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Os comensais da Palavra
Emoções e corpo na trajetória espiritual dos crentes da
Assembleia de Deus
*
“Fala, Senhor, pois o teu servo está ouvindo”. É a resposta de
Samuel (futuro profeta de Israel e, na ocasião, ainda um jovem auxiliar do
Templo) ao chamado divino, no relato encontrado na Bíblia, a escritura
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1 I Samuel 3: 1-19
2 A representação dramática dos textos bíblicos na vida cotidiana, utilizando-os como um script,
invocando personagens bíblicos para atingir os mesmos resultados por eles alcançados pela
reprodução de suas palavras e atitudes.
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3 “It is Pentecostalism’s social productivity that makes its promises credible, not the credibility of
those promises that makes Pentecostalism socially productive” (ROBBINS, 2009, p. 58)
4 Human beings are, at bottom, seekers of such emotional energy; they are creatures who go
through life trying to participate in as many successful interaction rituals as they can, drawing on
the energy generated in each such interaction ritual to support the next one. It is the tendency for
people to endeavor to move from one successful interaction ritual to another, increasing their
store of emotional energy as they go, that generates chains of interaction rituals that provide
Collins with his titular image. And it is these chains he argues, that give society its shape
(ROBBINS, 2009, p. 60, grifo nosso).
5 “A sense on the part of participants that hey intersubjectively share a common definition of
what they are doing together” (ROBBINS, 2009, p. 61).
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6 a high degree of emotional entrainment. This refers to people’s developing sense that they are
coordinating their actions together, a sense built up particularly through the rhythmic
synchronization of bodily action so that the interaction flows smoothly. Such bodily
synchronization can happen as fully in conversation or any other kind of interaction as it does in
those social practices, like dancing, that explicitly aim to produce. When does it happen and is
combined with a strong sense of mutual focus, successful interaction ritual occurs (ibid, p. 61,
grifo nosso).
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7 Profeta aqui, então, é um termo nativo que denomina aquele que profetiza, “dá uma palavra da
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9 “these rites can also involve a wide range of personnel. They can be carried out by two people or
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11 Traduzimos por “estender-se” o termo “reaching out”, usado por Coleman (2000, 2006, 2009).
Significa um princípio formador da identidade do crente, que deve estender-se até, ou alcançar, os
outros, contribuindo para a formação de seus selves carismáticos.
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segurei. Não tinha nem trocado de roupa ainda, não tinha botado a roupa
do hospital. Segurei na mão dela, aí vi o nome dela [na placa acima da
cama]. [Então, eu disse:] ‘D. Maria José, Jesus é bom. Me lembrei [das
palavras do irmão] e comecei: ‘Jesus é bom, Jesus é bom, chame por ele,
chame por ele, D. Maria José, que ele está aqui. Vamos chamar por Ele,
porque Ele é bom’. Aí comecei falando do amor de Deus: ‘Ele te ama, te
ama’. E de repente ela olhou pra mim e começou a dizer: ‘Jesus, ela está
dizendo que tu és bom. Tu és bom, tu és bom. E a gente começou a
glorificar o nome do Senhor. Eu comecei a orar com ela, exaltando só o
nome do Senhor. Quando a filha chegou com o médico ela já estava
calma. O médico examinou e foi embora.
Aqui Nadja primeiro recebe do ‘irmão’ o que deve ser dito no
momento oportuno: “Jesus é bom”. Armazenada “em seu espírito”, a
palavra alcança sua eficácia performativa na externalização: o momento
em que “pode se dar vida à Palavra, na medida em que a linguagem é
externalizada do falante e se transforma em sinais físicos da presença do
poder sagrado” (Coleman, 2000, p. 131, tradução nossa)12. É o instante
em que Nadja, como diria Coleman, passando a fé aos outros (passing faith
on others), segura as mãos de dona Maria José e movimenta o “Jesus é
bom”, antes recebido, na direção do mais novo recipiente deste
interminável ciclo de verbalização da Palavra.
Queremos chamar atenção, além disso, para toda a estrutura
sensorial (música, gestos, corpo e emoções) que se impõe para que
ocorram experiências religiosas como a descrita por Nadja. Estas não se
fazem sem as estruturas de vigilância e disciplinamento que permitem e
autorizam o evento da intervenção divina. Mauss já tratou disto em seu
ensaio sobre a prece (MAUSS, 2003), quando a define como um ritual.
Mellor nos lembra que, para Mauss, a prece, ao invés de ser entendida
apenas como atitude espontânea, é uma "forma socialmente estruturada
de ação, intimamente ligada a regulamentações coletivas acerca do corpo,
tais como a postura, o ajoelhar, sentar, e prostrar-se, que moldam as
consciências e experiências de pessoas de maneiras específicas"
(MELLOR, 2007, p. 594, tradução nossa)13. Birgit Meyer (2010), ao tratar
12 The Word can be made to ‘live’ as signs of language are externalised from the speaker and
turned into physical signs of the presence of sacred Power (COLEMAN, 2000, p.131)
13 “socially structured form of action closely allied to collective regulations concerning the body,
such as posture, kneeling, sitting, and prostrating, which shape the consciousnesses and
experiences of individuals in specific ways” (MELLOR, 2007, p. 594)
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14 “Both can be seen as ‘permeable”… “while the immense power of social forces to permeate
bodies is strongly emphasised, it is also acknowledged that this is constrained by bodies' natural
dispositions. It might be said that this tradition offers a vision of bodies that are socially constituted
rather than socially constructed” (MELLOR, 2007, p. 592)
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15 “to relate to one another as Pentecostals is to carry out rituals together (ROBBINS, 2009, p.
59)”
16 “pentecostal belief that everyone, regardless of training or church office, can initiate and
participate in ritual (ROBBINS, 2009, p. 60)”
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entrevistada diz ter sido tomada por uma sensação de dever cumprido:
“Fica admirado a pessoa que recebeu e fica admirado a gente que falou: -
Meu Deus, era isso mesmo que tu queria que eu falasse”. Por sua vez, a
irmã Nadja não poderia ter “ficado na dela”. Esta opção não está
disponível ao crente pentecostal. Seu dever é falar e alcançar os outros
(reaching out) com o carisma. A hesitação de Nadja, o motivo de não ter
discernido imediatamente que deveria entregar uma mensagem de Deus
ao motorista, é imputada por ela mesma ao fato de ainda ser nova
convertida na ocasião.
Vê-se, com isso, que a construção da pessoa pentecostal passa
pela eliminação da dúvida em relação a se “é Deus mesmo quem está
falando” (o que nos remete ao relato bíblico de Samuel, apresentado no
início do artigo), à performance da convicção nas experiências aqui
denominadas de externalização da palavra. A dúvida e a insegurança são
próprias do neófito e podem fazê-lo, como disse Nadja, não “dar conta”
de realizar a vontade de Deus. A convicção, por sua vez, é a marca do
profeta, que cumpre “a vontade de Deus” no exato momento em que ela
é requerida. Assim, os episódios permeados de hesitação vistos aqui
devem se transformar em momentos de atitude convicta, como na
ocasião em que a Nadja estende o “Jesus é bom” à sua desconhecida
companheira de quarto.
Na freqüência aos cultos pentecostais por ocasião do nosso
trabalho de campo, não era raro ouvir afirmações do tipo “o crente não
pode ficar calado”. Há uma recomendação explícita para que todos se
tornem profetas uns para os outros, bem como para os desconhecidos.
“Crescer na fé”, então, implica saber o que dizer, como dizer e esperar as
reações certas. Não estamos longe, aqui, de uma educação emocional (ver
Geertz 1989 e Turner 2005) promovida pelos rituais assembleianos.
Nesse sentido, tais rituais, ao promoverem uma pedagogia emocional,
põem em evidência uma relação entre emoções e sociabilidade. Os rituais
e as prédicas dos pastores são instrumentos fundamentais na
hipercognitização de certas atitudes corporais e afetivas, ie. atitudes e
afetos culturalmente enfatizados, desejados e incentivados pelo grupo
(ver Hellas 1986); em outras palavras, os rituais e as prédicas são meios
efetivos para as práticas de subjetivação do fiel assembleiano
(FOUCAULT, 1987).
Entendemos que a emoção culturalmente enfatizada na trajetória
assembleiana de neófito a profeta é a ansiedade. Homans (1945) nos
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17 Utilizamos o termo ‘ansiedade’ no mesmo sentido de Homans (1945): “The word anxiety is
used here in its ordinary common-sense meaning. This use is not to be confused with the
psychoanalytic one, though of course they are related” (HOMANS, 1945, pg. 164, nota 3)
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18 a specifically charismatic construction of the sense of flow between saint and ordinary
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19 Believers do not regard themselves as interpreting the bible or inspired sermons, but receiving them
(COLEMAN, 2000, p. 127)
20 … the text is embodied in the person, who becomes a walking, talking representation of its
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Considerações finais
Ao longo deste trabalho perseguimos o objetivo de apresentar o
papel do corpo e das emoções envolvidas na trajetória espiritual dos
crentes da AD. Esperamos ter esclarecido como as emoções-chave ou,
como na linguagem de Hellas (1986), enfatizadas culturalmente, e aqui
elencadas - a ansiedade e a convicção - servem como vetores da ação
carismática operando na constituição da pessoa pentecostal.
Mostramos o papel do líder carismático neste processo. Ele lança
as perguntas aos fiéis questionando suas identidades pentecostais,
conduzindo a ritualização da ansiedade, emoção resultante do desejo
urgente de responder positivamente tais questionamentos. As respostas
dos fiéis serão dadas, a si mesmos e como reação ao escrutínio da
comunidade, na já explicitada cadeia de circulação verbal. É sendo bem
sucedido nestas interações carismáticas, onde o crente estende uma
palavra (divinamente inspirada) ao seu “irmão” ou a um não-crente, que
os fieis extrairão o sentido de uma identidade pentecostal: Consolando
uma desconhecida com palavras de incentivo, como fez Eliete, ou
incentivando uma senhora internada no hospital a dizer que “Jesus é
Bom” a fim de restabelecê-la de um mal súbito, assim como Nadja. Mas
para engajar-se nestas interações, vencer a dúvida e a hesitação e
responder tais perguntas, os fieis precisam ser incentivados a buscá-las. O
líder carismático tem papel de destaque novamente nesta etapa. Se ele
comandou a ritualização da ansiedade, a prescrição da solução, a
convicção ritualizada, também se dá sob o seu comando no que
chamamos de ritualização da convicção. O pastor através dos rituais e das
prédicas ensina aos fieis, oferecendo-se como modelo, a se colocarem
afetiva e corporalmente na posição de profetas. A convicção, e a
performatividade desta convicção, se realiza de modos diferentes nas
diversas igrejas pentecostais dependendo de suas ênfases teológicas. Não
estamos dizendo com isso que o fiel pentecostal não tenha dúvidas e
incertezas, mas que na constituição do self pentecostal é fundamental a
afirmação da convicção de que "Deus reservou um lugar para mim". Essa
dimensão não pode ser extraída, assim entendemos, da relação fiel-líder,
posto que o fiel constrói sua convicção a partir das histórias contadas e
performadas pelo pastor. O pastor oferece um modelo a ser seguido, no
dizer de Reinhardt (2012) um parentesco espiritual. Destaca-se, diante
disto, a questão da prática, de como o sentido é construído
performaticamente na ação. Daí nossa aliança com Durkheim e com as
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Abstract: On his pathway towards spiritual maturity, the Pentecostal believer
needs to be "filled with the Holy Spirit." This is the indispensable condition that
differentiates neophytes from those who may already be deemed to achieve
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