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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ

ISADORA MINETTO

SOFRIMENTO PSÍQUICO NA MILITÂNCIA: UMA ANÁLISE DE SEUS


PROCESSOS CRÍTICOS

CURITIBA
2018
1

ISADORA MINETTO

SOFRIMENTO PSÍQUICO NA MILITÂNCIA: UMA ANÁLISE DE SEUS


PROCESSOS CRÍTICOS

Monografia apresentada ao curso de Graduação


em Psicologia, Setor de Humanas, Universidade
Federal do Paraná, como requisito parcial à
obtenção do título de Bacharel em Psicologia

Orientadora: Profa. Dra. Melissa Rodrigues de


Almeida

​CURITIBA

2018
2

TERMO DE APROVAÇÃO

ISADORA MINETTO

SOFRIMENTO PSÍQUICO NA MILITÂNCIA: UMA ANÁLISE DE SEUS


PROCESSOS CRÍTICOS

Monografia apresentada ao curso de Graduação


em Psicologia, Setor de Humanas, Universidade
Federal do Paraná, como requisito parcial à
obtenção do título de Bacharel em Psicologia.

______________________________________

Profa. Dra. Melissa Rodrigues de Almeida

Orientadora – Departamento de Psicologia, UFPR

______________________________________

Dra. Renata Jacintho Siqueira de Moraes

____________________________________

Msc. Diana Theodoro

Curitiba, 13 de Dezembro de 2018.


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À classe trabalhadora, sobretudo aos que


não desistam de lutar: “Te quiero en mi
paraíso, es decir, que en mi país la gente
viva feliz aunque no tenga permiso”.
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AGRADECIMENTOS

À Mel, minha orientadora por ter me dado uma verdadeira aula de vôo: “O
conhecimento é assim, ri de si mesmo e de suas certezas. É meta da forma,
metamorfose, movimento, fluir do tempo que tanto cria como arrasa a nos mostrar
que, para o vôo, é preciso tanto o casulo como a asa.”

Às mulheres admiráveis que fizeram parte de minha banca, Renata e Diana:


“Por muito tempo procurei a verdade sobre a vida dos homens entre si. Esta vida é
muito complicada e difícil de compreender. Trabalhei duramente para
compreendê-la, e então disse a verdade como a encontrei.” Meus agradecimentos
por terem me ajudado, cada uma a sua maneira, em dizer a verdade como a
encontrei.

À Ana Flávia por me trazer tanta sensatez. À Danna, meu raio de luz mesmo
quando longe. À Mari, por dividir e me divertir tanto. Ao Leo R, pelos papos e
camaradagem. A todos você, amigos do cotidiano: “Não para que venha logo em
meu auxílio. Mas para ter certeza, na medida certa, que você sabe que pode contar
comigo.”

Aos amigos antigos e novos da psicologia, em especial à Puppi e Leo: “Tu


eras também uma pequena folha que tremia no meu peito. O vento da vida pôs-te
ali. A princípio não te vi: não soube que ias comigo, até que as tuas raízes
atravessaram o meu peito, se uniram aos fios do meu sangue, falaram pela minha
boca, floresceram comigo”.

À minha mãe Luciana, por ter me tornado esforçada e insaciável: “Las manos
de mi madre llegan al patio desde temprano, todo se vuelve fiesta cuando ellas
vuelven junto a otros pájaros. Junto a los pájaros que aman la vida y la construyen
con el trabajo, arde la leña, harina y barro. Lo cotidiano se vuelve mágico.”

Ao meu pai Norberto, por ter me acrescentado o amor à vida e ao canto:


“Gracias a la vida que me ha dado tanto. Me ha dado la risa y me ha dado el llanto.
Así yo distingo dicha de quebranto, los dos materiales que forman mi canto. Y el
canto de ustedes que es mi mismo canto. Y el canto de todos que es mi propio
canto”
5

À toda minha família, na qual nasci e àqueles os quais escolhi: “Vengo de un


pueblo valiente, de gente que lucha el pan”. Em especial à minha sestra Sabrina,
aos tão amados Vó Nina, Vó Edme, Vó Maria e Vô Júlio, também à Ti Beta, Tia Ju,
Tia Keli, Duda, Roby, Ane e Gisa.

Ao Bruno, por me tornar apêndice do coração: “Si te quiero es porque sos mi


amor, mi cómplice, y todo. Y en la calle, codo a codo, somos mucho más que dos.”

À Intersindical e ao Coletivo Outros Outubros Virão visto que: “Se muito vale o
já feito, mais vale o que será. E o que foi feito é preciso conhecer para melhor
prosseguir. Falo assim sem tristeza, falo por acreditar que é cobrando o que fomos
que mais podemos crescer. Nós iremos crescer, outros outubros virão”.

Ao movimento estudantil: “Que vivan los estudiantes, jardín de nuestra


alegría. Son aves que no se asustan de animal ni policía”.

À todos aqueles que lutam, em especial aos camaradas da militância que são
minha segunda família: “Me ensinaste a ver a unidade e a diferença dos homens. Me
mostraste como a dor de um ser morreu na vitória de todos. Me ensinaste a dormir
nas camas duras de meus irmãos. Me fizeste construir sobre a realidade como sobre
uma rocha. Me fizeste adversário do malvado e muro do frenético. Me fizeste ver a
claridade do mundo e a possibilidade da alegria. Me fizeste indestrutível porque
contigo não termino em mim mesmo”.
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Si cada hora viene con su muerte

si el tiempo es una cueva de ladrones

los aires ya no son los buenos aires

la vida es nada más que un blanco móvil

usted preguntará por qué cantamos

si nuestros bravos quedan sin abrazo

la patria se nos muere de tristeza

y el corazón del hombre se hace añicos

antes aún que explote la vergüenza

usted preguntará por qué cantamos

si estamos lejos como un horizonte

si allá quedaron árboles y cielo

si cada noche es siempre alguna ausencia

y cada despertar un desencuentro

usted preguntará por qué cantamos

cantamos por qué el río está sonando

y cuando suena el río / suena el río

cantamos porque el cruel no tiene nombre


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y en cambio tiene nombre su destino

cantamos por el niño y porque todo

y porque algún futuro y porque el pueblo

cantamos porque los sobrevivientes

y nuestros muertos quieren que cantemos

cantamos porque el grito no es bastante

y no es bastante el llanto ni la bronca

cantamos porque creemos en la gente

y porque venceremos la derrota

cantamos porque el sol nos reconoce

y porque el campo huele a primavera

y porque en este tallo en aquel fruto

cada pregunta tiene su respuesta

cantamos porque llueve sobre el surco

y somos militantes de la vida

y porque no podemos ni queremos

dejar que la canción se haga ceniza.

Mario Benedetti
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RESUMO

Para superar a sociedade de classes, a unidade entre uma série de condições


objetivas e subjetivas é necessária, dentre as quais se encontra a consolidação de
uma vanguarda revolucionária. Para que estes quadros políticos consigam se
dedicar à militância, entretanto, precisam antes conseguir reproduzir a própria vida e
força de trabalho. Esse trabalho tratou de caracterizar e analisar a militância
revolucionária enquanto atividade e seus processos críticos relacionados ao
sofrimento psíquico, tanto protetores quanto destrutivos da saúde. Baseou-se, para
isso no método Materialista Histórico Dialético e nos acúmulos dos campos do
conhecimento da Saúde Coletiva e a Psicologia Histórico-Cultural, em especial na
teoria da determinação social do processo saúde-doença e na teoria da atividade de
Leontiev, respectivamente. A partir disso, foi montada a matriz dos processos
críticos do sofrimento psíquico em militantes revolucionários com base nas
contribuições da epidemiologia crítica. A atenção dada à saúde mental em específico
decorre da prevalência de sofrimento psíquico no perfil epidemiológico, ainda mais
diante de uma crise cíclica e periódica do capital. Além disso, o sofrimento psíquico
dos militantes pode abalar um projeto coletivo, uma vez que a militância é uma
atividade grupal no qual o projeto de vida individual se insere e subordina. Nessa
medida, é um problema inserido no bojo das tarefas políticas de uma organização.
Esse trabalho, portanto, também esboçou reflexões iniciais sobre o papel das
organizações políticas na elaboração de análises e práticas comprometidas com o
desenvolvimento de militantes revolucionários, inseridos nesse cenário que
determina o aumento do sofrimento psíquico.

Palavras-chave: Militância. Sofrimento Psíquico. Determinação Social do Processo


Saúde-Doença. Matriz dos Processos Críticos. Psicologia Histórico-Cultural.
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ABSTRACT

To overcome a society divided in classes, unity among a series of objective and


subjective conditions is necessary, among which is the consolidation of a
revolutionary vanguard. So that these militants can dedicate themselves to militancy,
however, they must first be able to reproduce their own life and work force. This
monograph was aimed at analyzing revolutionary militancy as an activity and its
critical processes related to psychological suffering, both protective and destructive of
health. It was based on the Materialist Historical Dialectic method and on the
accumulations of the fields of knowledge of Collective Health and Historical-Cultural
Psychology, especially the theory of social determination of the health-disease
process and Leontiev's theory of activity, respectively. From this, the matrix of the
critical processes of psychic suffering in revolutionary militants was set up based on
the contributions of critical epidemiology. The attention given to mental health in
particular comes from the prevalence of psychic suffering in the epidemiological
profile, especially in the face of a cyclical and periodical capitalist crisis. In addition,
the psychic suffering of militants can undermine a collective project, since militancy is
a group activity in which the individual life project is inserted and subordinated. To
that extent, it is a problem embedded within the political tasks of a political
organization. This work, therefore, also sketched initial reflections on the role of
political organizations in the elaboration of analyzes and practices committed to the
development of revolutionary militants, inserted in this scenario that determines the
increase of the psychic suffering.

Keywords: Militancy. Psychic Suffering. Theory of Social Determination of the


Health-Disease Process. Matrix of Critical Processes. Historical-Cultural Psychology.
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LISTA DE TABELAS

QUADRO 1 – MATRIZ DOS PROCESSOS CRÍTICOS DESTRUTIVOS


REFERENTE AO SOFRIMENTO PSÍQUICO DE MILITANTES REVOLUCIONÁRIOS
………………………………………………………………………………………………94
11

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO…………………………………………………………………………..... 12
1​​ ​PRESSUPOSTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS​​………………………………... 15
1.1 O MATERIALISMO HISTÓRICO DIALÉTICO…………………………………..... 15
1.2 PSICOLOGIA HISTÓRICO-CULTURAL E FORMAÇÃO SOCIAL DO
PSIQUISMO………………………………………………………………………………...23
1.3 TEORIA DA ATIVIDADE E PERSONALIDADE DE LEONTIEV………………….32
2​​ ​CAPITALISMO E SAÚDE​​……………………………………………………...……... 42
2.1 DETERMINAÇÃO SOCIAL DO PROCESSO SAÚDE-DOENÇA……………..... 42
2.2 PADRÕES DE DESGASTE E REPRODUÇÃO E PERFIS PATOLÓGICOS.......46
2.3 A ESTRATÉGIA DE EXTRAÇÃO DE MAIS-VALIA NO CAPITALISMO
IMPERIALISTA..........................................................................................................52
2.4 A DETERMINAÇÃO SOCIAL DO SOFRIMENTO
PSÍQUICO..................................................................................................................57
2.5 A TEORIA DOS FATORES DE RISCO E OS PROCESSOS
CRÍTICOS..................................................................................................................60
2.6 O CONCEITO DE PROCESSOS CRÍTICOS………………………………………65
3. CARACTERIZAÇÃO E ANÁLISE DA ATIVIDADE DA MILITÂNCIA
REVOLUCIONÁRIA​​...................................................................................................67
3.1 SENTIDO E SIGNIFICADO DA MILITÂNCIA.......................................................69
3.2 MILITÂNCIA ENQUANTO PROCESSO GRUPAL…………………......................81
3.3 MILITÂNCIA E DISPÊNDIO DE ENERGIA………...............................................84
3.4 MATRIZ DOS PROCESSOS CRÍTICOS DOS MILITANTES EM SOFRIMENTO
PSÍQUICO..................................................................................................................86
3.5 PAPEL DOS SERVIÇOS DE SAÚDE E DAS ORGANIZAÇÕES POLÍTICAS….99
CONSIDERAÇÕES FINAIS………………………………………………………...…...102
REFERÊNCIAS…………………………………………………………………………...105
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INTRODUÇÃO

A monografia trata do tema de saúde e militância, mais especificamente sobre


o desenvolvimento do sofrimento na sua dimensão psíquica em militantes
revolucionários. Há um problema: a sociedade capitalista é produtora de
adoecimento na classe trabalhadora no geral e também em pessoas que dedicam a
vida à superação dessa ordem. A atenção dada à saúde mental em específico
decorre da prevalência de sofrimento psíquico no perfil epidemiológico. De acordo
com a Organização Mundial da Saúde (OMS), transtornos mentais foram
responsáveis por 12% da carga global de doença em 2000 e calcula-se que dentre
as 10 principais causas de incapacitação internacional, cinco são transtornos
psiquiátricos (ANDRADE, 1999). No Brasil, os transtornos mentais são a terceira
maior causa de afastamentos do trabalho por mais de quinze dias e das
aposentadorias por invalidez (INSS, 2008).
Com esses dados se explicita o processo de generalização do sofrimento
psíquico na classe trabalhadora. Em momentos de crise econômica cíclica e
periódica do capital, a situação da classe trabalhadora é especialmente preocupante.
Os índices de desemprego aumentam, sofre-se da intensificação e extensão da
jornada de trabalho, limitado acesso às políticas de saúde, educação, transporte,
etc. Ou seja, a intensificação do processo de trabalho e dificuldade de reproduzir a
força de trabalho e a vida em geral que marca a atual fase de acumulação capitalista
determina o crescimento do sofrimento psíquico. Em 2011, a OMS admite, no
relatório "Impacto da crise econômica na saúde mental", que viver no desemprego e
empobrecimento aumenta significativamente a quantidade de problemas de saúde
mental, como depressão, transtornos relacionados ao uso de álcool e suicídio
(WHO, 2011).
A militância caracteriza-se como uma atividade em defesa de algum
tipo de causa coletiva, por exemplo, o feminismo, a luta antimanicomial, o
sindicalismo etc. Este trabalho está centrado na militância revolucionária, que se
engaja no projeto de transformação radical da sociedade. No caso de um militante, o
sofrimento psíquico não só leva à estagnação da sua vida pessoal, como também de
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sua militância. Nessa medida, abala um projeto coletivo, pois a militância é uma
atividade grupal no qual o projeto de vida individual se insere e subordina. Além
disso, percebe-se que a militância enquanto atividade pode tanto ser geradora de
saúde - pois, enquanto projeto de vida coletivo, é acompanhada de uma rede de
suporte, assim como confere sentido à vida, quanto pode ser geradora de desgaste -
diante do grande acúmulo de atividades e responsabilidades, etc.
O adoecimento, portanto, é um problema não só coletivo como também
político a ser enfrentado. Nesse sentido, o que é a atividade da militância e como ela
se relaciona com o sofrimento psíquico? Entende-se que o problema do sofrimento
psíquico de militantes não é uma questão individual e sim inserida no bojo das
tarefas políticas de uma organização. Ao mesmo tempo as organizações políticas
não são um grupo de apoio psicológico. Portanto, cabe entender o papel das
organizações políticas na elaboração de análises e práticas comprometidas com a
formação de militantes engajados no projeto de transformação da sociedade,
inseridos nesse cenário que determina o aumento do sofrimento psíquico.
Essa monografia se inscreve na tarefa de contribuir na resposta a estas
perguntas. A epistemologia adotada, o método materialista dialético, é
suficientemente elaborado para o fazer científico. Explicita-se, entretanto, sua não
neutralidade e o seu compromisso, que é um compromisso de classe com a
produção científica (MARTINS, 2005). Ou seja, afirma-se o caráter necessariamente
contextualizado da atividade científica, colocada a serviço do enriquecimento do
gênero humano. O que visa trazer de inovador academicamente -no entendimento
de um objeto pouco explorado em termos teóricos- se condiciona às necessidades
práticas das organizações revolucionárias brasileiras, que por sua vez também são
condição da emancipação humana. Para isso, baseou-se na Psicologia
Histórico-Cultural, em especial na teoria da atividade de Leontiev, no campo do
saber da Saúde Coletiva, em especial na teoria da determinação social do processo
saúde-doença e também no campo da Epidemiologia crítica, em especial no
conceito de processos críticos protetores e destrutivos da saúde e na matriz dos
processos críticos.
A justificativa central da pesquisa é o fato de que, para superar a sociedade
de classes, a unidade entre uma série de condições objetivas e subjetivas é
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necessária, dentre as quais se encontra a consolidação de uma vanguarda


revolucionária (LENIN, 1979). Para que estes quadros políticos consigam se dedicar
à militância, entretanto, precisam antes conseguir reproduzir a própria vida e força
de trabalho. O sofrimento psíquico dos militantes, na medida em que interrompe
esse processo, precisa ser estudado e entendido.
O objetivo geral da pesquisa, consequentemente, consiste em analisar as
determinações e os processos críticos (centrais) do sofrimento psíquico relacionadas
à atividade de militância. Para isso, inicialmente se objetiva fazer uma introdução da
base teórica e metodológica do trabalho no primeiro capítulo. Isto é, introduzir o
Materialismo Histórico Dialético, a Psicologia Histórico Cultural e, em especial, a
teoria da atividade de Leontiev. Para depois, no segundo, compreender através da
Saúde Coletiva o processo saúde-doença e a produção de adoecimento na
sociedade capitalista- enfocando na sua dimensão psíquica. Para, finalmente,
caracterizar a atividade da militância, e conseguir relacionar as contribuições da
Psicologia Histórico Cultural e da saúde coletiva com o adoecimento militante no
último capítulo. Portanto, a estrutura da monografia seguiu os objetivos parciais
necessários para chegar ao objetivo central, desenvolvido no terceiro capítulo. A
natureza da pesquisa é uma revisão bibliográfica de autores do campos do saber já
citados, ou seja, não se trata de uma pesquisa de campo, embora acredita-se que
seria interessante realizar essa pesquisa com o mesmo tema.
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Capítulo 1 - Pressupostos Teórico-Metodológicos

1.1 O Materialismo Histórico Dialético

Antes de analisar a teoria histórico-cultural do desenvolvimento humano e a


formação do psiquismo, faz-se necessário compreender em linhas gerais no que
consiste o método do Materialismo Histórico Dialético. O problema central da
pesquisa de Marx é conhecer a gênese, a consolidação, o desenvolvimento do modo
de produção capitalista. Para isso, desenvolveu sua doutrina filosófica e social. De
acordo com Lenin (1913), as três fontes constitutivas do marxismo são o
materialismo histórico dialético enquanto método, o socialismo científico enquanto
teoria e programa do movimento operário e a doutrina econômica para desvendar a
lei econômica da evolução da sociedade capitalista. E elas advém de três fontes e
principais correntes de idéias do século XIX: a filosofia clássica alemã, a economia
política clássica inglesa e o socialismo francês. Portanto, o Materialismo Histórico
Dialético é uma das partes constitutivas do marxismo, que embasa as demais, no
caso a crítica à economia política e o socialismo-científico.
Para Lenin (1949), o marxismo não foi uma descoberta abrupta ou uma
intuição genial, mas continuação direta do que havia de mais avançado na produção
de conhecimento de sua sua época e resultado de uma demorada investigação. As
críticas de Marx e Engels a esses conhecimentos não foram vulgares, não
recusaram os acúmulos produzidos como um todo, mas sujeitaram-os ao exame
racional, explicitando seus fundamentos, condicionantes e limites, ao mesmo tempo
incorporando seus avanços e acertos e, por fim, adicionando novos elementos e
criando algo novo. Foi da superação da filosofia clássica alemã em específico,
sobretudo de Hegel e Feuerbach, que surgiu Materialismo Histórico Dialético.

Materialismo e Idealismo

A questão fundamental de toda filosofia moderna é a da relação do


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pensamento com o ser, ou seja, do que vem antes: o espírito ou a natureza. Em


relação a isso, os filósofos se dividem em dois grandes grupos. Os que afirmam o
caráter primordial do espírito em relação à matéria constituem o campo do idealismo.
Já aqueles que consideram a natureza como elemento primordial, pertencem às
diferentes escolas do materialismo. O materialismo filosófico é fundamentalmente o
oposto do idealismo filosófico, a filosofia alemã desce do céu à terra, aqui sobe-se
da terra ao céu, como diz Marx (2002) De acordo com Stalin (1938) em oposição ao
idealismo, que considera o mundo como a materialização da consciência, o
materialismo filosófico parte do critério do mundo ser algo material que se
desenvolve de acordo com as leis que regem o movimento da matéria, concebendo
a natureza tal como é.
Ou seja, o materialismo filosófico parte do critério de que a matéria, a
natureza, o ser, são uma mesma r​ ealidade objetiva, existem fora de nossa
consciência e independentemente dela. (STALIN, 1938). Ele entende que a matéria
é o primário, uma vez que constitui a fonte da qual se derivam as sensações, as
percepções e a consciência, e esta o secundário, o derivado, imagem refletida da
matéria. A matéria não é produto do “espírito”, mas esse o produto supremo da
matéria. Isso implica em que, diferente do que afirma o idealismo, que não
reconhece a verdade objetiva e a possibilidade dessa ser conhecida pela ciência, o
materialismo filosófico reconhece o mundo e suas leis como perfeitamente
cognoscíveis. Essa ideia será desenvolvida mais adiante.

Dialética e Metafísica

Para Mao Tse Tung (2016), na história do conhecimento humano existiram


pelo menos duas concepções em relação às leis do desenvolvimento do mundo:
uma metafísica, outra dialéctica. Elas constituem duas concepções opostas de
mundo e de classe. ​A metafísica e o evolucionismo vulgar compreende os
fenômenos do mundo unilateralmente, como se estivessem isolados e em estado de
repouso, como eternamente imutáveis. Com isso, sugerem que a exploração, a
concorrência, o individualismo, que caracteriza a sociedade capitalista já se
encontrava igualmente na sociedade escravista da antiguidade, inclusive na
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sociedade primitiva, e há de continuar existindo de modo eterno.


Ainda de acordo com Mao Tse Tung (2016), quando a metafísica reconhece
mudanças, é apenas como aumento ou diminuição quantitativos, como simples
deslocamento e consequência da ação de causas externas. Para a metafísica, a
sociedade se desenvolve sobretudo por condições externas como o meio geográfico
e o clima. Mas existem muitos países que se encontram em condições geográficas e
de clima quase idênticas e, no entanto, desenvolvem-se de maneira diferentes. Esse
exemplo usado pelo revolucionário chinês serve para mostrar os limites da
interpretação metafísica do mundo; ilustra que as modificações geográficas e
climáticas são insignificantes se comparadas às modificações da sociedade. As
primeiras exigem dezenas de milhares de anos para acontecer, enquanto que as
segundas alguns séculos, décadas ou mesmo alguns anos e meses, em períodos
revolucionários.
Diferente da concepção metafísica do mundo, a concepção dialética entende
que tudo está em perpétuo movimento e que a causa fundamental do
desenvolvimento dos objetos e fenômenos não é externa, mas advém das
contradições internas dos próprios fenômenos (MAO TSE TUNG, 2016). A dialética
combate, assim, a teoria da causa externa, da impulsão exterior, do materialismo
mecanicista e do evolucionismo vulgar metafísicos:

Segundo o ponto de vista da dialética materialista, as modificações na


natureza são devidas fundamentalmente ao desenvolvimento das
contradições internas desta. Na sociedade, as mudanças são devidas
principalmente ao desenvolvimento das contradições que existem no seu
seio, isto é, a contradição entre as forças produtivas e as relações de
produção, a contradição entre as classes e a contradição entre o novo e o
velho; é o desenvolvimento dessas contradições que faz avançar a
sociedade e determina a substituição da velha sociedade por uma nova.
Mas será que a dialéctica materialista exclui as causas externas? De
maneira nenhuma. Ela considera que as causas externas constituem a
condição das modificações, que as causas internas são a base dessas
modificações e que as causas externas operam por intermédio das causas
internas. O ovo que recebe uma quantidade adequada de calor
transforma-se transforma-se em pinto, enquanto que o calor não pode
transformar uma pedra em pinto, já que as respectivas bases são diferentes.
(MAO TSE TUNG, 2016, p.51)
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O Materialismo Dialético

Portanto, dialética materialista não é um debate filosófico teórico -dado que o


conhecimento teórico em si não muda a realidade-, mas um método para práxis
revolucionária. Ensinamento já sintetizado por Marx (1982b) nas teses sobre
Feuerbach quando diz que os os filósofos se limitaram a interpretar o mundo de
diferentes formas, mas o que importa de fato é transformá-lo. Aqui entra o papel da
prática no processo de conhecimento, como ponto de partida, como força motriz do
conhecimento e, também, como critério de veracidade, pois é na prática que as
teorias e conceitos se põem à prova ​(KRAPIVINE, 1986)​.
​O materialismo dialético, de acordo com Mandel (1978) parte do pressuposto
que o movimento é universal, ou seja, que tudo muda e está em perpétuo
movimento. E que, entre o movimento da matéria, da sociedade e da consciência
humana, podem ser destacados traços comuns ou leis. Para facilitar esse
entendimento oferece-se uma esquematização de tais leis1.

“a) A unidade e luta dos contrários. Quem diz movimento diz contradição.
Quem diz contradição diz coexistência de elementos opostos uns aos outro,
simultaneamente coexistência de luta entre esses elementos. Se existe
homogeneidade integral, ausência total de elementos opostos uns aos
outros, não existe contradição, não existe movimento, não existe vida, não
existe existência. A existência de elementos contraditórios inclui a
coexistência numa totalidade estruturada, num conjunto em que cada um
dos seus elementos tem seu lugar, e a luta desses elementos para
decompor esse conjunto. O capitalismo não é possível sem a existência
simultânea do capital e do trabalho assalariado, da burguesia e do
proletariado. Um não pode existir sem o outro. Mas isso de modo algum
significa que um deles não procure suprimir o capital e o salariato, não
procure, portanto, ultrapassar o capitalismo. b) Mudanças qualitativas e
quantitativas. O movimento toma a forma de mudanças mantendo a
estrutura (ou a qualidade) dos fenômenos: falamos neste caso de uma
mudança quantitativa, frequentemente imperceptível. A partir de um certo
“limiar”, a mudança em vez de ser gradual, efetua-se por “salto”, dando
lugar a uma nova qualidade. Uma pequena aldeia pode transformar-se
gradualmente numa grande aldeia ou vila, num burgo, mesmo numa
pequena cidade. Mas entre uma cidade e uma aldeia não existe somente
uma diferença de quantidade (quantidade de habitantes, de espaço
edificado, etc). Existe também uma diferença de qualidade. A atividade
profissional da maioria dos habitantes, modifica-se: em lugar do agricultor, é
o operário e o empregado que dominam. Nasce um novo meio social,

1
Existem, ainda, alguns problemas suplementares da dialética do conhecimento. A questão do
conteúdo e forma, causas e efeitos, o geral e o particular, o relativo e o absoluto. Para mais
informações ler: A Dialética Materialista de Ernest Mandel​.
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levantando problemas sem nenhuma existência no seio da aldeia. Novas


classes aparecem, com novas contradições sociais entre si. c) Negação e
ultrapassagem. Todo movimento tem tendência a produzir a negação de
certos dos seus fenômenos, a transformar objetos no seu contrário. A vida
produz a morte. O calor não pode ser entendido senão em função do frio. A
sociedade sem classes produz a sociedade dividida em classes, que por
sua vez produz uma nova sociedade sem classes. Mas é preciso distinguir a
negação “pura” e a “negação da negação”, quer dizer a ultrapassagem da
contradição a um nível superior, que implica, ao mesmo tempo, uma
negação, uma conservação e uma elevação a um nível superior. (MANDEL,
1978 p. 115)

Estudando essa primeira lei, Mao Tse Tung (2016), afirma que a contradição
existe em todos os objetos e fenômenos e penetra todos os processos desde o início
até ao fim. Nesse sentido, a contradição é universal. Apesar disso ela também é
particular, pois cada contradição e cada um dos seus aspectos específicos assim
como, em condições determinadas, cada pólo da contradição pode transformar-se
no outro. Ou seja, a luta dos contrários é ininterrupta, mas a posição de cada pólo da
contradição é relativa. Por isso, é necessário diferenciar o aspecto principal de cada
contradição, assim como entender que a realidade e os fenômenos não são
formadas de uma só contradição, mas são a unidade do diverso, a síntese de
múltiplas contradições.
A dialética afirma movimento onde a metafísica vê estagnação, um complexo
de interligados processos onde a metafísica vê uma soma de coisas acabadas. Não
há nada de definitivo e absoluto, parado ou isolado. A dialética expõe a caducidade
de todas as coisas, nada existe para ela senão o processo ininterrupto do transitório,
da ascensão sem fim do inferior para o superior, da qual ela própria não é senão o
reflexo do cérebro humano (ENGELS apud LENIN, 1913). Por isso, ela é a teoria e a
lógica do movimento (KOPNIN, 1978), a doutrina do desenvolvimento na sua forma
mais completa, mais profunda e mais isenta de unilateralidade, a doutrina da
relatividade do conhecimento humano, que acompanha a matéria em constante
desenvolvimento, a ciência das leis gerais do movimento tanto do mundo exterior
como do próprio pensamento. (LENIN, 1949).
Por fim, o marxismo adota o ponto de vista da totalidade. (MANDEL,1978). Ou
seja, cada fenômeno e objeto comporta uma infinidade de aspectos, de
componentes, de elementos constitutivos que formam conjuntos estruturados, um
todo. Por isso, a dialética materialista deve não apenas conhecer as contradições
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internas que determinam a transformação dos fenômenos e objetos, como abordar o


fenômeno sob todos os seus aspectos, de maneira global. Com o intuito de evitar
aproximações unilaterais que isolam de maneira arbitrária aspectos particulares da
realidade.. Isso só poderia resultar em uma não compreensão do movimento na sua
totalidade. Esse é um dos méritos principais do marxismo e seu método.

Materialismo Histórico

O materialismo histórico é a aplicação dos princípios do materialismo dialético


aos fenômenos da vida, sociedade e história e se converte na sua antítese quando
não é usado como fio condutor na investigação histórica, mas como modelo acabado
(MARX & ENGELS, 2010). Para compreender isso é preciso conhecer a concepção
materialista da história e da cultura e a relação entre a existência social e
consciência. A concepção materialista da história inicia afirmando que o primeiro
pressuposto da existência humana e da história é que os seres humanos devem
estar em condições de viver para poder “fazer história”. Ou seja:

O fator que, em última instância, determina a história é a produção e


reprodução da vida real. Nem Marx nem eu afirmamos, uma vez sequer,
algo mais do que isso. Se alguém o modifica, afirmando que o fator
econômico é o único determinante, converte aquela tese numa frase vazia,
abstrata e absurda. A situação econômica é a base, mas os diferentes
fatores de superestrutura que se levanta sobre ela, as formas políticas da
luta de classes e seus resultados [...] as formas jurídicas e as ideias
religiosas e o desenvolvimento ulterior que as leva a converter-se num
sistema de dogmas - também exercem influência sob o curso das lutas
históricas e, em muitos casos, determinam sua forma, como fator
predominante. (ENGELS, 1974, s.p)

Tendo isso em vista, é a humanidade mesma que faz a história, embora sob
condições e suposições já pré definidas (ENGELS, 1974). O resultado geral obtido e
que serviu de fio condutor aos estudos de Marx e Engels é o de que o modo de
produção da vida material é que condiciona, em última instância, o processo da vida
social, política e espiritual. Para Marx (1982a), não é a consciência dos seres
humanos que determina o seu ser, mas o seu ser social que determina a sua
consciência. Pois, na produção social da sua vida, a humanidade entra em contato
com relações sociais de produção, necessárias e independentes da sua vontade,
21

relações essas que formam a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a
qual se ergue uma superestrutura jurídica e política, e às quais correspondem
determinadas formas da consciência social (MARX,1982a).
Essa concepção materialista da história eliminou dois defeitos fundamentais
das teorias históricas anteriores, de acordo com Lenin (1949). Primeiro, a
investigação superficial da história, olhando apenas sua aparência, sem pesquisar
sua origem e desenvolvimento. Ou seja, sem olhar as leis objetivas do
desenvolvimento das relações sociais e sem investigar as raízes dessas relações e
o grau de desenvolvimento da produção material. Segundo, a negligência de que
são as massas que fazem a história, não apenas as figuras históricas conhecidas
das classes dominantes. Assim, o marxismo abriu o caminho para um estudo da
origem, desenvolvimento e declínio das formações sociais e econômicas (LENIN,
1949). E comprovou que “As formas da economia sob as quais os homens
produzem, consomem, e fazem suas trocas são transitórias e históricas”. (MARX,
1982, s.p.).
Com o grosso desses conceitos gerais de materialismo e dialética
apresentados, pode-se agora afirmar: o materialismo dialético é a concepção
filosófica do marxismo. O materialismo histórico é a aplicação dos princípios do
materialismo dialético ao estudo da vida social, aos fenômenos da vida da sociedade
e da história (STALIN, 1938). Juntos constituem um método de análise da realidade
e um dos pilares constitutivos do marxismo, o Materialismo Histórico Dialético.

A Verdade

O marxismo é a teoria do conhecimento do proletariado e seu objetivo é o


estudo do movimento do pensamento no sentido da verdade, absoluta e relativa ao
mesmo tempo. Isso em nada diminui sua objetividade científica. Para o marxismo, a
verdade existe e é objetiva. E o absoluto e relativo são dois momentos necessários
dessa verdade. O caráter absoluto da verdade reside na objetividade de seu
conteúdo, ou seja, no reconhecimento de que a realidade existe para além da nossa
vontade ou de nossa consciência sobre ela. Esse caráter absoluto também reside na
possibilidade de realizar aproximações sucessivas da realidade. O caráter relativo da
22

verdade, não vem no sentido da negação da verdade objetiva, mas sim de sua
condicionalidade histórica, do entendimento de que embora o conhecimento pode se
aproximar sucessivamente da realidade, não alcança absoluta identidade (KOPNIN,
1978).
Aqui é chave entender que o movimento é “a unidade da continuidade e da
descontinuidade” (HEGEL, s.d apud MANDEL, 1978, p. 122). Assim, existem
situações transitórias e fenômenos híbridos dos mais variáveis, em que algo se
altera, mas algo se conserva, se mantém estável. Por isso, a relatividade do
conhecimento é apenas parcial. Ela é reconhecida como uma prova do seu
desenvolvimento, da capacidade de enriquecer-se e fazer aproximações sucessivas
do real e não de sua fraqueza, da impotência de dominar os fenômenos e processos
do mundo exterior. É importante citar isso, dado que pode-se fazer um uso
subjetivista da dialética, em que a relatividade é absolutizada. A verdade, para
Kopnin (1978), é um processo de movimento do pensamento, portanto. Uma vez que
é um processo de coincidência do pensamento com o objeto, de aproximação
sucessiva do real sendo relativa e absoluta ao mesmo tempo.
Os filósofos burgueses ora acham que a verdade é exclusivamente subjetiva,
em que cada um tem a sua, ora apresentam definições míticas, eternas e
extratemporais da verdade (KRAPIVINE, 1986). Através do materialismo dialético se
compreende a verdade, então, como objetiva e subjetiva ao mesmo tempo. Objetiva
uma vez existe independente do nosso conhecimento dela e subjetiva no sentido de
que é conhecimento humano (KOPNIN, 1978). A questão de conceber o mundo
como cognoscível a capacidade de o ser humano conhecer a verdade é
fundamental, pois se é possível conhecer o mundo e as leis do seu
desenvolvimento, é possível utilizar esses conhecimentos para a transformação
revolucionária da sociedade (STALIN,1938). A dialética materialista do pensamento
científico pode apreender o real justamente porque seu próprio movimento
corresponde e acompanha cada vez mais ao movimento da matéria (MANDEL,
1978) Em outras palavras, embora a identidade total do conhecimento e da realidade
seja impossível, a humanidade tem a capacidade de se aproximar, por meio do
conhecimento, sucessivamente da realidade.
23

1.2 Psicologia Histórico Cultural e a Formação Social do Psiquismo

A partir dessa discussão, fica mais compreensível a Psicologia Histórico


Cultural2, que tem como base o método do materialismo histórico dialético. Ela se
assenta na crítica às teorias psicológicas que entendem a consciência de maneira
metafísica, idealista e positivista e que não entendem o ser humano como histórico e
social. Essas teorias têm servido aos interesses das classes dominantes, sendo
aplicado no controle sobre os grupos sociais, na ampliação da capacidade produtiva,
na higienização moral da sociedade e na classificação e diferenciação.3 Concorda-se
com Bock (2001), quando diz que a psicologia tem sido capaz de, ao falar do
fenômeno psicológico, ocultar as condições em que esse se forma.

Fala-se de mãe e do pai sem falar da família como instituição social


marcada historicamente pela apropriação dos sujeitos; fala-se da
sexualidade sem falar da tradição judaico-cristã de repressão à sexualidade;
fala-se da identidade das mulheres sem se falar das características
machistas de nossa cultura; fala-se do corpo sem inseri-lo na cultura [...],;
fala-se do homem sem falar do trabalho; fala-se do psicológico sem falar do
cultural e do social. (BOCK, 2001, p.25)

Esse fenômeno psicológico, como entidade abstrata e natural do ser humano,


é expressão, para a autora, do positivismo. A grosso modo, o positivismo consiste na
concepção de que: 1- os fenômenos são regulados por leis naturais que independem
da ação do ser humano, que 2- devemos então utilizar métodos e procedimentos
das ciências para desvendar tais leis, 3- e devemos orientar-nos pelo modelo da
objetividade científica. E esse pensamento positivista foi incrementado pela postura

2
A teoria de Vigotski, Lúria e Leontiev é conhecida como Histórico-Cultural. No Brasil se utiliza,
também, o termo “Sócio-histórico”. Mas esse último se refere mais ao campo crítico da psicologia
produzida no Brasil de inspiração na teoria Histórico-Cultural.
3
No Brasil, temos exemplos desde a colonização por Portugal. Bock (2001) explica que as ideias
psicológicas eram produzidos pela igreja ou intelectuais orgânicos do sistema português e serviam
para o controle social. No século XIX, durante o império, as ideias psicológicas vão ser produzidas
principalmente no âmbito da medicina e da educação. Com a vinda da corte brasileira e o rápido
desenvolvimento da cidade do Rio de Janeiro sem nenhuma infraestrutura, surgiram doenças,
miséria, prostituição e loucura. Por isso, esse século assiste ao surgimento das ideias de higienização
moral e disciplinamento da sociedade. A industrialização anos mais tarde traz novas exigências e,
dessa vez, a psicologia se aplica à educação, possibilitando a diferenciação das pessoas para a
formação de grupos nas escolas de futuros trabalhadores mais adequados para a empresa. No
âmbito internacional as guerras mundiais trouxeram o desenvolvimento de testes psicológicos,
instrumentos que viabilizaram essa prática diferenciadora e categorizadora da psicologia.
24

idealista, que afirmou a existência apenas da razão subjetiva, dizendo que a


realidade externa não pode ser conhecida como é em si mesma. Embora à primeira
vista possam parecer distantes do positivismo, essas perspectivas andam de mãos
dadas. Bock (2001) explica que o positivismo, ao basear-se na naturalização dos
fenômenos humanos e sociais e ao buscar, via método objetivista, afastar elementos
sociais e valores culturais da produção da ciência, efetivou um real desligamento do
pensamento de sua base material. “Fez dos fenômenos entidades abstratas, cuja
verdade se encontra no esforço do pensamento racional e de seus métodos. O
positivismo tornou-se idealista.” (BOCK, 2001, p. 33).
Antes da psicologia soviética existiam duas vias principais para explicar os
traços da atividade consciente do ser humano. Uma via idealista que parte do
dualismo e entende a consciência como manifestação de um princípio espiritual que
não está nos animais. E a outra via, do positivismo evolucionista, que afirmava a
consciência como consequência da evolução direta do mundo animal. Construir uma
psicologia compatível com as transformações históricas implicava em superar essas
visões (LURIA, 1991). O determinismo biológico, por exemplo, não demonstra a
possibilidade da transformação da natureza humana, que já estaria dada a priori
biologicamente, precisando apenas “amadurecer” na sociedade. A Psicologia
Histórico-Cultural, rompe com esse determinismo comprovando que, assim como a
sociedade, a natureza humana também é passível de mudança. Esse conceito
histórico da natureza humana é o que Vigotski apresenta de inovador à psicologia.

A Psicologia Histórico Cultural à luz da história

Vigotski viveu na época da grande revolução russa de outubro de 1917. E, ao


discutir criticamente as teorias psicológicas de sua época, o autor expressa a luta de
classes nessa sociedade traduzida entre diferentes visões de ser humano
(TULESKI, 2008). Após a revolução alemã e nos demais países de capitalismo
avançado não terem êxito, a revolução russa ficou isolada e a maneira encontrada
de avançar foi combinar uma ofensiva sobre o atraso cultural das massas e uma
corrida para a modernização tecnológica e a revolução industrial (HOBSBAWM,
25

1998 apud TULESKI, 2008, p.86). Ou seja, para avançar rumo ao desenvolvimento
do socialismo, era necessário um processo híbrido de aumentar a produção e
aprofundar a consciência. Nesse sentido, a leitura de Vigotski da crise da velha
psicologia expressa a luta revolucionária pela superação das relações capitalistas de
produção e pela construção de um novo ser humano.
Para o soviético, a chave da industrialização acelerada era o desenvolvimento
da consciência, capaz de promover a autodisciplina dos trabalhadores. A
industrialização, portanto, dependia da consciência coletiva do sujeito histórico. Seria
no aperfeiçoamento do ser humano através da educação que se garantiria a
desvinculação dos trabalhadores de seus interesses individuais para se doarem a
um projeto coletivo. Isso porque a apropriação dos instrumentos e signos culturais
conduzem ao autocontrole e regulação do próprio comportamento e ao abandono
“das condutas impulsivas e sem reflexão, desenvolvendo o comportamento racional
compatível com o homem comunista, disciplinado e cumpridor de seus deveres em
sociedade, sem a necessidade da imposição externa arbitrária”. (TULESKI, 2008,
pg. 137).

Uma​​ ​Psicologia Geral

Para Vigotski, era necessário a construção de uma psicologia geral que


unificasse e abarcasse os conhecimentos particulares e específicos das diversas
áreas relativas à psicologia: “a psicologia está grávida de uma disciplina geral mas
ainda não lhe deu a luz” (VIGOTSKI, 1991 apud TULESKI, 2008, p. 88). Isso porque
o nascimento da psicologia enquanto ciência no final do século XIX teve como pedra
angular a negação do espírito, da alma, mas negando concepções metafísicas
buscou explicações objetivas da natureza humana nas ciências naturais. Cada ramo
de estudo, envolvidos com as particularidades, tinha a pretensão de explicar os
fenômenos humanos além dos seus próprios limites. Assim, o empirismo da
psicologia nasce com um significado negativo. E a sua superação só seria possível
elaborando uma nova psicologia que tratasse a relação ser humano-natureza numa
perspectiva histórica, na qual o ser humano fosse o produto e produtor de si e da
própria natureza. Para Tuleski (2008), a Revolução Russa decretou a crise das
26

explicações reducionistas na psicologia e foi berço para o desenvolvimento de uma


ciência psicológica voltada às necessidades reais da prática social, que une teoria e
prática.
Essa psicologia, chamada por Vigotski de psicologia geral, teria uma base
explicativa única para os fenômenos humanos, um método unificador que fosse
capaz de analisar a realidade em toda sua complexidade, que buscasse as
explicações nas relações, nos elementos de ligação e não nas partes isoladas. Esse
método é o Materialismo Histórico Dialético. A defesa de que essa psicologia geral
tivesse um método explicativo único é fruto da necessidade histórica de
generalização e integração em psicologia e em todas as ciências (TULESKI, 2008).
O que não significa advogar entre duas tendências contrárias.. Para Tuleski
(2008), a psicologia geral defendida por Vigotski não seria construída a partir do
ecletismo, mas da ortodoxia4. Ou seja, não seria realizando uma colcha de retalhos,
juntando fragmentos de concepções diferentes que se iria, ideologicamente, anular
as contradições contidas nelas. Não é aproximando teorias diferentes e trocando
termos que se eliminam as diferenças e contradições das teorias ​(LESSA, 2014). Os
significados das palavras estão relacionados com visões de sociedade e ser humano
e expressam as ideias de diferentes classes pois “cada forma de pensamento está
invariavelmente marcado com o selo de uma classe”. (MAO TSE TUNG, 2016, p.28).

As raízes histórico-sociais da atividade consciente

Mas o que diz a Psicologia Histórico-Cultural? Ela tratou, antes de tudo de


explicar as raízes histórico-sociais da atividade consciente do ser humano,

4
​A burguesia tem “a necessidade de velar as tendências históricas universais. Promove o
particularismo na teoria, fixa o conhecimento no mais imediato; promove o positivismo na ciência da
natureza e dos homens: somente o singular pode ser conhecido e teorizado. Para essa tarefa, os
intelectuais da ordem contam com um poderoso aliado no ecletismo. Combinar pressupostos
incompatíveis entre si é um procedimento teórico que tem se mostrado muito útil quando se trata de
velar a totalidade pelo particular e pelo singular.” (LESSA, 2014. p 47). Por isso, se defende ​a
ortodoxia, que se refere à rigorosa coerência de pressupostos, à coerência e consistência dos
fundamentos teóricos. A defesa do ecletismo é feita tanto por intelectuais progressistas até pelas
tendências irracionalistas mais conservadoras, o combate à ortodoxia unifica pós-modernos, liberais e
reformistas. Para o autor, a ortodoxia é a defesa metodológica contra o ecletismo e também contra o
dogmatismo. A ideologia pós-moderna equipara ortodoxia e dogmatismo quando, na realidade a
defesa da coerência e consistência dos fundamentos teóricos em nada se assemelha ao dogmatismo,
que é a dedução do real a partir de pressupostos dados a priori (LESSA, 2014).
27

começando pela diferença dessa ativi​dade consciente em relação ao


comportamento dos demais animais. De acordo com Luria (1991), a primeira
diferença é que a atividade humana não está obrigatoriamente ligada a motivos
biológicos, mas sim a necessidades denominadas superiores. Um exemplo é a
anorexia, quando as pessoas se abstém do alimento preocupadas em não
engordarem. Isso não existe entre outros animais uma vez que passariam fome para
modificar sua aparência física, o que só pode ser explicado por motivos sociais.
A segunda diferença é que a atividade humana não é determinada apenas
por impressões imediatas ou evidentes da situação exterior, mas pelo conhecimento
das leis interiores da situação. Um exemplo é que os seres humanos levam guarda
chuva num passeio, mesmo que na hora que saiam de casa esteja sol, porque tem
possibilidade de verificar a previsão do tempo e ver que tem chance de chover mais
tarde (LURIA, 1991). A última grande diferença, para Luria (1991), é que a maioria
dos conhecimentos e habilidades do ser humano são adquiridas pela assimilação da
experiência histórico-social transmitidas na aprendizagem e passadas de geração
em geração. Isso diferencia radicalmente a atividade humana do comportamento do
animal que tem apenas duas fontes, os programas hereditários e a aprendizagem
individual. Em resumo:

Só o que podem fazer os animais é utilizar a natureza e modificá-la pelo


mero fato de sua presença nela. O homem, ao contrário, modifica a
natureza e a obriga a servir-lhe, domina-a. E aí está, em última análise, a
diferença essencial entre o homem e os demais animais, diferença que,
mais uma vez, resulta no trabalho. [...] Assim, a cada passo, os fatos
recordam que nosso domínio sobre a natureza não se parece em nada com
o domínio de um conquistador sobre o povo conquistado que não é o
domínio de alguém situado fora da natureza, mas que nós, por nossa carne,
nosso sangue e nosso cérebro, pertencemos à natureza, encontramo-nos
em seu seio, e todo o nosso domínio sobre ela consiste em que,
diferentemente dos demais seres, somos capazes de conhecer suas leis e
aplica-as de maneira adequada. (ENGELS, 1876, s.p.)

Ainda de forma introdutória, cabe já explicar que a psicologia histórico cultural


parte dos princípios marxistas e explica o surgimento da consciência através da
forma histórico-social de atividade, que está relacionada com o trabalho social, o
emprego de instrumentos e o surgimento da linguagem. Cada um desses pontos
será explicado abaixo. Para essa linha teórica da psicologia, as raízes do surgimento
28

da atividade consciente do ser humano não devem ser procuradas na alma ou no


interior do corpo humano, mas nas condições sociais de vida historicamente
consolidadas (LURIA, 1991). Condições sociais essas que alteram radicalmente a
estrutura do comportamento, dado que fazem surgir, junto com os motivos biológicos
do comportamento, formas superiores baseadas na abstração das influências
imediatas do meio.
De acordo com Luria (1991), a transição da história natural dos animais para
a história social tem como base o trabalho social (emprego dos instrumentos de
trabalho) e o surgimento da linguagem. A primeira forma de atividade consciente do
ser humano surge no processo de preparação de instrumentos de trabalho. Porque,
apesar de o animal empregar instrumentos, somente o ser humano os produz e
reproduz, transmitindo-os como legado histórico. A produção de instrumentos
adquire sentido somente a partir do conhecimento do seu uso posterior, ou seja,
requer o conhecimento da operação a ser executada e do futuro emprego do
instrumento, visto que o instrumento em si não satisfaz uma necessidade biológica.
Da atividade geral separam-se “ações” que não são dirigidas imediatamente
por motivos biológicos e apenas adquirem sentido com o emprego posterior dos
seus resultados. Para Luria (1991), essa é a primeira forma de atividade consciente,
causando uma mudança radical em toda estrutura do comportamento e a mudança
mais importante da estrutura geral do comportamento. Isso pois a organização
dessas ações conscientes, separadas da atividade geral, leva ao surgimento de
formas de comportamento não diretamente dirigidas por motivos biológicos, podendo
inclusive opor-se a eles. Nessa medida para Luria (1991), as raízes da atividade
consciente do homem não devem ser procuradas “nas peculiaridades da alma” (no
metafísico) nem no íntimo do organismo humano (no biológico) mas nas condições
sociais de vida historicamente formadas.
A segunda condição que leva à formação da atividade consciente é o
surgimento de um sistema de códigos, a linguagem. O animais se comunicam,
expressam seus estados e influenciam o comportamento de outros animais. Mas
não possuem linguagem na verdadeira concepção da palavra, pois essa
comunicação nunca designa coisas, ações e qualidades. Para o marxismo e,
consequentemente, para a Psicologia Histórico-Cultural, a linguagem tem sua
29

origem nas formas de comunicação contraídas pelo gênero humano no processo de


trabalho. Isso porque na atividade prática coletiva surge a necessidade de transmitir
a outros certa informação, não só a expressão de estados, como também a
necessidade de designar objetos que fazem parte da atividade do trabalho coletivo.
Nesse processo, os sons se tornam palavras que se separam da ação prática e
adquirem independência, dando origem à linguagem enquanto um sistema de
códigos (LURIA, 1991).
A linguagem é o fator essencial na formação da consciência do ser humano,
pois imprime três mudanças fundamentais à atividade consciente. Primeiro, duplica o
mundo perceptível e conserva a informação recebida do mundo exterior, criando um
mundo de imagens interiores. Ou seja, ela permite discriminar objetos, dirigir a
atenção para eles e conservá-los na memória. Segundo, assegura o processo de
abstração e generalização, o que dá à linguagem a possibilidade de tornar-se não
apenas meio de comunicação, como também o veículo mais importante do
pensamento (LURIA, 1991). É isso que garante a transmissão do sensorial ao
racional na representação do mundo. Por fim, ela também é o veículo fundamental
de transmissão de informação, possibilitando a passagem de conhecimentos
imensuráveis de geração em geração, o que cria uma terceira fonte dos processos
psíquicos, a fonte cultural. (LURIA, 1991). O comportamento humano não é apenas
transmissível por hereditariedade nem resultante da experiência de aprendizagem
apenas individual:

Ao transmitir a informação mais complexa, produzida ao longo de


muitos séculos de prática histórico-social, a linguagem permite ao
homem assimilar essa experiência e por meio dela dominar um ciclo
imensurável de conhecimento, habilidades e modos de
comportamento, que em hipótese alguma poderiam ser resultado da
atividade independente de um indivíduo isolado. Isto significa que
com o surgimento da linguagem surge no homem um tipo
inteiramente novo de desenvolvimento psíquico desconhecido dos
animais. ​(LURIA, 1991, p. 81)

Para Luria (1991), a linguagem é o meio mais importante de desenvolvimento


da consciência, pois penetra em todos os campos da atividade consciente humana;
reorganiza completamente a percepção do mundo exterior; modifica a atenção que
30

agora pode ser arbitrariamente dirigida; muda essencialmente a memória que pela
primeira vez pode ser conscientemente armazenada, gravando assim muito mais
informação e também conscientemente selecionada. A linguagem também permite o
surgimento da imaginação, assegura as complexas formas de pensamento abstrato
e generalizado, além de reorganizar a vivência emocional. Sem ela, a humanidade
não desenvolve funções psicológicas superiores.

Apanhado Geral das Contribuições de Vygotski à Psicologia

As funções psicológicas elementares são aquelas consideradas naturais,


herdadas biologicamente, como a percepção, atenção, memória e a emoção. A
humanidade possui inicialmente essas funções elementares, mas através do
desenvolvimento histórico-social, elas passam por mudanças qualitativas,
tornando-se atenção voluntária, memória lógica, pensamento abstrato ou conceitual,
etc. Essas funções psicológicas são consideradas superiores pois surgem da
utilização de instrumentos e signos na atividade psicológica e requalificam a
atividade e a consciência humana. O processo de humanização requer,
necessariamente, a apropriação de meios culturais como a linguagem, cálculo,
escrita para o desenvolvimento dessas funções psicológicas superiores. (VIGOTSKI
apud ALMEIDA, 2008, p. 46).
Mas como acontece esse processo de humanização? Como surgem essas
funções psicológicas superiores? De acordo com Vigotski (apud ALMEIDA, 2008), é
necessário compreender o processo de ​internalização​​, isto é, o processo de
reconstrução interna de operações externas, a incorporação individual de atividades
historicamente desenvolvidas. A internalização é a passagem de operações do
interpessoal (entre pessoas) para o intrapessoal (interno à pessoa) através da
mediação social. Ou seja, não é um processo contemplativo, de simples absorção
individual daquilo que é social, mas um processo ativo mediado pelo instrumento e
pelo signo.
Almeida (2008) explica que os signos são representações simbólicas que
surgem da necessidade de comunicação no processo de trabalho, e que depois
transformam-se em um meio de relação social e de influência sobre os demais e
31

sobre si mesmo, com papel determinante na passagem das funções elementares


para as superiores. Tanto o instrumento como o signo são mediadores, interposições
que transformam. Mas enquanto o instrumento orienta o comportamento humano
sobre a natureza e o objeto, ou seja, externamente, o signo orienta o comportamento
humano internamente. O signo, embora primeiro apareça como mediação entre os
seres humanos em sua atividade social, como um meio de comunicação
interpsicológico, transforma-se, depois, em meio de conduta intrapsicológico. É um
meio para o autodomínio da conduta.5
Vigotski (2000) chama esse processo de ​‘lei genética do desenvolvimento
cultural’​​, ao evidenciar que, em sua gênese, toda forma superior de comportamento
aparece sempre em dois planos (primeiro no plano social ou interpsicológico dividida
entre duas pessoas e, depois, intrapsicológico, internalizado). Para a Psicologia
Histórico-Cultural, é a aprendizagem que puxa o desenvolvimento. Ou seja, o
desenvolvimento ocorre por meio do aprendizado que é a apropriação de
conhecimentos historicamente acumulados e todo desenvolvimento aparece em dois
planos, primeiro social para então se tornar psicológico ao se interiorizar:

toda função no desenvolvimento cultural da criança aparece em cena duas


vezes, em dois planos; primeiro no plano social e depois no psicológico, a
princípio entre os homens como categoria interpsíquica e logo no interior da
criança como categoria intrapsíquica. (VIGOTSKI,1931/2000, p. 150)

Além dessa relação entre aprendizagem e desenvolvimento, há o estudo

5
Relaciona-se aqui o domínio da conduta com o domínio sobre a própria natureza. Liberdade para
Engels (1878), se trata de uma conquista e não de um pressuposto. É um processo de permanente
obtenção pelo gênero humano e não um estado intrínseco ao indivíduo. E que se relaciona com a
possibilidade de escolha, pautada no conhecimento das leis da natureza para fazer com que ajam de
acordo com nossa vontade: “A liberdade não reside, pois, numa sonhada independência em relação
às leis naturais, mas na consciência dessas leis e na correspondente possibilidade de projetá-las
racionalmente para determinados fins. Isto é verdade não somente para as leis da natureza exterior,
mas também para as leis que presidem a existência corporal e espiritual do homem: duas espécies
de leis que podemos distinguir, quando muito, em nosso pensamento. mas que, na realidade, são
absolutamente inseparáveis. O livre arbítrio não é. portanto, de acordo com o que acabamos de dizer,
senão a capacidade de decisão com conhecimento de causa. Assim, pois, quanto mais livre for o
juízo de uma pessoa com relação a um determinado problema, tanto mais nítido será o caráter de
necessidade determinado pelo conteúdo desse juízo; ao contrário, a falta de segurança que, baseada
na ignorância, parece escolher, livremente, entre um mundo de possibilidades distintas e
contraditórias, está demonstrando, desse modo, justamente a sua falta de liberdade, está assim
demonstrando que se acha dominada pelo objeto que pretende dominar, A liberdade, pois, é o
domínio de nós próprios e da natureza exterior, baseado na consciência das necessidades naturais;
como tal é, forçosamente, um produto da evolução histórica.” (ENGELS, 1878, s.p).
32

sobre a relação entre ​pensamento e linguagem​​, que compreende a essência da


teoria da consciência. As linhas do pensamento e da linguagem se cruzam em
determinado momento do desenvolvimento e originam o pensamento verbal e a
linguagem intelectual. Através dessa unidade, a linguagem passa a organizar o
pensamento e o pensamento a planejar a linguagem. (VIGOTSKI, 2001a, p. 133
apud ALMEIDA, 2008). Para a psicologia soviética, em resumo:

a consciência individual do homem só pode existir nas condições em que


existe a consciência social. A consciência é o reflexo da realidade, refratada
através do prisma das significações e dos conceitos lingüísticos, elaborados
socialmente. (LEONTIEV, 1978, p. 88)

Entretanto, esse reflexo não é imediato e sim mediado por significados


socialmente produzidos. A unidade de análise da linguagem, que reúne sua dupla
função, tanto comunicativa quanto veículo do pensamento, é o significado da palavra
(VIGOTSKI apud DUARTE, 2005).

1.3 Teoria da Atividade e Personalidade de Leontiev

Leontiev amplia a análise por unidades feita por Vigotski, relacionando


significado e sentido e a estrutura da consciência humana à estrutura da atividade
humana. Para Leontiev (2017), a atividade está dirigida para satisfazer
necessidades. Então, para entender a atividade, iremos explicar o conceito de
necessidade e seus demais traços constitutivos.

As necessidades

No texto “As necessidades e os motivos da atividade”, Leontiev (2017) explica


que o traço principal de toda necessidade é possuir um objetivo. Ou seja, toda
necessidade, é necessidade de algo, seja um objeto material determinado ou o
resultado de uma atividade. Não se pode caracterizar uma necessidade se não se
expressa seu conteúdo, isto é, se não se mostra seu objetivo. O segundo traço
fundamental da necessidade consiste no fato de toda necessidade adquirir um
conteúdo concreto segundo as condições e a maneira como se satisfaz. As
necessidades caracterizam-se pelo seu conteúdo objetivo, e este se determina pelas
condições do meio exterior.
O terceiro traço da necessidade para Leontiev (2017), é que uma mesma
necessidade pode se repetir. Isso é explícito no caso das necessidades elementares
como a necessidade de comida que é cíclica, surgindo com intervalos determinados.
Necessidades mais complicadas, entretanto, como a de se relacionar com os outros
não são cíclicas, mas também se repetem muitas vezes. É essa repetição que
enriquece o conteúdo das necessidades. O quarto traço geral consiste em que as
33

necessidades se desenvolvem à medida que se amplia o círculo de objetos e de


meios para satisfazê-las. Essa é a lei mais geral do desenvolvimento das
necessidades. Ou seja, a própria necessidade se complexifica. Assim Leontiev
(2017), explica a natureza especial das necessidades humanas, que diferenciam-se
das dos animais pelo seu objeto e maneira de satisfazê-las, dado que ambos são
sociais. O ser humano produz com seu trabalho os objetos que satisfazem suas
necessidades, o que muda também o conteúdo objetivo e, em consequência, muda
a própria necessidade. Ou melhor, “O surgimento de novas necessidades no curso
do desenvolvimento histórico-social da humanidade está vinculado também ao
surgimento de novas maneiras de satisfazê-las” (LEONTIEV, 2017, p.44).
No desenvolvimento do ser humano aparecem necessidades superiores, de
caráter social, pois sua satisfação não conduz diretamente a suprimir necessidades
biológicas apenas, mas está motivada pelas condições de vida da sociedade. Alguns
exemplos são as necessidades materiais superiores, de objetos materiais
(instrumentos de trabalho) postos a serviço do ser humano ou as necessidades
espirituais, de objetos ideais, como a arte e o conhecimento, ou ainda as
necessidades chamadas funcionais, de trabalhar, se relacionar com os outros, etc.6

O objeto da atividade

Como já dissemos, a característica básica constituinte da atividade é possuir


um ​objeto​​, pois toda necessidade é necessidade de algo. (LEONTIEV, 2017).
Mesmo que aparentemente a atividade não tenha esse objeto, a investigação
científica demanda a sua descoberta. No nível psicológico, as necessidades são
mediadas pela reflexão psíquica de duas maneiras. Por um lado, os objetos
respondem às necessidades dentro de suas características sensoriais objetivas. Por
outro, os motivos psicologicamente conectam a necessidade com os objetivos. É o
próprio objeto que controla o processo da atividade e, de forma secundária, sua
imagem como o produto subjetivo que registra, estabiliza e carrega em si o conteúdo
objetivo da atividade: o motivo.

6
Como as necessidades se determinam pelas condições sociais de vida (no caso, pelo lugar que um
indivíduo ocupa no sistema de relações sociais), nas condições da sociedade dividida em classes, a
classe explorada tem condições muito limitadas de satisfazer suas necessidades, que não podem ter
um desenvolvimento amplo. Ao contrário, quem pertence às classes exploradoras não só tem amplas
condições de satisfazer suas necessidades, inclusive sua situação de classe provoca um
desenvolvimento desconfigurado das mesmas (LEONTIEV, 2017).
34

O motivo

As necessidades subjetivamente se manifestam como desejos e tendências


que, ao mesmo tempo em que detectam que uma necessidade apareceu ou se
satisfez, regulam a atividade, motivando seu aparecimento, desenvolvimento ou
padecimento. Uma necessidade que se manifesta em forma de desejo, entretanto,
ainda não é suficiente para a realização de uma atividade. Para isso é indispensável
que haja um objeto que, respondendo à necessidade, sirva de estímulo e direção.
“Denomina-se motivo da atividade aquilo que, refletindo-se no cérebro do homem,
excita-o a agir e dirige a ação a satisfazer uma necessidade determinada.”
(LEONTIEV, 2017, p.45). Em outras palavras, o motivo é o encontro da necessidade
com o objeto. É muito importante descobrir os motivos da atividade pois o significado
psicológico da ação depende de seu motivo, do sentido que tem para o sujeito.
Os motivos da atividade humana caracterizam-se por sua variedade e
diferenciam-se, primeiramente, pela necessidade a que correspondem.
Necessidades e motivos se dividem em naturais e superiores, e dentre as superiores
em materiais e espirituais. Mas para que um motivo realmente impulsione uma
atividade, precisam existir condições que permitam planejar o fim correspondente e
atuar para alcançar esse fim. Leontiev (2017) explicita que, sem essas condições, o
motivo não tem resultado efetivo e não desenvolve a atividade que conduz à
satisfação da necessidade, sendo ineficaz.
As atividades complicadas em geral são dirigidas por vários motivos que,
embora atuem simultaneamente, são psicologicamente diferentes por seu caráter
geral e pelo papel que desempenham. O autor exemplifica dizendo que um gênero
de motivos da atividade de estudo, por exemplo, é geral e amplo e consiste em
adquirir formação cultural, preparar-se para o trabalho futuro. Já outro gênero de
motivos é particular e estreito como receber prêmios ou então não ter castigos. O
que ele está introduzindo é a diferença entre o ​motivo geral da atividade e
motivos estímulos​​ desta.
O primeiro gênero de motivo é mais constante, atua durante muito tempo e
não depende de situações casuais enquanto que o segundo atua durante pouco
tempo e segundo circunstâncias diretas, como a atitude de cobrança do professor
35

considerando o exemplo anterior. O motivo geral dá ao estudo um sentido. Em outro


texto, “Atividade, Consciência e Personalidade”, de 1978, Leontiev é mais claro e
chama esses motivos gerais de “motivos geradores de sentido”. Já o segundo
gênero de motivo é aquele que estimula a ação imediata, são aqueles motivos que
servem de estímulo complementar. Esses motivos particulares não mudam o sentido
da atividade, mas estimulam a realização daquilo proposto, seja atividade ou ação
parcial. Quando esses motivos atuam juntos, formam uma espécie de sistema único,
no qual cada um deles tem papel distinto.
Essa relação mútua entre motivo geral (ou apenas motivo ou motivo gerador
de sentido) e motivo-estímulo não é só para a atividade do estudo, manifesta-se em
outras atividades complexas que precisam de um sentido às ações e, ao mesmo
tempo, necessitam de estímulos diretos. É indispensável a existência de motivos
gerais, senão a atividade carece de sentido, e ao mesmo tempo, a depender da
atividade, são também indispensáveis motivos suplementares que estimulem a ação:

A atividade que não tem um motivo geral e amplo carece de sentido para o
indivíduo que a realiza. Essa atividade não somente não se pode enriquecer
e melhorar em seu conteúdo, como se torna uma carga para o sujeito. Isso
acontece, por exemplo, com tudo o que se faz por imposição. Por isso,
apesar da importância que têm os motivos-estímulo, a tarefa pedagógica
consiste em criar motivos gerais significativos, que não somente incitam à
ação, mas que também deem um sentido determinado ao que se faz.
(LEONTIEV, 2017, p. 50)

As atividades podem possuir vários motivos. E entre os motivos que causam


uma atividade sempre há um principal. Nem sempre o sujeito tem consciência7
desses motivos que estão condicionando os seus atos. Conscientizá-los possibilita
“valorizar os atos e mudar a influência dos motivos determinados. Se um ato causa
uma atitude negativa para o sujeito e seu motivo é consciente, este se eliminará, e,
no caso contrário, quando a atitude é positiva, adquirirá um caráter mais constante e
efetivo.” (LEONTIEV, 2017, p. 51). Mas se as necessidades e motivos se relacionam

7
Sempre há um motivo para a atividade, embora ele possa ser inconsciente. Para Leontiev (1978), o
inconsciente e consciente não se opõem, são apenas formas e níveis diferentes de reflexo psíquico.
Por isso o inconsciente pode se tornar consciente. Esses níveis diferentes são determinados pelo
lugar que o motivo ocupa na estrutura da atividade, além de outros fatores sociais maiores como a
alienação. Para aprofundamento, ver “Emoção é movimento para fora: por isso o inconsciente é
ausência de mediação das emoções” de Inara Barbosa Leão.
36

à atividade, o que é a atividade, afinal? Nas palavras do próprio autor:

A vida de cada indivíduo é feita da soma total ou, para ser mais exato, um
sistema, uma hierarquia de atividades sucessivas. É em atividade que a
transição ou “tradução” do objeto refletido em imagem subjetiva, em ideal,
ocorre; ao mesmo tempo, é também em atividade que a transição é
alcançada do ideal em resultados objetivos da atividade, seus produtos, em
material. Considerada deste ângulo, atividade é um processo de inter-tráfico
entre polos opostos, sujeito e objeto. Atividade é uma unidade não-aditiva
da vida material, corpórea, do sujeito material. Em um sentido estreito, i.e.,
no plano psicológico, é uma unidade de vida, mediada pela reflexão mental,
por uma imagem, cuja função real é orientar o sujeito no mundo objetivo.
Entretanto, não importam as condições e formas nas quais a atividade do
homem procede, não importam quais estruturas adquire, não pode ser
considerada como algo extraído de relações sociais, da vida da sociedade.
Apesar de toda sua diversidade, todas as suas características especiais, a
atividade do indivíduo humano é um sistema que obedece o sistema de
relações da sociedade. Fora destas relações, a atividade humana não
existe. (LEONTIEV, 1977, p 186)

Atividade enquanto substância da consciência

A unidade de análise da atividade passa a ser a da relação entre o motivo e


seu conteúdo ou objeto. Por isso, foi necessário a explanação anterior de
necessidades, objetos e motivos para afirmar que a ​atividade é aquilo que, dirigida
por um motivo, satisfaz uma necessidade​​. Na leitura de Leontiev (1977), a
atividade é a substância da consciência. Isso significa compreender que existe um
elemento mediador na relação do indivíduo com o mundo: a sua existência prática,
que ocorre através do trabalho social e outras atividades. O conteúdo dessa
atividade surge diante do indivíduo como imagem interna, e passa a controlar a
própria atividade, é claro. Entretanto:

A questão principal não é indicar o papel controlador, ativo, da consciência.


O problema principal reside em entender a consciência como um produto
subjetivo, como uma manifestação em uma forma diferente de relações
essencialmente sociais que são materializadas pela atividade do homem no
mundo objetivo. (LEONTIEV, 1977, p. 193-194)

As imagens sensoriais sempre retêm suas referências objetivas iniciais na


atividade e Leontiev (1977) questão de enfatizar isso uma vez que, para ele, não é
insignificante qual momento é tomado como o inicial. Sem esse argumento, pode
37

aparentar que a consciência é condição primária para o surgimento da atividade, que


a atividade é que se origina das operações internas do pensamento, inconscientes
ou conscientes:

Assim, a consciência individual, como uma forma especificamente humana


de reflexão subjetiva da realidade objetiva, pode ser entendida somente
como um produto daquelas relações e mediações que surgem ao longo do
estabelecimento e desenvolvimento da sociedade. Fora do sistema dessas
relações (e fora da consciência social) a existência da mentalidade
individual, a psique, na forma de consciência é impossível. (LEONTIEV,
1977, p 195)

Leontiev não nega os processos internos, apenas compreende que são


produzidos a partir do externo. E que, por isso, a psicologia precisa mudar seu
enfoque da subjetividade do indivíduo para os sistemas sociais de atividade e, mais
do que isso, entender a relação dialética entre os processos internos e externos:

Uma vez que reconhecemos a estrutura comum da atividade prática,


externa, e atividade mental, interna, podemos entender a troca de
elementos que constantemente ocorrem entre elas, podemos entender que
certas ações mentais podem se tornar parte da estrutura da atividade
material, prática, e, reciprocamente, operações externo-motoras podem
servir para o desempenho da ação mental na estrutura da atividade
puramente cognitiva. (LEONTIEV, 1977 p. 189)

Em resumo, a forma primária fundamental da atividade é a forma externa,


essencialmente social. E a transformação da atividade externa em interna acontece
por meio do processo de internalização, originando uma forma específica de reflexo
psíquico da realidade: a consciência. Depois de afirmar essa concepção geral de
atividade enquanto substância da consciência, Leontiev (1977), no texto “Atividade e
Consciência”, explica o que diferencia as atividades umas das outras. Cada
atividade específica satisfaz uma necessidade específica e é orientada em direção
ao objeto de tal necessidade. A principal coisa que distingue uma atividade de outra
é, portanto, a diferença entre seus motivos. Para ele, o conceito de atividade é
necessariamente ligado ao conceito de motivo pois não existe atividade
“desmotivada” ou sem motivo. Esse motivo pode até não ser consciente, mas
sempre existe. Ele explica que as atividades humanas dependem de algumas etapas
38

para serem realizadas, chamadas de ações.

As ações e as operações

A atividade humana só existe como uma corrente de ações. Se subtrairmos


mentalmente da atividade as ações, não sobraria nada da atividade. Por isso, a ação
é um processo que obedece a um objetivo consciente. Em outras palavras, o
conceito de ação se relaciona ao conceito de objetivo, assim como o conceito de
motivo se relaciona com o conceito de atividade (Leontiev, 1977). Por exemplo, a
caça requer a divisão do trabalho em que cada indivíduo precisa realizar uma ação
específica que sozinha não garante a satisfação de sua necessidade. Algumas
pessoas ficam responsáveis por construir o fogo para cozinhar a caça, outras ficam
responsáveis por assustar a caça para que ela corra em determinada direção, outros
vão abater a caça, preparar ela, etc.
Nesses exemplos de ações, os resultados isolados de cada ação não
coincidem com a satisfação imediata da necessidade de comer. Os motivos da
atividade não correspondem diretamente aos fins de uma ação isolada, e são
necessárias muitas ações intermediárias e muitos fins parciais para realizar a
atividade coletiva e satisfazer a necessidade. Por isso que o conceito de ação se
relaciona ao conceito de objeto, e o motivo ao conceito de atividade. É necessário,
portanto, diferenciar os motivos da atividade dos fins ou objetivos da ação. Leontiev
(2017) explica que uma atividade complexa pode se prolongar durante muito tempo,
meses ou até anos. Não é a ação de preparar o fogo para cozinhar o alimento que
satisfaz imediatamente a fome. Ela só se satisfaz por ser uma ação que é etapa
inserida dentro de uma atividade social maior.
O indivíduo é estimulado por comida, este é seu motivo, mas para satisfazer
sua necessidade, deve desempenhar ações cujos objetivos não são diretamente
voltadas a obter comida. A atividade é orientada pelo motivo e ocorre através de
uma sequência de ações que por sua vez são orientadas a objetivos que não são
diretamente o motivo da atividade. A necessidade só é satisfeita “pela partilha do
produto da atividade total que cada um recebe, graças aos relacionamentos entre os
participantes que surge no processo de trabalho, isto é, as relações sociais.”
39

(LEONTIEV, 1977, p. 190). De acordo com Asbahr (2005), ações apresentam, além
do aspecto intencional, o aspecto operacional. As operações são o meio para
realização das ações, são a via pela qual são realizadas. As operações se
relacionam às condições de realização da tarefa. Consistem na tecnificação da ação,
realizam-se, geralmente, de forma automática.

Resumindo e exemplificando a estrutura da atividade

Para facilitar a compreensão dessa teoria bastante complexa trouxemos a


síntese de Asbahr (2005) da teoria da atividade. Ela explica de forma mais resumida
que a ​necessidade​​, o ​objeto e o ​motivo são os principais componentes estruturais
da atividade: a primeira condição de toda a atividade é uma necessidade; mas toda
necessidade é uma necessidade de algo, de um objeto, ou seja, a necessidade só
pode se realizar caso encontre seu objeto; e o motivo é o que articula essa
necessidade a um objeto, é o que ​move uma atividade.​
Por exemplo, sinto fome e tenho, portanto, a necessidade de comer. Para
realizar essa necessidade preciso de um objeto, comida. O objeto da atividade (do
preparo da comida, por exemplo) é seu motivo real, a necessidade de comer só
pode ser satisfeita quando se encontra com a comida; a isso chamamos de motivo.
O motivo é o que impulsiona a atividade de cozinhar, articulando a fome à comida. A
necessidade (fome) e o objeto (comida) isolados não produzem atividades, como no
caso de alguém que passa fome e não tem dinheiro ou outras condições de adquirir
comida ou no caso de alguém cuja geladeira está cheia mas não sente fome.
Para além desses componentes, a atividade não pode existir senão via um
conjunto de ​ações e operações. ​A atividade de cozinhar tem o objetivo geral de
preparar a comida, e dentro disso, existem objetivos parciais chamados ações como,
por exemplo, cozinhar o arroz, ir à feira comprar verduras, trocar o botijão do gás,
etc. E cada um desses objetivos parciais ou ações requer operações, relacionado às
condições de realização da tarefa. Isso porque as ações apresentam, um aspecto
operacional além do intencional. Cortar a cebola e lavar as verduras compradas,
nesse caso, são operações, consistem na tecnificação da ação e realizam-se de
forma automática. Não temos que pensar para cortar a cebola e lavar as verduras,
40

são operações feitas de maneira espontânea e irrefletida. (ASBAHR, 2005)


Assim, de maneira extremamente resumida: A atividade depende de um
objeto e de um motivo. A força de direção da atividade é seu motivo, que direciona e
impulsiona a atividade. A ação é o componente básico da atividade através da qual
ela se realiza. A ação é sempre orientada para um objetivo, almeja satisfazer um
objetivo particular. Essas ações, por sua vez, são realizadas por meio de operações
rotineiras. As operações são o meio pelo qual uma ação é realizada e dependem
das condições de execução da ação.
Leontiev (1977) diz que na análise da estrutura da atividade, cabe primeiro
identificar atividades diferentes de acordo com aquilo que as motiva. Para então
identificar as ações que obedecem a objetivos conscientes e, por fim, as operações
que são imediatamente dependentes das condições para a realização de um
objetivo específico. Isso porque, num primeiro momento pode ser complicado
distinguir uma ação de uma operação, assim como é difícil não se confundir dado
que uma mesma ação pode ter motivos/ realizar atividades diferentes. Esses
componentes estão em permanente movimento e podem assumir funções
diferentes. Uma atividade pode tornar-se ação caso perca seu motivo, ou uma ação
transformar-se em atividade se ganhar um motivo próprio, uma ação pode tornar-se
operação e vice-versa, etc.
Dado esse caráter altamente dinâmico, a análise da atividade não pode ser
um processo de fragmentação de seus subcomponentes. Essa análise consiste no
contrário, em detectar os nexos e relações entre os componentes dessa estrutura,
além de descobrir o motivo da atividade: “A análise pelas quais elas são
identificadas não é um processo de desmembramento de atividade viva em
elementos separados, mas de revelar as relações que caracterizam essa atividade.”
(LEONTIEV, 1977, p.191)

Significado social e pessoal


41

A relação entre motivo e conteúdo reflete-se na estrutura da consciência


como relação entre sentido e significado. O significado8 socialmente estabelecido
advém do fato que um objeto cultural, seja material ou não, como um instrumento ou
uma palavra, respectivamente, sempre tem uma função social acumulada e
compartilhada entre gerações. Já o sentido é dado por aquilo que liga o objeto ou
conteúdo da ação a seu motivo na consciência do sujeito. De acordo com Leontiev
(1977), significados sociais são aqueles produzidos pela sociedade, que têm suas
histórias no desenvolvimento da linguagem, expressam o movimento da ciência e
seus meios de conhecimento, noções ideológicas etc. Os “significados são a forma
ideal materializada e linguisticamente transmutada de existência do mundo objetivo,
suas propriedades, conexões e relações reveladas pela prática social agregada.”
(LEONTIEV, 1977, p. 199).
Mas é limitado entender os significados na consciência individual como mera
cópia do significados sociais. Com isso, ele aponta para o fato de que os significados
sociais são refratados por características específicas do indivíduo, sua experiência
anterior, a natureza única e seus princípios pessoais, índole etc. Os significados
“supra-individuais” necessariamente entram em um relacionamento interno com a
consciência individual e somente neste relacionamento interno que o significado
adquire características psicológicas de fato. Dessa maneira, os significados
possuem uma vida dupla. São ao mesmo tempo ​significados sociais e
significados pessoais​​. Esses últimos são também denominados de sentidos.
As significações são fenômenos da consciência social, mas ao serem
apropriadas pelos indivíduos designam parte da consciência individual, um sentido
pessoal ocasionado na vida do indivíduo​. ​Os significados pessoais são essa
segunda vida em que os significados sociais se tornam parte da vida mental
individual e suas motivações, se individualizando e subjetivando:

Significados em geral não existem exceto na medida em que eles realizam


certos significados pessoais, assim como as ações e operações do sujeito
não existem exceto na medida em que eles realizam alguma atividade do

8
O processo desse significado se interiorizar depende da relação dialética entre apropriação e
objetivação. A apropriação é a mediação entre a formação do gênero humano e de cada indivíduo, é
a incorporação dos acúmulos sociais pelo indivíduo e a objetivação é a transferência desses
acúmulos aprendidos para a atividade do indivíduo (Duarte, 2005). Para mais informações ler ‘O
significado e o sentido’, de Newton Duarte
42

sujeito evocada por um motivo, uma necessidade. O outro lado da questão


reside no fato de que o significado pessoal é sempre o significado de algo,
um significado “puro”, sem objetivo, é tão sem sentido quanto uma
existência sem objetivo. A encarnação do significado pessoal em
significados objetivos é um processo profundamente íntimo,
psicologicamente significante e, de forma alguma, automático ou
instantâneo. (LEONTIEV, 1977, p. 207)

Leontiev dá um exemplo:

Todas as crianças alunas mais velhas sabem o significado de uma nota de


prova e as consequências que isso têm. Não obstante, uma nota pode
aparecer na consciência de cada pupilo individual de maneiras
essencialmente diferentes; ela pode, por exemplo, aparecer como um passo
em direção (ou obstáculo) ao caminho de sua profissão escolhida, ou como
um meio de se afirmar aos olhos das pessoas a sua volta, ou talvez de
alguma outra maneira. É isso que compele a psicologia a distinguir entre o
significado objetivo consciente e seu significado para o sujeito, ou o que
prefiro chamar de “significado pessoal”. Em outras palavras, uma nota de
prova pode adquirir significados pessoais diferentes na consciência de
pupilos diferentes. (LEONTIEV, 1977, p. 203-204)

Capítulo 2 - Capitalismo e Saúde

2.1 Determinação Social do Processo Saúde e Doença

Pairando pelo espaço onde quer que pressinta


carniça, podridão, matéria decomposta
essa ave original de cor preta retinta
o cheiro da imundice alegremente arrosta.

Vem descendo depois. Já não é uma pinta


escura na amplidão do firmamento exposta.
Vem descendo inda mais, cada vez mais distinta,
até que no terreno o corpo feio encosta.

Desde então principia a ceia horripilante


e belisca a esterqueira e grunhe a cada instante,
sacudindo-se toda, inquieta e assustadiça
Assim como o urubu há no alto muita gente
poderosa a fartar que, entanto, moralmente
só consegue viver à custa de carniça

Carlos Mariguella, São Paulo, Presídio Especial, 1939.

Concorda-se com Canguilhem (1995 apud GOMES, 2017), quando este


43

afirma que as formas de sofrimento são vividas pelos indivíduos como obstruções
aos seus modos de andar a vida. Esse enunciado indica que as relações sociais de
produção permitem certos modos de vida aos distintos grupos sociais, processo em
constante mudança na história. As formas de inserção nessas relações sociais e,
sobretudo, nas relações de trabalho também estabelecem normas e formas de dever
ser que regulam e condicionam o desenvolvimento biopsíquico dos seres humanos
(ALMEIDA; GOMES, 2014). O corpo é condicionado por funções sociais, é
socialmente investido e não estritamente natural.
O modelo biomédico compreende esses limites como resultado de alterações
do corpo humano e concebe essa dimensão biológica como essencialmente natural,
a-histórica, entendendo o corpo como fixo e imutável. Para Laurell (1979), a
contraposição dessa leitura envolve a problematização do nexo biopsíquico humano
como de natureza essencialmente histórico-social. Historicizar esse nexo é
desvendá-lo como a expressão concreta na corporeidade humana em sua relação
com o processo de produção, num momento determinado. Isso não só rompe com o
pensamento biomédico, cuja premissa elementar é o caráter a-histórico da biologia
humana, quanto implica o anúncio de um novo objeto científico em contraponto ao
objeto “doença”, estabelecido pela medicina dominante. Esse novo objeto consiste
no processo biopsíquico histórico das coletividades humanas.
Mas não basta apenas anunciar o caráter social do nexo biopsíquico e afirmar
um novo objeto. É necessário explicar como a biologia humana adquire essa
historicidade. Para fazer isso é preciso primeiro afirmar que o caráter social do nexo
biopsíquico historicamente específico não se revela através do estudo dos
indivíduos, mas dos grupos humanos. Mas porque adotar uma abordagem
epidemiológica de grupos humanos e não se limitar a casos individuais? Porque,
embora os processos de adaptação ocorram nos indivíduos, as condições que os
produzem são sociais. Essas condições são fruto do modo específico como os seres
humanos se apropriam da natureza por meio de uma determinada organização
social, como explicam Laurell (1979). Aqui se elege uma teoria do social, baseada
no materialismo histórico-dialético, que coloca a chave do caráter social do processo
biopsíquico humano no trabalho. O trabalho, na sua acepção marxista, significa o
processo através do qual o ser humano se apropria da natureza, transformando-a e
44

transformando a si mesmo para produzir a própria vida.


Para Gomes (2017), o corpo é resultado do desenvolvimento social da
humanidade, pois embora a espécie humana tenha um aparato biológico original, ele
é relativamente plástico e se altera através do trabalho: “processo em que o ser
humano, com sua própria ação, impulsiona, regula e controla seu intercâmbio
material com a natureza” (MARX, 2001, p. 211 apud GOMES, 2017, p. 28). Embora
o corpo biológico dos primeiros seres humanos e dos atuais sejam praticamente o
mesmo, as capacidades psíquicas e cognitivas são muito diferentes.
Quando os seres humanos produzem os meios necessários à satisfação de
suas necessidades modificando a si mesmos, subordinam a existência da espécie
ao desenvolvimento do gênero humano. De acordo com Gomes (2017), o ser
humano transcende seu aparato biológico original e se converte numa unidade
contraditória entre as dimensões natural e social em que a segunda subsume cada
vez mais a primeira sem, contudo, extingui-la. É o que Laurell (1979) denomina de
subsunção do biológico ao social, que inclusive implica o processo de produção
social das formas biológicas humanas e a ​determinação social do próprio
processo saúde e doença​​:

(...) o processo saúde-doença do grupo adquire historicidade porque está


socialmente determinado. Isto é, para explicá-lo, não bastam os fatores
biológicos, é necessário esclarecer como está articulado no processo social.
Mas o caráter social do processo saúde-doença não se esgota em sua
determinação social, já que o próprio processo biológico humano é social. É
social na medida em que não é possível focalizar a normalidade biológica do
homem à margem do momento histórico. Assim, se comprova o processo
saúde-doença como determinado pelo modo como a humanidade se apropria
da natureza através do trabalho em um determinado momento de
desenvolvimento das forças produtivas e relações sociais de produção​.
(LAURELL, 1982, p.12)

Nessa medida, não é no nível dos processos celulares e subcelulares que se


manifesta a historicidade do biológico, e sim nos modos de andar da vida, e nos
estereótipos de adaptação, como afirma Laurell (1979). A concepção de adaptação
aqui adotada não é o de adaptação como volta ao normal, mas como a capacidade
do corpo de responder com plasticidade, de forma maleável, diante de condições
específicas de desenvolvimento. Muitos processos de adaptação, por exemplo,
significam sobreviver em condições corporais bastante precárias ou a própria
45

destruição da integridade corporal. Laurell (1979) dá o exemplo do estresse, um


processo de adaptação característico do modo de produção capitalista que é um
aviso do organismo, uma sinalização de alerta, que quando se torna crônico de tão
frequente, pode destruir uma série de estruturas e processos corporais.
Para Gomes, “O agir humano no mundo é simultaneamente processo de
objetivação -de exteriorização da subjetividade dos sujeitos em objetivos externos,
em produtos do trabalho- e de apropriação do desenvolvimento consubstanciado no
gênero.” (2017, p.30). É a relação entre as dimensões da objetivação e apropriação,
portanto, que determinam a unidade entre corpo e psiquismo, ou seja, o nexo
biopsíquico. Mas, até mesmo dentro de um mesmo estágio de desenvolvimento
histórico, as possibilidades de apropriação e objetivação pelos sujeitos não são os
mesmos: dependem da posição ocupada na formação social específica.
A determinação mais fundamental dessa posição no capitalismo é o da
classe social (GOMES, 2017). A classe dominante, a burguesia, detém a
propriedade privada dos meios de produção da vida e sobrevive da exploração da
classe que não detém essa propriedade, a classe trabalhadora. A maioria da
população necessita trabalhar para sobreviver, e vende a única coisa que detém,
sua força de trabalho. É essa divisão em classes que determina as diferentes
possibilidades de objetivação e apropriação para os indivíduos. A burguesia tem
possibilidades muito maiores de apropriação das objetivações humanas, como bens,
serviços e riquezas, do que os trabalhadores (HELLER, 2004 apud GOMES, 2017).
O processo de objetivação-apropriação dos trabalhadores é determinada, em
última instância, direta ou indiretamente por sua inserção no trabalho. Inserção essa
que regula e condiciona o desenvolvimento biopsíquico, pois envolve a ampliação ou
restrição das capacidades humanas. “Os trabalhadores são condicionados a cumprir
funções sociais prescritas que os esculpirão como corpos não invioladamente
naturais, mas socialmente investidos.” (DONNANGELO, 1976 apud GOMES, 2017,
p. 33). As relações capitalistas impõem a tendência ao desenvolvimento unilateral
dos sujeitos e a uma especialização cada vez maior, o cerceamento do
desenvolvimento das capacidades humanas (GOMES, 2017). Se por um lado,
eleva-se a produtividade do trabalho, expandindo o potencial de atendimento às
46

necessidades humanas, por outro se solidifica o desenvolvimento omnilateral e


mutilado dos indivíduos.
Isso porque a finalidade do capitalismo é a extração de mais-valia e não a
satisfação das necessidades humanas. De acordo com Laurell (1979), o processo de
produção é a unidade entre o processo de valorização e o processo de trabalho, ou
seja, a junção da produção de mais-valia e da produção de bens. O trabalho é o
meio desse processo de valorização e se dá em função das necessidades deste. O
processo de produção se desenvolve através da concorrência inter-burguesa, na
disputa pela mais-valia, mas antes de tudo no campo da própria disputa por como
gerá-la, na disputa por como usar a força de trabalho. Ou seja, a produção se
desenvolve na luta entre as forças antagônicas do capital e do trabalho por como
distribuir o valor produzido entre mais-valia e salário. “Desta forma, se para o capital
o processo de trabalho é o meio do processo de valorização, para o trabalho é o
âmbito primário da luta contra a exploração.” (LAURELL, 1979, p. 106).
Mas é possível distinguir fases históricas diferentes do processo de produção
capitalista que correspondem, no sentido do processo de valorização, a diferentes
estratégias de extração da mais-valia -absoluta ou relativa- e, no sentido do
processo de trabalho, a formas diferentes maneiras de subsunção do trabalho ao
capital. As duas grandes etapas, são do predomínio da extração da mais-valia
absoluta e o predomínio da extração da mais-valia relativa, que “em termos do
processo de trabalho correspondem, respectivamente, à subsunção formal e à
subsunção real do trabalho ao capital.” (LAURELL, 1979, p. 107). Por que isso é
importante? Porque é a análise do processo de produção que permite dar conta de
explicar o nexo biopsíquico de uma coletividade de trabalhadores. É na conformação
concreta do processo de trabalho, nas diferentes estratégias de extração da
mais-valia em cada etapa do capitalismo, que reside o elemento-chave para a
compreensão das determinações de saúde do trabalhador.

2.2 Padrões de Desgaste e Reprodução e Perfis Patológicos

De acordo com Gomes (2017), a inserção dos sujeitos na produção implica


formas específicas de ​desgaste de capacidades vitais, determinadas pelas ​cargas
47

de trabalho e existem distintos ​perfis epidemiológicos nas profissões ou ramos de


trabalho. Laurell (1979) explica que medicina do trabalho e a corrente da medicina
social abordam a questão com metodologias diferentes. A primeira lança mão do
método de redução sucessiva do objeto, separando componentes cada vez menos
complexos e estudando-os isoladamente. E para isso usa a categoria monocausal
de “risco” para definir os agentes nocivos isolados que podem causar doença e
danos ao corpo do trabalhador. Nem sequer utilizam do conceito de modelo
epidemiológico multicausal “fatores de risco”, que implica a necessidade simultânea
de vários riscos para a produção de doenças. A medicina social, pelo contrário, visa
a integração cada vez maior e mais complexa desses elementos. Para isso, precisa
de conceitos que permitam captar essa complexidade.
Para Laurell (1979), a categoria “carga de trabalho” visa substituir o termo
“condições ambientais”, destacando os elementos que interagem com o corpo do
trabalhador, gerando processos de adaptação que se traduzem em desgaste (perda
da capacidade potencial e/ou efetiva corporal e psíquica). Esse conceito permite
uma análise dos processos de trabalho que sintetiza os determinantes do nexo
biopsíquico que conferem a estas um modo histórico específico de “andar a vida”.
Ou seja, o conceito de ​carga sintetiza a mediação entre o trabalho e o desgaste do
trabalhador. As cargas podem ter materialidade externa ao corpo e ao interagir com
ele se tornam uma materialidade interna como as cargas físicas, químicas,
biológicas e mecânicas ou não, como no caso das cargas fisiológicas e psíquicas.
Exemplos de cargas físicas são os ruídos e o calor, que ao interagir com o
corpo se tornam processos intracorporais, pois atuam no ouvido médio e interno e
no sistema nervoso e desencadeia mecanismos de termorregulação como sudorese
e alterações hormonais, respectivamente. A mesma coisa acontece com as cargas
químicas como fumaça, pó, vapor, líquidos e cargas biológicas como contato com
microorganismos e cargas mecânicas que são as mais visíveis já que se tornam
feridas, fraturas, etc. Também existem as cargas fisiológicas e psíquicas que não
têm materialidade visível externa ao corpo como um esforço físico físico que é feito e
sentido pelo corpo, ou a pressão do chefe, o assédio moral, etc (LAURELL, 1979).
É importante cuidar para não usar o conceito de trabalho de maneira
mecânica e fragmentada, pois, apesar de se decompor as cargas em tipos
48

específicos que correspondem a riscos particulares no processo de investigação,


não se trata da simples soma dessas. O processo de investigação precisa
igualmente reconstruí-las uma vez que as cargas particulares só garantem pleno
sentido a partir da dinâmica global do processo e trabalho.
As cargas psíquicas, em específico podem ser agrupadas em dois grupos, a
sobrecarga psíquica, situação de tensão prolongada ou subcarga psíquica, a
impossibilidade de desenvolver e fazer o uso das capacidades psíquicas. Exemplos
das primeiras podem ser a atenção permanente, a supervisão com pressão, a
consciência da periculosidade do trabalho, os altos ritmos de trabalho. Do segundo,
a perda de controle sobre o trabalho ao estar subordinado ao movimento da
máquina, a desqualificação do trabalho, resultado da separação entre sua
concepção e execução, a parcelização do trabalho, que causa monotonia e
repetitividade. A monotonia, repetitividade e desqualificação são a hipotrofia do
pensamento e da criatividade, que se expressa em mudanças nos corticosteróides,
da mesma forma que a supervisão estrita ou a consciência da periculosidade do
trabalho são tensão nervosa prolongada sintetizada na reação do estresse crônico e
fadiga nervosa. (LAURELL, 1979)
As cargas psíquicas não podem ser entendidas como “riscos” isolados, à
margem das condições que as geram. Se o trabalhador sofrer algum acidente de
trabalho, por exemplo, isso não deve ser entendido como um simples descuido,
como “culpa” do trabalhador, mas como fruto da combinação de cargas determinada
pela lógica global do trabalho:

Exemplificando, poderia ser um operário trabalhando numa posição


incômoda (carga fisiológica), fatigado porque alterna turnos (carga fisiológica
e psíquica), aturdido pelo ruído (carga física) e com tensão nervosa pela
pressão da supervisão e pelo alto ritmo de trabalho (cargas psíquicas);
atravessado, pois, por uma série de cargas que, por seu turno, não só se
somam como se potenciam entre si e são concretude ao processo de
produção de modo singular (LAURELL, 1979, p. 114)

Ao lado do conceito de carga de trabalho, tem o conceito de ​desgaste​​. O


desgaste é definido como perda de capacidade efetiva e/ou potencial, biológica e
49

psíquica9. E, embora não se refira a algo necessariamente irreversível, permite


registrar as transformações negativas que surgem da interação dinâmica das cargas
nos processos biopsíquicos humanos. É necessário entender o desgaste na sua
relação com os processos reprodutivos - que são processos de reposição e
desenvolvimento da capacidade biopsíquica. Inclusive quando se tratando do
trabalho alienado, o desgaste via de regra é maior do que o da reprodução e
desenvolvimento das capacidades. E também porque na combinação entre desgaste
e reprodução as formas biopsíquicas humanas podem ou não se expressar como
patologia (LAURELL, 1979).
Para que se mantenha a integridade biopsíquica dos indivíduos, um
restabelecimento das capacidades vitais deve corresponder ao desgaste, a chamada
reprodução social da força de trabalho, que acontece tanto no trabalho quando em
outros âmbitos da vida. Dado que as cargas de trabalho e padrões de desgaste
advém da maneira específica como se articulam a base técnica e a
organização/divisão do trabalho, é possível deduzir características gerais das cargas
e do desgaste das diferentes etapas típicas do processo de produção. É possível
determinar a constelação característica de doenças particulares, denominado de
“perfil patológico” de um grupo social. “Os processos particulares de adaptação
conferem, então características a este nexo, que se torna o substrato geral que
determina a conformação do processo de desgaste e do perfil patológico de um
grupo humano.” (LAURELL, 1979, p.102) Recapitulando: o processo saúde doença
é de natureza sobretudo social, e não se verifica no caso clínico individual, mas no
perfil epidemiológico, na forma de adoecer e morrer dos grupos humanos. Por
processo saúde-doença da coletividade, entendemos o modo específico pelo qual
ocorre padrões de desgaste e reprodução em determinados grupos, que se
manifestam no funcionamento biopsíquico, mas são, sobretudo, consequência das
atividades sociais cotidianas.

9
O desgaste é um problema tanto pro capital e para o trabalho. Para o capital o desgaste é um
problema para a produção, implica a questão de como reproduzir as características necessárias da
força de trabalho. Já para o trabalho a questão é um problema da vida, de quais as condições em que
se desenvolvem seus processos vitais. (LAURELL, 1979)
50

Esses padrões são determinados pelas condições coletivas de vida, que são
distintas em diferentes modos de produção, ou entre diferentes classes sociais
dentro de um mesmo modo de produção, em cada período histórico. Comparando,
por exemplo, as dez principais causas de morte no México, em Cuba e nos Estados
Unidos da América do Norte, no ano de 1977, é possível avaliar o resultado do
desenvolvimento das forças produtivas e das relações sociais no perfil patológico:

O perfil patológico mexicano é dominado pelas doenças infecto-contagiosas,


com a pneumonia, a influenza (...) sendo 40% da mortalidade total de origem
infecciosa. Ao mesmo tempo, como assinalamos antes, as doenças
consideradas típicas da sociedade “moderna", como as doenças isquêmicas
do coração, os tumores malignos e os acidentes, começam a ocupar um lugar
importante no perfil patológico. Finalmente, destaca-se a elevada taxa de
mortalidade por cirrose hepática (21,4 por 100.000), que traduz a má nutrição
e o alcoolismo, isto é, a pobreza e o desespero, fato que também se
manifesta na altíssima frequência de morte violenta. No perfil patológico de
Cuba, o peso das doenças infecto-contagiosas é muito menor. Entre elas,
somente a pneumonia e a influenza aparecem entre as dez principais causas
de morte e toda a patologia infecciosa constitui 11% da mortalidade total. [...]
As estatísticas de mortalidade de Cuba demonstram que não existe relação
mecânica e necessária entre o grau de desenvolvimento econômico e as
condições coletivas de saúde, desmentindo a fatalidade patológica da
“pobreza média". Esta observação deve centrar a análise nas relações sociais
de produção existentes na sociedade, que é o fator que distingue Cuba do
México. A análise do perfil patológico dos EUA revela que o tipo doenças que
predomina tem semelhanças notáveis com as de Cuba. Assim, as doenças
cardiovasculares são as mais comuns, seguidas dos tumores malignos e dos
acidentes. [...] o perfil patológico dos EUA se assemelhe ao cubano quanto ao
tipo de patologia, há uma diferença essencial quanto à frequência com a qual
se apresenta essa patologia nos dois casos. [...] as doenças isquêmicas do
coração são três vezes mais frequentes como causa de morte nos EUA do
que em Cuba, os tumores malignos e os acidentes são aproximadamente
50% mais frequentes, o diabetes 80% e a cirrose 2,5 vezes mais comuns.
(LAURELL, 1982, p. 5-6.)

Com isso, Laurell (1982) conclui que a saúde-doença é socialmente


determinada. E não só pelo nível de desenvolvimento das forças produtivas, como
também determinado pelo modo de produção. A diferença entre as estatísticas de
mortalidade de Cuba com México e EUA, por exemplo, demonstram que não existe
relação mecânica entre o grau de desenvolvimento econômico e as condições
coletivas de saúde, dado que mesmo Cuba se assemelhando mais ao México
quanto ao seu desenvolvimento econômico, se aproxima mais em termos de perfil
patológico que o tipo doenças dos EUA. Esta observação deve centrar a análise nas
51

relações sociais de produção existentes entre Cuba do México que distinguem os


países.
Mas mesmo dentro de uma mesma sociedade, de um mesmo modo de
produção e relações sociais a determinação social do processo saúde-doença é
perceptível. Laurell (1982) traz à tona um estudo feito por Behm dos modos de
morrer na infância segundo a classe social, que foi realizado na Costa Rica,
provando que o risco de morrer nos primeiros anos está diretamente relacionado
com a ocupação (trabalho) dos pais e responsáveis. Crianças que são filhos de
proletários urbanas morrem antes dos dois anos de idade quatro vezes mais do que
a de uma criança da alta ou média burguesia, no caso da criança camponesa é
cinco vezes mais. Outro estudo compara as causas e frequência da morte de
mexicanos com e sem seguro de vida privado. Aqueles que não possuem o seguro
morrem 30 vezes mais de amebíase, 8 de tuberculose, 6 de hepatite, 4 de infecções
respiratórias agudas, e 3,5 de cirrose hepática. Aqueles que possuem morrem 3
vezes mais de doenças cardiovasculares e 2,5 de doenças do sistema nervoso
central. (CELIS E NAVA,1970, p. 120, 124. apud LAURELL, 1982, p.8).
Em notícia de Barbon na Folha de São Paulo (2017), mostra-se o mapa de
desigualdade de 2017 feita pela organização da sociedade civil Rede Nossa São
Paulo que faz um levantamento da desigualdade entre bairros, levando em conta
índices como desigualdade no acesso à cidade, a serviços públicos, qualidade de
vida, levando em conta 38 indicadores como número de violência (assassinatos por
100 mil habitantes), cultura, educação, saúde, etc. A maioria dos dados é de 2016
fornecidos por órgãos municipais. Através do levantamento foi possível concluir que
os habitantes do distrito mais rico morrem em média com quase 80 anos (79,4),
enquanto que no distrito mais pobre esse número despenca para 55,7 anos, uma
diferença de quase um quarto de século (24 anos).
A maior taxa da cidade é comparável à expectativa de vida da Dinamarca e a
pior à da Nigéria, que tem um dos indicadores mais baixos do mundo segundo a
CIA. Além disso, um ​jovem de 15 a 29 anos tem 16,6 chances a mais de morrer de
assassinato no Brás, distrito do centro de São Paulo, do que na Vila Matilde na Zona
Leste. A taxa de homicídio dos bairros é de 8,03 e 133,45 para cada 100 mil
habitantes, respectivamente. É um dos índices que mais a média da idade de morrer
52

de cada região, que na Vila Matilde é de 70,8 em comparação com a médica de 66,6
anos do Brás.
É possível concluir empírica e teoricamente através do perfil patológico
dos grupos o caráter social do processo saúde-doença​​, uma vez que pode-se
comprovar que este muda para uma mesma população de acordo com o momento
histórico, com o desenvolvimento das forças produtivas e as relações sociais de
produção e mesmo dentro de classes diferentes dentro de uma mesma sociedade.
E, na medida em que a configuração do perfil epidemiológico é determinado pela
fase de acumulação capitalista, em especial para os processos críticos que
determinam os padrões de desgaste e reprodução, faz-se necessário explicar essas
diferentes fases.

2.3 A Estratégia de Extração de Mais-Valia no Capitalismo Imperialista

O País de uma Nota Só

Não pretendo nada,


nem flores, louvores, triunfos.
nada de nada.
Somente um protesto,
uma brecha no muro,
e fazer ecoar,
com voz surda que seja,
e sem outro valor,
o que se esconde no peito,
no fundo da alma
de milhões de sufocados.
Algo por onde possa filtrar o pensamento,
a ideia que puseram no cárcere.
A passagem subiu,
o leite acabou,
a criança morreu,
a carne sumiu,
o IPM prendeu,
o DOPS torturou,
o deputado cedeu,
a linha dura vetou,
a censura proibiu,
o governo entregou,
o desemprego cresceu,
a carestia aumentou,
o Nordeste encolheu,
o país resvalou.

Tudo dó,
tudo dó,
tudo dó...
53

E em todo o país
repercute o tom
de uma nota só...
de uma nota só…

Carlos Mariguella

Foi com Engels (2010 apud Antunes 2015) que a classe trabalhadora ganhou
a primeira avaliação de que as condições de vida e trabalho do operariado
encontravam‑se na raiz de um conjunto de enfermidades, através de seus estudos
sobre trabalhadores de cidades industriais inglesas e suas condições de trabalho no
século XIX. Ao longo do século XX, surgem formas novas de acidentes e
adoecimentos com nexo laboral, determinados pela produção em massa e a
ampliação do controle e intensificação do trabalho da organização do trabalho pelo
taylorismo-fordismo. Desde fins do século XIX, o capitalismo entra em uma etapa
superior chamada de imperialista, em que o capitalismo concorrencial característico
da fase anterior se altera radicalmente, de acordo com Almeida (2018). A ideia agora
é explicar a estratégia de extração da mais-valia e maneiras de subsunção do
trabalho ao capital na atual fase do capitalismo.
De acordo com Lenin (2012), o imperialismo é a fusão dos capitais
monopolistas industriais com os capitais bancários, originando o capital financeiro e
possui as seguintes características:

1) elevada concentração da produção e do capital com o surgimento dos


monopólios; 2) o capital financeiro (a unidade entre capital industrial e
capital bancário) e a criação da oligarquia financeira; 3) exportação de
capitais, entendida como a exportação de relações sociais capitalistas do
centro para as periferias do sistema; 4) formação de associações
internacionais monopolistas de capitalistas que partilham o mundo entre si;
5) partilha territorial do mundo entre as potências capitalistas. (LENIN,
1916/2012, apud ALMEIDA, 2018, p, 109).

Em específico nos anos dourados, que vão do fim da Segunda Guerra


Mundial até o início dos anos 1970, de acordo com Almeida (2018), ocorre um
grande crescimento econômico baseado pela intervenção estatal nas crises cíclicas,
inspirada nas ideias keynesianas. Isso porque a intervenção estatal livra o capital de
uma parcela de seus custos com a prestação de serviços públicos, os custos da
54

reprodução da força de trabalho. Depois ocorre a crise da década de 7010 e o


capitalismo precisa se reestruturar. O fordismo/ taylorismo, característico da grande
indústria capitalista no século XX, que implica uma produção em massa com
controle de tempo via parcelarização do trabalho e fragmentação das funções, se
combina com a chamada acumulação flexível. A velocidade com que os fenômenos
sociais ocorrem aumenta, em decorrência da velocidade de fabricar mercadorias
necessárias ao capital, que precisa produzir cada vez mais em menos tempo. O
experimento produtivo que melhor representou essa necessidade do capitalismo foi
o toyotismo no Japão.

Esta flexibilidade vai desde a legislação e regulamentação social e sindical


(relativas aos contratos de trabalho, por exemplo) até a variação dos
salários, horários e local de realização do trabalho, ou no sistema de
remuneração e recompensas. As empresas garantem um número mínimo
de trabalhadores, ampliando quando necessário por meio de horas extras,
trabalhadores temporários e subcontratação (ANTUNES, 2005). Tudo isso
se constitui como uma ofensiva do capital nas várias instâncias do ser
social. Antunes (2005) atenta que direitos e conquistas históricas dos
trabalhadores são também desregulamentados e flexibilizados. (ALMEIDA,
2018, p. 111)

As subjetividades acabam por se adaptar a esse ritmo também, Almeida


(2018) exemplifica isso inclusive com a vida afetiva e vida cultural, como o ‘ficar’ da
juventude e a popularidade dos filmes de ação, respectivamente. As transformações
nos processos produtivos nas últimas décadas são respostas à crises de
acumulação do capital a partir da década de 1970, mas também respondem ao
desenvolvimento de resistência dos trabalhadores tentando consagrar o
envolvimento cooptado dos trabalhadores ao capital, aparentemente menos
despótico e consensual e, consequentemente, mais manipulatório.

Desenvolve-se uma crescente incorporação tecnológica com a automação,


que proporciona o aumento da produtividade e, como consequência, a
ampliação da mais-valia absoluta por meio de importantes transformações
nos processos produtivos, quais sejam: a extensão das jornadas de
trabalho, tanto as formais quanto as informais, expressas, por exemplo, no
trabalho em domicílio; intensificação do trabalho por meio de estratégias
como o aumento de tarefas - multifuncionalidade-,a imposição de metas, a
eliminação de poros improdutivos, dentre outras; implementação de
métodos de gestão que associam repressão, por meio do assédio, com
mecanismos cooptadores, capturadores da subjetividade dos trabalhadores-

10
Para aprofundar, indica-se “A sociedade dos adoecimentos no trabalho” de Antunes, 2015.
55

a gestão pela emoção; terceirização e flexibilização de vínculos e direitos


trabalhistas, que aumentam a instabilidade dos trabalhadores no emprego e
possibilitam o aumento da exploração (Antunes, 2006; Barreto, 2006).
(GOMES, 2017, p. 43).

Para Antunes (2015), a classe trabalhadora está sujeita a condições de


exploração particulares que herdam elementos do fordismo a novos mecanismos
próprios das formas de acumulação flexível. Está cada vez mais exposta à
flexibilização e à intensificação do compasso de suas atividades, expresso no ritmo
imposto pela robotização do processo produtivo e na imposição da
multifuncionalidade e polivalência, além da submissão a uma série de mecanismos
de gestão de pressão psicológica voltados para o aumento da produtividade.
O fenômeno da flexibilidade que é característica fundamental da
reestruturação capitalista pós crise dos anos 1970 também se expressa na
diminuição drástica das fronteiras entre atividade laboral e espaço da vida privada,
na jornada ajustada às demandas flexíveis do mercado e no desdobramento dos
trabalhadores para executar sozinhos o que antes era feito por dois ou mais
trabalhadores (Antunes, 2015). Outros exemplos são a gestão por metas
implementadas a partir de 1980 que fortalece uma lógica de racionalização da
economia e mensuração minuciosa de resultados, assim como a participação nos
lucros e resultados que tem como efeito prático de flexibilização salarial e consiste
numa estratégia de controle que premia a disciplina, mascara e compensa a
exploração, tudo enquanto faz alusão a uma suposta repartição dos ganhos de
produtividade alcançados.

Dessa forma, o gerenciamento por metas opera em diferentes sentidos: a)


no desenvolvimento de mais um mecanismo disciplinador do trabalho, como
na instituição de uma espécie de engajamento “voluntário” dos
trabalhadores visando o aumento da produtividade; b) no incentivo ao
controle de faltas exercido, não raro, entre os próprios trabalhadores dos
times de produção/equipes de trabalho; c) na instituição da diminuição do
tempo de repouso; d) na promoção da competição entre os trabalhadores e
suas equipes visando o recebimento dos valores estipulados nos acordos
firmados para essa finalidade; e) no aprofundamento das experiências de
acordos coletivos firmados por empresas (Praun, 2014, p. 418, apud
Antunes, 2015, p.428).

Soma-se a isso a terceirização, que tem implicações bastante graves para os


trabalhadores. A redução salarial de trabalhadores terceirizados é de em média 27%
56

menor do que os contratados diretamente sendo que trabalham em média 3 horas a


mais por semana. Com essas maiores jornadas de trabalho, cai o número de vagas
e aumenta o desemprego. Se em 2014 os 12,7 milhões de trabalhadores
terceirizados trabalhassem 40, ao invés de 43 horas, teriam sido abertas 283 mil
vagas de trabalho. No caso do serviço público, ao invés da contratação de
servidores efetivos via concurso, empregam milhares de pessoas em todo o país na
condição de prestadoras de serviços, precarizando ainda mais o atendimento à
população e rebaixando o valor da força de trabalho de diversas categorias
profissionais. (SRT/CUT; DIEESE, 2014)
A terceirização aumenta muito o número de acidentes de trabalho e casos de
adoecimento/morte. Segundo a Organização Internacional do Trabalho, o Brasil é o
quarto país do mundo em número de acidentes (1,3 milhões) e mortes (2,5 mil) por
ano. Submetidos ao assédio moral pelo cumprimento de metas dentro de precárias
condições de trabalho, os terceirizados lideram as estatísticas de acidentes e
mortes: 70% dos acidentes acontecem com terceirizados e, entre os acidentes que
levam à morte, 80% das vítimas são trabalhadores subcontratados. Terceirizados
também são impedidos de se organizar e lutar. Enquanto contratados diretamente
tem permanência de aproximadamente seis anos, terceirizados têm de dois anos e
meio. Com alta rotatividade nos postos de trabalho, a capacidade de organização
dos trabalhadores é limitada e seu poder de negociação também (SRT/CUT;
DIEESE, 2014).
Além disso, como o trabalhador terceirizado não vende mais sua força de
trabalho diretamente para o demandante e principal controlador da atividade que
realiza, sua relação de subordinação e conflito é passada para um outro capitalista
resolver. Esse mecanismo de contratação dissimula as relações sociais
estabelecidas entre capital e trabalho, convertendo‑as em relações entre empresas.
Essa discussão realizada no blog “A Verdade” debate que a terceirização, além de
um meio de ampliar a mais-valia, também foi uma arma que o capitalismo descobriu
para lidar com a contradição entre a necessidade da exploração do trabalho coletivo
e a possibilidade de resistência coletiva. (FREIRE, 2014)
As várias formas de manifestação da flexibilidade no cotidiano do trabalho
provam que o domínio do trabalho pós crise de 70 é, sobretudo, o domínio do tempo
57

de trabalho. Por exemplo, a General Motors do Brasil que antes realizava o ciclo de
operações de fixação de freios ABS em picapes S10 produzidas Executadas em 175
segundos, operações que passaram a ser desenvolvidas, em 2008, com uma
redução próxima de 30%. Nas palavras do vice‑presidente de manufatura da GM
América do Sul:

Graças à tecnologia e ao processo de melhorias contínuas, podemos


ganhar um segundo a mais, dois segundos a mais no ciclo de cada veículo.
Para se ter uma ideia da importância disso, em Gravataí, que tem
capacidade para 360 mil unidades por ano, ganhar um segundo, só nas
operações de gargalo da produção, significa 7 mil carros a mais por ano.
(PRAUN, 2014, p. 25 apud ANTUNES, 2015, p. 414).

Ao tentar extrair a todo custo altos índices de produtividade, a atual estratégia


de extração de mais-valia e exploração se mostra como cada vez menos capaz, pela
própria intensidade concorrencial e instabilidade do modo de produção capitalista, de
garantir condições de trabalho adequadas à saúde física e mental da classe
trabalhadora. As consequências da intensificação do trabalho acarretada pela
reestruturação produtiva, portanto, se expressam em novos perfis epidemiológicos,
como o aumento significativo do desgaste e sofrimento mental, resultantes da
ampliação de cargas psíquicas- sobrecarga de tarefas, pressão por metas, assédio-,
incluindo a alienação no trabalho (BARRETO, 2006; LACAZ & SATO, 2006 apud
GOMES, 2017, p.43).

2.4 Determinação Social do Sofrimento Psíquico

Essa estratégia de extração da mais-valia, explanada no item anterior, é


determinante de novas formas de viver o processo saúde-doença. Para Gomes
(2017), a pressão pela capacidade imediata de resposta da classe trabalhadora às
demandas do capital e o controle de suas atividades calculadas em frações de
segundos e a compulsão em eliminar por completo os tempos mortos dos processos
de trabalho, têm transformado o ambiente de trabalho em espaço de adoecimento.
Para Gomes (2017), as condições de cada vez mais exigência e
intensificação deixam a classe trabalhadora vulnerável ao desgaste. O trabalhador
precisa ser multifuncional, perseguir constantemente metas inalcançáveis, suportar
58

condições de assédio etc. Mas ao mesmo tempo os modos de vida contemporâneos


exigem que os trabalhadores suportem o prolongamento da jornada e o aumento de
tarefas e ritmos de trabalho, requerem deles determinadas características psíquicas.
Ao novas referências de subjetividade necessárias ao capital são de pessoas
colaborativas, que estejam sempre contentes e cheias de energia, embora
permanentemente sobrecarregadas. Em síntese, os modos de vida atuais
demandam trabalhadores que suportem ritmos e cargas de trabalho crescentes sem
manifestarem comportamentos ou sinais de sofrimento que possam atrapalhar sua
produtividade.
A atenção dada à saúde mental em específico decorre da prevalência de
sofrimento psíquico no perfil epidemiológico atual. De acordo com a Organização
Mundial da Saúde (OMS), transtornos mentais foram responsáveis por 12% da carga
global de doença em 2000 e calcula-se que dentre as 10 principais causas de
incapacitação internacional, cinco são transtornos psiquiátricos (ANDRADE, 1999).
No Brasil, os transtornos mentais são a terceira maior causa de afastamentos do
trabalho por mais de quinze dias e das aposentadorias por invalidez (INSS, 2008).
Só em 2016, foram quase 200 mil pessoas afastadas (INSS, 2017). Com esses
dados se explicita o processo de generalização do sofrimento psíquico na classe
trabalhadora.

De acordo com a OMS (WHO, 2017c), o número de pessoas com


depressão aumentou 18,4% entre 2005 e 2015; existem 322 milhões de
pessoas vivendo com depressão no mundo, com maior prevalência entre as
mulheres. É reconhecida como a principal causa de incapacidade e contribui
muito para a carga global de doenças. No Brasil, país com maior
prevalência na América Latina, a depressão atinge 5,8% da população
(11.548.577). A OMS considera que baixos níveis de reconhecimento e falta
de acesso a tratamentos para depressão e ansiedade levam a uma perda
econômica global estimada de mais de um trilhão de dólares americanos a
cada ano (WHO, 2017c). Foi realizado um estudo epidemiológico de base
populacional – São Paulo Megacity Mental Health Survey – na região
metropolitana de São Paulo em 2008 e 2009, que estimou que 44,8% da
população já apresentou pelo menos uma vez na vida algum transtorno
mental. Nos 12 meses anteriores à entrevista, a prevalência foi de 29,6%. A
ansiedade (19,9%) e os distúrbios do humor (11%) foram as classes de
transtorno mais prevalentes, seguidas de distúrbios do controle de impulsos
(4,2%) e distúrbios do uso de 119 substâncias (3,6%). Nos 12 meses
anteriores, 9,4% dos entrevistados apresentaram transtorno depressivo
maior e 1,5% apresentou transtorno bipolar. A prevalência estimada de
casos graves nos 12 meses anteriores é de 10%, indicando que há mais de
um milhão de adultos com níveis de comprometimento que indicam
necessidade especial de cuidados de saúde mental. O estudo considera
59

que o impacto de viver em áreas urbanas juntamente com fatores


individuais pode ter consequências para a saúde mental. (ALMEIDA, 2018,
p.118-119)

No Brasil a imposição de baixos salários, associados a ritmos de produção


intensificados e jornadas de trabalho prolongadas, se agravou ainda mais durante a
ditadura militar de 1964-1985, uma vez que a perseguição política desorganizou e
enfraqueceu o movimento operário e sindical. Logo em seguida, o Brasil da década
de noventa sofre com o neoliberalismo e o processo de reestruturação produtiva.
Essa reestruturação, ao impor ao trabalhador brasileiro a flexibilização, a
informalidade e a profunda precarização de suas condições de trabalho e vida, teve
como efeito a manifestação de adoecimentos com nexo laboral, sobretudo aqueles
relacionados às lesões osteomusculares e transtornos mentais. (ANTUNES, 2015).
Antunes (2015) relata as manifestações de adoecimento originadas pelo
trabalho no ramo automobilístico do ABC paulista durante os anos 1950, através de
uma reportagem publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo, em 29 de janeiro de
1979, por exemplo. De acordo com ele, a matéria explicita as condições particulares
do trabalho no capitalismo periférico sob o regime militar:

Se legalmente, para efeitos de aposentadoria, a velhice chega após os


sessenta anos, no ABC, especialmente entre os operários do setor
metalúrgico, a chamada terceira idade é antecipada: dos 840 sócios da
Associação dos Aposentados Metalúrgicos de São Bernardo do Campo e
Diadema, 530 interromperam suas atividades profissionais antes dos
cinquenta anos, por invalidez. Os 310 restantes se aposentaram por tempo
de serviço. ‘Neurose, pressão alta acompanhada de derrame cerebral e
moléstias da coluna vertebral são as doenças profissionais responsáveis pela
maior parte das aposentadorias por invalidez.’ O presidente do Sindicato dos
Metalúrgicos de São Caetano do Sul, João Lins Pereira, exemplifica com o
caso de um operário que, depois de várias tentativas, conseguiu sua
aposentadoria por neurose pelo serviço. ‘Adoecia ao se aproximar dos
portões da fábrica. Consultou especialistas, fez tratamentos para os nervos,
sem resultados. Afinal, foi descoberta a causa: trabalhou mais de cinco anos
na empresa, sem folga e sem férias, fazendo de duas a quatro horas extras
por dia. (O ESTADO DE SÃO PAULO, 1979 apud ANTUNES, 2015, p. 410)

Para Dejours e Bègue (2010 apud ANTUNES, 2015), o rompimento das


relações de solidariedade de classe e, consequentemente, da capacidade de
construir estratégias coletivas de defesa entre os trabalhadores é base não só para o
aumento dos processos de adoecimento psíquico, como também do suicídio no local
60

de trabalho, a manifestação mais extrema da deterioração das condições de trabalho


sob a vigência da gestão flexível.

Convém destacar que parte dessas instâncias que favoreciam a existência


desse sentimento de coletividade, de pertencimento, manifestava‑se na
capacidade de mobilização coletiva e na presença de entidades sindicais
politicamente fortalecidas, o que sem dúvida também contribuía no sentido
do amparo aos trabalhadores frente ao sofrimento vivenciado dentro e fora
do local de trabalho. A ofensiva do capital sobre o trabalho, ao submetê‑lo à
lógica destrutiva do capital, promovendo a individualização e o isolamento é,
nesse sentido, uma ação que busca cotidianamente desmontar sua
manifestação de classe historicamente antagônica aos interesses da ordem
capitalista (ANTUNES, 2015, p. 416).

Entretanto, apenas estudar isso não basta. Além de explicitar como a


estratégia de extração de mais valia específica da atual fase de acumulação
capitalista determina o perfil patológico, é preciso mostrar como a conjuntura de
crise econômica também determina o processo de saúde e doença. Em momentos
de crise econômica cíclica e periódica do capital, a situação da classe trabalhadora é
especialmente preocupante. Os índices de desemprego aumentam, sofre-se da
intensificação e extensão da jornada de trabalho, limitado acesso às políticas de
saúde, educação, transporte, etc. Em 2011, a OMS admite, no relatório "Impacto da
crise econômica na saúde mental", que viver no desemprego e empobrecimento
aumenta significativamente a quantidade de problemas de saúde mental, como
depressão, transtornos relacionados ao uso de álcool e suicídio (WHO, 2011). Ou
seja, a intensificação do processo de trabalho e dificuldade de reproduzir a força de
trabalho e a vida em geral que marca a atual fase de acumulação capitalista
determina o crescimento do sofrimento psíquico.

2.5 O conceito de sofrimento psíquico

A escolha pelo termo “sofrimento psíquico”, em detrimento de "doença


mental", "transtorno mental" ou "síndrome psiquiátrica" é devido ao fato dos últimos
conceitos serem carregados de valores da racionalidade psiquiátrica, na visão de
Almeida (2018). O termo “doença mental”, por exemplo, expressa como a psiquiatria
61

se subordina às concepções biológicas pois o próprio termo "doença" significa uma


entidade mórbida delimitada e possui uma carga negativa preconceituosa. Em
alternativa surge a terminologia “transtorno mental”, mas que é impreciso como
ressalva a CID-10. A expressão "síndrome" pode ser entendido como
"agrupamentos relativamente constantes e estáveis de determinados sinais e
sintomas" (DALGALARRONDO, 2008, p. 26 apud ALMEIDA, 2018, p. 56) o que foca
na descrição dos fenômenos ao invés de suas explicações e dinâmicas causais, não
se apresentando enquanto uma alternativa adequada.
Adota-se, em consequência, a ideia de sofrimento psíquico. Essa concepção
fundamenta-se nas contribuições de autores italianos como Franco Basaglia e
Franco Rotelli e é desenvolvido pelo campo da saúde mental e atenção psicossocial
brasileiro, por ser o mais próximo dos pressupostos adotados neste trabalho
(ALMEIDA, 2018). Isso porque o sofrimento se refere aos processos vividos como
obstruções à vida. Ou seja, como um estado em que esse esforço por coerência se
encontra diante de obstáculos e as mediações existentes não são efetivas na
preservação da unidade e coerência, levando à estagnação. (KINOSHITA et al, 2016
apud ALMEIDA, 2018). Isso se expressa no corpo orgânico e, fundamentalmente,
como mal estar, desconforto, dor, na experiência de vida, bloqueando a dinâmica de
transformações dos indivíduos, enrijecendo como esses se relacionam com os
outros e consigo mesmos. (KINOSHITA et al., 2016, p. 52, apud ALMEIDA, 2018, p.
57)
A adoção desse conceito não significa negar a existência da doença, de uma
experiência que produza dor e sofrimento, conforme explica Amarante (2007, p. 67
apud ALMEIDA, 2018, p.58) mas sim romper com o modelo teórico da psiquiatria,
baseado nas ciências naturais, que coisifica o sujeito e a experiência humana. Por
isso, embora se use a terminologia sofrimento psíquico entendido enquanto
processo que produz obstruções nos modos de andar a vida, não se nega por
completo o uso do termo “doença” (desde que explicitando a divergência quanto à
sua compreensão naturalizante e a-histórica). Existem, entretanto, riscos do uso do
termo sofrimento psíquico, que buscamos evitar. Um risco é cair em uma
compreensão dualista de saúde-doença, que contrapõe o psíquico ao físico quando,
na realidade, compõem uma totalidade e o adjetivo “psíquico” apenas busca
62

delimitar um conjunto de fenômenos. Outro perigo é aderir a um significado mais


amplo de sofrimento, alimentando a tendência crescente da medicalização social.

A medicalização social

Para Gomes (2017), as relações sociais e formas de vida de trabalho que


produzem sofrimento crescente e exigem pessoas cada vez mais resistentes para a
vida produtiva são a principal determinação do fenômeno da ​medicalização social​​.
Mas o que isso significa? A principal manifestação da medicalização social aparenta
ser a ampliação da produção e consumo de serviços de saúde. Em outras palavras,
em sua aparência a medicalização é a inclusão crescente dos fenômenos humanos
e sociais como objetos das atividades médicas e sanitárias:

Com a consolidação da medicina e dos serviços de saúde modernos,


desenvolve-se a possibilidade de reproduzir a força de trabalho- a dimensão
da saúde-doença- mantendo praticamente inalteradas as condições de vida
que a debilitaram. É sabido que o desenvolvimento capitalista busca elevar
progressivamente os graus de exploração do trabalho. Como isso se
expressa em desgaste e sofrimento dos indivíduos, expande-se também
progressivamente a quantidade de respostas a serem formuladas e
implementadas pelos serviços de saúde (GOMES, 2017, pg 46).

Mas a ampliação dos serviços de saúde, para Gomes (2017), são apenas a
expressão mais visível de algo mais complexo: a produção crescente de respostas
biomédicas para as manifestações de contradições sociais, engordando o campo do
patológico. Ou seja, ​a medicalização trata-se de um fenômeno de ampliação do
campo do patológico, através do deslocamento das contradições sociais para
o campo do individual, do biológico e da doença. A medicalização colabora para
naturalizar e ocultar as reais determinações do sofrimento, os indivíduos são
submetidos à análise, mas seus contextos sociais e relações concretas
estabelecidas não.

Naturalizar, portanto, o processo saúde-doença implica naturalizar a


sociedade em seu estado atual, ocultar seu caráter histórico, contraditório,
conflituoso e produtor de sofrimento. Desse modo, limita-s a apreensão
pelos sujeitos das determinações sociais de suas vidas, o que restringe
suas possibilidades de transformá-las em condições mais satisfatórias e
saudáveis (GOMES, 2017, p. 47).
63

Abrindo um parênteses. Para Laurell (1982) o conceito explícito de doença


também se centra na biologia individual, deixando subjacente ou ocultada a natureza
social do processo saúde-doença, concepção de saúde de componente
notadamente ideológico e parcial. Para Bock (2001), as construções ideais de saúde
e de normalidade em geral abrigam valores morais da cultura dominante na
sociedade e, dessa forma, se instalaram na ciência como referência das formas de
ser dos sujeitos. A autora problematiza a adesão a essas concepções e suas
implicações na psicologia e no papel social do psicólogo que acaba sendo e de
manter os valores dominantes em termos dos modos de ser e justificá-los como a
única possibilidade de estar no mundo. “O diferente passa a ser combatido; visto
como crise, como desajuste ou desequilíbrio; passa a ser “tratado”, com a finalidade
do retorno à condição saudável e natural do homem.” (BOCK, 2001 p. 31).
A produção de respostas biomédicas para problemas que são sintomas das
contradições sociais do modo de produção capitalista ocorre de várias maneiras.
Uma de suas expressões é a flexibilização dos critérios diagnósticos de
determinadas patologias, calcado na própria elasticidade inerente às categorizações
biomédicas. Fazendo com que situações outrora consideradas normais passem a
ser enquadradas como patológicas (CONRAD, 1992; ANGELL, 2011 apud GOMES,
2017, p.40). A ampliação do patológico também ocorre por meio do estabelecimento
de categorias nosológicas novas:

Trata-se ao nosso ver, de uma importante determinação da ampliação dos


limites do patológico na alçada do psiquismo, que reproduz referências
apriorísticas de subjetividade e comportamento cada vez mais estreitas. Ao
se ampliar o espectro do que é considerado transtorno depressivo,
transtorno de humor ou de ansiedade, por exemplo, passa-se a incluir
praticamente todas as formas de tristeza, ansiedade, desatenção etc. como
patológicas, consolidando socialmente um parâmetro de subjetividade
normal que exclui essas manifestações da existência.Essa ampliação dos
limites do patológico é a resposta médica às novas condições sociais que
exigem sujeitos cada vez produtivos e psiquicamente resistentes (Almeida &
Gomes, 2014). Tudo que a afete - da tensão pré-menstrual ao luto- é
patologizado. (GOMES, 2017, p. 45)

Outra expressão da ampliação do patológico se refere à gestão individual de


“riscos” à saúde (NOGUEIRA, 2003; CLARKE et al., 2005; ZOLA, 2005; TESSER,
64

2006b apud GOMES, 2017). Ou seja, a prevenção em relação à saúde seria


responsabilidade predominantemente dos hábitos e do estilo de vida da classe
trabalhadora (não confundir com os modos de andar a vida anteriormente descrito).
A compreensão dos modos de vida como sócio-historicamente determinados
confronta as concepções manifestas em conceitos como o de estilo de vida. Esse
conceito atribui ao âmbito singular a determinação fundamental da saúde-doença,
responsabilizando e culpabilizando os indivíduos por suas condições de vida
(ALMEIDA & GOMES, 2014). Uma melhor alimentação, vida menos estressada e
mais saudável dependeria fundamentalmente da vontade dos indivíduos. Desse
modo, os serviços de saúde responsabilizam os indivíduos pelos efeitos das
determinações sociais sobre suas condições de saúde.11
A indústria farmacêutica é outro importante agente de ampliação dos limites
do patológico já que essa ampliação aumenta a produção e venda de fármacos e,
consequentemente, dos lucros (CLARKE et al., 2005; ANGELL, 2011 apud GOMES,
2017). A indústria farmacêutica se beneficia inclusive da prevenção individual dos
riscos pois:

Ele encontrará no mecanismo contemporâneo de gestão individual dos


riscos, inclusive, as bases para superar o que, a princípio, parecia sua
limitação conceitual intransponível: a de ser originalmente uma indústria
produtora de mercadorias para um grupo restrito de indivíduos- os doentes.
De complexos vitamínicos a diversos medicamentos para “controle de
riscos” e “prevenção” de drogas - hipolipemiantes, emagrecedores,
quimioprofiláticos, etc. - o capital encontra um mercado com potencial de
expansão que parece inesgotável (GOMES, 2017, p. 42).

Entretanto, a medicina e indústria farmacêutica não conseguem impor novas


patologias de acordo unicamente com seu interesse. O normal e o patológico são
relativos e históricos, assim essa indústria se apropria de condições antes
consideradas normais, ressignificando-as como patológicas, porque a própria
normalidade vigente já não é mais suficiente diante das novas demandas do capital.

11
A exemplo de ​campanhas do governo para idosos, estimulando o uso de "sapatos firmes" para não
caírem tanto e se machucarem. Essa campanha foca no menor dos determinantes e acabam por
escamotear os outros, como o fato de parte significativa das ruas e calçadas da cidade não serem
pavimentadas, serem irregulares e cheias de buracos. Também esconde que os idosos caem porque
foram tão desgastados ao longo da vida e do trabalho alienado que não conseguem mais ficar de pé
e não dá atenção para as responsabilidades do estado em ofertar saúde pública de qualidade, ou até
mesmo que as vezes nem se tem dinheiro para comprar sapatos bons, bengalas, ter acesso a meio
de transportes mais práticos e rápidos como uber, etc.
65

As condições só podem ser patologizadas, portanto, dado que passam a


apresentar-se como obstruções e sofrimentos reais (ALMEIDA & GOMES, 2014). A
ampliação do patológico infelizmente não se limita ao engordamento da ordem do
patológico, se não também do aumento real do sofrimento psíquico, portanto.

2.6 O Conceito de Processos Críticos

Para Breilh (2006), a teoria dos fatores de risco ou paradigma do risco


precisa ser exposta como uma teoria que esconde a permanência da destrutividade
do conjunto da sociedade. É de enorme utilidade para os modelos de gestão
neoliberal aplicados à saúde e um verdadeiro instrumento estratégico do causalismo
positivista. Isso porque ela consiste na ideia que existem ‘fatores de risco’ que
aumentariam a vulnerabilidade das pessoas ao adoecimento. E não só os riscos
seriam atribuídos a características essencialmente individuais (biológicas genéticas
e ambientais psicossociais), como também são apenas exposições prováveis, e,
consequentemente, possíveis de dominar através do controle de cada um a níveis
toleráveis.
Ou seja, o conceito de risco apresenta a ideia de processos causais
prováveis, o que não permite ver que, na geração das condições de saúde, muitas
dessas exposições são estruturais e permanentes. E, assim, esse paradigma acaba
reforçando a adaptação a uma vida estruturalmente insalubre e abre margem para
acreditar ser possível a plena reprodução da saúde na sociedade de classes
estruturalmente desigual (BREILH, 2006). Essa falta de compreensão dos processos
econômicos, sociais e culturais implica uma visão reducionista que acaba por
responsabilizar individualmente o indivíduo pelo seu estilo de vida:

(...) Se examinássemos, com esse referencial interpretativo, o que seriam


os ‘riscos do trabalhador´, estaríamos implicando que processos como a
triplicação das exigências de trabalho, a fim de suprir a demanda
aumentada em milhões de unidades de “flores perfeitas” para exportação,
constituem apenas um ´risco´ para saúde, um dado de caráter eventual,
quando, na verdade, essa característica de tal atividade nada tem de
eventual, porque é um processo inscrito na própria estrutura dessa forma de
produção. Implicaríamos igualmente, por exemplo, que a remuneração da
força de trabalho abaixo de seu valor de reprodução em condições
saudáveis é um ‘risco para a saúde’, em vez de reconhecê-la como uma
forma econômica permanente, que faz parte do modo de vida deteriorante
66

dos trabalhadores. ​Em síntese, estaríamos convertendo em ‘riscos’ ou


‘eventualidades’ aquilo que constitui processos destrutivos de caráter
permanente, e também estaríamos desvinculando esses ‘riscos’ do todo que
os reproduz e os explica.​ (BREILH, 2006, p. 200, grifo nosso)

Indo na contramão dessa lógica está a concepção dialética da epidemiologia


crítica, que pauta a modificação das bases da vida social para que a saúde seja uma
possibilidade estruturalmente propiciada. Para o autor, é necessário o afastamento
da ideia de fator e sua substituição pela ideia de processo, o que consistiria em uma
ruptura epistemológica que entenda a realidade como contraditória e, por isso
mesmo, em movimento.
Por isso, o epidemiologista compreende que os processos em que se
desenvolvem a sociedade e os modos de vida grupais podem ser tanto protetores/
benéficos (saudáveis), quanto destrutivos/deteriorantes (insalubres). No primeiro
caso, são processos que dão defesa e suporte para a reprodução social da vida, no
segundo provocam deterioração da vida humana, individual ou coletiva. Mas um
mesmo processo pode ser saudável e insalubre, uma mesma atividade pode ter
processos que correspondem a diferentes dimensões que tanto humanizam quanto
alienam, que tanto reproduzem, quanto adoecem. Portanto, não há processos
protetores e destrutivos separadamente, pois podem adquirir ambas as facetas
simultaneamente, como é o caso do trabalho:

O processo de trabalho ilustra o caráter contraditório da vida social em


relação à saúde: num caso hipotético, embora possa ser mal remunerado e
se realizar em condições estressantes, com sobrecarga da postura física e
exposição crônica a substâncias tóxicas (facetas destrutivas), contribui
simultaneamente, como qualquer trabalho, para a organização do tempo, a
aprendizagem, a construção de um sentido para a vida e a obtenção de um
valor de mudança da força de trabalho (facetas protetoras). (BREILH, 2006,
p. 204).

Em contraponto ao conceito de ‘fator de risco’ da epidemiologia clássica, a


epidemiologia crítica propõe como categoria de análise os ​processos críticos​​. ​Os
processos críticos são destacados do perfil epidemiológico ​pela sua capacidade de
desencadear consequências significativas no modo de vida e por serem
considerados mais estratégicos para a intervenção uma vez que podem ser
preventivos ou promotores da saúde, na medida em que evitam/contrapõe-se aos
67

processos destrutivos ou fomentam processos protetores. Diferente da lógica clínica


que invisibiliza os aspectos mais decisivos da saúde com impacto destrutivo ou
protetor importante, são os processos críticos que determinam os atuais padrões de
desgaste e reprodução dos grupos sociais, com o estabelecimento de determinados
modos de adoecer. Quais são os processos críticos que determinam o desgaste
e reprodução dos militantes? ​Voltaremos a isso depois de compreender melhor no
que consiste a atividade da militância.

Capítulo 3 - ​Caracterização e Análise da Atividade da Militância Revolucionária

Para superar a sociedade de classes, a unidade entre uma série de condições


objetivas e subjetivas é necessária, dentre as quais se encontra a consolidação de
uma vanguarda revolucionária (LENIN, 1979). Para que estes quadros políticos
consigam se dedicar à militância, entretanto, precisam antes conseguir reproduzir a
própria vida e força de trabalho. O sofrimento psíquico dos militantes, na medida em
que interrompe esse processo, precisa ser estudado e entendido. Isso porque esse
sofrimento não só pode levar à estagnação da sua vida pessoal, como também de
sua militância, abalando um projeto coletivo (pois a militância é uma atividade grupal
no qual o projeto de vida individual se insere e se subordina).
O sofrimento psíquico dos militantes é um problema também político, inserido
no bojo das tarefas políticas de uma organização, portanto. Ao mesmo tempo, as
organizações políticas não são um grupo de apoio psicológico, nem substituem os
serviços de saúde. Então, qual o papel das organizações políticas na elaboração de
análises e práticas comprometidas com a formação de militantes engajados no
projeto de transformação da sociedade, inseridos nesse cenário que determina o
aumento do sofrimento psíquico?
Mas, antes mesmo disso, o que é a atividade da militância e como ela se
relaciona com o sofrimento psíquico? ​Uma atividade é um processo que é
eliciado e dirigido por um motivo e atende a uma necessidade (LEONTIEV, 1977). A
militância, por exemplo, é uma atividade cujo objeto é a defesa de uma causa ou de
um projeto. Pode haver uma variedade de causas militantes, desde as mais
68

particulares até as mais gerais, alguns exemplos são as lutas por transporte público,
por moradia, por pautas raciais, a luta sindical etc. Aqui, vamos analisar a atividade
militante revolucionária, que tem como objetivo final a transformação radical da
sociedade. Para compreendê-la, precisamos inicialmente responder a algumas
perguntas.
Primeiro, o que caracteriza em específico essa atividade da militância?
Em resumo, é o fato de ser uma atividade essencialmente grupal, possuir um
significado social e um sentido pessoal e implicar um dispêndio de energia,
podendo culminar em uma dupla/tripla jornada de trabalho na vida dos
militantes. Cada um desses componentes da atividade militante será desenvolvido
ao longo do capítulo.
E, segundo, qual o papel que essa atividade pode ocupar na vida dos
indivíduos? ​A verdade é que pode ocupar papéis variados, mais ou menos centrais.
Não há pretensões de discorrer sobre todas essas possibilidades e sim sobre os
casos em que a atividade militante se torna uma das atividades centrais na
hierarquia de motivos. ​A investigação é sobre o impacto do sofrimento psíquico
na dinâmica da estrutura motivacional dos indivíduos que vão constituindo a
militância enquanto atividade central. E, posteriormente, o papel das
organizações políticas e da formação de quadros de desenvolver e manter
essa centralidade e sentido na militância. Esses debates também serão melhor
desenvolvidos.
Agora com essa compreensão mínima do que caracteriza a militância e seu
possível papel, ​reforça-se a pergunta: como ela se relaciona com o sofrimento
psíquico? ​Percebe-se que a própria militância enquanto atividade pode tanto
ser geradora de saúde quanto de desgaste e que, geralmente, gera ambos ao
mesmo tempo. Pensando a militância enquanto processo grupal, por exemplo, ela é
acompanhada de uma rede de suporte que contribui na direção da saúde e/ou
tensões político-pessoais que geram desgaste. Ela pode tanto organizar e conferir
sentido à vida, gerando saúde, quanto é possível que se perca o sentido na
militância ou que se sobrecarregue diante do grande acúmulo de tarefas e
responsabilidades, gerando desgaste. Portanto, não cabem aqui visões simplistas da
militância enquanto adoecedora em si ou olhares idealistas dessa atividade.
69

Em síntese, neste capítulo temos o objetivo de debater o papel das


organizações políticas na elaboração de análises e práticas comprometidas com a
formação de militantes engajados no projeto de transformação da sociedade,
inseridos nesse cenário que determina o aumento do sofrimento psíquico. Mas, para
isso, precisamos compreender o que caracteriza a atividade da militância, qual papel
ela pode ocupar na vida dos indivíduos e quais os processos críticos relacionados a
ela.

3.1 Sentido e Significado da Militância

Liberdade

Não ficarei tão só no campo da arte,


e, ânimo firme, sobranceiro e forte,
tudo farei por ti para exaltar-te,
serenamente, alheio à própria sorte.

Para que eu possa um dia contemplar-te


dominadora, em férvido transporte,
direi que és bela e pura em toda parte,
por maior risco em que essa audácia importe.

Queira-te eu tanto, e de tal modo em suma,


que não exista força humana alguma
que esta paixão embriagadora dome.

E que eu por ti, se torturado for,


possa feliz, indiferente à dor,
morrer sorrindo a murmurar teu nome

Carlos Mariguella, São Paulo, Presídio Especial, 1939

​Para Leontiev (1977), toda atividade tem como primeira condição a


satisfação de uma necessidade e é impulsionada por um ou mais motivos. Além
disso, o que diferencia as atividades umas das outras é/são justamente o(s)
motivo(s) desta. Isso é chave para responder o que caracteriza a atividade da
militância. A militância revolucionária responde à necessidade de transformar
radicalmente os alicerces do modo de produção capitalista, super​ando através da
transição socialista até o comunismo a sociedade de classes. O que faz cada um
70

militar, singularmente, porém, varia muito e os motivos que incitam essa atividade
nos indivíduos podem ser múltiplos e dos mais variados. Por exemplo, ter passado
por experiências diretas de exploração, visto situações desumanas no capitalismo e
se afetar com elas, ter sido convencido teoricamente. Os motivos que nos fazem
militar, portanto, são diversos.
No caso da atividade da militância, seu significado social necessariamente
entra em um relacionamento interno com a consciência individual durante sua
história de vida através do processo de desenvolvimento da consciência . Este é o
mesmo processo de desenvolvimento do sentido pessoal da militância, pois o
motivo, ao se relacionar com o objetivo, reflete-se na estrutura da consciência como
sentido.
Na sociedade de classes, que se caracteriza pela propriedade privada dos
meios de produção e pela separação entre trabalho manual e intelectual, a
consciência humana sofre uma transformação radical: significados e sentidos não
apenas deixam de ser coincidentes, como se tornam contraditórios. De acordo com
Leontiev (1977), o sentido pessoal de seu trabalho, aquilo que o motiva, reside no
salário e não na mercadoria que produz, ou seja, no significado social de seu
trabalho. A unidade entre motivo e objetivo foi quebrada e o sentido pessoal não
coincide diretamente com seus significados objetivos. A atividade responde,
simultaneamente, a dois ou mais motivos, voltadas à sociedade e voltadas à própria
pessoa. Esses motivos coexistem, mas ocupam planos diferentes e surge assim
uma vida dupla na sua consciência. Leontiev atribui isso à alienação.

os significados pessoais refletem os motivos engendrados por


relacionamentos vivos de uma pessoa real podem falhar em encontrar
significados objetivos que os expressem plenamente, e eles então começam
a viver em roupas emprestadas, por assim dizer. Imagine a contradição
fundamental que essa situação acarreta. Em contraste à sociedade, o
indivíduo não tem uma linguagem especial sua com significados que ele
desenvolveu por si mesmo. Sua compreensão da realidade pode ocorrer
somente por meios dos significados “não originais” que ele assimila de fora
– o conhecimento, conceitos e visões que ele recebe através de relações,
nas várias formas de comunicação individual e de massa. É isso que torna
possível introduzir em sua consciência ou até mesmo impor sobre essa
consciência noções ou ideias distorcidas ou fantásticas, incluindo aquelas
que não têm base na experiência viva prática, real, mas, ao mesmo tempo,
tendo alguns estereótipos, eles adquirem a capacidade de qualquer
estereótipo de resistir, de modo que somente os grandes confrontos da vida
podem quebrá-los. Mas, até mesmo quando eles são quebrados, a
71

desintegração da consciência, sua inequidade, não é removida; nela mesma


a destruição dos estereótipos causa somente uma devastação que pode
levar a um desastre psicológico. (LEONTIEV, 1977, p. 207-8)

Ou seja, a consciência humana na sociedade de classes é fragmentada,


desintegrada; significados e sentidos têm uma relação de exterioridade. (ASBAHR,
2005, p 111). Mas essa ruptura entre significação e sentido pessoal causa
contradições da consciência que podem tanto produzir grandes sofrimentos
psíquicos, quanto estimular a tomada de consciência dessas relações de exploração
e o comprometimento na atividade militante revolucionária de superação do
capitalismo.

Hierarquia de Motivos e a Atividade da Militância

Elogio ao Revolucionário

Quando aumenta a repressão, muitos desanimam.


Mas a coragem dele aumenta.
Organiza sua luta pelo salário, pelo pão
e pela conquista do poder.
Interroga a propriedade:
De onde vens?
Pergunta a cada ideia:
Serves a quem?
Ali onde todos calam, ele fala
E onde reina a opressão e se acusa o destino,
ele cita os nomes.
À mesa onde ele se senta
se senta a insatisfação.
A comida sabe mal e a sala se torna estreita.
Aonde ele vai há revolta
e de onde o expulsam
persiste a agitação.

Bertolt Brecht

O aumento da quantidade de atividades de um indivíduo não apenas


expande seu inventário de atividades, como também reorganiza hierarquicamente
estas entre si. Assim algumas podem ganhar papel de destaque e outras papeis
mais subordinados. Esses "nós" que conectam de forma específica cada uma das
atividades denomina-se hierarquia de atividades. Mas por trás da relação entre
atividades há sempre uma relação entre motivos. Por isso, fala-se da ​Hierarquia de
72

Motivos​​, processo de correlação de motivos entre si, de tal forma que alguns se
elevam se tornando principais ou dominantes e outros se subordinam, tornando-se
secundários (LEONTIEV, 1978).
Como já explicado anteriormente, para Leontiev (1978), existe diferença entre
motivos geradores de sentido e motivos-estímulo. Motivos que induzem a atividade e
também lhe dão sentido pessoal são motivos formadores ou geradores de sentido.
Os motivos que coexistem com esses e exercem um papel coadjuvante como
fatores de estimulação (positiva ou negativa), muitas vezes também bastante
emocionais e afetivos, são os motivos-estímulos. ​A depender da centralidade que a
militância ocupar na estrutura de atividade sendo analisada, pode-se caracterizá-la
enquanto uma atividade com um motivo gerador de sentido.
Descobrir o motivo principal, gerador de sentido (ou os motivos) de uma
pessoa, é desvendar seu objetivo de vida. Só os motivos geradores de sentido são
capazes de criar uma justificação psicológica interna para a existência do indivíduo,
ou seja, um motivo ou ​sentido de vida​​.

Uma personalidade diferente com um destino diferente é criada


quando o motivo-objetivo principal é elevado a um nível
verdadeiramente humano e não enfraquece o homem, mas junta sua
vida com a vida das pessoas, com o seu bem. Dependendo das
circunstâncias que estejam determinadas ao ser humano, esses
motivos de vida podem adquirir um conteúdo muito diferente e um
significado objetivo diferente, porém só eles são capazes de criar
uma justificação psicológica interna para sua existência, que envolve
o sentido e a felicidade da vida. (LEONTIEV, 1978, s.p.)

Parece que esses processos da militância podem ser tanto protetores e


benéficos, quanto destrutivos e deteriorantes. Isso porque ter um motivo e um
sentido de vida é uma defesa e suporte para a reprodução social da vida, mas
se esse motivo se perde ou enfraquece, isso pode causar a deterioração da
vida humana. Ou seja, acreditamos poder afirmar que a militância, quando se
constitui como atividade impulsionada por um motivo de vida de um indivíduo,
pode se configurar enquanto um processo crítico reprodutor. ​Ainda que seja
motivada por um motivo gerador de sentido, pode gerar desgaste e sofrimento,
entretanto. E a perda ou o abalo desse motivo pode causar sofrimento e se
73

configurar enquanto processo crítico destrutivo.


A implicação prática do grau hierárquico com que a atividade militante e seus
correspondentes motivos estão arranjados está no fato dos militantes medirem e
coordenarem suas ações com base nesta atividade. Ou seja, organizarem a vida em
torno dessa atividade, de tal forma que parece que as outras atividades e motivos
“orbitam” a militância, se subordinando a ela. Um exemplo disso é o caso de
militantes revolucionários do movimento estudantil que mudam de curso (e,
consequentemente de futura profissão) por conta da inserção no movimento dos
trabalhadores. Aqui, não só a atividade de estudo, como as próprias perspectivas
futuras de inserção no mercado de trabalho se submetem àquilo que é melhor para a
atividade da militância e para o movimento dos trabalhadores. É claro que isso não
faz das pessoas mais ou menos revolucionárias, mas é um exemplo de que a
atividade da militância, quando ocupa um lugar dominante, transforma a relação com
a totalidade das outras atividades, motivos e ações dos militantes:

quando uma atividade, importante em seu próprio sentido pessoal para o


homem, encontra, no curso de sua realização, um estímulo negativo que
elicia, até mesmo, uma experiência emocional forte, então ​seu sentido
pessoal não se altera por causa disso; muito freqüentemente, uma outra
coisa acontece: especificamente, ocorre, de forma única, um rápido
descrédito da emoção eliciada.​ (LEONTIEV, 1978, s.p. grifos nossos)

Ou, ainda, nas palavras do Che Guevara, com ressalvas para não ter uma
compreensão voluntarista da frase:

E as coisas mais banais e aborrecidas transformam-se, pela força do


interesse, do esforço interior do indivíduo, ​do aprofundamento de sua
consciência,​ em coisas importantes e substanciais, em algo que não se pode
deixar de fazer sem sentir-se mal: no chamado sacrifício. Daí, não fazer o
sacrifício se torna o verdadeiro sacrifício, para um revolucionário (CHE
GUEVARA,1986, pg.69, grifos nossos)

Essas citações são base para discutir a relação entre a militância enquanto
motivo geradores de sentido e os motivos estímulos positivos ou negativos da
militância. O primeiro debate relacionado a isso é que a ​estrutura de motivos,
mesmo dinâmica, é relativamente estável. Então, mesmo que esse militante
74

encontre no meio do seu caminho motivos-estímulos negativos, como relações


político-pessoais tensionadas, uma sobrecarga de tarefas etc., isso não
necessariamente implica uma perda total ou um enfraquecimento do sentido pessoal
da militância, embora eventualmente possa ter esse resultado. Um exemplo são as
as lutas econômicas derrotadas.
A luta econômica é a luta por melhores condições de vida e trabalho, de
venda/reprodução da força de trabalho. Outra coisa que a caracteriza é que é uma
luta entre categoria e patrão, e não entre as classes como um todo (a classe
trabalhadora e a classe burguesa). A luta sindical talvez seja o exemplo mais
conhecido. As conquistas dessas lutas são limitadas, entretanto, pois são contra os
efeitos e não as causas da exploração e não são permanentes, podendo ser
retrocedidas. Para o militante revolucionário, entretanto, a luta econômica não é só
importante pelas pautas e conquistas econômicas, mas pelo seu papel educativo na
relação com a classe. Através da luta econômica, os trabalhadores podem avançar
na consciênci​a (LUXEMBURGO,1999)​. Por isso, apesar da conquista de pautas
econômicas poder ser um motivo-estímulo que exerce um papel coadjuvante como
fator de estimulação positiva, nem sempre o fracasso na conquista da pauta
econômica rompe com o sentido de vida da militância.

A atividade que não tem um motivo geral e amplo carece de sentido para o
indivíduo que a realiza. Essa atividade não somente não se pode enriquecer
e melhorar em seu conteúdo, como se torna uma carga para o sujeito. Isso
acontece, por exemplo, com tudo o que se faz por imposição. Por isso,
apesar da importância que têm os motivos-estímulo, a tarefa pedagógica
consiste em criar motivos gerais significativos, que não somente incitam à
ação, mas que também deem um sentido determinado ao que se faz.
(LEONTIEV, 2017, p. 50)

Entretanto, os motivos-estímulo positivos são importantes estimulações


suplementares à ação imediata, embora não mudem o sentido da atividade,
estimulam a realização daquilo proposto. A militância é uma atividade complexa que
pode se estender à vida toda, portanto é importante que esses motivos atuem juntos,
formando uma espécie de sistema único, no qual cada um tem papel distinto. É
indispensável a existência de motivos gerais se não a atividade carece de sentido
assim como são indispensáveis motivos suplementares que estimulem a ação:
75

Outras atividades, motivos e ações que estão em contradição com o motivo


gerador de sentido podem ser despriorizados ou até mesmo abandonados. Ou caso
respondam diretamente a esse motivo, podem se cristalizar e fortalecer. Ou seja,
para ser gerador de sentido é necessário que o motivo da ação se relacione com o
objetivo da atividade e quando essa conexão se perde, o sentido se fragiliza.
(LEONTIEV, 1978). No texto ‘sobre a moralidade’ do Ho Chi Minh isso se expressa
na frase “O interesse pessoal está ligado ao interesse coletivo. Se o interesse
pessoal está em contradição com o interesse coletivo, a moralidade revolucionária
manda que o primeiro seja subordinado ao segundo”. (HO CHI MINH, 1984, p.191).
Podemos caracterizar essa subordinação como fazendo parte da disciplina
necessária à militância, essa disciplina, entretanto, só pode ser voluntária, advinda
do próprio processo de desenvolvimento da consciência:

Disciplina não é obediência a uma ordem ou horário: é o cumprimento dos


acertos coletivos.[...] Para se chegar à disciplina consciente deve-se buscar
a formação da consciência. A disciplina neste sentido garantirá o princípio
da unidade. Fazer por acreditar é diferente do fazer para cumprir com a
obrigação. Após ter-se adquirido a consciência da disciplina não é difícil um
lutador do povo manter a disciplina. Daí em diante o faz de forma natural,
pois ela já se tornou parte de seu caráter. Difícil neste caso é deixar de ser
disciplinado. (PELOSO, 2015, p.40)

O segundo debate relacionado a isso é que a ​estrutura de motivos,


mesmo relativamente estável, é essencialmente dinâmica. ​Para Leontiev (1978),
embora a estrutura da personalidade represente uma configuração de linhas
principais de motivação organizadas hierarquicamente de forma relativamente
estável, a estrutura da atividade é essencialmente dinâmica. Isso quer dizer que a
estrutura da atividade e o papel que ocupa a militância na vida dos indivíduos pode
se alterar (e se altera) ao longo da vida. De acordo com Leontiev (1978), pode
ocorrer ​o deslocamento dos motivos para objetivos (ou de atividades para ações), e
a geração de novos motivos e atividades, os objetivos anteriores e ações
correspondentes podem ser psicologicamente desacreditados e deixarem de existir
ou se converterem em operações.
É interessante notar como isso pode se desenvolver e alterar no caso de
indivíduos convivendo com o sofrimento psíquico, inclusive indivíduos militantes.
76

Zeigarnik (1981), por exemplo, levanta bem essa questão ao expor algumas
possíveis alterações da personalidade consequentes do sofrimento psíquico como o
estreitamento dos interesses, a diminuição de necessidades, a indiferença frente ao
que antes inquietava ou vice-versa, a perda de finalidade de suas ações, etc.

Os dados das investigações psicopatológicas adquirem singular importância


ao analisar a estrutura dos motivos e necessidades. [...] a enfermidade
psíquica ao destruir e falsear a sucessão de motivos e ao diminuir sua
função na formação de significados, nos proporciona valiosíssimos fatos
reais para a comprovação e demonstração dos postulados teóricos da
psicologia geral. Isto é possível porque a enfermidade mental com
frequência conduz não somente à destruição dos processos já formados de
motivos e necessidades, senão também à formação de novos motivos
(ainda que patologicamente alterados) aparição de novas propriedades e
aspectos da personalidade (ZEIGARNIK,1981, p.9).

A Atividade enquanto Substância da Personalidade

Somos o que fazemos;


Principalmente o que fazemos para mudar o que somos.

Eduardo Galeano

Para Leontiev (1978), a atividade é a substância da personalidade. Mas como


por trás da relação entre atividades sempre existe uma relação entre motivos, a
formação de um sistema conectivo de sentidos pessoais, ou seja, a conexão
específica entre motivos é a chave para compreensão da formação da
personalidade. Ou, colocando de maneira mais poética: adentrar na personalidade
de um indivíduo é um esclarecimento da sua hierarquia de motivos. Infere-se, assim,
que as relações internas de linhas motivacionais centrais na atividade formam um
"perfil psicológico" geral da personalidade.
São as circunstâncias objetivas de vida que delimitam o campo de atividades
que condicionam a estrutura da atividade que, por sua vez, condiciona a estrutura da
personalidade e o desenvolvimento de personalização (MARTINS, 2005). Nega-se,
portanto, a personalidade enquanto dinâmica psicológica interna e afirma-a
enquanto mediatizada pela formação social em que se desenvolve. ​Os princípios
gerais que regem o desenvolvimento da personalidade são a quantidade e a
77

qualidade dos vínculos indivíduo- gênero humano, mediatizado pela sociedade


capitalista, o grau e organização das atividades em relação aos seus fins e
motivos e o grau de subordinação desta organização à consciência sobre si e
autoconsciência​​.
Quais as implicações na personalidade de a militância ocupar um papel
ordenador das relações internas de linhas motivacionais? A estrutura da
personalidade representa, em si, uma configuração relativamente estável de linhas
principais de motivação arranjadas hierarquicamente (LEONTIEV, 1978). Mas, na
medida em que essas linhas principais motivacionais se alteram no processo de se
tornar militante e da militância se tornar uma atividade central, podemos deduzir que
a própria personalidade do militante se altera. Dessa instabilidade pode nascer uma
relativa estabilidade. Se a militância permanecer central ao longo da vida, isso pode
anunciar um "perfil psicológico" geral da personalidade. Ou seja, pode ditar uma
“direção da personalidade” ou uma linha predominante de vida.
De acordo com Martins (2005), a estrutura da atividade é um amálgama que
sintetiza quatro esferas interdependentes do funcionamento humano. A primeira
consiste nas atividades denominadas ‘atividades fundamentais humanizadoras’,
aquelas através das quais os indivíduos produzem, desenvolvem ou especificam
capacidades em prol de sua humanização. A segunda, chamada ‘atividades
objetivas humanizadoras’, é a esfera que reúne as atividades que põe em prática as
capacidades desenvolvidas pela primeira, os resultados retornam em benefício do
indivíduo. Essas atividades se ligam ao sentido pessoal e a significação da atividade
e traduzem uma relação entre motivos e fins, isto é, entre o porquê e o para que da
atividade.
Já a terceira, as ‘atividades conformadoras da força de trabalho’, são aquelas
que promovem capacidades submetidas a necessidades externas, neste caso,
subordinadas à acumulação capitalista. A quarta esfera das “atividades
operacionalizadoras da força de trabalho’ reúne as atividades que põe em prática as
capacidades conformadoras, os resultados são beneficiar a produção social em
detrimento do indivíduo. Nessas últimas duas esferas das atividades, os resultados
obtidos pela atividade e os motivos que as mobilizam não estão em unidade, não
estão em concordância, como no exemplo de um operário que produz carros para
78

obter seu meio de vida, seu salário e não para desfrutar do carro produzido
(MARTINS, 2005).
Essa falta de unidade também existe entre os conteúdos objetivos e
subjetivos. Nesse caso, de separação entre os resultados da atividade e seu motivo,
as reações emocionais e sentimentos mediadores da relação do indivíduo com a
atividade não contribuem para a construção de seu sentido pessoal. Quanto mais
empobrecidas as atividades, mais empobrecido será o processo de construção das
emoções e sentimentos. Esse é o caso de quando há primazia das atividades
conformadoras e operacionalizadoras da força de trabalho (MARTINS, 2005). A
atividade da militância sem dúvida parece estar mais para uma atividade
fundamental humanizadora, porém pode conter aspectos conformadores e
processos críticos destrutivos.
Saltos qualitativos na personalidade são possíveis pela ampliação de
atividades. A militância enquanto atividade altera a estrutura da atividade e
enriquece a estrutura motivacional e emocional da personalidade.
Reconfiguram-se os motivos e os próprios fins da vida como um todo. Sua primazia
na hierarquia de motivos e na estrutura da atividade efetivamente desenvolve
qualidades humanas superiores, capacidade de análise, sínteses e generalizações
em nome da ação transformadora. Alteram-se os sentimentos reativos
experienciados, pois o relacionamento com a existência se torna mais consciente. A
submissão da pessoa às situações que produzem tais sentimentos, que passam a
ser vividas como independentes de sua ação, se modifica. Em outras palavras, o
“sentimento de impotência”, pelo qual o indivíduo se sente incapaz de gerir seu
próprio destino não são anuladas, mas alteradas, possivelmente
atenuadas/aliviadas. Por isso, também, nega-se a análise simplista de que “a
militância adoece”.
Ou seja, a militância é uma atividade que muda a personalidade na medida
em que é incorporada na estrutura da atividade dos indivíduos. Isso não abole a
alienação, pois a atividade alienada, característica da sociedade capitalista, só pode
criar uma personalidade também alienada, mas implica no desenvolvimento de outra
consciência sobre si e também o avanço da consciência de classe:
79

os reguladores de produção de si mesma, ou seja, os sentimentos, os


valores, as ideias, as ideologias, as características pessoais, etc vão se
tornando menos intuitivas e espontâneas, condição para o desenvolvimento
e operacionalização da consciência sobre si, e quem sabe, um dia, da
autoconsciência (MARTINS, 2005, p.132).

A militância enquanto atividade, entretanto, não existe sozinha na


estrutura da atividade​​. Mesmo que com ela apareça um novo motivo, superior,
base para o crescimento pessoal, para a própria humanização, que pode inclusive
resultar num enriquecimento geral das atividades, isso de forma alguma pode ser
confundido com a perda da influência das atividades conformadoras e
operacionalizadoras da força de trabalho. A militância inevitavelmente se relaciona a
outras atividades formadores de sentido ou não, como o trabalho, o estudo, etc. ​A
depender da relação concreta entre essas atividades, elas podem fortalecer a
própria militância ou não.

Os modos de vida estabelecem com a totalidade social uma relação


dialética de parte e todo e, simultaneamente, de resultado e processo. Seus
vários níveis de determinação -geral, particular e singular - expressam a
conformação da totalidade como aquilo que Lukács (2013) caracteriza como
complexo de complexos: vários processos sociais, com relações de
hierarquia, se entrecruzando e se determinando reciprocamente, produzindo
o real como totalidade complexa. (GOMES, 2017, p. 35)

Isso implica compreender a relação dialética entre a militância enquanto


atividade específica e demais atividades que os sujeitos realizam. Uma vez que esse
desgaste e reprodução se dá na vida como um todo do militante revolucionário, não
se pode nem subtrair da análise a atividade militante, nem estudá-la isolada do
restante das atividades na vida do sujeito. I​sso pode causar uma contradição,
pois, mesmo que a militância ocupe papel ordenador da hierarquia de motivos,
pode existir na prática a supremacia das atividades conformadoras e
operacionalizadoras da força de trabalho​​.
Nem sempre a militância tem condições de ser feita no local de trabalho. Em
muitos casos, os militantes desenvolvem a atividade militante em determinado local
e ainda precisam “ganhar a vida” em outro. A atividade principal dos indivíduos é a
que promove desenvolvimento e não necessariamente aquela que ocupa mais
80

tempo. É possível ter a militância enquanto atividade principal e ocupar a maior parte
do tempo de vida no trabalho, podendo gerar sentidos variados, desde um sentido
de vida até apenas o sentido de garantir a existência. De acordo com Martins (2007),
também é possível que a presença em instituições responsáveis pela sociabilidade
das pessoas como a família seja uma participação compulsória, podendo gerar
sofrimento. Ou seja, sofrimentos podem surgir de tensões político-pessoais com a
família, amigos, parceiros caso essas relações disputam tempo despendido para a
militância de forma forçada ou coercitiva, e/ou tambémquando a militância parece
não “liberar” tempo para aprofundar relações que são voluntárias e quistas.
Mas não é só no quesito da disputa do tempo disponível que essas demais
atividades podem enfraquecer a militância. A resignação e subordinação,
expressões psicológicas do trabalho alienado e das atividades conformadoras,
podem surgir, o que vai na contramão da formação dos quadros. A primazia dessas
relações espontâneas aumentam a influência da ideologia justificadora das
condições de alienação e podem promover o falseamento da consciência. O
desenvolvimento das atividades conformadoras em detrimento das fundamentais e
objetivas de humanização fortemente impostas aos militantes também vai criando
um hiato cada vez maior entre o sentido pessoal e a significação das atividades, isto
é, entre seus motivos e fins, podendo gerar sofrimento. Assim como os militantes
podem possuir outras atividades cujos motivos são formadores de sentido para além
da militância.

A estrutura da personalidade representa, em si, uma configuração


relativamente estável de linhas principais de motivação arranjadas
hierarquicamente dentro dela. Estamos falando, aqui, a respeito do fato de
que a "direção da personalidade" é descrita incompletamente -
incompletamente, porque mesmo na presença de uma linha de vida
predominante e distinta num homem, ainda assim não pode ser a única
linha. O fato de servir o objetivo ou o ideal selecionado não exclui, nem
extingue, absolutamente, outros relacionamentos de vida do homem, os
quais, por sua vez, constituem motivos formadores de sentido. (LEONTIEV,
1978, s.p.)
81

3.2 Militância enquanto Processo Grupal

Mas quem é o partido?


Ele fica sentado em uma casa com telefones?
Seus pensamentos são secretos, suas decisões
desconhecidas?
Quem é ele?

Nós somos ele.


Você, eu, vocês – nós todos.
Ele veste sua roupa, camarada, e pensa com a sua cabeça
Onde moro é a casa dele, e quando você é atacado
ele luta.
Mostre-nos o caminho que devemos seguir, e nós
O seguiremos como você, mas
Não siga sem nós o caminho correto
Ele é sem nós
O mais errado.
Não se afaste de nós!
Podemos errar, e você pode ter razão, portanto
Não se afaste de nós!

Que caminho curto é melhor que o longo, ninguém


nega
Mas quando alguém conhece
E não é capaz de mostrá-lo a nós, de que nos serve
sua sabedoria?
Seja sábio conosco!
Não se afaste de nós!

Bertolt Brecht

Embora haja quem considere a possibilidade de existência de militantes


individuais, a nosso ver, a militância constitui-se de uma atividade essencialmente
grupal. Isso porque satisfazer necessidades que são comuns requer superar a ação
individual isolada através da organização coletiva, bem como requer uma luta
comum:

Isoladamente, a pessoa identifica o seu problema como exclusivo, como


necessidade individual. No entanto, ao se reunirem, os indivíduos percebem
que os problemas, muitas vezes semelhantes, são decorrentes das próprias
condições sociais de vida e que a organização coletiva, diferente da ação
individual isolada, pode propiciar a resolução de problemas ou a satisfação
de necessidades comuns (Lane, 1981a). (MARTINS, 2007, p. 79)
82

Defende-se aqui uma concepção histórica e dialética do processo grupal.


Lane (1984b apud MARTINS, 2007, p.77) explica que existem duas grandes
posições e teorias sobre grupos. A tradicional compreende que a função do grupo é
garantir a produtividade dos indivíduos e grupos através da manutenção e harmonia
das relações sociais. Essa definição hegemônica caracteriza o grupo através da
interdependência entre seus membros, da existência de um objetivo comum, pela
diferenciação de papéis e presença ou emergência de uma liderança. Existe outra
definição de grupo histórica e dialética radicalmente diferente da primeira que tem
como premissa que conhecer o grupo é desvendar o significado da existência e da
ação grupal inserida na sociedade, com suas determinações econômicas e
ideológicas.
Uma premissa é entender o grupo no geral e, também, o grupo militante em
específico “como condição , por um lado, para o conhecimento da realidade comum,
para a auto-reflexão e, por outro, para a ação conjunta e organizada.” (LANE, 1996,
p.31 apud MARTINS, 2007, p.79) Em outros termos, a militância enquanto processo
grupal, assim como qualquer grupo, possui o caráter de ​mediação ​entre os
indivíduos e a sociedade. Até porque, para que individualmente uma pessoa se torne
militante, são necessárias mediações coletivas ou grupais: “Para se falar em
atividade, o grupo deve produzir algo que deve, necessariamente, ter um significado
social, interna e externamente ao próprio grupo” (LANE & FREITAS, 1997, p. 306
apud MARTINS, 2007, p.79).
Segundo Martins (2007, p. 20), a atividade grupal tem uma dimensão externa
relacionada com a sociedade e os grupos, quando o grupo deve ser capaz de
produzir um efeito real sobre esses para afirmar sua identidade, e também uma
interna, vinculada aos membros do próprio grupo, em direção à realização dos
objetivos individuais e comuns. Aqui se dá atenção especial aos significados
socialmente constituídos que só podem ser captados pela intersecção da história
individual com a história da sociedade a qual o indivíduo pertence. Ou seja, na
relação entre dois níveis que estão sempre operando, o da vivência subjetiva e a da
realidade objetiva, que já discutimos no caso da militância enquanto atividade.
A contradição indivíduo-grupo, no caso da militância, também implica uma
83

​ de se sobrepor mais
relação político-pessoal​, em que cada pólo dessa dialética po
em diferentes momentos. Uma análise puramente coletiva/política ou puramente
individual/pessoal parece impossível, pois nunca a relação é absolutamente política
ou absolutamente pessoal. Nossas relações são ao mesmo tempo individuais e
grupais, pessoais e políticas. Por isso, só podem ser analisados em relação. Essa
contradição indivíduo-grupo, e a consequente relação político-pessoal será sentida
de diferentes formas pelos indivíduos, podendo gerar tanto desgaste quanto
reprodução individual. Quando há um conflito político-pessoal grave, estressor, por
exemplo, esse pode ser ou se tornar um processo crítico destrutivo. Assim como as
relações político-pessoais podem ser processos críticos protetores dos militantes, ao
garantirem uma rede de suporte e espaços de socialização.
Quando Lane (1981b, 1984b apud MARTINS, 2007, p.77) fala em processo
grupal e não em grupo ou dinâmica de grupo, não se trata apenas de diferenças de
nomenclatura, mas de uma posição política que traz para o centro da discussão o
caráter histórico e dialético do grupo. Enquanto processo, o grupo não pode ser
reduzido à soma de seus membros. Além disso, compreender o caráter histórico do
grupo implica entender que ele, na sua singularidade, expressa múltiplas
determinações e contradições da sociedade. Os seres humanos na sociedade
capitalista são fundamentalmente alienados. É nesse sentido que se defende
estudar o processo grupal no geral e, em específico da militância, no conjunto de
suas relações sociais, determinado pelas relações de produção e mediado por
representações ideológicas:

[...] todo e qualquer grupo exerce uma função histórica de manter ou


transformar as relações sociais desenvolvidas em decorrência das relações
de produção e, sob este aspecto, o grupo, tanto na sua forma de organização
como nas suas ações, reproduz ideologia, que, sem um enfoque histórico,
não é captada. (LANE, 1984, p. 81-82, apud MARTINS, 2007, p.77)

3.3 Militância e Dispêndio de Energia

Em Pé

Continuo em pé
por pulsar
por costume
por não abrir a janela decisiva
84

e olhar de uma vez a insolente


morte
essa mansa
dona da espera

continuo em pé
por preguiça nas despedidas
no fechamento e demolição
da memória

não é um mérito
outros desafiam
a claridade
o caos
ou a tortura

continuar em pé
quer dizer coragem

ou não ter
onde cair
morto

Mario Benedetti, 1967

A militância, ao mesmo tempo que implica uma forma específica de dedicação


a si mesmo, no sentido de desenvolvimento do militante necessário à organização
ao qual pertence (por exemplo, no estudo de determinados temas, no
aperfeiçoamento de capacidades como a oratória para a concretização do
instrumento de agitação etc.), também pode alterar a conformação específica em
que se dava a dedicação a si mesmo que havia anteriormente. Os militantes são
trabalhadores12 (podem também ser estudantes que ou já são trabalhadores
também, ou são trabalhadores em formação), portanto já estão propensos à extensa
jornada de trabalho que influencia o modo de se relacionar com família e amigos e
as possibilidades de se dedicar a si mesmo em atividades físicas, de educação,
cultura, lazer etc. Em cima disso ainda tem-se a perda de espaços de restauração
individual para a atividade militante. Por exemplo, o fim de semana antes reservado
para o descanso é o fim de semana da plenária, da reunião, do curso de formação,
da leitura de textos para formação militante e assim por diante.

12
Existem casos de militantes profissionalizados que são parcial ou totalmente bancados pela
organização para se dedicarem a militância, assim como sindicalistas liberados cujo trabalho pode
também ser a própria atividade militante. Não vamos entrar nesses casos.
85

A alienação impossibilita o desenvolvimento integral dos sujeitos e muitas


vezes o desgaste não encontra correspondência em processos de reprodução,
podendo resultar em diversas formas de deterioração das capacidades vitais e
obstruções na vida dos indivíduos, muitas vezes vividas como sofrimento psíquico
(LAURELL,1982). O debate que estamos tentando realizar é qual a implicação disso
para um trabalhador que ainda dedica pelo menos parte da vida à militância.
Momentos que a maioria da classe trabalhadora dedicam para a reprodução de sua
força de trabalho, esses trabalhadores dedicam à atividade militante. ​Parece ser
possível inferir que esse dispêndio de energia pode se configurar enquanto um
processo crítico destrutivo para a saúde dos indivíduos militantes, sobretudo
quando essa atividade se delineia enquanto uma dupla ou tripla jornada de
trabalho.
É fundamental tomar cuidado para não interpretar disso que a “militância
adoece”. De acordo com Gomes (2017), há muitos aspectos que colaboram para
uma maior ou menor restauração das capacidades vitais, como os tempos para
recomposição, expressos em pausas, mudanças de função, ambientes de trabalho
mais saudáveis e o próprio grau em que o trabalho propicia realização e satisfação
aos trabalhadores. Traçando um paralelo com essa lógica, a militância de fato altera
a restauração das capacidades vitais. Por exemplo, os tempos de recomposição se
alteram pois tem uma nova atividade central ocupando o espaço de momentos de
pausa e descanso. As mudanças de tarefa, de local onde se atua e o próprio sentido
que a militância consegue gerar ou não também são fatores que colaboram para um
maior ou menor restauração das capacidades vitais. De fato, nos parece que o modo
singular da vida dos militantes resulta assim, em determinadas condições de
saúde-doença.

As distintas dimensões da produção e da reprodução social atravessam as


sociedades e seus grupos sociais dividindo-os e agrupando-os em
diferentes arranjos que, ao fim, nos planos particular e singular conformarão
o que se pode denominar como distintos modos de vida (Possas, 1989;
Almeida Filho, 2004). Nesses modos de vida sempre se manifestarão
diferentes conformações das bipolaridades objetivação-apropriação e
desgaste-reprodução. (GOMES, 2017, p. 35)
86

3.4 Matriz dos Processos Críticos

Sobre Dores de Cabeça

É belo ser comunista,


ainda que cause muitas dores de cabeça.

E é que a dor de cabeça dos comunistas


se supõe histórica, melhor dizendo,
que não cede ante as pílulas analgésicas
senão somente quando da realização do Paraíso na terra.
Assim é a coisa.

Sob o capitalismo nos dói a cabeça


e nos arrancam a cabeça.
Na luta pela Revolução a cabeça é uma bomba de relógio.
Na construção socialista planificamos a dor de cabeça
a qual não diminui, muito pelo contrário.

O comunismo será, entre outras coisas,


uma aspirina do tamanho do sol.

Roque Dalton

Ao analisar a determinação do processo saúde doença é fundamental


descobrir quais os processos críticos ou fundamentais da saúde-doença (BREILH,
2006). São os processos críticos na vida dos militantes que determinam os padrões
de desgaste e reprodução desse grupo particular, estabelecendo determinados
modos de adoecer. Parece-nos que a atividade da militância tem vários processos
que são críticos protetores ou promotores da saúde assim como destrutivos; muitas
vezes inclusive sendo um e outro ao mesmo tempo, como já explanado ao longo do
capítulo. Entretanto, Martins e Pasqualini (2015), defendem que para apreender os
fenômenos para além de sua aparência imediata (em sua processualidade,
totalidade e concretude) é necessário desvendar a relação dialética entre as
dimensões singular, particular e universal.

[...] ​a relação entre singular e universal remete à relação entre todo e


partes. O singular é parte de um todo. Esse todo, o universal, se cria e se
realiza na interação das partes singulares. Essas partes não existem por si
mesmas: elas se relacionam entre si e com o todo. Na dialética materialista,
o enfoque sobre a relação entre o todo e suas partes demanda
necessariamente a captação dos vínculos internos entre ambos, o que
significa reconhecer que não só o todo contém as partes, mas, igualmente,
87

a parte (singular) contém algo do todo. Tal princípio é tomado também por
Vygotski (1995) ao analisar os rumos metodológicos trilhados pela
Psicologia tendo em vista superar os limites das abordagens atomísticas e
fragmentárias acerca dos fenômenos psíquicos. O autor argumenta que a
tarefa da ciência psicológica não é decompor o todo em suas partes, mas
destacar do conjunto os traços que conservam a primazia do todo e, por
isso, o caracterizam. O que ele coloca em questão é a necessária
descoberta das relações e dos nexos dinâmico-causais que sustentam a
existência concreta dos fenômenos. (MARTINS; PASQUALINI, 2015, p.365)

Depreende-se, desse modo, que nenhum fenômeno se expressa apenas em


sua singularidade ou universalidade, inclusive o sofrimento psíquico dos indivíduos.
Singular e universal coexistem no fenômeno, se determinam reciprocamente
enquanto polos opostos da unidade dialética, articulados pelo particular13, uma
mediação que permite compreender como se dá a concretização da universalidade
na singularidade pois expressa a universalidade e condiciona o modo de ser da
singularidade (MARTINS; PASQUALINI, 2015).
Em resumo, a expressão singular do fenômeno é irrepetível e revela sua
imediaticidade e especificidades, já em sua expressão universal as conexões
internas e as leis gerais do movimento do fenômeno são reveladas e, por fim, a
universalidade se materializa na expressão singular do fenômeno pela mediação da
particularidade. (MARTINS; PASQUALINI, 2015). Abre-se um parêntese para
mencionar que a psicologia tradicional não tem ultrapassado o limite da análise da
singularidade imediata e aparente, baseado na dicotomia indivíduo-sociedade:

Com isso acaba incorrendo em uma fetichização da individualidade singular.


Essa Psicologia lida com o indivíduo em si mesmo, como uma mônada,
como se a individualidade se explicasse por si mesma. Trata-se da
concepção liberal de homem, que localiza a essência do indivíduo dentro
dele mesmo e o concebe à imagem do Barão de Münchhausen: aquele que
se salva de afundar no pântano puxando a si mesmo pelo cabelo pela força
de seu próprio braço (salvando também seu cavalo, que segurava
fortemente entre os joelhos). A figura do Barão é uma metáfora para a ideia
do homem autodeterminado, descolado das condições sociais, movido por
uma força ou essência interior (Bock, 2000; Lowy, 1987). Essa concepção

13
O particular para Marx é a expressão lógica da categoria de mediação que não é sinônimo de
“meio-termo” ou ponto de equilíbrio que pode dissolver a diferença entre opostos, justamente o
contrário: na lógica dialética, a mediação não é pensada como soma ou equilíbrio, mas processo que
tem por base a diferença e o desequilíbrio (MARTINS; PASQUALINI, 2015). A mediação viabiliza a
relação entre dois polos opostos na medida em que tanto preserva quanto modifica as coisas. Martins
e Pasqualini (2015), dão o exemplo da relação ser humano-natureza em que ambos os polos se
preservam e ao mesmo tempo se transformam pela mediação do trabalho, mas que ocorre sob
modos de produção (condições particulares) diferentes ao longo da história: o universal se especifíca
e se converte também em particularidade, portanto.
88

oculta justamente o fato de que o indivíduo não se reduz a uma


singularidade abstrata à medida que é um ser singular-particular-universal.
Além disso, também podemos constatar na Psicologia tradicional a
naturalização e universalização da particularidade. A Psicologia
historicamente se apoia em uma visão de normalidade que corresponde a
uma condição particular da existência humana, na medida em que se apega
a valores e padrões de comportamento de uma determinada classe social,
tomando-os como pretensamente universais. Uma configuração particular
de família, por exemplo, é alçada à condição de modelo natural e ideal. O
funcionamento psíquico particular do homem da sociedade burguesa é
tomado como expressão de uma natureza humana universal; as crises
advindas dos obstáculos sociais enfrentados pelos adolescentes são
tomadas como características próprias à idade, dentre outros
equívocos.(MARTINS; PASQUALINI, 2015, p.365)

Levanta-se esse debate da dialética singular, particular e universal por duas


razões. Primeiro como base para a compreensão de como a universalidade dos
acúmulos históricos humanos se concretiza na singularidade de militantes
convivendo com sofrimento psíquico (embora não de forma linear ou determinista,
por isso a diversidade de expressões singulares do sofrimento psíquico), com a
particularidade da sociedade capitalista como mediação. Em segundo lugar, porque
a possibilidade de apropriação dos indivíduos das objetivações do gênero humano e
de desenvolvimento enquanto ser genérico está marcada pela alienação. Isso
porque a sociedade, que media a relação entre indivíduo e gênero humano, é
capitalista e determina um abismo entre a vida individual e genérica.
Essa discussão é fundamental no processo de aproximações sucessivas à
singularidade concreta dos militantes convivendo com sofrimento psíquico. O esforço
agora consiste em captar, nesse processo de multideterminação do sofrimento
psíquico dos militantes, aquelas que são essenciais, o que quer dizer captar as
determinações universais particularizadas que se expressam nessa condição
singular, assim como descobrir o universal no particular e ambos no singular.
Faremos isso através da ​Matriz dos Processos Críticos, instrumento de
análise estratégica que enfatiza os aspectos de maior peso na determinação das
condições de vida e saúde da coletividade estudada, nos ​domínios geral, particular
e singular. Também são identificadas ​cinco dimensões gerais significativas para a
análise do processo saúde-doença que se pretende estudar: a vida produtiva (do
trabalho), vida de consumo e cotidianidade, a vida política, a vida ideológica e a vida
89

de relação com as condições naturais. Através da construção da matriz é possível


esclarecer os processos críticos destrutivos e protetores e estabelecer os elementos
que marcam de maneira significativa a origem da deterioração da saúde dessa
coletividade, no caso dos militantes que convivem com sofrimento psíquico (BREILH,
2006).
Algumas ponderações antes de continuar. Muitos dos processos críticos
apontados na matriz dizem respeito ao sofrimento psíquico de forma geral e não só
na sua relação específica com militantes. Além disso, a matriz, como qualquer
esquema, apresenta o limite de isolar e paralisar processos que estão, em verdade,
em relação e movimento. A separação entre dimensões e domínios é tão-somente
um recurso didático. De acordo com Mandel (1978) a abstração do movimento e da
transformação da lógica formal pode ser útil para estudar os fenômenos de maneira
isolada e contínua e do ponto de vista prático, quando as mudanças que se
produzem podem ser desconsideradas por ser de natureza infinitesimal. A dialética
materialista não recusa a lógica formal, como o materialismo recusa o idealismo,
mas a integra enquanto um momento da dialética, como instrumento de análise
quando se abstrai o movimento e a mudança dos fenômenos.
No domínio geral, os processos destrutivos dizem respeito a aspectos mais
estruturais do modo de produção capitalista como sua estrutura e organização. No
domínio particular, estão notados as consequências destes determinantes
estruturais nos modos de andar a vida de certos grupos sociais (categorizado de
acordo com as cinco dimensões elencadas). Por exemplo, como posição na
estrutura produtiva e padrões laborais; desfrute de bens de consumo do grupo,
construções de necessidade, sistemas de acesso, padrões de consumo; capacidade
de criar valores culturais e identidade enquanto grupo; e capacidade deste para
organização no sentido de coisas que reverberam positivamente no grupo; qualidade
das relações com a natureza (BREILH, 2010).
Já o domínio singular diz respeito aos efeitos dos processos nos indivíduos,
como o itinerário típico pessoal na jornada de trabalho, o padrão familiar e pessoal
de consumo, alimentação, descanso, moradia, acesso a serviços e recreação e a
qualidade destes, concepções e valores pessoais, possibilidade pessoal para
organizar ações reprodutores da saúde e itinerário ecológico pessoal (BREILH,
90

2010). Existe uma relação hierárquica entre os domínios e os processos críticos em


que os processos dos domínios particular e individual se originam e subsumem aos
processos mais gerais, entretanto, possuem relativa autonomia pois o processo
saúde-doença não é mecânico, fruto de um determinismo geral.
Em relação às cinco dimensões, ​na dimensão da ​vida produtiva
compartilhada entre toda a classe trabalhadora estão: o aumento da jornada de
trabalho, o que leva ao aumento do desgaste e redução do tempo de reprodução da
força de trabalho; intensificação do trabalho pela absorção de poros “improdutivos” e
mediante envolvimento e cooptação (captura da subjetividade), via “polivalência” ou
multifuncionalidade ou flexibilização do processo de trabalho, isolamento, desgaste
psíquico, sentimentos de raiva, perda de autocontrole, tristeza, desânimo,
insegurança, medo, irritabilidade, angústia; pagamento da força de trabalho abaixo
do valor, pela precarização dos vínculos e direitos trabalhistas, terceirização,
informalidade, o que implica em diminuição das condições de reproduzir a força de
trabalho resultando no aumento do desgaste; automação dos processos produtivos
com a microeletrônica e informática pelas mudanças na composição orgânica do
capital, aumentando a exigência de atenção para monitorar as máquinas e de
velocidade para acompanhar seu ritmo crescente; altas taxas de desemprego,
miserabilidade e piora das condições de trabalho e vida: piorando as condições de
saúde e sentimentos de instabilidade, culpa, desesperança e desamparo; trabalho
alienado como atividade imposta, destituída de sentido e fonte de sofrimento.
(VIAPIANA, 2017)
Em relação à ​dimensão de relação com o ambiente natural e social​​, há a
subsunção do ambiente natural e social à dinâmica de exploração capitalismo e
acumulação implicando, atualmente, uma urbanização que subsume o espaço à
lógica capitalista (VIAPIANA, 2017). Na dimensão da vida política são processos
críticos gerais: a correlação de forças na luta de classes, em que o capital está na
ofensiva e os projetos emancipatórios estão temporariamente derrotados, a classe
trabalhadora e seus instrumentos de luta estão enfraquecidos, e os trabalhadores
consequentemente mais submissos às condições de trabalho desgastantes e à
restrição de direitos sociais, assim como menos propensos a desenvolver
consciência de classe, obstruindo a organização política e transformação da
91

realidade (VIAPIANA, 2017). Também Braz (2011) fala da crise que a esquerda
passa, como uma crise “de legitimidade, de base social, de definição de objetivos
estratégicos e, em suma, de projeto societário” (BRAZ, 2011, p.23), mas que não
deixa de ser uma crise de instrumentos políticos de mediação universal com
capacidade de elevar várias lutas de massas à superação do capitalismo:

A crise que as esquerdas vivem hoje [...] veem-se na vitória ideológica do


individualismo burguês, na desmobilização social e política das grandes
massas trabalhadoras, no desinteresse delas pelas formas coletivas de
participação política e, como desdobramento principal, no enfraquecimento
brutal e generalizado dos instrumentos que dão materialidade às sujeitos
coletivos - as organizações políticas de classe. Mais: a crise é maior
exatamente nas organizações políticas mais importantes para emancipação
dos trabalhadores, ou seja, nos partidos políticos revolucionários. (BRAZ,
2011, p.22)

A descrença no partido como instrumento político-organizativo tem se tornado


uma negação completa do partido como instrumento coletivo de transformação.
Desviando parte significativa dos trabalhadores para a ideologia pós-moderna que
vê nas “formas moleculares de mobilização social, bem como na sublimação dos
particularismos sociais, a alternativa à crise” (BRAZ, 2011, p. 23) e, além disso,
assiste-se ao crescimento de projetos conservadores e de partidos reformistas de
todo o tipo nas últimas décadas.
Na dimensão da cotidianidade​​, percebe-se a redução do tempo de
reprodução da força de trabalho junto da ampliação ou maiores níveis de desgaste,
diminuição de momentos de auto cuidado pessoal, a dificuldade de fruição de
serviços e consumo de bens por conta da pauperização da vida, da localização de
moradia, influenciando também o acesso à cidade e opções de lazer e cultura;
vivência de fracasso, desgaste psíquico, perda de autocontrole, desânimo,
insegurança, angústia, instabilidade, ainda mais em época de crise econômica
cíclica (VIAPIANA, 2017). Quando esse âmbito se junta à militância, muitas vezes
implicando uma outra jornada de trabalho, esses fenômenos se agravam ainda mais.
Por exemplo, o consumo de serviços e acesso à lazer e cultura também se
determina pela capacidade para organizar tempo e espaço para se apropriar das
produções do gênero humano.
Na dimensão ideológica, são processos críticos: o fetichismo da mercadoria
92

e coisificação das relações humanas; o aumento da competitividade e do


individualismo e diminuição da solidariedade, que responsabilizam individualmente
as pessoas por suas condições de saúde, relacionado também à medicalização
social que naturaliza o sofrimento e atribui suas causas ao biológico e individual,
escamoteando suas raízes sociais; a alienação que torna a existência espontânea,
socialmente imposta e aceita, podendo provocar a submissão dos indivíduos.
(VIAPIANA, 2017). A matriz construída teve como base a matriz dos processos
críticos da depressão feita por Viapiana (2017) por suas relativas semelhanças com
a matriz proposta neste trabalho, complementada principalmente no âmbito
particular.
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3.5 O Papel dos Serviços de Saúde e das Organizações Políticas

Quando em teu colo deitei a cabeça, meu camarada,


a confissão que fiz eu reafirmo,
o que eu te disse e a céu aberto
eu reafirmo: sei bem que sou inquieto
e deixo os outros também assim,
eu sei que minhas palavras são armas
carregadas de perigo e de morte,
pois eu enfrento a paz e a segurança
e as leis mais enraizadas
para as desenraizar,
e por me haverem todos rejeitado
mais resoluto sou
do que jamais poderia chegar a ser
se todos me aceitassem,
eu não respeito e nunca respeitei
experiência, conveniência,
nem maiorias, nem o ridículo,
e a ameaça do que chamam de inferno
para mim nada é, ou muito pouco,
meu camarada querido: eu confesso
que o incitei a ir em frente comigo
e que ainda o incito sem a mínima idéia
de qual venha a ser o nosso destino
ou se vamos sair vitoriosos
ou totalmente sufocados e vencidos.

Walt Whitman

Considera-se, finalmente, uma breve discussão relacionada à


diferenciação do papel dos serviços de saúde na proteção à saúde de militantes
revolucionários do papel das organizações políticas. Seria o papel da medicina e dos
serviços de saúde responderem às manifestações da nova realidade dos processos
de trabalho, que se expressam como sofrimento, obstruções na vida de indivíduos e
coletividades, e não às organizações políticas. Entretanto, a medicina e os serviços
de saúde sob o capitalismo servem à reprodução da força de trabalho e ao controle
social, controlam os impactos das contradições sociais na saúde dos trabalhadores
(GOMES, 2017). Os serviços de saúde buscam tornar as pessoas “normais” para
que possam se reintegrar aos processos de produção e reprodução que em última
100

instância foram os próprios determinantes de suas condições de sofrimento. Ainda


assim, quando adoecidos, aos trabalhadores não resta outra alternativa senão
recorrer a estes serviços. Portanto,

Os serviços de saúde têm um papel fundamental em acolher e cuidar dos


indivíduos adoecidos, e todas as iniciativas no sentido de torná-los mais
eficientes, sensíveis ao sofrimento e integrais devem ser fomentadas.
Contudo, a não alteração das condições de vida e trabalho, com a restrição
da abordagem do adoecimento aos serviços assistenciais, tem como
consequência inevitável a persistência e agravamento dos indicadores
epidemiológicos e a ampliação dos serviços de saúde em uma espiral
medicalizadora indomável. (ALMEIDA, 2018, p. 124)

Existe, também, um limite do quanto é possível evitar o sofrimento psíquico,


pela própria forma que a sociedade se organiza e se torna produtora de sofrimento.
Ao mesmo tempo, não parece coerente ou frutífero tratar o sofrimento psíquico dos
militantes como uma questão meramente individual, e sim refletir o papel que cabe
às organizações. No caso de um militante, o sofrimento psíquico não só leva à
estagnação da sua vida pessoal, como também de sua militância. Nessa medida,
abala um projeto coletivo, pois a militância é uma atividade grupal no qual o projeto
de vida individual se insere e se subordina. Esse sofrimento, portanto, é um
problema também político, inserido no bojo das tarefas políticas de uma
organização, mesmo que essas não tenham o papel de compensar ou substituir os
serviços de saúde, até porque mesmo que quisesse não teria condições de assumir
isso completamente.
Portanto, defende-se que a promoção de saúde, que consiste em
contrapor os processos críticos destrutivos e fomentar os processos críticos
protetores nas instâncias geral, particular e singular, seja de responsabilidade
tanto dos serviços de saúde, quanto das organizações políticas, embora cada
qual com suas especificidades e limites. Neste âmbito, o papel das organizações
políticas está na elaboração de análises e práticas comprometidas com a formação e
reprodução de militantes engajados no projeto de transformação radical da
sociedade, sobretudo nesse cenário conjuntural que determina o aumento do
sofrimento psíquico. Se a própria militância enquanto atividade pode ser geradora,
ao mesmo tempo, de saúde e desgaste, a organização política pode dar um aporte
coletivo para estimular os processos críticos geradores de saúde relacionados à
101

militância e, no que depender de sua possibilidade, afrontar os processos críticos


destrutivos. Em resumo, a organização deve estimular a prática de cuidado aos
quadros, trazendo o debate do sofrimento psíquico para a própria ​Política de
Formação de Quadros ​da organização.
Uma política de formação de quadros é a estabelecida pela organização para
desenvolver seus quadros dentro de seus próprios objetivos. E consiste em: ter um
programa de formação teórica interna específica, saber distribuir seus quadros em
tarefas práticas específicas, desenvolver capacidades nesses quadros etc. (BOGO,
2011). É importante colocar o desenvolvimento dos quadros como uma política, visto
que esse desenvolvimento não se dá de maneira espontânea, mas precisa de
mediações da organização. Embora não se negue a importância dos
motivos-estímulo positivos para auxiliar esse sentido geral, e o papel da organização
política em promovê-los quando possível, parece que o papel mais importante da
organização nesse sentido seja a de construir o sentido da atividade da militância:

A atividade que não tem um motivo geral e amplo carece de sentido para o
indivíduo que a realiza. Essa atividade não somente não se pode enriquecer
e melhorar em seu conteúdo, como se torna uma carga para o sujeito. Isso
acontece, por exemplo, com tudo o que se faz por imposição. Por isso,
apesar da importância que têm os motivos-estímulo, a tarefa pedagógica
consiste em criar motivos gerais significativos, que não somente incitam à
ação, mas que também deem um sentido determinado ao que se faz
(LEONTIEV, 2017, p. 50).

Trata-se, no caso, do convencimento da atividade da militância feita pela


organização em seus membros, através da formação teórico-prática dos quadros
com base no marxismo (pois as atividades alienadas determinadas pela organização
social fundada na propriedade privada dos meios de produção consistem nos
maiores obstáculos para a ascensão do nível de consciência dos militantes) e do
estabelecimento de uma linha política, geral e conjuntural, que articule as atividades
individuais e sem a qual fica difícil consolidar e desenvolver o sentido na militância,
por conta da desorientação política. Vão existir limites na geração de sentido já que
os militantes estão sujeitos à alienação em suas atividades tensionando a
consciência à fragmentação, mas o debate que se traz é que nem sempre o
indivíduo tem consciência dos motivos que estão condicionando os seus atos e a
102

organização conscientizá-los possibilita

valorizar os atos e mudar a influência dos motivos determinados. Se um ato


causa uma atitude negativa para o sujeito e seu motivo é consciente, este
se eliminará, e, no caso contrário, quando a atitude é positiva, adquirirá um
caráter mais constante e efetivo (LEONTIEV, 2017,p. 51)​.

É importante a organização conscientemente estimular um fortalecimento do


vínculo político-pessoal de seus membros no sentido de garantir uma mínima rede
de suporte a estes, também. Parece que estimular o pertencimento do coletivo e
fortalecer as relações de camaradagem podem se constituir como importantes
motivos-estímulos ou até mesmos motivos geradores de sentido (quando camaradas
escolhem dividir a vida juntos de uma forma mais intensa), podendo se constituir
enquanto um processo crítico protetor da saúde dos militantes. Ademais, devemos
acumular medidas práticas que favoreçam o processo de reposição/ reprodução de
militantes e debater o grande acúmulo de tarefas e responsabilidades no sentido de
elencar prioridades e uma projeção de quadros mais acertada, ou até mesmo focar
na ampliação da organização para ter mais membros para realizar as tarefas
necessárias.

Considerações Finais

​Através dos aportes do Materialismo Histórico Dialético, da Psicologia


Histórico-Cultural, da teoria da atividade de Leontiev, da Saúde Coletiva e teoria da
determinação social do processo saúde-doença e da epidemiologia crítica, foi
montada a matriz dos processos críticos destrutivos dos militantes revolucionários
em que foram destacadas as determinações centrais desse sofrimento e concluiu-se
que:

1) A militância não pode ser vista de maneira idealista, como se não pudesse
contribuir no sofrimento psíquico.
2) Entretanto, configurá-la enquanto o motivo do adoecimento e sofrimento psíquico
103

dos militantes é um simplismo de análise. Não é “a militância que adoece”, e sim a


totalidade da estrutura social que produz adoecimento na classe trabalhadora.
3) Percebe-se um processo de generalização do sofrimento psíquico em específico
nos trabalhadores. Em momentos de crise econômica cíclica e periódica do capital
isso é especialmente preocupante por conta do aumento da precarização da vida e
trabalho, desemprego, perda de direitos, etc.
4) A militância como qualquer outra atividade sob o capitalismo não está alheia às
contradições sociais, pode tanto ser geradora de saúde quanto de desgaste e
geralmente, produz ambos ao mesmo tempo.
5) O i​mpacto do sofrimento psíquico na dinâmica da estrutura motivacional da
personalidade que vão constituindo a militância enquanto atividade central pode ser
o de alterar esse papel central e organizador da militância, seja abalando essa
centralidade ou perdendo-a por completo, junto à perda do sentido de vida dessa
atividade.
6) No caso de um militante, portanto, o sofrimento psíquico não só pode levar à
estagnação da vida pessoal, como também da militância. Nessa medida, abala um
projeto coletivo, pois a militância é uma atividade grupal na qual o projeto de vida
individual se insere e subordina. Desse modo, o sofrimento psíquico de militantes é
um problema inserido no bojo das tarefas políticas de uma organização e precisa ser
refletido na política de formação de quadros desta.
7) Ao mesmo tempo as organizações políticas não são um grupo de apoio
psicológico, nem podem substituir os serviços de saúde. Assim, a promoção de
saúde, que consiste em contrapor os processos críticos destrutivos e fomentar os
processos críticos protetores nas instâncias geral, particular e singular, é de
responsabilidade tanto dos serviços de saúde, quanto das organizações políticas,
embora cada qual com suas especificidades e limites.
8) É necessário pormenorizar o papel das organizações políticas na elaboração de
análises e práticas comprometidas com a formação de militantes engajados no
projeto de transformação da sociedade, inseridos nesse cenário que determina o
aumento do sofrimento psíquico. Sobretudo seu papel de formação de quadros, de
desenvolver/manter a centralidade e o sentido na militância.
104

9) Cabe a cada organização montar sua própria matriz dos processos críticos
referentes ao sofrimento psíquico de militantes. Focou-se nesta monografia nos
processos críticos destrutivos (expostos na discussão e sintetizados na matriz) e
apenas esboçou-se os processos críticos protetores e algumas medidas possíveis
às organizações políticas, cabe a cada uma trazer o debate desenvolvido até aqui
como parte da política de formação de quadros para suas necessidades específicas,
no sentido de garantir -cada uma a sua maneira e na medida do possível- o sentido
da militância e o estímulo dos processos críticos protetores/ desestímulo dos
processos críticos destrutivos da saúde.
10) Isso, é claro, sem esquecer que também as organizações estão inseridas nessa
sociedade e subordinadas às suas determinações, evitando cair em uma postura, de
um lado, excessivamente voluntarista e, de outro, conformista, como se não fosse
possível fazer nada. Trata-se de tensionar até o limite de suas possibilidades, no
sentido de preservar os militantes, que são a substância e coluna vertebral da
organização.
105

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