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ColégJO
Med1ane,ra
-
ROBERT STAM
HTIN
Da teoria literária à cultura de massa
Tradução:
Heloísa Jahn
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editora ád"a
Para Giba
Agradecimentos:
Ella Shohat
Boris Schnaiderman
Gilda Penteado
Hélio Goldsztein
Heloísa Jahn
Isa Mara Lando
Ismail Xavier
João Luiz Vieira
Lúcia Guimarães
Luiz Antonio Coelho
Paulo César Souza
Série
Temas
Volume 20
Literatura e Sociedade
TEXTO
EDITOR
Fernando Paixão
ASSISTÊNCIA EDITORIAL
Isa Mara Lando
TRADUÇÃO
Heloísa J ahn
PREPARAÇÃO DOS ORIGINAIS
]anice Maria Flórido
REVISÃO
Eliana Antonioli
ARTE
PROJETO GRÁFICO (MIOLO)
Milton Takeda
1
COORDENAÇÃO GRÁFICA
Jorge Okura •
COMPOSIÇÃO E PAGINAÇÃO EM VÍDEO
Maria Alice Silvestre
CAPA
Isabel Carballo
ISBN 85 08 04196 9
1992
Todos os direitos reservados
Editora Ática S.A.
R. Barão de Iguape, 110 - CEP 01507
Tel.: (PABX) 278-9322 - Caixa Postal 8656
End. Telegráfico "Bomlivro" - Fax: 277-4146
São Paulo (SP)
Sumário
Prefácio 7
Introdução 9
A descoberta do diálogo 15
Freudismo: uma crítica marxista 20
O método formal nos estudos literários 22
Marxismo e filosofia da linguagem 29
Problemas da poética de Dostoiévski 36
A cultura popular na Idade Média e no Renascimento:
contexto de François Rabelais 42
De Bakhtin à América Latina 48
De Bakhtin ao cinema 58
O cinema e os gêneros do discurso 68
Dialogismo cultural e textual 72
Bakhtin, erotismo e cinema 79
A pornografia como carnaval ersatz 82
O corpo grotesco e a cultura do riso 86
Carnavais eróticos e carnavalização paródica 89
Rumo a uma translingüística do erotismo 92
Conclusões e perspectivas futuras 96
Bibliografia 103
Prefácio
• Os títulos das obras citadas aparecem sempre em português, numa tradução li-
teral ou com o nome com que foram publicadas no Brasil. (N.E.)
Introdução
1 \
1
1
i
A descoberta
do diálogo
18
d
19
~
!dade que é importante em si.
Bakhtin/Medvedev vê o formalismo russo como parte de
1 um mais amplo movimento intelectual do Ocidente, a saber, o
l
1.
\ questionamento geral das tendências naturalistas da época prece- j
\ dente. A tendência naturalista baseava-se na arte européia, elas-
( sicamente orientada para o realismo, estética que se mostraria
l : provinciana e etnocêntrica quando a Europa entrou em contato
· com as formas antimiméticas das artes africana e oriental. Sobre
! o pano de fundo dessas formas "alienígenas", o realismo euro-
peu passou a ser visto simplesmente como un;i entre muitos mo-
dos possíveis de se construir uma obra de arte.
Em geral, Bakhtin é mais benévolo com o formalismo euro-
peu em suas amplas tendências do que com o formalismo russo
Per se. De acordo com Bakhtin/Medvedev, os formali st~s russtos
·
sofnam da ausência de um oponente respeitave · .. 1 e est1mulan, e.·
0
(É caract enstico
, . de Bakhtin ver o pape1 ena . dor do adversan
_ arn
como parte da natureza dialógica da polêmica.) Como nao er'a""'
· dos a fazer frente a oponentes positivistas articu
ob nga · lados ' cai
· 1•5"'e
. . 1· russo v1t
e1es propnos em desvios positivistas . O forma 1sn10
25
A disputa de Bakhtin/Medvedev
. . com os formalistas nao
~ d _
e
ve nos 1evar a neg11genc1ar certas afinidades entre os dois _
pos. Bakhtin está de acordo com os formalistas quanto ao 1rtu
" . ao
d e que to d a ar t e, mesmo a realista", é construtiva. També
apóia a concepção formalista da forma como tendo um signific:
do ideológico em si mesma, em lugar de ser um mero ornamen-
to ou instrumento. Já que tanto forma quanto conteúdo eram cons-
trutivos, e já que ambos eram ideológicos, os formalistas tendiam
a evitar a dicotomização de forma e conteúdo. Em sua somatória
final, Bakhtin/Medvedev afirma que, globalmente, o formalismo
teve um papel fecundo. Formulou questões cruciais, como a espe-
cificidade da linguagem literária e a relação entre literatura e
não-literatura, mas respondeu-as inadequadamente. Os críticos
dos formalistas, porém, inclusive os marxistas, deveriam reco-
nhecer seu valor como interlocutores provocantes. "Toda ciênci~
jovem", conclui, "deveria dar muito mais valor a um bom adver- /
1
sário do que a um aliado insignificante". -
O pensamento de Bakhtin durante a década de 20 era domi-
nado por uma preocupação preponderante: o desenvolvimento de
uma filosofia da linguagem baseada no dialogismo, o aspecto co-
municativo do discurso. Tanto Freudismo como O método formal
aplicam essa filosofia da linguagem a questões específicas, assim
co o dois outros tr.abalhos -J}HBliGaQ.os_durante esse período: Dis-
curso no éõtidiano e discurso em arje (1926}) Marxismo e filosofia
da linguagem 29). U primeiro ocupa-se da diferença específica
entre comunicação verbal na arte e no âmbito da vida cotidiana.
(Identificamos aqui uma retomada bakhtiniana, concebida em es-
cala mais ampla, da questão formalista da linguagem poética ver-
sus linguagem prática.) No ensaio, que foi publicado sob o nome
de Voloshinov, Bakhtin afirma que a arte é um ato de comunica-
ção. Distingue-se do discurso cotidiano não através de ''violência
contra a linguagem", como apregoavam os formalistas, mas_ atra-
vés de sua relativa independência do contexto imediato. O discur-
so cotidiano depende daquilo que Bakhtin denomina "contexto ~x-
traverbal' '. Bakhtin dá o exemplo de um casal russo, em maio,
olhando pela janela e vendo que estava começando a nevar. Um
dos dois diz: "Bom ... " e o outro não diz nada. O fato de saber-
mos o significado léxico da palavra "bom" não nos ap~oxi~a ??
significado desse ato de falar. A palavra "bom" só adquire signifi-
cado quando relacionada ao campo de visão espacial comum aos
interlocutores (a neve fora da janela), ao conhecimento comum
28
plo, mas tal como existe hoje). De acordo com a orientação sin-
crônica, a lingüística deveria focalizar a Zangue - isto é, 0 siste-
ma da linguagem, com suas unidades básicas e suas regras de
combinação - e não a parole, as emissões concretas possibilita-
das por esse sistema. Bakhtin, como veremos, inverte essa ênfa-
se, diminuindo a importância do sistema da língua como um mo-
delo abstrato, e enfatizando, em seu lugar, a parole, a emissão
o discurso vivido e partilhado por seres humanos em interação sociaÍ.
Em Marxis1no e filosofia da linguagem, Bakhtin oferece um
relato abrangente daquilo que denomina ''translingüística' ', uma
teoria do papel dos signos na vida e no pensamento humanos, e
da natureza do_enunciado na linguagem. A palavra ''translingüís-
tica" poderia equivaler à "semiologia" de Saussure (a ciência
dos signos e dos sistemas de signos), não fosse pelo fato de que
é precisamente a concepção de linguagem de Saussure que Bakh-
tin contesta. Embora concorde com Saussure em que deveria ser
criada uma disciplina que estudasse a ''vida dos signos na socie-
dade", Bakhtin diverge dele em sua concepção da natureza dos
signos e de seu papel na sociedade. Bakhtin considera a lingüís-
tica uma parte do estudo das ideologias, pois '' o domínio da
ideologia coincide com o domínio dos signos". Bakhtin contesta
o que considera o psicologismo de Saussure, situando a ideologia
no interior da consciência individual.[Para Bakhtin, a consciência
só existe na medida em que se concretiza através de algum tipo
de ~~terial serpiótico, s~ja s.9p__ªJQ!Jna de '\ijsctir~o __i_I}te!Ilo':,
seja J!9_p!:_oc~~~~ d~ interaç_ªo v~rbal com_o~~~tro~. Assim, Bakh-
tin descentraliza a consciência individual: "Os signos só podem
emergir e1n território interindividual". Ele desmascara o aprecia-
do mito burguês da autonomia da consciência individual. A cons-
ciência individual é um fato sócio-ideológico: sem seu conteúdo
semiótica, ideológico, ela não existe. A consciência individual,
para Bakhtin, não pode ser usada para explicar seja lá o que
for; ela própria necessita ser explicada a partir de um ponto de
vista sociológico e translingüístico. O estudo das ideologias, por-
tanto, não deveria apoiar-se na psicologia.
Se Bakhtin, porém, oferece uma crítica marxista do psi~olo-
gismo, mostra-se igualmente crítico em relaçã? a um ma1 1s~~~ :x
vulgar, mecanicista, que relega o mundo dos signos e da id~o .
gia a_, uma "superestrutura" determinada pela "base" ec?~omi-
ca. [Qualquer signo ideológico, segundo Bakhtin, ''?ão_~o ~ ~m
reflexo, uma sombra, ..ãa realiãade-. comó também é, ele propoo 1
31
1:
1
gens de Rabelais, para Bakhtin, têm uma natureza não oficial in-
destrutível: "nenhum dogma, nenhum autoritarismo, nenhuma se-
riedade tacanha pode coexistir com elas''. Bakhtin faz o inventário
das várias manifestações populares que se contrapunham à cultu-
ra medieval oficial, eclesiástica e . feudal: a /esta stultorum (festa
dos tolos), na qual os ·equivalentes medievais do Rei Momo reina-
vam sobre a desordem cômica, a Coena Cypriani (Ceia de Cipria-
no), na qual as Escrituras eram totalmente travestidas, dentro de
um espírito carnavalesco, a parodia sacra, na qual liturgias católi-
cas específicas eram parodiadas, o risus paschoJis (riso da Páscoa),
e a "festa do asno" (comemoração cômica da fuga· de Maria para
o Egito, com o asno como figura central). Em todos esses rituais
festivas, a Igreja, uma das instituições mais poderosas da época,
era ridicularizada e .simbolicamente questionada.
No carnaval, todas as distinções hierárquicas, todas as barrei-
ras, todas as normas e proibições são temporariamente suspensas,
estabelecendo-se um novo tipo de comunicação, baseado no '' conta-
to livre e familiar''. O carnaval, para Bakhtin, gera um tipo espe-
cial de riso festivo. Mais dd que uma reação individual a um even-
to cômico isolado, é uma espécie de alegria cósmica, de âmbito
universal, dirigida a tudo ·e â todos, inclusive aos participantes do
carnaval. Para Rabelais e para o espírito carnavalesco em geral, o
riso tem um profundo significado filosófico; é um ponto de vista
partícular sobre a experiência, não menos profundo que a serieda-
de. É uma vitória sobre o medo que torna comicamente grotesco
tudo o que aterroriza. O riso popular festivo triunfa sobre o pâni-
co sobrenatural, sobre o sagrádo, sobre a morte; provoca a queda
simbólica de reis, de nobrezas opressoras, de tudo o que sufoca e
restringe. Em Rabelais, o ·riso assumiu o papel ·de µma nova cons-
ciência, uma consciência crítica, através_da qual o dogmatismo e
o fanatismo eram ridicularizados. A filosofia de Rabelais, para Bakh-
tin, não deve ser procurada nos trechos em que ele parece mais
sério, mas sim quando ele ri com mais vontade.
As imagens rabelaisianas também estão intimamente liga-
das à noção cio banquete, da festa enquanto transferência tempo-
rária para um mundo utópico de prazer e abundância. As ima-_
gens de banquete desempenham um papel fund~mental no ro-
mance de Rabelais, onde praticamente cada página apresen~a a~u-
sões a cómida e bebida. Os primeiros feitos 'heróicos de Panta-
gruel, realizados ainda no berço, estão associados à comida. Gar-
gântua começa com um festim de abate de gado, enquanto 0
45
1
do essa marginalização, este sentido irônico de pertencer a duas
culturas, a sua e à da metrópole, absolutamente central e~ seus
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De Bakhtin
ao cinema
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Linguagem e poder
O cinema e os
gêneros do discurso
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Dialogismo
cultural e textual
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A maioria dos comentadores concorda quanto à importân-
cia central da noção de "dialogismo" no pensamento e no méto-
,1 1
do de Bakhtin. Essa preponderância concedida a apenas uma das
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1
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1 ampla utilização do qualificativo "dialógico" dentro do discurso
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1
crítico, como também em diversos títulos de livros acerca de Bakh-
tin, como O pn·ncípio dialógico (Todorov), ou Bakhtin: ensaios e diá-
, ,
, 'Ii'
1' 11
logos sobre sua obra (Morson). O próprio Bakhtin parece autorizar
1
'1 essa impressão de que o "dialogismo" ocupa posição central em
sua obra, dizendo: "Por toda parte ouço vozes e as relações dialó-
1
0
~akhtin chamaria a: "mu~~il~n~~ge!!1" d~ vida erótica. M~mo
quando ele se propoe ser d1alog1co , ao incorporar as praticas
sexuais do "outro" - por exemplo, ao oferecer cenas lésbicas
_ é geralmente apenas um caso de monologismo mascarado de
di;logismo, desde que as cenas lés bicas são, quase que invariavel-
mente, representadas em vista das imperiosas necessidades do sé-
rio espectador masculino, sob seu olho observador. ("Nenhuma
possibilidade de encenação sexual lhe escapa", escreve Luce Ira-
garay. "Enquanto ele for o organizador, vale tudo.")
Contudo, não deveríamos ser essencialistas em relação à ex-
periência pornográfica. De fato, não existe uma platéia única, mas
comunidades bem diferentes que abordam o pornô a partir do que
Bakhtin chamaria de "ângulos dialógicos diversos". Tom W augh
e outros falaram eloqüentemente sobre a positiva centralidade do
filme pomô na vida da subcultura gay masculina, que ameniza a
solidão ao afirmar: ''Você não está só. Outros fazem o que você
fantasia". Não há espectador unitário, então, mas uma multidão
de posições possíveis para o espectador. Qualquer representação
sexual ganha sua própria "entonação", seu próprio "sotaque so-
cial", para usar a terminologia de Bakhtin, apenas dentro de um
diálogo maior com o espectador, com outros textos e com o con-
texto social e político geral. Um filme pornográfico visto num cine-
ma cheio de homens de negócio a caminho dos bordéis locais não
é o mesmo que visto por um casal ou um grupo de amigos. Nem
gostaríamos de igualar o pornô ao "material sexualmente explíci-
t~",. uma tentativa que não deixaria lugar para as sensibilidades
le,sb1ca e gay dos filmes Holding, de Constance Beeson, ou Chant
d amour, de Jean Genet, ou para a "pornografia feminista" do fil-
me Numéro deux, de Godard e Mieville.
A pornografia como
carnaval ersatz
11
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1
O corpo.grotesco e
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i a ·cultura do riso
r r da t . l. N este ftlme,
. . m it ada
v ere ropica o obJeto do desejo toma a f d
. I . "f' d' orma e
uma me1ancia. sso sign~ 1ca izer que o_ protagonista literalmen-
te faz amor com melancias. Vereda tropical desmistifica a por _
cha?chada ao concede~ à 1!1elancia a função normalmente conce~~-
da as mulheres, em tais filmes. O protagonista seduz a melancia
como se ela fosse uma virgem assustada, deflora-a ritualisticamen-
te, e a sujeita a perversidades sadomasoquistas. Uma série de to-
madas alcança o que é inacessível à mais convencional pornogra-
fia não-vegetal - tomadas de dentro da rósea umidade da própria
melancia. Assim, o filme zomba do desejo do espectador masculi-
no de ver - e apenas ver - tudo. Ele expõe as falsas vitórias da
pornografia contra os tabus visuais. Depois de conquistar os con-
tornos do corpo feminino, as partes pudendas e a vulva, a fálica
câmera toma a última fortaleza numa viagem fantástica bem ao
centro. Mas a vitória é, em todos os sentidos, oca, revelando ape-
nas o totalitarismo do prazer falocêntrico.
Vereda tropical também levanta o problema da identificação
secundária da pornochanchada. A mulher - geralmente mostra-
da como o tímido objeto sexual - é aqui a representante do es-
pectador que pergunta ao protagonista precisamente aquelas ques-
tões que gostaríamos de perguntar. O protagonista, por sua vez,
dificilmente é uma figura ideal de projeção masculina. Enquan-
to os protagonistas da pornochanchada eram geralment_e play-
boys que viviam em apartamentos luxuosos, o protago~1s~a de
Vereda tropical não tem um físico atraente e, como prof1ss10nal,
é um incompetente. Ao contrário do macho-atleta sexual da por-
nochanchada, ele sofre de ejaculação precoce ~esm? .con: s~;~
melancias. Em suma Vereda tropical responde a sohc1taçao 1
plícita do voyeur ma~culino por um objeto sexual f emini~o, ao
oferecer um exemplar ironicamente vegetal de pura alten~ade.
(O governo militar brasileiro, sentindo o insulto ao machismo
91
flme
1
destituído de nudez e amor heterossexual ou ho-
em um a baniu-o enquanto tolerava pornochanchadas muito
mossexu 1, ' _ . )
• xpli'citas de que ele zombava tao ostensivamente.
mais e . .
Salve-se quem puder... a vida (1980), de autona de Jean-L~c
Godard e Anne-Marie Mieville, também usa de. uma coméd~a
osiva para iluminar a natureza da pornografia e do deseJo
corr . , . d d . f d'
masculino. O filme concretiza cenanos ~ eseJo em armas 1s-
tanciadas, freqüentemente grotescas, proJetadas menos para ad_u-
lar O espectador do que fazê-lo (ou fazê-la) ver-se como um obJe-
to cômico. O exemplo mais eficaz dessa estratégia envolve uma
apática "orgia" de qu~t:o pessoas, a~resentando u~ homem de
negócios, uma secretana, uma prostitut~ e um ~ss1stente. Go-
dard e Mieville põem em cena as fantasias sexuais dos homens
de negócios. Mostram-nos a utopia de um tecnocrata - a taylori-
zação da produção sexual. Nessa fantasia utilitária - na qual Je-
remy Bentham conhece Wilhelm Reich -, o sexo é programa-
do e disciplinado sob o pan-óptico olhar da gerência. O chefe pla-
neja o trabalho e estabelece os procedimentos. Como um cineas-
ta, ele designa movimentos precisos e atitudes para seus "ato-
res". Depois de cuidar da imagem, ele transfere sua atenção à
trilha sonora. Cada participante é designado com um ditongo
("ai", "ei") - presumivelmente o significante do desejo incontro-
lável-, que deve repetir a intervalos regulares. Os participantes
da orgia, como trabalhadores numa linha de montagem, são redu-
zidos a sacudidelas, torceduras, gemidos e tremores bem defini-
dos. O sexo de Alphaville é mostrado como uma máquina bem
lubrificada. Os trabalhadores sexuais são insensíveis , sem emo-
ção: O chefe exercita suas prerrogativas patriarcais, mesmo que
basicamente não possa gozar de seu poder. A personagem Isa-
belle "lê" seu rosto e encontra "orgulho obscuro, desespero mor-
tal, arrogância e medo". Tudo isso, nem é preciso dizer, é alta-
n:iente ª?ti_erótico. Não há corpos ondulantes, mas apenas a va-
zia multi?hcação de significantes sexuais em uma espécie de fór-
mula cancatural de uma orgia, uma orgia traduzida em signo.
Rumo a uma
translingüística do erotismo
· No original, trickster tricked; jogo de palavras também com trick (cliente da pros-
tituta). N.T .
>
95
.
d a uma d as quais, por sua vez, condensa uma multida- d 1an e - ca
0 e ento-
·
- 1· d 1 . .
naçoes iga as a sexo, casse e local. A pohfomzação cultu 1t
bem., d ., ra am-
ocorre quan o paises como a França e a Inglaterra "h
d am '' ci'd a d-aos d e naçoes
- antenormente
. sujeitas à sua do ospe- ·
- 1 .1 B mma-
ç~o c? oni~ . oa parte da ~orça e da audácia desses cinemas na-
cionais _denva de sua capacidade de encenar os conflitos e comple-
mentandades de culturas heteroglotas. Muitos filmes brasileiros
demonstram e "encenam" a polifonia étnica, animando a dialéti-
ca cultural existente, por exemplo, entre a cultura erudita euro-
peizada e a cultura afro-brasileira. O pagador de promessas (1962),
de Anselmo Duarte, apresenta uma batalha cultural entre o berim-
bau e o sino da igreja, apreendendo assim, por meio de uma siné-
doque, o conflito mais amplo entre a religião afro-brasileira e a
hierarquia da igreja católica. Glauber Rocha, particularmente, uti-
liza com freqüência fragmentos simbólicos para evocar entidades
culturais vastas: um chapéu de cangaceiro para evocar o bandi-
tismo social do sertão, alguns acordes de música de candomblé
para evocar a religião afro-brasileira, um cocar indígena para
evocar os povos indígenas.
O cinema norte-americano também é potencialmente polifô-
nico. O personagem Zelig, por exemplo, sendo uma polifonia am-
bulante de personalidades étnicas, como que amplifica a polifo-
nia que o rodeia, ao personificar as vozes e ao imitar a aparência
das diversas figuras culturais com as quais entra em contato. A
canibalização aleatória das personalidades culturais de outros,
realizada por Zelig, transforma-o numa verdadeira colagem de
identidades étnicas. Uma análise verdadeiramente polifônica do
cinema norte-americano, porém, não seria sociológica, ou seJa,
não se concentraria na "imagem" social de um grupo dado, e sim
na orquestração contrapontual de vozes étnicas no interior de
um texto. (Tampouco seria acinematográfica, já que essa orqu~s-
tração " passa" pela montagem, pelo trabalho de câmera, pela in-
terpretação, pelas relações som-imagem.) Em muitos filmes nor-
te-americanos, um cenário nova-iorquino - ele próprio um mo?e·
lo fervilhante de heteroglossia - detona uma espécie de polifo-
nia textual. No filme de Paul Mazursky, Moscou em Nova Y~r~
(1984), o personagen1 de Robin Williams fala um inglês "russifi-
99
d O
,, ara depois entrar em interação dialógica com uma série
ca . ' ras
f
· d oquicas,
P étnicas sine , · cad a d.1a, 1ogo reve 1an d o as en t o-
de -igus próprias de um interlocutor cultura1mente d e fºiniºd o: ita
. 1·ia-
naçoeorto-riquenho, russo etc. Uma ana'lº1se b a kh. .
tin1ana tam b em
"
no, P · de um d.1scurso " pseud opolºf
ria atenta para o pengo - . ".
i onico
t
es a . · d ·
o filme ou o comercial de televisão nos quais en~re c~ a oito_ ros-
tos que aparecem um é negro, por exemplo, esta mais relaci~n~-
do à demografia da pesquisa de mercado do que a uma autenti-
ca polifonia, já que a voz negra, nesses casos, em_ geral é d_esp?-
jada de sua alma, privada_ d_e sua cor e entonaçao. A polifonia
não consiste na mera apançao de um representante de um gru-
po dado, mas na criação de uma conjuntura textual onde a voz
daquele grupo possa ser ouvida com força e ressonância totais .
Milhouse: a white comedy, de Emilio de Antonio, oferece um exem-
plo impressionante. Uma montagem de som e imagem apresen-
ta o inexpressivo discurso de Nixon, "I See a Day" , contrapos-
to à vigorosa oração de Martin Luther King "I Have a Dream" ,
mostrando nítida simpatia pela força retórica e o comprometi-
mento político deste último, ao mesmo tempo que ridiculariza a
mediocridade pequeno-burguesa do primeiro.
Conclusão
O presente ensaio não fez mais do que esboçar as possibili-
dades de uma análise bakhtiniana do cinema. Não exploramos,
por exemplo, as implicações das concepções de focalização e " pon-
to de vista'' das relações autor-personagem. Para Bakhtin, pon-
to de vista é mais do que uma questão técnica; é também uma
questão social, política e ética, uma concretização das diversas
potencialidades das relações eu-outro. Bakhtin comparte com
Benveniste um interesse pelos ''trocadores'' pronominais, o jo-
go recíproco de "eu" e "você" no interior do discurso e da histó-
ria, assim como partilha com Brecht uma insistência na necessi-
d~~~ simultâ~ea de identificação e distância, empatia e " exoto-
p~a , a capacidade de ocupar a posição do outro através da ima-
ginação, para depois retomar um distanciamento crítico. Tampou-
c_o falamos da interessante concepção de " cronótopo" de Bakh-
ti~, ou seja, a constelação de características distintivas tempo-
rais e espaciais dentro de um gênero definido como um "tipo
de enunciado relativamente estável". (Vivian Sobshack inicia es-
100