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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS

DEPARTAMENTO DE LETRAS MODERNAS

CRISLAINE DO NASCIMENTO FERREIRA

Nº USP 7613903

HABITAR LA SOLEDAD: CRIAÇÃO LITERÁRIA EM

CARMEN MARTÍN GAITE

SÃO PAULO

2016
SUMÁRIO

1. Introdução.....................................................................................................................3

2. A trajetória de ressignificação do ambiente privado....................................................5

2.1. Entre paredes: a mulher e o âmbito privado..............................................................5

2.2. Entre janelas: a literatura e a solidão como instrumentos de libertação..................17

2.3. Entre linhas: Entre visillos e El cuarto de atrás......................................................26

3. Considerações finais....................................................................................................47

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1. Introdução

Na dedicatória de seu livro “Usos amorosos del dieciocho en España”, Carmen Martín
Gaite agradece ao ex-esposo por tê-la ensinado a habitar a solidão. Tal expressão,
estranha à primeira vista, encontra sentido dentre seus leitores, pois para a autora esta
condição é um dos pilares necessários para a criação literária e para a comunicação em
geral. Assim, este projeto busca explicitar a importância que a autora confere, em sua
crítica literária, à relação entre a produção escrita, a solidão e o ócio, principalmente no
que tange à figura da mulher escritora.

Nestes textos de crítica literária – e social –, Martín Gaite traça um perfil de sociedade
espanhola baseando-se tanto em suas experiências quanto nas leituras de jornais e obras
dos períodos estudados, tornando possível encontrar um espelhamento do corpo social
em seus escritos. Como a autora não se limitou ao seu tempo abrem-se janelas de
compreensão para além de sua época, como, o século XVIII descrito no livro citado
acima.

Apesar de nunca ter se considerado feminista, a temática feminina é recorrente nos


textos da escritora de Salamanca, como pode se observar nas obras Desde la ventana,
Usos amorosos de la postguerra española e Usos amorosos del dieciocho en España,
além de outros ensaios e artigos destinados à questão. Pode-se considerar, portanto, que
sua leitura da sociedade espanhola concede visibilidade à condição feminina através dos
séculos, sendo comum a esses períodos os problemas do interior, da solidão, do ócio, do
tédio etc. Durante esses anos, a mulher foi relegada ao espaço doméstico, enquanto ao
homem cabia o espaço público, e lhe restava apenas a janela para observar o que
acontecia do lado externo. Porém, para Martín Gaite, há uma guinada quando as
mulheres se apropriam do espaço como esfera criativa para produzir literatura, tida
como “desafio colossal para a mulher”. (MARTÍN GAITE, 1987, p. 45).

A partir desta mudança, os momentos solitários tornam-se essenciais para a


criatividade, pois somente através deles é possível realizar um trabalho com o logos
cujo resultado é a formação de um ser capaz de expressar suas palavras com clareza,
seja de forma escrita ou oral.

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Sin empezar por esa labor —que, por supuesto, es solitaria y previa al diálogo— no
habremos conseguido llegar a nada con nadie ni penetrar realidad alguna. (MARTÍN
GAITE, 1982, p. 91)

A importância de um espaço para reflexão – e da independência financeira – aparece


em Um teto todo seu (A room of one’s own), de Virgínia Woolf, que sugere ser
fundamental para haver literatura a existência de uma renda fixa e um quarto próprio.

E depreende-se dessa imensa literatura moderna da confissão e autoanálise que


escrever uma obra de gênio é quase sempre um feito de prodigiosa dificuldade. [...] Em
geral, as circunstâncias materiais opõem-se a isso. Os cachorros latem; as pessoas
interrompem; o dinheiro tem de ser ganho; a saúde entra em colapso. (WOOLF, 1985,
p. 68)

A autora inglesa chegou a esta conclusão enquanto preparava uma palestra cujo tema
referia-se à relação entre as mulheres e a ficção e, durante sua reflexão, deparou-se com
a baixa quantidade de livros escritos por mulheres em sua própria estante. Depois de um
breve apanhado histórico, constatou que às mulheres faltaram oportunidades e incentivo
para realização de textos ficcionais, já que a elas cabiam outros serviços, especialmente
os domésticos.

Carmen Martín Gaite cita sua experiência com o ensaio mencionado acima na
introdução de seu livro Desde la ventana que trata de quatro escritoras espanholas e de
suas trajetórias, sendo que muitas delas ou as personagens de suas obras, passam pelo
tédio, pela indiferença, pelo silenciamento e enclausuramento, mas mostra como alguns
momentos isolados podem se transformar em atos de rebeldia, através de criação
artística.

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2. A trajetória de ressignificação do ambiente privado

Abaixo, o trabalho divide-se em três seções que buscam observar como se dá a jornada
de transição entre a ideia de ambiente privado que oprime e ambiente privado como
espaço de liberdade literária.

A primeira parte tem como objetivo tratar, de maneira breve, a relação histórica entre o
lar e a mulher, pois ainda que o vínculo tenha sua origem em tempos longínquos é
possível encontrar alguma correspondência entre a prática na Antiguidade Clássica, os
tempos medievais e os séculos XVIII e XIX.

A segunda parte tratará da leitura crítica feita por Martín Gaite sobre outras autoras
espanholas e ajudará a entender a importância conferida à solidão e ao espaço privado
enquanto instrumentos para a escrita literária e também como auxílio para a
compreensão do próprio ser.

A terceira e última parte consistirá na leitura de duas obras da autora, El cuarto de


atrás e Entre Visillos em que se pode observar os dois tipos de relação com a casa, tanto
a sufoca – e de onde se deve fugir – quanto a que propicia momentos de reflexão e
literatura.

2.1. Entre paredes: a mulher e o âmbito privado

Na introdução de seu livro Usos amorosos de la postguerra española, Carmen Martín


Gaite escreve sobre a importância de falar sobre o passado de um ângulo que contemple
a “realidade”. Isto é, não se trata apenas de olhar para as épocas anteriores visando saber
os êxitos de batalhas, mudanças de dinastia e questões diplomáticas, mas sim de abordar
o cotidiano das pessoas que viveram naquele tempo.

¿Cómo se relacionaba y se vestía, qué echaba de menos, con arreglo a qué cánones se
amaba? Y sobre todo, ¿cuáles eran las normas que presidían su educación? (MARTÍN
GAITE, 1992, p. 11)

É nesta linha de pensamento, de compreensão a respeito do funcionamento das


relações domésticas na Espanha, que se desenvolve este capítulo cujo foco são os

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séculos XVIII e XIX à luz das obras Usos amorosos del dieciocho en España, de
Carmen Martín Gaite e Deseo y ficción doméstica: una historia política de la novela
(Desire and Domestic Fiction: a political history of the novel) , de Nancy Armstrong
para buscar depreender, em especial, a posição feminina espanhola em relação ao
ambiente íntimo. Para tanto, se realizará um brevíssimo olhar ao passado para observar
a trajetória desta tradição.

Desde a Grécia Antiga, o dever da economia doméstica foi delegado às mulheres e,


segundo o volume de número vinte e cinco da enciclopédia História em Revista,
intitulado “O mundo doméstico”, além de se dedicarem aos afazeres do lar, as mulheres
raramente saíam de casa, de forma que, os maridos faziam as compras para evitar que
elas fossem ao mercado e ficassem mal faladas. A educação das meninas também era
orientada de forma a cumprir este objetivo, pois havia lições para que fossem boas
esposas, mães e donas de casa: “o que a sociedade grega considerava adequado para
uma mulher” (BOYLE, 1995, p. 32).

Durante o período medieval, a tarefa de gerir o funcionamento doméstico continuou


atribuída às mulheres, assim como perdurou a ideia de que os representantes do gênero
masculino deveriam ganhar as ruas e as mulheres deveriam gerenciar a casa. No que diz
respeito à hierarquia da época, havia três categorias de cidadãos: fiéis, guerreiros e
trabalhadores. A quarta categoria, componente marginal, era formada por mulheres.

As mulheres eram vistas quase como uma espécie separada e as perspectivas da Igreja
determinavam em grande medida o modo como eram percebidas e tratadas. [...] A
crença de que a mulher fora criada como inferior ao homem e que por isso era
vulnerável a uma infinidade de fraquezas e vícios – pouca inteligência, frivolidade,
avareza e dissimulação – servia de base para justificar a exclusão das mulheres das
posições de autoridade, tanto nas instituições eclesiásticas como nas seculares.
(BOYLE, 1995, p. 66)

No século XVIII espanhol ainda era comum que as mulheres não fizessem parte da
constituição do ambiente público, isto é, para alcançar o matrimônio, a maioria
guardava-se à reclusão para preservar a boa reputação. Isto, porque o ideal feminino
ainda estava calcado no conceito de pureza, assim, uma mulher que permanecia em casa
não se contaminaria com as vilezas do mundo, mas permaneceria castiça e imaculada.
Considerando a visão medieval que se estende até o momento comentado, ou seja, o
século XVIII, a Igreja foi responsável por veicular dois grandes e antagônicos modelos

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femininos: o da Virgem Maria e o de Eva, aquela representando a absoluta castidade e
esta, a sedução e o pecado. Desta forma, há a tentativa de manter a mulher longe dos
olhares dos outros, tanto para que continue pura, quanto para que não se desenvolva o
vício à espreita. Pode-se deduzir que este pensamento ganhou espaço e continuidade na
Espanha pelo importante peso da religião no território espanhol.

Uma vez casada, era esperado que a esposa tivesse seu espaço no ambiente público, já
que não necessariamente remanesce a ideia de pureza, porém, para muitos, depois dos
laços matrimoniais, estas já não tinham o que almejar, pois o sentido central de suas
vidas era, apenas, a união. Ou seja, também não haveria razão para estar fora do lar, o
que, em suma, causava frustração às damas:

Las mujeres españolas, una vez deslumbradas por el incienso del galanteo, pasaban, de
ser reinas por quienes se hacen coplas y se cruzan aceros, a recluirse en un mundo
donde ningún extraño penetraba y a convertirse en matronas oscuras y virtuosas que
tenían por delante —dada la edad juvenil en que el matrimonio solía contraerse—
mucho más de media vida para rumiar en soledad el recuerdo de aquellos homenajes a
su belleza y posiblemente para comprobar su fraude. (MARTÍN GAITE, 1991, p. 26-
27)

A origem da decepção, provavelmente, encontra-se na quebra de expectativa em


relação a seus pares, pois estas “donzelas” durante suas muitas horas em casa,
imaginaram como seria sua relação conjugal e a conceberam como algo semelhante as
dos livros e poemas que liam, em que os homens eram românticos e atenciosos, como se
observa no trecho do Soneto XXXVI, de Garcilaso de la Vega, um dos grandes poetas
do Século de Ouro espanhol, em que o eu lírico considera ser sua única ventura a
destruição causada pelo amor.

Todo me empece, el seso y la locura:


prívame éste de sí por ser tan mío;
mátame estotra por ser yo tan suyo.

Parecerá a la gente desvarío


preciarme deste mal do me destruyo:
yo lo tengo por única ventura
(RIVERS, 1972, página?)

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Carmen Martín Gaite comenta a ilusão destas mulheres, tratando a diferença e as
dificuldades que encontravam após contrair matrimônio:

Nadie se había preguntado a su tiempo por las dificultades en que generaciones y


generaciones de mujeres casadas se habían tenido forzosamente que ver para poner de
acuerdo la idea del amor exaltado, que les prometían libros y comedias, con aquel otro
bien estar apagado, basado en la obediencia, en la posesión segura e inerte, en la
reclusión. (MARTÍN GAITE, 1987, p. 165)

A realidade mostrou-se diferente, pois elas deveriam ser atenciosas e agradáveis com
seus esposos, mas a recíproca nem sempre era verdadeira. Em Émile, or Treatise on
Education (1762), o filósofo Jean Jacques Rousseau pontua a relevância da existência
feminina para a sociedade e expõe um pensamento aceito durante os séculos XVIII e
XIX, corroborado pelos manuais de conduta que serão comentados abaixo.

Toda a educação da mulher deve ser relacionada ao homem. Agradá-los, ser-lhes útil,
fazer-se amada e honrada por eles, educá-los quando jovens, cuidá-los quando adultos,
aconselhá-los, consolá-los, torna-lhes a vida útil e agradável - São esses os deveres das
mulheres em todos os tempos e o que lhes deve ser ensinado desde a infância.
(ROUSSEAU, 1817, p. 370)

Em Usos amorosos del dieciocho, Carmen Martín Gaite comenta como as mulheres
foram condenadas por seus atos frívolos e inúteis, sendo que pouco se pensou a respeito
de sua educação à época. A autora espanhola defende que a conduta feminina era parte
do papel que se esperava destas naquele momento e dá exemplo de poucas que foram
exceção à regra, como Doña Josefa Amar y Borbón, autora do Discurso en defensa del
talento de las mugeres, y de su aptitud para el gobierno, y otros cargos en que se
emplean los hombres, de 1767, de onde se extrai os seguintes trechos, também
importantes para pensar o problema da educação e da clausura.

Las niegan la instrucción, y después se quexan de que no la tienen: Digo las niegan,
porque no hay un establecimiento público destinado para la instrucción de las mugeres,
ni premio alguno que las aliente a esta empresa. Por otra parte las atribuyen casi todos
los daños que suceden. […] Saben ellas que no pueden aspirar a ningún empleo, ni
recompensa pública; que sus ideas no tienen más extensión que las paredes de una casa,
o de un Convento. Si esto no es bastante para sufocar el mayor talento del mundo, no sé
qué otras trabas puedan buscarse. (AMAR Y BORBÓN, 1767)

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A questão da instrução aparece já no século XVII, levantada por María de Zayas y
Sotomayor

…porque si esta materia de que nos componemos los hombres y las mujeres, ya sea
una trabazón de fuego y barro, o ya una masa de espíritus y terrones, no tiene más
nobleza en ellos que en nosotras, si es una misma la sangre, los sentidos, las potencias,
y los órganos por donde se obran sus efectos son unos mismos, la misma alma que
ellos, porque las almas ni son hombres ni mujeres, ¿qué razón hay para que ellos sean
sabios y presuman que nosotras no podemos serlo? Esto no tiene, a mi parecer, más
respuesta que su impiedad o tiranía en encerrarnos y no darnos maestros; y así la
verdadera causa de no ser las mujeres doctas no es efecto del caudal, sino falta de la
aplicación, porque si en nuestra crianza como nos ponen el cambray en las almohadillas
y los dibujos en el bastidor, nos dieran libros y preceptores, fuéramos tan aptas para los
puestos y para las cátedras como los hombres. (ZAYAS Y SOTOMAYOR, María de.
1948, p. 21 apud MARTÍN GAITE, 1991, p. 246)

Para ambas, a clausura é determinante para a vida das mulheres em sociedade, pois
estando confinadas, não podem instruir-se, sendo suas maiores preocupações o
casamento, quando solteiras, e a domesticidade, quando casadas. Outras inquietações,
como a aparência e os bailes são consequências destas.
O casamento não é apenas o momento em que deveriam realizar-se todas as
expectativas em relação ao companheiro, como referido no início, é também um
vislumbre de liberdade, pois às mulheres casadas permitiam-se alguns benefícios que as
solteiras não poderiam nem sonhar, entretanto, estes não eram suficiente para evitar a
frustração e o aborrecimento.
Uma das formas de suportar o tédio do matrimônio e a indiferença dos maridos era
possuir um “cortejo”, ou seja, uma companhia masculina para conversar. O cortejo, ao
contrário do que se possa imaginar não era uma prática totalmente condenável, na
verdade, os maridos que não permitiam que suas esposas possuíssem um, eram
rotulados como antiquados. Contudo, Martín Gaite pontua que por ser uma prática
própria do ambiente privado, as saídas das mulheres, com seu cortejo, desacompanhadas
do marido, não eram bem vistas. A autora ainda se questiona a respeito da consistência
dos diálogos entre cortejo e cortejada e conclui que, por falta de acesso à cultura, as
mulheres não dominavam uma grande variedade de assuntos e a interação se fazia
inócua e monológica, para tanto, cita um autor da época em um trecho sobre cortejo,

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publicado no jornal El pensador matritense, discursos críticos sobre todos los asuntos
que comprende la sociedad civil, de José Clavijo y Fajardo.

Tiemblo cuando tengo que hacer la primera o segunda visita a una dama… porque
entabla la conversación de sus conocidos y de sus visitas, y, a falta de material en estos
asuntos, toma el inagotable de sus criadas y criados, materias todas para mí muy
forasteras y que me obligan a guardar una hora de profundo silencio. […] La señora mía
queda diciendo: ¡Jesús, qué hombre tan socarrón y tan macizo! El pobrecito no traía
palabras hechas. Si no hubiera dado los buenos días, no supiéramos cuál era el metal de
su voz, con otras impertinencias semejantes, como si hubiese ley del Reyno que me
obligase a tener conocimientos del asunto frívolo de sus conversaciones o a entrar mi
cuarto a espadas en materias que no entiendo. (CLAVIJO y FAJARDO, 1763, t. I. pens.
V, p. 99 apud MARTÍN GAITE, 1991, p. 70)

O mesmo problema ocorria às tertúlias organizadas pelas mulheres casadas –


excetuando os encontros na casa da condessa-duquesa de Benavente –, um dos poucos
momentos em que o espaço privado tornava-se público e, tendo em mente as reuniões
francesas, compartilhavam-se pensamentos e ideias.

En realidad, las tertulias dieciochescas presididas por las mujeres no tenían contenido
intelectual alguno. En contraste con las que habían dado tanta ocasión de brillo y auge a
la cultura francesa en el siglo anterior, estos precarios y tardíos remedos de lo mismo se
quedaban en mera forma sin contenido, puro signo exterior de prestigio, igual que los
amigos que pudieran frecuentarla, pretexto para el propio lucimiento. (MARTÍN
GAITE, 1991, p. 236)

Esta situação é, sem dúvida, consequência da obstrução do acesso à educação e cultura


imposta às mulheres, que apenas foram ensinadas a se preocupar com as aparências
externas, mesmo que passassem a maior parte do tempo encerradas. Ainda assim, havia
vozes dissonantes como a seguinte:

Nuestros padres tratan con descuido nuestra educación en la infancia, nuestras madres
contribuyen a que hagamos un grueso caudal de vanidad y ‘coquetería’ en la juventud,
nuestros maridos y nuestros cortejos perfeccionan a la obra. Aquéllos nos tratan como
muebles que sólo sirven de perspectiva, y casi sin vernos ni oírnos, y éstos nos llenan la
cabeza de aire, nos lisonjean y adulan; nos sirven con humildad y nos contemplan con
rendimiento hasta que poseen nuestro corazón. (CLAVIJO Y FAJARDO, 1763, t. II,
pens. XXVIII apud MARTÍN GAITE, 1991, p. 250)

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Quando, no final do século XVIII, as portas para a ilustração começam a abrir-se para
o sexo feminino, percebe-se que a motivação não era a preocupação por conceder
conhecimento e incorporação das mulheres à sociedade espanhola, mas sim corrigir seus
costumes viciados, pois estas não seriam boas mães, nem boas cidadãs preocupando-se
apenas com luxo – isto, de alguma forma, remete ao que foi descrito como propósito
feminino por Rousseau e também com o papel relacional da mulher, que será abordado
na segunda parte deste trabalho. Além disso, havia uma cautela do governo em reverter
a decadência do matrimônio, pois os homens já não queriam casar-se para gastar seu
dinheiro com as excessivas despesas das esposas – novamente o valor monetário
mostra-se mais relevante.

Las mujeres debían ilustrarse para combatir los defectos de sus compañeras, su afición
al lujo y al despilfarro, pero siempre en función del varón, es decir, en nombre de
incrementar la afición al matrimonio por parte de los hombres, cuya resistencia a
contraerlo resultaba ‘en perjuicio del Estado’. Ya quedó dicho en su lugar cuánto
preocupaba al gobierno el desprestigio que, por culpa de los adulterios galantes, estaba
alcanzando la institución matrimonial, y lo vinculado que se veía el problema a la
agobiante obligación que suponía para los maridos atender a los gastos de sus mujeres.
(MARTÍN GAITE, 1991. p. 261)

A abertura para educação, portanto, é limitada às mulheres com mais recursos, assim
como será a participação destas no campo da literatura.
Além de escassa, a literatura feita por mulheres foi considerada, por muito tempo,
como sensível e, portanto, muitos não a levaram a sério, entretanto, o fazer literário –
assim como a leitura - não era algo proibido para elas.
Me atrevo a decir que la escritura, tal y como se veía en aquella España, era algo que la
mujer podía hacer en casa, entre pucheros y pañales, que no interfería en su condición
femenina ni en la masculina de su compañero. (CARBAYO ABENGÓZAR, 1998,
p.51)

Os deveres femininos estavam associados a cuidar do marido e da casa, enquanto os


deveres masculinos estavam atrelados a manter a esposa e a casa. Há aí, uma distinção
importante, já que o manter remete à questão financeira e, por isso, engendra um valor
que o cuidar não possui. Além disso, o cuidado faz parte da constituição feminina
relacionada ao lado sentimental – tópico abordado adiante – enquanto sustentar a
família faz parte dos assuntos “sérios”. Ainda é relevante destacar que o dever de estear

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a casa implica que o homem trabalhe fora dela, enquanto cuidar do lar pressupõe que a
mulher se mantenha ali e, desta maneira, se legitima a reclusão da parceira.

Assim, construiu-se uma cultura doméstica na qual a mulher era a figura central. Esta
característica não se restringe à península ibérica, pois trata-se da transição da
aristocracia para a burguesia vivenciada em diversos países europeus entre os séculos
XVIII e XIX. Nancy Armstrong, em sua obra Desejo e ficção doméstica: uma história
política da novela, relata a experiência inglesa através da leitura de diversos romances,
gênero narrativo genuinamente burguês.

Na obra mencionada é possível observar como os modelos de escrita influenciaram a


vida privada, os manuais de conduta elaborados para pregar um ideal feminino
agradável aos homens junto às novelas de cavalaria responsáveis por representações das
donzelas e cavaleiros perfeitos, são exemplos disso.
Além disso, as personagens dos romances analisados por Armstrong também
serviram como modelo a ser seguido, como a protagonista Pamela, do livro Pamela, ou
a virtude recompensada, de Samuel Richardson, cujo fim é ser a governanta do lar. Tal
figura contrasta com o modelo anterior, isto é, o da mulher aristocrata, cujos dias eram
caracterizados como horas de ócio. Esta negação também diz respeito a ascensão da
burguesia em curso e o contraste entre os padrões é abordado tanto por Carmen Martín
Gaite quanto por Nancy Armstrong. A autora espanhola escreve que, apesar da classe
aristocrática continuar ditando tendências comportamentais, as classes mais pobres
começavam a respeitar menos os caprichos dos nobres e a julgar mais suas condutas,
principalmente no que tangia à ociosidade das “madames”. Esta afirmação pode ser
observada na descrição de uma água-forte, publicada no já citado El pensador
matritense..., de Clavijo y Fajardo
Da madama una vuelta a su casa con el pretexto de ver si reina en ella el orden y el
aseo, pero en realidad solo para hacer un poco de ejercicio y digerir su chocolate.
(CLAVIJO Y FAJARDO, 1763, t. I. pens. X, pág. 131 apud MARTÍN GAITE, 1991,
p.92)

A autora britânica também destaca o trabalho de desvalorização da mulher


aristocrática, resultado da ascensão da burguesia. Tal processo era observado nos livros
de conduta da época que pintaram aquelas mulheres como culpadas pelo desejo
“corrupto” que possuíam, por serem ricas, suas ações estavam automaticamente

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relacionadas à cobiça e ao poder, características impensáveis para uma mãe e uma
mulher de respeito que deveria aceitar suas designações.

Retrataban mujeres aristocráticas junto con aquellas que albergaban pretensiones


aristocráticas como verdaderas encarnaciones del deseo corrupto, a saber, el deseo que
buscaba su gratificación en términos económicos y políticos. Todos los libros se
cuidaron de explicar cómo esta forma de deseo destruía las propias virtudes esenciales
de una mujer y una madre. (ARMSTRONG, 1991, p. 80)

Nota-se que o desejo relacionado às áreas designadas como masculinas era visto
como algo que descaracterizava as qualidades que uma mulher de verdade deveria
possuir, e estas, é claro, estavam voltadas para o cuidado do lar e do marido, de quem se
deveria ser companheira e nunca rival. É obviamente importante que companheiros não
sejam rivais, porém, aqui, o sentido desta palavra está casado à ideia de que as parceiras
não deveriam fazer as mesmas atividades que seus cônjuges, não deveriam apresentar
concorrência – nem contribuição – as áreas de interesse do outro.

De acuerdo con el ideal de clase media del amor, o lo que Lawrence Stone ha
calificado de “el matrimonio de compañeros” la mujer cede el control político al
hombre con fin de adquirir una autoridad exclusiva sobre la vida doméstica, las
emociones, el gusto y la moralidad. (ARMSTRONG, 1991, p. 60)

A família representava uma oposição complementar cujos papéis de cada membro


estavam delimitados previamente. Os deveres, como mencionados acima, basicamente
dividem-se entre obrigações próprias dos âmbitos público e privado. A lista abaixo,
organizada por Armstrong, traz alguns exemplos:

Marido Mujer

Conseguir bienes Reunirlos y ahorrarlos


Viajar, ganarse la vida Llevar la casa
Ganar dinero y provisiones No derrocharlos
Tratar con muchos hombres Hablar con pocos
Ser “animador” Ser solitaria y retraída
Saber hablar Presumir en silencio
Ser dadivoso Ser ahorradora

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Presentar el aspecto que guste Arreglarse como conviene
Ocuparse de todo fuera de casa Supervisar y ordenar en el hogar

(ARMSTRONG, 1991, p.33)

Aqui, a mulher caracteriza-se como “rainha do lar”, ambiente que, por sua vez, foi
construído como isolado da sociedade, como um refúgio da política e da economia.
Mais tarde, esta divisão de papéis culminará na separação entre temas nas escritas
“feminina” e “masculina”, sendo a literatura feita por mulheres geralmente relacionada
ao sentimental e ao desejo e, a masculina, voltada às questões políticas, econômicas e
filosóficas.
Há ainda, nesta lista, outros traços relevantes que encontram correspondência com o
caso espanhol, como por exemplo a orientação de falar com poucos, ser solitária,
retraída e presumir em silêncio, todos aludem à escassez de voz e ação femininas, a uma
passividade que lhes foi imposta ao longo dos tempos.
Este tipo de imposição remete para o que diz Amelia Valcárcel, em Sexo y filosofia:
sobre mujer y poder, mulheres são seres hetero-designados, ou seja, são caracterizadas
por suas funções, neste caso são as esposas, as governantas do lar; o mais significativo,
entretanto, é que tais definições vêm de fora. O conceito de Valcárcel dialoga com a
ideia do papel relacional desempenhado pela mulher defendido descrito por Concepción
Arenal, que será melhor explorado na segunda parte deste trabalho. Além disso, a
mesma conclusão aparece em Desde la Ventana, de Martín Gaite.

Las mujeres no existían como tales, las fabricaban los hombres, eran el reflejo de lo que
la literatura registraba, bien superficialmente, por cierto. (MARTÍN GAITE, 1987, p.30)

Outro caso de hetero-designação está relacionado à inclinação para o emocional, fator


desencadeador de instabilidade e justificativa para a exclusão de diversas atividades,
como vemos nesta citação do século XVIII, selecionada por Armstrong.

La viveza alegre y la rapidez de la imaginación, tan conspicuas entre las cualidades en


las que se reconoce la superioridad de las mujeres, tienen una tendencia a llevar a la
poca firmeza mental; al gusto por la novedad; a hábitos de frivolidad y ocupaciones sin
importancia; al rechazo a la aplicación sobria; a la falta de gusto por los estudios más
serios y una estima demasiado baja de su valor; a una consideración fuera de toda razón
por el ingenio y los logros a base de su esfuerzo; al anhelo de la admiración y el

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aplauso; a la vanidad y la afectación. (GISBORNE, 1789, p. 54 apud ARMSTRONG,
1991, p. 125)

Este traço específico levanta a questão da desvalorização da literatura feminina, que,


por ser relacionada ao mundo das emoções, foi considerada apenas uma das outras
práticas de mulheres como a própria organização do lar.

Vale la pena recordar que cuando las mujeres de clase media comenzaron a escribir, la
escritura de la economía política adoptó una fuerza explicatoria sin precedentes. La
propia escritura pareció perder importancia política junto con los procedimientos de
noviazgo, las prácticas matrimoniales y la organización del hogar. (ARMSTRONG,
1991, p. 296)

O mesmo problema é considerado por Mercedes Carbayo Abengózar, em seu livro


Buscando un lugar entre mujeres: buceo en la España de Carmen Martín Gaite, sobre a
obra de Carmen Martín Gaite e sua importância para outras autoras espanholas. Carbayo
Abengózar pontua que se assumia que uma mulher não poderia/deveria escrever uma
obra intelectual, mas sim, uma terna e compreensiva. A raiz deste pensamento é a
mesmo da delimitação de papéis familiares, de modo que algumas escritoras foram
criticadas por estar pisando terras “masculinas” ao tratar de temas diversos (filosofia,
política, economia etc.) e isto, culminou em uma escassez de assuntos ou então,
abundância de ninharias.

Para Carbayo Abengózar, a princípio, não havia preocupação em reivindicar o


direito de um modo de escrita diferente, até porquê, como foi dito, as autoras que
abordavam temas diversos eram criticadas.

Porém, para Carmen Martín Gaite, a relação com o interior é parte do processo de
escrita e uma vez que gerações de mulheres passaram tanto tempo no interior de suas
casas entre pensamentos e leituras, algo distinto floresceu para a escrita. Além disso, o
olhar da casa para a rua, entre as janelas, permite uma visão diferente da sociedade.

Virgínia Woolf, em seu livro Um teto todo seu, também fala sobre a importância de
possuir um espaço próprio para reflexão. Para a inglesa, a falta de tempo, de renda fixa
e de teto serviram como empecilho à proliferação de autoras

A família de classe média do início do século XIX possuía apenas uma sala de estar
para todos [...] Se uma mulher escrevesse, teria de escrever na sala de estar comum. E,
como se queixaria tão veementemente Miss Nightingale — “as mulheres nunca

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dispõem de meia hora... que possam chamar de sua” —, ela era sempre interrompida. ”
(WOOLF, 1985, p.88)

Assim, pode-se imaginar que a literatura e os momentos de reflexão solitários são


como janelas abertas em meio à clausura e ao silêncio impostos.

Apesar da dificuldade apresentada por Woolf, é no século XIX que as mulheres


ganham mais espaço no âmbito literário e parece interessante analisar quais mudanças
sociais permitiram o florescimento da escrita feita por mulheres.

O Romantismo tem suas origens no século XVIII, perdurando por boa parte do século
XIX, e é o grande responsável pela mudança de valores ao largo deste período. Segundo
o historiador Elias Thomé Saliba, o movimento opositor ao Classicismo foi engendrado
após a quebra de continuidade histórica propiciada pelas Revoluções Francesa e
Industrial, este contexto possibilitou as ebulições que se transformaram em uma nova
concepção social. A Revolução Francesa preparou o terreno das esperanças de jovens
alemães como Schelling, Hölderlin e Hegel, a ruína do mundo existente sinalizava para
uma conciliação entre terrestre e divino.

Há, nesta escola, uma negação à anterior, o Classicismo e aos seus valores racionais,
objetivos e equilibrados, o Romantismo apregoa, entre outros, o sentimentalismo –
ainda que em determinados momentos e não ao longo de todo o movimento – a
subjetividade e a desmedida: a reconciliação do homem com o mundo primitivo e
perdido da inocência. Para Anatol Rosenfeld e Jacó Guinsburg,

Na medida em que é salientado o papel dos matizes particulares, o valor passa a


recair no peculiar, naquilo que diferencia uma pessoa de outra, ou seja, na
individualidade. (ROSENFELD & GUINSBURG, 1978, p. 269)
A individualidade assume notoriedade porque, após a empolgação promovida pelas
mudanças ocorridas depois da revolução, há a fase do desencanto devido às invasões
napoleônicas, à pobreza nas grandes cidades, à exploração nas fábricas, ao mundo
civilizado que oprime as massas. O indivíduo romântico encontra-se cindido, deseja
abrigar-se e a solidão torna-se uma companheira.

La vida para los románticos se presenta negativamente: no es un bien, sino un mal. El


alma romántica es un alma atormentada, triste, moralmente enferma, en busca de un
ideal inalcanzable, de un sueño que no se ha de realizar. La inadaptación y la soledad
son sus compañeras. (NAVAS RUIZ, 1982, p. 56)

16
Com esta nova concepção de sociedade e de indivíduo, o gosto pela literatura também
se altera, os enredos rocambolescos cheios de ação deixam, aos poucos, de alcançar
tanto êxito e as narrativas sobre a vida cotidiana ganham maior espaço conforme avança
o poder da burguesia. Franco Moretti, em seu ensaio “O século sério”, escreve sobre
este tópico e atrela o sucesso de autoras como Jane Austen a esta mudança de visão.

Narração — mas do cotidiano. São isso os enchimentos. [...] Os enchimentos, por


assim dizer, mantêm a narrativa no interior do caráter ordinário da vida. (MORETTI,
2003, p. 7)

O caráter ordinário da vida, o cotidiano médio e regular se desenham nestas novas


obras não só de Austen, mas também de Flaubert e de Balzac. De repente, o espaço
almejado se inverte – deixa de ser o público e torna-se o privado - e é neste ponto, neste
século, em que mais mulheres ganham território na escrita.

2.2. Entre janelas: A literatura e a solidão como instrumentos de libertação

Mesmo antes do triunfo do Romantismo, algumas mulheres representaram exceções e


escreveram. Algumas dessas autoras, incluindo a aragonesa já mencionada Josefa Amar
y Borbón, foram citadas por Carmen Martín Gaite em sua obra Desde la Ventana. O
livro em questão é a reunião de quatro ensaios sobre a escrita feminina e foi inspirado
na obra também já aludida de Virginia Woolf, Um teto todo seu, já que, segundo a
introdução escrita por Martín Gaite, depois de sua leitura, a autora de Salamanca cedeu
espaço para a reflexão a respeito da importância de possuir um teto e dos momentos
solitários para o processo literário.

É na introdução desta obra que a autora comunica sua “descoberta” a respeito de


possuir um quarto próprio e habitá-lo como libertação e não como encerro, a partir desta
reflexão seguem-se exemplos de escritoras que o fizeram e, apesar das restrições,
utilizaram o espaço para dar vazão à sua subjetividade e modos de pensar.
Subentendida, há a ideia de que depois de tantos anos ocupando o âmbito doméstico, as
mulheres desenvolveram melhor uma sensibilidade voltada às coisas internas, aos fatos
cotidianos e aos episódios em que “nada acontece”, tão caros aos românticos.

17
Concomitantemente, há a curiosidade pelo mundo exterior e, até mesmo a negação do
privado, em que impera o desejo de fuga, muitas vezes responsável pelos escritos ou por
casamentos infelizes – aqui, considera-se a grande quantidade de mulheres que se
casaram pois entendiam a vida matrimonial como possibilidade de libertação, como foi
visto na primeira parte, esta promessa nem sempre se cumpria e a relação se tornava
infrutífera, tanto para o marido quanto para a esposa. O título do livro, por exemplo,
remete ao tema das mulheres ventaneras, que consideravam as janelas de suas casas
como uma brecha para o exterior e como abertura para imaginar o que se passava no
meio público.

Sobre este elemento da casa, Carmen Martín Gaite escreve:

La ventana condiciona un tipo de mirada: mirar sin ser visto. Consiste en mirar lo de
fuera desde un reducto interior, perspectiva determinada, en última instancia, por esa
condición ventanera tan arraigada en la mujer española y que los hombres no suelen
tener. Me atrevo a decir, apoyándome no solo en mi propia experiencia, sino en el
análisis de muchos textos femeninos, que la vocación de escritura como deseo de
liberación y expresión de desahogo, ha germinado muchas veces a través del marco de
una ventana. La ventana es el enfoque, pero también el punto de partida. (MARTÍN
GAITE, 1987, 36-37)

Este trecho corrobora o capítulo anterior, pois mostra a situação feminina estudada
como característica engendradora deste desejo de libertação, de forma que o objetivo
desta parte é justamente abordar o movimento de transição realizado por algumas
mulheres que puderam e souberam fazer uso desta condição para dar vazão à sua voz.

A esta altura, cabe a pergunta elaborada por Virginia Woolf em suas incursões sobre a
literatura dita feminina: “Mas qual o estado de espírito mais propício para o ato de
criação? ”. Tanto Carmen Martín Gaite quanto as também espanholas Emília Pardo
Bazán e Concepción Arenal, ambas nascidas no século XIX, concordam que a solidão é
essencial para o processo de escrita, porém, as concepções destas divergem no que
tange à figura da mulher, já que para a primeira, a perspectiva é individual e, para a
segunda, social. Assim, segundo Roberta Johnson, Pardo Bazán, considera a mulher
como ser para si e condena sua ideia como ser relacional, enquanto Concepción Arenal
percebe a mulher em relação às funções sociais designadas – em alguns momentos,
destacando a importância da personalidade justamente para cumprir bem seu papel.

18
Esta ideia de mulher relacional alude ao trecho, citado anteriormente, de Émile, de
Rousseau, em que a mulher é nascida para ser filha, esposa e mãe, e de certa forma,
subordinada ao homem. Aos poucos, no século XX, essa ideia foi sendo negada e,
principalmente, durante o segundo período republicano (1931-1939), as mulheres
puderam experimentar o ser para si. Entretanto, com o início da ditadura franquista, em
1939, a concepção feminina enquanto relacional volta à cena, bem como à exaltação ao
lar.

A Seção Feminina, dirigida por Pilar Primo de Rivera, encarregou-se, como um dos
braços do regime franquista, de “orientar” as mulheres a exercerem seu devido papel e,
ainda que, o século XX tenha sido um século em que as espanholas escreveram e
ganharam prêmios por isso – o primeiro prêmio “Nadal”, por exemplo, foi concedido a
Carmen Laforet, em 1944 – a diretora deixa claro sua opinião em relação à capacidade
criadora feminina:

Las mujeres nunca descubren nada: les falta desde luego el talento creador, reservado
por Dios para inteligencias varoniles; nosotras no podemos hacer nada más que
interpretar mejor o peor lo que los hombres han dicho. (RIVERA, 1943, p. 72).

Mais uma vez, pensa-se a figura feminina em segundo plano, em relação ao homem.
E, para assegurar que esta conduta fosse absorvida e aceita pela maioria, a partir de
1954, torna-se obrigatório o certificado do Serviço Social da Seção Feminina para todas
as mulheres solteiras, entre 17 e 35 anos, que desejassem prestar concursos, ingressar na
universidade, conseguir emprego, possuir visto, carteira de habilitação etc. Durante este
curso, com duração de um semestre, ocorria uma espécie de preparação para o
desempenho da função feminina relacional em que estas mulheres recebiam noções de
economia doméstica, corte e costura, religião, ginástica, puericultura etc.

Para Marichu de la Mora, o estado vigente se encarregava de tornar possível o sonho


das mulheres espanholas, isto é, ser donas de casa. É interessante pensar no que
escreveu Mercedes Carbayo Abengózar sobre a considerável aceitação da mulher
escritora e do grande número de concorrentes e ganhadoras do mencionado “Prêmio
Nadal”, para ela, a escrita é uma atividade passível de ser feita em casa.

La concurrencia de un número importante de mujeres a este premio es algo que aún


resulta extraño; hasta tal punto fue la afluencia de mujeres al premio que se llamó en
broma “Premio Dedal” (bastante peyorativo si nos fijamos en la ironía del instrumento

19
de costura como algo que debía hacer la mujer en lugar de escribir, tal vez). […] Entrar
en la polémica de por qué lo ganaron tantas mujeres en un momento en que la función
de la mujer en el mundo era la de tener hijos, es muy peligroso. Me atrevo a decir que la
escritura, tal y como se veía en aquella España, era algo que la mujer podía hacer en
casa, entre pucheros y pañales, que no interfería en su condición femenina ni en la
masculina de su compañero.

Esta forma pejorativa de nomear o prêmio “Nadal”, isto é, fazendo alusão ao dedal,
instrumento do mundo da costura remete à primeira parte deste trabalho em que à
mulher lhe era permitido escrever, contanto que se restringisse a determinadas áreas, em
geral, o campo dos assuntos sentimentais – como escreveu Nancy Armstrong, uma
forma de escrita complementar e nunca rival da escrita masculina. Entretanto, Carmen
Martín Gaite, em El cuento de nunca acabar, compara o conto à costura: “Ponerse a
contar es como ponerse a coser” (p.34), assim, enlaça estas atividades enquanto tarefas
domésticas e cita sua mãe, mantendo-se assim na esfera da intimidade feminina. Há,
portanto, uma ligação e uma forma diferente de tratar o conto e a escrita do que apenas
como maneiras objetivas de perceber a vida. Em Desde la ventana, a autora reafirma a
ligação entre o fazer literário e as quatro paredes:

Es en secreto y entre cuatro paredes de un recinto cerrado donde la mujer se encuentra


más a sus anchas para ensayar, libre de trabas impuestas por la vigilancia ajena, un
desagüe a sus capacidades expresivas. (MARTÍN GAITE, 1987, p. 48)

Nesta citação, além da questão do lugar é necessário destacar a passagem “libre de


trabas impuestas por la vigilancia ajena”, pois ela aponta para a importância da solidão
para o fazer literário, tema que será retomado em breve. Por enquanto, parece relevante
e complementar, o trecho da obra em análise de Woolf

Pois as mulheres têm permanecido dentro de casa por todos esses milhões de anos, de
modo que a estas alturas as próprias paredes estão impregnadas por sua força criadora, a
qual, de fato, sobrecarregou de tal maneira a capacidade dos tijolos e da argamassa que
deve precisar atrelar-se a canetas e pincéis e negócios e política. Mas esse poder criativo
difere em grande parte do poder criativo dos homens (WOOLF, 1985, p.116)

Depois de tantos anos recluídas, é como se as paredes da casa fizessem parte da


identidade destas mulheres, de forma que apesar da relação inicial de opressão, há
também um vínculo em que as partes se completam. A própria janela faz parte desta
composição e é o que permite observar, sejam negócios ou política. E ainda, viabiliza,

20
novamente, pensar a diferença que há entre o “poder criativo” de cada gênero, poderes
que diferem, possivelmente, pelo acesso à instrução de um e à negação do mesmo
recurso ao outro.

A situação divergente entre os gêneros observa-se nas páginas de Desde la ventana e é


pertinente ler o que Carmen Martín Gaite escreveu sobre a vida de outras autoras
espanholas que se debruçaram à ventana para escrever, para depois, na terceira parte
deste trabalho, ver como estes escritos e pensamentos se refletem em sua própria obra.
Crislaine, o que quis dizer é que você não indica uma divisão, vc salta da ideia de que a
C.M. Gaite escreveu sobre outras escritoras e depois vc introduz a informação de uma
“terceira parte”, mas vc não sistematiza os dados: poderia ser algo como: na primeira
parte/capítulo..., no segundo... etc. Assim ficará mais claro para o leitor.

O primeiro capítulo, intitulado “Mirando desde la ventana” não trata apenas de uma
autora, mas sim de várias obras do século XVII e, em geral, reflete a respeito da
dificuldade encontrada pelas mulheres que escreveram antes do século XIX, desde a
privação da educação, passando pela falta de reconhecimento em vida e culminando nas
nos papéis pré-estabelecidos que não permitiam pensar as representantes do gênero
como seres individuais e tampouco como habitantes do mundo exterior. Há, novamente,
a oposição entre interno e externo e fica clara a importância da janela como elemento
transgressor mediante a imposição alheia.

Pocos han reparado en la significación que la ventana tuvo entonces y ha tenido siempre
para la mujer recluida en el hogar, condenada a la pasividad y a la rutina. […] La
ventana es el punto de referencia de que dispone para soñar desde dentro el mundo que
bulle fuera, es el puente tendido entre las orillas de lo conocido y lo desconocido, la
única brecha por donde puede echar a volar sus ojos, en busca de otra luz y otros
perfiles que no sean los del interior, que contrasten con éstos. (MARTÍN GAITE, 1987,
p. 36)

No segundo capítulo, “Buscando el modo”, figura claramente a importância da solidão


para a escrita literária, citando o trecho do romance El primer loco, de Rosalía de
Castro, M. Gaite apresenta sua posição sobre o tema:

La imaginación se exalta más fácilmente en la soledad, y cuando nos hallamos


apartados de nuestros semejantes, amén de que podemos comprendernos mejor a
nosotros mismos, nos es dado crear con mayor facilidad mundos que no existen y
poblarlos de visiones hijas todas de nuestra fantasía. (MARTÍN GAITE, 1987, p. 49)

21
A solidão aparece como essencial para o processo literário porque permite aos que
escrevem explorar melhor seus desejos. Afastados da grande movimentação podem
ouvir melhor seus próprios pensamentos e então, vertê-los ao papel. Para a mulher, esse
gesto é ainda mais significativo, já que se trata de uma forma de dar vazão aos desejos
reprimidos desde épocas imemoriais e de se construir como ser individual e não apenas
relacional.

Para M. Gaite, é justamente o desejo amoroso – seja divino ou humano – um dos


grandes impulsionadores da escrita feminina, como se, através da palavra, a escritora se
libertasse de sua prisão. Assim, boa parte da escrita feminina nos séculos anteriores ao
XIX, foram cartas de amor; entretanto, vale a pena retomar a questão proposta por
Nancy Armstrong, na primeira parte do trabalho, considerando as limitações impostas
ao gênero que, sem acesso à instrução, não poderia discorrer sobre uma variada gama de
temas e acabou-se por se espraiar a ideia de que mulheres escrevem apenas sobre temas
relacionados aos seus sentimentos, como uma característica intrínseca.

A imaginação, alimentada pela solidão, também pode ser relacionada à privação de


relações extrafamiliares e pela clausura, e a responsável pela criação de mundos
permissivos. Mundos estes que serão recorrentes na literatura espanhola do século XX,
principalmente durante a ditatura de Francisco Franco (1939-1975), sendo um deles, a
Ilha de Bergai inventada por Carmen Martín Gaite, em El cuarto de atrás e que fará
parte da análise do capítulo seguinte.

Por ora, é interessante dedicar-se a entender melhor como a solidão está presente na
produção literária feminina e porquê isto é tão imprescindível para Carmen Martín
Gaite. Antes de enveredar-se por seu pensamento é importante frisar que esta concepção
não é cara somente a ela e a Rosalía de Castro, citada acima, mas também acolhida por
muitas outras escritoras espanholas.

Roberta Johnson, em seu ensaio, “El concepto de la soledad en el pensamiento


feminista español”, faz uma síntese de diversas autoras espanholas para quem a solidão
é um elemento essencial.

La soledad tiene una gran variedad de sentidos para las escritoras que incluyo en este
estudio, pero en casi todos los casos la soledad es un estado positivo, afirmador, lleno
de posibilidades para el desarrollo del ser humano, exento de las connotaciones

22
negativas —el aislamiento, la alienación, la melancolía y hasta la desesperación— que
los hombres suelen asociar con el estado solitario. (JOHNSON, 2009, p. 24)

Não há, portanto, a percepção de solidão como um estado negativo, mas sim como um
estado criador, essencial para o raciocínio. Nas palavras de Martín Gaite, não se trata de
uma condenação, mas sim de uma graça e, é desta forma, que este princípio aparece em
outros de seus ensaios como, por exemplo, alguns que compõe a obra La búsqueda del
interlocutor y otras búsquedas.

Para além da relevância da solidão para a escrita, alguns ensaios também a pensam
como parte constituinte da comunicação, dos diálogos com propósito. Para Martín
Gaite, apenas em isolamento é possível trabalhar o logos que permitirá conclusões
acertadas em um diálogo – ou, claro, em um texto escrito. Ela também diz que o
sossego é um estado prévio indispensável a qualquer consideração atinada, esta
afirmação – presente em um livro que reúne um ensaio sobre a pressa da
contemporaneidade – faz supor que o mundo atual e industrializado não deixa espaço
para longas análises, há pouco tempo para o desenvolvimento da sabedoria. Além disso,
está a crítica à morte do diálogo, como se observa no trecho do ensaio “Las trampas de
lo inefable”:

El tipo del misántropo que, desengañado de las palabras o harto de sus rigores, se
retiraba en total soledad y ensimismamiento a rumiar lo inefable, respondía a un
proceso coherente. […] Hoy en cambio, nadie se retira en soledad ni a rumiar lo
inefable ni a rumiar nada de nada. (MARTÍN GAITE, 1982, p. 93-94)

O resultado são diálogos inconsistentes, tanto por falta de reflexão quanto por falta de
atenção ao que diz o outro, há apenas o afã de falar – como já foi percebido por Carbayo
Abengózar e é representado em Entre Visillos, material da terceira parte do trabalho.

O mesmo exercitar do logos é necessário, como já foi dito, para alcançar o ser para si
e a autora espanhola critica o que ela considera uma dificuldade da maioria das
mulheres: aguantarse a palo seco. Segundo Martín Gaite, ao contrário do que acontece
com as escritoras, que tomam a solidão como graça e não como condenação, a maioria
das mulheres tem problemas para aceitar o isolamento e a independência que este
acarreta. Esta reflexão é desenvolvida em seu texto “De Madame Bovary a Marilyn
Monroe”

23
“¿Por qué las mujeres tienen tanto, tantísimo miedo, un miedo tan específicamente
distinto, a la soledad? ¿Por qué se echan en los brazos de lo primero que las exima de
buscarse en soledad? O, dicho en otras palabras, ¿por qué se aguantan tan mal, tan
rematadamente mal –y cada día peor– a sí mismas?” (MARTÍN GAITE, 1982, p. 146)

O texto, a respeito da mais célebre personagem de Gustave Flaubert e da modelo e


atriz americana, reflete sobre as semelhanças entre estas duas figuras femininas,
principalmente no que tange as suas relações amorosas e finais trágicos. Martín Gaite
questiona se o futuro de ambas poderia ser diferente caso tivessem se tolerado mais, se
tivessem suportado a faca de dois fios que representa a independência para as mulheres.
É curioso destacar esta designação da independência feminina, por que se trata de uma
faca de dois gumes? Uma das hipóteses possíveis é pensar na noção da mulher como
relacional desde tempos imemoriais - considerando a religião cristã e o modelo
feminino mais popular até hoje, Eva, que ganhou vida para ser companheira de Adão –
pode ser desestruturante para uma mulher estar desprovida dos laços que lhe definem
desde sempre, ao mesmo tempo que é crucial para livrar-se do estigma imposto por
outrem.

Desta forma, fica clara a importância da solidão como formadora fundamental não só
para intelectuais, mas para todas as mulheres que queiram libertar-se de uma situação de
submissão: “O se asumen las ataduras o se asume la soledad”. (MARTÍN GAITE, 1982,
p. 131)

Apesar da solidão como aspecto positivo ser recorrente na escrita de várias autoras
espanholas, a sociedade franquista não via com bons olhos as mulheres solteiras, as que
se isolavam e considerava algumas leituras impróprias para o gênero como um todo. Em
Usos amorosos de la postguerra española, Martín Gaite introduz a figura da chica rara,
que será desenvolvida no último capítulo de Desde la ventana, através do estudo do
romance Nada, de Carmen Laforet.

Para entender todo o conceito, é preciso ter em conta que desde antes da idade de
casar-se as mulheres eram instadas com imagens de sua função social, seja através dos
relatos de família ou das obras que liam. Assim, era natural que a maioria encontrasse
no casamento - ou na vocação religiosa - o objetivo de suas vidas. Entretanto, as que
não se encaixavam nesta proposta vital eram julgadas tanto pelas famílias quanto pelas
amigas e, claro pela imprensa.

24
Os “Consultórios sentimentais”, publicados nos jornais da época, eram comuns e
responsáveis por orientar as confusas jovens em relação às questões da vida. Desta
forma, alertavam as que possuíam um caráter desviante, como pode-se observar no
trecho abaixo:

No me gusta que te encierres en tu casa a piedra y lodo, pues aunque reconozco que
es muy difícil para una persona inteligente tener que hablar siempre de tonterías,
tampoco te conviene a tu edad aislarte por completo del mundo, pues eso te irá haciendo
un carácter raro y te puede perjudicar enormemente. (1950 apud MARTÍN GAITE,
1992, p. 38)

Ou seja, nos anos 1950, quando pode ser uma escolha estar em casa, refletindo, se
recomenda o passeio, mesmo que seja para falar sobre bobagens, pois o contrário
prejudicaria enormemente a garota. Além disso, é possível pensar nos resquícios do
século XVIII, lembrando que na primeira parte se acompanhou o problema do diálogo
entre mulheres que, sem instrução, eram condenadas a tratar de assuntos fúteis, é
permitido pensar que, nos anos 1950, sob a ditadura de Franco, há um retrocesso e os
assuntos que poderiam ter sido afetados e até alterados pelo acesso à escola, continuam
os mesmos, justamente porque para a maioria das mulheres o lugar reservado continua
sendo o emocional e não o que diz respeito aos “assuntos sérios”.

A educação e a educação sentimental vinham, muitas vezes, através das leituras e estas
também eram classificadas e consideradas como adequadas ou inadequadas para o
gênero feminino. Boa parte da construção do imaginário do período deve-se às “novelas
rosa”, suas leitoras, as chicas noveleras sonhavam com um príncipe que as
transformaria, consequentemente, em princesas. O resultado deste pensamento já foi
abordado: grandes expectativas engendram grandes frustrações.

O enredo dos romances é, geralmente, exemplar, há uma mulher – muitas vezes uma
secretaria, cargo de destaque entre as mulheres durante a ditadura e que não deixa de ser
relacional – que conhece a um homem ideal – algumas vezes possuidor de um mistério
– e depois de algumas reviravoltas, se casam. Por apresentar situações que, na maioria
das vezes, divergiam da realidade, este subgênero foi bastante criticado. Este fato
resultou em algumas manifestações de autoras defendendo sua escrita, como Rosa
María Aranda:

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Yo no escribo novelas rosa (a riesgo de que me llamen petulante y vanidosa) [...] Mis
novelas no son crudas y violentas porque me retirarían el saludo mis amistades, porque
no me comprenderían, pero nada más lejos de mí que la novela cursi, sentimentalmente
solterona… (Medina, 1944 apud MARTÍN GAITE, 1992, p. 148)

Novamente, percebe-se o problema da solteirice e de outro tipo de escrita,


principalmente a que se considerava triste e pessimista.

Convienen los libros alentadores que levanten el ser a definitivos propósitos, que nos
lleven a ser cada día mejores y que indiquen a hacer algo útil en el mundo: por el
contrario, debemos huir de las lecturas pesimistas; es uno de los factores que más
poderosamente influyen en el endurecimiento del espíritu. (Medina, 1942 apud
MARTÍN GAITE, 1992, p. 147-147)

Tendo em mente que se trata de um país debaixo de um governo autoritário, é muito


conveniente recomendar leituras alentadoras, para que os leitores não permitam o
endurecimento de seus espíritos, mas pensando nisto em uma recomendação às
mulheres, faz-se refletir a respeito do dito caráter leve feminino, mesmo motivo pelo
qual Aranda não escreve romances crus que afetariam suas amizades.

Assim, as que não se encaixavam na representação feminina ideal eram tachadas como
raras (estranhas) e sofriam com a ameaça da solteirice, eram definidas como
inconformadas, de caráter intempestivo e questionador. É o caso da personagem Natalia
de Entre visillos, de Carmen Martín Gaite, que será analisada no capítulo seguinte.

2.3. Entre linhas: El Cuarto de Atrás e Entre Visillos

Como foi dito, as características comentadas podem ser identificadas em alguns dos
romances de Carmen Martín Gaite, como Entre Visillos (1957) e El cuarto de atrás
(1978). Estes dois livros são narrativas em que se nota a importância das relações entre
espaço interior e exterior, homens e mulheres, família e sujeito, da perspectiva de um
ambiente doméstico, importante para este trabalho que busca observar a relação entre
este espaço e literatura. Entretanto, antes de iniciar tal análise é necessário tecer breves
comentários sobre a construção dos livros mencionados.

Em Entre Visillos existe uma tentativa de capturar o ambiente de uma cidade


provinciana durante o período de pós-guerra. A história conta o cotidiano de várias

26
famílias de classe média, e a relação que existe entre estas, através de narração em
terceira pessoa e primeira pessoa – na primeira parte, apenas Pablo, um antigo morador
do lugar, relata os fatos de seu próprio ponto de vista, mas na segunda, este olhar
também é concedido a Natalia, irmã mais nova de uma das casas e considerada a
protagonista do romance, já que boa parte dele se detém sobre seu processo de
formação.

Em El cuarto de atrás há um olhar analítico sobre o mesmo período, mas também


sobre os anos de Guerra Civil, e como a situação política e econômica da Espanha foi
mudando gradualmente. Pode-se conceber a obra com traços autobiográficos em que a
autora relembra diversos fatos de sua infância e juventude e como estas foram afetadas
pelos anos de guerra e de ditadura franquista. Tomando que seu olhar de análise é
construído dentre os cômodos da casa da narradora, vale ressaltar o que escreveu
Valeria De Marco, para quem esta perspectiva é uma característica dos romances
escritos durante a era Franco e existe devido à ascensão da burguesia e de seu gênero
por excelência, o romance.

O romance conquista complexidade para falar de seu tempo, ao operar uma mudança de
perspectiva: da casa, o narrador olha e analisa o mundo. (DE MARCO, 1999, P. 40)

Além disso, pode-se considerar que neste romance percebe-se a conclusão da


transição comentada no capítulo anterior, pois agora, todo o ambiente é um espaço de
criação e não apenas um quarto, antes imaginado como abrigo dentro da própria casa,
sendo esta dominada pela família.

O meio doméstico também predomina em Entre Visillos, seja porque as cenas são
ambientadas no interior das casas, seja porque ele é o assunto tratado do lado exterior.
Aqui ainda há uma noção de conflito, em tempo presente, e um desejo de estar no
âmbito público expressado, ao menos, pela maioria das personagens.

À imagem ideologizada do lar harmonioso e sadio, propagada pelo regime de Franco,


esses romances contrapõem a perversidade e a asfixia que a vida familiar pode atingir
naquele contexto. (DE MARCO, 1999, p.41)

Esta representação ideal do lar foi essencial para a construção da sociedade pretendida
pelo regime franquista em que a família era imprescindível enquanto parte do lema
espanhol: Deus, Pátria e Família. O tripé imperialista foi resgatado pela ditadura de
Franco, devido à necessidade de manter a ideologia conservadora presente no discurso

27
oficial. Também por esta relevância da família, De Marco defende que a mulher foi um
dos principais alvos da propaganda franquista, pois esta é o centro articulador do núcleo
doméstico: “primeiro espaço de socialização dos indivíduos, célula de sustentação da
hegemonia ideológica da velha ordem” (DE MARCO, 1999, p. 13). Ou seja, novamente
a mulher é tida como ferramenta, como ser relacional, que existe para ser ponte de algo,
mas não necessariamente como ser em si.

Em Entre Visillos ficam claras as diversas representações da mulher. São vários os


postulados a respeito do que estas devem fazer ou não, ou sobre qual é seu lugar na
sociedade e, sendo um romance que se propõe a descrever a Espanha no período pós-
guerra, isto se apresenta como um reflexo da propaganda do regime e do peso da Igreja
nele. Algumas passagens se atentam em deixar clara qual a postura de uma mulher
decente, qual o melhor horário para voltar para casa, o cinema como má influência –
reflexo do atraso e isolamento espanhol perante ao mundo, principalmente às
representações femininas provenientes de Hollywood, como é possível ler no capítulo
“Bendito atraso”, de Usos amorosos de la postguerra española.

El cuarto de atrás também se atém aos pressupostos sobre o comportamento feminino,


porém estes são tratados de maneira diferente, pois a narradora já tem consciência do
que estes significavam e os comenta com certo distanciamento. Corrobora esta ideia a
própria epígrafe do livro, escrita pelo filósofo francês Georges Bataille,

La experiencia no puede ser comunicada sin lazos de silencio, de ocultamiento, de


distancia.(colocar entre aspas)

Em Entre Visillos, esta lucidez, seja a do comportamento feminino quanto a do impacto


da guerra, não existe, há apenas algumas sugestões, mas nenhuma conclusão acertada.

Uma divergência a respeito das duas obras no que diz respeito à construção da mulher é
que na de 1978, através de uma espécie de autobiografia, a autora rememora os
acontecimentos e lhes dá significação. Há assim, comentários sobre o que se esperava
de uma menina de província: “Yo entonces no fumaba, casi ninguna chica de provincias
fumaba, no estaba bien visto” (p.69); o que se pensava em relação de uma garota que
estuda: “mujer que sabe latín no puede tener buen fin” (p.93) e também a respeito de
qual era a melhor conduta a ser seguida por uma mulher “Las dos virtudes más
importantes eran la laboriosidad y la alegría […] La vida le sonríe a quien le sonríe,
no a quien le hace muecas” (p. 94). As notas são uma espécie de dedução da autora e de

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lugares comuns da época que nortearam boa parte da vida das mulheres. Em Entre
Visillos, estas ideias também aparecem, porém, como não há o respaldo do tempo,
porque o romance procura ser fiel às situações do momento, elas são mais diretas e
proferidas por parentes, amigas e frequentemente pelo pretendente a matrimônio, como
se observa nos trechos abaixo:

Ya ves, dieciséis años no cumplidos. Más ingenua que un grillo. Qué novio va a haber
tenido antes ni qué nada. ¿No te parece?, es una garantía. Ya de meterte en estos líos
tiene que ser con una chica así. Para pasar el rato vale cualquiera, pero para casarse es
otro cantar. (MARTÍN GAITE, 1958, p. 48)

Este parágrafo é parte de um diálogo entre Angel e seus amigos sobre sua noiva,
Gertru e serve para apresentar o personagem que já fora mencionado anteriormente, nas
páginas do diário de Natalia, mas apenas de forma distanciada, como o namorado de sua
melhor amiga. É interessante destacar que há uma ruptura da figura do pretendente
idealizado, pois Angel não atende às expectativas de companheirismo desenhadas pelos
livros de conduta, apenas se mostra como um representante da manutenção da ordem
social. Abaixo, ele dá conselhos para a noiva, depois que ela tenta lhe fazer uma
surpresa, mandando um pacote com um lanche para o hotel onde ele estava com os
amigos.

Lo hago por tu bien, para enseñarte a quedar siempre en el lugar que te corresponde.
(MARTÍN GAITE, 1958, p. 150)

A relação entre Angel e Gertru, como se vê, é um tanto conflituosa e estes passam boa
parte do romance discutindo a respeito dos comportamentos que cada um deveria
possuir, afinal ela também carrega um imaginário de como ele deveria se portar, porém,
a diferença é que por estar em uma posição de submissão, sua voz é abafada.

Angel vino un poco bebido [...] Gertru se puso triste, no se atrevía a decirle que no
bebiera más. (MARTÍN GAITE, 1958, p. 236)

Enquanto Gertru toma consciência, quase ao fim do livro, do marido que escolheu –
esta preocupação final tem a ver com a situação de sua irmã mais velha, que será
abordada adiante – a maioria das garotas a vê como uma sortuda por se relacionar com
um capitão de aviação, cargo que pode ser utilizado para refletir sobre suas ações.
Natalia narra seu primeiro dia no Instituto após as férias e algumas das alunas

29
perguntam por Gertru, que estudava com elas até o ano passado e era a melhor amiga de
Natalia.

Me han preguntado por Gertru, que les ha extrañado que no esté en las listas. Yo les he
dicho que se va casar pronto. Que con quién. Regina dio un silbido y puso los ojos en
blanco cuando les dije que con un aviador […] Que qué suerte, que si el chico era
guapo. No me dejaban en paz con las preguntas. (MARTÍN GAITE, 1958, p. 177)

A descrição dos acontecimentos feita por Natalia, não é das mais entusiasmadas e isto
tem a ver com seu caráter que foge à regra do padrão da época, ou seja, de não estar
interessada apenas no casamento como objetivo de vida. A personagem se encaixa no
perfil que Carmen Martín Gaite chamou de chica rara. O termo foi cunhado para
descrever a personagem Andrea, do romance Nada, de Carmen Laforet, uma estudante
de dezenove anos que não se encaixa no modelo feminino da época.

Natalia não se reconhece no papel que lhe impuseram e é criticada muitas vezes
durante o romance, por não ser tão sociável quanto deveria e pela negra ameaça de ficar
solteira. A personagem é a primeira voz do romance que se apresenta, pois, o capítulo
de abertura, retrata algumas linhas de seu diário – o relato em que também ficamos
sabendo da existência de Gertru e Angel – a respeito do dia anterior. No primeiro
parágrafo, o leitor é informado de que sua amiga, Gertru, não estudará mais na mesma
escola, porque vai se casar e também porque

A Angel no le gusta el ambiente del Instituto. Yo le pregunté que por qué, y es que ella
por lo visto le ha contado lo de Fonsi, aquella chica de quinto que tuvo un hijo el año
pasado. En nuestras casas no lo habíamos dicho; no sé para qué se lo ha tenido que
contar a él. (MARTÍN GAITE, 1958, p. 11)

Tali, como é chamada pelos amigos e familiares, deixa claro em seu texto, o incômodo
atrelado aos ritos sociais como a cerimônia do vestido longo, em que as meninas são
apresentadas à sociedade e encontram-se aptas para serem escolhidas, como Martín
Gaite descreve em Usos amorosos de la postguerra española

Antes de que una jovencita de buena familia fuera presentada en la sociedad vistiendo
su primer traje largo, ceremonia que la elevaba al rango de las aspirantes a ser elegidas,
podía haber aprendido a bailar al aire libre durante el veraneo o colándose, con la bula
de sus hermanos mayores, en algún guateque. Pero no había quien le quitara el

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sambenito de “una cría que todavía no se ha puesto de largo”. (MARTÍN GAITE, 1992,
p. 139)

A adolescente escreve sobre sua conversa com a amiga, em que esta não entende sua
ausência em cerimônia tão importante:

No comprendía que no hubiera convencido a mis hermanas para ir yo también, tan


fantástico como será. No le quise contar que he tenido que insistir para convencerlas
precisamente de lo contrario. (MARTÍN GAITE, 1958, p. 12)

Esta recusa tem a ver com o gosto de Natalia de estar sozinha, em seu quarto,
estudando ou escrevendo e está na contramão da maioria das outras personagens
descritas na trama. É verdade que ela vive dois momentos no romance, na primeira parte
do livro, prefere estar dentro de casa e passa por uma transformação gradual em que
percebe a opressão familiar e suas raízes na mudança de condição social.

Antes de abordar o fim de sua jornada, é importante observar sua trajetória enquanto
figura destoante e também ressaltar as possíveis correspondências que esta personagem
possui em relação à própria Carmen Martín Gaite.

Natalia é a caçula de uma casa com mais duas irmãs, Julia e Mercedes, a do meio e a
mais velha, respectivamente. Além das três, vivem na casa o pai e a tia, que atua como
responsável pela educação das meninas, ou seja, sendo o pai viúvo, sua função consiste
em sustentar a casa financeiramente.

Como já foi dito, Tali é descrita como uma menina tímida que passa a maior parte do
dia no quarto. Quando finalmente a convencem de ir a um evento, com Angel, Gertru e
Manolo, amigo de Angel, ela se sente desconfortável pelo simples fato de ter que se
reportar aos outros, além de que os assuntos não lhe interessavam.

Angel le preguntó a Manolo que qué le parecía de su novia y él hizo muchas alabanzas
de su belleza, con gracia y desparpajo. Tali era incapaz de mirarles a la cara a ninguno
de los tres. […] “Que no hablen de mí” —se repetía intensamente con las uñas clavadas
en las palmas. “Que no me hagan caso ni me pregunten nada”. (MARTÍN GAITE,
1958, p. 66)

Deve-se considerar que o mundo do qual Gertru agora faz parte não corresponde mais
ao que Natalia está inserida, a melhor amiga, agora é uma mulher prestes a se casar e
isto exige movimentos sociais distintos dos de uma estudante. Tal mudança de posição

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faz com que as duas se afastem no decorrer da narrativa e, durante as férias, Natalia se
vê mais sozinha do que nunca, de forma que seu único interlocutor e refúgio é o diário
que mantém. Pode-se imaginar esta espécie de fazer literário como um dos refúgios que
a personagem encontra em meio à vida na província e aos costumes que esta determina,
o que reforça a noção da literatura como um espaço de liberdade dentre as ações que se
espera que as mulheres cumpram.

Como a escrita é um ato solitário, estar sozinha não se configura como um problema
para Tali, que o afirma quando o casal de amigos se levanta para dançar, durante o
evento já citado. Ela fica na companhia de Manolo Torres, amigo de Angel, que tenta
levá-la à pista de dança, mas como não obtém sucesso, este retira-se para escolher outro
par.

Al quedarse sola, sentía Natalia que le zumbaba todo el local vertiginosamente


alrededor. […] salió a la calle. Se sentía arrugadas las medias de cristal, arrugado el
vestido de seda rojo. […] El cielo estaba moteado de vencejos altísimos, blanco,
inmenso, como desbordado de una gran taza. Natalia respiró fuerte mientras se alejaba
hacia calles tranquilas. Enfiló la de su casa que hacía un poco de cuesta. Todavía
llevaba dentro de la cabeza el eco de la música estridente y confusa de la fiesta.
(MARTÍN GAITE, 1958, p. 70-71)

Este trecho mostra o desencontro entre a personalidade de Natalia e as atividades


corriqueiras, destinadas aos jovens de uma cidade provinciana. Ela não se reconhece em
tais práticas e, por isso, prefere ir embora, em direção às ruas tranquilas.

Outro momento em que se demonstra o contraste entre esta personagem e as demais,


passa-se no interior de sua casa, quando Julia, uma de suas irmãs, entra em seu quarto
para conversar enquanto espera Mercedes convencer a tia para que possam ir para uma
reunião no hotel da cidade. A verdade é que Julia também não gostaria de sair – pois
está comprometida com Miguel – e aceita o convite de Federico Hortal, apenas por
pressão de Mercedes – que o vê como um novo pretendente possível – assim, enquanto
espera: “Le daban ganas de escaparse” (p. 157) e o lugar escolhido como abrigo é
justamente o quarto da irmã mais nova.

Natalia estaba echada en la cama con unos folios de papel y lápices de


colores.
— ¿Qué haces?
— Un mapa de cultivos. ¿No habéis salido?

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— No. A lo mejor salimos ahora. A ver, ¿qué es eso? ¿espigas?
— Sí. Las espigas se ponen en los sitios de trigo, y racimos donde se da la vid.
Está muy mal pintado.
— ¿No te aburres aquí sola?
— Yo no.
— Los domingos se aburre una tanto.
— Lee algún libro. ¿Quieres que te dé algún libro?
— No, no. A lo mejor salimos. (MARTÍN GAITE, 1958, p. 157-158)

Aqui se vê como cada uma lida com o tempo, Julia se entedia com as horas que
sobram quando não há passeios programados e Natalia as aproveita lendo ou estudando,
duas formas de se proteger de um sentimento de insatisfação. Além disso, o tipo de
conversa alude ao que Mercedes Carbayo Abengózar pontua como um diálogo sem
comunicação, com frases feitas e um tipo de linguagem que elimina a necessidade de
expressar sentimentos (CARBAYO ABENGÓZAR, 1998). Neste caso, o leitor tem
consciência do conflito que aflige Julia, porém esta não o compartilha com a irmã mais
nova e a interação é pautada por perguntas e respostas sobre o trabalho escolar que
pouco acrescentam para a relação entre as duas. Quando se vislumbra uma
aproximação, a possibilidade de dividir um livro, um objeto pessoal de Natalia, Julia o
nega e a conversa faz um movimento circular, terminando da forma que inicia, ou seja,
todas as palavras trocadas foram inócuas.

Enquanto em boa parte das conversas de Entre visillos há pouca troca de informações e
ideias, em El cuarto de atrás toda a trama está calcada em um diálogo entre a
personagem C, aparentemente uma representação da própria autora, e o homem de
negro, um ouvinte que traduz muito bem o interlocutor sonhado por Miguel de
Unamuno, citado por Martín Gaite em El cuento de nunca acabar

No sé hablar —escribió Unamuno en De esto y aquello— si no veo unos ojos que me


miran y no siento detrás de ellos un espíritu que me atiende. (MARTÍN GAITE, 2009,
p. 115)

Parece pertinente destacar que o fato deste romance trabalhado a base do intercâmbio
de ideias, em que circula, portanto, muito conhecimento, tenha como personagens
centrais um homem e uma mulher, pois figura como uma superação da barreira
existente anteriormente – à época do cortejo – em que havia uma incomunicação entre
os gêneros, devido à falta de acesso à educação para as mulheres. Entretanto, há que se

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ressaltar, que em Entre Visillos diversas conversas apresentam resquícios da época
comentada, como o diálogo entre Gertru e Angel apresentado acima. Também é
importante levar em consideração que a maior parte das interações deste mesmo
romance – excetuando as conversas entre Alicia e Natalia e Elvira e Pablo – são
demonstrações de uma classe média alienada, que não deixa transparecer preocupações
acerca do regime franquista, sendo as únicas alusões à ditadura um retrato de Franco na
parede do Instituto e a presença de soldados na praça da cidade, que, por constituírem a
cena cotidiana, não são mais notados.

Em El cuarto de atrás acontece o contrário e a morte de Francisco Franco é o fio


condutor dos relatos narrados sobre o processo literário da autora, como escrito por De
Marco:

O romance constitui um ponto de inflexão na trajetória literária da autora e alude a um


ponto também de inflexão da História do país, uma vez que nasce da imagem do enterro
de Franco na tela da televisão. (DE MARCO, 1999, p. 184)

Além do processo literário, há acontecimentos sobre a vida da autora, uma das


integrantes da chamada “generación de los niños de la guerra”, grupo reconhecido por
escrever, em geral, obras preocupadas com a realidade social do país. Assim, é possível
ver como as mudanças produzidas pela Guerra Civil e também pelo período posterior a
esta, o pós-guerra, influenciaram a maneira de viver da autora.

Suas declarações a respeito das imposições do regime e das representações femininas a


revelam também como uma “chica rara”. Em um trecho, ela compara sua atitude atual
com suas ideias passadas e, em forma de diálogo, se justifica por estar realizando um
afazer doméstico: “Anda que también tú limpiando, vivir para ver […] Gracias, mujer,
pero no te preocupes, de verdad, que sigo siendo la de siempre” (p. 74-75).
Em Desde la ventana, ela sugere que muitas escritoras eram tidas como chicas raras

Algunas de estas mujeres de posguerra que escribieron sobre la “chica rara” eran, a su
vez, chicas a las que alguna vez los demás habían llamado alguna vez raras, en general,
porque se juntaban con chicos raros. De extracción casi siempre burguesa y
provinciana, buscaban en la gran ciudad de sus sueños, más que la aventura o el amor,
un lugar en la calle y en el café y en la prensa junto a sus compañeros de generación.
(MARTÍN GAITE, 1987, p. 108)

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A procura deste lugar na rua e no café, demonstra o desejo de se livrar do
encerramento historicamente imposto, também se contesta a separação entre os gêneros,
que é fortalecida pela ideologia franquista. Subentende-se a vontade de estar entre os
companheiros, falando e fazendo literatura como uma das alternativas à opressão do
regime. Em El cuarto de atrás, C. narra a vontade de fugir do espaço em que está
inserida e explica

Como tampoco me atrevería nunca a fugarme a la luz del sol, lo sabía, me escaparía por
los vericuetos secretos y sombríos de la imaginación, por la espiral de los sueños, por
dentro, sin armar escándalo ni derribar paredes, lo sabía, cada cual ha nacido para una
cosa. […] Fugarse sin salir, más difícil todavía, un empeño de locos, contrario a las
leyes de la gravedad y de lo tangible, el mundo al revés, sí. (MARTÍN GAITE, 1989, p.
126)

É notável como a imaginação – e as coisas que ela pode construir – são ferramentas de
resistência em uma situação política como a que se enfrentava. Isto mostra a
importância de se pensar a casa como um ambiente que deixa de ser opressor para ser
oficina literária, um instrumento sutil, porém poderoso, que mantém a integridade.
Além dessas observações, há mais uma leitura para o “fugarse sin salir”, que pode ser
tanto fugir sem sair de casa, quanto fugir sem sair do país, já que Martín Gaite não foi
para o exílio durante a ditadura franquista.

Em Entre visillos também há vários trechos que simbolizam o desejo de fuga. Alguns
deles são anseios da personagem Elvira, que também pode ser considerada uma “chica
rara”, mas não com o mesmo caráter pejorativo que Natalia, já que esta frequenta os
círculos sociais. Elvira é retratada como uma jovem diferente das outras porque expõe o
que pensa e tem amigos do sexo masculino, mas apesar de sua insatisfação com a
sociedade ser relatada ao longo do romance, ela não passa por um movimento de
transição, mas sim se contenta com o casamento com Emilio – ainda que esteja
apaixonada por Pablo –, porque vê neste uma espécie de refúgio.

Em um dos trechos, ela está deitada na beira do rio e Pablo, narrador em primeira
pessoa da passagem, que caminhava por ali, a encontra.

Me escurrí hasta quedar sentado a su lado, le pregunté si se encontraba mal o le pasaba


algo.
— No, nada, solo estoy deprimida. Me gustaría irme lejos, hacer un viaje largo que
durase mucho. Escapar.

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— ¿Escapar de qué?
—De todo. — dijo; y suspiró. (MARTÍN GAITE, 1958, p. 136)

Em seguida, como ele começa a folhear o livro que ela havia levado para seu
momento de afastamento da cidade, ela recita um poema de Juan Ramón Jiménez
porque o outro diz não conhecer o poeta.

Mis raíces, qué hondas en la tierra,


Mis alas, qué altas en el cielo,
Y qué dolor de corazón distendido.

Lo recitó sin leerlo, aunque tenía el dedo en las líneas, con voz emocionada.
(MARTÍN GAITE, 1958, p. 136-137)
O poema XLIV do livro Eternidades remete ao conflito entre estar no solo e no céu
ao mesmo tempo, o que engendra um coração distendido, sentimento parecido ao
anunciado por Elvira que gostaria de escapar do lugar que habita e pôde se distanciar,
fisicamente, apenas indo até o rio, mas o livro que levara consigo, foi responsável pelo
abrigo imaginário.

Também é um abrigo imaginário a Ilha de Bergai inventada por C. e uma amiga


durante os tempos de escola. Esta amiga é descrita de maneira a se diferenciar das
outras pessoas com quem conviveu a narradora. Em um dos episódios, ela despreza o
entusiasmo da protagonista por um jogo de louça de brinquedo – elevado ao estatuto de
inalcançável, apesar de seu baixo preço, em razão da escassez monetária do momento –
dizendo que os brinquedos comprados a entediavam e que sua preferência era brincar
com os inventados. Leitora de Robinson Crusoé, é ela quem sugere que ambas criem
uma ilha onde possam inventar o que quiserem.

Ninguna niña tenía una caligrafía así, valiente y rebelde, como lo era también ella,
nunca bajaba la cabeza al decir que sus padres, que eran maestros, estaban en la cárcel
por rojos, miraba de frente, con orgullo, no tenía miedo a nada. […] Nunca tenía miedo
ni tenía frío, que son para mí las dos sensaciones más envolventes de aquellos años.
[…] el Instituto era un lugar inhóspito, sin calefacción, ella nunca llevaba bufanda,
salíamos de clase en unos atardeceres de nubes cárdenas, comiendo nuestros bocadillos
de pan con chocolate, habíamos inventado una isla desierta que se llamaba Bergai.
(MARTÍN GAITE, 1989, p. 58)

A personalidade da amiga se distingue em relação a da narradora, nunca sentia medo,


nem frio e soube inventar uma maneira de fugir do parco período em que viviam.

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O nome da ilha é uma junção dos sobrenomes das criadoras e para chegar até lá
“bastaba con mirar a la ventana”, segundo a narradora este foi seu primeiro refúgio e a
amiga com quem o criou foi responsável por iniciá-la na arte da literatura de evasão (p.
183), daí, nota-se mais uma vez o papel da literatura como um espaço privilegiado para
suportar a situação produzida pela guerra. Para Roberta Johnson, a imagem da ilha
surge como um refúgio da mulher intelectual com dotes criativos, pois simboliza um
lugar calmo em que o fazer literário pode ser realizado sem perturbações.

Mi amiga me lo había enseñado, me había descubierto el placer de la evasión solitaria,


esa capacidad de invención que nos hace sentirnos a salvo de la muerte. (MARTÍN
GAITE, 1989, p. 195)

Pablo, o professor de alemão de Natalia e objeto de amor de Elvira – e posteriormente


da própria Natalia –, não necessariamente ensina a sua aluna o prazer da evasão
solitária, mas auxilia na trajetória pela qual ela passa até possuir maior consciência de
sua posição na sociedade e prefira estar fora e não dentro de casa.

O personagem não pertence à cidade em que os fatos ocorrem, mas foi seu morador
quando mais novo, durante suas caminhadas pelas ruas, nota-se um olhar estrangeiro em
direção às janelas das casas, uma atenção distinta das personagens femininas – como se
observará em breve - que traça o caminho do exterior para o interior.

Vi las traseras de las casas que daban a la vía, en lo alto de un terraplén escurridizo, las
ventanas abiertas y encendidas. Ventanas de cocina. Prepararían la cena. Era un barrio
de casas pobres. Por las ventanas salían voces agudas, de mujer. (MARTÍN GAITE,
1958, p. 37)

Pablo imagina como deve ser o ambiente doméstico na cidade em que acabou de
chegar, as mulheres na cozinha, preparando o jantar, obrigações típicas da época. A
princípio, sua visita também não passa de especulação e cria-se uma aura de mistério
sobre o motivo que o levou até ali. Esta resposta é obtida apenas no capítulo quatro, por
volta da página cinquenta, quando Pablo vai à casa de Elvira e Teo para obter
informações sobre o pai dos dois, Don Rafael, antigo diretor do Instituto, que tinha lhe
chamado para assumir o posto de professor de alemão temporário. A partir desse
momento, Pablo cai nas graças de Emilio que o percebe como uma pessoa misteriosa e
distinta, digna, portanto de sua companhia.

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Entre o primeiro dia de aula do Instituto e a chegada de Pablo à cidade há todo o
período de férias, em que Pablo conhece melhor alguns dos moradores do lugar, amigos
de Emilio, e também Rosa, cantora no casino, que vive no quarto ao lado da pensão em
que ele se hospeda. Quando se conhecem, ele diz que já sabia que ela dormia por perto,
mesmo que nunca a tivesse visto antes, outra vez denunciando sua personalidade
hermética. Rosa responde:

— Eso sí que tiene gracia — dijo —. ¿Es un acertijo? A mí me gustan los acertijos y tú
me intrigas. Quieres que me interese por ti. (MARTÍN GAITE, 1958, p. 78)

A forma como Pablo é admirado pelo seu caráter e história opacos contrasta com o
tratamento dado às mulheres que possuíam as mesmas formas de agir. O fato dele falar
pouco sobre sua vida é uma razão para que se estabeleça contato e o mistério seja
passível de desvendar. Esta construção alude, de alguma forma, aos protagonistas
masculinos das novelas rosa que, podiam ter suas identidades ocultadas até os últimos
capítulos da narrativa.

El hombre difícil y desconcertante también podía vivir aislado, pero en seguida se daba
cuenta de que aquella actitud interesaba a las mujeres, deseosas de interpretarla.
(MARTÍN GAITE, 1992, p. 155)

Definitivamente mais misterioso do que Pablo é o “homem de negro”, interlocutor, de


El cuarto de atrás. Para Isabel Roger,

El “hombre de negro” evoca en varias ocasiones a los héroes de las novelas rosa. Surge
en una noche de tormenta. Se desconoce su identidad aunque pudiera ser el Alejandro
que busca Carola. Se asocian a tan enigmático personaje ciertas actitudes de aquellos
héroes como las miradas y su conducta solícita y amable. (ROGER, 1986, p. 126)

Devido ao aspecto algo fantástico do livro não se pode afirmar se o “homem de negro”
é um personagem real ou apenas fruto da necessidade de comunicação da narradora – no
último capítulo, a protagonista é acordada pela filha e o homem de negro não está mais
lá, apesar disso, os copos utilizados para servir água e a caixinha dourada com as pílulas
que ele havia lhe oferecido, continuavam em cima da mesa.

O “homem de negro” se anuncia como um entrevistador, mas durante a conversa, a


protagonista percebe que ele não possui um gravador, não está tomando nota das
respostas que ela dá e nem lhe fez perguntas típicas, este fato faz com que ela se sinta
mais segura até para perder-se entre suas histórias, afinal, se as perguntas não são as

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usuais: “tampoco mis respuestas tienen por qué ser convencionales” (p.65). Desta
forma, mais relevante que sua existência é sua presença, pois esta produz um diálogo de
extrema importância por tratar-se de um ouvinte atento e interessado. Apesar de em
diversos momentos fazer as vezes de opositor e colocar a narradora em posição
defensiva, como se observa no trecho em que ela retoma o tema da literatura como
refúgio

— ¿Usted cree que yo tomo la literatura como refugio?


[…]
— Sí, por supuesto, pero no le vale de nada.
— Ningún refugio vale de nada, pero no se puede vivir al raso.
— Se puede intentar.
— Sería meterse en un laberinto.
— En un laberinto, bueno, pero no en un castillo. Hay que elegir entre
perderse y defenderse.
Iba a replicar algo, pero comprendo que sería seguirme defendiendo. Y
además a la desesperada, porque él sabe más esgrima que yo.
(MARTÍN GAITE, 1989, p. 56)

É possível considerar este e outros momentos em que ocorre a mesma situação como
uma autoridade masculina velada, que pode, perfeitamente, fazer parte da construção
deste personagem como reflexo de algumas relações entre homem e mulher, tal qual as
dos casais de Entre visillos, relações que, como já foi dito, não eram as esperadas
devido à propaganda positiva que se fazia do casamento.

O matrimônio era um evento de demasiada relevância social e muitas vezes,


simbolizava o final dos romances e dos filmes escritos durante o período em questão e
ainda que a narradora de El cuarto de atrás cultivasse o gosto pelas “novelas rosa”, ela
já se questionava a respeito do final parecido das histórias deste tipo.

¿Por qué tenían que acabar todas las novelas cuando se casa la gente?, a mí me gustaba
todo el proceso del enamoramiento, los obstáculos, las lágrimas y los malentendidos,
los besos a la luz de la luna, pero a partir de la boda, parecía que ya no había nada más
que contar, como si la vida se hubiera terminado; pocas novelas o películas se atrevían a
ir más allá ya decirnos en qué se convertía aquel amor después de que los novios se
juraban ante el altar amor eterno, y eso, a la verdad, me daba mala espina. (MARTÍN
GAITE, 1989, p. 92-93)

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Fica, desta forma, a sensação que já foi comentada anteriormente de que os “romances
terminam onde começa a vida” e, como as mulheres eram educadas para este
acontecimento desde muito novas, poderiam se frustrar ao descobrir que o companheiro
que escolheram não é perfeito como haviam imaginado, isto é o que ocorre com Gertru,
quando presencia Angel bêbado e lhe vem à mente a figura da irmã já casada, Josefina.

Josefina é a irmã mais velha de Gertru e seu namorado foi o primeiro representante da
espécie, tanto para a irmã mais nova quanto para Tali: “Era Oscar, el novio. El novio
con mayúsculas” (p. 242). Para vê-lo, Josefina contava com a cumplicidade da irmã
mais nova – já que os pais não aprovavam o romance devido à classe social de Oscar –,
que lhe dava cobertura para sair pela janela de seu quarto – enquanto estudava com Tali
-, levantando a cortina (el visillo).

Como se casou a contragosto da família, Josefina foi deixada de lado e passou a viver
uma realidade diferente da que tinha quando morava com os pais. Gertru presencia sua
nova maneira de viver ao visitá-la para fazer o convite da cerimônia de seu pedido de
casamento.

Vivía cerca del río en una casita modesta. Estaba haciendo un jersey para el niño, y
llevaba el pelo liso, recogido de cualquier manera, y las uñas sin arreglar. Acababa de
volver de un pueblo de la sierra donde vivían los padres de su marido; tenía mucho
desorden en la casa, y el niño estaba con la tosferina. (MARTÍN GAITE, 1958, p. 232)

A saída da classe média reflete na forma como Josefina se apresenta esteticamente, na


arrumação de sua casa e na saúde de seu filho. Já não há tempo, nem dinheiro para
cuidar de superficialidades como os cabelos e as unhas e não há criada que mantenha a
casa arrumada. A (des)ordem do lar, questão relevante e recorrente dentre as mulheres
de classe média alude para o fato de que este tipo de preocupação não tem espaço nas
castas mais baixas da sociedade, para quem, instruções como as descritas abaixo são
insignificantes:

Sobre todos los individuos que forman la familia se refleja el malestar que produce un
hogar mal organizado. La falta de higiene, el malhumor, la incomprensión, la
incompetencia, en fin, de la mujer son causas que producen gravísimos efectos. Los
hombres se dispersan y se alejan del medio doméstico repelidos por el mal ambiente.
Las mujeres se forman defectuosamente, equivocadamente…, el mal se extiende, se
generaliza y repercute en la sociedad, que adquiere hábitos de rebeldía, de desorden,

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pues los individuos llevan en sí el estigma de su mala educación, adquirida en el hogar.
(MORALES, 1944, p. 151 apud MARTÍN GAITE, 1992, p. 119)

É pertinente ressaltar e relembrar que estes assuntos também eram insignificantes para
as aristocratas do século XVIII e que a falta de interesse pela arrumação do lar e a
ociosidade foram alguns dos aspectos mais criticados para se realizar a desconstrução
daquele ideal de mulher e apoiar a ascensão do perfil burguês.

Textos, como o citado acima, são vestígios da luta encabeçada pelo governo
franquista contra a desordem propagada pela anarquia, já que a relevância do domínio
doméstico era essencial para o regime ditatorial, como foi aclarado anteriormente.
Entretanto, se tratando de classes menos abastadas, era uma propaganda sem grandes
repercussões, devido a diferença de prioridades entre um grupo e outro.

Josefina, entretanto, já havia estado em uma posição superior na pirâmide social e o


contato com a irmã, a faz relembrar de seus anos de solteira e de quando ouvia elogios
sobre seu estilo. Durante a conversa, ela costura um suéter para o filho e devaneia,
olhando para a janela.

Se quedó pensativa, mientras contaba los puntos que le faltaban para empezar a
minguar. Se había equivocado. Los deshizo y siguió más despacio. A cada vuelta y
antes de empezar la siguiente, levantaba los ojos con gesto de descanso y miraba la
ventana. (MARTÍN GAITE, 1958, p. 234)

A janela é o elemento responsável por conectar a casa ao mundo exterior, dela, é


possível ter ideia do que acontece do lado de fora e levando em conta o contexto
histórico, ela se transforma em um símbolo do desejo de abandonar a casa enquanto
ambiente opressor. Além disso, há uma ligação entre esta janela e a que ela pulava, do
quarto da irmã, após levantar a cortina, outra parte importante da construção domiciliar
e do simbolismo da obra em questão, que afinal, se chama Entre visillos, remetendo à
relação dúbia entre interior e exterior. Sobre o título e sua ligação com o item
doméstico, Valéria De Marco escreve,

O “visillo” – a cortina transparente que impede a visão de fora para dentro, mas garante
àquele que está dentro o poder de ver tudo que se passa fora - é uma imagem poderosa
da onisciência vigilante e imperativa da perspectiva e dos valores do mundo doméstico:
ele molda as relações com o mundo e está em guarda para garantir seus valores. A
leveza e a transparência do “visillo” mascaram a fortaleza construída pela classe média

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provinciana para proteger-se de ares diferentes e de sombras de desordem, para lutar
silenciosamente, pela conquista de hegemonia. (DE MARCO, 1999, p. 206)

Esta onisciência vigilante se traduz, muitas vezes, na imposição dos valores familiares
que permeiam grande parte dos ambientes do lar. Porém, em geral, o quarto é um
espaço em que se está a salvo dos olhares e isso ajuda a pensar porque este é o lugar
preferido de Natalia, no começo do livro, distante das áreas de socialização como a sala,
assim como era o quarto de Gertru o cômodo que ela e a amiga estudavam e onde,
posteriormente, Tali estudará com Alicia.

Como também denuncia o título, El cuarto de atrás foi um recinto fundamental para a
formação de Carmen Martín Gaite, pois era o local das brincadeiras, a área em que tudo
era permitido porque pertencia a ela e à irmã. Foi o primeiro quarto que ela pôde
chamar de seu e onde a imaginação podia fluir sem preocupações.

Era muy grande y en él reinaban el desorden y la libertad, se permitía cantar a voz en


cuello, cambiar de sitio los muebles, saltar encima de un sofá desvencijado y con los
muelles rotos al que llamábamos el pobre sofá, tumbarse en la alfombra, mancharla de
tinta, era un reino donde nada estaba prohibido. Hasta la guerra, habíamos estudiado y
jugado allí totalmente a nuestras anchas, había holgura de sobra. Pero aquella holgura
no nos la había discutido nadie, ni estaba sometida a unas leyes determinadas de
aprovechamiento: el cuarto era nuestro y se acabó. (MARTÍN GAITE, 1989, p. 187)

Com o avanço da escassez produzido pela guerra e pela política de economia difundida
pelo governo, o quarto foi gradualmente invadido pelos outros moradores e
necessidades de primeira ordem, e se converteu em despensa. Como o processo foi
gradativo, por um tempo, houve uma “convivencia agria” (p.189) entre as brincadeiras e
a subsistência, que atenta para a vitória desta em detrimento daquelas e estabelece uma
ponte entre a situação de Josefina, que por prioridades diferentes, não pode tratar de
assuntos superficiais, assim como a amiga da narradora de El cuarto de atrás, que soube
inventar uma maneira de se divertir em meio à escassez da guerra.

A dedicação aos estudos em geral e literários foi vista, muitas vezes, como elemento
acessório à sociedade, principalmente, para as mulheres. A relação que existe entre
Natalia e Alicia, colega que assume o lugar de Gertru, mostra que estas preocupações
são assunto da classe média.

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Em uma conversa com o atual diretor do Instituto, don Salvador, Pablo se informa
sobre o funcionamento do aparato educacional da província e tem notícia de que a
instituição em que leciona é frequentada por muitas alunas provenientes dos povos da
região, assim, o diretor lhe diz que Natalia é uma das poucas estudantes de boa família
que ainda frequentam o colégio, já que, devido à mistura social, não era de bom tom ter
a filha matriculada ali. Esta dimensão fica mais clara no trecho em que Natalia visita a
casa de Alicia e o ambiente descrito parece desorganizado – a madrasta de Alicia faz
trabalhos de costura e o material fica espalhado pela casa –, além de se notar a
hostilidade da dona da casa pelo fato de as duas estarem estudando, tanto que, ao final
do capítulo, a lição é interrompida pelo pedido de que Alicia vá a cozinha quando
termine (p. 190). Natalia também estranha o barulho que invade o quarto, pois a divisão
de ambientes era feita apenas por uma cortina:

Desde su cuarto, que era una alcoba pequeña, se oía todo el ruido del secador. Le
pregunté que si no le molestaba para estudiar. Tenía encima de la cama la tabla de
logaritmos abierta y cuartillas.
— ¿El ruido ese? Que va; yo ya ni lo oigo. (MARTÍN GAITE, 1958, p. 188)

Esta passagem remonta aos comentários de Virgínia Woolf sobre a importância de se


ter um teto só para si, estabilidade financeira e tempo para se concentrar nas atividades
de escrita. O impacto do ambiente em que Alicia vive está em suas notas, que, segundo,
Natalia eram sempre baixas, ainda que a colega estudasse bastante. Em outro capítulo,
em que Alicia vai estudar na casa de Natalia, as duas conversam sobre o futuro e aquela
conclui:

— [...] nuestra vida va a ser muy distinta. Basta ver las cosas que escribes tú, y lo que
piensas y eso. Verás como luego, dentro de un par de años, no seremos amigas ya, no lo
podremos ser.
— ¿Pero por qué?
— Porque sí. Lo verás. (MARTÍN GAITE, 1958, p. 221)

Além disso, também fica clara a distinta maneira de testemunhar os acontecimentos.


Tali, por ter mais tempo para o ócio, reflete acerca do que está à sua frente ou do que
lhe aconteceu – através da escrita do diário –, enquanto Alicia nota as coisas como
naturais, sem grande lirismo.

Le pregunté que por qué no hacía ella diario y dijo que no me enfadara, pero que le
parecía cosa de gente desocupada, que ella cuando no estudia tiene que ayudar a la

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madrasta a hacer la cena y ponerle bigudís a las señoras. Otro día le hablé del color que
se le pone al río por las tardes, que si no le parecía algo maravilloso, a la puesta del sol,
y me contestó que nunca se había fijado.
— ¿Pero cómo puede ser? ¿No se ve el río desde tu ventana?
— Pues sí. Pero nunca me he fijado. A mí me parece tan natural que ni me fijo. Un río
como otro cualquiera. Agua que corre. (MARTÍN GAITE, 1958, p. 221)

Apesar das diferenças sociais, Natalia se torna amiga de Alicia porque se mostra
diferente das outras meninas - fala pouco e não dá risada o tempo todo (p. 181) –, mas
provavelmente por se encontrar em uma posição financeira divergente e ver o mundo de
outro lugar. É interessante pensar que a personalidade de Alicia se assemelha, de
alguma forma, a da amiga da narradora de El cuarto de atrás, as duas apresentam um
jeito diferenciado de lidar com as situações, falam o que pensam, talvez por não
compartilharem dos ritos de classe média.

Outro exemplo, é a forma como Alicia se comporta frente uma figura masculina não
íntima, já que quando o professor Pablo as acompanha para casa, Natalia fica muito
tímida, um possível resquício da (não) convivência entre homens e mulheres,
promovida pela Igreja e pelo Estado, para reparar os “danos” de aproximação dos
gêneros durante a Segunda República, e que começou com a extinção do ensino misto.

Yo iba muy tímida. Me admiraba la serenidad con la que Alicia atendía y decía alguna
cosa para contestarle, levantando la cara hacia él. (MARTÍN GAITE, 1958, p. 182)

Após este primeiro passeio com o professor e Alicia, Natalia reage de maneira distinta
à ideia de voltar ao espaço domiciliar fechado e, depois de negar o convite de Pablo
para ir a um café, se nega a entrar para ficar trancada em casa, saindo pela cidade, até
chegar à casa de Alicia, o trecho citado parágrafos acima. As caminhadas e conversas
com o homem lhe ajudarão a obter consciência de sua condição social. É possível
observar o desenvolvimento de Natalia comparando a primeira vez que o professor lhe
inquere sobre a carreira que ela gostaria de seguir e em que suas respostas demonstram
que ela nunca se inclinara sobre o assunto, e uma outra conversa, em que ela deixa
transparecer como o dinheiro influenciou sua família. Também é preciso ter em mente,
o fato de Pablo parecer não estar inteirado sobre como funciona a vida na província, ou
as diferenças existentes entre homens e mulheres, o que permite que seus
questionamentos sobre este assunto sejam frequentes.

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Al salir de la tienda me hizo la primera pregunta directa, que qué carrera pensaba
hacer cuando acabase el bachillerato. Le dije que no sabía, que ni siquiera sabía si iba a
hacer carrera.
— ¿Cómo? ¿Estamos en séptimo y todavía no lo sabe?
Le expliqué que dependía de mi padre, que le gustaba poco.
— ¿Qué es lo que le gusta poco?
— Los estudios en general, no sé; que esté todo el día fuera de casa. Como soy la más
pequeña.
— ¿Y qué que sea usted la más pequeña? ¿Qué relación tiene?
— Como las otras hermanas no han estudiado carrera.
— Porque no habrán querido. ¿O les gustaba?
— No sé.
Me siguió preguntando cosas, y lo de papá, no lo entendía, aunque la verdad es que
tampoco lo entiendo yo. Pero él menos todavía, claro, porque no conoce a papá y no ha
oído las conversaciones que se tienen en casa y las críticas que se hacen, y eso.
(MARTÍN GAITE, 1958, p. 183-184)

Neste primeiro contato acerca de sua vida privada, Tali responde de maneira vaga,
mas já na segunda vez que conversa com o professor, ao final do curso, se sente mais à
vontade para explicar e tecer hipóteses sobre o funcionamento de sua casa, mas ainda
não tem uma posição sobre a permissão ou não para fazer o bachillerato¹. Desta vez, ela
aceita o convite para ir a um café e enquanto toma uma taça de vinho, o assunto
continua sendo seu pai. Pablo lhe pergunta porque seu pai, aparentemente tão bruto,
permite que ela frequente as aulas do Instituto e não a mandou para um colégio onde
haja maior seleção de público, ainda que se aprenda menos. Ela então explica que as
coisas mudaram quando seu pai começou a ganhar dinheiro:

— Es que papá antes no era así, cuando yo empecé a estudiar. Antes eso de la gente
fina no le importaba nada, se reía.
Empezaba a tener menos timidez para hablar, y me atreví a seguir haciéndole preguntas.
Me gustaba oírla explicarse, las mejillas coloradas, los ojos en el techo, notar el gozo
que iba experimentando en hacerme ver claras las cosas de su casa. Como si dijera bien

___________

1. O bachillerato é uma etapa educacional espanhola que habilita os estudantes


para o ingresso na universidade.

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una lección. Se puso a contarme viejas historias. Su padre se había hecho rico en pocos
años con las minas de wolfran. Antes tenía trabajo en una finca y las hermanas mayores
se habían educado con una tía; ella vivía con el padre en la finca y estudiaba por libre en
el Instituto. Cazaba y montaba en bicicleta. Su padre y ella se entendían bien entonces,
cuando estaban en el campo, hasta que empezaron a tener dinero y se vinieron todos
juntos a vivir. Desde entonces, la tía era la que mandaba en todos y se había empeñado
en civilizarla a ella y en refinar a su padre, que ahora era un señor muy engreído por ser
rico. Me habló de sus hermanas mayores, de una de ellas, que tenía novio en Madrid, y
en la casa no les gustaba. Me los figuraba a todos a las horas de la cena, las pequeñas
discusiones, alguna lámpara roja y las contraventanas bien cerradas en el silencio, los
pasos en la calle. Y a ella entre aquellas paredes. (MARTÍN GAITE, 1958, p. 214-215)

O relato de Natalia, - responsável por desenvolver outra consideração de Pablo a


respeito da vida doméstica, enquanto volta para a pensão “me imaginaba la vida
estancada y caliente que se cocía en los interiores” (p. 216) - narrado por Pablo, mostra
a importância da ascensão social, já que antes de alcançar o patamar de classe média, a
família da menina não estava interessada em manter qualquer aparência, mas a partir do
momento que faz parte deste estrato social, a pessoa mais relevante da casa passa a ser a
tia, responsável pela civilização e refinamento, conforme o tratado previamente
delimitado. Comparando os dois trechos, percebe-se que o impacto da formação distinta
de Natalia e de suas irmãs, já que as outras, criadas pela tia, não manifestaram desejo de
estudar, porque provavelmente foram orientadas para o casamento. Tali, por ter tido
contato com outro tipo de educação, menos religiosa, despertou para o desejo de possuir
uma carreira, ainda que a coragem para enfrentar seu pai só surja depois das conversas
com o professor de alemão e denuncie sua paixão por ele, já alertada por Alicia que
entendia o casamento como uma preocupação da classe média. Vale destacar que após o
momento em que desata a falar para o pai, Tali pontua “Me he dormido muy tarde,
haciendo diario” (p. 230), o que aponta, outra vez, para este gênero literário atuando
tanto como interlocutor quanto como refúgio.

O amadurecimento, que também se dá pela reflexão da escrita, de Natalia passa por se


apaixonar pelo professor – ou pelo o que ele representa – e ser deixada, no fim do livro,
quando este resolve voltar para Madri, para não atrapalhar o casamento de Elvira e
Emilio.

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É interessante que a lucidez venha através do encontro com um interlocutor “real”,
enquanto trabalho de exercício do logos – que começa de forma solitária – e ganha força
ao ser compartilhado. Isto também acontece em El cuarto de atrás em que a suposta
entrevista auxilia a protagonista a revisitar sua história e, em algumas passagens, o
ouvinte é o gatilho para um fluxo de consciência surdo do qual o outro não participa,
são as fugas comentadas anteriormente e condenadas pela Seção Feminina, talvez por
representarem uma viagem interior reflexiva demais para o momento.

Um destes momentos acontece quando C. divaga sobre uma viagem a Burgos realizada
quando era adolescente. O pai recebeu a informação de que seu carro, apreendido
durante a Guerra Civil, estava em um depósito em Burgos e se dirigiu àquela cidade
levando a filha, o irmão e a sobrinha. Era a primeira vez que a personagem dormia em
uma cidade diferente com uma amiga e isso despertou um desejo de independência. No
quarto em que dormiram, sozinhas, a janela deixava entrar o frio, mas também uma
sensação incomparável de liberdade (p. 110)

Era una alegría loca, inconveniente y egoísta, se basaba en que nos habían dejado solas,
en que no se habían desentendido de si apagábamos la luz o no, de si cerrábamos la
ventana o no, en que no amenazaban con volver, porque estaban pensando en otra cosa.
(MARTÍN GAITE, 1989, p. 110)

Esta alegria louca, por sua vez, culminou no anseio de tomar a rua e C. propõe à prima
que saiam para um passeio escondido, que apesar de curto representa a distinção entre a
realidade prosaica e a fantasia: “andar era como volar” (p. 112). A característica
corrobora a ideia de que a autora foi também uma chica rara que nega a imposição do
ambiente domiciliar enquanto prisão, pois para que se configure enquanto espaço de
criatividade, como era o quarto de trás, é necessário que haja o desejo de estar em
sintonia com os pensamentos para transformá-los em reflexão ou literatura.

3. Considerações finais

É desta forma, sendo um espaço para desenvolver conclusões, que o espaço doméstico
é importante para a literatura, quando funciona como refúgio de um tempo em que a
pressa é predominante, quando se apresenta como um lugar em que há vez para a
imaginação. El cuarto de atrás e o diário de Tali foram uma ponte física para o
verdadeiro refúgio, a literatura, que mesmo sendo imaterial simboliza um dos mais

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eficientes abrigos tanto para os que ainda não perceberam o que está à sua volta, quanto
para os que querem refletir a respeito do que veem e do que viram.

Além disso, observa-se a importância do espaço, da literatura, da solidão e o trabalho


com o logos no que diz respeito às representações femininas abordadas ao longo do
trabalho, pois estes elementos auxiliam no processo de amadurecimento que é a tomada
de consciência sobre a posição e a função social.

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