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KARINA FREITAS
P
Governador
Paulo Henrique Saraiva Câmara
ara um ano incerto, a presença. É com ela a reivindicação da importância do trabalho intelectual
que abrimos 2019, pois permite pensar dão o tom do especial sobre os 70 anos de O reino deste Vice-governador
Raul Henry
a literatura num período que, ao que mundo, de Alejo Carpentier, e de O Aleph, de Jorge Luis
tudo indica, vai inspirar cuidados. Nossa Borges. Voltar a essas obras implica uma questão Secretário da Casa Civil
André Wilson de Queiroz Campos
1ª capa discute as forças do ler junto, urgente: saber saber, ou seja, aprender outras formas de
experiências que hoje são encontradas em pensar, narrar de outras formas e questionar narrativas COMPANHIA EDITORA DE PERNAMBUCO – CEPE
clubes de leitura. Para isso, a crítica Carol Almeida, uma consolidadas. Usar o conhecimento canônico de Presidente
das organizadoras do Leia Mulheres Recife, traça uma outras maneiras. Também nesse conjunto se inserem Ricardo Leitão
rede de ideias e falas que evidenciam a função política o texto da seção Bastidores, na qual Alê Santos fala Diretor de Produção e Edição
desses grupos: subvertem a ordem de uma sociedade sobre as threads antirracistas que criou no Twitter; Ricardo Melo
que está acostumada à lógica de palco e plateia, e a resenha de Que tempos são estes, seleta de poemas Diretor Administrativo e Financeiro
propondo a troca de ideias de forma mais horizontal. de Adrienne Rich que toca em questões políticas Bráulio Meneses
Ao nivelar a importância das vozes em uma busca dos anos 1960 e 1970, candentes ainda hoje.
conjunta pelas literaturas à sombra do cânone, esses Outro especial resgata o ensaio Notas sobre o camp, de
grupos instauram a presença corporal e o diálogo como Susan Sontag, e o reposiciona no contemporâneo a
procedimento para intensificar as potências inerentes partir dos usos da estética camp pela extrema direita.
Uma publicação da Cepe Editora
no ler. Não é outro o seu norte senão o da solidariedade: Isso reforça a pluralidade de ideias por meio das quais Rua Coelho Leite, 530 – Santo Amaro – Recife
o diálogo como exercício crítico e de alteridade para buscamos pensar o tempo e o espaço em que vivemos. Pernambuco – CEP: 50100-140
se debruçar sobre as resistências narrativas, e sobre E mais: resenhas, trechos de uma biografia inédita Redação: (81) 3183.2787 | redacao@suplementope.com.br
olhares deslocados para a História e o contemporâneo. de Rosa Luxemburgo e as colunas de José Castello e
SUPERINTENDENTE DE PRODUÇÃO EDITORIAL
Para um ano incerto, a distância necessária Everardo Norões. Luiz Arrais
para pensarmos experiências, necessidades e
EDITOR
responsabilidades. A descolonização do pensamento e Boa leitura a todas e todos! Schneider Carpeggiani
EDITOR ASSISTENTE
Igor Gomes
BASTIDORES
Narrativas
FILIPE ACA
que investem
contra o racismo
Somente após criar
postagens antirracistas no
Twitter – que alcançaram
milhões de pessoas –, um
jovem autor consegue fechar
contrato para publicar livro
promovido na segunda metade do século XIX pelo rei
Alê Santos Leopoldo II da Bélgica, no Congo. Então aconteceu,
pela primeira vez, 36 horas de notificações intermiten-
As pessoas não costumam olhar para os espaços tes no meu celular, mais de 7,6 mil compartilhamentos
digitais como um meio de produzir literatura capaz e 14 mil likes que renderam 1 milhão de visualizações.
de movimentar as pessoas, conectar suas aspirações Foi algo mais poderoso do que eu ou qualquer pessoa
e entregar algum valor afetivo para elas. Emoções poderia prever. Entendi o Twitter como meu espaço,
parecem ser complexas demais para o ambiente frio não apenas para dar vida aos meus textos, mas para
e mecanizado dos bytes. enriquecer eles com a vida de outras pessoas.
Minha experiência com o mercado literário havia Nas redes sociais as interações foram imediatas, é
sido, até, bem frustrante. O mercado vive uma crise e fácil perceber a intensidade das emoções que uma
as editoras que poderiam abrir as portas para receber narrativa pode ocasionar quando as pessoas expres-
novos autores não tinham mais aquela disposição para sam através das menções e respostas diretas no meu
isso. Deparei-me com essa realidade, logo após um perfil @savagefiction.
sucesso que me deixou muito esperançoso: em 2013, Foram essas experiências que mais me impulsiona-
a empresa de tecnologia Intel escolheu um dos meus ram e até hoje são a luz das minhas ideias. Aqui tenho
contos de ficção científica para representar o Brasil em outra confissão de escritor que se embrenha nas redes
uma antologia internacional, publicada em inglês. sociais: houve medo daquilo ter sido um fenômeno
Mesmo assim, a jornada para me posicionar e ser isolado. Afinal, ninguém se torna autor por conta de
reconhecido como autor estava exigindo um esforço uma thread - sequência encadeadas de tweets, que uso
sobre-humano. Tem um peso em ser um autor negro, para construir pequenas narrativas. Então, comecei
as pessoas duvidam mais de quem não tem um nome a me dedicar com mais propriedade para produzir a
estrangeiro, sabe-se do preterimento histórico que próxima história, fiz uma pesquisa mais elaborada,
negros tem nas ciências e artes. O famoso filósofo cruzei algumas fontes, recortei os trechos com maior
Immanuel Kant tem uma afirmação que mostra esse potencial de impacto. Outro elemento entrou no meu
pensamento racista em sua obra Observações sobre o trabalho durante essa segunda thread, a narrativa vi-
sentimento do belo e do sublime (1764): “Os negros da África sual, passei a selecionar imagens e memes que possam
não possuem, por natureza, nenhum sentimento que contribuir para projetar minhas emoções no texto,
se eleve acima do ridículo. O senhor Hume desafia complementando o entendimento de cada tuíte.
qualquer um a citar um único exemplo em que um Mais uma vez, sucesso. Na verdade, foi até maior:
negro tenha demonstrado talentos, e afirma: dentre a sequência sobre a Vênus Negra, Saartjie Baartman,
os milhões de pretos que foram deportados de seus virou notícia em um famoso site de cultura popular.
países, não obstante muitos deles terem sido postos Outros começaram a replicar e gerou-se uma expec-
em liberdade, não se encontrou um único sequer que tativa sobre meu perfil, essa era a expectativa de que
apresentasse algo grandioso na arte ou na ciência, ou eu, enfim, havia alcançado o espaço que eu buscava
em qualquer outra aptidão; já entre brancos, cons- na literatura tradicional.
tantemente se arrojam aqueles que, saídos da plebe A insegurança passou e diminuí a frequência de
mais baixa, adquirem no mundo certo prestígio, por postagens – não para torná-las mais espaçadas, pelo
força de dons excelentes. Tão essencial é a diferença contrário, para investir mais tempo em pesquisa e
entre essas duas raças humanas, que parece ser tão adicionar algumas revisões no meu processo. Pode
grande em relação às capacidades mentais quanto à parecer que é apenas uma postagem na rede social,
diferença de cores.” mas as mensagens que passei a receber revelavam
A sociedade ainda carrega o eurocentrismo que nos que o impacto das threads era cada vez mais sério.
faz viver em um país tropical e manter alguns hábitos e Professores, historiadores e todo tipo de gente que-
visões que não correspondem à nossa realidade social riam levar algumas das minhas pesquisas para sala de
e étnica. Isso é refletido no perfil médio dos autores: aula ou ambiente de trabalho. Foi quando aconteceu
uma pesquisa da Universidade de Brasília (2017) reve- o inesperado: algumas editoras me procuraram para
lou que 90% dos escritores publicados pelas grandes transformar todo esse trabalho em um livro.
casas editoriais do nosso país são brancos, perfil que Conversei com alguns editores, mas minha afi-
não muda desde 1965. Eu havia até desistido de entrar nidade com a Panda Books foi quase que imediata.
nesse meio, obviamente não me tornaria um escritor O livro está em processo de edição e nos próximos
branco; mas entendo hoje que, se você não é o perfil meses vou ter conseguido romper aquela barreira
padrão de um mercado, a sua jornada nesse ambiente que ainda impede muitos autores jovens e negros de
também não deve ser. construir uma carreira no meio literário. As threads me
Certo dia, sentei em meu sofá com o celular na mão levaram além, hoje eu colaboro com alguns veículos
e comecei a contar algumas histórias pelo Twitter. Foi importantes como o Muito Interessante e The Intercept Brasil,
despretensioso no começo, confesso. Sem nenhuma também tenho uma coluna quinzenal na Vice Brasil, e
preparação, revisão. Apenas emoção, mas foi capaz para a revista Superinteressante.
de conectar algumas pessoas novas em meu perfil. Mas, claro, não deixo de trazer alguma história fan-
Aquilo parecia promissor, então escolhi uma das tástica no meu perfil. Afinal, a gente tem que ser fiel
histórias mais dramáticas que conhecia, o genocídio a quem nos lê e nos constrói como autor: os leitores.
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PERNAMBUCO, JANEIRO 2019
ESPECIAL
O camp como
estética de um
mundo incerto
Célebre ensaio de Susan
Sontag auxilia a entender
aspectos da extrema direita
Thiago Soares
Uma réplica da Estátua da Liberdade desliza pela traje típico gaúcho, acompanhado de uma prenda
BR-470, também conhecida como Rodovia Ingo que usava uma máscara da Estátua da Liberdade.
Hering, a caminho da cidade de Passo Fundo, no Na descrição de um dos vídeos no YouTube sobre
interior do Rio Grande do Sul. Nos 524 quilômetros o acontecimento, lê-se: “Sobre a Estátua da Liber-
que separam o destino de origem – Balneário Cam- dade, cujo nome oficial é A Liberdade Iluminando
boriú (Santa Catarina) – e a chegada, pessoas saem o Mundo, é uma escultura neoclássica colossal
de suas casas para observar de perto aquilo que a localizada na ilha da Liberdade no porto de Nova
hashtag expõe nas redes sociais: #EstátuaNaEstrada. A Iorque, nos Estados Unidos. A estátua é um ícone
recomendação é que o motorista do caminhão dirija da liberdade e dos Estados Unidos, além de ser um
com velocidade reduzida para que dê tempo para as símbolo de boas-vindas aos imigrantes que chegam
pessoas registrarem em seus celulares ou fazerem do exterior. A réplica (que chega a Passo Fundo)
lives da passagem da estátua em suas redes sociais. É representa a liberdade em compras. A fachada da
isto que vai acontecendo. À medida que passa pelos loja é outro presente: lembra a Casa Branca, resi-
municípios, primeiramente do interior catarinense dência oficial do presidente americano”.
e depois gaúcho, a hashtag vai “subindo” nas redes A pouco mais de 1,4 mil quilômetros dali, outra
sociais e arregimentando mais gente e atenção. réplica da Estátua da Liberdade foi erguida no dia 3
O encantamento com a réplica de um monu- de novembro de 1999, um dia antes da inauguração
mento a deslizar suave por uma rodovia acarpe- do New York City Center, o complexo de shopping
tada em meio à vegetação delicada de pinheiros e center e entretenimento junto ao Barra Shopping,
araucárias se apresenta nas narrações nas redes na Barra da Tijuca, Rio de Janeiro. Na ocasião, foi
sociais. Num dos stories do Instagram, uma jovem saudada como arrojado modelo de lazer e compras
registra a passagem com expressões como “lin- nos moldes dos existentes em cidades como Miami,
do!”, “emocionante!”, “finalmente!”, enquanto nos Estados Unidos. Assim como em Passo Fundo,
noutro um empresário vestindo uma camisa com a réplica da Estátua da Liberdade no Rio de Janeiro
os dizeres “O Brasil que queremos só depende de parece trazer à tona um imaginário que conecta a
nós” atesta: “Passo Fundo, esta estátua anuncia um iconografia da cultura monumental dos Estados
presente que estamos dando a vocês!”. O presente Unidos aos deleites do consumo, construindo um
em questão é uma loja de departamentos que será ambiente propício a associar formas consagradas,
– “finalmente!” – inaugurada na cidade, com mais clichês e excesso ao princípio liberal da escolha.
de 100 mil itens à venda. Olhar para os dois episódios do soerguimento do
A estátua saiu dia 20 de novembro de 2018 de principal ícone norte-americano numa cidade do
Balneário Camboriú e chegou em Passo Fundo, dois interior do Brasil e na sua mais celebrada cidade
dias depois – enquanto raiava o 22 de novembro. pode ser um sugestivo comentário sobre de que
No dia 26, estava pronta para ser erguida numa política trata a estética camp no contemporâneo.
festa que contou com o dono da loja vestido em O termo, cunhado pela ensaísta Susan Sontag
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LUÍSA VASCONCELOS
O termo acolhe
ceramente de uma determinada sensibilidade pode ravam em nenhuma tradição, fora de lógicas binárias
analisá-la; só pode, seja qual for a sua intenção, e claramente definidas. Naquilo que causa fascínio e
mostrá-la. Para designar uma sensibilidade, traçar repulsa, torpor e excitação, clareza e escuridão, estaria
fenômenos estéticos
seus contornos e contar sua história, exige-se uma o camp – um refúgio para experienciar um mundo
profunda afinidade modificada pela repulsa”. O incerto ou o movimento impreciso do porvir. A aposta
camp seria um certo tipo de esteticismo, maneira de do autor é que, na década de 1970, com a dicotomia
ver o mundo como um fenômeno estético, media-
do, remediado. Noções de artifício e de estilização
aparecem. O mundo parece se equilibrar entre o
exagerados, de entre aqueles que eram “a favor ou contra a Guerra do
Vietnã”, emergiu um conjunto de práticas artísticas e
midiáticas que se colocavam à parte, porém, indire-
peso de clichês e a leveza da recusa.
MORAL E FRIVOLIDADE
“gosto duvidoso” tamente, também dentro do debate. Moda, consumo,
publicidade seriam parte de um mundo em crise que
anunciaria um novo estremecimento conservador
Numa época profundamente autorreferente, per- vessamento de sujeitos LGBTQ+, que precisariam das sociedades capitalistas com a ascensão de go-
formática, repleta de simulações e teatralizações do artifício e do sublime como forma de existência vernos conservadores e de direita nos Estados Unidos
através do que se chama de vida midiática nas redes e resistência cotidiana. (Reagan) e Inglaterra (Thatcher). O foco militarista
sociais, o camp volta a fazer sentido – deslocando-se É no ensaio Notas sobre o camp que o conceito foi do governo Ronald Reagan e a dureza econômica
de sua origem, ligada fortemente às teorias queer e às delimitado. O texto, publicado na Partisan Review em de Margaret Thatcher traziam, em si, reencenações
políticas da diferença, e capilarizando-se no que se 1964, alçou Susan Sontag à esfera de celebridade do camp em uma série de ícones: das propagandas
pode chamar de um pensamento de extrema direita acadêmico-literária e à condição de “visionária da de convocação para alistamento militar nos Estados
e conservador. Se, em sua origem, o conceito pa- cultura pop” - como atesta Michelle Dean no livro Unidos que, em muito, se assemelhavam a abertura
recia abarcar a singularidade da afetação como um Afiadas – Mulheres que fizeram na opinião uma arte. Ao do filme Top gun – ases indomáveis (1986), ao penteado
dispositivo para entender a diferença de estéticas mesmo tempo que era celebrada por trazer à tona da Dama de Ferro da Inglaterra, com sua marca entre
que emergiam marcadamente nas comunidades a ideia de uma “sensibilidade voltada ao artifício, o exagero e o mau gosto.
gays, passou depois a engendrar mecanismos que em que o estilo é astutamente mais valorizado que O Terceiro manifesto camp de Denilson Lopes volta
falam sobre excesso e pertencimento através da o conteúdo”, Sontag também foi apontada como a postular a importância do camp no horizonte
experiência afetada de disposições conservadoras. rasa e superficial, em diversos textos – inclusive estético da cultura gay e situa o conceito dentro do
Afetar a linguagem não é exclusividade de um atra- de veículos importantes como o The New York Times. largo espectro de debates sobre o individualismo
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PERNAMBUCO, JANEIRO 2019
ESPECIAL
VÔMITOS MEMÉTICOS
É, portanto, a partir do entendimento do camp como
também um imaginário que media experiências,
que destaco a dimensão política do camp na as-
censão de governos de extrema direita no mundo.
Desde a eleição de Donald Trump nos Estados
Unidos, temos assistido à consagração de estéticas
ligadas ao universo dos memes, da cultura digital,
das “máscaras” que transformam rostos em vídeos
nas redes sociais. Um sem-fim de mensagens de
“Bom-dia” com flores, passarinhos, cachoeiras ao
fundo, nascer do sol, ondas do mar. O “boa -noite”
emerge em cartela no WhatsApp com a imagem de
um bebê dormindo, enquanto pululam estrelas e
fumacinhas acima de sua cabeça que indicam que
ele está sonhando. A fofura dos olhos gigantes, da
voz branda, do miado de gatinhos e de cachor-
ros obedientes. Essa doçura contrasta com todo o
conjunto de memes de cunho racista, homofóbico,
fascista que apela para armas gigantes, sangue
respingado na tela, palavras de ordem, imagens
de rostos em estado de torpor. Os extremos se
articulando na formação de sensos estéticos que
apelam para o exagero no ato comunicacional,
para a afetação em torno dos códigos, da ausência
de sutilezas.
As imagens toscas, claramente amadoras, se
impõem como sugestão estética de uma autentici-
dade que perpassa pelo que é “ruim”, disforme, em
desacordo com normas. As estéticas afetadamente
toscas dos memes parecem se alinhar ao ato de comer
pão com leite condensado, canja de galinha com
Nutella, feijoada com ketchup e até combinações
mais esdrúxulas, como açaí coberto com sabão em
pó. Provar dessas “iguarias” comporta uma atitude
de equilibrar encantamento e nojo não mais apenas
na imagem, mas também nos corpos daqueles que mais disposições performáticas do ato de comer o de todo mundo, colocando em evidência o camp
registram em vídeo essas “refeições”. Essa comida que se come – menos pelo que se come, mais pelo adentrando à esfera da cultura geek. Ambientes de
que desafia entendimentos sobre gosto e norma efeito de prazer-e-repulsa de comer. filmes de super-heróis, em seus deleites exagerados
apela para o camp no campo da experiência. Se as Nenhum fenômeno da cultura pop tem relação pelo raio definidor, pelo ódio mais inexplicável e
redes sociais são propícias ao aparecimento do que mais estreita com comida do que o gênero musical também por uma política do outsider que vira redentor
se chama de “pornografia alimentícia” (#FoodPorn), K-pop, a música pop coreana que se espraiou mundo do mundo, de alguma forma, tratam de colocar em
ou seja, o registro quase erótico de imagens de afora como a principal commodity da geopolítica da evidência o caráter rápido e imediato da vida – e
comidas, seria possível pensar um esgarçamento Coreia do Sul. Grupos de meninas esguias, de me- mais dramaticamente da política. Candidatos a car-
da noção de “pornografia” para de “escatologia” ninos milimetricamente penteados contrastam com gos públicos que são “mágicos”, soluções “revolu-
alimentícia? a formação quase militar destes artistas. Produto- cionárias”, sem explicação exceto pelo “super-raio”
É nesse quadro que o ato de comer se aproxima ras sul-coreanas de K-pop confinam postulantes que fará “mudar isso aí” também apontam para
com o de vomitar. Noções de prazer não estão ao posto de idol (“ídolo”) para que seu cotidiano uma relação ainda mais problemática na forma de
dissociadas de controle, punição, retaliação. No seja midiatizado em inúmeras camadas. Casos de olhar como o camp se infiltra em campos particulares
princípio do esforço para se atingir a barriga ne- estresse, depressão, crises de ansiedade dos con- dentro da própria prática política.
gativa de YouTubers e Instagramers que se colocam correntes se revertem em espetáculos de bulimia,
como coaches (treinadores) alimentares, emerge a bullying e vômitos voluntários. Para se tornar um ALELUIA!
reencenação da lógica religiosa do Sacrifício. Ter ídolo, é preciso sofrer midiaticamente, dentro de Diante do “mágico” que também pode ser compre-
prazer é uma punição contra o ato de engordar e um quadro em que o espectador está tentando endido como o intangível, a questão do camp toca,
ter que esconder o corpo nas redes sociais. Não há equilibrar afeto, pena, nojo, resiliência. O K-pop de maneira bastante singular, a religião e a maneira
prazer sem que o próprio prazer apresente algo que se configura na capilarização do camp num mundo com que estamos experienciando o crescimento dos
o anule. “O camp vê tudo entre aspas. Não é uma pós-Ocidental, em que o conjunto de afetações evangélicos no Brasil. Se, outrora, as leituras estéti-
lâmpada, mas uma ‘lâmpada’, não uma mulher, sonoras e visuais de canções e videoclipes comen- cas do camp apelavam para reconhecer a subversão
mas uma ‘mulher’. Perceber o camp em objetos e tam um mundo de negociações pouco razoáveis: da simbologia sacra em ambientes incomuns – a
pessoas é entender que Ser é Representar um papel. a imagem mais colorida de um clipe de K-pop está exemplo de fazer amor com um santo negro, como
É a maior extensão, em termos de sensibilidade, atrelada ao aspecto soturno da vigilância vivida encena Madonna no videoclipe Like a prayer em meio
da metáfora da vida como teatro”, escreve Sontag. por quem canta. a cruzes flamejantes em referência à questão racial
O camp não vê uma comida, mas uma “comida”. O Idols do K-pop são versões mais frágeis e distópicas dos Estados Unidos e mais especificamente à Ku
que está em jogo é menos o objeto que se come e de super-heróis que povoam quadrinhos e cinemas Klux Klan – agora é possível pensar em outras
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LUÍSA VASCONCELOS
exageradas: as
entorno. À medida que a canção alcança tons mais muito sofisticada e poderosa, especialmente para
dramáticos, um “terremoto” é sugerido com a culturas marginalizadas”.
câmera que tremula ao filmar a cantora. Noutro Se a principal noção de política passa por aquela
de “Bom-dia” e
momento, um grupo de mulheres com roupas do corpo e da experiência, o conceito de camp tam-
coloridas e luvas executa coreografia com as mãos bém pode ser lido como metáfora da forma com que
enquanto caminha num pequeno riacho. Um raio Susan Sontag fabulava sua sexualidade. “Meu con-
ENTREVISTA
Ungulani Ba Ka Khosa
el centro
de un poema
es otro poema
en el centro del centro
es la ausencia
en el centro de la ausencia
mi sombra es el centro
del centro del poema
(Alejandra Pizarnik)
NORÕES
abstratas, num lugar onde o figurativo dos pintores
ainda namora engenhos, mulatas e palmas de
coqueiros. Sente que ali medra um antídoto contra
tudo o que é novo. Mas, no sobrado de Anquises,
germe de modernidade, entre paredes grossas e
forradas de carvalho, Kandinsky teria refúgio certo.
esnoroes@uol.com.br Junto ao último degrau da escadaria, um prumo
registra alterações no respirar da casa à beira do
infarto. Se o pêndulo oscila, descem às pressas
para algum porto. O Texas Bar, com suas frequentes
discussões entre gringos. Ou o Bar Savoy, onde um
garçom inventou de uma bebida excêntrica, pernod
com mate, espécie de tropicalização do absinto.
Como se Baudelaire ali houvesse pousado para pe-
dir sua dose, incrementada com matizes tropicais.
Ou talvez o Bar do Grego, outro ponto de fuga, mú-
sica acompanhada do tilintar da quebra de pratos, das mãos de Esman, constrói um orbe imaginário,
lançados pelos navegantes do país de Ulisses. Assim num passe de mágica que somente poemas assim
homenageiam suas penélopes, abandonadas nas são capazes de tal atrevimento.
Nostálgico,
ilhas a urdirem os teares da espera. Pela janela, uma lua imensa, geométrica, chega
O centro da cidade tem ares grã-finos, alguns do cais do porto. Dá-lhes o boa-noite, aclarando
prédios sem quinas, a Rosa e Silva nas suas buti- telas, cavaletes e livros fora do lugar. Achega-se
ques de luxo, a calçada do Quem Me Quer florida. para trocar opiniões com Esman sobre a impor-
Da galeria de arte envidraçada sobre o Capibaribe tância dela, a lua, na escrita de Federico García
sim, mas
desfilam as baronesas, nome dos jacintos d’água Lorca. Ou na de Alphonsus de Guimaraens, com
ou aguapés. “Baronesas”, que um tradutor francês sua Ismália enlouquecida, que nos seus transes a
se surpreendeu ao imaginá-las damas em vesti- via em dose dupla, uma lua no céu, outra no mar.
mentas de época, baronnes, a flutuarem sobre as Até que se jogou na profundeza das águas para o
não muito
escamas do rio. desencontro final.
No sobrado de Anquises, Rimbaud escuta a lei- Então, Esman estende uma daquelas conversas
tura do Arte poética, de Esman Dias. O recitante com início no verde que te quiero verde e o finalmente
subverte a ordem dos pronomes, sexualizando em comentários sobre o sonido de mau jeito em
os versos, à revelia do autor. A aranha esquiva do alguma tradução de um poema em inglês. Porque
meu poema se indociliza na minha mão/ dócil e lasciva/ um verso, diz, se proferido de forma incorreta, é
pétala, flanco… Prefere dizer “na tua mão”, e de tanto como cisco no olho a ferir a integridade do poema.
O centro do poema recitá-lo assim, não mais consegue desfazer-se
do formato do verso tornado seu por usucapião.
Do andar de cima, Rimbaud vê subir alguém a
passos felinos. É O Leopardo, o de Orley Mesquita:
geografias afetivas
nas suas tramas e teias, confirmando o dizer de tenho o amigo(...). Alusão ao livro do príncipe de
Carlos Drummond de Andrade a respeito do Nuvem Lampedusa, tornado filme por Luchino Visconti.
Carolina, de Joaquim Cardozo: o grande poema é o No fundo, é o próprio, Orley, tornado príncipe.
que tornamos nosso pelo uso. E aí a aranha foge Porque é sempre assim quando a paixão por algum
CRISE
Wellington Desafio das livrarias 2.0
de Melo
Começou em novembro: somos nós, leitores-heróis,
um editor lançou o desafio que salvaremos as livrarias
das livrarias, no qual quem da má-gestão e do modelo
participasse comprava um viciado que vigora. Porque
livro numa livraria e marcava óbvio que o problema se resolve
coleguinhas nas redes para quando amarmos os livros
fazer o mesmo. Viralizou: e visitarmos mais livrarias.
editores e editoras, escritores Proponho um novo desafio
e escritoras e, olhe só, até os das livrarias, um pouquinho
CRITÉRIOS PARA
RECEBIMENTO E APRECIAÇÃO
DE ORIGINAIS PELO
LUÍSA VASCONCELOS
CONSELHO EDITORIAL
I Os originais de livros submetidos à Companhia
Editora de Pernambuco -Cepe, exceto aqueles que a
Diretoria considera projetos da própria Editora, são
analisados pelo Conselho Editorial, que delibera a
partir dos seguintes critérios:
DESAFIO 1 DESAFIO 2
Companhia Editora de Pernambuco
Por trás do preço do livro Em busca dos likes perdidos Presidência (originais para análise)
Rua Coelho Leite, 530 Santo Amaro
1) De quanto é a comissão ... 5) Os atendentes melhores espaços? 9) Pergunte CEP 50100-140
que a livraria cobra da editora estão satisfeitos com sua se essa livraria é aberta a Recife - Pernambuco
sobre o preço de capa de seu remuneração/ condições de atividades culturais e valoriza
livro desejado? 2) Compare trabalho? Eles gostam de livros? a produção independente.
preços de distintas livrarias Se não, por que trabalham ali? 10) Você acredita que essa
e o valor da comissão que 6) Pergunte como funciona livraria está preocupada
é cobrado. 3) Cruze com o o processo de escolha dos com bibliodiversidade,
preço do mesmo livro. 4) títulos. 7) Existe algum tipo representatividade etc.?
Descubra em quanto tempo de curadoria que define o Pronto: avalie as repostas e
elas pagam as editoras depois que é vendido na livraria? 8) bote os pontinhos que achar
de você comprar seu livro Descubra se a livraria loteia que vale. Compre o livro, poste SECRETARIA
DA CASA CIVIL
desejado. Use todas as fontes espaços especiais para editoras. a foto, justifique sua escolha e
necessárias, até os atendentes Cobram por isso? Se sim, qual espere os likes. Só alegria. Feliz
para isso. E por falar neles... o critério expor os livros nos 2019.
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PERNAMBUCO, JANEIRO 2019
CAPA
O estar presente
como arma de leitura
Da função política de Presença e Distância. Lidas assim, isoladamente,
essas duas palavras parecem de alguma forma conter
podem ser feitas para que se preserve o debate, seja
ele no campo da educação ou da construção do
KARINA FREITAS
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PERNAMBUCO, JANEIRO 2019
CAPA
está acostumada
no segundo semestre de 2018, tornou-se também possível. Tendo isso dito, minha relação com a lite-
um clube de leitura em que não é necessário ler a ratura sofreu um desvio radical por dois motivos. O
obra antes, pois ela é lida na hora, por quem es- primeiro: desde que percebemos, durante o próprio
à ideia de palco-
tiver participando do encontro: “Escolhemos um Leia Mulheres, que mesmo entre as escritoras, algumas
conto ou capítulo de algum livro de uma escritora eram sempre mais lidas que outras, fomos buscar tex-
negra, levamos cópias do texto para distribuir para tos que nos tirassem do lugar de conforto das grandes
o público, sentamos em círculo, fazemos uma di-
nâmica para estimular a concentração. Em seguida,
convidamos o público a fazer uma leitura coletiva
plateia, propondo editoras, das autoras famosas ou da moda. Esse não é
um gesto fácil. Comprar livros de editoras pequenas,
que não estão nem nas livrarias, nem na Amazon,
em voz alta, cada um lendo um parágrafo, depois,
trocamos impressões sobre o texto, e encerramos
sempre falando um pouco sobre a importância de
a troca de ideias requer um esforço extra de entrar em contato direto
com quem coloca a mão na massa. Mas entendendo
que, ao menos no nosso grupo, havia uma intenção de
se ler e ter a acesso a obras de escritoras negras”, sobre o gostar ou não da obra, indo além. Em mui- estabelecermos outras práticas de consumo e contato
fala Carine Souza que, ao lado de Iara Moraes, Ketty tas cidades os participantes dos encontros viraram com os livros, o esforço valeria (e vale!). O segundo
Valencio e Juliane Sousa, montou o grupo. amigos. O que achamos incrível. E com a queda das motivo: o grupo do Leia Mulheres Recife no Facebook
“Na última edição do nosso clube, lemos dois (grandes) redes (de livrarias) e a desvalorização do é um que aglutina mais de 1500 pessoas. Nas reuniões
contos do novo livro de Cidinha da Silva, Um Exu em profissional livreiro, a opinião de parceiros de clube presenciais, no entanto, há um grupo flutuante e um
Nova York, sendo um deles Maria Isabel, que fala da e mediadoras é fundamental na escolha de novos outro mais ou menos fixo de mulheres (e alguns poucos
baixa expectativa de vida do povo negro. Depois de títulos para aquisição ou mesmo troca ou empréstimo homens, estranho...) que varia entre 15 e 20 pessoas
ler o conto, como de costume, levantamos algu- em bibliotecas”, afirma Juliana Gomes, que, ao lado (dependendo do livro, esse número pode aumentar).
mas questões para provocar o debate, e uma delas de Juliana Leuenroth e Michelle Henriques, fundou Vez em quando, no Facebook, alguém demanda por
era: ‘quantos aqui conhecem uma pessoa negra o primeiro Leia Mulheres em São Paulo, inauguran- algum canal online, geralmente um grupo no Whatsapp,
que morreu cedo?’. A partir daí, ouvimos muitos do com isso uma rede que hoje agrega mais de 100 de discussão sobre literatura. Acho válido e importante
relatos tristes e com isso o grupo foi se reconhecen- clubes de leitura espalhados por todo o Brasil. que esses canais existam, que os booktubers, por exem-
do, tomando consciência e se acolhendo no olhar. Paulo Vitor, do recém-lançado clube de leitura plo, aqueçam o mercado editorial, mas – e esse é um
Depois partimos para a leitura de Farrina, um conto Escritas Diversas (existe desde agosto de 2018 no estatuto de fé meu, e acho que seria igualmente o de
que fala de afeto, identidade, irmandade e amor Rio de Janeiro), focado em uma literatura de autores Paulo Freire, se vivo estivesse –, interessa-me cada
entre mulheres negras, uma escolha estratégica que e autoras LGBTs, acredita na premissa da aglutina- vez menos participar desse circuito que não seja o
fizemos porque sabíamos que precisaríamos de algo ção de alteridades: “Esse movimento todo é muito dos encontros presenciais. Explico: percebo que há
que ajudasse amenizar a dor do último conto”, diz potente! As trocas baseadas nos livros e nos debates pouquíssimo espaço para o choque de ideias nesses
Carine, apontando também para uma seleção dos vão nos fortalecendo. Beijo gay em novela não é nada ambientes virtuais. Nas reuniões de 15 a 20 pessoas,
textos como uma forma de narrativa da cura pensada perto do que produzimos de conhecimento, de arte. nós podemos discordar, afetar, sermos afetadas, sem
previamente pelas mediadoras. Estamos percebendo que, num mundo cada vez mais que isso se crie rupturas definitivas ou alijamento de
“O encontro presencial é essencial para que haja individualista e segregado, a união é a maior forma alteridades. A diferença de visões de mundo está no
uma aproximação com a leitura, é uma discussão de resistência. Unir, debater, divulgar e acolher a cerne do pensamento crítico. Sem esse atrito, esse
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KARINA FREITAS
ruído, esse “pensamento do tremor” como diria o poeta promovidas pelo Mulheres que Escrevem, bem como Rio: a Terceira, organizada pela Juliana Travassos e pelo
e filósofo martinicano Édouard Glissant, a literatura a de clubes de leitura como as centenas de Leia Mu- Santiago Perlingeiro, e a Feira no Cobogó, no Instituto
(e o cinema, a música, as artes plásticas...) pode virar lheres no país dizem respeito também a uma vira- Moreira Salles. Essas feiras são importantes não só
facilmente perfumaria. da de modos de fazer esses encontros e, portanto, pela possibilidade das pequenas editoras exporem
simultaneamente nos modos de ler e olhar para as seus trabalhos, alcançarem novos públicos – que já
Fim do intervalo para parênteses pessoais e intrans- diversas paisagens que se abrem com os livros. A são leitores, mas não se interessam especialmente
feríveis. leitura como lugar que requer a troca, o debate de pelo trabalho de editoras pequenas –, mas porque
ideias e, essencialmente, o encontro físico justo em possibilitam a venda direta, que é fundamental para
Fora do circuito dos clubes de leitura, que muitas um momento onde a “sociedade da transparência” se sustentar esses projetos editoriais que apostam em
vezes acontecem em livrarias menores com espaços acostumou à relação palco-plateia das redes sociais novos autores brasileiros ou traduções inéditas”,
reservados para encontros justamente como uma sem cheiro, textura, temperatura e, claro, sem a di- relata Stephanie.
tentativa de manter circulação de pessoas e possíveis ferença muito bem-limada pelos algoritmos, é uma Somente no Rio de Janeiro, durante muito tem-
consumidores dentro do ambiente, é importante notar prática que desafia o regime das coisas. Uma que se po não apenas a capital do país, mas afetivamen-
também um esforço de intensificar trocas críticas em coloca em corpo-resistência a um projeto de país que te a capital das publicações literárias, as ações se
outras iniciativas que buscam ocupar os territórios pode, para frustração de todo pensamento freiriano, multiplicam nos espaços menores. Stephanie, que
ameaçados das livrarias. Uma dessas ações é o Mu- criar modelos de educação à distância para otimizar o participa desse circuito, relata: “Nas livrarias, o Le-
lheres que Escrevem, grupo no Rio de Janeiro coor- conteúdo-depósito que será dado às alunas e alunos. onardo Marona organiza o Poetas de dois mundos, que
denado por Estela Rosa, Natasha Silva, Seane Melo e Estela Rosa e todas as demais participantes desse associa o lançamento de livros de poesia com uma
Taís Bravo. “O grupo surgiu em 2015, depois de uma coletivo estão cientes desse papel: “Começamos com leitura de vários poetas, e esse evento viabiliza que
série de questionamentos sobre as condições tanto poucas mulheres e agora somos muitas, com nossas pequenos editores coloquem seus livros na Travessa.
físicas quanto psicológicas que envolviam as mulheres diferenças e semelhanças, trazendo à tona uma for- Recentemente, poetas e outras cidades tem vindo pro
escritoras, principalmente escritoras iniciantes”, diz mação conjunta de espaços democráticos e ensaiando Rio para participar e isso é ótimo. Outro evento que
Estela. “No segundo semestre de 2018, fomos convida- uma organização política possível. A presença física ajuda o pessoal a ter acesso aos livros com preços
das por Heloísa Buarque de Hollanda para pensarmos ajuda a construir afetos e laços e acho que foi assim mais acessíveis é a Feira do Subsolo, que sempre tem
uma residência no PACC - Laboratório da Palavra, que entendemos que nosso pensamento crítico pode uma seleção de títulos com descontos, organizada no
na UFRJ. Essa oportunidade só reforçou o quanto é ser criado de outra maneira, usando outras ferramen- primeiro sábado de cada mês pelas livrarias Berinjela
para nós fundamental estarmos juntas e produzirmos tas que não estas, dadas pelo cânone branco masculino e Leonardo da Vinci, no centro do Rio”.
conteúdo crítico juntas. Nos encontros na (livraria) e heterossexual que nos foi imposto. Comprometer Os encontros promovidos por livrarias menores,
Blooks, os debates geravam pensamento crítico, sa- horas de nossas vidas ao encontro e ao debate é um por instituições como o Sesc (importante veículo de
íamos de lá completamente afetadas e atravessadas ato político, não apenas escrever, mas também estar- capilarização do debate para fora dos grandes cen-
pelas falas de todas aquelas mulheres comprometidas mos abertas à escuta e à leitura de outras mulheres”. tros), por ações que ainda conseguem ter subsídios
com o debate. Na UFRJ, pudemos focar na escrita de As ações para que esses encontros se intensifiquem de empresas que ainda apostam num certo “capital
poesia contemporânea produzida por mulheres e, – e se tornem eles mesmos o caminho possível para cultural” deverão ser, mais do que nunca, focos para
novamente, construímos pontes entre a escrita e o a própria crise do mercado editorial – não são pou- onde as energias de quem acredita na literatura como
pensamento crítico. Escrevo esses relatos depois de cas. A poeta, tradutora e jornalista Stephanie Borges construção de subjetividade – porque é pela e na
três dias intensos de um curso produzido pelo Farol frequenta os circuitos sudestinos e elenca: “Em São subjetividade que vivemos e sobrevivemos – devem
Estúdio em parceria com a Mulheres que Escrevem Paulo, feiras como a Plana e a Miolo(s), com pequenos se concentrar. Em 2019, ano que inaugura uma tem-
justamente sobre crítica literária feminista, ministrado editores, zines, artistas independentes são um su- porada de incógnitas e temores sobre as possibilidades
pela Julia Raiz, escritora, tradutora e pesquisadora da cesso. A programação da Miolo(s) geralmente inclui do devir crítico, para além de pensar sobre como a
UFPR. Mais encontros, mais elos, mais debates, mais debates com autores, lançamentos, são eventos que arte pode criar seus atalhos em espaços de ruínas,
construção de pensamento crítico.” eu frequentava e continuam acontecendo. Criaram a é urgente construir abrigos de con-vivência e con-
Mais do que uma forma de resistência feita a partir Desvairada, que é uma feira só de livros de poesia, com templação das ideias. No meio das bombas? Sim, no
e com um pensamento feminista, o caso das ações debates, leituras, que inspirou duas feiras de poesia no meio das bombas.
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RESENHA
jorra de cada
60 ou 70 anos, com cabelos curtos enrolados e um
longo cachecol, está numa manifestação com a
placa I can’t believe I still have to protest this shit, apoiada
no que parece ser uma cadeira de rodas. Noutra
imagem, em outro ambiente de reunião popular,
ferida ou sutura
outra mulher um pouco mais jovem, com cabelos
longos e grisalhos carrega um cartaz com a variante
I can’t believe I still have to protest this fucking shit. Em uma
terceira, outra mulher ainda um pouco mais nova,
com um casaco cinza azulado, carrega uma placa
Adrienne Rich e poemas que praticamente tampa seu rosto, I can’t believe we
still have to protest this shit. Há várias outras, que car-
que criam um lugar que é regam uma relação com o tempo e as expectativas
da política ao longo do século XX e XXI, sobretudo
LUÍSA VASCONCELOS
poética, que os
prontas para explodir em seus braços. O ciclo da sombras”, para logo depois nos garantir que “este
frase, que atravessa cortes de versos precisos e sig- não é um poema russo, isto não é em algum outro
nificantes, retorna a uma causa de ferimento. São lugar; mas aqui”. Ela não pode dizer onde fica o
essas granadas humanas que não cessam de ferir
a enfermeira, que segue “colocando misericórdia
/à frente de sobrevivência”.
desdobram como lugar, porque ele ainda corre risco, é feito por e
contra o risco, está lá como resistência, pois há
quem queira comprá-lo e vendê-lo, “fazer com
Quando lemos agora esses e outros poemas, fica
claro que a questão não é apenas a especificidade
dos contextos originais, muito embora Rich escre-
algo partilhável que desapareça”. Por isso é preciso contar que
ele existe, para que não desapareça, porém sem
dizer onde, para que sobreviva: assim é a poesia de
vesse diante deles, como intervenção direta e sem e 1977, trata simultaneamente da perda amorosa Adrienne Rich, que não cabe no mercado de pura
contornos ambíguos ou reticências precavidas; e causada por um câncer de mama (com uma ob- compra e venda, porque ela mesma faz um lugar
assim os versos retornam como engajamento ao jetividade crua da perda das mamas e do buraco ao qual precisamos chegar sem mapas.
presente do nosso contexto, porque guardam for- em lugar de cicatriz, além do desenvolvimento
ça poética, que os desdobram como experiências da doença) e da dificuldade da relação entre duas
partilháveis ao mesmo tempo em que marcam mulheres num mundo que não convive com seu O LIVRO
suas origens, seja pelas explicitações de lugares, desejo (que assim estabelecem metaforicamente Que tempos são estes
seja pela marcação do momento em que foram também um corte, ou um buraco, na expressão Editora Jabuticaba
escritos. Eles sobrevivem a essa transferência, tal desses afetos); o resultado é uma investigação sobre Páginas: 84
como pervivem na tradução de Lotufo. as próprias feridas que o poema ao mesmo tempo Preço R$ 30
Dois momentos a meu ver singulares nessa anto- analisa e partilha, o que aparece metapoeticamente
logia de 10 poemas são Uma mulher morta aos quarenta em trechos como: “Você me manda de volta para
e Que tempos são estes. O primeiro, escrito entre 1974 compartilhar/ minhas próprias cicatrizes antes de
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PERNAMBUCO, JANEIRO 2019
ESPECIAL
que ocupa as
ção do Haiti (1701-1804), exibindo as etapas de um
processo que levaram a antiga colônia francesa a se
tornar uma nação independente.
O romance, mais do que interpelar a maneira como
os fatos da Revolução Haitiana estariam presentes
dobras do real
nas consciências como um acontecimento do pas-
sado, busca compreender como esses eventos foram
incorporados na estrutura temporal das relações. Por
isso, o escritor opta por ocultar, sob uma aparente
intemporalidade, o cotejo de datas e cronologias.
Uma leitura antropológica de Passados 70 anos desde sua primeira publicação, O
reino deste mundo segue oferecendo grandes possibilida-
A “IMPENSABILIDADE” DA REVOLUÇÃO
No ensaio An unthinkable history, Michel-Rolph Trouillot
Leonardo Nascimento enfatiza a “impensabilidade” da Revolução do Haiti.
Ele argumenta que a emancipação revolucionária con-
quistada por ela desafiou o cerne das suposições onto-
lógicas e políticas dos pensadores europeus. Afinal, a
capacidade de escravizados africanos almejarem sua
liberdade, desenvolverem estratégias para assegurá-la
e fundarem um Estado independente estava fora do
quadro de compreensão destes pensadores, mesmo
os mais radicais. Por isso, viram-se obrigados a torcer
as explicações para os limites de suas próprias visões
de mundo.
A escravidão racial e seus pressupostos sobre a de-
sigualdade humana não foram desafiados mesmo por
aqueles que aparentemente admitiam a possibilidade
da Revolução, já que a identificação do Homem uni-
versal com o sujeito europeu e masculino teria criado
uma escala de humanidade que comprometeria o
entendimento destes pensadores.
Trouillot utiliza a noção de “impensabilidade” para
tratar também de intérpretes modernos que, assim
como seus antecessores, desconsideraram a ideia de
que escravizados poderiam ser agentes conscientes e como um experimento ético e existencial em que o
responsáveis por suas próprias lutas de libertação. A maravilhoso esteja assentado sobre realidades também
Revolução Haitiana, então, perverteria as respostas empíricas, mas cujos pressupostos ontológicos sejam
ao desafiar os próprios termos em que as perguntas fecundados pelas presenças africanas e ameríndias no
foram formuladas. continente americano.
Valendo-se de um admirável domínio dos recursos “A cada passo encontrava o real maravilhoso. Mas
narrativos, Alejo Carpentier propõe, através de sua pensava, além disso, que essa presença e vigência do
literatura, uma aproximação destes eventos por meio real maravilhoso não era privilégio único do Haiti, mas,
de caminhos distintos daqueles costumeiramente sim, patrimônio da América inteira, onde ainda não se
empregados nas concepções historiográficas – for- terminou de estabelecer, por exemplo, um inventário
temente aficionadas por fontes escritas. A resposta de cosmogonias.”
encontrada por ele para tornar a Revolução pensável Ao convidar o leitor a conhecer um mundo em que
foi a de buscar fixar a perspectiva no polo daqueles que o “real” e o “fantasioso” não se distinguem nos termos
a produziram, uma vez que não há situação histórica impostos pela racionalidade ocidental, Carpentier nos
fora da atividade situante dos agentes. Logo, não há oferece um prodigioso campo de imaginação teórica,
outro modo de contar uma história senão elegendo o bastante próximo de debates que hoje ocupam lugar
ponto de vista de uma das partes. central em diferentes áreas do conhecimento, sobre-
Assim, o autor nos apresenta um mundo em tudo na antropologia e na filosofia.
que o real maravilhoso está livre de uma realidade
seguida em todos os seus detalhes, fazendo eco à A VIRADA ONTOLÓGICA NA ANTROPOLOGIA
afirmação de Édouard Glissant de que o passado Fazer uma espécie de “inventário das diferenças”
não deve ser recomposto somente de maneira ob- entre as muitas culturas é uma das razões de ser da
jetiva, ou mesmo subjetiva, mas deve também ser antropologia. Por isso, foi por meio de experiências
sonhado de maneira profética, sobretudo para as em campo que antropólogos e antropólogas senti-
pessoas, comunidades e culturas cujas vozes foram ram a necessidade de não mais tentar definir como
subjugadas no processo histórico. as culturas se enquadram no mundo da cosmologia
ocidental, mas, ao invés disso, buscaram a compre-
O REAL MARAVILHOSO AMERICANO ensão de que mundo(s) existem para estes sujeitos – e
No já bastante frequentado prólogo de seu livro, Car- quais as decorrências sociais, culturais e políticas de
pentier explica o que entende por real maravilhoso. suas visões. Afinal, como alertou Isabelle Stengers, a
Diz que, depois de sentir o nada irreal sortilégio das ciência quando se engaja para determinar o que deve
terras do Haiti, em visita feita ao país em fins de ser reconhecido como realmente existente termina por
1943, acabou por ser “levado a aproximar a mara- produzir tristes inquisidores.
vilhosa realidade vivida (ali) à extenuante pretensão Essa alteração se deu no pensamento antropológico
de suscitar o maravilhoso que caracterizou certas a partir de uma radicalização do entendimento de que
literaturas europeias”. Nelas, o maravilhoso seria muitos dos problemas que antropólogos/as levavam
buscado senão por meio de “velhos clichês e tru- para campo não faziam sentido se vistos pela perspec-
ques de prestidigitação”. Como atesta o crítico Emir tiva daqueles com quem se estava estudando. Portanto,
Rodríguez Monegal, esse texto acabou por tornar-se melhor seria praticar uma antropologia comprometida
mais famoso que o romance, convertendo-se em em investigar quais perguntas os próprios sujeitos se
uma espécie de prólogo a la nueva novela latinoamericana. fazem e buscar as respostas oferecidas por eles.
Por vezes injustamente apontado como um autor Foi assim que, nas últimas duas décadas, teve
exotista, comparado aos cronistas e viajantes que lugar um processo que ficou conhecido como “vi-
construíram os mitos edênicos que fundamentaram rada ontológica”. De forma bastante resumida, a
o imaginário do Ocidente sobre a América, a proposta expressão faz referência a uma transformação em
de Carpentier é, ao contrário, a retirada do maravilhoso parte importante da produção antropológica, na qual
do terreno da fantasia. Seu projeto deve ser entendido preocupações mais propriamente epistemológicas
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KARINA FREITAS
cederam espaço a reflexões sobre a dimensão on- no reino deste mundo. Uma vez mais os brancos eram contadas por Mackandal. Então, dá-se conta de que
tológica da existência. ludibriados pelos altos poderes da outra margem.” o mandinga se disfarçara de animal, durante tantos
Já em casa, o colono monsieur Lenormand de Mezy anos, para servir aos homens, e não para desertar do
O REINO DESTE MUNDO comentava com a esposa sobre a insensibilidade dos terreno deles. Em um supremo momento de lucidez,
Em O reino deste mundo, Alejo Carpentier evoca a mítica negros ante o suplício de um semelhante, tirando disso volta-lhe à visão os heróis que revelaram a força e a
presença do líder maroon (equivalente local de qui- considerações filosóficas sobre a desigualdade das abundância de seus antepassados da África, o que lhe
lombola) François Mackandal, de quem, segundo o raças humanas, em um discurso floreado por citações faz acreditar novamente em possíveis germinações
escritor, “ficou toda uma mitologia, acompanhada de latinas. Se, sob o manto do humanismo universalista de porvir.
hinos mágicos, conservados por todo um povo, que (com seus ideais abstratos de liberdade e igualdade),
ainda se cantam nas cerimônias do vodu”. É partindo violações de direitos eram perpetradas pelo colonia- A LITERATURA COMO TEORIA-PRÁTICA DA DESCO-
da perspectiva “deste povo” que trilhamos o real ma- lismo escravocrata e justificadas por uma epistemolo- LONIZAÇÃO DO PENSAMENTO
ravilhoso da obra, por meio da vida do escravizado Ti gia eurocêntrica, Mackandal escapara da dominação Em Metafísicas canibais, Eduardo Viveiros de Castro de-
Noel, fiel seguidor das ideias de Mackandal. europeia ao movimentar-se fora dos termos de sua fende que “se estamos todos mais ou menos de acordo
Certo dia, enquanto agarrava a cana em feixes, me- metafísica absolutista. “O que sabiam os brancos de para dizer que a antropologia, embora o colonialismo
tendo as pontas entre os cilindros de ferro, aos em- coisas de negros?” constitua um de seus a priori históricos, está hoje en-
purrões, Mackandal teve sua mão esquerda decepada. Nas páginas do romance, somos apresentados tam- cerrando seu ciclo cármico, é preciso então aceitar
Tempos depois ele foge e seu amo organizou uma bém à figura de Bouckman, o Jamaicano. Nas matas de que chegou a hora de radicalizar o processo de re-
batida, embora sem dar-se muito trabalho. “Pouco Bois Caimán, Bouckman convocaria os negros a uma constituição da disciplina, levando-o a seu termo. A
valia um escravo com um braço a menos”. Além do grande sublevação, partindo dele a admonição final. antropologia está pronta para assumir integralmente
mais, “todo mandinga – era coisa sabida – ocultava um No processo da Independência, as práticas do vodu sua verdadeira missão, a de ser a teoria-prática da
fugitivo em potencial. Dizer mandinga era dizer rebelde, funcionaram como espécie de linguagem comum por descolonização permanente do pensamento”.
revoltado, demônio. Por isso os desse reino eram tão meio da qual se comunicavam os escravizados na Segundo Viveiros de Castro, uma verdadeira an-
mal cotados nos mercados de negros.” luta por liberdade. Evento emblemático, a cerimônia tropologia devolve-nos sempre uma imagem de nós
Desde a fuga, Mackandal se concentrou em lon- de Bois Caimán foi alvo constante de disputas na mesmos na qual não nos reconhecemos, “pois o que
go e paciente trabalho: extrair da natureza formas construção da narrativa histórica sobre o país. Ora toda experiência de uma outra cultura nos oferece é
de envenenar colonos europeus. Mackandal, que se evidenciada, ora apagada, nas páginas de Carpentier, a ocasião para se fazer uma experiência sobre nossa
fizera ogã do rito Radá, tornou-se assim o Senhor do a cerimônia tem um importante lugar de destaque. própria cultura”.
Veneno, proclamando a cruzada do extermínio que Na terceira parte do romance, Ti Noel, que fora Ainda que se trate de um romance, e não de uma
deveria acabar com os brancos colonizadores e criar levado a Cuba durante a fuga de seu amo, regressa já obra de teoria antropológica, O reino deste mundo, ao
um grande império de negros livres. velho ao Haiti como homem livre, pois a escravidão narrar um processo histórico a partir de uma pers-
Rapidamente, o veneno se espalhou pela planície, havia sido abolida com o triunfo de Jean Jacques Des- pectiva “nativa”, é capaz de nos proporcionar um
entrando pelas casas e dizimando famílias. Conhecida salines. Entretanto, Ti Noel espanta-se com o que vê: radical exercício de alteridade antropológica. Talvez
a procedência do caso, começou-se uma verdadeira sob o domínio de Henri Christophe, um rei que, sendo por isso a obra de Carpentier costume frequentar tantas
caçada atrás de Mackandal. Mas, dotado do poder de negro, escraviza outros negros, ele encontra um Haiti epígrafes de etnografias produzidas a partir do Caribe.
transformar-se em animais, ele visitava as fazendas que caminha à margem dos preceitos africanistas dos Um ótimo exemplo de que a literatura, assim como
da planície para vigiar seus fiéis e saber se ainda con- primeiros líderes da Independência Haitiana, já que o a antropologia, pode operar como teoria-prática da
fiavam em sua volta. monarca procurava dar aparência europeia à sua corte. descolonização do pensamento.
Quatro anos duraria a espera até que Mackandal Ti Noel é escravizado novamente, mas vê-se livre Em um mundo que não para de desabar sobre
retornasse em seu corpo humano, durante uma em seguida graças a uma rebelião incitada contra o nossas cabeças (sobre umas mais do que em outras),
celebração do vodu. Capturado pelos brancos em despotismo do rei. A terceira parte chega ao fim com em um tempo em que o desespero ante o infindá-
meio aos festejos, foi levado para ser queimado em a queda do reino e o suicídio do monarca. vel reviver de cadeias e a proliferação de misérias
praça pública. Entretanto, os negros demonstraram O velho Ti Noel retorna à morada em que vivia faz com que os mais resignados acabem por aceitar
revoltante indiferença diante do corpo que era metido com seu antigo amo, mas sua tranquilidade é no- como prova de inutilidade toda rebeldia, o romance
no fogo, uma vez que estavam cientes dos poderes vamente interrompida com a chegada dos mestiços de Alejo Carpentier mantém impressionante vigor e
do mandinga. “Naquela tarde, os escravos retor- republicanos que formam uma nova casta aristocrática nos oferece a possibilidade de imaginarmos outro(s)
naram a suas fazendas rindo por todo o caminho. e opressora. Exausto, Ti Noel resolve refugiar-se. É mundo(s) – e, quem sabe, entendermos um pouco
Mackandal cumprira sua promessa, permanecendo quando voltam à sua mente reminiscências de coisas mais sobre o nosso.
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ESPECIAL
19º degrau
é possível vislumbrar todos os pontos do infinito
cosmos. Por exemplo: o geométrico piso de mo-
saico da antiga Biblioteca Nacional da Rua México,
que Borges dirigiu num interstício peronista; um
banco branco em Adrogué onde certa noite as
daquele porão
mãos do escritor tocaram as de Estela Canto; o
número 2135 da Rua Serrano, hoje batizada com
seu nome, endereço da família Borges entre 1901
e 1914; um gato tomando sol no sexto andar da
Rua Maipu, 994; um tigre-de-bengala no Jardim
O cosmo inteiro que Borges Zoológico em cujas listras pode-se, quem sabe,
decifrar a Escrita do Deus.
***
metafísicas sobre o
mentalismos”, como diz no prólogo de suas obras
completas. “À exceção da biografia sobre o poeta
Evaristo Carriego e de História da eternidade, Borges
não escrevia livros, mas contos breves autônomos
que saíam antes na imprensa e depois em cole-
ções. Estava o tempo todo brincando de armar e
tempo, o espaço
desarmar livros. Ao mesmo tempo, cada vez que
publicava algo, reescrevia a si próprio”, diz.
O Aleph reúne histórias com implicações filo-
e a realidade
sóficas marcadas por preocupações metafísicas de Emma Zunz, verdadeiro o pudor, verdadeiro o
sobre o tempo, o espaço e a realidade. São tramas ódio. Verdadeiro também era o ultraje que sofrera;
labirínticas que revelam seu rebuscado sistema de só eram falsas as circunstâncias, a hora e um ou
citações, a erudição enciclopédica, a ironia mordaz dois nomes próprios’”, cita.
e, sobretudo, o paradoxo de narrar, por meio do
limitado artifício da linguagem, a infinitude do ARTIFÍCIOS CONGÊNERES
mundo. Variantes do relato policial e releituras da Dentre os 17 relatos do livro, dois têm parentesco
poesia gauchesca e da tradição literária argentina siamês: O Zahir e O Aleph – Borges admite no epílogo
do século XIX são outros eixos pelos quais tran- a influência em ambos de The cristal egg, conto de
sitam os contos do volume. H. G. Wells que descreve a descoberta de uma
O escritor e ex-diretor da Biblioteca Nacional esfera de cristal capaz de espelhar as paisagens e
Argentina Alberto Manguel conta que estudava os seres de Marte. Em O Zahir, este objeto mágico
no Colégio Nacional de Buenos Aires, quando leu teria a forma de uma moeda de 20 centavos que
O Aleph pela primeira vez. “Nossa professora de o narrador-protagonista (de nome Borges) recebe
castelhano nos fez ler O imortal, que abre o volu- como troco de uma dose de cana de laranja num
me, e o conto me intrigou tanto, que li também bar de San Telmo após o velório de Teodelina Villar,
os outros. Naquela época, achei extraordinários sua amada. O “Zahir”, que em outro lugar e tempo
aqueles jogos com o tempo: todos somos filóso- fora um tigre, um cego, um astrolábio persa, uma
fos metafísicos aos 13 anos de idade”. Ao longo bússola, e que na tradição islâmica seria “um dos
de quase meio século, Manguel releu este livro 99 nomes de Deus”, tem a capacidade de enlou-
muitas vezes, e diz que para época de sua vida há quecer seu proprietário. Já o Aleph teria a forma de
um conto. “Atualmente leio o final de Emma Zunz uma esfera cintilante de dois ou três centímetros
como uma descrição da nossa realidade atroz de capaz de conter todo o espaço cósmico “sem re-
mentiras políticas e informações falsas: ‘A história dução de tamanho”, e que o narrador-protagonista
era incrível, mas se impôs a todos, porque subs- (também de nome Borges) descobre, em decúbito
tancialmente era verdade. Verdadeiro era o tom dorsal, no 19º degrau da escada que leva ao porão
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PERNAMBUCO, JANEIRO 2019
KARINA FREITAS
enumerações do
de um possível Inferno; um rosto, uma palavra, que não seja arbitrária e conjetural”, para citar uma
uma bússola, um anúncio de cigarros poderiam frase de Borges. O mesmo escreve, em Discussões,
enlouquecer uma pessoa, se ela não conseguisse que “a enumeração é um dos procedimentos poé-
ESPECIAL
KARINA FREITAS
ESCREVER É REESCREVER
mesmo no banheiro de cavalheiros e, ao cabo de
segundos, se ouviria um disparo!’”. Estela não guardou o Em Jorge Luis Borges, um escritor na periferia, Beatriz Sarlo
defende o autor como “um marginal no centro,
manuscrito de O
esperou a morte do autor para vendê-lo por U$S um cosmopolita à margem; (...) um escritor que,
25.760 num leilão em Londres. A peça, felizmente, paradoxalmente, constrói sua originalidade por
foi comprada pela Biblioteca Nacional de Madri, via da citação, da cópia, da reescrita de textos
Aleph e acabou
e uma versão fac-similar pode ser consultada na alheios, porque desde sempre pensa a escrita a
Sala do Tesouro da Biblioteca Nacional Argentina. partir da leitura e desconfia da possibilidade de
A julgar pela quantidade de tachados, rasuras, representação literária do real”.
números e símbolos tipográficos na sua “caligrafia
de inseto”, nota-se que Borges penou um bocado
para construir a sequência das enumerações.
vendendo-o De Dante a Cervantes, da Odisseia ao Martín Fierro,
da Bíblia Sagrada às mitologias judaicas, nórdicas e
pampianas, de Macedonio Fernández às aventuras
CARTOGRAFIAS IMPOSSÍVEIS
O Aleph é também sobre a insuficiência de se re-
durante um leilão de Conrad e Stevenson: Borges foi um flâneur lite-
rário, assim como também flanou pelos arrabaldes
portenhos durante boa parte do século XX.
presentar as experiências vividas (simultâneas, crevera O Aleph. “Nenhum livro me proporcionou “Como nenhum outro escritor, Borges marca
complexas, totais) por meio do discurso narrativo emoções estéticas tão intensas. E sou um leitor as glórias e dificuldades de estar em literatura. A
(arbitrário, limitado, necessariamente sucessivo). hedonista; nos livros eu procuro emoção”, disse. leitura como fonte de escritura. Borges herdava
O brevíssimo texto Do rigor na ciência, incluído em Há, de fato, divertidos jogos paródicos entre o relatos e ao contá-los os tornava novos. Sua escrita,
O fazedor, ilustra o problema a partir da alegoria conto e a Commedia, desde o nome da musa morta assim como toda a literatura, é lugar de trânsito,
de um império onde os mapas têm a escala exa- (Beatriz Viterbo x Beatriz Portinari) ao personagem de tradução”, disse Sylvia Molloy na conferência
ta das cidades. São perfeitos, mas perderam sua antagonista Carlos Argentino Daneri (há quem leia Borges e eu, apresentada em 2017 na Biblioteca Na-
função. “Este paradoxo está por trás de toda a nele o anagrama DANte alighiERI), da descida ao cional Argentina. Na opinião de Manguel, não se
obra de Borges (Pierre Menard, autor do Quixote, O con- porão escuro (o inferno?) guiado por um poeta pode falar de literatura em língua espanhola sem
gresso, Funes, o memorioso, A biblioteca de Babel etc.), e (Daneri x Virgílio) à impossibilidade de se narrar o se referir à narrativa de Borges, aos contos de Ficções
O Aleph é uma forma de responder a isso”, afirma maravilhamento de suas visões. “Toda linguagem e de O Aleph. “Há um antes e um depois de Borges.
Hernaiz. Para ele, a enumeração por elementos é um alfabeto de símbolos cujo exercício pressupõe Mesmo a literatura escrita antes de seu nascimento,
de distintos níveis e categorias seria uma forma um passado que os interlocutores compartilham”, hoje nós lemos com uma perspectiva borgiana”.
de evidenciar a impossibilidade de dar ordem ao diz o narrador do conto, como que aludindo ao A vigência de O Aleph, como de toda a obra do
caos. “Em Borges, para que a representação seja peso da tradição. argentino, parece residir na importância de ler os
possível, tem de ser inútil”. Para Alberto Manguel, Borges amava tanto esta clássicos à luz do nosso tempo, apropriando-nos
Assim, neste 70º aniversário, escrever sobre obra, que a única forma de lhe prestar homenagem deles e mantendo azeitados os elos da cadeia literá-
O Aleph implicaria em transcrever aqui seu texto seria criar uma espécie de versão cômica. “A tra- ria. Porque não existe literatura sem tradição, mas
integral, citar todos os estudos críticos, resenhas gédia grega consistia, na era clássica, numa trilogia subvertê-la é preciso. Ler Borges é um exercício
e artigos em todas as línguas, publicados em todos com a adição de uma peça de humor grotesco de pensamento e uma reinvindicação do trabalho
os tempos. Tarefa infinita e inútil, absolutamente chamada de ‘drama satírico’. De alguma maneira, intelectual – algo revolucionário nestes tempos
impossível no espaço reduzido destas páginas. acho que O Aleph é essa quarta peça, uma espécie em que o anti-intelectualismo parece se alastrar
de nota satírica ao colossal poema de Dante.” na sociedade brasileira.
DIVINA COMÉDIA Sebastián Hernaiz, por outro lado, nota que mais Ler Borges em 2019 é, também, descobrir ou-
Em 1977, Borges proferiu sete conferências no interessante do que atentar para estes vínculos tro Borges. Assim como é impossível banhar-se
Teatro Coliseo de Buenos Aires, posteriormente entre os dois textos é a provocação de Borges em duas vezes no mesmo rio, Molloy lembra que é
compiladas no livro Sete noites. Uma delas sobre colocar um fenômeno estético tão impactante e impossível ler o mesmo Borges. “Mas essa impos-
a Divina Comédia, clássico de Dante Alighieri que luminoso como o Aleph em um lugar tão miserável sibilidade, talvez lamentada por alguns (penso nos
lera em versão bilíngue italiano-inglês no trajeto e escuro como o porão de uma casa prestes a ser celebradores, homenageadores de Borges, ansiosos
de bonde até a Biblioteca Miguel Cané, no bairro demolida num bairro portenho degradado. Seria por manter intacta uma monumentalidade monó-
de Boedo, onde trabalhava na época em que es- esta uma forma de trazer a altura cultura univer- tona), é, na verdade, uma vantagem.”
HUMOR, AVENTURA E HISTÓRIA EM
LIVROS PARA ADULTOS E CRIANÇAS
INÉDITOS
Paul Frölich
Tradução: Nélio Schneider e Erica Ziegler
Sobre o
fim do capitalismo
A ESCOLA DO PARTIDO muitos diferentes (…) a maioria havia sido preparada
No ano de 1906, a social-democracia alemã criou apenas por escritos de agitação, eram raros os que
em Berlim uma escola do partido. Até a irrupção da estavam habituados ao pensamento científico. Na
guerra, a cada inverno, cerca de 30 companheiros primeira aula, a professora estabelecia contato com
eleitos pelas organizações distritais e pelos sindicatos os alunos. Não ensinava nem apresentava resultados
se formaram em ciências sociais e nas disciplinas prontos. Ela obrigava os alunos a elaborar os conhe-
práticas da agitação. A escola foi a expressão do poder cimentos por si mesmos.
organizacional do movimento dos trabalhadores. Era Primeiro, ela tratava das diferentes formas econô-
necessária para assegurar uma nova geração qualifi- micas, suas características, mutações e causas. Em
cada de redatores, agitadores e outros agentes ligados conexão com elas, examinava as teorias econômicas
ao movimento. (…) Parece que Rosa Luxemburgo foi mais importantes antes e depois de Marx. Depois
vista desde sempre como docente. Do primeiro curso, de elaborar durante semanas um quadro geral do
no entanto, ela não participou, ou porque se recusou, desenvolvimento factual das relações de produção
ou porque os sindicatos fizeram objeção. A polícia e troca e seu espelhamento na ciência burguesa,
prussiana interveio no quadro docente e ameaçou trabalhava as teorias de Marx com o auxílio de O
extraditar o austríaco Hilferding, caso continuasse capital. Durante todo o curso, restringia ao míni-
a lecionar e, assim, a partir de 1907, Rosa assumiu mo necessário o material que ela própria tinha de
o curso de economia política, isto é, a introdução às ensinar. Buscava dentro da cabeça dos alunos o
teorias econômicas de Karl Marx. que eles tinham de conhecimentos e concepções
SOBRE O TEXTO Rosa Luxemburgo foi uma professora destacada, e e submetia-os a uma verificação minuciosa com
não só pelo domínio absoluto de seu campo. Ela era intervenções e perguntas sempre novas, até o qua-
Nestas e nas próximas um talento pedagógico de primeira grandeza. Como dro real da vida tomar forma. O processo cognitivo
páginas, um excerto de Rosa autora e oradora, esse talento foi responsável por parte propriamente dito era tarefa dos próprios alunos.
Luxemburgo: pensamento e de seu êxito e agora podia se desenvolver plenamente. Nessa atividade, ela se ocupava dos mais talentosos.
ação, de Paul Frölich, uma A tarefa não era fácil. O capital, de Marx, constituía a Sempre mantinha todos atentos. E, se algum sonha-
biografia da revolucionária base do curso, mas não era um livro didático popular; dor lhe escapava, ela infalivelmente o despertava
alemã que a Boitempo e a compreensão correta de suas teorias pressupunha com uma pergunta bem direcionada, contornava
Editorial lança neste mês. sólidos conhecimentos no campo econômico e social. seu embaraço com uma observação espirituosa e
Porém, os alunos eram uma miscelânea de meios restabelecia o contato. (…)
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PERNAMBUCO, JANEIRO 2019
FILIPE ACA
A ACUMULAÇÃO DO CAPITAL
Rosa Luxemburgo trabalhou vários anos em sua
“economia política”. A atividade docente na escola
do partido, a agitação a favor da social-democracia
alemã, as controvérsias táticas com oponentes no
partido e trabalhos abrangentes para os movimentos
polonês e russo foram postergando a conclusão da
obra. Quando, no início de 1912, ela quis concluir o
trabalho pelo menos em suas linhas básicas, deparou-
-se com uma dificuldade inesperada:
FILIPE ACA
INÉDITOS
Paul Frölich
Tradução: Nélio Schneider e Erica Ziegler
sua atuação política se baseava nesse conhecimento Feito isso, a dança recomeça com uma maior despro-
científico. Tinha raízes profundas nela a ideia de que o porção entre as forças produtivas e a força de trabalho
socialismo só seria uma certeza se fosse comprovado empregada, ou seja, o risco é maior do que antes.
cientificamente que o capitalismo seria destruído Foi assim que Marx expôs o curso da economia
pelas contradições imanentes a ele. capitalista; mais exatamente, apesar de algumas os-
A dificuldade era resultado da pergunta: a econo- cilações, o exército de trabalhadores cresce cada vez
mia capitalista, que se distingue dos demais sistemas mais, os salários são pressionados para baixo até o
econômicos por sua dinâmica crescente prodigiosa, simples mínimo para a subsistência, as crises se suce-
poderá se desenvolver de modo constante e sem en- dem cada vez mais rápido e se tornam cada vez mais
traves? A ciência não contesta que essa possibilidade devastadoras. Todavia, esse conhecimento teórico
de desenvolvimento é a condição da existência do contradizia a realidade. A partir da década de 1860,
capitalismo. Em toda economia anterior, a produção os salários dos trabalhadores europeus cresceram
era para uso imediato e o produto era consumido pelo quase ininterruptamente. O exército de reserva dimi-
senhor e pelo servo. Quebras de colheita, guerras e nuiu. As crises, esses acidentes vasculares cerebrais
epidemias podiam provocar catástrofes. Porém, crises que fazem a economia capitalista ter consciência de
advindas da legalidade inerente à ordem econômica, seu fim, eram cada vez mais fracas e a prosperida-
crises causadas pela superprodução, massas com fome de capitalista parecia crescer constantemente. Os
apesar dos celeiros cheios, destruição de produtos marxistas começaram a atribuir às afirmações de
úteis para recuperar as condições “normais” de pro- Marx sobre a miserabilização progressiva da classe
dução – esses fenômenos da nossa economia eram dos trabalhadores, a intensificação das contradições
impensáveis. É certo que, na economia capitalista, sociais e o iminente colapso da economia capitalis-
a demanda social tem de ser bem ou mal-atendida, ta um sentido que elas evidentemente não tinham.
mas o motivo que impulsiona a produção não é esse, Apesar desses fenômenos, Rosa Luxemburgo se ateve
e, sim, o lucro. O lucro provém do mais-trabalho que à teoria marxiana. Contra Bernstein, afirmou que
o trabalhador realiza além do trabalho necessário para as crises a que Marx se referia só se iniciariam mais
satisfazer sua demanda vital – visando à reprodução tarde, o crescimento atual era apenas um fenômeno
constante da força de trabalho. Porém, o lucro só é transitório – que, de qualquer modo, estava durando
“realizado” quando há compradores suficientes para mais de meio século. Ela estava convencida de que o
as mercadorias produzidas. O capitalista que consegue capitalismo toparia com um limite ao seu desenvol-
produzir mais barato terá as melhores perspectivas de vimento e se despedaçaria.
vender suas mercadorias, de realizar seu lucro. Por- Então, ela encontrou no Livro II de O capital, de Marx,
tanto, a concorrência o impele a melhorar seus meios uma demonstração que, se fosse concludente, jogaria
de produção, e ele naufraga se ficar para trás. Com sua concepção no lixo. Tratava-se da possibilidade
cada progresso técnico crescem as forças produtivas de uma acumulação permanentemente progressiva
e a massa de mercadorias, mas diminui proporcional- de capital, um aumento ilimitado da produção. Apa-
mente o número de trabalhadores e, desse modo, o rentemente, a acumulação do capital é uma questão
de clientes capazes de pagar. Quanto mais poderosas bastante simples. O capitalista emprega uma parte
as forças produtivas, tanto maior o número de mãos do mais-valor que ele não consome pessoalmente
supérfluas. Surgirá necessariamente um exército de para comprar máquinas, matérias-primas, força de
desempregados que crescerá constantemente e pres- trabalho adicional, e um novo capital é incorporado
sionará os salários para baixo, dificultando ainda mais à economia. Se analisarmos a economia capitalista
a venda. Sob o flagelo da concorrência, portanto, a como unidade, trata-se de um processo complexo
economia capitalista exige que se produza cada vez que escapa ao arbítrio dos capitalistas individuais. Em
mais, que ocorram crises periódicas nas quais sejam determinado momento da produção, é preciso produ-
extintos métodos de produção incapazes de fazer frente zir mercadorias múltiplas que sirvam ao consumo da
à concorrência, que sejam destruídos valores capitais. população, à renovação dos meios de produção ultra-
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PERNAMBUCO, JANEIRO 2019
Luxemburgo
rias para poder comprar os meios de produção e pagar a força produtiva crescente e o poder de compra
a mão de obra que empregarão no novo período. Na proporcionalmente decrescente: eles vendiam mas-
sociedade capitalista, anárquica e sem planejamento, sas cada vez maiores de mercadorias para estratos
RESENHAS
DIVULGAÇÃO
pragmatismo
Às vezes, a antologia me chamou a atenção um de teorizações, ou do rigor um lado, pelas mudanças
quer chamar a atenção subgênero delicioso: o de um método. Um ensaio do jornalismo nas últimas
para novos valores no ensaio sobre o ensaio. Esse debate ideias, sem sombra décadas, e, por outro lado,
das hipóteses
campo literário, ou busca é o propósito da antologia, de dúvidas. Mas o faz com pelo fetiche excessivo do
resgatar vozes esquecidas que é também um dos uma cadência aprendida “método” e da “teoria”
pelo processo histórico propósitos editoriais da com a poesia e a ficção. nas humanidades.
formador dos cânones. revista: o de fomentar Por isso, penso que uma No caso da universidade,
Antologia discute as bases do Outras vezes, uma entre nós uma discussão das melhores definições não se preocupem, não
escritora, ou escritor, é sobre a prática ensaística. de ensaio está em um dos defendo uma diatribe
RESENHAS
RENATO PARADA/DIVULGAÇÃO
em Pornopopéia quanto
em Maior que o mundo
existe alguma coisa se
desenrolando lá fora,
enquanto os corpos se
encontram em lugares
fechados ou alheios
ao mundo - “Alguma
coisa sempre acontece
em qualquer lugar com
gente humana por perto.
Não é possível não
acontecer nada, porque
esse nada em si já é
um acontecimento, da
mesma forma que o tédio
é um sentimento tão real
quanto o tesão, embora
implique bem menos
perda seminal”.
Se os embutidos de
frango de antes traziam
uma questão social ou
de uma praticidade que
seja, em Maior que o mundo
a coisa se complica
ainda mais. Um novo
romance não tem sentido
prático num mundo
sedento por embutidos
de frango. A literatura
é uma outra coisa, que
por si só não tem uma
função exata, concreta
(leia-se capitalista).
Ninguém precisa de
um novo romance,
mas talvez precise de
pode terminar
metrópole que se pontos mais ambiciosos cinema e teatro, mas isso para seu texto, já que o
acredita bem iluminada do livro é fazer alta não sugava o tempo de livro não começa com
– mas, ao contrário do ficção com embutidos de ninguém. No meu caso, uma primeira frase
clássico de Cortázar frango, o que, de maneira são as minhas fantasias propriamente dita,
Em seu primeiro livro em (1914-1984), a Maga é
substituída pela utópica
oblíqua, manifesta uma
forte insatisfação social”.
sexuais que chupam
todo o meu tempo, quase
mas com as aspas das
gravações do narrador
uma década, Reinaldo Moraes primeira linha perfeita As questões sociais e literalmente, já tem pelas ruas da cidade; e
políticas em Moraes, de fantasia sexual que adora acaba resolvendo sua
discorre sobre a criação perdida
de um novo livro que
nunca começa, e Paris fato, sempre aparecem pagar um boquete pro angústia criativa topando
é a São Paulo que de forma oblíqua: estão fantasista”. com um romance
Schneider Carpeggiani jamais acaba/dorme ali, são o aparato, a Quando se fala da obra anônimo e pensando…
a se estender entre o sustentação, mas você de Moraes, a primeira hum, por que não?
Baixo Augusta e certas não as enxerga direito coisa que costuma Maior que o mundo é o
ruas de Pinheiros. Às – há sempre alguma ser lembrada são as primeiro volume de uma
vezes, Maior que o mundo outra coisa acontecendo descrições generosas trilogia em que Moraes
lembra ainda O romance que nos afasta do que de sexo. E aqui elas pretende percorrer a
luminoso, obra-prima do deveria importar. O continuam abundantes. sua interminável São
uruguaio Mario Levrero leitor fica aprisionado E, ao falar de sexo, Paulo para falar dessa
(1940-2004), em que pela linguagem Moraes acaba fazendo coisa que, incomodada
a escrita de um livro se impressionante de um retrato etnográfico com o terror lá fora e
equilibra entre o prazer Moraes e por suas bastante divertido o desejo aqui dentro,
e o inferno (ambos, por descrições à pulp fiction (engraçado no sentido, hiberna precariamente:
sinal, bem carnais) de de muitas carnes e de também, de melancólico, a criação ficcional.
nunca chegar ao fim. Ou muitos aditivos químicos por tratar o real de
mesmo de começar. e alcoólicos à disposição. forma tão extrema que
O criador empacado Se em Pornopopéia acaba perfurando o lado
já estava presente no o torpor sexual se exótico da coisa) da
romance anterior de desenrolava em meio São Paulo dos baixos e
Moraes, Pornopopéia (com aos ataques do PCC de da modernidade com
acento mesmo), que o 2006 em São Paulo, rodinhas da classe
consolidou como um dos que fizeram dezenas de média – tal e qual um dia
nomes mais potentes mortos, o novo romance fizeram tão bem Marcia
da literatura brasileira. tem logo ali na Paulista Denser no seminal Diana
Mas em Pornopopéia a as marchas de 2013, que caçadora e Angeli nas suas
caça pela inspiração era o narrador/personagem tirinhas clássicas dos
a de um publicitário (a primeira e a terceira anos 1980. Discípulo da
que se acreditava artista pessoa se embaralham literatura do Marquês de
e precisava fazer um no livro) Cássio Sade, Moraes nos lembra
vídeo institucional de Adalberto, o Kabeto, ainda que exibir o sexo
embutido de frango - “É ignora solenemente. de forma tão crua, tão ROMANCE
– repita comigo – vídeo Existe um incômodo, vez torpe e tão numérica
institucional. Pra ganhar por outra, mas a cidade/o (tal e qual uma equação Maior que o mundo (volume 1)
o pão, babaca. É o pó. E a corpo/a escrita/a noia matemática) é também Autor - Reinaldo Moraes
breja. E a brenfa. É cine- parecem falar mais exibir o medo dos jogos Editora - Companhia das Letras
sabujice empresarial alto, pelo menos por entre as classes sociais. Páginas - 456
mesmo, e tá acabado”, enquanto – “Dizem que É por isso que tanto Preço - R$ 74,90
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José
CASTELLO FILIPE ACA
Literatura de conquista
“A literatura é uma empresa de conquista a imaginação é o instrumento de acesso – a Afirma Cortázar que a presença inequívoca
verbal da realidade”, escreveu o argentino escavadeira – com que ela perfura o real. do romance em nosso tempo se deve ao fato
Julio Cortázar (1914-1984) em Situação do ro- Do real, nos diz Cortázar, a literatura não de ser ele “o instrumento verbal necessário
mance, terceiro capítulo de seu Valise de cronó- deseja qualquer coisa. Ela se empenha “na ba- para a posse do homem como pessoa, do ho-
pio, de 1974, traduzido no Brasil pela Editora talha pelo indivíduo humano, vivo e presente, mem vivendo e sentindo-se viver”. Não é fácil
Perspectiva. O mundo sempre nos escapa, você e eu, aqui, agora, esta noite, amanhã”. conquistar o sentimento de existir e o romance
mas a literatura não desiste de persegui-lo. A literatura quer o Um – cada um de nós, em nos ajuda nisso. A ficção busca a totalidade do
Sua tarefa é apoderar-se do real para lhe separado. Como faz isso? A ficção começa por homem enquanto pessoa. “Profundamente
emprestar uma direção e um sentido. “Cada nomear as coisas. Ao dar nomes às coisas, as imoral dentro da escala de valores acadêmicos,
livro realiza a redução ao verbal de um frag- individualiza e humaniza. Bebês em um ber- o romance supera todo o concebível em matéria
mento da realidade”, continua Cortázar. O çário são apenas bebês em um berçário. Mas, de parasitismo, simbiose, roubo com agressão
que o leitor tem nas mãos não é a vida, mas se lhe damos nomes – Maria, João, Antônio e imposição de personalidade”. No projeto de
uma aproximação da vida. Algo imperfeito, – deixam de formar uma massa amorfa e se conquista do humano, o romance não des-
inacabado, insuficiente: o humano. tornam indivíduos. O mesmo faz a literatura: carta nenhum recurso, nenhuma estratégia.
Insiste Cortázar: “A literatura vai apoderan- nomeia para “criar” os homens. E leva esse projeto até as últimas consequ-
do-se paulatinamente das coisas e de certa Mas, diz Cortázar, essa nomeação não é ências. Nesse sentido, o ficcionista não pode
forma as subtrai, rouba-as do mundo”. Com absoluta – afinal a língua é arbitrária – e há ter escrúpulos. Tudo, absolutamente tudo, do
essa ocupação do real, chegamos ao que os sempre o momento em que a dúvida se instala. homem lhe interessa. Todos os métodos e todos
escritores chamam de temas. Ainda que dis- Também nessa hora, a literatura nos serve de os instrumentos – da palavra, que isso fique
torcido, reduzido e deformado, o real está meio de interrogação, pois faz o “ajuste dos claro – são válidos para levar adiante sua luta.
sempre presente nas ficções. Para Cortázar, instrumentos pessoais e verbais”. Confiar nas Penso nas palavras de Cortázar em um sé-
mais importante do que a história das formas, palavras, sim; mas sempre duvidando delas. culo de romances frios, mecânicos e desuma-
é a história de suas estratégicas de conquista. Eis o paradoxo sobre o qual a literatura se er- nizados. Romances “para vender”, romances
Usada há 5 mil anos, a linguagem é um instru- gue: afirmação e dúvida são os dois lados da “para distrair”, romances “para dormir”: de
mento de luta e de posse, expressa através dos mesma moeda. Pois bem: essa preferência pelo todos eles o homem sempre escapa. A litera-
gêneros literários. Não dá, não é justo, tomar a homem, diz Cortázar, “explica a preferência tura precisa recuperar seu desejo de conquista
literatura como um conjunto de formas vazias, pelo romance como forma predileta de nosso do mundo. Seu projeto de nele interferir, ainda
ainda que belas. Essas formas estão sempre tempo”. O romance tenta esgotar – embora que suavemente. A literatura, que é língua e
em atrito com o mundo, em estado de tensão, nunca esgote. Tenta sintetizar – embora uma metáfora, pode sustentar a falta de limites, sem
tentando submetê-lo e conquistá-lo. parte sempre fique de fora. Tenta controlar o machucar ou golpear ninguém. Não se trata de
Penso nas palavras de Cortázar em uma real – embora o real seja incontrolável. praticar a violência – hoje, infelizmente, tão
época em que literatura parece ter perdido “Nada é mais importante do que o homem disseminada em nosso mundo. Ao contrário:
seu esforço de conquista. Parece ter abdica- como tema de exploração e conquista”, Cor- trata-se de usar da força criativa para arrancar
do do mundo, preferindo o que as estantes tázar nos diz. Mais ainda, podemos acrescen- o homem de sua apatia e indiferença.
de livrarias chamam, sem nenhum rigor, de tar: a literatura só tem um sentido quando tem A ficção, nos diz Cortázar, supõe a procura de
“fantasia”. Diz-se: “literatura de fantasia”, o homem por objeto. Nos séculos XVII e XVIII, um ser impuro. Por isso os romances são ines-
como se todo o resto fosse apenas um esfor- o romance tentou “conhecer e apoderar-se do gotáveis: porque o homem é, ele também ines-
ço malogrado de escrever. Para o comércio, comportamento psicológico humano”. A partir gotável. O humano está sempre contaminado
a fantasia se tornou um gênero da ficção, daí, a literatura empenhou-se em se assegurar pelas coisas do mundo e, a cada contaminação,
baseado, sobretudo, em produtos mágicos, de que o homem pode chegar a conhecer-se toma uma face. Essa impureza é, na verdade,
místicos e sobrenaturais. Para seus vendedo- o bastante. Através do Romantismo, com sua sua riqueza. Daí também as dificuldades en-
res e propagadores, só ali haveria invenção, análise da subjetividade, esse jogo de apro- frentadas pelos romancistas, sempre com o
o resto seria mera cópia da existência. Isto priação do real se acelerou. Distingue Cortázar: sentimento de que sua escrita não terminará
basta para mostrar como é deficiente a ideia “O romance antigo ensina-nos o que o homem nunca. De fato, também o homem não termina,
que temos hoje a respeito da literatura. Sim, a é. Nos começos da era contemporânea, o ro- também ele não comporta uma síntese, ou
literatura tem um pacto com a vida, mas nem mance começa a se perguntar a respeito de um resumo, e daí a potência das ficções, que
por isso descarta a imaginação. Ao contrário: seu por que e seu para que”. conseguem suportar essa figura interminável.