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" Jacinto do Prado Coelbo DIVERSIDADE E UNIDADE | FERNANDO | “‘PESSOA EDITORIAL VERRO, S.A.R.L. tua Carlos Testa, 1 POR! uispon ee 2OHCL Realzagio gr Empesa Logica do Sa 1987 Dep. Legal 17 08087 Editorial VERBO fe DO AUTOR 4 Poesia Ultra-Romantica (introd., seleccdo © notas), bon, 1948;"2 ed, sob 0 titulo Poetar'do Romantismo, Lisboa, Fialho de Almeida (ensaio © antologia), Lisboa, 1944, 4 Educazéo do Sentimento. Pottico, Coimbra,” 1944. A Poesia de Teixeira de Pascoaes (ensaio 'e antologia), Coimbra, 1945. ‘niroducio up Estudo da Novela Camiliana, Coimbra, 19 2.4 ed.,2 vols. Lisboa, 1982 € 1983, ‘A Margem dat eReflexdex> de Matias Aires (sep. de Bra- siliay, “Coimbra,” 1952. © Vocabulirio ¢ a Frase de Matias Aires (sep. do Boletim de Filologia), Lisboa, 1955. ‘Subsdios para o Estudo de Jobo Xavier de Matos (sep. da Miscelinea de ‘Estudos em Honra do Prof. Hernan’ Cidade), Lisboa, 1957. "A Musa Negra de Pina ¢ Melo ¢ as Origens do Pré-Ro- ‘mantiomo Portugués (sep. das Memérias da Academia das Cién- ias), Lisboa, 1959. ‘ Diciondrio das Literaturas Portuguesa, Galega ¢ Brasileira (cirecgao e colaboracio), Porto, 1960; 2.* ed. 2 vols, 1969 € 1971. ‘Obra Selecta de Camilo. Castelo Branco (eniaio, antologia © notas), 2 vols, Rio de Janeiro, 1960. Poetas Pré-Romanticos (preticio, selecgdo e notas), Coim- bra, 1961; 2+ ed,, 1970. Problemética da Histéria Literiria, Lisboa, 1961; 2. ed., 1972. ‘Camilo Castelo Brancos ¢ «Teixeira de Pascoaess, capitules, de Os Grandes Portugueses, ditecsio de Hernini Cidade, Lis: boa, 1963. Contos de Camilo Castelo Branco (pretic 129, Lisboa, 1963. © Rio de Teneiro na Literatura Portuguesa (ptel. € antolo- sia) Lisboa, “1965. selecgio © no- As Foltmicas de Camilo, in As Grandes Polémias Por tugueiay vl. Il, Lisboa, 1967. ‘rar Completes do Teta de Pascons (ntrodusées,org- rizagHo ¢-aparato cite), em publicagdo desde, 1963, trp Camo Cao Bane, nova em cin (i recgfo ¢ sigumas das. enots. preliminates), A Lea's o Lal halon Liston, 1963; 29 ed, Li boa, ior?" Francisco, Dias Gomes, Crltco Litervio (ep. da Misce linea ‘de Estos em Honra do Prof, Vtorino Memo), Lisboa, 195 (pub. em 1573 Ao Conirvio de Pentloge,enssion, Lisbon, 1976. Dicionti da ‘Lingua Portuguesa da" Academia. dss Cita cias de" Lisbon (ecco e eolaborapio) vol I, Lisbon; 1976, ‘A Onginaldade de. Literatura Portuguesa, col, ebiblotecs reves, do natu do. Calta, Portuguesa, Lisbon, 1977, Carlos Nejar, Pocta da Condisao Humana, ep. das Me- mévias da Academia das Ciencias, Lsbos. TTT. “Herealeno Pete ep as Merdras de Academia das Clncas, Listos, 158 “Camoes ¢ Pessoa Poets da Utopia, Lisbon, 1984 Em colaboragho som Georg Redol Lind Quadras 20 Govio Popular, de Fernando Pesoa (nod. © fixacag do texto, Lnbos, 1563. Paginas Intimas ¢ de Autonterpretato, de Fernando Pes soa Gnttod ftagio. ¢ orden. do texto), Lisboa, 1966. ‘Papinas_ de: Ertcticae”de Teoria’ e Chica. Lierrias, de Femands Pessoa nttod, fxagto ¢ onden. do texto), Lisbon, 196) Direegio {ecolaoracio) Sa revista Coldguo/Leras, do Fundasio Caloste Gulbenkian Gesde 1971). [Em colaboragio com Alvaro Salema: Antologia da Ficgdo Portuguesa Contemporines, Instituto de Cultura Portuguesa, Lisboa, 1979, Tradugio: Hisibria da Literatura Francesa, de Philippe van Tieghem, Lisboa, 1956 (com preficio © notas do tradutor) A MINHA MULHER PREFACIO DA SEGUNDA EDICAO Se a minha interpretagao da poesia de Fernando Pessoa € do problema dos heterénimos fosse hoje muito dife- rente do que era hd treze anos, ou ndo ia arrancar este ensaio ao esquecimento ou 0 mandava reimprimir sem the tocar, para tao-s6 facilitar 0 acesso a um documento de uma fase incipiente dos estudos pessoanos. Como, porém, no fundamental essa interpretacdo nao sofreu ‘mudanca, pude refundir aqui ou ali o texto, matizar ow recisar alguns juizos, esbocar novas aproximacées, adu- zir novos passos justificativos. Pelo menos para mim (oxalé que para outros também), 0 ensaio nao perdeu actualidade. Talvez porque o destinava a uma prova universitéria, concebi-o como tese. Admiti, por hipdtese, que a um escritor fosse possivel desdobrar-se em personalidades independentes, embora, no intimo, eu préprio ndo pusesse em divida 0 que Alvaro de Campos chamou . Assim, com a isengao de que fui ca- Paz, tentei surpreender a unidade essencial implicita na diversidade das obras orténimas e heterdnimas. Humi- nando os nexos que, na motivagio como’ no estilo, as entrelacam, procurei determinar em que consiste essa (rela- tiva) unidade, As obras heterdnimas e a Mensagem surgi- ram-me como respostas @ inquietagao metafisica de Pes- u 50a, ao modo angustiado como viveu 0 problema do conhecimento, logo os problemas da apreensao do eu ¢ da sinceridade profunda. Pareceu-me que, afinal, em todas as suas obras Pessoa nos deixou reiterados indicios de um drama que resulta da convergéncia no, mesmo homem de um irreprimivel, torturante anseio de absoluto e de um inexordvel cepticismo. A investigacdo percorreu vérios lancos. Fiz primeiro ‘a caracterizagao sumdria de Aiberto Caeiro, de Ricardo Reis, da lirica orténima, da Mensagem, de Alvaro de Campos ¢ de Bernardo Soares —colocando Pessoa ¢ os heterénimos no mesmo plano para um exame de estrita hermenéutica, exame que nao viciasse previamente os resultados. Em seguida, sempre com 0 mesmo respeito total pelos textos, estudei os grandes temas comuns, indi cando as linhas radiais do pensamento de Pessoa— um pensamento provocado e dinamizado pela experiéncia vital do congeminador. Depois, pedi a andlise dos estilos, para além dos tragos que os diferenciam, uma confirmagao da ‘identidade que descobrira nos temas— ou, se quiserem, motivos, na acepgdo em que Billeskov Jansen empregou @ palavra', E jé a diversidade de atitudes e tons, jé as reiteracdes teméticas— uns € outros elementos aqui de- vidamente conjugados— me permitiram nao s6 concluir pela existencia de uma personalidade tinica, verdadeira- ‘mente inconfundivel, mas ainda—o que ‘tem decerto maior importincia— patentear a riqueza humana e a genialidade estética dessa personalidade. Quer dizer: 0 que pode dar alguma valia ao presente ensaio ndo é tanto @ tese da unidade como o facto de 0 método utilizado para a averiguar ter obrigado a demandar o cerne da Poesia pessoana: as suas raizes humanas, a sua motiva- ‘so profunda, os seus nicleos de irradiacao. E foi a luz 1 «De par son origine du latin motivus ‘ce qui meut, ce qui ‘met en mouvement’, le terme de motif s'approprie excellemment designer ce qui deviendra & la fois le contenu de Tocuvre et 2 direction» (Ehétique de Paruvre dart litdralre, “Copenhags, 1948, p. 19). 2 da critica cimanentes assim conduzida que formulei uma hhipstese sobre a génese dos heterdnimos —hipétese que também nao constitul, a meu ver, o principal mérito do ensaio, dado o cardcter movedio' do tereno em que ela se situa, De qualquer modo, continuo a considerar os heter6- nimos ndo um aspecto secundério, que desvia a crftica do que realmente importa, mas, pelo contrério, um pro- blema central, de anélise imprescindivel para a com- preensio de Fernando Pessoa. * ‘Nao me faltou consciéncia dos limites da orientagao seguida. O caminho que preferi trilhar—o da critica simanente> — nao & decerto 0 tinico legltimo; outras orientagdes (a biogrética, a psicoldgica, a histbrico-cul- tural, a sociolégica) serdo igualmente defensdveis e escla- recedoras, completando-se mutuamente e vindo corro- borar, corrigir ou ampliar aquela. A vantagem da critica imanentes reside no permanente contacto com aquilo que nas obras literdrias & especifico da literatura: a expres- 80 verbal (onde «matérias ¢ sformas, «significado» ¢ significantes surgem indissoluvelmente ligadas) — mesmo quando o fim idtimo da pesquisa nao & a valoragao esté- tica mas a originalidade e complexidade de um pensa- ‘mento, 0 seu valor humano de'testemunho ou a psicologia da criagdo literdria no caso aliciante da heterontimia. Com efeito, mantendo-nos no plano da universalidade (relativa, ‘embora, como todas as coisas humanas) dos valores esté- tices, no nos deixando perder de vista 0 conceito de T. S. Eliot, em certo sentido perfeitamente exacto— «Poe- try is not @ turning loose of emotion, but an escape from ‘emotion; it is not the expression of personality, but an escape from personalitys'—, a critica cimanente>, ou, se preferirem, estilistica (isto &: dos motivos e das formas que a obra literdria encerra), livra-nos de uma entrega ‘tem reservas a pseudocabais. eexplicagBes» psicopdticas ou biogréficas ou socioldgicas, cientes como estamos de 1 TS. Eliot, Selected Prose, Penguin Books, 1953, p. 30. 13 WK que «0 melhor da histérias comeca precisamente com ‘essa_«fugas ao particular, essa transposi¢ao de que fala T. S. Eliot’. 0 desenvolvimento do presente ensaio implica ainda 4 tomada de posi¢ao perante dois problemas que convird enunciar aqui. O primeiro, o da concillagao entre criacdo pottica e inteligéncia filosdfica. A inteligéncia de Pessoa nao ird colidir com a genuinidade do poeta? A verdade & que tradicionalmente se reconhece que 0 poeta, 0 fildsofo €.0 homem religioso tém um ponto de partida comum: © sentimento do mistério do existir, 0 desejo de transpor 0 relative, de fender o tecido das aparéncias. Neste onto de partida se radicam as vivencias a que Pessoa deu expresso ritmada. Fruto, em larga medida, da reflexto (como a de Antero, cujo pensamento, alids, & mais arti- culado), a sua poesia, entendamo-nos, enquanto se revela cerebral nao nasce de uma fria inteligéncia discursiva, pois neste caso nem chegaria a ser poesia, mas sim de uma que Pessoa, segundo a carta ‘a Casais Monteiro, quis inventar para pregar uma partida a Sé-Cameiro). De pastor tem 0 deambulismo, o andar constantemente ¢ sem destino, absorvido pelo especticulo da inexaurivel variedade das coisas: «Minha alma € como um pastor, / Conhece 0 vento ¢ 0 sol / E anda pela mio das Estacdes / A seguir ea olhars (p. 19). Anda a seguir, passivamente, com 0 espirito concentrado numa actividade suprema: olhar. Os seus pensamentos ndo passam de sensacdes. Vive feliz como 03 rios ¢ as plantas, gostosamente integrado nas leis, do Universo. Nao havendo para ele passado nem futuro, compreende-se que duvide do proprio eu. O retrato de Campos, uma vez mais, coincide com este modelo: Caeiro limita-se a existir, tendo nos labios 0 sorriso «que se atribui em verso as coisas inanimadas belas, s6 porque nos agradam — flores, campos largos, 4guas com sol —, um sorriso de existir, e ndo de nos falars !. As vezes © seu misticismo naturalista leva-o a desejar dispersar-se, a desejar transformar-se num rebanho «Para andar espa- thado por toda a encosta / A ser muita coisa feliz a0 ‘mesmo tempo> (p. 20). Ou entdo deita-se na erva (consta da ebiografiax que vive no campo, com uma tia velha, numa aurea mediocritas horaciana), ¢ 0 seu corpo «per tence inteiramente ao exteriors, sente a frescura cheirosa da terra, s6 ouve ruidos indistintos, ficou-lhe apenas eum resto de vidar (p. 96). Caciro surge, pois, como lirico espontineo, instintivo, inculto (nfo foi além da instrugéo priméria, informa Campos), impessoal e forte como a voz da Terra, de ppojando as coisas de inteioridade, de significado, e subtraindo-as Stemporalidade, surgir como um precursor do olbar desprevenido tipico, do nouveau roman (cf. David Mourio-Ferreira, Motim Literério, Lisboa, 1962, p. 142). 1” Campos, , in Péginas de Doutrina Extética, p. 208. 25 candura, thaneza, placidez ideais. Tudo assume nele, diz ainda Campos, equalquer coisa de luminoso ¢ de alto, como o sol sobre a neve dos pincaros inatingiveis». Sol e neve, simbolos da pureza e da verdade. Lembra © Goethe de que nos fala Valéry: um homem que vivia pelos olhos, vivia de ver: «un mystique, mais un mysti- que d’espéce singuliére, entitrement vou & la contem- lation de Vextériorités . «Eu nem sequer sou poeta: vejo> (p. 82). © certo, porém, & que é autor de poemas; e comeca aqui o patadoxo da sua poesia. As palavras procura transmitir Caeiro a inocéncia, a nudez da sua visio. Dal, algumas vezes, a simplicidade quase infantil do estilo, as séries paraticticas, a familiaridade de algumas expres s6es, as imagens © comparagées comezinhas, realistas, caseiras ou de ar livre. Mas como podia Caciro ex mir linguisticamente a infinita diversidade, as incontiveis ‘metamorfoses do mundo? A linguagem situa-nos numa esfera de abstracgdes: dé-nos conceitos cémodos, insinua uma. visio esquemitica de acordo com os imperativos préticos da vida. «Les choses ont été classées en vue du parti que jen pourrai tirer. Et c'est cette classifica- tion que j'apersois, beaucoup plus que la couleur et la forme des choses» ?. J4 Proust notava que exprimir ver- balmente uma imagem no racionalizada do mundo € em- tesa impossivel. As vivéncias tipicas do poeta Caciro, que este assegura ter experimentado, estavam condena- das a nascer e morrer no siléncio, Até certo ponto, é verdade, o artista pode. «rendre ‘un sens nouveau aux mots de la tribus, restituir & lin- guagem a virgindade perdida. Mas o estilo de Caciro, pobre de vocabulério, predominantemente abstracto, incolor, discursivo, de modo algum se prestava & descri- ‘so pictorica impressionista fiel & individualidade das coisas. Em Caciro, 0 pensador, 0 staciocinadors, suplanta 1 Cf, Marcel Raymond, Valéry et la tentation de Fesprit, 1946, p. ‘110. en # “Bergson, Le Rire, 82.* ed, p. 116. 26 9 poeta; eis d que se induz do proprio estilo. Se aqui ou ali Caeiro se corrige, para adequar a linguagem realidade experimentada, € ainda a inteligéncia de ané- lise que intervém: Um renque de drvores Id longe, Id longe para a encosta. Mas o que é um renque de drvores? Hé érvores apenas. Renque ¢ 0 plural drvores nao sio coisas, sio nomes. (p. 65) Que o pensador Caciro adopte perante a linguagem uma posicéo nominalista, bem esté; coaduna-se com (9 objectivismo sensorial ‘do poeta. Caciro censura_ os homens por deturparem o real, pondo ¢letreiros com nomes nas dtvoress (p. 65), etiquetando, catalogando. Observe-se, porém, que ndo prevarica tanto pela inten- gao de se fazer compreender, como diz algures a justi- ficar-se (p. 54), como pelo facto de nao conseguir a pureza de visio’ que teoricamente apregoa. A concepcio simplificante do mundo inculcada pela linguagem & nele anterior ao esforgo de comunicagio. Reconhecendo-o, Caciro volta-se contra si préprio, como um asceta que bate 0 mea culpa por se ver ainda muito imperfeit ‘Nem sempre consigo sentir 0 que sei que devo sentir. (p. 66) Aqui esti: Pessoa, ao forjar Caciro, partiu de uma imagem mental, de uma atitude apenas vivida pela inte- ligéncia, que cilustrous dando voz a uma «perso- nagems’ tipica. Por isso, apesar de Caeiro, ao falar de si pr6prio, e Campos, ‘ao evocar 0 mestte, quererem convencer-nos de que 0 pensamento de Caeiro € 0 pen- samento ingénuo de um poeta, o fruto verde de uma experiéncia instintiva, a poesia deste nos deixa uma im- ressio totalmente contréria. Medularmente, Caeiro & um abstractor paradoxalmente inimigo de abstracgdes; daf a secura, a pobreza lexical do seu estilo. Em regra, ouvimo-lo argumentando, criticando, nao transmitindo 7 sensagSes mas discorrendo sobre sensagdes. Esti. entio no seu elemento. E sintomético da qualidade do seu espirito que 0 conteddo da sensagio Ihe seja indiferente, que sublinhe 0 acto de ver, nfo 0 objecto da visi (p. 96). Em Caeiro o pensador nao se limita a contradizer a imagem ideal do poeta, contradiz-se a si préprio. Pondo de lado essa imagem, aceitava-se que os seus. versos, erados sob o signo dialéctico, aquecidos pela intencio polemistica, alvejassem pelo combate directo ou pela ironia os homens que interpretam, esquadrinham, fazem ‘metafisica, esquecendo a superficie maravilhosa das coi 35, OU Seja, 0 que existe, para tentarem escrutar a essén- cia’ das coisas, quer dizer, 0 que no existe, porque a Natureza é s6 superficie. "A ligdo constante de Caciro esta: «O dinico sentido intimo das coisas / E elas nao terem sentido intimo nenhum> (p. 28). ‘Como se esgrimisse frente a frente com esses homens, Caciro pergunta e responde, sacudido: © que penso eu do mundo? Sei Id 0 que penso do mundo! (p. 26) 1 A castidade de Caciro patenteia-se ainda nos seus poemas de amor —um amor que the Touba quietide porque o slasta 28 | Metafisica? Que metafisica tém aquelas érvores? (p. 27) Aceitava-se ainda que Alberto Caviro increpasse os devaneadores, que atribuem alma as coisas, chamam freiras as estrelas, povoam a Natureza das criaturas da sua fantasia, refugiam-se no irreal, nas mentiras do sub- jectivo, como se o mundo objectivo nfo fosse melhor ue todos os imaginados. Para realcar 0 amor pelas coisas em si mesmas, vira do avesso o que seria a expresso de um sonhador, vineando enfaticamente, pelo ndo parecia do Gitimo verso, 0 erro dos que devaneiam: Ew no que estava_pensando Quando o amigo de gente falava E isso me comoveu até as lagrimas), Era em como 0 murmiirio longinquo dos chocalhos esse entardecer Nao parecia os sinas duma capela pequenina ... ©. 55) Mas nfo € jé incoerente ao declarar-se inimigo de todo o pensar sob 0 pretexto de que o pensamento é uma funcdo derivada, acrescentada, equivale a no com- preender (p. 22), mais ainda, «incomoda como andar & chuvas? (p. 20). Nao se contradiz ao defender que a sabedoria que dé a felicidade reside no simples vegetar, na «satide em existir das arvores e das plantass? (p. 25). Isto quando Caciro a cada instante pensa e analisa as sensag6es, 0 mundo que vé, as posigdes mentais dos metafisicos? Nao implica intervencio da inteligéncia a propria saboreada contemplacio das coisas como objectos originais, sempre diferentes? Caviro declara: «Com- teendi que as coisas € todas diferentes umas das outras; / Compreendi isto com os oles, nunca com © pensamento. / Compreender isto com o pensamento seri aché-las todas iguaise (p. 86). Mas este olhar nio é jé in- telectual, embora teoricamente liberto dos preconceitos comuns? A visdo elementar, isenta de reflexao, néo da do 29 mundo apenas uma representacio ca6tica, indistinta, cexética? De acordo neste ponto com 0 poeta Caciro,- 0 pen- sador Caciro afirma a precedéncia da existéncia_em Telago a0 pensamento, do corpo em relagio ao espirito: «Sim, antes de sermos interior somos exterior. / isso somos exterior essencialmentes (p. 93). A sua posigio teérica € um realismo ingénuo: .nio discriminando per- cepedo © objecto, atribui ao objecto as qualidades do contesido da percepcéo, como forma, cor, etc. AS coisas existem de facto como as. vemos; $6 nfo possuem as qualidades abstractas de que a nossa imaginacao as dota: do mundo , seu cavalo-de-batalha, no passe de uma pseudoverdade st pra-individual dependente do prisma de visio dos sujei tos: «Se o Mundo é um erro, & um erro de toda a gentes (p. 92). Mas se tudo no mundo disperso, como ensina Caciro —poderia objectar Pessoa, puro subjectivista—, orgue no supor que 0 modo de ver seja também di- verso em cada um de nés? Nao serd precisamente na Jinguagem corrente, que racionaliza e imagina, logo fal- seia, segundo Caciro, que assenta a pretensa verdade supra-individual? . Em suma: Caciro vacila, nfo tem aquela inteireza de vidente e apéstolo, porta-voz de uma doutrina de felicidade, que as «Notas» de Campos levam a crer. As contradicdes [outros exemplos: animiza os fenémenos naturais, rasgo da sua faceta impressionista (pp. 47, 67); alude, bafejado por um sopro de franciscanismo, & Terra “Mie, as irmas plantas (pp. 42-43); fantasia 0 que esté para além de uma janela, embora logo se empertigue & afirme nunca transpor a realidade imediata (p. 89); fala em Deus, em destino, em fatalidade sublime (p. 90), etc.] 30 | | } | | | | é certo qué tornam.mais humana ¢ dramética a sua poe- sia‘, Caeiro, longe de consubstanciar 0 paganismo, é um homem inseguro de si, em luta consigo mesmo. A sua lucidez (@ inexoravel lucidez de Fernando Pessoa) nao Ihe permite uma felicidade completa. Ora quer parecer que nao pensa (p. 48), ora se censura por querer perce- ber (p. 47). Mas no denunciam tais oscilacdes e incon- sequéncias que Fernando Pessoa, tendo visionado Caeiro como protétipo de uma doutrina sobre-humana, ficou, a0 realizar os seus poemas, aquém do ideal proposto, que transparece do que Caeiro diz de si proprio, e revelou a madre intelectual da gestacdo deste, a precedéncia efectiva da teoria em relacdo as vivéncias poéticas, s6 ‘mentalmente vividas (embora com entusiasmo, com’ pa- tético desejo de ser assim) € portanto abstractamente expressas? PO verdadeiro Caeiro define-se por intimas tenses, por uma ascese da ingenuidade como’ limite distante; € um civilizado que procura libertar-se da carga, tornada insu- portavel, dos produtos de uma razio milenéria; repre- senta-nos; tenta, como nés, fazer a lavagem ao cérebro tornada necesséria: «O essencial é saber ver, / Saber ver sem estar a pensar [...] Mas isso (tristes de nés que trazemos a alma vestidal) / sso exige um estudo pro- fundo, / Uma aprendizagem de desaprender ...> (p. 48). 1 Maria Luisa Guerra (Sobre 0 conceito de opacidade na poesia de Alberto Caeiro, sep. de Ocidente, vol. LXIM, Lisboa, 4962, p. 218) observa hesitagées e contradigées no dominio do amof, ‘Caciro ora considera ‘0 amor factor de cegueitas, ora 6 alia 'ecome,intramento de claticacdo do real Man 0 réprio «autor de Caciro (que, tendo-o ecriado», seria depois Obrigado a obedecer-hes) se deu conta de certa’ dissondncias. Em ‘apontamentos para’ uma introdugio ‘de Ricardo Reis a0 Poemas do Mestre, observase que Caeiro no rasgou inteira- mente a ‘snévor exisde, ado fol sempre o «poeta objectivos que Se propunha ser, e que, na fase final, devido a0 amor e & doenca (@ que o proprio Caciro, num poema, alude, antecipando-se a critica), eo. cérebro do poeta torna-te’ confuse, a. sua filosofia Se entaramelas (Paginas Intimas e de Auto-Interpretardo, Lisboa, 1966, pp. 353-368). 31 Pastor dos seus pensamentos (ow de sensagdes pensadas, inventadas), Caeiro chega a opor-se, nostilgico, a0 pas- tor de ovelhas reais: «Pastor do monte, tio longe de mim com as tuas ovelhas, / Que felicidade ¢ essa que Pareces ter—a tua ou a minha?> (p. 79). Glosando agui_o tema da felicidade em fungao do dilema_cons- ciéncia-inconsciéncia —tema partilhado pelos demais hheterénimos e Pessoa orténimo.—, Caciro desvenda-se ‘na raiz como personagem nascida’ para encarnar uma aspiragio, «como que 0 reverso ou o negative — diré Robert Bréchon—de uma consciéncia de si, de que tem a experiéncia auténticas ', 1 sPemando Pesos ot ses personage ‘Abril do 1568. Quanco 4 complexidads, is Tensoes de Casio to caricter artificial da. naturalidade. que proclama, c. Garlos Felipe Moist, in Humboldt n 17, ano 8 1968" pp. SO homem natural que le iz. ser €° apenas uma aspirag que ele se. permite supe in Critique m2 251, 32 RICARDO REIS A ressonfncia moral da poesia de Reis, «pagio por cardcter>, na definicZo de Campos, traduz-se num estilo deriso e ‘construido. Monérquico, educado num colégio de jesuitas, latinista e semi-helenista, amante do exacto rnas Odes que constr6i evidencia um espirito grave, me- dido, ansioso de perfeicio. Como Caeiro, seu mestre, aconselha a aceitar calmamente a ordem das coisas. Nao queiramos «mais vida / Que a das arvores verdes» (p. 52). Ambos elogiam a magna quies do viver campes- tte, indiferentes ao social, convencidos de que a sabe- doria esti em gozar a vida pensando o menos possivel. ‘Mas Caciro, pelo menos o Caeiro ideal, € o homem ingé- ‘uo, aberto, expansivo, contente por natureza; 0 prazer vem ao seu encontro, prazer de ver ¢ de sentit-se existir; deixa-se com alegria vogar no rio das coisas; 0 proprio, estilo dos seus versos, descritivo ou discursive, € quase rosa, caminha direito e desenvolto, sem custo, sem nada {que embarace a sua naturalidade. Reis nao: € um homem de 1 As citadas «Notass de Campos, a carta de Pessoa a Casais Monteiro, 4 (p. 141). Em teoria, Caciro € uma inteligéncia primitiva genial, bebe na fonte pura da sabedoria instintiva. Reis, um civilizado, «um agio da decadéncia>, posterior ao cristianismo. Austero € contido, com uma experiéncia de milénios atrés de si, cultiva a ‘elegincia de maneiras, a beleza do artificio, a arquitectura estrita da ode. 'Na poesia revela uma formagao literéria classica. O seu conceito da vida terrena e extraterrena aparenta-se, nas linhas gerais, com 0 homérico, Simplesmente, é um Pagio que duvida, ou ndo fosse discipulo de Caciro © condiscipulo de Pessoa... La em cima, no Olimpo, em banquetes ao som de mésica inefével, ‘divertem-se eternamente os deuses. Re- etem sempre os mesmos gestos, como o Sol percorre Sempre a mesma rota, como a «perene marés enche © esvazia incansavelmente. O ritmo do scu viver é «o ritmo das ninfas repetido, / Quando, sob 0 arvoredo, / Batem ‘© som da danca>. Interessam-se pelos homens? Ricardo Reis ora os descreve «cheios de eternidade e desprezo por nése (p. 20), favorecendo-nos, quando o fazem, s6 34 | | por qualquer “epropésito casuals, ora dé a entender que premeiam e castigam, condenando os cristios & «ftia expiagdo» (p. 71), garantindo 0 Averno, egrato abrigo da convivéncia> (p. 70), aos que se mantiveram figis a eexilada verdade> dos seus corpos. Em Reis a concepcao dos deuses é véria e incerta, Vive perto de nés, «tranguilos e imediatos>, nos rios, ‘nos campos, nos bosques? A sua presenca confundir-se-& com a presenca visivel das coisas, de acordo com a ligto de Caeiro: «a Natureza é s6 uma superficie»? (p. 164). Ou moram no indefinido, plasmados em «matéria lon ginqua e inactivas? Ou nao passam de realidades subjec~ tivas que nos obsidiam? (p. 17). Nao confiemos de mais: «nio sejamos / Inteiros numa {6 talvez sem causa» (p. 169). Os deuses no revelam a verdade, nem talvez eles préprios a conheram. Acima de 16s e dos deuses, Reis pressente uma forca maior, uma entidade implacavel a que todos obedecemos: 0 Fado (p. 41). Nem a evastidio va» do firmamento € livre: os proprios astros, como més passageiros, estio submetidos & lei comum. O Fado dita os passos da nossa breve carreira, ao fim da qual se encontra a Morte. Como os Gregos, Reis sofre profundamente com esta ideia. A cada passo lembra 0 (p. 92). O melhor é viver longe ‘do tumulto das cidades, onde «mdos alheiasy nos ‘oprimem (p. 45); mas até no retiro campestre, tio grato a Epicuro, cumpre fugit aos laos do amor demasiado intenso. A’ amante de Reis & apenas a companheira de Viagem, «pag triste e com flores no regacos; nfo se bbeijam nem sequer apertam as mios, para que, morrendo uum deles, a sua lembranga nao fira 0 coragdo do outro (p. 24). Assim a felicidade consiste em gozar a0 de leve os sinstantes voliveiss, buscando (p. 26), colhendo as flores para logo as largar das mos (p. 30), iludindo 0 curso dos dias com promessas (p. 79), vagamente distraidos, mas distraidos por célculo, por «malicias. Tudo o mais é indtil. eNao vale a pena / Fazer um gesto> (p. 14). Obedesamos, como as érvores, ao ritmo das estacdes: elgual é 0 fado, quer 0 procure- mos / Quer o esperemos> (p. 84). E claro que a licida abstingncia epicurista ndo permite alegria, produz, quando muito, um calmo contentamento; jé Séneca reparava no matiz’melancélico do pensamento de Epicuro. «Nao hé tristezas / Nem alegrias / Na nossa vida» (p. 13) —diz Ricardo Reis. Quando se coroa de rosas sabe que as rosas hgo-de murchar; quando bebe vinho, saboreando lenta- ‘mente 08 goles frescos, no esquece que tudo, a taca, a mo que a empunba, os labios, esta condenado a perecer: Com mao mortal elevo a mortal boca Em frdgil taca o passageiro vinho ... . 99) A poesia de Reis, como disse atras, acusa a influéncia imedlata de Horécio, © poeta que temperou com a ética est6ica a doutrina de Epicuro. Tao repetidamente, as vezes com pequenas variantes, glosa Reis certos temas horacianos, decalcando atitudes e processos de estilo, que as suas odes chegam a dar a impressdo de exerci 38 literdrios torhados possiveis por af mento ¢ gosto. Moralistas ambos, tanto Reis como Horacio fundam a sua filosofia pratica na reflexo sobre o fluir do tempo, a inanidade dos bens terrenos, os enganos da Fortuna € a morte: idades de tempera- Omnes eodem cogimur; omnium Versatur urna serius ocius Sors exitura et nos in eternum Exilium impositura cymbee' ‘Ambos descrevem em pequenos apontamentos 0 In- verno ¢ 0 regresso da Primavera, evocam o dancar caden- ciado das ninfas, lembram a brevidade da existéncia hu- mana (¢O beate Sesti, / Vite summa brevis spem nos vetat inchoare longam ...r, liv. 1, ode 1¥), aconselham a no querer desvendar futuro («Quid sit futurum cras, fuge quaerere ...», liv. I, ode 1), sentem acerbamente a fuga inelutavel das horas («Dum loquimur, fugerit vida / Aetas: carpe diem, quam minimum credula pos- teros, liv. T, ode x1). Ambos pregam a moderagio nos desejos © nos prazeres, as delicias do viver campestre, a vantagem em iludir Sofrimento com 0 vinho e 0 espec- taculo das flores. Sabem que no hé felicidade completa, que perante 0 infortinio devemos compor um sorriso tranquil e descuidado: «Nihil est ab omni / Parte bea- tum> (lv. 1, ode xv1). A imitagio parece em desacordo com o frouxo ero- tismo de Reis quando este dirige apelos a mulheres fict cias, cujos nomes foram colhides no proprio Hordcio (Lidia, Neera, Cloe ...), para corresponderem ao seu de- sejo amoroso, aquecidas pela ideia de que a juventude passa ¢ a morte ronda. Igualmente horaciana a concepgo da grandeza do poeta, inteiramente consagrado a obra. © Exegi monumentum... encontra uma réplica numa 1 Ode IK do livro Il, p. 62, de Horace — Euvres Comple- tes, ed. Garnier, 1944, 1." vol 39 ‘ode de Reis (p. 78), em que este pondera que € 0 pré- prio mundo que, projectando-se na mente do poeta, cris- taliza na obra e lhe assegura a perenidade: Assim na placa 0 externo instante grava Seu ser, durando nela. ‘Mas estas aproximagées, se patenteiam que a poesia de Reis é, em parte, um produto de cultura (s6 por ana- crénico fingimento um poeta do século xx cantaria Pa, as ninfas, as leivas frias da patria de Plutdo, pediria rosas para cingir com elas a fronte, usando o estilo adequado, latinizante e hirto), ndo invalidam a originalidade de Ri- cardo Reis perante Hordcio, originalidade que sobressai quando integramos Reis no conjunto da obra de Pessoa. Hordcio pés na poesia muito da sua humana experiéncia: bebew o vinho que cantou, teve amores com as mulheres a quem se dirigiu, 0 campo & para ele efectivamente 0 seu dominio da Sabina, invocou deuses em que ainda se acreditava. Em Reis, poeta derivado, tudo isso & di- vertimento estético ou figuracdo simbélica, horacianismo intencional. O intelectualismo, a exclusiva intempora- lidade das suas preocupagdes avizinham-no de Caeiro na exacta medida em que o afastam de Horacio, Reis, como Caciro, é expressio abstracta de um modo de conceber e sentir a vida. Em coisa alguma faz lembrar 0 Hordcio violento ¢ libertino que troca, injuria, pragueja, 0 Hors cio realista das sétiras, 0 Horécio das odes civicas inte- ressado na expedigdo de Augusto contra os Bretdes ou na campanha contra a dissoluggo dos costumes em Roma. «Prefiro rosas, meu amor, a patria...» (p. 64). Este verso pinta 0 egofsmo epicurista de Reis, um contem- plativo extremamente pobre de calor afectivo, sem ami- zades que transparecam na poesia, sem capacidade para © amor auténtico. Reis parece existir apenas em funcao de um problema, o problema crucial de remediar 0 sen- timento da fraqueza humana e da inntilidade de agit por meio de uma arte de viver que permita chegar 4 morte de maos vazias e com um minimo de sofrimento. 40 FERNANDO PESSOA LIRICO © Pessoa orténimo diverge muito de Caciro ¢ Reis porque nio expe uma filosofia pratica, no inculea uma norma de comportamento; nele hd quase apenas a ex- pressio musical e subtil do frio, do tédio e dos anseios da alma, de estados quase inefaveis em que se vislumbra por instantes «uma coisa linda», nostalgias de um bem perdido ai ibe qual foi, oscilagdes quase im- perceptiveis de uma inteligéncia extremamente sensivel, © até vivencias téo profundas que nfo vém ¢ a suspeita de que do € sonho ou aparéncia sem fundo, esta vida ¢ a outra que pressentiu. «Se em mim houvesse certeza / Nao seria 0 fluido e neutro / Que ama a beleza> (p. 188). Moderna, aparentada com Nobre ¢ Sé-Carneiro pelo egotismo exacerbado, pelo cepticismo, pela sensacdo do tédio, pela ideia de que Saturno estigmatizou o poeta ‘a solidio e © desamparo («Seus trés anéis irrever- siveis so / A desgraca, a tristeza, a solidao», diz Pessoa ao cantar Gomes Leal), pelo arrojo da expresséo figurada ‘ou analitica, esta poesia insere-se contudo na linha do smo nacional, tem um «sentido lusitano», como Pessoa diz da de Nobre num artigo comovido. “Artigo. aliés, muito curioso, que penetra pela intuigdo no que pode haver de comum na sensibilidade poética dos dois: «um sabor de infancia triste> no tédio e na desesperanga; as. emeditagdes no limiare; 0 sorriso que € «o rumor de uma festa longingua, em que nada de nés toma parte, salvo a imaginacdo; a vida enunca perfeitamente real ‘nem com certeza vivida> Herdeiro, como Nobre, do gosto garrettiano pelo popular, também o seduz, como adiante veremos, 0 ‘mundo ‘fantéstico da infancia, adoptando para o sugerit reminiscncias de contos de fadas, de cantigas de embalar € toadgs de romanceiro. No poema da p. 79 pée uma donzela a falar ama num jardim de sonho que vaga- ‘mente recorda; a sua candura, o mistério que envolve as suas palavras, a presenga carinhosa da ama, a doléncia do irremediavel, a misica doce das palavras lembram Bernardim. Mas separa-o de Nobre, como, de um modo geral, da tradigio lirica portuguesa do «coragio a0 pé da boca», o seu estrutural anti-sentimentalismo, a ausén- sia do biogréfico na sua poesia, a tendéncia para reduzit as circunstdncias, humanas concretas a verdades gerais. 1 Paginas de Doutrina Estética, pp. 53-55. Doravante indi- carei este'livro pelas inicials P. D. 42 (© sentimentalismo confessional estava naturalmente fora do seu caminho porque Pessoa viveu essencialmente pela inteligéncia intuitiva ou discursiva, pela sensibilidade que Ihe propria e pela imaginacao. «Eu simplesmente 7 Com 3 imaginagio. / Nao uso 0 coracdo> (p. 238). ‘A sua extrema lucidez torna limpida, definida, a expressio dos préprios sentimentos indefinidos. Se’ hé obscuridade, nao € no texto mas no pré-texto, no motivo, tantas vezes um quase, um nao sei qué, uma vivéncia incoercivel. A lucidez que dita as palavras fica intacta para aquém do muro, chamando impalpdvel ao impal- pavel, insusceptivel de ‘confecimento a0 que nfo conhece: Impalpével_ lembranca, Sorriso de ninguém, Com aquela esperanca Que nem esperanca tem Que importa, se sentir Endo se conhecer? Oico, e sinto sorrir O que em mim nada quer. (p. 158) Ou entio esclarece, depois do uso do s{mbolo, o sen- tido simbslico: Aqui a beira do rio Sossego sem ter razio. Este seu correr vazio Figura, -anénimo e frio, A vida vivida em vio. (p. 232) Retiro-me, claro esti, & maneira tipica de Pessoa. Com efeito, na poesia orténima nao ha propriamente duas fases, mas duas maneiras. Uma delas € a «modemista>, {Go diferente da outra que justificaria mais um heteré- imo. Ela propria abrange varias tendéncias, do simbo- lismo nefelibata de «Hora Absurda», série de associagSes inesperadas expressas em frases-definigdes que identi- 43 ficam os dois termos da associacdo, ao interseccionismo impressionista da «Chuva Obliqua>; sem esquecer as eFicgdes do Interlidio», que se diria caricaturarem a poesia-mésica de Verlaine, em ritmo de eminuete in sivels, com profusio de aliteragdes © rimas_interiores. E verdade que estes poemas, onde a feracidade meta- férica decadente acusa leituras de Eugénio de Castro e S&-Carneiro, se descobre algo do Pessoa que se tornaria tf pico: o tema central da «Hora Absurdas, o choro de uma felicidade mais que longinqua, ¢ tipicamente pessoano; a poesia da infancia aflora em «Chuva Obliquas, na chora duplay em que se cruzam no espirito do poeta a bola com que brincava no quintal de sua casa c a batuta de um maestro; nos catorze sonetos de «Os Passos da Cruze afirma-se a inquietacao metafisica de Pessoa ‘num estilo ainda insélito mas cada vez mais sObrio © mais nitido, a estabelecer .a transigio para a outra maneira, © perfodo , 0 interseccionismo) comeca em 1913, se néo vantes, porque de Margo de 1913 data o poema «Pauis», reproduzido por Joel Serréo nas Cartas a Armando Cortes-Rodrigues, ¢ termina em 1917, ou melhor, depois de 1917 nio publicou Pessoa composicdes desta’ indole. Portanto, ndo durou muito, exactamente por 0 constitu tem as actividades literdrias» que, segundo uma carta de Pessoa ao mesmo Cértes-Rodrigues, sio apenas dos earredores da sua sinceridade», quer dizer, mostram m: © virtuose que 0 homem espiritual 1A orientagio deste enssio nfo permit valoczar devida- mente & fase a que chan! emodemstie arcto sensi) Ge Pes Soa, ¢ 8 que Luciana Stepsano Pichio da © justo Teevo, comen- tendo 0 Sspantso vtuorsme do Chuva Obliquar Un «Pesoe, hogs utron ramen Er, Sno Yosef Out iy mse priest dcr gue poemas como sChuve Obliquay ou A Miimia> ‘sio menos sinceras, dado o problems otis sin- eridade tratado por, Pessone" tendo. ent conta ingictagio imetafisia, a insprasdo ocltsta qoe os petcorrem (c's tala Comentiro de" Yvette K. Centeno 4 rela dessas comocsicoes fm'3 Aproximecies, Lisboa, 1816, 44 Ora ja em'A Renascenca n2 1, de Fevereiro de 1914, ‘a par de «Pauiss © com a mesma data, se encontra 0 poema que comeca «0 sino da minha aldeia», depois fepublicado em Athena n° 3, 1924. Quer isto dizer que a maneira tipica de Pessoa, 'a que o acompanha até & morte, jé vigora em 1913; por outro lado, sio de 1914 ‘ou primeiras semanas de ‘1915 onze poemas apensos & carta a Cértes-Rodrigues, de 19 de Janeiro de 1915, entre 05 quais «Ela canta, pobre ceifeira ...», poemas, quase todos em verso curto, com a finura dos motivos ¢ a dis- crigho cléssica dos ‘recursos caracteristicos da poesia orténima. £ mesmo provavel que a poesia deste tipo tenha surgido em Pessoa antes da outra. Com efeito, Pessoa, que até 1908 escrevia normalmente em inglés, conta que, «num impulso sibito, vindo da leitura das’ Folhas Caldas © das Flores sem Fruto, comeca a escrever versos portuguesess '. Ora ndo custa muito. surpreender 0 fio que conduz de certos poemas de Garrett (os que ndo estio imbufdos de erotismo ardente ou afectado, antes 1 Nota de A. Cértes-Rodrigues fin Cartas (de F. Pessoa) 4, Armando \Gértes Rodrigues, Apendice, p. 89] redigida em {9i4" Sobre elementos que the dera F- Benton, H_ asrescenta se Foi a ditadura franquista que 0 colocou dentro do patriotsne Tteririove comegou” eatfo 2 detejar intensamenteegtever em portuguts, O° que” s6\ aconteceu em Setembro de 19080" Mas Fretas da ‘Conta obser cercrever. em” portaguésy.siglfca (aout) sctrevererarmente em portage ito “ese onecem peauenas poesia. ©. poavenesapontamentoy ey por {uguts, do pocta, anteriores ‘aquela data {in Femando’ Pesvoe, selecgio'e prefacio, py XIN) Em Fernando ‘Pessoa — Notes @ Uma Biogrlia Romanceada (pp. 108103), tanbem Fras dy Cone, alo eResoa, 40” desenarea, em 1905 em Jsboa, flava correntemente © portugués, eve, na biblioteca do padrasto,” em” Durban, figuravam autores como "Cambs, ‘Amtero, Camilo, Jaio. Din, Bea: ete ‘Areva Coldquio n® 13, de Msio de 1961, inseriy «6 so netos Intditos de Fernando Pestoa» em portugués, sinda me: Aioeres quanto formas, mas documentos: impresivos de uma fase de entranhado pessinismo, 2 que nfo € alheio 0 «magisté- Flo, anicranos. Esto. assinados" dP Noguciva Postar ede: {don de 27 de Fev. 1908. 45 ressumam a vaga tristeza da alma sozinha, como eTronco Despido» © «Voz ¢ Aromas) a certos poemas de Fernando Pessoa no Cancioneiro — titulo que ele destinava a0 con- junto da obra lirica subscrita com o seu nome. Compa- Fem-se, por exemplo, estas duas quadras de esquema opuli A brisa voga no prado, Perfume nem voz nao -tem. Quem canta & 0 ramo agitado. © aroma é da flor que vem}. Pouco importa de onde a brisa Traz o olor que nela ver, © corazao nao precisa De saber 0 que é 0 bem?. Irmana-cos, em varias poesias, além da grécil delica- deza dos motivos, 0 desenho estréfico, a melodia do verso de entre duas a sete silabas, a sugerir a propria leveza ¢ fluidez do estado de alma, ¢ ainda a linguagem simples, intima, s6bria mas nobre, de perguntas e respos- tas ou aforistica e figurada como na quadra popular, com velhos simbolos remogados pela frescura da inspiragao. 'No Pessoa orténimo o ritmo alicia, as proprias vi- véncias so muitas vezes de esséncia musical; instintiva ou calculadamente, de qualquer modo apoiado & nossa melhor tradi¢ao lirica, Pessoa tira das combinagées de sons efeitos muito felizes: Leve, breve, suave, Um canto de ave Sobe no ar com que principia 0 dia, Escuto, € passou... Parece que foi s6 porque escutei Que parow. @. 97) 11 Obras Completes de Almeida Garret, Lyric, vol W, 1904, P ¥ Poesias de Fernando Pessoa, p. 114. 46 processo'é caracteristico de Pessoa: primeiro a ima- ‘gem-simbolo, depois a reflexio que Ihe extrai o sentido. © verso inicial, 56 constituido por adjectivos (sugestive de um som esguio e doce pelas duas pausas enire os trés_dissilabos, rigorosamente monossilabos, terminados ‘em fricativa, e ainda pela rima interior), contém o que ‘mais importa: a ideia da leveza, da brevidade, da sua- idade do momento psicol6gico ‘simbolizado pelo canto, cujas curvas descritas no ar (cf. eEla canta, pobre cei- feira...») parecem ser reproduzidas pelo desenho estr6- fico, com versos de tamanho muito desigual ¢ rimas suaves em -ave e -ia. Depois, 0 sibito desaparecimento do canto: «Escuto, € passou...» Eo eu consciente do poeta que intervém, a quebrar o encanto do momento inefavel. A sintaxe ‘de coordenagio, da linguagem viva € esponténea, descreve melhor a rapidez com que 0 canto se esvaiu. Escutar no presente, passar no pretérito: © canto ndo chega a ser apreendido pela consciéncia, Depois, a filosofia desalentada: eParece que foi s6 por- que escutei_ / Que parou.» Na estrofe seguinte, a expres- so quase épica (com a énfase da repeticio da negativa € a aliteragéo: «Nunca, nunca, em nada...» grita aos quatro ventos a amargura do poeta. Alianga perfeita da 47 FERNANDO PESSOA AUTOR DA «MENSAGEM> D. Sebastifo, protétipo da loucura heréica, obsidia com frequéncia a moderna lirica portuguesa, quer para simbolizar a decadéncia quet polarizando as esperancas ‘messidnicas no ressurgimento patrio. Em Anténio Nobre ndo 6 apenas o «rey dos desgracadose, «rey dos venci dos», em que o poeta se mira como num espelho; ¢ também o desejado, o que hé-de vir para nos salvar: «Esperai, esperai, 6 Portugueses! / Que ele hé-de vir um dials (Despedidas, p. 115). Na Pétria, de Junqueiro, © Doido pressente a hora da redencdo: «A hora grande, ‘a hora imensa / Jé por um fio esté suspensa ...» (p. 181) © Encoberto, de Lopes Vieira, termina por um grito de alma semelhante: (p. 270) Tentando a épica sem abandonar uma atitude essencial, Fernando Pessoa insere-se na mesma corrente. A ditadura franquista colocara-o «dentro do patriotismo literério» (Cartas a Armando Cértes-Rodrigues, Apén- dice, p. 89). Depois, 0 saudosismo decerto ajudou a despertar nele quaisquer tendéncias messianicas herdadas com o sangue judaico', Com efeito, jé em 1912 rema- tava com estas palavras uma série de artigos sobre «A Nova Poesia Portuguesa» dados a lume em A Agui «E a nossa grande Raga partiré em busca de uma India nova, que nao existe mo espaco, em naus que sio cons- ttuidas ‘daquilo de que os sonhos so feitos'. Eo seu verdadeiro € supremo destino, de que a obra dos nave- gadores foi o obscuro e carnal anterremedo, realizar-se-A divinamente» Anunciava assim, com a obscuridade pré- pria de um profeta, uma extraordindria aventura espiritual Para que as almas dos Portugueses deviam preparar-se. ‘Numa entrevista concedida a0 Didrio de Lisboa em 14-12-1934, afirmou Pessoa que a Mensagem cristai- zara no seu espitito a partir da época do Orpheu. Devia ter em mente o poema «D. Fernando, Infante de Portu- gale, que na Mensagem traz aposta a data de 21-7-1913. Dos’ outros poemas datados, os mais antigos sio de Setembro de 1918. Portanto: 0 Fernando Pessoa épico devia estar latente em 1912, ano em que prometeu um super-Portugal e um super-Camdes; mas. provavelmente foi a ditadura de Sidénio, eleito presidente em 9 de Maio de 1918 ¢ assassinado em 14 de Dezembro do mesmo ano, que det o abalo decisivo para a concepcao da Mensagem, tanto mais que em Fevereiro de 1920 publicou Fernando Pessoa no jornal Aco 0 poema «A Meméria do Presidente-Rei Sidénio Paiso 2 1 cAscendéncia ‘elaboragio da Mensagem, cf. © Variantes. da “Mensagem, ed,, 1977, pp. 227-234. in 4 Letra e o Leltor, Lisboa, 50 i | © autor da Mensagem singulariza-se como um épico jui_generis, introvertido, cantor, sem tuba ruidosa, de mirificas irrealidades. Escreveu 0 seu livro «4 beira-ma- goa» (p. 87), de: olhos humedecidos, para expandir a efebre de Além> que atribui ao infante D. Fernando, para condensar em verbo poético 0 sonho de uma India que nao hé, por isso melhor. Ao Império portugués do século xvi no chamou ele cobscuro e carnal anterre- medo>? O idealismo estreme, ocultista ou platénico, de alguns dos seus poemas liricos reduz 0 mundo visivel a c6pia grosseira do mundo invisivel. Aqui sobre a terra tudo € nocturno € confuso», tudo sao projecgées, som- bras, fumo de um lume escondido; no outro mundo € que vivemos como almas!. A Mensagem reafirma a cada passo a mesma repugnincia pelo carnal, pelo que © sonho ow a loucura nao redimem: © mais é came, cujo pé A terra espreita. (p. 26) Sem a loucura que & 0 homem Mais que a besta sadia, Cadaver adiado que procria? (p. 36) So as poténcias do invisivel, 0 mito (snada que é tudo»), a lenda, a chama que desce a iluminar 0 her6i, so essas poténcias que, fecundando a realidade, tornam a vida digna de ser vivida, ou, melhor, transformam a existéncia, mero vegetar, em vida, quer dizer, promessa do que nao ha, perseguicdo do Impossivel, grandeza de alma insatisfeit. «Bracos cruzados, fita aiém do mare (p. 44). Olhar sem alvo definido, olhar tipico da Men- sagem Deus, ou os deuses, talharam o destino dos povos. «As nagées todas so mistérios. / Cada uma € todo 0 1 Poesias, p. 197. 51 pt mundo a sése (p. 22). Sem existir (as forgas ocultas & que valem), Ulisses criou Portugal. Segundo o mesmo plano divino, por instinto, «com bruta ¢ natural certeza>, D. Tareja amamentou 0’ Fundador. Depois, a ideia foi encarnando. sucessivamente nos homens que fizeram Portugal. Nos momentos-cumes, 0 braco do heréi € mo- vido pela vontade divina: «O homem e a hora sio um 56 / Quando Deus faz ¢ a hist6ria. € feita> (p. 26). Hé entretanto na Mensagem dois tipos de herofsmo. Normalmente os herdis agem pelo instinto, sem terem a visio do sentido e alcance dos seus actos na marcha dos tempos: Viriato € j& portador do instinto obscuro que vai animar 0 conde D. Henrique. eTodo comeco & involuntério. / Deus € 0 agente. / O herbi a si assiste, vario / E inconscientes (p. 21). J D. Duarte € um her6i voluntério, unidade moral que se opie ao mundo, cumprindo o seu dever contra o Destino © gozando a recompensa apenas na ideia de o ter cumprido. Subordi- nado a eregra de ser Rei», a si mesmo se edificou. ‘A Mensagem € também um elogio do Portugués, desvendador ¢ dominador de mundos. O que o define no é a 4nsia do poderio terreno mas a fome de Absoluto, ‘um ideal cujo escopo pertence a «alma interna. D. Pedro, regente de Portugal, indiferente ao que hd em conse- guir / Que seja s6 obters, vive € morre «fiel & palavra dada e 3 ideia tida. Tudo mais € com Deus!» (p. 34). Essa fome de Absoluto poe constantemente o dilema: Vida ou Morte, Tudo ou Nada: Porque é do portugués, pai de amplos mares, Querer, poder sé isto: inteiro mar, ou a orla va desfeita— O todo, ou o sew nada. (p. 35) ‘Albuquerque, num plano superior ao deste baixo mundo, esobre os paises conquistados / Desce os olhos cansados / De ver 0 mundo e a injustica € a sorte. Criou trés impérios «como quem desdenhar (p. 45). 52 | 1 Surge contagiadlo pelo tédio do poeta, tédio que é sinal de grandeza, 0 reverso de queret sempre um mais além. Como m'Os Lusiadas, a teoria do heroismo € uma teoria do sacrificio. Mas 0 ecaminho da virtude alto e fragoso» tem em Cam@es uma substincia ético-crista que falta na Mensagem. Ao cabo dele estéo recompensas concretas: na Terra uma fama perene, cas honras imor- tais e graus maiores»; no céu a beatitude, Pelo contrério, os herdis da Mensagem olham e agem obsidiados por ‘um misticismo de objecto longinquo, indeterminado. Nao gritam a plenitude humana do triunfo. A insatisfacdo € 0 seu fado: sem a grandeza de alma que os toma infelizes nada vale a pena: Ai dos felizes, porque sto 560 que passa! @. 19 Triste de quem & feliz! Vive porque a vida dura, Nada na alma the diz Mais que a licéo da raic— Ter por vida a sepultura, (p. 78) A galeria dos herdis, que Deus. sagrou para a nostalgia e demanda do Infinito («O mar sem fim é portugués>), esté na Mensagem em funco do futuro que nebulosamente prenunciam. Depois dos medalhdes do «Mar Portugués vém os simbolos ¢ avisos do Encoberto. O passado, na légica misteriosa las nagdes, inclui o porvir. Os pinhais de. D. Dinis, ao serem agitados pelo vento, sussurram como «um trigo de Impérios, prefiguram 0 marulho das ondas que as naus profundas hao-de sulcar'. O plano transcendente vai-se realizando, tem de ser. A predestinagio nacional le-se nas trovas do Bandarra. Por isso 0 poeta sabe com fntima certeza que Portugal vai cumprir-se. 1 CL J, do Prado Coelho, «D'Os Lustadas & Mensagem>, in Actas do'T Congresso Internacional de Estudot Pessoanos, Porto, 1979, pp. 307-316. 53 A Meméria do Presidente-Rei Sidénio Pais' confirma este misticismo sebastianista. Sidénio Pais dorme no teino do Assombro, virado para Deus. A lida, sempre @ mesma, deste mundo, no passa agora para ele de «vicuo de acgio, sombra perdida, / Sopro sem sere. Mas seré possivel que no continue a amar-nos? Teria vindo s6 para nos deixar a meméria initil ¢ a {6 per- dida? «Tudo acabou?s Nao; a ealma acesay do poeta nfo accita «essa morte absoluta, o nada / De quem foi Patria, ¢ féeleita, / E ungida espada>. Decerto Sidénio, mais vivo que nos, vé a Patria merguihar de novo nas ‘revas, lita / Do’ Abismo onde nfo ha mudanga / A terra aflitas. E decerto voltara, reencarnado: Nao passa como o vento 0 herdi Sob 0 ermo céu. Tornaré, nova forma clara, Ao tempo € a0 espaco?. Acreditemos. «£ lenha s6 a Realidade: / A {6 é a chama.» Estamos na antemanha, esperando a Hora... © poeta visiona outro regresso do Encoberto, «um novo verbo ocidental / Incarnado em heroismo e gléria> e trazendo por broquel a meméria de Sidénio, «Precursor do que no sabemos, / Passado de um futuro a abrir». Dé carécter inconfundivel a estes poemas 0 que poderei chamar a interiorizagio da matéria épica, to erfeitamente integrada_no clima subjective do autor que as figuras de epopeia se transformam em suas inter- cessoras ou simbolos das vivéncias pessoais. A Ilha Lon- ginqua de que Pessoa falava a Cortes-Rodrigues («Meu caro Amigo, isso de alegria esté na ha Longinqua, + Appt Step eta tg oe oe ool RES SEASD ebe rigoe oot emanate oe feet mae RoE SEA SRe as Boek espagos (Poesias, p. 198). ” 54 aquela qie v. sabe € eu sei e menhum de nés sabe> “(p. 34)], a iha distante de O Marinheiro onde o her6i da historia refez idealmente a vida, ndo é a ilha velada da Mensagem, da f€ messinica: 0 mito chama-se objec- tivamente mito, a lenda lenda; a febre de grandeza que despreza os limites dé-se 0 nome de loucura. Mais ain a madrugada do Quinto Império € irreal, D. Sebasti é revocado da nao-existéncia («do fundo de no seres»). © poeta, dormindo, ouve uma voz misteriosa: «Mas, se vamos dispertando, / Cala a voz, e hi s6 0 mary (p. 80). A linguagem abstracta, laconicamente afirma- tiva, como as palavras ambjguas das pitonisas, comprime © pensamento como se 0 gravasse em inscrigées lapidares. ‘Sao pois os poemas da Mensagem, pelo seu cardcter subjectivo, simbélico, pensados por uma _inteligéncia cexaustiva, destituldos de qualquer frémito de humanidade da epopeia historicamente vivida? Nao, porque em certos passos, em especial da segunda ¢ terceira partes, 0 poeta sentiu imaginando os trabathos € as dores que 0 Império custou: © mar salgado, quanto do teu sal Sao ldgrimas de Portugall Por te cruzarmos, quantas males choraram, Quantos fithos em vao rezaram! Quantas noivas ficaram por casar Para que fosses nosso, 6 mar! ©. 64) 1 40 Modernismo: Fernando Pessoa», in Letras ¢ Artes, suplemento literirio de Novidades, de 4 de Julho de 1948. 55 «O Mostrengor opde dramaticamente, em decassi- labos sonoros com um refrdo cuja forca épica aumenta de estrofe para estrofe («EI-Rei Dom Jogo Segundol), a decisio do marinheiro portugués, instrumento *inflexi- vel da vontade do rei, & indignagio do ser cimundo ¢ ‘gr0sso> que sai, escorrendo medos, das profundezas do mar: «Aqui ao'leme sou mais do que eu: / Sou um Povo que quer o mar que € teu!» (p. 57). Excepcional- ‘mente, 0 poeta, sob a sugestio do Adamastor, empunha fa etuba canora’e belicosa>. «Noite» inclui outro simbolo Portugués © universal: ndo jé 0 Homem que vence os elementos, mas o Homem fechado «numa prisio servil>, figura /’ Da febre e da amargura, / Com fixos olhos rasos de finsia / Fitando a proibida azul distancias (p. 92). Assim, em versos de densidade poética e suges- ‘Go ritmica insuperdveis, Fernando Pessoa, comunican: dose, foi também o intérprete comovido’ da Histéria nacional. 56 ALVARO DE CAMPOS Poeta sensacionista © por vezes escandaloso (quali- ficativos da carta de Pessoa a Casais Monteiro, j6 citada), Campos é 0 primeiro a retratar-se e a referir circuns- tincias biogréficas, o que reforca a simulagdo ¢ daria a0 préprio Fernando Pessoa estimulos para se manter na pele do heterénimo. Descreve-se ede monéculo € ceasaco exageradamente cintado> (p. 202), «franzino € civilizados (p. 205), «pobre engenheiro preso / A su- cessibilissimas. vistorias» (p. 321). Escreve, febril, «A dolorosa luz das grandes lampadas eléctricas da fabrica> (p. 142), ou, no seu cubiculo, ouvindo 0 «tic-tac esta- ado das’ méquinas de escrever> (p. 299). ‘Dos varios heterénimos € aquele que mais sensivel- mente percorre uma curva evolutiva, Tem trés fases: a do «Opidrios, poema com a data ficticia de 3-1914; a do futurismo’ whitmaniano, exuberantemente documen- tado na «Ode Triunfale (4-1914), em «Dois_excertos de odes» (30-6-1914), «Ode Maritimas (publicada no n° 2 do Orpheu, 1915), «Saudacio a Walt Whitman» (i1-6-1915) © «Passagem das Horasy (2-5-1916), para $6 episodicamente assomar em poemas posteriores; enfim, tuma terceira fase a que chamarei pessoal por estat liberta de influéncias nitidas, desde «Casa branca nau preta» (11-10-1916) até 1935, ano da morte de Pessoa. 7 Campos é 0 primeiro a reconhecer uma evolugéo: «Fui_em tempos poeta decadente; hoje creio que estou decadente, ¢ ja 0 ndo sous '. E, na poesia A meméria de Caciro, declira que 0 mestre, acordando-o para a «sen- © a «nova alma, Ihe tirou a capacidade de ser apenas um decadente estupidamente pretensioso / Que poderia ao menos vir a agradar ...> (p. 31). © , imita-lhe desde a nostalgia de além, a morbidez snob de um saturado da civilizagdo, a em: briaguez do épio € dos sonhos de um Oriente que nio ha, © horror vida, o realismo satirico de certas notacées, até ao vocabuldtio entre precioso ¢ vulgar, as imagens, 49s simbolos, a0 estilo confessional brusco, amimado ¢ igativo, ao ritmo dos decassilabos agrupados em qua- dras, como, por exemplo, na «Partidas de Dispersio: Em parddoxo e incompeténcia astral, Eu vivo a vincos de ouro a minha vida... (p. 133) © decalque ¢ flagrante: astral, vincos de ouro ... Era © que Pessoa pretendia, ao mesmo tempo que deixava twansparecer aqui ou alia personalidade latente de Cam- pos: a fome de um mundo de sensagdes novas, as san- grentas visies de cadafalso>, 0 desejo de eser as coisas fortes, 0 dio & honestidade burguesa, a douceur de ‘meeurs, como ele dira na «Ode Maritimas: 1 Cara A Contemporinen n° 4, 1922, com a data de de Outubro. do mesmo. ano, Get de 17 58 Pudesse a: gente desprezar os outros E, ainda que co'os cotovelos rotos, Ser heréi, doido, amaldigoado ou belo! Compreende-se que este Alvaro de Campos que des- ponta—o da segunda fase —com a sua vitalidade trans- bordante, 0 seu amor ao ar livre ¢ ao belo feroz, venha a condenar a literatura decadente, planta de estufa cor- rompida, em cujos pecados, como o Fernando Pessoa forténimo, incorreu: fé-lo-& ao defender uma estética nao aristotélica baseada nfo jé na ideia de beleza, no con- cceito de agradavel, em suma, na inteligéncia, mas sim na ideia de forca, na emotividade individual’ pela qual © escritor subjuga os outros sem procurar capté-los pela razio (P. D. E., pp. 145-163). Publicados tia revista Athena em 1924, estes «Apon- tamentos para uma estética nfo aristotélica> esclarecem © que Alvaro de Campos jé era, como poeta emotivo € sensacionista, em 1914, Grassava ento, nos meios literé- rios avangados, 0 entusiasmo por uma’ poesia que espe- Ihasse a civilizacdo industrial da época. Em Franca © na Ttélia, Marinetti divulgara a partir de 1909 os prin- cipios basilares do futurismo: Iuta sem quartel as tradi- goes, & cultura feita; exaltagéo dos instintos guerreiros; apologia de um novo Homem protétipo isento de sensi- bilidade, saudavel, amoral, dominador, livre de todas as peias. Na arte, o futurismo daria pela cor, pelo som ou pela palavra sa prépria sensagdo dindmica>, xa vibracio nocturna dos arsenais ¢ dos estaleiros>. Em Franca sio Apollinaire, Blaise Cendrars e Valery Larbaud os poetas das fulguragdes da mecinica, do automével, do paquete, do avido, da «respiration Iégére et facile des locomotives», como diz A. O. Bamabooth, Mas o grande precursor de uns e de outros, como tal reconhecido por Marinetti, é Whitman’, jé influente nos escritores de Créteil, a ponto de Henri Ghéon temer ' Cf, 0 artigo de Hyacinthe-Dubreuil, ; a nsia futurista, & Marinetti, de se rocar pelas maquinas respira lubricidade. Quando 0 seu amor da vida tem 0 matiz de fraterno, abrange num largo amplexo, como Whitman, o santo e a prostituta, o salteador e 0 mat ida, a burguesinha e o pederasta, que passam em desfile romfscuo pelas estradas, en masse. Mas o que distingue Campos, mais que a euforia, & a raiva, o prazer sadico de imaginar cenas de_piratas e naufragios, violentas, contra natura, a explosio de histerismo mental, evirado ara dentro», que no dura muito, Na verdade, s6 lutando consigo préprio, por um esforgo de imaginagio, foi Alvaro de Campos o cantor whitmaniano, delirante, da Energia e do Progresso. Na tuda¢o a Walt Whitman definiu-se, e bem, pelo té- «Eu tio contiguo & inércia, tao facilmente cheio de tédio ...» Inércia, t6dio, so, com efeito, as constantes da sua personalidade desde a fase do «Opiérios. Na Ul. tima fase, em 1926, diré: «Ah, cansa-te nobremente / E no cantes, como eu, a vida por hebedeira ...» (p. 20). © Campos whitmaniano cantou a vida por bebedeira, As suas sensagdes desenfreadas, a sua emotividade pé- ica jamais passaram da esfera da inteligéncia: «Or intelectual de sentir a vidal> (p, 225), Intelectual, apesar 62 lo rétulo de sensacionista, a poesia de Campos é-0 tanto da Toa de Cacito. Justficara'0 desejo de afogar 0 tédio, de suprimir pela embriaguez a dor de viver, a cangéstia no fundo de todos os prazeres», a «saciedade antecipada na asa de todas as chavenass — expresses da «Passa- gem das Horas». «Vale a pena sentir para ao_ menos deixar de sentir> (p. 124). Campos sentiu como Whitman para deixar de sentir como Campos. Mas 0 tour de force malogrou-se: depois de 1916, Campos vira a ser 0 pocta do eansago, da abulia, do vazio, inquieto e nauseado ' ‘Mesmo nos poemas vincadamente whitmanianos, am- plas polifonias, hd acordes dissonantes. Na «Ode Triun- fal», quando, num crescendo raivoso, estava gritando 0 seu amor por todas as vidas andnimas e 0 desespero de no as devassar, abre um paréntese de nove versos para, num tom grave e recolhido, reflectir sobre 0 mistério do mundo, a fatalidade da’ morte, a docura triste da infancia que néo volta: © pineiraissombrios ao erepscuo, Pinheirais onde a minha infancia’ era outra coisa 0 sou hoje .. Doaue en " (p. 150) Fechado 0 paréntese, reaparece a «raiva mecénicas, ‘a «obsessio movimentada dos Snibus>, a faria de ir ao 1 Sobre a equagio Whitman-Campos cf. Rainer Hess, . mee oe ‘A partir de 1916, Campos 6 © poeta do abatimento, da atonia, da aridez interior, do descontentamento de si € dos outtos. o Mal sei como‘conduzir-me na vida Com este mal-estar a fazer-me pregas na alma! Se ao menos endoidecesse deveras! Mas nao: & este estar entre, Este quase, Este poder ser que ... Isio (p. 52) Decadente, no jé no sentido histérico-literério da palavra, mas por se ter despenhado da exaltacdo heréica, nervosamente conseguida, dos longos poemas & Whitman, Longe de ser medularmente o «turbulent, fleshy and sensual» autor das Leaves of Grass, corre-Ihe nas veias © sangue aguado de Pessoa; e a curva evolutiva da sua poesia mosira que o seu pretenso dinamismo € narcético para afogar 0 tédio, bebedeira para transpor ¢o muro Ga sua logica>, da sua inteligencia (p. 106). «Meu Deus, tanto sonol...» (p. 82). «Aproveitar © tempol... / Ah, deixem-me no aproveitar nadal> {p- 261). estilo ressente-se da modorra como das crises de histetismo, Atira desordenadamente a0 papel desejos, pensamentos, imagens que Ihe ocorrem, num estado de Semi-inconsciéncia, a deriva. «Frases que s6 agora, no ‘meio-sono, elaboro> (p. 33). Brusco ¢ opresso, as suas palavras sio agora mais humanas, lateja nelas maior sin- ceridade. Perante este Campos decafdo, cosmopolita, melan- célico, devaneador, irmio do Pessoa orténimo no cepti- cismo, na dor de pensar ¢ nas saudades da.infancia ov de qualquer coisa irreal, compreende-se que seja 0 tinico hheterénimo que compatticipe da vida extraliterdria de Fernando Pessoa. «Eu e 0 meu companheiro de psi- quismo, Alvaro de Campos ...» —lemos numa carta a Femandes Lopes. «Tens hoje do teu lado o meu velho amigo Alvaro de Campos, que em geral tem sido s6 Contra tiv —-escreve Pessoa um dia 4 namorada'. Outra carta de amor é assinada, por brincadeira, por Alvaro T Cartas de Amor de Fernando, Pessoa, organ., posticio © notas de David Mourto-Ferreira, Lisbos, 1978, p. 101. 65 de Campos. Conta Alfredo Guisado que as vezes Pessoa © encontrava na rua e Ihe dizia: «Voc hoje vai falar com o Alvaro de Campos.» Endo era s6 por blngue, acrescenta Guisado: ctinha realmente nesse dia uma ma- neira de dizer, uma maneira de sentir diversa daquela ‘com que costumavamos encontré-lo» '. ‘Campos disserta de vez em quando em prosa, che- gando a criticar e refutar opiniGes do Pessoa orténimo. No entanto, contrariamente a0 plano de simulagdo, Cam- os e Pessoa estio por vezes de acordo: pensam ambos, or exemplo, que a metafisica é a pseudociéncia de se figurar mundos impossiveis (discussio da Athena); Cam- os assevera que nada se prova, que todo o pensamento enche eternamente um tonel eternamente vazio (carta & Contemporinea de 17 de Outubro de 1922), 0 que Pessoa confirma, em seu préprio nome, nas «Palavras de Critica a: Entrevistas» a tespeito de Cabral Metello, em 1923: Teve razio porque a nio teve. [Campos escrevera: eDiga a0 Fernando Pessoa que no tenha razio.s] Interpretar € nao saber explicar. Explicar é nio ter com- preendido.» Ambos aprenderam a ligio de Caeiro No intimo, a divergéncia € mais temperamental, e dai estilistica, do que de, opinides ou preocupagées. Epal- Avel sobretudo na poesia. Campos, desordenado, febril, ‘ora nos surge na dependéncia da circunstincia exterior, do estado dos nervos, das sensagdes do momento, ora mergulha em si proprio para sentir o terror do mistério de todas as coisas; em qualquer caso ¢ 0 poeta da inspi aso sem comando, da expresso solta e desleixada, dos hiatos da inteligéncia que organiza e clarifica. Pelo contrario, Pessoa, fiel a uma longa tradigao estética, procede a uma estilizacdo mais avangada da matéria lirica; transmite em versos musicais, densos, s6brios, serenos, translicidos, vivéncias subtis ¢ dignas de recato. Distin fo, aliés, que nem sempre se observa com a mesma nitidez. A sFemando Peston ¢ a sua influéacia na literatura ‘moderna>, in O Diabo de 15 de Dezembro de 1935. 66 BERNARDO SOARES Morador num 4° andar da Rua dos Douradores, ajudante de guardalivros sob as ordens do patrio ‘Vasques, autor das prosas poéticas reflexivas do Livro do Desassossego, Bernardo Soares € 0 menos autonomizado dos principais heterdnimos, e por isso Pessoa o diz um semicheterénimo, isto é, ndo uma personalidade diferente da sua, mas a sua personali- dade mutilada: «Sou eu menos 0 raciocinio © a afec- tividade» (P. D. E,, p. 268), definigéo alias poltco rigo- rosa. Surge em Pessoa quando este se encontra «can- sado ou sonolento, de sorte que tenha um pouco sus- pensas as qualidades de raciocinio e de inibicéo» (ibid). Dai o parecer-se com Alvaro de Campos'. Mas nem sempre. "fim 1913 esté ainda latente, porque o trecho do Livro do Desassossego, publicado em A Aguia em to deste ano, sob 0 titulo «Na Floresta do Alhea- trenton, vem assinado por Fernando Pessoa ¢ reels, de facto, a atmosfera de O Marinheiro e dos poemas modernistas orténimos: visbes fantésticas, simbél T Nas Cartas a Armando Cértes-Rodrigues ha, varias alu- sbes a Soares. £ um estado de «depressgo profunda e calma> ‘que obriga Pessoa a excrever 0 Livro. do Desassossego, *pto- dugdo doentias (4 de Outubro de 1914). «Mas tudo fragmen- tos: fragmentos, fragmentos» (19 de Novembro de 1914). o7 imprecisas, requintadamente subjectivas. Nos restan- tes trechos vindos a lume (Soluedo Editora n™ 2 ¢ 4, 1929, Descobrimento n* 3, 1931, e Presena no 27, 1930, ¢ n2 34, 1932) adivinha-se, pelo contrario, a rotina da vida quotidiana —oscilagdes do tempo, breves epi- sédios de rua, cenas de escritério, encontros de res. taurante ou de café—, embora transfigurada por um devaneador; © proprio estilo se torna menos traba: Ihado, aparentemente mais sincero, préximo do vivido, ‘So paginas de um edidrio» assinado por Bernardo Soa. res, que vingou como autor do Livro no espirito de Pessoa, apds uma vacilacdo entre o seu nome ¢ 0 de Vicente Guedes. Tamto Bernardo Soares como Alvaro de Campos nos deixam entrever o Fernando Pessoa da biogratia, solitirio e discreto correspondent comercial, num vaivém entre o real, dum lado, e a meditagao, o sonho, a criagdo estética, do outro; quer dizer, negam bas. tantes vezes a afirmacdo de Casais Monteiro, de um modo geral exacta, de que a obra de Pessoa é uma obra de divorcio «com a realidade presente» '. Soares, mordido pelo tédio, sonha diante das pautas de um oficio ou das filas vulgares de um armazém. «Tenho diante de mim as duas pdginas grandes do livro pesado; ergo da sua inclinagao na carteira velha, com olhos cansados, uma alma mais cansada do que os olhos.» © comércio dé-lhe ainda assim bons pretextos ara imaginar: «No prdprio registo de um tecido que ndo sei o que seja se me abrem as portas do Indo e do Samarcanda...» Isto faz-nos lembrar Campos, quando escreve: Complexidade da vidu! As facturas sdo feitas por gente Que tem amores, adios, paixdes politicas, as vezes Lerimes — E séo tdo hem escritas, tao alinhadas, tao independentes [de tudo isso! (p. 198) Introdusio & antologia da Editorial Confluéncia, I, p. 7. 68 anne [ | ‘alvez pér o achar demasiado confessional, auto- biotite ens dae Bernardo Soares tun tanto informe ¢ na penumbra, A sua prosa tem, e1 dados trechos, um vago sabor a adolescéncia. Amigo, como Cesério, de vaguear pela a pombalina, ture bao Pera pelo Jemsentido da existéncia, melan- célico, abulico, um dos seus principais méritos ae siste em confirmar em Fernando Pessoa uma tem: ar secant cen deci ads aco jicos -fundamentais. . ® os sensagdo de nfo ser nada, pura auséncia cons: cients Chane snc um mado nem, ta vertigem a roda do ea ae para a vida, 0 aste da indagacdo incessante («Para com- precnier, destrutmes), © deadobramento em varios a descoberta de si mesmo através da ocultacdo € do disfarce («S6é disfargado € que sou eu») — cis outras tantas afinidades com Fernando Pessoa ele préprio. De cultura predominantemente francesa (esta uma das suas marcas individualizantes), Bernardo Soares vé-se reflectido em passos de Chateaubriand e sobre- tudo Amiel. A edigio, tantos anos aguardada, do pee do Desassossego permitira ampliar 0 retrato aqui esbo- peer conntoneeraeea sia" ne saeco Bane & Helle mts mates que mse sabemos se e como iriam ser aproveitados, a obra ¢ fascinante € extremamente reveladora. 09 ! | ceo A ripida caracterizacdo da poesia orténima ¢ heterd- a que procedi creio ter evidenciado com que admi- ravel poder de se desdobrar, de viver lucidamente experiéncias humanas exemplares, posigdes basicas pe- rante a vida, criando e mantendo’a atmosfera linguistica adequada a cada uma delas, Fernando Pessoa se diver- sificou ou vou outro, para repetir a sta propria maneira de dizer. Esse poder justifica a designacto de heters- rnimos, em lugar de pseuddnimos, dada a Caciro, Reis, Campos ¢ Soares. Mas, por outro lado, no capitulo ante rior vieram & tona, além de oscilagdes e tensdes internas, afinidades que ligam os heterOnimos entre sie & poesia ort6nima, o que leva a perguntar se no ficou Pessoa verdadeiramente um $6, ndo. varios, embora senhor de uma complexidade fntima cultivada’no sentido de vin- ‘car as proprias antinomias ¢ dotado, mais ainda, de uma capacidade singular de simulador, revelada, por exemplo, nna hAbil fabricagdo do «Opidrioy © até no facto de in- culear Alberto Caciro como mestre de Pessoa e restantes heterénimos, o que tornaria verosimeis certos pontos de contacto. Para melhor responder a esta pergunta, sigo ‘no presente capitulo nova orientacdo: considero a obra de Fernando Pessoa, orténima ou heterénima, como um todo, analisando os ‘motivos que me parecem no émago da vida espiritual do autor. Tento assim abrir caminho para descobrir a unidade psiquica na polimorfia, se tal lunidade (fago ainda a reserva metédica) efectivamente existe. 73 «TUDO E ILUSAO> A primeira teaccio de Fernando Pessoa em face do ‘mundo, incluindo o eu que reflecte, é um sentimento de estranheza, um arrepio de espanto. Pessoa nega-se, com todas as forcas do seu espirito, a aceitar o mundo tal como as suas percepeées tho transmitem: & absurdo, no pode ser. Tomado da angistia de intuir o mistério, inter- Toga para satistazer de certeza uma razio exigente. Toda a sua obra exprime a interrogacio, ou as respostas tivels para ea lnteropagio, ou mclancolla de. stber que nao hé resposta. © que o perturba nfo sio realidades supranormais mas 0 proprio enigma do existir, do chaver ser. Perante cesta Gnica realidade, que é 0 mistério», cesta nica realidade terrivel—a’ de haver uma realidade>, tudo, considera Campos, se transforma «numa s6 coisa tre- menda e negra e impossivel, / Uma coisa que esti para além dos deuses, de Deus, do Destino... (p. 93), 0 proprio principio de toda a existéncia: Aquilo que, quando se abrangeu tudo, ainda ficou fora, Porque quando se abrangeu tudo ndo se abrangeu explicar Tporque € um tudo, Porque hd qualquer coisa, porque hd qualquer coisa, [porque hé qualquer coisal 75 Idéntica ponderaco amarfanha o Fausto pessoano: (vi, p. 41). ee © préprio de toda a realidade € a sua estranheza, pelo menos para o eespirito especulativo e metafisicor de Pessoa (P. D. E., p. 112). e& tio estranho estar a vi- ver... Tudo o que acontece é inacreditivel, tanto na ilha do marinheiro como neste mundo ...» —-diz ainda a segunda veladora. Eu, nto sei porqué, Meu desde onde venho, Sou o ser que vé E ve tudo estranho Assim se define o poeta. E a mesma palavra estra: nnhexa aflora ainda a0s labios de Caciro, mistico da 1 "Poets orténimas, p_ 102. © sinal da reatidade pensa Yaltey, €0 ser esiranba. Toute vue ev chose Gur west nek trang ext faut, Si quclave chore es réelpssle'ne Rest 2a etre de sa eaite en devenant famre, Niger apis Phe, Gest revenir du famiier a Tetange, cf dane Tokasne ee fer'te Feels (Choses ‘Tues, p. 15H) agora Ponos tae toe um argo de crea a Luis de Montafor: ePulnias’ etna Botte verdadsras. Come poderiam ser veriadcias te nie fanaa, Estas» (0 Tmparcial 60 15 de Junko Go Tae} 76 seespantosa realidades da Natureza; 0 mundo fenome- nol6gico, ensina Caciro, é mais estranho do que julgam (05 misticos porque nada ha por detris dele a conferir-Ihe um sentido: Porque 0 tinico sentido oculto das coisas E elas no terem sentido aculto nenhum, E mais estranho que todas as estranhezas . ©. 6) A posicio do Pessoa ort6nimo é diferente: nfo acre- dita na autenticidade das aparéncias. A propensio mistica Teva-o a esfumar, a sentir como fantasmagéricas as reali- dades apreendidas pelos sentidos. A vida é sono, ilusio. «Tenho pasado com razoavel calma [nos diltimos tempos] pela ilusdo sucessiva dos dias» —escreve Pessoa a Cor- tes-Rodrigues em 2-9-1914. Campos chama a vida ea ilusdo do espago ¢ do tempos, ca falsidade do decorrers (p. 32). E pergunta: «De que te serve 0 quadro sucessivo das imagens externas / A que chamamos o mundo?s (p. 20), como se tais imagens no passassem de projec- 6es cinematogréficas. Os 35 Sonnets sublinham repetidas vezes a mesma ideia. O poeta repara na orla da onda que sobe pela areia da praia. Olha ¢ medita. Seguramente, a realidade nao pode ser isto! © mar, 0 céu, sio apenas uma cortina. (p. 250)], ndo haverd, entio, ao contri. rio da ligdo de Caciro, um além-mundo? Quando Pessoa Vive ingenuamente sente-se estrangeiro, exilado (expres- ses comuns a Reis © a Campos), originétio de uma esfera invisivel, Esta vida sabe-the a desterro: Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam, Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam, Velo os caes que também existem, E tudo isto me.pesa como uma condenagio ao degredo, E tudo isto € estrangeiro, como tudo'. Aqui, no dominio do imperfeito, do fugaz, de imagens ue so miragens, obrigam-nos a representar, em. vil stecorte humanos,’uma tragicomédia ndo menos iluséria que as farsas teatrais: «Somos todos palhagos estrangei- os. / A nossa vida & palco ¢ confusio» ?. Mas o poeta adivinha ‘© Infinito para além do sensivel. «Aconteceu- me do alto do infinito / Esta vida...»%. Traz em si @ imagem nevoenta de outro ser‘, Entrevé com inquie- tagdo entidades superiores que Ibe dirigem os passos: «Anjos ou deuses, sempre n6s tivemos / A visio per- turbada de que acima / De nés e compelindo-nos / Agem ‘outras_presencass 5, Este sentimento do mistério toma em Fernando Pes- soa expressio ocultista. O ocultismo ensina que o mundo invisivel € factor ¢ criador perpétuos do mundo visivel que entre um e outro ha correspondéncias, mais aind: 3 Poesigs de Alvaro de Campos, p. 254, Poesia inéditpublicada em! Primeiro. de Janeiro 9 de Agosto de 1944" io oe 4S Poesias de Femando Pessoa, p. 33. { idem, 9. 48: 3 Oder"de'Ricardo Reis, p. S4. © préprio Caciro se per- turba, quer perceber, quando’ a Watureza The bate de hapa ee sentidos (p. 4). 78 que no primeiré se encontra em condigdes de eternidade, como esséncia, como ideia, o que no segundo tem exis- téncia; que a0’plano astral pertencem as «formas divinass ‘ou tipos imortaiss' dos diferentes seres criados: quando tum destes morre, 0 seu arquétipo continua no plano astral como imagem que persistisse num espelho na auséncia da pessoa ou coisa que nele se projectou '. Ora, Femando Pessoa também se cré manifestagdo efémera ou simbolo de Alguém que desconhece, escravo de «uma ‘outra vida que nele vive; e pergunta de quem seré o arauto, a quem pertence o que julga ser; de qualquer ‘modo, afirma-se grato «Ao de quem sou, erguido pd, / ‘Simbolo s6> ?. Estamos perto do idealismo da Mensagem. Outro poema fala deste mundo nocturno em que nao passamos de projeccées, fumo de um lume que brilha ocluso para n6s: Neste mundo em que esquecemos Somos sombras de quem somos, E os gestos reais que temos No outro em que, almas, vivemos, Sao aqui esgares € assomos *. Sombras saudosas de corpos ausentes, podemos sentir © laco que liga & verdade a mentira que somos, adivinhar a mio imaterial que nos langou no chao do tempo e do espaco? (ibid,). Infelizmente nao. S6 por um fugaz opti- mismo o poeta admite que nos é concedido entrever , Mas ‘onde uma Prova irrefutavel, essa razdo ?, Caciro epresenta em Fernando Pessoa a spavorosa ciéncia de Yee, a exigéncia de positividade a que Pessoa obedece. fas, enquanto, por um esforgo sobre-humano, Caeiro Postula que tudo neste mundo € objectivo, Pessoa, con- tinuando a aceitar a realidade, acredita que tudo’ neste mundo € subjectivo. Fica assim confinado aos sonhos, 8 ilusio, 4 mentira da subjectividade, pois no confere (Catiro ‘no Iho permite) valor ol ‘i Gece nto the Permite) valor objectvo ao contesdo Ah, mas aqui, onde irreais erramos, Dormimos 0 que somos, e a verdade, Inda que enjim em sonhos a vejamos, Vemo-la, porque em sonho, em falsidade Pessoa condena-se a ficar no Atrio, perp li dda porta fechada, c estende a condenagse's iodea ne homens. Se somos sombras sem corpos, como podemos, Enquanto. morta papa a vesadey a Pee auséncia e vacuidades ‘, Este idealismo desistente im- bregna os 35 Sonnet © posta compen seat i fhe ma esctidi denote, wes nee age i Poesias de Alvaro de Campos 2 Ibidem, p. 30. eee ole 2 Poesia’ 8 Fernando Pesca, * Ibidem, p. 254, aed 80 horror do mistério.de no haver mistério concreto (so- neto xu). No firmamento da vida, negro como o céu nocturno, sio as estrelas que nos’ ensinam a luz, mas clas préprias ndo passam de consequéncia obscura de uma luz ausente, pequena parte de um todo tenebroso: no podem dar-nos conhecimento da verdadeira luz: «So, out of light’s love wishing it night's stretch / A nightly thought of day we darkly reach» (soneto XIV). © nosso pensamento nasceu cego, embora saiba o que € ver. Decifra as formas pelo tacto, conjecturando-as como qualquer coisa cujo ser verdadeiro o mero apalpar envolve numa penumbra de erro. Assim néo pode ver as coisas mas apenas faz uma ideia mentirosa das coisas Goneto xxi). Se tivéssemos outra apreensiio que nfo fosse a dos nossos pobres sentidos (reflex and co-carnal sight), verificariamos que os fenémenos no passam de lum grosseiro biombo: «Joy, flesh and life might prove but @ gross screen.» Estamos, porém, enclausurados, re- partidos entre a aparéncia falsa acessivel e a realidade Inacessivel. Dai, no poeta, uma radicada e torturante dor de viver (Soneto 11). ‘As obras em portugués formulam as mesmas queixas. Fernando Pessoa concebe a vida de Nobre como esiimula da vida que vivemos — érfa0s de pai ¢ de mie, perdidos de Deus, no meio da floresta, ¢ chorando, chorando inutilmente, sem outra consolagao do que essa, infantil, de sabermos que é inutilmente que choramos» (P. D. E., p. 55). A imagem! lembra-nos 0 titulo de um trecho do Livro do Desassossego, «Na Floresta do Alheamento», onde jé a divida se infiltra: os nossos palpites no serdo palpites de coisa nenhuma? «Eu sonho © por detras da minha atengio sonha comigo alguém ... E talvez eu no seja senio um sonho desse Alguém que néo existe...» Quer dizer que de todos os lados 0 Nada nos cerca, 1 Cf. a carta a Clrtes-Rodrigues de 19 de Janeiro de 1915: ‘eViagem essa, meu querido Amigo, que € entre almas ¢ estrelas, pela ‘Floresta’ dos Pavores ..-e Deus, fim da estrada infinita, & Espera no siléncio da Sua grandeza . ar Porque o mundo visivel bem pode ser um verso sem everso, imagens projectadas sem maquina de projeccio, dupla mentira. © poeta sente-se «emissério de um rei desconhecidos, mas existe esse Rei? Nao sabe responder (ibid., p. 60). Campos coincide com Pessoa no emprego do mesmo simbolo, dizendo-se co emissitio sem carta nem credenciais» (p. 48). Tudo é nada, e tudo Um sonko finge ser. O 'spago negro é mudo', A vida € como uma sombra que passa por sobre um rio Ou como um passo na aljombra de wm quarto que jaz (vazio...# Também Ricardo Reis sofre com a vacuidade das coisas, 0 edecurso falso> dos dias (p. 139), a evastidao Vax do céu (p. 153). Mas consola-se melhor ou pior com a filosotia de Caciro: «A Natureza é s6 uma superficie. / Na sua superficie ela é profunda / E tudo contém muito / Se 0s olhos bem olharem> (p. 164). Goza o orgulho de ter uma sconsciéncia Iicida e solene / Das coisas € dos seress (p. 55), a «certeza da solene e clara posse / Das formas dos objectos> (p. 56). Abstém-se de interro- gar [«Vé de longe a vida. / Nunca _a_interrogues> (p. 69)], seguindo assim o exemplo de Caeiro: | Mas a. tentativa de Campos maiogrow-se: que distincia da «Ode Triunfal> & espantosa confissio azeda e insubmissa de «Tabacariae! rei sempre 0 que esperou que the abrissem a porta ao ‘ ven a ° (pé de uma parede sem porta E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira 2 us mun tapado. E own a vor de Deus num pogo tapade. 5, oe.) 5 eterénima pressupSe ‘Assim toda a poesia orténima e heterénima pres a amargura da ineapacidad’ de conhecer o que esta para além, uma vee adivinbado (em sonhos?) um além. A inteligéncia sente-se como suspensa no. vazio, rodea de‘tevas, em nada que a hablite a ratiicar @ intuigao: 1 Claude Roche, «Métaphysiques du Néante, in L’Homme"*, ‘Neuchatel, 1948, p. 105. 83 Guia-me a $6 razdo. Nao me deram mais guia. Alumia-me em vao? S6 ela me alumia', ‘S6 a Morte poderé desvendar o grande enigma. Mas, Perante a Morte, ha precisamente o pavor de entrar no Gescomhecido. Antes nio saber. ¢Nio, no, isso no! / Tudo menos saber 0 que € 0 Mistériol» — exclama angustiado Campos (11, p. 262). © tema do «temor da Morte> ocupa lugar de televo no Primeiro Fausto: «Ah, © horror de morrer! / E encontrar o mistério frente a frente / Sem poder evité-lo, sem poder ...2 (Vi, p. 130). Vitimas de um destino comum, Campos ° especial- mente o Pessoa orténimo iludem o espinho do cepticismo € do tédio («Se ao menos eu tivesse uma religiao qual- Quer!») com os sonhos, os acordes de uma vaga musica interior, as lembrancas e as promessas de nao sabem © qué—sempre com a lucidez melancélica de suspei- farem da jirrealidade do que lembram ou esperam ou imaginam. Outra espécie de devaneio que compensa tris- temente 0 cepticismo de Pessoa € 0 jogo da inteligéncia gratuita que concebe posigdes mentais possiveis e até antagénicas, como no debate estético Pessoa-Campos — jogo a que Pessoa chama o (P. D. E., p. 298). Con- vencido de que a verdade nada tem que ver com a l6gica formal ¢ a. preciso matemdtica, pois a everdade autén- ticas —diria Karl Jaspers — enasce sempre do contacto {ntimo com 0 sers ?, 0 Pessoa das demonstragdes logicas 1 Rovtas de Femando Pessoa, p10. 4 Cit. por Jackson de Figueitedo, Correspondéncia, CE Campos: *As ciéncias, ao aproximarem’se’ do. extado mat ‘itica, tomamse mais preciaasy ¢ poem dUVIGOSS deen isso, se tomem mais exactas» (P.'D. E., p. 138). 0 mestto Coe Pos propde que se irracionalize a meiafisica desdobrandoa em virias "metafisicas, ranjar sistemas do. universo goerentes e engracados, “mas” sem Ines dde verdades (P. D- E., p. 140). 84 ligar intensdo alguma divertese a mancjér uma inteigncia desigada do, ser ffarumento com que se pode at€ provar 0 absurdo, 0 insimygo deixa de ter o seu interesse. Imita assim aqueles radores de xadrez que, a dois passos da cidade incen- Hels Se aha do Sa {dtl —tema paradigmético de uma ode de Reis. 85 SER E CONHECER-SE (0 que aumenta a sensacio perturbante de que boiamos no Nada € a ideia da morte fisica ¢ principalmente a ideia da morte de todos os instantes. Poeta herdeiro da sabedoria antiga, Ricardo Reis fez desta ideia um dos temas habituais da sua poesia: «Tudo que cessa é morte, ea morte é nossa / Se € para nds que cessa ...> (p. 113). Mas 0 tema do fluir do tempo, expresso normalmente pelo simbolo do rio, é comum a Caciro, Alvaro de Cam- pos @ Fernando Pessoa. Caciro sabe que as bolas de sabio so «claras, ind- teis e passageiras como a Natureza> (p. 49); pede & ave {que passa que o ensine a passar (p. 64); contenta-se he- donisticamente com «sentir a vida correr por ele como um rio por seu lIeito> (p. 70) € goza-a constante mudanca as coisas como fonte de vatiedade que é: « (p. 49). Repisa as palavras para suge- rit o peso dos instantes que passam: «Parece que passam ‘sem Yer-me os instantes, / Mas passam sem que o seu passo seja leve ...> (p. 18). Dirige-se a0 rio como com- Panheiro de viagem: «Agua do rio, correndo suja © 7 fria, / Eu passo como tu, sem mais valer ...> (p. tu, valer ...> (p. 318). p E adopta o estilo de Reis («Clearly non-Campos!») para Quatro vezes mudou a stagi wudou a stagao falsa No falso ano, no imutével curso Do tempo consequente; fo gerd seaue 0 seco. & ao seco 0 verde; ‘do sabe ninguém qual € 0 primeiro, Nemo iitimo, ¢ acabam. 7"? ©. 315) No Pessoa orténimo, a ideia obsessi » a ideia iva de 1u | damos e morremos com'o tempo vazase algumen vezes hho ritmo bernardiniano da redondilha '. | Ondas do rio, to leves Que ndo sols ondas”sequer, | Horas, dias, anos, breves Passam —verduras ow meves Que'o mesmo sol faz 'morrer? gTudo que foi a mesma morte» — pondera Cam: os’. Mas nfo s6 0 que foi: 0 que esth sendo 0 auc Seré. De tal modo se entranhou em Pessoa esta ideia que até o presente the sabe a coisa morta, Vé-o sempre (exactamente como Reis) como perecivel. Quando owe a dria simbélica da flauta de um pastor sente saudade lela porque jé a imagina finda, jé realiza mentalmente «0 quando cessar> (p. 101); no «Andaimes, pede ao «Auk we ns cuts do se fle tt fe ae a conan: eae ln dame pats e's ue 6 a ‘so mais que partes da vida?> Bod Us eas ee ma Rep He Pe dine Ee | ese a ee >” Poesias de Alvaro de Campos, | 88 i «som mortor, também simbélico, das aguas do rio que eve consigo no s6 as lembrancas como as esperancas do poeta, «mortass, porque o poeta Ihes conhece 0 des- tino: eMortas, porque hio-de morrers (p. 234). © simile do rio tem plena propriedade porque as ‘imagens sucessivas que constituem a vida subjectiva fluem ininterruptamente ¢, como as éguas dele, no voltam atrés, Para Fernando Pessoa, recordar nao € reviver, € apenas verificar com dor que fomos outta coisa cuja realidade essencial nos nfo € permitido recuperar. Vimos dda sombra e vamos para a sombra. Sé6 0 presente & nosso, mas que é 0 presente senio a linha ideal que separa 0 passado do futuro? Assim toda a vida € fragmentétia, a personalidade una € uma ilusio, ndio podemos apreender fem nos uma constante que nos identifique. O sentimento heraclitiano da transitoriedade das coisas conduz & ne- gacdo do eu. Viver no tempo € depararmos com 0 vazio dentro de nés proprios: «Quem me diré quem sou?s (Pessoa, p. 113). Caeiro, como vimos, duvida da sua existéncia: «Ser real quer dizer nio estar dentro de mim. / Da minha pessoa de dentro no tenho nogio de realidade. / Sei que © mundo existe, mas ndo sei se existor (p. 91). Campos, ao debrucar-se sobre 0 poo do que supde ser, solta um ‘Ah! para ouvir um eco, mas s6 Ihe responde ‘a imagem ‘muda reflectida no evago alvor escuro> da sinutilidade do fundo> (p. 72). Nem se reconhece nessa imagem: «86 vagamente uma cara, / Que deve ser a minha por nao poder ser de outros '. Somos apenas 0 que que- riamos ser, ou melhor, o intervalo entre 0 que querfamos ser € 0 que os outros fizeram de nés, a personalidade social ou personage, que assumimos por convencio. Ou, melhor ainda, emetade desse intervalo, porque tam- bem hi vides (p" 123), essa vida obscura que vai sozi- ha, impenetrével a inteligéncia ... «Sei, enfim, / Que ' Cf. Supervielle, «Rupturess, in Le Forgat Innocent: sEstece moi qui suis assis / Sur le talus de la nuit? / Ce nvest pas méme un ami. / C'est n'importe qui 89 nunca saberei de mim» —diz uma poesia nfo assinada, incluida nas de Reis (1v, p. 132). «Dehors. Tout est dehors; les arbres sur le quai, les deux maisons du pont, qui rosissent la nuit, le galop figé @Henri IV au-dessus de ma téte: tout ‘ce qui pese. Au-dedans, rien, pas méme une fumée, il n'y a pas de dedans, il n'y a tien» Esta experigneia arrepiante do vazio interior, descrita em Le Sursis de Sartre (p. 285), € comum a Caciro e discipulos. «Sinto que sou ninguém salvo uma ‘sombra....»—lemos na lirica orténima (p. 84). O poeta estranha-se a si préprio: emeu ser / Tor- nou-se-me estranho> (I, p. 107). © pretenso eu afigura- -selhe multiplice, fragmentério, infinidade de estados Psiquicos, «simples colecgao de momentos», na expressio de Proust. Daf a sensacdo, nfo de viver, mas de softer passivamente a vida, como Uma série de contas-entes ligadas por um fio-meméria, Uma série de sonhos de mim de alguém de fora de mim. (Campos, p. 249) Na poesia orténima, Pessoa chega a pensar que nao passa de ponto de convergéncia de varios tempos-seres, de tal modo se sente vivido pelo tempo: «Um ditatado ¢ mérmuro momento / De tempos-seres de quem sou o viver?» (p. 139). E Soares julga-se o palco de sonhos independentes dele, cousificados, que the surgem de fora como 0 eléctrico’ que dé a volta na curva extrema da tua...» (Soluedo Editora n." 2), Quando tentamos reconstituir por dentro 0 passado, topamos dolorosamente com o vazio. O nosso «alguém> & ediverso € sucessivo: (x, p. 91). Campos fala do outro, daquele que foi vinte anos atras, como de um desconhe- cido; diverte-se a imaginar as duas figuras s6 por ironia com o mesmo nome — o Campos antigo e 0 moderno —, eruzando-se na rua e olhando-se com indiferenga (p. 292). Reis, por sua vez, confessa: «Se recordo quem fui, outrem me vejo [...] / Minha mesma lembranga é nada, e sinto / Que quem sou e quem fui / Sao sonhos diferen- 90 Fi tes» (p. 118), Ou entio: «Nao sei de quem recordo meu passado, / Que outrem fui quando o fui [...] / Nada de Nerdadeiro a n6s nos une— / Somos quem somos, quem fomos foi /Coisa vista por dentro» (p. 122), logo mentirosa, deformagao actual do passado. i ‘A infincia que lembramos no é, portanto, a infancia que tivemos, mas uma representagao actual da infincia; nem € preciso ter vivido uma infancia feliz para que a Infancia seja para nés uma idade feliz, A segunda vela- dora de O Marinheiro pergunta: «Ereis feliz, minha irma?» E a primeira responde: («Pages d'un Carnet», ia Cifomme', Neuchatel, 1948, pp. 171-172) a ha um «rio sem fim» que nenhuma ponte atravessa: «Unto our very selves we are abridged / When we would tutter to our thought our being» (Soneto 1 dos 35 Sonnets). «Entre © sono e sonho, / Entre mim eo que em mim / E ‘© quem eu me suponho, / Corre um rio sem fim» (Poesias ‘orténimas, 1, p. 175). Deste modo, nem sabemos qual das vidas que levamos, se a pensada se a vivida, 6 a nossa vida auténtica: Qual porém 6 verdadeira E qual errada, ninguém Nos saberd explicar; E vivemos de maneira Que a vida que a gente tem Ea que tem que pensar. (Poesias orténimas, 1, p. 182) Pela linguagem, € certo, podemos acalentar a velei- dade de nos fixarmos, de nos acharmos, de dar coeréncia ao gue Somos no tempo, Mas as palavras imoblizam 0 que por esséncia & mobil, logo atraicoam. Chegamos a ter Horror das palavras proferidas, jé independentes, de ns: As minhas palavras presentes — observa a terceira veladora de © Marinkeiro—, mal eu as diga, pertencerio ogo ao passado, ficardo fora de mim, n&o sei onde, igidas ¢ fatais ..» Coagida a trabalhar com palavras, a inteligéncia ndo esti apta a copular a vida. Por isso Alvaro de Campos reflecte: .eToda a emogio verdadeira mentira na inteligencia, pois se nfo da nela. Toda a emocdo verdadeira tem portanto uma expresso falsa. Exprimir-se € dizer 0 que se ndo sente> (P. D. E., p. 168). Juizo este incluso na célebre «Autopsicogratias, em re- feréncia A expresso literéria cm particular: © poeta & um fingidor. Finge tao completamente Que chega a fingir que é dor A dor que deveras sente, 92 —- . outros termos:.o poeta, sendo por exceléncia um ekpressor, & por exceléncia um fingidor. Joel Serrio no- tou, @ propésito, que Fernando Pessoa no faz a con- fissio do «fingimento da atitude literdria, mas, 20 in- vés», a afirma «que 0 poeta nos seus poemas exprime dor,” ou seja, se exprime a si mesmo» '. Interpre- tagdo que, fechando os olhos A consecutiva do 3.° verso, reforcada pelo emprego de chegar, transformava arbi- trariamente em regra 0 que: Pessoa dé como excepcio. ‘O que & habitual e inerente ao poeta como Fernando Pessoa o concebe é fingir os sentimentos, vive-los pela imaginaglo, em fungdo da obra a escrever. Lembro a frase da carta a Francisco Costa: «Pouco importa que sintamos 0 que exprimimos; basta que, tendo-o pensado, saibamos fingir bem té-lo sentido» *, Assim, a0 contrario do que supés J. Serrio, o primeiro verso 'da «Autopsi- cografia> indica o sentido global do poema: de tal modo (sao completamente) 0 poeta esta habituado a fingir para ‘exprimir que se Ihe torna inacessfvel a sinceridade ime- diata do homem vulgar. Quando, por excepsao (excep¢ao ‘que Pessoa preferiu para dar um exemplo frisante do jogo inteligéncia-sensibilidade), transmite 0 que sentiu (0 sentimento usado, na expresso de Pessoa), tem de fingi-lo para o transmitir. Contempla-se, faz-se espectador de si proprio, afasta-se de si proprio para se contai Oucamos’ainda Alvaro de Campos: «A maioria da gente sente convencionalmente, embora com a maior sinceridade humana; o que nao sente € com qualquer espécie ou grau de sinceridade intelectual, ¢ essa é que importa no poeta> (P. D. E., p. 285). A sinceridade inte- gral, absoluta, pressupde uma comunicagao com a nossa realidade intima, que, como vimos, 0 poeta considera invidvel. Apesar’ de tudo, & certo ‘que este, endo por andlise mas por intuicdo» (como diria Bergson), apreende a propria durée, a existéncia de um ew profunde que 0 1 Cartas a Armando Cértes-Rodrigues, «Singsla Introdu- cio A Leitura de FP, 2° ed, {1959}, p. 24. F Didrio da Manka’ de 12 de Dezembro de 1944, 93 define como alma (palavra querida do autor da Men- sagem)! Dai o interrogar-se dramaticamente na carta a Cértes-Rodrigues de 2-9-1914: «Nao sei se estou sendo_perfeitamente lticido. Creio que estou sendo sin- cero. Tenho.pelo menos aquele amargo de espirito que é trazido pela pratica anti-social da sinceridade.» De outra vez, porém, confessa com desalento: «Eu nunca sei neste ou naquele caso, 0 que-sentiria. As vezes nem ‘mesmo sei o que sinto» (carta de 4-10-1914). Precisamente esta dificuldade, se nio impossibilidade | absoluta, de saber o que sente, de a inteligéncia contactar com o rio da alma, teré levado Pessoa a hesitar entre dois caminhos: dizer, sem pensar, 0 que primeito Ihe yem cabeca [é 0 caminho que prefere na resposta a um inguérito (P. D. E., p. 297), mas tem 0 perigo de fazer cair na sinceridade’humana ‘convencional]; ou entdo re- unciar & austera sinceridade humana, no convencional, que ambicionava ao escrever a0 amigo, ou pelo menos desistir de a procurar por via directa. Pessoa optou quase sempre pelo segundo caminho, limitando-se & sinceridade mais facil do fingimento, que & a conformidade entre a expressdo € 0 que se finge sentir, por outras palavras, © que se sente pela inteligéncia ow pela imaginacio?. Nao serd por este motivo que a obra de Caeiro, a mais impes. soal, a mais heroicamente subtraida ao’ psiquismo. do 4 Bo sentimento desta distingZo bergsoniana entre 0 moi de surface © © moi profond que leva igualmente Jackson de Fe suciredo a compeneirar-se do drama da sinceridede: «Pelo me. hos ‘ser completamente sincero fora realizar tm poliedro infi- nto... mas impossivels (Correspondéncia, 2 dy 'p. 129). IE evidente que a palavra fingimento nio €' em F, Pessoa jincompativel com “a ideia de autenticidade, Em poesia, cot feito, a tealidade ‘imaginada no 6 menos verdadcira. que a gutra, (P. D. E., p. 131). Pessoa padeceu dramaticamente 0 97 suplicio da sua grandeza: «O emprego excessivo ¢ absor- vente da inteligéncia — diz ele na carta a Cabral Metello publicada na Contempordnea em Fevereiro de 1923—, © abuso da sinceridade, o escripulo da justiga, a preo- cupacio da andlise, que nada aceita como se pudlesse Ser 0 que se mostra, so qualidades que podero um dia tornar-me notdvel; privam, porém, de toda espécie de elegincia porque’ no permitem’ nenhuma ilusio de felicidade.» Pessoa e os heter6nimos so undnimes em exprimir nostalgia do estado de inconscifncia, a nostalgia do en-soi, dria Sartre. Até Caeiro, quando nao se pinta como Queria ser, lamenta desdobrar-se no eu que sabe: Os meus pensamentos so contentes, 'S6 tenho pena de saber que eles sio contentes, Porque, se 0 nao soubesse, Em vez de serem contentes e tristes, Seriam alegres contentes. (p. 20) E parece invejar a completa inscigncia das frvores: «Mas que melhor metafisica que a delas, / Que é a de no saber para que vivem / Nem saber que 0 no sa- bem?» (p. 27). Campos, apesar do seu vitalismo postigo, traz consigo «0 espinho essencial de ser consciente> (p. 312). Também rele os sentimentos pensam, ¢ por isso admoesta 0 cora- s@o: «Para, meu coragiol / Nao penses! Deixa o pensar na cabecals (p. 284). E tio farto esti de analisar, de esmiugar, de ver «as subtilezas, o intersticio, 0 entre», de fazer’ «metafisica das sensagdess (p. 325), que dese jaria ser folha de drvore titilada pela brisa ou pocira de uma estrada (p. 261)! e pede & Noite, «carinhosa do Além, senhora do luto infinitos, que 0 afogue em si p. 218). 1 precisamente o voto de Casi: «Quem me dera que eu fosse 0 p6 da estrada...» (p. 43). a he 98 A ansia humand de ser rio ou cais! Als que ansia 325 No seu espirito desfilam as figuras simbélicas da trivialidade descuidada: «Feliz 0 homem margano / Que tem a sua tarefa quotidiana normal, to leve ainda que pesada ...> (p. 31). eSe eu casasse com a filha da minha avadeira / ‘Talvez fosse felize (p. 257). E a queixa repete-se até & saturagdo: cansago de pensar, indo até ao fundo de existir, Gocme velho desde antes de ontem com i tno a no [corp Reis, apéstolo da lucidez epicéria, oscila, como vimos, entre t'dignidade do pensar © © goz0 da’ «ndo-pensada vidas. Aconselha Lidia a ser insciente de que a vida vem rapidamente da noite para a noite (p. 34); adverte que a melhor vida € a que «dura sem medir-ser (p. 82), 1e «mortalmente compramos / Ter mais vida que a fda» (p. 83). . earl, o tema & 2 cada passo retomado na poesia ‘orténima: «Doo-me até onde penso, / E a dor € jé de pensar ..> (p. 221). Nao vale mais o bem-cstar fisico do gato que brinca, obediente as leis universais do ins- tinto? Para qué essa cruel trituragéo mental que nao conduz a nada? inveja a inconsciéncia de uma flor: «Ah, ante a ficgdo da alma / E a mentira da emogio, / Com que prazer me dé calma / Ver uma flor sem razio / Florir sem ter coraciol> (vit, p. 41). Isenta de duplicidade, a flor nio se defronta com o problema de ser sincera... ‘Uma inteligéncia de tal modo compulsiva estanca as préprias fontes do lirismo; 0 poeta, que atravessou longos eriodos de esteriidade, como se conclui das datas das suas poesias, recorda com saudade, num poema que comega «HA quase um ano nio ‘screvo...» (I, p. 142), 99 0s tempos em que a inspiracdo vinha até ele, involunté- ria e gratuit Hoje penso quanto faco, ‘Screvo sabendo 0 que digo estado de lucidez na criagdo tipico de Pessoa, A. intervengio do intelecto traduz-se muitas vezes pelo stmbolo da miisica ou da voz que se cala malo Poeta a escuta. eQuero o siléncio / Para dormir / Qual. quer meméria / Da voz ouvida, / Desentendida, / Que i perdida / Por eu a ouvir...» (p. 204). O| mesmo motivo, com idéntica expresso, se encontra na Men. sagem (p. 79): E a voz de alguém que nos fala, Mas que, se escutamos, cala, Por ter havido escutar. Um dos mais belos poemas orténimos, «Ela canta, Pobre ceifeira ...», imclui a aspiracéo A vida instintiva, © poeta dirige-se & ceifeira, enfeitigado pelo seu cantar: Ah, poder ser tu, sendo eu! Ter a tua alegre inconsciéncia E a conscitneia disso!... @. 11) Mas aqui o poeta reconsidera, quer e no quer; formula a ambigdo impossivel (¢ 0 sabé-la.impossivel contagia de tristeza o canto da ceifeira) de ser conscien- femente inconsciente. E que, se bem. ponderarmos, (p. 180) ‘do passa de uma alegria acrescentada, por nés atribuide as coisas, por nés experimentada em seu nome gragas ‘8 imaginagao '. Ser inconsciente € nao ser: eS6 a inoceneia 1 HG um Paso de Fatho de Almeida em que Luis Amaro me fez 2 teparar © que, de facto, apetece ‘aproximar ‘de Fer 100 ncia so /, Felizes, mas néo 0 sabem. Sio-no ot" Gus € ser sem a0 saber? Sere como a pe- Gro, / Um lugar, nada mais» (fragmento do Primeiro Fausto, vi, p. 97). A alegria inconsciente no € ale- Bor isso Jean-Paul Sartre pinta o homem com tm ente viscoso, sempre vacilante, que quer gozar, logo ter ainda conscigncia, da tranquilidade passiva> morte, deseja 0 «compre Incoerentes, de set uma coisa pensante’. Pessoa exemplifica admiravelmente esta. situacio: oscla perplexo entre 0 horror de pensar jorror da morte absoluta. rama da Je argue de Valery drama, impiito sob forma, serena mas francamente desiludida, num poema de Caeir ir as ovelhas — 3 do monte, 10 longe de mim com as tas ovelh Que fede @ esa qu parce frat ou mia? ino te veo. pertencerme, apt aie so. guando te no ‘pertencerme,. ou Nao, nem a ti nem a mim, pastor. Pertence 98 & felicidade e'® paz. Nem’ a fns, pore nfo stb ge @ tens Nem eu a tenho. porque tel que a te oD” epee toe en se Ross, a,c, el So Owe, stem © Soi ects Eat Sa seo doe at iver ee eh ha ssciéncia' de si préprio: «Oh, como eu qt More 2 coc eh rom, oh ne, Ge Gator 3 fk (iba oredr, Cah i, Ber th ae deta gat tae ele sito Sen ae SES et Sa oS tee ttatbe axl ales Soa peg ental Sel See P PP cpert Campbell, Jean-Paul Sartre on une ltérature vis, Sem Je Pa 101 Como 0 pensar esfria o sentir, a alegria perfeit Pertence a eile mundo, é 3 imaginada, $5 of cutos sa elizes —repete aqui ¢ além Alvaro de Campos: Na casa defronte de mim e dos Que felicidade hd sempre! ae Moram ali pessoas que desconheco, que j 0 vi. Sao felizes, porque ndo sto ae ee ee ©. 55) Domingo irei para as hortas na pessoa dos outros lingo serei jelic —cles, cles (. 57) __ A estes versos responde a voz lo 103), Alem da cortina é 0 lar, / Além da jancla sonho» (p. 132). «Quanta alegria onde os outtas s80 / E iagam bem! /” Dei-lhes de graga meu corasio / Eo que cle tem» (p. 193). Mas, claro est, se 0 posta sabe Seine SB $6 meginaa,fleamente aibuida tos outos, omo a. pc Ser feliz & ser aquele, tio € felix / Porque pensa dentro dele / tao does do que eu quis» (vi, p. 48). Mais uma vez, a luide intertere para ‘destruc, 0 pensamento ‘de’ Fernando ss0a, aguilhoado pela fome de absoluto, cond uma situa¢io dilemética intransponivel. 402 a OS MOMENTOS INEFAVEIS Resta 0 bilsamo entre suave ¢ melancélico desses ‘momentos volateis em que 0 poeta vistumbra um néo sei qué implacivel, magicamente sedutor, que espreita para Togo se esconder —um nao sei qué de esséncia musical ', que a inteligéncia critica sempre alerta néo apreende © por isso endossa as poténcias loucas da fantasia. Assim, Fernando Pessoa, lirico das vozes ocultas, ouve do vento «memérias ¢ saudades e coisas que nunca foram; ¢ logo © Alberto Caeiro positive que nele coabita adverte impie~ dosamente: «O vento 36 fala do vento. / O que the ouviste foi mentira / E a mentira esta em tis (Caciro, pp. 38-39); Caciro, porém, nfo evitaré o regresso das Vozes misteriosas © das visdes didfanas; Pessoa esté predestinado & docura fugaz desses- momentos © & pena Ge os perder e de Ihes medir a falsidade. Lamenta-se por set Caciro, extrovertido e calmo; chora porque entre tle, Pessoa, eo . Se igualasse o mestre, no teria a inquieté-lo o pensa- mento dessas visiex’ ¢& brando o dia, brando 0 vento... / Assim fosse cu, assim fosse cul» (Poesias orténimas, p. 156). 1 Cf. 0 titulo (Campos, p. 308). ‘De acordo com o seu estilo peculiar, em Campos a poesia da infincia ganha um descritivo mais realista: © CL Charles Mauson, Mallarmé obseur, Paris, 1941 2 Gontava Carlos Queisés que Fernando Pessoa gostava de brincar com eriangas exactamente como se fosse uma crianga. Bets mesma’ tendéncia do. seu espirifo ajuda a explicar quanto Eostava de lee os romances de Dickens que o encantaram na Adolescéncia, 105 silo 0s series de mela provincia, o aparador com doces _ © frutas, visitas de primos ¢ tias velhas no dia em que © menino faz anos (cf. , que seria um estado inocente de indiferenciacio, €m que © ser ainda no se desdobrou no eu reflexivo, tem por objecto a infancia. As vezes nem sabemos quando esse paraiso existiu ou mesmo se existiu. E ape- ‘nas a evaga saudades, evago desejo plicido> de Caeiro (p. 59), ou entio uma’ espécie de reminiscéncia plat Jembranga esbatida do que nfo pertence a este mundo © desperta na alma pelo sortilégio de um cantar. «J4 no tomnarei a ser aquilo que talvez eu nunca fosse ...» — ‘murmura a primeira veladora de O Marinheiro. «Quando alguém canta — segreda a terceira—eu nao posso estar comigo. Tenho que nao poder recordar-me. E depois todo © meu passado torna-se outro e eu choro uma vida ‘morta que trago comigo ¢ que nio vivi nunca» (v1, p. 46). £ um paraiso perdido que ja se nio situa no tempo: «Em cinza e ouro o rememoro / E nunca o vis @Pessoa orténimo, p. 85). Saudade triste, por se saber que € irreal aquilo de que se tem saudade: «O que me d6i ndo é / O que hé no coracio / Mas essas coisas lindas / Que nunca existiréo ...» (p. 170). Outras vezes & Rostalgia mistura-se a promessa que nfo se cumpriré, um inexplicével desejo sem esperanca: «Forma longinqua ¢ incerta / Do que nunca terei ...» De tudo isto resulta © timbre melancslico, 0 sabor ‘a irremedivel destas té- ‘aues melodias que enchem, por momentos, de uma irrea. lidade Iuminosa a alma atormentada do pocta, 106 MELANCOLIA E DESTINO mando Pessoa buscou avidamente a felicidade, como, quem nasccu para ser feliz, Buscou sem encontrar, porque cedo o torturou a fome inextinguivel de conhecer; ‘a inteligéncia discursiva s6 the deu a certeza de que etudo € ocullos; as intuigGes intermitentes de uma realidade supra-sensivel eram escuras ¢ ambiguas, nio as podia sancionar a razio; ¢ 0 deménio da anélise amorteceu rele ambicdes ¢ sentimentos vulgares até quase a0 ani- quilamento. O poeta assiste de bragos descaidos & disso- lugio do eu: A vida? No _acredito. ‘A crenga? Nao sei viver. (Poesias ort6nimas, p. 135) it is do que ele experimentou a sensagio pungzie de estar condonado 4 sob, © condenado nfo apenas pela superioridade do seu espirito (iio encontrava almas & sua volta, ¢ dai a sincompatibilidade profunda ‘com as criaturas que 0 rodeiams> de que se queixa a Crtes-Rodrigues) mas ainda porque s6_pelos sentimen- jos allcuistas vencemos as barreiras individuais, ¢ Pessoa, ttinado pela acgao. de" ume intligenciahipettofiada, quase nao era capaz desses sentimentos. «Meu Deus, ¢ feu que no tenho a caridade! ..» (Campos, p. 69). Por essa causa vive fechado no egofsmo, «86, s6 como ninguém 107 Sai _ » (Campos, p. 18). A sua desgraga, bem de um pobre de pedir, € estar fora das’ «nor- sentimentais da vida>, ser um eisolado na 6) que, subjugado pelas poténcias da inte- fo, se eré «mais irmfo de uma frvore de um operirior (p. 226). , the chamou em verso Gil Vaz (Presenca n° 48), ‘saté amaria o lar, desde que 0 ndo tivesse> (Campos, P. 287). O temperamento e talvez as circunstincias bio” gificas (6rfio de pai_aos cinco anos, aos sete a mie deu-lhe um padrasto) fizeram de Pessoa um homem se~ gegado, anti-sentimental, anti-humanitério, separado do undo por «uma névoa> (Péginas Intimas, p. 27), entre- i u Hi De qualquer modo,’ 0 egotisino, ‘retraimento, a eintransi- tividades. sto trapos distintives de. Pestoa com justice assinaladoe sa critea: «A intransitividade, ou seja (Giz Gilberto de Mello 108 ‘que © pensamento do amor. A consciéncia que tem de amar afrouxa no poeta 0 amor; 20 confessé-lo, ouve-se a si préprio, ¢, “ouvidas, as suas palavras ganham um timbre diferente. De facto, 0 objecto do seu amor & 0 proprio amor: (v1, P. 122; ef. o culto da infecundidade em Baudelaire). Ou ainda: 'O amor causa-me horror; € abandono, / Int dade...» (Vi, p, 123). Por excepcdo, uma composico das Poesias orténimas’ exprime desejo: descreve a mu- Iher, alta, loura, de corpo meio maduro, seios que pare- cem montinhos ... «Meu Deus, quando é que eu em- barco? / © fome, quando é que eu como?s (p. 126). Mas o leitor habituado ao clima espiritual de Fernando Pessoa inclina-se a dar aos ltimos versos um sentido figurado que transcende 0 apetite sensual lum deus a espreitar.me!s (Poemas Draméticos, p. 120), «Sinto horror / A significaeio que olhes humanos / Contém ..» (9. 121). ‘Cleonice ‘Berardinelli, por sua ver, acentua’ «Ainda quando parece voltarse para os problemas humanos, 0 que v6 neles & Ho-somente “um alargamento doe seus, tum reflex” das sues reocupasiess (Poesia e Pottice de Fernando Pessoa, Rio. de Janeiro, 1958, p. 56), Assim se explicaria a. simpatia da. posts pelas ‘etiancas: elas busearia & sua prépria infincia ‘malograda, “Olha-me tindo uma crianga /"E na miaha alma madrugas (VIII, p. 171. Ponto de vista que David Mourdo-Ferreira retoma ‘a0 cOmentar as Carter de Amor. ‘Note-se entretanto que Pessoa foi capaz de uniéo na amizade: 1a morte de Sé-Cameiro causowlhe uma dor que desabata de modo Impressionante (ef. VII, pp. 184-186). 109 © poeta traz, pois, dentro de si, 0 principio de estio- lamento da vida’ afectiva. Os ventos da inteligéncia cres- taram-Ihe a alma. Chega a sofrer de nio sofrer humanamente, como quem tem interesses e amarras sen- timentais, como quem, influfdo, desempenha na vida ingenuamente 0 seu papel: Ditosos a quem acena Um tengo de despedidat Sao felizes: tém pena Eu sofro sem pena a vida. @. 21) Uma estrela maligna fadou-o para o malogro em relagio aos motives de felicidade; onde pos a afeicio, logo secaram as fontes; nunca teve um prazer que du- rasse, que ndo redundasse em perda antes de 0 gozar (p. 97). «Nao sei. Falta-me um sentido, um tacto / Pa a vida, para o amor, para a gloria ...» —lamenta Cam- pos (p. 18), acentuando essa inépcia congénita para os sentimentos humanos e simples, essa vocacao de falhado @ que jé aludem magoadamente os 35 Sonnets. Antes fosse coxo ou maneta que um mutilado de alma. Assi nao sendo visfvel a mutilacdo, os outros responsabil zam-no pelo que € apenas obra do Destino (soneto xxx1V). ‘Mais humildes no Pessoa orténimo, mais revoltadas em Campos, estas queixas, se no implicam um drama espec- tacular, porque é frouxo no poeta o instinto de viver a vida comum, revelam no entanto 0 espinho de uma re- aniincia forgada, a desolagio de um frio interior que no ha sol que mitigue: Sol nulo dos dias vaos, Cheios de lida e de calma, Aquece ao menos as mios ‘A quem ndo entras na alma! (@. 100) Na verdade, que resta a0 poeta senfo o frio de um Pensamento que rumina a angtistia e a invalidez, ou entio a vacuidade pueril dos sonhos e pressentimentos de nada? 10 ‘As brisas favordveis trézem-Ihe, de quando em quando, as visdes de «coisas lindas» que estio para além do muro. Nao ha divida: pensar, sonhar, constitu a sua wocagao. Campos eprefere pensar em fumar épio a fu- milo» (p. 226). «Nao posso querer ser nada—diz tle. —A parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo» (p. 250). Mas 0 excesso de pensamento entor- pece a propria vontade de sonhar (soneto xxix dos 35 Sonnets). A Wha Longinqua das suas cartas e da sua poesia — bem 0 sabe—é pura fantasia, Também 16 0 frio penetra na alma, o bem dura pouco, o mal dura sempre. «£ em nos que é tudo» (I, p. 161). Dissipados os fantasmas magicos, de novo a existéncia fica terrivelmente vazia e sem sentido. O poeta desperdicou os dias er- guendo sonhos inéteis a um céu impassivel: ‘Ah, quanto do meu passado Foi s6 a vida mentida De um futuro imaginado! (p. 232) Porque fiz eu dos sonhos ‘A minha tinica vida? (p. 124) Submetida a um olhar retrospective, a vida que iludiu sonhando, projectando o irrealizével num futuro Jonginquo, adiando sempre, afigura-se absurda, tal qual em toro da casa por fabricar. Envelheceu distraido; quando acordou, foi tirar, a mascara diante do espelho ¢ mal se reconheceu (Campos, p. 255). Mas al- guma vez estaria a tempo? Nao 0 condenara qualquer forca oculta ao disparate de uma vida oca? Este sentiment de que a vida, em lugar de obedecer a um plano, é feita de pedacos sem nexo, situa-se no Amago da melancolia de Fernando Pessoa. Nenhum prin- cipio orginico a entrelacar os fragmentos do seu existir: «Grandes magoas de todas as coisas serem bocados ...» (Campos, p. 25). A vida € como os sons de uma flauta que trila na noite: «perdida / Série de notas vaga € sem sentido nenhums (Poesias orténimas, p. 101). Pes- M1 soa é um homem sem histéria, quer dizer, no seu passado ‘no descobre um fio condutor, ndo vé mais que uma sucesso de momentos initeis. Nao realizou uma perso- nalidade no tempo: deixou o tempo, monétono e fitil, passar por cle. eTenho pasado estes iiltimos meses — escreve a COrtes-Rodrigues em 4-9-1916 —a__passar estes tiltimos meses. Mais nada, ¢ uma muralha de tédio om cacos de raiva em cima.» Incumbiu Alvaro de Campos de exprimir nvamente © cansago, 0 tédio, a sensa¢io dolorosa da existéncia vegetativa ¢ absurda, «Mary, com quem eu lia Burns, em dias tristes como sentir-se viver...> (p. 222). «Nao durmo, jazo, cadaver acordado ...> (p>271) — insiste ele, aproximando-se na expressio do «cadaver adiado que proctias da Mensagem. «Que mais haveré em seguir sendo no parar mas seguir?» A regularidade das horas que deslizam, repetidas e intermindveis, amedronta-o: O horror do som do reldgio a noite na sala de jantar de Tuma casa de provincia, Toda a monotonia ¢ a fatalidade do tempo .. (pp. 113-114) Mas esta endusea da vidas, este «intimo tédio de tudo», a sensagZo de que a vida € ca mesma coisa va- rida ‘em cépias iguais» (p. 110), como a chuva que cai clenta, continua, monétona, uma» (p. 27), j& os encon- tramos quer nas cartas de Pessoa a Cértes-Rodrigues quer nas falas maeterlinckianas de O Marinheiro: «lm- porta tZo pouco o que dizemos ou nao dizemos ...— murmura a primeira veladora.— Velamos as. horas que passam ... O nosso mister é indtil como a vida...» Cui- dar da alma ja morta—diz por seu turno 0 Pessoa ‘orténimo, tirando partido da aliteragio — nao & mais que vacuo €'vao desvelo / de quem nao vela nada» (p. 145), Quase maresia / A hora interroga, / E uma angistia fria / Indistinta voga. // Nao sei o que faga, / Nao sei © que penso, / O frio nfo passa / Eo tédio é imenso> {p. 81). E ainda: eVejo com horror / O novo dia tra- 12 zer-me o mestho dia do fim / Do mundo ¢ da dor — / Um dia igual aos outros, da eterna familia / De serem assim (p. 108). tédio, «ce monstre délicat» que Baudelaire ensinou a cantar, é'0 reverso de uma fome de Absoluto que tudo contraria ironicamente, O desejo de viajar, correr mundo, renovar constantemente sensacdes, corresponde A neces- sidade de inebriar a alma insatisfeita de quem nfo encon- tra na vida motivos para viver. De facto, viajar, na ima- ginago do poeta, € eser outro constantementes, «viver de ver somentes, endo pertencer nem a mim> (p. 184). (© espectadorismo, 0 alhear-se de si, quadram & psicolo- gia de um homem torturado pela auto-andlise ¢ inepto ara a acco, Mesmo assim, € preciso dar os primeiros fazer as malas, subir a prancha ... E tudo isso usta tanto! Qualquer’coisa prega Fernando Pessoa a0 lugar em que esté; no 6 ter af rafzes, porque em toda ‘a parte & um desentaizado; mas o medo de decidir-se, de ‘comprometer-se, 0 apego a0 que se tem, embora o que se tem seja tio pouco: Quero gozar 0 repouso da gare da alma que tenho Antes de ver avancar para mim a chegada de ferro Do comboio definitivo [...] Quero, neste momento, fumando no apeadeiro de hoje, Estar ainda um bocado agarrado a velha vida... Alvaro de Campos (p. 305) no ignora que esta avelha vida> € initil € prisioneira. Por vezes alimenta © sonho da evasio pela viagem: «Ab, seja como for, seja por onde for, partir!» (p. 171). Mas nao é tudo ini til, nfo € todo 0 mundo uma cela? Antes ficar, adiar sempre (Campos € 0 poeta dos adiamentos), porque fi- cando do sofremos to agudamente a sensacdo de que ‘a vida é uma série de mortes: 44 mipha obra? A minha alma principal? A minha vida? / Um eaco. / E os deuses olham-o especialmente, pois nio sabem porque ficou alir (p. 280). O tema do malogro pessoal é comum & poesia ort6nima: «Que nojo de mim me fica / Ao olhar para 0 que facol» (1, p. 179). «Nada vale a penas—nem os sonhos—garante a segunda veladora de O Marinheiro (vt, pp. 55-56). ‘Uma ver. caido neste abismo de desalento, julgariamos que 0 poeta s6 teria o refégio da semi-inconsciéncia em que 0 tédio se adelgaca até quase ndo doer; a desatencio dos pensamentos que boiam ao acaso; 0 sono, a morte em vida: © largos campos jé cinzentos ‘Na noite, para além de mim, Vou amanha meus pensamentos Enterrar onde estais assim. Vou ter ai sossego € fim’. Mas a poesia de Fernando Pessoa tem outra face, esta heréica, em que se procura superar o tédio_ pela intuigio de um destino supra-individual. & a poesia da ‘Mensagem. Em Campos e na Mensagem surpreendemos a oscilacao de um mesmo espirito entre a desisténcia € 0 so- rho a que se chama f. Campos vé na sua melancolia a me- lancolia de um povo que teve um Império ¢ 0 perdeu, fi- cando sem objecto para a sua Ansia até sem forcas para desejar. ePertengo a um género de portugueses / Que depois de estar a India descoberta / Ficaram sem traba- Tho» (p. 138). Mas o desejo renasce das cinzas: Fenleios! Cartagineses! Portugueses’atirados de Sagres Para a aventura indefinida, para 0 Mar Absoluto, para Lrealizar 0 Impossivel! (p. 174) 1 Poesias de Fernando Pessoa, p. 128. us pe A India que o poeta busca, bem o sabe, s6 hé dentro dele (p. 136). © Longe a que aspira nfo passa de uma quimera: ¢Viajar ainda é viajar e 0 longe esté sempre onde esteve— / Em parte nenhuma, gracas a Deus!» (p. 196). Mas se 0 poeta afirmar, num desafio quixotesco, a realidade da quimera? Porque nfo seré mais real 0 que 6 existe dentro da alma? Quando um chorror de se ter» invade 0 coracdo do poeta, porque nfo hé-de seguir o exemplo da ave que se liberta no azul? «Querer € poder.» «Tudo vale a pena, / Se a alma no é pequena.> A preia-mar do idealismo aproxima-se, o dinamismo do sonho alastra, impde-se. «E sempre melhor o impreciso que embala do que o certo que basta» — diz Campos, P. 240. «O sonho € ver as formas invisiveis / Da ancia imprecisa ...»—reza a Mensagem (p. 53). Cam- pos clama, numa dnsia tumultuosa: Ah, seja como for, seja por onde for, partir! Largar por af fora, pelas ondas, pelo perigo, pelo mar, Ir para Longe, ir para Fora, para a Distancia Abstracta ... Tré em demanda do «Puro Longe, liberto do peso do Actual» (p. 169). Entramos no dominio das maitsculas. E a voz épica de Campos ecoa na Mensagem: E outra vez conquistemos a Distancia — Do mar ou outra, mas que seja nossa! ©. 67 Esta aventura no subjectivo, «num mar que nfo tem tempo ou espago», & procurd do Longe, da Distancia, do Indefinido, do que nfo existe, tem na Mensagem a just de um imperative nacional. Foi Deus que designou este destino ao povo portugués. A inteligéncia de anélise desce discretamente & platela. para actuarem no paleo «os palpites, a inspiracdo, 0 espitito profético fenomenos a que alude 0 Interregno. . Quanto & melhor, quando hé bruma, Esperar por D. Sebastido, Quer venha ou nao! U6 grita 0 Pessoa ort6nimo, reproduzindo o pensamento da ‘Mensagem. © que interessa € a grandeza do’ ideal, no © resultado do esforco. O ideal, ao menos, confere um significado 4 vida."A loucura justifica o heréi: «Louco, sim, Iouco, porque quis grandeza / Qual a Sorte a nao dé» (V, p. 36). Teoria do herofsmo que vem numa fala do Primeiro Fausto: «S6 a loucura € que & grande! / E 36 ela é que é feliz!» (vt, p. 100). Abandonado por uma inteligéncia consumptiva ao pasmo de se sentir imerso no ‘nada, 0 homem recupera o orgulho ¢ a justificagio dos seus ‘pasos gracas aos poderes de uma intuicio messia- nica. Ao mesmo tempo humilha-se ¢ exalta-se ao inves- tirse ma qualidade de agente do préprio Deus, ou do Fado, que sagrou a Nacdo. Na Mensagem continuamos a observar a duali- irito, grotesco-sublime, contingente-abso- Iuto, morte-vida. Agora, porém, € 0 eterno que em nés mora que triunfa da morte, a grandeza de alma que vence a torpeza do vegetar. A «febre de Além>, que o poeta sentiu e exprimiu em seu nome antes de & atribuir ao infante D. Fernando, indica-lhe a sua missdo, (© seu coragio endo tem que ters (6 a queixa que vem da poesia litica de Pessoa e Campos), mas o mito do Encoberto dara forma ao caos de uma existéncia sec- cionada e estéril: «S6 te sentir ¢ te pensar / Meus dias vacuos enche e doura> (p. 87). Inserindo-se num des- tino colectivo & luz do qual o pasado se torna Histéria porque avanca, movido por uma vontade oculta, para um alvo mais ou menos indecifrado mas certo, © poeta arti- culou os fragmentos da sui existéncia, achou-Ihes uma Tazo de ser. Quer dizer, anulow as ‘causas do tédio: eDans le destin, le génie invente Punité de son individua- Tité; il triomphe définitivement de la Mélancolie> '. Na 1 Guillermit et Vuillemin, Le Sens du Destin, Neuchitel, 1948, p. 28. Enguanto Pessoa orténimo 6 um nirvanista das sensagdess, afundado na monotonia do. passar das horas sem Sentido, ssurpreendentemente (esereve G.. de Mello Kujawski), ‘Mensagem decanta 0 precipitado daquele tempo que ndo passa, u7 obra de Pessoa, a Mensagem representa esse triunfo. Figue, porém, bem claro que se trata de uma vitéria epis6dica, realizada no plano est que a inteligéncia de anilise, posto que interferindo ainda ii ¢ ali, dew tréguas & vontade de crer e a intuigio ica.’ As ecertezas» da Mensagem, apresentadas algumas vezes nessa mesma obra como itrealidades, no invadem de modo algum todos os sectores da vida’espi- ritual de Pessoa, que continua a ser medularmente um melancélico. Por isso nos diz: «Crer é morrer; pensar € duvidar ... / [...] A f€ € isto: 0 pensamento / A querer enganar-se eternamente ...» (Vt, pp. 96 ¢ 97). Em carta, assevera a Casais Monteiro: «Sou, de facto, um nacio- nalista_mistico, um sebastianista racional. Mas sou & arte isso, ¢ alé em contradico com isso, muitas outras coisas.» E lamenta que, estreando-se (fora das revistas, € & parte alguns folhetos) com a Mensagem, pudesse dar uma ideia falsa de si proprio'. © tempo em sua. exemplaridade mitica, ou em sua Verdade ‘maior. Supera 0 nirvanismo do instante fugaz e fixa aquilo que hé de intransitive na histérias Gn “Convivium, ano ly Oumbro de 1962, p. 47). 5 No seu exemplar da obra de R. W. Livingstone The - Bs" junto deste curioso ‘seus» cativos em nds. ¢ das ‘crengas ludicamente professadas: «It is one thing to toy with a belief, {0 be attracted by the beauty and romance of it, to indulge Dele ympaty, set fee fora mement one of the many selves bound up in us, to rhapsodize with the prophets of a creed Which is alien from our inner temperament and ultimate convic- tions: it is another thing to believes + Portugueses eque depois de estar a India descoberta / Ficaram sem trabalho» lembram os versos de Nobre:. «Tanton vadios sem nada na mio / Sempre A espera de D. Sebastigos Wespedidas, p. 123). Segundo Joel. Serrao, ‘também. Nobre, ‘ragicamente desiludido, (entara 0 camino postico da squigneray consciente de que o é, procurara forcar a realidade com ‘palavras mégicas a que nio aderia. Lucidamente, Serrdo conclui; «At ‘vés dos frustes escombros de 0. Desejado pode divistrse, a0 Tonge, a nitidez aérea da Mensagem, de Pessoas (Temas Oito- ccentistas Il, Lisboa, 1962, pp. 213-214). 18 ‘0 em momentos em - | i DIVERSIDADE E UNIDADE DE ESTILO Portador de eforcas vivas> que o solicitavam em varias direegdes, apostado, por exercicio do espirito ¢ diverti- mento estético, em cultivar ¢ levar as iltimas consequén- cias as préprias disparidades latentes, dotado, para mais, de uma excepcional capacidade de se desdobrar, de fingir (¢ decerto por este motivo, nas notas biogréficas cedidas a Cértes-Rodrignes, realcou complacentemente a «tara habilidade de representar ¢ de imitars do av6 materno, «chegando a produzir uma imitagdo de uma discussio, fazendo as vozes diferentes da mesma»), Fer- nando Pessoa estava em condigdes invulgares para criar * estilos, os estilos dos heterénimos. Mas conseguiu neste campo ‘uma completa despersonalizagao? No caso afir- mativo, a critica viria a reconhecér, com o Alvaro de Campos do Ultimatum, a inanidade do «dogma da perso- nalidade>, porquanto 'bem mais individualizante que a frequéncia de certos temas, ou até a preocupagio por certos problemas, é uma atmosfera estilistica expressiva de um temperamento, de uma cultura, de um angulo de visio peculiares. Sem davida que na comunicagao.lin- guistica ha sempre uma escolha mais ou menos consciente dos meios de expresso, ¢ tanto mais consciente quanto ‘mais culta, intencionalmente literéria for a linguagem. © estilo, ¢ principalmente 0 estilo escrito, € em parte 121 voluntério. Fernando Pessoa péde, até certo ponto, fa- zer 08 estilos dos heterénimos a medida que foi vendo melhor dentro de si, cindindo-se para melhor se com- preender, explorando’ as virtualidades do Reis, do Cam- pos, do Caeiro que nele coabitavam. Mas—repito a ergunta—para além desses estilos diversos no se divisaré um micleo de personalidade una, um denomi- nador comum estlistico insofismavel? Pessoa, a confir- mar a assergdo vossleriana de que cada homem tem o seu estilo, nfo ter gravado os sinais da sua alma e da sua mente singulares nas linguagens dos heterénimos? Seria necessério meter ombros a uma paciente anélise estilistica para caracterizar com relativa precisio a ori- alidade do timbre da sua voz na obra toda como pre- senga espiritual permanente, «cette qualité inconnue (di- ria Proust) d’un monde unique qui est la preuve la plus authentique du génie [...] bien plus que le contenu de Yeeuvre elle-mémes. Tal andlise, evidentemente, esté fora do ambito deste ensaio. As breves péginas que vao se- guir-se limitam-se a sugerit, mediante algumas aproxi- magées que me parecem elucidativas da fecundidade do método, como, ndo obstante os estilos dos heteréni- mos traduzirem atitudes temperamentais ¢ modos de con- ceber a vida diferentes, é possivel responder afirmativa- mente as perguntas atrés formuladas, quer dizer, é poss{vel reduzir as afinidades de estilo’ dos heterOnimos uma unidade psiquica bésica. O levantamento a que Procedo € rudimentar? Apenas agrupo palavras, sintag- mas, frases—quer dizer, micro-estruturas? Concedo, embora também inclua processos ¢ indique tendéncias. Mais complexo seré confrontar estes elementos em situa- es contextuais amplas, correndo o risco da dispersio no que ndo se repete. De-qualquer modo, continuo a Pensar que o levantamento no é initil; tem um si ficado, significado que avulta quando se observam 10 ‘conjunto as divergéncias ¢ as convergéncias que assinalo. 122 CARACTERES INDIVIDUAIS Do ponto de vista da expresso, Caeiro e Alvaro de Campos tém vérios tragos comuns, do mesmo modo que © estilo de Reis se aparenta com 0 da Mensagem. Tanto Alvaro de Campos como 0 seu mestre sio versilibristas, independentes, rasgadamente inovadores, sem qualquer escrtipulo em transpor as fronteiras tradicionais entre rosa e poesia. Ambos empregam uma linguagem bas- tante proxima do falar quotidiano, quer pela natureza do vocabulério quer pelo desenho das frases; ambos mis- ‘turam termos cultos abstractos de matiz psicol6gico ou metafisico com palavras de conteddo trivial, familiar, € primam nas associagdes imprevistas da realidade moral com a realidade concreta corriqueira; ambos dao livre curso ao pensamento, interrogando retoricamente, excla- mando, recorrendo a giros sintacticos que imprimem Vi vacidade e énfase persuasiva & linguagem: Sir a mim, que vivo sb de’ viver . Sim, mesmo cr ‘ace, 50 Sim, eis 0 que os meus sentidos aprenderam sozinhos ... (bidem, p. 61) Sim, € 0 que tenho eu sido, 6 meu subjectivo universo (Campos, p. 22: im, passava aqui frequentemente hd. vinte anos ... Sim oa fea (ibidem, p. 291) 123 Caeiro, porém, como se incumbiu de expor uma dou- trina apresentando-se como encarnagio dela, € mais des- pojado e olfmpico. Nao precisando dos’ ingredientes verbais necessérios para descrever 0 rodopio das sensagdes imaginadas de Campos, satisfaz-se calmamente com 0 manejo hébil de um méimero reduzido de vocébulos, 0 que aliés provoca uma impressio de monétona pobreza condizente com a mentalidade supdstamente primitiva do mestre néo livresco. Por outro lado, 0 retorno ¢ as com- bbinagées das mesmas palavras ou séries de palavras compensam de algum modo a falta de rima, tanto mais ‘que estas podem repetir-se niio apenas dentro dos versos como no final dos versos: Amanha virds, andards comigo a colher flores pelo campo, E eu andarei contigo pelos campos ver-te colher flores. Eu jé te vejo amanha a colher flores comigo pelos campos, Pois quando vieres amanka e andares comigo no campo a colher flores, Isso serd uma alegria e uma verdade para mim. (p. 88) Este jogo constante fatiga a atengio. O ideal estiis- tico de Caeito, mais de uma vez expresso nos seus poemas, requer @ espontaneidade lisa, a palavra directa, encos- tada & ideia, a formulagio natural, viril e fluente, . S6 por excepcio & axiomético, a’ exemplo de Caeiro: «Toda a manha que , Tala sempre no mesmo lugar, etc. (p. 98). Os seus ‘momentos orgiacos, de delirio de imaginacdo, obrigam-no a um ritmo amplo, em que as palavras se sucedem desor- denadamente, em ‘caudal, encadeadas pela aliteraco ou pela rima interior, repetidas quando no ocorrem outras, ‘mas repetidas porque o ritmo exige: Amplexo, nexo, sexo, Texas, Carolina, New York (p. 211) Fogo, fogo, fogo dentro de mim! Sangue! sanguel sanguel sangue! @.1™ A repeticlo junta-se ainda 0 crescendo de vor. indicado graficamente pelo aumento do tipo das letras ¢ pelos tacos de unido, a prolongar os gritos: Mas isto no mar, isto no ma-a-a-ar, isto no MA-A-A-A-AR! Eheehceh-eh-eh! Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh! EH-EH-EH-EH- (EH-EH-EH! No MA-A-A-A-AR! (p. 187) 125 fim € obsidiar-nos, comunicando-nos a febre avas- saladora. Este ritmo herdico, rico de simetrias, invecti- vante, interjectivo, parece imitar a euforia transbordante de Whitman. B em parte o estilo enumerativo estudado por Leo Spitzer !. Nele convergem a enumeragio, a and- fora, o assindeton ¢ o que Spitzer chama «a enumeracao caéticas. Em Campos, como em Whitman, de que por algum tempo se aproximou, a enumeragio das. coisas mais dispares do universo fisico e moral tende em citima anilise & integragio do diverso no Todo: «a série estlis- ticamente heterogénea assume fungao metalisicamente conjuntivas (0b. cit, p. 9): Of every hue and caste am I, of every rank and religion, A farmer, mechanic, artist, gentleman, sailor, quaker. Prisoner, fancy-man, rowdy, lawyer, physician, priest . (Song of Myself, xvi) ‘Meu coragao tribunal, meu coragao mercado, meu coragao {sala da Bolsa, meu coragao baledo de Banco, ‘Meu coragao rendez-vous de toda a humanidade, Meu coracéo banco de jardim piiblico, hospedaria, Lestalagem, calabougo nimero qualquer cousa (, a que se seguem seis versos em que seis oragées relatives caracterizam esta hora, duas vezes repetida. § Le Style et ses Techniques, Paris, 1947, p. 209. 7 Note-se, porém, seguindo a adverténcia critica do proprio «autor de’ Campos: nfo obstante a torrenciali- dade, a turbuléncia da «Ode Triunfal> © da «Ode Ma- ritimas, no conjunto dos poemas descobre-se 0 sibio equilibrio das partes, uma singular arte de composicio, que tira dos contrastes 0s efeitos desejados. A esse poder miltoniano» de construgio presta homenagem Pessoa ‘num texto publicado por Tomaz Kim (0

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