes Funções Estruturantes


Criativas Defensivas

Vivências Símbolos e
Funções Estruturantes
Arquétipo Arquétipo
Matriarcal Patriarcal
Arquétipo Central
Arquétipo da Vida e da Morte
Arquétipo de Arquétipo
Alteridade da Totalidade

Gráfico 3. Processo final da elaboração simbólica

162 ■ Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 1º sem. 2019


casa do que antes e começou a subir e descer (caso F) sobre seu tratamento. Pelo relato, inferi
as escadas com um pano nos pés para aumen- tratar-se de um caso de TOC psicótico pelo exage-
tar a limpeza. Um dia, pela manhã, notou que a ro do ritual delirante, incluindo acentuado com-
lanterna traseira esquerda do seu carro estava ponente persecutório. O tratamento foi sempre
batida e a luz apagada (um belo exemplo de sin- muito dificultado porque a obsessão de sujeira,
cronicidade como vemos a seguir). Saiu de casa contaminação e envenenamento incluía também
dirigindo e, ao entrar numa avenida e olhar para a alopatia e a abordagem comportamental. Foi
a esquerda, notou uma pequena diminuição do uma sincronicidade que, na noite deste simpó-
campo visual esquerdo. A sincronicidade está sio, encontrei um colega que me disse ser atual-
na descoberta da lanterna traseira esquerda ba- mente o terapeuta desta paciente. Informou-me
tida e, logo a seguir, a percepção da limitação do que o quadro de TOC iniciara após a extirpação
campo visual esquerdo. O exame oftalmológico cirúrgica de um tumor da hipófise.
detectou compressão do globo ocular, o exame Os dois casos acima pouca atenção chama-
otorrinolaringológico e neurológico, junto com a riam dos analistas por seus componentes neu-
tomografia da base do crânio identificaram um rológicos, antes da ligação de distúrbios neu-
tumor que foi retirado. Seu diagnóstico cirúrgico rológicos, sobretudo dos gânglios da base do
e histopatológico foi de mucocele, formado pos- cérebro e a síndrome de La Tourette, com o TOC,
sivelmente a partir de um traumatismo craniano que vêm se acumulando nos últimos anos. Os
que sofrera. Já no pós-operatório desapareceu demais trabalhos deste simpósio abordam em
sua preocupação exagerada com ordem e limpe- detalhe esta dimensão do EOC. Abrem-se pos-
za. Voltou a fumar, às vezes, como diversão. sibilidades de percebermos de forma crescente
Este caso ilustra a interrelação da vertente o papel dos circuitos gânglios da base-tálamo-
psicodinâmica e neurológica do símbolo. É sig- -córtex em vários aspectos do comportamento.
nificativo o número de problemas neurológicos Uma característica importante nesses padrões
que o psiquiatra e o psicoterapeuta são os pri- de comportamento são os dois tipos de reações
meiros a testemunhar. Não acho coerente que opostas, uma diminuída (hipofrênica) e outra
alguém se forme em Psicologia sem conhecer aumentada (hiperfrênica). A primeira encontrada
Neurologia e Psicofarmacologia. A existência de na doença de Parkinson e a segunda nos rituais
diferentes profissionais formados em Psicologia do TOC (SAINT-CYR; TAYLOR; NICHOLSON, 1995).
e Medicina e o desconhecimento dos psicólogos A importância da dimensão simbólica está
da psicofarmacologia me parecem ser a expres- na associação da vertente neurológica com a
são da dissociação cultural subjetivo-objetivo e psicodinâmica e a psicofarmacológica, pois
mente-corpo, associada ao interesse corporati- o clínico e o pesquisador necessitam ter sua
vista médico. Geralmente os psicólogos conhe- consciência operando no Arquétipo da Alteri-
cem bem mais a psicodinâmica que os médicos, dade para poderem interagir essas variáveis. O
mas não se acham preparados para operar com dinamismo de alteridade nos leva ao desape-
a vertente psicodinâmica junto com as outras go característico dos dinamismos matriarcal e
duas. Não podemos esquecer o caso do grande patriarcal que nos fascinam com o redutivismo
músico americano George Gershwin que durante dos modelos unilaterais.
uma psicoterapia começou a apresentar cefa- Experiências com bebês macacos com lesões
lalgia que foi trabalhada psicodinamicamente. temporolímbicas mostraram um comportamento
Quando se constatou a existência do tumor ce- psicossocial isolado e problemático. Outro grupo
rebral, o caso já era inoperável. de bebês macacos isolados durante o primeiro
De outra feita, há aproximadamente dois ano de vida apresentou movimentos estereotipa-
anos, fui consultado pelo pai de uma mulher dos e autodirigidos e distúrbios neurológicos imu-

Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 1º sem. 2019 ■ 163


noreativos no núcleo estriado comprovados pela primariamente descritivo, o DSM-III-R claramen-
autópsia (MARTIN et al., 1991). Estas experiências te atribui ao TOC ideias obsessivas primárias e ri-
em macacos mostram a possibilidade da intera- tuais compulsivos de controle secundários. Katz
ção das vertentes neurológica e psicodinâmica atribui esta dinâmica do TOC à falência da fun-
na formação do cérebro. No entanto, acredito que ção de controle na sinapse devido à diminuição
não necessitamos exercer tanta crueldade com os da serotonina. Nesse caso, a eficácia da clomi-
animais para obtermos esses resultados. Na re- pramina no TOC é devida provavelmente à neu-
alidade, não precisamos da alteração anatômica tralização do bloqueador da recaptação da sero-
para imaginar a interação funcional permanente tonina na pré-sinapse. O consequente aumento
destas duas vertentes. Quando a clomipramina da serotonina traria um aumento da capacidade
age na pré-sinapse, por exemplo, e melhora um de contenção da ideia obsessiva e uma propor-
caso de TOC e a exposição comportamental com- cional diminuição da compulsão ritual para con-
plementa essa melhora, isso demonstra a mesma ter a obsessão.
interação neurológica-psicodinâmica, comprova- Confirme-se ou não esta brilhante hipótese,
da quimicamente na histopatologia do cérebro ela tem o grande mérito de exercer um modelo
destes macacos. de raciocínio psicopatológico que explica e trata
Como mencionei acima, todas as atividades o TOC através da integração das três vertentes:
humanas são vivências elaboradas simbolica- a neurológica, a psicofarmacológica e a psicodi-
mente no córtex cerebral de forma arquetípica. nâmica. Em termos arquetípicos, diríamos que
Estas vivências simbólicas estão imersas em no TOC há um enfraquecimento farmacológico
sistemas simbólicos que formam mitos. O fas- da função do Arquétipo Patriarcal no nível da
cínio que a vertente neurológica exerce sobre a neurosinapse, que permitiria uma exacerbação
psique do terapeuta e do pesquisador simboli- incontida da ideia obsessiva e uma ativação
camente está dentro do Mito da Encarnação. Ao correspondente do Arquétipo Patriarcal para
se ver presente nos núcleos e circuitos cerebrais, contê-la. A limitação da contenção faria o Arqué-
a consciência tem uma vivência de transcendên- tipo Patriarcal ativar os rituais de contenção. É
cia de si mesma e de encontro de suas raízes importante notar que estes rituais são defensi-
arquetípicas na matéria. Este fascínio é uma pro- vos, baseados na repressão e no deslocamento.
jeção que elabora a natureza da psique e nos faz O paciente de TOC não atribui significados à su-
conscientizar seu enraizamento no corpo, na na- jeira nem à sua agressividade. É de se supor que
tureza, na cultura e nas ideias, imagens e emo- estes significados estejam inconscientes, mas
ções. Como em toda a projeção, porém, corre-se pouco adianta conscientizá-los devido ao enfra-
o risco de ela passar de estrutura criativa a de- quecimento bioquímico do Arquétipo Patriarcal
fensiva, tornando-se fixa e dando origem ao re- nestas sinapses. Este pode ser um dos compo-
dutivismo da vertente psicodinâmica à vertente nentes da explicação da ineficácia da psicotera-
neurológica. A defesa redutivista traz onipotên- pia exclusivamente verbal no TOC.
cia e pseudo-segurança ao Eu e estagna tempo- A vertente psicofarmacológica integrada à
rariamente o processo de elaboração simbólica. psicodinâmica é necessária no TOC e em toda a
psiquiatria não somente pelo entendimento da
8. A Vertente Psicofarmacológica psicopatologia, como na hipótese acima, mas
Num interessante artigo, que me foi enviado também pelo cuidado geral do paciente e do vín-
pelo Prof. Gilberto Brito após o Simpósio, Katz culo terapêutico. Se compreendermos que sem-
(1991) relaciona os distúrbios do sistema trans- pre estamos medicando funções arquetípicas é
missor da Serotonina no TOC à teoria da repres- necessário entendermos como elas estão posi-
são de Freud. Argumenta ele que, mesmo sendo cionadas criativa e defensivamente. É necessário

164 ■ Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 1º sem. 2019


também percebermos que o vínculo terapêutico do século XVIII. Esta problemática histórica con-
transferencial precisa sempre ser conscientiza- taminou a relação da psiquiatria com a medicina
do e, às vezes, elaborado, pois pode estar ope- através da relação mente corpo e se metastisou,
rando defensiva ou criativamente. dentro da própria psiquiatria, com a dissociação
Um psiquiatra estava medicando uma de- das escolas de psicoterapia. De um lado, ficaram
pressão neurótica com imipramina. Acreditava as escolas de psicoterapia exclusivamente ver-
haver um componente endógeno, porque a pa- bais influenciadas dominantemente pela psica-
ciente tinha outros irmãos depressivos e sua nálise e centradas nos fenômenos inconscientes,
mãe havia se suicidado tomando uma dose se- e do outro, a Escola Comportamental, centrada na
manal de antidepressivos muitos anos antes. conduta e nos fenômenos conscientes.
Como a paciente ia viajar e ele não tinha hora A criatividade psiquiátrica e cultural do sécu-
para vê-la, deixou no consultório três receitas de lo vinte vem contribuindo ostensivamente para
imipramina com três caixas cada uma. Ao pegar intermediar esta dissociação através de inúme-
as receitas, a paciente deu-se conta que o anti- ras escolas como o psicodrama, a psicossínte-
depressivo e os comprimidos nas nove caixas se, a ludoterapia, a Escola Reichiana, a Gestalt,
eram a mesma dose com a qual sua mãe havia a psicodança, a psicoplastia, a musicoterapia, a
se suicidado. Interrompeu a medicação e tornou- terapia cognitiva e as escolas de origem oriental
-se fóbica com os antidepressivos. como a Ioga, o Tai Chi, a meditação, as lutas mar-
A conscientização da transferência criativa ciais e tantas outras. Através delas, reaproxima-
e defensiva (BYINGTON, 1985) é necessária na ram-se as funções psíquicas verbais e não ver-
vivência simbólica do fármaco para a transfe- bais, conscientes e inconscientes, patológicas e
rência do paciente e do terapeuta (contratrans- criativas na teoria e na técnica psicoterápica. A
ferência). O psiquiatra deve avaliar os benefí- Psicologia Analítica de Jung desenvolveu-se nas
cios obtidos à luz de muitos fatores negativos e duas direções. Por um lado, ficou com a psicaná-
prejudiciais à saúde do paciente, muitas vezes lise, centrada nos fenômenos inconscientes e na
escondidos dentro das reações de alívio a curto interpretação verbal. Por outro, desenvolveu a
prazo. Ele tem que considerar a pressão da mí- imaginação ativa, a ludoterapia (a caixa de areia
dia financiada pela poderosíssima indústria far- e as marionetes), a psicoplastia (desenho, pin-
macêutica, nem sempre de boa-fé. É necessário tura e escultura). Seu conceito de arquétipo foi
também conscientizar que o efeito da maioria importante para abrangermos os inúmeros pa-
dos psicofármacos atuais, embora benéficos, é drões de funcionamento psíquico. Através dele,
ainda sintomático e sua suspensão no TOC gera estamos abordando não só as diferenças entre
recaída. Por outro lado, sua especificidade rela- as escolas de psicoterapia como também as três
tiva é acompanhada geralmente de sintomas co- vertentes simbólicas da dimensão psíquica nor-
laterais e da possibilidade de propiciar o hábito mal e patológica.
medicamentoso. Em suma, queiramos ou não, a Os Arquétipos Matriarcal e Patriarcal, através
proporção remédio/veneno dos psicofármacos, dos espectros histérico e obsessivo-compulsi-
longe de ser insignificante, faz com que receitá- vo também contribuíram para intermediar esta
-los seja ainda um mal menor sempre contami- dissociação. A histeria muito contribuiu para
nado de iatrogenia, daí a necessidade do cuida- diferenciar a vertente psicodinâmica da verten-
do extremamente zeloso na sua administração. te neurológica e o TOC vem nos últimos anos
“expondo” as consequências nefastas da disso-
9. A Vertente Psicodinâmica ciação consciente/inconsciente e interpretação
O principal viés desta vertente foi ter ela ficado verbal/comportamento, absurdamente ainda
aprisionada na dissociação sujeito-objeto do final existentes nas escolas de psicoterapia.

Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 1º sem. 2019 ■ 165


Ao serem estudados e tratados, o TOC e os cal controlador-atuador foi se aperfeiçoando.
distúrbios de ansiedade, como as fobias e a sín- Alguns analistas retiraram quadros das paredes
drome do pânico, vieram mostrar duas grandes do consultório para não interferir com as proje-
limitações do edifício teórico psicoterápico. Pri- ções dos seus pacientes e outros começaram
meiro, que a abordagem exclusivamente verbal e a tratar os pacientes de senhor e senhora para
ideativa psicanalítica e arquetípica pouquíssimo evitar intimidades que favorecessem a manipu-
efeito terapêutico tem sobre o TOC e os distúr- lação das defesas. Outros analistas passaram a
bios de ansiedade. Segundo, que a terapia com- reduzir a interpretação dos símbolos totalmente
portamental e seu ramo cognitivo (TCC) tem um à transferência. O ritual terapêutico atingiu um
efeito significativo no tratamento. No entanto, ao grau de estereotipia interpretativa da ideação e
fazê-lo, a TCC prescinde de uma teoria de desen- da conduta muito grande. Sair do divã para exe-
volvimento normal e patológico da personalida- cutar qualquer movimento ou técnica expressiva
de como referência teórico-psicodinâmica para tornou-se sinônimo de acting out.
compreender a perspectiva simbólica do EOC no Devido em boa parte a essa rigidez metodo-
nível da transferência, das defesas, da resistên- lógica, surgiram e cresceram muitas escolas ex-
cia e da elaboração simbólica (working through). pressando o corpo, a imaginação e toda a sorte
A conclusão da interação criativa destes dois da- de técnicas expressivas (BYINGTON, 1993).
dos é que a separação das escolas psicanalítica Em que pese a capacidade potencial de
e arquetípica da escola comportamental cogni- transformação da personalidade, inerente à
tiva é injustificável do ponto de vista teórico e psicodinâmica dos processos inconscientes,
terapêutico e necessita ser revista. sobretudo à teoria das defesas e a sua possível
A identificação pessoalista das diferentes elaboração terapêutica, o sonho mágico do in-
perspectivas de conceituar e elaborar símbolos sight que desfaz defesas e elimina sintomas se
com os seus descobridores foi uma das grandes mostrou muito relativo com o passar do tempo.
limitações das teorias psicoterápicas. Tratou-se Casos de TOC tratados pela psicoterapia ana-
a descoberta científica como a prioridade ou a lítica exclusivamente verbal mostraram que o
seita dos seus descobridores, dos quais muitos sucesso terapêutico de Freud, relatado no caso
seguidores se tornaram membros e fiéis papa- do Homem dos Ratos, foi uma extraordinária
gaios, sem a inteligência criativa de seus mes- exceção contrariamente ao que Freud e seus se-
tres. Formaram-se freudianos, kleinianos, jun- guidores acreditaram durante décadas e alguns
guianos e lacanianos. Este controle defensivo até hoje acreditam. Devemos levar em conta,
do saber psiquiátrico, que envolve uma praxis que a avaliação estatística computadorizada
obrigatória, pode ser situado simbolicamente dos tratamentos dos distúrbios da doença men-
no EOC como uma característica defensiva do tal trouxe uma riqueza de dados comparativos
Arquétipo Patriarcal. Dinamicamente obsessiva da eficácia dos resultados, impossível há trinta
na ideia e compulsiva na praxis, ainda que não o ou quarenta anos atrás. No entanto, hoje eles
seja clinicamente. Chegou-se a ritualizar a tera- existem e só não se desapegaram dos ideais do
pia de base psicanalítica a tal ponto que não se passado não confirmados aqueles que estão a
devia cumprimentar um paciente fora da sessão, eles defensivamente apegados.
o número de sessões deviam ser de no mínimo Os sintomas dos distúrbios de ansiedade,
quatro a cinco por semana, não se podia pergun- como fobias e pânico, do TOC e de depressões
tar nada ao paciente (se ele ficasse mudo de an- significativas evidenciaram estatisticamente
siedade a sessão inteira, que ficasse!), o pacien- serem, em grande parte, resistentes, pratica-
te devia ficar no divã e o analista, quase atrás mente refratários às terapias exclusivamente
dele, fora do seu campo visual. O ritual patriar- verbais. Em contraposição, as técnicas com-

166 ■ Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 1º sem. 2019


portamentais-cognitivas, lidando no nível cons- de desenvolvimento humano: “Qual o ser que
ciente da polaridade exposição/prevenção da caminha de manhã com quatro pernas, ao meio
resposta, conseguiram um resultado estatisti- dia com duas e à tardinha com três?”. Ao de-
camente muito significativo para melhorar os cifrar o enigma cognitivamente, como referen-
sintomas desses quadros clínicos. A experi- te a vida humana, Édipo se deixa ofuscar pela
ência clínica chegou a um ponto que podemos luz brilhante da razão. O aprendizado da vida
dizer que os distúrbios da ansiedade, como fo- é ontológico, requer todo o Ser, precisa ser vi-
bias e pânico, o TOC e as depressões significati- venciado simbolicamente com os significados
vas não têm indicação de psicoterapia analítica que ligam cada momento ao todo (BYINGTON,
exclusivamente verbal. 1985). Precisamos compreender o processo
O TOC, devido à intensa reunião do subjetivo existencial se transformando sempre e de novo
com o objetivo, através da ideação e da conduta, a partir do indiferenciado para se entender que
veio sugerir fortemente que as terapias exclusi- a consciência funciona e se renova de dia atra-
vamente verbais não têm efeito sobre o seu tra- vés da fantasia e de noite através dos sonhos
tamento pelo fato de não lidarem efetivamente que fluem de suas raízes no fundo dos abismos
com a vivência e a conduta. Esta hipótese foi arquetípicos. Quando percebemos isso, nos
enfatizada, pelo sucesso que a Terapia Com- damos conta que a Esfinge pode desaparecer
portamental Cognitiva, centralizada na exposi- muitas vezes, mas não morre nunca, pois é uma
ção concreta e na prevenção também concreta imagem simbólica da indiferenciação psíquica,
da resposta ritualizada, vem apresentando no da noite, de dentro da qual nasce o sol a cada
tratamento do TOC. Este insucesso terapêutico nova manhã.
das psicoterapias exclusivamente verbais, no A história do nascimento e da família mitoló-
entanto, não significa que os conceitos de defe- gica da Esfinge não poderia ser mais incestuosa
sa inconsciente, resistência e transferência não e monstruosa para representar a psique arcaica
tenham fundamento e devam ser abandonados, e indiferenciada sobre a qual opera a consciên-
como muitos gostariam. Pelo contrário. Este in- cia. Orthos, seu pai, tinha duas cabeças no meio
sucesso nos incentiva a reunir cada vez mais as de sete serpentes. Casou-se com a própria mãe,
teorias psicodinâmicas interpretativas exclu- o dragão Echidna que pariu a Esfinge, monstro
sivamente verbais com as demais, o que aliás, alado, meio mulher e meio leoa. Pariu também
já vem intensamente acontecendo. É preciso o Leão de Neméia. Echidna casou-se também
conscientizarmos, antes de tudo, que os limites com o dragão Typhaon com quem concebeu a
da psicoterapia dinâmica exclusivamente verbal Hidra de Lerna, com muitas cabeças. Cortada
já haviam se apresentado de forma exuberante uma, nasciam duas. Outra filha de Echidna e ir-
desde o seu início. mão da Esfinge é Quimera, que cuspia fogo e era
uma mistura de leão, cabra e serpente (KERENYI,
10. O Mito de Édipo e a Onipotência Verbal 1951). É a vivência do psíquico simbólico indi-
Já no próprio mito de Édipo, que tanto ins- ferenciado que permite a elaboração simbólica
pirou Freud, a limitação do verbal desponta de através da qual se forma e se transforma a iden-
forma trágica. Édipo decifra intelectualmente o tidade do Eu e do Outro na consciência. Foi este o
enigma da Esfinge e ela se atira no fundo dos caminho trágico de Édipo para descobrir e elabo-
abismos. Teoricamente as aparências indicam rar a indiferenciação e o incesto. O ensinamento
que a Esfinge foi vencida para todo o sempre. fundamental de sua jornada foi a ultrapassagem
No entanto, a vida mostrará a Édipo de forma do racionalismo narcísico onipotente que quer
terrível que, a verdade psicológica só se realiza tudo resolver pela ideia, evitando a vivência para
na vivência. O enigma da Esfinge é o processo chegar ao saber.

Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 1º sem. 2019 ■ 167


O sonho de que o insight oriundo exclusiva- princípio do verão de 1887, depois das au-
mente da interpretação verbal curaria as neu- las, por volta do meio-dia, estava na praça
roses tem que ser reconhecido hoje como uma da catedral, depois das aulas esperando
ilusão mágica e onipotente. um colega que habitualmente voltava
Num artigo publicado no ano passado, Greist comigo. De repente, um menino me deu
(DAR; GREIST, 1992) cita trabalhos que compro- um soco, atirando-me ao chão: bati com
vam a eficácia da terapia comportamental (TC). a cabeça na sarjeta e a comoção me ator-
Neste artigo, relembra que Freud (1918 p. 208- doou. Durante meia hora fiquei estontea-
209) já reconhecera a necessidade comporta- do. No momento da pancada, uma ideia
mental da exposição como parte do tratamento me ocorrera com a rapidez de um raio:
das fobias na seguinte passagem: “Agora você não precisa mais ir à escola!”
Estava semi-consciente e fiquei estendido
É praticamente impossível controlar uma alguns instantes mais do que necessário
fobia se deixamos o paciente esperando principalmente por espírito de vingança
para que a análise a resolva... Somente o contra meu pérfido agressor...
conseguimos, se induzimos os pacientes
A partir desse momento, sentia uma sín-
através da análise... a ir para a rua e a lu-
cope, cada vez que se tratava da neces-
tar com a ansiedade durante sua tentati-
sidade de voltar ao colégio, ou quando
va. Começa-se, portanto, a moderar a fo-
meus pais me mandavam fazer o trabalho
bia e apenas quando isso foi conseguido
escolar. Durante mais de seis meses faltei
por exigência do médico, é que afloram à
às aulas e isto para mim foi um achado...
mente do paciente as associações e lem-
Era maravilhoso...
branças que permitem resolver a fobia.
Certo dia, um amigo de meu pai veio vi-
Cita também o pioneirismo psicodinâmico sitá-lo. Ambos estavam sentados con-
de Pierre Janet (1925) incentivando a ação no versando no jardim e, eu atrás, escon-
tratamento comportamental do TOC: “O guia, o dido num arbusto tentava escutar o que
terapêuta especificará ao paciente a ação tão diziam: “E seu filho, como vai?” Meu pai
precisamente quanto possível... Repetindo a or- respondeu “Ah, é uma história penosa! Os
dem para realizar a ação, isto é, exposição, ele médicos ignoram o que ele tem. Falaram
ajudará o paciente muito com palavras encoraja- em epilepsia. Seria terrível se fosse incu-
doras diante de qualquer progresso”. rável! Perdi o pouco que tinha e o que será
Cita também o caso de acrofobia de Goethe dele se for incapaz de ganhar a vida?”
(1949), curado por ele próprio, ao subir repetidas Foi como se um raio me ferisse... Retirei-me
vezes na torre de uma catedral e aguentar tenaz- cautelosamente, entrei no escritório do
mente a ansiedade até conseguir dominar a fobia. meu pai e tomando uma gramática lati-
Para demonstrar o quanto os pioneiros das na procurei me aplicar num esforço de
teorias psicodinâmicas verbais interpretativas concentração. Ao fim de dez minutos
não puderam deixar de experienciar o poder te- desmaiei, quase caindo da cadeira, mas
rapêutico da vivência comportamental através pouco depois me senti melhor e continuei
da exposição, cito uma passagem das memórias a estudar. “Com todos os diabos, não vou
de Jung (1984). mais desmaiar disse comigo mesmo”,
e prossegui, tentando ler. Depois de um
Quando eu tinha doze anos, aconteceu quarto de hora, mais ou menos sofri uma
algo que seria o marco da minha vida. No segunda crise. Ela passou como a primei-

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ra “E agora você vai trabalhar de verdade”. portamental cognitiva está ainda longe de ser o
Esforcei-me e ao fim de meia hora adveio ideal. Como afirma Greist (DAR; GREIST, 1992),
a terceira crise. Não desisti e trabalhei estatísticas do grupo de Foa (2005) que cole-
mais uma hora até sentir que os acessos cionou 273 casos tratados em diferentes países
tinham sido superados... Algumas sema- mostram que 51% tiveram 70% de redução dos
nas depois, retornei ao colégio e as crises sintomas. Outra estatística do mesmo grupo
não reapareceram. O sortilégio fora conju- envolvendo 375 pacientes mostrou acentuada
rado! Foi assim que fiquei sabendo o que melhora em 87% no início do tratamento, que
é uma neurose. se manteve em 75% durante seis meses a seis
anos. Aproximadamente 15% dos pacientes não
É curioso que Jung tenha denominado esta se engajam (noncompliance) na proposta de ex-
vivência “o marco do meu destino”. Clinicamen- posição e prevenção de resposta. Outros 10%
te, parece-me que ele se tratou e curou de uma abandonam o tratamento devido à ansiedade.
vertigem histérica com intensa gratificação se- Há outros ainda que se engajam, mas que criam
cundária (férias permanentes) por uma terapia rituais de evitação escondidos (covert avoidan-
comportamental de exposição. É interessante ce behaviour). Greist menciona duas grandes
que Jung, exatamente como na terapia compor- pesquisas em andamento que nos fornecerão
tamental, não tenha entrado no significado sim- certamente resultados estatísticos ainda mais
bólico da síncope, que, como ele mesmo obser- esclarecedores, incluindo follow up mais longo
vara, incluía a vingança contra seu agressor, e, e melhor comparação com o tratamento pela clo-
possivelmente também, uma agressão a seu pai. mipramina. Uma destas pesquisas está sendo
A simplicidade de conceituação e de aplica- estudada pelo grupo de Foa (Edna B. Foa, Ph.D.),
ção da TCC no TOC é fascinante. Todo o método na Universidade da Pensilvânia e o outro pelo
se baseia na exposição do temido e na preven- grupo de Liebowitz (Michael R. Liebbowitz, M.D.),
ção da resposta ritualista. Sua atração se torna na Universidade de Columbia. Seus resultados
ainda maior quando aprendemos que os deveres estão sendo aguardados com grande interesse.
de casa ocupam lugar de destaque na terapia, e A simplicidade da aplicação da Terapia Com-
que a dependência na relação terapêutica deve portamental traz uma literalização da vida psí-
ser reduzida ao mínimo, a ponto de já se ter co- quica que tende a encolher os símbolos psíqui-
meçado a substituir o terapeuta pelo computa- cos ao máximo e reduzi-los a sinais. A evitação
dor (DAR; GREIST, 1992). É evidente que do ponto obsessivo-compulsiva (avoidance) é considera-
de vista da extensão e dos custos dos programas da ruim e é contrariada pela exposição pratica-
sociais de saúde, estas características são to- da de maneira estereotipada e considerada boa.
das imensamente convenientes, sobretudo se A prevenção da resposta (response prevention)
comparadas às psicoterapias de base analítica destina-se a manter a exposição, antagonizando
exclusivamente verbal. A complexidade teórica os rituais obsessivo-compulsivos. A técnica é tão
destas, a duração e o alto custo da formação simples que, segundo Greist, pode prescindir de
de um analista, o tempo e o número de sessões terapeuta. Esta grande vantagem prática da TC
de uma análise, a dependência transferencial é a sua maior desvantagem do ponto de vista
que se estabelece e o alto custo do tratamento simbólico, pois literaliza ou coisifica de tal for-
tornam a comparação extraordinariamente sig- ma os sintomas, o tratamento e as pessoas que
nificativa, sobretudo dentro da perspectiva dos pode ser usada para limitar muito a percepção
grandes números da medicina social. simbólica que as insere no todo humano. Daí po-
Apesar de ser no momento, o método mais der se diminuir muito a interação humana trans-
eficaz de tratamento para o TOC, a terapia com- ferencial terapêutica, a ponto de se pensar no

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tratamento computadorizado. Essas vantagens um passo à frente, examinando porque a pessoa
correm o risco de transformar o psicoterapeuta faz isso, entraremos no território simbólico das
num técnico destituído de raciocínio simbólico, defesas inconscientes, da resistência e da trans-
incapaz de perceber a transferência do paciente ferência. Um outro fator importante que abre a TC
e do terapeuta (contratransferência), que sem- para a realidade simbólica e para as teorias de
pre existem, e incapaz também de correlacionar base analítica do inconsciente é a teoria das res-
os sintomas psíquicos significativamente com postas sinalizadas (cue-producing responses)
a formação e o funcionamento geral da perso- enfatizada por Dollar e Miller na TC, segundo a
nalidade. É fácil de imaginar que um terapeuta, qual, a resposta não é determinada por uma si-
sem o mínimo grau de autoconhecimento e a tal tuação, mas pela forma como o indivíduo a inter-
ponto ignorante do símbolo e da transferência, preta. Em nossa perspectiva simbólica, isto quer
se torne presa fácil da sua agressividade som- dizer que as respostas não se referem simples-
bria mal elaborada e passe a empregar a expo- mente às coisas, mas, basicamente, aos seus
sição sadicamente para vencer a resistência de significados simbólicos. Esta porta nos conduz
pacientes com TOC. Contudo, nem todos os tera- à dimensão simbólica que reune a TCC às Teorias
peutas comportamentais pensam assim. A Dra. Psicodinâmicas do Inconsciente.
Ligia Ito, que representa a linha comportamental Minha posição é que se cultivarmos a TC,
neste simpósio, enfatizou em sua apresentação sem sequer empregarmos seu complemento
claramente a importância do carisma do tera- cognitivo no tratamento do TOC, fascinados ex-
peuta para conseguir o engajamento do pacien- clusivamente por sua simplicidade e por seus
te, para estimulá-lo na exposição, na prevenção resultados práticos, corremos o risco de contri-
da resposta e na continuidade do tratamento. buir para desumanizar e tecnologizar a relação
terapêutica, empobrecendo a Psiquiatria dras-
11. A Terapia Comportamental e a ticamente dentro do papel da compreensão da
Perspectiva Simbólica vida psíquica, que ela pode e deve desempenhar
O que mais impede a transformação da TC no humanismo. No meu entender, isto pode ser
numa simples técnica, porém, me pareceu ser prevenido, tendo-se uma compreensão do fun-
a avaliação inicial (assessment) e a necessida- cionamento da TCC, dentro de uma perspectiva
de da transformação cognitiva para se manter simbólica que a perceba psicodinamicamente
os resultados, melhor estudada na síndrome de e a reuna às demais escolas de psicoterapia,
pânico (Beck et al., 1992), procedimentos que principalmente às escolas psicodinâmicas do
transformam a Terapia Comportamental (TC) na inconsciente, como a Psicanálise e a Psicologia
Terapia Comportamental Cognitiva (TCC). A pas- Analítica. Além de enfocar o TOC dentro do EOC,
sagem da TC para a TCC, cujos resultados tera- psicodinamicamente, e mantê-lo dentro do todo
pêuticos no TOC, vantagens e desvantagens, ain- psíquico, uma tal abordagem poderá também
da estão para serem analisados, representa um contribuir para se compreender melhor e tratar
passo importante da TC em direção ao processo tanto os casos que não se engajam na TCC (15%)
de elaboração das demais correntes psicodi- como os casos que se negam à exposição ou que
nâmicas. Clark (1986) enfatizou a necessidade abandonam o tratamento em função da ansieda-
de interpretação das reações corporais para se de (10%), segundo a estatística de Greist (DAR;
prevenir as crises de pânico a longo prazo. Por GREIST, 1992).
exemplo, se uma pessoa julga uma mera palpi- A reunião entre a TCC, as teorias psicodinâmi-
tação como indício de uma crise cardíaca mortal, cas do inconsciente e as demais escolas de psico-
ela contribui cognitivamente para induzir a crise terapia têm na relação entre palavra/ ação e cons-
de pânico. Se elaborarmos a função cognitiva ciente/inconsciente, as principais polaridades a

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serem integradas. É só passarmos pelas várias mente a dependência do paciente, o número de
escolas atuais, como já mencionei, para vermos sessões e a duração do tratamento. Outra, é re-
que essa integração já está em pleno andamen- forçar a projeção normal do paciente, que idea-
to. Pessoalmente, prático essa integração através liza e coloca sua capacidade de elaboração sim-
das técnicas expressivas (BYINGTON, 1993) den- bólica (Função transcendente) exclusivamente
tro do setting simbólico da transferência e das no analista. Isto impede que o paciente exerça
defesas (relação consciente/inconsciente). Essa a psicoterapia entre as sessões (os deveres de
integração requer uma abertura e uma revisão casa da TC) e aprenda a elaboração simbólica
permanente da teoria e da técnica. Este questio- para exercê-la depois de encerrada a análise, no
namento de hábitos teóricos e práticos desperta seu processo de individuação durante o resto de
em muitas pessoas grande resistência. sua vida.
Um dos grandes ensinamentos da TC no TOC
12. O Problema da Transferência na para as escolas de psicoterapia é a relatividade
Psicoterapia do TOC operacional da transferência. Tenho empregado
Mesmo que não adotemos integralmente a esse ensinamento, mantendo sempre em mente
psicoterapia comportamental computadorizada a transferência na relação terapêutica, mas ela-
(exposição/prevenção do ritual) mencionada borando-a conscientemente com o paciente o
por Greist, ela nos faz repensar a transferência mínimo necessário.
na psicoterapia em geral. Sabemos que Freud
(1914) a considerava uma defesa e a empregava 13. Uma Interpretação Simbólica da
como neurose de transferência para elaborar a Eficácia da TC no TOC
neurose do paciente projetada sobre o analista. A partir do que já foi dito, quero elaborar sim-
Queiramos ou não, a transferência existe sem- bolicamente a função da exposição e da preven-
pre, porque ela é um fenômeno arquetípico que ção do ritual na TC do TOC, com a intenção de
caracteriza todo o relacionamento humano (Jung, abrir um acesso mais eficaz das demais escolas
1946). A transferência é uma das funções estrutu- de psicoterapia ao TOC através das técnicas ex-
rantes da maior importância na vida normal e na pressivas, incluindo nelas a exposição. Vice-ver-
relação normal do paciente com o terapeuta e vi- sa, espero que isto permitirá um acesso maior
ce-versa (contratransferência normal). Seu grande do terapeuta comportamental à transferência, à
problema na psicoterapia é quando ela se apre- defesa, à resistência e à maior compreensão dos
senta de maneira defensiva quer para o paciente, efeitos de suas técnicas, bem como do porquê da
quer para o terapeuta, como descobriu Freud. Em melhora e da refratariedade dos seus pacientes.
muitos desses casos, se a transferência defensiva Minha hipótese central é aquela estabelecida
não é elaborada, a terapia não progride. por Freud para as neuroses com as fixações e os
O problema é que muitos terapeutas incen- seus sistemas de defesa, inclusive a transferên-
tivam a transferência normal com posturas e in- cia e a resistência através das quais ele tratou
terpretações autorreferentes e, assim fazendo, com sucesso o TOC do “Homem dos Ratos”. Nes-
induzem também inconscientemente que as de- ta hipótese, exercida dentro da perspectiva sim-
fesas penetrem na relação transferencial cons- bólica arquetípica, a fixação é um distúrbio do
telando a transferência defensiva. Quanto mais processo de elaboração simbólica, representado
esta surge, eles a elaboram, seguindo sua ten- nos Gráficos de 1 a 3.
dência de incentivar a transferência de um modo Como enfatizou Katz (1991), o TOC apresenta
geral. Estabelece-se assim um círculo vicioso um distúrbio de limites e de contenção do repri-
transferencial que tem duas consequências pa- mido, possivelmente por uma disfunção neuro-
tologizantes. Uma é aumentar desnecessaria- química, envolvendo neurotransmissores, prin-

Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 1º sem. 2019 ■ 171


cipalmente a Serotonina. A consequência desta e a exposição não se torne também defensiva,
disfunção é a debilitação da função de delimita- depende de quanto o paciente compreende e se
ção e de contenção do Arquétipo Patriarcal, que engaja na realização como um desafio saudável
compromete a eficácia de todo o quadro defensi- para substituir o ritual patológico. O respaldo da
vo e configura sua exuberância sintomática. autoridade médica e de todo o sistema de saúde
A ideia obsessiva no TOC aproxima-se muito por trás deste método, investe a exposição e a
do Ego, mas é contida frequentemente pela pro- prevenção com características patriarcais inova-
jeção defensiva, que junto com o ritual e o deslo- doras, revolucionárias, é bem verdade, mas que
camento manejam o quadro defensivo. Identifi- devem ser adotadas para substituir o sistema ri-
ca-se clinicamente esta projeção defensiva pelo tual contrário à exposição. O deslocamento do ri-
fato de os rituais serem generalizados contra a tual para a prevenção deste é facilitado pela pró-
sujeira, o sexo ou outras ideias obsessivas, cujo pria ineficiência do ritual e pelo sofrimento que
conteúdo simbólico amplo permanece incons- isso acarreta (que deveriam ser elaborados com
ciente e inacessível à elaboração. Os rituais o paciente) e pela diretividade transferencial do
controladores compulsivos seriam, nesse caso, terapeuta. A vivência do terapeuta e, até mesmo,
não a expressão de um Superego terrivelmen- sua substituição pelo computador não eliminam
te forte e poderoso, mas pelo contrário, fraco e a transferência para a autoridade médica institu-
pouco potente. Seria como se a polícia se desse cional, que continuará a agir através das “Regras
conta da sua impotência e, por isso, colocasse do Tratamento”. A exposição dirigida patriarcal-
armamento pesado nas ruas. A tese do Superego mente “autoriza” a vivência da ideia obsessiva
sádico e do Eu masoquista no TOC é superficial e isso também altera o sistema defensivo, pois
e incompleta, pois é devido a essa fraqueza do diminui a proibição e a resistência ética de viven-
poder de contenção do dinamismo patriarcal, ciá-la. O fato de a família ser orientada patriarcal-
que o TOC apresenta a exuberância defensiva ri- mente para não participar e, até mesmo, ajudar
tualística compulsivamente exercida para conter na prevenção do ritual ajuda a diminuir o veto ao
ideias obsessivas vivenciadas como proibidas, proibido e reforça a exposição.
transgressoras e terríveis. Nada impede que a elaboração cognitiva nas
A defesa do deslocamento, presente nos ritu- fobias, na síndrome do pânico, na depressão e
ais compulsivos de contenção, corrobora, como no EOC, ao incluir as disfunções do pensamen-
vimos, a tese da fragilidade da expressão do di- to, acrescente a elas o enfoque simbólico e a
namismo patriarcal delimitador, pelo fato de se- elaboração de suas motivações conscientes e
rem diretivas e programadas. A exposição e a pre- inconscientes, dentro do reconhecimento da
venção também se situam dentro do dinamismo transferência criativa e defensiva do pacien-
patriarcal e, por isso vão alterá-lo de duas manei- te e do analista. Quando isto acontecer, a TCC
ras: a exposição dará permissão para a vivência encontrará a noção de defesa, de resistência e
do proibido. Em vez de afastar o Eu, a exposição de transferência e de estruturas criativas e de-
passa a incentivar e até a obrigar o Eu a vivenciar fensivas, dentro do desenvolvimento simbólico
o proibido para melhor controlá-lo. A prevenção da personalidade. Como as demais escolas já
veta o sistema defensivo-compulsivo claudican- caminham em direção à TC através das técnicas
te do ritual e desloca esse sistema para ajudar expressivas, o encontro das atuais escolas de
a controlar o reprimido. O movimento estratégico psicoterapia dentro da dimensão simbólica en-
psicodinâmico mais importante ocasionado pela treabre um futuro promissor de desenvolvimento
exposição me parece ser a passagem da estrutu- teórico e técnico. ■
ra defensiva de contenção pelo ritual para a es-
trutura criativa. Para que isto aconteça, porém, Recebido em: 25/03/2019 Revisão: 20/05/2019

172 ■ Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 1º sem. 2019


Abstract
The symbolic perspective of the obsessive-compulsive spectrum Freud .
“Project” revisited by Jung’s archetype
The author approaches the obsessive-compul- of the Patriarchal Archetype. The intensification of
sive spectrum through the symbolic archetypal repression, projection and ritualization in OCD is
dimension rooted in three perspectives: neurolog- a neurological and psychological reaction to deal
ical, psycho-pharmacological and psychodynamic. with this deficiency. The author mentions his expe-
He associates matriarchal, patriarchal, alterity and rience according to which exclusively verbal psy-
totality archetypes with structures and functions chodynamic psychotherapy is largely inefficient in
of the nervous system. The author considers the OCD, phobias and panic syndrome. He argues that
hypothesis developed by Katz (1991) according to the relative efficiency of Cognitive Behavior Ther-
which OCD presents a disturbance of repression apy can be improved if exposure and avoidance
due to a neurotransmitter disfunction, mainly of se- techniques are employed as expressive techniques
rotonin. From an archetypal perspective, this neu- considering the transference relationship and the
ro-chemical disfunction develops a deficiency of defenses present within an overall symbolic and ar-
the delimiting, organizing and contention functions chetypal theory of personality development. ■

Keywords: OCD, archetype and nervous system, symbol, matriarchal archetype, patriarchal archetype, cog-
nitive behavioral therapy, symbolic elaboration, expressive techniques, projection, introjection.

Resumen
La perspectiva simbólica del espectro obsesivo-compulsivo. El “proyecto” de
Freud revisitado por el arquetipo de Jung
El autor aborda el espectro obsesivo-compulsivo cal, que compromete la eficacia de todo el cuadro
a través de la dimensión simbólica y arquetípica en- defensivo y configura su exuberancia sintomática
raizada en tres vertientes: neurológica, psicofarma- proyectiva y ritualizadora en un esfuerzo por suplir la
cológica, y psicodinámica. Asocia los dinamismos discapacidad. El autor hace consideraciones sobre
arquetipos matriarcal, patriarcal, de alteridad y de la ineficiencia de la psicoterapia dinámica exclusiv-
totalidad con estructuras y funciones del sistema amente verbal en el TOC y la relativa eficiencia de la
nervioso. A continuación el autor retoma la hipóte- Terapia Comportamental Cognitiva y argumenta que
sis de Katz (1991), según la cual el TOC presenta un la asociación de estas dos teorías a través del con-
disturbio del proceso de represión (Freud) posible- cepto de técnicas expresivas podrá contribuir con
mente por una disfunción neuroquímica, involucran- mayor eficiencia en el tratamiento no sólo del TOC,
do neurotransmisores, principalmente la serotoni- fobias y del síndrome del pánico, siempre que sea
na. La interpretación arquetípica de esta disfunción ejercido dentro de un enfoque simbólico y arquetipo
es la debilitación de la función de delimitación, de que incluya la relación terapéutica en el nivel trans-
organización y de contención del Arquetipo Patriar- ferencial creativo y defensivo. ■

Palabras clave: TOC, arquetipo y sistema nervioso, símbolo, arquetipo matriarcal, arquetipo patriarcal, tera-
pia conductual cognitiva, elaboración simbólica, técnicas expresivas, proyección, introyección.

Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 1º sem. 2019 ■ 173


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O arquétipo da vida e da morte. Um estudo


da Psicologia Simbólica1

Carlos Amadeu B. Byington*

Resumo Palavras-chave
O autor elabora a posição dualista de Freud cial ênfase é dada ao Arquétipo do Coniunctio, arquétipo da
e dialética de Jung e Sabina Spilrein diante do descrito de forma típica nas fases do processo vida e da morte,
psicologia
Arquétipo da Vida e da Morte por intermédio da por intermédio de quatro formas de expressão:
simbólica.
conceituação de cinco posições arquetípicas da Coniunctio Insular, Coniunctio Parental, Coni- posições
consciência (Eu-Outro): posição indiferenciada, unctio Conjugal e Coniunctio Cósmico. Em con- arquetípicas
insular, polarizada, dialética e contemplativa, cada clusão, o autor descreve a função estruturante da consciência.
uma, em duas atitudes, passiva e ativa. Para isto, do Arquétipo da Vida e da Morte, e seu papel na posição
o autor expande conceitos fundamentais da Psic- elaboração simbólica, sobretudo na passagem indiferenciada,
insular,
ologia Analítica e da Psicanálise, principalmente de uma fase para a outra, dando especial ênfase
polarizada,
os conceitos de arquétipo e de defesa, num corpo ao estado terminal à discussão da eutanásia dialética e
teórico, que denomina Psicologia Simbólica. médica e da autoeutanásia. ■ contemplativa,
A seguir, o autor associa sumariamente as cin- atitudes passiva e
co etapas da vida (infância, adolescência, vida ativa das posições
adulta, maturidade e velhice) a estas posições arquetípicas,
teoria arquetípica
da consciência, junto com os seus quatro Ar-
das relações
quétipos Regentes correspondentes: Arquétipo objetais, coniunctio
Matriarcal e posição insular. Arquétipo Patriarcal insular, parental,
e posição polarizada. Arquétipo da Alteridade conjugal e cósmico,
(Anima e Animus) e posição dialética. Arquétipo eutanásia médica,
da Totalidade e posição contemplativa. Espe- autoeutanásia.


1
Artigo baseado na palestra de encerramento do Simpósio
“Freud e Jung, 90 anos de Encontros e Desencontros”. Museu
da Imagem e do Som, 17 e 18 de maio de 1996. Publicado
originalmente na Revista Junguiana 14, 1996, p. 92-112.
* Médico-Psiquiatra e Analista.
E-mail: < c.byington@uol.com.br>
Site: www.carlosbyington.com.br

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O arquétipo da vida e da morte. Um estudo da Psicologia Simbólica

À Silvia Freitas Tenucci tarei demonstrar, que ambos estão certos, pos-
In Memoriam to que não só tratam de realidades diferentes,
como adotam diferentes posições arquetípicas
da consciência para descrever a realidade psí-
1. Introdução quica? Freud escreve:
A função da polaridade Vida-Morte na trans-
formação psicológica foi o tema central do artigo Nosso debate teve como ponto de parti-
de Sabina Spilrein intitulado “A Destruição como da uma distinção nítida entre os instintos
causa da Transformação” (SPILREIN, 1912). Nes- do ego, que equiparamos aos instintos de
te artigo, publicado no Anuário de Psicanálise morte e os instintos sexuais que equipa-
e Psicopatologia de 1912, junto com a parte II ramos aos instintos de vida... Nossas con-
do livro “Símbolos e Transformações” de Jung cepções desde o início foram dualistas e
(1986), Sabina reconhece a influência de Jung no são hoje ainda mais dualistas que antes,
seu artigo, principalmente do capítulo 9, intitula- agora que descrevemos a oposição, como
do “A Mãe Dual”, no qual Jung relaciona Vida e se dando, não entre instintos do ego e
Morte na transformação, através do símbolo ar- instintos sexuais, mas entre instintos de
quetípico da mãe. Ela cita a seguinte passagem vida e instintos de morte. A teoria da li-
de Símbolos e Transformações: “[...] A libido tem bido de Jung é pelo contrário monista; o
dois lados: ela é a força que tudo embeleza e, fato de haver ele chamado sua única força
em determinadas circunstâncias, tudo destrói”. instintual de “libido”, destina-se a causar
E a seguir, Sabina acrescenta: “Na fecundação, confusão... (FREUD, 1920).
se dá a união das células do homem e da mulher.
Nesse momento, cada célula tem a sua unidade Apesar de entrincheirar-se firmemente nessa
destruída e desta destruição surge a nova vida”. posição dualista, Freud não se acha totalmente à
O estudo da polaridade Vida e Morte foi re- vontade nela e já na página seguinte, conjectura:
tomado por Freud em 1920 como tema central
da reformulação da sua teoria da libido descrita Na obscuridade que reina atualmente na
na obra “Além do Princípio do Prazer” (FREUD, teoria dos instintos, não seria de bom
1920 p. 73). senso rejeitar qualquer ideia que prometa
Neste artigo, quero abordar a polaridade Vi- lançar luz sobre ela. Partimos da grande
da-Morte como arquétipo e função estruturante oposição entre os instintos de vida e de
na elaboração simbólica, ao mesmo tempo em morte. Ora, o próprio amor objetal nos
que tentarei explicar o porquê da conceituação apresenta um segundo exemplo de po-
radicalmente diferente no enfoque desta pola- laridade semelhante: A existente entre o
ridade por Sabina e Jung, de um lado, e Freud, amor (afeição) e o ódio (ou agressivida-
do outro. De fato, enquanto que Jung e Sabina de). Se pudéssemos conseguir relacionar
situam a dualidade Vida e Morte na unidade, mutuamente essas duas polaridades e
Freud a mantém na dualidade. Acho da maior derivar uma da outra! Desde o início iden-
importância para a teoria psicológica compre- tificamos a presença de um componente
ender porque isto ocorreu. Será que um lado sádico no instinto sexual... Mas, como
está certo e o outro errado ou será, como ten- pode o instinto sádico cujo intuito é pre-

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judicar o objeto, derivar de Eros, o conser- manter na dualidade apesar de afirmá-la, Freud,
vador da vida? (FREUD, 1920 p. 74). nas considerações finais desse artigo, retoma a
unidade, só que desta feita, subordinando o ins-
Desta maneira, Freud aventa a possibilidade tinto de vida ao instinto de morte:
de englobar a dualidade na unidade, mas, logo
a seguir, dela se afasta pelo seu preconceito ao Ainda não podemos decidir com certeza
unitarismo místico. em favor de nenhum desses enunciados,
mas é claro que a função (do prazer) esta-
Se uma pressuposição assim é permis- ria assim relacionada com o esforço mais
sível, atendemos então a exigência de fundamental de toda substância viva: o
que produzimos um exemplo de Instinto retorno à aquiescência do mundo inorgâ-
de Morte, embora se trate de um instinto nico... (e, uma página depois) [...] O prin-
deslocado. Mas essa maneira de conside- cípio do prazer parece, na realidade, ser-
rar as coisas está muito longe de ser fácil vir aos Instintos de Morte (FREUD, 1920).
de captar e cria uma impressão positiva-
mente mística. Sua aparência é suspeita, Bastante cônscio da dificuldade lógica dos
como se estivéssemos tentando achar um seus próprios argumentos, Freud termina o ar-
modo de sair a qualquer preço de uma si- tigo com uma citação poética, segundo a qual
tuação embaraçosa (FREUD, 1920 p. 75). “Ao que não podemos chegar voando, devemos
chegar mancando...”.
No entanto, a dualidade também não é cômo- Por seu lado, Jung e Sabina não têm proble-
da para Freud, como nunca o foi para o espírito mas em considerar a polaridade Vida e Morte in-
científico. Einstein dedicou os últimos 25 anos teragindo de forma antagônica, mas também sin-
de sua vida na tentativa de formular uma teoria crônica, dentro do processo de desenvolvimento
unitária de campo que pudesse reunir a Teoria psicológico. Já no início do seu artigo, Sabina
da Relatividade, que formula os conceitos de es- exemplifica a interação destruição-construção
paço, tempo, gravidade, com a Teoria Quântica, na transformação do ser, com a fecundação, na
que formula os conceitos do átomo, de matéria qual os gametas morrem para formar o ovo com
e de energia. Apesar de ele não ter conseguido a nova vida. Jung, por sua vez, percebeu dialeti-
inter-relacionar num todo significativo a dimen- camente não só a polaridade Vida e Morte, mas
são gravitacional e a dimensão eletromagnética, todas as demais polaridades, interagindo dentro
Einstein justificou sua busca durante os 25 anos da unidade do Self. É difícil encontrar uma obra
finais de sua vida afirmando que “a ideia de que de Jung onde ele não ressalte a importância da
estas duas estruturas do espaço, (a micro e a bipolaridade psíquica operando dentro da uni-
macro) são independentes entre si é intolerável dade do Self. Nesse sentido, Jung e Sabina são
para o espírito teórico” (BARNETT, 1962 p. 110). monistas, mas incluem no monismo processual,
Ainda em “Além do Princípio do Prazer”, al- a dualidade Vida e Morte em permanente intera-
gumas páginas depois, Freud hesita quanto a ção dialética na geração de todo fenômeno psí-
manter-se na dualidade e escreve: “Pode-se quico. Por isso, afirmar, como Freud fez acima,
perguntar, e até onde, eu próprio me acho con- que Jung, ao definir a libido como energia psíqui-
vencido da verdade das hipóteses que foram for- ca, se tornou monista, não está inteiramente cor-
muladas nestas páginas. Minha resposta seria reto. A resposta correta me parece ser sim e não.
que eu próprio não me acho convencido a nelas Sim porque, ao identificar a libido com a energia
acreditar, ou mais precisamente, que não sei até psíquica, Jung se tornou monista, pois unificou
onde nelas acredito.” E como se não pudesse se todas as funções psíquicas dentro do Self. Não

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porque Jung não renegou a dualidade das fun- Minha vida profissional desenvolveu-se nes-
ções psíquicas. Pelo contrário, Jung sempre afir- ta segunda metade do século, na qual os confli-
mou e reafirmou a existência das polaridades tos emocionais, entre os seguidores da Psicaná-
dentro de todos os símbolos, dos arquétipos e lise e da Psicologia Analítica foram aos poucos
do próprio Self. Por conseguinte, na essência de arrefecendo. Desde minha monografia de gradu-
sua obra, Jung operou a dualidade dialeticamen- ação em Zurique (BYINGTON, 1965), considero as
te dentro da unidade. obras de Jung e Freud complementares. Por isso
Como procurarei demonstrar a seguir, este mesmo, sempre achei que, apesar da animosi-
posicionamento tão diferente de Jung e de Freud dade tradicional entre as duas escolas, seus
diante da psique pode ser atribuído a duas for- conteúdos naturalmente se encontrariam no Self
mas diferentes de a consciência funcionar. Freud, Cultural, produzindo novas sínteses e conceitos
a partir da posição polarizada, característica do para a Psicologia. No entanto, observei, com o
Arquétipo Patriarcal. Jung a partir da posição passar do tempo, que esta síntese espontânea
dialética, característica do Arquétipo da Alteri- estava de fato ocorrendo, mas, frequentemente,
dade. Como veremos cada posição está correta, sem a preservação das contribuições essenciais
dentro da sua maneira de ver e, também errada, da Psicanálise e da Psicologia Analítica. O que
quando pretende ser a única válida e quer usur- se observa nestas sínteses espontâneas é uma
par ou invalidar as demais posições. A posição colcha de retalhos que mistura o referencial ar-
polarizada é necessária para se compreender a quetípico, o conceito de Sombra, as defesas, as
elaboração do Arquétipo do Coniunctio na for- técnicas expressivas e o desenvolvimento da per-
mação do Eu pelo Complexo Parental (Complexo sonalidade de forma confusa. A mistura com as
de Édipo). Já a posição dialética é imprescindível contribuições de outras correntes psicológicas
para a compreensão e elaboração do Arquétipo confundiu ainda mais esta colcha de retalhos,
do Coniunctio na formação do Eu na adolescên- na qual, frequentemente se perde a articulação
cia e na segunda metade da vida (Complexo Con- conjunta das grandes descobertas das defesas
jugal no Processo de Individuação). e da transferência defensiva na teoria da fixação
Para tudo isto melhor compreender, temos e da regressão da Psicanálise e dos arquétipos e
que estudar a questão das posições arquetípi- da transferência criativa, dentro do Processo de
cas da consciência. Ao fazê-lo, abordaremos Individuação, da Psicologia Analítica.
conceitos básicos da Psicologia Analítica e da Para aproximarmos estes conceitos teorica-
Psicanálise, incluindo a Teoria das Relações Ob- mente e, ao mesmo tempo, evitar a Babel da
jetais de Melanie Klein. colcha de retalhos, necessitamos de um refe-
Este Simpósio, comemorativo dos 90 anos rencial teórico que os possa abranger de forma
do relacionamento de Freud e Jung, me parece coerente e não redutiva. A Psicologia Analítica
uma ocasião propícia para colocar determinadas não possui este referencial porque Jung des-
questões referentes às diferenças entre as obras creveu o Processo de Individuação na segunda
destes dois grandes gênios da Psicologia do sé- metade da vida e não se ocupou sistematica-
culo XX, sem o que não poderemos compreen- mente da formação e transformação arquetípi-
der em profundidade seu diferente enfoque das ca do Eu e da Sombra desde o início da vida. A
polaridades, inclusive da polaridade Vida-Morte. Psicanálise também não possui este referencial
A compreensão desta diferença é também da porque descreveu a formação da personalida-
maior importância para se compreender melhor de somente até a puberdade e o embasou num
a concepção do incesto no Complexo de Édipo referencial dominantemente genético, infantil,
da Psicanálise e a descrição arquetípica do in- literal, pessoal e não arquetípico. Cada corren-
cesto na Psicologia Analítica. te descreveu a natureza da psique em função

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do que descobriu e estudou. É óbvio que o re- nantemente patriarcal, organizando meus docu-
ferencial de uma não está apto para englobar o mentos para o Imposto de Renda. Poderia ainda
que a outra descreveu e vice-versa, posto que optar pela dominância de alteridade e dar uma
o que cada uma descreveu envolve etapas da palestra num centro comunitário sobre as várias
vida e fenômenos psíquicos muito diversos. O polaridades do crescimento da criminalidade na
que mais faltou à Psicanálise, a meu ver, foi o cidade. Poderia também optar pela dominância
conceito de arquétipo. Já na Psicologia Analíti- do Arquétipo da Totalidade e passar a tarde medi-
ca, o que mais faltou foi a ampliação do con- tando de forma contemplativa. Assim, a polarida-
ceito de arquétipo para englobar as defesas e a de Eu-Arquétipo permite uma certa participação,
formação e interação da polaridade Eu-Outro na isto é, um livre arbítrio relativo do Eu. Se os arqué-
consciência e na Sombra (inconsciente). tipos fossem exclusivamente inconscientes, isto
Para descrever a formação e transformação jamais seria possível. Por isso, ampliei o conceito
da polaridade Eu-Outro na consciência e na Som- de Arquétipo para abranger também o consciente
bra durante toda a vida, por intermédio das vi- (BYINGTON, 1996). Nesse caso, os arquétipos tor-
vências pessoais percebidas arquetipicamente, nam-se a base da Psique Coletiva, que engloba as
desenvolvi uma série de conceitos, que diferem características conscientes e inconscientes dos
da Psicanálise e da Psicologia Analítica, princi- símbolos e não exclusivamente inconscientes
palmente pela ampliação dos conceitos por elas como acontece na Teoria do Inconsciente Coletivo
formulados. Reuni estes conceitos na disciplina formulada por Jung.
que denomino Psicologia Simbólica. Sua finali-
dade não é discordar da Psicologia Analítica nem 1.2. O Conceito de Psique
da Psicanálise, e sim preservar, reunir coeren- A psique é concebida como o Cosmos e a
temente e continuar desenvolvendo o que elas diferenciação da consciência como uma dife-
têm de imensamente importante para a Psicolo- renciação deste próprio cosmos, através da
gia. Veremos que diferenças tão fundamentais sua humanização (CHARDIN, 1955). Neste caso,
quanto os conceitos de Vida-Morte, de parricídio desaparece a dualidade mente-corpo e psique-
e de incesto não foram devidamente compreen- -natureza como uma realidade profunda. Estas
didas por Freud e Jung devido às limitações do polaridades só existem no que se referem a po-
seu referencial teórico. laridade Eu-Outro mas, na dimensão arquetípica
Vejamos os principais conceitos da Psicolo- além do Eu e do Outro, elas não existem como
gia Simbólica que nos permitirão discutir e reunir polaridades. Apesar de Jung ter frequentemente
conteúdos e diferenças da Psicologia Analítica e considerado a realidade única da psique e da
da Psicanálise, englobando os pressupostos te- matéria, ele não chegou a uniformizar sua teoria,
óricos destas disciplinas. correlacionando esta polaridade exclusivamente
com a polaridade Eu-Outro. De fato, inúmeras ve-
1.1. A Teoria do Inconsciente Coletivo zes, Jung formulou a psique separada da maté-
Segundo me parece, Jung seguiu Freud inde- ria, posto que as reunia através dos conceitos de
vidamente ao reduzir o conceito de Arquétipo ao sincronicidade (JUNG, 1960a), psicoide (JUNG,
inconsciente. De fato, qualquer pessoa adulta 1960b) e unus mundus (JUNG, 1964). Quando,
pode optar, isto é, escolher conscientemente um porém, conceituamos de início, a psique como
determinado padrão arquetípico para elaborar a mesma coisa que o conceito de Cosmos para a
determinada situação. Posso optar para elaborar ciência e o conceito de Deus para a religião, os
uma tarde de domingo, por exemplo, de forma conceitos de unus mundus, psicoide e sincroni-
dominantemente matriarcal, com um banho de cidade são úteis e dinâmicos, tão somente para
piscina e um bom churrasco ou de maneira domi- descrevermos a percepção da realidade comum

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do Eu com o Outro, mas nada acrescentam quan- 1.5. Os Símbolos e Funções Estruturantes
to a essência da natureza do Self. A Psicologia Simbólica descreve os símbo-
Apesar de Jung, que eu saiba, nunca ter for- los como símbolos estruturantes e as funções
mulado a psique como sinônimo do Cosmos, psíquicas como funções estruturantes, ambos
sua vivência da psique muito se aproxima desta coordenados pelos arquétipos para formar a
ideia, quando, por exemplo, escreveu: “Referên- identidade do Eu e do Outro na consciência. Nes-
cia deve ser feita ao conceito hindu de Atman, te caso, a Persona e a Sombra são concebidas
cuja fenomenologia pessoal e cósmica é um como funções estruturantes. A Persona, de um
equivalente perfeito do conceito psicológico de modo geral, empregando as funções estruturan-
Self e do Filius Philosophorum (pedra filosofal): tes sociossintônicas e a Sombra, de um modo
o Self é o Eu e o Não Eu, subjetivo e objetivo, geral, empregando as funções estruturantes
individual e coletivo” (JUNG, 1946). sociodistônica ou outros símbolos e funções es-
truturantes que, devido às condições do proces-
1.3. A Interação Eu-Arquétipo so existencial, não puderam ser elaborados na
A Psicologia Simbólica, por princípio, afirma a consciência.
permanente interação do Eu com os Arquétipos,
exercida por intermédio dos símbolos. Pelo fato 1.6. As Funções Estruturantes Criativas
de não haver descrito a formação do Eu a partir e Defensivas
dos arquétipos, desde o início da vida, Jung, fre- A Psicologia Simbólica reelabora o conceito
quentemente, descreveu a fenomenologia dos de mecanismo de defesa do Ego da Psicanálise e
arquétipos separada daquela do Eu e vice-versa. descreve as funções estruturantes criativas e as
Para a Psicologia Simbólica o Eu é arquetípico e funções estruturantes defensivas, ambas consi-
expressa o processo de atualização do potencial deradas de natureza arquetípica e atuando na
do Arquétipo Central. elaboração simbólica. As funções estruturantes
criativas englobam as pulsões da Psicanálise e
1.4. A Relação Eu-Outro expressam a elaboração simbólica livremente na
A Psicologia Simbólica descreve a forma- consciência, enquanto que as funções estrutu-
ção e a transformação da identidade do Eu in- rantes defensivas expressam símbolos resultan-
separavelmente da formação e transformação tes de uma elaboração simbólica fixada e alijada
da identidade do Outro, a partir dos símbolos da consciência, de forma inadequada, sujeita
coordenados pelos arquétipos. Assim, para à compulsão de repetição e resistente à cons-
a Psicologia Simbólica, o Eu não é o centro da cientização plena como descreveu a Psicanálise.
consciência, tal como Jung o descreveu na Psi- As funções estruturantes criativas e defensivas
cologia Analítica (JUNG, 1967). Esta centrali- são estruturalmente as mesmas e só diferem
zação do Eu na consciência me parece ser um em função de manterem a elaboração simbólica
viés narcísico da Psicanálise, que Jung também dominantemente na consciência (funções es-
acompanhou indevidamente. Este viés explica truturantes criativas) ou de impedir seu acesso
a importância exagerada dada ao narcisismo na à consciência e mantê-la dominantemente in-
Psicanálise, em detrimento do ecoísmo. Para a consciente (funções estruturantes defensivas).
Psicologia Simbólica, os polos da polaridade Temos assim, por exemplo, a projeção criativa
ecoísmo-narcisismo têm igual importância para e defensiva, a agressividade criativa e defensiva
o desenvolvimento da consciência e para carac- e, até mesmo, as funções estruturantes da Vida
terizar diferentes situações de dominância, ora e da Morte atuando de forma criativa ou defen-
do Eu, ora do Outro nos seus relacionamentos siva, como veremos. Esta conceituação nos per-
(MONTELLANO, 1996). mite afirmar que “as defesas são os arquétipos

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da Psicanálise”. Parece-me que se a psicologia entrincheiradas e oferecem grande resistência
dinâmica iniciada por Freud tivesse centralizado para serem confrontadas pelo Eu da consciên-
a sua teoria na polaridade das funções estrutu- cia, como tão bem descreve a Psicanálise. A não
rantes criativas e funções estruturantes defen- compreensão da formação arquetípica do Eu e
sivas, em vez de simplesmente na polaridade da Sombra no processo de elaboração simbólica
consciente-inconsciente, sua pujança conceitual do Self levou muitos Junguianos a idealizarem o
teria sido muito maior. Self como algo exclusivamente bom. Isto impede
qualquer compreensão arquetípica psicodinâmi-
1.7. O Conceito de Sombra Normal e ca da psicopatologia.
Patológica na Psicologia Simbólica
A Sombra é concebida como uma função 1.8. O Conceito de Símbolo
estruturante expressiva da elaboração simbó- Devido à conceituação da psique como sinô-
lica incompleta e defeituosa. A Sombra abriga nimo do Cosmos, a Psicologia Simbólica define o
sempre também um Eu e um Outro, que nos dá símbolo como a unidade que reúne o subjetivo e
uma vivência de identidade expressa de forma o objetivo na psique. O símbolo é também a raiz
inadequada e dominantemente inconsciente. arquetípica que forma e transforma a identidade
Nesse sentido, a psicodinâmica da Sombra de do Eu e do Outro na consciência e na Sombra,
uma pessoa ou cultura só pode ser compreendi- daí ser chamado símbolo estruturante.
da dentro da história do processo de elaboração
simbólica desta pessoa ou cultura. A Psicologia 1.9. O Eixo Simbólico
Simbólica diferencia uma Sombra normal e uma A Psicologia Simbólica conceitua o Eixo Sim-
patológica, ambas expressas por defesas. Na bólico, descrito como Eixo Ego-Self por Erich
Sombra normal, as estruturas defensivas são Neumann, intermediando três instâncias: Cons-
circunstanciais, oferecem pouca resistência e ciência/Sombra, Símbolos e Funções Estruturan-
logo passam a estruturas criativas quando con- tes/Arquétipos, cuja totalidade compõe o Self.
frontadas pelo Eu consciente. Na Sombra patoló- Desta maneira, a Função Transcendente descrita
gica, ao contrário, as estruturas defensivas são por Jung (1960c) é a essência do Eixo Simbólico
crônicas e empedernidas, inconscientemente (Gráfico 1).

SELF

Eixo Simbólico
(Função Transcendente)

Consciência Sombra
Eu-Outro

Símbolos e Funções
Estruturantes

Arquétipos
Gráfico 1. Eixo simbólico.

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1.10. Processo de Elaboração Simbólica tem razão de ser quando necessitamos usá-los
A Psicologia Simbólica centraliza toda a ati- como sinais. A elaboração simbólica pode en-
vidade psíquica no Processo de Elaboração fatizar certos significados, mas, em última aná-
Simbólica, que ocorre na interação das três ins- lise, ela deve ser sempre prospectiva, para nos
tâncias do Eixo Simbólico do Self. Cada símbolo conduzir sempre e de novo pelas veredas do
vivenciado deve sempre ser submetido à ela- grande sertão.
boração simbólica para ser integrado na perso-
nalidade e transformar a identidade do Eu e do 1.11. A Função Avaliadora
Outro na consciência. É a elaboração simbólica A Psicologia Simbólica descreve a correspon-
que produz a interpretação e não vice-versa. Os dência arquetípica do Superego na Psicanálise
conceitos de fixação e de regressão da Psicaná- com a função avaliadora do processo de elabora-
lise são aqui considerados aspectos defensivos ção simbólica. A função avaliadora é uma função
da elaboração simbólica criativa normal. A re- estruturante e, por isso, como as demais funções
gressão é a função estruturante defensiva, cuja estruturantes, ela é arquetípica e pode operar
função estruturante criativa correspondente faz como função avaliadora criativa e defensiva. A
parte da centroversão criativa descrita por Erich função avaliadora é a função do Self que afere a
Neumann. A regressão é uma das formas da cen- autenticidade existencial da elaboração simbó-
troversão defensiva. A centroversão é a expres- lica e sua adequação a cada momento da vida,
são de toda elaboração simbólica, porque todos em função da atualização do potencial único do
os símbolos ao serem elaborados expressam, Arquétipo Central para cada pessoa. O complexo
em última instância, o todo da personalidade, de castração é a expressão da função avaliado-
que é o Self, e o seu centro regulador, que é o ra vivenciada na posição polarizada passiva do
Arquétipo Central. Complexo de Édipo.
A polaridade redutiva-prospectiva emprega-
da por Jung para representar a diferença entre 1.12. Quatérnio Arquetípico Regente
a elaboração dos símbolos da infância (reduti- A Psicologia Simbólica agrupa os arquétipos
va) e do futuro (prospectiva) me parece indis- à volta do Quatérnio Arquetípico Regente, for-
criminada. As associações dos símbolos com mado pelo Arquétipo Matriarcal, Arquétipo Pa-
vivências passadas, presentes ou com a pos- triarcal, Arquétipo da Alteridade (que inclui os
sibilidade de vivências futuras são ampliações Arquétipos da Anima e do Animus) e o Arquétipo
da elaboração simbólica. Todas essas associa- da Totalidade. Nesta perspectiva, estes quatro
ções podem ser empregadas de forma redutiva arquétipos regentes, circundados pelos demais
ou prospectiva. Se amarramos os significados arquétipos, operam à volta do Arquétipo Central
de um símbolo exclusivamente e causalmente a (Gráfico 2).
um significado presente, passado ou à possibi-
lidade de um significado futuro, estamos sendo 1.13. As cinco posições arquetípicas de
redutivos. Mas, se os empregamos como uma relação Eu-Outro
ampliação, que abre os caminhos para outros A Psicologia Simbólica descreve cinco posi-
significados, estamos sendo prospectivos. Não ções da relação Eu-Outro, durante o Processo
há dúvida de que as fixações reduzem e até li- de Elaboração Simbólica, que formam estados
teralizam os significados simbólicos, mas isto diferentes de consciência e permitem o embasa-
não significa que a elaboração das fixações e mento arquetípico da Teoria das Relações Obje-
sua interpretação sejam redutivas. A elabora- tais da Escola Inglesa de Psicanálise originada
ção das fixações pode ser prospectiva, depen- na obra de Melanie Klein. Essas cinco posições
de do terapeuta. O redutivismo dos símbolos só são as seguintes:

182 ■ Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 1º sem. 2019


PSICOLOGIA SIMBÓLICA JUNGUIANA
ESTRUTURA E DINÂMICA DO SELF
Processo de Elaboração Simbólica
Vivências SUPRACONSCIÊNCIA Vivências

CONSCIÊNCIA Eixo Simbólico SOMBRA


Persona Criativa Dominantemente Dominantemente Persona Defensiva
Consciente Inconsciente

EGO EGO EGO EGO


OUTRO OUTRO OUTRO OUTRO

Função Transcendente da Imaginação


Introjeção Projeção Função Sacrificial Introjeção Projeção
Função Avaliadora
Função Ética
FUNÇÕES ESTRUTURANTES CRIATIVAS Função Estética
FUNÇÕES ESTRUTURANTES DEFENSIVAS
Fixações
Compulsão de Repetição
Resistência
Símbolos Estruturantes Estratégias Defensivas:
Funções Estruturantes Neurose, Fobia, Psicopatia, Boderline e Psicose
Sistemas Estruturantes
POSIÇÕES ARQUETÍPICAS EGO-OUTRO DIMENSÕES SIMBÓLICAS
Arquétipo do Herói

Indiferenciada Corpo-Natureza-Sociedade-Ideia-Som
Insular Imagem-Emoção-Palavra-Número-Comportamento-Silêncio
Polarizada Quatérnio Arquetípico Regente
FUNÇÕES DA CONSCIÊNCIA
Dialética
Pensamento-Sentimento-Intuição-Sensação
Contemplativa

ATITUDES EGO-OUTRO Arquétipo da Alteridade ATITUDES


Passiva Extroversão
ARQUÉTIPO CENTRAL
Ativa Arquétipo Arquétipo Introversão
Consciente-Inconsciente
Matriarcal Arquétipo de Vida e da Morte Patriarcal
Arquétipo do Bem e do Mal

Demais arquétipos Arquétipo da Totalidade Demais arquétipos

Gráfico 2. Estrutura e Dinâmica do Self. Processo de Elaboração Simbólica.

A - Posição Indiferenciada – O Eu e o Outro se ilhas não estão totalmente separadas, pois são
acham indiferenciados dentro do símbolo e do dinamicamente articuladas entre si através do
Self. Corresponde ao estado urobórico descrito inconsciente, dentro do Self.
por Erich Neumann. A posição insular é característica do esta-
B - Posição Insular – Nesta posição psicoló- do de consciência, que opera pela dominância
gica, o Eu e o Outro convivem em ilhas de cons- da coordenação do Arquétipo Matriarcal, como
ciência. Numa ilha, a criança pode vivenciar o ocorre na primeira infância, no animismo e nas
ódio pela mãe e noutra, o amor. Normalmente, religiões politeístas. A proximidade da relação
não se trata de um split, e sim de um estado de Eu-Outro dentro destas ilhas de consciência
consciência normalmente insular. Nos estados estabelece uma intimidade binária sensual e
patológicos, surgem as defesas dissociativas ou emocional, que mantém a consciência operando
splits entre as ilhas ou dentro delas. A denomi- muito próxima das reações primárias instintivas
nação insular ou ilhada chama a atenção para de prazer/desprazer. A posição insular, na infân-
o fato de que essas ilhas Eu-Outro conscientes cia, foi denominada de estado libidinal perver-
são cercadas de inconsciência, como as ilhas so-polimorfo por Freud e corresponde também,
são cercadas pelas águas do mar. Assim, estas durante a vida à consciência lunar ou matriarcal,

Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 1º sem. 2019 ■ 183


descrita por Erich Neumann. Nesta posição, for- com o mesmo símbolo, mas de forma codifica-
mam-se as identificações primárias isoladamen- da e organizada, dentro de um todo coerente e
te com o pai, a mãe ou outras relações íntimas, dogmático. O mesmo Eu pode amar e odiar, errar
não só nos seus aspectos literais e explícitos, e acertar, o mesmo Outro, mas tudo está deter-
mas também nas suas características metafóri- minado no seu quem, como e quando. A posição
cas conscientes e inconscientes, da Sombra nor- polarizada é vivenciada num estado ternário e
mal e patológica. para tal, possui abstração maior que a posição
Muitos pesquisadores me parecem subesti- insular que é binária. Esta posição é caracte-
mar a posição insular quanto à sua capacidade de rística do estado de consciência autocrático,
apreensão das características simbólicas da vida que opera pela dominância da coordenação do
psíquica. Este erro, a meu ver, advém da confu- Arquétipo Patriarcal, como ocorre nas religiões
são entre capacidade de conscientizar e de expli- monoteístas. Ela corresponde à consciência so-
car as características dos símbolos, por um lado, lar ou patriarcal de Erich Neumann e é a posição
para o que a posição insular é limitada, e por que, na sua forma passiva, forma a identidade
outro lado, viver as características dos símbolos, do Eu e do Outro na infância por intermédio da
sobretudo corporalmente, para o que a posição função estruturante do triângulo Edipiano.
insular é muito dotada. Muitos pediatras, hoje, já D - Posição Dialética – Nesta posição, o Eu e o
associam muitas disfunções de bebês, como por Outro convivem em estados psíquicos caracteri-
exemplo, certas disfunções pulmonares, cutâne- zados pela relação dialética quaternária entre os
as e gastrointestinais, além das causas médicas opostos. Trata-se da relação do encontro pleno
tradicionais, também com características simbóli- entre o Eu e o Outro, no qual, os símbolos podem
cas da vida psíquica à sua volta. Assim, podemos ser elaborados até ao máximo de seu potencial
até mesmo dizer que, em matéria de quantidade metafórico. Ela só pode existir num grau de abs-
e intensidade de apreensão, registro e expressão tração maior que as duas posições anteriores.
de características simbólicas, conscientes, mas Digo que esta posição é quaternária porque, no
principalmente inconscientes, a função insular caso da polaridade Eu-Outro, o Eu pode perce-
não só não é menos capaz, como é muito mais ber a sua Sombra, tanto quanto a Sombra do
capaz que as outras posições. Por isso, a estrutu- Outro e vice-versa. A posição dialética é capaz
ração da identidade na infância recebe o impacto de perceber e operacionalizar significativamente
simbólico estruturante com consequências muito as variações de múltiplo retorno entre quaisquer
maiores do que nas outras etapas da vida. A ex- polaridades de forma sistêmica (multiple feed-
plicação para isto é que as outras posições são -back system). No caso da polaridade Eu-Outro,
mais abstratas e mais capazes de articular a ela- o Eu pode perceber a sua Sombra, tanto quanto
boração simbólica de forma mais refinada e com a Sombra do Outro e vice-versa. Esta maior abs-
maior proporção consciente que a posição insular tração permite à posição dialética incluir carac-
e, exatamente por abstrair mais, perdem muitos terísticas de intimidade entre o Eu e o Outro da
componentes dos símbolos durante a elaboração posição insular e características de permanência
simbólica. Esta maior capacidade de intimização e coerência da identidade do Eu e do Outro da
da posição insular explica porque é nela que a posição polarizada. Assim, a posição dialética
função estruturante da clarividência, da telepatia se torna capaz de coordenar o encontro do Ar-
e da mediunidade tem sua maior pujança. quétipo Matriarcal e do Arquétipo Patriarcal no
C - Posição Polarizada – Nesta posição, o Eu processo de elaboração simbólica. A posição
e o Outro convivem em estados psíquicos orga- dialética é característica dos estados de cons-
nizados para abranger polos opostos. O amor e ciência coordenados pelo Arquétipo da Alteri-
o ódio, o certo e o errado, por exemplo, convivem dade, que engloba os Arquétipos da Anima no

184 ■ Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 1º sem. 2019


homem e do Animus na mulher. Jung percebeu tação. Inicialmente, a criança chupa o dedo, de-
em parte estas características dos arquétipos da pois o objeto de transição, um dia dá mamadeira
Anima e do Animus, quando os descreveu como às bonecas, aprende a fazer brigadeiros e, bem
arquétipos mediadores da polaridade conscien- mais tarde, dá de mamar ao seu próprio neném
te-inconsciente (JUNG, 1993a; 1993b; 1993c; ou se torna um famoso cozinheiro. No aprendi-
1993d). A posição dialética é a posição da cons- zado também. De início o aluno sabe pouco e o
ciência característica da criatividade científica e professor é o detentor do saber. Durante a vida, o
artística, da psicoterapia de base analítica, das exercício da função estruturante do aprendizado
interações do ecossistema, da imunologia, do tenderá a tornar o Eu do aluno cada vez mais de-
amor, da democracia e das religiões que intera- terminante. A passagem da atitude passiva para
gem monoteísmo e politeísmo, como o panteon a ativa é proporcional à integração dos signifi-
assírio-babilônico, greco-romano, judaico-caba- cados simbólicos pela consciência (Eu-Outro).
lístico e cristão. Como veremos, a dominância de certas posições
E - Posição Contemplativa - Nesta posição, da consciência e seus arquétipos corresponden-
o Eu e o Outro são percebidos junto com as de- tes são elaborados dominantemente de forma
mais polaridades dentro da vida em tal grau passiva em certa fase da vida e de forma domi-
de abstração e desapego que parece à cons- nantemente ativa na fase seguinte.
ciência que ela não tem mais Eu. Trata-se do
estado de consciência de maior abstração no 3. As Posições Eu-Outro e as Etapas
processo de elaboração simbólica, o que lhe da Vida
confere uma característica unitária. De fato, Por serem etapas do processo de elaboração
no Budismo, no Induísmo e no Taoismo, nos simbólica para a formação e transformação da
quais esta posição é muito praticada nos ritu- identidade do Eu e do Outro, as posições arque-
ais de meditação, ela é muitas vezes descrita típicas Eu-Outro fazem parte da elaboração de
pelos mestres, como “a consciência sem Eu”. todos os símbolos e funções estruturantes. O pe-
É evidente que o Eu continua a existir, mas ríodo de elaboração de um símbolo estruturante
cada vez mais percebido junto com o Outro no pode durar horas, dias, meses, anos, décadas
processo Cósmico. A posição contemplativa ou toda uma vida, como é o caso dos símbolos
corresponde aos estados de consciência coor- do pai e da mãe, com seus incontáveis signifi-
denados pelo Arquétipo da Totalidade. cados. É fato conhecido, como somente quando
passamos à posição ativa de pais e até avós é
2. As Atitudes Ativa e Passiva e as que podemos complementar a elaboração de
Posições Eu-Outro muitos dos símbolos que vivemos com nossos
Cada uma das cinco posições acima descri- pais na posição passiva durante nossa infância.
tas, geralmente, começa a ser exercida na elabo- O Complexo Parental, por exemplo, elaborado de
ração simbólica, tendo o Eu na atitude passiva forma passiva na infância, como no Complexo de
e o Outro na atitude ativa. Com o desenrolar do Édipo, continua sendo elaborado de forma ativa
processo, esta atitude do Eu e do Outro tende a na adolescência e na vida adulta. As vezes, che-
se inverter. Os símbolos e a função estruturante gamos à posição contemplativa com determina-
da alimentação são um bom exemplo na vida da dos símbolos estruturantes, mas quando encon-
criança. No mamar, o Eu da criança é incompara- tramos a mesma função estruturante, ativada
velmente menos ativo que o Eu da mãe, dona do com outros símbolos, devemos tudo recomeçar
seio ou da mamadeira. Durante toda a vida, esta pela posição indiferenciada. É o caso dos rela-
atitude tenderá a ir se invertendo para tornar o cionamentos amorosos, ou do nascimento de
Eu cada vez mais agente da função de alimen- segundo, terceiro ou quarto filho, por exemplo.

Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 1º sem. 2019 ■ 185


É facilmente comprovável que determinadas racteriza o ecossistema psicológico do bebê. Às
posições Eu-Outro contribuem de forma domi- vezes, forma-se desde cedo, na posição insular,
nante na formação da identidade do Eu e do por intermédio do ideal dos pais, uma identi-
Outro nas cinco etapas da vida: infância, adoles- ficação com membros da família já falecidos,
cência, idade adulta, maturidade e velhice. Por mas de grande significado na árvore genealógi-
este fato, podemos cotejar as principais etapas ca devido ao papel que desempenham na fan-
simbólico-arquetípicas do desenvolvimento da tasia da família. Da mesma forma ocorre com
personalidade com determinadas posições ar- a identificação direta com líderes políticos ou
quetípicas da relação Eu-Outro nas suas atitudes religiosos, admirados e cultuados pela família,
passiva e ativa. Farei isto a seguir de forma su- ou, mais tarde, pela comunidade.
cinta para exemplificar as diferentes influências
das posições Eu-Outro na formação da consciên- 5. Do Segundo Ano à Puberdade
cia e na teoria psicológica. As identificações insulares ou pré-edípicas
já tem um papel muito importante na formação
4. A Diferenciação da Consciência de limites, simplesmente a formar o Eu e o não
do Bebê Eu, o Outro separadamente. A regulamentação
O período inicial da vida psíquica é domi- oral da fome e da saciedade, do prazer e do
nado pela posição indiferenciada. Aos pou- desprazer, e mais tarde, a regulamentação es-
cos, no primeiro ano de vida, surge a presença fincteriana, por exemplo, tem papel central na
significativa da posição insular passiva e, até formação dos limites.
mesmo, da posição polarizada passiva, no caso Lado a lado com a posição insular que con-
da orientação pediátrica ser dominantemente tinua na atitude passiva, mas que cresce paula-
patriarcal. A posição indiferenciada continuará tinamente na sua atitude ativa, estabelece-se a
muito importante durante toda a vida e tende- presença importante da posição polarizada pas-
rá a ser dominante no início de cada nova ela- siva, ou seja, do Complexo de Édipo, introduzido
boração simbólica. O segundo e o terceiro ano como função estruturante pelo símbolo da “cena
caracterizam-se pela dominância da posição primária”. A intensidade desta posição depende
insular passiva, que começa a apresentar de muito da intensidade do Arquétipo Patriarcal na
forma crescente também a atitude ativa. A posi- família e na sociedade em questão. A posição
ção insular, aqui, nos anos futuros até a adoles- polarizada passiva na infância elabora dominan-
cência e, mesmo depois, será a grande respon- temente o Complexo de Édipo, que Freud consi-
sável pela formação da identidade do Eu e do derou o principal símbolo estruturante da perso-
Outro pela identificação direta com as figuras nalidade, expresso pelas funções estruturantes
mais significativas do convívio íntimo, sejam da afetividade (incesto) e da agressividade (par-
elas os pais, tios, avós, irmãos, primos, amigos ricídio). A posição polarizada é caracterizada
e empregados tanto no nível literal quanto no como passiva no Complexo Parental porque os
metafórico. A realidade simbólica seja ela fan- pais têm o papel dominante na elaboração sim-
tasia ou apreensão da realidade objetiva implí- bólica. Durante a adolescência inicia-se a inver-
cita contribui para formar a identidade, tanto são e na vida adulta os filhos passarão a ser pais
ou mais que a realidade exclusivamente obje- e exercer a atitude ativa na posição polarizada
tiva explícita. Assim, nos primórdios da vida, do Complexo Parental.
a fantasia e a função estruturante da vidência, Uma das principais consequências da ação
da telepatia e da mediunidade podem já ter um da posição polarizada passiva na infância é a
papel de destaque na apreensão das caracterís- aprendizagem do desapego à posição insular,
ticas psíquicas dentro do Self familiar, que ca- ou seja, o complexo parental passa a atuar como

186 ■ Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 1º sem. 2019


um condicionador da tríade que se impõe à dí- A diferenciação das identificações insulares
ade. A forma insular ou matriarcal de relaciona- das identificações Edipianas é muito importan-
mento é cotejada e limitada pela forma polariza- te, tanto para a compreensão do desenvolvimen-
da ou patriarcal. As identificações primárias ou to normal, quanto para a compreensão da forma-
insulares são expostas às identificações edipia- ção das defesas que darão origem aos quadros
nas ou polarizadas, nas quais o Eu se transforma patológicos. É que, o vínculo na identificação
em função de uma polaridade (pai-mãe ou outro insular, pelo fato de ser binário, é direto. Já o vín-
qualquer), na qual o vínculo entre os polos é tão culo da identificação edípica pelo fato de ocor-
importante, quanto o vínculo entre o Eu e cada rer dentro da posição polarizada que é ternária,
polo. Este vínculo na posição polarizada passiva estabelece sempre um relacionamento à três, o
(Complexo de Édipo), ao mesmo tempo, reúne e que confere ao vínculo entre o dois e o três, seja
diferencia. Por exemplo, no caso de uma deter- ele entre pai e mãe ou entre outra díade qual-
minada mãe ser do tipo sentimento e o pai do quer, uma grande importância estruturante.
tipo pensamento, o Eu do filho aprende a relacio- A relação edípica que regulamenta o inces-
nar o afeto do intelecto e simultaneamente os di- to e o parricídio, percebida arquetipicamente
ferencia, na medida em que forma a identidade
dentro da posição polarizada passiva, se torna
com sua própria tipologia. Os diferentes papéis
assim uma relação ternária estruturante da inte-
familiares, vivenciados dentro da posição pola-
ração do Eu com a afetividade e a agressividade
rizada passiva, passam todos a funcionar como
e outras polaridades regulamentadas por um có-
uma fonte de identificações e de limites do Eu e
digo que abrange o que é de uma forma e o que é
do Outro.
de outra, junto com o que pode e o que não pode
ser desejado. Trata-se assim da estruturação da
6. As Identificações Primárias e as
polaridade Eu-Outro, por intermédio da sua re-
Identificações Edipianas
lação com o ser de uma forma e o ser de outra
A Psicologia Simbólica separa claramente as
forma, o sim e o não, sempre articulados.
identificações pré-edípicas e edípicas durante o
É importante registrar que a codificação do
curso do processo de elaboração simbólica em
sim e do não que forma a conduta ética do in-
função da diferença entre a posição insular e a
divíduo e da sociedade não depende exclusi-
posição polarizada. Para a Psicologia Simbólica,
vamente da posição polarizada e do Arquétipo
isto é fundamental, pois se trata de diferenciar
a posição insular (Arquétipo Matriarcal) e a po- Patriarcal. A dominância da posição insular e
sição polarizada (Arquétipo Patriarcal) na for- do Arquétipo Matriarcal na elaboração simbóli-
mação da identidade. De fato, para a Psicologia ca também estrutura a relação Eu-Outro com o
Simbólica, as identificações primárias não são sim e o não e forma a consciência ética, só que o
edípicas, pelo fato de não ocorrerem dentro do faz muito mais pela imitação e pelo costume do
triângulo estruturante do Complexo Parental, que pela obediência a princípios legais abstra-
que forma o Complexo de Édipo. Dentro des- tos, como tende a ocorrer na posição polarizada
ta perspectiva, as identificações primárias são patrocinada pelo Arquétipo Patriarcal. É impor-
pré-edípicas, pois ocorrem dentro da posição tante lembrar aqui que o código de parentesco
insular binária expressiva do Arquétipo Matriar- que limita o incesto e permite o casamento entre
cal, enquanto que as identificações estruturadas primos opostos em inúmeras sociedades tribais,
pelo Complexo de Édipo seja ele composto pelo provavelmente formou-se através de séculos e
casal parental ou outra díade qualquer, ocorrem impôs-se paulatinamente pelos costumes coor-
dentro da posição polarizada ternária expressiva denados geralmente pela dominância da posi-
do Arquétipo Patriarcal. ção insular e da dinâmica matriarcal.

Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 1º sem. 2019 ■ 187


7. A Puberdade e a Crise da Adolescência dominantemente parentais. A fase de latência
Com a maturação das gônadas, ativam-se pré-puberal descrita pela Psicanálise e que se
intensamente os Arquétipos da Anima no rapaz caracteriza pela acomodação sócio-familiar das
e do Animus na jovem, ou seja, intensifica-se o identificações primárias e edipianas, a partir
Arquétipo da Alteridade e a posição dialética, da puberdade, será sacudida por um terremoto
nesta fase, dominantemente na atitude passiva. psicológico. Esta grande crise, que intermedia
A crise da adolescência, por sua vez, submete as a infância e a idade adulta, tem por finalidade
identificações insulares e edípicas a uma nova duas grandes forças psíquicas. A primeira é o
pressão transformadora em função da entra- desapego às identificações formadas na infân-
da em cena do Arquétipo da Alteridade (Anima cia. A segunda é a introdução das característi-
e Animus), que lançará na personalidade a se- cas da identidade individual profunda. Assim,
mente da convocação para a campanha da cons- a primeira se expressará essencialmente pela
trução da identidade profunda e única, que Jung contestação e a segunda pela criatividade ou
descreveu, na segunda metade da vida, como o inovação. A patota adolescente é o exército
Processo de Individuação. Pelo fato do dinamis- organizado para empreender a implantação
mo de alteridade ser quaternário, sua pressão dessas inovações em duas frentes. No nível co-
estruturante força o desapego das identificações letivo, ela consistirá em empunhar a bandeira
insulares e das identificações edípicas, ambas revolucionária do novo contra o velho, da ino-
passivas. Acompanhando a ativação do Arquéti- vação contra a tradição. No nível individual, a
po da Alteridade na atitude passiva, ativam-se as luta se dará entre as identificações tradicio-
posições insulares e polarizadas na forma ativa. nais formadas na infância e as características
O Complexo Parental vivido de forma passiva na da identidade profunda emergentes nas esco-
infância, como o Complexo de Édipo descrito por lhas amorosas e nas vocações profissionais,
Freud, se transforma na adolescência através da políticas, religiosas, existenciais enfim. Estas
alteridade e da morte simbólica dos pais, para funções estruturantes são fontes de intensa
ser vivido na vida adulta de forma ativa, só que diferenciação da individualidade. Sua existên-
desta vez, já modificado pelas características cia, porém, é relativa e não significa que elas
adquiridas na nova geração. A Psicologia Sim- sempre consigam seus propósitos. O apego à
bólica caracteriza a Crise da Adolescência como indiferenciação, às identificações primárias e
um grande marco no Processo de Individuação, edípicas forma condicionamentos muito difí-
que será reintensificado outra vez na metanoia ceis de serem ultrapassados para se conseguir
ou crise do meio da vida, como descreveu Jung. a diferenciação crescente da personalidade.
A grande diferença destas duas fases é que, na O principal conflito entre Freud e Jung foi
Adolescência, a posição dialética e o Arquétipo reduzido por muitos pesquisadores ao nível
da Alteridade predominam na elaboração simbó- pessoal do Complexo de Édipo. Jung, dezenove
lica de forma dominantemente passiva, enquan- anos mais moço, foi durante cinco anos o filho
to que na crise dos quarenta, eles ressurgem de seguidor dileto de Freud. Seu crescimento teria
forma dominantemente ativa. motivado o conflito e a ruptura. Componentes
A identidade do Eu e do Outro e toda a per- parricidas-filicidas mal-elaborados teriam atu-
sonalidade entram em crise na adolescência, ado defensivamente para destruir a relação.
porque a vocação ou chamado para a constru- Há pesquisadores que favorecem Freud qualifi-
ção da identidade individual profunda entra cando Jung de imaturo e parricida e há os que
em choque com as identidades primárias in- favorecem Jung, imputando a Freud o filicídio
sulares e edípicas estabelecidas durante a in- de seus seguidores mais criativos como Jung e
fância por intermédio dos modelos tradicionais Adler. Concordo que elementos da identificação

188 ■ Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 1º sem. 2019


edípica possam ter desempenhado papel impor- Crise da Adolescência é tão profundo, que ele
tante no conflito e na ruptura. Contudo, mesmo inclui abertura total para o Arquétipo Central e
presentes, estes componentes seriam pessoais para o Arquétipo da Vida e da Morte, que pode
e circunstanciais e nada contribuem para com- se expressar até mesmo por acidentes fatais.
preender as diferenças de suas teorias. Existe Devido a essa amplitude simbólica, a integração
outro componente, referente às posições Eu-Ou- paulatina dos Arquétipos da Anima e do Animus
tro na consciência que trazem à baila o choque na posição dialética do relacionamento Eu-Ou-
frontal entre as duas teorias. tro inclui, na formação da identidade, a vivência
A Crise da Adolescência, dominada pela po- simbólica estruturante incestuosa, parricida e fi-
sição dialética e pelo Arquétipo da Alteridade, licida na elaboração do Complexo Parental, que
estabelece um novo padrão muito diferente para era proibida durante a estruturação infantil da
a interação Eu-Outro e para todas as demais po- personalidade nas posições insular passiva ca-
laridades. Trata-se da posição de maior capa- racterística do pré-édipo e na posição polarizada
cidade de desenvolvimento simbólico, devido passiva característica do Complexo de Édipo.
exatamente ao seu funcionamento quaternário. Quando um rapaz se apaixona, ele pode um
É importante lembrar aqui que Jung descreveu o dia descobrir que está envolvido eroticamen-
quatérnio como um importante símbolo da tota- te com certas características da jovem que são
lidade do Self. O nível quaternário de elabora- iguais às de sua mãe. Pode se dar conta, até mes-
ção simbólica da posição dialética é, assim, a mo, que os ciúmes entre sua mãe e sua namora-
expressão máxima da capacidade produtiva do da, às vezes, decorrem mais da semelhança do
Self. Neste padrão de relacionamento dialético que da diferença entre elas. O teto do quarto não
e quaternário, o Eu se abre para ser ele e tam- desabará, se no meio das primeiras carícias ínti-
bém qualquer Outro. O mesmo acontece com o mas, para espanto chocante de sua namorada,
Outro. A alteridade é o padrão arquetípico da ele de repente chamá-la pelo nome de sua mãe.
Democracia, do amor, da criatividade artística O mesmo pode acontecer com a jovem. Esta vi-
e científica. Quando pesquiso algo, admito de vência incestuosa na adolescência, não só é ne-
antemão que minha opinião, ou seja, meu Eu, cessária, quanto imprescindível para começar a
acerca do Outro possa mudar na direção que a elaborar a diferenciação dos Arquétipos da Ani-
pesquisa me levar. Nesse evento, o Eu de um ma e do Animus das figuras da mãe e do pai no
cientista se entrega à vida de forma tão absolu- Complexo Parental. Ao confundir e discriminar
ta que se sujeita inteiramente a morrer e renas- sua namorada de sua mãe, o jovem irá aperfeiço-
cer com uma verdade, isto é, com uma identi- ando sua própria identidade. Assim, ele morrerá
dade e visão de mundo inteiramente diferentes e matará, metaforicamente, ao deixar para trás
daquelas com as quais ele iniciou a pesquisa. É partes de sua identidade formadas na infância
este padrão que emerge de forma passiva para que estorvam a realização de sua identidade
o Eu na adolescência. Digo de forma passiva profunda e renascerá com outras características
porque o Eu não busca exercê-lo ativamente, na sua identidade que melhor correspondem às
mas assim mesmo ele acontece. combinações do seu potencial arquetípico úni-
Quando um casal de adolescentes se apai- co. O mesmo ocorre com a jovem. Um dos maio-
xona, cada um mergulha no mistério da vida im- res problemas da adolescência é que, dentro da
pulsionado pelo Arquétipo da Alteridade e pode diferenciação da Anima e do Animus das identifi-
emergir desse mergulho com a identidade antiga cações primárias e edipianas ocorre o confronto
morta e outra inteiramente diferente no seu lu- com a sombra já formada. Este confronto pode
gar. Morre a relação infantil com os pais. Nasce ser muito estressante e desencadear quadros
a relação adulta com o mundo. O mergulho na psicopatológicos graves.

Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 1º sem. 2019 ■ 189


Devido à constatação deste fenômeno, a o desapego do Complexo Parental e Conjugal ati-
Psicologia Simbólica pode afirmar que a Crise vos e propiciará o apogeu da diferenciação da in-
da Adolescência busca o aperfeiçoamento da dividualidade para a realização da boda mística
estruturação insular e edipiana da identidade, do Coniunctio Cósmico. O Eu e o Outro atingem
pelo fato da amplitude simbólica quaternária e o máximo de sua diferenciação e, tendo a mor-
dialética do Arquétipo da Alteridade proporcio- te como sacerdotisa, dela recebem a bênção da
nar aos jovens a vivência simbólica incestuosa sua reunião no infinito e na eternidade.
e parricida / filicida. A Crise da Adolescência é Uma das propostas principais deste trabalho
tão difícil, dolorosa e conturbadora porque ela é formular a hipótese de que Freud descreveu
busca reformular e aperfeiçoar o Complexo de o Instinto de Vida e o Instinto de Morte como
Édipo, pelo fato de poder lançar mão da atuação os principais instintos da psique e os manteve
vivencial do incesto e do parricídio dentro da inexoravelmente dentro da dualidade pelo fato
imaginação. O Complexo de Édipo está aqui am- de ter considerado o Complexo de Édipo como
pliado da sua descrição clássica, porque o rapaz o centro do desenvolvimento da personalidade.
e a jovem vivem a relação afeto-ódio (incesto, Nesta etapa, a afetividade inclui o incesto e a
parricídio-matricídio e filicídio) tanto com a mãe agressividade, o parricídio. A proibição do inces-
como com o pai dentro da função estruturante to e do parricídio no Complexo de Édipo os man-
homo e heteroamorosa. tém absolutamente literais e polarizados. Na
Assim, na adolescência temos a re-elabora- etapa edipiana, a consciência não pode se orien-
ção das identificações primárias pela passagem tar pela posição dialética na qual o não também
da posição insular de dominância passiva para pode ser sim. Sua violação traz fixações inten-
a dominância de sua atitude ativa. Temos ainda sas, geralmente com graves consequências. Em
a reciclagem das identificações edipianas com a se tratando do incesto, do parricídio e do aban-
passagem da posição polarizada da sua atitude dono (filicídio) o não tem que ser unicamente
passiva para a ativa, ou seja, com a passagem do não e o sim, unicamente sim. Isto é de fato uma
Complexo de Édipo da infância para o Complexo condição da maior importância na infância para
Parental da vida adulta. Isto tudo é propiciado estruturar a identidade do Eu e do Outro, for-
e catalisado pela constelação dos Arquétipos da mando a consciência e estruturando os limites
Alteridade, isto é da Anima e do Animus com sua e o caráter até a puberdade. Esta centralização
mensagem da individualidade única e profun- absoluta da função estruturante do Complexo de
da de cada Self individual. Em suma, a crise da Édipo na sua obra, a meu ver, a sua mais genial
adolescência tem a finalidade de separar a per- descoberta, foi a principal razão que impediu
sonalidade da infância e dos pais, preparando e Freud de transcender a posição polarizada passi-
adiantando o que acontecerá em grau maior na va dos filhos e de perceber o fenômeno psíquico
vida adulta, com a diferenciação da personalida- também através das posições polarizada ativa,
de pelo exercício do Complexo Parental em atitu- dialética e contemplativa no resto da vida.
de ativa, já agora com o auxílio das vivências do Já Jung e Sabina, alicerçados na posição
Complexo Conjugal. O processo continuará na dialética, puderam perceber e vivenciar a intera-
maturidade, com nova ativação do Arquétipo da ção dual, mas dialética da Vida e da Morte den-
Alteridade em atitude ativa, que mais uma vez tro da unidade da energia psíquica no processo
constelará a individualidade única e profunda e de transformação. Jung vivenciou a Morte de
propiciará nova fase de desapego dos Arquéti- maneira tão simbólica tão ampla nos Símbolos
pos Matriarcal e Patriarcal, ou seja, do Comple- e Transformações que aí a tratou inúmeras vezes
xo Parental adulto e do Complexo Conjugal. Na como símbolo do processo de transformação da
velhice, o declínio do corpo físico acompanhará Vida. Chegou mesmo a nomear o último capítulo

190 ■ Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 1º sem. 2019


do livro “O Sacrifício”, no qual propôs a inser- Itzakh Rabin pela democracia de Israel também
ção obrigatória da vivência simbólica da Morte muito contribui para esta tese. Por outro lado, a
no processo normal de transformação da ener- história do Cristianismo, que começou na alteri-
gia psíquica. De fato, para qualquer terapeuta, dade e durante sua institucionalização foi cada
a vivência da doença é sempre uma incursão na vez mais sendo patriarcalizada (BYINGTON, 1991
relação com a morte e a transformação. É muito p. 19-41) também invalida o equacionamento do
significativo a esse respeito, a vida de Asklépios Cristianismo com o dinamismo de alteridade.
começar com a morte de sua mãe. A segunda razão é que, como tentei demos-
trar, a predominância patriarcal na Psicanálise
8. Judaísmo e Cristianismo e os e da alteridade na Psicologia Analítica emerge
Padrões de Consciência das próprias vivências psicológicas descritas
Pelo fato de o Judaísmo apresentar na sua por estas teorias e, por isso, não há razão para
história uma extraordinária dominância da posi- se atribuir sua causa basicamente a uma in-
ção polarizada e do Arquétipo Patriarcal, a Psi- fluência cultural. A elaboração estruturante do
canálise, frequentemente, tem sido considerada Complexo de Édipo para formar a identidade do
uma psicologia do pai e do Judaísmo. Por outro Eu e do Outro na infância tem necessariamen-
lado, o fato do Cristianismo apresentar na pre- te que ocorrer dentro do dinamismo patriarcal,
gação e na Paixão de Jesus uma extraordinária no qual a posição polarizada passiva dos filhos
dominância da posição dialética e do Arquétipo e ativa dos pais, separa de maneira radical e
da Alteridade, poder-se-ia relacionar a obra de absoluta os polos das polaridades, sobretudo
Jung com uma Psicologia Cristã. Acho essa ten- afetividade/agressividade, certo/errado e vida/
dência, em ambos os casos perigosa por reduzir morte. O incesto, o parricídio e o filicídio, den-
à religião a obra científica destes dois geniais tro das posições insular e polarizada passivas,
pioneiros da Psicologia moderna. Sabemos que tendem a ser vivenciadas literalmente, e, por
quando confundimos religião com ciência, abri- isso, sua vivência, na realidade ou na fantasia,
mos a porta para a entrada do preconceito, da propicia a ocorrência de fixações e indiferencia-
intolerância e até do fanatismo. Mesmo vendo ções que pavimentam o caminho de disfunções
uma forte correlação entre o Arquétipo Patriar- psíquicas muito graves. Sua proibição patriar-
cal, o Judaísmo e a obra de Freud, por um lado, cal, dentro do Complexo de Édipo, faz parte de
e o Arquétipo da Alteridade, o Cristianismo e a uma tábua da lei que não pode ser quebrada.
obra de Jung, por outro, acho desaconselhável O impacto que esta vivência, que proporcionou
estabelecer uma conexão causal, nesta correla- a descoberta genial da capacidade estruturante
ção e prefiro considerar tão somente uma cone- do Complexo de Édipo, teve na personalidade
xão de sincronicidade, por duas razões. de Freud, deve ter sido de uma potência gigan-
A primeira é que a história predominante- tesca, o que o levou a considerá-la o principal
mente patriarcal do Judaísmo vem incluindo fator estruturante não só da infância, como de
cada vez mais características de alteridade nas todo o funcionamento psíquico. Devido a essa
correntes judaicas da Cabala, do Hassidismo e centralização do Complexo de Édipo na vida
no desenvolvimento sociopolítico do Sionismo, psíquica, Freud foi coerente quando encerrou a
o que invalida o equacionamento do Judaísmo Psicanálise na puberdade. O fato de que mui-
com o dinamismo patriarcal. Basta se conhecer tos de seus seguidores estenderam o Complexo
a filosofia de Martin Buber, e principalmente sua de Édipo (posição polarizada passiva) para ex-
obra Eu e Tu, de forte influência hassídica, para plicar da mesma forma a adolescência e a vida
se perceber a pujança da alteridade no Judaísmo adulta normal não foi de sua responsabilidade.
moderno. A morte trágica do grande líder político O fato de Jung discordar da teoria do incesto de

Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 1º sem. 2019 ■ 191


Freud por considerar qualquer forma de incesto do Eu-Outro e de todas as demais polarida-
simbólica (hierosgamos), sem qualquer compo- des. Ora, Jung, em sua última obra importan-
nente literal, exclusivamente arquetípica e não te, “Mysterium Coniunctionis”, descreve o co-
pessoal (JUNG, 1946), nos mostra o quanto Jung niunctio na alquimia como a união e separação
não considerou em sua teoria o poder estrutu- dos opostos (JUNG, 1954). A Psicologia Simbóli-
rante normal do Complexo de Édipo na forma- ca considera o Arquétipo do Coniunctio, como o
ção da identidade do Eu na infância e na psico- coordenador da união e separação dos opostos
patologia, inclusive na transferência defensiva. a partir da elaboração de todos os símbolos e
funções estruturantes.
9. As Posições Eu-Outro e as Atitudes Nas identificações primárias, temos o
Passiva e Ativa Coniunctio Insular do Eu com figuras primárias
Trata-se de um quadro de dominâncias genéri- (mãe, pai, avós, tios, irmãos, babá etc.) em ilhas
cas ideais nas etapas da vida, o que não impede binárias de elaboração simbólica. No Complexo
as variações circunstanciais, individuais e cultu- de Édipo temos o Coniunctio Parental no qual o
rais. A posição indiferenciada ativa crescente na Eu se relaciona com a díade (pai-mãe, mãe-tio
vida adulta significa que o Eu se capacita cada etc.) na posição polarizada ternária em atitude
vez mais para entrar ativamente em situações no- dominantemente passiva.
vas para indiscriminar e elaborar (Tabela). Na adolescência, ativa-se o Coniunctio Con-
jugal, no qual o Eu se relaciona de forma qua-
10. O Arquétipo do Coniunctio e as ternária dialética com os símbolos do amor, da
Posições Eu-Outro vocação e do posicionamento religioso e sócio-
As posições arquetípicas Eu-Outro e as eta- -político, em atitude dominantemente passiva.
pas da vida são melhor compreendidas quando Isto porque, apesar de o adolescente oscilar
as estudamos à luz do Arquétipo do Coniunctio, entre a onipotência e a impotência, os símbolos
que rege as várias formas de encontro do Eu com mais acontecem a ele do que ele os busca. O ado-
os polos das polaridades. lescente é muito mais passivo do que agente da
O processo de elaboração simbólica estrutu- posição dialética. Na adolescência, o Coniunctio
ra a consciência em polaridades, que incluem a Parental colide com o Coniunctio Conjugal como
polaridade Eu-Outro. A seguir, a polaridade Eu- duas formas importantes de viver e de elaborar
-Outro entra em contato com novos símbolos, símbolos. A grande diferença do Coniunctio Pa-
com os quais se funde na posição indiferencia- rental infantil é que o adolescente começa a vi-
da e recomeça, isto é, continua o processo de venciar o Complexo Parental de forma cada vez
elaboração simbólica. Por conseguinte, este mais ativa preparando-se para o casamento e a
processo apresenta sempre fusão e separação paternidade. O mesmo se dá com a adolescente.

Tabela. Posições Eu-Outro e as Atitudes Passiva e Ativa.

Fases
Posições
Infância Adolescência Vida adulta Maturidade Velhice
Indiferenciada passiva +++ passiva ++ ativa + ativa ++ ativa +++
Insular passiva +++ ativa + ativa +++ ativa ++ passiva +
Polarizada passiva +++ ativa + ativa +++ ativa + passiva +
Dialética passiva + passiva ++ ativa + ativa +++ ativa ++
Contemplativa passiva +++ passiva ++ passiva + ativa ++ ativa +++

192 ■ Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 1º sem. 2019


A partir dos 20 anos, em nossa cultura, geral- 11. O Arquétipo da Vida e da Morte
mente antes em outras culturas, o Coniunctio In- como Função Estruturante Criativa
sular e o Coniunctio Parental passam a ser exer- e Defensiva
cidos de forma clara e dominantemente ativa e Baseados nessas premissas, podemos ago-
o Coniunctio Conjugal começa a se tornar cada ra retomar o Arquétipo da Vida e da Morte como
vez mais ativo. Estrutura-se a identidade adulta, funções estruturantes criativas e defensivas do
constitui-se a família e a vida profissional, nas- processo de desenvolvimento simbólico da psi-
cem e crescem os filhos. que. Para a Psicologia Simbólica e para a Psico-
A partir dos 40 anos, o Coniunctio Conjugal logia Analítica, a Morte não é somente oposta
se torna dominantemente ativo, intensificando a à Vida como ocorre na posição polarizada e na
busca do encontro e sendo o Eu cada vez mais Psicanálise. Como quaisquer outras polaridades
agente. Constela-se intensamente outra vez o percebidas na posição dialética, a Morte e a Vida
Arquétipo da Alteridade e inicia-se uma nova se articulam criativamente, quando interagem
grande crise de questionamento dos valores es- de forma complementar e adequada no processo
tabelecidos e de busca da identidade individual de desenvolvimento. O equacionamento da Vida
e profunda. Trata-se da crise do meio da vida, da com a construtividade e da Morte com a destruti-
segunda adolescência, da metanoia em direção vidade, característico da posição polarizada não
à maturidade, que Jung descreveu como o Pro- deve ser generalizado, pois pode levar à identifi-
cesso de Individuação. O Coniunctio Parental cação pejorativa e altamente alienante da Morte
grandemente amadurecido, agora também na com o ruim e o indesejável e da Vida com o bem
fase ativa, nos permite começar a ser pais de e o desejável. Tanto a Vida quanto a Morte po-
nossos pais. O Complexo Parental já havia come- dem ser desejáveis ou indesejáveis, positivas ou
çado a ser depurado de características díspares negativas, criativas ou defensivas em função do
da identidade profunda pela vivência passiva processo. Quando coordenadas, criativamente,
da alteridade, na adolescência. Desta vez, jun- ambas são necessárias, mesmo que dolorosas.
to com a metanoia, que exacerba a identidade Quando descoordenadas e inadequadas, ambas
profunda por intermédio da alteridade ativa, são prejudiciais, operem elas de forma dolorosa
depuram-se ainda mais as identificações paren- ou não.
tais, que já estavam sendo exercidas de forma Pelo fato de pertencer ao âmago do Arquétipo
ativa na vida adulta. Surge, nessa fase o início Central (Gráfico 2), o Arquétipo da Vida e da Mor-
da vivência existencial da Morte junto com o Co- te tem a função estruturante de selecionar aqui-
niunctio Cósmico, de forma inicialmente passi- lo que deve ser mantido ou descartado durante
va e, posteriormente, cada vez mais ativa para o processo. O que deve ser mantido pertence à
aqueles que desenvolveram sua consciência e Vida e sua elaboração precisa continuar. O que
integraram de maneira, sempre relativa, mas deve ser descartado pertence à Morte e não tem
satisfatória, estas várias etapas do desenvolvi- mais que ser elaborado, ao menos naquela etapa
mento psicológico. O enfraquecimento do corpo do processo. O polo Vida do Arquétipo é expres-
físico e a aproximação da Morte são a vivência so pelas funções estruturantes do interesse, da
central do Coniunctio Cósmico, que enseja o en- curiosidade, do fascínio, da conquista, do ganho
contro unitário da consciência com o todo uni- e da euforia. O polo da Morte se expressa pelas
versal. Para entendê-lo melhor, necessitamos funções estruturantes da indiferença, do desin-
compreender o que é a simbolização ampla do teresse, da perda, do sacrifício, do desapego,
Arquétipo da Vida e da Morte como funções es- do desânimo, da depressão e do luto. Devido à
truturantes durante todo o processo de desen- sua função primordial no processo, o Arquétipo
volvimento da personalidade. da Vida e da Morte está sempre presente na ela-

Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 1º sem. 2019 ■ 193


boração simbólica de todos os símbolos e fun- lentam o amadurecimento gradual do processo
ções estruturantes. A interação desta polaridade existencial. Aqui também, poderá haver a forma-
é tão profunda e intensa que seu conhecimento ção de Sombra, isto é, de fixações e de defesas
e compreensão, na normalidade e na patologia, quando a função estruturante do luto não puder
são uma das pérolas, se não a maior pérola da ser devidamente elaborada.
arte existencial. A terceira forma de expressão é a compreen-
são do Arquétipo da Vida e da Morte durante o
12. Os Três Problemas Centrais da Elab- enfraquecimento até a desagregação do corpo
oração do Arquétipo da Vida e da Morte físico. Esta fase, inerente ao Coniunctio Cósmi-
Quando acompanhamos o desenrolar do po- co, depende muito de quanta sabedoria foi de-
tencial arquetípico do processo psicológico, não senvolvida nas elaborações das duas formas de
podemos acompanhar Freud quando afirma que, expressão anteriores, posto que ela consumirá
no final, o processo psíquico tende para o repou- tanto menos esforço psíquico, quanto mais alto
so e, por isso, o vencedor é o Instinto de Morte. for o patamar de diferenciação psíquica alcança-
Ao perceber a natureza do Coniunctio Cósmico, do pela consciência.
cientificamente, vemos que a psique, que veio da
poeira, no final da etapa existencial, se prepara 13. O Arquétipo da Vida e da Morte e as
para voltar à poeira. Este parece ser o significa- Posições Arquetípicas Eu-Outro
do do Revertere ad Locum Tuum – retorna ao teu Como todas as demais funções estrutu-
lugar – que lemos na entrada dos cemitérios ca- rantes, o Arquétipo da Vida e da Morte, ao ser
tólicos. Sabemos que os átomos do nosso corpo constelado, necessita da interação adequada de
não desaparecerão e continuarão sua existência suas polaridades e se expressa de maneira dife-
nas nuvens, nas flores e no fundo dos pântanos. rente em cada uma das posições arquetípicas da
Não sabemos ainda a forma de continuidade da relação Eu-Outro. Já frisei que estas posições se
vida psíquica. Mas, como argumentou Jung no fil- repetem em todas as elaborações simbólicas du-
me “Face to Face” da British Broadcasting Corpo- rante a vida, mas têm funcionamento típico nas
ration (BBC) de Londres, a psique continua a ela- etapas da vida. Descreverei aqui, sumariamente
borar seus símbolos diante da morte, como se a o Arquétipo da Vida e da Morte relacionado com
vida psíquica fosse continuar. Necessitamos di- as posições Eu-Outro de forma típica nas etapas
ferenciar três formas de expressão dos Instintos da vida.
de Vida e de Morte ou dos Arquétipos da Vida e Na posição insular da infância, a relação Eu-
da Morte para melhor compreendê-los. A primei- -Outro é tão íntima e envolvente que a perda da
ra é compreendê-los como funções estruturantes mãe pode ferir de forma irreparável a identidade
dentro do dia a dia do processo existencial. Isto do Eu e, até mesmo, precipitar a psicose depres-
consiste em atender o novo e se desapegar do siva (depressão anaclítica) e a morte da criança,
que já morreu porque, no momento ao menos, como descreveu Spitz (1963 p. 267-92). A elabo-
não serve mais. Claro está que aqui teremos a ração do apego-desapego nesta fase é de difícil
formação da Sombra e de suas defesas, quando dosagem. Quando deve entrar a Morte e quando
isto não for corretamente desempenhado. deve continuar a Vida na dependência infantil
A segunda é elaborar a Morte e as perdas que necessita um termômetro que somente a empa-
acarreta por eventos existenciais que ocorrem tia do dinamismo matriarcal sabe expressar e
independentemente do timing do processo de ler. Nesse sentido, sempre acompanhei maravi-
elaboração. Trata-se da elaboração do Arquétipo lhado vivências e relato dos animais com suas
da Vida e da Morte constelado de forma trágica crias e como sabem dosar a relação entre a ne-
e inesperada, por doenças ou acidentes que vio- cessidade de frustração da Morte e o aconchego

194 ■ Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 1º sem. 2019


da Vida. A mãe ursa, por exemplo, no início per- volvimento, a diferenciação e o enriquecimento
manece grudada com seus filhotes e nem por um psíquico. A vivência defensiva da função estru-
instante sai da toca. Em certa época da vida ma- turante da Vida e da Morte, pelo contrário, ense-
ternal, porém, ela vivencia a Morte desse grande ja a fixação, a estagnação, a indiferenciação, o
aconchego e sai da toca para passear, explorar empobrecimento e as disfunções defensivas dos
o mundo e caçar, com seus ursinhos pulando quadros psicopatológicos.
atrás. Num momento, posterior, deixa-os numa A crise da adolescência é dolorosa porque
árvore e vai buscar alimento, reencontrando-os propicia a Morte da infância e do apego aos pais.
depois para levá-los de volta à toca. Chega um A polarização com os costumes tradicionais e o
dia, em que o Arquétipo da Morte e da Vida coor- apego aos modismos e inovações se constitui
dena a elaboração simbólica da separação. Nes- num grande ritual de passagem que propicia a
se dia, a ursa simplesmente deixa os filhotes já morte do velho e o culto do novo. Esta morte dos
crescidos abrigados numa árvore e nunca mais pais na imaginação e a união erótica, frequente-
volta para buscá-los. Morreu a infância para po- mente ainda com intensas características inces-
der nascer a vida adulta. tuosas presentes na adolescência, configuram o
Quando a infância não é devidamente sa- parricídio-matricídio-filicídio e o incesto homo e
crificada à Morte e a Vida não abraça as forças heterossexual simbólicos incompatíveis com o
inovadoras, o Arquétipo da Morte e da Vida apre- Complexo de Édipo da infância, mas absoluta-
senta disfunção e fixação da elaboração simbóli- mente necessários para a diferenciação da per-
ca com formação de defesas e Sombra. O apego sonalidade na Crise da Adolescência, patrocina-
exagerado propiciado pelo Arquétipo da Vida de- da pelo Arquétipo da Alteridade.
sequilibra a separação com a superproteção e o O parricídio-matricídio-incesto simbólicos
mimo. Ocorre uma fixação na função estruturan- acompanham o filicídio na adolescência porque
te do Arquétipo da Vida e da Morte que estagna não só os pais, mas a criança também precisa
o processo vital e gera um símbolo morto-vivo na morrer simbolicamente. Morrem os pais da infân-
Sombra. Isto será diferente em cada posição da cia, mas morre também a criança para renascer
consciência, mas de um modo geral, a função es- outra criança na adolescência, que será a fonte
truturante da Vida, exercida de forma defensiva, de inocência, ludicidade, criatividade, curiosida-
se transforma em mimo, superproteção e estag- de, entrega e vitalidade durante o resto da vida.
nação. Já a função estruturante da Morte, exerci- Esta nova criança, símbolo agora não da infan-
da de forma defensiva, pode se transformar em tilidade, mas do Arquétipo da Criança na vida
autoagressão e depressão (defesa introjetiva) ou adulta, é comemorada com os batismos de nas-
em irascibilidade e difícil convívio (defesa proje- cimento nos rituais de iniciação como a Crisma,
tiva). A principal limitação da expressão defen- no Cristianismo e o Bar-Mitzvah no Judaísmo. Em
siva do Arquétipo da Vida e da Morte é a dificul- muitas culturas, estes rituais envolvem símbo-
dade do Eu vivenciar a frustração, essa função los que expressam a morte da infância antes da
estruturante tão importante para a vivência do iniciação na vida adulta. Nossos índios Karajás,
desapego e da transformação no processo de por exemplo, pintam o adolescente de jenipapo.
elaboração simbólica. As fixações do Arquétipo Pintado de negro, o jovem continua no meio da
da Vida e da Morte expressam fixações em todo tribo, mas ninguém o vê nem lhe dirige a palavra,
o processo de elaboração simbólica, inclusive como se não existisse. A seguir, ocorre o ritual
da função estruturante narcisista-ecoista que de renascimento e inclusão nos rituais adultos
compromete as formas de relacionamento da da tribo. Estes rituais de iniciação continuam em
personalidade. A vivência criativa da função es- muitas religiões na segunda adolescência, na
truturante da Vida e da Morte propicia o desen- metanoia, quando os iniciados receberão um ou-

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tro nome, o nome iniciático da maturidade, que Quem acha a sua vida perdê-la-á
designará a identidade ontológica única do Pro- Quem, todavia, perde a vida por minha
cesso de Individuação. Em ambos os rituais po- causa, achá-la-á (Mt 10:34-39).
derá haver madrinha e/ou padrinho mostrando
a maternidade e a paternidade simbólicas que No Evangelho de Tomé, da Biblioteca de Nag
designam a transcendência arquetípica dos sím- Hammadi, este tema é também explicitado: “(Je-
bolos do pai, da mãe, da criança e do adulto. Es- sus disse) Quem não odiar seu pai e sua mãe
tes pais e esta criança ou pessoa adulta devem como Eu faço, não pode ser meu discípulo. E
morrer para marcar o ritual de passagem para quem não amar seu pai e sua mãe como eu faço
a etapa seguinte do desenvolvimento. No nível não pode ser meu discípulo. Porque minha mãe
arquetípico matriarcal e patriarcal também se re- (me deu a falsidade) mas a minha verdadeira mãe
gistra essa morte, posto que, como já assinalei, me deu a vida” (Bibl. Nag Hammadi, Tomé 101).
o Eu da infância tende a viver a posição insular e Desta maneira, a passagem para a vida adul-
o dinamismo matriarcal e a posição polarizada e ta envolve o Arquétipo da Vida e da Morte numa
o dinamismo patriarcal edipiano de forma passi- grande transformação dos Arquétipos Regentes
va, enquanto que o Eu da adolescência os viven- e as posições Eu-Outro correspondentes. Os Ar-
cia cada vez mais de forma ativa ao preparar-se quétipos Matriarcal (posição insular) e Patriarcal
para a vida adulta. Por conseguinte, há também (posição polarizada) sofrem grande transforma-
morte e vida dentro da transformação da vivên- ção da infância para a adolescência, passando
cia matriarcal e patriarcal dominantemente pas- cada vez mais da atitude passiva para atitude
siva para sua expressão dominantemente ativa ativa que caracterizará fortemente a fase adul-
na vida adulta. ta da vida. O Arquétipo da Alteridade (posição
Esta duplicidade da imagem dos pais e dos dialética), ativado fortemente na adolescência
filhos e a necessidade de sua morte junto com a de forma passiva, arrefece na fase adulta devido
consciência coletiva da geração que passou foi à intensa ativação dos Arquétipos Matriarcal e
expressa claramente por Jesus dentro da sua pre- Patriarcal na atitude ativa. Na crise da metanoia
gação coordenada pelo Arquétipo da Alteridade: e na fase madura da vida, dos 40 aos 60 anos,
temos nova ativação do Arquétipo da Alteridade
Não penseis que vim trazer a paz à Terra. e da posição dialética, só que desta vez, na ati-
Não vim trazer paz, mas espada. tude ativa. Em cada fase e a cada grande trans-
Pois vim trazer divisão entre o homem e formação arquetípica, ativa-se a polaridade Vi-
seu pai; da-Morte, posto que há sempre grandes perdas
Entre a filha e sua mãe e entre a nora e e luto e muitos ganhos e crescimento.
sua sogra. Após os 60 anos, inicia-se a velhice e intensi-
Assim, os inimigos do homem serão os de fica-se sobremaneira o Arquétipo da Totalidade,
sua própria casa. com sua característica posição contemplativa em
Quem ama seu pai e sua mãe mais do que atitude cada vez mais ativa. Desde o início do pro-
a mim, cesso, este arquétipo está presente em atitude
Não é digno de mim. passiva e, após a metanoia, sua passagem para
Quem ama seu filho ou sua filha mais do a fase ativa se dá de forma crescente. Na velhice,
que a mim arrefecem os dinamismos matriarcal e patriarcal,
Não é digno de mim. que recomeçam outra vez a se apresentar razo-
E quem não toma a sua cruz e vem atrás avelmente em atitude passiva. É sabido, que na
de mim velhice, os pais são cada vez mais cuidados e
Não é digno de mim. orientados pelos filhos. A intensa presença do

196 ■ Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 1º sem. 2019


Arquétipo da Alteridade na fase da maturidade pela chegada da morte? Se a diferença entre o
começa a diminuir na velhice e ceder lugar para remédio e o veneno é uma questão de dose, a
a intensificação da posição contemplativa do Ar- tecnologia como remédio exagerado pode agir
quétipo da Totalidade em atitude ativa. como veneno e, de forma onipotente e terrível,
A diminuição progressiva da vitalidade fí- transformar o médico em torturador. Será que o
sica exacerba o Arquétipo da Vida e da Morte, crime pela omissão de socorro permite ao médi-
propiciando a passagem da dominância do Co- co isentar-se diante da proximidade da morte?
niunctio Conjugal para o Coniunctio Cósmico, no Quando pode o médico desligar os aparelhos
qual o Eu se reúne ao Cosmos. A diferenciação que mantém um morto-vivo sofrendo? Quando
criativa da personalidade, durante tudo o que deve o oncologista suspender a quimioterapia
passou, propicia muito o exercício da posição de um paciente irrecuperável?
contemplativa e do Coniunctio Cósmico nestes O problema é, sem dúvida, não só médico e
últimos anos. É da maior sabedoria para auxi- científico, mas também, filosófico, religioso e,
liarmos psicologicamente pacientes terminais, acima de tudo, humanista. Se a finalidade do
reconhecermos que a doença mortal, durante humanismo moderno planetário é lutar cada vez
qualquer fase da vida e, até mesmo, na infância, mais pelos direitos humanos, porque ignorar a
pode apresentar a fenomenologia do Coniunctio luta dos moribundos pelo direito de vivenciar a
Cósmico. A maturidade e a riqueza do Self Cultu- morte com dignidade? A Igreja tem a doutrina
ral é de fundamental importância para auxiliar a da compaixão pelos fracos e oprimidos, mas,
elaboração do Arquétipo da Vida e da Morte na onde está a compaixão pelos moribundos? Por
eminência da perda do corpo físico e da reunião que não dar a cada pessoa a ajuda técnica e psi-
com o cosmos dentro dos símbolos estruturan- cológica para elaborar sua morte e participar do
tes da eternidade e do infinito. coniunctio cósmico ativa e criativamente? Será
O desenvolvimento tecnológico crescente que ainda teremos que ser torturados por mui-
prolonga artificialmente cada vez mais a velhice. to mais tempo pela passividade diante da morte
Este prolongamento artificial da Vida não está até aprender a considerar a Eutanásia Médica e
sendo acompanhado devidamente por um maior a Auto Eutanásia como conquistas inestimáveis
aprendizado sobre a Morte e como ela deve da Medicina e dos direitos humanos? Por quanto
acontecer. A Medicina parece ter esquecido que tempo teremos que ser como o personagem José
Asklepios foi fulminado pelo raio justiceiro de K., do Processo de Kafka e continuar morrendo
Zeus, quando ressuscitou Hipólito e desrespei- como cães? Porque não dar o direito ao moribun-
tou o limite da Morte. O sofrimento de bilhões de do de comemorar ao seu gosto e de sua família
moribundos clama por um desenvolvimento da e eminência do seu casamento místico com o
sabedoria do médico para desenvolver a função Cosmos? A elaboração simbólica da tecnologia,
estruturante da humildade criativamente, de tal em função desta maior compreensão do Arqué-
forma que ele perceba quando o Arquétipo da tipo da Vida e da Morte, certamente favorecerá
Vida começa a ceder seu lugar para a Morte. O o avanço cultural para diminuir o preconceito da
primeiro mandamento de Hipócrates, “primum, posição ativa do Eu diante do Arquétipo da Mor-
non nocere” (acima de tudo não fazer mal), ne- te e, assim, propiciar o exercício crescente da
cessita incluir também a atitude do médico dian- eutanásia médica e da autoeutanásia dentro da
te da morte. Como pode se orgulhar um médico vivência do Coniunctio Cósmico. ■
de empregar o seu saber para manter vivo um
rebotalho humano, cujo corpo físico implora Recebido em 25/03/2019 Revisão em 28/05/2019

Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 1º sem. 2019 ■ 197


Abstract
The archetype of life and death. A study of Symbolic Psychology
The author elaborates on Freud’s dualistic po- I-Other positions and their correspondence to the
sition and Jung’s and Sabina Spilrein’s dialectical four Regent Archetypes; Matriarchal, Patriarchal,
position concerning the Archetype of Life and Death Alterity (Anima and Animus) and Totality Archetypes.
through five archetypal positions of the I-Other re- Special emphasis is given to the Coniunctio Arche-
lationship, namely, the undifferentiated insular, type, which is described in the phases of life through
polarized, dialectical and contemplative positions, four types: Insular Coniunctio, Parental Coniunctio,
each in the active and passive attitude. In order to Coupling Coniunctio and Cosmic Coniunctio. In this
accomplish this elaboration, the author expands description, the author emphasizes the elaboration
some fundamental concepts of Analytical Psychol- of the Archetype of Life and Death, mainly in the ar-
ogy, such as the Archetype, and of Psychoanalysis, chetypal transition from one phase to the next. In
such as defense mechanism. conclusion, the author considers the necessity of
Then, the author describes five phases of life medical euthanasia and self-euthanasia as one of
(childhood, adolescence, adulthood, maturity and the main conquests of human rights to encounter
old age) and associates them with the archetypal death with dignity within the Cosmic Coniunctio. ■
Keywords: symbolic psychology, archetype of life and death, archetypal positions of consciousness,
undifferentiated position, insular position, polarized position, dialectic position, contemplative position,
passive and active attitudes of the archetypal positions of consciousness, archetypal theory of object
relationship, cosmic coniunctio, medical euthanasia. Self euthanasia.

Resumen
El arquetipo de la vida y de la muerte: Un Estudio de la Psicología Simbólica
El autor elabora la posición dualista de Freud tro Arquetipos Regentes correspondientes: Ar-
y dialéctica de Jung y Sabina Spilrein ante el Ar- quetipo Matriarcal y posición insular. Arquetipo
quetipo de la Vida y de la Muerte por medio de la patriarcal y posición polarizada. Arquetipo de la
conceptualización de cinco posiciones arquetípi- Alteridad (Anima y Animus) y posición dialéctica.
cas de la conciencia (Yo-Otro): Posición indiferen- Arquetipo de la Totalidad y posición contempla-
ciada, insular, polarizada, dialéctica y contempla- tiva. Se hace especial énfasis en el Arquetipo del
tiva, cada una, en dos actitudes, pasiva y activa. Coniunctio, descrito de forma típica en las fases
Para que esto se realice, el autor expande con- del proceso por medio de cuatro formas de ex-
ceptos fundamentales de la Psicología Analítica presión: Coniuntio Insular, Coniunctio Parental,
y del Psicoanálisis, principalmente los conceptos Coniunctio Conjugal y Coniunctio Cósmico. En
de arquetipo y de defensa, en un cuerpo teórico, conclusión, el autor describe la función estruc-
que denomina Psicología Simbólica. turante del Arquetipo de la Vida y de la Muerte, y
A continuación, el autor asocia sumaria- su papel en la elaboración simbólica, sobre todo
mente las cinco etapas de la vida (infancia, ad- en el paso de una fase a otra, dando especial én-
olescencia, vida adulta, madurez y vejez) a estas fasis al estado terminal a la discusión de la euta-
posiciones de la conciencia, junto con sus cua- nasia médica y de la auto- la eutanasia. ■

Palabras clave: el arquetipo de la vida y la muerte, psicología simbólica, posiciones arquetípicas de la


conciencia, posición indiferenciada, insular, polarizada, dialéctica y contemplativa, actitudes pasiva y activa
de las posiciones arquetípicas, teoría arquetípica de las relaciones objetivos, coniunctio insular, parental,
conyugal y cósmico, eutanasia médica, auto eutanasia.

198 ■ Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 1º sem. 2019


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Junguiana
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Os sentidos como funções estruturantes da


Consciência. Um Estudo da Psicologia Simbólica1

Carlos Amadeu B. Byington*

Resumo Palavras-chave
O autor estuda os órgãos dos sentidos pelo vinho, da audição pela música e do tato pela órgãos dos
como funções estruturantes da Consciência e cosmetologia. Considera que, enquanto a cultura sentidos,
da Sombra Individual e Coletiva. Comparando aumentou o poder da visão e da audição, o mesmo símbolos e
funções
o cérebro a um computador, o autor argumen- não aconteceu com o olfato, o paladar e o tato.
estruturantes
ta que as funções fisiológicas são equivalentes Finalmente, à guisa de ilustrar o desenvolvi- da visão,
aos hardware e as funções estruturantes aos mento cultural dos órgãos dos sentidos como da audição,
software. Com esta comparação, o autor pre- funções estruturantes da Consciência Individual do olfato,
tende chamar a atenção para a extraordinária e Coletiva, o autor aplica sua Teoria Arquetípica do paladar
transformação da Consciência operada pela da História à História da Arte Moderna. ■ e do tato,
Civilização, fato que tem sido pouco consider- hardware,
ado pela Psiquiatria moderna, devido ao seu software,
teoria
justificável, mas lamentável fascínio atual pela
arquetípica
neuropsicofarmacologia.
da história
A seguir, o autor tece considerações resumidas da pintura
sobre cada órgão dos sentidos percebido como ocidental.
função estruturante e cita a expressividade da visão
pela pintura, do olfato pelos perfumes, do paladar

1
Publicado originalmente na Revista Junguiana 20, 2002 p. 7-15.
** Médico Psiquiatra e Analista Junguiano. Membro fundador
da Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica. Membro da
Associação Internacional de Psicologia Analítica. Criador da
Psicologia Simbólica Junguiana. Educador e Historiador.
E-mail: < c.byington@uol.com.br >,
site: < www.carlosbyington.com.br >

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Os sentidos como funções estruturantes da Consciência. Um Estudo da


Psicologia Simbólica

1. Introdução dada que é repassada pelo aprendizado de gera-


Os conceitos de símbolo, de função e de sis- ção em geração. O hardware é a nossa capacida-
tema estruturante, que englobam o subjetivo e o de da fala herdada geneticamente, mas quando
objetivo para estruturar a Consciência a partir do falamos português, inglês ou alemão, emprega-
processo de elaboração simbólica coordenada por mos software condicionados pelo aprendizado.
arquétipos, caracterizam o centro conceitual da Quando pensamos que o conjunto de mutações
Psicologia Simbólica. O Ego e o não Ego, aqui de- que formaram a nossa espécie e o nosso cére-
nominado o Outro, são conceitualmente insepará- bro tem aproximadamente 100 mil anos, que
veis na Consciência, e sua identidade é formada e durante 90 mil anos morríamos de fome porque
transformada pelos significados ou metáforas que não sabíamos nem pastorear nem plantar, e que
emergem dos símbolos durante a elaboração sim- hoje, com os mesmos neurotransmissores e ar-
bólica. Nesta conceituação, tudo na vida é símbolo quétipos voamos no espaço sideral, concluímos,
e função estruturante (Byington, 1996). sem sombra de dúvida, que os softwares que
repassam o que foi criado pela Civilização têm
2. Os Órgãos dos Sentidos como um poder atualizador imenso do potencial da
Funções Estruturantes estrutura genética dos hardware que herdamos
Cada órgão dos sentidos opera de inúme- ao nascer.
ras maneiras como símbolo e função estrutu- Descreverei, sumarissimamente, junto com
rante. Uma imensa enciclopédia, por maior cada órgão dos sentidos, um exemplo de uma
que fosse, jamais poderia incluir todas estas forma de expressão para que o leitor possa
variedades, pois são praticamente infinitas. perceber, através de sua imaginação, a imensa
As funções fisiológicas são relativamente com- capacidade cultural que as funções dos órgãos
paráveis ao hardware do computador. Quando dos sentidos têm para formar a Consciência,
agregamos seus componentes subjetivos e as quando percebidas simbolicamente como fun-
percebemos como funções estruturantes, po- ções estruturantes. Junto com a visão mencio-
demos compreendê-las também como softwa- narei a pintura, com a audição, a música, com o
re, produzidos pela cultura milenar da humani- paladar, o vinho, com o olfato, o perfume e com
dade a qual chamamos Civilização. É evidente o tato, a cosmetologia.
que o cérebro ainda é muito mais complexo
que um computador, mas esta analogia rela- 2.1 A Visão
tiva é importante para percebermos o extraor- A visão tridimensional (estereoscópica) e a
dinário significado da cultura em relação com cores é uma conquista evolutiva dos primatas
o genoma, fato que a Psiquiatria tem esqueci- junto com a bipedestação. Esta visão requer
do ultimamente devido ao seu compreensível, que o campo visual dos dois olhos se sobrepo-
mas lastimável deslumbramento diante das nha pelo menos em parte, o que se torna tanto
descobertas da neuropsicofarmacologia. mais possível quanto mais os olhos se situarem
Dentro desta metáfora relativa, mas significa- na parte anterior do crânio. A evolução da visão
tiva, que compara o cérebro a um computador, foi acompanhada pela aquisição progressiva do
o hardware é a parte estrutural geneticamente movimento de oponência do polegar na mão dos
herdada e o software é a parte funcional não her- primatas, o que sofisticou extraordinariamente o

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manejo das coisas e ensejou o aumento progres- estruturantes mais importantes para conhecer,
sivo do brincar com os objetos para conhecê-los catalogar e lidar com as coisas pelo fato de eles
e manipulá-los com destreza. Foi esta conjunção andarem voltados para o chão e, por isso, elas
fantástica entre o cérebro, a visão e as mãos do- são mais muito desenvolvidas neles do que em
tadas da oponência do polegar, que nos permitiu nós. Espécies aladas também nos ultrapassam
chegar às maravilhas da tecnologia moderna. A na audição, como, por exemplo, os morcegos
visão como função estruturante é tão importante que voam por radar.
que a criação da Consciência é frequentemente A diminuição da importância da audição e
reduzida à luz e o conhecer equacionado com da dimensão sonora com relação à visão na
o ver. Não é por acaso que uma imensa propor- evolução fisiológica do sistema nervoso foi, no
ção de símbolos psíquicos se apresenta pela entanto, altamente compensada e até mesmo
imagem. Este fato impressionou tanto Jung que, invertida na cultura com o desenvolvimento da
em muitas partes de sua obra, ele equacionou linguagem. O aparelho auditivo é o receptador
os símbolos expressos pelos arquétipos com as sonoro e, por isso, é inseparável da fala que é o
imagens arquetípicas. nosso emissor sonoro através da função estru-
turante da respiração. O software da linguagem
2.1.1 A Visão e a Pintura é dos mais complexos e poderosos da nossa
A pintura é um exemplo da conjunção criativa espécie, fato que transformou a limitação fisio-
entre o cérebro, a visão estereoscópica a cores e lógica da audição ocorrida na evolução, numa
as mãos na dimensão estética. A diferenciação das funções estruturantes mais significativas da
em cores dos objetos, das roupas, da moradia Civilização. A descoberta da linguagem escrita
e do corpo, com o tempo se constituiu num sof- reverteu relativamente essa vantagem.
tware significativo para a organização e o funcio-
namento da Consciência Individual e Coletiva. 2.2.1 A Audição e a Música
A especialização da pintura trouxe, no decorrer Ao passar da dimensão sonora para a escrita,
das gerações, uma representatividade crescente a linguagem teve uma nova fase histórica mui-
para reproduzir e modificar a natureza pela ima- to importante para difundir a cultura através da
ginação, frequentemente usando a imagem cor- visão. Alavancada pela descoberta da imprensa
poral nas representações. (Gutenberg, 1444), a linguagem escrita propiciou
o desenvolvimento da literatura, cuja dimensão
2.2 A Audição cotidiana originou o jornal. Paralelamente, po-
Trata-se de uma função estruturante de rém, as descobertas do telefone e do rádio de-
grande importância, que constrói a Consciência ram um novo ímpeto à linguagem falada. Num
conhecendo e catalogando as coisas através terceiro round, o cinema e a televisão acabaram
do som. Se a bipedestação uniu-se à visão e à por reunir, na modernidade, a audição e a visão
oponência do polegar e a nossa capacidade glo- nos órgãos de comunicação e na produção cria-
bal aumentou, com a audição e o olfato não foi tiva da cultura. Infelizmente a Consciência pla-
assim. Pelo contrário, com a evolução e a bipe- netária ainda não se deu conta de todo o poten-
destação, nossa capacidade auditiva e olfativa cial estruturante pedagógico da mídia (Byington,
diminuiu muito. A bipedestação aliada à visão 1996, cap. XII).
inseriu os primatas nas polaridades acima-abai- Um dos sistemas estruturantes mais impor-
xo e céu-terra, que na nossa espécie teve gran- tantes derivados da função estruturante da au-
de repercussão cultural na polaridade espiritu- dição é a música. Apesar de a teoria musical ter
al-material, reino do céu-reino da terra. Para os sido favorecida pelo impacto histórico da lingua-
quadrúpedes, a olfação e a audição são funções gem escrita, sua essência permaneceu auditiva.

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2.3 O Olfato da tradição e do orgulho dos povos, pelo fato


Apesar de intensamente diminuído em impor- de a diferenciação requintada gustativa e olfati-
tância no genoma humano quando comparado va aliar-se a estados alterados da Consciência,
aos quadrúpedes, o olfato se tornou uma função frequentemente com função euforizante. Não
estruturante civilizatória importante. No entan- foi por acaso que Dionisos, Deus do êxtase e do
to, junto com o tato, o olfato foi intensamente entusiasmo e criador do vinho e da tragédia, é
cerceado e deslocado, por sua capacidade de consagrado em rituais iniciatórios de grande es-
percepção das zonas erógenas. Repudiando os piritualidade (FIERZ-DAVID, 1988).
odores naturais do corpo, a maioria das culturas
busca diminuí-los ao máximo através de rituais 2.5 O Tato
de limpeza, dentre os quais se destacam várias Trata-se de um sentido cuja sensibilidade no
formas de banho e de odores artificiais. Influen- ser humano foi muito limitada pelo desenvolvi-
ciada pelo puritanismo cultural, a função olfativa mento cultural. Nós o encobrimos progressiva-
mente com o vestuário em função do clima, da
cresceu na cultura em direção contrária ao odor
moral e da vaidade. O próprio nudismo, exibi-
de nossas secreções.
cionismo e voyeurismo chamam atenção como
prática de exceção.
2.3.1 O Olfato e o Perfume
A extraordinária gama de perfumes e o requinte
2.5.1 O Tato e a Cosmetologia
de sua criação pelas mais variadas combinações
A função estruturante do tato teve um pa-
químicas transformaram a função estruturante
pel muito importante na diferenciação da
do olfato numa das mais sofisticadas funções da
identidade sexual através da cosmetologia,
civilização. Por um lado, altamente criativa, mas
cultivada pela mulher e vetada para o homem
por outro, um tanto defensiva, pois esconde a pu-
na Cultura Ocidental. A modernidade e a dife-
jança de nossas glândulas cutâneas. Ao deliciar-
renciação progressiva dos direitos civis têm di-
mo-nos com os perfumes, transformamos o olfato
minuído esse desnível através da moda e dos
em arte, que nos encanta e, ao mesmo tempo,
costumes unissex.
oculta a verdade do nosso corpo através de uma
Persona olfativa artificial e defensiva.
3. O Quatérnio Arquetípico Regente e a
História da Pintura Ocidental
2.4 O Paladar O Quatérnio Arquetípico Regente é formado
O condicionamento alimentar é parte im- pelos quatro principais arquétipos que regem
portante do Self Cultural e matiza a identidade o processo de elaboração simbólica: Arquéti-
coletiva com qualidades características. Os cos- po Matriarcal – caracterizado pela sensualida-
tumes humanos, que diferenciaram as culturas de –, Patriarcal – pela organização –, Arquéti-
através dos tempos, modificaram a alimentação po de Alteridade – pela interação dialética das
em função do paladar e do olfato e se tornaram polaridades e Arquétipo da Totalidade – carac-
marcos na identidade e na história das nações. terizado pela contemplação do Todo. A elabo-
Basta pensarmos nas culturas do café, do açúcar ração de cada símbolo passa sucessivamente
e do gado na História do Brasil, para se ter uma pela dominância de cada arquétipo regente.
pequena ideia dessa importância. Isto se aplica à elaboração de um símbolo no
momento individual, nas fases da vida e nas
2.4.1 O Paladar, o Olfato e o Vinho épocas de uma cultura. Assim, descrevi uma
As bebidas, e dentre elas o vinho, tiveram Teoria Arquetípica da História (BYINGTON,
um papel civilizatório importante na formação 1983) que apliquei à História da Humanidade

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e que empregarei agora, resumidissimamente, ticelli, Tintoretto, Tiziano e tantos outros dentro
para a História da Pintura Ocidental. do rótulo do Arquétipo Patriarcal.
No mesmo século XIII em que Dante deixou o Quero que o leitor se prepare para perceber,
latim para escrever a Divina Comédia em italia- através de uma imensa abstração, por que, no
no, a singeleza da pintura de Giotto (1266–1336) século XIX, os salões oficiais de Paris rejeitaram
e de Cimabue (1240?–1302?) rompeu com a tra- como não arte o Movimento Impressionista e
dição bizantina e inaugurou a Arte Ocidental pro- tudo o que se seguiu para caracterizar a Arte Mo-
priamente dita. A dominância arquetípica desta derna no século XX. Não arte por quê?
fase pode ser associada à sensualidade da ex- No século XVIII, com o Impressionismo, co-
pressividade matriarcal, pois expressa a pintura meçaram o rompimento e o desapego à exatidão
essencialmente motivada pela espontaneidade representativa da forma em função da expres-
afetiva e pelo prazer devocional religioso, pic- sividade da imaginação. Ativado intensamente
tórico-narrativo, sem nenhuma imposição ou pelo padrão dialético da compaixão expresso
compromisso primário com tradições, normas e pelo Mito Cristão, o Arquétipo da Alteridade
regras de procedimento. continuou sua implantação sociocultural no Oci-
Através do gótico, do maneirismo e do barro- dente de forma cada vez mais intensa. Junto com
co, durante cinco séculos vemos o aperfeiçoa- as ciências e a transformação política, as artes
mento crescente da técnica, inclusive química, romperam cada vez mais com a dominância pa-
com a inovação da pintura a óleo, atribuída a triarcal clássica e aprofundaram a alteridade. A
Leonardo da Vinci, com um conhecimento cada pintura caminhou para o Impressionismo saindo
vez maior da perspectiva e da habilidade de re- das igrejas, das cortes e do atelier para o meio do
presentar objetivamente a realidade nos seus povo e para as variações da luz do dia. Apesar do
menores detalhes e movimentos. Por certo, reacionarismo patriarcal dos salões, a alteridade
além dos aspectos objetivos, cresce também em marcha rompeu progressivamente com a re-
a capacidade de pintar nuances subjetivas de presentatividade tradicional da forma através do
emoções e sentimentos de forma cada vez mais Expressionismo que culminou no Cubismo. A ge-
pungente, proporcionalmente à genialidade ometrização da forma no Cubismo foi um acinte
dos grandes mestres. A superexigência perfec- para as curvas do real objetivo e contribuiu para
cionista da exatidão técnica no culto da pers- liberar o real fantástico no Surrealismo. Rompeu-
pectiva, da exatidão das formas, do movimento -se até mesmo com a tradição da subordinação
e da organização espacial e a devoção religiosa da pintura ao pincel e à tinta e surgiu a colagem
em função da representatividade do real subja- com os materiais mais diversos, que incluíram
cente a este período caracterizam a dominância até mesmo a sucata de ferro. A alteridade na arte
organizadora do Arquétipo Patriarcal. A admira- requereu liberdade e expressividade absolutas
ção perfeccionista pela grandiosidade clássica e essa conquista final surgiu quando Duchamps
e a voracidade pela riqueza do seu imaginário suspendeu um bidê no ar e o proclamou um ob-
levaram à ressuscitação da Mitologia Greco-Ro- jeto de arte.
mana que inundou o Renascimento. O caminho para a Arte Moderna atingiu seu
As generalizações costumam atropelar as in- apogeu na segunda metade do século XX com a
dividualidades e, por isso, despertam o despre- liberação total das formas e dos materiais reu-
zo dos especialistas. nidos à palavra na arte conceitual, derrubando
De forma alguma quero dar a impressão ao limites e mais limites entre a prosa, a palavra,
leitor que através de um psicologismo simplório a pintura e a escultura. Esta alteridade da cria-
redutivista ao extremo estou empacotando a ge- tividade, que tudo pode empregar e que é reco-
nialidade de Da Vinci, Miguelangelo, Rafael, Bo- nhecida em tudo, ampliou e transformou de tal

Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 1º sem. 2019 ■ 205


PSICOLOGIA SIMBÓLICA JUNGUIANA
ESTRUTURA E DINÂMICA DO SELF
Processo de Elaboração Simbólica
Vivências SUPRACONSCIÊNCIA Vivências

CONSCIÊNCIA Eixo Simbólico SOMBRA


Persona Criativa Dominantemente Dominantemente Persona Defensiva
Consciente Inconsciente

EGO EGO EGO EGO


OUTRO OUTRO OUTRO OUTRO

Função Transcendente da Imaginação


Introjeção Projeção Função Sacrificial Introjeção Projeção
Função Avaliadora
Função Ética
FUNÇÕES ESTRUTURANTES CRIATIVAS Função Estética
FUNÇÕES ESTRUTURANTES DEFENSIVAS
Fixações
Compulsão de Repetição
Resistência
Símbolos Estruturantes Estratégias Defensivas:
Funções Estruturantes Neurose, Fobia, Psicopatia, Boderline e Psicose
Sistemas Estruturantes
POSIÇÕES ARQUETÍPICAS EGO-OUTRO DIMENSÕES SIMBÓLICAS
Arquétipo do Herói

Indiferenciada Corpo-Natureza-Sociedade-Ideia-Som
Insular Imagem-Emoção-Palavra-Número-Comportamento-Silêncio
Polarizada Quatérnio Arquetípico Regente
FUNÇÕES DA CONSCIÊNCIA
Dialética
Pensamento-Sentimento-Intuição-Sensação
Contemplativa

ATITUDES EGO-OUTRO Arquétipo da Alteridade ATITUDES


Passiva Extroversão
ARQUÉTIPO CENTRAL
Ativa Arquétipo Arquétipo Introversão
Consciente-Inconsciente
Matriarcal Arquétipo de Vida e da Morte Patriarcal
Arquétipo do Bem e do Mal

Demais arquétipos Arquétipo da Totalidade Demais arquétipos

Gráfico. Processo de Elaboração Simbólica.

maneira o processo criativo que este se abriu 4. Conclusão


para o todo planetário e passou a reconhecer e Os órgãos dos sentidos quando percebidos
respeitar o valor e a pertinência da arte de todas como funções estruturantes da Consciência In-
as culturas de todos os tempos. A função estru- dividual e Coletiva ultrapassam de longe sua
turante da visão e sua resultante na pintura e na função fisiológica e adquirem um papel extraor-
escultura, na Arte Moderna, caracterizam hoje a dinário no processo civilizatório que somente a
dominância da sua elaboração pelo Arquétipo compreensão simbólica pode abranger. ■
da Totalidade com suas características de abran-
gência holística no processo de globalização ora
em curso. Recebido em: 25/04/2019 Revisão: 22/05/2019

206 ■ Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 1º sem. 2019


Abstract
The senses as structuring functions of consciousness. A contribution of sym-
bolic psychology
The author studies the sense organs as structuring tion and considers the expression of sight
functions of individual and collective consciousness through painting, hearing through music,
and shadow. Comparing the brain to a computer, he smell through perfumes, taste through wine,
argues that physiological functions are equivalent to and touch through skin creams. He remarks
hardware and structuring functions to software. With that while the power of vision and hearing were
this comparison, the author intends to call attention enhanced by culture, the same did not happen
to the extraordinary transformation of consciousness to smell, taste and touch.
brought about by civilization, a fact which modern Finally, the author applies his Archetypal The-
psychiatry fails to consider due to its comprehensible ory of History to the history of modern art to illus-
fascination for neuro-psycho-pharmacology. trate the cultural development of the senses seen
Then, the author briefly considers each as structuring functions of individual and collec-
sense organ when seen as a structuring func- tive consciousness and shadow. ■

Keywords: organs of the senses, symbols and structuring functions of vision, hearing, smell, taste and touch,
hardware, software, archetypal theory of the history of western painting.

Resumen
Los sentidos como funciones estructurantes de la conciencia. Un estudio de la
psicología simbólica
El autor estudia los órganos de los senti- A continuación, el autor hace consideraciones
dos como funciones estructurantes de la Con- resumidas sobre cada órgano de los sentidos
ciencia y de la Sombra Individual y Colectiva. percibido como función estructurante y cita la ex-
Comparando el cerebro a una computadora, el presividad de la visión por la pintura, el olfato por
autor argumenta que las funciones fisiológi- los perfumes, el paladar por el vino, la audición
cas son equivalentes a los hardwares y las por la música y el tacto por la cosmetología. Con-
funciones estructurantes a los softwares. Con sidera que mientras que la cultura aumentó el
esta comparación, el autor pretende llamar poder de la visión y de la audición, lo mismo no
la atención sobre la extraordinaria transfor- ocurrió con el olfato, el paladar y el tacto.
mación de la Conciencia operada por la Civi- Finalmente, a la luz de ilustrar el desarrollo
lización, hecho que ha sido poco considerado cultural de los órganos de los sentidos como fun-
por la Psiquiatría moderna, debido a su justi- ciones estructurantes de la Conciencia Individual
ficable pero lamentable fascinación actual por y Colectiva, el autor aplica su Teoría Arquetípica
la neuropsicofarmacología. de la Historia a la Historia del Arte Moderno. ■

Palabras clave: órganos de los sentidos, símbolos y funciones estructurantes de la visión, de la audición, del
olfato, del paladar y del tacto, hardware, software, teoría arquetípica de la historia de la pintura occidental.

Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 1º sem. 2019 ■ 207


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o mito cristão como principal símbolo estruturante da Rosa dos Tempos, 1996.
implantação de padrão de alteridade na cultura ocidental.
Junguiana: Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia FIERZ-DAVID, L. Women’s dionysian initiation: the villa of
Analítica, São Paulo, v. 1, n. 1, p. 120-70, 1983. mysteries in Pompeii. Washington, DC: Spring, 1988.

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Arte e Psicopatologia: a defesa sadomasoquista


e a transcendência do mal. Um enigma que
reúne a vida e a obra de Franz Kafka1. Um
estudo da Psicopatologia Simbólica Junguiana

Carlos Amadeu B. Byington*

Palavras-chave
Resumo arte e psicologia,
O autor, dentro do referencial teórico da Psico- passividade covarde e masoquista do seu complexo identificações
logia Simbólica Junguiana, estuda a relação da Arte materno negativo. Descreve também a identificação primárias e
com a Psicopatologia e situa o sadomasoquismo do Outro na Consciência dominantemente com a suas fixações,
complexo
como a defesa central dos relacionamentos hu- exuberância vital, a produtividade e a dedicação ao
parental e o
manos. Postula a sua formação através da fixação trabalho e à família do seu complexo paterno posi-
vínculo mãe
das identificações parentais, que inclui o vínculo tivo e do seu Outro na Sombra com a agressividade e pai, funções
entre mãe e pai e as reações do Ego a eles. Esta egocêntrica, sádica, prepotente e extrovertida do estruturantes
fixação envolve a interação da função estruturante seu complexo paterno negativo. A resultante desta do amor e
do amor (afeto e agressividade) com a função es- grave fixação foi uma relação sadomasoquista da do poder,
truturante do poder (obediência e comando). polaridade Ego-Outro na sua personalidade, clar- sadomasoquismo,
O autor ilustra estes conceitos na vida e na obra amente expressa na sua famosa Carta ao Pai e na arquétipo
central e
de Franz Kafka, descrevendo a identificação do seu maior parte de sua obra, inclusive na sua ordem
sistema
Ego na Consciência dominantemente com o afeto para que fosse destruída junto com seus diários.
defensivo da
delicado, sensível e introvertido do seu complexo Byington conclui mencionando alguns as- sombra,
materno positivo, e do seu Ego na Sombra com a pectos da relação entre Arte e Psicopatologia e ultrapassagem
postula que o Arquétipo Central abrange os com- da psicopatologia
plexos fixados do sistema defensivo da Sombra, pela arte no self

1
Artigo publicado na Junguiana, Revista da Sociedade Brasilei- cultural.
ra de Psicologia Analítica, São Paulo, nº 22, 2004, p. 87-107. mas busca ultrapassá-los na autorrealização cri-
* Médico Psiquiatra e Analista Junguiano. Membro fundador ativa do Processo de Individuação. No caso de
da Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica. Membro da
Associação Internacional de Psicologia Analítica. Criador da Kafka, isto não aconteceu no Self Individual, mas
Psicologia Simbólica Junguiana. Educador e Historiador. realizou-se vigorosamente através da imagem
E-mail: < c.byington@uol.com.br >,
site: < www.carlosbyington.com.br > arquetípica da ressurreição no Self Cultural. ■

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Arte e Psicopatologia: a defesa sadomasoquista e a transcendência do mal.


Um enigma que reúne a vida e a obra de Franz Kafka. Um estudo da
Psicopatologia Simbólica Junguiana

1. Introdução 2. O Quatérnio Parental na Vida e na


Franz Kafka (1883–1924) foi um grande Obra de Kafka
gênio da literatura alemã do século XX, com- O Ego de Kafka parece ter se identificado bas-
parável à grandiosidade de James Joyce na tante com o lado introvertido e místico da família
literatura inglesa e a Marcel Proust, na fran- Löwy, de sua mãe, e admirado, de forma ambígua
cesa. Pouco conhecido, ele publicou apenas e com severas restrições, a exuberância forte e
parte de sua obra durante sua vida e, antes de extrovertida da personalidade do pai, que formou
morrer de tuberculose, às vésperas de com- em sua identidade um Outro opressor, detestado
pletar 41 anos, no apogeu de sua criatividade, e desprezado, mas também admirado e amado.
pediu ao amigo e futuro biógrafo, Max Brod,
que destruísse o resto de sua obra, suas car- Eu já estava esmagado pela simples ma-
tas, seus diários e a famosa Carta ao Pai (KA- terialidade do seu corpo. Lembro-me, por
FKA, 2002b), escrita em 1919, que este nun- exemplo, de que muitas vezes nos des-
ca chegou a ler. Neste artigo, quero sugerir píamos juntos numa cabine. Eu, magro,
que Kafka foi portador de uma grave defesa fraco, franzino, você forte, grande, largo.
sadomasoquista, oriunda de fixações do seu Já na cabine me sentia miserável e, na
complexo parental, que se transformou na li- realidade, não só diante de você, mas
nha mestra do conteúdo da obra, subjacente do mundo inteiro, pois para mim, você
à genialidade literária. Desejo mostrar como era a medida de todas as coisas (KAFKA,
Arte e psicopatologia são dimensões psicoló- 2002b p. 14).
gicas diferentes, que podem se entrelaçar por [...] Nossas necessidades eram comple-
sincronicidade sem que uma seja reduzida à tamente diferentes: o que me arrebata é
outra causalmente. capaz de deixá-lo insensível e vice-versa.
O enigma que Kafka nos impõe é o de expli- O que em você é inocência, em mim pode
car como um gênio capaz de uma criatividade ser culpa, e vice-versa; o que para você
extraordinária e portador de tanto carisma e não tem consequências pode ser a tampa
bondade, que muitos comparam à dos sábios do meu caixão (KAFKA, 2002b p. 60).
e até dos santos, tenha publicado apenas par-
te do que escreveu e tenha ordenado a destrui- Possivelmente o desprezo por si mesmo e
ção do resto. A interpretação aqui apresentada sua identificação com a barata (KAFKA, 2002a),
é que a psicopatologia de sua personalidade o cachorro (KAFKA, 1999) e o rato (KAFKA,
se entrelaçou com a sua criatividade artística 2002c) têm relação com o sentimento de infe-
e ali semeou a orientação sadomasoquista de rioridade desenvolvido por sua identificação
sua destruição. Quero acrescentar também com sua mãe, amorosa, mas covarde e submis-
que a criatividade abrangeu a psicopatologia sa, e o não se sentir capaz de corresponder, em
e a ultrapassou na morte, e, mesmo contra a sua própria vida, ao que admirava na de seu
sua vontade, engrandeceu a arte literária da pai, a quem tanto amava e, ao mesmo tempo,
humanidade. repudiava com horror. Ficou aí delineado, como

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“sulcos em seu cérebro” (KAFKA, 2002b p. 30), tava muito de ouvir os outros... “Mesmo quando
seu sistema sadomasoquista. sua doença já o estava torturando, ele mantinha
As descrições de sua personalidade, tanto na sua expressão sorridente” (BROD, 1995, p. 255).
biografia escrita por Max Brod (1995) como nas Esconder do mundo, defensivamente, seu
referências de pessoas que o conheceram (Feli- sofrimento talvez tenha sido uma das grandes
ce Bauer, Dora Geritt, Milena Pollack, Friedrich razões para pedir ao amigo Max que destruísse a
Thierberger, Dora Dymant, Gustav Janouch, den- parte não publicada de sua obra, que era grande,
tre outros), trazem uma personalidade riquíssi- junto com os diários e cartas, o que, felizmente,
ma e complexa, o que, para muitos, certamente não foi feito, e que deixou explícita a sua defesa
invalidaria a importância que estou atribuindo sadomasoquista. Seus sonhos e suas fantasias
às suas possíveis identificações primárias nega- ilustram exuberantemente o quanto sofria, mes-
tivas. Meu argumento, no entanto, vem da obra, mo antes de contrair a tuberculose que o tortu-
dos Diários (KAFKA; BROD, 1948), das cartas e rou durante os últimos sete anos de sua vida.
principalmente do que o próprio Kafka escreveu
na Carta ao Pai (2002b). No meu entender, aí se A janela estava aberta, em meus pensa-
encontra o fio condutor do significado profun- mentos desconexos eu me jogava da ja-
do do seu Processo de Individuação e de toda nela de quinze em quinze minutos, con-
a sua obra, que descreve com uma inteligência, tinuamente. Aí vinha um trem, os vagões
uma sensibilidade e uma criatividade literária iam passando sobre o meu corpo estirado
geniais, a tortura de buscar a vida dentro da in- nos trilhos, aprofundando e alargando
viabilidade absoluta de ser. “Tudo é imaginário: os dois cortes, no pescoço e nas pernas
família, emprego, amigos, a rua, lá longe, ou (KAFKA, 2003a p. 66)
aqui perto, a mulher. A maior verdade, porém, é
só essa: que você está batendo sua cabeça na
parede de uma cela que não tem porta nem jane- 3. As Funções da Afetividade e da
la” (KAFKA; BROD, 1948 p. 395). Agressividade fazem parte do Amor
Na Carta, o próprio Kafka (2002b) se apre- Se concebermos a afetividade como a função
senta como um prisioneiro de suas identifica- estruturante arquetípica que busca a aproxima-
ções primárias negativas e, principalmente, do ção daquilo que nos agrada, e a agressividade
vínculo parental, característica central de sua como a função que afasta o que repudiamos,
identidade fixada na Sombra. De um lado, o pai podemos compreender a polaridade afetivida-
exuberante e provedor, mas grosseiro, vaidoso, de-agressividade fazendo parte do centro dos
onipotente, autoritário e sádico; de outro, a mãe relacionamentos emocionais, nos quais a afeti-
amorosa, sensível e introvertida, mas covarde, vidade diz sim e acolhe e a agressividade diz não
passiva e masoquista. Este vínculo expressa o e repudia. Por conseguinte, a interação normal
desespero da maldição profética de não poder da afetividade e da agressividade, do sim para o
ser, que permeia cada parágrafo. afeto e do não para a frustração, é a essência da
Conta Rudolf Fuchs que, certa vez, entre ami- psicodinâmica do amor, e a sua disfunção, par-
gos em Weinberg, numa noite gelada, Kafka es- te importante da defesa sadomasoquista, que
tava usando um casaco muito leve, pelo que foi nos faz ter afetividade e aceitação pelo que nos
criticado. Kafka levantou sua calça, mostrou sua desagrada e agressividade e rejeição por aquilo
perna nua e contou que tomava banhos gelados que nos agrada. “Meu irmão cometera um crime,
no inverno. Acrescentou Fuchs que Kafka sofria de talvez um assassinato. Eu e outras pessoas es-
insônia e de terríveis dores de cabeça – provavel- távamos envolvidos... Meu sentimento de felici-
mente enxaquecas –, pouco falava de si, mas gos- dade estava no fato que eu recebia tão livremen-

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te, com tanta convicção e alegria, o castigo que Em 1913, um ano antes de escrever Na Colô-
viria...” (KAFKA, 2003a). “Meu desenvolvimento nia Penal (KAFKA, 2001b), conto no qual detalha
foi simples. Quando eu estava contente, eu que- minuciosamente os sentimentos do torturador e
ria estar infeliz e, com todos os meios de que do torturado junto com uma terrível máquina as-
dispunha, mergulhava na infelicidade – e de- sassina, Kafka fantasia: “a imagem frequente de
pois queria voltar” (KAFKA; BROD 1948 p. 405). uma fatiadora muito larga, que vai me cortando
“É impressionante como eu sistematicamente em alta velocidade e com regularidade mecânica
me destruí ao longo dos anos, como uma fenda em fatias muito fininhas, que saem voando qua-
que foi se alargando na barragem de uma repre- se enroladas por causa da rapidez do trabalho”
sa” (KAFKA; BROD 1948 p. 393). (KAFKA, 2003a p. 70; KAFKA; BROD 1948).
Como tenho assinalado o centro da Consciên-
4. A Relação entre o Amor e o Poder ocu- cia não é ocupado somente pelo Ego, mas pela
pa o Centro da Elaboração Simbólica polaridade Ego-Outro e Outro-Outro. A Psicolo-
Outra polaridade que abrange a polaridade gia Simbólica Junguiana descreve a formação e
afetividade-agressividade, e é tão central quanto a transformação da identidade do Ego junto com
ela nos relacionamentos humanos, é a polarida- a identidade do Outro a partir de toda e qual-
de amor-poder. Trata-se do poder como função quer elaboração simbólica. O relacionamento
estruturante, que pode atuar junto ou separado Ego-Outro, como todas as demais polaridades,
da sexualidade e do amor. A associação entre o inclusive das funções tipológicas, é assimétrico
amor e o poder, devido à sua importância central na elaboração simbólica e, com o tempo, busca
na vida psíquica, abrange todos os matizes dos desenvolver o polo até então subdesenvolvido.
relacionamentos humanos. Ela reúne, dentro da A polaridade ativa-passiva tem aqui um papel
moldura arquetípica do Processo de Individu- significativo (MONTELLANO, 1996).
ação, aspectos centrais da Psicanálise – a pul- A assimetria intensa da polaridade pai-filho
são sexual libidinosa (FREUD, 1969) e a pulsão na personalidade de Kafka foi muito significa-
egoica da assertividade tanática (FREUD, 1976) tiva, pois, ao não poder ser transformada, dila-
–, da Psicologia Individual de Adler (a função es- cerou sua alma e tornou-se a fixação central do
truturante do poder compensatória ao complexo seu quadro defensivo. “De todas as impressões
de inferioridade) e da Psicologia Analítica (o Pro- de sua infância, a mais extraordinária é a ima-
cesso de Individuação) dentro do referencial da gem grandiosa de seu pai”, escreve seu biógrafo
Psicologia Simbólica Junguiana. Quando a pola- e amigo Max Brod (1995, p.13). No entanto, foi
ridade amor-poder sofre uma fixação e passa a impedido de integrar essa idealização por ser
atuar na Sombra, forma-se a defesa sadomaso- ela incompatível com sua introversão, sensibili-
quista, que pode então ser compreendida como dade e delicadeza, provenientes de sua própria
a conjunção defensiva entre o amor e o poder e natureza e da identificação com a família de sua
incluir formas defensivas as mais variadas nos mãe. O pai criou-o com “violência, gritaria e des-
relacionamentos humanos (BYINGTON,1987). temperos” para fazê-lo “um jovem forte e cora-
joso”, mas sua incapacidade de corresponder
5. A Assimetria Normal das Polaridades fê-lo sentir-se “um mero nada”; “a menor crítica
Psíquicas e a Busca de Equilíbrio do pai era um fardo enorme para o filho, termi-
Kafka parece-me ter sido de tipologia senti- nando por fazê-lo desprezar a si próprio” (BROD,
mento-sensação introvertidos. A imensa repres- 1995 p. 22). “Como, pai, você era forte demais
são de sua agressividade contra seu pai apre- para mim, principalmente porque meus irmãos
senta-se fixada, internalizada e dirigida contra morreram pequenos, minhas irmãs só vieram
si próprio. muito depois e eu tive, portanto, de suportar in-

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teiramente só o primeiro golpe, e, para isso, eu te a assimetria do se complexo pai-filho. “O re-


era fraco demais” (KAFKA, 2002b p.10). sultado exterior imediato de toda essa educação
Com uma tal assimetria no complexo pai-fi- foi que fugi de tudo o que, mesmo à distância,
lho, Kafka teria que inverter essa dinâmica, fosse me lembrasse você” (KAFKA, 2002b p. 33). Ka-
pela crítica ao pai, fosse pelo enaltecimento de fka afastou-se do pai externamente, mas levou
suas próprias qualidades, para equilibrar essa até o final da vida a identificação negativa do
polaridade. Ele necessitaria coragem e agressi- Outro como implacável perseguidor do seu Ego,
vidade para confrontar e diferenciar aquilo que como descreveu tão extraordinariamente em A
admirava do que repudiava na personalidade de Construção (KAFKA, 2002e), às vésperas de sua
seu pai, e que não era pouco: grande vitalidade e morte. Esse drama transcorre no interior da terra,
capacidade de dedicação à família e ao trabalho em meio a escavações de túneis e construções
por um lado, e, por outro, egoísmo, narcisismo, de barreiras para defender-se da ameaça de in-
prepotência, desconsideração pelos outros – vasão. É o mundo do paranoico, onde se respira
humilhava frequentemente empregados e fami- o medo do ataque iminente e do qual a atividade
liares –, grosseria e falta de sensibilidade e, o obsessiva busca defender-se compulsivamente
que foi fatal para Kafka: falta de empatia abso- pelo workaholismo condenado de antemão à fa-
luta para com os sentimentos e os sofrimentos lência. A metáfora aplica-se tanto aos bacilos da
do filho. No entanto, pela mescla paralisante de tuberculose corroendo seus pulmões quanto ao
medo, admiração, amor e desprezo, não conse- antissemitismo, que já aumentava assustadora-
guiu fazê-lo. “Da sua cadeira, você governava o mente à sua volta – anos depois, suas três irmãs
mundo. Sua opinião era a certa e a dos outros, morreriam num campo de concentração, e Mile-
louca, excêntrica, meshuggah [maluca], anor- na seria assassinada por um nazista. Todavia,
mal... Para mim, você desenvolveu o efeito de- a presença do Outro maciçamente identificado
sestabilizador que têm todos os tiranos, cujo com o pai persecutório, onipresente na polarida-
poder é fundamentado não na razão, mas na sua de Ego-Outro das suas identificações primárias
própria pessoa” (KAFKA, 2002b p. 15). negativas, é também bastante evidente.
A frase inicial da Carta, depois do cabeçalho O estilo descritivo e aparentemente imparcial,
“Muito Querido Pai”, é significativa: objetivo e sem grandes emoções de suas obras é
um pano de fundo para realçar a dor inerente às
Você perguntou-me uma vez por que eu imagens plenas de tragicidade. Foi como se seu
digo que tenho medo de você. Como sem- pulmão, sufocado e proibido de gritar, esperasse
pre, eu não soube como lhe responder, a tuberculose para explodir nas crises de tosse e
parte devido a esse medo [...] na sua pre- de hemoptise. Profeticamente, ele menciona na
sença – você é um excelente orador quan- Carta: “A expressão que você usava constante-
do se trata de algo que lhe diz respeito mente a respeito de um empregado doente dos
– eu comecei a falar entrecortado, gague- pulmões: - esse cachorro doente devia rebentar
jante, e até isso era demais para você, de uma vez” (KAFKA, 2002b p. 34).
de tal forma que eu finalmente calei-me, O próprio Kafka percebeu que todo o conteú-
primeiro talvez por teimosia, mas depois do de sua obra se desenvolveu a partir da fixação
porque eu não podia nem falar nem pen- nesse confronto: “Meus escritos eram sobre você.
sar na sua frente (KAFKA, 2002b p. 7). Neles eu derramei as lamentações que eu não
pude derramar no seu peito. Era uma despedida
Consolidou-se aqui, muito provavelmente, a deliberadamente traçada, exceto pelo fato que
fixação do complexo paterno negativo de Kafka, você, é certo, a havia imposto, mas cuja direção
que o impediu de elaborar e integrar criativamen- eu determinei” (KAFKA, 2002b p. 52, grifo meu).

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Estas últimas cinco palavras expressam o quanto à identificação com a “santidade” covar-
poder do Ego criativo sobre as defesas, ou seja, de e subserviente da mãe, que reviveu com sua
da Arte sobre a doença mental. No entanto, esta noiva Felice Bauer:
fixação central na formação da Sombra de Kafka,
que o impediu de elaborar a assimetria do com- Minha cara acho que sonhei com você a
plexo paterno para construir a sua autoestima, noite inteira, mas só me lembro de dois
não se restringiu à relação com o pai. sonhos... No segundo sonho, você era
cega. Um instituto berlinense para cegos
É certo que minha mãe era de uma bon- tinha organizado uma excursão para o
dade ilimitada comigo, mas para mim vilarejo onde eu passava o verão com a
tudo isso estava relacionado com você. minha mãe... Ela usava um vestido muito
Inconscientemente, ela exercia o papel de amplo, uma espécie de hábito de freira...
isca na caça [...] minha mãe me protegia Insistia que as meninas cegas lhe prestas-
de você às escondidas e me dava alguma sem serviços, dando preferência a uma de
coisa [...] Aí eu me tornava de novo, diante vestido preto e rosto redondo, com uma
de você, a criatura que teme a luz, que en- das faces tão sulcadas por cicatrizes que
gana, que está consciente da própria cul- parecia ter sido inteiramente dilacerada...
pa, alguém que, por causa da sua própria (KAFKA, 2003a p. 57-60).
nulidade, só pode chegar por caminhos
tortuosos àquilo que considera o seu di- F. esteve aqui e viajou 30 horas para ver-me;
reito (KAFKA, 2002b p. 29). eu deveria tê-la impedido de vir. Acho que
ela sofre muitíssimo e a culpa é essen-
Difícil encontrar melhor metáfora para essa cialmente minha. Sinto-me incapaz de me
característica da criatura medrosa, fugitiva e controlar e impotente ao ter meu sentimen-
traiçoeira, que teme a luz, do que a metáfora do to bloqueado, só pensar nos meus incômo-
rato, explorada tão intensa e dramaticamente dos e, como única concessão, condescen-
em Josefina, a Cantora (KAFKA, 2002c) e A Cons- der em desempenhar o meu papel [...] ela é
trução (KAFKA, 2002e). uma pessoa inocente, condenada à tortura
A identificação com a passividade da mãe extrema e eu sou culpado do problema que
também foi determinante para isso, como bem a tortura e, além disso, sou o seu tortura-
ilustra o fato de ele ter dado a Carta para que dor (KAFKA; BROD, 1948).
ela a entregasse ao pai e, tempos depois, a mãe
tê-la devolvido sem havê-la entregue (BROD, Na psicoterapia dinâmica, a elaboração des-
1995). Assim, foi cerceada pela omissão da mãe, ta fixação sadomasoquista, central na persona-
induzida pelo filho que lhe delegou a interme- lidade de Kafka, deve necessariamente incluir
diação por falta de coragem própria, a derradeira o resgate da afetividade e da agressividade
chance de pai e filho elaborarem sua relação. A defensivas próprias da função estruturante do
última frase da Carta expressa a motivação e a amor, junto com o resgate da consideração, obe-
esperança de Kafka, que a sentiu “como alguma diência e assertividade defensivas presentes na
coisa tão próxima da verdade que pode nos tran- função estruturante do poder. Geralmente, este
quilizar um pouco e tornar a vida e a morte mais processo passa, dentro do Self Familiar, por uma
leve para ambos” (KAFKA, 2002b p. 74). etapa de elaboração das projeções nas figuras
A fixação repressiva da agressividade e a afe- dos pais e no vínculo entre eles, e pela reação do
tividade submissa de Kafka deveram-se tanto ao Ego a eles. Posteriormente, envolve as relações
medo, pena, afeto e repúdio em relação ao pai adultas íntimas, por exemplo, cônjuge, irmãos,

214 ■ Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 1º sem. 2019


colegas, amigos e filhos no Self Familiar e no Cul- Bastava estar feliz com alguma coisa, fi-
tural. Finalmente, tal elaboração centraliza-se na car com a alma plena, chegar em casa e
polaridade Ego-Outro e em seus significados expressá-la, para que a resposta fosse um
mais íntimos nas vivências do Self Individual, in- suspiro irônico, um meneio de cabeça, o
cluindo a criatividade profissional e existencial. bater do dedo sobre a mesa. – “Já vi coisa
A separação entre estas três etapas é teórica. Na melhor”, ou – “Para mim, você vem contar
prática, elas estão sempre entrelaçadas. Para isso?” Ou - “Minha cabeça não é tão fresca
desempenhar esta elaboração simbólica arque- quanto a sua”, ou - “Dá para comprar algu-
típica e sistêmica recomendo que todo terapeu- ma coisa com isso?” (KAFKA, 2002b p.16).
ta, além da análise pessoal, tenha também for- Bastava que eu tivesse um pouco de inte-
mação com atendimento de casos individuais, resse por alguém [...] para que você, sem
de casal e de família. qualquer respeito pelo meu sentimento e
sem consideração pelo meu julgamento,
6. Arte e Psicopatologia interviesse logo com insulto, calúnia e hu-
A personalidade artística frequentemente in- milhação (KAFKA, 2002b p. 17).
clui a patologia, e é muito difícil reconhecer as
À mesa, não era permitido partir os ossos
duas dimensões sem reduzir uma à outra, em-
com os dentes, mas você podia [...] não
bora essa tentação aumente muito quando o ar-
era permitido se ocupar de outra coisa a
tista é portador de defesas graves e até mesmo
não ser da refeição, mas você podia e cor-
de distúrbios mentais, o que não raro acontece.
tava as unhas, apontava o lápis, limpava
Nesse sentido, a polaridade das funções estru-
os ouvidos com o palito dos dentes [...]
turantes não fixadas e fixadas é muito útil, seja
Eu vivia imerso na vergonha: ou seguia as
para diferenciar a dimensão artística das demais
suas leis e isso era vergonha porque elas
dimensões na personalidade, seja para perceber só valiam para mim, ou ficava teimoso e
as funções estruturantes não fixadas e as fixa- isso também era vergonha, pois como me
das na própria dimensão estética. permitir ser teimoso diante de você? (KA-
Além da função transcendente, da função FKA, 2002b p. 19).
sacrificial e da função ética (BYINGTON, 1997),
a função estética é uma das funções constantes Desta maneira, quando alguém começa a se
de toda elaboração simbólica. Mesmo sem nos dirigir para uma vocação artística, é muito impor-
darmos conta, tudo o que fazemos tem um estilo tante que sua criatividade profissional se sinta
pessoal que adotamos e diferenciamos cada vez enraizada no seu estilo de vida pessoal, oriun-
mais durante a vida. Desde cedo, podemos ob- do da função estruturante estética que, por ser
servar que as crianças começam a desenvolver arquetípica, expressa a criatividade do Arquéti-
um estilo pessoal para fazer as coisas, o que tor- po Central. Criar é transgredir, é o jogo da vida.
na a vida inseparável da Arte. A sofisticação dos Conviver aberto para a criatividade do Arquétipo
pais nas vivências de seu próprio estilo de vida Central significa admitir romper e sacrificar o sta-
é um modelo importante. Ridicularizar a crian- tus quo em função das exigências de transforma-
ça nas suas primeiras incursões na estética, ção do ser. Infelizmente, isto foi tudo o que Ka-
geralmente expressas na maneira de sentar-se fka foi impedido de viver. Pelo contrário! O peso
à mesa, de comer, vestir-se ou enfeitar-se, dos seus complexos materno e paterno negativos
de andar, assoviar, cantarolar, desenhar ou fa- foi demasiado grande para sua coluna vertebral.
lar, pode trazer uma fixação na função estética Quando a função estética e a criatividade existen-
para o resto da vida (BYINGTON, 2004). cial são reprimidas na individualidade da criança,

Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 1º sem. 2019 ■ 215


a função transgressora tende a ocorrer na Sombra (BYINGTON, 1994). Apesar de entrelaçar-se com
individual, familiar e social. Lembremos Gauguin, a patologia na personalidade, a criatividade pro-
pai de cinco filhos, de uma família de classe mé- dutiva busca sempre englobar e ultrapassar a
dia e corretor da Bolsa de Valores de Paris que, patologia que ameaça estagnar a personalidade
para obedecer ao seu impulso artístico, abando- e destruir a cultura.
nou tudo e foi pintar na Polinésia. Ou ainda, todos Coube à saudosa Nise da Silveira o dom de de-
os artistas que vivem a criatividade inseparavel- monstrar através da criatividade artística que até
mente da vida noturna desregrada, das drogas, mesmo a esquizofrenia pode apresentar a conti-
da marginalidade social e da miséria. A destrui- nuidade do processo de individuação coordenado
ção da maior parte de sua criatividade, ordenada pelo Arquétipo Central. Estão à disposição dos es-
por Kafka, pode ser interpretada como o apogeu tudiosos vídeos de pacientes portadores de esqui-
de sua defesa sadomasoquista. Se Max Brod não zofrenia – Carlos Pertuis, Fernando Diniz e Adelina
tivesse impedido que essa defesa atuasse sobre Gomes – que registram seus casos clínicos e sua
sua própria criatividade, Kafka teria morrido como criatividade artística durante sua internação no
José K., em O Processo (KAFKA, 2003b), ou o oficial Hospital do Engenho de Dentro, no Rio de Janeiro
da obra Na Colonia Penal (KAFKA, 2001b), ou ain- (SILVEIRA; HIRSZMAN, 1986a; 1986b; 1986c).
da como o filho, em O Veredicto (KAFKA, 2001a), No caso de Kafka, a gravidade de sua fixação
ou seja, a própria obra teria sido destruída como na defesa sadomasoquista manteve sua vida
foram os seus personagens. A esse respeito, é di- num sofrimento atroz e terminou por expressar
fícil não interpretarmos prospectivamente os últi- sua depressão suicida na ordem para que sua
mos quadros de van Gogh, nos quais os corvos obra fosse destruída. Destruir a obra genial do
sobrevoando as plantações ensolaradas expres- artista seria matar sadicamente, pois com inten-
sam, ao mesmo tempo, a genialidade artística e ção, ou seja, dolo, uma das maravilhas da lite-
a psicose depressiva que anunciam o suicídio. ratura do século XX. Seria o triunfo da patologia
Nesse sentido, a ordem de destruição dada ao sobre a Arte que, através de um estilo expressio-
melhor amigo combina perfeitamente com a pes- nista exuberante de criatividade, expôs, talvez
soa que se sente como uma barata, um cachorro como ninguém, a maldade prepotente, maquia-
ou um rato, e expressa sua condição sub-huma- vélica e opressiva que, através da defesa sádica,
na até morrer em conformismo e desespero e ter fere a vulnerabilidade impotente da defesa ma-
como último desejo ser jogado no lixo para não soquista e destrói a esperança dos oprimidos.
incomodar mais (A Metamorfose (KAFKA, 2002a) A consagração da arte de Kafka após sua mor-
e O Artista da Fome (KAFKA, 2002d)). te tem um significado simbólico especial, que é
o triunfo da Arte para além do Self Individual.
7. Ressurreição, Religiosidade e Morreu o artista em meio ao sofrimento e ao de-
Transcendência na Luta entre a Arte sespero. Mas isto não é o fim. A ressurreição no
e a Patologia Self Cultural mantém-no vivo, levando adiante a
Na luta entre o Bem e o Mal, entre o exercício sua luz para continuar expondo o Mal e defen-
das funções estruturantes não fixadas e as fixa- dendo o Bem no caminho da humanidade. ■
das, ou seja, entre a Consciência e a Sombra, a
função estruturante da criatividade desempenha
Recebido em: 25/04/2019 Revisão: 22/05/2019
um papel central na vida individual e cultural

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Abstract
Art and psychopathology: the sadomasochistic defense and the transcendence
of evil. An enigma that brings together the life and work of Franz Kafka. A study
of Jungian Symbolic Psychopathology
Within the conceptual framework of Jungian sciousness predominantly with the vital exuber-
Symbolic Psychology, the author studies the re- ance, the productivity and the dedication to work
lationship between Art and Psychopathology and and to the family of his positive father complex,
considers sadomasochism to be the defensive and of the other in the shadow dominantly with
core of all psychological relationships. He pos- sadistic egocentric and aggressive extroversion
tulates its formation mainly through the fixation of his negative father complex. The result of this
of the Ego-Other polarity in the primary negative severe fixation was a sadomasochist relation-
parental identifications, including the meaning of ship of the ego-other polarity in his personality
the relationship between father and mother and expressed clearly in the famous letter to his fa-
the reactions of the ego towards them. This fix- ther and in most of his work, including his wish
ation involves the interaction between the struc- to destroy it.
turing function of love (affection and aggression) Byington concludes by mentioning some as-
and that of power (obedience and control). pects of the relationship between art and psy-
The author illustrates these concepts in the chopathology and postulates that the Central
life and work of Franz Kafka, describing his ego’s Archetype encompasses the fixated complexes of
identification in consciousness predominantly the shadow’s defensive system, and tries to go
with the gentle, affectionate and sensitive intro- beyond them in the creative self-realization of the
version of his positive mother complex and of his individuation process. In the case of Kafka, this
ego in the shadow with the masochistic cowardly could not occur in the individual Self, but was re-
passivity of his negative mother complex. He also alized through the archetypal image of resurrec-
describes the identification of the other in con- tion in the cultural Self. ■

Keywords: art and psychology, primary identifications and their fixations, parental complex and the bond
between mother and father, structuring functions of love and power, sadomasochism, central archetype and
defensive system of the shadow, overcoming psychopathology by art in the cultural self.

Resumen
Arte y psicopatología: la defensa sadomasoquista y la rrascendencia del mal.
Un enigma que reúne la vida y la obra de Franz Kafka. Un estudio de la Psico-
patología Simbólica Junguiana
El autor, dentro del referencial teórico de la través de la fijación de las identificaciones paren-
Psicología Simbólica Junguiana, estudia la rel- tales, que incluye el vínculo entre madre y padre
ación del Arte con la Psicopatología y sitúa el y las reacciones del Ego a ellos. Esta fijación im-
sadomasoquismo como la defensa central de plica la interacción de la función estructurante
las relaciones humanas. Postula su formación a del amor (afecto y agresividad) con la función

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estructurante del poder (obediencia y mando). fue una relación sadomasoquista de la polaridad
El autor ilustra estos conceptos en la vida y Ego-Otro en su personalidad, claramente expre-
obra de Franz Kafka, describiendo la identifi- sada en su famosa Carta al Padre y en la mayor
cación de su Ego en la Conciencia dominante parte de su obra, incluso en su orden para que
con el afecto delicado, sensible e introvertido de fuera destruida junto con sus diarios.
su complejo materno positivo, y de su Ego en la Byington concluye mencionando algunos as-
Sombra con la pasividad cobarde y masoquista pectos de la relación entre Arte y Psicopatología
su complejo materno negativo. Describe tam- y postula que el Arquetipo Central abarca los
bién la identificación del Otro en la Conciencia complejos fijados del sistema defensivo de la
dominante con la exuberancia vital, la productiv- Sombra, pero busca sobrepasarlos en la autorre-
idad y la dedicación al trabajo y a la familia de alización creativa del Proceso de Individuación.
su complejo paterno positivo y de su Otro en la En el caso de Kafka, esto no sucedió en el Self In-
Sombra con la agresividad egocéntrica, sádica, dividual, pero se realizó vigorosamente a través
prepotente y extrovertida de su complejo pater- de la imagen arquetípica de la resurrección en el
no negativo. La resultante de esta grave fijación Self Cultural. ■

Palabras clave: arte y psicología, identificaciones primarias y sus fijaciones, complejo parental y el vínculo
madre y padre, funciones estructurantes del amor y del poder, sadomasoquismo, arquetipo central y sistema
defensivo de la sombra, superación de la psicopatología por el arte en el self cultural.

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A Sombra e o Mal. O paradoxo do Arquétipo


Central. Um estudo da ética pela Psicologia
Simbólica Junguiana1

Carlos Amadeu B. Byington*

Palavras-chave
Resumo
ética, bem e
A Sombra, concebida pela Psicologia Simbóli- cem todo o apreço dos que buscam o desen- mal, fixação,
ca Junguiana como a sede do Mal, é impre- volvimento da Consciência e da ética. defesa, alienação,
scindível para o processo de individuação e de Prosseguindo, o autor discorre sobre a dificul- processo de
humanização pelo fato de conter, fixados no dade que Jung teve para inserir o Bem e o Mal lado individuação,
seu interior, símbolos e funções fundamentais a lado dentro da divindade e do Self, por descon- processo de
para a vida. hecer, até a década de 1950, que o Ego da Consciên- humanização,
Nesse sentido, como na parábola do fil- cia e o Ego da Sombra são o produto da elaboração integração
da sombra,
ho pródigo, os símbolos e funções da Sombra simbólica coordenada pelo Arquétipo Central.
harmonia da
merecem ser buscados mais do que os símbolos O paradoxo ético do Arquétipo Central é que
personalidade,
normais, pois, enquanto estes já estão sendo ele busca a totalidade através da atuação normal paz.
elaborados no caminho da plenitude e do Bem, e também da patológica. A explicação do paradoxo
aqueles estão fixados e alienados no caminho é que o Arquétipo Central almeja acima de tudo im-
do Mal. Pelo fato de os símbolos da Sombra es- pulsionar a vida, seja através do Bem ou do Mal e,
tarem dissociados devido à fixação e oferecerem ao mesmo tempo em que expressa o Mal, propicia
resistência à elaboração, o reconhecimento da o resgate dos símbolos e funções nele contidos
importância da Sombra e o seu confronto mere- através da função estruturante da ética. ■

1
Palestra de encerramento das comemorações dos 30 anos de
fundação da SBPA. PUC – SP, em 27/09/2008. Publicado orig-
inalmente na Revista Junguianas 27, 2008, p. 72 -78.
* Médico psiquiatra e analista junguiano. Membro fundador da
Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica. Educador e Histo-
riador. Criador da Psicologia Simbólica Junguiana.
E-mail: c.byington@uol.com.br. Site: www.carlosbyington.com.br

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A Sombra e o Mal. O paradoxo do Arquétipo Central. Um estudo da ética pela


Psicologia Simbólica Junguiana

A função ética é um tema central em qualquer o vinho e nada sentira, Jung afastou-se cada vez
teoria de desenvolvimento psicológico e em toda mais da religião cristã institucionalizada.
filosofia do comportamento humano. Freud apre-
sentou-a em sua última conceituação da psique Pouco a pouco a igreja tornou-se para mim
como duas pulsões antagônicas, eros e tanatos, uma fonte de suplício, pois nela se falava
vida e morte, que se guerreiam durante a vida. em voz alta – eu diria: quase sem pudor
Jung evitou essa posição dualista e buscou – de Deus, de Suas ações e intenções. O
conceituar a relação entre Bem e Mal dentro do povo era exortado a cultivar tais sentimen-
Self no processo de individuação. Essa formula- tos, a crer em tais mistérios que, para mim,
ção da dualidade na unidade, na obra de Jung, provinham da mais íntima e profunda cer-
corresponde à relação dialética que considero teza e a respeito dos quais nenhuma pa-
típica da expressão do Arquétipo da Alteridade lavra poderia testemunhar. Concluí que,
na Consciência (BYINGTON, 2008). No entanto, aparentemente, ninguém conhecia esse
talvez por sua educação religiosa, ele abordou mistério, nem mesmo o pastor; senão ja-
o Bem e o Mal principalmente em função da sua mais teria ousado expor publicamente o
relação com o Deus Judaico-Cristão e não dentro mistério de Deus, profanando com aquele
da Sombra e da psicologia propriamente ditas, o sentimentalismo insípido sentimentos ine-
que dá margem a muita ambiguidade. fáveis (JUNG, 1975, p. 52).
Jung foi criado numa atmosfera religiosa, na
qual a relação com Deus era um assunto cor- Lado a lado com essa vivência direta de Deus,
riqueiro guiado pela Bíblia. Seu pai era pastor Jung buscou durante toda a sua vida descrever
protestante e tinha dois irmãos, também pas- o espontâneo, o imprevisível e terrível dentro
tores. Na família de sua mãe existiam nada me- da divindade e combateu incessantemente a
nos que seis pastores protestantes. Era comum doutrina do Summum Bonun da Igreja Católica,
ouvir, em reuniões de família, sermões e dis- segundo a qual, pensava Jung, Deus seria exclu-
cussões de temas religiosos, enquadrando-se a sivamente bom e o Mal seria a privação de Deus
ética e a natureza de Deus dentro das Escrituras (privatio boni), pois para ele isso excluiria a pre-
(JUNG, 1975). sença do Mal dentro da divindade.
No entanto, desde muito jovem, Jung vivia Jung viveu o sonho com o falo e a visão da ca-
a religiosidade de modo significativamente di- tedral espatifada como uma revelação da natu-
ferente daquela de sua família, pelo fato de se reza de Deus e da sua relação com Ele. Por isso,
relacionar com Deus de maneira individual e contrapôs essas vivências do Deus vivo com
não programada. O sonho com o falo gigante em aquelas pregadas por seu pai, tios e religiosos
cima de um altar subterrâneo, que tivera antes – um deus idealizado do qual falavam, mas cuja
de completar 4 anos, e a visão que teve aos 12 existência não vivenciavam emocionalmente.
anos, com Deus num trono de ouro acima do Levei muitos anos para compreender o que
mundo, defecando e espatifando a Catedral de Jung queria realmente dizer quando afirmava
Basiléia, marcaram decisivamente sua religiosi- que a divindade abriga o Bem e o Mal. Finalmen-
dade com a experiência viva de Deus. Depois de te, acho que o compreendi, não em seus escritos
sua primeira comunhão, na qual ingerira o pão e teóricos, mas em suas memórias (JUNG, 1975).

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O que ele passou sua vida querendo descrever, olhos ergueu-se a bela catedral e, em
me parece, é uma experiência religiosa na qual cima, o céu azul. Deus está sentado em
Deus se revela de todas as maneiras, inclusive seu trono de ouro, muito alto acima do
pela transgressão e agressividade, não poden- mundo e, debaixo do trono, um enorme
do, por isso ser enquadrado, a priori, racional- excremento cai sobre o teto novo e colori-
mente. Assim, ele achava que a teologia, os do da igreja; este se despedaça e os mu-
sermões e os escritos religiosos jamais podem ros desabam.
prever e codificar o deus que Abraão vivenciou
Então era isto! Senti um alívio imenso e
ao subir a montanha e levar Isaac para o holo-
uma libertação indescritível... Fora como
causto, ou aquele que sacrificou seu próprio fi-
uma iluminação... Fizera a experiência que
lho na cruz. O que ele queria descrever, então,
meu pai não tinha tentado – cumprira a
acredito, é o lado terrível de Deus dentro do mito
vontade de Deus, à qual ele se opunha pe-
Judaico-Cristão, que o Ego não pode conceber,
las melhores razões... Quando põe à prova
mas que o Self, que é maior que o Ego, é capaz
a coragem do homem, Deus não se prende
de impor como uma vivência imprescindível no
a tradições, por mais sagradas que sejam.
processo de individuação. Para isso, segundo
Em Sua onipotência, cuida de que nada
ele, Deus não pode ser definido unilateralmente
realmente mau resulte dessas provações.
por nenhuma função estruturante específica que
invalide outras, pois quando assim fazemos eli- Quando se cumpre a vontade de Deus, não
minamos sua abrangência da totalidade. Desta há dúvida de que se segue o bom caminho
maneira, a agressividade e a destruição fazem (JUNG, 1975, p. 47-48, grifo meu).
parte da divindade, pois só isso poderia explicar
suas fezes terem espatifado seu próprio templo, Desta maneira, Jung está referindo-se ao Bem
justo aquele que mais representava a religião da e ao Mal na divindade, em função da relação do
família Jung. cristão com ela. Para sermos guiados por Deus,
O contexto religioso que Jung transferiu para nesse contexto, não podemos restringir de an-
sua visão do Self, então, é que o Ego não pode temão a sua natureza, mas permitir que ela se
determinar a priori o que é o Bem e o que é o revele plenamente.
Mal no desenvolvimento psicológico, pois esse No entanto, por mais que Jung tenha querido
conhecimento é revelado ao Ego durante a vida colocar o Bem e o Mal dentro da divindade, em
(NEUMANN, 1991). Toda esta postura teórica e momento algum ele a admite realmente como a
prática de Jung diante da religião e da Psicolo- morada do Mal, muito pelo contrário, pois afirma
gia, inclusive da ética, está expressa na elabora- que, “quando se cumpre a vontade de Deus, não
ção da visão da destruição da catedral por Deus. há dúvida que se segue o bom caminho”.
Lembremos que Jung pressentiu a visão, mas Como pode Jung condenar a doutrina do
não conseguiu abrir-se para ela, e ficou duran- Summun Bonum, quando sua afirmação acima
te dois dias atormentado pela noção de pecado. corresponde exatamente ao que é postulado
No terceiro dia, decidiu enfrentar o que intuía ser nessa doutrina? Jung torna sua teorização do
uma grande transgressão e viu a destruição da Mal ainda mais confusa, quando afirma no Aion
catedral, sentindo-se ao mesmo tempo aliviado (1959), sem maiores explicações, que o Mal é
e iluminado. relativamente fácil de se identificar na Sombra,
mas que é muito mais difícil de se perceber quan-
Reuni toda a coragem, como se fosse sal- do expresso pela Anima e pelo Animus. Nada,
tar sobre as chamas do Inferno e deixei porém, se iguala em falta de clareza, quando ele
o pensamento emergir: diante de meus termina esse capítulo sobre a Sombra afirman-

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do, sem a menor justificativa, que: “Em outras quétipo Central é virtual e é o coordenador dos
palavras, é muito possível para uma pessoa re- demais arquétipos e de todo o processo de ela-
conhecer o Mal relativo da sua natureza, mas é boração simbólica. Esta conceituação me parece
uma experiência rara e aterradora para ela olhar importante para solucionar a controvérsia entre
na face do Mal absoluto” (1959, par. 19). Jung e a doutrina do Summun Bonum. Dentro do
Se o Self, por definição, abriga o Bem e o conceito de Self, a totalidade abrange o Bem e o
Mal, e se não queremos maniqueizá-lo em dois Mal, a Consciência e a Sombra, e é incompatível
instintos antagônicos, como fez Freud, devemos com a Doutrina do Summun Bonum. No entanto,
então, de alguma maneira, relacioná-los plena- dentro do conceito do Arquétipo Central, a Som-
mente dentro da unidade. bra se forma através de uma fixação, uma disfun-
A psicologia simbólica junguiana procura ção da elaboração simbólica, sendo, portanto,
estudar a função ética conjugando conceitos da uma privação do Bem (privatio boni). Ao mesmo
psicanálise e da psicologia analítica dentro do tempo, o Arquétipo Central exprime a Sombra,
processo de individuação, conceituado por Jung, o Mal, e propicia seu resgate e integração para
e de humanização, formulado por Teilhard de buscar a totalidade, o que o torna compatível
Chardin (1948). com a doutrina do Summum Bonum.
É exatamente esta conceituação da Sombra
1. A Psicologia Simbólica Junguiana, a como o Mal que Goethe espressa no Fausto,
Sombra e o Mal quando faz Mefistófeles se definir como: “sou
Para representar o Mal na psique, escolhi o parte da energia que sempre o Mal pretende e
conceito de Sombra da psicologia analítica para que o Bem sempre cria” (GOETHE, 2004 p. 139).
equivaler ao de inconsciente reprimido desco- Ele se refere ao Mal, à Sombra, cujo resgate se
berto pela psicanálise. A seguir, ampliei o concei- torna fonte geradora do Bem.
to de Sombra para abranger, não só os símbolos Outro exemplo exuberante da necessidade de
do mesmo gênero que o Ego, como a definiu Jung o Self e de o Arquétipo Central abrigarem a Som-
(1959), mas também aqueles do gênero oposto. bra (o Mal) para expressar e elaborar os símbolos
Por outro lado, restringi o conceito de Sombra e funções estruturantes fixados está no poema
aos símbolos pessoais e coletivos fixados e com épico indiano Ramayana. Ravana é um demônio
defesas, e não o emprego para abranger todo o (raksasa) com grande capacidade de praticar o
inconsciente coletivo, como às vezes acontece Mal. Ele tem dez cabeças, cada uma com mil anos
na literatura junguiana (VON FRANZ, 1985). de vida. Antes de se esgotar a vida da última,
No que se refere à psicanálise, ampliei o con- quando a humanidade finalmente se livraria dele,
ceito de defesa para percebê-la como função Brahma renova a vida das dez cabeças. O demô-
estruturante arquetípica que se tornou fixada e nio enche-se de vaidade e diz a Brahma: “Folgo
que, por isso, é sempre patológica. Assim, todas em saber que vos agrado”. – “Tua vontade é terrí-
as funções estruturantes arquetípicas normais vel”, respondeu Brahma, “tão forte que não pode
podem se tornar defensivas e, quando fixadas, ser esquecida; preciso tratá-la como uma doença
expressar a Sombra. ruim. As tuas dores me ferem” (BUCK, 1988 p. 55).
Para evitar a ambiguidade da polaridade Ao considerar Ravana uma doença, Brahma afir-
virtual-real, que ocorre quando empregamos o ma a necessidade de tratá-la. Ao fazê-lo, declara
conceito de Self para o todo e para o principal ser a Sombra imprescindível, mesmo com o sofri-
dos arquétipos, separei os conceitos de Self e de mento que ela traz para o Self, pelo fato de ela ser
Arquétipo Central. O Self abrange a totalidade, parte do Todo.
inclusive o Ego, a Sombra, todos os símbolos e O Arquétipo Central e o Self, como não po-
funções estruturantes e os arquétipos. Já o Ar- deria deixar de ser, abarcam todos os símbolos

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e funções psíquicas, inclusive o Bem e o Mal. unificada para expressar a Sombra em todas
O Self os abrange porque inclui a Consciência as dimensões humanas, seja na ciência, como
e a Sombra. O Arquétipo Central também o faz erro; no direito, como crime; na arte, como plá-
porque expressa a elaboração simbólica, tanto gio; na ecologia, como expoliação ambiental;
normal quanto aquela que é fixada, se torna pa- no corpo, como doença; na religião, como peca-
tológica e é expressa pelas defesas, isto é, na do; na economia, como exploração; e na psico-
Sombra. O fato de o Arquétipo Central continuar logia, como Mal (BYINGTON, 2008). Perceber a
expressando os símbolos fixados e as defesas, Sombra como expressão do Mal é da maior im-
torna-o responsável também pelo Mal. Esta é a portância para que seus conteúdos simbólicos
sua grande ambiguidade, cuja busca de com- sejam devidamente identificados, elaborados e
preensão é o centro deste artigo. Trata-se, sem resgatados de suas fixações e reintegrados no
dúvida, do problema ético capital da psicologia caminho da normalidade e do Bem.
e da teoria do conhecimento. Nesse sentido, a Assim, em qualquer uma das dimensões
teoria do desenvolvimento arquetípico da elabo- existenciais, a elaboração da Sombra é preciosa
ração simbólica, que inclui o Ego e a Sombra, é o para que a psique ferida e alienada nas trevas
caminho científico para abordá-lo. reencontre o caminho da luz e da totalidade.
Assim sendo, parece-me que a grande di- Exatamente porque os símbolos da Sombra,
ficuldade que Jung teve para incluir o Bem e o do Mal e do Demônio expressam todos a fixa-
Mal psicodinamicamente na totalidade do Self, ção, o descaminho e a perdição do Ser dentro do
como tanto desejou, foi o desconhecimento desregramento, da ruindade e do nada (SARTRE,
da formação tanto da Consciência quanto da 1943), é que eles merecem toda a consideração,
Sombra através da elaboração simbólica, que a atenção cuidadosa, o temor, o respeito e a ela-
somente começou a ser descoberta por seus boração por aqueles que buscam a totalidade.
seguidores na década de 1950. Foi esta desco-
berta que revelou a enorme diferença entre os 2. A Gravidade do Mal
conceitos de Arquétipo Central (potencial da to- O tema do grau da maldade humana pode
talidade) e de Self (totalidade psíquica a cada ser abordado em função das estratégias que a
momento da vida). Sombra dispõe para praticá-lo. Estas estratégias
Nesse sentido, a Consciência é o caminho arquetípicas e existenciais são as defesas: neu-
do Bem, pois elabora os símbolos e as fun- rótica, psicopática, borderline e psicótica. Estas
ções estruturantes para expressar o potencial estratégias podem ser circunstanciais ou cronifi-
do Arquétipo Central em direção à totalidade. cadas, o que dá origem aos conceitos de Sombra
Lembremos que a etimologia de símbolo é Circunstancial e Sombra Cronificada.
sin=unir + ballein=lançar, ou seja, lançar junto, Na defesa neurótica, o Mal é praticado em
enquanto que a de diabo vem de diábolo, que é grande parte inconscientemente, contra a vonta-
dia=através, separar + ballein=lançar, ou seja, de da pessoa, gerando arrependimento, culpa e
lançar separado. Em contraposição, a fixação um esforço para mudar.
que forma as defesas, ou seja, a Sombra desvia Na defesa psicopática, a função estruturan-
os significados simbólicos da sua integração e te da vontade é envolvida pela defesa, o que a
os atua de forma separada do Todo, distorcida, torna dolosa e capaz de atingir o máximo da gra-
inadequada e não raro destrutiva, quer no Self vidade da sociopatia e da delinquência. No Self
individual como no grupal. individual, ela pode perpetrar crimes hediondos,
A Sombra é muito importante para o desen- e no Self cultural, ser capaz de atrocidades ino-
volvimento humano e, por isso, é preciso ser mináveis. A vontade dedicada à criatividade pla-
devidamente considerada. Conceituei a Sombra neja e realiza o que a inteligência tem de melhor.

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Pelo fato de a defesa psicopática dominar a von- alguma que praticasse o Mal e tivesse paz e não
tade, a inteligência humana pode aqui realizar o estivesse presa no sofrimento, na fixação, na
que tem de pior. É nesta defesa, caracterizada defesa e na compulsão de repetição, ou seja, na
pela intenção, ou seja, pelo dolo, que a inteli- Sombra. Por outro lado, o que observei até hoje
gência se reúne à criatividade, transformando é que quando alguém elabora produtivamente
um ser humano num demônio. Quando a defesa as defesas e a Sombra e integra os conteúdos aí
psicopática domina a personalidade e controla fixados, ele se sente feliz e realizado.
grande parte do Self, forma-se a personalidade Se existe algo que aprendi com respeito
psicopática, caso em que a pessoa vive literal- ao Bem e ao Mal é que as conquistas trazem
mente para o Mal. bem-estar, mas o que realmente traz plenitude
Na defesa borderline, o Mal é praticado com a são as conquistas acompanhadas pelo resgate
preocupação de evitar um Mal maior, que é a de- e integração das fixações que formam a Sombra.
fesa psicótica. A criatividade da personalidade É inegável que o Arquétipo Central também
é aqui essencial para escolher condutas, ainda coordena no funcionamento do Self os símbo-
que bizarras, para serem atuadas, tanto quanto los e funções estruturantes fixados e tornados
possível, dentro de contextos sociais aceitáveis, defensivos, isto é, doentes, criminosos e ma-
para evitar a invasão da defesa psicótica. lignos. Este é o paradoxo da imagem de Deus,
Na defesa psicótica, o Mal existe através da que é uma projeção do Arquétipo Central, e que
invasão da Consciência pela Sombra. Esta inva- contém o Bem e o Mal. Sem recorrermos à duali-
são não é dolosa, porque a vontade é arrastada dade que simplesmente separa as polaridades,
junto com o resto das funções conscientes e não como fez Freud, como explicar tamanha ambi-
é cooptada para exercer inteligentemente a Som- guidade no exercício de uma função tão central
bra, como na defesa psicopática. na dinâmica da psique?
A resposta me parece ser que o Arquétipo
3. O Paradoxo do Arquétipo Central Central é antes de tudo comprometido com a
As características mais complexas do funcio- expressão da vida, mesmo que ela seja gran-
namento psíquico tornam-se paradoxais quando demente deformada pela fixação, pela Sombra,
sua fenomenologia associa verdades aparente- e que abrigue a maldade, a doença e o crime.
mente contraditórias e, por isso, incompatíveis. Quando vemos, por exemplo, os estudos dos
Este é o caso do Arquétipo Central em relação ao casos de psicóticos, como o de Carlos Pertuis
Bem e ao Mal. e de Adelina Gomes, tratados pela Dra. Nise
Por um lado, o Arquétipo Central coordena da Silveira, temos uma pequena ideia de que
a elaboração simbólica para incorporar os sig- junto com a devastação da personalidade pelo
nificados produzidos na construção da totali- Mal da esquizofrenia, o Arquétipo Central con-
dade do Self. Por isso, ele é percebido proje- tinua coordenando símbolos que transcendem
tado nos deuses como o caminho do Bem para os sintomas e podem guiar a personalidade em
a humanidade. Por outro lado, pelo fato de a direção à totalidade (SILVEIRA, 1981). Vemos
totalidade incluir o Mal, temos um paradoxo aí o impulso vital existencial coordenado pelo
de difícil compreensão. Arquétipo Central continuando a impulsionar
A identificação do caminho da totalidade a vida, apesar de o Ego estar fragmentado de
como sendo o caminho do Bem é uma noção modo extremo.
empírica. Esta noção depende do estudo e da Como Jung frisou, quando abordamos o Bem
vivência da elaboração simbólica no desenvol- e o Mal falando de Deus sem vivenciá-lo, pode-
vimento do processo de individuação e do pro- mos ficar reduzidos às convenções manipuladas
cesso de humanização. Nunca encontrei pessoa pelo Ego e perdermos a vivência do Deus vivo.

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Por outro lado, somente a vivência de Deus sem lar o significado da visão no processo de indivi-
a elaboração do significado simbólico, dificulta duação dele.
a compreensão prospectiva do Arquétipo Central Quando abordamos a nova ética ou a ética
e da sua orientação ética da individuação. Como da individuação, descrita por Neumann, sob esta
diz sabiamente o ditado “de boas intenções o in- perspectiva, percebemos que ela depende da ela-
ferno está cheio”. De fato, os casos de fanatismo boração simbólica de cada vivência para revelar
são um grande exemplo daqueles que se sentem sua normalidade ou sua patologia, sua luz ou sua
orientados por Deus e que, na realidade, o são Sombra. Ao assim fazermos, concluímos que a
defensivamente pela Sombra. Assim, por mais luta entre o Bem e o Mal está presente na elabo-
que Jung tenha sentido a destruição da Catedral ração simbólica de cada vivência, o que a torna
como uma revelação de Deus, faltou-lhe a ela- sistêmica e transcendente dentro do Todo. ■
boração simbólica da vivência, com as devidas
amplificações individuais e coletivas, para reve- Recebido em 25/03/2019 Revisão em 25/05/2019

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Abstract
The Shadow and the Evil. The paradox of the Central Archetype. A study of
ethics by Jungian Symbolic Psychology
Based on the concepts of fixation and defense because, while the symbols normally elaborated and
from psychoanalysis, which he considers always cherished in consciousness pave the way towards
pathological, the author conceives the shadow as good and self-realization, those fixated in the shad-
bigender and as the expression of defenses and ow are the path of alienation and of evil. Because
fixated symbols, as well as the source of pathol- they are despised and offer resistance to elabora-
ogy and of evil in the individual and cultural Self. tion, the recognition of the importance of the shadow
In this sense, just as in the parable of the Prod- and its confrontation deserve the respect of those
igal Son, the shadow must be carefully considered who search the development of consciousness. ■

Keywords: ethics, good and evil, fixation, defense, alienation, process of individuation, process of
humanization, integration of the shadow, psychological harmony and peace.

Resumen
La Sombra y el Mal. La paradoja del Arquetipo Central. Un estudio de la Ética
por la Psicología Simbólica Junguiana
La Sombra, concebida por la Psicología Sim- los que buscan el desarrollo de la Consciencia
bólica Junguiana como la sede del Mal, es impre- y de la ética.
scindible para el proceso de individuación y de Prosiguiendo, el autor discurre sobre la di-
humanización por el hecho de contener, fijados ficultad que Jung tuvo para insertar el Bien y el
en su interior, símbolos y funciones fundamen- Mal lado a lado dentro de la divinidad y del Self,
tales para la vida. por desconocer, hasta la década de 1950, que el
En este sentido, como en la parábola del hijo Ego de la Conciencia y el Ego de la Sombra son el
pródigo, los símbolos y funciones de la Sombra producto de la elaboración simbólica coordinada
merecen ser buscados más que los símbolos por el Arquetipo Central.
normales, pues mientras que éstos ya están La paradoja ética del Arquetipo Central es que
siendo elaborados en el camino de la plenitud ella busca la totalidad a través de la actuación nor-
y del Bien, aquéllos están fijados y alienados en mal y también de la patológica. La explicación de la
el camino del Mal. Por el hecho de que los sím- paradoja es que el Arquetipo Central anhela sobre
bolos de la Sombra estén disociados debido a la todo impulsar la vida, sea a través del Bien o del Mal
fijación y ofrecer resistencia a la elaboración, el y, al mismo tiempo que expresa el Mal, propicia el
reconocimiento de la importancia de la Sombra rescate de los símbolos y funciones en él contenidos
y su confrontación merecen todo el aprecio de a través de la función estructurante de la ética. ■

Palabras clave: ética, bien y mal, fijación, defensa, alienación, proceso de individuación, proceso de
humanización, integración de la sombra, armonía de la personalidad, paz.

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Referências
BUCK, W. Ramayana. São Paulo, SP: Cultrix, 1988. NEUMANN, E. A psicologia profunda e a nova ética. São
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de humanização do cosmos em busca da iluminação. São SARTRE, J. P. O ser e o nada. Petrópolis, RJ: Vozes, 1999.
Paulo, SP: Linear, 2008.
SILVEIRA, N. Imagens do inconsciente. Rio de Janeiro, RJ:
GOETHE, J. W. Faust: erster teil. São Paulo, SP: 34, 2004. Alhambra, 1981.

JUNG, C. G. Aion. Princeton, NJ: Princeton University, 1959. VON FRANZ, M. -L. A sombra e o mal nos contos de fadas.
(Obras Completas 9, Tomo II). São Paulo, SP: Paulus, 1985.

JUNG, C. G. Memórias, sonhos e reflexões. Rio de Janeiro,


RJ: Nova Fronteira, 1975. (1961)

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Junguiana
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Futebol: a grande paixão do povo brasileiro.


Um estudo da Psicologia Simbólica Junguiana1

Carlos Amadeu B. Byington*

Resumo
Baseado na Psicologia Simbólica Junguiana, vivência planetária, o crescimento do futebol em
o autor interpreta o futebol como um poderoso todos os continentes, afirma sua raiz arquetípica Palavras-chave
futebol, função
sistema simbólico de alto valor pedagógico para num mito messiânico e se revela um exemplo de
estruturante
estruturar a consciência individual e coletiva alteridade e de esperança. ■
da ética,
com o Arquétipo da Alteridade, que é o arquétipo paixão do povo,
da democracia. pedagogia
Esta capacidade estruturante do futebol consti- das emoções,
tuiu-se num ritual coletivo de custo irrisório, capaz arquétipo da
de elaborar coletivamente a agressividade, a com- alteridade,
petição, a ambição da vitória e, ao mesmo tempo, psicologia
simbólica
coordenar a função ética para absorver a frustração
junguiana.
da derrota dentro da união amorosa de cada time.
Segundo o autor, é a interação destas emoções,
expressando exuberantemente o Arquétipo Ma-
triarcal, que, subordinada às regras do Arquétipo
Patriarcal, permite a vivência apaixonante dos ar-
quétipos da Alteridade e da Totalidade.
Para concluir, o autor afirma que diante do
desequilíbrio cultural que afeta nossa sobre-

1

Publicado originalmente na Revista Junguiana 28/2, 2009,
p. 41-48.
* Médico Psiquiatra e Analista Junguiano. Membro fundador
da Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica. Membro da
Associação Internacional de Psicologia Analítica. Criador da
Psicologia Simbólica Junguiana. Educador e Historiador.
E-mail: c.byington@uol.com.br site: www.carlosbyington.com.br

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Futebol: a grande paixão do povo brasileiro. Um estudo da Psicologia


Simbólica Junguiana

Dedicado a Pelé, Edson Arantes do Nascimento, símbolo da apoteose, comunhão do indivíduo


o maior atleta do século XX e orgulho do Brasil. com o todo.
A importância dos fenômenos ritualísticos reve-
O futebol é um grande ritual pedagógico da la-se de forma clara no espaço em que eles ocor-
alma coletiva. Através dos jogadores, da bola, da rem. A delimitação desse espaço consiste numa
vitória e, mais ainda, da derrota, cada torcedor verdadeira sacralização, e é feita frequentemente
vivencia de forma simbólica e altamente emo- através de mandalas, que são formas geométricas
cional uma maneira criativa de cultivar, educar centralizadas, tais como círculos, cruzes, quadra-
e guiar as suas emoções. Não foi por acaso que, dos e retângulos. Em sânscrito, mandala quer dizer
em 1969, as duas facções inimigas da guerra círculo, e dá origem às formas circulares ou qua-
civil do Congo Belga – hoje chamado República dráticas das Yantras, que servem para meditação
Democrática do Congo – interromperam as hos- na ioga, o que as transforma em imagens mágicas.
tilidades para ver o rei Pelé jogar. Estudando a Tantra Yoga, Jung achou que a função
psicológica da mandala é religar a consciência ao
1. O campo, a mandala e o temenos centro da personalidade, estabelecendo a harmo-
O futebol é um espetáculo coletivo que se nia psíquica por meio da meditação. Ele assinalou
torna ritualístico na medida em que identifica os também que a presença de mandalas em fenôme-
espectadores com o drama que se desenrola em nos individuais e coletivos expressa vivências de
campo. Os jogadores são como personagens de totalidade (JUNG, 1975).
teatro com os quais nos identificamos. O campo A mandala aparece em desenhos espontâne-
reúne dois grandes teatros de arena, sendo por os infantis com a finalidade de estruturar o ego
isto um anfiteatro (anfi=dois). O circo, o cinema, ou nas crises psicóticas para manter a unidade
as paradas, as corridas, os festivais de música e da consciência ameaçada de desestruturação. O
dança, as touradas e os demais esportes coleti- diplomata brasileiro José Oswaldo Meira Penna
vos são espetáculos dos quais o público partici- escreveu sobre a mandala como plano básico
pa através da identificação dramática conscien- de organização de cidades e os antropólogos as
te e inconsciente. conhecem bem na organização do espaço tribal.
Essa identificação é proporcional ao entu- A mandala está ligada ao número quatro e aos
siasmo demonstrado pela plateia. Tais espe- fenômenos quaternários, que são expressão
táculos têm simbolicamente a mesma função frequente da ação organizadora do Arquétipo
psicológica que as religiões: ligar a consciên- Central na mente humana e que, na construção
cia às suas raízes, ou seja, ao Arquétipo Cen- dos templos religiosos, formam um temenos ou
tral do Self, organizador do desenvolvimento espaço sagrado. A mandala é, pois, um símbo-
psicológico da alma individual e coletiva. Pro- lo estruturante da totalidade do indivíduo e da
va disso é que, em inúmeras culturas, estes coletividade que, por meio dela, se relacionam
espetáculos existiam como um ritual propicia- com seu centro psíquico.
dor dos deuses, como bem exemplificam os
jogos olímpicos dedicados a Zeus. O gesto do 2. As três mandalas do futebol
jogador vencedor, erguer a taça no final de um O futebol é jogado dentro de três mandalas.
torneio de futebol, como nas Olimpíadas, é um O campo é uma mandala retangular contida em

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outra, que é o estádio, e numa terceira, fora do com segurança, o grau intenso de empolgação
estádio, que é a cidade, o país e, na Copa do necessária para que o povo se torne também
Mundo, o planeta. agente do drama que se desenrola.
Corpo e emoção, sujeito e objeto, são insepa-
ráveis na formação dos símbolos que expressam 3. Os arquétipos e o futebol
qualquer fenômeno humano. A vida psíquica é As vigas mestras da consciência individual e
orientada pelos significados das experiências coletiva são o arquétipo matriarcal, da sensua-
e, por isso, nada do que é humano deixa de ser lidade, e o arquétipo patriarcal, da organização.
coordenado pelo sistema nervoso e pode existir Ambos estão fartamente presentes no futebol.
sem ser simbólico. O fato de a bola ser redonda A sensualidade do arquétipo matriarcal está ex-
para melhor quicar e rolar não nos deve impedir pressa em cada lance do jogo. Corridas, saltos,
de vê-la também como símbolo. Platão já con- disputas de bola no corpo a corpo do drible, co-
siderava a esfera a forma mais perfeita da geo- ragem, vitalidade, força, destreza, agressividade,
metria. Inúmeras culturas expressam através da competição, coração, raça, ambição, pura emo-
esfera e do círculo seus símbolos de totalidade, ção. É a alma guiando o corpo. E haja adrenali-
por serem formas geométricas onde não se pode na! Mas a vida individual e coletiva não é apenas
diferenciar o princípio do fim e nas quais todos sensualidade. E, por isso, o arquétipo patriarcal
os pontos da periferia distam igualmente do cen- da organização e da lei não pode faltar.
tro. O controle da bola é um exercício físico, mas As regras começam nas medidas do campo,
também emocional, de busca de coordenação das áreas e do gol. Na pequena área não se pode
total do ser. encostar no goleiro. E, na grande área, uma falta
A mandala do campo contém, delimita e pro- cometida pelo time defensor é o temido pênalti.
picia o desenvolvimento da tensão necessária O tempo é rigorosamente respeitado e corrigido
à ação dramática. Ela é, ao mesmo tempo, es- pelas prorrogações. O drama é finito. O que não
pacial, vivencial e emocional: delimita os que aconteceu nos 90 minutos, nunca mais; a menos
jogam, os que torcem nas arquibancadas e em que as regras imponham um jogo com prorroga-
casa, separando-os fisicamente para reuni-los ção e, pior, uma decisão nos pênaltis! E tem o es-
emocionalmente como um todo durante o desen- canteio e o impedimento, “a banheira” que poli-
rolar dramático. A identificação simbiótica torce- cia o atacante. Tudo fiscalizado por um juiz e dois
dor/jogador é muito estimulada pela cobertura bandeirinhas. O famoso trio de arbitragem. Doa
da imprensa, que torna o espetáculo mais íntimo a quem doer, é a lei em campo, expressa pelo
de todos. Retratos e entrevistas de jogadores, apito que assinala a falta, mantém a disciplina o
acrescidas de comentários, fofocas e desafios respeito às regras. Para quem transgredi-las, car-
de dirigentes, aumentam a expectativa dramáti- tão amarelo. Mas, se a falta for de má-fé, ou se
ca e favorecem a participação emocional. São os o jogador ofender o juiz, cartão vermelho! Desta
rituais emocionais de aquecimento preparatório. maneira, o espírito da lei do Arquétipo Patriarcal
Através deles, a identificação espectador/joga- confronta as emoções da alma do arquétipo ma-
dor é ativada de antemão. Durante o jogo, esta triarcal. Que expressão mais completa do emba-
identificação chega a tal ponto que precisa ser li- te entre os dois grandes arquétipos da civiliza-
mitada e contida, sem o que não seria possível a ção exercido num ritual coletivo!
ação dramática e, por isso, entre o campo e a tor- A interação da sensualidade (desejo) e da
cida há um fosso e policiais prontos para conter organização (lei) marca o dia a dia das pesso-
a alma transbordante dos mais exaltados. Esta as e também cada evento na vida dos povos.
delimitação física é necessária para favorecer a Este embate costuma ocorrer aos trancos e bar-
identificação emocional, que assim pode atingir, rancos, de forma imprevisível, intempestiva e,

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frequentemente, em meio à agressividade des- O arquétipo da alteridade substituiu os exer-


trutiva e até na tragédia e na guerra. O desregra- cícios guerreiros pelas competições desportivas,
mento entre estes dois arquétipos fundamentais que propõem um confronto criativo de polarida-
é marcado pelo transbordamento matriarcal ou des, dentre as quais estão o desejo e o poder, a
pela repressão patriarcal. Devido ao aumento mente e o corpo, a razão e a emoção, a cabeça e
progressivo do potencial genocida dos confron- o resto do corpo, a grosseria e a destreza, a vitó-
tos vivenciados pelo fanatismo e pela repres- ria e a derrota, a euforia e a depressão, a alegria
são, o conflito entre esses dois arquétipos pode e a tristeza, a inteligência racional e o instinto,
ameaçar até mesmo a sobrevivência da espécie sem que um polo destrua o outro. Junto com a
e, por isso, ele precisa de um terceiro arquétipo globalização, o futebol vem se tornando um es-
para ser regulado. porte planetário, porque vivencia a alteridade
Nosso cérebro tem 100 bilhões de neurônios, na participação comunitária de dois times, que
a maioria geralmente pouco usada. Quando ve- representam no campo partes significativas de
mos a facilidade com que uma criança aprende uma sociedade e, no jogo, que expressa, do co-
quatro línguas, enquanto muitos adultos mal meço ao fim, a dialética dos opostos.
falam seu próprio idioma, podemos imaginar a
ociosidade do nosso potencial criativo. Basta 5. O futebol e a pedagogia do
vermos a descoberta impressionante da exis- conflito criativo
tência dos imensos campos energéticos entre as Como já descobrira Heráclito, o conflito é ine-
estrelas, chamados buracos negros, e o cresci- rente ao desenvolvimento individual e cultural.
mento do sistema de comunicações nos últimos Na mentalidade patriarcal, os conflitos são resol-
50 anos para termos uma pequena ideia do que vidos pela repressão e seu clímax é a guerra. No
ainda falta descobrir. padrão de alteridade, os conflitos são aborda-
dos pela interação da tese com a antítese para
4. A raiz mítica do futebol renascerem ambas modificadas em cada nova
Assim aconteceu que há 2500 anos, na Ín- síntese, como formulou Hegel (1956). Ao invés
dia, e há 2000 anos, no Oriente Médio, houve do homicídio, que rege a relação pai-filho do
uma ativação do terceiro grande arquétipo que Mito de Édipo, característico da disfunção do ar-
rege nossa Consciência. Trata-se do arquétipo quétipo patriarcal, o arquétipo da alteridade co-
da alteridade. Ele nos torna capazes de encarar ordena a relação pai e filho através do confronto
os conflitos relacionando as polaridades na po- e da interação criativa. O Mito Cristão vivencia a
sição dialética, ou seja, com direitos iguais de morte e a ressurreição na transformação do ho-
expressão. O Mito do Buda e o Mito Cristão são mem patriarcal para o Anthropos, o homem ple-
mitos de compaixão, que permitem a relação no capaz de conviver na alteridade. O arquétipo
da sensualidade matriarcal e do poder patriar- da alteridade foi expresso no Cristianismo pela
cal em igualdade de condições na personalida- convivência dialética do Pai com o Filho atra-
de e na cultura. Apesar de muito deformados vés do Espírito Santo, no Mistério da Trindade.
pelo poder durante sua implantação, quando O arquétipo da alteridade foi também expresso
se tornaram duas das maiores religiões do na pregação do Buda sobre o caminho do meio,
mundo, sua mensagem central de criatividade caminho da sabedoria que evita os radicalismos,
nos conflitos continua sendo transmitida para e em muitas outras religiões, obras de arte e fi-
a civilização, propiciando o crescimento extra- losofias. Na religião Yorubá Nagô, o arquétipo da
ordinário das ciências modernas, das artes, alteridade é expresso pelo Orixá Exu, divindade
dos movimentos sociais, das democracias e da das encruzilhadas, intermediador deste mundo
consciência ecológica. e do além, do aye e do orum, e, na Mitologia

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Grega, por Hermes, mensageiro de Zeus que co- através do padrão patriarcal, usada, sobretudo,
munica os seres humanos e os deuses e conduz de forma repressiva; por ser um esporte coletivo
as almas para o além. e, assim, contrariar os esportes individualistas
No padrão do arquétipo da alteridade, perce- das elites patriarcais dominantes; por dirigir as
be-se que o conflito com o outro é também criati- emoções do povo para uma disputa que acaba
vo. E esta é a grande mensagem da democracia, bem, contrariamente aos torneios patriarcais que
que propõe o resgate dos polos inferiorizados terminam com a queda, ferimento ou morte do
social e economicamente na cultura, para que adversário; e, finalmente, por ser uma atividade
os vários setores e funções da vida se confron- social que subordina a agressividade ao esporte
tem, e se transformem pacificamente. O padrão e congraça a coletividade. Contrariamente aos
de alteridade permite ao ego e ao outro se rela- torneios patriarcais, que submetiam o esporte à
cionarem afirmando sua identidade junto com agressividade, preparando o povo para a guerra,
as suas diferenças. Ele traz uma proposta de o futebol conseguiu sobrepor o esporte à agres-
desenvolvimento individual e social tão superior sividade através da transformação da morte do
ao padrão repressivo patriarcal que, depois de inimigo no símbolo do gol. Como disse poetica-
2000 anos de sua revelação no Oriente Médio, mente o cronista: “no calor da pugna, Ronaldo
sua implantação no processo civilizatório ainda venceu três adversários, e mandando um canho-
está no seu início. A própria história do futebol naço de fora da área, decretou inapelavelmente
é a maior prova de ser ele praticado exatamente a queda da cidadela adversária. É GOOOOOOOL
dentro desse novo padrão da cultura ocidental, do BRASIIIIL!!!!”.
daí o seu fascínio no mundo moderno. O futebol O futebol caracterizou-se, desde o seu iní-
se tornou uma grande paixão planetária durante cio, como um encontro entre opostos, no qual o
a globalização em curso porque ele representa a conflito comunitário é admitido, exercido e su-
implantação de um padrão de consciência que bordinado prazerosa e agressivamente a um fim
busca consciente e inconscientemente a salva- pacífico. No princípio, o futebol era muito mais
ção da nossa vida no Planeta. violento, mas sua própria prática foi canalizando
As origens do futebol perdem-se na História. a agressividade de maneira cada vez mais ade-
Há uma hipótese de que o futebol tenha nascido quada. Na sua trajetória antipatriarcal, inúmeros
dos costumes primitivos de chutar a cabeça dos foram seus símbolos antimachistas como, por
inimigos para comemorar as vitórias. Há relatos exemplo, a existência de uma partida anual, à
sobre jogos muito parecidos com o futebol na época muito famosa, realizada na cidade de Mi-
China no Japão e na Grécia antigos. Na Inglaterra dlothian, na Escócia, onde as mulheres casadas
ele começou a partir do harpastum, jogo de bola se defrontavam com as solteiras. Tão antipatriar-
com as mãos, trazido da Grécia pelos romanos. cal e antiguerreiro foi sempre o futebol que, já
Desde muito se tem notícia do futebol jogado em 1297, uma guerra entre a Inglaterra e a Es-
nas terças-feiras de carnaval, em Chester, cidade cócia acabou desmoralizada porque os soldados
inglesa fundada no tempo dos romanos. de Lankshire, tradicionais inimigos dos escoce-
Diante da repressão preconizada pelo padrão ses, desobedeceram a seus comandantes e pre-
patriarcal, o futebol sempre foi um jogo revolu- feriram disputar sua rivalidade no futebol e não
cionário por quatro grandes razões: por ser as- no campo de batalha. Conta uma lenda que até o
sociado, desde o seu início, ao Carnaval, festa Rei Eduardo I acabou participando.
sabidamente ligada à liberação das emoções e É importante frisar que, depois disso, os reis
instintos; por ser jogado com os pés, símbolos Eduardo III, Ricardo II, Henrique IV, Henrique VIII
do irracional numa cultura que se tornava cada e até Elizabeth I, já no século XVI, legislaram con-
vez mais racionalmente organizada e planejada tra o futebol, porque ele desviava os jovens dos

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torneios de luta de arco e flecha, o que enfraque- tir da inteligência criativa da psique para atender
cia os exércitos. Tornou-se necessário reprimi-lo a uma necessidade histórica da consciência co-
em nome da segurança nacional do Império In- letiva de busca de alteridade e de democracia.
glês. Tudo em vão. O esporte floresceu e se es- Uma abertura maior para a função criativa do
praiou em nossa cultura por vias diversas, mas símbolo na cultura permite-nos perceber a coin-
com a mesma pujança do nosso Mito Messiâni- cidência significativa entre a relação histórica do
co, ambos buscando implantar à sua maneira, desenvolvimento do futebol, a partir dos séculos
na cultura ocidental, o padrão de alteridade, de XII e XIII, e o fascínio da lenda do Graal na lite-
respeito e compaixão pelo outro. Quando a bola ratura desse período, que retrata os cavaleiros
retorna ao centro do campo, depois do gol, o de- da Távola Redonda, inicialmente 12, e sua bus-
fensor dá reinício à partida e “vira a outra face”, ca do vaso com o sangue de Cristo para salvar
para tudo recomeçar. o reino. Um dos ferimentos atribuídos ao Rei in-
Jung chamou a atenção fartamente para o po- capacitado de governar é exatamente a paralisia
der prospectivo dos símbolos. Aos quatro anos das pernas. Será demais associar o futebol com
de idade, ele próprio sonhou com um phallus de a busca do ser humano de se salvar da destrui-
carne sobre um altar subterrâneo. Este phallus ção, pela opressão e pela guerra, através do
representativo da sexualidade espiritual, que resgate do corpo como expressão simbólica da
transcende a sexualidade fisiológica, foi um sím- redenção do oprimido? Pode-se deixar de asso-
bolo altamente prospectivo para ele, pois nor- ciar os 12 cavaleiros da Távola Redonda com os
teou sua obra durante mais de 80 anos (JUNG, 11 jogadores, mais o técnico no futebol e os 12
1975). Minha tese é atribuir a propagação do fu- seguidores de Cristo?
tebol à atividade simbólica prospectiva do mito É verdade que o futebol já foi muito mais vio-
na transformação da cultura. lento na sua trajetória do padrão patriarcal para
É um fato sociológico extraordinário que o a alteridade. No século XVIII, era comum um jogo
futebol tenha se implantado revolucionariamen- terminar com muitas fraturas. A direção progres-
te, sem qualquer catecismo ou proselitismo, só siva de sua codificação e autopedagogia cami-
e exclusivamente a partir da alma do povo, de nhou, no entanto, para expressar um conflito de
baixo para cima. Hegel propôs uma teoria religio- opostos que culminasse com uma solução cria-
sa da História, segundo a qual ela seria a encar- tiva e não repressiva, em função de sua relação
nação progressiva do Espírito Divino. Podemos com o centro através do gol, o que tornou as fra-
conceber a divindade como a expressão dos turas cada vez mais raras.
arquétipos e retomar a teoria de Hegel no nível
científico, afirmando que, dentro da transforma- 6. Torcidas organizadas e seu papel
ção social trazida pelo Mito Cristão, que ilustra comunitário
uma Teoria Simbólica da História (BYINGTON, É um grande erro cultural achar que a vio-
2008), o futebol é uma expressão cultural da im- lência das torcidas organizadas do futebol deve
plantação do arquétipo da alteridade no proces- ser evitada pela proibição legal destas torcidas,
so civilizatório. como está acontecendo em São Paulo. É como
O futebol é uma atividade que mostra a cria- fechar uma escola importante porque os alunos
tividade do Self cultural a partir de uma necessi- se comportaram mal. Destrói-se uma floresta
dade histórica de transcender simbolicamente o para que os tigres não tenham onde morar, sem
padrão repressivo guerreiro. Ele não surge nem perceber que esta é a melhor maneira de eles se
de uma luta de classes econômicas e nem de mudarem para as ruas das grandes cidades.
uma sublimação seguida a uma repressão. Pelo A violência urbana advém de muitos fatores,
contrário, o futebol surge e se desenvolve a par- mas um deles é a pulverização social, com a per-

236 ■ Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 1º sem. 2019


da da identidade das pessoas. As megalópoles, quentemente, é derrubar uma árvore porque al-
como São Paulo, cresceram de forma desordena- guns de seus galhos têm parasitas. Ao invés da
da e engolfaram as pequenas cidades a sua volta. dissolução, as torcidas deveriam ser apoiadas
Assim, desapareceu a cidade pequena, um im- e instruídas para prestar serviços comunitários
portante referencial de identidade das pessoas. A os mais diversos, no que podem ser de grande
agressividade humana é desencadeada pela frus- utilidade. Extingui-las tem um efeito imedia-
tração e a identidade das pessoas ajuda a contro- to de evitar arruaças durante e após os jogos,
lá-la. O desamparo e o sofrimento da identidade mas a consequência dessa mutilação é o des-
enfraquecida descambam muito mais facilmente perdício de uma entidade de grande potencial
para a violência, quando as pessoas não têm um na participação amorosa comunitária, deixando
respaldo comunitário para acolher e encaminhar seus membros desagregados e sujeitos à vio-
criativamente suas frustrações. lência para canalizar frustrações.
A torcida organizada é um precioso referen- A devoção ao clube e a força da torcida or-
cial de identidade nas grandes cidades. A fide- ganizada podem ser direcionadas para o desafio
lidade e a devoção aos clubes são impressio- do engajamento nas atividades coletivas aliadas
nantes. As pessoas separam-se no casamento, às instituições públicas e privadas. Assim, o ar-
mudam de cidade e até emigram do país, mas, quétipo de alteridade, que se expressa de forma
lá de longe, continuam acompanhando e torcen- tão exuberante no futebol, reunindo de maneira
do pelo seu clube. Conversando um dia com um criativa o arquétipo matriarcal do time, do suor,
mendigo no Rio de Janeiro, perguntei-lhe o que do prazer, inclusive da cervejinha gelada e o ar-
ele faria se tirasse a sorte grande. Ele não titu- quétipo patriarcal da organização, do orgulho,
beou: – “Metade eu dava pru ‘Framengo’”, res- da honra, da dignidade, da ambição e da respon-
pondeu. – “Mas, por quê?”, tornei a perguntar. – sabilidade, pode ser expresso também no refor-
“Porque o Mengão já me deu muitas alegrias na ço da identidade das pessoas através da huma-
minha triste vida” ele retrucou, abrindo um largo nização pela sua participação amorosa na vida
sorriso saudoso de dentes. comunitária, por meio das torcidas organizadas.
A essência da vida comunitária saudável
na democracia é o amor. Quando somente am- 7. O Gol, a morte e a ressurreição
bição, status e poder dirigem a vida individual, O gol é o maior símbolo do futebol. Ele repre-
profissional e social, a sociedade é pulverizada senta a morte simbólica do adversário e atinge
no egoísmo do “cada um por si”. Essa atmosfera intensa profundidade porque a mandala do cam-
de selvageria da competição e do consumo ig- po permite que, através do centro, tudo recome-
nora o sofrimento humano, e as frustrações não ce e o time que “morreu” na derrota renasça e
acolhidas fluem naturalmente para a violência e volte a lutar. Neste símbolo, a morte é vivencia-
para a destrutividade. da como agente de transformação, exatamente
A antítese da pulverização e da perda da como em nosso Mito Messiânico. A vivência de
identidade é a atividade comunitária inspi- sofrer o gol e de fazer o gol se complementam e
rada por um ideal amoroso, seja ele qual for. formam um todo emocional consagrando o mis-
A torcida organizada no futebol é exatamente tério da transformação (OTTO, 2007). ■
este tipo de comunidade. Dissolvê-la, quando
alguns de seus membros se comportam delin- Recebido em 25/03/2019 Revisão em 13/04/2019

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Abstract
Football: the great passion of the Brazilian people. A study of Jungian Symbolic
Psychology
Based on the theory of Jungian symbolic psy- coordinate the ethical function to absorb the
chology, the author interprets football as a pow- frustration of defeat within the affectionate union
erful structuring system with a high pedagogic of the team.
potential to structure individual and collective According to the author, the interaction of
consciousness with the alterity archetype. these emotions expressing exuberantly the ma-
This structuring capacity of football became triarchal archetype with the rules coordinated by
a collective ritual at practically no cost capable the patriarchal archetype leads the game to the
to elaborate creatively aggression, competi- passionate experience of the archetypes of alteri-
tion, and ambition to win and, at the same time, ty and of totality. ■

Keywords: football, structuring function of ethics, education of emotions, archetype of alterity, jungian
symbolic psychology.

Resumen
Fútbol: la gran pasión del pueblo Brasileño. Un estudio de la Psicología
Simbólica Junguiana
Basado en la Psicología Simbólica Junguiana, el Según el autor, es la interacción de estas emo-
autor interpreta el fútbol como un poderoso sistema ciones, expresando exuberantemente el Arquetipo
simbólico de alto valor pedagógico para estructurar Matriarcal, que, subordinada a las reglas del
la conciencia individual y colectiva con el Arquetipo Arquetipo Patriarcal, permite la vivencia apa-
de la Alteridad, que es el arquetipo de la democracia. sionante de los arquetipos de la Alteridad y de
Esta capacidad estructurante del fútbol se la Totalidad.
constituyó en un ritual colectivo de costo irriso- Para concluir, el autor afirma que ante el
rio, capaz de elaborar colectivamente la agresivi- desequilibrio cultural que afecta nuestra super-
dad, la competencia, la ambición de la victoria y, vivencia planetaria, el crecimiento del fútbol en
al mismo tiempo, coordinar la función ética para todos los continentes, afirma su raíz arquetípica
absorber la frustración de la derrota dentro de la en un mito mesiánico y se revela un ejemplo de
unión amorosa de cada equipo. alteridad y de esperanza. ■

Palabras clave: fútbol, función estructurante de la ética, pasión del pueblo, pedagogía de las emociones,
arquetipo de la alteridad, psicología simbólica junguiana.

238 ■ Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 1º sem. 2019


Referências
BYINGTON, C. A. B. Psicologia simbólica junguiana: a JUNG, C. G. Memórias, sonhos, reflexões. Rio de Janeiro,
viagem de humanização do cosmos em busca da ilumi- RJ: Nova Fronteira, 1975.
nação. São Paulo, SP: Linear, 2008.
OTTO, R. O sagrado: os aspectos irracionais na noção
HEGEL, G. W. F. The philosophy of history. New York, NY: do divino e sua relação com o racional. São Paulo, SP:
Dover, 1956. Vozes, 2007.

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Junguiana
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A morte e a ressurreição do Messias.


A Sombra, o Mal e o Anticristo.
Um estudo da função ética, pela Psicologia
Simbólica Junguiana1

Carlos Amadeu B. Byington*

Resumo Palavras-chave
O artigo conceitua o Arquétipo da Sombra anticristo,
como o Arquétipo do Mal na Psicologia Simbólica arquétipo da
Junguiana e busca integrá-lo como expressão do sombra e do
mal, morte,
Arquétipo Central, ao lado do Arquétipo do Bem.
ressurreição,
A interpretação de Jung da limitação da im- deus patriarcal,
agem de Jeovah na relação com Job é aqui con- santíssima
tinuada com o reconhecimento do sadismo do trindade, deus
Deus patriarcal, que necessita do filicídio sacri- da alteridade.
ficial para transformar-se no Deus da compaixão
e do entendimento, pois só assim se tornará a
Trindade e expressará o Arquétipo da Alteridade.
Em conclusão, o autor segue Jung na inter-
pretação do Apocalipse como a Sombra do Novo
Testamento e chama a atenção para o texto ser
escrito em nome de Jesus, o que sugere a inte-
gração do símbolo do Anticristo no mito, como a
Sombra de Jesus. ■

1
Publicado originalmente na Revista Junguiana, 29/1,
2010, p. 50-57
* Médico psiquiatra e analista junguiano. Membro fundador
da Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica. Educador
e Historiador. Criador da Psicologia Simbólica Junguiana.
E-mail: c.byington@uol.com.br. Site: www.carlosbyington.com.br

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Junguiana
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A morte e a ressurreição do Messias. A Sombra, o Mal e o Anticristo.


Um estudo da função ética, pela Psicologia Simbólica Junguiana

Os mitos são projeções de funções estrutu- Boni, na qual o Mal é conceituado como a ausên-
rantes simbólicas que expressam o Arquétipo cia de Deus (cartas entre Jung e Father-While).
Central através dos Arquétipos Regentes. Ao se- Apesar de Jung descrever o Bem e o Mal, prin-
rem elaborados, formam com o tempo, a iden- cipalmente dentro da religiosidade, como uma
tidade do Ego e do Outro na Consciência. Eles polaridade fundamental do Self, a Psicologia Ana-
nos trazem o conhecimento objetivo e subjetivo. lítica não conceituou psicologicamente o apareci-
Nosso mito de criação, por exemplo, nos trouxe, mento do Mal e o seu relacionamento psicodinâ-
entre outras vivências, a função ética, que deu mico com o Bem, no processo de individuação.
origem às Tábuas da Lei. Por sua vez, o Mito O principal conceito da Psicologia Analítica
Cristão, ativou intensamente no Self a função es- que poderia incluir o Mal como função estrutu-
truturante da compaixão e do discernimento, e rante arquetípica, é a Sombra. No entanto, o con-
nos levou à democracia e às ciências modernas ceito da Sombra na Psicologia Analítica está até
(BYINGTON, 2008). hoje confuso e incapaz de abranger o Mal pelas
Devido à dissociação subjetivo-objetivo ocor- seguintes razões:
rida no final do século XVIII quando a ciência 1. Jung definiu a Sombra como sendo formada
tomou o poder na universidade, muitas funções exclusivamente por símbolos do mesmo gêne-
psíquicas, com forte predominância subjetiva, ro que o Ego. Assim sendo, se escolhermos a
deixaram de ser estudadas, como por exemplo, Sombra para abrigar o Mal, deixamos fora dela
a função ética. Durante o século XIX, com a hip- os símbolos contrassexuais da personalidade, o
nose e, posteriormente, com a descoberta da que consiste numa limitação conceitual irrepará-
formação do Ego e dos processos inconscientes vel (JUNG, 1967).
pela Psicanálise, o subjetivo voltou, paulatina-
2. Jung referiu-se, no Aion, ao Mal absoluto,
mente a ser tema de pesquisa. Assim, ainda que
sem explicar o que isso significa (JUNG, 1982).
tardiamente, a função estruturante da ética pode
3. Apesar de descrever o desenvolvimento psi-
ser estudada dentro da ciência, na teoria psico-
cológico, a Psicologia Analítica não definiu como
lógica. Sua primeira e grande limitação, porém,
a Sombra se forma e, sobretudo, não relacionou
já existia na religião a identificação redutiva do
sua formação com o desenvolvimento do Ego.
Mal com a condição humana dentro do concei-
Isto ocorreu possivelmente pelo fato de até a dé-
to de pecado original. Esta redução continuou,
cada de 1950 não se saber que o Ego é formado
quando a psicanálise descreveu toda criança
pelos arquétipos.
como perverso-polimorfa ao nascer, e, por isso,
necessitada de repressão para formar um Supe- 4. A Psicologia Analítica não relacionou especi-
rego e civilizar-se. ficamente a formação da Sombra com as dimen-
Jung, por sua vez, desenvolveu, com muita fre- sões transindividuais do Self como, por exemplo,
quência e ênfase, o tema da conjunção de opos- com o crime, no Direito; à destruição ambiental,
tos dentro do Self, enfatizando a inclusão do Bem na Ecologia; ao sintoma, na patologia; ao peca-
e do Mal dentro da imagem de Deus. Em função do, na Religião; à exploração, na economia; ao
dessa postura, combateu ferrenhamente a dou- erro na Ciência; e ao Mal, na Ética.
trina católica do Summum Bonum, na qual Deus 5. Erich Neumann foi quem melhor estudou a
é considerado exclusivamente bom e do Privatio ética na Psicologia Analítica. Ele conceituou a

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ética no processo de individuação como a Nova ções estruturantes fixados durante o processo
Ética em contraposição à Ética tradicional, des- de elaboração simbólica, ele pode ser visto no
crita a partir das religiões (NEUMANN, 1991). Self Individual e transindividual.
Contudo, ele também não precisou como e quan- A Psicologia Simbólica Junguiana descreveu
do se forma a Sombra no desenvolvimento e sua também o processo de elaboração simbólica,
relação psicodinâmica com o Bem. originando cinco posições da relação Ego-Outro
6. Marie Louise Von Franz escreveu sobre o Mal como as cinco inteligências do Self articuladas
nos “Contos de Fada”, mas incluiu na Sombra arquetipicamente pelo Arquétipo Central e os
quatro Arquétipos Regentes. A posição indife-
o Mal e todo o inconsciente, o que também re-
renciada expressa o Arquétipo Central, a insular,
lativizou e enfraqueceu o conceito de Sombra e
o Arquétipo Matriarcal, a polarizada, o Arquéti-
invalidou seu emprego como Arquétipo do Mal
po Patriarcal, a dialética, o Arquétipo da Alte-
(VON FRANZ, 1985). Além disso, ela afirmou que
ridade que inclui os Arquétipos da Anima e do
a Sombra não é só má, pois inclui símbolos bons.
Animus, e a posição contemplativa, o Arquétipo
Este último argumento é muito usado para da Totalidade. Desta maneira, fica caracteriza-
não se identificar a Sombra com o Mal. No entan- da a inseparabilidade da polaridade Ego-Outro
to, não quero afirmar que os símbolos que estão dos arquétipos junto com as cinco inteligências
na Sombra são o Mal, mas que, por estarem fixa- arquetípicas do Self. Da mesma forma, através
dos, passam a fazer parte do Mal. Na depressão, do conceito de Sombra, formulado acima para
por exemplo, a autoestima pode estar fixada e, abranger o Mal, todas as fixações da elaboração
por isso, opera dentro do Mal e até leva ao suicí- simbólica e das cinco inteligências do Self estão
dio. O fato de símbolos bons estarem dentro da nele incluídas. (BYINGTON, 2008). Gráfico
Sombra e passarem a fazer parte do Mal levou a Segundo Sabina Spielrein (1912) e Jung
sabedoria popular a afirmar que “de boas inten- (1912), o fenômeno da morte é aqui considera-
ções o inferno está cheio”. do simbolicamente dentro da transformação
Quaisquer símbolos e funções estruturan- psicológica do processo de individuação. Assim
tes podem ser bons se estruturarem livremente sendo, o conceito de Morte é visto como uma
a Consciência ou maus se forem fixados e esti- função estruturante e um arquétipo operando ao
verem na Sombra. Como escreveu Shakespea- lado da função estruturante e do Arquétipo da
re: “Nada é bom ou mau, é o pensamento que Vida, com o qual forma uma das principais pola-
o faz!”1 (WIKIQUOTE, 2014). ridades do Arquétipo Central. Ambos podem ser
A Psicologia Simbólica Junguiana (BYINGTON, normais ou defensivos, dependendo de estarem
2008) reformulou o conceito de Sombra para ser ou não fixados durante a elaboração simbólica
a representação do Mal na psique, e, para isso, (BYINGTON, 1996).
nele integrou os conceitos de fixação, defesa, re-
sistência e compulsão de repetição descobertos 1. A relação da Psicologia com o
pela psicanálise. A Sombra pode assim se tornar Mito Cristão
o Arquétipo do Mal na psicologia, e relacionar-se Uma vez aparelhada a Psicologia com o con-
com o Arquétipo do Bem, formando um comple- ceito de Sombra como o Arquétipo do Mal e o
xo de opostos dentro do Arquétipo Central, tudo conceito da Morte como arquétipo, podemos
o que Jung sempre almejou. continuar a abordagem da transformação histó-
Dentro desta perspectiva, pelo fato do Arqué- rica da Consciência Coletiva através dos arquéti-
tipo da Sombra ser expresso por símbolos e fun- pos, como fez Erich Neumann, no seu livro “His-
tória e Origens da Consciência” (1995), e Jung,
1
“Nothing is either good or bad, but thinking makes it so!”. no livro “Resposta a Job” (1954 p. 553-758).

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ESTRUTURA E DINÂMICA DO SELF


Processo de Elaboração Simbólica

Vivências SUPRACONSCIÊNCIA Vivências

CONSCIÊNCIA Eixo Simbólico SOMBRA


Persona Criativa Dominantemente Dominantemente Persona Defensiva
Consciente Inconsciente

EGO OUTRO EGO OUTRO

Função Transcendente da Imaginação


Introjeção Projeção Função Sacrificial Introjeção Projeção
Função Avaliadora
Função Ética
FUNÇÕES ESTRUTURANTES CRIATIVAS Função Estética
Fixações FUNÇÕES ESTRUTURANTES DEFENSIVAS
Compulsão de Repetição

Símbolos Estruturantes
Funções Estruturantes
Sistemas Estruturantes

Arquétipo do Herói
Arquétipo da Conjunção

Quatérnio Arquetípico Regente


Arquétipo da Alteridade

Arquétipo ARQUÉTIPO CENTRAL Arquétipo


Matriarcal Arquétipo de Vida e da Morte Patriarcal
Arquétipo do Bem e do Mal

Arquétipo da Totalidade
Demais arquétipos
Gráfico. Processo de Elaboração Simbólica

No Mito de Job, o Diabo é reconhecido como cias do Eixo Simbólico, ou Eixo Ego-Arquétipo
filho de Deus, isto é, como função estruturante Central, cujas polaridades estão fixadas e mal
do Arquétipo Central. Ao seduzir Deus para testar elaboradas, o que nos leva à pergunta: Quem é
Job e mostrar que sua fé é limitada, o Diabo de- que Satanás está testando? Job ou Deus? Quem
sencadeia a elaboração da função estruturante se dispõe a elaborar a Sombra, ou seja, a con-
da fé. A questão a ser examinada dentro da fé se frontar o Diabo, precisa estar disposto a ver o
revelará como a função estruturante da justiça. Mal tanto no Outro como em si mesmo.
Satanás não aponta abertamente a falta de Iniciado o drama, sem ter feito nada de mal,
fé de Jó porque esta realmente não existe, mas Job é despojado de sua família, sua saúde e
cria ardilosamente um sofrimento atroz para seus bens. Inconformado, ele questiona Deus
que Job se insurja contra Deus e que o proble- por isso, com grande convicção. Seus três ami-
ma da fé seja mais profundamente elaborado gos, Elifaz, Bildade e Zofar admitem a infelici-
no Self Cultural. dade de Job, mas são contra o seu protesto.
Ao expressar símbolos, complexos e funções A seguir, Deus se revela a Jó e lhe mostra a sua
estruturantes fixados, a Sombra veicula vivên- grandeza. Jó se arrepende de sua contestação

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e Deus lhe recompensa, devolvendo-lhe em do- Arquétipo Central, o símbolo do Homem-Deus, na


bro o que lhe havia tirado. Ao mesmo tempo, religião, expressa o caminho mítico da encarna-
Deus repreende os três amigos e lhes determi- ção do Arquétipo Central para equipar a Consci-
na que presenteiem Job. ência com o Arquétipo da Alteridade.
Algo que chama a atenção na história de Job Seguindo as cinco posições arquetípicas
é a diferenciação que Deus faz entre Job e seus da elaboração simbólica, o início da criação do
três amigos e a deferência com que Deus trata mundo corresponde à posição indiferenciada
Job, cuja única atitude que o distingue dos três (urobórica) do Arquétipo Central, e os mitos da
foi o seu protesto, inconformismo e exigência fertilidade da natureza expressam a posição in-
de justiça. sular matriarcal. Ela é seguida pelos mitos so-
Job contesta porque não admite que Deus lares descritos por Neumann, que expressam a
não seja justo. Mesmo voltando atrás e se arre- posição polarizada patriarcal. A Psicologia Sim-
pendendo de sua contestação, é como se sua bólica Junguiana foi além e descreveu a implan-
exigência de um deus justo prevalecesse no final tação mitológica da posição dialética de Alteri-
e o privilegiasse acima dos seus três amigos, re- dade através do Mito Cristão no Ocidente e do
cebendo em dobro o que lhe havia sido tomado. Mito de Buda no Oriente. Segue-se a ela a posi-
É como se Deus dissesse: “Eu não admito minha ção contemplativa que representa, por exemplo,
Sombra de injustiça devido à qual caí na manipu- o Arquétipo da Totalidade no Taoismo. Os mitos
lação de Satanás, que a projetou em você, mas formam a consciência com os cinco padrões de
sou grato por você ter me diferenciado dela”. relacionamento Ego-Outro através de funções
Jung referenda essa interpretação quando estruturantes. Como já mencionei, estas podem
caracteriza a aliança de Deus com Satanás para ser normais, ou, formar a Sombra, quando são
testar a fidelidade de Job, como uma grande fixadas e defensivamente distorcidas.
fraqueza. Ela evidencia a insegurança de Deus Desta maneira, a Psicologia Simbólica Jun-
de ser amado, pela crueldade e prepotência guiana concebeu a Teoria Arquetípica da Histó-
com que tratou seu servo tão fiel. Falta só Deus ria que descreve a encarnação progressiva dos
acrescentar que, ao louvar Job acima dos seus Arquétipos Matriarcal e Patriarcal seguidos pelo
amigos, isto significa que, de alguma forma, Ele Arquétipo da Alteridade. Nesse sentido, o Velho
prezou a crítica de Job, apesar de não a ter ad- Testamento representa este processo sob a do-
mitido abertamente. minância do Arquétipo Patriarcal e caminha, no
Para Jung, então, o livro de Job, o Livro de Ocidente, em direção à humanização do Arqué-
Enoch, os Eclesiastes e os Salmos são capítulos tipo da Alteridade através do Novo Testamento e
preparatórios simbólicos prospectivos. Assim, do Mito de Cristo.
pelo fato de abrir mão de qualquer pretensão te- No entanto, como já descrevi em outros tex-
ológica e de se manter claramente dentro da psi- tos, este caminho, longe de ser linear, mostra
cologia, Jung segue Neumann e se permite situar que a coordenação do Self pelo Arquétipo Pa-
o Mito do Velho Testamento e a figura de Jeovah triarcal resiste à passagem para a dominância
como um estágio psicológico evolutivo em dire- de alteridade e retoma o poder com frequência
ção ao Novo Testamento e à busca da encarna- e de inúmeras maneiras. Apesar do simbolismo
ção do Homem-Deus. do sacrifício extremo de Jesus com a própria
Seguindo Erich Neumann (1995) e Jung, a Psi- vida, nem por isso seu mito foi até hoje encarna-
cologia Simbólica Junguiana concorda que o mito do na consciência individual e coletiva em toda
seja o precursor arquetípico e histórico da Consci- sua plenitude. Como nos mostram os Evange-
ência e acrescenta que, levando-se em conta que lhos Gnósticos de Nag Hammadi (1978 p. 526
o Ego é o produto da elaboração coordenada pelo e 139, minha tradução), os próprios Evangelhos

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Canônicos já foram patriarcalizados em várias O Mito do Cristo se propõe ser, por excelência,
passagens para puritanizar unilateralmente a o Mito do Homem-Deus e, por isso, junto com a
figura de Jesus. O relacionamento de Jesus e redução erótica do feminino vemos também a re-
Maria Magdalena, por exemplo, foi censurado dução da agressividade e do Mal depositado no
junto com os significados terríveis da tortura Anticristo e no Diabo. Mas, diante da bondade e
da Via Crucis e da crucificação. A pasteuriza- da compaixão depositadas no Cristo, como pode-
ção defensiva patriarcal do Novo Testamento ria ele englobar também o Diabo e o Mal?
coloca o sacrifício de Jesus dentro de uma sub- Jung respondeu parcialmente esse impasse,
missão total, como fizeram os amigos de Job, condenando a receita apriorística de vivenciar a
que encobre a brutalidade do filicídio. A frase divindade unicamente através dos textos bíbli-
“Porque me abandonaste?” revela o desenvol- cos e recomendando a experiência viva de Deus.
vimento da tragédia que culmina com a outra Depois de sua primeira comunhão, Jung relata:
frase “seja feita a vossa vontade”, o que nos
lembra a submissão de Jó. No entanto, da mes- só pouco a pouco, durante os dias que se
ma forma que Jeovah registrou o clamor de Job seguiram, emergiu a ideia: nada aconte-
por um Deus justo, Ele receberá o impacto da cera... Por outro lado, era perfeitamente
claro que Jesus, o homem, tinha relação
morte sacrificial de Jesus por um Deus de amor.
com Deus. Estava desesperado em Get-
São estas duas passagens inseparáveis da mor-
sêmani e na cruz, depois de haver ensi-
te sacrificial, “porque me abandonaste” e “seja
nado que o amor e a bondade de Deus
feita a vossa vontade”, que transformarão o
eram o de um bom pai. Mas vira, então,
Deus guerreiro possessivo, ciumento, cruel e,
quanto Deus pode ser terrível. Isso eu
muitas vezes injusto, expresso pelo Arquétipo
podia compreender. Mas, porque aquela
Patriarcal, no Deus amoroso da compaixão e do
pobre comemoração com pão e vinho?
entendimento encarnado na Trindade como o
Pouco a pouco tornou-se claro para mim
Pai, o Filho e o Espírito Santo, expressão dialé-
que aquela comemoração fora uma deplo-
tica e sublime do Arquétipo da Alteridade.
rável experiência. Dela, só resultaria o va-
Dentro da injustiça e da brutalidade do mito,
zio, pior ainda, uma perda. Para mim, não
chama a atenção na história da Igreja a apresen-
se tratava de uma religião, mas uma au-
tação de Jesus crucificado e obediente, com a sência de Deus. Não voltaria mais à Igreja,
conotação “daquele que morreu por nós peca- que, para mim, não era um lugar de vida,
dores” e não “daquele que se entregou à morte mas de morte. (JUNG, 1961, p. 59)
como a condição de transformar seu pai”. Base-
ada nessa aparente submissão total de Jesus, a Jung passou a cultuar Deus através da expe-
Igreja passou a exercer o Cristianismo com mão riência, muitas vezes terrível, do Sagrado, ca-
de ferro e repatriarcalizou o Mito a tal ponto, que racterizado como o Numinosum (OTTO, 1959).
desencadeou o controle e a repressão até insti- Apesar de muito fascinante e de pouco ortodo-
tucionalizar a Inquisição, uma característica pa- xa, essa formulação do Mal dentro da divinda-
triarcal que, durante séculos, violenta o Mito. de, teve grandes discussões teológicas (prefácio
Sabemos o quanto o Arquétipo Patriarcal é Father-While), mas não conseguiu situar a pre-
capaz de produzir Sombra quando opera defen- sença do Mal em Deus (no arquétipo) claramen-
sivamente e, por isso, como reconhece Jung, não te na Psicologia.
há como não se associar o Apocalipse de São No livro de Job (1954), Jung aborda o Livro
João com as defesas de repressão e de idealiza- das Revelações ou O Apocalipse de São João
ção presentes no Novo Testamento. como a Sombra dos Evangelhos Canônicos, que

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expressariam por compensação, como num A bênção: “A graça de nosso Senhor Jesus Cristo
sonho, tudo o que ficara faltando no Cristia- seja com todos vós. Amém” (Apocalipse, 22:21).
nismo, como a agressividade e o feminino na Dentro da perspectiva teórica da Psicolo-
imagem do Cristo como Homem-Deus. Assim gia Simbólica Junguiana, a exegese do Mito do
sendo, seria inevitável surgir de forma vulcâni- Cristo dentro da perspectiva da encarnação do
ca no Apocalipse a imagem erótica do feminino Homem-Deus necessita ser percebida na tran-
e da agressividade sombria sob a forma do An- sição do Arquétipo Patriarcal para o Arquétipo
ticristo. O extraordinário, porém, é que o texto da Alteridade. Segundo esta maneira de ver, já
é escrito em nome de Jesus, o que nos permite durante os Evangelhos Canônicos e posterior-
ver psicodinamicamente o Anticristo como a mente, na História da Igreja, principalmente na
Sombra do Cristo, assim como o Diabo, o filho Inquisição, observa-se a implantação da Alteri-
sombrio de Deus. dade junto com atuações regressivas defensivas
Assim, é de suma importância para corroborar patriarcais que muito desqualificaram a mensa-
isto, registrar que o Apocalipse de João começa: gem amorosa de Jesus.
O brutal sentido da morte sacrificial de Je-
Revelação de Jesus Cristo, a qual Deus sus para gerar a Ressurreição e a glorificação do
lhe deu, para mostrar aos seus servos Messias é aqui compreendido como o extraordi-
as coisas que brevemente devem acon- nário sofrimento necessário para transformar a
tecer; e pelo seu anjo as enviou, e as no- agressividade sádica repressora do Pai com a
tificou a João seu servo; O qual testificou entrega amorosa do Filho. O resultado do sacrifí-
da palavra de Deus, e do testemunho de cio nesse sentido é possibilitar a reunião do Pai
Jesus Cristo, e de tudo o que tem visto com o Filho através do Espírito Santo para ins-
(Apocalipse, 1: 1-2). taurar a compaixão e o entendimento como duas
das maiores virtudes da busca da realização do
A conclusão do livro é: “Aquele que testifica Homem-Deus. ■
estas coisas diz: Certamente cedo venho. Amém.
Ora vem, Senhor Jesus” (Apocalipse, 22:20). Recebido em 25/03/2019 Revisão em 28/05/2019

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Abstract
The death and resurrection of the Messiah. The Shadow, the Evil and the
Antichrist. A study of the ethical function, by Jungian Symbolic Psychology
The article conceives the archetype of shadow be transformed in the God of compassion and
as the archetype of evil in Jungian Symbolic Psy- understanding because only so will it become
chology and tries to interpret it as an expression the Trinity capable of expressing the archetype
of the central archetype (Self) side by side with of alterity.
the archetype of good. In conclusion, the author follows Jung in the
Jung’s interpretation of Jehovah’s limitation interpretation of the Apocalypse as the shadow of
in the relationship with Job is followed by the the New Testament and calls attention for Jesus’
recognition of the patriarchal sadism within the shadow expressed in His name as symbol of the
Godhead which needs the sacrifice of the Son to integration of the Anti-Christ in the myth. ■

Keywords: antichrist, shadow and evil archetype, death, resurrection, patriarchal god, holy trinity, god of alterity.

Resumen
La muerte y la resurrección del Mesías. La Sombra, el Mal y el Anticristo.
Un estudio de la función ética, por la Psicología Simbólica Junguiana
El artículo conceptualiza el Arquetipo de la Som- compasión y del entendimiento, pues sólo así se
bra como el Arquetipo del Mal en la Psicología Sim- convertirá en la Trinidad y expresará el Arquetipo
bólica Junguiana y busca integrarlo como expresión de la Alteridad.
del Arquetipo Central, al lado del Arquetipo del Bien. En conclusión, el autor sigue a Jung en la in-
La interpretación de Jung de la limitación de terpretación del Apocalipsis como la Sombra del
la imagen de Jeovah en la relación con Job es Nuevo Testamento y llama la atención sobre el
aquí continuada con el reconocimiento del sadis- texto ser escrito en el nombre de Jesús, lo que su-
mo del Dios patriarcal, que necesita del filicidio giere la integración del símbolo del Anticristo en
sacrificial para transformarse en el Dios de la el mito, como la Sombra de Jesús. ■

Palabras clave: anticristo, el arquetipo de la sombra y del mal, muerte, resurrección, dios patriarcal,
santísima trinidad, dios de la alteridad.

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Referências
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Junguiana
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A difícil arte de amar. A limitação do


conhecimento entre o homem e a mulher.
Uma interpretação da Psicologia
Simbólica Junguiana1

Carlos Amadeu B. Byington*

Resumo Palavras-chave
Baseada na formação da identidade pela afirma também que grande parte desse peque- amor, relação
elaboração dos símbolos e funções estru- no conhecimento acumulado está deformado homem-mulher,
turantes coordenadas por arquétipos nas in- por projeções defensivas mútuas, oriundas da formação da
identidade do
contáveis vivências existenciais, a Psicologia constituição física, do problema do desenvolvi-
homem e da
Simbólica Junguiana argumenta, neste artigo, mento diferente de um e de outro e da confusão mulher,
que o amor exige o conhecimento das personal- da identidade do homem e da mulher com os redutivismo da
idades dos amantes e que o desconhecimento papéis que desempenharam na história. identidade às
entre o homem e a mulher, que ainda é muito Assim sendo, o autor descreve resumida- circunstâncias
grande, dificulta sua vivência. mente essas deformações e, concluindo, afirma históricas,
A seguir, o autor defende a tese segundo a que, para se conhecerem e poderem se amar, principais
qual o conhecimento entre o homem e a mulher o homem e a mulher necessitam antes de tudo entraves ao
amor.
vem se desenvolvendo lentamente na história da elaborar essas deformações milenares que os
humanidade, mas ainda está no seu início. Ele afastaram e ainda hoje os iludem. ■


1
Publicado originalmente na revista Junguiana 32/1, 2014,
p. 63-72.
* Médico Psiquiatra e Analista Junguiano. Membro fundador
da Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica. Membro da
Associação Internacional de Psicologia Analítica. Criador da
Psicologia Simbólica Junguiana. Educador e Historiador.
E-mail: c.byington@uol.com.br site: www.carlosbyington.com.br

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A difícil arte de amar. A limitação do conhecimento entre o homem e a


mulher. Uma interpretação da Psicologia Simbólica Junguiana

Heidegger nos ensina que, para pensar on- te, pelo Arquétipo Patriarcal, com sua posição
tologicamente, o ser humano necessita temati- polarizada, a qual é seguida pela coordenação
zar os problemas. A tematização da identidade do Arquétipo da Alteridade por meio da posição
do homem e da mulher é uma ocupação que se dialética (BYINGTON, 2008).
perde na origem dos tempos, mas o aprofunda- A elaboração simbólica tem início na posi-
mento do seu estudo faz parte de várias ciências ção insular matriarcal por intermédio da função
humanas na modernidade. Continuando esse estruturante da imitação, que pode ser sintô-
estudo, quero aqui enfatizar que, apesar de mui- nica (semelhante) ou distônica (reativa), e se
tos acharem esse tema resolvido com o rótulo aperfeiçoa, na posição polarizada patriarcal,
simplório “homens são de Marte e mulheres são por tantas repetições quanto forem necessárias
de Vênus”, ele é muito mais complexo do que das funções estruturantes da introjeção e da
aparenta e está ainda no seu início. Sua impor- projeção. A elaboração na posição dialética da
tância é devida à polaridade biológica e emo- alteridade continua a ser feita pelas repetições
cional homem-mulher ser das mais importantes seguidas das funções estruturantes da introje-
na vida da espécie e ao fato de ela estar muito ção e da projeção, que vão, paulatinamente,
deformada e em grande parte fixada na Sombra. aperfeiçoando a identidade do Ego e do não
Da mesma forma que muitos de nós ainda Ego, ou seja, do Outro.
acreditamos na imobilidade da Terra e, por isso, De acordo com a Psicologia Simbólica Jun-
temos dificuldade em imaginar a descoberta he- guiana, o Arquétipo Matriarcal, da sensualidade,
liocêntrica de Copérnico, também achamos que e o Arquétipo Patriarcal, da organização, englo-
sabemos como são o homem e a mulher, por- bam o masculino e o feminino, ou seja, estão
que, afinal... já nos conhecemos há bem mais de presentes na psique tanto do homem quanto da
100 mil anos, não é? mulher. Ao considerar o matriarcal igual ao femi-
nino, e o patriarcal igual ao masculino, a cultura
1. A formação da identidade e da sombra em geral e a psicologia em particular projetaram
A identidade das coisas na Consciência não defensiva e redutivamente no masculino e no
se forma diretamente pelas vivências. A iden- feminino os papéis históricos vivenciados pelo
tidade se cria e se organiza com a formação da homem e pela mulher durante os mais de 10 mil
polaridade Ego e não-Ego, ou seja, da polarida- anos de dominância patriarcal.
de Ego-Outro. Vou descobrindo quem eu sou, Quando ocorre um distúrbio da elaboração
junto com a descoberta de quem eu não sou. simbólica, a polaridade Ego-Outro fica deforma-
A identidade do Ego e do Outro emerge da indife- da. Suas características não se diferenciam cor-
renciação psíquica original pela elaboração dos retamente e a identidade dos dois fica misturada
símbolos e das funções estruturantes coordena- e comprometida. O distúrbio da elaboração é a
da pelos arquétipos a partir das vivências. principal origem da fixação que forma a Sombra,
A elaboração simbólica começa com a aten- ou seja, o pecado, o crime, o mal e toda a psico-
ção do Self focada em um símbolo que está na patologia (BYINGTON, 2008).
posição indiferenciada do Arquétipo Central. Ela Devido à sua complexidade e às circunstân-
continua pela coordenação do Arquétipo Matriar- cias da vida, a elaboração da identidade e da
cal por meio da posição insular e, posteriormen- relação homem-mulher foi se deformando com o

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tempo e passou a apresentar fixações e defesas saram o culto das divindades como forças cria-
tanto na dimensão matriarcal quanto na patriar- doras da fertilidade da natureza. No entanto, a
cal e, também, na alteridade, que inclui os Ar- identificação dessas forças exclusivamente com
quétipos da Anima e do Animus. as grandes mães foi um redutivismo do Arqué-
Pelo fato de a elaboração simbólica somen- tipo Matriarcal ao feminino, como já mencionei.
te realizar o seu potencial pleno dentro da po- Na realidade, os grandes deuses também ex-
sição dialética de alteridade, é de fundamental pressam a criatividade da fertilidade.
importância elaborar as fixações da relação ho- Dentro da dominância patriarcal, o mito da
mem-mulher na dimensão matriarcal, depois na Gênese na mitologia judaico-cristã descreve o
dimensão patriarcal e, finalmente, na própria nascimento de Eva a partir de uma costela de
dimensão de alteridade. Precisamos compreen- Adão e, assim, deforma matriarcalmente a re-
der, então, que a função estruturante do amor só lação homem-mulher nessa importante raiz mi-
pode ser profundamente elaborada e vivenciada tológica da Cultura Ocidental. Essa deformação
quando o homem e a mulher se tornam capazes matriarcal serve de base para uma deformação
de se conhecer ao exercerem plenamente a posi- patriarcal da relação de poder, segundo a qual a
ção dialética, que inclui os Arquétipos da Alteri- mulher deve obedecer ao homem.
dade, da Anima e do Animus. Essa elaboração é A organização social patriarcal deu uma for-
inseparável da liberdade, da consideração mú- ma à sociedade, que influenciou todas as suas
tua e dos direitos iguais para o desenvolvimento dimensões, a começar pela propriedade priva-
do homem e da mulher como companheiros no da, pelas classes sociais e pela família, em torno
processo de individuação de cada um. das quais se formularam a moral (superego) e as
leis para aplicá-la.
2. As principais disfunções da polar- Como todas as polaridades do Self Cultural,
idade homem-mulher na dimensão a relação homem-mulher também foi intensa-
insular matriarcal mente coordenada pela organização patriarcal.
O assentamento dos povos deu origem à Apesar da mudança do paradigma sensual
formação das aldeias, das vilas e das cidades- matriarcal para a organização patriarcal, a lei
-reino. Uma vez garantida a alimentação com a do mais forte continuou a ser a diretriz maior
introdução da silagem, o convívio social das pes- da elaboração simbólica. Os governantes foram
soas necessitava agora ser organizado. A partir privilegiados com o poder diante do povo, os
daí, o Arquétipo Patriarcal, que é o arquétipo da nobres diante dos servos e, posteriormente, o
organização, foi intensamente ativado e propi- proprietário diante do operário, o latifundiário
ciou a organização da povoação do Planeta. diante do trabalhador do campo, os pais diante
Os mitos são os sonhos do Self Cultural, dos filhos, o professor diante dos alunos, o ser
oriundos da atuação da função estruturante da humano diante da flora e da fauna, e assim por
imaginação (função transcendente, de Jung) so- diante. A polaridade homem-mulher sofreu a
bre fatos históricos, circunstâncias ambientais mesma deformação que a organização da famí-
ou sobre ideias e emoções individuais ou cole- lia e da sociedade.
tivas. Eles desempenham funções estruturantes O trabalho no lar, dividido entre a função
importantes para a formação da identidade indi- procriadora e doméstica, foi atribuído à mulher,
vidual e cultural. enquanto as funções religiosa, militar, jurídica e
Durante a dominância matriarcal da pré-história operacional social foram atribuídas ao homem.
predominaram os mitos de fertilidade, nos quais As funções do homem foram claramente privile-
grandes deusas e deuses propiciam as forças da giadas pelo “pátrio poder”. As consequências
natureza. As religiões panteístas bem expres- desse arbítrio na civilização marcaram a ferro e

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fogo, pela polaridade opressor-oprimido, a iden- poder, como é o caso do favorecimento da au-
tidade histórica do homem e da mulher. Apesar tomutilação das pretendentes ao casamento em
da grande diferença que observamos entre esses algumas tribos africanas.
papéis sociais nas diferentes culturas, o deno- É dentro dessa mentalidade de repressão da
minador comum arquetípico da polarização pa- sensualidade da mulher na família patriarcal que
triarcal na organização social, baseada na lei do vemos sociedades islâmicas, nas quais milhões
mais forte, nos permite perceber uma desigual- de mulheres só podem mostrar sua face para os
dade inegável, que tem impedido a realização seus maridos dentro de casa. Nesse contexto,
emocional e existencial do homem e da mulher floresce a repressão não só à sensualidade da
como indivíduos e como casal. Não importa, para mulher, como também ao seu desenvolvimen-
esse impedimento, se o homem é o repressor e to intelectual. Tornou-se emblemático o caso
a mulher a reprimida, pois ambos tiveram impor- de ácido jogado no rosto de meninas indo para
tantes aspectos da sua identidade deformados e a escola, coroado pelo tiro dado na cabeça da
fixados na Sombra, os quais limitam muito, até menina Malala, pelo fato de ela defender o cres-
hoje, sua realização, o seu conhecimento mútuo cimento da escolaridade feminina no Paquistão
e a busca do amor. (G1, 2013). A serviço da repressão da mulher está
A manutenção dessa desigualdade por meio até mesmo o estupro recomendado por lei tribal.
do poder tem sido uma das características da or- Recentemente, na Índia, uma jovem foi estupra-
ganização patriarcal. Uma de suas formas foi o da por 12 homens por ter sido vista namorando
controle da sensualidade da mulher pela mutila- um rapaz de outra comunidade (FOLHA DE SÃO
ção dos seus órgãos sexuais externos, que pode PAULO, 2014).
incluir a extirpação dos grandes lábios vaginais Dentro dessas barbaridades que nos causam
e a cliterotomia. horror e que são praticadas em muitas culturas
Existem hoje, na África, por volta de 130 mi- há milênios, mas que pouco se conhecia e hoje,
lhões de mulheres genitalmente mutiladas (BBC com a internet, ficamos sabendo dia a dia, de-
BRASIL, 2014). Geralmente, essa mutilação é vemos reconhecer também as consequências da
feita em meninas, ainda inconscientes da sexu- dominância patriarcal nas sociedades ocidentais
alidade, pelas velhas parteiras do grupo, elas consideradas “evoluídas” e nas quais achamos
próprias já mutiladas na sua infância. Em certas que os homens e as mulheres têm direitos iguais
sociedades, porém, as próprias moças pedem e que, se não se amam, é porque não querem.
para ser mutiladas, pois o fato de não o serem A descoberta de Freud (1972) da sexualida-
significa que gostam de sexo e, por isso, devem de infantil foi um choque para o puritanismo da
ser preteridas para casar, pois não podem ser cultura ocidental. No entanto, mesmo dentro da
“moças de família” (Idem, ib.). almejada isenção científica, a Psicologia não
se liberou da misoginia patriarcal. Assim é que
3. O sadomasoquismo na relação Freud, junto com a descoberta da sexualidade
homem-mulher infantil, descreveu a reação da menina quando
Ao ampliar a visão sobre a sexualidade utili- percebe que não tem pênis, atribuindo a ela um
zando o conceito de função estruturante arque- complexo de castração e a inveja do pênis. Um
típica, a Psicologia Simbólica Junguiana pode exemplo significativo de sadomasoquismo, den-
percebê-la como uma função estruturante da tro da teoria psicológica, parece-me ser profes-
Consciência, junto com a função estruturante do soras de Psicologia ensinarem essa interpreta-
poder. Dessa maneira, a relação sadomasoquis- ção psicanalítica como verdadeira.
ta pode ser vista, além de uma perversão sexual Outro exemplo da interpretação patriarcal de-
(KRAFFT, 1986), como um distúrbio da relação de fensiva atribuída pela Psicanálise ao desenvolvi-

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mento da sexualidade infantil foi a fase de latên- tidade. Quando assim fazemos com as reações
cia descrita da infância até a puberdade. Ora, o de Laio, Jocasta e de Édipo, temos uma noção
menino não tem essa fase porque sua sexuali- muito mais abrangente da formação deste com-
dade é desde sempre estimulada como incenti- plexo, de sua fixação e do grau de sua patologia.
vo à sua masculinidade. Quem apresenta a fase Ao elaborar, dentro da sincronicidade, a família
de latência da sexualidade é a menina, mas não dos Labdácidas, que gerou Laio, vemos que o
por ser ela natural, e sim por ter sua sexualidade Complexo de Édipo é tudo, menos normal e de
reprimida. Desta maneira, a própria descoberta responsabilidade exclusiva de Édipo. Isso evita
da sexualidade infantil feminina deu margem a a redução da normalidade à patologia na for-
mais uma oportunidade para a organização pa- mação da identidade e a responsabilização da
triarcal da Consciência inferiorizar a mulher. criança pela patologia familiar.

4. O quatérnio primário e a formação da 5. A diferença entre a constituição do


polaridade Ego-Outro homem e da mulher
Outra consequência da deformação da identi- Outra deformação da relação homem-mulher
dade masculina e feminina pela teoria do desen- que limita sua compreensão mútua e sua rela-
volvimento psicológico foi a redução da relação ção amorosa é a sua diferença constitucional.
primária à díada criança-mãe, com a exclusão do Ela precisa ser levada em conta na formação
pai. Essa redução e deformação da relação pri- da identidade deles e na influência que tem no
mária coincide com os papéis familiares reduti- seu relacionamento.
vos históricos estabelecidos para o homem e a O homem e a mulher são geneticamente mui-
mulher na tradição milenar da família formada to diferentes pelo fato de o genoma da mulher
pela organização patriarcal. No entanto, essa possuir os cromossomos XX e o do homem, XY.
redução e deformação desaparecem quando Essas características geraram um sem número
percebemos as relações da criança com os pais de diferenças simbólicas, mas essas caracterís-
e a formação da sua identidade Ego-Outro pelo ticas não são causalmente determinantes de ne-
quatérnio primário. Nesta relação quaternária, nhum aspecto das suas identidades. No entanto,
o Complexo Materno (Mãe e cuidadoras) rela- elas precisam ser levadas em conta quando bus-
ciona-se com o Complexo Paterno (pai e cuida- camos compreender a identidade e a dinâmica
dores), estabelecendo um vínculo interparental simbólica da sua formação.
vivenciado pela criança com base em suas pró- Junto com a força física, temos outra grande
prias características (BYINGTON, 2008). diferença entre o homem e a mulher, centrada na
Pelo fato de a identidade se formar pela função da gestação.
relação entre esses quatro pilares, devemos Quando analisamos sumarissimamente o
perceber o resultado desta interação pela sin- funcionamento do organismo da mulher, nos da-
cronicidade e não pela causalidade. Quando mos conta que ele é radicalmente diferente do
interpretamos essa relação pela causalidade, organismo do homem. Desde a puberdade dela
atribuindo a autoria de um sintoma a um outro até a menopausa, ou seja, aproximadamente
componente do quatérnio, caímos forçosamen- dos 12 aos 50 anos, ela vive ciclos de 28 dias, or-
te no redutivismo e na deformação. Foi o que a ganizados em função da possibilidade da fecun-
Psicanálise fez maciçamente ao responsabilizar dação e da gestação. Em cada ciclo menstrual,
a criança pelo Complexo de Édipo. os ovários geralmente produzem um óvulo, que
Precisamos sempre elaborar cada um dos poderá ser fecundado em uma das Trompas de
pilares do quatérnio primário para compreender Falópio, na descida para o útero. A ovulação está
a formação de qualquer característica da iden- ligada à interação da hipófise com o ovário para

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desenvolver cada um dos óvulos do reservatório to diferente do que acontecerá com ele, que não
ovariano. Quando ocorre a fecundação, a mens- poderá mais vestir-se como a mãe ou desempe-
truação se interrompe e os hormônios femininos nhar qualquer atividade tida como feminina, sob
preparam a gestação, o parto e o aleitamento. pena de ser ridicularizado e chamado pejorativa-
Quando a fecundação não ocorre, recomeçam as mente de mulherzinha, para dizer o mínimo.
menstruações e os preparativos para a possibili- Como essa transformação ocorre num ní-
dade de uma fecundação, duas semanas depois. vel verbal, mas ainda também grandemente
Cada ciclo menstrual afeta cada mulher de uma pré-verbal, é difícil imaginarmos o quanto essa
forma ou de outra e as variações dele são com- separação abrupta e traumática da identificação
paráveis às quatro fases da Lua. com a mãe afetará a função afetiva do menino.
O organismo do homem é, endocrinologica- No entanto, a grande diferença entre o homem e
mente, radicalmente diferente em função da re- a mulher, que levou à afirmação de que “homens
lação com a fecundação, a gestação e o aleita- vêm de Marte” e “mulheres, de Vênus”, origina-
mento. À produção unitária da mulher para cada -se nessa fixação. Quanto maior for a dominân-
ciclo menstrual, compara-se a produção de 300 cia patriarcal na cultura e a repressão da função
milhões de espermatozoides por dia e a 600 mi- afetiva do menino com a ameaça de homosse-
lhões deles em cada ejaculação. Enquanto cada xualidade, mais difícil será para ele elaborar
óvulo desliza soberanamente trompa abaixo, em esse trauma e desenvolver a sua função afetiva.
direção ao encontro nupcial, os espermatozoi- A compensação dessa ruptura com a mãe, que
des são dizimados aos milhões pela secreção seria naturalmente mitigada e compensada pela
uterina, de tal forma que somente um sobrevi- relação afetiva com o pai, também é cerceada
vente seja coroado com o triunfo antes da morte pela ameaça de homossexualidade, que, em
(SPIELREIN, 1912). grau maior ou menor, limitou o amadurecimento
da função afetiva dele.
6. A diferente formação da identidade Dessa maneira, dos 2 aos 12 anos, resta ao
do homem e da mulher menino privilegiar a agressividade e o arquétipo
Como descrevi em meu livro sobre as sete do herói para grandes lutas e aventuras, em de-
fases arquetípicas da vida (BYINGTON, 2013), trimento de seu amadurecimento afetivo. É esse
a identidade do menino e da menina se forma realmente “o caminho de Marte”, que tornará a
de maneira muito diferente a partir do início da competitividade, a agressividade e, em último
terceira fase da vida (2–12 anos). Até os 2 anos caso, a guerra, uma tendência mais familiar que
de idade, o menino e a menina se sentem iguais o carinho e a afetividade social (BYINGTON, 2013).
ao pai e à mãe quanto à identidade do gênero. O que ocorre com a menina no seu amadu-
Ao se dar conta e ao começar a ser tratado como recimento emocional é radicalmente diferente.
menino, por volta dos 2 anos de idade, ele perce- Elas “são de Vênus” e diferentes dos meninos,
be que, pelo fato de ser homem, ele não é igual não porque assim nasceram, mas porque têm a
à mãe e a menina percebe também, que por ser permissão de continuar a simbiose com a mãe
mulher, não é igual ao pai. Essa constatação após os 2 anos de idade, desempenhando ple-
para ela não tem a importância que tem para ele, namente a função afetiva, sem nenhuma ridicu-
pois ela não sofre nenhuma interdição e conti- larização ou ameaça de, por isso, se tornarem
nuará com todas as atividades iguais à mãe no homossexuais. É comum vermos duas, três e até
vestir e no brincar. Ela poderá até mesmo vestir o quatro meninas andando juntas, afetiva e cari-
salto alto de sua mãe, brincar de mãezinha, “ter nhosamente abraçadas, algo impensável para
filhinhos” e “amamentá-los”. A ela, nada será os meninos, ao menos em nossa cultura. Assim,
proibido na relação com sua mãe e isso é mui- a mulher se expressa verbalmente muito mais

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do que o homem porque sua afetividade é bem 7. A busca do amor na relação
mais livre e estimulada. homem-mulher e o paradigma
A ferida primal da menina pela separação de alteridade
da identificação com o pai não afetará sua es- A integração progressiva da posição dialética
pontaneidade afetiva, que será preservada pela do Arquétipo da Alteridade, preconizada pelo Mito
simbiose com a mãe. Essa ferida afetará a au- do Buda no Oriente e pelo Mito Cristão no Ocidente,
toestima da menina e sua confiança na sua in- chegou nas sociedades ocidentais com as grandes
teligência, na sua iniciativa e capacidade de li- modificações que começaram a abalar significati-
derança e de mando, quanto mais prevalecer o vamente a dominância da organização patriarcal e
privilégio masculino na dominância patriarcal. a desigualdade da relação homem-mulher.
Essa ferida poderá ser compensada pela relação A segunda metade do século XX apresentou
com um pai que admire a sua inteligência e o seu o início dessas grandes mudanças nas socieda-
desempenho escolar, mas é agravada pela des- des ocidentais. Junto com os movimentos em
qualificação da formação intelectual da mulher prol dos direitos humanos, o desenvolvimen-
na sociedade de dominância patriarcal. to tecnológico e médico alterou fundamental-
A influência da elaboração da ferida primal mente a relação homem-mulher. A descoberta
pela separação do menino da mãe e da menina dos anticoncepcionais e da função do clitóris
do pai terá uma grande consequência a partir da no orgasmo da mulher; sua profissionalização
puberdade. Nessa fase, a afetividade é expressa progressiva; a despatologização e admissão da
pelos Arquétipos da Anima e do Animus, junto homossexualidade dentro do desenvolvimento
com a maturidade das glândulas sexuais. dos direitos humanos; o estímulo ao desenvol-
Devido à limitação da função afetiva e ao es- vimento da afetividade do homem; a queda do
tímulo cultural da sexualidade masculina após a muro de Berlin, com o término da guerra fria; a
puberdade, o homem tenderá a se relacionar com pacificação relativa dentro da globalização e o
a mulher privilegiando a sexualidade. Inconscien- desenvolvimento fantástico da comunicação
te dessa limitação do homem, a mulher tenderá a foram decisivos para propiciar o crescimento in-
entrar no relacionamento de forma predominan- tenso da liberdade de desenvolvimento do ho-
temente afetiva e amorosa e este será um dos mem e da mulher e da sua busca de um diálogo
importantes panos de fundo para a limitação do profundo para o seu conhecimento recíproco e o
amor adulto. Este desequilíbrio será agravado seu relacionamento amoroso.
quanto mais a mulher entrar no casamento e na Infelizmente, porém, o reacionarismo de mui-
criação dos filhos dependente financeiramente tas culturas dominantemente patriarcais não só
do homem e sem a autoconfiança para o desen- não diminuiu como, compensatoriamente, até
volvimento profissional e sua autonomia. mesmo aumentou. O ataque traiçoeiro e covar-
A limitação afetiva do homem, além de fa- de às Torres Gêmeas de Nova York e a humilha-
zê-lo privilegiar a sexualidade, o deixa inseguro ção do mundo islâmico pela guerra mentirosa,
afetivamente. Isto frequentemente o leva a tra- covarde e terrivelmente destrutiva do Iraque,
tar a mulher com um autoritarismo que varia do acompanhada do impasse fanático no problema
controle moral e financeiro à opressão física e israelense, desencadearam o terrorismo moder-
mental, convergindo para o sadismo, o espan- no. Ele foi acompanhado da intensificação do
camento e até mesmo o homicídio. Este rela- que há de mais retrógrado em muitas socieda-
cionamento opressivo da mulher, junto com o des, centradas na miséria, no atraso social e na
privilégio econômico-financeiro das classes do- opressão conjugal e intelectual da mulher pela
minantes, se apega às forças reacionárias aves- exacerbação da organização patriarcal repressi-
sas a quaisquer medidas progressistas. va tradicional nessas sociedades.

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8. O feminismo precoce, as doenças sexualmente transmissíveis
Com o desenvolvimento dos direitos huma- e uma profunda desorientação existencial que as
nos graças à integração social progressiva da afastou da autorrealização profissional e amoro-
posição dialética do Arquétipo da Alteridade, sa que tinham certeza de ter conseguido.
desencadeou-se na cultura ocidental um mo- Aos poucos, porém, o movimento feminista
vimento de afirmação da mulher em todas as vem percebendo os descaminhos dessa busca,
dimensões existenciais. No entanto, devido à que, devido às inúmeras atitudes defensivas
opressão e deformação sofrida nos milhares adotadas, precisam ser elaborados e modifi-
de anos de humilhação dentro da organização cados. Com isso, o movimento feminista vem
patriarcal, esse movimento ainda não atingiu a abordando ultimamente seu grande desafio,
mentalidade propiciadora do desenvolvimento que é a realização profissional, com a conquis-
pleno da mulher para conseguir se relacionar ta da independência financeira junto com a ma-
amorosamente com o homem em condições de nutenção da sua riqueza afetiva no relaciona-
igualdade e liberdade. mento com o homem, com os filhos e com o lar,
Deformado pelas muitas defesas estruturadas os quais no passado contribuíram para o seu
nos milênios de opressão, o feminismo seguiu, cerceamento, mas que hoje precisam ser inte-
principalmente na segunda metade do século grados na sua autorrealização.
XX, um caminho de autossuficiência, prepotência
e competição com o homem pelo poder, basea- 9. Conclusão
do nas mesmas deformações do machismo que, Como já havia percebido Hegel (1956), em
através dos tempos, inviabilizaram a capacidade sua teoria sobre o espírito da História, a humani-
de amar do homem. Tratou-se, assim, de uma dade caminha com progressos e retrocessos em
verdadeira enantiodromia (enantio=contrário e direção à liberdade. Esse é o grande ideal para
dromus=correr), uma corrida para o contrário no desenvolvermos a possibilidade da nossa so-
relacionamento homem-mulher, que se opôs à brevivência dentro do amor, que necessita que o
opressão patriarcal da mulher dentro do mesmo homem e a mulher atinjam sua abertura e dedi-
arquétipo que a oprimiu. Esse movimento reativo cação no seu processo de individuação.
inviabilizou a ultrapassagem da organização pa- Inúmeros são os entraves históricos constitu-
triarcal para alcançar um relacionamento na liber- cionais e psicodinâmicos que necessitamos en-
dade e na amorosidade da alteridade. frentar para desenvolver a capacidade de amar,
Nessa competição, atrelada a uma relação de mas a análise desse processo histórico mostra
poder, as jovens lançaram-se a uma conduta se- que nossa espécie tem a necessidade de elabo-
xual e social aparentemente livre e moderna, mas rar essa Sombra para que o homem e a mulher se
cuja insegurança e desregramento caminharam tornem companheiros na busca da plenitude. ■
defensiva e sombriamente para o exibicionismo,
a promiscuidade sexual compulsiva, a gravidez Recebido em: 25/03/2019 Revisão: 28/05/2019

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Abstract
The difficult art of loving. Limitation of knowledge between man and woman.
An interpretation of Jungian Symbolic Psychology
Based on the formation of identity through the knowledge accumulated is deformed by mutual
elaboration of symbols and structuring functions projections. They have their origin in our physical
coordinated by archetypes in countless existential constitution, in the differences of our process of
experiences, Jungian symbolic psychology asserts development and in the confusion between the
in this article that love requires knowledge be- identity of man and of woman and the roles they
tween the personalities of lovers, and that the lack have lived in history.
of knowledge between man and woman, which is Therefore, the author describes summarily
still very pronounced, limits this experience. these deformations and concludes that, in order
The author defends the thesis that knowledge to know and to love each other, man and woman
between man and women is slowly developing need, first of all, to elaborate these millenary de-
in the history of humanity, but is still begin- formations, which have driven them apart through
ning. He states that even this small amount of wounds and illusions. ■

Keywords: love, man-woman relationship, formation of the identity of man and woman, reduction of
identity to historical circumstances, main obstacles to love.

Resumen
El difícil arte de amar. La limitación del conocimiento entre el hombre y la
mujer. Una interpretación de la Psicología Simbólica Junguiana
Basada en la formación de la identidad por la su inicio. También afirma que gran parte de ese
elaboración de los símbolos y funciones estruc- pequeño conocimiento acumulado está deforma-
turantes coordinadas por arquetipos en las in- do por proyecciones defensivas mutuas, oriundas
contables vivencias existenciales, la Psicología de la constitución física, del problema del desar-
Simbólica Junguiana argumenta en este artículo rollo diferente de uno y otro y de la confusión de la
que el amor exige el conocimiento de las person- identidad del hombre y de la mujer con los pape-
alidades de los amantes y que el desconocimien- les que desempeñaron en la historia.
to entre el hombre y la mujer, que aún es muy Por lo tanto, el autor describe brevemente es-
grande, dificulta su vivencia. tas deformaciones y, concluyendo, afirma que,
A continuación, el autor defiende la tesis para conocerse y poder amarse, el hombre y la
según la cual el conocimiento entre el hombre y mujer necesitan antes de todo elaborar esas de-
la mujer se está desarrollando lentamente en la formaciones milenarias que los alejaron y aún
historia de la humanidad, pero todavía está en hoy los engañan. ■

Palabras clave: amor, relación hombre-mujer, formación de la identidad del hombre y de la mujer,
reductivismo de la identidad a las circunstancias históricas, principales obstáculos al amor.

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Uma explicação arquetípica da crucificação


de Jesus pela teoria arquetípica da história1

Carlos Amadeu B. Byington*

Resumo Palavras-chave
Minha teoria arquetípica da história (BYING- anos da história (WATSON, 2005) e a dominância nomadismo,
TON, 1983) segue os passos de Bachofen e de patriarcal iniciada após a revolução agropastoril, arquétipo
Neumann com a modificação do conceito do matriarcal,
mais de 12 mil anos atrás, quando nos tornamos
sociedades
arquétipo matriarcal para o arquétipo da sen- povos assentados.
assentadas,
sualidade, e do arquétipo patriarcal para o ar- A seguir, marcada pelos mitos do Buda, há arquétipo
quétipo da organização, ambos presentes na 2.500 anos, e do Cristo, há 2 mil anos, essa teoria patriarcal,
psique da mulher, do homem e do Self cultural descreve o início da implantação mitológica e civ- metanoia,
(BYINGTON, 2013). ilizatória do arquétipo da alteridade, cujos heróis arquétipo da
Essa teoria descreve a dominância matriarcal messiânicos pregam a elaboração dos confrontos alteridade,
durante a vida nômade dos primeiros 140 mil arquétipos da
humanos pela dialética da compaixão.
anima e do
Finalizando, o artigo elabora a dificuldade
animus,
da transcendência da dominância do arquétipo crucificação.

1
Escrito em 1983, e posteriormente em 2015, aumentada e aper- patriarcal para a implantação do arquétipo da
feiçoada até esta última versão em 2016, para ser publicada
na Junguiana 34, revista da Sociedade Brasileira de Psicologia
alteridade. Concluindo, o autor tenta explicar a
Analítica, São Paulo, 2016. p. 37-49. razão para Jesus não haver evitado Sua crucifi-
* Médico, psiquiatra e analista junguiano. Membro fundador
da Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica. Membro da cação na implantação da missão heroica para
Associação Internacional de Psicologia Analítica. Criador da transformar o deus patriarcal, do Velho Testa-
psicologia simbólica junguiana. Educador e historiador.
E-mail: c.byington@uol.com.br; site: www.carlosbyington.com.br mento, na Trindade, do Novo Testamento. ■

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Uma explicação arquetípica da crucificação de Jesus pela teoria arquetípica


da história

Na minha teoria arquetípica da história, segui matriarcais precedem as patriarcais na formação


os trabalhos de Erich Neumann a respeito do de- da consciência coletiva. Sob meu ponto de vista,
senvolvimento individual, descrito em seu livro o erro de Neumann, assim como o de Bachofen,
póstumo A Criança (1991), e do desenvolvimento foi continuar a reduzir o arquétipo matriarcal ao
cultural, descrito em seu trabalho anterior, Histó- arquétipo da grande mãe, ao papel de mãe, ao
ria da Origem da Consciência (1995). feminino, excluindo o pai e o masculino das ori-
A primeira diferença entre a minha visão e os gens da formação da consciência.
conceitos de Neumann é que ele considera o ar- A justificativa de Neumann para a redução
quétipo matriarcal como o arquétipo da grande do arquétipo matriarcal à grande mãe baseou-
mãe. Isso exclui o masculino da formação origi- -se numa suposta exclusividade mitológica das
nal da consciência. Como já assinalei, considero mães na fertilidade do período original da mito-
a perspectiva de Neumann redutivista porque logia. Essa suposição me parece errada e redu-
concebo o arquétipo matriarcal como o arquéti- tivista, porque muitos deuses pais também ex-
po da sensualidade, o que inclui a mãe e o pai, o pressam a fertilidade primordial. Se, de um lado,
feminino e o masculino. temos grandes deusas da fertilidade representa-
Na redução da formação da consciência ao das por Ishtar, Demeter, Ísis, Artemis, Afrodite,
arquétipo da grande mãe como o único represen- Baubo, Gaia, Rea e muitas outras, por outro lado,
tante da sensualidade matriarcal, Neumann se- temos também grandes deuses da fertilidade,
guiu Johann Jakob Bachofen e seu trabalho épi- como o grande Zeus, o principal fertilizador na
co Direito Materno (1967). Nesse livro, Bachofen formação do panteão olímpico, Uranos, Cronos,
denominou matriarcado um período da história Ea, Osíris e muitos outros. Na religião afro-bra-
que precede a dominância patriarcal moderna, sileira, iorubá-nagô, as divindades da fertilidade
a qual denominou patriarcado. Ele associou o criativa primordial são muito bem balanceadas
matriarcado às grandes deusas da mitologia, ao em gênero. Entre as femininas, temos Iemanjá
feminino, à maternidade e às mulheres dirigindo (água salgada), Oxum (água doce), Oiá-Iansã
a sociedade. (amor conjugal e maternidade), Eúa (mitigadora
A falácia da tese de Bachofen (1967) foi de- da sede), Nanã (fornecedora do barro para mol-
cretada quando a antropologia e a arqueologia dar a espécie humana) e muitas outras. Entre os
não encontraram sociedades dirigidas por mu- masculinos, temos Exu (promotor do sacrifício –
lheres. Assim, após um sucesso acadêmico re- ebó), Ogum (descobridor do ferro), Oxóssi (des-
tumbante, na segunda metade do século XIX, o cobridor da caça), Odudua, que pode ser tanto
trabalho de Bachofen caiu em total descrédito. masculino (VERGER, 1981) como feminino, cria-
Neumann, entretanto, considerou que a ideia dor da terra (SANTOS, 1977).
da precedência do matriarcado em relação ao Como mencionei acima, a psicologia tradicio-
patriarcado é válida na psicologia e na mitologia, nal, baseada no evolucionismo, desqualificou o
sob uma perspectiva arquetípica, e argumentou estado emocional mental primordial da infância
que Bachofen havia fracassado porque relacio- (arquétipo matriarcal) e elegeu, como superior e
nara o matriarcado à história social real. maduro, o princípio da realidade corresponden-
Dessa maneira, Neumann defendeu a impor- te ao superego, à persona e ao arquétipo patriar-
tância da tese de Bachofen: as características cal. Enfatizei ter sido Neumann uma exceção,

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porque ele considerou o estágio primordial como cal, na posição passiva. Nossa espécie tem,
um arquétipo e isso manteve a importância des- aproximadamente, 150 mil anos, de acordo com
sa etapa ao longo da vida. a biologia molecular (WATSON, 2005). Durante
Seguindo Bachofen (1967), Neumann, ao con- cerca de 140 mil anos, fomos grupos nômades
siderar o arquétipo matriarcal como o arquétipo caçadores-coletores com nossa consciência co-
da grande mãe, maternal e feminina, deixou de ordenada pela posição matriarcal insular. Nossas
fora o masculino e o pai das relações primordiais. vidas eram centradas nos símbolos da comida e
Assim, ele estabeleceu um desequilíbrio na teoria na função estruturante da alimentação que guia-
de desenvolvimento que precisa ser corrigido. va nossas andanças. Vivenciamos o arquétipo
Esse é o motivo pelo qual mudei o sentido matriarcal (sensualidade) e o elaboramos predo-
do arquétipo matriarcal, sinônimo de grande minantemente na posição passiva, porque, além
mãe, para o arquétipo da sensualidade, que in- da pesca e da caça, comíamos apenas o que a
clui a mãe e o pai, o masculino e o feminino. Da natureza nos dava. Pouco a pouco, durante sé-
mesma maneira, mudei o sentido de arquétipo culos, integramos a sensualidade matriarcal na
patriarcal como sinônimo do arquétipo do pai e posição ativa, para melhorar instrumentos, para
do masculino para o arquétipo da organização, tecer, para fazer roupas ou para caçar e pescar.
que também inclui a mãe e o pai, o feminino e Alguns instrumentos também eram usados como
o masculino. armamento, para combater grupos rivais. O fogo
Ao reduzir o matriarcal ao feminino e o pa- era usado para cozinhar e para manter animais
triarcal ao masculino, Neumann cometeu o mes- selvagens afastados. A magia era praticada para
mo erro de Bachofen e da psicologia tradicional: todos os fins: a polaridade ego-outro era vivida
reduzir a sensualidade do quatérnio primário à de maneira tão íntima e simbiótica que o ego
mãe, ao seio e ao feminino, e a organização mo- podia tratar o outro como parte de sua própria
ral ao complexo paterno, ao pai e ao masculino. imaginação e desejo. Pela mesma razão, a re-
Essa redução da sensualidade (Eros e Vê- ligiosidade era vivida num panteísmo em que
nus) à mãe e à mulher e da organização (Logos tudo é sagrado e subordinado à integralidade na
e Marte) ao pai e ao homem pertence à fase cir- participação mística (LÈVI-BRÜHL, 1936). O sen-
cunstancial da história (dominação patriarcal), timento era inerente à intimidade e à intuição,
que durou mais de 10 mil anos e que não deve relacionando permanentemente as dimensões
ser considerada como realidade psicológica es- consciente e inconsciente.
trutural. Ao contrário, ela deve ser transcendida, Durante milhares de anos, a sexualidade não
de modo que mulheres e homens, mães e pais, foi associada à gravidez e à função paterna. Os
crianças de ambos os gêneros e de todas as cul- homens eram protetores, amantes, caçadores e
turas possam buscar o pleno desenvolvimento guerreiros, mas não pais. Mães procriavam com
de sua consciência coordenado pelo arquétipo diferentes homens, sem associá-los à sexualida-
(anima e animus) da alteridade, dentro de uma de e à gravidez. O objetivo da vida era comer e
perspectiva de liberdade e democracia. É isso o perambular para buscar mais comida, ter rela-
que pretendo propiciar com as concepções da ções sexuais, criar os filhos, cantar e dançar em
psicologia simbólica junguiana. rituais religiosos, fabricar cerâmica e utensílios,
escapar de animais selvagens, combater grupos
1. Pré-história rivais e sobreviver.
Uma das grandes ilustrações de que a inte- Durante esses 140 mil anos de dominân-
gração dos arquétipos depende da experiência cia matriarcal, predominantemente na posição
existencial é a duração dos 140 mil anos de do- passiva, iniciou-se, paulatinamente, uma inte-
minância no Self cultural do arquétipo matriar- gração do arquétipo matriarcal na posição ati-

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va. O acesso permanente à comida, entretanto, a organização social comunitária das nossas
não foi alcançado e a coordenação do arquétipo tarefas diárias como assentados. Esse desafio
matriarcal permaneceu grandemente na posição extraordinário ativou intensamente o arquétipo
passiva. Dessa forma, nossa espécie era apenas patriarcal, o arquétipo da organização. Para nós,
uma entre inúmeras outras. é difícil imaginar a grandiosidade dessa meta-
O historiador Yukal Noah Harari sugere que noia: a aquisição da autossuficiência alimentar
tenha ocorrido uma mutação em nossa espécie, e a criatividade do arquétipo da organização da
por volta de 70 mil anos atrás, que teria desenca- vida social.
deado um grande aumento de nossa capacidade A formação de vilas e pequenos povoados,
imaginativa, seguida por uma revolução cogniti- seguidos pelas cidades, foi resultado da orga-
va. Daí em diante, teríamos nos tornado capazes nização da vida social de seres humanos se-
de formar extensos grupos comunitários unidos dentários. Muitas novas funções estruturantes
e guiados por ideias (HARARI, 2015). foram ativadas, como a organização do território
individual, da propriedade privada e da herança
2. A revolução agropastoril. centradas na família patriarcal, como célula da
A primeira metanoia da teoria sociedade. Nessa etapa, a sexualidade foi ple-
arquetípica da história namente relacionada à procriação. Os papéis
Por volta de 12 mil anos atrás, começamos do pai e da mãe na família foram firmemente
a plantar e a criar animais, sobretudo equinos, estabelecidos. O tabu do incesto, a virgindade
bovinos, ovinos e caprinos. Cães foram domes- feminina antes do casamento e a proibição legal
ticados muito antes. Isso significou a integração do adultério feminino tornaram-se politicamente
da posição insular do arquétipo matriarcal na corretos. A organização social patriarcal dividiu a
posição ativa e a ativação do arquétipo patriarcal sociedade em classes subordinadas a uma coor-
na posição passiva. denação central, o que, em seu tempo, formou a
Considero a revolução agropastoril a pri- ideia do Estado (ENGELS, 1977).
meira metanoia da teoria arquetípica da histó- A função organizadora do arquétipo patriar-
ria, porque trouxe a primeira mudança de do- cal separa-se da posição simbiótica matriarcal
minância arquetípica na consciência coletiva, insular (ego-outro) e relaciona as polaridades,
Após participarmos da criatividade da nature- separadas entre si, para formar sistemas. A se-
za por mais de 140 mil anos, finalmente apren- paração das polaridades e a função de organiza-
demos a imitá-la, cavando buracos no solo, ção são grandemente reforçadas pelas funções
neles enfiando as sementes e produzindo nos- estruturantes do poder e da agressividade para
so próprio alimento. Após tão longo tempo de manter a abstração, a tradição, a ordem e a de-
busca da nutrição na vida nômade, finalmente sigualdade social. Essa organização patriarcal
integramos essa capacidade da natureza, con- rígida foi imensamente produtiva para dirigir a
trolamos a produção do nosso próprio susten- sociedade e para dominar a natureza e as na-
to e tornamo-nos assentados. Assim fazendo, ções, na paz e na guerra. A visão de mundo pa-
integramos o arquétipo matriarcal na posição triarcal organizou todas as polaridades: a pola-
ativa, realizamos uma revolução sociológica, ridade inferior-superior, reforçada pelas funções
ultrapassamos a maioria das outras espécies estruturantes da agressão e do poder, tornou-se
e passamos a dominar e a mudar a vida em um denominador comum a todos os sistemas
nosso planeta. da consciência.
A energia poupada como fim do trabalho Todas as polaridades sofreram essa ela-
exaustivo da atividade nômade foi aplicada no boração hierárquica e foram integradas na
segundo grande problema da espécie humana: consciência, de acordo com a conotação infe-

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rior-superior. Todas as forças naturais foram Seguindo Freud, descrevo a formação das
dominadas e organizadas com a conotação in- defesas, da patologia, da Sombra e do mal,
ferior-superior do poder e do controle (ADLER, fixação das funções estruturantes normais. É
1914). A abstração simbólica e a metaforização o conceito de fixação, de defesa, de comple-
produzidas pelo arquétipo patriarcal introdu- xo e de Sombra que nos permite compreender
ziram a consciência na dimensão das ideias e como o arquétipo patriarcal foi capaz de criar
das ideologias. Foi ela que permitiu o aumento e de organizar tantos feitos geniais do bem na
considerável dos grupos humanos, formando civilização e ao mesmo tempo realizar tanta
sociedades, em função de uma identificação carnificina, destruição e horror, dentro do mal
com valores e ideias (HARARI, 2015). (BYINGTON, 2006 p. 15-46).
Após muitos milhares de anos, durante os
3. As cinco posições arquetípicas quais a organização patriarcal modelou frontei-
(inteligências) da consciência ras, sociedades e culturas, a espécie humana con-
O arquétipo do herói é o grande auxiliar da quistou a Terra, reinou sobre ela e transformou a
função estruturante do arquétipo central (BYING- maioria das espécies de sua fauna e de sua flora.
TON, 2002). Ele age de forma diferente em cada Sua forma extrema de dominação foi a guerra e o
uma das cinco inteligências arquetípicas do Self. genocídio, que mancharam com sangue, matan-
Como descrevi anteriormente, elas são: a posi- ça, coragem, covardia, vergonha e horror os mais
ção unitária indiscriminada (urobórica) ego-ou- gloriosos ideais da história “civilizada”.
tro do arquétipo central, a posição insular binária A organização patriarcal moldou de tal manei-
ego-outro do arquétipo matriarcal, a posição ter- ra uma visão de mundo sistematicamente hierár-
nária polarizada ego-outro do arquétipo patriar- quica que as sociedades modernas estão pro-
cal, a posição quaternária dialética ego-outro do fundamente divididas entre ricos e pobres, entre
arquétipo da alteridade, que inclui os arquétipos a elite econômica, política e militar e a maioria
da anima e do animus, e, finalmente, a posição do povo, mesmo nas democracias. As minorias
unitária contemplativa ego-outro do arquétipo foram estigmatizadas, dominadas e, quando re-
da totalidade (BYINGTON, 2008). beladas, frequentemente dizimadas. A visão de
Reforçando a implantação da posição pola- mundo patriarcal separou rigidamente as pola-
rizada do arquétipo patriarcal, o arquétipo do ridades e estabeleceu uma clara discriminação,
herói expressou muitos feitos extraordinários favorecendo um polo e desfavorecendo outro,
na conquista das forças planetárias naturais, na de acordo com a sua capacidade de poder e
travessia de oceanos, aventurando-se na desco- agressão. As polaridades homem-mulher e adul-
berta dos polos norte e sul e escalando as mais to-criança foram fortemente afetadas. O poder fí-
altas montanhas. Seus feitos mais ousados e sico dos homens e dos adultos estabeleceu cla-
mesmo suicidas aconteceram nos campos de ramente uma relação de dominação e opressão
batalha, combatendo inimigos, conquistando nas sociedades, com a dominação patriarcal,
nações e morrendo, em nome do dever, para al- que varia, mas que foi e ainda é flagrantemente
cançar a glória. A função do arquétipo do herói, presente em todas elas.
reforçando o arquétipo patriarcal na mitologia, Apesar da lenta implantação da alteridade
sugeriu erradamente ao mundo acadêmico ser nas dimensões econômica, política e social em
o herói patriarcal o único padrão possível de busca do socialismo democrático, o controle pa-
expressão do arquétipo do herói (CAMPBELL, triarcal ainda resiste intensamente à implanta-
1995). Na realidade, cada posição ego-outro na ção da liberdade, igualdade, sustentabilidade, e
consciência tem uma forma característica do ar- amor social propiciado pela posição dialética do
quétipo do herói. arquétipo da alteridade.

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4. A implantação do arquétipo da alteri- nária no Self cultural de Israel, o qual ativou com
dade. Os mitos de Buda e de Cristo muita intensidade dois arquétipos e duas repre-
Após milhares de anos de dominação patriar- sentações heroicas do mito do Messias, ambas
cal, durante os quais nações e impérios foram for- tradicionais na cultura judaica (BRIERRE-NAR-
mados, escravizados e destruídos, classes sociais BONNE, 1933).
foram firmemente estabelecidas. A rígida mentali- O arquétipo patriarcal messiânico no mis-
dade de tradição, família e propriedade – e desi- ticismo judeu foi ativado com base na tradição
gualdade – foi incorporada à consciência coletiva. patriarcal gloriosa, estruturada desde o êxodo
Com o tempo, a dominação patriarcal e seu do Egito, da revelação dos Dez Mandamentos e
herói fizeram-se extraordinariamente podero- da longa jornada para a Terra Prometida. A glória
sos. Sua sombra de derramamento de sangue, militar veio das monarquias brilhantes de Saul,
devastação da natureza e das relações sociais Davi e Salomão. Em muitas profecias messiâni-
tornou-se, a cada século, mais ameaçadora para cas patriarcais, o messias patriarcal é o retorno
a sobrevivência da espécie (LOVELOCK, 2000). do próprio Rei Davi (BRIERRE-NARBONNE, 1933).
A exaustão progressiva das reservas naturais, Essa forte tradição patriarcal dominou o Siné-
a superpopulação, a crescente capacidade des- drio, o governo da comunidade israelita. Dessa
trutiva dos armamentos, os privilégios da elite forma, a maioria do povo seguiu a tradição pa-
e a pobreza da maior parte das sociedades, a triarcal identificada com a rebelião armada con-
poluição da natureza, as disfunções climáticas, tra Roma. Ela ansiava pelo arquétipo do herói
a corrupção e o crime organizado começaram a messiânico patriarcal que inclui a conotação glo-
ameaçar nossa sobrevivência. A grande questão riosa da morte sacrificial na batalha.
revelada na dimensão patriarcal deveu-se, exa- Contudo, um herói messiânico extraordinaria-
tamente, a seu poder de organização, que havia mente diferente também foi ativado no Self cul-
assegurado sua bem-sucedida expansão. A solu- tural judeu. Ele pertencia à tradição messiânica
ção de conflitos pela agressão e, em casos extre- judaica, mas em vez de solucionar conflitos pela
mos, pela guerra tornou-se a demonstração clara agressão e pelo poder, professava a compaixão
da natureza da dominância patriarcal. Era óbvio e a interação pacífica na elaboração do conflito,
que o poder destrutivo crescente, adquirido por Ele pregava a relação afetuosa e compassiva
nações rivais, inviabilizaria um dia a expressão para enfrentar a discordância e a substituição do
criativa dos conflitos mundiais. poder pelo amor, para evitar a repressão (BRIER-
Uma colisão emblemática ocorreu no come- RE-NARBONNE, 1933).
ço de nossa era, quando o gigantesco Império Essa posição da relação ego-outro para ela-
Romano ocupou o Oriente Médio e escravizou borar o conflito humano pertence claramente a
Israel. Ambas as culturas expressavam formas um arquétipo diferente daquele da posição po-
de desenvolvimento patriarcal organizado ex- larizada da organização ego-outro do arquétipo
tremamente diferentes entre si. Roma havia patriarcal. Chamei-o arquétipo da alteridade
subjugado uma grande parte do mundo pelo porque alter significa “o outro” em latim e tem
poder militar. Israel havia acumulado uma das uma raiz comum com as línguas latinas.
mais antigas tradições de feitos militares, de O arquétipo da alteridade expressa-se pelo
cultura diferenciada e refinamento espiritual, ego-outro na posição dialética quaternária. Ele
todos registrados no Antigo Testamento, base- é fundamentalmente diferente, mas reúne tanto
ados na união com Deus e incompatíveis com a a posição insular binária ego-outro do arquéti-
opressão por outra cultura. po matriarcal, coordenado pela sensualidade e
O confronto armado e a iminência do genocí- pelo desejo, como a posição ternária polarizada
dio dos israelitas criaram uma tensão extraordi- do arquétipo patriarcal, coordenado pela hierar-

266 ■ Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 1º sem. 2019


quia, baseada no poder e na dominação. Entre- transformação, Neumann não seguiu a conexão
tanto, a fim de operar plenamente dessa forma histórica factual entre mito e cultura.
complexa e profunda, a inteligência da alterida- Embora os mitos expressem arquétipos, que,
de necessita abranger a capacidade estruturante como sabemos, são universais, mitos têm uma
dos arquétipos matriarcal e patriarcal e de todas sequência histórica e não podem ser interpre-
as demais polaridades. A posição ego-outro do tados fora dela, como fez Neumann. Quando
arquétipo da alteridade é quaternária porque é ele escolheu o mito de Osíris para expressar a
coordenada pela compaixão e pela igualdade transformação da dominância patriarcal na cul-
das diferenças, tanto do ego como do outro. O tura ocidental, trouxe brilhantemente o arquéti-
ego tem o direito de discordar do outro e tam- po da transformação, com o seu tema de morte
bém de apontar a sombra dele. Da mesma ma- e ressurreição, para abordar a ultrapassagem da
neira, o outro pode discordar do ego e também dominância patriarcal. No entanto, com isso, ele
apontar a sua sombra. O arquétipo da alteridade se desviou do caminho mitológico histórico real
abrange os arquétipos da anima e do animus da cultura ocidental. Embora Neumann tenha
descritos por Jung como os arquétipos condu- sido, como de costume, brilhantemente criativo,
tores (psicopompos), aqueles que coordenam o ele se perdeu ao sugerir que o mito egípcio de
desenvolvimento no processo de individuação Osíris expressa a implantação do arquétipo da
para transcender a dominação patriarcal do Self alteridade na formação mitológica da consciên-
individual e do Self cultural. Isso o torna o arqué- cia ocidental. O mito dessa transformação é o
tipo da segunda metanoia da teoria arquetípica mito de Cristo. É óbvio que o Novo Testamento é
da história. o caminho mitológico que continua e transcende
Continuando o caminho de Erich Neumann o Antigo Testamento.
na descrição da formação arquetípica da consci- O mito de Cristo e o de Buda mostraram o
ência (NEUMANN, 1995), vemos que ele descre- desenvolvimento histórico da consciência no
veu a coordenação da consciência coletiva pelo Ocidente e no Oriente para transcender a domi-
arquétipo matriarcal, seguido pelo arquétipo pa- nação patriarcal.
triarcal e os sucedeu pelo que ele chamou de mito O mito de Buda expressou a implantação cul-
da transformação, ilustrado pelo mito egípcio de tural da posição dialética ego-outro do arquétipo
Osíris. Embora Neumann tenha sido muito criati- da alteridade na Índia e no Oriente, por intermé-
vo, trazendo o mito de Osíris para ultrapassar o dio das funções de compaixão e desapego do
mito patriarcal, por meio do tema da morte e do desejo, 500 anos antes do mito de Cristo.
renascimento, ele se desviou da sequência mito- A implantação do arquétipo da alteridade
lógica na cultura ocidental. Assim, apesar de ter pelo mito de Buda não foi tão trágica nem tão
se mantido na perspectiva arquetípica para des- brutal quanto aquela trazida pelo mito heroico
crever a transformação cultural pós-patriarcal, do cristianismo, que precisou crucificar o herói
Neumann ignorou o papel central do mito cristão para sua implantação. A explicação pode estar
na cultura ocidental e, dessa maneira, perdeu o no fato de a Índia apresentar uma aceitação da
sentido da história real. exuberância do arquétipo matriarcal muito maior
O mito que coordenou predominantemente a que a cultura ocidental e de o Buda ter sido o
implantação do arquétipo patriarcal na cultura nono avatar de Vishnu. O oitavo avatar, vivido no
ocidental foi ilustrado, de forma exuberante, pelo mito de Krishna, já havia desenvolvido a relação
Antigo Testamento. Sua transformação com a im- dos opostos (ego-outro) num alto grau dialéti-
plantação do arquétipo da alteridade foi ilustra- co, principalmente o masculino e o feminino,
da pelo Novo Testamento e pelo mito de Cristo. no casamento de Krishna com a pastora Rahda.
Escolhendo o mito de Osíris para expressar essa Sua relação amorosa igualitária vai muito além

Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 1º sem. 2019 ■ 267


da limitação da relação de opostos (ego-outro) rói da alteridade. O conflito terminou 37 anos de-
na posição patriarcal tradicional polarizada e pois com o previsível massacre genocida do he-
hierarquizada. Desse modo, a Índia já havia pre- roísmo patriarcal messiânico israelita, seguido
parado grandemente a revelação do relaciona- pela segunda destruição do templo de Salomão
mento dialético dos opostos pela compaixão do e a Diáspora (dispersão) do povo judeu (70 d.C.).
mito messiânico de Buda. Outro fator importante Dentro da temática arquetípica da Ressurrei-
é que a exuberância do arquétipo matriarcal na ção do Messias heroico da alteridade, Helena,
mitologia hindu é muito menos reprimida do que mãe do imperador Constantino (272-337 d.C.),
no Velho Testamento. foi a Jerusalém em 310 d.C. e converteu-se ao
A primeira era arquetípica, na teoria arquetí- cristianismo. Voltando a Roma, influenciou a
pica da história, durou 140 mil anos e terminou conversão de seu filho. Diz a lenda que, em 312
na revolução agropastoril. Daí em diante, desen- d.C., na véspera da batalha da Ponte Mílvia, en-
volveu-se a segunda era arquetípica, com a do- tre Constantino e seu irmão Magêncio, pela li-
minação patriarcal que concebi como a primeira derança do império, Constantino teve um sonho
metanoia na teoria arquetípica da história. e viu no céu uma cruz de fogo rodeada pelas pa-
O conceito de metanoia cultural segue a lavras “com este sinal vencerás” (in hoc signo
concepção junguiana de metanoia, empregada vincet). Após esse sonho, Constantino ordenou
para descrever a crise arquetípica individual do que se pintasse uma cruz no escudo de seus
meio da vida, no processo de individuação. Eu soldados. Tendo derrotado seu irmão e unifica-
o uso aqui, também, na transformação cultural do o império, Constantino, o Grande prosseguiu
porque considero a metanoia como a mudança na aceitação da fé cristã e, no Edito de Milão,
da dominância arquetípica no processo de de- em 313 d.C., interrompeu a perseguição aos
senvolvimento da consciência, tanto individual cristãos. Daí em diante, a cristandade cresceu
como coletiva. enormemente, tornando-se a religião oficial do
A ativação mitológica do arquétipo da alterida- império sob o imperador Teodósio, em 350 d.C.
de expresso no mito de Buda e no de Cristo foi in- Aquilo que havia sido perdido para o poder pa-
tensificada, respectivamente, há 2.500 e há 2 mil triarcal na crucificação foi recuperado pelo mi-
anos. Sua integração na consciência coletiva está lagre da fé da alteridade, na Ressurreição. Esse
no início da segunda metanoia. Essa integração é milagre expressa a função arquetípica trans-
vista no exercício da posição ego-outro no padrão cendente do Self (JUNG, 1983, p. 131-193).
de alteridade dialética democrática, que oscila re- O fato de a Igreja ter como modelo a tradição
gressivamente com a dominância patriarcal pola- imperial romana influenciou, decisivamente, na
rizada e com a posição matriarcal sensual. patriarcalização defensiva do cristianismo. Eu a
A primeira metanoia foi muito distinta da se- considero defensiva porque a essência da alte-
gunda, em função dos efeitos concretos decisi- ridade dialética da mensagem cristã foi fixada,
vos da revolução agropastoril. deformada e dominada regressivamente em
A segunda metanoia ainda está se iniciando, muitas dimensões pela posição patriarcal pola-
em função da dificuldade do arquétipo da alteri- rizada. Pessoas foram presas, torturadas e mor-
dade de incluir e ultrapassar os padrões matriar- tas durante muitos séculos em nome do Cristo
cal e patriarcal. A dificuldade está, acima de tudo, (BYINGTON, 1991).
em desprender-se da visão de mundo mágico-mí- Os perseguidos cristãos tornaram-se perse-
tica amplamente presente no padrão matriarcal e guidores de hereges cristãos. A palavra grega
de transcender o apego ao controle patriarcal. hairesis vem do verbo hairein, que significa
O conflito Israel-Roma, em seu confronto escolher, referindo-se àqueles que discordam
mais intenso, incluiu a crucificação de Jesus, he- dos padrões doutrinários. Embora as persegui-

268 ■ Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 1º sem. 2019


ções tenham sido institucionalizadas somente Na Trindade, o Filho sacrificou-se para salvar
na Inquisição, em 1231, pelo papa Gregório IX, e para transformar o pai, mas não para substi-
e o direito de se usar a tortura para a obtenção tuí-lo com o parricídio, conforme costume na
de confissões tenha sido estabelecido em 1252, tradição patriarcal, mas pela compaixão, para
sob o papa Inocêncio IV (ENCYCLOPÆDIA BRI- separar-se e reunir-se com Ele dentro da relação
TANNICA, INC, 1974), sinagogas foram queima- dialética quaternária e igualitária do arquétipo
das em Israel em 350 d.C. e o bispo espanhol da alteridade.
Prisciliano foi condenado como herege e quei- No segundo milênio da nossa era, a implan-
mado ainda em 385 d.C. (ENCYCLOPÆDIA BRI- tação cultural do mito cristão teve continuidade
TANNICA, INC, 1974). É muito significativo que a com a extroversão. Os monastérios tornaram-
última decapitação de uma mulher por bruxaria -se universidades. O método experimental e a
tenha ocorrido em Glarus, na Suíça, em 18 de relação com o erro seguiram o padrão dialético
junho de 1782 (ZILBOORG; HENRY, 1941). Isto que havia sido vivido e praticado na confissão
faz com que o homicídio orientado pela Inquisi- durante a elaboração do pecado. Muitos co-
ção, dentro da Igreja, em nome de Cristo, tenha meçaram a elaborar o pecado como um evento
durado 1.432 anos. psicológico traumático (fixação, de Freud), que
Apesar da Santa Missa, com a paixão de Je- poderia ser curado pela confissão e pelo arre-
sus, ser celebrada integralmente na Igreja Católi- pendimento (por meio do trabalho psicológico).
ca até os dias atuais, a Inquisição e o Santo Ofí- O exame de consciência da vida monástica trei-
cio ilustram a patriarcalização defensiva do mito nou a mente para reconhecer a sombra como
cristão atuada durante muitos séculos. pecado e erro e elaborar suas fixações, como
Após a função da Ressurreição expressa no condição para redenção. Simultaneamente, os
mito, o arquétipo da alteridade continuou a in- monges mais experientes, que atuavam como
tegrar-se à consciência coletiva na Igreja dividi- guias espirituais, admitiam que eles também
da. Apesar do aspecto patriarcalizado defensivo eram sujeitos à tentação e ao pecado que os se-
que coordenou as alianças políticas da Igreja, as paravam do Cristo (CRUZ, 2007). Desse modo, a
ações militares das Cruzadas, a repressão geno- função ética passou a ser vivida na estruturação
cida dos albigensis e cataris e a vida interior nos da consciência pela posição dialética quaterná-
monastérios buscavam profundamente compre- ria do arquétipo da alteridade, o que, séculos
ender o significado do sofrimento de Jesus, a dor depois, tornou-se um padrão para a elaboração
de Seus ferimentos e a razão pela qual Ele se dos erros da ciência e das fixações, dentro do
deixou prender, torturar e crucificar. método científico e da transferência na psicote-
Após cinco décadas de elaboração, cheguei rapia dinâmica (BYINGTON, 1983).
à conclusão de que a explicação foi de que Jesus O conflito entre a patriarcalização defensi-
se deixou crucificar para denunciar, repudiar e va do mito e a posição quaternária dialética do
transcender a crueldade da repressão patriarcal. arquétipo da alteridade, que expressa o mito na
Penso que Seu sacrifício não deva ser compa- sua integridade, passou a ser vivido na interpre-
rado ao oferecimento em holocausto de Isaac, tação cotidiana da relação entre a Terra e o sol.
por Abraão. Ao contrário, pois enquanto Abraão O conflito ocorreu inicialmente no estudo dos
estava em total acordo e submissão ao Deus pa- céus, exatamente onde as projeções de Deus es-
triarcal no holocausto de Isaac, Jesus, por meio tavam fortemente centralizadas.
de Seu sacrifício, denunciou e separou-se do Em 1543, Nicolau Copérnico (1473–1543) des-
Deus patriarcal e da repressão do Velho Testa- creveu uma nova relação entre a Terra e o sol,
mento para transformá-lo na Trindade com o Seu contrária à da tradição milenar adotada como
sacrifício, Sua morte e Sua Ressurreição. verdade pela Igreja. Discordando da astronomia

Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 1º sem. 2019 ■ 269


tradicional, que confirmava as aparências e as de estabelecer a verdade da realidade, e abriu
Escrituras, Copérnico descreveu a Terra girando o caminho para a separação da religião do Es-
em torno de si e do sol. Ele contradisse a Igreja, tado em muitas nações modernas.
com o heliocentrismo, o que era uma heresia. E, A Igreja continuou a combater e a perseguir
mais grave e mais importante que isso, ele ba- os cientistas até ser finalmente derrotada na
seou sua formulação da verdade no método da Revolução Francesa (1789 d.C.). A batalha entre
observação da natureza, o que incluía, neces- a heresia científica e a Igreja durou 246 anos.
sariamente, a modificação permanente e a cor- Infelizmente, até hoje, a maior parte dos histo-
reção das posições do ego e do outro durante a riadores da ciência e da religião vê o conflito en-
busca da verdade (elaboração). Isso significou tre ciência e religião como um conflito entre fé
que a busca pela verdade deveria admitir e cor- e razão. Muito pelo contrário! O conflito foi uma
rigir o erro (pecado), tanto em relação ao ego batalha mitológica dentro da fé, entre a essên-
como ao outro. Esse procedimento era comple- cia do mito cristão, que era a posição dialética
tamente diferente da prática esotérica do conhe- da alteridade, e sua patriarcalização defensiva,
cimento, orientada pela mentalidade mágico-mí- expressa pelo direito canônico criado pelo Santo
tica da posição insular matriarcal desde tempos Ofício na Inquisição.
imemoriais. A principal mudança foi inovar o A integração cultural do arquétipo da alteri-
método tradicional de busca da verdade, base- dade, entretanto, ainda não foi devidamente as-
ado na revelação esotérica e na aparência, para sociada com o mito cristão. Minha concepção é
a observação direta da relação das forças dentro que a ciência foi a maior de todas as heresias e a
dos fenômenos. mais profunda expressão do arquétipo da alteri-
O método de Copérnico (1543) coincidiu dade. A ciência separou-se da Igreja porque con-
com o método dialético, praticado por sécu- tinuou a expressar a essência do mito, enquanto
los nos monastérios: o exame de consciência a Igreja o patriarcalizou e o deformou.
para identificar o pecado e resgatar, por meio A tragédia cultural da separação entre a ci-
da confissão e do arrependimento, aqueles ência e a Igreja (1789) foi o Self cultural ociden-
símbolos que separavam os cristãos de Cristo. tal ter sofrido uma dissociação patológica entre
Tanto os monges introspectivos como os cien- as dimensões subjetiva e objetiva. A ciência
tistas extrovertidos estavam se relacionando igualou a verdade à dimensão objetiva e des-
com o pecado e com o erro, dentro do padrão prezou a dimensão subjetiva como erro, irra-
dialético quaternário do arquétipo da alterida- cionalidade, superstição e mesmo charlatanis-
de. Os monges estavam protegidos pela intro- mo. Dessa forma, a ciência criou a dissociação
versão secreta dos monastérios; os cientistas, defensiva materialista e expulsou a dimensão
não, porque publicavam suas ideias aberta- subjetiva da universidade. Tragicamente para
mente, para a consciência coletiva. Copérnico o humanismo, junto à dimensão subjetiva, ou-
estava perfeitamente consciente do risco que tras funções estruturantes foram separadas da
corria com sua heresia. Ele esperou por seu lei- perspectiva científica, como a ética humanista,
to de morte, em 1543, para publicar sua última o sentimento, a intuição, a esperança, a mediu-
versão de Da Revolução das Esferas Celestes, nidade e a fé. Com a globalização, a dissocia-
na qual descrevia o sistema heliocêntrico. O ção materialista, o positivismo e o materialismo
método de Copérnico não era apenas “uma” dialético foram disseminados para o resto do
heresia. Era a “maior de todas as heresias”. planeta em conjunto com a perspectiva cientí-
Era tão grande que derrotou a interpretação fica deformada e dissociada.
geocêntrica canônica dos céus. Assim fazendo, A dissociação materialista desenvolveu a
invalidou cientificamente o direito da religião dimensão objetiva de maneira extraordinária e

270 ■ Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 1º sem. 2019


criou a fissão atômica, com sua capacidade ge- relação dialética quaternária de alteridade, para
nocida. Infelizmente, porém, o desenvolvimento parecer democrática. Geralmente, a alteridade
da dimensão subjetiva dentro do humanismo dialética apresenta-se defensiva na economia,
científico ficou muito atrás da dimensão objetiva no sindicalismo defensivo, na demagogia e no
e não conseguiu impedir o genocídio de Hiroshi- populismo que formam a maior deformação so-
ma e Nagasaki. cial, econômica e política da modernidade.
A Organização das Nações Unidas realiza o tra- A implantação progressiva do arquétipo da
balho valioso de reunir o objetivo e o subjetivo para alteridade está contribuindo para o desenvolvi-
proteger os direitos humanos, apesar de permanen- mento da consciência, tema central da psicolo-
temente desafiada por resistências superlativas. gia simbólica junguiana. Enfatizo a formação da
No século XIX, houve muito progresso na cura nova identidade do homem, da mulher, do mas-
da ferida subjetivo-objetivo, presente na disso- culino, do feminino, do pai, da mãe, da criança,
ciação entre o Self cultural e o Self planetário. do adulto, do casamento, da sociedade e das
O estudo da dimensão subjetiva, nas dimensões suas fixações e formação de defesa e de som-
psicológicas normal e patológica, foi de grande bra, de modo a compreender e a possibilitar a
valia. Em todas as disciplinas (como medicina, implantação criativa da posição dialética e qua-
sociologia, antropologia, arqueologia, econo- ternária do arquétipo da alteridade, aqui vista
mia, educação e política), encontramos a dispu- como o caminho simbólico que afasta a huma-
ta pelo controle entre a posição patriarcal, geral- nidade da miséria e da destrutividade individual
mente fixada e defensiva, e a posição dialética e coletiva, em direção ao amor, à liberdade, ao
quaternária do arquétipo da alteridade, frequen- bem-estar social, à sustentabilidade, à igualda-
temente também fixada e defensiva (BYINGTON, de, à compaixão e à autorrealização.
2004). A posição patriarcal polarizada é fre-
quentemente defensiva quando disfarçada em Recebido em: 25/03/2019 Revisão: 16/05/2019

Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 1º sem. 2019 ■ 271


Abstract
An archetypical explanation of the crucifixion of Jesus by the archetypical
theory of history
The archetypal theory of history (BYINGTON, Next, marked by the myth of Budha, about
1983) follows the work of Bachofen and Neu- 2,500 years ago and by the myth of Christ, 2,000
mann with the modification of the concept of the years ago, this theory describes the beginning of
matriarchal archetype as the archetype of sen- the mythological civilizing implementation of the
suality and of the patriarchal archetype as the alterity (otherness) archetype, whose messianic
archetype of organization, both present in the hero preach for the elaboration of human con-
psyche of man and woman and in the cultural flicts through the dialectic of compassion. 
Self (BYINGTON, 2013).  Finally, the article elaborates the difficulty of the
This theory describes matriarchal dominance transcendence of patriarchal dominance in the im-
during the nomad life of the first 140 thousand plementation of the archetype of alterity. In conclu-
years of history (WATSON, 2005) followed by pa- sion, the author tries to explain the reason Jesus did
triarchal dominance begun more than 12 thou- not avoid his crucifixion to implant the heroic mis-
sand years ago, after the agropastoral revolu- sion of transforming the patriarchal God of the Old
tion, when we became settled societies.  Testament into the Trinity of the New Testament. ■

Keywords: nomadism, matriarchal archetype, settlers’ societies, patriarchal archetype, metanoia, alterity
(otherness) archetype, anima and animus archetypes, crucifixion.

Resumen
Una explicación de la crucificación de Jesús por la teoría arquetípica de la historia
Mi teoría arquetípica de la historia (BYING- A continuación, marcada por los mitos de Buda,
TON, 1983) sigue los pasos de Bachofen y de hace 2.500 años, y de Cristo, hace 2 mil años, esta
Neumann con la modificación del concepto del teoría describe el inicio de la implantación mitológica y
arquetipo matriarcal para el arquetipo de la civilizatoria del arquetipo de la alteridad, cuyos héroes
sensualidad, y del arquetipo patriarcal para el mesiánicos predican la elaboración de los enfrenta-
arquetipo de la organización, ambos presentes mientos humanos por la dialéctica de la compasión.
en la psique de la mujer, el hombre y el self cul- Finalizando, el artículo elabora la dificultad de
tural (BYINGTON, 2013). la trascendencia de la dominación del arquetipo
Esta teoría describe la dominancia matriarcal patriarcal para la implantación del arquetipo de la
durante la vida nómada de los primeros 140 mil alteridad. Concluyendo, el autor intenta explicar
años de la historia (WATSON, 2005) y la domi- la razón de que Jesús no haya evitado su crucifix-
nación patriarcal iniciada tras la revolución ag- ión en la implantación de la misión heroica para
ropastoril, hace más de 12 mil años, cuando nos transformar el dios patriarcal, del Antiguo Testa-
convertimos en pueblos asentados. mento, en la Trinidad, del Nuevo Testamento. ■

Palabras clave: nomadismo, arquetipo matriarcal, sociedades asentadas, arquetipo patriarcal, metanoia,
arquetipo de la alteridad, arquetipos de la anima y del animus, crucifixión.

272 ■ Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 1º sem. 2019


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Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 1º sem. 2019 ■ 273


274 ■ Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 1º sem. 2019
Junguiana
v.36-2, p.275-276

Normas para publicação de artigos


A revista Junguiana, periódico cientifico da Sociedade Brasileira de Psicologia
Analítica, editada pela primeira vez no ano de 1983, destina-se à divulgação de
trabalhos inéditos, que contribuam para o conhecimento e o desenvolvimento da
psicologia analítica e ciências afins, em um espírito aberto ao debate científico,
cultural, social e político contemporâneo. Com periodicidade semestral, a revista
aceita artigos originais, de revisão, casos clínicos, comunicação breve, entrevista
e resenha.

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Junguiana is the scientific Journal of the Brazilian Society for Analytical Psy-
chology, published for the first time in 1983 and directed towards the dissemina-
tion of unpublished works that contribute to the knowledge and development of
analytical psychology and related sciences, with an openness towards scientific,
cultural, social and contemporary political debate. Twice a year, the journal ac-
cepts original and review articles, clinical cases, brief announcements, reviews
and interviews.

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Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2018 ■ 275


Junguiana
v.36-2, p.275-276

276 ■ Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2018

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