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estudos históricos
68 Futebol,
História e
Política
EH68 Futebol
História e
Política
ISSN 2178-1494
Estudos Históricos, volume 32, número 68, set.-dez. de 2019. Rio de Janeiro: Centro de Pesquisa e
Documentação de História Contemporânea do Brasil da Fundação Getulio Vargas, 1988
Quadrimestral
Resumos em português, inglês e espanhol
Editada e distribuída pela Editora Fundação Getulio Vargas
ISSN: 2178-1494.
1. História 2. Historiografia 3. Periódicos 4. Ciências Sociais 5. Economia e Sociedade.
I – : Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil da Fundação Getulio Vargas
CDD 981.005
CDU 981(051)
E-mail: eh@fgv.br
Endereço na internet: http://www.fgv.br/cpdoc/revista
Endereço postal: Fundação Getulio Vargas/CPDOC
Secretaria da Revista Estudos Históricos
Praia de Botafogo, 190, 14º andar, Rio de Janeiro 22.523-900 RJ
H estudos históricos 68|
Rio de Janeiro, vol. 32, n 67, p. 565-830, setembro-dezembro 2019
o
Futebol, História e Política
Sumário
Artigos
“OS LEÕES EM ÁfRICA”: fUTEBOL E POLÍTICA NO IMPÉRIO COLONIAL PORTUGUÊS (1954) 589
“LIONS IN AfRICA”: fOOTBALL AND POLITICS IN THE PORTUGUESE COLONIAL EMPIRE (1954)
“LEONES EN ÁfRICA”: fÚTBOL Y POLÍTICA EN EL IMPERIO COLONIAL PORTUGUÉS (1954)
João Manuel Casquinha Malaia Santos
A TRANSfERÊNCIA DE JOGADORES NO SISTEMA FIFA E A MIGRAÇÃO DE BRASILEIROS PARA A EUROPA (1920-1970) 609
THE TRANSfER Of PLAYERS IN THE FIFA SYSTEM AND THE MIGRATION Of BRAZILIANS TO EUROPE (1920-1970)
LA TRANSfERENCIA DE JUGADORES EN EL SISTEMA FIFA Y LA MIGRACIÓN DE BRASILEÑOS A EUROPA (1920-1970)
Marcel Diego Tonini e Sérgio Settani Giglio
SOBRE ELEIÇÕES, fESTIVAIS E RESOLUÇÃO DE PROBLEMAS: fUTEBOL DE VáRZEA E REDES POLÍTICAS LOCAIS EM
BELO HORIZONTE (1962-1965) 633
ABOUT ELECTIONS, fESTIVALS AND RESOLUTION Of PROBLEMS: fUTEBOL DE VáRZEA AND LOCAL POLITICAL NETWORKS IN BELO HORIZONTE (1962-1965)
SOBRE ELECCIONES, fESTIVALES Y RESOLUCIÓN DE PROBLEMAS: fUTEBOL DE VáRZEA Y REDES POLÍTICAS LOCALES EN BELO HORIZONTE (1962-1965)
Raphael Rajão Ribeiro
Colaboração especial
THE NORTHEAST PLAYS FOOTBALL, TOO: WORLD CUP SOCCER AND REGIONAL IDENTITY
IN THE BRAZILIAN NORTHEAST 720
O NORDESTE TAMBÉM JOGA fUTEBOL: A COPA DO MUNDO E A IDENTIDADE REGIONAL NO NORDESTE BRASILEIRO
EL NORDESTE TAMBIÉN JUEGA fÚTBOL: EL MUNDIAL Y LA IDENTIDAD REGIONAL EN EL NORDESTE BRASILEÑO
Courtney Campbell
Entrevista
Teses e dissertações
DOI: http://dx.doi.org/10.1590/S2178-14942019000300001
I
Escola de CIências Sociais da Fundação Getulio Vargas (CPDOC/FGV), Rio de Janeiro – RJ, Brasil.
*
Professores da Escola de Ciências Sociais da Fundação Getulio Vargas (CPDOC/FGV) e Editores da Revista Estudos
Históricos (bernardo.hollanda@fgv.br; joao.maia@fgv.br; thais.blank@fgv.br)
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Bernardo Borges Buarque de Hollanda, João Marcelo Ehlert Maia e Thais Continentino Blank
A própria revista Estudos Históricos contribuiu nesse sentido em 1999, quando publicou
o número 23 — Esporte e Lazer —, conhecido por trazer à tona debates e por ensejar polê-
micas acerca dos referenciais mais apropriados para pesquisas na área. A “década esportiva”,
como ficou conhecido o período entre 2007 e 2016, com a realização de uma gama de me-
gaeventos esportivos no Brasil, estimulou também um conjunto significativo de dossiês dessa
natureza, publicados em congêneres como a Horizontes Antropológicos, a Revista de História
(USP) e os Cadernos AEL (Unicamp), entre outros periódicos científicos.
Passados os megaeventos, e multiplicadas as pesquisas sobre modalidades esportivas
em programas de pós-graduação no país, novas gerações continuam a se debruçar sobre esse
fenômeno típico das sociedades modernas e contemporâneas, capaz de mobilizar identidades
coletivas, interesses midiáticos, circulações globais, fluxos financeiros e representações sociais.
A motivação para a organização de um número específico dedicado à temática futebolística,
cuja importância no século XX permanece atual, relaciona-se também a um cenário de desafios
políticos que se colocam para a sociedade brasileira, na esteira das chamadas Jornadas de Ju-
nho de 2013 e no conturbado ciclo jurídico-político que se sucede ao Brasil pós-megaeventos.
O presente dossiê propõe, pois, uma articulação entre três dimensões — Futebol, História
e Política. Estas inspiram-se, por sua vez, no trabalho desenvolvido pelo saudoso colega Carlos
Eduardo Sarmento (2013), pioneiro no CPDOC nos estudos futebolísticos. Em sua investiga-
ção sobre a história institucional do futebol, feita com fontes primárias junto aos arquivos da
Confederação Brasileira de Desportos (CBD), Sarmento tratou da constituição da identidade
nacional por meio da Seleção Brasileira e propôs intersecções diacrônicas desta com entidades
desportivas, com instituições de poder e com estruturas políticas em chave mais ampla.
A tríade que circunscreve o presente número permite igualmente arejar um assunto mar-
cado pelo peso ceticista das Teorias Críticas do Esporte, muito presentes nas Ciências Sociais
europeias, norte-americanas e sul-americanas entre os anos 1960 e 1980, a exemplo dos
escritos de Jean-Marie Bhrom (2006), Gerhard Vinnai (1973), Bero Rigauer (1981) e Juan José
Sebreli (2005).
Se a introdução dos estudos sobre futebol no Brasil precisou contornar tais críticas
funcionalistas e frankfurtianas, que preconizavam sua condição seja de dominação instru-
mental seja de epifenômeno da ideologia capitalista, valeu-se para tanto das postulações da
Antropologia Social na afirmação da relevância do objeto no decorrer dos anos 1980. Rito,
mito e símbolo das sociedades complexas foram, então, mobilizados para observar processos
constitutivos da identidade nacional, em particular o significado, ora metafórico ora metoními-
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Futebol, história e política
co, adquirido pelo selecionado brasileiro nos eventos quadrienais das Copas do Mundo FIFA,
com seus sentidos amplificados e conduzidos pelas narrativas da imprensa.
Assim, de tema secundário e por vezes não sério, o futebol pouco a pouco conquistou
sua legitimidade e alcançou sua institucionalização na Academia. Nos últimos anos, obser-
va-se também uma diversificação de abordagens, com a capacidade de ir além do âmbito
meramente identitário e culturalista. No terreno da historiografia, a história social tem-se
apropriado da temática em períodos mais recentes, graças a trabalhos seminais como o de
Leonardo Pereira (2001). É o caso de destacar também a história política, cuja renovação nos
anos 1980 (Rémond, 2003), se ainda é tímida na oferta de pesquisas concretas sobre o assun-
to, pavimenta caminhos para um tratamento menos canônico nessa área.
A proposta de renovar olhares acerca da história política do futebol é, portanto, um
objetivo que se procurou contemplar com o presente volume. Da mesma maneira que as
edições anteriores de Estudos Históricos, a grande demanda recebida e o elevado número de
artigos aprovados, acima do que se poderia afinal publicar, foram uma prova do número de
pesquisas de qualidade existentes nos dias de hoje, não só no Brasil como na comunidade
acadêmica internacional. A difícil tarefa de selecionar ao final os textos por publicar sinaliza
para a existência de um alargamento e uma continuidade geracional de pesquisadores que
vêm se formando nas últimas décadas.
Sendo assim, o presente dossiê é constituído por três partes principais. A primeira con-
ta com os sete artigos selecionados após o processo de avaliação cega por pares. Trata-se
de doutorandos e doutores, vinculados a programas de pós-graduação no Brasil, em sua
maioria historiadores, mas também de sociólogos, urbanistas e pesquisadores da área de
Educação Física.
A primeira parte é composta por textos de autoria de João Malaia (Dep. História/Univer-
sidade Federal de Santa Maria); Marcel Tonini (Dr. História/Universidade de São Paulo) e Sérgio
Giglio (Dep. Ed. Física/Universidade Estadual de Campinas); Raphael Rajão (Doutorando em
História/FGV CPDOC); Luís Burlamaqui Rocha (Dr. em História/USP); Lívia Magalhães (Instituto
de História/Universidade Federal Fluminense); Erick Melo (IPPUR/Universidade Federal do Rio
de Janeiro) e Gabriel Cid (Dr. IESP/Universidade do Estado do Rio de Janeiro).
Salienta-se, ainda na primeira parte, a colaboração de um autor de origem inglesa, Mat-
thew Brown, professor de Letras Modernas na Universidade de Bristol, no Reino Unido. Agra-
decemos, a propósito, às dezenas de pareceristas ad hoc que contribuíram voluntariamente
com sua expertise para a composição final dessa seção.
Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 68, p. 567-568, setembro-dezembro 2019 567
Bernardo Borges Buarque de Hollanda, João Marcelo Ehlert Maia e Thais Continentino Blank
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568 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 68, p. 568-568, setembro-dezembro 2019
Artigo
Matthew BrownI*
DOI: http://dx.doi.org/10.1590/S2178-14942019000300002
i
Acknowledgements: I am very grateful to Gloria Lanci, Bernardo Buarque de Hollanda, Martin da Cruz, Brenda Elsey and
David Wood for their support and inspiration in researching this article.
I
University of Bristol. Bristol, Reino Unido.
Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 68, p. 569-588, setembro-dezembro 2019 569
Matthew Brown
Abstract
This article explores the early history of Association Football in South America through the case study of the
first translations of the rules of the game from English into Portuguese and Spanish. It demonstrates, by means
of a comparison of the different temporalities and contexts of these documents, the connected and transna-
tional nature of the sport. This has often been neglected in national paradigm studies of football pioneers and
the first matches, clubs and leagues. The study of the translators suggests new avenues for the study of the
interlinked histories of sport, politics and culture.
Resumo
Este artigo explora o início da história da Association Football na América do Sul através do estudo de caso
das primeiras traduções das regras do jogo do inglês para o português e o espanhol. Demonstra, por meio
de uma comparação das diferentes temporalidades e contextos desses documentos, a natureza conectada e
transnacional do esporte. Isso tem sido frequentemente negligenciado nos estudos nacionais de paradigmas
de pioneiros do futebol e dos primeiros jogos, clubes e ligas. O estudo dos tradutores sugere novos caminhos
para o estudo das histórias interligadas de esporte, política e cultura.
Resumen
Este artículo Este artículo explora la historia temprana de la Asociación de Fútbol en América del Sur a través
de un estudio de caso de las primeras traducciones de las reglas del juego del inglés al portugués y español.
Demuestra, comparando las diferentes temporalidades y contextos de estos documentos, la naturaleza conec-
tada y transnacional del deporte. Esto a menudo se ha pasado por alto en los estudios nacionales de paradig-
mas pioneros del fútbol y los primeros juegos, clubes y ligas. El estudio de los traductores sugiere nuevas vías
para estudiar historias interconectadas de deporte, política y cultura.
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Translating the Rules of Football in South America, 1863-1914
Introduction
T here has been a remarkable expansion of new work on the history of sport in South
America in general, and association football in particular, in the last decade (Melo, 2017;
Brown, Elsey and Wood, 2018; Brown, 2015; Alabarces, 2018). Most of it has been carried
out by scholars working in local newspapers and, more rarely, institutional archives, conducted
by researchers inspired by the pioneers in the field. Its primary concerns with the history of
this or that city, club or national league have tended to mean that it exists outside the field
of global history. This article contends that the history of sport in South America should be an
ideal case study to test some of the founding hypotheses of the discipline of global history.
To what extent do global connections shape local processes? What is the role of mediators
between cultures? At what point in the late nineteenth century do key transformations occur
that shape the development of later globalizations? And at what stages and in what spheres
does South America escape the role of periphery, or victim, that it is usually assigned in histo-
ries of globalization? This article suggests, by means of a case study of the first translations of
the rules of association football in South America, that hybrid, vibrant and distinctive sporting
cultures emerged shaped by both global pioneers and by the colonial past (following the insi-
ghts of Dietschy, 2013, and Marquese and Pimenta, 2018). Translators were active mediators
between cultures, shaping the past in ways that Anglophone historians of sport and politics
have tended to be blind to until now (for example Bass, 2014).
Sports promoters in South America often wrestled with how to explain to the public
exactly what it was they did, and why. When the “Football Association of Chile” (named in
English rather than Spanish) announced in January 1898 that it would be holding its first
Athletics “Championship Meeting” (using the English name for the event), it clarified: “el
primer Championship Meeting, o sea, porque no tiene traducción posible en nuestro idioma,
el torneo de diversos juegos atléticos establecidos por la asociación de football, según lo
anunciamos hace algunos días” (there is no possible translation of Championship Meeting in
our language — it means a tournament of diverse athletic games established by the Football
Association) (El Mercurio de Valparaiso, 10 Jan. 1898). Sometimes just naming these sports
was difficult enough. In its early days in 1899, the “Guayaquil de Sport” club advertised in the
press that it had “spent this morning in our first exercise of the game of Bare-Ball, repeating
it in the afternoon with a better result. On Sunday, members are invited to try the game of
Cruket”. Newspapers did not reveal how the members got on with either Bare-Ball or Cruket,
and what similarity they might have had with baseball or cricket (El Grito del Pueblo, 23 Jan.
1900).
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Matthew Brown
Methodology
T he copying and adoption of these new practices would be good evidence for the pheno-
menon that is variously called “Eurocentrism”, “cultural dependence” or “coloniality” in
South America, which is to say a continued belief amongst previously colonized peoples that
social practices emanating from the former metropolitan centres must, by their very nature and
origin, be superior and worthy of emulation (Clevenger, 2017; Mangan, 2002; Buarque and
Fontes, 2014). There is evidence for this attitude in other spheres of life, of course: in the words
of one Colombian journalist, for example, “Europe is the centre of the greatest civilization the
world has ever seen, and we cannot be indifferent to its current affairs, as we have received
everything from there” (El Telegrama, 16 Oct. 1886).
The methodology of this article was to locate and analyse all of the translations of the
rules of Association Football (FA) published in Spanish and Portuguese in South America
between the codification of the rules in 1863 and 1914. Because most scholars of sport
have not concerned themselves with the translators, the dataset is necessarily fragmentary
and incomplete (for example, there is no information for Bolivia, Paraguay or Venezuela). I
have supplemented work in secondary scholarship with primary evidence data-collection in
archives across the continent. Before moving on to discuss these texts, I want to set up the
comparative case of cricket, a sporting code which was already being played in many parts
of South America before 1863, but which never achieved the level of popularity of symbolic
meaning accrued by association football in the continent. The comparison with cricket sets up
the analytical angle for study of the translators of football.
C ricket developed its codes and rules in the 1700s as part of the transformation of
English society, which Norbert Elias and Eric Dunning (1986: 167, 173) identified as
representing “a profound sublimatory transformation of feeling” in which self-restraint was
required and valued in order to “steadfastly renounce the use of violence” in politics as well
as entertainment. What is now called “the spirit of the game” revolved around patience,
respect for rules and delayed gratification — a code of conduct that was often spoken of as
being more important than the game itself, and was adopted by imperial agents as inherent
to the civilizing ethos of the British colonial project (Malcolm, 2012).While generally neglected
from South American sports histories, cricket existed on the margins throughout our period,
occasionally stepping into the spotlight. Cricket was played in Georgetown, the capital of
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Translating the Rules of Football in South America, 1863-1914
Britain’s only formal British possession in South America, in the mid-1800s, and Demerara
(the team representing the colony of Guiana, today Guyana) played Barbados in first-class
fixtures in 1865 (Beckles, 1998). Here, as elsewhere in Britain’s Caribbean colonies, cricket
was introduced as a strictly hierarchical form of separation and control, but adopted and even-
tually mastered by the local populations of black and Indian heritage. As C.L.R. James wrote
in Beyond a Boundary, cricket was both a sport and a form of drama with an extraordinary
representative capacity: “the long hours … the measured ritualism and the varied and inten-
sive physical activity which take place within it… leaves human personality on view” (1963:
194). In the late 1800s, Guyana was far from being the exception in South America. Stitching
together references from a very fragmented set of sources we can see that cricket was being
played in most seaports where British merchants were found. The sources suggest that it was
cricket that set the foundations for football and its international, representative nature as it
grew out of cricket clubs and grounds in the 1890s (for example, Chilian Times, 7 Jan. 1882;
Magellan Times, 7 Jan. 1914). But there was little attempt to proselytize the game or found
new clubs amongst the local population. It seems like cricketers did not necessarily trust that
locally-born South Americans could behave according to the strict honour code of their game,
or want to encourage them to do so.
Cricket, like cockfights, bullfights, and other forms of artistic practice in sport, were,
to quote Clifford Geertz, (1972: 30) “not merely reflections of a pre-existing sensibility
analogically represented; they are positive agents in the creation and maintenance of such a
sensibility”. The type of sporting practice that South Americans chose to practice was part of
how they chose to represent themselves. The rules of Cricket were never translated to Spanish
or Portuguese. Cricket was understood as a game that was too complicated and untranslatable,
and also as a game that did not want to be understood by those it had not invited in.
An attempt was made by the newspaper Correio Paulistano, which provided an
abbreviated guide in Portuguese in 1882 translating some of the terminology for “the curiosity
of those who don’t understand, so that they might attend a game and enjoy it”. According
to the author, who was clearly not a native speaker of English, two sticks were placed in the
ground at each end of the pitch, joined with a small pole. The object of the game was “throw
a ball so that it hits the sticks and makes the adversary’s wicket fall down”. The ball, it noted,
was “as hard as iron”. The bat was a “raqueta”. The bowler was a “boller”, suggesting that
the translator was a Brazilian rather than a cricket native. Players should wear flannel clothing
and protect their legs with “a type of shield, or leggings”. The “match” was divided in two
halves or “innings”. When the ball is thrown at the “batter” they should use their “skill,
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Matthew Brown
strength and agility” to hit it as far away as possible. Yet, translations could only go so far. All
parts of the game were said to be governed by “all manner of conventions” to be agreed by
the players themselves, none of which were discussed or interpreted by the bemused Correio
journalist (8 Sep. 1882).
M ost of the translations and annotated collections of rules were pamphlets sponsored
by local clubs or local associations. These institutions were the modern heirs to the
exclusive city centre gentlemen’s social clubs of mid-century, such as the Club de la Union in
Guayaquil, the British Library in Buenos Aires, and the Club Americano in Bogotá, whose 1866
statutes stated that its aim was to “provide its members with recreations fit for a civilized
society”, and that the only games that were appropriate to this end were the likes of billiards,
chess, dominoes, draughts, whist and other card-games (for Caracas, Venezuela, see the image
of billiards in El Cojo Ilustrado, 1 Aug. 1901). These social clubs took up sports as an extension
of their recreational activities, and also used them to promote their other activities within
society. New sports meant rules and disciplines and physical vigour, as well as fun, gambling,
and civilization like their old pursuits. Clubs sometimes published the rules of the game as an
appendix to their statutes, which were handed to new members. But the statutes were mainly
concerned with delineating who could or could not be a member, often prohibiting member-
ship of more than one body simultaneously or clarifying personal characteristics around drink,
income or clothing, more than they were with the sports themselves.
Histories of South American football have habitually ignored the first translators of the
rules of the game, because of a fan’s-eye preference for the simple idea that Association
Football is a magically simple game which requires no tuition or guidance in order to play
it. Yet, the difference between the lack of translated rules of cricket, which did not become
popular in South America, and the multiplicity of published translations of the rules of
Association Football, suggest that hard work and effort on the part of its promoters may
have played an important role. The persistent translation and publication of the rules
also suggests a sense that people were not playing the game properly, and that correctly
interpreted, translated, and disseminated the rules of the game might be an aid to civilizing
societies and the games they played in their free time (Elias and Dunning, 1986). In the next
section I present the translations I have located, along with a preliminary analysis of their
potential significance.1
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Translating the Rules of Football in South America, 1863-1914
In Buenos Aires, where we detected the earliest games of football, it is likely that rules
and codes circulated orally, and through English versions brought and discussed by migrants.
Thanks to the work of Victor Raffo and others, we know that most of the football played in
Buenos Aires in the 1870s and 1880s was of the carrying variety we now associate with
Rugby. No translations of the rules into Spanish have been located. In 1869, the Buenos Ayres
Football Club simply noted ‘the Committee has altered the rules to permit the carrying of
the ball when it is caught before it touches the floor’ (The Standard, 20 May 1868, in Raffo,
2005: 79). By 1874, football was being played in Buenos Aires according to rules “which
differed from any existing code” and the Secretary of the Buenos Ayres Football Club urged
“the adoption of one of two recognized sets of Laws now used in England in preference to
continuing our own of last year” (The Weekly Standard, 13 May 1874, in Raffo, 2005: 153-
154). No written record of any changes made survives. It was only in 1903 that the Argentine
Football Association published a translation of the rules, in its Guide to the Football Field.2
The first full translation of the rules of Association Football into Spanish or Portuguese
comes not in one of the “major” South American footballing countries, but from Colombia.
In 1892, a close translation of the 1863 Rules of Football was published in a newspaper
in Bogotá, Colombia, by the United States military officer Henry Rowan Lemly. Already a
published translator of military techniques and, later, of history, Lemly translated every term
to Spanish, leaving no English words at all (El Telegrama, 23 Jun. 1892). He sought to render
the game intelligible to his monolingual military students, as part of his mission to create a
disciplined national corps of officers.
Regional histories of Colombian sport have competed to find the first football match in
Atlantic port cities of Barranquilla and Santa Marta, in Cali and Pasto in the South, and in
the capital Bogotá (Ruiz Patiño, 2010; Lopez Velez, 2010). In all of these places evidence has
been found of cosmopolitan traders, elites who had been schooled in Europe, and one or two
railway workers, reflecting some of the routes taken by football elsewhere in the continent.
But Lemly’s pioneer as a translator and military educator is revealing of the often under-
appreciated role of U.S sporting influence, and the agency of the military in sports promotion
for national ends.
Lemly knew a fair bit about the conflict between so-called civilization and barbarism
which so concerned sports promoters in South America before he arrived in Colombia. He
served in the “Indian Wars”, which extended the territorial reach of the United States in the
1870s, and he personally witnessed the surrender and murder of Lakota leader known as
“Crazy Horse” in 1877, writing a widely-disseminated account of it in the New York Sun.
Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 68, p. 575-588, setembro-dezembro 2019 575
Matthew Brown
A few years later he was in Colombia working at the newly-reestablished Escuela Militar,
promoting gymnastics and physical exercise as a way of promoting a vigorous rigour amongst
the country’s officer corp. With the 1885-86 civil war bringing about a centralist Constitution
and renewed attempts to foment a national identity, Lemly was in prime position to shape this
national culture from the centre. Like many Colombian leaders involved in this project, Lemly
thought that literacy was key to educating, civilizing, and Colombianizing a largely barbarian
people. He translated the military tactics of Emory Upton, wrote about history and indigenous
cultures, and studied translations. Unlike Miguel Antonio Caro, the president, grammarian, and
translator, he persuaded to watch his first sporting experiments, he also believed fervently in
a role for physical exercise and discipline in forging the nation (Arias-Escobar, 2017; Esquivel
Triana, 2017; Deas, 1992; Polania, 2015). But Lemly did not leave the same legacy as football
pioneers elsewhere. He returned to the U.S. and made only sporadic visits to Colombia after
that, as a military advisor, arms trader, and historian (Lemly, 1884, 1891, 1901, 1910, 1923).
A s the work of Tony Collins (2018) reminds us, there was no hegemonic footballing code
anywhere in the world around 1900. Rugby, Association, Australian, American, and
Gaellic rules co-existed and interacted with pre-existing folk footballs and street ball-games.
Historians have tended to focus their attention on digging up references to the versions of foo-
tball that appeared most similar to the forms that later became hegemonic internationally. But
when we allow ourselves to be guided by the surviving sources, we can see that football was
played in many different ways, demonstrating the significant influence of individual mediators
and translators, and their own personal experiences and preferences.
The example of the first translation of the Rules of Football in Ecuador provides us with
some good insight here. The publication of these rules by Guayaquil’s El Grito del Pueblo
newspaper on three consecutive Sundays (28 Jan., 4 Feb., 11 Feb. 1900) is cited (though not
reproduced) by all the serious studies of the origins of Association Football in the country.
But it is clear from the beginning of the text, however, that this was not a close translation
of Association Football rules like Lemly’s in Colombia eight years earlier, but something else
entirely — a hybrid sport drawing on Association, Rugby, and perhaps even the Eton Field
Game. Rule 1 suggested that sides may have between 10 and 40 players each — though
always divided equally. Rule 2 suggests “a big oval ball of 30cm by 38cm” which “must be
extremely solid in order to resist the kicks that it receives”. The translator adds the following
advice on local ball-manufacture: “Ordinarily it is made from a rubber bladder enclosed in a
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Translating the Rules of Football in South America, 1863-1914
tight sack or leather casing. The best are those which one makes oneself with a pig’s bladder,
which are stitched by a shoemaker with ‘four pieces’ of calf’s leather strongly stitched, riveted
with a hunting shoe, and finished in an opening with a small tie”. In Rule 3, the translator
notes that a rope should connect the two goal posts, but that “this is a complication which
many serious players do not bother with, and they are happy to judge themselves whether
the football has passed through at the appropriate height”. Rule 5 notes that “the match will
usually be made up of several ‘chukkas’ of three points each, in a period of time to be agreed
beforehand”. Rule 6 stated that “the ‘football’ should never be taken from an opponent with
the hands, although it can be received, carried and deposited in the goal”.3 Rule 8 reveals a
way of playing more familiar today as “touch rugby”: “The aim of the game for each player is
to make the ball pass behind the two posts of the opposing goal, or at least behind the line of
the same name. To this end, all methods are valid, which is to say, it can be thrown there with
a kick, or taken and carried towards the goal. On the other hand, the adversaries can chase
the carrier, they can try to block his passage, to detain him, in a word, making it impossible
for him to fulfil his design. But courtesy demands that the chase does not degenerate into
pugilism, in body-to-body fights or bundles, as frequently occurs in countries of brutal and
gross customs. The player who is waiting for the fugitive will be content, therefore, to touch
the football shouting “Touched!”. The intricacies of scrimmaging, or “forming a circle”,
were described at length. The game being “translated” here was a mixed-methods game
combining elements of various kicking and carrying codes — not an outlier, but part of what
Collins (2018: 88) calls “an international continuum of variations that stretched across the
early football-playing world”.
As the historians Navarro et al. relate (2014: 16), “in these years in Ecuador football
was almost an extreme sport: there were no pitches, balls were made of wound-up rags, and
the players used the game as an excuse to practice boxing. Their lack of basic understanding
of football means that matches are decided throwing punches and rocks”. With its oval
ball, scrummaging and touchdowns it looks much more like Rugby Union Football. Some
of its features, particularly relating to “touch”, shows strong affinities with the Eton Field
Game (Eton College, 2007). Discomfort with the physicality of rugby, and its potential to
precipitate fights or hand-to-hand combat “as frequently occurs in countries of brutal and
gross customs”, perhaps explains the preference for the “touch” tackling system used at
Eton College. The division of the match into three “chicos” or chukkas is akin to polo, not
association football, which has never experimented with more than one interval. It seems that
the author/translator produced this document from memory, perhaps even fusing elements
of games they had played or heard or read about. The most likely author is Juan Alfredo
Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 68, p. 577-588, setembro-dezembro 2019 577
Matthew Brown
Wright, a Guayaquil merchant and grandson of one of Bolívar’s admirals. He was born in
Guayaquil on 24 July 1882, and received his secondary education at the Colegio Vicente
Rocafuerte. He studied in Lima, where he is reputed to have encountered football for the
first time by joining the Club Union Cricket. He returned to Guayaquil from Callao in August
1899, bringing “the first football to Ecuador” (Roque Salcedo, 1947: 1; Navarro et al., 2014:
15). He does not appear on the Eton College Registers, and I have not been able to find out
yet where he went to school. Allowing for some inaccuracies in the dating of his education
presented in his biographies, it is not inconceivable that he returned from a spell at a British
school in 1899 or 1900 and published the rules of a game he played at school. The version of
football translated, published, and played in Guayaquil in 1900 was a hybrid form, a mixture
of the codes of association, rugby, and private school football still circulating and competing
with each other in this period (Kitching, 2015). This example demonstrates very clearly the
global dimensions of those competing codes, rather than, as has often been presumed in the
historiography, a model in which Association Football became the dominant code and then
asserted its hegemony in the British informal empire in South America.
Increasing commonalities
T he first translations of the rules of football in the River Plate appear to have been under-
taken from around 1898, at the stage where the sport was first being deliberately popu-
larised beyond the English-speaking communities. The years around 1898-1900 saw a peak of
translations of the English FA’s rules, all apparently conducted independently without mutual
reference. First, the Reglas del Juego de Football were published by Albion Football Club in
Montevideo in 1898.4 The most likely translator of the Rules in Uruguay was Bristol-born Henry
Castle Ayre.5 An English teacher at the English High School in Montevideo, Henry Castle Ayre
was already a published translator of historical works, and developed his own “Ayre Method”
for learning English as a foreign language. He followed the FA rules very closely, without anno-
tations or commentary, providing English originals in italics and brackets after the first mention
of new words, for example “puntapie de esquina (corner kick)”. His innovation was the use of
“valle” to describe the goal-area and its extension “guarda valle” as goal-keeper. In Peru, the
Rules of Football appear to have been first published in Spanish in El Sport (7 Aug. 1899, cited
in Muñoz, 2001: 229), with the commentary that “football produced freedom-loving men,
respectful of authority and law, self-sufficient and full of the spirit of association”. In 1901,
the first translation of the Rules of Football into Chilean Spanish appear to have been made by
J.D. Sieveking, in an edition prologued by the magistrate José Alfonso in 1901 (who in 1903
578 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 68, p. 578-588, setembro-dezembro 2019
Translating the Rules of Football in South America, 1863-1914
became president of the first Football Association of Santiago). Alfonso particularly valued the
“strict discipline, constant vigilance and strategy” required by the game (cited in Modiano,
1997: 82, also discussed in Santa Cruz, 1996). Chilean commentators constantly admired the
use of “an iron hand” to maintain “the strictest discipline” in matches (El Sportsman, 19 May
1907, in Modiano, 1997: 96).
It was at this point that the translations started to dedicate more time and space to
explaining football’s laws around violent conduct (particularly laws nine and ten, which were
amended by the International Football Association Board — IFAB — in this period). IFAB
was a committee with representation of the English, Welsh, Irish, and Scottish associations,
and thereby reflected the dominance of the English language on the rules of football, as yet
unchallenged by the rise of FIFA (Fédération Internationale de Football Association) in the
first decade of the new century. The translations both coincide with and were designed for
the growing popularization of the game, and were intended both to keep the versions played
locally in line with international norms as imagined in Great Britain, and to control working-
class, migrant, and non-white footballers, and the violence it was feared they would bring
into the game. The Argentine Football Association in 1903 (34-5) ran the Spanish and English
versions in parallel columns on the same page to make it plainer how close the translation was
to the original, especially useful for its bilingual members.
The Guides to sports published in South America at the beginning of the twentieth-
century were principally concerned with promoting participation than in fighting linguistic
battles. The Guides were hybrid texts, explaining where, how, and why to play sports properly,
and certainly not simple translations of a British model. As they took with the language of
sports, translators attempted to preserve the cultural ethos which they inferred to be inherent
in the games. A good example is the Guia de Football produced in São Paulo, Brazil, by Mario
Cardim and Luiz Fonseca in 1906 (in Gambeta, 2014: 49-181). The book included the Statutes
of the Sao Paulo Football League, the rules of Association Football and guidance for referees,
a discussion of the “physical and moral qualities of the footballer”, fixtures and records of the
São Paulo Football League, including details on each club and on tram timetables to enable the
public’s attendance at matches, statistics, and information for the Brazilian National Football
Championship and schools football. It featured photographs of key players and discussion
of their playing style. The approach to the language of sport was creative and littered with
English and French words. Cardim and Fonseca kept many English-terms in their text, such
as teams, forwards, match, goal, corner-kick, throw-in, incorporating their own translations
and explanations into the text on first mention, as in their translation of the second law of
Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 68, p. 579-588, setembro-dezembro 2019 579
Matthew Brown
the game, “Feito um goal, o lado que perdeu tem direito ao ponta-pe inicial (kick-off)”. Their
text featured many original terms alongside translations, as is illustrated by their annotated
map of the pitch, the Campo de Football. This was a hybrid text like many others. Cardim and
Fonseca probably drew on the work of their colleague Hans Nobiling, the founder of S.C.
Germania, who brought German copies of the statutes of the Hamburg Football League with
him to Brazil, and was a prime mover in the organization of the Paulista League (Gambeta,
2014: 39). They also drew on the work of the French author Ernest Weber (1907), which was
reprinted several times in Rio de Janeiro in those years. Although the identity of the translator
or translators into Portuguese are not known, this does further weaken the claim of England
and English as the common origin point of South American Association Football. (Belford
Duarte, who played for Mackenzie College, is sometimes held to have translated the rules to
from English to Portuguese in 1902, as in Enciclopédia, 2001:35.) The Guia de Football was
heavily littered with English phrases, with a lot of attention focused on explaining the degree
of physical violence that was allowed, hence the phrasing that “Nao e permittido a nehum
jogador passer rap-ponta-pe, teira, dar ponta-pes ou pular sobre o adversario. [...] A charge
e permittido mas nao de um modo violento ou perigoso. Nenhum jogador pode empurrar um
adversario pelas costas salvo quando este estiver empedindo um adversario” (charging is
permitted but not in a violent or dangerous way) (in Gambeta, 2014, 39-40).
Sometimes the translators brought a new word directly into the Portuguese, which is the
case with dribbling, which became and remained a Portuguese verb, driblar. This came from the
French — the dribleur is noted to be renowned for their trucs or tricks. Yet, the translation of
the rules and the explanation of the game were explicitly locally- as well as globally-situated.
In their discussion of goalkeepers (2014: 106), Cardim and Fonseca note that “Cruisbank”,
the Fluminense goal-keeper of 1902-04, “revolutionized the defending of our goal-keepers”
through his innovative handling, and that “today there are two goal-keepers who live up to
this standard in São Paulo — Thompson of SC Internacional and Satler of Mackenzie College”.
As the diagrams of the playing field reproduced in many of these texts clearly show, the
translation of sports terms became an issue of naming and identifying new spaces. The pitch
itself was a political, as well as a geographical space.
Indigenous football
T here was no hegemonic football code in South America in the first decades of the 1900s,
as a myopic focus on Buenos Aires and the triumphs of Alumni and its British pioneers
might have us believe. As the examples discussed above have shown, individual promoters,
580 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 68, p. 580-588, setembro-dezembro 2019
Translating the Rules of Football in South America, 1863-1914
translators, and mediators created distinct sporting cultures in many different spaces. In Chile
we find perhaps the most creative translation of the Rules of Association Football, dating from
1914 when Manuel Manquilef published the rules of the Mapuche sport of “Trümen”. Rather
than adopting the British sport and preaching its values to his peers, Manquilef used it to
legitimize the indigenous sporting cultures of his ancestors with a broad spectrum of cultural
comparators. He translated trümen into Spanish as “El foot-ball”. In his publication, part of an
extensive study of Mapuche sports and pastimes, Maniquilet published a version of the rules of
football in Mapudungun down the left side of his page, and Spanish on the right. It describes
four-a-side football, and shows significant continuity with other Mapuche sports in its scoring
system. It includes a kind of scrimmaging but with no hands. A point was scored by getting
the ball over the end of the pitch. Here is my English translation of Manquilef’s seven rules:
1. This game is very ancient and powerfully develops physical strengths.
2. Trumen is similar to foot-ball, differing only in the number of players which, instead of
eleven, are four per side.
3. The ball is a large oval of dried grasses wrapped in a very resistant leather. The ball also
used to be made of thread and leather.
4. Two sides are formed with four players each. The referee gives the signal to begin, and
the Indian carries the ball with their feet. It is a foul if they use their hands.
5. When the ball is controlled by the feet, a terrible struggle around it is mounted, and the
strongest leave their opponents on the ground. They go on to reach the gate (puerta), which
is the signal for the end of the field.
6. The side which scores four times in a row is considered to be the winner. Until then, the
losing side can continue to reduce the deficit or reach a draw.
7. For example, if one side scores 3 and the other 1, the winning side is leading by two
scores. In this way, the game can be very entertaining and can continue for a long time. The
game of trumun is also known as the tropezon, the bundle, because of the falls to which the
Indian is subjected (1914: 76, 125).
By his repeated use of Foot-Ball in Spanish/English to name and reference the game,
Manquilef was arguing for its similarity with and equivalence to football. But he is also, less
obviously, translating Association Football into towards an approximation of a Mapuche sport.
He is making claims in both directions, that Trümen is like football, and also that football is like
Trümen. His reference to an oval ball, and the references to bundling and scoring by reaching
the end of the field show far more similarities to the carrying codes than to Association Football.
Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 68, p. 581-588, setembro-dezembro 2019 581
Matthew Brown
I n Ecuador, in 1912, the English FA regulations were published for the first time (Reglamen-
to, 1912). The unnamed translator provided the English original of all terms in brackets
after his translation, as in Rule 2 “Los ganadores de la rifada (‘toss’) tienen derecho de elegir
lado o dar el primer puntapié (‘kick-off’)”, indicating their perception that readers would not
necessarily be familiar with the original version. The pamphlet featured an “Explanation of
Terms”, which clarified the meaning of Place Kick, Free Kick, Carrying, Knocking on, Handling,
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Translating the Rules of Football in South America, 1863-1914
Tripping, Holding and Touch. These specialist translations, which sought to make intelligible
the English Football Association Rules, and to guide footballers in their correct observance,
were not the only translations being made. These translations, and the accompanying com-
ments, demonstrate clearly the process of regulating and limiting the more physical carrying
game that was first played in South America.
The eventual printing of the rules of Association Football in Ecuador 1912 was the catalyst
to the formation of leagues and competitions, which had not been instituted beforehand
because of a lack of common regulations. By retaining English terminology, the translator
hoped to retain the privileged position of the English language within a way of thinking about
football, whilst making it as accessible as possible — within that limitation — to non- English
speakers. This was a large step away from the translator of the 1900 rules, who had produced
a hybrid text, full of commentary and intervention, on top of a hybrid set of rules. In 1912, a
match took place between teams from Guayaquil and Quito using the newly-translated rules.
The referee was George Jatton, an “employee of the railway company” and presumably the
same “Hatton” remembered by some oral histories of early football of Quito. This makes him
a good candidate to be the translator (Baquerizo and Carrera, 2012: 22; La Hora, 2000).
Another alternative would be Consul Alfred Cartwright, who had an increasingly visible role
in the promotion of sport in Guayaquil post-1912, as one of the sponsors of the Asociación
de Empleados which took a lead in organising competitive sports in Ecuador (Roque Salcedo,
1947: 6; El Telegrama, 7 Nov. 1912).
The role of South American sporting administrators in civilizing football was only partially
picked up by outsiders at the time. What later became admiration at rhythm, technique, and
athleticism was initially perceived as a lack of “ruggedness” or propensity for rough play.
Elmer Mitchell’s influential 1922 work “Racial Traits in Athletics” stated that “the South
American athlete has not the physique, environment or disposition which makes for the
champion athlete”. But what Mitchell and others failed to note was that South American
teachers, translators, and players were promoting versions of sports, particularly football, that
limited physical violence on the playing field. They were consciously “civilizing” the game for
their own ends. The number of independent national translations published between 1910
and 1912 (for example Reglas, 1910; Oliveira, 1912; Manquilef, 1912, Reglamento, 1912)
responds to the coming together of a shared continental trajectory as the games’ international
framework began to coalesce around FIFA.
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Matthew Brown
Conclusions
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Translating the Rules of Football in South America, 1863-1914
We still know far too little about the role of referees in shaping football cultures in the
early years of the sport. Historians have preferred to investigate players, fans, and playing
spaces in their search for the origins of the traditions and identities that continue to shape our
lives in the twenty-first century. This article has sought to bring the role of translators out of
the darkness and into the global history of football and its social significance. The next step
will be to investigate the reception of those sporting rules, through the history of referees and
the always incomplete implementation of the law. Referees had to interpret the laws of the
game, and in order to do that, the interpreters relied on the hidden labour of the translators.
Notes
1 Of course this argument is based on just the surviving fragment of the contemporary source material. I do
not doubt that very many more translations of the rules of soccer survive in club libraries and private collec-
tions that I have not accessed, and I hope that this article serves to bring others to light. I am grateful to the
reviewers of this article for bringing further potential sources to my attention,
2 Held in the Sergio Lodise Collection in Buenos Aires, kindly shared with me by Chris Bolsmann.
3 This is an ambiguous translation — use of terms rester for to take, literally to “wrest”; tomar also to take,
translated here as “received”.
4 I am very grateful to Martin Da Cruz for sharing this document with me.
5 Henry Castle Ayre, born in Bedminster, Bristol, in the first quarter of 1852. Somerset births ref: 5C/768. In
the 1871 UK Census he was living in Denmark Place, Horfield, Clifton, Bristol, with his brothers and sisters.
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Artigo
DOI: http://dx.doi.org/10.1590/S2178-14942019000300003
I
Universidade Federal de Santa Maria. Santa Maria – RS, Brasil.
*
Professor do Departamento de História da Universidade Federal de Santa Maria. (jmalaia@gmail.com)
ORCID id: https://orcid.org/0000-0001-7154-3860
Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 68, p. 589-608, setembro-dezembro 2019 589
João Manuel Casquinha Malaia Santos
Resumo
Num conturbado contexto político e de valorização da excepcionalidade do colonialismo português por parte
do governo salazarista, o Sporting Clube de Portugal fez uma excursão de jogos de futebol às suas duas
maiores colônias na África, Angola e Moçambique, com atuações também em Joanesburgo e Leopoldville.
Por meio da análise de periódicos da imprensa da metrópole e das colônias africanas, buscamos entender
as relações entre o futebol e a política colonial portuguesa, a difusão do discurso do lusotropicalismo e da
exaltação das obras do “gênio colonial português”, além das tensões, esportivas e raciais, dessa experiência
de convívio imperial.
Abstract
In a troubled political context and in times of appreciation of the exceptionality of Portuguese colonialism by
the Salazar government, Sporting Clube de Portugal made a tour for football matches in its largest colonies
in Africa, Angola and Mozambique, with performances in Johannesburg and Leopoldville as well. Through the
analysis of press journals in the metropolis and the African colonies, we sought to understand the relations
between football and Portuguese colonial politics, the diffusion of lusotropicalismo discourse and the exalta-
tion of the works of the “Portuguese colonial genius”, besides the racial and sports tensions of this imperial
experience.
Resumen
En un contexto político difícil y en tiempo de apreciación de la singularidad del colonialismo portugués por el
gobierno de Salazar, Sporting Clube de Portugal hizo una gira con partidos de fútbol en las dos colonias más
grandes de África, Angola y Mozambique, con actuaciones también en Johannesburgo y Leopoldville. A través
del análisis de la prensa periódica de la metrópoli y de las colonias africanas, tratamos de comprender las
relaciones entre el fútbol y la política colonial portuguesa, la propagación de expresión del lusotropicalismo y
la exaltación de las obras del “genio colonial portugués”, más allá de las tensiones, deportivas y raciales, de
esta experiencia de convivencia imperial.
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“Os Leões em África”: futebol e política no Império Colonial português (1954)
Introdução
N a primeira metade dos anos 1950, a equipe de futebol do Sporting Clube de Portugal
foi a principal equipe portuguesa e a mais engajada em disputas internacionais. Entre
as temporadas 1950/1951 e 1953/1954, o clube conquistou os quatro títulos nacionais por-
tugueses de futebol, sagrando-se ainda campeão da Taça de Portugal também na temporada
1953/1954. Entre 1951 e 1953, a equipe visitou o Brasil para torneios e amistosos interna-
cionais. Ao fim da temporada 1953/1954, entre julho e agosto, o Sporting, cujo símbolo é um
leão, fez uma digressão pelo continente africano para jogos amistosos organizados por suas
filiais em Angola e Moçambique. Além das atuações nas colônias portuguesas, realizou jogos
em Joanesburgo, contra a seleção do Transvaal do Sul, e no Congo belga, contra a seleção
de Leopoldville.
Os resultados e os placares mostram superioridade da equipe da capital portuguesa.
Foram 12 jogos, com 11 vitórias e um empate, 55 gols marcados e 14 sofridos. No entanto,
os números podem enganar, e olhar apenas para o que aconteceu no campo não revela o
significado dessa viagem. Para o presidente do clube, Carlos Cecílio Nunes Gois Mota, secre-
tário da Procuradoria-Geral da República e que pertenceu à Legião Portuguesa, milícia oficial
do governo salazarista (Madeira, 2007), a digressão dos “leões” na África era um projeto de
propaganda política. Mota acompanhou pessoalmente a delegação e mobilizou personagens
do poder colonial e da imprensa, tanto da metrópole quanto das colônias.
A viagem aconteceu num dos períodos mais delicados da política colonial de Manuel Sala-
zar. Em meio a um debate internacional sobre o processo de condenação à situação colonial na
África e na Ásia, o governo português buscava navegar “contra o vento” (Alexandre, 2017) e criar
elementos para fazer com que suas colônias se pensassem como parte do Império. Foi o período
da exaltação do lusotropicalismo, o conjunto de narrativas a partir da nação imperial que expli-
cavam o excepcionalismo colonial português, “narrativas que nomearam, edificaram, retificaram,
codificaram e finalmente reproduziram o pensamento imperial/colonial” (Ribeiro, 2013: 544).
A esse conjunto de ideias, juntavam-se medidas do governo salazarista e celebrações
que pudessem envolver representantes de todo o Império. A alteração da nomenclatura de
colônias para províncias pela Lei Orgânica do Ultramar (1953) e a mudança no Estatuto do
Indígena, criando a categoria de assimilado para os africanos (1954), eram exemplos das
ações do governo no sentido de mostrar um colonialismo mais brando. Foi também o tempo
das celebrações dos 25 anos do governo Salazar (1953) e da viagem do presidente português
Craveiro Lopes às colônias africanas (1954), eventos em que ficava clara a atuação da impren-
sa do ultramar no sentido da adesão ao programa político salazarista.
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Todo esse processo, no entanto, também sofria reveses que revelavam a violência e
as fragilidades do colonialismo português. Em fevereiro de 1953, em São Tomé, o tenente-
-coronel Carlos de Souza Gorgulho, a mando do governo colonial, comandou o que ficou
conhecido como “Massacre de Batepá”, após uma recusa de trabalho dos forros por conta
das condições precárias de trabalho impostas pelo governo colonial. O evento vitimou “um
número indeterminado de forros, o grupo etnocultural dominante em São Tomé e Príncipe”
(Rodrigues, 2018: 63).
O contexto político em que aconteceu a digressão do Sporting foi extremamente con-
turbado e carregado de dramaticidade. Quando o Sporting chegou a Moçambique, ao fim de
junho de 1954, os enclaves portugueses na Índia de Dadrá e Nagar-Aveli passaram a sofrer
ataques de grupos nacionalistas da União Indiana (Alexandre, 2017), processo que continuou
durante todo o tempo em que o Sporting esteve na África.
Por conta de toda essa efervescência política, o Estado Novo investiu em transferências
culturais de um lado e de outro (Peralta e Domingos, 2013). Era preciso criar zonas de con-
tato com experiências culturais de lado a lado, e as práticas esportivas fizeram parte desse
processo. Além do aumento das digressões de clubes portugueses em direção às colônias
africanas e também no sentido contrário,1 jornais de grande circulação em Portugal, Angola e
Moçambique passaram a fazer inúmeros pedidos pela realização dos Jogos do Império e pela
participação de clubes do ultramar na Taça de Portugal.2
Com base na perspectiva da história imperial, analiso a maneira como a digressão do
Sporting foi relatada em setores-chave da imprensa popular imperial, “o meio pelo qual polí-
ticos e o público se enfrentavam via jornalistas, editores e proprietários, e onde as notícias se
misturavam com entretenimento e muitas vezes se confundiam” (Lewis, 2017: 465).
A cobertura da imprensa da metrópole e das colônias serviu para que o Império por-
tuguês pudesse ser lido por um amplo público, agindo no sentido de ampliar a experiência
imperial. As crônicas escritas por membros da delegação do clube português, como “Os Leões
em África”, do goleiro Carlos Gomes, e, principalmente, a “Rota da Saudade”, de Mota, nos
mostram uma exaltação ao portuguesismo, ao “gênio colonial português” e ao próprio Impé-
rio ultramarino.
A cobertura da imprensa imperial serviu também para mostrar as possibilidades de fissu-
ra que o futebol trazia para a reverberação de um discurso uníssono na rede imperial, revelan-
do quão ancorado numa divisão racial estava esse colonialismo (Araújo, 2013).
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entre esferas do poder central e dos poderes locais. Ele aponta a criação por colonos de filiais dos
clubes europeus na África, os meios de comunicação e as excursões de clubes metropolitanos
como responsáveis pela criação de experiências imperiais, em que colonos podiam se sentir efe-
tivamente representantes da metrópole e a própria metrópole podia ali se fazer sentir presente.
Apesar de as digressões dos clubes portugueses serem apontadas como um dos três
pilares na formação das narrativas de um futebol metropolitano em Lourenço Marques — po-
dendo-se estender para as demais cidades coloniais africanas portuguesas —, pouca atenção
foi dada às viagens de clubes metropolitanos às colônias portuguesas, situação diferente na
literatura sobre o império britânico.
Um dos primeiros pensadores a se dedicar a compreender os tours esportivos imperiais
foi C. L. R. James (1963), no contexto da luta pela Independência da Índia. O autor apontou
um aspecto importante para análises sobre atividades que colocavam frente a frente equipes
metropolitanas contra equipes coloniais: a necessidade de observar que as paixões sociais e
políticas, negadas nos canais normais, se expressavam muito bem no críquete e em outros
jogos, precisamente por serem jogos.
Tais digressões, e também aquelas de grupos coloniais em direção à metrópole, se tor-
naram um dos pontos de análise privilegiados na historiografia imperial britânica — seja
como elemento para cimentar as relações coloniais, como Allen (2007) tratou as primeiras
digressões de times ingleses de rúgbi em solo sul-africano, seja como um presságio para
o futuro do Império Britânico, como McDevitt (2004) mostrou que a imprensa imperial abor-
dou as derrotas para seleções da Nova Zelândia (1905) e da África do Sul (1906), ambas nas
ilhas britânicas.
A própria natureza competitiva das provas esportivas estabelecia um clima de medição
de capacidades que era explorado pela imprensa que cobria os eventos. Por esse motivo, olhar
para o conjunto de atividades desenvolvidas na viagem do Sporting e a cobertura por jornais
da metrópole e das colônias africanas nos ajudam a entender os elementos culturais e ideoló-
gicos que cimentavam essa rede imperial, mas também seus pontos de tensão, que podem ser
presságios para o futuro do Império. Em artigos que opõem necessariamente metropolitanos
e coloniais, devem-se perceber, além do “alinhamento da imprensa ao Estado Novo” (Fonseca,
2017: 264), possíveis críticas à política colonial portuguesa. A descrição da prática desportiva
muitas vezes pode ter mais liberdade, passando despercebida pela censura, como nos alerta
Robert Edelman (1993), ao analisar os jornais esportivos soviéticos do período do stalinismo.
O corpus principal de fontes é composto por periódicos publicados na metrópole e nas
colônias portuguesas na África. Foram analisados jornais portugueses (O Século, Diário de
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Notícias, Diário de Lisboa, A Bola, Record, Mundo Desportivo e Jornal do Sporting), moçambi-
canos (Guardian, Guardian Desportivo, Notícias da Beira, Notícias da Tarde e Brado Africano)
e angolanos (Angola Desportiva e Voz do Planalto).
Os jornais escolhidos foram aqueles indicados como os de maior popularidade na metró-
pole e nas colônias africanas em trabalhos como os de Rocha (2000); Fonseca (2014); Garcia,
Kaul, Subtil e Santos (2017); Garcia, Alves e Léonard (2017); Kumar (2017). Além disso, o
Jornal do Sporting foi importante fonte de análise, uma vez que expressa a visão institucional
do clube.3 Passemos à compreensão da viagem do Sporting como um projeto não apenas
esportivo, mas também político, cuidadosamente pensado por seu presidente Mota.
As digressões africanas das principais equipes portuguesas e o ciclo de inaugurações dos es-
tádios nos anos 1950, a par da presença de alguns elementos do regime nas direções dos
principais clubes portugueses, podem com alguma facilidade integrar o mesmo quadro analítico
ou uma periodização política da história do futebol português e do seu lugar no espetáculo
fascista (2017: 165).
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ros. Ele visitou o Jornal dos Sports, no Rio de Janeiro, onde manteve “cordial conversa” com o
proprietário, Mario Filho,6 autor de O negro no futebol brasileiro, obra prefaciada por Gilberto
Freyre, um dos articuladores do lusotropicalismo português. Além disso, ministrou palestras,
como a de título “O desporto e a cultura”,7 no Gabinete Português de Leitura, em evento
organizado pelo embaixador português no Brasil, Antônio de Faria. Em 1952, o presidente do
Sporting foi ainda condecorado como oficial da Ordem do Cruzeiro, em solenidade no Itama-
raty, organizada pelo ministro das Relações Exteriores, João Neves da Fontoura.
Podemos compreender como Mota pensava a condução do clube e a própria digressão
às colônias africanas por meio dos editoriais do Jornal do Sporting durante sua gestão, a
partir de 1953. Na mesma edição em que o clube anunciou sua ida à África, podia ser lido
num editorial:
Há largos anos o Sporting vem procurando orientar sua política clubística e a sua mentalidade
clubística no sentido de se tornar um elemento ativo e eficiente na vida da Nação e, particular-
mente, no ressurgimento intelectual moral e cívico da Raça Portuguesa.8
No mesmo texto, diz-se que o esporte poderia e deveria ser usado em Portugal para
“ligar as diferentes regiões, promovendo o seu mútuo conhecimento, a sua mútua estima e,
por este meio, a unidade de pensamento e de ideal entre a população do país, tão necessária
à unidade da Nação”.
Em outro editorial, esclarecia-se o que movia o clube na viagem à África portuguesa:
Nesta hora de alta de entusiasmo “leonino” e fervor patriótico, não podemos ficar calados
perante o alto significado da visita do Sporting às Províncias Ultramarinas de Moçambique e
Angola. Orgulhosos do esforço e dedicação dos propagadores deste ideal que é uma continua-
ção de nós próprios, sentimos que esta viagem, Rota da Saudade, como lhe chamou o grande
sportinguista que chefia a Embaixada, é o melhor elo de ligação entre as vontades inigualáveis
que mantém bem viva a chama sportinguista na Metrópole e na África Portuguesa.9
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viva que fosse escutado em toda a terra portuguesa e até na Índia Portuguesa, a Índia do
nosso coração”.11 Ele afirmou que o Sporting não era apenas um clube metropolitano, “pois
nos seus atletas existiam valores do Ultramar”,12 referindo-se a Pacheco (Macau), Juca (Mo-
çambique) e Mendonça (Angola).
Em Luanda, em recepção na filial local com representantes do esporte angolano, Mota
proferiu discurso destacando novamente que o Sporting era um clube “bem português” por
ter em seu time principal jogadores de “Macau, Moçambique e Angola”. Terminou com “fra-
ses repassadas do mais são patriotismo”, fazendo alusão “ao momento que nossa nação
está vivendo pela covarde agressão levada a efeito numa das parcelas do território nacional,
fazendo correr o sangue português”.13
O dirigente máximo do Sporting foi pessoalmente às redações dos jornais, dando en-
trevistas ou deixando textos para serem publicados. Após visitar, por exemplo, o Notícias da
Beira e o Guardian, os dois jornais concorrentes da capital de Manica e Sofala (Moçambique)
publicaram o mesmo texto, no qual podia ser lido que a Beira era o lugar “onde o patriotismo
domina e eleva o espírito, integrando todos no sentido histórico do Portugal eterno”.14
Mota levou também a delegação diversas vezes às sedes dos governos das províncias,
das câmaras municipais e até dos bispados.15 Foi assim em todas as cidades por onde passa-
ram, tanto em Moçambique quanto em Angola. Além disso, as autoridades locais estiveram
sempre presentes aos jogos. Em Angola, foi registrado inclusive o apoio do presidente da
Câmara Municipal de Nova Lisboa, Serafim Moler, para que se concretizasse o “intercâmbio
desportivo Metrópole-Províncias Ultramarinas”.16
No encalço das agressões da Dadrá e Nagar-Aveli, Mota levou a delegação ao governa-
dor-geral de Moçambique, no Palácio da Ponte Vermelha, sede do governo em Lourenço Mar-
ques, declarando que a “embaixada leonina” classificava a atitude como “atentatória ao brio
nacional” e que “o sentimento patriótico leonino” fazia com que todos estivessem revoltados
com a violência da União Indiana. Por isso, apresentavam-se todos “em armas” pela defesa da
unidade imperial e dos territórios indianos que, se eram “há séculos portugueses, portugueses
hão-de continuar a ser”.17
O presidente do Sporting, em sua crônica para o Mundo Desportivo, declarou que esses
jogadores faziam parte de um grupo que, “movido por um ideal mais alto, haviam oferecido a
sua vida para que Portugal continuasse íntegro, uno e indivisível”.18 O governador teria agra-
decido, dizendo que “faria ciente ao governo da nação tão patriótica atitude”.19
As crônicas de Mota para o Mundo Desportivo cumpriam importante papel na descrição
das colônias para o imaginário do leitor metropolitano e como propaganda do salazarismo e
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do colonialismo português. Os jogos não são descritos, a não ser contra a equipe sul-africana.
O dirigente usou esse espaço para dar a conhecer as expressões que considerava máximas do
colonialismo português.
O presidente do clube lisboeta descreveu a chegada à cidade de Lourenço Marques, onde
“europeus e indígenas20 saúdam-nos entusiasticamente”. Na passagem pelo bairro indígena
de Xipamanine, “os pretos e as consortes, velhos e novos, homens mulheres e crianças, agi-
tam bandeirinhas e gritam em coro: Sporting! Sporting! [...] Viva Portugal!”.21 O dirigente fez
questão de voltar ao bairro durante sua estadia na capital moçambicana. Levou a delegação
do Sporting para confirmar o “portuguesismo desta linda terra”. A visita fora oferecida pela
Associação Africana de Futebol de Lourenço Marques e “por um numeroso grupo de africanos
adeptos deste clube”.
Emocionado com a maneira alegre com que os negros africanos enfrentavam as pre-
cárias condições no bairro de Xipamanine, Mota não se cansava de elogiar o orgulho dos
africanos em tentarem reproduzir modos e hábitos portugueses e por terem orgulho de se
sentir portugueses. Com lágrimas nos olhos, o presidente do clube teria ainda mais certeza do
“porvir do Império edificado com sofrimento e dedicação, devoção e espírito de sacrifício”.22
Na continuidade de suas crônicas, descreveu Lourenço Marques como a “terra portu-
guesa de inigualável portuguesismo”, prova do “gênio colonizador” português, “expressão
do seu valor incontestado [...] padrão de um novo mundo que desabrocha para o futuro gran-
dioso que a espera na civilização desta parcela de Portugal”.23 Quelimane era o “expoente da
tradição centenária da nossa adaptação ao meio e aos hábitos dos povos”, com sua economia
agropastoril, seu “encanto e misteriosa sedução”, suas areias duras da praia, onde faziam
pistas para automóveis em “velocidade de loucura”.
Na Beira, afirmava que toda a população via em Salazar um “chefe reconhecido e in-
contestado” e que a cidade, como obra de resgate do Estado Novo nacionalista, “garantia
as tradições seculares da nossa História”, ato “dos altos desígnios do maior gênio latino da
governação pública”. A população “ordeira e trabalhadora” era um “exemplo vivo” do que
era capaz “Portugal, como mestre dos povos colonizadores”.24
Luanda era o “grande centro de progresso e de expansão, fruto da fé, da perseveran-
ça, da heroicidade inigualável dos pioneiros e dos que as suas pegadas de glória souberam
seguir”. Benguela era onde havia oportunidades para pôr à prova “nosso temperamento, as
virtudes da nossa raça e os nossos defeitos”. Afirmava ser este o motivo pelo qual Deus fizera
o mundo tão grande e Portugal tão pequeno: demonstrar “quanto pode o homem animoso,
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dinâmico, entusiasta, trabalhador”, dando aos portugueses “esse gênio sublime”, com capa-
cidade de criar um “Império em todos os oceanos e em todos os continentes”.25
Mota descreveu também a viagem à reserva de caça de Gorongosa, organizada pela
filial do clube da Beira. A descrição revela a exuberância da natureza e cada um dos diferentes
animais que a delegação conseguiu ver e caçar. Mostrava assim aos leitores portugueses mais
um pouco da pujança do Império Ultramarino português.26
A outra visita descrita foi ao Campo Militar Boane. O presidente do Sporting contou
sobre os “guerreiros negros”, ficando “maravilhado e inebriado” ao ouvir soldados africanos
cantarem “com toda a força dos seus pulmões” o hino de Portugal. Narrou o diálogo que teve
com um desses soldados:
— Que acabou você de cantar?
— Os “Heróis do Mar” — responde-me o soldado que soube ser de Inhambane.
— E que lhe lembra esse cântico? — Ataquei eu curioso pela resposta que veio,
imediata e sem a mínima hesitação.
— Lembra os feitos dos nossos antepassados!
— Mas sente alguma coisa quando canta?
— Sim, vontade de combater por Portugal!
Por Portugal... foi a expressão que me ficou na mente.27
Ao posicionarmos o Sporting nesse contexto, principalmente por meio de ações, palavras
e textos de seu presidente, podemos compreender como Mota pensava a atuação do clube
pelo qual era responsável. Mas nem só de elogios ao colonialismo e à obra do “gênio colonial
português” estavam carregadas as páginas da imprensa imperial. Algumas tensões podem ser
percebidas, a despeito da censura à imprensa instaurada pelo regime salazarista.
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Quase todos os jogos suscitaram dúvidas quanto ao verdadeiro significado dos placares
por parte da imprensa colonial, e comparações com o futebol metropolitano foram inevitáveis.
Para o cronista de O Brado Africano, a ida do Sporting a Moçambique era o “último exame para
a apreciação das diferenças e distâncias que existem entre os portugueses moçambicanos e os
metropolitanos”.28 Exceto nos jogos contra as seleções da Zambézia (9x0), da Beira (7x0), e
contra o Sporting de Luanda (11x2), nos outros seis jogos contra equipes coloniais, os placares
foram por diferença de dois gols em quatro deles, diferença de três gols em outro, e ainda hou-
ve um empate, contra a seleção de Lourenço Marques. Tais resultados foram contestados nos
jornais de Moçambique e Angola por meio de muitas críticas, principalmente às arbitragens.
O empate foi o resultado que mais colocou em causa a superioridade do Sporting. O
Guardian, afirmava, “como sempre dizia”, que os jogadores da metrópole não eram melhores
que os de Moçambique.29 O Notícias da Beira aproveitava o resultado para voltar a defender
como legítimo o desejo de uma equipe moçambicana participar da Taça de Portugal. O Brado
Africano, conhecido por defender os interesses dos moçambicanos (Rocha, 2000), afirmou
que os jogadores que atuaram por aquele selecionado nem de longe representavam o melhor
dos atletas de Lourenço Marques. Referia-se aos jogadores negros dos clubes da Associação
Africana de Futebol, que reunia os clubes dos subúrbios da capital moçambicana (Domingos,
2012), excluídos da possibilidade de participar dos encontros. Na conclusão, afirmava: “Lou-
renço Marques não precisa de mais exames.”30
A crítica do Brado Africano dava voz a uma das contradições da alegada excepcionalida-
de do colonialismo português: o racismo. Ainda que não instituído legalmente, o racismo está
presente nas descrições da população negra africana na imprensa, sobretudo a metropolitana
(Almeida, 2016).
Os jornais esportivos portugueses publicaram inúmeras charges sobre a digressão. Nelas,
um traço comum pode ser percebido: a estigmatização e a inferiorização da África, do negro
e do futebol africano. As charges publicadas apresentam o Sporting representado por um leão
humanizado que domina, ridiculariza e até engole o futebol africano, representado por negros
com uniformes de futebol.31 Numa delas, são colocados negros uniformizados num campo de
futebol, carregando lanças e comunicando, frente à surpresa do árbitro branco, que haviam
sido chamados para “caçar leões”,32 sendo ridicularizados por não conhecerem questões da
cultura da metrópole.
Em outra charge, negros aparecem na selva com vestimentas tribais, amedrontados
com a chegada de um leão com o uniforme do Sporting e chuteiras: a “fera” que vinha da
metrópole.33
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Conclusão
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Notas
1 Clubes portugueses foram a Angola e Moçambique, como as visitas do Benfica e do Marítimo do Funchal
(1950) e do Atlético de Lisboa (1951). Experiências no sentido contrário também aconteciam, mas com outros
esportes, como as viagens a Portugal dos times moçambicanos de basquete do Ferroviário, em 1951 (Eco dos
Sports, Moçambique, 27 de outubro de 1951, p. 15), e de hóquei em patins do Sindicato Nacional dos Empre-
gados do Comércio e da Indústria, em 1955 (Eco dos Sports, Moçambique, 30 de julho de 1955, p. 9 e 15).
2 Na edição de 10 de julho de 1954 de A Bola, na capa, o cronista Aurélio Márcio defende que a Taça de
Portugal deveria “ser disputada por todos os clubes incluindo os representantes das ilhas adjacentes e do
Ultramar”. Em Moçambique, o Guardian Desportivo também defendia a entrada dos clubes do ultramar em
competições de futebol na metrópole. Outro moçambicano, o Eco dos Sports, apresentou em sua capa de 29
de dezembro de 1953 a “Petição dos atletas de Moçambique ao Ministério das Colônias” pela realização dos
Jogos do Império. Já o Jornal de Angola, no rescaldo da visita do presidente português àquela colônia, publi-
cou em seu editorial de 30 de junho de 1954 o texto de título “As províncias ultramarinas e a reorganização
séria do desporto português”, requisitando: “Aqui também é Portugal.”
3 O Sporting não disponibilizou documentos requisitados, como atas de assembleias de sócios, da direção e
do conselho, nem nenhum tipo de documento oficial para além do jornal do clube.
4 Pouco se pode afirmar quanto à ligação de Gois Mota com os documentos oficiais da própria Legião Por-
tuguesa. Um ofício do Comando Geral da Legião Portuguesa dá conta de um “indivíduo suspeito” de nome
Jorge de Oliveira que insistia em falar com Gois Mota. Fundo Legião Portuguesa. Ofício n. AG2357 LP/SI de 24
de outubro de 1941. LP, AG 2357, NT 1478. Arquivo Nacional Torre do Tombo, Lisboa, Portugal.
5 Havia preocupação do governo salazarista com as viagens de clubes portugueses ao exterior. A direção-ger-
al do Ministério da Educação, por exemplo, negou ao Benfica a possibilidade de realizar três jogos no Brasil
em 1947, com receio de o clube português não conseguir representar bem as cores nacionais (Kumar, 2017).
6 Jornal dos Sports, Rio de Janeiro, 16 de julho de 1952, p. 6.
7 Jornal dos Sports, Rio de Janeiro, 11 de julho de 1952, p. 8.
8 Jornal do Sporting, 12 de junho de 1954, p. 3.
9 Jornal do Sporting, 31 de julho de 1954, p. 4.
10 Guardian, 1º de julho de 1954, p. 6.
11 Guardian Desportivo, 29 de julho de 1954, p. 11.
12 Jornal do Sporting, 7 de agosto de 1954, p. 3.
13 Angola Desportiva, 17 de agosto de 1954, p. 2.
14 Notícias da Beira, 15 de julho de 1954, p. 10, e Guardian, 21 de julho de 1954, p. 5.
15 Ulisses de Oliveira atesta em sua crônica o fato de ficar impressionado com a multidão presente no
aeroporto e nas ruas a caminho do hotel. Afirma ainda que todo o grupo foi também recebido pelo cardeal-
-arcebispo Teodósio Gouveia. Record, 7 de julho de 1954, p. 7.
16 Angola Desportiva, 17 de julho de 1954, p. 7.
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“Os Leões em África”: futebol e política no Império Colonial português (1954)
48 A Bola, 29 de julho, p. 1.
49 Angola Desportiva, 17 de agosto de 1954, p.3.
Referências bibliográficas
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608 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 68, p. 608-608, setembro-dezembro 2019
Artigo
DOI: http://dx.doi.org/10.1590/S2178-14942019000300004
I
Universidade de São Paulo (USP), São Paulo – SP, Brasil.
Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 68, p. 609-632, setembro-dezembro 2019 609
Marcel Diego Tonini e Sérgio Settani Giglio
Resumo
O presente artigo tem por objetivo analisar a transferência de jogadores de futebol dentro do sistema da
FIFA, com destaque para os brasileiros que foram para a Espanha e a Itália. Essas transferências trazem
para o debate o contexto no qual os atletas passavam a se inserir, o da imigração. Por meio dos estatutos e
regulamentos da FIFA, procuramos entender quais as condições de transferências de jogadores e, com base
na historiografia e em diversas fontes, buscamos elaborar um histórico da ida de futebolistas brasileiros para
a Europa de 1920 até o início dos anos 1970.
Abstract
The aim of this article is to analyze the transfer of football players within the FIFA’s system, especially Brazilians
who went to Spain and Italy. These transfers bring to the debate the context in which athletes belong, that of
immigration. Through FIFA’s statutes and regulations, we sought to understand the conditions of player trans-
fers and, based on historiography and various sources of research, we sought to draw up a history of Brazilian
footballers going to Europe from 1920 until the early 1970s.
Resumen
El presente artículo tiene por objetivo analizar la transferencia de jugadores de fútbol dentro del sistema de
la FIFA, con destaque para los brasileños que se trasladaron a España e Italia. Estas transferencias traen para
el debate el contexto que los atletas pasaban a insertarse, el de la inmigración. Por medio de los estatutos y
reglamentos de la FIFA, buscamos entender qué condiciones de transferencias de jugadores y, con base en
la historiografía y diversas fuentes, buscamos elaborar un histórico de la ida de futbolistas brasileños hacia
Europa desde 1920 hasta principios de los años 1970.
610 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 68, p. 610-632, setembro-dezembro 2019
A transferência de jogadores no sistema FIFA e
a migração de brasileiros para a Europa (1920-1970)
Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 68, p. 611-632, setembro-dezembro 2019 611
Marcel Diego Tonini e Sérgio Settani Giglio
tanto os que migravam com uma condição de emprego estruturada quanto aqueles que não
tinham algo de concreto era exatamente um aspecto do qual dificilmente se livrariam: o fato
de serem estrangeiros.
É interessante pensar que a experiência proveniente do fluxo migratório dos jogadores
brasileiros ao exterior não difere, em grande parte, do que encontravam os imigrantes que
chegavam ao Sul e Sudeste do Brasil. Os discursos e a discriminação etnofóbica e racista
eram direcionadas aos europeus e asiáticos, porque estes passaram a representar boa parte
da classe trabalhadora (Moya, 2018). Os negros, que antes ocupavam esse espaço no sistema
escravagista, estavam excluídos desse processo e foram sendo integrados na sociedade de
classes com o passar das décadas (Fernandes, 2008).
Nesse caso, um dado demográfico aponta para uma questão importante: quem eram
os jogadores brasileiros que iam para o exterior nos primeiros anos em que esse mercado
futebolístico estruturava-se? Segundo Rial (2009a: 9-10), no Brasil havia 5 milhões de emi-
grantes europeus em 1930, e desse total 34% eram descendentes de italianos. Desse modo,
a primeira onda de brasileiros para jogar na Europa tinha como origem um clube paulista,
o Palestra Itália. Em suas palavras: “É importante notar que, legalmente, essa não era uma
imigração, uma vez que os descendentes de italianos eram vistos como rimpatriati gozando
de direitos plenos de qualquer cidadão italiano.” Esse “retorno” consolidou-se como uma
condição para os jogadores brasileiros a partir da metade década de 1920 (Rial, 2008;
Tonini, 2016).
Conforme pontuam Truzzi e Monsma (2018), os fluxos migratórios criam novas confi-
gurações e ressignificações em um complexo processo de interação social. E, nesse contexto:
“Migrantes muitas vezes não são bem-vindos e causam ansiedade ao serem encarados como
ameaças econômicas, políticas e culturais; outras vezes, são simplesmente invisibilizados, e
outras ainda, encarados como necessários ou até mesmo convenientes.” (Truzzi e Monsma,
2018: 20). O drama, para os jogadores de futebol, não estava, por certo, estabelecido ao
cruzar a fronteira. Mas o de participar de uma nova realidade, de se manter em uma nova
condição como atleta profissional.
Neste artigo, discutiremos a imigração de jogadores brasileiros entre as décadas de 1920
e 1970, sobretudo para a Itália e a Espanha, e como os regulamentos da FIFA impunham as
condições as quais eles teriam de cumprir.
612 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 68, p. 612-632, setembro-dezembro 2019
A transferência de jogadores no sistema FIFA e
a migração de brasileiros para a Europa (1920-1970)
Para adicionar ao artigo 31: (f) As competições abertas a diferentes nações só podem ser dispu-
tadas entre clubes, associações ou nações. As equipes só podem competir com clubes ou equi-
pes representando associações ou nações com o consentimento especial de todas as equipes
competidoras e das associações envolvidas com a Federação. Cada Associação filiada deve ter
em seu código uma regra proibindo e punindo violações desses regulamentos.
(O Congresso expressou a opinião de que, em todas as partidas entre clubes de diferentes na-
cionalidades, as equipes devem ser compostas, exclusivamente, de jogadores que sejam mem-
bros de bona fide de tais clubes.) (Estocolmo, 30 jun.-1o jul. 1912, tradução nossa).
Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 68, p. 613-632, setembro-dezembro 2019 613
Marcel Diego Tonini e Sérgio Settani Giglio
A FIFA volta a produzir um novo estatuto em 1926. Nele, já é possível identificar a am-
pliação da importância do número de filiados. Se, em 1912, a FIFA tinha 12 membros, todos
europeus, o quadro de 1926 mostra uma ampliação tanto no número de membros quanto na
presença de outros continentes. Naquele momento, o número de membros havia chegado ao
de 40 países e marcava a entrada da América do Sul, com Argentina, Brasil, Equador, Paraguai,
Peru e Uruguai. Além da América do Sul, a América do Norte estava contemplada com a pre-
sença dos Estados Unidos; a África, com o Egito; e a Ásia, com a Tailândia.4
Dois pontos são mais bem detalhados nesse documento: as partidas interclubes e a mu-
dança de jogadores de associações nacionais. O artigo 40 versava sobre os jogos entre clubes
de diferentes nacionalidades e informava a necessidade de solicitar uma permissão para a
realização da partida pelo menos 14 dias antes desta. Na sequência do documento, o artigo
42 integrava o item da mudança de associação nacional por parte do atleta. A normatização
vinha no sentido de estabelecer as condições em que a mudança seria permitida, e havia
apenas uma única prerrogativa: morar, há pelo menos um ano, no país para o qual solicitava
a mudança. O artigo seguinte retomava o período de 14 dias para comunicar tal fato, mas
havia a prerrogativa de a associação de origem poder analisar o pedido dentro de três meses.
Caso refutasse o pedido, não era exigida nenhuma justificativa por parte da associação de
origem, e, após um ano, o atleta poderia ser incorporado à sua nova associação nacional.5
Essa regra era uma forma de mostrar o quanto a FIFA estava interessada em controlar todo
o processo e, para conseguir estabelecer o controle, o quanto precisava da presença atuante
das associações nacionais.
No estatuto produzido pela FIFA em 1927, há uma mudança sutil, mas importante, que
se refere ao momento pelo qual passava a entidade. No Congresso do COI, realizado em
Praga no ano 1925, houve um grande debate em torno das definições de amador e profissio-
nal dentro do movimento olímpico e que, por consequência, reverberava nas federações que
integravam o COI. A FIFA e o COI, apesar de divergirem quanto à definição que deveria ser
adotada, ao final daquele congresso chegaram a um consenso a respeito da compensação por
perda de salário. Ou seja, o atleta não poderia receber da federação a compensação finan-
ceira pelo tempo em que ficasse afastado de seu trabalho de origem. Anos mais tarde, a FIFA
mudava de posição e aceitava a compensação por perda de salário. Tal fato afastou-a do COI,
culminou na retirada do futebol do programa olímpico e direcionou a FIFA para a criação de
sua Copa do Mundo de Futebol (Giglio, 2013; Giglio e Rubio, 2014; Giglio, 2018). É possível,
portanto, inferir que, dois anos mais tarde, a FIFA considerou necessário distinguir o item sobre
a mudança de associação nacional.
614 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 68, p. 614-632, setembro-dezembro 2019
A transferência de jogadores no sistema FIFA e
a migração de brasileiros para a Europa (1920-1970)
Se, em 1926, não havia distinção clara, o documento de 1927 divide os artigos entre
amadores (artigo 42) e profissionais (artigos 43-44). Essa divisão ficou mantida nos estatutos
seguintes (1928, 1929, 1931).6 O item referente aos amadores é o mesmo apresentado no
ano anterior. Porém, para os profissionais, havia uma prerrogativa salarial, e sem a definição
temporal estabelecida, agora, para os pedidos referentes aos amadores. Caso fosse negado o
pedido, o salário deveria ser mantido, reforçando-se que o jogador estava submetido às regras
da FIFA. Ainda referente ao pedido negado, a decisão final seria dada pela Comissão de Ama-
dorismo.7 Embora a distinção entre amadores e profissionais estivesse em curso como condi-
ção fundamental do estabelecimento das regras do esporte, pode-se inferir que a presença de
uma Comissão de Amadorismo como responsável para analisar os casos dos atletas amadores
e profissionais revelava o processo de transição que ganharia força, quando a FIFA fosse reti-
rada dos Jogos Olímpicos após 1928 e criasse sua Copa do Mundo de Futebol na sequência.
No estatuto de 1932-1933, os artigos referentes aos pontos aqui destacados mudam de
número. Passam a compor o estatuto do artigo 27 ao 28 para as partidas interclubes e do 29
ao 31 para a troca de associação nacional por parte do atleta. A modificação que ocorre nesse
documento refere-se à supressão da divisão de profissionais e amadores, mas continuam
mantidas a Comissão de Amadorismo como espaço definidor em caso de divergências e a re-
ferência explícita aos profissionais. Além disso, no artigo 29, o período para avisar o interesse
pela troca de associação era ampliado em uma semana, passando de 14 para 21 dias.8
O artigo 30 fazia referência direta aos profissionais e destacava que, “uma vez terminado
o contrato, ele [o atleta profissional] tem a liberdade para ingressar em qualquer país. Nenhum
clube ou Associação está autorizada a reter contratualmente os serviços do atleta sem pagar
um salário mínimo previsto por seu contrato”9 (FIFA Statutes, 1932-1933: 31, tradução nossa).
O estatuto de 1934 promove mudanças no tempo referente a certos pedidos. O artigo
27, agora, contemplava alguns itens, entre os quais, destacamos: a possibilidade de agendar
uma partida contra um clube de fronteira com antecedência mínima de 24 horas; ficava proibi-
da a organização de partidas lúdicas — amistosos — para fins de especulações. No item 30,
o prazo para notificar o jogador de atuar em outra associação passava para 40 dias.10
O estatuto de 1935 mantinha basicamente a mesma estrutura e a atuação do Comitê de
Amadorismo, mas este ganhava uma inclusão e passava a se chamar Comitê de Amadorismo
e Transferências. Compondo o artigo 37 do regulamento da FIFA, esse Comitê deveria ser con-
sultado em questões referentes ao amadorismo e aos assuntos provenientes do artigo 31.11
Três anos depois da inclusão do termo “transferências” no estatuto de 1938, passou a
fazer parte do vocabulário da FIFA a expressão “certificado de transferência”. Independente-
Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 68, p. 615-632, setembro-dezembro 2019 615
Marcel Diego Tonini e Sérgio Settani Giglio
mente se o atleta era amador, não amador com contrato ou licença, ou profissional e quisesse
trocar de associação nacional, obrigatoriamente deveria ter o certificado outorgado pela as-
sociação nacional da qual desejava retirar-se. As duas vias do documento seriam devidamente
divididas em: uma para o jogador e outra para ser enviada à FIFA.
A burocracia, por certo, tinha por finalidade manter o controle sobre toda a estrutura.
Desse modo, a associação nacional, ao emitir o certificado de transferência, conferia que todas
as obrigações de ordem financeira estavam quitadas. E o certificado de transferência deveria
ser entregue à nova associação nacional para compor o arquivo da entidade.
O artigo 31 referia-se exclusivamente aos jogadores amadores. Caso o atleta amador
não tivesse o certificado de transferência, poderia atuar por outra associação nacional apenas
um ano depois do pedido. Em relação ao jogador profissional, o contrato vigente tornava-se
um impeditivo para a transferência:
Um jogador profissional ou um jogador não amador com contrato ou licença não pode abando-
nar sua Associação Nacional enquanto se encontra ligado por contrato e aos regulamentos do
seu clube, de sua Liga ou de sua Associação Nacional, por mais severas que as regras possam
ser com eles, desde o momento em que estão em oposição com os Estatutos e Regulamentos
da FIFA, e das Leis de seu país.12
Essa condição não seria cumprida, ou seja, um atleta poderia romper o contrato, caso
houvesse cláusula que indicasse essa condição. Para uma rescisão antecipada, deveria ser
cumprido um aviso prévio de, pelo menos, três meses. Outro senão também permitia haver a
retenção do atleta, desde que houvesse uma cláusula com tal indicação, e nesse caso o prazo
a ser cumprido seria de um mês antes do fim do contrato.
Dez anos depois, já no pós-Segunda Guerra Mundial, o estatuto de 1948 mantinha-se
praticamente igual ao anterior. Havia, no entanto, a inclusão de uma informação a respeito dos
artigos 30, 31 e 32 que integravam o item “Jogadores que trocam de Associação Nacional”:
tais condições não seriam adotadas nas relações entre as quatro associações britânicas.13
No estatuto de 1954, o item “Proibições relativas à organização de partidas e à transferên-
cia dos jogadores” passa a compor o artigo 10 do regulamento. É a primeira vez em que aparece,
nos estatutos, a referência aos agentes. O documento indica dois itens que deveriam ser utili-
zados como tal caso as associações nacionais não tivessem em seu regulamento um artigo que
proibisse a presença de agentes ou intermediários para a transferência de jogadores; e a celebra-
ção de partidas organizadas por pessoas com interesses privados com intenção de especulação.
No documento, há ainda um complemento acerca da não proibição da presença de
agentes e intermediários, a menos que conste essa restrição nos estatutos ou regulamentos
616 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 68, p. 616-632, setembro-dezembro 2019
A transferência de jogadores no sistema FIFA e
a migração de brasileiros para a Europa (1920-1970)
de uma associação. Pode-se inferir que a FIFA, a partir desse momento, passa a regular a
presença do agente e dos intermediários, mas não os coloca como obrigatórios dentro do
processo. Sob esse aspecto regulatório, fica evidente, no item “d” do artigo 10: “d) Se se tratar
da transferência de um jogador, o agente ou o intermediário não terá direito a mais de 10%
do valor do prêmio de transferência”14 (tradução nossa).
Uma nova especificação pontuava prazos diferentes quando se tratava de transferência
de jogadores entre associações do mesmo continente ou de continentes distintos. Para o pri-
meiro caso, se, em um prazo de 60 dias, a associação nacional não tivesse emitido certificado
de transferência, a nova associação poderia fornecer um certificado de transferência provisó-
ria. O prazo era ampliado para 90 dias, caso a situação fosse entre associações de continentes
diferentes. As associações britânicas continuavam excluídas dessa condição.15
O estatuto de 1956 continuou com as mesmas condições, mas, dois anos depois, no
estatuto de 1958, havia uma inclusão no artigo 10. A preocupação da FIFA recaía sobre a
circulação de jogadores, especialmente em relação aos possíveis rompimentos de contratos
vigentes. O item “g” dizia: “durante o período de um contrato em vigor, um jogador não deve
ser abordado por um representante de um clube filiado a outra Associação Nacional, nem por
outra pessoa com o objetivo de induzir a registrar-se por um novo clube quando expirar”.16
Nenhuma mudança significativa vai ocorrer nos estatutos da FIFA até o ano 1969.
Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 68, p. 617-632, setembro-dezembro 2019 617
Marcel Diego Tonini e Sérgio Settani Giglio
bolistas da América do Sul foram: o sucesso das primeiras tentativas (Julio Libonatti, Raimundo
Orsi e Renato Cesarini), a quebra da economia mundial, a instabilidade política na Argentina e
no Brasil, e a profissionalização tardia do futebol sul-americano (Lanfranchi e Taylor, 2001: 77).17
Entre 1925 e 1945, transferiram-se para a Itália 29 futebolistas brasileiros (Tabela 1).18 Os
clubes brasileiros que mais cederam jogadores nesse período foram Palestra Itália/SP, Corinthians
e Botafogo, com nove, seis e quatro transferências, respectivamente (Tabela 2).19 Os clubes italia-
nos que mais contrataram no mesmo intervalo de tempo foram Lazio, Torino e Napoli, com 12,
seis e três atletas, respectivamente (Tabela 2). Somente em 1931, saíram do Brasil 10 jogadores,
oito deles dirigindo-se para a Lazio, incluindo Amílcar Barbuy, que ainda acumulou o cargo de
treinador.20 Somados aos outros três brasileiros que já estavam no clube (os irmãos Fantoni,
conhecidos no Brasil como Ninão, Nininho e Niginho), o time da cidade de Roma totalizava
11 brasileiros, o que fez com que ficasse conhecido como Brasilazio (Santos, 2010: 386). Cabe
salientar uma diferença: os atletas que atuavam nos clubes de São Paulo e de Belo Horizonte
rumaram majoritariamente para Roma e Nápoles, já os do Rio de Janeiro foram para Turim.
* De acordo com a CBF (200-a), Armando Del Debbio teria saído do Brasil nesse pe-
ríodo em duas oportunidades, uma em 1925, para atuar na Luchese, e outra em 1931,
na Lazio. Unzelte (2016), no entanto, assegura que ele fez partidas pelo Corinthians
em 1925 e 1926.
Fonte: CBF (200-a), Coelho (2009) e Wikipedia.
618 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 68, p. 618-632, setembro-dezembro 2019
A transferência de jogadores no sistema FIFA e
a migração de brasileiros para a Europa (1920-1970)
As contratações feitas nessa época são tratadas por Rodrigues (2007: 158) como “sa-
ques”, uma vez que os clubes italianos negociavam diretamente com os atletas, sem qualquer
tipo de compensação financeira aos clubes brasileiros. Segundo o autor, a FIFA considerava a
transação “perfeitamente legal”. No Estatuto da FIFA, não havia restrições em relação a essa
questão. Apenas em 1958 será incluído um item (g), que recomendava que um atleta com o
contrato vigente não deveria ser consultado por outra pessoa para transferir de clube. A FIFA
passava, desse modo, a se preocupar com o rompimento de contrato.
* Armando Del Debbio teria se transferido do Corinthians para a Itália em duas oportunidades.
Lopes (2004: 142), por sua vez, afirma que há casos em São Paulo e no Rio de Janeiro
de jogadores brancos sem ascendência italiana que falsificaram documentos, adotando nomes
com tal origem, de modo a justificar e viabilizar a transferência internacional, tendo sido os
clubes italianos coniventes com tais ações. A saída desses ítalo-brasileiros é vista como uma
das razões para uma maior integração dos negros no futebol brasileiro. Nas palavras do refe-
rido sociólogo, esses atletas estavam excluídos daquele processo ou, ao menos, tornavam-se
“pouco exportáveis”, estando “condenados ao sucesso ‘local’” e sendo identificados como
“os grandes iniciadores do futebol nacional” (Lopes, 2004: 143).
Ao longo do período de 1929 a 1943 — conforme dados levantados por Lanfranchi e
Taylor (2001: 83), os quais não conferem com os da CBF (200-a)21 —, deslocaram-se 118
Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 68, p. 619-632, setembro-dezembro 2019 619
Marcel Diego Tonini e Sérgio Settani Giglio
620 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 68, p. 620-632, setembro-dezembro 2019
A transferência de jogadores no sistema FIFA e
a migração de brasileiros para a Europa (1920-1970)
italiano a baixo custo, sendo os brasileiros a solução. Boa parte daqueles atletas que estiveram
presentes no título da Seleção Brasileira na Copa Rio Branco de 1932, que se transformou
em uma vitrine, foi contratada. Em 1933, ano da profissionalização do futebol no Brasil, cerca
de 15 dos melhores jogadores brasileiros foram contratados dos clubes do Rio de Janeiro,
São Paulo e, inclusive, Porto Alegre.23 Dois deles eram Domingos da Guia e Leônidas da Silva,
personagens que seriam fundamentais para a invenção do estilo de jogo do futebol brasileiro,
conforme os clássicos escritos de Gilberto Freyre (Tonini, 2014 e 2016).
O fluxo migratório de jogadores brasileiros para a Europa, que se iniciou na passagem da
década de 1920 para 1930, diminuiu na metade do decênio, em virtude de fatores internos
e externos, sendo interrompido com a eclosão da Segunda Guerra Mundial. Concomitante-
mente, como dissemos, os mercados argentino e uruguaio atraíram nossos atletas em uma
época em que os clubes nacionais estavam se adaptando à profissionalização do futebol. A
regulamentação propiciou a integração de forma consistente dos negros na cena futebolística,
o que não significa, evidentemente, ausência de racismo (Lopes, 2004). A profissionalização
deu-se no mesmo período em que tal esporte foi forjado como uma das identidades nacionais
e encampado pelo Estado, tal como o samba (Souza, 2008).
Nesse processo de massificação, teve peso importante a formação de uma imprensa
especializada em esportes e o surgimento do rádio (Lopes, 1994). Tudo isso fez com que o
futebol se transformasse em espetáculo, o que atraía e ao mesmo tempo gerava muito dinhei-
ro. Os clubes, por sua vez, passaram a pagar quantias cada vez maiores aos protagonistas do
jogo, sem dúvida influenciados pelo profissionalismo já estabelecido pelos países vizinhos e
também europeus. Novamente, contextos dentro e fora, dessa vez do Brasil, levaram a um
influxo do movimento migratório de nossos futebolistas.
Antes de avançarmos a discussão, cabem breves considerações sobre o processo de re-
gulamentação da profissão de jogador de futebol no Brasil. Como é notório, somente a partir
da década de 1930, quando o país foi governado durante 15 anos ininterruptos por Getúlio
Vargas, que a então Confederação Brasileira de Desportos (CBD) regulamentou e formalizou
a relação entre atleta e clube. Naquele momento, o futebolista era totalmente dependente da
agremiação.
Um marco importante na organização do desporto nacional deu-se sob o Estado Novo,
com a instituição do Conselho Nacional de Desporto (CND), por meio do Decreto-lei no
3.199/1941. Ao longo de mais de cinco décadas, o CND produziu centenas de deliberações e
resoluções e só foi extinto com a promulgação da Lei no 8.672/1993, popularmente conhecida
por “Lei Zico”.
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Marcel Diego Tonini e Sérgio Settani Giglio
622 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 68, p. 622-632, setembro-dezembro 2019
A transferência de jogadores no sistema FIFA e
a migração de brasileiros para a Europa (1920-1970)
Se, entre os anos 1925 e 1945, segundo dados compilados de várias fontes, o futebol
italiano contratara 29 jogadores do Brasil, dos quais 22 haviam ficado concentrados em ape-
nas três clubes (Lazio, Torino e Napoli),24 no período entre 1946 e 1966 transferiram-se para
a Itália 31 futebolistas do Brasil, distribuídos em 19 clubes diferentes (ver, respectivamente,
Tabelas 3 e 4).25 É, pois, uma mudança considerável. Nota-se que quase dois terços das trans-
ferências (19 de 31) ocorreram exatamente depois do primeiro título mundial da Seleção Bra-
sileira, em 1958, e o ano com maior saídas de atletas coincidiu com o do bicampeonato, em
1962 (Tabela 3). Na comparação com aquele primeiro fluxo, houve nesse segundo um número
maior de clubes brasileiros cedendo jogadores, bem como uma distribuição mais equilibrada
entre eles (Tabela 4). Fato semelhante ocorreu com os clubes italianos ao relacionarmos os
dois intervalos de tempo. A Juventus, clube que mais contratou nesse período, realizou quatro
negociações, um terço apenas do que a Lazio fizera anteriormente.
Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 68, p. 623-632, setembro-dezembro 2019 623
Marcel Diego Tonini e Sérgio Settani Giglio
investiram em outras grandes promessas do futebol brasileiro: Germano (Milan, 1962), Jair da
Costa (Inter de Milão, 1962), Cané (Napoli, 1962), Nenê (Juventus, 1963) e Amarildo (Milan,
1963). Todos negros e dianteiros, uma posição que se transformou em sinônimo do “estilo
brasileiro”. À exceção de Germano, os outros quatro tiveram longa carreira na Itália.27 Junta-
mente com o irmão mais velho de Fio Maravilha, chegaram à Itália Jair da Costa e Cané. O trio,
segundo Madureira (2014), era chamado de “pérolas negras” da Série A.
624 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 68, p. 624-632, setembro-dezembro 2019
A transferência de jogadores no sistema FIFA e
a migração de brasileiros para a Europa (1920-1970)
O futebol sul-americano era visto pelos europeus como fornecedor de atacantes talento-
sos, tendo os brasileiros prestígio significativo pelas conquistas nas últimas Copas do Mundo.
Além da Itália, os futebolistas brasileiros também se deslocaram para clubes da França, de
Portugal e da Espanha, com maior destaque para Didi, eleito o “Maior da Copa” de 1958 e
aclamado como “Mr. Football” (Ribeiro, 2014: 23 e 34).
No início da década de 1930, atuaram no futebol espanhol apenas três brasileiros: Ja-
guaré, Fausto e Fernando Giudicelli. Um quarto de século depois, mais especificamente entre o
período de 1957 a 1962, transferiram-se para a Espanha 19 futebolistas brasileiros, de acordo
com Paulo Vinícius Coelho (2009: 167-168).28 Nesse último ano, as fronteiras tanto da Espa-
nha quanto da França foram fechadas, e em 1966 foi a vez de a Itália impedir a contratação
de futebolistas estrangeiros, excetuando os oriundi (Lanfranchi e Taylor, 2001: 96).
A presença desses atletas foi vista como responsável pelos maus resultados das res-
pectivas seleções nacionais nas Copas do Mundo de 1962 e 1966. Embora tenha diminuído
bruscamente a ida desses profissionais, a medida não a impediu totalmente. O que se viu foi
uma busca da documentação que comprovasse a ascendência espanhola, francesa ou italiana,
a ponto de o treinador da Inter de Milão, Helenio Herrera, declarar que o futebolista brasileiro
negro Jair da Costa, contratado em 1962, “seria ‘oriundo’ pois a avó do jogador, Maria Cri-
vellari, era italiana” (Folha de S.Paulo, 7 ago. 1962: 10).
Preocupada com a regra do oriundi, a FIFA, em 1964, estipulou uma decisão importante
para prevenir que futebolistas representassem mais de uma seleção nacional, o que, no en-
tender de Lanfranchi e Taylor (2001: 97, tradução nossa), “foi um fator crucial na reavaliação
das políticas de importação”. Jogadores que haviam obtido a dupla cidadania ou que tinham
mudado de nacionalidade não poderiam, assim, atuar pela segunda nação. Era uma clara
reação à atitude das seleções italiana e espanhola que haviam naturalizado notáveis atletas,
os quais já tinham representado os países onde haviam nascido em competições oficiais, como
o brasileiro Mazzola, o argentino Di Stéfano (que também defendera a seleção colombiana)
e o húngaro Puskas.
A partir disso, a regra do oriundi sofreu mudanças. Para conseguir tal status na Espanha,
o jogador importado precisaria ter pais espanhóis e não ter defendido as cores da seleção na-
cional do país de nascimento; e na França ter óbvia ascendência francesa, de modo a facilitar
a obtenção do passaporte nacional. Assim, demoraria algo em torno de uma década para que
futebolistas deixassem o Brasil rumo a esses dois países europeus novamente. Em direção à
Itália, só em 1980, quando esse mercado reabriu-se aos jogadores estrangeiros.
Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 68, p. 625-632, setembro-dezembro 2019 625
Marcel Diego Tonini e Sérgio Settani Giglio
626 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 68, p. 626-632, setembro-dezembro 2019
A transferência de jogadores no sistema FIFA e
a migração de brasileiros para a Europa (1920-1970)
Do mesmo modo que na última seção, antes de encaminharmos a discussão para o fim,
cabem novas observações legais sobre a regulamentação da profissão de jogador de futebol
no Brasil. Em 1945, o CND editou, por meio da Deliberação no 48, o primeiro Código Brasileiro
de Futebol. Dezessete anos depois, passou a denominar-se Código Brasileiro Disciplinar de
Futebol (CBDF), o qual dava aos Tribunais de Justiça Desportiva a competência para julgar
questões cíveis, penais e trabalhistas.
No ano 1964, ocorreu um marco importante nesse processo, com o Decreto no 53.820,
que influenciou toda a legislação posterior sobre a relação entre atletas profissionais e asso-
ciações empregadoras. Em seu artigo 1o, já se previa que qualquer transferência dependia de
“prévia e expressa anuência do atleta interessado” (Caús e Góes, 2013). O artigo 2o, por sua
vez, regulamentava, pela primeira vez, a indenização chamada “passe”. Seu § 1o, inclusive,
dispunha que o “passe” não seria “objeto de limitação quando a transferência fosse para
associações sediadas no estrangeiro”, e o 2o concedia ao atleta cedido o direito de receber
15% sobre o valor do “passe” negociado (Caús e Góes, 2013).
Apesar desses avanços legais, a realidade era diferente. O “passe” assegurava aos
clubes poderes absolutos sobre a transferência de jogadores. Não sem razão, muitos atletas
sentiam-se “presos” aos clubes e, com frequência, eram tratados como “escravos” (Flo-
renzano, 1998: 96). Certamente, o caso mais conhecido deu-se no início dos anos 1970,
quando Afonsinho recorreu à Justiça para desvincular-se do Botafogo, do Rio de Janeiro. O
desfecho desse episódio, favorável ao jogador, levou quase dois anos e influenciou a Lei no
6.354, datada de 1976.
Ela regulamentou as relações de trabalho no futebol profissional, porém não esta-
beleceu limite para a fixação do valor do passe no caso de transferência para o exterior.
Determinava que um atleta teria direito ao “passe livre” depois dos 32 anos e caso tivesse
permanecido por mais de 10 anos vinculado ao mesmo time. Dez anos depois, o CND reviu
essa regulamentação e estipulou que, a partir dos 28 anos, o atleta teria direito, gradual-
mente, a uma parcela do “passe”: 30% aos 28, 45% aos 29, 60% aos 30, 75% aos 31 e
90% aos 32 (Proni, 1998: 230).29
Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 68, p. 627-632, setembro-dezembro 2019 627
Marcel Diego Tonini e Sérgio Settani Giglio
Considerações finais
N este texto, buscamos discutir algumas fronteiras que foram construídas dentro de um
sistema futebolístico controlado pela FIFA. Embora as mudanças apresentadas por es-
tatutos e regulamentos da entidade forneçam-nos elementos para inferir as mudanças que a
instituição passava, tanto interna quanto externamente, não se pode perder de vista que essa
discussão era, frequentemente, recortada pelas tensões com o COI pela busca da definição do
amadorismo, e como parte desse debate ganhava força o tema das transferências dos jogadores.
E, nesse aspecto apresentado, destacamos a entrada dos agentes ou intermediários den-
tro da estrutura da FIFA a partir de 1935. Embora a FIFA não o considerasse uma pessoa
obrigatória para integrar o processo de transferência, tampouco o impedia de participar. Essa
é uma figura sobre a qual a historiografia ainda carece de pesquisas, uma vez que eles foram
adquirindo importância e influência no processo de circulação de futebolistas profissionais.
Com o tempo e conforme o futebol tornou-se cada vez mais um negócio, tornaram-se peça
fundamental na construção da ponte e na concretização da transação comercial entre clubes
de diferentes continentes. À medida que forem desenvolvidas pesquisas sobre eles, poderemos
estabelecer as redes entre federações, clubes e atletas.
Independentemente disso, tratamos também da ida de futebolistas brasileiros para a Eu-
ropa entre as décadas de 1920 e 1970. Se, até a Segunda Guerra Mundial, os brasileiros com
ascendência italiana, e, portanto, brancos, compuseram a maior parte daqueles que migraram,
após o grande conflito armado, sobretudo com as vitórias da seleção brasileira em Copas do
Mundo da FIFA, os negros passaram também a se deslocar, tanto por suas qualidades técnicas,
corporais, quanto pela crença (racista) mundialmente difundida em suas supostas vantagens
biológicas para a prática esportiva, nesse caso futebolística.
Não é coincidência, portanto, que torcedores ultras e hools cresceram no mesmo com-
passo em que se abriram os mercados de trabalho para imigrantes e futebolistas estrangeiros
na Europa. A partir de então, chegou-se a um paradoxo: de um lado, os dirigentes dos clubes
europeus não podiam mais prescindir do pé de obra barato que vinha da periferia do sistema
futebolístico; de outro, uma parcela dos torcedores locais reagia de maneira violenta a essa
imposição do mercado global, aproximando-se cada vez mais das bandeiras da xenofobia e
do racismo, ao constatarem mudanças na identidade social, fosse em seu clube, fosse em sua
nação. Cabe à FIFA, entidade máxima do futebol profissional em todo o mundo, regular isso
também. Essa história, contamos em outra oportunidade.
628 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 68, p. 628-632, setembro-dezembro 2019
A transferência de jogadores no sistema FIFA e
a migração de brasileiros para a Europa (1920-1970)
Notas
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Marcel Diego Tonini e Sérgio Settani Giglio
regime e a superioridade da “raça italiana”, conforme ficou nítido após a vitória sobre o Brasil na semifinal:
“triunfo da inteligência itálica contra a força bruta dos negros” (Franco Jr., 2007: 51).
23 De acordo com a CBF (200-b), 107 futebolistas brasileiros transferiram-se para a primeira divisão da
Argentina entre os anos 1932 e 2005, dos quais 16 foram no período entre 1932 e 1942.
24 Por mais que a soma das contratações dos três clubes no referido período resulte em 21 jogadores (Tabela
2), consideramos também Paulo Innocenti, que, após um ano no Virtus Bologna, atuou em seguida no Napoli
por 11 temporadas.
25 Lanfranchi e Taylor (2001: 92) afirmam que os clubes italianos recrutaram 35 futebolistas brasileiros no
período entre 1949 e 1964.
26 O primeiro negro de que se tem registro que jogou no campeonato italiano foi o uruguaio Roberto Luis La
Paz, meio-campista que atuou no Frattese e no Napoli entre 1946 e 1949 e depois no futebol francês entre
1949 e 1953.
27 Germano, como se sabe, envolveu-se com a “contessina” Giovanna Agusta, filha do conhecido empresário
Domenico Agusta, herdeiro milionário da fábrica aeronáutica e fundador da fábrica de motocicletas que levam
o nome da família. O relacionamento amoroso interétnico indesejado pela família de sua amante influenciou
diretamente tanto sua experiência como futebolista brasileiro negro no exterior quanto a avaliação das rela-
ções raciais no Brasil, argumento desenvolvido por Tonini (2016).
28 Na temporada 1947-1948, houve uma transferência isolada, a de Lúcio da Silva para o Barcelona.
29 Não é sem razão que a “Lei do Passe” era comparada à escravidão, uma vez que, nesse caso, ela se
assemelha à Lei dos Sexagenários (também chamada de Lei Saraiva-Cotejipe), de 1885, a qual concedia liber-
dade aos escravizados acima de 60 anos e estabelecia normas para a libertação gradual de todos os cativos,
mediante indenização. Como se sabe, essa lei beneficiava mais os senhores do que os escravizados, haja
vista que poucos eram aqueles cativos que atingiam tal idade em razão do trabalho pesado e das péssimas
condições ao longo de toda a vida, e os que chegavam a ela eram pouco produtivos. Do mesmo modo, quanto
maior a idade do atleta profissional, menos produtivo ele é. “Libertá-lo” ao final da carreira por meio da “Lei
do Passe” era desobrigar o clube de cumprir ou estabelecer um novo contrato profissional quando o jogador
produziria menos, estaria mais suscetível a contusões e seu salário seria um fardo.
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Aplicativo digital.
632 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 68, p. 632-632, setembro-dezembro 2019
Artigo
DOI: http://dx.doi.org/10.1590/S2178-14942019000300005
I
Escola de CIências Sociais da Fundação Getulio Vargas (CPDOC/FGV), Rio de Janeiro – RJ, Brasil.
* Doutorando em História, Política e Bens Culturais (CPDOC/FGV) e técnico nível superior – patrimônio cultural na Funda-
ção Municipal de Cultura de Belo Horizonte. (raprajao@gmail.com). ORCID iD http://orcid.org/0000-0001-7057-8367
Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 68, p. 633-654, setembro-dezembro 2019 633
Raphael Rajão Ribeiro
Resumo
O presente artigo investiga os vínculos estabelecidos entre clubes de futebol de várzea e líderes políticos de
Belo Horizonte no momento final do intervalo democrático. Ao mobilizar fontes impressas e a memória social
sobre a prática, busca-se compreender de que maneira essas interações possibilitaram a manutenção de
uma modalidade esportiva cada vez mais ameaçada pelas pressões decorrentes da transformação urbana. O
exame dessas relações permite perceber uma rede de reciprocidade ampla, que se estende para muito além
dos períodos eleitorais e da simples troca de favores por votos..
Abstract
The present article aims to investigate the connections between futebol de várzea clubs and local political
leaders from Belo Horizonte in the final moment of the Brazilian democratic interval in the middle 1960’s.
Mobilizing press records and the social memory about this practice, aim to understand how these interactions
enable the maintenance of this sport increasingly threatened by the pressures of the urban transformation.
The examination of these relations allowed realize a large reciprocity network, which extend apart from the
elections and the simple act of exchanging favor for votes.
Resumen
El presente artículo investiga los vínculos establecidos entre clubs de futebol de várzea y líderes políticos de
Belo Horizonte en el momento final del intervalo democrático brasileño, en medios de los años 1960. Mo-
vilizando fuentes impresas y la memoria social acerca de la práctica, se intenta comprender de qué manera
esas interacciones posibilitaran la manutención de una modalidad deportiva cada vez más amenazada por las
presiones decurrentes de la transformación urbana. El examen de esas relaciones permite percibir una red que
se extiende mucho más allá de las elecciones y del simple cambio de favores por votos.
634 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 68, p. 634-654, setembro-dezembro 2019
Sobre eleições, festivais e resolução de problemas: futebol de
várzea e redes políticas locais em Belo Horizonte (1962-1965)
E m 1962, completavam-se quinze anos desde que o primeiro prefeito eleito de Belo Ho-
rizonte assumira o cargo. Foi apenas com o fim do Estado Novo e a consolidação da
autonomia da capital — a qual, até então, passara décadas sob a tutela do governo estadual
— que coube à população da cidade indicar seu mandatário. Foi justamente nessa primeira
administração escolhida pelo sufrágio, de Otacílio Negrão de Lima, que se criou um órgão
municipal dedicado ao esporte. Com atuação voltada principalmente para o apoio ao futebol
amador, o Conselho Municipal de Esportes (CME) cuidava do fornecimento de materiais e da
disponibilização de recursos para a implantação de melhorias nos campos de jogo.
Naquele ano, a capital mineira vivenciava as expectativas do que seria sua quinta eleição
municipal. Nylton Velloso, da União Democrática Nacional (UDN), surgia como o principal
candidato a prefeito. Com amplo destaque à frente da Federação do Comércio do Estado de
Minas Gerais (Fecomércio MG), despontava como favorito na disputa.1 Ao seu lado, concorria
Jorge Carone Filho, deputado estadual pelo Partido Republicano (PR), que fora prefeito de
Visconde de Rio Branco, sua cidade natal. Ele iniciara a campanha havia meses, percorrendo
vários bairros da cidade. Carone chamava a atenção por sua altura — havia sido desportista
no passado, quando atuou como goleiro do Botafogo do Rio de Janeiro e como halterofilista,
sendo campeão nacional da modalidade.2
Com menos chances, concorriam outros postulantes, como José Maria Rabelo, do Partido
Socialista Brasileiro (PSB) e proprietário do Binômio, reconhecido jornal local articulado aos
movimentos sociais. O jornalista mobilizava o slogan de campanha janista e se dizia o repre-
sentante do povo na luta do tostão contra o milhão.3
Em meio à disputa eleitoral, diversos grupos sociais se engajavam para que suas pautas
e os candidatos que as representavam saíssem vitoriosos. Por vezes, o futebol amador podia
ser percebido. Envolvidos nas campanhas, os varzeanos garantiam a relevância do tema como
parte da plataforma dos postulantes à prefeitura ou a uma vaga nos poderes legislativos.
Durante os meses de agosto e setembro, Belo Horizonte se agitava com a campanha
para as eleições que escolheriam prefeito, vice-prefeito e vereadores da capital mineira, além
de selecionarem deputados federais e estaduais. Cada candidato procurava se associar a uma
ou mais pautas que fossem capazes de mobilizar a população local e alavancar suas votações.
Para tanto, utilizavam estratégias variadas, apostando, em sua maioria, num fator que já se
mostrara decisivo nos pleitos anteriores: os setores populares urbanos.
O deputado estadual Jorge Carone Filho, que intentava nova condução à Assembleia
Legislativa, ao mesmo tempo que se lançava como concorrente à prefeitura — o que era pos-
sível na época —,4 apoiava-se em longo trabalho de aproximação com os bairros da cidade.
Como indicava o jornal Diário da Tarde às vésperas da reta final da campanha,
Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 68, p. 635-654, setembro-dezembro 2019 635
Raphael Rajão Ribeiro
o deputado Jorge Carone prepara-se para empreender grande “rush” eleitoral, à medida que se
aproximam as eleições. O candidato republicano, com pouco mais de cinco mêses de campanha,
já percorreu quase todas as vilas e bairros da cidade, tendo a sua candidatura encontrado a
melhor receptividade com grande entusiasmo popular.5
636 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 68, p. 636-654, setembro-dezembro 2019
Sobre eleições, festivais e resolução de problemas: futebol de
várzea e redes políticas locais em Belo Horizonte (1962-1965)
Em ato ocorrido na região da Parada da Abadia, por exemplo, noticiava-se que “em
nome do bairro falou o sr. Bichara Pedro Elias, que representava ainda o Monte Azul Esporte
Clube”.8 Ou, como no comício no Universitário, no qual, “em nome do bairro, falou o sr.
Nelson Santana de Jesus, que lembrou os grandes melhoramentos de que carece a região”.9
Nesse caso, tratava-se do fundador do Racing Esporte Clube, tradicional agremiação do lugar,
criada nos anos 1950.10
Tal presença não se resumia às aparições de integrantes das agremiações nos comícios.
Como relata o DT sobre o ato de campanha que teve lugar no bairro Santo André:
O comício realizado naquele bairro foi um dos mais concorridos de quantos já se realizaram
em Belo Horizonte, sob ambiente dos mais sugestivos, com a Praça Uruguaiana inteiramente
enfeitada para receber o candidato e ainda com a participação de várias escolas de samba e
desfile de clubes de futebol, que manifestaram, de maneira categórica, o apoio que emprestam
ao nome dos srs. Nilton Veloso e Guimarães Alves como candidatos à Prefeito e Vice-Prefeito
de Belo Horizonte.11
Entre as agremiações varzeanas presentes, foram destacadas “Rio Branco Futebol Clube,
União Esporte Clube, Rio Negro Futebol Clube, Chave de Ouro Esporte Clube, Associação Atlé-
tica Santista, Bangu Atlético Clube e Corintians Atlético Clube”.12 Em atos como esse, escolas
de samba e clubes de futebol amador reforçavam a vinculação do candidato com os setores
populares. Não por acaso, mais uma vez as agremiações carnavalescas seriam requisitadas,
agora para o comício final, que, na praça Rio Branco, no início da avenida Afonso Pena, reuniria
grandes nomes udenistas, como Milton Campos, Pedro Aleixo e Edgard da Mata Machado.13
Outra candidatura que daria a ver a temática do futebol de várzea naquele ano de 1962
era a empreendida por José Maria Rabelo. Vinculado a partido de menor expressão, o PSB, o
jornalista que se notabilizara por sua atuação no jornal Binômio, do qual era proprietário, se
apresentava como o candidato que representava os movimentos urbanos, inclusive contando
com o apoio declarado da Federação de Trabalhadores Favelados de Belo Horizonte (FTFBH),
ao lado do candidato a vice-prefeito, pelo PTB, Geraldo Bizzoto (Oliveira, 2014: 267).
Sem a mesma cobertura por parte do Diário da Tarde, na reta final da campanha, o can-
didato do PSB passou a veicular anúncios pagos, destacados como “Editado pelo Comitê de
Jornalistas pró-José Maria”, os quais noticiavam seus atos. Ali, ele lançava desafios como o de
transparência das fontes de receita de campanha, reforçando o slogan do qual se apropriara
da luta do tostão contra o milhão.14 Como estratégia para atrair as pessoas ao seu comitê
central, onde podiam retirar as cédulas de votação, oferecia passeios gratuitos de helicóptero,
o mesmo que usava em seu rush final para visitar um grande número de bairros.15
Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 68, p. 637-654, setembro-dezembro 2019 637
Raphael Rajão Ribeiro
Com essa proposta, o candidato prometia atacar um problema que se tornava cada vez
mais grave para as agremiações varzeanas da cidade. Ao apontar para os riscos da especula-
ção imobiliária, opunha-se sobretudo a um de seus desafetos, o maior proprietário de terras
da cidade, a quem acusava constantemente de grileiro nas páginas do Binômio: Antônio Lu-
ciano Pereira Filho. Este, por sua vez, estimulado por Juscelino Kubitschek, de quem José Maria
Rabelo era adversário, também se lançava à disputa eleitoral, tentando pela primeira vez uma
vaga como deputado federal.
Ao longo das décadas de 1940 e 1950, Antônio Luciano formou um verdadeiro império que
envolvia canaviais pelo interior do estado e grande quantidade de terrenos em Belo Horizonte,
correspondente a vários bairros que se formariam depois. Era proprietário ainda de cinemas, hotéis
e um banco, o Financial.18 Por ser o principal especulador imobiliário da cidade, tinha em seus lotes
grande quantidade de campos de clubes varzeanos, fato que não foi ignorado na campanha. Por
duas ocasiões, foram publicados anúncios no Diário da Tarde. Um deles dizia o seguinte:
Convite
Convidamos tôdos os clubes amadoristas de Belo Horizonte, notadamente os que possuem
campo de futebol em terreno de propriedade do “Dr. Antônio Luciano Pereira Filho”, para com-
parecerem á reunião que será realizada dia 27 (quinta-feira) do corrente, ás 20 horas, á rua Erê,
207 – Prado (Ludol), a fim de serem tratados assuntos de interêsse do Futebol Amador.
Belo Horizonte, 25 de setembro de 196219
638 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 68, p. 638-654, setembro-dezembro 2019
Sobre eleições, festivais e resolução de problemas: futebol de
várzea e redes políticas locais em Belo Horizonte (1962-1965)
Palmério Ferreira Filho, velho servidor dos “Diários Associados” e grande protetor do esporte
amador da Capital, principalmente dos chamados pequenos clubes, dentre os quais o seu, que
é o Juventus, do bairro do Carlos Prates, atendendo a insistência de amigos, resolveu aceitar o
lançamento de sua candidatura, pelo PRT, ao cargo de vereador, nas eleições que se aproximam.
O nosso companheiro de trabalho, numa rápida palestra com a reportagem, declarou que, se
eleito, protegerá, ainda mais o esporte amador belorizontino. Na foto, Palmério em palestra
com o repórter.20
Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 68, p. 639-654, setembro-dezembro 2019 639
Raphael Rajão Ribeiro
uma rede duradoura de vínculos entre moradores de bairros periféricos das grandes cidades
e líderes municipais e estaduais. Tais debates reposicionam as interpretações do sucesso elei-
toral de governantes com base em carisma e em conexões muito mais palpáveis a partir de
entidades comunitárias de variadas naturezas, a exemplo de comitês partidários e associações
de bairro, recreativas, culturais e desportivas (Duarte e Fontes, 2004; Duarte, 2002; Fontes,
2008 e 2017: 191-216; Leal, 2011).
Do mesmo modo, a mobilização de conceitos como o de “clientelismo” e “patronagem”
levaria à compreensão do fenômeno como mais uma expressão da fórmula da mera troca de
favores por votos, como se consolidou em boa parte do debate nacional e internacional sobre
tema (Carvalho, 1998: 130-153; Combes, 2011: 13-32). A leitura tradicional do fenômeno,
que parte do pressuposto de um desenvolvimento linear das democracias pelo mundo, tem
sido colocada em xeque, por exemplo, quando se examinam experiências recentes de países
africanos, nos quais relações de reciprocidade se mostram importantes para a articulação en-
tre a lógica eleitoral e as formas tradicionais de interação das populações com os líderes locais
(Banégas, 2011: 33-48; Manirakiza, 2010: 103-122).
Apesar da percepção das eleições como um tempo forte das relações políticas (Palmeira
e Heredia, 2010), uma série de estudos antropológicos tem se dedicado a examinar tais práti-
cas fora desse período (Kuschnir e Carneiro, 1999: 241). Como destaca Bezerra em relação a
estudos que não tratam o clientelismo propriamente como fato sociológico, mas como mero
desvio do sistema democrático,
Exames recentes do contexto contemporâneo argentino têm contribuído para uma críti-
ca ao conceito de clientelismo, com investigações que partem do esforço dos pesquisadores
para realizar uma imersão nas comunidades ou nos grupos que estabelecem esses tipos de
interações (Auyero, 2012; Ossona, 2014 e Vommaro; Quirós, 2011: 65-84). Entre os estudos,
destaca-se o de Javier Auyero, que aponta para novas possibilidades interpretativas. Como
indica o autor para o caso das relações entre líderes locais peronistas e a comunidade de um
bairro da periferia da grande Buenos Aires,
640 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 68, p. 640-654, setembro-dezembro 2019
Sobre eleições, festivais e resolução de problemas: futebol de
várzea e redes políticas locais em Belo Horizonte (1962-1965)
A “troca de favores por votos” no centro da noção de clientelismo político não representa
adequadamente a realidade muito mais complexa de relações duradouras, narrativas e
identidades que são construídas no funcionamento diário dos círculos íntimos. A escolha do de-
susado termo “resolução de problemas mediante intervenção política personalizada” não tenta
anular a análise do controle político que a distribuição de favores, bens e serviços promove (e
que a noção de clientelismo político acentua). Pelo contrário, é na afluência de tentativas das
elites políticas de controlar os setores populares e as estratégias que esses adotam para resolver
seus problemas que os aspectos mais interessantes da reprodução e das transformações dessa
ordem política acontecem. (tradução do autor. 2012:230-231)
Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 68, p. 641-654, setembro-dezembro 2019 641
Raphael Rajão Ribeiro
dessas interações, percebendo-os como integrantes ativos dos processos, e não como meros
alvos de manipulação.
A várzea e a manutenção de relações de reciprocidade
C omo apontado acima, na disputa política municipal daquele ano, por várias vezes, o
tema do futebol de várzea apareceu, seja com a participação de membros das agremia-
ções, seja com a realização de reuniões nas dependências dos clubes, ou, ainda, com a apre-
sentação de promessas de campanha voltadas ao setor. Ao que parecia, candidatos tomavam
aquele como um tema para se conectar aos setores populares urbanos, grupo fundamental
para o sucesso eleitoral, assim como os membros das associações esportivas viam naquele
contexto uma possibilidade de estreitarem laços com futuros mandatários.
Normalmente restrito às pequenas colunas publicadas no Diário da Tarde, que se con-
centravam na divulgação dos resultados das partidas e em algumas questões mais próprias
da organização esportiva, o futebol de várzea, durante as eleições, era apresentado de for-
ma diversa, e suas conexões eram expostas mais claramente. Apesar da ênfase ganha nesse
período, essa prática se relacionou de outras formas com as forças políticas, tanto por vias
institucionais, como o Conselho Municipal de Esportes (CME), quanto por meio de relações
informais, diretamente com representantes locais.
Criado, em 1948, pelo primeiro prefeito eleito, Otacílio Negrão de Lima, o CME foi o
principal canal de relacionamento do futebol de várzea com a prefeitura. Em inícios dos anos
1960, contudo, estava praticamente desativado, como indicava o DT ao comentar a nomeação
de uma nova direção, já nos meses finais do mandato do prefeito Amintas de Barros.
Está reorganizado o Conselho de Esportes. O prefeito Amintas de Barros, cumprindo sua promessa
de candidato, escolheu os elementos que integrarão o orgão municipal de auxilio ao amadorismo.
Agora, com recursos financeiros o prefeito houve por bem saldar o compromisso com aqueles que
com ele conviveram por mais de 4 anos, na presidencia da Junta Disciplinar Desportiva. Integrado
ás dificuldades dos amadoristas, o prefeito somente esperou a oportunidade para revolucionar a
várzea. O C.M.E. teve especial carinho na sua constituição, considerando, principalmente, o desejo
de amparar, efetivamente, áqueles que necessitam de auxilio da Municipalidade. Vários campos
varzeanos serão remodelados, outros construídos e alguns, possuirão muros protetores.21
Apesar da expectativa rápida de posse dos conselheiros, esta aconteceu apenas em julho,
há menos de seis meses do fim do mandato de Amintas de Barros.22 Como indicado no trecho
acima, o prefeito tinha familiaridade com o tema, já que atuara na Junta Disciplinar Desportiva
(JDD), órgão vinculado à Federação Mineira de Futebol (FMF), responsável pelo julgamento
de processos disciplinares contra clubes e jogadores. Composto por profissionais de educação
642 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 68, p. 642-654, setembro-dezembro 2019
Sobre eleições, festivais e resolução de problemas: futebol de
várzea e redes políticas locais em Belo Horizonte (1962-1965)
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Raphael Rajão Ribeiro
No dia 25 será realizada a parte esportiva no campo do Paulistano F.C., no Calafate. Na primeira
prova Natal x Radio In[confidencia, patrono: sr.] João de Oliveira, homenageados: Radio Inconfi-
dencia e Radio Itatiaia; segunda prova: Natal F.C. x Acre F.C., patrono sr. Flavio dos Reis Correa;
homenageados, Diarios Associados, O Diario e O Debate.27
644 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 68, p. 644-654, setembro-dezembro 2019
Sobre eleições, festivais e resolução de problemas: futebol de
várzea e redes políticas locais em Belo Horizonte (1962-1965)
Como dito acima, homenagens tinham o intuito de reafirmar laços de reciprocidade, sig-
nificando uma deferência da agremiação a quem houvesse prestado um serviço ou fornecido
algum tipo de ajuda. Veículos de imprensa como Rádio Inconfidência, Rádio Itatiaia e Diário da
Tarde, este ligado aos Diários Associados, se notabilizavam por manter noticiário especialmen-
te voltado para a várzea. Em outro caso, o Príncipe E. C. laurearia os jornalistas Sérgio Ferrara
e Dirceu Pereira,28 figuras ligadas à crônica esportiva e com vínculos com o Grêmio Mineiro de
Esportes e o Pitangui Esporte Clube, respectivamente.
Os jogos de reciprocidade dos clubes varzeanos eram variados. A mobilização do reconhe-
cimento pessoal como moeda de troca era muito perceptível nos festivais, quando o nome do
patrono, ou seja, o responsável pela compra do troféu colocado em disputa em cada prova, era
gravado na taça e se eternizava na galeria de conquistas do vencedor. Um caso interessante é o
de uma excursão do Republicano à cidade vizinha de Betim, quando a equipe seguiu “em con-
dução especial, denominada ‘Sebastião de Souza Viana – Tatão’, em homenagem àquele diretor
pelos seus relevantes serviços prestados ao clube”.29 Provavelmente por ser a pessoa que cus-
teara o transporte que levava time e torcedores, o dirigente teve seu nome associado ao veículo
como contraprestação por parte da entidade esportiva.
Em outra ocasião, o DT anunciava:
O Esporte Clube Lunense fará realizar domingo, bem cuidado programa de festividades com que
promoverá o batismo de seu estádio que receberá o nome de “Antonio Luciano”, homenagem
ao deputado federal recentemente eleito.
PROVA DE HONRA
Como ponto alto das festividades, jogarão as equipes principais do Lunense e do Bonsucesso.
Será patrono o sr. Aristeu Pereira e homenageado o deputado federal Antonio Luciano Pereira,
cujo nome será dado ao estádio do clube promotor das festividades.30
Como abordado na primeira seção do artigo, o então deputado Antônio Luciano era o maior
proprietário de terras em Belo Horizonte. Entre suas estratégias para garantir a posse dos lotes e
evitar eventuais ocupações, recorrentemente cedia espaço a clubes varzeanos para que instalas-
sem seus campos de jogo. Tal relação, que contemplava interesses mútuos, era reforçada com a
realização de homenagens, como a proporcionada pelo Lunense. Um bom convívio com o empre-
sário poderia, quem sabe, garantir outros benefícios, como a construção de dependências, o que
não era incomum em se tratando de agremiações que se mantinham em suas áreas.31
Na campanha para prefeito de 1962, talvez tenha sido Jorge Carone, entre os candidatos
que tinham mais espaço nas páginas do DT, aquele que menos demonstrava articulação com a
Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 68, p. 645-654, setembro-dezembro 2019 645
Raphael Rajão Ribeiro
várzea. Há que se considerar, contudo, que as notícias sobre seus atos eram bem menos recorren-
tes do que as do seu principal adversário, Nylton Velloso. A favor do novo prefeito pesava a lei que
aprovara durante o mandato de deputado estadual que previa um fundo para a construção de
“estadinhos” voltados ao futebol amador, que seria coordenado pela Diretoria de Esportes, órgão
estadual, e que já tinha, em 1963, dezenas de milhões de cruzeiros em caixa.32
Talvez como forma de superar esse distanciamento, em seu primeiro ano de mandato
como prefeito, observou-se um grande esforço por parte de várias agremiações para garantir
uma aproximação. Não por acaso, o chefe do executivo municipal se tornou objeto de várias
homenagens nas provas de honra de diversos festivais, a exemplo dos da Associação Atlética
Formosa33 e do Fluminense Futebol Clube.34 Um torneio com seu nome também foi realizado,
sendo vencido pelo Rosário Esporte Clube.35 Até uma agremiação intitulada Jorge Carone
Esporte Clube foi fundada naquele ano.36
Ao Social Olímpico Ferroviário, campeão do campeonato da cidade de 1962, promovido
pelo DFA, caberia a distinção de ter o prefeito como patrono da prova de honra do festival pela
passagem de seu 35º aniversário.37
Foi um festival esportivo promovido pela Associação Atlética Cachoeirinha, naquele ano
de 1963, o qual envolveria provas de atletismo e partidas de futebol, que evidenciou melhor as
articulações empreendidas pelas agremiações varzeanas da cidade. Como noticiado pelo DT:
A notícia que tinha aparência de matéria paga, prática recorrente das administrações
municipais em Belo Horizonte, ainda trazia fotografia do prefeito num palanque (figura 1).
646 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 68, p. 646-654, setembro-dezembro 2019
Sobre eleições, festivais e resolução de problemas: futebol de
várzea e redes políticas locais em Belo Horizonte (1962-1965)
Figura 1 – “Inaugurado o asfaltamento da rua Simão Tamm”, Diário da Tarde, Belo Horizonte, 12 de novembro de
1963, Segundo Caderno, p. 2. ACERVO JORNAL ESTADO DE MINAS.
Proferindo um enérgico discurso sobre o que parece ser um palanque, o prefeito Jorge
Carone é ladeado pelo vereador recém-eleito, Geraldo Pereira Sobrinho, que veste terno bran-
co; pelo presidente da Associação Atlética Cachoeirinha, de braços cruzados, olhando para a
câmera; e por Joaquim Gonçalves da Silva, reconhecido árbitro de futebol que era motorista
de táxi por profissão. À frente, vê-se uma faixa da prefeitura, com dados da obra, sobre a qual
se estende uma bandeira tricolor, provavelmente preta, branca e vermelha, as cores da agre-
miação varzeana anfitriã. Bem abaixo, quase fora do quadro, está o público.
Como revelava uma notícia publicada dias antes, a “Corrida do Asfalto”, como era in-
titulada a festividade, estava ao menos em sua segunda edição, já que fora realizada no ano
anterior. Corredores ligados a várias agremiações, muitas delas varzeanas, competiriam pelo
troféu Jorge Carone Filho. Antecedendo a prova atlética final, haveria uma disputa futebolís-
tica em que as equipes Gogó da Ema e Açougue Santa Cruz se bateriam na prova “Vereador
Geraldo Pereira Sobrinho”.39
Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 68, p. 647-654, setembro-dezembro 2019 647
Raphael Rajão Ribeiro
Não obstante a notícia posterior ao evento, em que amplo destaque era dado ao prefeito
e à sua realização no bairro Cachoeirinha, a matéria anterior indicava se tratar de uma festi-
vidade que já se tornava recorrente no lugar. Assim, ao que parece, a administração municipal
se aproveitava da ocasião, que mobilizava o meio varzeano e o atletismo local, para visibilizar
a obra. Para a Associação Atlética Cachoeirinha, a presença de Jorge Carone e do vereador
Geraldo Pereira Sobrinho, que tinha sua base na região, reforçava a importância da festa e
projetava a agremiação, com a presença de seu presidente na tribuna de honra e as cores do
clube representadas. Ademais, apresentava a associação e seus membros como importantes
mediadores de benefícios para a região.
Vereadores com fortes bases regionais também poderiam ser notados em meio às home-
nagens. Era o caso de Antonio Menezes Soares, que chegara à Câmara Municipal em 1963,
militando pelo Partido Social Progressista (PSP), e que teria, desde o início de seu mandato,
uma atuação voltada para problemas locais, incluindo os relativos às agremiações varzeanas.
No fim de 1964, ele interveio a favor do Minas Brasil Futebol Clube, que, como contrapartida,
realizou um torneio em referência ao edil, como destacava o DT:
Em partida válida pelo Torneio Vereador Antonio Menezes, conseguiu o Minas Brasil Futebol
Clube, agremiação do Bairro da Graça, domingo ultimo mais uma expressiva vitória.
CAMPO PRÓPRIO
O vereador Antonio de Menezes, depois de muitos esforços junto ao sr. Prefeito da Capital
conseguiu autorização para que o Minas Brasil construisse sua praça de esportes na Avenida
Cristiano Machado perto da rua Jacui, sendo que o trator arranjado pelo sr. Antonio de Menezes
iniciará os serviços no próximo sábado.40
A nota acima expõe bem o ciclo de reciprocidade: o vereador era homenageado por ter
intermediado a cessão de terreno e benfeitorias junto à prefeitura, enquanto o clube benefi-
ciado promovia um torneio com o nome do político responsável e em comemoração à dispo-
nibilização do campo, o que o projetava no meio varzeano e junto à comunidade do bairro.
Antônio Menezes demonstrava sua vocação de solucionador de problemas ao viabilizar não
só a autorização da prefeitura, como também um trator para as melhorias na área. Sua ação
incidiria sobre a região considerada seu reduto eleitoral, identificada como o bairro Sagrada
Família e adjacências.41
Com a ausência de uma instância municipal que fosse capaz de conduzir as políticas para
o esporte amador na cidade, como deveria ser o CME, a relação direta com integrantes do
Executivo e do Legislativo municipais era um caminho quase natural dos clubes na tentativa de
648 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 68, p. 648-654, setembro-dezembro 2019
Sobre eleições, festivais e resolução de problemas: futebol de
várzea e redes políticas locais em Belo Horizonte (1962-1965)
garantir seus interesses. Em algumas situações, a atuação podia ser sem qualquer mediação,
como no caso do vereador do PTB que se candidatara a vice-prefeito em 1962: Geraldo Bizzoto.
Presidente do tradicional Tremedal, do bairro Carlos Prates, ainda naquele ano eleitoral, o edil
ingressaria com projeto de declaração de utilidade pública em favor da agremiação que dirigia,42
o qual seria aprovado pouco depois.43
A garantia por lei da proteção de interesses de clubes varzeanos começava a ganhar for-
ma no início dos anos 1960, mas rapidamente perderia espaço com a ascensão da ditadura. O
caso mais emblemático desse período foi o do Pitangui Esporte Clube, que conseguiu garantir
a doação do seu terreno, então pertencente à prefeitura. Como apontava o DT: “Movimenta-
-se a diretoria do Pitangui, clube da Lagoinha, para obter definitivamente, da municipalidade
o terreno onde tem seu campo de futebol.”44
No passado, o clube já havia conseguido a aprovação de lei, que, contudo, fora vetada
pelo prefeito.45 Agora, a iniciativa seria retomada, com o desfecho favorável em 1963, quando,
após nova interdição do Executivo, a Câmara Municipal derrubou o veto e promulgou uma lei
que autorizou a doação do terreno até hoje ocupado pelo Pitangui Esporte Clube.46
A transferência em definitivo da propriedade só aconteceu dois anos depois, já sob a
tutela do prefeito Oswaldo Pierucetti. A condução do novo prefeito se deu numa conjuntura
pós-golpe de 1964, quando, depois de o prefeito eleito Jorge Carone Filho sofrer impeach-
ment no início de 1965, houve a indicação e a posse do mandatário municipal sob ordens do
governo estadual. Em que pese a condução não democrática do novo chefe do executivo local,
o Pitangui, agremiação beneficiada, seguia o mesmo rito de homenagens, como indicou o DT:
Comemorando a conquista em definitivo do terreno onde tem seu estádio, o Pitangui fará
realizar domingo um festival, tendo como prova de fundo o interestadual reunindo a equipe
amadora pitanguiense e o Nacional da cidade capixaba de Itaguassú.
Na oportunidade irá o clube alvi-rubro varzeano prestar homenagem ao Prefeito, presidente da
Câmara Municipal, outras autoridades e imprensa esportiva da Capital.47
Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 68, p. 649-654, setembro-dezembro 2019 649
Raphael Rajão Ribeiro
Na fase final do intervalo democrático, o cenário que se conformava para a relação entre
o futebol de várzea e o poder público local era o de vínculos cada vez mais baseados na arti-
culação direta entre clubes e representantes, entre eles o prefeito ou os vereadores. A desmo-
bilização de órgãos dedicados ao tema, como o CME, conduzia os membros das agremiações
amadoristas em busca de soluções individuais com a construção de laços de reciprocidade
com os líderes políticos locais, capazes de auxiliá-los nas resoluções de problemas.
Ao examinar o momento eleitoral de forma isolada, corre-se o risco de considerar que
tais aproximações entre clubes e forças políticas locais eram pontuais e se resumiriam a en-
cenações próprias desse contexto. Contudo, ao acompanhar as práticas cotidianas dessas
associações esportivas populares, percebe-se a constituição de uma rede de resolução de pro-
blemas que constituía um emaranhado de relações contínuas de reciprocidades assimétricas
que, por um lado, atendia a demandas locais e, por outro, fomentava acúmulos de capitais de
naturezas diversas, em especial política.
As agremiações varzeanas e seus membros demonstravam ter consciência de sua inser-
ção nessa rede, por isso promoviam ocasiões de afirmação das aproximações com os líderes,
o que eventualmente poderia se converter em benefício para a continuidade e a melhoria de
suas atividades. Da mesma forma, políticos indicavam estar atentos aos códigos próprios de
uma “cultura esportiva popular” com a qual se articulavam, assumindo os papéis que lhes
cabiam nessas interações. A manutenção desses vínculos se mostraria decisiva para os clubes
amadores na manutenção de seus espaços numa cidade em franco processo de transformação
e ajuda a compreender a atual conformação da prática nos dias de hoje.
Notas
650 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 68, p. 650-654, setembro-dezembro 2019
Sobre eleições, festivais e resolução de problemas: futebol de
várzea e redes políticas locais em Belo Horizonte (1962-1965)
6 “Para prefeito, Jorge Carone Filho”, Diário da Tarde, Belo Horizonte, 12 de setembro de 1962, 2º cadernos, p. 1.
7 “Nylton Veloso homenageado em uma de suas grandes obras”, Diário da Tarde, Belo Horizonte, 13 de
setembro de 1962, p. 5.
8 “Empolga toda a cidade o apoio dos belorizontinos a Nylton Velloso”, Diário da Tarde, Belo Horizonte, 11
de setembro de 1962, p. 4.
9 “Moradores de cinco bairro acolheram Nylton Velloso com grande entusiasmo”, Diário da Tarde, Belo Hori-
zonte, 11 de setembro de 1962, p. 5.
10 Conferir entrevista de Márcio “Marcinho” Magalhães Junior, Aluísio “Gabiru” Vieira, Nilton Pereira da Silva
“Michel”, Leonardo “Nadin” Herculano e Jésus Gomes de Arruda concedida ao autor em 10 de agosto de 2017.
11 “Apoteótica recepção a Nylton Velloso em Santo André”, Diário da Tarde, Belo Horizonte, 24 de setembro
de 1962, p. 8.
12 Idem.
13 Conferir “Comício da cidade, amanhã, consagrará Nylton Velloso”, Diário da Tarde, Belo Horizonte, 28 de
setembro de 1962, p. 6.
14 Conferir “Notícias de José Maria”, Diário da Tarde, Belo Horizonte, 24 de setembro de 1962, p. 2.
15 Conferir “Notícias de José Maria”, Diário da Tarde, Belo Horizonte, 26 de setembro de 1962, p. 2.
16 “Notícias de José Maria”, Diário da Tarde, Belo Horizonte, 29 de setembro de 1962, p. 7.
17 Idem.
18 Conferir verbete biográfico PEREIRA FILHO, Antônio Luciano, DHBB/CPDOC, disponível em: http://www.
fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-biografico/pereira-filho-antonio-luciano. Acesso em: 28 abr. 2019;
OLIVEIRA, 2014, p. 295; “Antônio Luciano: o homem e o mito”, Diário da Tarde, Belo Horizonte, 29 de outu-
bro de 1973, p. 20.
19 “Convite”, Diário da Tarde, Belo Horizonte, 26 de setembro de 1962, p. 9.
20 “Protegerá o esporte amador”, Diário da Tarde, Belo Horizonte, 17 de agosto de 1962, p. 7.
21 “Notas da várzea”, Diário da Tarde, Belo Horizonte, 8 de maio de 1962, 2º caderno, p. 3.
22 Conferir “Empossados os novos membros do Conselho Municipal de Esportes”, Diário da Tarde, Belo
Horizonte, 16 de julho de 1962, p. 5.
23 Conferir “Conselho Municipal”, Diário da Tarde, Belo Horizonte, 1º de agosto de 1962, p. 9.
24 Conferir “Notas da Várzea”, Diário da Tarde, Belo Horizonte, 24 de julho de 1962, 2º caderno, p. 2 e
“Conselho Municipal”, Diário da Tarde, Belo Horizonte, 1º de agosto de 1962, p. 9.
25 LIMA, Veiga, “Coluna da Várzea”, Diário da Tarde, Belo Horizonte, 15 de setembro de 1964, p. 9.
26 Conferir LIMA, Veiga, “Coluna da Várzea”, Diário da Tarde, Belo Horizonte, 16 de setembro de 1964, p. 9.
27 “Quinto aniversário do Natal F.C.”, Diário da Tarde, Belo Horizonte, 20 de dezembro de 1962, p. 9.
28 “Notas da Várzea”, Diário da Tarde, Belo Horizonte, 8 de fevereiro de 1962, 2º caderno, p. 2.
Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 68, p. 651-654, setembro-dezembro 2019 651
Raphael Rajão Ribeiro
Referências bibliográficas
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654 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 68, p. 654-654, setembro-dezembro 2019
Artigo
DOI: http://dx.doi.org/10.1590/S2178-14942019000300006
I
Instituto Federal de Brasília (IFB), Brasília – DF, Brasil.
* Professor de história do Instituto Federal de Brasília, doutorando em história social pela Universidade de São Paulo
(USP). (luiz_burlamaqui@hotmail.com) ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0872-2318
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Luiz Guilherme Burlamaqui Soares Porto Rocha
Resumo
Este artigo visa discutir a participação de parte dos empresários brasileiros no planejamento da Seleção brasileira de
futebol de 1970. Conhecida pela literatura como “Planejamento México”, a preparação para esse Copa envolveu
o envio de técnicos brasileiros ao exterior, a capacitação da comissão técnica e uma longa estadia no México para
adaptação à altitude. Os custos do Planejamento México foram bancados por empresários brasileiros em parceria
com a Confederação Brasileira de Desportos. Escorado em fontes inéditas, disponibilizadas no Instituto Moreira
Salles, este artigo discute os objetivos dos empresários no financiamento dos preparativos da Seleção.
Abstract
This article aims to discuss the participation of Brazilian entrepreneurs in the planning of the Brazilian Seleção of
1970. Known in the literature as Planejamento México, the Brazilian preparation for the 1970 World Cup involved
the interchange of Brazilian technicians, the preparation of the technical committee and a long stay in Mexico to
adapt to altitude. The costs of Planning Mexico were financed by Brazilian entrepreneurs in partnership with the Bra-
zilian Sports Confederation. Based in unpublished sources, available at Instituto Moreira Salles, this article discusses
the entrepreneurs’ objectives in financing the preparations for the Seleção.
Keywords: Sports institutions; Business-military dictatorship; 1970 Brazilian National Team; João Havelange.
Resumen
En este artículo se pretende discutir la participación de parte de los empresarios brasileños en la planificación de
la selección brasileña de 1970. Conocida por la literatura como “Planejamento México”, la preparación brasileña
para dicho Mundial involucró el envío de técnicos brasileños al exterior, la capacitación de la comisión técnica y una
larga estancia en México para adaptación a la altitud. Los costos del planejamento fueron bancados por empresarios
brasileños en asociación con la Confederación Brasileña de Deportes. En este artículo se discuten los objetivos de los
empresarios en la financiación de los preparativos de la Seleção.
Palabras clave: Instituciones deportivas; Dictadura empresarial-militar; Equipo nacional brasileño de 1970,
João Havelange.
656 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 68, p. 656-674, setembro-dezembro 2019
Os empresários, a pátria e a bola: nacionalismo, organização
empresarial e o financiamento da seleção brasileira de futebol de 1970
Introdução
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Luiz Guilherme Burlamaqui Soares Porto Rocha
As origens da campanha
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Os empresários, a pátria e a bola: nacionalismo, organização
empresarial e o financiamento da seleção brasileira de futebol de 1970
ele [Havelange] me procurou porque estava precisando conversar com o Embaixador Moreira
Salles, a respeito de um projeto de apoio para a seleção brasileira. Eu disse: “mas, olha, você
tem contato com o Embaixador, não precisa ser por meu intermédio. É só procurar, Havelange”.
“Não. O Embaixador é muito ocupado, eu gostaria que você já preparasse ele, conversasse com
ele, porque, quando eu fosse marcar, agendar com ele, ele já estivesse a par”.3
Tive uma conversa com ele. Porque eu realmente achei que seria bom para figura dele, quer dizer
ele era uma figura, vamos dizer assim, parecia que era uma pessoa que vivia numa redoma, o
que não era, era uma pessoa muito aberta e tal. E projetar até mais, quer dizer, junto ao povo né,
porque ele [já] tinha uma posição muito grande no mundo financeiro, no mundo internacional.4
Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 68, p. 659-674, setembro-dezembro 2019 659
Luiz Guilherme Burlamaqui Soares Porto Rocha
Senhor Embaixador,
À medida que se aproxima a data fixada para a realização da Copa do Mundo de 1970, no
México, e, antes de tal acontecimento, o compromisso que o futebol brasileiro terá que saldar
frente às representações da Colômbia, Venezuela e Paraguai, cujos resultados determinarão a
participação ou a ausência do Brasil naquela competição, aumentam as responsabilidades da
CBD perante o povo brasileiro.
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Os empresários, a pátria e a bola: nacionalismo, organização
empresarial e o financiamento da seleção brasileira de futebol de 1970
Tais são as preocupações e como inúmeros e elevados são os compromissos resultantes desse
evento futebolístico, que o desejo de colaborar manifestado por organizações do gabarito da
UBB, ou por cidadãos da envergadura e da importância de V. Ex.ª na vida política, social e eco-
nômica financeira do país, representa a esperança ou quase a certeza de que as dificuldades
serão superadas.
A visita feita a esta entidade pelo Sr. Pedro McGregor, Assistente da Diretoria da UBB quando,
perante a nossa diretoria, expôs, em linhas gerais, um plano de apoio financeiro à CBD com
vistas à Copa do Mundo, trouxe-nos a certeza de que as esferas mais importantes do país ava-
liam o significado do futebol como veículo de propaganda de uma nação, como reconhecem o
quanto o povo brasileiro deseja a conquista do título mundial em 1970.
A Diretoria da CBD, absolutamente confiante no decisivo apoio de V. Ex.ª, resolveu criar o Comi-
tê Brasileiro da Seleção de 70 (COBRAS), e envia por meio deste, um veemente apelo no sentido
de que V.Ex.ª assuma a direção da campanha.
A presença de V.Ex.ª à frente de tal movimento é a maior e melhor garantia de que o sucesso
nos aguarda. Ao lado de V.Ex.ª. estarão todos aqueles que, tendo algo para dar, não hesitarão
em fazê-lo, tal a qualidade e a capacidade do timoneiro da campanha.
Resolveu ainda a Diretoria solicitar de V.Ex.ª a elaboração do plano cujas bases nos foram
apresentadas pelo Pedro McGregor, colocando desde já os seus serviços à disposição de V.Ex.ª
para qualquer informação.
Na expectativa de um breve pronunciamento, apresentamos a V.Ex.ª Senhor Embaixador os
nossos protestos de grande respeito e elevada estima.
Havelange.7
Dois meses após a troca inicial de correspondência, o primeiro jantar dos empresários
tornou pública a campanha para angariar fundos para a Seleção. Aberto com um desfile de
misses estaduais, a solenidade contou com a participação de jornalistas, empresários, do ge-
neral Siseno Sarmento, além dos jogadores da seleção, as “Feras do Saldanha”. Os nomes
dos pratos homenageavam os personagens principais daquele encontro: como entrada, creme
de aspargos à Havelange; de prato principal, bife à João Saldanha; e, no fim, um café à Pelé.
Cerca de 100 mil cruzeiros novos (ou 25 mil dólares) foram doados para a preparação
da Seleção da CBD somente naquela noite — cerca de 10 por cento do valor total que os
empresários pretendiam arrecadar.8 Um dos jornalistas presentes no encontro era Nelson
Rodrigues. Sem exagero, pode-se dizer que o cronista tricolor se tornou uma espécie de por-
ta-voz não oficial da campanha. Escrita logo após o primeiro encontro, a crônica abaixo seria
a primeira de uma série de textos produzidos e dedicados à Campanha do Empresariado
Pró-Seleção de 1970:
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Luiz Guilherme Burlamaqui Soares Porto Rocha
Não deixa de ser romântico o apoio que os nossos empresários estão dando ao scratch brasilei-
ro. O exemplo de Walther Moreira Salles define um novo Brasil. No passado, o homem rico não
saberia dizer se a bola é redonda ou quadrada. E vejam como Walther Moreira Salles recebeu,
de braços abertos, o apelo que lhe fez Havelange. Está trabalhando para a seleção. Vivo eu a
dizer que o scratch é a pátria de chuteiras. Pois os nossos empresários pensam assim, sentem
assim, veem assim (Rodrigues, 1969).
A propaganda era clara: se, no passado, havia um gap entre a agência do empresariado
e os sentimentos populares, no Brasil de 1969 os empresários viviam e sentiam os problemas
da nação como se fossem os seus próprios. Não havia conflito entre as classes subalternas e
as dominantes, de modo que ambas viviam e sentiam os problemas de um só Brasil. O discurso
dos anseios da pátria em comunhão ia ao encontro da narrativa do discurso oficial do regime
político. Essa narrativa, sem dúvida, foi vulgarizada pelos órgãos institucionais de propaganda,
em particular pela Assessoria Especial de Relações Públicas (Aerp), mas permeou atores da
sociedade civil. Em “À sombra das chuteiras imortais”, uma de suas crônicas escritas na sua
coluna do jornal O Globo, Nelson vocalizava, exagerava e reproduzia o discurso oficial:
Faço esta introdução para chegar a Walther Moreira Salles. [...] Ora, entendo que uma das mais
sérias conquistas do futebol brasileiro foi a de Walther Moreira Salles. Eis aí uma admirável figura
de brasileiro. […] o time nacional, sendo o melhor do mundo, é também o mais pobre. […].
Ninguém ignora que os nossos clubes vergam ao peso das dívidas como uma árvore ao peso dos
frutos. E se é assim por que deixar o homem rico como um marginal dos grandes acontecimentos
esportivos? Walther Salles é sensível para com as coisas brasileiras. Ele sentiu o que representa
o scratch para o povo e para o Brasil. […] Walther Salles convocou os empresários. Transmitiu-
-lhes seu entusiasmo. Essa mobilização significou tanto, tanto. Imaginem a situação do scratch.
Com algum exagero, eu diria que se os jogadores ficassem doentes teriam que se internar numa
enfermaria de indigentes da Santa Casa. Hoje eu ousaria dizer que o scratch está menos pobre.
[…] O povo sente que este scratch vai ser campeão. Agora vemos os empresários trabalhando
pela seleção. Nunca houve isso. Os lorpas, os pascácios, os bovinos advertem contra o otimismo.
Deviam fazê-lo inversamente contra o pessimismo. Mas é fácil perceber que o otimismo está em
toda a parte: difuso, volatilizado, atmosférico. Sim, nós respiramos otimismo (1969).
Escrita dois meses após a primeira, a crônica contém muitos elementos narrativos in-
teressantes, como a celebração do otimismo, da comunhão produzida pelo nacionalismo, e
a centralidade da figura de Salles como empresário desse “novo tempo”. Na arena pública,
Salles era uma espécie de símbolo capaz de condensar a atuação e as representações positivas
sobre esse grupo político.
Neste trabalho pedagógico, o objetivo era parecer “sensível às coisas brasileiras” e se apro-
ximar das classes subalternas. A diluição do conflito de classes e de raças em torno de uma ideia
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Os empresários, a pátria e a bola: nacionalismo, organização
empresarial e o financiamento da seleção brasileira de futebol de 1970
comum de Brasil era o que dava a tônica do discurso propagandístico. Salles e os empresários bra-
sileiros não seriam mais alheios aos “grandes acontecimentos do povo”, para retomar a imagem
de Nelson Rodrigues. Dessa vez, eles tomariam a dianteira para construir uma nação moderna.
O leitor de época não teria dificuldade para identificar esse “novo tempo” com o governo
Médici, que prometia um Brasil desenvolvido e pujante do ponto de vista econômico. Mais do
que isso, evocar a pobreza da Seleção era a estratégia do cronista para apresentar os empre-
sários como os responsáveis por redimir a Seleção/nação brasileira. Essa versão, entretanto,
não poderia ser mais enganosa. Se os empresários brasileiros se interessavam pela Seleção,
era por sua força política, econômica e simbólica, e não por sua fraqueza institucional. Não
havia nada de romântico nem de salvacionista nesse mecenato. Tratava-se de uma estratégia
de marketing, com objetivos, metas e um programa de execução bem delimitados. Investindo
no futebol, os empresários enxergaram uma chance de se projetar na arena pública, com uma
agenda própria de instrumentalização esportiva.
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Os empresários, a pátria e a bola: nacionalismo, organização
empresarial e o financiamento da seleção brasileira de futebol de 1970
CBD se preocupavam com os problemas da seleção nacional de futebol.” Sob esse último as-
pecto, as possibilidades de êxito e rentabilização de lucros simbólicos eram bastante elevadas.
Um panfleto distribuído nas agências da UBB explicitava:
Até quatro anos atrás, isto é, até a última Copa do Mundo, apenas o Governo e a Confederação
Brasileira de Desportos preocupavam-se com os problemas da Seleção Nacional de Futebol. En-
tendemos que a participação de nosso país na Copa do Mundo não deve e não pode acontecer
à nossa revelia. O futebol hoje em dia faz parte da vida sociológica das nações e dos povos. E os
empresários do Brasil sentem o dever de dar sua contribuição à presença do Brasil na disputa do
campeonato mundial de futebol, que se constitui, sem dúvida, um dos fatos mais importantes
da vida do país. Com este propósito, conscientes de que como empresários não podemos ficar
alheios à vida nacional, aceitamos a liderança de uma campanha que objetiva proporcionar aos
nossos jogadores as condições necessárias e materiais para que nesta disputa internacional, re-
presentem o Brasil em condições de elevá-lo à altura em que todos queremos e o país merece.10
Para alcançar o êxito, era preciso vencer a Copa do Mundo. Por essa razão, o dinheiro
arrecadado pelo empresariado seria destinado a uma preparação de tipo científica, certo de
que isso lhes garantiria as condições da conquista em 1970. Esse plano ficou conhecido como
“Planejamento México”. A crença na capacidade científica dos métodos da educação física
foi fundamental para que eles liberassem boa parte dos recursos. A entrevista com Cunha
revela um conhecimento dos personagens, bem como do nome das técnicas e dos métodos
de preparação física desenvolvido por Raoul Mollet, Kenneth Cooper e pelo Conselho Inter-
nacional de Esportes Militares (Cism), prova de que o empresariado também se assuntou da
cooperação técnica.11
Numa das reuniões junto aos empresários, o general Sarmento salientou à imprensa que
a estrutura do Exército estaria à disposição da Seleção — era a tal aliança entre empresários
e militares de que falava Cunha. Enquanto os primeiros entrariam com as verbas necessárias
para o custeio do investimento em ciência e da preparação da seleção, o Exército disponibili-
zaria o know-how, o capital humano e os espaços físicos.12
Os empresários decidiram montar uma estrutura nacional, segmentada em comitês esta-
duais. As cinco principais metrópoles do país (Rio de Janeiro, São Paulo, Recife, Belo Horizonte
e Porto Alegre) contariam com um comitê de empresários, cada qual liderado por um repre-
sentante proeminente. No caso de Recife e Belo Horizonte, não foi possível descobrir quem
presidiu o comitê. Nas outras, a lógica regional era semelhante à da presidência nacional ocu-
pada por Salles. Cada empresário emprestaria seu prestígio ao comitê, de forma que outros
da comunidade o seguiriam.
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Em São Paulo, Salles convidou Paulo Salim Maluf, mas, após este declinar, foi o indus-
trialista José Ermírio de Moraes, do Grupo Votorantim, quem levou o projeto adiante (Paulo...,
1969). Em Porto Alegre, o prefeito Thompson Flores, engenheiro civil e empreiteiro do setor
elétrico, assumiu a responsabilidade. Em 1970, Salles escreveu carta do próprio punho solici-
tando doações a um grupo seleto de amigos:
Walther Salles13
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Os empresários, a pátria e a bola: nacionalismo, organização
empresarial e o financiamento da seleção brasileira de futebol de 1970
Essa diversidade ilustra como os empresários foram capazes de mobilizar amplos setores,
ainda que se possa falar numa predominância de agentes ligados ao setor financeiro.15
A campanha foi baseada em doações, feitas da seguinte forma: quem quisesse contribuir,
compraria moedas de ouro da Seleção brasileira cunhadas sem custos pelo governo na Casa
da Moeda. Cada moeda teria um valor intrínseco de 2 mil cruzeiros (50 dólares). Qualquer
valor acima dessa base inicial seria diretamente doado à Seleção. Com a compra da moeda, o
empresário poderia fazer a doação e, em seguida, recuperar o valor parcialmente, revendendo
as moedas no próprio estabelecimento comercial. Caso não as vendesse, assumia para si o
prejuízo integral, e a compra podia ser encarada como uma doação.
Além de comprar ouro, a população de menor renda poderia comprar diplomas intitu-
lados “Amigos da Seleção”. Foram 25 mil diplomas impressos, que custavam 500 cruzeiros
novos (12 dólares) e 200 cruzeiros novos (5 dólares) cada. Havia itens de valor ainda menor,
como adesivos, mas que não aparecem na contabilidade da campanha. Nessa linha, o inte-
ressante é notar que estes de maior valor (diplomas e moedas) foram vendidos nas agências
da UBB espalhadas Brasil afora, que se valeu dessa estrutura para comercializar os ativos. As
recomendações internas mostram Cunha solicitando que os gerentes das agências bancárias
oferecessem os produtos para os clientes tradicionais do banco. Abaixo, o press release da
campanha, distribuído nos jornais de grande circulação do período, dá alguns detalhes de
como seriam feitas as vendas:
Press release. Futebol mexe com todos. É o esporte do Brasil, capaz de nos dar as maiores ale-
grias. E a seleção brasileira, que vai ao México buscar o tri, precisa de você. O comitê financeiro,
liderado pelo Embaixador Walther Moreira Salles, presidente da UBB, pôs à venda moedas
de ouro, especialmente cunhadas pela Casa da Moeda, que estão em exposição na agência
Patriarca e vendidas por dois mil cruzeiros novos. Além das moedas, o torcedor brasileiro pode
adquirir em qualquer agência o diploma Amigo da Seleção, que corresponde a sua contribuição
financeira no valor de 500 e 200 cruzeiros novos. Colabore.16
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Os empresários, a pátria e a bola: nacionalismo, organização
empresarial e o financiamento da seleção brasileira de futebol de 1970
Na fase dos jogos eliminatórios, sua notável capacidade técnica e dedicação à frente do sele-
cionado brasileiro fizeram com que as nossas cores, vitória após vitória, conquistassem brilhan-
temente o direito de ir ao México. Por isso, o seu nome no diploma é imperativo.
Não é impossível nem difícil fazer novas impressões, mas o diploma desrespeitaria os fatos se
o nome de V.S.ª nele deixasse de constar ao lado dos nossos magníficos atletas e do técnico
Mario Lobo Zagallo.
O objetivo desta carta, que lhe entrego em mãos, é solicitar que, pela concordância na cópia da
mesma, fique o Comitê Carioca autorizado a lançar os diplomas com a assinatura do técnico
que encheu de orgulho os brasileiros, no comando da equipe nacional, ao superar todos os
obstáculos e equipes que enfrentamos na fase das eliminatórias.
Agradeço, pelo Comitê Carioca Pró-Seleção, a acolhida, que dispensa à presente, e me subscre-
vo seu admirador de sempre.
Antônio Galloti19
A importância do episódio foi tal que a carta não chegou a ser enviada pelos Correios, e
sim entregue em mãos por Galloti. Embora seja menos conhecido para o leitor contemporâneo
do que Salles, a reputação de Galloti nos meios empresariais era tão alta quanto. Das mãos
do senador Jessé Pinto Freire, ele receberia, em 1973, assim como Havelange fizera em 1970,
o Prêmio Mascate do Ano. Também foi considerado o “executivo do ano” pela revista Visão.
No âmbito internacional, fazia parte de um seleto conselho internacional do Chase Manhattan
Bank, ao lado de figuras conhecidas pela burguesia transnacional, como Giovanni Agnelli,
presidente da Fiat, e Hermann Abbs, do Deutsche Bank.
Por outro lado, se a ligação de Salles com o regime ditatorial pode ser caracterizada
como pragmática, a adesão ideológica de Galloti ao regime ditatorial era conhecida. Galloti
era um dos líderes e financiadores do Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (Ipes), tendo
participando ativamente das reuniões do grupo e da arquitetura do golpe de 1964.20
Em 1970, Galloti e os demais empresários pensavam que o nome de Saldanha pudesse
funcionar como atrativo para a venda dos diplomas da Seleção, de modo que não hesitaram
em lhe escrever para que o nome ali permanecesse. Para Galloti e os outros empresários, o que
estava em jogo era uma estratégia de marketing, e o nome de Saldanha tinha valor comercial.
Assim, é importante observar que as divergências ideológicas não aparecem como uma ques-
tão na documentação — tanto é que Galloti, justamente o empresário mais alinhado com o
regime político, foi quem entregou a carta a Saldanha.
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Luiz Guilherme Burlamaqui Soares Porto Rocha
A ntes do embarque para o México, o último ato da campanha foi o convite de Havelange
para Salles chefiar a delegação. A recusa, escrita em carta para Havelange, chegou a
circular nos principais jornais da época:
Havelange ainda convidou Salles para se tornar “delegado de honra”, uma função me-
ramente formal e honorária.22 Dessa vez, porém, Salles não respondeu por escrito. Na carta
acima, é visível a preocupação que sua reputação pudesse sair abalada pela derrota. De todo
jeito, o fim da história é conhecido pela literatura. Depois da recusa de Salles, Havelange convi-
da o brigadeiro Jerônimo Bastos, presidente do Conselho Nacional dos Desportos, para chefiar
a delegação. Não obstante, é interessante notar que o Brigadeiro não foi a primeira escolha.
O vínculo entre Havelange e os empresários, representado por Salles, era tão ou mais for-
te do que aquele construído entre a CBD e o núcleo burocrático do Estado brasileiro. A recusa
de Salles em ocupar um cargo na instituição ajudaria a tornar o apoio do empresariado um
episódio invisível na memória social. Na época, a vitória do Brasil fez com que esses grupos
lucrassem tanto simbólica quanto politicamente junto à sociedade civil. Salles pode se projetar
“junto ao povo”, algo que certamente ajudaria no processo de expansão e consolidação do
seu banco.
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Os empresários, a pátria e a bola: nacionalismo, organização
empresarial e o financiamento da seleção brasileira de futebol de 1970
Na historiografia política sobre o futebol brasileiro, poucos assuntos são tão estuda-
dos quanto a vitória do Brasil na Copa do Mundo em 1970. Tradicionalmente, ela tem sido
contada como uma fábula de apropriação política pelos militares. Representados pelo então
presidente Médici, os militares teriam utilizado a seleção como forma de garantir e manter as
posições de autoridade, fomentando o discurso nacionalista do período.
Em linhas gerais, o debate gira em torno de qual a extensão, a natureza e o impacto
desse discurso no conjunto da sociedade civil. Um conjunto de autores argumenta que, em-
bora houvesse a intenção dos agentes em domesticar as massas pelo futebol, a recepção das
mensagens sobre a Seleção de 1970 teria sido heteróclita (Florenzano, 2009). Outros historia-
dores argumentam que o claro uso político dos militares da Seleção teve impactos diretos na
construção de uma hegemonia política (Magalhães, 2014).
Parece, todavia, haver consenso de que o êxito do selecionado brasileiro de 1970 teria
sido capitaneado e capitalizado exclusivamente pelos militares. Seriam eles os responsáveis por
ampliar a euforia nacionalista provocada pelo milagre econômico com o triunfo da equipe de
Mario Jorge Lobo Zagallo. Este artigo, de certa forma, diverge e amplia essa linha interpretativa.
Ainda que pareça claro que os militares atuaram nessa direção, eles não fizeram voo solo. Nessa
empreitada, estiveram a seu lado amplos setores do empresariado. Egressos de diversos setores
da economia, em particular do capital financeiro, eles ajudaram a financiar o planejamento
para a Copa do Mundo do México. Tais grupos tinham, à sua própria maneira, uma agenda de
instrumentalização política do futebol e, não raro, estiveram lado a lado com os militares.
Por fim, vale a pena refletir sobre os motivos pelos quais essa parceria entre o empresa-
riado e a CBD não consta dos livros de história de caráter acadêmico e na memória nacional.
Pode-se começar ressaltando o fato óbvio de que os Arquivos Walther Moreira Salles perma-
necem fechados ao público acadêmico. Essas reuniões entre Havelange e os empresários fo-
ram fartamente documentadas pela grande imprensa do período, fonte mais do que conhecida
pela literatura. Salles chegou a publicar sua carta recusando o convite de chefiar a delegação
em jornais de grande circulação, e os acadêmicos que se debruçaram sobre a Copa do Mundo
de 1970 preferiram deixar essa história à margem de suas teses.23
Nesse quesito, deve-se concordar com o historiador Daniel Aarão Reis Filho, que pontua
que, ao curso do processo de abertura política, houve uma espécie de “expurgo da ditadura
pela sociedade” (2000: 8), vista como algo essencialmente negativo e associada exclusivamen-
te ao grupo militar. Nessa linha, “hoje quase ninguém quer se identificar com a ditadura [...]
Com isso, atitudes que tendem a estabelecer uma ruptura drástica entre o passado e o presente
se estabelecem e induzem ao esquecimento e ao silêncio de um processo” (2000: 16).
Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 68, p. 671-674, setembro-dezembro 2019 671
Luiz Guilherme Burlamaqui Soares Porto Rocha
Em 2019, as palavras de Reis já não soam tão atuais. Não obstante, a historiografia
silencia sobre grupos e agentes que colaboraram, lucraram e atuaram de mãos dadas com o
governo. Fundamental na construção de um clima de euforia em 1970, a vitória na Copa do
Mundo e seus usos políticos deveriam ser associados à figura do presidente Médici — a face,
por definição, do regime autoritário. A colaboração do empresariado na campanha e seus
eventuais ganhos econômicos, políticos ou simbólicos pareciam não ter lugar nessa narrativa.
Notas
1 Os valores estão disponíveis em Coaracy (1978: 69) e também no relatório anual da CBD (1970). Atuali-
zado, o valor é, evidentemente, uma aproximação, feita com base no site https://www.fee.rs.gov.br/servicos/
atualizacao-valores/. A tabela disponível pela Fundação de Economia e Estatística do Rio Grande do Sul toma
por base o Índice Geral de Preços (IGP-FGV).
2 Entrevista cedida por Bellini Cunha ao autor. Rio de janeiro, ago. 2016.
3 Entrevista cedida por Bellini Cunha ao autor. Rio de janeiro, ago. 2016.
4 Entrevista cedida por Bellini Cunha ao autor. Rio de janeiro, ago. 2016.
5 A maior parte das informações sobre a vida de Walther Salles foi retirada do verbete do DHBB, escrito por
Mayer (1984), além de Brandão (2019).
6 De acordo com relatório da CBD (1970), as despesas totais da seleção em 1970 foram de 73 milhões de
reais. O resto do custo foi bancado com renda de amistosos nacionais, internacionais, eliminatórias e outras
verbas da instituição.
7 Carta convite (ofício número 254). Havelange convida Walther Salles. Rio de janeiro, 14 mar. 1969. Pasta 4.
Campanha Nacional Pró-Seleção Brasileira, WMS. 1979. 03-14. Correspondências. Arquivo Walther Moreira
Salles/Acervo IMS.
8 A notícia da participação de Siseno Sarmento está em Empresário... (1969). Notícias mais gerais podem ser
encontradas em Jantar... (1969) e Banqueiro... (1970).
9 Esquema geral de trabalho, disposto em atas da reunião do Comitê Carioca em 14 de maio de 1969. WMS.
PUB. Camp/Campanha Nacional Pró-Seleção Brasileira. Atas e estatutos. Arquivo Walther Moreira Salles/Acer-
vo IMS.
10 Panfleto distribuído nas agências. WMS. 1970. 08.00 PUB. Campanha Copa 1-10. Campanha Nacional
Pró-Seleção Brasileira. Arquivo Walther Moreira Salles/Acervo IMS.
11 A Biblioteca do Exército publicou, por exemplo, Mollet (1976), Cooper (1970) e Cooper (1972). Mollet era
presidente do Comitê Olímpico belga.
12 Conferir entrevista cedida por Bellini Cunha ao autor. Rio de janeiro, ago. 2016. Em 1970, o general Siseno
Sarmento declarou que “o Exército ajuda tudo que pode agradar ao povo. O Exército é o povo e o futebol
é do povo. Um exemplo do que estamos ajudando: a nossa escola de educação física está à disposição da
seleção” (CBD..., 1969).
672 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 68, p. 672-674, setembro-dezembro 2019
Os empresários, a pátria e a bola: nacionalismo, organização
empresarial e o financiamento da seleção brasileira de futebol de 1970
13 A estrutura da campanha aparece presente em discurso WMS. 1969. PUB. Camp/ Copa. DIS 1969. [Pasta
número 2]. Arquivo Walther Moreira Salles/Acervo IMS.
14 Para a lista de doadores, conferir WMS. 1970.08.00 PUB Campanha Copa 1-10. Relatórios. Arquivo Wal-
ther Moreira Salles/Acervo IMS.
15 Antônio Galloti a Walther Moreira Salles. Correspondências. Pasta 4. Campanha Nacional Pró-Seleção Bra-
sileira. WMS. 1968. 03-14. Arquivo Walther Moreira Salles/Acervo IMS. Na lista completa do Comitê Carioca,
faziam parte do Setor Indústria: Guilherme de Silveira Filho, Guilherme Levy, Paulo Geyer, Thomas Pompeu de
Souza Brazil Netto e Victor Boucas; do Setor Comércio: Antônio Carlos de Amaral Osório, Jessé Pinto Freire,
Jorge Geyer, Ruy Gomes de Almeida e Venâncio Veloso; do Setor Finanças: Bellini Cunha, Carlos Alberto Viei-
ra, Eduardo Magalhães Pinto e José Luiz Moreira de Souza; do Setor Clubes: Antônio de Bulhões Carvalho,
Antônio Carlos de Almeida Braga, Francisco Eduardo de Paula Machado, Giulite Coutinho e Nelson Vaz Mo-
reira; do Setor Publicidade: Chagas Freitas, Danton Jobim, João Calmon, embaixador João Dantas, Nascimento
Brito e Oscar Bloch; do Setor Coordenação: Eduardo Galloti, Eduardo Bahout, José Rubem Fonseca e Rafael
de Almeida Magalhães.
16 Referência, pasta 4. WMS. PUB. Camp. Copa. 1970/00.00. Arquivo Walther Moreira Salles/Acervo IMS.
17 Entrevista cedida por Bellini Cunha ao autor. Rio de Janeiro, ago. 2016.
18 Carta de encerramento escrita por Bellini Cunha, sem data. Pasta 7. Campanha Copa. WMS. PUG. Comp.
Copa 70. Arquivo Walther Moreira Salles/Acervo IMS.
19 Antônio Galloti a João Saldanha, carta de 25 de março de 1970. Pasta 4. Campanhas. 1970. WMS. 1969.
03-14. Correspondências, 45 folhas. Arquivo Walther Moreira Salles/Acervo IMS.
20 Galloti é um dos personagens da tese de doutoramento de Dreifuss (1981). Vale também consultar Dias
(2010).
21 Carta de Walther Salles a João Havelange. Rio de janeiro, 4 mar. 1970. Pasta 4. Campanhas. 1970. WMS.
1969. 03-14. Correspondências, 45 folhas. Arquivo Walther Moreira Salles/Acervo IMS.
22 Carta de João Havelange a Walther Salles. Rio de Janeiro, 13 mar. 1970. Pasta 4. Campanhas. 1970. WMS.
1969. 03-14. Correspondências, 45 folhas. Arquivo Walther Moreira Salles/Acervo IMS.
23 Salvo três páginas dedicadas a essa ação na dissertação de Marczal (2011).
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674 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 68, p. 674-674, setembro-dezembro 2019
Artigo
DOI: http://dx.doi.org/10.1590/S2178-14942019000300007
i
O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes).
“Menos democracia, às vezes, é melhor para organizar uma Copa”. Disponível em: http://globoesporte.globo.com/futebol/
copa-do-mundo/noticia/2013/04/valcke-menos-democracia-vezes-e-melhor-para-organizar-uma-copa.html. Acesso em:
em 10 jun. 2018.
I
Universidade Federal Fluminense (UFF), Niterói – RJ, Brasil.
Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 68, p. 675-694, setembro-dezembro 2019 675
Lívia Gonçalves Magalhães
Resumo
O objetivo deste artigo é relacionar as memórias sobre a vitória argentina na Copa do Mundo de 1978 ao contexto
mais amplo de construções e disputas memorialísticas que marcaram tanto a ditadura quanto a redemocratização
e a democracia da Argentina. A história recente do país é fortemente marcada pelos conflitos entre o passado
autoritário e as relações da sociedade com a última ditadura, que surgem constantemente como espaço de conflito
no presente por meio das disputas de narrativas sobre as muitas memórias construídas e consolidadas. A vitória de
1978 é um marco no conflito entre torcer versus resistir ao regime que vigorou entre março de 1976 e dezembro
de 1983. Com o respaldo de dados consultados na sede da Federação Internacional de Futebol (Fifa) e de arquivos
argentinos, nossa hipótese é a de uma mudança de política governamental com a chegada da direita na figura de
Maurício Macri em 2015, em oposição às políticas de memória durante os governos kirchneristas de 2003 a 2015.
Com isso, as comemorações dos trinta anos da conquista, em 2008, e dos quarenta anos, em 2018, permitem anali-
sar essas mudanças políticas e perceber uma alteração na perspectiva da Copa como evento da ditadura.
Abstract
The aim of this article is to relate the memories of the Argentine victory at the 1978 World Cup to the broader context
of constructions and memorial disputes that marked Argentina’s dictatorship, redemocratization and democracy.
The recent history of the country is strongly marked by the conflicts between the authoritarian past and society’s
relations with the last dictatorship, which constantly emerge as a space of conflict in the present through narrative
disputes over the many memories built and consolidated. The 1978 victory marks a milestone in the conflict between
cheering versus resisting the regime that ran from March 1976 to December 1983. Backed up by data consulted at
the headquarters of the International Football Federation (FIFA) and Argentine with the coming to power of Mauricio
Macri, in 2015, our hypothesis is that of a change in government policy based on memory, something that happened
during the Kirchnerist governments from 2003 to 2015. Thus, the commemorations of the 30th anniversary of the
conquest in 2008, and the forty 2018, allow us to analyze these political changes and to perceive a change in the
perspective of the World Cup as an event of dictatorship.
Resumen
El objetivo de este artículo es relacionar los recuerdos de la victoria argentina en el Mundial de fútbol en 1978 con el
contexto más amplio de construcciones y disputas conmemorativas que marcaron la dictadura, la redemocratización
y la democracia de Argentina. La historia reciente del país está fuertemente marcada por los conflictos entre el pasa-
do autoritario y las relaciones de la sociedad con la última dictadura, que constantemente emergen como un espacio
de conflicto en el presente a través de disputas narrativas sobre los muchos recuerdos construidos y consolidados.
La victoria de 1978 marca un hito en el conflicto entre animar y resistir el régimen que se desarrolló entre marzo de
1976 y diciembre de 1983. Respaldado por datos consultados en la sede de la Federación Internacional de Fútbol
(Fifa) y los archivos argentinos, nuestra hipótesis es la de un cambio en la política gubernamental con la llegada
al poder de Mauricio Macri en 2015, en oposición a las políticas de memorias durante los gobiernos kirchneristas
de 2003 a 2015. Por lo tanto, las conmemoraciones del 30 aniversario de la conquista en 2008, y los cuarenta Los
años, en 2018, nos permiten analizar estos cambios políticos y percibir un cambio en la perspectiva de la Copa del
Mundo como un evento de dictadura.
676 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 68, p. 676-694, setembro-dezembro 2019
A Copa do Mundo da ditadura ou da resistência?
Comemorações e disputas de memórias sobre a Argentina de 1978
Introdução
A frase acima foi dita em abril de 2013 pelo então secretário-geral da Federação Inter-
nacional de Futebol (Fifa), Jérôme Valcke, durante uma das visitas feitas pela entidade
ao Brasil para inspecionar os andamentos das sedes da Copa do Mundo masculina de 2014.
À época, o que para alguns se justificou como “brincadeira”, para tantos outros levantou a
questão dos diversos momentos em que a entidade máxima do futebol mundial se viu no
centro de denúncias por envolvimento com governos autoritários.
A Copa do Mundo de 1978, realizada na Argentina sob a ditadura civil-miliar (1976-
1983) e vencida pelo país sede, criou, primeiro nacional mas depois internacionalmente, a
memória da “Copa da ditadura”, mistificando que aquela foi uma conquista do próprio re-
gime, ignorando outras variáveis, atores e realidades que viveram o evento. Como aponta
Pablo Albarces (2008), essa foi a principal memória construída pelos meios de comunicação e
incorporada tanto pela sociedade quanto pelos meios esportivos após o fim da ditadura, nos
primeiros anos da década de 1980.2 Desde então, a memória da vitória e da própria Copa —
incluindo sua organização e seu cotidiano — foram espaços de disputas, acompanhando, de
certa forma, a própria memória construída e renovada ao longo de décadas sobre a última
ditadura argentina no século XX.
Assim, parece-nos interessante pensar a vitória esportiva de 1978 com base na análise
de como lidamos com as “datas comemorativas” em relação aos traumas da história recente.
Em geral, são episódios como o dia dos golpes ou algum evento da redemocratização (elei-
ções, posse etc.) que costumam ser considerados nas comemorações. Como destacou Elizabe-
th Jelin sobre as “datas infelizes”, “uma vez instaladas, as marcas e inscrições não estão cris-
talizadas para sempre. Seu sentido é apropriado e ressignificado pelos diversos atores sociais,
segundo as circunstâncias e o cenário político no qual se desenvolveram suas estratégias e
seus projetos” (2002: 2, tradução livre). As comemorações futebolísticas impreterivelmente
se misturam às festas nacionais, sendo lembradas e celebradas nas décadas seguintes sob
diferentes leituras.
Como pensar, no entanto, em termos de construções e disputas de memórias a Copa
de 1978 nas comemorações dos trinta e dos quarenta anos do título? Maurice Halbwachs
(2006) trouxe o debate da memória como uma experiência coletiva, sem negar a existência da
memória individual. O autor destaca que é com base no comum da memória coletiva que de-
vemos entender as experiências subjetivas. Paul Ricouer questiona a proposta de Halbwachs
Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 68, p. 677-694, setembro-dezembro 2019 677
Lívia Gonçalves Magalhães
e aponta que os grupos sociais de fato influenciam memórias individuais, mas essas não são
necessariamente pertencentes a tais grupos (Ricouer, 2007). Tais considerações nos parecem
importantes para trabalhar as diversas memórias trazidas aqui: meios de comunicação, joga-
dores e técnico, federações internacionais, organismos de direitos humanos e sociedade civil.
Entendemos que são duas as principais memorias sociais dominantes e em constante
disputa na história recente argentina em relação à Copa de 1978. Na primeira, já mencionada,
“Copa da ditadura”, jogadores, comissão técnica e demais envolvidos no campo de jogo eram
vistos como apoiadores da ditadura por terem participado/contribuído para o evento. Essa
memória, dominante também num panorama internacional, tornou-se um grande espaço de
conflitos, principalmente, como veremos, pela negação dos atletas envolvidos, que reivindica-
ram ao longo das décadas posteriores sua isenção nas disputas políticas do período e, claro, o
destaque da conquista no campo esportivo (Roldán, 2007).
A partir de 2003, com a chegada de Néstor Kirchner à presidência, consolidou-se o que
chamamos aqui de uma segunda memória pública dominante, na qual a sociedade aparece
não mais como vítima, mas como resistente. Vai ser dessa forma também que passarão a ser
entendidas as manifestações positivas nas comemorações da vitória da seleção de futebol, so-
bretudo a partir das celebrações dos trinta anos, em 2008. Ambas as memórias permaneceram
em disputa ao longo das décadas, muitas vezes misturadas e confusas entre si.
A partir de 2015, porém, a interpretação crítica e de sociedade resistente apresentada
como oficial durante o período kirchnerista (2003-2015) foi colocada em xeque pelo Estado.
Em 2018, com Mauricio Macri na presidência da República — eleito pelo Proposta Republica-
na (PRO) —, as rememorações dos quarenta anos da Copa foram praticamente desvinculadas
do Estado: sem atos oficiais, sem reflexões, um panorama muito diferente de dez anos antes.
Este artigo se divide em três partes. Na primeira, faremos uma breve análise da Copa
de 1978, levantando algumas questões que consideramos importantes, como o interesse da
ditadura em sua realização. Na segunda, analisaremos o contexto pós-ditatorial e os debates
envolvendo as comemorações esportivas em relação às disputas de memórias sobre o passado
recente autoritário. Na terceira, consideraremos o ano de 2018, ocasião dos quarenta anos da
vitória, que nos parece um interessante marco para pensar lugares, disputas e ressignificações
das duas memórias citadas sobre a vitória.
678 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 68, p. 678-694, setembro-dezembro 2019
A Copa do Mundo da ditadura ou da resistência?
Comemorações e disputas de memórias sobre a Argentina de 1978
N o dia 6 de julho de 1966, em seu 35º Congresso em Londres, a Fifa escolheu a Ar-
gentina como sede de seu evento de 1978. Oito anos depois, após o fim da Copa
do Mundo na Alemanha Ocidental, em 1974, a entidade confirmou o país como sede, num
momento em que a Argentina entrava em profunda crise política, econômica e social com o
falecimento do então presidente, Juan Domingo Perón.
A princípio, o objetivo de María Estela Martínez de Perón — que, como vice, assumiu a
presidência após a morte do marido — foi manter a organização. Nos arquivos da Fifa em
Zurique há diversos planos de construção e reforma de estádios, além de trocas de correspon-
dências entre a federação internacional e a Associação do Futebol Argentino (AFA). Entre os
muitos documentos, há uma carta do então chefe de Relações Públicas da Fifa, Renné Courtes,
a um jornalista argentino de maio de 1976, dois meses após o golpe de Estado: “Vamos ver
como mudam as coisas na Argentina. Aqui na Fifa nós temos o pressentimento geral de que,
com a mudança para o governo militar, as coisas serão mais fáceis para a Fifa do que antes”
(Arquivo Fifa, tradução livre). Era a primeira Copa do Mundo organizada por João Havelange
desde sua chegada à presidência da federação, em julho de 1974, o que nos ajuda a com-
preender sua obstinação em entregar um evento considerado de alto nível e de que modo os
conflitos internos argentinos eram entendidos como prejudiciais a esse projeto.
De acordo com Daniel Lvovich, o golpe de 1976 representou um momento em que os
líderes civis e militares do país estavam de pleno acordo quanto às medidas que deveriam
ser tomadas: “destruir as bases da desordem”, “liquidar a ‘Argentina maldita’” e colocar em
prática um projeto de reestruturação e reconstrução da sociedade e da própria nação (Lvovich,
2009). Era esse processo de “refundação nacional”, assentado em políticas de Estado basea-
das no desaparecimento dos opositores, transformados, então, em “inimigos”, que estava em
curso durante a realização da Copa.
Em 1978, a imagem internacional da Argentina estava bastante associada às acusa-
ções de violação dos direitos humanos, e a atenção que eventos davam ao país significou
um importante aumento dessas denúncias. Como aponta Marina Franco (2005), elas eram
originárias em grande parte da Europa, onde as principais manifestações vinham de grupos e
partidos de esquerda, do governo dos Estados Unidos e da Anistia Internacional. Foram orga-
nizados comitês de boicote ao evento, com sede principal na França.
Em seu discurso, os militares denunciavam o que consideravam uma campanha externa
contra o país, resultado de um desconhecimento da realidade nacional por parte dos acusado-
res e de uma ação da subversão externa. Na verdade, a campanha anti-Argentina tratava, em
Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 68, p. 679-694, setembro-dezembro 2019 679
Lívia Gonçalves Magalhães
primeiro lugar, de uma reatualização de antigas denúncias, existentes desde o primeiro ano
do regime e que ganhou força em 1978. Por isso, a principal preocupação do governo era sua
imagem externa e sua repercussão internamente. Nesse momento, o governo reconhecia que
a subversão interna já estava derrotada, de modo que a nova ameaça era a subversão externa
e aqueles que acusavam o regime de crimes de lesa-humanidade (Franco, 2005).
A Copa ocorreu quando o regime se concentrava em medidas de reestruturação nacio-
nal, já que as consequências da política econômica ainda não eram visíveis. Logo, apenas ga-
nhar não era importante. Como país sede, os militares puderam utilizar a própria organização
do evento como propaganda a seu favor, respondendo a acusações e questionamentos vindos
do exterior. Segundo Roldán:
O principal ponto de desavença para a sociedade e os membros das Forças Armadas foi
o custo financeiro do evento, e um dos mais fortes opositores à realização foi o ministro da
Economia à época, José Martínez de Hoz, que garantia que a situação econômica do país não
permitia esse tipo de gastos. Por fim, contudo, os militares decidiram pela realização da Copa,
pois sabiam os benefícios que poderiam conseguir a realizando no país. Assim, em 2 de julho
de 1976, foi criado o Ente Autárquico Mundial 78 (EAM 78), responsável pela organização
do evento. Nas disputas internas entre Exército e Marinha, foram os segundos quem de fato
controlaram o organismo, por intermédio do vice-almirante Carlos Lacoste (Magalhães, 2014).
A questão dos altos gastos do evento argentino em infraestrutura e divulgação nos
interessa aqui porque seriam posteriormente um dos primeiros pontos de crítica e de uma me-
mória negativa. O decreto de lei nº 21.349, que criou o EAM 78, também indicava as origens
dos gastos disponibilizados para tal organismo e a organização da Copa.3 A construção de
três novos estádios e a remodelação de outros três,4 a criação de um centro de imprensa, os
investimentos em tecnologia para a transmissão a cores etc. foram feitos pelo EAM 78 prati-
camente sem controle oficial, e “a distribuição dos fundos do EAM 78 era decisão da própria
entidade, que não precisava prestar contas sobre suas decisões, (...) o que ajuda a entender
o elevado custo final que teve o evento para o Estado argentino: 700 milhões de dólares,
segundo os meios de comunicação da época” (Magalhães, 2014: 73).
680 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 68, p. 680-694, setembro-dezembro 2019
A Copa do Mundo da ditadura ou da resistência?
Comemorações e disputas de memórias sobre a Argentina de 1978
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Lívia Gonçalves Magalhães
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A Copa do Mundo da ditadura ou da resistência?
Comemorações e disputas de memórias sobre a Argentina de 1978
o almirante Emilio Eduardo Massera, e dezessete anos de prisão para o general Roberto Viola
(Jelin, 2008). Para Alabarces, é nesse contexto que
(...) É o que demonstra a reiterada transmissão das imagens da Copa em fragmentos de filmes
da transição democrática: qualquer televisão ligada que quisesse representar esse momento
mostrava essas imagens, definindo rapidamente todo o período ditatorial (2008: 120-121: 125,
tradução livre).
Entre os anos de 1987 e 1990, ocorreram diversos levantes militares, que ameaçavam a
recém-instaurada democracia. Ao procurar controlar as tensões sociais e evitar a radicalização
dos movimentos militares, o presidente Raúl Alfonsín criou a Lei do Ponto Final, de 24 de
dezembro de 1986, e, posteriormente, a Lei de Obediência Devida, de 4 de junho de 1987, co-
nhecidas popularmente como “leis da impunidade”. As leis determinavam, respectivamente,
uma data limite para novos processos judiciais contra os acusados de violações aos direitos
humanos na época da ditadura militar, bem como que os feitos cometidos pelos membros das
Forças Armadas no período da guerra suja e do processo de organização nacional não eram
puníveis, pois os acusados teriam atuado em virtude de obediência devida.
Tais leis, todavia, não invalidavam o Julgamento das Juntas; somente pretendiam limitar
o processo de punição à alta elite das Forças Armadas e do governo civil-militar, como punição
exemplar, para evitar uma crise institucional no país. Portanto, elas não excluíam os casos dos
militares já condenados — como faria posteriormente o governo de Carlos Saúl Menem —,
mas evitavam o castigo a subordinados e a outros responsáveis (Jelin, 2008).
Frente às crises política e econômica que marcaram o período, Raúl Alfonsín renunciou,
em 1989, e antecipou-se a posse de Carlos Menem como novo presidente argentino. Entre
1989 e 1990, Menem declarou os indultos aos militares e o perdão aos autores de crimes de
lesa-humanidade que não foram beneficiados pelas leis anteriores do governo Alfonsín. Dessa
forma, os julgamentos iniciados em 1984 foram definitivamente paralisados. A partir desse
momento, a brecha legal para as organizações de direitos humanos e demais grupos que
insistiam na condenação dos acusados por crimes de lesa-humanidade no período ditatorial
foi a apropriação ilegal dos bebês das prisioneiras por parte dos militares.6
Segundo Pablo Alabarces (2008), tanto a organização da Copa de 1978 quanto a primei-
ra conquista da seleção nacional argentina são parte importante dessas disputas de memória.
Ao longo das décadas o evento foi repensado, revivido e rememorado de diversas formas. Em
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1988, por exemplo, a sociedade argentina preferia celebrar sua segunda vitória em Copas do
Mundo, a de 1986, no México. O bicampeonato teve muitos significados no contexto de rede-
mocratização do país: a vitória contra a Inglaterra quatro anos após a derrota militar na Guer-
ra das Malvinas e, sem dúvidas, a construção do mito do jogador Diego Armando Maradona.
A conquista de 1986 substituía também a vitória envergonhada de 1978 na glória es-
portiva, como aponta Alabarces: “Os discursos da invenção da pátria ou da crise da pátria
tornam-se experiências, de prazer ou de dor. É o que acontece com as celebrações da Copa de
1986 – que também celebravam a democracia e indicavam, no mesmo gesto, a visão negativa
da ditadura” (2008: 14-15, grifos no original, tradução livre). Era uma conquista inquestioná-
vel, sem a “mancha de sangue” que marcava, naquele momento, 1978.
Em 1998, no aniversário de vinte anos, o país vivia, como vimos, um período quase de
silêncio em relação ao seu passado recente, que incluiu os próprios festejos da primeira Copa,
ainda lida principalmente como uma parte mais da ditadura.
Do kirchnerismo ao “Cambiemos”7
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A Copa do Mundo da ditadura ou da resistência?
Comemorações e disputas de memórias sobre a Argentina de 1978
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Lívia Gonçalves Magalhães
minhas possibilidades. Além disso, sabe o que é preciso diferenciar? Eu sou um trabalhador,
cara... não sou um fator de poder” (El Porteño, 1982: 15, tradução livre).
Anos depois, no documentário comemorativo dos trinta anos do título La historia pa-
ralela, lançado em 2008, ao ser indagado sobre o lugar que a seleção ocupou na ditadura
e o sentido que a Copa teve para o regime e para o apoio da sociedade, o mesmo Menotti
considerou que “não era a Junta Militar, não era o público do River, eram as pessoas de José
Carlos Paz, as pessoas dos povoados, as pessoas que desciam dos caminhões, dos táxis, e não
nos deixavam passar” (tradução livre).11
Tal reflexão deve ser compreendida no contexto de releitura da participação dos jogado-
res, na lógica de uma sociedade que resistiu em todas suas esferas. Para muitos dos atletas
envolvidos, essa releitura e a transformação numa memória dominante e oficial foi um impor-
tante momento de fazer as pazes com a sociedade e com seu passado, a pesar de, em 2018,
ainda destacarem a permanência de uma visão negativa da conquista:
Assim, até 2015, a memória oficial do governo argentino era a dos organismos de di-
reitos humanos. Mas estavam presentes também, lutando por um espaço na esfera pública,
grupos que se afirmam “vítimas do terrorismo”, ou seja, os que lutam por uma memória po-
sitiva da ditadura. Foi no contexto de luta entre os sentidos do passado e das memórias sobre
ele construídas (Jelin, 2008), com a associação feita entre a memória oficial do kirchnerismo
sendo a da crítica à ditadura, que atores políticos da oposição começaram a se posicionar
baseados em sua problematização. Foi nesse espaço de conflito que o projeto PRO e seu
principal nome, Mauricio Macri, conseguiram se projetar como opção ao peronismo oficialista.
Macri é um empresário argentino, que se tornou conhecido do grande público em 1991,
quando foi sequestrado e mantido em cativeiro por doze dias, até o pagamento de um resga-
te. Em 1995, foi eleito presidente do Club Atlético Boca Juniors, cargo que ocupou até 2007,
quando foi eleito governador de Buenos Aires, já pelo PRO.13 A partir de então, tornou-se o
principal nome de uma renovada direita argentina, que se posicionava principalmente como
outsider do modelo político tradicional. Sua reeleição na capital federal, em 2011, confirmou
essa liderança, e em 2015, apesar de uma campanha que começou desacreditada por muitos,
Macri foi eleito presidente.
686 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 68, p. 686-694, setembro-dezembro 2019
A Copa do Mundo da ditadura ou da resistência?
Comemorações e disputas de memórias sobre a Argentina de 1978
Às vésperas dos quarenta anos da vitória de 1978, o governo nacional estava envolvido
em polêmicas, mas nenhuma delas relacionada ao mundo esportivo. Por um lado, havia o agra-
vamento da crise econômica e social, em especial pelo contínuo aumento da inflação e pelas
críticas após o fim dos subsídios às tarifas de água, luz e gás decretados em novembro de 2017.
Por outro, havia as crescentes manifestações a favor e contra o projeto de lei de descriminaliza-
ção do aborto no país. Talvez, para um político que ganhou fama principalmente como dirigente
esportivo de um clube de futebol de popularidade mundial, comemorar e relembrar uma vitória
como a primeira Copa do Mundo FIFA fosse não só um espaço seguro, mas um caminho para
tentar desviar as crises que o governo enfrentava. Ao contrário, Macri optou pelo silêncio da
presidência nacional em relação à memória referente ao período autoritário.
Se o governo nacional optou por não incorporar em seu discurso a celebração dos qua-
renta anos da Copa, as organizações de direitos humanos — em sua grande maioria críticas a
Macri — fizeram as próprias celebrações e reflexões.14 Assim, ocupavam um vazio, antes sob
a liderança do governo kirchnerista e de suas políticas públicas de memória crítica à ditadura.
De fato, não foram tantas ações e atividades como nos trinta anos, o que é compreensível
quando se retira o Estado das organizações e considerando a crise econômica. Mas é interes-
sante olhar para o que foi feito, levando em conta que a decisão de não esquecer é parte de
uma luta política por memória.
A principal das ações não oficiais de rememoração foi o projeto “Papelitos – 78 historias
de un Mundial en dictadura”. Com duas exposições, uma visita guiada a um espaço de me-
mória e um portal mantido on-line e de livre acesso, foi organizada pela instituição Memoria
Abierta e pela Revista Digital NAN, com o apoio da Embaixada da Holanda na Argentina.15
Com o slogan “¡Tiren papelitos, muchachos!”,16 o portal reúne 78 histórias diversas — entre
atletas, militantes políticos, sobreviventes, familiares e outros —, com base em depoimentos e
material de pesquisa no acervo de distintas instituições de memória argentinas.
O nome dado ao projeto já demonstra a intenção de retomar (ou seria reafirmar?) o de-
bate de memória que apareceu no segundo momento que apontamos aqui: as comemorações
de 2008. Segundo a explicação dada na página oficial, jogar papéis picados quando a seleção
entrava em campo surgiu como prática comum dos torcedores argentinos na Copa de 1978
e ia diretamente contra a imagem que a ditadura buscava transmitir: a de um parâmetro de
educação e civilidade que não comportava esse tipo de reação.
Durante o evento, alguns radialistas que apoiavam o regime criticaram a atitude dos
torcedores. O caricaturista Caloi, ao contrário, usou seu espaço no jornal Clarín para estimular
a manifestação, por intermédio de seu popular personagem Clemente.17 Dando continuidade
Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 68, p. 687-694, setembro-dezembro 2019 687
Lívia Gonçalves Magalhães
ao discurso que foi apresentado em 2008, a festa da torcida, o que antes era lido como apoio
ao regime, aparece como resistência a uma ordem da ditadura.
O portal também reafirmou o lugar dos jogadores e do técnico Menotti nas muitas
memórias críticas à associação entre seleção e ditadura. O projeto “Papelitos” procurou
Mario Kempes, o maior goleador da Copa de 1978, e o técnico do grupo para que, nova-
mente, deixassem seu depoimento sobre a conquista. Nessa oportunidade, destacou-se o
posicionamento político de Menotti, reivindicando sua consciência sobre parte da violência
do regime:
Esta formação fez com que o técnico estivesse ciente da realidade que a Argentina vivia durante
a ditadura, mas ele esclarece: “Eu sabia que havia detidos e presos políticos. Mais do que isso,
eu me comprometi e ajudei em muitos momentos, que não são conhecidos e nem me interessa
dizer. Mas eu não imaginava, por exemplo, que atiravam pessoas dos aviões ou as tantas outras
atrocidades que ficaram conhecidas depois com o passar do tempo”. (tradução livre).18
Por sua vez, Kempes, como vimos, trouxe um discurso consonante com os primeiros anos
da redemocratização: “Kempes se lembra com orgulhos aqueles dias, mas logo aparecem em
sua mente sentimentos contraditórios. “Nós não somos respeitados. O que nós fizemos não
era para os políticos que estavam no palco, nós fizemos pelo futebol argentino e pelo povo.
Não sabíamos o que estava acontecendo” (tradução livre).19 Como aponta Halbwachs (2006),
a memória é sempre um produto social, e, como tal, só pode ser compreendida se compreen-
demos os grupos que a rememoram. Assim, é importante considerar tais testemunhos de
jogadores com base na compreensão de que
as entrevistas com os participantes nos festejos estão marcadas pela distância temporal,
o que na história argentina significa estar atravessado pela consciência da ditadura. Não
há quem possa evitar essa marca: lembrar os festejos significa imediatamente comentários
como “não sabíamos o que estava acontecendo”, “fomos usados” (Alabarces, 2008: 123,
tradução livre).
Considerações finais
D urante muitos anos, a memória que permaneceu sobre a associação entre esporte e
poder foi a do uso negativo do desporto a favor de interesses políticos, e a abordagem
mais comum feita sobre a relação entre esporte e política é relacionada ao seu uso por go-
vernos autoritários como forma de legitimação, propaganda política e busca de consenso. Foi
assim, por exemplo, nos casos da Copa do Mundo da Itália em 1934 e dos Jogos Olímpicos
688 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 68, p. 688-694, setembro-dezembro 2019
A Copa do Mundo da ditadura ou da resistência?
Comemorações e disputas de memórias sobre a Argentina de 1978
de Berlim em 1936, eventos que se tornaram referência nas análises sobre as relações entre
esporte e política, cultivando uma imagem negativa dessa relação. No entanto, como aponta
Roldán, “o maniqueísmo de um futebol com conotação positiva ou negativa mantém uma
dicotomia pouco útil para a reflexão, já que em ambos os casos trata-se de uma perspectiva
que substancializa a prática esportiva, colocando-a fora da história e das relações sociais que
a produzem” (2007: 127, tradução livre).
Como vimos, as muitas memórias construídas e disputadas sobre a vitória argentina na
Copa de 1978 mostram a importância de entendê-las em seus contextos históricos e sociais.
Da mesma forma, é fundamental pensar o papel dos testemunhos nessas disputas memo-
rialísticas, pois, como aponta Betriz Sarlo, “o discurso da memória, transformado em teste-
munho, tem a ambição da autodefesa; quer persuadir o interlocutor presente e assegurar-se
uma posição no futuro; justamente por isso também é atribuído a ele um efeito reparador da
subjetividade” (2007: 54).
O ex-técnico e campeão mundial César Luís Menotti, em entrevista para o projeto “Pape-
litos”, destacou a associação negativa entre os campeões e a ditadura, que marcou — e, em
alguns espaços, ainda prevalece — por tanto tempo as interpretações sobre a Copa: “Não,
com certeza não. Foi uma infâmia. Uma infâmia miserável daqueles que depois se dizima
revolucionários, mas durante a copa de 1978 transmitiam os jogos com Videla ao lado. Uma
vergonha. Realmente é uma vergonha não reconhecer tudo o que esses jogadores fizeram”.
(tradução livre)20
Também nos interessam aqui as disputas e os discursos produzidos e difundidos pelos
meios de comunicação. Em 2008, nas movimentações dos grandes atos em comemoração aos
trinta anos da Copa do Mundo, o jornal Clarín, um dos grandes conglomerados de comunica-
ção da Argentina — que apoiou a ditadura e foi grande beneficiado das políticas econômicas
do período —, deu destaque ao evento organizado pelo Instituto Espaço para a Memória,
da cidade de Buenos Aires, um jogo de futebol nomeado “A outra final, o jogo pela vida e
pelos direitos humanos”. Segundo a organizadora e ex-presa e desaparecida durante a última
ditadura Ana María Careaga,
o evento que organizamos para o dia 29 de junho, no estádio do River, é a final que deveria ter
acontecido, a final em democracia. É uma homenagem-desagravo à sociedade argentina em
seu conjunto. Convidamos os jogadores daquela seleção e também jovens que representarão a
geração que não está mais aqui.21
Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 68, p. 689-694, setembro-dezembro 2019 689
Lívia Gonçalves Magalhães
uso político do evento pela ditadura, procurava questionar a memória que associava os atores
envolvidos na conquista a um suposto apoio ao regime. A própria Copa se tornava, nessa
lógica, uma vítima da ditadura.
Já em 2018, a manchete do mesmo jornal foi: “A emoção da lembrança 40 anos depois
da Copa do Mundo de 1978. A memória não esquece que o êxito final da Seleção combinou
o alívio das pessoas no país com a utilização planificada de parte da ditadura militar.”22 Os
dez anos de diferença entre as duas reportagens apresentadas mostram que, de fato, conso-
lidou-se uma interpretação mais positiva do significado da vitória em 1978, mas, ao mesmo
tempo, ainda é espaço de questionamento a politização dessa conquista como parte de uma
resistência política ao autoritarismo.
Quanto ao posicionamento oficial da presidência argentina em 2018 de não celebração
dos quarenta anos da primeira vitória mundial, a análise de Calveiro sobre as disputas de
memória também nos interessa: “No nível das nações promove-se a evaporação da esfera
pública, a despolitização da sociedade, e tende-se à fragmentação e destruição de toda forma
de organização coletiva” (2006: 380, destaques no original, tradução livre).
É com base nesse discurso de despolitização, de outsider, que o PRO se colocou no
cenário político argentino. Assim, entendemos aqui que a não comemoração — ou ao menos
a não liderança das comemorações — pelo Estado argentino aos quarenta anos da Copa de
1978, depois dos diversos eventos realizados dez anos antes, que reconstruíram a memória da
vitória, colocando-a diretamente relacionada às resistências sociais à ditadura e à sua crítica,
é parte do discurso apolítico do governo Macri.
A conquista de 1978, incorporada à memória dominante de crítica à ditadura, não foi
incluída nos entendimentos do macrismo como políticas de comemorações. Isso nos permite
afirmar que a movimentação em torno das comemorações críticas aos trinta anos tanto do
golpe quanto da vitória futebolística consolidaram-se de tal forma que, dez anos depois, se
tornaram um lugar de associação ao modelo político do kirchnerismo. Ao mesmo tempo, ficou
claro que a memória das organizações de direitos humanos deixou de ser a memória do go-
verno, mas não deixou de marcar seu lugar nas constantes disputas, evitando o silêncio sobre
o evento em seus quarenta anos.
690 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 68, p. 690-694, setembro-dezembro 2019
A Copa do Mundo da ditadura ou da resistência?
Comemorações e disputas de memórias sobre a Argentina de 1978
Notas
1 O tema foi amplamente debatido por diversos autores, como Achetti, em Fútbol: imágenes y esteriotipos
(1999); Alabarces, em Fútbol y patria (2008); Roldán, em La espontaneidad regulada (2007); Franco, em De-
rechos humanos, política y fútbol (2005); Frydenberg e Daskal, em Fútbol, historia y política (2010); Gotta, em
Fuimos campeones (2008); Llonto, em La vergüenza de todos (2005), Magalhães, em Com a taça nas mãos:
sociedade, Copa do Mundo e ditadura no Brasil e na Argentina (2014).
2 Lei 21349, de 2 de julho 1976. Disponível em: www.infoleg.gov.ar. Acesso em: 4 abr. 2019.
3 Foram construídos os estádios Olímpico, em Córdoba, Mundialista, em Mar del Plata, e Ciudad de Mendoza,
em Mendoza. Além disso, foram reformados os estádios Monumental de Nuñez e José Amalfitani, ambos em
Buenos Aires, pertencentes, respectivamente, ao Club Atlético River Plate e ao Club Atlético Vélez Sarsfield, e
Gigante de Arroyito, em Rosario, pertencente ao Club Atlético Rosario Central.
4 Foram quatro as Juntas Militares que governaram a Argentina entre 1976 e 1983: Primeira Junta Militar
de Governo (1976-1979) – tenente general Jorge Rafael Videla, comandante em chefe do Exército argentino;
almirante Emilio Eduardo Massera, comandante em chefe da Marinha da República argentina; brigadeiro
general Orlando Ramón Agosti, comandante em chefe da Força Aérea Argentina. Segunda Junta Militar de
Governo (1979-1981) — tenente general Roberto Eduardo Viola, comandante em chefe do Exército argentino;
almirante Armando Lambruschini, comandante em chefe da Marinha da República argentina; brigadeiro ge-
neral Omar Domingo Rubens Graffigna, comandante em chefe da Força Aérea argentina. Terceira Junta Militar
de Governo (1981-1982) — tenente general Leopoldo Fortunato Galtieri, comandante em chefe do Exército
argentino; almirante Jorge Isaac Anaya, comandante em chefe da Marinha da República argentina; brigadeiro
general Basilio Arturo Ignacio Lami Dozo, comandante em chefe da Força Aérea argentina. Quarta Junta Militar
de Governo (1982-1983) — tenente general Cristino Nicolaides, comandante em chefe do Exército argentino;
almirante Rubén Óscar Franco, comandante em chefe da Marinha da República argentina; brigadeiro general
Augusto Jorge Hughes, comandante em chefe da Força Aérea argentina (Novaro e Palermo, 2003).
5 Essa brecha legal permitiu que, desde 1998, Videla, Massera e outros chefes militares fossem novamente
detidos.
6 “Cambiemos”, que, em espanhol, significa “Vamos mudar”, é uma coalizão de partidos — Proposta Re-
publicana (PRO), Unión Cívica Radical (UCR) e Alianza Cívica (CC-Ari)) — de centro-direita na Argentina
que venceu as eleições presidenciais de 2015, com Maurício Macri, do PRO. O nome dado à coalizão é uma
referência à mudança de projeto político que foi a proposta da campanha eleitoral.
7 Alabarces destaca que a organização Madres de Plaza de Mayo não foi convidada para o evento, que não
teve muito apoio, diferente de cinco anos depois, como veremos.
8 Néstor Kirchner faleceu em 2010 e Cristina Kirchner foi reeleita em 2011 para um segundo mandato. Nas
eleições de 2015, Cristina não pôde concorrer novamente, pois a lei argentina não permite mais de uma
reeleição consecutiva, e seu candidato, Daniel Scioli, terminou derrotado por Mauricio Macri, principal nome
da oposição.
9 Por exemplo, o livro El diretor técnico del proceso, dos jornalistas Gasparini e Ponsico, publicado em 1983,
como deixa claro o título, associava diretamente Menotti à ditadura, como um integrante do regime no mundo
esportivo.
10 Cesar Luís Menotti, Mundial 78: la historia paralela [DVD], Argentina, 2008.
Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 68, p. 691-694, setembro-dezembro 2019 691
Lívia Gonçalves Magalhães
11 VERRINA, Mariano. “Mario Kempes: el goleador olvidado”, texto parte do projeto Papelitos. Disponível
em: http://papelitos.com.ar/nota/mario-kempes. Acesso em: 15 set. 2019.
12 O partido político Proposta Republicana nasceu exatamente no contexto da crise de 2001-2002, a partir
de um think tank, e sempre procurou manter a imagem de outsider na construção de sua imagem pública
como partido político (Vommaro, 2014).
13 O Arquivo Nacional da Memória, pertencente à Secretaria de Direitos Humanos e Pluralismo Cultural do
Ministério de Justiça e Direitos Humanos da Nação, produziu a cartilha digital Ditadura, esporte e memória.
Com treze páginas, a publicação dá ênfase à questão da tortura no período ditatorial e às denúncias feitas em
função do evento. Apesar de ser uma produção de um órgão diretamente ligado ao governo nacional, a car-
tilha teve pouca divulgação pública, sem atos envolvendo de forma mais ampla o poder executivo. Disponível
em: https://www.argentina.gob.ar/sites/default/files/cuadernillo_mundial_78.pdf.
14 Disponível em: http://papelitos.com.ar/. Acesso em: 20 dez. 2018.
15 “Joguem os papeizinhos, rapaziada!”, em tradução livre.
16 “Quiénes somos?”. Disponível: em http://papelitos.com.ar/nota/quienes-somos. Acesso em: 25 fev. 2019.
17 VERRINA, Mariano. “El DT de la selección argentina em el Mundial 1978 Menotti: ‘Cumplí con mi palavra,
hice lo que tenía que hacer’”, texto parte do projeto Papelitos. Disponível em: http://papelitos.com.ar/nota/
el-dt-de-la-seleccion-argentina-en-el-mundial-78. Acesso em: 15 set. 2019.
18 VERRINA, Mariano. “Mario Kempes: el goleador olvidado”, texto parte do projeto Papelitos. Disponível
em: http://papelitos.com.ar/nota/mario-kempes. Acesso em: 15 set. 2019.
19 VERRINA, Mariano. “El DT de la selección argentina en el Mundial 1978 Menotti: “cumplí con mi palavra,
hice lo que tenía que hacer’”, texto parte do projeto Papelitos. Disponível em: http://papelitos.com.ar/nota/
el-dt-de-la-seleccion-argentina-en-el-mundial-78. Acesso: em 15 set. 2019.
20 “A 30 años de la final, un homenaje reaviva el debate sobre el Mundial y la dictadura”, Clarín, 5 dez.
2008. Disponível em: www.clarin.com/ediciones-anteriores/30-anos-final-homenaje-reaviva-debate-mundial-
-dictadura_0_BJex0EpRpYx.html. Acesso em: 20 dez. 2018.
21 “La emoción del recuerdo, a 40 años del Mundial 1978”, Clarín, 25 jun. 2018. Disponível em: www.
clarin.com/deportes/futbol/emocion-recuerdo-40-anos-mundial-1978_0_rJvrk_pbm.html. Acesso em: 20 dez.
2018.
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692 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 68, p. 692-694, setembro-dezembro 2019
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Artigo
DOI: http://dx.doi.org/10.1590/S2178-14942019000300008
I
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rio de Janeiro – RJ, Brasil.
* Pesquisador bolsista da FAPERJ (Pós-doutorado nota 10) no Programa de Pós-graduação em Planejamento Urbano
e Regional do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (IPPUR) da Universidade Federal do Rio de
Janeiro (UFRJ), (erickomena@gmail.com), ORCID iD: https://orcid.org/0000-0003-2890-9446.
II
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Rio de Janeiro – RJ, Brasil.
* Pesquisador bolsista de Pós-doutorado do CNPq, no Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais (PPCIS), da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) (gabrielsvcid@gmail.com);
ORCID iD: https://orcid.org/0000-0003-0479-041X
Artigo recebido em 01 de julho de novembro de 2019 e aceito para publicação em 08 de outubro de 2019.
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Erick Silva Omena de Melo e Gabriel da Silva Vidal Cid
Resumo
O artigo resgata os principais embates acerca das ressignificações do estádio do Maracanã, cujos resultados influen-
ciaram decisivamente as decisões sobre o destino desse importante ícone esportivo. Destacam-se dois momentos
históricos fundamentais: o planejamento (1946-1950) e o período de reformas (1999-2013), em contraponto com
o processo de tombamento. Com base em acervo de jornais que reportam o processo desenrolado no primeiro
momento e em arquivos institucionais do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) que registram
a memória sobre o segundo, os autores identificam o caráter popular, público e monumental do Maracanã como
elemento central de sua identidade em risco.
Abstract
The paper recovers the main struggles over the resignification of the Maracanã stadium, which decisively influenced
decisions on the destiny of this sports icon. The focus relies on two major historical moments: the planning period
(1946-1950) and the refurbishment period (1999-2013), marked by controversies related to lifting of heritage pro-
tection. Newspaper archives are utilized to analyse the former, whereas institutional archives of Institute of National
Historical and Artistic Heritage (IPHAN) are used for analysing the latter. The authors recognise the popular, public
and monumental character of Maracanã as the core element comprising its identity.
Resumen
El artículo rescata los principales embates acerca de las resignificaciones del estadio del Maracanã, cuyos resultados
influenciaron decisivamente las decisiones acerca del destino dado a este importante ícono deportivo. Se destacan
dos momentos históricos fundamentales: la planificación (1946-1950) y el período de implementación de reformas
(1999-2013), en su contrapunto con el proceso de protección histórico-patrimonial. Utilizando acervo de periódicos
que reportan el proceso desenrollado en el primer momento y archivos institucionales del Instituto de Patrimonio
Histórico y Artístico Nacional (Iphan) que registran la memoria existente sobre el segundo, los autores identifican el
carácter popular, público y monumental del Maracanã como elemento central de su identidad en riesgo.
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Vida e morte do Maracanã: a batalha do estádio em dois atos
Introdução
N o dia 25 de julho de 1946, em Luxemburgo, o Brasil foi escolhido como país sede da
quarta Copa do Mundo pela Federação Internacional de Futebol (Fifa). A realização
da competição em 1950 marcou profundamente o imaginário dos brasileiros por várias dé-
cadas, impactados pela derrota da Seleção no último jogo. A vitória uruguaia e a frustração
coletiva já foram contadas, recontadas e analisadas inúmeras vezes. Muito menos explorada,
entretanto, foi a trajetória do palco daquela “tragédia nacional”, cujo desenrolar apresenta
similar dramaticidade.
Com o objetivo de dar conta dos principais pontos de inflexão dessa trajetória, o arti-
go está dividido em duas grandes seções. Na primeira, exploramos a história da construção
do Maracanã, como ficou popularmente conhecido o Estádio Mario Filho. O foco está nas
narrativas de atores-chave na disputa em torno do projeto a ser construído. Tais discursos se
distinguem nas suas diferentes concepções de esporte, cidade e sociedade, que influenciariam
significativamente esse emblemático cartão-postal do Rio de Janeiro.
Na segunda seção, são analisadas as tentativas de desconstrução material e simbólica
do estádio, iniciadas no fim do século XX e associadas à preparação da cidade para o que
ficou conhecido como megaeventos, bem como as resistências articuladas sobretudo por meio
do processo de tombamento junto ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
(Iphan).1
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Erick Silva Omena de Melo e Gabriel da Silva Vidal Cid
reposicionamento das forças que comandavam o Estado brasileiro, em especial no que se refe-
re à maneira como lidavam com os setores populares. Tal reposicionamento já se configurava,
ainda que de forma tímida, no fim do Estado Novo, por meio de importantes concessões às
lutas das classes populares, como a Consolidação das Leis do Trabalho e a promulgação da Lei
Orgânica da Previdência Social. Além disso, as práticas de propaganda oficial, que buscavam
ampliar consensos em torno das políticas públicas implementadas, também se fortaleceram,
em especial com a intensificada utilização da imprensa escrita e do rádio (Aggio, Barbosa e
Coelho, 2002).
Nesse contexto, o futebol, como fenômeno de massas emergente, ganhou particular
importância.3 Nas décadas de 1930 e 1940, o esporte recebeu um impulso decisivo para sua
popularização graças à combinação de vários fatores, como rápido crescimento demográfico,
formando uma estrutura etária populacional extremamente jovem (Alves e Bruno, 2006); bai-
xíssima exigência de equipamentos para sua prática; popularização em nível nacional dos
campeonatos por meio das transmissões de rádio; e possibilidades de ascensão social para a
população jovem, pobre e negra das grandes cidades (Pereira, 2000; Rodrigues Filho, 2003;
Souza, 2008).
O crescente interesse pelo futebol e as possibilidades abertas por ele como mais um
veículo de estreitamento de relações entre representantes do poder público e a população
trabalhadora urbana despertava particular interesse no alto escalão de governo desde o fim
da década de 1930 (Pereira, 2000). Não por acaso, a assinatura da CLT, em 1943, se deu
no Estádio de São Januário. Portanto, a realização do torneio mundial e a possibilidade de
construir o “maior estádio do mundo” no Rio de Janeiro eram de grande interesse tanto de
Eurico Gaspar Dutra, ex-ministro da guerra de Vargas e presidente eleito em 1945, quanto das
autoridades locais, configurando-se como oportunidade de popularização de seus programas.
Não tardou para que, pouco tempo após o anúncio do Brasil como sede da Copa do
Mundo, houvesse grande movimentação em torno das decisões sobre a organização do
evento e da construção de um estádio.
Os agentes protagonistas das disputas pela definição do projeto se dividiam em dois
grandes campos. O primeiro era liderado por Mario Filho, proprietário, editor e cronista espor-
tivo do Jornal dos Sports, com a contribuição de importantes personalidades da vida pública
carioca e nacional, como Ary Barroso — radialista, cronista esportivo, advogado e vereador
pela União Democrática Nacional (UDN) –, Vargas Neto — deputado pelo Partido Trabalhista
Brasileiro (PTB) e cronista do Jornal dos Sports, além de sobrinho de Getúlio Vargas — e José
Lins do Rego — escritor e cronista do Jornal dos Sports. Esse grupo tinha conexões estreitas
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Figura 1: Anteprojeto “Cidade Olímpica”, originalmente planejado por Antonio Laviola, em 1938, e utilizado por
Carlos Lacerda, em 1947, para fortalecer sua contraproposta (Laviola, 1938).
O Jornal dos Sports não poupou esforços para atacar tal contraproposta. O principal trun-
fo acionado por Mario Filho e Ary Barroso foi a pesquisa de opinião realizada pelo Instituto
Brasileiro de Opinião Pública e Estatística (Ibope), em agosto de 1947, de forma a intervir nos
debates em curso na Câmara dos Vereadores a respeito do projeto de lei enviado pelo prefeito
Mendes de Morais. Seu resultado indicava apoio popular à construção do estádio e à localiza-
ção no bairro do Maracanã. A edição de 19 de agosto de 1947 do periódico trazia “números
que falam da vontade do povo” em relação à “batalha do estádio”.
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Vida e morte do Maracanã: a batalha do estádio em dois atos
Figuras 2 e 3: Pesquisa de opinião realizada pelo Ibope e divulgada pelo Jornal dos Sports em 19 de agosto de 1947.
Além disso, Mario Filho afirmava não ser possível implementar plano tão complexo antes
da Copa do Mundo, que a área da restinga de Jacarepaguá sofria com epidemias de malária
e que a melhor forma de trazer as Olimpíadas para a cidade seria primeiro focar na melhor
organização possível da Copa do Mundo.11 Para ele, após a Copa do Mundo, o estádio no
Maracanã também poderia se transformar numa “cidade olímpica”, com equipamentos es-
portivos ao seu redor. Vargas Neto acirrava os ataques, levantando suspeita sobre as intenções
de Lacerda e Laviola, que teriam interesses imobiliários na região,12 algo negado pelo Correio
da Manhã.13
Graças à aprovação da lei vinculada à viabilização do estádio nos terrenos do Derby
Clube, em outubro de 1947,14 a contraproposta desapareceu das páginas dos jornais. Contu-
do, os meses de lentidão dos trâmites para o início das obras municipais suscitaram o anúncio
de uma nova contraproposta, em março de 1948.15 Dessa vez, o Correio da Manhã apresen-
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tava o projeto do Estádio Nacional Sociedade Anônima (Ensa) como alternativa mais viável,
por supostamente contar com maior rapidez de implementação pela iniciativa privada. Sua
localização seria o bairro suburbano de Irajá. No entanto, a nova localização era vista como
um atributo menos relevante, com os apoiadores do Ensa se limitando a argumentar que o
estádio estaria às margens da Avenida Brasil, há menos de vinte minutos do Centro.16 Não
foram encontradas outras evidências que explicassem a nova localização.17
A convergência de rumores de insucesso da iniciativa da prefeitura com o lançamento
do Ensa reaqueceu os debates. O Jornal dos Sports contra-atacou com notícias diárias sobre o
andamento das obras e reportagens sobre visitas de autoridades e celebridades ao local, além
de fotomontagens exaltando a construção do “colosso do Derby”.18
O início efetivo das obras no Maracanã, em agosto de 1948, e a cobertura ufanista
promovida pelo Jornal dos Sports refrearam o ímpeto dos arautos do Ensa, cujos anúncios
publicitários e textos promocionais desapareceram em outubro do mesmo ano. Desde então,
estava definida a opção pelo bairro do Maracanã.
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clubes, sem afetar a atuação de empresas no setor.21 Isso levou o Jornal dos Sports a publicar
como manchete uma declaração do Conselho Nacional de Desportos (CND) reconhecendo a
ilegalidade da iniciativa Ensa.22
Ainda assim, o Correio da Manhã atacaria a iniciativa governamental ao prever au-
mento dos custos, típico de investimentos capitaneados pelo Estado, enquanto Mario Filho
responderia afirmando que, ao contrário, seriam os lucros perseguidos por empresários que
encareceriam a obra, posteriormente penalizando os clubes no seu uso cotidiano do novo
equipamento urbano coletivo.23
Se o campo liderado por Mario Filho e seu Jornal dos Sports defendia uma perspectiva
bastante alinhada com a concepção nacional-desenvolvimentista varguista, seu rival, repre-
sentado pela figura de Carlos Lacerda, adotava uma abordagem mais alinhada aos ideais
liberais, predominantes até a crise mundial de 1929.24 Essas diferenças fundamentais tam-
bém influenciaram os distintos formatos de viabilização financeira vislumbrados por ambos
os campos.
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A resposta de Mario Filho foi recrudescer a campanha pela venda de cadeiras cativas.
O Jornal dos Sports passou a divulgar estatísticas dos valores arrecadados e notícias sobre a
aquisição de cadeiras por celebridades, encorajando o esforço coletivo de financiamento. O
jornal também demonstrava, mediante fotorreportagens, a evolução da construção, fortale-
cendo a confiança no empreendimento.29 Ao mesmo tempo, os colunistas repudiavam a ten-
tativa de lucro por meio do esporte vinculada ao projeto Ensa. O avanço das obras do estádio
municipal no fim de 1948 causou o abandono do projeto defendido pelo Correio da Manhã.
Figura 4: Fotomontagem publicada em 12 de fevereiro de 1949 pelo Jornal dos Sports, colocando lado a lado operários,
o prefeito Mendes de Morais, o coronel Herculano Gomes — responsável direto pela obra — e Mario Filho.
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Figura 5: Manchete do Jornal dos Sports de 19 de junho de 1950, dia seguinte à inauguração do estádio municipal.
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Cabe, por ora, concluir que a prevalência do campo da construção do estádio municipal
sobre o campo oposicionista significou muito mais do que mera escolha arquitetônica-ur-
banística. Para além da heterogeneidade interna aos dois campos, concepções distintas de
esporte, cidade e nação estavam contidas nos respectivos projetos. A localização do Maracanã
contribuiu para uma cidade de maior contato, em detrimento de uma urbe mais espraiada
e segmentada. O estádio municipal efetivou um Estado mais proativo. O plano das cadeiras
cativas e perpétuas fortaleceu uma visão mais coletiva, apaixonada e colaborativa do esporte
em detrimento de sua submissão à lógica do lucro. Por último, o ideal freyriano de sociedade
mais inclusiva e miscigenada se sobrepôs às ideias abertamente eugenistas.
Nossa leitura é a de que o caráter reconhecidamente popular do Maracanã, que décadas
mais tarde justificou seu tombamento por parte do Iphan, está associado aos resultados ma-
teriais e simbólicos das disputas verificadas nesse primeiro ato.
A morte de Mario Filho, em 1966, fez com que o estádio oficialmente ganhasse seu
nome, a despeito de popularmente ser chamado de Estádio do Maracanã. Sua gestão
permaneceu nas mãos do poder público, transferida do município para o estado do Rio de
Janeiro em 1975. As cadeiras cativas, criadas para o financiamento da obra, não deixaram
de existir. A ideia de criar um complexo desportivo em torno do estádio foi concretizada com
a inauguração do ginásio poliesportivo Maracanãzinho, em 1954; da Escola Municipal Frie-
denreich, na década de 1960; do Estádio de Atletismo Célio de Barros, em 1974; e do Parque
Aquático Júlio Delamare, em 1978. A grandiosidade e o caráter popular foram mantidos com
a manutenção de sua capacidade de espectadores e o baixo valor dos ingressos até o fim do
século XX, como demonstra o gráfico abaixo que apresenta a relação entre os valores dos
ingressos mais baratos e do salário mínimo.
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14%
12%
10%
8%
6% Ingresso/salário
mínimo (%)
4%
2%
0%
16
20
02
28
20
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10
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24
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07
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/04
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/08
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/92
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/03
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/06
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/09
/10
/14
/19
A consolidação do estádio como popular e de sua monumentalidade marcou o imaginá-
rio da cidade do Rio de Janeiro e do país, suscitando iniciativas de proteção via tombamento
como patrimônio cultural no começo dos anos 1980. Naquele momento, estavam em curso
algumas ações de novo tipo no campo do patrimônio cultural, com destaque para os tom-
bamentos,32 em 1984, do Terreiro da Casa Branca, em Salvador, e da Serra da Barriga, em
Alagoas.
Desde fins dos 1970, a noção de referência cultural vinha trazendo, ainda que lentamen-
te, um novo lugar para as culturas populares no interior do aparato das políticas (Fonseca,
1996; Calabre, 2009). Podemos apontar para um sentido de ampliação da esfera do cultural
na consolidação de direitos e de formalização do reconhecimento da necessidade de políticas
voltadas a setores até então desprivilegiados, expressos em ações como a criação do Centro
Nacional de Referências Culturais (1975), em documentos como a Constituição de 1988 e o
Decreto-lei nº 3551, de 2000.
A movimentação em torno do tombamento do Maracanã pelo Iphan começa em 1983,
como indica a documentação apensada a seu processo,33 a pedido de Marcos Villaça, à
época secretário de Cultura. É criada a série tipológica “Estádios” e solicitado às demais re-
gionais informações sobre o tema. O estudo abrangeria alguns casos, desde sedes menores
(divisões inferiores, amadoras etc.) até expressões espetaculares, prevalecendo o universo
dos estádios maiores.
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Figura 6 — Vista aérea do Estádio Mário Filho e cercanias, década de 1970, acervo do 3 E.R.A., Base Aérea de
Campo dos Afonsos, cedida pelo 3º/8º Grupo de Aviação.35
Em fevereiro de 1997, o tema foi retomado pelo Iphan, em memorando citando o “imi-
nente risco de descaracterização”,36 sugerindo a aplicação da dispensa de instrução formal.
A conclusão dos técnicos do Iphan foi que havia requisitos para o tombamento, que deveria
seguir para apreciação do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural. O exame argumentava
que a proposta original do estádio previa a construção de um complexo desportivo, indicando
que o objeto do tombamento deveria incorporar os prédios do complexo. O parecer afirmava
que o bem estava “diretamente relacionado a fatos históricos e etnográficos notáveis”, res-
saltando as “particularidades audaciosas para sua época”.
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rampa de acesso. Embora receoso, o exame concluiu que não havia riscos de descaracterização
até o momento. O Conselho Consultivo foi informado da obra em andamento, da análise
técnica e da recomendação de inscrição também no Livro do Tombo Arqueológico, Etnográfico
e Paisagístico.39
Coube ao conselheiro Nestor Goulart Reis Filho a relatoria do caso. O parecer40 do conse-
lheiro reiterava a “extraordinária monumentalidade do estádio Mário Filho e seu valor simbóli-
co”, apontando ainda outra dimensão até então não abordada, isto é, a relação da cidadania
com o patrimônio cultural.
Na 21a Reunião do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural, em 13 de abril de 2000,
foi decidida a aprovação do tombamento e a delimitação do entorno do Estádio do Mara-
canã.41 A Ata42 demonstrou o entendimento do caráter simbólico da reunião de setores da
sociedade no estádio, destacando a apropriação do bem pelas camadas populares que dele
se tornaram marca, conforme demonstra a fala do Relator: “Em geral, as obras monumentais
são afirmações de poder sobre o povo. Neste caso, ocorre o contrário. O Maracanã tem a mo-
numentalidade da massa que o utiliza, a qual representa”. As reformas em andamento foram
pontuadas, quando se reafirmou o entendimento de manutenção das características popula-
res: “o tombamento do Maracanã não pode excluir a geral. [...] o fundamental do Maracanã
não é a obra de arquitetura, mas o cenário desse grande congraçamento.”
Marcos Vilaça, presente como conselheiro, lembrou que teve a felicidade de participar
da aprovação do tombamento do Terreiro da Casa Branca, na Bahia; do Açude do Cedro, no
Ceará; da Avenida Modelo, mas que “faltava este Maracanã. [...] Eu não conheço melhor
qualificação para esse local de apoteose democrática que a expressão encontrada pelo Con-
selheiro Nestor Goulart: monumentalidade da massa”.
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Em seguida, uma nova reforma para a Copa do Mundo ampliaria a área destinada aos cama-
rotes, reduzindo mais uma vez a capacidade total, para 78 mil espectadores, reivindicando a
destruição interna, com a justificativa de adaptar o estádio às exigências da Fifa.
Por último, mas não menos importante, o contrato de concessão do complexo para a
gestão privada, firmado em 2013, previa a destruição do Parque Aquático Julio Delamare,
do Estádio Célio de Barros, da Escola Municipal Friedenreich e do antigo Museu do Índio
para dar lugar a estacionamentos, cinemas e lojas. Tais ações não foram efetivadas graças à
resistência popular e à atuação de órgãos jurídicos e de defesa do patrimônio, conforme será
visto a seguir.
O tombamento do estádio e de seu entorno foi tensionado. É possível, mesmo se nos
ativermos à documentação institucional, ler os desacordos internos frente à reforma. A docu-
mentação apensada ao processo de tombamento dá conta do imbróglio jurídico e institucio-
nal, evidenciando três atores: a Defensoria Pública da União, a Superintendência Regional e o
Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural.
A querela teve início em abril de 2013, quando a Superintendência do Iphan no Rio de
Janeiro, por meio de ofício44 à Secretaria da Casa Civil do Estado do Rio de Janeiro, informou
seu posicionamento quanto às intervenções no entorno do Maracanã, recomendando a manu-
tenção do Maracanãzinho e do prédio do Museu do Índio, mas anuindo quanto à demolição
dos estádios Célio de Barros e Julio Delamare, bem como da Escola Municipal.
Em abril de 2013, o defensor público federal André Silva Ordacgy informou à Superin-
tendência do Iphan que discordou da autorização para a destruição parcial e/ou integral dos
parques esportivos. Em ofício,45 solicitou o impedimento de qualquer atividade de demolição
dos bens e o tombamento provisório.
A Superintendência do Iphan no Rio de Janeiro, em maio de 2013, esclareceu que um
parecer técnico em construção tinha por proposta a falta de interesse federal nos bens citados
por “estarem destituídos dos requisitos necessários para integrarem o patrimônio cultural
nacional, em suas diferentes vertentes”.46 Um segundo ponto destacava que, por ocasião do
tombamento do Maracanã, em 2000, o Iphan já analisara a região, verificando que a justifica-
tiva para o tombamento do conjunto não se justificava. O defensor público federal discordou
dos argumentos e solicitou toda a documentação para análise.
A arquiteta Claudia Girão Barroso, do Iphan, elaborou um parecer47 sobre o pedido de
tombamento dos estádios. Tal parecer afirmava que o processo de tombamento fazia referên-
cia ao complexo esportivo e entendia o complexo como componente do Estádio do Maracanã,
citando a representação da poligonal de tombamento (ver figura 7).
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Já Eugênio de Ávila Lins lamentou que tenham feito o projeto, e o aprovado, “antes de
ter um diagnóstico real do objeto com que estavam trabalhando”. Ele lembrou que boa parte
do patrimônio moderno brasileiro está em situação similar à do Maracanã: “Vamos continuar
tombando esse patrimônio moderno para depois ser modificado? Fica também o exemplo
extremamente lastimável da Fonte Nova”.50
Ulpiano Bezerra de Menezes destacou “dois gravíssimos desvios de conceito, escandalo-
samente inaceitáveis, principalmente por quem teria a responsabilidade de ter um encaminha-
mento de outra natureza”. Liberal de Castro ressaltou a importância arquitetônica do estádio
e mencionou diversas obras, como a do Mineirão, em Belo Horizonte, e a do Castelão, em
Fortaleza, com indignação: “É triste ver a destruição gratuita de documentos que retratam ou
retrataram materialmente a História da Arquitetura Moderna Brasileira.”51 Já Nestor Goulart
Reis expôs sua indignação:
Eu me sinto profundamente revoltado pelo modo como meu parecer foi utilizado, com má fé,
para inverter o sentido de tudo aquilo que escrevi. [...] Não conheço obra de demolição em
edifício tombado; nunca vi. Só conheço obra de restauração e conservação, aqui e no mundo
inteiro. Destruir obras tombadas é crime [...]. Demolir a marquise, demolir as arquibancadas
é demolir o Maracanã. [...] então, creio é uma questão de princípio: se o Maracanã pode ser
demolido, em metade dele, pelo lado interior, todos os edifícios tombados podem ser demoli-
dos neste país e a legislação não se sustenta mais [...]. Arquitetura, Engenheiro (dirigindo-se
ao Secretário de Estado do Rio de Janeiro), não é fachada. Se conservarmos o lado de fora e
destruirmos tudo dentro, o edifício não foi conservado. [...] Também, Engenheiro, não é verdade
que não se possa restaurar as estruturas. [...] Quem vai assumir esta responsabilidade é quem
tem que tomar as decisões políticas. Este Conselho não pode ficar no meio dessa situação. [...]
Não é o Presidente desta casa que destomba.
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Vida e morte do Maracanã: a batalha do estádio em dois atos
Conclusões
D ividimos a batalha do estádio em dois atos. O primeiro deles disse respeito ao momen-
to em que uma concepção mais inclusiva de esporte, estádio, cidade e país conseguiu
se sobrepor à visão que propunha um projeto em local apartado da cidade, com administra-
ção privada. O resultado das disputas nesse primeiro ato imprimiu um caráter inegavelmente
popular e público ao Maracanã, que se manteve ao longo de décadas. Em fins do século XX,
iniciou-se o segundo ato, quando esse caráter voltou a ser contestado e disputado na medida
em que a era do planejamento estratégico e de seus megaeventos teve início.
A reação a essa contestação foi a iniciativa de tombamento, que objetivava proteger o
interesse público frente à nova investida contra o Maracanã monumental e popular. Embora
formalmente tombado, as pressões por transformações de ordem arquitetônica, de gestão e
simbólicas foram recrudescidas, levando à descaracterização do bem e à destruição de seu
caráter popular e público. A administração recente do estádio, por meio de Parceria Públi-
co-Privada (PPP), se demonstrou desastrosa com a transformação da pista de atletismo do
estádio Célio de Barros em estacionamento e com a prática de preços proibitivos que resultou
no afastamento do símbolo maior do estádio: os geraldinos.
A resistência à última investida de apropriação do bem público por interesses privados
e empresariais, porém, logrou algum êxito, conseguindo a preservação do Julio Delamare,
da Friedenreich e do prédio do Museu do Índio — vitórias que precisam ser narradas numa
próxima ocasião. Atualmente, observamos a devolução, ainda que aparentemente temporária,
do estádio para o governo do estado e o fim da PPP que administra o complexo.52 Será o início
de um novo (terceiro) ato da batalha do estádio?
Notas
1 Embora as disputas acerca do Maracanã se estendam ao longo da segunda metade do século XX, os recor-
tes aqui analisados são aqueles cruciais para o entendimento dos principais projetos para o estádio.
2 Pelo mesmo motivo, as Olimpíadas de Helsinque também foram reprogramadas: de 1940 para 1952.
3 Uma leitura sobre as transformações nessa primeira metade de século pode ser lida em Sevcenko (1998).
4 Cumpre destacar a opção de não apresentar, dado o limite de um artigo, o debate anterior sobre o projeto
para o campus da Universidade do Brasil e seus desdobramentos na construção do Estádio Nacional. Sobre
o assunto, ver Comas (2011).
5 Jornais como O Globo, A Manhã e Jornal do Brasil também dedicaram espaço, mas sem o mesmo destaque.
6 Ver, por exemplo, a coluna de Mario Filho, na edição de 7 de maio de 1947, do Jornal dos Sports.
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Vida e morte do Maracanã: a batalha do estádio em dois atos
32 Dado o limite de espaço, não é possível aprofundarmos o debate sobre o instrumento jurídico do tom-
bamento. O instrumento foi criado pelo Decreto-Lei nº25, de 1937, que define o Patrimônio cultural como
de interesse público, sobrepondo-se ao interesse privado, além de criar o Conselho Consultivo do Patrimônio
Cultural, colegiado que deve julgar os pedidos de reconhecimento de bens como patrimônio cultural. Ver
Rabello (2009).
33 Processo de Tombamento nº 1.094-T-83, Estádio Mário Filho (Estádio do Maracanã), no Município do Rio
de Janeiro, Estado do Rio de Janeiro.
34 Ofício de 4 de novembro de 1983.
35 Processo de Tombamento nº 1.094-T-83, v. 1, p. 124.
36 Memo DEPRTO/RJ nº 130/97, 4 de fevereiro de 1997.
37 Processo de Tombamento nº 1.094-T-83, v. 1, p.130.
38 Laudo 004/2000, 3 de fevereiro de 2000.
39 Memorando nº 118/00, 22 de fevereiro de 2000.
40 Processo de Tombamento nº 1.094-T-83, v. 2, p. 5.
41 A homologação se deu pela Portaria nº 380, de 26 de setembro de 2000, assinada pelo ministro da
Cultura.
42 Ata da 21a Reunião do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural.
43 Além da Copa do Mundo de 2014 e das Olimpíadas de 2016, podemos entender na chave dos megaeven-
tos os Jogos Pan-Americanos de 2007, os Jogos Mundiais Militares de 2011, a Jornada Mundial da Juventude
de 2013. Para um aprofundamento sobre as tensões na realização desses eventos e o envolvimento de dife-
rentes órgãos, ver Damo e Oliven (2013); Santos Junior, Gaffney e Ribeiro (2016).
44 Ofício GAB/Iphan-RJ nº 00471/13, de 25 de abril de 2013.
45 Ofício nº NDPU-RJ/019/2013/GAB/1º DHT/ASO, de 30 de abril de 2013.
46 Ofício/GAB/Iphan/RJ nº 00544/2013, de 10 de maio de 2013.
47 Parecer nº 159/2013/Cetec/Iphan-RJ
48 Relatório e conclusões da Defensoria Pública da União — Referência: Tombamento federal do Estádio
de Atletismo Célio de Barros e do Parque Aquático Júlio Delamare, Processo de Tombamento nº 1.094-T-83,
v.3, p. 113-133.
49 Ata da 68ª Reunião do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural — Iphan.
50 Estádio Otávio Mangabeira, conhecido como Fonte Nova, em Salvador, implodido em 29 de agosto de
2010, para construção do novo Itaipava Arena Fonte Nova.
51 Por limitações do artigo, não podemos avançar na análise de outros estádios impactados pela preparação
para a Copa do Mundo de 2014. Para mais considerações sobre o tema, ver Mascarenhas (2019).
52 “Governo do Rio rescinde contrato de concessão do Maracanã”, O Globo, 18 de março de 2019.
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Erick Silva Omena de Melo e Gabriel da Silva Vidal Cid
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Contribuição especial
Courtney CampbellI*
DOI: http://dx.doi.org/10.1590/S2178-149420190003000009
i
The research for this article was funded by a Summer Research Award from the College of Arts and Sciences at Vanderbilt
University and an Institute of International Education Graduate Fellowship for International Study administered by Fulbright
Brazil. The final product was greatly influenced by feedback given generously at the Grupo de Trabalho 09 “Esporte e
Sociedade” of the 36º Encontro Anual da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais in Águas
de Lindóia, São Paulo, in 2012; at the Rethinking Sport in the Americas Workshop at Emory University in 2013; and, at the
Society for Latin American Studies event in Southampton in 2018. I thank the donors and institutions mentioned above
for the generous funding and the organizers and participants at these events. In addition, I express thanks to Marshall C.
Eakin, Ty West, Celso Castilho, Eddie Wright-Rios, Lesley Gill, Paula Covington, Joshua Nadel, Túlio Velho Barreto, Santiago
Quintero, Bernardo Buarque de Hollanda, and Maria Carolina Morais for feedback on previous versions.
I
University of Birmingham, Birmingham, Reino Unido.
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The Northeast Plays Football, Too: World Cup Soccer
and Regional Identity in the Brazilian Northeast
Abstract
This article examines how ideas about northeastern regional identity circulated in discussions of World Cup football.
It first presents the preparations of and discussion around the 1950 World Cup match between Chile and the
United States in Recife. Then, it analyzes attention given to World Cup football by regionalist intellectuals and
artists, including musicians, clay artists, poets, and authors of cordel literature. This analysis shows that World Cup
football provided a space within which the terms of regional (and national) identity were contested and debated,
emphasizing the multivalence of regional discourse.
Resumo
Este artigo examina como as ideias relativas à identidade regional circularam em discussões sobre a Copa do Mundo.
Primeiro, apresenta preparações e discussões em torno da partida entre Chile e Estados Unidos em Recife, em 1950.
Em seguida, analisa a atenção dada ao torneio por intelectuais e artistas regionais, como músicos, ceramistas,
poetas e escritores de literatura de cordel. Esta análise mostra que o futebol do Mundial fornece um espaço no
qual os termos da identidade regional (e nacional) foram contestados e debatidos, enfatizando a multivalência do
discurso regional.
Resumen
Este artículo analiza como las ideas sobre identidad regional circularon en discusiones sobre el Mundial de fútbol.
Primero, presenta preparaciones y discusiones alrededor de la partida entre Chile y Estados Unidos en Recife, en
1950. Después, discute la atención dada al torneo por intelectuales y artistas regionales, incluyendo músicos,
ceramistas, poetas y escritores de literatura de cordel. Este análisis muestra que el fútbol del Mundial provee un
espacio dentro del cual los términos de la identidad regional (y nacional) fueron contestados y debatidos, enfatizando
la multivalencia del discurso regional.
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Courtney Campbell
I t is the final, deciding match of the football tournament. Between three and five thousand
fans of the home team discuss possible results. The last match was tied 100 to 100, but
the home team has not practiced all week. Fans of the visiting team enjoy free seating and
receive cachaça popsicles upon arrival. The referee, named Berimbau, is nude. The visiting team
is shirtless and wears leather hats, and the home team is not wearing trousers. Welcome to
the deciding match of the best of three between Satan and the infamous northeastern bandit
Lampião, narrated in six-line stanzas, with an ABCBDB rhyme scheme (see Figure 1). This
pamphlet, O futebol no inferno: a melhor de três, originally written by José Francisco Soares
(n.d.), narrates the fictional match, placing an iconic northeastern historical figure at odds with
the fallen angel.
There is an assumption in most work on football that the sport is unifying — it brings the
nation together as one. It becomes a blanket or flag, cut of one fabric that covers the entire
national territory in an expression of nationhood with common symbols, idols, and cultural
representations. It reaches out from the Center of the nation into the Periphery, and from
the global to the local, pulling territorially, economically, and socially distinct regions into the
national fold. Hobsbawm (1990: 143) stressed the ability of international sporting events to
integrate nations as imagined communities represented by “a team of eleven real people.”
Gilberto Freyre (1938) wrote of the connection between Brazilian football and the Brazilian
national character. Ronaldo Helal (1998: 88) stressed that football reveals important traits of
a culture, as it is rich in images and representations of the collective. And José Carlos Sebe
Bom Meihy (1982: 11) stated that “Certainly football is one of the expressions of the ‘Brazilian
people’s spirit’” (See also: Barreto, 2008).
Yet, O futebol no inferno suggests that football, as a force of identity, is not uniform
or singular. Instead, this poem points to a complex intermingling of regional, national, and
international symbols. It suggests that regional heroes can represent the nation in sporting
events of greater geographic (or metaphysical) importance and that regional literature can
mimic the reporting of regional and national news media. In the words of Arlei Damo (1999:
88).“ In such a geographically extensive, socially stratified, and culturally diverse country,
football expresses regional diversity, socio-economic hierarchies, and ethnic and racial
differences.”
722 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 68, p. 722-743, setembro-dezembro 2019
The Northeast Plays Football, Too: World Cup Soccer
and Regional Identity in the Brazilian Northeast
Likewise, in literature on the “invention” of the Northeast, scholars often focus on the
consolidation of a regionalizing discourse. These works examine regionalism as an effect of
the centralization of the national government or emphasize that the formation of regional
identities is an invention of intellectuals, artists, professionals, and bureaucrats (See, for
example, Albuquerque Júnior, 2009; 2014; Blake, 2011; Oliven, 1986; 1992; Weinstein, 1982;
2015). This article adds that within regional discourse, there was disagreement, fear, anxiety,
criticism, nuance, and general pushback, showing the multivalent character and uneven
contour of regional identity. In this way, football is not just a force of identity, but also a space
within which debate about regional and national identity takes place. It is in these spaces that
identity lives, bends, and kicks instead of being passively stated.
This article examines how ideas about northeastern regional identity circulated in
discussions of World Cup football. It first presents newspaper coverage of the 1950 World
Cup match between Chile and the United States in the city of Recife. Then, it analyzes World
Cup football in regional art, including music, clay art, traditional poetry, and cordel literature,
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Courtney Campbell
particularly in the years of 1950, 1958, and 1970. This mixture of sources and narratives
shows that World Cup football in the Northeast provided a space within which the terms of
regional (and national) identity were contested and debated.
The examination of press coverage around the 1950 World Cup match in Recife
focuses not only on the intended message, but also on the “noise” of communication, that
is, according to Michel Sèrres (1982: 66), the obstacles, discontinuities, ambiguities, and
contradictions found in discourse. Many writers in Pernambuco expressed the importance of
the campaign to bring a match to Recife in regional and unifying terms, but within the noise
of their communication, they indicate disagreement and anxiety within the project. Newspaper
analysis shows the growing power of regional discourse to motivate northeasterners — in
this case pernambucanos (people from the state of Pernambuco) — to mobilize around a
campaign to bring international attention to the region, while also highlighting the fears that
this international attention inspired. Due to the successful campaign to bring a World Cup
match to the Northeast in 1950, northeasterners engaged directly with international football
and expressed concerns about how the region would be perceived by a global audience.
Music, visual art, literature, and ceramic sculptures (cerâmica), on the other hand,
suggested equal, democratic participation through regional media. These artistic creations
do not explicitly do “region work”, according to Anssi Paasi’s (2010: 2300) definition — that
is, they do not define the region, create regional institutions, or organize systematic activism;
their work is more subtle. The origin of their product is apparent and, yet, does not conflict
with a sense of national belonging. Instead, northeastern art focuses on harmony with the
nation. Regional concerns are smoothed over in regional art and, while other anxieties (like
racial inclusion) are given room, the focus is on celebration, unity, and the art of living within
the football match.
B efore the 20th century, there was no Northeast. The horrific drought of 1877-79 led to
the creation of national institutions dedicated to lessening the effects of future droughts.
By the 1920s, these institutions referred to the drought zone as the Northeast (Albuquerque
Júnior, 2009: 81; Buckley, 2010). In contrast to São Paulo’s regional identity based on notions
of European ethnic origin, affluence, and cultural superiority, the Northeast became associated
with a mixed race population, drought, migration, poverty, and inferiority (Albuquerque Júnior,
1987; Campbell, 2014; Weinstein, 2015). In response, intellectuals in the Northeast formed
the first influential regionalist movement, aimed at emphasizing that the region had a positive
724 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 68, p. 724-743, setembro-dezembro 2019
The Northeast Plays Football, Too: World Cup Soccer
and Regional Identity in the Brazilian Northeast
cultural character. This movement was developed by the Regionalist Center of the Northeast in
1924 and represented at the Regionalist Conference in Recife in 1926 by Gilberto Freyre and
other intellectuals (Campbell, 2014: Chapter 1).
In 1950, Recife would become the only northeastern city to host a World Cup match.
At that time, Recife had over half a million inhabitants and the largest foreign population in
the Northeast (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 1951: 27, 33, 61). In addition to
passenger trains and buses, the state of Pernambuco had nearly 13,000 vehicles on its roads,
about half of which were common passenger vehicles — more than any other state in the
Northeast, including Bahia (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 1950: 174). Recife
demonstrated the highest mortality rates and had the second highest cost of living in the
country, while employing only 6.1% of the country’s industrial laborers (Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística, 1951: 63, 337, and 116). The campaign to bring a World Cup match
to Recife often referred to an opportunity to improve the city and the region’s reputation both
nationally and internationally.
T he campaign to bring a World Cup match to Recife got off to a slow start. In 1949, the
directors of the Sport Club do Recife began a project to expand and modernize the Ilha
do Retiro stadium, starting with the construction of the stadium seating. In February 1950, the
Diário de Pernambuco published calls for donations of “cement, tiles, or money.” Ary Dornelas
(1950), who wrote these initial articles, reminded readers that this was not the first of Sport’s
“popular” campaigns — the land upon which the stadium was built had been purchased
through a similar collection effort. These articles are the first to mention that the construction
of the seating could lead to a World Cup match in Recife.
In April 1950, Laudenor Pereira, who wrote a regular column on the World Cup for the
Diário de Pernambuco, heard of the possibility of Recife hosting a match in an interview
with Rivadavia Correia, the President of the Brazilian Sports Commission (CBD), given to
the Radio Tamoyo and retransmitted by the Ceará Rádio Clube. According to Correia, both
Recife and Salvador (which would not host a match) were under consideration for World
Cup matches. Pereira (1950a, 1950b) wrote that recifenses should prepare early and put
effort into the construction of the seating at Ilha do Retiro. According to him, the World
Cup matches in Recife would bring money to the city and would turn it into a center of
international tourism.
Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 68, p. 725-743, setembro-dezembro 2019 725
Courtney Campbell
In May, the superintendent of the CBD, Irineu Chaves, visited Recife (Jornal Pequeno, May
13, 1950). After his visit, Chaves announced that two or three matches would take place in
Recife upon completion of “a few minor improvements” to the Ilha do Retiro Stadium (Folha da
Manhã, May 14, 1950; Diário da Manhã, May 14, 1950; Folha do Povo, May 12, 1950; Jornal
Pequeno, May 15, 1950; Diário de Pernambuco, May 16, 1950 and May 17, 1950). The minor
improvements included: increasing capacity by closing the ring of seating around the field,
building fences to separate the players from the public, constructing locker rooms and tunnels,
and improving the pitch (Santos, 1985: 1:201). Chaves expected earnings of Cr$ 700,000.00
per match. Hinting at the region’s poverty, reputation of poor housing standards, and desire to
direct the foreign gaze toward its positive attributes, he urged recifenses to “provide dignified
lodging, because these are fine people who are accustomed to good treatment and, regardless
of that, we must show our nobility …” (Diário de Pernambuco, May 16, 1950).
Major donations for the construction of the Ilha do Retiro stadium in Recife came from
both private and public donations (Diário da Manhã, May 28, 1950, Jun 7, 1950, and Jun 24,
1950). Senator Luiz Magalhães Melo presented a law to the Legislative Assembly proposing
the donation of Cr$ 200,000 to the CBD to support the match in Recife (Diário da Manhã,
May 28, 1950, Jun 7, 1950; Diário de Pernambuco, Jun 6, 1950, Jun 8, 1950). On June 17,
1950, a modified version of the law was approved and Cr$ 100,000 were designated for both
Náutico and Sport, with the remaining Cr$ 100,000 going to the Pernambucan Federation
of Sports (Diário de Pernambuco, June 6, 1950; Diário de Pernambuco, June 18, 1950). In
addition, a man named Adelmar Costa Carvalho donated an unspecified amount of money to
Sport to cover the building of the locker rooms “in exchange for certain advertising privileges”
(Diário da Manhã, June 24, 1950).
Small donations of supplies and labor were also visible and important, lending a
democratic feel to the newspaper story of the 1950 World Cup in Recife. On December 17,
1949, the Diário de Pernambuco announced bingo fundraisers to help cover the costs of the
seating. Nonetheless, on June 1st, 1950, Joca de Lira Ferreira of Sport appealed to Sport fans,
explaining that he worried that “the CBD is repentant of having conceded with such ease this
benefit to our Northern club” and might cut off promised funding and support. In his plea, he
reminded recifenses of previous successful campaigns, and requested that each “little lion”
donate newspapers or bottles, and even offered to pick up materials from homes. His request
also included construction materials like “tiles, cement, sand, lime, iron, scrap metal, shovels,
hoes, anything you might be able to contribute, even through sacrifice, …”. These donations
would allow for the realization of “the golden dream not only of rubros negros, but of all
726 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 68, p. 726-743, setembro-dezembro 2019
The Northeast Plays Football, Too: World Cup Soccer
and Regional Identity in the Brazilian Northeast
Pernambuco’s sincere sports fans” (J. de L. Ferreira, 1950). Artur Maciel pointed out that the
“gigantic work in progress” was possible due to the “abnegados”– the “selfless” volunteers,
fans, laborers, and donators of meals and materials repeatedly referenced in newspapers
(Maciel, 1950).
This call for abnegation and self-sacrifice recalls explanations of nation and nationality.
Ernest Renan saw the nation as a moral unit that requires sacrifice and self-denial (Renan,
1882: 26, 26-27, 27, and 29, respectively). Benedict Anderson added that the nation, like the
family, is considered “interestless” and because of this, “can ask for sacrifices” (Anderson,
2006: 144). Sport, then, directed similar pleas to its fans as that of a nation and many Sport
fans responded (see Figures 2-4). According to the book Memória Rubra Negro, at any given
time there were dozens, even hundreds of volunteers working “as if laborers” (Santos, 1985,
1:201). Fernando Bivar, of Sport, described the stadium as “a true effort” that included “the
right to breaks and lunch — sarapatel and feijoada …” (Bivar, 2008, 53). Even regionalist
writer José Lins do Rêgo offered his opinion: “The World Cup is carrying away all of the
northeasterners … I went to the Sport Club and I was delighted by the effort... shift after
shift of laborers, night and day, in intense labor. I believe if everyone did as Sport of Recife, we
would have throughout Brazil a World Cup capable of meeting all expectations” (Rêgo, 1950).
While Recife’s newspapers attempted to create a narrative of cooperation and sacrifice,
they left enough noise in the margins to indicate that not everyone was self-sacrificing,
involved, or supportive of the international football match. The initial calls for donations drew
immediate criticism from one of the Diário de Pernambuco’s sports writers, Viriato Rodrigues.
Rodrigues’ article criticized the campaign, but also praised the directors of the club for their
ability to get things done. Rodrigues says, for example, that Sport’s members are supposed to
“spontaneously bring tiles, a bag of cement, [that is, in the case of] the richest [fans]. Those
who don’t have any of this, can [just] bring money.” And in this way, “the stadium seating will
be finished. It will be mine, it will be yours, it will be everyone’s, it will belong to Pernambuco.
And when it is ready, no one will be able to jump the wall anymore and those who don’t pay
will have to pace in the entrance way. No one will get through” (Rodrigues, 1950a).
Rodrigues left the suggestion for the reader to complete: fans donated supplies or even
money, but they would not even be able to enter the stadium. If they could afford to pay, they
would enjoy matches free of riff-raff. But if they were the riff-raff, regardless of their sacrifice,
there would be no display of horizontal, classless camaraderie: they would be left alone,
standing at the gates. Rodrigues implied that while the stadium would figuratively belong to
Pernambuco, it would only belong to the Pernambucans who could afford tickets (Rodrigues,
Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 68, p. 727-743, setembro-dezembro 2019 727
Courtney Campbell
April 4, 1950). On the other hand, in May 1950, Severino Almeida complained in the Jornal
Pequeno that Sport had had no other choice but to ask the civilian patrol police to “prevent
that people enter without paying.” He quickly corrected himself: “The people, no. It’s soldiers
and all kinds of police officers who want to enter without paying.” According to this article,
the police and military officers expected to enter the stadium for free, creating “a great shame
… on our football pitches.” Not everyone was willing to give quietly and to sacrifice for the
stadium without receiving anything in return (Jornal Pequeno, May 3, 1950).
Grievances over the construction of the stadium, the expenditure of funds, and the
presence of foreign delegations did not come primarily from socialist newspapers. The Folha
do Povo, for example, in its reporting of the construction of the Ilha do Retiro Stadium, of Irineu
Chaves’ visit to inspect the stadium, and of the match held in Recife, offered straightforward
narrative, devoid of overt political insinuation (Folha do Povo, May 12, 1950, Jun 21, 1950, Jun
29, 1950, Jul 2, 1950). The effort and attention that the preparations for the match attracted
instead upset some elite recifenses. One editorial, written under the pen name “Argus”
insisted that so much attention given to sports was “excessive and harmful” as it detracted
from “intellectual culture.” Further, the language employed was “semi-barbaric” as fans wrote
ofisaide and futebol “without remembering that these are English terms.” Argus expressed
disdain at seeing “illustrious” political representatives talking about sports at the Federal and
Municipal Chambers (Argus, 1950).
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The Northeast Plays Football, Too: World Cup Soccer
and Regional Identity in the Brazilian Northeast
To this writer, sports were for physical fitness and had no place in local politics. At least
one politician agreed with Argus. When addressing the state Legislative Asssembly to urge state
and city administrators to support the matches in the Ilha do Retiro stadium, Representative
Júlio de Melo Filho first asked his colleague Mário Melo for permission, describing him as
“considered by many as the number-one enemy of football” (Jornal Pequeno, May 9, 1950).
Other recifenses were concerned with the negative impression that travelers might take
away from their visit to the city. Worries that tourists might speak poorly of Recife based
on the unattractiveness of the areas surrounding the Náutico stadium (which had recently
suffered a fire) and the Ilha do Retiro stadium (often surrounded by standing water) inspired
petitions for the municipal government to create new parks and plazas near the stadiums
(Diário da Manhã, Mar 29, 1950). Another concern expressed in the Diário da Manhã was over
the quality of materials purchased with the donated money. The “magnificent locker rooms”
were well-constructed, but the toilets, sinks, and faucets were of “proletarian” quality. “After
all,” an anonymous writer pondered, “money was offered for the construction of two model
pavilions … Why, then, was ordinary material used ...?” (Diário da Manhã, Jun 24, 1950). The
writer worried the foreign delegations would see the poor quality and judge the entire effort
and region accordingly.
Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 68, p. 729-743, setembro-dezembro 2019 729
Courtney Campbell
Despite the proletarian faucets and unfortunate rain, the World Cup match took place
in Recife on July 2nd, 1950. The América Futebol Clube from Recife and the América Futebol
Clube of Fortaleza played an opening match, which the latter team won 2x0. Against
projections, the USA team lost to Chile, with the final score: Chile 5, USA 2. The match had
sold out and brought in a little more than Cr$ 290,000. While this was far less than original
expectations, newspapers mentioned only complete satisfaction with the event (Diário da
Manhã, Jul 2, 1950; Pinho, 1950). Among the successes was the presence of illustrious guests
in the audience, including the state Governor Barbosa Lima, the Mayor Morais Rêgo, military
commanders, Chilean and US diplomats, representatives of the CBD, the president of the
Federação Cearense de Futebol, members of the foreign press, and Jules Rimet, who praised
the construction of the stadium (Diário da Noite, Jul 3, 1950; Diário de Pernambuco, Jul 4,
1950, Jul 8, 1950).
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The Northeast Plays Football, Too: World Cup Soccer
and Regional Identity in the Brazilian Northeast
In the end, the greatest star on July 2nd, 1950 was the Ilha do Retiro stadium (Figure 5).
In its first edition post-match, a large photograph of the stadium appeared on the first page of
the second section of the Diário da Manhã (four pages before the write up) (Diário da Manhã,
Jul 4, 1950). The Diário da Noite claimed the Ilha do Retiro Stadium as a source of pride “for
the entire Brazilian Northeast” (Diário da Noite, Jul 3, 1950). Journalists from Recife were not
alone in noting the quality of the stadium. The sports writer from the St. Louis Post-Dispatch,
Dent McSkimming, when interviewed by the Diário da Noite stated that he and “the other
members of the press corps from the United States are pleasantly surprised by the wonderful
condition of the pitch here.” According to McSkimming, the stadium was comparable to that
of Belo Horizonte, a notable compliment whose regional implications were likely unknown to
the North American journalist, but would inspire great pride to the northeastern newspaper
(Diário da Noite, Jul 3, 1950). Nonetheless, while a Folha da Manhã article claimed that “the
attentions of the whole world” would be on the Ilha do Retiro stadium, in the St. Louis Post-
Dispatch article published on July 3rd, 1950, there is no mention of Recife or its new stadium
(Folha da Manhã, Jul 2, 1950; St. Louis Post-Dispatch, Jul 3, 1950).
As the first television towers had just arrived in Rio de Janeiro in November 1949 and the
World Cup would not be broadcast nationally in Brazil until 1970, radio transmissions were
fundamental in the 1950 World Cup (Diário de Pernambuco, Oct 22, 1949, Nov 3, 1949). The
Jornal do Commércio transmitted the World Cup matches and released to all broadcasters —
foreign and domestic — permission to re-broadcast their transmissions. This allowed the Diário
de Pernambuco to re-transmit the World Cup matches through loudspeakers placed by the Radio
Club of Pernambuco (Radio Clube de Pernambuco) on the outside of the Diário building, facing the
Praça do Diário in downtown Recife (Diário de Pernambuco, Jul 1, 1950). These re-transmissions
drew a crowd of recifenses who did not have a radio at home or who simply preferred to listen
to the broadcasts in a group setting (see Figure 6) (Jornal Pequeno, Jul 17, 1950).
Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 68, p. 731-743, setembro-dezembro 2019 731
Courtney Campbell
For the USA-Chile match, journalists from Brazil, Chile, and the US were present, prepared
to broadcast. At the beginning of the match, however, electrical power went out at the stadium,
making it impossible for foreign and local media to transmit the match (Folha da Manhã, Jul
4, 1950). Once Tramways (which was in charge of providing energy) had restored electricity
to the stadium, the power fell again, this time, reportedly due to cut cables. According to one
article, “The loose-lipped say it was sabotage…” — hardly the language of trust, unity, and
horizontal camaraderie (Diário da Noite, Jul 3, 1950).
The campaign to bring a World Cup event to Recife created a centerpiece for a discussion
of regional inequalities, representation, shame, and pride. The construction of the Ilha do Retiro
stadium and the realization of the first World Cup match played in the North or Northeast also
testifies to the plurality of the process of regional identity formation. While some recifenses
saw football as a way to demonstrate regional progress, others saw it as a waste of time.
While Recife newspapers insisted on harmony with Bahia to promote northeastern unity, the
Bahian newspaper A Tarde ignored this aspect. Even supporters hinted at misgivings over
the possibility that foreigners noticed the poor quality constructions or the lack of parks. In
this way, the event opened a space within which the media could discuss the place of the
Northeast in the nation and the world.
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The Northeast Plays Football, Too: World Cup Soccer
and Regional Identity in the Brazilian Northeast
F ootball also found a place within northeastern literature and art. The northeastern poet
João Cabral de Melo Neto, for example, dedicated several poems to northeastern football
and one specifically to Ademir Marques de Menezes, entitled “A Ademir Meneses.” By the
end of the 1950 World Cup, Menezes held the record as highest scoring football player, with
nine goals over the course of the tournament (Jornal Pequeno, Jul 19, 1950). One Jornal
Pequeno article exalted him as “the greatest player in Brazil” reminding the reader that he
“learned to play in the [Sport] Club of the Ilha [do Retiro].” The writer referred to Ademir as
“one of the glories of the rubro-negro family” and “a home raised player that has shined in an
international setting” (Jornal Pequeno, May 13, 1950). Melo Neto’s poem connected Menezes
to the player’s pernambucanidade (inherent qualities of being from Pernambuco), focusing on
the influence of environment and climate on his football style. Neto pointed out that Ademir,
“like other recifenses” was born among “mangroves and frevo” and was “divided / between
two different climates / ambidextrous in drought and humidity / as in general are recifenses”
(Neto, 1988). Like Gilberto Freyre in Nordeste, Melo Neto united the “two Northeasts”, that
is, he drew the sertanejo (of Freyre’s “other Northeast”) and the coastal dweller (of Freyre’s
“Northeast of sugarcane”) together (Freyre, 1961, XI). In Melo Neto’s poem, Menezes was not
only a high scoring player, but the embodiment of a unified northeastern football. To the poet,
Ademir’s craft and origin could not be separated.
Melo Neto’s joining of region and football capability was part of a trend to describe
Brazilian football talent as determined by race, nation, or region of origin. In 1938, Freyre’s
article, “Foot-ball mulato,” was published in Diários Associados’ newspapers, including the
Diário de Pernambuco. In it, Freyre praised Brazil for sending a team that was mainly Afro-
Brazilian to the World Cup in France (see also: Maranhão, 2019). To Freyre, what made Brazil’s
football stand out was what he considered its psychologically mulatto style — that is, a style
that was not racially determined, but that was created by a mulatto culture. The qualities of
this style included “surprise, dexterity, guile, and lightness and, at the same time, individual
spontaneity.” Freyre compared the Brazilian/mulatto way of playing football to dance and
capoeira, claiming that Brazilian players “round out and sweeten the game invented by the
English” which the Europeans play “so angularly.” Freyre stated that “to be Brazilian is to be
mulatto”– a way of being that values spontaneity, improvisation, and freedom to show off
personal talent (Freyre, 1938). Like Freyre, Melo Neto joined craft and origin in his poem.
Unlike Melo Neto’s poem, most regionalist art did not focus on northeastern players or
the only match to be played in Recife. Instead, it presented international sporting events and
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Courtney Campbell
national heroes in regional form. The Pernambucan writer Ascenso Ferreira, for example, also
wrote poetry about the World Cup, connecting football to humor and sexuality. In “A Copa do
Mundo,” Ferreira narrated a reunion of two lovers — Maria and Chico Tenório — who had
long been meeting “off-side.” Maria took advantage of the confusion caused by one of Brazil’s
World Cup victories to invite Chiquinho to “make our own goal” (Ferreira, 2016, s.p.). In this
and similar tales of victory, there is no overt message of northeastern regional identity or unity.
Instead, the quotidian unfolds in a context of national celebration in northeastern cities.
Football also pervades visual arts associated with the Brazilian Northeast. The cearense
painter Aldemir Martins, internationally acclaimed, yet known for regional themes in his
paintings, created expressive works on football. While Martins is known for his representations
of elements considered typical from the state of Ceará (bandits, lace makers, fruits, animals,
and sertanejos), his best known football painting is of Pelé (who was born in Minas Gerais,
not in the Northeast). In these paintings, Martins used his well-known regional style to portray
a national football hero. For example, in Martins’ painting Pelé (see Figure 7), Pelé comes
through in thick solid borders over sparse color, giving a rustic impression to the subject
matter. Pelé reaches forward with both arms, one leg bent back to kick the ball in front of
him. Pelé is faceless and our only indication to his identity (besides the title) is the number 10
from the back of his jersey, which the privileged reader is able to see from the side, in cubist
fashion. Similarly, the Museu do Homem do Nordeste houses cerâmicas — another visual art
form considered typical of the Northeast — by Mestre Vitalino and Rosa of Caruarú. Rosa’s
football player wears the national jersey (see Figure 8). In these cases, artists whose careers
were built on the northeasterness of their work, used their regional art to present a national,
rather than regional, symbol.
These works address national symbols and themes (the World Cup, Pelé, Brazilian soccer
players) within northeastern art forms. In this way, they place themselves in conversation
with both regional and national topics and debates. A prime example of this is Jackson do
Pandeiro’s song Um a um (1x1). The chorus of the song repeats that the singer’s team is “red,
white, and black, it’s red and black / it’s red, black, and white, it’s red and white” (UM, 1954).
The song, according to Pandeiro, was originally written for Pernambuco as a “catch all” song
— red, white, and black are the colors of Santa Cruz, red and black of Sport, and red and
white of Náutico. Pandeiro added: “Everywhere in Brazil there are these colors, in Rio, in São
Paulo, in Bahia, this music was just for Pernambuco. But ... we set it up to catch all of Brazil”
(Souza, 2000: 119-20).
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The Northeast Plays Football, Too: World Cup Soccer
and Regional Identity in the Brazilian Northeast
The most pervasive example of national football presented in regional form are the
hundreds of cordel pamphlets on the theme of football, ranging from the 1940s to the
present, housed in archives throughout the Northeast and in Rio de Janeiro. Cordel literature
is one of the most recognizable popular northeastern cultural products. It likely derives from
the European pamphleting tradition, which arrived with the Portuguese in the sixteenth and
seventeenth centuries. Yet, by the nineteenth century, it had nearly taken on its current form
(Curran, 1991: 9). At its most basic, a cordel pamphlet is simply a piece of paper folded twice
(once horizontally, once vertically) and cut at the seams to create a booklet of eight pages,
but sometimes much longer, with a cover that is often of a pastel color and whose illustration,
depending on the year of production, could range from a simple title to a wood cut print.
The extended poem within the pamphlet is usually composed of verses of six or seven
lines of eight syllables with either an ABCBDB or ABABCCB rhyme scheme (10). Most cordel
are divided between what Veríssimo de Melo referred to as “records of memorable facts,
in pamphlet form” or fictional “narrative in verse” (Melo, 1976: 51). As Melo pointed out,
modernization did not force cordel pamphlets into the background. Instead, cordel coexists
alongside radio and television (and now, the internet), communicating information to a large
audience in an engaging form (52).
In the 20th century, writing cordel was a hobby for some, but for others, it was a
profession. Cordel poetry was not intended solely for personal, private reading. It was also a
form of performance. Cordelistas would read (or sing out) their work in markets and squares
throughout the Northeast with great exuberance and animated gestures to advertise their
goods, and those who purchased the literature might read aloud and share with others who
did not know how to read (Curran, 1991: 19). According to Candace Slater, members of the
land-owning classes also often read the literature aloud to their illiterate workers, and, in this
way, participated in its selection and distribution (Slater 1982, 1-2). Further, migration from
the Northeast to the Amazon, the South, and Southeast spread cordel literature throughout
the country.
Most football-themed cordel literature narrates a victorious World Cup tournament or
its final match. O Brasil na Copa do Mundo and A vitória do Brasil na VI Copa do Mundo, for
example, relate each match, praise the players and the coach, and claim that Brazil’s 1958
World Cup win was one of Brazil’s greatest glories (Gomes, 1958; D’Almeida Filho, 1958). The
rare mention of regions evokes a sense of national unity instead of divide. O Brasil, campeão
do mundo, for example, summarizes the World Cup match of 1958. Its author, Francisco
Firmino de Paula, states: “In Brazil from north to south / or better said, in each state / whoever
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has a radio had / it turned on and ready / whoever didn’t have one / went to a friend’s house
/ to hear the result.” According to this poem, the World Cup event, through radio, united the
nation in the act of listening across state and regional borders (1958: 3).
Further, Paula highlights that the whole country participated in one great party, “For
example in Recife / the joy was so great / that the people brought back Carnival …”. What
makes these mentions of horizontal camaraderie across states and regions so striking is that
1958 was a drought year in the Northeast. Paula states that through the victory and resulting
party, the people forgot “the dearth / people who haven’t eaten in a month / on Sunday forgot
their hunger / [and] joined the party” (1958: 8). World Cup victory in these pamphlets provided
a way to celebrate national belonging, regardless of regional inequalities.
In 1962 and 1970, both years in which Brazil won the World Cup tournament, this form
of cordel reappears, but other characteristics of Brazilian nationality began to surface. W.
Pinheiro, in a cordel that details each match of the 1970 World Cup, explains that Brazil should
serve as an example for the rest of the world. According to Pinheiro, instead of dedicating itself
to war, Brazil focuses on football, played with equality and allowing everyone to live freely and
in peace (1970: 16). Another cordel from 1970 exclaims: “Long live the hero players / that give
to Brazil a celebration / the cup came to us / and our pleasure remains / we all tremble with
joy / both in city and in forest” (Borges, 1970: 3). Rural or urban, North and South, in cordel
literature on the World Cup, regions are invoked to emphasize unity.
In addition to these nonfictional narratives, there are more fantastical football stories
in cordel form. Similar to Futebol no inferno, the undated cordel pamphlet Um futibol na
cidade dos pássaros provides a detailed description of a football match between fictional
characters. These pamphlets mimic the play-by-play form, providing a detailed narrative of
a fictional match or tournament. This cordel pamphlet narrates the match between Esporte
Clube Sulista (Southern Sport Club) and Esporte Clube Sertão (Backlands Sport Club). The
geographic designations of “southern” and “backlands” hint at the social significance of such
a rivalry, but in their ambiguity, draw the reader into a scene that could just as easily unfold in
Arapongas, in Bahia, in the interior of São Paulo, or in the Amazon.
In Um futibol na cidade dos pássaros, each player is a different bird that the author,
Minelvino Francisco Silva (from the state of Bahia), carefully describes before narrating the
match. He also mentions females — a rare occurrence in football literature — devoting an
entire page to descriptions of which birds were kissing in the bleachers. Um futibol na cidade
dos pássaros is also unique in mentioning racial exclusion from sports. When a vulture arrives
and asks if it can join a team, he is not only rejected, but told that “blacks are left out.” Silva
736 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 68, p. 736-743, setembro-dezembro 2019
The Northeast Plays Football, Too: World Cup Soccer
and Regional Identity in the Brazilian Northeast
makes sure that the reader understands his suggestion, stating “the truth is that from sports
the vulture was always excluded”, surely making reference to the restrictions on Afro-Brazilian
players in soccer clubs in Brazil throughout the first half of the 20th century (Silva, n.d.: 2).2
In Silva’s poem, the team from the backlands (presumably the northeastern team) defeats
the southern team 2-0, but Silva is cautious and does not write fanfare into this victory,
referring to it as “lero-lero”, that is, as lacking importance (Silva, n.d.: 8). In the end, the
emphasis in fictional cordel poetry like Um futibol na cidade dos pássaros and O futebol no
inferno is on how the match is played, what happens in the bleachers, and who is and is not
included. It is how football is lived, not won, that matters.
Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 68, p. 737-743, setembro-dezembro 2019 737
Courtney Campbell
Conclusion
I n 1950, Recife newspapers pushed a regional agenda to bring a World Cup match to the
city. It was this regional agenda that motivated people to donate their own labor, whether
through meal preparation for workers or construction work at the stadium. Connecting pride
and hard work to a sense of northeasterness, showing what the Northeast was capable of, and
sacrificing for the region (while fearing exposing the region’s shortcomings or inferiority) —
these motivations were strong enough to fuel a campaign that brought Jules Rimet himself to
Recife for the World Cup event. Much like nationalism, this regionalist sentiment was strong
enough to unite people, but what motivated them to act was the possibility of an international
audience. Brazilians had already identified the region as a national problem or obstacle to
be overcome; the international event provided a new audience to whom northeasterners
could instead show the region’s attributes with pride. The success of the event was measured
through the presence and praise of its international visitors.
Newspapers pushed a northeastern agenda, vying for greater resources and participating
in a campaign to bring the World Cup to Recife. Their discourse, as such, was political,
contentious, and always indicated a third, unspoken element — that the possibility existed
that the Northeast would not participate in the nation, that it fall behind the nation not only in
terms of poverty, infant mortality, and literacy, but also in sports. The newspapers in this sense
were intentionally proving the worthiness of the Northeast, but their discourse also hinted,
implicitly, at fears of inferiority and alienation — elements of northeastern identity that proved
so pervasive that they have become essential to understanding the Brazilian Northeast.
738 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 68, p. 738-743, setembro-dezembro 2019
The Northeast Plays Football, Too: World Cup Soccer
and Regional Identity in the Brazilian Northeast
Regional art, produced later and often focused on Brazilian World Cup victories, employed
a different type of regional representation: it subtly showed that the Northeast, its culture, and
its folkloric symbols are particular, yet also belong to a world beyond regional borders. Regional
art rooted for the national selection, celebrated Brazilian victory, saw its players reflected in the
nation, and reflected national players in its art. Cordel literature on football rarely mentions the
Northeast. Instead, regional art provided a forum for stressing inclusion within the nation and
or expressing other national anxieties. Regional art, for example, focused on athletes’ and the
fans’ masculinity by mentioning women only as sexual partners and presented anxiety over
racial exclusion in football.
The cordel pamphlet with which this chapter opened, O futebol no inferno, like other
examples of cordel poetry, regional music, and art, is coded to show the reader that what
he or she is reading (or witnessing) is northeastern. It is written in cordel form, which is
strongly associated with the Northeast. Berimbau (the referee) is the name of the musical
instrument used to maintain rhythm in capoeira, also strongly associated with the Northeast
— particularly with the cities of Salvador and Recife. Leather hats are typical of cattle ranchers
in the backlands of the Northeast and versions of these were worn by the infamous bandit
Lampião and his followers, all of whom lived and died in the Northeast. Even Satan has his
northeastern side, appearing frequently as a main character in cordel literature and film.
Yet, each of these elements cannot be restricted to the Northeast. Cordel is also found in
the Amazon and in Rio de Janeiro, carried by northeastern migrants to these regions. Capoeira
is found in Rio de Janeiro and bandits, while from and acting within the Northeast, were found
in countries throughout the world. Cachaça is distilled in the Northeast, but also in Minas
Gerais, and Satan is featured in folkloric literature and music throughout the continent. In
this way, the cordel is coded for recognition as northeastern, but fits within national and even
international symbolic systems and debates.
To understand how art on World Cup football harmonizes with the nation without
eschewing its regional particularities, we need to let go of a regionally reifying singular
narrative, or, as in the case of Um futebol no inferno, we have to let go of an outcome. After
tying, Lampião finds every excuse to postpone the deciding match. Once it starts, the match
goes on for three days, but Satan decides to postpone finishing the match until Judgement
Day. Hell is relatively new and they still need to finish the floor. Selling a few more tickets might
just make that happen. In Futebol no inferno, everyone procrastinates and nobody wins. They
do not need to; it is how the game is played, lived, and talked about that matters. Similarly,
the importance of football within regional identity formation is not about what is defined,
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Courtney Campbell
narrated, argued, and concluded, but what debate, multivalence, and art it inspires. While
northeastern identity is defined by intentional, intellectual definitions, its character comes to
life in art, everyday discussions, and noisy debate.
Newspapers Consulted
A Tarde (Salvador)
Diário da Manhã (Recife)
Diário da Noite (Recife)
Diário de Pernambuco (Recife)
Folha da Manhã (Recife)
Folha do Povo (Recife)
Jornal Pequeno (Recife)
St. Louis Post-Dispatch (St. Louis)
Notes
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Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 68, p. 743-743, setembro-dezembro 2019 743
Contribuição especial
David WoodI*
DOI: http://dx.doi.org/10.1590/S2178-149420190003000010
i
Sections of this first appeared in the third chapter of my book Football and Literature in South America (New York/ Abing-
don: Routledge, 2017). I am grateful to Taylor and Francis for the opportunity to include these sections here.
I
Faculty of Arts and Humanities at the University of Sheffield. Reino Unido.
* David Wood is Past President of the Society for Latin American Studies (SLAS) and is the Director of International Affairs
for the Faculty of Arts and Humanities at the University of Sheffield. (david.wood@sheffield.ac.uk)
ORCID iD: http://orcid.org/0000-0003-1505-3562
Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 68, p. 744-764, setembro-dezembro 2019 744
The History of Football and Literature in Brazil (1908-1938)
Abstract
This article explores the emergence of literary texts in Brazil that centre on the relatively new practice of football in
the early decades of the 20th century. Primarily published in the cities of Rio de Janeiro and São Paulo, the nation’s
centres of football practice and literary production, these texts mediated competing visions of the place of football in
Brazilian society, and of Brazil itself. Through a combination of textual analysis and socio-political contextualisation,
we see how a number of the country’s key literary figures – male and female – drew on football to construct a sense
of nation for the new Republic, and their place within it.
Resumo
Este artigo explora o surgimento de textos literários no Brasil que se centram na prática relativamente nova do
futebol nas primeiras décadas do século XX. Publicados sobretudo no Rio de Janeiro e em São Paulo, os centros de
prática de futebol e da produção literário do país, esses textos mediaram visões conflitantes do lugar do futebol no
Brasil e do próprio país. Por meio de uma combinação de análise textual e contextualização sociopolítica, vemos
como algumas das principais figuras literárias do país – homens e mulheres – recorreram ao futebol para construir
um sentimento de nação para a nova República, e seu lugar dentro dela.
Resumen
Este artículo examina la aparición de textos literarios brasileños que enfocan la práctica relativamente nueva del
fútbol en las primeras décadas del siglo XX. Publicados sobre todo en Rio de Janeiro y São Paulo, los centros del
fútbol y de la producción literaria, estos textos mediaron visiones diferentes frente al lugar que debería ocupar el
fútbol en Brasil y del país mismo. A través de una combinación de análisis textual y contextualización sociopolítica,
vemos cómo algunos de los escritores nacionales más destacados –hombres y mujeres– se inspiraron en el fútbol
para construir una idea de lo nacional para la nueva República, y de su propio lugar dentro de él.
Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 68, p. 745-764, setembro-dezembro 2019 745
David Wood
I n comparison with some neighbouring countries in South America, football’s arrival in Brazil
in the final years of the 19th century was relatively late. The country’s size and its federal
structure, enshrined in the 1891 constitution, contribute to the contested origins of football in
Brazil, with clubs founded independently in the states of São Paulo, Rio de Janeiro, Rio Grande
do Sul, Recife, and Belo Horizonte between 1895 and 1904 (Alabarces, 2018: 43-45).
The fact that many of these clubs were founded by Brazilians who were returning
from schools in Europe where football was played ensured that the sport was rapidly and
enthusiastically adopted by local elites, in contrast to the situation in Argentina, Uruguay and
Peru, where football had arrived earlier but, until the 1890s, had tended to remain in clubs and
schools founded by and for British ex-patriate communities.
The first match in Rio to involve a team, comprised of members of the local elite,
took place in 1901 and attracted fewer spectators than the number of players on the field.
Nevertheless, a similar encounter that occurred five years later at the stadium of Fluminense
Football Club attracted around 1,500 spectators. From the city of São Paulo, Charles Miller
wrote to his former school in Southampton to tell them that by 1904 there were at least 60
football clubs where he lived. In addition, nearly 2,000 balls had been sold in the previous 12
months, and crowds of 2,000-3,000 people were the norm at league matches as non-whites
and working-class players began to enjoy the sport (Mason, 1995; Damo and Oliven, 2009;
Rosso, 2010; Goldblatt, 2014).
As elsewhere in Latin America, at the turn of the 20th century, physical exercise was
a subject of intense debate among medical, political, and intellectual circles in Brazil, and
the fact that the country had only become a Republic in 1889 gave particular urgency to
consideration of the ways in which individual and national bodies could be improved. Haberly
describes the period between 1890 and 1930 as “perhaps the most difficult of all for educated
Brazilians interested in their nation and its future” (1983: 123), referring to the country’s
fundamental problems, blamed primarily on slavery and the Portuguese monarchy, which
remained unresolved.
As Skidmore and Smith noted, “Neither the abolition of slavery [which definitively ended
in 1888] nor the overthrow of the Empire in themselves brought structural change in Brazil“
(1989: 148), and in the absence of a desire to bring about social and political restructuring,
physical exercise and other corporal practices became a key way of addressing shortcomings
in the body of the nation.
By the first decade of the 20th century, in keeping with concepts at the heart of positivism,
influential figures in medical-intellectual debates were encouraging the new Republican state
746 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 68, p. 746-764, setembro-dezembro 2019
The History of Football and Literature in Brazil (1908-1938)
to introduce physical exercise to schools and military institutions to improve the physical
health of individuals (Góis, 2014) and, thereby, of the nation. One such figure was the writer
and physician Afrânio Peixoto, whose opinion carried particular weight: Peixoto had been
Public Health Inspector in Rio de Janeiro (1902-04) before being elected to the Brazilian
Academy of Letters in 1910.
He was subsequently appointed Director of the educational institution Escola Normal do
Rio de Janeiro (1915) and, a year later, became Director of Public Education in what was at the
time the country’s capital. Peixoto publicly expressed his enthusiasm for football in a speech in
1918, where he made it clear that he saw o esporte bretão as a means of combining physical
and moral benefits for the nation’s inhabitants: “Esse jogo de foot-ball, esses desportos que
dão saúde e força, ensinam a disciplina e a ordem, fazem a cooperação e a solidaridade, me
enternecem, porque são grandes escolas onde está se refazendo o caráter do Brasil” (cited in
Rosso, 2010: 48).
In the same year as Peixoto made his speech on the benefits of football, two texts
celebrated as the first examples of Latin American football literature were published: Horacio
Quiroga’s short story “Juan Polti, half-back”appeared in the Buenos Aires magazine Atlántida
on May 16, 1918; and Juan Parra del Riego’s poem “Elogio lírico del fútbol”was published
in the journal La Semana (Arequipa, Peru) on November 14, 1918, and also featured in La
Revista Nacional (Montevideo) in August, 1919.
These were not, in fact, the first examples of football literature in Spanish-speaking Latin
America. In 1899, a poem from Peru had a good claim to that honour (Wood, 2019: 9-11),
and the enthusiastic acceptance of football in Brazil by local elites from the century had led
to several examples of football literature in Rio de Janeiro before either of the 1918 texts had
been written.
The first work of Brazilian literature to include football as a significant feature is Henrique
Maximiano Coelho Neto’s 1908 novel Esphinge, which centres on the residents of Miss
Barkley’s boarding house in the Rio de Janeiro district of Paysandú. One of the boarders is
James Marian, a wealthy young English immigrant whose muscular physique contrasts with
his delicate features, as suggested by the combination of a male first name and female second
name; indeed, it is the lack of any trace of masculinity in his face that gives rise to the title of
the novel, as other – Brazilian – residents of the boarding house conclude that he has a “rosto
de esphinge”(p.29).
Among the habits that lead to him being considered eccentric is his Sunday routine
of leaving the house dressed in white to play tennis or football, and notions of sport and
Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 68, p. 747-764, setembro-dezembro 2019 747
David Wood
masculinity come together after a football match at Fluminense’s stadium, after a local who
mocked Marian’s feminine appearance was thrown against a wall. Later that evening, Marian’s
lack of social graces provokes outraged comments from his fellow lodgers, who feel that his
treatment of them would be appropriate if dealing with Africans, but not with members of
Rio’s social elites. The representation of James Marian reveals the tensions between physicality
and the civilised values that modern European sports were felt to exemplify, as well as the
desire to adapt football to Brazilian norms of behaviour that members of local elites sought to
develop as the basis for the young Republic.
Just six years after Coelho Neto had included the English football player James Marian in
his novel Esphinge (Sphinx), and four years before Quiroga and Parra del Riego published their
celebrated football works, the first Brazilian literary text devoted entirely to football appeared
in the form of Ivan Ney’s enthusiastic poem “Schootando… (Ás cariocas footballers)”.1
[Shooting… (To Rio de Janeiro’s Football Players)]. Published on May 23, 1914 in the first
number of the short-lived Rio journal O Football: Semanario dos Sports, “Schootando”echoes
the continent’s first football poem, published in Lima’s El Sport in 1899, both in the nature of
its publication outlet and in its celebration of the value of the team.
However, through the use of the neologism in the poem’s title and by dedicating the
piece to Rio’s footballers, Ney (who played for Olympico F.C.) attests to the rapid appropriation
of the game among the citizens of what was then the capital city and to the incipient
“Brazilianisation”of the sport’s lexicon. The poem, which consists of seven stanzas of four
verses each, is written from the perspective of one of the players, who expresses the team
through the use of a first-person plural, and at its heart is an acute awareness of the interplay
between the players on the pitch and the passionate support of the watching fans. Notable
among the crowd are young women, and “seus olhos, brejeiros... / Torcem por nós com
fervor!” (their brazen eyes…/ Give us their fervent support!) encouraging the players to
perform at their best. The poem opens and closes by affirming that football “É elegante e é
chic/ É distincto, é de escól” (It’s elegant and it’s chic/ It’s distinguished, it’s the best), part of a
wider campaign to ensure that Brazil benefited from the sport’s perceived physical and moral
attributes.
In marked counterpoint to Ney’s highly positive representation of football stands the
1916 poem “Match de Football”by Apparício Fernando de Brinkerhoff Torelly. Also known as
Apporelly, and later as the self-appointed Baron of Itararé, Torrelly was a political satirist in Rio
during the 1920s and 1930s for the newspapers O Globo and A Manha, where he published
humorous sonnets that made fun of the establishment. Written when he was a medical
748 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 68, p. 748-764, setembro-dezembro 2019
The History of Football and Literature in Brazil (1908-1938)
student, “Match de Football”provides ample evidence of the use of literature to deliver social
satire as its eight rhyming couplets recount the action of a game on a lovely day that is ruined
by violence both on the pitch and in the crowd.
A player kicks the ball “feroz”and when it knocks off the top hat of someone in the
crowd the contrast with Ney’s text and the simultaneous juxtaposition between barbarism
and civilisation is established. However, in a twist on the conventional presentation of these
traditional poles of thought in Latin American intellectual circles, it is the modern and urban
European practice that is barbarous in its assault on a good Brazilian family man. In an
inversion of the vision for the civilising role of football on Brazilian society espoused by Coelho
Neto and others, here it is the violence of the sport that is contagious, spreading to “a louca
multidão, bruta e malcriada” (the mad crowd, brutish and rude).
Following further people being knocked to the ground, and booing from the crowd, the
poet concludes in the penultimate couplet that “Parecia aquilo, em meu pensar profundo,/
Vinte e duas furias, perseguindo o mundo” (All of this seemed, in my considered opinion,/
Twenty-two furies, chasing the world). The final two lines highlight the ultimate futility of so
much running around and violence: “E, depois da hora e meia de combate,/ o juiz apitou./ O
jogo estava empate” (And after an hour and a half of fighting,/ the referee blew his whistle./
The game was a draw). Despite the support for football to be a key means of improving the
nation among many members of Brazil’s intellectual elites of the time, the sport also had its
opponents, perhaps most notably in the figure of Lima Barreto, whose debates with Coelho
Neto are fully explored by Mauro Rosso (2010) as Um Fla-Flu literário.
C oelho Neto was one of the leading figures in Rio’s literary circles during the first two
decades of the 20th century, his prolific work characterised by a highly refined and
ornate style in which references to classical mythology and European ideas were to the fore.
After becoming a member of Fluminense Football Club in 1912, when it functioned
as a social club for local elites, Coelho Neto effectively emerged as the club’s public orator
and brought together nation and football in the speech he gave to open the 1919 South
American Championship, for which all matches were played at Fluminense’s new stadium in
the district of Laranjeiras, completed in 1917. Following his public prominence at the 1919
South American Championships, Coelho Neto was the figurehead for a group of writers
and intellectuals who embraced the civilising function of football, and in 1920 he became
director-editor of Athletica, a new magazine that defended eugenics and the moral benefits of
practising football and other sports.
Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 68, p. 749-764, setembro-dezembro 2019 749
David Wood
By contrast, mulatto novelist and journalist Afonso Henriques de Lima Barreto was firmly
opposed to the influence of foreign practices and ideologies in the newly republican Brazil. This
included football, which he denounced as a violent, divisive and racist practice, and the sport
became a convenient battleground for their conflicting political and literary ideologies through
a series of articles and letters in Rio de Janeiro’s printed media (Rosso, 2010). Campaigning
against football was at the heart of Lima Barreto’s journalistic essays and articles from 1919
onwards, but he also included it as the feature that drove the plot in several of his short stories.
“A Biblioteca” (The Library) (Careta, 13 March 1920) tells the story of a man whose
son’s fanaticism for football and inability to study leads him in desperation to burn his
extensive library, while “Quase ela deu o ‘sim’; mas...” (She nearly said “yes”; but…) (Careta,
29 October 1919) has as its protagonist the lazy and football-mad João Cazu, “Um moço
suburubano, forte e saudável, mas pouco ativo e amigo do trabalho” (A suburban youth,
strong and healthy, but not very active and no friend of work) who spends most of the day
“com outros companheiros, em dar loucos pontapés numa bola, tendo por arena um terreno
baldio das vizinhanças da residencia dele, ou melhor: dos seus tios e padrinhos” (with other
friends, madly kicking a ball, using for a pitch a patch of wasteland in the vicinity of his home,
or rather that of his uncle and aunt).
The negative portrayal of a football player speaks for itself, but it is worth noting that
the story apparently takes as suburban normality the presence of rough pitches and enough
players among the working classes for spontaneous daily matches. On encountering a young
widow who has her own house (and two young children) Cazu decides to marry her to ensure
his future, and to allow him to move out from his straitened circumstances with his uncle and
aunt. Ultimately, however, his plan is frustrated because of his lack of income and unwillingness
to work, epitomised by his love for football.
Representations of football players as being lazy, unintelligent, and unproductive became
a recurrent theme in Lima Barreto’s texts, exemplified by his final story “Herói!”, published
shortly after his death at the age of 41 (Careta, November 18, 1922). The story features two
friends, one a doctor and the other an engineer, both with sons for whom they struggle to find
gainful employment. The doctor says of his oldest son that “não dera para nada. Tudo estudara
e nada aprendera” (he didn’t come to anything. He studied everything but learnt nothing) and
is frustrated by the fact that he earns no income and just wants to play football.
The engineer reveals that his son is similarly useless and eventually secures him a job as
a guard in the docks. When the men meet some considerable time later, one son has moved
up to the position of clerk in the docks and the other has become a national hero, having
750 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 68, p. 750-764, setembro-dezembro 2019
The History of Football and Literature in Brazil (1908-1938)
been in the team that won the South American Championships. The story closes with the
doctor proclaiming “E dizer que ele não dava para nada!” (And to think I said he was good
for nothing!). For Lima Barreto, indignant at the public acclaim for football players, the story’s
closing words are charged with irony as the doctor fails to realise that success in football
confirms – rather than contradicts – his sense that footballers are good-for-nothings.
By taking a doctor and engineer as the protagonists of the story, Lima Barreto gives
expression to his positivist vision of Brazilian society, in which science and technology
will enable the country to develop. At the same time, the story is given social and political
immediacy via Brazil’s triumph in the 1922 South American Championship, hosted again at
Fluminense’s stadium in Laranjeiras and won by the host nation in the month prior to the
publication of “Herói!”. The staging of the 1922 tournament in Rio de Janeiro was part of
the country’s celebrations of the centenary of Independence from Portugal, a clear marker of
football’s position as an element of Brazilian national identity for local and regional audiences,
a process to which Lima Barreto was vehemently opposed.
Rosso considers “Herói!” to be emblematic of Lima Barreto’s criticism of football for
its failure to cultivate the intellectual dimension of the nation, as well as its manifestation of
institutional racism that prevented non-whites from finding a place in national society (2010:
192-3). Almost a century later, it is clear that the issues that lay at the heart of the very public
debates about football between Coelho Neto and Lima Barreto (violence, national identity,
racism, corruption, and relations with Europe) have continued to shape discourses around
the sport in Brazil since that time. Things have undoubtedly changed significantly in terms of
how football is perceived, but the series of texts discussed above marked a decisive moment
in football’s emergence as a symbol, as a means of addressing broader political and social
concerns through literary texts and through written narratives more widely.
The deaths of Lima Barreto and Coelho Neto’s son brought the debate to an abrupt end
in Rio de Janeiro in 1922, but not before the two protagonists had constructed a series of
foundational oppositions that would underpin discussion of the subject to the present day.
I n the year of Lima Barreto’s death, inspired by visits to watch her husband Marcos de Men-
donça play for the Fluminense Football Club and supported by Coelho Neto, Anna Amélia
de Queiroz Carneiro de Mendonça was the first woman to produce a work of football literatu-
re, not only in Brazil but anywhere in the world. Women formed an enthusiastic and important
part of match-day crowds at this time (Bocketti, 2016: 186-200), as is evident from Ivan Ney’s
Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 68, p. 751-764, setembro-dezembro 2019 751
David Wood
poem “Schootando…”, discussed above, and from an article by João do Rio, who described
“moças de vestidos claros perfumam o ambiente com o seu encanto” (young women in pale
dresses perfume the atmosphere with their charm) in a report on his visit to Fluminense’s
stadium in 1905 (Rio, 1905).
Born in Rio de Janeiro, into a family of considerable means, Anna Amélia de Queiroz
(1896-1971) was privately educated in Minas Gerais by a series of European tutors after her
father, a pioneer of Brazil’s steel industry, moved there in 1897 to establish a factory. Fluent
in English, French, and German, she wrote poetry from an early age and published her first
collection in 1911, later becoming renowned as a fine literary translator and a leading figure
in Brazil’s early feminism. Her interest in football was evident from her twelfth birthday, for
which she requested a ball and boots as a present, and she took an active role in organising
matches with the workers in her father’s factory, having translated a rule book from English.
After the family moved back to Rio her interest in football led to her going to watch
Fluminense, the club of Rio’s elites, where in 1913 she met Marcos de Mendonça, a figura
“emblemática do período áureo do amadorismo elitista” (the emblematic figure of the golden
age of elite amateurism) (Wisnik, 2008: 212) and “o primeiro ídolo do futebol brasileiro,
[…] a própria encarnação do ideal grego do intelectual-atleta” (’he first idol of Brazilian
football, the very incarnation of the Greek ideal of an athlete-intellectual’) (Coutinho, 1980:
115-6). Mendonça merited such acclaim: he won a tri-campeonato as a Fluminense player
(1917-1919) and was the first goalkeeper for the Brazilian national team, winning the South
American Championship in 1919 and 1922, before becoming a respected historian.
Anna Amélia de Queiroz’s sonnet “O salto” may not be the first text devoted to football
in Brazil, but it can be said to be the first self-consciously literary manifestation of the sport in
the country, drawing on references to classical antiquity and clearly marked by European literary
influences. By the time “O Salto” was published, football was a regular feature of newspaper
reports and chronicles written by Lima Barreto and Coelho Neto, and had been celebrated in
songs such as Pixinguinha’s “Um zero” that marked Brazil’s triumph in the 1919 Copa America.
In short, football was an increasingly visible part of the cultural landscape in Rio de Janeiro
(and São Paulo, as will be discussed below) by 1922, though this does not make it any less
noteworthy that the sport should be brought into the realm of literary creativity by a female
author, whose personal enthusiasm for the game would appear to have been the decisive
factor. “O Salto” adopts the form of a sonnet, and while it may be tempting to attribute this to
Queiroz’s experiences as a translator of Shakespeare (who, apart from his sonnets, mentions
football in both King Lear and Comedy of Errors), the poem does not adhere to the conventions
of European traditions of the sonnet in terms of verse length or rhyme patterns.
752 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 68, p. 752-764, setembro-dezembro 2019
The History of Football and Literature in Brazil (1908-1938)
I n São Paulo, the first Brazilian city to witness the arrival and development of football, the
1920s were also decisive in the relationship between football and literature, although the
writer Monteiro Lobato (subsequently owner and director of the influential journal Revista do
Brasil) was an enthusiastic player and advocate of the game as early as 1904 (Rosso, 2010:
Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 68, p. 753-764, setembro-dezembro 2019 753
David Wood
209). The staging of São Paulo’s 1922 Week of Modern Art, another event that celebrated the
centenary of Independence from Portugal and has proved to be a touchstone for subsequent
cultural debates and practices in Brazil, marked a conscious rupture with the country’s conser-
vative past that was based on the continuation of elitist colonial structures and values.
As a cultural revolution against the influence of neo-classical European models, Brazil’s
Modernists sought inspiration instead in primitivism and the rapid rise of urbanisation,
industrialisation and technology that were especially evident in São Paulo at the time. Mário de
Andrade, one of the leading figures of the 1922 Modern Art Week, published in the same year
the founding text of Brazilian Modernism. In his epic poem Paulicéia Desvairada (Hallucinated
São Paulo City), which consists of a series of scenes of daily life in the city, football is the
subject of “Domingo” (Sunday):”Hoje quem joga? O Paulistano./ Para o Jardim América das
rosas e dos ponta-pés!/ Friedenreich fez gol! Corner! Que juiz!/ Gostar de Bianco? Adoro.
Qual Bartô/ E o meu xará maravilhoso!/ – Futilidade, civilização...” (Who is playing today?
Paulistano./ Let’s go to America Gardens with its roses and kicks!/ Friedenreich scored a goal!
Corner! What a referee!/ Do you like Bianco? I love him. Which Bartô/ He is my favourite
namesake!/ Futility, civilisation…).
Football is presented as an established feature of the weekly routine, but despite
admiration of the star players of the day, including the poet’s namesake Mário Andrada, the
game’s European origins and its associations with local elites meant that it was not embraced
as part of the Modernist cause for cultural regeneration and a new national identity. Indeed,
by concluding the description of the match with the leitmotif”Futilidade, civilização…” de
Andrade marks football as another pointless frivolity imported from Europe in the supposed
search for civilising influences in Republican Brazil, even if the presence of the mulatto
Friedenreich hints at the racial democracy that would be championed through Gilberto Freyre’s
notion of ”futebol mulato” from 1938.
Mário de Andrade incorporated brief descriptions of football in other poems of the
period, notably in the 1926 collection O Losango Cáqui (The Khaki Lozenge), in which the poet
celebrates victory in a match against a team from Rio de Janeiro amid the opening lines of the
first poem. In poem XI football’s violent practice is highlighted via a reference to the sergeant
on the pitch, while the flow of attack and defence is depicted in terms of a battle between
Paulistas and Uruguayans, in which the former “Vencemos facilmente/ como sempre” (We win
easily, as always).
In addition to noting the use of football as a proxy for national sentiment and military
conflict, it is interesting to note the location of this football poem as number eleven in the
754 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 68, p. 754-764, setembro-dezembro 2019
The History of Football and Literature in Brazil (1908-1938)
collection: this was similarly the case with “Domingo” in Paulicéia Desvairada and exemplifies
the Modernists’ search for poetic expression in unconventional sources of inspiration as well
as their desire to experiment with poetic structures. Also in São Paulo, Oswald de Andrade – no
relation to Mário but another leading figure among the Modernists who had organised the
1922 Modern Art Week – published in 1924 “Bungalow das rosas e dos pontapés” (Bungalow
of roses and kicks), the title echoing the words of “Domingo” cited above.
This short poem depicts football as part of the cosmopolitan lifestyle of the São Paulo’s
elites, alongside electric trams, tennis, and afternoon entertainments, while the title’s inclusion
of bungalow, roses, and kicks pokes fun at the incongruous coming together of elegance and
violence through a practice that was still characterised by its use of anglicisms. Author of the
hugely influential 1924 Manifesto Pau-Brasil (Brazil-Wood Manifesto) and 1928 Manifesto
Antropófago, Oswald de Andrade sought to free Brazil from its dependence on European
cultural models and to project a new basis for the country’s national identity via a series of
rapid snapshots of everyday life. In 1925 he published Pau-Brasil, a collection of poems that
brought to literary form the principles of the previous year’s Manifesto, including a defence of
popular cultures that had previously been shunned.
Football is the subject of “E a Europa curvou-se ante o Brasil” (Europe Bowed Before
Brazil), a visual poem that presents the results of matches from Paulistano’s tour of Europe in
March-April 1925 (the first ever by a Brazilian team), during which they lost just one game. The
sole defeat suffered by Paulistano, the amateur club of São Paulo’s elites, is described as “A
injustiça de Cette” (The Injustice of Sète), while the final match of the tour brought a resounding
6-0 victory against a combined Portuguese team in Lisbon, a result that was granted particular
significance in the Modernists’ attempts to forge a Brazilian culture independent of influences
from the former colonial power.
The title of the poem, which inverts the traditional relationship of subservient deference
between Brazil and Europe, foreshadows the manner in which Brazil’s success in the
international football arena could constitute a means through which the country might
transcend what Nelson Rodrigues would later describe as “o complexo vira-latas” (stray dog
complex) (Rodrigues, 1958). At the same time, it revealed that figures such as the mixed-race
Friedenreich (who scored eleven goals on the tour) had the potential to enjoy agency and
acclaim as national heroes, something previously afforded only to those from social elites.
Another modernist writer, Antônio de Alcântara Machado, published the short story
“Corinthians (2) vs Palestra (1)” in his collection Brás, Bexiga e Barra Funda (1927), which
focused on the daily lives and experiences of Italian immigrant communities in the São Paulo
Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 68, p. 755-764, setembro-dezembro 2019 755
David Wood
districts that gave the work its name. Football is also present in the story “Gaetaninho”,
in which a game on the street leads to the death of the protagonist, run over by a tram,
but is at the heart of “Corinthians (2) vs Palestra (1)”, which centres on Miquelina, a very
knowledgeable fan whose former boyfriend Biagio plays for Corinthians and whose attentions
have switched to Rocco, who plays for Palestra.2
Alongside these players, mentions of Heitor and Neco, early idols of Palestra and
Corinthians respectively, lend the story an air of undisputable realism in keeping with the
desire to engage literary production with social issues of the day. This is enhanced by further
references to contemporary football reality, such as describing Corinthians as “campeão do
Centenário” in allusion to their triumph in the São Paulo Championship of 1922 and their
subsequent victory over América (Rio’s champions) to be declared Brazilian champions of that
year. Alcântara Machado’s familiarity with football in São Paulo is evident in the details he
provides, and through a narrative that largely takes the form of a match commentary, combined
with comments from an enthusiastic working-class crowd, the portrayal of the action from the
stands effectively captures the excitement of a derby match and simultaneously displays the
Modernists’ penchant for unorthodox modes of expression.
Miquelina’s pleas for Rocco to kick Biagio, which lead to the penalty that allows
Corinthians to score a last-minute winner, together with the insults that rain from the crowd
onto players and referee alike, serve only to reinforce depictions by Lima Barreto and others
of football as a violent and divisive sport. While the derby match emphasises the passions of
the spectators, it also demonstrates football’s capacity to bring together a crowd of 20,000,
in which the presence of men and women, whites, blacks, and mulattos, as well as Brazilians
of Italian, German, and Portuguese descent, symbolises a cultural practice with which all
Brazilians can uniquely identify.
In 1928, São Paulo Modernists published two works that sought to draw on a combination
of historical, anthropological and folkloric sources to re-invent Brazil as a fusion of indigenous,
European and African influences. Mário de Andrade’s novel Macunaíma is a foundational text
of modern Brazilian literature that follows the journey of the eponymous protagonist from
the jungle of his birth to the modern cities of twentieth-century Brazil, defeating along the
way a European giant. After arriving in a São Paulo of radios, motorcycles, and telephones,
Macunaíma invents football: in revenge for jokes he plays on his brothers Maanape and Jiguê,
involving bugs and weevils that bite Maanape’s tongue and suck Jiguê’s blood respectively,
they make a brick into a ball of hard leather, which Maanape kicks at Macunaíma, whose nose
is crushed.
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The History of Football and Literature in Brazil (1908-1938)
He in turn kicks the ball far away but the three incidents have far-reaching consequences
for the nation: “O bichincho caiu em Campinas. A tatorana caiu por aí. A bola caiu no campo.
E foi assim que Maanape inventou o bicho-do-café, Jiguê a lagarta-rosada e Macunaíma
o futebol, três pragas” (The bug fell in Campinas. The caterpillar fell somewhere. The ball
fell on the [football] field. And that was how Maanape invented the coffee-bug, Jiguê the
cotton weevil and Macunaíma football, three plagues) (p. 64-5). The plague of football clearly
spreads quickly, for in the following chapter, in which the hero travels to Rio de Janeiro, among
those who attend an Afro-Brazilian magic-religious ceremony are “Os ladrões os senadores os
jecas os negros as senhoras os futebóleres” (Thieves and senators and hicks and blacks and
women and footballers) (p.79-80). Such scenes indicate that football was commonly found
in the country’s major cities, and that those who played it were part of the national culture
that Macunaíma sought to construct. At the same time, Macunaíma’s supposed creation of
football in the novel represents perhaps the first explicit example of the “invented tradition”
(Hobsbawm and Ranger, 1983) of the sport as part of Brazil’s cultural landscape.
By contrast, Cassiano Ricardo Leite’s epic poem Martim Cererê: O Brasil dos meninos,
dos poetas e dos hérois, also published in 1928 as part of the Modernists’ nation-building
endeavours, portrays football in a far more positive light, notably in the section “Martim
Cererê – Jogador de Futebol”. In this representation of Brazil, which draws on a blend of
historical and folkloric sources as part of efforts to give greater prominence to popular culture,
a beautiful indigenous woman is courted by a Portuguese sailor, but before she will marry him,
she insists that he brings to Brazil the dark of night in the form of African slaves.
In the Brazil that emerges from these beginnings, football is the favourite pastime of
Martim Cererê as a young urchin, playing in the streets by day and dreaming about the game
at night, imagining the full moon to be God’s ball kicked across the sky, to be replaced by a red
ball kicked from behind the hill in the morning. Such metaphors contribute to Ricardo Leite’s
depiction of football in what might be considered conventionally poetic terms, and for poet
and protagonist alike the sport provides a route to intellectual creativity as well as physical
practice. Playing football is not, however, without its problems, and almost all of the windows
on the street are broken as a result of Martim’s shots, resulting in his ball being confiscated by
a policeman who thinks that boys should be in school.
Positivist ideals of public education were well established – at least in principle – by the
end of the 1920s, but there is implicit criticism of the restrictive and over-bearing presence of
state institutions, here represented by a policeman who is “o homem mais barrigudo deste
mundo” (the man with the biggest belly in the world). The juxtaposition of the athletic young
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David Wood
footballer and the obese public official also highlights football’s capacity to achieve the public
health goals championed by leading medical figures and widely embraced in the early decades
of the century through the introduction of physical exercises to the schools recommended by
the policeman. Moreover, the fact that Martim is described as wearing a green and yellow
shirt as he plays football establishes a further symbolic connection between the sport and
the concept of the more widely inclusive Brazil whose roots the Modernists sought to create.
T he rapid rise of football literature in the 1920s declined in the 1930s as new electronic
technologies began to mediate football for increasingly large audiences, simultaneously
moving away from the elite domination of the sport that had characterised the early years of
its practice in Brazil. O Campeão de futebol (The Football Champion), starring Arthur Frieden-
reich, was released in 1931, the first of many films to incorporate football, and the same year
witnessed the first live radio commentary on a football match, via São Paulo’s Rádio Educado-
ra Paulista (Goldblatt, 2014: 46).
Although the numbers of football texts published by the country’s leading writers may
have decreased in the 1930s in comparison to the 1920s, it was during this decade that
mass media enabled football to become more closely connected to notions of national
identity, most notably around the 1938 World Cup in France, an event that constituted “a
base simbólica do futebol brasileiro” (the symbolic foundation of Brazilian football) (Helal,
2018: 1). Brazil’s third place at the tournament represented the country’s best performance
on the global stage and the performances of afro-Brazilian stars Leônidas (the tournament’s
top scorer) and Domingos da Guia in particular formed the basis for the development of
Gilberto Freyre’s concept of futebol mulato (mulatto football) as a defining mode of national
identity (Freyre, 1938; Helal et al, 2001; Maranhão, 2006; Kittleson, 2014).
Following the publication of Anna Amélia de Queiroz’s poem “O salto” in 1922, women’s
participation as football players was documented from the early 1930s (Mourão and Morel,
2005; Goellner, 2005), but there were no further literary representations of football by women
until Gilka Machado’s “Aos Heróis do Futebol Brasileiro” (To the Heroes of Brazilian Football),
published in celebration of the 1938 World Cup team. Included in the anthology Sublimação
(Machado, 1938), “Aos Heróis do Futebol Brasileiro” is a poem of 53 free verses arranged into
seven stanzas of irregular length, the lack of conventional poetic structure suggestive of the
ways in which the poetess was breaking from the conservative social norms of elite society.
758 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 68, p. 758-764, setembro-dezembro 2019
The History of Football and Literature in Brazil (1908-1938)
This may be seen particularly to be the case in the expression of female eroticism evident
in her previous works, as it had been in de Queiroz’s “O salto”. Indeed, both Machado and de
Queiroz were early feminists, active in efforts to secure women’s rights, and in 1910 Machado
was the co-founder of the Partido Republicano Feminino in Rio de Janeiro, which campaigned
for women’s suffrage, which was eventually introduced in 1932.
The poem opens in the first person, echoing the intimacy of Machado’s earlier work, but
here the purpose is not to explore the self, but rather to salute the “heróis do dia” (heroes of
the day) who, “escrevendo com os pés” (writing with their feet) have created “uma epopéia
internacional!” (an international epic!). In this first stanza, then, the poet establishes a
distance between herself and the heroic football players, whose creativity is recognised as
a “linguagem muda” (silent language) that elevates them to the status of Greek warriors
or Olympians. The second stanza develops these notions, but extends her admiration for
the players to the nation as a whole, and while the Brazilians’ souls are physically distant
from the players, they overcome the geographical separation to join them in their footballing
endeavours for the glory of the nation.
The distance is highlighted stylistically as the Brazilian public is referred to in the third
person, while the players are addressed in second person, and “distantes” stands out as the
only word on the second line of the stanza. The rise of radio as a key means of narrating
football matches to local audiences has already been mentioned, but for the World Cup of
1938 match commentaries were relayed direct from France for the Brazilian public to hear via
speakers strategically installed in public places (Wisnik, 2008: 184). By referring to the manner
in which Brazilians are able to join the players as part of an imagined community and share in
their exploits in France, Machado appears to be implicitly acknowledging the convergence of
politics, football, and radio as a means of securing national cohesion.
In the third stanza, we find hints of the poet’s eroticism as she celebrates the “penetração
dos gols de Leônidas” (penetration of Leônidas’s goals), which cannot be matched by any
work of art or science and generate an emotional attachment from people around the world.
Celebrating the exploits of a black player, not to mention investing him with an erotic charge,
is in marked contrast to de Queiroz’s “O salto”, and Machado here reflects the changes that
had taken place in Brazilian football during the intervening years. In contrast to the team that
represented Brazil at the 1930 World Cup, the seleção that travelled to represent the nation
at the 1938 World Cup contained several black players, with striker Leônidas and central
defender Domingos da Guia widely acknowledged as the two stars of the team.
In the penultimate stanza, Machado foregrounds the question of skin colour as she
affirms that “qualquer raça” (any race), even those far removed from Brazil’s character, can
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David Wood
understand the sporting expression of multiple versions of Leônidas and Domingos, whose
names are both given in the plural. The stanza closes by pointing out how such players bring to
the attention of foreigners “a milagrosa realidade / que é o homem do Brasil” (the miraculous
reality/ that is the Brazilian man), the synecdoche making it clear that it is the two black
footballers who are at the heart of this new sense of national pride on the international stage.
“Novo” (new) is highlighted at the end of the fourth stanza, where it has been separated
from the accompanying “povo” (people), and in the context of the period associations are
inevitable with the dictatorial Estado Novo of President Vargas, whose daughter was officially
named “madrina” (godmother) of the World Cup team. To read Machado’s poem as an
endorsement of the Vargas regime would be misguided, however, and the “new” should
instead be understood in the context of the influential writing of Gilberto Freyre, whose
re-evaluation of the contribution of black culture to Brazil marked a turning point towards
more positive views. Machado’s poetics appear to draw directly on Freyre’s discourse of
futebol mulato in the celebration of the players’ “improvisos/ em vôos e saltos,/ ó bailarinos
espontáneos” (improvisations/ in flights and leaps/ of spontaneous dancers) before asking the
“atletas franzinos” (skinny athletes) to transform themselves into giants on the pitch through
their “astúcia e audácia” (cunning and bravery).
At a structural level the poem practices such spontaneity and improvisation through
its use of free verse, suggesting that the footballers’ poetics have an influence that extends
well beyond the field of play into the fields of sociology, politics and literary aesthetics alike.
Moreover, the inclusion of Domingos alongside Leônidas ensures that attacking creativity is
balanced with defensive solidity and organisation, with “tenacidade e energía” (tenacity and
energy), thus avoiding the stereotypical association of afro-Brazilians with flair and natural
ability and encouraging readers to value equally the contributions of all.
The poem closes with an image of the players creating “um debuxo maravilhoso/ do
nosso desconhecido país” (a wonderful drawing/ of our unknown country), of football putting
the country on the map thanks to the exploits of the primarily black team and its newly
described style of play. While the poem opens with the poetic “I” saluting the players in the
second person, and the Brazilian public presented in the third person, the “nosso” of the
closing line sees all of these elements converge into a shared plurality made possible through
the success of the football team.
Also of note is that, as a woman involved in radical politics of the era, Machado feels
football to be an appropriate vehicle for the exploration of social issues, and that she includes
herself among the national community that is created around it; indeed, with Aos heróis do
760 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 68, p. 760-764, setembro-dezembro 2019
The History of Football and Literature in Brazil (1908-1938)
futebol brasileiro she plays a central role in creating this nation and in redeploying Freyre’s
discourse to new ends.
Ironically, however, just three years later such possibilities ended as women’s football
was banned by the Estado Novo’s National Sports Council, an act that effectively closed the
door to women’s engagement with the sport for several decades. Similarly, the optimism
expressed by Freyre and Machado around the contribution of afro-Brazilians to the nation,
further developed in Mario Filho’s O Negro no Futebol Brasileiro (Blacks in Brazilian Football)
(Filho, 1947), crumbled with the Maracanaço, the country’s loss to Uruguay in the 1950 World
Cup final, for which Barbosa, Bigode and Juvenal (the team’s black goalkeeper and defenders)
became scapegoats.
Conclusions
A s can be appreciated from the numerous examples discussed above, Brazilian authors
have drawn on football for over a century to explore national issues and the nation’s
sense of self. In the first period of Brazilian football literature, which developed rapidly in the
early 1920s, several of the country’s most influential authors saw football to be a foreign and
decidedly un-Brazilian practice to which they were strongly opposed. At the same time, writers
who championed football as a model of civilising and gentlemanly European modernity, a
means of combating the supposed degeneracy of miscegenation and improving the physical
condition of the nation, became disillusioned with the sport as it was rapidly appropriated by
the working classes and underwent growing professionalization of players through the 1920s.
Following the “Semana de Arte Moderna” organized by the São Paulo Modernists in
1922, several of the city’s leading literary figures drew on football in their literary creations
as they sought to develop a new model of brasilidade, but on the whole they failed to see
it as an example of the cannibalistic culture that was imagined in Oswald de Andrade’s
Manifesto Antropófago. Instead, Wisnik asserts that it was “o futebol que se formou fora das
agremiações, ou tangente a elas, que se tornou o laboratório informal da apropriação original e
antropofágica do jogo inglês” (it was the football created outside clubs, or tangential to them,
that became the informal laboratory for the original and anthropophagous appropriation of
the English game) (2008: 207).
The reading of Martim Cererê undertaken above certainly suggests that this early
Modernist text conformed to such practice and this work, together with the others discussed
here, served to embed football as a distinctively Brazilian cultural practice as local elites and
Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 68, p. 761-764, setembro-dezembro 2019 761
David Wood
intellectuals sought to create a new sense of nationhood. Added to this was the manner
in which football crystallised contemporary debates around modernity, social Darwinism,
eugenics, public health, and physical education. The opposing sides taken in these debates
by Coelho Neto and Lima Barreto in Rio de Janeiro around 1920 established several of the
parameters within which discourses around football would be expressed over the following
decade (and beyond).
However, the São Paulo Modernists brought a significant new creative dimension
through their self-consciously innovative practices in the 1920s, establishing in the process
a connection between football and a newly imagined conception of the nation that drew on
popular practices as the basis of Brazil. The two football poems written by women are isolated
examples of the incursion of female voices in this domain, something that remained the case
during the four-decade long ban on women’s football in the country and has only recently
begun to be challenged. These features have served as the foundations for the position of
football in the country into the twenty-first century, and for many of its literary (and other)
representations in the intervening decades.
Notas
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Entrevista com Maria Lúcia Garcia
Pallares-Burke12
Interview with Maria Lúcia Garcia Pallares-Burke
Entrevista con Maria Lúcia Garcia Pallares-Burke
Concedida a
DOI: http://dx.doi.org/10.1590/S2178-149420190003000011
1
Maria Lúcia Garcia Pallares-Burke é pesquisadora associada do Clas da Universidade de Cambridge.
I
Escola de CIências Sociais da Fundação Getulio Vargas (CPDOC/FGV), Rio de Janeiro – RJ, Brasil.
Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 68, p. 765-810, setembro-dezembro 2019 765
Concedida a Bernardo Buarque de Hollanda
Maria Lúcia Pallares-Burke tornou-se referência na área de pensamento social no Brasil após a
publicação de dois livros alentados sobre os anos de formação de Gilberto Freyre e a influência
anglo-saxã em sua obra: Um vitoriano dos trópicos (2005) e O triunfo do fracasso (2013). Este
último, desdobramento do primeiro, fora dedicado a um de seus contemporâneos, o alemão
Rüdiger Bilden, que Freyre conhecera nos Estados Unidos e que viajara ao Brasil, tendo escrito
textos inéditos sobre as relações raciais no país.
Em parceria com o historiador britânico Peter Burke, Maria Lúcia foi autora também
de Social Theory in the Tropics (2008), lançado originalmente em língua inglesa, traduzido
e publicado no mesmo ano em português com o título Repensando os trópicos: um retrato
intelectual de Gilberto Freyre. O livro apresenta, em visão macroscópica, a contemporaneidade
das ideias freyreanas e a contribuição de um intelectual brasileiro ao público acadêmico inter-
nacional, em especial aquele não familiarizado com o controvertido sociólogo pernambucano.
Tive a oportunidade de conhecer pessoalmente a professora Maria Lúcia em setembro de
2015, por ocasião da quinta edição do Ateliê do Pensamento Social, realizado em São Paulo
e promovido pelo Laboratório de Pensamento Social (Lapes), da Fundação Getulio Vargas-
-Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (FGV-CPDOC). Na
condição de palestrante convidada, Maria Lúcia viajou ao Brasil para participar de uma mesa
sobre os Brazilian studies, intitulada: “A circulação internacional de um ‘clássico’ do pensa-
mento brasileiro — as edições de Casa-grande & senzala em língua inglesa”.
Maria Lúcia é vinculada há quase trinta anos ao Centro de Estudos Latino-Americanos
(Clas), da Universidade de Cambridge. É autora de estudos sobre o educador baiano Anísio
Teixeira e a escritora potiguar Nísia Floresta, entre outros. Casa-grande & senzala (1933),
que como tanta obra clássica é “mais falada do que lida”, desperta um interesse especial da
autora, porquanto se afigura como parte importante da biografia intelectual do Brasil. Esse
trabalho, segundo a convenção interpretativa mais geral, teve por significado a redefinição da
identidade nacional e a refutação do paradigma do branqueamento, tal como formulado pelos
ideólogos e pelos herdeiros do racismo científico no decorrer do Oitocentos.
Se as aulas do discípulo Freyre com o mestre Boas são parte da versão canônica consa-
grada, a sugerir uma espécie de turning point na carreira do sociólogo, após o contato com o
professor alemão radicado em Columbia, Pallares-Burke mostra como essa relação foi fortuita
e aponta outras influências importantes para a compreensão mais apropriada da formação
freyreana na América do Norte e na Grã-Bretanha. A título de exemplo, recorre à figura do
artista britânico William Morris (1834-1896), responsável por pautar a atuação do mundo das
artes, em estreita proximidade com o movimento socialista e com a crítica ao capitalismo feita
desde a Grã-Bretanha oitocentista. Nessa crítica, entretanto, salta à vista certa reivindicação
de um passado medieval, tão esquecido quanto oculto, no imaginário europeu, em que se pro-
jetava, não sem acento romântico, certo retorno às riquezas regionais de cada área da Europa.
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Entrevista com Maria Lúcia Garcia Pallares-Burke
Primeiramente, muito obrigada, Bernardo, pois é uma honra estar sendo entrevistada
por você. Quanto à minha origem familiar, vim de uma família de imigrantes, mais ou menos
recentes, ambos de origem mediterrânea. Pelo lado da minha mãe, Henny, sou italiana, já que
meus ancestrais eram todos italianos: meu avô, de Lucca, na Toscana; minha avó, de Laurito,
nas montanhas ao norte de Salerno, a 200 quilômetros ao sul de Nápoles. Eles se conheceram
numa pequena cidade do interior de São Paulo, Borborema, onde se reuniram na época muitos
italianos, libaneses e sírios — os últimos eram, na verdade, chamados de “turcos”, como eram
todos os que chegavam do Império Otomano. Apesar de italianos, meus avós eram de famílias
muito diferentes. Meu avô, de uma família orgulhosamente ateia e anarquista, e a família de
Laurito, muito devota e católica praticante. Com toda a certeza, eles jamais teriam se encon-
trado se não tivessem se mudado para o Brasil e se conhecido nessa pequena comunidade.
Já meu pai, Francisco, era uruguaio, descendente de espanhóis que se mudaram para
a América do Sul em algum momento do século XIX. Os García vinham de Andaluzia, e se
conta nas memórias familiares que eram militares. Já os Pallares vinham da Catalunha. Tanto
que em Barcelona o pessoal fala: “Ah, Pallares, como então não fala catalão?” É um nome
Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 68, p. 767-810, setembro-dezembro 2019 767
Concedida a Bernardo Buarque de Hollanda
relativamente comum lá; existe até um rio Pallares. Meu avô paterno, que não conheci, era um
importante líder político do partido ruralista, o Partido de Los Blancos. Do lado dos Pallares,
meu bisavô era um médico de origem catalã. Enfim, bem diferentes os García dos Pallares.
Os segundos eram mais calmos, enquanto os primeiros eram do tipo briguento e apaixonado.
Nasci na cidade de São Paulo, e, até entrar na Universidade de São Paulo (USP), eu só
havia estudado em uma escola brasileira, localizada na bela Praça da República, no centro
de São Paulo. Era o Instituto de Educação Caetano de Campos, essa escola-modelo da qual a
gente se orgulhava muito, sempre sendo lembrada pelos professores de sua história, iniciada
em 1894, como um monumento republicano, tanto na sua construção belíssima quanto nos
seus ideais. Entrei ali com três anos, mais cedo do que a maior parte das crianças, porque mi-
nha mãe era professora da escola. Ela tinha, na verdade, iniciado a brilhante carreira — acho
que a carreira mais importante num país é a de professora primária — com dezenove anos,
dando aula numa escola rural do interior paulista, perto de Borborema, antes de ser transferi-
da para a Escola Rural de Brejo Alegre, numa região distante, no noroeste paulista, onde viveu
praticamente imersa numa comunidade japonesa por alguns anos durante a Segunda Guerra.
Meu pai, apesar de gostar muito de estudar, não fez universidade. Teve uma vida familiar
muito complicada. Perdeu a mãe com oito anos, teve de se mudar para a capital com o pai,
para longe da fazenda, perto de Durazno, que adorava, e ele logo se casou com Carlota, uma
beldade de Montevidéu. Com dezesseis ou dezoito anos, fugiu de casa e veio parar no Brasil.
Então, a vida foi difícil. Por décadas, teve um emprego numa indústria francesa, na qual fez
uma bela carreira, mas o sonho dele era ser fazendeiro ganadero, seguindo a tradição familiar.
Adorava fazenda, terra, cavalos, gado. Chegou a ter uma fazenda de gado certa vez, com o
irmão mais velho radicado no Brasil, que acabou não dando certo. Mas meu pai era também
um grande apreciador de história. Lia muito, adorava conversar e comentar os livros que lia
com um entusiasmo contagiante. Era, na verdade, apaixonado especialmente pela história da
América Latina e pelas histórias de grandes impérios antigos, sobretudo o da Babilônia. Ad-
mirava figuras guerreiras, exemplares pela sua bravura, e os nomes que sempre apareciam em
suas conversas eram bem distantes um do outro, no tempo e no espaço: Artigas (1764-1850),
o herói nacional uruguaio que lutou bravamente pela independência do país e pelos ideais
republicanos, e Nabucodonosor (634-562 a.C.), o grande estrategista que derrotou assírios
e egípcios, transformando a Babilônia numa potência militar e artística. Como meu pai era
grande leitor da Bíblia — a qual lia mais pelo interesse histórico, literário e cultural, de modo
geral, do que por interesse religioso propriamente dito —, foi dela, acho, que veio a paixão
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Entrevista com Maria Lúcia Garcia Pallares-Burke
pela história da Babilônia. Ele tinha uma visão épica de história, e não por acaso gostava tanto
do poema Martín Fierro, que sabia quase todo de cor.
Sim, provavelmente. Mas voltando à minha formação, estudei dos três aos dezessete
anos na escola Caetano de Campos. Com dezessete, no segundo ano do colegial, saí porque
ganhei uma bolsa de estudos nos Estados Unidos. Na época não era uma coisa tão comum. A
bolsa era para eu passar um ano com uma família norte-americana e cursar uma High School.
Isso fazia parte de um programa chamado American Field Service International Scholarship
(AFS), uma organização não governamental fundada logo após o fim da Segunda Guerra
Mundial com o objetivo de ajudar a “criar um mundo mais justo e pacífico”. Tinha um exame
competitivo, e naquele ano houve mil e tantos candidatos. Fui uma das duzentas pessoas do
Brasil agraciadas com essa bolsa.
Era uma cidade pequena, New Castle, na Pensilvânia, não muito longe da fronteira de
Ohio e a uma hora de Pittsburgh. Essa penso ter sido a experiência mais marcante da minha
vida. Pela primeira vez eu saía do Brasil e me via num território nada familiar, totalmente estra-
nho, que desafiou muito meu modo de pensar e de me comportar, em meados dos anos 1960.
Sim. Viver com uma família estrangeira, num país estrangeiro, estudar numa escola estran-
geira quando eu tinha dezessete anos, foi definitivamente uma life changing experience, uma
experiência transformadora, memorável, talvez a mais importante para a pessoa que me tornei.
Eu queria muito sair do Brasil por um tempo, queria ter outra experiência de vida, e na União
Cultural Brasil-Estados Unidos fiquei sabendo desse programa de intercâmbio muito conceitua-
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Concedida a Bernardo Buarque de Hollanda
do e famoso. Nesse período, frequentei o último ano do High School, e ali vivi uma experiência
total, já que a vida do adolescente norte-americano se passa ao redor da escola. Aprendi muito,
e não tanto sobre disciplinas específicas, mas a apreciar as diferenças culturais, pois não convivi
somente com os norte-americanos. O programa do AFS tinha um ethos muito internacional e,
como queria trabalhar em prol da solidariedade humana, dava muita importância ao convívio
dos bolsistas com pessoas de diferentes origens. Criavam, assim, muitas oportunidades para, ao
longo desse ano, nos encontramos com outros bolsistas do mundo todo.
Foi assim que convivi muito com argentinos, chilenos, colombianos, mas também com jo-
vens do Marrocos, da Índia, da Alemanha, da Islândia, da Holanda, do Egito etc. Fazia parte do
programa darmos palestras sobre nosso país para os norte-americanos — em outras escolas e
em associações variadas, como a 19th Century Society, de New Castle, por exemplo, cujos mem-
bros tinham de ser nascidos naquele século. Nessas ocasiões, encontrávamos outros bolsistas
que viviam na região. Então, acho que o resultado disso, para mim, foi aprender a apreciar as
diferenças culturais, mas também — e talvez isto seja o mais importante — a me conscientizar
quão semelhantes os seres humanos são, apesar de todas as diferenças. Estive recentemente
em New Castle revendo meus amigos, numa comemoração de minha turma da Neshannock
High School: cinquenta anos de formatura. Uma das boas coisas do Facebook é tornar encontros
desse tipo possíveis, porque foi por meio dessa rede social que me descobriram.
Eu ia justamente perguntar se você manteve contato com as pessoas que conheceu lá.
Com a família, mantive sempre, mas não com a grande maioria de meus colegas. Fui
a convidada de honra do grupo nesse evento. Nessa ocasião, fui visitar a escola, que parece
não ter mudado em nada desde sua fundação, poucos anos antes de lá chegar. É muito bem
equipada, bem cuidada, com grande espaço aberto. De repente, quando eu estava com uma
amiga na recepção, chegou um senhor e disse: “Maria, how are you? Do you remember me?”
Eu não lembrava, mas ele era mr. Bleggi, que havia sido meu professor de inglês. Além disso,
também era treinador de basquete, e continuava fazendo isso depois de aposentado, por isso
ainda estava por lá. Ele me contou uma história engraçada, da qual não me recordava. Ele me
dera a nota máxima, um A, e eu, surpresa, cheguei para ele e perguntei: “Como o senhor me
dá um A? Meu inglês ainda está tão ruim!”
Ele explicou que nunca se esquecera de minha atitude, que contrastava, segundo ele,
com a dos estudantes anteriores do AFS, que eram muito “arrogantes”. Eu não havia conhe-
cido nenhum antigo estudante AFS daquela escola, pois eu era a única naquele ano. Meus
colegas AFS em outras escolas não eram diferentes de mim. Enfim, mr. Bleggi me dera um A
não só porque, segundo ele, meu inglês oral não era tão ruim e o escrito era bom, mas porque
eu era diferente dos alunos anteriores.
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Entrevista com Maria Lúcia Garcia Pallares-Burke
Quando voltei para o Brasil, queria entrar na faculdade imediatamente. Naquele ano de
High School, eu não havia estudado as matérias que me permitiriam entrar em cursos que
cogitei, como direito na São Francisco. Resolvi prestar vestibular na USP, nas áreas em que
meu preparo bastava, e sem muita reflexão escolhi o curso de pedagogia na Faculdade de
Filosofia, Ciências e Letras.
Isso era fim dos anos 1960? Uma conjuntura bastante delicada.
Sim, e o curso foi muito além das minhas expectativas. É claro que havia matérias que
não me interessavam, como administração escolar. Mas foi além das minhas expectativas
pelo nível dos professores que tive. Alguns deles, especialmente os que haviam se licenciado
em filosofia pela Faculdade de Filosofia da USP, eram hors concurs, inesquecíveis, realmente
inesquecíveis pela cultura e pela sabedoria. O clima era tenso, como pode imaginar. Muitas
vezes, os professores chegavam visivelmente transtornados por terem notícia de algum colega
que fora preso. Entre nós, alunas, também havia muita tensão. Tivemos algumas colegas que
desapareceram, e suas fotos eram fixadas em paredes de supermercado na lista de “procura-
-se”. Por outro lado, entre os intelectuais da época, havia figuras notoriamente contrárias a ler
obras de Gilberto Freyre, por exemplo, graças ao apoio ao golpe militar de 1964.
Sua mãe era professora. Você já tinha interesse pela área de educação?
Sim. Isso deve ter pesado muito, mesmo que na época eu não tivesse me dado conta.
Em especial, preciso mencionar um professor que conheci na graduação. Dediquei meu livro
de entrevistas, As muitas faces da história, a ele: professor João Eduardo Rodrigues Villalobos,
filósofo e professor de filosofia da educação da USP. Foi uma figura inesquecível não só para
mim, como para muitos dos meus colegas. Eu diria que as qualidades que porventura houver
no meu trabalho se devem a ele, sem nenhuma dúvida. Impressionava sua inteligência, bri-
lhantismo, cultura, perspicácia, amplos horizontes, e também sua exigência e intransigência
quando percebia que não pensávamos com a própria cabeça. A gente morria de medo dele,
mas, ao mesmo tempo, ele nos cativava pelo brilho, pelas ideias que expunha, por suas provo-
cações e pelas dúvidas que levantava sobre nossas certezas apressadas.
Villalobos não era só professor de história e filosofia da educação, mas também um
militante da educação. Foi um dos líderes na campanha pela defesa da escola pública no fim
dos anos 1950 e, especialmente, no ano 1960, um movimento que lutava por uma escola
democrática, laica e gratuita — movimento que foi abraçado por várias figuras da enverga-
dura de Anísio Teixeira, Darcy Ribeiro e Roque Spencer Maciel de Barros, este também nosso
professor de história e filosofia da educação. Nessa época, Villalobos já escrevia para O Estado
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Concedida a Bernardo Buarque de Hollanda
de S. Paulo, como editorialista de educação e colaborador, com matéria assinada, nesse jornal
e também no Jornal da Tarde.
Uma das coisas mais difíceis que já escrevi na vida — acho que a coisa mais difícil — foi
um verbete sobre João Eduardo Rodrigues Villalobos no Dicionário dos educadores do Brasil.
Difícil porque, dentro dos limites de um verbete, queria ser capaz de expor todo o seu valor
como professor, militante e pensador. Villalobos deixou uma obra escrita que revela seus varia-
dos interesses, desde a campanha pela escola pública, sobre a qual escreveu um livro denso e
provocativo, Diretrizes e bases da educação: ensino e liberdade (1969), até o pensamento do
filósofo inglês George Berkeley, sobre o qual escreveu um belíssimo trabalho.
Não, já era na USP, da Cidade Universitária, no Butantã. Nunca estudei na Maria Antônia.
Meus professores, sim, haviam todos estudado na Maria Antônia. Tenho certeza de que João
Eduardo Villalobos marcou muitos trabalhos que saíram da Faculdade de Educação. Meus dois
primeiros livros — um sobre Anísio Teixeira, fruto do meu mestrado, e outro sobre o Ilumi-
nismo europeu, do meu doutorado — têm a marca indelével de sua orientação estimulante,
amiga e extremamente crítica.
Então, sua pós-graduação, seu mestrado e seu doutorado foram feitos na USP com o
próprio.
É, mas há um detalhe. Resolvi fazer o doutorado sobre o Spectator, jornal inglês do sécu-
lo XVIII. Como o Villalobos era também interessado em educação no sentido amplo, fora dos
quadros propriamente formais e escolares, deu-me todo o apoio quando resolvi escrever um
doutorado sobre o papel educativo de um diário do Iluminismo europeu — tema que não era
muito convencional na Faculdade de Educação.
Vou contar. Hoje em dia acho que é diferente, mas naquele tempo a gente entrava para o
curso de doutorado sem ter de saber sobre o que escreveria. Eu já havia feito muitas matérias
necessárias que o curso de doutorado exigia e permanecia indecisa quanto à tese que deveria
produzir. Cheguei a pensar em continuar a estudar não o pensamento e a ação de Anísio
Teixeira, mas as forças contrárias que ele teve de enfrentar durante sua carreira de educador:
o grupo católico que fazia ferrenha oposição a ele, tachando-o de comunista. Comecei a fazer
a pesquisa sobre esse tema, mas, diferentemente do que acontecera quando eu estudava a
trajetória intelectual de Anísio Teixeira, no seu período formativo, o tema não me apaixonava.
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Entrevista com Maria Lúcia Garcia Pallares-Burke
Era começo dos anos 1980, quando o doutorado começou. Eu também não sentia muito
entusiasmo por parte dele [orientador]. Ele era normalmente “entusiasmador”, mas deve ter
percebido que, sem uma dose de paixão pelo tema, eu não iria ser bem-sucedida. Penso que é
necessário certa paixão para fazer um bom trabalho. Nesse meio-tempo, chegou a notícia de
que a Faculdade de Educação recebera recentemente, como doação, a biblioteca do Instituto
de Educação Caetano de Campos. Foi após o instituto ter deixado de ser aquilo que era, ter se
desligado de sua história de escola-modelo e mudado de prédio em 1978.
Senti que parte da minha história chegara perto de mim. Eu era grande frequentadora da
biblioteca da Caetano e havia passado muitas e muitas horas naquela sala ao longo de minha
vida de estudante. Fui até a biblioteca da Feusp e procurei os livros doados. Ainda havia muita
coisa em caixote, mas nas estantes já haviam colocado, sem muita ordem, parte do acervo.
Comecei, então, a passar os olhos para ver o que estava lá e deparei com oito volumes um
pouco maiores do que livros de bolso. Eram livros bonitos, encadernados em couro, com o
título em letras douradas, se não me falha a memória, publicados em 1757, em Londres: The
Spectator. Eu não tinha noção do que se tratava, nunca ouvira falar em The Spectator nem no
periódico semanal com o mesmo título, mas do século XIX, ainda hoje existente, que Karl Marx
tanto criticara como um jornal “filisteu”.
Peguei o primeiro volume e o abri de maneira aleatória – literalmente foi isso, o que
mostra a força da serendipity e o que pode acontecer numa busca sem planos – numa página.
Era o número 11 do jornal, publicado em 13 de março de 1711. Tratava-se de uma conversa
em que um indivíduo falava de forma muito desrespeitosa sobre as mulheres, descrevendo-as
como seres intelectual e moralmente inferiores, diante de Arietta, uma mulher sábia. A respos-
ta de Arietta foi mais ou menos a seguinte: “Deixe-me lhe contar uma história, e lembre-se de
que muito do que se fala contra as mulheres é porque a história é escrita por homens.” Minha
reação foi: “O quê? Parece tão moderno isso!” Arietta, então, conta uma história marcante,
que já fora contada e escrita no século XVII, sobre o encontro de uma índia com um inglês em
dificuldade, um comerciante.
A história é a seguinte: a índia Yarico salva o comerciante Inkle dos índios que o perse-
guiam, escondendo-o num recanto da floresta. Ela cuida dele, e os dois vivem como amantes
por vários meses, chegando até a aprender a língua um do outro. Um dia, instruído por ele,
Yarico atrai a atenção de um navio levada pelas promessas que Inkle lhe fizera de uma vida
de fausto e paz se ela o acompanhasse à Inglaterra. O navio se dirigia a Barbados. Ao chegar
lá, Inkle vende Yarico como escrava, não se compadecendo ao saber que ela estava grávida
de um filho seu. Essa informação só serviu para ele aumentar o preço pedido por sua “mer-
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Concedida a Bernardo Buarque de Hollanda
cadoria”. Li essa história e fiquei surpresa por estar sendo publicada e discutida em 1711. Foi
então que, encantada com a amostra que vira, comecei a me interessar por saber mais sobre
o Spectator, periódico que, de fato, dá espaço para um feminismo incipiente.
Fiz um primeiro trabalho sobre o Spectator para o curso sobre Rousseau — um dos meus
grandes interesses à época — ministrado pelo professor Salinas [Luiz Roberto] na filosofia da
USP. Tínhamos de fazer um trabalho de fim de curso, e o Salinas sugeriu que eu escrevesse
sobre algum aspecto do Emílio de Rousseau. Eu já havia lido Emílio muitas vezes, achava-o
um belíssimo tratado de educação, mas, tendo descoberto o Spectator recentemente, lhe disse
que escreveria alguma coisa sobre esse jornal iluminista, o que quer que eu conseguisse em
pouco tempo. Até porque havia descoberto que Jean-Jacques Rousseau fora um grande leitor
do The Spectator, obra que ele cita em As confissões e recomenda como leitura de Emílio e
Sophie em Emílio. Então, logo após ter feito esse primeiro trabalho para o Salinas, resolvi fazer
meu doutorado sobre o Spectator com todo o apoio do Villalobos. Foi para isso que, tendo
recebido uma bolsa do CNPq, vim fazer pesquisa em Londres.
Não. Eu poderia ter ficado na Inglaterra por cinco anos, mas não fiquei por questões fa-
miliares. Àquela altura eu já tinha quatro filhos pequenos, e também por motivos profissionais
não podia ficar aqui por tanto tempo. Fiquei um ano em Londres, orientada pelo professor Pe-
ter Gordon, historiador do Instituto de Educação da Universidade de Londres, ao qual me filiei.
Tive, pois, dois orientadores: professor Peter Gordon, da Universidade de Londres, e professor
João Villalobos, da USP. Mas defendi o doutorado na USP.
Então, depois do ano escolar nos Estados Unidos, foi sua primeira experiência acadê-
mica fora.
Sim, foi a primeira experiência acadêmica fora, em meados dos anos 1980. Defendi meu
doutorado em 1986.
Imagino o peso que tinha uma tese de doutorado nos anos 1980 com todo o rito
da banca.
É, a banca foi excepcional. Eu tinha uma imensa admiração pelo Gérard Lebrun, da filo-
sofia, e foi a maior honra para mim ele ter aceitado ser um dos examinadores. Na banca tam-
bém estavam o Oliveiros S. Ferreira, que, além de ser professor de ciência política, era um re-
nomado jornalista do Estadão, jornal que dirigiu; Nicolas Boer, ex-padre e deputado húngaro,
que fez parte da resistência aos nazistas e fugiu da Hungria em 1949, quando a perseguição
aos católicos se acirrou — chegou ao Brasil em 1950, onde se estabeleceu como sociólogo e
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Entrevista com Maria Lúcia Garcia Pallares-Burke
jornalista, tendo sido também editorialista do Estadão, no qual escrevia sobre política inter-
nacional. Além do Villalobos, o quinto membro da banca foi Peter Burke, que não era doutor.
Voltei para a Inglaterra por uns meses quando já estava com o trabalho avançado, por-
que alguma coisa faltava na minha pesquisa. Foi então que conheci o Peter [Burke]. Meu chefe
de departamento na USP me dera a incumbência de convidar um acadêmico britânico que
tivesse interesse em passar uns meses no Brasil para dar aula no curso de pós-graduação da
Faculdade de Educação. “Você está indo para lá passar alguns meses, procure ver se conse-
gue alguém que tenha interesse em vir para cá, porque estamos querendo promover a vinda
de professores estrangeiros.” Convidei primeiramente o Keith Thomas, que recusou, mas me
sugeriu que procurasse seus ex-alunos, Peter Burke e Alan MacFarlane.
Foi assim que tudo começou. Eu acabara de conhecer o Peter profissionalmente, e o
Villalobos, ao saber de sua vinda da Inglaterra, me disse: “Bom, vou escrever a ele, já que
ele vai estar aqui, perguntando se não gostaria de participar da banca.” Então, ele também
participou da banca, apesar de não ter o título de doutor. Não sei como eles resolveram essa
questão burocrática àquela altura. Anos depois, quando foi convidado do Instituto de Es-
tudos Avançados, criou-se um impasse na hora de pagarem seu salário, pois nunca haviam
ouvido falar, ao que parece, de pessoas renomadas, com vários livros de peso publicados,
sem o título de doutor.
Sim, isso mesmo. Enfim, adorei ter escrito esse trabalho sobre o Spectator, apaixonei-me
pelo tema e fiquei extremamente gratificada pelo nível da arguição que tive na defesa de tese.
Sim, um livro sobre o papel formativo do jornal The Spectator, que foi um fenômeno
jornalístico e educacional, em sentido amplo. Um fenômeno não só durante o Iluminismo, já
que sua repercussão ultrapassou não só as fronteiras inglesas, como também o século XVIII,
tendo chegado ao Brasil e à América Latina no século seguinte. Muito mais naquela época
do que agora, a educação não se confundia com a escola nem os educadores se confundiam
com mestres de profissão. Muito se escrevia no século XVIII sobre as várias maneiras como as
pessoas são educadas: pelo que elas leem, pelo teatro que frequentam, pelo ambiente em que
vivem etc. Como disse o filósofo Helvetius, “cada um tem como preceptor a forma de governo
sob a qual vive, seus amigos, suas mestras, as pessoas que o cercam, suas leituras e, enfim,
o acaso”. Efetivamente, jornalistas filósofos, jornalistas, teatrólogos, romancistas, pintores e
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Concedida a Bernardo Buarque de Hollanda
Então, eram esses oito volumes que você pesquisou na biblioteca e que depois pôde
aprofundar nas outras fontes pesquisadas na Inglaterra?
É, fiz pesquisa na Inglaterra durante um ano para meu doutorado, mas voltei em 1988,
para ampliar a pesquisa e transformar a tese num livro que publiquei anos depois. Nem lembro
quando que ele saiu.
Sim, isso mesmo. The Spectator, o teatro das luzes: diálogo e imprensa no século XVIII.
Antes de publicar esse livro eu queria ampliar meu doutorado. Eu sabia sobre os seguidores
europeus de Addison e Steele, os autores do Spectator, mas não os tinha pesquisado em
profundidade. Então, vim para cá e trabalhei na Inglaterra, na França, e depois fomos para
Berlim, onde estivemos um ano, de 1989 a 1990, ligados ao Instituto de Estudos Avançados
de lá. Trabalhava diariamente na Staatsbibliothek, que ficava ao lado do muro de Berlim, e foi
então que assistimos estupefatos à queda do muro de Berlim. Meu alemão falado era muito
ruim, mas bom o suficiente para ler muitos seguidores alemães do Spectator, o que fiz não só
em Berlim, mas também em Halle. Também estive na França, onde os spectateurs floresceram
durante todo o século XVIII e parte do XIX. Refiro-me a isso no último capítulo desse livro,
todo ele fruto dessa pesquisa posterior.
Foi uma bolsa de pós-doutorado financiada pelo governo brasileiro ou já era daqui?
Não, uma parte pequena pela Fapesp e uma parte maior pelo British Council.
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Entrevista com Maria Lúcia Garcia Pallares-Burke
É aí que entra o lado mais pessoal. Eu havia conhecido o Peter em 1985, rapidamente,
quando fiz o convite pra ele ir para o Brasil. Ele aceitou. Eu não sabia que ele adorava viajar.
Na verdade, fiz alguns outros convites. Cheguei a ele por intermédio do Keith Thomas, um
grande historiador que fora seu orientador. Um amigo organizou esse encontro com o Keith
Thomas em Oxford. Ele me convidou para almoçar no belíssimo Corpus Christi College, do
qual era o president (equivalente a reitor). Fiz o convite e ele me fez uma só pergunta: “São
Paulo, quantos milhões de habitantes tem?” Acho que eram 12 milhões na época, e ele disse:
“Not for me, not for me. Mas tenho dois alunos que gostam de ter experiência fora daqui e
não se importam com o tamanho da cidade.”
Ele escreveu dois nomes num papel: Peter Burke e Alan Macfarlane, nessa ordem. Alan
é antropólogo, amigo nosso. Escrevi inicialmente para o primeiro da lista, dizendo qual era
a intenção do encontro, pois não podia escrever para os dois, já que só podia convidar um.
Encontrei com o Peter aqui em Cambridge, no Emmanuel College, e ele aceitou imediatamente
o convite. No ano seguinte, 1986, ele foi para o Brasil, ficou lá alguns meses e deu um curso
de pós-graduação na Faculdade de Educação muito concorrido, que atraiu gente de muitas
outras faculdades. Então, quando vim para cá, no fim dos anos 1980, já estávamos juntos.
Fiquei mais ou menos entre São Paulo e Cambridge. Eu ia muito para o Brasil, dava al-
guns cursos, voltava... De fato, eu não sabia muito bem o que fazer. No fim, afastei-me da USP,
mas ainda fiz a minha livre-docência com uma coleção de ensaios inspirados no meu interesse
pelo jornalismo, quase todos eles — não todos, porque o da Nísia Floresta não é bem sobre
seu jornalismo. Mas todos eles giravam ao redor da questão da recepção e da circulação das
ideias, o tema mais amplo que sempre me fascinou.
Então também já há essa aproximação com a história, com a historiografia, talvez até
pelo próprio contato com o Peter Burke, que era historiador, e do seu interesse por
história das ideias, que já vinha com o Iluminismo. Tudo isso se acentua.
Sim, tem razão, isso se acentua muito com meu convívio com o Peter, que enfatizava nos
seus estudos a importância das chamadas “obras menores” de uma época para reconstruir a
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Concedida a Bernardo Buarque de Hollanda
Isso, exatamente. Então, eu estava interessada em educação, num sentido amplo, que
podia ser rastreada em muitos lugares, e não apenas em salas de aula.
A Nísia Floresta... Bem, nos anos 1990, eu estava muito ligada ao jornalismo, que era
um meio privilegiado em que as ideias circulavam. Ao circularem, elas eram apropriadas por
outros, transformadas, adaptadas a novos contextos. Então, eu estava interessada no fenôme-
no da circulação das ideias e como elas ocorriam. Esse era o grande tema. Resolvi fazer um
trabalho sobre a famosa tradução de Nísia Floresta, de 1832, do livro da feminista britânica
Mary Wollstonecraft, A vindication of the rights of woman. Nísia dizia que fizera uma tradução
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Entrevista com Maria Lúcia Garcia Pallares-Burke
livre do texto inglês, então pensei: “Vou fazer um trabalho vendo como a Nísia adaptou para
o contexto brasileiro um texto estrangeiro, o que ela fez, enfim, com o texto original da Mary
Wollstonecraft.”
O mero fato de ela ter feito uma tradução àquela época não deixava de ser surpreendente.
Tratava-se de uma jovem que nascera no Rio Grande do Norte, mudara-se para Pernambuco e,
de repente, traduziu um tratado feminista escrito no contexto da Revolução Francesa e dirigido
a um dos seus líderes. Eu queria ver como o texto da Mary Wollstonecraft fora adaptado para
o público brasileiro. Alguns anos antes, em 1989, havia sido republicada a tradução de 1832
com uma introdução de uma estudiosa de Nísia Floresta, Constância Lima Duarte. O texto de
Nísia era facilmente acessível, e eu tinha comigo o da Mary Wollstonecraft, sobre o qual eu já
havia trabalhado anteriormente, quando estudara o Spectator e o Iluminismo europeu.
Comecei a ler o livro da Nísia Floresta e fiquei profundamente intrigada: “Isso não é
tradução”, pensei, “nem livre nem literal. Isso não é a tradução da Mary Wollstonecraft”.
Questões centrais do texto da Mary Wollstonecraft não estavam no livro. A figura do Rousseau,
essencial para o combate em que a autora britânica estava envolvida, também não aparecia
em nenhum momento no texto de Nísia. Confesso que fiquei arrepiada: “Isso não é a tradu-
ção. E se ela não traduziu Wollstonecraft, o que, então, fez?” Comecei a ficar obcecada — fico
obcecada com as coisas. Li reli e, de repente, me veio uma pequena luz, uma sensação de déjà
vu: “Já vi isso, essas palavras, em algum lugar. Essa colocação não me é estranha.”
Foi quando tive um estalo. Bastava confirmar minha suspeita. Minha filha estava aqui na
Inglaterra e eu estava lá no Brasil dando aula. Entrei em contato com ela e disse: “Renata, é
urgente. Procure o livro Woman not Inferior to Man, de Sophie, a person of quality. Tenho uma
cópia e deve estar em tal e tal lugar da casa. Se não achar, vá à biblioteca central da univer-
sidade, tire outra cópia e me mande. O texto, um tratado feminista bastante radical, era de
1739, muito anterior ao de Mary Wollstonecraft. Quando chegou o livro, confirmei que Nísia
fizera uma tradução ipsis litteris do tratado feminista de Sophie, obviamente um pseudônimo
do autor ou autora, cuja identidade real jamais foi descoberta.
Incrível...
Incrível mesmo! Enfim, não havia dúvida alguma quanto a esse fato. Colocando os dois
textos lado a lado, era evidente que o texto de Nísia era uma tradução literal do texto de 1739.
Um texto que, por sua vez, fora inspirado por um tratado feminista cartesiano do século XVII,
De l’égalité des deux sexes, de autoria de um padre chamado François Poulain de La Barre
e que, na verdade, se apropriava de várias partes deste. “E o que faço com isso?”, pensei.
“Durante mais de 150 anos, acreditou-se que Nísia fizera uma coisa que ela não fez; isso é
assunto de jornal.” Eu não conhecia ninguém da Folha à época, mas entrei em contato com o
editor do Caderno Mais, Alcino Leite Neto, que foi muito receptivo.
Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 68, p. 779-810, setembro-dezembro 2019 779
Concedida a Bernardo Buarque de Hollanda
Expliquei o caso e lhe disse: “Gostaria de publicar no jornal uma versão pequena de
um trabalho maior que estou escrevendo” — e que na verdade publiquei logo depois, em
1995, no livro Nísia Floresta: O carapuceiro e outros ensaios de tradução cultural. Ele aceitou
e publicou o artigo em setembro de 1995, revelando ao público o fato de que Nísia traduzira
um tratado mais radicalmente feminista do que o escrito por Mary Wollstonecraft. “Há o
fato e há minha interpretação”, expliquei ao Alcino. “Minha interpretação está aberta a mil
críticas, questionamentos, mas o fato é inelutável”. Nesse momento apareceu um lado triste
do mundo acadêmico, do mundo intelectual: a reação foi violenta no Rio Grande do Norte.
O Conselho Estadual de Cultura do Rio Grande do Norte escreveu para a Folha, e o Alcino
me perguntou se eu queria responder. Respaldados pela especialista em Nísia, Constância
Lima Duarte, eles negaram o fato e consideraram o texto ofensivo “à memória da pioneira do
feminismo no Brasil”. Quando vi o tipo de reação, puramente emocional e sem argumento,
disse ao Alcino: “Não existe diálogo possível quando se desce a esse nível de anti-intelectua-
lismo e de um bairrismo triste, muito triste. Não, não vou responder”. O Mais publicou um
texto se referindo à reação dessas pessoas, e, desde então, pelo que sei, sou tida, em alguns
círculos do Rio Grande do Norte, como a pessoa que manchou a reputação de Nísia Floresta,
que a denegriu.
Na verdade, tenho certeza de que minha descoberta fez de Nísia uma pessoa mais
interessante, mais radical e mais destemida do que se pensara durante mais de 150 anos.
Desde então, no entanto, prevalece no Brasil, lamentavelmente, um silêncio sobre a verda-
deira realização de Nísia nos meios que tratam do feminismo brasileiro, ou um descrédito
de minha descoberta. Fora do Brasil, no entanto, há intelectuais que levantam essa questão:
“Por que essa conspiração de silêncio?” O fato é que os que se sentem “donos” de Nísia
Floresta no Brasil têm sido incapazes de se comportar com o profissionalismo esperado de
um pesquisador idôneo, valorizando mais seu nicho de expertise, que não admite correção,
do que a verdade histórica. Continuam a alimentar uma inverdade. Imagine a que ponto se
chega! No ano 2000, a Zahar publicou o Dicionário Mulheres do Brasil, e o verbete “Nísia
Floresta” continua a dizer que ela traduziu Mary Wollstonecraft. Uma especialista em Nísia
Floresta, com quem jamais me encontrei — a responsável pela edição de 1989 da tradução
de Nísia e das notas explicativas ao texto, que contém alguns erros graves —, após a divul-
gação de meu trabalho, em 1995, passou a reproduzir em seus escritos sobre Nísia minha
descoberta sobre Poulain de la Barre e Sophie — sem mencionar meu nome ou meus textos
—, mas continua, ao mesmo tempo, a divulgar o fato inverídico de que ela fez uma tradução
livre e criativa de Wollstonecraft.
Atitude como essa é, no meu entender, inqualificável sob qualquer ângulo que se olhe,
uma vergonha para a classe intelectual brasileira. Em qualquer país do mundo, um dicionário
biográfico deve conter, na bibliografia, tudo ou quase tudo que foi publicado sobre o assunto,
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Entrevista com Maria Lúcia Garcia Pallares-Burke
e não boicotar informações essenciais sobre o tema. Na bibliografia que acompanha esse
verbete do ano 2000, o estudo mais novo listado é o de Constância Lima Duarte, de 1995, e
não há nenhuma menção à publicação de meu livro do mesmo ano, Nísia Floresta: O carapu-
ceiro e outros ensaios de tradução cultural, nem ao artigo publicado no Caderno Mais. Enfim,
a “conspiração de silêncio” sobre o que efetivamente Nísia fez em 1832 é tão bem-sucedida
em barrar o acesso à verdade que os editores do dicionário, por mais empenhados que estives-
sem em desvendar a história das mulheres desde o ano 1500 até a atualidade, não puderam
ultrapassar aquela barreira no caso de Nísia Floresta. Mas, se, no âmbito brasileiro, o controle
exercido pelos guardiões da “versão histórica” que lhes convém tem sido dominante, no âm-
bito internacional a situação é diferente, o que é desconcertante para nós, brasileiros.
Dando os créditos...
A fortuna crítica da Nísia não reconhece essa sua pesquisa. E o fato de Nísia ter
dito que a tradução era livre em relação a uma obra, mas, na verdade, ser a literal
de outra?
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Concedida a Bernardo Buarque de Hollanda
Maria Lúcia, queria ouvi-la um pouco sobre sua experiência aqui na Inglaterra, na
docência e na pesquisa, com um termo também de comparação com o Brasil, sua
adaptação aqui. Como você vê o sistema universitário inglês? Como é essa sua expe-
riência com relação ao ensino no Brasil e na Inglaterra, já que essa é uma alteridade
tão importante, antes de a gente entrar em Gilberto Freyre?
Não tenho vínculo empregatício com a Universidade de Cambridge, mas sou pesqui-
sadora associada do Centro Latino-americano, o que é uma posição muito confortável. Mas
vamos começar pelo sistema universitário vigente aqui em Cambridge, que acho que é muito
especial e inusitado. Devo dizer que conheço mais o sistema inglês desse lugar privilegiado
em que estou, e o que vou dizer não vale para todas as universidades britânicas. O que me
impressionou desde que cheguei aqui foi a variedade de possibilidades e a liberdade que
existe na forma como o ensino é organizado. É muito livre. Uma marca distintiva do ensino,
tanto de Cambridge quanto de Oxford — nunca fui ligada à Oxford, apesar de já ter estado lá
várias vezes dando seminários —, é a atenção individual dedicada aos alunos de graduação
nos cursos de humanidades — nas outras ciências, não sei —, por meio de uma supervisão
um a um. Aqui em Cambridge é um a um, tête-à-tête. Em Oxford, pelo que sei, há muitas vezes
dois alunos para um tutor.
Sem dúvida. Essa forma de ensino faz com que os alunos sejam, de certo modo, seus
próprios mestres. Nos encontros com o tutor, os alunos se veem obrigados a discutir o trabalho
semanal que preparam sozinhos, a justificar suas escolhas, a questionar os textos lidos e até as
ideias do próprio tutor. Então, o ensino é baseado nesses tutorados e em aulas para o grupo
maior, que não são obrigatórias. Vai quem quiser e não se faz chamada. Muitos alunos optam
por assistir a essas aulas. Na experiência que tive, trata-se de uma palestra, em geral exce-
lente, mas que os alunos dela não participam com perguntas e questionamentos de qualquer
espécie. Não que isso seja proibido, porém não faz parte do ethos universitário. Discussões e
debates são, em geral, confinados aos espaços dedicados a seminários.
Nada impede que qualquer pessoa entre na sala e assista às aulas. Se se tiver a pro-
gramação, que pode ser obtida em vários lugares, pode-se assistir a belíssimas aulas. Então,
muitos alunos vão às aulas, mas não têm qualquer obrigatoriedade de ir. O básico e obriga-
tório no curso de humanidades é a conversa semanal com o tutor, como disse. Ele passa uma
tarefa, alguma coisa sobre o que se tem de escrever. Em história, por exemplo, o tutor passa
uma pergunta e o aluno deve responder se baseando, em parte, na bibliografia fornecida.
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Entrevista com Maria Lúcia Garcia Pallares-Burke
O aluno escreve um pequeno ensaio sobre a questão ou o tema que pesquisou na biblioteca
e também sobre o qual obteve ideias e informações nas aulas que optou por ir. O tutorado,
em geral, tem como base aquilo que o aluno escreveu. A conversa com o tutor parte daí. Nas
outras universidades inglesas, eles têm também um contato pessoal com algum tutor — vejo
pelos meus filhos, que fizeram outras universidades —, mas não da forma tão sistemática e
importante como acontece aqui em Cambridge e Oxford.
Outra coisa impressionante é a liberdade que se tem para obter colaboradores para uma
universidade como a de Cambridge. Quando aqui cheguei, antes mesmo de ser pesquisadora
associada do Centro Latino-Americano, orientei trabalhos. É impensável no Brasil, acredito,
uma pessoa que chega de fora ser convidada para orientar o trabalho de um aluno de uma
universidade como a de Cambridge. Tive essa experiência tão logo aqui cheguei. Uma pessoa
que conheci era diretor de estudos de um college. Como ele ficou sabendo de meu trabalho
sobre o Spectator e o jornalismo, ouviu-me dando seminários, achou que eu poderia colaborar
com a universidade.
Foi assim que um dia recebi uma cartinha dizendo: “Maria Lúcia, gostaria que você
fosse supervisora de tais e tais alunos.” Eu supervisionava os trabalhos de curso de alunos
da Universidade de Cambridge sem nenhuma burocracia, sem carteira assinada, sem ter ne-
nhum vínculo empregatício. O que eu tinha de fazer era mandar no fim do mês, aos colleges
respectivos, as horas que havia atendido tais e tais alunos para receber o pagamento que me
era devido. Então, é uma abertura que deve explicar um pouco da qualidade e da excelência
dessa universidade ou de universidades semelhantes. Abertura que se vê inclusive no número
de professores e alunos estrangeiros que compõem os quadros docentes e discentes.
Você sabia que a Universidade de Cambridge tem mais de noventa prêmios Nobel? No
nível de pós-graduação, em especial, o recrutamento internacional de alunos permite que as
discussões e os seminários sejam muito enriquecedores, trazendo vários pontos de vista, um
diálogo muito rico. Acho que essa variedade de alunos, sobretudo na pós-graduação, mas
também um pouco na graduação, é muito produtiva. Mesmo antes de alguns países do leste
europeu pertencerem à comunidade europeia, muitos colleges promoviam a vinda de estu-
dantes dessa região, dando bolsas, pagando passagem, estadia...
Estimulavam a vinda...
Exatamente. Acho que essa abertura explica muito da excelência de Cambridge e Oxford,
o fato de estarem sempre nos primeiros lugares na liga das universidades. Não sei medir quan-
to essa internacionalidade pesa nisso tudo, mas não dá para dizer que isso não é bastante
significativo.
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Concedida a Bernardo Buarque de Hollanda
Exatamente. Isso tudo contrasta com o modo muito mais rígido e burocrático do sistema
brasileiro. Ontem mesmo o Peter estava recordando quando foi convidado pelo Instituto de
Estudos Avançados da USP. Ele dava cursos no IEA, e quando chegou o fim do mês lhe pediram
o certificado de doutorado. Em nenhum currículo que ele mandara constava que fosse doutor.
Ele falou mais ou menos o seguinte: “Não tenho, nunca tive esse título. Não fiz o doutorado.
Eu o interrompi quando me chamaram para trabalhar na Universidade de Sussex. Meu orien-
tador [que era Hugh Trevor-Roper] me disse, quando soube do convite: ‘Esqueça o doutorado
e vá para Sussex. Publique seu livro sem doutorado, que é muito mais importante.’” Naquele
momento, quando Sussex fora recém-fundada, havia muita semelhança entre ela e Oxbridge.
Havia até um professor de história da arte que não tinha bacharelado, mas que era considera-
do uma figura eminente na sua área, o que bastava para ser contratado.
Não ter doutorado e ser um professor titular não era tão raro naquela na época. Vários
grandes scholars, como Keith Thomas, Christopher Hill, Hugh Trevor-Roper, Quentin Skinner,
Roger Chartier, nunca tiveram esse título. A produção deles era de tanta qualidade que eram
contratados pelas universidades sem qualquer exigência formal. Havia, pode-se dizer, até cer-
to esnobismo em não ter o doutorado.
Enfim, o Peter não tinha um papel para mostrar e foi uma confusão no IEA. Como iriam
pagar a alguém sem diploma? Levou um tempo até chegarem à conclusão de que o melhor
a fazer era lhe dar o título de professor de notório saber, com o qual ele pôde receber o pa-
gamento que lhe era devido. Isso acho muito ilustrativo da rigidez do sistema brasileiro e de
tantos outros. Algo semelhante aconteceu na Espanha pouco depois. Acho que essa abertura,
essa liberdade, que o sistema daqui tem explica ao menos parte da excelência desse ensino,
dessa universidade.
Queria que você falasse também sobre a experiência do Clas e sua visão acerca dessa
área que o Brasil não cultiva tanto, mas que na Europa é forte, dos african studies e
dos latin-american studies. Como vê essa área de estudos latino-americanos, as asso-
ciações de pesquisa e os pesquisadores britânicos ou americanos que se interessam
pela história da América Latina? E também sobre a presença de pesquisadores brasi-
leiros em universidades dos Estados Unidos e do Reino Unido.
Não sei se o que sei é amplo o suficiente para lhe dar uma resposta adequada, mas,
falando especificamente do Clas, é um centro muito dinâmico, onde se reúnem estudan-
tes não só de várias disciplinas das humanidades, como história, antropologia, literatura,
unidas pelo interesse na América Latina, mas também de várias origens. Essa variedade
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Entrevista com Maria Lúcia Garcia Pallares-Burke
Foi criado em 1966, e, como muitos outros centros dedicados ao estudo da África e da
Ásia — criados, a maioria, nos anos 1950 —, foi o resultado da conjuntura geopolítica após
o fim da Segunda Guerra Mundial. A América Latina não foi, no entanto, objeto de significa-
tivo interesse no Reino Unido até meados dos anos 1960, quando o Parry Report, elaborado
por um Comitê Parlamentar e publicado em 1965 — na sequência da Revolução Cubana e
do Programa Aliança para o Progresso inaugurado pelo presidente Kennedy —, considerou
questão de “importância nacional” o estudo da América Latina. Foi assim que o governo pro-
veu fundos para a criação de Centros de Estudos Latino-Americanos em Cambridge, Glasgow,
Liverpool, Londres e Oxford. Quanto aos alunos, diria que compõem um grupo heterogêneo,
mas a grande maioria, ao menos em Cambridge, é composta de nativos ou de origem latino-
-americana. Diria, no entanto, que as regiões que fizeram parte do Império Britânico ainda
continuam a atrair mais a atenção dos alunos de Cambridge. Após a queda da União Soviética,
os países do Leste Europeu começaram também a atrair muito interesse e fundos para pes-
quisas, portanto os estudos latino-americanos têm de competir com muitos outros em fundos
e número de interessados.
Posso estar enganada, mas, entre os estudos latino-americanos, o que mais atrai inte-
resse, pelo menos aqui em Cambridge, é o México. Não sei se tem a ver com o fato de David
Brading, um grande estudioso do México aqui na Inglaterra, ter sido diretor do centro, mas
tenho essa sensação também em Oxford. Talvez a proximidade com os Estados Unidos expli-
que essa preferência, não sei.
Isso do ponto de vista dos alunos que vêm se titular numa prestigiosa universidade e
do ponto de vista do corpo docente?
É variado. Agora, por exemplo, há a Gabriela Ramos, que é do Peru, e o Pedro Mendes
Loureiro, do Brasil, recentemente contratado. A Gabriela é uma excelente historiadora, vá-
rias vezes premiada, que estudou no Peru, nos Estados Unidos, e veio para cá já há vários
anos. O que acontece é que a maior parte dos professores, se não todos, que dão aula para
os alunos do Clas estão vinculados a vários departamentos. A Gabriela está ligada ao de-
partamento de história; o Pedro, ao de ciência política, assim como tantos outros que não
são exclusivos do Clas.
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Concedida a Bernardo Buarque de Hollanda
Seria, por assim dizer, um departamento interdisciplinar. O que existe também de muito
interessante é a cadeira Simon Bolívar, fundada em 1968 e patrocinada pelo governo ve-
nezuelano, para trazer anualmente uma figura eminente do mundo latino-americano. Mario
Vargas Llosa, Octavio Paz, Celso Furtado, Carlos Fuentes José de Souza Martins, Antônio Sér-
gio Guimarães e Fernando Henrique Cardoso já foram Simon Bolivar professors. Uma das van-
tagens desse centro, no meu entender, é que os brasileiros têm a oportunidade de ver o Brasil
como parte da América Latina. Posso estar defasada, mas quando eu estava no Brasil não era
comum colocar o país como parte da América Latina. Os olhos brasileiros eram normalmente
mais voltados para a Europa e os Estados Unidos. Enfim, acho que o Clas para os brasileiros
tem esse grande papel.
Para além dos brazilian studies, a perspectiva é mais ampla de uma escala regional,
e não apenas nacional.
É um centro pequeno, menor do que o centro de Londres, com o qual tive algum contato.
O que ouço também é que, ultimamente, muito do interesse que se tinha pela América Latina
foi desviado para a Europa do Leste, para a China e para os Estados que saíram da União
Soviética. Parece que isso está tirando não só a atenção da América Latina, como também as
verbas que poderiam ser destinadas ao seu estudo. Isso é um fenômeno relativamente novo.
Agora podemos nos concentrar nos seus estudos sobre a obra de Gilberto Freyre.
Minha primeira questão seria em torno do princípio do seu interesse: como você o
descobre? Por que ele a cativa? A partir dos anos 2000, seu trabalho sobre a obra dele
começa a ser publicado. Como é esse interesse, vamos dizer, sistemático em torno do
pensamento de Gilberto Freyre?
Meu contato com a obra de Freyre começou tardiamente, muitos anos após eu ter ter-
minado a faculdade. Enquanto estudante, muitos como eu não se interessavam — algo tolo,
admito — em ler um autor comprometido, como se sabia, com a ditadura militar. Estranha-
mente, foi o Spectator que me levou a Freyre. Mas meu primeiro trabalho sobre ele foi para a
Brasa [Brazilian Studies Association], em 1996.
Isso. O Peter foi a pessoa a quem o diretor, David Lehmann, pediu que pensasse em
organizar alguma mesa na Brasa. Como ele tinha muito interesse em Freyre, que remontava a
muitos anos antes de me conhecer, resolveu fazer uma mesa discutindo Freyre e me perguntou
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Entrevista com Maria Lúcia Garcia Pallares-Burke
se eu não queria participar. Já nos anos 1960, ele não só lera várias obras de Freyre, como
também havia se encontrado com ele durante uma palestra em Sussex, convidado pelo reitor
Asa Briggs, grande admirador de Freyre. Foi assim que resolvi pensar sobre algum aspecto do
pensamento freyreano e escrevi meu primeiro artigo sobre ele, Gilberto Freyre e a Inglaterra:
uma história de amor, que publiquei pouco depois desse encontro de 1996.
É, foi logo depois. Interessante que Freyre se referiu a Nísia nos trabalhos dele. Esse meu
primeiro artigo focalizava o interesse que ele tinha pela Inglaterra, mas dava muita ênfase
à questão do ensaísmo freyreano e sua inspiração britânica. No ano 2000, por conta dessa
publicação — e o Peter também, pelo que já havia publicado sobre Freyre —, nós dois fo-
mos convidados para ir à comemoração do centenário do nascimento do Freyre, em Recife.
Foi um belíssimo evento, uma conferência com pessoas de várias partes dos Estados Unidos
e da Europa, que haviam estudado vários aspectos do pensamento e da ação de Freyre. Foi
nessa ocasião que, levada pelo que pude suspeitar quando xeretei a biblioteca de Freyre em
Apipucos, tomou forma a ideia de escrever um livro sobre a trajetória intelectual do jovem
Freyre, salientando o papel que as ideias e os autores britânicos exerceram em sua formação,
já que fui ficando fascinada e intrigada pela presença de marcas inglesas em sua obra e pela
sua confessa e reiterada anglofilia.É interessante saber como, literalmente, cheguei a ele. Eu
estava escrevendo meu doutorado quando um grande amigo, João Hansen — sabendo que
eu estava interessada na questão da cultura inglesa, sua relação com Brasil e o fenômeno da
circulação das ideias —, me falou: “Você conhece esse livro?” Era Ingleses no Brasil, que eu
não conhecia. Foi esse o primeiro livro que li de Freyre, nos anos 1980. Na época eu estava
escrevendo meu doutorado, e logo depois voltei ao Ingleses no Brasil, porque, ao folheá-lo, eu
havia deparado com o fato, salientado por Freyre en passant, de que o Spectator deveria ser
visto como um dos agentes da cultura britânica no Brasil do século XIX.
Diz. Tanto que, como os brasileiros tinham o hábito de dar aos filhos nomes de pessoas
ilustres que admiravam, havia na época, no século XIX, muitos Addison no Brasil. Joseph
Addison é o nome de um dos dois jornalistas que produziram o The Spectator. Fiquei impres-
sionada com essa informação e resolvi escrever para o Freyre, mas pensando que ele não
fosse me responder. Mandei uma carta para Apipucos dizendo o que eu estava fazendo, que
eu descobrira que ele mencionara o Spectator no livro Ingleses no Brasil e queria saber se
tinha mais alguma informação. Para minha surpresa, logo recebi uma resposta, que começava
assim: “Minha cara colega de estudos...”, nunca vou me esquecer dessa carta. Logo depois
que terminei o doutorado, comecei a ler com mais vagar Ingleses no Brasil, livro que me
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Concedida a Bernardo Buarque de Hollanda
Freyre falece em 1987, em torno desse período que você está terminando o doutorado.
Ele já havia falecido quando comecei a ler com maior atenção e interesse as obras dele.
Escrevi um ensaio, que foi primeiramente apresentado na Brasa, como disse, sobre a impor-
tância do ensaio na obra do Freyre, e como isso estava ligado a seus interesses pelos ingleses.
O artigo, que surgiu daí, foi publicado na revista Tempo Social e, pouco depois, em versão
inglesa, na revista The European Legacy. Quando fui a Recife em 2000, já estava amadurecen-
do a ideia de escrever uma obra sobre o período formativo de Freyre, sem ainda saber que a
biblioteca em Apipucos me forneceria pistas maravilhosas para isso. Uma coisa de que agora
me dou conta é que tenho um especial interesse por estudar o período formativo, aquilo que
faz alguém se tornar ou realizar aquilo pelo qual depois ficou famoso. O que aconteceu com
Anísio Teixeira, por exemplo? Oriundo de uma família oligárquica baiana, destinado pela sua
educação a ser um jesuíta, o que o teria feito abandonar a carreira religiosa para a qual pare-
cia predestinado e transformar a educação na sua religião? O que aconteceu para que ele, de
repente, ainda muito jovem, desse essa “virada”?
No caso de Freyre, parece que existe também um paralelismo com sua própria trajetó-
ria, porque o período formativo dele é o mundo anglo-saxão. De alguma forma, você
também teve a experiência nos Estados Unidos e depois a experiência na Inglaterra...
É, às vezes me pergunto se eu poderia ter escrito esse livro se não morasse aqui. Acho
importante o lugar de onde se fala, de onde se está. Esse livro sobre os anos formativos de
Freyre também estava ligado muito a essa pergunta sobre o que teria feito um indivíduo que,
quando jovem, compartilhava com a elite os preconceitos da época contra o mestiço, vendo-o
como um elemento que impedia o progresso do Brasil, mudar drasticamente de atitude. O
que teria feito ele, aparentemente de repente, se impor como um defensor da mestiçagem,
mudando o parâmetro com o qual se pensava o Brasil e transformado o que era tido como
uma desvantagem em vantagem? Em 2000, quando eu estava em Recife, xeretei a biblioteca,
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Entrevista com Maria Lúcia Garcia Pallares-Burke
folheei os livros e vi que o que era extremamente valioso na biblioteca de Freyre eram os
livros que haviam sido adquiridos por ele quando jovem e lidos no seu modo, por assim dizer,
“descuidado”.
Não, na própria Fundação Gilberto Freyre, que fica na casa que Freyre viveu em Apipucos.
Folheei e vi que eram livros que haviam sido dele, que ele lera exatamente aquele livro, aquele
exemplar. Voltando para a Inglaterra, consegui grant da British Academy para voltar a Recife, e
lá fiquei algum tempo pesquisando exatamente esse período formativo de Freyre e as leituras
que ele fez, lendo, pegando os livros que ele leu — os próprios livros — e verificando todas
as marcas que ali deixara.
Tentei escrever uma biografia genética acompanhando seu desenvolvimento, e não ven-
do a coisa de trás para frente, não partindo, pois, da ideia de que ele era o grande escritor de
Casa-grande & senzala. Tentei acompanhar seus passos, suas indecisões, seus desafios, seu
“namoro” com a Ku Klux Klan, por exemplo — enfim, como suas ideias foram sendo desen-
volvidas passo a passo, tentando verificar os passos determinantes.
Porque até então o núcleo dos interesses, das argumentações, em torno da obra de
Freyre estava focado nas ideias de Casa-grande & senzala. Não havia esse estudo mi-
nucioso sobre a constituição mais abrangente desse pensamento. E, talvez de novo, o
paralelismo me parece forte, o interesse dele pelo mundo anglo-saxão e sua vivência
nesse ambiente cultural acadêmico, o fato de você também poder rastrear referên-
cias que aqui eram mais familiares do que no Brasil. Isso contribui para você fazer
essa reconstrução mais minuciosa.
Tem razão. O que você menciona, acho realmente relevante. Uso um fragmento de um
ensaio do Chesterton [Gilbert Keith] para falar sobre Freyre e a importância de seu afastamen-
to do país. Aquela história de que o amigo chega e lhe pergunta: “Aonde você está indo?”
Chesterton estava em Battersea, que é um bairro de Londres, com as malas prontas para partir.
“Vou para Battersea.” Ao que o amigo replica: “Mas você já está em Battersea.” Chesterton,
então, lhe diz mais ou menos o seguinte: “Todo objetivo de viajar não é pôr os pés em terras
estrangeiras, mas pôr os pés em nosso próprio país como se fosse uma terra estrangeira. O
único meio de chegar à Inglaterra é ir para longe dela.” Enfim, ele tinha de sair de Battersea
para chegar a Battersea. Acho que com Freyre foi isso. A trajetória dele mostra a força dessa
visão de longe que se junta com a de dentro e produz, algumas vezes, algo inovador e valioso.
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Concedida a Bernardo Buarque de Hollanda
Acho que isso, de certo modo, se aplica a qualquer pessoa que passa a ver o próprio país de
longe. Vê-se sob outros ângulos, com diferentes perspectivas. No meu caso, é difícil avaliar,
mas talvez se eu estivesse no Brasil, escrevendo com base na minha experiência só de lá, meu
livro sobre a trajetória de Freyre não fosse exatamente o mesmo.
Com todas essas referências que você descreve dele em Oxford, imagino que pesqui-
sando daqui foi possível uma maior familiaridade.
Os desafios que tive de enfrentar para escrever essa biografia intelectual do seu período
formativo foram grandes. Por estar buscando seus tateamentos, suas indecisões, os obstáculos
que ele teve de superar, os desafios que teve de enfrentar, verifiquei que ele havia comparti-
lhado as ideias racistas mais extremas em voga nos Estados Unidos que conheceu a partir de
1918. Ou seja, que os preconceitos com que saíra do Brasil haviam aumentado significativa-
mente, por algum tempo, com o que encontrou lá fora em total ebulição. Ele chegou a escrever
com simpatia sobre o Ku Klux Klan e outros defensores da democracia branca nos Estados
Unidos, mesmo quando voltou para o Brasil após cinco anos de ausência.
O elogio que Freyre fez a Tillman [Benjamin], um dos mais brutais defensores da “de-
mocracia branca”, por exemplo, era, por assim dizer, nada menos que chocante. Assim como
também era sua admiração pelos programas norte-americanos para a “melhoria da raça”,
muito inspirados na assim chamada “ciência da raça” e na sinistra pseudociência da eugenia.
Um dos desafios que eu tinha de enfrentar era o seguinte: o grande defensor da mestiçagem
no Brasil, Gilberto Freyre, poucos anos antes de publicar seu Casa-grande & senzala, via com
simpatia a Ku Klux Klan e Tillman. Como apresentar isso com sabedoria e compreensão?
Referi-me à Universidade de Baylor, que é a experiência que ele tem no Sul dos Esta-
dos Unidos, antes de ir para Columbia, que também é um dos focos narrativos dessa
inflexão, quando ele trava contato com o antropólogo Franz Boas.
Exatamente. Mas um contato com esse grande intelectual muito menos importante na
época do que ele quis fazer crer depois, porque posso dizer, com quase 100% de certeza, que
Freyre descobriu Franz Boas mais tarde, e muito pela influência de Rüdiger Bilden. Bilden, o
amigo que Freyre conheceu na Columbia University, era não só discípulo como amigo pessoal
de Franz Boas. Apesar de, com o passar do tempo, Freyre querer dar a impressão de que tivera
uma relação próxima professor-aluno com Boas, as evidências apontam o contrário. Uma
carta de Boas ao seu ex-aluno Herskovits [Melville Jean] deixa claro que, tendo sido um entre
centenas e centenas de alunos, e não seu orientando, Freyre não deixara nenhuma impressão
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Entrevista com Maria Lúcia Garcia Pallares-Burke
em Boas. O nome de Freyre não era nem sequer lembrado por Boas em 1936, e ele não tinha
nenhuma ideia de quem se tratava.
Seguramente não. As ideias de Boas foram absorvidas e digeridas por Freyre lentamente,
fruto de conversas com Bilden e de leituras feitas com mais cuidado após sair da Columbia
University e voltar para o Brasil. Não foi, portanto, uma conversão imediata, como Freyre su-
geriu no seu prefácio de Casa-Grande, em 1933, como querendo dizer: “Conheci Boas e me
transformei em outro homem.” Foi um grande desafio trabalhar com essa crença de Freyre no
racismo cientifico, algo que, até então, salvo engano, não era conhecido. Ao menos para mim e
para muitos dos meus leitores e resenhistas, foi uma surpresa. O segundo desafio era enfrentar
a questão da homossexualidade, sobre a qual...
...silenciava.
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Concedida a Bernardo Buarque de Hollanda
Sim, pensei que estivesse entrando num campo difícil, mas decidi enfrentar o tema com
a dignidade que Freyre queria que ele fosse tratado, não me importando com a recepção. Nas
próprias palavras de Freyre, ele vivera em Oxford “uma breve aventura de amor homossexual,
no melhor sentido da expressão, sem canalhice alguma”, e essa aventura, que, como ele disse,
foi “lírica, além de sensual”, o fizera experimentar o “amor na sua plenitude e na sua diversi-
dade de expressão”. Apesar de ser difícil aquilatá-los com exatidão, não se podem minimizar
o impacto emocional e estético que esse encontro teve no desenvolvimento de Freyre e suas
repercussões em sua trajetória intelectual. Estou convencida de que o caráter da sensibilidade
de Freyre e seu interesse e percepção artística foram indelevelmente marcados pelo encon-
tro com esse jovem inglês que crescera imerso num rico ambiente artístico pré-rafaelita. A
descoberta que Freyre fez de todo um determinado universo artístico britânico — Rossetti,
pré-rafaelitas, William Morris etc. —, que se mostrará essencial para seu pensamento e sua
ação ao retornar ao Brasil, remontava a esse encontro efêmero, mas muito significativo, com
o jovem Linwood Sleigh, filho de um artista pré-rafaelita e, ele próprio, um artista talentoso.
O mesmo se diz sobre a relação entre ele e José Lins do Rego, com insinuações da
amizade entre os dois.
Sim, li muitas dessas cartas trocadas entre Lins do Rego e Freyre após sua volta a Recife,
e concordo que a amizade entre eles, pelo que se pode perceber nessas trocas, era também
muito especial. Bem, tão logo o livro foi publicado, tive uma grande surpresa quando saiu
a primeira resenha do livro Gilberto Freyre: um vitoriano dos trópicos, publicada, se não me
engano, no Diário de Pernambuco...
Sim, no finalzinho de 2005. Essa primeira resenha foi escrita pelo grande historiador
Alberto da Costa e Silva, africanista famoso, grande homem. Nunca mais achei a resenha,
preciso procurar, mas foi o maior presente que eu poderia receber. Ele dizia mais ou menos
assim: “A parte mais bonita do livro é quando a Maria Lúcia trata da questão homossexual em
Gilberto Freyre, que eu gostaria de ter escrito.” Falei para mim mesma: “Bom, já ganhei um
prêmio.” De verdade, essa recepção foi, para mim, meu primeiro e inesperado prêmio.
Foi premiado pela Academia Brasileira de Letras (Premio Senador José Ermírio de Morais)
e pelo Jabuti. Mas o primeiro grande prêmio foi essa resenha do Alberto da Costa e Silva, que
na época tinha mais de setenta anos. Refiro-me à idade porque seria compreensível que ele
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Entrevista com Maria Lúcia Garcia Pallares-Burke
carregasse toda a marca de uma formação mais conservadora e não apreciasse minha abor-
dagem sobre a homossexualidade do jovem Freyre.
Havia o temor de que você seria atacada, porque tocou nesse tema-tabu. De fato, é
uma pesquisa desenvolvida a fundo. Freyre foi reconhecido por ser um inovador da
historiografia, ao trazer a cultura material e as novas fontes para sua obra. Um vi-
toriano dos trópicos chama a atenção pela vasta documentação que você conseguiu
levantar não só no Brasil, mas nos Estados Unidos, onde ele residiu. Também há o
trabalho da Maria Lúcia historiadora que faz jus a uma obra tão grande. Então, eu
queria que você comentasse um pouco sobre sua metodologia, porque ali também
há sua formação como historiadora. Você, em 2000, publica o livro As muitas faces
da história, coletânea de entrevistas com historiadores contemporâneos de ponta,
reconhecidos e que atuam nessa área da história cultural. Eu queria que você falasse
da metodologia de pesquisa para um livro tão denso, com fontes primárias e que
resultou nessa obra tão impressionante.
Tenho dificuldade para falar de “meu método”, pois penso que tudo depende das fontes
disponíveis para cada tema que se estuda. Mas há também uma escolha prévia, antes de se
buscarem as fontes. No meu caso, por estar interessada no processo de formação de Gilberto
Freyre (e de Rudiger Bilden), isso estabelece a “cena” a partir da qual certas fontes são vistas
como essenciais. Não estava, portanto, interessada primordialmente em fazer um estudo crí-
tico de sua obra, e sim em escrever uma biografia desenvolvimentista ou genética. Tendo isso
em vista, mergulhei no vasto material que existia — grande variedade desse material encon-
trado na Fundação Gilberto Freyre de Recife —, o qual incluía centenas de cartas, quarenta
volumes de recortes de jornal e de revistas contendo referências de todo tipo à obra de Freyre,
bem como as anotações feitas por Freyre em seus livros, que foi a fonte mais rica e valiosa para
o tipo de livro que escrevi sobre o período formativo do jovem Gilberto.
Minha pergunta principal, ou melhor, o “problema” que me interessou ou me impulsio-
nou, por assim dizer, foi o seguinte: como explicar que um livro como Casa-grande & senzala
— fundamental para transformar a autoimagem do Brasil e lhe injetar a autoestima de que
carecia — tivesse sido escrito por um jovem brasileiro que, como tantos outros brancos de sua
época, se orgulhava dos ancestrais europeus que haviam se tornado parte da elite do país, que
compartilhava com sua classe os preconceitos contra a população negra e mestiça e que sentia
também uma profunda frustração por ser brasileiro, para lembrar o sentimento amplamente
disseminado entre a elite que Paulo Prado tão bem explorou em seu livro Retrato do Brasil —
um sentimento que Freyre bem cedo manifestou ao claramente lamentar: “Por que não nasci
inglês, ou alemão, ou americano...?” Mas, além dos livros manuseados por Freyre, a correspon-
dência que encontrei em Apipucos foi também fundamental para o trabalho que desenvolvi.
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Concedida a Bernardo Buarque de Hollanda
Essa é a fonte primária que mais me chama a atenção e que também não é uma fonte
primária fácil.
Não, nada fácil, porque às vezes, ou a maioria das vezes, não se tem toda a conversa;
apenas um pedaço dela. Se a conversa por cartas acontece regularmente, fica mais fácil supor
o que a outra pessoa escreveu. Quando, no entanto, a correspondência é irregular ou se tem
somente uma ou poucas cartas, a dificuldade aumenta. Enfim, é necessário muito cuidado
para não se assumir o teor de toda a conversa. No caso de Freyre, tive acesso ao outro lado da
conversa quando descobri em alguns arquivos, como de Francis Simkins, cartas enviadas por
Freyre. Mas foram casos relativamente raros.
É manuscrita, é uma lida que requer muito. Não que tenha havido uma mudança do
seu perfil como pesquisadora, mas é um mergulho, como você diz.
Foi um desafio muito grande dar um sentido àquele volume imenso de material, aos
milhares de recortes de jornal, muitos deles quase ilegíveis, contendo referências de todo tipo
à obra de Freyre. Havia também um número incrível de papéis avulsos, caderninhos, coisas
de todo tipo, pois Freyre guardava tudo. Na verdade, devo agradecer a Freyre a possibilidade
de escrever uma obra como a que escrevi, porque ele, ao que tudo indica, guardava mesmo
aquilo que poderia vir, eventualmente, a macular sua imagem. Ou seja, Freyre não seguiu o
exemplo de tantos outros grandes homens que tentaram dificultar o trabalho de futuros bió-
grafos. Para mencionar alguns exemplos, Freud, Henry James, Charles Dickens e Thomas Hardy
destruíram — ou deixaram ordem expressa para que fosse destruída após sua morte — toda
a documentação que poderia ajudar a reconstruir suas trajetórias. Assim, não obstante sua
notória vaidade e seu desejo de ser visto positivamente pela posteridade, Freyre não fez uma
fogueira de seus papéis porque tinha uma aguda consciência da importância dos documentos
históricos e desde cedo considerava tudo digno de ser preservado, desde cardápios de res-
taurante e entradas de teatro até cartas contendo duras críticas à sua pessoa. Considerando
a montanha de papéis que existe em Apipucos, ainda resta muito a ser descoberto, e estou
longe de dizer que exauri as possibilidades de trabalho.
Penso que dar conta de tudo isso, de modo exaustivo, é uma ilusão. Não só porque novas
perguntas podem provocar a descoberta de novas fontes, mas porque a quantidade é tal que
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Entrevista com Maria Lúcia Garcia Pallares-Burke
precisaríamos de muitas vidas para realizar uma pesquisa exaustiva. O que também é interes-
sante anotar para futuros pesquisadores é que, na Fundação Gilberto Freyre, há quatro volumes,
organizados pela Magdalena, mulher dele — minha suposição é que tenham sido organizados
contra a vontade dele —, que contêm tudo o que ela achava que era hostil a ele: resenhas,
comentário de qualquer tipo, artigos de jornal, que ela via como críticas ao marido, e assim por
diante. Para mostrar seu desagrado, ela deu aos quatro volumes o título de WC (water closet):
privada. É um material interessante e está todo lá para ser lido. Enfim, não há falta de material.
Minhas fontes básicas foram essas a que estou me referindo e os livros de Freyre. Os
livros que ele leu, com as marcas que deixou. Às vezes ele fazia uma marca com a unha; nou-
tras, riscava com um lápis; e volta e meia fazia um comentário como “like in Brasil”. No tempo
em que estive na Fundação Gilberto Freyre, eu trabalhava horas a fio examinando sua obra e
procurando suas marcas. Não lia propriamente os livros, porque não haveria tempo para isso e
eu podia lê-los aqui. Eu focava em anotar as marcas que ele fizera na página tal da edição tal,
para poder recuperar depois exatamente o trecho que havia lhe chamado a atenção.
Mais do que reconstituir o método de Freyre — que se caracterizava desde sempre como
antimetódico, impressionista ou “desleixadamente ensaístico”, como já foi dito —, minha
preocupação era recuperar suas leituras, seus interesses e o impacto que os ensaístas, que des-
cobriu primeiramente na Universidade de Baylor, tiveram em sua formação. Para isso, os diários
da juventude — diários de verdade, não o “diário” que depois ele publicou em 1975 —, que
nada mais eram do que anotações que ele fazia de modo assistemático em qualquer papel
avulso, registrando ideias, comentários e trechos inspiradores, foram achados preciosos para a
biografia desenvolvimentista que estava escrevendo. Há anotações lá dos anos 1920, 1921, e
numa delas ele escreve essa frase reveladora: “A verdade é como a esposa adúltera — ora com
o esposo, ora com o amante. Flutua. Oscila entre os dois. Não há razão. Há razões. A razão está
um pouco em toda parte. A razão? Uma mina aonde qualquer pode ir, com sua picareta, extrair
razões.” Em outro caderninho, ele confessa a razão pela qual não queria se radicar nos Estados
Unidos: “Posso andar em inglês, porém não dançar na ponta dos pés; tenho de contentar-me
em andar — mais nada —, e assim mesmo mal.” Enfim, para dançar com a língua, uma ambi-
ção que se manifesta muito cedo, Freyre reconhece que tinha de escrever em português.
Sim, e quando volta ainda não era o Freyre que a gente conhece como o grande defensor
da mestiçagem. Para isso ainda teria de caminhar bastante. O período formativo de Freyre é
muito cativante, é muito fascinante acompanhá-lo.
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Concedida a Bernardo Buarque de Hollanda
Alguns aspectos dessa polêmica podem ser muito relativizados. Já desde antes do Mani-
festo Regionalista, Freyre estivera envolvido na defesa do regionalismo e das tradições locais,
ao lado de outros artistas e jovens intelectuais que se definiam contra certo tipo de modernis-
mo. Para eles, a rejeição ao passado não era um passo necessário no caminho da moderniza-
ção — processo que poderia perfeitamente admitir tradições brasileiras ou locais em arqui-
tetura, culinária, valores patriarcais, e assim por diante. O contraste acentuado, sempre muito
lembrado, entre o chamado movimento tradicionalista e regionalista, liderado por Freyre, e o
movimento modernista e internacionalista de São Paulo, liderado por Mario de Andrade, pode
ser visto como falso. O jovem Freyre mostrava muita simpatia pelo modernismo e também pela
modernidade, desde que ela respeitasse o passado. E os modernistas de São Paulo, que não
desejavam se afastar totalmente da tradição, queriam criar uma forma distintamente brasileira
de modernismo, o que significava buscar subsídios nas tradições locais — coloniais, indígenas
ou africanas —, em vez de abandoná-las por completo.
Não conheço esse filme, mas essa ideia de Freyre aristocrata e muito rico foi bem difundida
por muito tempo, e talvez ainda esteja viva em certos círculos. Mas a verdade é que ele não era
nada rico, nunca foi rico. A casa que morou desde 1941, se não me engano, e onde está instalada
a Fundação Gilberto Freyre, é uma casa bonita, estilo colonial, que ele comprou e transformou aos
poucos numa pequena mansão, colocando inclusive azulejos coloniais que trouxe de Portugal.
Lembro bem, contudo, quando a Sônia [Freyre] nos mostrou a casa toda e chegamos ao
quarto de Freyre. Era um quarto grande, do tamanho dessa sala, talvez um pouco maior, onde
estava sua cama, seus guarda-roupas etc. Ela disse: “É aqui que vivíamos, todos nós. Este era
o quarto da família. Só havia um quarto na casa, e era esse.” Enfim, durante muitos anos, os
pais e os filhos dormiam no mesmo quarto. Só mais tarde, quando Freyre juntou dinheiro para
fazer uma reforma, é que outros quartos foram construídos. Então, era um grande esforço para
ele parecer um senhor de engenho, se é que ele tinha essa intenção — aliás, acho que não
tinha, ao menos inicialmente. Como disse Sonia, sua mãe Magdalena estava sempre atrás do
Diário de Pernambuco e da revista O Cruzeiro, periódicos para os quais Freyre contribuía, e
também dos seus editores, insistindo que pagassem melhor ao marido.
A casa de Freyre também é interessante de visitar, pois, se não mudou desde a última vez
em que estive lá, tem montanhas de papéis até o teto, provavelmente parte grande já impossível
de ser lida. Mas ainda há muita coisa a ser achada. Tenho certeza de que lá no meio daquela
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Entrevista com Maria Lúcia Garcia Pallares-Burke
papelada deve estar o manuscrito do Rüdiger Bilden, do livro que jamais foi publicado, que o
próprio Freyre confessa ter sido a única pessoa a quem Bilden franqueou a leitura. Há muita
coisa a ser descoberta. Nesse quarto grande, onde a família toda dormia, lembro-me de ter
visto aberto um ou dois imensos guarda-roupas antigos, com pilhas de papel, do chão ao teto.
O material que existe para quem quiser mergulhar no material primário continua lá.
Jamile [Barbosa] é a responsável por manter tudo aquilo e auxilia muitíssimo os pesquisado-
res. Na época em que ali estive, o Fernando, filho de Freyre, dirigia a fundação, mas morreu
muito cedo. Lembro que estava na Holanda, em Wassenaar, terminando o livro, e havia acaba-
do de lhe escrever pedindo autorização para utilizar uns textos. Logo depois ele morreu de um
aneurisma cerebral, aos 61 anos. A intenção de Jamile é digitalizar o material e catalogá-lo,
mas a fundação carece de recursos, ou ao menos essa era a realidade até há pouco tempo. Há
necessidade de muita gente especializada para fazer esse trabalho. Imagino que essa dificul-
dade seja a mesma de muitas outras instituições semelhantes.
É nome de aeroporto, é nome disso e daquilo, mas seu acervo não está digitalizado...
[risos].
Exato.
Queria fazer um gancho, porque sua obra continua com o volume seguinte Social
theory in the tropics [Gilberto Freyre: Social theory in the tropics]. Três anos depois
de Um vitoriano dos trópicos (2005), você publica, em parceria com Peter Burke, um
novo livro sobre Gilberto Freyre, dessa vez em inglês, ou seja, deu pano para manga
a pesquisa. Mesmo com um livro robusto, premiado e denso sobre Freyre, você con-
tinua a tê-lo como um interlocutor, organizando, escrevendo e publicando um novo
livro sobre ele. Eu queria ouvi-la sobre esse segundo livro. Mas você tinha ainda
alguma coisa para completar...
Sim, um diferencial era apresentar Freyre para o público não brasileiro, que pouco ou
nada sabia sobre um de nossos maiores intelectuais do século XX. Mas também achávamos
Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 68, p. 797-810, setembro-dezembro 2019 797
Concedida a Bernardo Buarque de Hollanda
que teríamos uma contribuição a dar para o mundo dos estudiosos brasileiros, porque até
então, não sei se mudou, não havia um livro que tratasse de Freyre como um todo.
Nosso objetivo com esse livro, que espero que a gente tenha conseguido, pelo menos em
parte, foi oferecer uma imagem de Freyre a mais ampla possível, mas também uma imagem
equilibrada, que teria muito a dizer de positivo, de valioso, sobre seus insights, sua originali-
dade, sua importância para a biografia do país, sem deixar, no entanto, de apontar aquilo que
vemos como suas fraquezas. Em outras palavras, a imagem que pensamos ter apresentado aos
leitores é a de um Freyre complexo, rico e humano, muito diferente de um modelo de perfeição,
que mais parece uma estátua de mármore do que um homem — tal como Freyre criticava as
muitas “biografias triunfais” que, como disse, “deixam os grandes homens descansar na sua
glória de estátuas”, por quererem vê-los “sempre olímpicos e cor-de-rosa”.
Exatamente. A ideia tanto minha no “vitoriano dos trópicos” quanto depois em nosso
livro a quatro mãos, era apresentar Freyre com toda a sua complexidade, humanidade, con-
tradições, fraquezas e grandezas humanas. Lembrando que uma coisa que sempre me deu
força para continuar escrevendo a primeira biografia foram as próprias palavras dele contra a
biografia triunfal. Elas me estimulavam a continuar a mergulhar na questão de seu racismo,
de sua admiração pelas políticas segregacionistas americanas, na homossexualidade. Também
me ajudou a não me intimidar diante da forma pouco honesta com que Freyre procurou de-
negrir a imagem de um grande amigo e interlocutor, talvez seu maior interlocutor do período
formativo, que foi Rüdiger Bilden.
Até o período que segue à publicação de Casa-grande & senzala, há uma tradição
mais conservadora que acusa o livro por falar de sexo. Mas o livro cultiva essa ima-
gem renovadora que vai ser associada a ele tanto do ponto de vista da imagem do
Brasil, ao longo dos anos 1930, no período Vargas, quanto de renovação do modo
como se escrevia história e se abordava a vida íntima do Brasil. A partir do pós-Se-
gunda Guerra, as próprias posições políticas dele o tornam um intelectual mais visa-
do em virtude de posições pró-salazaristas.
É verdade que o estilo de Freyre atraiu, desde o início, elogios e críticas. Para alguns, seu
estilo coloquial, “sem sombra de pedantismo, sem ar doutoral, sem sobrecasaca”, era louvá-
vel, enquanto, para outros, sua linguagem era indigna. Chegou a ser comparado a um homem
que fosse a um jantar formal vestido de jogador de tênis. Mas, deixando de lado a questão
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Entrevista com Maria Lúcia Garcia Pallares-Burke
do estilo freyreano, a crítica, já a partir dos anos 1940, mas crescendo ao longo dos anos,
voltou-se mais para a questão política. Aconteceu, então, o que é compreensível, e muitos
críticos passaram a olhar Freyre de trás para a frente, como se ele sempre tivesse sido aquela
pessoa que tinha certa simpatia pelo regime de Salazar e que apoiara o golpe de 1964. Como
decorrência, a tendência de desqualificar e desmerecer o que Freyre fizera de positivo passou
a vigorar, deixando-se de lado inclusive seus elogios à lucidez e à dignidade de Luís Carlos
Prestes, bem como sua louvação à vitória do Partido Trabalhista britânico em 1945 como ten-
do um “significado transnacional”. Freyre pode ser considerado um contemporâneo, por estar
ainda a provocar debate, levantar perguntas, causar reações, muitas delas apaixonadas, mais
de oito décadas após sua primeira grande obra ser divulgada no país e, mais tarde, no exterior.
Esse objetivo que vocês tinham no início de dar a conhecer ao público internacional,
dez anos depois de publicado — foi publicado primeiramente em 2008 e depois saiu
uma versão em português em 2009 —, vocês acham que foi alcançado? Assim como
você teve aquela grata surpresa com a resenha do Alberto da Costa e Silva, houve
essa recepção ao livro fora do país? Ou mesmo da comunidade brasilianista ou lati-
no-americanista nas universidades?
Não. Acho que ele teve alguma repercussão no mundo dos brasilianistas e latino-ameri-
canistas, mas não muito mais ampla do que isso. Nossa maior ambição era levar o Freyre para
fora do mundo de brasilianistas e latino-americanistas, pois achávamos que ele tinha coisas
importantes a dizer para scholars em geral. A gente esperava que o livro tivesse resenhas
publicadas em periódicos de maior circulação, como The Times Literary Supplement, o que
não aconteceu. Houve algumas importantes resenhas em periódicos norte-americanos, acho
que a maioria, e alguns ingleses, mas o que nos surpreendeu e nos agradou foi uma resenha
num importante periódico holandês, Tijdschrift voor Geschiedenis, escrita por um conhecido
historiador, que levava Freyre para fora do nicho dos brasilianistas. Acho que isso aconteceu
porque chamamos Freyre de “the Brazilian Huizinga [Johan]”, que é talvez o maior historiador
holandês. Isso chamou a atenção. Mas a gente pode dizer que Freyre e o Brasil — o Brasil de
modo geral e Freyre de modo particular — não fazem parte do mapa intelectual e cultural
europeu. Quem faz parte do mapa intelectual é Paulo Freire, que é respeitado como um grande
educador e mais conhecido como figura internacional, porque diz coisas que interessam a
muita gente, que tocam a muitas pessoas de várias origens. O Brasil, infelizmente, ainda é
relacionado na mente da maior parte das pessoas a carnaval, sexo, violência, belas praias
ensolaradas. Agora, nos últimos tempos, à destruição ambiental e ao crescimento do neofas-
cismo — como se prenuncia se Bolsonaro vencer as eleições, como tudo indica.
Como exemplo dessa visão do Brasil como culturalmente pouco rico, lembro quando es-
távamos no Instituto de Estudos Avançados de Wassenaar, na Holanda, em 2005. Foi lá que
Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 68, p. 799-810, setembro-dezembro 2019 799
Concedida a Bernardo Buarque de Hollanda
acabei de escrever o livro sobre Freyre. O Peter, como fellow do Instituto e também da Royal
Library em Haia, tinha como obrigação dar um seminário sobre um tópico de sua escolha. Como
já estávamos pensando em escrever o livro a quatro mãos, e talvez por querer testar o tema
diante de uma plateia estrangeira, ele escolheu falar sobre Freyre. Ficou óbvio que falar sobre
um brasileiro desconhecido frustrou as expectativas dos seus colegas fellows do instituto. Lem-
bro-me bem dos comentários surpresos de vários deles, que esperavam ouvir de Peter Burke, um
conhecido historiador cultural, algo sobre o Renascimento europeu, ou algum tema considerado
elevado na chamada hierarquia dos assuntos. Lembro que um dos fellows chegou para mim e
falou mais ou menos o seguinte: “He is going to speak about a Brazilian topic? Gilberto Freyre,
who is that? I was expecting a talk about, you know, Europe… Has he given up Europe?”
Imagino que o tema escolhido pelo Peter tenha sido visto pela grande maioria dos
fellows mais ou menos desse modo: “Como assim? O grande historiador da cultura europeia
está falando de uma pessoa que ninguém conhece, ainda mais um latino-americano, um bra-
sileiro?” Não acredito que houvesse a intenção direta de menosprezar Freyre, mas era óbvio
o choque, o estranhamento, e a consciência de que era um assunto irrelevante ou “menor”.
Um dos objetivos de nosso livro era mostrar a relevância de um estudo de um pensador que
não era europeu para os europeus ou para os não brasilianistas ou latino-americanistas que já
o conheciam. Mas, infelizmente, o problema não é só o Freyre; é o Brasil de modo geral, que
não faz parte do mapa intelectual.
Isso porque não existe uma política científica, porque não houve essa internacionali-
zação para a aplicação em língua inglesa?
Exatamente. Traduções do português são bem raras ainda e dificultam muito a divulgação
de ideias produzidas no nosso contexto linguístico. O livro de entrevistas, As muitas faces da
história, que é meu livro de maior sucesso, foi traduzido para cinco línguas, mas só depois que
saiu em inglês. Inclusive a tradução para o espanhol foi feita com base no inglês, o que vejo
como um absurdo, pois seria muito melhor o texto em espanhol ser traduzido diretamente do
português. Há o problema da língua, que limita o alcance de certas ideias. Como disse Fernand
Braudel a respeito de um brilhante mas pouco conhecido historiador polonês, diferentemente
dele, que tinha um alto-falante francês a lhe garantir maior audiência, as inovações de Witold
Kula, por mais importantes que fossem, estavam mais ou menos fadadas a ficar confinadas
ao seu contexto linguístico. Mas, além do problema linguístico, há também um problema de
perspectiva, já que um “centro” cultural tende a mostrar pouco interesse pelas chamadas “pe-
riferias”. Nossos grandes intelectuais e autores são desconhecidos fora do Brasil, com poucas
800 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 68, p. 800-810, setembro-dezembro 2019
Entrevista com Maria Lúcia Garcia Pallares-Burke
exceções, como Clarice Lispector. Ela é muito valorizada aqui, e as pessoas muitas vezes nem
sabem que ela é brasileira. Mesmo Machado de Assis não é conhecido como deveria.
É triste.
É até um diferencial do próprio Freyre, por ele romper com a tradição francófona dos
brasileiros, muito voltada para a França. Ele tem uma trajetória que o diferencia e que
também contribui para que trouxesse novas ideias ou uma maior perspectiva sobre o
Brasil. Tem a ver com essa relação com o mundo anglo-saxão, com universidades de
ponta, Columbia, Oxford...
Ele tinha muito orgulho de ter estado em Columbia, e um orgulho imenso, talvez até
maior, de ter estado em Oxford. Ali Freyre passou pouco tempo, mas foi marcante pela sua
confessa anglofilia, já tão presente desde muito jovem, por ter tido ocasião de se saciar com
tudo o que ali viu e viveu, bem como pela experiência que teve com Linwood Sleigh.
A gente poderia passar para, vamos dizer, essa sua outra obsessão, ou esse outro tra-
ço detetivesco das suas pesquisas, que foi o interesse em torno desse autor alemão,
Rüdiger Bilden. Não se pode dizer que é um esgalho, porque ele quase adquiriu o
mesmo volume, a mesma proporção em termos, pelo menos em termos quantitativos
de pesquisa, de resultados com esse livro O triunfo do fracasso [O triunfo do fracas-
so: Rüdiger Bilden, o amigo esquecido de Gilberto Freyre], de 2012. Se você puder
comentar um pouco...
Como admito no começo do livro, ele é fruto de uma obsessão. Descobri o Rüdiger Bilden
quando estava escrevendo sobre Freyre, porque ele aparecia nos documentos da Columbia
University como um dos mais brilhantes estudantes daqueles anos, alguém muito promissor,
do qual se esperava muito. Acompanhando a trajetória de Freyre, percebe-se também quanto
ele inicialmente admirava Rüdiger Bilden, quanto devia a Rüdiger Bilden. Até em Casa-grande
& senzala ele confessa isso. Acompanhando a trajetória de Freyre, vê-se como, aos poucos,
Bilden vai perdendo importância e chega um momento, não me lembro exatamente o ano,
em que Freyre se refere ao velho amigo de forma depreciativa, dizendo que ele fracassara em
escrever sobre a escravidão brasileira — um “assunto meu”, diz Freyre — por “excesso de
bebida”. Em toda a minha vasta pesquisa, jamais apareceu qualquer referência a um proble-
ma desse tipo na vida de Bilden. Sua mulher, sim, bebia muito, e foi esse o motivo maior do
divórcio do casal.
Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 68, p. 801-810, setembro-dezembro 2019 801
Concedida a Bernardo Buarque de Hollanda
É, e da qual ele se separou muito cedo. Quando resolvi escrever o livro sobre Bilden, é
porque eu achava que ninguém pode desaparecer por completo. “Alguma coisa, algum traço
ele deve ter deixado, então vamos lá, vamos ver o que é possível.” Já no livro sobre Gilberto
Freyre, eu dedicara umas trinta páginas sobre o Bilden. Ali anuncio minha intenção de escrever
um livro sobre ele, mas, na verdade, eu temia que pudesse achar material só para escrever
um artigo mais ou menos substancioso. Mas não, achei o suficiente para escrever um livro, e
me sinto privilegiada de ter tido a sorte — porque há numa pesquisa, como em tudo o mais,
um elemento de sorte — de descobrir muita coisa sobre o Bilden, inclusive sobre sua família.
Atribuir isso a um mérito puramente intelectual, à mera capacidade, não seria honesto. Enfim,
pensei que não fosse conseguir descobrir muito sobre o lado pessoal de sua vida. Minha
grande conquista, da qual muito me orgulho, foi ter descoberto a existência e conhecer pes-
soalmente o único membro sobrevivente da família de Bilden, a sobrinha Helga, que jamais
o conheceu. Também me acho muito privilegiada de ter podido entrar em contato com um
poeta, colega de Bilden e que já estava com 94 anos na época em que o conheci. Ele deu um
belo depoimento sobre Bilden.
Na Alemanha?
Não, nos Estados Unidos. Samuel W. Allen, é seu nome. Esses dois encontros foram de
grande valor para mim. Lembro que, no caso da sobrinha, eu não sabia nem como chegar à
família Bilden nem se existiria alguém, porque do lado dos Estados Unidos eu sabia que ele não
deixara descendentes. Fora casado com Jane, divorciara-se, não teve filho e não se casou nova-
mente. Do lado alemão, eu não sabia por onde começar a investigar, já que nada sabia sobre
sua família, a não ser que tinha um irmão. Foi no Instituo de Estudos Avançados de Wassenaar,
na Holanda, que encontrei um historiador alemão que me deu uma informação preciosa.
Eu sabia que ele havia nascido na cidadezinha de Eschweiler e estava pensando em
escrever para os Bilden que porventura ainda vivessem lá. Ele falou: “É uma ótima ideia.”
Eu nem sabia que eu podia ter acesso à lista telefônica com o endereço de todos os Bilden
que existem na Alemanha; foi por intermédio desse historiador que eu soube. Ele me ajudou
a passar para um alemão perfeito a carta que redigi e que mandei para todos os Bilden que
encontrei na lista telefônica, espalhados por todo o país. Escrevi uma carta cuidadosa, dando
dados que poderiam ajudar os destinatários a reconhecer se eram ou não parentes do “meu”
Rüdiger Bilden. E lá se foram as cartas, que continham meu e-mail e o endereço postal, porque
pensei que, dependendo da idade das pessoas, elas não usariam e-mail. Lembro que esse
jovem historiador alemão me disse: “Vou ajudá-la, mas, se conheço meus compatriotas, você
não vai ter resposta.” Ledo engano. Muita gente, quase todos, me responderam.
802 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 68, p. 802-810, setembro-dezembro 2019
Entrevista com Maria Lúcia Garcia Pallares-Burke
Cartas, mas muitos por e-mail também. Isso foi em 2006. Muitos lamentavam não serem
parentes do “meu” Bilden, mas se mostravam interessados pela pesquisa. Muito interessante
e até comovente foi essa recepção que tive entre os Bilden alemães. Mas nada chegava de
positivo, até o dia em que abri meu e-mail e, em alemão, havia uma mensagem que come-
çava assim: “Na verdade, sou sobrinha, filha do irmão dele que esteve no Brasil...”. Eu nada
sabia sobre a família de Rüdiger, a não ser, por cartas, que ele tinha um irmão que fora tentar
trabalho no Brasil, em 1926, com a ajuda de Rüdiger. Eu tinha o nome desse irmão, a data
em que ele fora para o Brasil, o navio em que viajara, e isso tudo coloquei na carta. Assim, foi
relativamente fácil para Helga confirmar que era seu pai.
Após isso, a história de Bilden ganhou outras cores, outra vida. Cheguei a me encontrar
com a sobrinha em Eschweiller, conheci a cidade, onde até o prefeito me recebeu, acredita?
Houve uma pequena matéria no jornal sobre minha pesquisa e minha visita à cidade, com
foto e tudo. Na época de Bilden, Eschweiller ficava numa região rica; hoje em dia, não mais, é
pobre. A prefeitura e a sociedade histórica tentaram traduzir meu livro sobre Bilden, mas não
conseguiram, por falta de verba. Mas, nesse dia memorável, estive mais de uma hora conver-
sando com o prefeito e com representantes da sociedade histórica de Eschweiller. Foram eles
que me colocaram em contato com uma pessoa, bem velhinha, que havia conhecido os Bilden
e que me passou dados sobre a família, a casa — porque ela morara na mesma rua, quase
em frente a eles. Então, tive esses privilégios de descobrir coisas que jamais poderia esperar
e que me deram um grande incentivo para perseverar nessa busca pela história do promissor
aluno de Columbia.
Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 68, p. 803-810, setembro-dezembro 2019 803
Concedida a Bernardo Buarque de Hollanda
Não, nem pessoas estudiosas de Franz Boas conheciam o nome de Bilden. Mas tenho
os documentos que provam que ele era tão íntimo de seu mestre que até chegou a morar em
sua casa. Porque, na verdade, qualquer estudo é sempre seletivo, e muitas vezes não é uma
seleção consciente dos buracos que são deixados pelo caminho. O grande estudioso de Franz
Boas, George Stocking, com o qual entrei em contato, me disse: “Esse nome, infelizmente, não
conheço, mas pode haver muita gente que não conheço e que fez parte do hall de amigos,
conhecidos e alunos de Franz Boas.” Sempre há buracos em qualquer trabalho histórico, em
qualquer biografia; nunca se conhece tudo. Ernst Gombrich equipara a história individual ou
coletiva a um queijo suíço, cheio de buracos irrecuperáveis, que a mais cuidadosa pesquisa
feita pelo mais talentoso historiador ou biógrafo é incapaz de preencher totalmente.
Eu gostaria, obviamente, que a biografia de Bilden tivesse sido traduzida para o inglês
e para o alemão e que houvesse interesse, mas não aconteceu. Houve um especial empenho
para que ocorresse a tradução para o alemão, tanto da parte de Helga Bilden, que é pro-
fessora universitária, quanto da cidade de Eschweiler, e até de um estudante de doutorado
alemão. O próprio editor da Unesp, Jésio Gutierrez, muito se empenhou, mas ele bem reco-
nhece que é muito difícil conseguir fazer um livro em português ser traduzido. Há uns dois
anos, fui convidada para escrever um capítulo num livro sobre Franz Boas, a ser publicado
pela Yale University Press, que trata da repercussão de suas ideias pelo mundo, assim como
das ideias que ele absorveu de fora. Chama-se Indigenous visions: Rediscovering the World
of Franz Boas.
Fui convidada pelo editor Isaiah Lorado Wilner a escrever sobre Freyre, por ele ser co-
nhecido como discípulo de Boas. Expliquei a ele que eu não escreveria somente sobre Boas
e Freyre, mas sobre Boas, Freyre e Bilden. Ele se entusiasmou, aprovou minha sugestão, e foi
essa a oportunidade que tive para escrever um capítulo sobre Freyre e Bilden, ao qual dei o
título de “A two-headed thinker: Rüdiger Bilden, Gilberto Freyre and the reinvention of Brazi-
lian identity”. O livro saiu há pouco tempo, e o que me agrada é que esse capítulo faz parte
de um livro que não é somente dirigido aos estudiosos do Brasil ou da América Latina, mas a
um público mais amplo, interessado no mundo de Franz Boas.
O capítulo é, em parte, uma síntese do livro, mas dando muito maior ênfase às ideias de
Boas que Freyre e Bilden exploram. Saiu agora em 2018. Isso me alegrou, me deu um pouco
de esperança de que Bilden vá ser mais conhecido. Tentei ser equilibrada, imparcial, mostran-
804 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 68, p. 804-810, setembro-dezembro 2019
Entrevista com Maria Lúcia Garcia Pallares-Burke
E que se auxiliaram mutuamente, porque Freyre teve também importância para que sur-
gisse o interesse de Bilden pelo Brasil. Mas procurei deixar claro quanto, muito antes de Freyre
publicar Casa-Grande, o trabalho que Bilden estava desenvolvendo fora enaltecido por inte-
lectuais brasileiros da envergadura de Oliveira Lima, Roquette-Pinto e Vicente Licínio Cardoso
como um estudo pioneiro do legado sombrio da escravidão para o Brasil moderno.
Até coloquei no roteiro, não sei se você chegou a conhecer esse romance do Bernar-
do Carvalho, um autor da literatura brasileira contemporânea, prêmio Jabuti com
Nove noites. É um misto de uma ficção com passagens documentais. Lembrou-me da
sua pesquisa sobre Bilden pelo traço detetivesco. Na origem do romance, Bernardo
Carvalho leu um artigo da Marisa Corrêa, especialista em história da antropologia
brasileira, que saiu na Folha de S.Paulo, falando desse antropólogo norte-americano
que vem para o Brasil e comete suicídio quando estava em campo, em 1939, e fica
completamente tomado pelo episódio verídico.
Ele não é o antropólogo que teve ligação com o Museu Nacional? Eu já havia ouvido
falar nele.
Isso, Buell Quain. Ele [Bernardo Carvalho] vai e escreve cartas para os Quain que havia
nos Estados Unidos e o livro mescla ficcional com o que ele pôde apurar dessa história.
O livro tenta inferir por que poderia ter acontecido. Ele vai rastreando aspectos da
história de vida dele, afinal é muito difícil dizer o que o levou a cometer suicídio, mas
há um relato muito impressionante. Maria Lúcia, acho que a gente pode ir caminhando
para o fim da entrevista. Assim como você mencionou a resenha do Alberto da Costa e
Silva, lembrei que comentou, antes de a gente começar a gravar, a leitura do professor
Afrânio Garcia Jr. de Triunfo do fracasso. Eu ia lhe perguntar sobre a recepção do livro.
O Afrânio me escreveu uma mensagem generosa e muito comovente ao receber meu livro,
confessando-me que eu chegara num momento difícil, em que ele estava enfrentando uma doen-
ça séria, da qual, felizmente, sei que se recuperou. A leitura do livro, disse ele, estava lhe fazendo
um “bem imenso” e lhe reforçava a vontade de perdurar, pois “há tanto a fazer” e aprender.
Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 68, p. 805-810, setembro-dezembro 2019 805
Concedida a Bernardo Buarque de Hollanda
Sua ideia, naquele momento, era escrever uma resenha de O triunfo do fracasso assim
que estivesse melhor, mas que acabou nunca sendo finalizada. Ele já escrevera uma bela
resenha de meu Vitoriano dos trópicos que fora publicada na revista dos Annales. No entanto,
seus ricos comentários sobre a biografia intelectual de Bilden já valeram para mim como se
fossem uma resenha, que me deixou imensamente feliz. O fato de o livro tratar de “circula-
ção internacional de ideias” e de ser uma “biografia heurística”, como disse, não centrada
em indivíduos “geniais”, parecia-lhe especialmente valiosa para apreciar a contribuição de
doutorandos estrangeiros para o perfil das instituições nacionais e internacionais. A relação
entre os debates teóricos e a militância antirracismo também o atraiu, inclusive porque, como
diz, pouco ou nada se sabe hoje sobre o fato de, no bairro negro de Harlem, nos anos 1920,
imagens do Brasil terem reforçado o ânimo de enfrentar a segregação.
E o livro chegou a ter recepção no Brasil? Dentro da história das Ciências Sociais no
Brasil, é uma página inédita, é um autor que você traz que tratou de relações raciais,
algo tão caro à realidade brasileira, e que esteve no Brasil.
Primeiramente, antes do lançamento Brasil, lancei o livro na Frankfurt Fair, que atraiu
um público interessado no Brasil e no papel importante que um alemão teve na luta contra a
segregação racial norte-americana ao longo de décadas. É difícil, no entanto, medir se o livro
teve qualquer impacto mais duradouro. Tive também boas resenhas, que ajudaram muito na
divulgação da obra. Alguns convites surgiram a partir daí, para Rio de Janeiro, São Paulo e
Recife. No Rio, estive no Colégio Brasileiro de Altos Estudos da UFRJ, a convite do professor
José Sergio Leite Lopes, onde houve uma discussão muito boa com a presença do Peter Fry e
outros intelectuais de igual calibre. Em Recife, onde estive após o lançamento em São Paulo,
e onde também foi feito um pequeno lançamento no Expoidea de 2013, senti um ligeiro mal-
-estar. Fui entrevistada várias vezes naquela ocasião e tive a impressão de que, para muitos,
era incompreensível que após uma biografia de Freyre em que este ganhava em humanidade,
a mesma autora escrevesse uma biografia em que um lado mais sombrio de Freyre fosse res-
saltado. O que foi um tanto frustrante foi perceber que, apesar de o livro sobre Bilden ter mais
de quatrocentas páginas, das quais somente trinta foram dedicadas a Freyre, ou melhor, ao
relacionamento entre os dois amigos — “Freyre e Bilden: um sucesso a partilhar?” —, muitos
leitores parecem ter deixado Bilden totalmente de lado e se voltado unicamente para essas
páginas sobre Freyre que estão no fim, no epílogo.
Deve ser, mas é uma pena, porque acho que a trajetória de Bilden é muito bonita, tem
muito a ensinar. Enfim, ele é uma figura generosa e cativante, que, independentemente de
Freyre, merece ser estudada por si própria. Por meio de sua história, que não deixa de ter lados
806 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 68, p. 806-810, setembro-dezembro 2019
Entrevista com Maria Lúcia Garcia Pallares-Burke
Não existe um gênio no pedestal, isolado, que está lá pensando sozinho ideias inovado-
ras. Houve uma geração, passaram pela mesma instituição, pelos mesmos professores...
Exato. As reações negativas que o livro sobre Bilden teve foram, na verdade, bem poucas,
e entendo que fazem parte da vida acadêmica. Só a acusação de ser “um livro esquizofrênico”
me chocou mais, e ainda me lembro de vez em quando.
A gente pode passar para comentar sua publicação mais recente. Há certa novidade,
porque é um livro de encomenda da editora Contexto, também escrito a quatro mãos
com o Peter Burke, Os ingleses, de 2016. Se você puder comentar um pouco, voltar ao
tema das relações identitárias, da relação Brasil-Inglaterra, da discussão sobre o cará-
ter nacional e da identidade nacional, como você diz sempre, que é precária, provisó-
ria e transitória... Desse outro ângulo, pensando as especificidades dos ingleses, essa
discussão interessante da identidade nacional, mas nessa configuração que vivemos
hoje, do século XXI, do multiculturalismo, da globalização, uma discussão não está
mais pensada nos termos dos anos 1930. Se você puder falar um pouco desse livro...
De alguma forma, você comentou que o próprio Freyre lhe chega por meio do livro
Os ingleses no Brasil. São dois livros; o outro é chamado apenas Os ingleses. Você traz
Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 68, p. 807-810, setembro-dezembro 2019 807
Concedida a Bernardo Buarque de Hollanda
esse tema que está relacionado também ao interesse pelo Freyre. Você diz também
que é um livro de encomenda, que relutou um pouco em fazer no início...
Relutei, é verdade. Eu não queria escrever um livro sobre caráter nacional porque não
acredito num caráter nacional. A editora me mandou vários dos outros livros dessa coleção
Povos, e achei que não tinha conhecimento suficiente para fazer um livro interessante que me
agradasse. Diante da insistência deles, pensei que poderia escrever talvez esse livro em diálogo,
pois me pareceu claro que seria um livro mais interessante, para mim e para os leitores, se a
gente pudesse fazer um livro a quatro mãos, fruto de um diálogo entre um britânico e uma
brasileira. Convenci Peter a me acompanhar nessa empreitada, muito diferente de qualquer
coisa que tanto ele quanto eu havíamos feito antes, e confesso que foi uma experiência mais
interessante do que eu imaginara. Aprendemos muito, rimos muito, trabalhamos muito. Eu,
especialmente, fiz uma imersão em jornais do passado e atuais para tratar dos vários temas
que decidimos abordar. Foi um livro muito diferente para nós, mais próximo do jornalismo
do que um trabalho de pesquisa profunda, apesar de termos listado livros importantes para
aqueles leitores que quisessem se aprofundar nos diferentes tópicos. Nosso objetivo era falar
da cultura no sentido amplo, no sentido de Franz Boas, buscando os valores da cultura inglesa
como se expressam nas suas práticas. É um livro que tem de tudo — de tudo é um exagero,
porque não se pretende exaustivo —, mas é amplo o suficiente para ir de habeas corpus,
monarquia e BBC até fish ‘n’ chips, chá da tarde e cerveja.
Até porque talvez seja congruente com o perfil do livro que se esperava, para um pú-
blico mais amplo, não para o público acadêmico. Há essa abrangência de elementos
do cotidiano, dos costumes.
Na verdade, cheguei a pensar enquanto eu estava decidindo aceitar o convite: “O livro que
quero escrever é o que eu gostaria de poder ter lido antes de vir para a Inglaterra.” O que está
por trás de algumas coisas interessantes, até de coisas banais, como fish ‘n’ chips; o que está por
trás desse louvor que grande parte dos britânicos tem pelo NHS, National Health Service, porque
aqui, como descobri, poucos são os que se dispõem a ter um seguro de saúde particular. Entre
nossos amigos, só os estrangeiros. A maioria, no entanto, tende a considerar o NHS algo sagrado,
representativo da identidade da cultura inglesa, a ser defendido bravamente. Haja vista a impor-
tância que teve o NHS na abertura dos Jogos Olímpicos em 2012. Foi uma homenagem lindís-
sima, o ponto alto da abertura. Não sei se você se lembra, mas foi feita por um grande diretor
de cinema, Danny Boyle. Nossa preocupação era explorar o que está por trás disso, por exemplo,
dessa veneração pelo serviço de saúde pública e universal. E da BBC, que alguns criticam, mas
que a maioria se orgulha? O que faz a BBC ser o que é? Enfim, nossa ideia — e minha, especial-
mente — era escrever um livro que eu gostaria de ter lido. Para escrever esse livro, aprendi muito,
e até o Peter descobriu coisas que não conhecia. Mas qual era sua pergunta mesmo?
808 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 68, p. 808-810, setembro-dezembro 2019
Entrevista com Maria Lúcia Garcia Pallares-Burke
A discussão da identidade nacional vista do século XXI. No seu caso, voltar a esse
debate que fez em torno da obra de Freyre. Falando aqui da identidade, nas suas
palavras, sempre precária e transitória, como ela se situa no século XXI?
É uma coisa fluida, sem dúvida, mas há alguns pilares que sustentam essa fluidez. Por
exemplo, o amor que a cultura inglesa tem pela liberdade é uma coisa impressionante e
persistente. Mas esse valor não é isolado de outros que com ele contrastam. É verdade que o
Brexit está causando um verdadeiro terremoto político, mas pode-se dizer que essa decisão
tanto quebra quanto segue tradições inglesas. De um lado, com seu desejo de exercer controle
da imigração, o Brexit representa uma quebra da tradição de não só aceitar imigrantes e refu-
giados, como de lhes dar as boas-vindas; de outro, representa a continuidade da tradição de
se rebelar contra tudo o que limita sua liberdade, como são vistos os burocratas de Bruxelas
impondo suas leis. Assim, o Brexit demonstra o que um jornalista holandês do século XVIII já
chamava de “amor desmedido pela liberdade” tão típico dos ingleses. “Tudo que incomoda,
tudo que constrange, lhes é insuportável.” Pode-se pensar, pois, que Brexit foi um erro terrível,
mas não podemos descrevê-lo como completamente un-english. Um exemplo dessa obses-
são pela liberdade é o fato de não termos aqui qualquer carteira de identidade. Se você me
manda alguma coisa que vai para o correio, como vou buscar? Como mostro que sou quem
sou? Se eu não tiver passaporte — e ninguém é obrigado a ter passaporte —, não posso
levar passaporte para me identificar. E se eu não for motorista e, portanto, não tiver uma
carteira de habilitação que poderia me identificar? A maior parte das pessoas leva a carteira
de motorista, que tem a fotografia e o endereço, mas, novamente, não é obrigatório ter uma
carteira de motorista. Então isso é um problema. Ou seja, a inexistência de uma carteira de
identidade atrapalha até a vida do dia a dia, mas pelo menos até agora essa solução não
foi aceita pelos britânicos, porque significa uma intromissão inaceitável na sua privacidade e
sacrossanta liberdade.
Mencionei que o desafio era inverso, porque, ao escrever o Social Theory in the Tro-
pics, você queria explicar como o Brasil percebeu sua identidade nacional para os
ingleses, e, nesse caso, seria explicar para os brasileiros como os ingleses percebem
a própria cultura. Foi quase um sinal trocado com esse livro de encomenda que você
disse que aprendeu muito...
Aprendi, porque muito sobre o que escrevemos me era pouco conhecido. Até o Peter
aprendeu muito sobre o que estava por trás de certos aspectos de sua cultura. Foi um livro
interessante e que, dentro da série Povos, diz a editora, que está muito bem, vende muito
bem. Na verdade, seria importante atualizarmos o livro, porque o Brexit não havia acontecido
quando a gente acabou de escrever. E tanta coisa aconteceu desde então!
Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 68, p. 809-810, setembro-dezembro 2019 809
Concedida a Bernardo Buarque de Hollanda
Maria Lúcia, para terminar, uma curiosidade: você tem algum projeto atual, algum
desdobramento dos projetos anteriores, o que você está fazendo no momento?
Eu e o Peter estamos planejando um terceiro livro a quatro mãos que ainda está em está-
gio de mapeamento, até porque o Peter ainda está terminando o livro dele sobre o papel dos
polímatas na história cultural. Trata-se de um tema sobre o qual eu já tinha muito interesse.
Basicamente, tratará de viagem e conhecimento, ou seja, estamos interessados, de um lado,
em que tipo de conhecimento as pessoas precisam para viajar — como mapas, guias etc. —;
e, de outro, em viagem como um meio de adquirir conhecimento, como as expedições cientí-
ficas que buscavam ampliar o conhecimento explorando várias partes do mundo, bem como
viagem como um meio de obter autoconhecimento e de ver o próprio país com novos olhos,
ou seja, ver o que de perto não se vê com clareza. Ainda está muito cru. Posso falar que um
dos capítulos desse livro ainda em planejamento vai cobrir, talvez, mil anos. Será sobre guias
de viagem, indo desde os guias medievais, que eram destinados aos peregrinos, até os rough
guides de hoje, que são guias para os jovens que querem viajar pelo mundo com pouco dinhei-
ro e que não se importam com desconforto. Como nos outros livros, a gente pretende escrever
esse a quatro mãos mesmo. Seria mais fácil a gente dividir: “Você escreve esse capítulo e eu
escrevo aquele outro.” Mas preferimos seguir fazendo o que temos feito: um escreve, o outro
revê, mexe e remexe, manda de volta, e fica nesse vai e vem até acharmos que o texto atinge
um estado que agrada a nós dois.
Acho que foi em 2013 que fui convidada para o aniversário da cidade de Recife, e nessa
ocasião trabalhei do zero — porque eu não havia me dedicado a ele antes — sobre esse guia da
cidade de Recife. Muitíssimo interessante e sui generis, escrito por um apaixonado pela cidade.
Sim, espero aproveitar bastante, pois é um belo livro e bastante inovador no âmbito
de guias. Vamos ver como vai ser esse livro. O difícil é acompanhar o Peter na sua produção,
porque ele é muito rápido.
É uma virtude, mas, apesar de ser um incentivo à produção intelectual, é difícil seguir o
mesmo ritmo. Prefiro um passo mais espaçado.
810 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 68, p. 810-810, setembro-dezembro 2019
Teses e Dissertações
Teses e dissertações
do Programa de Pós-graduação
em História, Política e Bens Culturais
(PPHPBC) do CPDOC/FGV defendidas
em 2019
Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 68, p. 811-830, setembro-dezembro 2019 811
Teses e dissertações do Programa de Pós-graduação em História
812 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 68, p. 812-830, setembro-dezembro 2019
Teses e dissertações do Programa de Pós-graduação em História
Resumo: Esta tese analisa as relações diplomáticas entre o Brasil e a União Soviética de
1947 a 1985 de forma pormenorizada. Os objetivos principais são: examinar detidamente as
interações entre os dois países num horizonte mais longo do que o usual e rediscutir o papel
do comércio como cerne das relações bilaterais. Com esses fins, argumenta-se que o proces-
so de modernização soviético influenciou, de forma duradoura, o comportamento de parte
importante das elites políticas brasileiras em suas interações com a URSS entre as décadas
de 1950 e 1980. Nem mesmo a emergência de um regime militar de caráter anticomunista
no Brasil, em 1964, colocaria em risco as relações entre os dois países de forma permanente.
Nessa chave de entendimento, a lógica do antagonismo bipolar, típica da Guerra Fria, seria in-
capaz de explicar, isoladamente, o caráter crescentemente complexo do relacionamento entre
Brasil e URSS. Dessa forma, analisa-se como interesses econômicos, políticos e estratégicos
entre os dois países convergiram em determinados momentos, sendo norteados, em parte
importante, pelo ideal modernizador soviético. As conclusões são relevantes, pois visam preen-
cher uma lacuna na história da política externa brasileira em suas interações com a URSS, além
de se mostrarem úteis para estudiosos das relações do Brasil com os Estados Unidos e China.
Em relação ao primeiro, diferentes governos brasileiros – em conjunturas distintas – tentaram
barganhar melhores condições de negociação com Washington utilizando-se de seu relaciona-
mento com a URSS. A respeito da segunda, esta pesquisa tem relevância por dar indícios sobre
a emergente competição da China com a URSS por influência em países do Terceiro Mundo
– incluindo o Brasil – a partir de meados da década de 1970. Na elaboração desta tese foram
utilizados documentos obtidos no Brasil, Rússia, Estados Unidos e Suíça.
Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 68, p. 813-830, setembro-dezembro 2019 813
Teses e dissertações do Programa de Pós-graduação em História
Resumo: Nesta tese, em que apresento como objeto de estudo o trabalho doméstico
remunerado, busco discutir os significados atrelados às representações do feminino a
partir de narrativas de mulheres de grupos populares, moradoras do município de Nova
Iguaçu, Baixada Fluminense. Os objetivos do estudo foram refletir analiticamente em
torno do estatuto da esfera doméstica, explorando dimensões do entendimento de
trabalhadoras domésticas sobre família, experiência feminina e aprendizado doméstico,
trabalho e direitos. O estudo, desenvolvido a partir de uma etnografia, utilizou como
estratégias metodológicas para o trabalho de campo a observação participante e as
entrevistas. O universo de pesquisa com o qual trabalhei foi composto por 60 mulheres
oriundas de camadas populares, trabalhadoras domésticas remuneradas e moradoras do
município de Nova Iguaçu. Para a realização das entrevistas, utilizei três caminhos
diferentes: um curso de capacitação de Cuidador (a) de Idosos e Babá, oferecido pelo
Centro Social São Vicente, dois Sindicatos de Trabalhadoras Domésticas e uma rede de
mulheres, que constituí por meio da indicação das primeiras entrevistadas. Ao longo da
discussão, exploro temas específicos como a relação do emprego doméstico com a
escravidão, os avanços e as descontinuidades na legislação, a inserção e as contribuições
de um novo campo de serviço, com a revisão de literatura sobre os estudos de care, e a
relação das trabalhadoras domésticas entrevistadas com seus patrões e patroas, com o
espaço doméstico e com outras gerações em suas famílias. Atravessando todos esses
temas, abordo as formas de resistência dessas trabalhadoras, tanto em seus espaços de
trabalho quanto no cotidiano dos sindicatos de trabalhadores domésticos, entendidos
aqui como importantes espaços de luta da categoria. Em termos mais gerais, trata-se de
uma tese de doutorado sobre a prática do trabalho doméstico remunerado em um país
com um quadro de desigualdades sociais severas, que entende que as narrativas de
empregadas domésticas iluminam importantes dimensões dessas desigualdades.
814 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 68, p. 814-830, setembro-dezembro 2019
Teses e dissertações do Programa de Pós-graduação em História
Resumo: Esta tese é uma etnografia sobre brasileiros que viveram sem nenhum tipo de do-
cumentação até o momento em que buscaram um serviço público e gratuito de emissão de
certidão de nascimento instalado em um ônibus na Praça Onze, no centro do Rio de Janeiro.
O atendimento do ônibus resulta de uma parceria entre dois projetos do Tribunal de Justiça do
Estado do Rio de Janeiro (TJRJ), a Justiça Itinerante e o Sepec (Serviço de Promoção e Erradica-
ção do Sub-registro de Nascimento e a Busca de Certidões). A tese é resultado de dois anos de
trabalho de campo nesse ônibus, acompanhando alguns de seus usuários também fora dele.
Em diálogo com o conceito de “margens do Estado” proposto por Das e Poole (2004), mostra
como as pessoas sem documento se desconstituem como sujeitos, examinando os motivos
que as levaram a buscar a certidão de nascimento e interrogando os sentidos que atribuem a
esse documento. Tal abordagem permite refletir sobre o papel do documento como chave para
o controle estatal, mas também para acesso a direitos. A partir do recurso à histórias de vida, o
trabalho descreve a chamada “síndrome do balcão”, detalhando os meandros da busca pela
documentação no arcabouço burocrático estatal por parte dos usuários do ônibus. Reconstitui
as audiências judiciais nas quais, frente à ausência do documento, pessoas indocumentadas
constroem a verdade de sua existência diante de um juiz, a fim de provar que são quem de
fato dizem ser, e apresenta narrativas dos juízes sobre os atendimentos que prestam no ôni-
bus. Em diálogo com Bourdieu (1996), a tese analisa, ainda, a certidão de nascimento como
resultado de um rito de instituição e problematiza as capacidades atribuídas ao documento
pelos usuários, numa busca que é não só por um papel, mas também por direitos, cidadania
e recuperação da própria história.
Resumo: Os territórios quilombolas passaram a ser vistos como forma de expressão e or-
ganização social, constituindo parte do patrimônio histórico e cultural do país. Entretanto,
as políticas de reconhecimento quilombola e de direito ao território não têm sido de fácil
efetivação. A Fundação Cultural Palmares (FCP) e o Instituto Nacional de Colonização e Re-
forma Agrária (Incra) são, atualmente, responsáveis por esses processos. A partir da relação
entre comunidades quilombolas e o território a que pertencem, abordaremos nesta pes-
quisa o caso da comunidade de Marinhos, localizada no município de Brumadinho, região
Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 68, p. 815-830, setembro-dezembro 2019 815
Teses e dissertações do Programa de Pós-graduação em História
Resumo: Esta tese apresenta uma pesquisa sobre a ação coletiva empresarial articulada
no âmbito do Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais de São Paulo. Ao longo da década de
1960, o IPÊS funcionou com um espaço fundamental de organização dos interesses da elite
orgânica transnacional. O Instituto foi organizado pioneiramente no Rio de Janeiro e em São
Paulo, regiões que dividiram a direção da entidade que se expandiu pelo país. O IPÊS aglutinou
uma série de categorias sociais, a saber, militares, empresários, acadêmicos, religiosos, entre
outros. No caso do IPÊS-SP, o empresariado ligado ao capital privado norte-americano foi o
elemento preponderante na organização das ações e atividades que culminaram no golpe
civil-militar de 1964. Nos anos 1960, diante do amadurecimento político do empresariado,
816 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 68, p. 816-830, setembro-dezembro 2019
Teses e dissertações do Programa de Pós-graduação em História
o IPÊS-SP se constituiu como um partido articulador da ação política empresarial. Se, por um
lado, as ações ipêsianas visavam a readequação do Estado e a implementação de um projeto
consonante com interesses transnacionais, por outro lado, para legitimar tais demandas como
hegemônicas no âmbito da sociedade civil e aptas para ocuparem a sociedade política, houve
a necessidade de um amplo e profundo trabalho voltado para o convencimento dos “pares” e
da sociedade em geral. Para tal, o anticomunismo foi um aspecto fundamental. Dessa forma,
a presente análise objetiva compreender a construção de um consenso anticomunista peda-
gógico e saneador, entre 1961-1964. Pedagógico ao estabelecer estratégias de doutrinação
e de “manipulação da opinião pública”, e saneador no que concerne à defesa do expurgo de
um amplo espectro político que enquadrava como “esquerda”, seja através do fortalecimento
de um ideário anticomunista ou do apoio direto às políticas e ações repressivas.
Resumo: O presente trabalho busca analisar as fotografias oficiais produzidas pelo fotógrafo
da presidência Ricardo Stuckert durante os dois mandatos do presidente Luiz Inácio Lula da
Silva (2003-2010), acreditando que elas foram utilizadas como ferramenta importante na
construção da imagem pública do presidente e de seu governo, assim como na propaganda
política, ou Marketing político, do candidato (2006) e do presidente Lula. Nesse sentido, foi
investigado o “circuito social” dessas fotografias públicas: a carreira e o trabalho do fotógrafo
na presidência; os objetivos e usos da fotografia no Sistema de Comunicação de Governo do
Poder Executivo Federal (SICOM); qual a imagem pública de Lula constituída em 158 fotos
selecionadas do conjunto e as formas de divulgação das fotos oficiais de Stuckert.
Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 68, p. 817-830, setembro-dezembro 2019 817
Teses e dissertações do Programa de Pós-graduação em História
Resumo: Os partidos políticos são objetos de estudo que podem ser observados a partir de múl-
tiplas faces: eleitoral, governativa e organizativa. Contudo, a literatura sobre partidos políticos
privilegiou, por muito tempo, os partidos apenas enquanto atores da disputa eleitoral. A partir
da década de 90, sobretudo, há uma virada na literatura, que inicia a observação dos partidos
também a partir da relação com as suas próprias estruturas internas e os seus impactos na
representação democrática. Dessa forma, o presente estudo busca observar, de maneira detida, o
processo de recrutamento partidário, argumentando que o conceito deve ser tomado de maneira
ampliada, tendo a filiação como uma de suas etapas iniciais. A partir disso, dedicamos atenção
ao processo de filiação partidária, a partir de duas formas: a primeira diz respeito à análise dos
dados públicos do Tribunal Superior Eleitoral, construindo um panorama da filiação em nível
local; a segunda, a partir de um survey com filiados ao PT e DEM, explorando o perfil dos filiados,
seus interesses e a relação construída com o partido. Em síntese, tem como objetivo explorar o
terreno da filiação partidária, entendendo-a como a etapa inicial do processo político de forma-
ção de elites políticas à luz da realidade local da cidade do Rio de Janeiro.
818 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 68, p. 818-830, setembro-dezembro 2019
Teses e dissertações do Programa de Pós-graduação em História
Resumo: Essa dissertação é um estudo sobre o livro Verdade Tropical (1997), o relato de me-
mória de Caetano Veloso. Meu objetivo é entender o que é esse livro e como ele explica a for-
mação e os posicionamentos de Caetano, além de ser influenciado e influenciar sua produção
musical. Visando compreender os mecanismos de elaboração dessa obra, utilizei reportagens,
discos, filmes e análises teóricas que servem para compreender a análise de Caetano sobre os
processos culturais brasileiros na segunda metade do século XX. Também busco entender a
construção desse lugar de Caetano como um (autointitulado) “popstar intelectual” que com-
bina sua carreira de músico popular com a de um intelectual público chamado a falar sobre os
rumos político-culturais do país, sempre tendo a música popular brasileira como sua referência
principal de interpretação e força de transformação social do Brasil.
Resumo: Este trabalho procura analisar a experiência de migrantes de origem rural para
Guariba, no interior de São Paulo, entre 1975, ano em que foi instituído o Programa Nacio-
nal do Álcool, e 1985, ano de refundação do sindicato local, após as mobilizações iniciadas
em 1984. As principais questões que moveram essa pesquisa foram: 1) De que maneira a
transição da agricultura familiar para o assalariamento temporário individual e a migração
para a cidade impactaram nas relações de gênero e na estrutura familiar de trabalhadores
rurais?; 2) Quais foram os diálogos entre os conflitos públicos empreendidos pelos cortado-
res de cana e os enfrentamentos vivenciados pelas mulheres na família e nos espaços de
convivência?; 3) De que maneira as mobilizações camponesas do início da década de 1960
e o uso da Justiça do Trabalho influenciaram a eclosão do movimento de 1984, em Guariba?
Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 68, p. 819-830, setembro-dezembro 2019 819
Teses e dissertações do Programa de Pós-graduação em História
Resumo: A Primeira Guerra Mundial (1914 – 1918) abriu o século XX com um dos conflitos
mais mortais travados pela humanidade. Ao final de quatro anos e meio, a guerra deixou o
assustador número de aproximadamente 20 milhões de mortos. A “Grande Guerra” dissol-
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Teses e dissertações do Programa de Pós-graduação em História
veu quatro dos maiores impérios europeus, possibilitou o surgimento do primeiro país socia-
lista da História, enfraqueceu a hegemonia britânica e abriu espaço para que uma das piores
epidemias já presenciadas, a Gripe Espanhola, ceifasse um número de vidas equiparável às
que foram perdidas nos campos de batalha da Europa. Para sempre atrelada às imagens das
trincheiras, ao uso de gases venenosos e ataques de infantaria praticamente suicidas contra
ninhos de metralhadoras, a Primeira Guerra Mundial, apesar de o nome sugerir o contrário,
é por muitas vezes retratada como um conflito europeu. Até mesmo alguns historiadores
acabam por resumir a guerra, principalmente durante a prática do ensino escolar, à uma fase
de movimento, seguida pela fase de trincheiras e mais uma vez movimento em 1918, uma
descrição que na realidade retrata apenas as fases do front ocidental europeu, deixando de
fora a realidade das demais linhas de frente na Europa Oriental, nos continentes africano e
asiático, nas águas dos oceanos Pacífico e Atlântico e mesmo no litoral da América do Sul. É
nessa ausência de percepção sobre a dimensão da Primeira Guerra Mundial que a América
Latina, e consequentemente o Brasil, ficam praticamente esquecidos, tanto em suas atuações
diplomática e militar, quanto no impacto que o conflito teve sobre a economia, a política, a
cultura e mesmo a identidade nacional do continente. Com o intuito de aprofundar os estu-
dos historiográficos sobre o Brasil durante a Primeira Guerra Mundial, a dissertação a seguir
abordará os impactos criados pela Grande Guerra sobre a política e sobre as Forças Armadas
brasileiras, com o intuito de elucidar o processo de centralização do Estado e definição de
uma identidade nacional em meio ao conflito mundial.
Resumo: Este trabalho tem por objetivo discutir a iniciação feminina no futebol nos anos que
antecederam a regulamentação das práticas esportivas no Brasil e a proibição de algumas
modalidades para mulheres (1915-1941). Nesse sentido, utilizamos como fontes jornais e
revistas do período, bem como acervos iconográficos institucionais e pessoais. O intuito da
pesquisa é apresentar um panorama do envolvimento de diferentes grupos sociais de mulhe-
res que aderiram à prática, em diversos momentos históricos, desempenhando distintos pa-
Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 68, p. 821-830, setembro-dezembro 2019 821
Teses e dissertações do Programa de Pós-graduação em História
péis. Locais como os das festas esportivas, dos picadeiros circenses e dos campos suburbanos
do Rio de Janeiro mostraram-se ricos na manifestação do fenômeno “football feminino”. Ao
captar as peculiaridades de cada uma dessas ocorrências, podemos ter um perfil das tensões e
enfrentamentos encarados pelas mulheres no período estudado. Por fim, concluímos que se o
aumento da iniciação feminina no futebol, de alguma forma, atendeu a interesses masculinos,
dentro e fora do campo esportivo, também acirrou conflitos acerca dos papéis concebidos para
homens e mulheres na sociedade brasileira.
Resumo: A presente dissertação tem como objetivo traçar um panorama que possibilite iden-
tificar como as protagonistas femininas vêm sendo representadas nas produções comerciais
brasileiras contemporâneas, notadamente no que diz respeito aos estereótipos de gênero.
O objeto de análise são os filmes brasileiros de longa-metragem de ficção, lançados comer-
cialmente entre 2002 e 2017, que tenham obtido no mínimo 500 mil espectadores. Por meio
da realização de levantamento bibliográfico, análise de dados da produção cinematográfica
brasileira e análise fílmica, a pesquisa posiciona os filmes de grande público protagonizados
por mulheres no âmbito geral da produção brasileira comercial, bem como analisa as temáti-
cas narrativas predominantes dessas personagens com o objetivo de investigar como se dá a
representação feminina neste segmento.
822 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 68, p. 822-830, setembro-dezembro 2019
Teses e dissertações do Programa de Pós-graduação em História
Resumo: A integração regional foi um traço prioritário da política externa brasileira desde
os anos 2000 e atingiu seu auge durante os dois governos Lula, quando, em um contexto de
ascensão dos países emergentes, o Brasil instrumentalizou sua inserção internacional para
projetar seus interesses globais. A agenda Sul-Sul da diplomacia brasileira ganhou ênfase
e o entorno regional foi pautado por uma integração por infraestrutura a partir do lança-
mento da IIRSA. Neste contexto, era marcante a alavancagem do processo de internacio-
nalização das empreiteiras brasileiras, que, apesar de já ocorrer desde os anos 1970, neste
momento encontrava-se acompanhada por uma diplomacia presidencial ativa e pautada
por seu braço financiador, o BNDES, em um ambiente democrático. Junto à internacionaliza-
ção das empreiteiras brasileiras, no entanto, parece ter ocorrido a disseminação de práticas
de corrupção típicas do capitalismo de laços brasileiro para outros países da América Latina.
Essa prática de corrupção em altos níveis de poder e compreendendo vastas quantias de
dinheiro, que são chamadas pela Anistia Internacional de “grande corrupção”, encontram
suas raízes no Brasil nas dimensões históricas e nas brechas político-institucionais típicas
do nosso sistema de governo.
Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 68, p. 823-830, setembro-dezembro 2019 823
Teses e dissertações do Programa de Pós-graduação em História
ao poder. Com base nisso, também buscamos compreender essa manifestação nas relações
internacionais, assim como a influência do populismo trumpista sobre a política externa e a
política comercial dos Estados Unidos. Questionamos, assim, o que as ações empreendidas
pelo novo governo republicano podem significar para a posição que seu país ocupa no mundo.
Resumo: Esta dissertação propõe uma reflexão sobre os aspectos simbólicos e materiais do
consumo de moda masculina nas sociedades contemporâneas. Investiga um possível paralelis-
mo conceitual entre os dândis oitocentistas e os chamados dândis contemporâneos a partir da
relação entre a difusão de ideais estéticos no chamado “projeto da Modernidade”, no século
XIX, e o fenômeno da estetização da vida masculina nas sociedades capitalistas do Novo
Milênio, também chamadas “sociedades de consumo”. A pesquisa apresenta uma etnografia
de consumidores masculinos da grife Hugo Boss em uma loja do shopping Village Mall (RJ),
investigando a criação de (segundo a teoria de Bourdieu) “códigos” para “apropriação” dos
bens de consumo, buscando evidências práticas/discursivas de uma reedição do dandismo e
da flânerie contextualizados em suas campanhas. Ao estudarmos a relação entre uma vivência
estética permeada pelo consumo de moda e um sistema socioeconômico vigente, observamos
que tal relação não se explica pelo raciocínio simplista de uma lógica “opressor/oprimido”: é
necessário relativizar as questões de autonomia entre os agentes do consumo, privilegiando
uma relação triádica entre os seguintes aspectos intrínsecos desse fenômeno: o estético, o
material e o discursivo.
824 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 68, p. 824-830, setembro-dezembro 2019
Teses e dissertações do Programa de Pós-graduação em História
Resumo: Esta pesquisa tem como objetivo elaborar uma proposta para tratamento da massa
documental acumulada da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro – UFRRJ. Para que tal
objetivo fosse alcançado, foi necessário compreender alguns conceitos básicos sobre gestão
de documentos e seus procedimentos, sobre massa documental acumulada e como seria a
gestão de documentos na UFRRJ. Por meio de um pré-diagnóstico feito por amostragem,
buscou-se identificar qual seria a situação arquivística da Instituição com relação à massa
documental acumulada nos setores. Este pré-diagnóstico foi aplicado e chegou-se à conclusão
de que existe massa documental acumulada sem tratamento técnico-arquivístico em todos os
setores pesquisados. A UFRRJ não possui um arquivo instituído e, sim, uma Seção de Arquivo
e Protocolo Geral que desenvolve as atividades da área arquivística. Verificou-se que a Institui-
ção não conseguiu implantar um plano de gestão de documentos e está iniciando os trabalhos
com relação às políticas arquivísticas.
Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 68, p. 825-830, setembro-dezembro 2019 825
Teses e dissertações do Programa de Pós-graduação em História
Resumo: Este estudo tem por objetivo investigar a contribuição do artigo 2º da Lei Com-
plementar nº 4, de 2 de dezembro de 1969, conhecida como “Lei disco é cultura”, para
a expansão do mercado brasileiro de discos ocorrida na década de 1970. Consequência
da política econômica de forte estímulo ao consumo do Regime Militar, a “Lei disco é
cultura” autorizava as empresas produtoras de discos fonográficos a abater do montante
do Imposto sobre Circulação de Mercadorias (ICM) o valor dos direitos autorais artísticos
e conexos, pagos aos autores e artistas brasileiros. A busca por investimentos estrangeiros
era um aspecto fundamental do modelo econômico da Ditadura. A expectativa era que a
“maior eficiência” das empresas multinacionais contribuísse para um rápido crescimento.
Essa política favoreceu a expansão das gravadoras estrangeiras, que tiveram seus interesses
e demandas acolhidos pelo governo.
826 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 68, p. 826-830, setembro-dezembro 2019
Teses e dissertações do Programa de Pós-graduação em História
Resumo: Essa dissertação tem como objetivo investigar o papel da arte gráfica na constru-
ção editorial da imprensa alternativa dos anos de 1960. Com base no caso da revista Pif Paf,
pretende-se observar a influência do humor na produção crítica representada em texto e
imagem durante os primeiros meses do período de repressão causado pela instalação do
golpe militar de março de 1964. A partir de conceitos extraídos do campo do design de
narrativas, análises são realizadas para associar arte, crítica, design e informação. Nesse
sentido, caricaturas, charges, ilustrações, cartuns e desenhos de humor representam ele-
mentos fundamentais a serem avaliados. Da mesma maneira, rotinas de profissionais da
imprensa, assim como técnicas de trabalho, linha editorial e propostas narrativas também
serão contempladas.
Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 68, p. 827-830, setembro-dezembro 2019 827
Teses e dissertações do Programa de Pós-graduação em História
envolvendo Sociologia (Keller, 1997), Antropologia (Leite Lopes, 1988), Educação e Trabalho
(Ciavatta, 2007), Historiografia (Furtado, 2003; Silva, 2009), Geografia (Simões, 2006) e
Turismo Cultural (Molleta, 1998; Cordeiro, 2006). A proposta metodológica se baseou em
revisão de literatura, visitas de campo e em entrevistas realizadas junto a moradores de
Paracambi que trabalharam na Companhia Têxtil Brasil Industrial. Ao final do trabalho, apre-
senta-se uma proposta de roteiro cultural capaz de relacionar a história da referida Fábrica
e da cidade de Paracambi, as quais se (con)fundem; paralelamente, a pesquisa produz, para
além de um roteiro, subsídios suficientes para se afirmar uma estreita correspondência entre
patrimônio industrial e memória operária.
828 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 68, p. 828-830, setembro-dezembro 2019
Teses e dissertações do Programa de Pós-graduação em História
Resumo: O presente estudo de caso tem por principal objetivo analisar a evolução das ações
de Responsabilidade Social Empresarial (RSE) do Operador Nacional do Sistema Elétrico
Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 68, p. 829-830, setembro-dezembro 2019 829
Teses e dissertações do Programa de Pós-graduação em História
(ONS), a partir de sua estrutura singular: seu tecnicismo; suas características estatutárias; as
legislações socioambientais; boas práticas de RSE; e os conceitos teóricos sobre a temática.
Destaca-se, também, o repertório da organização no que diz respeito à sustentabilidade e à
gestão da integridade. O estudo propõe, para além do estabelecido pela legislação brasileira,
uma nova atuação do ONS com os públicos interessados, sugerindo um novo espaço para o
diálogo, especialmente, com entes governamentais, de forma que a sua atuação não enfra-
queça o papel do Estado, conforme fundamentado pelos autores Cheibub e Locke.
830 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 68, p. 830-830, setembro-dezembro 2019