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Do ponto de vista epistemológico, é uma corrente que não existiria sem o pós-estruturalismo,
sobretudo o francês e sem a desconstrução. O pós-estruturalismo traz a noção de que um
sujeito é criado pelas instituições, pela cultura, pela política, portanto o sujeito é sempre
moldávem, não é preexistente, por assim dizer. Para que se entenda a importância da
desconstrução nas produções queer, é fundamental perceber que a noção de cultura queer
que marca diversas produções em diversos países, não é a noção de cultura da antropologia.
Ela é a noção de cultura dos estudos culturais. Ela é uma noção de cultura derivada de um
marxismo crírtico com origens passadas de Gamsci. É aí que a desconstrução faz sentido como
uma estratégia que é muito mais de não fazer estudos para explicar como as pessoas são, mas
sim desconstruir a cultura para compreender por quê elas se tornaram o que são.
Bem, sabe-se que aconteceram coisas bastante trágicas e tristes, sendo a primeira
delas a epidemia de AIDS, que a partir de 1981 vai marcar a vida das pessoas: o pensamento
político, os movimentos homossexuais e dissidências de gênero. Há também elementos da
grande política que não podem ser descartados, sobretudo se pensarmos o queer não
apenascomo uma crítica problemática de gênero e sexualidade, mas também uma
problemática política mais ampla, os anos 80 foram marcados por governos de direita,
governos muito conservadores, neoliberais, particularmente na Europa e nos Estados Unidos,
basta lembrar do duo Tatcher e Reagan.
A partir de 1981, quando 2 em cada 5 casos de AIDS, vale ressaltar que não era nem a
metade, os médicos norte-americanos com base nesses dados foram capazes de transformar a
AIDS numa doença que, para eles e para o grande público era uma doença homossexual. E aí,
qual era a diferença? Se ate 1973 a homossexualidade era vista como uma doença mental, a
partir de 1981 ela é vista como vinculada, mas frequentemente associada de uma forma muito
brutal e simplória tanto que até hoje isso circula como uma questão epidemiológica. Então se
o dente mental ele pode ser isolado, pode ser transferido para um hospital psiquiátrico,
separado, alienado da sociedade, quando se tem a associação da homossexualidade como um
problema epidemiológico, é algo muito mais perigoso, assustador, na visão dos conservadores,
porque a homossexualidade, ela adquire uma espécie de condição de contágio.
Então para o discurso conservador dos anos 80, é fundamental que se perceba que a
homossexualidade foi vista como uma ameaça de contágio social. Isso nos permite
compreender tanto os anos 80 como os grupos conservadores do presente, porque é que
tantas pessoas que poderiam estar fazendo trabalho social, se dizendo até religiosas, perdem
seu tempo em redes sociais, criando discursos de ódio, sob suposta desculpa da liberdade de
expressão. Por quê é que ainda existe esse discurso conservador? Porque dos anos 1980, pra
cá, no nível simbólico, no nível das representações sociais, a homossexualidade foi associada a
um perigo que ameaça ã própria sobrevivência da sociedade.
Então isso que é chamado de refluxo conservador tem a ver com uma coisa que muitos
autores já encontravam, isso é um outro elemento: Michael Warner tem o livro “The Trouble
with Normal”, em que ele mostra muito isso. Nos Estados Unidos, mas isso vale para todos os
movimentos, sempre houve certa tensão nos movimentos homossexuais e de dissidência de
gênero entre se assimilar, buscar a assimilação social, boscar ser “normal”, buscar ser aceito
de qualquer maneira, mesmo que seja nos termos existentes ou combater a normalidade e
transformar a sociedade.
Esse é mais ou menos o cenário que permite, com o qual se deparam algumas
pensadoras e pensadores nos anos 1980, e que vai poder permitir a criação do que se chama
Queer. A visão miskolciana é a do espirito da transformação social, da crítica do existente, da
ideia de ao invés de uma assimilação e buscar incorporar-se por meio do que é disponível, o
que se pretende é mudar a sociedade.
O que se percebe é que essa cisão gera, quer na política, mas sobretudo na academia,
é que, não por acaso, mesmo nos anos 1970 existe a fundamental emergência dos estudos
gays e lésbicos, tanto no exterior como no Brasil também, entre os anos 1970 e 1980. Tais
estudos têm uma origem que era sobretudo compreender a existência de outras sexualidades
que não a heterossexual, fizeram estudos muito importantes, mas que primavam por uma
concepção, talvez fosse o que era possível naquele momento, não se pode culpabilizar
ninguém por ter trabalhado assim, mas é como se a homossexualidade ou as
homossexualidaes e as dissidências de gênero, que nem eram muito tralhadas neste período,
elas fosse questões de minorias.
Esse termo que ainda circula, como se houvesse uma porcentagem de pessoas na
população, havia até os jornais de comunidade, chamavam-se de 5%, 10%. Como se existissem
identidades fixas e apenas uma parte da população pudesse expressar desejo por pessoas do
mesmo sexo.
Então nos anos 1970 floresceram os estudos gays e lésbicos, e isso foi uma aposta em
uma construção política e acadêmica de identidade e que talvez até mesmo contra as
melhores intenções, tendiam a fazer algo que fica mais patente nos anos 1980: reforçar a ideia
de que a maioria era heterossexual, de que o desejo heterossexual era o natural e esse tipo de
ideia é contraproducente para quem pensa em revolução sexual, na ideia de desejo livre, da
autonomia dos sujeitos, autonomia corporal e desejante.
Nos anos 1980, isso se torna muito patente, porque toda essa problemática do pânico
sexual da AIDS mostrava que provavelmente o medo era justamente das fronteiras não serem
definidas, dos sujeitos poderem expressar diversos desejos, e esse pânico, ele também fazia
pensar: se formos na perspectiva das minorias, estaremos sempre falando da proteção de um
pequeno grupo, mas não seria possível pensar num sentido muito mais amplo? Será que o
desejo por pessoas do mesmo sexo, será que a autonomia corporal, a dissidência de gênero
não seriam possibilidades para a sociedade como um todo?
É essa virada dos anos 1980 que vai possibilitar o Queer, essa percepção de que ttem
que ir dos sujeitos e da defesa de alguns sujeitos, que supostamente seriam uma minoria, um
grupo calculado para uma problemática que é de toda a sociedade. Se havia pânico sexual, se
a homossexualidade era vista como um perigo epidemiológico, isso derivava do fato de que de
uma forma ou de outra até os conservadores sabiam que, sem o reforço das normas e suas
manutenções, as pessoas transitariam entre os desejos, transitariam entre os desejps e isso
seria a revolução. Então dos sujeitos para as normas e do indivíduo para o social, foi essa
virada que permitiu que autoras e autores pudessem trabalhar com a centralidade do desejo e
da sexualidade em toda a sociedade.
Logo, começam a surgir discussões sobre como há uma marca na nossa ordem coletiva
em que o Estado, a ordem jurídica, todas as instituições dependem de uma ordenação da
sexualidade e do desejo. Conclui-se que desejo e sexualidade não são questões de uma
minoria, eles passam a ser centrai, eles atingem a toda ordem institucional, política e cultural.
Michel Foucault em “História da Sexualidade I” define sexualidade como um dispositivo
histórico de poder que diz claramente que não existe nada de natural na sexualidade.
Para Foucault, a sexualidade é central e é inclusive fundamental para a formação dos
estados nacionais e de toda a ordem jurídica, cultural e política do século que se monta, a
partir do final do XVIII para cá, para Miskolci Foucault não tinha ainda uma posição muito clara,
mas compreendia a homossexualidade como algo minoritário, ainda ele é o produto dos anos
70 e ele não tinha uma ênfase nas questões de gênero. Ele não incorpora o feminismo e o
gênero. Quando se faz uma leitura crítica de “História da Sexualidade I”, fica a questão: para
onde esse dispositivo histórico de poder aponta? O que esperar dos sujeitos? O que essa
ordem está fazendo com eles?
Nesse livro é muito claro para ele que o uqe se passava era uma espécie de freio, uma
tentativa de impedir ou de barrar transformações profundas que realmente se
desencadearam, estavam em andamento de 1968 em diante. Os estudos Queer trazem para a
cena acadêmica, com especial esse de Perlongher, o potencial politico desses pensamentos e
percepções de uma geração que vivenciou tanto a revolução sexual, ou esse ensaio de
revolução sexual, quanto o refluxo conservador. Isso é uma marca desses primeiros
pensadores.
De forma simplificada, Miskolci aponta para uma percepção das primeiras obras que
hoje reconhecemos como Queer, são mapeamentos, uma espécie de cartografia dos
cerceamentos à revolução sexual, um mapa onde se passava tudo o que fosse possível para
impedir que as coisas fossem transformadas profundamente. No caso de Perlongher, a forma
como ele aborda “O que é a AIDS”e vai mostrando esse processo de repatologização da
homossexualidade em outros termos e ele é muito crítico, inclusive com relação a sua própria
área de atuação na academia, quando ele percebe que as pessoas estão começando a produzir
conhecimento em torno das demandas do Estado. E que ele era completamente
antidisciplinar, então tinha esse impulso de dizer que o disciplinamento do pensamento e a
produção de conhecimento a partir das demandas estatais podem nos tornar politicamente
quietistas.
São muitos os autores que trazem tal cartografia do conservadorismo, essa cartografia
dos freios a um ensaio de uma revolução sexual. Esse é um elemento comum em diversos
contextos nacionais, seria ingênuo imaginar que apenas ocorreu nos Estados Unidos. O que se
sabe é que houve expressões em muitos contextos nacionais, inclusive no Brasil. É
fundamental que não se reproduza o colonialismo do pensamento e das trocas acadêmicas,
pensando que o Queer é uma corrente norte-americana de pensamento. Esses elementos
históricos, teóricos e conceituais comentados aqui, eles também marcaram a produção teórica
e de pesquisa em muitos países.
O que existe em comum, além dessa cartografia dos pensamentos das práticas sociais,
das questões culturais e de todos os referentes desse período que impediam a transformação
social ensaiada nos anos 1970. Pode-se dizer que existem muitas leituras sobre Queer de
feminismos, pode-se perceber os estudos Queer como descendentes do feminismo em muitos
aspectos. Um deles é que o feminismo se origina como uma filosofia política no final do século
XVIII, não por acaso, já fazendo uma crítica à proposta que surge como as revoluções de
igualdade.
Muitas das autoras que se tornaram conhecidas como Queer e autores também, como
Néstor Perlongher, na Argentina, que tentou vincular o movimento homossexual a um
feminismo anarquista. Essas pessoas tinham essa verve, de mostrar limites da noção de
cidadania e de ordem institucional de seu tempo. Então se as feministas, no sentido mais
radical do feminismo, com uma epistemologia política radical, que mexe com a ordem
institucional e política, tinham mostrado que o suposto olhar neutro que, sobre o qual se
construiu o conhecimento, a política, as instituições modernas, no fundo, na verdade, era um
olhar masculino, um olha de homem, e hoje sabemos que inclusive europeu, branco e
heterossexual.
Os estudos Queer darão uma ênfase de que esse mesmo olhar sempre foi um olhar
heterossexual e generificado dentro das normas, generificado dentro de uma linearidade, na
expectativa de que as pessoas que produzem conhecimento, que fazem política, que criam ou
têm mais poder sobre a ordem cultural, elas seriam sempre heterossexuais e com uma relação
linear entre sexo biológico, gênero, desejo e práticas sexuais. Entáo como foi dito, há essa
possibilidade, não há consenso sobre isso, mas é possível pensar então numa crítica
epistemológico-política feminista, na qual o Queer é um aprofundamento e talvez um salto
dentro dessa longa tradição de mais de dois séculos. E por isso, inclusive, o presente texto
busca introduzir pessoas a um novo olhar, porque é justamente o que dentro dessa história se
passou, questionar nosso olhar, que foi desconstruir esse olhar, que foi construído pela nossa
ordem social, pela nossa experiência social, para ser um olhar onde, não importando se é
homem ou se é mulher ou qualquer que seja o desejo ou gênero, todo ser humano foi
constituído, adestrado, a olhar para o mundo de maneira heterossexual, generificada, de
forma supostamente correta, e a ideia deste texto é desconstruir esse olhar, permitir que se
coloque em cheque a maneira de se ver o mundo, porque, não por acaso, a despeito dos
problemas de tradução, que não merecem ser levados em consideração, afinal ninguém
tentou traduzir capital por outra palavra, e há quem tente traduzir o Queer.
Teoria vem de theorein, vem da ideia de ver a questão da visibilidade, do que pode ser
reconhecido está no termo teoria. ATeoria Queer é uma teoria torce o olhar, que faz propor ao
menos que se enxergue o mundo de outra maneira. De uma maneira não normativa, de uma
maneira aberta a outras possibilidades e uma maneira que seja aberta a não aceitar divisões
que fazem com que os sujeitos tenham que ser divididos entre os supostamente normais, ou
seja, heterossexuais e generificados, como a sociedade espera e, obviamente brancos e
cristãos, e aqueles que ate hoje a sociedade relegou à anormalidade, à inferioridade e até
mesmo à abjeção. Aqueles que teriam que estar fora de cena.