Documenti di Didattica
Documenti di Professioni
Documenti di Cultura
Resumo
Metodologia
Introdução
Colonialidade de Poder
Perspectiva decolonial autobiogeográfica da graduação
Considerações finais
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Resumo
É da minha condição específica de minoria dentro do curso que uma relação com a pesquisa
científica surge, buscando formas de conhecimento e produção de saberes que não são as
hegemônicas dentro dos estudos de Arquitetura e Urbanismo. Essa proposta de metodologia de
pesquisa propõe com isso um estudo crítico de interseccionalidade do aspecto social, político e
subjetivo como ferramenta de reconhecimento de diferentes narrativas de pertencimento e identidade
que permeiam a percepção dos espaços construídos e dos espaços da cidade .
Compreendendo assim que o estudo e análise de um espaço mesmo dentro do rigor teórico e
técnico da arquitetura e urbanismo pode ser feito a partir de uma perspectiva decolonial quando se
acionam fatores que não sejam do panorama “universal” pré estipulado por valores coloniais, e
como dentro da cidade e dentro do curso de arquitetura e urbanismo esse estudo pode ser feito
assim que ocorra um deslocamento de conceitos básicos para um novo ponto de vista.
Levo tal definição em consideração para ressaltar que os processos do “vir a
ser” decolonial precisam ser desdobrados para fora da matriz colonial do poder,
criando outros contextos – mesmo que temporários – que favoreçam os fazeres
conviviais, criativos, críticos, liberadores, transpedagógicos, generosos, não
competitivos, não inferiorizantes e libertos de juízos de valor fundamentados
em perspectivas hegemônicas..(RODRIGUES, 2016)
Djamila Ribeiro (2017) mulher, negra,feminista, brasileira faz um estudo teórico onde de
maneira didática demonstra “quem pode falar ou não, quais vozes são legitimadas e quais
não são” , que é essencial para entender o porque da minha escolha de autobiogeografia pois
me coloco como contraponto da imposição epistêmica universal que deslegitima os diversos
saberes e a escrita de si, imposição que exclui as pessoas, sobretudo como uma crítica da
hierarquização dos saberes e do conhecimento dito “científico” como produto de uma
classificação indissociavelmente racial e social, onde o modelo valorizado e universal de
conhecimento e (auto)reconhecimento é branco, eurocêntrico, judaico-cristão e patriarcal.
Propõe-se pensar um lugar de fala, onde não é somente o que é enunciado é observado mas
a localização do enunciante como ponto essencial. Entendendo assim que todos possuem um
lugar de fala, todos são condicionados por aspectos sociais, históricos, políticos, religiosos,
biológicos, subjetivos indissociáveis e que o reconhecimento de onde estamos na pirâmide
social é essencial para entender as relações dentro da sociedade. Ou seja, o lugar é uma
análise a partir das relações de poder dentro das estruturas do sistema que vivemos que
possuem nitidamente marcadores sociais de raça, gênero, classe, geração e sexualidade
como elementos de múltiplas configurações mas que resultam inegavelmente em
desigualdades e hierarquias que localizam grupos subalternizados e grupos hegemônicos a
nível global.
Pensando lugar de fala não apenas como localização social em uma estrutura de poder
mas agora como um local que parte do espaço para começar a se articular esse raciocínio
decolonial para um estudo de arquitetura e urbanismo.
Para isso coloco minha vivência como pesquisadora e artista , mulher negra e umbandista
na graduação em Arquitetura e Urbanismo, como uma maneira de analisar o espaço de um
terreiro a partir da observação dos aspectos hierárquicos, pensamentos e práticas
hegemônicas que reconheço dentro da graduação, e que proponho um estudo de caso para
com perspectiva decolonial .
Dentro da minha pesquisa como bolsista do CNPQ no Coletivo Rosa Parks da UFG (2017-
2018) e da pesquisa e produção artística desenvolvida para o Museu de Arte Contemporânea
Oscar Niemeyer de Goiânia (2018) meu foco de estudo se relaciona com a condição da
mulher negra na atualidade e aspectos históricos, de ancestralidade, tanto sua
representatividade e representação, como presença em espaços, estereotipação ou
invisibilidade.
A proposta deste trabalho é ser desenvolvido a partir de uma base teórica decolonial que
adentra nas especificidades do estudo de caso escolhido com levantamento fotográfico,
produção de mapas e material gráfico.
Para uma organização produtiva dois momentos serão traçados: o de trilhar caminhos, ou
seja uma produção teórica sobre o conceito de “Axétetura” e o segundo momento, o de
adentrar no espaço e analisar suas intersecções materiais imateriais, religiosas e sociais,
históricas e contemporâneas.
Os objetivos gerais são de aspecto teórico e artístico decolonial para propor uma análise da
arquitetura e as representações simbólicas religiosas baseadas na construção edificada
[arquitetura] e sua inserção no espaço da cidade e comunidade [urbanismo] com
contrapontos da cultura afro- diaspóricas -ameríndias fazendo comparação de como esses
núcleos se desenvolveram histórica- socialmente diante dos aspectos da colonização e seus
desdobramentos como formas de saberes e conhecimentos não hegemônicos de estar, viver
,perceber e manipular o meio que podem ser reconhecidos como métodos de se fazer
arquitetura e se pensar urbanismo.
O objetivo específico é propor uma perspectiva decolonial sobre o estudo-teoria-prática da
graduação em Arquitetura-Urbanismo que a partir da vivência autobiogeográfica propõe
análise histórica-social-cultural-religiosa com as tensões de gênero e raça , para estudo de
caso de arquitetura de autoconstrução do espaço material e imaterial do Terreiro de
Umbanda Casa de Caridade Luz do Alvorecer para uma contribuição teórica de
micropolítica urbana.
Introdução
Colonialidade de Poder
O projeto colonial é elaborado e enunciado pelos europeus. Parte do lugar de poder e
hegemonia destes que se identificarem como raça-superior dentro do sistema de capitalismo
mundial e elaborou de maneira científica discursos para justificar, legitimar e disseminar esse
pensamento nas colônias visando controlar e subalternizar os colonizados.
Esse mecanismo é colocado por Quijano (2005) como colonialidade de poder, que é um
conceito que será empregado para basear as análises decoloniais para a graduação . Esse
conceito define como a ideologia colonial é essencialmente moderna, eurocêntrica e capitalista.
Segundo Costa e Grosfoguel (2016), o colonialismo foi a condição sine qua non de formação
não apenas da Europa mas da própria modernidade. Ou seja, foi apenas diante do processo de
colonização estabelecido pelo surgimento do capitalismo mercantilista, que surgem aspectos de
dicotomias violentas entre colonizador e colonizado. Com essas dicotomias se gera hierarquias
diante de um ideal do “moderno” (avançado) e da “antiguidade” (atrasado).
Ao se tornar colonizador o europeu se percebe e se determina como o propulsor do progresso que é
necessariamente econômico, mercantilista, monetário e do poder intelectual, detentor da racionalidade
da civilização justamente por se colocar em oposição ao “outro”, ao colonizado.
Com base nesse imaginário, o outro (sem religião certa, sem escrita, sem
história, sem desenvolvimento, sem democracia) foi visto como atrasado em
relação à Europa. Sob esse outro é que se exerceu o “mito da modernidade” em
que a civilização moderna se autodescreveu como a mais desenvolvida e
superior e, por isso, com a obrigação moral de desenvolver os primitivos, a
despeito da vontade daqueles que são nomeados como primitivos e atrasados
(Dussel, 2005).
Com o desenvolvimento do novo sistema global do mercantilismo e das navegações que saíram da
Europa, surge a capacidade de se entrar em contato com comunidades, civilizações e estruturas de
sociedade em outros lugares distantes do globo mas não para conhecer as diferenças e sim explorar
recursos.
Essa distinção estabelece o pensamento moderno como um recurso de sistema mundial de
colonização que para se manter e desenvolver necessitava estabelecer meios de dominação e
exploração, não apenas dos territórios, mas também ideológicos, históricos, sociais e subjetivos com
um discurso que legitimasse suas práticas, esse discurso é a verdade narrada pelo colonizador.
Por este ter o poder de fogo de dominação e o poder econômico de imposição, a verdade do
colonizador se tornou a História oficial e a Verdade disseminado dentro do novo sistema global
mercantilista de exploração das colônias que se formava, e nas colônias a distinção racial
determinava condições de existência nesse sistema.
A idéia de raça, em seu sentido moderno, não tem história conhecida antes da
América. [...] A formação de relações sociais fundadas nessa idéia, produziu na
América identidades sociais historicamente novas: índios, negros e mestiços, e
redefiniu outras. Assim, termos com espanhol e português, e mais tarde europeu,
que até então indicavam apenas procedência geográfica ou país de origem, desde
então adquiriram também, em relação às novas identidades, uma conotação
racial. E na medida em que as relações sociais que se estavam configurando
eram relações de dominação, tais identidades foram associadas às hierarquias,
lugares e papéis sociais correspondentes, com constitutivas delas, e,
consequentemente, ao padrão de dominação que se impunha. Em outras
palavras, raça e identidade racial foram estabelecidas como instrumentos de
classificação social básica da população. (QUIJANO,2005, pag.)
É a partir da colonização das Américas, da extração dos seus recursos e da sua localização
estratégica, que se consolidou o poder capitalista mundial da Europa, determinado sua colonialidade
de poder pela posse de capital em hierarquias raciais eurocêntricas para determinar privilégios,
detenção de bens e liberdade dentro do sistema capitalista mercantilista.
A raça dentro do sistema colonial capitalista determinou o tipo de serviço, o tipo de salário, o tipo
de condição social e por isso o lugar determinante dentro do sistema capitalista mundial e isso
configura sua formação moderna e a base inicial da sua estrutura, que podemos perceber até os dias
de hoje.
Agora após essa breve observação de como a ideologia colonial se constitui como como
moderna/eurocêntrica/ capitalista podemos adentrar no aspecto mais profundo, o de entender como
essa ideologia se formula a identidade histórica individual e coletiva dos territórios colonizados.
A ideologia colonial/moderna que determinou nas colônias a hierarquia social a partir de raça-
trabalho e definiu o padrão de quem tem poder no sistema da sociedade capitalista mercantil
determinou a estrutura do Estado, das Instituições, da produção e reconhecimento do conhecimento e
do modelo de vida de todos os seres dentro do sistema colonial.
Podemos entender como então a dominação dos territórios, por questões econômicas determinou
hierarquias de poder e relações de subalternização das raças não-brancas, mas para tal foi necessário
mecanismos de manutenção e desenvolvimento dessa hierarquização social-racial.
Os mecanismos foram graduais e constantes pela dominação intelectual, cultural subjetiva, física,
coletiva e individual, com a repressão violenta ou da estigmatização simbólica de tudo que vem dos
colonizados. Seja sua produção de saberes e conhecimento, seus padrões de comunicação e
expressão no mundo, seus cultos e organização social, mas principalmente suas particularidades e
individualidades de ser, seu corpo, sua existência, seu direito à vida, à liberdade e a formação de
laços afetivos. Tudo isso foi violentado pelo sistema imposto pelo colonizador.
Essa violência é a chave para entender uma identidade dos lugares e identidades dos
colonizados.Se nos primeiros momentos os nativos lutaram incessantemente contra a invasão do
colonizador mesmo com o poder bélico deste e foram vencidos pela violenta dizimação de
comunidades e doenças.
No segundo momento ele são subjugados pela violenta doutrinação, pela dominação cultural. As
identidades culturais dos povos dos territórios colonizados foram ressignificadas pelo olhar, ciência e
História do colonizador, que os resumiu à um aspecto racial de subalternização todos os povos,
comunidades, culturas não-brancas. Seja os nativos ou dos africanos sequestrados, depois de séculos
sob o domínio de coerção física e violência armada do colonizador, o colonizado é alienado de si ao
ser animalizado, bestializado e reduzido à produto/mão-de-obra do capitalismo mundial
eurocêntrico.
Após esse breve apanhado dos conceitos, reconhece-se como o mecanismo de colonialidade de poder,
determinantes para os padrões raciais, modernos,eurocêntricos e capitalistas nas colônias, configura as
antigas colônias a se tornaram países economicamente, tecnologicamente, intelectualmente dependentes
das produções dos antigos colonizadores no momento pós-colonial. Reconhecendo os lugares, os
enunciadores e enunciado, a perspectiva decolonial pode ser melhor entendida.
A proposta decolonial é uma mudança de paradigma, propondo sair da enunciação de lugares
e pessoas hegemônica.MIGNOLO (2015) que afirma que “ um dos objetivos da descolonialidade é
transformar os termos da conversa e não só seu conteúdo”. Foi para isso que os ideias coloniais e pós-
coloniais foram expostos primeiros, para se entender quais os termos e conteúdos impostos nas
conversas, enunciações epistêmicas a partir do colonial/ moderno/ capitalista e o que significa mudar
isso.
A descolonialidade não consiste em um novo universal que se apresenta como
o verdadeiro, superando todos os previamente existentes; trata-se antes de outra
opção. Apresentando-se como uma opção, o decolonial abre um novo modo de
pensar que se desvincula das cronologias construídas pelas novas epistemes ou
paradigmas (moderno, pós-moderno, altermoderno, ciência newtoniana, teoria
quântica, teoria da relatividade etc.). Não é que as epistemes e os paradigmas
estejam alheios ao pensamento descolonial. Não poderiam sê-lo; mas deixaram
de ser a referência da legitimidade epistêmica. (MIGNOLO, 2014, pg.15)
Para haver tal mudança, o decolonial propõe primeiramente ter consciência da ficção da
universalização e com isso propõe que a legitimidade epistêmica que reconhecemos se desvincule
das narrativas eurocêntricas sejam elas teorias-filosofias-políticas-subjetivas. A formação de um
pensamento decolonial precisa ser localizada fora das centralidades de poder, dos lugares
hegemônicos, em todas as instâncias. É um processo de tomar consciência das condições opressivas
do conhecimento e reconhecimento do mundo material e imaterial, coletivo e individual, que foram
impostas pelo sistema colonial e que apenas porque foram impostas e assimiladas por séculos se
tornaram verdade, mais real ,mais racional e científica.
Ao propor sair desse lugar colonizado tanto territorial quanto indiretamente, o decolonial se
coloca na fronteira, um entre lugar de prática/pensamento/sentimento de liberdade epistêmica.
Como funciona a epistemologia fronteiriça? A herança mais perdurável da
Conferência de Bandung é o “desprendimento”: desprender-se do capitalismo e
do comunismo, ou seja, da teoria política ilustrada (do liberalismo e do
republicanismo: Locke, Montesquieu) e da economia política (Smith), assim
como de seu opositor, o social-comunismo. Mas, uma vez que nos
desprendemos, para onde vamos? É preciso que se dirija ao reservatório de
formas de vida e modos de pensamento que têm sido desqualificados pela
teologia cristã, a qual, desde o Renascimento, continuou expandindo-se através
da filosofia e das ciências seculares, posto que não podemos encontrar o caminho
de saída no reservatório da modernidade (Grécia, Roma, Renascimento,
Ilustração). Se nos dirigirmos ali, permaneceremos presos à ilusão de que não há
outra maneira de pensar, fazer e viver. (MIGNOLO, 2017)
A liberdade epistêmica então se constitui em não precisar dos paradigmas hegemônicos para se
teorizar-se pensar-se produzir não é mais necessário o que é orientado na Europa para determinar o
pensamento ou o que fazer social e individualmente. E por isso existe uma premissa base da
ideologia decolonial, o lugar. Pois ao determinar lugar como posição de enunciação o pensamento
decolonial destitui a estrutura da universalização, que não se situa e se diz neutra para ocultar sua
origem estruturalmente racial, social e hierárquica.
Ele afirma que academicamente isso pode ser uma postura complexa pois a estrutura científica é
uma estrutura rígida que aceita o conhecimento a partir de modelos, normas, padrões, conceitos, e
sua origem como neutras e tem resistência a aceitar posturas políticas que denotam que a ciência
produzida é antes de tudo reflexo de uma imposição colonial do saber, pois isso seria mexer nas
próprias estruturas da verdade científica. Mas ao mesmo tempo diz que o decolonial não é para se
limitar ao acadêmico, e sim se tornar uma prática constante em todos os aspectos da vida dos que
optam por descolonizar-se.
Assim não existe um “projeto” decolonial, pois o projeto é antes de tudo um pensamento elaborado
que se justifica dentro de uma racionalidade cartesiana e europeia. Dentro de uma perspectiva
decolonial existe um impulso de um não projeto. Não delimitar, nem tentar ir para um conceito
europeu ou negá- lo e sim desprender-se.
Desprender-se significa não aceitar as opções que lhe brindam. Não pode evitá-
las, mas ao mesmo tempo não quer obedecer. Habita a fronteira, sente na
fronteira e pensa na fronteira no processo de desprender-se e resubjetivar-se
[...]Optaram por descolonizar. O processo é longo, mas continua. (MIGNOLO,
2017)
O extermínio de uma população pode ser mais do que ações físicas de violência, também
passa pela destruição de sua identidade, a partir da desvalorização ou inviabilização da sua
produção intelectual, filosófica, social e espiritual. É assim que compreendo o epistemicídio na
graduação em Arquitetura e Urbanismo na UFG como uma de manutenção da ideologia de
colonialidade de poder.
A colonialidade do poder na graduação é percebida e sentida quando se manifesta as mesmas
hierarquias raciais, de gênero e de classe estipuladas pelo projeto colonial, e que são mantidas e
reorganizadas mesmo no discurso contemporâneo que se reconhece plural e diverso.
No entanto as bases e os valores atribuídos à teoria e projeto são referenciais hegemônicos,
com bibliografia ocidental eurocêntrica. De maneira consciente ou inconsciente permanecendo
operando na lógica colonial da América Latina, que reconhece as diferenças mas que escolhe
manter a hierarquia de subalternização , onde o conhecimento eurocentrado é o hegemônico.
Por isso o que é estudado, aprofundado, copiado, repetido, ressignificado, teorizado,
analisado e difundido é o conhecimento branco. E os outros conhecimentos e modelos de
arquitetura e organização espacial de comunidades não- brancas é apenas apontadas,como
existentes mas não qualificadas para aprofundamento teórico ou prático.
Identifico nisso a criação de relações de epistemicídio,de colonialidade de poder sobre as
práticas e saberes, o habitar, existir e viver entre o colonizador e o colonizado.Pois as
ideologias,movimentos, escolas de arquitetura do qual se baseia majoritariamente nossa grade
curricular tem como foco o eurocentrismo para se pensar e construir espaços em territórios que
foram colonizados.
Dentro da graduação no aspecto teórico e estético começamos estudando como princípios de
arquitetura a partir da cultura Grego-Romana. Deste modo, as idéias filosóficas- conceituais
são reconhecidas através das formulações teóricas do modelo de conhecimento e linguagem,
estilo de vida que foi considerado como o berço da civilização Ocidental.Estudamos os
aspectos construídos e sociais das polis gregas, reconhecendo a divisão dos espaços públicos,
dos espaços de poder, espaços de culto aos deuses, adentramos nas relações de organização do
espaço aos significados temporais chegando a desenhar as colunas Dóricas, Jônicas e Coríntias.
Chegamos a fazer maquetes em escala 1:100 de um templo grego fazendo um estudo
aprofundado do projeto arquitetônico. Isso é justificado pelo aspecto histórico e patrimonial da
Arquitetura, que reconhece o modelo grego-romano como o clássico, ou seja a base da
Arquitetura que conhecemos e a origem dos estudos dos quais nos baseamos .
Com o recorte do clássico sendo um modelo de civilização eurocêntrica, ou seja do
colonizador e não dos colonizados, toda a formulação ideológica posterior que focamos parte
dos movimentos iniciados na Europa. Na parte teórica- estética perpassamos a arquitetura
medieval, românica, gótica, barroca, neoclássica, moderna e seus desdobramentos.
Tudo isso é estudado de maneira a constituir um acervo teórico e formal de “boa arquitetura”
dentro da formação do estudante, que precisa saber reconhecer os modelos e escolas de
arquitetura nas construções existentes. Porém, só somos capazes de reconhecer, identificar e
qualificar modelos europeus, qualquer construção não-ocidental é exótica , sendo suas práticas
construtivas, relação forma-espaço-teoria sendo observadas a partir do olhar do modelo e
concepções coloniais e eurocêntradas sobre o “outro”. Assim sabemos que existem outros
modelos e movimentos que acontecem em outros lugares do planeta, mas não sabemos
reconhecê-los sem enquadrá-los, compará-los ou qualificá-los a partir da estética- conceito-
técnicas das escolas eurocêntricas.
Assim essa definição do modelo clássico, perpassa o reconhecimento da origem do
conhecimento científico como sendo eurocêntrica ao desconsiderar a formulação teórica e as
construções arquitetônicas das civilizações antigas do mesmo período, com a mesma relevância
patrimonial, que possuem igualmente aspectos filosóficos-teóricos-matemáticos-astrológicos
em relação à construção de espaços e organização espacial dos grupos sociais.
Mas não estudamos ou aprofundamos em nenhum outro tipo de construção, cosmovisão,
filosofia de outras civilizações do período antigo pulando no tempo-espaço para outros aspectos
da história e arquitetura eurocêntrica, negando o protagonismo de qualquer cultura não-
ocidental como sendo possíveis formadores de conhecimento científico e crítico sobre
construções e comunidades.
De maneira superficial e breve, passamos por períodos da história na Arquitetura do Brasil
que falamos das construções indígenas na América Latina, mas sem adentrar nas
especificidades culturais, regionais, linguísticas, e sem aprofundar nas relações sociais, raciais
que denotam à relação da propriedade de terra, construção dos casarões,igrejas e organização
das cidades no período colonial. Na mesma lógica de apenas focar no estudo eurocentrado, a
perspectiva construtiva do trabalho forçado dos escravizados não é sequer abordada, e a relação
de construção dos quilombos, dos aspectos culturais, tectônicos e construtivos que foram
trazidos de diferentes grupos étnicos da África também não é aprofundado.
E é nesses momentos de estudos teóricos sobre a produção arquitetônica de outras culturas
que demarco o quanto a colonialidade de poder e epistemicídio na graduação tem raízes
profundas. Porque mesmo ao falar de culturas diversas, que são antigas e atuais, colocamos
uma noção estacionária do desenvolvimento dessas culturas, tudo que não é europeu so pode
ser estudado no recorte de tempo do antigo, do passado, do “primitivo” pois foi o europeu que
trouxe o moderno, o desenvolvimento, as tecnologias.
Essa abordagem é problemática porque nega-se a existência de culturas afro-ameríndias que
produzem conhecimento contemporâneo, e estão alavancando debates atuais que relacionam
patrimônio, construção, modelos de vida e ocupação de territórios tanto na área rural quanto no
urbano.
Mas não é estimulada a leitura e pesquisa de intelectuais afro-ameríndios. Não temos como
bases bibliográficas , teóricas ou práticas, autores que não se enquadrem no padrão
hegemônico, eurocêntrico e branco.
Por isso mesmo quando falamos muito brevemente de arquitetura indígena brasileira usamos
autores europeus hegemônicos. O não reconhecimento da produção de pesquisadores,
cientistas, intelectuais que não sejam nesse padrão é excludente .
Isso faz com que a nossa concepção histórica da Arquitetura e Urbanismo na América latina
seja com um recorte racial hegemônico, em que a validação científica e estética é dada ao que
se baseia no modelo da elite europeia.
Isso acontece em relação aos produtores do conhecimento e do que é produzido. Dentro da
arquitetura percebo essa postura com a nomenclatura comum do erudito e popular, sendo o
erudito tudo que é produzido a partir por arquitetos que seguem escolas e movimentos europeus
e o popular tudo que seja diferente disso. Apenas com o interesse específico de discentes e
docentes o que é popular ou não-branco é abordado e estudado, mas não é exigido
conhecimento ou análise crítica sobre isso.
Desta forma, a formação teórica em relação à história da arquitetura, história da arte e assim a
formação de um padrão estético em arquitetura na graduação não reconhece como igualmente
relevantes a produção cultural, arquitetônica e artística de outras sociedades afro-asiáticas-
ameríndias. Esse é um dos aspectos do epistemicídio na graduação na parte teórica, que pode
parecer irrelevante quando o foco do curso é o projeto. No entanto essa base teórica
eurocentrada que vai se basear e manifestar na concepção de todas as matérias de projeto do
curso.
Acredito que as decisões da base curricular, bibliografia e referenciais teóricos não são
desenvolvidos arbitrariamente pela UFG ,fazendo parte de toda uma validação de repertório
científico que é reconhecido e disseminado igualmente para todas as escolas de Arquitetura que
querem ser reconhecidas pelo MEC.
Mas acredito que algumas observações decolonias podem ser colocadas. Se em teoria, as
referências bibliográficas condicionam os arquitetos a reconhecerem os fundamentos base da
arquitetura em Vitrúvio, podemos igualmente trazer referenciais teóricos de outros pensadores,
construtores de outras Civilizações Antigas. E ao sair do estudo da Arquitetura Clássica
também podemos sair do pensamento colonizado. Pois acredito que o processo histórico de
colonização ainda hoje determina os padrões de reconhecimento e difusão do conhecimento
dentro da graduação em arquitetura e urbanismo.
Desta forma os modelos eurocêntricos são aceitos como máximas de excelência a serem
incorporados compulsivamente como prática local, o que produzimos seja teoricamente ou na
prática é na intenção de se basear exclusivamente nos modelos do “1° Mundo”. Assim a forma
de ser, de viver, de crenças e relações eurocêntricas se torna nosso referencial de conhecimento.
Nesse momento tenciono apenas a relação eurocêntrica, mas nessa mesma perspectiva de
epistemicídio posso também pensar a relação teóricos- arquitetos homens que estudamos em
relação ao trabalho teórico e construtivo de arquitetas mulheres.
Pela lógica “neutra” da ciência não faria diferença o produtor do conhecimento e apenas o
conteúdo. Mas sabemos que faz diferença não só no teor do conteúdo, mas também na
assimilação do discurso. Obviamente, se apontado porque não estudamos exclusivamente
teóricos-arquitetos negros, índios, africanos, mulheres como estudamos exclusivamente
homens, brancos, euro-ocidentais vai gerar necessariamente o discurso que os brasileiros de
maneira geral não querem admitir, de que não existe democracia racial e sim um contrato racial
e diria colonial. Onde a hegemonia masculina branca passa despercebida , porque é normal. E
qualquer crítica em relação à isso não é assimilada sequer na academia, onde as análises críticas
e autocríticas deveriam ser incentivadas.
A crítica decolonial na graduação é de propor uma mudança de perspectiva e discurso, não
negando a relevância histórica da arquitetura clássica, mas propondo entender que a
arquitetura que estudamos como clássica, não é o princípio da arquitetura e não é universal.
Não sendo então o único repertório de Arquitetura Antiga que pode ser estudado de maneira
científica. E por isso não deveria ser o nosso único foco na graduação o estudo dos modelos,
escolas, teorias e produções exclusivamente eurocêntricas. E que os conhecimentos e saberes
sobre arquitetura afro-ameríndia devem ser estudadas enquanto realidades internacionais
contemporâneas relevantes para a criação de referencial e acervo de “boa arquitetura”.
Quando chegamos ao estudo e produção de arquitetura contemporânea na graduação senti o
foco nas formas,a questão da originalidade, tecnologia e espetacularização como aspectos de
diretrizes. Na parte teórica contemporânea, propõe-se algumas desconstruções das bases
hegemônicas da arquitetura, essas análises são possíveis a partir da mudança de paradigmas e
dos discursos unilaterais. Isso engloba abordagens plurais, reconhecimento das diferenças,
patrimônios imateriais e relações sociais as questões de análise críticas são enquadradas como
estudos específicos da parte do urbanismo.
O mundo contemporâneo caracteriza-se, em oposição à modernidade, pela
afirmação radical das diferenças. Se na era moderna a produção e difusão de
conhecimento ainda se baseavam na ciência como conhecimento universal, na
contemporaneidade - com a queda das grandes narrativas e dos pretensiosos
sistemas filosóficos – são reconhecidas as diversas fontes de produção do
conhecimento para muito além dos laboratórios, abrangendo arte, a religião, a
magia, as comunidades específicas, o saber popular, dentre outros. Ao invés da
racionalidade universal, temos agora a lógica da diferença. (FREITAS, 2015)
Essa marginalização histórica e social das diferenças, faz com que as populações negras e
ameríndias estejam condicionadas à níveis de pobreza que está materializada nos meios urbanos
das grandes cidades e nas áreas rurais do Brasil. Onde podemos perceber que as configurações
de desigualdades estão zoneadas nos espaços das periferias ou centros decantes e que esses
espaços podem ser reconhecidos racial e etnicamente como sendo os sobreviventes de um
processo histórico de colonização,concentração de renda e criação de sub-cidadanias.
Não é ao acaso ou coincidência que o acesso à habitação, à educação, à saúde, à infraestrutura
urbana , saneamento básico, a cultura, lazer, à proteção do Estado, a direito de culto religioso, a
representação em espaços de poder e governança tenham raça, gênero e classe na configuração
do mundo globalizado. As hierarquias de poder entre ricos e pobres, países desenvolvidos e em
“desenvolvimento”, zonas nobres e periferias, cidades e favelas, também se configuram em
hierarquias de conhecimento dentro dos núcleos de saberes intelectuais onde alguns discursos
são legitimados, reconhecidos e reproduzidos com teor científico onde não é questionado os
discursos políticos e sociais por trás de quem e pra quem se produz a ciência.
No Brasil por muito tempo apenas uma classe social era capaz de falar sobre a cidade e propor
sua construção, os discursos, escolas e modelos a serem seguidos vinham do exterior e eram
copiados com alterações estilistas e ambientais, mas com suas ideologias intactas. É assim que
na construção das cidades brasileiras e até do que foi considerado digno de se tornar patrimônio
, e assim o que deve ser estudado e preservado, se relacionam mais com reproduções de estilos
eurocêntricos do que com as produções originalmente afro-ameríndias.
Na contemporaneidade outras demandas aparecem e outras posturas em relação à cidade e a
habitação e ao patrimônio são tomadas se buscando reconhecimento das multiculturalidades.
Porém mesmo em nível teórico essas problematizações que estão sendo feitas foram estudadas
de forma secundária, e quando apontadas por alunas são banalizadas por virem de “militantes”,
que atualmente são enquadrados como discursos “esquerdistas” “politicamente correto” ou o
retórico “mimimi”. Nessa desqualificação do discurso por viés ideológico, o que permanece se
repercutindo é a estrutura da colonialidade de poder.
(CARNEIRO,2005,pag,60)
1
entender que foi o melhor projeto que eu tinha feito durante o curso. Porque mesmo que
tivemos três projetos de interesse social durante a graduação (construção de um abrigo para
situações de emergência e um conjunto habitacional unifamiliar e multifamiliar de renda baixa)
essas experiências não tiveram contatos diretos com a realidades de espaços já construídos.
Vimos em fotos conjuntos habitacionais e situações de catástrofes indiretas. A materialidade
desses espaços que propunham demandas e esse programa específico nunca foi realmente
vivenciada pelos alunos e é assim que as propostas de projeto sempre acabaram se distanciando
muito do que é real. Mesmo que para a graduação essas matérias de projeto são de estudo que
tem o objetivo de ser experiências criativas, que podem ou não ser associadas à realidade, um
entendimento da realidade dos projetos anteriores durante a graduação se formulou na minha
mente. Eram projetos de uma realidade paralela à minha.
Uma realidade que se baseia em vivências e corpos de espaços centrais, ou seja corpos e
espaços hegemônicos que buscam e se espelham em dinâmicas eurocêntricas e ocidentais e a
partir disso criam valores, estéticas e conceitos que baseiam toda sua produção. Então até
mesmo para se projetar espaços de interesse social, a lógica utilizada e o ponto de partida pra e
atribuir valor e qualidade, eram preceitos dessa realidade paralela.
A vivência do real para o projeto, do meu real teve um peso muito forte pra mim pra se pensar
concepção de projeto, o contraste entre o ideal, o que de fato pode/precisa ser feito e o que é
possível pela intersecção de fatores sociais reais, que para mim tinham maior importância
teórica-filosófica- prática do que os projetos que tinham locus mas poderiam estar igualmente
pairando no vazio ou em alguma cidade europeia.
Nesse momento tive uma experiência epistêmica que Orchy Curiel (2017) em sua tese de
doutorado em antropologia conceituou seu estudo-prática como :
[...] o que chamo de outrológica, quer dizer, pesquisar os outros. Esses outros
que são marcados pelo racismo, esses outros que são considerados outros na
modernidade ocidental: as pessoas negras, as pessoas indígenas, as mulheres
empobrecidas, o outro urbano. Disse a mim mesma que esse método que a
antropologia propõe como etnografia também me serve para estudar o poder. Me
serve para estudar a dominação ou a hegemonia.(CURIEL,2017)
Esse projeto, que me permitiu então pensar “o outro urbano” mas que na verdade era um eu
urbano. E assim eu tive um outro ponto de vista sobre o projeto, que me tirou daquele lugar do
“belo” como qualidade que o projeto precisa atingir para ser considerado assinado por um
arquiteto, e também da sistematização cartesianas dos detalhes técnicos e construtivos que se
precisa estipular pra se ter um projeto arquitetônico.
De repente eu podia pensar naqueles outro métodos de construção que me são mais familiares,
que não tem projeto,não foram projetados por arquitetos, não são “bonitos”, não seguem uma
escola de arquitetura, não são tecnológicos, mas que existem.
O fato de não ter aprofundado estudos de teoria de arquitetura e urbanismo sobre os espaços
que eu reconheço, porque foram marginalizados epistemologicamente, me fez ter esse foco de
pesquisa para a conclusão do curso.
Em vez de “arché” poderia ser “axé”
Cosmovisão Afrocentrada
Faço esse recorte de gênero porque é uma das construções sociais que se estruturam a partir do
ocidente e que ao serem contrapostas com os valores pré-coloniais das sociedades afro-
ameríndias, não se sustenta dentro dessa perspectiva decolonial. Alguns valores, nomes,
conceitos, só se aplicam ao ocidente ou sua violenta maneira de ocidentalização do pensamento.
Da mesma forma que a ideia de uma “filosofia” separada de uma cosmovisão, prática, atribuída
ao cotidiano e ao sagrado e a separação do humano, da natureza e do divino.
A ciência fragmentada (cartesiana), dualista e materialista, é uma dinâmica ocidental do
conhecimento e não é a única, ou a correta. Ela se torna científica apenas porque determina sua
hegemonia eurocêntrica a partir dos processos de modernidade, da colonialidade de poder e do
imperialismo. Assim a ciência afrocentrada não fragmenta, é complexa,empírica e metafísica,
atribuindo valores, axiomas não-dualistas.
A transmissão e produção do conhecimentos nas tradições pré-coloniais africanas, esta
ligados ao processo de formação humana dos sujeitos de uma sociedade estruturada para a
relação tempo-espaço-espirito. Dessa forma a formação do conhecimento não tinha objetivos
pragmáticos de definição de condições de posse ou divisão, e sim da necessidade de formar
membros para uma sociedade integral. Assim o estímulo à constante reflexão sobre as relações,
com a família, com a comunidade, com o planeta,consigo mesmo são parâmetros para
construir-se enquanto humano que sabe.
Esse humano que sabe, tem sua visão de mundo ampliada por valores éticos que se sustentam
em valores sociais e ancestrais. Já que compreende o valor da sua existência a partir da
ancestralidade que o precede, e da Natureza que permite seus desdobramentos. Desta forma
toda prática de conhecimento adquirido advém da sua noção de natureza e seus ciclos, vida-
morte, manifestação,preservação e destruição. O humano e natureza não são distintos.
O meio ambiente e o corpo são compreendidos como lugares sagrados, expressão
materializada do Divino. Assim a matriz cultural africana, traz uma noção de corpo físico que
manifesta o sagrado em seu movimento, pois nunca foi separado por um pecado original. E uma
natureza que em seus mecanismos, manifesta o divino podendo também ter relação
personificada com o humano, que também faz parte do sagrado, no micro e no macro.
Desta forma o que constituiu um Ser humano tem relação direta de criação e manifestação do
Ser Divino, em seu aspecto corpo, mente e espírito.
Uma pessoa é compreendida como sendo seu ou sua ara (corpo), emi
(mente/alma) e ori (“cabeça interior”). Diferente de ara, que é física,
quanto emi quanto ori são mentais (ou espirituais). Esta dicotomia
pode nos induzir a pensar a visão africana como dualista. Mas seria
um erro pensar assim, já que o ori é ontologicamente concebido
independente dos outros dois elementos. Portanto, a visão africana é
propriamente pensada como triádica. É filosoficamente interessante
que uma pessoa seja a criação de diferentes divindades. Ara, o corpo, é
construído por Orisa-nla, a arqui divindade. Olodumare (Deus ou
“Divindade Suprema”) gera o emi; enquanto que outra divindade,
Ajala, é responsável por criar o ori. Ara, é entidade corporal da cabeça
ao pé, incluindo os órgãos internos e externos, e se torna consciente
com o emi que, separada desta capacidade de dar vida, é
compreendida como imortal e transmigratória. A cabeça interior ou
metafísica, ori, a outra entidade não-corpórea, é o portador do destino
e, portanto, constitutivo da personalidade.(ADEOFE,2004,pag.1-2)
É nesse Ser divino, humano e natureza, manifestado e invisível, que o Axé se movimenta
como elemento vital, fundamental de transformação e permanência, na cosmovisão Iorubá,
Nagô e também para os povos Banto. De princípios cósmicos e planetários (orixás) o axé se
cria, se funde, difunde entre os elementos além do tempo-espaço.A existência se dá no Axé e
pelo Axé. Porém o conceito metafísico reconhece a canalização de energia abundante, em força
direcionada para a criação e manifestação de todas as coisas.
Com isso o conhecimento, nessa perspectiva, passa pela transmissão do Axé, articulada à
ancestralidade, pela vivência grupal e da oralidade. Esse conhecimento oral, determina uma
relação com a ancestralidade, enquanto linhagem, espiritualidade e principalmente memória.
A produção de ciência, seja empírica ou metafísica, sobre a natureza e o divino, sobre valores
sociais e filosóficos, são transmitidos pelos mais velhos de forma majoritariamente oral. Com o
tempo os ancestrais se tornam a espiritualidade e aqueles que ouviram se tornam os
manifestadores deste conhecimento,fazendo que a memória se torne prática.Gerando uma
relação que como o Axé, transcende espaço-tempo, passado e presente,material e imaterial.
Enquanto descendentes da diáspora e resistentes do processo de colonização e
eurocentralização do âmbito coletivo ao privado, as culturas e religiões afro-brasileiras,
perpetuam os saberes de seus ancestrais e o Axé.
[...] Porque os naturais da América eram livres. Como tais foram declarados nas
leis canônicas e civis. E aos jesuítas da América portuguesa foi confiada a
defesa dessa liberdade. Esta é razão. Os negros vindos da África nem eram
livres, nem a defesa de sua liberdade fora confiada aos padres. A escravatura
africana era instituição vigente na África desde tempos imemoriais. Já antes da
fundação da Companhia de Jesus, a América se inundava de escravos negros.
As leis da Igreja toleravam essa escravatura, as leis civis das nações regulavam-
na. Todas as nações colonizadoras, Portugal, Espanha, França, Inglaterra,
Holanda, então, e por muito tempo ainda, e com elas depois os países
independentes da América, exploraram a escravatura negra, legalmente, isto é,
segundo as leis da época. Aos jesuítas nunca foi nem podia ser confiada a
defesa de uma liberdade inexistente. (LEITE, VI, p. 350_apoudCARNEIRO).
Assim em primeiro momento o discurso de “missão civilizatória” torna os nativos índios que
poderiam catequizados. É assim que se forma um tratamento específico em relação ao índio, o de
conservar mas apenas para converter.
Dentro do imaginário europeu que possuía o ideal do “bom selvagem” (Rousseau) os índios são
humanos livres mas primitivos e infantis, e o papel do homem branco seria ensiná-los os bons modos
da civilização europeia mas ao mesmo tempo em que os europeus colonizadores empregavam a
exploração da mão-de-obra, violação sexual, desapropriação territorial violenta para que tal
acontecesse. (por exemplo, alimentando cachorros com pessoas vivas e fazendo algibeiras e chapéus
das vaginas das mulheres indígenas brutalmente assassinadas).2
Nesse momento já se forma uma das características essenciais da relação do branco com o nativo e
que vai definir uma identidade índio dentro da sociedade brasileira, a desapropriação das terras dos
nativos que se tornam propriedades do homem branco por diversos mecanismos tanto de genocídio
como de coerção.
Em relação aos escravizados africanos que aos serem sequestrados para as terras colonizadas se
tornam negros a bula papal tinha outra perspectiva, segundo eles os negros não possuíam alma.
Assim os africanos escravizados, foram também animalizados e bestializados por tal pressuposto da
Igreja.
Com isso tem o papel definido como naturalmente subalternos dos amos brancos que
empregavam exploração inimaginável, violências, torturas, controle da reprodução e terror
sistemático para mantê- los nessa condição.
[...]em vista os votos indissolúveis estabelecidos entre a Companhia de Jesus e o
Papa, sobretudo no que tange a um voto extraordinário de obediência, a educação
de crianças negras foi item que ficou fora de questão. A ausência de alma, no
lugar do que posteriormente seria o lugar da razão, no contexto da laicização do
Estado moderno, será o primeiro argumento para afirmar à não-educabilidade dos
negros. Será, então, pelo estabelecimento das idéias e discursos fundadores
2
acerca da educabilidade dos afrodescendentes, que se articulará o epistemicídio
ao dispositivo de racialidade. ( CARNEIRO, 2005, pag. 104)
O modelo colonial de manutenção do poder dos brancos sobre a população de negros e índios, foi
através da violência mas a Igreja teve o papel de justificar os tipos de violência e o porque eram
empregadas, assim como para gerar uma harmonia e ordem a partir da transmissão direta e indireta
dos valores morais judaico-cristão para povos que desconheciam noções de pecado, do bem e do mal
mas que eram naturalmente maus por serem pagãos. Assim, os índios poderiam se tornar bons ao se
converterem mas os africanos escravizados e suas tradições eram demonizáveis.
Essa hierarquia do tratamento da catequização da Igreja permanece e é reformulada dentro da
Colônia com a vinda da nobreza Europeia para as Américas.
Com o desenvolvimento do processo de colonização, nobres membros da corte e da elite e migram
para as Colônias tomando título de realeza imperial para manter o controle e a presença demarcada
do poder central da Europa também nas terras das Américas. Isso acontece para instigar ordem e
uma ideia de desenvolvimento às colônias, onde a sociedade formada se constituía de pessoas
brancas, e subalternizados não-brancos.
Com a vinda da nobreza europeia, as dinâmicas nas colônias da América Latina muda
completamente.Antes o processo de extração era principal e havia o mínimo de recursos
dispensados para a colônia. Havia povoados precários em que a Igreja era a organização principal
do espaço social, para a doutrinação dos nativos e manutenção da população europeia que migrou
em busca das riquezas e glórias do Novo Mundo.
Nesse momento inicial da sociedade colonizada, a maior parte da população era a de mão-de-
obra/mercadoria dos não-brancos, e por isso não havia uma preocupação na construção dos espaços
além das edificações das igrejas, dos missionários, dos jesuítas.
Com a instalação da corte imperial foi necessário desenvolver espaços que tivessem as
características de cidades, da civilização Europeia para abrigar as exigências de sofisticação,
riqueza, beleza da perspectiva da nobreza europeia.
Assim nas construções no território das colônias existe uma diferença hierárquica que é racial e de
classe. Onde a mão de obra escravizada e servil do não-branco vai ser usada para a construção de
moradias, palácios, instituições que estes nunca poderiam ocupar pois eram espaços construídos
para os brancos, para a cultura europeia se instalar como símbolo da sofisticação e civilização.
A partir desse momento os espaços planejados, com investimento de capital, se qualifica como
espaços de brancos, pois eles possuem a dominância de poder pelo capital e poder de fogo.
Apesar das transformações e mudanças históricas-políticas-sociais que aconteceram nos territórios
colonizados, com as particularidades de cada, essa dinâmica permaneceu durante os períodos de
Colônia, Império e República.
Os países colonizados, suas cidades, suas organizações se formaram e se desenvolveram ao
molde eurocêntrico, mas a separação dos espaços de brancos e não-brancos permaneceu, pois a
segregação racial do trabalho garantia a não mobilidade social. Isso determina não apenas os lugares
ocupados, mas os níveis de cidadania e subalternização, de direitos e privilégios concedidos dentro
das sociedades colonizadas, ao branco e ao não-branco.
A relação intrínseca entre o sagrado e patrimônio pode ser definida enquanto estrutura de
poder político-religioso, porém quando as noções de religião se ampliam pela destituição do
poder central da Igreja Católica e a consolidação de outras vertentes espiritualistas,
populares, a própria noção de patrimônio se expande para acolher também manifestações
imateriais.
3
Um levantamento atualizado (2017) na lista de bens culturais inscritos nos Livros de Tombos do IPHAN revela que,
entre os 1.149 bens registrados, 469 são religiosos, dentre os quais 458 são católicos.Os bens religiosos correspondem a
40% do total de bens tombados pelo IPHAN. Destes, 97%são católicos (Oliveira 2016). Atualmente, nove terreiros de
candomblé estão tombados no Brasil e outros dezessete estão em processo de avaliação pelo IPHAN. Existem também
casos de tombamento por instituições de estados e municípios.
(apoud DOI: http://dx.doi.org/10.1590/0100-85872017v37n3editorial)
O termo enquanto formulação de um conceito em andamento, não está limitado
unicamente ao aspecto religioso. Muito mais que isso, ele se determina pela sua oposição
em relação com a arquitetura que constrói espaços “universais”,“internacionais”, ou “boa
arquitetura” que em seu significado são territórios raciais de predominância branca,
pensada através da lógica e cultura eurocêntrica-ocidental, com ideias de predominância de
valores estéticos e sociais de uma classe econômica dominante e hegemônica.
Espaços não-brancos
Foram sequestrados pelo tráfico-negreiro principalmente povos sudaneses, originários das regiões
que foram denominadas Benin (antigo Reino de Ketu), Costa do Marfim, Gana, Mali, Nigéria, Togo,
com suas diferenças culturais particulares, como só no sudoeste da Nigéria a cultura/língua Iorubá
possuía atribuições regionais que a distinguia em Jejê,Jexá, Oió, Ifé e Ondôe. Esse africanos, que
eram pessoas ativas em sociedades com valores culturais e sociais distintos, dentre todas suas
atribuições como ferreiros, pescadores, curandeiros, agricultores, líderes, comerciantes, etc. foram
sob o olhar do branco resumidas à identidade negro que foi criada como um estigma pois se
associava diretamente à condição de escravizados.
Ao serem aglutinados em navios negreiros e passarem por processos traumáticos, de confinação,
violência, coerção como animais, os indivíduos africanos passam por processos dolorosos de se
reconectar com uma realidade externa de exploração,as violências, atrocidades e genocídio.
O tráfico africano para o Brasil durou quase quatro séculos, trazendo para o Brasil
mais de 3.600.000 africanos e africanas, provenientes de diferentes nações
daquele continente. Submetidos a condições desumanas durante as viagens entre
os dois continentes, cerca de 40% morriam de fome, sede, doenças, naufrágios e
crueldades diversas. Os primeiros grupos de africanas, procedentes, em sua
maioria, dos Reinos do Congo, Dongo e Benguela chegaram à Bahia por volta de
1550[..] Diante do sofrimento a que eram expostos com a falta de roupa e
alimentos, marcados a ferro quente e subjugados a açoites e mutilações, os
escravos, já em 1572, começaram a organizar fugas em massa e rebeliões. (pag.
195-196)
Esse processo de escravização compulsiva e sequestro da população africana foi desenvolvida pela
ótica colonial, capitalista e religiosa onde de que determinou crenças hegemônicas para subalternizar
a população africana que justificasse o nível de violência para submissão empregado.
Além de considerarem os africanos “sem-alma ou seja pouco mais que animais,o pensamento
recorrente de que a escravização dos africanos foi responsabilidade dos mesmos, pois foram
africanos que venderam seus escravos para os europeus retirou do branco a responsabilidade sobre
seus atos bárbaros. No entanto o processo de manter escravos sobreviventes de guerras entre grupos
ou oriundos de dívidas sociais, é uma prática recorrente de todas as culturas antigas, assim como em
Roma aconteceu no Reino de Ketu, mas a diferença foi que os europeus racializaram a escravidão,
não só compraram mas passaram a sequestrar africanos para financiar um sistema de exploração de
escravidão sem precedentes históricos.
Onde o próprio tráfico de escravizados se torna um ponto econômico chave do desenvolvimento do
mercantilismo, e depois na época do café-açúcar- algodão nas Américas a escravidão se torna a
principal mão-de-obra para manter o mercado do capitalismo mundial eurocentrado.
Outra crença popular muito difundida, era uma ideia de que os negros eram naturalmente
subalternos, e que com isso sua situação de escravizados era aceitável para a sociedade branca
moralmente judaico-cristão já que os negros aceitavam sua condição de senhores. No entanto as
séries de revoltas, fugas e a formação de diversos quilombos no Brasil são provas de que não só os
negros não identificavam seus senhores como benfeitores como buscaram a liberdade por diversos
meios.
4
libertação foram práticas constantes do povo negro porém a divulgação desse aspecto não corrobora
com o imaginário do branco , que na História Oficial é quem escravizou e quer ser ao mesmo tempo
o único agente da abolição.
Outra crença hegemônica da colonialidade é em relação a demonização das práticas religiosas de
matriz africana, que foram qualificadas como magia negra, e por isso potencialmente maléficas,
desviantes da moral e da ordem. Instaurando um imaginário de medo e intolerância.
A feitiçaria era uma prática de magia e culto pagão violentamente condenada pela Igreja Católica
desde a Europa - lembrando da Inquisição e das bruxas queimadas - e essa condenação seguiu curso
nos territórios colonizados contra as práticas religiosas dos nativos e dos africanos. No entanto, em
relação aos africanos a demonização dos símbolos, rituais, divindades e crenças foi mais forte que
em relação aos nativos .
[...]os escravos das fazendas da região de Itu viviam segundo uma “herança
cultural africana”.O autor explica que essa “herança” teria origem na região do
“Congo Norte, a costa entre a foz do Rio Zaire até o Gabão de hoje” [...] dessa
“herança cultural” estaria nos cultos de aflição, evocados pelos africanos
escravizados em momentos em que o grupo procurava a cura através de
sociedades secretas. Esses escravos se encontravam para a realização de rituais
onde ganhavam força espiritual para enfrentar os problemas da vida no cativeiro,
em florestas e clareiras. Cada um dos membros seria iniciado, segundo Slenes,
“através de uma cerimônia de morte ritual seguido de renascimento, com o novo
membro em transe, incorporando um espírito-guia individual, cujo nome e
identidade carregava durante o resto da vida” ( COUCEIRO, 2008,pág.62)
Percebe-se nesse trecho comentários que remontam às ideias fundamentais da ideologia colonial
quanto à raça, onde o comportamento dos escravizados seriam irracionais por advirem das crenças
da “raça africana”. E por não serem parte de liturgia judaico-cristã só poderiam ser fantantasia.
Outra parte importante de se notar é que o subdelegado reconhecia que os negros no cativeiro não se
reconheciam como iguais aos serem de nações africanas diferentes e rivais mas que eles se uniam
para manifestar seus cultos. Essa característica de união dos escravizados preocupava muito as
autoridades do sistema escravocrata, pois
Desde o levante dos malês a classe senhorial e a boa sociedade imperial tinham
receio que a crença mágico-religiosa de escravos conferisse maior poder, grau de
organização e força a planos de insurreição. Tinham receio, também, de que os
africanos poderiam ser perigosas lideranças de insurreições de escravos. Eram
representantes do marcante traço de “atraso” do Império, da África no Brasil. Mas a
escravidão, para muitos membros da classe senhorial e da boa sociedade, era o
modo que se conseguiria recursos para a nação ser civilizada. Esse era um dos
principais dilemas da sociedade imperial: querer combater os elementos do atraso
da nação, sem deixar de ser escravista e ainda por cima querer cada vez mais chegar
ao topo das nações consideradas civilizadas. (COUCEIRO, pág.103)
A sociedade brasileira temia a organização e união do povo negro a partir de uma configuração
africana, o sistema escravista tinha consciência que tinham conseguido manter certa ordem com
medidas de enfraquecimento dos laços africanos insurgentes. Ao separarem pessoa dos mesmos
povos e comunidades, garantiam que eles teriam dificuldade de comunicação e identificação no
cativeiro, e ao colocarem juntos nos mesmos cativeiros principalmente etnias inimigas tornavam
difícil o reconhecimento de uniões capazes de liderar revoltas, porém fora de cativeiros nos centros
urbanos os negros estavam se unindo pela religião de matriz africana configurava um grande risco
aos brancos.
Medidas de coerção policial, e estigma social foram criados em torno da configuração de práticas
religiosas de matriz africana, mas podemos entender que não era apenas medo do feitiço configurado
como prática satânica pela Igreja Católica e mais por uma questão de ordem social para a
manutenção das hierarquias de poder da elite branca, que eram minoria numérica e por isso temiam
levantes significativos da população negra. A repressão violenta, com coerção física e poder de
fogo,era utilizada para gerar medo nos negros, para que cultos africanos não se consolidasse,
gerando organizações sociais e ocupações territoriais afrocentradas.
Sabe-se que no Quilombo dos Palmares as lideranças políticas,militares e sociais, eram antes de
tudo lideranças religiosas, que assim configuravam uma realeza africana local que poderia ser
reconhecida por diferentes grupos étnicos a partir do seu poder espiritual ao conhecer mistérios das
ritualísticas, práticas e cantos orais, possuindo grande conhecimento das suas culturas de origem. 5 E
que nos centros urbanos, principalmente no Rio de Janeiro e em Salvador, as mães-de-santo outrora
ganhadeiras se articulavam para insurgências, contrabandeavam planos de fuga e compravam
alforrias para libertação dos escravizados.
Na construção dos espaços afro-diásporicos que se formaram no período colonial para resistência
ao domínio eurocêntrico-branco-patriarcal as mulheres negras tiveram papel central e fundamental.
Pois as mulheres negras escravizadas tinham maiores atribuições domésticas e se tornariam as
principais trabalhadoras de ganho, vendendo produtos nas ruas e estabelecendo relações de comércio
formais e informais.
Assim as ganhadeiras estavam presentes nas ruas da cidade e seriam a maioria da população negra
livre muito antes da abolição, porque conseguiram antes dos homens comprar suas alforrias. Além
disso o fato de se envolverem em atividades urbanas de comércio vai colocar as mulheres negras em
vantagem em relação na maior parte de escravizados nos meios rurais, pois a partir disso elas entram
em contato com dinâmicas sociais, acordos, trocas que permitem que elas se estabeleçam como um
segmento social importante para a manutenção da economia local.
A partir disso elas criaram redes de comunicação, com influência e maior liberdade em relação aos
escravizados que ficavam confinados no trabalho na casa grande.
1872. Esse povo sofria uma carência crònica de produtos alimentícios, reflexo de
5
atravessamento e outras atividades de que, de certa forma, dependiam a ordem
(SOARES, pag.67)
Porém o medo de organizações e revoltas dos escravizados era uma constante e isso também
influencia a dinâmica com as ganhadeiras africanas, porque eram consideradas mais subversivas e
por isso havia mais controle policial sobre elas.
Esse controle maior sobre elas em relação às negras nascidas no Brasil tem haver com a relação
de quem nasce inserido em um sistema totalmente consolidado é levado a acreditar que as coisas
sempre foram estruturas daquela maneira e são mais conformáveis pois não visualizam uma
existência sem ser aos moldes desse sistema, em contraposição àqueles que sabem que existem
outras maneiras de existência e que assim não se conformam com as estruturas impostas e buscavam
mudar o sistema .
Uma vez sendo africana, a ganhadeira tinha que pagar “licenças para poderem
mercadejar”. As autoridades públicas de Salvador, depois do levante dos malês,
queriam controlar todos os passos dos africanos nas ruas da cidade. Segundo a lei
que cobrava a taxa pela licença de comerciar nas ruas, as crioulas, escravas
nascidas no Brasil, estavam isentas de qualquer pagamento.
(COUCEIRO,pág.212)
E realmente foram as mulheres africanas , que ao não se esqueceram de suas raízes ancestrais e
culto, ao comprarem sua liberdade se tornam o pilar central para o desenvolvimento de dinâmicas de
libertação da identidade negra e da criação de espaços negros de liberdade dos valores hegemônicos
branco.
A partir das alforrias, essas mulheres continuaram com suas atividades de comércio ambulante,
agora para o seu próprio sustento conseguiram a renda e o tempo para criarem as primeiras casas de
culto aos orixás em solo brasileiro, os terreiros de candomblé.
As mulheres negras, ao assumirem sua identidade afro-diaspórica, não perdem suas raízes
religiosas Africanas mas reformulam suas práticas de acordo com a nova realidade brasileira. Assim
elas se tornam criadoras e líderes espirituais de uma religiosidade que unia povos africanos
diferentes, seus diferentes orixás, num mesmo culto, num mesmo território.
O fato de serem as líderes espirituais e se configurarem como mãe de santo pode elucidar um
aspecto importante do exercício das religiões de matriz africana no contexto da colonialidade para os
escravizados, o de reconstituir uma família, de estabelecer laços afetivos que lhes fora negado:
(...) a lei não dava proteção alguma à família escrava no Brasil (...) um vigoroso
comércio interno com escravos desfez muitas famílias, seja com uniões
legitimadas pela Igreja ou não. O comércio interno de escravos foi
especialmente ativo depois de 1850, quando o tráfico externo estava fechado
(...) Observa-se que não foi estimulada, muito pelo contrário, a formação de
família entre os escravos e, diante disso, o comportamento entre esse grupo
começa a se diferenciar do modelo familiar patriarcal predominante na
sociedade brasileira [...]Além do mais, também crianças eram separadas de suas
mães pelo tráfico e ocorreram situações em que os donos venderam seus
próprios filhos com mulheres escravas. Diante dessas condições, ficava
impossível para a maior parte dos escravos ter uniões estáveis ou constituir
família. (DEGLER, 1971, p. 38 apud BASTOS, 2000, p. 80)
Com isso o espaço religioso se torna um lugar de reconexão com o sagrado, reconexão com as
raízes e reconexão entre pessoas que tiveram sua noção de permanência e criação de laços diluídos
pela imposição da escravização , essas pessoas africanas tão diversas e cheias de marcas tanto de
violência quanto de readaptação social mental e psicológica criam outra forma de negritude ao se
unirem m aos pés de uma mãe que cuidaria não só do aspecto físico, mas da cura da alma que
segundo a visão do colonizador os negros não possuíam.
Essa mãe-de-santo, geralmente uma mulher negra mais velha, inicia os oris e cuida dos orixás, ao
mesmo tempo que se torna mãe de uma família não de sangue, mas de axé onde toda as pessoas que
se ligam à ela se tornam seus herdeiros e reconhecem sua liderança.
A força nessa prática religiosa retoma uma ancestralidade africana e uma concepção matriarcal,
totalmente subversiva aos padrões coloniais europeus-judaico-cristão-patriarcal .
Em paralelo acho importante frisar que muitos negros na sociedade brasileira com o peso das
pressões sociais da subalternização estavam buscando se encaixar , se convertendo, negando raízes
africanas, buscando compulsivamente o embranquecimento para possuírem mobilidade social mas
que eu considero essas duas formas de ação reflexo de um mesmo sentimento, os negros buscaram
meios de se humanizarem dentro de condições desumanas impostas pelos brancos seja indo contra
sua cultura ou se aculturando.
Aos que buscaram a humanidade dentro dos valores das culturas africanas, e não nos valores
coloniais/modernos/capitalistas/judaico-cristãos, considero a poética de uma identidade e lugar
diásporico. Essa imagem surge com a imensidão do mar que separa África e Brasil sendo o ponto de
ligação, o mar separou mas a partir de suas filhas criam-se reconexões.
Os africanos foram sequestrados para a América, sendo um local de exílio constante de si e dos
seus. A maior parte dos sujeitos escravizados nunca mais voltariam à África mas ao mesmo tempo
nunca pertenceriam integralmente à este território brasileiro.
A diáspora é então tratada aqui não apenas como um movimento de imigração forçada, mas de um
deslocamento de espaço e deslocamento de pertencimento, mas sendo um não- movimento. Pois ao
estar em diáspora forçada, estavam destituídos da liberdade de ir e vir, o movimento de vai e vem é
uma violência, uma imposição, um sequestro.
Mas é a partir dessa não-liberdade física que na América os indivíduos africanos em diáspora agora
chamados negros recriam sua identidade nunca abandonado completamente suas raízes no outro
continente a partir de criações culturais que remetem essencialmente ao movimento livre, pela dança
tanto nas práticas religiosas como o candomblé,na santeria, no vodun entre outras como nas práticas
artísticas mistas como a capoeira, o samba, coco de umbigada, o maracatu, tambor de crioula,
tambor de mina, afoxé dentre outras formas de práticas afro-diaspóricas, que não existem na África
de fato mas foram criadas por africanos separados de suas raízes pelo mar.
A colonialidade de poder, as crenças hegemônicas, permaneceram agindo e condicionando os
corpos negros, mas não mais limitaram seus corpos ao não-movimento. Assim as resistência das
identidades afro-diásporicas dialogam com espaços que permitem corpos que dançam, que se
exprimem, que contém e transborda Axé.6
Focando agora nos lugares onde se configuram os cultos de matriz africana, são geralmente
barracões de tamanhos diversos, mas que essencialmente possuem jardins ou espaço de chão batido.
Inicialmente os barracões eram os espaços que eram economicamente viáveis para as mães-de -santo
manterem com suas atribuições de ganhadeiras e com o auxílio dos seus filhos-de-santo libertos.
A primeira casa de Axé que se tem registro é em Salvador remonta a mais de 300 anos e foi
constituída por comunidades de engenhos de escravizados e libertos, que organizados pelas princesas
africanas de Ketu e Oyo, Iyá Detá, Iyá Kalá, Iyá Nassô fundaram a Barroquinha, que era um bairro
próximo do centro do poder político e religioso, porém situado em uma área pantanosa e
desvalorizada. Esse afastamento urbano na época que favorece a formação de um grupo coeso de
culto aos Orixás, já que muitos africanos libertos já faziam cultos diversos em suas próprias casas.
No comando dessas Iyás7 que se faz alguns sincretismos entre os diversos Orixás das diferentes
cultos africanos, se define quais orixás são cultuados e como.
Porém no final do Século XIX, as comunidades de negros libertos são expulsos da região da
Barroquinha, pelo governador-geral da época para promover a modernização da cidade. Assim as
Iyas, juntas iniciaram a fundação do Terreiro da Casa Branca, um espaço específico de culto de
diversos Orixás.
Sem adentrar nas características físicas do espaço do primeiro terreiro registrado na história oficial
do Brasil, a questão política-policial determina a ocupação urbana e a relação desse terreiro com a
cidade. A visão da sociedade em relação aos cultos aos Orixás é estigmatizado, e por isso os terreiros
geralmente se localizam em periferias, em áreas mais afastadas.E esta é uma característica
determinante nas casas de santo ainda hoje.
Antigamente a questão política a partir da perseguição policial era o fator predominante em relação
à existência física dos terreiros:
6
7
africanos livres, libertos e livres em torno das formas de ocupação do espaço
urbano, e dos pontos de encontro onde eram estabelecidos os contatos
(COUCEIRO, pág.215)
8
tombamento pelo IPHAN em 1986.
9
partir de questões econômicas, políticas e sociais impostas pela colonialidade de poder.
A partir disso o terreno foi preparado para uma árvore de raízes africanas surgir em solo
estrangeiro, uma árvore de vários ramos e diversos frutos. Dentro do próprio candomblé existem
diversas nações dentre as principais a nação Ketu, Angola, Nagô, JêJe e o culto ao Ifá considerado
“ortodoxo” por ser que mais conservou- se de mudanças em relação ao culto africano .
Dentro das ramificações surgiram variações, onde a cultura de matriz-africana começa a dialogar
com a cultura de certas tribos indígenas. Diz a lenda que esses encontros começaram nos Quilombos,
onde no período colonial abrigavam negros e indígenas que fugiam do domínio do colonizador.
Assim aconteceram misturas de dialetos, de práticas religiosas e culturais. Independente de como
surgiu essa ligação inicial, ao longo do tempo surgiram práticas religiosas diretamente ligadas à
cultos de matriz africana em comunhão com as práticas dos índios, caboclos e pajés. Dentre elas
podemos citar: o Toré, a Pajelância, o Catimbó, o culto à Jurema e o Omolocô.
Podemos entender esse sincretismo religioso como advindo de cultos de povos muito ligados à
floresta e que compreendiam o trabalho com as energias e os espíritos a partir da manipulação dos
elementos da natureza, que apesar de na cultura indígena e africana possuírem nomes e rituais
diferentes, se assemelhavam pela prática da magia.
Essas práticas mágicas semelhantes podem ser sintetizadas por elementos comuns, como o fato de
serem feitas por iniciados através de rituais de passagem, possuindo preceitos e alimentação
específicas para esses, se configurando principalmente pelos momentos de cerimônia, onde com
dança e cantigas sagradas, se entra em contato com o mundo espiritual, dos ancestrais, dos
encantados e dos elementais da natureza. Outra característica importante encontrada em todos esses
cultos é a relação com as ervas de poder, que são consideradas sagradas pelo seu poder de conexão
espiritual e cura.
Dentre as diversidades particularidades de cada culto,de cada nação de matriz africana, de cada
tribo indígena relativa tanto às regiões do país, como configurações sociais e históricas se
compreende como o Brasil se configurou com religiosidades marginais, que não se originaram do
modelo judaico-cristão-eurocêntrico-patriarcal e que se desvincularam da colonialidade de poder ao
proporem liberdade de crença e prática conforme a cultura pré-colonial.
A marginalidade dessas práticas religiosas não se deve apenas ao caráter do culto mas também à
sua incorporação na sociedade brasileira, que majoritariamente se assume como católica, e
atualmente com o avanço das Igrejas neopentecostais, como evangélica.
Esse panorama brasileiro serve para compreender como uma sociedade que se diz multicultural e
vende essa imagem como identidade de democracia racial brasileira consegue e manter preconceitos
em relação à culturas não-brancas estruturalmente arraigados no imaginário da população.Essa
apresentação geral serve para introduzir ao reconhecimento de outra ramificação que surge muito
especificamente da realidade de múltiplas espiritualidades brasileiras : a Umbanda.
A Umbanda surge a partir do Kardecismo mas para traz principalmente a religiosidade de matriz
africana, com práticas de caboclo,da linha oriental e com sincretismo católico. Cabe aqui ressaltar
brevemente que a Umbanda surgiu como religião por conta de um preconceito espiritual, se
inaugurando no Rio de Janeiro ( 1908) através de um jovem médium chamado Zélio Fernandino de
Moraes. Em um centro espírita já reconhecido pelas prática de curas através dos médiuns que
recebiam espíritos de luz que e diziam ter sido médicos, cirurgiões,cientistas em outra
vida,manifestaram-e espíritos dizendo serem preto-velhos e caboclos porém com a reação
preconceituosa dos médiuns Kardecistas, que apesar de acreditarem na espiritualidade e na caridade
,eram da classe média carioca que tinham preconceito raciais e culturais advindos das crenças
hegemônicas da colonialidade de poder,da ciência eugenista eurocêntrica em relação aos negros e
índios, mesmo quando estes surgiam revestidos de luz segundo o médium vidente .
No decorrer dos anos a Umbanda vai se consolidando como uma religião totalmente sincretizada,
onde praticamente todas as crenças espiritualistas encontram possibilidade de manifestação não
existindo um modo certo, todo terreiro vai se constituir conforme seu fundamentos.
A Umbanda dialoga com várias crenças e também com várias classe sociais, dependendo da sua
configuração vai estar mais associada ao discursos hegemônico, às práticas mais católicas e
kardecista, de “mesa branca” como é chamada, ou vai ser mai ligada aos rituais de candomblé com
seu culto aos orixás e incorporação de entidade de linha de esquerda e de direita. Conforme sua
configuração vai ser possível entender o grau de relação com a sociedade, repúdio ou apropriação do
discurso hegemônico sobre suas práticas.
Por isso divido nesse momento a percepção de uma umbanda que se relaciona com aspectos afro-
diásporicos-ameríndios, enquanto uma religião popular que preserva relações de resistência à
hegemonia do conhecimento, liturgia brancas. Que mesmo assumindo seu valor universalista,pois
entende todas as energias e forças de trabalhos de caridade com mesma relevância, não sobrepõe a
cultura hegemônica como a propulsora da Verdade, pelo contrário. Identifica na floresta, nos mares,
nas pedreiras seus pontos de força, na fonte de sabedoria ancestral dos povos originários, atrelado à
isso o senso de caridade não atrelado à monetarização da religião pois foca em atingir as camadas
mais necessitadas da população como as bases de sua estrutura.
Assim a análise do espaço religioso proposto neste trabalho é a partir dos seus aspectos populares
e inclusivos, fazendo isso parte da análise decolonial proposta pelo termo “axétetura”. Nesse sentido
nem todo terreiro é Axétetura, quando escolho a Casa de Caridade Luz do Alvorecer para compor
meu estudo e basear minhas perspectivas é porque sei, por vivência que os aspectos relacionados à
geração do espaço físico de culto afro-diaspórico-ameríndio em relação à questões sociais, raciais e
de gênero são tensionando com as visões gerais de Arquitetura para uma Axétetura.
Estudo de Caso
A formulação teórica decolonial e autobiográfica,foi desenvolvida pensando em ser base
de referência tanto para a metodologia de pesquisa quanto para a conceitualização da
“Axétetura” enquanto ideia, e a partir do estudo de caso, enquanto espaço.
Para adentrar no espaço, faço um levantamento histórico e da construção da casa a partir de
entrevista com a mãe-de-santo, faço desenhos do aspecto arquitetônico e levantamento
fotográfico principalmente para trazer as relações subjetivas, simbólicas e religiosas afro-
diásporicas-ameríndias.
Conheci a Casa de Caridade Luz do Alvorecer nos meados de 2016-2017. ´Primeiro
como visitante, e só no final de 2017 entrei para a corrente, nessa época já havia conhecido
o candomblé, fazia pesquisas no campo acadêmico e artístico com relação ao feminismo
negro e espiritualidade. Assim o que mais chamou minha atenção ao visitar a casa foi o fato
da corrente de umbanda ser predominantemente feminina e as lideranças da casa, serem mãe
de santo e a mãe pequena serem mulheres negras, mãe e filha.
Com tempo fui percebendo que além de um espaço de culto, a Casa é um lugar de valores
pré-coloniais e anti-hegemônicos. E com isso também diria perspectivas e práticas
decoloniais. Porque ao mesmo tempo que valoriza as tradições dos povos originários, não
se fecha, articulando novas possibilidades de resistência no presente. Os diálogos com as
fronteiras pluralistas são constantes,tanto no Terreiro quanto na Igreja de Santo Daime.
A casa é um espaço onde as dinâmicas reconstroem debates sobre protagonismo feminino
negro, trazendo a percepção nítida da força e resistência das primeiras mulheres africanas à
abrirem casas de candomblé no período da colonização no Brasil. Além de construir,
mantém a casa, a partir do trabalho externo e da contribuição dos filhos, realizando todos os
processos em mutirão e envolvendo a comunidade.
Outra característica plural e decolonial,é a maioria da casa ser LGBT,com mulheres trans
na corrente e no batalhão, trazendo desconstrução constantes aos visitantes sobre o não-
binarismo, contraponto aspectos da heteronormatividade que imperam nos segmentos
religiosos judaicos-cristão.
Além de trazer aspectos da tradição ancestral a partir das entidades, a Casa também dialoga
com a realidade de comunidades indígenas atuais, a partir de intercâmbios solidários
organizados para pessoas da casa irem nas tribos e membros das tribos conhecerem a Casa.
Para proporcionar trocas de saberes e trabalhos com as sagradas medicinas com pajés
Huni Kuin, também organizando meios de economia solidária com as mulheres indígenas
Kaxináwas. Tudo isso acontece em meios aos rituais sagrados de cura e caridade, que
seguem um calendário específico, tanto do Terreiro de Umbanda quanto do Daime, que
geram movimentos específicos de organização, preceitos e rituais específicos desenvolvidas
pelo comando de Roseli Santos,madrinha e mãe de santo, cuidadora,e fundadora da Casa de
Caridade Luz do Alvorecer. Com isso se configura uma energia de matriarcado forte e
consciente na casa que é um espaço sagrado contemporâneo e dinâmico.
A casa foi fundada em 2011, primeiramente enquanto Igreja de Santo Daime. A partir da
organização de mutirão voluntariado entre daimistas fardados, simpatizantes da doutrina e
amigos, foi se construindo a casa. Primeiro construção dos banheiros e do salão principal , e
posteriormente os anexos de serviço, depósito e quartinho.
Em 2015-2016 se funda na Casa o terreiro de Umbanda, com a orientação espiritual da
Vovó Joana, Preta velha da mãe de santo e sendo uma casa de Iansã, Orixá dos ventos,
tempestades e do fogo.
Com o trabalho e assentamento das entidades de alguns médiuns se inicia a primeira
corrente da casa, composta em sua maioria de fardados na Igreja de Santo Daime. O número
médio de membros da corrente varia de 20 pessoas à menos, possuindo grande rotatividade,
pelo fato da Umbanda não ter nenhum dogma de obrigação. Muitas pessoas entram na
corrente e saem antes de completar um ano iniciático.
Essa característica faz com que a maioria dos membros da corrente sejam jovens, de 18 a
40 anos. A maioria residente do entorno, ou da região noroeste da cidade. O perfil
econômico é de classe baixa e média, estando relacionado à serviços gerais, concursados, e a
maioria estudantes de nível superior.
A Casa, enquanto espaço edificado se localiza na rua dos Inconfidentes, no setor Chácaras
de Recreio Samambaia. Em relação à escala urbana da cidade Goiânia, o terreno se
encontra na periferia. Em uma área onde se concentram edificações de um a dois
pavimentos, pastos, chácaras e fazendas. Também é uma região onde se localizam
indústrias, estando ligada ao fluxo entre o município de Santo Antônio e Goiânia.
Imagem - Terreno da Casa de Caridade Luz do Alvorecer em relação ao entorno. Laranja: via de maior fluxo entre os
bairros. Amarela: via de fluxo local e residencial.
A atividade principal do terreiro é a gira. Que acontecem todas as segundas do mês, sendo
em ordem gira de Pretos velhos, Caboclos, Erês e a última gira do mês sendo sempre de Exu
e Pomba- Gira. É durante as giras que as entidades são consultadas pelos visitantes, e
acontecem os rituais de Umbanda.
Imagem - planta baixa Casa de Caridade Luz do Alvorecer.
Imagem - cortes Casa de Caridade Luz do Alvorecer.
A oralidade se dá tanto pela prática dos cantos, mas também das instruções recebidas e
disseminadas na casa. Como não existe dogma, não há um livro de liturgia que aponta os
fundamentos das casas de Umbanda, assim todo conhecimento é passado conforme o
desenvolvimento mediúnico e iniciação nos mistérios. Também é possível considerar como
oralidade ligada à tradições ancestrais, a força da palavra e da ação empregada. Assim não
só o que se fala, mas as condutas, estão de acordo com valores éticos e morais atemporais,
que são observados e resguardados pela espiritualidade não apenas por questões sociais. A
ligação entre o mundo visivel e invisivel faz com que, as guianças, recomendações dadas
pela Mãe de santo e entidades, sejam de caráter direto e indireto, promovendo a instrução
dos indivíduos enquanto seres espirituais numa manifestação física. Assim os valores são
atemporais, complexos e ao mesmo tempo subjetivos, simples e que acabam reverberando
em atitudes mais conscientes em relação à sociedade, ao meio ambiente e ao planeta.
As giras se configuram enquanto ritual de evocação da ancestralidade, além do aspecto de
caridade e do auxílio pelas entidades das falanges Umbanda. Essa evocação se dá, pelas
afirmações dos arquétipos das culturas afro-ameríndias como os Orixás, a Jurema e os
Caboclos, que além da sua força espiritual são aspectos de culturas pré-colonização, que ao
resistirem e se encontrarem, demarcam uma memória cultural atualizada constantemente a
partir desses rituais em diferentes lugares e tempos.
A ritualística, que envolve aspectos construídos e físicos,se desdobra pelos elementos da
evoca aspectos de uma cosmovisão ancestral que se reformula através hibridizações . As
forças de criação cósmicas e planetárias, são evocadas, assim como se reconhece dentro de
várias culturas o Divino e o Ser. Por isso se misturam letras de que falam de Estrelas guias,
dos mares e das cachoeiras, do período da escravização, de deuses pré-coloniais ao mesmo
tempo que traz o rezo católico, com o atabaque marcado de ritmos africanos, e sons dos
maracás indígenas, tudo isso com os pés descalços para se conectar com a terra, o
firmamento.
Em sua essência instaura o sagrado num espaço que antes era lido como um simples
barracão, revelando aspectos míticos do inconsciente coletivo de todas as culturas e
comunidades humanas que reconhecem forças além da compreensão humana, que agem
desde o ínicio ao infinito.Com a repetição desses rituais,se cria um padrão, porém todo
trabalho é diferente. Pois cada contato com o Divino revela novas luzes e sombras,onde as
hierarquia e aos fundamentos da Casa vão instaurando compreensão e instruções, aos
médiuns e visitantes.
Reconheço esses rituais, enquanto criações de cosmovisão paralela à hegemônica. Ao
trazer fundamentos afro-diaspóricos e ameríndios enquanto protagonistas de conhecimento,
de manifestadores de cura, da caridade e elevação moral, recria consciente e
inconscientemente a identidade histórica que foi formada em cima das comunidades negras
e indígenas pela colonialidade de poder.Assim demarcando a resistência, as lutas, o legado
dessas culturas, fazendo com que qualquer pessoa que entre no terreiro reconheça nas
figuras de Pretos e Pretas velhas a sabedoria e nos Caboclos e Caboclas o potencial de cura
da natureza.
A referência à ancestralidade diz de quem somos nós, a quem
devemos a nossa existência aqui e agora, mas vai além de
laços consanguíneos,trazendo seu sentido para o
pertencimento. Implica em conhecer e reconhecer-se na
construção de sua própria história e missão de vida. A
ancestralidade remete não ao passado descolado do presente
e do futuro, mas a partir da ideia do tempo circular, não
linear. Ela remete ao reconhecimento dos valores e sentidos
que nos conformam, que dão sentido à nossa auto-percepção
no mundo, ao autoconhecimento,à compreensão mais ampla
de nossa própria existência. Ancestralidade que envolve a
dimensão espiritual, passando pelo corpo e pela natureza.
Pego toda a base de referência sobre micropolítica urbana a partir das produções
teóricas das arquitetas e doutoras brasileiras, Iazana Guizzo, carioca, (2014) e Gabriela
Leandro, bahiana (2015).
Guizzo (2014) cita os estudos de Guattari, Deleuze, Foucault para propor uma nova lente
de olhar, arquitetura e urbanismo. Retirando o arquiteto ou o projeto do lugar central de
análise, e propondo observar as relações intrínsecas, subjetivas e sociais, por isso políticas
presentes em cada espaço.
Quando entrei em contato com a tese de Pereira, percebi uma maneira de pesquisa em
urbanismo possível, mas que nunca tinha ouvido falar dentro da graduação. Um estudo de
arquitetura e cidade que tem como foco denunciar as estruturas de opressão, de reivindicar
espaços e narrativas a partir da raça, da classe e de gênero.
Considerações finais
Com o estudo de caso da Casa de Caridade Luz do Alvorecer, vislumbro aspectos que não
são apenas de edificação, mas uma relação da Axétetura com a cidade.Portanto considero
todo esse estudo uma prática de micropolítica decolonial em arquitetura e urbanismo.
O desenvolvimento da pesquisa e também a Casa estudada se formulam além dos valores
sociais hegemônicos. Considero valores sociais hegemônicos, tudo aquilo que é pautado
pela colonialidade de poder e com isso gera a marginalização conforme raça, gênero, classe,
sexualidade a partir do padrão hegemônico judaico-cristão do branco, homem, de classe
média a alta e heteronormativo.
A pesquisa é realizada a partir do meu lugar de fala, enquanto uma pesquisadora e artista,
mulher negra, de nacionalidade brasileira e gabonesa que aborda pela perspectiva subjetiva
e política decolonial a graduação em arquitetura, propondo parâmetros de Axétetura para
sua produção.
Todas essas vivências dentro desse espaço me marcaram enquanto pessoa e
pesquisadora, fazendo que meu olhar estivesse sempre ligado às questões sociais, políticas,
econômicas que não são necessariamente discutidas de forma direta no Terreiro, mas que
permeira todas as práticas.
Esse espaço que ao meu ver é tão potente e rico,absolutamente sublime na verdade está
margem de qualquer reconhecimento institucional e da sociedade geral, do âmbito
acadêmico, dos padrões de arquitetura e urbanismo, de uma boa Arquitetura. É por isso que,
vislumbro esse espaço a partir do olhar de micropolítica urbana decolonial e por isso de uma
Axétetura de excelência.