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Ensaio sobre a perda do instante decisivo

Pollyanna Freire
Apresentando parcialmente a discussão desenvolvida no mestrado em Linguagens
Visuais, abordo o problema do tempo tal como imposto pela fotografia instantânea,
sugerindo uma reflexão sobre o trabalho 1 segundo (l’instant décisif), por via tanto
técnica – operada pela máquina fotográfica – quanto filosófica.
Fotografia instantânea, tempo, repetição, paradoxo.

Zenão, filósofo nascido em Eleia, Itália, por largada. Para alcançá-la, Aquiles primeiro
volta de 464 a.C., é o autor de uma série de deverá chegar ao ponto em que ela esteve
famosos paradoxos a respeito do movimen- antes e, ao alcançá-lo, deverá novamente
to. Esses argumentos irão à defesa da dou- chegar ao próximo ponto em que ela este-
trina de Parmênides, oposta àquela sobre o ve, e assim indefinidamente.
fluxo contínuo das coisas, disseminada por
Heráclito; afirma daí que apenas identidade Zenão, já em sua terceira aporia sobre o
e permanência são verdadeiras, sendo o movimento, afirma que há sempre o aqui e
movimento uma ilusão de nossos sentidos. o agora como partículas que dividem o es-
Para defendê-la eram necessários argumen- paço e o tempo; portanto, algo que está em
tos que negociassem o movimento real – movimento, paradoxalmente, está sempre
tal como percebido por nós (como trans- parado. O filósofo dá como exemplo: uma
formação contínua através do espaço e do flecha lançada estará sempre num aqui e
tempo) – com permanência e unidade. Es- agora, permanecendo estática mesmo que
ses argumentos, chamados de aporias, res- aparentemente se esteja movimentando em
direção ao alvo. Para que esses argumentos
ponsabilizaram-se, habilmente, por essa ne-
se tornem possíveis, no entanto, é necessá-
gociação.
rio admitir que o tempo e o espaço sejam
De acordo com o primeiro deles, um obje- infinitamente divisíveis. Essa condição
to em movimento antes de percorrer um axiomática deve ser aceita.
termo chega a sua metade e, para chegar a Apontamentos sobre a fotografia instantânea
essa metade, deve percorrer metade de sua
metade e só atingirá essa metade ao chegar Observando atentamente o desenvolvimen-
a sua metade, e assim por diante. O impasse to técnico da fotografia a partir do século
imposto é que nunca será possível atraves- 19, poderíamos tornar seu percurso uma ilus-
sar um termo quando a divisão desse espa- tração desses argumentos; essa relação não
ço é operada infinitamente. Observando a passou despercebida por diversos autores.
Pollyanna Freire
1 segundo (l’instant lógica desse primeiro argumento, ainda, o Ainda em 1840 a fotografia estava sujeita à
décisif), 2007, veloz coelho Aquiles nunca alcançará a tar- ação de químicos débeis, que exigiam expo-
fotografia. 40x30cm taruga que se lançou com antecedência à sições longas e contínuas com variações en-

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tre dois e 10 minutos, o que a fez concen- o qual inaugurará e estabelecerá a fotografia
trar todos os seus esforços, desde então, em como imagem que retira parcelas de espa-
acelerar seu tempo de reação. Consideran- ço-tempo do continuum do real, “golpe de
do que a fotografia foi fruto de pesquisas corte” –, no último quarto desse século,
sobretudo científicas e não propriamente emergirá com força a noção de instantâneo,
artísticas, acabou adequando-se de modo especificamente. Não se trata de questão
concomitante a objetivos de naturezas di- meramente técnica, uma vez que, antes, dá
versas. É dessa gênese híbrida que surgem origem a todo um raciocínio em relação ao
as imagens hoje tão conhecidas dos fotógra- real. Essa noção (do instantâneo) estará tra-
fos Étienne-Jules Marey e Eadweard mada, a partir de então, no próprio “ser” da
Muybridge. Trabalhando com propósito cien- fotografia, a ponto de dificilmente dela se
tífico, eles visavam destrinchar o movimen- diferenciar.2
to e descobrir o que ali se passava que era
até então interdito à percepção humana. É 1 segundo: aporias
por essa via que podemos partilhar a O trabalho que apresento aqui como obje-
incompreensão de Marey, autor da to de discussão constitui-se fisicamente como
cronofotografia, em relação ao cinema. Ape- uma fotografia. Se faço essa ressalva é por-
sar de as duas pesquisas serem que considero que o campo discursivo des-
indubitavelmente contíguas, para o fotógra- te trabalho se concentra em grande parte
fo não havia nenhum sentido em reproduzir numa abordagem conceitual da fotografia,
as coisas como as vemos, pois isso “não ofe- qualidade responsável por torná-lo condu-
recia nenhuma contribuição nova a uma tor dessa pesquisa. A fotografia a que me
aproximação científica do mundo”.1 refiro consiste na reprodução de outra,
A cronofotografia, desenvolvida já no final Derrière la Gare Saint Lazare, de autoria do
do século 19, consistia numa pistola foto- fotojornalista francês Henri Cartier-Bresson.
gráfica que operava a decomposição do Intitulei a minha, feita com base nessa, 1 se-
movimento, chegando a captar suas diferen- gundo (l’instant décisif). Consta de seu pro-
tes etapas em até 30 quadros por segundo. cedimento refotografar a fotografia de
Na cronofotografia – muito mais rápida do Bresson inúmeras vezes e de maneira muito
que aquela produzida por Muybridge – to- particular. Essa segunda imagem será então
das as etapas subsequentes eram gravadas construída através da sobreposição de di-
sobre a mesma chapa fotográfica e não em versas capturas consecutivas da fotografia
quadros individuais. É notável que, apenas uma vez produzida por Bresson. Para isso, a
40 anos depois, Harold E. Edgerton já será máquina teve que ser travada a fim de im-
capaz de executar fotografias com captações pedir que o filme se deslocasse, e todas as
de até um milionésimo de segundo. sobreposições foram feitas sobre apenas um
frame do negativo. A imagem final resultará
Philippe Dubois frisa o quanto esse crescen- da sobreposição de mil outras exposições
te aprimoramento técnico irá repercutir no sequenciais dessa imagem de Bresson.
entendimento ontológico da fotografia. Se
no final do século 19, num panorama mais Nesse trabalho, o tempo da exposição fo-
amplo, avança um controle técnico, embora tográfica foi ajustado para um milésimo de
ainda parcial, sobre os meios fotográficos – segundo (1/1.000), o que, somadas as ex-

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posições individuais, totaliza um segundo. gundo, ele deveria organizar no quadro as
Tinha como premissa lidar com a fragmen- formas que o delineavam para que pudesse
tação do tempo fazendo uso, conforme ob- ser expresso em toda a sua intensidade. É
servei ser possível, dos limites da própria nessa capacidade, nesse reconhecimento,
máquina fotográfica – cujas possibilidades de que residirá a competência do fotógrafo
tempo de exposição vão de um segundo até modernista, e, partindo dessa premissa, é
um milésimo de segundo – e, a partir daí, inadmissível que uma boa fotografia possa
gerar os parâmetros para constituir imagem ser realizada por um olho inapto.
única sem que houvesse a perda do refe-
rente (o rapaz e a poça ou, sob outro ponto Essa escolha, eleição do fotógrafo, constitui
de vista, a própria fotografia de Bresson). Essa elemento teórico que me parece essencial
operação, como acabei de descrever, será para a própria análise do “instante fotográfi-
tanto técnica quanto conceitual, propondo co”, pois em muitos casos fundamenta-se na
nesse segundo âmbito a soma hipotética do crença do fotógrafo em relação à singulari-
tempo de captura dos instantâneos, assim dade daquele instante e, consequentemente,
como sua contínua fragmentação. àquilo a que se deve essa singularidade. A
captura desse instante, da maneira como foi
O instante decisivo idealizada durante esse período, englobará
crenças (fundamentadas ou não) e envolve-
A ideia do instante decisivo, fundamental rá sacrifícios. Serão muitos os exemplos a
para este trabalho, foi absolutamente es- respeito do assunto, mas este, citado por
sencial em meados do século 20 para legi- Susan Sontag,4 parece ilustrá-lo suficientemen-
timar a prática fotográfica. Alicerçada prin- te bem: em 1893 o fotógrafo Alfred Sieglitz
cipalmente na figura de Henri Cartier- registra (orgulhosamente) que ficou três ho-
Bresson, tem sua origem na expressão ras postado em pleno inverno nova-iorquino
l’instant décisif, que intitula o prefácio de aguardando o momento apropriado para
seu primeiro livro, Images à la sauvette (algo realizar a fotografia Fifth Avenue, Winter.
como “imagens furtivas”), e que, por não
haver em inglês expressão corresponden- Jean-Marie Schaeffer5 afirmará que os dois –
te, finalmente nomeou-se The decisive velocidade de captura e momento propício
moment, conhecido como O momento – estão implicados, pois a “imagem expres-
decisivo em português. Essa ideia nascerá siva” terá seu valor diretamente associado
da citação de frase pronunciada no século ao instantâneo, em que sua prática, a qual
17 pelo cardeal de Retz: Il n’y a rien en ce pressupõe a pronta ação do fotógrafo, é vis-
monde qui n’ait un moment décisif. 3 ta (com ou sem razão, como Schaeffer faz
questão de frisar) como mais contundente
Resumidamente, Cartier-Bresson acreditava e, portanto, imperativa.
haver um momento composicional de má-
xima potencialidade expressiva que, se cap- Tanto para Bresson quanto para outros fo-
tado, transmitiria com suma eficácia deter- tógrafos desse período, a captação desses
minado acontecimento. Não só esse instan- instantes envolve concomitantemente não
te deveria ser reconhecido à medida que um só a competência para a organização visual,
acontecimento se desenrolava diante do fo- mas a tarefa do desvelamento de algo ina-
tógrafo, mas também, nessa fração de se- cessível a respeito daquele acontecimento,

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uma realidade que passa oculta ou desper- o acontecimento que a simbolize não
cebida: “O assunto não consiste em colecio- seja pessoal, “meu”, mesmo quando me
nar fatos (...) O importante é a maneira de concerne por inteiro.8
escolher entre eles, de apanhar o verdadei-
ro fato em face da realidade profunda...”6 Se podemos notar com clareza a existência
de um momento privilegiado no transcurso
Se Philippe Dubois7 intui que o instantâneo de determinado movimento que o irá re-
suspende, congela e, por essa interrupção, presentar por inteiro, esse instante é solidá-
faz com que os corpos pareçam suspensos, rio à forma essencial que aquela pessoa as-
“fora de tempo” (como nas fotos de balé), sumiu ao pular a poça, por exemplo, como
em alguma fração desse movimento algo numa pose. Inversamente, se poderia consi-
distintivo ocorre, separa esse corpo de suas derar que a fotografia sempre define uma
ações antecedentes e decorrentes ou, de pose, pois imobiliza aquilo que capta, inde-
outra forma, cria, a partir dali, um ponto sig- pendente de o que é fotografado estar, a
nificativo para aquela ação. Esse instante, no rigor, posando ou não, porque ainda assim
qual um acontecimento se oferece no máxi- haverá imobilidade dotada de privilégio por-
mo de sua expressividade, pode estar com- que eleita. “A Forma é uma Pose”, explicará
preendido também na figura da cesura tem- Peter Pál Pelbart.9 As Poses são Formas ele-
poral, segundo a qual o que transcorre é di- mentares transcendentes. Materialização sen-
vidido em ‘antes’ e ‘depois’. sível do tempo. Henri Bergson nota que na
Antiguidade o movimento era concebido a
Gilles Deleuze considera a cesura a figura partir de Formas ou Ideias, estas últimas eter-
emblemática da consciência moderna do tem- nas e imóveis. É na passagem de uma Forma
po, diferente da consciência clássica. Na con- a outra que acontece o movimento: um in-
cepção clássica ou antiga, o tempo é vazio e tervalo entre Poses ou Instantes, os quais,
puro, infinito e circular. A cesura introduz a por sua vez, são representantes da essência
dessemelhança, impedindo que os extremos desse espaço de tempo que concerne ao
se toquem ou recuperem uma junção qual- movimento: “Um fato é pois ‘representado’
quer (contrapondo-se ao tempo circular). A pelo seu termo final, seu ponto culminante,
formidável ação da cesura une o antes ao de sorte que a própria passagem de um a
depois como sua expressão simbólica. Quan- outro é desprovida de interesse, e o movi-
do uma cesura divide o tempo num antes e mento é elidido.”10
num depois, a vida então se distribui desi-
gualmente. E a vida, uma vez rachada, já não O problema aqui presente não é novo. Res-
guardará proporção entre suas partes. Quan- guardando as particularidades de cada meio,
do essa cesura dá ao tempo sua expressão a representação do tempo já foi extensiva-
simbólica, como ação única e formidável, ela mente discutida através da pintura. Em sua
une num conjunto a cesura, o antes e o de- famosa obra Laocoonte, concebida em me-
pois. Peter Pál Pelbart sintetiza: ados do século 18, Lessing11 empenha-se em
diferenciar através de vários ensaios o retra-
Sempre se está a gravitar em torno a to de um acontecimento tal como ele é
essa cesura a partir da qual a vida se construído pela poesia e pela pintura, distin-
distribui desigualmente, a partir da qual tas como artes do tempo e do espaço, res-
a rachadura abre-se em nós, ainda que pectivamente. Uma das principais caracte-

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rísticas da pintura será a de colocar, num só único momento, que deverá ser retratado a
espaço e ao mesmo tempo, os acontecimen- partir também de um único ponto de vista,
tos diante de nossos olhos. Na poesia, ao esse momento (ação) escolhido não deve-
contrário, a construção temporal é feita pau- rá, entretanto, ser demasiado fecundo. Para
latinamente, a cada palavra, linha, estrofe. Eis Lessing aquilo que é mostrado deve deixar
então o dilema do pintor: se todas as ações espaço para a imaginação, não sendo o mo-
que tramam um acontecimento devem ser mento mais vantajoso de uma ação, parado-
dadas a quem olha em apenas um de seus xalmente, aquele mais proeminente.
instantes, por qual deles optar? Em outras Contemporaneamente, Gombrich concluirá:
palavras: como apresentar um acontecimen-
to que dura no tempo, construir uma narra- Se nos perguntarmos que qualidade
tiva, a partir de uma imagem estática? uma fotografia instantânea deve con-
Alfred Stieglitz, ter para transmitir a impressão de vida
Fifth Avenue, Winter,
fotografia, 1893,
Lessing12 alcançou suas deduções sobre o e movimento, descobriremos, não ines-
publicada na revista assunto introduzindo o que chamou de “mo- peradamente, que isso dependerá da
Camera Work, n.12, mento fecundo” (fruchtbaren augenblick). naturalidade com que reconhecemos
outubro de 1905
Fonte: http://
Se, do transformar-se contínuo e incessan- o significado capaz de nos permitir su-
www.britannica.com te da natureza, o pintor deve escolher um plementar o passado e chegar à anteci-
pação do futuro.13

Na fotografia, a noção de corte,14 antes


referenciada – fundamento do próprio ato
fotográfico conforme se foi estabelecendo a
partir do final do século 19 –, dirá respeito à
(re)constituição de um acontecimento no
espaço e no tempo. São duas durações se-
paradas inesperadamente por um golpe es-
pacial temporal, captando daí o instante –
hic et nunc. Referindo-se ao corte temporal
especificamente, surge então uma
descontinuidade, “posições fixas, recortadas,
fora do fio da duração”.15 Segundo Dubois,
porém, a noção de instante não elimina a
noção de duração, pois essa fração de segun-
do, eternizada, perpétua, entra em nova
temporalidade que também ‘dura’. Paradoxal
é “salvá-lo do desaparecimento fazendo-o
desaparecer”.16 Cortar um acontecimento
em plena vida para que possamos olhá-lo,
examiná-lo atentamente, perscrutá-lo. Aquilo
que será reavivado na fotografia é apenas
uma ‘visão’ (tanto no sentido fantasmático17
quanto no literal). Parcela inapreensível tor-

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nada visível de um presente que nunca po- grafia resultará sempre de uma ação conti-
derá ser recuperado. nuamente refeita, de ordem performativa.20

Pertence à fotografia a perpetuação de acon- Essa questão pode ter-se tornado mais com-
tecimento único; o que decorre não é mera plicada e menos imediata quando, nos anos
temporalidade reduzida a um simples instan- 80, o artista Richard Prince adota como fon-
te, a um ponto, mas também à superação te de seus trabalhos imagens de revistas, jor-
nais, etc.; imagens de propagandas em geral,
dele, que terá outra duração, outra inscrição
feitas por fotógrafos anônimos comerciais,
no tempo. Giorgio Agamben comparará cada
que gerarão séries como “Cowboys”,
fotografia ao Dia do Juízo. Não necessaria- “Sunset”, entre outras. Inicialmente, parece
mente porque mostre algo grave, ou trági- pertinente observar que refotografar uma
co, mas por captar, em sua flanêrie, até o imagem atribui ao ato certa leveza – como
gesto mais banal e ordinário: “cada homem prefiro interpretar – ou “não esforço”, como
fica entregue para sempre a seu gesto mais Prince coloca com certa recorrência ao lon-
ínfimo e cotidiano (...) o gesto agora apare- go de seus textos.21 Não há nenhum tipo de
ce carregado com o peso de uma vida intei- atenção especial, pelo menos daquela que é
ra...”18 Comparativamente, é no Hades, in- exigida genericamente do fotógrafo, que
ferno pagão, que as sombras dos mortos deva ser direcionada às coisas no mesmo
estarão condenadas a repetir infinitamente instante em que elas se apresentam para
captar seja lá o que se deseje. Encontro-me
um gesto, como chave secreta para trazer a
certamente em outro tipo de repetição aqui;
memória de uma existência – apokatastasis.
possivelmente não mais naquela do ato, que
A fotografia tornará possível mais uma e
mesmo repetido se supõe único e original,
outra vez um acontecimento, que será sem- mas já naquela que concerne à reprodução
pre captado em sua perda iminente.19 de uma imagem.
A repetição Quando se refere a seus trabalhos, “simular”
(simulate) é a palavra que Prince prefere e
Se houve num primeiro momento a urgên-
difere de “copiar”. Uma cópia é feita à se-
cia de abordar o corte temporal, nesta altu-
ra não será menos importante introduzir o melhança de outro objeto, dito original, e
problema da repetição, cerzido na constitui- poderia substituí-lo, sendo apreciada em seu
ção deste trabalho e em certos aspectos da lugar. As fotografias de Prince não são cópias
fotografia. Admitindo que a compulsão faça de anúncios nem visam substituí-los, como
parte da própria natureza do ato fotográfi- uma estátua de gesso em relação a um ori-
co, cria-se imediata relação entre a repeti- ginal em mármore. Não se trata também de
ção e a obtenção de uma imagem. Fotogra- falsificação. No entanto, as refotografias, se-
fa-se tudo; a seleção é posterior, afirmará gundo Prince, reivindicam uma relação de
Dubois. Repetição do ato. Não cabe ao fo- frescor, como se fossem vistas pela primeira
tógrafo fazer uma foto, mas uma série delas, vez – possibilidade negada às imagens que
metralhar com a máquina. Não se trata da lhes dão origem; estas estão comprometi-
repetição dos assuntos, mas a ação de foto- das pela própria mídia que as veicula: meio
grafar será sempre a de recomeçar, recupe- dos anúncios de revistas, propagandas; um
rar; uma questão de sucessividade. A foto- universo indistinto de “Cowboys”.

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Com base em definição elaborada por minar. É porque não as domina que ele ex-
Deleuze, Rosalind Krauss 22 resume perimenta uma sensação de semelhança.”26
simulacrum como cópia sem original, cópia
sem modelo, e Antoine Compagnon23 como O retorno
“cópia do não ser”. Gilles Deleuze24 falará
O maior dos pesos – E se um dia, ou
extensamente a respeito de como Platão
diferiu o tratamento dado a estes dois con- uma noite, um demônio lhe apareces-
ceitos, cópia e simulacro, inicialmente em se furtivamente em sua mais desolada
Fedro e Político e, posteriormente, em So- solidão e dissesse: “Esta vida, como você
fista. Em Platão e o simulacro, Deleuze apon- a está vivendo e já viveu, você terá de
ta uma característica fundamental na Teoria viver mais uma vez e por incontáveis
das Ideias, de Platão, direcionada principal- vezes; e nada haverá de novo nela, mas
mente a fazer discriminações, diferenciar cada dor e cada prazer e cada suspiro
original e cópia, modelo e simulacro; cópia e e pensamento, e tudo que lhe é inefa-
simulacro, mais adiante, serão separados velmente grande e pequeno em sua
como conceitos absolutamente distintos e, vida, terão de lhe suceder novamente,
para tanto, surgirão critérios de diferencia- tudo na mesma sequência e ordem (...)
ções. Inicialmente é dividido em gêneros algo A perene ampulheta do existir será
que antes era indistinto, porém não se trata sempre virada novamente – e você com
aqui de mera distinção, mas, mais especifica- ela, partícula de poeira!”. – Você não se
mente, de seleção de linhagens. “A essência prostraria e rangeria os dentes e amal-
da divisão não aparece em largura, na deter- diçoaria o demônio que assim falou? Ou
minação de espécies de um gênero, mas em você já experimentou um instante
profundidade, na seleção da linhagem.”25 imenso, no qual lhe responderia: “Você
Futuramente, em Sofista, Platão já não pro- é um deus e jamais ouvi coisa tão divi-
curará critérios para identificar o autêntico, na!”. Se esse pensamento tomasse conta
mas antes para cercear o inautêntico, ou seja, de você, tal como você é, ele o trans-
o simulacro. Aparece nesse momento uma formaria e o esmagaria talvez; a ques-
distinção entre as duas espécies de imagens, tão em tudo e cada coisa, “Você quer
pois se a cópia se assemelha à ideia da coisa, isso mais uma vez e por incontáveis
sobre ela se modelando, o simulacro guarda vezes?”, pesaria sobre seus atos como
apenas semelhança superficial. Falar, no en- o maior dos pesos! Ou o quanto você
tanto, que ele descende da cópia é passar teria de estar bem consigo mesmo e
ao largo do ponto principal: enquanto a có- com a vida, para não desejar nada além
pia é imagem com semelhança, o simulacro dessa última, eterna confirmação e
é imagem dessemelhante. O homem tor- chancela? 27
na-se um simulacro de Deus quando, per-
dida a possibilidade da existência moral, Assim Nietzsche apresentará o eterno re-
tolhida pelo pecado, já não se pode mais torno. Essa ideia nietzschiana foi profunda-
assemelhar a sua ideia, restando apenas se- mente estudada por Gilles Deleuze, que lhe
melhança estética superficial, que encobrirá dará interpretação a partir da diferença, re-
a dessemelhança essencial: “...o simulacro im- cusando-se a observá-la como movimento
plica grandes dimensões, profundidades e cíclico e mecânico pautado no idêntico.28 No
distâncias que o observador não pode do- entanto, como pensar a repetição a partir

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da diferença, sendo que repetir, generica- ou baixo, quando compreendido num que-
mente, significa tornar ao mesmo, ao que é rer completo, irá modificar-se e distinguir-se
igual? Em Diferença e repetição, 2006, de si mesmo – daquilo que era originalmen-
Deleuze já afirma na introdução: “Não acres- te – em sua repetição.33 Por inversão, o pe-
centar uma segunda ou uma terceira vez à sado torna-se leve; a própria seleção será
primeira, mas elevar a primeira à enésima criação, faz a transmutação do que é sele-
potência. Sob esta relação da potência, a cionado. Talvez sejam esses os mesmos mo-
repetição inverte, interiorizando-se.” tivos que levarão Milan Kundera a concluir
que aqui cada gesto “carrega o peso de uma
De acordo com Deleuze há entre a ideia insustentável leveza. Isso é o que fazia com
do eterno retorno e aquela do simulacro que Nietzsche dissesse que a ideia do eter-
um forte elo. Se aquilo que retorna é, ao no retorno é o mais pesado dos fardos”.34 A
mesmo tempo, semelhante e divergente, leveza e o peso do ato fotográfico.
constitui – ao contrário do que imagina-
mos – não a diferença a partir da seme- Pollyanna Freire é artista, mestre em linguagens visuais
lhança, mas sim “o único Mesmo daquilo pelo PPGAV-EBA/UFRJ, graduada em artes plásticas pela
Universidade Estadual de São Paulo. Este texto reúne
que difere”.29 A repetição para Deleuze partes do segundo e do terceiro capítulo da dissertação
acontece por sua relação com algo único e de mestrado Ensaio sobre a perda do instante decisivo,
singular. E, referindo-se ao que foi dito por sob orientação do professor doutor Luciano Vinhosa,
defendida em maio de 2009.
Peguy, “... é a primeira ninfeia de Monet que
repete todas as outras”.30 Deleuze sugere
Notas
que a repetição é envolvida pela fina cama-
da da diferença, se desfazendo a seu favor: 1 Dubois, Philippe. A fotografia panorâmica ou quando a ima-
“A diferença está entre duas repetições. gem fixa faz sua encenação. In O fotográfico. Org. Etienne
Samain. São Paulo: Senac, 2005:204.
Não será isto dizer, inversamente, que a
repetição também está entre duas diferen- 2 Id., ibid.:203.
ças?”31 Na repetição será eliminado não o 3 Essa referência pode ser encontrada em Tassinari, Alberto.
diferente, mas aquilo que o subjuga. O instante radiante. In: 8 x fotografia: ensaios. Org.
Lorenzo Mammi e Lilia Moritz Schwarcz. São Paulo:
Em suma, o eterno retorno para Deleuze Companhia das Letras, 2008:27 (notas de rodapé).
será o retorno da diferença, do outro, e não 4 Sontag, Susan. Sobre fotografia. São Paulo: Companhia das
do mesmo. Suas implicações são, além da Letras, 2004:106.
recusa de uma interpretação cíclica e mecâ- 5 Schaeffer, Jean-Marie. A imagem precária: sobre o disposi-
nica, um querer verdadeiro. “O ser é sele- tivo fotográfico. Campinas: Papirus, 1996:134.
ção”, essa é a lição do eterno retorno, pro- 6 Cartier-Bresson, Henri. Eu, fotógrafo. Rio de Janeiro: Edi-
põe Deleuze. “O que quiseres, queira-o de ções Jornal do Brasil, dez. 1970.
tal modo que também queiras seu eterno
7 Dubois, Philippe, O ato fotográfico. Campinas: Papirus,
retorno.”32 O querer verdadeiro, o querer 1993:182.
infinitamente, elimina as meias vontades. Só
8 Pelbart, Peter Pál. O tempo não reconciliado. São Paulo:
resistirá aquilo que, selecionado, resiste a seu Perspectiva, 2007:84. (Coleção Estudos)
próprio retorno. Porém, tanto é eliminado
9 A referência aqui é Pelbart, 2007:86. Embora esse se refira
aquilo que é um querer fraco quanto ‘o que
à forma privilegiada captada no movimento (pose), uti-
resiste transmuta’. Peter Pál Pelbart comple- lizando a escultura como exemplo, o texto é absoluta-
ta afirmando que qualquer objeto, seja vil mente passível de ser aplicado à fotografia.

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10 Pelbart, 2007:87. 22 Krauss, Rosalind. Poststructuralism and deconstruction. In
Art since 1900. London: Thomas and Hudson, 2004:47.
11 Lessing, Gotthold Ephraim. Laocoonte ou sobre as fron-
teiras da pintura e da poesia. São Paulo: Iluminuras, 23 Compagnon, Antoine. O trabalho da citação. Belo Hori-
1998:12-13. (Biblioteca Pólen) zonte: Ed. UFMG, 1996:48.

12 Id., ibid.:99. 24 Deleuze, Gilles. Lógica do sentido. São Paulo: Perspectiva/


USP, 1974:259–271.
13 Gombrich, Ernst Hans. The image and the eye: further
studies in the psychology of pictorial representation. New 25 Id., ibid.:260.
York: Phaidon, 2002:53, tradução da autora. 26 Id., ibid.:264.
14 Dubois, 1993:161-177. 27 Nietzsche, Friedrich. A gaia ciência. São Paulo: Compa-
15 Id., ibid.:165. nhia das Letras, 2001:230.
28 A interpretação do tempo não é sistematizada por Deleuze,
16 Id., ibid.:169.
mas Peter Pál Pelbart dedicou-se a delineá-la em sua
17 Refiro-me aqui à etimologia do termo como “fazer pre- tese de doutorado. O que é apresentado está pautado
sente ao olho”, “mera aparência”. O segundo significado tanto no livro Diferença e repetição, de Deleuze, quan-
vem do latim phantasma, significando “ilusão” e trazen- to no de Pelbart (2007:132) O tempo não reconciliado,
do novamente a ideia de tornar visível. procedente de sua tese.

18 Agamben, Giorgio. Profanações. São Paulo: Boitempo, 29 Deleuze, 1974:270.


2007:28. 30 Deleuze, Gilles. Diferença e repetição. Rio de Janeiro: Graal,
19 Id., ibid.:27-30. 2006:20.

20 Dubois, 1993:162. 31 Id., ibid.:119.

21 “As a mode of production, rephotography can reproduce 32 Id., ibid.:27.


or ‘manage’ an already existing photograph or picture 33 Pelbart, 2007:134.
effortlessly” ou “…re-photographing a published image
is making a new picture effortlessly”. Disponível em: http:/ 34 Kundera, Milan. A insustentável leveza do ser. Rio de Ja-
/www.richardprinceart.com/ neiro: Nova Fronteira, 1985:11.

ARTIGOS • POLLYANNA FREI RE 49

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