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UFPI – UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ

PRPPG – PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO


CCHL – CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E LETRAS
PPGHB - PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA DO BRASIL
MHB – MESTRADO EM HISTÓRIA DO BRASIL

JOSENIAS DOS SANTOS SILVA

PARNAÍBA E O AVESSO DA BELLE ÉPOQUE:


cotidiano e pobreza (1930 – 1950)

Teresina – PI
2012
1

JOSENIAS DOS SANTOS SILVA

PARNAÍBA E O AVESSO DA BELLE ÉPOQUE:


cotidiano e pobreza (1930 – 1950)

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em


História do Brasil, do Centro de Ciências Humanas e Letras, da
Universidade Federal do Piauí, como requisito para a obtenção
do grau de Mestre em História do Brasil.
Orientador: Professor Dr. Denílson Botelho de Deus.

Teresina – PI
2012
2

Ficha Catalográfica elaborada pela bibliotecária


Christiane Maria Montenegro Sá Lins - CRB/3 - 952

S586p
SILVA, Josenias dos Santos
Parnaíba e o avesso da belle époque: cotidiano e pobreza (1930-
1950)/ Josenias dos Santos Silva. – Teresina: Universidade Federal do
Piauí, 2012.
120f.
Orientador: Denilson Botelho de Deus
Dissertação (mestrado) – Universidade Federal do Piauí, Centro de
Ciências Humanas e Letras, Programa de Pós-graduação em História do
Brasil.

1.Parnaíba - História. I. Deus, Denilson Botelho de. II. Universidade


Federal do Piauí. Centro de Ciências Humanas e Letras. Programa de Pós-
Graduação em História do Brasil. III. Título.
CDD 981.222
3

JOSENIAS DOS SANTOS SILVA

PARNAÍBA E O AVESSO DA BELLE ÉPOQUE:


cotidiano e pobreza (1930 – 1950)

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em


História do Brasil, do Centro de Ciências Humanas e Letras, da
Universidade Federal do Piauí, como requisito para obtenção
do grau de Mestre em História do Brasil.
Orientador: Professor Dr. Denílson Botelho de Deus.

APROVADA EM ____/____/ _______

BANCA EXAMINADORA

________________________________________________
Prof. Dr. Denílson Botelho de Deus – UFPI
Orientador

________________________________________________
Prof.ª Dr. ª Teresinha de Jesus M. Queiroz – UFPI
Examinadora

________________________________________________
Prof. Dr. Aldrin Moura de Figueiredo – UFPA
Examinador

________________________________________________
Prof. Dr. Pedro Vilarinho Castelo Branco – UFPI
Suplente
4

À memória de Lucinda Ernanina dos Santos,


minha avó e eterna guardiã.
5

AGRADECIMENTOS

Encontrei muita gente de bem ao longo do caminho, pessoas a quem sou grato
infinitamente e a quem dedico este trabalho.
Aqueles que me abriram as portas de suas casas e me abrigaram em algum instante
em Teresina, do qual não posso esquecer de Sônia e Jordan. Obrigado.
Ao Professor Cleto Sandys, um grande incentivador e alguém que me convenceu que
eu conseguiria. Obrigado.
Ao Professor Francisco Nascimento, um vitorioso. Alguém que sempre procuro
imitar enquanto exemplo de trajetória acadêmica e de vida. Devo a ele, além da confiança que
depositou em mim, o interesse pelo personagem Jessé da obra Beira Rio Beira Vida, o qual
acabou dando o mote a este trabalho. Professor, catei minhas borboletas.
A todos os professores do PPGHB da UFPI, especialmente aqueles que em sala de
aula compartilharam suas experiências e saberes comigo. E não posso esquecer também da D.
Eliete, sempre solícita e responsável. Obrigado a todos.
Aos meus dois grandes amigos e companheiros nessa viagem, Sérgio e Erasmo.
Perdemos a conta de quantos quilômetros percorremos para que tudo isso se efetivasse. Não
foi fácil em instante algum. Mas, pelo acostamento ou ziguezagueando entre os caminhões da
vida, prevaleceu sempre o bom humor, a vontade de que tudo desse certo – e acima de todas
essas coisas a Amizade (e também a “audácia” do Erasmo – que sempre fez questão de usar
as “duas” pistas e os “dois” acostamentos da estrada; e o “pé pesado” do Sérgio – que me fez
entender na prática para que serve o cinto de segurança, além de me provar que a lei de
Newton estava errada: dois corpos ocupam o mesmo lugar no espaço). Amigos, quantas
histórias! Sem vocês eu não teria conseguido. Obrigado.
Ao meu orientador, Professor Denílson Botelho. Primeiro, pelo profissionalismo e
competência em que conduziu todo esse processo de orientação. Nunca me faltou nada e
sempre me senti mais seguro depois de suas intervenções. Suas indicações de leitura, sua
pronta resposta às minhas necessidades, seus comentários (ou “dicas”) sempre responsáveis e
baseados na experiência, foram imprescindíveis para que tudo acontecesse a contento.
Aprendi muito e só tenho a agradecer por tudo o que você me ensinou. Segundo, tive a sorte
grande de ter em você mais que um orientador. Mesmo estando (a maioria das vezes)
trezentos quilômetros de distância, sempre fui tocado pela sua sensibilidade. Você sempre
demonstrou ser alguém que sabe se colocar no lugar do outro, entender as dificuldades e
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limites de cada um. Desde a troca do horário e dia de uma disciplina até a protocolação de um
documento (coisa a que orientador algum jamais foi obrigado) você fez por mim. Atos que
podem parecer simples, mas só quem se vê incapaz de atender a urgência dessas ações sabe o
que significam. Enfim, o espaço é curto demais para demonstrar o quanto sou grato por tudo o
que você fez por mim. O quanto me ensinou com sua paciência, ética e exemplo de vida.
Tenho certeza que seus próximos orientandos irão reconhecer isso e farão de tudo para estar a
altura de sua Amizade e Profissionalismo. Obrigado.
Sou também infinitamente agradecido a Mary Serejo e a Margareth Serejo. Pessoas
maravilhosas que me deram o apoio necessário para eu poder cumprir as exigências do
Programa. Da Professora Mary, agradeço a confiança e a ajuda. E de Margareth, sou um
eterno devedor. Não tenho palavras suficientes para demonstrar a gratidão que nutro pelos
seus gestos quase maternais. Desde as lições de matemática no ensino fundamental, passando
pela abertura de sua biblioteca à minha curiosidade de adolescente, até o apoio e ajuda sempre
constante para o meu crescimento enquanto pessoa e profissional. “Madrinha”, obrigado!
Meus familiares sempre foram a razão de tudo isso. Minha mãe Angela, uma mulher
guerreira que na simplicidade sempre consegue me surpreender com gestos de incondicional
amor e dedicação. Obrigado mãe. Meu pai Francisco, meu herói, meu maior professor. Em
sua sabedoria de homem simples e sem leitura me ensinou que nem toda a sabedoria do
mundo está nos livros. Pai, obrigado pelo seu exemplo, amor e dedicação. Minha irmã Arlete,
que agora está de volta em nossas vidas. E uma princesinha chamada Noemi, meu maior
motivo de alegria nestes últimos dias. Jamais esquecerei da minha avó Lucinda, guardiã e
guia dos meus caminhos. E Maria, minha companheira, cúmplice e fiel amiga. Aquela que há
muito tempo suporta minhas manias, entende meu jeito, sofre e ri comigo. “Mô”, nunca
desista dos seus sonhos. Eu te amo!
A esses em particular – e a todos que torceram por mim – dedico meu esforço e
minhas vitórias.

Obrigado.
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Os ninguéns

As pulgas sonham em comprar um cão, e os ninguéns com


deixar a pobreza, que em algum dia mágico de sorte chova
de repente, que chova a boa sorte a cântaros; mas a boa
sorte não chova ontem, nem hoje, nem amanhã, nem
nunca, nem uma chuvinha cai do céu da boa sorte, por
mais que os ninguéns a chamem e mesmo que a mão
esquerda coce, ou se levantem com o pé direito, ou
comecem o ano mudando de vassoura.

Os ninguéns: os filhos de ninguém, os donos de nada.


Os ninguéns: os nenhuns, correndo soltos, morrendo a
vida, fodidos e mal pagos:
Que não são embora sejam.
Que não falam idiomas, falam dialetos.
Que não praticam religiões, praticam superstições.
Que não fazem arte, fazem artesanato.
Que não são seres humanos, são recursos humanos.
Que não tem cultura, e sim folclore.
Que não têm cara, têm braços.
Que não têm nome, têm número.
Que não aparecem na história universal, aparecem nas
páginas policiais da imprensa local.
Os ninguéns, que custam menos do que a bala que os mata.

(GALEANO, Eduardo. O Livro dos Abraços, 2010, p.71)


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LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1 – Legenda: Planta organizada pelo Departamento de Repartição de Terras de

Parnaíba, 1927 .................................................................................................................. 28

Figura 2 – Legenda: Residências em estilo eclético na Rua Grande, Parnaíba, meados do

século XX ......................................................................................................................... 32

Figura 3 – Legenda: Chalés ecléticos na Rua Grande, meados do século XX................ 33

Figura 4 – Legenda: Detalhe da Praça da Graça em dia de intenso movimento, Parnaíba,

meados do século XX ....................................................................................................... 34

Figura 5 – Legenda: Festa no Cassino 24 de Janeiro, meados do século XX ................. 36

Figura 6 – Legenda: Grupo das “Bolonezas” no carnaval de Parnaíba, 1931................. 38

Figura 7 – Legenda: Cine Éden, Parnaíba, meados do século XX.................................. 39

Figura 8 – Legenda: Fotografia aérea do Porto das Barcas, meados do século XX........ 49

Figura 9 – Legenda: Armazém da firma Bessa & Cia, Porto das Barcas, Parnaíba,

meados do século XX ....................................................................................................... 51

Figura 10 – Legenda: Os Estivadores, Porto das Barcas, meados do século XX............ 53

Figura 11 – Legenda: Travessia do Igaraçu, Parnaíba, meados do século XX ............... 55

Figura 12 – Legenda: O Vareiro, Parnaíba, meados do século XX ................................ 55

Figura 13 – Legenda: O Carregador d´água, Parnaíba, meados do século XX............... 58

Figura 14 – Legenda: As Lavadeiras, Parnaíba, meados do século XX.......................... 60

Figura 15 – Legenda: Anúncio do Sabão Moraes no Almanaque da Parnaíba, 1941 ..... 61

Figura 16 – Legenda: Entre o Cais e as Borboletas, Parnaíba, meados do século XX ... 62

Figura 17 – Legenda: Mano Velho na capa do Almanaque da Parnaíba, 1982 .............. 68


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RESUMO

Este trabalho tem como espaço de investigação a cidade de Parnaíba (PI) entre os anos de
1930 e 1950. O recorte representa um momento singular da história econômica, social e
política da cidade: é a sua belle époque. Do ponto de vista socioeconômico, o período foi
marcado pelo auge da economia extrativa no Piauí, o que possibilitou em Parnaíba a
emergência de uma camada urbana enriquecida com o comércio de exportação e importação,
bem como o alargamento das distâncias entre pobres e ricos naquela sociedade. Desta forma,
este estudo se propôs a identificar e analisar os lugares assumidos pelos sujeitos que ficaram à
margem do processo de modernização urbana e social, desnaturalizando – sempre que
possível – as razões desta marginalização. É a partir deste viés que examinamos a emergência
de uma modernização urbana na cidade de Parnaíba no recorte estudado, compreendendo o
que foi e como foi a belle époque parnaibana. A análise em questão contempla variada gama
de fontes que vai dos relatos dos cronistas sociais, passando pela iconografia do período até a
literatura.

PALAVRAS CHAVE: Parnaíba. Belle Époque. Pobreza Urbana. Sociabilidades.


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ABSTRACT

This work has the research area of the city Parnaíba (PI) between 1930 and
1950. The cut represents a unique moment in economic history, social and urban policy: is
its belle epoque. From a socioeconomic perspective, the period was marked by the height of
the extractive economy in Piauí, which allowed for the emergence of Parnaíba a
layer enriched with urban trade export and import, as well as extending the distance between
rich and poor in that society . Thus, this study was to identify and analyze the places that
were assumed by people outside the process of urban modernization and social denaturalized -
whenever possible - the reasons for this marginalization. It is from this bias we examined the
emergence of an urban modernization in the city of Parnaíba in crop studied, understanding
what it was and how was the belle epoque parnaibana. The analysis in question covers wide
range of sources ranging from reports of social chroniclers, from the iconography of
the period to the literature.

KEYWORDS: Parnaíba. Belle Epoque. Urban Poverty. Sociability.


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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .............................................................................................................. 11

1 A CIDADE – Parnahyba Norte do Brasil ................................................................. 16

1.1 Integrar é preciso..................................................................................................... 16

1.2 Parnaíba, o empório comercial do Piauí ................................................................. 21

1.3 No tempo do “progresso” era assim........................................................................ 25

2 A VIDA – (sobre)vivências no cais e outras artes..................................................... 46

2.1 Todo cais é uma saudade de pedra.......................................................................... 46

2.2 Os trabalhadores do rio ........................................................................................... 50

2.3 Biscates, porcos d´água e mata cachorros............................................................... 64

3 A BEIRA – entre o cais e as borboletas ..................................................................... 75

3.1 A cidade partida ...................................................................................................... 75

3.2 Beira Rio Beira Vida............................................................................................... 82

3.3 Três pós-tais de Parnaíba ........................................................................................105

CONSIDERAÇÕES FINAIS.........................................................................................111

FONTES E REFERÊNCIAS.........................................................................................115
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INTRODUÇÃO

Parnaíba não é uma palavra fluvial a martelar-me a


memória. / É uma cidade inteira dentro de mim,
latejando em mim. (CANDEIRA FILHO, Alcenor.
Memorial da Cidade Amiga, 1998, p. 144).

Assim se expressou o poeta parnaibano Alcenor Candeira Filho sobre algo que lhe
pungia intimamente. O trabalho que ora se apresenta nasceu também a partir de
martelamentos, latejos e inquietações. Viver o cotidiano de Parnaíba atualmente é estar
sempre em contato direto com as marcas deixadas pelo seu passado próximo. O velho cais
ainda está lá, bem como o rio que observa e segue silencioso o fluir do tempo; o casario
eclético; a “Maria fumaça”; os enormes armazéns do porto; as ruas e marcas visíveis de suas
sucessivas intervenções. Enfim, a cidade surge num continuo (re)fazer-se, carregada dos
vestígios do que fora um dia – uma história esperando ser contada, (re)inventada a partir da
curiosidade do historiador e do seu “estranhamento” no presente. Esta pesquisa emergiu
enquanto uma tentativa de escavação desse passado e conta episódios da sociedade
parnaibana ocorridos entre os anos de 1930 e 1950, período que se convencionou chamar aqui
de belle époque. O recorte compreende o momento de maior efervescência comercial e
cultural da cidade de Parnaíba no século XX e teve como pano de fundo o auge da economia
extrativa no Piauí.
Como se sabe, a belle époque foi um período característico de fins do século XIX
até as primeiras décadas do XX, marcada principalmente pelas conquistas materiais e
tecnológicas da sociedade capitalista, pelo triunfo da sociedade burguesa e pela própria
euforia em relação ao progresso. Ela foi fruto de uma maior interação entre os mercados
internacionais que foram gradualmente globalizados a partir do advento de novos meios de
transporte e comunicação. Dessa forma, “modernidade” e “progresso” foram termos
amplamente utilizados para se referir aos ganhos materiais do período e serviram em grande
medida como contraponto àquilo que era considerado velho, atrasado ou obsoleto em relação
às conquistas naquele início de século. Assim, enquanto expressão urbana e cultural, a belle
époque se caracterizou pela introdução de novos estilos arquitetônicos, literários, artísticos,
bem como de novos e sofisticados inventos como o cinema, a bicicleta, o automóvel, o avião,
etc., que irão influir na vida cotidiana das cidades, tanto como imperativo de moda quanto
como forma de expressão de uma burguesia urbana e cosmopolita.
13

A expressão belle époque neste trabalho refere-se principalmente a concepção de


que não somente os principais centros urbanos do Brasil como, por exemplo, Rio de Janeiro e
São Paulo, foram atingidos pelos ideais e modelos construídos durante esse período, mas que
outras cidades de menor porte – não necessariamente atendendo ao recorte correlato à belle
époque européia, tampouco com o mesmo grau de intensidade daquela – também sofreram
mudanças na sua paisagem urbana e social influenciadas pelo que acontecia tanto na Europa
quanto nas próprias metrópoles do país. Portanto, belle époque aqui deve ser entendida como
a expressão da vida moderna, ou seja, como o momento de implantação dos sinais e
instrumentos do progresso e da civilidade, como período de modernização urbana, de
introdução de novos espaços de sociabilidade, consumo e interação pública.
Situada geograficamente em posição privilegiada, a Vila de São João da Parnaíba foi
fundada oficialmente em 1762. Desde então, foi um empório próspero e atraente para o
contato comercial com várias regiões do Brasil. Seu pendor cosmopolita a colocou sempre a
par dos movimentos sociais e políticos que marcaram o século XIX brasileiro, como por
exemplo, a Independência, a Confederação do Equador e a instauração da República. Em
1844 a Vila da Parnaíba foi elevada oficialmente à categoria de cidade e passou – a partir do
projeto de integração da Província – a ser o principal empório comercial do Piauí atraindo
gente com interesse de enriquecer a custa do comércio e de outras atividades que ajudaram a
compor as bases da economia piauiense. Em meados do século XX, favorecida pelo boom da
economia extrativa no Estado, Parnaíba iniciou seu segundo ciclo de urbanização – desta vez
marcado pelo adensamento populacional e pelos interesses de uma elite que passou a exigir
do poder público uma atenção especial no sentido de oferecer as comodidades que já se viam
nas grandes metrópoles do país. Nesse período, Parnaíba pôde contar com inúmeras casas de
representação comercial das mais importantes firmas nacionais e estrangeiras, o que lhe deu
um papel estratégico para a inserção do Piauí na rota do comércio internacional.
Este contexto de crescente expectativa em relação ao “progresso” repercutiu no
cotidiano da cidade a partir da introdução de novos modos e modas incorporados por parte
daquela elite comercial. A cidade passou por reformas que – além de apresentar os sinais do
conforto material buscado pelas famílias enriquecidas no comércio de exportação – alteraram
sua configuração espacial e arquitetônica. Dessa forma, o mobiliário das residências, o
vestuário, os perfumes, a arquitetura dos equipamentos urbanos e as principais novidades que
desembarcavam nos portos de Parnaíba e Amarração acabaram instrumentalizando as ideias
de “progresso” e “modernidade” que pairavam nos discursos oficiais sobre a cidade. Assim, a
euforia social e o surgimento de novas formas de interação pública foram acompanhados pelo
14

alargamento das distâncias entre ricos e pobres naquela sociedade. Fato que evidenciou não só
a existência de fissuras nas imagens construídas e positivadas em torno da belle époque
parnaibana, mas que caracterizou principalmente o protagonismo de uma minoria em
detrimento de uma maioria composta por pobres urbanos, que passaram a habitar as áreas
periféricas da cidade.
Neste sentido, o ponto de partida deste trabalho está estreitamente relacionado com
estas imagens conflitantes produzidas na “bela época” da cidade. O meu viver em Parnaíba, as
minhas experiências enquanto observador atento da sua transformação urbana, bem como
meu interesse diante de inúmeras histórias que ainda hoje compõem o imaginário daquela
cidade me fez lançar mão desta pesquisa no intuito de problematizar e refletir sobre esse
período – que para muitos ainda é motivo de “ufanismo” e tem o poder de imprimir certo
“saudosismo” em relação ao seu passado. Por exemplo, não raro se ouve na fala dos mais
velhos, principalmente daqueles que puderam acompanhar o auge das exportações na cidade,
expressões que remetem a um período de riqueza e “progresso”. A expressão “Parnaíba já
teve”, quase sempre evocada em relação a algo material ou a alguma prática que deixou de
existir em virtude do declínio econômico da cidade, plasmou no imaginário popular uma
representação muito viva do “que foi” Parnaíba naquele período. Por outro lado, isto também
instiga neste historiador certa desconfiança diante da naturalização destas falas, tendo em
vista o próprio caráter contraditório do passado.
Assim, este trabalho procurou responder a certas questões que foram emergindo a
partir de leituras e também diante da própria condição histórica da sociedade parnaibana que,
ao que parece, engessou seu passado ao escolher repetir quase sempre as mesmas versões,
com os mesmos personagens e lugares - versões estas muitas vezes conformadas com o
próprio interesse de uma minoria. O acesso a esse passado nos abre possibilidades de
buscarmos – através dos questionamentos lançados sobre a realidade – novas interpretações
para aquilo que muitas vezes figura como processo natural e a-histórico, como algo dado e
irremediavelmente inacessível à compreensão. Segundo Sidney Chalhoub, “[...] a história nos
instiga a pensar o social – passado, presente e futuro – como processo tecido na contradição e
na luta, e não como ‘anestesia’, como ‘mesmice’, isto é, como ponto de chegada necessário de
um caminho linear, harmônico e teleológico.” (CHALHOUB, 2001, p.347). Dessa forma,
espera-se que esta pesquisa possa desnudar o cotidiano desta cidade atravessada por relações
de poder, de violência e preconceitos.
15

No primeiro capítulo, A CIDADE – Parnahyba Norte do Brasil1, procuramos


contextualizar historicamente a cidade de Parnaíba, situando mais especificamente o recorte
tomado para a pesquisa. Nele, buscamos compreender como o projeto de integração da
Província do Piauí – desde a mudança da capital até a navegação do rio Parnaíba – favoreceu
especialmente a cidade de Parnaíba a transformando em um dos principais centros comerciais
do Piauí. De como a cidade – a partir de seu desenvolvimento comercial, resultante da
expansão da atividade extrativa – passou também por uma modernização de sua infraestrutura
urbana e social. Neste capítulo problematizamos – principalmente a partir dos cronistas
sociais – o que foi e como foi a belle époque parnaibana, apresentando as novas
sociabilidades introduzidas a partir da ampliação das redes de comércio e a consequente
emergência de uma burguesia comercial ávida por novidades. Enfim, neste primeiro momento
apresentamos a cidade e o seu “centro” econômico, social e urbano.
No segundo capítulo, A VIDA – (sobre)vivências no cais e outras artes, procuramos
analisar e discutir a importância do rio Parnaíba como ponto de convergência tanto de riqueza
para uns quanto de sobrevivência para outros. Aqui, buscamos apresentar através da análise
iconográfica os trabalhadores do rio, ou seja, aqueles sujeitos que trabalhando no cais do
porto ou mesmo diretamente nas águas do Igaraçu se constituíram em personagens
importantes naquele contexto, embora vivendo à margem do rio e da sociedade. Neste
capítulo, também buscamos apresentar as sociabilidades construídas pelos pobres urbanos da
cidade, bem como suas estratégias de sobrevivência e interação pública. Enfim, centro e
margem foram analisados a partir de algo que os aproxima: o rio. Acreditamos que esta
abordagem possa ter desvelado o quão próximo conviviam riqueza e pobreza, luxo e
necessidade, vida e morte em Parnaíba no período que compreende a sua belle époque.
No terceiro e último capítulo, A BEIRA - entre o cais e as borboletas, buscamos
mostrar – a partir do viés literário – outras representações sobre a belle époque parnaibana.
Assim, utilizamo-nos da obra Beira Rio Beira Vida do literato parnaibano Assis Brasil, em

1
Chegam a ser curiosas as razões para o surgimento deste epíteto ao qual logo se associou ao caráter comercial
de Parnaíba. Alguns afirmam que o mesmo surgiu de um desejo da cidade de menosprezar o Piauí, destacando-se
dele, como se a cidade tivesse adquirido auto-suficiência econômica e não se igualasse a nenhuma outra dentro
do estado. Porém, outros - de maneira mais plausível - apontam como causa para a adoção dessa referência os
constantes problemas no serviço postal que, naquele momento, prejudicavam a intensa vida comercial e social
dos comerciantes e firmas de representação, já que as correspondências tinham que vir obrigatoriamente por
Teresina com um mês de atraso, ou iam erroneamente parar na Paraíba ou em Santana de Parnaíba (SP). A
solução encontrada pelos comerciantes da cidade foi endereçar as correspondências ou malotes à PARNAHYBA
- NORTE DO BRASIL. Assim, as entregas chegavam de maneira direta e sem erros na cidade. Esse episódio dá
conta de uma página interessante da história econômica de Parnaíba, embora o fato não tenha escapado a
comentários maledicentes e desentendimentos entre parnaibanos e teresinenses. Cf. ALMANAQUE DA
PARNAÍBA, 1933, p. 157 – 159.
16

que procuramos problematizar como as transformações operadas no espaço urbano da cidade


pôde ser representada/sentida pela outra parcela da população que ficou à margem desse
processo. Dessa forma, discutimos o estigma e a pobreza na belle époque parnaibana,
questionando os lugares assumidos pelos sujeitos que ficaram na ponta de baixo do processo
produtivo e como os mesmos foram pensados mediante os recursos literários da obra. Enfim,
neste terceiro momento apresentamos a cidade e sua “beira” econômica, social e urbana a
partir deste ângulo estratégico importante para a compreensão das transformações da
sociedade, a literatura.
17

1 A CIDADE - Parnahyba Norte do Brasil

As cidades desenvolvem suntuosamente uma


linguagem mediante duas redes diferentes e
superpostas: a física, que o visitante comum percorre
até perder-se na multiplicidade de fragmentação e a
simbólica, que a ordena e interpreta. (RAMA, Angel.
A cidade das letras, 1985, p.53).
1.1 Integrar é preciso

Como se sabe, o Piauí emergiu historicamente marcado pela presença do gado e


pelas atividades advindas de tal empresa. Os vaqueiros, assim como os grandes fazendeiros,
formaram a base inicial da sociedade piauiense. Notadamente, a ocupação do seu território se
deu com a incursão do gado tangido das regiões onde a agroindústria açucareira prosperava.
Logo, se percebeu que a proliferação de engenhos na região litorânea do Nordeste brasileiro,
fomentada pelo sucesso da empresa canavieira, criava uma incompatibilidade entre a
atividade criatória e o cultivo da cana, tendo em vista que esta exigia cada vez mais áreas
agriculturáveis, bem como capital e mão de obra. Diante desse fato, se fez necessário buscar
novos territórios de ocupação que pudessem manter a principal cultura agrícola nordestina.
No caso do Piauí, sua ocupação foi motivada por essa necessidade de expansão das fazendas
de criação para o sustento da economia açucareira. Assim, pode-se afirmar que, juntamente
com a agricultura de subsistência, a pecuária foi responsável pelo povoamento do território
piauiense, pela absorção da sua força de trabalho e pela colocação da Província no cenário
econômico regional como centro exportador de gado e outros derivados.
A pecuária continuou sendo a principal atividade econômica exercida no Piauí até
fins do século XIX. Somente a partir das primeiras décadas do século XX, com a exploração
dos produtos de origem vegetal, a economia piauiense entrou em um novo contexto
econômico marcado, desta vez, pela maior participação piauiense na dinâmica do mercado
intencional e pela efetiva transformação do viés produtivo do estado. 2 De fato, até fins do
século XIX a economia piauiense esteve fortemente marcada pelo predomínio das atividades

2
Segundo Teresinha Queiroz: “Durante a década de 1890, a participação das exportações na composição da receita
pública do Piauí foi sempre inferior a 30%. No século XX, essa participação será cada vez maior e, por conta disso,
acentuar-se-á o grau de vulnerabilidade das finanças do Estado, face ao comportamento da demanda por seus produtos.
Outra modificação que se vai estabelecer nessa década, em termos do comércio, é a predominância que passa a ter o
mercado externo sobre o interno. Nas décadas anteriores a exportação piauiense era basicamente de gado em pé, de
derivados da pecuária, e de algodão, exportados, preferencialmente, para outros Estados do Brasil. No início do século
XX, os produtos de demanda crescente e de maior valor na pauta de exportações terão como consumidores principais
os paises europeus e os Estados Unidos da América. Essa nova tendência se vai inaugurar a partir da década de 1890,
com a exportação da cera de carnaúba e da borracha de maniçoba, sedimentando-se nas primeiras décadas do século,
com esses produtos e o babaçu.” (QUEIROZ, 2006a, p.143).
18

advindas do comércio do gado. O Piauí, no entanto, continuava em ritmo desacelerado em


relação as regiões do centro-sul, ora por não ter uma política econômica que levasse em
consideração os problemas de ordem local - principalmente transporte e integração - ora
porque os mercados consumidores estavam constantemente ameaçados pela competitividade
de outras províncias, fato agravado pela perda qualitativa do rebanho e pelo caráter de
subsistência do restante da sua economia, que por não ter um mercado interno suficiente
acabou inviabilizando essa atividade.
No Piauí, a mudança na forma de exploração econômica, que resultou na superação
da pecuária pela atividade extrativa, esteve ligada a muitos fatores. Notadamente, a
estagnação do comércio do gado, que desde a segunda metade do século XIX mostrou-se cada
vez menos capaz de produzir mudanças na estrutura econômica e social, foi marcante para a
percepção de que faltava um alinhamento do próprio Piauí ao contexto da economia nacional
e internacional. Integrar passou a ser então a palavra de ordem quando se pensou na
reestruturação produtiva da Província diante das condições econômicas, geográficas e sociais
até aquele momento. A insatisfação com a localização da capital (então Oeiras), a
dependência comercial do Maranhão - que mantinha certo monopólio sobre as compras e
vendas do Piauí - e as necessidades comerciais da região afinaram o coro dos descontentes em
relação ao destino da Província. Assim, de acordo com Teresinha Queiroz:

No Piauí, estava claro para alguns políticos, desde os meados do século


XIX, que a realização do objetivo nacional de integração no âmbito da
divisão internacional do trabalho, por meio da exploração de produtos
agrícolas, só seria possível na medida do aproveitamento das áreas situadas
às margens do rio Parnaíba e de seus afluentes. Esta proposta estava
visceralmente ligada à tese de que a abertura de vias de comunicação e
maiores facilidades de transporte seriam os elementos indutores do processo
de inserção da economia piauiense ao contexto nacional e internacional. A
condição para o desenvolvimento era, pois, a ruptura do isolamento em que
jazia a Província. (QUEIROZ, 2006b, p.15).

Deficitário de comunicação desde o início - e não por outra razão que não seja a do
gado - o Piauí até aquele momento havia quase que desconsiderado completamente seu
principal rio, o Parnaíba3. Somente em meados do século XIX o rio Parnaíba, com seus 1.485
quilômetros, passou a ser alvo de investimentos por parte daqueles que enxergaram nele um

3
Segundo Cláudio Bastos, em seu Dicionário Histórico e Geográfico do Estado do Piauí: “É o principal rio do
Estado. Único grande rio permanente em toda a secção geográfica que vai do Maranhão ao São Francisco. É o
maior rio do NE ocidental ou Meio Norte.” (BASTOS, 1994, p.421).
19

caminho possível para a integração econômica e geográfica do Piauí. Consoante a isso,


exigiu-se a mudança da capital de Oeiras para Teresina, o que se efetivou em 1852, na gestão
do presidente da Província José Antonio Saraiva4. Esta mudança deslocou o eixo das relações
sociais e econômicas do interior (especialmente da região centro-sul) para as regiões situadas
às margens daquele rio; o que favoreceu não só o povoamento e exploração das áreas
cultiváveis (com certo favorecimento da região centro-norte) como a própria navegação e
escoamento da produção entre as áreas produtivas e exportadoras.
O Parnaíba foi (é) um importante elemento na história do estado do Piauí. Já
conhecido pelos “índios” - e paulatinamente descrito pelos primeiros viajantes estrangeiros a
se embrenharem pelo desconhecido território brasileiro -, o rio Parnaíba foi se incorporando à
paisagem piauiense e, ao mesmo tempo, servindo de fronteira líquida na divisão das
Províncias do Piauí e Maranhão. Mas foi somente a partir das primeiras navegações a vapor
no Piauí (1859) que o rio Parnaíba se efetivou enquanto possibilidade de desenvolvimento
econômico e social, integrando parcialmente o Piauí a outros centros consumidores da região.
Até então o que existia, como dissemos antes, era uma economia eminentemente fundada sob
o ritmo do gado, uma “sociedade de vaqueiros”, no dizer de Manuel Domingos Neto.5
O extrativismo vegetal6 deu um novo sentido a economia piauiense a partir do uso
efetivo do rio Parnaíba, o que favoreceu principalmente a ligação comercial de alguns núcleos
populacionais situados às margens desse rio. Fato que aos poucos, através de uma regular
atividade de transporte de mercadorias e pessoas, foi aproximando várias cidades e vilas que
até então se mantinham praticamente incomunicáveis, quer seja pelas longas distâncias que as

4
José Antonio Saraiva nasceu em Santo Amaro (BA) em 1823. Advogado por formação e de extensa atividade
pública, Saraiva assumiu diversos cargos ao longo da vida. Foi deputado provincial, senador, ministro e
presidente de província. De 1850 a 1853 assumiu a presidência do Piauí. Notabilizou-se então pela transferência
da sede administrativa daquela Província, o que se efetivou em 1852 – quando Teresina passou a ser a nova
capital no lugar de Oeiras. Amigo próximo do imperador Pedro II, o Conselheiro Saraiva, como era conhecido,
também presidiu as Províncias de Alagoas, São Paulo e Pernambuco. Saraiva morreu em 1895 em Salvador
(BA).
5
Cf. DOMINGOS NETO, Manuel. O que os netos dos vaqueiros me contaram: o domínio oligárquico no Vale
do Parnaíba. São Paulo: Annablume, 2010.
6
De acordo com Victor de Atahyde Couto: “O extrativismo vegetal consistia na coleta de frutos (babaçu,
oiticica, castanha-de-caju), além de ramos, palhas e linho (jaborandi, carnaúba, tucum). [...] Mesmo estando
integrado e subordinado ao capitalismo pós-colonial, tratava-se, sobretudo, de um sistema extrativista primário,
de baixo nível tecnológico e alta densidade de trabalho vivo, segundo o conceito econômico de acumulação
primitiva. Apesar de todo o atraso tecnológico e de organização do trabalho (no extrativismo ainda
predominavam relações de produção atrasadas), produziam-se várias commodities – matérias-primas tornadas
mercadorias, integradas ao mercado capitalista internacional, particularmente no mundo ocidental.” (COUTO,
2011, p.30).
20

separavam ou mesmo pela precariedade, e até ausência, de vias de ligação7. Segundo as


historiadoras Maria Céllis Portella Nunes e Irlane Gonçalves de Abreu:

Até que a navegação do rio Parnaíba se efetivasse, poucos eram os caminhos


pelos quais se podia percorrer a Província, embora esta já contasse com
serviço regular de correios, instalado desde 1770, que chegava ao extremo sul
da Capitania, em Parnaguá. A infra-estrutura que possibilitava essa atividade
era extremamente precária, ou seja, as vias de ligação entre povoados, vilas e
cidades não passavam de caminhos, mais largos ou mais estreitos,
dependendo da intensidade de sua procura, dando passagem a mascates com
suas tropas de burros. Tão precários eram estes caminhos que diversas fontes
dão conta de que as correspondências e encomendas demoravam meses até
chegar a seu destino. (NUNES e ABREU, 1995, p.97).

O rio Parnaíba passou então a significar uma porta de entrada para o comércio e para
os contatos do Piauí com o próprio Piauí e com outras regiões do país. Logo, se
contabilizavam inúmeras empresas de navegação atuando no trabalho de transporte de
passageiros e produtos de outras Províncias brasileiras e até do exterior. Muitos são os
registros que dão conta deste acentuado movimento em torno do rio Parnaíba. Eles ficaram
registrados em ofícios, cartas, memórias, crônicas, poesias, hinos, etc., e revelam o caráter
peculiar do vai e vem de vapores e outras embarcações menores “rio abaixo, rio arriba”8,
cruzando paisagens ribeirinhas, e revelando diante do olhar curioso do estrangeiro os
costumes e singularidades das populações beiradeiras9.
Em grande número foram os que, estrangeiros ou não, pouco a pouco ao longo dos
séculos XIX e XX foram se estabelecendo nestas regiões do vale do Parnaíba10 ou do Delta.
Essa gente de longe11 ajudou a compor o quadro social e econômico do Piauí, já que foram

7
Segundo Edson Gayoso C. B. Barbosa: “A perspectiva de transporte, no caso o fluvial, foi fator de
desenvolvimento, contribuindo para congregar núcleos populacionais.” (BARBOSA, 1978, p.90). Para Felipe
Mendes: “A carnaúba e o babaçu, por terem tido uma demanda externa forte e por estarem situados, em grande
parte, próximos dos rios, mudaram a geografia econômica piauiense numa época em que a produção da pecuária
nordestina também já estava transferida para as regiões mais próximas dos centros consumidores.” (MENDES,
1995, p.67).
8
Trecho do Hino do Piauí (letra de Da Costa e Silva), instituído pela Lei n° 1.078, de 18.07.1923.
9
Tomo este conceito emprestado de Gercinair Silvério Gandara (2010), que indica as populações que habitam às
margens do rio Parnaíba.
10
Sobre o vale do rio Parnaíba, afirma Cláudio Bastos: “Todo o território do Estado [PI] está encravado em sua
bacia hidrográfica que cobre 360.000 Km2, dos quais 300.000 do lado do Piauí. (...). Inclui, ainda, glebas
consideráveis do Maranhão e Ceará. Na direção L seu vale se estende em alguns lugares, pela área calculada de
400 km2. No W torna-se estreita faixa de terra. O vale ficou abandonado até 1852. Antes só havia interesse pelo
centro para a criação de gado.” (BASTOS, 1994, p.425).
11
Cf. ARAÚJO, M.M.B de, e EUGÊNIO, J.K. (org.). Gente de Longe: histórias e memórias. Teresina: Halley,
2006.
21

incontáveis aqueles que do rio, depois das longas e cansativas viagens, afluíram sem demora
às cidades e vilas próximas para morar ou comerciar. Sozinhos ou com família, a maioria
tratava logo de abrir pequenos negócios no intuito de trabalhar e, até quem sabe com alguma
sorte, prosperar em terra nova, ficar rico.

Na segunda metade do século XIX, gente que vinha de longe se instalou no


Piauí: franceses e ingleses em Parnaíba; italianos em Picos e adjacências;
sírios em Floriano e Teresina. No fundo, ainda que variassem os motivos
que os fez deixar a pátria, ao chegarem tinham interesses comuns: queriam
fazer a América, mudar de vida e prosperar. Os traços da presença dessas
famílias estão um pouco por toda parte. No comércio, nas ruas e avenidas,
nos meios de comunicação e na política do Piauí. (ARAÚJO e EUGÊNIO,
2006, p.9).

Sem sombra de dúvida, a transferência da capital da Província e o incremento da


navegação fluvial deram maior dinamicidade à economia piauiense abrindo assim novas
perspectivas para investimentos e alterações no eixo produtivo e demográfico. Porém, tais
medidas ainda não foram suficientes para tornar o Piauí menos dependente do comércio
maranhense, tampouco dariam à Província condições efetivas de competir com outras
economias emergentes no período, como é o caso da região Amazônica.12 Faltava ainda a
viabilização de um porto e de um tecido ferroviário que pudesse complementar a navegação
fluvial já em curso desde o século XIX. Estas demandas, de alguma forma, colocaram em
destaque as deficiências da infraestrutura piauiense diante das necessidades do comércio
exportador, que naquele instante já vivia a euforia da inserção da economia piauiense no
mercado internacional - via borracha de maniçoba (Manihot)13 e outros gêneros - mas que ao
mesmo tempo sofria com a falta de um sistema de transporte mais adequado e eficiente.
Assim, as lutas pela estruturação do único porto marítimo piauiense - Amarração14 -,
bem como a ligação ferroviária da capital àquele porto foi uma constante até meados do

12
Cf. DAOU, Ana Maria. A belle époque amazônica. 3.ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004;
FIGUEIREDO, Aldrin Moura de. No tempo dos seringais. 5.ed. São Paulo: Atual, 2005.
13
Cf. QUEIROZ, Teresinha de Jesus Mesquita. A importância da borracha de maniçoba na economia do Piauí:
1900 – 1920. 2.ed. Teresina: FUNDAPI, 2006.
14
Na verdade o Porto de Amarração era um porto natural - inviável para os padrões atuais -, mas que à época,
embora com alguma dificuldade, ainda conseguia operar. Segundo o historiador Iweltman Mendes (2008), desde
o século XVII se aventou a construção de um Porto em Amarração (atual Luis Correia). Este “sonho”, no dizer
do autor, ainda se (des)enrola como uma verdadeira epopéia política e administrativa no momento em que
escrevo esta nota. Portanto, sempre quando falar aqui em Porto de Amarração pressuponha-se um histórico de
lutas pela melhoria da infraestrutura entre o transporte marítimo e fluvial no estado do Piauí; que vai desde a
ordenação de sondagem da região pelo Conselho Ultramarino (1699), passando pela autorização da abertura do
Canal do Igaraçu (1849) ligando o Porto fluvial de Parnaíba ao litoral, pela campanha de construção do Porto de
Amarração encampada pela Associação Comercial de Parnaíba nas décadas de vinte e trinta do século XX, até os
dias de hoje.
22

século XX, quando a economia baseada no extrativismo entrou em declínio marcando o início
da longa estagnação econômica do Piauí até o presente. Na realidade, ambos os projetos
fracassaram porque não conseguiram efetivar-se plenamente e em tempo de dar maior
mobilidade ao escoamento da produção extrativa do Piauí. Mas nem por isso pode-se negar
que o Piauí rompeu, naquele contexto, o isolamento em relação ao mercado mundial, com
destaque para o predomínio das atividades extrativas e o papel assumido por algumas cidades
como Teresina, Floriano, Amarante, União e Parnaíba na consolidação da economia do estado
como sendo um potencial exportador de matérias-primas de primeira necessidade para a
indústria mundial.
Este processo de integração do Piauí ao contexto econômico nacional e internacional
provocou significativas alterações econômicas e sociais, principalmente no que diz respeito à
reorientação dos centros comerciais e o surgimento de novos núcleos urbanos. É desta
transformação que trataremos a seguir, focando exclusivamente o lugar assumido pela cidade
de Parnaíba enquanto principal entreposto comercial do Piauí, bem como as mudanças
operadas a partir de sua inserção na dinâmica das trocas materiais e simbólicas que ocorreram
neste contexto.

1.2 Parnaíba, o empório comercial do Piauí

Localizada no extremo norte do estado do Piauí, a cidade de Parnaíba possui uma


história rica e importante para a compreensão das bases da formação econômica, social e
política piauiense. Desde seu primeiro surto de desenvolvimento econômico no século XVIII,
com a pecuária e a indústria do charque, até sua transformação no principal centro exportador
piauiense, Parnaíba foi fundamental para a inserção do Piauí no contexto da economia
internacional. Sua influência enquanto cidade portuária, bem como sua participação efetiva na
vida comercial do Piauí, lhe assegurou um lugar de destaque e relativa importância nas
alterações conjunturais processadas no cenário econômico piauiense até meados do século
XX.
Ainda no século XVII o Conselho Ultramarino determinou que se fizesse uma
sondagem para aferir a viabilidade da construção de um porto e a fundação de uma vila na
região onde hoje se localiza Parnaíba. Esta, favorecida pela existência de um delta em mar
aberto e pela presença de um grande rio, atendia, naquele momento, aos interesses recorrentes
23

da colonização portuguesa, que logo tratou de erguer ali um entreposto comercial15 com o
intuito de armazenar e escoar a produção do interior da Capitania do Piauí para outras áreas
da Colônia. Como se sabe, no Piauí, desde cedo as necessidades advindas do negócio do gado
marcou as formas de ocupação do seu território. No caso específico da região Norte destacou-
se, além das características gerais de economia de subsistência, o comércio realizado entre
esta região e os principais centros econômicos do Brasil-Colônia. Embora se deva analisar
isso proporcionalmente, levando-se em consideração tanto as dificuldades enfrentadas quanto
o impacto da participação da economia piauiense no cenário brasileiro. Segundo R. N. de
Santana: “Os fornecimentos para outras áreas, através da única porta marítima, ao Norte,
deram apenas alento à economia. Não se constituíram em impulso bastante forte para
assegurar a implantação de uma indústria sólida.” (SANTANA, 1964, p.57).
Desse modo, desenvolveram-se em torno da Vila da Parnaíba vários
empreendimentos que, de alguma forma, resultaram das condições relativamente prósperas da
economia regional, acentuadamente de seus principais mercados consumidores no Nordeste
(Ceará, Pernambuco, Bahia) e no Norte (Pará). A Vila da Parnaíba já figurava na
correspondência oficial em fins do século XVIII como uma região que prosperava a partir do
comércio do gado e de outras atividades demandadas daquela empresa16. Fato que podemos
verificar no documento da Descrição da Capitania de São José do Piauí feita pelo Ouvidor
Antonio José de Morais Durão17 em 1772. Ali, ele descreve as trocas que se estabeleciam
naquela região e até mesmo a Vila que ia se desenvolvendo com o sucesso de tal atividade.
Embora o Ouvidor, no mesmo documento, reconhecesse a precariedade das
condições de infraestrutura e de higiene do local18, o Porto das Barcas continuou servindo

15
Conhecido como Porto das Barcas ou Porto Salgado.
16
De acordo com R.N de Santana (1964), pelo Porto das Barcas saia cerca de um quarto do gado exportado pelo
Piauí, além da existência, naquele local, de inúmeras outras atividades relativas ao negócio do couro.
17
Antônio José de Morais Durão foi Ouvidor Geral da Comarca do Piauí de 1772 a 1778. É autor da seguinte
obra: “Descrição da Capitania de São José do Piauí, do ano de 1772, no governo de João Pereira Caldas, e de sua
ordem, levantado pelo ouvidor geral Antônio José de Morais Durão”. Cf. MOTT, Luiz. Piauí Colonial:
população, economia e sociedade. 2.ed. Teresina: APAL;FUNDAC;DETRAN, 2010.
18
Segundo o ouvidor Antonio José de Morais Durão: “Como o principal negócio que nela se faz consiste nos
gados que se matam nas feitorias e estas ficam arrimadas à Vila, é natural padeçam as epidemias que quase todos
os anos experimenta, porque o fétido que causa o sangue espalhado e mais miúdos de tantos milhares de reses
que se matam no pequeno espaço de um até dois meses, corrompe o ao ar com muita facilidade e produz o dano
apontado. As moscas e outras sevandijas são tão inumeráveis que causam inexplicáveis moléstias aos habitantes,
e isto mesmo há de suportar precisamente a toda pessoa que vai de fora porque só no tempo de verão se pode
caminhar por aquele distrito, pois de inverno por ser baixo, e alagadiço, se cobre de lagoas e faz absolutamente
impraticáveis os caminhos de sorte que o povo se tem visto na consternação de padecer algumas fomes por
aquela causa, no referido tempo e assim é o da matança da referida vila.” (DURÃO, 2010, p. 41).
24

como o grande escoadouro da produção piauiense desde o auge da pecuária até meados do
século XX, quando entrou em declínio a economia de base extrativa no Piauí. Estas
limitações, superadas em grande medida pelo esforço particular de alguns “comerciantes de
bons fundos”19, no dizer de R. N de Santana (1964), dedicados principalmente ao negócio da
exportação do charque, tornou a Vila uma referência no cenário econômico piauiense.
Exatamente neste contexto é que a Vila de Parnaíba foi alçada oficialmente à categoria de
cidade (1844), passando, com o posterior incremento da navegação fluvial, a assumir um
lugar estratégico no projeto de integração da economia piauiense ao comércio mundial. Para a
historiadora Junia Motta Rego, dentro deste projeto, Parnaíba se constituiu no:

[...] principal centro comercial importador e exportador do Piauí, além de


propiciar a integração interna da Província, também integrou a Província ao
comércio nacional e internacional. Por ai se fazia o escoamento da produção
das riquezas do Piauí de forma mais efetiva, rápida, eficiente e barata, através
de Parnaíba viria, do restante do Brasil e do mundo, o progresso. [...] sem
Parnaíba na ponta do delta, fazendo a conexão da produção do Interior com o
seu porto de mar, não teria sido possível o desenvolvimento econômico,
político, social e cultural tão almejado para o Piauí. (REGO, 2010, p.68).

À medida que o projeto de integração (regional/nacional/mundial) da economia


piauiense foi se efetivando, a cidade de Parnaíba, assim como outras cidades do centro-norte
piauiense, foi gradativamente assumindo um papel de relevo no direcionamento das investidas
econômicas da Província. Por estar localizada no litoral e possuir fácil acesso tanto através da
via marítima quanto da fluvial - considerando-se também a quase inexistência de transporte
ferroviário ou rodoviário - Parnaíba era a saída mais viável para conter a ascendência do
comércio maranhense sobre o Piauí. Assim, os portos marítimo (Amarração) e fluvial (das
Barcas) de Parnaíba serviram para dinamizar o escoamento do grosso da produção piauiense,
além, é claro, de estarem sempre de portas abertas a toda e qualquer influência dos principais
centros culturais do Brasil e do Mundo. Segundo o economista Vitor de Atahyde Couto:

A riqueza saia pelo mar, embarcada em Amarração e Tutóia [Maranhão].


Os recursos naturais, valorizados pelo trabalho vivo dos caboclos, eram
exportados para o resto do mundo. Esse mundo a que me refiro eram os
paises industrializados, que transformavam matérias-primas de origem
vegetal, animal e mineral, para fazer produtos químicos e mercadorias
tradables (comercializáveis), de outras indústrias da época. Com maior
valor agregado, algumas dessas mercadorias chegavam até a fazer a mesma

19
Destacaram-se nesta empresa os comerciantes João Paulo Diniz, Domingos Dias da Silva e seu filho Simplicio
Dias da Silva. Todos conseguiram prosperar no comércio do gado e, de alguma forma, manter esta atividade de
forma lucrativa até as primeiras décadas do século XIX. Cf. MAVIGNIER, Diderot dos Santos. No Piauhy, na
terra dos Tremembés.Parnaíba: Sieart, 2005.
25

viagem de volta, sob a forma de bens de consumo pessoal, como sabonetes


de óleo vegetal, calçados de couro e tecidos de algodão. Entre as nossas
matérias primas exportadas, predominavam, no conceito de valor bruto da
produção: cera de carnaúba, jaborandi, óleo de babaçu, peles e couros, além
de outros produtos naturais do Piauí, Ceará, Maranhão, Pará, Goiás...
(COUTO, 2011, p.30-31).

Como resultado da expansão da economia extrativa, o comércio piauiense alcançaria


seu maior desenvolvimento. Destacaram-se entre os produtos de maior fluxo econômico tanto
a carnaúba (Copernicia cerifera) quanto o babaçu (Orbignia martiana), ambos de enorme
valor comercial para aquele contexto. A carnaúba, principalmente, foi um dos grandes
motores do desenvolvimento piauiense, já que o produto recebeu, depois de testada suas
propriedades, forte demanda do comércio internacional e durante mais de uma década
alavancou praticamente toda a economia do estado20.
A exploração dos carnaubais, por ser uma atividade que absorvia muita
mão-de-obra, ocupava a maior parte das populações locais por certo período
do ano. Como o preço da cera estava sempre em ascensão, os proprietários
de carnaubais, ou mesmo os arrendatários, no afã de obter uma boa
produção, também remuneravam relativamente bem à massa de
trabalhadores. A renda gerada pela carnaúba, passou a fomentar a
ociosidade de recursos no Piauí. O potencial produtivo da terra foi
abandonado, mesmo com mão-de-obra com tempo ocioso. Com o dinheiro
adquirido da renda de poucas arroubas de cera podia-se adquirir bom
estoque de suprimentos para casa e para uso pessoal, predominantemente
com artigos importados de outros Estados e do Exterior. Para se ter uma
idéia do poder de compra gerada pela cera, em 1945 com a quantia de
cruzeiros correspondente ao valor de um kg de cera parda, podia-se
comprar, alternativamente: 62 kg de milho; 12,5 kg de açúcar; 27 kg de
arroz; 0,80 kg de carne verde; 66 kg de farinha; 18,0 kg de feijão; 15,0 kg
de café; sendo que um kg de “cera flor” equivalia a 20% a mais que as
quantias citadas. (ARAÚJO, 1985, p.102).

De alguma forma, o extrativismo foi o veículo que propiciou a entrada do Piauí na


dinâmica das trocas materiais e simbólicas da modernidade. Embora, ainda em fins do século
XIX, o projeto de integração da economia piauiense houvesse mostrado alguns elementos de
modernização – como a navegação a vapor e o telégrafo – somente com o primeiro impulso
dado pela extração do látex de maniçoba e posteriormente da cera de carnaúba e do babaçu,
pode-se afirmar que o Piauí (entenda-se, algumas cidades beneficiadas naquela conjuntura)
tenha iniciado seu processo de modernização urbana e social.

20
Segundo Tajra e Tjara Filho: “Sua utilização era vasta, desde simples óleo de iluminação, já no século
passado, até velas, pílulas, emplastros, ungüentos, sabonetes, material isolante, discos fonográficos, polimentos,
graxas, lubrificantes, encerados, papel carbono e como matéria prima bélica, entrando na fabricação da pólvora
na II Guerra Mundial. (...) O Piauí chegou a alcançar o 7° lugar nas exportações nacionais nos anos de 1941 e
1942. De 1939 a 1949 a cera de carnaúba era responsável por 70% da receita estadual. Quase toda a região norte
do Piauí prosperou graças à carnaúba.” (TAJRA e TAJRA FILHO, 1995, p.144).
26

No caso de Parnaíba, além de comprar, beneficiar e exportar estes produtos, a cidade


se destacou por apresentar um grande contingente de firmas comerciais dos mais variados
ramos – como empresas de representação, miudezas, ferragens, até armarinhos – o que, além
de suprir sua demanda interna, a transformou num pólo aquecido para o comércio regional.
Assim, já nas primeiras décadas do século XX, além do adensamento populacional (1900 –
19.413 hab.; 1920 – 24.142 hab.; 1940 – 42. 062 hab.), a cidade podia ostentar os ganhos
materiais obtidos com tal comércio; o que acentuou não só o seu processo de urbanização,
mas também acabou favorecendo significativas mudanças na sua vida social a partir da
entrada de alguns elementos da modernidade.
Esta efervescência comercial foi o reflexo de uma economia em expansão,
principalmente durante o período em que a cidade foi a principal porta de ligação do Piauí
com a Europa e Estados Unidos. Assim, até meados do século XX, Parnaíba consolidou-se
como o mais rentável empório comercial do Estado, tendo em vista continuar sendo a via
fluvial e marítima as principais responsáveis pelo escoamento da maioria dos produtos
exportados/importados pelo comércio piauiense. Os efeitos dessa conjuntura propiciaram a
rápida emergência de uma elite urbana composta basicamente por comerciantes e
profissionais liberais. Esta elite comercial, embora de formação recente e movida por
expectativas progressistas, fez com que Parnaíba, até então uma cidade com traços
eminentemente coloniais, entrasse de vez em uma nova fase de seu desenvolvimento urbano e
social; tanto é que, em pouco tempo, o casario, o mobiliário, as roupas, os perfumes, as
formas de lazer e as principais novidades francesas e inglesas começaram a ganhar certo
espaço no gosto daquela elite que, ao afinar-se (à sua maneira) com as tendências européias
de morar e consumir, acabou entrando na sua belle époque.
Esse contexto, marcadamente próspero para a economia parnaibana, significou
também a tentativa de imposição de uma pax burguesa, ou seja, do estabelecimento de uma
base de experiência comum e não conflitava daquela elite com o próprio ideário burguês de
riqueza e progresso, criado e reforçado durante o período de maior dinamismo comercial da
cidade. Dessa forma, a “bela época” representou mais uma aspiração da burguesia em criar
uma identidade social para si mesma do que propriamente uma recriação do equivalente
europeu aqui, em solo piauiense. A ampliação das redes de sociabilidade, juntamente com a
incorporação desses novos valores e referenciais estéticos é um excelente canal para a
observação desse processo de aburguesamento da vida social. Dito isto, passemos a analisar
estas imagens tão fortemente enraizadas na memória histórica tradicional.
27

1.3 No tempo do “progresso” era assim

Enquanto produto da civilização, a cidade continua sendo a maior obra de arte


construída pelo engenho humano. Ela se configura como exemplo por excelência do domínio
parcial da natureza pelo homem, bem como de sua capacidade de fabricação das condições
artificiais de existência. Por um lado, estrutura física e espaço simbólico, a cidade é o cenário
por onde se desenrolam as ações humanas, as paixões, os vícios, os medos, o trivial. Na
cidade se encontra a sede das instituições necessárias ao convívio social, como as residências,
a praça, o mercado, o comércio, os locais de lazer e “tolerância”, o lugar da justiça, os espaços
destinados ao trabalho e ao ritual da morte, etc. A cidade congrega em si de maneira
diversificada e multiplicada os sistemas de ordem, assim como os anseios mais sublimados da
experiência humana.
Como se sabe, as cidades foram sendo modificadas a partir de inúmeros fatores, que
vão desde a proteção contra um inimigo externo ao uso racional e planejado de seus espaços
internos. Especialmente na Europa do século XIX assistiu-se a uma série de medidas e
intervenções no espaço urbano que, além de levar em consideração fatores de ordem sanitária,
objetivaram ordenar o caos deflagrado pela Segunda Revolução Industrial. Cidades como
Londres, Paris e Viena, sob o impulso das conquistas materiais e ampliação das redes de
comércio internacional, passaram por intervenções que de alguma forma se constituíram em
paradigmas para outras cidades fora do continente europeu. No Brasil, por exemplo, a
importação deste modelo se deu a partir dos projetos políticos implementados pelos governos
republicanos que procuraram “modernizar” suas principais cidades, notadamente Rio de
Janeiro e São Paulo.
Neste contexto, tanto a paisagem urbana das cidades quanto os valores e
representações que afluíram destas novas relações foram marcados por expectativas
crescentes em relação ao futuro. No Brasil, pode-se dizer que o ideário republicano de ordem
e progresso definiu a orientação das transformações urbanísticas pelas quais passaram
algumas cidades brasileiras nos primeiros anos da República. O exemplo mais contundente foi
dado pela cidade do Rio de Janeiro que, na gestão do Prefeito Pereira Passos, entre 1902 e
1906, sofreu reformas que marcaram profundamente sua paisagem urbana e sua vida social.
Além do Rio, outras cidades também iniciaram seu processo de remodelação, como por
exemplo, São Paulo, Manaus, Belém, Curitiba, etc. - cidades que se “modernizaram” tendo
como característica o papel decisivo do estado capitaneado pelos anseios de uma elite
28

emergente e pela introdução de novas formas de sociabilidade surgidas a partir do advento da


modernidade.
Em sentido amplo, o vocábulo “moderno” acabou assumindo naquele período o
caráter daquilo que não tinha ligação aparente com o passado; modernizar implicava pensar o
“novo”, o recente, o que se opunha ao antigo; portanto, moderno se tornou uma palavra que
enfeitiçava tanto quanto “progresso”, ambas marcando profundamente uma nova concepção
de mundo surgida a partir do advento da sociedade capitalista, das revoluções burguesas, das
rupturas com o antigo sistema de produção, da passagem do século, etc. De acordo com
Nicolau Sevcenko:
O vocábulo “moderno” vai condensando assim conotações que se
sobrepõem em camadas sucessivas e cumulativas, as quais lhe dão uma
força expressiva impar, muito intensificada por esses três amplos contextos:
a revolução tecnológica, a passagem do século e o pós-guerra. “Moderno”
se torna a palavra-origem, um novo absoluto, a palavra-futuro, a palavra-
ação, a palavra-potência, a palavra-libertação, a palavra-alumbramento, a
palavra-reencantamento, a palavra-epifania. Ela introduz um novo sentido à
história, alterando o vetor dinâmico do tempo que revela sua índole não a
partir de algum ponto remoto no passado, mas de algum lugar no futuro.
(SEVCENKO, 1992, p.228).

Para a elite econômica parnaibana, principalmente a partir da segunda década do


século XX, as palavras “moderno” e “progresso” se tornaram verdadeiro “fetiche” porque
encerravam o desejo de tornar a cidade a “menina dos olhos” de quem por lá aportasse. A
atuação dessa elite foi decisiva para isso, já que a partir dela houve reivindicações para a
implantação de vários serviços urbanos, como a das redes de iluminação elétrica, sistema
telegráfico/telefônico, pavimentação das ruas, ramal ferroviário, remodelação de praças e
fachadas urbanas, etc. Um exemplo claro dessa participação direta da elite econômica no
desenvolvimento da cidade pode ser dado a partir das campanhas promovidas pela Associação
Comercial de Parnaíba (ACP) que – desde sua fundação em 1917 – buscou defender os
interesses da classe comercial parnaibana/piauiense e, de alguma forma, introduzir ideias que
pudessem levar a mudanças no direcionamento político do estado. Estas campanhas tiveram
grande peso nas decisões tomadas no âmbito da política local, e até mesmo regional; e muitas
vezes se confundiram com a própria função do poder público; elas, de fato, foram decisivas
para algumas conquistas no período.21

21
Destaca-se a campanha pela construção do Porto de Amarração, talvez a maior bandeira da ACP; a campanha
pela ampliação da rede ferroviária entre Parnaíba e cidades com algum interesse comercial para o estado, como,
por exemplo, Campo Maior; e campanhas tanto pela melhoria do ensino quanto por reformas urbanas etc. Como
não é nosso propósito aprofundar as discussões em torno da ACP, maiores detalhes podem ser obtidos em: Cf.
MENDES, Iweltman. Associação Comercial de Parnaíba: oitenta anos de lutas e conquistas. 2.ed. [s.l.: s.ed.],
1997.
29

A cidade propriamente, enquanto espaço físico (fig.1), já na segunda década do


século XX possuía um traçado ligeiramente definido atendendo a funcionalidade de sua
localização.22 Assim, o rio Igaraçu (D) e o Porto das Barcas (B), bem como a sede da igreja
Matriz, a Praça da Graça (E), desde o período colonial serviram como referenciais para o
adensamento urbano da cidade. Durante esse período, e até meados do século XX, a Rua
Grande (C) foi a principal artéria urbana de Parnaíba, porque além de ligar a Estação
Ferroviária (A) ao porto, num trecho de aproximadamente 1.500 metros, foi o endereço da
maioria das firmas comerciais e das famílias abastadas que pretendiam torná-la a vitrine por
onde se podia observar os sinais do novo e da modernidade. Ainda que restritas a um pequeno
grupo favorecido economicamente, estas mudanças introduziram de alguma maneira novas
formas de comportamento, fizeram emergir novos valores promovendo uma base de
experiência comum que, além de reforçar uma identidade social, introduziu novas formas de
sociabilidade e de exibição pública, promovendo o contato com os novos aparelhos da
modernidade.

22
Segundo Gandara: “[...] em 1914, com o intuito de sanar problemas de alinhamento [...] foi adotada uma
planta que alargou para 20 e 30 metros algumas ruas e avenidas, e consequentemente, foram demolidos diversos
prédios e construídos outros dentro do plano urbanístico adotado que contribuíram para dar à cidade uma
visibilidade simétrica, apesar das irregularidades focalizadas. Na atual Parnaíba, nesta região, hoje conhecida
como ‘cidade velha’, pode-se verificar tanto a irregularidade do passado quanto a tentativa de uma
simetrização.” (GANDARA, 2010, p.240).
30

Porém, até as primeiras décadas do século XX a infraestrutura da cidade deixava


muito a desejar, era muito precária em relação a alguns centros urbanos mais próximos como,
por exemplo, São Luiz (MA). É o que evidenciamos na primeira impressão colhida pelo
escritor maranhense Humberto de Campos23, quando o mesmo chegou à Parnaíba pela
primeira vez em fins do século XIX. Segundo ele:

Depois de ter visto o Maranhão de 1893, ainda próspero, com suas fábricas,
com os seus bondes, com o seu calçamento, com as suas ruas
movimentadas, com os seus sobradões coloniais, com as suas casas de
comércio que conservavam mercadorias em exposição à porta, Parnaíba era,
de algum modo, uma decepção. As ruas eram largas e numerosas, mas de
areia solta; dos seus seis sobrados, três se achavam em ruínas, desabitados,
e entregues aos morcegos e às corujas; o comércio guardava seu sortimento
nas prateleiras, nada deixado de fora do balcão. Não tinha gás, não tinha
carruagens, não tinha bondes. A impressão que Parnaíba me deu foi, em
suma, a de uma Miritiba grande. (CAMPOS, 1983, p.118-119).

Excetuando-se certo exagero por parte de Humberto de Campos, é instigante pensar


como esta cidade “acanhada” aos poucos foi se tornando uma das principais economias da
região Nordeste do Brasil, modelo de desenvolvimento social e urbano dentro do estado. De
fato, somente a partir da década de 1930 é que Parnaíba sofreria mudanças substanciais em
sua configuração urbana e arquitetônica. Como se sabe, a partir daquela década o Brasil
passaria por momentos conturbados politicamente. A chamada “revolução de 30”, uma
“manobra pelo alto” no dizer de Carlos Nelson Coutinho (2005), colocou no poder o gaúcho
Getúlio Vargas que conduziu o país seguidamente em três momentos distintos: Governo
Provisório 1930-1934; Período Constitucional 1934 - 1937 e Estado Novo 1937 – 1945. Não
se pode negar que a economia brasileira durante a década de 1930 até a Segunda Guerra
Mundial foi cada vez mais se inserindo no contexto internacional24, assim como não se pode
negar que o continuo rearranjo econômico do estado brasileiro foi um catalisador do processo
de industrialização e transformação urbana das cidades no Brasil. A cidade de Parnaíba – e o

23
Humberto de Campos Veras nasceu em Miritiba (MA) em 25 de outubro de 1886, filho de Joaquim Gomes de
Faria Veras, pequeno comerciante, e Anna Theodolina de Campos Veras. Órfão desde os seis anos, Humberto de
Campos, residiu durante algum tempo em São Luis (MA), indo em 1893 para Parnaíba (PI), onde passou a
residir até 1900. O autor aborda essa estadia em Parnaíba em seu livro “Memórias”. Após este breve período,
retorna a São Luis, indo posteriormente morar no Pará, até que em 1912 transfere-se definitivamente para o Rio
de Janeiro. Humberto de Campos exerceu um papel ativo no campo da crítica literária e no jornalismo.
Destacou-se também como cronista e memorialista, vindo a ocupar, em 1919, a cadeira de n. 20 da Academia
Brasileira de Letras - ABL. Faleceu no Rio de Janeiro em 05 de dezembro de 1934.
24
Cf. ABREU, Marcelo de Paiva. O Brasil e a economia mundial (1930-1945). In: FAUSTO, Boris. (Org.).
História Geral da Civilização Brasileira. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004. v. 4. p. 09-49.
31

estado do Piauí como um todo – durante a “Era Vargas”25, sentiu os reflexos das mudanças e
direcionamentos da política nacional; e de certa forma se incorporou às novas diretrizes
político-econômicas do período, seja através das interventorias e da sua inserção efetiva no
comércio internacional26, ou mesmo a partir do surgimento de novas demandas por melhorias
na sua infraestrutura urbana e de transportes.
Assim, como resultado da expansão da economia extrativa, houve consequentemente
um crescimento das expectativas em torno do progresso material da cidade. Desse modo, os
apelos pela modernização de seu aspecto urbanístico e arquitetônico marcaram o tom das
mudanças que gradualmente foram sendo percebidas no cenário urbano. Alguns cronistas
sociais anotaram essa tentativa de melhorias urbanas, destacando-se principalmente aquelas
ocorridas durante as gestões dos Prefeitos Ademar Neves27 (1931-1934) e Mirocles Veras28
(1934 -1945). Segundo uma cronista da época, Ademar Neves tomou medidas que tiveram o
intuito de “remodelar” Parnaíba, de “civilizá-la” no rastro de outras cidades que já haviam
passado por esse processo ao longo dos séculos XIX e XX. De acordo com a mesma cronista,
foi durante a gestão desse Prefeito que se introduziram os mecanismos de melhor controle do

25
Sobre isso Cf. NASCIMENTO, Francisco Alcides do Nascimento. A Revolução de 1930 no Piauí: (1930-
1934). Teresina: Fundação Cultural Monsenhor Chaves, 1994.
26
Embora se deva deixar claro, que sua condição era a de uma economia de características eminentemente
agrário-exportadora. Seria leviano da parte de quem estuda esse período da história do Brasil, comparar ou
generalizar essas mudanças no âmbito da economia brasileira sem considerar as diferenças regionais, assim
como, não relativizar a própria dinâmica de crescimento regional em virtude de todo um processo histórico de
formação econômica, social e urbana, que é especifica e não necessariamente homogênea.
27
Ademar Gonçalves Neves nasceu em Parnaíba (PI) no dia 19 de Novembro de 1883, filho do major Felipe
Gomes Neves, de ascendência portuguesa, e de Maria Madalena Gonçalves, de tradicional família parnaibana.
Ademar Neves fez seus estudos de primeiras letras em Parnaíba, seguindo posteriormente para São Luis (MA),
Lisboa, e por fim, Manchester, na Inglaterra, onde se forma em Contabilidade e Comércio. De volta à Parnaíba,
assume a firma comercial da família, fato que, em pouco tempo, destaca-o como um dos sólidos comerciantes da
cidade. Após a “revolução” de 1930, o Interventor Federal no Piauí, tenente Landri Sales, solicita à Associação
Comercial de Parnaíba a indicação de um nome para assumir o Governo Municipal. Ademar Neves foi escolhido
e assume a administração da cidade em 25 de fevereiro de 1931, permanecendo no cargo até 25 de maio de 1934.
Este período é marcado pelo inicio da modernização urbana de Parnaíba. De sua tentativa de remodelar a cidade
aos moldes dos grandes centros urbanos brasileiros e europeus, Ademar Neves acabou figurando no imaginário
popular como o “remodelador” da cidade. Após sua administração, foi morar no Rio de Janeiro, onde ainda
trabalhou para a firma Moraes S/A e como Tesoureiro Auxiliar da Casa da Moeda. Ademar Neves faleceu em 7
de fevereiro de 1954, sendo sepultado no cemitério do Caju, naquela cidade.
28
Mirocles Campos Veras nasceu em Parnaíba (PI) no dia 25 de março de 1890, filho de Emídio Gomes Veras e
de Maria Campos Veras. Mirocles formou-se em medicina em 1912 pela Faculdade de Medicina do Rio de
Janeiro. Nesta condição, assumiu diversos cargos ao longo da carreira onde foi, por exemplo, Médico de Higiene
Municipal em Parnaíba, Diretor-Médico da Santa Casa e Médico-Chefe do Centro de Saúde do Estado, além de
contribuir para a fundação/instalação de vários centros de saúde, como a Maternidade Marques Bastos e a
Sociedade de Assistência aos Lázaros e Defesa contra a Lepra. Mirocles Veras foi nomeado Prefeito Municipal
de Parnaíba em 1934 na Interventoria do Capitão Landri Sales, ficou no cargo até o fim do Estado Novo, em
1945. De sua gestão resultaram obras que tiveram cunho modernizador do aspecto urbano e arquitetônico da
cidade. Mirocles Veras faleceu em Parnaíba no dia 10 de agosto de 1978.
32

espaço urbano, de embelezamento das fachadas públicas e das áreas de circulação, garantindo
assim os novos rumos da expansão urbana:

Começou então a remodelação urbana da cidade. Começou a transformação


de Parnaíba. Iniciou o calçamento poliédrico do centro da cidade até então um
grande areal. Parnaíba se transformou num grande canteiro de obras que se
estendia da esplanada da antiga Estrada de Ferro Central do Piauí passando
pelo mercado público, que era central. Urbanizando, Ademar Neves
embelezava a cidade. Construiu jardins, como o do Rosário, em frente à Igreja
do mesmo nome (...). Construiu ainda a Praça Coronel Jonas Correia, em
frente ao mercado público (...). Na atual Avenida Presidente Vargas, então
Avenida João Pessoa, Ademar Neves construiu o coreto e o Pavilhão Bar,
hoje desaparecidos com a construção da ponte Simplicio Dias sobre o rio
Igaraçu (...). Junto ao Mercado Público construiu, numa bonita estrutura o
mercado de frutas, para venda exclusiva de frutas e verduras, em bancas de
mármore. (...) Preocupava-se muito com a limpeza pública, e, o serviço de
higiene se estendeu aos bairros e subúrbios. Criou a Delegacia de Higiene
Municipal, a qual se incumbira da fiscalização de bares, hotéis e o matadouro.
Não era permitida a matança de animais sem presença e o visto do médico
municipal. Remodelou a Usina Elétrica (...) Ampliando sua rede de
iluminação. Sua administração foi assim timbrada por grandes realizações e o
seu dinamismo e sua operosidade não tiveram limites. (SILVA, 1983, p.26-
28).

Segundo Caio Passos, se referindo à gestão de Mirocles Veras (1934-1945), deste


Prefeito resultaram obras que, a exemplo do Prefeito anterior, também tiveram caráter
modernizante da infraestrutura urbana e dos serviços públicos da cidade. Diz ele que:

Administrador de sensibilidade artística, [Mirocles Veras] cuidou de logo do


problema urbanístico, dando um novo e moderno aspecto à cidade.
Construiu o belo Jardim Landri Sales, hoje desaparecido pela nova estrutura
urbanística da Praça da Graça. Também construiu o Jardim Humberto de
Campos [...]; a terminação e ajardinamento da Praça Santo Antônio, um dos
mais pitorescos logradouros de nossa urbe; calçamento, em grande escala,
em várias ruas e praças; planejamento do antigo Bairro Campos, dando-lhe
estrutura moderna e condizente com seu progresso; dado o aumento do
índice demográfico do município, construiu dois grandes cemitérios, o de
São Sebastião, conhecido por Asa Branca, e outro na Ilha Grande Santa
Isabel. Cortou o município com várias estradas vicinais, para escoamento
dos produtos agrícolas. Mais dois grandes empreendimentos da
administração Mirocles Veras: instalação do Centro Telefônico, obra
pioneira no interior piauiense [...]. E foi ainda, em seu governo, que se fez
pela primeira vez os estudos dos serviços de água e esgoto, confiado aos
escritórios técnicos de Saturnino Brito Filho, do Rio de Janeiro. Portanto,
Mirocles Veras foi pioneiro deste trabalho, hoje, realizado em parte.
(PASSOS, 1982, p.83).

Em ambos os textos acima, embora se considerando sempre a tentativa de


elaboração de um imaginário positivo em relação àqueles Prefeitos, há de se destacar a ideia
de transformação e processo na fala dos cronistas, ou seja, a cidade – “até então um areal” –
33

passou por intervenções que de alguma forma alteraram seu aspecto antigo a partir do
melhoramento dos seus serviços urbanos. Os fragmentos apresentados dão a entender que
surgem do “canteiro de obras” e da “operosidade” ou “sensibilidade” do gestor, as praças
ajardinadas, as novas fachadas públicas, a ampliação da rede elétrica e de calçamentos, a
limpeza urbana, a preocupação sanitarista, etc. Enfim, o embelezamento e a modernização da
cidade seriam efetivados mediante o rompimento com os padrões colônias e pela substituição
do antigo pelo novo, do feio pelo “embelezado”, assim como pela procura de um equilíbrio
estético que pudesse harmonizar a paisagem urbana e humana da cidade naquele contexto.
De fato, algumas imagens do período evocam/reforçam essa ideia de harmonia
estética e transformação, onde se pode destacar a evolução da arquitetura urbana e a
introdução de novos referenciais estéticos nas formas de morar. Assim, graças à expansão das
exportações na primeira metade do século XX, a arquitetura da cidade de Parnaíba pôde
incorporar o ecletismo29 como referencial estético para seus espaços urbanos tanto de moradia
quanto de circulação pública.30 Como afirmamos anteriormente, a Rua Grande foi a principal
vitrine da evolução arquitetônica em Parnaíba. Assim, nas figuras 2 e 3, por exemplo,
podemos observar algumas das construções que distinguiram aquela avenida das outras vias
de circulação da cidade.

29
O ecletismo na arquitetura aconteceu na Europa no final do século XVIII estendendo-se até o início do século
XX. No Brasil, o ecletismo predominou entre fins do século XIX até meados do século XX. Ele é um
movimento caracterizado principalmente pela mistura de estilos arquitetônicos de diversas regiões e distintos
períodos históricos, predominam a variação das tipologias estilísticas e a utilização de materiais industrializados,
além dos já conhecidos ferro e vidro.
30
Segundo Diva Maria Figueiredo: “Entre os dois extremos, o rio e a ferrovia, à medida que se afasta do núcleo
original, novas formas de parcelamento e tendências arquitetônicas se impõe como testemunho de novos tempos,
incorporando os benefícios da sociedade industrial. As mudanças sócio-econômicas e tecnológicas produzem
reflexos nas formas de habitar e construir.” (FIGUEIREDO, 2006, p.29).
34

Ali, além da grande quantidade de sobrados31 ecléticos (fig. 2), destacou-se outro
estilo bastante valorizado, o chalé32 (fig.3). Naquele contexto, o embelezamento de Parnaíba –
diga-se, das áreas centrais – não se restringiu apenas às residências particulares, mas também
foi levada às praças, às ruas e às fachadas públicas que acompanhando o ritmo dessas
transformações, introduziram novos estilos arquitetônicos, novos materiais e formas de
sociabilidade. Desse modo, o mobiliário urbano incorporou uma outra característica, agora
definida pelos novos modos de ser da elite, pela ideia de movimento, modernização e
requinte. O velho estilo colonial, pesado, rudimentar e asfixiante, foi dando lugar a uma nova
estética, agora marcada pela leveza e pelo detalhe. Segundo Diva Maria Figueiredo:

[...]o ecletismo [em Parnaíba] predomina entre as demais influências


estrangeiras da primeira metade do século XX. O Art Decó se destaca nas
construções comerciais, prédios, monumentos públicos e se estende para as
luminárias e mobiliário, conferindo a uma classe cosmopolita, que não se

31
Os sobrados possuem porão alto, recuo para ventilação e iluminação, gradil em ferro, jardim, varanda, escada
lateral e fachada frontal alinhada com a via pública etc. As residências com essa característica eram ocupadas
pelas famílias mais abastadas da cidade, geralmente grandes comerciantes em ascensão econômica. Cf.:
AFONSO, Alcília; MORAES, Michele de. (Coord.). Arquitetura Piauiense. Teresina: EDUFPI, 2009.
32
O chalé também foi outra tipologia muito difundida no período, geralmente ele possuía cobertura (duas águas)
bastante inclinada, era revestido com telha francesa, possuía sótão, janelas em verga reta, gradil em ferro e
também era alinhado com a via pública. Esse tipo de residência era quase sempre ocupado por famílias de um
poder aquisitivo menor em relação aos que moravam em sobrados ou palacetes. Cf.: AFONSO, Alcília;
MORAES, Michele de. (Coord.). Arquitetura Piauiense. Teresina: EDUFPI, 2009.
35

identifica com o colonial, um ar de modernidade propiciada pelo concreto


armado, pelas superfícies cristalizadas e de vidro, em desenhos geométricos
abstratos. Além do Art Decó, o Art Nouveau dos elementos construtivos e
decorativos dos palacetes, as casas de pó de pedra de inspiração inglesa, os
chalés e bangalôs de linguagem ornamental e romântica e a arquitetura
ferroviária da década de 40 da Estação. (FIGUEIREDO, 2006, p.30).

Na representação a seguir (fig.4) podemos visualizar um recorte de um dos espaços


mais emblemáticos para a compreensão dessas transformações arquitetônicas da cidade, a
Praça da Graça. Note-se como a composição dos elementos presentes no retângulo fotográfico
reforçam a ideia de graciosidade (pérgula, coreto e ajardinamento) e movimento (os
transeuntes nas passarelas).

A Praça da Graça e seu entorno foi, sem dúvida, o lugar de concentração da maior
parte das atividades da vida social/cultural da cidade. Além de se constituir em lugar de
passagem/encontro, a praça era por onde se desfilava as principais modas, onde se realizavam
as festas religiosas e pagãs, se iniciavam casamentos e também se ouvia boa música, era o
“coração da cidade”, no dizer de um cronista social. De acordo com o cronista Carlos
Araken33:

33
Carlos Araken Correia Rodrigues, médico e cronista parnaibano. Tem vários artigos publicados em jornais de
circulação local, no “Almanaque da Parnaíba”, além de alguns livros de crônicas e memórias, destacam-se:
36

A Praça da Graça era o coração da cidade. Tudo acontecia lá. O corso de


carros no Carnaval. Ah! o corso! Carros e caminhões enfeitados a capricho,
cheios de gente bonita, travando verdadeiras batalhas de confetes e
serpentinas. Carros alegóricos, cordões, blocos de fantasias e de sujos,
foliões solitários, todos girando em torno da Praça. [...] No Natal era uma
beleza. Todo mundo nos seus melhores trajes descia para a praça, afim de
esperar a Missa do Galo. Os encontros e desencontros, os beijos roubados,
os novos namoros, cabia de tudo na comemoração natalina. A animação se
completava quando a “furiosa” atacava seus dobrados no coreto. [...] O
coração da cidade, era também a meta de encerramento de paradas e
desfiles de qualquer natureza, comícios e tudo o mais. Acontecimento para
ser marcante, tinha que ser lá. [...]. (ARAKEN, 1988, p.38-39).

Naquele contexto, além do desenvolvimento econômico – que promoveu tanto


alterações na paisagem urbana quanto na própria vida social da cidade – Parnaíba ganhou, o
que viria a ser, seu mais importante arauto dos valores da vida moderna, o Almanaque da
Parnaíba. Este, criado por Benedicto dos Santos Lima (Bembem)34, em 1923, além de
registrar os novos modos e modas da elite local, as transformações urbanas, os principais
produtos consumidos e os fatos comezinhos do cotidiano, foi também um veículo
modernizador que procurou instituir um padrão de gosto e consumo a partir do culto à
civilidade, ao progresso e aos bons costumes. Além de registro econômico e político, o
Almanaque também possuía sua coluna social que ilustrou os momentos de descontração e
lazer das famílias abastadas: a prática do “football”, os bailes de carnaval, os eventos cívicos e
religiosos, enfim, as formas de intercâmbio social e os “rituais de civilização”.
A ampliação da rede de contatos com a Europa e com os grandes centros urbanos do
país favoreceu o surgimento de novos espaços de sociabilidade que tinham como pano de

“Estórias de uma cidade muito amada (1995)” e “Crônicas de um tempo incerto (1996)”. É membro do Instituto
Histórico e Geográfico e Genealógico de Parnaíba (IHGGP) e da Academia Parnaibana de Letras, cadeira n.23.
34
Benedicto dos Santos Lima, nasceu no povoado de São Raimundo (MA) em 27 de maio de 1893, filho de José
Estevão dos Santos, agricultor, e Genuína Correia Lima. O Bembem, como era conhecido, viveu parte de sua
infância no Maranhão, até que, em 1910, vem residir em Parnaíba. Trabalhando no pé do balcão, Benedicto dos
Santos Lima dividia seu tempo entre o trabalho e o estudo. Autodidata, procurou compensar a falta do ensino
formal. Já em 1917, Benedicto dos Santos Lima abre seu próprio negócio, a Mercearia Bembem, que aos poucos
vai se mostrando um empreendimento de grande sucesso. Leitor voraz, não faltava em sua Mercearia espaço
para livros das mais várias áreas do saber, tampouco pessoas interessadas em discutir diversos assuntos.
Benedicto dos Santos Lima, em 1923, influenciado por uma série de almanaques patrocinados por empresas
comerciais, como o Almanaque Bristol, o Almanaque do Pensamento e o Almanaque Bertrand etc., resolve, ele
mesmo, patrocinar a partir de sua Mercearia, seu próprio Almanaque. O ano de 1923 serviu para coleta de dados
e organização do que viria ser, no ano seguinte, o primeiro número do Almanack da Parnahyba, oferecido como
uma lembrança da Mercearia Bembem. O Almanaque com certeza foi além das expectativas de seu criador, já
que ao longo de sua existência provou ser mais que uma lembrança, se constituiu num importante documento
sobre a sociedade piauiense e parnaibana no século XX. Bembem ficou à frente do Almanaque até 1941, quando
repassou seus direitos a outro comerciante da cidade, Ranulpho Torres Raposo. Benedicto dos Santos Lima
também se dedicou ao jornalismo, escrevendo em jornais locais. Benedicto dos Santos Lima veio a falecer em 21
de agosto de 1958 na cidade do Rio de Janeiro, deixando esta contribuição à história e às letras piauienses.
37

fundo a manutenção do prestigio da elite, a ostentação da riqueza, ou mesmo o


estabelecimento de compromissos políticos e comerciais. A vida social, portanto, foi marcada
pelo compartilhamento de experiências comuns que intensificaram tanto as trocas simbólicas
quanto a exibição pública. Dessa forma, a belle époque parnaibana também pôde ser
visualizada a partir da variedade de “diversões bem comportadas” que o contexto de euforia
econômica propiciou. Assim, além dos eventos públicos realizados na Praça da Graça, a vida
social parnaibana igualmente acontecia em ambientes restritos como os clubes privados e as
reuniões familiares.

Notadamente, uma das diversões mais disputadas naquele período eram os bailes no
Cassino 24 de Janeiro (fig.5). O Cassino era para a cidade uma espécie de vitrine da moda e
dos novos costumes. Nele, tanto homens quanto mulheres procuravam imitar o figurino em
voga nos salões metropolitanos. Elas, desfilando sempre longos e comportados vestidos (o
decote era apenas um detalhe suficiente para realçar alguma jóia ou algum traço mais
marcante da anatomia); os cabelos, geralmente em coque para as mais velhas ou curto e mais
ousado para jovens. Eles, invariavelmente de “summer jacket” ou terno branco com gravata
borboleta, sapatos bem polidos, cabelos e bigode alinhados; O perfume era francês; bebia-se
os licores da terra sendo o restante tudo importado; a música, que não podia faltar, variava
com a ocasião transitando entre o popular e o erudito, ia da polca para a valsa, da valsa para o
tango, deste para o maxixe, o xote etc; no carnaval, que também chegou a ser realizado no
38

interior do Cassino, imperavam as marchas, o samba, o foxtrot, além das músicas de


compositores locais. Estes encontros exigiam dos jovens um pouco mais de sociabilidade
porque ali era uma oportunidade de encontro e estreitamento entre famílias;
consequentemente aumentavam-se as chances de causar uma boa impressão, de arranjar um
namorico ou até quem sabe até um bom casamento. Mas a regra era bem clara para eles e,
principalmente, para elas: Moça Sozinha, Nunca!35
Um outro aspecto curioso nesses bailes realizados no Cassino 24 de Janeiro é o que
ficou conhecido como o “sereno”, que era o nome que se dava aos que ficavam de fora
acompanhando o baile pela janela, no “sereno da noite”. O sereno era amplamente concorrido,
pois dali, mesmo de fora, dava para observar e interagir com quem estava dentro. Vaiava-se e
aplaudia-se conforme a ocasião; comentava-se o que as damas vestiam; com quem se
relacionavam; quem dançava mais “colado”; quem estava flertando com quem, etc.; o sereno
era verdadeiramente uma “janela” para a vida social parnaibana. Embora, em alguns
momentos, demarcasse claramente os lugares sociais, colocasse em posições opostas os “de
dentro” e os “de fora” naquela sociedade. Esse espetáculo é assim relatado por um
freqüentador assíduo das festas no Cassino.

Dava gosto ir a um baile no Cassino! O assoalho de tábua corrida brilhando,


tudo muito bonito, tudo muito limpo. A iluminação era feérica. Ainda não
entrara na moda a meia luz, nos clubes sociais. Isso era coisa de ambientes
excusos: cabarés para ser mais exato. As mesas das janelas eram as mais
disputadas, e seus ocupantes confraternizavam-se no decorrer do baile com a
turma do “sereno”. SERENO para quem não sabe, era a platéia formada pelos
ocupantes dos caixotes, tambores e congêneres que, eram acorrentados nas
sacadas das janelas, de manhã cedo nas grandes festas, e vigiados pelos
moleques o dia todo, para não perder o lugar. Era composto também por
pessoas da sociedade, que por um motivo ou por outro, não podiam participar
diretamente da festa, e se acotovelavam e se equilibravam num espaço exíguo,
a fim de não perder um lance sequer do que se passava no salão. A
participação da galera, não se limitava apenas em ver e sim em tomar parte
com vaias ou aplausos conforme os acontecimentos do “espetáculo”. No dia
seguinte antes das personagens acordarem, todo mundo já sabia dos novos
pares, dos trajes, das desavergonhadas que dançavam “colado”, ou de
inocentes beijos concedidos por alguma mais assanhada. A verdade era que o
espetáculo nunca decepcionava. (ARAKEN, 1988, p.42).

O carnaval também era outro espetáculo que possuía essa característica de


protagonismo da elite. Embora reconhecidamente como uma “festa popular”, o carnaval no

35
Segundo Carlos Araken: “O rapaz nunca dançava com a mesma moça mais de um ‘pulado’. Se ficasse
conversando no salão até a contradança, implicaria em namoro ou coisa mais seria. As moças só entravam no
clube acompanhadas de seus pais ou familiares. Moça Sozinha, Nunca! Não era de bom tom; se alguma a tal se
aventurasse, estava na boca do povo.” (ARAKEN, 1988, p.43).
39

Cassino era acima de tudo uma festa da alta sociedade. Existiam blocos masculinos,
femininos e mistos que disputavam entre si as melhores apresentações e figurinos. Já o
carnaval de rua, promovido pela municipalidade, envolvia todas as classes sociais, pessoas de
todas as idades e das mais variadas profissões. Geralmente era realizado na Praça da Graça e
nas suas imediações, contava sempre com a presença de blocos fantasiados fazendo alusão
aos mais diferentes temas; havia desfiles de agremiações e clubes com seus hinos e
estandartes; corsos de automóveis repletos de foliões; batalhas de serpentina e confetes; além
do inebriante lança-perfume, uma prática comum tanto no salão quanto na rua e que,
dependendo da marca e da embalagem, acabava sendo um sinal de distinção social ou
simplesmente apontava quem estava mais disposto a investir na brincadeira. Nas palavras de
um cronista social:

A essa altura, já estava travada no salão uma verdadeira batalha de confetes,


e serpentinas, acrescida e enriquecida pelo cheiro bom de lança-perfume
que impregnava tudo. Rodo ou Colombina, de vidro ou de metal, eram as
armas usadas no entrevero. Incrível como se gastava tanto lança jogado nos
outros, principalmente nas meninas. A insistência no jato era sinal de
interesse. Quando havia retribuição, era o céu. Muito namoro começava
assim. (Ibidem, p.45).
40

O próprio Almanaque da Parnaíba muitas vezes registrou esse entusiasmo em torno


dos bailes de carnaval, como é possível percebermos através da imagem anterior (fig.6) do
carnaval de 1931. Nela, um grupo feminino apelidado de “Bolonezas” posa para o registro
fotográfico do anuário. Note-se a elegância do grupo, as fantasias bem ornadas e, claramente,
a participação das mulheres na folia carnavalesca. Além das diversões no Cassino e do
carnaval de rua, outro lugar de encontro e sociabilidade era o cinema.
Notadamente, o cinema firmou-se no cotidiano das cidades como uma expressão da
vida moderna. Além de fazer frente ao teatro, o cinema se tornou um elemento chave para a
divulgação da moda, de um novo repertório gestual, de falas e comportamentos. Segundo a
historiadora Teresinha Queiroz:
Os reclames e noticias sobre o cinema nas primeiras décadas do século XX
associavam-no ao mundo moderno, como forma de lazer respeitante a toda
“sociedade universal”, como indústria mobilizadora de um capital de
milhões de dólares, como veículo educativo e moralizador, e ainda em sua
relação com os costumes em mudança. Era também focalizado enquanto
diversão do futuro e, em interface com a religião, era visto como invento
diabólico, responsável pela crise social e econômica das famílias, pelas
levas de suicídios e crimes do período e por outros comportamentos
mórbidos e espetaculares. Em sua versão de ditador de modas e toaletes,
impunha modos novos de sentar, por exemplo, com as pernas cruzadas, de
olhar, de fumar, então seguido pelos cavalheiros e até de flertar, pois o
cinema, e, sobretudo o hall do cinema, eram tidos como locais e
circunstancias apropriadas para o flerte, diversão recente e de efeito
momentâneo e fugidio como o das projeções. O cinema indicaria o tom e a
velocidade do mundo moderno, da sociedade do futuro. (QUEIROZ, 2008a,
p. 52-53).
41

No caso de Parnaíba, o Cine Teatro Éden (fig.7) – inaugurado em 1924 e com


capacidade para até 1.200 expectadores – se configurou como um local de encontros, lazer e
desentediamento; mais do que isso, ele aos poucos foi se tornando um ponto estratégico para a
observação da vida social da cidade. Nele, o espetáculo não estava restrito apenas à telona,
mas se estendia ao próprio ritual que precedia a exibição da película. Como um espetáculo
recente, o cinema atraia “uma pequena multidão”. Para essa clientela, que aos poucos foi se
habituando às sessões de exibição, o cinema foi se tornando um lugar de atualização, de
aprendizado e de ostentação pública. Freqüentar o cinema era chic, era uma das formas de
distinção da elite, uma oportunidade para o reconhecimento de si mesma e das novas formas
de comportamento baseadas na civilidade e nos bons costumes. Esse ritual que precedia ou
sucedia a exibição do filme era acompanhado por toda uma performance por parte do público
que, de detalhes como o vestuário, o “silêncio” no interior do recinto, à própria divisão dos
espectadores por hierarquia social, marcavam o caráter elitista do espetáculo, como se pode
observar abaixo na descrição anotada por um cronista social da época:

20:30 Hs, de um domingo qualquer. Uma pequena multidão vai entrando


pela porta principal do cinema. Senhoras em seus melhores trajes e jóias.
Homens em sua fatiosa domingueira. Todos vão se acomodando e tomando
seus lugares na sala. Os camarotes do lado esquerdo, com placas de nomes
tradicionais da cidade: os Campos Veras, os Mendonça Clark, os Neves da
Silva, os Moraes Correia e muitos outros. Todos se cumprimentam e fazem
acenos amigáveis. Um perfume bom paira no ar. Nos camarotes do lado
direito a rapaziada da terra, comportada de acordo com o ambiente, tenta
localizar no salão, namoradas retardatárias. Uma outra “mulher da vida”, se
aventura furtivamente a sentar no lado direito, junto aos homens. Na meia
luz que precede a exibição da película, o silêncio é quebrado pelo leque das
damas, o farfalhar das sedas dos vestidos e o murmurinho civilizado do
pessoal de boa linhagem. Um frisson toma conta da sala, o filme vai
começar.(ARAKEN, 1988, p.34).

A vida social, agora ampliada por estes novos espaços de sociabilidade, também foi
marcada por outras relações. Notadamente, esse contexto de maior proximidade da economia
parnaibana com os principais centros econômicos do Brasil e da Europa favoreceu não só
entrada de muitos produtos “sofisticados” e “necessários” ao consumo da elite (o automóvel,
a louçaria, a toalete, o mobiliário, os abajures e lâmpadas, etc.)36, como também a entrada de

36
Segundo Marc Theophile Jacob, “[...] durante o tempo em que os navios da Europa entravam em Amarração, a
população da pequena vila e a de Parnaíba, usava o linho escocês, o perfume francês, o cimento em barricas,
vindo da Bélgica, de onde também viria o arame farpado e o preto recozido usado, este último, na construção dos
currais para o aprisionamento de peixes, o ferro e os instrumentos de trabalho vinham da Alemanha ou da
Inglaterra, machados, facões, enxadas etc., as louças eram alemãs, francesas, inglesas e até japonesas; as
mulheres usavam sedas francesas, sombrinhas da moda e tudo quanto lhes era dado consumir.” (JACOB, 2006,
p.294).
42

algumas famílias estrangeiras na “high society” parnaibana. Dessa forma, a presença destas
famílias foi aos poucos se tornando um fato corriqueiro no cotidiano social da cidade. Conta-
se entre os estrangeiros habitando em Parnaíba certo número de famílias francesas, inglesas e
37
sírio-libanesas; algumas vinham fugindo das guerras na Europa, outras apenas procuravam
melhorar de condição, tendo em vista o momento favorável da economia piauiense.
A presença da cultura britânica, tão bem notada por Gilberto Freyre (2000), talvez
foi a mais evidente, em termos de influência cultural, na cidade de Parnaíba. A cidade, logo
na primeira metade do século XIX recebeu uma Casa Inglesa; um estabelecimento comercial
onde a sociedade parnaibana passou a negociar praticamente de tudo, desde enxadas até
louças esmaltadas. Ela foi administrada inicialmente por Paul Robert Singlehust, que logo
depois passou o comando ao também inglês James Frederick Clark38. A Casa Inglesa por
muito tempo ligou o comércio de importação e exportação parnaibano diretamente com a
Europa, principalmente a partir dos portos de Liverpool e Amsterdã. Em vários anúncios do
Almanaque da Parnaíba ficou evidenciado a grande quantidade e variedade de sortimentos
oferecidos por essa casa comercial, que atendeu durante décadas tanto os consumidores de
Parnaíba quanto de cidades vizinhas.39
É interessante observarmos que muito mais do que ferramentas e produtos, o que
acabou também prevalecendo nessas trocas foi a influência da própria cultura britânica.40 O

37
Pelos sobrenomes mais comuns entre as famílias dá para se ter uma noção disso: Clark (inglês), Jacob
(francês), Baluz, Alelaf, Baracate (sírio-libanês) etc.
38
De Liverpool, James F. Clark chegou muito jovem em Parnaíba (1869) com a intenção de trabalhar na Casa
Inglesa de Paul Singlehust, este o aceitou e algum tempo depois, com a sua morte, James se tornaria proprietário
(1903) da Casa Inglesa. James F. Clark acabou se casando com uma moça de uma família tradicional, Ana
Gonçalves Castelo Branco, educada no Sacred Heart School, de Roehampton, nos arredores de Londres.
Tiveram seis filhos: Septimus J. F. Clark, Oscar Castelo Branco Clark, Frederico de C. B. Clark, Antonio C. B.
Clark, Maria C. B. Clark e Flora C. B. Clark.
39
Em um único anúncio no Almanaque da Parnaíba de 1941, a Casa Inglesa oferecia ao público os seguintes
produtos: “Aço, Alfazema “Ribeiro da Costa”, Alvaiade, Anil, Artigos Dentários, Arame Farpado e Liso, Armas
e Munições, Automóveis “Hudson”, Breu, Cal, Canella, Carvão, Cataventos “FAIBANKS-MORSE Eclipse”,
Chumbo, Cimento “Dolaport”, Cobre, Cuteleira, Cruzwaldina, Encerados, Enxofre, Estanho, Ferro de Engomar,
e fogões ultra modernos e econômicos, Folhas de Flande e Zinco, Ferragens em geral e para Arreios, Facões e
Machados “Collins”, Flit, Gasolina “Ensolene”, Geladeiras, Harmônicas, Kerozene “JACARÉ” , Lanternas
“COLEMAN”, Louça Esmaltada, Machinas de Escrever, Material Elétrico, Mercúrio, Miudezas, Motores, Óleo
Linhaça “Tigre”, Óleos Lubrificantes, Papelaria, Papel Imprensa, Parafusos, Perfumaria, Pilhas e Lâmpadas
Elétricas, Pimenta, Pregos, Rádios, “ZENITH”, Sal de Azedas, Salitre, Soda Caustica “CAVEIRA”, Tecidos,
Tintas, Vinhos, Winchargers, Zarcão.”
40
Segundo a historiadora Maria Cecília Nunes: “Com a presença dos ingleses em Parnaíba, começou a existir
toda uma produção de ideias de que a Inglaterra era hegemônica no trabalho e na superioridade cultural. Com o
tempo, essa forma de pensar ganhou concretude e passou ao imaginário coletivo de modo a refletir nos hábitos e
costumes dessa sociedade gerando assim um envolvimento para uma vocação empresarial. A partir dessa
vocação profissional, compreendendo que o modo de vida da sociedade parnaibana – na segunda metade do
43

sobrado da Casa Inglesa, por exemplo, era dividido em casa comercial embaixo e residência
da família em cima41, e era justamente nos andares superiores – com varanda, mirante e
móveis importados da Inglaterra e da Áustria – que parte da elite parnaibana se encontrava
para jantares familiares e saraus regados a muita música e “whisky”; como relata um cronista:

Quem não lembra com saudades o Terraço da Casa Inglesa? Foram noites de
grande esplendor. O encantamento começava na imponência da escadaria da
entrada, de madeira nobre, revestida de grossa passadeira de veludo vermelho.
Os metais dourados brilhavam, e faziam sombra aos aristocráticos lustres de
cristal. No primeiro piso estava o terraço, misto de jardim e dancing, cercado
de belas palmeiras, iluminação suave, que em noites de lua, por ela era
substituída. A fidalguia e o requinte dos donos da casa, os rapazes Bruce e
Sepinho, figuras saudáveis e belas, muito ingleses, por estirpe e por educação.
O uísque legitimo correndo solto, fazia a cabeça de todos. Eram noites
realmente deslumbrantes, difíceis de esquecer. Ali estava o melhor que havia
em nosso meio, todos absolutamente seguros de sua posição, e da solidez de
seu patrimônio. Bons e belos tempos aqueles! (ARAKEN, 1988, p.78).

A convivência com práticas culturais distintas, o caráter de troca dessas relações e a


construção de um imaginário coletivo em torno de uma pretensa superioridade cultural42 do
estrangeiro, de alguma forma acabou influindo na mentalidade e hábitos próprios da elite
parnaibana que ora copiava ora invejava o estilo dessas “refinadas” famílias. A partir de
influências recíprocas, aquela elite aos poucos incorporou novas práticas, falas e maneiras que
refletiram o dinamismo da vida social, bem como a multiplicação das formas de interação
pública. Assim, emergiram a prática lúdica do “footing” nas praças da cidade; o “footboll” 43

século XIX e primeira do século XX – foi influenciado pela formação desse imaginário profissional dos
empresários e burocratas de Parnaíba, onde a Casa Inglesa era vista como um espaço de formação técnica-
profissional. Espaço que exigia de seus funcionários competência, disciplina, responsabilidade e ética
profissional.” (NUNES, 2006, p.345).
41
Exatamente da maneira como Gilberto Freyre descreve as primeiras construções residenciais inglesas no
Brasil do século XIX: “Deve-se, entretanto, observar que os primeiros negociantes britânicos estabelecidos no
Brasil depois da abertura dos portos, instalaram-se, como os grandes negociantes da terra, nos andares superiores
dos próprios sobrados ocupados por seus armazéns. Foram esses sobrados o trampolim donde se atiraram aos
arredores, cheios de matas, das cidades – arredores que eles avistavam dos mirantes.” (FREYRE, 2000, p.189).
42
Embora neste caso seja preferível falar em “circularidade cultural” ao invés de superioridade cultural. Cf.
GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: o cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido pela Inquisição. São
Paulo: Companhia das Letras, 2006.
43
A influência da cultura européia se fez tão presente em Parnaíba que a introdução e a prática do futebol por
aqui se deu por intermédio desses contatos ainda no inicio do século XX. Em um artigo póstumo no Almanaque
da Parnaíba de 1974 intitulado: “Parnaíba eu te amo”, o engenheiro Antonio Frederico Clarck relembra sua
juventude na cidade parnaibana: “As suas ruas, sem calçamento, arenosas, serviam de campo para a disputa de
peladas homéricas com a primeira bola de foot-ball chegada no início do século XX ao Piauí e que foi presente
de Mr. James da firma Chamberlain Donner & Cia. de Manchester Inglaterra e que deu origem aos futuros
clubes do Parnaíba e Internacional.” (CLARK, 1974, p.225).
44

ou “crícket” implantados nas sociedades esportivas; o hábito do “breakfast” entre as senhoras


da elite; sem falar nas animadas “soireés” sempre realizadas por qualquer motivo nas casas
das famílias mais ilustres; há de se destacar também o aprendizado da própria língua
estrangeira que acabou fazendo parte do currículo obrigatório dos filhos das famílias
abastadas. Tendo em vista que o sonho da maioria dos rapazes que optavam por trabalhar no
comércio era estabelecer-se como representante de alguma casa comercial da cidade, o
domínio de outra língua (principalmente o inglês) era fundamental, era uma forma de garantir
sucesso social, e, sobretudo, profissional.
Enfim, a tentativa de adesão a estas práticas e a comunhão de mesmos valores e
modas identificadas nos principais centros culturais do Brasil e da Europa foi para aquela elite
uma condição necessária para a introdução de novas formas de associação, bem como para a
mudança de hábitos e costumes mais atualizados e condizentes com os “novos tempos”.
Embora, devamos considerar sempre o caráter singular destas relações, ou seja, as condições
particulares em que se realizaram essas trocas e o próprio reflexo disso em todas as camadas
sociais. Não podemos comparar ou generalizar essas mudanças no âmbito da sociedade
parnaibana sem considerar que o impacto desta influência ficou restrito basicamente ao
protagonismo daquela elite. Para o grosso da população o “espetáculo” da belle époque
praticamente inexistiu. Isso nos obriga a colocar em escala a própria dinâmica destas
transformações, que foram bastante pontuais e não necessariamente homogêneas e
compartilhadas por toda a sociedade. Embora, também não se possa negar que em Parnaíba a
euforia comercial – patrocinada pela expansão da economia extrativa no estado – repercutiu
na transformação da infraestrutura urbana e na vida social da cidade. Sem dúvida, o período
favoreceu a implantação de vários serviços públicos, assim como promoveu a entrada de
diversos produtos e utensílios que buscavam atender a demanda de uma elite ansiosa por ver
os sinais e instrumentos do progresso traduzidos em conforto material e sofisticação.
Dessa forma, nossa preocupação até aqui foi discorrer sobre esse período e as
principais transformações operadas a partir da entrada da cidade na dinâmica das trocas
materiais e simbólicas da modernidade, especialmente aquelas ocorridas na primeira metade
do século XX. Obviamente, a cidade/sociedade que acabamos de apresentar não teve um
percurso linear, ou melhor, uma “evolução” em direção ao progresso. Como afirmamos
anteriormente, nem todas as camadas sociais participaram dessas transformações ou mesmo
tiveram a oportunidade de interagir com muitas dessas novidades. Ainda que o comércio
fluvial e marítimo tenha fomentado o surgimento de fortunas rápidas, de ambições
desmesuradas e, ocasionalmente, alguma mobilidade social, estas foram quase imperceptíveis
45

diante das diferenças abissais entre os “de cima” e os “de baixo” naquela sociedade. Assim, a
paisagem urbana/humana de Parnaíba foi aos poucos concentrando de um lado uma burguesia
enriquecida e embevecida com o progresso material e de outro uma camada popular subtraída
dessas conquistas e para quem a modernidade foi muitas vezes apenas uma vaga notícia.
Todas essas manifestações em torno do propalado progresso da cidade atuaram como
catalisadores da vivencia cotidiana. Assim, se a idéia de progresso tão cultuada até meados do
século XX pelas classes mais abastadas da cidade era algo que se podia enxergar
materializado nas ruas comercias, no casario bem ornado ou nos gostos requintados da elite, a
segregação espacial também foi algo que acompanhou esta modernização urbana. Dessa
forma, a ampliação do perímetro urbano da cidade, juntamente com o adensamento
populacional em bairros mais afastados do centro, acabou empurrando parte da população
menos favorecida para áreas periféricas. As medidas modernizadoras e as transformações dos
espaços de circulação e moradia acentuaram as desigualdades locais. Esses fatos não apenas
impuseram certas restrições às camadas mais pobres como também evidenciaram o caráter
excludente daquela “modernização”. Referindo-se a esse aspecto, assim descreve a
historiadora Maria Cecília Nunes:

Naqueles anos dourados, toda a Parnaíba se embelezou e continuou a se


ampliar!... Particularmente no bairro Nova Parnaíba, que era habitado por
pessoas de classes menos favorecidas. Posteriormente aquele bairro foi
invadido pela modernização, com palacetes, bangalôs e residências com
amplos terraços e jardins floridos; com rosas coloridas que bailavam
perfumando e mesclando o espaço, além de plantas ornamentais migradas de
outras cidades ou regiões. Estas davam um toque de nobreza ao local. Tais
mudanças levaram os homens comuns, moradores dali, que habitavam com a
pobreza, a se sentirem mais próximos do urbano. Em casas de taipa cobertas
de palha, à luz de lamparinas, viviam estivadores, vigias, cozinheiras,
lavadeiras, engomadeiras, costureiras, quitandeiros e desempregados. Todos,
com família foram empurrados para locais como “Bebedouro” e “Curro”,
terrenos periféricos. (NUNES, 2006, p.349).

Quer dizer, como enxergar a tão anunciada “modernidade” à luz de lamparinas?


Como não contrapor a palha e a taipa, que serviam de materiais construtivos para a moradia
desses “homens comuns”, ao concreto armado e ao Art Noveau dos elementos decorativos das
residências de famílias abastadas? Quero afirmar com isso que a produção da realidade é (e
dever ser) contraditória. Assim, como não “estranhar” a ausência de pobres no cenário
urbano ou nos “cartões-postais” da cidade? Como não considerar que todo centro
automaticamente produz suas margens? Como não questionar a “identidade” de determinados
espaços urbanos? Se até aqui afirmamos que o auge da economia extrativa gerou um período
46

de rápidas transformações na cidade de Parnaíba, que se modernizou a partir da ação do poder


público e das demandas de uma elite comercial emergente, agora procuraremos problematizar
os lugares assumidos pelos pobres urbanos nesse cenário: quais as condições objetivas e
subjetivas definiram sua participação (ou não-participação) nesse processo? Até que ponto as
relações mantidas entre as diversas camadas daquela sociedade refletiram na própria estrutura
social? Se havia alguma mobilidade nessas relações? Enfim, quem eram os pobres daquela
sociedade? Como viviam? Como foram representados? Deixaremos para aprofundar estas
questões nos capítulos seguintes, onde procuramos problematizar justamente estes contrastes
na belle époque da cidade, buscando mostrar uma Parnaíba subjetivada a partir da tensão entre
o centro e a margem desse “progresso”.
47

2 A VIDA - (sobre)vivências no cais e outras artes

A sineta dos navios-gaiola, o apito mais grosso de uma


barca, o grito dos canoeiros, o barulho seco do arroz e
feijão pisados no cais, pareciam varrer com a brisa a
calçada escura, cheia de lembranças. Alguns flocos de
algodão, caídos dos fardos ou das barcas, acompanhavam a
correnteza barrenta, os postes traziam a luz fraca da
esquina [...] o rio mais seco mostrava as pedras secas do
outro lado. (BRASIL, Assis. Beira Rio Beira Vida. 2008,
p.123).

Trabalhoso e estafante seria, sem nenhum ponto de apoio,


querer traçar uma estatística biográfica de todos os bons e
maus costumes das diversas camadas sociais da cidade. Os
bons são apagados e modestos, não interessam a ninguém;
os maus, ao contrário, são brilhantes, pomposos, berram a
sua existência, estejam lá onde estiverem, interessam a
toda gente: noventa por cento das criaturas esconde
sigilosamente, sob a capa daqueles, o vulto diabólico
destes. E os chamados maus costumes ou vícios, de
preferência procuram a noite, (...), porque ela é a grande
protetora dos crimes, e carrega, no ondulado do seu
enorme e fantástico manto, um habeas corpus de sombra
que projeta todos os delitos cometidos nas suas negras e
misteriosas dobras. (FLOREAL, Sylvio. Ronda da meia-
noite, 2002, p. 100).

2.1 Todo o cais é uma saudade de pedra

As duas epígrafes acima cumprem uma função muito específica, além de nos
introduzir nas discussões desse capítulo, são verdadeiros convites para pensarmos dois lados
de uma mesma realidade. A primeira epígrafe pinta um quadro do universo do trabalho no
cais do porto de Parnaíba: com o seu barulho característico; com o movimento cotidiano das
embarcações e dos embarcadiços; com a lufa-lufa de gente e mercadorias na tarefa de
produzir materialmente a existência; e o rio, o grande veio e veia dessa história, dessa beira-
vida. Já a segunda, lança luz sobre os costumes, melhor dizendo, sobre os “maus costumes”
que a noite tende a encobrir nas dobras do seu “fantástico e sombrio mistério”. Fala dos
“vícios”, das diversões mal comportadas, das fuzarcas e do sexo pretensamente ilícito nos
“submundos” da cidade. Ao nos voltarmos para estas “coisas miúdas” do cotidiano, para estes
atos anônimos, percebemos que a realidade social nada mais é do que a soma destas histórias,
destas vivências, e que a vida, na sua (des)continuidade e insustentável leveza, é de fato a
terceira margem do rio44, e é o que verdadeiramente interessa ao historiador enquanto

44
Cf. ROSA, João Guimarães. A terceira margem do rio. In: _________. Ficção Completa. Rio de Janeiro: Nova
Aguilar, 1994, v.2, p. 409 – 413.
48

profanador do passado. Assim, segundo Carlo Ginzburg, “o olhar aproximado nos permite
captar algo que escapa da visão de conjunto, e vice-versa.” (GINZBURG, 2007, p. 267).
Da mesma forma, a cidade é um ajuntamento de percursos, de modos de ser, de
produzir, de gozar, de morrer, enfim, de existir enquanto fluxo (in)determinado. A cidade é a
materialização da existência humana, do seu trabalho e da sua capacidade de produzir o
espaço - poesia e sobrevivência. Dessa forma, enveredando neste capítulo por estas histórias,
sondaremos o cotidiano do trabalho e do lazer no esplendor econômico da belle époque
parnaibana; mais especificamente as relações entre o trabalho e a “vida noturna”, entre o
movimento do cais e o da cama. Abordaremos mais detidamente alguns aspectos do universo
do trabalho no cotidiano do cais de Parnaíba, bem como as relações mantidas, no trabalho e
no lazer, entre as diversas categorias profissionais naquele espaço no instante mesmo em que
a cidade ia se firmando enquanto pólo econômico e urbano. Procuraremos reunir distintas
formas de produção da realidade social a partir das representações sobre a experiência
cotidiana dos pobres urbanos, tratados aqui como trabalhadores do rio45, e sobre os espaços de
sociabilidade (cais/botequim/cabaré) freqüentados por eles.
Os trabalhadores do rio, como aqueles que efetivamente estavam desde os primórdios
desta Capitania do Piauí na ponta de baixo do processo produtivo, foram talvez os mais
injustiçados pela historiografia piauiense ao longo do tempo. Ela “louvou” o bandeirante, o
vaqueiro, os coronéis, os heróis, os governadores, etc., e relegou ao quase esquecimento tanto
o rio quanto seus trabalhadores, aqueles que direta (embarcadiços, vareiros, estivadores,
carregadores d´água, lavadeiras de roupa, pescadores, etc.) ou indiretamente (prostitutas,
quituteiras, quitandeiros, mascates, feirantes, etc.) dependiam do rio ou do movimento deste
para retirar sua fonte de renda, sua sobrevivência material. Contar estas histórias fugidias de
personagens reais que deixaram algum registro, quase sempre involuntário, de seus momentos
de luta renhida pela sobrevivência, ou de seus (des)amores nos momentos de intimidade e
descontração, é ampliar a possibilidade de entendimento das relações mantidas entre os vários
agentes sociais, é afirmar que o conhecimento histórico é uma via de muitas mãos, que pode
fornecer múltiplas respostas às questões do presente.

45
Utilizarei o termo “trabalhadores do rio” para significar uma gama considerável e diversificada de
trabalhadores autônomos, sindicalizados ou não, que sobreviviam direta ou indiretamente do incessante trabalho
no rio Parnaíba ou no cais de Parnaíba. Dessa forma, me esquivo de utilizar conceitos mais complexos do ponto
de vista formal e histórico, como por exemplo, classe operária, embora não o descarte completamente, sobretudo
se considerarmos a concepção thompsoniana que põe em relevo as experiências compartilhadas por estes
indivíduos.
49

Como se sabe, a influência dos portos na vida das cidades alteram seu ritmo próprio
complexificando as relações sociais, principalmente aquelas que giram em torno do mundo do
trabalho. A cidade de Parnaíba teve sua história marcada pela presença de um porto fluvial,
que desde os primeiros núcleos urbanos serviu de norte para seu crescimento e formatação
econômica. O Porto das Barcas acompanhou os ciclos da economia piauiense, congregando
em cada uma das suas fases diversas categorias profissionais que, ora em rio, ora em terra,
faziam circular os mais variados produtos. Ao longo da primeira metade do século XX, o
Porto das Barcas, juntamente com sua alfândega, foi o “eldorado” da economia parnaibana.
Prova disso foram os lucros sempre crescentes e a euforia dos que tinham negócios por lá.
Ao se observar atentamente por alguns minutos o centro antigo de Parnaíba percebe-
se o quanto a geografia do lugar marcou as formas de loteamento urbano. O seu traçado atual
só pode ser entendido a partir da relação da cidade com o rio e, consequentemente, com o
porto que se avoluma diante dela e parece convergir todas as ruas em sua direção. As
edificações urbanas que compõem a paisagem daquela região denotam o grau de influência
das atividades do rio na vida daquelas populações ribeirinhas, que dependiam
economicamente do movimento e do trabalho do cais para sua sobrevivência. Um panorama
descritivo da cidade de Parnaíba, recolhido de Renato Castelo Branco46 e reproduzido abaixo,
detalha melhor como a cidade era distribuída social e materialmente em relação ao cais do
porto, aos ofícios e agentes sociais em meados da década de 1930.

A cidade, propriamente, tinha em minha infância uns quinze mil habitantes –


era o centro, com jardins arborizados, ruas calçadas, luz elétrica, igrejas altas
e bonitas e um palacete moderno e imponente erguendo-se, de quando em
quando, entre o casario baixo de estilo colonial. Em frente à cidade fica o rio,
onde ela termina com seu cais de pedra, bem alto, e uma fileira de grandes
armazéns de propriedade dos exportadores. O cais era pitoresco e
movimentado, cheio de enormes barcaças, ora descarregando as mercadorias
que vinham do interior, ora recarregado-as para o transporte até Tutóia ou
Amarração, os portos marítimos por onde se processava a exportação do
Estado. Subindo ou descendo o rio, passavam constantemente os “gaiolas”,
rebocadores de todos os tipos, grandes e pequenos, arrastando atrás de si uma
procissão de barcos, lotadas ao máximo, as águas do rio lambendo as bordas
da coxia. Ou cruzavam barcas isoladas empurradas pelos vareiros hercúleos,
com suas enormes varas apoiadas no peito. E passavam também os veleiros,
que vinham do Maranhão e do Ceará; as canoas que iam para as fazendas

46
Renato Pires Castelo Branco nasceu em Parnaíba (PI) em 1914. Formado em Direito pela Faculdade Nacional
de Direito da Universidade do Brasil em 1937, destacou-se de fato como Publicitário sendo um dos fundadores
da Associação Paulista de Propaganda (APP) e da Escola de Propaganda do Museu de Arte de São Paulo. Como
escritor, publicou mais de vinte obras de temas que vão do romance histórico a livros de memória. Destacam-se:
“O Piauí: a Terra, o Homem, o Meio” (1970); “Tomei um Ita no Norte” (1981) e “O Rio Mágico” (1987).
Renato Castelo Branco ocupou a cadeira n.15 da Academia Parnaibana de Letras (APAL). Faleceu em São Paulo
no ano de 1995.
50

vizinhas, cheias de gêneros; as lanchinhas de esporte, velozes, em que os


filhos dos coronéis e dos exportadores disputavam corridas, ou apostavam
para ver quem passava de fino numa barcaça que descia o rio. (...). Daí
Parnaíba se estendia, primeiro através das ruas comerciais, onde ficavam as
casas exportadoras e importadoras e os escritórios de representação. Depois,
vinham as lojas dos turcos, os armarinhos, as casas de tecidos. Depois as
residências dos empregados do comércio, casas baixas e antigas, pintadas de
cores vivas – vermelho, amarelo, azul. E, por fim, as zona mais chique dos
palacetes, dos chalés, dos bangalôs de estilo moderno, cercados de casuarinas,
de mangueiras, de palmeiras, de jardins floridos. Em torno deste núcleo,
estendiam-se os bairros proletários, uma enorme cinta de palhoças e casebres,
onde as ruas não eram calçadas, não havia jardins nem praças arborizadas e
onde os fios elétricos não chegavam. (CASTELO BRANCO, 1981, p.19-20).

A imagem seguinte (fig.8), também da década de 1930, provavelmente a primeira


fotografia aérea de Parnaíba, demonstra bem isso, onde se pode notar claramente sua principal
artéria urbana, a Avenida Presidente Vargas (A), convergindo diretamente ao Porto das
Barcas, bem como a concentração de grandes armazéns (B) e residências ao largo de todo
esse trecho do porto.

Parnaíba, ao que se percebe, era uma cidade movimentada, pulsante, e que oferecia
uma paisagem de contraste entre o “chique” dos palacetes e bangalôs em estilo moderno do
51

centro, com o “popular” dos casebres de palha nas áreas periféricas. Estes, sem a mínima
condição de fazer frente ao luxo daqueles, em nada representavam os estilos arquitetônicos
adotados naquele período pela elite comercial da cidade. Ao contrário, compunham uma
“cinta de palhoças e casebres” em desalinho com a harmonia urbana que se almejava. Assim,
o que se pode evidenciar é uma cidade de extremos, com uma organização social
hierarquizada em torno das atividades do comércio, bem como das profissões que também
vão se hierarquizando, que tomavam corpo mediante as relações que se mantinham entre elas.
Enfim, a própria estrutura urbana, enfatizada na descrição anterior, reflete bem os
condicionantes sociais de determinadas categorias que, vivendo “no escuro” do
desenvolvimento econômico da cidade, apenas existiam pobremente no auge do esplendor
comercial de Parnaíba, em plena belle époque.

2.2 Os trabalhadores do rio

A dimensão do trabalho é uma das mais evidentes quando se observa o cotidiano


social das cidades. Em todos os cantos, desde o instante em que o trabalho deixou de ser feito
quase exclusivamente nas oficinas domésticas, se vêem trabalhadores pululando na paisagem
urbana. Assim acontece nas grandes e pequenas cidades, umas com um ritmo mais acentuado,
outras mais lentas, mais pingadas, mas com certeza não existe esta cidade que não tenha seus
trabalhadores, sejam eles de fábricas, do comércio, ambulantes, autônomos, portuários,
domésticos, liberais, de “bico”, etc., enfim, salta aos olhos a quantidade e variedade de
trabalhos e trabalhadores nas cidades. Maria Stella Bresciani, por exemplo, assim descreve o
“espetáculo assustador” das ruas londrinas no período da transição do processo produtivo em
plena revolução industrial.

Toda a agitação anotada pelos contemporâneos se compõe com milhares de


homens e mulheres no transito cotidiano de suas casas para seus empregos,
resultado evidente do declino do sistema doméstico de produção. Impelidos
para o mercado de trabalho, vêem-se na contingência de se deslocarem a pé
por ruas estreitas e irregulares, impróprias para a passagem de pedestres.
Num cenário de cerca de duas milhas de extensão, a grande novidade é a
exteriorização da atividade do trabalho. É a amplitude dessa exposição
pública das atividades do trabalho o que choca os contemporâneos. Nessa
exteriorização, que produz a identidade social do trabalhador, o que mais
espanta é estar esse homem coberto com os sinais da miséria, considerados
até então atributos de velhos e doentes, dos incapacitados em geral.
(BRESCIANI, 1982, p.50-51).
52

Justamente como “espetáculo”, o trabalho vai assumindo uma forma de


exteriorização pública da miséria. O trabalhador vai ostentar no corpo os sinais visíveis que
logo identificaram o seu oficio, como o fardamento, as ferramentas que carrega, determinados
resquícios que ficam na pele ou nas vestimentas (a graxa, a tinta, as fuligens, o barro, etc.), o
local de trabalho, enfim, tudo o que possa enquadrá-lo em alguma categoria profissional.
Porém, estes mesmos sinais irão denunciar publicamente sua posição dentro do processo
produtivo, quem sabe até definir sua relação com os outros grupos profissionais. Seus
contatos com esta nova coletividade – organizada ou não – tanto podem aproximá-lo por
identidade ou por afinidade de interesses, quanto distanciá-lo por incompatibilidade funcional
ou social. No entanto, será a partir desses elementos que se estabelecerão as bases específicas
daquilo que Eric Hobsbawm chamou no plural de “mundos do trabalho”47. Ou seja, daquilo
que não está restrito unicamente as atividades materiais, mas que envolvem todos os
processos culturais, políticos, afetivos, históricos, etc., da (re)produção social da existência.
Nesta compreensão mais abrangente dos mundos do trabalho é que ancoramos nosso
percurso narrativo em busca dos trabalhadores do rio no Porto de Parnaíba. E não poderíamos
iniciar esta caminhada sem apresentá-lo, mesmo que de relance, em uma imagem de 1939
onde se pode aferir um trecho do dito porto, mais especificamente, próximo ao antigo
armazém da firma de representações Bessa & Cia.

Esta imagem é importante porque ela já nos introduz num aspecto que sempre se
sobressaia na paisagem do local, que era a presença dos enormes armazéns onde se estocavam

47
Cf. HOBSBAWM, E.J. Mundos do Trabalho: novos estudos sobre história operária. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 2000.
53

os produtos que chegavam e saiam para os mais diferentes destinos. Alguns destes armazéns,
hoje a maioria em ruínas, datam ainda do período colonial e já receberam, enquanto espaço
físico, variados usos. Presença constante nas falas e representações sobre o porto, os
armazéns, vez ou outra quando das cheias que por lá se registraram, eram invadidos pela água
e a lama do rio. Estas cheias ficaram registradas48 tanto na memória quanto no imaginário
social da cidade. As populações ribeirinhas eram as mais atingidas, logo, eram obrigadas a
aceitar impotentes as águas carregarem o pouco que ainda restava. Mas o que sempre atraia
mesmo era o movimento. Os trabalhadores da estiva carregando e descarregando as
embarcações, as sacas empilhadas dentro ou fora destes gigantescos galpões, e os curiosos,
sempre atentos ao menor detalhe, não perdiam lance algum daquele ritual cotidiano. É o que
nos relata novamente Renato Castelo Branco, dando conta, ainda na década de 1930, de
alguns detalhes deste agitado e abarrotado espaço do Porto das Barcas.

No cais, quando os armazéns estavam abarrotados de mercadoria esperando


navio para embarque, empilhavam-se às vezes, ao ar livre, sacas de babaçu ou
carnaúba, fardos de algodão ou de jaborandi, ou peles de boi, cobertas com
enormes encerados, como proteção contra as chuvas. E entre as sacas e os
armazéns, fervilhavam os estivadores, a catraia, os vareiros, os embarcadiços,
só de tangas, pés descalços, tronco nu, uma faca marinheira pendurada na
cintura, ou um grande punhal, o “espin”, que é sua arma seu companheiro, seu
tudo. À cabeça levava um saco de estopa, ora em carapuça para proteger do
sol e da chuva, ora em “rodia” para amortecer o peso das cargas. E entre esta
população inquieta, brincalhona, debochada, passava em manga de camisa os
empregados de escritório, lápis atrás da orelha, caderninho na mão, contando
as mercadorias, controlando as sacas transportadas pelos estivadores das
barcas para os armazéns, dos armazéns para as barcas. (CASTELO
BRANCO, 1981, p.20).

Na imagem seguinte (fig.10), vemos os carregadores da estiva, eles que foram os


verdadeiros braços do trabalho no cais de Parnaíba. Nesta fotografia, os estivadores foram
registrados em plena atividade no porto, onde eles literalmente carregaram nos ombros o peso
da economia parnaibana.

48
Na edição do Almanaque da Parnaíba de 1967 podemos ler um artigo intitulado “A revolta do rio”, onde o
autor, Álvaro Ferreira, faz a seguinte descrição: “Lembra-se o leitor, por certo, das últimas enchentes do nosso
velho Parnaíba. As águas subiram, subiram, e o rio virou moço, como no passado já distante, quando seguia sem
embaraço para a confusão com o mar. Avolumou-se. Ergueu a ossatura gigante no ímpeto de quem desperta para
a conquista da vida ameaçada. E se lançou fora. Invasor, não temeu conseqüências. A cidade era o seu objetivo
maior. Não lhe interessava tanto. Queria engoli-la de um trago. De uma só vez. Para que a vingança fosse
completa.” (FERREIRA, 1967, p.91). Ainda hoje a região de entorno do Porto das Barcas sofre as conseqüências
de um não planejamento urbano inicial – àquele que data do período de estabelecimento da Vila da Parnaíba, que
seguiu o estilo prático da colonização portuguesa de estabelecer-se próximo à margem de grandes correntes
navegáveis. Assim, a região continua sendo uma área alagadiça, muito povoada e impraticável do ponto de vista
urbano.
54

Como se sabe, as lutas pelos direitos49 do trabalho no Brasil foram marcadas pela
superação de uma longa tradição escravista, que muito influenciou na construção de uma
identidade do trabalho e do trabalhador, principalmente na passagem do século XIX para o
século XX, quando se assistiu a transição do modelo escravocrata para o trabalho livre.50 Essa
passagem acentuou as diferenças (cor, sexo, idade, nacionalidade, classe social) e acirrou os
conflitos diante das condições materiais de reprodução da existência. Mudanças que também
afetaram o universo mental, ou seja, viu-se o esfacelar de um mundo marcado pelo
paternalismo e acostumado com a presença do escravo, que se coloca diante de um “novo”
contexto social, marcado pela inclusão na ordem capitalista e pela presença massiva do
trabalhador “livre”e assalariado.
A imagem acima é um “retrato” das condições de trabalho a que estavam
submetidos os estivadores no cais do porto de Parnaíba até meados do século XX. Um
trabalho evidentemente braçal, que demandava uma grande quantidade de homens na
execução da estiva e desestiva de mercadorias. Como se pôde perceber na imagem, havia

49
Cf. GOMES, Angela de Castro. Cidadania e direitos do trabalho. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2002.
50
Cf. CHALHOUB, Sidney. Visões da Liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na corte
imperial. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
55

certa distribuição de funções no interior daquela atividade. Uns ficavam responsáveis pela
retirada da mercadoria do porão das embarcações, a estes cabiam a tarefa de voltear as cordas
ou correntes ao redor da carga aprumada, e ao fim disso, dar sinal ao o operador do guincho
para suspender o volume até a parte de fora da embarcação, já na borda do porto. Após essa
primeira etapa, vinha outro trabalhador responsável por desamarrar a carga e liberar o guincho
para mais uma refrega. Enquanto isso, outro grupo já estava retirando a carga empilhada e
levando-a direto para os armazéns. Todos descalços, chapéu de palha ou pano atado à cabeça,
uns com cigarro na boca, outros contando as do dia, enquanto o trabalho ia sendo realizado,
quase sempre sob o olhar vigilante do patrão ou do gerente, que pra lá e pra cá ia
acompanhando atento o movimento se repetir até o último fardo.
Do ponto de vista dos instrumentos formais de organização do trabalho, sindicatos e
associações, por exemplo, não se pode afirmar que estes indivíduos estavam efetivamente
politizados ou encampando uma luta por melhorias nas condições de trabalho. A maioria
destes trabalhadores eram indivíduos que cresceram à margem do rio e da sociedade, e em
grande medida condicionados pela precariedade econômica, social, cultural, educacional.
Enfim, na maioria das vezes obrigados desde a infância ao trabalho embrutecedor e
degradante, à subserviência e a exploração. Fato que também denuncia a própria relação entre
patrões e empregados que, não apenas nesse tipo de atividade, mas em todos os outros setores,
sempre foram historicamente marcadas pelo autoritarismo da classe patronal e por certa
omissão do estado em criar leis que pudessem equilibrar ou dar maiores garantias aos
empregados. Como é sabido, no Brasil esse longo processo foi sendo construído
paulatinamente mesmo diante das turbulências políticas e econômicas nas quais o país se
envolveu em seu percurso até o estágio atual.
Outra categoria profissional bastante numerosa eram os “vareiros” (fig.11 e 12),
nome dado àqueles que tinham como único oficio atravessar pessoas e mercadorias de uma
margem para a outra do rio.51 O vareiro era alguém sempre requisitado, porque desde o
amanhecer do dia o movimento era grande, sendo praticamente incontáveis as idas e vindas
no final da tarde. Muitos eram os motivos que obrigavam as pessoas a cruzar o rio, já que
quase todas tinham algum afazer do outro lado. Algumas iam vender produtos no mercado,
outras iam visitar um parente, tinha os que iam comprar nas quitandas da cidade algum
mantimento para casa, outros só iam para os seus empregos no cais mesmo, enfim, uma gama

51
O oficio de vareiro na cidade de Parnaíba foi deixando de ser realizado com a construção da Ponte Simplicio
Dias na década de 1970, quando não mais se precisou utilizar do seu recurso para atravessar o rio, já que a ponte
uniu Parnaíba à outra margem, ao bairro Santa Isabel.
56

de atividades próprias do cotidiano, que sem o trabalho do vareiro seria impossível de se


realizar. Por isso, os vareiros, cortando as águas com seus enormes varejões, eram “os
senhores do rio”.
57

Na fotografia anterior (fig.12), mais aproximada, se distingue bem a perícia do


vareiro em conduzir a embarcação e a conversa com os passageiros. Note-se também a roupa
de lida, a calça dobrada até o joelho, a camisa em magas e o chapéu – velho inimigo do sol –
atolado na cabeça. Ao fundo se destacam alguns veleiros ancorados próximos ao cais. Um
detalhe curioso, e que não pode deixar de ser comentado, é que o fotógrafo, com certeza,
vinha fazendo o mesmo percurso em outra embarcação logo atrás, já que pelo ângulo da
imagem se percebe a ousadia e oportunismo desta tomada.
Em seu livro de memórias, Raimundo de Sousa Lima52 fala do vareiro como um dos
principais responsáveis pelo progresso material de Parnaíba, como aquele que estava sempre
na dianteira do processo produtivo, se desgastando no sol para fazer circular mercadorias e
pessoas, patrões e empregados, bem nascidos e mal vividos. Segundo ele:

(...) o homem do rio ou o “Vareiro” propriamente dito foi a pedra angular na


formação do império comercial desta região, cabendo-lhe por isto mesmo
lugar de destaque na ação aglutinadora em que de pronto se transformaria.
(...) O homem fluviário estava sempre na linha de frente, garantindo sua
presença como fonte alimentadora da energia física na luta com suas barcas
e nalguns casos passando até mesmo desapercebido no torvelinho de sua
faina diária. (SOUSA LIMA, 1987, p. 23).

De certa forma, essa “faina diária”, a que se refere Sousa Lima, era uma
demonstração pública da luta do homem contra o rio. A técnica de um contra a violência do
outro. E a vontade dos dois de vencer qualquer obstáculo. O vareiro já cansado no final da
peleja saia do trabalho como um artífice “medalhado”, como alguém que provou seu destemor
e seu “machismo” diante da difícil arte de brigar com o rio, da difícil luta pela sobrevivência.
Ainda de acordo com Sousa Lima, tratando dos vareiros, observa:

Foi-lhes abonada, sim, a suposta condecoração que ostentavam com orgulho


no peito estufado e maciço representada por aquelas duas “medalhas” ou
manchas enegrecidas, marcadas pelo uso diário do varejão. Era o “sinal” do
machismo que levava a peito por uma vida de sacrifícios que ele mesmo
muitas vezes desprezava, ao ser lançado no ar, pelo acoite do varejão. Era
52
Raimundo de Sousa Lima nasceu em Parnaíba (PI) em 1911. Negro e de origem humilde exerceu diversas
atividades, foi operário, vendedor ambulante, ferroviário, contabilista, despachante e jornalista. Autodidata,
colaborou com diversos jornais da cidade, inclusive com “Almanaque da Parnaíba”. Em sua única obra
publicada, “Vareiros do Parnaíba & outras histórias” (s/d), Raimundo de Sousa Lima conta vários episódios da
cidade de Parnaíba no auge da navegação fluvial. Utilizando-se de uma boa dose de ironia e criticidade,
Raimundo de Sousa Lima conta a história do apogeu econômico parnaibano a partir de personagens e figuras
marcantes que povoaram o cotidiano da cidade, em especial o vareiro, os bêbados e as prostitutas da beira do
cais. Sua obra é voltada para a descrição das injustiças e dramas daqueles que foram esquecidos pelo “progresso”
da cidade. Ocupou a cadeira de n.21 da APAL. Raimundo de Sousa Lima faleceu em Parnaíba em 1976.
58

precisamente no momento do tira-teima, se se partir a vara no apoio do


finca-pé contra a correnteza violenta: via-se então um homem atirado de
catapulta do convés, podendo estrepar-se na própria vara ou, no mínimo,
tomar um banho de trampolim. (Ibidem, p.16).

Em geral, o trabalho do vareiro era autônomo, cada qual possuía seu próprio barco,
comprado ou fabricado com os materiais próprios da região. Porém, o que mais o destacava
era, evidentemente, o varejão que ele utilizava para roçar o fundo do rio e criar a energia
necessária para o seu movimento. Um trabalho de força e jeito, que com a experiência
adquirida ao longo de sucessivas travessias logo se dominava. Até mesmo o Almanaque da
Parnaíba chegou a reconhecer a importância do trabalho do vareiro em duas de suas capas53.
Embora, a precariedade das condições de trabalho tenha se mantido até o ocaso dessa
profissão, quando os últimos vareiros foram substituídos pela Ponte Simplicio Dias, que
tornou desnecessário o seu trabalho. Ainda é Raimundo de Sousa Lima quem constata essa
forma de exploração a que estavam submetidos o vareiro e outras categorias profissionais
expropriadas da riqueza produzida em Parnaíba naquele período, e ele também lamenta o
desaparecimento dessa classe que não deixou rastro material algum de sua existência.

(...) o progresso foi baseado principalmente no oportunismo do esforço


alheio. Na energia daqueles que mourejando de sol a sol numa cruenta
batalha pela própria sobrevivência, atolados na completa ignorância em que
viviam, cedo desapareceram, sem deixar um marco sequer na caminhada
empreendida pela prosperidade material da região, da qual nunca
participaram. Desapareceram para sempre em menos de meio século de
labor intenso e proveitoso, só restando da classe numerosa que eram, vagas
e imprecisas referências como subsidio que se quis prestar à verdadeira
história. (ibid.id).

Na composição do universo do trabalho na beira do rio também se destacavam os


trabalhadores responsáveis pelo carregamento de água para alguns domicílios urbanos. Muitos
eram os que, se utilizando de pequenos animais de carga, logo cedinho ou no final da tarde
rumavam em direção ao rio para encher as ancoretas de água e retornar para a cidade. Era
geralmente um trabalho de “encomenda”, já que os carregadores d´água tinham seus clientes
específicos e previamente sabiam mais ou menos quantas “viagens” teriam de fazer para
concluir determinado pedido. Como se pode observar na imagem seguinte (fig.13), o trabalho
consistia no recolhimento de alguns litros de água diretamente do rio, onde para isso o
carregador se utilizava de uma medida, geralmente “latas” de querosene ou óleo, na qual uma
quantidade de água retirada, ao passar por um funil de flandre, enchia as ancoretas

53
Cf. ALMANAQUE DA PARNAÍBA, 1947 e ALMANAQUE DA PARNAÍBA, 1982.
59

previamente atadas em cangalhas de madeira no “lombo” dos animais. Um trabalho


rudimentar, subvalorizado do ponto de vista econômico, mas que garantia ou complementava
o sustento de muitas famílias pobres que viviam exclusivamente das atividades no rio.

Como se pode observar, a água era captada diretamente do rio e não raro chegava
misturada à própria sujeira dos animais de transporte. Um cronista do período descreve o
tratamento domiciliar dispensado à água que as famílias recebiam mediante o trabalho desses
carregadores, segundo ele:
O tratamento doméstico dessa água super-poluída consistia em manter
mergulhado, dentro do pote, durante algum tempo, um pedaço de pedra-
hume amarrado à ponta de um cordão e deixar que os micróbios e detritos
fossem arrastados ao fundo do vasilhame, com a decantação provocada pela
pedra-hume na poeira da argila em suspensão na água. Posteriormente a
água, já decantada, era filtrada através de uma bacia lavada em pedra-pome
e depois fervida, para só então ser servida. Êta trabalheira danada... Por isso,
só a minoria das famílias adotava esse tratamento. Muitas usavam a água do
rio como recebiam. (REBELO apud REGO, 2010, p. 247).

Essa imagem nos faz pensar na condição do saneamento básico da cidade de


Parnaíba durante sua belle époque, não só no aspecto do abastecimento de água, mas de
maneira geral como eram as condições sanitárias dos ambientes domésticos, se existiam
banheiros, fossas, latrinas, esgotamento sanitário, etc., e como as diferentes camadas sociais
se utilizavam destes equipamentos e serviços urbanos. Essas informações são importantes
porque apresentam a estrutura urbana no seu aspecto mais intimo, quer dizer, o lar. O relato
60

de um médico do período, Dr. Cândido de Almeida Atahyde54, em entrevista concedida à


Fundação CEPRO (Centro de Pesquisas Econômicas e Sociais do Piauí) na década de 1980,
nos ajuda a entender um pouco como era a utilização doméstica destes equipamentos pela
população parnaibana. Inicialmente, sobre as instalações sanitárias ele nos informa que:

(...) Vaso sanitário. Todos tinham. Nesse ponto os parnaibanos desde cedo...
Esse tipo de parnaibano [se referindo às famílias abastadas], vamos dizer
assim... Eles tinham não só aparelhos sanitários como tinham fossas
biológicas nas suas casas. Agora, os mais modestos não tinham. Tinham
uma espécie de fossa com uma caixa de madeira com um buraco no centro
onde o cidadão se servia. Numa condição muito higiênica porque o
indivíduo não se sentava. Ele ficava de cócoras, pois em termos de saúde é
muito mais higiênico do que o sujeito sentar. (CEPRO, 1984).

Sobre esse ponto se pode perceber a situação precária a que parte da população
estava submetida, a maioria sobrevivendo em condições de risco sem uma infra-estrutura
sanitária digna do ponto de vista social/humano, o que indiscutivelmente contradiz em grande
medida o discurso “progressista”, porque deixa claro que existiam estas distâncias profundas
no panorama social da cidade. Segundo Sidney Chalhoub: “(...) é possível construir
explicações válidas do social exatamente a partir das versões conflitantes apresentadas por
diversos agentes sociais, ou talvez, ainda mais enfaticamente, só porque existem versões ou
leituras divergentes sobre as “coisas” ou “fatos” é que se torna possível ao historiador ter
acesso às lutas e contradições inerentes a qualquer realidade social.” (CHALHOUB, 2001,
p.40). Assim, os efeitos dessa realidade denunciam a existência de um grupo social vivendo à
margem do fausto econômico, sobrevivendo longe das transformações urbanas, dos
“melhoramentos”, enfim, à margem de uma belle époque. Candido Atahyde ainda
complementa esse quadro, no entanto agora se referindo a outro aspecto, que diz respeito ao
uso da água no ambiente doméstico, bem como a utilização cotidiana do rio como “terma”
pública.

54
Cândido de Almeida Atahyde nasceu em Tutóia (MA) no ano de 1904, filho de Artur Almeida Atahyde e
Franklina Almeida Atahayde. Teve parte de sua formação inicial em Parnaíba e em São Luís, seguindo em 1923
para a Bahia onde cursou o 1° e o 2° ano de medicina naquele estado, formando-se, por fim, em 1929 pela
Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro. Nesta condição atuou como médico residente no Pronto Socorro e na
Assistência Pública do Rio de Janeiro. De retorno à Parnaíba, na década de 30, dirigiu por muitos anos a Santa
Casa de Misericórdia da cidade, além de ter algumas passagens pela vida pública, foi vereador, Presidente da
Câmara Municipal e Prefeito (1946). Candido Athayde também foi Professor Catedrático da Universidade
Federal do Piauí (UFPI) e presidiu a Federação das Indústrias do estado. o No inicio da década 1980, Cândido
Atahyde concedeu uma valiosíssima entrevista ao Núcleo de História Oral da Fundação Centro de Pesquisas
Econômicas e Sociais do Piauí (CEPRO), na qual conta, a partir de suas memórias, sua história de vida e fatos da
sociedade parnaibana de meados do século XX. Cândido Atahyde faleceu na cidade de Parnaíba em 1998.
61

O mais vulgar não era nem o chuveiro nem a banheira era exatamente a
bacia com água e o banho de cuia. (...) Isso inclusive na [casa] das elites até
uma certa época quando se estabeleceu o sistema de canalização de água
que eu acho que foi aí por 1914, começaram a fazer a instalação de água
com caixas d´água e puxando de poço com bombas manuais. Mas em casas,
num numero pequeno de casas. E o outro grande reservatório do banho e da
higiene de Parnaíba sempre foi o rio. Uma quantidade muito grande de
pessoas sistematicamente usava o rio para o seu banho, na parte da manhã e
na parte da tarde. Via de regra, todos os trabalhadores antes de voltar para
suas casas, tomavam banho no rio. (CEPRO, 1984).

Além dos carregadores d´água, o rio também era povoado por uma grande
quantidade de lavadeiras de roupa, que em meio ao movimento de embarcações e outras
categorias profissionais iam marcando seu espaço. Logo cedo elas se enfileiravam na rampa
do cais com suas trouxas de roupa, se preparando para passar horas a fio naquela batida
monocórdia, recortada apenas por conversas animadas ou o grito de algum vareiro gaiato na
outra margem.

No recorte acima (fig.14) vemos registrado o trabalho de um grupo de lavadeiras


que, também se aproveitando do rio, marcavam a paisagem daquele espaço. A maioria destas
mulheres trabalhadoras habitava próximo ao rio e cumpriam uma jornada de trabalho que se
dividia entre os afazeres do lar e a lavagem de roupa para fora, ou seja, para as famílias mais
abastadas. No poema “3 postais de Parnaíba”, o poeta Elmar Carvalho se refere a essa relação
de uma maneira ambígua, mas que pode ser entendida como uma crítica à condição social
62

assumida pelas lavadeiras, diz ele que: “No cais da beira-rio / lavadeiras sem roupas / lavam
as roupas dos ricos.” (CARVALHO, 2006, p. 87). Note-se também na imagem anterior
(fig.14) a presença de crianças do sexo feminino, são meninas que desde cedo já eram
chamadas (obrigadas) a trabalhar e compor a renda doméstica. Em um dos anúncios do
Almanaque da Parnaíba, flagramos que um dos principais elementos para o trabalho das
lavadeiras, o sabão, era vendido utilizando-se como recurso de propaganda justamente a
imagem dessas crianças. O que evidentemente hoje seria um disparate e um crime, naquele
período era tido como algo dentro da “normalidade”, embora encobrisse o fato de que
somente as crianças das classes subalternas estavam obrigadas a esse tipo de trabalho, que,
discordando do anúncio, ofendia as mãos e geralmente marcava o destino destas meninas da
beira-rio.

Mas não eram unicamente as crianças trabalhadoras que freqüentavam o cais. Seu
movimento sempre era alterado pela presença de muita gente, como nos conta Raimundo de
Sousa Lima: “A população da beira do rio estava sempre presente às chegadas de
63

rebocadores, atenta às manobras de atracação e ao palavreado pitoresco da população de gente


moça, alegre e façanhuda.” (SOUSA LIMA, 1987, p. 27). Nos dias mais quentes era comum
se ver a algazarra de jovens se refrescando nas águas do rio ou correndo pelo porto em direção
aos armazéns. O que era tido como uma atração à parte, tanto pelo barulho quanto pelas
brincadeiras e molecagens. Dessa forma, a última imagem escolhida (fig.16) para esta seção é
emblemática sob todos os aspectos discutidos anteriormente.

O espaço fotografado continua sendo o cais, só que em outro ângulo, o de quem


observa em direção à cidade. Para analisá-la procuramos estabelecer dois recortes que se
cruzam e se completam formando os elementos icônicos principais: recorte (a) – o
monumento em relação à criança; recorte (b) – a criança em relação ao monumento. Assim,
acreditamos lançar sobre a imagem um contraponto que a desnaturalize e nos permita uma
leitura tanto da intencionalidade subjacente no olhar do fotógrafo quanto das possibilidades de
imersão no contexto retratado. No primeiro recorte (a), o objeto que se agiganta sobre a
64

imagem da criança é o Monumento da Águia55 – este, construído na década de 1930, em


homenagem ao Prefeito Ademar Neves. No período desse enquadramento fotográfico o
monumento estava localizado no início da Avenida Presidente Vargas, em frente ao cais de
Parnaíba. O monumento pretendia exaltar o poderio político e a “modernização” da cidade,
onde a águia, de asas abertas, deveria simbolizar o voo em direção ao progresso, coroando
assim as transformações urbanas pelas quais a cidade passou. O fotógrafo, ao posicionar sua
lente de maneira a realçar a grandiosidade do monumento em relação à pequenez da criança,
deixa falar muito de suas convicções e intencionalidade, que possivelmente eram reverenciar
o poder administrativo utilizando-se dos objetos disponíveis no retângulo fotográfico; bem
como encantar o olhar do observador com ícones que representassem a total submissão do
indivíduo ao poder do estado, às façanhas heróicas de homens grandiosos, ou atuar no
imaginário coletivo. Segundo o historiador José Murilo de Carvalho:

O imaginário social é constituído e se expressa por ideologias e utopias, sem


dúvida, mas também (...) por símbolos, alegorias, rituais, mitos. Símbolos e
mitos podem, por seu caráter difuso, por sua leitura menos codificada,
tornar-se elementos poderosos de projeção de interesses, aspirações e medos
coletivos. Na medida em que tenham êxito em atingir o imaginário, podem
também plasmar visões de mundo e modelar condutas. (CARVALHO, 2011,
p.10-11).

No segundo recorte da fotografia (b), a criança parece desconsiderar a imponência do


monumento, os pés descalços denunciam sua condição social. Porém, indiferente ao signo do
poder que se ergue à sua frente, ela olha outro ponto em sinal de resistência, de desinteresse.
Este virar de pescoço talvez não estivesse nos planos do fotógrafo, o que talvez demonstre a
sua não intervenção na realidade da criança, de modo que a ação espontânea da mesma se
constitui num elemento desestabilizador, ou denunciador, da sua não comunhão com as
representações suscitadas por este símbolo erigido diante de si. A simples presença da criança
maltrapilha e de pés descalços em um dos planos centrais da fotografia, acaba por criar uma
ambivalência na leitura da imagem, onde, ao unir elementos marginalizados do espaço urbano
com o aspecto progressista da cidade, o fotógrafo deixa transparecer uma relação ambígua
que acaba provocando múltiplas leituras a partir dos diálogos que estabelecemos com a
imagem; onde, ao mesmo tempo e no mesmo plano imagético, aparece o desejo de fundação e
preservação, do novo e do velho, a figura do sujeito e do “sujeitado”.

55
O Monumento da Águia, como ficou popularmente conhecido, foi uma homenagem dos operários de Parnaíba
ao Prefeito Ademar Neves e figurou na paisagem do Porto das Barcas até o inicio da construção da Ponte
Simplicio Dias, quando foi retirado para a desobstrução da obra.
65

Não obstante a isso, o lugar retratado é significativo por demais, tendo em vista
marcar o encontro entre o porto e a principal Avenida da cidade – aquela que foi o símbolo
máximo da belle époque parnaibana, a vitrine e o cartão postal onde se podiam admirar as
construções “modernas” e o “progresso” da cidade. A criança da fotografia está postada neste
lugar fronteiriço entre duas realidades distintas, ela encontra-se como que perdida entre o
mundo do cais e a “modernidade”, entre a belle époque e o seu avesso. Notadamente, a
realidade social de Parnaíba naquele período era marcada por estes choques, pelo contraste
entre o esplendor comercial e urbano de um lado e o mundo dos pobres urbanos de outro.
Enquanto aqueles gozavam em toda plenitude de sua belle époque, estes, pendurados nas
bordas da sociedade, iam apenas compondo a terceira margem do rio. Embora produzindo
também seu espaço, materializando a cada novo dia uma forma específica de escapar à
exploração e a pobreza. Talvez uma única coisa os ligasse, é que todos precisavam do rio, uns
para enriquecer e outros para (sobre)viver.

2.3 Biscates, porcos d´água e mata-cachorros

Ictiófagos homens da beira-rio


Que passam a noite com frio
Querendo a fome evitar.
São todos, homens sem nada
E tem a pele crestada
De ao dia também pescar.
Suas filhas ninguém ajuda,
Convergem sempre à “Munguba”
Lugar que só se conjuga
O ambíguo verbo amar.
Voltar pra casa é pecado,
Tornaram-se dedo cortado
Não podem nunca voltar.
Cancro, sífilis e outras mais
É tudo o que o amor traz
A estas vítimas sociais.
E muitos da pescaria
Para lá convergem em romaria,
Lhes afagam os seios em amores.
E para que maior alegria?
Se sempre cheirando a lama
Eles dormem em suas camas
E fazem mais pescadores?
A peixeira só eles sabem esconder.
Pois sabem também que a polícia
Já sabe pra quem vender.
Hierarquia decrescente
Que faz aquela gente
Perdendo do corpo o valor.
66

Antes cabarés outros


Mas as carnes amolecem
E sem querer elas descem
À “Munguba” do amor. 56

A paisagem e o barulho característico do cais mudavam drasticamente com a


chegada da noite. Os gritos iam dando espaço aos sussurros, o apito estridente das barcas ia
sendo substituído pelo som ritmado dos conjuntos, as gargalhadas continuavam, só que agora
mais alegres, mais fáceis, o cheiro da comida ia se misturando ao dos perfumes, do álcool, um
ajuntado de homens reunidos em torno de uma esquina, ou mesmo na beirada do rio,
esperando o momento oportuno para se debandarem em direção a alguma “casa” mais
afamada, a algum boteco mais animado. Em pouco tempo as ruas iam se esvaziando e o ar
ficando mais denso e carregado de sons noturnos. A noite, como que aguçando os sentidos, ia
revelando as intimidades, o fechar das portas, o ranger das camas, os gritos e gemidos de
amor. Sons muitas vezes interrompidos pelo bate boca entre um casal, entre um grupo de
marinheiros meio exaltados, copos e garrafas quebradas, mesas no chão, um tiro, um corpo
cambaleante, a gritaria ensurdecedora das mulheres, a polícia e mais quebra-quebra, ao fundo
o rio ia correndo despreocupado, afinal de contas, pela manhã tudo renascia.
A sensibilidade do historiador diante destas cenas do cotidiano muitas vezes é fruto
de certa curiosidade, um quase voyeurismo que o impele para as coisas escondidas, para
aqueles detalhes que se furtam diante da sua indiscrição, de seu olhar interessado. No dizer de
Sylvio Floreal57, um dos cronistas da vida noturna da belle époque paulista, “o vício de
observar é indiscreto, mas é fascinante e voluptuoso. Desagrada e entristece às vezes o
espírito e alegra e agrada sempre o instinto.” (FLOREAL, 2002, p. 59). Simbolicamente58
mais carregada que o dia, a noite é um “território” importante e revelador do fazer social e do
existir humano, já que sem ela, provavelmente, muitas histórias de amor e morte que
aguardam apenas a escuridão de seu véu não teriam ocorrido. A noite importa ao historiador
enquanto possibilidade de apreensão de outros códigos, de outras práticas que se esquivam da

56
SANTOS, Pádua. “Multiplicação da Miséria”. Inovação. Parnaíba, abr. 1978, p.2. (Jornal de circulação Local)
57
Sylvio Floreal (pseudônimo de Domingos Alexandre) nasceu em data incerta em Santos (SP). Sylvio Floreal
formou-se à margem das instituições formais de ensino da época, sendo que antes de torna-se jornalista e escritor
exerceu as funções de pedreiro e funcionário do Correio. De sua obra destacam-se, além de “Ronda da Meia
Noite” (1925), “Atitudes” (1922), “A coragem de Amar” (1925) e “O rei dos caçadores” (s/d). Sobre sua morte
também há poucas informações concretas e concordantes, existindo apenas um dado factual e incompleto de seu
falecimento, que teria ocorrido em São Paulo em 1929.
58
Cf. DELUMEAU, Jean. “O medo da noite” in História do medo no Ocidente 1300-1800: a cidade sitiada. São
Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 138-153.
67

publicidade do dia, embora mantenha com ele uma relação íntima que o complementa ou o
encobre. Um segundo aspecto que nos propomos a investigar nesse capítulo é justamente este
que fala das sociabilidades dos pobres urbanos em relação “à vida noturna” da cidade, aquilo
que se relaciona com os momentos de lazer nos botequins e cabarés da beira rio, ou seja, o
que nos interessa aqui é a noite enquanto lugar consagrado do desenrolar de conflitos, de
amores tórridos, de práticas efetivamente ligadas ao lazer, à bebida e ao sexo.
Como abordamos no capítulo anterior, o porto fluvial da cidade de Parnaíba era um
espaço que recebia em seu período de apogeu econômico grande efetivo de embarcações e
pessoas. Em conseqüência disso, a paisagem social da cidade era constantemente alterada pela
presença de embarcadiços de outras regiões que, juntando-se aos trabalhadores locais,
compunham um grupo numeroso e notadamente dividido entre as atividades do trabalho e as
aquelas realizadas nos momentos de folga, sempre depois das longas viagens pelo rio, ou
mesmo após as obrigações, ao final do dia. Como qualquer outra cidade que tenha um porto,
Parnaíba oferecia a estes trabalhadores de folga inúmeras possibilidades de darem vazão ao
seu tempo livre, e assim, a cidade foi ganhando vários locais de sociabilidade para onde
acorriam apressadamente os que buscavam quebrar a rotina cansativa do trabalho. As idas aos
cabarés e botequins eram sempre os roteiros mais seguidos pela maioria dos embarcadiços
que aproveitavam a folga para os encontros fortuitos e a “caninha” revigorante.59 Justamente
nesse cenário dava-se o encontro entre os três grupos de personagens que iremos investigar
mais a fundo, que eram as “biscates”, os “porcos d´água” e os “mata-cachorros”,
popularmente como eram chamados, no período, as prostitutas, os embarcadiços e os
milicianos.60 Sobre essa “zona quente” da cidade, que se localizava nas proximidades do cais
e nos bairros pobres da Coroa e Quarenta, a historiadora Aneliza de Brito Vaz afirma que:

Nos idos de 1930, este lugar, se é que não seria profano comparar, mais
parecia com os festejos de santos padroeiros tão comuns e freqüentes em
cidades pequenas. Só que no lugar de procissão de fieis o que se via era o
desfile de prostitutas, em vez de leilões de bolos e galináceos para o santo
padroeiro, eram as bancas de bebidas, laranjas, frito de carne-de-porco,
fussuras, tapioca, café e guloseimas. Foi nesse ambiente de intensa

59
Uma primeira questão que nos colocamos é aquela que relaciona o trabalho ao lazer e este à sexualidade e ao
alcoolismo. Não existe uma relação natural entre estes aspectos da vida cotidiana, talvez o que exista seja um
impulso de associá-los sem levar em consideração os perigos de se cair em um pensamento determinista, como
se o indivíduo obrigatoriamente estivesse predestinado a seguir este caminho. Cf. CHALHOUB, S. Trabalho, lar
e botequim: o cotidiano dos trabalhadores do Rio de Janeiro na belle époque. 2.ed. Campinas, SP: Editora da
UNICAMP, 2001.
60
Força Policial da cidade, geralmente guardas da ronda noturna.
68

movimentação que vários cabarés se instalaram. Nas margens do rio Igaraçu


e nas proximidades do Porto das Barcas, o Brasília, de propriedade de Dona
Chica Tanque, o Bar do Gordo de propriedade de Seu Antônio e o Cabaré
da Munguba de propriedade de Dona Viçença Alves, eram os pontos61
cheios de rapazes e senhores que saiam à noite à procura de diversão e de
prostitutas. (VAZ, 2005, p.60).

Um dos registros mais pertinentes sobre a relação do homem do rio com “a vida
noturna” no contexto em que estamos abordando, foi anotado no Almanaque da Parnaíba do
ano de 1982, quando aquele anuário registra em sua capa a figura do embarcadiço Antônio
Pereira da Silva, ou Mano Velho, como desde cedo ficou conhecido.62 Naquele ano, ele
concede uma entrevista ao escritor Cineas Santos contando um pouco de sua história, das suas
viagens pelo rio e da disposição dos porcos d´água para os amores ilícitos. Assim relata Mano
Velho:

Em trinta e dois eu era marinheiro de um navio grande, o “Piauí”. Vapozão


macho: tinha 46 metros de comprimento por 8 de boca. A gente saía de
Parnaíba com cinco barcaças carregadas de sal, rumo a Santa Filomena,63
viajona que durava seis meses. Na volta, a gente trazia couro, mamona e
outros produtos da terra. O “Piauí” foi o vapor de apito mais saudoso que eu
já vi: era uma beleza... Quando a gente chegava no primeiro porto, Porto
Alegre, que hoje é a cidade de Luzilândia,64 o vapozão soltava a goela no
mundo, e a beira do rio ficava coalhadinha de gente...Quando a gente
chegava num porto, alta madrugada, era só apitar e das casas das mulheres
livres as luzinhas começavam a tremer nas janelas. Era um sinal que todo
marinheiro conhecia de longe...Quando a gente chegava num porto grande,
metia a beca gomadinha, enfiava o jucá na manga da camisa, porque tinha
muita rixa da polícia contra os marujos, e briga nunca faltava. Eu sempre
gostei de fazer boas camaradagens e desamizade não era comigo não, mas
tinha companheiro que brigava muito. (SANTOS, 1982, p.30-31).

61
Sobre esses “pontos” ainda podemos acrescentar aqueles que funcionaram até meados do século XX, como o
Rio Chic, a Beleza da Rosa, o Zé Gouveia, o Riso da Noite, a Dona Laura, a Maria das Neves etc, cada qual com
suas características próprias, uns mais baratos, outros mais violentos, outros de meninas mais novas, mais velhas,
bonitas, feias... enfim, cada um respondendo aos gostos do(a) cliente.
62
Mano Velho nasceu em Caxias (MA) em 1913. Segundo ele, deve ter se “misturado” com o rio em 1930 e daí
em diante sua vida foi marcada pelas viagens ao longo do rio. Como embarcadiço não tinha lugar fixo, ele
passou temporadas em Teresina, Parnaíba, Timom (MA) e em outras cidades cortadas pelo rio Parnaíba. No ano
de 1984 ele concede uma entrevista à Fundação CEPRO, onde detalha melhor suas histórias e sua vivência de
homem de rio. Sua fala é importante porque revela muito dos aspectos sociais, culturais, econômicos, mentais
etc., que envolviam a navegação no Parnaíba e as cidades ribeirinhas do Piauí e Maranhão. Infelizmente não é do
nosso conhecimento registros da vida de Mano Velho após estas entrevistas concedidas ao Almanaque da
Parnaíba e a Fundação CEPRO. Esta última se encontra disponível no Núcleo de História Oral da Universidade
Federal do Piauí – UFPI.
63
Santa Filomena é um município da região sudoeste do Estado do Piauí, está localizado no Alto Parnaíba. Ele
dista 825 milhas por via fluvial da Capital Teresina.
64
Luzilândia é um município da região norte do Estado Piauí, está localizado no Baixo Parnaíba. Ele dista 783
milhas por via fluvial da Capital Teresina.
69

Note-se na fala de Mano Velho o entrecruzar da relação trabalho-folga. Quer dizer,


em meio ao percurso geralmente cansativo das viagens, sempre a chegada em algum porto era
motivo de animação. Naquele espaço, muitas vezes já visitado, o apito da embarcação
significava, como muitas vezes significou o apito das fábricas, a liberdade do trabalhador em
relação às rígidas obrigações do trabalho. Naquele instante o embarcadiço se despojava de seu
traje surrado, e punha a melhor “beca” para ir ao encontro das aventuras e do amor fácil na
beira do cais. Perceba-se também no relato de Mano Velho que o porco d´água já pisava em
terra na expectativa dos confrontos, das brigas e bebedeiras com outros embarcadiços ou com
a polícia. Na imagem seguinte (fig.17) vemos na capa do dito almanaque a fotografia de
Mano Velho, ali ele posa com o seu inseparável chapéu e o olhar perdido no horizonte.

Uma outra fala que reforça e detalha a descrição de Mano Velho, é a de Raimundo
de Sousa Lima que apresenta o vareiro, também um porco d´água, nos momentos de folga, diz
ele que:
70

O vareiro típico, quando se achava de folga em terra, vestia calça de mescla


ou de riscado grosso com camisa de meia de listrinha azul e branco
circulando-lhe o tronco desenvolvido, o que sobressaia o peito largo e
maciço, guarnecido com dois braços poderosos, cheios de tatuagens. Para a
cabeça e os pés, o gosto variava: chapéu branco de abas curtas viradas para
cima e tamancos pesados, com rosto de sola ou de pele de bode bem
curtida. Às vezes não usava nem uma coisa nem outra, mas o cintão de sola
grossa com fivela de latão era indispensável. Aí enfiava a faca marinheira
embainhada com estrela de cinco pontas riscadas no cabo, para rebater
mandinga de inimigos em caso de briga. Era o reverenciado cinco-salomão,
que podia ser gravado também no cacete de jucá, arma deixada na barca só
quando ameaçado pela soldadesca. (SOUSA LIMA, 1987, p. 19).

Além do aprumo da vestimenta, o que não faltavam era as armas brancas, as


navalhas, as facas marinheiras, os canivetes e as armas de madeira, como o famoso porrete de
jucá, descrito por Sousa Lima. Pode-se imaginar então os resultados destes ingredientes
adicionados ao álcool, às mulheres da gandaia e aos encontros inesperados com antigos rivais.
Segundo Sidney Chalhoub, que analisou a relação entre trabalho e botequim na belle époque
carioca fazendo uma leitura daquele contexto e que muito auxilia a nossa discussão, esse tipo
de espaço – marcado pela presença do álcool e de trabalhadores nos momentos de lazer – é
um cenário ideal “para o desenrolar de rixas e conflitos pelos mais variados motivos, desde os
problemas ligados ao trabalho e habitação, passando pelas questões de amor e de relações
entre vizinhos, até as contendas por motivos mais especificamente ligados ao lazer, como os
jogos, o carnaval ou a bebida.” (CHALHOUB, 2001, p.312).
De fato, a presença dos embarcadiços era sinal de muita festa e bebedeira, como
podemos atestar nesta outra fala, agora de uma antiga prostituta da beira do cais de nome
Fabrícia Oliveira de Souza, ou Didi, como é mais conhecida, que relembra:65

Tinha mais vida quando chegavam os porcos d´água. Tudo de branco,


quando eles iam uma festa lá na Vicença! Aí era animação! Começava
sábado, ia domingo, entrava pela semana. Enquanto os rebocadores
estivessem no porto. “– Ah, chegou os Porco d´água!” Era festa. Eles não
gostavam que chamassem porco d´água, mas chamavam. Tinha um cabaré,
que eu não me lembro o nome, que era só pra vareiro. Na hora que
chegavam tinha festa direto. (O BEMBÉM, 2009, p.03.).

65
Fabrícia Oliveira de Souza (Didi) concedeu uma entrevista ao Jornal O Bembém da cidade de Parnaíba falando
de suas experiências de dama da noite nos cabarés da zona do cais do porto de Parnaíba. Cf. FABRÍCIA
OLIVEIRA DE SOUZA, ou melhor, Didi, aquela hippe da praia. O Bembém, Parnaíba, 21 fev. 2009, p.03.
71

A fuzarca era quase sempre aumentada com a chegada dos milicianos, que em tom de
troça indagavam: “jacaré dança ou não dança cornos?” Era a senha66 que dava ensejo ao
quebra-quebra: “jacaré dança, se a mãe toca, canela preta féa da puta!” (SOUSA LIMA, 1987,
p.33). Foram embates épicos aqueles travados entre embarcadiços e milicianos, ou melhor,
entre porcos d´água e mata-cachorros, como eram apelidadas ambas as facções. Inimigos
mortais, eles lutavam principalmente em virtude da honra ameaçada e na tentativa de
estabelecimento da ordem pública. As brigas começavam sempre pelos menores motivos, não
tinham arena definida, se davam no meio da rua, dentro dos botecos, nos cabarés, a única
certeza é que era um “quiproquó” dos infernos, onde sobravam além dos nomes feios, muitas
cabeças quebradas e prejuízos para os donos dos estabelecimentos. Os porcos d´água
geralmente armados com porretes de pau-ferro67, ou o famoso jucá, apelidado modestamente
de “gota serena”, enfrentavam, sob o efeito do álcool ou não, a força policial em verdadeira
afronta a autoridade constituída; já os milicianos, munidos da lei e de armas brancas ou de
fogo, só arredavam o pé quando a situação ficava desfavorável.

As lutas constantes entre embarcadiços e policiais marcaram época na então


florescente cidade de Parnaíba, o único centro exportador do Piauí. Não
existia, pode-se dizer, razão profunda para a continuidade da guerra acirrada
entre as duas classes, quando a causa principal das rusgas se assentava
unicamente no desforro que cada lado se julgava com o direito de tomar. Era
a honra que precisava ser lavada, as custas do facão “comblain”, por um
lado, e por outro, a troco do pau e da faca marinheira, para tirar o ranço do
“canela preta féa da puta.”(Ibidem, p.19).

A violência também se estendia às brigas entre prostitutas, isso quando o que estava
em jogo era a preferência por determinado cliente. Também se contavam as brigas entre
casais, estas geralmente quando as traições eram descobertas. Eram também motivo para a
violência a embriaguez alcoólica, as rixas, os amores frustrados, etc. Didi assim descreve o
ambiente de dois cabarés da beira do rio:

Tinha cinco quartim. Mas era muito movimento. Todo dia tinha uma morte.
Era um tal de “jacaré dança ou não dança?”. Ninguém dormia. Quando tava

66
Segundo Sidney Chalhoub, nestes casos: “(...) o desafio aberto precede imediatamente a agressão física. Mais
que isso, o desafio é a indicação segura de que o ajuste violento já é previsível e praticamente inevitável. O
significado mais profundo do desafio é que um confronto específico surgido de tensões provenientes das lutas
políticas cotidianas de um determinado microgrupo sociocultural já parece ter esgotado a sua possibilidade de
solução pacifica. O predomínio da linguagem machista no momento crucial do desafio informa aos presentes que
a cena de sangue está próxima.” (CHALHOUB, 2001, p.326).
67
Segundo o Dicionário Barsa: “Pau-ferro. sm. Árvore da família das leguminosas, nativa do Brasil, comum nas
matas pluviais e nas caatingas, e que produz madeira resistente e pesada, usada para dormentes, postes e
mourões.” (DICIONÁIO BARSA DA LÍNGUA PORTUGUESA, 2008, p. 838).
72

cochilando, tinha briga e era um derrubado de coisas, ai aparecia um morto


dentro do quarto. Era o amante duma mulher que chegava, encontrava ela
com outro, invadia o quarto, a mulher corria. Uma vez um morreu afogado.
(...) [agora sobre outro cabaré] Tinha muito crime naquela Munguba! Não
se podia passar nem na frente. Não era tiro, era na faca. Mulher derribava
fato de outra. Tudo por causa de homem. Quando a polícia chegava, que
eles vinham caminhando, elas caiam fora. (O BEMBÉM, 2009, p.03.).

Os cabarés eram compostos principalmente por mulheres de cidades vizinhas,


geralmente do interior; sem falar na presença de homossexuais, que segundo Didi, se
entendiam com as mulheres porque “eles não queriam os homens delas, não. Eles já traziam
os deles.” (ibid.id.). Os cabarés e botequins da cidade eram sociabilidades à parte no cenário
urbano, mas que com certeza congregavam outras camadas sociais, ou seja, não eram somente
embarcadiços e biscates que faziam parte desse movimento agitado, mas também alguns
rapazes mais afoitos da high society parnaibana participavam destes encontros “do outro
lado” da cidade, como abordaremos no capítulo seguinte.
Ainda sobre o aspecto da violência, no ano de 1944 o Livro do Centenário de
Parnaíba68 fez um levantamento da condição judiciária da Comarca parnaibana naquele ano,
fazendo um resumo quantificado da situação dos processos crimes naquela data. Segundo os
dados fornecidos, foi possível montar o quadro abaixo que apresenta uma amostragem da
seguinte situação:

RELAÇÃO DOS SENTENCIADOS DE JUSTIÇA


DESTA COMARCA, E SUAS SITUAÇÕES

RECLUSOS
Delito-Crime: Quantidade:
Homicídio 08
Lesão Corporal 06
Sedução 02
Furto 06
Rapto 01
Falsificação de documento 01
Inviolabilidade de domicílio 01
Total 25
LIBERADOS
Delito-Crime: Quantidade:
Homicídio 02
Lesão Corporal 01
Total 03
EM GOZO DE SURSIS
Delito-Crime: Quantidade:

68
O “Livro do Centenário da Parnaíba” foi uma edição comemorativa aos 100 anos da emancipação política da
cidade. O livro possui a mesma formatação do “Almanaque da Parnaíba”, embora se dedique exclusivamente a
apresentar a história da cidade, “louvar” suas personalidades e descrever a cidade no presente. Por isso, possui
um valor inegável enquanto registro social, histórico e estatístico da cidade.
73

Furto 03
Lesão Corporal 14
Curandeirismo 01
Falso Testemunho 01
Abuso de autoridade 01
Total 20
REVÉIS
Delito-Crime: Quantidade:
Homicídio 02
Lesão corporal 29
Furto 05
Roubos 10
Seduções 16
Curandeirismo 01
Prevaricação 01
Rapto 01
Injúria 01
Total 66
CONTRAVENÇÕES
Delito-Crime: Quantidade:
Embriaguez 01
Total 01
Fonte: Livro do Centenário de Parnaíba, 1944, p. 237-238.

Como se pode perceber a partir do quadro acima, os delitos mais frequentes


registrados naquele ano foram os crimes de homicídio (12), lesão corporal (50) e sedução
(18). Portanto, aqueles crimes mais propensos a se realizarem em ambientes noturnos onde as
brigas, o alcoolismo e o sexo estão presentes, embora não compactuemos aqui com os mitos
de “promiscuidade sexual” das classes populares. Afinal de contas, segundo Sidney
Chalhoub, “se o crime é apenas produto direto de contradições estruturais, isto é, produto da
miséria a que fica condenada grande parte da população, então será verdade que todos os
miseráveis são potencialmente violentos ou criminosos?” (CHALHOUB, 2001, p.305). De
fato, é esta visão que o próprio Livro do Centenário de Parnaíba tenta reforçar quando assim
descreve os principais motivos de crimes na cidade de Parnaíba no período em questão.

É diminuto o coeficiente dos criminosos habituais ou por índole em nosso


meio. Em sua quase generalidade o que temos são criminosos ocasionais,
levados ao delito pelo ímpeto, com suas determinantes bem conhecidas nos
juízos criminais; o álcool que gera os valentões e desordeiros, dando-nos o
maior número de causas crimes; a ignorância e, além destas outras
genetrizes de menor importância das infrações penais, podemos enumerar,
ainda, o temperamento amoroso de nossa gente, demasiado tropical, que
também nos fornece apreciável contingente de delitos. (LIVRO DO
CENTENÁRIO DE PARNAÍBA, 1944, p.237).

Esse “temperamento amoroso” ao qual se refere o dito livro, talvez expresse o


imaginário e o estigma que se criou em torno da região portuária de Parnaíba. A região do
74

cais era conhecida como um lugar que abrigava, além do trabalho, práticas relacionadas à
promiscuidade e ao banditismo. Portanto, uma afronta às famílias “direitas” da sociedade,
bem como um contraste com o aspecto de civilidade que se queria atingir com crescimento
urbano e com as “melhorias” no centro da cidade. Os cronistas e a literatura dão conta desse
imaginário que se criou em torno do cais. Tanto o romance quanto a poesia se referem aquele
lugar como um território onde se misturavam a pobreza e o sexo. Na verdade, essas tentativas
de se associar a criminalidade, o perigo, e a violência às classes populares não têm nada de
novo. Essa visão distorcida da realidade social ainda remonta ao século XIX, quando do
surgimento da Escola Positivista, assim chamada por acreditar na existência de leis universais
capazes de dar conta da “natureza” humana, biopsicologicamente determinada, mediante o
uso de métodos científicos. Segundo esta Escola, que influenciou tanto o Direito quanto as
demais ciências e teve grande repercussão aqui no Brasil, algumas práticas “anti-sociais”,
como os crimes, por exemplo, poderiam estar relacionadas a determinados aspectos
morfológicos do corpo humano, daí alguns indivíduos serem mais propensos ao crime e ao
desvio social que outros. Acompanhando esse discurso, vemos surgir a patologização da
própria pobreza, ela vai aparecer nesse contexto como um fator potencial de transgressão aos
pressupostos jurídicos e se constituir num perigo social, apontando as classes pobres como
classes perigosas.69
Em suma, a violência descrita nas falas de nossas personagens revela um aspecto
indiscutível da vida noturna dos trabalhadores do rio quando de seus momentos de folga e
diversão. Porém, não se pode concluir que essa violência seja fruto unicamente das condições
sociais a que estavam submetidos. Os conflitos muitas vezes eram por motivos fúteis, como
afirmamos acima. O alcoolismo, que jamais foi um vício exclusivo das classes populares,
geralmente era um fator que ampliava as tensões entre os indivíduos, já que os colocavam em
estado de fragilidade ou descontrole. A ação da polícia, evidentemente, estava relacionada a
tentativa de imposição da ordem pública, embora também encobrisse o fator da “suspeição”
do outro, uma ação mediada pelos padrões burgueses de comportamento. A concentração de
cabarés e botequins naquela região específica informa o processo de segregação do espaço
urbano. Assim como as formas de ocupação e zoneamento revelam também as disputas e
contradições sociais na produção daquele espaço. Enfim, a região portuária da cidade de

69
Segundo Sidney Chaulhoub: “Assim é que a noção de pobreza de um indivíduo era fato suficiente para torná-
lo um malfeitor em potencial teve enormes conseqüências para a história subseqüente de nosso país. Este é, por
exemplo, um dos fundamentos teóricos da estratégia de atuação da polícia nas grandes cidades brasileiras desde
pelo menos as primeiras décadas do século XX. A polícia age a partir do pressuposto da suspeição generalizada,
da premissa de que todo cidadão é suspeito de alguma coisa até prova em contrário e, é lógico, alguns cidadãos
são mais suspeitos que outros.” (CHALHOUB, 1996, p.23).
75

Parnaíba traz embutida em suas histórias não apenas o trabalho enquanto (re)produção
material da existência, mais que isso, o cais foi o lugar da esperança, do amor, da construção
de uma subjetividade inerente as desigualdades sociais, uma forma de representar e dotar de
sentido o mundo, a vida. Dessa forma, no capítulo seguinte procuramos problematizar
algumas representações em torno da pobreza e da exclusão social a partir do viés literário.
Entendendo assim, como a literatura de alguma forma traduziu o cotidiano social daqueles
que ficaram na “beira” do progresso material da cidade.
76

3 A BEIRA – entre o cais e as borboletas

Jessé queria ser rico, só pensava em juntar dinheiro.


Começou com um litro de borboleta, que vendeu para
os peixes da pérgola. A Praça da Graça estava sendo
reformada, até o prefeito vinha examinar os trabalhos
– abaixava-se, dava a mão aos pedreiros, olhava para
o fotógrafo sorridente. (BRASIL, Assis. Beira Rio
Beira Vida, 2008, p.27).

3.1 A cidade partida

É inegável que vivemos no Brasil em uma sociedade de classes. Que nossa história,
como afirma Marx no seu Manifesto Comunista70, é uma história de luta de classes. As
pessoas tendem a se comportar como sendo de uma classe e não de outra, como se o seu lugar
social fosse naturalmente garantido e assim, sob essa condição, fossem distintas
profundamente daqueles que estão abaixo ou acima de sua posição social; embora sempre
exista o desejo manifesto de ascensão, de alcançar o cimo da marcação social, de estar por
cima e vislumbrar o mundo a partir da cobertura, mesmo que seja a da laje. Essa luta de
classes desnuda as tensões de uma sociedade que foi acostumada a enxergar e a pensar o
mundo sempre cindido entre duas realidades diferentes, como a da “casa grande” e a da
“senzala”, a do “sobrado” e a do “mucambo”71, a do “morro” e a do “asfalto”72.
Na epígrafe que abre este capítulo vemos claramente essas relações sinuosas, quando
não violentas, entre as várias camadas da sociedade, as disputas e os agenciamentos que
operam a construção do mundo social a partir das representações indicativas de cada grupo,
dos lugares sociais ocupados, bem como dos papéis assumidos coletivamente. O que se
evidencia nessa relação são as tramas e traumas de indivíduos em rotas de colisão com o
poder, com os seus mecanismos de controle e normatização. Analisando principalmente esse
caráter disruptivo da marcação social na feitura de um imaginário urbano “moderno”, isto é,
nos modos de ver e ler a cidade que se mostra em seu lado “positivo”, percebe-se que muitas
vezes esta imagem acalentada pelos grupos dominantes parte de um artificialismo, ou melhor,
de uma imposição de classe que, não sem disputa, emerge como legitimada.

70
Cf. MARX, Karl; ENGELS, Frederich. Manifesto Comunista. São Paulo: Hedra, 2010. p.56.
71
Referência às obras de: FREYRE, Gilberto. Casa-grande & Senzala: formação da família brasileira sob o
regime da economia patriarcal. 51.ed.rev. São Paulo: Global, 2006.; FEYRE, Gilberto. Sobrados e Mucambos:
decadência do patriarcado e desenvolvimento do urbano. 16.ed. São Paulo: Global, 2006.
72
Sobre esta relação Cf.: VENTURA, Zuenir. A cidade partida. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
77

A reprodução desse artificialismo efetivamente constitui várias páginas da história


social do Brasil, um país assentado na longa tradição de práticas discriminatórias e
excludentes. A cidade pode ser lida nesse contexto como um potencial para a materialização
destas práticas, pois é nela que se percebem mais claramente os territórios e símbolos que
cada grupo tomou para si enquanto marca de distinção, é nela que se travam cotidianamente
as batalhas pelo controle da produção do mundo social. Nesse sentido, a cidade congrega e
exclui, divide socialmente. Segundo Ana Fani Carlos, ela “é a materialização de relações da
história dos homens, normatizada por ideologias; é forma de pensar, sentir, consumir; é modo
de vida, de uma vida contraditória.” (CARLOS, 2003, p.26).
A cidade, no dizer de Sandra Jatahy Pesavento, também produz seus “indesejados”,
“perigosos” e “desordeiros”, que existem “em face daqueles que partilham da inclusão em
uma ordem dada, e é ante a imposição e legitimação desta que se concebe a desordem.”
(PESAVENTO, 2001, p.7). Viver na “beira”, na beirada, é uma metáfora que procura
significar um lado desta contradição, o das vidas obscuras, o das venturas e desventuras de
histórias apagadas, de existências minúsculas. A “beira” é o lugar onde se encontram os mal-
ajustados, os que em algum instante colidiram com o poder e acabaram sujeitados, obrigados
a viver à margem, marginalizados. A história, enquanto produção discursiva de um saber,
acostumada sempre a olhar de cima foi incapaz por muito tempo de pensar o revés, de
suspeitar da naturalização destes lugares, de olhar de baixo. Assim, esta metáfora da qual se
utilizou Assis Brasil73 para significar as vivências das suas personagens no romance Beira Rio

73
Francisco de Assis Almeida Brasil, ASSIS BRASIL, nasceu em Parnaíba (PI) em 18 de fevereiro de 1932,
filho de Milton Ramos de Almeida, pequeno comerciante, e Rosa Leão Ramos de Almeida, de grande influência
cultural na vida do escritor. Assis Brasil inicia sua vida escolar ainda em Parnaíba, no Colégio São Luis
Gonzaga, até que aos 12/13 anos muda-se com a família para Fortaleza (CE), indo estudar no Colégio São João.
É na capital cearense que Assis Brasil publica, aos 16, seu primeiro texto literário, um apólogo, O Poste e a
Palmeira, na Gazeta de Noticias de Fortaleza. Em fins de 1949, aos 17 anos, o futuro escritor foi morar de vez
no Rio de Janeiro, onde se formou em jornalismo pela PUC; No Rio de Janeiro Assis Brasil lança seu primeiro
romance, Verdes Mares Bravios, publicado em 1953. No Rio, Assis Brasil acabou trabalhando em diversos
ramos, até entrar para o Jornal do Brasil, em 1956, onde escrevia para o Suplemento Dominical. Entre 1962 e
1972 foi crítico literário do Correio da Manhã (RJ), também entre 1964 e 1966 foi Editor-chefe e copidesque da
revista O Cruzeiro (RJ). Seus livros foram publicados por várias editoras, entre elas destacam-se a Nórdica,
Imago, Melhoramentos, Ediouro, Record, Moderna, FTD etc. Em 2008 regressa ao Piauí (Teresina), onde reside
até o momento. Assis Brasil ainda continua exercendo seu oficio de escritor, fazendo palestras e publicando
regularmente, chegando hoje a incrível marca de 131 livros publicados. Sobre o estudo de sua obra destacam-se
algumas dissertações de mestrado que discutem os seus principais romances: LEOPOLDINO, Maria Solange.
Beira Rio Beira Vida de Assis Brasil: no discurso regionalista (Des)articulado na fala da prostituta o
(Des)velamento da violência da existência marginalizada. 1985. Dissertação (Mestrado em Letras) –
Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 1985; FOGGETTI, Maria Janaina. Fado e Morte Na
Tetralogia Piauiense: uma estética da miséria humana. 2006. Dissertação (Mestrado em Letras) – Universidade
Estadual de Londrina, Londrina, 2006; RIBEIRO, Francigelda. Tetralogia Piauiense de Assis Brasil: interfaces
entre o literário e o social. In: BRANDÃO, S., FROTA, W. N.; KOCH, A. M. (org.). Literatura de subversão:
três estudos. Recife: Ed. dos Organizadores, 2008, p. 289-416.; SOUSA, Soraya de Melo Barbosa. Dialética do
poder na relação entre resistência e repressão na obra Os que bebem como cães, de Assis Brasil. In: BRANDÃO,
78

Beira Vida74, nos suscitou uma série de questionamentos em torno das possibilidades
conceituais de examiná-la numa perspectiva histórica. Na realidade, os usos que fazemos dos
conceitos remetem diretamente às escolhas que tomamos ao longo do processo de construção
de qualquer narrativa historiográfica. E como profissionais do “singular” devemos sempre
particularizar o contexto de qualquer realidade que se apresente em nosso oficio.
Como já havíamos adiantado, viver na beira significa estar à margem de alguma
coisa, ou seja, a beira representa um lugar significado tanto do ponto de vista simbólico
quanto material. E próximo a esta metáfora, mas sem a licença poética dada ao escritor,
emerge o conceito de exclusão, que é bastante complexo, tendo em vista que, de uma forma
ou de outra, sempre somos excluídos de alguma coisa, porém, nunca somos excluídos de tudo.
Quer dizer, o conceito de exclusão não pode significar uma totalidade, algo que explique
qualquer relação onde uma das partes não esteja incluída. Falar de exclusão só ganha sentido
quando se define a que tipo de exclusão se quer referir. Evidentemente, sempre estamos
transitando entre o dentro e o fora de alguma coisa, entre o centro e a beira de algum lugar. O
que implicará sempre uma pergunta fundamental: exclusão de quê? O que pode ser da ordem
do direito, da ordem do discurso, da economia, da política, do social, do masculino, do
feminino, do trabalho, etc. Esta definição - a que ordem de coisas não se está incluído - é que
servirá de norte para que se entenda sobre qual exclusão se está falando.
Nem sempre a exclusão irá significar algo negativo. O “excluído” pode nem se
reconhecer como tal, ou mesmo, pode até se beneficiar com tal rótulo, tendo em vista muitas
categorias historicamente tidas como excluídas de alguma dessas ordens até lutarem para
permanecer como estavam. Portanto, exclusão é um conceito que pode significar uma
infinidade de coisas, mas que só terá validade do ponto de vista da problematização histórica
quando direcionado a determinado contexto que o posicione em relação a alguma marcação
social. O excluído não é uma categoria universal, não se pode tomar a noção de exclusão
como algo homogêneo, sem rupturas, ou como uma condição a-histórica, porque, na verdade,
ela emerge enquanto conceito em condições muito específicas de produção.

S., FROTA, W. N. e KOCH, A. M. (org.). Literatura de subversão: três estudos. Recife: Ed. dos Organizadores,
2008, p. 11 – 164. Cf.: BRASIL, Assis. Memória e Aprendizado: entrevista concedida a Francigelda Ribeiro.
Teresina: EDUFPI, 2010.

74
A primeira edição de “Beira Rio Beira Vida” foi publicada em 1965 (Edições o Cruzeiro). A obra, neste
mesmo ano, ganhou o primeiro lugar do Premio Nacional WALMAP (Waldomiro Magalhães Pinto). Em 1979,
“Beira Rio Beira Vida” foi novamente publicada (Editora Nórdica) juntamente com mais três obras – “A Filha
do Meio Quilo”, “O Salto do Cavalo Cobridor” e “Pacamão” – o que compôs a “Tetralogia Piauiense”.
Utilizamo-nos no decorrer desta pesquisa a segunda edição da “Tetralogia” publicada no ano de 2008 pela
Fundação de Apoio Cultural do Piauí (FUNDAPI).
79

No caso da modernização urbana de Parnaíba, a exclusão pode estar relacionada à


percepção de que esse processo gerou no imaginário popular a existência de pelo menos duas
cidades: uma, era aquela calçada, de palacetes à européia, de gente fina e escolarizada, de
praças arborizadas, onde a elite desfilava todo o seu luxo e requinte; já a outra, sem
calçamento, sem palacetes, sem praças, luxo ou requinte, era a cidade não da elite, mas da
gente pobre, daqueles que foram gradualmente empurrados para as áreas periféricas. Esta
cidade singular, e ao mesmo tempo múltipla, ensejou uma intrincada rede de relações onde os
indivíduos passaram a ser identificados a partir de lugares distintos e de experiências
conflitantes que acabaram traduzindo-se na própria produção do espaço social e nas maneiras
de existir.
Assim, tangida pelo “progresso”, a cidade foi se estendendo e formando os primeiros
bairros, os primeiros logradouros e praças, sempre tendo o rio como referência a cidade se
espraiou a partir do porto margeando o rio, tendo como via principal, tanto para o comércio
como para a elite e seus palacetes, a Avenida Presidente Vargas. Se a cidade se desenvolvia
tendo como eixo estruturador esta rua, às suas margens proliferava um crescimento urbano
desordenado e em contraposição a harmonia arquitetônica e urbanística buscadas pela elite.
Outras tantas vielas e becos surgiram ao sabor da necessidade do povo desfavorecido, vendo-
se avolumar o número de casebres de palha em contraste com os palacetes imponentes do
centro da cidade. Embora o desenvolvimento comercial do período signifique, a priore,
circulação de riquezas, avanço técnico e progresso, eram evidentes na cidade a desigual
distribuição de renda e os problemas sociais que cresciam a olhos vistos.
Alguns bairros se notabilizaram por representar este contra-progresso justamente por
serem formados pela gente pobre que sobrevivia do trabalho estafante na beira do rio.
Podemos citar como exemplo os bairros75 proletários da Coroa, dos Tucuns e a Quarenta que
figuravam no imaginário popular como áreas de miséria, violência e meretrício. Segundo Caio
Passos, a nominação destes bairros se deveu a aspectos geográficos ou pitorescos, como a
Coroa que recebeu este nome em virtude das “coroas” do rio, pequenas ilhas de areia
formadas no leito do Igaraçu; ou Tucuns, espécie de planta que imperava na região. Embora
muitas vezes esta linguagem servisse apenas ao propósito da estigmatização destes bairros
como é o caso da “Quarenta”. De acordo com Caio Passos:

75
Resolvi adotar a antiga denominação destes bairros, sendo a Coroa hoje o bairro do Carmo, os Tucuns o
bairro São José e a Quarenta o Mendonça Clark.
80

Sua história é picante e satírica, daí o jocoso epíteto de Quarenta. No


inverno tornava-se um igarapé. A canoa vinha até a esquina da atual Praça
Cel. Constantino Correia. Era habitada por gente pobre, em verdadeiro
labirinto de casebres. No verão, o panorama mudava. A alegria voltava
extasiante. Aos sábados, ao som da harmônica e do pífano, o forró estourava
com cachaça e caranguejo. Ali morava uma mulata, de idade avançada,
gorda e baixa. Tinha uma filha nova, bonita e atraente, que já trilhava o
caminho da prostituição. À noite, quando apareciam os ricos por ali, a velha
ao lado da filha, querendo avançar nos bolsos recheados dos homens,
irreverentemente anunciava – “É só corenta”! o que significa quarenta réis,
moeda corrente naquele longínquo passado. Desse fato pitoresco que a
história popular guardou, sem malícia, apelidaram esse chistoso arraial da
mulata gorda e baixa de “Quarenta”. (PASSOS, 1982, p.32 – 33.).

Pierre Mayol define o bairro como um “domínio do ambiente social”. Diz ele que, o
bairro “constituí para o usuário uma parcela conhecida do espaço urbano na qual, positiva ou
negativamente, ele se sente reconhecido” (MAYOL, 2003, p. 40). A partir desta definição
percebemos que o bairro se estabelece como um lugar de pertença, onde o indivíduo se
reconhece e é reconhecido mediante os códigos sociais partilhados por todos. Nesse sentido,
pertencer a um bairro “X” ou “Y” significa carregar as marcas de uma “identidade-
alteridade”, que nesse caso é definida não apenas por condicionantes geográficos, mas por
toda uma carga simbólica que lança sobre o indivíduo os signos da diferença.
Dessa forma, a cidade é recortada por estes múltiplos compartimentos, cada lugar
específico é identificado a partir das práticas ou grupos sociais nele existentes; é o bairro
chique, é o bairro proletário, são áreas de comércio, são os espaços de lazer, é a zona de
violência e meretrício, etc. A cidade hierarquiza e divide seus espaços conjugando
representações de cada coletividade ali reunida, marcando os papéis, os percursos, e o corpo
de cada ente individualizado, inventando um sistema de valores, bem como um código de
exclusão a quem transgride a conveniência coletiva.

A prática do bairro é uma convenção coletiva tácita, não escrita, mas legível
por todos os usuários através dos códigos da linguagem e do
comportamento. Toda submissão a esses códigos, bem como toda
transgressão, constitui imediatamente objeto de comentários: existe uma
norma, e ela é mesmo bastante pesada para realizar o jogo da exclusão social
em face dos “excêntricos”, as pessoas que “não são/fazem como todos nós”.
(Ibidem, p. 47).

Nesse caso, o jogo da exclusão é centrado em um sistema de representações que se


articula com as relações sociais. O bairro ou o usuário do bairro é identificado a partir de suas
práticas concretas, como por exemplo, o lugar que este ocupa na hierarquia do corpo social, é
81

o médico, é o professor, o policial, a mãe de família, a prostituta, o mendigo, o louco, etc. O


corpo assume nessa configuração o repositório dos códigos de reconhecimento, seu lugar é
representado levando-se em conta os mínimos detalhes que o identifiquem, a roupa, o gestual,
a cadência, as falas, tudo em conformidade com os estereótipos aceitos pelo bairro. Nesse
sentido, o ser “desviante” é logo rechaçado, banido, como alguém que representa uma ameaça
explicita aos usuários do bairro, que se reconhecem nas “regras” e na uniformização dos
comportamentos. Ainda segundo Mayol, “o corpo é o suporte de todas as mensagens gestuais
que articulam essa conformidade: é um quadro negro onde se escrevem – e portanto se fazem
legíveis – respeito aos códigos ou ao contrário o desvio com relação ao sistema dos
comportamentos.”(Ibidem, p. 48).
A própria identidade, segundo Woodward, é marcada pela “diferença”, ou seja, o
indivíduo ou os grupos reunidos em torno do bairro se definiriam a partir de marcações
sociais bastante heterogêneas, como classe, localização urbana, destinação funcional do
espaço geográfico (industrial, comercial ou residencial), etc. Assim, a identidade é
estabelecida a partir de referenciais concretos que se opõem a outros referenciais. Nesse caso,
um bairro também é uma dessas marcações identitárias, pois se definiria identitariamente
enquanto bairro a partir de um sistema simbólico de representação que é capaz de reconhecer
no outro (bairro) aquilo que ele não é. Dessa forma, o centro é o que produz a periferia e vice-
versa, sendo essa diferenciação estabelecida por meio de um sistema classificatório76.

A diferença é aquilo que separa uma identidade da outra, estabelecendo


distinções, frequentemente na forma de oposições, [...], no qual as
identidades são construídas por meio de uma clara oposição entre “nós” e
“eles”. A marcação da diferença é, assim, o componente-chave em qualquer
sistema de classificação”. (WOODWARD, 2000, p.41).

Espacialmente é fácil notarmos que a prática da diferenciação é sustentada pela


prática da segregação. Nas cidades, especialmente nas grandes cidades, é como se existisse,
segundo Raquel Rolnik, “um imenso quebra-cabeças, feito de peças diferenciadas, onde cada
qual conhece seu lugar e se sente estrangeiro nos demais. É a este movimento de separação
das classes sociais e funções no espaço urbano que os estudiosos da cidade chamam de
segregação espacial.” (ROLNIK, 2004, p.40-41). Esta segregação é acompanhada de uma
estereotipação dos sujeitos, onde muitas vezes o lado da cidade em que se habita é o

76
De acordo com Woodward: “um sistema classificatório aplica um principio de diferença a uma população de
uma forma tal que seja capaz de dividi-la (e a todas as suas características) em ao menos dois grupos opostos –
nós/eles, por exemplo, servos e croatas; eu/outro.” (WOODWARD, 2000, p.40).
82

indicativo da condição social, econômica, da cor de pele, da profissão, etc., o que nos induz a
utilização do termo “cidade partida”. Ainda de acordo com Rolnik, “é como se a cidade fosse
demarcada por cercas, fronteiras imaginárias, que definem o lugar de cada coisa e de cada um
dos moradores.” (ROLNIK, 2004, p. 41).
Alguns lugares da cidade são atravessados pela existência de certos grupos que logo
se inscrevem no imaginário social como arquétipos de reconhecimento do espaço que
habitam. Para Mayol, a prática do bairro vai significar uma marca de pertença indelével na
história do sujeito por representar “todo processo de apropriação do espaço como lugar da
vida cotidiana pública” (MAYOL, 2003, p. 44). Exemplo disso no imaginário da “moderna”
cidade de Parnaíba é a famosa Rua dos Barqueiros, localizada no bairro da “Quarenta”, que
em Parnaíba recebeu este nome por ser ocupada em sua grande maioria por embarcadiços,
como bem podemos evidenciar em uma das crônicas de Raimundo de Sousa Lima:

A rua dos Barqueiros teve sua origem no arruado de casas da “Quarenta”,


lugar “quente”, que não tinha dia nem hora para começar o fuzuê,
principalmente quando as festas vinham do dia anterior. Sempre foi uma
nesgada, começando pelo estabelecimento de seu Zé Fenelon, hoje casa
abandonada que serviu de quitanda-loja, onde eram fornecidas mercadorias a
centenas de embarcadiços, depois o fumo de mascar até as calças de brim
JOFRE com atracas de pano reforçado e de fivelas de latão à moda de
retranca que segura o cinturão pela faca. (...) Mas a Rua dos Barqueiros é de
fato o nome apropriado que ela merece, porque lá é que o aglomerado de
embarcadiços se reunia, tanto para comprar como para dançar e beber nos
dias do cotidiano. (SOUSA LIMA, 1987, p.17).

A segregação do espaço urbano é produto e produtora do conflito social, é a marca de


uma sociedade que estabelece suas hierarquias, seus estigmas e lugares de tolerância. A
topologia simbólica representada pelos bairros proletários de Parnaíba no período abordado é
exemplo desta tentativa de separação, onde cada grupo devia permanecer em seu devido
espaço, e cada prática devia ajustar-se ao processo geral de reconhecimento e conveniência
própria do bairro. Assim, até meados do século passado, Parnaíba encontrava-se envolvida em
um processo de reformulação urbana intenso, alavancado tanto pelo rentável comércio
marítimo quanto pela influência advinda dos contatos com outras metrópoles do Brasil e do
exterior. A cidade foi urbanizada dentro de um perímetro central, sendo gerida para atender as
necessidades de uma pequena elite que enxergou na pobreza um “perigo” social que
ameaçava pela sujeira e imoralidade. Essa justificativa procurou legitimar o discurso em torno
da higiene e da salubridade, onde os pobres, os verdadeiramente afetados por essa “limpeza”
urbana, deveriam ser mantidos à distância com sua desorganização e doenças, deixando o
83

centro para aqueles a quem a “boa sorte” favoreceu. Separados do restante da cidade – e ao
mesmo tempo simbioticamente unidos ao cais –, aqueles levavam uma existência marginal,
colhendo os cacos do progresso no tira-teima diário com o rio. No tópico seguinte veremos
como se deu essa relação entre o centro e a margem da cidade, especialmente o que
representava viver na “beira”.

3.2 Beira Rio Beira Vida

A belle époque como um período característico do final do século XIX e primeiras


décadas do século XX marcou de forma significativa a experiência urbana. Além de foco das
expectativas e investidas civilizatórias, o espaço urbano se constituirá em expressão do
progresso material e das “benesses” da modernidade. Enquanto locus privilegiado destas
mudanças, a cidade significará um espaço de múltiplas relações e leituras, interessando tanto
como espaço físico como território textual, como lugar habitado e também representado.
Neste sentido, a literatura vem fornecer a possibilidade de imersão nessas experiências
urbanas, se constituindo numa fonte sensível para o trabalho do historiador, prenhe de
significados sociais que exigem, tanto quanto outras fontes, um tratamento adequado, sem
reducionismo ou sacralidade.
A literatura, assim como a linguagem de um modo geral, é um elemento que
potencializa no homem sua capacidade de dotar de sentido a realidade. A utilização da
literatura dentro de uma pesquisa que se pretende historiográfica inicialmente exige do
historiador o estabelecimento de um ponto de clivagem onde ele possa distinguir seu oficio
daquele que é próprio do literato, distinção que na realidade foi um dos fundamentos clássicos
da história enquanto discurso específico em torno da busca do verdadeiro. Carlo Ginzburg,
partindo de Aristóteles, segue o rastro do verdadeiro, do falso e do fictício procurando
deslindar nos labirintos entre o literário e o histórico os caminhos que orientam a produção da
realidade.
Os historiadores, escreveu Aristóteles (Poética, 51b), falam do que foi (do
verdadeiro), os poetas, daquilo que poderia ter sido (do possível). Mas,
naturalmente, o verdadeiro é um ponto de chegada, não um ponto de
partida. Os historiadores (e, de outra maneira, também os poetas) têm como
oficio alguma coisa que é parte da vida de todos: destrinchar o
entrelaçamento de verdadeiro, falso e fictício que é a trama do nosso estar
no mundo. (GINZBURG, 2007, p.14).
84

Os textos literários nos possibilitam um olhar em perspectiva, nos convidam a


partilhar das possibilidades de interpretação e interação com o mundo. O historiador, como
“um mestre de verdade”77, também é um ser dotado de sensibilidade e paixão, sobre o qual,
portanto, o belo exerce as mesmas influências que nos demais. (NEVES, 1985). A literatura
não é inimiga da história tendo em vista ambas trabalharem com construções humanas,
construção que é poieses, “fabricação”, “produção”. A literatura atua sobre o real enquanto
artifício, (arte)ficcio, como trama, urdidura, produzindo “efeitos de verdade”. A literatura
circunstancia numa linguagem discursiva a sociedade que a produziu.
Nesse caso, ler a obra literária com os olhos da história implica efetivamente apelar
ao sensível, ao poético, ao caráter transbordante e insubmisso da literatura, reconhecendo que
ela se insi(nua) ao historiador não como objetividade e fixidez, mas como caos, ruína,
polissemia, assim como também o é a realidade, ou seja, a literatura pode falar ao historiador
dos sismos e sedimentações humanas, da organização, não necessariamente ordenada, do seu
universo enquanto lugar de representação e significação. Sem a obrigatoriedade de falar o
“real”, a literatura aponta para o possível, para o que poderia ter ocorrido, embora sempre
partindo de um referente material e histórico que é a sociedade. A literatura e o literato não
são alienígenas à dimensão social da existência, ambos estão situados num processo histórico
que os determina, que os obriga a carregar as marcas do tempo e das experiências enquanto
fluxo acontecimental.78 De acordo com Nicolau Sevcenko:

A partir dessa perspectiva, a criação literária revela todo o seu potencial


como documento, não apenas pela análise das referências esporádicas a
episódios históricos ou do estudo profundo dos seus processos de
construção formal, mas como uma instância complexa, repleta das mais
variadas significações e que incorpora a história em todos os seus aspectos,
específicos ou gerais, formais ou temáticos, reprodutivos ou criativos, de
consumo ou de produção. Nesse contexto globalizante, a literatura aparece
como uma instituição, não no sentido acadêmico ou oficial, mas no sentido
em que a própria sociedade é uma instituição, na medida em que implica
uma comunidade envolvida por relações de produção e consumo, uma
espontaneidade de ação e transformação e um conjunto mais ou menos
estável de códigos formais que orientam e definem o espaço da ação
comum. (SEVCENKO, 2003, p. 299).

77
Cf. DOSSE, François. O historiador: um mestre de verdade. In: ________. A história. Bauru, SP: EDUSC,
2003, p. 13-46.
78
Sobre a relação entre literatura e sociedade numa perspectiva mais sociológica Cf. CANDIDO, Antonio. A
literatura e a vida social. In: ________. Literatura e Sociedade: estudos de teoria e história literária. 8.ed. São
Paulo: T.A.Queiroz, 2000, p. 17-39.
85

O uso de determinada fonte em detrimento de outra aponta para uma filosofia própria
do historiador, que seleciona, interpreta e cria, a partir dos seus instrumentos de análise, sua
compreensão particular da história. Os questionamentos sobre o tratamento dispensado ao
documento histórico, entendido pelos historiadores do século XIX e início do século XX
como documento-verdade, bem como a passagem de uma história eminentemente política
para uma história social fez como que o pensamento historiográfico abrisse novos horizontes
de possibilidade ao conceito tradicional de fonte histórica, legitimando gradualmente outros
tipos de registros que respondiam aos dilemas de uma nova sociedade que emergia naquele
instante cada vez mais complexa e complexada com as antigas formas de ler o passado.
Nesse contexto epistemológico vemos consolidar-se aos poucos a utilização de novos
referenciais teóricos, aproximações transdiciplinares, abertura das fronteiras entre as ciências
e a arte, o alargamento da compreensão de cultura, bem como os mecanismos de produção e
recepção de objetos culturais. Essas mudanças afetaram metodologicamente o campo
documental, isto é, o conceito tradicional de documento histórico foi repensando dentro de
uma nova postura epistemológica. Assim, os documentos capazes de “revelar” representações
sobre uma dada realidade, como a literatura, por exemplo, passaram do status de ilustração
para o de fonte, de pano de fundo para evidencia histórica. Enfim, ganharam a relevância de
testemunho histórico como qualquer outro documento.
A literatura, nesse caso, como qualquer outra tipologia de fonte, não é dada ao
natural, ela é, antes de mais nada, produzida no interior de interesses muito particulares de
quem a toma como fonte. O “produto ficcional”79 deve ser interrogado tendo em vista sua
possibilidade de informar a história, de conduzi-la na elaboração de uma problemática e uma
interpretação sobre o passado, bem como refletir sobre a indeterminação dos percursos
históricos e das tensões que marcam os caminhos e descaminhos de determinada sociedade. O
texto literário soma-se ao conjunto específico de saberes próprios ao oficio do historiador
ajudando-o a traduzir o ser das estruturas sociais, as permanências, as mudanças, as
descontinuidades do tempo e do homem.
Contingente e registro de um tempo, a fonte literária também nos faz pensar na
condição do “produtor”, entenda-se por isso aquele que se apropria dos recursos lingüísticos
de seu tempo e produz o romance, a crônica ou a poesia. A condição de escritor é mediada

79
Para um aprofundamento dos conceitos de Produto Ficcional, Contexto e Produtor: Cf. QUEIROZ, Teresinha.
História e Literatura. In: ADAD, S.J.H.C.; BRANDIM, A.C.M.S.; RANGEL, M. do S. Entre Línguas:
movimento e mistura de saberes. Fortaleza: Edições UFC, 2008, p. 200-214.
86

pelo percurso individual deste, e de todo o universo social que o configura deixando marcas
indeléveis no produto de sua criação, a obra literária. Segundo Teresinha Queiroz:

(...) o que se deve por em destaque não é apenas a conexão vida-obra ou


apenas a vida, a biografia, o percurso individual, mas exatamente as
articulações entre essas vidas, no que tem de marca individual, singular,
exemplar e todo o universo social mais amplo que as configura, com graus
variáveis de complexidade. (QUEIROZ, 2008b, p. 201-202).

O “contexto”, ou o conteúdo social da obra literária, talvez seja o que mais possa
interessar ao historiador, tendo em vista ser justamente nele que o escritor deposita suas
interpretações e impressões de mundo. É no contexto da obra literária que se vê enredadas,
mesmo que de passagem, as tramas do social. O desmonte do seu contexto80 pode oferecer ao
historiador a possibilidade de tocar naquilo que é mais recôndito da experiência humana,
desde aspectos psicológicos a interdições morais que normalmente não estariam presentes de
maneira evidenciada em outras categorias de fontes. O conteúdo social da obra literária,
portanto, mais revela do que vela as condições de formatação da sociedade, que a um primeiro
olhar é naturalizada enquanto estrutura ordenada, mas que vista pelas suas inúmeras frestas, e
a literatura é uma delas, mostra-se contraditória, insubmissa, em devir.
Se uma particularidade pode legitimar o fazer literário em relação ao social, ao
histórico, é sua capacidade de “olhá-lo por baixo dele mesmo”, de falar o inconfessável, de
trazer para o primeiro plano a infâmia, o escândalo, de dar voz aos mal-ajustados, aos que
foram vencidos, aos excluídos da ordem do discurso. A literatura coloca-se assim como uma
fala que faz defeito na História, com H maiúsculo, porque traz para o centro do enredo, ainda
que mediado pelo escritor, aquele a quem normalmente não é dado o direito de ser portador
do discurso, de falar em primeira pessoa, de representar o mundo.

A literatura, portanto, faz parte desse grande sistema de coação através do


qual o Ocidente obrigou o cotidiano a se pôr em discurso; mas ela ocupa um
lugar particular: obstina em procurar o cotidiano por baixo dele mesmo, em
ultrapassar os limites, em levantar o brutal ou insidiosamente os segredos,
em deslocar as regras e os códigos, em fazer dizer o inconfessável, ela
tenderá, então, a se pôr fora da lei ou, ao menos, a ocupar-se do escândalo,
da transgressão ou da revolta. Mais do que qualquer outra forma de
linguagem, ela permanece o discurso da “infâmia”: cabe a ela dizer o mais
indizível – o pior, o mais secreto, o mais intolerável, o descarado.
(FOUCAULT, 2003, p.221).

80
Sobre o que denominei aqui de “desmonte” do contexto da obra literária: Cf. MAINGUENEAU, D. O
contexto da obra literária: enunciação, escritor, sociedade. 2.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
87

No que concerne a experiência urbana, percebemos que a literatura também funciona


como travessia, dobra do social que dá a ler a cidade e as disputas no interior de sua produção.
Segundo Angel Rama (1985), as cidades antes de serem fundadas a partir de seu
correspondente físico, com suas ruas, casas e praças, foram antes pensadas e representadas
como símbolos, planos e regularidades, foram antes cidades letradas, cidades escriturárias,
foram sempre cidades além de seus avatares materiais. Os textos literários são, portanto,
relatos sensíveis das formas de ver a cidade (GOMES, 2008), são formas metaforizadas de
dizer o universo urbano, de apreendê-lo por imagens em movimento, de tentar capturá-lo pela
sensibilidade feita palavra-texto.
Como representação textual, a cidade de Parnaíba foi densamente descrita em
crônicas, poemas e romances. Este último, o romance, enquanto gênero literário81 despontará
como uma das mais frutíferas possibilidades de leitura sobre a cidade, tanto por desvelar as
disputas em torno da produção da realidade urbana expressando as forças em luta, quanto por
atuar como “efeito de real”, como lugar do possível na tessitura de um imaginário urbano.
Tendo em vista ser oficio do historiador selecionar, recortar e definir suas fontes, bem como
problematizá-las à luz dos questionamentos lançados sobre a realidade, concordamos com
Teresinha Queiroz quando esta afirma que:

Condição de excelência de qualquer categoria de fonte resulta do fato de


surgir, não apenas enquanto evidência alternativa ou registro novo, porém
com a característica de ser produzida materialmente como resultado de uma
prática social cujo intuito não era o de se transformar em informação para o
historiador. (QUEIROZ, 2008b, p. 212).

Nesse sentido, é que tomamos como fonte o romance Beira Rio Beira Vida (1965),
do escritor parnaibano Francisco de Assis Almeida Brasil (Assis Brasil), na tentativa de
enxergar como foi representada a pobreza na belle époque parnaibana a partir do viés literário.

81
Segundo Vitor Manuel de Aguiar e Silva, sobre as origens do romance como gênero literário: “Na Idade Média, o
vocábulo romance (espanhol romance, francês romanz, italiano romanzo) designou primeiramente a língua vulgar, a
língua românica que, embora resultado de uma transformação do latim, se apresentava já bem diferente em relação a
este idioma. Depois, a palavra romance ganhou um significado literário, designando determinadas composições
redigidas em língua vulgar e não na língua latina, própria dos clérigos. Apesar de suas flutuações semânticas, o
vocábulo romance passou a denominar sobretudo composições literárias de cunho narrativo. Tais composições eram
primeiramente em verso – o romance em prosa é um pouco mais tardio –, próprias para serem recitadas e lidas, e
apresentavam um enredo fabuloso e complicado.” (AGUIAR E SILVA, 1976, p.250). Para Massaud Moisés, sobre as
possibilidades do romance: “Todas as metamorfoses do real, todas as formas de conhecimento cabem no perímetro do
romance, assim transformado numa espécie de síntese ou de superfície refletora da totalidade do mundo. Dessa
conjuntura promana a sua função gnoseológica: mais conhecimento que entretenimento, o romance permite ao escritor
construir um projeto ambiciosamente globalizante das multiformes experiências humanas, e ao leitor, desfrutá-lo de
modo privilegiado, sem risco para sua própria existência; o prosador conhece o mundo por meio do romance, e dá-o a
conhecer ao leitor; não existe, nos quadrantes da criação literária, meio mais completo para se chegar a uma imagem
totalizante do Universo.” (MOISÉS, 1974, p.452).
88

A obra em questão apresenta de maneira memorialística o universo cotidiano às margens do


rio Parnaíba em meados do século XX, bem como desnuda a tensão existente entre os espaços
de convivência que a cidade possuía nesse período. A obra toma como eixo central da
narrativa a vida dos trabalhadores e moradores da beira do cais: embarcadiços, vareiros,
canoeiros, prostitutas, etc.; em suma, gente simples que lutava, sobrevivia e morria para o rio
(beira rio), mas que também era obrigada a (con)viver com a indiferença, a marginalização e o
preconceito daqueles que jamais pisariam na beira do cais, daqueles para quem o rio era
apenas porcaria, vergonha, lugar de bêbados e raparigas (beira vida).
Sobre o escritor de Beira Rio Beira Vida, Assis Brasil, há muito que se dizer.
Efetivamente esboçar uma biografia do autor, tentar capturar sua vida como uma sucessão
linear de acontecimentos e inseri-la dentro de um contexto específico seria trair seu próprio
percurso enquanto “sujeito indeterminado”, seria negar as descontinuidades de uma existência
que é móvel, fluida, escorregadia. Segundo Pierre Bourdieu:

Tentar compreender uma vida como uma série única e por si suficiente de
acontecimentos sucessivos, sem outro vinculo que não a associação a um
“sujeito” cuja constância certamente não é senão aquela de um nome
próprio, é quase tão absurdo quanto tentar explicar a razão de um trajeto no
metrô sem levar em conta a estrutura da rede, isto é, a matriz das relações
objetivas entre as diferentes estações. Os acontecimentos biográficos se
definem como colocações e deslocamentos no espaço social, isto é, mais
precisamente nos diferentes estados sucessivos da estrutura da distribuição
das diferentes espécies de capital que estão em jogo no campo considerado.
(BOURDIEU, 2006, p.189-190).

Mas como “colocação no espaço social”, pode-se apresentar o escritor da seguinte


forma: Assis Brasil é parnaibano nascido em 1932. É autor de mais de cento e vinte livros
entre romances, antologias, ensaios e crítica literária. Conquistou duas vezes o Prêmio
Nacional Walmap com Beira Rio Beira Vida (1965) e Os que bebem como os cães (1975), e
em 2004 a Academia Brasileira de Letras (ABL) lhe concedeu o Prêmio Machado de Assis
pelo conjunto de sua obra. Assis Brasil, no entender de seus críticos “é meio bicho de
concha”82, mas como escritor profissional é um dos mais fecundos da literatura brasileira.
Como romancista, Assis Brasil destaca-se por duas séries de livros que irão lhe consagrar
enquanto ficcionista, são eles: a Tetralogia Piauiense, composta pelos romances Beira Rio
Beira Vida (1965), A filha do meio quilo (1966), O salto do cavalo cobridor (1968) e
Pacamão (1969); e pelo chamado Ciclo do Terror, composto pelos seguintes romances: Os
82
Cf. CARVALHO, José Candido. O menino do Piauí. In: BRASIL, Assis. Tetralogia Piauiense. Teresina:
FUNDAPI, 2008. p. 7-10.
89

que bebem como os cães (1975), O aprendizado da morte (1976), Deus, o sol, Shakespeare
(1978) e Os crocodilos (1980).
Beira Rio Beira Vida é o primeiro a efetivamente apresentar o estilo do escritor, que
é a ênfase no diálogo, na descontinuidade temporal da narrativa, onde o enredo é posto a
serviço da fusão dramática entre vida e poesia (MOISÉS, 2001). O eixo temático do romance
parece acompanhar o movimento de urbanização brasileiro, onde a cidade, e não o universo
rural, emerge como ambiente do desenrolar dos dramas sociais.83 Os problemas urbanos, a
marginalização social, a degradação das relações interpessoais, o servilismo de uns e o
mandonismo de outros, bem como o caráter universal dos dilemas existenciais humanos, são
os verdadeiros traços distintivos de Beira Rio Beira Vida. Que também pode ser lida como
uma obra-denúncia da realidade social de Parnaíba, como uma literatura deliberadamente de
revolta, que nesse caso aponta para uma concepção estética e política da obra literária e das
intencionalidades do seu autor. Segundo ele mesmo declara:

Não costumo separar a significação social da significação estética da


literatura, porque ela documenta, denuncia, crítica a vida ao nível de uma
realidade artística, com uma linguagem especifica. A cidade de Parnaíba e a
minha experiência lá forneceram o material de trabalho, estilizado a partir
de uma visão da vida e da literatura: visão universal do homem, a sua
condição. A visão particular acaba por ser uma visão panorâmica. Este é o
segredo da arte. (CAMINHA e MOURA, 1989, n.p.).

Beira Rio Beira Vida foi escrito na maturidade do escritor, no momento em que ele
já estava distante da sua terra natal, portanto, as personagens, os cenários e o possível
regionalismo presente na obra, se constituem em experiências memorialisticas do autor. Mas
que não se reduz somente a isso, antes, a obra compõe um registro insofismável, do ponto de
vista documental, sobre a sociedade parnaibana no seu apogeu econômico. É um romance
profundamente crítico da face repressora e contraditória daquela sociedade. Assim, em
entrevista recente, o escritor conta em detalhes o processo criativo de Beira Rio Beira Vida,
especialmente sobre a experiência de conhecer os personagens “reais” que deram motivo a
feitura da obra. Segundo Assis Brasil:

83
Guilhermino César corrobora essa ideia de que o fazer literário, enquanto eixo temático, acompanha o
processo de urbanização brasileiro: “A verdade é que a ficção – dos anos 60 a esta parte – corre para a multidão,
para retratá-la ou simplesmente conquistá-la. Isso é tão verdade que o processo redutor, diante das condições do
nivelamento social resultante, já não passa pela contemplação do rústico, mas pela ‘urbanização’ do rústico.
Nesse ambiente, os autores que têm a oportunidade (melhor seria dizer – a coragem) de incursionar pelo interior,
em busca de motivos romanescos, são uma escassa minoria e não raro falsificam a realidade.” (CÉSAR, 2004,
p.460 - 461)
90

Sim, conheci em Parnaíba os futuros personagens do Beira Rio Beira Vida,


mas não sabia ainda que seria escritor... nem que eles seriam meus
personagens. Mas tudo ali na cidade estava se amalgamando para isso.
Luiza, o personagem-motivo-nuclear do Beira Rio, já envelhecida, creio que
já tinha uns 75 anos de idade – os olhos eram vivos, bonitos, ela era ainda
uma mulher bonita, ex-prostituta, um ser humano marcado pelo destino,
numa cidade indiferente, ontem e hoje, ao sofrimento humano. Minha mãe
me contou parte da história dela, de fato uma sina de prostituição em todos
os seus ascendentes e descendentes. A única filha, Mundoca, já tinha
morrido. Ela, por indiferença total aos homens, quebraria tal sina, que eu
mostraria no romance muitos anos depois. Lavadeira, vida precária e
miserável, habitando ainda um barraco imundo na beira do cais, ali,
descendo pela rua do Rosário até a beira do Parnaíba. Depois de uma
quitanda, vizinha à nossa casa, na rua do Passeio (hoje Francisco Corrêa),
meu pai abriu um bar na Praça da Graça, esquina com a rua do Rosário e
mais tarde o que chamava de armazém, bem na beira do cais, onde por vezes
eu ia pescar. Ali que conheci Jessé [...]. Pois bem, o Jessé era um garoto
vivo, mas muito tímido que acabou ficando no armazém do meu pai, para
ajudar no pilador de arroz e milho. O pai deixou ali e nunca mais voltou...
Quando saí de Parnaíba, Jessé tinha se largado pelo mundo. A Cremilda,
mãe de Luiza, foi referência relativa de minha mãe. (BRASIL, 2010, p.17).

Mesmo tendo vivenciado estas histórias e experiências na infância – conhecido,


ainda que por “referência”, as personagens – o romancista está desobrigado a informar o real
mediante os efeitos de prova, de validação do seu discurso a partir de determinada
documentação, como é próprio do oficio do historiador. Isso, obviamente, não desqualifica o
romance enquanto via de acesso ao social, ao histórico, antes o coloca como possibilidade de
acesso aos códigos que permitem ler “o mundo como representação”.84 Como um observador
privilegiado da sociedade, o escritor é alguém que exprime o seu tempo, que é representativo
dele e que também se deixa influenciar por ele, ou seja, o escritor opera seu produto ficcional
dentro de marcações muito bem determinadas que podem reconstituir as possibilidades de
existência do social.
Sobre a recepção crítica da obra dois fatos marcantes merecem ser apontados. O
primeiro é relativo à crítica literária propriamente dita, visto que a obra foi muito bem
recebida do ponto de vista formal, como já observamos anteriormente, conquistando um
prêmio significativo, que consequentemente alavancou a carreira do autor diante das
dificuldades de publicação no Brasil. Há de se frisar que muito cedo Assis Brasil já sobrevivia
unicamente de seu trabalho de escritor, acontecimento raro no âmbito das letras brasileiras.

84
Cf. CHARTIER, Roger. O mundo como representação. Estudos Avançados. vol.5, n.11, 1991, p. 173-191.
Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.>. Acesso em: 12/05/2011.
91

Um segundo fato, e esse sim é o que mais nos interessa do ponto de vista do impacto social da
obra, foi a recepção de Beira Rio Beira Vida pelo público leitor.
Tomando a operação de leitura como uma ação dialógica entre autor-texto-leitor-
sociedade85, procuramos compreender como o romance Beira Rio Beira Vida impactou a
sociedade parnaibana, como ele foi recebido socialmente, tendo em vista referir-se a aspetos
negligenciados pela elite da cidade, se contrapondo assim a ainda viva memória de sua belle
époque. Utilizamos como referência para esta abordagem as impressões de leitura de Manuel
Domingos Neto86, que no ano de 1994 publica no Almanaque da Parnaíba um texto intitulado
“A primeira vez que li Assis Brasil”, que é muito esclarecedor sobre as fissuras provocadas
pela obra no imaginário social parnaibano. Segundo Manuel Domingos Neto, seu contato
inicial com o romance Beira Rio Beira Vida foi marcado por muita curiosidade e culpa. Ainda
menino viu-se diante das proibições do avô, Ranulpho Torres Raposo87, em torno do nome e
da obra de Assis Brasil.

Em minha casa esse livro não entra. Assim meu avô reagiu à minha vontade
de ler Beira Rio, Beira Vida. A proibição, partindo de Ranulpho Torres
Raposo, era difícil de ser assimilada. Meu avô gastava dinheiro divulgando
escritores piauienses no seu ALMANAQUE DA PARNAÍBA. Por que
proibir-me de ler um parnaibano que ganhava destaque nacional?
(DOMINGOS NETO, 1994, p.24).88

85
Para Roger Chartier: “(...) a experiência mostra que ler não significa apenas submissão ao mecanismo textual.
Seja lá o que for, ler é uma prática criativa que inventa significados e conteúdos singulares, não redutíveis às
intenções dos autores do textos ou dos produtos dos livros.” (CHARTIER, 2001, p.214) / “(...) o ato de ler não
pode anular-se no próprio texto, assim como as significações não podem ser aniquiladas mediante significados
impostos. A aceitação de mensagens e modelos sempre opera através de ajustes, combinações ou resistências.”
(ibidem, p.234).
86
Manuel Domingos Neto nasceu em Fortaleza (CE) em 05 de dezembro de 1949, filho de Pedro de Castro
Pereira e Florice Raposo Pereira. Doutor em História pela Universidade de Paris (III). Foi um dos criadores e
coordenadores do Núcleo de História Oral do Centro de Pesquisas Econômicas e Sociais do Piauí - CEPRO.
Além de Deputado Federal (1989-1991), Manuel Domingos Neto também foi vice-presidente do CNPq. Ele
publicou vários livros e ensaios sobre os problemas sociais do Piauí, como, por exemplo, “Seca Seculorum:
flagelo e mito na economia rural piauiense” (1987), em parceria com Geraldo Borges, e mais recentemente, “O
que os netos dos vaqueiros me contaram: o domínio oligárquico no Vale do Parnaíba” (2010). Atualmente,
Manuel Domingos Neto é professor da Universidade Federal do Ceará, UFC.
87
Ranulpho Torres Raposo nasceu na cidade de Miguel Alves (PI) em 1900. Foi comerciante e jornalista. Entre
os anos de 1942 e 1980 foi o editor responsável pela publicação do “Almanaque da Parnaíba”. Ranulpho foi
diretor do Serviço Social do Comércio (SESC) por mais de 20 anos, também pertenceu a Academia Parnaibana
de Letras, cadeira n.29. Faleceu em Parnaíba em 1980.
88
Como se pode ver nessa citação, Manuel Domingos Neto separa o título do romance com uma vírgula, resolvi
mantê-la nas citações desse autor, embora até edição presente o romance Beira rio beira vida mantenha o título
não separado por vírgula.
92

Quanto às razões para essa “interdição literária”, essa “maldição” sobre a obra e
sobre o autor, que não era exclusividade da família de Ranulpho Torres Raposo e que se
prolongou por anos a fio - e ainda não podemos afirmar que se desfez de todo -, Manuel
Domingos Neto afirma, citando as palavras do avô, o que significava o romance para a “boa
sociedade” parnaibana.

As razões que apresentava eram inconvenientes. O livro seria um


“desrespeito às famílias parnaibanas”, jogaria “lama sobre homens
honrados”, teria “muitas mentiras”... Um arrazoado para aguçar a
curiosidade de qualquer adolescente. (ibid.id.).

Na realidade toda essa polêmica em torno do romance Beira Rio Beira Vida ocorreu
porque o autor, intencionalmente ou não, resolveu pôr nos nomes de suas personagens
algumas figuras que realmente existiram na cidade de Parnaíba, especialmente aqueles de
“famílias ilustres” da elite parnaibana. Junte-se a isso, o próprio caráter distópico da obra em
relação a uma imagem ideal que se queria da sociedade. E o seu aspecto de denúncia da
miséria urbana em pleno auge da economia da cidade. A obra questionou a inocência de
algumas riquezas em face dos desníveis sociais, das aparências e do arrivismo nas relações
interpessoais. E trouxe para a primeira pessoa do discurso uma prostituta que faz sua leitura
daquela sociedade, ou seja, foi uma inversão completa dos valores que sustentavam a feitura
de um mundo social que se queria deixar ver harmonioso, justo e progressista.
Mas o autor se defende, diz ele que:

Quando trato do problema da prostituição em Parnaíba, muitos piauienses


tentam colocar a carapuça na cabeça, achando que eu falseio a realidade ou
falo de um tempo que não existe. Recentemente o professor José Maria
Vasconcelos lançou um livro sobre minha obra de ficção, mas teve o
cuidado de ir à Parnaíba “fotografar” os meus personagens. E o que
encontrou? Apenas supostos personagens ressentidos e me odiando. Devo
dizer que eles nada tem haver com os meus romances: há coincidências de
nomes, de situações, o que é mais uma prova de que a “geografia humana”
é universal. Que eles tirem a carapuça e vejam Parnaíba (a mesma coisa
aconteceu com Dalton Trevisan em Curitiba) como um barro original, de
onde parti para a criação. (CAMINHA e MOURA, 1989, n.p.).

“Como um barro original”, a cidade que emerge da narrativa brasiliana é uma cidade
em ruínas, uma cidade mostrada em seu “lado feio”, fétido, uma cidade nua diante de quem
ousa transitar além do centro. Manuel Domingos Neto acabou, embora culpado por ter lido
escondido o tão mal falado Assis Brasil e desobedecido clandestinamente seu avô,
93

descobrindo em Beira Rio Beira Vida essa outra cidade que subterraneamente existia a dois
passos do seu mundo burguês, da sua cidade ideal.

Ao longo dos anos li diversas vezes Beira Rio, Beira Vida. Descobri em
Assis Brasil um escritor de raro talento. Não apenas por seus conhecidos
recursos narrativos e pelo fato de renovar a técnica do romance brasileiro.
Ou ainda por sua poesia tão intensa e bonita. Admiro nesse autor,
sobretudo, a proeza de resgatar o mundo dos excluídos, aquela parcela da
população ignorada pela literatura, inclusive pelo ALMANAQUE DA
PARNAÍBA. Claro, antes e depois dele, outros já haviam tematizado os
miseráveis. Mas não os que comem pouco e morrem cedo na minha cidade
da Parnaíba. Nem com a mesma sensibilidade, sem ver os pobres como
coisa exótica, especial. (DOMINGOS NETO, 1994, p.25).

Beira Rio Beira Vida possibilita um confronto com outros discursos lançados sobre o
período, principalmente aqueles presentes em obras que outra intenção não tinham que
maquiar os problemas enfrentados por parte da população subtraída dessa modernização
urbana, desse progresso material da cidade. O romance em si nos possibilita buscar através do
confronto com outras fontes, novas interpretações para aquilo que muitas vezes figura como
processo natural e a-histórico, como algo dado e irremediavelmente inacessível à
compreensão. Enfim, nos possibilita trazer para o primeiro plano estes “que comem pouco e
morrem cedo”.
No romance, Parnaíba emerge como uma cidade partida, dividida entre dois espaços
antagônicos: a cidade e o cais. A cidade é aquele espaço que sofreu o embelezamento urbano
do qual falamos no primeiro capítulo, é aquela que recebeu os cuidados da administração
municipal, é onde moram os ricos, aqueles que se beneficiaram com o momento de pujança
econômica e que, portanto, ostentam o progresso material do período. O cais é o oposto disso,
é o espaço do trabalho, da marginalização urbana, da pobreza material, do comércio do corpo,
da exploração da mão de obra e da exclusão social, enfim, é o lugar da miséria, sobretudo
humana. Essa divisão reflete a estratificação social, os muros simbólicos que são erguidos e
que colocam cada personagem em seu devido lugar, malogrando qualquer tentativa de escape
dessa condição, como se o destino tivesse fadado cada um a ser o que é.
Estigmatizadas socialmente, as personagens do romance vivem asfixiadas por uma
sociedade que engessou suas relações, obrigando seus pobres a existirem como ninguéns89,
sem nome, sem nada, como donos de nada, sem cara, como os que não tem sexo, despojados
de direitos, de sonhos, como os que não desfrutam, incapazes de pensar que não seja pela

89
Cf. GALEANO, Eduardo. Os ninguéns. In: ________. O livro dos abraços. 2.ed. Porto Alegre: L&PM, 2010.
p. 71.
94

barriga, os que talvez nem mesmo pertençam à humanidade90, como os bestializados91,


animalizados92, que não merecem respeito, mas sim pena, essa “elevada” capacidade de ser
tocado por aquilo que causa repulsa, medo, nojo. Beira Rio Beira Vida reproduz o abismo
existente entre os pobres e os ricos da cidade de Parnaíba na sua belle époque, evidenciando
aqueles que foram vencidos pelos fatos, os ausentes da História oficial, das odes de glória à
cidade.
Luíza, Mundoca e Jessé são personagens-arquétipos dessa sociedade, cada um à sua
maneira peleja contra as “ferrugens” desse sistema que dissuade o espírito de quem pensa em
mudança, de quem ousa sonhar. A narrativa de Beira Rio Beira Vida gira principalmente em
torno das memórias de Luíza, que alternando amargura e revolta vai tecendo para o leitor os
fios que a conduziram à prostituição na beira do cais. É ela, a Luíza do cais, a filha da
prostituta Cremilda, que falando em primeira pessoa dá forma a sua existência ao nos contar
sua versão da história. A outra personagem, Mundoca, filha de Luiza, escapa à prostituição
por não ter se inteirado do mundo, por ser uma figura aérea e alheia a tudo. Mundoca vive
apenas em função da rotina, sem amor, sem vaidade, sem metafísica93. Jessé, ao contrário,
talvez seja o único dessas três personagens que lute contra sua condição. Teimoso e
inconformado queria ser rico, mas acabou morrendo tragicamente antes de realizar seu sonho.
Sua morte pode ser entendida como uma espécie de admoestação àqueles que não sabem o
seu lugar, que se rebelam contra o sistema e tentam romper seus muros.
Podemos novamente evidenciar que os socialmente mal ajustados ganham voz no
discurso literário. Que a literatura permite que a “puta” fale em primeira pessoa, que o louco
dê azo a sua loucura, que o assassino mate e devore suas vítimas. Segundo Nicolau Sevcenko,
essa é a razão que faz com a literatura apareça “como um ângulo estratégico notável, para a
avaliação das forças e dos níveis de tensão existentes no seio de determinada estrutura social.”
(SEVCENKO, 2003, p.28). Beira Rio Beira Vida expõe a quem queira ver as vísceras de uma
sociedade opressiva, que num processo sistemático de exploração reproduz-se mediante a
violência e a dominação. No romance, o mínimo detalhe repercute como um sismo que trinca

90
Cf. COHEN, J. J. A cultura dos monstros: sete teses. In: SILVA, T. T. da. (org.). Pedagogia dos monstros: os
prazeres e os perigos da confusão de fronteiras. Belo Horizonte: Autêntica, 2000, p. 23- 60.
91
Cf. CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi. 3.ed. São
Paulo: 2008.
92
Cf. FOUCAULT, Michel. Os Anormais. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
93
Como o Esteves do poema Tabacaria de Álvaro de Campos (Fernando Pessoa): “Ah, conheço-o; é o Esteves
sem metafísica.” Ver: PESSOA, Fernando. Tabacaria. In: ______. Obra poética: volume único. Rio de Janeiro:
Nova Aguilar, 1995, p.362-366.
95

as imagens de progresso e de civilização tão caras a certos grupos sociais. O romance


denuncia que a belle époque na verdade foi coisa de poucos, já que a maioria foi
simplesmente alijada dos “melhoramentos” e “embelezamentos” do tal progresso.
Em Parnaíba, ao contrário do que ocorreu no Rio de Janeiro de Barata Ribeiro94 e
Pereira Passos, os motivos da indignação do povo não foram a ação enérgica do estado -
destruindo, saneando, urbanizando à revelia do povo –, mas a omissão desse, que desde
sempre os entregou a sua própria sorte, fechando os olhos para não ver a situação infeliz dos
que viviam na borda do social em condições cada vez mais precárias. Como representado em
Beira Rio Beira Vida:

A noticia passou pelo cais com os comícios, os retratos de pose pelas


paredes – os igarapés seriam aterrados, luz elétrica e calçamento, empregos
melhores, melhores salários, novas fábricas, outras promessas – o prefeito
discursava.
Os barqueiros se revoltaram – o rio continua nas cheias a invadir as ruas, a
Coroa alagada, a água barrenta na beira da praça da Graça – as muriçocas
não deixavam ninguém dormir – o prefeito discursava. Para que aquela
praça mais enfeitada ainda, com peixes coloridos da Grécia? (BRASIL,
2008, p.30).

Nesse contexto, aos poucos a esperança foi dando lugar à espera, e a promessa, cada
vez mais floreada, à revolta. O fragmento acima nos possibilita verificar as fissuras existentes
na construção da “cidade dos sonhos”. A vida dos moradores da beira do cais era uma
constante luta contra a marginalização social e o difícil peso da sobrevivência. Os moradores
desses bairros (Coroa, Quarenta e Tucuns) não contavam com as mesmas condições de acesso
as poder público que as famílias abastadas do centro. Isso aos poucos criou no imaginário
popular representações estereotipadas dos que moravam nessas áreas, bem como propiciava o
surgimento de “dizeres” relativos a sua situação social, como por exemplo, o termo
“alagados”, que identificava aqueles assolados pelas enchentes do rio.95
A situação dos moradores que habitavam esta “outra” cidade não era em nada
comparável a dos que moravam no centro. A falta de infraestrutura básica, as enchentes
costumeiras em épocas de chuva, as muriçocas, as doenças comuns das populações
ribeirinhas, todos esses problemas, aliados ao preconceito dos que dispunham de recursos
94
Prefeito que antecedeu Pereira Passos na sanha “embelezadora” do Rio de Janeiro, ficou “famoso” pela
destruição do Cortiço Cabeça de Porco (1893) ocorrido na sua gestão. Cf. CHALHOUB, S. Cidade Febril:
cortiços e epidemias na corte imperial. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
95
Aqui ainda se percebe as conseqüências da instalação da sede da Vila, aspecto abordado no primeiro capítulo.
O rio, que teve suas margens habitadas por armazéns e residências, anualmente registrava (e ainda registra)
cheias que deixavam (e ainda deixam) muitos estragos naquela área da cidade.
96

suficientes para morar bem, fazia da existência daquela gente um verdadeiro tormento.
Encontramos nas crônicas de Carlos Araken um relato de suas impressões do Bairro Coroa,
que se estendia ao longo da beira rio:

Andava-se de canoa por todas aquelas ruas. No período da estiagem, o


lamaçal e os mosquitos (muriçocas) infernizavam a vida daqueles
sofredores. Para coroar a obra, os insetos, além de incomodar, transmitiam
o impaludismo (sezão), doença muito comum naqueles dias, e que fazia um
grande número de vítimas. Tomava-se quinino em grande quantidade para
se defender de tão pernicioso mal. Não havia nada que delimitasse o leito
do rio. Só areia, que formava uma imensa praia onde as lavadeiras
trabalhavam o dia todo e os moleques ao entardecer, tomavam conta do
lugar. (ARAKEM, 1988, p.63).

Enquanto isso:

O alto-falante não parava, discursos, discursos, o prefeito repetia, “pérgula


moderna, esta pérgula moderna” – a banda de música apresentou novos
dobrados, padre Gonçalo falou em embelezamento de nossa cidade
progressista, não merecia a honra, seu nome, tamanha honra, seu modesto
nome. (BRASIL, 2008, p.30).

Assis Brasil dota suas personagens de uma desconfiança natural em relação ao


progresso. Ora, aquela cidade que se erguia imponente não era sua cidade, era tão distante
deles quanto à Grécia que não conheciam. A cidade, propriamente, era sempre projetada além
das ruas sem iluminação, saneamento, habitações dignas, etc., ou seja, na visão da gente pobre
aquele espaço habitado por eles não se configurava como sendo o mesmo espaço social da
cidade de Parnaíba, mas sim uma outra geografia, era o “resto” no entender da personagem
Luíza: “E assim corremos toda a cidade – bem entendido – toda a cidade onde já tem
calçamento, porque o resto não é cidade pra ninguém.” (Ibidem, p.41). O resto, entendido
como aquilo que sobra, e isso tem várias significações, é uma metáfora que denuncia a
partilha desigual da riqueza auferida por Parnaíba naquele contexto bem específico. Viver no
resto, ou ser o resto, era a condição a que estava submetida grande parte do contingente
humano daquela sociedade, que vivia literalmente a ver navios.
Assis Brasil retrata isso sem exotismo, sem recorrer ao pitoresco, como é próprio da
literatura romântica. As personagens não se deixam tocar por sentimentalismos, não se
vitimizam exigindo do leitor o apelo à pieguice, antes, sofrem de pé, e só se rendem quando
se percebem menores que os fatos, quando se vêem impotentes diante das circunstâncias
opressivas de sua existência. Nessa tensão constante, o cais, em oposição à cidade, surge
97

como lugar de resistência, onde mesmo diante de todas as condições adversas, se luta para
sobreviver. Marinheiros, prostitutas, lavadeiras, quituteiras, crianças trabalhando como gente
grande, pescadores, estivadores, todos compondo o microcosmo que fervilhava ao largo do
interesse da minoria. Daqueles para quem o rio e o cais significavam apenas “mistério” e
“porcaria”.

Para alguns [o rio] era descobrimento, expectativa, navios partindo –


engraçados com aquela roda traseira – barcas recebendo carga, o porão
engolindo tantas sacas. Para outros, aquela era mais uma parte aborrecida da
cidade, gentinha por toda parte, ninguém podia andar, sujeira, e respiravam
livres quando atingiam o calçamento de volta. (Ibidem, p.82).

Mas o cais também era movimento, era a riqueza circulando ao lado da miséria, era
o “glamour” e o suor. Em todas as representações sobre o cais parnaibano sempre ele é
retratado em plena agitação. Vareiros em suas embarcações lotadas atravessando pessoas para
a outra margem, barcaças, chatas e alvarengas ancoradas aguardando carga e tripulação,
pequenas canoas de pesca, enfim, a vida do cais sempre registrada em sua efervescência
cotidiana. Quem chegasse a Parnaíba por esta via, logo se impressionava com a imponência
do rio e do porto margeando a cidade, mas também, logo era obrigado a perceber a outra face,
aquela distanciada das imagens do centro, das ruas simetricamente calçadas e bem
iluminadas. Segundo relata uma cronista no Almanaque da Parnaíba:

A principal entrada da cidade era o bem movimentado Porto Salgado


no rio Igaruçu, cujas margens sem arruamento eram ocupadas, na
maior parte, por fundos de quintais do casario que se estendia dos
Tucuns à Quarenta. No Porto Salgado teve origem a antiga Rua
Grande. A cidade era rodeada pelos pântanos da Coroa e os baixios da
Quarenta aos Tucuns. As ruas projetavam-se rumo aos Campos e alto
do Cemitério. Não existia iluminação elétrica, nem limpeza pública.
O primeiro jardim público só foi construído em 1917. As repartições
públicas não funcionavam em prédio próprio. Estavam instaladas em
casas alugadas, sem conforto e sem as adaptações exigidas. Nas ruas
tudo revelava trabalho, o ativo comércio parnaibano que se ligava ao
país e ao mundo atraia os jovens do interior e cidades vizinhas.
(REGO, 1995, p.122).

Essa vida agitada na beira do rio proporcionava um espetáculo em que colocava lado
a lado várias micro-categorias profissionais96 que viviam das benesses oferecidas pelo rio,
tecendo assim uma complexa teia de relações que se reproduziam a partir dos agenciamentos

96
Cabe ressaltar que a participação feminina nessas relações, ainda que fundamentalmente ligada a trabalhos
“ditos” domésticos, como a lavagem de roupas, o preparo de alimentos para servir a outros empregados do cais,
etc., também existia. Embora o romance Beira rio beira vida retrate com mais ênfase apenas o comércio do sexo,
as mulheres na verdade desempenhavam função importantíssima nesse universo predominantemente masculino
de movimento e trabalho.
98

entre uns e outros, como se funcionasse em paralelo ao restante da cidade. É no movimento


do cais que enxergamos materializado a exploração da mão de obra de trabalho, onde as
condições de trabalho evidenciam a semi-escravidão a que viviam submetidos alguns
indivíduos, como é o caso daqueles empregados na estivagem que sem uma jornada de
trabalho definida, sem direitos salariais ou seguros contra acidentes, eram obrigados a
trabalhar em condições insalubres e até desumanas. Em uma das crônicas de Raimundo de
Sousa Lima – no Almanaque da Parnaíba – podemos flagrar o cotidiano desses trabalhadores,
o intenso movimento do porto, bem como as relações de trabalho e camaradagem adotadas
por eles. À maneira de João do Rio97, Raimundo de Sousa Lima percorre todos os espaços do
cais do porto e vai descrevendo cada mínimo episódio de um dia de labuta na vida desses
trabalhadores. Vejamos como o próprio Sousa Lima apresenta este cenário:

[...] Mal a cidade se desfaz do frio e pardacento véu que a envolveu durante
a noite, já aqui e ali, se avistam pequenos grupos de homens, como se
tivessem pernoitado ali, ao relento, no cumprimento de uma ou outra
obrigação que não a dos seus trabalhos diários.
À medida que a claridade solar vai-se alastrando por sobre o casario de
fachadas vistosas e bem cuidadas, também os inúmeros trabalhadores que se
achavam agrupados: - uns agachados, friorentos, olhos semi-serrados,
cabeça apoiada indolentemente sobre o ombro; outros, ao contrário, olhos
bem vivos, irrequietos, cigarro preso a um canto da boca, de longe em longe
soltando grossas baforadas de fumaça, invariavelmente secundadas por um
“chuvisco” de chalaças – vão-se locomovendo rumo aos seus vários
misteres.
Sobre o dorso do esguio Igaraçu que desliza gravemente, trafega quase
ininterruptamente três canoas em sentido transversal, dando assim acesso
aos nossos mercados a dezenas de pequenos lavradores com os seus
variados produtos.
É deveras interessante a azáfama desses obscuros campônios de alma nobre
diante da fleuma do “passador” semi-letrado e “vedóia”, no dizer dos
passageiros constantemente vencidos nos seus argumentos desencontrados.
O canoeiro ciente de sua incontestável utilidade naquele posto, parece não
se ralar com uma amizade a menos ou coisa semelhante; olha grave e
friamente sempre que ouve alguma reclamação referente à morosidade na
travessia, e, num tom pachorrento e enervante resmunga: “quem num quê
sofrê nasce morto; aí está”. Depois, numa voz melíflua, como para surtir
efeito no ânimo das mocinhas – que também enchem a embarcação
juntamente com os seus balaios de frutos, verduras e guloseimas – ensaia
um “gorjeio” todo cheio de complicações vocálicas até atingir a margem
97
João do Rio (pseudônimo de João Paulo Alberto Coelho Barreto) nasceu em 1881 na cidade do Rio de Janeiro.
Foi um dos principais cronistas dos primeiros anos do Brasil República. As crônicas de João do Rio são uma
janela para se observar as rápidas transformações sociais e urbanas nos primeiros anos do século XX,
principalmente aquelas que emergiam visíveis no cenário urbano. João do Rio fez das ruas cariocas o palco das
suas perambulações e suas principais matérias jornalísticas. De sua obra destacam-se: “A alma encantadora da
rua” (1908); “Cinematógrafo” (1909); “Dentro da noite” (1910); “Vida vertiginosa” (1911); Morre no Rio de
Janeiro em 1921.
99

rampada. Isso feito, finca a ponta ferrada da vara no solo e da popa da sua
canoa fica dominando com a vista o turbilhão de seres que se movimentam
em diversos sentidos.
As atividades do Porto, já atingiram, então, o seu mais alto grau. Aqui, os
armazéns completamente abarrotados de sacos de cera de carnaúba,
amêndoas de babaçu, tucum etc., produtos do Estado, que vão ser
embarcados para o estrangeiro e portos nacionais. Ali, em frente, uma pilha
de sacos de cereais parece querer impedir o tráfego dos aviões. Acolá, uma
longa fila de homens corta em linhas sinuosas uma boa distância para vir
depositar fardos de algodão em grandes alvarengas ao cais.
É o trabalho.
Dois “titãs”, junto a um lote de fardos de algodão, fazem uma demonstração
despretensiosa das suas respeitáveis musculaturas. Estão afeitos aquele
serviço. Suarentos, sujos, dizendo graçolas, músculos de aço contraídos
pelo esforço violento ao levantar os fardos de 200 quilos, não se deixam,
entretanto, abater pela fadiga do labor nem pela ardência do sol.
Geralmente apupam-nos assim no momento em que lhes colocam na cabeça
pesado volume: “desmancha essa cacunda, cabôco; tara pensando que isso é
brinquedo de menina femê?” Em seguida, grita forte e demoradamente: -
“te endireita cheio de volta”.
E, assim, ora contando bazofias, ora sapateando, cadenciadamente, ao som
do pífaro furiosamente soprado por um embarcadiço gordo, de pele lustrosa,
semi-nu, heroicamente deitado numa rede de tucum menor do que ele, nos
caibros de uma barca que se acha fronteiriça ao cais, os trabalhadores vão
removendo para os porões das inúmeras embarcações surtas no porto,
montões e montões de sacos, todos destinados a longínquas paragens: -
Hamburgo, Liverpool, Amsterdã, Nova York etc. [...]. (SOUSA LIMA,
1938, p.69-73).

Jessé, na obra Beira Rio Beira Vida, representa o trabalhador explorado da beira do
cais, como estes descritos na crônica de Sousa Lima. Órfão desde cedo, Jessé foi criado pela
prostituta Cremilda na beira do rio, vendo o subir e descer das barcas carregadas de gente e
riquezas. Jessé sonhava em mudar de condição, não queria ser mandado pelo resto da vida,
queria mesmo era ser rico como os negociantes bem sucedidos da cidade. Começou com “o
negócio das borboletas” que apanhava pra vender para os peixes da nova pérgula da praça.
Era um exímio caçador de borboletas, na sua obstinação, juntava litros e mais litros cheios de
borboletas, que negociava diretamente com o encarregado do Prefeito em prover o repasto dos
peixes. Jessé enxergava nas borboletas a oportunidade de mudar de condição, de subir na
vida, quem sabe até estudar, ser alguém. Mas a sociedade, as dobradiças, os muros...

“Luiza, onde é que a gente estuda?”


Quando respondia que era lá na cidade e custava dinheiro, ele coçava a
cabeça e dizia: “A tua mãe vai mangar de mim – olhem aí, querendo ser
doutor, querendo passar por gente rica (...)”.
Mas um dia Jessé criou coragem e gritou pra ela, perto de um pilador
barulhento:
- Dona Cremilda, eu queria estudar.
100

- Pra quê, menino?


- Ora, eu queria.
Ela saiu de perto do pilador barulhento, pegou Jessé pela mão, foi bem pro
meio do armazém, e gritou pra todo mundo ouvir:
- Olhem aí, querendo ser doutor, querendo passar por gente rica. (...)
Naquele instante ele soube, Mundoca, que só poderia ser um embarcadiço ou
um canoeiro, quando muito um marinheiro de algum navio-gaiola, ou coisa
nenhuma se continuasse naquele armazém de puta, como ele falava.
(BRASIL, 2008, p.39).

A educação sempre foi uma grande dobradiça enferrujada para as classes pobres no
Brasil.98 No caso de Jessé, como nos casos reais, o que se encontrava era um contexto onde a
palavra nulidade talvez seja a mais adequada. No período que marca as últimas décadas do
século XIX e as primeiras do século XX o panorama educacional de Parnaíba não difere
muito do restante do estado e o do país. No geral, as iniciativas governamentais para a
educação no Piauí99 não produziram grandes efeitos sobre a escolarização da população na
capital ou no interior, ficando quase sempre a cargo da incipiente escola privada a obrigação
de possibilitar a uma camada mais favorecida o acesso a educação de primeiras letras. Porém,
há de se registrar que, embora de maneira precária, alguns esforços foram lançados no intuito
de promover uma educação pública, mas o que predominava mesmo era a omissão por parte
do estado, principalmente no nível elementar, onde por ausência de prédios escolares
encontramos as “escolas” funcionando quase sempre nas residências de professores
minimamente pagos pelo erário público.
Sem dúvida, esse contexto reduziu drasticamente as oportunidades de quem quis,
como Jessé, sair de sua condição. Na realidade, o importante é pensar que isso não foi produto
de nenhuma fatalidade, da qual o único remédio existente seria a resignação. O sonho de ficar
rico, ou melhor, fugir do “destino”, foi o que conduziu Jessé a sua morte. O caçador de
borboletas, já adulto, acabou morto em virtude de um incêndio dentro de uma barca que o

98
Jorge Nagle pontua as principais causas do atraso da educação no Brasil na Primeira República. É interessante
observar como isso marcará a trajetória do ensino brasileiro de modo geral: “É preciso pensar que a matriz desse
estado de coisas se encontra nas condições histórico-sociais existentes, que esclarecem tanto os padrões de
pensamento da camada intelectual interessada nos problemas educacionais como os níveis de realização
alcançados. Deste prisma, verifica-se a persistência de uma estrutura agrária sustentada, basicamente, pela
produção e comercialização do café para o mercado externo; a permanência do sistema coronelista – base da
política dos governadores – impedindo a formação de grupos políticos com raízes ideológicas diferenciadas e
com atuação não apenas eventual; a continuação de uma estrutura de classes sociais pouco diversificada, na qual
apenas a burguesia agrário-comercial apresenta polarizações bem definidas.” (NAGLE, 2004, p.291). A partir da
década de 1930, o movimento da Escola Nova começa a mudar este quadro, embora o acesso das massas ao
ensino público só se amplie efetivamente nas décadas finais do século XX.
99
Sobre a educação no Piauí na primeira República: Cf. FERRO, Maria do Amparo Borges. Educação e
Sociedade no Piauí Republicano. Teresina: EDUFPI, 1996.
101

trazia para terra firme. Era a vingança do rio, do próprio rio que o viu nascer e que foi sua
desgraça. Essa morte poderia ter igualado Jessé aos outros, aqueles que também tinham a
“sorte do rio”, mas a verdade é que ele foi o único a não aceitar subserviente o que lhe
reservara a sociedade. Talvez ele tenha representado no romance os territórios da revolta de
toda uma classe que teimava contra a dependência e a exploração. Mas como os que lutam,
Jessé morre. Ele, que apenas caçava borboletas, teve uma morte trágica demais para um sonho
tão modesto, tão justo.
Uma outra imagem que emerge de maneira contundente em Beira Rio Beira Vida é a
da prostituição. O autor ambienta sua narrativa nas zonas do baixo meretrício, lá na beira do
cais próximos aos botecos100. Dessa forma, ao retirar do centro da cidade o foco principal das
vivencias cotidianas, Assis Brasil nos convida a perambular pelas ruas sinuosas da “outra”
cidade, nos desafia também a questionar as máscaras, os ditames morais que separavam os
sexos, bem como as representações sociais em torno da vida sexual no imaginário urbano. A
figura central a evidenciar-se nessa operação é o da prostituta, “da mulher da vida”, a quem,
segundo Renato Castelo Branco, “as senhoras do centro chamavam com rancor e desdém de
mulheres à toa.” (CASTELO BRANCO, 1981, p.20).
A maneira como se produz a vida sexual na cidade é algo que reflete o porquê deste
estigma. Geralmente a presença de figuras tipificadas como “indesejáveis” no espaço urbano
cria mecanismos de controle da circulação desses indivíduos, verdadeiros muros simbólicos
são construídos no intuito de afastar a contiguidade perigosa. Veja-se, por exemplo, o louco, o
mendigo e a prostituta. O confinamento desses sujeitos a certos espaços da cidade é algo
produzido tanto materialmente - manicômios, calçadas e viadutos, cabarés e zonas de
prostituição - quanto simbolicamente, como um código implícito, mas que salta aos olhos, em
que a menor transgressão já legitima o rechaço e a náusea coletiva. No caso da prostituta,
digamos, ela vai sendo inventada e estigmatizada como a portadora de uma sexualidade
insubmissa, um indesejado “fantasma” no imaginário social. Para Margareth Rago: “A
construção da prostituição como um fantasma atingia alguns alvos estratégicos precisos:
instituía as fronteiras simbólicas que não deveriam ser ultrapassadas pelas moças respeitáveis,
ao mesmo tempo que organizava as relações sexuais num espaço geográfico da cidade

100
Segundo Renato Castelo Branco: “A Coroa e os Tucuns começavam também no rio, com seus botecos
sórdidos à beira dos barrancos, onde os embarcadiços iam tomar cachaça todas as noites e se encontrar com as
cunhãs do meretrício.” (CASTELO BRANCO, 1981, p.20).
102

especialmente destinado à evasão, aos encontros amorosos, à vida boêmia.” (RAGO, 2008,
p.46)
Associado a imagem de violência e prostituição, alguns lugares de Parnaíba vão
sendo caracterizados como territórios da manifestação do desejo, como é o caso daqueles que
se situam à beira do cais. O cabaré vai representar o ponto de convergência da “alta” e da
“baixa” sociedade, abrigando toda sorte de gente: o marginal, o embarcadiço, o alcoólatra, o
homossexual, o moralista, o burguês, etc. Boa parte da juventude boêmia da cidade, que
assistia às concorridas sessões do Cine Éden, que participava das “tertúlias” na Casa Inglesa e
ia ao carnaval no Cassino 24 de Janeiro – ambientes notoriamente frequentados pelas elites -,
também era assídua à vida noturna dos cabarés da Quarenta e da Coroa, embora socialmente o
discurso tivesse que ser outro. É o que nos conta o cronista Carlos Araken, que parece ter
transitado, sem maiores constrangimentos, por todos os espaços de diversões bem
comportadas, ou nem tanto, daquela sociedade:

Depois das 21 Hs, quando as namoradas já tinham ido dormir, a rapaziada se


reunia em locais determinados, no caso sempre a Praça da Graça, afim de se
por a par das noticias do dia. Quando algum garoto de mais de 14 anos,
desejava ser iniciado, tinha duas opções. Ou o pai quando tinha bastante
intimidade, lhe levava alguma mulher experiente, confiando a ela a
donzelice do filho, ou o que era mais freqüente, um dos mais velhos se
arvorava de padrinho, e fazia às vezes do pai. (...) Em nossos encontros
noturnos, depois de um bom papo, os mais cautelosos iam dormir; os mais
afoitos desciam para a zona, local onde ficavam os cabarés. Havia muitos e
para todos os gostos. (ARAKEN, 1988, p.54).

Noutro pólo, esses privilégios e liberdades de que gozavam os homens eram


diametralmente opostos ao engessamento disciplinar das práticas sexuais femininas. Embora
caiba ressaltar que muitas eram as que se moviam astuciosamente dentro desta mesma teia
disciplinar, aproveitando-se dos momentos propícios para desafiar as regulamentações
impostas à sua condição. Ai vinham os flertes ocasionais nas novenas ou festividades na
praça, o escurinho nas seções de cinema, ou as paradas cívicas. Porém, as que se arriscavam
demais e acabavam denunciadas, ou denunciando-se, pagavam um preço social altíssimo, que
as desmoralizava juntamente com a família.
A condição moralmente aceita para que a mulher pudesse gozar de prestígio nessa
sociedade, era aquela em que lhe era exigida total devotamento e submissão à vida doméstica,
à família e ao marido. Uma boa formação moral, a religiosidade e a passividade sexual
103

também eram elementos que indicavam os modelos a serem seguidos.101 Em contraposição a


isso, a imagem da prostituta vai sendo socialmente construída em torno do pecaminoso, do
profano, a prostituta surge como aquela que se devota aos prazeres do corpo, que se vende a
qualquer um, e que por fim, se constituí em ameaça a sociedade, porque carrega consigo os
“males do mundo”.

Mulheres de má vida, meretrizes insubmissas, impuras, insignificantes, o


que fazer com essas loucas que recusam o aconchego do casamento, que
negam a importância do lar e preferem circular enfeitadas pelas ruas,
desnudando partes intimas do corpo, exalando perfumes fortes e
extravagantes, provocando tumultos e escândalos, subversivas que rejeitam
o mundo edificante do trabalho, surdas aos discursos masculinos
moralizadores e que perseguem a todo custo a satisfação do prazer?
(RAGO, 1997, p.85).

Na perspectiva ficcional de Assis Brasil, estas representações ganharam contornos de


dramaticidade. Em Beira Rio Beira Vida a figura feminina foi montada em cima de
estereótipos onde o sexo se constituiu num lugar mediado pelas relações de poder. A imagem
da prostituta como um território de passagem foi construída a partir dos “perigos” que
rondavam a sociedade, que ameaçavam a “inocência” da moral burguesa, cristã e falocêntrica.
Embora seqüestrada da fala e do espaço público102, a prostituta sempre foi uma figura que
pairou sobre o imaginário social. Condenada à noite e aos errantes103, seria no âmbito do
privado, na cama, onde ela efetivamente controlaria. Onde o seu corpo, como o único bem
negociável, poderia ser usado e abusado, mas não sem o pagamento, o contrato que selaria
publicamente o seu consentimento. Assim, em Beira Rio Beira Vida:

As promessas faziam parte dos atos medidos, nunca se esqueciam que tinham
que pagar no fim – estiravam as cédulas lisas ou amassadas, se despediam

101
Segundo Margareth Rago: “Por caminhos sofisticados e sinuosos se forja uma representação simbólica da
mulher, a esposa-mãe-dona-de-casa, afetiva, mas assexuada no momento mesmo em que as novas exigências da
crescente urbanização e do desenvolvimento comercial e industrial que ocorrem nos principais centros do país
solicitam sua presença no espaço público das ruas, das praças, dos acontecimentos da vida social, nos teatros,
cafés, e exigem sua participação ativa no mundo do trabalho.” (RAGO, 1997, p. 62).
102
Cf. PERROT, Michelle. Mulheres públicas. São Paulo: Editora UNESP, 1998.
103
Como a Geni de Chico Buarque: “De tudo que é nego torto / Do mangue e do cais do porto / Ela já foi
namorada / O seu corpo é dos errantes / Dos cegos, dos retirantes / É de quem não tem mais nada / Dá-se assim
desde menina /Na garagem, na cantina / Atrás do tanque, no mato / É a rainha dos detentos / Das loucas, dos
lazarentos / Dos moleques do internato / E também vai amiúde / Com os velhinhos sem saúde / E as viúvas sem
porvir / Ela é um poço de bondade / E é por isso que a cidade / Vive sempre a repetir / Joga pedra na Geni / Joga
pedra na Geni / Ela é feita pra apanhar / Ela é boa de cuspir / Ela dá pra qualquer um / Maldita Geni....”
Disponível em: < www.chicobuarque.com.br/letras> Acessado em 18 de maio 2011.
104

certos de que haviam liquidado um negócio, ou satisfeito um desejo, desejo


que se compra por um preço razoável. (BRASIL, 2008, p.104).

Sintomaticamente a estrutura social parece legitimada em torno desses


agenciamentos, funcionando como uma via de mão dupla, evidentemente desequilibrada,
regulando as relações sociais de classe. A omissão do estado necessariamente não anulou a
existência de determinadas práticas que possibilitaram o “favorecimento” de alguns, mesmo
que seja apenas o amainar da consciência diante do óbvio, do obrigatório, a convivência dos
muito ricos com os muito pobres. O assistencialismo104, como uma medida paliativa, marcou
um dos canais de contato entre pobres e ricos na sociedade parnaibana do período. Sem
surpresa alguma, esse viés paternalista ganhou mais visibilidade no período de maior
circulação de riquezas na cidade, notadamente todas as investidas nesse setor surgiram como
alternativas “salvacionistas” e de “proteção” para aqueles que careciam de uma tutela social,
do amparo de “inteligências privilegiadas”, de pessoas “devotadas” ao cuidado dos menos
favorecidos. De acordo com o Livro do Centenário de Parnaíba:

Parnaíba sempre primou pelos problemas de amparo e assistência social.


Inteligências privilegiadas, devotadas ao bem, tem procurado, dentro de
nossas possibilidades, solução para esses complexos problemas.
Uma lacuna, porém, falta ser preenchida em nosso meio. É a necessidade
que temos de um asilo, abrigo ou patronato para amparar e soerguer o
menor desamparado ou o vagabundo. A proteção e a assistência dos
menores estão intimamente unidas à prevenção da delinqüência, de tal
modo que é difícil, às vezes, estabelecer uma separação entre os meios
repressivos e preventivos. Daí, ser vital um regime tutelar para esses
menores que vivem a perambular pelas ruas de nossa cidade. (LIVRO DO
CENTENÁRIO DE PARNAÍBA, 1944, p. 236).

O “apadrinhamento”, como uma ramificação dessas práticas, era uma realidade


presente nas relações de poder daquela sociedade. No romance Beira Rio Beira Vida, a
personagem Mundoca representa a polarização desse mundo entre os que dão e os que
recebem.105 Em seu livro, Coronelismo, enxada e voto, Vitor Nunes Leal (1975) enumera

104
No Livro do Centenário de Parnaíba (1944), que faz uma espécie de apanhado geral sobre os vários setores da
cidade, encontramos evidenciadas pelo menos quatro “Sociedades” civis de caráter assistencialista, que são elas:
a Sociedade “Protetora Parnaibana” (1899); a Sociedade Feminina de Assistência aos Pobres de Parnaíba (1931);
a Sociedade de Assistência aos Lázaros e Defesa Contra a Lepra (1931) e a Sociedade de Proteção à
Maternidade e à Infância de Parnaíba (1940); A Resolução n° 23, de 22 de dezembro de 1943 do Conselho
Administrativo do Estado do Piauí, que regulou o orçamento Municipal para o ano de 1944, dispensou para a
Assistência Social (verba N.5) do Município de Parnaíba o valor de Cr$ 14.400,00 para a “Proteção aos Pobres
de Parnaíba, e Cr$ 10.000,00 a serem gastos com roupa, assistência médica e diária aos presos pobres.
105
“Eles nasceram na cidade para dar esmolas, elas nasceram no cais para receber.” (BRASIL, 2008,p.52).
105

longamente numa nota de rodapé, os vários “obséquios” que marcaram algumas relações
sociais no Brasil, a lista é grande106, mas reveladora do poder dos “ismos” (mandonismo,
assistencialismo, clientelismo, paternalismo, filhotismo, coronelismo, etc.) como
maquinações que ajudaram a formatar historicamente a estrutura social, política e econômica
brasileira. No caso de Mundoca, sua vida (diga-se sua sorte) está embrionariamente ligada a
um “padrinho”, a um “benfeitor”, que lhe empregava, embora menos por gosto do que por
interesse em fazer média social, como funcionária do seu armarinho “lá” na cidade.
O fato é que esse apadrinhamento, esse assistencialismo, apenas dava novos
contornos àquelas histórias, sem tocar realmente o fundo dos bem conhecidos problemas
sociais. O assistencialismo, na verdade, nem resolvia as necessidades imediatas daquela
população nem dissolvia as desconfianças naturais de quem aprendeu que promessa não
enche barriga.

Vou dizer pra você uma coisa, Mundoca: já vi tanta gente se interessando
pela miséria do cais que fico besta. Depois, nada. Até um padre andou
olhando a gente, perguntando, e perguntou se alguém tinha ajuda. Ninguém
soube a que se referia. Era um padre bem novinho. O padre velho Gonçalo,
esse nunca apareceu no cais que eu saiba. Fica lá nos batizados dos ricos,
nos banquetes, nos casamentos.
Aqui no meu entender: que poderiam eles resolver?
Poderiam dar emprego pra cada um sem emprego? Vestir todo mundo?
Construir casa de tijolo, em vez de barracão de madeira? Esse cais novo,
que nunca acabam – eles pensam que não sei – é pra beneficio dos donos de
armazém. Dizem que o rio não entra mais na cidade; você bem sabe que é
mentira. (BRASIL, 2008, p.49).

Essas muralhas simbólicas, que atravessaram a cidade por seus variados ângulos,
repercutiram no seu fazer social, acabaram por criar verdadeiros territórios de
ressentimento.107 Sem dúvida, a representação imagística da cidade de Parnaíba na obra Beira

106
Debulha Vitor Nunes Leal na referida nota: “Eis aqui uma lista incompleta: arranjar emprego; emprestar
dinheiro; avalizar títulos; obter crédito em casas comerciais; contratar advogado; influenciar jurados; estimular e
“preparar” testemunhas; providenciar médico ou hospitalização nas situações mais urgentes; ceder animais para
viagens; conseguir passes na estrada de ferro; dar pousada e refeição; impedir que a polícia tome as armas de
seus protegidos, ou lograr que as restitua; batizar filho ou apadrinhar casamento; redigir cartas, recibos e
contratos, ou mandar que o filho, o caixeiro, o guarda-livros, o administrador ou o advogado o façam; receber
correspondência; colaborar na legalização das terras; compor desavenças; forçar casamento em casos de
descaminho de menores, enfim uma infinidade de préstimos de ordem pessoal, que dependem dele ou de seus
serviçais, agregados, amigos, ou chefes. Quando o chefe local é advogado, médico, escrivão, sacerdote etc.,
muitos desses serviços são prestados pessoalmente, mediante remuneração irrisória, ou inteiramente gratuitos.”
(LEAL, 1975, p. 38).
107
Segundo Michèle Ansart-Dourlen: “O ressentimento remete a um tempo repetitivo, gerador de fantasmas e
pensamentos hostis, vividos na impotência.” (ANSART-DOURLEN, 2004. p.355).
106

Rio Beira Vida captou essas nuances, essas minúsculas falas, quase sussurradas, que
repetidamente se referiam a uma cidade habitada por “outsiders”, por alteridades negadas,
como Luiza, Mundoca e Jessé. Ainda que os excluídos reais e concretos não se pronunciem,
que continuem silenciados, não se pode negar que suas histórias, ao menos em possibilidade,
se confundem com as narradas por Assis Brasil.

3.3 Três pós-tais de Parnaíba108

A cidade, literária ou literal, não se deixa apreender enquanto objetivação, ou


materialidade específica, totalidade, mas somente a partir das múltiplas significações que lhe
dotam de sentidos. A cidade surge sempre estilhaçada, atravessada por falas e representações
que a preenchem de cores, cheiros, sabores, superfícies, enfim, que a concretizam, só que de
maneira muito particular, muito intima até. Seguir o rastro dessas significações é significar
também, como no conto de Borges109, é entrar em “veredas que se bifurcam.”110 É correr o
risco de se embrenhar e se perder na selva de signos que compõem aquilo que simplificamos
no nome de cidade. Que tanto pode ser Diomira, Ipásia, Zoé, Pirra111 ou Parnaíba. Cidades
sempre além daquilo que parecem ser, ou daquilo que queiramos que sejam.
No tocante ao que falamos até agora sobre a cidade e sua (re)produção social, cabe
salientar que o projeto de uma cidade moderna, materialmente enriquecida, contrastava com
uma outra realidade, a dos pobres urbanos, dos que foram alijados tanto do que chamamos
aqui de belle époque quanto da participação efetiva no quantitativo e qualitativo dos lucros
econômicos. O que se pode perceber na verdade é uma cidade partida, recortada em sua
paisagem por muralhas simbólicas, por formas de apropriação do espaço urbano, por disputas
de classe, etc.

A ideia de urbano transcende aquela de mera concentração do processo


produtivo stricto sensu, ele é um produto do processo de produção num
determinado momento histórico, não só no que se refere à determinação
econômica do processo (produção, distribuição, circulação e troca) mas

108
Uma subversão do título do poema “3 postais de Parnaíba”, de Elmar Carvalho. Cf. CARVALHO, José Elmar de
Melo. Lira dos cinquenta anos. Teresina: FUNDAPI, 2006, p. 87-88.
109
Jorge Luís Borges (1899-1986),escritor Argentino.
110
Refiro-me ao conto El jardin de senderos que se bifurcan. Cf. BORGES, Jorge Luís. Obras completas -
(1923-1972). Buenos Aires: Emecé Editores, 1974. v.1. p. 472-480.
111
Diomira, Ipásia, Zoé e Pirra são cidades invisíveis de Italo Calvino. Cf. CALVINO, Italo. As cidades
invisíveis. 2.ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
107

também as determinações sociais, políticas, ideológicas, jurídicas, que se


articulam na totalidade da formação econômica e social. Desta forma, o
urbano é mais do que um modo de produzir, é também um modo de consumir,
pensar, sentir, enfim, é um modo de vida. (CARLOS, 2003, p. 26-27).

Somos tentados a enveredar por esse caminho da significação da cidade, nesse caso,
Parnaíba, que foi representada até aqui como uma cidade dividida, compartimentada em
territórios simbólicos. Essa geografia simbólica nos levou a distinguir três territórios distintos
e construídos (representados) dentro do espaço do qual, desde o inicio, nos referimos como a
beira, como os lugares de enclave da cidade. Esses territórios serão nomeados, nesta breve e
panorâmica conclusão, como “territórios do desejo”, “territórios da revolta” e “territórios do
ressentimento”, cada um significando efetivamente as múltiplas representações que foram
sendo produzidas no interior das relações sociais. O que nos interessa é perceber como a
cidade foi escrita e visualizada a partir das representações criadas sobre sua geografia urbana.
A literatura por si só já seria um desses territórios, mas também a tomaremos, a
partir de suas metáforas espaciais, como uma possibilidade de produção de sentido sobre a
cidade. Lugar e metáfora, a cidade é um complexo dinâmico que pode traduzir-se numa
visibilidade discursiva e imagística. Segundo Renato Cordeiro Gomes:

O processo de metaforizacão são estratégias que buscam sustentar a leitura


da cidade tal qual um texto cuja tessitura vai tornando-se cada vez mais
volátil, rarefeita: o sentido da cidade como um lugar intimamente ligado aos
obstáculos para dizer o que ela poderia significar. (GOMES, 2008, p.85).

O primeiro território é o do “desejo”, que na verdade também sugere uma infinidade


de sentidos, mas aqui significa o desejo do corpo, da satisfação da libido112, o desejo
relacionado ao ato sexual. Toda cidade tem seus “antros”113, seus lugares de evasão das
marcas nodais da moralidade, que constitui para os que vivem na cidade o território da
realização daquilo que é inconfessável publicamente, onde se pode potencializar os arranjos e
rearranjos em torno do sexo, porque “lá” vigoram outros códigos que não os cotidianamente
vivenciados. Parnaíba, enquanto cidade, não se diferencia nesse aspecto, teve (tem) suas
zonas de prostituição que, segundo alguns relatos, se concentravam principalmente na região
que margeava o rio, justamente nas áreas habitadas pelas camadas menos favorecidas
economicamente. De acordo com Renato Castelo Branco:

112
Que para a psicanálise seria a energia motriz dos instintos de vida, associada à satisfação, à felicidade e ao
princípio do prazer. Cf. FREUD, Sigmund. O mal-estar na cultura. Porto Alegre, RS: L&PM, 2010.
113
São tantos os termos possíveis para nomear uma mesma coisa que se torna curioso: bordel, cabaré, randevu
(do francês rendez-vous), puteiro, prostíbulo, lupanar, casa de tolerância, zona, antro, etc.
108

Essa população, duas vezes maior que a de Parnaíba propriamente, vivia


inteiramente em dependência da cidade – eram as empregadas domésticas,
as lavadeiras, os meninos de recado, os carregadores de água e lenha, os
catraieiros, os estivadores, os vareiros, os ladrões de galinhas, os mendigos
e as prostitutas, que recebiam em seus braços os caboclos de sua zona ou os
rapazes do centro e os mandavam de volta com cargas idênticas de
“doenças do mundo”. (CASTELO BRANCO, 1981, p.20-21).

Entenda-se que essa concentração, essa mistura de grupos tão distintos, não se deu
de maneira fortuita, mas devido às condições, já anteriormente discutidas, onde muitos
acabaram sendo “segregados” do espaço urbano da cidade para estas áreas mais afastadas do
“centro”, compondo o cenário mais fragilizado do ponto de vista social. A presença da
prostituta nesse contexto evidencia sua dupla segregação. Primeiro, sua condição material, ela
como alguém excluída da ordem macro-econômica e formal, e depois o estigma inerente a sua
“profissão”, que socialmente a indispôs em relação à ordem pública. Mas que existe em
função de uma necessidade da qual não se pode negar, que é a comercialização do prazer. O
que é interessante observar é que mesmo nesse comércio se vêem embutidas as disputas
sociais de classe. O meretrício em Parnaíba era dividido em “alto” e “baixo”, refletindo assim
as hierarquias da sociedade. Como se o “produto-sexo” também significasse mais um fator da
ordem de classe do que da ordem do prazer, separando e hierarquizando as possibilidades de
cada um. É o que podemos atestar na fala abaixo do médico Cândido Atahyde, que
contextualiza e singulariza essas divisões que acabamos de abordar:

A prostituição na Parnaíba sempre foi sobre dois aspectos desde o começo


do século; e, mesmo nas últimas décadas do século passado, a prostituição
ficou marginalizada. Por isso, porque a grande coletividade de pessoas, de
homens da classe baixa, digamos assim, eram os embarcadiços como eles
chamavam os tripulantes das embarcações não só a vapor como também à
vela e a remo. Essa gente se constituía numa coletividade à parte e se
instalou aqui numa região que se chamava Olaria e que hoje tem o nome de
rua João Goulart, e, que, antes disso, se chamou rua Sete de Janeiro.
Incluindo uma área vazia nessa zona dos Tucuns. (...) Bem, isso era o baixo
meretrício porque era constituído principalmente de negras (que tinham
vindo da escravidão, da libertação dos escravos) e algumas outras moças
que por infelicidade chegavam lá. Mas numa prostituição mais elevada aqui
situados em 2 locais; uma na chamada Rua Conde D´Eu que antigamente
tinha o nome de Rua do Igarapé. E outra também situada na coroa; nesses
locais haviam casas com esses clientes e nessas casas haviam assim um
meio bar ou meio restaurante que serviam às vezes bebidas e também
algum alimento, merenda. (CEPRO, 1984).

Tanto a literatura (Beira Rio Beira Vida) quanto estas falas pretéritas dão conta do
existir desse território do desejo. De como ele clandestinamente, embora sempre mal-dito,
109

congregava de uma forma ou de outra todas as classes114. Situados na área de maior


circulação de pessoas e riquezas, estes territórios se constituíam em verdadeiras indústrias do
prazer, do erotismo e do amor pretensamente “ilícito”, reforçando em torno da figura da
prostituta o estigma da “Eva pecadora”, da mulher dissoluta e sodomita. Compondo no
imaginário urbano uma série de imagens115 e dizeres relativos ao seu “oficio”.
Um segundo território é o da “revolta”116; este, mais próximo de uma indignação
conformada do que de uma revolução. O território da revolta é o lugar das falas conscientes,
do tensionamento entre as várias disputas em torno do domínio da produção simbólica da
realidade. É onde cada um significa seu mundo e tenta fazer valer sua verdade, ou melhor, sua
versão. É o território das astúcias, da capilaridade dos sentidos, dos boicotes, das invenções,
enfim, é o lugar das trocas simbólicas.117 Somente como revolta o indivíduo toma consciência
da sua situação, se permite ver a absurdidade do existir e perceber as redes invisíveis que o
capturam em cada detalhe, cada gesto, fala ou pensamento.
O romance Beira Rio Beira Vida colocou-nos diante da possibilidade de
reconstituirmos a existência do social. Suas personagens antes de tudo eram sujeitos
revoltados, embora convivendo com o esmagamento de uma realidade opressora que cada vez
mais reforçava o patrulhamento em torno de suas fronteiras simbólicas. A cidade literária de
Assis Brasil emerge claramente partida, recortada dentro de uma geografia que traça nas falas
das personagens os vários territórios da revolta. Estas falas remetem a espaços de ancoragem,
de pertença, mas sempre dentro de uma densa cadeia de sentidos, que exclui, estigmatiza,
dissuade a luta e a esperança. Exemplo disso encontra-se no recorte abaixo:

Levados pela noticia, que já não surpreendia os moradores da cidade baixa,


e mesmo os moradores da Coroa, ou da Quarenta, de toda a orla beira rio,
amigos convidavam conhecidos, parentes levavam a família – uma

114
Candido Atahyde, ainda falando sobre quem freqüentava essas áreas, diz que: “Todos. Os mais graúdos, aqui
escondidos, freqüentavam essas casas. Toda a rapaziada, todos os caixeiros e alguns dos empresários.” (CEPRO,
1984).
115
Uma dessas representações que acompanhou historicamente o imaginário da prostituição foi o da doença
“venérea”, que associava à figura da prostituta a imagem de alguém suja, sórdida e doente (doenças do mundo).
Sobre isso, comenta o médico Candido Atahyde se referindo principalmente à sífilis e a blenorragia: “(...) aqui as
doenças venéreas eram muito comuns e muito graves. Porque eram doenças venéreas de muitas passagens.”
(CEPRO, 1984).
116
Para Albert Camus: “Ela é a presença constante do homem diante de si mesmo. Não é aspiração, porque não
tem esperança. Essa revolta é apenas a certeza de um destino esmagador, sem a resignação que deveria
acompanhá-la.” (CAMUS, 2010, p. 66).
117
Cf. BOURDIEU, Pierre. Espaço social e gênese das classes. In: _______. O poder simbólico. 13.ed. Rio de
Janeiro: Bertrand Brasil, 2010, p. 131 – 161.
110

procissão pela rua do Rosário, desde a praça da Graça – namorados saiam


de seus itinerários gastos, iam olhar os homens queimados estirados no cais
– se abismavam com a largura do rio, perguntavam o que havia do outro
lado, se era o Maranhão, se era também cidade, ainda a cidade de Parnaíba?
A água tão barrenta, feia, embora bebessem de lá todo santo dia, mas não
ligavam uma coisa a outra – os burros de carga mijando enfileirados,
enquanto os carregadores apanhavam a água espumante. Ali estava a água
que abastecia a cidade, vendida no lombo dos jumentos. Talvez não
ligassem muito porque em suas casas haviam filtro de pedra e alguns até
bem modernos – ou porque fervessem ou purificassem a água com um
pouco de cloro, receita do diretor da Saúde Pública. Ou porque usassem
água de poço – os mais abastados tinham suas cacimbas particulares, a água
mais limpa, sem o perigo do mijo dos jumentos, embora salobra – ou de
poços mais afastados, comprada a alto preço das lavadeiras do subúrbio.
(BRASIL, 2008, p.82).

A impossibilidade da fuga, do cruzar a fronteira nessa sociedade da qual


praticamente “não existem vasos comunicantes”, gera o terceiro território que recortamos
nessa nossa fala, o território do “ressentimento”. Ele emerge como sensibilidade, como
pertencente ao domínio do implícito, do intimo, do não palpável. Do ponto de vista histórico,
o ressentimento nos interessa porque é uma exploração dos sistemas de representação, é algo
que também fundamenta nossos comportamentos em sociedade, que dá “sentido” às nossas
ações. Ele exprime tanto a nível individual quanto coletivo a nossa capacidade de sermos
tocados pelo mundo, de reagirmos física ou psicologicamente às várias experiências pela qual
passamos.
O ressentir implica estar ou sentir-se afetado por rancores, ódios, desejos reprimidos
de vingança, paixões frustradas, invejas, etc.,118que ficam ressoando ou em estado de latência
dentro do indivíduo. Justamente por se colocar na ordem do epidérmico, este território não
poderá receber uma marcação geográfica específica dentro da cidade concreta. Mas como
nenhum outro, ele possibilita desvelar toda a carga afetiva que coabita o sujeito. Seus traumas,
seus medos, suas ruminações, suas fantasias íntimas, sua hostilidade, sua impotência, etc.
Evidentemente captar estas nuances não é uma tarefa fácil, haja vista envolver aquilo que
muitas vezes passa ao largo do racional, do cognoscível. Mas a literatura, que também é um
canal sensível, nos permite aproximar desse território subjetivo, tocá-lo superficialmente.
Em Beira Rio Beira Vida, quem nos fala desse território do ressentimento é a
personagem Luíza reportando-se ao findar melancólico da mãe. A que viveu e morreu mais
desgraçada que os desgraçados a quem sempre brindava. A que apenas gargalhava, como se a
vida fosse medida pela largura do seu sorriso e se esgarçasse com o fechar da sua boca. De

118
Que necessariamente não devem se concretizar para existir.
111

fato, ninguém ouviu da personagem Cremilda sua última gargalhada, talvez ela tenha morrido
de repente, no silêncio, engolfada na própria tristeza.

- A gargalhada, tanto no quarto, como no cais, era apenas um hábito, não


demarcava sua vida. A gargalhada tinha apenas tom e cor diferentes. No
começo era uma gargalhada que estalava no íntimo, aflorava ao mundo,
espontâneo, sim, mas já insegura – varava a casa e se perdia entre o barulho
das máquinas. Depois era apenas uma gargalhada triste – lá no cais ela
forçava o estalo do intimo, mas a garganta apenas aparecia e modulava o
lamento disfarçado. Às vezes cansava do esforço, perdia o jeito, as simples
palavras não eram suficientes para acentuar sua presença. (Ibidem, p. 63).

Já para as personagens reais, os protagonistas anônimos da história, o ressentimento


pode significar sua forma mais verdadeira de se relacionar com o mundo, de dizer que se
recusam, que não aceitam, que preferiam de outro jeito. Enfim, ressentir é resistir, é existir
teimosamente. Como historiadores, devemos ter em vista que a história que contamos não
está fora desse território do ressentimento, porque as nossas personagens são de carne e osso,
tiveram existência própria e nem sempre concordariam com o que dissemos delas. Afinal de
contas, quem de nós tem o dom de falar sobre o que “verdadeiramente” se passou ou o de
como efetivamente pensaram o mundo, gregos e troianos?
É mais do que óbvio que estes três territórios (desejo, revolta, ressentimento) não
deram conta de uma apreensão total das representações sobre a cidade de Parnaíba e que a
eles se podem multiplicar outros tantos territórios. Mas de uma forma muito particular, eles
significaram um caminho possível para a interpretação dessa cidade sob o viés que nos
propomos abordar nesse capítulo. Que, no geral, tentou minimamente dar conta de uma outra
cidade que existia em contraste aquela do “Norte do Brasil”, e que era marcada pela pobreza,
pelo estigma e pelo desequilíbrio nas relações de poder.
Enfim, pudemos observar que esta cidade passou muito distante do progresso tão
propalado pela elite comercial, que o poder público em muito foi sinônimo de omissão, de
retardo na inclusão de determinadas categorias na ordem econômica e social. Percebemos a
partir da literatura que a cidade é um lugar significado e que, pelo menos em possibilidade,
nos permite evidenciar as forças em disputa. Ainda sobre a literatura, ficou especificado que o
historiador não pode tratá-la como uma fonte qualquer, ela é linguagem, ela exige o
“envolvimento”, ela propõe questões especificas e apresenta resultados específicos, portanto,
o cuidado, o método, o rigor conceitual e a empiria tornam-se necessários.
112

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A integração econômica do Piauí ao contexto regional/nacional/internacional foi


sustentada pela tese de que o uso efetivo do rio Parnaíba, o aproveitamento das áreas
cultiváveis em suas margens, bem como a mudança da Capital e a abertura de vias de ligação
entre o estado e os principais centros consumidores, seriam medidas suficientes para retirar o
Piauí do profundo isolamento no qual se encontrava. (QUEIROZ, 2006b). Assim, desde a
transferência da Capital (1852) até a introdução da navegação a vapor no rio Parnaíba, o que
se assistiu foi uma transformação gradual no eixo produtivo do estado. As cidades situadas às
margens daquele rio foram as mais beneficiadas e até meados do século XX concentraram a
maior parte da produção piauiense – umas se caracterizando como centros produtores
enquanto outras se destacando como centros exportadores. A economia de base extrativa no
estado – marcadamente aquela voltada para as atividades de produção e exportação da
borracha da maniçoba, das amêndoas, dos óleos e ceras vegetais – foi durante as cinco
primeiras décadas do século XX a principal responsável pela inserção do Piauí no mercado
externo.
No caso da cidade de Parnaíba, situada no extremo norte do estado e com fácil
ligação tanto pela via fluvial quanto marítima, essa mudança no viés produtivo foi
fundamental para que ela se tornasse o principal centro comercial do Piauí, e assumisse uma
posição de relativa importância na colocação do estado no contexto do capitalismo
internacional. A influência econômica do município se estendia por toda a área cortada pelo
rio Parnaíba, sem falar na navegação de cabotagem e de longo curso que ligava o porto de
Parnaíba e Amarração aos principais portos do sul do país e ao exterior. O intenso movimento
nestes portos foi o reflexo de uma economia aquecida, podendo se observar que – a partir do
grande volume de mercadorias importadas e exportadas – naquele contexto os produtos
piauienses estavam na pauta de interesses dos grandes mercados consumidores nacionais e
internacionais, que movidos pelas necessidades da grande indústria recorreram sempre às
soluções mais efetivas e de baixo custo.
Assim, as décadas de 30 e 40 marcaram em Parnaíba o auge das
exportações/importações para estes mercados. Em conseqüência disso, assistiu-se a
emergência de uma elite comercial que – eufórica com o dinamismo da economia e com a
balança comercial sempre favorável – promoveu uma rápida transformação no perfil urbano e
social da cidade. A intensificação das exportações foi, nesse caso, um fator preponderante
113

para que aquela elite pudesse estreitar seus interesses com o poder público e introduzir
medidas de caráter modernizador no aspecto arquitetônico e urbanístico do município. O que
se convencionou chamar nesta pesquisa de belle époque foi o resultado direto destas
transformações que se operaram tanto no aspecto físico quanto na vida social de Parnaíba.
Dessa forma, a belle époque corresponde ao “embelezamento” das fachadas públicas; a
adoção do ecletismo como referencial artístico e arquitetônico dos aparelhos urbanos; a
introdução de novas práticas de sociabilidade e exibição pública a partir dos novos espaços
construídos e ampliados para o uso social; a influência européia advinda dos contatos com
famílias estrangeiras que habitava a cidade, ou mesmo com produtos vindos do exterior e que
desembarcavam no Porto das Barcas ou Amarração; além do contato com o próprio cinema –
um introdutor de novas modas e modos de comportamento; bem como a todo um repertório
de imagens e representações que norteou a ação daquela elite na busca por formas civilizadas
de lazer, consumo e sociabilidade.
Notadamente, este período também foi caracterizado por um maior adensamento
populacional e por intervenções no espaço físico da cidade. Como podemos ver, foi
principalmente durante as gestões dos Prefeitos Ademar Neves (1931-1934) e Mirocles Veras
(1934-1945) que se introduziram as ações de mais ampla repercussão no controle do espaço
urbano. Consta deste período, dentre outras medidas: o alargamento de ruas e a abertura de
outras; uma maior cobertura de pavimentação poliédrica nas principais avenidas; a construção
de praças e jardins; a ampliação da rede de iluminação pública; o “embelezamento” das
fachadas dos prédios com a adoção de novos estilos arquitetônicos; a expansão do perímetro
urbano; e o conseqüente povoamento de novas áreas. Enfim, estas reformas urbanas tiveram
um caráter funcional e estético, buscava-se, sobretudo, dotar a cidade de um equipamento
urbano “moderno” que pudesse também possibilitar uma maior mobilidade e fluidez nos
deslocamentos, haja vista tanto as bicicletas quanto os automóveis já fazerem parte do
cotidiano da cidade.
À medida que o “progresso” foi se materializando nestas ações de reforma assistia-se
também a multiplicação de áreas não cobertas pelos mesmos benefícios. Grande parte da
população não foi contemplada por essa “renovação” urbana, tampouco recebeu os mesmos
investimentos do poder público. Com o crescimento da cidade a maioria das famílias pobres
foi sendo empurrada para as áreas periféricas, principalmente para aquelas áreas mais
próximas ao rio ou em bairros mais distantes e com acesso precário. Assim, enquanto o
“centro” florescia marcado pelo ecletismo arquitetônico e pelos sinais evidentes da
modernidade, a “beira” ia concentrando uma densa camada composta por aqueles que foram
114

excluídos da modernização urbana. Nessa condição encontravam-se, por exemplo, os


trabalhadores do rio, aqueles para quem a sobrevivência material estava estritamente ligada às
atividades do cais, como os vareiros, os estivadores, as lavadeiras, as quituteiras, os
carregadores de água, as prostitutas, etc. Grupos que não partilharam do mesmo “progresso”
que a minoria abastada tanto se referia.
Para estes moradores a inexistência de alguns serviços urbanos básicos contrastava
em grande medida com o que se podia observar “no outro lado” da cidade. As ruas sem
calçamento, sem iluminação elétrica, as casas cobertas de palha e constantemente invadidas
pela água era o oposto do que se via na principal vitrine da belle époque, a Rua Grande. Nem
por isso pode-se afirmar que a existência desses moradores tenha sido anulada por estes
condicionantes sociais, ao contrário, mostrou-se nessa pesquisa que eles também existiram
enquanto sujeitos de vontade, enquanto entes capazes de resistir e compor uma polifonia
marcada pela sobrevivência no cais e pela ruidosidade das diversões noturnas nos botecos e
cabarés da cidade. A pobreza urbana foi pensada aqui como uma faceta da belle époque, mas
em instante algum se buscou reduzir as possibilidades desses sujeitos de intervirem na sua
própria realidade. O que se procurou flagrar neste trabalho foi uma cidade sem disfarces, sem
o mito de um tempo áureo em que todos eram felizes e que tudo era melhor.
Buscou-se em última instância capturar esta poética da existência no tecido sensível
da fotografia e da literatura. Da primeira, pode-se dizer que é um instrumento mediado de
fixação da memória, é um testemunho importante do que se passou, é um retrato das cenas do
passado que podemos ver com os nossos próprios olhos. E da mesma forma que a literatura,
ela é uma fonte sensível e deve ser questionada enquanto fazer intencional, ideológico e
político. Da literatura, explorou-se aqui sua capacidade de traduzir a vida enquanto
possibilidade, de representar uma dobra do social que permite ver as disputas e agenciamentos
em torno da produção da realidade. Assim, a literatura neste trabalho veio traçar uma
cartografia dos espaços marginalizados da cidade; veio contrapor e problematizar a ideia já
plasmada no imaginário social de uma cidade sem contrastes e confrontos. A “anticidade”
literária apresentada na obra Beira Rio Beira Vida nos ajudou a pensarmos conceitualmente
numa “cidade partida”, dividida entre os que “dão” e os que “recebem”, entre os que moram
bem e os que habitam o “resto”. Enfim, os personagens centrais da obra de Assis Brasil
representaram outra versão sobre a belle époque parnaibana.
De maneira geral, espera-se que esse trabalho venha a contribuir com os estudos
sobre a cidade de Parnaíba – principalmente aqueles que procuram recuperar algumas
histórias encobertas pelo espesso véu do preconceito sobre as camadas pobres urbanas da
115

cidade. Neste tocante, que esta pesquisa possa agregar novas versões sobre estes personagens
agora “um pouco menos” desconhecidos da belle époque de Parnaíba. Que a metáfora
representada pelas borboletas de Jessé possa despertar a capacidade de resistência daqueles
que foram colocados em uma condição de invisibilidade histórica, que ela consiga mostrar
que a sobrevivência social deve existir sempre em função de um sonho e não do
conformismo.

“Jessé corria até o cais para espantar as borboletas, que


misteriosamente pareciam sair da água escura.”
(BRASIL, Assis. Beira Rio Beira Vida, 2008, p.31).
116

FONTES E REFERÊNCIAS

1 FONTES

1.1 Instituições de Pesquisa

Arquivo Público do Piauí – Casa Anísio Brito, Teresina-PI.


Biblioteca Pública Municipal de Parnaíba-PI.
Biblioteca Renato Castelo Branco, Parnaíba-PI.
Fundação Raul Furtado Bacellar, Parnaíba-PI.
Instituto Histórico, Genealógico e Geográfico de Parnaíba – IHGGP.
Núcleo de História Oral da Universidade Federal do Piauí – NHO/UFPI.

1.2 Periódicos

ALMANAQUE DA PARNAÍBA, 1931, 1941, 1967, 1974, 1985, 1994, 1995.

LIVRO DO CENTENÁRIO DE PARNAÍBA, 1944.

JORNAL O BEMBÉM, 21 de fevereiro de 2009.

JORNAL INOVACÃO, abril de 1978.

1.3 Entrevistas

ATAHYDE, Cândido de Almeida. Parnaíba, 1984. Entrevista concedida ao Núcleo de


História Oral da Fundação Centro de Pesquisas Econômicas e Sociais do Piauí – CEPRO, em
17 de janeiro de 1984.

FABRÍCIA OLIVEIRA DE SOUZA, ou melhor, Didi, aquela hippe da praia. O Bembém.


Parnaíba, 21 fev. 2009, p.03.

SILVA, Antônio Pereira da Silva (Mano Velho). Teresina, 1984. Entrevista concedida a
Geraldo Almeida Borges do Núcleo de História Oral da Fundação Centro de Pesquisas
Econômicas e Sociais do Piauí – CEPRO, em 25 de fevereiro de 1984.

1.4 Meio Eletrônico


www.ibge.gov.br/seculoxx/
www.raulbacellar.org.br/
http://cpdoc.fgv.br/acervo/dhbb
http://www.flickr.com/photos/helderfontenele
117

2 REFERÊNCIAS

2.1 Dissertações e Teses

BARBOSA, Edson Gayoso Castelo Branco. O Parnaíba: contribuição à história de sua


navegação. 1978. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal de Pernambuco
(UFPE), Recife, 1978.

REGO, Junia Motta Antonaccio Napoleão do. Dos Sertões aos Mares: história do comércio e
dos comerciantes de Parnaíba (1850 – 1950), 2010. Tese (Doutorado em História) –
Universidade Federal Fluminense(UFF), Niterói, 2010.

2.2 Livros, Capítulos e Artigos

AGUIAR E SILVA, Vitor Manuel de. Romance. In: _______. Teoria da Literatura. São
Paulo: Martins Fontes, 1976, p. 251-348.

ANSART-DOURLEN, Michèle. O ressentimento – as modalidades de seu deslocamento nas


práticas revolucionárias. Reflexões sobre o uso da violência. In: BRESCIANI, Stella;
NAXARA, Márcia. (Org.) Memória e (res)sentimento: indagações sobre uma questão
sensível. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2004, p. 351-369.

ARAKEN, Carlos. Estórias de uma Cidade muito amada. Parnaíba: [s.e], 1988.

ARAÚJO, José Luis Lopes de. O rastro da carnaúba no Piauí. In: ALMANAQUE DA
PARNAÍBA, 1985, p. 100-104.

ARAÚJO, M.M.B. de; EUGÊNIO, J.K. A gente de longe e suas histórias esquecidas.
In:________. (Org.). Gente de Longe: histórias e memórias. Teresina: Halley, 2006, p.09 –
10.

BASTOS, Cláudio de Albuquerque. Dicionário Histórico e Geográfico do Estado do Piauí.


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