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deslocamentos

e refúgios
sumário

caderno Globo EDITORIAL Vidas em movimento  4 CRÔNICA  Amanheceu em São Paulo, por Dione Fonseca  76

CONSELHO EDITORIAL Comunicação ARTIGO Fora do lugar, por Maurício Santoro  8  ensões no trânsito, por João Carlos
ARTIGO T
Djamila Ribeiro, Sérgio Valente, diretor Jarochinski Silva  82
filósofa GLOSSÁRIO Certo sentido  14
Edna Palatnik, Responsabilidade Social ENTREVISTA No lugar do outro
gerente de Desenvolvimento de Dramaturgia da Globo Beatriz Azeredo, diretora INFOGRÁFICO Deslocamentos em números  18 com Duca Rachid e Thelma Guedes  88
Fernanda Torres,
atriz e escritora Globo Universidade ARTIGO  Parâmetros de inclusão, CRÔNICA Os outros de nós mesmos,
Gabriela Moura, Viridiana Bertolini, gerente por José Egas e William Laureano  24 por Eliane Caffé  98
relações-públicas e escritora
Viviane Tanner, supervisora
George Moura, EXPEDIÇÃO O
 lhar na fronteira  104
ARTIGO Crise de acolhida, por Liliana Lyra Jubilut  32
autor e roteirista Histórias partidas, por Victor Sá  106
Equipe
Ilona Szabó, Ritos da passagem, por Joy Ernanny  110
Fatima Gonçalves ARTIGO A
 dor de não pertencer,
cientista política Carrego comigo, por Ricardo Calil  112
Gisele Gomes por Helena Celestino  38
Jailson de Souza e Silva,
Helena Klang
geógrafo e professor ARTIGO A complexidade da inclusão, por Paolo Parise  116
Lázaro Ramos,
Isabella Salles ENTREVISTA Linha divisória, com Rosana Baeninger  44
Juan Crisafulli
ator e escritor ARTIGO I ntegração pelo trabalho, por Paulo Sérgio
Marcus Barão, Milana Bernartt ENSAIO A coisa mais importante, por Brian Sokol  56
de Almeida e João Marques da Fonseca  122
presidente do Fórum da Juventude da CPLP
Mônica Waldvogel, INFOGRÁFICO Realidade brasileira  60
serviço A quem recorrer  128
jornalista
ARTIGO M
 ovimentos globais, desafios locais,
por Carolina Moulin  64 CRÔNICA Diferenças em conexão, por Yousef Saif  132
COORDENAÇÃO EDITORIAL
Beatriz Azeredo
Viridiana Bertolini ARTIGO Ainda não é amanhã, por Vivianne Reis  70 PARA SABER MAIS Cultura além das fronteiras 136
Gisele Gomes
Caderno Globo 16
CURADORES DESTA EDIÇÃO
Maria Beatriz Nogueira, São Paulo, agosto 2019
chefe do Escritório do Acnur em São Paulo Tema: Deslocamentos e refúgios ensaio fotográfico por felipe fittipaldi
ISSN 2357-8572
Maha Mamo,
palestrante e porta-voz da campanha I Belong
Editor: Globo Comunicação
COLABORADORES DEStA EDIÇÃO e Participações S. A.
Ana Paula Brasil Globo Universidade
Cília Monteiro Endereço: Rua Evandro Carlos
Milana Bernartt
de Andrade, 160
Editora-chefe São Paulo – SP Talal Bestalia Leona Maria José José Emmanuel Ahmad
Graziella Beting CEP 04583-115 6 12 16 22 30 36 42

EDITORES
Murilo Roncolato EDIÇÃO DIGITAL e podcast
Paulo Jebaili O Caderno está disponível em
versão digital e em podcast no link:
revisão APP.CADERNOSGLOBO.COM.BR e
Ricardo Jensen de Oliveira nos principais tocadores de sua
preferência
Projeto gráfico e versão digital
Casa 36 Flor Deivys Adriana Euligio Kelvin Humberto Ottoniel
54 58 62 68 74 80 86
FOTOGRAFIA
Felipe Fittipaldi

produção gráfica
Toninho Amorim

Kaysar Ruber Prudence Maha Nathalie Nidelvis Yousef


96 102 114 120 126 130 134
editorial

o ensaio fotográfico
Nas páginas a seguir, entremeados aos artigos,
aos infográficos e às entrevistas, estão os perfis
de 21 estrangeiros, recentemente deslocados de

vidas
suas casas em diversos cantos do mundo, que

movimento
vieram começar uma nova etapa de suas vidas no
Brasil. Eles foram retratados pelo fotógrafo Felipe
em Fittipaldi, nos estados de Roraima, São Paulo
e Rio de Janeiro, para compor o ensaio visual que
ilustra a publicação.

Talal, Leona, Maria José, Emmanuel, Ahmad, de vista internacional, com o crescente fluxo
Maha, Adriana, Yousef e tantos outros. Eles vêm de pessoas deslocadas no mundo, como es-
da Palestina, da República Democrática do Con- pecificamente centrado na situação brasileira.
go, da Venezuela, da Síria e hoje vivem no Bra- Maha Mamo, ex-apátrida, ex-refugiada e hoje
sil. Fazem parte de um contingente de dezenas naturalizada brasileira, foi uma das curadoras
de milhões de pessoas que atualmente se des- da edição ao lado de Maria Beatriz Nogueira,
locam pelo mundo em busca de refúgio. São do Acnur, a Agência da ONU para Refugiados.
migrantes, apátridas, refugiados, exilados, gen-
te que só encontrou no abandono da terra natal O tema na Globo
a saída para se proteger de crises, guerras, per- O Caderno visitou locais de abrigo mantidos
seguições (políticas, religiosas, étnicas e sociais) pela instituição em Roraima, atualmente uma
e demais violações de seus direitos. das principais portas de entrada de venezue-
lanos no Brasil. A expedição, relatada em tex-
O Brasil, constituído por uma mistura de po- tos e fotos nesta edição, rendeu também ma-
vos, entre imigrantes, colonizados, forçados, térias e edições dos programas Sem Fronteiras,
escravizados, hoje manda mais gente para fora da GloboNews, Conversa com Bial e Mais Você,
do que recebe. Mesmo assim, e embora dis- da Globo. Entrevistou as autoras da novela
tante das principais regiões de conflito no Órfãos da Terra, que aborda essa temática na
mundo, é atualmente o sexto país que mais novela das 18h da Globo, assim como outros
recebe pedidos de refúgio no planeta. roteiristas, músicos e artistas que abordam a
representação do tema na literatura, na mú-
Esta edição do Caderno Globo é dedicada a sica e no audiovisual. Na versão digital do
essas pessoas que escolheram o Brasil como Caderno, estão disponíveis links para esses
refúgio. Fomos ouvir suas histórias, conversar programas, assim como os vídeos da plata-
sobre seus planos e projetos para o futuro para forma REP – Repercutindo Histórias, que em
aprender, a partir de seus olhares estrangeiros, sua 10ª edição colheu depoimentos de refu-
novos jeitos de conhecer a nossa sociedade giados contando como estão reconstruindo
e discutir os nossos sistemas de acolhimento suas vidas no Brasil. Trazemos também o fil-
e proteção a essa crescente população. Con- me realizado pela Globo em parceria com o
vidamos também especialistas em direitos Acnur e veiculado na plataforma Tudo Come-
humanos, relações internacionais, legislação, ça pelo Respeito, que apresenta um coral de
estudos demográficos e populacionais para refugiados de Angola, Moçambique, Palestina,
discutirem o atual panorama, tanto do ponto República Democrática do Congo e Síria.

4 5
ensaio

Talal
Talal Altinawi nasceu em Damasco, na
Síria, mas abandonou seu país sob conflito
rumo ao Líbano e, de lá, como refugiado
ao Brasil. Veio em 2013 com a esposa e os
dois filhos. Já em terras brasileiras, nasceu
a terceira filha do casal. Aqui abriu loja
de roupa infantil e, mais recentemente,
um restaurante. Mas nenhum dos negócios
vingou. Talal hoje vende comida só por
encomenda e trabalha como motorista de
aplicativo, enquanto ainda tenta revalidar
seu diploma de engenheiro mecânico. “Tem
gente que acha que você deixou a sua terra
para ganhar mais dinheiro em outro lugar.
Eu já tinha a minha vida feita lá. Fomos
obrigados a sair, não foi uma escolha.”

6 7
artigo
por Maurício Santoro

fora
lugar
do
armados que disputam o controle do governo,
com frequência com apoio de vários aliados
internacionais. Nesses confrontos, a violência
contra populações civis não é acidental, é tá-
tica planejada dos diversos participantes. Or-
ganizações como Estado Islâmico, Boko Haram
ou Talibã a usam para expulsar determinados
grupos étnicos e religiosos de territórios que
querem dominar. Isso leva muitas pessoas a
fugir, pois sabem que são alvos prioritários.

Cerca de dois terços das pessoas que se torna-


ram refugiadas em 2018 vêm de cinco países:

S
Afeganistão, Síria, Somália, Sudão do Sul e
Mianmar. Os quatro primeiros vivem guerras
civis como as descritas no parágrafo interior.
A última nação é a exceção: lá a campanha de
perseguição violenta contra uma minoria ét-
egundo a ONU, 70,8 milhões nica e religiosa (os rohingyas) é conduzida pelo
Apesar de existir de pessoas tiveram de deixar próprio governo, no contexto de décadas de
suas casas por causa de guerras confrontos raciais desde a independência e
desde a Antiguidade, ou perseguições políticas em 2018. É o maior de uma disputa feroz sobre quem deve ou não
condição de número desde o fim da Segunda Guerra Mun- ser considerado cidadão.
dial. Destas, cerca de 25,9 milhões estão clas-
refugiado só foi sificadas como refugiadas. De onde, de quê, Além das mudanças na natureza da guerra, há
formalizada após a para onde foge tanta gente? São imigrantes transformações na tecnologia de comunicações
econômicos ou refugiados políticos? Como que tornaram mais fácil sair de seus países
Primeira Guerra e lidar com esse desafio humanitário? de origem. Celulares, internet, aplicativos de
hoje abrange milhões mensagens aumentam o acesso à informação
Guerras contemporâneas: civis como alvos e a dados sobre como alcançar outras nações,
de pessoas que Desde o fim da Guerra Fria (1991), houve uma manter contatos com amigos e parentes no
cruzam fronteiras ao mudança na estrutura dos conflitos bélicos exterior e saber o necessário para a travessia.
que explica por que estes geram mais refugia-
redor do mundo dos do que no passado. Mais de 90% dos que
ocorreram nos últimos 20 anos não foram
entre Estados, mas dentro deles, entre grupos

8 9
artigo

po recebe mais proteção. Quem tem seu pedi-


Maurício do de refúgio aceito por um governo estrangei-
Santoro ro não pode ser deportado de volta a seu país
é doutor em Ciência de origem, ou a outra nação onde corra risco.
Política pelo Iuperj, Essa garantia, chamada de “princípio de non
professor do -refoulement”, é um dos pilares do sistema in- A situação no Brasil
Departamento de
Relações Internacionais
ternacional de proteção aos refugiados. Em 2018 o Brasil foi o sexto país que mais re-
da Universidade cebeu pedidos de refúgio: 80 mil, três quartos
do Estado do Os tratados diplomáticos dão aos governos na- deles de venezuelanos. Em anos recentes, o
Rio de Janeiro (Uerj) cionais a prerrogativa de decidir muitas coisas país acolheu também número significativo de
com relação a refugiados, como se poderão ou angolanos, congoleses, haitianos e sírios. A
não trabalhar no país de acolhida, se poderão legislação brasileira acompanha a tradição
viver onde quiserem ou se deverão ficar restri- latino-americana de definição mais abrangen-
tos a campos especiais, ou se receberão algum te de quem é refugiado – o critério é sofrer
tipo de auxílio econômico para se manter. Atual- violação maciça de seus direitos humanos – mas,
mente, a maioria dos refugiados vive em cida- na prática, o Brasil tem usado o escopo mais
des e é parte do mercado de trabalho, ainda que limitado do tratado da ONU, recusando a con-
Há um imaginário de que a maioria dos refu- com frequência dispute os empregos em con- cessão de refúgio a venezuelanos.
giados vai para países ricos, como os Estados dições desvantajosas com a população local,
Unidos e os membros da União Europeia. Isso por falta de domínio do idioma ou não reco- No Brasil, os refugiados podem trabalhar e
não é verdade: 80% escolhem países vizinhos, nhecimento de seus diplomas educacionais. utilizar serviços públicos como escolas e hos-
mais fáceis de serem alcançados. As nações pitais. Podem, também, receber benefícios
que mais os acolhem são Turquia, Paquistão, A definição de quem é refugiado reflete as sociais como o Bolsa Família. O país não tem
Uganda e Sudão. Entre as ricas, apenas a Ale- preocupações da década de 1950 e está ultra- campos de refugiados, mas há alguns abrigos
manha recebeu mais de 1 milhão, ocupando a passada para o cenário atual. A Venezuela é o específicos para eles no estado de Roraima, que
quinta posição desse ranking. exemplo mais dramático. Mais de 4 milhões mais sente o impacto da chegada de milhares
deixaram o país desde 2015 – o maior fluxo de venezuelanos. Há escassez de políticas pú-
Quem é refugiado? populacional da história da América Latina. blicas, recursos financeiros e de pessoal qua-
Refugiados existem desde a Antiguidade, mas Poucos deles são reconhecidos como refugia- lificado na área, e muitas ações em prol dos
o estabelecimento de um sistema internacional dos, a maioria tem sido tratada apenas como refugiados são feitas pela sociedade civil, so-
de proteção, com tratados diplomáticos criados migrantes econômicos. Contudo, o colapso do bretudo por igrejas, escolas e universidades.
para proteger quem solicita refúgio, começou país não é uma crise comum, assemelha-se
apenas com a Primeira Guerra Mundial e se mais a uma catástrofe humanitária como a que O Brasil está distante geograficamente das

Em 2018, o Brasil
expandiu após o conflito global seguinte. assola países devastados pela guerra. principais regiões de conflito do mundo, na
África e na Ásia. Por causa disso, o perfil dos
A Convenção da ONU sobre refúgio é de 1951.
Ela define o refugiado como alguém que teve
Outro exemplo da inadequação do sistema de
proteção internacional são as mulheres que
refugiados que recebe também é diferente.
Como é caro ir dessas zonas ao território bra- foi o sexto país
de sair de seu país devido ao medo bem fun-
damentado de perseguição por razões de opi-
deixam seus países por situações de violência
de gênero, fugindo de agressões brutais, mas
sileiro, em geral quem consegue fazer esse
percurso são pessoas com mais recursos eco- que mais recebeu
nião política ou pertencimento a um grupo
étnico, religioso ou social. No início, ela res-
cotidianas – maridos e namorados violentos,
negligência das autoridades. É um cenário
nômicos, parte da classe média ou alta em seu
país origem. Têm boa formação educacional: pedidos de
tringia a definição apenas a quem escapava
dos acontecimentos da Europa até a Segunda
comum entre as mulheres que deixam a Amé-
rica Central, mas dificilmente essa situação
um terço possui nível superior, o dobro do
percentual do Brasil. Trazem conhecimentos
refúgio: 80 mil,
Guerra Mundial. Foi só em 1967, por meio de
um novo protocolo diplomático, que foi uni-
leva à concessão do refúgio. Problemas seme-
lhantes ocorrem com quem tenta escapar de
e saberes que podem ser úteis para o país, ain-
da que sua integração ao mercado de trabalho
três quartos deles
versalizada no tempo e na geografia. perseguições motivadas por orientação sexual. seja dificultada pelo quadro de crise econômi-
ca e alto desemprego. Cabe à sociedade bra-
de venezuelanos
A distinção entre refugiados e outros migrantes sileira enfrentar esse desafio e debater propos-
internacionais importa porque o primeiro gru- tas para lidar com o tema.

10 11
ensaio

Bestalia
Bestalia tem 49 anos, é venezuelana, mãe de seis filhos – três estão com ela no abrigo Rondon 3
e os demais ficaram no seu país de origem. No abrigo Rondon 3, em Boa Vista (RR), luta
para conseguir algum dinheiro e reunir a família. Para o Brasil, trouxe sua máquina de costura,
ferramenta de trabalho e com a qual espera dar novo rumo à sua vida por aqui.

12 13
glossário

Certo Asilo

sentido
Asilo ou, ainda, asilo político é
um instrumento internacional
legal que garante proteção ao
indivíduo perseguido de modo
Solicitantes injustificado em seu Estado de
de refúgio origem. O pedido de asilo pode
Quando se trata de grupos vulneráveis, uma ideia mal com- Antes de ser classificado como Apátrida ser feito por ele do exterior
preendida pode gerar consequências à segurança dessas refugiada, é preciso que a Trata-se da pessoa que não (asilo diplomático) ou já no Convenção de
pessoas. Daí a preocupação de especialistas em direitos pessoa solicite o tem uma nacionalidade país onde busca proteção Genebra (1951)
humanos quanto à compreensão ampla e geral sobre termos reconhecimento à autoridade reconhecida pelo Estado de (asilo territorial). As avaliações Três anos depois de assinarem
como “refugiado” e “migrante”, por exemplo. Saber dife- nacional competente. No caso nenhum país, o que traz são caso a caso. No Brasil, a Declaração Universal dos
renciar essas condições pode ser crucial no difícil processo do Brasil, os pedidos devem ser consequências graves à depende de aval do presidente Direitos Humanos, os países
de desestigmatização, quebra de preconceitos, intolerância feitos na Polícia Federal e são garantia de seus direitos da República e é concedido membros da ONU aprovam a
e práticas discriminatórias sobre aqueles que vêm “de fora”. avaliados pelo Comitê Nacional básicos. Uma situação de apenas à pessoa “perseguida Convenção Relativa ao Estatuto
para os Refugiados (Conare). apatridia pode ocorrer, por em um Estado por suas crenças, dos Refugiados, definindo o
Neste Caderno, você vai se deparar com termos comuns Enquanto aguarda avaliação exemplo, em países com opiniões e filiação política ou termo “refugiado” e os seus
ao tema da migração e do refúgio. Como nossa expectati- pelo sistema nacional de legislações discriminatórias por atos que possam ser direitos, como o de asilo e o que
va é que os textos aqui presentes não confundam, mas proteção e refúgio, a pessoa sobre minorias (caso dos considerados delitos políticos”. impede um Estado de expulsá-
tragam clareza ao debate, preparamos um breve glossário não pode ser “devolvida” e é rohingyas, em Mianmar). Como lo ou devolvê-lo ao país de
com definições sobre alguns deles, todas derivadas de entendida como uma o refugiado, o apátrida pode Repatriação origem. A definição, porém,
cartilhas e manuais oficiais distribuídos por entidades como “solicitante de reconhecimento buscar ser reconhecido pela voluntária mirava a população afetada
a Agência da ONU para Refugiados. da condição de refugiado”. Nos autoridade nacional de um país É a solução esperada pelas pelas guerras na Europa e se
casos em que um país e, assim, solicitar a sua entidades internacionais para restringiu aos que se tornaram
reconhece haver uma situação nacionalidade. A erradicação todos os refugiados, que eles refugiados em razão de
Refugiado de grave e generalizada da apatridia até 2024 é um dos possam retornar acontecimentos anteriores a
Pessoa que sai forçada de seu violação de direitos humanos objetivos da ONU, que voluntariamente aos seus 1951.
país de origem em busca de em outro (como aconteceu com atualmente estima o número de países de origem com
proteção internacional. As o Brasil em relação à Venezuela apátridas em 10 milhões. condições asseguradas de Protocolo de
razões podem envolver em junho de 2019), o proteção pelo Estado local. 1967
perseguição política, religiosa, atendimento às solicitações Reassentamento Protocolo Relativo ao Estatuto
racial, social etc.; existência de tende a ser mais célere. Trata-se da realocação de um Deslocado do Refugiado, assinado em
conflito armado, violações de refugiado do país que o interno 1967, amplia o conceito de
direitos humanos ou situações Migrante recebeu de modo provisório Refere-se à pessoa que foi refugiado eliminando as
de violência generalizada que O termo abrange para um terceiro, cujo Estado obrigada a deixar sua casa, barreiras temporais e
colocam em risco sua genericamente a pessoa que se concordou em acolhê-los a região onde reside, em busca geográficas previstas na
integridade no país. O refúgio é desloca voluntariamente e por garantindo diversos direitos, de proteção ou segurança em Convenção de 1951.
previsto em instrumentos legais motivações diversas de uma bem como proteção legal e outro local dentro do seu
internacionais (Convenção de região a outra, seja dentro do física. O reassentamento próprio país. Os motivos podem
Pessoas Refugiadas de 1951, seu país (onde conta com compõe o conjunto de envolver conflitos, perseguições
Protocolo de 1967 e Declaração proteção do seu Estado) ou programas que o Acnur chama locais ou, ainda, desastres
de Cartagena), que determinam indo além fronteiras. Ao de “soluções duradouras”, ao naturais. Os deslocados
que Estados são obrigados a migrante, podem-se aplicar os lado da integração local (no internos (IDP, na sigla em inglês)
acolher tais pessoas, cabendo- termos “imigrante”, para se primeiro país anfitrião) e da representam o maior grupo de
-lhes apenas reconhecer ou não referir a um indivíduo que repatriação voluntária (no seu migrantes forçados sob
sua condição de refugiadas. No chega a outro país, e país de origem). atenção do Acnur no mundo
Brasil, a Lei nº 9.474/97 regula a “emigrante”, ao que deixa o país (cerca de 58%), e a eles são
proteção às pessoas de origem. Um emigrante é um garantidos direitos previstos em
refugiadas no país. imigrante no país de destino. tratados internacionais.

14 15
ensaio

Leona
Leona Mantilla, de 77 anos, era
bailarina e professora na Venezuela.
Chegou em Pacaraima (RR) desnutrida
e com problemas de locomoção.
No abrigo temporário, ao qual veio
com a sobrinha (ao lado, de verde)
fugindo das condições insustentáveis no
seu país de origem, passou a se alimentar
e a cuidar da perna. Enquanto melhora,
dá aulas de dança para as crianças
do abrigo interessadas em aprender.
Como fonte de renda, Leona ainda
faz bolsas e decorações para vender.

16 17
infográfico

Deslocamentos
Alemanha Ucrânia
1.063.837 93.263

números
369.284 1.500.000
Afeganistão
em 2.681.269
310.120

França Turquia Mianmar


368.352 3.681.685 1.145.154
População de migrantes Estados Unidos
89.074 311.719 370.305
313.241
forçados e refugiados atinge 718.994 Síria
nível recorde. Saiba quais 6.654.386 Iraque
6.183.920 372.342
os países que lideram saídas
256.725
Venezuela
e entradas desses fluxos
21.046
464.229

D
Somália
esde que a Agência da ONU para Refugiados passou Sudão do Sul 949.652
a registrar o volume de pessoas que são obrigadas 2.285.316 2.648.000
a abandonar seus lares, buscando melhorar sua Colômbia 1.878.153 Etiópia
condição de vida ou mesmo preservá-la, a popu- 138.586 903.226
lação mundial nunca esteve tão deslocada dos seus 2.615.800
7.816.472
locais de origem. De acordo com o relatório Global
Trends 2018, publicação do Acnur lançada em junho número de refugiados
em 2019, são mais de 70 milhões de pessoas deslocadas no mun- recebidos
do – em 2008, eram 34 milhões; e em 1998, 19 milhões. República número de refugiados
Democrática do que deixaram o país
Atualmente, quase um terço desse total vive em países diferen- Congo pedidos de asilo recebidos
tes do seu de origem sob a condição de refugiado, enquanto Peru 529.061 número de habitantes que
outros 41 milhões são deslocados internos: vivem fora de suas 230.871 Brasil 4.516.865 pediram asilo em outro país
casas (fugindo de conflitos, desastres ambientais etc.), dentro
4.905 152.690 número de deslocados
dos seus próprios países. Afora dessa conta, há ainda outros 10 Fonte: UNHCR - Global Trends:
8.574 internamente
milhões (uma estimativa) de apátridas, pessoas que não são Forced Displacement in 2018
reconhecidas como cidadãos por nenhum Estado nacional.

A agência declara que a alta recente dos números se deve ao Segundo o Acnur,
crescimento de deslocados internos na Etiópia, aos venezue- há registro hoje de... Do total de 25,9 milhões de refugiados Em 2018, de...
lanos em busca de asilo (direito dado a pessoas perseguidas
por suas opiniões políticas, raça/etnia ou religião) além de 70,8 milhões de pessoas 593,8 mil retornaram para o país de origem 13,6 milhões de novos
suas fronteiras, aos conflitos e perseguições na Síria, no Iraque, forçadamente deslocadas 92,4 mil refugiados foram reassentados deslocados (1,1 milhão deles
Iêmen, Sudão do Sul e em Mianmar. Embora haja países com no mundo (aceitos por um terceiro país) – menos de 7% refugiados) apenas
números notáveis de acolhimento, concessão de asilo e reas- da demanda 2,9 milhões retornaram
sentamento de refugiados, os números crescentes da popula- 25,9 milhões de refugiados 62,6 mil se naturalizaram no país onde às suas regiões ou
ção deslocada mostram que ainda há um longo caminho até 41,3 milhões de deslocados internos buscaram refúgio aos países de origem
um lugar para chamar de casa. 3,5 milhões em busca de asilo

18 19
infográfico

México
Trinidad e
4.700
74,79 PARTIDAS e acolhida Venezuela Colômbia Tobago
Série histórica 42.100
500
20,36 100
5.500 Costa Rica 31.800
1.171.600
Mais de 2/3 dos O caso da Venezuela se tornou 300 2.700 7.700
refugiados saíram de: objeto de atenção para a agência 5.400
pessoas em alguma condição da ONU, sendo considerado
de deslocamento (refugiado, 1º Síria por ela “uma das mais recentes Equador
deslocado interno, solicitante 2º Afeganistão e maiores crises de deslocamento 256.300
de asilo, apátrida, outros) 3º Sudão do Sul forçado do planeta”. Desde 6.300

34,46 4º Mianmar 2015, o número de pessoas


refugiados 10,48 5º Somália que deixaram o país é de cerca
Brasil
apenas de 4 milhões (junho de 2019), Peru 39.800
Países que mais a maioria rumo a países próximos 700
19,15 81.000
receberam refugiados: na América do Sul e no Caribe 428.200
14,58 11,48 em busca de proteção como 227.300
14,34 1º Turquia refugiado – atualmente, venezuelanos
5,33 2º Paquistão um quinto das solicitações recebidos
1,69 2,49 5,06
2,46 3º Uganda de reconhecimento da condição refugiados
1,69 Chile
4º Sudão de refugiado é feito por
solicitantes asilo 285.100
5º Alemanha venezuelanos. Só ao Brasil,
3.100
1958 1968 1978 1988 1998 2008 2018 foram 80 mil pedidos.
Argentina
127.200
1.000

PERFIL DOS REFUGIADOS Países com maior volume de solicitações de refúgio (Acnur 2018)
Dados demográficos disponíveis cobrem 68% do total da população sob atenção do Acnur
2018 2017
idade sexo idade/sexo

8
26
mulheres 0-4 anos 18-59 anos

300 350
4.
25
>60 anos 21%
0-4 anos *Dados do relatório Global
3% 50% 50% 51% 49%
17% Trends 2018 do Acnur (ONU).
Segundo o Conare,
esse número foi de 80.057

31

250
5-11 anos >60 anos

1.9
16
1
50
5-11 anos
48% 52%

2.
50% 50%

200
18-59 anos

19
21%
46% homens

51
18

.4
17%

.8

150
48
9
12-17 anos

83
51
12-17 anos

4.
14%

11

7*
mulheres

100
9
52% 48%

5
.9

8
homens

79

85
67
.9
64

.6

.3
55
55

50
138,6 mil é o número registrado de crianças (menores de 18 anos)

0
separadas dos pais ou desacompanhadas em 2018 Estados Peru Alemanha França Turquia Brasil Grécia Espanha Canadá Itália
Unidos

20 21
ensaio

Maria José
Maria José Antonio tem 42 anos. Nasceu e viveu toda a sua vida
em Luanda, Angola. Lá se casou e tinha o sonho de ser mãe.
Sem conseguir o feito, juntou capital e veio ao Brasil buscar
tratamento de fertilização in vitro em 2011. Em 2012, ficou
grávida e, no ano seguinte, deu à luz o menino Messias ainda
no Brasil. De volta a Angola, anos se passaram e o casal
queria mais um filho. Em 2018, Maria José veio novamente
ao Brasil, deixando o marido e o filho na sua cidade natal.
Foi então que soube que o marido havia morrido. Familiares e
vizinhos diziam que a morte ocorrera “por fome” e culparam
Maria José. “Fiquei com medo de que nos matassem e fugi”,
disse. Hoje, com documentação de residência, os dois moram
em um quarto alugado em São Paulo e Maria José aguarda
mais um filho, fruto do seu tratamento. “Vem mais um aí, se
Deus quiser, para preencher o vazio que está no coração”.

22 23
artigo
por José Egas e William Laureano

parâmetros
inclusão
de

U
Um panorama histórico
da solidariedade entre m dos temas mais caros ao pensamento ocidental
países e proteção de sobre as relações entre nações é o da solidariedade
e hospitalidade internacionais em contraposição ao
direitos humanos na movimento bélico que normalmente permeia o pen-
1 A partir do
desenvolvimento do
conceito de Estado-
formulação do direito samento tradicional desse campo epistêmico. A despeito das divisões -nação na Paz de
entre nações que imperam nesse sistema pelo menos desde o século Westfália (1648).
internacional dos 17,1 há momentos de solidariedade que tentam de alguma forma trans- 2 I. Kant, A paz
refugiados formar as bases da política mundial em favor da proteção dos mais perpétua: um projeto
filosófico. Trad. Artur
desfavorecidos. Nesse sentido, Kant já havia descrito em um de seus Morão, Covilhã,
trabalhos que as condições para a paz perpétua seria que “o direito Portugal: Universidade
da Beira Interior, 2008.
cosmopolita deve limitar-se às condições da hospitalidade universal”,2 Disponível em: http://bit.
com o objetivo de que uma pessoa, qualquer que seja a sua condição ly/2H74dOK, p. 20.
jurídica, jamais seja hostilizada devido ao seu ato de migrar. Esse prin-
cípio, que no fim do século 18 aparece nos debates filosóficos, é de
alguma forma traduzido na Declaração Universal dos Direitos Humanos 3 ONU, Declaração
(DUDH), de 1948, que torna um direito humano a locomoção no inte- Universal dos Direitos
Humanos, res. 217 (III), A.
rior do território estatal e para além dele,3 ampliando a solidariedade Paris, 1948, art. 13.
e hospitalidade kantiana, ao declarar o direito de pedir e de poder
usufruir do asilo em qualquer país em casos de perseguição.4 4 Idem, art. 14.

24 25
artigo

José Egas
é representante
do Acnur no Brasil

William
Laureano
é assistente sênior A referência à DUDH não é por acaso. São jus- O fim da Segunda Guerra Mundial significou
de elegibilidade tamente os momentos de crise que ecoam também um importante momento do otimis-
do Acnur
essa necessidade de solidariedade internacio- mo e de construção da “paz perpétua”,10 que
nal para a proteção de pessoas que são vítimas culminou com a decisão de criar barreiras
de violações de direitos humanos. Essas res- temporais e geográficas para esse empreendi-
postas são, assim, cristalizadas em processos mento com refugiados. Esse sistema interna-
normativos e outros documentos que perduram cional de solidariedade criado para a proteção
no tempo. Assim ocorreu com a Convenção de pessoas refugiadas estaria, então, adstrito
Relativa ao Estatuto dos Refugiados de 1951 (ou às vítimas do conflito europeu e para aquelas
simplesmente Estatuto dos Refugiados) e ou- A despeito de um histórico de solidariedade cujo fundado temor de perseguição seja ante-
tras normativas que fazem parte do Direito internacional anterior ao período da Segunda rior a janeiro de 1951.11
Internacional dos Refugiados, culminando Guerra Mundial, a grandeza do número de Saindo do contexto europeu, a descolonização
com o atual Pacto Global sobre Refugiados, deslocados e perseguidos em decorrência do Ondas de deslocamentos forçados dos continentes africano e asiático foi fonte de
publicado em 2018. Entender essas crises e conflito europeu foi tamanha que exigiu a re- A realidade, entretanto, não permitiu que o um movimento que, mais tarde, contribuiu
seus desenvolvimentos nos ajuda a compreen- pactuação das normas internacionais. Assim, movimento idealista da criação da ONU se para a ampliação do conceito internacional de
der qual o caminho que essa solidariedade os diversos governos sistematizaram a defini- concretizasse. Mesmo após as negociações que pessoa refugiada. A independência dos Estados
internacional está trilhando na proteção de ção da pessoa refugiada a partir das experiên- deram origem à organização, são conhecidos da Índia e do Paquistão gerou o deslocamento 10 M. Herz, “O Brasil e a
milhares de pessoas. cias anteriores e prometeram proteger todo os diversos conflitos que, durante todo o sé- forçado de aproximadamente 14 milhões de reforma da ONU”. Lua
Nova, São Paulo, n.
indivíduo que “temendo perseguição por mo- culo 20 e início do século 21, violaram direitos pessoas. Esse foi um movimento de hindus e 46, 1999, p. 77-98.
5 J. A. Berger, No pós-Segunda Guerra Mundial, a situação tivo de raça, religião, nacionalidade, grupo humanos e geraram novas ondas de desloca- sikhs para a Índia e de muçulmanos para o
“Displaced persons: a de emergência gerada pelo conflito europeu social ou opinião política, esteja fora do país mentos forçados. Em outubro de 1956, por Paquistão ainda durante o período da Segun- 11 Convenção Relativa
human tragedy of World ao Estatuto dos
War II”. Social Research, era inegável e levou os Estados a negociar de sua nacionalidade e que não pode ou, em exemplo, ocorreu um grande êxodo de hún- da Guerra Mundial. Essas pessoas, com medo
Refugiados de 1951, art.
v. 14, n. 1, 1947, p. formas de resposta aos milhares que foram virtude desse temor, não quer valer-se da garos para a Áustria, totalizando um desloca- de sofrerem perseguições, viviam com recur- 1º, B(2).
45–58. JSTOR, http://bit.
ly/2Z7ckoH. forçados a se deslocar. Com o fim da guerra, proteção do país no qual tinha sua residência mento de 153 mil pessoas, no final daquele ano, sos próprios e não tiveram ajuda internacional.13
foram encontrados entre 10 milhões e 15 milhões habitual [...] ou [...] não quer voltar a ele”.7 devido às manifestações populares contra o 12 J. L. Carlin,

6 Dados disponíveis de nacionais de países aliados em território regime e a sua relação com a União Soviética. Tanto nas questões húngaras e tchecas quanto “Significant refugee
em: http://bit. crises since World War II
alemão. Muitos deles foram forçados pela má- Os Estados se comprometem, também, a não Os relatos indicam que, em um único dia, 8 na independência indiana, a atuação do Acnur and the response of the
ly/2Z8sZIG.
quina de guerra nazista a trabalhar em suas devolver esses nacionais a seu país de origem mil húngaros cruzaram a fronteira com a Áus- era limitada pelas barreiras temporais e geo- international
community”, Michigan
indústrias armamentistas, eram prisioneiros em hipótese nenhuma, garantindo que eles tria. Nesse mesmo período, outros 20 mil fu- gráficas impostas pelo Estatuto dos Refugiados. Journal of International
7 Convenção Relativa de guerra ou foram encontrados em campos não sofram novas perseguições.8 Nesse espí- giram para a antiga Iugoslávia. O Leste Novas violações de direitos humanos pelo mun- Law, 3(1), 1982, p. 9-11.
ao Estatuto dos de concentração.5 Naquele momento, houve rito de solidariedade, cerca de 1 milhão de Europeu também foi protagonista de outra do obrigaram os Estados a ampliar o conceito
Refugiados de 1951, art.
1º, A(2). um esforço inimaginável de realocação e re- pessoas foram reassentadas até o final daque- onda de deslocamento forçado em 1968, quan- de refugiado a ponto de permitir que essa pro- 13 J. L. Carlin,

patriação, o que fez com que o número total le ano, muitas das quais foram para países do forças soviéticas e aliados do Pacto de Var- teção fosse aplicada também aos novos fluxos “Significant refugee
crises since World War II
8 Esse direito é em situação de refúgio em 1951 caísse para como EUA, Canadá, Austrália e Brasil, que sóvia ocuparam a Tchecoslováquia. Durante de deslocados que estavam surgindo. Assim, and the response of the
conhecido como o de aproximadamente 2,1 milhões de indivíduos.6 tomaram posturas de “portas abertas” para esse evento, 80 mil tchecos foram para a Áus- foi necessário estabelecer um protocolo adi- international
non-refoulement. community”, Michigan
essas vítimas de direitos humanos. Ainda as- tria ou se encontravam na situação de turistas cional em 1967,14 removendo essas barreiras. A Journal of International
sim, 1,25 milhão de pessoas permaneceram e se recusaram a retornar para o seu país.12 partir de então, qualquer pessoa que solicitas- Law, 3(1), 1982, p. 12-13.
9 J. L. Carlin, sem uma solução duradoura para suas vidas se refúgio por fundado temor de perseguição 14 Protocolo Relativo
“Significant refugee crises ao Estatuto dos
since World War II and
(repatriação voluntária, reassentamento e in- com base em qualquer um dos critérios do
Refugiados, 1967.
the response of the tegração local são alguns exemplos de soluções Estatuto de 1951 passava a ter garantida a pos-
international
community”, Michigan
duradouras trabalhadas ainda hoje pelo Acnur sibilidade de ser reconhecida como refugiado
Journal of International – Alto Comissariado das Nações Unidas para os e obter proteção internacional e o direito de
Law, 3(1), 1982, p. 3-6. Refugiados).9 não ser devolvida para o país de origem.

26 27
artigo

15 J. L. Carlin, Hoje, nos encontramos em


um momento de violações
“Significant refugee
crises since World War II
and the response of the

sistemáticas de direitos
international
community”, Michigan
Journal of International Da mesma forma, conflitos nas antigas colônias
Law, v. 3, n. 1, 1982, p.
14-15; UN General
portuguesas na África geraram um movimento
de 600 mil refugiados rumo aos países vizinhos. humanos que está,
consequentemente,
Assembly, Question of
Southern Rhodesia, 17 Assim como na situação indiana, a luta pela Nesse momento, surgiram oportunidades de não abandonar ninguém; trabalhar de dife-
November 1966, A/ independência da Rodésia do Sul (atual Zim- reassentamento e a solidariedade internacional rentes formas para eliminar carências; e in-
gerando novos fluxos de
RES/2151.
bábue) também não teve a mesma solidarie- foi no sentido de prover cuidados essenciais de vestir na humanidade.22 Como resposta a essa
dade internacional que os fluxos europeus, sobrevivência.16 A situação de refugiados na agenda, a Declaração de Nova York, de setem-
ainda que sob a égide de um novo conceito de
refugiado. Isso resultou em um gerenciamen-
África perdurou durante muitos anos, com re-
flexos e situações que ainda hoje geram novos
bro de 2016, reconhece os problemas atuais e
pretende repactuar o investimento na huma-
refugiados pelo mundo
to menos eficiente das soluções duradouras. refugiados. Houve um reconhecimento de que nidade e na solidariedade no campo da prote-
Nesse contexto, operações militares causadas a solidariedade para com o continente não foi ção de pessoas refugiadas.23 De fato, os dados
16 L. Sousa; P. Costa, por grupos de libertação nacional que ocorriam suficiente.17 Estima-se que, em 1979, 50% da anuais do Acnur sobre refúgio no mundo, cha-
“The development of the nas fronteiras do país fizeram com que 250 mil população da Somália fosse constituída por mado de Global Trends, mostram que em 2018 22 Cf. http://bit.
asylum law and refugee ly/2TEljsA.
protection regimes in pessoas se mudassem para Moçambique, Zâm- refugiados18 e era esperado que a comunidade 70,8 milhões de pessoas sofreram deslocamen-
Portugal, 1975-2017”, bia e Botsuana entre os anos de 1975 e 1979. A internacional compartilhasse das dificuldades tos forçados, representando um aumento de
Refuge, n. 34, 2018, p.
28-37. despeito da falta de atenção dos Estados, o sofridas por esse país.19 Na América Central, aproximadamente 2,3 milhões de pessoas se
Acnur foi capaz de auxiliar essas pessoas por especialmente em El Salvador, Nicarágua e comparados com os dados de 2017.24 Conflitos
17 UN General meio de assistência material (alimentos e abri- Honduras, inúmeros refugiados relatavam a mundiais como os que ocorrem na Síria, Afe-
Assembly, Situation on gos). As dificuldades em encontrar soluções repressão indiscriminada pelo aparelho estatal20 ganistão e Sudão do Sul, além da situação de
African Refugees,
Resolution 34/61, de 29 definitivas foram muitas, uma vez que a maior e situações de violência com a organização de emergência na Venezuela, impactaram a ma-
de novembro de 1979. parte dessa população era de mulheres e crian- grupos pandilleros que passaram a perseguir a nutenção e o aumento desse número.
Disponível em: http://bit.
ly/2H4VQ6r. ças, enquanto os homens das famílias se en- população.21 A realidade da África e das Amé-
contravam nas lutas pela independência.15 ricas permitiu a ampliação do escopo da soli- O resultado da preocupação com a situação 23 Cf. http://bit.
dariedade internacional e da proteção. Para mundial pode ser encontrado no Pacto Global ly/2HaeMAB.

tanto, permitiu-se a expansão dos direitos pre- sobre Refugiados, documento acordado após
18 J. L. Carlin, sentes no Estatuto dos Refugiados a pessoas que dois anos de consulta com uma ampla gama
“Significant refugee sofreram deslocamento forçado por questões de atores, como Estados membros da ONU, lhamento de responsabilidades pretende di-
crises since World War II
and the response of the comumente conhecidas como de grave e gene- organizações internacionais, especialistas no minuir as pressões nos países de destino,
international ralizada violação de direitos humanos. Nesse assunto, sociedade civil e pessoas refugiadas. expandir o acesso dos refugiados a outros paí-
community”, Michigan
Journal of International sentido, a Convenção da União Africana de 1968 O tema da solidariedade é aqui traduzido na ses por meio de novos programas de reassen- 24 Os dados do Global

Law, v. 3, n. 1, 1982, p. 15. 21 UN High e a Declaração de Cartagena de 1984 vieram ideia de compartilhamento internacional da tamento ou, ainda, apoiar formas que Trends podem ser
Commissioner for encontrados em: http://
UN General
19 para cristalizar esse novo acordo. responsabilidade de receber e proteger refu- permitam que os refugiados retornem volun- bit.ly/2Z8bgkw.
Assembly, Assistance to Refugees (UNHCR),
“UNHCR eligibility giados, o que atualmente exerce grande pres- tariamente para seus países de origem, desde
refugees in Somalia, de
15 de dezembro de 1980, guidelines for assessing Solidariedade internacional são sobre países em desenvolvimento, com que cessadas as causas da perseguição.25
A/RES/35/180. the international
protection needs of Hoje, nos encontramos em um momento de um terço da população refugiada presente nas
asylum-seekers from violações sistemáticas de direitos humanos regiões mais pobres do globo. Dessa forma, Os Estados são, então, chamados a um novo
Honduras”, 27 de julho
UN Commission on
20
de 2016, HCR/EG/
que está, consequentemente, gerando novos espera-se que as comunidades que os recebem tipo de solidariedade, uma que permita que os 25 Cf. os documentos
Human Rights, “The fluxos de refugiados pelo mundo. Em uma possam ter melhores condições de responder refugiados reconstruam sua vida de forma em http://bit.
HND/16/03; UN High
situation of human ly/2P0o48H.
Commissioner for nova tentativa de restabelecer as bases da so- a situações de grande fluxo de refugiados que independente nos países de acolhida, incluin-
rights in Nicaragua”, 13
Refugees (UNHCR),
March 1979, E/CN.4/ lidariedade internacional, o antigo secretário- entram em suas fronteiras. Se na década de do possibilidades de acesso à educação e à
“UNHCR eligibility
RES/14(XXXV); UN
Security Council,
guidelines for assessing -geral da ONU Ban Ki-moon convocou a 1960 a resposta dependia de atuação exclusiva saúde e de inserção laboral desde a chegada.
the international
Security Council
protection needs of Cúpula Mundial Humanitária, que ocorreu em de alguns países com base em uma solidarie- Inclusão, portanto, é o novo norte e o ideal de
Resolution 530 (1983)
[Honduras-Nicaragua],
asylum-seekers from El Istambul em 2016. Nesse encontro, focou-se dade ad hoc, ou seja, que dependia muito da solidariedade cristalizados nas declarações e
Salvador”, 15 de março em cinco responsabilidades cruciais: prevenir situação de cada país e de seus governos, com pactos internacionais atuais que precisamos
19 May 1983, S/RES/530
de 2016, HCR/EG/
(1983). e resolver conflitos; respeitar regras de guerra; o Pacto Global sobre Refugiados o comparti- implementar no nosso país.
SLV/16/01.

28 29
ensaio

José
José Chinel Jiménez está há cerca de dois anos com a família no abrigo indígena de Pintolândia, em
Boa Vista (RR). Na Venezuela, trabalhava como funcionário público, mas a instabilidade no país tornou
seu salário insuficiente para colocar comida na mesa de casa. Na capital de Roraima, tenta dar novo
rumo à vida. Há três meses, passou a fazer bicos pela cidade para pagar seu curso de técnico de
enfermagem. Na foto, à frente das redes onde dormem ele, a mulher e os filhos, todos indígenas
Warao, José exibe o jaleco símbolo do novo capítulo da sua jornada no Brasil.

30 31
artigo
por Liliana Lyra Jubilut

crise
O regime internacional de proteção às pessoas
refugiadas traz obrigações para os países e para
a comunidade internacional como um todo a
partir do Direito Internacional dos Refugiados.
Ele foi construído coletivamente, e os Estados
aderiram a ele voluntariamente. Trata-se de
uma das vertentes de proteção internacional
da pessoa humana e busca equilibrar as von-

acolhida
de
tades estatais com as necessidades das pessoas
que precisam de asilo.

O
Tal equilíbrio, contudo, tem sido desafiado nos
últimos anos. Ao mesmo tempo que os números
de migrantes,3 migrantes forçados e refugiados
sobem, práticas de fechamento de fronteiras,
ano de 2018 registrou 70,8 securitização das migrações, xenofobia,
milhões de pessoas des- racismo, exclusão e adoção de retóricas anti-
locadas em função de per- migrantes têm sido adotadas por vários países.
seguição, conflito, violência ou violações de Muitas vezes tem-se tentado justificar tais con-
direitos humanos. Desde 2012 esses números dutas pelo aumento do número de migrantes;
estão em crescimento e, desde 2015, são con- mas, além desse fator, deve-se observar que a 1 Cf. http://bit.
Com fluxo crescente de siderados recordes históricos; com o número migração e, consequentemente, os migrantes ly/2YUiycj.

de refugiados chegando a 25,9 milhões em 2018, passaram a fazer parte de discursos políticos,
pessoas deslocadas que no quinto recorde seguido1 e atrás apenas dos sendo alvos em posicionamentos de parcela da 2 Tal hipótese foi
precisam de asilo e medidas contingentes da Segunda Guerra Mundial. classe política, e escolhidos como os “outros” adotada pelo
Brasil, no artigo 1º,
em retomadas de narrativas de “nós” contra
que dificultam a proteção Refugiados são migrantes forçados que se des- “eles”. Esse cenário resultou em, e é fortalecido
III da Lei 9.474/97,
que estabelece o
de seus direitos, o mundo locam devido a um bem fundado temor de por, uma retórica de “crise de refugiados”.
regime de proteção
a pessoas
perseguição em razão de raça, religião, nacio- refugiadas no país.
vive não uma “crise de nalidade, opinião política ou pertencimento a Disponível em:
http://bit.
refugiados”, mas uma crise um grupo social de acordo com a Convenção ly/2Z9jkkW.
de 1951. Ou ainda, no contexto da América La-
para pessoas refugiadas tina, por causa de graves e generalizadas vio-
lações de direitos humanos.6 Trata-se de um 3 Em 2017, de
conceito técnico-jurídico “universal” adotado acordo com a
Organização
pela comunidade internacional após a Segunda Internacional para
Guerra Mundial para consolidar um regime de Migrações, 258
milhões de pessoas
proteção por meio do refúgio, o qual imple- no mundo
menta o direito de asilo e surge no início do poderiam ser
consideradas
século 20, sobretudo como efeito dos desloca- migrantes. Cf. OIM.
mentos forçados em massa a partir da Revolu- Global Migration
ção Russa. Esse conceito “universal” pode ser Indicators2018.
Berlim, 2018.
complementado regionalmente, o que foi feito Disponível em:
pela América Latina na década de 1980, per- http://bit.
ly/2Z9jA3o.
mitindo o reconhecimento do status de refu-
giado nessa última hipótese.2

32 33
artigo

Liliana Lyra
Jubilut vez que se chega ao país de asilo. Aqui se des-
é professora Isso, pois, por um lado, ainda que o número de tacam violações ao princípio do non-refoulement Em todas essas fases deve-se também destacar 4 Sobre essas
universitária na pessoas refugiadas tenha aumentado, é preci- (da não devolução). Esse princípio é a base do a falta de recursos (financeiros, de pessoal e de dificuldades de acesso
Unisantos, doutora a direito e serviços
so olhar não apenas para os dados brutos, mas Direito Internacional dos Refugiados e, conse- vontade política) necessários para a proteção no Brasil, cf. Liliana L.
em Direito Jubilut et al. “Migrantes,
Internacional, e
também contextualizá-los. Nesse sentido, é quentemente, da proteção às pessoas refugia- adequada às pessoas refugiadas, como, por exem-
apátridas e refugiados:
trabalha com a possível verificar a existência de interpretações das, e impõe aos Estados a obrigação de não plo, a diminuição de vagas para reassentamen- subsídios para o
temática das pessoas dos números a fim de servir à retórica da crise, retornar pessoas refugiadas para situações em to e de falta de políticas públicas que beneficiem aperfeiçoamento de
refugiadas desde 1999 acesso a serviços,
como, por exemplo, no caso da União Europeia, que suas vida, liberdade ou segurança estejam as populações locais e as pessoas refugiadas. direitos e políticas
uma vez que, apesar de se falar da “crise de ameaçadas. Ou seja, impõe uma obrigação de públicas no Brasil”.
refugiados” nessa região, verifica-se que na permitir a entrada de pessoas refugiadas em Pelo exposto, percebe-se que há, sim, uma Brasília: Ministério da
Justiça; Ipea, 2015.
década de 1990, sobretudo em decorrência da seus territórios e analisar suas solicitações de crise envolvendo pessoas refugiadas atualmen- Disponível em:
crise dos Bálcãs (em função dos conflitos na refúgio. Isso porque, o que torna uma pessoa te, mas que se trata não de uma “crise de re- http://bit.ly/2Z1qGbf.
ex-Iugoslávia), os países do bloco receberam um refugiado não é o reconhecimento desse fugiados”, e sim de uma crise para pessoas
muito mais pessoas refugiadas em média por status por um Estado, mas sim a condição ob- refugiadas, que impõe diversos desafios de
Estado do que na “crise” em 2015. Os números jetiva de seu país de origem: se esta permitir a proteção. E, nesse sentido, as pessoas refugia-
Sobretudo desde 2015, a temática migratória brutos são maiores recentemente, mas também percepção de que existe um bem fundado temor das não são os responsáveis pela crise, mas sim
ganhou espaço no dia a dia de quem não tra- é maior o número de países que compõem o de perseguição em função de raça, religião, quem sofre as consequências de um cenário
balha diretamente com ela; a cobertura na mí- bloco. O uso dos números, então, pode auxiliar nacionalidade, opinião política ou pertenci- de falta de vontade política para protegê-las e
dia de temas ligados às migrações cresceu ex- na percepção de uma “crise de refugiados”, mento a um grupo social, a pessoa é tecnica- de diminuição do espaço humanitário. Alterar 5 Tal proteção pode ser
ponencialmente, menções a migrantes se contudo é importante lembrar que, por trás de mente um refugiado e deve ser protegida como a retórica empregada até aqui na delimitação chamada de “proteção
integral”. Cf. Liliana L.
tornaram lugar-comum em alguns discursos cada número, há uma pessoa com necessidade tal. E isso só pode ser verificado se a pessoa e caracterização da crise é um passo inicial Jubilut; Silvia M. O. S.
políticos (como, por exemplo, no brexit, na de proteção internacional. Por outro lado, a puder ter sua solicitação analisada. para transformar esse cenário e garantir que Apolinário, “A população
refugiada no Brasil: em
campanha eleitoral americana e em campanhas própria retórica de “crise de refugiados” cola- as pessoas refugiadas tenham proteção ade- busca da proteção
eleitorais estaduais no Brasil em 2018), e práti- bora para a percepção de que medidas extraor- Na prática recente, contudo, ocorreram até quada, com respeito a seus direitos enquanto integral”. Universitas
Relações Internacionais
cas de revisão de legislação migratória com dinárias podem ser adotadas. E a combinação mesmo tentativas de Estados de evitarem que refugiados e, também, a todos os seus direitos (Uniceub), n. 6, v. 2, p.
violações de direitos humanos (como nos Es- desses aspectos é utilizada para tentar justificar as pessoas refugiadas entrassem em seus ter- enquanto seres humanos.5 9-38, 2008.
tados Unidos, Hungria e Itália, por exemplo) medidas de violações de direitos que geram ritórios. São exemplos disso as práticas de
foram implementadas. As migrações passaram uma crise para pessoas refugiadas. fechamento de fronteiras, de push-backs (re-
a ser um tema mais acessível e mais debatido, torno de pessoas refugiadas nas fronteiras) e
mas, em função das opções por uma governan- Essa crise para pessoas refugiadas tem afetado de acordos de transferência. Todas evitando
ça restritiva das mesmas por muitos países, a sua proteção nas três fases mais latentes do efetivo acesso a territórios seguros.
estruturação e a concepção das narrativas sobre deslocamento forçado. Inicialmente se tem
a temática têm sido no sentido de exaltar uma
“crise de refugiados”. Na verdade, em todo esse
verificado dificuldades para acesso seguro a
territórios, ou seja, durante o percurso do país
Nessa fase também se notam outras violações
que tornariam um território não seguro, tais Uma vez em
cenário, o que se verifica é uma crise para pes-
soas refugiadas, com desafios reais de proteção.
de origem para o país em que se buscará asilo.
O aumento do número de mortes durante
como detenção de migrantes, falta de acesso
a procedimentos para solicitação de refúgio e território seguro,
deslocamentos, o crescimento de redes de
contrabando e tráfico de migrantes, o recru-
falta de respeito a outras vulnerabilidades es-
pecíficas (como por gênero e questões etárias).
no que se poderia
descimento de práticas de escravidão de
migrantes e o aumento do número de migran- Por fim, na fase final do deslocamento, isto é,
chamar de
tes vítimas de tráfico de órgãos exemplificam
violações de direitos nessa etapa.
uma vez que se está em um território seguro,
no que se poderia chamar de integração local,
integração local,
Além disso, na segunda fase do processo mi-
observam-se vários obstáculos de acesso a di-
reitos, tais como à documentação, à saúde, à
observam-se vários
gratório das pessoas refugiadas, verificam-se educação, a trabalho e renda e à moradia; com obstáculos de
acesso a direitos
violações de direitos para acesso a territórios a possibilidade, também, de se somar a todos
seguros, ou seja, para ter acesso à proteção uma eles a questão de dificuldades com o idioma.4

34 35
ensaio

Emmanuel
Emmanuel Gonzalez é venezuelano e tem apenas 9 anos. No abrigo Rondon 3, em
Boa Vista (RR), ele vive com o pai, a mãe e quatro irmãos. A convivência com militares
despertou em Emmanuel o desejo de seguir carreira, daí sua preferência por roupas
camufladas. Na camiseta da foto consta seu nome gravado, com alguns brevês
colados, dados de presente ao menino por membros do Exército. Ao lado dele, o major
André Mesquita Albuquerque, há 20 anos nas Forças Armadas, de quem é amigo.
O oficial é o coordenador do Abrigo Rondon 3, o maior do Brasil, e diz ser essa a missão
mais desafiadora de sua carreira.

36 37
dor
artigo
por Helena Celestino

a Cada trajetória de uma pessoa que


deixa seu local de origem conta
uma história diferente, mas um
pedaço da identidade de todos fica
perdido nessa grande travessia

de
não pertencer A ntes de ser catapultado para a França, Gael Faye era
um menino com um bando de amigos que roubava
mangas da casa da vizinha, tomava banho de rio,
fumava escondido dentro de um carro abandonado na rua sem saída
onde todos moravam em Bjumbura, a capital do Burundi. Filho de pai
francês e mãe nascida em Ruanda – país colado àquele em que viviam –,
ele tem a pele cor de doce de leite e uma irmã mais nova e vivia entre
os colegas da escola e os filhos dos expatriados na África. Era só um
menino que às vezes se entediava nas tardes calorentas sem aula.

Até que a vida mudou brutalmente. A guerra explodiu no seu país e, na


terra da sua mãe, o genocídio deixou 1 milhão de mortos, entre eles
primos e tias de Gael. Na viagem em busca dos parentes, a mãe viu os
horrores do ódio étnico e jamais se recuperou. Repatriado de urgência
junto com a irmã para a França, ele desembarcou nos subúrbios de
Paris e tudo se transformou mais uma vez. As meninas agora pergun-
tavam a ele sobre baobás e girafas, mas Gael crescera numa cultura
dominada pela Nike e Michael Jackson. Ele irritava-se com essa nova
identidade que insistiam em colar nele e o reduzia a imagens exóticas.

38 39
artigo

Talvez pela facilidade de identificação com Gabi/ Um exemplo extremo é o da psicanalista e es-
Helena Gael, o livro tenha se transformado em um fe- critora Julia Kristeva, búlgara de nascença com
Celestino nômeno de vendas. Cada um dos 70 milhões nacionalidade francesa. Autora de 30 livros,
é jornalista de imigrantes recenseados pelo Acnur em 2018 entre romances e ensaios, ela é professora emé- “Ao mesmo tempo em que ela sofre a opressão
e roteirista vive um drama parecido ao do garoto: a perda rita da Universidade de Paris VII e professora enquanto imigrante – numa posição de assu-
do chão, das raízes, das redes de solidariedade. honoris causa de universidades no Canadá, jeitamento em termos sociais, culturais e de
Cada trajetória conta uma história diferente, Estados Unidos e Europa. É casada com o tam- classe –, na sua dimensão existencial ela ex-
mas um pedaço da identidade de todos fica bém celebrado escritor Philippe Sollers; os dois perimenta uma libertação, permite-se usar a
perdido nessa grande travessia. Na nova vida, com intensa participação na vida cultural e feminilidade como força e torna-se um sujei-
a ignorância e a indiferença em relação ao pas- reconhecimento internacional. to atuante”, diz ElHajji. “Ao descobrirem que
sado dos recém-chegados são uma dor que têm mais direitos, separam-se dos maridos
demora a passar ou não passa nunca. “Viajo o mundo dando aulas, recebendo prêmios porque é normal querer mais direitos, cons-
e participando de conferências e congressos. tataram antropólogos, em diversos estudos
“Essa perda de referencial, esse vazio no olhar do Aonde vou sou tratada como uma glória da sobre a imigração feminina.”
outro quando vê você ou a construção excessi- França. Mas aqui sempre reconhecem um so-
va que ele tem de você é altamente impactante taque ou uma estrangeiridade em mim”, dis- A profunda mudança no cenário internacional,
na vida de uma pessoa”, diz o especialista em se-me, com amargor, numa entrevista. criada pela globalização, conduziu ao popu-
“Não era mais um garoto que chegou ao país do migrações internacionais e comunicação inter- lismo em muitos países ao redor do mundo,
seu pai. Branco na África, passei a ser negro, cultural Mohamed ElHajji, professor da Univer- O professor ElHajji explica que numa das cons- levando à repulsa ao estrangeiro, transforma-
imigrante, africano num país europeu que me sidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e ele truções discursivas da identidade há o que do em vilão, acusado de roubar empregos e
olhava com desconfiança”, contou o agora mesmo um imigrante que saiu do Marrocos e chamamos de filiação e afiliação, ou seja, o que desfigurar as identidades nacionais. É falso: a
escritor e músico, numa das mesas da Festa chegou há cerca de 30 anos ao Brasil. nos é dado ao nascer e o que escolhemos ao imigração cresceu porque a população mundial
Literária de Paraty (Flip), em 2019. longo da vida. É uma espécie de grade, que chegou a 1,6 bilhão, mas o fluxo de pessoas em
Estrangeiridade fica esburacada com o esquecimento inevitá- busca de nova vida jamais passou de 3% nos
Foi do trânsito entre culturas e identidades, Claro que não existe o imigrante universal. vel de pedaços do passado com o passar dos últimos 50 anos. “É preciso raciocinar, é mais
entre a escrita e a música, que nasceu a lite- Existe o imigrante rico e o pobre, o africano e anos. Isso é particularmente dramático com humano abrir as fronteiras do que fechar, o
ratura de Gael. Já um jovem adulto, ele teve o europeu, o homem, a mulher, o gay; o imi- os imigrantes idosos: com a idade avançada, medo foi estimulado por partidos de extrema
certo sucesso na cena musical ao contar em grante de sucesso profissional e o imigrante começam a perder a memória mais recente e direita que queriam recuperar a atenção e bo-
forma de rap as etapas e as emoções da sua totalmente pauperizado que depende da be- a desaprender a língua do país onde estão; tam a culpa no outro pelo que vai mal no país”,
vida. Mas estourou mesmo foi com O pequeno nevolência de quem o está acolhendo. Exis- tentam falar a língua de origem, mas tornam- diz Michel Agier, antropólogo e professor da
país, livro traduzido em 20 nações antes até tencialmente há um vazio, mas é diferente se -se incompreensíveis em todos os idiomas. École des Sciences de l’Homme, em Paris.
de ser publicado em francês, a língua em que ele tem um trabalho, se é ou não marcado pela
foi originalmente escrito. Em meio à montanha cor da pele, a forma dos olhos e o tipo de Na narrativa das sociedades tradicionais, em que “Racismo e xenofobia são inaceitáveis”, refor-
de lançamentos do outono parisiense de 2016, cabelo, se maneja ou não os códigos sociais a existência é regulada pela tradição ou perten- ça ElHajji.
ele ganhou vários prêmios literários da tem- e domina a língua do país onde passará a vi- cimentos tribais e étnicos, a individualidade não
porada com a história de seu Gabi, um meni- ver. Mas todos vivem o sentimento de não é um valor e, muito menos, a liberdade de es- Ou, em outras palavras, todos os seres huma-
no meio africano e meio europeu, levado pela pertencimento. colha. “Troca-se segurança por liberdade”, diz nos são iguais e têm direito a ter direitos.
fúria do destino. Na cena inicial, o narrador vê o filósofo Zygmunt Bauman. Não por acaso, para
na televisão as imagens dos imigrantes que “A situação de estrangeiridade impacta o olhar muitas mulheres vivendo em sociedades forte-
chegavam em massa à Europa, fugidos da do outro. Pode ser profissional de sucesso, ter mente patriarcais, a consciência da liberdade
guerra, da fome e da violência. O ano era 2015, conseguido a ascensão social, mas o drama obtida com a imigração é uma conquista na
eles vinham em busca de refúgio e encontra- existencial está subjacente, às vezes aparece chegada às grandes cidades ocidentais.
vam a maioria das fronteiras fechada. no sotaque, no erro do uso de uma palavra, às
vezes pelo esquecimento de uma palavra que
“A que mundo nós pertencemos? Ao das nossas usava no país de origem”, diz ElHajji.
origens ou ao que o destino nos impõe? Ninguém
pergunta sobre o país que essas pessoas trazem
dentro delas”, diz o alter ego de Gael, obser-
vando esses grupos de refugiados desesperados.

40 41
ensaio

Ahmad
Ahmad Hasan nasceu em 1982 em Alepo, na Síria. Vivia bem na cidade
chamada por ele de “linda e maravilhosa”. Tinha trabalho e estava sempre
rodeado da família. Com seu amigo “irmão” Mohammed, abriu uma oficina de
costura e lavanderia. Os negócios iam bem até a guerra. Desde 2011, com a
escalada da violência, a vida lá se tornou insuportável. Os pais foram para o
Líbano e, em 2015, Ahmad os seguiu. De lá, por meio de um amigo, decidiu vir
como refugiado para o Brasil – país que só conhecia pelo futebol. Com
Mohammed, abriu sua própria oficina e lavanderia em São Paulo, chamada
Aleppo. “Os negócios estão indo devagar, mas vamos um dia após o outro”, diz.

42 43
entrevista
com Rosana Baeninger

linha
divis ória
Rosana
Baeninger
é professora do
Instituto de Filosofia
e Ciências Humanas
da Unicamp e
pesquisadora do
Núcleo de Estudos
da População Elza
Berquó (Nepo)

O s fluxos migratórios nas primeiras duas décadas


deste século guardam características próprias em
relação ao histórico da mobilidade humana. Com
políticas restritivas dos países do Norte global, as movimentações se
concentram no eixo sul do planeta, com migrantes oriundos, sobretu-
do, da América Latina e Caribe, África e Ásia.

São as chamadas “migrações Sul-Sul”, como explica a socióloga Ro-


sana Baeninger. Ela conta que o Brasil aparece nesse contexto como
um país possível, e não necessariamente um destino desejado pelos
Questões geopolíticas imigrantes. Coordenadora do Observatório das Migrações em São Pau-
lo e de publicações sobre o tema, Migrações Sul-Sul, Migrações Frontei-
caracterizam as riças e o Atlas Temático Observatório das Migrações, Rosana fala, na
migrações no século 21 entrevista a seguir, sobre as diferenças entre o fluxo atual e o ocorrido
entre os séculos 19 e 20, o fenômeno da interiorização, no Brasil, das
pela intensificação migrações internacionais e as demandas de políticas sociais e de direi-
dos deslocamentos tos humanos.

no hemisfério sul
por paulo jebaili

44 45
entrevista

Que fatores distinguem o fenômeno atual Do ponto de vista da possibilidade de docu- Sul é justamente as muitas nacionalidades de
das migrações no Brasil dos fluxos obser- mentação e permanência de imigrantes e re- imigrantes e refugiados com as quais não tive-
vados nos dois séculos anteriores? fugiados no Brasil, até 2017 a legislação mos raízes históricas.
Nas migrações do século 19 para o 20, havia migratória no Brasil era regida pelo Estatuto
todo um programa do Estado-nação de bran- do Estrangeiro, criado em 1980, em plena di- Há diferenças na receptividade entre os
queamento da raça. Foi subsidiado pelo go- tadura, baseado na segurança nacional, por- fluxos do final do século 19 e este atual?
verno brasileiro e por governos estaduais tanto, desatualizado e anacrônico em relação Há, sim, uma diferença nessa receptividade,
paulistas e da região Sul para trazer os migran- às migrações do século 21, em especial às mi- porque nós temos uma questão estrutural que
tes europeus. Havia um contingente muito grações Sul-Sul. Em 2010, quando chegaram tem a ver com a raça. As migrações europeias
maior de população africana, pela produção os imigrantes haitianos, iniciativas do gover- do final do século 19 e início do século 20 eram
de cana-de-açúcar e pelo tráfico de escravos. no federal, dos estados e dos municípios foram brancas. As migrações do século 21 são marca-
A transição do trabalho escravo para o trabalho abrindo brechas para que essa migração se das pela presença não branca: negros, latino-
livre teve esse componente da mão de obra tornasse documentada. Essa possibilidade de -americanos – incluindo povos indígenas – e
europeia. Esse fenômeno criou um imaginário Como o Brasil se insere nesse contexto das documentação é muito importante para que asiáticos. Esse componente é importante nas
para o Brasil de uma migração internacional migrações Sul-Sul? possamos diminuir a discriminação e a xeno- migrações Sul-Sul. Isso fica mais evidente no
europeia e branca. Do século 20 para o 21, a O Brasil se insere nesse contexto das migrações fobia no nosso país. Porque não teremos a Brasil com a entrada da imigração haitiana a
partir do final dos anos 1980, o país começou internacionais com a entrada de imigrantes carga que outros países denominam “clandes- partir de 2010. No caso dos sírios, eles são bran-
a conviver com a migração latino-americana, latino-americanos no final do século 20, refor- tinidade” da imigração. Essa possibilidade da cos e “não nos incomodam” – diferentemente
particularmente de bolivianos. Isso foi se acen- çando essa tendência no século 21, a partir de documentação reforça a entrada de imigrantes de outros países – mesmo que tenham outros
tuando no século 21 com as migrações do Hai- 2011, com a chegada de imigrantes do Haiti, com com outra conotação: o Brasil é o país possível, costumes e vestimentas etc., porque não temos
ti, as migrações refugiadas, os deslocamentos a migração refugiada síria a partir de 2013, por não é o país desejado. Possível pela nova Lei um Estado baseado na religião. Mas temos for-
internos da migração internacional a partir acordos bilaterais e, recentemente, pela posição de Migração, de 2017, com o visto de residên- temente um Estado-nação que se construiu
das fronteiras, as migrações forçadas. São mo- do Brasil nas questões da geopolítica interna- cia temporária, ou pelo visto de residência dos com a questão da raça.
dalidades migratórias dentro desse contexto cional, com a intensificação de imigrantes da países latino-americanos do Mercosul e asso-
maior das migrações internacionais. Entender África e da Ásia. É de se ressaltar que as migra- ciados por meio do acordo de residência do O Estatuto do Refugiado, baseado na Conven-
essa migração no século 21 passa necessaria- ções internacionais do século 21 trazem hete- Mercosul, ou ainda do Estatuto do Refugiado, ção Internacional das Nações Unidas, é de 1951,
mente pelo contexto das migrações Sul-Sul. rogeneidades na composição de cada um dos de 1997, com a solicitação de refúgio. A per- então, houve acordos bilaterais para trazer es-
Porque os países do Norte, cada vez mais, fe- fluxos migratórios: de um lado, com a presença manência documentada no Brasil, muitas ve- ses imigrantes. Como era uma mobilização
cham as fronteiras, limitam a entrada de imi- de imigrantes altamente qualificados – vindos zes, é transitória na trajetória do imigrante e mundial, havia outros mecanismos. Hoje vemos
grantes do Sul; então, essa migração pelas empresas transnacionais – e, de outro lado, refugiado que depois se torna um caminho uma reconfiguração histórica. Os sírios chega-
internacional passa a ser entre os países do Sul. imigrantes com menor qualificação profissional. para o Norte global. ram também no começo do século 20; temos
Na virada do século 20 para o 21, tivemos en-
tradas de capitais internacionais e de empresas No caso dos haitianos, o projeto migra-
transnacionais, que podem ser do Norte global tório era ir para a Guiana Francesa, e

A possibilidade de
e de empresas do próprio Sul global adentrando posteriormente, muitos deles foram
no Brasil, caso da China. E uma das “respostas” para o Chile e tentaram os EUA. No caso
dessa mobilidade do capital é a mobilidade da
força de trabalho, como afirma [a socióloga
dos venezuelanos, muitos deles passam
pelo Brasil, mas vão para Argentina e documentação reforça
a entrada de imigrantes
holandesa] Saskia Sassen. No caso dessa migra- Uruguai. Essa possibilidade da docu-
ção Sul-Sul, nota-se que assistiremos tanto a mentação abre um caminho para as
uma migração qualificada quanto a uma migra-
ção de menor qualificação ocupacional. Sendo
migrações internacionais que não ne-
cessariamente vão aumentar em volu- com outra conotação:
que, neste último caso, muitas vezes imigrantes
com nível de escolaridade elevado acabam se
me no Brasil – claro que sim, em
situações pontuais, como a da Vene- o Brasil é o país possível,
inserindo em ocupações desiguais à sua forma-
ção profissional no lugar de destino.
zuela –, mas o que ampliará essa nova
configuração migratória no âmbito Sul- não o país desejado
46 47
entrevista

O Brasil é um país de trânsito


migratório. Há em torno de
cessão do refúgio, as situações de perseguições
políticas, de guerra, religiosas ou com graves 3,5 milhões de brasileiros
violações de direitos humanos. Isso restringe
muito a concessão do refúgio jurídico. Em 2018, lá fora. Nos últimos 20 anos,
tivemos no Brasil, segundo os dados do Con-
selho Nacional para Refugiados (Conare - Mi-
para o Paraguai já havia sido de 400
mil brasileiros. O Atlas traz que, no
houve uma entrada de quase
nistério da Justiça), 80.057 solicitações de
refúgio, mas só foram concedidas 777, das quais
século 21, o Brasil é um país de
trânsito migratório. Há em torno
1,5 milhão de migrantes
476 para imigrantes da Síria. de 3,5 milhões de brasileiros lá fora.
Nesses últimos 20 anos, houve uma
internacionais
Muitos imigrantes, para terem a permanência entrada de quase 1,5 milhão de
documentada, CPF e carteira de trabalho, op- migrantes internacionais e, agora,
tam pela solicitação de refúgio, uma vez que a com solicitantes de refúgio, vai dar
raízes históricas, proximidade com a gastro- solicitação de visto de residência temporária, 1,7 milhão. A documentação permite ao imi- matérias que são de segurança brasileira no
nomia, que não vamos ver com a República pela Lei de Migração temporária, tem uma taxa, grante, ao solicitante de refúgio ou ao refugia- trabalho, legislação, e o refugiado ainda não
Democrática do Congo, por exemplo. Os sírios que o documento de refúgio não exige. do uma mobilidade interna no Brasil. O Atlas está apto com a língua portuguesa. Isso difi-
vão se reconfigurar com uma imigração refu- mostra uma migração interna de uma migração culta mesmo e, nesses casos, acabamos tendo
giada. Hoje, no Brasil, temos um fluxo impor- O total acumulado de concessões de refúgio no internacional. Isso vai trazer uma outra questão, um desperdício de cérebros. O Alto Comissa-
tante de alemães altamente qualificados, que Brasil até 2018 era de 11.231 refugiados, porém que desemboca no nosso preconceito e xenofo- riado das Nações Unidas para os Refugiados
é também uma reconfiguração, porque os do somente 6.554 ainda mantêm o status de refu- bia, que são uma presença e uma visibilidade de [Acnur], por meio da cátedra Sérgio Vieira de
século 19 para o 20 não tinham essa condição. giados – podem ter saído do Brasil, alterado o migrantes não brancos internacionais em luga- Mello, tem ampliado a parceria com as univer-
tipo de visto, falecido –, segundo os dados do res onde não houve nenhum processo histórico sidades brasileiras para a facilitação da revali-
Com que desdobramentos? Ministério da Justiça. No Atlas da Migração Re- de migração internacional e agora começa a ter dação de diplomas para refugiados.
A primeira lição, com a migração haitiana, foi fugiada, os dados do tráfego internacional nos a presença de haitianos, de bengaleses etc.
uma pressão para que pudesse caminhar mais aeroportos, com base em dados da Polícia Fe- Estudos do Nepo apontam uma interiori-
rapidamente com a nova Lei de Migração e deral, Ministério da Justiça, mostram essa mo- Quais os preconceitos mais recorrentes que zação dos imigrantes, sobretudo no estado
mostrar como o Estatuto do Estrangeiro esta- bilidade intensa de entradas e saídas de os refugiados enfrentam? de São Paulo. Como esse fenômeno se dá?
va desatualizado. A segunda é que tivemos de solicitantes de refúgio e de refugiados nesses Teremos uma sobreposição de discriminação São Paulo tem uma intensificação dessa inte-
rever a nossa posição como um país construí- últimos 15 anos. Mesmo tendo refúgio conce- no Brasil. Primeiro, não são brancos; segundo, riorização das migrações internacionais pela
do, do século 19 para o 20, com o mito da re- dido, estar no Brasil não é o destino final. Mui- em muitos casos, a própria condição migra- presença e instalação de empresas transna-
ceptividade migratória. Porque mesmo os tos sírios já foram para o Canadá. É uma etapa tória já discrimina; terceiro, os imigrantes e cionais. O capital internacional traz um fluxo
migrantes desse período eram os brancos eu- migratória, em que estar documentado aqui é refugiados qualificados têm dificuldade na que vem com as empresas e depois pode ali-
ropeus, católicos, desejados e assimiláveis. Dos importante para eles adentrarem outro país. revalidação do diploma; quarto, o Brasil não mentar uma corrente migratória que não tem
que não eram assimiláveis, muitos retornaram. tem a experiência da multiculturalidade. nada a ver com esse fluxo. Isso tem aconteci-
Se esse mito da receptividade já não existia No material apurado para a confecção do do no Brasil, principalmente em São Paulo.
entre os séculos 19 e 20, mesmo com a cons- Atlas e do livro Migrações Sul-Sul, apare- Essa dificuldade gera uma perda de capi- Pessoas de Bangladesh vieram trabalhar em
trução da imagem de um país acolhedor, ele ceram aspectos que driblam a percepção tal intelectual para o país? frigoríficos no interior, por causa do corte
se desconstrói nesses últimos 15 anos do sé- comum? Essa é uma questão importante. A migração halal de carne para países muçulmanos, com
culo 21, justamente porque lidamos com uma Pelo imaginário migratório do século 19 para síria tem alta escolaridade, bem como há uma visto de trabalho, e, depois, essas empresas
migração não branca. o 20, sempre líamos o Brasil como um país de elite da República Democrática do Congo e de foram vendidas para outros grupos interna-
imigração. Em meados dos anos 1980, surge venezuelanos das primeiras ondas migratórias. cionais. Estamos fazendo uma pesquisa com
Qual a proporção dos refugiados nessa uma rota da emigração, pela saída de brasilei- Então, é uma oportunidade de um capital hu- iranianos num frigorífico em Santa Fé [do Sul],
migração para o Brasil? ros para os EUA e para o Japão. Só passamos a mano e cultural. O país deveria ter condições na divisa com o Mato Grosso. Essa interiori-
O Estatuto do Refugiado de 1997 no Brasil é nos enxergar como país de emigração quando de promover a inserção laboral de imigrantes. zação é um fato novo. As nossas explicações
baseado na Convenção Internacional das Na- esse movimento é feito em direção ao Primei- Algumas universidades fazem provas para re- teóricas para a chegada das migrações inter-
ções Unidas de 1951, que considera, na con- ro Mundo. Porque nos anos 1970 a emigração validarem esses diplomas e, às vezes, existem nacionais para as cidades pequenas e médias

48 49
entrevista

estão no âmbito global, mas a política e o de- lho], eles entraram para o mercado de trabalho outros bens para populações mais distantes
safio são do âmbito local. E o âmbito local formal. Isso vai se modificando à medida que etc. Nesse contexto, a Operação Acolhida tem
muitas vezes não tem estrutura para receber a crise econômica vai se acirrando. Os dados um outro papel importante, que é o da docu-
essa população. Isso vai recair na assistência mostram imigrantes internacionais e traba- mentação, da orientação com a presença da
social. É necessário conhecer essa migração, lhadores nacionais entrando para a informa- Polícia Federal, da área da saúde e das agências
de onde são esses migrantes. Dos 5,5 mil mu- lidade. E vemos esse acirramento em locais das Nações Unidas. Houve a renovação dos
nicípios no Brasil, 4,5 mil têm pelo menos um onde o emprego diminui e há a presença do recursos para a Acolhida pelo governo atual.
migrante internacional vindo nos últimos 20 imigrante internacional. Esse ponto é impor- Provavelmente, essa situação de fronteira com
anos. Isso traz uma nova configuração. tante, porque temos de preparar a sociedade a Venezuela é bastante particular, tanto pelo
para esse contexto da migração global. volume do fluxo migratório quanto pela ques-
Esses fluxos recentes coincidem com um do trabalho imigrante, como define [Luis E.] tão geopolítica, que é muito complexa agora,
período de crise econômica e alta taxa de De que forma? Guarnizo, da Universidade da Califórnia. Por e temos de fazer uma leitura que extrapola o
desemprego. Esse quadro aumenta a rejei- Em relação aos migrantes internacionais no exemplo, as imigrantes filipinas em São Paulo entendimento das migrações Sul-Sul.
ção aos estrangeiros? Brasil, sempre houve a discussão se eles ocu- não competem com as babás brasileiras, porque
O Brasil, entre 2011 e 2014, estava no auge da pariam os postos de trabalho, tal como os elas vêm por empresas e vão trabalhar em casas As instituições religiosas sempre tiveram papel
dinâmica econômica e da migração. A migra- brasileiros nos EUA e na Europa, o que o [so- em que as pessoas querem que os filhos falem na acolhida de imigrantes no Brasil. A Cáritas
ção haitiana chegou num momento de acele- ciólogo Alejandro] Portes chama de mercado em inglês. Esse é um ponto importante para é uma instituição internacional da Igreja Cató-
ração econômica. E os haitianos, que vieram secundário de trabalho – o do trabalho domés- desconstruirmos essa visão de competitivida- lica para ajudar os refugiados. Em São Paulo,
para São Paulo para a construção civil, cobri- tico, de serviços etc. Ocorre que aquilo que de e disputa no mercado de trabalho brasileiro. por exemplo, a Missão Paz atendeu cerca de 11
ram uma lacuna que a migração nordestina nos EUA é o mercado secundário de trabalho, mil haitianos entre 2012 e 2014, fazendo o papel
preenchia há décadas, que era o trabalho na aqui no Brasil é o próprio mercado de trabalho. A bibliografia internacional e um estudo da que o Estado brasileiro não estava fazendo. De-
construção civil. Porque os fluxos migratórios Numa leitura muito simplista, essa disputa OIT [Organização Internacional do Trabalho] pois disso, houve pressões dessas instituições
do Nordeste para São Paulo diminuíram. Não pode ficar mais acirrada, mas, por outro lado, que fizemos em 2017-2018 mostram como nos locais, e o município de São Paulo passou a ter
só as mulheres tiveram menos filhos, como esse migrante internacional contribui se soma nichos econômicos é difícil entender essas um Conselho Municipal de Imigrantes em 2016.
houve uma aceleração econômica no Nordes- ao trabalhador nacional, para a geração de cadeias da inserção laboral, porque muitas
te, que gerou empregos. Na migração interna, novos empregos. delas estão fora do país. No caso das mesquitas, a raiz histórica ajuda a
começamos a visualizar a rotatividade migra- entender, no caso dos sírios, porque já existiam
tória, pessoas que vêm e vão com muito mais Outra questão é que a inserção do imigrante Essa dificuldade gera que tipo de conse- no Brasil. Na migração venezuelana, outras
frequência do que antes. No caso dos haitianos na estrutura ocupacional do mercado de tra- quência? religiões entram também, particularmente na
que chegaram para a construção civil, não balho brasileiro é muito limitada. Os haitianos Esses nichos econômicos tendem a uma baixa interiorização. Porque são dois modelos de in-
vimos essa disputa entre mão de obra local e e os venezuelanos entram porque existe uma interação social dos migrantes com a comu- teriorização que às vezes se confundem.
estrangeira, porque havia um boom econômi- forte presença do Estado. Os demais imigran- nidade local. A discriminação e o pre-
co. Pelos dados da Rais [Relações Anuais de tes não competem no mercado de trabalho conceito só diminuirão se houver um
Informações Sociais, do Ministério do Traba- brasileiro porque, mesmo aqui, eles fazem brasileiro e um de outra nacionalidade

A discriminação e
parte de uma cadeia global de produção. Os trabalhando no mesmo lugar. Como acon-
senegaleses vendendo produtos eletrônicos na teceu com os haitianos, porque tinha uma
avenida Paulista compõem a mesma cadeia
global dos que estão na França. Não consegui-
presença do Estado.
o preconceito só
mos enxergar a cadeia inteira no contexto
nacional. Não há essa competição direta entre
Temos visto matérias sobre a partici-
pação do Exército e de instituições diminuirão se houver um
o migrante internacional e o nacional porque
aquele faz parte do chamado mercado global
religiosas na chegada de migrantes.
Como analisa o papel dessas entida- brasileiro e um de outra
des no contexto das migrações?
O Exército entra na migração venezue-
nacionalidade trabalhando
lana, em área de fronteira, onde já tem
um papel importante de levar vacina e
no mesmo lugar
50 51
entrevista

Imigrantes precisam ter o


direito de ser imigrante, de
Um modelo que o governo brasileiro propõe,
envolve o Exército, a Casa Civil e as prefeituras.
movimentar dentro de seus países.
Contudo, há migrantes forçados trabalhar, de estar no Brasil,
Há localidades muito pequenas, em Pernam-
buco, no Paraná, que receberam esses migran-
dentro de seus próprios países; no
caso da Colômbia, são 6,5 milhões de ter suas escolhas, de ter
tes. O outro caminho de interiorização passa
pela Casa Civil também, mas não pelas prefei-
de deslocados internos, que saíram
por guerrilhas etc. Mas a Declaração
autonomia. Pensar em direitos
turas, e vem, com instituições religiosas pen-
tecostais, mórmons etc., para cidades que
Universal dos Direitos Humanos
silencia no caso em que as pessoas
humanos é, antes de tudo,
querem receber esses migrantes, como Mato
Grosso e São Paulo. Vários migrantes, parti- cravidão. Mesmo que eles tenham CPF e car-
podem ser imigrantes e terem
sua permanência garantida em ou-
pensar no direito à dignidade
cularmente no interior de São Paulo, podem teira de trabalho, há casos em que ficam em tros países. Outro ponto: pensar
ter vindo por meio de instituições religiosas, situação extremamente vulnerável frente à em direitos humanos é pensar em
e a prefeitura não sabe da chegada deles. ausência de políticas sociais adequadas e têm políticas sociais, políticas públicas,
de ser dirigidos a fluxos diferenciados. acolhimento, hospitalidade que não se pautem milacionistas, porque eles não estarão aqui o
São novos atores, em parceria com o Estado, pela assimilação. A migração do século 19 para tempo todo. Nós entrevistamos haitianos, logo
acolhendo essa migração, mas sem uma polí- Qual a participação do terceiro setor nes- o 20 foi absolutamente assimilacionista. Nós, no começo, e eles falavam: “Não quero apren-
tica migratória, com políticas sociais que pos- se contexto? descendentes de europeus, ficamos aqui porque der português, eu não vou ficar aqui”. É claro
sam dar um acompanhamento para essa Pela própria condição histórica, São Paulo con- tivemos as características assimilacionistas que que o português é importante, senão não tem
população. A migração que saiu da fronteira centra mais instituições. Têm um papel impor- o governo brasileiro pedia. Se continuarmos a inserção social e laboral, mas precisamos
do Brasil com a Venezuela se interioriza e, na tante, que vai cobrir uma lacuna que não é só pensando assim, estaremos dizendo que o imi- saber quais as demandas e as políticas para que
inserção laboral, necessita de um acompanha- um acolhimento do ponto de vista assistencia- grante é economicamente importante para o eles se tornem sujeitos de direito. E isso passa
mento no local de destino, pois gera, como lista. Há um encaminhamento e uma questão Brasil. Ou ele vai ter o diploma revalidado, ou também pela sociedade, que precisa estar pre-
temos visto, casos de trabalho análogo à es- que vão dar um sentido maior de comunidade. vai trabalhar bastante, ou vai cobrir a lacuna parada para a migração que vai se acirrar cada
A migração haitiana é uma das que mais con- que o migrante interno não faz mais. Esse viés vez mais como uma migração não branca e de
seguiu criar associações no Brasil. Eles mesmos de que o imigrante sempre vai ser um bom países com os quais não temos nenhuma raiz
se associaram, e isso dá um lugar político na trabalhador tem de ser desconstruído para histórica. E temos de aprender a conviver den-
comunidade muito diferenciado de outra que mostrar que ele é um sujeito de direitos. Imi- tro dessa nova realidade multicultural e global.
ainda não tem essa articulação entre os seus grantes precisam ter o direito de ser imigran-
membros. Por exemplo, os bolivianos só con- te, de trabalhar, de estar no Brasil, de ter suas Existe um caminho para isso?
seguiram consolidar suas associações quando escolhas, de ter autonomia. Pensar em direitos Vejo dois caminhos, além da questão da docu-
estiveram documentados. Como a [filósofa humanos é, antes de tudo, pensar no direito à mentação, de que já falamos. Não ter o rótulo
política] Hannah Arendt argumenta, essa ca- dignidade. O [sociólogo Abdelmalek] Sayad de “clandestino” diminui muito a xenofobia.
pacidade de associação traz uma questão polí- ressalta que o imigrante e o emigrante são a Outra questão é que as políticas sociais precisam
tica importante para a visibilidade do grupo. mesma pessoa. É emigrante porque deixou um ser levadas em consideração com políticas que
país e é imigrante e traz toda a sua reconfigu- deem acesso à população nacional e a imigran-
Que demandas de políticas públicas e de ração ao país em que chega. tes nos mesmos espaços públicos. À medida
direitos humanos surgem com os atuais que, na fila de vacinação do posto de saúde, há
fenômenos migratórios? Um sujeito em trânsito? imigrantes e brasileiros, começamos a romper
A questão principal é a de direitos humanos. O É um sujeito em trânsito. E vai reconfigurar esse distanciamento entre o “nós” e “o outro”.
direito de ser imigrante. A Declaração Univer- essa sua identidade migratória a partir dos seus Outro ponto, que Hannah Arendt discute, é a
sal dos Direitos Humanos preconiza que todo projetos migratórios nesse país. Para entender visibilidade nos espaços públicos, que é a ga-
mundo tem o direito de sair do seu país e de se esses projetos migratórios, é preciso dar voz a rantia que temos do encontro com o “outro”.
esses migrantes. Precisamos conversar, ouvir, Este é o desafio do século 21: a garantia de uma
entender, fazer parte dessa política – ou local sociedade baseada nos direitos humanos, nos
ou nos conselhos. E as demandas são transi- direitos dos imigrantes e na vivência da mul-
tórias; então, as políticas não podem ser assi- ticulturalidade a partir do “outro”.

52 53
ensaio

Flor
Flor Ángela Durán tem 45 anos, veio
da Venezuela com o marido e a filha, e
no abrigo Rondon 3 atua como auxiliar
técnica de enfermagem. Do seu país,
trouxe uma antiga rede com listras
brancas, azuis e vermelhas, que a faz
lembrar do pai, morto há pouco tempo.
“Ele me ensinou a dormir em rede,
porque é mais fresco, mais confortável.”
Flor conta que, apesar da vida dura de
refugiada, sempre dorme bem na rede
que montou em seu abrigo: “É como se
eu estivesse dormindo numa nuvem”.

54 55
ensaio
por Brian Sokol

importante
a coisa mais De utensílios para ajudar na sobrevivência a itens de valor
sentimental, objetos escolhidos por pessoas em fuga de seus
locais de origem compõem o projeto A coisa mais importante,
realizado pelo Acnur com o fotógrafo Brian Sokol

Dowla
De: Sudão Fideline
Para: Sudão De: Rep. Centro-Africana
Para: Rep. Democrática do Congo
Um suporte de madeira para levar
nos ombros e equilibrar dois ces- Quando entrou no barco com os
tos foi o que Dowla resolveu levar familiares, a adolescente Fideline
para ajudá-la na jornada de dez carregava os livros escolares que
dias rumo a um campo de refu- escolheu salvar em sua fuga. “Não
giados no sul do país africano. Ela podia levar minha mochila escolar,
fugiu com seis filhos dos bombar- meus sapatos ou as fitas coloridas
deios em sua região. Quando as para os meus cabelos, mas trouxe
crianças se cansavam de caminhar, meus cadernos e minha caneta.”
ela chegava a equilibrar duas de Na travessia do rio Outbangi,
cada lado para conseguir concluir carregava uma convicção: “Que-
a viagem. ro estudar para que possa me tor-
nar alguém”.

Abdou Magboola
De: Mali De: Sudão
Para: Burkina Faso Para: Sudão do Sul

Quando a mãe de Abdou foi se- Aos ataques aéreos, Magboola con-
questrada e morta no deserto com seguiu resistir. Mas, certa noite,
outras quatro mulheres, ele decidiu quando soldados abriram fogo por
deixar o Mali. O objeto escolhido terra, ela decidiu deixar a aldeia
foi justamente a motocicleta que onde morava. Empreendeu uma
o auxiliou a cruzar a fronteira de viagem de 12 dias para o Sudão do
Burkina Faso. Após colocar os filhos Sul. Escolheu uma panela que era
e a esposa num automóvel, Abdou possível carregar na jornada e, ao

©fotos: Brian Sokol


e o pai seguiram viagem de moto mesmo tempo, garantir o preparo
até o país vizinho. Essa foto foi de alimentos para as três filhas que
tirada em 2013, do lado de fora do a acompanhavam.
campo de refugiados.

56 57
ensaio

Deivys
Deivys Tenias Sequera era homem de circo antes de vir sozinho para o Brasil e se abrigar no Rondon 3,
em Boa Vista (RR). Ele caiu do trapézio a 33 metros de altura e, desde então, anda acompanhado
de suas muletas. De lá para cá, dedicou-se às marionetes. Ele se apresentava nas ruas de Caracas
e também dava aulas dessa antiga arte. Tinha 120 bonecos, mas só conseguiu trazer dois ao Brasil:
Shakira, de papel machê, e Michael, de madeira. Ele quer se apresentar pelo Brasil, mas precisa juntar
dinheiro para comprar um aparelho de som e animar suas apresentações. “Seguir o ritmo da música
é o grande segredo das marionetes”, ele diz, enquanto mostra a dança silenciosa de Shakira.

58 59
INFOGRÁFICO

Realidade brasileira Dados do Conare indicam que Refugiados reconhecidos no Brasil entre 2011-

Refugiados reconhecidos
6.554 refugiados 2018, por país de origem
possuem registro ativo no Brasil,
ou seja, efetivamente vivem

A
Iraque Afeganistão
no Brasil sob essa condição. 110 (1%) 86 (1%)
Angola Camarões
pesar da fama de hospitaleiro, o Brasil têm nú- nhecimento da condição de refúgio, o quadro muda. A re- Guiné
96 (1%) 54 (1%)
meros proporcionalmente baixos de imigrantes cente crise na Venezuela e a onda emigratória do país para Mali 81 (1%)
e refugiados na sua população. Dados da Polícia vizinhos, entre eles o Brasil, fez quase dobrar a fila de ava- 129 (2%)
Federal indicam menos de 1% de imigrantes em liação de pedidos por reconhecimento – saltando de 86 mil Refugiados reconhecidos
território brasileiro. O número de refugiados, em 2017 para 161 mil em 2018. Do total de novos pedidos, (total acumulado de deferimentos) Outros
segundo o Comitê Nacional para os Refugiados 77% são de autoria de venezuelanos. 2.278 (28%)
(Conare), é ainda menor. São cerca de 6,5 mil Paquistão

31
5
.2
306 (4%)

.14
vivendo por aqui, de um total de 11,2 mil reconhecidos desde De acordo com o Acnur (Agência da ONU para Refugiados),

11
55
10
3
49
Palestina

2
que o Brasil regulamentou o procedimento de concessão em em 2018 o Brasil é o sexto país com maior número de novas

9.
6
8.
7.2
1997. O dado coloca o Brasil na 139ª posição (de um total de solicitações de reconhecimento da condição de refugiado, 350 (4%)

5
97
4
5
28
03
187) no ranking da ONU dos países que abrigam mais refugiados. abaixo de EUA, Peru, Alemanha, França e Turquia. Síria

4.
4.
4.
Já quando o assunto é o número de pessoas buscando reco- Veja abaixo esses e outros dados sobre refúgio no Brasil: Colômbia 3.326 (40%)
324 (4%)
Rep. Dem. do Congo

18
14

16
15
12

13

17
11
1.137 (14%)

20

20
20
20

20

20
20

20
Solicitações de refúgio ao Brasil Novas solicitações de reconhecimento da condição
Solicitações de refúgio

em trâmite (acumulado) de refugiado ao Brasil em 2018, por país

86.007 161.057 Índia Outros


2017 2018 Senegal 370 (1%) 4.284 (5%) Perfil demográfico dos refugiados reconhecidos no Brasil em 2018*
462 (1%) Síria
409 (1%)

os
os
os

os
os

an
an
5- nos

an

an
Angola

an

9
9
Novas solicitações de reconhecimento

7
a

-5

60
-2
675 (1%)

-1
11
4

30
18
12
0-

>
da condição de refugiado ao Brasil
80 6

Bangladesh
57
08

6
.8

.0

947 (1%)
.3

Venezuela
33
2

1,01% 8,38% 6,45% 38,58% 41,99% 3,59%


10
28

61.681 (77%)
4.

70
85

China
31

.6
.3
.6

1.450 (2%)
28

28
17
38

Total 80.057 0,37% 4,79% 3,41% 27,99% 27,35% 1,84%


5
3.

Cuba Haiti
2.749 (3%) 7.030 (9%) 0,64% 3,59% 3,04% 10,59% 14,64% 1,75%
18
14

16
15
12

13

17
11
20

20
20
20

20

20
20

20

Solicitações de reconhecimento da condição de refugiado feitas no Brasil, por estado (2018) *Total de 1.086 pessoas (compreende novas solicitações e solicitações
de extensão da condição de refugiado deferidas)
Roraima......................................................50.770 (63%) Santa Catarina................................................1.894 (2%)
Amazonas..................................................10.500 (13%) Paraná..............................................................1.408 (2%)
São Paulo........................................................9.977 (12%) Rio Grande do Sul...........................................1.223 (2%)
Fonte: Conare/UNHCR – Global Trends:
Fonte: Polícia Federal Forced Displacement in 2018

60 61
ensaio

Adriana
Adriana Camargo Ibarra deixou a
Venezuela quando as coisas
começaram a apertar por lá.
Faltavam produtos, remédios, a
criminalidade a assustava. Passou
pela Colômbia e, por fim, veio ao
Brasil. Sem conseguir revalidar seu
diploma em Administração, por
aqui trabalhou como diarista,
cuidadora de crianças e, por fim,
em restaurantes. “Não sabia que
eu gostava tanto de cozinha,
embora as pessoas sempre
elogiassem a minha comida”, diz.
Em São Paulo, fez cursos e hoje
tem seu próprio estabelecimento,
um café, onde trabalha com a
mãe e vende seus bolos.

62 63
artigo
por Carolina Moulin

Políticas e estratégias
de recepção,
acolhimento e
integração de
imigrantes e refugiados

globais,
se traduzem no
cotidiano das cidades

movimentos implicasse ampliar sua vulnerabilidade mi-


gratória, particularmente de acesso e perma-

locais
nência no território. Em 2017, a Secretaria de
Educação do município passou a adotar a po-
lítica, e a polícia local de Toronto é hoje impe-
dida de perguntar a condição migratória a
vítimas e testemunhas de crimes ou violações
(embora sem obrigatoriedade de não reportar
às autoridades federais). A despeito das resis-
tências e dos problemas de implementação, o
DADT se converteu em uma pauta aglutina-

E
dora dos movimentos de defesa de migrantes
e refugiados, particularmente voltado para a
centralidade da cidade como espaço de con-
vivência, de acesso a direitos e de envolvimen-

desafios m 2004, o movimento em de-


to em dinâmicas de pertencimento social.

fesa de migrantes e refugiados Dois processos importantes parecem marcar


No One Is illegal (Nenhuma Pes- a questão da mobilidade de pessoas no plano
soa É Ilegal, em tradução livre), baseado na global hoje. A primeira diz respeito à crescen-
cidade de Toronto, Canadá, iniciou uma cam- te incapacidade de encaixe das múltiplas e
panha de ativismo em prol de uma política de heterogêneas trajetórias e projetos migratórios
don’t ask, don’t tell (DADT) (Não pergunte, não em categorias jurídicas estanques e pensadas
conte, em tradução livre). A ideia básica era do ponto de vista, majoritariamente, dos Es-
impedir agentes públicos, basicamente atre- tados nacionais. Quem é refugiado e quem é
lados aos serviços e garantias básicas ao cida- imigrante? Como diferenciar experiências que
dão (polícia, escolas, hospitais), de perguntar hoje são atravessadas concomitantemente por
sobre o status migratório dos indivíduos e de crises ambientais, pobreza, violência e expro-
reportar esse status às autoridades migratórias priação dos mais diversos matizes e origens?
do país. A medida era vista como necessária Em todo refugiado há algo de migrante e em
para garantir que qualquer pessoa pudesse todo migrante, algo de refugiado. Essa confu-
matricular seus filhos na escola, obter aten- são que marca a mobilidade como experiência
dimento médico, reportar um crime ou vio- cotidiana de luta tensiona de modo muito
lação às autoridades policiais, sem que isso veemente os arranjos institucionais e norma-

64 65
artigo

com novas regras sociais, do tornar o estranho no apoio a essas políticas, com resistência à alo-
Carolina familiar) de vidas possíveis. E o espaço do cação de recursos e pouco apoio da população e
Moulin cotidiano é o da vizinhança, do bairro, da co- de políticos locais. O Crai de Florianópolis, por
é professora adjunta sejadas. Talvez o mais substantivo efeito polí- munidade do entorno, cada vez mais urbana. exemplo, durou pouco mais de um ano, fechando
no Centro de tico dessa narrativa seja reduzir o espaço de Dados mostram que, por exemplo, mais da as portas por falta de suporte político e financei-
Desenvolvimento e debate sobre formas de integrar e acolher, e metade dos refugiados e solicitantes de refúgio ro. Entre avanços e retrocessos, vamos, enquan-
Planejamento Regional
da Universidade
sobre a necessidade de respostas humanas (não no mundo vivem em contextos urbanos. A to sociedade, paulatinamente compreendendo
Federal de Minas humanitárias) que ampliem o espaço de escu- imagem do campo, tão emblemática, precisa que somos nós também migrantes e refugiados
Gerais (Cedeplar/ ta a essas populações e abram caminho para o ser deslocada para uma reflexão cada vez mais (há mais brasileiros morando fora do país do que
UFMG) e professora reconhecimento da mobilidade como direito incisiva sobre como lidar com essa diversida- estrangeiros morando no Brasil hoje) e que é na
colaboradora no fundamental e condição inescapável de um de nas ruas e esquinas, na proximidade, e não troca e no envolvimento com a riqueza e o poten-
Instituto de Relações
Internacionais da
mundo globalizado e absolutamente interco- na distância espacialmente contida. cial que esses grupos trazem ao nosso cotidiano
Pontifícia Universidade nectado. Cria-se um caldo cultural e institu- que poderemos avançar e enfrentar os desafios
Católica do Rio de cional de hostilidade ao imigrante que legitima Voltamos a Toronto, cidade em que metade da que a nova ordem globalizada nos coloca. Dife-
Janeiro (PUC-Rio) políticas de expulsão, segregação e morte. população nasceu em outro país. Em bairros rentes, mas com alguma coisa em comum.
com forte presença de migrantes de origem
Tratativas e arranjos africana, escolas e professores vêm adaptando
tivos que atualmente temos para lidar com o A segunda questão evoca a tensão entre o local, o currículo para ensinar história, arte, música
fenômeno da circulação internacional de pes- o nacional e o global no campo da circulação dos países de origem dos seus alunos, num
soas e, por conseguinte, seus processos de de pessoas. As esferas federais costumam de- hibridismo que respeite e fortaleça a integra-
recepção, acolhida e integração. Derivam daí ter a autoridade sobre o tema migratório. No ção como movimento bidirecional – dos que
os esforços de reforma e ajuste da regulamen- Brasil, compete a órgãos do Executivo federal chegam e dos que aqui já estão. No Brasil, São
tação internacional, evidenciados na discussão regulamentar e implementar a política e as Paulo emergiu, na última década, como exem-
do Pacto Global das Migrações e de Refugiados normativas de refúgio e migração. Ao mesmo plo de política municipal mais inclusiva e aten-
no âmbito da ONU, aprovados em 2018, e os tempo, é notório que respostas adequadas aos ta à presença migrante com estabelecimento
embates políticos, em diversos rincões do desafios e potencialidades que a mobilidade do Centro de Referência e Atendimento para
mundo, sobre como responder aos chamados apresenta demandam cooperação regional e Imigrantes (Crai), com participação política
“fluxos mistos”. No Brasil, a Lei nº 13.445/2017 global, entre governos e atores não governa- local forte dos grupos auto-organizados de
responde, ainda que parcialmente, a essa de- mentais, obedecendo a uma série de tratativas refugiados e migrantes (há o Conselho Muni-
manda ao incorporar a imigração por razões e arranjos já consolidados desde meados do cipal de Migrantes, que funciona como órgão

É na cidade, no espaço
humanitárias, numa lógica que permitiu re- século 20 sobre o tema (por exemplo, a Con- consultivo da Secretaria de Direitos Humanos
gularizar contingentes de haitianos e vene- venção da ONU sobre Refugiados de 1951). e Cidadania) e de valorização do intercâmbio
zuelanos no país. Migrantes e refugiados têm de negociar
essas esferas ao atravessar fronteiras, buscar
cultural, com feiras artísticas e gastronômicas.
O município abraçou a questão, instituindo local, que se
Ao mesmo tempo, a proliferação de categorias
evidencia a emergência de uma nova chave de
documentos, solicitar permissões de viagem
e residência, entre tantos outros trâmites
normativa local (a Lei nº 16.478/2015), esti-
mulando a formação e sensibilização de ser- desenrolam suas
organização desse movimento, marcada ago-
ra pela ideia de legalidade e regularidade, ou
burocráticos que marcam seus ritos de passa-
gem e permanência. Mas é na cidade, no
vidores da rede municipal para o tema e crian-
do espaços públicos seguros para acolhida e vidas, que se
seja, interessam menos as causas do desloca-
mento e mais se podem os indivíduos ser re-
espaço local, que se desenrolam suas vidas, que
se negociam as demandas de inclusão, a bus-
atendimento de migrantes. Outras cidades,
como Rio de Janeiro, têm tentado avançar em
negociam as
gularizados no país de recepção. Eclodem
assim as narrativas sobre migrantes ilegais,
ca por direitos e pela oportunidade de refazer
vidas. É preciso que os filhos possam ir à es-
estratégias semelhantes. Há enormes desafios
demandas de inclusão,
indocumentados, irregulares, em frequente
processo de associação desses fluxos a questões
cola, que as doenças sejam tratadas, que a
música, a dança e a arte sejam mostradas e
a busca por direitos
de segurança nacional e internacional. Acopla- compartilhadas. Que as violências e crimes de e pela oportunidade
de refazer vidas
-se à ilegalidade a concepção de que migrantes que são vítimas sejam denunciados e investi-
e refugiados (nos seus atravessamentos com gados e suas vidas, protegidas. Nesse vai e vem
cortes de gênero, raça e origem nacional e do dia a dia é que se tecem os laços, se desatam
étnica) constituem pessoas perigosas e inde- os nós (do aprendizado da língua, do trânsito

66 67
ensaio

Euligio
Euligio Jonan Baez, de 33 anos, chegou com seus quatro filhos
ao abrigo de Pintolândia, em Boa Vista (RR), há cerca de um
ano. Na Venezuela, vivia na cidade de Tucupita, a mais de 700
km de distância da fronteira com o Brasil, em uma residência
cedida pelo governo à família indígena. Com a turbulência
vivida no seu país, as políticas que garantiam benefícios
(como bolsa alimentícia) a Euligio e sua família deixaram de
existir e ele, então, decidiu buscar refúgio em terras brasileiras.

68 69
artigo
por Vivianne Reis

amanhã
ainda não é

A violência, o caos
e o sofrimento
vividos pela criança
refugiada não só
estão dilacerando sua
O mundo está cada vez mais frá-
gil, os conflitos se espalham de
forma imprevisível e estão le-
vando milhões de pessoas ao
limite da sobrevivência. Vivemos tempos dramáticos
e perigosos, que exigem da comunidade internacio-
nal uma mobilização de forças para tratar a crise dos
refugiados em sua dimensão humana. Hoje, mais do
vida como moldando que nunca, trata-se de uma crise relacionada à in-
o nosso futuro fância. As crianças já representam mais da metade
da população mundial refugiada e, sem dúvida al-
guma, são as que pagam o preço mais alto.

70 71
artigo

Vivianne Reis
é fundadora da
IKMR (I Know My
Rights), organização A Europa tem testemunhado um número alar-
humanitária que se
dedica às crianças em
mante de menores desacompanhados que
situação de refúgio desaparecem logo após solicitar refúgio. Se-
gundo o Serviço Europeu de Polícia (Europol),
somente em 2016 pelo menos 10 mil crianças
refugiadas sumiram depois de chegar ao con-
tinente. Cerca de metade desapareceu na Ale-
manha, o mesmo número na Itália, e mil casos
foram registrados na Suécia. A Europol acre-
dita que muitas podem ter sido capturadas
pelo crime organizado, para exploração sexual, Números abaixo da realidade
tráfico de drogas, mendicância, trabalho es- Já no Brasil, não há registros consolidados de
cravo e outras atividades ilegais. Na maioria crianças que tenham cruzado as fronteiras
das ocorrências, não é possível obter informa- brasileiras desacompanhadas. Embora existam
ções sobre o seu paradeiro, mas supõe-se que casos atualmente no país, sobretudo no con-
uma parte esteja reunida com seus familiares texto dos venezuelanos que entram pela fron-
ou se mantém incomunicável por medo de teira norte, uma das dificuldades enfrentadas
deportação. Outro dado importante levantado pelos órgãos responsáveis é identificar e quan-
pela Missing Children Europe considera que tificar essas situações.
as condições desumanas de muitos albergues
Os impactos destrutivos das crises humanitá- na Itália e na Grécia, que se assemelham a A Agência da ONU para Refugiados estima que
rias atingem de forma devastadora as crianças centros de detenção, fazem com que elas saiam 483,2 mil crianças tenham cruzado as frontei-
em deslocamento. As ameaças e os perigos que sem deixar rastros. ras de 80 países nessas condições, no período
elas enfrentam diariamente nos caminhos de 2015-2018, e admite que esses números
envolvem atrocidades como sequestros, tráfico Foi a primeira vez que as autoridades europeias estão significativamente abaixo da realidade.
humano, escravidão sexual, recrutamento se manifestaram sobre o número de crianças
forçado, casamento precoce e trabalho infantil. refugiadas desaparecidas na União Europeia. Crianças em deslocamento forçado, mesmo
Quando capturadas em um sistema perverso No decorrer dos anos esse número caiu, mas quando acompanhadas, se transformam em

Crianças em
de exploração e extrema crueldade, são sub- a situação continua preocupante. No início de alvos e arriscam suas vidas em jornadas que
metidas a espancamentos, mutilações, tortu- 2019, houve 3,2 mil casos. podem ser tão fatais quanto permanecer em

deslocamento forçado ras, usadas como escudos humanos, moeda


de troca, para fabricar bombas, trabalhar em
seus próprios países. Acabar com a violação
de direitos humanos que afeta crianças em

se transformam campos minados e fazer ataques suicidas. tempos de catástrofe deve ser uma prioridade.
A busca por refúgio é um direito que precisa

em alvos. Acabar Os riscos são ainda maiores quando se trata de


crianças que estão desacompanhadas. A crian-
ser protegido com medidas que garantam a
segurança dessa população que já ultrapassa

com a violação de ça desacompanhada é aquela que foi separada


dos pais e de qualquer outro parente e ingres-
70 milhões de pessoas ao redor do mundo.
Este é um momento decisivo. Crises sem pre-
direitos humanos que sa em outro país sem a custódia de nenhum
responsável legal. Em qualquer contexto, ela
cedentes demandam respostas sem preceden-
tes também. Precisamos nos comprometer
as afeta em tempos de está entre as mais vulneráveis. Além de en-
frentarem os perigos nas travessias, meninos
como nações e como indivíduos em defesa da
dignidade humana. Uma civilização que não é
catástrofe deve ser e meninas nessas circunstâncias estão mais capaz de proteger as suas crianças já falhou.

uma prioridade
suscetíveis de sofrer exploração, violência e
abuso nos países de asilo.

72
ensaio

Kelvin
Kelvin Alvare veio da Venezuela com
sua mulher e sua filha pequena, Anny,
e passaram cerca de um ano acolhidos
no abrigo Rondon 3, em Boa Vista (RR).
Na nova cidade, ele queria trabalho,
juntar renda e se mudar para
alguma outra cidade Brasil adentro.
Na capital roraimense, no entanto, as
oportunidades estavam escassas. Kelvin
fez o que pôde. De bicicleta, circulou
por Boa Vista vendendo vassouras. Em
junho, conseguiu ajuda para comprar
uma passagem e ir morar com o irmão
em Porto Velho (RO), a quase 1,7 mil km
dali. Para Kelvin, é o começo da jornada
rumo a uma nova vida no Brasil.

74 75
crônica
por dione fonseca

amanheceu
em
São Paulo
M inas Gerais, Montes Claros. O ano era
1978, eu tinha 2 anos. Morava em uma
pequena casa com meu pai e minha mãe,
que estava grávida da minha irmã.

Um dia, parecido com os outros, ouviam-se gritos, móveis


jogados, copos quebrados. Meu pai estava bêbado. Eu chora-
O pai quase não conseguia caminhar. Ela se jogou
no chão e com toda a força do mundo segurou a
barra de sua calça. Nunca tínhamos escutado um
choro tão sofrido! A escola parou, todos silencia-
ram para tentar compreender aquele momento.

A menina se chama Lâmia, não queria ficar na-


servava curioso o espaço escolar. Hamzi veio da
Palestina com sua família.

Quando chegou à porta da sala, seus olhos en-


cheram-se de lágrimas, veio o choro e toda a
emoção que sentia naquele momento. Reconhe-
ceu a menina síria, que segurou sua mão e co-
va e, para me calar, pegou uma faca… Medo, pânico do que quele lugar, nunca tinha tido a experiência de ir chichou ao seu ouvido. Despediu-se do pai.
estava por vir, minha mãe conseguiu tirar a faca dele. Ela à escola. Tudo lhe era estranho, outro país, outro Poucos instantes depois, seu corpo demonstrava
estava no limite, apavorada! Mas tinha uma voz dentro dela idioma, outra cultura. Trazia em seu choro, além muito do que estava sentindo. Não conseguiu
que ecoava para todos os seus sentidos! E no meio da noite do medo do desconhecido, as marcas da guerra. chegar até o banheiro. Outro idioma. Outra cul-
resolveu fugir, enquanto meu pai dormia. Deixou tudo o que tura. Outro país.
tinha e conhecia: a casa, a cidade, a família, aquela história. O pai estava preocupado, e sentia-se inseguro
em deixar sua pequena conosco. A despedida foi Amanheceu na cidade de São Paulo, outra
Viemos para São Paulo, fugimos da violência doméstica. dolorosa naquele dia e em muitos outros. chegada, mais um menino. Lesli Pedro veio do
Cada dia Cidade grande, que, apesar de tantos desafios, nos acolheu. Haiti com sua família. Sua fisionomia era de me-
Amanheceu na cidade de São Paulo, passos do, não chorava, nada falava, nenhuma reação,
oferece um Resolvi compartilhar um pouco da minha história com o ob- tímidos e olhar atento, mais uma criança chega- mas percebíamos o corpo todo contraído. Abra-
aprendizado jetivo de contar que milhares de pessoas ao redor do mundo va, era um menino. Ele veio acompanhado pela çava com tamanha força sua mãe. Ela, toda sor-
sofrem algum tipo de deslocamento forçado. Atualmente, família, vinda de Bangladesh. Parecia encantado, ridente, olhava para ele querendo passar
no convívio trabalho e convivo com crianças que também sofreram. observava atentamente todos os detalhes, ficou confiança. Era visível a preparação para aquele
com crianças admirado com o parque. Ele se chama Ridoy. A momento, o tinha vestido com calça e camisa
Amanheceu na cidade de São Paulo, mais um dia de trabalho despedida foi tranquila, mas, quando se deu brancas, seus sapatos brilhavam. Entrou na sala,
vindas de na Escola Municipal de Educação Infantil João Mendonça conta de que estava sozinho, com pessoas que manteve-se enrijecido por muito tempo, em
outros países, Falcão, no Brás, região central. Nenhum dia é comum. Com nunca tinha visto, começou a chorar, jogou as silêncio absoluto. Outro idioma. Outra cultura.
as crianças, cada amanhecer é sempre diferente. cadeiras, seus gritos repercutiram por todos os Outro país.
com outros cantos. Outro idioma. Outra cultura. Outro país.
idiomas e São sete da manhã, ouvimos um choro que ressoou por toda E os dias são assim na Emei João Mendonça Fal-
a escola. Avistamos uma menina de 4 ou 5 anos que se agar- Amanheceu na cidade de São Paulo, o dia cão. Recebemos crianças e famílias de diferentes
culturas rava ao seu pai, ele a trazia para o primeiro dia na escola. Eles estava lindo, quente, ideal para alguma vivência partes do mundo, muitas vivenciaram os horro-
diversas não eram brasileiros, haviam chegado da Síria. ao ar livre. De repente, outro menino chegava res de uma guerra, outras sentiram na pele a
para o primeiro dia na escola. Tinha 4 anos, ob- fome ou viram seu país destruído pelos desastres

76 77
crônica

toda reflexão acerca do tema fosse construída. Foi importante trazer


Dione Fonseca
é pedagoga na Emei
Discutimos a necessidade de respeitar o tempo
da criança para aquisição da segunda língua. E as famílias para
João Mendonça
Falcão, em São Paulo
buscaríamos formas de nos comunicar com ela.
dentro da escola.
grantes vindas principalmente da América
A música e a brincadeira foram fundamentais
nesse processo. De repente, as crianças canta- Sentiram-se
Latina e de alguns países da África. rolavam, sorriam e se divertiam na brincadeira.
valorizadas e foi
E assim nasceu nosso projeto A Música e o Brin-
car na Educação Infantil, duas linguagens que
As famílias trouxeram algumas inquietações re-
lacionadas ao idioma, porque as crianças estavam
riquíssima essa
dialogam facilmente com a infância. deixando de falar a sua língua materna em casa.
Surpreenderam-se positivamente quando orien-
aproximação. Foi
Durante a construção do projeto, percebemos tamos para que isso não acontecesse. Era impor- como trazer cada país
para perto de nós
que a música e a brincadeira favoreciam o aco- tantíssimo manter a cultura da família, e a língua
lhimento. E a escola foi descobrindo a sua função fazia parte disso.
social dentro da comunidade na qual está inse-
rida. As crianças em situação de refúgio e imi- Deparamo-nos com questões alimentares, crian-
grantes fazem parte da cultura intrínseca da ças que não comiam carne ou para as quais a
naturais. São muitas tragédias, e a busca pela nossa unidade. preparação de determinado alimento era vista Também incentivávamos as crianças a nos ensi-
sobrevivência é o maior desafio. Lutar pela vida! como “pecado”. Nossas cozinheiras prontamen- nar palavras e frases nos idiomas diferentes do
Nossa proposta era acolher as crianças de uma te nos ajudaram a garantir que essas demandas nosso. Muitas vezes as soluções para uma bar-
Refleti muito sobre o que essas famílias passaram maneira mais humanizada, que fizesse sentido, fossem respeitadas. reira linguística ou cultural vinham delas.
e, ao mesmo tempo, como foram corajosas e que fosse um trabalho construído no coletivo.
resilientes. Mudar de país, que difícil travessia! Que, em toda trajetória do projeto, as crianças Estamos buscando formas de aprimorar o aten- Procuramos oferecer um espaço lúdico, intera-
tivessem a oportunidade de ampliar o repertório dimento na secretaria porque a burocracia é tivo, prazeroso, seguro, criativo, espontâneo e
São vários sentimentos que emergem aqui den- musical dos nossos cantos brasileiros e os cantos grande, mas a matrícula de forma alguma pode inclusivo, a fim de proporcionar um acolhimen-
tro, são muitas perguntas e dúvidas e a impor- do mundo, que tivessem contato com diferentes ser negada. to significativo e estabelecer vínculos saudáveis.
tante missão: o acolhimento dessas crianças e instrumentos musicais, que participassem da
suas famílias se torna fundamental. construção de objetos sonoros. Que a pesquisa Convidamos as famílias para contarem um pou- E tem sido muito bom observar nossa escola se
das brincadeiras fosse feita pelas crianças. co da sua história e da infância delas. Cada mãe mobilizando, buscando soluções no dia a dia.
De que maneira não excluí-las? Como respeitar ou pai que vinha, trazia uma música e uma brin- Todos os funcionários, professoras, a gestão, as
suas origens? Como inseri-las no ambiente es- Durante o processo de sensibilização sobre o cadeira de que gostava quando era criança e famílias participando do projeto.
colar? Como superar a barreira do idioma? Como refúgio e o fluxo migratório mundial, ficou claro compartilhava com a turma.
olhar para cada criança individualmente? que era fundamental valorizar e respeitar cada Sabemos que podemos afinar nossos olhares,
cultura. Que era importante conscientizar as Foi importante trazer as famílias para dentro da aprender cada dia mais sobre o tema refúgio. É
Nossa escola se reuniu para discutir essas questões, famílias migrantes dos direitos à educação e à escola. Sentiram-se valorizadas, reconhecidas, fundamental levar a discussão para as escolas e
principalmente porque é um direito da criança, saúde e que, no momento em que as crianças e foi riquíssima essa aproximação. Aprendemos toda a sociedade. Para que possamos encontrar
de todas elas, o acesso à educação. Estudamos o eram matriculadas, pertenciam à comunidade muito a cada visita. Era como trazer cada país bons caminhos para o acolhimento. Necessitamos
tema, as leis que garantem esses direitos. Conhe- escolar. Observamos a importância de dialogar para perto de nós. de políticas inclusivas para que o acesso aos ser-
cemos as famílias, nos aproximamos das dife- com as famílias brasileiras e sensibilizá-las para viços públicos seja realmente garantido!
rentes culturas. Tivemos de ampliar nossos também participarem de toda acolhida. E que Outro ponto interessante foi como as crianças
olhares, sensibilizar nossos pares, os funcionários entendiam os idiomas, achavam que quem não Lâmia, Ridoy, Hamzi, Lesli Pedro demonstram
da escola, as crianças brasileiras e suas famílias. falasse português falava inglês. Por meio do con- alegria! Posso afirmar que estão felizes! Apren-
tato com diferentes culturas, começaram a des- deram facilmente a nossa língua, gritam de ale-
E não foi fácil, porque, além das demandas que construir aquela ideia e se encantaram com a gria durante as brincadeiras, as risadas ecoam
toda escola pública tem, teríamos de repensar sonoridade de cada língua e muitas queriam pela escola. Correm, se divertem, cantam, apren-
nossa prática, garantir o atendimento das crian- aprender árabe, francês, espanhol, crioulo. dem e ensinam!
*Os nomes das crianças
neste texto são fictícios
ças em situação de refúgio e todas as outras imi-

78 79
ensaio

Humberto
Humberto Guevara é um artista plástico venezuelano que veio ao Brasil com
sua esposa, Cristina, e os filhos Adrián e Anaya, ambos albinos. “A Venezuela
tomou um rumo equivocado. Perdemos nossas propriedades e pertences.
Minha família quase morreu de fome. Durante muito dias comíamos só manga,
no café da manhã, no almoço e no jantar”, lembra. No abrigo temporário
de Pacaraima (RR), na fronteira com o Brasil, Humberto chegou trazendo alguns
exemplos do seu talento debaixo do braço. Ele espera poder trabalhar com
artes plásticas no Brasil e, assim, voltar a sonhar em expor suas obras em um
lugar onde elas possam ser devidamente apreciadas.

80 81
artigo
por João Carlos Jarochinski Silva

tensões
trânsito
NO
A mobilidade humana é uma das características mais marcantes
da contemporaneidade, o avanço tecnológico permitiu que os
custos para circulação se tornassem mais acessíveis, assim como
a possibilidade de obtenção de informações sobre os mais variados destinos. Viajar,
conhecer outros lugares e até morar em outros países tornaram-se ações comuns
para uma boa parcela dos habitantes do planeta e para a quase totalidade dos países.
1. Todo refugiado é um migrante
internacional, o qual realiza o
movimento em função de um fundado
temor de perseguição devido a sua
raça, religião, nacionalidade,
associação a determinado grupo ou
opinião política. Há casos de
ampliação das hipóteses, como a
contemplada na lei brasileira, a qual
Entre os que circulam, estabeleceram-se categorizações sobre o tipo de movimen- traz a possibilidade de reconhecimento
tação que as pessoas realizam, as quais vão desde o turista, passando pelo chama- de refúgio em função de grave e
Falta de informação do migrante, que pode ser interno ou internacional, chegando ao refugiado.1 Cada generalizada violação de direitos
humanos. As pessoas refugiadas
uma dessas categorizações guarda uma forma na qual os destinos e as origens re-
e preconceito são lacionam-se com essas pessoas circulantes, existindo grupos que são valorizados
possuem proteção de diversos
documentos internacionais.
fatores que atrapalham e outros, rechaçados. Quando essas movimentações ocorrem entre diferentes paí-
ses, aumenta-se a complexidade, pois mais fatores interferem nessa circulação,
laços e trocas entre tais como passaportes, vistos, carteiras de vacinação, entre outros. Mesmo com 2. Há que se destacar que todo imigrante
quem está e quem chega essa maior complexidade, dados da Organização Mundial de Turismo (UNWTO) é um emigrante (aquele que deixa o seu
país), sendo tal distinção apenas para
demonstram que só em 2015 ocorreu quase 1,2 bilhão de chegadas de turistas in- fins de facilitação de compreensão da
ternacionais pelo mundo. categorização que os Estados fazem do
movimento desses migrantes
internacionais.
A circulação de turistas normalmente é celebrada pelas localidades que os recebem,
pois sua vinda é associada com a ideia de pessoas que possuem recursos para gas-
tar em suas viagens, gerando oportunidades e renda para os locais. Entretanto,
outras categorias de circulantes não são valorizadas como os turistas, como é o caso
dos migrantes internacionais. Nas mais diversas partes do mundo, há a ocorrência
de eventos que corroboram essa afirmação, pois os imigrantes,2 isto é, aqueles que
chegam a um país diferente daquele de que são naturais ou do qual possuem cida-
dania, são, muitas vezes, atingidos por manifestações de preconceito e de xenofo-
bia, as quais acontecem até para com os que se movem em função de serem vítimas
de perseguições injustas, como os refugiados.

82 83
artigo

João Carlos
Jarochinski Silva
é professor do curso de
Relações Internacionais e
do Programa de
Pós-Graduação em
Sociedade e Fronteiras da
a prática da solidariedade e das trocas culturais Caráter humanitário entrevistados acreditavam que a presença 3. Pacto Global para
que possibilitam novos conhecimentos até Dentre as ações estatais, destacam-se as diver- deles era muito mais efetiva do que a realida- Migração, Segura,
Universidade Federal de Ordenada e Regular, da
Roraima (UFRR) e pós- formas de compreender a realidade, além do sas medidas tomadas no sentido de conferir de, confusão essa que se repete em relação aos Organização das Nações
-doutorando na Unicamp desenvolvimento econômico propriamente dito. regularização documental aos imigrantes, a conceitos legais, como o comum equívoco Unidas (ONU).
criação de políticas específicas para essas pes- sobre o que é o refúgio e sobre quem é reco-
O Brasil também está inserido nessa dinâmica soas nos mais variados níveis federativos, a nhecido como refugiado, além da associação 4. A palavra “aporofobia”
das mobilidades humanas, com movimenta- aprovação da nova lei de migração e a criação da imigração com temas negativos, como é foi cunhada pela filósofa
espanhola Adela Cortina.
ções internas, assim como de pessoas oriundas de uma força-tarefa de caráter humanitário recorrente em outras partes do mundo. No Trata-se de um termo que,
de outros países e a saída de brasileiros por para a recepção dos migrantes da Venezuela. caso brasileiro, há um aspecto que merece ser emprestado do grego,
identifica um medo, uma
todo o globo. E, assim como vem ocorrendo São medidas que representam avanços, prin- destacado na construção de uma imagem ne- patologia social, que se
A argumentação contra a chegada dessas pes- nas mais diversas localidades, também tem cipalmente em relação à recepção desses mi- gativa sobre a imigração, que atinge, princi- manifesta por meio da
aversão aos que são
soas é pautada na defesa do emprego dos na- encontrado resistências aos que chegam. Nos grantes, além de significarem a concretização palmente, os imigrantes pobres no território percebidos como
cionais; na ameaça que esses indivíduos últimos anos, o tema da migração voltou a de compromissos internacionais e constitucio- nacional, pois se argumenta que esses indiví- diferentes, como os
representam em termos de segurança, a qual ganhar maior visibilidade no cotidiano dos nais. Porém, algumas dessas medidas criaram duos desejam estar no país para se aproveitar imigrantes, os praticantes
de outras religiões ou
chega ao ponto extremo de associar certos brasileiros, mesmo o número de imigrantes tensões entre grupos migrantes por serem es- e em nada contribuir, realçando a presença da pertencentes a outra
grupos com o terrorismo; no risco de que es- no Brasil sendo bem menor do que a média pecíficas para certas nacionalidades – embora aporofobia,4 com um forte viés de classe, em etnia (Cantini, 2018).
sas pessoas estejam trazendo doenças que mundial. O país possui, segundo as estimati- atentem a um contexto especial em que estão relação a esses indivíduos.
possam ser transmitidas aos habitantes de uma vas mais ousadas, aproximadamente 1% de inseridas. Isso porque, quando algum grupo
localidade; até na suposta proteção das iden- sua população formada por imigrantes, en- nacional é beneficiado com alguma política Atitudes assim criam um cenário em que, ape-
tidades características de determinado povo quanto 3,4% da população mundial é forma- pública, como ocorreu com haitianos e vene- sar da melhoria de algumas normas e práticas
ou nação. Esses argumentos, invariavelmente, da por imigrantes. Afora o fato de haver zuelanos, as demais comunidades migrantes, brasileiras, os imigrantes encontram dificul-
não possuem base científica e se pautam em muito mais brasileiros no exterior do que imi- além de parte da sociedade brasileira, acabam dade em sua integração, gerando um cenário
lógicas de preconceito, racismo e xenofobia, grantes no Brasil. se voltando contra essas medidas e contra seus de exclusão que faz com que muitos deles
que servem para justificar opções políticas e beneficiários, gerando reações de estranha- tornem-se reclusos, evitando contatos fora de
1.
estabelecer redutos em favor de certos ele- O fato de ocorrerem fluxos mais volumosos de mento e rivalidade entre pessoas que experi- sua comunidade migrante, já que estão inse-
mentos que conferem “segurança” às pessoas. certas nacionalidades para o território brasi- mentam realidades muito próximas. guros para se sentirem pertencentes ao local
Em um mundo em transformação constante, leiro foi o principal responsável por essa aten- onde vivem, tornando-se, assim, estranhos
a insegurança e a ansiedade das pessoas jus- ção ao tema, como a entrada de haitianos e Mesmo assim, há que se destacar o caráter em sua própria casa.
tificam a opção por manifestações que visem venezuelanos pelas fronteiras da região Norte positivo de muitas dessas ações, as quais foram
a preservar, ainda que sem uma análise por- em um número expressivo para a realidade influenciadas e continuam acompanhadas pela
menorizada da realidade, um estado de coisas local. Essa circulação de pessoas entrou no sociedade civil organizada com atuação na
que garanta as dinâmicas com as quais se se debate público e permitiu a concretização de temática. Entretanto, a recente saída do Brasil
habituou, repelindo o que se interpreta como uma série de ações, tais como a alteração de do Pacto da Migração da ONU3 pode significar Referências
diferente e capaz de alterar a realidade reinante. marcos reguladores das migrações, a criação o início de um retrocesso que pode fazer com
de ações governamentais referentes ao tema, que se perca a estrutura desenvolvida e não se L. Cantini, “O que é ‘aporofobia’? Uma reflexão
Tal conduta impede o estabelecimento de uma manifestações preciosas de solidariedade por obtenham os avanços que beneficiariam tan- útil e atual”. Revista IHU On-Line. 2018.
Disponível em: http://bit.ly/2YV31ZJ.
relação entre os que já se encontram em uma parte de setores populares, mas, também, even- to o país como os que nele se encontram, sejam
localidade com os que chegam, inviabilizando tos de caráter eminentemente xenofóbico, que nacionais ou imigrantes.
a concretização dos potenciais ganhos oferta- muitas vezes aconteceram, por mais contra- Ipsos. “Perigos da percepção”. 2018.
dos por esses movimentos, pois, conforme ditório que pareça, em localidades em que os A sociedade brasileira também deve estar mais Disponível em: http://bit.ly/2Ho58e3.
apontam os estudos, os fluxos migratórios migrantes, sejam eles nacionais ou internacio- bem informada sobre os fluxos migratórios e
possuem a capacidade de gerar, principalmen- nais, marcaram a trajetória e têm seus feitos a presença dos imigrantes no Brasil, pois, con- UNWTO. Tourism highlights. 2016.
te no destino, novas dinâmicas que vão desde valorizados na memória coletiva do lugar. forme pesquisa realizada pela Ipsos (2018), os Disponível em: http://bit.ly/308WLtV.

84 85
ensaio

Ottoniel
Ottoniel Ortiz é um jovem venezuelano que, após a morte da mãe em 2018
na Venezuela, veio para o Brasil com o pai, Olimpo. No abrigo temporário de
Pacaraima (RR), quando sente falta da mãe, o menino de expressão séria
costuma sentar em um canto do acampamento com vegetação, sozinho, para
pensar. Além disso, é um dedicado cantor do coral de refugiados do abrigo.

86 87
entrevista
com Duca Rachid e Thelma Guedes

lugar
no

outro do

Ao tratar de dramas reais na ficção,


Órfãos da Terra propõe reflexão sobre
a situação dos refugiados por PAULO JEBAILI

E mpatia e compaixão. Caminhos possíveis para


se colocar no lugar do outro. Foi a partir des-
sa premissa que as autoras Thelma Guedes e
Duca Rachid conduziram a trama de Órfãos da Terra, nove-
la das 18h da Globo. O enredo começou a ser construído
inspirado no tema dos refugiados, recorrente na mídia do
Thelma e Duca mencionam a parceria estabelecida com
a direção da novela e o suporte do departamento de
Responsabilidade Social da Globo. Citam a plataforma
Repercutindo histórias (REP) no lançamento da novela,
quando os refugiados Prudence, Maha, Kaysar, Whissam
e Popole e a fundadora da ONG I Know My Rights Vi-

fotos: Globo/ Paulo Belote


mundo todo, com reflexos no cotidiano de cidades brasileiras. vianne Reis contaram suas histórias. Esses depoimentos
podem ser vistos nos perfis da Globo nas redes sociais
Na conversa a seguir, ocorrida nos Estúdios Globo (RJ), as e em app.cadernosglobo.com.br
autoras contam as etapas de concepção da obra, as prepa-
rações da equipe de escritores e do elenco e os desdobra-
mentos da novela além do campo da ficção.

88 89
entrevista

Terra aborda uma tragédia da Como foi a preparação de vocês, que seus países de origem fiquem
nossa contemporaneidade. Essa autoras, e da equipe de escrito- pacificados para poderem voltar
atualidade também ajudou a res para encarar a empreitada? para casa. A história da chave, né?
aproximar a obra do público? D: Nós mergulhamos nesse uni-
D: Eu acho que sim. E a nossa vi- verso. Muitos filmes e documen- D: Que é real. Essa história de que
vência mesmo, de brasileiros, que tários, lemos muito a respeito, todo refugiado guarda a chave da
somos todos descendentes de imi- conversamos muito com as pes- sua casa. Mesmo sabendo que talvez
grantes também. Na verdade, esse soas. Isso foi muito importante. ela não exista mais, ele guarda a
é um novo tipo de migração, os re- Fomos até a Missão Paz. Antes chave, com a esperança de um dia

Globo/ Estevam Avellar


fugiados são os novos imigrantes. mesmo da novela, nós já colabo- voltar.
rávamos com o Instituto Adus,
fonte: Pesquisa Online PULSO sobre ÓRFÃOS DA TERRA

T: Achamos importante que as pes- trabalhávamos como conselheiras T: Que é o valor simbólico do que
soas percebessem que nós somos nessa ONG. E como é rico isso. sobrou da minha história. Porque
frutos disso, os nossos pais, os nos- Porque tem gente das mais diver- é muito duro você deixar a sua
Duca Rachid e Thelma Guedes sos avós vieram numa situação mui- sas nacionalidades e culturas. história pessoal e cultural. Claro

57%
são autoras da novela Órfãos da Terra to parecida. Porque, às vezes, há que essas pessoas, depois de esta-
uma rejeição pelo novo, pelo dife- T: E é até um pouco frustrante não belecidas, vão ter filhos e netos, e
rente e por aquele que “parece que podermos colocar na história todo possivelmente algumas vão até
mudaram a
O tema dos refugiados surge já sarem. Identificamos aí uma história, vem tomar o meu lugar”. É ver com esse universo. ficar – como nossos antepassados
visão que tinha
na concepção de Órfãos da Terra? um potencial de narrativa folheti- outros olhos. Essas pessoas vêm por- ficaram, e nós estamos aqui por
Thelma: Sim. O tema foi o que nos nesca. Foi a partir daí e com essa que necessitam, não estão tomando Como vocês perceberam a aco- isso –, mas falamos com algumas

92%
consideram
levou a escrever a novela.

Duca: E o fato de vermos várias


vivência de sentir próxima a presen-
ça dessas pessoas que nós achamos
essa história.
o lugar de ninguém. Ao contrário,
elas vêm numa contribuição, somos
frutos disso. Não teríamos a nossa
lhida que essas pessoas esta-
vam tendo aqui no Brasil?
T: Em termos de acolhimento da
que gostariam de voltar, porque é
uma ruptura muito grande. Nós ten-
tamos, dia a dia, alimentar essa per-
Entre os que assistem à novela

o tema pessoas de lugares diferentes – afri- culinária, a nossa arte, a nossa cul- sociedade, parece que quem tem cepção, colocando dentro da
extramamente canos, bolivianos, venezuelanos, T: Nós víamos aquelas imagens das tura, se não fossem esses imigrantes. dificuldade de entender, de rece- novela relatos reais. Recentemente,
relevante sírios –, de sentirmos a presença pessoas no mar ou daquelas traves- ber, parece falar mais alto e dá a convidamos um farmacêutico sírio
deles. Aquilo era um assunto, além sias por terra e começamos a ver os D: Até mesmo economicamente. impressão de que é mais gente. que conseguiu validar o diploma.
do total da amostra: 72%
de todo o noticiário, de todos os nossos personagens. De todos esses Eles são empreendedores, resilien- Quando a novela foi ao ar – e nós Como já houve congoleses falando,
filmes, de todos os documentários lugares, mas a Síria, sobretudo, era tes. Os árabes, os judeus, os japo- devemos muito à Globo por ter uma série de relatos reais. É impor-

76%
que vimos. Foi realmente o que nos uma sociedade organizada, como neses, a economia cresce com bancado esse projeto –, havia um tante dar voz às pessoas.
inspirou. nós aqui, com uma classe média, essas pessoas. Eles vêm, montam receio de como seria essa recepção.
vivendo. De repente, cai uma bom- negócios, contratam outras pessoas, E foi a melhor possível. Ouvimos No contato com essas pessoas,
passaram a se
T: Todos os dias nós víamos nos jor- ba na sua casa, na do vizinho, des- vêm somar, não tirar. Eles vêm relatos que nos alegraram muito, desde a preparação, que histó-
interessar mais
nais, nos emocionávamos, havia trói o bairro, a cidade. Essas pessoas somar à nossa cultura. de pessoas que tinham uma certa rias foram mais inspiradoras?
pelo assunto
uma comoção geral a respeito do são empurradas. Porque é fácil dizer resistência, uma certa dificuldade, D: A doutora Ayla [Zinou], síria. No
tema. Começamos a pesquisar sobre “eles não são refugiados porque que- T: Às vezes, pessoas superprepa- e começaram, pelo menos, a re- primeiro ano, ela aprendeu portu-

88%
se sensibilizaram
isso e a pensar em como abordar
esse tema dentro de uma novela. Era
um desafio. E vermos essas pessoas
rem”. Mas nós pensamos em mos-
trar como isso é possível de
acontecer. E fazer as pessoas se co-
radas aceitam trabalhar em coisas
que estão muito abaixo de sua ca-
pacidade. A gente coloca histórias,
fletir sobre essa questão de uma guês, prestou os exames e conseguiu
maneira diferente. Nós percebe- revalidar o diploma de médica. Ago-
mos que falta informação e, às ra ela trabalha em três hospitais pú-
com o tema de um outro ponto de vista, não só locarem naquele lugar. por exemplo, de um médico, o Fa- vezes, falta informação afetiva. É blicos na região de Campinas [SP].
do total da amostra: 78% como imagens de uma tragédia. ruq, que tenta validar o diploma uma informação emocional, não
O tema da migração já foi trata- dele, e tem toda uma trajetória di- aquela informação dos números, A propósito, como surgiu a ideia
D: Ou só como estatística, número. do na teledramaturgia em obras fícil, que é baseada em casos reais. estatística, mas perceber que essas de aproveitar o sírio Kaysar

41%
ampliaram o
A grande inspiração veio quando as-
sistimos a uma matéria sobre meni-
nas que viviam em campos de
como Os Imigrantes, Terra Nostra
e mesmo em Gabriela, em que os
protagonistas são uma retiran-
pessoas querem a mesma coisa Dadour, do BBB, à trama?
que nós: ter casa, comida, criar T: Eu não vi o Big Brother. Mas, no
seus filhos, ser felizes. Por elas, Twitter, as pessoas escreviam:
conhecimento refugiados e que eram compradas te e um imigrante. Mas eram elas estariam lá no lugar de onde “Põe o Kaysar na novela”. Ele tinha
sobre o tema por homens mais velhos para se ca- novelas de época. Órfãos da vieram. Muitas estão aguardando fãs nas redes sociais e soube usar

90 91
entrevista

fotos: Globo/ Paulo Belote

muito bem essa ferramenta. Aí dade. A gente deve à direção, que bancaram: “Vamos não termos ido mais fundo, porque
fomos ver quem era o Kaysar. Vi- teve essa sensibilidade, ao Gusta- falar também de uma tínhamos um pouco de receio,
mos vídeos dele no BBB, e era uma vo, ao André [Câmara, diretor ge- maneira forte com também, de como esse tema seria
figura. Ele tem carisma. Falamos ral] e a toda a equipe deles. Isso é esse público das seis”. recebido. Talvez se fôssemos es-
com o Gustavo [Fernández, dire- legal, porque é uma parceria. Tem esse encanto, crever hoje, sabendo que seria bem
tor artístico da novela]: “Vamos tem o casamento, recebido...
fazer um teste?”. Ele achou legal. D: Porque é quase como defender como se fosse a She-
Porque o Kaysar passou por uma uma causa. Você tem de abraçar essa razade, presa pelo D: Nós estamos ampliando tam-
história triste, e depois ele conse- causa de falar de refúgio. sultão, triste. Tem bém o sentido da palavra “refúgio”
guiu trazer a família para cá. Ele uma coisa fabular, na novela. Diante desse mundo de
está indo superbem. De que forma administraram o mas tem também a intolerância que estamos vivendo,
desafio de abordar um tema trajetória realista, a se você não se adequar a certos
D: O papel dele era pequeno e a duro em um horário tido como cena do barco. Uns padrões – se não é magro, se não
gente aumentou porque ele deu con- o mais leve da teledramaturgia? desafios eram incríveis. Conver- Além das situações de conflito, T: A gente tem a personagem da é consumidor, se não é heteronor-
ta, surpreendeu. Ele é um exemplo D: Sempre achamos que essa é uma sando, lá no comecinho, com os da travessia, a novela tem uma menina que veio com uma tutora, mativo –, é um refugiado dentro
de superação. história que renderia uma trama das diretores, falávamos daquela cena preocupação de abordar as- que depois desaparece, e ela che- de uma sociedade.
23 horas. Mas não teria esse tom. Foi do menininho morto na praia na pectos práticos do cotidiano ga ao Instituto Boas-Vindas. Ela
T: Foi bem legal ter dois atores refu- uma opção, porque ela tem um tom Turquia [Alan Kurdi, sírio, de 3 desses refugiados: Revalida tem um apadrinhamento afetivo T: Estamos inserindo a história de
giados [Kaysar e o congolês Blaise também de fábula de As mil e uma anos], que arrasou todo mundo. [exame de revalidação de di- de um casal e vai com o documen- uma nordestina que veio para cá
Musipere]. noites, essa coisa de sheik. Nós queríamos tanto falar daqui- ploma estrangeiro], papel do to à escola. A gente ouviu uma expulsa de sua terra pela fome. É
lo, mas como pôr nesse horário? Acnur, inserção no mercado de diretora de escola dizendo que um refúgio interno. Essa perso-
D: Quando têm uma oportunida- T: Quando apresentamos uma pro- Os diretores solucionaram de uma trabalho. acolhe muitas crianças refugiadas. nagem vem trazida por um casal
de, os refugiados fazem figuração. posta, [falaram]: “Vamos fazer às maneira maravilhosa. Na cena, tí- D: Tentamos de alguma forma Algumas escolas – por desconhe- que faz promessas e, no final, a
Foi importante para os atores essa seis?”. Ok, então, aí começou um nhamos colocado uma menina no abordar algumas dificuldades que cimento, não por maldade – não escraviza. São histórias reais, que
conexão com refugiados reais. desafio. Como tornar esse tema barco, mas não havia a boneca. O eles encontram. Mercado de traba- sabem que aquele documento seja também ouvimos. Aí ela fugiu, foi
tão duro, tão sofrido, em alguma barco vira e é a boneca que apa- lho, reconhecimento de documen- válido. Fizemos uma cena com ela para a rua, sem dinheiro, sem do-
T: Na cena em que o barco é ata- coisa palatável para esse horário, rece na mesma posição do meni- tos, porque muita gente não na escola, e o padre e o advogado cumento. É uma personagem que
cado, as pessoas começaram a re- em que a pessoa quer sonhar? E no. Remeteu a ele imediatamente. reconhece o protocolo de imigrante. do instituto foram lá: “Olha, esse está empregada numa casa, mas
zar de verdade e a chorar porque a direção nos ajudou muito, para Emocionante, choramos. Eram E é um documento válido, emiti- documento é real”. Então, nós ninguém sabe a história dela. Fo-
viveram aquilo. O diretor relatou que a novela também tivesse essa muitos desafios. Só mesmo con- do pela Polícia Federal. agregamos à trama esses temas, mos ampliando aos pouquinhos.
que aquilo emocionou todo mun- força. Quando vimos o primeiro tando com uma direção que tives- que, de fato, ocorrem. E digo mais:
do, os atores, então, ficou de ver- capítulo, falamos: “Será?”. E eles se essa sensibilidade criativa. às vezes até nos arrependemos de

92 93
entrevista

fotos: Globo/ Paulo Belote


tínhamos ouvido no vai. Você vai para onde te acolhe-
grupo de discussão, rem. É terrível. Você começa tudo
Em termos de preparação do dessa mulher que fa- de novo, em uma língua comple-
elenco, que ações foram feitas lou que via os africa- tamente diferente da sua.
com os atores para um enten- nos e achava tudo
dimento mais amplo da questão vagabundo e que hoje T: A nossa proposta, o nosso de-
dos refugiados, para uma apro- ela já olha com os ou- sejo, é que as pessoas pudessem
ximação com a cultura árabe? tros olhos. E aí a outra se sentir na pele desses refugiados.
T: Primeiro foram coisas básicas, que falou que no me- E aí vai para a novela, para o fo-
contato com a língua, houve um trô via as mulheres lhetim. Também é nosso objetivo
consultor – até para nós – sobre com aqueles véus e que as pessoas se divirtam, se en-
dança, culinária. Mas, a partir do T: Isso foi fundamental. Essa pre- D: Falamos de gordofobia. Não sei se é uma coincidência ou que achava que eram terroristas e tretenham. Mas por isso que a
workshop, eles começaram a ou- paração, esse mergulho anterior não. Tem dois momentos legais. que hoje, não mais. Só essas duas gente fala que é mais do que o fun-
vir relatos. Teve ator que foi à Mis- nas questões viscerais, essenciais, T: E de uma maneira não negativa. Quando fizemos um grupo de dis- pessoas já terem mudado seus pon- do da história, é a presença do
são Paz, do padre Paolo Parise, da novela. Foi muito importante, Ela não sofre mais por isso, já passou cussão, muitas das mulheres dis- tos de vista, para mim, já valeu a tema na premissa.
conviveu, dormiu lá. Até hoje vai. também, termos esse contato com por essa fase. Tem um ponto de vis- seram: “Poxa, a gente via aqueles pena. Em todas as nossas novelas,
a Responsabilidade Social da Glo- ta de mostrar que, quanto mais você refugiados, aquelas mulheres de a nossa premissa sempre foi em- D: E a ONU diz que há alguns mi-
D: Trabalhou como voluntário. bo. Por exemplo, no Repercutindo gostar de você, mais poderosa vai lenço no centro, aqueles africanos patia e compaixão. É se colocar tos sobre os refugiados, de que eles
Começou essa preparação com o histórias [REP], alguns atores fo- ser, menos problema isso vai ser. e tal, não entendia muito bem. no lugar do outro. Quando vemos são bandidos, de que vêm fugidos,
workshop, em que trouxemos o ram, nós conhecemos pessoas. São muitos temas de “refúgios”. Agora a gente está entendendo esses relatos, é missão cumprida. de que são gente despreparada. E
padre Paolo, o pessoal do Acnur melhor essas pessoas”. E ontem a Porque desejamos realmente que isso é tudo um mito. Estamos jus-
e os depoimentos de refugiados. D: A Vivianne Reis [fundadora da Além da questão do entreteni- minha tia me ligou e contou que as pessoas consigam ver de outra tamente querendo quebrar esses
Foi uma comoção muito forte. O organização humanitária IKMR], mento, que está no próprio cerne uma amiga dela, professora que maneira essa questão, no caso do mitos. E foi muito importante o
ator que fez o Faruq [Eduardo algumas entidades que não co- da novela, vocês, como autoras, acabou de se aposentar, por cau- refugiado, que consigam se colo- apoio do Acnur para esse projeto
Mossri] chegou a ter aulas de por- nhecíamos e alguns refugiados se sentiriam realizadas se Órfãos sa da novela teve a ideia de se ofe- car no lugar daquela pessoa. “E se nosso.
tuguês na Compassiva, ONG que com depoimentos que até incor- da Terra desse que tipo de con- recer como voluntária na Missão caísse uma bomba na minha casa?
cuida de revalidação de diploma. poramos à novela. tribuição à sociedade? Paz para dar aula de português E se eu perdesse meus avós, meus T: Até para o conhecimento maior
Ele foi ter aula de português como D: Se for pensar bem, desde que para refugiados. tios, meus pais, meus filhos?” dessa questão.
se fosse um refugiado sírio que T: Nós falamos de muitos temas Órfãos da Terra estreou, tem-se
estivesse ali participando do pro- pulsantes, a novela tem uma ati- ouvido falar muito menos em ca- T: Ela estava deprimida porque D: Tudo, né? Você perde memória,
cesso. Eles mergulharam mesmo vista feminista, gordinha e que sos de xenofobia. Pelo menos isso foram 40 anos trabalhando. Para perde fotos. Você sai com a roupa veja mais em
nesse universo. não está nem aí. tem saído muito menos na mídia. mim, esses depoimentos que já do corpo, sem escolher para onde app.cadernosglobo.com.br

94 95
ensaio

Kaysar
Kaysar Dadour nasceu em Alepo, na Síria.
Teve uma vida feliz até estourar a guerra civil
no país em 2011. Saiu em busca de refúgio
na Ucrânia. Certo dia, soube de um parente
que morava no Brasil. Decidiu vir, pediu refúgio
e obteve documentação. Viveu de bicos até ser
apresentado ao programa Big Brother Brasil.
Bastou a ele saber que o prêmio era de R$ 1,5
milhão e que a casa tinha comida e água.
Foi aceito, ganhou carros e ficou em segundo
lugar. “Não ganhei R$ 1,5 milhão, mas
consegui trazer a minha família, o meu maior
prêmio.” Kaysar conseguiu ainda um papel
na novela Órfãos da Terra. “Não é objetivo
do refugiado estragar o país dos outros,
mas encontrar paz, amor e felicidade”, diz.

96 97
crônica
por Eliane Caffé

ram aqui apenas na última década, vindas da


Síria, Haiti, Venezuela, Angola, República De-
mocrática do Congo e de tantos outros universos

outros
culturais, linguísticos, históricos e políticos. Ca-
da uma delas trazendo uma bagagem existencial

os
capaz de incendiar qualquer sala de estar prote-
gida, qualquer lugar de conforto presumido, qual-

nós “A
quer ilusão de autossegurança, tão logo nos
disponhamos a ouvi-las.

A sombra que esses relatos projetaram em nossas


vidas aparentemente normais levantou tamanha

de
vitória não será na geo- inquietação que, muitas vezes, via-me comple-

mesmos
grafia; será na história” – a tamente perdida no set de filmagem, em meio a
sentença atingiu-me di- reflexões que não faziam parte do enredo. Como,
reto no peito e me lançou em um silêncio fecun- por exemplo, entender que na maior parte do
do, visionário. Lembro da força desse momento, tempo estamos submergidos no mundo das coi-
mas já não saberia reconstituir os argumentos sas, no mundo das aparências, das relações in-
que levaram meu amigo, Isam Ahmad Issa, a terpessoais que imaginamos serem as únicas que
formular essa frase dentro da longa conversa que realmente importam para estarmos vivos. Quan-
nos entretinha havia horas, sobre a história da do tiramos o leite da geladeira ou o pão do forno,
Palestina e o genocídio de seu povo. Conheci nunca pensamos que se não fosse por aqueles
Isam na época das pesquisas para a realização do outros indivíduos – também de carne e osso – que
filme Era o Hotel Cambridge, no qual a questão ordenham a vaca, semeiam o trigo, carregaram
As tantas histórias trazidas pelos dos refugiados tornou-se um dos temas centrais as caçambas das transportadoras, dispõem o
da narrativa. Isam é um dos principais protago- leite e o pão nas prateleiras do supermercado;
amigos refugiados me ajudam nistas e, logo nos primeiros dias de ensaio, nos enfim, que sem eles também não sobrevivemos,
a iluminar e amplificar novas inundou com sua sabedoria conquistada em anos não podemos ingerir o leite da geladeira, manter
de provações, ao atravessar inúmeros desertos e o sangue circulando, oxigenando o cérebro e
leituras de um mundo global que, sobreviver a múltiplas guerras, sem, entretanto, fortalecendo os músculos. Do mesmo modo co-
a cada dia, figura mais ameaçador, jamais perder a esperança na humanidade e o mo quando estamos teclando o celular, e sem o
amor à poesia. Aliás, a vida e a poesia nele se qual já não conseguimos mais viver, também
sombrio e até sinistro misturam de tal modo que o fazem um dos ho- nunca pensamos (ou não nos deixam pensar?)
mens mais livres que já conheci. Foi ele também que na genética de cada componente digital ne-
quem nos ensinou que os palestinos não são, de cessário para o celular funcionar estão os “mine-
fato, refugiados na acepção em que as Nações rais de sangue” – a cassiterite e o coltan – que são
Unidas os definem. Eles não optaram por refu- extraídos pelas mãos de crianças e adultos escra-
giar-se ou migrar. Tampouco podem fazer valer vizados e torturados nas minas congolesas para
o direito assegurado pela ONU de retorno à pátria proverem o mercado negro das grandes corpo-
mãe, pois esta lhes foi arrancada sem que nem rações fabricantes de celulares. Os computa-
tivessem tido tempo de fechar a porta da casa. dores e celulares que usamos como próteses já
Como Isam, também conhecemos dentro das mataram e seguem matando milhares de con-
oficinas de dramaturgia que antecederam as goleses numa cifra maior do que de pessoas
filmagens outras pessoas brilhantes que aporta- que morreram na Segunda Guerra Mundial.

98 99
crônica

não suportaríamos o peso de nossos próprios sacrifica-se e ajuda a promover, sem sequer sus-
Eliane Caffé objetos cotidianos mais banais; não suportaría- peitar de que sua imensa dor é razão direta do
é cineasta, diretora mos saber o quão violenta tem sido nossa traje- modo de vida dos poucos milionários do mundo.
dos filmes Narradores tória até aqui e o quanto estamos misturados e
de Javé e Era o Hotel
participando ativamente das ações mais bárba- Doença social
Cambridge
ras que nossa ética pessoal condena com tamanho Existem hoje imensos bolsões de refugiados por- também os ricos, mais que todo mundo, se re-
fervor e convicção. Por isso, para sobrevivermos, que existem pouquíssimos, porém gigantes e cusam a ver o que eles mesmos provocam. Quem
também é preciso esquecer, livrar-nos do mal poderosos grupos financeiros que especulam não são, afinal, esses ultramultibilionários que estão
dos pensamentos nos encontros lúdicos, nos mais apenas com mercadorias, mas com algo- na gerência desse colapso global e não se atinam
passeios de compras pelos shoppings, nos feste- ritmos virtuais; números abstratos que colapsam que, se o mundo acabar para a maioria, eles tam-
jos, no cinema, na música e no alimento espiritual a economia e a biosfera global e nos empurram bém não sobreviverão um dia sequer? Quem irá
que a vida traz, sensorialmente, a cada dia que tão rápido para o abismo da autodestruição de trazer-lhes o leite? De onde vão retirar a água
Obviamente, tal informação não aparece em amanhece. E foi desse modo que, durante a rea- nossa espécie – arrastando conosco milhares de que a natureza deixar de produzir? Sob qual sol
nenhuma descrição dos produtos e, se hoje pos- lização do filme junto com os refugiados, os mo- outras formas de vida que povoam o planeta há irão suportar o calor de suas praias particulares?
so escrever sobre isso, foi graças aos amigos re- mentos lúdicos, as brincadeiras, o humor e as muitos anos. Às vezes creio que, até certo ponto,
fugiados congoleses que nos contaram durante piadas que compartilhamos com cada um deles a natureza do nosso próprio aparato psíquico nos Talvez por tudo isso e muito mais, na maioria das
os intervalos dos ensaios, entre um cigarro e trouxeram o melhor de nós e nos ajudaram a impede de dimensionar o grau real da gravidade vezes, as notícias sobre o destino trágico dos re-
outro, os fatos que os trouxeram até aqui. Hoje, “esquecermos” juntos, mesmo que por breves que todos – ricos e pobres – estamos prestes a fugiados nos chegam como algo que lamentamos
quando saio ao centro da cidade e me deparo com momentos. Foi assim, na criação coletiva, des- experimentar na própria carne. Mesmo os mais e com o qual nos deixamos ocupar-nos por um
tantos negros africanos tentando integrarem-se possuída da individualidade temporária, que conscientes, ilustrados e informados sobre a real tempo; para alguns, até como episódios de uma
a qualquer custo à nova vida que lhes foi impos- caminhamos unidos para o mesmo objetivo: situação que provoca tamanha doença social, série televisiva; como algo que distrai e faz co-
ta, sempre lembro do celular que carrego comi- fazer o filme acontecer, da melhor forma possí- tamanho aumento vertiginoso do fluxo de refu- mover. Quase nunca supomos que um dia sere-
go todo o tempo. E, no entanto, sigo comprando vel, apesar de todas as adversidades e diferenças giados pelo mundo inteiro, não conseguem de mos nós que poderemos estar nesse lugar do
e usando o celular, assim como os refugiados que nos separavam. A arte existe para que a rea- fato apreender o que está já anunciado pelos refúgio. Pois, entre a pele do refugiado e a nossa,
também compram e usam o celular para saber lidade não nos mate, já dizia Nietzsche; ou, ain- cientistas e prestes a vir – não daqui a 50 anos, existe um lapso de tempo histórico que imagi-
se seus parentes seguem vivos no Congo e para da, viver é perigoso, como dizia Guimarães Rosa. mas em pouco mais de uma década. Nada pare- namos não nos pertencer. A vida é deles. Não é
matar as saudades dos amigos que ficaram. Por ce nos tirar da mínima e finíssima bolha de con- o nosso caso. Até certo ponto, é isso mesmo. O
outro lado, também usamos os aplicativos do Hoje, alguns anos após o término do filme, as forto. Sabemos e sentimos o colapso que se outro sempre nos é intransponível. Mas até cer-
celular para organizar os inúmeros grupos de tantas histórias trazidas pelos amigos refugiados, aproxima, mas, ao mesmo tempo, não acredita- to ponto. A presença dos refugiados, de qualquer
resistência, inclusive dos que lutam contra a de inúmeras nacionalidades, com jeitos e costu- mos no que sabemos. Não queremos crer. O nacionalidade, pode nos revelar e nos ensinar
guerra no Congo. O celular nos permite também mes tão diferentes, não só persistem na memória corpo físico ainda acolhido e protegido no co- muito sobre nós mesmos – mas apenas para quem
ver o que a mídia oficial não quer que vejamos e, como vão fincando raízes mais profundas. São modismo diário dos nossos lares, em nossos quiser ou conseguir se dispor a ir, de fato, co-
ao mesmo tempo, nos cega quando os algoritmos esses relatos que me ajudam a iluminar e ampli- dilemas pessoais, na privacidade hackeada pelas nhecer, no corpo a corpo, no vínculo real com
nos manipulam na dis- ficar novas leituras de um mundo global que a teclas que digitamos, na sensação de que tudo essas pessoas, e não apenas pelos filtros da mídia.

A presença dos
puta dos mercados de cada dia, como nunca antes, se afigura mais segue bem pelas inúmeras vitrines e anúncios Se daí nascer uma verdadeira amizade, ou algo
consumo neoliberal ou, ameaçador, sombrio e até sinistro. O maior e impertinentes que não param de invadir nossas que nos aproxime dos afetos que são comuns a

refugiados, ainda pior, nos induzem


a eleger quem irá nos
talvez o mais fundamental potencial que esses
amigos de outros mundos me trouxeram foi po-
telas todos os minutos; enfim, todas as camadas
midiáticas que se interpõem entre nós e nós
todos, independentemente de lugar ou língua, aí
começaremos a entender, com a verdade tangí-

de qualquer governar contra nós


mesmos. Eis que a pre-
der perceber claramente a relação direta entre o
sofrimento humano e a privatização e exploração
mesmos, tudo isso parece fazer com que o nosso
corpo encapsulado se recuse a entender os sinais
vel que só o corpo físico traz, que, no mundo
de hoje, quando menos esperarmos, todos nós,

nacionalidade, sença dos refugiados nos


desnuda nossa grande
total do planeta levadas ao expoente máximo e
sem freio do neoliberalismo. Tanto sofrimento,
que nos chegam de todos os lados, nos avisando
que precisamos acordar e agir. No outro extremo
de repente, do dia para a noite, podemos estar
vulneráveis, queiramos ou não, a sermos obri-

pode nos revelar contradição; uma con-


tradição sistêmica que
tanta violência, tantas famílias destruídas apenas
para servir ao regozijo de uma parcela mínima
da polaridade social, no alto dos seus castelos
turbinados e com todos os recursos disponíveis,
gados a entrar na mais odiosa guerra, a ver, de
repente, tudo virar do avesso, a não nos reco-
e nos ensinar nos ultrapassa como in-
divíduos. Se fosse pos-
da pirâmide social, e pela qual a grande maioria nhecer mais, a ir aonde jamais sonhamos chegar
e a saber na própria carne até onde somos capa-
muito sobre sível estarmos todo o
tempo olhando o mun-
zes de ir para sobreviver. Suportar essa verdade
é o primeiro passo para começarmos a transfor-
nós mesmos do com lentes quânticas, mar essa realidade que nos é insuportável.

100 101
ensaio

Ruber
Ruber Maneiro é mecânico de carros e viveu com a esposa e quatro filhos no abrigo
Rondon 3 por cerca de nove meses. Da Venezuela trouxe uma Bíblia encapada.
Na parte da frente, seu nome e o de sua mulher, Yenny. Na de trás, a frase “Raquel está
nas mãos de Deus”. Ele explica que sua filha Raquel tem um tumor na coluna e está à
espera de uma cirurgia. “Quando estou triste, a Bíblia me conforta e me diz o que fazer.
Ela me trouxe ao Brasil, de carona em carona. E agora ela vai ajudar minha filha.”
Atualmente vive no Rio de Janeiro, onde arrumou emprego e uma casa para sua família.

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expedição

Abrigo Rondon 3,
com capacidade
para até mil

fronteira
pessoas, em Boa
Vista (RR)

Olhar na

a chegada
E m junho de 2019, a Agência da ONU para Refugiados
(Acnur) reportava 4 milhões de venezuelanos em
busca de refúgio, a maioria em países vizinhos como
o Brasil. Só o estado de Roraima registrou 50 mil dos
novos pedidos de reconhecimento por refugiados; 63% do total
recebido pelo país em 2018.
Durante três dias, a equipe conheceu os abrigos Rondon 1, 2
e 3, Pintolândia (de maioria indígena) e Tancredo Neves, todos
em Boa Vista e com capacidade para acolher de 300 a mil
pessoas cada um. O roteiro incluiu uma viagem até Pacaraima,
na fronteira com a Venezuela, a três horas de carro da capital,
onde operam o abrigo de passagem BV-8 e o Janokoida, des-
Nesses espaços, são oferecidas refeições diárias, servidas em
horários rigidamente estabelecidos. De lá, partem ônibus com
destino a diferentes cidades do país, como Manaus, São Pau-
lo e Rio de Janeiro. A ideia da chamada “interiorização” é
diminuir o impacto do contingente de pessoas no Norte do
país e permitir que refugiados e migrantes busquem oportu-
tinado a indígenas, em geral das etnias Eñepa e Warao. nidades de emprego e retomem suas vidas nesses novos locais.
de venezuelanos Naquele mês, a equipe de Responsabilidade Social da Globo em
que buscam refúgio parceria com o Acnur, visitou uma série de abrigos na região de Na fronteira, a estrutura tem como foco o atendimento Os jornalistas Ricardo Calil e Victor Sá (Conversa com Bial)
Boa Vista (RR) com produtores, jornalistas, fotógrafos e cinegra- emergencial: a rede de profissionais e o Exército brasileiro trazem relatos de refugiados e migrantes venezuelanos recém-
no brasil e o fistas dos programas Sem Fronteiras (GloboNews), Conversa com Bial recebem os venezuelanos, providenciam a documentação chegados ao Brasil; a produtora Joy Ernnany relata o cotidia-
acolhimento nos e Mais Você, e deste Caderno. O objetivo foi ver de perto o trâmite necessária e os encaminham para abrigos maiores, com no da (até então) pacata cidade de Pacaraima (RR); e o
da chegada, o caminho até o acolhimento e os primeiros passos na alojamentos preparados para receber quem chega sozinho, fotógrafo Felipe Fittipaldi compartilha os rostos e as histórias
abrigos de roraima retomada de vida pelos venezuelanos no território brasileiro. casais, crianças ou famílias inteiras. que viu e ouviu com sua câmera na fronteira do país.

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expedição

Histórias partidas
Venezuelanos chegam ao abrigo temporário de Pacaraima (RR) e podem, depois, seguir de ônibus para Boa Vista

Entre o que ficou para trás da fronteira e as Primeiro dia, manhã. que Hugo Chávez ainda está onde as pessoas podem desespero e insegurança, fomos
incertezas em relação ao futuro, jornalista Rodoviária de Boa Vista vivo, escondido e com o rosto pernoitar e deixar seus recebidos por sorrisos.
capta relatos de venezuelanos recém-chegados Demos uma volta para alterado por plásticas, em pertences, mas não há vagas Tivemos um anfitrião inusitado.
reconhecimento local. A ideia algum lugar da Argentina. Me para todos. Uma fila indicava Moisés Flores, de 10 anos, cujo
por Victor Sá, jornalista e pesquisador de conteúdo
do programa Conversa com Bial era conhecermos alguns pediu para anotar seu nome, um pronto atendimento sonho é ser repórter, assumiu a
pontos, uma prévia antes “para quando a verdade vier à emergencial, muitas mulheres tarefa de apresentar o local.
“O tempo aqui é outro”, disse Aline pelo telefone quando marcávamos de gravarmos. A chuva tona, você lembrar de quem te grávidas e com filhos buscavam Com um microfone de
o horário de nosso primeiro encontro. “Aqui, nós trabalhamos quase atrapalhou um pouco nossos contou primeiro”. Ao lado, dois algum medicamento. brinquedo e uma câmera de
sem parar. Estou há quatro meses, mas parecem anos. É tudo muito planos, mas pudemos conhecer rapazes riam discretamente. O Esse cartão de visitas papelão, recrutou seu amigo,
intenso. Mesmo. Vocês vão entender quando chegarem aqui.” Aline a rodoviária de Boa Vista. papel onde escrevi seu nome se impressionou. Muitas histórias Marco Herrera, para ser seu
Maccari é uma das mais de mil pessoas que trabalham na Operação Um senhor de cabelos brancos dissolveu com a água da chuva. tristes, a maioria envolvendo cinegrafista. Embarcamos na
Acolhida. Ela integra o time do Alto Comissariado das Nações Unidas chamou minha atenção pelo Nossa presença, quatro homens famílias separadas. Todos onda, e eles apresentaram seus
para os Refugiados. O Acnur, as Forças Armadas, a sociedade civil e contraste entre seu semblante vestindo capas de chuva falavam sobre os que tiveram locais favoritos: o parquinho do
o governo brasileiro são os responsáveis pela operação que recebe cansado e sua agilidade em coloridas, chamava atenção. de deixar para trás e sobre a lado de fora do alojamento, o
atualmente uma média de 550 venezuelanos por dia. A operação, cima de uma bicicleta. Ele Éramos abordados com insegurança em relação ao campo de vôlei e a tenda onde a
montada em 2018, é a maior do tipo já realizada em solo nacional. vendia “geladinhos” para as pedidos de esmola, mas a futuro. Apesar das incertezas, mãe de Marco, pedagoga, dá
crianças por R$ 1 e maços de maioria buscava informações, todos com quem conversei aula aos pequenos.
A ação conjunta entre a Globo e o Acnur viabilizou essa expedição cigarros para os adultos por pensando que éramos da foram unânimes: não Conhecemos também uma
para Boa Vista e Pacaraima (fronteira Brasil/Venezuela). Mais Você, R$ 10. Com a desculpa de puxar operação. O clima era de pretendiam voltar tão cedo. barbearia a céu aberto. Um
Sem Fronteiras (GloboNews) e Conversa com Bial foram os programas conversa, comprei um maço de desamparo. A rodoviária virou jovem cortava o cabelo de
convidados. Como cada atração tem a própria linha editorial e inte- uma marca que nunca tinha uma espécie de ponto de Primeiro dia, tarde. alguns senhores em uma
resses, nos dividimos. Aline foi a encarregada de nos receber. Nós, a visto antes. Ele contou que encontro para os recém- Abrigo Rondon 3 cadeira improvisada ao som de
“equipe do Bial”, tínhamos poucos dias e sabíamos que não seria pos- desde o primeiro dia em que -chegados. Muitos que não O caos da rodoviária deu lugar reggaeton. Uma senhora vendia
sível entender, em tão pouco tempo, toda a complexidade daquele chegou ao Brasil trabalha com conseguem uma vaga no abrigo a uma paisagem mais café por 50 centavos o copo. Em
fluxo migratório de proporções gigantescas. Mas poderíamos ouvir esse tipo de comércio. Muito acabam se instalando por ali organizada. As famílias já volta dela, pessoas
algumas histórias dos verdadeiros protagonistas daquela tragédia, as falante, pinta de bom vendedor. mesmo, na rua. Atrás da alojadas desfrutavam de conversavam, como se ali fosse
pessoas. Foi o que fizemos. Entre outras coisas, me jurou rodoviária existe um alojamento alguma rotina. No lugar de uma pracinha de interior.

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expedição

Abrigo de Pintolândia, em Boa Vista (RR), recebe exclusivamente indígenas

Nossa presença parecia bem- e camuflam a triste realidade. proximidade geográfica. Mas a 15 km de distância. Muitas Em um camarim improvisado, minha mãe. Tudo que estou
-vinda, exceto por um homem Percebi que, sempre que uma aqui no Brasil a resposta que vezes esse trajeto é feito a pé, Carlos se transforma em fazendo aqui é por ela.” O
que me chamou de canto: “O sensação de conforto surgia, eles encontram é muito mais sob sol forte e clima seco. “É Antonella. Outros rapazes, sonho de Carlos é trazer a filha,
que vocês esperam encontrar uma nova situação rompia estruturada”. comum chegarem com pés e inspirados por divas pop como “mas não agora, só quando
de diferente aqui? Somos aquela momentânea ilusão. Logo após a fronteira, o Posto joelhos machucados.” As Lady Gaga e Beyoncé, se conseguir me estabilizar
pessoas iguais a vocês. Vocês, Depois de guardar os de Recepção e Identificação vacinas exigidas pela legislação maquiam cuidadosamente. Uma minimamente para poder dar
jornalistas, pensam que vão equipamentos e me despedir, (PRI) e o Posto de Triagem brasileira também são dadas ali. atmosfera bem-humorada e de tudo o que ela merece.”
encontrar coisas exóticas, mas ouvi meu nome gritado. Marco, (PTRIG) são os responsáveis por certa expectativa. Ao som de Ainda revimos “Carlos
somos iguais a qualquer pessoa. o “cinegrafista”, veio correndo, iniciar o processo de retirada de Terceiro dia, alojamento Crazy in love, Antonella, com Antonella” em uma academia
Nosso país está passando por se atirou em meus braços e carteira de trabalho e CPF. Os Tancredo Neves, Boa Vista passos decididos, entra no de judô. Um amigo do Exército
um momento difícil. Apenas perguntou: “Você vai voltar documentos ficam prontos em, Irmã Clara Santos, missionária palco para uma plateia de cerca conseguiu o espaço para ele
isso”. Conversamos. A amanhã?”. no máximo, uma semana. da ONG Fraternidade, contou de 100 pessoas. Alguns números treinar de graça. Carlos
animosidade inicial logo deu Durante esse tempo, as pessoas sobre o abrigo Tancredo Neves: cômicos, outros mais dramáticos. atravessa a cidade, duas horas
lugar à vontade de ser Segundo dia, Pacaraima. esperam no BV-8, um “É destinado aos casais e Quase todas as canções caminhando, para seguir com
escutado. Contou que era Fronteira com a Venezuela alojamento similar aos abrigos homens sozinhos. Muitos dubladas são em inglês. os treinos. Foi a última pessoa
escritor e estava registrando os “Onde os primeiros passos de Boa Vista. homens deixaram suas famílias Novamente, quando o clima era que entrevistamos: “Não
últimos anos em um diário, que dessa dura e penosa jornada se Uma tenda enorme, com um ar na Venezuela e vieram na frente. divertido e leve, a realidade veio considero aqui um refúgio. Aqui
me mostrou, mas não quis iniciam. Onde o desespero e a condicionado congelante e ares Temos também pessoas da nos chamar. Depois do show, é uma escola. Me sinto mais
gravar entrevista. esperança se encontram.” Foi meio sci-fi, chama atenção. Lá, comunidade LGBT. Carlos, que integrava a seleção livre aqui no Brasil. Minha mãe
São mais de mil pessoas mais ou menos como Aline um pronto atendimento cuida Diferentemente dos demais venezuelana de judô, contou me ensinou que, mesmo que as
morando provisoriamente no definiu. Pacaraima, pequeno das emergências médicas. O abrigos, aqui não há crianças. que teve de abandonar a coisas estejam muito difíceis,
Rondon 3. Elas esperam a município no extremo norte do médico do Exército explicou que Por isso, pensei que seria um carreira para fugir da fome. Sua sempre temos que encarar com
oportunidade de serem país, é a porta de entrada para é normal as pessoas chegarem abrigo triste”. Essa impressão irmã foi obrigada a se prostituir positividade. É assim que sou. É
interiorizadas para alguma os venezuelanos. Aline explicou fracas e subnutridas. A travessia mudou no dia em que Carlos por comida, disse. Com lágrimas assim que Antonella é”. Quatro
cidade do país e, enfim, que “em tese, a fuga para a não costuma ser fácil. Santa Rodríguez e outros amigos nos olhos, falou sobre sua filha dias após nosso encontro, ele
recomeçarem suas vidas. Muitas Colômbia talvez fosse mais fácil, Helena, a cidade venezuelana pediram para realizar um “show de 1 ano. “A mãe dela morreu no foi interiorizado para Campina
crianças brincam por todo canto por causa do idioma e da mais próxima de Pacaraima, fica de calouros” no local. parto e hoje quem cuida é Grande, Paraíba.

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expedição

Ritos da passagem
Abrigo Rondon 3, o maior de Boa Vista (RR), tem estrutura para acolher famílias inteiras e por mais tempo que os demais

Dos 168 mil venezuelanos que vivem hoje fugiado regularizado e cerca de 99 Estimativas da Operação Acolhida ajuda, mas nós, venezuelanos, somos ja ser deslocada para outros estados
no Brasil, 60 mil estão em Roraima. mil aguardam revisão. indicam que dos 168 mil venezue- acostumados a comprar as coisas do país, há também quem não pos-
Pacaraima é a principal porta de entrada lanos que estão no Brasil, 60 mil com o nosso próprio dinheiro.” sa ficar muito longe da fronteira. É
A Operação Acolhida tem como ob- vivem em Roraima. Deles, 6,5 mil o caso de María Celeste Gutiérrez,
por Joy Ernanny, jornalista e produtora de documentários da
GloboNews jetivo ordenar a fronteira e abrigar estão em abrigos temporários man- Até o momento, 7 mil venezuela- de 34 anos, que se estabeleceu com
e interiorizar os venezuelanos que tidos pela Operação Acolhida. No nos já foram deslocados para ou- o marido e três filhos em Pacaraima
A pequena e pacata Pacaraima, cidade roraimense que faz fronteira com decidiram recomeçar a vida no Bra- entanto, 1,3 mil vivem em ocupa- tros estados brasileiros por meio em 2016, deixando sua mãe e uma
a Venezuela, nunca imaginou que um dia seria conhecida como um polo sil. É uma força-tarefa das agências ções irregulares e 1,5 mil se encon- do Programa de Interiorização, do avó doente na Venezuela. “A gente
de assistência humanitária. Mas esta virou a realidade da cidade que das Nações Unidas com as Forças tram em situação de rua. Em Boa governo federal. O objetivo é re- não compra só 1 quilo de arroz para
chegou a receber 1.180 venezuelanos em um só dia. De acordo com a ONU, Armadas e 11 ministérios. O custo Vista, onde há cerca de 32 mil ve- duzir o impacto da chegada de a nossa casa, compramos 2 – para
o agravamento da crise na Venezuela fez com que 4 milhões de pessoas para o Estado brasileiro é de cerca nezuelanos, é longa a fila de espe- refugiados e migrantes em Rorai- guardar um e enviar o outro para a
deixassem o país desde 2014. Hoje, em média, 500 pessoas cruzam dia- de R$ 263 milhões por ano. Por se ra para entrar nos 11 abrigos – que ma, identificando outros locais de Venezuela. Por mais dinheiro que a
riamente a nossa fronteira, e muitas querem fazer do Brasil o seu refúgio. tratar de uma missão humanitária, operam em sua capacidade máxima. acolhida no país. Há, ainda, uma gente mande, eles não têm o sufi-
nenhum dos 500 militares que in- base de dados que mapeia vagas ciente para as necessidades de lá”,
“Saí de Caracas para oferecer uma vida melhor para ela”, conta Karin tegram a operação trabalha armado. Felipe Mejías, de 43 anos, está no de trabalho e identifica perfis de explica ela, que trabalha como as-
Martínez, engenheira de sistemas de 39 anos, olhando para a sua filha. “No meu país não há pessoas uni- Brasil há quase um ano com sua refugiados adequados para elas. sistente do Centro Pastoral para
Como muitas famílias, elas pegaram um ônibus de Caracas até Puerto formizadas que tenham educação. esposa, filhos e neto aguardando a “Já fizemos 923 interiorizações por Migrantes de Pacaraima. Apesar de
Ordaz e, de lá, contrataram um motorista por cerca de US$ 200 – o Lá, eles nos insultam, nos tratam interiorização. Atualmente no abri- vagas de emprego e esses vene- já estar integrada à sociedade ro-
equivalente a 25 salários mínimos na Venezuela – para cruzar a frontei- mal”, declara Karin. go Rondon 2, em Boa Vista, ele es- zuelanos estão hoje trabalhando raimense, com amigos, emprego
ra. Depois de passar pelas bandeiras do Brasil e da Venezuela que sina- pera chegar até a capital do Paraná, bem e integrados com a socieda- estável e laços afetivos, María Ce-
lizam a fronteira entre os países, Karin avistou a sinalização da Operação Após passarem o dia inteiro regu- onde a família de sua irmã já se es- de brasileira”, explica o coronel leste sonha em voltar para casa.
Acolhida. Logo foi encaminhada com outros recém-chegados ao Posto larizando a entrada, Karin e sua tabeleceu. “Eu quis tirar a minha Alexandre Carvalhaes, responsá- “Mas, quando penso nos meus filhos,
de Recepção e Identificação. É lá que os venezuelanos recebem a permis- filha, exaustas, são levadas para família da Venezuela, e isso já con- vel pela Célula de Interiorização sei que aqui no Brasil eles terão opor-
são de entrada no país, são vacinados e tiram documentos brasileiros, um dos dois abrigos de Pacaraima, segui. Agora preciso continuar ba- da Operação Acolhida. tunidades, e na Venezuela não.”
como o CPF. É também onde eles dão entrada na solicitação de refúgio, onde aguardam a transferência para talhando. Quero ser caminhoneiro
O programa Sem Fronteiras sobre a expedição
que é analisada pelo Comitê Nacional para Refugiados (Conare), um pro- Boa Vista. “Muito obrigada, Brasil!”, e comprar uma casa no Brasil”, re- Enquanto a maioria dos venezue- foi exibido no dia 20 de junho de 2019. Veja mais
cesso demorado: hoje apenas 63 venezuelanos tiveram seu status de re- exclama a mãe, emocionada. vela ele. “Somos gratos por receber lanos que chegam a Roraima dese- em app.cadernosglobo.com.br.

110 111
expedição

Carrego comigo
Trazer a família é uma grande vitória para boa parte dos refugiados. Nesta página, os pertences de Laila, Dulce, Richard, Lérida e Diana

Refugiados venezuelanos revelam Dulce bombons e outros doces. Ela ao abrigo, Richard oferece utilitários. Lerida Pérez, que
quais são os objetos mais importantes Dulce González, costureira, tirou conta que é da segunda geração seus serviços aos vendia comida nas ruas, veio
que trouxeram para o Brasil. do próprio cabelo uma agulha de refugiados. Seu pai veio da refugiados. São cinco a seis protegida pelas pulseiras e
de crochê antiga, feita de um Palestina para a Venezuela, cabelos cortados por dia. colares da santería, religião de
por ricardo calil, jornalista, roteirista do Conversa com Bial
e codiretor do documentário Uma noite em 67 metal já oxidado, com cerca de fugido da guerra. Richard apareceu para origem africana como o nosso
duas décadas de uso. Em Diferentemente de Dulce, Laila conversar de muletas. Ele candomblé. Ela cita os santos
Quando uma pessoa chega à situação extrema de ser obrigada a deixar às seguida, retirou de um saco conseguiu começar a trabalhar perdeu a perna esquerda representados nos colares:
pressas o seu país e buscar refúgio em outro, carregando o mínimo possí- delicados sapatinhos infantis de no Brasil. Uma igreja cedeu a num acidente de carro, um Oxum, Iemanjá, Xangô,
vel de sua vida pregressa, quais pertences ela faz questão de levar consigo? crochê que ela fazia na cozinha, Laila faz lá seus doces e ano antes. Indagado como Obatalá, Oyá, Orula. “Eles me
Venezuela. Contou que os vende no abrigo. Também sua vida mudou de lá para protegeram na vinda ao Brasil.
Movida por essa inquietação, uma equipe do Conversa com Bial, da pretendia voltar a fazê-los para ganhou o primeiro lugar num cá, ele respondeu com Pedi para nunca dormir na rua.
Globo, abordou em junho passado dezenas de venezuelanos com mo- vender no Brasil, assim que concurso de empreendedores convicção: “O acidente não E encontrei abrigo desde o
radia provisória no abrigo Rondon 3, em Boa Vista, Roraima. conseguisse dinheiro para com sua receita especial de me afetou em nada. Levo a primeiro dia aqui. Agora vou
comprar as linhas e outros alfajores. “Meu sonho agora é minha vida igual. Sou um pedir para trazer meus filhos e
A princípio, os refugiados estranhavam a pergunta. A primeira respos- materiais. “Foi minha mãe quem ter uma loja de doces, trazer o guerreiro”. Questionado por meu marido, que ficaram na
ta de vários foi: “Meus filhos”. Parecia um ruído de comunicação, mas me ensinou a costurar. Usar essa resto da minha família e que não escolheu as Venezuela.”
logo ficou claro que trazê-los era uma vitória pessoal que precisava ser agulha é uma maneira de ter aprender português.” muletas como objeto mais
afirmada. Muitos refugiados tiveram de deixar os filhos com parentes na minha velha por perto e ajudar a importante, ele foi Diana
Venezuela, até juntar o dinheiro para bancar sua viagem ao Brasil. Outra criar minha filha e minhas netas.” Richard categórico novamente: “A O objeto mais singelo foi
resposta comum era: “Vim apenas com a roupa do corpo”. A ideia de O barbeiro Richard Jesús máquina de cabelo é tão trazido por Diana Estanga:
trazer qualquer coisa a mais soava como uma extravagância. Laila Rodríguez também já conseguiu importante quanto as um cachorro de pelúcia
Laila Carrillo, professora e ganhar algum dinheiro com seu muletas. Ela também me batizado de Fofo. “Foi minha
Aos poucos, porém, alguns começaram a revelar seus pertences de confeiteira, trouxe uma forma de objeto preferido: uma máquina ajuda a seguir adiante”. avó quem me deu. Não consigo
estimação – ponto de partida para que eles contassem suas histórias bolo de metal, dada por uma para aparar cabelos. Ele trouxe dormir se não for abraçada
pessoais. A maioria dos objetos lembrados misturava valor sentimen- amiga, “quase uma irmã”. também outros apetrechos da Lérida com ele. Talvez seja saudade
tal e utilidade econômica. Funcionavam, ao mesmo tempo, como uma Mostrou também uma batedeira profissão: tesoura, navalha, Nem todos os refugiados da minha infância”, diz a
maneira de recordar o passado e de ajudar no futuro. e formas variadas para fazer secador etc. Desde que chegou apareceram com objetos contadora de 18 anos.

112 113
ensaio

Prudence
Prudence Libonza deixou seu país, a República Democrática do Congo, sob guerra.
“As mulheres estão sendo usadas como armas de guerra. E as crianças,
que poderiam estar na escola, estão sendo usadas como trabalho escravo”,
ela diz. Assistindo a novelas brasileiras, aprendeu português e decidiu vir para
o Brasil. “Não foi fácil”, lembra. Na Cáritas, soube do projeto Empoderando
Refugiadas. “Antes, eu pensava que ser refugiada, ser estrangeira, fecharia
as portas. Eu comecei a ver que eu poderia ir atrás dos meus sonhos”, lembra.
Passou a trabalhar como modelo e a levar a “bandeira” da sua origem
com orgulho. “Por onde eu passo, falo: ‘Sou Prudence, África, refugiada,
mãe de cinco filhos’. Sorrio para as pessoas e digo: ‘Eu posso’.”

114 115
artigo

comple
por Paolo Parise

xidade
sua diversidade, todas têm em comum a busca
por um abrigo para recobrar as forças e reco-

inclus ão
meçar a vida em uma nova terra.

Ao chegar a um novo país, o migrante encon-


tra uma série de desafios: achar abrigo, con-
seguir trabalho, regularizar documentação,

da aprender um novo idioma, entender a cultura,


lidar com a saudade da vida que teve de deixar
para trás, cuidar dos traumas advindos da
saída forçada e da própria travessia. No caso do
Brasil, o desafio de maior urgência encarado
pelos migrantes assim que chegam é conseguir
vaga em uma casa de acolhida para, em segui-
da, buscar um lugar fixo para morar.

Essa realidade não é estática, mas evoluiu nos


últimos anos, principalmente a partir do flu-
xo haitiano que se intensificou em 2014 e, mais
recentemente, com a chegada mais maciça de
venezuelanos. A cidade de São Paulo, por exem-
plo, contava somente com a Casa do Migran-
Além das questões te, dos missionários scalabrinianos, e a Casa
das Mulheres, das irmãs palotinas. Quando as
de ordem prática, duas instituições estavam sem vagas, o poder
acolher imigrantes público encaminhava os migrantes para abri-
o fim de uma tarde como muitas gos destinados à população em situação de rua.
e refugiados requer outras. Toc toc, se escuta na por- Muitos problemas surgiam pelo fato de mi-
a compreensão de ta da Casa do Migrante. Ao abri- grantes e pessoas em situação de rua terem
-la, o agente educacional se depara com um características distintas. A necessidade de
que são indivíduos casal, duas crianças pequenas e algumas malas. abrigos específicos é exigida pelo perfil dessas
com históricos A mulher, com um papel amassado na mão, pessoas que falam idiomas variados, têm ou-
pergunta: “Es la Casa del Migrante?”. A respos- tras tradições culturais e religiosas, possuem
e necessidades diferentes ta é positiva. “En una iglesia del centro dieron traumas decorrentes da própria situação mi-
esta dirección diciendo que ustedes acogem refu- gratória, em especial no caso do refúgio. Com
giados. Nosotros somos de Cuba. No tenemos o crescimento do número de imigrantes hai-
donde dormir”. É uma cena que se repete cons- tianos e a cobrança pela sociedade civil, a
tantemente. Chegam aqui por indicação de prefeitura de São Paulo estabeleceu convênios
outras pessoas e por instituições parceiras ou com entidades da sociedade civil, disponibi-
até mesmo de forma espontânea. Ante toda a lizando 540 vagas para imigrantes e refugiados.

116 117
artigo

Paolo Parise
é padre e um
dos coordenadores
da Missão Paz,
instituição que acolhe
imigrantes e refugiados

Diante da crescente
de vários atores, seja da sociedade civil, seja
das instituições públicas, como também dos
próprios imigrantes e refugiados.
demanda de
Atenção específica
Mesmo entre os migrantes, distingue-se um abrigamento,
grupo específico que são os refugiados, ou se-
ja, pessoas que estão fora de seu país de origem, é necessário
A intensificação da imigração venezuelana no
devido à perseguição por questões de raça,
religião, nacionalidade, pertencimento a de- imobiliária, como também com as dificuldades
compreender a
estado de Roraima desafiou a realidade e a in-
fraestrutura local, especialmente Boa Vista e
terminado grupo social ou opinião política,
como também devido à grave e generalizada
para preencher exigências das imobiliárias
para firmar o contrato, como a necessidade de
acolhida como um
Pacaraima. Diante da situação, o governo fe-
deral criou o Comitê Federal de Assistência
violação de direitos humanos e conflitos arma-
dos. É uma situação ainda mais delicada, uma
fiador ou adiantamento de pagamentos. Outro
problema é o desconhecimento do Protocolo
processo, e não como
Emergencial e desenvolveu a Operação Aco-
lhida, com três áreas de atuação: fronteira,
vez que, em muitos casos, são pessoas que não
tiveram tempo de programar sua saída e, às
de Permanência Provisória, documento seme-
lhante a uma filipeta de papel, que muitos
um ato pontual
abrigamento e programa de interiorização. vezes, sequer podem escolher seu destino. São agentes públicos e privados pensam não ser
Dessa forma, os abrigos no estado de Roraima pessoas que encontram ainda mais dificuldades válido. A tudo isso acrescentam-se baixos
começaram a acolher um número crescente de na procura por um abrigo e necessitam de salários e a necessidade de enviar remessas
venezuelanos. E, apesar desse grande esforço, atenção específica, em uma ação de acolhida para as famílias no país de origem. Com isso,
milhares de pessoas continuam na rua. Outros multidisciplinar, na qual profissionais de di- os refugiados são forçados a morar em situações fico humano e de trabalho análogo ao escravo.
ainda participam de maneira voluntária do versas atuações trabalhem em sinergia. precárias, como ocupações ou pequenos quar- Essa complexidade no acolhimento de pessoas
1.
programa de interiorização e são transferidos tos lotados de pensões. Vale pontuar que, em- tão diversas requer uma estrutura de atuação
para cidades como Manaus, Brasília, Cuiabá, É chamado de primeira acolhida esse processo bora existam programas importantes de intersetorial e transversal que esteja articula-
São Paulo e Porto Alegre. Num segundo mo- que envolve a busca por um lugar onde morar, abrigamento, cursos de português e inserção da a outros projetos da sociedade civil e do
mento, o governo federal, em conjunto com se alimentar, lavar as roupas e se recompor, laboral, ainda faltam ações voltadas para a poder público.
agências da ONU e a Confederação Nacional para seguir a jornada. Também é essencial, desburocratização dos processos de moradia
dos Municípios, apresentou o programa Inte- nessa etapa, o oferecimento de aulas de língua para migrantes – essencial para a sua fixação Por fim, vale a pena observar que o “abrigo é
riorização + Humana, incluindo municípios portuguesa, atendimento médico, apoio psi- e integração em um novo país. abrigo”: um espaço coletivo compartilhado.
com população inferior a 300 mil habitantes. cológico e assistência documental. As pessoas acolhidas se adequam aos horários
Esses são alguns desafios que podemos men- e às regras da estrutura e não escolhem as
Diante da crescente demanda de abrigamento, Já a segunda etapa trata do momento de saída cionar de forma geral para a acolhida de mi- pessoas com quem moram na casa, o que cau-
em uma trajetória que envolve tanto o poder dos abrigos em busca de um lugar a ser aluga- grantes. Para observar a complexidade da sa certo estranhamento. Porém o desafio tam-
público quanto a sociedade civil, é necessário do, na qual os refugiados se deparam com o situação, é necessário lembrar que os migran- bém se volta para as instituições, que devem
compreender a acolhida como um processo, e alto preço do aluguel, fruto da especulação tes também são sujeitos individuais e únicos, tentar amenizar a situação, na medida do pos-
não como um ato pontual. A acolhida não se com diferentes históricos e necessidades. Os sível. Esse quadro provoca e convida a trans-
limita a dar um lugar para dormir, se alimen- grupos ainda mais vulneráveis que demandam formar esse obstáculo em oportunidade de
tar e ter aulas de português. A acolhida é um atenção especial são mães solo com crianças tecer relações interpessoais e interculturais
processo complexo que passa por várias etapas pequenas, pessoas acima de 60 anos, menores para o firmamento de bases para uma socie-
e que continua também na hora da saída das desacompanhados, mulheres vítimas de vio- dade mais aberta ao outro.
casas de acolhida. Conta com a participação lência sexual, pessoas LGBTI e vítimas de trá-

118 119
ensaio

Maha
Maha Mamo nasceu no Líbano, mas não
é libanesa. Isso porque o pai é sírio, mas
o casamento entre ele e a mãe de Maha não
é reconhecido por lá por ser interreligioso – ela
é muçulmana; ele, cristão. Assim, Maha também
não é síria. Durante 30 anos, Maha viveu como
apátrida, nome que se dá às pessoas que
não são reconhecidas como cidadão em lugar
algum. Sem documento ou nacionalidade,
ser aceita em uma escola ou conseguir trabalho
formal foi um desafio. Maha estudou, fez
faculdade e mestrado. Em 2014, foi recebida
no Brasil, onde ficou como refugiada e, depois,
pleiteou uma nacionalidade. Virou brasileira.
“Descobri que no mundo são 10 milhões
de pessoas apátridas. Falei: ‘Isso vai ser
a missão da minha vida’.”

120 121
artigo
por Paulo SÉrgio de Almeida e
João Marques da Fonseca

integração
trabalho
Sabemos que muitos refugiados regressarão
aos seus países de origem quando a situação
assim permitir, mas também que outros per-
manecerão nos países de acolhida. Uma das
soluções de longo prazo para os refugiados é
a integração local, sendo, até, uma oportuni-

pelo dade ao país de acolhida pelas diferentes for-


mas de agregar conhecimentos, experiências
profissionais e a determinação evidente de
quem busca uma chance de recomeçar as suas

O
vidas com dignidade, em face das crises hu-
manitárias.

O Brasil tem uma longa história de acolhimen-


to a populações com necessidade de proteção
internacional, sendo formado por pessoas que
Falta de informações deslocamento de pessoas vieram de todas as partes do mundo e aqui se
refugiadas é, hoje, uma estabeleceram e contribuíram para o desen-
e dificuldades em das principais pautas globais, incluindo a Amé- volvimento social, econômico e cultural do
revalidar diploma são rica Latina e o Brasil. país. Atualmente, entre solicitantes de refúgio
e refugiados já reconhecidos, são pouco mais
desafios dos refugiados Na América do Sul, presenciamos o maior des- de 200 mil pessoas, o que corresponde a me-
que buscam recomeçar locamento de pessoas da história da região, com nos de 0,1% da população brasileira. Entre os
o fluxo de mais de 4 milhões de venezuelanos, 11.231 refugiados já reconhecidos pelo Conare,
suas vidas com dignidade a maioria cruzando a fronteira para os países a maioria é proveniente da Síria, da República
vizinhos. O Brasil não é o país mais afetado pelo Democrática do Congo e da Colômbia.
deslocamento da população venezuelana, mas
tem recebido um número crescente de pedidos A legislação brasileira garante o acesso das
de refúgio, de pessoas em estado de vulnera- pessoas refugiadas ao mercado de trabalho.
bilidade e que requerem tratamentos específi- Tanto solicitantes de refúgio quanto refugiados
cos e acompanhamentos individuais por parte têm acesso à Carteira de Trabalho e Previdên-
do Acnur e de seus parceiros. cia Social e podem ser contratados sem quais-
quer restrições, como todo cidadão brasileiro.
Os solicitantes de refúgio têm o Protocolo de
Pedido de Refúgio, enquanto não lhes é emi-
tido o Documento Provisório da Carteira de
Registro Nacional Migratório (CRNM), que é o
equivalente à sua Cédula de Identidade no

122 123
artigo

Paulo Sérgio Reconhecimento de diplomas Embora a população


refugiada no Brasil
de Almeida Embora a população refugiada no Brasil tenha
é oficial de meios de um perfil qualificado, a sua inserção no mer-
vida do Acnur; fizeram o ensino superior – muitos concluíram
curso de pós-graduação. Além disso, após
cado de trabalho é insuficiente, com alta taxa
de desemprego. A falta de reconhecimento de tenha um perfil
João Marques
da Fonseca
alguns meses no Brasil, 92% dos entrevistados
adquiriram fluência na língua portuguesa. En-
seus diplomas e certificados profissionais con-
tribui para que a inserção ocorra abaixo de sua qualificado, a sua
é presidente da
EMDOC, consultoria
tretanto, apenas 14 refugiados conseguiram
revalidar seus diplomas (em todos os níveis de
qualificação e, em sua maioria, com baixos
salários. É grande a falta de conhecimento so-
inserção no mercado
de trabalho é
especializada em
mobilidade global ensino e em formações profissionais diversas) bre essa população e seu direito a trabalhar
no Brasil, contra 133 que não. Esse dado ajuda plenamente no Brasil, especialmente por par-
a explicar por que a inserção dessa população
no mercado de trabalho está abaixo de sua
te das empresas. Por isso, é fundamental o
engajamento do setor privado na inclusão de
insuficiente, com alta
qualificação profissional. Além disso, 79% dos
entrevistados têm renda inferior a R$ 3 mil.
pessoas refugiadas em seus processos de recru-
tamento para as vagas de trabalho em aberto.
taxa de desemprego
Brasil. Já os refugiados reconhecidos possuem
carteira do CRNM (que substituiu a cédula de A maior parte dos entrevistados está trabalhan- Uma das iniciativas que visam a apoiar em-
identidade do estrangeiro). Em ambos os casos, do (57%), entretanto 19% estão procurando por presas e refugiados nesse processo é o Progra-
não há impedimentos para o registro das con- trabalho, o que revela uma alta taxa de desem- ma de Apoio para a Recolocação dos Refugia-
tratações no e-Social e os refugiados podem prego. Por outro lado, 79% dos entrevistados dos (PARR). O PARR (refugiadosnobrasil.org)
ainda se estabelecer como microempreende- afirmam ter disposição para empreender, é o primeiro projeto criado no Brasil voltado
dores individuais (MEI). sendo que 22% já estão desenvolvendo ativi- para a inserção de pessoas em situação de re-
dades empresariais. fúgio no mercado de trabalho nacional. Em
Recentemente o Acnur realizou uma pesquisa, parceria com o Acnur, o programa foi ideali-
por meio de oito universidades brasileiras con- A falta de informação sobre essa população zado pela EMDOC, consultoria especializada
veniadas à cátedra Sérgio Vieira de Mello, para ainda é considerável, refletindo em precon- em serviços de mobilidade global, sendo um
identificar o perfil socioeconômico das pessoas ceito e xenofobia. Na pesquisa realizada, 41% projeto social criado e subsidiado inteiramen-
refugiadas no Brasil, com vistas a entender como admitiram ter sofrido algum tipo de discrimi- te por uma empresa privada.
vivem, levantando informações sobre suas ca- nação. Destes, 73% citaram o fato de ser es-
racterísticas demográficas, seu nível de inserção trangeiro como motivo de discriminação. Considerado um dos maiores bancos de dados Refugiados das mais diversas nacionalidades
social, acesso ao trabalho, renda familiar e suas de refugiados do Brasil, o PARR tem hoje mais já solicitaram o auxílio do programa. No pri-
potencialidades. Foram feitas cerca de 500 en- Por isso, o Acnur, em parceria com o Pacto de 2.700 currículos cadastrados. Ao longo de meiro semestre de 2019, os venezuelanos
trevistas, em 14 cidades brasileiras, de oito Global, lançou este ano uma plataforma digi- seus quase oito anos de existência, foram 1.223 lideraram a busca por oportunidades de traba-
estados. Os dados que emergem dessa pesqui- tal, objetivando divulgar empresas e organi- encaminhamentos para entrevistas, 298 con- lho, representando 53% dos 339 atendimentos
sa, que constituem o perfil socioeconômico dos zações com boas práticas de contratação ou tratações efetivas e 240 empresas parceiras realizados. Os venezuelanos correspondem a
refugiados no Brasil, apontam um enorme po- inserção da população refugiada no mercado cadastradas. 15% dos cadastrados, já sendo a terceira maior
tencial produtivo dessa população, mas também de trabalho, mostrando casos de sucesso que nacionalidade cadastrada.
mapeiam os desafios atuais. Ao final, indica um beneficiaram pessoas refugiadas, mas também
cenário em que o processo de inserção social e trouxeram ganhos para as empresas. Esses O PARR acumula uma série de casos de sucesso.
econômica no Brasil está em marcha, mas ain- casos podem ser vistos no site www.empre- Com refugiados inseridos no quadro de colabo-
da são necessários esforços do setor privado, sascomrefugiados.com.br, e novas parcerias radores de uma empresa, a diversidade cultural
das diferentes instâncias do governo, da aca- são muito bem-vindas. desse ambiente é expandida e o ganho empre-
demia e da sociedade civil organizada para sarial é exponencial. Além disso, abrir as portas
enfrentar os obstáculos presentes. para os refugiados constitui um excelente exem-
plo de responsabilidade social e representa uma
Evidencia-se que a população refugiada pos- efetiva relação de ganha-ganha entre as pessoas
sui nível escolar acima da média brasileira. refugiadas e o setor privado, sendo um exemplar
Aproximadamente 34,4% dos entrevistados caso de diferencial competitivo.

124 125
ensaio

Nathalie
Nathalie Kankolongo é uma congolesa de 39 anos, casada, mãe de dois filhos.
Na República Democrática do Congo, nasceu e viveu na capital Kinshasa, cursou
programação na Líbia até que, em 2013, a situação de trabalho ficou complicada
para o marido e a família decidiu migrar para o Brasil. Chegaram em 2013 na
capital paulista, enquanto Nathalie ainda carregava o filho Davi no ventre. Com
auxílio do Cáritas, Nathalie conseguiu documentação e atendimento médico. Davi
nasceu e cresceu saudável e hoje mora e estuda no Brás, em São Paulo. “Ele quer vir
sempre, tenho que convencê-lo de que tem dia que não tem aula”, diz a mãe.

126 127
serviço

Aquem recorrer
Acnur
Cáritas
Entidade da Igreja Católica
voltada para a proteção de
excluídos. Em São Paulo, a
instituição conta com o Centro
de Referência para Refugiados,
que oferece assistências
jurídica, social e psicológica
(caritassp.org.br/centro-de-
Missão Paz
Tradicional instituição
de acolhimento e apoio a
imigrantes na cidade de São
Paulo. Desde 1939, a entidade
ligada à Igreja Católica oferece
desde abrigo a apoio jurídico.
Instituto Adus
Fundado em 2010, o Instituto
de Reintegração do Refugiado
atua na cidade de São Paulo.
O Adus oferece aulas de
português, cursos de
qualificação profissional, apoio
Alto Comissariado das Nações referencia-para-refugiados). missaonspaz.org. psicológico, entre outras ações.
Unidas para os Refugiados. No Rio de Janeiro, há o Pares Os refugiados atuam também
Criado em 1950, após a (Programa de Atendimento Cátedra Sérgio em uma escola de idiomas
Segunda Guerra, o órgão a Refugiados e Solicitantes Vieira de Mello do Adus e em workshops de IMDH
da ONU ajuda a garantir de Refúgio). A Cáritas RJ atua (CSVM) gastronomia. adus.org.br. Fundado em 1999, o Instituto
os direitos de refugiados. em três frentes: acolhimento, Instituída em 2003, é uma Migrações e Direitos Humanos
(acnur.org). Informações proteção legal e integração parceria entre Acnur, Conare e PARR é vinculado à Congregação
básicas aos refugiados local (caritas-rj.org.br). centros universitários. Promove Criado em 2011, o Programa das Irmãs Scalabrinianas, em
Entidades podem ser acessadas Em Manaus, a Cáritas, além a formação acadêmica e a de Apoio à Recolocação de Brasília. Oferece atendimento
em help.unhcr.org/brazil. de apoiar a acolhida, capacitação sobre temas Refugiados tem foco na inserção jurídico e ações para integração
públicas e não atua em parceria com relacionados ao refúgio. Uma no mercado de trabalho. A social e laboral de migrantes,
governamentais Conare entidades para oferecer frente de atuação envolve entidade tem um banco de solicitantes de refúgio,
Comitê Nacional para cursos profissionalizantes facilitar o acesso ao ensino e a dados com os perfis pessoais, refugiados e apátridas.
oferecem Refugiados. Criado em 1997, é a refugiados. revalidação de diplomas. acadêmicos e profissionais de migrante.org.br.
diversos tipos um órgão colegiado vinculado arquidiocesedemanaus.org.br. acnur.org/portugues/catedra- refugiados e solicitantes de
de apoio a ao Ministério da Justiça. Entre sergio-vieira-de-mello. refúgio. refugiadosnobrasil.org. OKA
outras atribuições, decide sobre AVSI Brasil App do Instituto Igarapé com
migrantes e as solicitações de refúgio. As A ONG Associação de Carolina Bori Compassiva informações geolocalizadas
solicitações são feitas pelo link Voluntários para o Serviço O Ministério da Educação criou Instituição que atende também sobre serviços públicos que
refugiados sisconare.mj.gov.br. Internacional atua em Roraima em 2017 a plataforma Carolina mulheres e crianças em situação podem auxiliar migrantes.
em ações para acolher Bori, sistema informatizado de vulnerabilidade na cidade de O conteúdo é dividido por
Polícia Federal venezuelanos. Integra o projeto para os processos de São Paulo. Para os refugiados, temas como saúde, moradia,
Órgão do Ministério da Justiça Centro de Recepção e revalidação e reconhecimento há o programa LAR (Levando assistência social e contatos
e Segurança Pública que emite Assistência de Venezuelanos, de diplomas estrangeiros no Ajuda ao Refugiado), que emergenciais, entre outros.
a documentação necessária que faz parte da Operação Brasil. plataformacarolinabori. contempla assistência jurídica, A ferramenta funciona nos
para o refugiado permanecer Acolhida. Junto com o Acnur mec.gov.br. aulas de português, apoio na municípios do Rio de Janeiro (RJ)
no Brasil. pf.gov.br/servicos-pf/ e o Exército brasileiro, ajuda revalidação de diplomas e e Boa Vista (RR). Em breve
imigracao/refugio/refugio- na gestão dos abrigos para Revalida ajuda na inserção no mercado abrangerá São Paulo.
termo-solicitacao as pessoas do país vizinho. É o Exame Nacional de de trabalho. compassiva.org.br igarape.org.br/oka.
avsibrasil.org.br. Revalidação de Diplomas
Crai Médicos, do Ministério da IKMR Sesc
O Centro de Referência e SJMR Educação. Permite que médicos Sigla de I know my rights Além de proporcionar acesso
Atendimento para Imigrantes é O Serviço Jesuíta a Migrantes diplomados no exterior (Eu conheço meus direitos), gratuito ou com baixo custo
um órgão da prefeitura de São e Refugiados tem origem na (incluindo brasileiros) exerçam essa ONG brasileira cuida à cultura e ao lazer, o Serviço
Paulo. Oferece suporte jurídico, década de 1980. Atualmente, a atividade no Brasil. As provas especificamente de crianças Social do Comércio tem um
apoio psicológico e oficinas com o programa Acolhe Brasil são aplicadas pelo Instituto refugiadas. Criada em 2012, histórico de atividades de apoio
de qualificação profissional. (RR) empreende ações de apoio Nacional de Estudos e a entidade oferece suporte a refugiados, como oficinas
prefeitura.sp.gov.br/cidade/ à acolhida e à interiorização Pesquisas Educacionais Anísio para assegurar a proteção e aulas de português, além
secretarias/direitos_humanos/ de migrantes venezuelanos. Teixeira (Inep). revalida.inep. dos direitos desse público de até de debates frequentes sobre
migrantes/crai. sjmrbrasil.org. gov.br/revalida/inscricao 12 anos de idade. ikmr.org.br o tema. sescsp.org.br.

128 129
ensaio

Nidelvis
Nidelvis José Centeno é um jovem de
16 anos, indígena da etnia Warao, a
maioria oriundo da região nordeste
da Venezuela. É apaixonado pelo
futebol brasileiro e, pelo seu corte de
cabelo, já foi comparado pelos
amigos ao ídolo Neymar. Além da
língua warao, fala um pouco de
espanhol e, assim, se comunica com
quem passa pelo abrigo indígena
de Pintolândia, onde mora
com a família em uma tenda.

130 131
crônica
por Yousef Saif

diferenças
conexão
Yousef Saif
é músico, integrante
da Orquestra
Mundana Refugi

O primeiro show em que me apresentei aqui


foi com músicos africanos. Depois, toquei em
em bandas de música árabe. Até que, com dois
meses no Brasil, conheci Carlinhos Antunes,
no Sesc Consolação, que estava começando o
projeto da Orquestra Mundana Refugi.

Diante dos problemas, O convite veio por intermédio da minha ami-


ga Ouila – cantora síria que vem a ser irmã da
é preciso manter a minha amiga que me ajudou a vir para o Brasil.
tranquilidade, não no Eu já tinha tocado com ela, que me apresentou Existem problemas políticos no Brasil e mui-
ao Carlinhos. Ele me viu tocar e me chamou tas pessoas em dificuldades financeiras. É
sentido de se conformar, para integrar o projeto. preciso manter a tranquilidade, não no sen-
mas de lutar para melhorar. tido de se conformar, mas de lutar para me-
A orquestra reúne músicos de Cuba, Congo, lhorar. Essa é uma obrigação que temos como
Essa é uma obrigação que Palestina, Síria, Tunísia e Irã. Os músicos da seres humanos.
temos como seres humanos orquestra são profissionais extremamente com-
petentes e experientes. Nunca me imaginei Em relação à Palestina, existem várias diferen-
tocando ao lado deles, nem esse tipo de músi- ças culturais, que eu procuro compreender e
ca, o que para mim é uma experiência muito respeitar. Por ser estrangeiro, eu vivi alguns

N
Depois disso, decidi vir para o Brasil. Uma rica. É um repertório que exige muita precisão episódios de preconceito, mas não digo que
amiga sírio-palestina, que vive aqui desde 2015, na execução, muita atenção nos andamentos. sofri preconceito, porque preciso acreditar em
me ajudou. Decidi vir para trabalhar e continuar Os demais músicos me ajudaram muito nesse mim e me manter fortalecido. Eu sigo na luta.
meus estudos. Precisava ter o meu espaço. aspecto. E o Carlinhos Antunes é um cara mui-
to inteligente, uma pessoa muito importante Mas, de maneira geral, as pessoas aqui são
Nasci em Jeddah, na Arábia Sau- Cheguei em São Paulo em maio de 2017. Para para mim. Ele sabe conduzir essas várias ver- tranquilas e gentis. Encontrei muitas pessoas
dita, em 1994, período em que mim foi um choque, porque sempre vivi em tentes musicais e me colocou em um outro dispostas a ajudar e que me inspiram a ser mais
meu pai trabalhava lá. Aos 3 cidades pequenas e cheguei nessa imensidão, patamar como músico. calmo, porque sou palestino, sou acostumado
anos, minha família se mudou para a Palestina, com muitos prédios, várias culturas, diversas a lutar, a ter o sangue quente. Mesmo sendo
onde cresci. Tenho dupla nacionalidade: jorda- línguas, uau! A música e a arte têm esse poder de conectar uma cidade frenética, com aspectos compli-
niana e palestina. as pessoas. Cada pessoa tem uma mensagem cados, São Paulo ainda tem muitas pessoas
Vim com a intenção de viver como músico. para passar para as outras. E a arte é uma for- gentis. Por causa dos shows, tenho viajado
Estudei música na Jordânia por três anos, até Com menos de uma semana na cidade, assis- ma de expressar essas mensagens. Eu, como para outras cidades no Brasil, Ubatuba, Paraty,
que o curso foi interrompido na universidade. ti a um show e foi a primeira vez que tive um músico palestino, vindo de uma situação Curitiba, e encontrado pessoas muito amáveis.
Voltei para a Palestina e trabalhei em restauran- contato com o samba. Não conhecia a história, de guerra, busco passar a mensagem de que É uma energia boa.
tes por um ano e meio. Por causa dos conflitos o significado que tem. Procurei conhecer mais cada pessoa tem de lutar. Precisamos ser guer-
com Israel, existe um controle da mídia, das da música brasileira. reiros nesta vida. Quando não estou envolvido com música, tra-
artes e não havia espaço para o tipo de música balho como barman às sextas e sábados. Vim
que eu faço, que não é comercial. Toco buzuq, para cá para viver meu sonho, continuar meus
um instrumento cuja origem tem 3 mil anos. estudos na música. Também planejo ir para a
Espanha estudar flamenco, que é um tipo de
Vivi próximo a um campo de refugiados na Pa- música que eu amo. E, claro, um dia eu quero
lestina. Perdi vários amigos, outros foram presos. voltar à Palestina, porque lá é minha terra.

132 133
ensaio

Yousef
Sem espaço para desenvolver a sua arte na
Palestina, e com amigos sendo mortos ou
presos, o músico Yousef Saif decidiu vir para o
Brasil em 2017. Conhecia uma amiga síria-
-palestina que havia chegado dois anos antes.
Desembarcou com o objetivo de exercer sua
profissão e continuar estudando música. No
segundo mês na cidade de São Paulo, conheceu
Carlinhos Antunes, que estava montando o
projeto que deu origem à Orquestra Mundana
Refugi, com músicos vindos de locais de conflito
no mundo. Yousef, que toca buzuq, instrumento
milenar próximo ao alaúde, entrou em contato
com várias vertentes musicais. “A música e a arte
têm esse poder de conectar as pessoas”, diz.
Quando não está tocando, trabalha como
barman nos finais de semana.

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para saber mais

Na
prateleira

© globo/fábio rocha
Orquestra Mundana Refugi
no programa Conversa com Bial

cultura além das fronteiras A balada do


cálamo,
de Atiq Rahimi
Em meados da década de 1990, Em 2017, para comemorar 15 musical, mas pela causa e re- (franco-afegão)
o regente Carlinhos Antunes anos de atividade, agregou mú- gião que representam, em si- Estação Liberdade,
notou que havia músicos de sicos refugiados. Com a histo- tuações de conflito”, observa 2018, 200 p.
várias partes do mundo que riadora e assistente social CleoAntunes. “Todos aprenderam
viviam em São Paulo, mas não Miranda, idealizou o Refugi, a cantar em diversas línguas,
se reuniam para tocar. Decidiu com oficinas de música e dan- trazem proposições, estão
empreender o projeto São Pau- ça e debates. A Orquestra Mun- compondo para a orquestra. O
lo de Todos os Povos, que jun- dana passou de dez para 21 in- importante tem sido notar o
tou músicos estrangeiros e tegrantes, com músicos processo de troca de culturas
brasileiros para tocar por qua- refugiados, imigrantes e bra- e escolas musicais. Há discor-
tro dias. A partir desse encon- sileiros de várias regiões. dâncias, mas o que se percebe
tro, Antunes viu a possibilida- no dia a dia é que não se trata
de de formar um grupo. Em “Foi uma química tão boa que de uma questão de tolerância,
2002 estava formada a Orques- se constituiu a Orquestra Mun- mas de convivência e respeito, A memória do mar,
tra Mundana, com um núcleo dana Refugi. São músicos que de enxergar o outro como ele de Khaled Hosseini
fixo e músicos convidados. vieram não só pela expertise é”, afirma o regente. (afegão)
Globo Livros, 2018,
64 p.

Zaatari – Guia de cinema


Memórias do e migrações
labirinto transnacionais
Dir. Paschoal Samora Editora UFRR (2018. Org. Denise Cogo
(Brasil | Alemanha. 2018. 90 min.) e Rafael T. Teixeira, 292 p.)
O documentário foi rodado em um campo A obra traz uma seleção de filmes
de refugiados na fronteira da Síria com a sobre migrações contemporâneas
Jordânia. O assentamento brotou no deserto a partir de um recorte transnacional,
de Mafrak em 2012 e tornou-se, em quatro sobretudo nos anos 1990. A compilação
anos, a terceira cidade da Jordânia, com cerca reúne 42 filmes comentados por Estranhos à nossa
de 80 mil pessoas. Sem saber quando (e se) pesquisadores brasileiros e estrangeiros. porta, de
poderão voltar aos seus locais de origem, Ao final, há outras 29 obras citadas. Zygmunt Bauman
seus habitantes dão indícios de como superar O livro pode ser baixado gratuitamente (polonês)
traumas e reconstruir os laços de convívio. em http://ufrr.br/editora/index.php/ebook. Zahar, 2017, 120 p.

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