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RELIGIÃO, RAZÃO E REVELAÇÃO

GORDON H. CLARK

Tradução: Stélio Salvador

Revisão: Stélio Mike

Projecto: Cosmovisão Escrituralista


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Moçambique: Maputo - Cidade
Projecto: Cosmovisão Escrituralista
1ª Edição - 31 de Agosto de 2019
Contactos: +258 824333272 / +258 845307074
E-mail: steliosalvadornaete@gmail.com
Publicado originalmente em inglês sob o título:
Religion, Reason and Revelation1
Publicado pela: Trinity Foundation, EUA
Copyright © 1961
Segunda Edição Copyright © 1995
Terceira Edição Copyright © 2012
Todas as citações Bíblicas foram extraídas da
Versão: João Ferreira de Almeida – Corrigida, Fiel ao texto original.

Você está autorizado e incentivado a reproduzir e/ou distribuir este material em


qualquer formato, desde que informe o autor, as fontes originais e o tradutor, e que
também não altere o seu conteúdo nem o utilize para quaisquer fins comerciais.

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[Nota do tradutor] Esta tradução não inclui o último capítulo denominado Deus e o Mal, visto que a
editora Monergismo publicou-o em um livro intitulado - DEUS E O MAL: O problema resolvido.
ÍNDICE
PREFÁCIO
PREFÁCIO DA SEGUNDA EDIÇÃO
O CRISTIANISMO É UMA RELIGIÃO?
Unidade e Multiformidade
Uma Separação Desconcertante

A ABORDAGEM PSICOLÓGICA
Emoção versus Intelecto
Noções Preconcebidas
John Bunyan e Jonathan Edwards
A Descrição Explica?
A Descrição Descobre?
Descrição e Pressuposição
Integração da Personalidade

O MÉTODO COMPARATIVO
Deus é Essencial para a Religião?
A Caça ao Snark
Necessidades Humanas Comuns
Palavras Significativas

CRISTIANISMO
Definição do Cristianismo
As Religiões
Conversão Cristã
Pecado

FÉ E RAZÃO
RAZÃO E FÉ
Teologia Natural
O Argumento Cosmológico
David Hume e Charles Hodge
3
RAZÃO SEM FÉ
Irreligião Inicial
Racionalismo
Empirismo
Emanuel Kant
Hegel e seus Críticos
Ignorância Absoluta

FÉ SEM RAZÃO
Tipos de Misticismo
Karl Marx
Søren Kierkegaard
Friedrich Nietzsche
William James
Emil Brunner

FÉ E RAZÃO
Religião Popular
Análise da Personalidade
Confiança e Assentimento
Anti-intelectualismo
A Fé Reformada
Definição de Razão

INSPIRAÇÃO E LINGUAGEM
As Reivindicações Bíblicas
A Objecção do Ditado

TEORIAS CONTEMPORÂNEAS
Linguagem Religiosa
Linguística
Naturalismo e Behaviorismo
A Teoria Simbólica

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LINGUÍSTICA TEÍSTICA
Teologia versus Linguagem
Linguagem Literal

POSITIVISMO LÓGICO

REVELAÇÃO E MORALIDADE
Desacordo Ético

UTILITARISMO
O Maior Bem para o Maior Número
Cálculo
O Bem
Valores na Experiência

DEWEY E O INSTRUMENTALISMO
Mudando a Moralidade
Valores na Experiência
Segurança e Ética Científica
Ideais Maus
Assassinato
Vale a Pena Viver a Vida?
Crítica Final

ÉTICA CRISTÃ
O Legislador Divino
Ética e Teologia
Soberania Divina
Um Exemplo Contemporâneo
Abraão, o Pai de Todos Nós

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PREFÁCIO

No meio de todo o absurdo apologético prevalecente na igreja hodierna, Religião, Razão


e Revelação é um alento de ar fresco com sua defesa Bíblica do Cristianismo. Com a
maioria dos Cristãos, Reformados e Evangélicos, seguindo a apologética do “doutor
angelical” da Igreja Católica Romana, Tomás de Aquino e outros no campo Reformado
seguindo o Pressuposicionalismo de Cornelius Van Til com sua verdade analógica e
aceitação de paradoxos e antinomias, o Cristianismo Bíblico foi deixado indefeso.
Todavia Deus foi fiel, por isso na época do anti-intelectualismo do século XX levantou
Gordon H. Clark, que defendeu o Cristianismo com base na Palavra de Deus somente.
Em 2004, Religião, Razão e Revelação foi combinada com “Introdução à Filosofia
Cristã” e “Três Tipos de Filosofia Religiosa” na Filosofia Cristã, volume 4 das Obras de
Gordon Haddon Clark. Essas obras foram impressas como um único volume. A Trinity
Foundation tem o prazer de publicar a obra-prima apologética do Dr. Clark como um
único volume novamente.

Thomas W. Juodaitis

Agosto de 2011

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PREFÁCIO DA SEGUNDA EDIÇÃO

Religião, Razão e Revelação é uma das maiores defesas da fé Cristã jamais escrita. É
um modelo de sabedoria e análise; nele Dr. Clark refuta dois dos amplos movimentos
filosóficos que se opõem ao Cristianismo e as argumentações específicas de muitos
autores modernos. É surpreendente perceber quão abrangente é a defesa deste livro:
Clark devasta a noção superficial de que o Cristianismo não é único – de que o
Cristianismo pertence a uma categoria chamada Religião - uma noção que é a base de
todos os movimentos ecumênicos sobre os últimos dois séculos; ele aniquila o
positivismo lógico e o pragmatismo; ele abate o empirismo, o racionalismo e o
materialismo; e ele imparcialmente desmembra-se e desfaz-se de Tomás, Kant, Hegel,
Kierkegaard, Marx, Bentham, Nietzsche e Dewey. Religião, Razão e Revelação no
entanto, não apenas termina com a destruição filosófica de filosofias não-Cristãs; Clark
prossegue mostrando como o Cristianismo Bíblico responde as questões e resolve os
problemas - incluindo o problema do mal - que outras filosofias e religiões deixam sem
resposta e sem solução. O resultado é uma festa esplêndida para a mente e uma defesa
triunfante da verdade Cristã. Religião, Razão e Revelação bem merece a sua reputação
como uma obra-prima de apologética. Deixem que tanto o aluno quanto o professor
leiam estas páginas e aprendam como a fé deve ser defendida.

John W. Robbins

Junho de 1995

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O CRISTIANISMO É UMA RELIGIÃO?

Existe algo como religião, da qual o Cristianismo é uma manifestação? Esta questão é
importante por duas razões: a sua resposta influenciará e revelará o que a pessoa
acredita ser o Cristianismo; e em uma escala mais ampla, determinará o método que
deveria ser usado na formulação de uma filosofia da religião. Portanto, façamos a
pergunta pela segunda vez de forma ligeiramente diferente. O Cristianismo é algum tipo
de classe? Se isso for respondido afirmativamente ou negativamente, certos problemas
adicionais serão introduzidos. Se o Cristianismo for um tipo de classe religiosa, como a
religião será definida e quais serão as características Cristãs diferenciadoras? Se não for,
que tipo de filosofia da religião pode existir, e que tipo de filosofia Cristã pode existir
também? Aparentemente o primeiro passo para examinar essas questões deve ser a
definição de religião. O que é religião?

Unidade e Multiformidade

A religião é familiar ao homem comum em todas as épocas e nações. Ele executa seus
ritos simples ou complicados; ele acredita em suas doutrinas. Por mais justificada que
seja a queixa ortodoxa ou a exultação ateísta de que uma determinada religião está
perdendo seu poder sobre o povo, as experiências incessantes ainda permanecem uma
força familiar. Entre os versados também, é um assunto familiar de discussão. No que
concerne a produção de muitos livros sobre o assunto geral da Religião, a Psicologia da
Religião, a Filosofia da Religião, e a História da Religião, não há fim. Mas embora a
religião seja um fenômeno tão multiforme assim como familiar, ambas as características
contribuem para a dificuldade de compreendê-la.

Ninguém nega a multiformidade. Existe Cristianismo e existe Islamismo; e ainda existe


Judaísmo, Hinduísmo, Budismo, religiões do interior da África e das ilhas dos mares.
Não obstante suas grandes diferenças, todas são popularmente unificadas sob o único
termo religião. Tal unificação pode sobreviver à análise acadêmica? É realmente
possível reunir todas estas sob uma definição para que possam ser discutidas em
conjunto como um assunto? Na botânica, por exemplo, a Solanaceae, a raiz do pepino
Indiano, a Uvularia, o Lírio do vale, o Selo de Salomão, Espargos e a Estrela de Belém
estão todos reunidos e discutidos sob a Família Lily. Todos os membros da família Lily
possuem certas características em comum, características que os unem em uma família e

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ao mesmo tempo os diferencia de outras famílias. A mesma coisa não pode ser feita
para as religiões?

Como é de se esperar, essa maneira de ver o assunto foi tentada. Não só, mas é o
método usual de procedimento. Parece ser apenas senso comum. Por exemplo, Winston
L. King, em sua Introdução à Religião, escreve que as religiões são uma, bem como
muitas. Embora ele faça a obscura negação de que elas têm qualquer denominador
comum “de uma natureza neutra”, há “algum tipo de unidade” e há “semelhanças reais”.
No final de oitenta páginas, ele conclui: “Temos tentado usar o termo „religião‟, bem
como „religiões‟ com a confiança de que tem algum significado notável.” Frases como
essas em uma tentativa de oitenta páginas em definir religião, indicam a presença de
dificuldades. Aparentemente botânica é um assunto mais fácil que a religião. Mas outro
autor mostra mais confiança. O Professor William E. Hocking, em Religiões Vivas e
uma Fé Mundial, começa afirmando: “Em sua natureza, a religião é universal e única”.
De facto, Hocking pretende com essa afirmação dizer que a religião é uma no sentido de
que todos os membros da Família Lily são uma só Família, pois ele vai além e reclama
que a pluralidade das religiões é um escândalo para o próprio homem religioso, para o
filósofo e para o estadista que deseja unificar sua comunidade. Mas por que deveria ser
escândalo? A pluralidade de lírios não é escândalo para o botânico. A pluralidade de
religiões deveria ser escandalosa para o filósofo? E por mais escandalosa que seja a
pluralidade de religiões para o “estadista” que deseja unificar sua comunidade, essa
mesma pluralidade pode parecer uma bênção para os indivíduos amantes da liberdade,
que pensam que algumas sociedades já foram muito completamente unificadas. O que
pode ser a religião, se é uma unidade mais perfeita que as unidades genéricas de
botânica? Por que a unidade da religião deve excluir diferenças específicas? Em um
volume posterior, The Coming World Civilization, o professor Hocking repete suas
vigorosas afirmações de unidade. Na quinta seção do livro, para justificar a
identificação de todas as religiões em essência, ele argumenta que “Afirmação não é
exclusão” (137). De acordo com Hocking, a fé Cristã, e a doutrina Budista, não se
oferecem como hipóteses que competem com outras hipóteses. Cada uma diz: este é um
caminho para a paz; e tal afirmação não exclui outros modos. Num sentido existe um
único caminho, mas não é o único caminho de uma religião particular. Isto é um
caminho universal. A essência dos preceitos e doutrinas que os místicos em todas as
religiões discerniram é a mesma. As combinações não são nem mesmo mera

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semelhança; elas são identidades. Assim, o único caminho não é o caminho que marca
uma religião de outra, mas “é o caminho já presente em todas…. As várias religiões
universais já estão fundidas, por assim dizer, no topo.”2

Naturalmente, tal visão estimula muitas questões. Por exemplo, pode se perguntar,
Hocking baseou suas declarações em um estudo empírico sobre as diversas religiões? É
isso que as religiões afirmam ou admitem? Como Hocking chegou a conclusão de que
as doutrinas de todas as religiões são essencialmente idênticas? Se isso é apenas o que
alguns místicos em todas as religiões afirmam, o estudante de religião pode aceitar a
avaliação mística e desconsiderar o que outros membros das mesmas religiões afirmam?
Isto é incostestável, pelo menos, aquele princípio de Hocking, “afirmação não é
exclusão”, está em conflito com os ensinamentos explícitos de algumas religiões. A
declaração de Cristo no Evangelho, “ninguém vem ao Pai senão por mim”, é
decisivamente exclusiva. Da mesma forma, o Apóstolo disse: “debaixo do céu nenhum
outro nome há, dado entre os homens, pelo qual devamos ser salvos”. Hocking teria que
sustentar que Cristo não é essencial para o Cristianismo. Mas é claro, essa crítica é
prematura, pois no começo parece razoável - especialmente para quem está escrevendo
um livro sobre religião - supor que deve haver algum tipo de unidade, seja uma unidade
genérica ou alguma do tipo ainda mais profunda, que faz da religião um único assunto
de discussão.

Uma Separação Desconcertante

Embora esse princípio possa parecer promissor e até mesmo necessário, sua aplicação já
é vista como tendo grande dificuldade. É possível que a muita familiaridade no que diz
respeito a experiência religiosa seja uma das causas de seu desafio teimoso de análise.
De qualquer forma, uma comparação dos muitos volumes sobre religião divulga uma
separação desconcertante. De outro modo, apesar da semelhança de títulos, os autores
não estão escrevendo sobre o mesmo assunto, ou, apesar da extensão dos livros e seu
versado vocabulário, eles não sabem sobre o que estão escrevendo.

A primeira metade dessa separação reflecte aqueles autores que - como King - de forma
directa, corajosa e louvável, formularam uma definição explícita de religião. Uma
tentativa directa é razoável porque se espera que um escritor declare o assunto que
pretende estudar. Mas uma rápida pesquisa dessas definições mostra que, quanto mais
2
William Ernest Hocking, The Coming World Civilization, 149. Os itálicos são de Hocking

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precisos são os autores, mais obviamente eles não estão falando sobre a mesma coisa.
King em sua definição praticamente inclui uma crença em Deus - pelo menos ele
escreve o objecto de devoção com O maiúsculo, e enfatiza ainda mais no capítulo
seguinte (74ff.). Juliano Huxley, por outro lado, em Religion Without Revelation, diz
que a realidade religiosa essencial não é Deus, mas um sentido do sagrado, tal como a
sensação de fome ou de emoção da raiva é irredutível. Embora essa última definição
não seja tão precisa em sua afirmação assim como em sua negação, é todavia precisa o
suficiente para ver que King e Huxley não estão falando sobre a mesma coisa quando
usam o termo religião. Existem outras definições Humanísticas de religião que podem
ser consideradas vagas ou precisas, dependendo de como se olha para elas. O Manifesto
Humanista constitui a religião como aquelas acções, propósitos e experiências que são
humanamente significativas. Agora isso pode ser vago e sem sentido; mas se for
considerado no seu valor nominal literal e atribuído um significado inteligível, uma
questão interessante vem adiante. Uma apendicectomia não é humanamente
significativa? Então segue-se que apendicectomias são exercícios religiosos. É evidente,
portanto, que o que os humanistas chamam de religião não é a mesma coisa que os
outros autores estão discutindo. Mais uma vez, William James foi preciso o suficiente
quando falou da religião como as experiências dos homens em sua solidão; mas outros
escritores são precisos em definir a religião como algo social. E o adorador devoto em
qualquer uma das várias religiões pode não gostar de nenhuma dessas definições.
Claramente o que um homem chama de religião, outro não reconhece como tal. Quanto
mais preciso for a definição, mais claramente verificar-se-á que os escritores não estão
escrevendo sobre o mesmo assunto.

Essa dificuldade dá origem à segunda metade da separação anteriormente escrita:


Alguns escritores não sabem sobre o que estão escrevendo. Eles reconhecem a
impossibilidade de definir a religião e de depender da sua familiaridade para satisfazer o
leitor. L.W. Grensted, em The Psychology of Religion, comenta em seu prefácio que o
assunto é nebuloso e mal definido; nenhuma parte dele tem qualquer transparência
lógica ou prioridade científica; “Há sempre uma dúvida à espreita se a religião é um
estudo adequado para a psicologia.” E algumas páginas mais tarde ele admite: “A
definição de religião é impossível… Assim, o único meio de afirmar o que queremos
dizer com religião deve ser empírico, descritivo, e acumulativo. Nós devemos, de facto,

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retornar para o que as pessoas comuns entendem por comportamento religioso.”3 Esta
admissão inicial de fracasso, entretanto, não impede que o cavalheiro escreva seu livro -
um paradoxo humorístico que ele mesmo parece gostar. Agora, há razões poderosas
para aceitar a posição de que a religião não pode ser definida. De facto, essa é a
principal conclusão deste capítulo. Será definitivamente mostrado que não podemos
com confiança, repetir uma frase de King, supor que a religião tem um significado
notável. Esta conclusão, por vezes, leva à desorientação de Grensted. Há, no entanto,
outra alternativa a ser mencionada mais adiante. Mas, por enquanto, e particularmente
na abertura da discussão, não se deve simplesmente assumir a impossibilidade de definir
religião. É melhor examinar os dois principais métodos usados na tentativa de enquadrar
uma definição; e, se ao fazê-lo, estivermos razoavelmente convencidos de que o
problema é insolúvel, teremos aprendido as razões precisas para o fracasso.

A ABORDAGEM PSICOLÓGICA

Em geral, dois métodos foram usados para distinguir a religião de outros objectos de
estudo. O segundo método - baseado no exame da multiformidade do Islamismo,
Xintoísmo, Bramanismo e assim por diante – pode ser chamado de método
comparativo. Mas o primeiro a ser considerado é a abordagem psicológica, baseada na
familiaridade íntima da experiência.

Emoção versus Intelecto

Há muitas pessoas, estudiosos e outros, que acreditam que a essência da religião, o


factor comum em todas as religiões, é uma espécie de experiência emocional. De um
modo ou de outro, minimizam o conteúdo intelectual. Embora Hocking fale de uma
busca pela justiça, e rectidão, sem dúvida, é algo diferente de emoção, o estresse de
Hocking recai sobre a paixão da pesquisa, e não sobre o conteúdo da justiça. Ele não faz
uma negação completa de que existem factores intelectuais na religião, mas ele afirma
que nenhuma proposição teórica é verdade para além do sentimento. Isso parece
implicar que até mesmo a verdade da matemática depende da paixão. Talvez ele não
diria que toda paixão é religiosa ou louvável, mas a paixão é tanto meio da religião que
tudo o que é de paixão “tende a ser” religioso. King também enfatiza a natureza
emocional da religião e menospreza o intelectual. No seu Prefácio ele se refere aos

3
L. W. Grensted, The Psychology of Religion, 15.

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“ossos nus das declarações intelectuais de dogma religioso” em oposição aos
“fenômenos vitais da respiração e da movimentação religiosa”.

Ou, considere um pouco mais as opiniões de outro estudioso conhecido que coloca a
ênfase na emoção. James Bissett Pratt, em The Religious Consciousness, consciente das
dificuldades em enquadrar uma definição, admite que em muitos aspectos a sua própria
definição é provavelmente tão má como quaisquer outras; mas ele sustenta que uma
palavra nela atinge a marca com bastante precisão. A religião, diz ele, é uma atitude
séria em relação àqueles poderes que as pessoas acreditam controlar seus destinos. É a
palavra atitude que ele enfatiza, e através da qual ele minimiza o intelecto. Em seu
estudo da conversão ele afirma que “o essencial da conversão é a unificação do
carácter”, e que esta é “realmente importante e a única parte essencial disso…” (123).
Isso envolve vontade, emoção e pensamento, mas isso é principalmente “moral”. “Nem
o lado intelectual do processo deve ser negligenciado, embora seja francamente o menos
perceptível dos três. Na maioria dos casos, isso parece diversão, mas do lado negativo.”

Noções Preconcebidas

Correndo o risco de antecipar muito do argumento posterior, pode ser melhor mesmo
neste ponto questionar se toda a unificação de propósito ou carácter é religiosa. Como
um exemplo de conversão, Pratt escolhe a experiência de um certo Ardigo que
renunciou o sacerdócio Católico Romano para se tornar um cientista positivista. Agora,
esta é sem dúvida uma conversão de um tipo; mas é uma conversão religiosa? Claro que
a resposta a esta questão depende da definição de religião. Pratt defende sua escolha de
exemplos com base no facto de que ele não permitiu noções preconcebidas derivadas da
teologia Cristã para influenciá-lo. Presumivelmente, escolher como exemplos de
conversão apenas os casos que estão de acordo com a teologia Cristã, seria perder a
reivindicação da objectividade científica. Ao mesmo tempo, embora Pratt possa não ter
seleccionado seu material do ponto de vista de qualquer uma das religiões mundiais
conhecidas, ele mesmo assim fez sua selecção com base em outros princípios
preconcebidos, que podem ser pensados como sua religião privada. Do ponto de vista
lógico, se as suposições são filosóficas ou teológicas, Cristãs ou não, é igual. Se é
repreensível operar sobre pressuposições Cristãs, é menos assim em outras
pressuposições? A única diferença parece ser que o escritor com princípios Cristãos é
provavelmente mais consciente do facto, enquanto o escritor científico, por vezes,

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afirma que não tem noções preconcebidas. Em outras palavras, Pratt - tentando evitar o
preconceito da visão Cristã de conversão - não parece estar ciente de seu próprio
preconceito assumindo que a conversão de Ardigo era uma conversão religiosa e que a
essência da religião é a unificação do carácter.

John Bunyan e Jonathan Edwards

O interesse de Pratt na conversão revela ainda mais a importância que ele atribui a
emoção. Além do caso duvidoso de Ardigo, ele relata as experiências religiosa mais
óbvias de David Brainerd e John Bunyan. Nesses dois exemplos, o processo foi
essencialmente o mesmo. Quando eles começaram a pensar na condição de suas almas,
seu estado de espírito neutro anterior deu lugar ao aumento da depressão. Eles se
sentiram totalmente desamparados. Desejosos de salvação, eles foram condenados pelo
pecado e não puderam se livrar das tentações. A impossibilidade de se recomendar a
Deus por seus esforços humanos sem ajuda aumentou seu desespero. Então de repente,
veio uma grande paz de espírito. E, conclui Pratt, “O drama inteiro foi um sentimento, e
tudo o que foi realizado foi a substituição de um sentimento pelo outro” (147). O
sentimento é ainda mais elevado no capítulo seguinte, por uma série de má interpretação
da teologia Protestante. Da tese de que o homem por seus próprios esforços não pode
satisfazer as exigências de Deus Pratt tira a errônea conclusão de que “a atenção de
todos que desejam a salvação - já que foi inútil centralizá-la no pensamento ou na acção
ou vontade - foi inevitavelmente fixada no sentimento. Sentimentos realmente poderiam
ajudar - o sentimento de sua própria diabolicidade e desespero - e nada mais poderia”
(149). Com essa interpretação da situação, Pratt menospreza a conversão de Bunyan.

Para pôr em ordem os mal-entendidos de Pratt da teologia Protestante que complicariam


muito a discussão. É suficiente mencionar um ponto que fica na superfície. Visto que a
tese Protestante é que o homem pelo seu próprio esforço não pode satisfazer os
requisitos de Deus, segue-se que sentimento e emoção não poderia ser mais útil do que
o pensamento, a acção ou a vontade. Então, a necessidade de ajuda divina graciosa, por
si só, não requer mais atenção para sentimentos do que pensamentos e acções. No
entanto, ao invés de corrigir o ponto de vista de Pratt da religião evangélica, é melhor
para o ponto, ver sobre como ele usa a sua interpretação para desacreditar a conversão
de Bunyan. Ele reclama que Bunyan não ganhou nenhuma nova visão através de sua
experiência; nenhuma mudança de carácter ou vontade tinha sido forjada; nenhuma

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nova unificação de propósito havia sido alcançada. Agora, essa queixa envolve Pratt em
uma curiosa inconsistência. Se nenhuma mudança de vontade ou carácter tivesse sido
forjada, Pratt não deveria ter incluído esta experiência em uma lista de conversões, pois
ele havia dito anteriormente que “a coisa essencial sobre a conversão é a unificação de
carácter ” (123). Assim como no caso de Ardigo, Pratt tropeçou em uma conversão que
não foi religiosa (pelo menos no sentido popular de religião); então aqui ele tropeça e
contradiz a si mesmo, seleccionando uma experiência que é religiosa, mas em sua
própria manifestação não é uma conversão. A confusão é evidência de um método
pobre. Além disso, Pratt não se justifica em sua depreciação das emoções de Bunyan,
mesmo que não constituam uma conversão. De um ponto de vista psicológico, um ponto
de vista que enfatiza a descrição dos fenômenos e se orgulha de que a teologia não teve
influência sobre suas conclusões, uma sequência de emoções é um assunto de estudo tão
legítimo quanto a unificação de carácter. No método descritivo, a depreciação está fora
de lugar, se o assunto for emoções ou física nuclear. Particularmente, para quem pensa
em religião como primariamente uma atitude ou sentimento, Bunyan deveria ser um
exemplo muito feliz de experiência religiosa. Mas seu estilo desdenhoso indica que
Pratt, secretamente, concede mais valor ao conteúdo intelectual da religião do que ele
admite explicitamente, e avalia Bunyan de uma posição que não carece de viés
teológico.

A evidência deste procedimento unilateral é novamente vista em sua referência a


Jonathan Edwards. Este grande Puritano da Nova Inglaterra também é igualado a frase
geral de que “sentir poderia realmente ajudar ... e nada mais poderia”. Agora, é verdade,
como Pratt aponta em sua nota de rodapé (150), que Edwards disse “A religião consiste
muito em afeição santa”, e ninguém que lê a explicação de Edwards poderia discordar.
Mas primeiro, note que Edwards disse muito; ele não disse que a religião ou mesmo a
conversão consiste em afeições. Em segundo lugar, o termo afeição em Edwards não
significa o que Pratt diz que significa. Pratt havia dito que “era inútil centralizá-lo no
pensamento ou acção ou vontade.” Mas para Edwards o termo afeição inclui a vontade,
e de facto tem mais a ver com vontade do que com sentimento puro. Em terceiro lugar,
Edwards gasta a maior parte de seu livro em alertar seus leitores para não confiarem em
seus sentimentos. Em quarto, longe de dizer que nada além de sentimento pode ser de
ajuda, longe de depreciar o conteúdo intelectual, Jonathan Edwards colocou grande
ênfase na doutrina. De facto, sua ênfase na teologia é mais frequentemente objecto de

15
descontentamento secularista do que a sua real ou até mesmo suposta aprovação de
emoções. Parece, portanto, que essas imprecisões são o resultado de um método pobre e
de uma decisão precipitada de definir religião em termos de emoção. Por outro lado,
aquele que deseja colocar alguma ou mesmo grande ênfase no lado intelectual da
religião não precisa concluir que é inútil estudar as emoções. Jonathan Edwards
estudou-as e com base em sua teologia deu certas advertências contra elas. As
variedades intensamente interessantes da experiência religiosa de William James
prosseguem em uma base teológica diferente. O Novo Testamento em si, é claro, do seu
próprio ponto de vista, descreve as circunstâncias emocionais muito diferentes de um
número de conversões. Mas a avaliação de uma pessoa depende da teologia de uma
pessoa. Sem dúvida a religião inclui emoções; mas isso não significa que a vontade e o
intelecto sejam factores negativos, não essenciais, menos perceptíveis e ossos nus.

A Descrição Explica?

Em geral, qualquer que seja o valor ou mesmo a importância indiscutível de certos


estudos psicológicos, pode-se perguntar se as descrições estritamente psicológicas são
de muita ajuda para explicar a religião ou mesmo para descobrir sua natureza. Primeiro,
concernente a explicação. Para ter certeza, a filosofia do Positivismo Lógico sustenta
que a descrição é explicação. Nenhuma declaração de causalidade é permitida; nenhuma
declaração de propósito é permitida; não é permitida nenhuma possibilidade de dizer
que um fenômeno deve ser como é; nem mesmo uma avaliação é permitida; a única
afirmação legítima é que o fenômeno é tal como é observado. Uma vez que a crítica do
Positivismo Lógico não pode ser empreendida aqui, deve ser suficiente salientar que os
Positivistas Lógicos constantemente violam suas prescrições. Além disso, a
identificação da descrição e explicação equivale a negar a explicação. Sem dúvida, esses
factos são como são descritos: Uma bola de golfe sobe e cai; uma pintura ou uma sonata
é agradável a mim; o Congresso aprova nova lei. Mas ainda mais do que a descrição do
evento, queremos uma explicação disso. Por que esse evento ocorreu? Sob que
generalização pode ser classificado? Qual foi o seu propósito e quais serão seus efeitos?
Deveríamos, se possível, tentar repetir ou impedir sua recorrência? Os Positivistas
Lógicos vão além de seus próprios princípios quando limitam a explicação à descrição,
pois a limitação em si não é uma descrição de qualquer coisa observável que não seja a
sua própria conduta. É certo que a descrição fornece alguns elementos que contribuem
para um entendimento; a descrição fornece pelo menos matéria a ser explicada. Mas é

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prima facie4 irracional confundir os dois. Agora, se a compreensão vai além do alcance
da descrição, deveríamos explicar a religião como o ópio do povo? Ou deveríamos ser
um pouco menos radicais e explicá-la como o resultado da compulsão parental e pressão
social? Ou, novamente, a causa da religião é alguma resposta estética inata ao sublime
ou um medo miserável do desconhecido? Ou, finalmente, será que uma explicação
adequada transcende esses factores e demanda Deus como a causa? Nenhuma descrição
psicológica pode dar qualquer uma dessas respostas, nem escolha entre elas.

A Descrição Descobre?

Logo acima, foi questionado se o método psicológico poderia explicar a religião ou até
mesmo descobrir a sua natureza. Existem várias razões pelas quais a psicologia não
pode descobrir o que é religião. Um motivo, apesar de não ser o mais profundo ou o
mais independente, é que os relatos descritivos das emoções referem-se apenas aos
fenômenos da superfície. Assim como as seguintes considerações mostrarão, estas
descrições não compreendem o que é essencialmente religioso. O facto de que as
mesmas emoções são encontradas em diferentes religiões não perturbaria, mas seria
bem recebido por um escritor como Hocking, que insiste na unidade de toda a religião e
não está interessado em distinguir uma religião da outra; o facto de que existem
diferentes emoções encontradas na mesma religião pode simplesmente resultar no
aumento da dificuldade de encontrar o estado emocional complexo pelo qual a religião
deve ser definida; mas o que é fatal para esse método de procedimento é o facto de que
essas emoções são encontradas em experiências que geralmente não são consideradas
religiosas. Por exemplo, o amor é actualmente enfatizado por alguns escritores
religiosos como a emoção religiosa por excelência. Tem sido considerado como a soma
e substância, a natureza interna e a fonte mais profunda da verdadeira religião, e a
essência do próprio Deus. Mas quando deixada indefinida, a emoção do amor
dificilmente se restringe a situações religiosas. No que diz respeito à emoção per se, a
descrição psicológica seria a mesma, não importa quais sejam as causas, o objecto, as
circunstâncias ou o valor que pode ter. Alguns amores são bastante humanos; alguns são
irreligiosos ou até mesmo profanos. No entanto, se o amor religioso deve ser definido
de modo a excluir os exemplos indesejados, o procedimento torna-se logicamente
circular. Em primeiro lugar o amor é usado para definir religião e, em seguida, um

4
[Nota do tradutor] Expressão latina que significa: à primeira vista.

17
conceito independente de religião é usado para estabelecer diferenças entre os amores.
Então mais uma vez, não só é impossível confinar uma determinada emoção como o
amor (ou um complexo de emoções) à experiência religiosa, é igualmente impossível
confinar a experiência religiosa à uma determinada emoção. A emoção da indignação é
geralmente pensada como uma emoção anti-religiosa, mas a indignação de Jesus
(Marcos 3:5) era eminentemente religiosa. Considerações tais como estas mostram que
nenhuma descrição puramente psicológica de experiências, nenhuma emoção, nenhum
estado particular da consciência afectiva, ou qualquer combinação deles, pode ser
apontado como o elemento uniforme e definitivo da religião. Pode haver uma sequência
de uma mente calma, seguida de depressão, e posteriormente entusiasmo - como Pratt
percebe no caso de John Bunyan; mas a mesma sequência ocorre regularmente na noite
da eleição no caso dos políticos também. Não há nada distintamente religioso no que diz
respeito as emoções.

Descrição e Pressuposição

Os escritores mais perspicazes reconhecem as deficiências da descrição puramente


psicológica. Grensted diz abertamente:

Perguntas finais sobre a existência real dos constituintes da nossa experiência, em seu
próprio direito e a parte de sua definição na qual experiência, não pode ser decidida ou
mesmo discutida por métodos…. A psicologia não pode nem mesmo escolher seus
próprios objectivos, que são seleccionados pelos psicólogos com base em valores dos
quais a psicologia não pode dar uma explicação completa.5

No entanto, existem alguns, mesmo que não sejam Positivistas Lógicos professos, que
escrevem como se a descrição psicológica respondesse a todas questões. No entanto,
descobrir-se-á que seus volumes, não menos que os trabalhos dos melhores autores,
contêm muitos pressupostos e juízos de valor que não podem ser obtidos pela
observação. No começo, embora esses escritores não reconheçam isto, um princípio
normativo ou não descritivo é necessário para a selecção do que descrever. É muito
plausível argumentar que ninguém deve filosofar sobre a religião antes de descrever os
fenômenos que exigem explicação. Os factos, assim se diz, devem preceder a teoria.
Mas o problema é que um procedimento descritivo nunca pode isolar o que deve ser
descrito. Uma teoria deve preceder a escolha de factos. A descrição pura nunca poderia
decidir colocar a ênfase na emoção em vez da intelecção. De acordo com a vaga

5
L. W. Grensted, The Psychology of Religion, 3, 5.

18
conotação popular do termo, a religião é um fenômeno mais complexo. Alguns cultos
religiosos são muito emocionais e as pessoas gritam e cantam, pisam no chão, agitam
seus braços, e agem de maneira mais indigna. Outras pessoas, tal como Presbiterianos e
Puritanos, costumavam sentar-se quietamente tentando entender duas horas de sermão
doutrinal. Existem grupos também, dentro e fora da esfera da Cristandade, que se
limitam quase inteiramente a um ritual elaborado. E outros ainda equiparam religião
com serviço social. Portanto, somente um julgamento não observacional de valor
poderia motivar a afirmação de que os princípios intelectuais de uma religião não são
dignos de investigação. E somente o mesmo julgamento a priori poderia seleccionar
qual parte do fenômeno complexo deve-se descrever.

Cada autor, portanto, decide o que acha importante e significativo, seja ritual, dogma ou
emoção. Tal decisão não pode ser evitada, mas não deve ser escondida. Deve ser feita
conscientemente. Não deveria ser apresentada como uma descoberta objectiva e
descritiva. O autor mais enganador e o mais enganado é aquele que pensa que está
simplesmente descrevendo o que é aquilo. O aquilo em si não pode ser seleccionado
sem pressuposições. Se uma determinada emoção ou algum outro estado afectivo de
consciência, não obstante complicado, é seleccionado como a essência da religião, a
implicação é que outro estado não é religioso. Assim, a religião é nitidamente separada
do exporte ou da política ou das outras actividades humanas consideradas não
religiosas. Isto, é a contrapartida psicológica da distinção comum entre o domingo
religioso e a prática do dia-a-dia da semana. Sem dúvida, existem pessoas que têm um
domingo religioso para a exibição pública, se de facto isso pode ser chamado de religião
delas. Da mesma forma, é provável que existam pessoas cuja religião professada é
alguma emoção isolada. Mas não poderia existir outras cuja religião permeia todas as
suas actividades? Para elas, política, oração e procriação são todos deveres religiosos. É
possível trazer esses dois tipos de religião sob uma única descrição? Por que direito a
última é descartada quando se faz a tentativa de isolamento? Obviamente, portanto, o
psicólogo deve ter uma filosofia da religião própria que controla sua psicologia da
religião, e é este material profundo que o presente capítulo acredita ser o mais
significativo.

19
Integração da Personalidade

Até este ponto, a discussão enfatizou a visão de que a emoção é a essência da religião.
No entanto, esta restrição não faz justiça ao método psicológico nem à exclusão geral
das definições intelectuais. A explicação da religião como uma experiência não racional
permite outra possibilidade - uma possibilidade que ficou evidente no material da Pratt,
mas que ainda não foi examinada. Pratt falou sobre a unificação do carácter e usou a
conversão secular de Ardigo como um exemplo. Isto é um tema popular entre os
humanistas modernos. Confinando a religião à uma emoção, tal como a sensação de
dependência de Friedrich Schleiermacher, dizem eles, é uma visão muito estreita; e
embora a experiência religiosa possa às vezes ser caracterizada por este sentimento,
outra experiência igualmente religiosa não pode. Um senso de dependência não é
essencial para a religião. Portanto os humanistas geralmente, tentam situar a religião nas
necessidades mais universais do homem – não as necessidades não-religiosas de comida
e abrigo, mas em particular, necessidade de integrar os impulsos, emoções e desejos
dispersos e conflitantes. Isso significa que a religião é o processo de alcançar uma
personalidade unificada, coerente e eficaz. A consciência do pecado, assim como os
Cristãos chamam, é a consciência do fracasso em alcançar esse eu unificado, e a
redenção é o sucesso subsequente. Mas o sucesso não depende de ideias Cristãs. Este
foi o erro do Liberalismo Protestante, comumente chamado de Modernismo. Rejeitando
a teologia tradicional, esse movimento religioso ainda procura a solução dos problemas
da vida dentro de uma estrutura Cristã. Mas esta restrição é inconsistente com a
substituição da experiência religiosa por um livro autoritativo. O Humanismo,
consistentemente empírico, insiste que a integração do carácter é frequentemente obtida
por outros métodos. Se devemos examinar todos os métodos de integração bem-
sucedidos, ficará claro que o Cristianismo não é único ou mesmo superior. Os principais
bens são a busca da verdade, a criação da beleza e a realização do amor e da amizade.
Quaisquer que sejam os métodos usados para obter esses bens, podem ser igualmente
chamados religiosos, se alguém quiser falar de religião.

Existem duas dificuldades principais nesta tese humanista. A primeira é o


estabelecimento da verdade, beleza e amizade como bens. Nietzsche negou que essa
verdade seja sempre boa. O humanismo, especialmente o humanismo experimental e
relativista pode defender-se contra os argumentos de Friedrich Nietzsche? Talvez o bem
seja menos ainda encontrado na beleza e na amizade. É possível, então, que as

20
pressuposições humanistas justifiquem preferências ou mostrem realmente que qualquer
linha definida de conduta é boa ou má? Esta questão, uma vez que levanta o problema
geral da ética, será examinada em um capítulo posterior. O ponto aqui simplesmente é
que é uma questão difícil. É tão difícil que às vezes os humanistas se esquivam disso e
abraçam outra dificuldade. Eles fogem ainda mais porque a selecção de bens
particulares (tais como verdade e beleza) e o estresse colocado por eles na sociedade, na
cooperação, no colectivismo - que leva-os às vezes a falarem até mesmo de reverência
pelo bem social - é inconsistente com sua visão da religião. Se a integração pessoal é a
essência da religião, se - como um dos seus números diz - o método empírico não pode
demonstrar que a solução não-Cristã é inferior a Cristã, se, portanto, a religião
verdadeira é apenas absorção sincera que em qualquer grandeza imaginada, traz
empiricamente a integridade da individualidade (e os humanistas usam todas essas
frases), então segue-se que a integração de propósitos, emoções e sentimentos
alcançados por Adolf Hitler e Joseph Stalin não pode por qualquer método empírico ser
julgada inferior a qualquer outro. Esses dois ditadores poderiam dizer com tanta verdade
como o apóstolo Paulo, “esta coisa eu faço.” Todos os três homens foram caracterizados
pela completa unidade da mente. Os exemplos dos avarentos e eremitas que também
conseguiram uma grande integração de emoções e sentimentos são apenas um pouco
menos embaraçosos para essa visão da religião.

A desvantagem dessa tentativa de definir a religião deve agora ficar clara. A definição é
tão ampla e vaga que abrange uma variedade incontrolável de experiência. O místico
hindu, o apóstolo Paulo, o ditador e o avarento são exemplos igualmente perfeitos de
religião. Mas enquanto eles são exemplos indubitáveis e igualmente perfeitos de
personalidade integral, os tipos de personalidade são tão incompatíveis entre si que, se
alguém é chamado de bom, o outro deve ser chamado de mau. Ninguém, nem mesmo
um humanista, admitiria que não tem preferência entre essas maneiras de viver. E neste
caso, não se pode dizer que a integração da personalidade é boa. Esta conclusão é um
ponto essencial na mensagem de um evangelista Cristão. Muitas das pessoas a quem ele
prega são personalidades integradas: Isso é apenas o que está acontecendo com elas.
Seus desejos e interesses estão completamente harmonizados em um sistema naturalista
de valores. Elas estão completamente satisfeitas consigo mesmas. Nenhum sentimento
de culpa perturba a tranquilidade delas. A mensagem Cristã deve destruir essa
integração; e até mesmo que a mensagem não consiga oferecer a elas um substituto

21
perfeitamente harmonizado, a semi-integração assim produzida é melhor do que a
integração completa anterior.

O método psicológico, portanto, falha em descobrir, definir e explicar a religião; e ao


mesmo tempo não justifica a sua pretensão de imparcialidade científica. Não é por pura
descrição que a psicologia super-enfatiza a emoção: este é um julgamento normativo. E
é um julgamento que impede a distinção entre religião e outras experiências emocionais
como política. A influência controladora de pressuposições filosóficas não descritivas, é
também revelada pela depreciação de certos tipos de conversão. A depreciação é
obviamente avaliativa. Se, agora, essas pressuposições são definidas e valores
específicos são elevados acima dos outros, o problema geral da ética é inevitável. Mas
se valores específicos são deixados vagos e todo tipo de integração é permitida, o
problema geral da ética é evitado porque tipos incompatíveis de vida são colocados no
mesmo nível. Uma vez que este método resulta nessas confusões, uma vez que os
termos são deixados sem significados definidos, parece, portanto, que algum outro
método é imperativo.

O MÉTODO COMPARATIVO

O ideal de classificar religiões assim como os membros da Família Lily são


classificados em botânica, é muito atraente para ser descartada por causa da falha de
uma tentativa. Outro método de abordar o problema é o método de religiões
comparativas. Se emoções semelhantes florescem em diferentes religiões, e emoções
divergentes dentro de uma religião, e todas elas sem benefício de qualquer religião,
talvez a natureza da religião seja encontrada em seu aspecto intelectual. Certamente, a
exclusão sistemática dos “ossos nus ” de conteúdo intelectual é uma posição extrema.
Um estudo das crenças ou da teologia da religião é indispensável para uma
compreensão dela. Somente agarrando o sistema doutrinal ou intelectual de cada fé
pode-se evitar abstracções vagas e enganosas. E apesar da primeira impressão de
diferenças incompatíveis entre as religiões, não deve haver algumas semelhanças
básicas? Caso contrário, por que todas eles deveriam ser chamadas de religiões?

Deus é Essencial para a Religião?

À primeira vista, parece que existe uma maior variedade de crenças do que de emoções,
e que a natureza da religião nunca pode residir em qualquer formulação teológica; mas a

22
esperança dos estudos comparativos, é evidentemente, encontrar nesta confusão de
crenças algum denominador comum, algum consenso mínimo, algum acordo geral. Sem
dúvida, Islamismo e Cristianismo têm diferentes concepções de Deus, mas ambos
acreditam em algum tipo de divindade. Talvez então este seja o elemento comum e a
natureza essencial de toda religião.6

Karl L. Stolz em The Psychology of Religious Living argumenta que o humanismo não
é uma religião porque “investe a palavra 'religião' com uma conotação que é
absolutamente estranha para ela… Uma religião sem Deus é uma contradição de
termos” (75-76). Neste momento, vamos garantir que Stolz e King estejam certos
negando que haja uma religião sem deus. Somos agora confrontados com a filosofia de
Spinoza e com as superstições de tribos selvagens. Spinoza tem uma religião? Spinoza
tem um deus? Algumas pessoas chamaram ele de um ateu; e se isso é verdade, ele não
poderia ter tido uma religião no sentido da palavra de Stolz. Mas outros o chamaram de
gottbetrunkener Mensch - um homem intoxicado por Deus. Ele falava frequentemente
de Deus, de Deus sive Natura Portanto, ele deve ter sido muito religioso. Infelizmente,
no entanto, se Deus e a natureza são identificados, e se o Deus de Spinoza é o próprio
universo, Pode-se dizer que ele acreditava em Deus? Deus não é algo diferente do
universo? O que se entende pelo termo Deus? Ou, para sair da filosofia complicada de
Spinoza para as superstições dos povos não civilizados, claramente, seja qual for o deus
que a religião Inca reconheceu ou seja qual for os deuses adorados nos vários cultos
animistas, eles não são o Deus do Cristianismo. Se o termo Deus é tão ampliado a ponto
de incluir o uso de Spinoza e os animistas, o termo e a definição de religião se tornam
sem sentido. Portanto, se a religião deve ser definida em termos de crença, talvez deva
ser uma crença em espíritos, ou simplesmente em imortalidade, ou alguma outra crença
generalizada na qual o exame mostrará ser o ingrediente uniforme de todas as religiões.

No entanto, este expediente de substituir o termo espírito mais inclusivo pelo termo
Deus mais definido, enfrenta exactamente as mesmas dificuldades. Espírito teria que ser
definido, e alguém teria que questionar se a sub specie aeternitatis7 de Spinoza poderia

6
Veja Karl Barth, Church Dogmatics, II 1, 449: “É, portanto, impensável colocar o Islamismo e o
Cristianismo lado a lado, como se no monoteísmo ao menos tivessem algo em comum. Na realidade, nada
os separa tão radicalmente quanto as diferentes formas em que parecem dizer a mesma coisa – que existe
um só Deus.”
7
[Nota do tradutor] Expressão usada por Spinoza que descreve o que é universal e eternamente
verdadeiro, sem qualquer referência ou dependência das porções temporais da realidade.

23
ser apropriadamente incluída sob a noção de imortalidade. Mas além dessas dificuldades
detalhadas, há decisivas razões pelas quais o próprio método, a própria busca por um
elemento comum, é insatisfatório.

A Caça ao Snark8

O método é insatisfatório porque exige desde o início o conhecimento que pretende


obter no final. A fim de descobrir o elemento comum em todas as religiões, primeiro
seria necessário distinguir as religiões de todos os fenômenos não religiosos. Se
houvesse uma lista oficial de religiões, um estudante poderia começar a examiná-las por
um elemento comum. Mas antes que o elemento comum seja conhecido, de que modo
uma lista autoritativa poderia ser compilada? Se Lewis Carroll disser a Alice para
examinar todos os Snarks e encontrar a natureza comum dos Snarks, Alice (pelo menos
em seus momentos de vigília) não saberia se todos os objectos antes dela eram Snarks,
ou mesmo se qualquer um deles era. Agora, não estamos em uma posição muito melhor
do que Alice estaria. Em nossa tentativa de encontrar a natureza comum da religião,
acreditamos estar seguros em assumir que o Cristianismo e o Islamismo são religiões.
Mas o Budismo Hinayana é uma religião? Se for, então uma crença em Deus não é
essencial para a religião; mas se uma crença em Deus é essencial, então esta forma de
Budismo não é uma religião. Devemos examinar o Budismo ou não? Devemos incluir o
Budismo na nossa lista? Para responder a essa pergunta, primeiro seria necessário
conhecer a natureza essencial da religião, e no entanto esta natureza essencial é o
objecto ainda desconhecido da pesquisa. Não ajuda aconselhar-nos a começar com uma
pequena lista indiscutível. Em primeiro lugar, não há de qualquer modo lista
indiscutível. Até que a religião seja conhecida, nada pode ser colocado na lista. E em
segundo lugar, mesmo se tivéssemos uma pequena lista indiscutível, seus elementos
comuns não poderiam ser assumidos como sendo a natureza da religião, pois com a
religião (mais do que com a botânica), o elemento comum de uma lista mais longa
provavelmente não será o elemento comum observado pela primeira vez na lista mais
curta.

O Budismo também não é a única ou a mais embaraçosa dificuldade. Considere o


Comunismo. Obviamente é o inimigo de toda religião, fundamentalmente e

8
[Nota do tradutor] Clássico poema escrito por Lewis Carrol no século 19. Snark é uma criatura difícil de
definir, mas com características bastante peculiares.

24
vociferamente anti-religioso. De facto, é religiosamente anti-religioso. Seu zelo anti-
religioso faz com que seja uma religião para seus adeptos. O estudante de religião
deveria, portanto, listar o Comunismo como uma das religiões e buscar o denominador
comum do Comunismo, Cristianismo e Budismo? Como o estudante decidiria o que
fazer? A menos que ele saiba primeiro o que religião é, não saberá se deve ou não
examinar o Comunismo com as outras, na esperança de descobrir a natureza essencial
da religião.

Além dessa objecção ao método, há também uma objecção às conclusões usuais que ele
oferece. Vamos supor que o Cristianismo, o Islamismo e até o Budismo tenham sido
examinados. Talvez seja alegado que o elemento comum é uma crença em um Ser
Original. A fraseologia em que tais elementos comuns são declarados deve ser tão geral
e é interpretada pelas várias religiões de maneiras tão incompatíveis e antagónicas que
nada comum parece permanecer, senão um nome ou uma forma vazia de palavras. O
Ser Original para o Budismo pode ser o Nirvana, para o Cristianismo é a Trindade; para
o Comunismo são os átomos. Mas se a Trindade é espírito e sem matéria, se os átomos
são matéria e sem espírito, e se o Nirvana nem um nem outro, é difícil ver que há algum
elemento real em comum. O Ser original é apenas um nome, um nome de nada, um som
no ar.

Necessidades Humanas Comuns

Se em resposta a esta crítica, é dito que os três Seres Originais executam funções
análogas nos três sistemas, e que esta função é um elemento comum real, a resposta será
uma repetição do argumento. A defesa fala frequentemente das várias religiões que
preenchem as necessidades de seus aderentes, e, portanto, o factor comum em todas as
religiões é o facto de que elas satisfazem certas necessidades. No entanto, esta resposta
não funcionará. Não funcionará porque as várias religiões não concordam em relação ao
que o homem necessita. Claro que pode haver acordo verbal de que os homens
necessitam do que é bom para eles, mas quando conteúdos específicos do bem ou da
necessidade são explicados, são achados diferentes. O homem precisa do céu onde
Cristo está sentado à direita do Pai, ou o homem precisa do Nirvana e da extinção
pessoal? Nenhum Cristão devoto admitirá que o Nirvana (ou átomos) pode executar a
mesma função que a Trindade; nem o Comunista ou o Budista admite que a Trindade
pode fazer o que o Nirvana ou os átomos podem fazer. Apenas os críticos que não têm

25
religião podem reconhecê-los de maneira tão ligeira. Os próprios aderentes não
reivindicam que o seu Ser Original realiza a mesma função que é reivindicada para o
Ser Original de outras religiões. Função e necessidade, assim como Ser Original, nada
mais são do que nomes vazios. Não há, portanto, nenhum elemento em comum entre
aqueles fenômenos que são popularmente designados como religiosos.

O que então é religião? Coloquialmente a palavra é aplicada ao Islamismo, Budismo e


Cristianismo. Mas porque é vaga, pode ser aplicada ao Comunismo também. Então as
definições de religião assumem a forma de “para que fim um homem viverá e morrerá”.
Tais definições são completamente sem conteúdo e não especificam qualquer assunto
definido de investigação científica.

Palavras Significativas

Por outro lado, para ter um assunto de estudo definido e significativo, a palavra
coloquial e vazia deve ser abandonada, e alguns conteúdos específicos devem ser
seleccionados. Por exemplo, a palavra Deus não pode ser apenas um primeiro princípio.
O Deus Sive Natura de Spinoza e o Deus de Abraão, Isaque, e Jacó - como Pascal viu
tão bem - não são a mesma coisa. A salvação não pode significar Nirvana tanto quanto
Céu. Portanto, se quisermos usar a palavra religião, devemos defini-la particularmente.
Podemos desejar discutir Islamismo, ou podemos desejar discutir o Cristianismo. Neste
sentido existem religiões, mesmo que não haja religião. É verdade, pode ser difícil
definir o Cristianismo ou o Islamismo, mas não é impossível. Podemos ter que alterar o
significado coloquial de alguma forma, no interesse da precisão, mas a definição técnica
não estará tão longe do significado comum para ser absurdo. De qualquer forma,
precisamos de conceitos claros para evitar confusão. Quando um termo como Deus é
esticado para incluir todos os primeiros princípios que alguém já pensou - e todo
fetiche, espírito e superstição, embora estes não sejam os primeiros princípios - o termo
não significa nada. Tal como Hegel insistiu, toda determinação é uma negação. Ou,
como argumentou Aristóteles, um termo não só deve significar algo, mas também deve
não significar algo. Depois de séculos de discussão filosófica, não deveria ser necessário
defender a indispensabilidade da linguagem inequívoca, mas tal é o caos em discussões
na religião e tal é a antipatia em direcção a tomar um determinado ponto de vista de que
os resultados desastrosos de generalidades vagas pedem ênfase. Vamos, portanto, tentar
evitar a confusão sendo explícitos. A maioria das palavras no dicionário têm três, quatro

26
ou até cinco significados diferentes; mas se alguma palavra tivesse mil significados, ou
melhor, se alguma palavra pudesse representar todas as outras palavras no dicionário,
ninguém diria o significado dela. Se uma palavra significa tudo, não significa nada. Não
ter significado definido ou limitado é não ter significado algum.

CRISTIANISMO

A partir daqui, a discussão procederá do ponto de vista do Cristianismo. O termo


Cristianismo é muito mais exacto que religião. O Cristianismo tem certas doutrinas
sobre um Deus pessoal, Cristo o Redentor, Céu e Inferno, que não podem ser
confundidas com o Comunismo, Islamismo, ou Espinosismo. Mas se a definição do
conteúdo intelectual for uma virtude, por que alguém deveria impedi-la só um pouco?
Até mesmo a palavra Cristianismo é usada coloquialmente em vários sentidos, e somos
forçados a admitir que os próprios Cristãos professos têm idéias inadequadas sobre o
que Cristianismo é. Certamente, as imagens, medalhas, missangas e outras parafernálias
do Romanismo não são a mesma religião em relação ao Puritanismo iconoclasta.

Definição do Cristianismo

É essencial, portanto, definir o Cristianismo mais exactamente por um sistema


doutrinário específico. Romanismo não é o que se quer dizer. Por Cristianismo
queremos dizer, para usar nomes comuns, o que é chamado de Calvinismo. Ou, para ser
mais específico, a definição do Cristianismo deve ser feita com base nos artigos da
Confissão de Westminster. Com uma base tão definida, não será mais necessário girar
vertiginosamente em um redemoinho de disputa equívoca. Agora nós podemos saber do
que estamos falando.

Visto que a causa da confusão na filosofia da religião tem sido uma terminologia vazia e
sem sentido, a esperança agora é que esta evitação da ambiguidade contribuirá para a
solução de vários problemas. Os principais assuntos - a relação entre razão e fé,
inspiração e revelação, a base da moralidade - serão considerados nos capítulos
seguintes. Uma tentativa será feita para mostrar que, por causa da posição doutrinária
básica, é possível chegar a conclusões definitivas e consistentes. Não existe alegação
hipócrita de que o argumento é sem pressuposições. Pelo contrário, somente porque a
Confissão de Westminster é conscientemente adoptada, o avanço pode ser aceito. Mas
antes que as questões principais sejam colocadas, certos pontos secundários provam ser

27
exemplos satisfatórios do procedimento e podem ser usados para concluir esta
introdução.

As Religiões

Primeiro, um ponto de vista Cristão definido pode fornecer a solução para o paradoxo
do presente capítulo. Como pode haver religiões, mas nenhuma religião? Se não há
característica comum, emocional ou intelectual, por que fenômenos uniformemente
classificados juntos e chamados de religião? Por que existem também casos duvidosos
que às vezes parecem ser religiões e em outros tempos parecem ser “meramente”
filosofia, ou talvez política? Claro, pode-se simplesmente apelar para a ignorância e
estupidez da população e sua falta de pensamento claro. Mas há algo mais. A resposta
Cristã começa com Deus criando Adão à sua própria imagem, dando-lhe uma revelação
especial. Aqui foi o começo da religião. Com a queda, no entanto, e a depravação
resultante, os homens tornaram-se distantes de Deus e distorceram tanto a revelação,
quanto a sua reacção a ela. À medida que as gerações surgiram e desapareceram, estas
distorções divergiram em muitas direcções, dando origem a todas as formas de idolatria,
culto animal, fetichismo e feitiçaria, para não mencionar a mais descarada rebelião do
ateísmo. Assim, não havia possibilidade de qualquer conteúdo intelectual permanecer o
mesmo em todos estes desenvolvimentos. Portanto, as religiões de hoje são
descendentes da única religião original; e por causa desta origem comum, elas são
coloquialmente chamadas de religião. Se a divergência não for tão grande a ponto de
obscurecer essa origem, as pessoas não hesitam em chamar as religiões de fenômenos.
Assim, o Islã é sempre chamado de religião por causa de sua herança do Judaísmo.
Quando a divergência se torna maior, a hesitação e a perplexidade se instalam. Isso é
visto onde as pessoas se perguntam se o Budismo é uma religião ou apenas uma
filosofia. E se isso se tornar extremo, as pessoas terão geralmente, certeza de que não é
religião. Mas a classificação lógica falha porque as divergências ocorreram sem
princípios lógicos. A inspiração desinibida foi eliminada em todas as direcções de uma
só vez. Portanto, o único resultado abrangente de tentar definir a religião é agora,
declarações indefinidas sem sentido.

28
Conversão Cristã

Um segundo exemplo da confusão engendrada por noções vagas já foi visto na


discussão da conversão. Mas pegue outro exemplo: Strickland9 observa que a psicologia
não deveria tentar dizer o que deve ser, mas de acordo com os ideais científicos deve
simplesmente tentar descobrir o que é. Aplicando este princípio às experiências de
conversão, Strickland não prescreve quaisquer elementos necessários ou essenciais sem
os quais a conversão não pode ocorrer, mas ele colecta dados de narrativas de
conversões e faz generalizações quaisquer, que esses dados permitem. Como foi
explicado antes, isso é equivalente a caçar o Snark antes de saber o que Snark é.
Portanto, Strickland continua apontando que os casos que ele colectou nem sempre
exibem tristeza pelo pecado. Isso, diz ele, é evidente a partir de relatos de experiências
Cristãs e de experiências Hindu modernas. Nesta linha de argumentação, Strickland
supõe que as experiências Hindu são casos de conversão. Mas qual é a definição de
conversão? O reconhecimento da Confissão de Westminster como um pressuposto,
fornece uma definição e uma solução do problema. Nesta base conversão é uma virada
inicial do pecador à misericórdia de Deus em Cristo, com a apreensão do pecado como
contrária à lei justa de Deus. Embora esta não seja uma citação textual da Confissão, é
uma aproximação do pensamento Puritano ou Calvinista; e se isso é o que se entende
por conversão, é claro que as experiências Hindus não podem ser chamadas de
experiências de conversão. É apenas um pouco menos claro que muitas experiências
chamadas Cristãs por pensadores descuidados não são conversões e podem nem mesmo
ser Cristãs de forma alguma. O estado de espírito confuso dos psicólogos seculares que
misturam todos os tipos de experiências, que na melhor das hipóteses apenas a
semelhança mais superficial, torna suas investigações quase completamente inúteis.
Poderíamos também anunciar como uma grande descoberta que coxcombs, a luz do
planeta Marte e os Comunistas são todos vermelhos. E se os psicólogos não devem
legislar, o cristianismo deveria.

Pecado

Um terceiro e último exemplo do mal-entendido resultante de termos mal definidos, que


surge também em conexão com os fenômenos de conversão, é a percepção do pecado.
Para retornar pela última vez a Pratt, notamos que ele dificilmente disfarça sua antipatia

9
Strickland, Psychology of Religious Experience, 113-115.

29
pela experiência em relação a Bunyan. A objecção que ele exprime é que Bunyan sofreu
sob um senso de pecado sem particularizar um ou alguns pecados definidos. Pratt dá a
impressão de que Bunyan seria mais compreensível se tivesse mostrado tristeza por
algum acto óbvio de delito. Ele tinha cometido assassinato ou roubo, ele tinha difamado
ou ferido seu vizinho do lado, então ele teria tido algo de que se desculpar, e sua
depressão poderia ter sido de alguma forma justificada. Mas, Pratt em depreciação diz,
Bunyan sofreu apenas com um sentimento de pecado ao invés de algum acto definido.
A razão pela qual Pratt passa de simples descrição psicológica para desencadear uma
condenação não é difícil de perceber. Ele definiu tacitamente o pecado como um acto
aberto e voluntário, restringindo-o possivelmente a actos bastante sérios, e ele não
demonstra compreensão da visão do pecado como qualquer falha nos padrões de Deus.
Na sua visão não Cristã, pecadilhos possivelmente - e certamente herdados, carácter
involuntário - não são considerados pecados. Assim, Pratt com seus pressupostos nem
pode apreciar, nem mesmo compreender a doutrina Cristã da depravação humana. Ele
está tentando aplicar uma noção secular de pecado à experiência Cristã de Bunyan, e o
resultado não é mais relevante do que imparcial.

Repetidamente, isso é o que acontece. Nos capítulos seguintes, com respeito a vários
problemas importantes, será visto com muita profundidade, de que modo os termos
ambíguos e equivocados do método comparativo produzem dificuldades e paradoxos
insolúveis, levam a absurdos óbvios, ou chegam ilogicamente a conclusões hostis ao
Cristianismo. Os argumentos não-Cristãos assumem regularmente o ponto em disputa
antes de começarem. As perguntas são enquadradas de modo a excluir a resposta Cristã
desde o início. Examinando este procedimento para ver como funciona, veremos
também como conceitos Cristãos inequívocos se combinam em um sistema consistente.

30
FÉ E RAZÃO

Ao longo da história da teologia e filosofia – assim como em toda a “guerra entre


ciência e religião ”, e também em textos mais devocionais sobre a relação entre Deus e
o homem - a antítese da fé e razão tem sido um foco frequente de discussão. Mas a fé e
a razão são antitéticas? No sentido em que esses termos foram usados por Agostinho,
eles são praticamente idênticos. Em alguns contextos, certamente, eles são organizados
em cooperação amigável. Mas é claro que eles são frequentemente colocados em
oposição. A presente discussão será condensada sob quatro subtítulos facilmente
lembrados. Primeiro, a visão Católica Romana virá sob o título de “Razão e Fé”.
Segundo, “Razão sem Fé” resumirá a filosofia moderna de Descartes a Hegel. Em
terceiro lugar, as explosões do Irracionalismo que seguiram Hegel - incluindo o
Misticismo, a Neo-ortodoxia, bem como Nietzsche e o Instrumentalismo - serão
tomadas como exemplos de “Fé sem razão.” E quarto, a única combinação restante é
“Fé e Razão”.

RAZÃO E FÉ

Teologia Natural

Essa verdadeira religião é precedida ou de alguma forma fundada na actividade da razão


natural, é uma ideia que tem sido e continua a ser amplamente prevalecente. O
procedimento adequado é retratado como começando com uma prova da existência de
Deus. Quando o incrédulo é convencido por um argumento extraído da natureza, então
em seguida, a ele pode se mostrar a probabilidade antecedente de uma revelação
especial e, finalmente, a razoabilidade das Escrituras.

Não só esta teologia natural em sua forma medieval foi adoptada como a posição oficial
do Romanismo, mas muitos teólogos Protestantes também aceitam-na de alguma forma
ou de outra. Não todos, para ter certeza: A.H. Strong, em sua Teologia Sistemática
(I,71), diz: “Esses argumentos são provavelmente não demonstrativos”. No entanto, o
Professor Luterano, Leander S. Keyser, expõe os argumentos racionais para a existência
de Deus em um sistema de Teísmo Natural. Sua análise e rejeição do argumento
ontológico ressalta apenas sua dependência dos outros. A.E. Taylor é mais ambíguo em
sua posição eclesiástica, em seu conceito de Deus, e até mesmo na força precisa que ele
atribui ao seu argumento; mas ele escreveu um livro, Deus existe? Pergunta essa cuja

31
resposta é certamente não negativa. J. Oliver Buswell Jr., Stuart Hackett, e Edward John
Carnell à sua maneira se aliam a vários escritores Protestantes que aceitam as provas
teístas. No entanto, e de uma forma muito mais elaborada e sistemática do que qualquer
um deles, Tomás de Aquino expos os argumentos naturais para a existência, com base
nos quais ele então erigiu uma teologia revelada.

A visão Tomista distingue o processo entre chegar a verdade pela razão natural sem
ajuda do homem e pela aceitação voluntária da verdade na autoridade da revelação
divina. O primeiro é filosoficamente demonstrável; o último, aceito sem demonstração,
é a esfera da fé. Fé e razão são, portanto, em um sentido, incompatíveis. É claro que
esse sentido não é aquele em que humanistas ou materialistas os tornam mutuamente
antagônicos. Pelo contrário, eles são psicologicamente ou subjectivamente
incompatíveis. Se demonstramos racionalmente uma proposição, é impossível para nós
acreditarmos numa autoridade vazia. Agora temos a prova e isso não deixa espaço para
a fé. Por exemplo, um Professor do ensino médio pode dizer a um aluno que os
triângulos planos contêm 180 graus, se ele tiver alguma ideia do que é um grau, pode
acreditar no que seu professor diz. Mas depois que o aluno entende a prova, não acredita
mais no teorema sob a autoridade do Professor; ele conhece o teorema porque ele
provou isso. Tomás e Aristóteles permitiriam até um exemplo de experiência sensorial.
Um Americano pode dizer a um Europeu que Denver fica a oeste de St. Louis; mas se o
Europeu vier à América e visitar as cidades, não mais acreditaria em autoridade, ele
saberia por experiência. É assim impossível saber e acreditar na mesma coisa ao mesmo
tempo. O princípio vale igualmente para a proposição de que Deus existe.

No entanto, a incompatibilidade subjectiva de saber e acreditar na mesma coisa ao


mesmo tempo não impede que a mesma proposição seja parte da teologia de um homem
e da filosofia de outro homem. Deus acomodou-se à fragilidade humana, e porque a
religião Cristã não é restrita aos estudiosos, Deus revelou sobrenaturalmente algumas
verdades que os estudiosos podem descobrir por si mesmos. Assim Deus revelou sua
existência para que camponeses e idiotas acreditem nele; e tenham fé. Mas Tomás não
acredita mais na existência de Deus; ele sabe que Deus existe porque ele provou isso.

Em outro e mais importante sentido, razão e fé não são incompatíveis. Eles são
complementares. Existem muitas verdades sobre Deus que são indemonstráveis. No
entanto, embora não possam ser obtidas naturalmente, são necessárias para a religião

32
positiva. Portanto, Deus revelou-as graciosamente. Por exemplo, pode ser demonstrado
que Deus existe e que Ele é a causa do mundo, mas a doutrina da Trindade não pode ser
demonstrada. No entanto, a doutrina da Trindade não é incompatível com a razão; não
contradiz qualquer proposição demonstrável em filosofia. Pelo contrário, as doutrinas
da revelação completam o que filosofia teve que deixar inacabada. Os dois conjuntos de
verdades são complementares.

A verdadeira fé e a verdadeira razão não podem contradizer-se. O conhecimento natural


e as verdades da fé vêm de Deus – embora, de diferentes maneiras. Mas como ambos
vêm de Deus, devem ser consistentes. Por causa disso, segue-se que a fé é
frequentemente uma ajuda para a razão. Sempre que um pensador, em seus raciocínios
especulativos chega a uma proposição inconsistente com a fé, assim como Averroës
quando concluiu contra a imortalidade individual, ele deveria aceitar a advertência da
revelação pelo facto de que cometeu um erro em sua argumentação. A fé nunca é um
obstáculo à razão; não se deve imaginar o crente como um prisioneiro que deveria
receber sua liberdade; a fé se restringe apenas ao erro. Assim, razão e fé estão em
harmonia.

Nesta representação Tomista dos assuntos, o significado da fé e razão deve ser anotado.
Esses termos-chave não são usados no mesmo sentido por todos os autores e, portanto,
as discussões históricas nem sempre se referiram ao mesmo assunto. Para Tomás de
Aquino fé se refere a verdades recebidas pela transmissão sobrenatural de informações,
mas isso não é o que F. H. Jacobi e Friedrich Schleiermacher mais tarde queriam dizer
por fé. No presente contexto razão significa um processo que começa com a sensação,
passa pela imaginação, faz uso da abstracção e chega ao conhecimento conceitual. Mas
na filosofia do século XVII a razão era nitidamente separada da sensação. A razão então
significava apenas lógica. Por causa de tal variação no uso, o cuidado é necessário. As
restrições de um autor sobre fé podem de facto se aplicar a um significado de fé,
enquanto ao mesmo tempo podem ser totalmente irrelevantes para outro. Deixar de
observar isso - não apenas pelos leitores, mas, mais especialmente pelos autores - tem
sido uma fonte de confusão sem fim.

Antes de examinar o argumento cosmológico em si para determinar se a razão pode ou


não satisfazer as expectativas de Aquino, será melhor considerar algumas objecções ao
programa geral, conforme esboçado. Edwin A. Burtt em seu Tipos de Filosofia

33
Religiosa parece aprovar a seguinte crítica: Se a razão do homem é naturalmente
incompetente para chegar à doutrina da Trindade ou em outras verdades da fé, deve em
primeiro lugar ser incompetente para provar a existência de Deus. Por que uma verdade
pode ser demonstrada e outras não? E ainda, mesmo se a existência e a bondade de
Deus forem provadas, não se segue que uma revelação sobrenatural seja necessária.
Deus poderia mostrar sua bondade de outras maneiras.

O Romanista, diz ele, enfrenta esse dilema:

Se a razão do homem é competente para dizer que a bondade de Deus implica a


provisão de uma revelação sobrenatural, não precisa de tal revelação, sendo capaz de
decidir igualmente bem qual a obtenção do bem que o homem exige; se é incompetente
apontar o caminho para a salvação humana, é ainda mais incompetente concluir
qualquer coisa sobre providência infinita.10

Agora, pode haver falhas e defeitos sérios na filosofia Tomista; mas a crítica do
Professor Burtt parece errar o alvo. Parece estranho que uma discussão que chegará a
uma completa rejeição do Tomismo, deva fazer uma pausa para defendê-lo contra
ataques contemporâneos. No entanto, não apenas se deve tentar ser justo, mas até
mesmo o interesse próprio evita confiar em críticas defeituosas. E, de facto, parece que
o professor Burtt colocou um fardo sobre o Tomismo que não precisa suportar.

Em primeiro lugar, não é necessário afirmar que a bondade de Deus implica uma
revelação sobrenatural. É suficiente que a bondade de Deus permita a possibilidade de
uma revelação. Claro, Deus pode mostrar sua bondade de outras formas, como afirma
Burtt, mas isso não exclui racionalmente uma revelação especial.

Então, em segundo lugar, mesmo se a bondade de Deus implicasse uma revelação


especial, de modo algum segue-se que a razão sem ajuda poderia descobrir o conteúdo
dessa revelação. Garantir sem reservas que da bondade de Deus poderíamos
validamente inferir que deve haver uma revelação - garantir, isto é, que reconhecemos a
necessidade de mais informações sobre o método de obter a nossa felicidade final -
ainda não há razão para concluir que esta informação é detectável por nossos esforços
sem ajuda. Pelo contrário, não seria em grande parte nossa própria incapacidade de
descobrir os requisitos de Deus para nós, que nos levou em primeiro lugar a concluir a
necessidade de revelação?

10
Burtt, Types of Religious Philosophy, 454. Primeira edição.

34
A crítica de Burtt baseia-se inteiramente no princípio de que, se é possível demonstrar
qualquer uma proposição, é possível demonstrar todas as outras. Isso não é plausível.
Não há nada irracional ou contraditório, certamente nada obviamente auto-contraditório
na manutenção da demonstrabilidade de algumas verdades e da indemonstrabilidade das
outras. Até Hegel, que pelas exigências de seu sistema deveria ter feito tudo
demonstrável, admitiu a existência de contingências na natureza. Na construção de
Hegel esta admissão pode de facto ser uma falha. O Idealismo Absoluto pressupõe que
todo conhecimento é tão inter-relacionado que toda parte envolve o todo. Toda a
natureza deve ser entendida através de uma manifestação dialética do conceito que está
completamente sob nosso controle. Mas Tomismo não é Hegelianismo. Se com Tomás
as premissas da demonstração devem ser buscadas na experiência sensorial, cada
homem é limitado pelo intervalo relativamente estreito de sua própria experiência, e
toda a humanidade seria limitada por um universo de experiência que não inclui
premissas para todas as verdades. Sem essas premissas, não podemos chegar as
conclusões desejadas. Considerações epistemológicas intricadas que não podem ser
discutidas agora, entram aqui, mas pelo menos de um ponto de vista mais comum a
incapacidade de demonstrar os acontecimentos da história não parece invalidar a prova
dos teoremas em geometria.

Burtt faz então a suposição de que o Romanista, em resposta à crítica de que qualquer
competência racional torna a revelação desnecessária, aponta para a Bíblia como sendo
de facto uma revelação. Mas Burtt assegura que isso é uma resposta inadequada à
crítica. “A aceitação de qualquer suposta revelação como um facto real depende da
convicção prévia de que existe no universo um Deus capaz e disposto a supri-la” (406,
edição revisada). Esta afirmação também é de limite amplo, mas em um aspecto
descreve melhor a posição do que o dilema anterior. O dilema dependia do ponto que
um argumento para a existência de Deus implicaria uma revelação. Ou seja, Burtt
argumentou primeiro que uma demonstração da existência de Deus, se continuasse,
demonstraria também a existência e o conteúdo de uma revelação. Esta observação
posterior apenas insiste que uma convicção da existência de Deus deve preceder a
aceitação de uma revelação. Aqui não é uma questão da existência de Deus implicando
uma revelação, mas é a posição mais modesta de que uma revelação pressupõe um Deus
capaz e disposto a se revelar. Obviamente, Tomás afirma que ele tem demonstrado a
existência de tal Deus. Portanto, o próximo passo é pesquisar através do universo para

35
descobrir se uma revelação real ocorreu. E, novamente, obviamente, Tomás encontra a
Bíblia. Agora, Burtt afirma que essa descoberta é uma resposta inadequada à crítica;
mas se nós aceitamos a primeira parte da filosofia de Tomás, não é fácil ver por que
essa etapa deve ser considerada inadequada.

No entanto, ainda há mais uma fonte de confusão. Por uma questão de facto, a aceitação
de uma revelação não pode depender de qualquer convicção prévia da existência de
Deus. Para ter certeza, uma revelação pressupõe Deus; mas a aceitação de uma
revelação não requer uma crença prévia em Deus. Um homem pode aceitar a Bíblia e
nesse acto ser pela primeira vez convencido da existência de Deus. Isto é, ele pode
encontrar Deus na revelação. De facto, já que muitas pessoas não são competentes para
entender as provas da existência, e uma vez que muitas que são competentes não
estudam as provas, parece que a maioria das pessoas que aceita a revelação não se
convenceu intelectualmente da existência de Deus. Elas tomam tanto a existência de
Deus quanto o conteúdo da Bíblia, igualmente pela fé.

Logicamente, é claro, o facto de uma revelação pressupõe que há um Deus. Nesta


medida, Burtt está obviamente correcto. Mas isso não é crítica prejudicial, já que Tomás
admitiria isso. Está inteiramente de acordo com a distinção feita por Tomás, mas sim
ignorada por Burtt, entre a ordem da realidade e a ordem do conhecimento. Na verdade,
Deus vem em primeiro lugar e tudo mais vem depois; mas o processo humano de
aprender, de acordo com Tomás, começa primeiro com outras coisas e chega mais tarde
a Deus como uma conclusão. Por estas razões, por mais complicadas que sejam, a
crítica de Burtt a Tomás deve ser julgada incorrecta.

A reflexão sobre as críticas de Burtt pode sugerir que as questões que ele discute são,
afinal, de importância secundária. O cerne da questão está na própria demonstração. Se
a demonstração for válida, as objecções falham automaticamente. Mas a demonstração é
válida? Tomas provou realmente a existência de Deus? Essa é a questão importante.

O Argumento Cosmológico

Nesse argumento está o destino de toda a teologia natural, em oposição a teologia


revelada; e sua força decidirá se os trabalhos de séculos valeram a pena ou foram mal
direccionados. Agora, se o argumento cosmológico (deixando o argumento ontológico
fora de consideração) é inválido, ou o Cristianismo não tem fundamento racional, ou um

36
significado para a razão que seja independente da filosofia Tomista deve ser encontrado.
Para apontar a direcção que esta discussão tomará, pode-se dizer que o argumento de
Tomás provará ser inválido, e seu uso de razão indefensável; então um significado
alternativo da razão será proposto que, além de qualquer referência Tomista, também
revelará a ambiguidade nas acusações humanistas modernas de que o Cristianismo é
irracional.

O argumento cosmológico para a existência de Deus, mais plenamente desenvolvido


por Tomás de Aquino, é uma falácia. Não é possível começar com experiência sensorial
e proceder pelas leis formais da lógica para a existência de Deus como conclusão. Os
termos falácia, leis formais da lógica, invalidez, demonstração e assim por diante
referem-se às regras de pensamento que não admitem nenhuma excepção. Eles se
referem à inferência necessária. Alguns dos teólogos Protestantes descrevem o
raciocínio válido como matemático. Por exemplo, David S. Clark deseja “distinguir
entre prova e demonstração matemática.”11 Pelo termo prova ele pretende dizer
evidências, como as usadas em tribunais de justiça. A razão pela qual o termo
matemático é usado com demonstração, é que álgebra e especialmente geometria
consistem em inferências necessárias. As demonstrações de geometria são claramente
válidas. Elas são exemplos notáveis de pensamento correto. Se as premissas forem
admitidas, as conclusões não podem ser evitadas. Em um tribunal, um fragmento de
evidência - e muitas vezes todas as evidências juntas - não exigem a decisão. O uso do
termo matemático é lamentável, no entanto para a prova de teoremas geométricos não é
mais válido do que o silogismo não-matemático usado por séculos em livros de lógica:
Todos os homens são mortais; Sócrates é um homem; portanto, Sócrates é mortal. Esta
também é uma inferência necessária. Agora Tomás de Aquino pretendia e a teologia
natural exigia que o argumento para a existência de Deus fosse uma demonstração
formalmente válida. A conclusão deve seguir necessariamente a partir das premissas.
Nisto, eu sustento que o argumento falha.

A primeira razão pela qual falha é muito complicado de escrever aqui. Assim como
resumido na Summa Theologiae I, Q. 2, o argumento cosmológico depende de um
fundo filosófico extenso, emprestado de Aristóteles. Inclui uma teoria do movimento
que afirma que nada pode mover-se por si mesmo. Esta tese repousa sobre os conceitos

11
David S. Clark, Syllabus of Systematic Theology, 62.

37
de potência e acto. Tomás define o movimento como a redução da potência para o acto.
A causa de um movimento deve ser acto, a coisa que mudou é potência. E uma vez que
nada pode ser acto e potencia no mesmo sentido, segue-se que nada pode mover-se por
si mesmo. Infelizmente, os conceitos de potência e a acto permanecem indefinidos.
Aristóteles tentou explicá-los por analogia. No contexto, o movimento é usado na
explicação e, em seguida, os conceitos de potência e acto são usados para definir o
movimento. O argumento, portanto, é circular. Por trás disso está uma massa de
metafísica e epistemologia. Tais complexidades não podem ser discutidas aqui, mas
deve-se notar que se houver um silogismo essencial em toda a argumentação extensa, é
inválido, todo o sistema e a prova da existência de Deus entra em colapso.

Uma segunda razão para repudiar o argumento cosmológico pode ser melhor pontuada.
Em sua tentativa de concluir com um primeiro Motor Imóvel, Tomás argumenta que a
série de coisas movidas por outras coisas em movimento não pode regressar ao infinito.
A razão que Tomás dá para negar que as causas em movimento podem regredir ao
infinito é que essa visão descartaria um Primeiro Motor. Mas esta razão que Tomás dá é
essencialmente a conclusão que ele deseja provar. Claro, uma série infinita de causas
em movimento é inconsistente com um primeiro Motor Imóvel. Mas se o argumento é
projectado para demonstrar o Motor Imóvel, sua existência não pode ser usada antes do
tempo como uma das premissas do argumento.

Uma terceira razão de um tipo ligeiramente diferente diz respeito à identidade do Motor
Imóvel. Suponha que todos os silogismos até este ponto fossem válidos. Suponha que a
existência do Motor Imóvel tenha sido demonstrada. Mesmo, quando Tomás acrescenta,
“este [Primeiro Motor] todo mundo entende ser Deus” nós podemos negar. O
argumento tomado em seu valor nominal completo provaria a existência meramente de
alguma causa de movimento físico; pode-se até dizer que isso poderia provar a apenas
existência de alguma causa física do movimento. Para evitar isso, Aristóteles se dá o
trabalho de provar que o Motor Imóvel não tem magnitude; mas esta é uma das partes
mais insatisfatórias de seu argumento. De qualquer forma, é bastante claro que o Motor
Imóvel da prova não tem qualidades de personalidade transcendente. Não há nada
sobrenatural sobre esta causa. De facto - se o argumento é válido, e se este Motor
Imóvel explica os processos da natureza - o Deus de Abraão, Isaque e Jacó é supérfluo e
de facto impossível.

38
Este é um ponto sobre o qual um grande teólogo contemporâneo merece atenção. Karl
Barth, o fundador da Neo-ortodoxia, em sua Church Dogmatics II, 1, 79ff., dá algumas
de suas razões para rejeitar o ponto de vista Católico Romano. Em contraste com a
decisão do Concílio Vaticano, 24 de Abril de 1870, que Deus, que é o começo e o fim
de todas as coisas, pode certamente ser conhecido a partir dos fenômenos da natureza
criada, pela luz natural da razão humana, Barth declara que Deus só pode ser conhecido
por meio de Deus. A principal razão para isso, diz Barth, é que estamos falando sobre o
Deus Cristão, o Deus Triuno. É certo que o Concílio Vaticano não pretendia falar de
outro Deus, nem sobre apenas uma parte deste único Deus. Mas o seu método no
entanto, leva a uma divisão de Deus e, portanto, a outro deus. O decreto usa o termo
“Nosso Senhor”, mas o argumento diz respeito apenas “ao começo e o fim de todas as
coisas”. Agora, diz Barth, o Cristianismo mantém que Deus é o começo e o fim de todas
as coisas, mas também sustenta que Deus é o Redentor; e se levarmos a unidade de
Deus a sério, não seremos capazes de separar um do outro, de modo a tornar um
conhecimento de Deus como o princípio e fim das coisas, dependente da natureza e de
outro conhecimento de Deus como Senhor e Redentor dependente da revelação. Não,
diz Barth; o conhecimento de Deus não pode ser dividido assim. Um conhecimento de
Deus como o começo e o fim não pode existir sem o conhecimento de Deus como
Redentor; nem podemos conhecer a Deus como Redentor sem conhecê-lo como o
começo e fim de todas as coisas.

Não é o Deus Dominus et creator desta doutrina da construção de pensamento humano -


um pensamento que, em última análise, não está vinculado pela base e essência da
Igreja, por Jesus Cristo, pelos profetas e apóstolos, mas que se baseia em si mesmo? E
embora a cognoscibilidade desta construção possa ser afirmada sem revelação, não
precisamos perguntar que autoridade temos da base e essência da Igreja para chamá-la
de “Deus”?

Talvez seja impossível seguir Barth em cada linha de sua objecção aqui citada. Pascal
colocou muito provavelmente o assunto com mais precisão em seus parágrafos
contrastando o deus dos filósofos com o Deus de Abraão, Isaac, e Jacó. Mas, em
qualquer caso, a lacuna entre o “Motor Imóvel” e o Deus vivo é ressaltada.

Agora, o quarto e o último argumento de Tomas é inválido porque um de seus termos


principais é usado em dois sentidos. Não é óbvio que um argumento válido requer que
seus termos tenham o mesmo significado na conclusão de que começam nas premissas?
Infelizmente, Tomás argumenta muito claramente em outros lugares que nenhum termo

39
quando aplicado a Deus pode ter exactamente o mesmo significado quando aplicado a
homens ou coisas. Quando dizemos que Deus é sábio, e que Salomão é sábio, o termo
sábio não é unívoco. Não só o termo sábio; o termo “existe” também. Na proposição
Deus existe, o termo existe tem um significado diferente do seu uso na proposição o
homem existe. Tomás é muito enfático nesse ponto. Mas se um termo não for usado
univocamente durante todo o silogismo, se um termo não suportar exactamente o
mesmo significado, o silogismo é inválido. As regras da lógica foram violadas.12

Aqueles que hoje aceitam o argumento cosmológico, negarão imediatamente que suas
fortunas estejam indissoluvelmente ligadas à sua formulação por Tomás. Existem outras
maneiras de afirmar o argumento, eles afirmam, assim como para evitar qualquer erro
que Tomás possa ter tropeçado. Se isso fosse verdade, seria de se esperar encontrar essa
formulação irrepreensível em algum lugar nos escritos publicados de seus defensores.
Mas o facto é que essa formulação não pode ser encontrada. Existem referências ao
argumento cosmológico, há discussões sobre isso, e há resumos dele; mas o argumento
completo em si, com nenhuma das etapas omitidas, parece nunca ter sido impresso.

David Hume e Charles Hodge

Portanto, aqueles que defendem um argumento cosmológico sem afirmarem o que é,


devem ser desafiados a responder várias objecções que parecem se aplicar a qualquer
formulação. Sem dúvida, é David Hume quem melhor expressou essas objecções além
de suas restrições ao princípio da causalidade. Mas, uma vez que Hume era um
antagonista tão vicioso do Cristianismo, seu nome é anátema para os crentes, e eles são
irracionalmente inclinados a assumir a falsidade de tudo o que ele disse. O inverso pode
estar mais perto da verdade. Pode ser que suas conclusões sejam validamente tiradas de
suas premissas; ele pode estar perfeitamente correto ao argumentar que a existência de
Deus não pode ser demonstrada com base na experiência sensorial. E se é assim, os
Cristãos devem agradecer-lhe por apontar um procedimento que só termina em
embaraço para eles. Assim, os argumentos de Hume devem ser examinados sem
qualquer preconceito de que ele não poderia estar certo.

A rejeição de Hume à teologia natural depende principalmente de dois pontos. O


primeiro ponto é este: se é válido concluir a existência de uma causa a partir da
observação de seus efeitos, é no entanto uma violação da razão atribuir a essa causa
12
Veja o autor de Thales to Dewey, The Works of Gordon Haddon Clark, 217-221.

40
quaisquer propriedades além daquelas necessárias para explicar o efeito. Por exemplo,
se vemos a partitura e ouvimos a música de Beethoven, e se todo o nosso conhecimento
de Beethoven depende dessa observação, podemos talvez concluir que existia um
homem com um grande grau musical de habilidade; mas seria irracional concluir que
esse músico também era a estrela quarterback da Universidade de Bonn. Da mesma
forma o argumento cosmológico - se de outra forma soar - pode nos dar um deus
suficientemente poderoso para ser a causa daquilo que observamos, mas não mais.
Apesar da observação de alguns teólogos ortodoxos de que isso já é um bom acordo, é
preciso responder que não é o Criador omnipotente descrito na Bíblia.

O que é pior, de outro modo o argumento não soaria. A famosa analogia de William
Paley assume que o universo é uma máquina como um relógio, e daí precisa de um
relojoeiro divino; mas Hume questiona a analogia. O universo é uma máquina? Em
muitos processos naturais, o universo assemelha- se a um organismo mais do que a uma
máquina. E se o universo é um organismo em movimento espontâneo, a analogia de um
relojoeiro divino desaparece. A objecção pode ser declarada em termos ainda mais
gerais. Se o universo é uma máquina ou um organismo vivo, o argumento cosmológico
assume que é um efeito. Como efeito, precisa de uma causa. Mas como pode ser
mostrado que o mundo é um efeito? Claro que existem causas e efeitos dentro do
universo. Uma parte faz com que outra parte se mova, assim como uma roda em um
relógio faz com que outra roda se mova. Até vegetais têm causas e efeitos dentro delas.
O argumento cosmológico, no entanto, requer que o universo como um todo seja um
efeito. Mas nenhuma observação das partes do universo pode dar essa suposição
necessária. Para ser bem claro sobre isso, ninguém jamais viu o universo como um todo.

Depois, mesmo que possa ser provado que o universo é um efeito, existe outra extrema
e séria dificuldade, embora seja apenas uma aplicação particular do primeiro ponto de
Hume. O primeiro ponto foi o princípio de que características podem ser atribuídas à
causa além daquelas necessárias para produzir os efeitos pelos quais a causa é
conhecida. Agora, os efeitos observados incluem muitos males, desastres, tragédias e o
que o Cristão chama de pecado. Estes podem ser listados em profusão aterrorizante.
Eles foram listados e usados contra o Cristianismo tanto por Hume quanto por John
Stuart Mill, assim como por escritores mais cínicos como Voltaire. Estes manifestam
males, desde crianças congenitamente deformadas, até as câmaras de tortura dos
Nazistas e Comunistas que impedem a conclusão de que a causa do mundo é boa. O

41
argumento cosmológico falha totalmente em provar a existência de um Deus justo e
misericordioso. Para ter certeza, isso permite - embora não prove - a existência de um
bom deus, mas apenas sob o pressuposto de que ele não é nem omnipotente nem a causa
de tudo o que acontece. Entretanto, o argumento cosmológico deveria lidar com a causa
universal. Como um recurso para o teísmo Cristão, portanto, o argumento cosmológico
é pior do que inútil. De facto, os Cristãos podem ficar satisfeitos com o seu fracasso,
pois se fosse válido, seria uma conclusão inconsistente a respeito do Cristianismo.

É lamentável que uma grande parte do Protestantismo conservador não esteja disposto a
discutir a justiça de Deus e sua relação com os males do mundo. Existem indivíduos
devotos que parecem supor que uma discussão do mal pode colocar idéias erradas em
cabeças jovens. Qualquer tentativa de explicar o mal, sustentam eles, é inquietante para
a fé. Nisso eles são desobedientes ao seu próprio padrão, a Bíblia; e além disso, seu
ponto de vista implica que Voltaire, Hume, Mill e outros oponentes do Cristianismo são
e permanecerão desconhecidos. Essas pessoas bem-intencionadas não percebem que os
argumentos de Hume são propriedade pública desde 1776; que milhões de pessoas
rejeitaram o Cristianismo por causa deles; e para parar essa perda é um dever Cristão
refutá-los directamente. Isso, acredito, pode ser feito. O problema do mal não é
insolúvel. Mas a solução não depende da reabilitação do argumento cosmológico.

Charles Hodge tentou fazê-lo. Hodge é um dos príncipes do Cristianismo histórico.


Como teólogo e exegeta, ele teve poucos colegas desde que saiu para a glória. Pode-se
até arriscar em dizer que sem ler o seu comentário sobre a epístola aos Romanos, é
impossível entender Romanos, embora tal elogio possa ser um pouco exagerado, sua
alta posição como teólogo deve ser admitida. Entretanto, sua filosofia é deplorável,
particularmente seu tratamento do argumento cosmológico.

Em sua Teologia Sistemática ele tenta provar que o universo é um efeito. Ele argumenta
que uma vez que todas as suas partes são dependentes e móveis, o todo deve ser
dependente, porque “um todo não pode ser essencialmente diferente de suas partes
constituintes.”13 Isso não é verdade. Por exemplo, o Relógio Nocturno de Rembrandt é
composto de vários pigmentos e telas, mas o todo é essencialmente diferente de suas
partes. O todo é essencialmente um objecto estético; as partes não são. Se, em vez de
identificar as partes como pigmentos em seus tubos, falamos de todo o conjunto de

13
Charles Hodge, Systematic Theology, I, 211.

42
quadrados de duas polegadas de tela pintada, a mesma observação é verdadeira.
Nenhum dos quadrados de duas polegadas é um objecto estético, mas o todo é uma das
maiores pinturas do mundo. Ou, dando outro exemplo, podemos seleccionar o sal de
mesa comum. É bom para comer - com ovos, pelo menos; é um conservante de porco e
azeitonas; é também, essencialmente, um composto químico. Mas suas partes
constituintes são sódio e cloro. Estes são essencialmente elementos. Eles também são
essencialmente venenosos para o sistema humano. O sal em pretzels14 é gostoso, mas
quem colocaria um pedaço de sódio na sua língua? Simplesmente não é verdade que as
partes individualmente têm as mesmas características que a totalidade das quais são
componentes.

Hodge continua dizendo que “um número infinito de efeitos não pode ser auto existente.
Se uma cadeia de três ligações não puder se sustentar, muito menos uma cadeia de um
milhão de ligações. Nada multiplicado pelo infinito não é nada ainda.” Vamos
acompanhar de perto o que Hodge disse. A primeira de suas três frases - um número
infinito de efeitos não pode ser auto-existente, é a conclusão que Hodge deveria provar.
Não oferece nenhuma razão em seu próprio interesse. A segunda, que presumivelmente
é pretendida como uma parte da prova, é uma analogia. Hodge supõe que os eventos da
história e da natureza são como ligações de uma cadeia, e se uma cadeia de três ligações
não puder se sustentar, muito menos uma cadeia de milhões de ligações. Todavia,
analogias nunca são argumentos válidos, e essa analogia é particularmente ruim. Em
primeiro lugar, a imagem de uma cadeia cuja primeira ligação é realizada por um
gancho, está longe de ser uma imagem adequada da conexão entre as partes da natureza.
Em segundo lugar, seja três ligações, um milhão de ligações, ou apenas uma ligação, o
facto de não poder flutuar sozinho no ar não fornece bases racionais para concluir que o
universo não é auto-existente. A auto-existência eterna é um conceito bem diferente do
de uma ligação pendurada em um gancho. Finalmente, a terceira frase de Hodge, que
parece ter a forma do argumento principal, não se liga claramente ao precedente. Ele
tinha acabado de dizer que o que é verdade em três ligações deve ser verdade para um
milhão; agora ele acrescenta que nada multiplicado pelo infinito não é nada ainda. Além
de sua conexão duvidosa com o anterior, pois ele não havia mencionado zero ou
multiplicação, a sentença é aritmética ruim. Não é verdade que zero multiplicado pelo
infinito é zero, como se pode ver facilmente ao perceber que a fracção dois sobre zero e

14
[Nota do tradutor] Tipo de pão muito popular entre as populações de língua alemã.

43
a fracção três sobre zero são ambas infinitas. Deixe isso ser suficiente como um
exemplo horrível de defender a teologia natural.

Que isso seja suficiente para refutar a alegação de que a existência de Deus pode ser
demonstrada com base na observação da natureza. O argumento cosmológico é
inválido, e é chamado um tipo diferente de filosofia. Uma possibilidade seria manter o
Cristianismo ao custo de ser irracional. Outra possibilidade, e a próxima a ser discutida,
é a tentativa de seguir a razão, mesmo que isso leve ao repúdio do Cristianismo e
revelação. Assim, “Razão e Fé” dão lugar à nova rubrica, “Razão sem fé”.

RAZÃO SEM FÉ

A medieval, isto é, a cosmovisão Católica Romana perdeu seu monopólio nas mentes
dos homens nos séculos quinze e dezasseis. Dois poderosos movimentos combinaram,
ou pelo menos se completaram, para formar a civilização moderna. Um deles, o
Protestantismo, renunciou à razão escolástica e se baseou na revelação; o outro, o
Renascimento, se entregou totalmente à razão e não teve nada a ver com a fé. Esta
última alternativa será discutida em primeiro lugar, e seu desenvolvimento pode ser
convenientemente organizado, apresentando o relato das principais teorias filosóficas
com algumas notas sobre sua origem na cultura popular.

Irreligião Inicial

O efeito da “razão” nos aspectos gerais da cultura - uma vez que inclui o
desenvolvimento multifacetado do Renascimento e amplia sua influência ao longo de
vários séculos, podemos afirmar que a Revolução Francesa - é um assunto muito grande
para um tratamento adequado. Certas evidências de hostilidade ao Cristianismo são tudo
o que é pertinente e tratável aqui.

As riquezas da fé Cristã estavam em baixa há séculos. Poucas almas piedosas, como os


Valdenses, Jan Hus e John Wycliffe, mantiveram o Evangelho vivo de forma árdua, ao
passo que a grande massa de pessoas estava mergulhada na superstição. No entanto,
provavelmente não teria havido uma revolta crescente contra as formas mortas de
Cristianismo, se não fosse pela invenção da imprensa em meados do século XV. Foi a
imprensa que trouxe para o povo o Novo Testamento e os clássicos Gregos e Romanos.

44
Na Itália, onde a literatura clássica chegou pela primeira vez, o Império do Oriente
desmoronou sob a pressão dos Turcos, o tempo era oportuno para uma revolução
intelectual; porque foi na Itália que a corrupção do papado foi mais evidente. Quando,
portanto, as glórias da Grécia e de Roma se tornaram conhecidas, quando, isto é, uma
civilização que não tinha sido dominada pela ideia de Deus foi trazida à luz, a sociedade
largou rapidamente seu Cristianismo hipócrita e tornou-se abertamente pagã.

Claro que nem toda cultura se tornou pagã. A ideia de Deus não foi descartada
universalmente. Não apenas os autores clássicos estudaram, mas também a erudição do
Novo Testamento foi promovida tanto pelo covarde Erasmo quanto pelos Reformadores
corajosos. Mas o Renascimento diferentemente da Reforma, era essencialmente pagão.
E se isso foi verdade para os estudiosos, particularmente para os estudiosos Italianos
(Pico della Mirandola, c.1494; Marsilius Ficinus, c.1499; e mais tarde, Telesius, c.1588;
Giordano Bruno, c.1600), era ainda mais verdade para Benvenuto Cellini, Niccolo
Machiavelli e Borgias. O brilho artístico, a vaidade intensa, o poder político e as
riquezas dissolutas não eram compatíveis com a doutrina e moralidade Cristã. Não é
necessário manter que a ignorância medieval dos clássicos era uma vantagem, nem que
a forma de arte medieval era superior as novas técnicas. Um conhecimento de Homero e
Virgílio e a descoberta das leis da perspectiva não deve em si ser considerado inimigo
da fé; mas o conteúdo da arte estava mudando, e os temas religiosos se tornaram menos
Cristãos, enquanto os temas pagãos se tornaram mais frequentes. Na literatura,
Boccaccio, Rabelais e cut-throat Villon combinam desprezo pela duplicidade
eclesiástica com uma falta de inclinação para a moralidade pessoal.

No entanto, nem todo esse paganismo, deve ser atribuído a uma decisão filosófica sobre
os méritos da fé e da razão. Villon e Rabelais são simplesmente os resultados comuns
da depravação humana. Na verdade, circunstâncias extenuantes podem ser alegadas pela
repulsa do que passou sob o nome de Cristianismo. Todos esses homens no entanto,
eram componentes representativos da nova cultura. Eles foram os porta-vozes e
espelhos do seu tempo, ambos influenciados e influenciadores. Mas o tipo de escritor
mais pensativo, que, sem ser um filósofo sistemático, a longo prazo exerceria uma
influência mais ampla, pode ser achado em Michel de Montaigne.

É estranho dizer que houve um contraste notável entre Montaigne e outros na tradição
da Renascença, tanto mais cedo assim como mais tarde. O humanismo Renascentista era

45
optimista. Não se preocupou com os limites da razão humana. Ao negar a necessidade
da graça de Deus, assumiu que os recursos humanos eram adequados para todas as
nossas necessidades. O desenvolvimento filosófico, ainda a ser discutido, e os avanços
científicos crescentes não previram nenhum xeque-mate. Mas Montaigne não tinha tanta
certeza.

De facto, Montaigne não tinha certeza de nada. Ele era um céptico. Isto é o primeiro
facto a ser visto em sua atitude em relação a moralidade e a religião. Longe de estar
disposto a morrer por qualquer dogma ou até mesmo a ser incomodado por qualquer
escrúpulo, ele nos aconselha em seu ensaio sobre “Custom” a nos adequarmos ao nosso
tempo e sociedade. Não há princípios morais universais vinculados a todos os homens;
e ainda menos, nada pode ser conhecido sobre Deus, salvação e uma vida futura. A
sabedoria, portanto, consiste em não ter convicção pessoal e em adiar a opinião comum,
a fim de evitar problemas. Quando em Roma, faça como os Romanos fazem.

Os Romanos, isto é, os Romanistas, estavam naquele tempo ocupados, massacrando os


Protestantes na França. Bem, os Calvinistas tinham chegado a eles. Eles eram pessoas
teimosas que violavam os costumes aceitos. Nem eles nem os Romanistas tinham
alguma razão para acreditar no que fizeram, mas visto que o Romanismo esteve no chão
primeiro, as pessoas Reformadas estavam claramente erradas em criar uma perturbação.
É claro que os Romanistas estavam errados também em assassinar os Protestantes, pois
por nenhuma crença vale a pena matar ou ser morto.

O cepticismo de Montaigne, no entanto, é mais profundo do que esses assuntos


religiosos. Embora o Renascimento fosse optimista, embora o século XVII na França
fosse para exaltar a razão, e embora Montaigne tenha exercido alguma influência sobre
os escritores do século XVII, ele ainda expressa sérias dúvidas quanto aos poderes da
razão:

Se você diz: “O tempo está bom”, e você está falando a verdade, então o tempo está
bom. Isso não é uma maneira de expressar uma certeza? E ainda assim nos enganará.
Para ver que isso é assim, siga o exemplo. Se você diz “eu minto” e você está falando a
verdade, então você ainda está mentindo. A arte, a razão, a força da conclusão neste
caso são os mesmos que no outro. Embora você se encontre preso. Eu observo os
filósofos Pirrônicos que não podem expressar sua noção geral por qualquer maneira de
falar, pois eles teriam que ter um novo idioma. Nossa linguagem é inteiramente
composta de proposições afirmativas, que são totalmente hostis a eles; de modo que,

46
quando eles dizem, “Eu duvido”, nós os temos imediatamente à nossa mercê, se forçá-
los admitir que pelo menos eles afirmam e sabem disso, que duvidam.

Embora as últimas linhas deste parágrafo apontem o caminho para um dogmatismo


utilizado por René Descartes, o principal impulso é céptico e, como tal, contrasta
fortemente com as visões dos três séculos seguintes. Com a única exceção de David
Hume, o desenvolvimento filosófico e científico que formou a cultura Europeia
moderna não mostrou ansiedade em relação à competência da mente humana. É ao
pensamento destes principais filósofos para o qual mais atenção deve ser dada. Mas
primeiro, uma continuação posterior do Renascimento, uma continuação no nível do
ponto de vista popular, deve receber uma breve menção. Esta é a chamada Era da
Razão, incluindo o Iluminismo francês e o Deísmo Inglês.

O Iluminismo Francês será condensado em uma referência a Voltaire e os


Enciclopedistas. Não foi um grande movimento filosófico, embora completamente
popular. Voltaire foi tão superficial quanto prolífico. Qualquer um que gastou seu
tempo escrevendo tantos volumes e panfletos, não pode ter gasto muito tempo
pensando, embora, qualquer pessoa com inteligência mais do que a média que tenha
entrado e saído da prisão, honrado, exilado, insultado e lisonjeado, sem dúvida
escreveria muito. No entanto, Voltaire não apresenta um sistema consistente de
pensamento. Uma hora ele favorece o livre arbítrio, e noutra o determinismo; há e não
há idéias inatas; o mundo teve um começo e o mundo é eterno. Ou, novamente, o
argumento teleológico para a existência de Deus é válido, mas narizes foram feitos para
óculos e então temos óculos. Contudo, consistência e profundidade não são pré-
requisitos de popularidade.

O povo Francês, com o Protestantismo virtualmente extinto, gemia sob o poder


autocrático da aristocracia e do clero. Voltaire foi o seu porta-voz. Desde o início de sua
actividade literária ele fez guerra contra a religião Cristã assim que ele a conheceu. Com
o passar do tempo os seus ataques se tornaram mais directos e mais ousados.
Escrevendo em God and Men and The Bible Finally Explained, ele não ataca as
fraquezas e hipocrisias de sacerdotes e crentes, mas sim o próprio Evangelho. Sua
conclusão é que sempre que as Escrituras não são apócrifas, fraudulentas ou alteradas,
elas são imorais e absurdas.

47
No entanto, ao contrário de Diderot e a maioria dos Enciclopedistas, Voltaire não era
ateu. Ele acreditava que a moralidade requer um deus finito que recompensa e punição.
No entanto, a ideia de recompensa e punição entra em conflito com o princípio básico
do Deísmo de que Deus não intervém nos assuntos humanos; e se essas recompensas e
punições devem ser distribuídas em uma vida futura, é preciso lembrar que Voltaire
ridicularizou a idéia de alma dizendo: Admita que uma pulga e uma larva têm alma, ou
diga que o homem é uma máquina.

O Deísmo Inglês, do qual Voltaire captou muitas de suas idéias, foi um fenômeno
relativamente distinguível que pode ser localizado no décimo oitavo século.
Naturalmente, suas raízes estavam no passado, na Renascença e até mesmo em volta de
Celsus e Porphyry. Na Inglaterra, Lorde Herbert de Cherbury (1583-1648) colectou
primeiro o conjunto de idéias mais tarde conhecidas como Deísmo; mas talvez seja
Charles Blount (1654-1693) quem pode ser melhor identificado como um Deísta de
pleno direito. Depois dele vêm os principais representantes do movimento: John Toland
(1670-1722), o Conde de Shaftesbury (1671-1713), Anthony Collins (1676-1729),
Thomas Woolston (1669-1731), Matthew Tindal (1656-1733), e, para não mencionar
figuras menores, o Visconde Bolingbroke (1672-1751).

Em geral, a escrita Deísta ataca o Cristianismo. A autenticidade e a autoridade da Bíblia


são negadas, e seus relatos de milagres são desacreditados. O anti-clericalismo não se
limita à variedade Romana, mas o clero Protestante também é descrito como mercenário
e ganancioso; na verdade o Deísmo vai além, pois Shaftesbury e a maioria dos Deístas
também eram anti-semíticos. Há Frequentemente uma tendência de depender do
ridículo, e até mesmo os amigos do Deísmo reconhecem que os escritos de Thomas
Woolston eram grosseiros e irreverentes.

A estratégia geralmente negativa, o uso do ridículo, e até mesmo centralizar a atenção


em detalhes específicos, não é propício nem para a construção, profundidade filosófica,
assim como para a abrangência sistemática e consistente. O melhor representante do
Deísmo, do ponto de vista do temperamento calmo e amplitude de declaração, é
Matthew Tindal.

Sua obra, Christianity as Old as Cration, sintetiza os principais temas Deístas. Em


primeiro lugar, existe uma religião natural que pode ser descoberta pela razão. Nenhuma
revelação especial é necessária e nada misterioso ou sobrenatural é aceito. A razão

48
sustenta a crença em um deus que governa o mundo racionalmente. Sendo perfeito e
imutável, deus não viola as leis da natureza por nenhum milagre. Pela mesma razão, a
religião que ele deu ao homem na criação é perfeita e não precisa de suplementação. A
perfeita racionalidade de deus é igualmente incompatível com sua escolha e
favorecimento de um povo em particular. A revelação especial também seria um
exemplo de parcialidade. Pelo contrário, todos os homens têm meios suficientes para
saber o que deus requer, pois poderíamos não conceber um Deus justo exigindo de
todos os homens a informação que ele havia dado para apenas alguns. Em qualquer
caso, a Bíblia não é uma revelação especial porque é cheia de superstição e erro. O
Antigo Testamento é imoral e o próprio Cristo deve ser censurado por tornar a salvação
dependente de crenças de que a maioria dos homens nunca ouviu falar. Tudo o que deus
exige é que promovemos o bem comum. Tindal também acreditava em uma vida futura,
embora alguns Deístas não acreditassem.

Além de ser a expressão mais abrangente e digna de Deísmo, o livro de Tindal alcançou
outra distinção, pois estimulou o Bispo Butler a produzir aquela famosa Analogia que
tão bem pôs fim a Deísmo.

Agora, talvez seja exagero dizer que a Analogia de Butler destruiu o Deísmo. Os
próprios Deístas estavam começando a sentir a dificuldade de defender suas negações
em face das respostas ortodoxas e suas afirmações diante de argumentos mais radicais.
O Deísmo, apesar de sua profissão de uma religião ética, também foi acusado - e com
alguma demonstração de justiça - de promover a imoralidade pública generalizada.
Neste ponto o reavivamento Metodista mudou a opinião popular. Talvez, também,
eventos militares e políticos tendessem a confundir o Deísmo na primeira página.

Interessante como tudo isso é, o Deísmo Inglês e o Iluminismo Francês são resultados
essencialmente populares do Renascimento. Esses homens, embora tenham escrito
volumosamente, foram mais seguidores do que líderes na formação da Cultura
Europeia. Seus argumentos são por vezes inconsistentes e seus termos ambíguos. Em
particular, o termo razão muda seu significado, se não sempre em um único autor, mas
certamente de um para outro. Por trás destes os homens estão os principais filósofos.
Portanto, é necessário examinar a fonte dessa fé na razão que sustenta que a razão não
precisa de fé.

49
A direcção em que a cultura de uma era se desenvolve é, humanamente falando,
escolhida por alguns homens excepcionalmente inteligentes. Os autores populares,
então, pegam algumas das principais idéias, usualmente, distorcendo e diluindo-as
consideravelmente e, finalmente, cinquenta anos ou um século depois, o ponto de vista
geral se infiltra em toda a população.

Portanto, as idéias mais claras sobre razão versus fé devem ser estudadas primeiro nos
principais filósofos: os Racionalistas - Descartes, Spinoza e Leibniz; os Empiristas -
Locke, Berkeley e Hume; e finalmente Kant e Hegel.

Racionalismo

René Descartes pode ser introduzido como um pai sábio que demonstra a tolice de seu
filhinho, Montaigne. Pode-se imaginá-lo dizendo, não seja tão pessimista; eu sei que a
Filosofia é muito difícil para você; me deixe fazê-la. Ou, para colocar o assunto na
própria linguagem mais digna de Descartes: Enquanto a sensação e a experiência
repetidamente nos enganam e não nos fornecem nenhuma fundação indubitável para
uma super-estrutura firme, ainda que apenas um único ponto seja encontrado sólido,
então, como Arquimedes, podemos mover o universo. Descartes foi ao extremo para dar
a dúvida o benefício da dúvida. Por causa de ilusões ópticas, que são mais frequentes do
que se poderia supor, nós não podemos começar confiando na sensação.

Aliás, não podemos ter certeza de que estamos acordados. Em várias ocasiões eu
pretendia tirar uma soneca, mas parece ter falhado; então quando eu observei que não
conseguia dormir, minha esposa sorria e me dizia que eu estava roncando alto. Sonhos
provam o mesmo ponto, pois sonhos são muitas vezes tão vividos quanto a experiência
supostamente vivida; e quando estamos sonhando nós não achamos que seja um sonho.

Finalmente, para levar a dúvida ao limite, e se houver um demônio omnipotente cujo


principal prazer é enganar? Ele nos faz acreditar que dois e dois são quatro, quando a
resposta é realmente cinco; e como ele ri da nossa confusão. Para ter certeza, isso parece
uma suposição absurda. Como pode alguém levar isso a sério? Mas, por outro lado,
como se pode decidir o que é absurdo e o que não é absurdo, a menos que algum
conhecimento seguro forneça a base para a decisão? Na falta de todo conhecimento,
quando não se sabe absolutamente nada, nada pode parecer absurdo. Portanto, para
todos nós que conhecemos, isto é, nada, pode existir um enganador omnipotente.

50
No entanto, há uma coisa que nem mesmo um demônio omnipotente pode fazer. Ele
não pode nos enganar sem nos permitir pensar. Se somos enganados, nós devemos estar
pensando; e se pensarmos, nós existimos. Aqui então é verdade indubitável, um fulcro
firme pelo qual podemos mover o universo da filosofia.

É necessário notar exactamente como Descartes derrotou o demónio omnipotente. Se


ele tivesse dito, eu ando, portanto, eu existo, ele teria falhado. Eu posso facilmente
negar que estou andando sem realmente andar. Seria o suficiente sentar em uma cadeira
e dizer: eu não estou andando. Mas é absolutamente impossível negar que estou
pensando sem pensar. Visto que duvidar é uma forma de pensamento, não posso
duvidar que penso sem pensar na dúvida. Eu penso, portanto, é uma verdade
indubitável.

A maneira como Descartes começou a construir sua visão de mundo a partir deste ponto
não nos preocupa aqui. O importante é o método dele. Não se deve supor que a certeza
do pensamento depende de qualquer experiência vivida. Se certamente dependesse da
experiência vivida, então raios e trovões serviriam para enganar o demônio.
Obviamente, eles não podem. A prova do Cogito depende apenas da lógica. “Eu penso”
é uma proposição tal que se é negada, é provada verdadeira. Se digo, penso, segue-se
que penso; mas também, se eu disser que não penso, segue-se que eu penso. Isto não é
uma questão de experiência, mas de lógica apenas.

Por causa deste método, Descartes e seus seguidores são chamados de Racionalistas.
Eles dependiam da razão. Mas note, a razão pela qual eles dependeram não é em
primeira instância uma razão que é oposta a revelação. Isso não quer dizer que um
Racionalista ou o Racionalismo como sistema é o baluarte da revelação. Spinoza em
particular não tinha amor pela Bíblia. Mas a razão do Racionalismo é em primeiro lugar
uma razão que é oposta e exclusiva a experiência. Aqui a razão significa lógica.

Todo o conhecimento, nesta teoria racionalista, deve ser deduzido como os teoremas da
geometria são deduzidos de seus axiomas. Nenhum recurso a sensação é permitido. A
aplicação consistente das leis da lógica é sozinha suficiente. A razão, portanto, carrega o
significado de consistência lógica. Isso explica por que os Racionalistas adoptaram o
argumento ontológico para a existência de Deus. Eles precisavam da existência de Deus
não apenas para se livrarem de um demônio omnipotente, mas, mais seriamente, para
provarem a existência de um mundo. Agora, para ajustarem seus princípios, o

51
argumento para a existência de Deus tinha que ser assim interpretado de forma a tornar
uma negação de sua existência auto-contraditória. Assim como uma pessoa que nega
que os ângulos interiores de um triângulo são iguais a dois ângulos rectos simplesmente
não sabe o que significa o conceito de um triângulo, quem nega a existência de Deus
simplesmente não entende o termo Deus. Assim, a existência de Deus é provada apenas
pela lógica.

Quando esse significado da razão é conjugado com o princípio de que o conhecimento


pode ser deduzido apenas pela razão, segue-se que a revelação é desnecessária.

Spinoza, que aplica o princípio do Racionalismo de forma mais consistente do que


Descartes, elabora a inferência explicitamente:

A verdade de uma narrativa histórica, embora garantida, não pode nos dar o
conhecimento de Deus, nem por conseguinte, o amor de Deus, o amor de Deus provém
do conhecimento dele, e o conhecimento dele deve ser derivado de ideias gerais, em si
certas e conhecidas, de modo que a verdade de uma narrativa histórica esteja muito
longe de ser um requisito necessário para alcançarmos o nosso bem mais elevado.15

A resposta Cristã à uma rejeição racionalista da revelação não deveria se preocupar


demais com a evidência arqueológica de que a Bíblia é historicamente correcta.
Spinoza, com certeza, foi um dos primeiros membros da longa linha de críticos
superiores que se deliciaram em encontrar tolices no Antigo Testamento. E nenhum
dano chegou ao Cristianismo através das investigações arqueológicas que tem
desconcertado os críticos, mostrando que a escrita tinha sido inventada nos dias de
Moisés, que a nação dos Hititas realmente existia, e que todas as outras tolices da escola
de Wellhausen são apenas o desejo dos inimigos da Bíblia.

Mas o argumento de Spinoza era que uma narrativa histórica, mesmo que perfeitamente
correcta, é sem valor na religião. Uma resposta Cristã, portanto, deve ser dirigida contra
a epistemologia que está por baixo da declaração de Spinoza. A questão importante não
é se a Bíblia é verdadeira ou não, mas se todo o conhecimento é ou não dedutível pela
razão, ou seja, apenas pela lógica.

Agora, a história da filosofia, isto é, os próprios estudiosos seculares – pois não é


necessário consultar escritores Cristãos – que tenham convincentemente respondido no
negativo.

15
Spinoza, Tractatus Theologico-Politicus, capítulo IV.

52
Kant fez o melhor que pôde para explodir o argumento ontológico; e visto que o
argumento é a única esperança do Racionalismo de fazer contacto com a existência real,
sem a qual filosofia seria apenas um jogo de palavras, tal a refutação, se boa, aniquilaria
completamente o Racionalismo. Mas mesmo que o argumento ontológico seja válido,
ninguém nunca conseguiu deduzir o número preciso de planetas, ou a espécie real de
japónica, a partir da existência de Deus somente pela lógica. E se astronomia e botânica
devem progredir além do Racionalismo, é incoerente exigir que a religião seja tão
confinada.

Racionalismo, portanto, de acordo com o significado do termo no século XVII, é um


fracasso. Então, a razão explicada sem fé não apenas fornece nenhuma religião, como
também, não suporta nenhum tipo de conhecimento. Se esta fosse a única possibilidade,
o Cristianismo ofereceria ao mundo uma escolha entre fé na revelação ou ignorância
abismal.

Empirismo

A próxima tentativa da filosofia Europeia de construir a “Razão” sem a fé foi o


Empirismo Britânico. Esta é a filosofia que os Deístas posteriores, se não os anteriores,
passaram a adoptar. Mas deve ser notado que o termo Razão assumiu um significado
muito diferente. Sem muita distorção, pode-se dizer que a razão agora significa
sensação. Isto é, enquanto o Racionalismo tentou basear todo o conhecimento apenas na
lógica, o Empirismo depende da experiência somente. A famosa linha de John Locke
diz: “De onde vem [na mente] todos os materiais da razão e do conhecimento? Para isto
eu respondo em uma palavra: da experiência; na qual todo o nosso conhecimento se
origina e, a partir da qual, em última instância deriva-se.”

A visão de Locke da revelação pode ser um pouco complicada demais, ou


possivelmente muito disfarçada para descrever com precisão. Embora ele pareça ter
admitido o facto da revelação, alguns intérpretes julgam que é uma admissão relutante.
Em um lugar ele levanta a questão de saber se podemos ou não ter a certeza de que tudo
é uma revelação, e parece sugerir que provavelmente nós não podemos.

Mas, no entanto, pode ser com o próprio Locke – e, mais claramente – pode ter sido
com o devoto Bispo Berkeley, Hume mostrou que o Empirismo, consistentemente
mantido, não pode dar lugar a revelação. Não há necessidade de equilibrar o Berkeley

53
Cristão contra o Locke secular e para salientar as deficiências de Locke para a vantagem
da atitude mais aceitável de Berkeley em relação à revelação. O importante é descobrir
o que resulta do princípio de que todo conhecimento é baseado na experiência,
principalmente na sensação.

De acordo com o Empirismo, o conhecimento começa com o que Locke chama de


ideias, noções ou imaginação; o que Hume chama de impressões; ou o que a maioria
das pessoas hoje chama de sensações. Ao combinar, transpor, aumentar ou diminuir
esses materiais sensoriais, nós desenvolvemos todos, até mesmo o conhecimento mais
obscuro. A mais complicada das equações de Einstein, embora esta não seja o exemplo
usado por Hume, pode ser resolvida em imagens de memória que foram copiadas de
sensações anteriores.

Agora, até que ponto a experiência nos levará? Estas sensações interiores dão qualquer
conhecimento de corpos externos? Podemos descobrir as causas dessas impressões?
Berkeley já havia mostrado que as sensações de vermelho, duro, amargo, etc., não
fornecem provas a favor da existência de um mundo material. Hume, seguindo-o, dá o
exemplo de uma mesa. Suponha que nós vemos uma mesa. Nós temos uma sensação de
mesa. Se nos afastarmos dela por um longo corredor, o que vemos parece menor do que
vimos quando estávamos mais perto. Uma mesa externa deve sempre manter o mesmo
tamanho. Portanto, o que realmente vimos não foi a suposta mesa externa, pois o que de
facto vimos mudou de tamanho. O que nós realmente vimos foi uma imagem ou
imaginação em nossa própria mente, e, portanto, nossas sensações não nos fornecem
nenhuma evidência para a existência de um mundo externo. Mesmo se supossemos que
nossa imagem teve alguma causa externa, não saberíamos que a imagem assemelha-se à
causa, pois não vimos nada além de imagens. De facto, se a palavra imagem conota com
algo externo, nós não temos motivos para acreditar que nossas sensações são imagens.16

Hume, no entanto, vai além de Berkeley na redução do conhecimento para a


experiência. Locke havia explicado a ideia de matéria por abstracção, e Berkeley havia
mostrado que a experiência não fornece nenhum exemplo de ideia abstracta. Idéias de
azul, vermelho e verde nós temos em abundância; mas a ideia abstracta de uma cor que
não é nem azul, nem vermelha, nem verde – uma ideia de cor que é sem cor –

16
Qualquer pessoa não convencida por este breve relato deve ler as primeiras páginas da Parte 1 de
Principles of Human Knowledge de Berkeley.

54
simplesmente não existe. Similarmente, “matéria” não existe; é apenas o som da nossa
voz, nada mais do que uma palavra vazia. Mas se a ideia abstracta de substância
material é nada, segue-se com a mesma necessidade qua a experiência não pode nos dar
nenhuma ideia da substância espiritual. Uma é tão abstracta quanto a outra. Isto é, uma
mente ou alma não existi. A experiência nos dá apenas ideias. Existem vermelhos,
verdes, amargos, doces, duro, suave e seus compostos – rios, árvores e mesas; mas não
há matéria nem espírito, pois a percepção nunca pode fornecer evidência para qualquer
coisa imperceptível. Nós mesmos não somos nada além de colecção de percepções
sensoriais.

Em seguida, se é óbvio que a percepção pode fornecer nenhuma evidência de qualquer


entidade imperceptível, é apenas um pouco menos óbvio que a percepção pode não
fornecer nenhuma evidência para o que é imperceptível. Se eu ofereço uma carta
perceptível como prova de que meu amigo imperceptível está na França, estou
assumindo que existe uma conexão necessária entre a carta e meu amigo inexistente. Se
não houvesse conexão necessária, se meu amigo não tivesse escrito a carta, se ele não
fosse a causa e o efeito, então eu não saberia que ele estava na Franca. Portanto, todas as
questões da história, de facto, todo o conhecimento alegado dos factos além da sensação
presente e de registos de nossa própria memória, dependem do princípio de causalidade.

Um exame da experiência, no entanto, mostra que não se deve ter o conhecimento da


causa e efeito. Podemos ter a sensação de vermelho e um momento depois um gosto
amargo; ou a sensação de um barulho alto pode ser seguida de um cheiro doce. A
experiência fornece a sucessão de ideias; mas nunca vemos, cheiramos, saboreamos ou
ouvimos uma conexão necessária. Não há razão para acreditar que o vermelho provoca
um sabor amargo ou que o ruído provoca cheiro. Muito pelo contrário, ninguém pode
imaginar como ou por que uma cor pode causar um gosto. Isso permanece verdadeiro
para ideias compostas, bem como para ideias simples. A combinação de branco, uma
forma cúbica e uma estrutura cristalina que chamamos de açúcar pode preceder um
sabor doce. Mas alguém pode mostrar uma conexão necessária entre o primeiro
conjunto de ideias, isoladamente ou em conjunto, e o sabor doce ou a sensação de um
estômago cheio depois de comer um pouco disto?

A experiência nos habitua a esperar certas sequências. Elas se tornam tão familiares, nós
as chamamos de causas e efeitos. Mas em tudo isso não temos a compreensão da

55
sequência e nenhuma experiência de qualquer conexão necessária. Um conhecimento da
história é, portanto impossível.

Agora, finalmente, se é impossível conhecer o imperceptível pela percepção, e se é


impossível conhecer o que não é percebido pela percepção, é ainda possível saber o que
vemos agora? Dado que não há evidência na experiência de uma mesa não sentida cujo
tamanho não muda, podemos ter até a imagem de uma mesa, composta por sensações de
cor, forma e dureza?

Aqui está a dificuldade. Em qualquer tempo finito, não importa quão pouco,
experimentamos uma multiplicidade de sensações. Vemos dezenas de cores, podemos
ouvir dois ou três sons, poderíamos cheirar vários odores, e mesmo se não tivéssemos
gostos no momento, temos sempre uma série de sensações tácteis. A partir desta
variedade de sensações seleccionamos algumas e combinamos elas para produzirmos a
imagem de uma mesa. Mas por que é que combinamos a cor marrom, uma forma um
pouco rectangular, e a sensação de dureza para produzir uma mesa, em vez de
seleccionarmos de nossas muitas sensações a cor verde pálido, o som de C-sharp, e o
cheiro de pão fresco para combiná-los na ideia de um jobbleycluck?

Locke tentou justificar a conexão de certas ideias com o pretexto de que elas eram
qualidades inerentes à mesma substância material. Mas visto que substância material
não existe (mesmo que não pudéssemos saber até depois de termos combinado ideias e
feito algumas abstracções), esta explicação não está disponível para o Empirismo.
Berkeley e Hume dão a impressão de que nossas selecções para combinações dependem
do facto de que as ideias seleccionadas ocorrem ao mesmo tempo. Tempo, no entanto,
não é importante, pois a qualquer momento estamos experimentando mutas ideias que
não combinamos em uma mesa. Então, deve um empirista dizer que a combinação
particular depende do espaço em que as ideias simples são percebidas?

Se esta resposta é satisfatória ou não depende da consideração empírica de como


podemos reconhecer o espaço.

Nós vemos o espaço? Ouvimos o espaço? Sentimos o cheiro do espaço? Isso não só é
impossível, mas mesmo quando vemos um único objecto no espaço, não podemos ver a
distância entre ele e nós. Nós julgamos distâncias comparando objectos conhecidos.
Visto que já vimos e tocamos uma determinada mesa, e assim sabemos o seu tamanho a

56
curta distância, podemos julgar o quão longe nós estamos quando aparece a metade do
seu tamanho anterior. Ou podemos julgar que uma casa no final da estrada é uma milha
de distância, porque em outras ocasiões nós caminhamos a distância. Espaço e distância,
portanto, são questões de julgamento e comparação, não de simples sensação.

Mas se o espaço é aprendido comparando casas e mesas, precisamos primeiro ser


capazes de perceber a mesa antes de podermos compará-la com uma casa e aprender do
espaço. Isto é, o espaço é uma ideia de comparação. Mas se a ideia de espaço não pode
ser obtida até depois de termos comparado mesas e casas, não podemos produzir mesas
e casas, seleccionando ideias simples através do uso do espaço.

O Empirismo, portanto, errou fatalmente. Entrou secretamente no início do processo de


aprendizagem, uma ideia de espaço que não existe até que o processo esteja quase
completo. De novo, então, a tentativa de encontrar conhecimento com base na “razão”
como distinta da revelação falhou. Se isso fosse o fim da história, o Cristão poderia
oferecer ao mundo a fé na revelação ou um cepticismo abismal.

Emanuel Kant

Emanuel Kant, despertou, como ele diz, de seu sono dogmático por meio de David
Hume, prontamente começou a solucionar o defeito do Empirismo. Se todo o
conhecimento é baseado apenas na experiência, então não pode haver conhecimento de
qualquer verdade necessária. No máximo, a experiência pode revelar que isto e aquilo é
assim, mas não que deva ser assim. Por exemplo, a sensação pode nos dizer que portas
têm dois lados, mas não pode nos ensinar que as portas devem ter dois lados. As portas
podem em algum lugar, algum dia, ter apenas um lado. Nenhuma experiência pode
refutar essa possibilidade. Da mesma forma, o Empirismo não pode justificar
proposições universais. Nós podemos possivelmente saber que todas as portas que
vimos têm dois lados, mas sem nenhuma referência a invenções futuras, mesmo para o
passado, não podemos saber que todas as portas tiveram dois lados. Ou, novamente,
toda vez que adicionamos dois e dois, a resposta tem sido quatro; mas no que diz
respeito à experiência, não podemos dizer que dois e dois são sempre quatro. A
experiência não pode nos dizer o quanto dois e dois são em aqueles casos que não
experimentamos. Resumidamente, sem necessidade e universalidade – e estas são
inseparáveis – não pode haver nem matemática nem física.

57
Por um golpe, Kant é capaz de reabilitar a necessidade e a universalidade para explicar a
percepção de objectos individuais, como cadeiras e mesas. A mente do homem no
nascimento não é apenas uma folha de papel em branco assim como Locke disse que é.
Ela possui características, formas ou noções por direito próprio. Espaço e tempo são
duas dessas formas. O conhecimento do espaço e do tempo não dependem da
experiência; antes, o inverso é verdadeiro: a experiência depende do nosso
conhecimento de espaço e tempo. Essas duas formas fazem a percepção de coisas
possíveis.

No discurso coloquial falamos de trilhos de trem convergindo no espaço. Eles não


convergem realmente. Os trilhos ferroviários não convergem, mas nós os vemos
convergindo. Esta perspectiva é a nossa forma de ver. Os trilhos existem em si
independentemente de os vermos, mas quando eles entram em nossa visão, assumem a
forma de nossa perspectiva. Portanto, nós os fazemos convergir olhando para eles.

Esta ilustração de trilhos em perspectiva deve ser ampliada para cobrir objectos no
espaço. Os trilhos representam qualquer objecto, tal como uma cadeira ou uma mesa; e
a perspectiva da ilustração representa o espaço característico de cada objecto visível.
Cadeiras e mesas em si, não existem no espaço; somos nós que as vemos dessa maneira.
Portanto, assim como sabemos antecipadamente, andes da experiência – ou para usar o
termo de Kant, de forma a priori – que todos os trilhos vistos devem convergir, sempre
devem, e sempre vão convergir, então, em um nível mais profundo sabemos de forma a
priori que as portas devem ter, sempre tiveram, e sempre terão dois lados. Isto é, as
portas da experiência, portas vistas, devem ter dois lados. Mas que portas em si são
como – portas não que aparecem em nossa percepção, portas não conformes a forma de
espaço a priori da nossa mente – não temos a menor ideia.

O conhecimento, no entanto, não se restringe à simples percepção de objectos. Além da


sensação, há pensamento. O pensamento combina sensações em julgamentos. Podemos
dizer, esta porta é grossa, ou, alguns gatos são pretos, ou toda mudança deve ter uma
causa. Em tais julgamentos, muitas percepções são resumidas e unidas. Agora,
obviamente, as coisas da experiência não se unem. Enquadrar julgamentos é algo que é
feito por seres pensantes. Portanto, a mente, longe de ser recipiente passivo de
conhecimento, é um fabricante activo de conhecimento; como tal, tem métodos
definidos de procedimento. Junta ou unifica experiências em um número definido de

58
maneiras. Esses métodos de unificação não são aprendidos a partir da experiência; pelo
contrário, eles tornam a experiência possível. Se nós não possuíssemos este
equipamento, não poderíamos mais começar a pensar que poderíamos começar a ver
objectos sem a forma a priori do espaço. Visto que pensar ou julgar consiste em
organizar percepções sob conceitos (este gatinho visível pertence à espécie gato, ou à
classe de objectos negros), segue-se que a experiência significativa só é possível com
base em certos conceitos ou categorias a priori.

A identificação das categorias é realizada observando que os formulários usados na


organização da experiência, são as formas da lógica. Visto que todo o conhecimento
consiste em juízos, as formas de conhecimento são as formas de juízos e as formas da
lógica. As categorias, portanto, são os conceitos básicos sem os quais não poderíamos
pensar em tudo. As categorias são as maneiras pelas quais a mente sintetiza diversidades
de experiências. As categorias produzem juízos. Visto que na teoria de Kant, existem
doze elementos lógicos no agregado de juízos, existem doze categorias. Os conceitos de
unidade e pluralidade são categorias. Sem o conceito de unidade, não poderíamos
pensar em nada. Uma forma mais complicada de juízos é implicação. Nós dizemos, já
que isso é verdade, aquilo deve ser verdade; ou poderíamos dizer, isso deve ser verdade
porque aquilo é verdade. Observe o porquê. A implicação depende, portanto, da
categoria de causalidade. A causalidade é, portanto, uma categoria, um conceito a
priori, uma forma de conhecimento que, em vez de ser aprendida com a experiência,
deve ser conhecida antes da experiência, de modo a tornar a experiência possível.
Assim, tornando o conhecimento de causalidade antes da experiência, Kant acredita que
escapou do cepticismo de Hume. Se ele realmente fez isso, então ele estabeleceu
conhecimento sem um apelo à revelação, e a razão sem fé estaria ser bem-sucedida.

No entanto, não foi um Cristão tentando defender a revelação que questionou o sucesso
de Kant. Os Cristãos são por vezes acusados de serem tendenciosos e de fornecerem
seus argumentos a fim de desistirem de conclusões. No entanto, isso não é mais verdade
para Cristãos do que foi para Kant ou para qualquer pessoa. Kant sabia que queria
elaborar uma teoria das categorias, e ele fez repetidas tentativas de deduzi-las antes que
encontrasse sua formulação final. A conclusão foi decidida antes que o argumento fosse
resolvido. Isto é verdade para todos filósofos, embora os Cristãos sejam mais
frequentemente castigados por isso do que são outros escritores. E aqueles que fazem a
crítica severa são exemplos mais aguçados do que aqueles que ridicularizam. Mas de

59
qualquer forma, como uma questão de história, o fracasso de Kant não foi exposto por
um Cristão tentando defender a revelação.

Certos defeitos básicos no sistema de Kant são universalmente reconhecidos. Kant


havia explicado suas categorias assim como os métodos da mente de unificar a
experiência. Unidade, pluralidade, causalidade e os outros eram formas pelas quais a
experiência poderia ser montada. Mas se não houvesse experiência sensorial para
colocar nesses formulários, as categorias permaneceriam vazias e por elas mesmas não
seriam conhecidas. Além disso, as categorias não têm mais uso, qualquer que seja. Elas
podem ser aplicadas à experiência, mas não podem ser aplicadas além da experiência.
Um conceito sem o seu conteúdo sensorial é vazio. Similarmente vazio é a noção a
priori do espaço. A menos que as sensações apareçam no espaço, não podemos ter
contacto com a realidade. O conhecimento requer a combinação de formas a priori e
experiência a posteriori. Qualquer um sem o outro não é conhecimento.

Essa construção torna o problema de Kant impossível. Ele procurou pré-condições da


experiência, ao mesmo tempo que nega que essas condições sejam objectos de
experiência. Se o nosso conhecimento é sempre uma combinação de forma e conteúdo,
não podemos conhecer a forma sem o conteúdo. Contudo, Kant professou ter deduzido
as categorias.

Essa crítica pode ser expressa em outros termos e talvez mais claros. Kant na verdade
argumentou que antes de tentarmos estudar física e teologia, devemos determinar se a
mente é ou não capaz de investigar coisas físicas e Deus. Mas se for assim, não se pode
manter com plausibilidade igual que antes de tentarmos estudar as limitações da mente,
devemos determinar se a mente é ou não capaz de investigar suas limitações? Portanto,
a Crítica da Razão Pura de Kant deveria ter sido precedida por uma Crítica da Crítica da
Razão Pura, e assim por diante por um bom tempo.

Outra objecção padrão a Kant, embora talvez seja simplesmente a mesma objecção
novamente em uma forma diferente, tem a ver com as coisas em si. Na teoria de Kant,
as coisas em si mesmas devem estar por trás das coisas – como elas aparecem para nós.
Supõe-se, para fazer uso da ilustração anterior, que atrás dos trilhos de trem
convergentes, há trilhos reias que não convergem. Estes trilhos reiais não convergentes
são presumivelmente a causa dos trilhos que aparecem e convergem. A convergência
ocorre apenas na experiência; a não convergência não ocorre na experiência. Mas muito

60
infelizmente para Kant, as categorias podem ser usadas fora da experiência. A
causalidade é uma relação existente apenas entre dois objectos de experiência. A
categoria de causalidade não pode ser aplicada a trilhos não convergentes. Ou para
repetir a observação inteligente de F.H. Jacobi, “Sem a coisa em si não se pode entrar
no sistema de Kant, e com ele não se pode ficar.”

Essas objecções a Kant não dependem do facto de que ele não conseguiu estabelecer
uma teologia. Deus não pode ser a causa do mundo porque Deus não é um objecto de
sensação, e as causas devem ser confinadas dentro da experiência sensorial. Mas esse
fracasso em chegar a uma teologia não destruiria a filosofia de Kant. As objecções
dependem do facto de que Kant não conseguiu encontrar base para a física. Ele não
conseguiu explicar a sensação. Ele não conseguiu dar uma explicação inteligível da
relação entre forma e conteúdo. Ele não conseguiu tornar o conhecimento possível.
Portanto a questão ainda permanece, se o conhecimento pode ser alcançado à parte da
revelação.

Hegel e seus Críticos

Há mais uma, uma magnífica, digamos, uma tentativa final em filosofia secular a fim de
estabelecer as reivindicações da Razão escrita com um R maiúsculo. Embora o século
XVII exibisse um Racionalismo num sentido definido do termo, ninguém é mais
Racionalista, ninguém exalta os poderes da razão, mais do que G.W.F. Hegel.

Para mostrar, portanto, que a tentativa – iniciada pelo Renascimento – de estabelecer a


possibilidade do conhecimento para além da revelação divina é um fracasso, será
necessário, em último lugar, indicar a falha na avaliação do sistema de Hegel. Isso não é
fácil. Uma exposição do Hegelianismo se tornaria intoleravelmente técnico, e ainda sem
o locus da inadequação de Hegel não poderia ser indicada de forma inteligível.
Certamente, é quase universalmente admitido que o Hegelianismo não pode ser
defendido com sucesso; e talvez seria à parte da sabedoria, como será em grande
medida à parte da necessidade, confiar neste consenso e prosseguir. No entanto, algo da
linha de argumentação deve ser dada.

Kant, como foi mostrado, combinou o conhecimento de forma e conteúdo. A forma é a


contribuição da mente, enquanto o conteúdo vem de uma coisa externa em si,
independente. Contudo, visto que as categorias não se aplicam além da sensação, a coisa

61
em si permanece incognoscível; mas se incognoscível, sua existência e necessidade não
podiam ser afirmadas. Hegel torna o ponto absurdo ao afirmar um incognoscível; depois
tenta remover a oposição entre a consciência e seu objecto, mostrando que num nível
mais alto, ambos estão dentro da própria consciência. Natureza, o dado, as contribuições
do sentido, são uma com a mente ou espírito. Não há divergência final. Essa unidade, no
entanto, deve ser mostrada em detalhes. Hegel se recusa a confiar em qualquer
experiência mística ou transe extático para ganhar o Um; pelo contrário, ele propõe uma
nova lógica por cujo procedimento dialéctico a unidade necessária pode ser
desenvolvida passo a passo.

A lógica aristotélica17, em sua insistência em distinções claras, é tão boa até onde vai,
Um gato não é um cachorro, e um objecto sensorial não é o eu: eles não devem ser
confundidos. A menos que o pensamento, marque uma coisa diante da outra, não pode
haver pensamento. Mas o pensamento não só distingue uma coisa da outra, também
relaciona e conjuga-as. Cão e gato são espécies de mamíferos, e o reconhecimento de
uma espécie faz uso do contraste com outra. Em tais relações, seria impossível pensar;
somente tão impossível quanto seria pensar sem definições. Cada objecto deve ser
diferenciado de todos os outros objectos, mas nenhum objecto pode ser assim
totalmente diferenciado de modo a excluir a identidade que transcende a diferença. As
diferenças são expressões de unidade.

Todo pensamento definido exclui outros pensamentos, exclui especialmente


pensamentos opostos; ainda, todo pensamento tem uma relação necessária ao seu oposto
ou negativo. Não pode ser separado do seu negativo sem perder o seu próprio
significado. Seu negativo é uma parte de seu significado e, portanto, é incluído dentro
dele. Para ver que cada oposto inclui o outro, é ver que ambos estão incluídos em uma
unidade superior. Isto é verdade não somente sobre gato e cachorro, mas também sobre
consciência e coisa.18

Para todos os esforços de Kant, sua teoria do eu não é uma melhoria muito grande em
relação a de Hume. A autoconsciência, ele disse, não era um conceito mas uma
consciência que acompanha todos os conceitos. O ego permanece desconhecido em si e
é conhecido apenas através dos pensamentos que são seus predicados. Mas isso é tanto

17
Os próximos parágrafos seguem Edward Caird, Hegel, 134ff.
18
Isto é discutido em detalhes brilhantes em The Phenomenology of Mind, capítulos 1-3.

62
quanto dizer, conclui Hegel, que não podemos ver o Sol porque não podemos lançar os
raios de uma vela sobre ele. Kant declarou que a inteligência em si é inteligível! Ele fez
isso porque pressupõe que somente a identidade abstracta, sem diferença, é inteiramente
inteligível.

A velha lógica assumiu que cada objecto é uma identidade isolada, um puro isto e não
aquilo. As relações eram consideradas externas, como fora da real natureza das coisas.
Pelo contrário, é essencial que um cão não seja um gato. O significado de cada objecto
está entrelaçado no significado de todos os outros. Nada é isolado ou puramente um.
Em particular, o procedimento isolacionista tropeça na autoconsciência porque nela a
verdadeira unidade é essencialmente complexa. Mente e objecto, sujeito e substância, e
os seus particulares formam uma unidade. Nada está fora ou independente. A natureza e
o homem são idênticos. No entanto, essa identidade não é abstracta ou vazia. Todas as
diferenças são preservadas. Unidade e pluralidade são tão misturadas que nenhum tem
significado sem o outro.

Em Descartes, e certamente em Locke, o pensamento era a actividade de uma pessoa


individual. Mas se pensar é essencialmente uma capacidade individual, parece
impossível evitar o solipsismo. Não há escape da própria mente. E em qualquer caso, se
há muitas mentes ou apenas minha própria, os objectos da experiência milagrosamente
se tornam reias e outra vez em actos separados e casuais de percepção. Kant pensou que
tinha evitado o solipsismo, mas ele não conseguiu dar uma explicação satisfatória de
como um objecto pode aparecer a muitas pessoas. Sem dúvida, ele pretendia que as
categorias fossem as mesmas em todas as mentes e se plicassem a um mundo comum de
objectos. Mas nenhuma experiência puramente individual poderia revelar um mundo
comum a outros centros de experiência. Portanto, conclui Hegel, deve haver uma mente
universal na qual todas as pessoas e objectos participam.

Para aplicar estes princípios em detalhe, para mostrar precisamente a diferença da


Mente Absoluta, Hegel trabalha um sistema de categorias. Em vez das doze de Kant,
Hegel tem cem ou mais. Essas categorias são os conceitos que se aplicam e constituem
tudo. O primeiro, o mais simples, o mais vazio é o puro Ser. Todo objecto é um Ser. O
Ser contém tudo – implicitamente. O implícito deve agora ser explícito por um processo
dialéctico. Visto que tudo é determinado pelo seu oposto, o Ser não pode ser pensado à
parte do Não-ser. Quando dissemos que um objecto que é um ser, a própria

63
universalidade e vazio do Ser nos deixa sem dizer nada. Nós não dissemos que é verde
ou pesado; nós não determinamos isso de forma alguma. Ser, portanto, é o equivalente
de Nada. Mas visto que por este processo dialéctico do pensamento, o Ser tornou-se
Nada, a categoria de tornar-se emergiu. Tornar-se é a síntese do Ser e Nada. Uma coisa
é tanto ser e não ser quando está se tornando.

Por tal procedimento dialéctico, Hegel deduziu uma longa lista de categorias. A
categoria final continha explicitamente tudo o que a primeira continha implicitamente.
Sem dúvida, Hegel era um gênio e, apesar de seu embaraçoso frequente jargão, há muita
profundidade que vale a pena em sua Fenomenologia e Lógica. Em particular, ele
frequentemente coloca o dedo nos pontos mais difíceis dos sistemas anteriores, de modo
que pode-se dizer que para entender Kant, Descartes, ou os antigos Estóicos é preciso
primeiro ler Hegel. Os acidentes da política Prussiana, para os quais alguém pode querer
creditar sua imediata popularidade na Alemanha, não podem explicar sua longa
ascendência na Grã-Bretanha nem sua moda nos Estados Unidos. No entanto, desde a
Primeira Guerra Mundial, o Hegelianismo tornou-se praticamente extinto; e na
Alemanha começou a sofrer eclipse mesmo em meados do século XIX. Esta reversão
pode ser tomada como evidência de alguma falha ou defeito filosófico na construção de
Hegel, e onde o problema reside deve ser descoberto.

Um ponto específico da crítica foi apontado sem demora pelos seguidores imediatos de
Hegel. Se o universo é este sistema de categorias, ele argumentou – se o real é o
racional e o racional é o real – então claramente toda a realidade pode ser deduzida
dialeticamente, e cada item deve encontrar seu lugar claro no sistema, Hegel fizera a
questão de preservar as diferenças; ele não favoreceu abstracções vazias nem a noite do
misticismo em que todas as vacas são pretas. Portanto para cumprir suas afirmações,
Hegel deveria deduzir alguma vaca individual preta e branca muito real na pastagem
sobre o além.

Mas isso é precisamente o que Hegel não fez e não podia fazer. Assim como Platão
nunca conectou satisfatoriamente suas ideias com os objectos dos sentidos individuais,
assim também, Hegel não podia racionalmente deduzir um objecto individual do
Absoluto. Certamente, Hegel não ignorava essa crítica. Quando confrontado com isso,
ele respondeu que tinha dissolvido o indivíduo – o isto, o aqui e agora, e o ego
individual também – no primeiro capítulo de sua Fenomenologia; mas seja qual for a

64
realidade que eles têm, ele tinha preservado no processo dialéctico. Isto é claro, em
consonância com a negação de um incognoscível Ding-an-Sich19 e a remoção dessa
forte separação entre a forma mental e o dado sensorial que assolou os Pós-Kantianos.

Agora, parece impossível defender o Ding-an-Sich, mas também parece que a


reivindicação de Hegel para preservar as diferenças em sua ascensão dialéctica não pode
ser comprovada. Em relação à Zoologia, Hegel admite com louvável franqueza que a
dedução não só não atinge os indivíduos, como também não consegue atingir algumas
subespécies. O conceito animal talvez possa ser deduzido, e até mesmo a espécie vaca;
mas não Holtein-Friesian20, e muito menos Van Rijn III.

A franqueza de Hegel elimina o aguilhão das críticas, mas não pode ser mantido que sua
disposição natural para se dar ao benefício da dúvida diminuiu sua força. Pode-se
perguntar se a espécie vaca ou até o conceito animal pode ser deduzido. E até onde a
física está em causa, é claro que nenhuma dedução de um determinado ser, qualidade ou
quantidade pode nos dar conhecimento da qualidade do ácido sulfúrico ou do peso
atómico do ouro. Não se pode por conseguinte, concluir que Hegel falhou em encontrar
o universal concreto que ele buscou e nos ofereceu apenas abstracções vazias?

Ignorância Absoluta

Há uma segunda crítica, e sobre estas duas a presente refutação actual do Hegelianismo
deve depender. Foi visto acima que para Hegel a verdade é o todo, toda determinação é
uma negação, e os relacionamentos de um objecto são logicamente internos ao seu
significado. Um gato não é um cachorro; é uma parte da essência de um gato não ser um
cachorro. Mas não ser um cachorro é estar relacionado a cachorro, e essa relação é
interna ao significado de gato. Assim gato e cachorro, objecto de sentido e eu, estamos
incluídos em um todo maior. O Todo incluído é o Absoluto.

Que as relações são internas, e especialmente que a verdade é o todo, são temas difíceis
de negar. No entanto, suas implicações são devastadoras. Contanto que você ou eu não
saibamos as relações que constituem o significado de gato ou eu, não conhecemos o
objecto em questão. Se dissermos que conhecemos algumas das relações – por exemplo,

19
[Nota do tradutor] Expressão alemã usada para referir-se a coisa em si, o nômeno ou noúmeno.
Também pode ser usada para referir-se a essência de algo, aquilo que faz algo ser o que é.
20
[Nota do tradutor] Gado Holandês, uma raça de gado bovino.

65
um gato não é um cão – e admitirmos que não conhecer outras relações – por exemplo,
um gato não é um (animal que nunca ouvimos de antes falar) – segue-se que não
podemos saber como esta relação desconhecida pode alterar nossa visão do
relacionamento que agora dizemos conhecer. A alteração poderia ser considerável.
Portanto, não podemos conhecer nem mesmo um relacionamento sem saber tudo.
Portanto, nós sabemos nada.

Essa crítica é extremamente desconcertante para um Hegeliano, pois seu princípio


aplica-se não apenas a gatos, cães e egos, mas ao próprio Absoluto. A verdade é o todo
e o todo é o Absoluto. Mas obviamente, não conhecemos o todo; não conhecemos o
Absoluto. Na verdade, não conhecendo o Absoluto, não podemos saber nem mesmo que
existe um Absoluto. Mas como pode o Idealismo Absoluto basear-se na ignorância
absoluta? E nossa é a ignorância absoluta, pois não podemos conhecer uma coisa sem
conhecer tudo.

O Racionalismo do século XVII, o Empirismo Britânico, a Filosofia Crítica de Kant, e


agora o Hegelianismo tentaram e falharam em justificar o conhecimento. A razão à
parte da revelação chegou ao luto. A única possibilidade remanescente de escapar da
revelação agora é abandonar a razão. É uma pílula amarga para o homem engolir, mas
alguns homens preferem revolver-se na ignorância abismal do que aceitar o
conhecimento pela graça de Deus.

FÉ SEM RAZÃO

Ao longo da história da Igreja Cristã surgiram de vez em quando indivíduos e grupos


que olharam na razão, intelecto e ensino superior com desfavor. Desde o período
Patrístico, Tertuliano é frequentemente citado como dizendo: “Eu creio porque é um
absurdo.” Embora isso não seja precisamente o que Tertuliano disse, sua oposição à
cultura pagã é bem conhecida. O que o Cristão tem em comum com o filósofo, ele
declama; a Igreja com a Academia; a revelação com razão? No entanto, visto que ele fez
algumas filosofias, talvez deva ser entendido como desaprovando, não a razão em geral,
mas apenas a razão pagã. Não obstante, permanece a suspeita de que sua fé é sem razão.

66
Tipos de Misticismo

Existem outros casos também onde, embora a frase não possa ser aplicada com rigor
literal completo, há uma suspeita e mais do que uma suspeita de que a fé sem razão é o
ideal. Os místicos formam um grupo particularmente digno de nota.

Dionísio, o Areopagita, era um Cristão Neoplatônico do quinto século. Algumas


palavras dele mostrarão, não que ele desprezou totalmente a razão, mas que pelo menos
colocou um reino acima da razão. É um reino em que as categorias de pensamento e de
linguagem são tão tensas que o significado inteligível parece ter escapado. Por exemplo,

Triad celestial, super-Deus e super-bom, Guardião da teosofia dos homens Cristãos, nos
direccione correctamente para o super-desconhecido e super-brilhante e mais alto topo
dos oráculos místicos, onde os mistérios simples e absolutos e imutáveis da teologia
estão escondidos dentro da escuridão superluminosa do silêncio, revelando coisas
ocultas, que na sua escuridão mais profunda brilham acima dos mais super-brilhantes, e
no todo impalpável e invisível enchem para transbordar a mente sem olhos, com glórias
de beleza imbatível.21

O misticismo Neoplatônico, do qual este Dionísio tomou sua inspiração, abordava sobre
transes em que a personalidade se fundia na simplicidade perfeita de um original. Neste
Um, a simplicidade é tão perfeita que não existe até mesmo o dualismo de sujeito e
predicado. Portanto, neste reino o conhecimento é impossível, pois todo conhecimento
consiste na atribuição de predicados aos sujeitos: O gato é preto, o número quatro é par,
ou William foi um conquistador. Mas no transe ou absorção, não há nem mesmo um eu
e tu. Existe apenas pura simplicidade do Um. Por esta razão, não só não há
conhecimento durante o transe, mas mesmo após a recuperação o homem pode dizer
nada verdadeiro sobre isso porque ele teria que usar a dualidade de frases para falar ou
saber.

Embora esta caracterização seja tomada de Plotino e do misticismo pagão, aplica-se


também aos místicos Cristãos. Bernardo de Claraval, o oponente devoto da habilidade
dialéctica do orgulho de Abelardo, fala de se tornar penetrado por Deus assim como o ar
é penetrado pela luz. Mestre Eckhart e Nicolau de Cusa usam expressões paralelas às de
Plotino. Isto é uma questão de comum acordo que a consciência mística não é
claramente diferenciada em sujeito e objecto. A experiência não é intensamente focada,
se focada em tudo. Sujeito e objecto, eu e tu, são fundidos ou confundidos num mesmo

21
Mystic Theology, 1:1.

67
indiferenciado. Com entusiasmo, mas numa fraseologia, inteligível o místico fala do ser
inundado com uma irrupção dos abismos da vida interior; ou, diz ele que as energias
transcendentais invadem a alma, e todo o ser, em uma experiência integral e indivisa
encontra-se.

Existem graus de opinião mística. O padrão Neoplatônico, seja em Plotino ou em


Nicolau, não abdicou do uso rigoroso da razão em problemas filosóficos e eclesiásticos
comuns. Mas eles concordam que a união da alma, a Realidade Absoluta, não é
intelectual. Deus pode ser conhecido apenas negativamente. Nenhuma qualidade finita,
isto é, nenhuma qualidade definida pode ser atribuída a ele. Ele não é bom, não só, não
é sábio, não é nada. Nós nos fundimos nele em comunhão sem palavras, numa
consciência que transcende ideias.

Outros místicos, ou, se o termo místico não é aplicável aqui, outros que querem falar de
uma fé sem razão, divergem do padrão neoplatônico de duas formas. Eles não gostam
de filosofia, nem se acomodam sobre transes sem palavras. Esta descrição negativa,
reconhecidamente ampla, inclui grupos de outra forma bastante diferentes. Inclui não só
os profetas anárquicos de Zwickau, que não precisavam estudar grego ou hebraico
porque Deus falaria com qualquer camponês emocionado – mas também mais tarde o
devoto, sóbrio, e fervoroso Pietista. E quem pode ser muito duro com os Pietistas?
Vivendo uma vida moral, piedosa, eles vêem o formalismo frio das classes educadas e
repudiam a teologia sistemática em favor de uma simples e calorosa devoção.

No século XX, os Fundamentalistas, em graus variados, advogaram uma fé sem razão.


Embora eles enfatizem o estudo da Bíblia mais do que os Pietistas e os profetas
anárquicos, eles frequentemente xingam a filosofia e a “mera” razão humana. Mesmo na
doutrina eles não vão normalmente além de meia dúzia de crenças fundamentais.
Qualquer coisa a mais é teologia seca como poeira.

Se é impreciso classificar as posições desses grupos como aqueles de fé sem razão, é


porque o menosprezo do intelecto sempre envolve uma certa inconsistência. Isto usa um
pouco o argumento intelectual para justificar o menosprezo. E particularmente no caso
dos Fundamentalistas com a defesa zelosa de algumas doutrinas, a razão não pode ser
totalmente abandonada. Alguns usam e reconhecem mais, alguns menos. Tal variação e
inconsistência dificulta a precisão de classificar todos esses grupos sob um único
cabeçalho. No entanto, os místicos (menos no que eles consideram mais importante), os

68
Pietistas e Fundamentalistas, e ainda mais outro ponto de vista a ser mencionado em um
momento, tem a tendência comum de uma fé sem razão.

Este outro ponto de vista, tão popular e poderoso na actualidade, é muitas vezes
chamado pelo nome de Neo-ortodoxia. É ainda mais anti-racional ou anti-intelectual do
que o Pietismo ou o Fundamentalismo. Seu background e motivação também são
diferentes. Em vez de ser uma diluição do Protestantismo original assim como o
Fundamentalismo é, a Neo-ortodoxia descende da filosofia pós-Hegeliana. Para
entendê-la, portanto, e para ver até onde o anti-intelectualismo pode conduzir alguém,
será necessário brevemente traçar certas vertentes do pensamento do século XIX,
embora nem tudo seja distintamente religioso.

No capítulo anterior, a tentativa da Renascença de justificar o conhecimento sem apelo à


revelação foi rapidamente examinada. O Racionalismo de Descartes e Spinoza, o
Empirismo Britânico, e Kant e Hegel foram condenados ao fracasso. Embora seu
brilhantismo evoque nossa admiração, seus resultados não podem ser aceitos. O
julgamento no qual Hegel fracassou não é um julgamento tendencioso de um Cristão
cujo motivo ulterior é defender a revelação; é também o julgamento daqueles que
estavam mais ansiosos para destruir o Cristianismo do que Hegel.

Karl Marx

A rejeição contemporânea do Hegelianismo foi iniciada por dois dos alunos de Hegel,
Karl Marx e Søren Kierkegaard. Visto que Marx teve maior sucesso imediato e porque
foi menos radical do que Kierkegaard, Marx será o primeiro a ser brevemente discutido.

Em certa medida, Marx (1818 - 1883) aproveitou o trabalho de um contemporâneo,


Ludwig Feuerbach (1804 - 1872). Em oposição ao Idealismo de Hegel, Feuerbach
sustentava que a realidade consiste em coisas materiais individuais. Como estudante, ele
havia notado as dificuldades epistemológicas do behaviorismo materialista; mas decidiu
ignorá-las. Sensação e sensação somente pode revelar a existência real para nós. A
dedução da existência a partir da essência é um sonho e, portanto a operação de Hegel
com conceitos perdeu o contacto com a realidade. Em particular, a filosofia de Hegel
perdeu o contacto com seres humanos individuais. Os homens eram considerados
essencialmente intelectuais e cognitivos, uma vez que um homem – isto é, um corpo

69
humano – é fundamentalmente emocional e é determinado não por fantasias idealistas,
mas por aquilo que come. Der Mensch ist foi er isst.22

Marx continua esse behaviorismo materialista. O pensamento é um produto do cérebro.


E porque o universo é físico, tudo está em fluxo constante – nada é fixo. É assim que
Marx transforma a dialéctica dos conceitos de Hegel no processo físico do materialismo
dialéctico. De facto, o grande mérito de Hegel, em contraste com Spinoza, por exemplo,
foi o de reconhecer o fluxo e o processo; enquanto, ao mesmo tempo, a grande auto-
contradição de Hegel foi de terminar este processo em um Absoluto fixo.

A presente discussão não pode ter nada a ver com a economia e aspectos políticos da
filosofia de Marx. O único ponto a ser enfatizado é o abandono de Marx do
intelectualismo. Epistemologia, matemática e a ética são os casos em questão. Assim
como Feuerbach, ele praticamente ignora a epistemologia. Na melhor das hipóteses, ele
dispõe do solipsismo na base de que é uma zombaria dos esforços da classe
trabalhadora para se libertar. Os problemas filosóficos em relação aos fundamentos da
matemática são empurrados de volta para a obscuridade de um passado evolucionário
desconhecido. Na ética, Marx defende uma teoria relativista. Direitos tornam-se
demandas da classe que devem ser aplicadas em vez de aprovadas pelo argumento
racional. A alegação de uma classe deve dar caminho para outra, e só a força decide
qual; o sucesso é o teste da verdade.

Certamente, ao falar da constituição física da natureza, apesar de sua insistência no


fluxo universal, Marx parece admitir a verdade fixa do materialismo. Não é necessário
para o presente propósito alegar que Marx estava livre de tais contradições. O ponto
deste breve relato é que a confiança da filosofia moderna na razão humana é chamada
em questão. Este é um dos dois primeiros ataques ao intelectualismo. O segundo é
muito mais radical e completo.

Søren Kierkegaard

Søren Kierkegaard (1813-1855), embora não fosse categorizado com Karl Marx, pelo
leitor superficial, é, não obstante, em certos aspectos básicos um tipo representante dos
meados do século XIX. Em sua revolta contra o Racionalismo sistemático de Hegel, em
seu ataque ao Cristianismo oficial, e no anti-intelectualismo que permeou o movimento

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[Nota do tradutor] Expressão alemã que significa: O homem é o que ele come.

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Romântico, este Dinamarquês Melancólico expressou a opinião amplamente difundida
de que havia algo podre no estado da Dinamarca, ou seja, na Europa ou na Cristandade.
Ele também concordou amplamente com Feuerbach e Marx quanto aos sintomas de
podridão, mas em relação à causa e a cura ele diverge deles radicalmente.

Marx havia diagnosticado a doença da sociedade como uma doença económica; mas,
afirma Kierkegaard, a reforma social que o tempo exige é o oposto do que precisa. A
doença não é económica; é espiritual e religiosa. O espírito da era foi substituído pelo
Espírito Santo; o homem tomou o lugar de Deus; e o tempo engoliu a eternidade. Se
Marx, em seu diagnóstico erróneo, criticou Hegel por ser muito Cristão e
demasiadamente abstracto, Kierkegaard ataca os dois: Hegel por não ser Cristão o
suficiente e Marx (ou pelo menos o Socialismo, pois não está claro como
definitivamente Kierkegaard tinha Marx em mente) por ser demasiado Hegeliano. Sua
falha comum, pois Hegel afinal, era um socialista, de facto, se não em nome, foi o seu
desrespeito pelo indivíduo. Qualquer objecto, por exemplo, uma caneta, é suficiente
para confrontar o pensamento abstracto com o problema da existência individual; mas
pessoas individuais são mais importantes que canetas. As pessoas são importantes:
Particularmente, sou extremamente importante para mim; e meu problema, ou seja, o
problema da pessoa em sua individualidade é basicamente religioso. Agora, Hegel tinha
perdido a pessoa, não apenas a caneta, na universalidade do processo mundial; porque o
Racionalismo sistemático não pode dar conta da real existência individual.

Não é verdade que o real é o racional. A realidade, afirma Kierkegaard, não pode ser
compreendida pela razão. Apesar do argumento na Fenomenologia, o imediato, o agora,
o isto e especialmente o eu não pode ser aufgehoben23 ou suprimido. Hegel tentou
explicar o mundo pelo movimento da ideia; mas não há movimento na lógica, nem há
lógica em movimento. O movimento é ilógico; tornar-se aberto, não fechado; a
realidade é o acaso e o acaso não pode ser colocado na lógica. Por sua identificação de
essência e existência Hegel tem existência conceitual apenas, enquanto que a existência
real iludiu ele. Sua incapacidade de ver a diferença entre pensamento e ser era um
resultado de seu pensamento como pensador profissional e não como homem. Talvez
para a filosofia, a existência e a inexistência sejam de valor igual. O sistema (e o
proletariado também) não está preocupado com uma única pessoa. Mas para o indivíduo

23
[Nota do tradutor] Termo alemão que significa: revogado.

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existente, por exemplo, para mim, eu e minha existência são de maior valor. Ao
contrário de todo abstraccionismo – seja de Platão (pois ele também era comunista), ou
de Hegel, ou de Marx – o que não é importante e o que é essencial. Portanto, o dever do
homem não é exemplificado na actividade estudiosa do professor Hegel. A realidade
não pode ser ensinada ou comunicada racional e academicamente. Deve ser entendida
pessoalmente, apaixonadamente, anti-intelectualmente. Não são as conclusões que são
necessárias, mas as decisões.

Essa mesma crítica aplica-se também a Marx e a Feuerbach. Eles são pouco menos
abstractos que Hegel. Na humanidade, assim como no Espírito Absoluto o indivíduo
não pode ser achado. Movimentos em massa de homens sem rosto, sem dúvida têm a
força dos números, mas tal nivelamento e amalgamação enfraquecem o indivíduo
eticamente. O homem da massa perdeu a responsabilidade e o poder de tomar decisões.
Para enfrentar a confusão dos tempos e ficar diante da eternidade requer, não
semelhança humana, mas individualidade Cristã. Na natureza, o indivíduo é meramente
uma exemplo de espécies; qualquer pessoa que melhore uma raça de ovelhas muda cada
indivíduo. Mas a religião não é uma questão de espécie, e é tolice supor que pais
Cristãos produzem automaticamente filhos Cristãos. O desenvolvimento espiritual é
radicalmente individual, e a cura para a sociedade é a cura de indivíduos. Porque a
sociedade tem medo de individualistas, essa cura não será fácil. Haverá derramamento
de sangue: não o derramamento do sangue da revolução comunista e da batalha, mas o
derramamento do sangue dos mártires individuais.

Qualquer pessoa que não seja um Hegeliano ou um socialista deve sentir uma certa
simpatia por este individualismo grosseiro, e elas podem aplaudir o sarcasmo que
Kierkegaard dirigiu contra um formalismo religioso vazio e insincero. Mas quando se
passa do negativo para o positivo, pode-se seriamente concluir ou decidir que as
declarações de Kierkegaard são verdadeiras?

Para Kierkegaard, Deus é a verdade; mas a verdade existe apenas para um crente que
internamente experimenta a tensão entre ele e Deus. Se realmente a pessoa existente é
um incrédulo, então para ele Deus não existe. Deus existe apenas na subjectividade.
Essa ênfase na subjectividade e na correspondente depreciação da objectividade resulta
na destruição da historicidade objectiva do Cristianismo. O histórico não é religioso e o
religioso não é histórico. Se Cristo fosse uma figura histórica que viveu há muito tempo,

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ele não teria significado religioso agora. Por outro lado, se Cristo é uma figura religiosa,
o intervalo histórico deve ser cancelado por uma contemporaneidade interior. A religião
real não consiste em entender qualquer coisa. É uma questão de sentimento, de paixão
anti-intelectual. A aceitação de qualquer verdade histórica objectiva depende de
métodos históricos, e o aluno objectivo da história é muito modesto para colocar seus
próprios sentimentos em suas conclusões. Pensadores especulativos não estão
pessoalmente interessados no sofrimento; eles não estudam a verdade subjectiva da
apropriação.

Mas o Cristianismo sempre foi considerado uma religião histórica, não apenas no
sentido de mil e novecentos anos, mas, especificamente no sentido de que é baseado em
eventos históricos que aconteceram há muito tempo. Para Hegel, esses eventos e seus
significados foram partes essenciais da história universal, consideradas como a
expressão do desenvolvimento do Espírito Absoluto. Mas para Kierkegaard a relação
entre o processo da história e a verdade eterna é um paradoxo. Na linguagem de
Kierkegaard e seus seguidores do século XX, o termo paradoxo indica algo mais
embaraçoso do que os quebra-cabeças que depois de alguma dificuldade podem ser
resolvidos e entendidos. Um estudante elementar de física é intrigado quando é dito que
a pressão da água na parte inferior de um recipiente é o dobro da outra, embora o
recipiente anterior tenha apenas a metade do peso da água. Isso é um paradoxo. Isso é
resolvido aprendendo a relação entre altura e pressão. Mas um paradoxo existencialista
é insolúvel. É uma contradição supor que a bem-aventurança eterna pode ser baseada
em informação histórica. Portanto, a subjectividade da apropriação não é contínua, mas
se opõe a uma disseminação histórica do ensinamento Cristão. A apropriação
apaixonada, o momento da decisão, acaba com o intervalo da história e torna alguém
internamente contemporâneo de Cristo. O método não é intelectual; é uma experiência
de sofrimento e desespero. A verdade objectiva destacada do Cristianismo não deve ser
alcançada. Começando com a pregação dos Apóstolos, todos os séculos da história são
inúteis como prova disso. A verdade objectiva do Cristianismo é equivalente à sua
indiferença ao sujeito, ou seja, para mim.

Esse tipo de pensamento provoca uma questão óbvia. Se não há verdade objectiva, se o
como substitui o o quê, então a verdade pode ser distinguida da fantasia? Um Satanás
sofredor não seria tão “verdadeiro” quanto um Salvador sofredor? Uma apropriação
interior, infinita e decisiva pelo diabo não seria tão louvável quanto uma decisão por

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Deus? A filosofia de William James mais tarde levantará a mesma questão; Kierkegaard
percebe o dilema, mas dificilmente podia resolvê-lo.

Há um esforço indiferente em distinguir a interioridade do infinito e a interioridade do


finito; e ele parece dizer que a infinidade da interioridade Cristã é baseada em Deus,
enquanto que a interioridade da finitude se relaciona a algum outro objecto. Agora, se
houvesse conhecimento objectivo de Deus e de outros objectos, um indivíduo poderia
julgar a qualidade de sua paixão com base em sua referência objectiva; mas se Deus e
possivelmente o diabo também estão ocultos, e se alguém está limitado a uma
apropriação subjectiva e apaixonada, parece não haver diferença distinguível entre a
verdade de Deus e a verdade de Satanás. Obviamente, é indiferente se alguém adora a
Deus ou a um ídolo. Se Deus existe ou não é imaterial. O que conta é a relação do
indivíduo com um Algo desconhecido.

Em seu estilo vigoroso, Kierkegaard descreve dois homens em oração. Um está em uma
Igreja Luterana, e tem uma verdadeira concepção de Deus; mas porque ora em falso
espírito, na verdade ora a um ídolo. O outro está na verdade, em um templo pagão,
orando a ídolos; mas uma vez que ora com uma paixão infinita, está na verdade orando
a Deus. Pois a verdade está no interior, não fora. Ou, novamente, Kierkegaard diz:
“Uma incerteza objectiva mantida rapidamente em um processo de apropriação da
interioridade apaixonada, é a verdade, a mais alta verdade atingível por um indivíduo
existente.”

Finalmente, outra declaração também encontrada em sua conclusão científica


Postscript24 – uma declaração tão definida quanto a anterior – expressa a subjectividade
de Kierkegaard. Depois de ressaltar que uma busca objectiva não leva em conta a
relação do indivíduo com essa verdade, Kierkegaard continua: “Se alguém pergunta
subjectivamente sobre a verdade, está reflectindo subjectivamente sobre a relação do
indivíduo; se apenas o Como desta relação está na verdade, então o indivíduo está na
verdade, mesmo que esteja assim relacionado à inverdade.”

Suponha agora que existam falhas graves no “Sistema” de Hegel; suponha também que
o homem da massa comunista viole as prerrogativas da moral individual; suponha em
terceiro lugar que a Igreja Luterana dinamarquesa fosse formal, hipócrita e morta;
suponha, portanto, que Kierkegaard tenha feito algumas críticas reveladoras de seus
24
[Nota do tradutor] Expressão inglesa que significa: Pós-escrito, reflexão tardia ou meditação posterior.

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contemporâneos. Isso então implica que a cura pode ser efectuada por um sofrimento ou
paixão, um sentimento subjectivo, para o qual a verdade objectiva e a inverdade são
igualmente indiferentes? Se isso fosse verdade, um ídolo não só seria tão satisfatório
quanto Deus, mas Hegel ou Marx seriam tão satisfatórios quanto Kierkegaard.

Ao longo do século XIX e até a Primeira Guerra Mundial, Kierkegaard permaneceu


desconhecido. A revolta contra a razão, no entanto, continuou. Embora muito deva ser
omitido, o avanço feito por Friedrich Nietzsche é particularmente digno de menção.

Friedrich Nietzsche

Friedrich Nietzsche (1844-1900), no que diz respeito à filosofia Alemã, foi o culminar
do século XIX. Sua segunda metade trouxe grandes avanços na ciência. Os físicos
consideraram que tinham demonstrado completamente a verdade sobre o mecanismo.
Ludwig Fechner, embora tenha tentado encontrar uma psicologia empírica, rejeitou o
mecanismo sob a inspiração de grandes ideias românticas e povoou seu universo com
almas, anjos e deuses. Rudolph Lötze tornou o intelecto, não um instrumento para
representar coisas, mas para transformá-las. O Ser está em fluxo e a realidade é mais
rica que o pensamento. William Wundt abandonou o monismo e imaginou o universo
como uma pluralidade de vontades. E Darwin (embora não seja um Alemão),
revolucionou, não só a biologia, mas todas as fases do pensamento filosófico. A partir
dessas fontes Nietzsche levou o que lhe atraiu e completou a visão de mundo ateísta,
materialista e anti-Hegeliana do século XIX.

A teoria da evolução de Nietzsche, seu Super-homem, seu eterno retorno, sua


transvalorização de todos os valores, devem ser omitidos. A atenção é restrita às suas
opiniões sobre os poderes da razão. Na opinião de Nietzsche, não existe tal coisa como
mente; o local de partida adequado é o corpo que evoluiu. O que Descartes e Kant
confundiram por ego, em vez de ser um assunto simples, é uma multiplicidade de
desejos conflitantes ou estímulos. Portanto, a noção de que o mundo prossegue de modo
que a razão humana deve ser verdadeira é absolutamente simplória. Tudo o que atinge
nossa consciência é simplificado, ajustado e interpretado. Nós nunca encontramos um
facto na natureza; nós nunca compreendemos as coisas como elas são. Todo o aparato
de conhecer é um dispositivo simplificador, dirigido não à verdade, mas à apropriação e
utilização de nosso mundo. Os filósofos acreditam que nas formas da razão um critério
de realidade tinha sido encontrado; enquanto que o único propósito dessas formas é

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dominar a realidade ao entendê-la inteligentemente. Isso significa que a vontade da
verdade lógica pressupõe uma falsificação fundamental de todos os fenômenos. O que
agora chamamos verdade, é portanto, esse tipo de erro sem o qual as espécies não
podem viver. O objectivo da actividade mental não é de conhecer, em qualquer sentido
escolar, mas de esquematizar e impor tanta regularidade sobre o caos assim como as
necessidades práticas exigem. Afinal, por que deveríamos ser tão grandemente
interessados pela verdade? A falsidade não é uma objecção contra uma opinião; A
pergunta importante é, esta opinião sustenta a vida? De facto, para entender como
afirmações abstractas metafísicas de um filósofo foram alcançadas, é sempre bom e
sábio perguntar primeiro a si mesmo: que moralidade ele almeja? Por trás de toda a
lógica existem demandas fisiológicas para um modo de vida.

A lógica depende da lei da contradição, mas ao invés desta lei ser necessária, é apenas
um sinal de incapacidade - nossa incapacidade de afirmar e negar uma e mesma coisa.
Não podemos falar sem usá-la. Mas por essa mesma razão, deve ser examinada com
mais cuidado. A lei da contradição reivindica ser ontológica e lógica. Isso pressupõe
algo sobre o Ser. Mas supor que a lógica é adequada à realidade requer um
conhecimento da realidade anterior e independente da lei. Obviamente, então, a lei da
contradição só vale para as existências assumidas que criamos.

Estas formas de pensar foram criadas em nós através do longo processo evolutivo, e elas
estão agora tão arraigadas que nenhuma quantidade de experiência pode mudá-las. Elas
são de facto a priori para o indivíduo, mas para a raça humana, são produtos finais
evolutivos. A crença na causalidade e na contradição podem ser e são úteis, mas isso
não as torna verdadeiras. Na verdade, elas devem ser falsas, pois conhecimento e
evolução são mutuamente exclusivos. O carácter do mundo em processo de
transformação não é susceptível a formulação intelectual. Parmênides disse: Ninguém
pode formar o conceito do inexistente; agora estamos no outro extremo e dizemos:
Aquilo do qual um conceito pode ser formado é certamente fictício.

William James

Depois de Nietzsche, a escola Americana de Pragmatismo continuou com o ataque à


razão. William James (1842-1910), inspirado pelo desenvolvimento Francês e Alemão,
fez um ataque vigoroso contra o Absolutismo Hegeliano e contra a verdade fixa. Assim

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como antes, apenas os fundamentos mais básicos e os pontos mais pertinentes podem
ser agrupados nesta breve descrição.

Sobre o domínio do teísmo e absolutismo, escreve James, “você encontrará o rastro da


serpente do Racionalismo do Intelectualismo” (Pragmatismo, 19). O Intelectualismo é
uma serpente porque seus princípios transcendentais são sem utilidade. “Você não pode
deduzir nenhum detalhe real do Absoluto… E o Deus teísta é quase tão estéril... O
teísmo é mais insípido, mas ambos são igualmente remotos e vazios.” James também
repete a acusação de que Hegel confunde fluxo conceitual com fluxo físico, razão pela
qual o tratamento conceitual do fluxo da realidade é inadequado. Inadequado, isto é,
para a realidade em si. O conhecimento deve vir através da experiência – não
experiência consistindo de idéias simples, atômicas, discretas, mas experiência como
um fluxo constante de consciência. Não há dados discretos; nada é separado ou distinto;
as coisas estão constantemente se fundindo umas nas outras; não há distinções como
matéria e forma, substância e relação. Certamente, os conceitos têm um valor prático;
nós seleccionamos porções de experiência e arbitrariamente as definimos; este processo
serve bem aos nossos propósitos, mas tais conceitos estão longe de satisfazer as
exigências da especulação racionalista; eles são puramente práticos. Nossas maneiras
fundamentais de pensar as categorias e a lei da contradição, são descobertas por
ancestrais extremamente distantes. Lagostas e abelhas, sem dúvida, têm outros modos
de apreensão da experiência. Crianças e cães não usam nossas categorias de adultos; sua
experiência é virtualmente caótica. Espaço e tempo não são intuições Kantianas, mas
evidentemente construções artificiais, pois a maioria da raça humana, usa vários tempos
e vários espaços. Embora nossas categorias sejam muito úteis, não podemos negar
dogmaticamente que outras categorias inimagináveis por nós hoje poderiam ser
provadas tão úteis quanto aquelas que nós usamos agora.

Se este for o caso e se podemos aplicar os princípios de James para um exemplo


seleccionado, o silogismo chamado Barbara25 pode ter evoluído como uma falácia.
Todos os Atenienses são Gregos e todos os Gregos são seres humanos pode implicar
que alguns Atenienses não são humanos. Da mesma forma, afirmando o consequente
poderíamos formar um argumento válido; e teríamos raciocinado que todos os números

25
[Nota do tradutor] Silogismo com três proposições universais afirmativas (duas premissas e uma
conclusão). Ex: Todo o ateniense é grego, todo o grego é humano, logo todo o ateniense é humano.

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terminando em zero são divisíveis por cinco, portanto, vinte e cinco - uma vez que é
divisível por cinco - deve terminar em zero.

William James não pode descartar esses exemplos na base de que são ilógicos, pois,
segundo ele, as formas presentes da lógica não são infalíveis. A lógica é muito
oportuna. Não pode apreender a realidade. Tão grande é o seu fracasso que quando os
Racionalistas chegaram a reconhecer que o mundo real escapa das suas fórmulas puras,
inventaram mundos irreais através dos quais estes factos inflexíveis foram barrados. A
vontade racional de Kant emigrou para o mundo dos noumena; F. H. Bradley escapou
de todas as contradições de alguma forma no Absoluto; e T. H. Green dependia de uma
mente transcendente. Mas isso é apenas para dizer que conceitos humanos falsificam a
realidade.

No entanto, ao contrário de Nietzsche, James utiliza seu irracionalismo para apoiar certo
tipo de religião e ética. Alguns avisos disto devem ser tomados, não só por sua própria
importância, bem como na preparação para o que se segue.

Absolutismo e Pragmatismo, diz James, significam duas atitudes religiosas diferentes.


Um homem insiste que o mundo deve ser e será salvo; o outro acredita que pode ser. Há
também outra visão; a saber, de que o mundo não pode ser salvo. O Pragmatismo,
portanto, é uma atitude intermediária entre pessimismo e optimismo; pode ser chamado
de meliorismo. O mundo pode se tornar melhor porque podemos melhorá-lo.

James então oferece essa escolha. Suponha que o autor do mundo viesse até você antes
da criação e dissesse, eu vou fazer um mundo não impossível de ser salvo; ele pode ser
salvo somente se cada agente fizer o melhor possível [se houver algum alívio no
trabalho, o resultado será lamentável]; agora, então, você quer a chance de participar
neste mundo, com seus perigos reais, sem garantia de segurança, ou você preferiria
recair no sono da não-entidade da qual acabei de te despertar?

Note que James não nos oferece uma escolha entre este mundo perigoso e aquele em
que o bem é absolutamente garantido.

O Absolutismo parece ter sido esquecido aqui. A escolha é entre o perigo e o Nirvana. E
James está pronto para fazer a escolha por nós. Qualquer Pessoa “normalmente
formada” com uma “vida saudável” acharia tal universo exactamente ao seu gosto.
Apenas algumas “mentes mórbidas”, “Budistas” que têm “medo da vida” recusariam a

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oportunidade. Estes últimos podem ser religiosos em certo sentido, mas não são morais.
“No final, é nossa fé e não nossa lógica que decide tais questões.” É uma fé em nossos
colegas, que todos eles farão o melhor possível. É também uma fé em forças sobre-
humanas, pois há um deus - não um Deus Todo-Poderoso que controla o resultado - mas
um deus limitado e finito que nos ajuda; na verdade ele é tão boa ajuda que o perigo é
consideravelmente reduzido. A crença neste tipo de deus é verdadeira porque funciona.
Claro que não sabemos com certeza que esse deus existe,

pois ainda não sabemos com certeza qual tipo de religião funcionará melhor a longo
prazo. [É uma questão de decisão pessoal.] E se radicalmente difícil, o tumulto dos
factos sensatos da natureza será o suficiente para você, e você não precisará de religião
alguma. Mas se você não é nem duro, nem terno... o tipo de religião pluralista e
moralista que eu te ofereci é uma síntese tão boa quanto aquela que provavelmente
encontrarias.

Na seção sobre Søren Kierkegaard, a questão da decisão pessoal também foi severa -
uma decisão à parte de qualquer conhecimento objectivo. Kierkegaard, pessoalmente
fez uma escolha que não é muito diferente da de James; embora o Cristianismo de
Kirkegaard não seja o que James teria preferido, até agora, os dois - junto com
Nietzsche - dizem sim ao universo. Mas quando James apela a sua escolha moral e
outras escolhas mórbidas, parece implicar que é mais do que uma escolha pessoal.
Como pode James distinguir entre uma escolha moral e uma imoral? Se ele diz que a
verdade é que que funciona, e o que funciona é o que dá satisfação pessoal, então o
homem que escolhe o Nirvana contra o perigo parece ter alcançado mais satisfação do
que um Pragmatista provavelmente. É provável que todos os homens farão seu melhor
nível? A fé na humanidade é um slogan inspirador, mas os factos difíceis sugerem que
um ou dois homens na história não trabalharam o tempo todo para tornar o mundo
melhor. Seguramente que James é consistente na escolha do perigo para si mesmo, já
que sua teoria depende de sua decisão pessoal; mas precisamente por essa razão
irracional, ele não pode concluir que alguém mais deve fazer a mesma escolha.

Infelizmente, essa objecção intelectualista baseia-se na lei da contradição. Assume que


um princípio da filosofia deve aplicar-se consistentemente para todos os homens. Se
sucesso em satisfazer a preferência pessoal justifica a escolha de um homem, sucesso
em satisfazer uma preferência diferente deve igualmente justificar a escolha oposta de
outro homem. Mas isso é consistência e lógica que James desaprova.

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Embora Nietzsche e James estejam fora da tradição Cristã e são assim exemplos do
colapso da razão humana para além do conhecimento dado pela revelação divina, foi
visto no caso de Kierkegaard que mesmo o pensamento religioso da era pós-Hegeliana
tinha se voltado para o Irracionalismo. Portanto, para concluir a análise da fé sem razão,
É preciso mencionar a influência de Kierkegaard no século XX, e para este propósito o
pensamento de Emil Brunner será produzido para ser apresentado.

Emil Brunner

É impossível e felizmente desnecessário resumir todas as publicações de Brunner para


nossos propósitos. Mas mesmo com a restrição do assunto para o irracionalismo, é
preciso entrar no meio das coisas um pouco arbitrariamente. Uma discussão interessante
sobre erro é um bom começo.

Ao contrário daqueles filósofos que estão tão definitivamente fora da tradição Cristã,
Brunner - em comum com a principal posição Neo-ortodoxa - reconhece que o pecado é
um poder universal na vida humana. O pecado não só rompe com o crime bruto, mas
também afecta nosso pensamento interior. Uma vez que o pecado afasta o homem de
Deus, os efeitos mentais do pecado são vistos mais claramente e mais frequentemente
quando tentamos pensar em Deus, do que quando pensamos sobre matemática ou física.
Brunner não só diz que o erro devido ao pecado é mais óbvio na teologia do que na
física, mas acrescenta que matemática e lógica estão tão longe do centro religioso da
vida, que nelas não há nenhum erro em absoluto.

Esta observação, que à primeira vista pode parecer tão plausível, é de facto uma
confusão entre o objectivo e o subjectivo. Nisso, Brunner - seguindo a ênfase de
Kierkegaard na subjectividade - parece ter negado a distinção entre a pessoa que
conhece e a verdade conhecida. É uma confusão entre o como e o quê.

Vamos examinar mais cuidadosamente a natureza do erro na matemática e teologia.


Subjectivamente, a deterioração noética causada pelo pecado produz erros na aritmética
e geometria, bem como na teologia. Nós todos temos problemas com os remanescentes
nos nossos talões de cheques. Sem dúvida, erros na teologia são mais graves, mas é
claramente falso dizer que não há erro em nossa matemática.

Agora, se Brunner deve responder que, embora você e eu cometamos erros


matemáticos, matemática em si - matemática objectivamente considerada - não contém

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erro, a resposta é que a própria teologia - teologia objectivamente considerada - não
contém nenhum erro. Subjectivamente cometemos erros em ambas; objectivamente, um
é tão verdadeiro quanto o outro. Daí a afirmação de Brunner de que a teologia contém
mais erros, física menos erros e matemática nenhum, é plausível apenas por confundir o
objectivo e o subjectivo, isto é, apenas apagando a distinção entre a pessoa pensante que
pode cometer erros e as proposições objectivamente verdadeiras. Ou melhor, é uma
negação da verdade objectiva. Isso é consistente com a apropriação anti-intelectual
apaixonada de Kierkegaard. Deus é a verdade, disse Kierkegaard. Mas Deus e a verdade
existem apenas para alguém que acredita; uma necessidade incrédula não tem medo das
penalidades divinas porque para um incrédulo Deus não existe. A verdade é totalmente
subjectiva.

A subjectivação da verdade tem sérias consequências. Para Brunner, proposições (ou


verdades abstractas como ele as chama) são meramente indicadores da assim chamada,
mas mal definida verdade pessoal. Não só palavras como sons têm uma função
meramente instrumental, mas o conteúdo conceitual em si é apenas uma estrutura ou
receptáculo para outra coisa. Proposições são meramente indicadores e indicadores
podem ser eficazes, sejam eles verdadeiros ou falsos. Brunner afirma muito claramente
que um indicador não precisa ser verdadeiro. Mesmo uma falsa proposição indica,
porque Deus está livre das limitações da verdade abstracta e pode revelar-se em
declarações falsas tão facilmente quanto nas verdadeiras.

Deus pode [diz Brunner em Verdade como um Encontro, 88], se quiser, até dizer à um
homem a sua palavra através de falsos ensinamentos.

Agora, se deixarmos de lado as cortesias da expressão indirecta e falarmos nítida e


claramente, não somos forçados a concluir que as palavras de Brunner apontam para um
deus que conta mentiras?

Poderia alguma coisa indicar mais claramente que a Neo-ortodoxia é mais neo do que
ortodoxo? Brunner certamente não está na tradição de João Calvino. Para ter certeza, ele
usa as palavras revelação, transcendência, pecado e encarnação; mas sua semelhança
intelectual com os conceitos Calvinistas é nula. Alguém hesita em categorizar Brunner
com Nietzsche, mas se eles não são irmãos, seu irracionalismo comum faz deles pelo
menos primos.

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Este é o ponto no qual paramos. Embora Brunner tenha publicado muitos livros, não é
lucrativo examinar qualquer linguagem a menos que a verdade seja distinta do erro. Um
escritor que lhes confere igual autoridade repudiou a lei da contradição e a conversa
significativa cessa.

É hora, portanto, de tirar uma conclusão. Sob o título “Razão Sem Fé ”, a história da
filosofia moderna foi vista a falhar em sua tentativa de basear o conhecimento em
recursos humanos sem ajuda. Mesmo os filósofos seculares - aqueles que não têm
interesse na revelação divina - admitem que Spinoza, Kant e Hegel não produziram uma
epistemologia sólida. No capítulo presente ambos, irracionalismo secular e religioso
foram examinados. Não só Nietzsche e James nos deixam em anarquia intelectual, mas
a Neo-ortodoxia também concluiu que a razão humana é um fracasso. Embora estes
últimos escritores tenham uma doutrina da revelação, mesmo nela eles não conseguem
distinguir a verdade da falsidade. Em vez de dizer, que seja Deus verdadeiro e todo o
homem mentiroso; eles dizem: Seja Deus falso, e todo homem será mentiroso também.
Esse tipo de filosofia é auto-contraditória, auto-destrutiva e intelectualmente reduzida
ao ridículo.

Portanto, desejo sugerir que não abandonemos a razão, nem a usemos sem ajuda, mas -
sob pena de cepticismo - reconheçamos a revelação verbal, proposicional da verdade
fixa de Deus. Apenas aceitando racionalmente a informação compreensível sobre a
autoridade de Deus, podemos ter a esperança de obter uma filosofia sólida e uma
religião verdadeira.

FÉ E RAZÃO

Na secção precedente, sob o título “Razão e Fé”, foram apresentados argumentos que
levaram ao repúdio da teologia natural e do Tomismo da Igreja Católica Romana. As
tentativas Renascentistas e modernas de basear o conhecimento sobre “Razão Sem Fé”
foram mostradas em seguida para resultar num cepticismo desastroso. E imediatamente
acima, as implicações religiosas do irracionalismo foram indicadas. Resta, portanto,
deixar de criticar negativamente e fornecer uma visão construtiva de “Fé e Razão”.

Uma construção completa teria que sistematizar um grande número de factores.


Infelizmente mas necessariamente, a presente tentativa deixa muitas perguntas sem
resposta. Espera-se, no entanto, que a linha do pensamento adoptado justificará

82
amplamente duas conclusões principais. Primeiro, em oposição ao Deísmo, ao
Iluminismo, ao Espinosismo, ao Cientismo contemporâneo e a todos sistemas
dogmáticos que opõem à razão e a fé, será mostrado que a razão e a fé não são
antitéticas, mas harmoniosas. É verdade que a harmonia não será da variedade Tomista.
Em segundo lugar, em oposição ao irracionalismo secular e principalmente religioso, a
fé receberá um conteúdo intelectual. Estas duas conclusões dependem em grande parte
de definições aceitáveis de fé e razão. Para Tomás de Aquino e John Locke, a razão
significava a base sensorial de todo o conhecimento. Descartes e Spinoza tinham outro
significado. Várias definições de fé ocorreram também na história da filosofia e
teologia. Esta tentativa deve também escolher seus próprios significados.

Além das definições formais, alguns antecedentes, histórias e discussões também são
necessários. Este material apresenta duas dificuldades sérias. Primeiro, a história tem a
ver com movimentos religiosos vivos e pregações evangelísticas populares. Portanto, há
uma confusão de pontos de vista que desafia a generalização correcta. Se, no entanto,
nenhuma sugestão de acordo universal é feita, a justiça exige apenas que os exemplos
escolhidos conspirem para representar as tendências actuais. A segunda dificuldade
séria é bem diferente da primeira. Enquanto que a história concentra-se em fenômenos
populares e, portanto, superficiais, a discussão revela tecnicismos excepcionalmente
desconcertantes. Razão e fé, visto que são actividades humanas, devem ser vistas à luz
da personalidade humana como um todo. Algum esquema de psicologia é necessário. E
os detalhes são infinitos. Neste contexto, algumas perguntas serão levantadas sem serem
totalmente respondidas. Ainda assim, elas servem como um cenário em que as duas
principais conclusões podem ser amplamente estabelecidas.

Religião Popular

O contexto histórico no qual essas questões se tornam parte de uma religião viva e
encontram um lugar na pregação popular, pode para os nossos propósitos ser
convenientemente restrito ao fundamentalismo nos Estados Unidos. Do ponto de vista
da Confissão de Westminster, isto é, do ponto de vista de todo este argumento, o
fundamentalismo não pode ser inteiramente condenado nem inteiramente elogiado. A
maioria dos fundamentalistas aceita seções importantes da Confissão de Westminster e
rejeita outras seções igualmente importantes. Em parte, por essa razão, o
fundamentalismo não se encaixa em nenhuma das categorias das três secções

83
precedentes. A referência a ele no início da última seção pode até parecer injusta. É
certo que a sua classificação como uma forma de misticismo foi inadequada. O firme
apego do fundamentalismo à algumas doutrinas salva-o dos excessos de irracionalismo,
mas ao mesmo tempo dificilmente se pode dizer que os fundamentalistas abraçam um
intelectualismo sincero. Eles deploram a razão, conhecimento e erudição de forma
frequente; às vezes falam com desdém da “mera lógica humana”; e uma de suas queixas
contra o Romanismo é que este reduz a fé ao mero assentimento intelectual. No entanto,
como as doutrinas fundamentais podem ser defendidas pela depreciação geral da razão?
Se eles insistem em qualquer doutrina, como podem recomendar uma fé desprovida de
conteúdo intelectual?

No entanto; eles recomendam, isto é, alguns; pelo que parece. Já foi admitido que num
movimento popular como o fundamentalismo, existe uma grande variedade de visões.
Talvez o exemplo prestes a ser dado da tensão irracionalista no fundamentalismo seja
um dos casos mais extremos. Mesmo assim, um caso extremo pode ser necessário para
produzir a impressão que deveria resultar de uma longa lista de casos menos extremos.
De qualquer forma, a conversa seguinte realmente aconteceu. Não é nem ficção, nem é
exagerado.

Um ministro de persuasão fundamentalista e zelo evangelístico afirmou que há pouca


esperança de entender a Bíblia. A teologia é obscura e duvidosa. No entanto, Deus deu
ao seu povo o poder de discernir os corações dos homens, e com este poder um ministro
pode decidir quem deve e quem não deve ser admitido como membro da igreja. Na
perplexa e confusa discussão que se seguiu, conforme este ministro tentou em vão listar
os factores discernidos nos corações dos homens, Romanos 10:9-10 fez a sua aparição.
Inicialmente, na rápida troca de ideias, o ministro esteve predisposto a concordar que
alguém que satisfaz as condições dessa passagem é uma pessoa salva. Mas quando foi
apontado para ele que a crença na ressurreição de Cristo era uma crença sobre a história,
uma aceitação intelectual de uma proposta histórica, ele rapidamente se corrigiu e negou
que uma crença na ressurreição de Cristo implica a salvação. Salvação, ele afirmou, não
é uma questão de crença.

Este ponto de vista certamente afectaria a exegese de Romanos 10: 9-10. É óbvio que
divorcia a fé da crença, se a fé salva e a crença não. Mas é claro que ninguém esperaria
que tal ministro fosse muito consistente nas suas afirmações. O exemplo pode ser

84
extremo, mas serve para o propósito de salientar o facto inegável de que o
fundamentalismo é um assunto inconsistente. Não é só o fundamentalismo das décadas
entre as duas Guerras Mundiais que é inconsistente. A inconsistência específica relativa
ao conteúdo intelectual da fé derivou-se das formas anteriores de Protestantismo.
Portanto, é apropriado colocar a questão em termos de uma objecção Protestante de
longa data ao Romanismo.

De acordo com muitos escritores Protestantes, o Catolicismo Romano está seriamente


enganado em fazer da fé mero assentimento intelectual à certos dogmas. Fé, a
verdadeira fé em Cristo, dizem esses escritores, é uma confiança pessoal e não crença
intelectual “fria”. Por outro lado, a Enciclopédia Católica afirma: “Os escritores não-
Católicos repudiaram toda a ideia de fé como assentimento intelectual” (1913, 752).

Talvez, no entanto, a verdade da questão não seja colocada com precisão nessas breves
caracterizações. A Enciclopédia Católica tem motivos consideráveis para acusar o
Protestantismo de anti-intelectualismo, mas a sua actual afirmação é ambígua e, em um
de seus dois sentidos, é falsa. Por outro lado, a queixa Protestante sobre o mero
assentimento intelectual é extremamente confusa. Para mostrar essa confusão, é
necessário passar de uma descrição da religião popular para uma discussão de
complexidades psicológicas. Isso não significa que o contexto histórico seja descartado
com uma ilustração; outros exemplos descritivos serão citados; mas a ênfase repousará
mais sobre os méritos acadêmicos do caso, do que em exemplos de asserções
ministeriais imprudentes.

Análise da Personalidade

Para definir a fé, é necessário alguma análise da personalidade. Seja o que for dito sobre
a fé, pressupõe-se distinções entre actividades conscientes. De acordo com uma opinião
muito comum, a consciência consiste nestas partes: intelecto, volição e emoção. A fé
pode ser colocada sob uma delas, ou pode ser descrita como uma combinação de duas
delas, ou possivelmente das três. De qualquer forma, algum esquema analítico é
necessário. Agora, uma das muitas dificuldades neste procedimento surge da
necessidade de expressar a verdade Bíblica na terminologia não-Bíblica. Em si, o uso da
terminologia não-Bíblica não pode legitimamente ser contestada. O termo Trindade não
ocorre na Bíblia, mas todos os trinitaristas sustentam que as ideias e relações que o
termo sustenta são solidamente Bíblicas. Semelhantemente, a palavra emoção não

85
ocorre na Bíblia, pelo menos não na Versão King James. No entanto, no uso da nova
terminologia, uma certa quantidade de cautela é necessário. Em primeiro lugar, é
preciso garantir que os termos sejam definidos sem ambiguidade. Infelizmente, muitas
discussões sobre fé não conseguem definir o intelecto, a vontade ou a emoção. Aqueles
que usam os termos parecem ter apenas uma ideia nebulosa de seu significado, e um
pequeno questionamento Socrático logo revela a ininteligibilidade.

Há também outro cuidado a ser observado. Depois que o novo termo é adequadamente
definido, sua relação com o material Bíblico deve ser esclarecido. O uso de um termo
não-Bíblico na discussão teológica é evidência de uma precisão e preservação técnica
que a própria Bíblia não possui. Nenhum termo Bíblico corresponde exactamente ao
novo, e o novo termo não reproduz exactamente qualquer termo único das Escrituras.
Portanto, a confusão completa resulta sempre que o novo termo é sub-repticiamente
igualado com algum termo familiar na Bíblia. Isso aconteceu com grande frequência na
identificação do termo hebraico coração com a emoção da psicologia popular. O
significado Bíblico deste termo será discutido abaixo, mas aqui a ênfase recai sobre o
princípio geral. Quando um novo termo é introduzido na teologia e é precisamente
definido, nunca deve ser descuidadamente assumido, mas deve ser sempre
cuidadosamente comprovado que o novo termo e a definição expressam adequadamente
ideias Bíblicas.

Então, a Bíblia apoia ou não a divisão popular tripartite de alma? Obviamente, a


psicologia moderna oferece divisões diferentes do intelecto, vontade e emoção.
Sigmund Freud especificou o id, o ego e o superego, mais uma libido cuja relação com
eles não é muito clara. Admitindo que essa divisão Freudiana tem um mau cheiro entre
os devotos; ainda assim, próprio reconhecimento do mal inerente assemelhar-se à visão
Cristã da depravação total e hereditária o suficiente para reivindicar a consideração de
um Cristão. Ou talvez alguma terceira análise é melhor que qualquer uma dessas duas.
Em qualquer caso, uma suposição apressada não pode ser permitida.

Pois o cuidado é necessário porque, em princípio, a análise a ser escolhida deve se


encaixar na Bíblia, e porque - como foi apontado no momento anterior - o coração da
Bíblia tem sido frequentemente identificado com as emoções da psicologia popular, um
breve levantamento dos dados Bíblicos deve ser feito.

86
O termo chave da psicologia Bíblica, especialmente no Antigo Testamento onde os
princípios fundamentais estão estabelecidos, é o termo coração. Quando Cristãos
contemporâneos, muitas vezes na pregação evangelística, contrastam a cabeça e o
coração, eles estão, de facto, igualando o coração às emoções. Tal antítese entre a
cabeça e o coração não é encontrada em nenhum lugar nas Escrituras. Ao contrário, esse
uso indica imediatamente um afastamento do Antigo Testamento. Nos Salmos e nos
Profetas, o coração designa o foco da vida pessoal. É o órgão da consciência, do auto-
conhecimento, de facto de todo o conhecimento. Alguém pode muito bem dizer que o
coração em hebraico é o equivalente a palavra inglesa self.

Para entender o uso do Antigo Testamento, considere os seguintes exemplos:

Gênesis 6:5 Toda a imaginação dos pensamentos de seu coração era só má


continuamente.

Gênesis 8:21 E o SENHOR disse em seu coração: “Não tornarei mais…

Gênesis 17:17 Abraão… disse no seu coração: “A um homem de cem anos há-de nascer
um filho…?

Gênesis 20:6 Na sinceridade do teu coração fizeste isto…

1 Samuel 2:1 O meu coração exulta ao SENHOR…

1 Samuel 2:35 Um sacerdote fiel, que procederá segundo o meu coração e a minha
alma.

Salmos 4:4 Falai com o vosso coração…

Salmos 7:10 Deus, que salva os rectos de coração.

Salmos 12:2 Falam com…coração dobrado.

Salmos 41:1 Disse o néscio no seu coração: “Não há Deus”.

Salmos 15:2 Aquele…fala a verdade no seu coração.

Isaías 6:10 Nem entenda com o seu coração...

Isaías 10:7 Nem o seu coração assim o imagina...

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Isaías 33:18 O teu coração considerará o assombro…

Isaías 44:18,19 Tapou…os seus corações para que não entendam. E nenhum deles cai
em si, e já não têm conhecimento nem entendimento…

Visto que há um pouco mais de 750 ocorrências da palavra coração no Antigo


Testamento, essas citações dão uma pequena amostra. Mas elas são o suficiente para
mostrar que muitos versos seriam total absurdo se o termo fosse traduzido por emoção.
Por exemplo, se essa identificação fosse feita, seria necessário dizer: Eles falam
distraidamente... e com emoções duplicadas eles falam; e Ele fala a verdade em suas
emoções; e, para que eles não entendam com suas emoções. Obviamente, esta
substituição resulta em absurdo. Não deve ser negado que o termo Bíblico coração pode
referir-se e ocasionalmente refere-se às emoções, como em 1 Samuel 2:1, embora
mesmo aqui deva haver algum entendimento intelectual. Mas embora as emoções sejam
às vezes referidas, o termo coração significa mais frequentemente intelecto. É o coração
que fala, medita, pensa e entende. Ao mesmo tempo, não pode ser uniformemente
traduzido intelecto como distinto da vontade ou das emoções. Isto não é porque a
tradução exclui ou é antitética à mente, ao entendimento, ou ao intelecto, mas porque
inclui todos eles e significa a personalidade total. O termo coração na realidade
significa o eu, ou, com alguma ênfase coloquial, o eu mais profundo. E como o eu age
emocional, volitiva e intelectualmente, as três actividades são representadas nas diversas
ocorrências do termo. Embora o termo coração inclua as emoções e, portanto, não pode
ser traduzido por intelecto, a referência intelectual continua ocorrendo muito mais
frequentemente do que qualquer outro; e esta preponderância da referência intelectual
mostra a preponderância do intelecto na personalidade.

É extremamente difícil apreciar os motivos, pelo menos no caso daqueles que estão
ligados à Bíblia, que lideram uma depreciação do intelecto. Por que a emoção deve ser a
única via ou mesmo a melhor via para Deus? Por que é que pensar, meditar, entender
devem ser condenados? Por que conhecer, conceber ou apreender Deus é uma via ruim?
Um método impossível, ou um método ímpio de adorá-lo? O que está errado com a
actividade intelectual?

Então, também, essa difamação do intelecto em favor das emoções, e possivelmente a


própria divisão tradicional tripartite, pode implicar numa chamada psicologia da
faculdade que contradiz a ênfase Bíblica sobre a personalidade unitária.

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Parenteticamente, pode-se notar que isso também se aplica a Freud. Este tipo de
psicologia não deve ser condenado tanto por suas implicações desagradáveis quanto por
sua divisão esquizofrênica da personalidade. Psicologia Freudiana é psicologia da
faculdade com represálias.

A Bíblia não sugere uma psicologia da faculdade. Embora discussões tais como estas
dificilmente podem evitar o uso da palavra intelecto, que fique claro que não há
“intelecto”: há actos intelectuais; não há “emoções”: há ondas flutuantes de medo, raiva,
desânimo e alegria. Da mesma forma, não há “vontade”, não há “id”, não há
“superego”, mas uma pessoa unitária.

Assim, o contraste moderno e comum entre a cabeça e o coração é evidentemente anti-


Bíblico. Há um contraste Bíblico. É o contraste entre o coração e os lábios, pois Mateus
está citando Isaías quando diz: “Essas pessoas… me honram com seus lábios, mas seu
coração está longe de mim”. Quando o contraste Bíblico é substituído por uma
psicologia da faculdade estranha, a possibilidade de outras teses Escriturísticas serem
descartadas ao mesmo tempo não pode ser descartada.

Confiança e Assentimento

Dois exemplos desta psicologia defeituosa, especialmente esta depreciação não Bíblica
da actividade intelectual, serão descritas. Nenhum deles é exactamente trivial; o
segundo realmente afecta a resposta total da pessoa ao Cristianismo. O primeiro, uma
confusão comum do pensamento frequentemente ouvido nos púlpitos evangélicos, pode
causar menos danos porque suas implicações não são tão óbvias. No entanto, também
pode ser indicativo de aberrações mais amplas.

Ao descrever a natureza da fé, fundamentalistas, evangélicos (e até mesmo modernistas


de certa maneira) enfatizam o elemento da confiança. Isto é claramente o que a
Enciclopédia Católica, como citado acima, fez referência. Um pregador pode traçar um
paralelo entre confiar em Cristo e confiar numa cadeira. A crença de que a cadeira é
sólida e confortável, o mero assentimento intelectual para tal proposição, não
descansará seus ossos cansados. Você deve, o pregador insiste, realmente sentar na
cadeira. Ou, como outro ministro disse recentemente, a crença de que um banco está são
e salvo não protegerá seu dinheiro nem lhe dará algum interesse. Você deve realmente
colocar seu dinheiro no banco. Da mesma forma, assim prossegue o argumento, você

89
pode crer em tudo o que a Bíblia diz sobre Cristo, e isso não fazer bem a você.
Ilustrações como essas são usadas constantemente apesar do facto de que a própria
Bíblia diz: “Crê no Senhor Jesus Cristo, e serás salvo.”

Há aqui pelo menos uma falta de análise, uma confusão de algo Bíblico e de algo que
não é, uma falha em equacionar dois lados de uma analogia. O ponto fraco de tais
ilustrações é que, elas comparam a fé com o acto físico de sentar numa cadeira e
distinguem-na da crença. A crença em Cristo não descansa seus ossos cansados, pois a
crença é mero assentimento. Além disso, você deve realmente sentar ou depositar seu
dinheiro no banco. Mas essa analogia não se sustenta. A distinção entre crer que uma
cadeira é confortável e o acto de sentar nela é perfeitamente óbvia. Mas na esfera
espiritual não há acção física; existe apenas acção mental: Portanto, o acto de sentar-se,
se é que significa alguma coisa, deve se referir a algo completamente interno e ainda
diferente da crença. A crença na cadeira foi feita para representar a crença em Cristo, e
de acordo com a ilustração a crença em Cristo não salva. Algo mais é necessário. Mas o
que é essa outra coisa que corresponde ao acto físico de se sentar? Esta é a questão que
raramente é respondida. Os evangelistas colocam toda a sua ênfase em sentar-se, mas
nunca identificam sua análogia.

Quando tais ilustrações unilaterais não são usadas, as frases abstractas que depreciam o,
assentimento intelectual são igualmente desconcertantes. Considere as palavras do Dr.
Thomas Manton em seu comentário sobre a epístola de Tiago. Dr. Manton era um
Anglicano devoto e piedoso, que - embora favorecesse a restauração de Charles II - foi
um daqueles ministros que foi expulso de seu púlpito pelo Ato de Uniformidade de
1662. Seu Comentário sobre Tiago é um dos trabalhos mais admiráveis e extremamente
proveitoso. No entanto, ao discutir o presente assunto, ele usa frases que são difíceis de
entender. Por exemplo, em Tiago 2:19 ele escreve:

Este exemplo mostra a fé que ele disputa contra; a saber, aquela que consiste em pura
especulação e conhecimento... Tal assentimento, embora não seja salvador, todavia na
medida em que é histórico é bom, como um trabalho e preparação…. O assentimento
vazio dos artigos da religião não implica fé verdadeira… Não é só assentimento
axiomático …. Não existe apenas assentimento na fé, mas consentimento…. Verdadeira
crença não é um acto de compreensão apenas, mas um trabalho de todo o coração….

Na medida em que estas frases e uma seção de onde são citadas indicam a necessidade
de uma fé que produz obras, nenhum bom Cristão poderia, no mínimo, negar. É uma

90
excelência particular do Dr. Manton ter enfatizado este tema da epístola. Se por
“especulação vazia” e “iluminação vazia” refere-se a uma profissão vazia hipócrita
desprovida de conduta virtuosa, vamos todos insistir que isso está longe de ser fé
salvadora.

Neste ponto, o Dr. Manton percebe a frase de Tiago 2:14, “Se alguém diz que tem fé ”,
e observa que o homem pode não ter fé nenhuma. Sua profissão é hipócrita. Ele não
acredita necessariamente em qualquer doutrina Cristã. Esta situação é simplesmente o
contraste Bíblico entre o coração e os lábios. A hipocrisia também é um acto intelectual.
É uma intenção de enganar. Mas certamente o facto de que a hipocrisia é intelectual não
implica que a fé como um acto intelectual seja hipocrisia. Se um acto intelectual é
repreensível, não se segue que um diferente acto intelectual é.

Agora, se o Dr. Manton estivesse meramente repreendendo a hipocrisia e insistindo que


a verdadeira fé é seguida de actos evidentes de caridade, não haveria discussão. No
entanto, embora tal seja a ênfase principal do Dr. Manton, existem ligeiras sugestões de
algo mais. Além da ênfase em boas obras, o assentimento vazio é contrastado com o
consentimento. Ele havia dito: “Não existe apenas assentimento na fé, mas
consentimento.” O consentimento, sem dúvida, refere-se a alguma acção interna em vez
de acção evidente. O que é esse consentimento? É intelectual? Se não, é emocional? O
Dr. Manton acha que é um acto de vontade? Dr. Manton não responde essas perguntas.
Ele não define e nem explica o termo consentimento. Ele deixa como uma simples
palavra. Por isso, não é de nenhuma ajuda necessária para nós.

Mais uma vez uma questão anterior vem à tona: se a crença é representada por crer que
a cadeira é confortável, e isso é tomado como mero assentimento intelectual, o que é
representado pelo acto diferente e separado de realmente sentar-se? Agora, de certa
forma, há outro factor; mas quando for identificado, não se revelará um acto diferente e
separado semelhante ao sentar. Será ainda o mesmo acto mental interno de
assentimento, embora visto em um aspecto diferente. A dificuldade em toda essa
discussão deriva da suposição de que um acto de “mero” assentimento intelectual é
possível. Para este acto, o evangelista zeloso quer adicionar emoções. Poderia não ser
que o que precisa ser adicionado não é emoção, mas um acto de vontade? Só que essa
“adição” não é realmente um acréscimo, e um “mero” acto de vontade deve ser
reconhecido para ser tão impossível quanto “mero” assentimento. Sem dúvida fé em

91
Cristo envolve o que é ordinariamente e de forma confusa chamado de um acto de
vontade. Se a fé exige emoções ou não - e se sim, quais emoções exige - são questões
sem importância. Emoções por definição são oscilantes; um homem emocional é
instável e poucas pessoas têm uma alta opinião dele; enquanto que, ao longo de nossos
estados emocionais em constante mudança, nossas crenças e as volições fundadas nelas
permanecem comparativamente fixas. E para retornar, a fé certamente envolve a
vontade.

No entanto, quando é feita uma tentativa de usar a ilustração da cadeira, as dificuldades


da psicologia da faculdade retornam com força total e todas colapsam. A linguagem que
inclui frases como “mero assentimento intelectual” não trai sua base anti-Bíblica na
psicologia da faculdade esquizofrênica? Certamente a intelecção e a volição não
ocorrem em isolamento. Não pode haver volição sem inteligência. Até a ilustração de
sentar numa cadeira mostra isso de forma considerável. Uma pessoa não pode querer
sentar numa cadeira a menos que acredite que há uma cadeira para se sentar. E
inversamente não pode haver intelecção sem vontade, pois o próprio assentimento
intelectual é um acto de vontade.

Se os Escolásticos se queixam desta última proposição e tentam isentar as conclusões de


silogismos demonstrativos da aceitação volitiva, eles o fazem tão somente ignorando o
assentimento voluntário exigido pelas premissas. Os Escolásticos - e possivelmente os
Racionalistas do século XVII - podem insistir que a lógica em si não é uma escolha
voluntária, pois ninguém pode escolher pensar de outra maneira. Se alguém pensa o
contrário, é um erro involuntário. Agora, no capítulo seguinte sobre a linguagem, será
vigorosamente mantido que essa lógica, não é estipulada, mas necessária e
insubstituível. Mas para discutir que o necessário não pode ser um acto de vontade,
pressupõe-se a teoria da livre vontade, e a livre-vontade será descartada no capítulo
final. De qualquer forma, o uso da lógica exige um acto voluntário de atenção, assim
como todas as outras crenças. Alguém pode escolher simplesmente não pensar; ou de
preferência, se ele pensar, deve escolher prestar atenção.

Além disso, as formas de lógica, desprovidas de outro conteúdo, não se acomodam a


questões de fé. O assunto imediato tem que tornar, assim como em breve será tornado
ainda mais claro, com proposições teológicas e credais. Estas não podem ser deduzidas
involuntariamente das formas da lógica. Portanto, dentro da faixa pertinente às questões

92
de fé e razão, pode-se afirmar que não pode haver volição sem inteligência e intelecção
sem vontade. Elas não devem ser consideradas como duas faculdades separadas, nem
mesmo como dois actos separados. A opinião comum de que um acto de vontade é
diferente de um acto de intelecção é uma ilusão que resulta da restrição de atenção à
actos físicos como sentar-se. Mas quando o acto não é físico, quando é o acto de crer
que uma proposição é verdadeira, os dois supostos actos se interpenetram num único
estado mental tornando-se indistinguíveis. Alguém pode distinguir a crença na cadeira
ou crença na matemática, da crença em Cristo, claro; assim é, os objectos particulares
de pensamento ou de vontade podem ser distinguidos; mas o acto mental é igualmente
volitivo e intelectual. Isto é o que está implícito ao dizer que a pessoa é uma unidade.
Para alguns propósitos superficiais, principalmente no que diz respeito ao início dos
movimentos físicos, uma distinção popular na ênfase é feita; mas a divisão tripartite
comum da pessoa em emoção, intelecto e vontade é tão equivocada quanto o id, o ego e
o superego.

Há também uma complicação adicional na noção de crença ou assentimento que motiva


a antipatia à actividade intelectual. Aqueles que dizem que essa crença intelectual em
Cristo não tem valor, não só caem nos erros expostos acima, mas também, em alguns
casos, não conseguem distinguir assentimento da compreensão. Quando eles atacam
“mero assentimento” eles provavelmente querem dizer - embora seja precipitado
adivinhar o que algumas pessoas querem dizer - que a salvação não é obtida por
conhecer as proposições na Bíblia e compreender os seus significados. Obviamente isso
é verdade. Muitos homens inteligentes sabem muito bem o que a Bíblia diz; eles
entendem isso muito melhor do que muitos Cristãos; mas eles não estão salvos e não
são Cristãos. A razão é que, embora eles entendam, não crêem. Eles sabem o que a
Bíblia diz, mas eles não concordam com ela. Mas porque entender e crer são ambos
actos intelectuais, aqueles que pensam descuidadamente reconhecem. A distinção entre
saber o significado de uma proposição e crer nela parece ser muito sútil, por esse
motivo, alguns pregadores concluem que “mera crença” é sem valor. Esta conclusão é
traçada de forma falaciosa. Só porque um acto intelectual - a compreensão do que as
palavras significam - é menor do que a fé, não se segue que fé ou crença não é
intelectual.

A exegese revelará que a fé, a fé Cristã, não deve ser distinguida da crença. Considere
Hebreus 11:1. “Ora, a fé é a certeza daquilo que esperamos e a prova das coisas que não

93
vemos.” Esta não pode ser uma definição formal de fé, mas deve ser aceite como uma
afirmação verdadeira sobre a fé. A American Revised Version diz que “fé é a garantia
das coisas esperadas, uma convicção de coisas não vistas.” Garantia e convicção são
crença, forte crença, crença voluntária e tão intelectual quanto você quiser. Elas são
intelectuais porque seus objectos são proposições significativas. Seus objectos são
verdades. Os heróis da fé, sobre os quais o capítulo continua descrevendo, creram todos
em algumas verdades intelectuais definidas. Nestes casos, reconhecidamente, a fé foi
seguida pela acção física. Abel ofereceu um sacrifício e Noé construiu a arca. Mas as
acções físicas não eram a fé em si. Fé é algo interno, mental, intelectual; como Hebreus
11:3 diz: “Pela fé nós entendemos” algo sobre a criação do mundo. Certamente este é
um acto intelectual. E ao explicar por que “sem fé é impossível agradar a Deus”, diz o
versículo seis, “pois quem dele se aproxima precisa crer que ele existe.” Como resposta
àqueles que menosprezam a intelecção com a ilustração da cadeira, as considerações
apresentadas parecem ser suficientes.

Anti-intelectualismo

As muitas confusões relativas à fé, assentimento, volição, compreensão e assim por


diante, foram usadas como um primeiro exemplo de uma psicologia defeituosa. Existe
agora um segundo exemplo. Por baixo da psicologia defeituosa que dá origem a
ilustrações enganosas sobre cadeiras e bancos reside um desgosto por credos. Os credos
são intelectuais demais e o tipo de religião que temos discutido tem fortes tendências ao
emocional. Às vezes dificilmente reconhece o papel da volição. Mas, de qualquer modo,
exibe um desgosto por credos. Possivelmente, esse desgosto, no entanto, não deve ser
citado como um segundo exemplo da psicologia defeituosa. É melhor conceber o
desgosto por credos e a psicologia defeituosa como dois exemplos de um anti-
intelectualismo.

Do ponto de vista do Calvinismo, o anti-intelectualismo – uma depreciação de credos,


uma perspectiva essencialmente emocional ou uma dependência de alguma experiência
mística inefável – é um erro muito mais grave na religião do que algumas ilustrações
infelizes na pregação popular. Pode parecer piedoso minimizar a crença em um credo e
exaltar a fé em uma pessoa, mas a implicação é que faz pouca ou nenhuma diferença no
que o homem acredita. A religião – eu recuso dizer Cristianismo – torna-se assim não
doutrinária. Este anti-intelectualismo, claramente, é uma teoria mais ampla que a

94
psicologia da faculdade; e se psicologia da faculdade conflita com o Cristianismo em
um ou dois pontos, uma teoria mais ampla conflitará em muito mais – na verdade, em
todos os pontos.

Voltando por um momento para Hebreus 11:6, vemos que a fé em Deus é impossível
sem um credo. O primeiro artigo deste credo necessário é que Deus existe. E,
obviamente! Pode um homem chegar a Deus se ele acredita que Deus não existe?
Retornando àquela ilustração, você pode levar seu dinheiro para um banco que você
acredita que não existe? Não é nem mesmo necessário colocar a questão tão fortemente.
O ateu descarado que acredita que Deus não existe não chegará, é claro. Mas, e quanto a
um homem, não a um ateu descarado, que simplesmente falha em acreditar que Deus
existe? Pode tal homem mais facilmente chegar a Deus? Hebreus diz: Não; é necessário
que aquele que se aproxima de Deus creia que ele existe.

Este credo tem também um segundo artigo que deve ser crido antes de alguém poder
chegar a Deus. Se um homem acredita apenas que Deus existe, ele não chega: Deus,
neste caso, pode ser uma divindade indiferente, sem preocupação pelo homem; ele pode
até ficar aborrecido com o homem que o incomoda; ou possivelmente, esse Deus pode
ser alguma força impessoal. Portanto, antes que um homem chegue a Deus, ele deve
crer que ele é o galardoador dos que o buscam. Isto, naturalmente, implica que Deus é
pessoal. Que extensa teologia na qual estamos nos metendo! E como já nos tornamos
intelectuais, pois agora estamos usando a forma lógica da implicação.

O progresso lento desse argumento pode provocar uma resposta impaciente de que
mesmo assim, a crença intelectual não tem valor. Os demônios não crêem e
estremecem? A interpretação errônea deste versículo em Tiago foi para o fim de torná-
lo conclusivo contra qualquer eficácia salvadora da crença em Cristo. No entanto, as
Escrituras dizem: “Crê no Senhor Jesus Cristo e serás salvo”, e “porque com o coração
se crê para a justiça”. A epístola de Tiago não deve ser interpretada de maneira a
produzir uma contradição com a pregação apostólica em Actos. A crença que faz com
que os demônios estremeçam é uma crença de que Deus é um. Nada mais é dito.
Certamente, não é uma crença de que Cristo morreu por eles. Mostrar, como Tiago
mostra, que algumas crenças intelectuais são inadequadas, que algumas são infrutíferas,
ou mesmo que algumas são condenatórias, não é mostrar que a verdadeira fé não é
intelectual. O verso em Tiago não destrói o argumento deste capítulo no sentido de que

95
a fé requer um credo e deve ter conteúdo intelectual. Assim também os pontos do credo
até agora enumerados de Hebreus não são considerados suficientes para a salvação.
Afirma-se que são indispensáveis. Ninguém pode chegar a Deus sem esse credo. Por
toda a sua insuficiência, sua necessidade deve ser enfatizada por causa da depreciação
contemporânea de credos e intelecto pelos fundamentalistas e modernistas também.

Pelas mesmas razões, fé em Cristo, não menos que fé em Deus, requer assentimento
intelectual em proposições teológicas. A separação entre fé em uma pessoa e crença em
um credo é uma ilusão. Nenhum de nós prossegue em tais princípios em nossos
assuntos humanos. Confiar em uma pessoa é um conhecimento de uma pessoa; é uma
questão de concordar com certas proposições. Suponha que eu peça a você para que me
empreste uma quantia em dinheiro e confie em mim para pagá-lo. Na hipótese agradável
de que você tem o dinheiro e não precisa imediatamente (isso também é uma crença
intelectual), você fará o empréstimo sem acreditar em certas proposições sobre mim?
Suponha que você tenha ouvido que eu sou desonesto? Suponha que você acredite que
vou pular em você? Você poderia, com essas crenças, dizer que o assentimento
intelectual é trivial e que você confiará em mim mesmo assim? Muitas pessoas não são
tão estúpidas nos negócios. Essa estupidez é reservada a religião emocional, não-
intelectual. É na religião que o “coração” é considerado importante, mas não a cabeça.
Mas se isso fosse verdade, poderíamos confiar em Cristo para a salvação sem crer que
ele é confiável, sem crer que ele pode salvar, sem crer que o seu sangue purifica de todo
pecado. Não precisaríamos de nenhum credo, nenhuma afirmação de expiação,
nenhuma informação histórica sobre Jesus; precisaríamos apenas de um sentimento
confortável em torno do “coração” não-Bíblico.

Não obstante ter havido místicos e vários anti-intelectuais em todas as idades, não
obstante a influência de Kant, Schleiermacher e Ritschl ter produzido anti-
intelectualismo popular na forma de modernismo, e não obstante a Neo-ortodoxia e o
movimento ecuménico não terem retornado aos credos históricos (ou a quaisquer
credos), a corrente principal do Cristianismo sempre foi intelectualista. Houve variação
de ênfase, é claro; mas credos ou declarações de crença não foram abandonados.
Sempre houve algum reconhecimento da primazia do intelecto. Até mesmo a primazia
da vontade, que quando no Agostinianismo medieval foi oposta a primazia Tomista do
intelecto, não desvalorizou a aceitação intelectual tal como o irracionalismo
contemporâneo desvaloriza. E se, como sugerido acima, o intelecto e a vontade não

96
podem realmente estar separados, a controvérsia medieval milita ainda menos contra o
intelecto.

Este longo argumento teve que tratar de muitos detalhes, nem todos tirados da mesma
fonte. Para reunir as complexidades, deixe que seja lembrado: que a Bíblia ensina a
unidade da pessoa; que essa psicologia da faculdade é anti-Bíblica; que o termo coração
do Antigo Testamento é muito mais intelectual do que seu uso na pregação actual; que a
fé é um acto interior ou mental, não propriamente comparado com sentar em uma
cadeira; que Hebreus mostra a necessidade de credos; e que a crença em um credo é
tanto intelectual e voluntário. Tecidos juntos como um tartan26, alguns dos aspectos
menos importantes do argumento podem ser difíceis de manter em mente; mas o padrão
geral deve ser bastante óbvio. Entretanto, antes que uma conclusão final seja traçada,
uma expressão definida e positiva à posição Bíblica sobre fé e razão deve ser dada. Isto
é ainda mais necessário porque, além das muitas complexidades precedentes, há ainda
outro factor mais importante, até agora pouco mencionado.

A Fé Reformada

As expressões mais claras da teologia da Reforma e dos dados mais fiéis das Escrituras
podem ser encontradas na tradição Reformada. Três escritores Reformados, portanto,
serão primeiro citados.

Calvino (Institutas I, xv, 6-8), depois que resume algumas análises filosóficas das
faculdades da alma e indica que elas são plausíveis, mas longe de serem infalíveis -
particularmente porque os filósofos ignoram a depravação da natureza humana devido
ao pecado - propõe uma divisão dupla e não tripla da alma: compreensão e vontade. Não
há poder na alma que não seja estes dois. Compreensão, diz ele, distingue objectos, um
do outro, e a vontade escolhe o que a compreensão declara bom. A compreensão é o
guia e governador da alma; a vontade sempre respeitará sua autoridade e esperará seu
julgamento. Charles Hodge também, falando do homem antes da queda, diz: “Sua razão
estava sujeita a Deus; sua vontade estava sujeita a sua razão.”27 E finalmente, J.

26
[Nota do tradutor] Tecido quadriculado, parecido com xadrez, com padrões de linhas de cores
diferentes.
27
Charles Hodge, Systematic Theology, II, 99.

97
Gresham Machen afirma, “será um propósito principal do pequeno livro presente
defender a primazia do intelecto”.28

É significativo que esses escritores falem tão pouco sobre as emoções. A ênfase está no
intelecto. Machen em seu “pequeno livro” fala do aspecto emocional da fé,
aparentemente, mas uma vez (135); embora a palavra pareça tudo isso, pois o contexto
não tem nada a ver com as emoções.

As citações feitas apenas dos três autores podem ser levadas a apontar que eles
favorecem a primazia Tomista do intelecto, em vez da primazia Agostiniano da vontade.
Eles parecem dizer que o intelecto invariavel e automaticamente domina a vontade.
Calvino realmente disse que é o ofício da vontade escolher o que a compreensão terá
pronunciado ser bom e que a vontade sempre respeita sua autoridade (Institutas, I, xv,
7). Agora, houve argumentos Aristotélicos plausíveis no sentido de que a vontade
escolhe automaticamente o que parece ser bom para o intelecto. A liberdade da vontade
do intelecto é assim repudiada. E possivelmente Calvino tinha essa teoria em mente
quando escreveu esta seção. Mas se enfatizamos a unidade da pessoa mais do que
Calvino e insistirmos que assentimento intelectual é um acto da vontade assim como
Agostinho tão amplamente sugeriu, a distinção radical entre vontade e intelecto,
necessária se for para o comando e outra para obedecer, cai fora. Isto também se aplica
a simplicidade da natureza divina e será referido novamente no último capítulo.

A primazia do intelecto, então, não pode ser um poder automaticamente exercido sobre
a vontade considerada como uma faculdade separada. Isso seria violar a unidade da
pessoa. Em vez da frase a primazia do intelecto, a idéia essencial pode ser melhor
expressa como a primazia da verdade. E a primazia é da autoridade e não do poder
psicológico. As formas mais antigas da expressão geram uma antiga perplexidade dos
diálogos Platônicos. Na suposição de que o intelecto domina a vontade, segue-se que
ninguém faz o mal intencionalmente. Todo o mal é devido a ignorância e a educação
garante a conduta correcta. As ambiguidades escondidas nesta linguagem aparentemente
simples são enormes. Mas se falarmos da primazia da verdade, podemos evitá-las,
mesmo que não resolvamos essas perplexidades. A primazia da verdade significará que
nossas acções voluntárias devem estar de acordo com a verdade. Obviamente, às vezes
elas não estão. Se for verdade que adorar a Deus é bom, devemos adorá-lo. Talvez

28
J. Gresham Machen, What Is Faith? 26. Veja também 49, 51.

98
escolhemos não adorar a Deus, mas a verdade é por direito superior à nossa vontade.
Essa maneira de colocar o assunto se estende também à escolha voluntária de crença.
Podemos escolher crer numa verdade, ou podemos escolher crer numa mentira. Ambos
os tipos de escolha realmente ocorrem. Mas a primazia da verdade significa que
devemos crer na verdade e não na mentira.

Sem dúvida, foi a condição psicológica complicada de escolher fazer o errado que levou
Hodge a restringir sua primazia do intelecto ao estado original de justiça do homem
antes da queda. As condições psicológicas de escolher o mal, como até os filósofos
seculares descobriram, são extremamente complexas. Como diz a Escritura, enganoso é
o coração, mais do que todas as coisas, e perverso; quem o conhecerá? Isto levanta um
ponto mais importante, o facto do pecado, que até agora não tem sido trazido ao
argumento.

Qualquer discussão sobre a mente e os poderes do homem, para que seja Bíblica, deve
levar em conta os efeitos do pecado. Calvino, Hodge e Machen estavam intensamente
cientes disso. Todos sabiam que a entrada do pecado na vida do homem alterou sua
disposição conforme imediatamente criada. Ao falar da abordagem intelectual no
Cristianismo, diz Machen, “não há nada errado com o método em si… mas o problema
está na aplicação do método…. Se vocês levarem em conta todos os factos, você serão
convencidos da verdade do Cristanismo; mas você não pode levar em conta todos os
factos se ignorar o facto do pecado.”29

Em outro lugar, ele explica seu significado um pouco mais claramente:

Isso não significa que nós, criaturas finitas, podemos descobrir a Deus por nossa própria
busca; mas significa que Deus nos fez capazes de receber a informação que ele escolhe
dar… Então, nossa razão é certamente insuficiente para nos falar sobre Deus, a menos
que ele se revele; mas é capaz (ou seria capaz se não fosse obscurecida pelo pecado) de
receber a revelação quando uma vez é dada.30

O efeito do pecado, embora dificilmente mencionado antes dos dois últimos parágrafos,
não pode ser excluído como um factor nesta discussão. Há sim algumas evidências de
que aqueles que menosprezam o intelecto o fazem por causa de uma visão superficial do
pecado. O homem como uma personalidade unitária, o homem como um todo, é

29
J. Gresham Machen, What Is Faith? 130.
30
J. Gresham Machen, What Is Faith? 130.

99
depravado. Se alguma doutrina é claramente ensinada nas Escrituras, é a doutrina
Calvinista da depravação total. O pecado afecta o homem em toda parte. Mas aqueles
que fazem da religião uma emoção e descontam o intelecto, negam ou pelo menos
diluem as terríveis palavras Bíblicas de condenação. Eles desejam reservar uma parte da
natureza do homem pura e imaculada. Portanto, eles fazem da religião uma questão de
emoção porque as emoções são supostamente sem pecado, já que o intelecto é corrupto.
Assim, o anti-intelectualismo é combinado com uma negação da unidade da pessoa.

Isso não quer dizer que todos os fundamentalistas negam o efeito do pecado sob as
emoções. E mesmo quando essas visões são consideradas, elas geralmente não são
expressas em linguagem tão objectiva. O resumo do último parágrafo pode ser chamado
de exagero. Deve ser também admitido que frequentemente essas implicações não são
mais do que semi-conscientes. Isso explicaria por que, às vezes, uma declaração
explícita deles traz uma negação acalorada. No entanto, há casos em que as emoções
recebem uma posição privilegiada. De que outra forma o material a seguir deve ser
entendido?

O Rev. John R. W. Stott, de Londres, publicou um livreto intitulado Fundamentalismo e


Evangelismo. Num parágrafo defendendo as emoções, ele de forma clara iguala o
coração com as emoções, ao dizer: “Jesus nos disse para amar o Senhor nosso Deus
com todo o nosso coração, bem como com a nossa mente” (28); e na frase seguinte ele
distingue a mente, o coração e a vontade. Da página 20 à página 28 ele diz
repetidamente que a mente é finita, caída, endurecida, cega e obscurecida. Agora isso é
perfeitamente verdade, e há outras verdades que o Sr. Stott afirma. Mas é mais
significativo depois de todas as condenações do intelecto, descobrir que ele não diz uma
palavra contra as emoções. Até onde ele se expressa, temos a liberdade de concluir que
todas as emoções são puras e santas. Isto parece, portanto, que o anti-intelectualismo,
pelo menos como expresso por alguns fundamentalistas, tem uma tendência de dividir a
personalidade e minimizar a gravidade do pecado.

Mas isso não é Cristianismo. O Cristianismo inclui a primazia do intelecto e as


reivindicações soberanas da verdade. Não há antítese entre a cabeça e o coração, sem
depreciação da crença intelectual. O Cristianismo não pode existir sem a verdade de
certas proposições históricas definidas. Negar a verdade de tais proposições ou chamá-
las de símbolos de alguma a experiência mística não é Cristianismo. Pelo contrário, pela

100
fé nós entendemos que Deus criou o universo; pela fé nós concordamos com a
proposição de que Deus é um recompensador daqueles que o buscam diligentemente;
pela fé sabemos que Jesus ressuscitou dos mortos.

A sentença da Enciclopédia Católica como citado perto do começo desta seção é


ambígua. Se contudo isso significa dizer que alguns escritores “não-católicos
repudiaram toda ideia de fé como assentimento intelectual” é um erro. Pois a teologia
Reformada dirá sempre que, se a proposição do credo é falsa, e se a verdade não tem
direito ao nosso consentimento, então o Cristianismo não valeria a sua propagação
hipotética.

Definição de Razão

Agora já foram dados argumentos Bíblicos suficientes para justificar o carácter da fé.
Deste lado da questão, portanto, o antagonismo com a razão não é mais esperado. O que
resta agora é uma definição da razão que irá remover o antagonismo do outro lado da
antítese. O esclarecimento da natureza da fé foi empreendido em referência às
distorções do fundamentalismo; o esclarecimento da razão prevê as acusações seculares
de que o Cristianismo é sem razão ou irracional.

Como exemplo, a filosofia religiosa do falecido Edgar Sheffield Brightman servirá.


Razão, para Brightman,

é o corpo da maioria dos princípios gerais usados pela mente na organização da


experiência…. A revelação não é o corpo da maioria dos princípios gerais usados pela
mente. A revelação deve ser testada pela razoabilidade, não a razoabilidade pela
revelação... não é um critério de verdade, mas pressupõe um critério pelo qual ela é
julgada.31

Razão - concreta e inclusivamente empírica, não meramente abstracta e formal - é a


fonte suprema do discernimento religioso.32

Em oposição a isso, o Cristianismo deve recusar em definir a razão como um corpo de


princípios gerais obtido empiricamente. A fé de Brightman num corpo empírico
concreto de princípios gerais é uma fé mal colocada. A história do Racionalismo e seu
resultado no Irracionalismo mostram que nenhum desses corpos de princípios pode ser

31
Religious Values, 21-22.
32
A Philosophy of Religion, 192.

101
obtido. De facto, é mesmo significativo que Brightman tenha sido incapaz de declarar
esses princípios. Em um lugar,33 ele parece tentar oferecer uma definição de razão em
nove normas; mas as normas que ele especifica, em vez de serem empíricas,
assemelham-se claramente à chamada lógica formal que ele em outro lugar deixou de
lado.34 Brightman foi, portanto, incapaz de aplicar sua teoria.

Visto que todas as tentativas de obter conhecimento para além da revelação falharam, o
Cristão, em seguida, só precisa contradizer a alegação sem o apoio de Brightman de que
a experiência não pode ser julgada por princípios derivados da revelação. Os psicólogos
de hoje enfatizam a culpa e medo; os existencialistas confrontam o homem com a
morte. Estas experiências não podem ser entendidas à luz da informação que Deus
revelou? Essa revelação não precisa ser testada - na verdade, não pode ser testada - pela
razoabilidade no sentido da palavra de Brightman, porque a razoabilidade de Brightman
não existi.

Finalmente, visto que a acusação de irracionalidade falha porque as filosofias que fazem
isso colapsam no cepticismo, o Cristão agora precisa apenas identificar a razão com
aquela que Brightman chamou de abstracta e formal. Os termos de Brightman nesta
conexão são um pouco infelizes, e os próximos capítulos mostrarão que a teoria
moderna do formalismo lógico não deve ser adoptada. Contudo, a razão pode bem ser
definida como lógica. Não deve ser identificada com experiência. Quando um teólogo
Cristão está deduzindo conclusões das premissas Bíblicas, ele está raciocinando - ele
está usando a razão. Exigir que ele teste a Escritura pela sensação, a fim de evitar a
acusação de irracionalidade é, em si mesmo, um preconceito irracional.

Com esta concepção da razão, não há mais conflitos entre razão e fé. A futilidade do
Racionalismo e a insanidade do Irracionalismo são igualmente evitadas. A verdade se
torna alcançável. E isso, nós cremos, deve constituir uma forte recomendação para a
revelação Cristã.

33
Nature and Values, 106.
34
Para uma discussão mais completa, veja minha A Christian View of Men and Things, The Works of
Gordon Haddon Clark, 153-190, 207, 213.

102
INSPIRAÇÃO E LINGUAGEM

A conclusão do capítulo anterior foi a tese de que a revelação é necessária como base de
uma visão de mundo racional. No estudo da religião, e geralmente na filosofia moderna,
tentativas de estabelecer a verdade sem a palavra de Deus resultaram num
irracionalismo frustrado.35 Portanto, o pensamento construtivo deve pressupor
informações que foram divinamente dadas. Isso é supor que a Bíblia é a Palavra de
Deus; e como Deus não pode mentir, sua Palavra deve ser a verdade. Obviamente, isso
levanta o problema da inspiração verbal. A primeira parte deste capítulo dará alguns dos
antecedentes mais antigos deste assunto. Mais recentemente, inspiração e revelação
foram discutidas do ponto de vista das possibilidades de linguagem. A linguagem é um
instrumento adequado para a revelação? Tal pergunta requer uma discussão dupla.
Primeiro, existe o estudo da linguagem, sua natureza, sua origem, suas possibilidades e
sua relação com a inspiração. Este é um tópico de importância por si só. Segundo, existe
a questão do método. Pode se manter com sucesso que a revelação divina como
pressuposição de todo o conhecimento, oferece uma solução para os problemas da
linguagem?

As Reivindicações Bíblicas

A inspiração das Escrituras, tendo como base a verdade e autoridade da Palavra de Deus
é de importância tão óbvia para o Cristianismo, que nenhuma justificativa elaborada é
necessária para discutir o assunto. De facto, é até perdoável começar com algum
material muito elementar (não apenas perdoável, mas de facto indispensável). Nenhuma
discussão de inspiração pode contribuir com muito valor sem levar em conta os dados
Bíblicos elementares. Esses dados devem ser mantidos em mente. Ainda assim,
infelizmente, muitos desses detalhes desapareceram de nossas memórias antigas. Mais
infelizmente, a geração mais jovem em geral nunca aprendeu os dados Bíblicos. Nos
últimos dois ou três séculos o Cristianismo sofreu um declínio lento mas constante, e
actualmente, os padrões teológicos da maioria dos seminários são tão baixos que os
ricos detalhes do Presbiterianismo e do Puritanismo nunca são apresentados aos
estudantes. Portanto, em primeiro lugar, algumas declarações simples sobre a doutrina
da inspiração devem ser feitas, uma vez que foi comummente explicada há cem anos
atrás.

35
Veja o autor de Thales do Dewey, capítulo 11.

103
Foi em 1840 que Louis Gaussen publicou seu famoso livrinho Theopneustia. Gaussen
era um teólogo Suíço que, como J. Gresham Machen neste século, foi deposto do
ministério e expulso da igreja, não por causa da incredulidade, mas por causa de sua
adesão à verdade das Escrituras. E seu livro Theopneustia é uma defesa da inspiração.
Nele, Gaussen acumula a quantidade impressionante de material que as Escrituras têm a
dizer sobre si mesmas. E embora isso tenha sido há mais do que um século ninguém há
que poderia abordar a questão da inspiração sem um bom conhecimento do trabalho de
Gaussen, ou pelo menos sem um bom conhecimento do que a Bíblia tem a dizer sobre si
mesma.

Gaussen abre sua pesquisa sobre os dados das Escrituras citando o conhecido versículo:
“Toda a Escritura é inspirada por Deus.” Aqui, sua observação pertinente é: “Esta
afirmação não admite exceção;… toda a Escritura; significando assim os pensamentos
depois de terem recebido o selo de linguagem.” Então ele prossegue apoiando esta
afirmação com um tremendo número de referências.

Por exemplo, Gaussen lista dez exemplos de frases como “A boca do Senhor falou”, e
“o Senhor falou”. Apenas um pouco diferente são outras referências que dizem: “Eu vou
abrir sua boca para falar no seu meio”, e “o Espírito do Senhor falou por mim, e sua
palavra estava na minha língua”. Ou, novamente, “a Palavra de Deus veio a Semaías”,
“a Palavra de Deus veio a Natã ”, “a Palavra de Deus veio a João”, “a Palavra do Senhor
que veio a Jeremias.” Além destas, há casos em que é dito: “o Senhor colocou uma
palavra na boca de Balaão;” “Eu estarei com a sua boca”; “Senhor, que pela boca do teu
servo Davi disse; e “esta escritura tinha que ser cumprida, a qual o Espírito Santo falou
antes pela boca de Davi a respeito de Judas”.

Deve-se notar bem que a mensagem dada pelo Espírito não é meramente a ideia geral da
passagem, mas sim as próprias palavras.

Deuteronómio 18:18-19 Levantarei…um profeta…porei minhas palavras na sua


boca…se alguém não ouvir as minhas palavras, que o profeta falará em meu nome, eu
mesmo lhe pedirei contas.

Jeremias 1:9 O Senhor estendeu a mão, tocou a minha boca e disse-me: “Agora ponho
em sua boca as minhas palavras.”

104
O facto de que as próprias palavras são inspiradas pode ser visto também pelo modo
como Jesus Cristo usou a Bíblia. Considere, por exemplo, a resposta do Senhor aos
Saduceus que negaram a ressurreição do corpo. Como ele os refuta? Por uma única
palavra de uma passagem histórica; por um único verbo no tempo presente, em vez do
mesmo verbo no passado. “Errais”, disse ele, “não conhecendo as Escrituras… não
tendes lido o que Deus vos declarou, dizendo: Eu sou o Deus de Abraão”. Deus no
Monte Sinai, quatrocentos anos após a morte de Abraão, disse a Moisés, não “eu fui”,
mas “eu sou o Deus de Abraão”. Há uma ressurreição, pois Deus não é o Deus de
alguns punhados de pó, o Deus dos mortos: Ele é o Deus dos vivos. Aqueles homens,
portanto, ainda estão vivos, e Cristo baseou o argumento numa única palavra. Alguns
versos depois, o Senhor perguntou aos Fariseus sobre a natureza divina do Messias
esperado. Aqui também, para provar seu ponto, ele insiste no uso de uma única palavra
no Salmo 110. Se o Messias fosse o filho de Davi, disse Cristo, “então, como é que
Davi, falando pelo Espírito, o chama de 'Senhor'?" Aqui Cristo enfatiza o facto de que
Davi usou esta palavra através da orientação do Espírito Santo.

Há espaço para apenas mais uma referência a fim de mostrar que Cristo afirmou a
autoridade divina das palavras dos profetas e suas próprias palavras também. É a
declaração do nosso próprio Senhor: “Se vocês cressem em Moisés, creriam em mim,
pois ele escreveu a meu respeito. Visto, porem, que não crêem no que ele escreveu,
como crerão no que eu digo?” (João 5: 46-47).

O efeito das citações e argumentos de Gaussen é acumulativo. Página por página.


Mesmo para quem acha que conhece a Bíblia razoavelmente bem, é uma surpresa ver
com que frequência e quão enfaticamente a Bíblia fala de si. Deve-se ler todas as
referências de Gaussen e anotar cuidadosamente o significado de cada uma. Só assim
pode-se ver quão difundida é a doutrina da inspiração.

A última referência também nos leva a um passo adiante neste material elementar.
Alguém na ignorância pode objectar que, embora Deus tenha dado aos profetas suas
palavras e os fez falar, a fala cessou nestes milhares de anos, e temos apenas relatos dos
discursos. A alegação é assim feita, de que a Bíblia não é uma revelação, tanto quanto é
o registo de uma revelação. Esta questão, relativa à relação da palavra falada com a
palavra escrita, foi respondida por Cristo implicitamente nas referências, mas
explicitamente nesta última. Note cuidadosamente, nosso Senhor diz que Moisés

105
“escreveu a meu respeito [e] visto, porem, que não crêem no que ele escreveu, como
crerão no que eu digo?”

Quando as palavras que Deus deu a seus profetas são escritas, elas se tornam os
Escritos, ou seja, as Escrituras. São as Escrituras, os Escritos, através dos quais Jesus
nos diz para procurarmos a vida eterna. Em sua tentação, Jesus repele Satanás dizendo
“Está escrito”. Também em João 6:45, 8:17, 12:14, 15:25, a frase “Está escrito” resolve
os pontos em questão.

Permitam uma referência final a mais uma passagem excepcionalmente importante. Em


João 10:34-35 Jesus está defendendo sua reivindicação à Deidade. Ele cita o Salmo 82.
Ele cita este Salmo porque o Salmo 82 é mais inspirado e mais autoritário do que
qualquer outra passagem no Antigo Testamento? De modo nenhum. Ele diz: “Não está
escrito na lei de vocês…e a Escritura não pode ser anulada”. Cristo aqui apelou para o
Salmo 82 porque é uma parte da Escritura; e visto que toda a Escritura é dada pela
inspiração de Deus, esta passagem é também inspirada, pois a Escritura não pode ser
anulada.

Repetimos que o efeito dessa evidência é acumulativo. Alguém deve ter em mente as
centenas de instâncias em que a Bíblia alega inspiração plenária e verbal. Esta doutrina
da inspiração não é algo devidamente deduzida de dois ou três versos isolados. Pelo
contrário, é uma declaração da Bíblia explícita, repetida, constante e enfática em todas
as suas partes.

Agora, para concluir este levantamento de detalhes elementares, uma questão deve ser
colocada. Se os profetas que falaram, se os autores que escreveram e se o nosso próprio
Senhor está enganado sobre a inspiração verbal - se eles estão errados nessas centenas
de vezes - que garantia alguém pode ter com respeito às outras coisas que eles disseram
e escreveram? Existe alguma razão para supor que os homens que foram tão
uniformemente enganados quanto à origem de suas mensagens, poderiam ter tido uma
visão superior e conhecimento preciso da relação do homem com Deus? Ainda mais
incisivamente: alguém pode professar um apego a Jesus Cristo e contradizer
consistentemente sua afirmação de que as Escrituras não podem ser anuladas?

106
A Objecção do Ditado

Uma vez que este relato elementar e abreviado da inspiração verbal foi baseado em um
volume de um século atrás, o próximo passo, antes de trazer assuntos completamente
actualizados, será o exame da objecção centenária.

A idéia de que Deus deu suas palavras aos profetas parece a muitos liberais uma teoria
mecânica e artificial de revelação. Deus, nos dizem eles, não pode ser retratado como
um chefe ditando palavras para seu estenógrafo. E mais, os escritos dos profetas
mostram claramente a liberdade e espontaneidade de individualidade pessoal. O estilo
de Jeremias não é o de Isaías, João não escreve como Paulo. As palavras são
obviamente as palavras de João e Jeremias, não de um chefe ditando a vários
estenógrafos. Os estenógrafos de um chefe revelarão letras do mesmo estilo literário;
eles não corrigem seu Inglês. Agora, portanto, se Deus ditasse as palavras da Bíblia, as
diferenças pessoais não poderiam ser explicadas; por meio disso segue-se que a doutrina
da inspiração verbal é falsa.

Em resposta a essa objecção, é útil notar que os liberais preferem uniformemente


deturpar as doutrinas que eles atacam. Isso é verdade, não apenas em relação a doutrina
da inspiração verbal e plenária da Bíblia, mas também em relação a muitas outras
doutrinas. Psicologicamente, não é de surpreender que algum mal-entendido ocorra. É
difícil afirmar com precisão uma posição da qual se discorda fortemente. No entanto,
quando o mal-entendido for publicamente apontado e ainda assim, nenhuma correcção
for feita, começa a parecer que esse mal-entendido se transformou numa deturpação.
Por conseguinte, o primeiro e indispensável passo em elaborar uma resposta, é mostrar
claramente o que pertence e o que não pertence à doutrina da inspiração verbal. Isso foi
anteriormente feito com bastante frequência, mas para deixar os adversários com menos
pretextos, será repetido novamente aqui.

Agora vamos manter certos factos claramente em mente. Em primeiro lugar, as


diferenças de estilo - e elas são tão óbvias, que até mesmo uma tradução não pode
obscurecê-las - mostram decisivamente que a Bíblia não foi ditada como um chefe dita
seu estenógrafo. Houve de facto vários teólogos que usaram o termo ditado, e um
número muito pequeno parece ter considerado o processo como semelhante ao
procedimento do escritório moderno. Mas outros não. Calvino, por exemplo, várias
vezes fala de ditado, mas seus comentários mostram que ele estava claramente ciente

107
das diferenças do estilo literário. Obviamente, ele quis dizer ditado no sentido mais
geral de um comando e uma imposição autoritária. O que é principal para este ponto é
que a grande maioria dos teólogos que defendeu e mantive a inspiração verbal nunca
aceitou a teoria do ditado mecânico como descrito pelos modernistas. B. B.Warfield, em
A Inspiração e Autoridade da Bíblia, escreve: “Deveria ser desnecessário protestar
novamente contra o hábito de representar os defensores da inspiração verbal como
ensinando que o modo de inspiração era através do ditado.”36 E mais tarde ele escreveu:

Não se deve de modo algum imaginar, que se pretende proclamar uma teoria mecânica
da inspiração. As Igrejas Reformadas nunca mantiveram tal teoria; embora
controvérsias desonestas, descuidadas, ignorantes ou impacientes sobre sua doutrina
muitas vezes trouxeram a acusação. Mesmo aqueles teólogos especiais em cuja boca tal
acusação foi mais frequentemente lançada (por exemplo, Gaussen) são explícitos no
ensino de que o elemento humano nunca está ausente.37

Em várias ocasiões e em vários tópicos, tem sido minha experiência o facto de que os
teólogos liberais entendem mal, deturpam e até mesmo citam autores ortodoxos. Agora,
um erro ocasional deve ser negligenciado; mesmo um número de erros não relacionados
não pode ser também julgado asperamente; mas quando a doutrina da inspiração verbal
é tão constantemente deturpada, a pessoa é tentada a supor que os incrédulos acharam
mais fácil ridicularizar o ditado do que entender e discutir a inspiração verbal como é
realmente ensinado pelos Teólogos reformados.

Como então as diferenças de estilo devem ser consideradas e o que inspiração verbal
significa? A resposta a estas perguntas, envolvendo a relação entre Deus e os profetas,
nos leva rapidamente para longe do retrato de um chefe e um estenógrafo.

Quando Deus quis fazer uma revelação, na época do êxodo ou do cativeiro, não olhou
de repente como se estivesse despreparado e se perguntando sobre que homem ele
poderia usar para o propósito. Nós não podemos supor que ele anunciou por uma ajuda,
e quando Moisés e Jeremias se candidataram, Deus os constrangeu a falarem suas
palavras. E ainda, esta visão depreciativa subjaz a objecção à inspiração verbal. A
relação entre Deus e os profetas é totalmente diferente daquela entre um chefe e um
estenógrafo.

36
B. B. Warfield, The Inspiration and Authority of the Bible, 173n9.
37
B. B. Warfield, The Inspiration and Authority of the Bible, 421.

108
Se considerarmos a onipotência e sabedoria de Deus, uma representação bem diferente
emerge. O chefe deve aproveitar o que puder; ele depende do colégio ou da faculdade
de negócios para ensinar o estenógrafo taquigrafia e digitação. Mas Deus não depende
de qualquer agência externa. Deus é o criador. Ele criou Moisés. E quando Deus quis
que Moisés falasse por ele, disse: “Quem fez a boca do homem?... Não sou eu, o
SENHOR?” Portanto, a inspiração verbal, como qualquer outra doutrina particular, deve
ser entendida em conexão com o sistema completo da doutrina Cristã. Não se deve
separar dele, e ainda mais, não se deve enquadrar numa visão alienada de Deus. Em
particular, a inspiração verbal pode ser mais claramente entendida - e só pode ser
correctamente entendida - em sua relação com a doutrina Calvinista Presbiteriana,
Reformada, do decreto divino, providência e predestinação. Quando os liberais negam
sub-repticiamente a predestinação retratando Deus como ditador de estenógrafos, eles
então, deturpam a inspiração verbal, e assim, suas objecções não se aplicam ao ponto de
vista Calvinista. O problema não é, como pensam os liberais, que o chefe controla o
estenógrafo completamente; pelo contrário, a analogia erra o alvo porque o chefe
dificilmente controla o estenógrafo.

Coloque desta forma: Deus, desde toda a eternidade decretou conduzir os Judeus para
fora da escravidão pela mão de Moisés. Para este fim, ele controlou tanto a história de
tal modo que Moisés foi nascido numa determinada data, colocado na água para salvá-lo
de uma morte precoce, achado e adoptado pela filha de Faraó, recebeu a melhor
educação possível, foi levado ao deserto para aprender a paciência, e em todos os
eventos e circunstâncias tão preparado que, quando chegou a hora, a mentalidade e o
estilo literário de Moisés eram os instrumentos precisamente ajustados para falar as
Palavras de Deus.

Isso é completamente diferente do ditado. Um chefe tem pouco controle sobre uma
estenógrafa, excepto em relação às palavras que ela digita para ele. Ele não controlou
sua educação. Ele não pode confiar em seu estilo literário. Ela pode ser totalmente
desinteressada em relação aos seus negócios. Eles podem ter muito pouco em comum.
Mas entre Moisés e Deus havia uma união interna, uma semelhança de propósito, uma
cooperação de vontade tal que as palavras que Moisés escreveu eram as próprias
palavras de Deus e as próprias palavras de Moisés ao mesmo tempo.

109
Assim, quando reconhecemos que Deus realiza a sua vontade no exército do Céu e entre
os habitantes da Terra, quando entendemos que Deus opera todas as coisas conforme o
conselho de sua própria vontade, quando vemos a presença e providência de Deus
impregnada na história e na vida de seus servos, então podemos perceber que o ditado
do escritório de negócios não faz justiça às Escrituras. O Espírito Santo habitou nestes
homens e ensinou-lhes o que escrever. Deus determinou qual seria a personalidade e o
estilo de cada autor, e ele determinou isso com a finalidade de expressar sua mensagem,
suas palavras. As palavras da Escritura, portanto, são as próprias palavras de Deus.

TEORIAS CONTEMPORÂNEAS

Esta breve e curta pesquisa de discussões anteriores pretende ser um pano de fundo
histórico para uma análise da condição contemporânea do assunto. As coisas mudaram e
mudaram consideravelmente. Com o declínio do Liberalismo Ritschliano e a ascensão
do Existencialismo, Neo-ortodoxia e Positivismo Lógico, os oponentes da inspiração
verbal mudaram de ataque. Não é mais se as palavras da Bíblia são as palavras de Deus
ou meramente palavras de homens falíveis. Hoje uma objecção mais abrangente é feita
com base numa teoria geral da linguagem. Os filósofos têm-se interessado em
semântica; e algumas de suas opiniões mudariam o significado das palavras que, com
toda a inspiração verbal que se possa imaginar, a Bíblia seria esvaziada de seu
significado Cristão. A filosofia da linguagem como desenvolvida por estudiosos que não
estão particularmente interessados em qualquer religião, não é especificamente dirigida
contra a inspiração da Bíblia; mas, visto que uma teoria geral da linguagem inclui
linguagem religiosa e afecta toda a filosofia da religião, ela varre a inspiração junto com
todo o resto. O resultado mais proeminente, embora não o mais profundo dessa
influência, é a ideia de que toda linguagem religiosa é metafórica ou simbólica.
Declarações não religiosas devem sempre ser entendidas literalmente. Nas páginas
seguintes, alguns exemplos deste tema serão dados, acompanhados de uma mistura de
crítica; e então a discussão se voltará para a mais profunda implicação da teoria geral da
linguagem.

Linguagem Religiosa

Como primeiro exemplo, e particularmente para mostrar a actual popularidade dessas


idéias, dois artigos podem ser seleccionados a partir da mesma Escola Cristã,
publicados pela Comissão da Educação Cristã Superior do Conselho Nacional de

110
Igrejas. Na edição de Setembro em 1955, Geddes MacGregor tem um artigo intitulado
“A Natureza da Expressão Religiosa”, e John A. Hutchinson escreve sobre “O Uso
Religioso da Linguagem.” Seus pontos de vista comum, em vez de quaisquer pequenas
diferenças, podem se manifestar, é o que diz respeito ao presente argumento.

MacGregor inicia com a afirmação de Benedetto Croce de que “toda a linguagem é


metafórica, ou nenhuma é ”; e logo segue com a rejeição de Wilbur Marshall Urban do
literalismo e sua conclusão quanto ao “carácter simbólico e inevitavelmente metafórico
de toda a linguagem.” MacGregor não deseja manter a posição de Croce e Urban
completamente, mas ele parece aceitar a tese de que toda linguagem religiosa é
metafórica ou simbólica. Se assim for, então, declarações religiosas devem ser avaliadas
de uma maneira muito diferente da análise usual de proposições lógicas.

Em apoio a sua posição, MacGregor dá alguns exemplos, e será nosso dever de


determinar se esses casos admitidos exigem ou não conclusões. Em primeiro lugar, ele
se refere a um coro de faculdade no qual Judeus, Unitaristas e Membros quacres,
formados em ciências políticas ou antropologia, estavam cantando um hino medieval.
Poucos se de facto alguns deles entenderam os conceitos do hino, e, no entanto, suas
palavras comunicaram os conceitos para aquelas pessoas na audiência que tiveram o
devido entendimento. Da mesma forma, uma criança não entende o casamento quando
ela lê a última frase de um conto de fadas.

Esses exemplos, especialmente o segundo, devem se opor a uma compreensão literal da


linguagem, porque nem todos os adultos têm a mesma compreensão do casamento. Esta
palavra tem “níveis” de significado; algumas palavras têm muitos níveis, outras menos.
Mas se todas as palavras tiverem vários níveis, não pode haver significado literal.

No entanto, não parece que os exemplos de MacGregor provam o que ele pretendia.
Obviamente, uma criança sabe pouco sobre casamento e nenhum adulto sabe tudo.
Também é verdade que muitos adultos conhecem apenas alguns dos teoremas que
podem ser verdadeiramente afirmados de um triângulo. Mas a ignorância desses
teoremas não implica uma ignorância da definição de triângulo nem de alguns dos
teoremas mais simples. O mesmo acontece com o casamento. Tal exemplo portanto, não
prova que não há significado literal para estas palavras.

111
Outra ilustração que MacGregor dá é de um Pregador muito comum pregando um
sermão muito comum. No entanto, este sermão sem graça ou uma sentença dele torna-se
uma mensagem vital para alguém na congregação, e sua vida muda. Mais uma vez as
palavras transmitiram mais significado do que o orador pretendeu, e, portanto,
argumenta MacGregor, o significado não poderia ser literal. Mas porque não? O
significado literal de uma frase ou duas não poderia relembrar temas que ficaram
dormentes na mente do ouvinte? Não poderia, mesmo o significado literal, indicar um
novo modo de vida? Como pode tal exemplo ser feito para mostrar que toda linguagem
religiosa é metafórica ou simbólica?

Finalmente, o autor afirma que a proposição teológica “Deus é onisciente” nunca é tão
satisfatória quanto a declaração litúrgica, “Ó meu Deus, tu sabes todas as coisas.” Para
MacGregor, o enunciado religioso “é sempre na segunda pessoa do singular.”

Agora, parece-me, que esta última noção é obviamente falsa. Existem bibliotecas cheias
de livros religiosos escritos na terceira pessoa. Teologias Sistemáticas, histórias da
igreja, livros sobre métodos pastorais são todos escritos na terceira pessoa, e eles são
livros religiosos. Aliás, a Bíblia é em grande parte na terceira pessoa: “Levando ele
mesmo em seu corpo os nossos pecados sobre o madeiro.” É claro que a sentença da
terceira pessoa e a sentença da segunda pessoa que MacGregor escolheu não é
exactamente equivalente. Mas a diferença não se origina da pessoa do verbo. Se o autor
tivesse escrito a primeira frase como “Meu Deus é onisciente”, ele teria uma sentença
da terceira pessoa que é o equivalente exacto da frase da segunda pessoa. Isso pode não
ser um modo de discurso “satisfatório”, pois não é um modo de discurso; mas isso não
quer dizer que não é satisfatório para uma declaração credal. Qualquer que seja a
diferença entre os verbos da terceira e segunda pessoa, não é de todo claro por que os
verbos de segunda pessoa devem ser metafóricos e não literais. Se, portanto, se deseja
manter que toda linguagem religiosa é metafórica, seria melhor recorrer a uma teoria
geral da linguagem do que exemplos como esses.

O artigo de Hutchinson no mesmo jornal desenvolve a teoria um pouco mais clara e


profundamente. A tese é que “a religião em toda a sua gama e variedade consiste em
símbolos.” Isso significaria que a morte de Cristo na cruz, a actividade de Paulo ao
escrever a epístola aos Romanos e minhas leituras de Romanos não são nada além de
símbolos. Onde MacGregor tinha hesitado, Hutchinson diz expressamente que “toda a

112
linguagem é metafórica… . Todo substantivo comum é um tipo de metáfora morta. Mas
termos religiosos ou palavras são metafóricos num sentido mais distinto.” Para apoiar
sua visão, Hutchinson esboça uma epistemologia religiosa que é baseada em imagens -
uma espécie de idolatria mental - e que é assimilada a arte e mitologia. Deus sempre
(observe o sempre) fala ao homem através de imagens, e “a experiência religiosa é um
processo de ser atingido por essas imagens.”

Esse tipo de epistemologia será aludido mais tarde; mas aqui eu só desejo dizer que,
enquanto Hutchinson pode estar descrevendo sua própria experiência religiosa, ele não
está descrevendo a minha. Sua ampla generalização é simplesmente não verdadeira para
o facto.38

Uma objecção, no entanto, Hutchinson se sente obrigado a responder. Se o mito é


inevitável na religião, é necessária alguma explicação quanto à escolha dos mitos. Uma
pessoa escolhe a mitologia Grega; outra mitologia Cristã. Sem dúvida, tais escolhas são
frequentemente feitas de maneira irreflectida, mas Hutchinson pensa que é possível
fazer uma escolha racional de mitos. A base de tal escolha é a adequação do mito para
explicar os factos da existência a medida que confrontámos eles na vida quotidiana e na
acção.

Parece, no entanto, que nem esta nem qualquer outra tentativa de justificar a escolha
entre os mitos pode ser bem sucedida. Se os mitos eram verdades literais, um pode ser
mais adequado que o outro. O mito Grego do método de Zeus de produzir chuva pode
ser considerado mais adequado ou menos adequado do que o mito sobre as janelas do
céu, atribuído aos Hebreus. Mas se essas histórias são mitológicas e simbólicas,
simplesmente simbólicas do facto literal de que chove, é difícil julgar que adequação
exige-se. Uma declaração literal das nuvens de Aristófanes poderia esclarecer, mas um
mito esclarece nada.

Além disso, se toda a linguagem é simbólica, o mito não poderia ser um símbolo de
qualquer verdade literal; teria que ser um mito sobre um mito. Por exemplo, no que a
cruz poderia ser um símbolo? A cruz, como aparece nas tintas impressas ou esculturas, é
sem dúvida o símbolo da crucificação de Cristo; mas pode a crucificação em si ser um
símbolo ou metáfora de qualquer coisa? O significado prima facie das declarações sobre

38
Uma outra discussão de imagens será encontrada no meu Thales to Dewey, The Works of Gordon
Haddon Clark, 299-301.

113
a crucificação é literal. E se alguém disser que a linguagem religiosa não pode ser
literal, parece não haver método racional de determinar no que a crucificação simbólica
aponta. É isso um símbolo pessimista de um universo inerentemente injusto, ou é
símbolo do amor de Deus? Com que base se poderia decidir se nada no relato pode ser
tomado literalmente?

Mas suponha que agora alguém decida sem fundamentos racionais, supor que a
crucificação, embora nunca tenha ocorrido literalmente, é símbolo do amor de Deus.
Então devemos perguntar, é uma verdade literal que Deus ama os homens, ou isso é
também simbólico? Obviamente, se toda a linguagem é simbólica, isso deve ser
simbólico também. E em relação a o quê o amor de Deus é simbólico? Sem dúvida é
simbólico em relação a outro símbolo, que é em si símbolo de outro. Como pôde tal
regressão ter algum valor a menos que, e quanto mais cedo melhor, nos deparemos com
um símbolo que simboliza um significado não simbólico?

Enquanto a discussão se referir à chuva e às janelas do céu, pode parecer que nada
importante está envolvido. Mas quando a crucificação é varrida - e quando termos como
resgate, justificação, propiciação, expiação e reconciliação são tratados como metáforas
e figuras de linguagem39 - a ilusão da superficialidade é dissolvida. Pois, desse tipo de
visão, pode ser, e foi concluído que a revelação divina não pode ser uma comunicação
da verdade.

Sem dúvida, o leitor Cristão está interessado principalmente numa revelação verdadeira
e no significado literal das declarações Bíblicas. No entanto, seria um erro supor que os
Cristãos instruídos não devem se preocupar com as várias teorias seculares das quais
derivam as implicações religiosas. A seção anterior sobre simbolismo foi dada em
conexão com artigos um tanto superficiais em um jornal. Esses relatos populares são o
modo em que teorias mais técnicas escorrem para a população geral. Portanto, um
exame mais completo da semântica ou linguística deve ser realizado. Isso é mais
apropriado porque a maioria dos escritores religiosos que fazem muito do mito e
simbolismo são conscientes de sua dependência das teorias mais gerais da linguagem.
Eles podem não estar conscientes de uma ainda mais geral, uma ainda mais profunda, e
muito mais radical teoria da linguagem. Esta nova lógica tal como aparece no

39
John Mackintosh Shaw, Christian Doctrine, 207.

114
Positivismo Lógico e na filosofia da Análise, será levada em conta no final deste
capítulo. No entanto, primeiro, a discussão continuará com a linguagem.

Linguística

Para começar, pode ser bom indicar a grosso modo a natureza do assunto, fazendo
algumas perguntas que precisam ser respondidas: o que é uma palavra? Como o som
pode parecer significativo? O pensamento existe antes e separado da linguagem? Como
a linguagem se originou? A linguagem é adequada para um conhecimento da realidade,
ou é de natureza tal que distorce automaticamente o universo? Toda a linguagem é
simbólica e metafórica, ou são algumas frases estritamente literais? Estas e outras
questões semelhantes dão uma ideia preliminar do problema.

Vamos escolher como ponto de partida uma fase da origem da linguagem. A Bíblia faz
uma breve menção da diversificação de línguas, mas a origem da única língua
precedente é passada por alto, em silêncio. Similarmente, fora da Bíblia, nenhuma
informação histórica está disponível da primeira ocorrência da fala. Por esta razão, as
teorias da origem da linguagem são conclusões especulativas baseadas em princípios
filosóficos mais gerais.

Naturalismo e Behaviorismo

Uma teoria comum hoje afirma que as palavras se originam na experiência sensorial.
Todas as palavras devem ter originalmente uma referência física. Palavras que denotam
relações são consideradas essencialmente espaciais. Se uma palavra é considerada como
representante de um objecto, a relação “representar” é derivada de posições no espaço;
Da mesma forma, um pensamento está em minha mente assim como uma cadeira está
em uma sala; e o que é pior, por lógica, a inclusão de uma classe em outra, por exemplo,
todos os mamíferos são vertebrados, é também uma relação espacial.

Se todas as palavras são primariamente físicas ou sensíveis, e se as relações são


basicamente espaciais, qualquer uma das linguagens não pode aplicar-se adequadamente
às questões espirituais e assuntos não-espaciais, ou deve-se explicar como o significado
físico pode ser transformado em um significado espiritual. Como a experiência sensorial
pode dar origem a palavras como alma e Deus? Tentativas foram realmente feitas para
explicar essa extensão da linguagem, e essas tentativas não devem ser discriminadas
sem uma examinação. Ao mesmo tempo, a origem física da linguagem é hoje

115
frequentemente colocada numa forma que torna esta extensão extremamente difícil e na
verdade impossível.

A teoria evolucionista está empenhada em traçar a linguagem humana de volta aos


gritos e grunhidos de animais. Então, por mudanças lentas, graduais e não especificadas,
estes sons de animais, eventualmente, depois de muitos séculos, tornam-se palavras da
linguagem humana. Visto que as etapas individuais neste processo nunca foram
enumeradas, é difícil testar a teoria. É inteiramente difícil uma vez que em primeiro
lugar o status exacto de sons de animais não é muito claro. As aves dão gritos de alerta
aos seus filhotes, e isso pode ser interpretado como um exemplo da função indicativa da
linguagem. Mas o choro provavelmente não indica se o perigo é um falcão ou um ser
humano. Talvez seja dito que o choro significa Perigo! Ou olhe para fora!, e assim
alguma plausibilidade pode ser obtida para a teoria, pela assimilação do choro à uma
sentença de palavra. Mas qualquer que seja a função indicativa de tal grito, deve ser
aquela que é extremamente vaga. Nada descritivo do objecto é dito. Note também o
facto importante de que os sons dos animais são instintivos; eles permanecem os
mesmos em todos os países onde a espécie é encontrada; eles também permanecem
inalterados de geração em geração; considerando que as palavras da linguagem não
permanecem.

Se, no entanto, for possível encontrar alguma conexão entre sons de animais e fala
humana, a teoria em consideração assumiu uma forma na qual, em vez dos sons de
animais tornarem-se em discurso significativo, a fala é reduzida ao nível dos animais.
Ou, pode até ser dito que, a linguagem humana é reduzida abaixo do nível de gritos e
grunhidos, se é suposto que isso tenha algum significado consciente. Isto é para dizer
que, o Behaviorismo evolucionário não só torna a linguagem física e sensorial em sua
origem, mas a mantém no mesmo nível.

Leonard Bloomfield (Enciclopédia Internacional de Ciência Unificada, I, 1, 227) fala


sobre responder à sons “numa espécie de efeito desencadeado”. Quatro páginas mais
tarde, ele diz: “A descrição científica do universo... requer nenhum dos termos
mentalistas porque as lacunas que estes termos são destinados a colmatar, existem
somente enquanto a língua é deixada fora da conta.” Então oferece a escolha do
Behaviorismo, Mecanismo, Operacionalismo ou Fisicalismo. Na continuação, ele

116
afirma ainda: “A linguagem preenche a lacuna entre os sistemas nervosos individuais”
(233); e “O pensamento é fala interior” (235). Aqui, é claro, “interior” é espacial.

Para evitar todos os termos mentalistas, o naturalismo iguala o significado de uma


palavra com a resposta do organismo; e a resposta é uma reacção físico-química
causada completamente pelo meio ambiente. Não só a palavra mas também o
significado é um efeito físico e, por sua vez, uma causa física. A palavra não é um signo
de um conceito, nem o significado é uma imagem mental que se assemelha ao objecto.
Nem a palavra nem o significado representam qualquer coisa. Toda a colocação está
esgotada numa cadeia de causas físico-químicas e efeitos no qual o sistema nervoso é
um elo. No comportamento animal, quando um robin vê um verme, o “sensor” do
verme é uma modificação física do robin produzida por raios de luz reflectidos pelo
verme.

Aqui pode-se perguntar se o robin tem um sensor mais do que o sensor eléctrico que o
supermercado tem quando nos aproximamos dele. E se este é o caso, não poderia ser
encontrado uma forma antiga de linguagem no sensor eléctrico - particularmente se a
porta chiasse um pouco? O behaviorista, sem dúvida, concorda, mas outros têm uma
sensação desconfortável em relação a diferença existente entre a causação física e a
interpretação dos signos. É uma diferença que não pode ser expressa nas categorias
físicas do espaço e movimento. Uma mente é necessária. Além de qualquer movimento,
deve haver intelecção. Em linguagem as palavras ou sinais podem ocorrer, talvez não
aparte de toda causalidade, mas elas operam em provocação às regularidades da
causalidade. Qual é a causa que nos faz usar a palavra verme? Nós podemos dizer
verme no momento em que vemos um, e neste caso pode ser alegado que os raios de luz
reflectidos do verme produzem o som, assim como eles produzem o chilro do robin.
Mas não são os raios de luz que produzem o mesmo som quando escolhemos a palavra
verme para fins de discussão linguística. Nós chamamos verme um substantivo, e
observe que ele pode ser o sujeito de um verbo. São estas observações nada, além de
movimentos físicos? É o som do verme um efeito químico igual a de raios de luz e de
uma discussão linguística? É o som do substantivo nada além de um efeito físico da
física anterior? Aqui a explicação behaviorista só pode ser aceita com uma fé cega. Não,
nem mesmo com uma fé cega, porque a fé é um termo mentalista. Deve ser aceita por
cegos físicos. Acontece, no entanto, que a minha física faz com que eu produza outros
sons, tais como os sons da mente e do intelecto. Em particular a química do meu corpo

117
produz os sons. A química e a física da minha laringe são tão boas quanto a química e a
física de vocês.

Não é o propósito presente, no entanto, continuar com uma refutação do Behaviorismo


ou mesmo relacionar todas as objecções à sua teoria da linguagem. No momento, o
ponto importante é que essa teoria da linguagem não é alcançada por um estudo
empírico da linguagem. Ninguém já viu “linguagem colmatar a abertura entre dois
sistemas nervosos”. Ninguém já isolou as causas que produzem a palavra verme em vez
da palavra substantivo. A este respeito, o Behaviorismo não satisfaz o seu critério de
verificabilidade empírica. Em vez de se basear em um estudo de palavras, a teoria
behaviorista da linguagem é uma implicação da posição geral do naturalismo. Embora o
naturalismo seja digno de discussão, o presente capítulo continuará a ser restringido,
tanto quanto possível, à questões de língua.

Eventualmente, é claro, qualquer teoria da linguagem será baseada em uma visão de


mundo mais geral. Referências e confirmação parcial por fenômenos linguísticos devem
ser apeladas, mas parece improvável - na verdade eu desejo insistir que é impossível -
para um argumento puramente fenomenológico estabelecer uma teoria da linguagem
fora de alcance de qualquer dúvida. No entanto, alguns escritores sobre linguagem e
muitos dos teólogos que discutem mito e símbolos têm pouco a dizer sobre os
problemas mais fundamentais. O que dizem frequentemente, indica claramente que eles
rejeitam o Behaviorismo. Às vezes eles sugerem uma filosofia alternativa. Portanto, o
próximo passo no argumento deve ser alguns parágrafos sobre a teoria simbólica da
linguagem como separada de quaisquer pressuposições comportamentais.

A Teoria Simbólica

Um dos melhores e certamente um dos relatos mais completos da filosofia da linguagem


é Linguagem e Realidade de Wilbur Marshall Urban. A grande extensão de seu volume
e as modificações posteriores do panorama dadas sumariamente nas páginas anteriores,
tornam impossível fazer plena justiça a posição precisa do autor. As citações devem ser
tomadas como são, à parte do contexto completo, simplesmente como expressões
razoavelmente fiéis de uma teoria amplamente aceita.

118
Não há sentenças estritamente literais.40

Agora estritamente falando, não existe tal coisa como verdade literal em qualquer
sentido absoluto, pois não existe correspondência absoluta entre expressão e aquilo que
é expresso... e qualquer expressão em linguagem contêm algum elemento simbólico.41

Agora, em primeiro lugar, pode-se notar, que, se não houver frases literais em tudo, o
significado das declarações na Bíblia não é mais viciado do que o significado das
declarações em Guerras Gálicas de César. “Davi era rei de Israel ” e “Todos os Gauleses
estão divididos em três partes” estão no mesmo nível. Ambas podem ser chamadas
figurativas, ou simbólicas, ou metafóricas; mas ambas são históricas exactamente no
mesmo sentido. Se toda a linguagem é simbólica, a inspiração verbal das Escrituras não
é mais perigosa do que a interpretação correta de qualquer outro texto.

Porém, considerar toda a linguagem simbólica, parece esvaziar de todo o significado a


distinção comummente reconhecida entre literal e figurativo. Alguém pode aprovar uma
teoria da linguagem que nega essa distinção? Qual então foi o motivo para violar o uso
comum?

Urban disse: “não existe uma correspondência absoluta entre expressão e aquilo que é
expresso.” Assim, em segundo lugar, deve-se perguntar se há correspondência absoluta,
e se isso é necessário para o significado literal. A noção de correspondência é vaga. Em
um sentido do termo, uma foto corresponde ou se parece com seu objecto, mas ninguém
supõe que uma palavra corresponda à uma coisa dessa maneira. Linguagem não é uma
imagem da realidade. As letras g-a-t-o não se parecem com o ronronar42 animal. É ainda
mais verdade que palavras não podem parecer realidades espirituais, se tais existem,
pois estas não são entidades visíveis. Mas em um sentido não fotográfico, uma fórmula
matemática, pode-se dizer que corresponde ao movimento de um corpo que caiu
livremente. Não seria isso uma correspondência absoluta? Ou, se o termo absoluto
causar hesitação, não poderia tal fórmula ser entendida como uma afirmação literal?
Além disso, se o som do gato é essencialmente um sinal arbitrário do animal, que outra
correspondência poderia ser desejada?

40
Wilbur Marshall Urban, Language and Reality, 433.
41
Wilbur Marshall Urban, Language and Reality, 382-3831
42
[Nota do tradutor] Rumor contínuo provocado pela traqueia do gato, em geral quando descansa.

119
Ao criticar a visão de que as palavras são sinais arbitrários ou convencionais de ideias e
coisas, Urban várias vezes apela a um conteúdo intuitivo em palavras. Palavras
primitivas supostamente imitam, de uma forma ou de outra, a coisas à que se referem. A
palavra dor, derivada do som haai, é suposto soar como uma sensação de dor. Enquanto
que algumas pessoas com imaginações animadas pensam que isso é plausível, exemplos
tomados, não de uma língua materna, mas de línguas desconhecidas, removerão a
plausibilidade. Um dos exemplos de Urban é ouatou e ouatou-ou-ou. Ele primeiro dá o
significado em inglês e, em seguida, pergunta se a palavra não soa como a coisa. Se
assim fosse, se houvesse um significado intuitivo no som, deveria ser bastante fácil
adivinhar o significado da palavra antes da tradução em inglês ser dada. Agora, entre
um milhão de pessoas, alguém pode dar um palpite de sorte; mas os outros quase
certamente fracassariam. Você reconhece tudo em paralelo ao significado das duas
palavras fluxo e oceano?

Por outro lado, se as palavras são sinais convencionais, pode haver correspondência
absoluta - se alguém quiser considerá-las assim - por convenção. Isto é visto mais
claramente nos termos que os cientistas deliberadamente cunham. Volt e ohm
“correspondem” completamente aos seus referentes. De qualquer forma, quando se diz
que o circuito eléctrico da casa é um dos 110 volts, a linguagem é totalmente literal.
Além dos termos técnicos da ciência, isso também é verdade em relação a muitas frases
comuns. As palavras cão, chien e Hund não têm conteúdo intuitivo. Elas são meros
sinais. Portanto, quando se diz “o cão é preto ”, normalmente se espera que seja tomada
literalmente. Em tais sentenças não há elemento simbólico. E isso é também verdade em
relação a “Davi escreveu os Salmos.”

Deve-se admitir que Urban coloca o dedo em uma séria de dificuldades na visão de que
palavras são sinais convencionais. É que uma primeira convenção seria ininteligível. A
comunicação seria impossível. O Adão e Eva Bíblico ou os dois primeiros selvagens
evolucionários não poderiam ter falado um para o outro. Adão teria escolhido um som
para árvore, sol ou ar, e Eva não teria ideia do que se refere.

A dificuldade de explicar a comunicação é reconhecida há muito tempo. O famoso


tratado de Agostinho foi precedido pela aguçada percepção de Górgias. Mas a
implausibilidade do conteúdo intuitivo em palavras, a plausibilidade de que eles são
meros sinais, adicionando o facto de que, mesmo se algumas palavras tivessem um

120
conteúdo, não seria de muita ajuda para resolver o enigma da comunicação, são razões
persuasivas para não seguir Urban.

Há também outro fenômeno, que, embora não forneça explicação da comunicação,


responde efectivamente a objecção à ele. Mesmo se algumas palavras primitivas
tivessem um conteúdo intuitivo, as línguas de hoje tem praticamente nenhum. Urban
não deve admitir que noventa e cinco por cento de todas as palavras são agora sinais
convencionais? Lembre-se do cão, chien e Hund. Mas os bebês aprendem a falar e os
pais se comunicam com eles. Não somente isso, mas os adultos também aprenderam as
línguas pouco conhecidas de tribos remotas vivendo com elas. Esses dois milagres, o
bebê e o missionário, são melhor compreendidos do ponto de vista de Agostinho do que
em uma base naturalista. Mas, em qualquer caso, a “correspondência absoluta” de sinais
arbitrários para os referentes permanentes e sentenças literais ocorrem.

O ataque à possibilidade de sentenças literais continua agora por meio da alegada


descoberta de uma ambiguidade no termo literal.

O termo literal é ambíguo… Isso pode significar apenas o oposto de figurativo, e a


interpretação de sentenças simbólicas em sentenças literais é equivalente à expressão
figurativa em estilo não figurativo. Mas literal também tem outro significado, a saber,
significado primitivo. Interpretar uma sentença simbólica literalmente, seria então,
interpretá-la de acordo com o significado primário ou original das palavras. Se literal
for tomado nesse segundo sentido, então dizer que a expansão de uma sentença
simbólica é a substituição de uma sentença literal é totalmente falso. Pois o significado
simbólico não é precisamente o significado literal. Então interpretar as sentenças
simbólicas, Napoleão é um lobo… é falso.43

Esta citação revela uma grande confusão, embora a última metade seja perfeitamente
verdade. A fonte e explicação da confusão podem se tornar aparente um pouco mais
tarde, visto que seu argumento para a necessidade do simbolismo é mais desenvolvido;
mas o ponto da confusão é óbvio aqui. A citação não dá de facto dois significados do
termo literal. Literal no sentido de oposto ao figurativo não difere do literal no sentido
de significado primitivo. Urban tomou por ambíguo no termo literal dois procedimentos
diferentes de interpretação de frases figurativas. O exemplo foi, “Napoleão era um
lobo”. O significado literal, não figurativo e primitivo da palavra lobo é, naturalmente,
um certo tipo de animal selvagem. Dizer que Napoleão tinha quatro pernas e um casaco
felpudo é com certeza falso. Mas embora o predicado da frase figurativa não se

43
Wilbur Marshall Urban, Language and Reality, 433.

121
destinava a ser tomado literalmente, o significado pretendido pode ser expresso em
linguagem literal: Napoleão era um assassino devasso. E ele era um assassino arbitrário
no sentido primitivo e não-figurativo das palavras. Admitindo que a interpretação de
uma frase figurativa de acordo com os significados primários e originais das palavras
resulta numa falsa ou absurda incompreensão do significado pretendido; mesmo assim,
isso não significa que a expansão de uma sentença simbólica pela substituição de uma
sentença literal é necessariamente falsa, muito menos impossível. É uma questão de
quais palavras literais são escolhidas. Não é uma questão de ambiguidade no termo
literal. A fonte e a motivação dessa confusão está na visão de que

O símbolo expressa adequadamente para o nosso tipo de consciência aquilo que não
poderia ser totalmente expresso em frases “literais”.44

Não é verdade que tudo o que é expresso em termos simbólicos pode ser melhor
expresso literalmente. Pois não há expressão literal, mas apenas outro tipo de símbolo.45

A consciência simbólica, como vimos, é uma forma única da consciência cognitiva.46

Assim, expandir o símbolo tende a derrotar seu fim como um símbolo.47

Outro factor que contribui para a confusão acima é a opinião de que quando o termo
literal é definido como significado primário, “uma sentença literal é uma que se refere a
uma entidade sensivelmente observável... Aplicando essa noção de literal... para a
linguagem da moral e da religião... toda essa linguagem é pronunciada sem sentido.”48
A fim de preservar algum significado em linguagem religiosa contra os ataques dos
Positivistas Lógicos, Urban acredita que ele é forçado na sua visão do simbolismo.

É admitido alegremente que Urban deseja se opor àqueles que negam todo significado
das expressões religiosas. Há também um grupo que por conveniência podemos chamar
de grupo Anglicano, embora nem todos sejam Anglicanos. Antony Flew afirma que ele
não é Cristão de forma alguma. Mas a maioria deles parecem ser Anglicanos: E.L.
Mascall, Basil Mitchell, Austin Farrer, I.M. Crombie, Ian T. Ramsey e outros. Estes
homens colaboraram na publicação de uma série de livros que defendem a linguagem

44
Wilbur Marshall Urban, Language and Reality, 444.
45
Wilbur Marshall Urban, Language and Reality, 500.
46
Wilbur Marshall Urban, Language and Reality, 435.
47
Wilbur Marshall Urban, Language and Reality, 434.
48
Wilbur Marshall Urban, Language and Reality, 436.

122
religiosa da acusação de ser sem sentido, e eles seguem Urban, pelo menos, na
atribuição de uma origem sensorial à linguagem, origem tal que em seguida estabelece o
problema do desenvolvimento da linguagem de seus referentes sensoriais ao seu uso em
assuntos espirituais. Contudo, pode-se perguntar por que a ideia de significado primário
deve ser equiparada a uma referência sensualmente observável. Sobre os princípios de
uma teoria naturalista evolucionária, que nenhum desses homens deveria aceitar, os
movimentos de magia e encantamento podem ter sido os principais significados
sensoriais de termos como espírito e Deus. Mas a menos que esses selvagens tivessem
alguma noção anterior de um ser a ser invocado, a menos que eles tivessem uma idéia
“mentalista” de algo diferente do ritual em si, é difícil entender por que eles teriam
passado pelos movimentos. Ou, inversamente, se eles passaram por certos movimentos
apenas por causa da exuberância física, continua a ser um mistério o modo pelo qual a
idéia de Deus poderia ter-se desenvolvido a partir de tal prática.

Se, ao contrário, a idéia de Deus for uma doação inata do Criador, e se a palavra Deus
for um sinal arbitrário deste referente espiritual, e se por acaso encantamentos mágicos
são formas degeneradas da adoração primitiva pura, então ambos os movimentos e a
linguagem são facilmente explicados. É muito mais fácil ver como em uma religião
degenerada uma palavra de significado espiritual primitivo pode ter sido transferida
para um objecto físico assim como os ídolos substituem Deus, do que é entender como
palavras de referência sensorial somente, podem vir a assumir um significado
puramente espiritual. Essa visão alternativa deve agora ser considerada.

LINGUÍSTICA TEÍSTICA

Uma teoria da linguagem, uma vez que é apenas uma parte da filosofia, deve, como foi
dito acima, depender de uma visão de mundo mais geral. No caso dos behavioristas,
essa filosofia fundamental é aplicada conscientemente. Em outros casos, os princípios
subjacentes podem ser mal apreendidos, e podem aparecer apenas como pressuposições
a serem descobertas entre as linhas. É até possível que alguns escritores com menos
perspicácia neguem explicitamente o que suas teorias assumem implicitamente. De
qualquer forma, toda a teoria da linguagem e qualquer outra teoria especial, depende de
algum conjunto de princípios fundamentais. Deixe-nos, portanto, escolhermos o Teísmo
Cristão como nossa base.

123
Vamos supor que Deus Onipotente criou seres racionais, seres que não são meramente
físicos, mas que são essencialmente espirituais e intelectuais; seres, portanto, que têm a
capacidade inata de pensar e falar. Quais serão então as implicações relativas aos
problemas de linguística que podem ser extraídas desse pressuposto teístico?

Por um lado, esta visão coloca pensamento por trás da linguagem e assim contribui para
a explicação da comunicação. A menção anterior foi de De Magistro de Agostinho.
Cristo é o Logos ou a Razão que dá a toda mente luz intelectual. Teólogos Cristãos, até
os mais pobres, têm geralmente percebido que na esfera moral o homem não nasce
neutro. “Eis que em iniquidade fui formado, e em pecado me concebeu minha mãe.” Os
homens não nascem moralmente bons ou moralmente neutros, mas nascem depravados.
Intelectualmente, também os homens não vêm ao mundo com mentes em branco49. A
depravação hereditária apenas enfatiza a presença de idéias morais inatas. Aqueles
gentios ímpios que não queriam reter Deus nos seus conhecimentos, não conseguiram
no entanto bani-lo, pois eles continuaram a conhecer o julgamento de Deus de que
aqueles que tais coisas praticam são dignos de morte. Além das idéias morais,
Agostinho ensina que a presença de Cristo o Logos dá a todos os homens certas idéias
especulativas ou filosóficas assim como boas. A comunicação, portanto, torna-se
possível porque todos os homens possuem essas mesmas ideias. A situação é um pouco
como a dos criptógrafos50 que podem quebrar qualquer cifra. Os símbolos são, a
princípio, desconhecidos; mas porque as idéias expressas são comuns, a mensagem
pode ser entendida. E se a linguagem não tivesse pensamento por detrás dela, como os
behavioristas afirmam, e se os símbolos fossem apenas um agregado aleatório de
marcas, não haveria nenhuma cifra por quebrar.

Segue-se que não se pode atribuir à língua uma única origem sensorial e uma referência
física primitiva. O teísmo, claro, não precisa negar que os nomes de animais e coisas
referem-se a objectos físicos percebidos espacialmente; não é preciso negar que as
relações espaciais estão bem representadas na linguagem; não precisa negar ou distorcer
qualquer de nossas experiências grosseiras comuns. Mas deve-se afirmar que as
características do homem com racionalidade, suas idéias inatas e as categorias a priori,
sua capacidade de pensar e falar foram dadas a ele por Deus para o propósito essencial

49
[Nota do tradutor] Mente vazia ou tábula rasa de John Locke.
50
[Nota do tradutor] Especialistas na prática de princípios técnicos para a comunicação segura na
presença de terceiros.

124
de receber uma revelação verbal, a fim de aproximar-se de Deus em oração, e conversar
com outros homens sobre Deus e realidades espirituais. Tal como um hino diz: “Tu
fizeste ouvidos, mãos e vozes, para o desígnio do teu louvor.” Por esta razão, uma teoria
teísta da linguagem não trabalha sob o peso de dar uma derivação ou desenvolvimento
precário de significado espiritual a partir da referência física primitiva. O significado
espiritual seria primitivo. Um duvidoso apelo à metáfora, simbolismo ou analogia para
explicar essa transição seria necessário.

Este ponto requer alguma explicação extensa, pois precisa ser mostrado primeiro que
esta teoria teísta da linguagem não evita os problemas negando a utilidade da metáfora e
da analogia; e segundo, que os Anglicanos mencionados anteriormente (com outros que
adoptam a mesma perspectiva), não conseguem atingir o seu fim de manter a
significância da linguagem religiosa; e que, portanto, em terceiro lugar, se suas teorias
devem ser descartadas, a visão dos últimos parágrafos é pelo menos um melhor
expediente.

Em primeiro lugar, admite-se que a linguagem religiosa contém analogias, metáforas e


figuras de linguagem. Cristo disse: “Eu sou a porta”. Há também parábolas que, as
vezes obscuramente, apontam para semelhanças entre experiência sensorial e princípios
religiosos. Os Salmos, a maioria deles são, poéticos e com ilustrações. Assim, a
existência de metáforas e simbolismos não pode ser negada, nem será argumentado que
essa linguagem é a menos inapropriada. No entanto, estes embelezamentos literários
com seu apelo estético e impacto psicológico não devem ser interpretados como
essencialmente diferentes de figuras de linguagem em livros de história ou mesmo
ficção. Fazer isso é criar um pseudo-problema. A linguagem religiosa não é
essencialmente diferente da linguagem em outros assuntos de interesse. A posição aqui
mantida não é que a linguagem religiosa não pode utilizar metáfora, mas que os
significados dessas metáforas, quando se conhece teologia suficiente, podem ser
afirmados de forma menos ambígua em sentenças estritamente literais.

Alguns escritores, como vimos, negam isso. E. L. Mascall, que faz críticas admiráveis
ao Positivismo Lógico, e que pretende defender a significância da linguagem religiosa,
torna impossível a sua tarefa aceitando a admissão de alguns teólogos Cristãos de que
“havia algo muito peculiar sobre afirmações teológicas que as diferenciavam
nitidamente das afirmações de conversa comum… ininteligíveis aos completamente

125
leigos.”51 Ele também cita Farrer com a aprovação de que “não é necessário que
fiquemos atrás delas [imagens] para uma compreensão não metafórica dos factos. As
próprias imagens iluminam-nos.” E, “o metafísico não pode apontar para longe de seu
pensamento analogicamente expresso sobre os mistérios naturais para alguns
pensamentos não-analógicos sobre eles, o que significa tudo o que os pensamentos
analógicos significam. Ele não tem nenhum pensamento não-analógico.”52

Este é o tema que desejo particularmente repudiar. A ideia de uma linguagem teológica
especial e peculiar essencialmente diferente da linguagem usada em outros assuntos, é,
creio eu, completamente insustentável. Claro, a física usa termos técnicos, como protão
e velocidade; e, nesse sentido, podemos falar da linguagem da física, assim como a
linguagem das conversas de beisebol sobre curvas, faltas e árbitros-que-devem-ser-
mortos. Mas essas duas “Línguas” são simplesmente partes de um idioma - o inglês - e
as mesmas regras de significado aplicam-se à física, ao beisebol e à “linguagem
teológica” também.

Teologia versus Linguagem


Às vezes, a alegação de que a linguagem religiosa nunca pode ser literal e deve sempre
ser analógica, é baseada em pontos particulares de doutrina indevidamente entendida.
Por exemplo, IM Crombie53 considera criação análoga ao fabrico, mas apenas análoga,
não idêntica. No caso de factos comuns, como o fabrico de uma cadeira ou mesa,
sabemos o significado quando entendemos uma situação em que os factos não seriam
verdade. Mas o teísta, diz Crombie, afirma que não há situação que fica fora da criação
divina. Portanto, o significado da criação é duvidoso. Nós nunca poderíamos entender o
significado das declarações sobre criação, a menos que as regras da linguagem teológica
difiram essencialmente da linguagem comum.

Aqui pode-se perguntar o que Crombie teria dito se tivesse notado que nenhuma cadeira
ou mesa fica fora da categoria de fabricação. A qualquer custo o teísta pode descrever
uma situação, que claro, ele acredita ser falsa, em que a criação não seria verdadeira. Se

51
E. L. Mascall, Words and Images, viii, 12.
52
Austin Farrer citado por E. L. Mascall, Words and Images, 116-117.
53
A possibilidade de Declarações Teológicas, capítulo dois, em Faith and Logic, editado por Basil
Mitchell, 43, 45.

126
a realidade física existisse eternamente, se a história do mundo não fosse finita no
tempo, então a criação nunca teria ocorrido. Para que uma afirmação seja significativa,
não é necessário que existam situações em que ela é verdadeira e outras situações em
que ela é falsa. Tal critério de significado impediria a afirmação de que a água
entornada no ácido sulfúrico produz um aumento na temperatura. Nem em tal teoria
dois e dois seria sempre igual a quatro. A significação não depende de uma declaração
ser às vezes falsa, nem a falsidade implica que uma declaração não tem sentido. O que é
sem sentido não pode ser nem verdadeiro nem falso.

Não apenas o critério de significado de Crombie é duvidoso, sua noção de criação


também parece ser ambígua. “O teísta”, diz ele, “não alega saber como o mundo
começou; ele só afirma saber que, no entanto, começou, Deus o criou” (45). A
declaração de Crombie aqui não faz justiça ao teísta. Embora o ponto específico a ser
criticado nesta declaração pareça relativamente sem importância - na verdade, alguns
pensarão que a crítica divide os cabelos - no entanto, a afirmação ilustra uma tendência
de confundir uma questão de teologia com uma questão de linguagem. Na linguagem
comum a palavra como sempre se refere a um processo: como alguém dirige um carro?
Como é que alguém esculpe um peru? Como alguém resolve uma equação? As
respostas para essas todas perguntas especificam várias etapas de um processo.
Portanto, é impreciso dizer que “o teísta não alega saber como o mundo começou”.
O teísta alega saber que não havia como. Criação exclui processo. A dificuldade de
Crombie, portanto, não está no uso da linguagem, mas no conteúdo teológico.

Um exemplo ainda menos convincente da dificuldade de linguagem é dado pelo Flew e


MacKinnon.54 Os artigos deles argumentam que o primeiro capítulo de Gênesis não
pode ser literal porque a palavra dia obviamente não significa vinte e quatro horas. Mas
por que alguém deveria supor que o significado literal do dia é vinte e quatro horas? A
palavra dia mais frequentemente se refere a um período de doze horas, mais ou menos,
distinguido da noite. Uma é tão literal quanto a outra. E mesmo que os autores insistam
que dia, no sentido de um período de tempo, por exemplo, no dia do meu avô, é
figurativo, estão longe de provar que tal linguagem não pode ser expressa literalmente.
Esses autores portanto, não são convincentes quando, insistem algumas páginas depois:
“Eu digo imaginativa, deliberadamente; a escrita do Novo Testamento é mais poesia do

54
Criação, Flew and MacKinnon, em New Essays in Philosophical Theology, Flew and MacIntyre, 170ff.

127
que prosa” (175). Agora, talvez a palavra dia seja figurativa em Gênesis, mas alguém
pode ler a epístola de Paulo aos Romanos e negar que é prosa? Tais expedientes
desesperados não recomendam a teoria.

Às vezes, no entanto, a alegação de que o conhecimento religioso nunca pode ser literal,
em vez de basear-se em mal-entendidos bastante evidentes, fundamenta-se em pontos de
doutrina muito difíceis, pontos que constituem enigmas para um teólogo Cristão.

No último livro mencionado, Flew tem um capítulo sobre “Onipotência Divina e


Liberdade Humana.” A princípio, é uma tentativa muito bem escrita de mostrar que a
afirmação do livre arbítrio não pode resolver o problema do mal, e a medida que ele
passa por sua argumentação, de modo suficiente deixa bem patente as dificuldades do
problema. Há, no entanto, pouca conexão com qualquer teoria da linguagem. O todo é
estritamente teológico. E se estudado do ponto de vista do conteúdo teológico, suas
deficiências são vistas rapidamente. Pois, embora este capítulo contenha uma boa
análise do livre arbítrio, no que diz respeito a outros pontos de vista sobre o problema
do mal, ele se resume a uma mera expressão de desgosto. Por exemplo, “Tudo o que
temos a dizer neste artigo é, com certeza, irrelevante para quem adopta qualquer
variante da posição de que o poder criativo infinito é sua própria justificação suficiente”
(156). Tal solução Flew meramente chama de “desconfortável”. Ou, no máximo, ele
diz: “Todas as palavras amargas que já foram escritas contra a maldade de Deus do
predestinacionismo - especialmente quando ele também é pensado como enchendo o
inferno com todos, menos os eleitos - são amplamente justificadas” (163). Isso não é
argumento; isso é apenas abuso; e é indigno para um estudioso que deseja olhar as
coisas logicamente. É certo que a existência do mal representa uma grande dificuldade
para o Cristão. E por esse motivo o último capítulo do livro presente discutirá em
detalhes. Aqui o único ponto a ser notado é que a solução não deve ser buscada nas
regras de linguagem, mas nos conceitos de teologia.

O mesmo acontece com outro assunto. Novamente no mesmo volume de Flew e


Maclntyre, Bernard Williams dá uma defesa interessante do paradoxo famoso de
Tertuliano: É certo porque é impossível. Williams argumenta que a linguagem religiosa
deve incluir pelo menos uma frase sobre Deus e o mundo. Pode ser que Deus castigue
os homens ou que Deus se torne carne; mas dificilmente poderia haver qualquer religião
a menos que Deus esteja relacionado ao mundo pelo menos em um aspecto. Porém,

128
infelizmente, Deus é eterno e o mundo é temporal; “Então, quando chegamos a uma
declaração que é sobre Deus e eventos temporais, deve ser insatisfatório; porque se não
fosse, deveríamos descrever adequadamente a relação dos eventos temporais com Deus
em termos apropriados apenas aos eventos temporais” (203). Então Williams faz um
excelente argumento. Se uma pessoa religiosa responder a este argumento dizendo que
as declarações religiosas devem ser aceitas pela fé e não pela razão, Williams mostra
claramente que a resposta é irrelevante:
Se você não sabe no que é que você está crendo pela fé, como você pode ter certeza que
você está crendo em alguma coisa?... Dizer que isto deve ser crido pela fé e não pela
razão não enfrenta a dificuldade, a questão não era como deveria ser crido, mas o que
deveria ser crido.55

Os autores em discussão não parecem levar este ponto a sério o suficiente. A menos que
a linguagem religiosa seja significativa, literalmente verdadeira e completamente
inteligível, ela é sem sentido e ininteligível, som e fúria significam nada. O ponto de
Williams é a ênfase.

Mas para voltar à relação entre o Deus imutável e os eventos temporais mutáveis, talvez
seja Crombie quem chega ao fundo da matéria.

Devemos reconhecer imediatamente que, no sentido comum, não temos concepção da


natureza divina. Nós não conhecemos a Deus, e seria absurdo afirmar que sabemos que
tipo de ser ele é. Na medida em que nós usamos adjectivos sobre ele (onisciente, eterno,
e assim por diante) eles não nos permitem conceber o que é ser Deus. A onisciência não
é erudição infinita, e o que ela é deve estar além de nossa compreensão.56

Crombie está claramente ciente de que tudo isso é mais do que uma questão de língua.
Obviamente, é necessário, se alguém deseja defender a teologia contra a acusação da
falta de sentido, fornecer uma epistemologia que irá permitir que o homem tenha
conhecimento de Deus. Mas a citação apenas parecia tornar impossível o conhecimento
sobre Deus. Até o conhecimento revelado seria impossível, pois diz-se que não temos
concepção de Deus ou de que tipo de ser ele é. A onisciência é um atributo além da
nossa compreensão, e os adjectivos que usamos não têm um sentido comum. Ainda
assim o autor deseja permitir algum sentido às afirmações teológicas. Para esse fim um
tipo especial de linguagem deve ser usado. A afirmação “Deus nos ama” Crombie
explica como uma parábola: “não há semelhança literal entre a verdade que é expressa e

55
Bernard Williams, em Flew and MacIntyre, New Essays in Philosophical Theology, 209, 211.
56
I. M. Crombie, em Flew and MacIntyre, New Essays in Philosophical Theology, 55.

129
a história que a expressa”; mas deve haver alguma “semelhança ou analogia entre,
afirmar, ser humano e amor divino”.57

Embora acreditemos na analogia, não usamos a analogia para dar um sentido ao “amor”
no contexto teológico. Nós postulamos a analogia porque acreditamos que a imagem é
uma imagem fiel…. Nós não entendemos o relacionamento que Deus tem para com o
mundo, mas também devemos reivindicar o direito de chamá-lo de “criador” ou
“sustentador”. A escolha do nome não é arbitrária; embora, visto que nós não
entendemos a relação nomeada, seu uso é em um sentido equívoco.58

Isto é altamente insatisfatório e cai completamente dentro do escopo da observação de


Williams que “se você não sabe no que é que você está crendo, como você pode ter
certeza de que está crendo em alguma coisa?”

Tentando evitar críticas à sua teoria da parábola ou analogia, Crombie observa que suas
conclusões só podem ser negadas se “(1) Nunca pode haver boas razões para cometer
uma categoria de transgressão, e (2) Não pode haver “significados” que não
correspondam a claras e distintas idéias.”59

Alguém se pergunta como a mera afirmação das duas únicas condições sobre qual teoria
de Cromble pode ser negada, é suficiente para dispor das condições. Parece tão razoável
que se deva evitar “transgressões por categoria” isto é, erros lógicos, que não se pode
ficar satisfeito por simplesmente remover o princípio para fora da vista. E enquanto
pode haver algum significado incorporado na linguagem de um homem cujas idéias não
são claras e distintas, o significado certamente provaria ser uma alucinação se pudesse
ser mostrado que as palavras não poderiam ser feitas para corresponder a algumas idéias
claras ou distintas. Além disso, como podemos construir uma parábola que relacione o
objecto conhecido com algo do qual não temos nenhum conceito? Analogias
significativas e comparações honestas só podem ser feitas se soubermos algo sobre
ambos os termos. A menos que uma melhor defesa da linguagem e pensamento
religioso seja inventado, os Positivistas Lógicos não ficarão muito embaraçados.

57
I. M. Crombie, em Flew and MacIntyre, New Essays in Philosophical Theology,71.
58
I. M. Crombie, em Flew and MacIntyre, New Essays in Philosophical Theology, 72, 81.
59
I. M. Crombie, em Flew and MacIntyre, New Essays in Philosophical Theology, 61.

130
Linguagem Literal
A teoria teísta da linguagem que foi delineada em algumas páginas atrás é aqui
oferecida como uma solução melhor para todo o assunto. O modo como isso se aplicará
ao Positivismo Lógico será visto um pouco mais tarde, mas o modo como se aplica à
teoria de metáforas e parábolas já deveria estar claro. Em primeiro lugar, ela fornece um
conhecimento de Deus sem o qual a fala seria som vazio. O Logos é a luz racional que
ilumina todo homem. Visto que o homem foi criado à imagem de Deus, ele tem uma
ideia inata de Deus. Não é necessário, de facto não é possível, para uma mente vazia,
abstrair um conceito de Deus a partir da experiência sensorial ou elevar a linguagem
sensorial por suas bootstraps60 para um nível espiritual. As teorias do empirismo, de
Aristóteles, de Aquino, de Locke, devem ser rejeitadas.

A colocação das ideias inatas ou equipamentos a priori não implica absurdo de


discursos infantis aprendidos sobre Deus e lógica. Para todo os aspectos suas mentes
estão vazias, mas o vazio é semelhante ao de um papel com uma mensagem escrita em
tinta invisível. Quando o calor da experiência é aplicado, a mensagem fica visível. Seja
o que for que seja adicionado, as palavras importantes referem-se a realidades não-
sensoriais.

A impossibilidade de converter a linguagem sensorial em uso espiritual por meio de


parábola e metáfora surge da necessidade de conhecer ambos os itens de comparação,
antes que uma comparação possa ser feita. A metáfora ou a parábola só tem sentido se
houver alguma semelhança que possa ser declarada de forma não-metafórica, linguagem
literal. Quando Crombie diz, “nós postulamos a analogia porque acreditamos que a
imagem é uma imagem fiel”, ele contradiz sua afirmação anterior: “nós não
conhecemos Deus, e seria absurdo afirmar que sabemos que tipo de ser ele é.” Parece
óbvio que, se não tivéssemos conhecimento de Deus, não haveria base para escolhermos
a parábola “Deus nos ama”, em vez da parábola “Deus nos odeia”.

A teoria da metáfora, parábola ou simbolismo, visto que sustenta que a linguagem literal
é impossível, nega naturalmente que as verdades expressas em metáfora podem ser
expressas literalmente. Às vezes os autores tentam mostrar que poesia e simbolismo
perdem valor quando são feitas tentativas para declarar seu significado em prosa, e essa
falha na tradução é tomada como evidência para a teoria geral do simbolismo.

60
[Nota do tradutor] Tipo de palavras cujo significado determina a realidade.

131
Se, por outro lado, a linguagem religiosa pode ser literal, não só o simbolismo pode ser
traduzido em prosa comum, mas os símbolos devem ser considerados como menos
adequados - embora talvez literariamente mais bonitos - expressões da verdade do que
as declarações literais.

Opondo-se a qualquer sugestão, Urban, cujo grande trabalho foi citado anteriormente,
escreve,

Nas palavras de Whitehead, o símbolo é apenas um substituto para outra coisa, e o que
queremos é essa coisa - não o substituto. Em outras palavras, o ideal seria dispensar o
simbolismo ou ter uma verdade totalmente não-simbólica. Isto parece-me, ser uma
noção fundamentalmente equivocada. Em primeiro lugar, tal ideal é realmente
impossível em vista da própria natureza da linguagem e expressão. Se houvesse uma
verdade totalmente não-simbólica, não poderia ser expressa.61

No entanto, isso que Urban considera “uma noção fundamentalmente equivocada”


parece para outros além de Whitehead estar fundamentalmente correcta. Algumas dicas
já foram dadas, de que tal ideal não é realmente impossível. Mais um exemplo será
dado. Será usado como base para um reductio ad absurdum62 da visão de Urban, e será
escolhido da Bíblia para trazer toda a discussão mais próxima da questão da inspiração
verbal do que pode ter parecido estar nos últimos vários parágrafos. Deixe-nos tomar as
palavras de João o Batista: “Eis o Cordeiro de Deus.” O Cordeiro é um símbolo. Um
símbolo é um sinal, mas nem todos os sinais são símbolos. Os sinais de mais e menos da
aritmética, mesmo que às vezes possam ser chamados de símbolos matemáticos, são
apenas sinais convencionais arbitrários. Símbolos de outras formas poderiam também
servir. Crombie acima, será lembrado, tentou sustentar que suas palavras, nomes e
metáforas não eram arbitrárias; e neste exemplo, obviamente, um elefante como um
símbolo de Cristo não poderia também servir; e mais tarde um peixe foi usado apenas
por causa de um acróstico. A escolha de um Cordeiro por parte de João Batista não era
arbitrária; foi enraizada no ritual Mosaico. Um sinal arbitrário, seja uma palavra ou uma
figura matemática, designa meramente o conceito. Quando estamos estudando
matemática ou lendo um jornal, normalmente não pensamos na forma dos sinais, mas
sim em dar atenção exclusiva à coisa significada. No entanto, no caso do símbolo,

61
Wilbur Marshall Urban, Language and Reality, 445-446.
62
[Nota do tradutor] Tipo de argumento lógico no qual alguém assume uma ou mais hipóteses e, a partir
destas, deriva uma consequência absurda ou ridícula, e então conclui que a suposição original deve estar
errada.

132
algumas das nossas atenções estão fixadas no símbolo. Se Batista tivesse dito, Jesus é o
Senhor, ninguém teria pensado no som como tal; e não há nada na situação, excepto o
som e o significado. Mas quando ele disse: “Eis o Cordeiro”, a situação incluiu não só
Jesus e o som das palavras, mas também os cordeiros que a palavra cordeiro resumiu.
Para entender a mensagem de Batista sobre Cristo, portanto, era necessário pensar em
como cordeiros literais poderiam simbolizar Cristo. Este não é o caso de um sinal de
designação.

João Batista esperava que seus ouvintes se lembrassem dos sacrifícios em que o pecador
adorador colocava as mãos sobre a cabeça do cordeiro, matava o cordeiro, espalhava o
sangue em volta do altar e queimava cordeiro no altar. Por causa dessas reminiscências,
a linguagem de Batista era vívida. Ele ilustrou o ritual das eras. Uma palavra resumiu
todo o sistema religioso.

Mas este símbolo é adequado? Ele expressa o que de outra forma não pode ser
expresso?

Sem dúvida, esse simbolismo era adequado para atrair a atenção dos ouvintes. Ao fazê-
lo, funcionou mais eficazmente do que uma explicação longa e literal. O simbolismo e
as expressões figurativas mais comuns têm seu uso; e a menos que elas estivessem
melhor adaptadas ao seu objectivo do que outra linguagem, deixariam de ser usadas.

No entanto, se o propósito é discernimento e compreensão, a linguagem simbólica deve


ser reconhecida como seriamente inadequada. Se um missionário repetisse as palavras
de João para pessoas que nunca tinham ouvido falar dos Judeus, o significado não seria
transmitido. Mesmo sabendo que os Judeus mataram cordeiros e passaram por certos
movimentos, dificilmente se poderia adivinhar o que João quis dizer. Em primeiro
lugar, a linguagem literal é necessária para explicar o significado dos sacrifícios
Judaicos. A morte do cordeiro representou a penalidade do pecado que anteriormente
estava sujeita ao Judeu agora arrependido. Mas embora o homem estivesse sujeito a
penalidade, a penalidade foi descarregada por um substituto, e Deus ficou satisfeito.
Além disso, o sacrifício visível era em si mesmo símbolo de um sacrifício maior. Houve
algum evento futuro profetizado, no qual alguém cujo rosto era tão desfigurado mais do
que qualquer homem, seria levado como um cordeiro para o abate, por cujas pisaduras

133
somos sarados. Então, séculos depois, João Batista anunciou: “Eis o Cordeiro de Deus,
que tira o pecado do mundo.” O cordeiro é um símbolo da satisfação vicária da justiça.

Sem tal fundo de significado literal, dificilmente se poderia adivinhar o significado do


símbolo. Não se saberia o que o símbolo simbolizava. O símbolo é apenas um substituto
para outra coisa, e o que queremos é a coisa real e não o símbolo. Para ter certeza, o
cordeiro não é simplesmente um sinal arbitrário, tal como a suástica era para os
Nazistas; mas, a menos que alguma informação literal estivesse próxima, a sentença
simbólica de João não poderia ter sido entendida. Com esta informação, ela pode ser. E
estas observações retornam-nos à análise do artigo de John A. Hutchinson sobre “O Uso
Religioso da Linguagem ”, perto do início deste capítulo. O reductio ad absurdum então
está completo.

Em uma cosmovisão teísta, portanto, uma visão que sustenta que Deus criou o homem e
revelou-se a ele em palavras, a linguagem é adequada para a teologia. Linguística, a
menos que seja controlada por pressuposições naturalistas, ateístas, portanto, não pode
oferecer objecção à doutrina da inspiração verbal. As Escrituras contêm metáforas,
figuras de linguagem e simbolismo; pois as Escrituras são dirigidas aos homens em
todas as situações - situações em que sua atenção precisa ser despertada e sua memória
facilitada, bem como em situações em que a informação clara deve ser transmitida. Mas,
visto que a linguagem simbólica e a metáfora dependem do significado literal, as
expressões mais inteligíveis e compreensíveis devem ser encontradas nas declarações
teológicas literais, tais como as de Romanos. E fora da Bíblia as expressões mais
acuradas e satisfatórias do Cristianismo são as declarações credais, cuidadosamente
formuladas da Confissão de Westminster.

POSITIVISMO LÓGICO

A maioria dos autores até agora citados tem tentado defender a linguagem religiosa a
partir da acusação dos Positivistas Lógicos de que religião e metafísica são um
disparate. Esses autores reconhecem que o Positivismo Lógico é um inimigo de toda a
religião; eles desejam escapar de sua influência; e eles às vezes fazem críticas afiadas a
ele. Se a teoria alternativa deles falhou, é só porque eles não têm suficientemente

134
enfatizado os conceitos literais de lógica não arbitrária, sem os quais nenhuma teoria
pode ser mantida e com os quais o Positivismo Lógico é reduzido a ruínas.

Embora o grupo Anglicano não enfatize suficientemente a lógica, existem outros que
enfatizam ainda menos, e que, portanto, mostram uma maior, mesmo se inconsciente,
afiliação com os Positivistas Lógicos. Emil Brunner é um bom exemplo. Um de seus
pontos principais é que Deus “não comunica algo para mim, mas para ele mesmo.” Isso
quer dizer que a revelação não é transmissão da verdade. “Todas as palavras têm apenas
um valor instrumental. Nem as palavras faladas, nem seu conteúdo conceitual são a
Palavra em si.” E, “Deus pode... falar a sua Palavra à um homem mesmo através de
falsas doutrinas.”63 Brunner não só torna a revelação vazia de todo o conteúdo
conceitual, ele também aceita ou rejeita inferências por preferências subjectivas. Jewett
traduz Die christliche Lehre von Gott64:

O elemento puramente racional do pensamento na lógica tem a tendência de proceder de


qualquer ponto em linha recta. A fé, no entanto, constantemente refreia este
desenvolvimento de linha recta… Pensamento teológico é um movimento racional do
pensamento, cujas consequências lógicas estão constantemente, em todos os pontos,
através da fé, voltadas para trás, reduzidas, ou destruídas... Somente pela constante
quebra da unidade sistemática e consistência lógica... surge o pensamento que pode ser
designado como pensamento que cré.65

Assim, como Jewett continua a mostrar, que Brunner aceita implicações válidas quando
convém ao seu propósito de refutar Schleiermacher; mas quando ele se acha incapaz de
refutar o predestinacionismo de Calvino, ele decide que agora terá sua fé freando a
lógica e não prestará atenção a implicações válidas. Mas se a consistência lógica puder
ser usada em um caso e descartada em outro, qual é o problema de impedir que alguém
escolha algumas ideias do Budismo, um ou dois conceitos do Islã, e também um pouco
do absurdo da Ciência Cristã? Afinal, a revelação não é uma comunicação da verdade, e
o conteúdo conceitual das palavras não é a coisa real. Não há, portanto, nenhuma lei em
oposição contradizendo-se a si mesma.

63
Brunner, Divine-Human Encounter, 85, 110, 117. Veja também a monografia definitiva Emil Brunner's
Concept of Revelation, de Paul King Jewett.
64
[Nota do tradutor] Em Português traduz-se: A doutrina Cristã de Deus.
65
Jewett, Emil Brunner‟s Concept of Revelation, 104.

135
Este repúdio da lógica indica que uma conclusão apropriada para este capítulo pode ser
fornecida por meio de uma breve discussão sobre a lei da contradição66. Agora os
oponentes mais vigorosos da lógica imutável são hoje os Positivistas Lógicos, e para
eles, vamos nos voltar agora.

O Positivismo Lógico, ou a filosofia da análise, como às vezes é chamado, não só


repudia a revelação divina, mas também a toda metafísica não-empírica. Em particular,
nega qualquer forma inata ou a priori da mente, tradicionalmente considerada como
necessariamente verdadeira. Lógica e matemática são explicadas como convenções
linguísticas que foram arbitrariamente seleccionadas; ou se não ao todo arbitrariamente,
elas foram seleccionadas como ferramentas úteis para fazer um trabalho. O passado
histórico exemplifica selecções diferentes. A lógica de A.N. Whitehead e Bertrand
Russell é uma, e a lógica de Aristóteles é outra. Para citar A. J. Ayer, “é perfeitamente
concebível que devíamos ter empregado diferentes convenções linguísticas daquelas
que empregamos actualmente.”

John Dewey em sua Objectos de lógica para a declaração de H.W.B. Joseph, que “é
mais em relação aos problemas à serem respondidos, do que do carácter lógico do
raciocínio… dos pontos de vista de Aristóteles que são antiquados.” Dewey sustenta
que as formas lógicas surgem da matéria, e quando a matéria muda bastante, a lógica
também muda. Ele compara lógica com conceitos legais. Os conceitos surgem das
condições sociais e mudam com elas. As leis de uma época não são as de outra. Da
mesma forma, somos levados a acreditar que, as leis da lógica não são fixas, mas
mudam com a mudança das condições.67

Positivista, humanista ou ateística como esta filosofia é, atrai aparentemente tradutores


da Bíblia e até mesmo professores em escolas Bíblicas Americanas. Recentemente, um
instrutor em um dos bem respeitados Colégios Bíblicos, publicou um artigo em que,
juntamente com o que parecia ser uma teoria mecanicista de sensação, ele rejeitou a
lógica aristotélica como uma verbalização injustificada, antinatural e aceitou pelo
menos parte do instrumentalismo de Dewey. Este tipo de coisa é visto também, embora
talvez em uma forma menos consciente e em diferentes graus, na depreciação Pietísta da
chamada lógica humana, como oposta a alguma lógica divina incognoscível.

66
[Nota do tradutor]: Denominada também por – Lei da não contradição.
67
John Dewey, Logic, The Theory of Inquiry, 82, 101, 328.

136
Em defesa da chamada lógica humana, em defesa do sentido literal das palavras e,
portanto, em defesa da inspiração verbal, desejo desafiar o ponto de vista oposto para
enfrentar o argumento e responder de forma inequívoca. Eu desejo desafiá-los a
afirmarem suas próprias teorias sem fazerem uso da lei da contradição.

Se os princípios lógicos são arbitrários, e se é concebível empregar diferentes


convenções linguísticas, esses escritores deveriam ser capazes de inventar e respeitar
alguma convenção diferente. Agora, a lógica aristotélica, e em particular, a lei da
contradição, exige que uma determinada palavra não deve somente significar alguma
coisa, mas também, não deve significar outra coisa. O termo cão deve significar cão,
mas também não deve significar montanha; e a montanha não deve significar metáfora.
Cada termo deve referir-se a algo definido, e ao mesmo tempo, deve haver alguns
objectos aos quais não se refere. O termo metafórico não pode significar literal, nem
pode significar canino ou montanhoso. Suponha que a palavra montanha significasse
metáfora e cão, e Bíblia e os Estados Unidos. Claramente, se uma palavra significasse
tudo, ela não significaria nada. Se, agora, a lei da contradição é uma convenção
arbitrária, e se nossos teóricos linguísticos escolherem alguma outra convenção, eu
desafio-os a escreverem um livro em conformidade com os seus princípios. Por uma
questão de facto, não será difícil para eles fazerem isso. Nada mais é necessário do que
escrever a palavra metáfora sessenta mil vezes: metáfora metáfora metáfora metáfora.

Isso significa que o cão subiu a montanha, pois a palavra metáfora significa cão, subiu
e montanha. Infelizmente, a frase “metáfora metáfora metáfora”também significa, o
próximo Natal é o Dia de Acção de Graças, pois, a palavra metáfora tem esses
significados também.

O ponto deve ficar claro: não se pode escrever um livro ou falar uma frase que significa
alguma coisa sem usar a lei da contradição. A lógica é uma necessidade inata, não uma
convenção arbitrária que pode ser descartada à vontade. Quer seja a filosofia ateísta de
A. J. Ayer ou a depreciação Pietísta da nossa falível “lógica humana”, tais teorias
tornam a inspiração verbal impossível. Mas, felizmente, essas teorias se tornam
impossíveis também. Elas são auto-refutáveis porque não podem ser declaradas excepto
em virtude da lei que elas repudiam.

Concluo, portanto, que a linguagem literal, a lógica inata e a inspiração verbal não têm
nada acadêmico a temer de teorias como essas.

137
REVELAÇÃO E MORALIDADE

Da antiguidade até o presente, questões sobre moralidade, sobre o bem e o mal, sobre o
certo e o errado, sobre valores, sobre o propósito da vida humana, têm sido frequente e
cuidadosamente discutidas. Platão e Aristóteles, Spinoza e Kant, Butler, Bentham e
Sidgwick são alguns dos autores mais conhecidos. E assim como esses filósofos, toda a
pessoa pensante deve reflectir sobre os princípios ou máximas que guiam sua
conduta . Qual das duas linhas de acção incompatíveis é a correta em seguir? Qual dos
dois princípios incompatíveis deve ser reconhecido? Se a acção deve ser baseada num
princípio , como justificar o princípio? Essas questões, que exigiram a atenção de
Platão, não são menos exigentes hoje.

Desacordo Ético

Se o povo dos Estados Unidos fosse convidado a dar exemplos de princípios , a maioria
das respostas incluiria o sexto, o sétimo e o oitavo dos dez mandamentos. Não matarás,
não cometerás adultério, e não furtarás, normalmente têm sido considerados como leis
morais importantes . Um Cristão ortodoxo, ou para assunto, um Judeu ortodoxo, pode
sincera e consistentemente inculcar essas leis porque ele acredita que elas são as leis de
Deus. Elas são certas porque Deus lhes ordenou. E são leis porque Deus impõe
penalidades por sua transgressão. Assim, convicções morais e educação moral, baseadas
na lei e no direito, podem ser fundamentadas consistentemente na revelação Bíblica.

Por outro lado, o humanismo Americano contemporâneo, assim como a antiguidade


pagã, não tem este fundamento para a moralidade, nem reconhece
excepcionalmente essas leis. O Professor Edwin A. Burtt , um humanista, em ambas
edições de seus Tipos de Filosofia Religiosa, relata que os humanistas mais
radicais consideram “o sexo como um prazer essencialmente inofensivo que deveria ser
regulado apenas pelo gosto e preferência pessoal.” Da mesma forma, com referência
aos outros dois mandamentos, o radicalismo político de muitos naturalistas em atacar o
direito de propriedade privada incluiu planos de tributação e outras propostas
econômicas que um conservador chamaria roubo legalizado . Também não é difícil
identificar governos sem Deus, que fazem uso da tortura e assassinato. Assim, pelo
menos alguns humanistas repudiam, não apenas a base dos Dez Mandamentos, mas
também seu conteúdo.

138
Sem dúvida, outros humanistas desaprovam a brutalidade e assassinato inerente
no Marxismo. Alguns podem até ter uma palavra gentil para a propriedade privada. E
alguns, claro, não advogariam o adultério. Mas o problema que o naturalismo deve
enfrentar é esse: Pode uma filosofia empírica, uma filosofia que repudia a revelação,
uma filosofia instrumentalista ou descritiva – pode tal filosofia fornecer uma
justificativa para qualquer um dos Dez Mandamentos? Não são os humanistas que ainda
se opõem ao assassinato e roubo, aqueles que vivem na capital Cristã herdada de seus
ancestrais Puritanos? Ou melhor, a questão mais importante é esta: O humanismo pode,
tendo rejeitado a revelação, fornecer um fundamento lógico para qualquer lei moral? O
naturalismo pode fornecer uma base racional para qualquer uma das decisões da
vida? Ou, são todas as escolhas, tal como a escolha de sexo de Burtt , apenas questões
de gosto pessoal e preferência irracional?

O seguinte argumento em resposta a estas perguntas é designado à conclusão de que


uma vida racional é impossível sem se basear numa revelação divina. O método para
chegar a essa conclusão será analisar as implicações da ética não revelacional. Alguns
argumentos detalhados para esse efeito dei em outro lugar.68 Aqui este material vai
ser resumido de forma breve, e a ele será acrescentado algumas análises adicionais.

UTILITARISMO

De acordo com o princípio da utilidade como popularmente exposto no século XIX, a


escolha entre duas linhas de acção deve depender do cálculo das quantidades, durações
e intensidades de prazeres e dores que cada acção produz. Essa linha de acção cujo total
de prazer é maior, é correcta e deve ser escolhida. No entanto, visto que, a acção de
qualquer pessoa afecta as outras, pelo menos em alguns grau, o cálculo deve incluir os
prazeres e dores de todas as pessoas afectadas; e é esse total que indica o que deve ser
feito.

Esse cálculo também não está restrito a consequências imediatas e óbvias. Por
exemplo, um homem fazendo sua vontade pode legar uma boa soma a uma instituição
de caridade. Mas no tempo que ele morre, novos directores que são ineficientes ou
mesmo corruptos são eleitos. O desperdício de seu legado parece produzir menos prazer
para o público do que alguma outra provisão poderia ter feito. Portanto, somos tentados

68
Veja A Christian View of Men and Things: Em Utilitarianism and Kant, veja capítulo IV; Em
Brightman‟s theory of values, veja o capítulo VI. Veja também William James and John Dewey.

139
a dizer que o legado, nos princípios utilitaristas, é imoral. Isso não precisa ser
assim. Para além dessas consequências, deve-se também calcular o efeito do exemplo
benéfico do doador em estimular a filantropia entre outros homens de riqueza, e
também, de facto, em fortalecer seu próprio carácter para o restante de sua vida. Essas
consequências, além de algumas outras que podem ser imaginadas, poderiam exceder a
um ligeiro grau de corrupção para que a soma total do prazer produzido justificasse o
acto.

Portanto, consequências, pelas quais um acto é determinado como certo ou errado


incluem todas as consequências e todas as pessoas afectadas. As dores devem
ser equilibradas contra os prazeres. Assim, o Utilitarismo pode, em suma, dizer que visa
o maior bem para o maior número, ou seja, o maior total de prazer.

O Maior Bem para o Maior Número

Algumas implicações surpreendentes podem ser extraídas do princípio do maior bem


sobre o maior número. Em 1940 a população da Alemanha era talvez noventa milhões,
dos quais seis milhões eram Judeus. Hitler massacrou cinco milhões deles. Digamos que
isso causou cinco milhões de unidades de dor. Mas como os Alemães eram em grande
parte anti-semitas, o massacre e a apreensão da propriedade Judaica deu a cada Alemão
uma unidade de prazer. Mesmo Supondo que a morte rápida da câmara de gás causou a
cada Judeu duas unidades de dor. Isso resulta ainda em um prazer excedente sobre a
dor. Portanto, não deve o Utilitarismo concluir que o massacre dos Judeus era correcto?
De qualquer forma, esta é aproximadamente a teoria pela qual os Comunistas
têm justificado seus massacres dos Ucranianos, Húngaros, e cerca de dezasseis milhões
de Chineses.69 Quando se pensa em todo o bem que o Comunismo fará por todas as
gerações futuras, alguns milhões de assassinatos são insignificantes.

A imposição deliberada de dor pelo massacre pode ser mais chocante para a consciência
do Ocidente livre do que as menores injustiças; mas massacre ou tributação injusta não
é o princípio pelo qual a maioria governa? Nos Estados Unidos, os ricos são fortemente
tributados. A maioria pobre acredita que podem se dar mais prazer, infligindo dor à
minoria. A defesa oferecida é o maior bem para o maior número. Mas essa defesa não se
aplica ao massacre com a mesma força que aplica - se ao imposto de renda progressivo?

69
A estimativa mais recente sobre o número de chineses mortos pelo governo comunista Chinês é entre
60 e 80 milhões. – Editor.

140
Todos os Utilitaristas não-Comunistas desaprovam o assassinato. Eles normalmente
tentam evitar injustiças menores também, embora possam argumentar que o imposto
de renda progressivo não é injusto. Mas o problema se torna agudo quando um membro
da minoria decide se opor à vontade da maioria. Os Letões, os Húngaros e os Tibetanos
resistiram ao Comunismo. Isto é, eles se opuseram ao maior bem para o maior número -
assim como um ex-governador de Utah resistiu ao imposto de renda e, assim, tentou
prejudicar a maioria. Mas é errado se opor ao maior bem para o maior número. Assim
sendo, a minoria deve cooperar em infligir dor a si mesma, de modo que o maior
total de prazer seja alcançado.

Originalmente, o Utilitarismo partiu da teoria da psicologia hedonista . Jeremy Bentham


assumiu como um facto científico que todos os homens são completamente dominados
por dois mestres soberanos: prazer e dor. Um é o único motivo do homem e o outro não
pode ser desejado. Se isso é um facto científico ou não, tem pelo menos um grau de
plausibilidade. O próximo passo no Utilitarismo foi avançar da psicologia para a ética
hedonista . O bem é prazer; meu bem é meu prazer; e seria tão imoral quanto tolice
causar dano a mim mesmo. Isso também é pelo menos plausível.

Mas o Utilitarismo não é hedonismo individualista. Bentham apontou para a soma total
do prazer de toda a raça humana. Henry Sidgwick depois dele, negou que “meu bem é
meu prazer”. Somente o bem maior para o maior número poderia qualificar-se como o
critério de uma acção moral. Se uma dada linha de acção resulta em danos para mim,
mas produz um total maior de prazer para a humanidade, então é imoral para mim
buscar o meu próprio bem. Neste caso, devo procurar o meu próprio dano. E isso não é
plausível. Certamente, não é plausível que os Letões, os Húngaros e os Tibetanos
cooperem para sua própria destruição. Aqui está então o problema do conflito entre o
bem de um indivíduo e a soma total de prazer para a raça humana.

Os Utilitaristas tentaram evitar esse conflito de duas maneiras. Primeiro Sidgwick


assumiu, pressupôs ou sugeriu amplamente que, em última análise, os prazeres de todas
as pessoas se harmonizam. O aparente conflito depende de um cálculo equivocado. Na
realidade, meu bem é compatível e, em última análise, idêntico ao bem de todos
os outros. Nenhum conflito real é possível. O prazer de infligir dor em qualquer
um sempre implica futuras dores que anulam o prazer. Assim sendo, se uma pessoa

141
procura o seu maior prazer ou se ela procura o maior prazer de toda a raça, ela fará
exactamente a mesma coisa. Toda acção que promove a outra, promove a outra também.

Tal visão evita com sucesso a justificação do massacre, mas infelizmente, é uma visão
que o Utilitarismo não pode logicamente aceitar. O Utilitarismo faz um ponto do
cálculo e observação científica. Tenta ser uma teoria descritiva. Mas não é um facto
observado nem observável que os prazeres de todas as pessoas se harmonizam. Alguém
pode acreditar nisso pela fé, mas não pela experiência. Mesmo se os cálculos
Comunistas que justificam o massacre estiverem errados, não há provas de que
os prazeres de todas as pessoas se harmonizaram no passado e, obviamente, não
existe ainda nenhuma evidência sobre o futuro. De facto, a preponderância da
evidência é contra isso. O conflito das guerras, o conflito das religiões, os propósitos
transversais contínuos de indivíduos, todos parecem mostrar que, se uma pessoa obtém
o que é bom para ela, outra pessoa não pode. Daí, uma teoria que repudia fé ou
revelação e é baseada na observação não pode logicamente objectar os
massacres. Finalmente, não pode se opor à minha busca do meu bem às custas dos
outros.

Sidgwick, de facto, argumentou que se podemos assumir “tal Ser como Deus que
pelo consenso dos teólogos é suposto que seja”, podemos estabelecer a moralidade
numa base utilitarista. Mas ele hesitou em afirmar a existência de Deus com base em
dados éticos. Nisso ele foi sensato. Se fosse possível mostrar empiricamente que todos
os prazeres se harmonizam, talvez a existência de Deus seria inferida; mas na ausência
de tal evidência, a inferência permanece sem fundamento. No final Sidgwick confessa
cautelosamente uma espécie de cepticismo.

O que torna um apelo utilitarista a Deus ainda mais incongruente é que qualquer tipo de
deus o fará. O conflito entre o bem individual e o público não pode ser resolvido pelo
Primeiro Motor de Aristóteles ou pelo Espírito Absoluto de Hegel. Pelo contrário, deve
ser um ser como Deus “que pelo consenso dos teólogos é suposto que seja.” Tendo sido
escrito no século dezanove na Inglaterra, esta frase designa o Deus Cristão. Isto é, se um
apelo a Deus deve remover o conflito entre o bem privado e o bem público, e se um
massacre deve produzir dor para o seu agressor, então o apelo de Deus deve punir
Joseph Stalin em uma vida futura e deve recompensar agora suas vítimas mortas para
equilibrar as coisas. Stalin certamente, não sofreu por seus crimes nesta vida. Ele parece

142
ter sido um dos homens mais bem sucedidos que já viveu. E, obviamente, suas vítimas
não obtiveram sua parte igual de prazer. Só se Deus punir Stalin no Inferno, pode-se
sustentar que Deus harmoniza todos os prazeres. Mas um apelo utilitarista ao céu, ao
inferno e a vida futura, é um apelo ilegítimo aos princípios Cristãos. Bentham sim
restringiu explicitamente suas sanções a esta vida. Em geral, o Utilitarismo é uma
teoria deste mundo . Portanto, o apelo a Deus, se feito, é ilegítimo , e o conflito continua
sendo uma dificuldade insolúvel.

Há, no entanto, uma segunda maneira pela qual o Utilitarismo pode evitar a
justificação do massacre. A sugestão também é encontrada em Sidgwick; Mas é
mais interessante notar que depois de sessenta anos durante o qual o Utilitarismo
tem sido amplamente negligenciado por escritores de ética, um contemporâneo agora
retorna a esta segunda ideia. O maior bem para o maior número é em si um princípio
incorrecto. O critério pelo qual distinguir um bom acto de um acto mau não é o mero
total de prazer, mas a igualdade da sua distribuição. O massacre pode,
indiscutivelmente, produzir um total maior de prazer; mas o summum bonum70 é a
distribuição igual de prazer. Toda pessoa no mundo deve ter uma unidade de prazer
antes que alguém tenha duas. Ou, se posso dizer, nenhum Americano deve ter uma
educação universitária antes que cada Chinês tenha uma banheira.

Além da ilustração fornecida na última frase, esta é a contenção do volume recente,


Valor Ético, pelo Professor George F. Harouni. Seu ponto principal, pelo menos para o
presente propósito, é que a distribuição igual do bem - que ele prefere identificar como
satisfação do que prazer - é um critério de valor independente da quantidade da
felicidade alcançada. Quando ele vem para considerar o conflito entre bem individual e
público - ou, como ele diz, a relação entre a utilidade e justiça - ele acha o problema
insolúvel, excepto em uma premissa. Dispensando várias tentativas de soluções,
conclui, “a única alternativa aberta para mim, então, é introduzir na minha definição de
„certo‟ tudo que for necessário” (itálico dele)71. Ou seja, o professor Harouni define
certo ou bem como a distribuição igual de satisfações. Isso realmente assume o ponto
em questão. Por exemplo, ele se recusa a discutir a opinião de Kant de que apenas uma
boa vontade pode ser boa sem qualificação, com base no facto de que não é uma análise

70
[Nota do tradutor] Expressão usada na filosofia, quem em latim significa: o bem maior.
71
[Nota do tradutor] Na obra original não aparece nenhum itálico.

143
do significado do bem. Esta recusa é insatisfatória, pois nem a visão de Kant, nem a do
hedonismo egoísta, podem ser refutadas simplesmente definindo-as como fora da
existência.

Para reforçar o ponto de que uma definição não resolve o problema em discussão,
algumas observações sobre a igualdade podem ser acrescentadas.

Em primeiro lugar, existe a questão não respondida de por que a igualdade da


distribuição deve ser escolhida em vez do maior total. É chamada de uma razão e não
uma definição. Em segundo lugar, a igualdade não é um critério racional. Certamente
não é racional no sentido do termo de Kant. Sua negação não produz uma
contradição lógica. Ou, se isso não é o que se entende por “racional”, podemos apenas
perguntar: O que é? Significa meramente que a igualdade é plausível? Mas em terceiro,
o critério de Harouni não é plausível. Isso implica que eu tenho a obrigação de
prejudicar-me, pelo menos na medida em que não gozo prazeres que eu poderia
alcançar, até que todas as outras pessoas tenham tanta satisfação como eu tenho agora.
Isso significa que eu deveria distribuir minha biblioteca filosófica para os Tibetanos e
Nepaleses? Se não, o que isso significa? Estes três pontos são perguntas honestas e
materiais e não podem ser descartadas simplesmente decidindo definir bem como a
distribuição igual de satisfação.

Cálculo

Mas talvez a objecção mais esmagadora é que o cálculo requerido sob todas essas
formas de Utilitarismo é impossível. É impossível se nós considerarmos apenas o bem
individual e, mais ainda, se tentarmos totalizar toda a raça humana. Sem cálculo, os
Ocidentais têm uma forte suspeita de que o assassinato causa uma dor excessiva sobre o
prazer, ainda que em assuntos menos violentos e mais comuns, o que há para confiar,
senão pura adivinhação? Devo comprar acções na Bolsa de Valores de Nova York? Há
sim algo mais do que adivinhação pelo qual podemos razoavelmente concluir que
uma acção será financeiramente mais lucrativa que outra. Mas será que o
dinheiro ganho me dá mais prazer do que outro curso de acção? Talvez eu deva comprar
um carro novo em vez disso. Ou devo investir meu dinheiro em Las Vegas e
Reno? Como cada coisa dessas afectará meus netos? Isso é melhor para mim, um
jovem, se tornar um médico, um veterinário ou um engenheiro? Deveria eu cursar
Inglês, História ou Geologia? Essas são perguntas perfeitamente sérias que muitas

144
pessoas tiveram que se fazer. Mas como alguém poderia estimar os valores, as durações
e as intensidades dos prazeres a serem causados por cada uma dessas decisões,
não apenas os prazeres que ele mesmo experimentará, mas os prazeres de todos
outros que serão afectados por sua acção? Não é o cálculo Utilitarista impossível?

O Utilitarismo sustenta que a bondade ou o carácter moral de um acto depende de sua


tendência em produzir consequências prazerosas para a raça humana como um
todo. Certamente, deve-se admitir que a impossibilidade de decidir qual das duas acções
conduz ao bem, é um ponto legítimo de crítica para uma teoria da ética que não dá
orientação específica às circunstâncias reais da vida, dificilmente pode ser chamada de
teoria da ética.

O Bem

Ainda há outro e ainda mais importante ponto de crítica. Uma teoria da


ética aceitável deve, pelo menos, identificar o fim da acção, mesmo que não possa
indicar os meios efectivos para isso. Agora, o Utilitarismo acaba de mostrar-se incapaz
de fazer o último; pode então fazer o primeiro? O bem no qual devemos almejar o
prazer pessoal é a maior soma total de prazer para todos, a distribuição igual de prazer,
ou algo completamente diferente do prazer? É possível saber o que é o bem? Mais uma
vez, uma teoria da ética que não consegue identificar o objectivo da vida é ainda mais
obviamente nenhuma teoria da ética.

Para o propósito de considerar este ponto, a linguagem e as discussões do século XX


são mais claras do que as do décimo nono . Embora seja verdade que o Utilitarismo fez
do prazer o objectivo de toda a nossa actividade e deu algumas razões para isso, a
ambiguidade do termo prazer tem sido observada por quase todo escritor anti-hedonista,
de Platão em diante. Tão grandes são os contrastes entre os prazeres, que John Stuart
Mill foi forçado a abandonar o Hedonismo básico que fez essas diferenças imateriais . O
problema foi examinado mais explicitamente nos últimos anos, e o termo valor foi
substituído por prazer. Tal substituição, seja com o termo valor ou satisfação,
dificilmente pode alterar a natureza do problema; as dificuldades permanecem as
mesmas; mas talvez pareça mais actual usar a linguagem do século XX. No entanto,
primeiro, vamos declarar as perguntas mais uma vez. É possível para uma
teoria descritiva da ética, uma teoria empírica da ética, uma teoria que não faz uso da
revelação, dar-nos um programa racional para a vida? Como os Naturalistas e

145
Humanistas, ou mesmo aqueles que tentam basear uma religião na experiência, podem
chegar às suas conclusões a respeito do bem?

Valores na Experiência

O método usual na literatura recente é afirmar que os valores podem ser encontrados na
experiência. O falecido Edgar Sheffield Brightman é um bom exemplo daqueles que
tentam basear uma religião nos valores encontrados na experiência. Ele defini valor
como “o que é realmente apreciado, admirado, estimado, desejado, aprovado, ou
desfrutado por qualquer pessoa a qualquer momento….Bom”, ele diz, “é sinônimo
de valor.” Burtt , por outro lado, falando para os humanistas, encontra na experiência os
valores da amizade, da arte e da ciência. Dewey também acha que a arte é valiosa,
embora muitas vezes ele use mais, arranjos comuns de aquecimento, iluminação e
comunicação rápida como exemplos de valores. Mas quaisquer que sejam os itens
específicos, o facto de que eles são valores, é suposto ser uma descoberta da
experiência.

A definição de valor de Brightman é particularmente ampla. Se formos chamar de


valioso qualquer coisa que alguém já gostou ou desfrutou, então devemos listar não só
amizade, arte e ciência, mas também uísque, jogo e crime. Esses três últimos também
não devem ser adicionados apenas como crítica hostil de um adversário hostil. Pelo
contrário, Gardner Williams da Universidade de Toledo, em seu volume, Éticas
Humanísticas, diz: “A ambição egoísta, ou a vontade de poder, quando bem sucedida, é
intrinsecamente boa porque é intrinsecamente satisfatória” (6). Assim, assassinato é
um valor porque foi descoberto como um valor na experiência. Assassinato bem
sucedido e ambição foram conspicuamente exemplificados pelo ditador Stalin. Que seja
admitido que você e eu não temos a habilidade e a determinação de imitá-lo; nossos
esforços para dominar uma nação logo fracassariam e nos sentiríamos magoados; mas
teorias empíricas podem consistentemente desaprovar um sucesso tão eminente como
Stalin? O assassinato não é tão verdadeiramente um valor como a arte, ou oração, ou
sistemas modernos de aquecimento?

Acontece que a maioria dos humanistas e, claro, os religiosos tais como Brightman,
querem produzir uma teoria que condene o assassinato e a brutalidade. Devemos
examinar com cuidado, o modo como eles procedem. Mas, muito mais importante
do que condenar a brutalidade é a necessidade de evitar o caos da subjectividade

146
implícita na definição de valor como qualquer coisa que alguém gosta ou desfruta. Por
mais estranho que pareça, haveria menos objecção lógica à uma teoria que
definitivamente recomenda o assassinato, do que à uma teoria que torna todos os
desejos igualmente legítimos. Se a ditadura e a dominação são o objectivo da vida,
então pelo menos há uma norma de conduta que se aplica a toda a humanidade. Pode
não ser a norma que você ou eu agora aceitamos, mas é uma norma definitiva. E essa
faz com que ela seja uma teoria da ética. Mas se tudo o que podemos dizer é que o
assassinato é correcto para Stalin, e a oração é correcta para Brightman, e beber álcool é
correcto para o alcoólatra, então, não temos ética nenhuma porque não temos teoria
alguma. Nesse caso, não há norma universal.

É essencial, portanto, que aqueles que começam com valores como prazeres
encontrados na experiência de alguém, mostrem de alguma forma que certos valores são
valores para todos os homens. Ambos, Brightman do seu jeito e Dewey do seu, tentam
evitar o caos do subjectivismo. Uma nota de rodapé anterior fez uma referência à teoria
do valor de Brightman e os argumentos não serão reproduzidos aqui. Mas visto que
Dewey influenciou tão amplamente o cenário Americano, parece sábio resumir as
críticas contidas no livro mencionadas na mesma nota de rodapé.

DEWEY E O INSTRUMENTALISMO

Para Dewey e o Instrumentalismo as dificuldades da ética são importantes não apenas


em si mesmas, não apenas para uma teoria da ética por si só, mas muito mais para todo
o escopo desse tipo de filosofia. Se houver qualquer ponto crucial em que o humanismo
é obrigado a apresentar um argumento convincente e irrespondível, é no que diz respeito
ao campo da ética. Claro que a razão não é que a ética, ao contrário da lógica simbólica,
seja imediatamente importante para a vida quotidiana de um indivíduo, seja ele um
filósofo ou não. Também, a razão não é apenas que a ética é essencial para um
sistema abrangente de filosofia. Isso seria verdade para Aristóteles e Hegel e também
para Dewey. Mas, ao contrário, o Instrumentalismo deve apostar sua
reivindicação sobre a ética porque ela produz um interesse prático activo à base do seu
sistema. Esta é a escola que mais tem investido veementemente contra torres de marfim
e o desprendimento da contemplação empírica. A eternidade e o outro mundo são
chamados de ilusões. Pensamentos concernentes a este mundo, e ideias, são planos de

147
acção evidentes. Princípios éticos são absolutamente básicos no Pragmatismo
humanista.

Isso não é verdade em relação ao Cristianismo. Evidentemente, o Cristianismo com sua


mensagem da salvação do pecado coloca grande ênfase sobre a fome e sede de
justiça. Na tradição Calvinista particularmente, os Dez Mandamentos foram
enfatizados. Mas a ética não é o fundamento do sistema Cristão. O Cristianismo é
baseado na teologia, e a ética é um assunto derivado. O que é certo e o que é errado é
determinado pelos mandamentos de Deus. Mas com os Instrumentalistas, a ética é o
assunto básico.

O facto de que o Instrumentalismo reconhece sua necessidade de ética pode ser


documentado muitas vezes. Quase qualquer um dos livros de Dewey forneceria citações
adequadas. Aqui apenas uma será usada, uma citação de sua Busca por Certeza: “A
condição efectiva da integração de todos os propósitos divididos e conflitos de crença é
a percepção de que a acção inteligente é o único último recurso da humanidade em
todos os campos.”72

Uma segunda leitura dessa citação mostra sua aplicação universal. Não alguns apenas,
mas todos os propósitos divididos devem ser integrados; não alguns assuntos apenas,
mas todo campo é coberto. Acção inteligente é único recurso final do homem; não há
nenhuma outra. Não há Deus a partir do qual o homem possa obter conforto,
encorajamento e força - muito menos sabedoria, instrução e intervenção. O homem só
tem a si mesmo.

É este ateísmo que põe em relevo a necessidade desesperada de uma


teoria irrefragável da ética. Se o humanismo não consegue salvar o homem da situação
de seus conflitos em todos os campos, o humanismo falha de facto. Ele pode ter uma
teoria admirável da ciência, pode conceber ajudas eficazes em educação, pode estimular
os professores a participarem da política; mas visto que ciência e política são apenas
meios para fins e ideais escolhidos, se o humanismo não pode racionalmente justificar
um ideal contra o outro, se a sua teoria da ética não pode dar orientação clara nas
perplexidades da vida, ele terá falhado em seu principal esforço e deve ser abandonado.

72
John Dewey, The Quest for Certainty, 252.

148
O principal tópico da presente discussão é a identificação de ideais, normas ou
valores. Algo ao longo do caminho terá que ser dito sobre os meios para a consecução
desses valores, mas o interesse principal deve no fim ser alcançado. Na linguagem do
Catecismo Menor, nós somos questionados: Qual é o fim principal do homem? No
entanto, não vamos julgar o assunto. Dewey hesitaria com a ideia de um único fim
principal. Ele prefere falar no plural. Vamos então fazer o mesmo. Nosso objectivo é
identificar normas, ideais ou valores.

Mudando a Moralidade

Antes de tudo, deve-se notar que quaisquer ideais ou padrões que Dewey pode propor,
não devem ser considerados como normas fixas e finais para todos os seres humanos.

Nós instituímos padrões de justiça, verdade, qualidade estética, etc. exactamente como
montamos uma barra de platina como um medidor padrão de comprimentos. A norma
está sujeita a modificações e revisão no primeiro caso como no outro, com base nas
consequências da sua aplicação operacional: … a superioridade de uma concepção de
justiça para outra é da mesma ordem que a superioridade do sistema métrico… embora
não seja da mesma qualidade.73

Esta comparação entre um padrão de justiça e um padrão de medição não é uma


ilustração adequada para os propósitos de Dewey. Em linhas de medição, o resultado é o
mesmo se alguém usa polegadas ou centímetros. Quando dois pesos são comparados,
gramas e fragmentos concordam uniformemente sobre qual é o mais pesado. Mas na
moralidade Dewey terá um agir a ser louvável em um padrão e mal em outro. Para os
propósitos de Dewey, então, outra ilustração é melhor.

Os padrões morais, diz ele, são como a linguagem em que ambos são o resultado do
costume. Teorias da ética absoluta argumentam que os padrões ideais antecedem os
costumes e julgam o que está certo ou errado; quaisquer supostos ideais que
são meramente o resultado do costume não poderiam ser os seus juízes. O facto de que
esse absolutismo é na melhor das hipóteses desnecessário, é visto no caso da
linguagem. Lá não havia princípios antecedentes da gramática. A linguagem evoluiu por
meio de balbucios pouco inteligentes e gestos instintivos. Então vieram as regras da
gramática e o aparato da alfabetização. Isso, no entanto, não é o fim para a linguagem e
sua gramática mudarem a fim de atenderem a novas situações e novas
necessidades. Palavras mudam suas formas e significados; novas expressões são

73
John Dewey, Logic, The Theory of Inquiry, 216.

149
inventadas; e as velhas regras se tornam arcaicas. No entanto, as regras de linguagem,
embora sejam meramente resultados imprevistos e não intencionais de costume,
exercem sua autoridade sobre nós. Gramática e moral são ambas partes da vida.
Ninguém pode escapar delas, mesmo que queira. A escolha do homem é simplesmente
entre a adopção de mais ou menos costumes significativos.

Essa analogia entre as regras da gramática e os princípios da moralidade


traz implicações importantes. A mais óbvia é o facto de que nações diferentes usam
idiomas diferentes. Claro, se quisermos falar Francês, nós devemos estar de acordo com
seus costumes suficientemente para sermos entendidos. E se somos nascidos Franceses,
não temos muita escolha no início. No entanto, eventualmente, pode tornar - se possível
emigrar para os Estados Unidos. Isso envolve uma decisão de falar Inglês em vez de
Francês. A oportunidade de desaprovar os costumes morais de uma nação, e de se opor
a pressão social a fim de viver um tipo de vida diferente, está mais prontamente
disponível do que a emigração. Os mártires Cristãos dos primeiros séculos e da
Reforma haviam decidido contra os costume prevalecentes. Isso não requer uma norma
moral superior aos costumes que são condenados?

A analogia de Dewey com a linguagem tende a minimizar a importância desta


pergunta. Afinal, não é um grande momento se uma pessoa fala Francês, Alemão ou
Inglês, mesmo se quebra algumas regras de gramática ao falar. Mas os missionários
Cristãos relatam que em certas seções os costumes sociais da África são tais que as
meninas dificilmente chegam à adolescência antes de terem sido estupradas meia dúzia
de vezes. E foi só no século passado que haviam tribos canibais em várias ilhas do
Pacífico. Ainda hoje, no momento em que a independência está concedida à Congo, o
canibalismo, bem como a guerra tribal está revivendo. Os missionários se opuseram a
esses “padrões morais” esses produtos de costume, esses resultados de gestos
instintivos. Eles pregam que os padrões divinamente revelados, fixos e universais
condenam tais acções . Agora, se isso não é verdade, e se a ética é análoga à linguagem,
pode haver qualquer justificação para a imposição dos costumes de uma sociedade sobre
outra sociedade? A condenação de um conjunto de costumes não exige uma norma que
é mais do que o efeito de outro conjunto de costumes?

Dewey tem uma resposta interessante e talvez perturbadora para essa pergunta. Em
primeiro lugar, ele afirma que os proponentes dos padrões, tal como os missionários

150
Cristãos, estão auto-enganados. Eles não têm de facto nenhuma norma absoluta. Suas
idéias morais são apenas os resultados dos costumes do seu próprio grupo. Costume,
portanto, ainda é a fonte de toda a moralidade. Agora, em segundo lugar, a oposição de
um costume a um costume mais amplo, é uma forma de guerra de classe, na verdade “a
forma mais séria de guerra de classe.” A guerra de classe não é muito escrupulosa. Cada
lado trata seu oponente como um violador intencional de princípios morais
absolutos. Assim, temos o presente conflito entre a burguesia e o proletariado. Daí a
noção de padrões morais fixos resulta numa guerra que só pode ser finalizada pela
força.

Assim, por meio dessa dupla resposta, Dewey explica consistentemente como, mesmo
que a moral não seja mais do que um costume, os conflitos morais entre as sociedades,
podem de facto acorrer. Mas ao fazê-lo, ele não implica que o canibalismo é tão bom
em seu lugar quanto a moralidade Cristã em seu lugar? O tom de suas observações não
sugerem que o estupro na África continue sendo louvável e que os missionários Cristãos
são imperialistas desprezíveis? A diferença nos padrões morais, portanto, não é a
diferença entre polegadas e centímetros, que sempre dão o mesmo resultado; é uma
diferença tal que nenhum ideal ou norma se aplica em todos os lugares, a todos, e o
tempo todo.

Valores na Experiência

A negação de padrões fixos e universais é de grande importância, mas há também um


problema menor que Dewey deve enfrentar. Mesmo que os valores de África e do
Cristianismo difiram, como as pessoas em qualquer sociedade podem identificar seus
valores no fluxo da experiência? Os métodos de Dewey, quando aplicados nos Estados
Unidos, concluem claramente que um tipo particular de acção é boa e valiosa, e outro
tipo não é?

John Dewey acreditava que tinha visto claramente o problema e que tinha descoberto a
chave para sua solução. O problema mais profundo da vida moderna, então assegurou
ele, é a integração das crenças do homem sobre o mundo físico com suas crenças sobre
valores humanos. Na Idade Média, ciência e religião estavam em harmonia porque
ambas foram desenvolvidas contra um único fundo filosófico. Todos os problemas
foram resolvidos em princípios Tomistas. Hoje, porém, a ciência medieval desapareceu,
mas as crenças comuns sobre valores ainda retêm algum sabor medieval. Visto que,

151
agora, a conduta moderna é motivada principalmente pela ciência moderna, o resultado
é que a conduta do homem moderno entra em conflito com suas crenças sobre
valores. Por causa de duas reacções a este conflito, duas desvantagens surgem. Alguns
homens com um forte apego emocional à teoria antiquada do desprezo de valor,
retardam a ciência, pelo menos dissipando suas energias em esforços infrutíferos. O
outro tipo aceita a ciência de todo o coração, mas porque os valores que eles
foram ensinados não podem ser cientificamente estabelecidos, eles repudiam todos os
valores. Portanto, o problema importante para uma filosofia que não deseja estar isolada
da vida moderna, é harmonizar a teoria moderna e prática.

A solução deste problema deve ser encontrada em uma exploração do método científico
mais completa. Visto que a ciência destacou o problema depois do problema da síntese
medieval, seu sucesso acumulado até agora, no século XX, há razões para supor que
todos os problemas da humanidade são passíveis do mesmo método. Crenças sobre
valores, sobre ética e sociologia, estão hoje no mesmo estado que as crenças sobre
a física na era pré-científica. O que é necessário é a aplicação de
técnicas científicas . Apenas duas atitudes bloqueiam a aceitação desse ponto de vista.
Em alguns, há uma desconfiança básica da capacidade da experiência de
desenvolver padrões, ideais ou normas para a vida. Esta primeira atitude depende de
valores eternos e apelos a um Ser Supremo. Nenhuma expectativa pode ser esperada
de uma visão tão teísta. Interesses seculares agora dominam as mentes dos homens;
o senso de valores transcendentais enfraqueceu; a autoridade da igreja diminuiu; os
homens podem professar a antiga religião, mas eles agem secularmente. Essa
divergência entre o que os homens fazem e o que eles dizem, é evidência externa do
conflito no pensamento moderno. Para resolver o problema e remover o conflito, os
pensamentos dos homens devem ser produzidos de acordo com o que eles fazem. Para
inventar um exemplo, Dewey não usa: os homens que jogam golfe no domingo e
acreditam na existência de Deus; enquanto continuam a jogar golfe, eles deveriam ser
ensinados a repudiar a crença em Deus, em vez de mudar sua conduta e ir à igreja.

A segunda atitude que bloqueia a aceitação do método científico é o gozo de prazeres,


bens ou valores, independentemente do método usado para produzir esses prazeres. Tal
visão supõe que “ser apreciado e ser um valor são dois nomes para um e o mesmo
facto.” Esta atitude ou teoria de valor é superior à visão teísta em que os valores são
experiências concretas de desejo e satisfação aqui e agora. Sua falha decorre do facto de

152
que esses prazeres são casuais e não regulamentados pela inteligência. Escapar do
absolutismo transcendental não é ter prazeres casuais, mas na definição de valor por
prazeres que são as consequências da acção inteligente. “Sem a intervenção do
pensamento, prazeres não são valores, mas bens problemáticos, tornando-se valores
quando reemitem de forma diferente do comportamento inteligente.”74

Prazeres, portanto, são transitórios e precários, de modo que é necessário um método de


discriminar entre eles as bases de suas condições e consequências. Bens são apenas
bens, com certas qualidades intrínsecas; em relação a eles como bens, não há nada a ser
dito; eles são simplesmente o que são. Tudo o que pode ser dito em relação a eles, diz
respeito as suas causas e efeitos. A razão para desfrutar um objecto é frequentemente
um meio ou um resultado de alguma outra coisa; a razão diz respeito a causa do prazer e
não tem nada a ver com suas qualidades intrínsecas.

Antes de continuar o resumo, deve-se parar para notar um factor de confusão nas linhas
acima. É verdade que as coisas são muitas vezes apreciadas, ou pelo menos escolhidas,
porque são causas de outra coisa. Tais bens são por alguns autores chamados
instrumentais, em oposição a bens intrínsecos; e eles variam de pegar um táxi até o
aeroporto e visitar o dentista. Mas o argumento de Dewey realmente requer que este
seja o caso, não apenas “frequentemente”, mas sempre. Vamos parar e perguntar se
todos os bens são instrumentais, ou se alguns são intrínsecos. É verdade que a razão
para desfrutar algo não tem nada a ver com suas qualidades intrínsecas? Esta questão
deve ser mantida em mente conforme o resumo prossegue.

Um bem genuíno, portanto, continua Dewey, difere de um bem espúrio por causa da
reflexão sobre as consequências. Todas as críticas dizem respeito as consequências
porque nenhuma propriedade carrega credenciais adequadas em sua face.

Neste contexto, dois pontos devem ser levantados. O primeiro, mencionado em


poucas linhas acima, diz respeito aos antecedentes dos quais o valor em questão é
uma consequência. Este ponto tem a ver com o desfrute de prazeres casuais
independentemente do método utilizado para produzi-los. O segundo e talvez o
ponto mais importante toca nas consequências que para si mesmo o prazer produz.

74
John Dewey, The Quest for Certainty, 259.

153
Inventando um exemplo, suponha que um homem se candidate a um emprego, faz o seu
trabalho e é pago; nesse caso, o dinheiro não é um bem espúrio, mas um
valor real porque foi ganho por uma acção inteligente. Se o homem achasse a mesma
quantidade de dinheiro na calçada, não seria um verdadeiro valor. Então Dewey
afirma. Para a maioria das pessoas, no entanto, o dinheiro achado é apenas tão valioso
quanto o dinheiro ganho. De facto, embora o poder de compra de um dólar ganho e de
um dólar achado sejam os mesmos, o trabalho para ganhar pode ser tão longo e fatigante
que a soma dos valores de uma vida é diminuída por previsão inteligente e aumentada
por um achado de sorte. O tempo do trabalhador e a força pode muito bem ser tão
exausto que o que o dólar compra poderia ser mal apreciado. Assim, pode-se dizer - em
contraste nítido com Dewey - que o prazer casual e imprevisto é o maior valor.

Claro, se Dewey quisesse dizer apenas que não é sábio depender de alguém vivendo de
achar dinheiro na rua, seu argumento seria bom o suficiente, mas seria trivial. Um teísta
das visões sobrenaturais mais pronunciadas, bem como o Epicurista que tenta evitar
problemas cochilando ao sol, concordam que uma certa quantidade de planeamento e
trabalho são necessários para a maioria das nossas satisfações ordinárias. Essa
trivialidade não pode ser a base do antagonismo de Dewey aos teístas e
Epicuristas. Suas expressões e a ênfase parecem dizer que os prazeres inesperados
simplesmente não têm valor. Eles são espúrios.

Essa visão, que parece tão estranha ao senso comum, depende da tese de que o valor de
um objecto depende de ser um resultado e um significado para outra coisa, e em
particular não depende da sua intrínseca qualidade agradável. Nada é valioso por si
só. Já foi dito o suficiente sobre os antecedentes do gozo; o segundo ponto diz respeito a
consequência do valor apreciado.

Neste ponto também, a crítica continua a pressionar a questão do valor intrínseco, será o
mesmo. Pode ser concedido que atribuamos valor a dinheiro por causa das possíveis
consequências, ou seja, as coisas que podemos comprar com ele; Nesse sentido, uma
nota ou um cheque, sendo apenas um pedaço de papel, não carrega credenciais de valor
em sua face. Mas isso é dizer que nada acontece? Não há nada de valor em si só? Todos
os valores são meramente instrumentais? Não há conclusão alguma que seja?

Para fins de ilustração, um jogo de xadrez serve. É o prazer do dependente


de xadrez colocar seu valor nas consequências? Claro, o xadrez pode ser usado para

154
consolidar amizades, e sem dúvida outras consequências poderiam ser
engenhosamente listadas. Mas a razão comum para jogar xadrez não é de forma alguma
que o jogo seja um meio ou resultado de outra coisa. Pelo contrário, tudo tem a ver com
a sua qualidade de valor intrínseco. Se as credenciais em seu rosto não fossem
adequados, o xadrez não seria escolhido.

Dewey, em estranha companhia com Aristóteles, pode desprezar esta ilustração de


xadrez. Divertir-se com jogos não é uma actividade suficientemente séria para ser
proporcional aos principais esforços humanos. Além disso, como disse Aristóteles, a
recreação é por causa do trabalho; nós jogamos para trabalhar: nós não trabalhamos para
jogar. Embora tais sentimentos se encaixem no ponto de vista aristotélico muito bem,
não é tão claro que Dewey pode usá-los com muita consistência. Se nada é
intrinsecamente valioso, como se pode insistir que brincar é um meio de trabalhar e não
o inverso? Se nada leva os seus próprios credenciais, como se pode distinguir entre o
sério e o trivial? Aristóteles tornou a recreação um meio para uma actividade
intrinsecamente valiosa, actividade que é escolhida por si só e não como um meio para
qualquer coisa mais. Mas se, como diz Dewey, não há uma causa final, e se tudo é
escolhido apenas como um meio para outra coisa, e nunca por causa de suas
qualidades intrínsecas, faz alguma diferença o que escolhemos?

Homens e mulheres jovens em grande número optam por ir para a faculdade. Na teoria
de Dewey, muito bem aceita pelos estudantes, a razão não pode ser qualquer valor
intrínseco em conhecimento. Para conceder tal razão seria necessário fugir da realidade
e refugiar-se na desacreditada torre de marfim aristotélica. Para o jovem, a faculdade é
um meio de conseguir um emprego melhor; para as jovens mulheres, é um meio de
conseguir um homem melhor. Mas nem a família que traz o casamento, nem a comida
que o trabalho supri devem ser escolhidos por qualquer qualidade intrínseca. Estes
também são meramente meios para outra coisa. A faculdade é o meio para um
trabalho; um emprego é o meio para o casamento; o casamento é o meio para uma
família; uma família, juntamente com o trabalho, é o meio de enviar um filho para a
faculdade. Mas o xadrez é o meio de restringir os contactos sociais à um pequeno
número; restringir os contactos sociais é o meio de evitar o casamento; uma única bem-
aventurança economiza o dinheiro que se gastaria com a mensalidade de um filho;
e esse dinheiro é o meio para comprar um conjunto mais bonito de peças de xadrez. Mas
por que seguir uma série causal em vez da outra? Todas as actividades são meios sem

155
valor para outros meios sem valor. Os meios não têm fim, e a escolha tornou-se
irracional. Ou, pelo menos, as escolhas são baseadas em nada mais que preferências
pessoais.

Aqui parece que outro humanista vê mais claramente que John Dewey. Gardner
Williams escreve: “Não importa, para um ponto de vista indivídual, como ele está
satisfeito, desde que, a longo prazo, ele esteja satisfeito.”75

Neste contexto, a forma como parece incluir, não só a identificação do objecto que dá
satisfação, mas também os meios pelos quais o objecto foi obtido. Neste caso, o objecto
seria igualmente valioso ou satisfatório, se fosse obtido por previsão inteligente e
atenção para os meios de produção, ou se fosse obtido por pura sorte.

Para essas últimas afirmações, Dewey provavelmente responderia com algumas


expressões de desgosto. Tais opiniões ele repudiaria, não apenas como falta de
entusiasmo pelo método científico, mas também como uma responsabilidade pela
reconstrução de instituições econômicas, políticas e religiosas. Em vários lugares,
Dewey baseia sua rejeição de teorias opostas sobre preferências
sociológicas. Epistemologia, por exemplo, desperdiça o tempo que poderia ser gasto
com lucro na reparação de males sociais. O pensamento não deve ser empregado para
nenhum bem privado; se visa algum resultado especial, não é sincero. É estranho dizer
que, nesse contexto, ele até fala de “algo que vale a pena para si mesmo”, embora que
na próxima página ele acrescenta com mais consistência que “não há um fim específico
estabelecido antecipadamente, para encerar as actividades de observação, formação de
idéias e aplicação”. Ao invés da

satisfação emocional e conforto privado... a satisfação em pergunta significa satisfação


das necessidades e condições do problema do qual a ideia, o propósito e o método de
acção surge.... Tão repulsiva é uma concepção da verdade que faz dela uma mera
ferramenta de ambição privada e engrandecimento que a maravilha, que
críticos atribuíram tal noção a homens sadios.76

Mas o desgosto de Dewey é uma resposta suficiente às objecções? Em que


fundamentos ele pode construir uma teoria da sociologia que eliminaria
epistemologia como uma perda de tempo? Ele pode distinguir um mal social de um

75
Gardner Williams, Humanistic Ethics, 55.
76
John Dewey, Reconstruction in Philosophy, 124, 126, 157.

156
valor social? Por que argumento lógico Dewey pode recomendar faculdade em vez de
xadrez? Ele tem algum motivo para se sentir repugnado pelo bem privado? Ele não pode
afirmar correctamente que os críticos atribuíram erroneamente noções loucas para
homens sãos. O professor Williams é um homem sensato; assim foram os Sofistas e os
Epicuristas. E muitos outros homens se recusarão a renunciar fins particulares, conforto
privado e bens intrínsecos simplesmente porque Dewey acha-os repulsivos.

Segurança e Ética Científica

Por detrás do desgosto de Dewey e por detrás da insistência de que os métodos de


ciência resolverão os problemas éticos, há um contraste que Dewey gostava de
enfatizar. É o contraste entre certeza e segurança. Religiosos, místicos, e Platonistas
iludidos procuram por certeza e às vezes reivindicam que eles realmente estão na posse
da verdade absoluta. Mas a teoria Instrumentalista da ciência e a crítica aguda de F.C.S
Schiller à Platão, mostra que a verdade fixa não pode ser obtida. O desejo tradicional da
certeza deve ser abandonado. Em seu lugar, a ciência moderna forneceu algo muito
melhor - segurança. A química melhora a comida fornecida pelos povos civilizados. A
física permite a invenção de telefones, rádio e aviões a jato. Se, agora, nós estudamos
cientificamente os meios e condições pelos quais fins ou valores podem se tornar mais
seguros, temos na opinião de Dewey os problemas da ética resolvidos.

Mas qual é o problema da ética? É realmente o problema da segurança? A escolha não é


mais do que a segurança? Dewey indicou algumas escolhas
políticas bastante definidas. Ele se opõe a laissez-faire77, a liberdade e individualismo, e
defende algum tipo de colectivismo. Ainda somos forçados a perguntar se o método
científico de sua teoria nos obriga a escolher uma em vez da outra. A ciência fornece
meios para qualquer homem poder escolher. Mas pode fornecer qualquer razão para
escolher de preferência isto no lugar daquilo? A questão principal, portanto, não é como
proteger os valores, mas como seleccioná-los. Para substituir segurança por certeza sob
estas condições deve haver um acto de desespero filosófico e existencial.

No entanto, a segurança, a reflexão sobre as condições e consequências, e a


depreciação de qualidades intrínsecas, são uma aplicação consistente do paralelismo da

77
[Nota do tradutor] Expressão francesa que significa literalmente “deixar fazer”, é também considerada
um símbolo de economia liberal defendida pelo capitalismo.

157
ética com a ciência. A ciência virou as costas para a humidade da água
imediatamente percebida, a fim de formar uma concepção, H2O, que poderia produzir
experiências mais seguras e significativas da humidade. As coisas apreciadas devem ser
tratadas de forma semelhante; elas são possibilidades de valores a serem
alcançadas. Dizer que algo é apreciado, é equivalente a dizer que a água está
húmida. Isso pode ser um facto, mas não é um valor. Um valor é algo satisfatório; e o
satisfatório é aquilo que fará , ou seja, uma previsão sobre o futuro, não uma declaração
sobre o presente. Uma declaração sobre o presente - como, por exemplo, esta
experiência é satisfatória - só levanta um problema. Admitindo que gostamos disso,
como o prazer será avaliado? É um valor ou não? É algo para ser apreciado? Dizer que é
um valor significa que continuará a satisfazer. Uma declaração de um facto presente não
faz nenhuma reivindicação sobre a acção, mas um julgamento sobre o que é desejável
olha para o futuro e possui a qualidade de jure78 e não meramente a qualidade de facto.

À luz da especulação ética anterior, a distinção entre uma qualidade meramente de


facto e uma qualidade de jure pareceria ser importante. É possível ver que um prazer
não fará o que o outro fará? Como podemos distinguir o valor que continuará a
satisfazer no futuro, daquele que não continuará? E como essa distinção pode ser feita
sem conforto privado e conclusão final?

Dewey observa que, embora os valores devam ser conectados inerentemente com
gostos, preferências ou desejos, eles não devem ser conectados com nenhuma
preferência aleatória, mas apenas com aquelas racionalmente aprovadas após o
exame. O conflito entre desejos e planos imprudentes e esporádicos, escolhidos de
maneira reflexiva para fins de longo prazo, é comum. Em relação ao primeiro, as
pessoas costumam dizer, eu gostaria de fazer ou ter isso; mas em relação ao segundo,
elas afirmam, com pesar ou determinação, que devo fazer isso. Dewey deve levar em
conta o “dever” da moralidade tradicional, e a distinção entre de jure e de facto que é o
ponto. A questão é se o Instrumentalismo pode justificar tal distinção. Que tipo de
exame revelará que um gosto deve ser aprovado e outro rejeitado? E na medida em que
Dewey critica a teoria racionalista sobre a pontuação que não oferece nenhuma
orientação, espera-se naturalmente que Dewey forneça a orientação.

78
[Nota do tradutor] Expressão latina que significa “pela lei, ou “pelo direito”.

158
O tipo de exame que Dewey tem em mente é claro o suficiente - pelo menos é fácil citar
as frases pelas quais Dewey acredita ter encontrado os requisitos. Na verdade, ele
coloca uma delas em itálico79: “Julgamentos sobre valores são juízos sobre as condições
e os resultados de objectos experimentados; julgamentos sobre o que deve regular a
formação de nossos desejos, afeições e prazeres.” Quando os deveres ou valores entram
em conflito, o dogmatismo tenta construir uma escala de valores. Mas isso, diz Dewey,
é uma confissão da incapacidade de julgar o concreto. A alternativa para um
esquema hierárquico é o julgamento por meio das relações nas quais os valores
ocorrem. Deve-se examinar suas causas, condições e consequências, suas interacções e
conexões; quanto mais averiguamos esses detalhes, mais sabemos os objectos em
questão, e podemos julgar melhor o valor. Ele afirma: “Prazeres que resultam da
conduta dirigida pela compreensão nas relações, têm um significado e uma validade
devido à maneira em que eles são experimentados. Tais prazeres não devem estar
arrependidos; eles não geram sabor de amargura.”

O argumento de Dewey aqui depende de três suposições relacionadas:


prazeres casuais não são valores, valores são meios para fins e prazeres escolhidos à luz
de suas relações não devem se arrepender. Ele dá um exemplo. Aquecimento e
iluminação, velocidade de transporte e comunicação, foram alcançados, não por elogiar
sua conveniência, mas por estudar suas condições. “O conhecimento das relações
obtidas, seguido da habilidade para produzir, e o gozo segue como uma coisa natural.”

Se este exemplo pretende mostrar como o método científico pode produzir ideais, não é
convincente. O método científico, sem dúvida, assegura a velocidade de transporte, mas
gozo e satisfação não seguem como uma questão de curso. A velocidade de transporte e
comunicação ajudam a tornar a guerra mais horrível. O conhecimento das relações e a
capacidade de produzir podem ser direccionados para fins dolorosos tão facilmente
quanto para fins agradáveis. Em ambos os casos os meios são valiosos para a produção
dos fins; e em ambos os casos os agente podem ter um conhecimento exaustivo das
causas, condições, consequências , interacções e conexões; mas onde é mostrado que o
procedimento científico pode distinguir entre e um bom final e mau final? Em
outras palavras, não deve haver um valor, um bem, um fim, cuja bondade

79
[Nota do tradutor] Na obra original não há nenhum itálico.

159
intrínseca pode motivar uma escolha antes do nosso conhecimento de meios, condições,
e das circunstâncias que nos levarão a segurá-lo? A ciência pode justificar ideais?

Ideais Maus

É nesta linha de pensamento que a distinção entre a qualidade de facto e de jure torna-
se claramente necessária. Dewey concorda que existem ideais maus. Sem prazer
estético, a humanidade pode se tornar uma raça de monstros econômicos capazes de
usar o lazer apenas em exibições ostensivas e dissipação extravagante. Aparentemente,
nenhuma quantidade de conhecimento de interacções e as relações farão dos monstros
econômicos um valor. Mas porque não? O assentamento da paz da Primeira Guerra
Mundial foi feito com a atenção mais realista dos detalhes concretos da vantagem
econômica, e Dewey nunca cansa de insistir em detalhes concretos; os objectivos
também foram amplamente sociais e não se limitaram ao conforto privado; mas em
Versalhes, segundo Dewey, foi a atenção a vantagem econômica distribuída em
proporção ao poder físico que criou distúrbios futuros. E presumivelmente isso foi
mau. O mal de tal situação não surge da ausência de ideais (muito menos, deve ser dito
também, a partir de uma ignorância de detalhes), mas os maiores males surgem sim dos
ideais errados. Como então os detalhes realistas podem identificar com mais atenção
os ideais valiosos? Dewey repreende a visão curta e insiste que não se deve sacrificar o
futuro pelo prazer imediato. Mas a clarividência resolverá o problema se não conseguir
enxergar o suficiente para passar além de meios valiosos para um fim intrinsecamente
valioso?

Que os métodos da ciência não podem ser aplicados na determinação de


princípios éticos pode ser melhor apreciado se se tem em mente os
resultados específicos que Dewey acha que obteve por seus métodos. E para tornar
a discussão ainda mais concreta, os ideais mencionados por um dos discípulos de
Dewey de todo o coração e influente - Professor William Heard Kilpatrick -
serão adicionados à lista. Em todo o caso, a questão deve ser: o
método científico mostra se esse ideal é bom ou mau?

Por um lado, Dewey repudia os objectivos privados, e a vantagem unilateral: “um fim
pessoal é repulsivo”. Uma teoria Instrumentalista da verdade, reclama ele, muitas vezes
tem sido pensada em termos de satisfação de algumas
necessidades puramente pessoais. Isto é um erro. A satisfação que o Instrumentalismo

160
fornece, explica Dewey, “uma satisfação das necessidades e condições do problema a
partir da qual a ideia, a finalidade e o método de acção surge. Inclui condições públicas
e objectivas.”

Superficialmente, pelo menos, isso pode ser admitido. Se eu estou desenvolvendo novas
vacinas ou investindo no mercado de acções, há muita objectividade teimosa a ser
levada em conta. E nesse sentido o problema tem “necessidades e condições” que
devem ser satisfeitas. Mas o que deve ser dito da escolha prévia entre o
desenvolvimento de vacinas e o investimento no estoque do mercado? O primeiro
presumivelmente, não é privado ou pessoalmente motivado (embora, claro, possa ser), e
este último é um exemplo tão bom quanto qualquer outro de satisfação puramente
pessoal. Mas qual procedimento da ciência - seja ciência biológica ou ciência
econômica, para não mencionar a física e química - demonstra empiricamente que um
fim puramente privado é repulsivo? Certamente, há aqui uma lacuna
não vinculada entre as premissas de Dewey e sua conclusão; e parece que a lacuna é
intransponível. O egoísmo não é tão facilmente refutado.

Se uma ampla rejeição dos objectivos pessoais é muito vaga, Dewey tem também mais
ideais específicos. Ele menciona saúde, riqueza, amizade, indústria, temperança,
cortesia, aprendizagem e iniciativa, bem como iluminação, aquecimento,
e transporte.80 Essas especificações são de facto suficientemente definidas; e visto que
elas são típicas, percorrem um longo caminho para resgatar a ética do pântano de
valores eternos, se não da rigidez de verdades fixas.

Kilpatrick é similarmente específico. Saúde corporal e vigor é um bem que o


homem moderno não negaria. Uma personalidade bem ajustada, satisfazendo
relações pessoais, trabalho significativo em oposição a uma vida de lazer, música, uma
vida social adequada, e uma religião não sobrenatural, são exemplos dos doze
constituintes da vida boa de Kilpatrick. Seja o que a moralidade for, ela melhora esta
boa vida.81

80
John Dewey, Reconstruction in Philosophy, 166-169.
81
William Heard Kilpatrick, Philosophy of Education, 97-98, 151-161.

161
Outros ideais específicos podem ser inferidos a partir de sua depreciação de antigos
sistemas militares de Esparta e seu elogio à Péricles de Atenas.82 Ele opõem-se também,
explicitamente à discriminação racial;83 ele defende que o laissez-faire é um mal,84
assim como é também o Americanismo antiquado que acreditava no dever do governo
de proteger a propriedade privada e manter os direitos inalienáveis.85

Mais enfaticamente, ele se opõe a liberdade religiosa. Além de impedir que os grupos
religiosos mantenham escolas e faculdades,86 ele acredita que é “antidemocrático”
permitir que os pais ensinem as doutrinas da sua religião para seus próprios
filhos. Aparentemente, o governo, como na Rússia, deve invadir o lar e impor a crença
no secularismo humanista.

Duas perguntas, no entanto: foi o método científico que seleccionou esses ideais, e foi o
procedimento do laboratório que provou sua conveniência? Ou esses ideais são os ideais
maus do fanatismo secular?

Assassinato

Dewey, como foi dito antes, admite que alguns objectivos são maus. Em um de seus
livros ele afirma que nenhuma pessoa honesta pode se convencer de que o assassinato
teria consequências benéficas, e ele também acrescenta que uma pessoa normal se
ressentirá imediatamente de um acto de crueldade arbitrária. Há, no entanto, um
grande número de pessoas, presumivelmente anormais, que gostam de touradas87. Mas
Dewey aposta em pessoas normais, que são justas.

Filosoficamente, isso levanta a questão. Os membros da S.P.C.A.88 consideram os fãs


de touradas como uma raça baixa da humanidade. Replicando, o último acredita que o

82
William Heard Kilpatrick, Philosophy of Education, 286-289.
83
William Heard Kilpatrick, Philosophy of Education, 340.
84
William Heard Kilpatrick, Philosophy of Education, 405.
85
William Heard Kilpatrick, Philosophy of Education, 403, 54-55.
86
William Heard Kilpatrick, Philosophy of Education, 254.
87
[Nota do tradutor] a expressão significa: Corrida de touros.
88
[Nota do tradutor] Society For the Prevention of Cruelty to Animals – Sociedade que previne os
animais da crueldade.

162
primeiro simplesmente não tem um senso normal de diversão. Em que base, então, esse
desacordo será resolvido? Não se deve primeiro definir o certo e o bom, e somente com
base nisso decidir quem é normal e justo? Ou podemos simplesmente dizer que essas
designações honoríficas devem ser aplicada às preferências da maioria? A
plausibilidade de que uma pessoa normal se ressinta da crueldade arbitrária e condene o
assassinato reside no facto de que a afirmação é verdadeira nos Estados Unidos, no
presente momento, por causa de nossa herança Cristã. Mas ela não é verdade em países
comunistas. Lá o assassinato e o massacre são definitivamente aceitos como tendo
consequências muito benéficas. Agora, se Dewey e Kilpatrick conseguirem destruir o
Cristianismo proibindo os pais de darem aos filhos instrução religiosa,
alguém poderia ter certeza de que o massacre, mesmo assim, seria errado?

Uma dificuldade aqui é que Dewey assume um acordo moral universal, seja em
assassinato ou em touradas, onde nada ou pouco existe; e espera-se que o leitor aceite a
suposição sem questionar. A declaração de Dewey sobre o assassinato e crueldade
devassa não é apenas factualmente falsa, mas também levanta a questão, porque ele não
produziu em nenhum lugar evidência científica de que o assassinato nunca tem
resultados benéficos. Nem os seus próprios princípios consistem em uma norma moral
tão fixa como seriam, se pudessem ser provados. O exemplo de Dewey sobre as
tentativas de todas hipóteses práticas exige que ele admita que a crueldade devassa um
dia pode ser o meio mais eficiente para um objectivo social.

Esta ênfase no desacordo sobre o assassinato, o desacordo entre toureiros Espanhóis e


Puritanos, entre pais Cristãos e Kilpatrick, entre quaisquer dois ideais incompatíveis,
ressalta a falha séria na filosofia de Dewey. Para resolver essas divergências, Dewey
deve prometer que a ciência decidirá entre os objectivos dos pais versus os objectivos
dos educadores seculares. Em geral, a suposição de Dewey é que a ciência pode
produzir um acordo moral quase universal. Ou, pelo menos, a ciência pode determinar
valores. Mas Dewey falhou no teste, em seu ponto mais fácil. O assassinato não foi o
exemplo mais claro do mal - um exemplo que toda a pessoa justa concordaria? No
entanto, Dewey não conseguiu mostrar como esse julgamento moral pode ser justificado
por meio do procedimento científico. De facto, apesar de toda a sua insistência de que a
ciência pode resolver todos os problemas e que os valores só podem surgir através de
meios de relacionamento para fins imediatos, Dewey, até onde eu sei, não deu um único

163
exemplo de descobrimento de um valor. Ele parece admitir isso.89 Mas é irracional pedir
apenas um exemplo?

Vale a Pena Viver a Vida?

Um crítico de Dewey observou que, peso embora o Instrumentalismo afirme um fluxo


universal, o sistema tem um absoluto eterno, fixo e imutável: o valor da investigação, a
importância de resolver problemas. Por detrás dessa verdade fixa está o princípio mais
geral de que vale a pena viver. Certamente, este ponto não deve ser evitado e passado
em silêncio. Tem sido uma questão de desacordo. Ele marca uma situação
indeterminada. Deveria ser um assunto de investigação, exigindo uma solução em
termos de alguma idéia que seja um plano de acção. Não é um problema
artificial. Muitos homens enfrentam ele de várias formas.

No século XX, a forma pela qual a morte se torna uma opção viva porque muitos se
materializam sob a opressão totalitária. Milhares arriscaram a morte, fugindo através da
cortina de ferro de arame farpado e metralhadoras. Outros milhares encontraram a morte
na tentativa Húngara de liberdade. Todos estes, sem dúvida, teriam preferido viver, mas
arriscando a morte eles se mostraram como quem acha que a vida não valia a pena viver
sob o Comunismo. Há também um número menor que cometeu suicídio. Então, há
também outros que cometeram suicídio sem terem sido levados a tal pela
opressão. Vários dos Estóicos decidiram que era melhor morrer do que viver. Nos
Estados Unidos também, a taxa de suicídio aumentou acentuadamente nos últimos
cinquenta anos. O valor da vida, portanto, não é um problema artificial, o
Instrumentalismo é obrigado a defender o seu optimismo ou pelo menos a sua
atitude meliorista90. O Cristianismo com sua base revelacional afirma que o suicídio é
imoral; mas o que pode ser dito por uma filosofia empírica, descritiva?

Esta questão do suicídio não deve ser entendida como apenas um detalhe entre
muitos. Não é como se tivéssemos analisado os méritos do roubo, da mentira, do
adultério, do assassinato e - ah, sim, há mais um - do suicídio. Pelo contrário, a menção
do suicídio destina-se a trazer à tona o pré-requisito absolutamente indispensável de

89
Veja The Philosophy of John Dewey, editado por Paul Arthur Schilpp, 592.
90
[Nota do tradutor] Expressão proveniente do termo “meliorismo”, que é uma doutrina filosófica
segundo a qual, o mundo e a vida podem ser tornados melhores se o esforço humano for orientado nesse
sentido.

164
todas as outras decisões éticas. Roubo versus honestidade e crueldade versus bondade
são escolhas possíveis somente se decidirmos previamente continuar a viver. Em que
base, portanto, pode se mostrar que a vida vale o tempo e o trabalho?

O valor da vida e, portanto, a maneira de viver, quando o suicídio é descartado, não é a


questão do acordo exuberante que Dewey parece supor. Tudo o que Dewey toma tão
sinceramente por garantido tem sido vigorosamente negado e atacado por pensadores de
renome mundial e por porções significativas da raça humana. O Budismo, por exemplo,
afirma que a dor é um elemento necessário no processo universal; o desejo é a causa da
dor; e a supressão do desejo completada na inconsciência do Nirvana, é o único remédio
para a dor. Um Budista provavelmente, diria que esses princípios são conclusões tão
óbvias a partir de uma observação do mundo, que apenas os propositadamente cegos
podem deixar de vê-los.

No mundo ocidental, essa visão foi adoptada por Arthur Schopenhauer. É verdade que
nem os Budistas nem Schopenhauer acreditavam que o suicídio é a
solução adequada. No entanto, deve-se ter claramente em mente que o tipo de vida que
segue de um princípio pessimista deve ser muito diferente daquele baseado
num meliorismo confiante.

Portanto, uma primeira conclusão é inevitável. Aqueles moralistas que


procederam como se todos os homens concordassem sobre o que é desejável, devem ser
julgados como tendo falhado. Eles devem ser forçados a abrir os olhos e enfrentar os
problemas básicos. Não só eles devem ser forçados a explicar por que, em vez da
brutalidade e totalitarismo, eles preferem resgatar certos elementos de
moralidade Cristã; mas eles também devem ser forçados a justificar a própria vida. Isso
eles não têm feito, e, portanto, seus sistemas são falhos.

Crítica Final

Para retornar à principal tese de Dewey, de que a ciência pode resolver o problema da
moralidade, a crítica que tem controlado o argumento o tempo todo, é dupla. Primeiro, o
método científico não justifica os ideais de Dewey e Kilpatrick; e, segundo, o método
científico não pode justificar qualquer ideal.

Embora o primeiro ponto seja de menor importância lógica, não é sem valor ad
hominem, e além disso, talvez encontre mais aceitação. Os cientistas, assim como o

165
cidadão comum podem ver claramente que não há nada nos métodos de laboratório que
exija como ideal a supressão governamental da religião.

É verdade que há um “cientificismo”, adoptado pelos Comunistas, que consideram a


religião um ópio. Este ateísmo limitaria todos os objectivos e ideais deste mundo; não
há reino sobrenatural, nem vida após a morte, nem mundo futuro. E visto que essa é
uma verdade absoluta e fixa, os comissários justificam-se impedindo os pais de ensinar
religião aos seus filhos. Mas o argumento que conduz uma descrição de métodos de
laboratório para a conclusão de que o secularismo é desejável não existe.

Mesmo se pudesse ser mostrado - visto que de facto não pode - que os métodos
laboratoriais implicam validamente o totalitarismo secularista, o segundo não seria
assim ideal. Nesse caso, muitas pessoas escolheriam mais liberdade e menos ciência. Os
desconfortos físicos de uma sociedade pré-científica são menores em comparação com a
tortura espiritual de uma burocracia inquisitorial.

A lacuna entre as premissas do método científico e os ideais que Dewey e Kilpatrick


oferecem como conclusões não é menos real, se bem que um pouco menos evidente, no
caso da saúde e do transporte, do que no caso da liberdade religiosa. Boa saúde e
transporte veloz não foram feitos desejáveis por qualquer progresso da técnica
científica. Eles não estavam no primeiro lugar escolhido como ideal por qualquer
conhecimento científico incipiente. Obviamente, a ciência fez maravilhas na medicina e
aumentou a velocidade do transporte além da imaginação mesmo de Jules Verne; mas a
ciência não faz com que os homens os desejem, nem os torna desejáveis. Pelo contrário,
é pelo facto dos homens os escolherem como ideais que os cientistas começaram a
procurar meios de protegê-los.

De facto, quanto mais a ciência é enfatizada como instrumental, mais evidente fica que
não pode estabelecer fins ou ideais.

Esta é a segunda parte da crítica final. O método científico não pode produzir ideais. A
ciência é instrumental. Se um grupo de educadores deseja extinguir a liberdade
religiosa, uma atenção científica aos detalhes, e relações de psicologia, sociologia e
política irão ajudá-los para esse fim. A mesma técnica científica pode ser usada para o
propósito oposto. As técnicas da medicina podem curar doenças que foram geralmente
fatais nos séculos atrás; mas esse mesmo conhecimento técnico pode ser facilmente

166
usado para produzir essas doenças. De facto, a pesquisa sobre o câncer actualmente está
interessada em produzir câncer. Mas nenhuma técnica instrumental, seja médica ou
política, pode fornecer qualquer base para decidir como usá-la.

Portanto, a tentativa humanista contemporânea de resolver os problemas da ética pela


aplicação de métodos científicos deve, felizmente, ser julgada um fracasso.

Visto então que essa crítica engloba teorias seculares anteriores como o Utilitarismo,
parece seguir-se que uma consideração mais compreensiva da revelação divina deve ser
dada em relação ao costume nas universidades da nossa terra. Para uma discussão da
ética Cristã, portanto, agora nos voltamos.

ÉTICA CRISTÃ

No final do primeiro capítulo, foi dito que soluções ou conclusões podem basear-se
apenas em premissas definidas. Observações dispersas, insights místicos e
generalizações mal definidas não fazem apelo lógico. O volume actual, portanto, é
baseado na verdade da Bíblia; e por causa de interpretações erradas e formulações
inconsistentes, o sentido da Bíblia é determinado pela Confissão de
Westminster. Nenhum pedido de desculpas é oferecido para este procedimento; parece
apenas honesto afirmar as premissas do argumento.

O Legislador Divino

É claro que será universalmente admitido que a Bíblia apresenta Deus como
o governador moral e juiz do mundo. A Bíblia contém mandamentos, preceitos,
leis; advertências, garantias, exortações; ameaças de punição e a promessas do
céu. Entretanto, para o presente propósito, outra das prerrogativas de Deus precisa ser
enfatizada. Deus não é só o governador e juiz; antes disso, ele é o legislador. É sua
vontade que estabelece a distinção entre bem e mal, certo e errado; é a vontade dele que
define as normas de conduta justa. Para aqueles que não estão familiarizados com a
história do assunto, este pensamento deve ser um pouco desenvolvido.

Em Eutífron, de Platão, Sócrates pergunta ao jovem o que é piedoso ou correcto. Depois


que a confusão habitual entre o exemplo e a definição é esclarecida, Sócrates extrai a
resposta de que a piedade é aquilo que é querido pelos deuses. O politeísmo Grego deve
se preocupar com a possibilidade de que os deuses discordem, mas essa parte do diálogo

167
não é necessária aqui. O que é de importância permanente é a próxima pergunta de
Sócrates: um acto é sagrado e piedoso porque é querido pelos deuses, ou um acto é
querido pelos deuses porque é sagrado?

Neste ponto, o tratamento de Platão em relação a esta dificuldade torna-se


extremamente instrutivo. Utilizando o método indutivo comum aos primeiros diálogos,
Sócrates continua: falamos de ser carregado e de carregar, de ser liderado e de liderar,
de ser visto e de ver; então, também, nós concebemos o ser amado e amar. Agora, diga-
me, diz Sócrates, é uma coisa que é carregada uma coisa carregada porque alguém a
carrega, ou alguém a carrega porque é uma coisa carregada? Mais uma vez, é uma coisa
que é vista uma coisa vista porque alguém a vê, ou alguém a vê porque a coisa se
vê? As respostas, claro, são óbvias. Da mesma forma, uma coisa é amada porque
alguém a ama; não é amada porque é amável.

Aqui é melhor citar exactamente:

O que então diremos sobre a piedade, Eutífron? Você admite que ela é uma coisa
amada por todos os deuses, não é?

Sim.

É amada pelos deuses porque é piedade ou por algum outro motivo?

Não; mas por esse motivo.

Por isso, é amada porque é piedade; mas não é piedade porque é amada. Assim parece.

Mas o que é querido pelos deuses e amado por eles é assim porque eles amam isso.

Como poderia ser diferente?

Então segue-se que aquilo que é querido pelos deuses, meu Eutífron, não é a definição
de piedade.

O que é notável nessa conversa é a completa ausência de argumento sobre o ponto


essencial. Ao contrário dos exemplos nos outros diálogos, a indução aqui não tem
nenhuma conexão com a conclusão. De facto, a indução, se realizada, levaria
exactamente à conclusão oposta. Platão apenas afirma que os deuses amam a piedade
porque é piedade. Nenhuma razão é dada. Ele simplesmente não podia imaginar alguém
entretendo uma opinião diferente.

168
A conclusão é naturalmente consistente com a visão de mundo de Platão. No Timeu, o
Demiurgo - a divindade pessoal que modela este mundo físico fora do espaço caótico -
recebe seu plano de operação de um mundo de idéias que existe independentemente. O
criador do mundo visível não é o criador dessas idéias. Naturalmente, Platão
argumentou extensivamente para estabelecer a teoria das Idéias, mas sua relação com a
divindade pessoal parece ter sido decidida desde o tempo dos primeiros diálogos.

No Cristianismo, e até mesmo em Fílon de Alexandria, isso é invertido. Deus é


supremo, e quaisquer idéias que possam ser requeridas dependem do que a vontade de
Deus pensa. Deus é o legislador, e a piedade é determinada pelo seu decreto preceptivo.

Ética e Teologia

Antes que esta visão Cristã seja elucidada, um exemplo da posição Platónica na forma
moderna deve ser dada para aumentar o contraste. Emanuel Kant, embora não aceitasse
a teoria das idéias, deixou muito claro que a teologia não pode servir de base para a
ética. Com o seu imperativo categórico, ele esperava distinguir entre um acto moral e
um acto imoral uma análise puramente lógica da máxima do acto. Qualquer pessoa, ele
pergunta, faz uma promessa com a intenção secreta de quebrá-la? É permitido fazer uma
promessa exclusivamente com o propósito de evitar um presente desagradável?

Tais questões são respondidas por uma tentativa de universalizar a máxima


envolvida. Neste caso, a máxima seria: é certo fazer uma promessa sem pretender
preservá-la para escapar de um constrangimento presente. Isso pode ser
universalizado? Isso pode ser feito em uma lei universal sem auto-contradição? Não, diz
Kant, não pode, porque se todos fizessem promessas falsas, essas promessas não mais
serviriam ao objectivo de evitar o embaraço. Ninguém mais seria enganado
por elas. Elas funcionam apenas quando se assume que são sinceras. Portanto, a máxima
é auto-contraditória ou auto-destrutiva. Isso para Kant é o critério decerto e errado. Ele
não faz apelo aos mandamentos, recompensas ou punições divinas.

Pelo contrário, enquanto a teologia não contribui para a ética, a ética é um pressuposto
da teologia. Quão seriamente deve se levar as afirmações teológicas de Kant, e se ele
acreditava em um Deus pessoal ou não, pode ser discutível; mas se há uma teologia,
essa teologia teria que usar a ética como sua base. Um conhecimento de Deus deve ser
derivado, se em absoluto, de um conhecimento da moralidade.

169
Kant, claro, não era Cristão. Mas por causa de certas circunstâncias históricas tem sido
possível para os escritores Cristãos adoptarem uma forma do Kantianismo ou o
Platonismo em sua defesa do Cristianismo.

As circunstâncias históricas são, brevemente, o sucesso do Cristianismo no mundo


ocidental. Sua influência é difundida e seus ensinamentos morais têm sido amplamente
aceites. De tal forma que a moralidade Cristã tem sido aceita como o ideal que os
escritores têm argumentado: Visto que os padrões Cristãos são os mais altos, a religião
Cristã deve ser verdadeira. A correcção da ética prova a verdade da teologia. Esta defesa
do Cristianismo contra seus inimigos se apoia na suposição de sua excelência moral.

Mas se a premissa for negada, o que acontece com a apologética? Pode ter havido
épocas e lugares em que ninguém pensaria em negar a excelência dos padrões
Cristãos. No entanto, uma vez que, esse não tem sido o caso na China, por exemplo, o
argumento dificilmente poderia ter parecido convincente para os Chineses. Hoje a China
está muito mais perto de nós. De facto, não adianta insistir nas antigas nações pagãs. Os
filósofos de língua Inglesa contestam diariamente a excelência da moralidade
Cristã. Não é necessário referir-se a Nietzsche - ele escreveu em Alemão; os humanistas
discutidos acima são igualmente bons exemplos. Quando este facto é reconhecido, então
o argumento da ética Cristã deve ser reconhecido como invertido. Ninguém pode
discutir a verdade do Cristianismo com base em sua ética; é preciso defender sua ética
com base em sua verdade teológica. A ética não é uma premissa, mas uma conclusão. A
teologia é a base.

Ninguém com qualquer formação Cristã iria, suponho, querer depreciar a


moralidade. No entanto, é bem possível exagerar sua importância, e então, entender mal
o seu lugar relativo na filosofia, resultando desta feita em confusão moral e teórica. Esta
ênfase excessiva na moralidade, pelo que parecia, é uma causa importante que contribui
na ascensão do modernismo. A autoridade da consciência foi preservada, uma
consciência moral foi desenvolvida, buscaram-se instituições éticas. E visto que esses
aspectos de natureza humana - indispensáveis como são - foram continuamente trazidos
para frente, eles vieram usurpar a posição do juiz supremo.

170
Um exemplo interessante, instrutivo e importante desse tipo de raciocínio - tirado do
auge do seu vigor - é encontrado em Newman Smyth.91 Depois de citar um teólogo
Puritano que disse: “Piedade, portanto, que é a prática da Verdade divina, é a medida de
todas as verdades intelectuais”; Smyth continua, talvez além da intenção do

Puritano e diz:

A velha teologia está sempre se tornando nova na influência vitalizadora da ética … A


razão é suficiente para duvidar e para re-estudar qualquer ensino tradicional ou palavra
de doutrina recebida se ela se sentir perturbada ou confusionada pela consciência Cristã
de uma era. Nada pode permanecer como verdade em teologia que não prove a sua
autenticidade sob a busca sempre renovada do senso moral Cristão. Ainda
menos, podemos permitir na ética Cristã qualquer crença dogmática que coloque em
laços o próprio princípio ético Cristão; como, por exemplo, o princípio de que a
moralidade depende da vontade divina. A ética Cristã não pode consentir em cometer
suicídio em qualquer suposto interesse da teologia.

O apelo de Newman Smyth aos factos observáveis pela consciência Cristã, deixa sem
resposta a dificuldade de distinguir um Cristão de uma consciência não Cristã. Quando
esta questão é levantada, a teologia deve entrar como o factor decisivo. O procedimento
de Smyth é incapaz de enfrentar essa questão por causa de sua negligência da revelação
Bíblica. Ele deve assumir que de alguma forma, as normas éticas podem ser destiladas
da consciência, deixando de perceber que essas normas nunca foram aceitas onde
previamente a teologia Bíblica não foi pregada. E, finalmente, sua recusa em tornar o
princípio ético dependente da vontade divina coloca-o, a este respeito, pelo menos, ao
lado de Platão e Kant.

Em oposição a tudo isso, o Cristão - isto é, a visão Bíblica - é que Deus é o


legislador. Não é a lei, mas o legislador é o supremo.

Soberania Divina

Se então o Deus pessoal é supremo e todas as leis dependem de sua ordenação, segue-se
que não há lei superior para restringir a sua soberania. A maioria das pessoas acha fácil
conceber Deus como tendo criado ou estabelecido a lei física pelo decreto divino. Ele
poderia ter criado um diferente tipo de mundo, se quisesse. Não parece esticar muito a
imaginação, imaginar um mundo onde os pontos de congelamento são tão organizados
que teríamos que colocar água no radiador para evitar o congelamento do álcool. E por

91
Newman Smyth, Christian Ethics, 1892, re-publicado em 1922.

171
que o álcool não poderia conduzir, assim como a água, a expansão do
resfriamento? Nem incomoda a alguns teólogos supor que vários detalhes do ritual
Mosaico poderiam ter sido diferentes. Em vez de exigir que os sacerdotes carregassem a
arca em seus ombros, Deus poderia ter proibido isto e ordenado que a arca fosse
carregada em uma carroça puxada por bois. Mas, por alguma razão peculiar, as pessoas
encontram dificuldades na aplicação da mesma consideração à ética. Em vez de
reconhecerem Deus como soberano na esfera moral, querem submetê-lo a alguma lei
Platônica independente e superior. Isso é inconsistente.

No entanto, neste momento, algumas pessoas muito conscientes levantam uma objecção
aparentemente séria à visão aqui delineada. Se essa visão fosse verdadeira, elas dizem:
a honestidade pode não ser a melhor política. Se a moralidade depende puramente da
vontade da ordenança de Deus, assim como as leis da física, então, possivelmente,
roubar seria correcto e correcto seria errado. No entanto, o facto de termos nos
acostumado a determinados padrões éticos não é razão para acreditar que Deus
tinha que fazer o mundo desta maneira. Mesmo que nossas opiniões morais estejam
correctas, não é mais uma razão para acreditar então que o nosso conhecimento de física
coloca Deus sob a compulsão das leis físicas. Certamente, neste mundo a honestidade é
melhor. Mas é melhor precisamente porque Deus fez o mundo desta maneira. Tudo o
que Deus faz é certo, porque ele faz isso; e se não tivéssemos conhecimento de Deus,
não poderíamos adivinhar que tipo de padrões morais ele poderia estabelecer para
algum mundo hipotético que agora não existe. O motivo pelo qual nos opomos ao roubo
ou a qualquer outro pecado é que aprendemos que é contrário ao decreto de
Deus. Precisamos aprender primeiro o plano de Deus e desenvolver nossa
moralidade depois. Devemos ajustar nossa ética à nossa teologia, não vice-
versa. Devemos argumentar, não a partir de nossos padrões morais para a verdade da
Bíblia, mas a partir da verdade da Bíblia para a moralidade que ela sustenta.

Uma palavra de cautela é necessária aqui. Esta discussão não tem particular importância
na imutabilidade divina. Argumentou-se que Deus poderia ter criado um mundo físico
diferente, se ele assim quisesse. Nada foi dito, de um modo ou de outro, em relação a se
Deus poderia assim desejar. Possivelmente a imutabilidade do propósito e a eternidade
dos decretos implicam que este é o único mundo possível - uma reviravolta Calvinista
para uma frase Espinosista. Contudo, se isto for assim, e se é sem sentido supor que
Deus poderia pensar diferentemente, permanece o argumento de que a moralidade, tanto

172
quanto a física, é o que é porque Deus pensa desta forma. Como os Puritanos
costumavam dizer, o decreto de Deus é simplesmente a decretação de Deus.

Antes que o mínimo de evidência Bíblica para essa visão seja estabelecida, pode ser
bem notado que a discussão não é um eco morto de um passado Platônico antigo. Nem
foi terminada por Kant e Newman Smyth. Pelo contrário, está viva hoje e continuará
assim no futuro previsível.

Um Exemplo Contemporâneo

Apenas um exemplo será dado. Dr. Edward John Carnell escreve como se segue:

Se não podemos antecipar o carácter de Deus usando elementos extraídos do ambiente


moral e espiritual, então, pela mesma prova não temos como julgar o carácter dos
representantes de Deus, já que esta decisão, apesar de ter sido removida, envolve
a mesma dificuldade. A menos que possamos antecipar, significativamente a vontade
dos padrões de Deus da rectidão, pode acontecer que o livro, a igreja ou a
casta sacerdotal que é menos moral em padrões humanos, seja o mais moral em padrões
divinos; e mais uma vez ficamos com o cepticismo.92

Esta é a posição contra a qual o argumento precedente foi dirigido. Em certo sentido, a
citação não contém nada essencialmente novo. Mas noutra declaração, há algo digno de
nota sobre ela. É a declaração de um evangélico professo do século XX. Agora, no
entanto, poderia ter sido de Cristãos sinceros de idades anteriores, em relação a alguém
escrevendo hoje pode se esperar que tome nota de como este ponto de vista tem sido tão
frequentemente usado para se opor ao Cristianismo. De facto, essa era a intenção
de John Stuart Mill, a quem o Dr. Carnell realmente elogia algumas páginas
anteriormente.

Então, também, foi precisamente por esse método que Mary Baker Eddy procurou
refutar a doutrina da expiação. A propiciação, que o Dr. Carnell defende, parecia
impossível para a senhora Eddy. “Qualquer pessoa que acredita que a ira é justa ou que
a divindade é apaziguada pelo sofrimento humano não entende Deus” (Ciência e Saúde,
capítulo 2). Isso não pode ser razoavelmente parafraseado, quem acredita que a ira é
justa não antecipa significativamente os padrões da rectidão de Deus?

Da mesma forma, Edwin A. Burtt condena a Cristo porque a moral de Cristo é


inferior ao Socialismo humanista de Burtt .

92
Edward John Carnell, Christian Commitment, 142.

173
A possibilidade de que o livro, a igreja ou a casta sacerdotal, que é menos moral em
padrões humanos, seja mais moral em padrões divinos, é uma objecção sem
força. Considere uma mulher Hindu devota do último século, que, com uma consciência
tão vazia de ofensa tal como Paulo quando perseguia a igreja primitiva, estava
sacrificando seu pequeno filho infantil para seu deus pagão. Por todos os seus padrões
humanos ela estava fazendo certo, e pareceu-lhe que a omissão deste dever seria
irreligioso. Finalmente um Cristão missionário vem até ela e tenta convencê-la de que o
livro, o igreja, e a casta sacerdotal que ela considera mais moral, não são assim, mas que
pelos padrões divinos o que ela acha irreligioso é o certo. O quê mais poderia um
missionário fazer? Isto é então uma objecção contra o Cristianismo? Na verdade, é de se
esperar que a moral Cristã seja diferente do que o homem natural antecipa.

Abraão, o Pai de Todos Nós

Para fazer um claro contraste entre a objecção Platônica e a posição Bíblica, e dar pelo
menos um mínimo de apoio Bíblico directo a soberania na ética, não há melhor exemplo
do que o de Abraão. Abraão tornou-se um assunto favorito de discussão em tempos
recentes. Às vezes ele é usado para provar a superioridade da cultura Suméria sobre a de
Canaã. É suposto que em Ur o sacrifício humano tenha chegado ao extremo, mas em
Canaã de forma ainda mais brutal era praticado. Abraão, então, ergueu a cultura de
Canaã por não sacrificar Isaque. Mas se fosse assim, a vontade inicial de Abraão de
sacrificar Isaac seria inexplicável. Compatível ou não com este motivo sociológico
pagão, outros autores, entre os quais o primeiro é Kierkegaard, vêem um conflito entre a
religião e ética. Um escritor diz:

Obviamente, a ordem de Deus para Abraão de que ele sacrificasse seu único
filho era imoral, e ela embaraçou não só o moderno, mas também perturbou
Abraão. E se nós consideramos o comando simplesmente como teste de Deus a
Abraão e, assim, moralizar a história, não temos enfrentado a questão levantada
pela ordem imoral de Deus e sua aprovação da obediência de Abraão a ela.

É certo que o escritor citado faz algumas declarações numa sequência que modifica em
certa medida a primeira impressão dessas frases. Mas todas essas
interpretações complicam a história de Abraão, por ler nela elementos que não estão
lá. Em particular, um conflito - um falso conflito entre religião e ética - é produzido pelo
pressuposto de que a ordem de Deus para sacrificar Isaque era imoral. Onde o texto faz
essa afirmação? Pode ser verdade que os Sumérios consideravam o sacrifício humano

174
como imoral, mas a questão não é sobre a opinião Suméria. A questão é: A ordem de
Deus foi imoral?

O próprio texto nos diz que Deus disse a Abraão: “Tome agora o teu filho, o teu único
filho, Isaque, a quem amas... e oferece-o ali em holocausto sobre uma das montanhas.”
Agora, se Abraão tivesse concordado com os princípios do professor Carnell, se ele
tivesse tornado a teologia auxiliada pela ética, se ele tivesse julgado esta ordem por uma
“antecipação” dos padrões da rectidão de Deus, ele teria concluído que esta sugestão
estava vindo, não de Deus, mas de Satanás. Se esta não fosse a voz de Satanás, se
alguém pudesse não antecipar a natureza dos mandamentos divinos, então a voz que é
menos moral de acordo com os padrões humanos pode ser o mais moral de acordo com
os padrões divinos; e visto que isso não pode ser verdade, a ordem de sacrificar Isaque
não veio de Deus.

Abraão, é claro, não argumentou nesse sentido. Pelo contrário, ele reconheceu que era a
voz de Deus e, portanto, ele estava preparado para obedecer, sem se importar com a
ordem. Sem dúvida, Deus havia proibido anteriormente o sacrifício humano; e enquanto
essa ordem permanecesse em vigor, o sacrifício humano era pecado. Mas se agora, por
algum período indeterminado de tempo, Deus ordena o sacrifício humano, então ele
torna-se obrigatório e correcto. Não há padrão ético formulado através da observação
empírica, não, nem mesmo uma ordem anterior do própria Deus, basta o repúdio da
próxima ordem vinda de Deus.

Isso, no entanto, não significa que ficamos com o cepticismo moral, como Dr. Carnell
afirma. Ficamos com as ordens definidas de Deus. Temos a sua completa
vontade preceptiva nas Escrituras. Claro, se o cepticismo significa que o homem sem
uma revelação sobrenatural não pode estabelecer normas de moralidade, assim seja. As
análises das seções anteriores não poderiam ter chegado nesta conclusão. Nem
Utilitarismo, nem Kant nem Dewey podem antecipar os padrões da rectidão de
Deus. Mas o fracasso das éticas não-revelacionais não deixa o homem sem
conhecimento do certo e errado. Se o cepticismo significa que o homem não pode ter
conhecimento, então um apelo a revelação, com sua subordinação da ética à teologia,
não é cepticismo. Mas todo o restante é.

175

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