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GORDON H. CLARK
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[Nota do tradutor] Esta tradução não inclui o último capítulo denominado Deus e o Mal, visto que a
editora Monergismo publicou-o em um livro intitulado - DEUS E O MAL: O problema resolvido.
ÍNDICE
PREFÁCIO
PREFÁCIO DA SEGUNDA EDIÇÃO
O CRISTIANISMO É UMA RELIGIÃO?
Unidade e Multiformidade
Uma Separação Desconcertante
A ABORDAGEM PSICOLÓGICA
Emoção versus Intelecto
Noções Preconcebidas
John Bunyan e Jonathan Edwards
A Descrição Explica?
A Descrição Descobre?
Descrição e Pressuposição
Integração da Personalidade
O MÉTODO COMPARATIVO
Deus é Essencial para a Religião?
A Caça ao Snark
Necessidades Humanas Comuns
Palavras Significativas
CRISTIANISMO
Definição do Cristianismo
As Religiões
Conversão Cristã
Pecado
FÉ E RAZÃO
RAZÃO E FÉ
Teologia Natural
O Argumento Cosmológico
David Hume e Charles Hodge
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RAZÃO SEM FÉ
Irreligião Inicial
Racionalismo
Empirismo
Emanuel Kant
Hegel e seus Críticos
Ignorância Absoluta
FÉ SEM RAZÃO
Tipos de Misticismo
Karl Marx
Søren Kierkegaard
Friedrich Nietzsche
William James
Emil Brunner
FÉ E RAZÃO
Religião Popular
Análise da Personalidade
Confiança e Assentimento
Anti-intelectualismo
A Fé Reformada
Definição de Razão
INSPIRAÇÃO E LINGUAGEM
As Reivindicações Bíblicas
A Objecção do Ditado
TEORIAS CONTEMPORÂNEAS
Linguagem Religiosa
Linguística
Naturalismo e Behaviorismo
A Teoria Simbólica
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LINGUÍSTICA TEÍSTICA
Teologia versus Linguagem
Linguagem Literal
POSITIVISMO LÓGICO
REVELAÇÃO E MORALIDADE
Desacordo Ético
UTILITARISMO
O Maior Bem para o Maior Número
Cálculo
O Bem
Valores na Experiência
DEWEY E O INSTRUMENTALISMO
Mudando a Moralidade
Valores na Experiência
Segurança e Ética Científica
Ideais Maus
Assassinato
Vale a Pena Viver a Vida?
Crítica Final
ÉTICA CRISTÃ
O Legislador Divino
Ética e Teologia
Soberania Divina
Um Exemplo Contemporâneo
Abraão, o Pai de Todos Nós
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PREFÁCIO
Thomas W. Juodaitis
Agosto de 2011
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PREFÁCIO DA SEGUNDA EDIÇÃO
Religião, Razão e Revelação é uma das maiores defesas da fé Cristã jamais escrita. É
um modelo de sabedoria e análise; nele Dr. Clark refuta dois dos amplos movimentos
filosóficos que se opõem ao Cristianismo e as argumentações específicas de muitos
autores modernos. É surpreendente perceber quão abrangente é a defesa deste livro:
Clark devasta a noção superficial de que o Cristianismo não é único – de que o
Cristianismo pertence a uma categoria chamada Religião - uma noção que é a base de
todos os movimentos ecumênicos sobre os últimos dois séculos; ele aniquila o
positivismo lógico e o pragmatismo; ele abate o empirismo, o racionalismo e o
materialismo; e ele imparcialmente desmembra-se e desfaz-se de Tomás, Kant, Hegel,
Kierkegaard, Marx, Bentham, Nietzsche e Dewey. Religião, Razão e Revelação no
entanto, não apenas termina com a destruição filosófica de filosofias não-Cristãs; Clark
prossegue mostrando como o Cristianismo Bíblico responde as questões e resolve os
problemas - incluindo o problema do mal - que outras filosofias e religiões deixam sem
resposta e sem solução. O resultado é uma festa esplêndida para a mente e uma defesa
triunfante da verdade Cristã. Religião, Razão e Revelação bem merece a sua reputação
como uma obra-prima de apologética. Deixem que tanto o aluno quanto o professor
leiam estas páginas e aprendam como a fé deve ser defendida.
John W. Robbins
Junho de 1995
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O CRISTIANISMO É UMA RELIGIÃO?
Existe algo como religião, da qual o Cristianismo é uma manifestação? Esta questão é
importante por duas razões: a sua resposta influenciará e revelará o que a pessoa
acredita ser o Cristianismo; e em uma escala mais ampla, determinará o método que
deveria ser usado na formulação de uma filosofia da religião. Portanto, façamos a
pergunta pela segunda vez de forma ligeiramente diferente. O Cristianismo é algum tipo
de classe? Se isso for respondido afirmativamente ou negativamente, certos problemas
adicionais serão introduzidos. Se o Cristianismo for um tipo de classe religiosa, como a
religião será definida e quais serão as características Cristãs diferenciadoras? Se não for,
que tipo de filosofia da religião pode existir, e que tipo de filosofia Cristã pode existir
também? Aparentemente o primeiro passo para examinar essas questões deve ser a
definição de religião. O que é religião?
Unidade e Multiformidade
A religião é familiar ao homem comum em todas as épocas e nações. Ele executa seus
ritos simples ou complicados; ele acredita em suas doutrinas. Por mais justificada que
seja a queixa ortodoxa ou a exultação ateísta de que uma determinada religião está
perdendo seu poder sobre o povo, as experiências incessantes ainda permanecem uma
força familiar. Entre os versados também, é um assunto familiar de discussão. No que
concerne a produção de muitos livros sobre o assunto geral da Religião, a Psicologia da
Religião, a Filosofia da Religião, e a História da Religião, não há fim. Mas embora a
religião seja um fenômeno tão multiforme assim como familiar, ambas as características
contribuem para a dificuldade de compreendê-la.
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ao mesmo tempo os diferencia de outras famílias. A mesma coisa não pode ser feita
para as religiões?
Como é de se esperar, essa maneira de ver o assunto foi tentada. Não só, mas é o
método usual de procedimento. Parece ser apenas senso comum. Por exemplo, Winston
L. King, em sua Introdução à Religião, escreve que as religiões são uma, bem como
muitas. Embora ele faça a obscura negação de que elas têm qualquer denominador
comum “de uma natureza neutra”, há “algum tipo de unidade” e há “semelhanças reais”.
No final de oitenta páginas, ele conclui: “Temos tentado usar o termo „religião‟, bem
como „religiões‟ com a confiança de que tem algum significado notável.” Frases como
essas em uma tentativa de oitenta páginas em definir religião, indicam a presença de
dificuldades. Aparentemente botânica é um assunto mais fácil que a religião. Mas outro
autor mostra mais confiança. O Professor William E. Hocking, em Religiões Vivas e
uma Fé Mundial, começa afirmando: “Em sua natureza, a religião é universal e única”.
De facto, Hocking pretende com essa afirmação dizer que a religião é uma no sentido de
que todos os membros da Família Lily são uma só Família, pois ele vai além e reclama
que a pluralidade das religiões é um escândalo para o próprio homem religioso, para o
filósofo e para o estadista que deseja unificar sua comunidade. Mas por que deveria ser
escândalo? A pluralidade de lírios não é escândalo para o botânico. A pluralidade de
religiões deveria ser escandalosa para o filósofo? E por mais escandalosa que seja a
pluralidade de religiões para o “estadista” que deseja unificar sua comunidade, essa
mesma pluralidade pode parecer uma bênção para os indivíduos amantes da liberdade,
que pensam que algumas sociedades já foram muito completamente unificadas. O que
pode ser a religião, se é uma unidade mais perfeita que as unidades genéricas de
botânica? Por que a unidade da religião deve excluir diferenças específicas? Em um
volume posterior, The Coming World Civilization, o professor Hocking repete suas
vigorosas afirmações de unidade. Na quinta seção do livro, para justificar a
identificação de todas as religiões em essência, ele argumenta que “Afirmação não é
exclusão” (137). De acordo com Hocking, a fé Cristã, e a doutrina Budista, não se
oferecem como hipóteses que competem com outras hipóteses. Cada uma diz: este é um
caminho para a paz; e tal afirmação não exclui outros modos. Num sentido existe um
único caminho, mas não é o único caminho de uma religião particular. Isto é um
caminho universal. A essência dos preceitos e doutrinas que os místicos em todas as
religiões discerniram é a mesma. As combinações não são nem mesmo mera
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semelhança; elas são identidades. Assim, o único caminho não é o caminho que marca
uma religião de outra, mas “é o caminho já presente em todas…. As várias religiões
universais já estão fundidas, por assim dizer, no topo.”2
Naturalmente, tal visão estimula muitas questões. Por exemplo, pode se perguntar,
Hocking baseou suas declarações em um estudo empírico sobre as diversas religiões? É
isso que as religiões afirmam ou admitem? Como Hocking chegou a conclusão de que
as doutrinas de todas as religiões são essencialmente idênticas? Se isso é apenas o que
alguns místicos em todas as religiões afirmam, o estudante de religião pode aceitar a
avaliação mística e desconsiderar o que outros membros das mesmas religiões afirmam?
Isto é incostestável, pelo menos, aquele princípio de Hocking, “afirmação não é
exclusão”, está em conflito com os ensinamentos explícitos de algumas religiões. A
declaração de Cristo no Evangelho, “ninguém vem ao Pai senão por mim”, é
decisivamente exclusiva. Da mesma forma, o Apóstolo disse: “debaixo do céu nenhum
outro nome há, dado entre os homens, pelo qual devamos ser salvos”. Hocking teria que
sustentar que Cristo não é essencial para o Cristianismo. Mas é claro, essa crítica é
prematura, pois no começo parece razoável - especialmente para quem está escrevendo
um livro sobre religião - supor que deve haver algum tipo de unidade, seja uma unidade
genérica ou alguma do tipo ainda mais profunda, que faz da religião um único assunto
de discussão.
Embora esse princípio possa parecer promissor e até mesmo necessário, sua aplicação já
é vista como tendo grande dificuldade. É possível que a muita familiaridade no que diz
respeito a experiência religiosa seja uma das causas de seu desafio teimoso de análise.
De qualquer forma, uma comparação dos muitos volumes sobre religião divulga uma
separação desconcertante. De outro modo, apesar da semelhança de títulos, os autores
não estão escrevendo sobre o mesmo assunto, ou, apesar da extensão dos livros e seu
versado vocabulário, eles não sabem sobre o que estão escrevendo.
A primeira metade dessa separação reflecte aqueles autores que - como King - de forma
directa, corajosa e louvável, formularam uma definição explícita de religião. Uma
tentativa directa é razoável porque se espera que um escritor declare o assunto que
pretende estudar. Mas uma rápida pesquisa dessas definições mostra que, quanto mais
2
William Ernest Hocking, The Coming World Civilization, 149. Os itálicos são de Hocking
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precisos são os autores, mais obviamente eles não estão falando sobre a mesma coisa.
King em sua definição praticamente inclui uma crença em Deus - pelo menos ele
escreve o objecto de devoção com O maiúsculo, e enfatiza ainda mais no capítulo
seguinte (74ff.). Juliano Huxley, por outro lado, em Religion Without Revelation, diz
que a realidade religiosa essencial não é Deus, mas um sentido do sagrado, tal como a
sensação de fome ou de emoção da raiva é irredutível. Embora essa última definição
não seja tão precisa em sua afirmação assim como em sua negação, é todavia precisa o
suficiente para ver que King e Huxley não estão falando sobre a mesma coisa quando
usam o termo religião. Existem outras definições Humanísticas de religião que podem
ser consideradas vagas ou precisas, dependendo de como se olha para elas. O Manifesto
Humanista constitui a religião como aquelas acções, propósitos e experiências que são
humanamente significativas. Agora isso pode ser vago e sem sentido; mas se for
considerado no seu valor nominal literal e atribuído um significado inteligível, uma
questão interessante vem adiante. Uma apendicectomia não é humanamente
significativa? Então segue-se que apendicectomias são exercícios religiosos. É evidente,
portanto, que o que os humanistas chamam de religião não é a mesma coisa que os
outros autores estão discutindo. Mais uma vez, William James foi preciso o suficiente
quando falou da religião como as experiências dos homens em sua solidão; mas outros
escritores são precisos em definir a religião como algo social. E o adorador devoto em
qualquer uma das várias religiões pode não gostar de nenhuma dessas definições.
Claramente o que um homem chama de religião, outro não reconhece como tal. Quanto
mais preciso for a definição, mais claramente verificar-se-á que os escritores não estão
escrevendo sobre o mesmo assunto.
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retornar para o que as pessoas comuns entendem por comportamento religioso.”3 Esta
admissão inicial de fracasso, entretanto, não impede que o cavalheiro escreva seu livro -
um paradoxo humorístico que ele mesmo parece gostar. Agora, há razões poderosas
para aceitar a posição de que a religião não pode ser definida. De facto, essa é a
principal conclusão deste capítulo. Será definitivamente mostrado que não podemos
com confiança, repetir uma frase de King, supor que a religião tem um significado
notável. Esta conclusão, por vezes, leva à desorientação de Grensted. Há, no entanto,
outra alternativa a ser mencionada mais adiante. Mas, por enquanto, e particularmente
na abertura da discussão, não se deve simplesmente assumir a impossibilidade de definir
religião. É melhor examinar os dois principais métodos usados na tentativa de enquadrar
uma definição; e, se ao fazê-lo, estivermos razoavelmente convencidos de que o
problema é insolúvel, teremos aprendido as razões precisas para o fracasso.
A ABORDAGEM PSICOLÓGICA
Em geral, dois métodos foram usados para distinguir a religião de outros objectos de
estudo. O segundo método - baseado no exame da multiformidade do Islamismo,
Xintoísmo, Bramanismo e assim por diante – pode ser chamado de método
comparativo. Mas o primeiro a ser considerado é a abordagem psicológica, baseada na
familiaridade íntima da experiência.
3
L. W. Grensted, The Psychology of Religion, 15.
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“ossos nus das declarações intelectuais de dogma religioso” em oposição aos
“fenômenos vitais da respiração e da movimentação religiosa”.
Ou, considere um pouco mais as opiniões de outro estudioso conhecido que coloca a
ênfase na emoção. James Bissett Pratt, em The Religious Consciousness, consciente das
dificuldades em enquadrar uma definição, admite que em muitos aspectos a sua própria
definição é provavelmente tão má como quaisquer outras; mas ele sustenta que uma
palavra nela atinge a marca com bastante precisão. A religião, diz ele, é uma atitude
séria em relação àqueles poderes que as pessoas acreditam controlar seus destinos. É a
palavra atitude que ele enfatiza, e através da qual ele minimiza o intelecto. Em seu
estudo da conversão ele afirma que “o essencial da conversão é a unificação do
carácter”, e que esta é “realmente importante e a única parte essencial disso…” (123).
Isso envolve vontade, emoção e pensamento, mas isso é principalmente “moral”. “Nem
o lado intelectual do processo deve ser negligenciado, embora seja francamente o menos
perceptível dos três. Na maioria dos casos, isso parece diversão, mas do lado negativo.”
Noções Preconcebidas
Correndo o risco de antecipar muito do argumento posterior, pode ser melhor mesmo
neste ponto questionar se toda a unificação de propósito ou carácter é religiosa. Como
um exemplo de conversão, Pratt escolhe a experiência de um certo Ardigo que
renunciou o sacerdócio Católico Romano para se tornar um cientista positivista. Agora,
esta é sem dúvida uma conversão de um tipo; mas é uma conversão religiosa? Claro que
a resposta a esta questão depende da definição de religião. Pratt defende sua escolha de
exemplos com base no facto de que ele não permitiu noções preconcebidas derivadas da
teologia Cristã para influenciá-lo. Presumivelmente, escolher como exemplos de
conversão apenas os casos que estão de acordo com a teologia Cristã, seria perder a
reivindicação da objectividade científica. Ao mesmo tempo, embora Pratt possa não ter
seleccionado seu material do ponto de vista de qualquer uma das religiões mundiais
conhecidas, ele mesmo assim fez sua selecção com base em outros princípios
preconcebidos, que podem ser pensados como sua religião privada. Do ponto de vista
lógico, se as suposições são filosóficas ou teológicas, Cristãs ou não, é igual. Se é
repreensível operar sobre pressuposições Cristãs, é menos assim em outras
pressuposições? A única diferença parece ser que o escritor com princípios Cristãos é
provavelmente mais consciente do facto, enquanto o escritor científico, por vezes,
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afirma que não tem noções preconcebidas. Em outras palavras, Pratt - tentando evitar o
preconceito da visão Cristã de conversão - não parece estar ciente de seu próprio
preconceito assumindo que a conversão de Ardigo era uma conversão religiosa e que a
essência da religião é a unificação do carácter.
O interesse de Pratt na conversão revela ainda mais a importância que ele atribui a
emoção. Além do caso duvidoso de Ardigo, ele relata as experiências religiosa mais
óbvias de David Brainerd e John Bunyan. Nesses dois exemplos, o processo foi
essencialmente o mesmo. Quando eles começaram a pensar na condição de suas almas,
seu estado de espírito neutro anterior deu lugar ao aumento da depressão. Eles se
sentiram totalmente desamparados. Desejosos de salvação, eles foram condenados pelo
pecado e não puderam se livrar das tentações. A impossibilidade de se recomendar a
Deus por seus esforços humanos sem ajuda aumentou seu desespero. Então de repente,
veio uma grande paz de espírito. E, conclui Pratt, “O drama inteiro foi um sentimento, e
tudo o que foi realizado foi a substituição de um sentimento pelo outro” (147). O
sentimento é ainda mais elevado no capítulo seguinte, por uma série de má interpretação
da teologia Protestante. Da tese de que o homem por seus próprios esforços não pode
satisfazer as exigências de Deus Pratt tira a errônea conclusão de que “a atenção de
todos que desejam a salvação - já que foi inútil centralizá-la no pensamento ou na acção
ou vontade - foi inevitavelmente fixada no sentimento. Sentimentos realmente poderiam
ajudar - o sentimento de sua própria diabolicidade e desespero - e nada mais poderia”
(149). Com essa interpretação da situação, Pratt menospreza a conversão de Bunyan.
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nova unificação de propósito havia sido alcançada. Agora, essa queixa envolve Pratt em
uma curiosa inconsistência. Se nenhuma mudança de vontade ou carácter tivesse sido
forjada, Pratt não deveria ter incluído esta experiência em uma lista de conversões, pois
ele havia dito anteriormente que “a coisa essencial sobre a conversão é a unificação de
carácter ” (123). Assim como no caso de Ardigo, Pratt tropeçou em uma conversão que
não foi religiosa (pelo menos no sentido popular de religião); então aqui ele tropeça e
contradiz a si mesmo, seleccionando uma experiência que é religiosa, mas em sua
própria manifestação não é uma conversão. A confusão é evidência de um método
pobre. Além disso, Pratt não se justifica em sua depreciação das emoções de Bunyan,
mesmo que não constituam uma conversão. De um ponto de vista psicológico, um ponto
de vista que enfatiza a descrição dos fenômenos e se orgulha de que a teologia não teve
influência sobre suas conclusões, uma sequência de emoções é um assunto de estudo tão
legítimo quanto a unificação de carácter. No método descritivo, a depreciação está fora
de lugar, se o assunto for emoções ou física nuclear. Particularmente, para quem pensa
em religião como primariamente uma atitude ou sentimento, Bunyan deveria ser um
exemplo muito feliz de experiência religiosa. Mas seu estilo desdenhoso indica que
Pratt, secretamente, concede mais valor ao conteúdo intelectual da religião do que ele
admite explicitamente, e avalia Bunyan de uma posição que não carece de viés
teológico.
15
descontentamento secularista do que a sua real ou até mesmo suposta aprovação de
emoções. Parece, portanto, que essas imprecisões são o resultado de um método pobre e
de uma decisão precipitada de definir religião em termos de emoção. Por outro lado,
aquele que deseja colocar alguma ou mesmo grande ênfase no lado intelectual da
religião não precisa concluir que é inútil estudar as emoções. Jonathan Edwards
estudou-as e com base em sua teologia deu certas advertências contra elas. As
variedades intensamente interessantes da experiência religiosa de William James
prosseguem em uma base teológica diferente. O Novo Testamento em si, é claro, do seu
próprio ponto de vista, descreve as circunstâncias emocionais muito diferentes de um
número de conversões. Mas a avaliação de uma pessoa depende da teologia de uma
pessoa. Sem dúvida a religião inclui emoções; mas isso não significa que a vontade e o
intelecto sejam factores negativos, não essenciais, menos perceptíveis e ossos nus.
A Descrição Explica?
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prima facie4 irracional confundir os dois. Agora, se a compreensão vai além do alcance
da descrição, deveríamos explicar a religião como o ópio do povo? Ou deveríamos ser
um pouco menos radicais e explicá-la como o resultado da compulsão parental e pressão
social? Ou, novamente, a causa da religião é alguma resposta estética inata ao sublime
ou um medo miserável do desconhecido? Ou, finalmente, será que uma explicação
adequada transcende esses factores e demanda Deus como a causa? Nenhuma descrição
psicológica pode dar qualquer uma dessas respostas, nem escolha entre elas.
A Descrição Descobre?
Logo acima, foi questionado se o método psicológico poderia explicar a religião ou até
mesmo descobrir a sua natureza. Existem várias razões pelas quais a psicologia não
pode descobrir o que é religião. Um motivo, apesar de não ser o mais profundo ou o
mais independente, é que os relatos descritivos das emoções referem-se apenas aos
fenômenos da superfície. Assim como as seguintes considerações mostrarão, estas
descrições não compreendem o que é essencialmente religioso. O facto de que as
mesmas emoções são encontradas em diferentes religiões não perturbaria, mas seria
bem recebido por um escritor como Hocking, que insiste na unidade de toda a religião e
não está interessado em distinguir uma religião da outra; o facto de que existem
diferentes emoções encontradas na mesma religião pode simplesmente resultar no
aumento da dificuldade de encontrar o estado emocional complexo pelo qual a religião
deve ser definida; mas o que é fatal para esse método de procedimento é o facto de que
essas emoções são encontradas em experiências que geralmente não são consideradas
religiosas. Por exemplo, o amor é actualmente enfatizado por alguns escritores
religiosos como a emoção religiosa por excelência. Tem sido considerado como a soma
e substância, a natureza interna e a fonte mais profunda da verdadeira religião, e a
essência do próprio Deus. Mas quando deixada indefinida, a emoção do amor
dificilmente se restringe a situações religiosas. No que diz respeito à emoção per se, a
descrição psicológica seria a mesma, não importa quais sejam as causas, o objecto, as
circunstâncias ou o valor que pode ter. Alguns amores são bastante humanos; alguns são
irreligiosos ou até mesmo profanos. No entanto, se o amor religioso deve ser definido
de modo a excluir os exemplos indesejados, o procedimento torna-se logicamente
circular. Em primeiro lugar o amor é usado para definir religião e, em seguida, um
4
[Nota do tradutor] Expressão latina que significa: à primeira vista.
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conceito independente de religião é usado para estabelecer diferenças entre os amores.
Então mais uma vez, não só é impossível confinar uma determinada emoção como o
amor (ou um complexo de emoções) à experiência religiosa, é igualmente impossível
confinar a experiência religiosa à uma determinada emoção. A emoção da indignação é
geralmente pensada como uma emoção anti-religiosa, mas a indignação de Jesus
(Marcos 3:5) era eminentemente religiosa. Considerações tais como estas mostram que
nenhuma descrição puramente psicológica de experiências, nenhuma emoção, nenhum
estado particular da consciência afectiva, ou qualquer combinação deles, pode ser
apontado como o elemento uniforme e definitivo da religião. Pode haver uma sequência
de uma mente calma, seguida de depressão, e posteriormente entusiasmo - como Pratt
percebe no caso de John Bunyan; mas a mesma sequência ocorre regularmente na noite
da eleição no caso dos políticos também. Não há nada distintamente religioso no que diz
respeito as emoções.
Descrição e Pressuposição
Perguntas finais sobre a existência real dos constituintes da nossa experiência, em seu
próprio direito e a parte de sua definição na qual experiência, não pode ser decidida ou
mesmo discutida por métodos…. A psicologia não pode nem mesmo escolher seus
próprios objectivos, que são seleccionados pelos psicólogos com base em valores dos
quais a psicologia não pode dar uma explicação completa.5
No entanto, existem alguns, mesmo que não sejam Positivistas Lógicos professos, que
escrevem como se a descrição psicológica respondesse a todas questões. No entanto,
descobrir-se-á que seus volumes, não menos que os trabalhos dos melhores autores,
contêm muitos pressupostos e juízos de valor que não podem ser obtidos pela
observação. No começo, embora esses escritores não reconheçam isto, um princípio
normativo ou não descritivo é necessário para a selecção do que descrever. É muito
plausível argumentar que ninguém deve filosofar sobre a religião antes de descrever os
fenômenos que exigem explicação. Os factos, assim se diz, devem preceder a teoria.
Mas o problema é que um procedimento descritivo nunca pode isolar o que deve ser
descrito. Uma teoria deve preceder a escolha de factos. A descrição pura nunca poderia
decidir colocar a ênfase na emoção em vez da intelecção. De acordo com a vaga
5
L. W. Grensted, The Psychology of Religion, 3, 5.
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conotação popular do termo, a religião é um fenômeno mais complexo. Alguns cultos
religiosos são muito emocionais e as pessoas gritam e cantam, pisam no chão, agitam
seus braços, e agem de maneira mais indigna. Outras pessoas, tal como Presbiterianos e
Puritanos, costumavam sentar-se quietamente tentando entender duas horas de sermão
doutrinal. Existem grupos também, dentro e fora da esfera da Cristandade, que se
limitam quase inteiramente a um ritual elaborado. E outros ainda equiparam religião
com serviço social. Portanto, somente um julgamento não observacional de valor
poderia motivar a afirmação de que os princípios intelectuais de uma religião não são
dignos de investigação. E somente o mesmo julgamento a priori poderia seleccionar
qual parte do fenômeno complexo deve-se descrever.
Cada autor, portanto, decide o que acha importante e significativo, seja ritual, dogma ou
emoção. Tal decisão não pode ser evitada, mas não deve ser escondida. Deve ser feita
conscientemente. Não deveria ser apresentada como uma descoberta objectiva e
descritiva. O autor mais enganador e o mais enganado é aquele que pensa que está
simplesmente descrevendo o que é aquilo. O aquilo em si não pode ser seleccionado
sem pressuposições. Se uma determinada emoção ou algum outro estado afectivo de
consciência, não obstante complicado, é seleccionado como a essência da religião, a
implicação é que outro estado não é religioso. Assim, a religião é nitidamente separada
do exporte ou da política ou das outras actividades humanas consideradas não
religiosas. Isto, é a contrapartida psicológica da distinção comum entre o domingo
religioso e a prática do dia-a-dia da semana. Sem dúvida, existem pessoas que têm um
domingo religioso para a exibição pública, se de facto isso pode ser chamado de religião
delas. Da mesma forma, é provável que existam pessoas cuja religião professada é
alguma emoção isolada. Mas não poderia existir outras cuja religião permeia todas as
suas actividades? Para elas, política, oração e procriação são todos deveres religiosos. É
possível trazer esses dois tipos de religião sob uma única descrição? Por que direito a
última é descartada quando se faz a tentativa de isolamento? Obviamente, portanto, o
psicólogo deve ter uma filosofia da religião própria que controla sua psicologia da
religião, e é este material profundo que o presente capítulo acredita ser o mais
significativo.
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Integração da Personalidade
Até este ponto, a discussão enfatizou a visão de que a emoção é a essência da religião.
No entanto, esta restrição não faz justiça ao método psicológico nem à exclusão geral
das definições intelectuais. A explicação da religião como uma experiência não racional
permite outra possibilidade - uma possibilidade que ficou evidente no material da Pratt,
mas que ainda não foi examinada. Pratt falou sobre a unificação do carácter e usou a
conversão secular de Ardigo como um exemplo. Isto é um tema popular entre os
humanistas modernos. Confinando a religião à uma emoção, tal como a sensação de
dependência de Friedrich Schleiermacher, dizem eles, é uma visão muito estreita; e
embora a experiência religiosa possa às vezes ser caracterizada por este sentimento,
outra experiência igualmente religiosa não pode. Um senso de dependência não é
essencial para a religião. Portanto os humanistas geralmente, tentam situar a religião nas
necessidades mais universais do homem – não as necessidades não-religiosas de comida
e abrigo, mas em particular, necessidade de integrar os impulsos, emoções e desejos
dispersos e conflitantes. Isso significa que a religião é o processo de alcançar uma
personalidade unificada, coerente e eficaz. A consciência do pecado, assim como os
Cristãos chamam, é a consciência do fracasso em alcançar esse eu unificado, e a
redenção é o sucesso subsequente. Mas o sucesso não depende de ideias Cristãs. Este
foi o erro do Liberalismo Protestante, comumente chamado de Modernismo. Rejeitando
a teologia tradicional, esse movimento religioso ainda procura a solução dos problemas
da vida dentro de uma estrutura Cristã. Mas esta restrição é inconsistente com a
substituição da experiência religiosa por um livro autoritativo. O Humanismo,
consistentemente empírico, insiste que a integração do carácter é frequentemente obtida
por outros métodos. Se devemos examinar todos os métodos de integração bem-
sucedidos, ficará claro que o Cristianismo não é único ou mesmo superior. Os principais
bens são a busca da verdade, a criação da beleza e a realização do amor e da amizade.
Quaisquer que sejam os métodos usados para obter esses bens, podem ser igualmente
chamados religiosos, se alguém quiser falar de religião.
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pressuposições humanistas justifiquem preferências ou mostrem realmente que qualquer
linha definida de conduta é boa ou má? Esta questão, uma vez que levanta o problema
geral da ética, será examinada em um capítulo posterior. O ponto aqui simplesmente é
que é uma questão difícil. É tão difícil que às vezes os humanistas se esquivam disso e
abraçam outra dificuldade. Eles fogem ainda mais porque a selecção de bens
particulares (tais como verdade e beleza) e o estresse colocado por eles na sociedade, na
cooperação, no colectivismo - que leva-os às vezes a falarem até mesmo de reverência
pelo bem social - é inconsistente com sua visão da religião. Se a integração pessoal é a
essência da religião, se - como um dos seus números diz - o método empírico não pode
demonstrar que a solução não-Cristã é inferior a Cristã, se, portanto, a religião
verdadeira é apenas absorção sincera que em qualquer grandeza imaginada, traz
empiricamente a integridade da individualidade (e os humanistas usam todas essas
frases), então segue-se que a integração de propósitos, emoções e sentimentos
alcançados por Adolf Hitler e Joseph Stalin não pode por qualquer método empírico ser
julgada inferior a qualquer outro. Esses dois ditadores poderiam dizer com tanta verdade
como o apóstolo Paulo, “esta coisa eu faço.” Todos os três homens foram caracterizados
pela completa unidade da mente. Os exemplos dos avarentos e eremitas que também
conseguiram uma grande integração de emoções e sentimentos são apenas um pouco
menos embaraçosos para essa visão da religião.
A desvantagem dessa tentativa de definir a religião deve agora ficar clara. A definição é
tão ampla e vaga que abrange uma variedade incontrolável de experiência. O místico
hindu, o apóstolo Paulo, o ditador e o avarento são exemplos igualmente perfeitos de
religião. Mas enquanto eles são exemplos indubitáveis e igualmente perfeitos de
personalidade integral, os tipos de personalidade são tão incompatíveis entre si que, se
alguém é chamado de bom, o outro deve ser chamado de mau. Ninguém, nem mesmo
um humanista, admitiria que não tem preferência entre essas maneiras de viver. E neste
caso, não se pode dizer que a integração da personalidade é boa. Esta conclusão é um
ponto essencial na mensagem de um evangelista Cristão. Muitas das pessoas a quem ele
prega são personalidades integradas: Isso é apenas o que está acontecendo com elas.
Seus desejos e interesses estão completamente harmonizados em um sistema naturalista
de valores. Elas estão completamente satisfeitas consigo mesmas. Nenhum sentimento
de culpa perturba a tranquilidade delas. A mensagem Cristã deve destruir essa
integração; e até mesmo que a mensagem não consiga oferecer a elas um substituto
21
perfeitamente harmonizado, a semi-integração assim produzida é melhor do que a
integração completa anterior.
O MÉTODO COMPARATIVO
À primeira vista, parece que existe uma maior variedade de crenças do que de emoções,
e que a natureza da religião nunca pode residir em qualquer formulação teológica; mas a
22
esperança dos estudos comparativos, é evidentemente, encontrar nesta confusão de
crenças algum denominador comum, algum consenso mínimo, algum acordo geral. Sem
dúvida, Islamismo e Cristianismo têm diferentes concepções de Deus, mas ambos
acreditam em algum tipo de divindade. Talvez então este seja o elemento comum e a
natureza essencial de toda religião.6
Karl L. Stolz em The Psychology of Religious Living argumenta que o humanismo não
é uma religião porque “investe a palavra 'religião' com uma conotação que é
absolutamente estranha para ela… Uma religião sem Deus é uma contradição de
termos” (75-76). Neste momento, vamos garantir que Stolz e King estejam certos
negando que haja uma religião sem deus. Somos agora confrontados com a filosofia de
Spinoza e com as superstições de tribos selvagens. Spinoza tem uma religião? Spinoza
tem um deus? Algumas pessoas chamaram ele de um ateu; e se isso é verdade, ele não
poderia ter tido uma religião no sentido da palavra de Stolz. Mas outros o chamaram de
gottbetrunkener Mensch - um homem intoxicado por Deus. Ele falava frequentemente
de Deus, de Deus sive Natura Portanto, ele deve ter sido muito religioso. Infelizmente,
no entanto, se Deus e a natureza são identificados, e se o Deus de Spinoza é o próprio
universo, Pode-se dizer que ele acreditava em Deus? Deus não é algo diferente do
universo? O que se entende pelo termo Deus? Ou, para sair da filosofia complicada de
Spinoza para as superstições dos povos não civilizados, claramente, seja qual for o deus
que a religião Inca reconheceu ou seja qual for os deuses adorados nos vários cultos
animistas, eles não são o Deus do Cristianismo. Se o termo Deus é tão ampliado a ponto
de incluir o uso de Spinoza e os animistas, o termo e a definição de religião se tornam
sem sentido. Portanto, se a religião deve ser definida em termos de crença, talvez deva
ser uma crença em espíritos, ou simplesmente em imortalidade, ou alguma outra crença
generalizada na qual o exame mostrará ser o ingrediente uniforme de todas as religiões.
No entanto, este expediente de substituir o termo espírito mais inclusivo pelo termo
Deus mais definido, enfrenta exactamente as mesmas dificuldades. Espírito teria que ser
definido, e alguém teria que questionar se a sub specie aeternitatis7 de Spinoza poderia
6
Veja Karl Barth, Church Dogmatics, II 1, 449: “É, portanto, impensável colocar o Islamismo e o
Cristianismo lado a lado, como se no monoteísmo ao menos tivessem algo em comum. Na realidade, nada
os separa tão radicalmente quanto as diferentes formas em que parecem dizer a mesma coisa – que existe
um só Deus.”
7
[Nota do tradutor] Expressão usada por Spinoza que descreve o que é universal e eternamente
verdadeiro, sem qualquer referência ou dependência das porções temporais da realidade.
23
ser apropriadamente incluída sob a noção de imortalidade. Mas além dessas dificuldades
detalhadas, há decisivas razões pelas quais o próprio método, a própria busca por um
elemento comum, é insatisfatório.
A Caça ao Snark8
8
[Nota do tradutor] Clássico poema escrito por Lewis Carrol no século 19. Snark é uma criatura difícil de
definir, mas com características bastante peculiares.
24
vociferamente anti-religioso. De facto, é religiosamente anti-religioso. Seu zelo anti-
religioso faz com que seja uma religião para seus adeptos. O estudante de religião
deveria, portanto, listar o Comunismo como uma das religiões e buscar o denominador
comum do Comunismo, Cristianismo e Budismo? Como o estudante decidiria o que
fazer? A menos que ele saiba primeiro o que religião é, não saberá se deve ou não
examinar o Comunismo com as outras, na esperança de descobrir a natureza essencial
da religião.
Além dessa objecção ao método, há também uma objecção às conclusões usuais que ele
oferece. Vamos supor que o Cristianismo, o Islamismo e até o Budismo tenham sido
examinados. Talvez seja alegado que o elemento comum é uma crença em um Ser
Original. A fraseologia em que tais elementos comuns são declarados deve ser tão geral
e é interpretada pelas várias religiões de maneiras tão incompatíveis e antagónicas que
nada comum parece permanecer, senão um nome ou uma forma vazia de palavras. O
Ser Original para o Budismo pode ser o Nirvana, para o Cristianismo é a Trindade; para
o Comunismo são os átomos. Mas se a Trindade é espírito e sem matéria, se os átomos
são matéria e sem espírito, e se o Nirvana nem um nem outro, é difícil ver que há algum
elemento real em comum. O Ser original é apenas um nome, um nome de nada, um som
no ar.
Se em resposta a esta crítica, é dito que os três Seres Originais executam funções
análogas nos três sistemas, e que esta função é um elemento comum real, a resposta será
uma repetição do argumento. A defesa fala frequentemente das várias religiões que
preenchem as necessidades de seus aderentes, e, portanto, o factor comum em todas as
religiões é o facto de que elas satisfazem certas necessidades. No entanto, esta resposta
não funcionará. Não funcionará porque as várias religiões não concordam em relação ao
que o homem necessita. Claro que pode haver acordo verbal de que os homens
necessitam do que é bom para eles, mas quando conteúdos específicos do bem ou da
necessidade são explicados, são achados diferentes. O homem precisa do céu onde
Cristo está sentado à direita do Pai, ou o homem precisa do Nirvana e da extinção
pessoal? Nenhum Cristão devoto admitirá que o Nirvana (ou átomos) pode executar a
mesma função que a Trindade; nem o Comunista ou o Budista admite que a Trindade
pode fazer o que o Nirvana ou os átomos podem fazer. Apenas os críticos que não têm
25
religião podem reconhecê-los de maneira tão ligeira. Os próprios aderentes não
reivindicam que o seu Ser Original realiza a mesma função que é reivindicada para o
Ser Original de outras religiões. Função e necessidade, assim como Ser Original, nada
mais são do que nomes vazios. Não há, portanto, nenhum elemento em comum entre
aqueles fenômenos que são popularmente designados como religiosos.
Palavras Significativas
Por outro lado, para ter um assunto de estudo definido e significativo, a palavra
coloquial e vazia deve ser abandonada, e alguns conteúdos específicos devem ser
seleccionados. Por exemplo, a palavra Deus não pode ser apenas um primeiro princípio.
O Deus Sive Natura de Spinoza e o Deus de Abraão, Isaque, e Jacó - como Pascal viu
tão bem - não são a mesma coisa. A salvação não pode significar Nirvana tanto quanto
Céu. Portanto, se quisermos usar a palavra religião, devemos defini-la particularmente.
Podemos desejar discutir Islamismo, ou podemos desejar discutir o Cristianismo. Neste
sentido existem religiões, mesmo que não haja religião. É verdade, pode ser difícil
definir o Cristianismo ou o Islamismo, mas não é impossível. Podemos ter que alterar o
significado coloquial de alguma forma, no interesse da precisão, mas a definição técnica
não estará tão longe do significado comum para ser absurdo. De qualquer forma,
precisamos de conceitos claros para evitar confusão. Quando um termo como Deus é
esticado para incluir todos os primeiros princípios que alguém já pensou - e todo
fetiche, espírito e superstição, embora estes não sejam os primeiros princípios - o termo
não significa nada. Tal como Hegel insistiu, toda determinação é uma negação. Ou,
como argumentou Aristóteles, um termo não só deve significar algo, mas também deve
não significar algo. Depois de séculos de discussão filosófica, não deveria ser necessário
defender a indispensabilidade da linguagem inequívoca, mas tal é o caos em discussões
na religião e tal é a antipatia em direcção a tomar um determinado ponto de vista de que
os resultados desastrosos de generalidades vagas pedem ênfase. Vamos, portanto, tentar
evitar a confusão sendo explícitos. A maioria das palavras no dicionário têm três, quatro
26
ou até cinco significados diferentes; mas se alguma palavra tivesse mil significados, ou
melhor, se alguma palavra pudesse representar todas as outras palavras no dicionário,
ninguém diria o significado dela. Se uma palavra significa tudo, não significa nada. Não
ter significado definido ou limitado é não ter significado algum.
CRISTIANISMO
Definição do Cristianismo
Visto que a causa da confusão na filosofia da religião tem sido uma terminologia vazia e
sem sentido, a esperança agora é que esta evitação da ambiguidade contribuirá para a
solução de vários problemas. Os principais assuntos - a relação entre razão e fé,
inspiração e revelação, a base da moralidade - serão considerados nos capítulos
seguintes. Uma tentativa será feita para mostrar que, por causa da posição doutrinária
básica, é possível chegar a conclusões definitivas e consistentes. Não existe alegação
hipócrita de que o argumento é sem pressuposições. Pelo contrário, somente porque a
Confissão de Westminster é conscientemente adoptada, o avanço pode ser aceito. Mas
antes que as questões principais sejam colocadas, certos pontos secundários provam ser
27
exemplos satisfatórios do procedimento e podem ser usados para concluir esta
introdução.
As Religiões
Primeiro, um ponto de vista Cristão definido pode fornecer a solução para o paradoxo
do presente capítulo. Como pode haver religiões, mas nenhuma religião? Se não há
característica comum, emocional ou intelectual, por que fenômenos uniformemente
classificados juntos e chamados de religião? Por que existem também casos duvidosos
que às vezes parecem ser religiões e em outros tempos parecem ser “meramente”
filosofia, ou talvez política? Claro, pode-se simplesmente apelar para a ignorância e
estupidez da população e sua falta de pensamento claro. Mas há algo mais. A resposta
Cristã começa com Deus criando Adão à sua própria imagem, dando-lhe uma revelação
especial. Aqui foi o começo da religião. Com a queda, no entanto, e a depravação
resultante, os homens tornaram-se distantes de Deus e distorceram tanto a revelação,
quanto a sua reacção a ela. À medida que as gerações surgiram e desapareceram, estas
distorções divergiram em muitas direcções, dando origem a todas as formas de idolatria,
culto animal, fetichismo e feitiçaria, para não mencionar a mais descarada rebelião do
ateísmo. Assim, não havia possibilidade de qualquer conteúdo intelectual permanecer o
mesmo em todos estes desenvolvimentos. Portanto, as religiões de hoje são
descendentes da única religião original; e por causa desta origem comum, elas são
coloquialmente chamadas de religião. Se a divergência não for tão grande a ponto de
obscurecer essa origem, as pessoas não hesitam em chamar as religiões de fenômenos.
Assim, o Islã é sempre chamado de religião por causa de sua herança do Judaísmo.
Quando a divergência se torna maior, a hesitação e a perplexidade se instalam. Isso é
visto onde as pessoas se perguntam se o Budismo é uma religião ou apenas uma
filosofia. E se isso se tornar extremo, as pessoas terão geralmente, certeza de que não é
religião. Mas a classificação lógica falha porque as divergências ocorreram sem
princípios lógicos. A inspiração desinibida foi eliminada em todas as direcções de uma
só vez. Portanto, o único resultado abrangente de tentar definir a religião é agora,
declarações indefinidas sem sentido.
28
Conversão Cristã
Pecado
9
Strickland, Psychology of Religious Experience, 113-115.
29
pela experiência em relação a Bunyan. A objecção que ele exprime é que Bunyan sofreu
sob um senso de pecado sem particularizar um ou alguns pecados definidos. Pratt dá a
impressão de que Bunyan seria mais compreensível se tivesse mostrado tristeza por
algum acto óbvio de delito. Ele tinha cometido assassinato ou roubo, ele tinha difamado
ou ferido seu vizinho do lado, então ele teria tido algo de que se desculpar, e sua
depressão poderia ter sido de alguma forma justificada. Mas, Pratt em depreciação diz,
Bunyan sofreu apenas com um sentimento de pecado ao invés de algum acto definido.
A razão pela qual Pratt passa de simples descrição psicológica para desencadear uma
condenação não é difícil de perceber. Ele definiu tacitamente o pecado como um acto
aberto e voluntário, restringindo-o possivelmente a actos bastante sérios, e ele não
demonstra compreensão da visão do pecado como qualquer falha nos padrões de Deus.
Na sua visão não Cristã, pecadilhos possivelmente - e certamente herdados, carácter
involuntário - não são considerados pecados. Assim, Pratt com seus pressupostos nem
pode apreciar, nem mesmo compreender a doutrina Cristã da depravação humana. Ele
está tentando aplicar uma noção secular de pecado à experiência Cristã de Bunyan, e o
resultado não é mais relevante do que imparcial.
Repetidamente, isso é o que acontece. Nos capítulos seguintes, com respeito a vários
problemas importantes, será visto com muita profundidade, de que modo os termos
ambíguos e equivocados do método comparativo produzem dificuldades e paradoxos
insolúveis, levam a absurdos óbvios, ou chegam ilogicamente a conclusões hostis ao
Cristianismo. Os argumentos não-Cristãos assumem regularmente o ponto em disputa
antes de começarem. As perguntas são enquadradas de modo a excluir a resposta Cristã
desde o início. Examinando este procedimento para ver como funciona, veremos
também como conceitos Cristãos inequívocos se combinam em um sistema consistente.
30
FÉ E RAZÃO
RAZÃO E FÉ
Teologia Natural
Não só esta teologia natural em sua forma medieval foi adoptada como a posição oficial
do Romanismo, mas muitos teólogos Protestantes também aceitam-na de alguma forma
ou de outra. Não todos, para ter certeza: A.H. Strong, em sua Teologia Sistemática
(I,71), diz: “Esses argumentos são provavelmente não demonstrativos”. No entanto, o
Professor Luterano, Leander S. Keyser, expõe os argumentos racionais para a existência
de Deus em um sistema de Teísmo Natural. Sua análise e rejeição do argumento
ontológico ressalta apenas sua dependência dos outros. A.E. Taylor é mais ambíguo em
sua posição eclesiástica, em seu conceito de Deus, e até mesmo na força precisa que ele
atribui ao seu argumento; mas ele escreveu um livro, Deus existe? Pergunta essa cuja
31
resposta é certamente não negativa. J. Oliver Buswell Jr., Stuart Hackett, e Edward John
Carnell à sua maneira se aliam a vários escritores Protestantes que aceitam as provas
teístas. No entanto, e de uma forma muito mais elaborada e sistemática do que qualquer
um deles, Tomás de Aquino expos os argumentos naturais para a existência, com base
nos quais ele então erigiu uma teologia revelada.
A visão Tomista distingue o processo entre chegar a verdade pela razão natural sem
ajuda do homem e pela aceitação voluntária da verdade na autoridade da revelação
divina. O primeiro é filosoficamente demonstrável; o último, aceito sem demonstração,
é a esfera da fé. Fé e razão são, portanto, em um sentido, incompatíveis. É claro que
esse sentido não é aquele em que humanistas ou materialistas os tornam mutuamente
antagônicos. Pelo contrário, eles são psicologicamente ou subjectivamente
incompatíveis. Se demonstramos racionalmente uma proposição, é impossível para nós
acreditarmos numa autoridade vazia. Agora temos a prova e isso não deixa espaço para
a fé. Por exemplo, um Professor do ensino médio pode dizer a um aluno que os
triângulos planos contêm 180 graus, se ele tiver alguma ideia do que é um grau, pode
acreditar no que seu professor diz. Mas depois que o aluno entende a prova, não acredita
mais no teorema sob a autoridade do Professor; ele conhece o teorema porque ele
provou isso. Tomás e Aristóteles permitiriam até um exemplo de experiência sensorial.
Um Americano pode dizer a um Europeu que Denver fica a oeste de St. Louis; mas se o
Europeu vier à América e visitar as cidades, não mais acreditaria em autoridade, ele
saberia por experiência. É assim impossível saber e acreditar na mesma coisa ao mesmo
tempo. O princípio vale igualmente para a proposição de que Deus existe.
Em outro e mais importante sentido, razão e fé não são incompatíveis. Eles são
complementares. Existem muitas verdades sobre Deus que são indemonstráveis. No
entanto, embora não possam ser obtidas naturalmente, são necessárias para a religião
32
positiva. Portanto, Deus revelou-as graciosamente. Por exemplo, pode ser demonstrado
que Deus existe e que Ele é a causa do mundo, mas a doutrina da Trindade não pode ser
demonstrada. No entanto, a doutrina da Trindade não é incompatível com a razão; não
contradiz qualquer proposição demonstrável em filosofia. Pelo contrário, as doutrinas
da revelação completam o que filosofia teve que deixar inacabada. Os dois conjuntos de
verdades são complementares.
Nesta representação Tomista dos assuntos, o significado da fé e razão deve ser anotado.
Esses termos-chave não são usados no mesmo sentido por todos os autores e, portanto,
as discussões históricas nem sempre se referiram ao mesmo assunto. Para Tomás de
Aquino fé se refere a verdades recebidas pela transmissão sobrenatural de informações,
mas isso não é o que F. H. Jacobi e Friedrich Schleiermacher mais tarde queriam dizer
por fé. No presente contexto razão significa um processo que começa com a sensação,
passa pela imaginação, faz uso da abstracção e chega ao conhecimento conceitual. Mas
na filosofia do século XVII a razão era nitidamente separada da sensação. A razão então
significava apenas lógica. Por causa de tal variação no uso, o cuidado é necessário. As
restrições de um autor sobre fé podem de facto se aplicar a um significado de fé,
enquanto ao mesmo tempo podem ser totalmente irrelevantes para outro. Deixar de
observar isso - não apenas pelos leitores, mas, mais especialmente pelos autores - tem
sido uma fonte de confusão sem fim.
33
Religiosa parece aprovar a seguinte crítica: Se a razão do homem é naturalmente
incompetente para chegar à doutrina da Trindade ou em outras verdades da fé, deve em
primeiro lugar ser incompetente para provar a existência de Deus. Por que uma verdade
pode ser demonstrada e outras não? E ainda, mesmo se a existência e a bondade de
Deus forem provadas, não se segue que uma revelação sobrenatural seja necessária.
Deus poderia mostrar sua bondade de outras maneiras.
Agora, pode haver falhas e defeitos sérios na filosofia Tomista; mas a crítica do
Professor Burtt parece errar o alvo. Parece estranho que uma discussão que chegará a
uma completa rejeição do Tomismo, deva fazer uma pausa para defendê-lo contra
ataques contemporâneos. No entanto, não apenas se deve tentar ser justo, mas até
mesmo o interesse próprio evita confiar em críticas defeituosas. E, de facto, parece que
o professor Burtt colocou um fardo sobre o Tomismo que não precisa suportar.
Em primeiro lugar, não é necessário afirmar que a bondade de Deus implica uma
revelação sobrenatural. É suficiente que a bondade de Deus permita a possibilidade de
uma revelação. Claro, Deus pode mostrar sua bondade de outras formas, como afirma
Burtt, mas isso não exclui racionalmente uma revelação especial.
10
Burtt, Types of Religious Philosophy, 454. Primeira edição.
34
A crítica de Burtt baseia-se inteiramente no princípio de que, se é possível demonstrar
qualquer uma proposição, é possível demonstrar todas as outras. Isso não é plausível.
Não há nada irracional ou contraditório, certamente nada obviamente auto-contraditório
na manutenção da demonstrabilidade de algumas verdades e da indemonstrabilidade das
outras. Até Hegel, que pelas exigências de seu sistema deveria ter feito tudo
demonstrável, admitiu a existência de contingências na natureza. Na construção de
Hegel esta admissão pode de facto ser uma falha. O Idealismo Absoluto pressupõe que
todo conhecimento é tão inter-relacionado que toda parte envolve o todo. Toda a
natureza deve ser entendida através de uma manifestação dialética do conceito que está
completamente sob nosso controle. Mas Tomismo não é Hegelianismo. Se com Tomás
as premissas da demonstração devem ser buscadas na experiência sensorial, cada
homem é limitado pelo intervalo relativamente estreito de sua própria experiência, e
toda a humanidade seria limitada por um universo de experiência que não inclui
premissas para todas as verdades. Sem essas premissas, não podemos chegar as
conclusões desejadas. Considerações epistemológicas intricadas que não podem ser
discutidas agora, entram aqui, mas pelo menos de um ponto de vista mais comum a
incapacidade de demonstrar os acontecimentos da história não parece invalidar a prova
dos teoremas em geometria.
Burtt faz então a suposição de que o Romanista, em resposta à crítica de que qualquer
competência racional torna a revelação desnecessária, aponta para a Bíblia como sendo
de facto uma revelação. Mas Burtt assegura que isso é uma resposta inadequada à
crítica. “A aceitação de qualquer suposta revelação como um facto real depende da
convicção prévia de que existe no universo um Deus capaz e disposto a supri-la” (406,
edição revisada). Esta afirmação também é de limite amplo, mas em um aspecto
descreve melhor a posição do que o dilema anterior. O dilema dependia do ponto que
um argumento para a existência de Deus implicaria uma revelação. Ou seja, Burtt
argumentou primeiro que uma demonstração da existência de Deus, se continuasse,
demonstraria também a existência e o conteúdo de uma revelação. Esta observação
posterior apenas insiste que uma convicção da existência de Deus deve preceder a
aceitação de uma revelação. Aqui não é uma questão da existência de Deus implicando
uma revelação, mas é a posição mais modesta de que uma revelação pressupõe um Deus
capaz e disposto a se revelar. Obviamente, Tomás afirma que ele tem demonstrado a
existência de tal Deus. Portanto, o próximo passo é pesquisar através do universo para
35
descobrir se uma revelação real ocorreu. E, novamente, obviamente, Tomás encontra a
Bíblia. Agora, Burtt afirma que essa descoberta é uma resposta inadequada à crítica;
mas se nós aceitamos a primeira parte da filosofia de Tomás, não é fácil ver por que
essa etapa deve ser considerada inadequada.
No entanto, ainda há mais uma fonte de confusão. Por uma questão de facto, a aceitação
de uma revelação não pode depender de qualquer convicção prévia da existência de
Deus. Para ter certeza, uma revelação pressupõe Deus; mas a aceitação de uma
revelação não requer uma crença prévia em Deus. Um homem pode aceitar a Bíblia e
nesse acto ser pela primeira vez convencido da existência de Deus. Isto é, ele pode
encontrar Deus na revelação. De facto, já que muitas pessoas não são competentes para
entender as provas da existência, e uma vez que muitas que são competentes não
estudam as provas, parece que a maioria das pessoas que aceita a revelação não se
convenceu intelectualmente da existência de Deus. Elas tomam tanto a existência de
Deus quanto o conteúdo da Bíblia, igualmente pela fé.
A reflexão sobre as críticas de Burtt pode sugerir que as questões que ele discute são,
afinal, de importância secundária. O cerne da questão está na própria demonstração. Se
a demonstração for válida, as objecções falham automaticamente. Mas a demonstração é
válida? Tomas provou realmente a existência de Deus? Essa é a questão importante.
O Argumento Cosmológico
36
significado para a razão que seja independente da filosofia Tomista deve ser encontrado.
Para apontar a direcção que esta discussão tomará, pode-se dizer que o argumento de
Tomás provará ser inválido, e seu uso de razão indefensável; então um significado
alternativo da razão será proposto que, além de qualquer referência Tomista, também
revelará a ambiguidade nas acusações humanistas modernas de que o Cristianismo é
irracional.
A primeira razão pela qual falha é muito complicado de escrever aqui. Assim como
resumido na Summa Theologiae I, Q. 2, o argumento cosmológico depende de um
fundo filosófico extenso, emprestado de Aristóteles. Inclui uma teoria do movimento
que afirma que nada pode mover-se por si mesmo. Esta tese repousa sobre os conceitos
11
David S. Clark, Syllabus of Systematic Theology, 62.
37
de potência e acto. Tomás define o movimento como a redução da potência para o acto.
A causa de um movimento deve ser acto, a coisa que mudou é potência. E uma vez que
nada pode ser acto e potencia no mesmo sentido, segue-se que nada pode mover-se por
si mesmo. Infelizmente, os conceitos de potência e a acto permanecem indefinidos.
Aristóteles tentou explicá-los por analogia. No contexto, o movimento é usado na
explicação e, em seguida, os conceitos de potência e acto são usados para definir o
movimento. O argumento, portanto, é circular. Por trás disso está uma massa de
metafísica e epistemologia. Tais complexidades não podem ser discutidas aqui, mas
deve-se notar que se houver um silogismo essencial em toda a argumentação extensa, é
inválido, todo o sistema e a prova da existência de Deus entra em colapso.
Uma segunda razão para repudiar o argumento cosmológico pode ser melhor pontuada.
Em sua tentativa de concluir com um primeiro Motor Imóvel, Tomás argumenta que a
série de coisas movidas por outras coisas em movimento não pode regressar ao infinito.
A razão que Tomás dá para negar que as causas em movimento podem regredir ao
infinito é que essa visão descartaria um Primeiro Motor. Mas esta razão que Tomás dá é
essencialmente a conclusão que ele deseja provar. Claro, uma série infinita de causas
em movimento é inconsistente com um primeiro Motor Imóvel. Mas se o argumento é
projectado para demonstrar o Motor Imóvel, sua existência não pode ser usada antes do
tempo como uma das premissas do argumento.
Uma terceira razão de um tipo ligeiramente diferente diz respeito à identidade do Motor
Imóvel. Suponha que todos os silogismos até este ponto fossem válidos. Suponha que a
existência do Motor Imóvel tenha sido demonstrada. Mesmo, quando Tomás acrescenta,
“este [Primeiro Motor] todo mundo entende ser Deus” nós podemos negar. O
argumento tomado em seu valor nominal completo provaria a existência meramente de
alguma causa de movimento físico; pode-se até dizer que isso poderia provar a apenas
existência de alguma causa física do movimento. Para evitar isso, Aristóteles se dá o
trabalho de provar que o Motor Imóvel não tem magnitude; mas esta é uma das partes
mais insatisfatórias de seu argumento. De qualquer forma, é bastante claro que o Motor
Imóvel da prova não tem qualidades de personalidade transcendente. Não há nada
sobrenatural sobre esta causa. De facto - se o argumento é válido, e se este Motor
Imóvel explica os processos da natureza - o Deus de Abraão, Isaque e Jacó é supérfluo e
de facto impossível.
38
Este é um ponto sobre o qual um grande teólogo contemporâneo merece atenção. Karl
Barth, o fundador da Neo-ortodoxia, em sua Church Dogmatics II, 1, 79ff., dá algumas
de suas razões para rejeitar o ponto de vista Católico Romano. Em contraste com a
decisão do Concílio Vaticano, 24 de Abril de 1870, que Deus, que é o começo e o fim
de todas as coisas, pode certamente ser conhecido a partir dos fenômenos da natureza
criada, pela luz natural da razão humana, Barth declara que Deus só pode ser conhecido
por meio de Deus. A principal razão para isso, diz Barth, é que estamos falando sobre o
Deus Cristão, o Deus Triuno. É certo que o Concílio Vaticano não pretendia falar de
outro Deus, nem sobre apenas uma parte deste único Deus. Mas o seu método no
entanto, leva a uma divisão de Deus e, portanto, a outro deus. O decreto usa o termo
“Nosso Senhor”, mas o argumento diz respeito apenas “ao começo e o fim de todas as
coisas”. Agora, diz Barth, o Cristianismo mantém que Deus é o começo e o fim de todas
as coisas, mas também sustenta que Deus é o Redentor; e se levarmos a unidade de
Deus a sério, não seremos capazes de separar um do outro, de modo a tornar um
conhecimento de Deus como o princípio e fim das coisas, dependente da natureza e de
outro conhecimento de Deus como Senhor e Redentor dependente da revelação. Não,
diz Barth; o conhecimento de Deus não pode ser dividido assim. Um conhecimento de
Deus como o começo e o fim não pode existir sem o conhecimento de Deus como
Redentor; nem podemos conhecer a Deus como Redentor sem conhecê-lo como o
começo e fim de todas as coisas.
Talvez seja impossível seguir Barth em cada linha de sua objecção aqui citada. Pascal
colocou muito provavelmente o assunto com mais precisão em seus parágrafos
contrastando o deus dos filósofos com o Deus de Abraão, Isaac, e Jacó. Mas, em
qualquer caso, a lacuna entre o “Motor Imóvel” e o Deus vivo é ressaltada.
39
quando aplicado a Deus pode ter exactamente o mesmo significado quando aplicado a
homens ou coisas. Quando dizemos que Deus é sábio, e que Salomão é sábio, o termo
sábio não é unívoco. Não só o termo sábio; o termo “existe” também. Na proposição
Deus existe, o termo existe tem um significado diferente do seu uso na proposição o
homem existe. Tomás é muito enfático nesse ponto. Mas se um termo não for usado
univocamente durante todo o silogismo, se um termo não suportar exactamente o
mesmo significado, o silogismo é inválido. As regras da lógica foram violadas.12
Aqueles que hoje aceitam o argumento cosmológico, negarão imediatamente que suas
fortunas estejam indissoluvelmente ligadas à sua formulação por Tomás. Existem outras
maneiras de afirmar o argumento, eles afirmam, assim como para evitar qualquer erro
que Tomás possa ter tropeçado. Se isso fosse verdade, seria de se esperar encontrar essa
formulação irrepreensível em algum lugar nos escritos publicados de seus defensores.
Mas o facto é que essa formulação não pode ser encontrada. Existem referências ao
argumento cosmológico, há discussões sobre isso, e há resumos dele; mas o argumento
completo em si, com nenhuma das etapas omitidas, parece nunca ter sido impresso.
40
quaisquer propriedades além daquelas necessárias para explicar o efeito. Por exemplo,
se vemos a partitura e ouvimos a música de Beethoven, e se todo o nosso conhecimento
de Beethoven depende dessa observação, podemos talvez concluir que existia um
homem com um grande grau musical de habilidade; mas seria irracional concluir que
esse músico também era a estrela quarterback da Universidade de Bonn. Da mesma
forma o argumento cosmológico - se de outra forma soar - pode nos dar um deus
suficientemente poderoso para ser a causa daquilo que observamos, mas não mais.
Apesar da observação de alguns teólogos ortodoxos de que isso já é um bom acordo, é
preciso responder que não é o Criador omnipotente descrito na Bíblia.
O que é pior, de outro modo o argumento não soaria. A famosa analogia de William
Paley assume que o universo é uma máquina como um relógio, e daí precisa de um
relojoeiro divino; mas Hume questiona a analogia. O universo é uma máquina? Em
muitos processos naturais, o universo assemelha- se a um organismo mais do que a uma
máquina. E se o universo é um organismo em movimento espontâneo, a analogia de um
relojoeiro divino desaparece. A objecção pode ser declarada em termos ainda mais
gerais. Se o universo é uma máquina ou um organismo vivo, o argumento cosmológico
assume que é um efeito. Como efeito, precisa de uma causa. Mas como pode ser
mostrado que o mundo é um efeito? Claro que existem causas e efeitos dentro do
universo. Uma parte faz com que outra parte se mova, assim como uma roda em um
relógio faz com que outra roda se mova. Até vegetais têm causas e efeitos dentro delas.
O argumento cosmológico, no entanto, requer que o universo como um todo seja um
efeito. Mas nenhuma observação das partes do universo pode dar essa suposição
necessária. Para ser bem claro sobre isso, ninguém jamais viu o universo como um todo.
Depois, mesmo que possa ser provado que o universo é um efeito, existe outra extrema
e séria dificuldade, embora seja apenas uma aplicação particular do primeiro ponto de
Hume. O primeiro ponto foi o princípio de que características podem ser atribuídas à
causa além daquelas necessárias para produzir os efeitos pelos quais a causa é
conhecida. Agora, os efeitos observados incluem muitos males, desastres, tragédias e o
que o Cristão chama de pecado. Estes podem ser listados em profusão aterrorizante.
Eles foram listados e usados contra o Cristianismo tanto por Hume quanto por John
Stuart Mill, assim como por escritores mais cínicos como Voltaire. Estes manifestam
males, desde crianças congenitamente deformadas, até as câmaras de tortura dos
Nazistas e Comunistas que impedem a conclusão de que a causa do mundo é boa. O
41
argumento cosmológico falha totalmente em provar a existência de um Deus justo e
misericordioso. Para ter certeza, isso permite - embora não prove - a existência de um
bom deus, mas apenas sob o pressuposto de que ele não é nem omnipotente nem a causa
de tudo o que acontece. Entretanto, o argumento cosmológico deveria lidar com a causa
universal. Como um recurso para o teísmo Cristão, portanto, o argumento cosmológico
é pior do que inútil. De facto, os Cristãos podem ficar satisfeitos com o seu fracasso,
pois se fosse válido, seria uma conclusão inconsistente a respeito do Cristianismo.
É lamentável que uma grande parte do Protestantismo conservador não esteja disposto a
discutir a justiça de Deus e sua relação com os males do mundo. Existem indivíduos
devotos que parecem supor que uma discussão do mal pode colocar idéias erradas em
cabeças jovens. Qualquer tentativa de explicar o mal, sustentam eles, é inquietante para
a fé. Nisso eles são desobedientes ao seu próprio padrão, a Bíblia; e além disso, seu
ponto de vista implica que Voltaire, Hume, Mill e outros oponentes do Cristianismo são
e permanecerão desconhecidos. Essas pessoas bem-intencionadas não percebem que os
argumentos de Hume são propriedade pública desde 1776; que milhões de pessoas
rejeitaram o Cristianismo por causa deles; e para parar essa perda é um dever Cristão
refutá-los directamente. Isso, acredito, pode ser feito. O problema do mal não é
insolúvel. Mas a solução não depende da reabilitação do argumento cosmológico.
Em sua Teologia Sistemática ele tenta provar que o universo é um efeito. Ele argumenta
que uma vez que todas as suas partes são dependentes e móveis, o todo deve ser
dependente, porque “um todo não pode ser essencialmente diferente de suas partes
constituintes.”13 Isso não é verdade. Por exemplo, o Relógio Nocturno de Rembrandt é
composto de vários pigmentos e telas, mas o todo é essencialmente diferente de suas
partes. O todo é essencialmente um objecto estético; as partes não são. Se, em vez de
identificar as partes como pigmentos em seus tubos, falamos de todo o conjunto de
13
Charles Hodge, Systematic Theology, I, 211.
42
quadrados de duas polegadas de tela pintada, a mesma observação é verdadeira.
Nenhum dos quadrados de duas polegadas é um objecto estético, mas o todo é uma das
maiores pinturas do mundo. Ou, dando outro exemplo, podemos seleccionar o sal de
mesa comum. É bom para comer - com ovos, pelo menos; é um conservante de porco e
azeitonas; é também, essencialmente, um composto químico. Mas suas partes
constituintes são sódio e cloro. Estes são essencialmente elementos. Eles também são
essencialmente venenosos para o sistema humano. O sal em pretzels14 é gostoso, mas
quem colocaria um pedaço de sódio na sua língua? Simplesmente não é verdade que as
partes individualmente têm as mesmas características que a totalidade das quais são
componentes.
Hodge continua dizendo que “um número infinito de efeitos não pode ser auto existente.
Se uma cadeia de três ligações não puder se sustentar, muito menos uma cadeia de um
milhão de ligações. Nada multiplicado pelo infinito não é nada ainda.” Vamos
acompanhar de perto o que Hodge disse. A primeira de suas três frases - um número
infinito de efeitos não pode ser auto-existente, é a conclusão que Hodge deveria provar.
Não oferece nenhuma razão em seu próprio interesse. A segunda, que presumivelmente
é pretendida como uma parte da prova, é uma analogia. Hodge supõe que os eventos da
história e da natureza são como ligações de uma cadeia, e se uma cadeia de três ligações
não puder se sustentar, muito menos uma cadeia de milhões de ligações. Todavia,
analogias nunca são argumentos válidos, e essa analogia é particularmente ruim. Em
primeiro lugar, a imagem de uma cadeia cuja primeira ligação é realizada por um
gancho, está longe de ser uma imagem adequada da conexão entre as partes da natureza.
Em segundo lugar, seja três ligações, um milhão de ligações, ou apenas uma ligação, o
facto de não poder flutuar sozinho no ar não fornece bases racionais para concluir que o
universo não é auto-existente. A auto-existência eterna é um conceito bem diferente do
de uma ligação pendurada em um gancho. Finalmente, a terceira frase de Hodge, que
parece ter a forma do argumento principal, não se liga claramente ao precedente. Ele
tinha acabado de dizer que o que é verdade em três ligações deve ser verdade para um
milhão; agora ele acrescenta que nada multiplicado pelo infinito não é nada ainda. Além
de sua conexão duvidosa com o anterior, pois ele não havia mencionado zero ou
multiplicação, a sentença é aritmética ruim. Não é verdade que zero multiplicado pelo
infinito é zero, como se pode ver facilmente ao perceber que a fracção dois sobre zero e
14
[Nota do tradutor] Tipo de pão muito popular entre as populações de língua alemã.
43
a fracção três sobre zero são ambas infinitas. Deixe isso ser suficiente como um
exemplo horrível de defender a teologia natural.
Que isso seja suficiente para refutar a alegação de que a existência de Deus pode ser
demonstrada com base na observação da natureza. O argumento cosmológico é
inválido, e é chamado um tipo diferente de filosofia. Uma possibilidade seria manter o
Cristianismo ao custo de ser irracional. Outra possibilidade, e a próxima a ser discutida,
é a tentativa de seguir a razão, mesmo que isso leve ao repúdio do Cristianismo e
revelação. Assim, “Razão e Fé” dão lugar à nova rubrica, “Razão sem fé”.
RAZÃO SEM FÉ
A medieval, isto é, a cosmovisão Católica Romana perdeu seu monopólio nas mentes
dos homens nos séculos quinze e dezasseis. Dois poderosos movimentos combinaram,
ou pelo menos se completaram, para formar a civilização moderna. Um deles, o
Protestantismo, renunciou à razão escolástica e se baseou na revelação; o outro, o
Renascimento, se entregou totalmente à razão e não teve nada a ver com a fé. Esta
última alternativa será discutida em primeiro lugar, e seu desenvolvimento pode ser
convenientemente organizado, apresentando o relato das principais teorias filosóficas
com algumas notas sobre sua origem na cultura popular.
Irreligião Inicial
O efeito da “razão” nos aspectos gerais da cultura - uma vez que inclui o
desenvolvimento multifacetado do Renascimento e amplia sua influência ao longo de
vários séculos, podemos afirmar que a Revolução Francesa - é um assunto muito grande
para um tratamento adequado. Certas evidências de hostilidade ao Cristianismo são tudo
o que é pertinente e tratável aqui.
44
Na Itália, onde a literatura clássica chegou pela primeira vez, o Império do Oriente
desmoronou sob a pressão dos Turcos, o tempo era oportuno para uma revolução
intelectual; porque foi na Itália que a corrupção do papado foi mais evidente. Quando,
portanto, as glórias da Grécia e de Roma se tornaram conhecidas, quando, isto é, uma
civilização que não tinha sido dominada pela ideia de Deus foi trazida à luz, a sociedade
largou rapidamente seu Cristianismo hipócrita e tornou-se abertamente pagã.
Claro que nem toda cultura se tornou pagã. A ideia de Deus não foi descartada
universalmente. Não apenas os autores clássicos estudaram, mas também a erudição do
Novo Testamento foi promovida tanto pelo covarde Erasmo quanto pelos Reformadores
corajosos. Mas o Renascimento diferentemente da Reforma, era essencialmente pagão.
E se isso foi verdade para os estudiosos, particularmente para os estudiosos Italianos
(Pico della Mirandola, c.1494; Marsilius Ficinus, c.1499; e mais tarde, Telesius, c.1588;
Giordano Bruno, c.1600), era ainda mais verdade para Benvenuto Cellini, Niccolo
Machiavelli e Borgias. O brilho artístico, a vaidade intensa, o poder político e as
riquezas dissolutas não eram compatíveis com a doutrina e moralidade Cristã. Não é
necessário manter que a ignorância medieval dos clássicos era uma vantagem, nem que
a forma de arte medieval era superior as novas técnicas. Um conhecimento de Homero e
Virgílio e a descoberta das leis da perspectiva não deve em si ser considerado inimigo
da fé; mas o conteúdo da arte estava mudando, e os temas religiosos se tornaram menos
Cristãos, enquanto os temas pagãos se tornaram mais frequentes. Na literatura,
Boccaccio, Rabelais e cut-throat Villon combinam desprezo pela duplicidade
eclesiástica com uma falta de inclinação para a moralidade pessoal.
No entanto, nem todo esse paganismo, deve ser atribuído a uma decisão filosófica sobre
os méritos da fé e da razão. Villon e Rabelais são simplesmente os resultados comuns
da depravação humana. Na verdade, circunstâncias extenuantes podem ser alegadas pela
repulsa do que passou sob o nome de Cristianismo. Todos esses homens no entanto,
eram componentes representativos da nova cultura. Eles foram os porta-vozes e
espelhos do seu tempo, ambos influenciados e influenciadores. Mas o tipo de escritor
mais pensativo, que, sem ser um filósofo sistemático, a longo prazo exerceria uma
influência mais ampla, pode ser achado em Michel de Montaigne.
É estranho dizer que houve um contraste notável entre Montaigne e outros na tradição
da Renascença, tanto mais cedo assim como mais tarde. O humanismo Renascentista era
45
optimista. Não se preocupou com os limites da razão humana. Ao negar a necessidade
da graça de Deus, assumiu que os recursos humanos eram adequados para todas as
nossas necessidades. O desenvolvimento filosófico, ainda a ser discutido, e os avanços
científicos crescentes não previram nenhum xeque-mate. Mas Montaigne não tinha tanta
certeza.
De facto, Montaigne não tinha certeza de nada. Ele era um céptico. Isto é o primeiro
facto a ser visto em sua atitude em relação a moralidade e a religião. Longe de estar
disposto a morrer por qualquer dogma ou até mesmo a ser incomodado por qualquer
escrúpulo, ele nos aconselha em seu ensaio sobre “Custom” a nos adequarmos ao nosso
tempo e sociedade. Não há princípios morais universais vinculados a todos os homens;
e ainda menos, nada pode ser conhecido sobre Deus, salvação e uma vida futura. A
sabedoria, portanto, consiste em não ter convicção pessoal e em adiar a opinião comum,
a fim de evitar problemas. Quando em Roma, faça como os Romanos fazem.
Se você diz: “O tempo está bom”, e você está falando a verdade, então o tempo está
bom. Isso não é uma maneira de expressar uma certeza? E ainda assim nos enganará.
Para ver que isso é assim, siga o exemplo. Se você diz “eu minto” e você está falando a
verdade, então você ainda está mentindo. A arte, a razão, a força da conclusão neste
caso são os mesmos que no outro. Embora você se encontre preso. Eu observo os
filósofos Pirrônicos que não podem expressar sua noção geral por qualquer maneira de
falar, pois eles teriam que ter um novo idioma. Nossa linguagem é inteiramente
composta de proposições afirmativas, que são totalmente hostis a eles; de modo que,
46
quando eles dizem, “Eu duvido”, nós os temos imediatamente à nossa mercê, se forçá-
los admitir que pelo menos eles afirmam e sabem disso, que duvidam.
47
No entanto, ao contrário de Diderot e a maioria dos Enciclopedistas, Voltaire não era
ateu. Ele acreditava que a moralidade requer um deus finito que recompensa e punição.
No entanto, a ideia de recompensa e punição entra em conflito com o princípio básico
do Deísmo de que Deus não intervém nos assuntos humanos; e se essas recompensas e
punições devem ser distribuídas em uma vida futura, é preciso lembrar que Voltaire
ridicularizou a idéia de alma dizendo: Admita que uma pulga e uma larva têm alma, ou
diga que o homem é uma máquina.
O Deísmo Inglês, do qual Voltaire captou muitas de suas idéias, foi um fenômeno
relativamente distinguível que pode ser localizado no décimo oitavo século.
Naturalmente, suas raízes estavam no passado, na Renascença e até mesmo em volta de
Celsus e Porphyry. Na Inglaterra, Lorde Herbert de Cherbury (1583-1648) colectou
primeiro o conjunto de idéias mais tarde conhecidas como Deísmo; mas talvez seja
Charles Blount (1654-1693) quem pode ser melhor identificado como um Deísta de
pleno direito. Depois dele vêm os principais representantes do movimento: John Toland
(1670-1722), o Conde de Shaftesbury (1671-1713), Anthony Collins (1676-1729),
Thomas Woolston (1669-1731), Matthew Tindal (1656-1733), e, para não mencionar
figuras menores, o Visconde Bolingbroke (1672-1751).
48
sustenta a crença em um deus que governa o mundo racionalmente. Sendo perfeito e
imutável, deus não viola as leis da natureza por nenhum milagre. Pela mesma razão, a
religião que ele deu ao homem na criação é perfeita e não precisa de suplementação. A
perfeita racionalidade de deus é igualmente incompatível com sua escolha e
favorecimento de um povo em particular. A revelação especial também seria um
exemplo de parcialidade. Pelo contrário, todos os homens têm meios suficientes para
saber o que deus requer, pois poderíamos não conceber um Deus justo exigindo de
todos os homens a informação que ele havia dado para apenas alguns. Em qualquer
caso, a Bíblia não é uma revelação especial porque é cheia de superstição e erro. O
Antigo Testamento é imoral e o próprio Cristo deve ser censurado por tornar a salvação
dependente de crenças de que a maioria dos homens nunca ouviu falar. Tudo o que deus
exige é que promovemos o bem comum. Tindal também acreditava em uma vida futura,
embora alguns Deístas não acreditassem.
Além de ser a expressão mais abrangente e digna de Deísmo, o livro de Tindal alcançou
outra distinção, pois estimulou o Bispo Butler a produzir aquela famosa Analogia que
tão bem pôs fim a Deísmo.
Agora, talvez seja exagero dizer que a Analogia de Butler destruiu o Deísmo. Os
próprios Deístas estavam começando a sentir a dificuldade de defender suas negações
em face das respostas ortodoxas e suas afirmações diante de argumentos mais radicais.
O Deísmo, apesar de sua profissão de uma religião ética, também foi acusado - e com
alguma demonstração de justiça - de promover a imoralidade pública generalizada.
Neste ponto o reavivamento Metodista mudou a opinião popular. Talvez, também,
eventos militares e políticos tendessem a confundir o Deísmo na primeira página.
Interessante como tudo isso é, o Deísmo Inglês e o Iluminismo Francês são resultados
essencialmente populares do Renascimento. Esses homens, embora tenham escrito
volumosamente, foram mais seguidores do que líderes na formação da Cultura
Europeia. Seus argumentos são por vezes inconsistentes e seus termos ambíguos. Em
particular, o termo razão muda seu significado, se não sempre em um único autor, mas
certamente de um para outro. Por trás destes os homens estão os principais filósofos.
Portanto, é necessário examinar a fonte dessa fé na razão que sustenta que a razão não
precisa de fé.
49
A direcção em que a cultura de uma era se desenvolve é, humanamente falando,
escolhida por alguns homens excepcionalmente inteligentes. Os autores populares,
então, pegam algumas das principais idéias, usualmente, distorcendo e diluindo-as
consideravelmente e, finalmente, cinquenta anos ou um século depois, o ponto de vista
geral se infiltra em toda a população.
Portanto, as idéias mais claras sobre razão versus fé devem ser estudadas primeiro nos
principais filósofos: os Racionalistas - Descartes, Spinoza e Leibniz; os Empiristas -
Locke, Berkeley e Hume; e finalmente Kant e Hegel.
Racionalismo
René Descartes pode ser introduzido como um pai sábio que demonstra a tolice de seu
filhinho, Montaigne. Pode-se imaginá-lo dizendo, não seja tão pessimista; eu sei que a
Filosofia é muito difícil para você; me deixe fazê-la. Ou, para colocar o assunto na
própria linguagem mais digna de Descartes: Enquanto a sensação e a experiência
repetidamente nos enganam e não nos fornecem nenhuma fundação indubitável para
uma super-estrutura firme, ainda que apenas um único ponto seja encontrado sólido,
então, como Arquimedes, podemos mover o universo. Descartes foi ao extremo para dar
a dúvida o benefício da dúvida. Por causa de ilusões ópticas, que são mais frequentes do
que se poderia supor, nós não podemos começar confiando na sensação.
Aliás, não podemos ter certeza de que estamos acordados. Em várias ocasiões eu
pretendia tirar uma soneca, mas parece ter falhado; então quando eu observei que não
conseguia dormir, minha esposa sorria e me dizia que eu estava roncando alto. Sonhos
provam o mesmo ponto, pois sonhos são muitas vezes tão vividos quanto a experiência
supostamente vivida; e quando estamos sonhando nós não achamos que seja um sonho.
50
No entanto, há uma coisa que nem mesmo um demônio omnipotente pode fazer. Ele
não pode nos enganar sem nos permitir pensar. Se somos enganados, nós devemos estar
pensando; e se pensarmos, nós existimos. Aqui então é verdade indubitável, um fulcro
firme pelo qual podemos mover o universo da filosofia.
A maneira como Descartes começou a construir sua visão de mundo a partir deste ponto
não nos preocupa aqui. O importante é o método dele. Não se deve supor que a certeza
do pensamento depende de qualquer experiência vivida. Se certamente dependesse da
experiência vivida, então raios e trovões serviriam para enganar o demônio.
Obviamente, eles não podem. A prova do Cogito depende apenas da lógica. “Eu penso”
é uma proposição tal que se é negada, é provada verdadeira. Se digo, penso, segue-se
que penso; mas também, se eu disser que não penso, segue-se que eu penso. Isto não é
uma questão de experiência, mas de lógica apenas.
Por causa deste método, Descartes e seus seguidores são chamados de Racionalistas.
Eles dependiam da razão. Mas note, a razão pela qual eles dependeram não é em
primeira instância uma razão que é oposta a revelação. Isso não quer dizer que um
Racionalista ou o Racionalismo como sistema é o baluarte da revelação. Spinoza em
particular não tinha amor pela Bíblia. Mas a razão do Racionalismo é em primeiro lugar
uma razão que é oposta e exclusiva a experiência. Aqui a razão significa lógica.
Todo o conhecimento, nesta teoria racionalista, deve ser deduzido como os teoremas da
geometria são deduzidos de seus axiomas. Nenhum recurso a sensação é permitido. A
aplicação consistente das leis da lógica é sozinha suficiente. A razão, portanto, carrega o
significado de consistência lógica. Isso explica por que os Racionalistas adoptaram o
argumento ontológico para a existência de Deus. Eles precisavam da existência de Deus
não apenas para se livrarem de um demônio omnipotente, mas, mais seriamente, para
provarem a existência de um mundo. Agora, para ajustarem seus princípios, o
51
argumento para a existência de Deus tinha que ser assim interpretado de forma a tornar
uma negação de sua existência auto-contraditória. Assim como uma pessoa que nega
que os ângulos interiores de um triângulo são iguais a dois ângulos rectos simplesmente
não sabe o que significa o conceito de um triângulo, quem nega a existência de Deus
simplesmente não entende o termo Deus. Assim, a existência de Deus é provada apenas
pela lógica.
A verdade de uma narrativa histórica, embora garantida, não pode nos dar o
conhecimento de Deus, nem por conseguinte, o amor de Deus, o amor de Deus provém
do conhecimento dele, e o conhecimento dele deve ser derivado de ideias gerais, em si
certas e conhecidas, de modo que a verdade de uma narrativa histórica esteja muito
longe de ser um requisito necessário para alcançarmos o nosso bem mais elevado.15
Mas o argumento de Spinoza era que uma narrativa histórica, mesmo que perfeitamente
correcta, é sem valor na religião. Uma resposta Cristã, portanto, deve ser dirigida contra
a epistemologia que está por baixo da declaração de Spinoza. A questão importante não
é se a Bíblia é verdadeira ou não, mas se todo o conhecimento é ou não dedutível pela
razão, ou seja, apenas pela lógica.
15
Spinoza, Tractatus Theologico-Politicus, capítulo IV.
52
Kant fez o melhor que pôde para explodir o argumento ontológico; e visto que o
argumento é a única esperança do Racionalismo de fazer contacto com a existência real,
sem a qual filosofia seria apenas um jogo de palavras, tal a refutação, se boa, aniquilaria
completamente o Racionalismo. Mas mesmo que o argumento ontológico seja válido,
ninguém nunca conseguiu deduzir o número preciso de planetas, ou a espécie real de
japónica, a partir da existência de Deus somente pela lógica. E se astronomia e botânica
devem progredir além do Racionalismo, é incoerente exigir que a religião seja tão
confinada.
Empirismo
Mas, no entanto, pode ser com o próprio Locke – e, mais claramente – pode ter sido
com o devoto Bispo Berkeley, Hume mostrou que o Empirismo, consistentemente
mantido, não pode dar lugar a revelação. Não há necessidade de equilibrar o Berkeley
53
Cristão contra o Locke secular e para salientar as deficiências de Locke para a vantagem
da atitude mais aceitável de Berkeley em relação à revelação. O importante é descobrir
o que resulta do princípio de que todo conhecimento é baseado na experiência,
principalmente na sensação.
Agora, até que ponto a experiência nos levará? Estas sensações interiores dão qualquer
conhecimento de corpos externos? Podemos descobrir as causas dessas impressões?
Berkeley já havia mostrado que as sensações de vermelho, duro, amargo, etc., não
fornecem provas a favor da existência de um mundo material. Hume, seguindo-o, dá o
exemplo de uma mesa. Suponha que nós vemos uma mesa. Nós temos uma sensação de
mesa. Se nos afastarmos dela por um longo corredor, o que vemos parece menor do que
vimos quando estávamos mais perto. Uma mesa externa deve sempre manter o mesmo
tamanho. Portanto, o que realmente vimos não foi a suposta mesa externa, pois o que de
facto vimos mudou de tamanho. O que nós realmente vimos foi uma imagem ou
imaginação em nossa própria mente, e, portanto, nossas sensações não nos fornecem
nenhuma evidência para a existência de um mundo externo. Mesmo se supossemos que
nossa imagem teve alguma causa externa, não saberíamos que a imagem assemelha-se à
causa, pois não vimos nada além de imagens. De facto, se a palavra imagem conota com
algo externo, nós não temos motivos para acreditar que nossas sensações são imagens.16
16
Qualquer pessoa não convencida por este breve relato deve ler as primeiras páginas da Parte 1 de
Principles of Human Knowledge de Berkeley.
54
simplesmente não existe. Similarmente, “matéria” não existe; é apenas o som da nossa
voz, nada mais do que uma palavra vazia. Mas se a ideia abstracta de substância
material é nada, segue-se com a mesma necessidade qua a experiência não pode nos dar
nenhuma ideia da substância espiritual. Uma é tão abstracta quanto a outra. Isto é, uma
mente ou alma não existi. A experiência nos dá apenas ideias. Existem vermelhos,
verdes, amargos, doces, duro, suave e seus compostos – rios, árvores e mesas; mas não
há matéria nem espírito, pois a percepção nunca pode fornecer evidência para qualquer
coisa imperceptível. Nós mesmos não somos nada além de colecção de percepções
sensoriais.
A experiência nos habitua a esperar certas sequências. Elas se tornam tão familiares, nós
as chamamos de causas e efeitos. Mas em tudo isso não temos a compreensão da
55
sequência e nenhuma experiência de qualquer conexão necessária. Um conhecimento da
história é, portanto impossível.
Aqui está a dificuldade. Em qualquer tempo finito, não importa quão pouco,
experimentamos uma multiplicidade de sensações. Vemos dezenas de cores, podemos
ouvir dois ou três sons, poderíamos cheirar vários odores, e mesmo se não tivéssemos
gostos no momento, temos sempre uma série de sensações tácteis. A partir desta
variedade de sensações seleccionamos algumas e combinamos elas para produzirmos a
imagem de uma mesa. Mas por que é que combinamos a cor marrom, uma forma um
pouco rectangular, e a sensação de dureza para produzir uma mesa, em vez de
seleccionarmos de nossas muitas sensações a cor verde pálido, o som de C-sharp, e o
cheiro de pão fresco para combiná-los na ideia de um jobbleycluck?
Locke tentou justificar a conexão de certas ideias com o pretexto de que elas eram
qualidades inerentes à mesma substância material. Mas visto que substância material
não existe (mesmo que não pudéssemos saber até depois de termos combinado ideias e
feito algumas abstracções), esta explicação não está disponível para o Empirismo.
Berkeley e Hume dão a impressão de que nossas selecções para combinações dependem
do facto de que as ideias seleccionadas ocorrem ao mesmo tempo. Tempo, no entanto,
não é importante, pois a qualquer momento estamos experimentando mutas ideias que
não combinamos em uma mesa. Então, deve um empirista dizer que a combinação
particular depende do espaço em que as ideias simples são percebidas?
Nós vemos o espaço? Ouvimos o espaço? Sentimos o cheiro do espaço? Isso não só é
impossível, mas mesmo quando vemos um único objecto no espaço, não podemos ver a
distância entre ele e nós. Nós julgamos distâncias comparando objectos conhecidos.
Visto que já vimos e tocamos uma determinada mesa, e assim sabemos o seu tamanho a
56
curta distância, podemos julgar o quão longe nós estamos quando aparece a metade do
seu tamanho anterior. Ou podemos julgar que uma casa no final da estrada é uma milha
de distância, porque em outras ocasiões nós caminhamos a distância. Espaço e distância,
portanto, são questões de julgamento e comparação, não de simples sensação.
Emanuel Kant
Emanuel Kant, despertou, como ele diz, de seu sono dogmático por meio de David
Hume, prontamente começou a solucionar o defeito do Empirismo. Se todo o
conhecimento é baseado apenas na experiência, então não pode haver conhecimento de
qualquer verdade necessária. No máximo, a experiência pode revelar que isto e aquilo é
assim, mas não que deva ser assim. Por exemplo, a sensação pode nos dizer que portas
têm dois lados, mas não pode nos ensinar que as portas devem ter dois lados. As portas
podem em algum lugar, algum dia, ter apenas um lado. Nenhuma experiência pode
refutar essa possibilidade. Da mesma forma, o Empirismo não pode justificar
proposições universais. Nós podemos possivelmente saber que todas as portas que
vimos têm dois lados, mas sem nenhuma referência a invenções futuras, mesmo para o
passado, não podemos saber que todas as portas tiveram dois lados. Ou, novamente,
toda vez que adicionamos dois e dois, a resposta tem sido quatro; mas no que diz
respeito à experiência, não podemos dizer que dois e dois são sempre quatro. A
experiência não pode nos dizer o quanto dois e dois são em aqueles casos que não
experimentamos. Resumidamente, sem necessidade e universalidade – e estas são
inseparáveis – não pode haver nem matemática nem física.
57
Por um golpe, Kant é capaz de reabilitar a necessidade e a universalidade para explicar a
percepção de objectos individuais, como cadeiras e mesas. A mente do homem no
nascimento não é apenas uma folha de papel em branco assim como Locke disse que é.
Ela possui características, formas ou noções por direito próprio. Espaço e tempo são
duas dessas formas. O conhecimento do espaço e do tempo não dependem da
experiência; antes, o inverso é verdadeiro: a experiência depende do nosso
conhecimento de espaço e tempo. Essas duas formas fazem a percepção de coisas
possíveis.
Esta ilustração de trilhos em perspectiva deve ser ampliada para cobrir objectos no
espaço. Os trilhos representam qualquer objecto, tal como uma cadeira ou uma mesa; e
a perspectiva da ilustração representa o espaço característico de cada objecto visível.
Cadeiras e mesas em si, não existem no espaço; somos nós que as vemos dessa maneira.
Portanto, assim como sabemos antecipadamente, andes da experiência – ou para usar o
termo de Kant, de forma a priori – que todos os trilhos vistos devem convergir, sempre
devem, e sempre vão convergir, então, em um nível mais profundo sabemos de forma a
priori que as portas devem ter, sempre tiveram, e sempre terão dois lados. Isto é, as
portas da experiência, portas vistas, devem ter dois lados. Mas que portas em si são
como – portas não que aparecem em nossa percepção, portas não conformes a forma de
espaço a priori da nossa mente – não temos a menor ideia.
58
maneiras. Esses métodos de unificação não são aprendidos a partir da experiência; pelo
contrário, eles tornam a experiência possível. Se nós não possuíssemos este
equipamento, não poderíamos mais começar a pensar que poderíamos começar a ver
objectos sem a forma a priori do espaço. Visto que pensar ou julgar consiste em
organizar percepções sob conceitos (este gatinho visível pertence à espécie gato, ou à
classe de objectos negros), segue-se que a experiência significativa só é possível com
base em certos conceitos ou categorias a priori.
No entanto, não foi um Cristão tentando defender a revelação que questionou o sucesso
de Kant. Os Cristãos são por vezes acusados de serem tendenciosos e de fornecerem
seus argumentos a fim de desistirem de conclusões. No entanto, isso não é mais verdade
para Cristãos do que foi para Kant ou para qualquer pessoa. Kant sabia que queria
elaborar uma teoria das categorias, e ele fez repetidas tentativas de deduzi-las antes que
encontrasse sua formulação final. A conclusão foi decidida antes que o argumento fosse
resolvido. Isto é verdade para todos filósofos, embora os Cristãos sejam mais
frequentemente castigados por isso do que são outros escritores. E aqueles que fazem a
crítica severa são exemplos mais aguçados do que aqueles que ridicularizam. Mas de
59
qualquer forma, como uma questão de história, o fracasso de Kant não foi exposto por
um Cristão tentando defender a revelação.
Essa crítica pode ser expressa em outros termos e talvez mais claros. Kant na verdade
argumentou que antes de tentarmos estudar física e teologia, devemos determinar se a
mente é ou não capaz de investigar coisas físicas e Deus. Mas se for assim, não se pode
manter com plausibilidade igual que antes de tentarmos estudar as limitações da mente,
devemos determinar se a mente é ou não capaz de investigar suas limitações? Portanto,
a Crítica da Razão Pura de Kant deveria ter sido precedida por uma Crítica da Crítica da
Razão Pura, e assim por diante por um bom tempo.
Outra objecção padrão a Kant, embora talvez seja simplesmente a mesma objecção
novamente em uma forma diferente, tem a ver com as coisas em si. Na teoria de Kant,
as coisas em si mesmas devem estar por trás das coisas – como elas aparecem para nós.
Supõe-se, para fazer uso da ilustração anterior, que atrás dos trilhos de trem
convergentes, há trilhos reias que não convergem. Estes trilhos reiais não convergentes
são presumivelmente a causa dos trilhos que aparecem e convergem. A convergência
ocorre apenas na experiência; a não convergência não ocorre na experiência. Mas muito
60
infelizmente para Kant, as categorias podem ser usadas fora da experiência. A
causalidade é uma relação existente apenas entre dois objectos de experiência. A
categoria de causalidade não pode ser aplicada a trilhos não convergentes. Ou para
repetir a observação inteligente de F.H. Jacobi, “Sem a coisa em si não se pode entrar
no sistema de Kant, e com ele não se pode ficar.”
Essas objecções a Kant não dependem do facto de que ele não conseguiu estabelecer
uma teologia. Deus não pode ser a causa do mundo porque Deus não é um objecto de
sensação, e as causas devem ser confinadas dentro da experiência sensorial. Mas esse
fracasso em chegar a uma teologia não destruiria a filosofia de Kant. As objecções
dependem do facto de que Kant não conseguiu encontrar base para a física. Ele não
conseguiu explicar a sensação. Ele não conseguiu dar uma explicação inteligível da
relação entre forma e conteúdo. Ele não conseguiu tornar o conhecimento possível.
Portanto a questão ainda permanece, se o conhecimento pode ser alcançado à parte da
revelação.
Há mais uma, uma magnífica, digamos, uma tentativa final em filosofia secular a fim de
estabelecer as reivindicações da Razão escrita com um R maiúsculo. Embora o século
XVII exibisse um Racionalismo num sentido definido do termo, ninguém é mais
Racionalista, ninguém exalta os poderes da razão, mais do que G.W.F. Hegel.
61
em si permanece incognoscível; mas se incognoscível, sua existência e necessidade não
podiam ser afirmadas. Hegel torna o ponto absurdo ao afirmar um incognoscível; depois
tenta remover a oposição entre a consciência e seu objecto, mostrando que num nível
mais alto, ambos estão dentro da própria consciência. Natureza, o dado, as contribuições
do sentido, são uma com a mente ou espírito. Não há divergência final. Essa unidade, no
entanto, deve ser mostrada em detalhes. Hegel se recusa a confiar em qualquer
experiência mística ou transe extático para ganhar o Um; pelo contrário, ele propõe uma
nova lógica por cujo procedimento dialéctico a unidade necessária pode ser
desenvolvida passo a passo.
A lógica aristotélica17, em sua insistência em distinções claras, é tão boa até onde vai,
Um gato não é um cachorro, e um objecto sensorial não é o eu: eles não devem ser
confundidos. A menos que o pensamento, marque uma coisa diante da outra, não pode
haver pensamento. Mas o pensamento não só distingue uma coisa da outra, também
relaciona e conjuga-as. Cão e gato são espécies de mamíferos, e o reconhecimento de
uma espécie faz uso do contraste com outra. Em tais relações, seria impossível pensar;
somente tão impossível quanto seria pensar sem definições. Cada objecto deve ser
diferenciado de todos os outros objectos, mas nenhum objecto pode ser assim
totalmente diferenciado de modo a excluir a identidade que transcende a diferença. As
diferenças são expressões de unidade.
Para todos os esforços de Kant, sua teoria do eu não é uma melhoria muito grande em
relação a de Hume. A autoconsciência, ele disse, não era um conceito mas uma
consciência que acompanha todos os conceitos. O ego permanece desconhecido em si e
é conhecido apenas através dos pensamentos que são seus predicados. Mas isso é tanto
17
Os próximos parágrafos seguem Edward Caird, Hegel, 134ff.
18
Isto é discutido em detalhes brilhantes em The Phenomenology of Mind, capítulos 1-3.
62
quanto dizer, conclui Hegel, que não podemos ver o Sol porque não podemos lançar os
raios de uma vela sobre ele. Kant declarou que a inteligência em si é inteligível! Ele fez
isso porque pressupõe que somente a identidade abstracta, sem diferença, é inteiramente
inteligível.
A velha lógica assumiu que cada objecto é uma identidade isolada, um puro isto e não
aquilo. As relações eram consideradas externas, como fora da real natureza das coisas.
Pelo contrário, é essencial que um cão não seja um gato. O significado de cada objecto
está entrelaçado no significado de todos os outros. Nada é isolado ou puramente um.
Em particular, o procedimento isolacionista tropeça na autoconsciência porque nela a
verdadeira unidade é essencialmente complexa. Mente e objecto, sujeito e substância, e
os seus particulares formam uma unidade. Nada está fora ou independente. A natureza e
o homem são idênticos. No entanto, essa identidade não é abstracta ou vazia. Todas as
diferenças são preservadas. Unidade e pluralidade são tão misturadas que nenhum tem
significado sem o outro.
63
universalidade e vazio do Ser nos deixa sem dizer nada. Nós não dissemos que é verde
ou pesado; nós não determinamos isso de forma alguma. Ser, portanto, é o equivalente
de Nada. Mas visto que por este processo dialéctico do pensamento, o Ser tornou-se
Nada, a categoria de tornar-se emergiu. Tornar-se é a síntese do Ser e Nada. Uma coisa
é tanto ser e não ser quando está se tornando.
Por tal procedimento dialéctico, Hegel deduziu uma longa lista de categorias. A
categoria final continha explicitamente tudo o que a primeira continha implicitamente.
Sem dúvida, Hegel era um gênio e, apesar de seu embaraçoso frequente jargão, há muita
profundidade que vale a pena em sua Fenomenologia e Lógica. Em particular, ele
frequentemente coloca o dedo nos pontos mais difíceis dos sistemas anteriores, de modo
que pode-se dizer que para entender Kant, Descartes, ou os antigos Estóicos é preciso
primeiro ler Hegel. Os acidentes da política Prussiana, para os quais alguém pode querer
creditar sua imediata popularidade na Alemanha, não podem explicar sua longa
ascendência na Grã-Bretanha nem sua moda nos Estados Unidos. No entanto, desde a
Primeira Guerra Mundial, o Hegelianismo tornou-se praticamente extinto; e na
Alemanha começou a sofrer eclipse mesmo em meados do século XIX. Esta reversão
pode ser tomada como evidência de alguma falha ou defeito filosófico na construção de
Hegel, e onde o problema reside deve ser descoberto.
Um ponto específico da crítica foi apontado sem demora pelos seguidores imediatos de
Hegel. Se o universo é este sistema de categorias, ele argumentou – se o real é o
racional e o racional é o real – então claramente toda a realidade pode ser deduzida
dialeticamente, e cada item deve encontrar seu lugar claro no sistema, Hegel fizera a
questão de preservar as diferenças; ele não favoreceu abstracções vazias nem a noite do
misticismo em que todas as vacas são pretas. Portanto para cumprir suas afirmações,
Hegel deveria deduzir alguma vaca individual preta e branca muito real na pastagem
sobre o além.
Mas isso é precisamente o que Hegel não fez e não podia fazer. Assim como Platão
nunca conectou satisfatoriamente suas ideias com os objectos dos sentidos individuais,
assim também, Hegel não podia racionalmente deduzir um objecto individual do
Absoluto. Certamente, Hegel não ignorava essa crítica. Quando confrontado com isso,
ele respondeu que tinha dissolvido o indivíduo – o isto, o aqui e agora, e o ego
individual também – no primeiro capítulo de sua Fenomenologia; mas seja qual for a
64
realidade que eles têm, ele tinha preservado no processo dialéctico. Isto é claro, em
consonância com a negação de um incognoscível Ding-an-Sich19 e a remoção dessa
forte separação entre a forma mental e o dado sensorial que assolou os Pós-Kantianos.
A franqueza de Hegel elimina o aguilhão das críticas, mas não pode ser mantido que sua
disposição natural para se dar ao benefício da dúvida diminuiu sua força. Pode-se
perguntar se a espécie vaca ou até o conceito animal pode ser deduzido. E até onde a
física está em causa, é claro que nenhuma dedução de um determinado ser, qualidade ou
quantidade pode nos dar conhecimento da qualidade do ácido sulfúrico ou do peso
atómico do ouro. Não se pode por conseguinte, concluir que Hegel falhou em encontrar
o universal concreto que ele buscou e nos ofereceu apenas abstracções vazias?
Ignorância Absoluta
Há uma segunda crítica, e sobre estas duas a presente refutação actual do Hegelianismo
deve depender. Foi visto acima que para Hegel a verdade é o todo, toda determinação é
uma negação, e os relacionamentos de um objecto são logicamente internos ao seu
significado. Um gato não é um cachorro; é uma parte da essência de um gato não ser um
cachorro. Mas não ser um cachorro é estar relacionado a cachorro, e essa relação é
interna ao significado de gato. Assim gato e cachorro, objecto de sentido e eu, estamos
incluídos em um todo maior. O Todo incluído é o Absoluto.
Que as relações são internas, e especialmente que a verdade é o todo, são temas difíceis
de negar. No entanto, suas implicações são devastadoras. Contanto que você ou eu não
saibamos as relações que constituem o significado de gato ou eu, não conhecemos o
objecto em questão. Se dissermos que conhecemos algumas das relações – por exemplo,
19
[Nota do tradutor] Expressão alemã usada para referir-se a coisa em si, o nômeno ou noúmeno.
Também pode ser usada para referir-se a essência de algo, aquilo que faz algo ser o que é.
20
[Nota do tradutor] Gado Holandês, uma raça de gado bovino.
65
um gato não é um cão – e admitirmos que não conhecer outras relações – por exemplo,
um gato não é um (animal que nunca ouvimos de antes falar) – segue-se que não
podemos saber como esta relação desconhecida pode alterar nossa visão do
relacionamento que agora dizemos conhecer. A alteração poderia ser considerável.
Portanto, não podemos conhecer nem mesmo um relacionamento sem saber tudo.
Portanto, nós sabemos nada.
FÉ SEM RAZÃO
66
Tipos de Misticismo
Existem outros casos também onde, embora a frase não possa ser aplicada com rigor
literal completo, há uma suspeita e mais do que uma suspeita de que a fé sem razão é o
ideal. Os místicos formam um grupo particularmente digno de nota.
Triad celestial, super-Deus e super-bom, Guardião da teosofia dos homens Cristãos, nos
direccione correctamente para o super-desconhecido e super-brilhante e mais alto topo
dos oráculos místicos, onde os mistérios simples e absolutos e imutáveis da teologia
estão escondidos dentro da escuridão superluminosa do silêncio, revelando coisas
ocultas, que na sua escuridão mais profunda brilham acima dos mais super-brilhantes, e
no todo impalpável e invisível enchem para transbordar a mente sem olhos, com glórias
de beleza imbatível.21
O misticismo Neoplatônico, do qual este Dionísio tomou sua inspiração, abordava sobre
transes em que a personalidade se fundia na simplicidade perfeita de um original. Neste
Um, a simplicidade é tão perfeita que não existe até mesmo o dualismo de sujeito e
predicado. Portanto, neste reino o conhecimento é impossível, pois todo conhecimento
consiste na atribuição de predicados aos sujeitos: O gato é preto, o número quatro é par,
ou William foi um conquistador. Mas no transe ou absorção, não há nem mesmo um eu
e tu. Existe apenas pura simplicidade do Um. Por esta razão, não só não há
conhecimento durante o transe, mas mesmo após a recuperação o homem pode dizer
nada verdadeiro sobre isso porque ele teria que usar a dualidade de frases para falar ou
saber.
21
Mystic Theology, 1:1.
67
indiferenciado. Com entusiasmo, mas numa fraseologia, inteligível o místico fala do ser
inundado com uma irrupção dos abismos da vida interior; ou, diz ele que as energias
transcendentais invadem a alma, e todo o ser, em uma experiência integral e indivisa
encontra-se.
Outros místicos, ou, se o termo místico não é aplicável aqui, outros que querem falar de
uma fé sem razão, divergem do padrão neoplatônico de duas formas. Eles não gostam
de filosofia, nem se acomodam sobre transes sem palavras. Esta descrição negativa,
reconhecidamente ampla, inclui grupos de outra forma bastante diferentes. Inclui não só
os profetas anárquicos de Zwickau, que não precisavam estudar grego ou hebraico
porque Deus falaria com qualquer camponês emocionado – mas também mais tarde o
devoto, sóbrio, e fervoroso Pietista. E quem pode ser muito duro com os Pietistas?
Vivendo uma vida moral, piedosa, eles vêem o formalismo frio das classes educadas e
repudiam a teologia sistemática em favor de uma simples e calorosa devoção.
68
Pietistas e Fundamentalistas, e ainda mais outro ponto de vista a ser mencionado em um
momento, tem a tendência comum de uma fé sem razão.
Este outro ponto de vista, tão popular e poderoso na actualidade, é muitas vezes
chamado pelo nome de Neo-ortodoxia. É ainda mais anti-racional ou anti-intelectual do
que o Pietismo ou o Fundamentalismo. Seu background e motivação também são
diferentes. Em vez de ser uma diluição do Protestantismo original assim como o
Fundamentalismo é, a Neo-ortodoxia descende da filosofia pós-Hegeliana. Para
entendê-la, portanto, e para ver até onde o anti-intelectualismo pode conduzir alguém,
será necessário brevemente traçar certas vertentes do pensamento do século XIX,
embora nem tudo seja distintamente religioso.
Karl Marx
A rejeição contemporânea do Hegelianismo foi iniciada por dois dos alunos de Hegel,
Karl Marx e Søren Kierkegaard. Visto que Marx teve maior sucesso imediato e porque
foi menos radical do que Kierkegaard, Marx será o primeiro a ser brevemente discutido.
69
humano – é fundamentalmente emocional e é determinado não por fantasias idealistas,
mas por aquilo que come. Der Mensch ist foi er isst.22
A presente discussão não pode ter nada a ver com a economia e aspectos políticos da
filosofia de Marx. O único ponto a ser enfatizado é o abandono de Marx do
intelectualismo. Epistemologia, matemática e a ética são os casos em questão. Assim
como Feuerbach, ele praticamente ignora a epistemologia. Na melhor das hipóteses, ele
dispõe do solipsismo na base de que é uma zombaria dos esforços da classe
trabalhadora para se libertar. Os problemas filosóficos em relação aos fundamentos da
matemática são empurrados de volta para a obscuridade de um passado evolucionário
desconhecido. Na ética, Marx defende uma teoria relativista. Direitos tornam-se
demandas da classe que devem ser aplicadas em vez de aprovadas pelo argumento
racional. A alegação de uma classe deve dar caminho para outra, e só a força decide
qual; o sucesso é o teste da verdade.
Søren Kierkegaard
Søren Kierkegaard (1813-1855), embora não fosse categorizado com Karl Marx, pelo
leitor superficial, é, não obstante, em certos aspectos básicos um tipo representante dos
meados do século XIX. Em sua revolta contra o Racionalismo sistemático de Hegel, em
seu ataque ao Cristianismo oficial, e no anti-intelectualismo que permeou o movimento
22
[Nota do tradutor] Expressão alemã que significa: O homem é o que ele come.
70
Romântico, este Dinamarquês Melancólico expressou a opinião amplamente difundida
de que havia algo podre no estado da Dinamarca, ou seja, na Europa ou na Cristandade.
Ele também concordou amplamente com Feuerbach e Marx quanto aos sintomas de
podridão, mas em relação à causa e a cura ele diverge deles radicalmente.
Marx havia diagnosticado a doença da sociedade como uma doença económica; mas,
afirma Kierkegaard, a reforma social que o tempo exige é o oposto do que precisa. A
doença não é económica; é espiritual e religiosa. O espírito da era foi substituído pelo
Espírito Santo; o homem tomou o lugar de Deus; e o tempo engoliu a eternidade. Se
Marx, em seu diagnóstico erróneo, criticou Hegel por ser muito Cristão e
demasiadamente abstracto, Kierkegaard ataca os dois: Hegel por não ser Cristão o
suficiente e Marx (ou pelo menos o Socialismo, pois não está claro como
definitivamente Kierkegaard tinha Marx em mente) por ser demasiado Hegeliano. Sua
falha comum, pois Hegel afinal, era um socialista, de facto, se não em nome, foi o seu
desrespeito pelo indivíduo. Qualquer objecto, por exemplo, uma caneta, é suficiente
para confrontar o pensamento abstracto com o problema da existência individual; mas
pessoas individuais são mais importantes que canetas. As pessoas são importantes:
Particularmente, sou extremamente importante para mim; e meu problema, ou seja, o
problema da pessoa em sua individualidade é basicamente religioso. Agora, Hegel tinha
perdido a pessoa, não apenas a caneta, na universalidade do processo mundial; porque o
Racionalismo sistemático não pode dar conta da real existência individual.
Não é verdade que o real é o racional. A realidade, afirma Kierkegaard, não pode ser
compreendida pela razão. Apesar do argumento na Fenomenologia, o imediato, o agora,
o isto e especialmente o eu não pode ser aufgehoben23 ou suprimido. Hegel tentou
explicar o mundo pelo movimento da ideia; mas não há movimento na lógica, nem há
lógica em movimento. O movimento é ilógico; tornar-se aberto, não fechado; a
realidade é o acaso e o acaso não pode ser colocado na lógica. Por sua identificação de
essência e existência Hegel tem existência conceitual apenas, enquanto que a existência
real iludiu ele. Sua incapacidade de ver a diferença entre pensamento e ser era um
resultado de seu pensamento como pensador profissional e não como homem. Talvez
para a filosofia, a existência e a inexistência sejam de valor igual. O sistema (e o
proletariado também) não está preocupado com uma única pessoa. Mas para o indivíduo
23
[Nota do tradutor] Termo alemão que significa: revogado.
71
existente, por exemplo, para mim, eu e minha existência são de maior valor. Ao
contrário de todo abstraccionismo – seja de Platão (pois ele também era comunista), ou
de Hegel, ou de Marx – o que não é importante e o que é essencial. Portanto, o dever do
homem não é exemplificado na actividade estudiosa do professor Hegel. A realidade
não pode ser ensinada ou comunicada racional e academicamente. Deve ser entendida
pessoalmente, apaixonadamente, anti-intelectualmente. Não são as conclusões que são
necessárias, mas as decisões.
Essa mesma crítica aplica-se também a Marx e a Feuerbach. Eles são pouco menos
abstractos que Hegel. Na humanidade, assim como no Espírito Absoluto o indivíduo
não pode ser achado. Movimentos em massa de homens sem rosto, sem dúvida têm a
força dos números, mas tal nivelamento e amalgamação enfraquecem o indivíduo
eticamente. O homem da massa perdeu a responsabilidade e o poder de tomar decisões.
Para enfrentar a confusão dos tempos e ficar diante da eternidade requer, não
semelhança humana, mas individualidade Cristã. Na natureza, o indivíduo é meramente
uma exemplo de espécies; qualquer pessoa que melhore uma raça de ovelhas muda cada
indivíduo. Mas a religião não é uma questão de espécie, e é tolice supor que pais
Cristãos produzem automaticamente filhos Cristãos. O desenvolvimento espiritual é
radicalmente individual, e a cura para a sociedade é a cura de indivíduos. Porque a
sociedade tem medo de individualistas, essa cura não será fácil. Haverá derramamento
de sangue: não o derramamento do sangue da revolução comunista e da batalha, mas o
derramamento do sangue dos mártires individuais.
Qualquer pessoa que não seja um Hegeliano ou um socialista deve sentir uma certa
simpatia por este individualismo grosseiro, e elas podem aplaudir o sarcasmo que
Kierkegaard dirigiu contra um formalismo religioso vazio e insincero. Mas quando se
passa do negativo para o positivo, pode-se seriamente concluir ou decidir que as
declarações de Kierkegaard são verdadeiras?
Para Kierkegaard, Deus é a verdade; mas a verdade existe apenas para um crente que
internamente experimenta a tensão entre ele e Deus. Se realmente a pessoa existente é
um incrédulo, então para ele Deus não existe. Deus existe apenas na subjectividade.
Essa ênfase na subjectividade e na correspondente depreciação da objectividade resulta
na destruição da historicidade objectiva do Cristianismo. O histórico não é religioso e o
religioso não é histórico. Se Cristo fosse uma figura histórica que viveu há muito tempo,
72
ele não teria significado religioso agora. Por outro lado, se Cristo é uma figura religiosa,
o intervalo histórico deve ser cancelado por uma contemporaneidade interior. A religião
real não consiste em entender qualquer coisa. É uma questão de sentimento, de paixão
anti-intelectual. A aceitação de qualquer verdade histórica objectiva depende de
métodos históricos, e o aluno objectivo da história é muito modesto para colocar seus
próprios sentimentos em suas conclusões. Pensadores especulativos não estão
pessoalmente interessados no sofrimento; eles não estudam a verdade subjectiva da
apropriação.
Mas o Cristianismo sempre foi considerado uma religião histórica, não apenas no
sentido de mil e novecentos anos, mas, especificamente no sentido de que é baseado em
eventos históricos que aconteceram há muito tempo. Para Hegel, esses eventos e seus
significados foram partes essenciais da história universal, consideradas como a
expressão do desenvolvimento do Espírito Absoluto. Mas para Kierkegaard a relação
entre o processo da história e a verdade eterna é um paradoxo. Na linguagem de
Kierkegaard e seus seguidores do século XX, o termo paradoxo indica algo mais
embaraçoso do que os quebra-cabeças que depois de alguma dificuldade podem ser
resolvidos e entendidos. Um estudante elementar de física é intrigado quando é dito que
a pressão da água na parte inferior de um recipiente é o dobro da outra, embora o
recipiente anterior tenha apenas a metade do peso da água. Isso é um paradoxo. Isso é
resolvido aprendendo a relação entre altura e pressão. Mas um paradoxo existencialista
é insolúvel. É uma contradição supor que a bem-aventurança eterna pode ser baseada
em informação histórica. Portanto, a subjectividade da apropriação não é contínua, mas
se opõe a uma disseminação histórica do ensinamento Cristão. A apropriação
apaixonada, o momento da decisão, acaba com o intervalo da história e torna alguém
internamente contemporâneo de Cristo. O método não é intelectual; é uma experiência
de sofrimento e desespero. A verdade objectiva destacada do Cristianismo não deve ser
alcançada. Começando com a pregação dos Apóstolos, todos os séculos da história são
inúteis como prova disso. A verdade objectiva do Cristianismo é equivalente à sua
indiferença ao sujeito, ou seja, para mim.
Esse tipo de pensamento provoca uma questão óbvia. Se não há verdade objectiva, se o
como substitui o o quê, então a verdade pode ser distinguida da fantasia? Um Satanás
sofredor não seria tão “verdadeiro” quanto um Salvador sofredor? Uma apropriação
interior, infinita e decisiva pelo diabo não seria tão louvável quanto uma decisão por
73
Deus? A filosofia de William James mais tarde levantará a mesma questão; Kierkegaard
percebe o dilema, mas dificilmente podia resolvê-lo.
Em seu estilo vigoroso, Kierkegaard descreve dois homens em oração. Um está em uma
Igreja Luterana, e tem uma verdadeira concepção de Deus; mas porque ora em falso
espírito, na verdade ora a um ídolo. O outro está na verdade, em um templo pagão,
orando a ídolos; mas uma vez que ora com uma paixão infinita, está na verdade orando
a Deus. Pois a verdade está no interior, não fora. Ou, novamente, Kierkegaard diz:
“Uma incerteza objectiva mantida rapidamente em um processo de apropriação da
interioridade apaixonada, é a verdade, a mais alta verdade atingível por um indivíduo
existente.”
Suponha agora que existam falhas graves no “Sistema” de Hegel; suponha também que
o homem da massa comunista viole as prerrogativas da moral individual; suponha em
terceiro lugar que a Igreja Luterana dinamarquesa fosse formal, hipócrita e morta;
suponha, portanto, que Kierkegaard tenha feito algumas críticas reveladoras de seus
24
[Nota do tradutor] Expressão inglesa que significa: Pós-escrito, reflexão tardia ou meditação posterior.
74
contemporâneos. Isso então implica que a cura pode ser efectuada por um sofrimento ou
paixão, um sentimento subjectivo, para o qual a verdade objectiva e a inverdade são
igualmente indiferentes? Se isso fosse verdade, um ídolo não só seria tão satisfatório
quanto Deus, mas Hegel ou Marx seriam tão satisfatórios quanto Kierkegaard.
Friedrich Nietzsche
Friedrich Nietzsche (1844-1900), no que diz respeito à filosofia Alemã, foi o culminar
do século XIX. Sua segunda metade trouxe grandes avanços na ciência. Os físicos
consideraram que tinham demonstrado completamente a verdade sobre o mecanismo.
Ludwig Fechner, embora tenha tentado encontrar uma psicologia empírica, rejeitou o
mecanismo sob a inspiração de grandes ideias românticas e povoou seu universo com
almas, anjos e deuses. Rudolph Lötze tornou o intelecto, não um instrumento para
representar coisas, mas para transformá-las. O Ser está em fluxo e a realidade é mais
rica que o pensamento. William Wundt abandonou o monismo e imaginou o universo
como uma pluralidade de vontades. E Darwin (embora não seja um Alemão),
revolucionou, não só a biologia, mas todas as fases do pensamento filosófico. A partir
dessas fontes Nietzsche levou o que lhe atraiu e completou a visão de mundo ateísta,
materialista e anti-Hegeliana do século XIX.
75
dominar a realidade ao entendê-la inteligentemente. Isso significa que a vontade da
verdade lógica pressupõe uma falsificação fundamental de todos os fenômenos. O que
agora chamamos verdade, é portanto, esse tipo de erro sem o qual as espécies não
podem viver. O objectivo da actividade mental não é de conhecer, em qualquer sentido
escolar, mas de esquematizar e impor tanta regularidade sobre o caos assim como as
necessidades práticas exigem. Afinal, por que deveríamos ser tão grandemente
interessados pela verdade? A falsidade não é uma objecção contra uma opinião; A
pergunta importante é, esta opinião sustenta a vida? De facto, para entender como
afirmações abstractas metafísicas de um filósofo foram alcançadas, é sempre bom e
sábio perguntar primeiro a si mesmo: que moralidade ele almeja? Por trás de toda a
lógica existem demandas fisiológicas para um modo de vida.
A lógica depende da lei da contradição, mas ao invés desta lei ser necessária, é apenas
um sinal de incapacidade - nossa incapacidade de afirmar e negar uma e mesma coisa.
Não podemos falar sem usá-la. Mas por essa mesma razão, deve ser examinada com
mais cuidado. A lei da contradição reivindica ser ontológica e lógica. Isso pressupõe
algo sobre o Ser. Mas supor que a lógica é adequada à realidade requer um
conhecimento da realidade anterior e independente da lei. Obviamente, então, a lei da
contradição só vale para as existências assumidas que criamos.
Estas formas de pensar foram criadas em nós através do longo processo evolutivo, e elas
estão agora tão arraigadas que nenhuma quantidade de experiência pode mudá-las. Elas
são de facto a priori para o indivíduo, mas para a raça humana, são produtos finais
evolutivos. A crença na causalidade e na contradição podem ser e são úteis, mas isso
não as torna verdadeiras. Na verdade, elas devem ser falsas, pois conhecimento e
evolução são mutuamente exclusivos. O carácter do mundo em processo de
transformação não é susceptível a formulação intelectual. Parmênides disse: Ninguém
pode formar o conceito do inexistente; agora estamos no outro extremo e dizemos:
Aquilo do qual um conceito pode ser formado é certamente fictício.
William James
76
como antes, apenas os fundamentos mais básicos e os pontos mais pertinentes podem
ser agrupados nesta breve descrição.
25
[Nota do tradutor] Silogismo com três proposições universais afirmativas (duas premissas e uma
conclusão). Ex: Todo o ateniense é grego, todo o grego é humano, logo todo o ateniense é humano.
77
terminando em zero são divisíveis por cinco, portanto, vinte e cinco - uma vez que é
divisível por cinco - deve terminar em zero.
William James não pode descartar esses exemplos na base de que são ilógicos, pois,
segundo ele, as formas presentes da lógica não são infalíveis. A lógica é muito
oportuna. Não pode apreender a realidade. Tão grande é o seu fracasso que quando os
Racionalistas chegaram a reconhecer que o mundo real escapa das suas fórmulas puras,
inventaram mundos irreais através dos quais estes factos inflexíveis foram barrados. A
vontade racional de Kant emigrou para o mundo dos noumena; F. H. Bradley escapou
de todas as contradições de alguma forma no Absoluto; e T. H. Green dependia de uma
mente transcendente. Mas isso é apenas para dizer que conceitos humanos falsificam a
realidade.
No entanto, ao contrário de Nietzsche, James utiliza seu irracionalismo para apoiar certo
tipo de religião e ética. Alguns avisos disto devem ser tomados, não só por sua própria
importância, bem como na preparação para o que se segue.
James então oferece essa escolha. Suponha que o autor do mundo viesse até você antes
da criação e dissesse, eu vou fazer um mundo não impossível de ser salvo; ele pode ser
salvo somente se cada agente fizer o melhor possível [se houver algum alívio no
trabalho, o resultado será lamentável]; agora, então, você quer a chance de participar
neste mundo, com seus perigos reais, sem garantia de segurança, ou você preferiria
recair no sono da não-entidade da qual acabei de te despertar?
Note que James não nos oferece uma escolha entre este mundo perigoso e aquele em
que o bem é absolutamente garantido.
O Absolutismo parece ter sido esquecido aqui. A escolha é entre o perigo e o Nirvana. E
James está pronto para fazer a escolha por nós. Qualquer Pessoa “normalmente
formada” com uma “vida saudável” acharia tal universo exactamente ao seu gosto.
Apenas algumas “mentes mórbidas”, “Budistas” que têm “medo da vida” recusariam a
78
oportunidade. Estes últimos podem ser religiosos em certo sentido, mas não são morais.
“No final, é nossa fé e não nossa lógica que decide tais questões.” É uma fé em nossos
colegas, que todos eles farão o melhor possível. É também uma fé em forças sobre-
humanas, pois há um deus - não um Deus Todo-Poderoso que controla o resultado - mas
um deus limitado e finito que nos ajuda; na verdade ele é tão boa ajuda que o perigo é
consideravelmente reduzido. A crença neste tipo de deus é verdadeira porque funciona.
Claro que não sabemos com certeza que esse deus existe,
pois ainda não sabemos com certeza qual tipo de religião funcionará melhor a longo
prazo. [É uma questão de decisão pessoal.] E se radicalmente difícil, o tumulto dos
factos sensatos da natureza será o suficiente para você, e você não precisará de religião
alguma. Mas se você não é nem duro, nem terno... o tipo de religião pluralista e
moralista que eu te ofereci é uma síntese tão boa quanto aquela que provavelmente
encontrarias.
Na seção sobre Søren Kierkegaard, a questão da decisão pessoal também foi severa -
uma decisão à parte de qualquer conhecimento objectivo. Kierkegaard, pessoalmente
fez uma escolha que não é muito diferente da de James; embora o Cristianismo de
Kirkegaard não seja o que James teria preferido, até agora, os dois - junto com
Nietzsche - dizem sim ao universo. Mas quando James apela a sua escolha moral e
outras escolhas mórbidas, parece implicar que é mais do que uma escolha pessoal.
Como pode James distinguir entre uma escolha moral e uma imoral? Se ele diz que a
verdade é que que funciona, e o que funciona é o que dá satisfação pessoal, então o
homem que escolhe o Nirvana contra o perigo parece ter alcançado mais satisfação do
que um Pragmatista provavelmente. É provável que todos os homens farão seu melhor
nível? A fé na humanidade é um slogan inspirador, mas os factos difíceis sugerem que
um ou dois homens na história não trabalharam o tempo todo para tornar o mundo
melhor. Seguramente que James é consistente na escolha do perigo para si mesmo, já
que sua teoria depende de sua decisão pessoal; mas precisamente por essa razão
irracional, ele não pode concluir que alguém mais deve fazer a mesma escolha.
79
Embora Nietzsche e James estejam fora da tradição Cristã e são assim exemplos do
colapso da razão humana para além do conhecimento dado pela revelação divina, foi
visto no caso de Kierkegaard que mesmo o pensamento religioso da era pós-Hegeliana
tinha se voltado para o Irracionalismo. Portanto, para concluir a análise da fé sem razão,
É preciso mencionar a influência de Kierkegaard no século XX, e para este propósito o
pensamento de Emil Brunner será produzido para ser apresentado.
Emil Brunner
Ao contrário daqueles filósofos que estão tão definitivamente fora da tradição Cristã,
Brunner - em comum com a principal posição Neo-ortodoxa - reconhece que o pecado é
um poder universal na vida humana. O pecado não só rompe com o crime bruto, mas
também afecta nosso pensamento interior. Uma vez que o pecado afasta o homem de
Deus, os efeitos mentais do pecado são vistos mais claramente e mais frequentemente
quando tentamos pensar em Deus, do que quando pensamos sobre matemática ou física.
Brunner não só diz que o erro devido ao pecado é mais óbvio na teologia do que na
física, mas acrescenta que matemática e lógica estão tão longe do centro religioso da
vida, que nelas não há nenhum erro em absoluto.
Esta observação, que à primeira vista pode parecer tão plausível, é de facto uma
confusão entre o objectivo e o subjectivo. Nisso, Brunner - seguindo a ênfase de
Kierkegaard na subjectividade - parece ter negado a distinção entre a pessoa que
conhece e a verdade conhecida. É uma confusão entre o como e o quê.
80
erro, a resposta é que a própria teologia - teologia objectivamente considerada - não
contém nenhum erro. Subjectivamente cometemos erros em ambas; objectivamente, um
é tão verdadeiro quanto o outro. Daí a afirmação de Brunner de que a teologia contém
mais erros, física menos erros e matemática nenhum, é plausível apenas por confundir o
objectivo e o subjectivo, isto é, apenas apagando a distinção entre a pessoa pensante que
pode cometer erros e as proposições objectivamente verdadeiras. Ou melhor, é uma
negação da verdade objectiva. Isso é consistente com a apropriação anti-intelectual
apaixonada de Kierkegaard. Deus é a verdade, disse Kierkegaard. Mas Deus e a verdade
existem apenas para alguém que acredita; uma necessidade incrédula não tem medo das
penalidades divinas porque para um incrédulo Deus não existe. A verdade é totalmente
subjectiva.
Deus pode [diz Brunner em Verdade como um Encontro, 88], se quiser, até dizer à um
homem a sua palavra através de falsos ensinamentos.
Poderia alguma coisa indicar mais claramente que a Neo-ortodoxia é mais neo do que
ortodoxo? Brunner certamente não está na tradição de João Calvino. Para ter certeza, ele
usa as palavras revelação, transcendência, pecado e encarnação; mas sua semelhança
intelectual com os conceitos Calvinistas é nula. Alguém hesita em categorizar Brunner
com Nietzsche, mas se eles não são irmãos, seu irracionalismo comum faz deles pelo
menos primos.
81
Este é o ponto no qual paramos. Embora Brunner tenha publicado muitos livros, não é
lucrativo examinar qualquer linguagem a menos que a verdade seja distinta do erro. Um
escritor que lhes confere igual autoridade repudiou a lei da contradição e a conversa
significativa cessa.
É hora, portanto, de tirar uma conclusão. Sob o título “Razão Sem Fé ”, a história da
filosofia moderna foi vista a falhar em sua tentativa de basear o conhecimento em
recursos humanos sem ajuda. Mesmo os filósofos seculares - aqueles que não têm
interesse na revelação divina - admitem que Spinoza, Kant e Hegel não produziram uma
epistemologia sólida. No capítulo presente ambos, irracionalismo secular e religioso
foram examinados. Não só Nietzsche e James nos deixam em anarquia intelectual, mas
a Neo-ortodoxia também concluiu que a razão humana é um fracasso. Embora estes
últimos escritores tenham uma doutrina da revelação, mesmo nela eles não conseguem
distinguir a verdade da falsidade. Em vez de dizer, que seja Deus verdadeiro e todo o
homem mentiroso; eles dizem: Seja Deus falso, e todo homem será mentiroso também.
Esse tipo de filosofia é auto-contraditória, auto-destrutiva e intelectualmente reduzida
ao ridículo.
Portanto, desejo sugerir que não abandonemos a razão, nem a usemos sem ajuda, mas -
sob pena de cepticismo - reconheçamos a revelação verbal, proposicional da verdade
fixa de Deus. Apenas aceitando racionalmente a informação compreensível sobre a
autoridade de Deus, podemos ter a esperança de obter uma filosofia sólida e uma
religião verdadeira.
FÉ E RAZÃO
Na secção precedente, sob o título “Razão e Fé”, foram apresentados argumentos que
levaram ao repúdio da teologia natural e do Tomismo da Igreja Católica Romana. As
tentativas Renascentistas e modernas de basear o conhecimento sobre “Razão Sem Fé”
foram mostradas em seguida para resultar num cepticismo desastroso. E imediatamente
acima, as implicações religiosas do irracionalismo foram indicadas. Resta, portanto,
deixar de criticar negativamente e fornecer uma visão construtiva de “Fé e Razão”.
82
amplamente duas conclusões principais. Primeiro, em oposição ao Deísmo, ao
Iluminismo, ao Espinosismo, ao Cientismo contemporâneo e a todos sistemas
dogmáticos que opõem à razão e a fé, será mostrado que a razão e a fé não são
antitéticas, mas harmoniosas. É verdade que a harmonia não será da variedade Tomista.
Em segundo lugar, em oposição ao irracionalismo secular e principalmente religioso, a
fé receberá um conteúdo intelectual. Estas duas conclusões dependem em grande parte
de definições aceitáveis de fé e razão. Para Tomás de Aquino e John Locke, a razão
significava a base sensorial de todo o conhecimento. Descartes e Spinoza tinham outro
significado. Várias definições de fé ocorreram também na história da filosofia e
teologia. Esta tentativa deve também escolher seus próprios significados.
Além das definições formais, alguns antecedentes, histórias e discussões também são
necessários. Este material apresenta duas dificuldades sérias. Primeiro, a história tem a
ver com movimentos religiosos vivos e pregações evangelísticas populares. Portanto, há
uma confusão de pontos de vista que desafia a generalização correcta. Se, no entanto,
nenhuma sugestão de acordo universal é feita, a justiça exige apenas que os exemplos
escolhidos conspirem para representar as tendências actuais. A segunda dificuldade
séria é bem diferente da primeira. Enquanto que a história concentra-se em fenômenos
populares e, portanto, superficiais, a discussão revela tecnicismos excepcionalmente
desconcertantes. Razão e fé, visto que são actividades humanas, devem ser vistas à luz
da personalidade humana como um todo. Algum esquema de psicologia é necessário. E
os detalhes são infinitos. Neste contexto, algumas perguntas serão levantadas sem serem
totalmente respondidas. Ainda assim, elas servem como um cenário em que as duas
principais conclusões podem ser amplamente estabelecidas.
Religião Popular
O contexto histórico no qual essas questões se tornam parte de uma religião viva e
encontram um lugar na pregação popular, pode para os nossos propósitos ser
convenientemente restrito ao fundamentalismo nos Estados Unidos. Do ponto de vista
da Confissão de Westminster, isto é, do ponto de vista de todo este argumento, o
fundamentalismo não pode ser inteiramente condenado nem inteiramente elogiado. A
maioria dos fundamentalistas aceita seções importantes da Confissão de Westminster e
rejeita outras seções igualmente importantes. Em parte, por essa razão, o
fundamentalismo não se encaixa em nenhuma das categorias das três secções
83
precedentes. A referência a ele no início da última seção pode até parecer injusta. É
certo que a sua classificação como uma forma de misticismo foi inadequada. O firme
apego do fundamentalismo à algumas doutrinas salva-o dos excessos de irracionalismo,
mas ao mesmo tempo dificilmente se pode dizer que os fundamentalistas abraçam um
intelectualismo sincero. Eles deploram a razão, conhecimento e erudição de forma
frequente; às vezes falam com desdém da “mera lógica humana”; e uma de suas queixas
contra o Romanismo é que este reduz a fé ao mero assentimento intelectual. No entanto,
como as doutrinas fundamentais podem ser defendidas pela depreciação geral da razão?
Se eles insistem em qualquer doutrina, como podem recomendar uma fé desprovida de
conteúdo intelectual?
No entanto; eles recomendam, isto é, alguns; pelo que parece. Já foi admitido que num
movimento popular como o fundamentalismo, existe uma grande variedade de visões.
Talvez o exemplo prestes a ser dado da tensão irracionalista no fundamentalismo seja
um dos casos mais extremos. Mesmo assim, um caso extremo pode ser necessário para
produzir a impressão que deveria resultar de uma longa lista de casos menos extremos.
De qualquer forma, a conversa seguinte realmente aconteceu. Não é nem ficção, nem é
exagerado.
Este ponto de vista certamente afectaria a exegese de Romanos 10: 9-10. É óbvio que
divorcia a fé da crença, se a fé salva e a crença não. Mas é claro que ninguém esperaria
que tal ministro fosse muito consistente nas suas afirmações. O exemplo pode ser
84
extremo, mas serve para o propósito de salientar o facto inegável de que o
fundamentalismo é um assunto inconsistente. Não é só o fundamentalismo das décadas
entre as duas Guerras Mundiais que é inconsistente. A inconsistência específica relativa
ao conteúdo intelectual da fé derivou-se das formas anteriores de Protestantismo.
Portanto, é apropriado colocar a questão em termos de uma objecção Protestante de
longa data ao Romanismo.
Talvez, no entanto, a verdade da questão não seja colocada com precisão nessas breves
caracterizações. A Enciclopédia Católica tem motivos consideráveis para acusar o
Protestantismo de anti-intelectualismo, mas a sua actual afirmação é ambígua e, em um
de seus dois sentidos, é falsa. Por outro lado, a queixa Protestante sobre o mero
assentimento intelectual é extremamente confusa. Para mostrar essa confusão, é
necessário passar de uma descrição da religião popular para uma discussão de
complexidades psicológicas. Isso não significa que o contexto histórico seja descartado
com uma ilustração; outros exemplos descritivos serão citados; mas a ênfase repousará
mais sobre os méritos acadêmicos do caso, do que em exemplos de asserções
ministeriais imprudentes.
Análise da Personalidade
Para definir a fé, é necessário alguma análise da personalidade. Seja o que for dito sobre
a fé, pressupõe-se distinções entre actividades conscientes. De acordo com uma opinião
muito comum, a consciência consiste nestas partes: intelecto, volição e emoção. A fé
pode ser colocada sob uma delas, ou pode ser descrita como uma combinação de duas
delas, ou possivelmente das três. De qualquer forma, algum esquema analítico é
necessário. Agora, uma das muitas dificuldades neste procedimento surge da
necessidade de expressar a verdade Bíblica na terminologia não-Bíblica. Em si, o uso da
terminologia não-Bíblica não pode legitimamente ser contestada. O termo Trindade não
ocorre na Bíblia, mas todos os trinitaristas sustentam que as ideias e relações que o
termo sustenta são solidamente Bíblicas. Semelhantemente, a palavra emoção não
85
ocorre na Bíblia, pelo menos não na Versão King James. No entanto, no uso da nova
terminologia, uma certa quantidade de cautela é necessário. Em primeiro lugar, é
preciso garantir que os termos sejam definidos sem ambiguidade. Infelizmente, muitas
discussões sobre fé não conseguem definir o intelecto, a vontade ou a emoção. Aqueles
que usam os termos parecem ter apenas uma ideia nebulosa de seu significado, e um
pequeno questionamento Socrático logo revela a ininteligibilidade.
Há também outro cuidado a ser observado. Depois que o novo termo é adequadamente
definido, sua relação com o material Bíblico deve ser esclarecido. O uso de um termo
não-Bíblico na discussão teológica é evidência de uma precisão e preservação técnica
que a própria Bíblia não possui. Nenhum termo Bíblico corresponde exactamente ao
novo, e o novo termo não reproduz exactamente qualquer termo único das Escrituras.
Portanto, a confusão completa resulta sempre que o novo termo é sub-repticiamente
igualado com algum termo familiar na Bíblia. Isso aconteceu com grande frequência na
identificação do termo hebraico coração com a emoção da psicologia popular. O
significado Bíblico deste termo será discutido abaixo, mas aqui a ênfase recai sobre o
princípio geral. Quando um novo termo é introduzido na teologia e é precisamente
definido, nunca deve ser descuidadamente assumido, mas deve ser sempre
cuidadosamente comprovado que o novo termo e a definição expressam adequadamente
ideias Bíblicas.
86
O termo chave da psicologia Bíblica, especialmente no Antigo Testamento onde os
princípios fundamentais estão estabelecidos, é o termo coração. Quando Cristãos
contemporâneos, muitas vezes na pregação evangelística, contrastam a cabeça e o
coração, eles estão, de facto, igualando o coração às emoções. Tal antítese entre a
cabeça e o coração não é encontrada em nenhum lugar nas Escrituras. Ao contrário, esse
uso indica imediatamente um afastamento do Antigo Testamento. Nos Salmos e nos
Profetas, o coração designa o foco da vida pessoal. É o órgão da consciência, do auto-
conhecimento, de facto de todo o conhecimento. Alguém pode muito bem dizer que o
coração em hebraico é o equivalente a palavra inglesa self.
Gênesis 17:17 Abraão… disse no seu coração: “A um homem de cem anos há-de nascer
um filho…?
1 Samuel 2:35 Um sacerdote fiel, que procederá segundo o meu coração e a minha
alma.
87
Isaías 33:18 O teu coração considerará o assombro…
Isaías 44:18,19 Tapou…os seus corações para que não entendam. E nenhum deles cai
em si, e já não têm conhecimento nem entendimento…
É extremamente difícil apreciar os motivos, pelo menos no caso daqueles que estão
ligados à Bíblia, que lideram uma depreciação do intelecto. Por que a emoção deve ser a
única via ou mesmo a melhor via para Deus? Por que é que pensar, meditar, entender
devem ser condenados? Por que conhecer, conceber ou apreender Deus é uma via ruim?
Um método impossível, ou um método ímpio de adorá-lo? O que está errado com a
actividade intelectual?
88
Parenteticamente, pode-se notar que isso também se aplica a Freud. Este tipo de
psicologia não deve ser condenado tanto por suas implicações desagradáveis quanto por
sua divisão esquizofrênica da personalidade. Psicologia Freudiana é psicologia da
faculdade com represálias.
A Bíblia não sugere uma psicologia da faculdade. Embora discussões tais como estas
dificilmente podem evitar o uso da palavra intelecto, que fique claro que não há
“intelecto”: há actos intelectuais; não há “emoções”: há ondas flutuantes de medo, raiva,
desânimo e alegria. Da mesma forma, não há “vontade”, não há “id”, não há
“superego”, mas uma pessoa unitária.
Confiança e Assentimento
Dois exemplos desta psicologia defeituosa, especialmente esta depreciação não Bíblica
da actividade intelectual, serão descritas. Nenhum deles é exactamente trivial; o
segundo realmente afecta a resposta total da pessoa ao Cristianismo. O primeiro, uma
confusão comum do pensamento frequentemente ouvido nos púlpitos evangélicos, pode
causar menos danos porque suas implicações não são tão óbvias. No entanto, também
pode ser indicativo de aberrações mais amplas.
89
pode crer em tudo o que a Bíblia diz sobre Cristo, e isso não fazer bem a você.
Ilustrações como essas são usadas constantemente apesar do facto de que a própria
Bíblia diz: “Crê no Senhor Jesus Cristo, e serás salvo.”
Há aqui pelo menos uma falta de análise, uma confusão de algo Bíblico e de algo que
não é, uma falha em equacionar dois lados de uma analogia. O ponto fraco de tais
ilustrações é que, elas comparam a fé com o acto físico de sentar numa cadeira e
distinguem-na da crença. A crença em Cristo não descansa seus ossos cansados, pois a
crença é mero assentimento. Além disso, você deve realmente sentar ou depositar seu
dinheiro no banco. Mas essa analogia não se sustenta. A distinção entre crer que uma
cadeira é confortável e o acto de sentar nela é perfeitamente óbvia. Mas na esfera
espiritual não há acção física; existe apenas acção mental: Portanto, o acto de sentar-se,
se é que significa alguma coisa, deve se referir a algo completamente interno e ainda
diferente da crença. A crença na cadeira foi feita para representar a crença em Cristo, e
de acordo com a ilustração a crença em Cristo não salva. Algo mais é necessário. Mas o
que é essa outra coisa que corresponde ao acto físico de se sentar? Esta é a questão que
raramente é respondida. Os evangelistas colocam toda a sua ênfase em sentar-se, mas
nunca identificam sua análogia.
Quando tais ilustrações unilaterais não são usadas, as frases abstractas que depreciam o,
assentimento intelectual são igualmente desconcertantes. Considere as palavras do Dr.
Thomas Manton em seu comentário sobre a epístola de Tiago. Dr. Manton era um
Anglicano devoto e piedoso, que - embora favorecesse a restauração de Charles II - foi
um daqueles ministros que foi expulso de seu púlpito pelo Ato de Uniformidade de
1662. Seu Comentário sobre Tiago é um dos trabalhos mais admiráveis e extremamente
proveitoso. No entanto, ao discutir o presente assunto, ele usa frases que são difíceis de
entender. Por exemplo, em Tiago 2:19 ele escreve:
Este exemplo mostra a fé que ele disputa contra; a saber, aquela que consiste em pura
especulação e conhecimento... Tal assentimento, embora não seja salvador, todavia na
medida em que é histórico é bom, como um trabalho e preparação…. O assentimento
vazio dos artigos da religião não implica fé verdadeira… Não é só assentimento
axiomático …. Não existe apenas assentimento na fé, mas consentimento…. Verdadeira
crença não é um acto de compreensão apenas, mas um trabalho de todo o coração….
Na medida em que estas frases e uma seção de onde são citadas indicam a necessidade
de uma fé que produz obras, nenhum bom Cristão poderia, no mínimo, negar. É uma
90
excelência particular do Dr. Manton ter enfatizado este tema da epístola. Se por
“especulação vazia” e “iluminação vazia” refere-se a uma profissão vazia hipócrita
desprovida de conduta virtuosa, vamos todos insistir que isso está longe de ser fé
salvadora.
Neste ponto, o Dr. Manton percebe a frase de Tiago 2:14, “Se alguém diz que tem fé ”,
e observa que o homem pode não ter fé nenhuma. Sua profissão é hipócrita. Ele não
acredita necessariamente em qualquer doutrina Cristã. Esta situação é simplesmente o
contraste Bíblico entre o coração e os lábios. A hipocrisia também é um acto intelectual.
É uma intenção de enganar. Mas certamente o facto de que a hipocrisia é intelectual não
implica que a fé como um acto intelectual seja hipocrisia. Se um acto intelectual é
repreensível, não se segue que um diferente acto intelectual é.
Mais uma vez uma questão anterior vem à tona: se a crença é representada por crer que
a cadeira é confortável, e isso é tomado como mero assentimento intelectual, o que é
representado pelo acto diferente e separado de realmente sentar-se? Agora, de certa
forma, há outro factor; mas quando for identificado, não se revelará um acto diferente e
separado semelhante ao sentar. Será ainda o mesmo acto mental interno de
assentimento, embora visto em um aspecto diferente. A dificuldade em toda essa
discussão deriva da suposição de que um acto de “mero” assentimento intelectual é
possível. Para este acto, o evangelista zeloso quer adicionar emoções. Poderia não ser
que o que precisa ser adicionado não é emoção, mas um acto de vontade? Só que essa
“adição” não é realmente um acréscimo, e um “mero” acto de vontade deve ser
reconhecido para ser tão impossível quanto “mero” assentimento. Sem dúvida fé em
91
Cristo envolve o que é ordinariamente e de forma confusa chamado de um acto de
vontade. Se a fé exige emoções ou não - e se sim, quais emoções exige - são questões
sem importância. Emoções por definição são oscilantes; um homem emocional é
instável e poucas pessoas têm uma alta opinião dele; enquanto que, ao longo de nossos
estados emocionais em constante mudança, nossas crenças e as volições fundadas nelas
permanecem comparativamente fixas. E para retornar, a fé certamente envolve a
vontade.
92
de fé e razão, pode-se afirmar que não pode haver volição sem inteligência e intelecção
sem vontade. Elas não devem ser consideradas como duas faculdades separadas, nem
mesmo como dois actos separados. A opinião comum de que um acto de vontade é
diferente de um acto de intelecção é uma ilusão que resulta da restrição de atenção à
actos físicos como sentar-se. Mas quando o acto não é físico, quando é o acto de crer
que uma proposição é verdadeira, os dois supostos actos se interpenetram num único
estado mental tornando-se indistinguíveis. Alguém pode distinguir a crença na cadeira
ou crença na matemática, da crença em Cristo, claro; assim é, os objectos particulares
de pensamento ou de vontade podem ser distinguidos; mas o acto mental é igualmente
volitivo e intelectual. Isto é o que está implícito ao dizer que a pessoa é uma unidade.
Para alguns propósitos superficiais, principalmente no que diz respeito ao início dos
movimentos físicos, uma distinção popular na ênfase é feita; mas a divisão tripartite
comum da pessoa em emoção, intelecto e vontade é tão equivocada quanto o id, o ego e
o superego.
A exegese revelará que a fé, a fé Cristã, não deve ser distinguida da crença. Considere
Hebreus 11:1. “Ora, a fé é a certeza daquilo que esperamos e a prova das coisas que não
93
vemos.” Esta não pode ser uma definição formal de fé, mas deve ser aceite como uma
afirmação verdadeira sobre a fé. A American Revised Version diz que “fé é a garantia
das coisas esperadas, uma convicção de coisas não vistas.” Garantia e convicção são
crença, forte crença, crença voluntária e tão intelectual quanto você quiser. Elas são
intelectuais porque seus objectos são proposições significativas. Seus objectos são
verdades. Os heróis da fé, sobre os quais o capítulo continua descrevendo, creram todos
em algumas verdades intelectuais definidas. Nestes casos, reconhecidamente, a fé foi
seguida pela acção física. Abel ofereceu um sacrifício e Noé construiu a arca. Mas as
acções físicas não eram a fé em si. Fé é algo interno, mental, intelectual; como Hebreus
11:3 diz: “Pela fé nós entendemos” algo sobre a criação do mundo. Certamente este é
um acto intelectual. E ao explicar por que “sem fé é impossível agradar a Deus”, diz o
versículo seis, “pois quem dele se aproxima precisa crer que ele existe.” Como resposta
àqueles que menosprezam a intelecção com a ilustração da cadeira, as considerações
apresentadas parecem ser suficientes.
Anti-intelectualismo
94
psicologia da faculdade; e se psicologia da faculdade conflita com o Cristianismo em
um ou dois pontos, uma teoria mais ampla conflitará em muito mais – na verdade, em
todos os pontos.
Voltando por um momento para Hebreus 11:6, vemos que a fé em Deus é impossível
sem um credo. O primeiro artigo deste credo necessário é que Deus existe. E,
obviamente! Pode um homem chegar a Deus se ele acredita que Deus não existe?
Retornando àquela ilustração, você pode levar seu dinheiro para um banco que você
acredita que não existe? Não é nem mesmo necessário colocar a questão tão fortemente.
O ateu descarado que acredita que Deus não existe não chegará, é claro. Mas, e quanto a
um homem, não a um ateu descarado, que simplesmente falha em acreditar que Deus
existe? Pode tal homem mais facilmente chegar a Deus? Hebreus diz: Não; é necessário
que aquele que se aproxima de Deus creia que ele existe.
Este credo tem também um segundo artigo que deve ser crido antes de alguém poder
chegar a Deus. Se um homem acredita apenas que Deus existe, ele não chega: Deus,
neste caso, pode ser uma divindade indiferente, sem preocupação pelo homem; ele pode
até ficar aborrecido com o homem que o incomoda; ou possivelmente, esse Deus pode
ser alguma força impessoal. Portanto, antes que um homem chegue a Deus, ele deve
crer que ele é o galardoador dos que o buscam. Isto, naturalmente, implica que Deus é
pessoal. Que extensa teologia na qual estamos nos metendo! E como já nos tornamos
intelectuais, pois agora estamos usando a forma lógica da implicação.
O progresso lento desse argumento pode provocar uma resposta impaciente de que
mesmo assim, a crença intelectual não tem valor. Os demônios não crêem e
estremecem? A interpretação errônea deste versículo em Tiago foi para o fim de torná-
lo conclusivo contra qualquer eficácia salvadora da crença em Cristo. No entanto, as
Escrituras dizem: “Crê no Senhor Jesus Cristo e serás salvo”, e “porque com o coração
se crê para a justiça”. A epístola de Tiago não deve ser interpretada de maneira a
produzir uma contradição com a pregação apostólica em Actos. A crença que faz com
que os demônios estremeçam é uma crença de que Deus é um. Nada mais é dito.
Certamente, não é uma crença de que Cristo morreu por eles. Mostrar, como Tiago
mostra, que algumas crenças intelectuais são inadequadas, que algumas são infrutíferas,
ou mesmo que algumas são condenatórias, não é mostrar que a verdadeira fé não é
intelectual. O verso em Tiago não destrói o argumento deste capítulo no sentido de que
95
a fé requer um credo e deve ter conteúdo intelectual. Assim também os pontos do credo
até agora enumerados de Hebreus não são considerados suficientes para a salvação.
Afirma-se que são indispensáveis. Ninguém pode chegar a Deus sem esse credo. Por
toda a sua insuficiência, sua necessidade deve ser enfatizada por causa da depreciação
contemporânea de credos e intelecto pelos fundamentalistas e modernistas também.
Pelas mesmas razões, fé em Cristo, não menos que fé em Deus, requer assentimento
intelectual em proposições teológicas. A separação entre fé em uma pessoa e crença em
um credo é uma ilusão. Nenhum de nós prossegue em tais princípios em nossos
assuntos humanos. Confiar em uma pessoa é um conhecimento de uma pessoa; é uma
questão de concordar com certas proposições. Suponha que eu peça a você para que me
empreste uma quantia em dinheiro e confie em mim para pagá-lo. Na hipótese agradável
de que você tem o dinheiro e não precisa imediatamente (isso também é uma crença
intelectual), você fará o empréstimo sem acreditar em certas proposições sobre mim?
Suponha que você tenha ouvido que eu sou desonesto? Suponha que você acredite que
vou pular em você? Você poderia, com essas crenças, dizer que o assentimento
intelectual é trivial e que você confiará em mim mesmo assim? Muitas pessoas não são
tão estúpidas nos negócios. Essa estupidez é reservada a religião emocional, não-
intelectual. É na religião que o “coração” é considerado importante, mas não a cabeça.
Mas se isso fosse verdade, poderíamos confiar em Cristo para a salvação sem crer que
ele é confiável, sem crer que ele pode salvar, sem crer que o seu sangue purifica de todo
pecado. Não precisaríamos de nenhum credo, nenhuma afirmação de expiação,
nenhuma informação histórica sobre Jesus; precisaríamos apenas de um sentimento
confortável em torno do “coração” não-Bíblico.
Não obstante ter havido místicos e vários anti-intelectuais em todas as idades, não
obstante a influência de Kant, Schleiermacher e Ritschl ter produzido anti-
intelectualismo popular na forma de modernismo, e não obstante a Neo-ortodoxia e o
movimento ecuménico não terem retornado aos credos históricos (ou a quaisquer
credos), a corrente principal do Cristianismo sempre foi intelectualista. Houve variação
de ênfase, é claro; mas credos ou declarações de crença não foram abandonados.
Sempre houve algum reconhecimento da primazia do intelecto. Até mesmo a primazia
da vontade, que quando no Agostinianismo medieval foi oposta a primazia Tomista do
intelecto, não desvalorizou a aceitação intelectual tal como o irracionalismo
contemporâneo desvaloriza. E se, como sugerido acima, o intelecto e a vontade não
96
podem realmente estar separados, a controvérsia medieval milita ainda menos contra o
intelecto.
Este longo argumento teve que tratar de muitos detalhes, nem todos tirados da mesma
fonte. Para reunir as complexidades, deixe que seja lembrado: que a Bíblia ensina a
unidade da pessoa; que essa psicologia da faculdade é anti-Bíblica; que o termo coração
do Antigo Testamento é muito mais intelectual do que seu uso na pregação actual; que a
fé é um acto interior ou mental, não propriamente comparado com sentar em uma
cadeira; que Hebreus mostra a necessidade de credos; e que a crença em um credo é
tanto intelectual e voluntário. Tecidos juntos como um tartan26, alguns dos aspectos
menos importantes do argumento podem ser difíceis de manter em mente; mas o padrão
geral deve ser bastante óbvio. Entretanto, antes que uma conclusão final seja traçada,
uma expressão definida e positiva à posição Bíblica sobre fé e razão deve ser dada. Isto
é ainda mais necessário porque, além das muitas complexidades precedentes, há ainda
outro factor mais importante, até agora pouco mencionado.
A Fé Reformada
As expressões mais claras da teologia da Reforma e dos dados mais fiéis das Escrituras
podem ser encontradas na tradição Reformada. Três escritores Reformados, portanto,
serão primeiro citados.
Calvino (Institutas I, xv, 6-8), depois que resume algumas análises filosóficas das
faculdades da alma e indica que elas são plausíveis, mas longe de serem infalíveis -
particularmente porque os filósofos ignoram a depravação da natureza humana devido
ao pecado - propõe uma divisão dupla e não tripla da alma: compreensão e vontade. Não
há poder na alma que não seja estes dois. Compreensão, diz ele, distingue objectos, um
do outro, e a vontade escolhe o que a compreensão declara bom. A compreensão é o
guia e governador da alma; a vontade sempre respeitará sua autoridade e esperará seu
julgamento. Charles Hodge também, falando do homem antes da queda, diz: “Sua razão
estava sujeita a Deus; sua vontade estava sujeita a sua razão.”27 E finalmente, J.
26
[Nota do tradutor] Tecido quadriculado, parecido com xadrez, com padrões de linhas de cores
diferentes.
27
Charles Hodge, Systematic Theology, II, 99.
97
Gresham Machen afirma, “será um propósito principal do pequeno livro presente
defender a primazia do intelecto”.28
É significativo que esses escritores falem tão pouco sobre as emoções. A ênfase está no
intelecto. Machen em seu “pequeno livro” fala do aspecto emocional da fé,
aparentemente, mas uma vez (135); embora a palavra pareça tudo isso, pois o contexto
não tem nada a ver com as emoções.
As citações feitas apenas dos três autores podem ser levadas a apontar que eles
favorecem a primazia Tomista do intelecto, em vez da primazia Agostiniano da vontade.
Eles parecem dizer que o intelecto invariavel e automaticamente domina a vontade.
Calvino realmente disse que é o ofício da vontade escolher o que a compreensão terá
pronunciado ser bom e que a vontade sempre respeita sua autoridade (Institutas, I, xv,
7). Agora, houve argumentos Aristotélicos plausíveis no sentido de que a vontade
escolhe automaticamente o que parece ser bom para o intelecto. A liberdade da vontade
do intelecto é assim repudiada. E possivelmente Calvino tinha essa teoria em mente
quando escreveu esta seção. Mas se enfatizamos a unidade da pessoa mais do que
Calvino e insistirmos que assentimento intelectual é um acto da vontade assim como
Agostinho tão amplamente sugeriu, a distinção radical entre vontade e intelecto,
necessária se for para o comando e outra para obedecer, cai fora. Isto também se aplica
a simplicidade da natureza divina e será referido novamente no último capítulo.
A primazia do intelecto, então, não pode ser um poder automaticamente exercido sobre
a vontade considerada como uma faculdade separada. Isso seria violar a unidade da
pessoa. Em vez da frase a primazia do intelecto, a idéia essencial pode ser melhor
expressa como a primazia da verdade. E a primazia é da autoridade e não do poder
psicológico. As formas mais antigas da expressão geram uma antiga perplexidade dos
diálogos Platônicos. Na suposição de que o intelecto domina a vontade, segue-se que
ninguém faz o mal intencionalmente. Todo o mal é devido a ignorância e a educação
garante a conduta correcta. As ambiguidades escondidas nesta linguagem aparentemente
simples são enormes. Mas se falarmos da primazia da verdade, podemos evitá-las,
mesmo que não resolvamos essas perplexidades. A primazia da verdade significará que
nossas acções voluntárias devem estar de acordo com a verdade. Obviamente, às vezes
elas não estão. Se for verdade que adorar a Deus é bom, devemos adorá-lo. Talvez
28
J. Gresham Machen, What Is Faith? 26. Veja também 49, 51.
98
escolhemos não adorar a Deus, mas a verdade é por direito superior à nossa vontade.
Essa maneira de colocar o assunto se estende também à escolha voluntária de crença.
Podemos escolher crer numa verdade, ou podemos escolher crer numa mentira. Ambos
os tipos de escolha realmente ocorrem. Mas a primazia da verdade significa que
devemos crer na verdade e não na mentira.
Sem dúvida, foi a condição psicológica complicada de escolher fazer o errado que levou
Hodge a restringir sua primazia do intelecto ao estado original de justiça do homem
antes da queda. As condições psicológicas de escolher o mal, como até os filósofos
seculares descobriram, são extremamente complexas. Como diz a Escritura, enganoso é
o coração, mais do que todas as coisas, e perverso; quem o conhecerá? Isto levanta um
ponto mais importante, o facto do pecado, que até agora não tem sido trazido ao
argumento.
Qualquer discussão sobre a mente e os poderes do homem, para que seja Bíblica, deve
levar em conta os efeitos do pecado. Calvino, Hodge e Machen estavam intensamente
cientes disso. Todos sabiam que a entrada do pecado na vida do homem alterou sua
disposição conforme imediatamente criada. Ao falar da abordagem intelectual no
Cristianismo, diz Machen, “não há nada errado com o método em si… mas o problema
está na aplicação do método…. Se vocês levarem em conta todos os factos, você serão
convencidos da verdade do Cristanismo; mas você não pode levar em conta todos os
factos se ignorar o facto do pecado.”29
Isso não significa que nós, criaturas finitas, podemos descobrir a Deus por nossa própria
busca; mas significa que Deus nos fez capazes de receber a informação que ele escolhe
dar… Então, nossa razão é certamente insuficiente para nos falar sobre Deus, a menos
que ele se revele; mas é capaz (ou seria capaz se não fosse obscurecida pelo pecado) de
receber a revelação quando uma vez é dada.30
O efeito do pecado, embora dificilmente mencionado antes dos dois últimos parágrafos,
não pode ser excluído como um factor nesta discussão. Há sim algumas evidências de
que aqueles que menosprezam o intelecto o fazem por causa de uma visão superficial do
pecado. O homem como uma personalidade unitária, o homem como um todo, é
29
J. Gresham Machen, What Is Faith? 130.
30
J. Gresham Machen, What Is Faith? 130.
99
depravado. Se alguma doutrina é claramente ensinada nas Escrituras, é a doutrina
Calvinista da depravação total. O pecado afecta o homem em toda parte. Mas aqueles
que fazem da religião uma emoção e descontam o intelecto, negam ou pelo menos
diluem as terríveis palavras Bíblicas de condenação. Eles desejam reservar uma parte da
natureza do homem pura e imaculada. Portanto, eles fazem da religião uma questão de
emoção porque as emoções são supostamente sem pecado, já que o intelecto é corrupto.
Assim, o anti-intelectualismo é combinado com uma negação da unidade da pessoa.
Isso não quer dizer que todos os fundamentalistas negam o efeito do pecado sob as
emoções. E mesmo quando essas visões são consideradas, elas geralmente não são
expressas em linguagem tão objectiva. O resumo do último parágrafo pode ser chamado
de exagero. Deve ser também admitido que frequentemente essas implicações não são
mais do que semi-conscientes. Isso explicaria por que, às vezes, uma declaração
explícita deles traz uma negação acalorada. No entanto, há casos em que as emoções
recebem uma posição privilegiada. De que outra forma o material a seguir deve ser
entendido?
100
fé nós entendemos que Deus criou o universo; pela fé nós concordamos com a
proposição de que Deus é um recompensador daqueles que o buscam diligentemente;
pela fé sabemos que Jesus ressuscitou dos mortos.
Definição de Razão
Agora já foram dados argumentos Bíblicos suficientes para justificar o carácter da fé.
Deste lado da questão, portanto, o antagonismo com a razão não é mais esperado. O que
resta agora é uma definição da razão que irá remover o antagonismo do outro lado da
antítese. O esclarecimento da natureza da fé foi empreendido em referência às
distorções do fundamentalismo; o esclarecimento da razão prevê as acusações seculares
de que o Cristianismo é sem razão ou irracional.
31
Religious Values, 21-22.
32
A Philosophy of Religion, 192.
101
obtido. De facto, é mesmo significativo que Brightman tenha sido incapaz de declarar
esses princípios. Em um lugar,33 ele parece tentar oferecer uma definição de razão em
nove normas; mas as normas que ele especifica, em vez de serem empíricas,
assemelham-se claramente à chamada lógica formal que ele em outro lugar deixou de
lado.34 Brightman foi, portanto, incapaz de aplicar sua teoria.
Visto que todas as tentativas de obter conhecimento para além da revelação falharam, o
Cristão, em seguida, só precisa contradizer a alegação sem o apoio de Brightman de que
a experiência não pode ser julgada por princípios derivados da revelação. Os psicólogos
de hoje enfatizam a culpa e medo; os existencialistas confrontam o homem com a
morte. Estas experiências não podem ser entendidas à luz da informação que Deus
revelou? Essa revelação não precisa ser testada - na verdade, não pode ser testada - pela
razoabilidade no sentido da palavra de Brightman, porque a razoabilidade de Brightman
não existi.
Finalmente, visto que a acusação de irracionalidade falha porque as filosofias que fazem
isso colapsam no cepticismo, o Cristão agora precisa apenas identificar a razão com
aquela que Brightman chamou de abstracta e formal. Os termos de Brightman nesta
conexão são um pouco infelizes, e os próximos capítulos mostrarão que a teoria
moderna do formalismo lógico não deve ser adoptada. Contudo, a razão pode bem ser
definida como lógica. Não deve ser identificada com experiência. Quando um teólogo
Cristão está deduzindo conclusões das premissas Bíblicas, ele está raciocinando - ele
está usando a razão. Exigir que ele teste a Escritura pela sensação, a fim de evitar a
acusação de irracionalidade é, em si mesmo, um preconceito irracional.
Com esta concepção da razão, não há mais conflitos entre razão e fé. A futilidade do
Racionalismo e a insanidade do Irracionalismo são igualmente evitadas. A verdade se
torna alcançável. E isso, nós cremos, deve constituir uma forte recomendação para a
revelação Cristã.
33
Nature and Values, 106.
34
Para uma discussão mais completa, veja minha A Christian View of Men and Things, The Works of
Gordon Haddon Clark, 153-190, 207, 213.
102
INSPIRAÇÃO E LINGUAGEM
A conclusão do capítulo anterior foi a tese de que a revelação é necessária como base de
uma visão de mundo racional. No estudo da religião, e geralmente na filosofia moderna,
tentativas de estabelecer a verdade sem a palavra de Deus resultaram num
irracionalismo frustrado.35 Portanto, o pensamento construtivo deve pressupor
informações que foram divinamente dadas. Isso é supor que a Bíblia é a Palavra de
Deus; e como Deus não pode mentir, sua Palavra deve ser a verdade. Obviamente, isso
levanta o problema da inspiração verbal. A primeira parte deste capítulo dará alguns dos
antecedentes mais antigos deste assunto. Mais recentemente, inspiração e revelação
foram discutidas do ponto de vista das possibilidades de linguagem. A linguagem é um
instrumento adequado para a revelação? Tal pergunta requer uma discussão dupla.
Primeiro, existe o estudo da linguagem, sua natureza, sua origem, suas possibilidades e
sua relação com a inspiração. Este é um tópico de importância por si só. Segundo, existe
a questão do método. Pode se manter com sucesso que a revelação divina como
pressuposição de todo o conhecimento, oferece uma solução para os problemas da
linguagem?
As Reivindicações Bíblicas
A inspiração das Escrituras, tendo como base a verdade e autoridade da Palavra de Deus
é de importância tão óbvia para o Cristianismo, que nenhuma justificativa elaborada é
necessária para discutir o assunto. De facto, é até perdoável começar com algum
material muito elementar (não apenas perdoável, mas de facto indispensável). Nenhuma
discussão de inspiração pode contribuir com muito valor sem levar em conta os dados
Bíblicos elementares. Esses dados devem ser mantidos em mente. Ainda assim,
infelizmente, muitos desses detalhes desapareceram de nossas memórias antigas. Mais
infelizmente, a geração mais jovem em geral nunca aprendeu os dados Bíblicos. Nos
últimos dois ou três séculos o Cristianismo sofreu um declínio lento mas constante, e
actualmente, os padrões teológicos da maioria dos seminários são tão baixos que os
ricos detalhes do Presbiterianismo e do Puritanismo nunca são apresentados aos
estudantes. Portanto, em primeiro lugar, algumas declarações simples sobre a doutrina
da inspiração devem ser feitas, uma vez que foi comummente explicada há cem anos
atrás.
35
Veja o autor de Thales do Dewey, capítulo 11.
103
Foi em 1840 que Louis Gaussen publicou seu famoso livrinho Theopneustia. Gaussen
era um teólogo Suíço que, como J. Gresham Machen neste século, foi deposto do
ministério e expulso da igreja, não por causa da incredulidade, mas por causa de sua
adesão à verdade das Escrituras. E seu livro Theopneustia é uma defesa da inspiração.
Nele, Gaussen acumula a quantidade impressionante de material que as Escrituras têm a
dizer sobre si mesmas. E embora isso tenha sido há mais do que um século ninguém há
que poderia abordar a questão da inspiração sem um bom conhecimento do trabalho de
Gaussen, ou pelo menos sem um bom conhecimento do que a Bíblia tem a dizer sobre si
mesma.
Gaussen abre sua pesquisa sobre os dados das Escrituras citando o conhecido versículo:
“Toda a Escritura é inspirada por Deus.” Aqui, sua observação pertinente é: “Esta
afirmação não admite exceção;… toda a Escritura; significando assim os pensamentos
depois de terem recebido o selo de linguagem.” Então ele prossegue apoiando esta
afirmação com um tremendo número de referências.
Por exemplo, Gaussen lista dez exemplos de frases como “A boca do Senhor falou”, e
“o Senhor falou”. Apenas um pouco diferente são outras referências que dizem: “Eu vou
abrir sua boca para falar no seu meio”, e “o Espírito do Senhor falou por mim, e sua
palavra estava na minha língua”. Ou, novamente, “a Palavra de Deus veio a Semaías”,
“a Palavra de Deus veio a Natã ”, “a Palavra de Deus veio a João”, “a Palavra do Senhor
que veio a Jeremias.” Além destas, há casos em que é dito: “o Senhor colocou uma
palavra na boca de Balaão;” “Eu estarei com a sua boca”; “Senhor, que pela boca do teu
servo Davi disse; e “esta escritura tinha que ser cumprida, a qual o Espírito Santo falou
antes pela boca de Davi a respeito de Judas”.
Deve-se notar bem que a mensagem dada pelo Espírito não é meramente a ideia geral da
passagem, mas sim as próprias palavras.
Jeremias 1:9 O Senhor estendeu a mão, tocou a minha boca e disse-me: “Agora ponho
em sua boca as minhas palavras.”
104
O facto de que as próprias palavras são inspiradas pode ser visto também pelo modo
como Jesus Cristo usou a Bíblia. Considere, por exemplo, a resposta do Senhor aos
Saduceus que negaram a ressurreição do corpo. Como ele os refuta? Por uma única
palavra de uma passagem histórica; por um único verbo no tempo presente, em vez do
mesmo verbo no passado. “Errais”, disse ele, “não conhecendo as Escrituras… não
tendes lido o que Deus vos declarou, dizendo: Eu sou o Deus de Abraão”. Deus no
Monte Sinai, quatrocentos anos após a morte de Abraão, disse a Moisés, não “eu fui”,
mas “eu sou o Deus de Abraão”. Há uma ressurreição, pois Deus não é o Deus de
alguns punhados de pó, o Deus dos mortos: Ele é o Deus dos vivos. Aqueles homens,
portanto, ainda estão vivos, e Cristo baseou o argumento numa única palavra. Alguns
versos depois, o Senhor perguntou aos Fariseus sobre a natureza divina do Messias
esperado. Aqui também, para provar seu ponto, ele insiste no uso de uma única palavra
no Salmo 110. Se o Messias fosse o filho de Davi, disse Cristo, “então, como é que
Davi, falando pelo Espírito, o chama de 'Senhor'?" Aqui Cristo enfatiza o facto de que
Davi usou esta palavra através da orientação do Espírito Santo.
Há espaço para apenas mais uma referência a fim de mostrar que Cristo afirmou a
autoridade divina das palavras dos profetas e suas próprias palavras também. É a
declaração do nosso próprio Senhor: “Se vocês cressem em Moisés, creriam em mim,
pois ele escreveu a meu respeito. Visto, porem, que não crêem no que ele escreveu,
como crerão no que eu digo?” (João 5: 46-47).
A última referência também nos leva a um passo adiante neste material elementar.
Alguém na ignorância pode objectar que, embora Deus tenha dado aos profetas suas
palavras e os fez falar, a fala cessou nestes milhares de anos, e temos apenas relatos dos
discursos. A alegação é assim feita, de que a Bíblia não é uma revelação, tanto quanto é
o registo de uma revelação. Esta questão, relativa à relação da palavra falada com a
palavra escrita, foi respondida por Cristo implicitamente nas referências, mas
explicitamente nesta última. Note cuidadosamente, nosso Senhor diz que Moisés
105
“escreveu a meu respeito [e] visto, porem, que não crêem no que ele escreveu, como
crerão no que eu digo?”
Quando as palavras que Deus deu a seus profetas são escritas, elas se tornam os
Escritos, ou seja, as Escrituras. São as Escrituras, os Escritos, através dos quais Jesus
nos diz para procurarmos a vida eterna. Em sua tentação, Jesus repele Satanás dizendo
“Está escrito”. Também em João 6:45, 8:17, 12:14, 15:25, a frase “Está escrito” resolve
os pontos em questão.
Repetimos que o efeito dessa evidência é acumulativo. Alguém deve ter em mente as
centenas de instâncias em que a Bíblia alega inspiração plenária e verbal. Esta doutrina
da inspiração não é algo devidamente deduzida de dois ou três versos isolados. Pelo
contrário, é uma declaração da Bíblia explícita, repetida, constante e enfática em todas
as suas partes.
Agora, para concluir este levantamento de detalhes elementares, uma questão deve ser
colocada. Se os profetas que falaram, se os autores que escreveram e se o nosso próprio
Senhor está enganado sobre a inspiração verbal - se eles estão errados nessas centenas
de vezes - que garantia alguém pode ter com respeito às outras coisas que eles disseram
e escreveram? Existe alguma razão para supor que os homens que foram tão
uniformemente enganados quanto à origem de suas mensagens, poderiam ter tido uma
visão superior e conhecimento preciso da relação do homem com Deus? Ainda mais
incisivamente: alguém pode professar um apego a Jesus Cristo e contradizer
consistentemente sua afirmação de que as Escrituras não podem ser anuladas?
106
A Objecção do Ditado
Uma vez que este relato elementar e abreviado da inspiração verbal foi baseado em um
volume de um século atrás, o próximo passo, antes de trazer assuntos completamente
actualizados, será o exame da objecção centenária.
A idéia de que Deus deu suas palavras aos profetas parece a muitos liberais uma teoria
mecânica e artificial de revelação. Deus, nos dizem eles, não pode ser retratado como
um chefe ditando palavras para seu estenógrafo. E mais, os escritos dos profetas
mostram claramente a liberdade e espontaneidade de individualidade pessoal. O estilo
de Jeremias não é o de Isaías, João não escreve como Paulo. As palavras são
obviamente as palavras de João e Jeremias, não de um chefe ditando a vários
estenógrafos. Os estenógrafos de um chefe revelarão letras do mesmo estilo literário;
eles não corrigem seu Inglês. Agora, portanto, se Deus ditasse as palavras da Bíblia, as
diferenças pessoais não poderiam ser explicadas; por meio disso segue-se que a doutrina
da inspiração verbal é falsa.
107
das diferenças do estilo literário. Obviamente, ele quis dizer ditado no sentido mais
geral de um comando e uma imposição autoritária. O que é principal para este ponto é
que a grande maioria dos teólogos que defendeu e mantive a inspiração verbal nunca
aceitou a teoria do ditado mecânico como descrito pelos modernistas. B. B.Warfield, em
A Inspiração e Autoridade da Bíblia, escreve: “Deveria ser desnecessário protestar
novamente contra o hábito de representar os defensores da inspiração verbal como
ensinando que o modo de inspiração era através do ditado.”36 E mais tarde ele escreveu:
Não se deve de modo algum imaginar, que se pretende proclamar uma teoria mecânica
da inspiração. As Igrejas Reformadas nunca mantiveram tal teoria; embora
controvérsias desonestas, descuidadas, ignorantes ou impacientes sobre sua doutrina
muitas vezes trouxeram a acusação. Mesmo aqueles teólogos especiais em cuja boca tal
acusação foi mais frequentemente lançada (por exemplo, Gaussen) são explícitos no
ensino de que o elemento humano nunca está ausente.37
Em várias ocasiões e em vários tópicos, tem sido minha experiência o facto de que os
teólogos liberais entendem mal, deturpam e até mesmo citam autores ortodoxos. Agora,
um erro ocasional deve ser negligenciado; mesmo um número de erros não relacionados
não pode ser também julgado asperamente; mas quando a doutrina da inspiração verbal
é tão constantemente deturpada, a pessoa é tentada a supor que os incrédulos acharam
mais fácil ridicularizar o ditado do que entender e discutir a inspiração verbal como é
realmente ensinado pelos Teólogos reformados.
Como então as diferenças de estilo devem ser consideradas e o que inspiração verbal
significa? A resposta a estas perguntas, envolvendo a relação entre Deus e os profetas,
nos leva rapidamente para longe do retrato de um chefe e um estenógrafo.
Quando Deus quis fazer uma revelação, na época do êxodo ou do cativeiro, não olhou
de repente como se estivesse despreparado e se perguntando sobre que homem ele
poderia usar para o propósito. Nós não podemos supor que ele anunciou por uma ajuda,
e quando Moisés e Jeremias se candidataram, Deus os constrangeu a falarem suas
palavras. E ainda, esta visão depreciativa subjaz a objecção à inspiração verbal. A
relação entre Deus e os profetas é totalmente diferente daquela entre um chefe e um
estenógrafo.
36
B. B. Warfield, The Inspiration and Authority of the Bible, 173n9.
37
B. B. Warfield, The Inspiration and Authority of the Bible, 421.
108
Se considerarmos a onipotência e sabedoria de Deus, uma representação bem diferente
emerge. O chefe deve aproveitar o que puder; ele depende do colégio ou da faculdade
de negócios para ensinar o estenógrafo taquigrafia e digitação. Mas Deus não depende
de qualquer agência externa. Deus é o criador. Ele criou Moisés. E quando Deus quis
que Moisés falasse por ele, disse: “Quem fez a boca do homem?... Não sou eu, o
SENHOR?” Portanto, a inspiração verbal, como qualquer outra doutrina particular, deve
ser entendida em conexão com o sistema completo da doutrina Cristã. Não se deve
separar dele, e ainda mais, não se deve enquadrar numa visão alienada de Deus. Em
particular, a inspiração verbal pode ser mais claramente entendida - e só pode ser
correctamente entendida - em sua relação com a doutrina Calvinista Presbiteriana,
Reformada, do decreto divino, providência e predestinação. Quando os liberais negam
sub-repticiamente a predestinação retratando Deus como ditador de estenógrafos, eles
então, deturpam a inspiração verbal, e assim, suas objecções não se aplicam ao ponto de
vista Calvinista. O problema não é, como pensam os liberais, que o chefe controla o
estenógrafo completamente; pelo contrário, a analogia erra o alvo porque o chefe
dificilmente controla o estenógrafo.
Coloque desta forma: Deus, desde toda a eternidade decretou conduzir os Judeus para
fora da escravidão pela mão de Moisés. Para este fim, ele controlou tanto a história de
tal modo que Moisés foi nascido numa determinada data, colocado na água para salvá-lo
de uma morte precoce, achado e adoptado pela filha de Faraó, recebeu a melhor
educação possível, foi levado ao deserto para aprender a paciência, e em todos os
eventos e circunstâncias tão preparado que, quando chegou a hora, a mentalidade e o
estilo literário de Moisés eram os instrumentos precisamente ajustados para falar as
Palavras de Deus.
Isso é completamente diferente do ditado. Um chefe tem pouco controle sobre uma
estenógrafa, excepto em relação às palavras que ela digita para ele. Ele não controlou
sua educação. Ele não pode confiar em seu estilo literário. Ela pode ser totalmente
desinteressada em relação aos seus negócios. Eles podem ter muito pouco em comum.
Mas entre Moisés e Deus havia uma união interna, uma semelhança de propósito, uma
cooperação de vontade tal que as palavras que Moisés escreveu eram as próprias
palavras de Deus e as próprias palavras de Moisés ao mesmo tempo.
109
Assim, quando reconhecemos que Deus realiza a sua vontade no exército do Céu e entre
os habitantes da Terra, quando entendemos que Deus opera todas as coisas conforme o
conselho de sua própria vontade, quando vemos a presença e providência de Deus
impregnada na história e na vida de seus servos, então podemos perceber que o ditado
do escritório de negócios não faz justiça às Escrituras. O Espírito Santo habitou nestes
homens e ensinou-lhes o que escrever. Deus determinou qual seria a personalidade e o
estilo de cada autor, e ele determinou isso com a finalidade de expressar sua mensagem,
suas palavras. As palavras da Escritura, portanto, são as próprias palavras de Deus.
TEORIAS CONTEMPORÂNEAS
Esta breve e curta pesquisa de discussões anteriores pretende ser um pano de fundo
histórico para uma análise da condição contemporânea do assunto. As coisas mudaram e
mudaram consideravelmente. Com o declínio do Liberalismo Ritschliano e a ascensão
do Existencialismo, Neo-ortodoxia e Positivismo Lógico, os oponentes da inspiração
verbal mudaram de ataque. Não é mais se as palavras da Bíblia são as palavras de Deus
ou meramente palavras de homens falíveis. Hoje uma objecção mais abrangente é feita
com base numa teoria geral da linguagem. Os filósofos têm-se interessado em
semântica; e algumas de suas opiniões mudariam o significado das palavras que, com
toda a inspiração verbal que se possa imaginar, a Bíblia seria esvaziada de seu
significado Cristão. A filosofia da linguagem como desenvolvida por estudiosos que não
estão particularmente interessados em qualquer religião, não é especificamente dirigida
contra a inspiração da Bíblia; mas, visto que uma teoria geral da linguagem inclui
linguagem religiosa e afecta toda a filosofia da religião, ela varre a inspiração junto com
todo o resto. O resultado mais proeminente, embora não o mais profundo dessa
influência, é a ideia de que toda linguagem religiosa é metafórica ou simbólica.
Declarações não religiosas devem sempre ser entendidas literalmente. Nas páginas
seguintes, alguns exemplos deste tema serão dados, acompanhados de uma mistura de
crítica; e então a discussão se voltará para a mais profunda implicação da teoria geral da
linguagem.
Linguagem Religiosa
110
Igrejas. Na edição de Setembro em 1955, Geddes MacGregor tem um artigo intitulado
“A Natureza da Expressão Religiosa”, e John A. Hutchinson escreve sobre “O Uso
Religioso da Linguagem.” Seus pontos de vista comum, em vez de quaisquer pequenas
diferenças, podem se manifestar, é o que diz respeito ao presente argumento.
No entanto, não parece que os exemplos de MacGregor provam o que ele pretendia.
Obviamente, uma criança sabe pouco sobre casamento e nenhum adulto sabe tudo.
Também é verdade que muitos adultos conhecem apenas alguns dos teoremas que
podem ser verdadeiramente afirmados de um triângulo. Mas a ignorância desses
teoremas não implica uma ignorância da definição de triângulo nem de alguns dos
teoremas mais simples. O mesmo acontece com o casamento. Tal exemplo portanto, não
prova que não há significado literal para estas palavras.
111
Outra ilustração que MacGregor dá é de um Pregador muito comum pregando um
sermão muito comum. No entanto, este sermão sem graça ou uma sentença dele torna-se
uma mensagem vital para alguém na congregação, e sua vida muda. Mais uma vez as
palavras transmitiram mais significado do que o orador pretendeu, e, portanto,
argumenta MacGregor, o significado não poderia ser literal. Mas porque não? O
significado literal de uma frase ou duas não poderia relembrar temas que ficaram
dormentes na mente do ouvinte? Não poderia, mesmo o significado literal, indicar um
novo modo de vida? Como pode tal exemplo ser feito para mostrar que toda linguagem
religiosa é metafórica ou simbólica?
Finalmente, o autor afirma que a proposição teológica “Deus é onisciente” nunca é tão
satisfatória quanto a declaração litúrgica, “Ó meu Deus, tu sabes todas as coisas.” Para
MacGregor, o enunciado religioso “é sempre na segunda pessoa do singular.”
Agora, parece-me, que esta última noção é obviamente falsa. Existem bibliotecas cheias
de livros religiosos escritos na terceira pessoa. Teologias Sistemáticas, histórias da
igreja, livros sobre métodos pastorais são todos escritos na terceira pessoa, e eles são
livros religiosos. Aliás, a Bíblia é em grande parte na terceira pessoa: “Levando ele
mesmo em seu corpo os nossos pecados sobre o madeiro.” É claro que a sentença da
terceira pessoa e a sentença da segunda pessoa que MacGregor escolheu não é
exactamente equivalente. Mas a diferença não se origina da pessoa do verbo. Se o autor
tivesse escrito a primeira frase como “Meu Deus é onisciente”, ele teria uma sentença
da terceira pessoa que é o equivalente exacto da frase da segunda pessoa. Isso pode não
ser um modo de discurso “satisfatório”, pois não é um modo de discurso; mas isso não
quer dizer que não é satisfatório para uma declaração credal. Qualquer que seja a
diferença entre os verbos da terceira e segunda pessoa, não é de todo claro por que os
verbos de segunda pessoa devem ser metafóricos e não literais. Se, portanto, se deseja
manter que toda linguagem religiosa é metafórica, seria melhor recorrer a uma teoria
geral da linguagem do que exemplos como esses.
112
linguagem é metafórica… . Todo substantivo comum é um tipo de metáfora morta. Mas
termos religiosos ou palavras são metafóricos num sentido mais distinto.” Para apoiar
sua visão, Hutchinson esboça uma epistemologia religiosa que é baseada em imagens -
uma espécie de idolatria mental - e que é assimilada a arte e mitologia. Deus sempre
(observe o sempre) fala ao homem através de imagens, e “a experiência religiosa é um
processo de ser atingido por essas imagens.”
Esse tipo de epistemologia será aludido mais tarde; mas aqui eu só desejo dizer que,
enquanto Hutchinson pode estar descrevendo sua própria experiência religiosa, ele não
está descrevendo a minha. Sua ampla generalização é simplesmente não verdadeira para
o facto.38
Parece, no entanto, que nem esta nem qualquer outra tentativa de justificar a escolha
entre os mitos pode ser bem sucedida. Se os mitos eram verdades literais, um pode ser
mais adequado que o outro. O mito Grego do método de Zeus de produzir chuva pode
ser considerado mais adequado ou menos adequado do que o mito sobre as janelas do
céu, atribuído aos Hebreus. Mas se essas histórias são mitológicas e simbólicas,
simplesmente simbólicas do facto literal de que chove, é difícil julgar que adequação
exige-se. Uma declaração literal das nuvens de Aristófanes poderia esclarecer, mas um
mito esclarece nada.
Além disso, se toda a linguagem é simbólica, o mito não poderia ser um símbolo de
qualquer verdade literal; teria que ser um mito sobre um mito. Por exemplo, no que a
cruz poderia ser um símbolo? A cruz, como aparece nas tintas impressas ou esculturas, é
sem dúvida o símbolo da crucificação de Cristo; mas pode a crucificação em si ser um
símbolo ou metáfora de qualquer coisa? O significado prima facie das declarações sobre
38
Uma outra discussão de imagens será encontrada no meu Thales to Dewey, The Works of Gordon
Haddon Clark, 299-301.
113
a crucificação é literal. E se alguém disser que a linguagem religiosa não pode ser
literal, parece não haver método racional de determinar no que a crucificação simbólica
aponta. É isso um símbolo pessimista de um universo inerentemente injusto, ou é
símbolo do amor de Deus? Com que base se poderia decidir se nada no relato pode ser
tomado literalmente?
Mas suponha que agora alguém decida sem fundamentos racionais, supor que a
crucificação, embora nunca tenha ocorrido literalmente, é símbolo do amor de Deus.
Então devemos perguntar, é uma verdade literal que Deus ama os homens, ou isso é
também simbólico? Obviamente, se toda a linguagem é simbólica, isso deve ser
simbólico também. E em relação a o quê o amor de Deus é simbólico? Sem dúvida é
simbólico em relação a outro símbolo, que é em si símbolo de outro. Como pôde tal
regressão ter algum valor a menos que, e quanto mais cedo melhor, nos deparemos com
um símbolo que simboliza um significado não simbólico?
Enquanto a discussão se referir à chuva e às janelas do céu, pode parecer que nada
importante está envolvido. Mas quando a crucificação é varrida - e quando termos como
resgate, justificação, propiciação, expiação e reconciliação são tratados como metáforas
e figuras de linguagem39 - a ilusão da superficialidade é dissolvida. Pois, desse tipo de
visão, pode ser, e foi concluído que a revelação divina não pode ser uma comunicação
da verdade.
Sem dúvida, o leitor Cristão está interessado principalmente numa revelação verdadeira
e no significado literal das declarações Bíblicas. No entanto, seria um erro supor que os
Cristãos instruídos não devem se preocupar com as várias teorias seculares das quais
derivam as implicações religiosas. A seção anterior sobre simbolismo foi dada em
conexão com artigos um tanto superficiais em um jornal. Esses relatos populares são o
modo em que teorias mais técnicas escorrem para a população geral. Portanto, um
exame mais completo da semântica ou linguística deve ser realizado. Isso é mais
apropriado porque a maioria dos escritores religiosos que fazem muito do mito e
simbolismo são conscientes de sua dependência das teorias mais gerais da linguagem.
Eles podem não estar conscientes de uma ainda mais geral, uma ainda mais profunda, e
muito mais radical teoria da linguagem. Esta nova lógica tal como aparece no
39
John Mackintosh Shaw, Christian Doctrine, 207.
114
Positivismo Lógico e na filosofia da Análise, será levada em conta no final deste
capítulo. No entanto, primeiro, a discussão continuará com a linguagem.
Linguística
Para começar, pode ser bom indicar a grosso modo a natureza do assunto, fazendo
algumas perguntas que precisam ser respondidas: o que é uma palavra? Como o som
pode parecer significativo? O pensamento existe antes e separado da linguagem? Como
a linguagem se originou? A linguagem é adequada para um conhecimento da realidade,
ou é de natureza tal que distorce automaticamente o universo? Toda a linguagem é
simbólica e metafórica, ou são algumas frases estritamente literais? Estas e outras
questões semelhantes dão uma ideia preliminar do problema.
Vamos escolher como ponto de partida uma fase da origem da linguagem. A Bíblia faz
uma breve menção da diversificação de línguas, mas a origem da única língua
precedente é passada por alto, em silêncio. Similarmente, fora da Bíblia, nenhuma
informação histórica está disponível da primeira ocorrência da fala. Por esta razão, as
teorias da origem da linguagem são conclusões especulativas baseadas em princípios
filosóficos mais gerais.
Naturalismo e Behaviorismo
Uma teoria comum hoje afirma que as palavras se originam na experiência sensorial.
Todas as palavras devem ter originalmente uma referência física. Palavras que denotam
relações são consideradas essencialmente espaciais. Se uma palavra é considerada como
representante de um objecto, a relação “representar” é derivada de posições no espaço;
Da mesma forma, um pensamento está em minha mente assim como uma cadeira está
em uma sala; e o que é pior, por lógica, a inclusão de uma classe em outra, por exemplo,
todos os mamíferos são vertebrados, é também uma relação espacial.
115
frequentemente colocada numa forma que torna esta extensão extremamente difícil e na
verdade impossível.
Se, no entanto, for possível encontrar alguma conexão entre sons de animais e fala
humana, a teoria em consideração assumiu uma forma na qual, em vez dos sons de
animais tornarem-se em discurso significativo, a fala é reduzida ao nível dos animais.
Ou, pode até ser dito que, a linguagem humana é reduzida abaixo do nível de gritos e
grunhidos, se é suposto que isso tenha algum significado consciente. Isto é para dizer
que, o Behaviorismo evolucionário não só torna a linguagem física e sensorial em sua
origem, mas a mantém no mesmo nível.
116
afirma ainda: “A linguagem preenche a lacuna entre os sistemas nervosos individuais”
(233); e “O pensamento é fala interior” (235). Aqui, é claro, “interior” é espacial.
Aqui pode-se perguntar se o robin tem um sensor mais do que o sensor eléctrico que o
supermercado tem quando nos aproximamos dele. E se este é o caso, não poderia ser
encontrado uma forma antiga de linguagem no sensor eléctrico - particularmente se a
porta chiasse um pouco? O behaviorista, sem dúvida, concorda, mas outros têm uma
sensação desconfortável em relação a diferença existente entre a causação física e a
interpretação dos signos. É uma diferença que não pode ser expressa nas categorias
físicas do espaço e movimento. Uma mente é necessária. Além de qualquer movimento,
deve haver intelecção. Em linguagem as palavras ou sinais podem ocorrer, talvez não
aparte de toda causalidade, mas elas operam em provocação às regularidades da
causalidade. Qual é a causa que nos faz usar a palavra verme? Nós podemos dizer
verme no momento em que vemos um, e neste caso pode ser alegado que os raios de luz
reflectidos do verme produzem o som, assim como eles produzem o chilro do robin.
Mas não são os raios de luz que produzem o mesmo som quando escolhemos a palavra
verme para fins de discussão linguística. Nós chamamos verme um substantivo, e
observe que ele pode ser o sujeito de um verbo. São estas observações nada, além de
movimentos físicos? É o som do verme um efeito químico igual a de raios de luz e de
uma discussão linguística? É o som do substantivo nada além de um efeito físico da
física anterior? Aqui a explicação behaviorista só pode ser aceita com uma fé cega. Não,
nem mesmo com uma fé cega, porque a fé é um termo mentalista. Deve ser aceita por
cegos físicos. Acontece, no entanto, que a minha física faz com que eu produza outros
sons, tais como os sons da mente e do intelecto. Em particular a química do meu corpo
117
produz os sons. A química e a física da minha laringe são tão boas quanto a química e a
física de vocês.
A Teoria Simbólica
118
Não há sentenças estritamente literais.40
Agora estritamente falando, não existe tal coisa como verdade literal em qualquer
sentido absoluto, pois não existe correspondência absoluta entre expressão e aquilo que
é expresso... e qualquer expressão em linguagem contêm algum elemento simbólico.41
Agora, em primeiro lugar, pode-se notar, que, se não houver frases literais em tudo, o
significado das declarações na Bíblia não é mais viciado do que o significado das
declarações em Guerras Gálicas de César. “Davi era rei de Israel ” e “Todos os Gauleses
estão divididos em três partes” estão no mesmo nível. Ambas podem ser chamadas
figurativas, ou simbólicas, ou metafóricas; mas ambas são históricas exactamente no
mesmo sentido. Se toda a linguagem é simbólica, a inspiração verbal das Escrituras não
é mais perigosa do que a interpretação correta de qualquer outro texto.
Urban disse: “não existe uma correspondência absoluta entre expressão e aquilo que é
expresso.” Assim, em segundo lugar, deve-se perguntar se há correspondência absoluta,
e se isso é necessário para o significado literal. A noção de correspondência é vaga. Em
um sentido do termo, uma foto corresponde ou se parece com seu objecto, mas ninguém
supõe que uma palavra corresponda à uma coisa dessa maneira. Linguagem não é uma
imagem da realidade. As letras g-a-t-o não se parecem com o ronronar42 animal. É ainda
mais verdade que palavras não podem parecer realidades espirituais, se tais existem,
pois estas não são entidades visíveis. Mas em um sentido não fotográfico, uma fórmula
matemática, pode-se dizer que corresponde ao movimento de um corpo que caiu
livremente. Não seria isso uma correspondência absoluta? Ou, se o termo absoluto
causar hesitação, não poderia tal fórmula ser entendida como uma afirmação literal?
Além disso, se o som do gato é essencialmente um sinal arbitrário do animal, que outra
correspondência poderia ser desejada?
40
Wilbur Marshall Urban, Language and Reality, 433.
41
Wilbur Marshall Urban, Language and Reality, 382-3831
42
[Nota do tradutor] Rumor contínuo provocado pela traqueia do gato, em geral quando descansa.
119
Ao criticar a visão de que as palavras são sinais arbitrários ou convencionais de ideias e
coisas, Urban várias vezes apela a um conteúdo intuitivo em palavras. Palavras
primitivas supostamente imitam, de uma forma ou de outra, a coisas à que se referem. A
palavra dor, derivada do som haai, é suposto soar como uma sensação de dor. Enquanto
que algumas pessoas com imaginações animadas pensam que isso é plausível, exemplos
tomados, não de uma língua materna, mas de línguas desconhecidas, removerão a
plausibilidade. Um dos exemplos de Urban é ouatou e ouatou-ou-ou. Ele primeiro dá o
significado em inglês e, em seguida, pergunta se a palavra não soa como a coisa. Se
assim fosse, se houvesse um significado intuitivo no som, deveria ser bastante fácil
adivinhar o significado da palavra antes da tradução em inglês ser dada. Agora, entre
um milhão de pessoas, alguém pode dar um palpite de sorte; mas os outros quase
certamente fracassariam. Você reconhece tudo em paralelo ao significado das duas
palavras fluxo e oceano?
Por outro lado, se as palavras são sinais convencionais, pode haver correspondência
absoluta - se alguém quiser considerá-las assim - por convenção. Isto é visto mais
claramente nos termos que os cientistas deliberadamente cunham. Volt e ohm
“correspondem” completamente aos seus referentes. De qualquer forma, quando se diz
que o circuito eléctrico da casa é um dos 110 volts, a linguagem é totalmente literal.
Além dos termos técnicos da ciência, isso também é verdade em relação a muitas frases
comuns. As palavras cão, chien e Hund não têm conteúdo intuitivo. Elas são meros
sinais. Portanto, quando se diz “o cão é preto ”, normalmente se espera que seja tomada
literalmente. Em tais sentenças não há elemento simbólico. E isso é também verdade em
relação a “Davi escreveu os Salmos.”
Deve-se admitir que Urban coloca o dedo em uma séria de dificuldades na visão de que
palavras são sinais convencionais. É que uma primeira convenção seria ininteligível. A
comunicação seria impossível. O Adão e Eva Bíblico ou os dois primeiros selvagens
evolucionários não poderiam ter falado um para o outro. Adão teria escolhido um som
para árvore, sol ou ar, e Eva não teria ideia do que se refere.
120
conteúdo, não seria de muita ajuda para resolver o enigma da comunicação, são razões
persuasivas para não seguir Urban.
Esta citação revela uma grande confusão, embora a última metade seja perfeitamente
verdade. A fonte e explicação da confusão podem se tornar aparente um pouco mais
tarde, visto que seu argumento para a necessidade do simbolismo é mais desenvolvido;
mas o ponto da confusão é óbvio aqui. A citação não dá de facto dois significados do
termo literal. Literal no sentido de oposto ao figurativo não difere do literal no sentido
de significado primitivo. Urban tomou por ambíguo no termo literal dois procedimentos
diferentes de interpretação de frases figurativas. O exemplo foi, “Napoleão era um
lobo”. O significado literal, não figurativo e primitivo da palavra lobo é, naturalmente,
um certo tipo de animal selvagem. Dizer que Napoleão tinha quatro pernas e um casaco
felpudo é com certeza falso. Mas embora o predicado da frase figurativa não se
43
Wilbur Marshall Urban, Language and Reality, 433.
121
destinava a ser tomado literalmente, o significado pretendido pode ser expresso em
linguagem literal: Napoleão era um assassino devasso. E ele era um assassino arbitrário
no sentido primitivo e não-figurativo das palavras. Admitindo que a interpretação de
uma frase figurativa de acordo com os significados primários e originais das palavras
resulta numa falsa ou absurda incompreensão do significado pretendido; mesmo assim,
isso não significa que a expansão de uma sentença simbólica pela substituição de uma
sentença literal é necessariamente falsa, muito menos impossível. É uma questão de
quais palavras literais são escolhidas. Não é uma questão de ambiguidade no termo
literal. A fonte e a motivação dessa confusão está na visão de que
O símbolo expressa adequadamente para o nosso tipo de consciência aquilo que não
poderia ser totalmente expresso em frases “literais”.44
Não é verdade que tudo o que é expresso em termos simbólicos pode ser melhor
expresso literalmente. Pois não há expressão literal, mas apenas outro tipo de símbolo.45
Outro factor que contribui para a confusão acima é a opinião de que quando o termo
literal é definido como significado primário, “uma sentença literal é uma que se refere a
uma entidade sensivelmente observável... Aplicando essa noção de literal... para a
linguagem da moral e da religião... toda essa linguagem é pronunciada sem sentido.”48
A fim de preservar algum significado em linguagem religiosa contra os ataques dos
Positivistas Lógicos, Urban acredita que ele é forçado na sua visão do simbolismo.
É admitido alegremente que Urban deseja se opor àqueles que negam todo significado
das expressões religiosas. Há também um grupo que por conveniência podemos chamar
de grupo Anglicano, embora nem todos sejam Anglicanos. Antony Flew afirma que ele
não é Cristão de forma alguma. Mas a maioria deles parecem ser Anglicanos: E.L.
Mascall, Basil Mitchell, Austin Farrer, I.M. Crombie, Ian T. Ramsey e outros. Estes
homens colaboraram na publicação de uma série de livros que defendem a linguagem
44
Wilbur Marshall Urban, Language and Reality, 444.
45
Wilbur Marshall Urban, Language and Reality, 500.
46
Wilbur Marshall Urban, Language and Reality, 435.
47
Wilbur Marshall Urban, Language and Reality, 434.
48
Wilbur Marshall Urban, Language and Reality, 436.
122
religiosa da acusação de ser sem sentido, e eles seguem Urban, pelo menos, na
atribuição de uma origem sensorial à linguagem, origem tal que em seguida estabelece o
problema do desenvolvimento da linguagem de seus referentes sensoriais ao seu uso em
assuntos espirituais. Contudo, pode-se perguntar por que a ideia de significado primário
deve ser equiparada a uma referência sensualmente observável. Sobre os princípios de
uma teoria naturalista evolucionária, que nenhum desses homens deveria aceitar, os
movimentos de magia e encantamento podem ter sido os principais significados
sensoriais de termos como espírito e Deus. Mas a menos que esses selvagens tivessem
alguma noção anterior de um ser a ser invocado, a menos que eles tivessem uma idéia
“mentalista” de algo diferente do ritual em si, é difícil entender por que eles teriam
passado pelos movimentos. Ou, inversamente, se eles passaram por certos movimentos
apenas por causa da exuberância física, continua a ser um mistério o modo pelo qual a
idéia de Deus poderia ter-se desenvolvido a partir de tal prática.
Se, ao contrário, a idéia de Deus for uma doação inata do Criador, e se a palavra Deus
for um sinal arbitrário deste referente espiritual, e se por acaso encantamentos mágicos
são formas degeneradas da adoração primitiva pura, então ambos os movimentos e a
linguagem são facilmente explicados. É muito mais fácil ver como em uma religião
degenerada uma palavra de significado espiritual primitivo pode ter sido transferida
para um objecto físico assim como os ídolos substituem Deus, do que é entender como
palavras de referência sensorial somente, podem vir a assumir um significado
puramente espiritual. Essa visão alternativa deve agora ser considerada.
LINGUÍSTICA TEÍSTICA
Uma teoria da linguagem, uma vez que é apenas uma parte da filosofia, deve, como foi
dito acima, depender de uma visão de mundo mais geral. No caso dos behavioristas,
essa filosofia fundamental é aplicada conscientemente. Em outros casos, os princípios
subjacentes podem ser mal apreendidos, e podem aparecer apenas como pressuposições
a serem descobertas entre as linhas. É até possível que alguns escritores com menos
perspicácia neguem explicitamente o que suas teorias assumem implicitamente. De
qualquer forma, toda a teoria da linguagem e qualquer outra teoria especial, depende de
algum conjunto de princípios fundamentais. Deixe-nos, portanto, escolhermos o Teísmo
Cristão como nossa base.
123
Vamos supor que Deus Onipotente criou seres racionais, seres que não são meramente
físicos, mas que são essencialmente espirituais e intelectuais; seres, portanto, que têm a
capacidade inata de pensar e falar. Quais serão então as implicações relativas aos
problemas de linguística que podem ser extraídas desse pressuposto teístico?
Por um lado, esta visão coloca pensamento por trás da linguagem e assim contribui para
a explicação da comunicação. A menção anterior foi de De Magistro de Agostinho.
Cristo é o Logos ou a Razão que dá a toda mente luz intelectual. Teólogos Cristãos, até
os mais pobres, têm geralmente percebido que na esfera moral o homem não nasce
neutro. “Eis que em iniquidade fui formado, e em pecado me concebeu minha mãe.” Os
homens não nascem moralmente bons ou moralmente neutros, mas nascem depravados.
Intelectualmente, também os homens não vêm ao mundo com mentes em branco49. A
depravação hereditária apenas enfatiza a presença de idéias morais inatas. Aqueles
gentios ímpios que não queriam reter Deus nos seus conhecimentos, não conseguiram
no entanto bani-lo, pois eles continuaram a conhecer o julgamento de Deus de que
aqueles que tais coisas praticam são dignos de morte. Além das idéias morais,
Agostinho ensina que a presença de Cristo o Logos dá a todos os homens certas idéias
especulativas ou filosóficas assim como boas. A comunicação, portanto, torna-se
possível porque todos os homens possuem essas mesmas ideias. A situação é um pouco
como a dos criptógrafos50 que podem quebrar qualquer cifra. Os símbolos são, a
princípio, desconhecidos; mas porque as idéias expressas são comuns, a mensagem
pode ser entendida. E se a linguagem não tivesse pensamento por detrás dela, como os
behavioristas afirmam, e se os símbolos fossem apenas um agregado aleatório de
marcas, não haveria nenhuma cifra por quebrar.
Segue-se que não se pode atribuir à língua uma única origem sensorial e uma referência
física primitiva. O teísmo, claro, não precisa negar que os nomes de animais e coisas
referem-se a objectos físicos percebidos espacialmente; não é preciso negar que as
relações espaciais estão bem representadas na linguagem; não precisa negar ou distorcer
qualquer de nossas experiências grosseiras comuns. Mas deve-se afirmar que as
características do homem com racionalidade, suas idéias inatas e as categorias a priori,
sua capacidade de pensar e falar foram dadas a ele por Deus para o propósito essencial
49
[Nota do tradutor] Mente vazia ou tábula rasa de John Locke.
50
[Nota do tradutor] Especialistas na prática de princípios técnicos para a comunicação segura na
presença de terceiros.
124
de receber uma revelação verbal, a fim de aproximar-se de Deus em oração, e conversar
com outros homens sobre Deus e realidades espirituais. Tal como um hino diz: “Tu
fizeste ouvidos, mãos e vozes, para o desígnio do teu louvor.” Por esta razão, uma teoria
teísta da linguagem não trabalha sob o peso de dar uma derivação ou desenvolvimento
precário de significado espiritual a partir da referência física primitiva. O significado
espiritual seria primitivo. Um duvidoso apelo à metáfora, simbolismo ou analogia para
explicar essa transição seria necessário.
Este ponto requer alguma explicação extensa, pois precisa ser mostrado primeiro que
esta teoria teísta da linguagem não evita os problemas negando a utilidade da metáfora e
da analogia; e segundo, que os Anglicanos mencionados anteriormente (com outros que
adoptam a mesma perspectiva), não conseguem atingir o seu fim de manter a
significância da linguagem religiosa; e que, portanto, em terceiro lugar, se suas teorias
devem ser descartadas, a visão dos últimos parágrafos é pelo menos um melhor
expediente.
Alguns escritores, como vimos, negam isso. E. L. Mascall, que faz críticas admiráveis
ao Positivismo Lógico, e que pretende defender a significância da linguagem religiosa,
torna impossível a sua tarefa aceitando a admissão de alguns teólogos Cristãos de que
“havia algo muito peculiar sobre afirmações teológicas que as diferenciavam
nitidamente das afirmações de conversa comum… ininteligíveis aos completamente
125
leigos.”51 Ele também cita Farrer com a aprovação de que “não é necessário que
fiquemos atrás delas [imagens] para uma compreensão não metafórica dos factos. As
próprias imagens iluminam-nos.” E, “o metafísico não pode apontar para longe de seu
pensamento analogicamente expresso sobre os mistérios naturais para alguns
pensamentos não-analógicos sobre eles, o que significa tudo o que os pensamentos
analógicos significam. Ele não tem nenhum pensamento não-analógico.”52
Este é o tema que desejo particularmente repudiar. A ideia de uma linguagem teológica
especial e peculiar essencialmente diferente da linguagem usada em outros assuntos, é,
creio eu, completamente insustentável. Claro, a física usa termos técnicos, como protão
e velocidade; e, nesse sentido, podemos falar da linguagem da física, assim como a
linguagem das conversas de beisebol sobre curvas, faltas e árbitros-que-devem-ser-
mortos. Mas essas duas “Línguas” são simplesmente partes de um idioma - o inglês - e
as mesmas regras de significado aplicam-se à física, ao beisebol e à “linguagem
teológica” também.
Aqui pode-se perguntar o que Crombie teria dito se tivesse notado que nenhuma cadeira
ou mesa fica fora da categoria de fabricação. A qualquer custo o teísta pode descrever
uma situação, que claro, ele acredita ser falsa, em que a criação não seria verdadeira. Se
51
E. L. Mascall, Words and Images, viii, 12.
52
Austin Farrer citado por E. L. Mascall, Words and Images, 116-117.
53
A possibilidade de Declarações Teológicas, capítulo dois, em Faith and Logic, editado por Basil
Mitchell, 43, 45.
126
a realidade física existisse eternamente, se a história do mundo não fosse finita no
tempo, então a criação nunca teria ocorrido. Para que uma afirmação seja significativa,
não é necessário que existam situações em que ela é verdadeira e outras situações em
que ela é falsa. Tal critério de significado impediria a afirmação de que a água
entornada no ácido sulfúrico produz um aumento na temperatura. Nem em tal teoria
dois e dois seria sempre igual a quatro. A significação não depende de uma declaração
ser às vezes falsa, nem a falsidade implica que uma declaração não tem sentido. O que é
sem sentido não pode ser nem verdadeiro nem falso.
54
Criação, Flew and MacKinnon, em New Essays in Philosophical Theology, Flew and MacIntyre, 170ff.
127
que prosa” (175). Agora, talvez a palavra dia seja figurativa em Gênesis, mas alguém
pode ler a epístola de Paulo aos Romanos e negar que é prosa? Tais expedientes
desesperados não recomendam a teoria.
Às vezes, no entanto, a alegação de que o conhecimento religioso nunca pode ser literal,
em vez de basear-se em mal-entendidos bastante evidentes, fundamenta-se em pontos de
doutrina muito difíceis, pontos que constituem enigmas para um teólogo Cristão.
128
infelizmente, Deus é eterno e o mundo é temporal; “Então, quando chegamos a uma
declaração que é sobre Deus e eventos temporais, deve ser insatisfatório; porque se não
fosse, deveríamos descrever adequadamente a relação dos eventos temporais com Deus
em termos apropriados apenas aos eventos temporais” (203). Então Williams faz um
excelente argumento. Se uma pessoa religiosa responder a este argumento dizendo que
as declarações religiosas devem ser aceitas pela fé e não pela razão, Williams mostra
claramente que a resposta é irrelevante:
Se você não sabe no que é que você está crendo pela fé, como você pode ter certeza que
você está crendo em alguma coisa?... Dizer que isto deve ser crido pela fé e não pela
razão não enfrenta a dificuldade, a questão não era como deveria ser crido, mas o que
deveria ser crido.55
Os autores em discussão não parecem levar este ponto a sério o suficiente. A menos que
a linguagem religiosa seja significativa, literalmente verdadeira e completamente
inteligível, ela é sem sentido e ininteligível, som e fúria significam nada. O ponto de
Williams é a ênfase.
Mas para voltar à relação entre o Deus imutável e os eventos temporais mutáveis, talvez
seja Crombie quem chega ao fundo da matéria.
Crombie está claramente ciente de que tudo isso é mais do que uma questão de língua.
Obviamente, é necessário, se alguém deseja defender a teologia contra a acusação da
falta de sentido, fornecer uma epistemologia que irá permitir que o homem tenha
conhecimento de Deus. Mas a citação apenas parecia tornar impossível o conhecimento
sobre Deus. Até o conhecimento revelado seria impossível, pois diz-se que não temos
concepção de Deus ou de que tipo de ser ele é. A onisciência é um atributo além da
nossa compreensão, e os adjectivos que usamos não têm um sentido comum. Ainda
assim o autor deseja permitir algum sentido às afirmações teológicas. Para esse fim um
tipo especial de linguagem deve ser usado. A afirmação “Deus nos ama” Crombie
explica como uma parábola: “não há semelhança literal entre a verdade que é expressa e
55
Bernard Williams, em Flew and MacIntyre, New Essays in Philosophical Theology, 209, 211.
56
I. M. Crombie, em Flew and MacIntyre, New Essays in Philosophical Theology, 55.
129
a história que a expressa”; mas deve haver alguma “semelhança ou analogia entre,
afirmar, ser humano e amor divino”.57
Embora acreditemos na analogia, não usamos a analogia para dar um sentido ao “amor”
no contexto teológico. Nós postulamos a analogia porque acreditamos que a imagem é
uma imagem fiel…. Nós não entendemos o relacionamento que Deus tem para com o
mundo, mas também devemos reivindicar o direito de chamá-lo de “criador” ou
“sustentador”. A escolha do nome não é arbitrária; embora, visto que nós não
entendemos a relação nomeada, seu uso é em um sentido equívoco.58
Tentando evitar críticas à sua teoria da parábola ou analogia, Crombie observa que suas
conclusões só podem ser negadas se “(1) Nunca pode haver boas razões para cometer
uma categoria de transgressão, e (2) Não pode haver “significados” que não
correspondam a claras e distintas idéias.”59
Alguém se pergunta como a mera afirmação das duas únicas condições sobre qual teoria
de Cromble pode ser negada, é suficiente para dispor das condições. Parece tão razoável
que se deva evitar “transgressões por categoria” isto é, erros lógicos, que não se pode
ficar satisfeito por simplesmente remover o princípio para fora da vista. E enquanto
pode haver algum significado incorporado na linguagem de um homem cujas idéias não
são claras e distintas, o significado certamente provaria ser uma alucinação se pudesse
ser mostrado que as palavras não poderiam ser feitas para corresponder a algumas idéias
claras ou distintas. Além disso, como podemos construir uma parábola que relacione o
objecto conhecido com algo do qual não temos nenhum conceito? Analogias
significativas e comparações honestas só podem ser feitas se soubermos algo sobre
ambos os termos. A menos que uma melhor defesa da linguagem e pensamento
religioso seja inventado, os Positivistas Lógicos não ficarão muito embaraçados.
57
I. M. Crombie, em Flew and MacIntyre, New Essays in Philosophical Theology,71.
58
I. M. Crombie, em Flew and MacIntyre, New Essays in Philosophical Theology, 72, 81.
59
I. M. Crombie, em Flew and MacIntyre, New Essays in Philosophical Theology, 61.
130
Linguagem Literal
A teoria teísta da linguagem que foi delineada em algumas páginas atrás é aqui
oferecida como uma solução melhor para todo o assunto. O modo como isso se aplicará
ao Positivismo Lógico será visto um pouco mais tarde, mas o modo como se aplica à
teoria de metáforas e parábolas já deveria estar claro. Em primeiro lugar, ela fornece um
conhecimento de Deus sem o qual a fala seria som vazio. O Logos é a luz racional que
ilumina todo homem. Visto que o homem foi criado à imagem de Deus, ele tem uma
ideia inata de Deus. Não é necessário, de facto não é possível, para uma mente vazia,
abstrair um conceito de Deus a partir da experiência sensorial ou elevar a linguagem
sensorial por suas bootstraps60 para um nível espiritual. As teorias do empirismo, de
Aristóteles, de Aquino, de Locke, devem ser rejeitadas.
A teoria da metáfora, parábola ou simbolismo, visto que sustenta que a linguagem literal
é impossível, nega naturalmente que as verdades expressas em metáfora podem ser
expressas literalmente. Às vezes os autores tentam mostrar que poesia e simbolismo
perdem valor quando são feitas tentativas para declarar seu significado em prosa, e essa
falha na tradução é tomada como evidência para a teoria geral do simbolismo.
60
[Nota do tradutor] Tipo de palavras cujo significado determina a realidade.
131
Se, por outro lado, a linguagem religiosa pode ser literal, não só o simbolismo pode ser
traduzido em prosa comum, mas os símbolos devem ser considerados como menos
adequados - embora talvez literariamente mais bonitos - expressões da verdade do que
as declarações literais.
Opondo-se a qualquer sugestão, Urban, cujo grande trabalho foi citado anteriormente,
escreve,
Nas palavras de Whitehead, o símbolo é apenas um substituto para outra coisa, e o que
queremos é essa coisa - não o substituto. Em outras palavras, o ideal seria dispensar o
simbolismo ou ter uma verdade totalmente não-simbólica. Isto parece-me, ser uma
noção fundamentalmente equivocada. Em primeiro lugar, tal ideal é realmente
impossível em vista da própria natureza da linguagem e expressão. Se houvesse uma
verdade totalmente não-simbólica, não poderia ser expressa.61
61
Wilbur Marshall Urban, Language and Reality, 445-446.
62
[Nota do tradutor] Tipo de argumento lógico no qual alguém assume uma ou mais hipóteses e, a partir
destas, deriva uma consequência absurda ou ridícula, e então conclui que a suposição original deve estar
errada.
132
algumas das nossas atenções estão fixadas no símbolo. Se Batista tivesse dito, Jesus é o
Senhor, ninguém teria pensado no som como tal; e não há nada na situação, excepto o
som e o significado. Mas quando ele disse: “Eis o Cordeiro”, a situação incluiu não só
Jesus e o som das palavras, mas também os cordeiros que a palavra cordeiro resumiu.
Para entender a mensagem de Batista sobre Cristo, portanto, era necessário pensar em
como cordeiros literais poderiam simbolizar Cristo. Este não é o caso de um sinal de
designação.
João Batista esperava que seus ouvintes se lembrassem dos sacrifícios em que o pecador
adorador colocava as mãos sobre a cabeça do cordeiro, matava o cordeiro, espalhava o
sangue em volta do altar e queimava cordeiro no altar. Por causa dessas reminiscências,
a linguagem de Batista era vívida. Ele ilustrou o ritual das eras. Uma palavra resumiu
todo o sistema religioso.
Mas este símbolo é adequado? Ele expressa o que de outra forma não pode ser
expresso?
Sem dúvida, esse simbolismo era adequado para atrair a atenção dos ouvintes. Ao fazê-
lo, funcionou mais eficazmente do que uma explicação longa e literal. O simbolismo e
as expressões figurativas mais comuns têm seu uso; e a menos que elas estivessem
melhor adaptadas ao seu objectivo do que outra linguagem, deixariam de ser usadas.
133
somos sarados. Então, séculos depois, João Batista anunciou: “Eis o Cordeiro de Deus,
que tira o pecado do mundo.” O cordeiro é um símbolo da satisfação vicária da justiça.
Em uma cosmovisão teísta, portanto, uma visão que sustenta que Deus criou o homem e
revelou-se a ele em palavras, a linguagem é adequada para a teologia. Linguística, a
menos que seja controlada por pressuposições naturalistas, ateístas, portanto, não pode
oferecer objecção à doutrina da inspiração verbal. As Escrituras contêm metáforas,
figuras de linguagem e simbolismo; pois as Escrituras são dirigidas aos homens em
todas as situações - situações em que sua atenção precisa ser despertada e sua memória
facilitada, bem como em situações em que a informação clara deve ser transmitida. Mas,
visto que a linguagem simbólica e a metáfora dependem do significado literal, as
expressões mais inteligíveis e compreensíveis devem ser encontradas nas declarações
teológicas literais, tais como as de Romanos. E fora da Bíblia as expressões mais
acuradas e satisfatórias do Cristianismo são as declarações credais, cuidadosamente
formuladas da Confissão de Westminster.
POSITIVISMO LÓGICO
A maioria dos autores até agora citados tem tentado defender a linguagem religiosa a
partir da acusação dos Positivistas Lógicos de que religião e metafísica são um
disparate. Esses autores reconhecem que o Positivismo Lógico é um inimigo de toda a
religião; eles desejam escapar de sua influência; e eles às vezes fazem críticas afiadas a
ele. Se a teoria alternativa deles falhou, é só porque eles não têm suficientemente
134
enfatizado os conceitos literais de lógica não arbitrária, sem os quais nenhuma teoria
pode ser mantida e com os quais o Positivismo Lógico é reduzido a ruínas.
Embora o grupo Anglicano não enfatize suficientemente a lógica, existem outros que
enfatizam ainda menos, e que, portanto, mostram uma maior, mesmo se inconsciente,
afiliação com os Positivistas Lógicos. Emil Brunner é um bom exemplo. Um de seus
pontos principais é que Deus “não comunica algo para mim, mas para ele mesmo.” Isso
quer dizer que a revelação não é transmissão da verdade. “Todas as palavras têm apenas
um valor instrumental. Nem as palavras faladas, nem seu conteúdo conceitual são a
Palavra em si.” E, “Deus pode... falar a sua Palavra à um homem mesmo através de
falsas doutrinas.”63 Brunner não só torna a revelação vazia de todo o conteúdo
conceitual, ele também aceita ou rejeita inferências por preferências subjectivas. Jewett
traduz Die christliche Lehre von Gott64:
Assim, como Jewett continua a mostrar, que Brunner aceita implicações válidas quando
convém ao seu propósito de refutar Schleiermacher; mas quando ele se acha incapaz de
refutar o predestinacionismo de Calvino, ele decide que agora terá sua fé freando a
lógica e não prestará atenção a implicações válidas. Mas se a consistência lógica puder
ser usada em um caso e descartada em outro, qual é o problema de impedir que alguém
escolha algumas ideias do Budismo, um ou dois conceitos do Islã, e também um pouco
do absurdo da Ciência Cristã? Afinal, a revelação não é uma comunicação da verdade, e
o conteúdo conceitual das palavras não é a coisa real. Não há, portanto, nenhuma lei em
oposição contradizendo-se a si mesma.
63
Brunner, Divine-Human Encounter, 85, 110, 117. Veja também a monografia definitiva Emil Brunner's
Concept of Revelation, de Paul King Jewett.
64
[Nota do tradutor] Em Português traduz-se: A doutrina Cristã de Deus.
65
Jewett, Emil Brunner‟s Concept of Revelation, 104.
135
Este repúdio da lógica indica que uma conclusão apropriada para este capítulo pode ser
fornecida por meio de uma breve discussão sobre a lei da contradição66. Agora os
oponentes mais vigorosos da lógica imutável são hoje os Positivistas Lógicos, e para
eles, vamos nos voltar agora.
John Dewey em sua Objectos de lógica para a declaração de H.W.B. Joseph, que “é
mais em relação aos problemas à serem respondidos, do que do carácter lógico do
raciocínio… dos pontos de vista de Aristóteles que são antiquados.” Dewey sustenta
que as formas lógicas surgem da matéria, e quando a matéria muda bastante, a lógica
também muda. Ele compara lógica com conceitos legais. Os conceitos surgem das
condições sociais e mudam com elas. As leis de uma época não são as de outra. Da
mesma forma, somos levados a acreditar que, as leis da lógica não são fixas, mas
mudam com a mudança das condições.67
66
[Nota do tradutor]: Denominada também por – Lei da não contradição.
67
John Dewey, Logic, The Theory of Inquiry, 82, 101, 328.
136
Em defesa da chamada lógica humana, em defesa do sentido literal das palavras e,
portanto, em defesa da inspiração verbal, desejo desafiar o ponto de vista oposto para
enfrentar o argumento e responder de forma inequívoca. Eu desejo desafiá-los a
afirmarem suas próprias teorias sem fazerem uso da lei da contradição.
Isso significa que o cão subiu a montanha, pois a palavra metáfora significa cão, subiu
e montanha. Infelizmente, a frase “metáfora metáfora metáfora”também significa, o
próximo Natal é o Dia de Acção de Graças, pois, a palavra metáfora tem esses
significados também.
O ponto deve ficar claro: não se pode escrever um livro ou falar uma frase que significa
alguma coisa sem usar a lei da contradição. A lógica é uma necessidade inata, não uma
convenção arbitrária que pode ser descartada à vontade. Quer seja a filosofia ateísta de
A. J. Ayer ou a depreciação Pietísta da nossa falível “lógica humana”, tais teorias
tornam a inspiração verbal impossível. Mas, felizmente, essas teorias se tornam
impossíveis também. Elas são auto-refutáveis porque não podem ser declaradas excepto
em virtude da lei que elas repudiam.
Concluo, portanto, que a linguagem literal, a lógica inata e a inspiração verbal não têm
nada acadêmico a temer de teorias como essas.
137
REVELAÇÃO E MORALIDADE
Da antiguidade até o presente, questões sobre moralidade, sobre o bem e o mal, sobre o
certo e o errado, sobre valores, sobre o propósito da vida humana, têm sido frequente e
cuidadosamente discutidas. Platão e Aristóteles, Spinoza e Kant, Butler, Bentham e
Sidgwick são alguns dos autores mais conhecidos. E assim como esses filósofos, toda a
pessoa pensante deve reflectir sobre os princípios ou máximas que guiam sua
conduta . Qual das duas linhas de acção incompatíveis é a correta em seguir? Qual dos
dois princípios incompatíveis deve ser reconhecido? Se a acção deve ser baseada num
princípio , como justificar o princípio? Essas questões, que exigiram a atenção de
Platão, não são menos exigentes hoje.
Desacordo Ético
Se o povo dos Estados Unidos fosse convidado a dar exemplos de princípios , a maioria
das respostas incluiria o sexto, o sétimo e o oitavo dos dez mandamentos. Não matarás,
não cometerás adultério, e não furtarás, normalmente têm sido considerados como leis
morais importantes . Um Cristão ortodoxo, ou para assunto, um Judeu ortodoxo, pode
sincera e consistentemente inculcar essas leis porque ele acredita que elas são as leis de
Deus. Elas são certas porque Deus lhes ordenou. E são leis porque Deus impõe
penalidades por sua transgressão. Assim, convicções morais e educação moral, baseadas
na lei e no direito, podem ser fundamentadas consistentemente na revelação Bíblica.
138
Sem dúvida, outros humanistas desaprovam a brutalidade e assassinato inerente
no Marxismo. Alguns podem até ter uma palavra gentil para a propriedade privada. E
alguns, claro, não advogariam o adultério. Mas o problema que o naturalismo deve
enfrentar é esse: Pode uma filosofia empírica, uma filosofia que repudia a revelação,
uma filosofia instrumentalista ou descritiva – pode tal filosofia fornecer uma
justificativa para qualquer um dos Dez Mandamentos? Não são os humanistas que ainda
se opõem ao assassinato e roubo, aqueles que vivem na capital Cristã herdada de seus
ancestrais Puritanos? Ou melhor, a questão mais importante é esta: O humanismo pode,
tendo rejeitado a revelação, fornecer um fundamento lógico para qualquer lei moral? O
naturalismo pode fornecer uma base racional para qualquer uma das decisões da
vida? Ou, são todas as escolhas, tal como a escolha de sexo de Burtt , apenas questões
de gosto pessoal e preferência irracional?
UTILITARISMO
Esse cálculo também não está restrito a consequências imediatas e óbvias. Por
exemplo, um homem fazendo sua vontade pode legar uma boa soma a uma instituição
de caridade. Mas no tempo que ele morre, novos directores que são ineficientes ou
mesmo corruptos são eleitos. O desperdício de seu legado parece produzir menos prazer
para o público do que alguma outra provisão poderia ter feito. Portanto, somos tentados
68
Veja A Christian View of Men and Things: Em Utilitarianism and Kant, veja capítulo IV; Em
Brightman‟s theory of values, veja o capítulo VI. Veja também William James and John Dewey.
139
a dizer que o legado, nos princípios utilitaristas, é imoral. Isso não precisa ser
assim. Para além dessas consequências, deve-se também calcular o efeito do exemplo
benéfico do doador em estimular a filantropia entre outros homens de riqueza, e
também, de facto, em fortalecer seu próprio carácter para o restante de sua vida. Essas
consequências, além de algumas outras que podem ser imaginadas, poderiam exceder a
um ligeiro grau de corrupção para que a soma total do prazer produzido justificasse o
acto.
A imposição deliberada de dor pelo massacre pode ser mais chocante para a consciência
do Ocidente livre do que as menores injustiças; mas massacre ou tributação injusta não
é o princípio pelo qual a maioria governa? Nos Estados Unidos, os ricos são fortemente
tributados. A maioria pobre acredita que podem se dar mais prazer, infligindo dor à
minoria. A defesa oferecida é o maior bem para o maior número. Mas essa defesa não se
aplica ao massacre com a mesma força que aplica - se ao imposto de renda progressivo?
69
A estimativa mais recente sobre o número de chineses mortos pelo governo comunista Chinês é entre
60 e 80 milhões. – Editor.
140
Todos os Utilitaristas não-Comunistas desaprovam o assassinato. Eles normalmente
tentam evitar injustiças menores também, embora possam argumentar que o imposto
de renda progressivo não é injusto. Mas o problema se torna agudo quando um membro
da minoria decide se opor à vontade da maioria. Os Letões, os Húngaros e os Tibetanos
resistiram ao Comunismo. Isto é, eles se opuseram ao maior bem para o maior número -
assim como um ex-governador de Utah resistiu ao imposto de renda e, assim, tentou
prejudicar a maioria. Mas é errado se opor ao maior bem para o maior número. Assim
sendo, a minoria deve cooperar em infligir dor a si mesma, de modo que o maior
total de prazer seja alcançado.
Mas o Utilitarismo não é hedonismo individualista. Bentham apontou para a soma total
do prazer de toda a raça humana. Henry Sidgwick depois dele, negou que “meu bem é
meu prazer”. Somente o bem maior para o maior número poderia qualificar-se como o
critério de uma acção moral. Se uma dada linha de acção resulta em danos para mim,
mas produz um total maior de prazer para a humanidade, então é imoral para mim
buscar o meu próprio bem. Neste caso, devo procurar o meu próprio dano. E isso não é
plausível. Certamente, não é plausível que os Letões, os Húngaros e os Tibetanos
cooperem para sua própria destruição. Aqui está então o problema do conflito entre o
bem de um indivíduo e a soma total de prazer para a raça humana.
141
procura o seu maior prazer ou se ela procura o maior prazer de toda a raça, ela fará
exactamente a mesma coisa. Toda acção que promove a outra, promove a outra também.
Tal visão evita com sucesso a justificação do massacre, mas infelizmente, é uma visão
que o Utilitarismo não pode logicamente aceitar. O Utilitarismo faz um ponto do
cálculo e observação científica. Tenta ser uma teoria descritiva. Mas não é um facto
observado nem observável que os prazeres de todas as pessoas se harmonizam. Alguém
pode acreditar nisso pela fé, mas não pela experiência. Mesmo se os cálculos
Comunistas que justificam o massacre estiverem errados, não há provas de que
os prazeres de todas as pessoas se harmonizaram no passado e, obviamente, não
existe ainda nenhuma evidência sobre o futuro. De facto, a preponderância da
evidência é contra isso. O conflito das guerras, o conflito das religiões, os propósitos
transversais contínuos de indivíduos, todos parecem mostrar que, se uma pessoa obtém
o que é bom para ela, outra pessoa não pode. Daí, uma teoria que repudia fé ou
revelação e é baseada na observação não pode logicamente objectar os
massacres. Finalmente, não pode se opor à minha busca do meu bem às custas dos
outros.
Sidgwick, de facto, argumentou que se podemos assumir “tal Ser como Deus que
pelo consenso dos teólogos é suposto que seja”, podemos estabelecer a moralidade
numa base utilitarista. Mas ele hesitou em afirmar a existência de Deus com base em
dados éticos. Nisso ele foi sensato. Se fosse possível mostrar empiricamente que todos
os prazeres se harmonizam, talvez a existência de Deus seria inferida; mas na ausência
de tal evidência, a inferência permanece sem fundamento. No final Sidgwick confessa
cautelosamente uma espécie de cepticismo.
O que torna um apelo utilitarista a Deus ainda mais incongruente é que qualquer tipo de
deus o fará. O conflito entre o bem individual e o público não pode ser resolvido pelo
Primeiro Motor de Aristóteles ou pelo Espírito Absoluto de Hegel. Pelo contrário, deve
ser um ser como Deus “que pelo consenso dos teólogos é suposto que seja.” Tendo sido
escrito no século dezanove na Inglaterra, esta frase designa o Deus Cristão. Isto é, se um
apelo a Deus deve remover o conflito entre o bem privado e o bem público, e se um
massacre deve produzir dor para o seu agressor, então o apelo de Deus deve punir
Joseph Stalin em uma vida futura e deve recompensar agora suas vítimas mortas para
equilibrar as coisas. Stalin certamente, não sofreu por seus crimes nesta vida. Ele parece
142
ter sido um dos homens mais bem sucedidos que já viveu. E, obviamente, suas vítimas
não obtiveram sua parte igual de prazer. Só se Deus punir Stalin no Inferno, pode-se
sustentar que Deus harmoniza todos os prazeres. Mas um apelo utilitarista ao céu, ao
inferno e a vida futura, é um apelo ilegítimo aos princípios Cristãos. Bentham sim
restringiu explicitamente suas sanções a esta vida. Em geral, o Utilitarismo é uma
teoria deste mundo . Portanto, o apelo a Deus, se feito, é ilegítimo , e o conflito continua
sendo uma dificuldade insolúvel.
Há, no entanto, uma segunda maneira pela qual o Utilitarismo pode evitar a
justificação do massacre. A sugestão também é encontrada em Sidgwick; Mas é
mais interessante notar que depois de sessenta anos durante o qual o Utilitarismo
tem sido amplamente negligenciado por escritores de ética, um contemporâneo agora
retorna a esta segunda ideia. O maior bem para o maior número é em si um princípio
incorrecto. O critério pelo qual distinguir um bom acto de um acto mau não é o mero
total de prazer, mas a igualdade da sua distribuição. O massacre pode,
indiscutivelmente, produzir um total maior de prazer; mas o summum bonum70 é a
distribuição igual de prazer. Toda pessoa no mundo deve ter uma unidade de prazer
antes que alguém tenha duas. Ou, se posso dizer, nenhum Americano deve ter uma
educação universitária antes que cada Chinês tenha uma banheira.
70
[Nota do tradutor] Expressão usada na filosofia, quem em latim significa: o bem maior.
71
[Nota do tradutor] Na obra original não aparece nenhum itálico.
143
do significado do bem. Esta recusa é insatisfatória, pois nem a visão de Kant, nem a do
hedonismo egoísta, podem ser refutadas simplesmente definindo-as como fora da
existência.
Para reforçar o ponto de que uma definição não resolve o problema em discussão,
algumas observações sobre a igualdade podem ser acrescentadas.
Cálculo
Mas talvez a objecção mais esmagadora é que o cálculo requerido sob todas essas
formas de Utilitarismo é impossível. É impossível se nós considerarmos apenas o bem
individual e, mais ainda, se tentarmos totalizar toda a raça humana. Sem cálculo, os
Ocidentais têm uma forte suspeita de que o assassinato causa uma dor excessiva sobre o
prazer, ainda que em assuntos menos violentos e mais comuns, o que há para confiar,
senão pura adivinhação? Devo comprar acções na Bolsa de Valores de Nova York? Há
sim algo mais do que adivinhação pelo qual podemos razoavelmente concluir que
uma acção será financeiramente mais lucrativa que outra. Mas será que o
dinheiro ganho me dá mais prazer do que outro curso de acção? Talvez eu deva comprar
um carro novo em vez disso. Ou devo investir meu dinheiro em Las Vegas e
Reno? Como cada coisa dessas afectará meus netos? Isso é melhor para mim, um
jovem, se tornar um médico, um veterinário ou um engenheiro? Deveria eu cursar
Inglês, História ou Geologia? Essas são perguntas perfeitamente sérias que muitas
144
pessoas tiveram que se fazer. Mas como alguém poderia estimar os valores, as durações
e as intensidades dos prazeres a serem causados por cada uma dessas decisões,
não apenas os prazeres que ele mesmo experimentará, mas os prazeres de todos
outros que serão afectados por sua acção? Não é o cálculo Utilitarista impossível?
O Bem
145
Humanistas, ou mesmo aqueles que tentam basear uma religião na experiência, podem
chegar às suas conclusões a respeito do bem?
Valores na Experiência
O método usual na literatura recente é afirmar que os valores podem ser encontrados na
experiência. O falecido Edgar Sheffield Brightman é um bom exemplo daqueles que
tentam basear uma religião nos valores encontrados na experiência. Ele defini valor
como “o que é realmente apreciado, admirado, estimado, desejado, aprovado, ou
desfrutado por qualquer pessoa a qualquer momento….Bom”, ele diz, “é sinônimo
de valor.” Burtt , por outro lado, falando para os humanistas, encontra na experiência os
valores da amizade, da arte e da ciência. Dewey também acha que a arte é valiosa,
embora muitas vezes ele use mais, arranjos comuns de aquecimento, iluminação e
comunicação rápida como exemplos de valores. Mas quaisquer que sejam os itens
específicos, o facto de que eles são valores, é suposto ser uma descoberta da
experiência.
Acontece que a maioria dos humanistas e, claro, os religiosos tais como Brightman,
querem produzir uma teoria que condene o assassinato e a brutalidade. Devemos
examinar com cuidado, o modo como eles procedem. Mas, muito mais importante
do que condenar a brutalidade é a necessidade de evitar o caos da subjectividade
146
implícita na definição de valor como qualquer coisa que alguém gosta ou desfruta. Por
mais estranho que pareça, haveria menos objecção lógica à uma teoria que
definitivamente recomenda o assassinato, do que à uma teoria que torna todos os
desejos igualmente legítimos. Se a ditadura e a dominação são o objectivo da vida,
então pelo menos há uma norma de conduta que se aplica a toda a humanidade. Pode
não ser a norma que você ou eu agora aceitamos, mas é uma norma definitiva. E essa
faz com que ela seja uma teoria da ética. Mas se tudo o que podemos dizer é que o
assassinato é correcto para Stalin, e a oração é correcta para Brightman, e beber álcool é
correcto para o alcoólatra, então, não temos ética nenhuma porque não temos teoria
alguma. Nesse caso, não há norma universal.
É essencial, portanto, que aqueles que começam com valores como prazeres
encontrados na experiência de alguém, mostrem de alguma forma que certos valores são
valores para todos os homens. Ambos, Brightman do seu jeito e Dewey do seu, tentam
evitar o caos do subjectivismo. Uma nota de rodapé anterior fez uma referência à teoria
do valor de Brightman e os argumentos não serão reproduzidos aqui. Mas visto que
Dewey influenciou tão amplamente o cenário Americano, parece sábio resumir as
críticas contidas no livro mencionadas na mesma nota de rodapé.
DEWEY E O INSTRUMENTALISMO
147
acção evidentes. Princípios éticos são absolutamente básicos no Pragmatismo
humanista.
Uma segunda leitura dessa citação mostra sua aplicação universal. Não alguns apenas,
mas todos os propósitos divididos devem ser integrados; não alguns assuntos apenas,
mas todo campo é coberto. Acção inteligente é único recurso final do homem; não há
nenhuma outra. Não há Deus a partir do qual o homem possa obter conforto,
encorajamento e força - muito menos sabedoria, instrução e intervenção. O homem só
tem a si mesmo.
72
John Dewey, The Quest for Certainty, 252.
148
O principal tópico da presente discussão é a identificação de ideais, normas ou
valores. Algo ao longo do caminho terá que ser dito sobre os meios para a consecução
desses valores, mas o interesse principal deve no fim ser alcançado. Na linguagem do
Catecismo Menor, nós somos questionados: Qual é o fim principal do homem? No
entanto, não vamos julgar o assunto. Dewey hesitaria com a ideia de um único fim
principal. Ele prefere falar no plural. Vamos então fazer o mesmo. Nosso objectivo é
identificar normas, ideais ou valores.
Mudando a Moralidade
Antes de tudo, deve-se notar que quaisquer ideais ou padrões que Dewey pode propor,
não devem ser considerados como normas fixas e finais para todos os seres humanos.
Nós instituímos padrões de justiça, verdade, qualidade estética, etc. exactamente como
montamos uma barra de platina como um medidor padrão de comprimentos. A norma
está sujeita a modificações e revisão no primeiro caso como no outro, com base nas
consequências da sua aplicação operacional: … a superioridade de uma concepção de
justiça para outra é da mesma ordem que a superioridade do sistema métrico… embora
não seja da mesma qualidade.73
Os padrões morais, diz ele, são como a linguagem em que ambos são o resultado do
costume. Teorias da ética absoluta argumentam que os padrões ideais antecedem os
costumes e julgam o que está certo ou errado; quaisquer supostos ideais que
são meramente o resultado do costume não poderiam ser os seus juízes. O facto de que
esse absolutismo é na melhor das hipóteses desnecessário, é visto no caso da
linguagem. Lá não havia princípios antecedentes da gramática. A linguagem evoluiu por
meio de balbucios pouco inteligentes e gestos instintivos. Então vieram as regras da
gramática e o aparato da alfabetização. Isso, no entanto, não é o fim para a linguagem e
sua gramática mudarem a fim de atenderem a novas situações e novas
necessidades. Palavras mudam suas formas e significados; novas expressões são
73
John Dewey, Logic, The Theory of Inquiry, 216.
149
inventadas; e as velhas regras se tornam arcaicas. No entanto, as regras de linguagem,
embora sejam meramente resultados imprevistos e não intencionais de costume,
exercem sua autoridade sobre nós. Gramática e moral são ambas partes da vida.
Ninguém pode escapar delas, mesmo que queira. A escolha do homem é simplesmente
entre a adopção de mais ou menos costumes significativos.
Dewey tem uma resposta interessante e talvez perturbadora para essa pergunta. Em
primeiro lugar, ele afirma que os proponentes dos padrões, tal como os missionários
150
Cristãos, estão auto-enganados. Eles não têm de facto nenhuma norma absoluta. Suas
idéias morais são apenas os resultados dos costumes do seu próprio grupo. Costume,
portanto, ainda é a fonte de toda a moralidade. Agora, em segundo lugar, a oposição de
um costume a um costume mais amplo, é uma forma de guerra de classe, na verdade “a
forma mais séria de guerra de classe.” A guerra de classe não é muito escrupulosa. Cada
lado trata seu oponente como um violador intencional de princípios morais
absolutos. Assim, temos o presente conflito entre a burguesia e o proletariado. Daí a
noção de padrões morais fixos resulta numa guerra que só pode ser finalizada pela
força.
Assim, por meio dessa dupla resposta, Dewey explica consistentemente como, mesmo
que a moral não seja mais do que um costume, os conflitos morais entre as sociedades,
podem de facto acorrer. Mas ao fazê-lo, ele não implica que o canibalismo é tão bom
em seu lugar quanto a moralidade Cristã em seu lugar? O tom de suas observações não
sugerem que o estupro na África continue sendo louvável e que os missionários Cristãos
são imperialistas desprezíveis? A diferença nos padrões morais, portanto, não é a
diferença entre polegadas e centímetros, que sempre dão o mesmo resultado; é uma
diferença tal que nenhum ideal ou norma se aplica em todos os lugares, a todos, e o
tempo todo.
Valores na Experiência
John Dewey acreditava que tinha visto claramente o problema e que tinha descoberto a
chave para sua solução. O problema mais profundo da vida moderna, então assegurou
ele, é a integração das crenças do homem sobre o mundo físico com suas crenças sobre
valores humanos. Na Idade Média, ciência e religião estavam em harmonia porque
ambas foram desenvolvidas contra um único fundo filosófico. Todos os problemas
foram resolvidos em princípios Tomistas. Hoje, porém, a ciência medieval desapareceu,
mas as crenças comuns sobre valores ainda retêm algum sabor medieval. Visto que,
151
agora, a conduta moderna é motivada principalmente pela ciência moderna, o resultado
é que a conduta do homem moderno entra em conflito com suas crenças sobre
valores. Por causa de duas reacções a este conflito, duas desvantagens surgem. Alguns
homens com um forte apego emocional à teoria antiquada do desprezo de valor,
retardam a ciência, pelo menos dissipando suas energias em esforços infrutíferos. O
outro tipo aceita a ciência de todo o coração, mas porque os valores que eles
foram ensinados não podem ser cientificamente estabelecidos, eles repudiam todos os
valores. Portanto, o problema importante para uma filosofia que não deseja estar isolada
da vida moderna, é harmonizar a teoria moderna e prática.
A solução deste problema deve ser encontrada em uma exploração do método científico
mais completa. Visto que a ciência destacou o problema depois do problema da síntese
medieval, seu sucesso acumulado até agora, no século XX, há razões para supor que
todos os problemas da humanidade são passíveis do mesmo método. Crenças sobre
valores, sobre ética e sociologia, estão hoje no mesmo estado que as crenças sobre
a física na era pré-científica. O que é necessário é a aplicação de
técnicas científicas . Apenas duas atitudes bloqueiam a aceitação desse ponto de vista.
Em alguns, há uma desconfiança básica da capacidade da experiência de
desenvolver padrões, ideais ou normas para a vida. Esta primeira atitude depende de
valores eternos e apelos a um Ser Supremo. Nenhuma expectativa pode ser esperada
de uma visão tão teísta. Interesses seculares agora dominam as mentes dos homens;
o senso de valores transcendentais enfraqueceu; a autoridade da igreja diminuiu; os
homens podem professar a antiga religião, mas eles agem secularmente. Essa
divergência entre o que os homens fazem e o que eles dizem, é evidência externa do
conflito no pensamento moderno. Para resolver o problema e remover o conflito, os
pensamentos dos homens devem ser produzidos de acordo com o que eles fazem. Para
inventar um exemplo, Dewey não usa: os homens que jogam golfe no domingo e
acreditam na existência de Deus; enquanto continuam a jogar golfe, eles deveriam ser
ensinados a repudiar a crença em Deus, em vez de mudar sua conduta e ir à igreja.
152
que esses prazeres são casuais e não regulamentados pela inteligência. Escapar do
absolutismo transcendental não é ter prazeres casuais, mas na definição de valor por
prazeres que são as consequências da acção inteligente. “Sem a intervenção do
pensamento, prazeres não são valores, mas bens problemáticos, tornando-se valores
quando reemitem de forma diferente do comportamento inteligente.”74
Antes de continuar o resumo, deve-se parar para notar um factor de confusão nas linhas
acima. É verdade que as coisas são muitas vezes apreciadas, ou pelo menos escolhidas,
porque são causas de outra coisa. Tais bens são por alguns autores chamados
instrumentais, em oposição a bens intrínsecos; e eles variam de pegar um táxi até o
aeroporto e visitar o dentista. Mas o argumento de Dewey realmente requer que este
seja o caso, não apenas “frequentemente”, mas sempre. Vamos parar e perguntar se
todos os bens são instrumentais, ou se alguns são intrínsecos. É verdade que a razão
para desfrutar algo não tem nada a ver com suas qualidades intrínsecas? Esta questão
deve ser mantida em mente conforme o resumo prossegue.
Um bem genuíno, portanto, continua Dewey, difere de um bem espúrio por causa da
reflexão sobre as consequências. Todas as críticas dizem respeito as consequências
porque nenhuma propriedade carrega credenciais adequadas em sua face.
74
John Dewey, The Quest for Certainty, 259.
153
Inventando um exemplo, suponha que um homem se candidate a um emprego, faz o seu
trabalho e é pago; nesse caso, o dinheiro não é um bem espúrio, mas um
valor real porque foi ganho por uma acção inteligente. Se o homem achasse a mesma
quantidade de dinheiro na calçada, não seria um verdadeiro valor. Então Dewey
afirma. Para a maioria das pessoas, no entanto, o dinheiro achado é apenas tão valioso
quanto o dinheiro ganho. De facto, embora o poder de compra de um dólar ganho e de
um dólar achado sejam os mesmos, o trabalho para ganhar pode ser tão longo e fatigante
que a soma dos valores de uma vida é diminuída por previsão inteligente e aumentada
por um achado de sorte. O tempo do trabalhador e a força pode muito bem ser tão
exausto que o que o dólar compra poderia ser mal apreciado. Assim, pode-se dizer - em
contraste nítido com Dewey - que o prazer casual e imprevisto é o maior valor.
Claro, se Dewey quisesse dizer apenas que não é sábio depender de alguém vivendo de
achar dinheiro na rua, seu argumento seria bom o suficiente, mas seria trivial. Um teísta
das visões sobrenaturais mais pronunciadas, bem como o Epicurista que tenta evitar
problemas cochilando ao sol, concordam que uma certa quantidade de planeamento e
trabalho são necessários para a maioria das nossas satisfações ordinárias. Essa
trivialidade não pode ser a base do antagonismo de Dewey aos teístas e
Epicuristas. Suas expressões e a ênfase parecem dizer que os prazeres inesperados
simplesmente não têm valor. Eles são espúrios.
Essa visão, que parece tão estranha ao senso comum, depende da tese de que o valor de
um objecto depende de ser um resultado e um significado para outra coisa, e em
particular não depende da sua intrínseca qualidade agradável. Nada é valioso por si
só. Já foi dito o suficiente sobre os antecedentes do gozo; o segundo ponto diz respeito a
consequência do valor apreciado.
Neste ponto também, a crítica continua a pressionar a questão do valor intrínseco, será o
mesmo. Pode ser concedido que atribuamos valor a dinheiro por causa das possíveis
consequências, ou seja, as coisas que podemos comprar com ele; Nesse sentido, uma
nota ou um cheque, sendo apenas um pedaço de papel, não carrega credenciais de valor
em sua face. Mas isso é dizer que nada acontece? Não há nada de valor em si só? Todos
os valores são meramente instrumentais? Não há conclusão alguma que seja?
154
consolidar amizades, e sem dúvida outras consequências poderiam ser
engenhosamente listadas. Mas a razão comum para jogar xadrez não é de forma alguma
que o jogo seja um meio ou resultado de outra coisa. Pelo contrário, tudo tem a ver com
a sua qualidade de valor intrínseco. Se as credenciais em seu rosto não fossem
adequados, o xadrez não seria escolhido.
Homens e mulheres jovens em grande número optam por ir para a faculdade. Na teoria
de Dewey, muito bem aceita pelos estudantes, a razão não pode ser qualquer valor
intrínseco em conhecimento. Para conceder tal razão seria necessário fugir da realidade
e refugiar-se na desacreditada torre de marfim aristotélica. Para o jovem, a faculdade é
um meio de conseguir um emprego melhor; para as jovens mulheres, é um meio de
conseguir um homem melhor. Mas nem a família que traz o casamento, nem a comida
que o trabalho supri devem ser escolhidos por qualquer qualidade intrínseca. Estes
também são meramente meios para outra coisa. A faculdade é o meio para um
trabalho; um emprego é o meio para o casamento; o casamento é o meio para uma
família; uma família, juntamente com o trabalho, é o meio de enviar um filho para a
faculdade. Mas o xadrez é o meio de restringir os contactos sociais à um pequeno
número; restringir os contactos sociais é o meio de evitar o casamento; uma única bem-
aventurança economiza o dinheiro que se gastaria com a mensalidade de um filho;
e esse dinheiro é o meio para comprar um conjunto mais bonito de peças de xadrez. Mas
por que seguir uma série causal em vez da outra? Todas as actividades são meios sem
155
valor para outros meios sem valor. Os meios não têm fim, e a escolha tornou-se
irracional. Ou, pelo menos, as escolhas são baseadas em nada mais que preferências
pessoais.
Aqui parece que outro humanista vê mais claramente que John Dewey. Gardner
Williams escreve: “Não importa, para um ponto de vista indivídual, como ele está
satisfeito, desde que, a longo prazo, ele esteja satisfeito.”75
Neste contexto, a forma como parece incluir, não só a identificação do objecto que dá
satisfação, mas também os meios pelos quais o objecto foi obtido. Neste caso, o objecto
seria igualmente valioso ou satisfatório, se fosse obtido por previsão inteligente e
atenção para os meios de produção, ou se fosse obtido por pura sorte.
75
Gardner Williams, Humanistic Ethics, 55.
76
John Dewey, Reconstruction in Philosophy, 124, 126, 157.
156
valor social? Por que argumento lógico Dewey pode recomendar faculdade em vez de
xadrez? Ele tem algum motivo para se sentir repugnado pelo bem privado? Ele não pode
afirmar correctamente que os críticos atribuíram erroneamente noções loucas para
homens sãos. O professor Williams é um homem sensato; assim foram os Sofistas e os
Epicuristas. E muitos outros homens se recusarão a renunciar fins particulares, conforto
privado e bens intrínsecos simplesmente porque Dewey acha-os repulsivos.
77
[Nota do tradutor] Expressão francesa que significa literalmente “deixar fazer”, é também considerada
um símbolo de economia liberal defendida pelo capitalismo.
157
ética com a ciência. A ciência virou as costas para a humidade da água
imediatamente percebida, a fim de formar uma concepção, H2O, que poderia produzir
experiências mais seguras e significativas da humidade. As coisas apreciadas devem ser
tratadas de forma semelhante; elas são possibilidades de valores a serem
alcançadas. Dizer que algo é apreciado, é equivalente a dizer que a água está
húmida. Isso pode ser um facto, mas não é um valor. Um valor é algo satisfatório; e o
satisfatório é aquilo que fará , ou seja, uma previsão sobre o futuro, não uma declaração
sobre o presente. Uma declaração sobre o presente - como, por exemplo, esta
experiência é satisfatória - só levanta um problema. Admitindo que gostamos disso,
como o prazer será avaliado? É um valor ou não? É algo para ser apreciado? Dizer que é
um valor significa que continuará a satisfazer. Uma declaração de um facto presente não
faz nenhuma reivindicação sobre a acção, mas um julgamento sobre o que é desejável
olha para o futuro e possui a qualidade de jure78 e não meramente a qualidade de facto.
Dewey observa que, embora os valores devam ser conectados inerentemente com
gostos, preferências ou desejos, eles não devem ser conectados com nenhuma
preferência aleatória, mas apenas com aquelas racionalmente aprovadas após o
exame. O conflito entre desejos e planos imprudentes e esporádicos, escolhidos de
maneira reflexiva para fins de longo prazo, é comum. Em relação ao primeiro, as
pessoas costumam dizer, eu gostaria de fazer ou ter isso; mas em relação ao segundo,
elas afirmam, com pesar ou determinação, que devo fazer isso. Dewey deve levar em
conta o “dever” da moralidade tradicional, e a distinção entre de jure e de facto que é o
ponto. A questão é se o Instrumentalismo pode justificar tal distinção. Que tipo de
exame revelará que um gosto deve ser aprovado e outro rejeitado? E na medida em que
Dewey critica a teoria racionalista sobre a pontuação que não oferece nenhuma
orientação, espera-se naturalmente que Dewey forneça a orientação.
78
[Nota do tradutor] Expressão latina que significa “pela lei, ou “pelo direito”.
158
O tipo de exame que Dewey tem em mente é claro o suficiente - pelo menos é fácil citar
as frases pelas quais Dewey acredita ter encontrado os requisitos. Na verdade, ele
coloca uma delas em itálico79: “Julgamentos sobre valores são juízos sobre as condições
e os resultados de objectos experimentados; julgamentos sobre o que deve regular a
formação de nossos desejos, afeições e prazeres.” Quando os deveres ou valores entram
em conflito, o dogmatismo tenta construir uma escala de valores. Mas isso, diz Dewey,
é uma confissão da incapacidade de julgar o concreto. A alternativa para um
esquema hierárquico é o julgamento por meio das relações nas quais os valores
ocorrem. Deve-se examinar suas causas, condições e consequências, suas interacções e
conexões; quanto mais averiguamos esses detalhes, mais sabemos os objectos em
questão, e podemos julgar melhor o valor. Ele afirma: “Prazeres que resultam da
conduta dirigida pela compreensão nas relações, têm um significado e uma validade
devido à maneira em que eles são experimentados. Tais prazeres não devem estar
arrependidos; eles não geram sabor de amargura.”
Se este exemplo pretende mostrar como o método científico pode produzir ideais, não é
convincente. O método científico, sem dúvida, assegura a velocidade de transporte, mas
gozo e satisfação não seguem como uma questão de curso. A velocidade de transporte e
comunicação ajudam a tornar a guerra mais horrível. O conhecimento das relações e a
capacidade de produzir podem ser direccionados para fins dolorosos tão facilmente
quanto para fins agradáveis. Em ambos os casos os meios são valiosos para a produção
dos fins; e em ambos os casos os agente podem ter um conhecimento exaustivo das
causas, condições, consequências , interacções e conexões; mas onde é mostrado que o
procedimento científico pode distinguir entre e um bom final e mau final? Em
outras palavras, não deve haver um valor, um bem, um fim, cuja bondade
79
[Nota do tradutor] Na obra original não há nenhum itálico.
159
intrínseca pode motivar uma escolha antes do nosso conhecimento de meios, condições,
e das circunstâncias que nos levarão a segurá-lo? A ciência pode justificar ideais?
Ideais Maus
É nesta linha de pensamento que a distinção entre a qualidade de facto e de jure torna-
se claramente necessária. Dewey concorda que existem ideais maus. Sem prazer
estético, a humanidade pode se tornar uma raça de monstros econômicos capazes de
usar o lazer apenas em exibições ostensivas e dissipação extravagante. Aparentemente,
nenhuma quantidade de conhecimento de interacções e as relações farão dos monstros
econômicos um valor. Mas porque não? O assentamento da paz da Primeira Guerra
Mundial foi feito com a atenção mais realista dos detalhes concretos da vantagem
econômica, e Dewey nunca cansa de insistir em detalhes concretos; os objectivos
também foram amplamente sociais e não se limitaram ao conforto privado; mas em
Versalhes, segundo Dewey, foi a atenção a vantagem econômica distribuída em
proporção ao poder físico que criou distúrbios futuros. E presumivelmente isso foi
mau. O mal de tal situação não surge da ausência de ideais (muito menos, deve ser dito
também, a partir de uma ignorância de detalhes), mas os maiores males surgem sim dos
ideais errados. Como então os detalhes realistas podem identificar com mais atenção
os ideais valiosos? Dewey repreende a visão curta e insiste que não se deve sacrificar o
futuro pelo prazer imediato. Mas a clarividência resolverá o problema se não conseguir
enxergar o suficiente para passar além de meios valiosos para um fim intrinsecamente
valioso?
Por um lado, Dewey repudia os objectivos privados, e a vantagem unilateral: “um fim
pessoal é repulsivo”. Uma teoria Instrumentalista da verdade, reclama ele, muitas vezes
tem sido pensada em termos de satisfação de algumas
necessidades puramente pessoais. Isto é um erro. A satisfação que o Instrumentalismo
160
fornece, explica Dewey, “uma satisfação das necessidades e condições do problema a
partir da qual a ideia, a finalidade e o método de acção surge. Inclui condições públicas
e objectivas.”
Superficialmente, pelo menos, isso pode ser admitido. Se eu estou desenvolvendo novas
vacinas ou investindo no mercado de acções, há muita objectividade teimosa a ser
levada em conta. E nesse sentido o problema tem “necessidades e condições” que
devem ser satisfeitas. Mas o que deve ser dito da escolha prévia entre o
desenvolvimento de vacinas e o investimento no estoque do mercado? O primeiro
presumivelmente, não é privado ou pessoalmente motivado (embora, claro, possa ser), e
este último é um exemplo tão bom quanto qualquer outro de satisfação puramente
pessoal. Mas qual procedimento da ciência - seja ciência biológica ou ciência
econômica, para não mencionar a física e química - demonstra empiricamente que um
fim puramente privado é repulsivo? Certamente, há aqui uma lacuna
não vinculada entre as premissas de Dewey e sua conclusão; e parece que a lacuna é
intransponível. O egoísmo não é tão facilmente refutado.
Se uma ampla rejeição dos objectivos pessoais é muito vaga, Dewey tem também mais
ideais específicos. Ele menciona saúde, riqueza, amizade, indústria, temperança,
cortesia, aprendizagem e iniciativa, bem como iluminação, aquecimento,
e transporte.80 Essas especificações são de facto suficientemente definidas; e visto que
elas são típicas, percorrem um longo caminho para resgatar a ética do pântano de
valores eternos, se não da rigidez de verdades fixas.
80
John Dewey, Reconstruction in Philosophy, 166-169.
81
William Heard Kilpatrick, Philosophy of Education, 97-98, 151-161.
161
Outros ideais específicos podem ser inferidos a partir de sua depreciação de antigos
sistemas militares de Esparta e seu elogio à Péricles de Atenas.82 Ele opõem-se também,
explicitamente à discriminação racial;83 ele defende que o laissez-faire é um mal,84
assim como é também o Americanismo antiquado que acreditava no dever do governo
de proteger a propriedade privada e manter os direitos inalienáveis.85
Mais enfaticamente, ele se opõe a liberdade religiosa. Além de impedir que os grupos
religiosos mantenham escolas e faculdades,86 ele acredita que é “antidemocrático”
permitir que os pais ensinem as doutrinas da sua religião para seus próprios
filhos. Aparentemente, o governo, como na Rússia, deve invadir o lar e impor a crença
no secularismo humanista.
Duas perguntas, no entanto: foi o método científico que seleccionou esses ideais, e foi o
procedimento do laboratório que provou sua conveniência? Ou esses ideais são os ideais
maus do fanatismo secular?
Assassinato
Dewey, como foi dito antes, admite que alguns objectivos são maus. Em um de seus
livros ele afirma que nenhuma pessoa honesta pode se convencer de que o assassinato
teria consequências benéficas, e ele também acrescenta que uma pessoa normal se
ressentirá imediatamente de um acto de crueldade arbitrária. Há, no entanto, um
grande número de pessoas, presumivelmente anormais, que gostam de touradas87. Mas
Dewey aposta em pessoas normais, que são justas.
82
William Heard Kilpatrick, Philosophy of Education, 286-289.
83
William Heard Kilpatrick, Philosophy of Education, 340.
84
William Heard Kilpatrick, Philosophy of Education, 405.
85
William Heard Kilpatrick, Philosophy of Education, 403, 54-55.
86
William Heard Kilpatrick, Philosophy of Education, 254.
87
[Nota do tradutor] a expressão significa: Corrida de touros.
88
[Nota do tradutor] Society For the Prevention of Cruelty to Animals – Sociedade que previne os
animais da crueldade.
162
primeiro simplesmente não tem um senso normal de diversão. Em que base, então, esse
desacordo será resolvido? Não se deve primeiro definir o certo e o bom, e somente com
base nisso decidir quem é normal e justo? Ou podemos simplesmente dizer que essas
designações honoríficas devem ser aplicada às preferências da maioria? A
plausibilidade de que uma pessoa normal se ressinta da crueldade arbitrária e condene o
assassinato reside no facto de que a afirmação é verdadeira nos Estados Unidos, no
presente momento, por causa de nossa herança Cristã. Mas ela não é verdade em países
comunistas. Lá o assassinato e o massacre são definitivamente aceitos como tendo
consequências muito benéficas. Agora, se Dewey e Kilpatrick conseguirem destruir o
Cristianismo proibindo os pais de darem aos filhos instrução religiosa,
alguém poderia ter certeza de que o massacre, mesmo assim, seria errado?
Uma dificuldade aqui é que Dewey assume um acordo moral universal, seja em
assassinato ou em touradas, onde nada ou pouco existe; e espera-se que o leitor aceite a
suposição sem questionar. A declaração de Dewey sobre o assassinato e crueldade
devassa não é apenas factualmente falsa, mas também levanta a questão, porque ele não
produziu em nenhum lugar evidência científica de que o assassinato nunca tem
resultados benéficos. Nem os seus próprios princípios consistem em uma norma moral
tão fixa como seriam, se pudessem ser provados. O exemplo de Dewey sobre as
tentativas de todas hipóteses práticas exige que ele admita que a crueldade devassa um
dia pode ser o meio mais eficiente para um objectivo social.
163
exemplo de descobrimento de um valor. Ele parece admitir isso.89 Mas é irracional pedir
apenas um exemplo?
No século XX, a forma pela qual a morte se torna uma opção viva porque muitos se
materializam sob a opressão totalitária. Milhares arriscaram a morte, fugindo através da
cortina de ferro de arame farpado e metralhadoras. Outros milhares encontraram a morte
na tentativa Húngara de liberdade. Todos estes, sem dúvida, teriam preferido viver, mas
arriscando a morte eles se mostraram como quem acha que a vida não valia a pena viver
sob o Comunismo. Há também um número menor que cometeu suicídio. Então, há
também outros que cometeram suicídio sem terem sido levados a tal pela
opressão. Vários dos Estóicos decidiram que era melhor morrer do que viver. Nos
Estados Unidos também, a taxa de suicídio aumentou acentuadamente nos últimos
cinquenta anos. O valor da vida, portanto, não é um problema artificial, o
Instrumentalismo é obrigado a defender o seu optimismo ou pelo menos a sua
atitude meliorista90. O Cristianismo com sua base revelacional afirma que o suicídio é
imoral; mas o que pode ser dito por uma filosofia empírica, descritiva?
Esta questão do suicídio não deve ser entendida como apenas um detalhe entre
muitos. Não é como se tivéssemos analisado os méritos do roubo, da mentira, do
adultério, do assassinato e - ah, sim, há mais um - do suicídio. Pelo contrário, a menção
do suicídio destina-se a trazer à tona o pré-requisito absolutamente indispensável de
89
Veja The Philosophy of John Dewey, editado por Paul Arthur Schilpp, 592.
90
[Nota do tradutor] Expressão proveniente do termo “meliorismo”, que é uma doutrina filosófica
segundo a qual, o mundo e a vida podem ser tornados melhores se o esforço humano for orientado nesse
sentido.
164
todas as outras decisões éticas. Roubo versus honestidade e crueldade versus bondade
são escolhas possíveis somente se decidirmos previamente continuar a viver. Em que
base, portanto, pode se mostrar que a vida vale o tempo e o trabalho?
No mundo ocidental, essa visão foi adoptada por Arthur Schopenhauer. É verdade que
nem os Budistas nem Schopenhauer acreditavam que o suicídio é a
solução adequada. No entanto, deve-se ter claramente em mente que o tipo de vida que
segue de um princípio pessimista deve ser muito diferente daquele baseado
num meliorismo confiante.
Crítica Final
Para retornar à principal tese de Dewey, de que a ciência pode resolver o problema da
moralidade, a crítica que tem controlado o argumento o tempo todo, é dupla. Primeiro, o
método científico não justifica os ideais de Dewey e Kilpatrick; e, segundo, o método
científico não pode justificar qualquer ideal.
Embora o primeiro ponto seja de menor importância lógica, não é sem valor ad
hominem, e além disso, talvez encontre mais aceitação. Os cientistas, assim como o
165
cidadão comum podem ver claramente que não há nada nos métodos de laboratório que
exija como ideal a supressão governamental da religião.
Mesmo se pudesse ser mostrado - visto que de facto não pode - que os métodos
laboratoriais implicam validamente o totalitarismo secularista, o segundo não seria
assim ideal. Nesse caso, muitas pessoas escolheriam mais liberdade e menos ciência. Os
desconfortos físicos de uma sociedade pré-científica são menores em comparação com a
tortura espiritual de uma burocracia inquisitorial.
De facto, quanto mais a ciência é enfatizada como instrumental, mais evidente fica que
não pode estabelecer fins ou ideais.
Esta é a segunda parte da crítica final. O método científico não pode produzir ideais. A
ciência é instrumental. Se um grupo de educadores deseja extinguir a liberdade
religiosa, uma atenção científica aos detalhes, e relações de psicologia, sociologia e
política irão ajudá-los para esse fim. A mesma técnica científica pode ser usada para o
propósito oposto. As técnicas da medicina podem curar doenças que foram geralmente
fatais nos séculos atrás; mas esse mesmo conhecimento técnico pode ser facilmente
166
usado para produzir essas doenças. De facto, a pesquisa sobre o câncer actualmente está
interessada em produzir câncer. Mas nenhuma técnica instrumental, seja médica ou
política, pode fornecer qualquer base para decidir como usá-la.
Visto então que essa crítica engloba teorias seculares anteriores como o Utilitarismo,
parece seguir-se que uma consideração mais compreensiva da revelação divina deve ser
dada em relação ao costume nas universidades da nossa terra. Para uma discussão da
ética Cristã, portanto, agora nos voltamos.
ÉTICA CRISTÃ
No final do primeiro capítulo, foi dito que soluções ou conclusões podem basear-se
apenas em premissas definidas. Observações dispersas, insights místicos e
generalizações mal definidas não fazem apelo lógico. O volume actual, portanto, é
baseado na verdade da Bíblia; e por causa de interpretações erradas e formulações
inconsistentes, o sentido da Bíblia é determinado pela Confissão de
Westminster. Nenhum pedido de desculpas é oferecido para este procedimento; parece
apenas honesto afirmar as premissas do argumento.
O Legislador Divino
É claro que será universalmente admitido que a Bíblia apresenta Deus como
o governador moral e juiz do mundo. A Bíblia contém mandamentos, preceitos,
leis; advertências, garantias, exortações; ameaças de punição e a promessas do
céu. Entretanto, para o presente propósito, outra das prerrogativas de Deus precisa ser
enfatizada. Deus não é só o governador e juiz; antes disso, ele é o legislador. É sua
vontade que estabelece a distinção entre bem e mal, certo e errado; é a vontade dele que
define as normas de conduta justa. Para aqueles que não estão familiarizados com a
história do assunto, este pensamento deve ser um pouco desenvolvido.
167
não é necessária aqui. O que é de importância permanente é a próxima pergunta de
Sócrates: um acto é sagrado e piedoso porque é querido pelos deuses, ou um acto é
querido pelos deuses porque é sagrado?
O que então diremos sobre a piedade, Eutífron? Você admite que ela é uma coisa
amada por todos os deuses, não é?
Sim.
Por isso, é amada porque é piedade; mas não é piedade porque é amada. Assim parece.
Mas o que é querido pelos deuses e amado por eles é assim porque eles amam isso.
Então segue-se que aquilo que é querido pelos deuses, meu Eutífron, não é a definição
de piedade.
168
A conclusão é naturalmente consistente com a visão de mundo de Platão. No Timeu, o
Demiurgo - a divindade pessoal que modela este mundo físico fora do espaço caótico -
recebe seu plano de operação de um mundo de idéias que existe independentemente. O
criador do mundo visível não é o criador dessas idéias. Naturalmente, Platão
argumentou extensivamente para estabelecer a teoria das Idéias, mas sua relação com a
divindade pessoal parece ter sido decidida desde o tempo dos primeiros diálogos.
Ética e Teologia
Antes que esta visão Cristã seja elucidada, um exemplo da posição Platónica na forma
moderna deve ser dada para aumentar o contraste. Emanuel Kant, embora não aceitasse
a teoria das idéias, deixou muito claro que a teologia não pode servir de base para a
ética. Com o seu imperativo categórico, ele esperava distinguir entre um acto moral e
um acto imoral uma análise puramente lógica da máxima do acto. Qualquer pessoa, ele
pergunta, faz uma promessa com a intenção secreta de quebrá-la? É permitido fazer uma
promessa exclusivamente com o propósito de evitar um presente desagradável?
Pelo contrário, enquanto a teologia não contribui para a ética, a ética é um pressuposto
da teologia. Quão seriamente deve se levar as afirmações teológicas de Kant, e se ele
acreditava em um Deus pessoal ou não, pode ser discutível; mas se há uma teologia,
essa teologia teria que usar a ética como sua base. Um conhecimento de Deus deve ser
derivado, se em absoluto, de um conhecimento da moralidade.
169
Kant, claro, não era Cristão. Mas por causa de certas circunstâncias históricas tem sido
possível para os escritores Cristãos adoptarem uma forma do Kantianismo ou o
Platonismo em sua defesa do Cristianismo.
Mas se a premissa for negada, o que acontece com a apologética? Pode ter havido
épocas e lugares em que ninguém pensaria em negar a excelência dos padrões
Cristãos. No entanto, uma vez que, esse não tem sido o caso na China, por exemplo, o
argumento dificilmente poderia ter parecido convincente para os Chineses. Hoje a China
está muito mais perto de nós. De facto, não adianta insistir nas antigas nações pagãs. Os
filósofos de língua Inglesa contestam diariamente a excelência da moralidade
Cristã. Não é necessário referir-se a Nietzsche - ele escreveu em Alemão; os humanistas
discutidos acima são igualmente bons exemplos. Quando este facto é reconhecido, então
o argumento da ética Cristã deve ser reconhecido como invertido. Ninguém pode
discutir a verdade do Cristianismo com base em sua ética; é preciso defender sua ética
com base em sua verdade teológica. A ética não é uma premissa, mas uma conclusão. A
teologia é a base.
170
Um exemplo interessante, instrutivo e importante desse tipo de raciocínio - tirado do
auge do seu vigor - é encontrado em Newman Smyth.91 Depois de citar um teólogo
Puritano que disse: “Piedade, portanto, que é a prática da Verdade divina, é a medida de
todas as verdades intelectuais”; Smyth continua, talvez além da intenção do
Puritano e diz:
O apelo de Newman Smyth aos factos observáveis pela consciência Cristã, deixa sem
resposta a dificuldade de distinguir um Cristão de uma consciência não Cristã. Quando
esta questão é levantada, a teologia deve entrar como o factor decisivo. O procedimento
de Smyth é incapaz de enfrentar essa questão por causa de sua negligência da revelação
Bíblica. Ele deve assumir que de alguma forma, as normas éticas podem ser destiladas
da consciência, deixando de perceber que essas normas nunca foram aceitas onde
previamente a teologia Bíblica não foi pregada. E, finalmente, sua recusa em tornar o
princípio ético dependente da vontade divina coloca-o, a este respeito, pelo menos, ao
lado de Platão e Kant.
Soberania Divina
Se então o Deus pessoal é supremo e todas as leis dependem de sua ordenação, segue-se
que não há lei superior para restringir a sua soberania. A maioria das pessoas acha fácil
conceber Deus como tendo criado ou estabelecido a lei física pelo decreto divino. Ele
poderia ter criado um diferente tipo de mundo, se quisesse. Não parece esticar muito a
imaginação, imaginar um mundo onde os pontos de congelamento são tão organizados
que teríamos que colocar água no radiador para evitar o congelamento do álcool. E por
91
Newman Smyth, Christian Ethics, 1892, re-publicado em 1922.
171
que o álcool não poderia conduzir, assim como a água, a expansão do
resfriamento? Nem incomoda a alguns teólogos supor que vários detalhes do ritual
Mosaico poderiam ter sido diferentes. Em vez de exigir que os sacerdotes carregassem a
arca em seus ombros, Deus poderia ter proibido isto e ordenado que a arca fosse
carregada em uma carroça puxada por bois. Mas, por alguma razão peculiar, as pessoas
encontram dificuldades na aplicação da mesma consideração à ética. Em vez de
reconhecerem Deus como soberano na esfera moral, querem submetê-lo a alguma lei
Platônica independente e superior. Isso é inconsistente.
No entanto, neste momento, algumas pessoas muito conscientes levantam uma objecção
aparentemente séria à visão aqui delineada. Se essa visão fosse verdadeira, elas dizem:
a honestidade pode não ser a melhor política. Se a moralidade depende puramente da
vontade da ordenança de Deus, assim como as leis da física, então, possivelmente,
roubar seria correcto e correcto seria errado. No entanto, o facto de termos nos
acostumado a determinados padrões éticos não é razão para acreditar que Deus
tinha que fazer o mundo desta maneira. Mesmo que nossas opiniões morais estejam
correctas, não é mais uma razão para acreditar então que o nosso conhecimento de física
coloca Deus sob a compulsão das leis físicas. Certamente, neste mundo a honestidade é
melhor. Mas é melhor precisamente porque Deus fez o mundo desta maneira. Tudo o
que Deus faz é certo, porque ele faz isso; e se não tivéssemos conhecimento de Deus,
não poderíamos adivinhar que tipo de padrões morais ele poderia estabelecer para
algum mundo hipotético que agora não existe. O motivo pelo qual nos opomos ao roubo
ou a qualquer outro pecado é que aprendemos que é contrário ao decreto de
Deus. Precisamos aprender primeiro o plano de Deus e desenvolver nossa
moralidade depois. Devemos ajustar nossa ética à nossa teologia, não vice-
versa. Devemos argumentar, não a partir de nossos padrões morais para a verdade da
Bíblia, mas a partir da verdade da Bíblia para a moralidade que ela sustenta.
Uma palavra de cautela é necessária aqui. Esta discussão não tem particular importância
na imutabilidade divina. Argumentou-se que Deus poderia ter criado um mundo físico
diferente, se ele assim quisesse. Nada foi dito, de um modo ou de outro, em relação a se
Deus poderia assim desejar. Possivelmente a imutabilidade do propósito e a eternidade
dos decretos implicam que este é o único mundo possível - uma reviravolta Calvinista
para uma frase Espinosista. Contudo, se isto for assim, e se é sem sentido supor que
Deus poderia pensar diferentemente, permanece o argumento de que a moralidade, tanto
172
quanto a física, é o que é porque Deus pensa desta forma. Como os Puritanos
costumavam dizer, o decreto de Deus é simplesmente a decretação de Deus.
Antes que o mínimo de evidência Bíblica para essa visão seja estabelecida, pode ser
bem notado que a discussão não é um eco morto de um passado Platônico antigo. Nem
foi terminada por Kant e Newman Smyth. Pelo contrário, está viva hoje e continuará
assim no futuro previsível.
Um Exemplo Contemporâneo
Apenas um exemplo será dado. Dr. Edward John Carnell escreve como se segue:
Esta é a posição contra a qual o argumento precedente foi dirigido. Em certo sentido, a
citação não contém nada essencialmente novo. Mas noutra declaração, há algo digno de
nota sobre ela. É a declaração de um evangélico professo do século XX. Agora, no
entanto, poderia ter sido de Cristãos sinceros de idades anteriores, em relação a alguém
escrevendo hoje pode se esperar que tome nota de como este ponto de vista tem sido tão
frequentemente usado para se opor ao Cristianismo. De facto, essa era a intenção
de John Stuart Mill, a quem o Dr. Carnell realmente elogia algumas páginas
anteriormente.
Então, também, foi precisamente por esse método que Mary Baker Eddy procurou
refutar a doutrina da expiação. A propiciação, que o Dr. Carnell defende, parecia
impossível para a senhora Eddy. “Qualquer pessoa que acredita que a ira é justa ou que
a divindade é apaziguada pelo sofrimento humano não entende Deus” (Ciência e Saúde,
capítulo 2). Isso não pode ser razoavelmente parafraseado, quem acredita que a ira é
justa não antecipa significativamente os padrões da rectidão de Deus?
92
Edward John Carnell, Christian Commitment, 142.
173
A possibilidade de que o livro, a igreja ou a casta sacerdotal, que é menos moral em
padrões humanos, seja mais moral em padrões divinos, é uma objecção sem
força. Considere uma mulher Hindu devota do último século, que, com uma consciência
tão vazia de ofensa tal como Paulo quando perseguia a igreja primitiva, estava
sacrificando seu pequeno filho infantil para seu deus pagão. Por todos os seus padrões
humanos ela estava fazendo certo, e pareceu-lhe que a omissão deste dever seria
irreligioso. Finalmente um Cristão missionário vem até ela e tenta convencê-la de que o
livro, o igreja, e a casta sacerdotal que ela considera mais moral, não são assim, mas que
pelos padrões divinos o que ela acha irreligioso é o certo. O quê mais poderia um
missionário fazer? Isto é então uma objecção contra o Cristianismo? Na verdade, é de se
esperar que a moral Cristã seja diferente do que o homem natural antecipa.
Para fazer um claro contraste entre a objecção Platônica e a posição Bíblica, e dar pelo
menos um mínimo de apoio Bíblico directo a soberania na ética, não há melhor exemplo
do que o de Abraão. Abraão tornou-se um assunto favorito de discussão em tempos
recentes. Às vezes ele é usado para provar a superioridade da cultura Suméria sobre a de
Canaã. É suposto que em Ur o sacrifício humano tenha chegado ao extremo, mas em
Canaã de forma ainda mais brutal era praticado. Abraão, então, ergueu a cultura de
Canaã por não sacrificar Isaque. Mas se fosse assim, a vontade inicial de Abraão de
sacrificar Isaac seria inexplicável. Compatível ou não com este motivo sociológico
pagão, outros autores, entre os quais o primeiro é Kierkegaard, vêem um conflito entre a
religião e ética. Um escritor diz:
Obviamente, a ordem de Deus para Abraão de que ele sacrificasse seu único
filho era imoral, e ela embaraçou não só o moderno, mas também perturbou
Abraão. E se nós consideramos o comando simplesmente como teste de Deus a
Abraão e, assim, moralizar a história, não temos enfrentado a questão levantada
pela ordem imoral de Deus e sua aprovação da obediência de Abraão a ela.
É certo que o escritor citado faz algumas declarações numa sequência que modifica em
certa medida a primeira impressão dessas frases. Mas todas essas
interpretações complicam a história de Abraão, por ler nela elementos que não estão
lá. Em particular, um conflito - um falso conflito entre religião e ética - é produzido pelo
pressuposto de que a ordem de Deus para sacrificar Isaque era imoral. Onde o texto faz
essa afirmação? Pode ser verdade que os Sumérios consideravam o sacrifício humano
174
como imoral, mas a questão não é sobre a opinião Suméria. A questão é: A ordem de
Deus foi imoral?
O próprio texto nos diz que Deus disse a Abraão: “Tome agora o teu filho, o teu único
filho, Isaque, a quem amas... e oferece-o ali em holocausto sobre uma das montanhas.”
Agora, se Abraão tivesse concordado com os princípios do professor Carnell, se ele
tivesse tornado a teologia auxiliada pela ética, se ele tivesse julgado esta ordem por uma
“antecipação” dos padrões da rectidão de Deus, ele teria concluído que esta sugestão
estava vindo, não de Deus, mas de Satanás. Se esta não fosse a voz de Satanás, se
alguém pudesse não antecipar a natureza dos mandamentos divinos, então a voz que é
menos moral de acordo com os padrões humanos pode ser o mais moral de acordo com
os padrões divinos; e visto que isso não pode ser verdade, a ordem de sacrificar Isaque
não veio de Deus.
Abraão, é claro, não argumentou nesse sentido. Pelo contrário, ele reconheceu que era a
voz de Deus e, portanto, ele estava preparado para obedecer, sem se importar com a
ordem. Sem dúvida, Deus havia proibido anteriormente o sacrifício humano; e enquanto
essa ordem permanecesse em vigor, o sacrifício humano era pecado. Mas se agora, por
algum período indeterminado de tempo, Deus ordena o sacrifício humano, então ele
torna-se obrigatório e correcto. Não há padrão ético formulado através da observação
empírica, não, nem mesmo uma ordem anterior do própria Deus, basta o repúdio da
próxima ordem vinda de Deus.
Isso, no entanto, não significa que ficamos com o cepticismo moral, como Dr. Carnell
afirma. Ficamos com as ordens definidas de Deus. Temos a sua completa
vontade preceptiva nas Escrituras. Claro, se o cepticismo significa que o homem sem
uma revelação sobrenatural não pode estabelecer normas de moralidade, assim seja. As
análises das seções anteriores não poderiam ter chegado nesta conclusão. Nem
Utilitarismo, nem Kant nem Dewey podem antecipar os padrões da rectidão de
Deus. Mas o fracasso das éticas não-revelacionais não deixa o homem sem
conhecimento do certo e errado. Se o cepticismo significa que o homem não pode ter
conhecimento, então um apelo a revelação, com sua subordinação da ética à teologia,
não é cepticismo. Mas todo o restante é.
175