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Evangelhos
Sinóticos e Atos
dos Apóstolos
(4 créditos – 80 horas)
Autores:
João Inácio Wenzel
José Edmilson Schinelo
José Inácio Wenzel. José Edmilson Schinelo. Campo Grande: UCDB, 2016. 130 p.
Palavras-chave:
1. Bíblia 2. Evangelhos Sinóticos 3. Atos dos Apóstolos 4. Teologia
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APRESENTAÇÃO DO MATERIAL DIDÁTICO IMPRESSO
Este material foi elaborado pelo professor conteudista sob a orientação da equipe
multidisciplinar da UCDB Virtual, com o objetivo de lhe fornecer um subsídio didático que
norteie os conteúdos trabalhados nesta disciplina e que compõe o Projeto Pedagógico do
seu curso.
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Objetivo Geral
Propiciar noções gerais acerca dos Evangelhos Sinóticos (Marcos, Mateus e Lucas) e
Atos dos Apóstolos, a gênese dos textos, a época histórica, social, econômica e política do
tempo da redação, seus/suas destinatários/as e mensagem.
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Avaliação
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FAÇA O ACOMPANHAMENTO DE SUAS ATIVIDADES
O quadro abaixo visa ajudá-lo a se organizar na realização das atividades. Faça seu
cronograma e tenha um controle de suas atividades:
Atividade 1.1
Ferramenta: Tarefa
Atividade 2.1
Ferramenta: Tarefa
Atividade 3.1
Ferramenta: Tarefa
Atividade 4.1
Ferramenta: Tarefa
Atividade 5.1
Ferramenta: Tarefa
Atividade 5.2
Ferramenta: Questionário
* Coloque na segunda coluna o prazo em que deve ser enviada a atividade (consulte o calendário
disponível no ambiente virtual de aprendizagem).
** Coloque na terceira coluna o dia em que você enviou a atividade.
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BOAS VINDAS
Olá!
Neste módulo, você é desafiado/a estudar os Evangelhos Sinóticos e Atos dos
Apóstolos. Os textos bíblicos, com certeza lhe serão mais familiares. Isso não significa,
entretanto, que suas novas descobertas serão menores.
Ao mesmo tempo que você irá adquirindo uma compreensão geral sobre os livros
de Marcos, Mateus, Lucas e Atos dos Apóstolos, também ampliará seu conhecimento sobre
a vida de cada comunidade onde os textos surgiram. Ao mergulhar nas experiências
fundantes das primeiras comunidades cristãs, você perceberá a riqueza da diversidade que
acompanhou o cristianismo primitivo. Essa mesma diversidade, fruto do sopro do Espírito
em cada realidade específica, nos acompanha até os dias de hoje.
O presente material conta com a grande colaboração do biblista João Inácio
Wenzel, responsável pela maioria dos textos. Nosso agradecimento também a Ana Luiza
Cordeiro, pela leitura atenta e pelas sugestões.
Que a radicalidade com que os/as primeiros/as cristãs/ãos testemunharam sua fé
seja inspiração para seu aprendizado e para se compromisso de fé. Um bom estudo!
Um abraço!
Edmilson Schinelo
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Pré-teste
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INTRODUÇÃO
Estimado/a acadêmico/a,
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UNIDADE 1
Ao fazermos uma leitura corrida dos evangelhos de Mateus, Marcos e Lucas nos
damos conta que ambos seguem o mesmo roteiro de fundo, falam do mesmo assunto:
quem é Jesus de Nazaré e o que
significa ser discípulo. Há textos
comuns aos três e há textos
exclusivos em cada um. Há textos
comuns entre Mateus e Marcos,
ausentes em Lucas, e outros textos
comuns entre Lucas e Marcos,
ausentes em Mateus. Mas, há
também textos comuns entre Mateus
e Lucas, ausentes em Marcos. Como
se explica isso? Esta e outras
perguntas surgem ao largo da leitura Fonte: http://migre.me/s06tO
dos evangelhos:
Por que tantas narrativas do evangelho de Jesus, o Cristo?
Por que apenas quatro foram acolhidas no cânon da Bíblia?
Por que até hoje ninguém fez uma síntese plausível dos evangelhos?
É verdade que existiu um evangelho escrito em aramaico do qual derivaram
os evangelhos sinóticos?
Ou teria existido outro texto conhecido como ditos populares de Jesus ao
qual Marcos não teve acesso?
Por que em alguns destes textos comuns aos três evangelhos sinóticos são
omitidos, alterados ou acrescentados aspectos que alteram significativamente o
significado do mesmo?
Muita coisa entra em jogo para responder estas questões: o contexto histórico, a
formação das primeiras comunidades com tradições, culturas, locais e épocas diferentes; a
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distância entre o movimento de Jesus e de João Batista e a redação dos evangelhos. A
realidade e os problemas específicos de cada povo e comunidade.
Ao realizar a leitura dos evangelhos sinóticos, nos daremos conta de que há uma
pluralidade de experiências de fé na caminhada do seguimento de Cristo desde o começo.
Eles são o testemunho escrito de diferentes comunidades cristãs sobre a experiência que
tiveram em partilhar a vida e a missão com Jesus de Nazaré. Havia autonomia na forma de
viver e celebrar a fé. O que unia as comunidades era o seguimento da pessoa de Jesus, o
Cristo, que brota do evento da Páscoa, morte e Ressurreição de Jesus.
Faremos um breve percorrido desde a experiência fundante do cristianismo até a
redação do primeiro evangelho. As perguntas são respondidas ao longo do estudo,
acompanhando o processo da redação dos evangelhos. Por ser o primeiro, propomos
mergulhar fundo no caminho proposto pelo evangelho de Marcos, sem ainda fazermos
comparação com os outros evangelhos. Em seguida focaremos Mateus. Aí sim não nos
cansaremos de comparar um e outro. A mesma metodologia iremos propor para
empreender a caminhada de seguimento de Cristo descrito por Lucas.
O objetivo do nosso estudo será criar um espaço de estudo, reflexão e conhecimento
dos evangelhos de Mateus, Marcos e Lucas e suas repercussões hoje. Especificamente nos
propomos estudar o contexto sociocultural e religioso no qual foram escritos os evangelhos,
descobrir neles quem é Jesus e seu anúncio do Reino e, à luz do estudo do evangelho,
refletir sobre nosso compromisso cristão hoje no seguimento de Cristo.
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e Marcos situam nesta região o encontro dos/as discípulos/as com o ressuscitado (Mt
28,7.10.16; Mc 14,28; 16,7). Também o acréscimo ao quarto evangelho (Jo 21) fala de uma
aparição no lago de Tiberíades (Jo 21,1). Apenas Lucas situa todos os relatos da
ressurreição em Jerusalém, mas sabe-se que sua intenção teológica é mostrar que
Jerusalém é ponto de chegada para Jesus e ponto de partida para as comunidades (At 1,8).
No entanto, Lucas confirma que os/as primeiros/as discípulos/as de Jesus eram todos/as
galileus (At 2,7).
Relendo as escrituras, seus corações ardiam e encontravam luzes para retomar a
caminhada (Lc 24,25-27). Reúnem-se nas casas onde continuam a vivenciar novas relações
de partilha e solidariedade. Seus olhos foram se abrindo e o sentimento da presença viva de
Jesus na comunidade foi crescendo sempre mais (Mt 18,20). Ao partilhar o pão, veio a
certeza de sua presença (Lc 24,28-32).
Discípulas e discípulos fizeram a experiência de que o Ressuscitado é o mesmo
Jesus. Isso é atestado pelas chagas (Lc 2,39-40; Jo 20,20.27), pelas refeições (Lc 24,41-
42), pelos gestos de partilha (Lc 24,30.35; Jo 21,13) e pela mesma voz (Jo 20,16). Mas ao
mesmo tempo é diferente: Jesus entra em casa totalmente fechada (Jo 20,19.26), é
confundido com um jardineiro (Jo 20,29) ou forasteiro (Lc 24, 13s). Foi exaltado junto do
Pai (Mc 16,19; Lc 14,51; At 1,9), mas continua presente no Espírito, como advogado e força
para quem o segue pelo caminho (Jo 14,16; Mt 28,20; Lc 24,49).
O Espírito prolonga e continua a missão de Jesus. Segundo Mt 28,16-20, o Espírito e
a missão foram dados às igrejas da Galileia um tempo depois dos acontecimentos de
Jerusalém. Em Jo 20,20-23, Jesus recria a humanidade, doando em Jerusalém o Espírito no
mesmo dia da ressurreição. Lucas também situa a doação do Espírito na capital, cinquenta
dias depois, durante a festa judaica de Pentecostes. Com isso quer deixar claro de que não
é mais a Lei quem conduz o “novo Israel”, mas a força que vem de Deus.
O surpreendente é que, apesar de sua morte, Jesus continua guiando seu
movimento através do Espírito de Deus (2Cor 3,17-18). Em outros movimentos populares,
quando um líder morre, é substituído por outro. No movimento de Jesus, Ele mesmo
continuou sendo o líder e a inspiração de seus seguidores.
O primeiro anúncio das comunidades foi a proclamação (kerygma) da Boa Nova da
presença atuante de Jesus ressuscitado e de seu Espírito no movimento cristão. O núcleo da
profissão de fé era a afirmação da morte na cruz e ressurreição de Jesus, como podemos
ver na primeira carta de Paulo aos Coríntios (1 Cor 15,3-4) e no primeiro discurso de Pedro
nos Atos dos Apóstolos (At 2,14-36).
O anúncio central de Jesus foi a pregação da vinda do Reino de Deus (Mc 1,15),
bem como a realização de sinais de que o Reino já está em marcha (Lc 7,22; 11,20). Depois
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da Páscoa, o movimento cristão tinha como tema fundamental a proclamação do Reino
realizado em Jesus como “Cristo” e “Senhor”, realizador do Reino pela sua morte e
ressurreição. Chamá-lo de Cristo, ungido de Deus, era, por um lado, reconhecer nele a
realização da esperança profética na vinda do Messias como servo sofredor, e, de outro, era
uma contestação da divindade do imperador, que se dizia filho de Deus. Jesus é o Senhor
que liberta (em hebraico YHWH, lido Adonai), em oposição ao Deus manipulado pela
religião oficial do templo, e pelo imperador de Roma que se apresentava como o único
senhor do mundo (kyrios). Significa, também, que ninguém pode pretender ser senhor de
outro, pois todas as pessoas da comunidade são servas do mesmo Senhor, Jesus Cristo.
As escrituras do Primeiro Testamento, relidas agora à luz da experiência pascal da
ressurreição, ajudam os “do caminho” do seguimento de Jesus a compreender que Jesus é
o Messias anunciado na perspectiva do servo sofredor do 2º Isaías. A experiência da
ressurreição dá um novo sentido à Escritura. Podemos verificar isso facilmente nos
primeiros discursos de Pedro - At 2,14-36; 3,12-26 e 10,34-43 – nos quais ele descreve os
últimos acontecimentos a respeito de Jesus, o que Ele fez, como foi entregue e morto, e
afirma: “mas Deus o ressuscitou...” (At 2,24; 3,15; 10,40). Em sua argumentação mostra
que, o que está acontecendo, é o cumprimento do que fora anunciado na Lei (Pentateuco),
pelos Profetas e Escritos.
Deste modo, as escrituras e o evento Jesus se iluminam mutuamente. A releitura das
escrituras joga luzes para compreender e superar o drama da paixão, morte e ressurreição
de Jesus, e, ao mesmo tempo, a vida de Jesus e sua irrupção pascal passam a ser o critério
para reler as Escrituras. É que Estevão faz em seu discurso (At 7,2-53), mostrando
historicamente como seus executores rejeitaram e “mataram os que anunciavam a vinda do
Justo”, de quem eles, agora, se tornaram “traidores e assassinos” (cf. At 7,52).
A mesma metodologia será utilizada nos relatos dos evangelhos. Insiste-se em dizer
que aquilo que se realizou em Jesus foi para “cumprir as Escrituras” (Mt 26,54.56; Lc 4,21;
Jo 13,18; 17,12) ou ainda para “cumprir o que fora dito pelo profeta...” (Mt 1,22;
2,15.17.23; 4,14; 8,17). Na experiência da transfiguração (Mc 9,2-8; Mt 17,1-8; Lc 9,28-36)
há um diálogo com as escrituras, simbolizadas na figura de Moisés (Pentateuco) e Elias
(Profetas). E a voz da nuvem confirma o ensinamento de Jesus sobre a paixão: “Este é meu
Filho amado. Escutai-o!”.
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As comunidades de Jerusalém eram fiéis às tradições e ao templo de Israel. As
principais lideranças eram Pedro, Tiago e João, a quem Paulo chama de “notáveis, tidos
como colunas” (Gl 2,9). Paulo encontra-se com eles na sua primeira subida a Jerusalém em
torno do ano 38 d.C. (Gl 1,18-19), e pela segunda vez por ocasião do Concílio de Jerusalém,
pelo ano 49 d.C. (Gl 2,9), quando Tiago tem participação decisiva (At 15,13-21). Toma-se
uma decisão crucial neste concílio: não é necessário aos de origem grega se submeter à
circuncisão da tradição judaica para ser aceito na comunidade cristã.
O monoteísmo judaico foi posto em questão pelos/as cristãos/ãs da primeira
geração. Para Paulo, por exemplo, a exaltação de Jesus ao status divino é obra exclusiva de
Deus para o Crucificado. Mas este monoteísmo começa a ser ameaçado quando se insinua
que o próprio Jesus terrestre é reconhecido como Deus em suas obras. Esse assunto é
tratado pela segunda geração dos cristãos e das cristãs. Até então, eles se reuniam em
separado, tinham desenvolvido uma organização própria, mas sempre se esperava um
reencontro. A ruptura definitiva com o judaísmo se dá somente na segunda geração dos/as
cristãos/ãs, e a narrativa dos Evangelhos foi um passo decisivo (cf. G.Theissen 2009, p.
233ss). Nestes se permite colidir numa única narrativa a fé no Exaltado que devia sua
condição divina exclusivamente a Deus e às tradições individuais de Jesus terrestre,
compreendidas como palavras de um profeta judeu.
Até o ano 30
Dos anos 30 a 67 d.C. Período Dos anos 67 a 97 d.C.. Período
d.C. - Época de
apostólico – 1ª geração subapostólico – 2ª geração
Jesus
* Movimento * Até a destruição do templo de * Guerra judaica, exílio e destruição de
profético de Jerusalém e o arrasamento do Jerusalém;
João e de Jesus; Israel bíblico pelo império romano; * Período da institucionalização das
* Jesus, o * É o período do Espírito Santo, das igrejas;
nazareno, o missões evangélicas; * Surge a preocupação pela
Galileu; * É a primeira geração de cristãos: continuidade do movimento;
* Jesus antes do os primeiros discípulos e discípulas * É a segunda geração de cristãos,
cristianismo. que viram e viveram Jesus e sua que não conheceram a Jesus
1 WENZEL, João Inácio. Pedagogia de Jesus. São Paulo: Ed. Loyola, 2005, p. 15. O quadro foi
atualizado. Na primeira parte do livro apresentamos um estudo sobre o contexto histórico de Jesus e
da comunidade de Marcos. Um estudo mais completo encontramos em: GASS, Ildo Bohn. As
comunidades cristãs da primeira geração (Uma introdução à Bíblia, vol. 7). São Leopoldo: CEBI,
2002.
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ressurreição; Nazareno, apenas os discípulos;
* Ainda não havia igrejas, templos, * Surgem os textos escritos, dentre os
mas apenas a sinagoga dos judeus. quais muitos serão assumidos como de
O cristianismo é uma corrente revelação divina e incorporados no
dentro da comunidade da sinagoga; Novo Testamento;
* Há reuniões, "assembleias" à * Evangelho de Marcos pelos anos 70;
parte, de cristãos, reúnem-se nas * Textos escritos à sombra de um dos
casas, mas se consideram apóstolos:
separados do judaísmo; - os evangelhos de Mateus e de Lucas
* Ainda não há uma por volta do ano 85;
institucionalização do movimento; - os Atos dos Apóstolos, por volta de
* Aparecem as primeiras cartas de 85, refletindo o que aconteceu durante
Paulo (52-64): 1 Ts, Fl, 1-2 Cor, Gl, o período de 30 a 58;
Fm, Rm. - Cartas aos Ef, Cl, Tg e 1 Pd;
- o evangelho de João foi escrito por
volta dos anos 95;
- Apocalipse 4,1-22,6; carta de Judas.
Dica de Aprofundamento
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UNIDADE 2
a) Datação
Há muita discussão entre os especialistas sobre a data exata da redação do
Evangelho. O certo é que em Marcos encontramos a forma mais antiga da catequese da
Igreja. Confirma-o o fato de que ele segue exatamente o esquema do querigma primitivo, o
qual inicia a narrativa com a pregação de João e conclui com o arrebatamento de Jesus (At
1,22). Não há reflexões catequéticas sobre a infância de Jesus, nem detalhes sobre as
aparições do Ressuscitado. Também não encontramos em Marcos as grandes composições
de discursos de Jesus como em Lucas e, sobretudo, em Mateus e João.
A definição da data gira em torno da discussão se o evangelho foi escrito antes ou
depois da destruição do Templo de Jerusalém, no ano de 70 d.C. Autores como Wellhausen
(1844-1918), Brandon, Belo e G. Pixley pensam que Marcos pressupõe um conhecimento da
destruição do templo (cf. Mc 13). Por isso, datam a redação do Evangelho um pouco depois
de 70. C. Myers e outros, fazendo uma análise da ideologia política e econômica na
narrativa de Marcos, defendem como mais provável uma data antes de 70, durante a
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guerra. A tese conciliatória é de que o evangelho foi elaborado durante a revolta judaica, no
final da década de 60, e a redação final realizada logo após a destruição de Jerusalém. Há
ainda autores que datam a primeira elaboração do evangelho pelos anos 50, na Síria,
reelaborado por volta de 67 a 70. A tese se baseia num fragmento encontrado em
Antioquia, que se presume tenha sido de Marcos. Como é muito pequeno, não convenceu,
pois poderia ser simplesmente um fragmento de uma das fontes de Marcos.
De qualquer forma, o surgimento do texto de Marcos está relacionado a três fatos
importantes: o desaparecimento da primeira geração de discípulos e discípulas; a acolhida
de gentios que não conheciam a cultura judaica, motivo de crise e conflito; a guerra contra
Roma que marcou a comunidade de Marcos e seu evangelho, quer tenha sido escrito
imediatamente antes, durante ou logo depois da guerra.
Portanto, o texto surge a partir de um contexto marcado por intenso conflito externo
(Judaísmo - Roma) e por profunda crise interna (judeus – gentios). Os conflitos externos
foram gerados pelos tributos pesados e pela política da “pax romana” que arrasava
violentamente qualquer oposição que se fizesse. A crise interna foi gerada pela perda da
identidade solidária e pelas excludentes leis da pureza que marginalizavam as mulheres, as
crianças, os estrangeiros, os doentes, os possessos, os mutilados, os publicanos e
pecadores (CRB, 2006, p. 24).
b) Local
Devido à tradição dos Padres da
Igreja, muitos autores pensam que
Marcos teria escrito o Evangelho em
Roma, quando lá esteve a convite de
Paulo (Cf. 2 Tm 4,11). Argumenta-se
também o fato de no texto se
encontrarem vários termos latinos. Os
argumentos contrários são de que as
expressões latinas como legião (5,9),
quadrante (12,42), centurião (15,39.44s)
se explicam pela forte presença
econômica e cultural na Palestina. Fonte: http://migre.me/s2a44
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de Jesus, e da qual as portas se abrem para a evangelização do mundo greco-romano
(GAMELEIRA SOARES, 2002, p.14).
Mas poderia também ter sido num local próximo à Galileia, na fronteira leste do lago
de Genesaré, na Decápole, onde viviam povos de outras culturas (cf. Mc 5,1-20), ou em
Cesareia de Filipe, ao norte, local de diversidade étnica, onde Marcos localizou a profissão
de fé (Mc 8,27-30).
c) Autoria
A opinião comum difundida desde o século II d.C. por pessoas como Papias (séc II),
Santo Irineu (140-202), Clemente de Alexandria (150-215) e outros, atribui o evangelho a
“João, cognominado Marcos”, intérprete, discípulo, companheiro de Pedro (SICRE, 1999, p.
57). Dados da Escritura confirmam que em sua casa se reunia uma igreja doméstica na
cidade de Jerusalém (At 12,12-13). Primo de Barnabé (Cl 4,10), João Marcos foi com ele a
Antioquia (At 12,25) e integrou a primeira equipe missionária de Paulo, mas separou-se logo
em seguida (At 13,5.13). Mais tarde o encontramos novamente na companhia de Paulo (Cl
4,10 e Fm 24). Teve também forte vínculo com o apóstolo Pedro (relação de pai e filho, cf.
1 Pd 5,13). Como Pedro frequentou sua casa, não é estranha a antiga tradição sobre
Marcos como ouvinte e redator da pregação do apóstolo. Por outro lado, a forte ênfase que
o evangelho de Marcos dá ao seguimento da cruz nos faz pensar que a influência de Paulo
seria bem maior do que a de Pedro.
Contudo, estudos críticos sobre a autoria de textos bíblicos mostram que autor final,
pessoa (no caso Marcos), ou grupo de pessoas, já trabalha a partir de tradições orais e
tradições escritas anteriormente. Os textos sistematizam a tradição catequética da Igreja,
transmitida e codificada ao longo de quarenta anos, são o resultado de um processo
coletivo de recolhimento das tradições orais e das coletâneas escritas. Por fim, uma ou mais
pessoas fizeram a redação, deixando, a seu modo, também o seu estilo e as suas marcas.
d) Destinatários
Pela análise do Evangelho podemos deduzir que os destinatários são pessoas cristãs
de origem estrangeira (“pagã”), integrada possivelmente também por cristãos de origem
palestina. Percebem-se resistências internas para aceitar os não judeus com os mesmos
direitos que os de origem judaica. São os próprios pagãos que ajudam a comunidade a dar
esse passo, como podemos perceber na cena da mulher de origem siro-fenícia que
consegue, por seus argumentos, fazer com que Jesus mudasse de opinião (7,24-30). Mas
não há dúvida de que os destinatários são os de origem pagã (SICRE, 1999, p. 59). Caso
contrário os autores do evangelho não teriam necessidade de explicar vários termos
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aramaicos como Talíta kum (5,41), Effatha (7,34), Corban (7,11), Abba (14,36), Gólgota
(15,22), Eloí (15,34) e costumes judeus como comer com mãos impuras (7,3).
Comparando-o ao evangelho de Mateus, percebemos que Marcos evita termos ofensivos
aos pagãos, como no caso da mulher siro-fenícia (Mc 7,24-30 e Mt 15,21-28) e temas que o
auditório não teria entendido como a contraposição da lei antiga e lei nova, e o
cumprimento das escrituras.
Tratam-se, portanto, de comunidades perseguidas, de origem não judaica, pobres,
em crise, e que estão sendo chamadas a dar as razões de sua fé no Messias Crucificado e
de construir relações novas em comunidades novas (CRB, 2006, p. 26).
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ressaltar um dito particular de Jesus (2,1-3,6; 3,19b-35; 4,1-34; 7,1-23; 11,27-12,44; 13,5-
37).
A especificidade de Marcos consistiu no modo de reagrupar as narrativas
encontradas e nos resumos e ligações entre uma parte e outra (1,14-15; 3,7-12; 6,7-13;
8,22-26; 10,46-52; 13,33-37; 15,40-41).
Jesus começa uma nova etapa na realização do tempo que se cumpre e do Reino
que se aproxima (1,15). Uma etapa que Marcos assinala geograficamente como um
2
Reproduzimos aqui os sumários, que ligam as sete unidades do evangelho, proposto pela Equipe de
Reflexão Bíblica da CRB: Reconstruir relações num mundo ferido. Uma leitura de Marcos em
perspectiva de relações novas. Publicações CRB, 2006.
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caminho que Jesus começa a percorrer em companhia dos/as discípulos/as desde o extremo
norte, Cesareia de Filipe (8,27) até Jerusalém, extremo sul e centro do poder econômico,
político e religioso do mundo judaico. Didaticamente, Marcos introduz a seção com a cura
de um cego que recupera a vista de modo gradual (8,22-26) e a termina com outro relato
de um cego que está à beira do caminho e, graças à sua fé e insistência, recupera a vista e
começa a seguir a Jesus no caminho (10,46-52). Estas duas curas são paradigmáticas: a
cegueira dos discípulos que gradualmente abrem os olhos para compreenderem quem é
Jesus até verem nitidamente para segui-lo no caminho da cruz.
O seguimento dos discípulos e das discípulas é dramatizado pela exigência do
seguimento da cruz, anunciado três vezes como algo necessário ou inevitável, e três vezes
rejeitado pelos discípulos. Esta estrutura interna é de particular importância, tanto para o
entendimento do ensino especial aos discípulos nesta parte (8,22-10,52) quanto para o
conjunto do evangelho,3 pois a primeira parte de evangelização que teve lugar na Galileia e
arredores (1,14-8,22) remetia à teologia da cruz, desenvolvida a partir de agora. O
entendimento desta é fundamental para compreender o enfrentamento da morte de cruz
em confronto com as autoridades de Jerusalém (11,1-16,8).
Atentos à ótica do discipulado e à linguagem dramática do evangelista, podemos
observar a seguinte estrutura interna4, presente praticamente nos três ciclos, conforme
podemos observar no seguinte quadro:
O esquema nos pode ajudar a visualizar uma dinâmica interna presente no texto
com uma forma didática de repetir e aprofundar o mesmo assunto com novos enfoques. A
3
"A seção 8,27-10,50 constitui o centro hermenêutico do evangelho segundo são Marcos"
(MURDOCK, s/d, p. 101).
4
C. Myers apresenta o ciclo tríplice desta forma: Local: Cesareia de Felipe, da Galileia para a Judeia;
previsões: 8,31; 9,31; 10,32-34; cegueira: 8,32ss.; 9,35ss; 10,35-39; ensinamento: 8,34-37; 9,45ss.;
10,40-45; paradoxo: salvar a vida/perder a vida; primeiro/último; grande/menor (MURDOCK, s/d, p.
289). W Murdock apresenta algo semelhante: a) a proclamação da cristologia da cruz por Jesus, b) o
rechaço dessa cristologia pelos discípulos e c) o ensinamento de Jesus sobre o discipulado da cruz
(MURDOCK, s/d, p. 102).
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divisão não é rígida, nem é a única possível, estruturalmente. Quer apenas destacar melhor
os passos metodológicos deste período destinado especialmente ao ensinamento dos
discípulos. Não são aulas separadas entre um e outro anúncio da paixão, mas dadas em
momentos precisos para marcar a centralidade do ensinamento de Jesus.
O ponto central é responder a pergunta: quem é Jesus? Não a partir do que outros
dizem, mas a partir do que Jesus diz de si mesmo sobre seu insistente ensinamento sobre a
paixão, morte e ressurreição. Percorramos o caminho e estejamos atentos para perceber os
pontos centrais e a progressividade do drama.
Daremos particular atenção ao primeiro ciclo do ensinamento e as duas curas que
formam a moldura do ensinamento de Jesus.
Os discípulos estavam tão confusos no barco, que tinham olhos e não viam, ouvidos
e não escutavam (8,14-21). Até o/a leitor/a se sente incomodado/a com tanta cegueira. O
cego de Betsaida (8,22-26) representa essa situação dos discípulos que veem algo, mas
mal. A esperança é que possam chegar a ver nitidamente e de longe.
O caminho passa a ser o lugar privilegiado para o ensinamento dos/as discípulos/as.
No caminho começa o primeiro processo de avaliação dos peregrinos e das peregrinas em
torno de sua identidade (8,27-29), a qual segue uma dupla correção não aceita pelo
representante do grupo dos doze. Jesus, então, o recrimina duramente, com os olhos
voltados aos discípulos (8,29-33), e, publicamente, deixa claro quais são as exigências do
seguimento (8,34-9,1).
Essa prática do seguimento da cruz é confirmada na transfiguração, explicada em
detalhes para os três do círculo mais íntimo (9,2-13) e pela força da fé alimentada pela
prática da oração (9,14-29).
5
CRB Nacional. Reconstruir relações num mundo ferido. Uma Leitura de Marcos em perspectiva de
relações novas. Publicações CRB/2006, p. 105.
6
Segundo o evangelho de João, três dos discípulos são nomeadamente de Betsaida: André, Pedro e
Filipe.
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(2,7; 6,16) como por parte da multidão (1,27) e, inclusive, dos discípulos (4,41). Sur-
preendente é a reação de Jesus à resposta de Pedro: Tu és o Cristo. Se Pedro respondeu
certo, conforme a informação que Marcos nos antecipara (1,1.11), por que proibiu-os
severamente de falar a alguém a seu respeito?7 Faltaria algo à profissão de fé?
Pedro entendia por Messias algo completamente diferente de Jesus. Para Pedro, o
Messias não era um simples profeta, mas a figura real que viria restabelecer os objetivos
políticos de Israel. Pensava que a revolução estava prestes a acontecer. O primeiro corretivo
de Jesus foi pedir silêncio. O segundo foi não aceitar o título de Messias e sim o de Filho do
Homem, o Humano, tomado da visão apocalíptica e oposto à brutalidade das bestas.
Terceiro, que ele deve sofrer muito, ser rejeitado pelos anciãos, pelos chefes dos sacerdotes
e pelos escribas, ser morto e, depois de três dias, ressuscitar. Não há outro caminho a não
ser enfrentar a cruz. É esta a única cristologia aceita pelo evangelho de Marcos. Somente a
cruz faz com que Jesus seja o Cristo. Jesus não se assume como o Messias triunfalismo que
pretende restabelecer a realeza de Israel, mas como o Humano sofredor, na perspectiva do
servo de YHWH, descrito por Isaias.8
Dois novos atores aparecem no enredo de Marcos: os anciãos e os sumos
sacerdotes. Integrarão o time dos inimigos de Jesus.
7
"Marcos usa a mesma ordem enérgica (epetimesen) com que Jesus anteriormente silenciara os
demônios (1,25; 3,12) e o vento (4,39), preparando-nos para a sombria acusação de 8,33" (MYERS,
1992, p. 295).
8
Isaías 42,1-9; 49,1-6; 50,4-11; 52,13-53,12.
9
"Se anteriormente os discípulos não entenderam que Jesus era o Cristo, agora o entendem, mas o
entendem mal, porque não reconhecem que a cruz é constitutiva de seu ser Cristo" (MURDOCK, s/d,
p. 103).
29
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aceitar a cruz significa não se comprometer com a vida nova que necessariamente implica
rupturas com a atual situação e um compromisso de vida. Jesus não quer discípulos que
fiquem assistindo ao espetáculo dos que dão testemunho, mas que sejam capazes de lutar
sem temer a morte.
O segundo fato que chama a atenção são as atitudes de Pedro e de Jesus. Pedro
chama Jesus à parte para “convencê-lo de seu possível erro”. Jesus se volta para os
discípulos e recrimina Pedro publicamente. A pedagogia de Pedro consiste em querer
resolver as diferenças em conchavos, à parte; a de Jesus, em dizer as coisas abertamente e
corrigir o erro imediatamente. Não fecha o olho, nem, adia o conflito, mas o enfrenta e faz
com que o outro assuma seus atos. Diz o que deve ser dito, nem que doa. Desta forma
possibilita que os companheiros cresçam e se tornem maduros.
Portanto, duas coisas se exigem no seguimento de Jesus: a) opção e opinião própria
em relação a Jesus e b) coerência de vida, para que esta opção corresponda a sua própria
realidade. Não dá para seguir Jesus e querer ficar somente com o que agrada. Seguir Jesus
significa enfrentar e superar os conflitos, e os sofrimentos inerentes de quem entrega a sua
vida.
10
Tenhamos presente que Marcos escreve no contexto da guerra judaica contra o império romano.
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Jesus e ao evangelho até a morte e obter a vida
Atualização do texto:
por recompensa. Quem vive com terror da morte já Quem é Jesus para mim?
Se Pedro respondeu certo, por que
está morto, pois não é ele que vive e sim o seu
logo em seguida é duramente
medo. Ser discípulo/a é coisa de vida e morte.11 repreendido por Jesus?
Tem-se a vida morrendo. Quem quiser controlá-la
irá perdê-la. Ela é um dom que pode ir-se a qualquer momento.
11
As condições do discipulado estão imbuídas da visão apocalíptica do julgamento do Filho do
Homem. São contrapostos os tribunais do estado romano e o tribunal “descrito em Daniel". “Marcos,
porém, não incentiva os discípulos a pôr em prática o heroísmo militar; ele introduz o paradoxo
central do evangelho. A ameaça de punir com a morte é o ponto máximo do poder do Estado. O
medo diante dessa ameaça conserva intacta a ordem dominante. Resistindo a esse medo e buscando
a prática do Reino, ainda que a custa da morte, o discípulo contribui para destruir o reinado da morte
imposto pelos poderes na história. Aceitar a soberania do Estado sobre a morte equivale a recuperar
sua autoridade sobre a vida" (MYERS, 1992, p. 300).
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confirmam essa opção; os outros, incapazes de expulsar o espírito surdo-mudo que
ameaçava a vida da criança, por não acreditarem que tudo é possível àquele que crê,
recebem o exemplo do pai do menino que foi encorajado a fortalecer sua fé pela oração.
Jesus voltou a insistir no mesmo ponto, ensinando-lhes que a cruz era inevitável
(9,30s), mas eles não compreendiam, nem aceitavam este caminho. Rejeitaram-no
discutindo quem seria o maior (9,32-34). Tendo apontado a contradição da prática dos
discípulos com o verdadeiro seguimento, Jesus os corrige ensinando-lhes o que significa ser
o primeiro no caminho proposto por ele, com palavras e expressões simbólicas (9,35-37), e
como devem ser as relações com outros seguidores e entre os membros da própria
comunidade (9,38-50).
Quando a caravana de Jesus chega à região da Judeia, Marcos chama a atenção
para o fato de que a multidão não está ausente nesta caminhada e que os inimigos estão
vigilantes (10,1-2). No embate com os fariseus, Jesus ensina que tornar-se o último e o
servo de todos significa criar relações de igualdade entre homem e mulher (10,3-12) e dar
atenção prioritária às crianças (10,13-16).
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pegando-a nos braços, explicou-lhes visualmente que quem acolhe uma criança acolhe a ele
e realiza a vontade de Deus.
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Diante da perplexidade dos/as discípulos/as Jesus os/as fita de novo com o brilho da
esperança do profeta Zacarias: o que parece impossível aos olhos do que resta deste povo,
não o é para Deus (Zc 8,6-8). Ele pode mudar a disposição do coração humano amarrado
às riquezas. Quem deixar tudo herdará a vida desde agora. Quem deixar tudo... receberá
cem vezes mais desde agora com sofrimento...
12
"0 significado da composição social, econômica e política da narrativa do cego Bartimeu, inserida
às vésperas da campanha de Jerusalém, deveria ser claro. Os pobres se unem no ataque final contra
a ordem ideológica dominante, e os ricos se afastam abatidos. Os primeiros se tornaram os últimos, e
os últimos os primeiros" (MYERS, 1992, p. 341).
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2.2.4 A pedagogia da cruz
Se nos oito primeiros capítulos foi narrado o constante movimento de Jesus pelas
aldeias, pelo mar da Galileia e pouco ou quase nada sobre o que ele ensinava exceto pelo
capítulo quarto, aqui temos uma situação inversa: uma única caminhada, interrompida
várias vezes, com ênfase na palavra de Jesus que ensina, explica, corrige e exemplifica a
prática do seguimento.
Marcos escreve para sua comunidade em tempo de guerra, marcada pela
perseguição, dúvida e insegurança. Responde a suas questões organizando didaticamente
os ensinamentos de Jesus. Atualiza o evangelho de Jesus Cristo. Podemos captar traços da
pessoa de Jesus e de sua pedagogia, bem como nas correções de rota das atitudes tomadas
pelos discípulos.
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quem é Jesus não pelo que dizem os outros ou pelo que Ele faz, mas pelo que Ele diz de si
mesmo em seu insistente tríplice anúncio da paixão, morte e ressurreição.
4. A vitória é antecipada no momento místico da transfiguração. Seu ensinamento é
confirmado pela Escritura no diálogo com Moisés e Elias e pelo próprio Deus que o nomeia
Filho amado que deve ser ouvido em seu ensinamento novo sobre o caminho da cruz. O
que, talvez, melhor resume o que Ele diz de si mesmo é: “O Filho do Homem não veio para
ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate por muitos” (10,45).
5. O ensinamento de Jesus é diferenciado. Dedica tempo especial ao ensino dos
discípulos, revela-lhes sua identidade, mas exige que mantenha segredo até que seja
compreendido o que significa ser o Cristo (8,30). Há outros segredos que só revela a um
grupo mais íntimo, e exige o mesmo silêncio até o momento oportuno (9,9). Jesus,
portanto, confia seus segredos a seus amigos, mas sabe a quem, quando e como confiá-los.
6. O local de ensinamento não é sentado, como o faziam os rabinos judeus e os
gregos, mas andando pelo caminho. A metodologia de Jesus era de ensino através da
prática. Para aprender é preciso colocando-se a caminho por inteiro.
7. Jesus não abre mão de seus princípios básicos. Denuncia publicamente a prática
das pessoas que querem desviá-lo do verdadeiro caminho, mesmo que seja a maior
liderança. Não fecha os olhos, nem ajeita as coisas, mas diz a verdade, mesmo que doa,
pois esta liberta. Da mesma forma, convoca todos/as para expor seu projeto e as condições
do seguimento (8,34-38). Suas relações são claras; sua proposta, transparente.
8. Os conflitos são o ponto de partida para as instruções, sejam eles de ordem
interna (8,32ss; 9,34ss; 10,35ss) ou provocados por outros (9,14ss; 10,1ss; 10,17ss).
9. Jesus é duro na crítica à teimosia dos discípulos que persistiram no erro, mas
reconhece os passos e lhes promete a recompensa possível desde agora (10,28-31).
10. O chamado de Jesus é radical, realista, total, coisa de vida e morte. Ele nada
esconde, não consola nem passa uma tinta no medo e na tremedeira dos discípulos,
enquanto sobem para o confronto derradeiro (10,32). Ele apenas vai à frente deles/as.
11. Jesus toma a atitude de quem sabe o que se passa entre eles e assume uma
posição crítica diante dos conflitos. Está atento e não se omite diante do silêncio que
esconde problemas sérios a serem resolvidos (9,33).
Dica de Aprofundamento
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Antes de continuar seu estudo, realize os Exercício 3
e 4 e as Atividades 2.1 e 2.2.
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UNIDADE 3
c) Destinatários/as
O evangelho de Mateus se destina a cristãos e cristãs de origem judaica, como o
confirma a tradição e a análise do Evangelho: usa expressões tipicamente hebraicas e não
traduz os semitismos, dá por conhecidos os costumes judaicos e importância a temas caros
a eles como a lei antiga e a nova. São judeus/judias cristãos/ãs nascidos/as na Palestina e
espalhados/as pela Galileia e Síria, expulsos/as de suas terras e fiéis às suas tradições (6, 1-
6.16-18; 10,17-21; 13,10-16; 16,1-12; 21,33-46; 22,1-14; 12,1-29). Dentre eles
encontramos pessoas sem terra (5,1-5), desempregados (20,1-16), migrantes (2,13-27;
4,13-16.24-25; 19,1), perseguidos (5,10-12; 23,13-32), pobres (11,25-26; 25,34ss...).
Segundo Warren Carter (2002, p.23), o Evangelho é orientado para aqueles/as que
já são discípulos e discípulas de Jesus. Trata de nutrir e fazer crescer a “pequena fé” dos
seguidores e seguidoras em uma forma de vida ativa e leal. Legitima assim uma
identidade e um estilo de vida. Ainda de acordo com Carter, audiência de Mateus não
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consistia predominantemente de “marginais involuntários” de nível social baixo, mas de uma
amostra da sociedade urbana. Transparecem várias características de prosperidade e
riqueza urbana:
Uso de um estilo do grego que revela um ambiente urbano;
Ênfase à palavra “cidade”, citada 24 vezes (8 em Mc), enquanto a palavra “aldeia” é
citada só 4 vezes (7 vezes em Marcos);
O texto supõe um pouco mais de familiaridade com a riqueza ou de conhecimento
do contraste entre pobres e ricos. Enquanto os discípulos em Mc não devem pegar
moeda de cobre na jornada da missão (Mc 6,8), os discípulos em Mt não devem
pegar o dinheiro de primeira qualidade “ouro, prata ou cobre” (10,9); Refere-se a
“prata, ouro e talento” 28 vezes, ao passo que Mc uma única vez e Lc 4 vezes.
O final do evangelho nos dá um retrato da comunidade de Mateus (28,16-20): É a
assembleia dos convocados sobre o monte, como povo em marcha. Alguns adoram Jesus,
outros duvidam. É uma comunidade enviada em missão, preocupada com a fidelidade ao
ensinamento de Jesus, mas vivendo um forte conflito: como se trata de um texto escrito por
e para judeus, transparece em vários textos a ideia de que Jesus veio para os judeus (“não
tomem o caminho dos gentios, não entrem na terra dos samaritanos”; ver Mt 10,5). Por
outro lado, é preciso entender que a missão é universal (“ide a todas as nações”; magos
vindos do Oriente, ou seja, “pagãos”, são os primeiros a visitar Jesus).
Muita coisa havia mudado no cenário político e religioso depois de quinze anos da
narrativa de Marcos, com os acontecimentos da guerra judaica. A religião judaica, agora
sem templo e sem sacerdotes, se recompôs com um sinédrio formado por rabinos fariseus,
em torno da cidade de Jâmnia os quais passaram a atacar e perseguir os cristãos
expulsando-os das sinagogas. Era necessário dar uma resposta mais contundente às
perseguições sofridas pelas autoridades religiosas judaicas que se converteram em batalhas
mortais. Era necessário desmascarar a hipocrisia farisaica, as falsas acusações que dirigiam
contra os cristãos.
A nova narrativa de Mateus responde, portanto, à polêmica criada com a
comunidade judaica, conduzida agora pelos fariseus (7,15-19; 23,1-36), e reconstrói a
tradição de Israel a partir da fé em Jesus de Nazaré como o Messias e Filho de Deus. Dá,
assim, uma identidade ao novo Israel, formada por comunidades cristãs hegemonicamente
de origem judaica. A imagem de Jesus profundamente humana apresentada por Marcos, de
certa forma, chocava a sensibilidade religiosa judaica. Além disso, a cristologia também se
ampliava nas comunidades. Por isso será modificada para uma imagem de Jesus mais
soberana e divina, relacionada ao próprio nome de YHWH, Deus presente (Ex 3,14). “Ele
será chamado Emmanuel, Deus conosco” (1,23), presente na comunidade reunida em seu
nome (18,18) até o fim dos tempos (28,20). Na relação com ele se prima o respeito e a
reverência.
Tudo isso explica porque Mateus não copia todo o evangelho de Marcos:
aproximadamente 510 versículos dos 678, o que equivale a 75,22% do total, conforme
quadro sinótico das fontes oferecido por BOHN GASS (2005):
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Além do evangelho de Marcos, Mateus conhecia os ditos de Jesus, fonte Q, dos
quais utiliza cerca de 230 versículos, e de Material exclusivo (ME), aproximadamente 330
vv.
e) Ênfases
Jesus é apresentado como novo Moisés, mais que profeta, mestre da Justiça. Por
isso, ao longo de todo o texto a insistência de que Ele veio para “cumprir toda justiça”
(3,15; 5,6.10; 6,33; 20,1-16) e para realizar a “vontade de Deus” (6,10; 7,21; 12,50; 21,28-
31). A narrativa quer ensinar a Igreja a seguir as pegadas do Mestre, estimulando o espírito
de serviço (20,26-28), o amor aos fracos e pecadores (18,6.10-14), a correção fraterna
(18,15-18), denunciar a hipocrisia (7,5.13.23; 22,14), fortalecer e questionar a fé (6,30;
8,26; 14,31; 16,8; 12,20), vigiar sem temer a longa espera (24,42; 25,12; 26,38) e ser “luz
para as nações” (5,13-16).
A eclesiologia do evangelho de Mateus é de reconciliação e de solidariedade. Insiste
na vivência fraterna, especialmente no primeiro e quarto discurso (5-7; 18). É o único
Evangelho a denominar as comunidades de ekklesia, que significa tanto a Igreja universal
(16,18) quanto a assembleia local (18,17).
Recebem importância particular os conflitos em torno da Lei: havia os que buscavam
no ensinamento de Jesus uma legislação que desse segurança, e havia os que eram
tentados a não dar valor nenhum à Lei (12,1-14). Refletem-se ali as tensões entre os/as
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cristãos/ãs vindos/as do Judaísmo e os/as cristãos/ãs vindos/as de outras culturas (5,17-
48).13
O evangelho de Mateus responde também às situações específicas:
Acento demasiado nas curas e exorcismos (7,21-23) e o esfriamento da caridade
(24,12). Não fazem as obras que deveriam fazer (23,2-3.25-27)
Comunidades cada vez mais heterogêneas (13,36-43.47-50);
Farisaísmo: fazem somente para serem vistos (6,1-18; 23,23; 22,34-40);
Cansaço por causa da demora da vinda do Senhor (25,31-46);
O ideal da perfeição se havia atenuado (5,48; 19,21);
Prepotência de pessoas que buscam a Deus e ao dinheiro (6,24-34).
13
Marcelo Barros (1998), em “Conversando com Mateus”, aprofunda este aspecto estabelecendo um
diálogo entre os dois irmãos: judeus e cristãos. Eles têm uma missão comum: viver e testemunhar a
boa nova para todo ser humano.
14
A mesma estrutura com alguma variação aparece também em Storniolo (1991).
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24-25: Discurso escatológico: A vinda definitiva do Reino vence as
injustiças.
7ª Parte (26-28): Narrativas sobre a paixão e ressurreição de Jesus. Lutar
pela justiça leva à morte, mas também gera vida e justiça plenas.
Este modelo põe em relevo os cinco discursos de Jesus, mas dá menor importância
aos relatos da infância de Jesus e aos relatos da paixão, morte e ressurreição. Há também o
problema de os capítulos 8 e 9 estarem mais relacionados ao discurso do sermão da
montanha (5-7) do que ao discurso da missão (10).
b) Modelo quiástico
A estrutura em forma de quiasmo é comum na prosa e na poesia do primeiro
testamento. Consiste em estruturar o texto em partes que se correspondem, colocando em
relevo o assunto de maior importância. Sicre propõe uma estrutura tendo como centro as
parábolas do reino (13) em que se alternam as narrações (N) e os discursos (D)15:
15
Sicre (1999, p. 171). O comentário da CNBB, Ele está no meio de nós! O Semeador do Reino,
1998, segue uma estrutura parecida mostrando a correspondência da introdução e a conclusão e os
cinco livros.
16
RICHARD, P. Evangelho de Mateus: uma visão global e libertadora. In: revista RIBLA n. 27 –
1997/2, pp. 7-28. Disponível em: <http://www.claiweb.org/ribla/ribla27/contenido.html>. Acesso
em: 01 nov. 2015.
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e Warren Carter17 seguem esta estrutura. Carter faz um comentário sociopolítico e religioso
a partir das margens. Lê o evangelho de Mateus como contranarrativa: um trabalho de
resistência contra o status quo dominado pelo poder dominante e o controle da sinagoga; e
um trabalho de esperança que constrói uma cosmovisão e uma comunidade alternativa.
17
Carter (2002).
18
Seguimos aqui de perto e resumimos em forma de quadros o estudo de Sicre (1999, p. 124-139).
Para fazer este estudo será de muita ajuda uma sinopse dos evangelhos sinóticos como a de Datler
(1986) ou de Konings (2005). Bohn Gass (2005) oferece um quadro sintético das parábolas de Jesus,
da estrutura dos evangelhos sinóticos e dos textos da fonte “Q” comuns a Mateus e Lucas.
50
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E é claro, omite as explicações dos costumes judaicos (Mc 7,1-5), pois o seu público
os conhece de coração e os detalhes anedóticos do “jornalista” Marcos. Compare os
seguintes textos:
Marcos Mateus
Cura do endemoninhado 5,1-20 8,28-34
Assassinato de João Batista 6,14-29 14,1-12
Curo do menino endemoninhado 9,14-29 17,14-21
Fuga do jovem no horto 14,51-52 -
Mais difícil é entender por que omite a intervenção de João e a resposta de Jesus
(Mc 9,38-39). Possivelmente está relacionado à perspectiva de Mateus em dar uma imagem
mais positiva dos discípulos, pois aquela intervenção demonstra resistência ao ensinamento
de Jesus sobre o seguimento da cruz.
Em outras circunstâncias Mateus altera profundamente passagens de Marcos para
proporcionar uma nova imagem do protagonista Jesus (como por exemplo, na cura do
surdo-mundo - Mc 7,32-37; Mt 9,32-34) e dos seus discípulos e suas discípulas (como, por
exemplo, o final dramático do evangelho de Marcos em que as mulheres, por medo, não
contaram nada a ninguém - Mc 16,8). Mateus dirá que “correram para anunciá-lo aos
discípulos” e que o próprio Jesus lhes apareceu e repetiu a mesma ordem (Mt 28, 8-10).
Alguns temas Mateus trata com mais amplitude:
Marcos Mateus
Tentações 1,12-13 4,1-11
Instruções aos doze 6,6-13; 13,9-13 10,5-42
Pedido de um sinal 8,11-12 12,38-45
Não falta a Marcos a compreensão de que Jesus veio cumprir as escrituras. Mateus,
no entanto, trata desse assunto de maneira insistente e largamente ao longo de todo
evangelho. Sicre explica que: Mateus
[...] deseja sublinhar que a pessoa de Jesus, sua mensagem e sua atividade
não supõem um corte com o antigo, mas pelo contrário, são o cume de
todas as promessas. Isto se nota desde os relatos da infância. Neles se
cumprem cinco profecias. Que o Messias nasceria de uma virgem (Isaías),
que nasceria em Belém (Miqueias), que seria chamado do Egito (Oseias)
junto com o pranto de Raquel por seus filhos (Jeremias). Além disso, uma
profecia enigmática sobre “se chamará nazareno”.
O fato de que começa a pregar na Galileia, no território de Zabulon e
Neftali, não é indiferente; nessa passagem cumpre-se o anunciado por
Isaías 8,23-9,1 (Mt 4,12-16). Quando cura enfermos e impõe silêncio, está
realizando o ideal do Servo de Yahweh (Is 42,1-4 citado em Mt 12,18-21).
O destino de Jonas se repete no do Filho do Homem (Mt 12,40). E quando
entra em Jerusalém sentado num burrinho, cumpre-se a profecia de Zc 9,9
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(ver Mt 21,4). Até na atitude do povo, incapaz de compreender as
parábolas, cumpre-se o que foi dito por Is 42,18 (ver Mt 13,14-15) (SICRE,
1999, p.127).
Mateus repete tudo o que Marcos já nos havia informado desde o começo, que Jesus
é o Messias, Filho de Deus e o Filho amado do Pai, mas o faz com maior clareza e
dramaticidade. Começa com a genealogia onde informa que ele é “filho de Davi”, portanto,
digno de aspirar ao cargo de Messias, e “filho de Abraão”, um autêntico israelita.
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A genealogia, com seu complicado jogo numérico, demonstra que em Jesus
culmina a história de Israel e ele abre a etapa definitiva, a sétima série de
gerações. Mas não é um Messias encerrado no estreito marco de Israel;
também é luz para o mundo inteiro, como demonstra a visita dos Magos; se
se deve esperar alguma rejeição, será, por desgraça, a de seu povo.
(SICRE, 1999, p. 128).
Ele é o “Novo Moisés” muito superior a ele, como veremos no sermão da montanha
e o “novo Israel” que vence o adversário no deserto. Em comparação ao Jesus apresentado
por Marcos, a imagem que Mateus apresenta é um Jesus soberano, mais divino que
humano.
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(7,28) epiléptico (17,15) dois cegos (20,31.33). Pedro
(14,28.30; 16,22; 17,4; 18,21), discípulos (8,25; 26,22).
Rabi Pedro (9,5; 11,21) e Judas (25,25.49)
Judas (14,45)
Filho de Davi Bartimeu (10,47.48) Apresentação de Jesus (1,1), cegos (9,27), multidão
(12,23), cananeia (15,22), dois cegos (20,30.31),
multidão e crianças (21,9.15)
Santo de Deus Espírito imundo
(1,24)
Filho de/do Maria (6,3) Carpinteiro (13,55)
O Filho 13,32 11,27; 24,36; 28,19
Messias (Cristo), Frequente Menos frequente
Filho do
Homem, Filho
de Deus.
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Para sublinhar a relação respeitosa dos discípulos para com Jesus, Mateus altera ou
omite algumas situações, destacando a iniciativa de Jesus e a confiança no poder absoluto
de seu “Senhor”. Vejamos alguns exemplos:
Deixando a multidão, eles o levaram, do modo (Jesus) entrou no barco e os seus discípulos o
como estava, no barco (Mc 4,36) seguiram (Mt 8,23)
Mestre, não te importas que pereçamos? (4,38) Senhor, salva-nos, estamos perecendo (Mt 8,25)
...no seu íntimo estavam cheios de espanto, pois Os que estavam no barco prostram-se diante dele
não tinham entendido nada a respeito dos pães, dizendo: “verdadeiramente, tu és o Filho de
mas o seu coração estava endurecido (Mc 6,51b- Deus!” (Mt 14,33)
52)
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3.2 A nova justiça do Reino no sermão da montanha
Para a finalidade de nosso estudo, seria exaustivo propor uma análise sistemática de
todo evangelho de Mateus. Vamos nos ater a alguns textos da fonte própria de Mateus,
dando um destaque à apresentação de Jesus como mestre da justiça.
Daremos destaque ao primeiro dos cinco discursos de Mateus, o sermão da
montanha, e à parábola dos trabalhadores da vinha no contexto da narrativa do quinto livro
do evangelho de Mateus.
O anúncio da chegada do reino dos céus é o cerne da pregação de João Batista
(3,2), de Jesus (4,17), dos doze quando enviados em missão para as ovelhas perdidas da
casa de Israel (10,7). Jesus o fará desde a Galileia (4,12) que é reconhecida como terra
estrangeira, de refugiados e marginais, o que dá ao anúncio um caráter universal.
Cafarnaum é terra da promessa (Dt 34,1-4) e luz para os não judeus (Is 42,6; 49, 1-7).
O modo como Jesus o faz Mateus resume neste versículo: Jesus percorria toda a
Galiléia, ensinando em suas sinagogas, pregando o Evangelho do Reino e curando toda
e qualquer doença ou enfermidade do povo (4,23; 9,35). Esta prática o evangelista
desenvolve a seguir: O ensinamento como atividade educativa no alto da montanha (5-7),
a pregação no envio dos doze (10) e a atividade curativa em dez sinais (8-9).
A primeira palavra que sai da boca de Jesus, conforme a apresentação de Mateus, é
o esclarecimento do significado de Jesus receber o batismo de João Batista, sendo que Ele
não é pecador: Deixa estar por agora, pois nos convém cumprir toda justiça (3,15).
Este será o tema central do ensinamento da montanha. Ele vem cumprir toda justiça (5,17-
20), numa nova perspectiva de fidelidade à lei e à aliança. O que acontece em Jesus é
vontade de Deus.
O discurso da montanha tem lugar quando os primeiros discípulos e as multidões se
reúnem ao redor dele. Segundo Sicre,
a) Ambientação (5,1-2)
Vendo as multidões... descritas nos
dois versículos anteriores como pessoas
acometidas por doenças diversas e
atormentadas por enfermidades, bem
como endemoninhados, lunáticos e
paralíticos... vindas da Galileia, da
Decápole, de Jerusalém, da Judeia da
região além do Jordão (4,24-25). Não era
gente importante e poderosa, não se diz
nada de seu interesse pela libertação de
Roma, mas que estavam à procura da cura
Fonte: http://migre.me/s3zd1
de suas enfermidades. Mateus diz que Ele
os curava. Mas Jesus quer oferecer algo mais: a possibilidade de formar o novo povo de
Deus. Por isso vai proclamar seu programa do Reino de Deus (cf. SICRE, 1999, p.143).
...subiu à montanha, o que contrasta com o monte mais alto (4,8-10) onde Jesus
venceu o adversário e demonstrou que é possível ser fiel ao único Deus. A montanha é uma
referência ao Sinai, onde Moisés subiu nove vezes, e ao Sião, onde as nações, na nova era
messiânica chegam para aprender os caminhos.
Jesus sobe o monte como Moisés subiu ao monte Sinai para receber as tábuas da
aliança. Mas, há uma grande diferença:
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Moisés subiu sozinho e o povo não podia nem tocar a montanha (Ex 19,12-21).
Jesus sobe com as multidões e elas se aproximam dele;
Antes de Moisés receber as leis, há uma teofania com trovões, relâmpagos, nuvens
espessas, o Sinai fumegando e YHWH desceu sobre ele no fogo e o povo pôs-se a
tremer. Jesus se senta como mestre que ensina e os discípulos se aproximam dele.
Moisés recebe as tábuas da lei. Jesus como Filho de Deus se pôs a falar e ensinava a
torá messiânica que cria a nova aliança (cf. Mt 26,28).
O contraste entre as duas cenas é particularmente significativo se tivermos em conta
que Mateus escreve para pessoas de tradição judaica. O contexto da relação com o divino
não é de medo, fogo e relâmpagos, mas de familiaridade. Os discípulos sobem com ele e se
aproximam sem serem necessariamente convidados e Jesus não precisa esperar que Deus
lhe fale. Ele mesmo toma a palavra e ensina e sua autoridade suprema é conferida pelas
multidões no final do discurso (7,28-29).
b) As bem-aventuranças (5,3-12)
O gênero literário de bem-aventuranças é conhecido no primeiro testamento. Por
exemplo: Há nove coisas que considero felizes em meu coração e uma décima que declaro
com a língua... (Eclo 25,7-11).
Jesus declara felizes os pobres, caracterizados de oito maneiras: neles o Reino de
Deus se faz presente como dom de Deus em meio de nós e apesar de nós. Três grupos
provêm da fonte Q: os pobres, os que têm fome e os que choram. Estão na segunda pessoa
do plural, como aparecem em Lucas 6,20-23. E cinco categorias novas, na terceira pessoa
do plural, de caráter mais universal: os pobres de todas as épocas.
A palavra grega é makárioi, geralmente traduzido por felizes, bem-aventurados,
ditosos ou, literalmente, benditos. André Chouraqui traduz com a expressão em marcha, em
pé, que caminha. Como quem diz: levante-se! Ergue a cabeça! “Sacode a poeira e dá volta
por cima”. Segundo W. Carter,19 em seu grande comentário bíblico, “bem-aventurado
exprime o favor e a bênção de Deus não sobre a pobreza, mas sobre ‘as pessoas que’ são
pobres”. Ele distingue dois grupos de quatro bem-aventurados: 5,3-6, com 36 palavras e
5,7-10, também com 36 palavras. Ambos concluem com uma referência à justiça: 5,6 e
5,10. Os versículos 3 a 6 descrevem situações opressoras de aflição ou infortúnio, que são
honradas, porque o Reino de Deus as revoga. Criticam a tribulação política, econômica,
social, religiosa e pessoal, consequência do império romano aliado à elite judaica. Os
19
Carter (2002, p. 178) faz um estudo aprofundado buscando o sentido de cada bem-aventurança a
partir de referências do primeiro testamento. Seguimos de perto o comentário deste autor nesta
parte.
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versículos 7 a 10, por sua vez, expressam ações humanas, inspiradas pela experiência do
Reino de Deus (5,3-6) que são honradas, porque expressam o reinado transformante de
Deus.
No centro das menções à felicidade está a misericórdia (5,7). Com certeza, os
ouvintes familiarizados com os Escritos, devem ter recordado o Salmo 1 que descreve os
dois caminhos: o caminho dos justos e o caminho dos ímpios. É necessário optar. Jesus
acentua a gratuidade do Reino (3 vezes) e abre a felicidade do Reino a todos. Pela vinda do
Reino se acabarão as injustiças que marginalizam.
Felizes os pobres em espírito porque deles é o Reino dos Céus (5,3). Esta bem-
aventurança é a que mais discussões exegéticas têm gerado devido à expressão pobres em
espírito.
O problema não está na palavra espírito cujo termo para os judeus indica força e
atividade vital - presença de Deus na pessoa (CNBB, 1998, p. 47), mas em saber a quem o
termo pobre designa. Daí as várias traduções possíveis em nossas versões em português.
Tradicionalmente a expressão vinha sendo traduzida como pobres de espírito (primeiras
edições da Bíblia Ave Maria - AM), tradução abandonada porque em português significa
“mesquinho” ou “insignificante”. Não há convergência entre os tradutores: Pobres em
espírito (BJ), pobres no espírito (CNBB), pobres de coração, lit. pobres pelo espírito ou em
espírito (TEB), pobres com espírito (P. Richard), humildes de espírito (Almeida - revisada e
atualizada), espiritualmente pobres (NTLH), os que têm coração de pobre (M. Barros)...
A quem se refere Mateus ao usar a categoria pobre em espírito? Aos pobres reais, os
mesmos a quem se refere Lucas, ao simplesmente dizer felizes os pobres sem nenhum
adjetivo? Ou espiritualmente pobres como sugere a nova tradução na linguagem de hoje
(NTLH)? O que entenderiam os ouvintes de Jesus, gente pobre e simples que veio de toda
parte?
Sicre (1999) concordando com Juan Mateus que dá como chave de leitura a
interpretação de Jesus em 6,24, a opção entre Deus e o dinheiro, explica que
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Para os autores do “Semeador do Reino”, os interlocutores de Mateus são os
empobrecidos de suas comunidades; Os pobres indigentes, pobres da terra, os fracos (Am
8,4-6); Os anawim (israelitas submissos à vontade divina); oprimidos que reclamam justiça
para os fracos, pequenos e indigentes (Sf 2,3); os que colocam sua esperança somente em
Deus (Sl 40,18). Os que não seguem outros deuses (Mt 6,24; Dt 5,7). “Eles são felizes não
por serem pobres, mas porque estão recebendo a missão de construir o Reino” (CNBB,
1998, p.48).
Para W. Carter (2002), Mateus ao se referir aos pobres em espírito, se refere
Sicre (1999) segue na mesma direção, lembrando o público que o próprio Mateus
menciona imediatamente antes das bem-aventuranças:
Somente lhes resta uma esperança: que Deus intervenha como acontece na prática
de cura descrita em Mt 4,23 e nos capítulos 8 e 9, sinais de que o Reino está em marcha.
Portanto, tratam-se dos pobres reais, empobrecidos e injustiçados, que colocam em
Deus sua esperança e que são perseguidos por causa da justiça (5,10). Deles é o Reino dos
Céus (5,3b.10b).
Felizes os aflitos, porque serão consolados (5,4).20 Esta bem-aventurança e as que
seguem são como que um detalhamento da primeira. Dos muitos textos referenciais do
primeiro testamento para compreender o alcance do que Jesus está proclamando é o texto
de Is 61,1-3, citado por Lucas como programa de Jesus na proclamação do Reino (Lc 4, 18-
19). Os que deploram ou lamentam o impacto destrutivo dos impérios (Babilônia, Roma)
que oprimem o povo. Deus escuta o clamor dos que sofrem humilhação, cativeiro, prisão
20
Alguns manuscritos invertem a ordem do versículo 4 e 5.
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(Ex 3,7; Jr 14,2). Uma ação divina acabará com a opressão e transformará a tristeza em
alegria (Js 3,26-4,1; Is 60,20; 61, 1-3; 66,10; Is 16,9).
Bem-aventurados os mansos, porque herdarão a terra (5,5). Os mansos são os
pacifistas, os não violentos. Esta bem-aventurança é de particular importância tendo-se em
conta que a época de Jesus e das comunidades de Mateus era de muita violência. Os
pacifistas que se recusavam usar da mesma violência em suas lutas revolucionárias
poderiam ser mal vistas pelo povo. No entanto, Jesus os proclama felizes. A inspiração
parece vir do Salmo 37 que reflete o problema das pessoas honradas e justas espoliadas de
suas terras pelos poderosos. Em vez de responder na mesma moeda e se vingar com as
próprias mãos (37, 8-11) o salmo propõe defender o que é seu sem usar de violência.
Quem coloca a esperança em YHWH terá a terra por herança, estribilho que se repete por
sete vezes (37, 3.9.11.18.22.29.34), pois a terra pertence a Deus (Cf. Lv 25,23; Dt 4,1) e
significa liberdade e independência.
A bem-aventurança perpassa também a dimensão da não violência religiosa. Em
várias circunstâncias Jesus se sensibiliza pela situação de pessoas simples subjugadas e
oprimidas pelas autoridades religiosas que amarram fardos pesados e os põem sobre os
ombros dos homens, mas eles mesmos nem com um dedo se dispõem a movê-los (23,4).
Diante disso, Jesus mesmo se apresenta como manso e humilde de coração e convida a
virem a ele todos os que estão cansados sob o peso do fardo e lhes promete dar descanso
(cf. 11,28-30).
Felizes os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados (5,6). Esta bem-
aventurança resume as anteriores. Também aqui o sentido não se esgota na injustiça social,
e sim na busca coerente de cumprir a vontade de Deus como o denuncia o profeta Isaías no
texto clássico que expressa o jejum que agrada a Deus (Is 58,1-10). Sicre (1999, p. 148),
afirma que o termo utilizado no Evangelho tem uma conotação diferente e poderia ser
traduzido: “bem-aventurados os que têm fome e sede de serem fiéis a Deus, de cumprirem
a vontade de Deus”. Ele fundamenta a afirmação citando a experiência do batismo em que
Jesus aceita a vontade misteriosa de Deus, embora tenha de aparecer publicamente como
um pecador a mais. O termo utilizado por Mateus para dizer “cumprir toda justiça”
(dikaiosyne - 3,15) é o mesmo empregado na bem-aventurança. E o faz porque tem fome e
sede de justiça.
Várias referências do primeiro testamento dão também este sentido, tanto os
salmos: vagueiam com fome e sede a busca do caminho (Sl 107,5-6; Sl 42, 1-2.9), como os
profetas: fome de ouvir a Palavra, de procurar a justiça e buscar o Senhor (Am 8, 11-12; Is
51,1-8).
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Felizes os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia (5,7). Ser misericordioso é
de importância tradicional (Pr 14,21; Os 6,6; Tb 4,5-7). Parece fácil, mas não é, porque não
se trata de uma ajuda passageira, mas de colocar a vida a serviço dos outros. Os que
sentem na pele o problema do outro e prestam ajuda; fornecem os recursos econômicos
necessários (5,42; 6,2-4; 25,31-46); perdoam (6,12-15); estendem o amor aos inimigos
(5,38-48), aos marginais, estrangeiros e mulheres (15,22); solidarizam-se pelos laços da
justiça e misericórdia (Mt 25, 31-46). Misericórdia é o que quero, e não sacrifício (9,13;
12,7); por isso ela não deve ser negligenciada (23,23). Quem a vive terá sorte. Encontrá-la-
á.
Felizes os puros de coração, porque verão a Deus (5,8). A bem-aventurança se
inspira no salmo 24: pode ver Deus quem tem mãos inocentes e coração puro (Sl 24,4), que
transpiram integridade e retidão. O coração é o âmago, o lugar de tomar as decisões, de
querer decidir e atuar de acordo com a experiência da libertação de todas as escravidões
(Dt 6, 4-19). Portanto, o que caracteriza a vida dos puros de coração é a sua postura de
amor a Deus, que exclui toda forma de idolatria, e o amor ao próximo, que exclui toda
forma de injustiça.
A promessa é ver Deus: imagem de encontro íntimo face a face com Deus. É algo
prometido ao justo (Sl 11,7; 15,2; 17,15), embora isso pareça impossível ao ser humano
(Ex 3,6; 19,21).
Felizes os que promovem a paz, porque serão chamados filhos de Deus (5,9).
Fazedores de paz. Paz sem derramamento de sangue; promovem a paz e tranquilidade, o
direito e a justiça; paz cósmica de Deus em que todas as coisas estão em justa relação
entre si e com seu criador. Opõe-se à pax romana. Paz do reinado de Deus: defesa do
pobre e necessitado (Sl 72,4.7.12-14); O fruto da justiça será a paz (Is 32,17) que
compreende muitos aspectos, como o explica Sicre:
A promessa é que serão chamados filhos de Deus: viver como Deus faz (5,48) e
como Jesus. Agir como Deus é ser um dos filhos de Deus agora (5,45; 6,9); formados não
por origem étnica (cf. Dt 14,1), mas pela imitação de Deus (cf. Mt 3,9).
Felizes os que são perseguidos por causa da justiça, porque deles é o Reino dos
Céus (5,10). A última bem-aventurança se liga à primeira. Ambas estão no presente. O
reinado de Deus já está no meio das comunidades dos pobres que lutam por justiça a partir
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da prática da misericórdia, e, bem por isso, mexe com os interesses dos poderosos, daí a
perseguição. O justo incomoda, mas Deus virá em seu auxílio (cf. Sl 54,5-6; Sb 2,10) .21
Mateus reforça a última bem-aventurança referindo-se diretamente à perseguição,
termo repetido duas vezes, por causa do seguimento de Jesus (5,11-12). Como na tradição
do justo perseguido (Sl 35,37; Sb 2,12-24), o império contra-ataca como Mateus já havia
relatado com a perseguição de Herodes (2,13-23). A felicidade prometida como recompensa
não se dará pelo merecimento, mas como resposta justa de Deus à fidelidade, pois foi
assim que perseguiram os profetas (Ne 8,26; 1Rs 18,4.13; 19,10.14).
3.2.2 A justiça na tradição dos escribas e fariseus e a do Reino dos céus (5,17-
48)
A partir de 5,17, Mateus apresenta a postura de Jesus diante dos escribas e fariseus.
Sua proposta poderia parecer em desacordo com a tradição de Israel. Por isso o alerta
inicial: Não penseis que vim revogar a leis e os profetas... mas dar-lhes pleno cumprimento.
21
Cf. CNBB (1998, p. 49 e 50).
22
Cf. Carter (2002, p. 187).
23
Citado por Carter (2002, p. 188) (In Cat 4,11).
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À primeira vista, ao se referir a não omitir uma vírgula sequer, poderia parecer que está
defendendo o cumprimento legalista da lei, o que estaria em desacordo com o que segue.
Na realidade, Jesus não está defendendo a letra da lei, mas o seu espírito, como ensina
logo em seguida: a justiça dos seus seguidores e de suas seguidoras deve exceder a dos
escribas e a dos fariseus. Ele reconhece a lei escrita e a tradição oral, só que não de
maneira fundamentalista. A lei apenas aponta a Vontade de Deus. O essencial da lei é a
prática da justiça e da misericórdia (23,23). Jesus usa as Escrituras para exigir algo mais: a
reconciliação, a fidelidade conjugal, a veracidade, tolerância, o amor universal. O rigor de
5,17-18 é equilibrado com a ética do amor em 5,43-46.
O contexto é de comunidade perseguida e em diáspora, o que implica constante
desinstalação (5,25; 6,2-4; 6,25-33). A dinâmica de assumir a perspectiva do Reinado de
Deus vivida em comunidade cristã se contrapõe à prática da sinagoga e da academia de
Jâmnia, dirigida pelos escribas e fariseus.
Para deixar mais claro em que consiste esta justiça, dá seis exemplos de retidão e
vida que o Reino de Deus exige (5,17-48).24
Sobre ira e relacionamento (5,21-26): O quinto mandamento é claro: não matar.
Porém, não se trata apenas de respeitar a vida física, mas toda a sua pessoa e evitar todas
as formas que geram morte: fome, guerra e ódio. Segundo o livro do eclesiástico, quem
priva o pobre de pão é assassino (Eclo 34,25). Portanto, neste caso Jesus leva a lei às suas
consequências mais radicais.
Sobre adultério e libido masculina (5,27-30): Também aqui Jesus vai além do ato
físico do cumprimento da lei. Exige que os homens se esforcem para eliminar seu desejo de
posse.
Sobre o divórcio e os maus tratos masculinos às mulheres (5,31-32): Jesus
combate os privilégios dos homens e revoga a lei que dava a eles o direito de despedir a
mulher por qualquer motivo, cf. 19,3-9, como explica Carter:
24
Cf. Carter (2002, p. 194-211).
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Schammai restringira a causa de adultério (m. Git. 9,10), mas a posição
mais dominante sustentada pela escola de Hillel a interpretava muito mais
amplamente para referir-se a qualquer coisa que desagradasse ao marido
(CARTER, 2002, p. 199).
Jesus denuncia assim o machismo presente nas relações humanas e aponta para a
reciprocidade nas relações entre homens e mulheres.
Sobre a integridade de palavra e ação (5,33-37). Jesus anula a lei em vigor. As
relações de comunidade baseadas na veracidade e na integridade dispensa o juramento.
Sobre a resistência não violenta ao mal (5,38-42). Jesus muda a lei da equivalência
entre delito e infração, conhecida como lei do talião, para romper o círculo da violência com
uma norma mais exigente, em conformidade com as bem-aventuranças que rompem a
cadeia da violência pela resistência não violenta ao malfeitor. As exemplificações de não
revidar ao agressor, de se dispor a andar duas milhas com quem impõe andar uma milha,
provavelmente para carregar o armamento de um soldado, surpreendem e questionam:
mas por que ele faz isso? Assim, vai se rompendo o círculo vicioso da violência.
Sobre o amor aos inimigos (5,43-48). Nenhum texto bíblico fala de ódio aos inimigos,
mas aparecem afirmações similares (cf. Dt 20,1-18; Sl 139,21-22; Eclo 12,4-7, e nos textos
de Qumrã 1 QS 1,10-11). Jesus muda a lei e estabelece uma norma mais existente.
Inimigos devem se tratados como o próximo na perspectiva proposta pelo livro do
Levítico (cf. Lv 19,18; Ex 23,4-5) o que não é fácil, pois inclui os que estavam perseguindo
os seguidores e as seguidoras de Jesus. Isso não significa, porém, se acomodar
“gentilmente” aos conflitos, mas desafiar as injustiças e a opressão pela não violência
afetiva, criativa e ativa.
O objetivo de tal amor indiscriminado e ativo é pra que possam ser filhos
de vosso Pai que está nos céus . Isto tem dimensões presentes e futuras
(escatológicas). Agindo agora como promotores de paz (cf. 5,9), orando
pelos próprios inimigos, fazendo o bem etc., marca a comunidade como
filhos de Deus, em relação de aliança com Deus como Pai (ver 5,16; 23,9),
constituída não pela etnicidade (cf. Dt 14,1), mas por seguir a Jesus na sua
imitação de Deus (cf. Mt 3,9) e participando na consumação dos propósitos
de Deus (CARTER, 2002, p. 209).
O fundamento deste amor indiscriminado está no Criador (Gn 1 e 2) que faz nascer
o seu sol igualmente sobre maus e bons e cair a chuva sobre justos e injustos.
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O versículo final (5,48) recapitula os seis exemplos anteriores. A justiça maior (5,20)
necessária para entrar no Reino dos céus se alcança imitando a Deus em sua plenitude.
Sede perfeitos como o vosso Pai celeste é perfeito, o que implica em coração indiviso,
íntegro, que conhece e lealmente faz a vontade de Deus (Dt 18,13). Lucas, em outro
contexto, irá destacar a misericórdia de Deus: sede misericordiosos...
O tema abordado na parte anterior, sobre a prática da justiça diante da Lei, continua
agora na explicação da prática diante da justiça do Reino diferenciando a prática divulgada
pelos fariseus em dar esmola, orar e fazer jejum em relação ao modo como os seguidores e
as seguidoras de Jesus devem praticá-la. O termo “justiça”, que tem vários significados na
tradição bíblica, aqui é aplicado como “piedade verdadeira”.
Já havia ficado claro que o espírito com que se deve vivenciar a lei é buscar imitar o
Pai sendo, perfeito, íntegro como Ele (5,48). Mas como fazê-lo? Como conhecer a vontade
do Pai e ser íntegro como Ele? A discussão não está em praticar ou deixar de praticar as
obras da justiça, mas em como praticá-las: não para serem vistos diante dos outros, o que
seria mero marketing de promover-se a si mesmo, como adverte o versículo primeiro,
demarcando, assim, a fronteira com as sinagogas. Seria transformar o culto em teatro ou
espetáculo para impressionar os outros. A esmola, a oração e o jejum devem ser praticados
em segredo, na intimidade com o Pai, a serviço da vida, com integridade e plenitude. Os
discípulos devem pescar pessoas, não impressioná-las (4,19) e serem testemunhos não de
si mesmos, mas da luz de Deus (4,16). São duas posturas bem distintas: a dos hipócritas e
a dos e das seguidoras de Jesus.
Dez vezes Jesus cita a palavra PAI nestes dezoito versículos (6,1-18) o que
demonstra que ele define sua prática da justiça em função do plano de salvação dele. No
coração do texto, a oração do “Pai Nosso” que, mais do que uma oração, é um programa de
vida que perpassa e revoluciona todas as dimensões e relações da vida: a solidariedade
para com os mais pobres, a partilha do pão cotidiano, o perdão das dívidas e a gratuidade.
Primeiro ato de justiça: dar esmola (6,1-4). Deus é Pai que não aceita subornos. Ele
conhece nossos pensamentos (Sl 139, 2-3); quer justiça e misericórdia (Mq 6,8; Pr 21,27;
22,22-23; Eclo 34,18ss).
Segundo ato de justiça: oração (6,5-15). A comunicação com o Pai acontece no mais
profundo do ser humano.
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Para indicar esse espaço de intimidade, Mateus usa imagens como:
quarto, fechar/chave, porta para enfatizar a reação do Pai à nossa
oração. O Pai que está “escondido” (v.6), invisível, fora de nosso controle,
recompensará ampliando seu reinado em nossa vida (CNBB, 1998, p. 54).
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Jesus vai ao ponto central da nossa condição humana: deixar-se levar pela
cobiça e servir à riqueza, ou deixar-se conduzir pelo dinamismo do amor e
servir a Deus? São dois modelos econômicos, duas formas de organizar a
sociedade. Uma tem como base o poder da riqueza, que gera angústia,
fome, preocupações e injustiças. A outra prioriza uma estrutura social que
privilegia a justiça do reinado de Deus, gera dignidade, alegria e vida
cidadã (BOHN GASS, 2013, p. 196).
a) O compromisso de coração
O coração é o centro das decisões, iluminado pelos olhos. Olho sadio, para os
judeus, significa um olhar generoso, liberto do desejo ardente de acumular sem repartir;
olho doente significa mesquinhez.25 Tobias já havia alertado para isso ao argumentar a
favor de esmola como prática de partilha do que se tem (Tb 4,8-9). O profeta Ezequiel
havia falado do coração novo, de carne (Ez 36,26), liberto da cobiça.
Nosso texto usa a palavra mamona, aqui traduzida por dinheiro, como
símbolo máximo da riqueza. Mamona é todo o poder econômico que produz
morte. É a riqueza acumulada, endeusada. É o olho que cobiça, que deseja
bens pra guardar em celeiros. Do aramaico, Mamona é uma referência a
toda riqueza idolatrada, tornada fetiche. O Dicionário de Houaiss, fetiche é
qualquer objeto a que se atribui poder sobrenatural ou mágico e se presta
culto. É claramente o caso do dinheiro. (...) Torna-se um ídolo que
adoramos como nosso Deus. Temos a ilusão de que possuímos riquezas,
quando na verdade são elas que nos possuem e nos governam. Não foi por
acaso que as comunidades pós-paulinas escreveram: Porque a raiz de todos
os males é o amor ao dinheiro (1Tm 6,10). A cobiça é a mãe de todos os
males. A cobiça é idolatria (cf. Cl 3,5). (BOHN GASS, 2013, p. 199).
25
Cf. Sicre (1999, p. 156); Bohn Gass (2013, p. 198).
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(Dt 28,4-14). É a concretização da primeira bem-aventurança: ser pobre em espírito (5,3)
livre para aderir ao projeto de Deus, desapegado/a, que tem gosto em partilhar e liberto/a
das preocupações consumistas.
Seis vezes aparece a palavra preocupação, em forma de substantivo ou verbo, no
presente e no futuro. Contrário a esta ansiedade pelo acúmulo de riqueza estão dois
imperativos: aprendei da natureza, das aves do céu, dos lírios do campo, e buscai, em
primeiro lugar, o Reino de Deus e a sua justiça. As preocupações, a ansiedade em acumular
para o dia de amanhã, são superadas pela confiança na providência divina. É essa a
essência do Pai Nosso / pão nosso de cada dia. O dia de amanhã, o futuro, se preocupará
consigo mesmo.
Esta é a atitude fundamental: confiar na providência divina e ao mesmo tempo
buscar o Reino e sua justiça. Além da luta diária de satisfazer as necessidades básicas, há
uma luta maior: de uma parte, romper com as estruturas injustas que geram concentração
de renda e desigualdade social; romper com a ganância que leva à exploração dos bens
naturais até a exaustão, ameaçando a sobrevivência das gerações futuras, pois estes são
bens para todos os seres vivos; e de outra parte, construir estruturas econômicas, sociais e
políticas baseadas nos princípios de bem-viver, de felicidade humana, de convivência
fraterna, de comunhão com a natureza e o cosmos. Estamos todas, todos na mesma
embarcação, o planeta terra. Há vários furos abertos no barco principalmente pelos países
desenvolvidos, e muitos outros sendo abertos pelos que se acham com o direito de também
se desenvolver e abrir novos buracos na única embarcação. Não há meio termo: ou
mudamos o nosso jeito de viver e concertamos os furos, ou perecemos todos no fundo do
mar.
3.2.5 Fazei aos outros tudo o quereis que eles vos façam (7,1-12)
A atenção se volta agora para a prática de justiça nas relações sociais entre os
membros da comunidade: o papel da correção fraterna sem prejuízo do outro (7,1-6), a
busca de Deus na vida e na oração (7,7-11) e a regra de ouro de fazer ao outro o que
desejaria que ele lhe fizesse (7,12).
26
A linguagem é usada, por exemplo, na exortação da busca para obter filosofia. (Cf. citação de
CARTER, 2002, p. 244).
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como tu queres (26,39). Há duas condições: se é possível, e como tu queres. Jesus não é
liberto da morte, mas recebe força para enfrentá-la.
Como manter esse novo espírito de vida? Em forma de conclusão, Mateus relaciona
o modo de vida esboçado no discurso com o horizonte escatológico: as duas portas, dois
caminhos (7,13-15), o discernimento dos falsos profetas (7,15-23), ouvir e fazer a vontade
de Deus (7,24-27).
27
Ibidem p. 246.
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(24,4.5.24). Pelos seus frutos os conhecereis. O critério é observar o que fazem, pois elas
revelam o que está em seu interior. Os que aceitam a proposta do Reino só na aparência
dão frutos ruins. Serão cortados, como já havia profetizado João (3,10).
Não basta falar Senhor, Senhor, é preciso colocar em prática a vontade de meu Pai
que está nos céus. É a primeira vez que Jesus se refere a meu Pai. Das outras vezes Jesus
se referia a vosso Pai.28 Duas vezes até aqui Deus tem se referido a Jesus como Filho (2,15;
3,17). Portanto, Jesus fala como representante e agente do julgamento de Deus. Não
reconhecerá os que atuam em seu nome profetizando, operando curas ou exorcismos, mas
em vez de promover a justiça do Reino, praticam iniquidade. No Sl 6,9 o termo é usado
para designar aqueles que oprimem o justo. A palavra iniquidade vem do grego anomia,
significa não lei. Uma acusação forte.
d) Conclusão (7,28-29)
Os ouvintes admiram a autoridade de Jesus e constatam que seus ensinamentos
trazem justiça e vida. A autoridade será uma característica do ministério de Jesus expressa
em suas palavras e ações (caps. 8 e 9; 28,18) que é debatida e disputada por seus
adversários, os líderes religiosos (21,23-24.27), e é delegada aos discípulos (10,1).29
3.3.1 Contextualização
O texto se situa na grande viagem da Galileia para Jerusalém dedicado ao
ensinamento dos discípulos e das discípulas. Mateus assinala a passagem com a expressão -
28
Mt 5,16.45;48; 6,1.4.6.8.9.14.15.18.26.32; 7,11; 10,32-33; 11,27; 12,50; 16,17; 23,9 (citado por
CARTER, 2002, p. 253)
29
Cfr. CARTER, 2002, pp. 258-259.
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A partir desse momento / dessa época... - que assinala tanto o ministério na Galileia (4,17),
como o momento crucial em que Jesus começou a mostrar aos seus discípulos que era
necessário que fosse a Jerusalém e sofresse muito..., e que fosse morto e ressurgisse ao
terceiro dia (16,21).
Os capítulos 19 e 20 narram os acontecimentos e os ensinamentos dessa viagem
demarcados claramente com um ponto de partida (19,1-2) e um ponto de chegada (21,1).
A coerência destes dois capítulos reside nas compreensões culturais predominantes
de famílias. As discussões sobre as tradições domésticas estavam presentes na tradição
aristotélica, no estoicismo, entre neopitagóricos, e no judaísmo helenístico. Consideram a
família ideal como unidade básica de um estado, reino ou cidade, e um microcosmo da
sociedade imperial, como explica Warren Carter:
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Ao se opor às normas da sociedade, esta família encarna o caminho da cruz (16,21-
28).
Exercício preliminar:
1) Procure ver o que há no texto: destaque as palavras chaves e seu significado; possíveis
subdivisões do texto; realidade do povo em sua época.
A reversão dos últimos que serão primeiros e dos primeiros que serão últimos
aparece no começo (19,30), no meio (20,8) e na conclusão do texto (20,16). Forma uma
espécie de moldura do texto e o subdivide em duas cenas: o chamado para trabalhar na
vinha (20,1-7) e o acerto de contas (20,8-15).
Porque o Reino dos Céus é semelhante a um pai de família que saiu de manhã
cedo para contratar trabalhadores para a sua vinha. O porquê mostra a relação com o
texto anterior; o verbo no tempo presente é semelhante, indica de que não se trata do
julgamento final. Pai/chefe de família deveria ser homem de bens. Possuía uma vinha,
contava com um administrador e tinha condições de investimento para contratar
trabalhadores. A figura de chefe de família aparece também em outras parábolas (13,27.52;
21,33; 24,43). Em 10,25 o termo se refere ao próprio Jesus e aos discípulos como
familiares. A vinha é símbolo do povo de Deus (Is 5,7). A palavra é citada cinco vezes nos
oito versículos.
O chefe de família sai cedo de casa para contratar os trabalhadores, algo pouco
comum, pois isso seria trabalho do administrador. Há, portanto, um envolvimento direto
que proporciona uma resposta no desfecho final. Somente com os da primeira hora é
combinado o preço de um denário, o que corresponde atender às necessidades diárias de
uma família. O mesmo pai de família sai ainda às 9h, ao meio dia, às 15h e às 17h e
encontra pessoas desocupadas, esperando na praça, chamada de ágora, a espera de um
trabalho. Sua vida era imprevisível, marcada pelo desemprego. Chama todos para trabalhar
na vinha. Aos chamados na hora terceira (9h) promete pagar o que for justo.
Chegou a hora do acerto. A iniciativa é novamente do chefe de família que chama o
administrador para fazer o pagamento, cumprindo o que diz a lei: dá-lhe no mesmo dia o
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salário, para que o sol não se ponha sobre a dívida, pois ele é pobre, e o salário significa o
seu sustento (Dt 24,15; Lv 19,13). O que não era comum é começar pelos últimos até os
primeiros, e pagar a estes o mesmo que havia sido combinado com os da primeira hora que
suportaram uma jornada de sol a sol, de doze horas, igualando-os na remuneração. O
combinado com os primeiros era uma jornada de trabalho por um denário. Aos outros, a
promessa de pagar o que for justo. Receberam por igual, o que causou tumulto. O texto diz
que murmuraram contra o pai de família, o que lembra a situação do povo de Deus no
deserto murmurando contra Moisés e Aarão por falta de comida (Ex 16,2; Nm 11,1;
14,27.29). Eles estão bravos com o chefe de família porque ele não agiu conforme as
práticas consideradas normais, seja de merecimento, seja superioridade de uns em relação
a outros, como aparece nas pretensões dos filhos de Zebedeu (20,20-28). Esquecem o que
havia sido combinado e não se conformam em serem igualados aos últimos. Foram
surpreendidos.
A primeira resposta do chefe de família é lembrá-los de que não os trapaceou. Pagou
no final do mesmo dia, conforme recomenda a lei, o salário previamente combinado. A
segunda, embora possa parecer de cunho elitista, tipo “o dinheiro é meu eu faço o que eu
quero”, revela algo muito significativo, como explica Carter:
Ele afirma que, pagando a todos eles o mesmo e os tratando como iguais,
não só fez o que é justo, mas fez algo bom (...). A sua pergunta final: É
teu olho mau?, desafia os trabalhadores e a audiência para reconhecer o
tratamento ‘igual’ como uma coisa boa, divina. (...) A pergunta deixa em
aberto a resposta dos trabalhadores e da audiência, enquanto solicita
seu/nosso consentimento (CARTER, 2002, p. 500).
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Dica de Aprofundamento
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UNIDADE 4
a) Quem é Lucas?
Lucas inicia o seu Evangelho com uma apresentação do horizonte do seu projeto de
evangelização, suas preocupações e interesses, a janela pela que está olhando o mundo, a
manifestação do Reino de Deus e a realização do projeto eclesial. Com um pouquinho de
imaginação conseguiremos também vislumbrar quem é essa pessoa que está olhando pela
janela enquanto nos escreve.
Ele mesmo deixa a entender no seu prólogo que ele não é uma testemunha ocular
da vida de Jesus, mas um cristão da segunda geração. Visto que muitos já tentaram compor
uma narração dos fatos que se cumpriram entre nós – conforme no-los transmitiram os
que, desde o princípio, foram testemunhas oculares e ministros da Palavra... Sabe-se, pela
78
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tradição30 que ele é de origem semita, procedente de Antioquia, talvez o único autor do
Novo Testamento que não é filho de Israel. Sabe-se, também, que ele estava muito ligado a
Paulo, integrava sua equipe missionária como atestam as próprias cartas de Paulo, que era
médico de profissão (Cl 4,14; Fm 24; 2 Tm 4,11) e profundo conhecedor da cultura bíblica.
Por isso, os pais da Igreja quiseram homenagear um dos seus colaboradores mais próximos
atribuindo-lhe a autoria do evangelho.
Várias passagens em Atos dos Apóstolos parecem confirmar a hipótese de que
Lucas, a quem se atribui a autoria, é companheiro de Paulo em sua jornada missionário,
pelo fato de várias vezes empregar o verbo na primeira pessoa do plural (nós partimos, nos
detivemos...16,11-12; 20,6-28,16). No entanto, críticos a esta posição argumentam que isso
é mero recurso literário para tornar o texto mais provável e mais vivo. Baseiam-se em dois
argumentos: primeiro porque as informações contidas em Atos não conferem com as cartas
de Paulo. Basta analisar as conclusões a que chega o primeiro concílio de Jerusalém (At 15)
comparando-as com o que Paulo diz em Gl 2 e 1Cor 8-10; segundo, porque a teologia
contida em Atos, como podemos perceber no discurso do Areópago, não confere com a
teologia paulina que o homem pecador não se salva fora de Cristo (Rm 1). Além disso, não
dá importância ao título de Apóstolo, tão caro para Paulo, nem à espera escatológica.
Portanto, para estes, o autor de Atos não é Lucas, companheiro de Paulo. Os argumentos
têm fundamento em ambos os casos. Ou seja, a única certeza que temos é que ele era
gentio.
Da mesma forma incerta é o lugar da produção literária. Apenas se tem certeza
igualmente de que foi fora da Palestina. Poderia ser Antioquia ou Éfeso, uma vez que Atos
dos Apóstolos faz a memória destas igrejas (At 11,19-26; 13,1-3; 14,24-15,2; 19-20). Mas
poderia ser também a Grécia, uma vez que a obra de Lucas foca a sociedade altamente
estratificada e o apelo à solidariedade (cf. BOHN GASS, 2011, p. 40-41).
Quanto à data o mais provável que seja no final dos anos 80 d.C.
30
São Jerônimo 347-419, por exemplo, dá a informação seguinte: “Lucas, médico antioqueno, como
o indicam seus escritos, não foi desconhecedor da língua grega; seguidor do apóstolo Paulo e
companheiro de toda a sua peregrinação, escreveu o evangelho...” (SICRE, 1999, p. 247).
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que estava surgindo entre os pobres habitantes das cidades do império romano não poderia
mais passar despercebida aos olhos do mundo.
Pelo fato de explicar aos leitores as tradições judaicas (22,1.7) e omitir a relação
entre a lei antiga e a nova, tão frequente em Mateus (Lc 6,27-29 // Mt 5,38) podemos
deduzir que não escreve para judeus. Isto se confirma se tivermos em conta o fato de ele
omitir coisas duras ditas aos não israelitas (Mt 10,5; 15,24) como o texto da mulher grega,
siro-fenícia, onde Jesus diz priorizar o povo de Israel (Mc 7,24-30); pelo fato de elogiar os
samaritanos (10,33-27; 17,18-19), o centurião (7,10) e de afirmar que estes precederão a
Israel (13,29-30), deixa claro que ele se dirige às comunidades helenistas espalhadas pela
Grécia, Macedônia e Ásia Menor. São as comunidades paulinas da segunda geração de
cristãos e de cristãs.
Confirma-o ainda a insistência de Lucas no universalismo da missão de Jesus
estendendo a genealogia até Adão. Deixa a entender, assim, que ele veio para toda
humanidade. Lucas é o único evangelista que fala do envio dos setenta e dois discípulos
(10,1-16), uma possível referência aos setenta e dois povos citados em Gênesis 10.
Se em Marcos encontramos uma configuração mais rural do evangelho, em Lucas o
caráter é predominantemente urbano, mais uma pista que estamos no percalço das
comunidades paulinas espalhadas pelas cidades do império romano. Segundo Ildo Bohn
Gass:
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Em terceiro lugar, toda esta riqueza de informações – evangelho de Marcos, ditos
populares Q, cartas de Paulo e novos dados - precisavam ser organizados de modo
ordenado numa nova narrativa que desse
solidez à catequese iniciada pelos/as
cristãos/ãs da primeira e segunda geração.
Ele quer ordenar catequeticamente a
experiência do seguimento de Jesus, falando
dos acontecimentos numa obra literária
didática. Porque há tantos problemas sérios
Lucas acentua, particularmente, o aspecto do
perdão, da misericórdia e do amor aos
inimigos, único jeito para quebrar o círculo Fonte: http://migre.me/s4aqo
Lendo o Evangelho, facilmente podemos perceber que é versado na arte das letras.
Faz introduções, liga uma parte com a outra, tem conclusões, tudo para facilitar a
compreensão do/a leitor/a. Nada menos que 180 do total de 1.149 versículos são utilizados
para isso, muitas vezes com traços bem pessoais.
A estrutura literária da obra de Lucas é bastante clara e há uma concordância entre
os/as comentaristas. Mudam os títulos, mas a subdivisão é praticamente a mesma. Em
nosso comentário – O caminho do seguimento no evangelho de Lucas – procuramos
perceber quatro grandes momentos (WENZEL, 1998):
1. A esperança do povo que luta (1,5-4,13), que nos prepara para um novo começo
de nossa história.
2. O chamado para integrar o programa de vida (4,14-50), dispondo-nos a
responder ao chamado do Senhor para seguir as suas pegadas.
3. A difícil caminhada para a liberdade (9,51-19,28), que nos prepara para enfrentar
e superar os obstáculos da vida que impedem de sermos autênticos seguidoras e
seguidores de Jesus.
4. O êxodo de Jesus e o resgate dos discípulos (19,29-24,53). A nossa opção precisa
estar fundamentada pela experiência de aceitação da cruz redentora que nos liberta
de todas as amarras, a fim de que possamos ser livres para amar.
Para uma compreensão mais acurada com uma chave interpretativa, é importante
ler a obra como um conjunto, conforme pontua Pablo Richard. Ele propõe uma estrutura e
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chaves para a compreensão global do evangelho (RIBLA 44, 2003, p. 8). A obra foi
separada possivelmente por ocasião da definição com a unidade dos quatro evangelhos pelo
final do século II d.C. Com a separação da obra houve um acréscimo no final de Lucas
(24,50-53) e no início de Atos (At 1,1-5). Reproduzimos aqui sua chave de leitura
(RICHARD, 2003, p. 8):
a) Horizonte universal
O Evangelista tem por objetivo tornar o cristianismo aceito dentro de um horizonte
mais amplo, procurando ligar a experiência do povo hebreu à problemática de toda a
humanidade. Por isso, relaciona a origem de Jesus não somente a Davi ou Abraão, mas a
Adão, ao começo da história humana. Defende a tese de que o cristianismo não é uma
tendência política para derrubar o império romano. Por isso omite tudo o que é polêmico a
este respeito. Não responsabiliza, por exemplo, Pilatos pela morte de Jesus, mas as
autoridades judaicas, especialmente os chefes dos sacerdotes e os anciãos. Nem mesmo o
povo e os fariseus, a quem critica duramente, mas não lhes fecha as portas. Ressalta que
Jesus vai seguidamente à casa dos fariseus.
Da mesma maneira bate duro na riqueza, pois “não se pode servir a Deus e ao
dinheiro” (16,13b), e nos ricos (6,24), mas não os exclui nem fecha as portas a eles.
Também a eles, no personagem Zaqueu, Jesus visita e realiza sua conversão (19,5).
b) Projeto pastoral
A finalidade de sua obra é claramente pastoral. Prima pela clareza e pelo sentido das
palavras de Jesus, e não tanto pelos dados históricos. Interessa-lhe apontar, sobretudo, a
história da salvação de Jesus trazida a todos os povos. Por isso, também, o projeto eclesial
deve ser universal, atingindo a todos os povos e culturas. Tudo começa em Jerusalém,
especificamente no Templo, onde se anuncia o nascimento do grande profeta João que irá
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preparar o caminho do Senhor. Ali Jesus pronuncia as suas primeiras palavras (Lc 2,49) e as
últimas, fora dos muros de Jerusalém (23,46), como pedra rejeitada que se tomou pedra
angular.
Segundo Lucas, Jesus ressuscitado aparece aos discípulos e às discípulas em
Jerusalém, e não na Galileia como dão testemunho Marcos e Mateus. Para Lucas Jerusalém
não é mais uma referência geográfica, mas uma referência teológica. O ponto de chegada e
o ponto de partida do mistério da salvação. Nele se realizou o êxodo definitivo de Jesus, a
sua Páscoa. E lá se inicia o êxodo dos apóstolos e das apóstolas, impulsionados/as pelo
Espírito Santo para irem a todos os povos levar a Boa Nova libertadora de Jesus.
Percebe-se neste esquema de construção literária o projeto eclesial de Lucas.
Jerusalém é o lugar referencial para a realização do projeto missionário de evangelização de
todos os povos. Lá se consumou o mistério da salvação. De lá partem as primeiras missões
para além das fronteiras da Palestina, lá se realiza o primeiro conflito (At 15), de lá partem
as viagens de Paulo, que terminam tragicamente em Roma, onde o grande apóstolo entrega
a sua vida. E Roma representa os confins do mundo.
31
Em Bohn Gass (2011, p.34-39) encontramos uma lista comparativa que facilita a visão de
conjunto.
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Senhor, faça-se em mim segundo a tua palavra. Com isso, ela se tornou modelo para todas
as cristãs e os cristãos. Seu protagonismo se faz sentir em toda a sua obra, especialmente
no evangelho da infância, e na retomada do discípulo após a dispersão (At 1,14).
Lucas traça um paralelo entre João Batista, o precursor, e Jesus, o Salvador,
enfatizando a missão do primeiro em função do segundo. Mas é curioso que introduza
solenemente João Batista no início de sua ação profética e não o faz no início da ação de
Jesus. Faz parte de sua estratégia literária. Em vez de citar constantemente as escrituras e
os profetas, faz os personagens falarem e agirem como profetas (Zacarias e Isabel, Ana,
Simeão, Maria), de modo especial João Batista. Os profetas atuaram fortemente no período
dos reis de Israel. Por isso cita os “reis” de época de João e Jesus: o imperador e os
governadores (3,1-2).
O segundo aspecto que chama atenção é o paralelismo de personagens ou figuras
contrapostas: o rico e Lázaro; o fariseu e o publicano, o samaritano e o sacerdote e levita; o
leproso samaritano e os outros nove; Zacarias e Maria, Marta e Maria, do filho pródigo e do
filho “aplicado”... Chama atenção, sobretudo, os pares feminino e masculino. Adela Ramos,
em artigo publicado na revista RIBLA, cita 16 pares, presentes em toda narrativa de Lucas,
que copio sem a estruturação original:
Este paralelismo não é um mero acaso, mas faz parte da estratégia literária de
Lucas, como ela mesma explica:
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A formação destes pares é parte desse trabalho lucano de composição que,
aplicando a técnica do balanceamento e do paralelismo (synkrisis), propõe-
se a harmonizar, combinar, opor e/ou contrastar elementos estilísticos,
estruturais, temáticos, conceituais ou os personagens de um relato. E tudo
isto com o fim de servir de suporte à mensagem teológica cujo núcleo
fundamental é: Jesus Cristo Senhor e salvador do mundo. (RAMOS, 2003,
p. 81).
32
Resumimos aqui de forma livre a apresentação de Sicre (1999, p. 234-237).
33
Há um paralelismo com o menino Samuel (1 Sm 2,26) que, segundo Flávio Josefo, tinha doze anos
quando se lhe manifestou o Senhor em Silo (SICRE, 1999, p. 236)
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seus/suas seguidores/as (9,57-62); contrasta também seu argumento mordaz que
ridiculariza o sacerdote e o levita, na comparação da ação deles com a do samaritano
(10,29-37); e com a sua atitude provocadora em Nazaré, justamente em sua primeira ação
pública, enfrentando os seus conterrâneos em Nazaré, negando-se a realizar milagres (4,23-
30).
Outra característica da personalidade de Jesus sublinhada por Lucas é o seu caráter
profético. Ele mesmo se concebe assim (4,24; 13,32-33), o povo o reconhece assim ao
presenciar a ressurreição do filho da viúva de Naim (7,16) e essa era a forma como a
população o via (9,8.19). Os discípulos e as discípulas viam nele um profeta poderoso em
palavras e obras, diante de Deus e diante do povo (24,19b), que iria libertar Israel do jugo
do império romano, expectativa presente no hino de Zacarias e na profetiza anciã Ana.
Quantos aos títulos, Lucas tem certa predileção pelo título “Senhor” (Kyrios). O
utiliza como narrador; está na boca dos discípulos e de diversos personagens, não só como
título de respeito, como aparece uma única vez em Marcos (Mc 7,28), mas com a dignidade
sublime de Jesus, como o podemos perceber na expressão de Isabel (1,43), do anjo (2,11)
e de Pedro depois da pesca milagrosa (5,8). Jesus mesmo se atribui este título (19,31),
como o mostra Sicre:
Lucas, como narrador, usa treze vezes “Senhor” em vez de “Jesus” (7,1.19;
10,1.39.41; 11,39; 12,42; 13,15; 17,6; 18,6; 19,8; 22,61; 24,3); também
coloca o título na boca dos discípulos (9,54; 10,17; 11,1; 12,41; 17,5.37;
22,33.38.49; 24,34); e o usam o leproso (5,12), o centurião (7,6), dois
possíveis seguidores (9,59.61), Marta (10,40), um personagem anônimo
(13,23), um cego (18,41), Zaqueu (19,8). Jesus mesmo o aplica (19,31),
logo Lucas contraria o didáskalos de Marcos e Mateus (SICRE, 1999, p.
236).
Outros títulos:
Mestre: Assim é denominado pelos estranhos e pelos discípulos. Para os estranhos
Lucas emprega a palavra didáskalos: (9,38; 10,25; 11,45; 13,13) e para os discípulos a
palavra Epistates (do hebraico rabi): (5,5; 8,24.45; 9,33.49). Também os dez leprosos
(17,13).
Filho do Altíssimo / Filho de Deus: Gabriel (1,32.35), o diabo/demônios (4,3.9;4,41) e
por este título é interrogado pelo sinédrio (22,70).
Messias (Cristo): assim o chama o anjo (2,11) Simeão (2,26) e Pedro (9,20), mas
também os demônios (4,41); faz parte do interrogatório do Sinédrio (22,67), parte do
povo o qual exige demonstração (23,35.39). Mas Jesus o aplica a si mesmo com um
sentido novo (24,26 e 24,46).
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Salvador: embora apareça uma vez só (2,11) o tema da salvação é desenvolvido
amplamente no evangelho.
Santo de Deus: pelo demônio (4,34).
Além dos aspectos já sinalizados até aqui – o universalismo, importância dos pobres
e da pobreza, a importância de Jerusalém, o paralelismo de gênero, o ensinamento do
caminho do seguimento da cruz – há outros aspectos que queremos destacar, uma vez que
não teremos espaço para uma análise de todo evangelho de Lucas, para perceber o fio da
meada de alguns temas que sempre voltam à baila, e que são um desafio para as
seguidoras e os seguidores de hoje.
34
Cf. Sicre (1999, p. 244). Para um estudo do tema: ROBERTI, Carlos. O Espírito Santo na obra de
Lucas, Estudos Bíblicos, n. 45, 1995, p. 46-54.
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Ele continua a agir, sobretudo, nas palavras e na ação de Jesus (Lc 3-24). O Espírito
desce sobre Ele em aparência corporal (3,23), dá força e sabedoria para vencer as
tentações (4,1-13), unge-o com sua força e seu poder (4,18). Nele o Espírito se manifesta
para escolher parceiros (5,10), expulsar os demônios (4,35), realizar curas (5,13) e perdoar
pecados (5,20). Nele e por ele continua a visitar o seu povo (7,16), suscita a partilha (8,3;
9,16-17), explicita a fé (8,48), provoca o discernimento da prática (9,10), do que é essencial
na vida (12,22-31) e o discernimento dos sinais dos tempos (12,54-13,9). Quando os
setenta e dois voltam da missão, Jesus se enche de gozo do Espírito Santo (10,21), etc.
Antes de partir, Jesus lhes promete a força do Espírito Santo para ser suas
testemunhas desde Jerusalém até os confins da terra (At 1,8). É derramado sobre todos os
que estavam reunidos (At 2,1) e permanece na ação dos apóstolos e das comunidades
missionárias: em Pedro (At 4,8), na comunidade (At 4,31), em Estêvão (At 6,5; 7,55), em
Saulo (At 9,17)... ao todo, 51 vezes se menciona em Atos o Espírito Santo como motor de
toda atividade missionária da Igreja.
O Espírito sopra quando e onde ele quer. É Vento. É liberdade. Ninguém consegue
se apropriar dele. Deve ser pedido e invocado (Lc 11,13), e nos surpreende agindo em nós
e na vida do povo, como defensor dos que são arrastados diante dos tribunais por causa
dele (Lc 12,11). Como isso é possível? Segundo Mateus, eles recebem a força de Jesus que
diz: Eu estou convosco todos os dias até a consumação dos séculos! Lucas o interpreta
assim: Eu estarei convosco através do Espírito Santo.
35
Para um aprofundamento deste tema, bem como o da compaixão: CASTELLANOS, René. O amor
subversivo no Evangelho de Lucas, RIBLA, n. 12, Vozes/Sinodal, 1992, p. 61-88.
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abençoando os alimentos, como podemos perceber na partilha dos pães (9,16), na última
ceia (22,17) e na casa dos discípulos de Emaús (24,30). Sabia salmos de cor. Na paixão da
cruz, segundo Marcos, Jesus recitou o salmo 22, e segundo Lucas, o salmo 31, também de
confiança, e menos trágico.
Além disso, Jesus tinha sua vida de oração pessoal. Gostava de rezar. Passava
madrugadas (Mc 1,35) ou noites de vigília em oração (Mc 6,46). Enquanto rezava, recebeu
a sua missão (Lc 3,21). Retirava-se constantemente para lugares desertos para estar a sós
com o Pai (Lc 4,1; 5,16) e para tomar decisões importantes (6,12). Orava antes de propor
aos outros e às outras novas opções ou questões importantes (9,18). Em certos momentos
rezava com tanta intensidade que seu rosto se alterava (9,29). Rezou por Pedro para que
permanecesse firme na fé (22,32), e pelos que o assassinavam, para que o Pai os
perdoasse (23,34), sendo coerente com o seu ensinamento.
A oração também faz parte de seu ensinamento, nas parábolas do amigo inoportuno
(11,5-8) e do juiz iníquo (18,1-8). Exorta os discípulos a orar quando estão no horto
(22,40).
Segundo Lucas, em dois momentos Jesus expressou na oração todo o seu ser.
Primeiro, por ocasião do êxito da missão dos discípulos. Exultou sob a ação do Espírito
Santo (10,21) em uma oração filial de louvor e ação de graças, porque constatou que a
graça de Deus estava atuando. Um segundo momento foi a oração difícil no monte das
Oliveiras (22,39-46). Jesus foi tentado uma última vez e venceu o combate, sem abrir mão
da condição humana. Foi necessário gritar e insistir, num ato de coragem e entrega
confiante à vontade do Pai.
Segundo Marcos, foi na hora da morte que Jesus deu o seu grande grito, na certeza
de que Deus escuta o clamor dos oprimidos (Mc 15,37), e, segundo Lucas, dizendo: Pai, em
tuas mãos entrego o meu espírito (23,46).
Há alguns elementos que se repetem na oração de Jesus: é uma oração filial, que se
dirige a Deus como uma criança se dirige ao Pai; é uma oração totalmente voltada à
missão; e uma oração de submissão dolorosa, obediente, de abandono total nas mãos do
Pai. No seu ensinamento insistiu na constância (11,5-13), na perseverança (18,1-8) e na
vigilância (21,36).
Para os apóstolos, depois da experiência da ressurreição de Cristo, a referência à
oração de Jesus era tão grande que eles rezaram a Jesus (At 1,24; 7,59) e pelo nome de
Jesus (At 4, 28-30). A oração era uma constante nas primeiras comunidades (At 1,14.24;
2,42; 3,1; 4,23-31; 6,4.6; 8,15; 9,11.40; 10,4.9.31; 11,5; 12,5.12; 13,1; 14,23; 16,25;
20,36; 21,5; 28,8).
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c) Sede misericordiosos como o vosso Pai é misericordioso (6,36)
Antes de Jesus realizar o seu êxodo ao Pai, deixou aos discípulos e às discípulas a
missão de em seu nome pregar a conversão e o perdão dos pecados a todas as nações
(24,47). Deveriam continuar o seu trabalho de exercer o ministério da reconciliação, assim
como Ele o fazia.
No capítulo 15, Lucas nos revela o coração do Deus de Jesus que não condena os
seus filhos, mas usa de sua compaixão. A alegria de ter encontrado o que estava perdido é
o estribilho desta canção de amor. Um amor que é ágape, que transcende a razão e vai em
busca da paz. Um amor que se integra e integra os outros plenamente. Amor que aceita o
outro na sua diferença, que o reabilita por inteiro e que vai em busca daquele que não se
quer integrar. Amor que é compaixão, de colocar o seu coração em sintonia com os outros.
Três vezes e em três situações diferentes ocorre a palavra “compaixão”: para revelar
a pedagogia de Deus (15,20), para revelar o coração de Jesus que se solidariza com o
sofrimento do povo (7,13) e para mostrar a verdadeira atitude dos discípulos missionários
em relação ao povo, na parábola do samaritano (10,33).
O perdão não é algo humilhante, mas o encontro de duas vontades. É reconhecer o
infinito amor de Deus para com as suas criaturas, que nos acolhe por mera graça, e
manifestar, agradecido, este amor (7,36-50).
Perdoar pecados é o mesmo que fazer o paralítico se levantar (5,24), amar de todo
o coração (7,11-17), integrar os excluídos ao convívio social (8,46), acolher os que vivem
segundo o espírito de Jesus (9,50), cortar relações com os adversários da paz sem carregar
mágoa consigo (10,11), criar relações de gratuidade (6,32-34; 14,31-34; 17,1-10),
reconhecer o erro, doer-se e chorar amargamente, confiando no amor integrador de Jesus
(22,54-65), e, finalmente, reconhecer a realeza de Jesus quando está agonizando (23,35-
40).
Mas não nos esqueçamos: o perdão é graça a ser pedida (11,4). Se você ainda
carrega mágoa de alguém ou não consegue perdoar, não desista. Pedir a graça é um bom
começo. Perseverar no pedido é o caminho.
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ressuscitado: o caminho do seguimento e a mesa da partilha do pão que substitui os
sacrifícios de animais oferecidos no templo. Ildo Bohn Gass cita os seguintes textos:
Além destas mesas, há ainda a mesa do senhor que serve os escravos (12,35-37) e
a menção à exclusão da mesa do Reino de Deus por causa das injustiças cometidas (13,22-
29), citados também por Sandro Galazzi em seu artigo “Eu estou no meio de vocês como
aquele que serve à mesa! (Lc 22,27)”:
Não teremos tempo suficiente para fazer uma leitura de todos os textos inéditos de
Lucas, como gostaríamos. Para não fazermos uma escolha aleatória, tomamos como
referência a chave de leitura da compaixão presentes três vezes com a expressão - “movido
em suas entranhas”- presente na atitude em Jesus (7,11-17), do samaritano (10, 29-37) e
no Pai (15,11-32). Veremos estes textos dentro de seu contexto literário, analisando
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também o que vem antes e o que vem depois. Assim estudaremos respectivamente os
capítulos 7, 10 e 15.36
Teremos presente também outras chaves de leitura nesta abordagem, de modo
particular o caminho do seguimento e a mesa da misericórdia, da palavra e do perdão.
36
Transcrevemos os textos de WENZEL, 1998, revisados, atualizados e ampliados em 2015.
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salvadora de Jesus, a ponto de impressioná-lo: Eu vos declaro que nem mesmo em Israel
não encontrei tamanha fé.
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Para uma estrutura detalhada veja Conti (2003, p. 65).
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pecadores (amartoloi) pode significar pagãos ou gentios (15,1) e não necessariamente
prostituta, como em Mateus 21,31-32. Em Lc 5,29-32, e no respectivo texto paralelo de
Marcos, encontramos publicanos e outras pessoas. Isso nos deixa concluir que não se trata
de uma mulher meretriz, mas de uma mulher não judia, o que explica melhor a repulsa do
fariseu.38 A tradição da igreja ocidental de fala latina a identificou com Maria Madalena,
desde Gregório Magno (540-604)39, mas não na igreja oriental de fala grega. Essa
identificação se deve a repressão à liderança das mulheres a partir do século II, e uma das
formas de desautorizar a liderança delas era inventar para a sua liderança principal um
passado de pecadora.
Ela, colocando-se por detrás, em lágrimas, aos pés de Jesus, se pôs a banhar os
seus pés de lágrimas; enxugava-os com os seus cabelos, cobria-os de beijos e derramava
perfume sobre eles. As razões de suas atenções se concentrarem nos pés de Jesus parece
ser uma alusão a Isaías que diz: como são belos, sobre os montes, os pés do mensageiro
que anuncia a paz, do que proclama boas novas e anuncia a salvação (Is 52,7). Sua atitude
lembra, também, por uma parte, a atitude corajosa de Judite, que tirou o pano de saco com
o qual se vestia, arrumou-se, ungiu seu corpo com óleo perfumado e vestiu roupa de festa
para assumir a luta da libertação (Jd 10,3), e por outro uma atitude de profunda humildade
e agradecimento. Ela entende o amor de Deus através de Jesus. Sabe que um “coração
contrito e humilhado” não será rejeitado.
O gesto da mulher demonstra profundo afeto, criando para Jesus, aos olhos dos
convidados, uma situação constrangedora.
Um escândalo! Jesus se deixa amar por ela. E o mais importante: não se deixa
constranger pelos julgamentos. Para ele a verdadeira pureza não está em tocar ou ser
tocado por pessoas consideradas impuras, mas em acolher os/as excluídos/as que ninguém
respeita.
O fariseu a julga pecadora. Julga também a Jesus que, por uma questão de honra,
deveria afastar a mulher. Duvida que Jesus seja verdadeiramente um profeta, pois deveria
sabê-lo. Porém, na resposta explicativa de Jesus não só mostra que é um profeta que não
38
Cf. ERB (2008, p. 53).
39
“Em culturas como a mediterrânea do século I, as pessoas costumavam classificar os demais por
arquétipos. A mulher podia ser uma destas três coisas: virgem, mãe/esposa ou pecadora. Toda
mulher caía dentro de alguma destas três categorias” (CONTI, 2003, p. 63).
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julga pelas aparências (cf. Is 11,3s), mas faz o fariseu ver a mulher não como pecadora
desprezível, mas como mulher que ama e honra o convidado, justamente o que o fariseu
deixou de fazer ao não oferecer água, não lhe dar o beijo da paz e não ungi-lo com óleo na
cabeça. Aponta a contradição maior, vivida no nível da fé e espiritualidade. Quem recebe
perdão da dívida de quinhentas moedas de prata amará mais, pois recebe e aceita a
salvação por graça de Deus. A quem se perdoa cinquenta moedas de prata amará menos,
pois se sentirá agradecido por mérito e esforço próprio.
Jesus e a mulher ofereceram uma lição de amor e perdão a todos os convivas. Com
grande demonstração de amor a Jesus, que no tempo de Lucas significa amor à
comunidade das pessoas que seguem a Jesus, a mulher mostrou ter acolhido o perdão que
Jesus lhe ofereceu. Seu amor é sua gratidão. Ela sai do episódio com sua dignidade
completamente reabilitada. Ao contrário de Simão, que apesar de ter convidado Jesus não
demonstrou nenhuma afeição por ele e muito menos de misericórdia para com a mulher,
evidenciando que não acolheu a proposta de perdão de Jesus e que não estava preparado
para a comunidade.
Os convidados à mesa se
perguntam: “Quem é este que até perdoa
pecados?” ele, porém disse à mulher:
“Tua fé te salvou; vai em paz”. Fica assim,
a fé como lição desta mesa da
misericórdia: Fé não significa ausência de
pecado, e sim muito amor. A mulher que
ungiu os pés de Jesus saiu dali ungida. É
discípula plena, que muito ama e rompe
fronteiras.
Fonte: http://migre.me/s4aE3
Mais uma vez cumpre-se a
profecia de Maria: Dispersou os homens de pensamento orgulhoso... e exaltou os humildes
(1,52b.53b).
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contestado, exigente. Jesus o deixara claro: Se alguém quiser vir em meu seguimento,
renuncie a si mesmo e tome sua cruz cada dia, e siga-me (9,23).
O destino da viagem é Jerusalém, onde se dará o êxodo definitivo de Jesus. Pelo
menos em sete situações diferentes da viagem, Lucas lembra seus leitores do significado
desta viagem, a provação da cruz (9,51.58; 11,30; 12,40.50; 13,22.33; 14,27; 17,22.33.37;
18,31-34).
Jesus toma a firme decisão de ir a Jerusalém (9,51-56), passando por Samaria, onde
realiza novo chamado ao seguimento, sem aceitar desculpas ou condicionamentos (9,57-
62). Em seguida envia 72 discípulos para onde ele mesmo deveria ir para realizarem o
projeto de vida (10,1-16), se alegra com a alegria dos missionários e das missionárias pelo
trabalho bem feito (10,17-20), exulta de alegria porque os pobres evangelizam (10,21-22) e
proclama bem-aventurados os que acolhem os sinais do Reino (10,23-24). Um escriba quer
saber se este programa corresponde aos mandamentos da lei de Deus (10,25-28) e é
convidado a alargar o seu horizonte, para passar da teoria do amor ao próximo ao
compromisso com as vítimas sociais (10,29-37). O exemplo também alarga o horizonte dos
discípulos, que devem continuar o trabalho missionário de serviço aos irmãos e irmãs, sem
cair no ativismo, mas colocando-se a escuta do que é mais importante na ação
evangelizadora (10,38-42).
O conjunto do texto, visto a partir da ótica do caminho do seguimento em contexto
de missão, podemos perceber uma estrutura em forma de quiasmo que tem como centro o
magnificat de Jesus.
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b) Condições para o seguimento (9,57-62)
Durante a caminhada realiza-se um novo chamado, dirigido aos samaritanos. Na
verdade, um chamado que acontece em três situações diferentes, constituindo um novo
grupo de seguidores a partir de uma oferta, um convite e uma oferta condicionada. As duas
primeiras são da fonte Q e a última da fonte própria.
Ao que se oferece para segui-lo para onde quer que ele vá, Jesus deixa claro que o
Filho do Homem não tem onde reclinar a sua cabeça. Daquele que ele convida, exige
disponibilidade total. Ser seu discípulo não é simplesmente uma questão de escolher entre o
bem e o mal, mas de discernir entre o bom e o melhor. Ao que se oferece amarrado ao
passado, Jesus exige ruptura total: Quem quer que ponha a mão no arado e olhe para trás
não é feito para o Reino de Deus. Neste ponto, Jesus é mais radical que Elias, que permitiu
que Eliseu se despedisse dos seus (cf. 1 Rs 19,19-21).
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d) Alegria de ser missionário (10,17-20)
Quando os doze voltaram (9,10) não se disse nada de sua alegria, mas agora, na
volta dos setenta e dois, se esbanja alegria. Até mesmo os demônios se submeteram, outra
façanha da qual não se fez menção na volta dos doze. Em vez de querer provocar um fogo
destruidor que consome a população, como queriam Tiago e João (9,54), eles provocaram a
cura dos fanatismos, das ideias fixas e sectárias.
Jesus os confirma em seu trabalho aberto, universal, libertador, dizendo que este é o
começo do fim para o reino de Satanás. Ele dera aos discípulos o poder de calcar aos pés os
princípios da sociedade baseada na falsidade (serpentes e escorpiões) e toda a potência do
inimigo. Mas o verdadeiro motivo de sua alegria não deverá ser pelo fato de terem recebido
tal poder, mas porque seus nomes estão inscritos nos céus. Fizeram a experiência de se
sentirem amados por Deus e de serem instrumentos de sua paz. O nome deles estará
igualmente inscrito no coração deste povo simples e discriminado. São queridos de Deus.
Fazem parte do “livro da vida”.
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sobre qual é o maior dos mandamentos. Lucas desloca a discussão para o início da subida
para Jerusalém, com um novo enfoque, o tema da vida eterna.
Jesus devolve a questão ao especialista que fez a pergunta, o qual responde:
Amarás o Senhor, teu Deus, e o teu próximo como a ti mesmo. Este é o caminho da vida
autêntica. Ao que Jesus lhe recomenda: Faze isto e terás a vida. O que vale dizer: tens a
teoria, o saber religioso. Falta a prática.
40
Cf. Gourgues (2005, p.19). Uma estrada que tinha fama de perigosa, tanto que os romanos
julgaram conveniente estabelecer nela postos de vigilância.
41
Cf. Gourgues (2005, p.21-23).
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Jesus apresenta justamente um samaritano como exemplo de amor ao próximo pela
compaixão.
Certo samaritano em viagem, porém, – note que ele não diz “bom” samaritano,
como encontramos normalmente nos subtítulos das traduções – chegou perto dele, viu-o e
moveu-se de compaixão. Fez do sofrimento dele o seu sofrimento e colocou a sua
disposição tudo o que tinha: óleo, vinho, montaria, tempo, dinheiro... As circunstâncias são
as mesmas. Ambos passam e o veem. O sacerdote e o levita não fizeram nada. O
samaritano fez tudo. Confirma-o a descrição detalhada do cuidado que dispensa com o
homem maltratado e abandonado. Nada menos que sete verbos em cascata descrevem os
procedimentos do primeiro dia e, se isso não bastasse, mais sete verbos descrevem
novamente sete procedimentos realizados ou ordenados por ele. “Duas vezes sete: seria por
acaso? Ou, ao contrário, contém um simbolismo que merece atenção?” (GOURGUES, 2005,
p. 25). O fato é que Lucas repete a mesma dinâmica de sete verbos e procedimentos na
parábola do pai pródigo (15, 20), e tem grande familiaridade com o número sete: caso ele
peque sete vezes e sete vezes retornar... (17,4), sete demônios (8,2), sete maus espíritos
(11,26), sete maridos (20,29-33, sete diáconos (At 6,3;21,8)...
Na devolução da pergunta, Jesus desloca a preocupação etérea sobre quem é o
próximo para quem realmente se aproxima da vítima da injustiça social. O escriba entende
bem o alargamento da fronteira do amor: Foi aquele que usou de misericórdia para com
ele. Ao sentir compaixão, deu prova da compaixão que Deus dispensa aos seus amados.
Desta forma Lucas recorda a profecia de Oseias, sem mencioná-lo explicitamente: Quero
misericórdia e não sacrifícios (Os 6,6; Lc 6,36).
Jesus lhe disse: Vai, e também tu, faze o mesmo. Na vida é que se decide a vida
eterna.
Há aqui uma nova inversão, do próximo como objeto para o próximo como sujeito,
conforme explica Gourges:
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mas em função do interior. Da identificação do objeto exterior do amor,
somos enviados às disposições do sujeito. (GOURGUES, 2005, p. 27).
Dão-se, assim, vários deslocamentos apresentados pelo autor citado que passamos a
resumir:
1) Passa-se da ordem do saber quem é meu próximo, para a ordem do fazer. Não faz
sentido discutir as fronteiras sobre quem deve ser amado ou excluído. Como diria
agostinho: “Cabe a ti fazer teu próximo aquele que está em necessidade”.42
2) Quem era excluído como objeto do amor ao próximo torna-se sujeito modelo desse
amor, da mesma forma como o evangelho de Mateus apresenta a parábola do juízo final:
Estive com fome e me destes de comer. Tive sede e me destes de beber. Era forasteiro e
me recolhestes. Estive nu e me vestistes, doente e me visitastes, preso e vieste ver-me (Mt
25, 35-36). Aqueles que estão fora podem viver melhor o ideal do amor do que os
privilegiados que estão dentro. Assim, os que estão “fora”, vivendo o amor aos outros como
o samaritano, também tem acesso à vida eterna.
3) A narrativa exemplar está em função de explicar ao mesmo tempo o amor a Deus e o
amor ao próximo. Lucas não menciona explicitamente Deus na parábola, mas as atitudes
dele revelam alguém que a ama como Deus ama. O verbo utilizado ser comovido em suas
entranhas (10,33 – splanchnizomai) é o mesmo utilizado por Jesus na cura do filho da viúva
de Naim (7,13) e na parábola do Pai pródigo (15,20). A narrativa supera as fronteiras e o
seu amor se estende inclusive aos inimigos (Lc 6,35). O que o samaritano propriamente faz
não é amar Deus no próximo, mas amar o próximo como Deus.
4) Amor ao próximo individual e estrutural. Assim como em Marcos se valoriza qualquer
copo d’água dado ao menos de todos (Mc 9,41) e o dar de comer, beber... em Mateus
(25,31-46), a narrativa do bom samaritano descreve uma forma exemplar de amor ao
próximo, seja em nível individual ou em nível estrutural.
Por fim, é importante destacar que Lucas tenha colocado essa temática
precisamente em meio à temática missionária, que
Tendo presente as atitudes do
será retomada em seguida. Ser discípulo ou discípula samaritano que se comove em suas
não é simplesmente dar mensagens bonitas, mas entranhas e faz tudo para salvar a
pessoa maltratada, e a parábola do
praticar o amor ao próximo, considerando o próximo juízo final em Mateus em que Jesus
como sujeito de amor e não como objeto de caridade. diz: tudo o que fizestes a um destes
meus irmãos mais pequeninos foi a
Amar não é simplesmente uma questão de provocar
mim que o fizestes (Mt 25,40), até
sentimentos, mas traduzir os sentimentos em atos que ponto se pode afirmar que o
samaritano é uma espécie de
que fazem viver aquele/a que é deixado/a
autorretrato da pessoa de Jesus?
42
De doctrina christiana, I, 30, citado por Gourgues (2005, p. 28).
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semimorto/a. Implica desenvolver o desejo de que os/as outros/as vivam, sem exclusão, e
aprender do amor e da acolhida calorosa que os/as excluídos/as são capazes de dar.
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Sem dúvida, os dois modos de servir o Senhor não se opõem, mas se
complementam. O serviço de acolher os migrantes, cuidar da saúde, de servir bem a todos,
partilhar os alimentos, de socorrer a pessoa violentada, como o fez o samaritano... são
sinais do Reino, do amor ao próximo, aos quais nos devemos empenhar de todo o coração,
sem esquecer-nos de dar o tempo devido para servir o Senhor do Reino, em ouvi-lo e
adorá-lo, como o fez Maria. O serviço ao Reino não nos deverá afobar a ponto de tornar-nos
pessoas amargas na relação com as outras, mas levar-nos a descobrir a alegria de servir e
de ouvir o que o Senhor tem a dizer, a melhor parte da caminhada que Maria soube
escolher e que não lhe será tirada.
43
Veja o excelente artigo: CASTELLANOS, René. O amor subversivo no Evangelho de Lucas, RIBLA,
n. 12, Vozes/Sinodal, 1991/1, p. 61-68.
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outros, em três tempos: a degradação (15,11-16), a reintegração (15,17-24) e a
contestação (15,25-32).
Deste modo cai em si, disposto a voltar e confessar a sua situação: Pai, pequei
contra o céu e contra ti. Já não mereço ser chamado teu filho. Trata-me como a um dos
teus diaristas. O único que lhe restou foi a memória do amor de seu pai que o respeitara e
que trata bem seus empregados. O que propõe, ao cair em si, é razoável, mas o pai não
quer nem saber. Quando vê o filho voltar abatido, desolado e destroçado, foi tomado de
compaixão: correu, se lhe lançou ao pescoço e o cobriu de beijos.
O termo compaixão significa comover-se até as entranhas, colocar o coração em
sintonia com a paixão do outro. E a terceira vez que Lucas emprega o termo: para
expressar os sentimentos de Jesus, solidário com a viúva de Naim que havia perdido seu
único filho (7,13); para exemplificar como deve ser o amor ao próximo (10,33); e agora,
para revelar o amor do pai para com os seus filhos (15,20).
44
Exprime a “prodigalidade” do Filho: “vida asotos”. Este advérbio, único no novo Testamento,
significa “de maneira louca, desordenada, como libertino, como pródigo” e não implica
necessariamente a ideia de devassidão, como o irmão mais velho vai proclamar raivosamente no v.
30 (GOURGUES, 2005, p. 124). Nas traduções encontramos vida devassa (Bíblia de Jerusalém),
desregrada (TEB), vivendo dissolutamente (Almeida).
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A ênfase está na iniciativa do pai que corre ao encontro e a acolhida. O amor do pai
pelo filho que estava perdido é tão grande que o reabilita por inteiro: como verdadeiro filho,
recebendo-o com carinho e beijos; como herdeiro, com direito aos seus bens, vestindo-o
com a mais bela roupa; como pessoa digna, pondo-lhe um anel no dedo e sandálias nos
pés; como alguém integrado ao convívio social, fazendo-lhe festa com comes e bebes,
música e dança. Nada menos que sete procedimentos expressos em sete verbos destacando
o que há de melhor: não simplesmente uma roupa limpa, mas a melhor túnica; não um
novilho qualquer, mas o novilho cevado reservado para uma festa especial.
Com tal novidade, o filho mais velho, fiel e responsável que estava no campo
realizando o trabalho da família, quando volta se espanta com música e dança em dia
comum de trabalho. Ao ser informado do motivo da festa, da celebração com o novilho
cevado pela volta de seu irmão, ele se encheu de cólera e não quis entrar.
Na verdade, pródigo é o pai, que
gasta sem mesura. “Tudo bem em aceitar
este seu filho de volta, mas cadê a
reparação? Em vez de castigo, uma festa
de arromba, e tudo fica por isso mesmo?”
– poderia ele dizer e acertaria de cheio o
que muitos de nós pensamos dois mil anos
depois em relação aos que erram. Errou?
Pagou! De algum modo tem de sofrer
castigo! Como o irmão mais velho,
dizemos: “isso não é justo”.
Fonte: http://migre.me/s4bqQ
O pai, porém, do mesmo modo que
o fez com o filho mais jovem, toma a iniciativa e vai ao encontro do filho. Insiste para que
entre dando as suas razões de alegria e festa: Meu filho, tu estás sempre comigo e tudo o
que é meu é teu. Mas era preciso festejar e alegrar-se, porque este teu irmão tinha
morrido, e está vivo; estava perdido, e foi reencontrado. São os mesmos motivos
que havia dado aos servos no v. 24: a retomada de uma relação cuja ausência era tão dura
de suportar como se seu filho ausente estivesse morto. Mais uma vez vem à mente a
imagem de um pai que se comove nas entranhas, que acolhe com laços de bondade e
cordas de amor (Os 11; Jr 31,18-20; Sl 103).
O contraste é que os motivos de festa do pai são justamente as razões da raiva do
filho mais velho. Protesta sua justiça afirmando a sua fidelidade e obediência e reclama o
reconhecimento. Sem este, vive ressentido e queixoso. Considera-se o único que está certo,
julga o irmão possivelmente com suas próprias fantasias sexuais, condena-o e não o aceita
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mais como irmão. A expressão – esse teu filho – lembra atitude do fariseu na parábola do
fariseu e do publicano, em que o fariseu fala com desprezo este publicano (Lc 18,11) e se
gaba dos seus méritos e de suas virtudes.
O protesto do filho mais velho pela sua justiça é comparável também com a parábola
dos trabalhadores da vinha, contada por Mateus (20,1-16). Os trabalhadores que
trabalharam suportando o sol doze horas reclamam porque foram igualados aos que
somente trabalharam uma hora. “Esses, ao menos, receberam o mesmo tanto; o filho mais
velho se queixa de receber ainda menos...” (GOURGUES, 2005, p. 128), pois terá de
partilhar tudo de novo.
O amor do pai é incansável na busca de encontrar a sua plenitude, o Shalom, a paz.
Um amor que aceita o outro assim como ele é, o reabilita por inteiro, e que procura conciliar
as relações humanas para que os que estão fora se integrem e tornem plena a sua alegria.
No entanto, deseja que o filho mais velho também participe desta alegria. O pai deixa claro
que nada mudou na sua relação para com ele. Delicadamente lembra-lhe que o filho mais
jovem continua sendo seu irmão. O diz com palavras de ternura. Chama-o de “meu menino”
(teckon), um termo mais familiar do que “meu filho”.
c) Conclusões
A imagem de Deus revelada nas três parábolas é de Deus misericordioso que “não
mata nem castiga”. Não exclui ninguém da salvação oferecida a todas e todos, e dá
prioridade aos pecadores, como conclui a primeira parábola: Eu vos digo que do mesmo
modo haverá mais alegria no céu por um só pecador que se arrependa, do que por noventa
e nove justos que não precisam de arrependimento (15,7). Isso choca a nossa compreensão
de justiça e a imagem que nos fazemos da justiça divina. Muitos de nós queremos um deus
neutro, imparcial, que anota tudo no livro da vida e no dia do juízo premia os “justos” e
castiga os faltosos. O Deus de Jesus, revelado nestas parábolas, não é assim. Não é neutro.
Quer apaixonadamente a vida de todos e todas as suas filhas, e de modo especial, a vida
dos pecadores e das pecadoras. Esse agir de Deus explica as atitudes de Jesus de sentar-se
à mesa dos pecadores e pecadoras, porque a mesa do Reino de Deus é a mesa da
misericórdia.
Aceitar este Deus implica necessariamente em mudança de vida e de atitude. O filho
mais jovem, passado os dias de festa, terá de enfrentar e conviver com seu irmão dia a dia,
e viver com seu pai tendo parte da vida dele em tudo que lhe pertence. Essa felicidade o
irmão mais velho nunca perdeu, embora, pelo que parece, não a tivesse assimilado até
então.
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Não sabemos se o filho mais velho acabou entrando ou não. Mas uma coisa ficou
clara: o jeito misericordioso do pai não vai mudar. Se o filho aceitar entrar, terá de aceitar
também o seu modo misericordioso de ser. De duas uma: ou ele resiste amargurado, e aí
ele terá que sair de casa, ou ele também muda de atitude e descobre o jeito gostoso de ser
assim: misericordioso como o pai é misericordioso (Lc 6,36).
Como a parábola fica aberta, a resposta cabe a nós: aproximar-nos para ouvir o que
Jesus tem a ensinar como os publicanos e pecadores, ou continuar murmurando como os
fariseus e os escribas (15,1-2) contra os direitos humanos.
Aceitar o jeito misericordioso do Pai e o modo de ser de Jesus implica
necessariamente em renúncia e desapego do que consideramos “nosso”, “conquista nossa”.
Renúncia significa crer que o nosso irmão, mesmo quem nos abandonou e
traiu, vale mais do que a “nossa” mesa. [...] Não precisa esperar pela morte
do Pai para receber a herança. Ela está aí sempre. Não é herança: é a
nossa casa! Nossa e de todo nosso irmão que nela vive ou que a ela quiser
voltar (GALAZZI, 2003, p. 128-9).
Dica de Aprofundamento
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Antes de continuar seu estudo, realize o Exercício 7 e
as Atividades 4.1 e 4.2.
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UNIDADE 5
Nesta unidade estudaremos brevemente o livro de Atos dos Apóstolos, que forma
com o Evangelho segundo Lucas uma única obra. Como vimos na unidade anterior o
Evangelho segundo Lucas aborda a vida de Jesus Cristo, já Atos dos Apóstolos trata da vida
das primeiras comunidades cristãs. Uma vez que
já estudamos o contexto, os/as destinatários/as e
a mensagem do Evangelho segundo Lucas, nesta
unidade nos deteremos apenas em algumas
questões mais específicas de Atos. Por isso,
tenha sempre presente a contextualização
estudada no Evagelho segundo Lucas.
Fonte: http://migre.me/s79Cs
O livro de Atos dos Apóstolos forma com o Evangelho segundo Lucas, uma obra
única, possuindo assim os mesmos autores, destinatários/as, local e data. Bohn Gass (2005,
p. 44-45), destaca que Atos dos Apóstolos fala do começo das comunidades cristãs, mas o
faz numa perspectiva a partir dos apóstolos e de Jerusalém, sendo assim uma “teologia das
igrejas helenistas” que quer mostrar Jerusalém como ponto de partida, de onde Paulo leva a
Boa Nova, até os confins do mundo, ou seja o mundo greco-romano, por meio da força do
Espírito (At 1,8).
Podemos destacar quatro objetivos centrais do livro de Atos (BOHN GASS, 2005, p.
45-46):
1. Declarar a superação da Lei da pureza e impureza presente na tradição judaica, de modo
que as pessoas judias compartilhem da comunhão de mesa com pessoas de outras culturas
(At 10,34-35);
2. Mostrar a casa como principal espaço de vivência. O santuário é valorizado (At 2,46),
mas relativizado (At 6,8-7,53). As comunidades cristãs são a parte fiel à Lei e aos profetas,
já as autoridades são consideradas infiéis (At 21,20; 25,8);
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3. Auxiliar pessoas funcionárias do Império Romano a entenderem que podiam integrar as
comunidades cristãs, amenizando o conflito entre cristãos e o império, tanto que os autores
de Atos acusam as autoridades judaicas pela morte de Jesus (Lc 22,1-6.66-71);
4. Apontar como condição para as pessoas ricas serem cristãs a partilha dos bens com os/as
pobres (cf. Lc 12,16-21; 16,19-31; 19,1-10; At 4,32-5,11).
O livro de Atos dos Apóstolos pode ser estruturado na seguinte proposta (GASS,
2005, p. 46):
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3. Irrupção do novo – um novo que surge fora do Templo, nas comunidades reunidas em
torno da fraternidade, oração, partilha do pão e dos bens, de um testemunho da Palavra
que vai aos confins do mundo (At 19,20);
4. O novo gerado em meio a conflitos – conflitos
com as autoridades que querem sufocar a
novidade (At 4,1-23) e na própria comunidade
por parte de pessoas que retêm as coisas para si
mesmas (At 5,1-11);
5. O desafio da inculturação – a Palavra que se
expandia rompe diversas barreiras culturais,
como as entre judeus e samaritanos (At 8,5-
Fonte: http://migre.me/s791g
8.25), com a evangelização e batizado de um
negro escravo, eunuco servo da rainha da Etiópia (At 8,26-40), com a conversão de
Cornélio, centurião romano, que acabou levando ao Concílio de Jerusalém (At 10,1-47), com
Paulo pregando no Aerópago de Atenas, a partir de textos da cultura grega (At 17,28),
entre outros;
6. A difícil convivência com o Império – transparece no livro o medo que as comunidades
cristãs têm da perseguição, mas ao mesmo tempo mostra-se que o Império não precisa
temer os/as seguidores/as de Jesus (cf. At 13,12; 18,14-17; 16,35-40; 19,40);
7. Paulo, o apóstolo modelo – apresenta Paulo como missionário-símbolo, com poderes
extraordinários (At 20,4), trabalhando junto com Pedro e os Doze (At 9,26-29), que age
sempre por delegação da comunidade (At 13,3) e trabalha para seu próprio sustento (At
18,3).
Primeiramente faça a leitura de Atos 2,42-47; 4,32-37; 5,12-16. Esses textos não
descrevem tanto como foram as primeiras comunidades cristãs mas principalmente como
devem ser as comunidades cristãs, o modelo de comunidade, de relações.
O questionamento de fundo é: “Como deve ser uma comunidade para que seja sinal
de vida nova?”. Lucas propõe frente aos desafios de sua época, como vimos na
contextualização na unidade anterior, um modelo de vida para os/as primeiros/as
cristãos/ãs, sustentado por quatro colunas: “Eles perseveravam no ensinamento dos
apóstolos, na comunhão, na fração do pão e nas orações” (At 2,42), conforme veremos
detalhadamente a seguir (CRB, 1995, p. 93-96):
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1ª Coluna: Ensinamento dos apóstolos
O ensinamento dos apóstolos refere-se à nova interpretação da Vida e da Bíblia feita
a partir da experiência fundante da ressurreição de Jesus. Os/as cristãos/ãs romperam com
o ensinamento dos escribas, seguindo o ensinamento ‘dos doze pescadores’ sem instrução
(At 4,13), que vem dos sinais feitos na comunidade (At 2,43; 4,33; 5,12.15-16) e das
orientações que Jesus ressuscitado deu à Madalena, aos doze apóstolos, aos 120 díscipulos,
às mulheres e à multidão no Monte das Oliveiras (Mt 28,18-20; Mc 16,15; Lc 24,44-49; Jo
20,23; 21,17).
2ª Coluna: Comunhão
Os/as primeiros/as cristãos/ãs colocavam tudo em comum, de modo que não havia
pessoas necessitadas entre eles/as (At 2,44-45;
4,32.34-35). A partilha era de bens, mas também de
sentimentos e experiências de vida, tornando-os/as
um só coração e uma só alma (At 4,32; 1,14; 2,46).
O relato de Ananias e Safira (At 5,1-11)
mostra que essa comunhão é sagrada e que quem
abusa dela em benefício próprio “morre” para a
comunidade.
Fonte: http://migre.me/s78M6
3ª Coluna: Fração do Pão
A fração do pão, realizada nas casas (At 2,46; 20,7), fazia memória das tantas vezes
que Jesus partilhou o pão com os discípulos e entre os pobres (Jo 6,11), de quando o gesto
da partilha abriu os olhos dos discípulos de Emaús (Lc 24,30-35).
4ª Coluna: Orações
Atos dos Apóstolos aponta uma dupla missão: “Permanecer assíduos à Oração e ao
ministério da Palavra” (At 6,4). A oração criava o elo entre os/as cristãos/ãs e com Deus (At
5,12b) e dava força nos momentos de perseguição (At 4,23-31).
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Dica de Aprofundamento
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EXERCÍCIOS E ATIVIDADES
EXERCÍCIO 1
EXERCÍCIO 2
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IV. Os evangelhos nasceram a partir dos anos 70 e foram fruto da necessidade de
criar uma identidade própria em relação à religião judaica. Até então os cristãos se
reuniam à parte, mas mantinham a mesma estrutura de base, as mesmas escrituras.
a) Apenas os enunciados I, II e III estão corretos.
b) Apenas os enunciados I, III e IV estão corretos.
c) Apenas os enunciados I, II e IV estão corretos.
d) Todos os enunciados estão corretos.
ATIVIDADE 1.1
EXERCÍCIO 3
ATIVIDADE 2.1
1. As parábolas não são ilustrações de ideias, mas uma forma narrativa para
abrir os olhos e ver o mundo de modo diferente e assim criar um novo jeito
de ser. São experiências únicas que, em si, não carecem de explicação,
importa o sentido geral. Leia Marcos 4,1-34 e responda:
Por que Jesus fala em parábolas?
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EXERCÍCIO 5
EXERCÍCIO 6
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ATIVIDADE 3.1
EXERCÍCIO 7
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ATIVIDADE 4.1
EXERCÍCIO 8
I. Lucas e Atos dos Apótolos formam uma obra única em dois volumes, possuindo,
portanto, os mesmos autores e destinatários/as. O Livro de Atos dos Apóstolos fala do
começo das comunidades cristãs, mas a partir dos apóstolos e de Jerusalém. Como
“teologia das igrejas helenistas”, quer mostrar Jerusalém como ponto de partida.
II. De acordo com o livro de Atos, a Palavra se expandia rompendo diversas barreiras
culturais. São exemplo a relação entre judeus e samaritanos, a evangelização e o
batizado de um negro, servo da rainha da Etiópia, e com a conversão de Cornélio,
centurião romano. Aliás, de acordo com Atos, antes de ser batizados, os “pagãos” já
tinham o Espírito Santo e falavam em línguas.
III. O livro de Atos afirma que os/as primeiros/as cristãos/ãs colocavam tudo em
comum, de modo que não havia pessoas necessitadas entre eles/as. O relato de
Ananias e Safira, que esconderam dos apóstolos a verdade sobre seus bens, mostra
que nem todos conseguiam viver esse ideal.
IV. Uma leitura atenta do livro de Atos nos faz perceber que também era intenção do
autor auxiliar pessoas ligadas ao Império Romano a entenderem que podiam integrar
as comunidades cristãs. Entretanto, o conflito entre os cristãos e o império é
acentuado nas narrativas, de tal forma que os romanos são apresentados como
únicos culpados pela morte de Jesus e os judeus são totalmente isentados.
a) Apenas os enunciados I, II e III estão corretos.
b) Apenas os enunciados I, III e IV estão corretos.
c) Apenas os enunciados II, III e IV estão corretos.
d) Todos os enunciados estão corretos.
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ATIVIDADE 5.1
ATIVIDADE 5.2
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a) A atitude da mulher cananeia abriu um novo horizonte na vida de Jesus pois,
através dela, ele descobriu melhor que o projeto do Pai é para todos/as os/as que
buscam a vida.
b) Era observando as reações e as atitudes das pessoas que Jesus descobria a
vontade do Pai nos acontecimentos da vida.
c) A atitude de abertura de Jesus era um estímulo para as comunidades não se
fecharem em si mesmas.
d) Os judeus não tinham problemas em conviver com pessoas estrangeiras.
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