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ITABAIANA
2019
JOSÉ ALDO BARRETO JÚNIOR
ITABAIANA
2019
CONTRIBUIÇÕES DA ANÁLISE CRÍTICA DO DISCURSO NA LEITURA DO
GÊNERO TIRA NO LIVRO DIDÁTICO
RESUMO
Este artigo tem por objetivo analisar o tratamento dado ao gênero tira no livro didático, tendo
como corpus três tiras presentes no livro Português Linguagens do 8º ano, de William Roberto
Cereja e Thereza Cochar Magalhães. Serão analisados os aspectos discursivos e os
direcionamentos interpretativos presentes no referido livro, a partir dos questionamentos
presentes na obra em referência ao gênero abordado. A metodologia adotada para análise do
discurso nas tiras baseia-se na Análise Crítica do Discurso (ACD), principalmente nas teorias
de Fairclough (2001), um de seus maiores expoentes. Segundo essa teoria, o discurso deve ser
analisado a partir de uma teoria tridimensional, a qual leva em consideração o texto, a prática
discursiva e a prática social. Sendo assim, mostraremos que, no livro didático já citado, as tiras
aparecem apenas em questões interpretativas com pouco direcionamento para a construção de
sentido, principalmente no que se refere à ideologia presente nos discursos, bem como, e
principalmente, como pretexto para uma análise gramatical superficial. Portanto, cabe uma
mudança de atitude dos autores de livros didáticos em relação ao tratamento dado ao gênero
textual tira, com propostas de atividades que enfatizem uma abordagem crítica do leitor em
relação ao texto.
PALAVRAS CHAVE: livro didático, tira, análise do discurso.
INTRODUÇÃO
O livro didático ainda é, sem dúvida, o instrumento de ensino mais usado em sala de
aula, além de ser suporte para os mais variados gêneros textuais, especialmente o livro de língua
portuguesa. De um modo geral, a grande maioria dos livros didáticos introduz cada um de seus
capítulos com um texto, que será explorado com questões de compreensão e interpretação, e
servirá depois para análises gramaticais. Poucos fogem a essa regra, pois procuram estar
alinhados às diretrizes dos PCN (Parâmetros Curriculares Nacionais) (BRASIL, 1998), para os
quais a unidade básica do ensino só pode ser o texto. A grande questão, no entanto, não é o
quanto esse tipo de livro traz de diversidade de gêneros, mas como esses textos estão sendo
explorados na esfera discursiva, uma vez que o texto não envolve apenas aspectos linguísticos
e semânticos, mas também sociais.
Dessa forma, procuraremos analisar neste artigo o tratamento dado ao gênero textual
tira no livro didático. Para isso, definimos como corpus deste trabalho três tiras presentes no
livro didático do 8º ano do Ensino Fundamental, de William Cereja e Thereza Cochar. A escolha
do referido livro se deu pelo fato de ser este o que mais comumente usa tiras em todas as
unidades, comparado a outros que analisamos, o que ratifica a importância que esses autores
dão à abordagem de textos multimodais. Contudo, é preciso que façamos uma reflexão sobre o
tratamento dado ao gênero tira quanto aos seus aspectos discursivos e aos direcionamentos
interpretativos por meio dos questionamentos expostos no livro para que os alunos tenham
condições de construir sentidos de forma crítica e não se submetam a regras que os tornem seres
assujeitados.
Quanto à opção pelo gênero tira, justificamos pelo fato de hoje ser comum o uso desse
gênero textual para fins didáticos, o que antes não ocorria, uma vez que era esporádica a sua
aplicabilidade em qualquer esfera educacional. A explicação dessa expansão se encontra no
fato de as tiras serem citadas nas orientações dos PCN, nos anos 90, como um gênero a ser
trabalhado para leitura e escrita, impulsionando a sua presença nos livros didáticos.
Nesse sentido, a ADC faircloughiana tem como foco de sua pesquisa científica a
mudança social a partir da mudança discursiva, uma vez que o teórico defende que o discurso
constitui as práticas sociais, que, por sua vez, constituem o discurso. Assim, o discurso e as
práticas sociais estão tão imbricados que o discurso é considerado um dos elementos
constitutivos dessa prática. Em outras palavras, numa relação dialética, o discurso ideológico
que reproduzimos é produto das nossas vivências sociais, assim como tais vivências são produto
dos discursos que ouvimos. A questão relevante é o nível de consciência do sujeito acerca
dessas relações, ou seja, se as pessoas têm ou não consciência da razão pela qual as coisas são
do jeito que são ou se acreditam na naturalidade dos valores que marcam os encontros
discursivos.
São perceptíveis as mudanças ocorridas nos livros didáticos ao longo dos anos. Entre
elas, destaca-se a diversidade de textos, o que vai ao encontro das exigências contextuais em
que hoje os alunos estão inseridos. No entanto, os PCN enfatizam que, além da heterogeneidade
textual, é preciso que o tratamento didático também seja heterogêneo, uma vez que os textos
possuem estilos e funções diversas, que acompanham o contexto em que ocorrem.
No eixo dessas questões, entra a importância da análise discursiva das tiras que
compõem o livro didático, a partir da observação do livro de onde foi retirado o corpus deste
trabalho. Sabemos que, por muito tempo, esse gênero foi pouco apreciado em sala de aula
devido ao preconceito de que a brevidade desses textos poderia não favorecer o letramento,
entendido como o desenvolvimento de habilidades de uso do sistema convencional da escrita
em atividades de leitura e escrita, nas práticas sociais que envolvem esse sistema (SOARES,
2004). O surgimento de novas tecnologias, no entanto, contribuiu para que as pessoas
passassem a se informar e a interagir por meio de uma multiplicidade semiótica presente em
textos que antes não faziam parte do seu cotidiano.
Segundo Ramos (2017), as tiras reúnem duas características que colaboram para a sua
inclusão no ensino brasileiro: o tamanho diminuto, que facilita a sua reprodução e edição; e a
densidade de conteúdo, devido à quantidade de informações que reúne em curto espaço. “Não
por acaso, elas figuram em livros didáticos, apostilas, vestibulares, em documentos oficiais
relacionados à educação” (RAMOS, 2017, p. 169). Nessa perspectiva, o nosso propósito é
analisar os direcionamentos dados à leitura e interpretação do gênero em estudo, à luz da ACD,
pois isso revelará o papel dado ao texto na construção do sujeito leitor.
O livro de Cereja e Cochar traz trinta e nove tiras de diversos autores, distribuídas ao
longo de suas sessões, abordando os mais diversos temas. Na verdade, percebe-se que a maioria
das tiras escolhidas não se deve à temática discursiva, mas à estrutura textual em seu nível
superficial. Tal afirmativa se justifica pela funcionalidade dada às tiras pelos autores no livro
em questão: 17 tiras servem como pretexto para o ensino dos aspectos gramaticais da língua,
com poucas questões interpretativas; 11 tiras são usadas unicamente para o estudo da gramática;
4 têm um papel meramente ilustrativo, sem nenhuma questão direcionada a elas; e apenas 7 têm
um direcionamento voltado para a interpretação, mas que não exploram todas as semioses
responsáveis pela construção de sentido presentes nessas tiras.
Assim, percebemos que as tiras são usadas quase que exclusivamente com o propósito
de ensinar regras gramaticais que fazem parte da língua padrão, servindo como instrumento
para esse ensino. Considerando que normalmente esse gênero traz em sua composição uma
crítica pelo viés do humor, é preciso lembrar que sua interpretação depende da leitura de pistas
linguísticas e visuais, que se articulam ao contexto situacional de sua produção e circulação, e
dos conhecimentos prévios que se espera que o leitor tenha. Sem essa leitura, perde-se a
possibilidade de mergulhar nos sentidos atravessados pela ideologia e pela história subjacentes
ao discurso presentes nessas tiras, além de se ignorar todos os mecanismos verbais e imagéticos
mobilizados para esse fim.
55Figura 1, fonte: CEREJA, William Roberto e MAGALHÃES, Thereza Cochar. Português: Linguagens. 8º ano.
9ª edição reformulada. São Paulo: Editora Saraiva, 2015, p. 17
Figura 2, fonte: CEREJA, William Roberto e MAGALHÃES, Thereza Cochar. Português: Linguagens. 8º
ano. 9ª edição reformulada. São Paulo: Editora Saraiva, 2015. P. 243
Figura 3, fonte: CEREJA, William Roberto e MAGALHÃES, Thereza Cochar. Português: Linguagens.
8º ano. 9ª edição reformulada. São Paulo: Editora Saraiva, 2015. p. 246
Temos acima um bom exemplo do uso da tira como pretexto para o ensino da gramática,
com um exercício voltado quase que exclusivamente para a verificação do que o aluno aprendeu
sobre o conteúdo apresentado. Perde-se, com isso, a oportunidade de explorar tanto a linguagem
verbal quanto a imagem para a produção de sentido, além de trazer para a sala questões
implícitas no discurso proferido pelas personagens.
É interessante notar que nas falas de Helga e Hagar já se pode perceber os papéis dos
sujeitos frente ao casamento: a mulher é a que cuida do homem, que arruma a casa, enquanto a
este não é dada nenhuma responsabilidade de contribuir com essas tarefas, ou de amenizar esses
afazeres. Para a formulação dos sentidos presentes na tira, torna-se necessária a compreensão
de conceitos e reflexões mobilizados não só pela materialidade linguística, mas pelos elementos
visuais. Tomando por base a teoria da ACD sobre o papel essencial do discurso nas mudanças
sociais, é perceptível na fala de Helga o inconformismo de sua condição e uma implicitude em
seu discurso, que deixa subjacente o ímpeto de um desejo de mudança na prática social. Em
oposição a isso, Hagar utiliza a ironia como artifício para manter a relação de subordinação da
esposa a um sistema social de dominação do homem sobre a mulher.
Salientamos, enfim, que a análise do discurso de forma crítica e ativa, como conjetura a
ACD, contribui para a compreensão das relações presentes em nossa sociedade, ao mesmo
tempo em que nos permite transformá-las na medida em que formamos sujeitos leitores críticos
e resistentes à perpetuação de práticas de dominação e poder.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O livro didático tornou-se nas últimas décadas ferramenta de apoio para as aulas de
Língua Portuguesa nas escolas públicas brasileiras. É possível notar que há uma abordagem
diversificada quanto aos gêneros textuais, e que a tira é um dos mais presentes no livro
analisado. No entanto, percebemos que os autores de livros didáticos têm subestimado a
capacidade discursiva presente nesse gênero textual ao proporem atividades com uma
abordagem interpretativa muito simplista, além de atividades ainda muito presas aos aspectos
estruturais e formais da nossa língua.
É preciso ressaltar que a tira humorística é muito mais do que um texto para fazer rir.
Ela carrega em seu contexto um papel muito importante de transformador social a partir da
análise de situações sociais do cotidiano. Entretanto, para que esse contexto social seja
abordado de forma consistente na análise do seu discurso, é preciso que os professores
proponham reflexões mais críticas ao trabalharem com esse gênero textual. Cabe também aos
autores de livro didático, junto com toda sua equipe, pensar em uma análise de discurso mais
engajada na formação do leitor crítico e utilizar a tira não como pretexto para ensinar gramática
e sim como uma ferramenta de transformação social.
Nessa perspectiva, ao propormos a Análise Crítica do Discurso baseada nos
pressupostos de Fairclough como mecanismo de análise da leitura e interpretação das tiras no
livro didático, acreditamos em uma análise mais crítica e interativa que, por consequência,
levará o leitor a desenvolver sua competência leitora em sua maior plenitude.
REFERÊNCIAS
OLIVEIRA, Luciano Amaral; CARVALHO, Marco Antonio Batista. Fairclough. In: Luciano
Amaral Oliveira. (Org.). Estudos do discurso. Perspectivas teóricas. São Paulo: Parábola
Editorial, 2013, p.281-309.