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#12 | julho 2017

distribuição on-line gratuita


cavalodadá Roberta Conceição André Lasak

5 Santiago

10
Evaristo

19 28

Marcus Manuela Nathalie Anna Llurba


Groza Pérgola Lourenço em tradução de

34 40 46
Glória Paiva

56

ensaio a imagem de
fotográfico de capa e as fotos
Marcel ao longo da
Fernandes edição são de Editorial 3 | Lista de autores publicados 80

63 Flávio Freire Sobre as fotos 81 | Créditos e contato 82


N ão foi intencional (ou será que, no fundo, foi?), mas
depois de um ano de pausa nas edições regulares, lan-
çamos um novo número.
Nem todo silêncio é de vazio. Estivemos quietos,
mas estávamos por aqui.
Nos últimos meses publicamos três edições espe-
ciais (duas com autoras mulheres e uma de autoria
negra) que, pelas estatísticas, foram (com folga) as
edições mais procuradas da Parênteses. E isso nos fez
pensar.
É algo a se comemorar (agradecemos muito!), claro.
Mas parece que os números denunciam algo. Existe tão
pouco espaço para as minorias na literatura que qual-
quer iniciativa (até uma pequena e ainda principian-
te como a nossa) é festejada e muitíssimo bem-vinda.
O que devia ser comum, passa por extraordinário.
Ficamos felizes por apresentar essas vozes e dese-
jamos exatamente isso: que elas se tornem comuns
(ainda que belas e extraordinárias).
E agora apresentamos a Parênteses #12, com poe-
mas, contos, traduções e fotografias presenteados por
mais dessa gente generosa.

- os editores
cavalodadá
nem sempre lembro de aparar as unhas
desato mistérios c/ a msm entrega
no céu aberto da boca
o rapto do peixe no bucho da gaivota
a semente se abriu c/ o raio
bonito é o cheiro d cerveja d manhã na rua
luzente 1 esquina sem coveiros neste
cemitério
instintiva fé
d q o universo todo é só
1 tatuagem
na concha preta e pérola
do umbigo d meu bem
veio
cedo
o dom
da rápida mudança
o ritmo q a morte marca
o ritmo q a morte rompe
5
tira a sandália abre a asa
desata o caroço do cadarço
nem sempre é fácil
atravessar a rua
nem disse tchau
fiquei
a boca muda
sei 1 atalho pra tua estrela
reviro os olhos no voo d’abelha
acendo teu nome na cinza do skank
acordo a saudade nossa pena doce
o saci assombrado
brinca de roda no meu olho pasmo
teu umbigo calma cura
veloz e livre danço = 1 grilo
febril e firme sou a terra dura

6
d vz em qd a areia me visita
rasante sacana serpente translúcida
urubus reviram o meio da ilha
longes lobos guarás assoviam
boto fogo no corpo a pé na ponte
astronauta a pé no gargalo do dia
n’areia crispada d’ovos d tartaruga
quem vem ali atrás da nuvem?
teu olho infarta clara perda
se vieres venhas alegre
c/ cervejas

qebrar os qopos ñ qonter mais nada


vender os óqlos leiloar os ossos
encher os bolsos com moedas falsas
qaber o tempo n1 onda n’água
qebrar os qopos ñ qonter mais nada
tanta cidade ñ sei nem mais qontar
resta-me estar a estrelas de distância
andar os anos nessa msm ânsia
molhar os olhos n1 espelho fosqo
varar a noite tua sombra roxa
morder as qoxas boas da alegria
qerer o dia caso o qorpo caiba
vedar janelas mas o sol esqapa
qebrar os qopos ñ qonter mais nada
7
bananeiras
reinam na ribanceira
coalhada de brotos palmas altas
vista alta coisa rara
n1 cidade = a essa
silvos cifras de pássaros
e pessoas 1 citar
sobrevoa

ao Danniel Costa

músico e amigo

em memória

cavalodadá ou Reuben da Rocha ou Ambos (São


Luís, 1984) publicou os livros Miragem no olho
aceso, As aventuras de cavaloDada em + realida-
des q canais de TV (2013), Na curva da cobra nos
cornos do touro no couro do tigre na voz do ele-
fante, O astronauta cruza a rua (2015) e o seriado
em seis fascículos Siga os sinais na brasa longa
do haxixe (2015 - 2016).
8
Roberta
Santiago
não se engane
sentirei sua falta
todos os dias
sentirei nossa falta
todos os dias
mesmo que não haja ao certo dia
que seja tudo luz difusa e sonho
que eu me perca a namorar o céu e então me esqueça
de todos os caminhos
mesmo que ainda estejamos juntos - todos -
mesmo que ainda estejamos todos juntos como sempre
depois de um específico espaço de horas meses semanas anos
vinte e mil quilômetros
sete goles de vinho
sentirei sua falta
porque a cada dia mudas e mudas
e o pouco que fica
sempre me fará lembrar
10
daquele ônibus que não pegamos as coincidências os números
do ponto contínuo de desencontro as datas
daquela tarde todas as lembranças físicas de um amor
quando caminhávamos juntos pela minha rua favorita guardado enterrado em um baú
pegávamos o barco amarelo
rumo ao lugar onde abandonei tantos quando as rugas sobrarem
infinitos irrecuperáveis pedaços meus meu riso sobrar
meio torto meio leve
não se engane quando
mesmo quando eu calar todos nós nos encontrarmos para uma volta memorável por aí
os ponteiros pararem e eu não saber ao certo o que fazer
o silêncio parar com todas as possibilidades que não se cumpriram
quando você tiver que fechar as janelas com toda a saudade acumulada
porque de novo será inverno toda a vida acumulada
vento frio e outras cores de cabelo não se engane
sobre seus braços eu não vou deixar de trazer
e então de repente verão na exatidão do tamanho do meu peito
seus vizinhos passantes o sentimento daquele primeiro dia
seus pés descendo as escadas daquela primeira vez
cervejas de fim de noite não te iludas
quando as roupas mudarem ainda me lembrarei milimetricamente
os lençóis mudarem de como eu sempre coube
o discurso a crença naquele abraço
as relações as paixões ainda saberei desenhar calculadamente
um avião. dez. trinta. em alma de olhos fechados
a voz se tornar mais grave todos os poros
quando as fotos perderem-se estrelas cadentes
as tintas perderem-se pesadelos sustos
as cartas os móveis todas as mãos
11
nuvens rabiscos às vezes a memória vem
estradas de chão em um pedaço presente teu que não me comove
a felicidade mais pura e sincera em nem um aspecto
por trás de todas as toneladas exceto por aquele
de angústia e de medo há muito perdido
meus arquitetados anulados planos
que te magoariam tanto! às vezes a memória vem
meus desejos intrínsecos vazios vai,
sabotados por tanto tempo! para todos
para sempre
às vezes a memória vem mas sempre
em sonho em presente sou eu quem sigo
às vezes ela vem a carregá-la
em um poema uma música um filme um fantasma densa comigo
pedaço teu que já não reconheço metade ela metade eu
perdido pela cidade metade de tudo
do outro lado da rua o que ainda desconhecemos
fingindo ou simplesmente não se importando tolos e limitados
com a minha existência inteirinha e tão cheios
bem em frente a ti bem ao teu lado e tão vivos
– até hoje não sei ao certo quando és visceral ou és ator constante acúmulo
de seus erros – que somos

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no fim que diferença faz
algumas horas a mais
ou uma vida inteira de espera
quando alguns sentimentos simplesmente perduram
atados imóveis eles se mantêm ali
como um céu suspenso
pesado a conter silenciosamente a chuva

hoje acordei como se fosse imediata a partida


como se logo virasse memória
as pinturas os anúncios na parede do prédio da frente
mesmo que ainda seja intacta nesta existência onde tudo é mutável
a certeza sobre a imagem instável
que construo desta janela - até a ausência -
fico às vezes a me questionar
em qual dos sonhos anotei
os teus sinais das costas a formar labirintos
a leveza dos meus dedos passantes pelos teus pêlos do peito
o suor dos dias de verão onde eu não pude estar
- era como se eu estivesse sempre em outro lugar -
mas mesmo assim me lembro
mas mesmo assim há saudade
onde quer que os pés saibam passear

de manhã será viva e clara a lembrança


o sonho também

quando é que nós vamos de novo


todos juntos viajar?
13
colocaram prateleiras na sala de casa
agora as ideias andam alinhadas
coerência dada aos pensamentos vazios de procura
era quando compreenderíamos que às vezes o não estar
traz consigo um significado maior do que a ausência

por onde seus olhos fotografavam


enquanto meu corpo caminhava
pernas pesadas ao meio dia?
quais seriam as minhas cores
se pudesses me ver nua?
- verdadeiramente despida até de nós
daquilo que não nasceu meu -

em qual futuro haveria


então o nosso vivo ponto de encontro?

estas paralelas em mim ainda doem

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mas é claro que há a espera
mesmo enquanto fecham-se as portas
a tarde que parte
tudo muda
repassar o café em percepções agora
sentar-se no corredor enquanto a janela intacta continuamente aberta
cadeiras de praia grita
vento ao caber no vai e vem
dos cabelos pela moldura os olhos em foco eu mudaria até o fim do poema desta vez
usaríamos todos os verbos no pretérito imperfeito é que amanhã é setembro
para que não houvesse então a necessidade hoje a tarde cortou e não há preenchimento sem procura
dos planos futuros neste incompletar-se que nos habita
ainda que se antecipassem as mesmas falas
os sonhos engraçados qual memória
sendo contados me diz
de bom humor exatamente qual
é que eu se repete
tenho sido tão diferente, entende? ou se ata?
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lista nº mil
em maio comprar enquanto as meninas me fazem rir e me desprender de todas
remédios para alergia comprar as listas
protetor solar nulas de obrigações que se perdem voam ventam sob meu
porque maio já é frio mas tem sol - como sempre - corpo que habita
e o sol como sempre mesmo em maio multiplica retilíneo a janela da sala em maio
as sardas as rugas será meu primeiro mês de maio vivendo neste apartamento
(porque não usei protetor solar no verão e quem sabe em maio quem sabe o último quem sabe em maio eu aprenda
eu consiga recuperar a amar de novo
a pele dos vinte e três) depois de uma noite de sono longa e leve
sprays para o nariz eu sempre me esqueço os nomes no amanhecer de uma tarde curta e fria
são importantes porque maio já é frio a poeira já invade mas por hora,
toma todo o sistema respiratório com seus ácaros de outono ainda o retrato oco dos seus dentes e da mata atlântica por trás,
revivendo esta eterna sinusite rinite infinito plano de fundo.
que só se manifesta a partir de maio sua boca gigante ecoando a mesma pergunta de quase anos
em maio talvez atrás:
visitarei as escadas coloridas doídas da cidade onde várias
vezes nasci — onde será que estaremos em abril?
inclusive a primeira
sentirei saudades tristeza melancolia eu, aqui. bem aqui.
lamentarei o sono o suor a sede planejando sobre maio.
molharei a bochecha direita a bordo de um avião você?
e os pés, os dois,
na beira do mesmo oceano atlântico azul e você?
e de novo voltarei
e de novo será tarde longe.
em maio quem sabe te esquecerei completamente
te apagar com uma borracha faber castell capa verde não consigo lembrar em exatidão
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a data precisa da quebra
talvez ela simplesmente permaneça
contínua ainda existindo
em rec memória monocromática em ritmo acelerado que já
não consigo alcançar corre cada vez mais difusa
você seu filme todo seu cheiro todo sua convulsão noturna
suas manias duras e a minha mágoa num rio onde sempre
se alcança o outro lado se chega sempre na outra borda e foi
ali onde você afundou o caiaque
eu fiquei com os pés sangrando a te esperar na outra margem
ali arquitetado chuvoso templo da espera em silêncio em vão
era quando o passear dos ponteiros mais se parecia com uma
facada
rasgando o peito
mas agora
há tempos não me lembro da cicatriz
mas agora
já é quase maio

e o nosso tempo acabou

Meu nome é Roberta e tenho 26 anos. Nasci na cidade do Rio de Janeiro,


onde já não mais habito há seis anos (quatro destes vividos em Porto Alegre
e os últimos dois em Portugal, França, Uruguai, Argentina, Bolívia e Peru).
O ato de escrever caminha comigo intensamente desde os 13 anos, se é que
estou certa. Hoje, em viagem, sinto muitos encontros como fundamentais,
porém transitórios. Transitória também tem sido minha escrita: se num
dia escrevo um poema, o próximo pode vir meses depois. Caminhamos
juntas, com amor de amigas que se amam mesmo à distância. E sou grata
a este amor, amor, amor, à escrita, aos encontros e à vida.
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Conceição
Evaristo
Zaita esqueceu de
guardar os brinquedos
Zaíta espalhou as figurinhas no chão. Olhou demoradamente
para cada uma delas. Faltava uma, a mais bonita, a que retratava
uma menina carregando uma braçada de flores. Um doce per-
fume parecia exalar ajudando a compor o minúsculo quadro. A
irmã há muito tempo desejava o desenho e vivia propondo uma
troca. Zaíta não aceitava. A outra, com certeza, pensou Zaíta, ha-
via apanhado a figurinha-flor. E agora, como fazer? Não poderia
falar com a mãe. Sabia no que daria a reclamação. A mãe ficaria
com raiva e bateria nas duas. Depois rasgaria todas as outras
figurinhas, acabando de vez com a coleção. A menina recolheu
tudo meio sem graça. Levantou-se e foi lá no outro cômodo do
barraco voltando com uma caixa de papelão. Passou pela mãe
que chegava com algumas sacolas do supermercado.
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A mãe de Zaíta estava cansada. Tinha trinta e quatro anos a mãe chegou, Zaíta perguntou-lhe porque o irmão estava tão
e quatro filhos. Os filhos mais velhos já estavam homens. O aflito e se a arma era de verdade. A mãe chamou a outra meni-
primeiro estava no exército. Queria seguir carreira. O segun- na e perguntou-lhe se ela tinha visto alguma coisa. Não, Maíta
do também. As meninas vieram muito tempo depois, quando não tinha visto nada. Benícia recomendou então o silêncio. Que
Benícia pensava que nem engravidaria mais. Entretanto, lá es- não perguntassem nada ao irmão. Zaíta percebeu que a voz da
tavam as duas. Gêmeas. Eram iguais, igualzinhas. A diferença mãe tremia um pouco. De noite julgou ouvir uns estampidos
estava na maneira de falar. Zaíta falava baixo e lento. Naíta alto de bala bem ali por perto. Logo depois escutou os passos apres-
e rápido. Zaíta tinha nos modos um que de doçura, de mistérios sados do irmão que entrava. Ela se achegou mais para junto da
e de sofrimento. mãe. A irmã dormia. A mãe se mexeu na cama várias vezes; em
A menina virou a caixa e os brinquedos se esparramaram, um dado momento assentou-se assustada, depois se deitou no-
fazendo barulho. Bonecas incompletas, chapinhas de garrafas, vamente cobrindo-se toda. O calor do corpo da mãe e da irmã
latinhas vazias, caixas e palitos de fósforos usados. Mexeu em lhe dava certo conforto. Entretanto, não conseguiu dormir mais,
tudo, sem se deter em brinquedo algum. Buscava insistente- tinha medo, muito medo, e a mãe lhe pareceu ter passado a noi-
mente a figurinha, embora soubesse que não a encontraria ali. te acordada.
No dia anterior, havia recusado em fazer a troca. A irmã ofere- Zaíta levantou e saiu, deixando os brinquedos espalhados,
cia pela figurinha aquela boneca negra que só faltava um bra- ignorando a recomendação da mãe.. Alguns ficaram descui-
ço e que era tão bonita. Dava também os dois pedaços de lápis dosamente expostos pelo caminho. A linda boneca negra, com
cera, vermelho e amarelo, que ela havia trazido da escola es- seu único braço aberto, parecia sorrir desamparadamente feliz.
condido da professora. Ela não quis. Brigaram. Zaíta chorou. A Amenina estava pouco se importando com os tapas que pudes-
noite dormiu com a figurinha flor debaixo do travesseiro. De se receber. Queria apenas encontrar a figurinha-flor que tinha
manhã foram para escola. Como o quadrinho da menina-flor sumido. Procurou pela irmã nos fundos do barraco e, desapon-
tinha sumido? tada, só encontrou o vazio.
Zaíta olhou os brinquedos largados no chão e se lembrou da A mãe ainda arrumava os poucos mantimentos no velho ar-
recomendação da mãe. Ela ficava brava quando isto acontecia. mário de madeira. Zaíta teve medo de olhar para ela. Saiu sem
Batia nas meninas, reclamava do barraco pequeno, da vida po- a mãe perceber e bateu no barraco de Dona Fiinha, ao lado. A
bre, dos filhos, principalmente do segundo. irmã não estava ali também. Onde estava Naíta? Onde ela ha-
Um dia Zaíta viu que o irmão, o segundo, tinha os olhos via se metido? Zaíta saiu de casa em casa, por todo o beco, per-
aflitos. Notou ainda quando ele pegou uma arma debaixo da guntando pela irmã. Ninguém sabia responder. A cada ausên-
poltrona em que dormia e saiu apressado de casa.. Assim que cia de informação sua mágoa crescia. Foi andando junto com a
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desesperança. Tinha o pressentimento de que a figurinha-flor que o irmão, o segundo, às vezes comprava para ela. Quem sabe
não existia mais. viera no meio das duplicatas que mãe ganhava da filha da pa-
O irmão de Zaíta, o que não estava no exército, mas queria troa, ou ainda fruto de alguma troca que ela fizera na escola?
seguir carreira, buscava outra forma e local de poder. Tinha um Mas podia ser também parte de um segredo que ela não havia
querer bem forte dentro do peito. Queria uma vida que valesse contado nem para sua igual, a Maíta. A figurinha podia ser uma
a pena. Uma vida farta, um caminho menos árduo e o bolso não daquelas dez, que ela havia comprado um dia com uma moeda
vazio. Via os seus trabalharem e acumularem miséria no dia a que tirara da mãe, sem que ela percebesse. Zaíta por mais que
dia. O pai dele e do irmão mais velho gastava seu pouco tem- se esforçasse, retomando as lembranças, não conseguia atinar
po de vida comendo poeira de tijolos, areia, cimento e cal nas como a figurinha-flor tinha se tornado sua.
construções civis. O pai das gêmeas, que durante anos, morou A mãe de Zaíta guardou rapidamente os poucos mantimen-
com sua mãe, trabalhava muito e nunca trazia o bolso cheio. O tos. Teve a sensação de ter perdido algum dinheiro no supermer-
moço via mulheres, homens e até mesmo crianças, ainda meio cado. Impossível, levara a metade do salário e não conseguiria
adormecidos, saírem para o trabalho e voltarem pobres como comprar quase nada. Estava cansada, mas tinha de aumentar o
foram, acumulados de cansaço apenas. Queria, pois, arrumar ganho. Ia arranjar trabalho para os finais de semana. O primei-
a vida de outra forma. Havia alguns que trabalhavam de outro ro filho nunca pedia dinheiro, mas ela sabia que ele precisava. E
modo e ficavam ricos. Era só insistir, só ter coragem. Só domi- sem que o segundo soubesse, Benícia colocava uns trocadinhos
nar o medo e ir adiante. Desde pequeno, ele vinha acumulando debaixo do travesseiro para ele, quando ele vinha do quartel.
experiências. Novo, criança ainda, a mãe nem desconfiava e ele Havia também o aluguel, a taxa de água e luz. Havia ainda a
já traçava o seu caminho. Corria ágil pelos becos, colhia reca- irmã com os filhos pequenos e com o homem que ganhava tão
dos, entregava encomendas, e displicentemente assobiava uma pouco.
música infantil, som indicativo de indicativo de que os homens A mãe de Zaíta, às vezes, chegava a pensar que o segundo fi-
estavam chegando. lho tinha razão. Vinha a vontade de aceitar o dinheiro que ele
Zaíta andava de beco em beco à procura da irmã. Chorava. oferecia sempre, mas não queria compactuar-se com a escolha
Algumas pessoas conhecidas perguntavam o porquê dela estar dele. Orgulhosamente não aceitava que ele desse nada em casa.
tão longe de casa. A menina se lembrou da mãe e da raiva que Estava, porém, chegando à conclusão de que trabalho como o
ela deveria estar. Ia apanhar muito quando voltasse. Não se im- dela, não resolvia nada. Mas o que fazer? Se parasse, a fome viria
portou com essa lembrança. Naquele momento, ela buscava na mais rápida e voraz ainda. Benícia, ao dar por falta das meninas,
memória como o desenho da menina-flor tinha nascido em sua interrompeu os pensamentos. Não ouvia as vozes das duas há
coleção. A figurinha podia ter vindo em um daqueles envelopes, algum tempo. Deveriam estar aprontando alguma coisa. Sentiu
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certo temor. Veio andando aflita da cozi- qualquer hora. Os componentes dos gru- tudo acabou. Homens armados sumiram
nha e tropeçou nos brinquedos esparra- pos rivais brigavam para garantir seus pelos becos silenciosos, cegos e mudos.
mados pelo chão. A preocupação anterior espaços e freguesias. Havia ainda o con- Cinco ou seis corpos, como o de Zaíta, ja-
se transformou em raiva. Que merda! To- fronto constante com os policiais que in- ziam no chão.
dos os dias tinha de falar a mesma coisa! vadiam a área. O irmão de Zaíta lidera- A outra menina seguia aflita à procu-
Onde as duas haviam se metido? Por que va o grupo mais novo, entretanto, o mais ra da irmã para falar da figurinha-flor
tinham deixado tudo espalhado? Apa- terrível. A área perto de seu barraco ele desaparecida. Como falar também da bo-
nhou a boneca negra, a mais bonitinha, queria só para ele.O barulho seco de ba- nequinha negra destruída?
a que só faltava um braço e arrancou o las se misturava à algazarra infantil. As Os moradores do beco onde havia
outro, depois a cabeça e as pernas. Em crianças obedeciam à recomendação acontecido o tiroteio ignoravam os ou-
poucos minutos a boneca estava destru- de não brincarem longe de casa, mas às tros corpos e recolhiam só o da menina.
ída; cabelos arrancados e olhos vazados. vezes se distraiam. E, então, não experi- Naíta demorou um pouco para entender
A outra menina, Naíta, que estava no mentavam somente as balas adocicadas, o que havia acontecido. E assim que se
barraco ao lado, escutando os gritos da suaves, que derretiam na boca, mais ain- aproximou da irmã, gritou entre o deses-
mãe, voltou aflita. Foi recebida com tapas da aquelas que lhes dissolviam a vida. pero, a dor, o espanto e o medo:
e safanões. Saiu chorando para procurar Zaíta seguia distraída em sua preocu- _ Zaíta, você esqueceu de guardar os
Zaíta. Tinha duas tristezas para contar a pação. Mais um tiroteio começava. Uma brinquedos!
sua irmã igual. Havia perdido uma coi- criança, antes de fechar violentamente a EVARISTO, Conceição: Olhos D’água, contos,

sa que Zaíta gostava muito. De manhã janela, fez um sinal para que ela entras- Rio de Janeiro, Editora Pallas, 2014, pag 71-75.

tinha apanhado a figurinha debaixo do se rápido em um barraco qualquer. Um


travesseiro. Queria sentir o perfume de dos contendores, ao notar a presença da
perto. E agora não sabia mais onde esta- menina, imitou o gesto feito pelo garoto,
va a flor... A outra coisa era que a mamãe para que Zaíta procurasse abrigo. Ela pro-
estava brava, porque os brinquedos esta- curava, entretanto, somente a sua figuri-
vam largados no chão e de raiva ela havia nha-flor... Em meio ao tiroteio a menina
arrebentado aquela bonequinha negra, a ia. Balas, balas e balas desabrochavam
mais linda... como flores malditas, ervas daninhas
Nos últimos tempos, na favela os ti- suspensas no ar. Algumas fizeram círcu-
roteios aconteciam com frequência e a los no corpo da menina. Daí um minuto
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Mansões e puxadinhos
Do alto do morro, os moradores tinham uma visão privilegiada
de uma parte da cidade. O mar brincava que brincava lá em bai-
xo. Suas águas se apresentavam, pela distância, tão serenas, que,
para alguém que não conhecia a geografia da cidade, essa pes-
soa poderia pensar para o mar, lagoa. Mansões ali erguidas abri-
gavam luxuosamente famílias com histórias de poder e abuso
em seus currículos. Uma imensa floresta, falsamente em pre-
servação, esverdeava a área em torno. Porém, apesar do verde
que se espalhava morro acima, um cheiro fétido contaminava o
ar, em determinadas ocasiões. Sem oferecer qualquer previsão
e aviso, o tempo malcheiroso chegava com um odor maléfico
desconsertando a todos. Festas foram muitas vezes interrom-
pidas, pois os convidados, apesar das regras de etiqueta, se reti-
ravam antes mesmo dos banquetes serem servidos, em estado
de quase sufocamento pela podridão do ar. Conta-se que, certa
ocasião, a Sra Cálida Palmital Viamontes e seu esposo, o Sr. Via-
montes ao sofreram um vergonhoso fracasso de um banquete
esvaziado pelo fedor, decretaram, eles mesmos, o fim vida. Os
dois, sete dias depois da abortada festa apareceram enforcados
no próprio quarto do casal. A mulher em cima da cama e o ho-
mem em baixo. Cogitou-se que eles poderiam ter sido vítimas
de um crime. Entretanto, as investigações concluíram que o
casal Viamontes não tinha inimigos políticos (nem religiosos),
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estava em esplêndido estado econômico-financeiro, tinha uma ele e que ele nem sabia. Era tão pequeno o minúsculo cômodo
vida moral exemplar, a mansão tinha um infalível sistema de perdido no meio das árvores, que os vizinhos das residências
segurança e não havia nenhuma população suspeita no entor- chamadas como nobres, não perceberam. Geraldo Guilhermi-
no. Os vizinhos eram todas “pessoas de bem“. no falou do território achado para seu primo Pablo Guilhermi-
Depois do episódio Viamontes, os nababos ali residentes de- no, que falou para a Irma Plácida Guilhermina, que falou para
cidiram empreender uma profunda pesquisa sobre as causas mais 21 membros da família. No final de um ano e meio, mais de
do fétido ar que volta e meia acometia a região. Primeiramente, 83 pessoas moravam em meio à natureza tão pródiga. Os novos
amostras da terra, das plantas e das águas nascentes das mon- habitantes da região quando chegavam construíam um único
tanhas no entorno foram enviadas aos Estados Unidos para se- cômodo, e aos poucos iam erguendo seus puxadinhos. E de pu-
rem analisadas. Concluídos os estudos dos materiais, chegou-se xadinho a puxadinho, foram se aproximando da área dos pri-
a conclusão que a podridão do ar, não era causada por nenhum meiros invasores da natureza, que tinham mandado construir
dos elementos pesquisados. Desconfiados da competência ame- suas aristocráticas moradias, havia décadas. Em três anos, uma
ricana, foram chamados cientistas europeus para investigarem explosão demográfica, já podia ser adivinhada no morro ”Das
no próprio local; a conclusão foi a mesma. O ar irrespirável pelo Asas de Anjo”, um dos cartões postais mais bonito da cidade.
insuportável odor não tinha nenhuma ligação com a natureza E, como o belo é de pertença de todos, os novos habitantes de lá
do entorno. Cientistas indianos e outros provindos de culturas de cima também se quedavam olhando o mar lá em baixo. Nesse
orientais, foram cogitados para tais pesquisas, quantos aos afri- contemplar viviam vários sentimentos. Saudades de um mar que
canos, nenhum foi chamado. tinham deixado para trás, nas terras de seus nascimentos, sauda-
Um dia, não se sabe como, um emigrante vindo de uma re- des dos rios que aguavam os territórios de suas infâncias e apaga-
gião bastante pobre do país, morador na grande cidade, olhou, vam os vestígios dos primeiros gozos tidos, escondidos dos mais
cá de baixo, a área verdejante lá em cima e uma dor aguda bateu velhos da família, saudades de uma terra em que o mar caberia,
em seu peito. Saudades do lugar natal, de sua terra de nascença. se Deus assim o quisesse... E muitos experimentavam um inex-
Ali extasiado compôs mil canções do exílio. Ele, filho sem pátria, plicável sentimento. Uma espécie de dor antiga, milenar talvez.
dentro da própria pátria. O homem só via e sentia o verde, as Uma atração, um angustiante desejo de navegar, de se jogar em
mansões não apareceram em sua visão. E no outro dia, sem sa- águas distantes, não aquelas que podiam ser contemplados no
ber se poderia ou não, subiu o moro e mais morro a pé, sondou novo território, no momento presente, mas outras experimenta-
a área, respirou o ar fresco e decidiu que moraria ali. Meses de- das em vidas passadas. Nesses, a contemplação do mar provocava
pois apareceu o primeiro barraquinho no lugar proibido para um sentimento tal como o banzo.

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E assim viviam os habitantes “Das Asas de Anjo”, um povo os habitantes da mansão, com ajuda dos cientistas (fedologistas,
ignorando o outro. Entre as mansões e os puxadinhos nenhuma fumagiologitas e outros gistas) chegavam a conclusão de que
relação de vizinhança, embora muitos dos que habitavam as ca- algo estranho empesteava o ar. E resolveram contratar pessoas
sinhas especialmente as mulheres, trabalhassem nas mansões para explorarem a área. Porém como eles já haviam gastos ver-
imponentes do lugar. Os homens, muitos também. Eram os jar- bas e mais verbas com os cientistas, decidiram usar os trabalha-
dineiros, os porteiros, os motoristas e os seguranças das casas dores locais, aqueles que já tinham funções juntos a eles. A or-
ao lado. Havia também os offices boys, pequenos aprendizes, dem foi dada, que saíssem e vasculhassem toda a mata. Os dos
que experimentavam seus primeiros empregos nas empresas puxadinhos perplexos e temerosos descobriram então quem
comandadas pelos moradores das grandiosas moradias da área. era vizinho de quem. E antes mesmo de chegarem na metade
Entretanto, essas pessoas nunca se cruzavam fora do trabalho, da expedição recuaram e informaram aos das mansões que não
cada qual seguia seu rumo sem tomar conhecimento umas das tinham encontrado nada, a não ser a moradia deles próprios. A
outras, cada qual vivia em seu quadrado. Um dia, porém, uma guerra então foi declarada e a culpa imputada à população dos
situação provocou o encontro/desencontro entre elas. Assim puxadinhos. Esses, temerosos com a ameaça constante de que
tudo se deu. seriam mandados embora da área, pois havia algo de podre não
Depois de alguns dias em dormência, a exalação mal-chei- ar, mesmo com a convicção de que não eram eles os culpados,
rosa irrompeu repentinamente o ar e veio acrescida de outro foram tomados pela síndrome da assepsia compulsória (SAC).
elemento, uma pesada nuvem de fumaça. E com o passar de Vítimas então de um estado de espírito, um misto de medo e
um poucos dias, a nuvem dançando no ar, se tornou tão espes- de culpabilidade, apesar de serem inocentes, passaram a lavar
sa, que encobriu a visão de todos para a paisagem lá embaixo. exageradamente, noite e dia, seus puxadinhos, seus corpos e
Desespero total. Agora não se tratava somente do incômodo seus pertences. Os das mansões continuaram a insistir em seus
causado pelo fétido cheiro, havia o pior, a ausência da água nos novos motivos de reclamações. Diziam que uma torrente águas
olhos, como se o espaço plano, lá em baixo, fosse só um deserto fétidas descia das casas dos indesejáveis moradores dos puxa-
só. Os das mansões mobilizaram repórteres, políticos, cientis- dinhos. E assim foi durante anos. Um dia, porém, as mansões e
tas (mais uma vez), na vã tentativa de parar o acontecido. Os seus habitantes foram soterrados pelas espumas que desciam
dos puxadinhos movimentaram seus santos, suas orações de fé, do banhar das pessoas e coisas dos puxadinhos, enquanto es-
seus temores diante do inexplicável e a certeza de que alguma ses deslizando nas próprias espumas, como crianças brincando
coisa precisava ser feita. Não poderiam ficar esperando nada de em terreno escorregadio, caíram direto no mar. Dizem que foi
ninguém, pois se ficassem, morreriam à míngua de uma beleza um momento de rara beleza quando as espumas das águas dos
que eles haviam construído o direito de apreciar. Enquanto isso, puxadinhos se confluíram com as espumas das águas do mar.
25
E dizem mais ainda. Dizem que os moradores dos puxadinhos,
até hoje, de dia brincam no mar e de noite voltam para o mor-
ro. E de lá de cima, quando o sol cansado, como eles, começa se
esconder para o preparo de um novo dia, canções e passos rit-
mados são ouvidos. São eles cantando e dançando diante da vi-
são das longínquas águas marítimas. Águas que, vistas de longe,
pode-se supor para elas, lagoa, tal é a aparente calmaria.
EVARISTO, Conceição: Histórias de leves enganos e parecenças, Contos,

Rio de Janeiro, Editora Malê, 2016,pag 53-58.

Conceição Evaristo, ficcionista e ensaísta. Mestre em Literatura Brasileira/ PUC/Rio, Doutora em Literatura Comparada/UFF.
Sua primeira publicação (1990) foi na série Cadernos Negros, grupo Quilombhoje, coletivo de escritores afro-brasileiros de /SP.
Participa das antologias: Schwarze prosa e Schwarze poesie (Alemanha); Moving beyond boundaries: international dimension
of black women’s writing; Women righting – Afro-brazilian Women’s Short Fiction, (Inglaterra), Finally Us: contemporary black
brazilian women writers; Fourteen female voices from Brazil (Estados Unidos); Chimurenga People (África do Sul). É autora das
seguintes obras individuais: Ponciá Vicêncio (romance) traduzido para o inglês, francês e espanhol; Becos da memória (ro-
mance) traduzido para o francês; Poemas da recordação e outros movimentos (poesia) Insubmissas lágrimas de mulheres (con-
tos) Olhos d’água (contos) e Histórias de leves enganos e parecenças. Em 2015, foi agraciada com o Prêmio Jabuti, na categoria
contos. Contemplada com o prêmio Faz a Diferença – Globo, 2016, na categoria prosa.
Tem participação em vários eventos internacionais como convidada, proferindo palestras em diversas Universidades nos
Estados Unidos, no México, em Costa Rica, em Cuba, em Moçambique, em São Tomé e Príncipe, na França, Inglaterra e Áustria.
A produção de Conceição Evaristo é ampla, se inscreve no campo da poesia, da prosa e ainda no ensaio literário. A escritora
escreve sobre assuntos relacionados á educação, gênero e relações étnicas na sociedade brasileira. Tanto a sua obra literária,
como a ensaística tem sido pesquisada por estudiosos de vários campos de conhecimentos.
Além de participar de eventos propostos nos meios acadêmicos, Conceição Evaristo tem marcado a sua presença nos mo-
vimentos sociais, notadamente nos que se relacionam com a luta dos afro-descendentes. Ela tem se apresentado ainda em
vários eventos, contando histórias de sua própria autoria, assim como de outros/as autores/as, buscando inspirar-se na ora-
lidade da cultura afro-brasileira.
26
André
Lasak
Microcontos #01
Cola Quente
Acordou cedo. O calor não deixava ficar mais tempo dentro da
barraca.

Átomo
Sentiu-se um dia tão pequeno que se anulou em si mesmo.

Esteban Sonha
Num acorde é tango. Num acordo usa tanga. Acorda.

Dormente
Sentia-se sufocado. Um trem que para no trilho não sabe o peso
que sente o seu apoio.

Deveras
Havia muitos deles.
28
Mela-cueca
Aquela música incomodava Catarina.

Passagem
Com muita dor, de criança sublimou adulto.

Caminho
Perdeu a razão de existir ao entrar num desvio proibido.

Flor
Sem pétalas desfolhada chorava pólen.

Destino
Um dia ele veio.

País
Sem ele, despátria.

Estado
Deplorável.

Estrume
Pisou aleatoriamente em campo minado.

Coração
Bomba que implode quando desiste.

Conto
Instrumento que se autoescreve.

29
Microcontos #02
Sandice! Conserva
Disse Eva ao enaltecer a verdade. Dona Eulália dormia envolta em panos embebidos em sangue
virgem.
Sanidade
Administrando plenamente de suas faculdades mentais, Serpente
suicidou. Num só movimento, agarra sua presa e apressa-se a inocular
pecado.
Teoria
Um gato dentro de uma pequena caixa fechada com um pote de Rosca
veneno está meio vivo e meio torto. – Dê-me confeitos e tornar-te-ei donnut!

Modos Tesla
Sentada de saia com as pernas abertas, Alice admirava-se no Uma máquina engenhosa que se fragmenta em tempestade.
espelho.
Vigário
Ternos Padre Everaldo adorava aquele conto.
Um preto, um cinza e um azul marinho era tudo o que seu Deo-
Sinuca
dato guardava no velho baú enterrado.
Retirou o chapéu e saiu fazendo bico.
Tempero
Religião
Com sal salgamos o que de doce não se pode comer.
Com um só olhar foi apedrejado por uns e martirizado por
nenhuns.

Sexo
Foi masculino e feminino: hoje fudeu.

Fim
A justificativa para quase todos os meios.

30
Microcontos #03
Semente Delírio
– Você falta com a verdade! Deixei meu cérebro passear no museu enquanto fiquei em casa
assistindo TV.
Poente
Um dia aquele belo dia acabaria. Partido
Se a ideia não é inteira, como a política dará certo?
Sucesso
Era só dele, para desespero e inveja de outros. Jogo
Pedra! Papel! Tesoura! Ganhei!
Tese
Patos são exímios nadadores. Harmonia
Sua falta desanda de músicas a relacionamentos.
Antítese
Patos são exímios voadores. Vento
Acelerou o cata-vento que moveu o barco de Jezebel até seu mais
Síntese
sublime momento.
Patos são bons assados.
Agora
Rãs
A ágora é do povo como a terra prometida é do Hebreu.
Pernas serelepes que dançam até mortas.
Tempo
Pão
Vilão dos adultos, amigo das crianças, justificativa para o relógio.
Expertise milenar no café da manhã.

31
Microcontos #04
Praticidade Direção
O auvorecer era explêndido. O amanhesser era esselço. A ma- Não sabia se seguia o traslado de cima ou o de baixo.
nhã era bonita.
Cerveja
Prazo Um sinal da existência de Deus.
Tudo aquilo que acaba antes do tempo destinado à sua realização.
Circuncisão
Coleira
Doutor Olavo foi expulso do hospital após o Parkinson.
Marinalva não entendia o real significado daquela gargantilha.

Sedentarismo
Numeral
Uma vez meu pai disse que estava fazendo a Dieta Etapa: mais
Faltaram dois segundos para ser o primeiro.
de você em você mesmo.
Natural
Era de sua índole matar recém-nascidos para o café da manhã. Agorafobia
Seu Amadeu morava no porta-malas de seu Fiat 147.
Setembro
Primavera de outonos ao avesso.

Cravo
Insistia que algo daquele tamanho nunca caberia numa lapela.

Trevo
O de quatro folhas é uma aberração genética – logo, seu azar
traz sorte –.
André Lasak. Redator-
Mariola peregrino. Viciado na arte
Doce de suspiros sêxtuplos siameses. da letra. Na construção
das palavras. Na musicali-
Sobrancelha dade das frases. Na remis-
O que sobra ao fecharmos os olhos. são dos pecados. Na vida
eterna. Amém.
32
Marcus
Groza
Caruncho nas tábuas
Não ande de maneira convulsiva
Não materialize as coisas apontando-as com o dedo
Não vá até à praia só pra ver se as ondas dormem
Não tente argumentar que o medo é uma arma de destruição em massa
Não passe noites em claro reescrevendo os velhos malditos poemas
Não presentifique Deus fitando longamente coisas jogadas no chão
Não fume os farelos que sobram no fundo dos bolsos
Não diga que não deve haver clemência com a vítima que internalizou o feitor
Não chame de poda o que outros chamam de devastação

34
Máquinas de lava
já não pronuncio seu nome permanece soando de não sei q arredores-nuvem
rebatizei você de mesmo se sangro em silêncio sem dominar a língua
Evapora mesmo se amenizo vim lhe dizer de quando
o meu nome não sei mesmo se lhe abençoo o verbo delira
mas pressinto arrasado tremendo e o homem
q como você ou não tem rosto
sou até o cerne poderia dizer q duas nuvens dissipa
litorais ouriçadas de insetos metálicos e continua
litros e litros somos não chove junto sempre
sou dois ímãs com defeito mas chove
de algo viscoso juntos sozinho-sozinha
no sentido de sendo um futuro rosto babando goza
e ando também isso e
mas se reparar não só diz sim
chovo digo mistura quando digo
eviscero e um um ova!
não cabemos nem isso sua minha
onde se meça muitos duas-uma
lavo e lava eh emulsão nossa
uma tempestade eh
eh o q podemos na coqueteleira do bar
despoluir a água o garçom nos embala
sem frear a máquina o bar tem uma cara retrô
isso exige fé e engenho uma balada
(fé q Saturno hoje não lhe concede? de mau gosto
joelho nítido q hoje não tenho?) você já está bêbada
a máquina de dissonâncias enquanto
35
Nudez
usar a palavra
ainda sabendo
que feita
qual pele
para ocultar
e encobrir

com a palavra
poder aos poucos
transvestir
atrás da nudez
dos nomes
ousar a palavra

36
Contradança
dançar nu em casas vazias
primeiro sozinho
depois tirar os ossos para dançar
ocupar toda a casa
emular com ombros pelves omoplatas
as primeiras mobílias
os futuros apoios
em que você vem se sentar
e descobre um menino rindo
escondido num canto
quando você se bunda contra o chão
e faz uma cara similar

nesse momento talvez se possa ver de relance


primeiros os escombros depois as ruínas será o dia em que
a umidade da futura ruína que a casa é você - ou eu - talvez se pergunte
vai lhe fazer suar se a saída não é deixar o mel evaporar
você pode usar os intervalos destelhar a casa
para lamber o suor em gotículas esperar que chova uma poção curativa
que brotarão na maça do rosto e nos lábios para amenizar o coração dos homens
mesmo sabendo a viga mestra o céu estrelado ou escrever insistentes enjoativos poemas com a palavra
gravemente comprometidos coração
e serão sim os escombros que ao sorrir coração coração coração
vão mostrar os dentes primeiro até o dia em que nossas línguas falem
e nos darão longuíssimos abraços de musgo um esperanto absurdo
em que todas as palavras digam coração
e não precisemos mais destas
37
Desmantelo
desculpa as mais tímidas ainda adornam
mas eu disse um picadeiro de borracha improvisado
que era desleixado para as suas quedas sem aplauso
de todo modo e promovem sessões de sauna para as baratas
assim ficamos quites
o seu zoológico particular antes que eu soltasse as feras
que você deixou aos meus cuidados dia desses deu um desgraçado quebra-quebra
esqueci de porta aberta um besouro sobrevivente de guerra
o seu cão bicéfalo hoje azeita disse para uma das baratas voadoras
a roda dos carros que ela voava às tontas toda lerda
e late
decepou à unha a outra cabeça mas nem tudo é desmantelo
que você nele tinha implantado há certo consolo
do que foi o seu zoológico
o seu cirquinho de pulgas de menino inda resta um unicórnio
eu ia preservar juro e os gatos
mas caiu no vão entre o trem e a plataforma que agora moram na vizinhança
as pulgas desinibidas fugiram logo e nos visitam de vez em quando

Marcus Groza é poeta, dramaturgo e devoto do céu violado. Autor dos livros de poemas
Do buraco à Poça (Editora Patuá, 2013) e Sossego Abutre (Editora Patuá, 2015). Atualmente,
é doutorando em Artes Cênicas e co-editor da Revista Abate e da Revista Saúva.
38
Manuela
Pérgola
fiz planos
tracei metas
percorri trajetos
mas apenas
tropeçando
caí
em mim.

40
te vi te vi.
por entre as prateleiras da enorme livraria fui traída
meus órgãos internos pela miopia
localizados na altura do estômago e pelos óculos que uso
gelaram. desenfreadamente
a olho nu
meu cabelo se arrepiou nunca
e meu corpo inteiro teria visto
teve vida própria.
te vi.
te vi pensei em tudo o que eu queria dizer mas não diria
e avancei na direção oposta porque já não há mais nada a dizer
com medo do encontro: e as palavras quando alcançam este ponto delicado (de ex-amor)
seria terrível já não têm energia para acender
você me ver (ou ascender).
bem
sem te vi.
você. era uma miragem.

(graças a deus).

41
começo a bordar
sem ter a garantia
de que o fio
irá durar:
amar
é alta costura.

gosto
de observar pessoas
desconhecidas
adivinhar suas dores
pelas marcas de expressão:
cada novo rosto
que miro
se transforma
em oração.

42
algo em mim
se reajusta
às formas
de amar,
algo em mim
agora brilha
sem o peso
da dor diária
que eu estava
acostumada
a carregar:
seguro as pontas
pesadas
do fardo
de ser
feliz.

43
agora
perto dos 30
vou sacando
do que se trata a vida
procuro
não brigar com ela
as nossas discussões
são pesadíssimas
e quase sempre
quem ganha Autora do livro de poesias Fragmensos
é a ordinária (Patuá, 2015), Manuela Pérgola acredita que
resistente as palavras podem curar a angústia irrevo-

sempre gável, os pesares e as mesmices. Escreve por-


que escrevendo encontrou saída; a palavra
cheia
lhe é urgente e porque assim consegue, vez
de razão. ou outra, encontrar um sentido. Gosta de
não deixo ela me levar observar o mundo e as pessoas, de gatos e
como se fosse a dona dessa relação de café.

mas aceito caminhar Manuela já teve poemas publicados


na revista de poesia e arte contemporâ-
de mãos dadas
nea mallarmargens e escreve para o site
abraços públicos de cultura colaborativa Obvious Magazine
e de vez em quando (obviousmag.org/palavra_nossa_de_cada_
mas nunca tarde demais: dia/autor/). Também é colunista do Portal

cedo. Londrinatur (www.londrinatur.com.br/


colunistas/) e, frequentemente, escreve em
seu blog (contosprosaepoesia.blogspot.com.br).
Mora em São Paulo e atua como psicóloga e
psicanalista.
44
Nathalie
Lourenço
Arqueologia
Tínhamos demorado três dias inteiros para esvaziar a casa. Tia
Beta nunca jogava nada fora. Antes, cada superfície estava pre-
enchida por jornais de vinte anos atrás, embrulhos de presente
dobrados para serem usados outra vez, controles remotos de te-
vês e aparelhos de som quebrados há muito tempo. Era traba-
lhoso, não difícil. Quase tudo tinha ido parar nos grandes sacos
de lixo pretos, agora alinhados na calçada. Estávamos cansadas,
eu e minha prima Juliana. Tia Beta não tinha filhos. Essa era
nossa herança: resolver as pendências braçais que os irmãos da
morta já não tinham idade para fazer.
Paramos para tomar um copo d´água, contemplando o re-
cém-criado vazio da cozinha. Enfim começava a reconhecer a

46
casa onde brincávamos na infância, que eu não vistava há pelo sempre dava S. As frutas sabem muito pouco sobre o alfabeto.
menos dez anos. Juliana tinha ido fumar um cigarro no quintal e gritou para
- Você lembra? A gente brincava de caverna debaixo desta eu ir lá ver. A piscina não estava mais coberta. Meu coração
escada. afundou, se escondeu em algum lugar entre o fígado e os rins.
Nós brincávamos em todas as partes da casinha geminada, Não acabou. As tralhas preenchiam a piscina até a borda. Cento
inseparáveis como apenas crianças da mesma idade podem ser. e cinquenta metros cúbicos de lixo. Quis xingar tia Beta. Não o
Fazíamos tudo juntas. Às vezes dormíamos lá, nos sofás que tia fiz. É preciso esperar alguns meses depois do enterro antes de
Beta disfarçava de cama, conversando noite a fora. A vida adul- admitir que às vezes temos raiva das pessoas que amávamos.
ta ainda não tinha nos mostrado que não tínhamos nada em Peguei um novo rolo de sacos de lixo. Ajoelhada perto da bor-
comum, que dali a alguns anos ela me faria a mesma pergunta da da piscina, rasguei o picote, violenta, e esfreguei dois dedos
sobre o meu trabalho e eu a mesma pergunta sobre as crianças na borda do quadrado plástico, tentando achar a abertura. Não
em toda santa festa de família. abria. Por que essas coisas são tão difíceis de abrir? Grunhi e
- Será que ainda tem a laranjeira? amassei tudo. Juliana se agachou e abriu o saco em um movi-
Juliana tinha menstruado primeiro. Ela que começou a falar mento simples. Deixou-o ao meu lado e rasgou outro para si. Eu
sobre meninos, a roubar o batom da minha tia e a recortar atores jogava as coisas para dentro do buraco negro de plástico, sem
de cinema de revistas. Uma vez, Tia Alberta saiu para o quintal nem olhar. A escada da piscina, de metal carcomido, sumia en-
com uma faca e colheu duas laranjas, que descascou com cuida- tre caixas de sapato e torradeiras quebradas. A superfície era
do, sentada sobre um degrau, girando a fruta nas mãos, a faca a feita de bugigangas recentes. Latas vazias de biscoitos amantei-
desenhar uma longa espiral de casca, o cheiro impregnando a gados, cadeiras de praia, geométricos vidros de perfume.
pele. Nos deu a casca para brincar. Nunca jogava nada fora. Conforme eu e Juliana enchemos as barrigas brilhosas dos
A ponta da casca na mão pendia como uma fita. Fomos uma sacos de lixo (salvando pouco, uma caixa com fotos, um castiçal
de cada vez, para não misturar. Rodei a casca sobre minha ca- bonito), atingimos camadas mais antigas de entulho. Um tele-
beça como a tia mandou, gotículas caindo no meu cabelo, o sol fone de baquelite, tapetes enrolados e embalados. Agachadas na
acentuando o cheiro de laranja. Rodei até romper, um naco da beirada, não alcançávamos mais os objetos. Desci pela escadi-
casca voar e cair sobre a lona que cobria a piscina. Nós três de nha, tentando firmar os pés naquele chão desigual. Ia passando
pé, em torno de um pedaço de fruta. Tia Beta sentenciou: é um S, as coisas para as mãos estendidas de Juliana. Um espelho es-
o nome dele começa com S. A brincadeira servia pra adivinhar a curecido, a mesa de dobrar que ela montava aos domingos, o
inicial do menino que gosta da gente. Não tinha ninguém com S balanço que ela tinha pendurado no quintal para a gente, agora
na minha sala. A de Juliana também deu S. Depois descobrimos, um quadrado de madeira envolvido pela corrente, um carretel.
47
Suada, com as mãos negras de poeira, caminhei para a ponta
mais funda da piscina. Alguma coisa cedeu debaixo do meu pé,
o tornozelo se dobrando em um rasgo de dor. Caí com o rosto a
centímetros de um ventilador desbotado, partículas de sujeira
se levantando, pousando na boca e no nariz. Ao lado dele, nos-
sos nomes riscados a caneta em uma caixa. Exausta, empurrei
o pacote para cima. Juliana rasgou a tampa e ia me mostrando,
dali de cima, todas as nossas coisas, dobradas, cuidadas, ensaca-
das. Pijamas de flanela e as xícaras em formato de bichos. Uma
grossa pasta com desenhos. Duas pequenas escovas de dentes.
Fomos esmagadas pelo peso do amor da Tia Beta. Chorei o sufi-
ciente para encher de novo a piscina.

48
@Arroba ou Manual
para Bombar no Insta Perfeito. O vermelho do tomate sobre o prato preto, o ramo de
alecrim pousado na curva macia do pão. As paralelas dos talhe-
O click da câmera do celular corta o tempo em fatias finas, se- res pesados de inox. Levanta o corpo da cadeira, procura a dis-
quenciais. A mesma cara com mínimas variações: aqui, um tância certa que enquadrará, casualmente, uma ponta de guar-
olho meio fechado, nesta outra, a bochecha caída. Uma dobra danapo, o pequeno vaso de flores. O rosto da @mãe se acende
debaixo do queixo. Quem mandou acordar tão cedo? Ninguém na tela, um retrato do tamanho de uma imagem de escapulário,
é bonito às seis da manhã. Dá tempo antes de chegar ao 2S. Ajei- ao lado de uma notificação. Deve ser uma receita de dadinho
ta no ombro a mochila da academia. Prende a respiração, en- de tapioca. Espanta a notificação como uma mosca. Faz a tra-
cara o olhinho da câmera que aparece no espelho, flexiona o dicional, de cima, aquela no ângulo meio de baixo, que dá uma
peitoral. O Schindler desacelera, o @SeuBreno do oitavo afunda grandeza de pirâmide a qualquer pilha de panquecas. Outra
o elevador 2 cm só de pisar dentro dele. Não dá para tirar sel- de cima só para garantir, antes de afastar a tampa do pão com
fie com idoso de regata no fundo. Finge ler o anúncio do con- seus malditos carboidratos. A miniatura da @mãe pipocando
domínio. @SeuBreno desce no térreo, dois andares pra achar o no topo da tela. Uma receita de panetone de frigideira, com cer-
ângulo certo.Porque a câmera demora tanto pra abrir? Uma úl- teza. Enfia os dentes do garfo no hambúrguer, e sabe que a foto
tima enquanto o elevador está parado. A porta faz um rangido está bombando pelo quanto o celular treme. Não o pega. Deixa
quando abre. @DonaGiovanna só diz bom dia, mesmo achando os coraçõezinhos se acumularem. Come tudo o que estava entre
um pouco estranho pegar seu vizinho beijando o próprio bíceps. as duas metades do pão e traz à vida o aparelho. Pai no hospital.
#partiutreino #vaimonstro #nofilter #nopainnogain #bomdia Quarto 112. Kd vc? Kd vc???? #instafood #gordice #vivopraisso
#forçafocoefé #foodie #youarewhatyoueat #foodporn #forkyeah
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O quarto é longo. Compartilhado com uma senhora que res-
sona com um barulho molhado, e uma adolescente de cabelo
bem curto. A @mãe vem abraçar apertado. A irmã dele também
vem logo atrás. Infarto, Como o @vôNey1918. Por isso ele malha.
Para ensinar uma lição à genética. Foi suave, pouco mais que
um susto. Seu velho na cama lê uma Caras comprada na banca
na frente de hospital. Doentes adoram revistas. Não parece ligar
muito pra própria mortalidade, apenas suga um suco de uva de
caixinha. Sabe quanto açúcar tem em 200ml? Um veneno. Pega
na mão do @pai, enquanto as mulheres vão comer qualquer coi-
sa. Estão lá desde as onze da manhã. Fala com o médico, folheia
a revista, sorri com admiração quando a adolescente lhe mostra
o apêndice em um vidro. Baixa a guarda protetora da cama do
velho, pousa o quadril perto do dele e passa o braço por trás do
travesseiro. O melhor é Filtro Clarendon, pra ficar meio pálido
e amarelado. Ele dá um sorriso, mas bem pequeno, e o @pai faz
um joinha, com os catéteres presos no braço. Agora é só taguear.
#superaçao #guerreiro #meupaimeuídolo #forçapai #odeioin-
farto #saudeéoqueinteressa #orestonãotempressa #tamojunto
#instaclinicas
Deu like pra caralho.

50
Reserva deixa o corpo cair sobre a velha cadeira branca, que responde
Teteu

Douglas com um gemido. É um daqueles estádios construídos às pressas,


interrompeu por um segundo o trajeto da batata que levava até dos idos de 2014. Um elefante branco e quadrado que ele está
a boca para assistir Teteu subir as arquibancadas: botava sobre acostumado a ver em outro ângulo, de dentro pra fora, do cam-
o degrau a perna boa, depois as muletas. Jogava o peso do corpo po. Suspende a perna semidobrada e coloca o calcanhar sobre o
sobre as axilas e só então transferia a perna bichada para o nível apoio de braço da cadeira da frente. Nunca foi bom em seguir
de cima. Era um espetáculo penoso e pobre em entretenimen- ordens, exceto as que lhe interessam: as do pai, as do técnico, as
to para Douglas, apesar dele ter se sentado em uma fileira alta do médico e de ninguém mais. Foi o médico que insistiu que
apenas para assisti-lo. Teria que descer para ver melhor o gra- não colocasse peso sobre o joelho por um mês inteiro, ainda que
mado e os jogadores, mas isso podia esperar. Voltou a entulhar ele tivesse testado a ponta do pé contra o chão sem dor, depois
os chips de batata na boca e quebrá-los em movimentos enér- a sola toda, em um passo ou dois. Não ousou mais do que isso.
gicos de maxilar, observando os moleques, pequeninos sobre Agora, a novela da perna chegava ao fim. Seu corpo tinha rejei-
a grama, como se estivesse acompanhando pelo seu VidroTM. tado a cartilagem artificial. Removê-la foi o último ato do orto-
Gostava particularmente do número 7. Pequeno e ágil. pedista antes de passá-lo para as mãos sempre geladas do neuro.
Levantou os olhos do aparelho a tempo de ver Teteu se alçar - O que acha daquele? De tranças no cabelo, número sete.
sobre o último degrau, vestido com abrigo e boné preto, capuz Douglas apontava um dedo oleoso na direção do campo. Te-
puxado sobre o boné, como se pretendesse assaltar uma loja de teu localizou o rapaz. Baixo como ele próprio, mas forte e com
conveniência. Anta. A imprensa não cobre os treinos das cate- habilidade para o passe. Em matéria de rosto não era bonito.
gorias de base, mas Teteu está convencido de que os jornais pos- Quem sabe furando as orelhas. Quem sabe raspando as tranças.
suem uma equipe exclusiva para ele, para falar dele, para anun- O 7 passou a bola para o 9. Um pouco maior, de pernas grossas,
ciar aos fãs desesperados por notícias do seu retorno que hoje ombros largos. Sorriu. Se tem o luxo de escolher seu próximo
ele comeu um pastel e que amanhã atravessará uma rua nos corpo, por que não aproveitar para melhorar seu jogo aéreo,
jardins. Douglas retira a mochila do assento ao seu lado para disputar a sério as bolas altas? Douglas olha atravessado para
seu cliente sentar, não sem antes passar uma mão pelo peito da ele ao ouvir a sugestão. Quanto mais diferente o novo corpo for
camisa fazendo chover as migalhas. Ele se levanta, sentindo as do seu, mais tempo e treino vai precisar para voltar ao campo. O
coxas se descolarem do metal da cadeira e aplica em Teteu um contrato com o time vence em seis meses. O 9 acerta um petar-
abraço que parece devorá-lo inteiro, um abraço um pouco in- do no gol. Outros jogadores se jogam sobre ele, fazendo o rapaz
tenso demais para alguém que ainda está em recuperação. cambalear alguns passos, bêbado de alegria, carregando os ami-
- E aí, meu velho? Viu alguma coisa que gosta? gos nas costas. Foda-se o Douglas. É o 9. Tem que ser o 9.
51
Enquanto Douglas desce para tratar com o técnico do time dele, que seu corpo é bom o suficiente para ser titular, é o cara
de base, Teteu tira o boné e esfrega a testa. Vai pedir uma coleti- atrás do manche que estraga tudo.
va de imprensa para anunciar o corpo novo, agradar os patroci- Há uma caixa de som perto da sua cabeça, de onde se projeta
nadores, acostumar os fãs com o novo rosto. Sempre foi bom de a voz apaziguadora do médico, uma voz adoçada com a genti-
entrevista. As tiradas na ponta da língua. Vai brincar, com tom leza de quem fala com uma criança ou com um cavalo. A voz
de quem reclama, que só porque voltou a ter 19 aninhos (ou se- pede que olhe sem piscar para a sequência de imagens que se-
rão vinte? no máximo vinte) não quer dizer que a sua contagem rão projetadas no interior do tubo. Oceano. Sem o obstáculo das
pra aposentadoria zerou. Vai dizer que o menino é quem está pálpebras, a foto banha as retinas por segundos suficientes até
se saindo melhor na troca - se é que vocês me entendem - e daí começar a esmaecer, tontear. Um azul tão completo quanto o do
mostrar as duas mãos paralelas esticadas, abrir um espaço de seu quarto, recém-pintado de anil e estampas de urso agora que
uns 30cm. Gargalha sozinho no banco. Vai ser uma ótima entre- a barriga da irmã começa a amadurecer, uma misteriosa linha
vista. Aliás, precisa verificar o tamanho antes de fechar negócio. escura traçando o centro do corpo. Daiana é gentil demais para
Com a vitalidade de um garoto e a sua fama, imagine. Seria uma anunciar que sua estadia está chegando ao fim, mas a cada dia

pena. o quarto, já pequeno, é tomado por uma nova aparição, um saco


de cinquenta fraldas descartáveis, o esqueleto de um berço des-
Hermes montado, panos estampados para os mais diferentes usos. Mo-
não gosta de ficar parado. Muito menos nesta maca, dentro de rangos. Os olhos começam a ressecar e os canais lacrimais pro-
um tubo branco, a versão em LED de um útero. A camisola leve duzem uma gota que escorre inútil pelo lado do rosto. Na noite
que veste para os exames - não sabe se de um tecido que imita passada encarou um móbile de estrelinhas que brilhavam no
papel ou de um papel que imita tecido - é insuficiente para es- escuro sem conseguir dormir. Quando viu os dois homens na
tancar a sensação de nudez. Do lado de fora do tubo, uma equi- arquibancada durante o treino teve certeza que sua vez tinha
pe de médicos observa se seu cérebro é bom, se é adequado, se chegado, que sorte, poucos meses antes de completar 21, quan-
acende nas partes certas nas horas certas, se teria cerca do mes- do a chance de se tornar profissional começa a ficar mais e
mo tamanho e peso daquele outro cérebro, se faria sobrar ou mais remota. Deixou tudo que tinha em campo. Sabia que tinha
faltar espaço em determinada caixa craniana. Concentra-se na ido bem e, quando o treinador se aproximou dele no vestiário,
mão, dedão encostado na coxa, usando o máximo da força de achou que saberia também o que ele ia dizer. Ovelhas. O treina-
vontade para não coçar o nariz e tenta não observar o pensa- dor disse a ele para pelo menos fazer os exames, para não ofen-
mento que flutua na borda da consciência, o pensamento que der, não precisava tomar nenhuma decisão ainda. Podia levar o
diz que eles têm razão, que seu cérebro é a parte mais inútil envelope fechado e pensar. Quando abriu, encarou os números
52
como olhava agora para os animais e precisou acompanhar os por mais alguns momentos para descansar. Afasta o pano com
zeros com o dedo para ter certeza de quantos eram. Pequenas estampa de bichinhos que cobre o espelho para se olhar. O psi-
cobrinhas nadavam no ar quando a luz apagou. quiatra que acompanha o irmão recomendou retirar ou cobrir
O homem gordo chamado Douglas sacudiu muitas vezes os espelhos e outras superfícies reflexivas até que ele se acostu-
sua mão antes de, preocupado, providenciar um motorista que me. Está suada. Lava as mãos e o rosto.
o levasse para a casa de Dai. Convidou-o para almoçar no dia Pica os legumes sobre a tábua, braços esticados para vencer
seguinte, tudo pago por Douglas, podia ficar tranquilo, e então a distância que a barriga pede. Quando o irmão chegou em casa
eles discutiriam com calma todos os detalhes. Pegou o rosto de com os exames, semanas atrás, anunciando a decisão, ela perce-
Hermes entre as mãos que cheiravam a fritura e pediu com beu que ele a seguia com os olhos, aguardando o momento em
olhos muito sérios que ele tirasse o resto do dia para descansar. que ela diria que não, que estava sendo tonto, para que desistir
Isso era muito importante. Ele era muito importante. da carreira depois de tantos anos treinando, ainda mais agora
que sabia que seu corpo era excelente a ponto de um craque
Daiana querer comprá-lo, que talvez um time do interior o acolhesse
examina os peixes enfileirados sobre o gelo picado do balcão. caso seu próprio time de formação falhasse em fazê-lo. Naque-
Prateados, com a boca aberta deixando entrever a serrilha dos la noite, ela colocou o volume do VidroTM um pouco mais alto
dentes. Deveria saber escolher um peixe a esta altura, mas lem- que o normal e foi dormir cedo.
bra apenas que devem ter os olhos límpidos, nunca baços. Os O cheiro de peixe e tomate se ergue das panelas quando es-
pés inchados pedem urgência na escolha e a cabeça do bebê cuta a chave na porta e Hermes entra no apartamento acompa-
pressiona a sua bexiga. Aponta para o espécime mais barrigudo, nhado do marido dela. É a primeira vez que o vê de pé desde a
tentando a cara de quem sabe o que faz. cirurgia e ela se dá conta que o corpo de Teteu é menor do que
É hoje que Hermes volta do hospital, dentro de um homem parecia no VidroTM. Alguns pés de galinha no canto dos olhos.
estranho, estranho não, alguém que eles já tinham assistido Tem os passos moles de um nenê desproporcional, mas anda
tantas vezes no VidroTM. Algo de familiar poderia fazer bem, sem se apoiar em Gustavo. O neuro disse que isso é temporá-
a caldeirada que a mãe faz quando vão visitá-la seria perfeita: rio. Não há nada para se preocupar. Compraram a grande Fisio-
quente, substanciosa e com o cheiro de casa. Daiana coloca as BallTM, bastava seguir à risca os exercícios. Quando ele senta,
sacolas sobre a mesa da cozinha e se apressa para o banheiro, se vê a grande sutura em formato de T no topo da cabeça, ainda
movendo com cuidado para não bater a barriga cada vez mais entremeada com fio cirúrgico. Gustavo assume as panelas para
cheia contra as quinas. A urina tem pressão suficiente para res- ela se sentar, pedindo instruções de quando em quando. Ela
soar como uma cachoeira e ela logo termina, ficando sentada mantém os olhos no homem sentado à sua frente, procurando
53
sinais do irmão no meio dos pequenos espasmos que vão via-
jando, um soluço que toma cada vez um lugar diferente, o om-
bro, o olho esquerdo, um lábio que retorce. Reclama dos preços
do mercado, do peso da barriga e quando ele se ri dela, ela ri de
volta, metade cumplicidade, metade alívio.
Com a concha grande, Daiana serve a caldeirada sobre o ar-
roz branco, com bastante alho, como ele gosta. Ela começa a fa-
lar cada vez mais. Sobre o bebê que chutou hoje - talvez siga os
passos do tio no futebol - e sobre um investimento que seria
perfeito para Hermes, um emprego de adulto: uma franquia de
lanchonete, barbada, retorno certo. A colher de Hermes vacila
no caminho para a boca, deixando para fora um quadrado de
cebola que ele limpa com o polegar, um gesto dele, tão dele.
Não há com o que se preocupar.

Nathalie Lourenço é publicitária por profis-


são e paulistana por nascença.
Nunca possuiu um pônei. Seu livro de es-
treia, Morri por Educação, foi finalista do con-
curso Maratona Literária e publicado pela
Editora Oito e Meio
54
Ana Llurba
em tradução de
Glória Paiva

56
A escritora é fruto de seu tempo, de sua geração e das várias
migrações que compõem sua história de vida. Filha de um cata-
lão exilado e de uma argentina da fronteira paraguaia, a jovem
decidiu sair do país motivada seja pelo aborrecimento, seja por
um coração partido. O conselho de um tio a iluminou: Barcelo-
na, uma cidade cosmopolita, mas não muito grande, onde você
“Sinto como se estivesse nascendo, nascendo com os olhos aber- poderá se sentir como em casa.
tos”. Com estas palavras a escritora argentina Ana Llurba, da sa- Hoje, ela hoje se divide entre a vida pulsante do bairro Gó-
fra de 1980, descreve seu momento. Após escrever “nas sombras”, tico e os fins de semana propositalmente isolados na casa de
como ela mesma diz, por muito tempo, a cordobense hoje faz um amigo em Canet de Mar. A cidade na costa catalã é, como
parte da nova geração de escritores estrangeiros que estreiam ela descreve, um “pueblito geriátrico”, onde Ana escreve, lê e
na Espanha e transformam o cenário literário deste país. imagina que os pescadores são “técnicos liliputianos com suas
Seu primeiro livro, Este es el momento exacto en que el tiempo geladeiras de astronautas”, enquanto o mar é um “colossal ma-
empieza a correr, um poemário intimista e cheio de referências mífero anfíbio”.
da cultura pop, chamou a atenção da crítica após receber o Prê- Por sua história de vida, Ana se define linguisticamente
mio de Poesia Jovem Antonio Colinas de 2015. Desde então, Ana como um camaleão. E esta capacidade mutante que assimila as
vem participando de coletâneas, trabalhando em futuras obras cores de seu entorno é também uma característica de sua pro-
e dedicando-se à edição independente com próprio selo, a Ho- dução literária, influenciada pelos gêneros de terror e ficção
nolulu Books, e a oficinas de escrita critiva. científica, as narradoras femininas, os fanzines e por sua pró-
Ana parece se divertir com o fato de ter recebido um prê- pria trajetória.
mio de poesia “jovem”, uma vez que seu livro tem como pano de Eu a conheci em um encontro de escritoras em Barcelona e
fundo uma série de reflexões confessionais impulsionadas pela seu sotaque cordobês me chamou a atenção. Tomamos um café
chegada aos 30 anos: os relógios biológicos, a família, o instinto um dia e ela me presenteou com seu livro de poesias e com uma
materno (ou a ausência dele), as expectativas da vida adulta, a porção de histórias. A seguir, apresentamos cinco poemas de
maturidade e a solidão são alguns do temas que ela aborda em sua autoria em uma tradução inédita para o português.
sua obra. Por Glória Paiva
Minha vida sem mim
Mi vida sin mí na casa de minha mãe
a umidade fez com que o teto cedesse
en la casa de mi madre sobre as caixas de papelão com meus velhos diários
la humedad ha hecho que el techo ceda onde minha irmã gêmea desconhecida
sobre las cajas de cartón con mis viejos diarios a que habita esse lugar quando não estou
donde mi gemela desconocida deixou escrito seu nome em letra cursiva
la que habita este lugar cuando no estoy
eu o soletro e me sinto uma encarregada pela
dejó escrito tu nombre en letra cursiva
manutenção de mim mesma
lo deletreo y me siento una encargada del
que persegue suas recordações escapulindo como
mantenimiento de mí misma
minúsculas lagartixas
que persigue sus recuerdos escabulléndose como
diminutas lagartijas
de uma porta a outra da mente
de una puerta a otra de la mente até tropeçar em um quarto onde minha mãe
hasta tropezar con una habitación donde mi madre divide um canto com minhas bonecas
comparte un rincón con mis muñecas estes cadáveres de crianças mumificados
esos cadáveres de niñas momificados e pinta rosas realistas
y pinta rosas realistas enquanto eu escuto CDs de autoestima
mientras yo escucho cedés de autoestima
e ondas do mar
y olas de mar
ajusto a camisola
me ajusto el camisón
com um fiozinho de pele morta
con un hilito de piel muerta
este mesmo que nos amarra
el mismo que nos ata
a este cuarto con humedades
a este cômodo com umidades
en la soledad sin fin na solidão sem fim
de la vida adulta da vida adulta

58
El espíritu de mi época O espírito da minha época
durante muchos años intenté sustituir mi apellido durante muitos anos tentei substituir meu sobrenome
por el nombre de un fantasma bonachón pelo nome de um fantasma bonachão
lo había encontrado en una nota al pie o havia encontrado em uma nota ao pé de página
de un libro de mi madre de um livro de minha mãe
y al igual que el espíritu de la Navidad e tal qual o espírito do Natal
me lo imaginaba sobrevolando los raros peinados nuevos o imaginava sobrevoando os estranhos penteados novos
de Byron, Hegel y Mary Shelley de Byron, Hegel e Mary Shelley
como si al fin hubiera entendido un antiguo secreto como se no final tivesse entendido um antigo segredo
descubrí al Zeitgeist enredado entre las cuerdas de un bajo descobri o Zeitgeist enrolado nas cordas de um baixo
y en una época de obediencia, sombra y resignación e em uma época de obediência, sombra e resignação
él se convirtió en mi guía espiritual: ele se transformou em meu guia espiritual:
tocaba su instrumento con dos dedos y sólo se manifestaba tocava seu instrumento com dois dedos e só se manifestava
ante los desconocidos que le ofrecieran para os desconhecidos que lhe oferecessem
un souvenir adornado de tantas estrellas brillantes um souvenir adornado por tantas estrelas brilhantes
diminutas bombillas fugaces como las que enmarcan minúsculas lampadinhas fugazes como as que emolduram
el rostro de la virgen María o rosto da virgem Maria
con la palabra generación com a palavra geração
ahora no es más que un mendigo ciego en una esquina agora não é mais do que um mendigo cego em uma esquina
un testigo de lo que sucede uma testemunha do que acontece
cuando no sucede nada quando não acontece nada
y nada e nada
no es la muerte não é a morte
oscura y gloriosa escura e gloriosa
separación del cuerpo y el alma, separação do corpo e da alma,
sino el desencanto mas o desencanto
esa medalla romántica esta medalha romântica
que ahora habita que agora mora
en sus ojos em seus olhos
59
De volta para o futuro
Uma vez viajei ao passado
para evitar que meus pais se conhecessem

Volver al futuro e em uma festa californiana


dei beijos de língua em minha mãe
una vez viajé al pasado como esta espécie exótica de moscas
para evitar que mis padres se conocieran
que depositam seus ovos nos ouvidos das pessoas
y en una fiesta californiana
eu queria fazer um ninho em seu cérebro
le di besos con lengua a mi madre
como esa especie exótica de moscas assim ela deixaria de ser apenas minha mãe
que depositan sus huevos en los oídos de la gente para se tornar uma célebre poeta lésbica
yo quería anidar en su cerebro com olhos cor de febre, beleza convulsiva
así ella dejaría de ser solo mi madre
e uma fragilidade disfarçada por excêntricas
para convertirse en una célebre poeta lesbiana
encenações
con ojos color fiebre, belleza convulsa
y una fragilidad disfrazada con excéntricas puestas que declamaria elegias à sua filha não nascida
en escena perante um público de lagartos
que declamaría elegías a su hija no nacida que abandonariam sua pele no banheiro
ante un público de lagartos
e lhe encheriam a banheira com vinho barato
que abandonarían su piel en el baño
e elogios
y le llenarían la tina con vino barato
y elogios e frases laudatórias
y frases laudatorias e poodles mortos embalsamados com azeitonas
y caniches muertos embalsamados con aceitunas negras
negras
e comida requentada em pratinhos de plástico
y comida recalentada en platitos de plástico
e eu não gostei nada
y no me gustó nada
eso de viajar en el tiempo desta história de viajar no tempo
en clase turista em classe turística
60
Una historia personal del miedo Uma história pessoal do medo
piensas que no corres peligro
você pensa que não corre perigo
aunque nunca dejarás de ser esa niña
embora nunca deixará de ser esta menina
que solía dibujar un coche solitario en una carretera
porque los demás ya habían chocado que costumava desenhar um carro solitário em uma autoestrada
o que una vez soñó que un tornado porque os demais já haviam batido
se la llevaba con su casa ou que uma vez sonhou que um tornado
y la aventura no empezaba al aterrizar
a levava junto com sua casa
sino cuando aprendía a sobrevivir
e a aventura não começava ao aterrissar
adentro de él
mientras todavía cree mas quando aprendia a sobreviver
que se hace invisible dentro dele
cada vez que cierra los ojos enquanto ainda acredita
que se torna invisível
cada vez que fecha os olhos

Glória Paiva, 34 anos, é uma jornalista e tradutora brasileira que vive no sul
da Itália. Ela é filha da PUC Minas e mestre em Jornalismo Literário pela
Universidade Autônoma de Barcelona.
61
Marcel
Fernandes
Manchete
I.
o poema
rompe a atmosfera terrestre
há vida fora da terra

II.
após o poema romper a atmosfera terrestre
foi visto boiando no arquipélago de colón
nenhum agente literário conseguiu contato

63
Teoria X
a cosmologia pode explicar o nascimento do universo do mesmo jeito que explica o controle da gravidade sobre nossos corpos
até o ponto de colidirem
a partir da colisão
nada se explica
o fenômeno ainda é desconhecido pelos cientistas
quando dois corações colidem propagam tsunamis gravitacionais
nem beuys previu em terremoto no palácio tamanha energia propagada
os padrões vibratórios são frenéticos
astros se formam a partir da agitação das partículas
oscilações de luz ocorrem nos olhares com muita frequência e o movimento dos corpos no espaço se tornam imprevisíveis

Ponto de não-retorno
absurdos matemáticos
distorções entrópicas
não há linguística avançada que o descreva
fórmula física que o explique
matemática que o calcule
a velocidade da luz por ele é descartada
não há velocidade possível para libertar-se do seu campo gravitacional
chegando em seu horizonte de eventos
qualquer matéria será influenciada por sua força significante
haverá fricção significativa
o corpo será propulsionado ao ponto de não-retorno
essa ação fantasmagórica a distância
foi denominada pelos cientistas de amor
e figura entre os grandes mistérios da humanidade
64
Buraco negro
a culpa é desse medo é desse breu nos olhos
esse monumento caído repertório superficial
achando que é bandido armado girando sem eixo
desejando estourar nossos tímpanos a culpa são dessas
gargarejando obscenidades pedras brilhantes
desfazendo sonhos como castelos de areia virtudes escorrendo do peito
a culpa é desse peito frio a culpa é dessa coragem desvairada
dessa inércia momentânea melancólica prateleira vazia
estúpida a culpa é dessa comoção eterna
a culpa é desse pesadelo íntimo dessa gente bicho
que nos arranca as cicatrizes dessa consciência inexistente
que de nossas memórias a culpa é dessas bandeiras
faz sanfona territórios do poder
e se ergue completamente vazio maléficas fábricas de precipícios
a culpa não é nossa em corações desavisados

65
Céu
o azul predomina
não sei o motivo da delicadeza da cor
talvez seja a forma que preenche meus olhos
e todos os castelos lá fora
lembro do trajeto do vento
costeando as folhas
arrancando as casas do chão
talvez seja o chão
ou a substância magnética do beijo
ou a curva dos rios
a curva é uma boa aposta
o leito em que pousa o corpo
sinto que faltam pilares
verbos conjugados em alta tensão
hábitos tão pesados quanto
o espaço infinito no qual se movem os astros
ou esse abraço que me esmaga

66
Marcel Fernandes (1986) nasceu e resi-
de em Antonina/PR. Desenvolve uma
pesquisa visual sobre a relação entre
realidade e ficção, permeando as artes
visuais e a literatura (ou pensa que de-
senvolve). Já realizou diversas exposi-
ções individuais e coletivas, tendo desta-
que a exposição Poesia Agora no Museu
da Língua Portuguesa, em São Paulo;
Begira Photo Festival, em Durando; e,
Artistas Emergentes do Brasil, no Espacio
Menosuno, em Madrid. Tem publica-
dos seus poemas e fotografias em algu-
mas revistas literárias nacionais e in-
ternacionais, como Escamandro, Gueto,
Mallarmargens, Parênteses e as portu-
guesas Enfermaria 6 e Piolho. É gradu-
ado em Administração com Habilitação
em Gestão Portuária pela Universidade
Estadual do Paraná e Especialista em
Organizações Públicas pela Universidade
Federal do Paraná. Escreve no blog ht-
tps://marcelfernandes.wordpress.com.
Não sabe cozinhar, não arruma a cama
que dorme e não gosta de creme de lei-
te. Gosta de ler, voar e cuidar de estrelas
carentes.
Lista de autores já publicados
Adelaide Ivánova, Alan Kramer, Ana Guadalupe, Ana Salek, Alfredo Fressia, Alvaro Posselt,
Ana Kehl de Moraes, Ana Martins Marques, Ana Rüsche, André Oviedo, Andréa Del Fuego,
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Fotógrafos
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Kristiane Foltran, Marcel Fernandes, Mariana Caldas, Pedro Ferrarezzi, Raphael Bernadelli,
Rodrigo Sommer, Thany Sanches, Vanessa Carvalho.
Sobre as fotos

Flávio Freire é fotógrafo de histórias, do cotidiano, da vida na cidade. Dos cinzas às cores. Faz da
câmera fotográfica não só uma ferramenta de trabalho, mas sim uma extensão do próprio braço
e continuação dos seus olhos, onde transpassa sua visão de tudo ao mundo. Infinito, assim como

Foto- André Lucas -


a fotografia, busca mesmo o menor facho de luz e revela seu esplendor.”

Choc Documental
Edição
Bruno Palma e Silva
Lubi Prates

Fotos
Flávio Freire

Projeto gráfico
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