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ISADORA MINETTO
CURITIBA
2018
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ISADORA MINETTO
CURITIBA
2018
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TERMO DE APROVAÇÃO
ISADORA MINETTO
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____________________________________
AGRADECIMENTOS
À Mel, minha orientadora por ter me dado uma verdadeira aula de vôo: “O
conhecimento é assim, ri de si mesmo e de suas certezas. É meta da forma,
metamorfose, movimento, fluir do tempo que tanto cria como arrasa a nos mostrar
que, para o vôo, é preciso tanto o casulo como a asa.”
À Ana Flávia por me trazer tanta sensatez. À Danna, meu raio de luz mesmo
quando longe. À Mari, por dividir e me divertir tanto. Ao Leo R, pelos papos e
camaradagem. A todos você, amigos do cotidiano: “Não para que venha logo em
meu auxílio. Mas para ter certeza, na medida certa, que você sabe que pode contar
comigo.”
À minha mãe Luciana, por ter me tornado esforçada e insaciável: “Las manos
de mi madre llegan al patio desde temprano, todo se vuelve fiesta cuando ellas
vuelven junto a otros pájaros. Junto a los pájaros que aman la vida y la construyen
con el trabajo, arde la leña, harina y barro. Lo cotidiano se vuelve mágico.”
À Intersindical e ao Coletivo Outros Outubros Virão visto que: “Se muito vale o
já feito, mais vale o que será. E o que foi feito é preciso conhecer para melhor
prosseguir. Falo assim sem tristeza, falo por acreditar que é cobrando o que fomos
que mais podemos crescer. Nós iremos crescer, outros outubros virão”.
À todos aqueles que lutam, em especial aos camaradas da militância que são
minha segunda família: “Me ensinaste a ver a unidade e a diferença dos homens. Me
mostraste como a dor de um ser morreu na vitória de todos. Me ensinaste a dormir
nas camas duras de meus irmãos. Me fizeste construir sobre a realidade como sobre
uma rocha. Me fizeste adversário do malvado e muro do frenético. Me fizeste ver a
claridade do mundo e a possibilidade da alegria. Me fizeste indestrutível porque
contigo não termino em mim mesmo”.
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Mario Benedetti
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RESUMO
ABSTRACT
LISTA DE TABELAS
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO…………………………………………………………………………..... 12
1 PRESSUPOSTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS………………………………... 15
1.1 O MATERIALISMO HISTÓRICO DIALÉTICO…………………………………..... 15
1.2 PSICOLOGIA HISTÓRICO-CULTURAL E FORMAÇÃO SOCIAL DO
PSIQUISMO………………………………………………………………………………...23
1.3 TEORIA DA ATIVIDADE E PERSONALIDADE DE LEONTIEV………………….32
2 CAPITALISMO E SAÚDE……………………………………………………...……... 42
2.1 DETERMINAÇÃO SOCIAL DO PROCESSO SAÚDE-DOENÇA……………..... 42
2.2 PADRÕES DE DESGASTE E REPRODUÇÃO E PERFIS PATOLÓGICOS.......46
2.3 A ESTRATÉGIA DE EXTRAÇÃO DE MAIS-VALIA NO CAPITALISMO
IMPERIALISTA..........................................................................................................52
2.4 A DETERMINAÇÃO SOCIAL DO SOFRIMENTO
PSÍQUICO..................................................................................................................57
2.5 A TEORIA DOS FATORES DE RISCO E OS PROCESSOS
CRÍTICOS..................................................................................................................60
2.6 O CONCEITO DE PROCESSOS CRÍTICOS………………………………………65
3. CARACTERIZAÇÃO E ANÁLISE DA ATIVIDADE DA MILITÂNCIA
REVOLUCIONÁRIA...................................................................................................67
3.1 SENTIDO E SIGNIFICADO DA MILITÂNCIA.......................................................69
3.2 MILITÂNCIA ENQUANTO PROCESSO GRUPAL…………………......................81
3.3 MILITÂNCIA E DISPÊNDIO DE ENERGIA………...............................................84
3.4 MATRIZ DOS PROCESSOS CRÍTICOS DOS MILITANTES EM SOFRIMENTO
PSÍQUICO..................................................................................................................86
3.5 PAPEL DOS SERVIÇOS DE SAÚDE E DAS ORGANIZAÇÕES POLÍTICAS….99
CONSIDERAÇÕES FINAIS………………………………………………………...…...102
REFERÊNCIAS…………………………………………………………………………...105
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INTRODUÇÃO
sua militância. Nessa medida, abala um projeto coletivo, pois a militância é uma
atividade grupal no qual o projeto de vida individual se insere e subordina. Além
disso, percebe-se que a militância enquanto atividade pode tanto ser geradora de
saúde - pois, enquanto projeto de vida coletivo, é acompanhada de uma rede de
suporte, assim como confere sentido à vida, quanto pode ser geradora de desgaste -
diante do grande acúmulo de atividades e responsabilidades, etc.
O adoecimento, portanto, é um problema não só coletivo como também
político a ser enfrentado. Nesse sentido, o que é a atividade da militância e como ela
se relaciona com o sofrimento psíquico? Entende-se que o problema do sofrimento
psíquico de militantes não é uma questão individual e sim inserida no bojo das
tarefas políticas de uma organização. Ao mesmo tempo as organizações políticas
não são um grupo de apoio psicológico. Portanto, cabe entender o papel das
organizações políticas na elaboração de análises e práticas comprometidas com a
formação de militantes engajados no projeto de transformação da sociedade,
inseridos nesse cenário que determina o aumento do sofrimento psíquico.
Essa monografia se inscreve na tarefa de contribuir na resposta a estas
perguntas. A epistemologia adotada, o método materialista dialético, é
suficientemente elaborado para o fazer científico. Explicita-se, entretanto, sua não
neutralidade e o seu compromisso, que é um compromisso de classe com a
produção científica (MARTINS, 2005). Ou seja, afirma-se o caráter necessariamente
contextualizado da atividade científica, colocada a serviço do enriquecimento do
gênero humano. O que visa trazer de inovador academicamente -no entendimento
de um objeto pouco explorado em termos teóricos- se condiciona às necessidades
práticas das organizações revolucionárias brasileiras, que por sua vez também são
condição da emancipação humana. Para isso, baseou-se na Psicologia
Histórico-Cultural, em especial na teoria da atividade de Leontiev, no campo do
saber da Saúde Coletiva, em especial na teoria da determinação social do processo
saúde-doença e também no campo da Epidemiologia crítica, em especial no
conceito de processos críticos protetores e destrutivos da saúde e na matriz dos
processos críticos.
A justificativa central da pesquisa é o fato de que, para superar a sociedade
de classes, a unidade entre uma série de condições objetivas e subjetivas é
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Materialismo e Idealismo
Dialética e Metafísica
O Materialismo Dialético
“a) A unidade e luta dos contrários. Quem diz movimento diz contradição.
Quem diz contradição diz coexistência de elementos opostos uns aos outro,
simultaneamente coexistência de luta entre esses elementos. Se existe
homogeneidade integral, ausência total de elementos opostos uns aos
outros, não existe contradição, não existe movimento, não existe vida, não
existe existência. A existência de elementos contraditórios inclui a
coexistência numa totalidade estruturada, num conjunto em que cada um
dos seus elementos tem seu lugar, e a luta desses elementos para
decompor esse conjunto. O capitalismo não é possível sem a existência
simultânea do capital e do trabalho assalariado, da burguesia e do
proletariado. Um não pode existir sem o outro. Mas isso de modo algum
significa que um deles não procure suprimir o capital e o salariato, não
procure, portanto, ultrapassar o capitalismo. b) Mudanças qualitativas e
quantitativas. O movimento toma a forma de mudanças mantendo a
estrutura (ou a qualidade) dos fenômenos: falamos neste caso de uma
mudança quantitativa, frequentemente imperceptível. A partir de um certo
“limiar”, a mudança em vez de ser gradual, efetua-se por “salto”, dando
lugar a uma nova qualidade. Uma pequena aldeia pode transformar-se
gradualmente numa grande aldeia ou vila, num burgo, mesmo numa
pequena cidade. Mas entre uma cidade e uma aldeia não existe somente
uma diferença de quantidade (quantidade de habitantes, de espaço
edificado, etc). Existe também uma diferença de qualidade. A atividade
profissional da maioria dos habitantes, modifica-se: em lugar do agricultor, é
o operário e o empregado que dominam. Nasce um novo meio social,
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Existem, ainda, alguns problemas suplementares da dialética do conhecimento. A questão do
conteúdo e forma, causas e efeitos, o geral e o particular, o relativo e o absoluto. Para mais
informações ler: A Dialética Materialista de Ernest Mandel.
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Estudando essa primeira lei, Mao Tse Tung (2016), afirma que a contradição
existe em todos os objetos e fenômenos e penetra todos os processos desde o início
até ao fim. Nesse sentido, a contradição é universal. Apesar disso ela também é
particular, pois cada contradição e cada um dos seus aspectos específicos assim
como, em condições determinadas, cada pólo da contradição pode transformar-se
no outro. Ou seja, a luta dos contrários é ininterrupta, mas a posição de cada pólo da
contradição é relativa. Por isso, é necessário diferenciar o aspecto principal de cada
contradição, assim como entender que a realidade e os fenômenos não são
formadas de uma só contradição, mas são a unidade do diverso, a síntese de
múltiplas contradições.
A dialética afirma movimento onde a metafísica vê estagnação, um complexo
de interligados processos onde a metafísica vê uma soma de coisas acabadas. Não
há nada de definitivo e absoluto, parado ou isolado. A dialética expõe a caducidade
de todas as coisas, nada existe para ela senão o processo ininterrupto do transitório,
da ascensão sem fim do inferior para o superior, da qual ela própria não é senão o
reflexo do cérebro humano (ENGELS apud LENIN, 1913). Por isso, ela é a teoria e a
lógica do movimento (KOPNIN, 1978), a doutrina do desenvolvimento na sua forma
mais completa, mais profunda e mais isenta de unilateralidade, a doutrina da
relatividade do conhecimento humano, que acompanha a matéria em constante
desenvolvimento, a ciência das leis gerais do movimento tanto do mundo exterior
como do próprio pensamento. (LENIN, 1949).
Por fim, o marxismo adota o ponto de vista da totalidade. (MANDEL,1978). Ou
seja, cada fenômeno e objeto comporta uma infinidade de aspectos, de
componentes, de elementos constitutivos que formam conjuntos estruturados, um
todo. Por isso, a dialética materialista deve não apenas conhecer as contradições
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Materialismo Histórico
Tendo isso em vista, é a humanidade mesma que faz a história, embora sob
condições e suposições já pré definidas (ENGELS, 1974). O resultado geral obtido e
que serviu de fio condutor aos estudos de Marx e Engels é o de que o modo de
produção da vida material é que condiciona, em última instância, o processo da vida
social, política e espiritual. Para Marx (1982a), não é a consciência dos seres
humanos que determina o seu ser, mas o seu ser social que determina a sua
consciência. Pois, na produção social da sua vida, a humanidade entra em contato
com relações sociais de produção, necessárias e independentes da sua vontade,
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relações essas que formam a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a
qual se ergue uma superestrutura jurídica e política, e às quais correspondem
determinadas formas da consciência social (MARX,1982a).
Essa concepção materialista da história eliminou dois defeitos fundamentais
das teorias históricas anteriores, de acordo com Lenin (1949). Primeiro, a
investigação superficial da história, olhando apenas sua aparência, sem pesquisar
sua origem e desenvolvimento. Ou seja, sem olhar as leis objetivas do
desenvolvimento das relações sociais e sem investigar as raízes dessas relações e
o grau de desenvolvimento da produção material. Segundo, a negligência de que
são as massas que fazem a história, não apenas as figuras históricas conhecidas
das classes dominantes. Assim, o marxismo abriu o caminho para um estudo da
origem, desenvolvimento e declínio das formações sociais e econômicas (LENIN,
1949). E comprovou que “As formas da economia sob as quais os homens
produzem, consomem, e fazem suas trocas são transitórias e históricas”. (MARX,
1982, s.p.).
Com o grosso desses conceitos gerais de materialismo e dialética
apresentados, pode-se agora afirmar: o materialismo dialético é a concepção
filosófica do marxismo. O materialismo histórico é a aplicação dos princípios do
materialismo dialético ao estudo da vida social, aos fenômenos da vida da sociedade
e da história (STALIN, 1938). Juntos constituem um método de análise da realidade
e um dos pilares constitutivos do marxismo, o Materialismo Histórico Dialético.
A Verdade
verdade, não vem no sentido da negação da verdade objetiva, mas sim de sua
condicionalidade histórica, do entendimento de que embora o conhecimento pode se
aproximar sucessivamente da realidade, não alcança absoluta identidade (KOPNIN,
1978).
Aqui é chave entender que o movimento é “a unidade da continuidade e da
descontinuidade” (HEGEL, s.d apud MANDEL, 1978, p. 122). Assim, existem
situações transitórias e fenômenos híbridos dos mais variáveis, em que algo se
altera, mas algo se conserva, se mantém estável. Por isso, a relatividade do
conhecimento é apenas parcial. Ela é reconhecida como uma prova do seu
desenvolvimento, da capacidade de enriquecer-se e fazer aproximações sucessivas
do real e não de sua fraqueza, da impotência de dominar os fenômenos e processos
do mundo exterior. É importante citar isso, dado que pode-se fazer um uso
subjetivista da dialética, em que a relatividade é absolutizada. A verdade, para
Kopnin (1978), é um processo de movimento do pensamento, portanto. Uma vez que
é um processo de coincidência do pensamento com o objeto, de aproximação
sucessiva do real sendo relativa e absoluta ao mesmo tempo.
Os filósofos burgueses ora acham que a verdade é exclusivamente subjetiva,
em que cada um tem a sua, ora apresentam definições míticas, eternas e
extratemporais da verdade (KRAPIVINE, 1986). Através do materialismo dialético se
compreende a verdade, então, como objetiva e subjetiva ao mesmo tempo. Objetiva
uma vez existe independente do nosso conhecimento dela e subjetiva no sentido de
que é conhecimento humano (KOPNIN, 1978). A questão de conceber o mundo
como cognoscível a capacidade de o ser humano conhecer a verdade é
fundamental, pois se é possível conhecer o mundo e as leis do seu
desenvolvimento, é possível utilizar esses conhecimentos para a transformação
revolucionária da sociedade (STALIN,1938). A dialética materialista do pensamento
científico pode apreender o real justamente porque seu próprio movimento
corresponde e acompanha cada vez mais ao movimento da matéria (MANDEL,
1978) Em outras palavras, embora a identidade total do conhecimento e da realidade
seja impossível, a humanidade tem a capacidade de se aproximar, por meio do
conhecimento, sucessivamente da realidade.
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A teoria de Vigotski, Lúria e Leontiev é conhecida como Histórico-Cultural. No Brasil se utiliza,
também, o termo “Sócio-histórico”. Mas esse último se refere mais ao campo crítico da psicologia
produzida no Brasil de inspiração na teoria Histórico-Cultural.
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No Brasil, temos exemplos desde a colonização por Portugal. Bock (2001) explica que as ideias
psicológicas eram produzidos pela igreja ou intelectuais orgânicos do sistema português e serviam
para o controle social. No século XIX, durante o império, as ideias psicológicas vão ser produzidas
principalmente no âmbito da medicina e da educação. Com a vinda da corte brasileira e o rápido
desenvolvimento da cidade do Rio de Janeiro sem nenhuma infraestrutura, surgiram doenças,
miséria, prostituição e loucura. Por isso, esse século assiste ao surgimento das ideias de higienização
moral e disciplinamento da sociedade. A industrialização anos mais tarde traz novas exigências e,
dessa vez, a psicologia se aplica à educação, possibilitando a diferenciação das pessoas para a
formação de grupos nas escolas de futuros trabalhadores mais adequados para a empresa. No
âmbito internacional as guerras mundiais trouxeram o desenvolvimento de testes psicológicos,
instrumentos que viabilizaram essa prática diferenciadora e categorizadora da psicologia.
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1998 apud TULESKI, 2008, p.86). Ou seja, para avançar rumo ao desenvolvimento
do socialismo, era necessário um processo híbrido de aumentar a produção e
aprofundar a consciência. Nesse sentido, a leitura de Vigotski da crise da velha
psicologia expressa a luta revolucionária pela superação das relações capitalistas de
produção e pela construção de um novo ser humano.
Para o soviético, a chave da industrialização acelerada era o desenvolvimento
da consciência, capaz de promover a autodisciplina dos trabalhadores. A
industrialização, portanto, dependia da consciência coletiva do sujeito histórico. Seria
no aperfeiçoamento do ser humano através da educação que se garantiria a
desvinculação dos trabalhadores de seus interesses individuais para se doarem a
um projeto coletivo. Isso porque a apropriação dos instrumentos e signos culturais
conduzem ao autocontrole e regulação do próprio comportamento e ao abandono
“das condutas impulsivas e sem reflexão, desenvolvendo o comportamento racional
compatível com o homem comunista, disciplinado e cumpridor de seus deveres em
sociedade, sem a necessidade da imposição externa arbitrária”. (TULESKI, 2008,
pg. 137).
4
A burguesia tem “a necessidade de velar as tendências históricas universais. Promove o
particularismo na teoria, fixa o conhecimento no mais imediato; promove o positivismo na ciência da
natureza e dos homens: somente o singular pode ser conhecido e teorizado. Para essa tarefa, os
intelectuais da ordem contam com um poderoso aliado no ecletismo. Combinar pressupostos
incompatíveis entre si é um procedimento teórico que tem se mostrado muito útil quando se trata de
velar a totalidade pelo particular e pelo singular.” (LESSA, 2014. p 47). Por isso, se defende a
ortodoxia, que se refere à rigorosa coerência de pressupostos, à coerência e consistência dos
fundamentos teóricos. A defesa do ecletismo é feita tanto por intelectuais progressistas até pelas
tendências irracionalistas mais conservadoras, o combate à ortodoxia unifica pós-modernos, liberais e
reformistas. Para o autor, a ortodoxia é a defesa metodológica contra o ecletismo e também contra o
dogmatismo. A ideologia pós-moderna equipara ortodoxia e dogmatismo quando, na realidade a
defesa da coerência e consistência dos fundamentos teóricos em nada se assemelha ao dogmatismo,
que é a dedução do real a partir de pressupostos dados a priori (LESSA, 2014).
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agora pode ser arbitrariamente dirigida; muda essencialmente a memória que pela
primeira vez pode ser conscientemente armazenada, gravando assim muito mais
informação e também conscientemente selecionada. A linguagem também permite o
surgimento da imaginação, assegura as complexas formas de pensamento abstrato
e generalizado, além de reorganizar a vivência emocional. Sem ela, a humanidade
não desenvolve funções psicológicas superiores.
5
Relaciona-se aqui o domínio da conduta com o domínio sobre a própria natureza. Liberdade para
Engels (1878), se trata de uma conquista e não de um pressuposto. É um processo de permanente
obtenção pelo gênero humano e não um estado intrínseco ao indivíduo. E que se relaciona com a
possibilidade de escolha, pautada no conhecimento das leis da natureza para fazer com que ajam de
acordo com nossa vontade: “A liberdade não reside, pois, numa sonhada independência em relação
às leis naturais, mas na consciência dessas leis e na correspondente possibilidade de projetá-las
racionalmente para determinados fins. Isto é verdade não somente para as leis da natureza exterior,
mas também para as leis que presidem a existência corporal e espiritual do homem: duas espécies
de leis que podemos distinguir, quando muito, em nosso pensamento. mas que, na realidade, são
absolutamente inseparáveis. O livre arbítrio não é. portanto, de acordo com o que acabamos de dizer,
senão a capacidade de decisão com conhecimento de causa. Assim, pois, quanto mais livre for o
juízo de uma pessoa com relação a um determinado problema, tanto mais nítido será o caráter de
necessidade determinado pelo conteúdo desse juízo; ao contrário, a falta de segurança que, baseada
na ignorância, parece escolher, livremente, entre um mundo de possibilidades distintas e
contraditórias, está demonstrando, desse modo, justamente a sua falta de liberdade, está assim
demonstrando que se acha dominada pelo objeto que pretende dominar, A liberdade, pois, é o
domínio de nós próprios e da natureza exterior, baseado na consciência das necessidades naturais;
como tal é, forçosamente, um produto da evolução histórica.” (ENGELS, 1878, s.p).
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As necessidades
O objeto da atividade
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Como as necessidades se determinam pelas condições sociais de vida (no caso, pelo lugar que um
indivíduo ocupa no sistema de relações sociais), nas condições da sociedade dividida em classes, a
classe explorada tem condições muito limitadas de satisfazer suas necessidades, que não podem ter
um desenvolvimento amplo. Ao contrário, quem pertence às classes exploradoras não só tem amplas
condições de satisfazer suas necessidades, inclusive sua situação de classe provoca um
desenvolvimento desconfigurado das mesmas (LEONTIEV, 2017).
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O motivo
A atividade que não tem um motivo geral e amplo carece de sentido para o
indivíduo que a realiza. Essa atividade não somente não se pode enriquecer
e melhorar em seu conteúdo, como se torna uma carga para o sujeito. Isso
acontece, por exemplo, com tudo o que se faz por imposição. Por isso,
apesar da importância que têm os motivos-estímulo, a tarefa pedagógica
consiste em criar motivos gerais significativos, que não somente incitam à
ação, mas que também deem um sentido determinado ao que se faz.
(LEONTIEV, 2017, p. 50)
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Sempre há um motivo para a atividade, embora ele possa ser inconsciente. Para Leontiev (1978), o
inconsciente e consciente não se opõem, são apenas formas e níveis diferentes de reflexo psíquico.
Por isso o inconsciente pode se tornar consciente. Esses níveis diferentes são determinados pelo
lugar que o motivo ocupa na estrutura da atividade, além de outros fatores sociais maiores como a
alienação. Para aprofundamento, ver “Emoção é movimento para fora: por isso o inconsciente é
ausência de mediação das emoções” de Inara Barbosa Leão.
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A vida de cada indivíduo é feita da soma total ou, para ser mais exato, um
sistema, uma hierarquia de atividades sucessivas. É em atividade que a
transição ou “tradução” do objeto refletido em imagem subjetiva, em ideal,
ocorre; ao mesmo tempo, é também em atividade que a transição é
alcançada do ideal em resultados objetivos da atividade, seus produtos, em
material. Considerada deste ângulo, atividade é um processo de inter-tráfico
entre polos opostos, sujeito e objeto. Atividade é uma unidade não-aditiva
da vida material, corpórea, do sujeito material. Em um sentido estreito, i.e.,
no plano psicológico, é uma unidade de vida, mediada pela reflexão mental,
por uma imagem, cuja função real é orientar o sujeito no mundo objetivo.
Entretanto, não importam as condições e formas nas quais a atividade do
homem procede, não importam quais estruturas adquire, não pode ser
considerada como algo extraído de relações sociais, da vida da sociedade.
Apesar de toda sua diversidade, todas as suas características especiais, a
atividade do indivíduo humano é um sistema que obedece o sistema de
relações da sociedade. Fora destas relações, a atividade humana não
existe. (LEONTIEV, 1977, p 186)
As ações e as operações
(LEONTIEV, 1977, p. 190). De acordo com Asbahr (2005), ações apresentam, além
do aspecto intencional, o aspecto operacional. As operações são o meio para
realização das ações, são a via pela qual são realizadas. As operações se
relacionam às condições de realização da tarefa. Consistem na tecnificação da ação,
realizam-se, geralmente, de forma automática.
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O processo desse significado se interiorizar depende da relação dialética entre apropriação e
objetivação. A apropriação é a mediação entre a formação do gênero humano e de cada indivíduo, é
a incorporação dos acúmulos sociais pelo indivíduo e a objetivação é a transferência desses
acúmulos aprendidos para a atividade do indivíduo (Duarte, 2005). Para mais informações ler ‘O
significado e o sentido’, de Newton Duarte
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Leontiev dá um exemplo:
afirma que as formas de sofrimento são vividas pelos indivíduos como obstruções
aos seus modos de andar a vida. Esse enunciado indica que as relações sociais de
produção permitem certos modos de vida aos distintos grupos sociais, processo em
constante mudança na história. As formas de inserção nessas relações sociais e,
sobretudo, nas relações de trabalho também estabelecem normas e formas de dever
ser que regulam e condicionam o desenvolvimento biopsíquico dos seres humanos
(ALMEIDA; GOMES, 2014). O corpo é condicionado por funções sociais, é
socialmente investido e não estritamente natural.
O modelo biomédico compreende esses limites como resultado de alterações
do corpo humano e concebe essa dimensão biológica como essencialmente natural,
a-histórica, entendendo o corpo como fixo e imutável. Para Laurell (1979), a
contraposição dessa leitura envolve a problematização do nexo biopsíquico humano
como de natureza essencialmente histórico-social. Historicizar esse nexo é
desvendá-lo como a expressão concreta na corporeidade humana em sua relação
com o processo de produção, num momento determinado. Isso não só rompe com o
pensamento biomédico, cuja premissa elementar é o caráter a-histórico da biologia
humana, quanto implica o anúncio de um novo objeto científico em contraponto ao
objeto “doença”, estabelecido pela medicina dominante. Esse novo objeto consiste
no processo biopsíquico histórico das coletividades humanas.
Mas não basta apenas anunciar o caráter social do nexo biopsíquico e afirmar
um novo objeto. É necessário explicar como a biologia humana adquire essa
historicidade. Para fazer isso é preciso primeiro afirmar que o caráter social do nexo
biopsíquico historicamente específico não se revela através do estudo dos
indivíduos, mas dos grupos humanos. Mas porque adotar uma abordagem
epidemiológica de grupos humanos e não se limitar a casos individuais? Porque,
embora os processos de adaptação ocorram nos indivíduos, as condições que os
produzem são sociais. Essas condições são fruto do modo específico como os seres
humanos se apropriam da natureza por meio de uma determinada organização
social, como explicam Laurell (1979). Aqui se elege uma teoria do social, baseada
no materialismo histórico-dialético, que coloca a chave do caráter social do processo
biopsíquico humano no trabalho. O trabalho, na sua acepção marxista, significa o
processo através do qual o ser humano se apropria da natureza, transformando-a e
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9
O desgaste é um problema tanto pro capital e para o trabalho. Para o capital o desgaste é um
problema para a produção, implica a questão de como reproduzir as características necessárias da
força de trabalho. Já para o trabalho a questão é um problema da vida, de quais as condições em que
se desenvolvem seus processos vitais. (LAURELL, 1979)
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Esses padrões são determinados pelas condições coletivas de vida, que são
distintas em diferentes modos de produção, ou entre diferentes classes sociais
dentro de um mesmo modo de produção, em cada período histórico. Comparando,
por exemplo, as dez principais causas de morte no México, em Cuba e nos Estados
Unidos da América do Norte, no ano de 1977, é possível avaliar o resultado do
desenvolvimento das forças produtivas e das relações sociais no perfil patológico:
de cada região, que na Vila Matilde é de 70,8 em comparação com a médica de 66,6
anos do Brás.
É possível concluir empírica e teoricamente através do perfil patológico
dos grupos o caráter social do processo saúde-doença, uma vez que pode-se
comprovar que este muda para uma mesma população de acordo com o momento
histórico, com o desenvolvimento das forças produtivas e as relações sociais de
produção e mesmo dentro de classes diferentes dentro de uma mesma sociedade.
E, na medida em que a configuração do perfil epidemiológico é determinado pela
fase de acumulação capitalista, em especial para os processos críticos que
determinam os padrões de desgaste e reprodução, faz-se necessário explicar essas
diferentes fases.
Tudo dó,
tudo dó,
tudo dó...
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E em todo o país
repercute o tom
de uma nota só...
de uma nota só…
Carlos Mariguella
Foi com Engels (2010 apud Antunes 2015) que a classe trabalhadora ganhou
a primeira avaliação de que as condições de vida e trabalho do operariado
encontravam‑se na raiz de um conjunto de enfermidades, através de seus estudos
sobre trabalhadores de cidades industriais inglesas e suas condições de trabalho no
século XIX. Ao longo do século XX, surgem formas novas de acidentes e
adoecimentos com nexo laboral, determinados pela produção em massa e a
ampliação do controle e intensificação do trabalho da organização do trabalho pelo
taylorismo-fordismo. Desde fins do século XIX, o capitalismo entra em uma etapa
superior chamada de imperialista, em que o capitalismo concorrencial característico
da fase anterior se altera radicalmente, de acordo com Almeida (2018). A ideia agora
é explicar a estratégia de extração da mais-valia e maneiras de subsunção do
trabalho ao capital na atual fase do capitalismo.
De acordo com Lenin (2012), o imperialismo é a fusão dos capitais
monopolistas industriais com os capitais bancários, originando o capital financeiro e
possui as seguintes características:
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Para aprofundar, indica-se “A sociedade dos adoecimentos no trabalho” de Antunes, 2015.
55
de trabalho. Por exemplo, a General Motors do Brasil que antes realizava o ciclo de
operações de fixação de freios ABS em picapes S10 produzidas Executadas em 175
segundos, operações que passaram a ser desenvolvidas, em 2008, com uma
redução próxima de 30%. Nas palavras do vice‑presidente de manufatura da GM
América do Sul:
A medicalização social
Mas a ampliação dos serviços de saúde, para Gomes (2017), são apenas a
expressão mais visível de algo mais complexo: a produção crescente de respostas
biomédicas para as manifestações de contradições sociais, engordando o campo do
patológico. Ou seja, a medicalização trata-se de um fenômeno de ampliação do
campo do patológico, através do deslocamento das contradições sociais para
o campo do individual, do biológico e da doença. A medicalização colabora para
naturalizar e ocultar as reais determinações do sofrimento, os indivíduos são
submetidos à análise, mas seus contextos sociais e relações concretas
estabelecidas não.
11
A exemplo de campanhas do governo para idosos, estimulando o uso de "sapatos firmes" para não
caírem tanto e se machucarem. Essa campanha foca no menor dos determinantes e acabam por
escamotear os outros, como o fato de parte significativa das ruas e calçadas da cidade não serem
pavimentadas, serem irregulares e cheias de buracos. Também esconde que os idosos caem porque
foram tão desgastados ao longo da vida e do trabalho alienado que não conseguem mais ficar de pé
e não dá atenção para as responsabilidades do estado em ofertar saúde pública de qualidade, ou até
mesmo que as vezes nem se tem dinheiro para comprar sapatos bons, bengalas, ter acesso a meio
de transportes mais práticos e rápidos como uber, etc.
65
particulares até as mais gerais, alguns exemplos são as lutas por transporte público,
por moradia, por pautas raciais, a luta sindical etc. Aqui, vamos analisar a atividade
militante revolucionária, que tem como objetivo final a transformação radical da
sociedade. Para compreendê-la, precisamos inicialmente responder a algumas
perguntas.
Primeiro, o que caracteriza em específico essa atividade da militância?
Em resumo, é o fato de ser uma atividade essencialmente grupal, possuir um
significado social e um sentido pessoal e implicar um dispêndio de energia,
podendo culminar em uma dupla/tripla jornada de trabalho na vida dos
militantes. Cada um desses componentes da atividade militante será desenvolvido
ao longo do capítulo.
E, segundo, qual o papel que essa atividade pode ocupar na vida dos
indivíduos? A verdade é que pode ocupar papéis variados, mais ou menos centrais.
Não há pretensões de discorrer sobre todas essas possibilidades e sim sobre os
casos em que a atividade militante se torna uma das atividades centrais na
hierarquia de motivos. A investigação é sobre o impacto do sofrimento psíquico
na dinâmica da estrutura motivacional dos indivíduos que vão constituindo a
militância enquanto atividade central. E, posteriormente, o papel das
organizações políticas e da formação de quadros de desenvolver e manter
essa centralidade e sentido na militância. Esses debates também serão melhor
desenvolvidos.
Agora com essa compreensão mínima do que caracteriza a militância e seu
possível papel, reforça-se a pergunta: como ela se relaciona com o sofrimento
psíquico? Percebe-se que a própria militância enquanto atividade pode tanto
ser geradora de saúde quanto de desgaste e que, geralmente, gera ambos ao
mesmo tempo. Pensando a militância enquanto processo grupal, por exemplo, ela é
acompanhada de uma rede de suporte que contribui na direção da saúde e/ou
tensões político-pessoais que geram desgaste. Ela pode tanto organizar e conferir
sentido à vida, gerando saúde, quanto é possível que se perca o sentido na
militância ou que se sobrecarregue diante do grande acúmulo de tarefas e
responsabilidades, gerando desgaste. Portanto, não cabem aqui visões simplistas da
militância enquanto adoecedora em si ou olhares idealistas dessa atividade.
69
Liberdade
militar, singularmente, porém, varia muito e os motivos que incitam essa atividade
nos indivíduos podem ser múltiplos e dos mais variados. Por exemplo, ter passado
por experiências diretas de exploração, visto situações desumanas no capitalismo e
se afetar com elas, ter sido convencido teoricamente. Os motivos que nos fazem
militar, portanto, são diversos.
No caso da atividade da militância, seu significado social necessariamente
entra em um relacionamento interno com a consciência individual durante sua
história de vida através do processo de desenvolvimento da consciência . Este é o
mesmo processo de desenvolvimento do sentido pessoal da militância, pois o
motivo, ao se relacionar com o objetivo, reflete-se na estrutura da consciência como
sentido.
Na sociedade de classes, que se caracteriza pela propriedade privada dos
meios de produção e pela separação entre trabalho manual e intelectual, a
consciência humana sofre uma transformação radical: significados e sentidos não
apenas deixam de ser coincidentes, como se tornam contraditórios. De acordo com
Leontiev (1977), o sentido pessoal de seu trabalho, aquilo que o motiva, reside no
salário e não na mercadoria que produz, ou seja, no significado social de seu
trabalho. A unidade entre motivo e objetivo foi quebrada e o sentido pessoal não
coincide diretamente com seus significados objetivos. A atividade responde,
simultaneamente, a dois ou mais motivos, voltadas à sociedade e voltadas à própria
pessoa. Esses motivos coexistem, mas ocupam planos diferentes e surge assim
uma vida dupla na sua consciência. Leontiev atribui isso à alienação.
Elogio ao Revolucionário
Bertolt Brecht
Motivos, processo de correlação de motivos entre si, de tal forma que alguns se
elevam se tornando principais ou dominantes e outros se subordinam, tornando-se
secundários (LEONTIEV, 1978).
Como já explicado anteriormente, para Leontiev (1978), existe diferença entre
motivos geradores de sentido e motivos-estímulo. Motivos que induzem a atividade e
também lhe dão sentido pessoal são motivos formadores ou geradores de sentido.
Os motivos que coexistem com esses e exercem um papel coadjuvante como
fatores de estimulação (positiva ou negativa), muitas vezes também bastante
emocionais e afetivos, são os motivos-estímulos. A depender da centralidade que a
militância ocupar na estrutura de atividade sendo analisada, pode-se caracterizá-la
enquanto uma atividade com um motivo gerador de sentido.
Descobrir o motivo principal, gerador de sentido (ou os motivos) de uma
pessoa, é desvendar seu objetivo de vida. Só os motivos geradores de sentido são
capazes de criar uma justificação psicológica interna para a existência do indivíduo,
ou seja, um motivo ou sentido de vida.
Ou, ainda, nas palavras do Che Guevara, com ressalvas para não ter uma
compreensão voluntarista da frase:
Essas citações são base para discutir a relação entre a militância enquanto
motivo geradores de sentido e os motivos estímulos positivos ou negativos da
militância. O primeiro debate relacionado a isso é que a estrutura de motivos,
mesmo dinâmica, é relativamente estável. Então, mesmo que esse militante
74
A atividade que não tem um motivo geral e amplo carece de sentido para o
indivíduo que a realiza. Essa atividade não somente não se pode enriquecer
e melhorar em seu conteúdo, como se torna uma carga para o sujeito. Isso
acontece, por exemplo, com tudo o que se faz por imposição. Por isso,
apesar da importância que têm os motivos-estímulo, a tarefa pedagógica
consiste em criar motivos gerais significativos, que não somente incitam à
ação, mas que também deem um sentido determinado ao que se faz.
(LEONTIEV, 2017, p. 50)
Zeigarnik (1981), por exemplo, levanta bem essa questão ao expor algumas
possíveis alterações da personalidade consequentes do sofrimento psíquico como o
estreitamento dos interesses, a diminuição de necessidades, a indiferença frente ao
que antes inquietava ou vice-versa, a perda de finalidade de suas ações, etc.
Eduardo Galeano
obter seu meio de vida, seu salário e não para desfrutar do carro produzido
(MARTINS, 2005).
Essa falta de unidade também existe entre os conteúdos objetivos e
subjetivos. Nesse caso, de separação entre os resultados da atividade e seu motivo,
as reações emocionais e sentimentos mediadores da relação do indivíduo com a
atividade não contribuem para a construção de seu sentido pessoal. Quanto mais
empobrecidas as atividades, mais empobrecido será o processo de construção das
emoções e sentimentos. Esse é o caso de quando há primazia das atividades
conformadoras e operacionalizadoras da força de trabalho (MARTINS, 2005). A
atividade da militância sem dúvida parece estar mais para uma atividade
fundamental humanizadora, porém pode conter aspectos conformadores e
processos críticos destrutivos.
Saltos qualitativos na personalidade são possíveis pela ampliação de
atividades. A militância enquanto atividade altera a estrutura da atividade e
enriquece a estrutura motivacional e emocional da personalidade.
Reconfiguram-se os motivos e os próprios fins da vida como um todo. Sua primazia
na hierarquia de motivos e na estrutura da atividade efetivamente desenvolve
qualidades humanas superiores, capacidade de análise, sínteses e generalizações
em nome da ação transformadora. Alteram-se os sentimentos reativos
experienciados, pois o relacionamento com a existência se torna mais consciente. A
submissão da pessoa às situações que produzem tais sentimentos, que passam a
ser vividas como independentes de sua ação, se modifica. Em outras palavras, o
“sentimento de impotência”, pelo qual o indivíduo se sente incapaz de gerir seu
próprio destino não são anuladas, mas alteradas, possivelmente
atenuadas/aliviadas. Por isso, também, nega-se a análise simplista de que “a
militância adoece”.
Ou seja, a militância é uma atividade que muda a personalidade na medida
em que é incorporada na estrutura da atividade dos indivíduos. Isso não abole a
alienação, pois a atividade alienada, característica da sociedade capitalista, só pode
criar uma personalidade também alienada, mas implica no desenvolvimento de outra
consciência sobre si e também o avanço da consciência de classe:
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tempo. É possível ter a militância enquanto atividade principal e ocupar a maior parte
do tempo de vida no trabalho, podendo gerar sentidos variados, desde um sentido
de vida até apenas o sentido de garantir a existência. De acordo com Martins (2007),
também é possível que a presença em instituições responsáveis pela sociabilidade
das pessoas como a família seja uma participação compulsória, podendo gerar
sofrimento. Ou seja, sofrimentos podem surgir de tensões político-pessoais com a
família, amigos, parceiros caso essas relações disputam tempo despendido para a
militância de forma forçada ou coercitiva, e/ou tambémquando a militância parece
não “liberar” tempo para aprofundar relações que são voluntárias e quistas.
Mas não é só no quesito da disputa do tempo disponível que essas demais
atividades podem enfraquecer a militância. A resignação e subordinação,
expressões psicológicas do trabalho alienado e das atividades conformadoras,
podem surgir, o que vai na contramão da formação dos quadros. A primazia dessas
relações espontâneas aumentam a influência da ideologia justificadora das
condições de alienação e podem promover o falseamento da consciência. O
desenvolvimento das atividades conformadoras em detrimento das fundamentais e
objetivas de humanização fortemente impostas aos militantes também vai criando
um hiato cada vez maior entre o sentido pessoal e a significação das atividades, isto
é, entre seus motivos e fins, podendo gerar sofrimento. Assim como os militantes
podem possuir outras atividades cujos motivos são formadores de sentido para além
da militância.
Bertolt Brecht
de se sobrepor mais
relação político-pessoal, em que cada pólo dessa dialética po
em diferentes momentos. Uma análise puramente coletiva/política ou puramente
individual/pessoal parece impossível, pois nunca a relação é absolutamente política
ou absolutamente pessoal. Nossas relações são ao mesmo tempo individuais e
grupais, pessoais e políticas. Por isso, só podem ser analisados em relação. Essa
contradição indivíduo-grupo, e a consequente relação político-pessoal será sentida
de diferentes formas pelos indivíduos, podendo gerar tanto desgaste quanto
reprodução individual. Quando há um conflito político-pessoal grave, estressor, por
exemplo, esse pode ser ou se tornar um processo crítico destrutivo. Assim como as
relações político-pessoais podem ser processos críticos protetores dos militantes, ao
garantirem uma rede de suporte e espaços de socialização.
Quando Lane (1981b, 1984b apud MARTINS, 2007, p.77) fala em processo
grupal e não em grupo ou dinâmica de grupo, não se trata apenas de diferenças de
nomenclatura, mas de uma posição política que traz para o centro da discussão o
caráter histórico e dialético do grupo. Enquanto processo, o grupo não pode ser
reduzido à soma de seus membros. Além disso, compreender o caráter histórico do
grupo implica entender que ele, na sua singularidade, expressa múltiplas
determinações e contradições da sociedade. Os seres humanos na sociedade
capitalista são fundamentalmente alienados. É nesse sentido que se defende
estudar o processo grupal no geral e, em específico da militância, no conjunto de
suas relações sociais, determinado pelas relações de produção e mediado por
representações ideológicas:
Em Pé
Continuo em pé
por pulsar
por costume
por não abrir a janela decisiva
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continuo em pé
por preguiça nas despedidas
no fechamento e demolição
da memória
não é um mérito
outros desafiam
a claridade
o caos
ou a tortura
continuar em pé
quer dizer coragem
ou não ter
onde cair
morto
12
Existem casos de militantes profissionalizados que são parcial ou totalmente bancados pela
organização para se dedicarem a militância, assim como sindicalistas liberados cujo trabalho pode
também ser a própria atividade militante. Não vamos entrar nesses casos.
85
Roque Dalton
a parte (singular) contém algo do todo. Tal princípio é tomado também por
Vygotski (1995) ao analisar os rumos metodológicos trilhados pela
Psicologia tendo em vista superar os limites das abordagens atomísticas e
fragmentárias acerca dos fenômenos psíquicos. O autor argumenta que a
tarefa da ciência psicológica não é decompor o todo em suas partes, mas
destacar do conjunto os traços que conservam a primazia do todo e, por
isso, o caracterizam. O que ele coloca em questão é a necessária
descoberta das relações e dos nexos dinâmico-causais que sustentam a
existência concreta dos fenômenos. (MARTINS; PASQUALINI, 2015, p.365)
13
O particular para Marx é a expressão lógica da categoria de mediação que não é sinônimo de
“meio-termo” ou ponto de equilíbrio que pode dissolver a diferença entre opostos, justamente o
contrário: na lógica dialética, a mediação não é pensada como soma ou equilíbrio, mas processo que
tem por base a diferença e o desequilíbrio (MARTINS; PASQUALINI, 2015). A mediação viabiliza a
relação entre dois polos opostos na medida em que tanto preserva quanto modifica as coisas. Martins
e Pasqualini (2015), dão o exemplo da relação ser humano-natureza em que ambos os polos se
preservam e ao mesmo tempo se transformam pela mediação do trabalho, mas que ocorre sob
modos de produção (condições particulares) diferentes ao longo da história: o universal se especifíca
e se converte também em particularidade, portanto.
88
realidade (VIAPIANA, 2017). Também Braz (2011) fala da crise que a esquerda
passa, como uma crise “de legitimidade, de base social, de definição de objetivos
estratégicos e, em suma, de projeto societário” (BRAZ, 2011, p.23), mas que não
deixa de ser uma crise de instrumentos políticos de mediação universal com
capacidade de elevar várias lutas de massas à superação do capitalismo:
Walt Whitman
A atividade que não tem um motivo geral e amplo carece de sentido para o
indivíduo que a realiza. Essa atividade não somente não se pode enriquecer
e melhorar em seu conteúdo, como se torna uma carga para o sujeito. Isso
acontece, por exemplo, com tudo o que se faz por imposição. Por isso,
apesar da importância que têm os motivos-estímulo, a tarefa pedagógica
consiste em criar motivos gerais significativos, que não somente incitam à
ação, mas que também deem um sentido determinado ao que se faz
(LEONTIEV, 2017, p. 50).
Considerações Finais
1) A militância não pode ser vista de maneira idealista, como se não pudesse
contribuir no sofrimento psíquico.
2) Entretanto, configurá-la enquanto o motivo do adoecimento e sofrimento psíquico
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9) Cabe a cada organização montar sua própria matriz dos processos críticos
referentes ao sofrimento psíquico de militantes. Focou-se nesta monografia nos
processos críticos destrutivos (expostos na discussão e sintetizados na matriz) e
apenas esboçou-se os processos críticos protetores e algumas medidas possíveis
às organizações políticas, cabe a cada uma trazer o debate desenvolvido até aqui
como parte da política de formação de quadros para suas necessidades específicas,
no sentido de garantir -cada uma a sua maneira e na medida do possível- o sentido
da militância e o estímulo dos processos críticos protetores/ desestímulo dos
processos críticos destrutivos da saúde.
10) Isso, é claro, sem esquecer que também as organizações estão inseridas nessa
sociedade e subordinadas às suas determinações, evitando cair em uma postura, de
um lado, excessivamente voluntarista e, de outro, conformista, como se não fosse
possível fazer nada. Trata-se de tensionar até o limite de suas possibilidades, no
sentido de preservar os militantes, que são a substância e coluna vertebral da
organização.
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REFERÊNCIAS
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Matilde. Folha de São Paulo, São Paulo. 24 de Outubro de 2017. Educação.
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<https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2017/10/1929620-morador-dos-jardins-vive-
24-anos-a-mais-que-o-do-jardim-angela.shtml. Acesso em: 18 de Outubro 2018.
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GUEVARA, CHE. Sobre a Construção do Partido. In: Obras Che Guevara- Textos
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MAO TSE TUNG. Cinco Teses Filosóficas: Sobre a Contradição. 1ª Edição. São
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MARX, K. ENGELS, F. A ideologia alemã. Trad. Luís Claudio de Castro e Costa.
São Paulo: Martins Fontes, 2002.