Documenti di Didattica
Documenti di Professioni
Documenti di Cultura
Teresina – PI
2012
1
Teresina – PI
2012
2
S586p
SILVA, Josenias dos Santos
Parnaíba e o avesso da belle époque: cotidiano e pobreza (1930-
1950)/ Josenias dos Santos Silva. – Teresina: Universidade Federal do
Piauí, 2012.
120f.
Orientador: Denilson Botelho de Deus
Dissertação (mestrado) – Universidade Federal do Piauí, Centro de
Ciências Humanas e Letras, Programa de Pós-graduação em História do
Brasil.
BANCA EXAMINADORA
________________________________________________
Prof. Dr. Denílson Botelho de Deus – UFPI
Orientador
________________________________________________
Prof.ª Dr. ª Teresinha de Jesus M. Queiroz – UFPI
Examinadora
________________________________________________
Prof. Dr. Aldrin Moura de Figueiredo – UFPA
Examinador
________________________________________________
Prof. Dr. Pedro Vilarinho Castelo Branco – UFPI
Suplente
4
AGRADECIMENTOS
Encontrei muita gente de bem ao longo do caminho, pessoas a quem sou grato
infinitamente e a quem dedico este trabalho.
Aqueles que me abriram as portas de suas casas e me abrigaram em algum instante
em Teresina, do qual não posso esquecer de Sônia e Jordan. Obrigado.
Ao Professor Cleto Sandys, um grande incentivador e alguém que me convenceu que
eu conseguiria. Obrigado.
Ao Professor Francisco Nascimento, um vitorioso. Alguém que sempre procuro
imitar enquanto exemplo de trajetória acadêmica e de vida. Devo a ele, além da confiança que
depositou em mim, o interesse pelo personagem Jessé da obra Beira Rio Beira Vida, o qual
acabou dando o mote a este trabalho. Professor, catei minhas borboletas.
A todos os professores do PPGHB da UFPI, especialmente aqueles que em sala de
aula compartilharam suas experiências e saberes comigo. E não posso esquecer também da D.
Eliete, sempre solícita e responsável. Obrigado a todos.
Aos meus dois grandes amigos e companheiros nessa viagem, Sérgio e Erasmo.
Perdemos a conta de quantos quilômetros percorremos para que tudo isso se efetivasse. Não
foi fácil em instante algum. Mas, pelo acostamento ou ziguezagueando entre os caminhões da
vida, prevaleceu sempre o bom humor, a vontade de que tudo desse certo – e acima de todas
essas coisas a Amizade (e também a “audácia” do Erasmo – que sempre fez questão de usar
as “duas” pistas e os “dois” acostamentos da estrada; e o “pé pesado” do Sérgio – que me fez
entender na prática para que serve o cinto de segurança, além de me provar que a lei de
Newton estava errada: dois corpos ocupam o mesmo lugar no espaço). Amigos, quantas
histórias! Sem vocês eu não teria conseguido. Obrigado.
Ao meu orientador, Professor Denílson Botelho. Primeiro, pelo profissionalismo e
competência em que conduziu todo esse processo de orientação. Nunca me faltou nada e
sempre me senti mais seguro depois de suas intervenções. Suas indicações de leitura, sua
pronta resposta às minhas necessidades, seus comentários (ou “dicas”) sempre responsáveis e
baseados na experiência, foram imprescindíveis para que tudo acontecesse a contento.
Aprendi muito e só tenho a agradecer por tudo o que você me ensinou. Segundo, tive a sorte
grande de ter em você mais que um orientador. Mesmo estando (a maioria das vezes)
trezentos quilômetros de distância, sempre fui tocado pela sua sensibilidade. Você sempre
demonstrou ser alguém que sabe se colocar no lugar do outro, entender as dificuldades e
6
limites de cada um. Desde a troca do horário e dia de uma disciplina até a protocolação de um
documento (coisa a que orientador algum jamais foi obrigado) você fez por mim. Atos que
podem parecer simples, mas só quem se vê incapaz de atender a urgência dessas ações sabe o
que significam. Enfim, o espaço é curto demais para demonstrar o quanto sou grato por tudo o
que você fez por mim. O quanto me ensinou com sua paciência, ética e exemplo de vida.
Tenho certeza que seus próximos orientandos irão reconhecer isso e farão de tudo para estar a
altura de sua Amizade e Profissionalismo. Obrigado.
Sou também infinitamente agradecido a Mary Serejo e a Margareth Serejo. Pessoas
maravilhosas que me deram o apoio necessário para eu poder cumprir as exigências do
Programa. Da Professora Mary, agradeço a confiança e a ajuda. E de Margareth, sou um
eterno devedor. Não tenho palavras suficientes para demonstrar a gratidão que nutro pelos
seus gestos quase maternais. Desde as lições de matemática no ensino fundamental, passando
pela abertura de sua biblioteca à minha curiosidade de adolescente, até o apoio e ajuda sempre
constante para o meu crescimento enquanto pessoa e profissional. “Madrinha”, obrigado!
Meus familiares sempre foram a razão de tudo isso. Minha mãe Angela, uma mulher
guerreira que na simplicidade sempre consegue me surpreender com gestos de incondicional
amor e dedicação. Obrigado mãe. Meu pai Francisco, meu herói, meu maior professor. Em
sua sabedoria de homem simples e sem leitura me ensinou que nem toda a sabedoria do
mundo está nos livros. Pai, obrigado pelo seu exemplo, amor e dedicação. Minha irmã Arlete,
que agora está de volta em nossas vidas. E uma princesinha chamada Noemi, meu maior
motivo de alegria nestes últimos dias. Jamais esquecerei da minha avó Lucinda, guardiã e
guia dos meus caminhos. E Maria, minha companheira, cúmplice e fiel amiga. Aquela que há
muito tempo suporta minhas manias, entende meu jeito, sofre e ri comigo. “Mô”, nunca
desista dos seus sonhos. Eu te amo!
A esses em particular – e a todos que torceram por mim – dedico meu esforço e
minhas vitórias.
Obrigado.
7
Os ninguéns
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
século XX ......................................................................................................................... 32
Figura 8 – Legenda: Fotografia aérea do Porto das Barcas, meados do século XX........ 49
Figura 9 – Legenda: Armazém da firma Bessa & Cia, Porto das Barcas, Parnaíba,
RESUMO
Este trabalho tem como espaço de investigação a cidade de Parnaíba (PI) entre os anos de
1930 e 1950. O recorte representa um momento singular da história econômica, social e
política da cidade: é a sua belle époque. Do ponto de vista socioeconômico, o período foi
marcado pelo auge da economia extrativa no Piauí, o que possibilitou em Parnaíba a
emergência de uma camada urbana enriquecida com o comércio de exportação e importação,
bem como o alargamento das distâncias entre pobres e ricos naquela sociedade. Desta forma,
este estudo se propôs a identificar e analisar os lugares assumidos pelos sujeitos que ficaram à
margem do processo de modernização urbana e social, desnaturalizando – sempre que
possível – as razões desta marginalização. É a partir deste viés que examinamos a emergência
de uma modernização urbana na cidade de Parnaíba no recorte estudado, compreendendo o
que foi e como foi a belle époque parnaibana. A análise em questão contempla variada gama
de fontes que vai dos relatos dos cronistas sociais, passando pela iconografia do período até a
literatura.
ABSTRACT
This work has the research area of the city Parnaíba (PI) between 1930 and
1950. The cut represents a unique moment in economic history, social and urban policy: is
its belle epoque. From a socioeconomic perspective, the period was marked by the height of
the extractive economy in Piauí, which allowed for the emergence of Parnaíba a
layer enriched with urban trade export and import, as well as extending the distance between
rich and poor in that society . Thus, this study was to identify and analyze the places that
were assumed by people outside the process of urban modernization and social denaturalized -
whenever possible - the reasons for this marginalization. It is from this bias we examined the
emergence of an urban modernization in the city of Parnaíba in crop studied, understanding
what it was and how was the belle epoque parnaibana. The analysis in question covers wide
range of sources ranging from reports of social chroniclers, from the iconography of
the period to the literature.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .............................................................................................................. 11
CONSIDERAÇÕES FINAIS.........................................................................................111
FONTES E REFERÊNCIAS.........................................................................................115
12
INTRODUÇÃO
Assim se expressou o poeta parnaibano Alcenor Candeira Filho sobre algo que lhe
pungia intimamente. O trabalho que ora se apresenta nasceu também a partir de
martelamentos, latejos e inquietações. Viver o cotidiano de Parnaíba atualmente é estar
sempre em contato direto com as marcas deixadas pelo seu passado próximo. O velho cais
ainda está lá, bem como o rio que observa e segue silencioso o fluir do tempo; o casario
eclético; a “Maria fumaça”; os enormes armazéns do porto; as ruas e marcas visíveis de suas
sucessivas intervenções. Enfim, a cidade surge num continuo (re)fazer-se, carregada dos
vestígios do que fora um dia – uma história esperando ser contada, (re)inventada a partir da
curiosidade do historiador e do seu “estranhamento” no presente. Esta pesquisa emergiu
enquanto uma tentativa de escavação desse passado e conta episódios da sociedade
parnaibana ocorridos entre os anos de 1930 e 1950, período que se convencionou chamar aqui
de belle époque. O recorte compreende o momento de maior efervescência comercial e
cultural da cidade de Parnaíba no século XX e teve como pano de fundo o auge da economia
extrativa no Piauí.
Como se sabe, a belle époque foi um período característico de fins do século XIX
até as primeiras décadas do XX, marcada principalmente pelas conquistas materiais e
tecnológicas da sociedade capitalista, pelo triunfo da sociedade burguesa e pela própria
euforia em relação ao progresso. Ela foi fruto de uma maior interação entre os mercados
internacionais que foram gradualmente globalizados a partir do advento de novos meios de
transporte e comunicação. Dessa forma, “modernidade” e “progresso” foram termos
amplamente utilizados para se referir aos ganhos materiais do período e serviram em grande
medida como contraponto àquilo que era considerado velho, atrasado ou obsoleto em relação
às conquistas naquele início de século. Assim, enquanto expressão urbana e cultural, a belle
époque se caracterizou pela introdução de novos estilos arquitetônicos, literários, artísticos,
bem como de novos e sofisticados inventos como o cinema, a bicicleta, o automóvel, o avião,
etc., que irão influir na vida cotidiana das cidades, tanto como imperativo de moda quanto
como forma de expressão de uma burguesia urbana e cosmopolita.
13
alargamento das distâncias entre ricos e pobres naquela sociedade. Fato que evidenciou não só
a existência de fissuras nas imagens construídas e positivadas em torno da belle époque
parnaibana, mas que caracterizou principalmente o protagonismo de uma minoria em
detrimento de uma maioria composta por pobres urbanos, que passaram a habitar as áreas
periféricas da cidade.
Neste sentido, o ponto de partida deste trabalho está estreitamente relacionado com
estas imagens conflitantes produzidas na “bela época” da cidade. O meu viver em Parnaíba, as
minhas experiências enquanto observador atento da sua transformação urbana, bem como
meu interesse diante de inúmeras histórias que ainda hoje compõem o imaginário daquela
cidade me fez lançar mão desta pesquisa no intuito de problematizar e refletir sobre esse
período – que para muitos ainda é motivo de “ufanismo” e tem o poder de imprimir certo
“saudosismo” em relação ao seu passado. Por exemplo, não raro se ouve na fala dos mais
velhos, principalmente daqueles que puderam acompanhar o auge das exportações na cidade,
expressões que remetem a um período de riqueza e “progresso”. A expressão “Parnaíba já
teve”, quase sempre evocada em relação a algo material ou a alguma prática que deixou de
existir em virtude do declínio econômico da cidade, plasmou no imaginário popular uma
representação muito viva do “que foi” Parnaíba naquele período. Por outro lado, isto também
instiga neste historiador certa desconfiança diante da naturalização destas falas, tendo em
vista o próprio caráter contraditório do passado.
Assim, este trabalho procurou responder a certas questões que foram emergindo a
partir de leituras e também diante da própria condição histórica da sociedade parnaibana que,
ao que parece, engessou seu passado ao escolher repetir quase sempre as mesmas versões,
com os mesmos personagens e lugares - versões estas muitas vezes conformadas com o
próprio interesse de uma minoria. O acesso a esse passado nos abre possibilidades de
buscarmos – através dos questionamentos lançados sobre a realidade – novas interpretações
para aquilo que muitas vezes figura como processo natural e a-histórico, como algo dado e
irremediavelmente inacessível à compreensão. Segundo Sidney Chalhoub, “[...] a história nos
instiga a pensar o social – passado, presente e futuro – como processo tecido na contradição e
na luta, e não como ‘anestesia’, como ‘mesmice’, isto é, como ponto de chegada necessário de
um caminho linear, harmônico e teleológico.” (CHALHOUB, 2001, p.347). Dessa forma,
espera-se que esta pesquisa possa desnudar o cotidiano desta cidade atravessada por relações
de poder, de violência e preconceitos.
15
1
Chegam a ser curiosas as razões para o surgimento deste epíteto ao qual logo se associou ao caráter comercial
de Parnaíba. Alguns afirmam que o mesmo surgiu de um desejo da cidade de menosprezar o Piauí, destacando-se
dele, como se a cidade tivesse adquirido auto-suficiência econômica e não se igualasse a nenhuma outra dentro
do estado. Porém, outros - de maneira mais plausível - apontam como causa para a adoção dessa referência os
constantes problemas no serviço postal que, naquele momento, prejudicavam a intensa vida comercial e social
dos comerciantes e firmas de representação, já que as correspondências tinham que vir obrigatoriamente por
Teresina com um mês de atraso, ou iam erroneamente parar na Paraíba ou em Santana de Parnaíba (SP). A
solução encontrada pelos comerciantes da cidade foi endereçar as correspondências ou malotes à PARNAHYBA
- NORTE DO BRASIL. Assim, as entregas chegavam de maneira direta e sem erros na cidade. Esse episódio dá
conta de uma página interessante da história econômica de Parnaíba, embora o fato não tenha escapado a
comentários maledicentes e desentendimentos entre parnaibanos e teresinenses. Cf. ALMANAQUE DA
PARNAÍBA, 1933, p. 157 – 159.
16
2
Segundo Teresinha Queiroz: “Durante a década de 1890, a participação das exportações na composição da receita
pública do Piauí foi sempre inferior a 30%. No século XX, essa participação será cada vez maior e, por conta disso,
acentuar-se-á o grau de vulnerabilidade das finanças do Estado, face ao comportamento da demanda por seus produtos.
Outra modificação que se vai estabelecer nessa década, em termos do comércio, é a predominância que passa a ter o
mercado externo sobre o interno. Nas décadas anteriores a exportação piauiense era basicamente de gado em pé, de
derivados da pecuária, e de algodão, exportados, preferencialmente, para outros Estados do Brasil. No início do século
XX, os produtos de demanda crescente e de maior valor na pauta de exportações terão como consumidores principais
os paises europeus e os Estados Unidos da América. Essa nova tendência se vai inaugurar a partir da década de 1890,
com a exportação da cera de carnaúba e da borracha de maniçoba, sedimentando-se nas primeiras décadas do século,
com esses produtos e o babaçu.” (QUEIROZ, 2006a, p.143).
18
Deficitário de comunicação desde o início - e não por outra razão que não seja a do
gado - o Piauí até aquele momento havia quase que desconsiderado completamente seu
principal rio, o Parnaíba3. Somente em meados do século XIX o rio Parnaíba, com seus 1.485
quilômetros, passou a ser alvo de investimentos por parte daqueles que enxergaram nele um
3
Segundo Cláudio Bastos, em seu Dicionário Histórico e Geográfico do Estado do Piauí: “É o principal rio do
Estado. Único grande rio permanente em toda a secção geográfica que vai do Maranhão ao São Francisco. É o
maior rio do NE ocidental ou Meio Norte.” (BASTOS, 1994, p.421).
19
4
José Antonio Saraiva nasceu em Santo Amaro (BA) em 1823. Advogado por formação e de extensa atividade
pública, Saraiva assumiu diversos cargos ao longo da vida. Foi deputado provincial, senador, ministro e
presidente de província. De 1850 a 1853 assumiu a presidência do Piauí. Notabilizou-se então pela transferência
da sede administrativa daquela Província, o que se efetivou em 1852 – quando Teresina passou a ser a nova
capital no lugar de Oeiras. Amigo próximo do imperador Pedro II, o Conselheiro Saraiva, como era conhecido,
também presidiu as Províncias de Alagoas, São Paulo e Pernambuco. Saraiva morreu em 1895 em Salvador
(BA).
5
Cf. DOMINGOS NETO, Manuel. O que os netos dos vaqueiros me contaram: o domínio oligárquico no Vale
do Parnaíba. São Paulo: Annablume, 2010.
6
De acordo com Victor de Atahyde Couto: “O extrativismo vegetal consistia na coleta de frutos (babaçu,
oiticica, castanha-de-caju), além de ramos, palhas e linho (jaborandi, carnaúba, tucum). [...] Mesmo estando
integrado e subordinado ao capitalismo pós-colonial, tratava-se, sobretudo, de um sistema extrativista primário,
de baixo nível tecnológico e alta densidade de trabalho vivo, segundo o conceito econômico de acumulação
primitiva. Apesar de todo o atraso tecnológico e de organização do trabalho (no extrativismo ainda
predominavam relações de produção atrasadas), produziam-se várias commodities – matérias-primas tornadas
mercadorias, integradas ao mercado capitalista internacional, particularmente no mundo ocidental.” (COUTO,
2011, p.30).
20
O rio Parnaíba passou então a significar uma porta de entrada para o comércio e para
os contatos do Piauí com o próprio Piauí e com outras regiões do país. Logo, se
contabilizavam inúmeras empresas de navegação atuando no trabalho de transporte de
passageiros e produtos de outras Províncias brasileiras e até do exterior. Muitos são os
registros que dão conta deste acentuado movimento em torno do rio Parnaíba. Eles ficaram
registrados em ofícios, cartas, memórias, crônicas, poesias, hinos, etc., e revelam o caráter
peculiar do vai e vem de vapores e outras embarcações menores “rio abaixo, rio arriba”8,
cruzando paisagens ribeirinhas, e revelando diante do olhar curioso do estrangeiro os
costumes e singularidades das populações beiradeiras9.
Em grande número foram os que, estrangeiros ou não, pouco a pouco ao longo dos
séculos XIX e XX foram se estabelecendo nestas regiões do vale do Parnaíba10 ou do Delta.
Essa gente de longe11 ajudou a compor o quadro social e econômico do Piauí, já que foram
7
Segundo Edson Gayoso C. B. Barbosa: “A perspectiva de transporte, no caso o fluvial, foi fator de
desenvolvimento, contribuindo para congregar núcleos populacionais.” (BARBOSA, 1978, p.90). Para Felipe
Mendes: “A carnaúba e o babaçu, por terem tido uma demanda externa forte e por estarem situados, em grande
parte, próximos dos rios, mudaram a geografia econômica piauiense numa época em que a produção da pecuária
nordestina também já estava transferida para as regiões mais próximas dos centros consumidores.” (MENDES,
1995, p.67).
8
Trecho do Hino do Piauí (letra de Da Costa e Silva), instituído pela Lei n° 1.078, de 18.07.1923.
9
Tomo este conceito emprestado de Gercinair Silvério Gandara (2010), que indica as populações que habitam às
margens do rio Parnaíba.
10
Sobre o vale do rio Parnaíba, afirma Cláudio Bastos: “Todo o território do Estado [PI] está encravado em sua
bacia hidrográfica que cobre 360.000 Km2, dos quais 300.000 do lado do Piauí. (...). Inclui, ainda, glebas
consideráveis do Maranhão e Ceará. Na direção L seu vale se estende em alguns lugares, pela área calculada de
400 km2. No W torna-se estreita faixa de terra. O vale ficou abandonado até 1852. Antes só havia interesse pelo
centro para a criação de gado.” (BASTOS, 1994, p.425).
11
Cf. ARAÚJO, M.M.B de, e EUGÊNIO, J.K. (org.). Gente de Longe: histórias e memórias. Teresina: Halley,
2006.
21
incontáveis aqueles que do rio, depois das longas e cansativas viagens, afluíram sem demora
às cidades e vilas próximas para morar ou comerciar. Sozinhos ou com família, a maioria
tratava logo de abrir pequenos negócios no intuito de trabalhar e, até quem sabe com alguma
sorte, prosperar em terra nova, ficar rico.
12
Cf. DAOU, Ana Maria. A belle époque amazônica. 3.ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004;
FIGUEIREDO, Aldrin Moura de. No tempo dos seringais. 5.ed. São Paulo: Atual, 2005.
13
Cf. QUEIROZ, Teresinha de Jesus Mesquita. A importância da borracha de maniçoba na economia do Piauí:
1900 – 1920. 2.ed. Teresina: FUNDAPI, 2006.
14
Na verdade o Porto de Amarração era um porto natural - inviável para os padrões atuais -, mas que à época,
embora com alguma dificuldade, ainda conseguia operar. Segundo o historiador Iweltman Mendes (2008), desde
o século XVII se aventou a construção de um Porto em Amarração (atual Luis Correia). Este “sonho”, no dizer
do autor, ainda se (des)enrola como uma verdadeira epopéia política e administrativa no momento em que
escrevo esta nota. Portanto, sempre quando falar aqui em Porto de Amarração pressuponha-se um histórico de
lutas pela melhoria da infraestrutura entre o transporte marítimo e fluvial no estado do Piauí; que vai desde a
ordenação de sondagem da região pelo Conselho Ultramarino (1699), passando pela autorização da abertura do
Canal do Igaraçu (1849) ligando o Porto fluvial de Parnaíba ao litoral, pela campanha de construção do Porto de
Amarração encampada pela Associação Comercial de Parnaíba nas décadas de vinte e trinta do século XX, até os
dias de hoje.
22
século XX, quando a economia baseada no extrativismo entrou em declínio marcando o início
da longa estagnação econômica do Piauí até o presente. Na realidade, ambos os projetos
fracassaram porque não conseguiram efetivar-se plenamente e em tempo de dar maior
mobilidade ao escoamento da produção extrativa do Piauí. Mas nem por isso pode-se negar
que o Piauí rompeu, naquele contexto, o isolamento em relação ao mercado mundial, com
destaque para o predomínio das atividades extrativas e o papel assumido por algumas cidades
como Teresina, Floriano, Amarante, União e Parnaíba na consolidação da economia do estado
como sendo um potencial exportador de matérias-primas de primeira necessidade para a
indústria mundial.
Este processo de integração do Piauí ao contexto econômico nacional e internacional
provocou significativas alterações econômicas e sociais, principalmente no que diz respeito à
reorientação dos centros comerciais e o surgimento de novos núcleos urbanos. É desta
transformação que trataremos a seguir, focando exclusivamente o lugar assumido pela cidade
de Parnaíba enquanto principal entreposto comercial do Piauí, bem como as mudanças
operadas a partir de sua inserção na dinâmica das trocas materiais e simbólicas que ocorreram
neste contexto.
da colonização portuguesa, que logo tratou de erguer ali um entreposto comercial15 com o
intuito de armazenar e escoar a produção do interior da Capitania do Piauí para outras áreas
da Colônia. Como se sabe, no Piauí, desde cedo as necessidades advindas do negócio do gado
marcou as formas de ocupação do seu território. No caso específico da região Norte destacou-
se, além das características gerais de economia de subsistência, o comércio realizado entre
esta região e os principais centros econômicos do Brasil-Colônia. Embora se deva analisar
isso proporcionalmente, levando-se em consideração tanto as dificuldades enfrentadas quanto
o impacto da participação da economia piauiense no cenário brasileiro. Segundo R. N. de
Santana: “Os fornecimentos para outras áreas, através da única porta marítima, ao Norte,
deram apenas alento à economia. Não se constituíram em impulso bastante forte para
assegurar a implantação de uma indústria sólida.” (SANTANA, 1964, p.57).
Desse modo, desenvolveram-se em torno da Vila da Parnaíba vários
empreendimentos que, de alguma forma, resultaram das condições relativamente prósperas da
economia regional, acentuadamente de seus principais mercados consumidores no Nordeste
(Ceará, Pernambuco, Bahia) e no Norte (Pará). A Vila da Parnaíba já figurava na
correspondência oficial em fins do século XVIII como uma região que prosperava a partir do
comércio do gado e de outras atividades demandadas daquela empresa16. Fato que podemos
verificar no documento da Descrição da Capitania de São José do Piauí feita pelo Ouvidor
Antonio José de Morais Durão17 em 1772. Ali, ele descreve as trocas que se estabeleciam
naquela região e até mesmo a Vila que ia se desenvolvendo com o sucesso de tal atividade.
Embora o Ouvidor, no mesmo documento, reconhecesse a precariedade das
condições de infraestrutura e de higiene do local18, o Porto das Barcas continuou servindo
15
Conhecido como Porto das Barcas ou Porto Salgado.
16
De acordo com R.N de Santana (1964), pelo Porto das Barcas saia cerca de um quarto do gado exportado pelo
Piauí, além da existência, naquele local, de inúmeras outras atividades relativas ao negócio do couro.
17
Antônio José de Morais Durão foi Ouvidor Geral da Comarca do Piauí de 1772 a 1778. É autor da seguinte
obra: “Descrição da Capitania de São José do Piauí, do ano de 1772, no governo de João Pereira Caldas, e de sua
ordem, levantado pelo ouvidor geral Antônio José de Morais Durão”. Cf. MOTT, Luiz. Piauí Colonial:
população, economia e sociedade. 2.ed. Teresina: APAL;FUNDAC;DETRAN, 2010.
18
Segundo o ouvidor Antonio José de Morais Durão: “Como o principal negócio que nela se faz consiste nos
gados que se matam nas feitorias e estas ficam arrimadas à Vila, é natural padeçam as epidemias que quase todos
os anos experimenta, porque o fétido que causa o sangue espalhado e mais miúdos de tantos milhares de reses
que se matam no pequeno espaço de um até dois meses, corrompe o ao ar com muita facilidade e produz o dano
apontado. As moscas e outras sevandijas são tão inumeráveis que causam inexplicáveis moléstias aos habitantes,
e isto mesmo há de suportar precisamente a toda pessoa que vai de fora porque só no tempo de verão se pode
caminhar por aquele distrito, pois de inverno por ser baixo, e alagadiço, se cobre de lagoas e faz absolutamente
impraticáveis os caminhos de sorte que o povo se tem visto na consternação de padecer algumas fomes por
aquela causa, no referido tempo e assim é o da matança da referida vila.” (DURÃO, 2010, p. 41).
24
como o grande escoadouro da produção piauiense desde o auge da pecuária até meados do
século XX, quando entrou em declínio a economia de base extrativa no Piauí. Estas
limitações, superadas em grande medida pelo esforço particular de alguns “comerciantes de
bons fundos”19, no dizer de R. N de Santana (1964), dedicados principalmente ao negócio da
exportação do charque, tornou a Vila uma referência no cenário econômico piauiense.
Exatamente neste contexto é que a Vila de Parnaíba foi alçada oficialmente à categoria de
cidade (1844), passando, com o posterior incremento da navegação fluvial, a assumir um
lugar estratégico no projeto de integração da economia piauiense ao comércio mundial. Para a
historiadora Junia Motta Rego, dentro deste projeto, Parnaíba se constituiu no:
19
Destacaram-se nesta empresa os comerciantes João Paulo Diniz, Domingos Dias da Silva e seu filho Simplicio
Dias da Silva. Todos conseguiram prosperar no comércio do gado e, de alguma forma, manter esta atividade de
forma lucrativa até as primeiras décadas do século XIX. Cf. MAVIGNIER, Diderot dos Santos. No Piauhy, na
terra dos Tremembés.Parnaíba: Sieart, 2005.
25
20
Segundo Tajra e Tjara Filho: “Sua utilização era vasta, desde simples óleo de iluminação, já no século
passado, até velas, pílulas, emplastros, ungüentos, sabonetes, material isolante, discos fonográficos, polimentos,
graxas, lubrificantes, encerados, papel carbono e como matéria prima bélica, entrando na fabricação da pólvora
na II Guerra Mundial. (...) O Piauí chegou a alcançar o 7° lugar nas exportações nacionais nos anos de 1941 e
1942. De 1939 a 1949 a cera de carnaúba era responsável por 70% da receita estadual. Quase toda a região norte
do Piauí prosperou graças à carnaúba.” (TAJRA e TAJRA FILHO, 1995, p.144).
26
21
Destaca-se a campanha pela construção do Porto de Amarração, talvez a maior bandeira da ACP; a campanha
pela ampliação da rede ferroviária entre Parnaíba e cidades com algum interesse comercial para o estado, como,
por exemplo, Campo Maior; e campanhas tanto pela melhoria do ensino quanto por reformas urbanas etc. Como
não é nosso propósito aprofundar as discussões em torno da ACP, maiores detalhes podem ser obtidos em: Cf.
MENDES, Iweltman. Associação Comercial de Parnaíba: oitenta anos de lutas e conquistas. 2.ed. [s.l.: s.ed.],
1997.
29
22
Segundo Gandara: “[...] em 1914, com o intuito de sanar problemas de alinhamento [...] foi adotada uma
planta que alargou para 20 e 30 metros algumas ruas e avenidas, e consequentemente, foram demolidos diversos
prédios e construídos outros dentro do plano urbanístico adotado que contribuíram para dar à cidade uma
visibilidade simétrica, apesar das irregularidades focalizadas. Na atual Parnaíba, nesta região, hoje conhecida
como ‘cidade velha’, pode-se verificar tanto a irregularidade do passado quanto a tentativa de uma
simetrização.” (GANDARA, 2010, p.240).
30
Depois de ter visto o Maranhão de 1893, ainda próspero, com suas fábricas,
com os seus bondes, com o seu calçamento, com as suas ruas
movimentadas, com os seus sobradões coloniais, com as suas casas de
comércio que conservavam mercadorias em exposição à porta, Parnaíba era,
de algum modo, uma decepção. As ruas eram largas e numerosas, mas de
areia solta; dos seus seis sobrados, três se achavam em ruínas, desabitados,
e entregues aos morcegos e às corujas; o comércio guardava seu sortimento
nas prateleiras, nada deixado de fora do balcão. Não tinha gás, não tinha
carruagens, não tinha bondes. A impressão que Parnaíba me deu foi, em
suma, a de uma Miritiba grande. (CAMPOS, 1983, p.118-119).
23
Humberto de Campos Veras nasceu em Miritiba (MA) em 25 de outubro de 1886, filho de Joaquim Gomes de
Faria Veras, pequeno comerciante, e Anna Theodolina de Campos Veras. Órfão desde os seis anos, Humberto de
Campos, residiu durante algum tempo em São Luis (MA), indo em 1893 para Parnaíba (PI), onde passou a
residir até 1900. O autor aborda essa estadia em Parnaíba em seu livro “Memórias”. Após este breve período,
retorna a São Luis, indo posteriormente morar no Pará, até que em 1912 transfere-se definitivamente para o Rio
de Janeiro. Humberto de Campos exerceu um papel ativo no campo da crítica literária e no jornalismo.
Destacou-se também como cronista e memorialista, vindo a ocupar, em 1919, a cadeira de n. 20 da Academia
Brasileira de Letras - ABL. Faleceu no Rio de Janeiro em 05 de dezembro de 1934.
24
Cf. ABREU, Marcelo de Paiva. O Brasil e a economia mundial (1930-1945). In: FAUSTO, Boris. (Org.).
História Geral da Civilização Brasileira. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004. v. 4. p. 09-49.
31
estado do Piauí como um todo – durante a “Era Vargas”25, sentiu os reflexos das mudanças e
direcionamentos da política nacional; e de certa forma se incorporou às novas diretrizes
político-econômicas do período, seja através das interventorias e da sua inserção efetiva no
comércio internacional26, ou mesmo a partir do surgimento de novas demandas por melhorias
na sua infraestrutura urbana e de transportes.
Assim, como resultado da expansão da economia extrativa, houve consequentemente
um crescimento das expectativas em torno do progresso material da cidade. Desse modo, os
apelos pela modernização de seu aspecto urbanístico e arquitetônico marcaram o tom das
mudanças que gradualmente foram sendo percebidas no cenário urbano. Alguns cronistas
sociais anotaram essa tentativa de melhorias urbanas, destacando-se principalmente aquelas
ocorridas durante as gestões dos Prefeitos Ademar Neves27 (1931-1934) e Mirocles Veras28
(1934 -1945). Segundo uma cronista da época, Ademar Neves tomou medidas que tiveram o
intuito de “remodelar” Parnaíba, de “civilizá-la” no rastro de outras cidades que já haviam
passado por esse processo ao longo dos séculos XIX e XX. De acordo com a mesma cronista,
foi durante a gestão desse Prefeito que se introduziram os mecanismos de melhor controle do
25
Sobre isso Cf. NASCIMENTO, Francisco Alcides do Nascimento. A Revolução de 1930 no Piauí: (1930-
1934). Teresina: Fundação Cultural Monsenhor Chaves, 1994.
26
Embora se deva deixar claro, que sua condição era a de uma economia de características eminentemente
agrário-exportadora. Seria leviano da parte de quem estuda esse período da história do Brasil, comparar ou
generalizar essas mudanças no âmbito da economia brasileira sem considerar as diferenças regionais, assim
como, não relativizar a própria dinâmica de crescimento regional em virtude de todo um processo histórico de
formação econômica, social e urbana, que é especifica e não necessariamente homogênea.
27
Ademar Gonçalves Neves nasceu em Parnaíba (PI) no dia 19 de Novembro de 1883, filho do major Felipe
Gomes Neves, de ascendência portuguesa, e de Maria Madalena Gonçalves, de tradicional família parnaibana.
Ademar Neves fez seus estudos de primeiras letras em Parnaíba, seguindo posteriormente para São Luis (MA),
Lisboa, e por fim, Manchester, na Inglaterra, onde se forma em Contabilidade e Comércio. De volta à Parnaíba,
assume a firma comercial da família, fato que, em pouco tempo, destaca-o como um dos sólidos comerciantes da
cidade. Após a “revolução” de 1930, o Interventor Federal no Piauí, tenente Landri Sales, solicita à Associação
Comercial de Parnaíba a indicação de um nome para assumir o Governo Municipal. Ademar Neves foi escolhido
e assume a administração da cidade em 25 de fevereiro de 1931, permanecendo no cargo até 25 de maio de 1934.
Este período é marcado pelo inicio da modernização urbana de Parnaíba. De sua tentativa de remodelar a cidade
aos moldes dos grandes centros urbanos brasileiros e europeus, Ademar Neves acabou figurando no imaginário
popular como o “remodelador” da cidade. Após sua administração, foi morar no Rio de Janeiro, onde ainda
trabalhou para a firma Moraes S/A e como Tesoureiro Auxiliar da Casa da Moeda. Ademar Neves faleceu em 7
de fevereiro de 1954, sendo sepultado no cemitério do Caju, naquela cidade.
28
Mirocles Campos Veras nasceu em Parnaíba (PI) no dia 25 de março de 1890, filho de Emídio Gomes Veras e
de Maria Campos Veras. Mirocles formou-se em medicina em 1912 pela Faculdade de Medicina do Rio de
Janeiro. Nesta condição, assumiu diversos cargos ao longo da carreira onde foi, por exemplo, Médico de Higiene
Municipal em Parnaíba, Diretor-Médico da Santa Casa e Médico-Chefe do Centro de Saúde do Estado, além de
contribuir para a fundação/instalação de vários centros de saúde, como a Maternidade Marques Bastos e a
Sociedade de Assistência aos Lázaros e Defesa contra a Lepra. Mirocles Veras foi nomeado Prefeito Municipal
de Parnaíba em 1934 na Interventoria do Capitão Landri Sales, ficou no cargo até o fim do Estado Novo, em
1945. De sua gestão resultaram obras que tiveram cunho modernizador do aspecto urbano e arquitetônico da
cidade. Mirocles Veras faleceu em Parnaíba no dia 10 de agosto de 1978.
32
espaço urbano, de embelezamento das fachadas públicas e das áreas de circulação, garantindo
assim os novos rumos da expansão urbana:
passou por intervenções que de alguma forma alteraram seu aspecto antigo a partir do
melhoramento dos seus serviços urbanos. Os fragmentos apresentados dão a entender que
surgem do “canteiro de obras” e da “operosidade” ou “sensibilidade” do gestor, as praças
ajardinadas, as novas fachadas públicas, a ampliação da rede elétrica e de calçamentos, a
limpeza urbana, a preocupação sanitarista, etc. Enfim, o embelezamento e a modernização da
cidade seriam efetivados mediante o rompimento com os padrões colônias e pela substituição
do antigo pelo novo, do feio pelo “embelezado”, assim como pela procura de um equilíbrio
estético que pudesse harmonizar a paisagem urbana e humana da cidade naquele contexto.
De fato, algumas imagens do período evocam/reforçam essa ideia de harmonia
estética e transformação, onde se pode destacar a evolução da arquitetura urbana e a
introdução de novos referenciais estéticos nas formas de morar. Assim, graças à expansão das
exportações na primeira metade do século XX, a arquitetura da cidade de Parnaíba pôde
incorporar o ecletismo29 como referencial estético para seus espaços urbanos tanto de moradia
quanto de circulação pública.30 Como afirmamos anteriormente, a Rua Grande foi a principal
vitrine da evolução arquitetônica em Parnaíba. Assim, nas figuras 2 e 3, por exemplo,
podemos observar algumas das construções que distinguiram aquela avenida das outras vias
de circulação da cidade.
29
O ecletismo na arquitetura aconteceu na Europa no final do século XVIII estendendo-se até o início do século
XX. No Brasil, o ecletismo predominou entre fins do século XIX até meados do século XX. Ele é um
movimento caracterizado principalmente pela mistura de estilos arquitetônicos de diversas regiões e distintos
períodos históricos, predominam a variação das tipologias estilísticas e a utilização de materiais industrializados,
além dos já conhecidos ferro e vidro.
30
Segundo Diva Maria Figueiredo: “Entre os dois extremos, o rio e a ferrovia, à medida que se afasta do núcleo
original, novas formas de parcelamento e tendências arquitetônicas se impõe como testemunho de novos tempos,
incorporando os benefícios da sociedade industrial. As mudanças sócio-econômicas e tecnológicas produzem
reflexos nas formas de habitar e construir.” (FIGUEIREDO, 2006, p.29).
34
Ali, além da grande quantidade de sobrados31 ecléticos (fig. 2), destacou-se outro
estilo bastante valorizado, o chalé32 (fig.3). Naquele contexto, o embelezamento de Parnaíba –
diga-se, das áreas centrais – não se restringiu apenas às residências particulares, mas também
foi levada às praças, às ruas e às fachadas públicas que acompanhando o ritmo dessas
transformações, introduziram novos estilos arquitetônicos, novos materiais e formas de
sociabilidade. Desse modo, o mobiliário urbano incorporou uma outra característica, agora
definida pelos novos modos de ser da elite, pela ideia de movimento, modernização e
requinte. O velho estilo colonial, pesado, rudimentar e asfixiante, foi dando lugar a uma nova
estética, agora marcada pela leveza e pelo detalhe. Segundo Diva Maria Figueiredo:
31
Os sobrados possuem porão alto, recuo para ventilação e iluminação, gradil em ferro, jardim, varanda, escada
lateral e fachada frontal alinhada com a via pública etc. As residências com essa característica eram ocupadas
pelas famílias mais abastadas da cidade, geralmente grandes comerciantes em ascensão econômica. Cf.:
AFONSO, Alcília; MORAES, Michele de. (Coord.). Arquitetura Piauiense. Teresina: EDUFPI, 2009.
32
O chalé também foi outra tipologia muito difundida no período, geralmente ele possuía cobertura (duas águas)
bastante inclinada, era revestido com telha francesa, possuía sótão, janelas em verga reta, gradil em ferro e
também era alinhado com a via pública. Esse tipo de residência era quase sempre ocupado por famílias de um
poder aquisitivo menor em relação aos que moravam em sobrados ou palacetes. Cf.: AFONSO, Alcília;
MORAES, Michele de. (Coord.). Arquitetura Piauiense. Teresina: EDUFPI, 2009.
35
A Praça da Graça e seu entorno foi, sem dúvida, o lugar de concentração da maior
parte das atividades da vida social/cultural da cidade. Além de se constituir em lugar de
passagem/encontro, a praça era por onde se desfilava as principais modas, onde se realizavam
as festas religiosas e pagãs, se iniciavam casamentos e também se ouvia boa música, era o
“coração da cidade”, no dizer de um cronista social. De acordo com o cronista Carlos
Araken33:
33
Carlos Araken Correia Rodrigues, médico e cronista parnaibano. Tem vários artigos publicados em jornais de
circulação local, no “Almanaque da Parnaíba”, além de alguns livros de crônicas e memórias, destacam-se:
36
“Estórias de uma cidade muito amada (1995)” e “Crônicas de um tempo incerto (1996)”. É membro do Instituto
Histórico e Geográfico e Genealógico de Parnaíba (IHGGP) e da Academia Parnaibana de Letras, cadeira n.23.
34
Benedicto dos Santos Lima, nasceu no povoado de São Raimundo (MA) em 27 de maio de 1893, filho de José
Estevão dos Santos, agricultor, e Genuína Correia Lima. O Bembem, como era conhecido, viveu parte de sua
infância no Maranhão, até que, em 1910, vem residir em Parnaíba. Trabalhando no pé do balcão, Benedicto dos
Santos Lima dividia seu tempo entre o trabalho e o estudo. Autodidata, procurou compensar a falta do ensino
formal. Já em 1917, Benedicto dos Santos Lima abre seu próprio negócio, a Mercearia Bembem, que aos poucos
vai se mostrando um empreendimento de grande sucesso. Leitor voraz, não faltava em sua Mercearia espaço
para livros das mais várias áreas do saber, tampouco pessoas interessadas em discutir diversos assuntos.
Benedicto dos Santos Lima, em 1923, influenciado por uma série de almanaques patrocinados por empresas
comerciais, como o Almanaque Bristol, o Almanaque do Pensamento e o Almanaque Bertrand etc., resolve, ele
mesmo, patrocinar a partir de sua Mercearia, seu próprio Almanaque. O ano de 1923 serviu para coleta de dados
e organização do que viria ser, no ano seguinte, o primeiro número do Almanack da Parnahyba, oferecido como
uma lembrança da Mercearia Bembem. O Almanaque com certeza foi além das expectativas de seu criador, já
que ao longo de sua existência provou ser mais que uma lembrança, se constituiu num importante documento
sobre a sociedade piauiense e parnaibana no século XX. Bembem ficou à frente do Almanaque até 1941, quando
repassou seus direitos a outro comerciante da cidade, Ranulpho Torres Raposo. Benedicto dos Santos Lima
também se dedicou ao jornalismo, escrevendo em jornais locais. Benedicto dos Santos Lima veio a falecer em 21
de agosto de 1958 na cidade do Rio de Janeiro, deixando esta contribuição à história e às letras piauienses.
37
Notadamente, uma das diversões mais disputadas naquele período eram os bailes no
Cassino 24 de Janeiro (fig.5). O Cassino era para a cidade uma espécie de vitrine da moda e
dos novos costumes. Nele, tanto homens quanto mulheres procuravam imitar o figurino em
voga nos salões metropolitanos. Elas, desfilando sempre longos e comportados vestidos (o
decote era apenas um detalhe suficiente para realçar alguma jóia ou algum traço mais
marcante da anatomia); os cabelos, geralmente em coque para as mais velhas ou curto e mais
ousado para jovens. Eles, invariavelmente de “summer jacket” ou terno branco com gravata
borboleta, sapatos bem polidos, cabelos e bigode alinhados; O perfume era francês; bebia-se
os licores da terra sendo o restante tudo importado; a música, que não podia faltar, variava
com a ocasião transitando entre o popular e o erudito, ia da polca para a valsa, da valsa para o
tango, deste para o maxixe, o xote etc; no carnaval, que também chegou a ser realizado no
38
35
Segundo Carlos Araken: “O rapaz nunca dançava com a mesma moça mais de um ‘pulado’. Se ficasse
conversando no salão até a contradança, implicaria em namoro ou coisa mais seria. As moças só entravam no
clube acompanhadas de seus pais ou familiares. Moça Sozinha, Nunca! Não era de bom tom; se alguma a tal se
aventurasse, estava na boca do povo.” (ARAKEN, 1988, p.43).
39
Cassino era acima de tudo uma festa da alta sociedade. Existiam blocos masculinos,
femininos e mistos que disputavam entre si as melhores apresentações e figurinos. Já o
carnaval de rua, promovido pela municipalidade, envolvia todas as classes sociais, pessoas de
todas as idades e das mais variadas profissões. Geralmente era realizado na Praça da Graça e
nas suas imediações, contava sempre com a presença de blocos fantasiados fazendo alusão
aos mais diferentes temas; havia desfiles de agremiações e clubes com seus hinos e
estandartes; corsos de automóveis repletos de foliões; batalhas de serpentina e confetes; além
do inebriante lança-perfume, uma prática comum tanto no salão quanto na rua e que,
dependendo da marca e da embalagem, acabava sendo um sinal de distinção social ou
simplesmente apontava quem estava mais disposto a investir na brincadeira. Nas palavras de
um cronista social:
A vida social, agora ampliada por estes novos espaços de sociabilidade, também foi
marcada por outras relações. Notadamente, esse contexto de maior proximidade da economia
parnaibana com os principais centros econômicos do Brasil e da Europa favoreceu não só
entrada de muitos produtos “sofisticados” e “necessários” ao consumo da elite (o automóvel,
a louçaria, a toalete, o mobiliário, os abajures e lâmpadas, etc.)36, como também a entrada de
36
Segundo Marc Theophile Jacob, “[...] durante o tempo em que os navios da Europa entravam em Amarração, a
população da pequena vila e a de Parnaíba, usava o linho escocês, o perfume francês, o cimento em barricas,
vindo da Bélgica, de onde também viria o arame farpado e o preto recozido usado, este último, na construção dos
currais para o aprisionamento de peixes, o ferro e os instrumentos de trabalho vinham da Alemanha ou da
Inglaterra, machados, facões, enxadas etc., as louças eram alemãs, francesas, inglesas e até japonesas; as
mulheres usavam sedas francesas, sombrinhas da moda e tudo quanto lhes era dado consumir.” (JACOB, 2006,
p.294).
42
algumas famílias estrangeiras na “high society” parnaibana. Dessa forma, a presença destas
famílias foi aos poucos se tornando um fato corriqueiro no cotidiano social da cidade. Conta-
se entre os estrangeiros habitando em Parnaíba certo número de famílias francesas, inglesas e
37
sírio-libanesas; algumas vinham fugindo das guerras na Europa, outras apenas procuravam
melhorar de condição, tendo em vista o momento favorável da economia piauiense.
A presença da cultura britânica, tão bem notada por Gilberto Freyre (2000), talvez
foi a mais evidente, em termos de influência cultural, na cidade de Parnaíba. A cidade, logo
na primeira metade do século XIX recebeu uma Casa Inglesa; um estabelecimento comercial
onde a sociedade parnaibana passou a negociar praticamente de tudo, desde enxadas até
louças esmaltadas. Ela foi administrada inicialmente por Paul Robert Singlehust, que logo
depois passou o comando ao também inglês James Frederick Clark38. A Casa Inglesa por
muito tempo ligou o comércio de importação e exportação parnaibano diretamente com a
Europa, principalmente a partir dos portos de Liverpool e Amsterdã. Em vários anúncios do
Almanaque da Parnaíba ficou evidenciado a grande quantidade e variedade de sortimentos
oferecidos por essa casa comercial, que atendeu durante décadas tanto os consumidores de
Parnaíba quanto de cidades vizinhas.39
É interessante observarmos que muito mais do que ferramentas e produtos, o que
acabou também prevalecendo nessas trocas foi a influência da própria cultura britânica.40 O
37
Pelos sobrenomes mais comuns entre as famílias dá para se ter uma noção disso: Clark (inglês), Jacob
(francês), Baluz, Alelaf, Baracate (sírio-libanês) etc.
38
De Liverpool, James F. Clark chegou muito jovem em Parnaíba (1869) com a intenção de trabalhar na Casa
Inglesa de Paul Singlehust, este o aceitou e algum tempo depois, com a sua morte, James se tornaria proprietário
(1903) da Casa Inglesa. James F. Clark acabou se casando com uma moça de uma família tradicional, Ana
Gonçalves Castelo Branco, educada no Sacred Heart School, de Roehampton, nos arredores de Londres.
Tiveram seis filhos: Septimus J. F. Clark, Oscar Castelo Branco Clark, Frederico de C. B. Clark, Antonio C. B.
Clark, Maria C. B. Clark e Flora C. B. Clark.
39
Em um único anúncio no Almanaque da Parnaíba de 1941, a Casa Inglesa oferecia ao público os seguintes
produtos: “Aço, Alfazema “Ribeiro da Costa”, Alvaiade, Anil, Artigos Dentários, Arame Farpado e Liso, Armas
e Munições, Automóveis “Hudson”, Breu, Cal, Canella, Carvão, Cataventos “FAIBANKS-MORSE Eclipse”,
Chumbo, Cimento “Dolaport”, Cobre, Cuteleira, Cruzwaldina, Encerados, Enxofre, Estanho, Ferro de Engomar,
e fogões ultra modernos e econômicos, Folhas de Flande e Zinco, Ferragens em geral e para Arreios, Facões e
Machados “Collins”, Flit, Gasolina “Ensolene”, Geladeiras, Harmônicas, Kerozene “JACARÉ” , Lanternas
“COLEMAN”, Louça Esmaltada, Machinas de Escrever, Material Elétrico, Mercúrio, Miudezas, Motores, Óleo
Linhaça “Tigre”, Óleos Lubrificantes, Papelaria, Papel Imprensa, Parafusos, Perfumaria, Pilhas e Lâmpadas
Elétricas, Pimenta, Pregos, Rádios, “ZENITH”, Sal de Azedas, Salitre, Soda Caustica “CAVEIRA”, Tecidos,
Tintas, Vinhos, Winchargers, Zarcão.”
40
Segundo a historiadora Maria Cecília Nunes: “Com a presença dos ingleses em Parnaíba, começou a existir
toda uma produção de ideias de que a Inglaterra era hegemônica no trabalho e na superioridade cultural. Com o
tempo, essa forma de pensar ganhou concretude e passou ao imaginário coletivo de modo a refletir nos hábitos e
costumes dessa sociedade gerando assim um envolvimento para uma vocação empresarial. A partir dessa
vocação profissional, compreendendo que o modo de vida da sociedade parnaibana – na segunda metade do
43
sobrado da Casa Inglesa, por exemplo, era dividido em casa comercial embaixo e residência
da família em cima41, e era justamente nos andares superiores – com varanda, mirante e
móveis importados da Inglaterra e da Áustria – que parte da elite parnaibana se encontrava
para jantares familiares e saraus regados a muita música e “whisky”; como relata um cronista:
Quem não lembra com saudades o Terraço da Casa Inglesa? Foram noites de
grande esplendor. O encantamento começava na imponência da escadaria da
entrada, de madeira nobre, revestida de grossa passadeira de veludo vermelho.
Os metais dourados brilhavam, e faziam sombra aos aristocráticos lustres de
cristal. No primeiro piso estava o terraço, misto de jardim e dancing, cercado
de belas palmeiras, iluminação suave, que em noites de lua, por ela era
substituída. A fidalguia e o requinte dos donos da casa, os rapazes Bruce e
Sepinho, figuras saudáveis e belas, muito ingleses, por estirpe e por educação.
O uísque legitimo correndo solto, fazia a cabeça de todos. Eram noites
realmente deslumbrantes, difíceis de esquecer. Ali estava o melhor que havia
em nosso meio, todos absolutamente seguros de sua posição, e da solidez de
seu patrimônio. Bons e belos tempos aqueles! (ARAKEN, 1988, p.78).
século XIX e primeira do século XX – foi influenciado pela formação desse imaginário profissional dos
empresários e burocratas de Parnaíba, onde a Casa Inglesa era vista como um espaço de formação técnica-
profissional. Espaço que exigia de seus funcionários competência, disciplina, responsabilidade e ética
profissional.” (NUNES, 2006, p.345).
41
Exatamente da maneira como Gilberto Freyre descreve as primeiras construções residenciais inglesas no
Brasil do século XIX: “Deve-se, entretanto, observar que os primeiros negociantes britânicos estabelecidos no
Brasil depois da abertura dos portos, instalaram-se, como os grandes negociantes da terra, nos andares superiores
dos próprios sobrados ocupados por seus armazéns. Foram esses sobrados o trampolim donde se atiraram aos
arredores, cheios de matas, das cidades – arredores que eles avistavam dos mirantes.” (FREYRE, 2000, p.189).
42
Embora neste caso seja preferível falar em “circularidade cultural” ao invés de superioridade cultural. Cf.
GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: o cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido pela Inquisição. São
Paulo: Companhia das Letras, 2006.
43
A influência da cultura européia se fez tão presente em Parnaíba que a introdução e a prática do futebol por
aqui se deu por intermédio desses contatos ainda no inicio do século XX. Em um artigo póstumo no Almanaque
da Parnaíba de 1974 intitulado: “Parnaíba eu te amo”, o engenheiro Antonio Frederico Clarck relembra sua
juventude na cidade parnaibana: “As suas ruas, sem calçamento, arenosas, serviam de campo para a disputa de
peladas homéricas com a primeira bola de foot-ball chegada no início do século XX ao Piauí e que foi presente
de Mr. James da firma Chamberlain Donner & Cia. de Manchester Inglaterra e que deu origem aos futuros
clubes do Parnaíba e Internacional.” (CLARK, 1974, p.225).
44
diante das diferenças abissais entre os “de cima” e os “de baixo” naquela sociedade. Assim, a
paisagem urbana/humana de Parnaíba foi aos poucos concentrando de um lado uma burguesia
enriquecida e embevecida com o progresso material e de outro uma camada popular subtraída
dessas conquistas e para quem a modernidade foi muitas vezes apenas uma vaga notícia.
Todas essas manifestações em torno do propalado progresso da cidade atuaram como
catalisadores da vivencia cotidiana. Assim, se a idéia de progresso tão cultuada até meados do
século XX pelas classes mais abastadas da cidade era algo que se podia enxergar
materializado nas ruas comercias, no casario bem ornado ou nos gostos requintados da elite, a
segregação espacial também foi algo que acompanhou esta modernização urbana. Dessa
forma, a ampliação do perímetro urbano da cidade, juntamente com o adensamento
populacional em bairros mais afastados do centro, acabou empurrando parte da população
menos favorecida para áreas periféricas. As medidas modernizadoras e as transformações dos
espaços de circulação e moradia acentuaram as desigualdades locais. Esses fatos não apenas
impuseram certas restrições às camadas mais pobres como também evidenciaram o caráter
excludente daquela “modernização”. Referindo-se a esse aspecto, assim descreve a
historiadora Maria Cecília Nunes:
As duas epígrafes acima cumprem uma função muito específica, além de nos
introduzir nas discussões desse capítulo, são verdadeiros convites para pensarmos dois lados
de uma mesma realidade. A primeira epígrafe pinta um quadro do universo do trabalho no
cais do porto de Parnaíba: com o seu barulho característico; com o movimento cotidiano das
embarcações e dos embarcadiços; com a lufa-lufa de gente e mercadorias na tarefa de
produzir materialmente a existência; e o rio, o grande veio e veia dessa história, dessa beira-
vida. Já a segunda, lança luz sobre os costumes, melhor dizendo, sobre os “maus costumes”
que a noite tende a encobrir nas dobras do seu “fantástico e sombrio mistério”. Fala dos
“vícios”, das diversões mal comportadas, das fuzarcas e do sexo pretensamente ilícito nos
“submundos” da cidade. Ao nos voltarmos para estas “coisas miúdas” do cotidiano, para estes
atos anônimos, percebemos que a realidade social nada mais é do que a soma destas histórias,
destas vivências, e que a vida, na sua (des)continuidade e insustentável leveza, é de fato a
terceira margem do rio44, e é o que verdadeiramente interessa ao historiador enquanto
44
Cf. ROSA, João Guimarães. A terceira margem do rio. In: _________. Ficção Completa. Rio de Janeiro: Nova
Aguilar, 1994, v.2, p. 409 – 413.
48
profanador do passado. Assim, segundo Carlo Ginzburg, “o olhar aproximado nos permite
captar algo que escapa da visão de conjunto, e vice-versa.” (GINZBURG, 2007, p. 267).
Da mesma forma, a cidade é um ajuntamento de percursos, de modos de ser, de
produzir, de gozar, de morrer, enfim, de existir enquanto fluxo (in)determinado. A cidade é a
materialização da existência humana, do seu trabalho e da sua capacidade de produzir o
espaço - poesia e sobrevivência. Dessa forma, enveredando neste capítulo por estas histórias,
sondaremos o cotidiano do trabalho e do lazer no esplendor econômico da belle époque
parnaibana; mais especificamente as relações entre o trabalho e a “vida noturna”, entre o
movimento do cais e o da cama. Abordaremos mais detidamente alguns aspectos do universo
do trabalho no cotidiano do cais de Parnaíba, bem como as relações mantidas, no trabalho e
no lazer, entre as diversas categorias profissionais naquele espaço no instante mesmo em que
a cidade ia se firmando enquanto pólo econômico e urbano. Procuraremos reunir distintas
formas de produção da realidade social a partir das representações sobre a experiência
cotidiana dos pobres urbanos, tratados aqui como trabalhadores do rio45, e sobre os espaços de
sociabilidade (cais/botequim/cabaré) freqüentados por eles.
Os trabalhadores do rio, como aqueles que efetivamente estavam desde os primórdios
desta Capitania do Piauí na ponta de baixo do processo produtivo, foram talvez os mais
injustiçados pela historiografia piauiense ao longo do tempo. Ela “louvou” o bandeirante, o
vaqueiro, os coronéis, os heróis, os governadores, etc., e relegou ao quase esquecimento tanto
o rio quanto seus trabalhadores, aqueles que direta (embarcadiços, vareiros, estivadores,
carregadores d´água, lavadeiras de roupa, pescadores, etc.) ou indiretamente (prostitutas,
quituteiras, quitandeiros, mascates, feirantes, etc.) dependiam do rio ou do movimento deste
para retirar sua fonte de renda, sua sobrevivência material. Contar estas histórias fugidias de
personagens reais que deixaram algum registro, quase sempre involuntário, de seus momentos
de luta renhida pela sobrevivência, ou de seus (des)amores nos momentos de intimidade e
descontração, é ampliar a possibilidade de entendimento das relações mantidas entre os vários
agentes sociais, é afirmar que o conhecimento histórico é uma via de muitas mãos, que pode
fornecer múltiplas respostas às questões do presente.
45
Utilizarei o termo “trabalhadores do rio” para significar uma gama considerável e diversificada de
trabalhadores autônomos, sindicalizados ou não, que sobreviviam direta ou indiretamente do incessante trabalho
no rio Parnaíba ou no cais de Parnaíba. Dessa forma, me esquivo de utilizar conceitos mais complexos do ponto
de vista formal e histórico, como por exemplo, classe operária, embora não o descarte completamente, sobretudo
se considerarmos a concepção thompsoniana que põe em relevo as experiências compartilhadas por estes
indivíduos.
49
Como se sabe, a influência dos portos na vida das cidades alteram seu ritmo próprio
complexificando as relações sociais, principalmente aquelas que giram em torno do mundo do
trabalho. A cidade de Parnaíba teve sua história marcada pela presença de um porto fluvial,
que desde os primeiros núcleos urbanos serviu de norte para seu crescimento e formatação
econômica. O Porto das Barcas acompanhou os ciclos da economia piauiense, congregando
em cada uma das suas fases diversas categorias profissionais que, ora em rio, ora em terra,
faziam circular os mais variados produtos. Ao longo da primeira metade do século XX, o
Porto das Barcas, juntamente com sua alfândega, foi o “eldorado” da economia parnaibana.
Prova disso foram os lucros sempre crescentes e a euforia dos que tinham negócios por lá.
Ao se observar atentamente por alguns minutos o centro antigo de Parnaíba percebe-
se o quanto a geografia do lugar marcou as formas de loteamento urbano. O seu traçado atual
só pode ser entendido a partir da relação da cidade com o rio e, consequentemente, com o
porto que se avoluma diante dela e parece convergir todas as ruas em sua direção. As
edificações urbanas que compõem a paisagem daquela região denotam o grau de influência
das atividades do rio na vida daquelas populações ribeirinhas, que dependiam
economicamente do movimento e do trabalho do cais para sua sobrevivência. Um panorama
descritivo da cidade de Parnaíba, recolhido de Renato Castelo Branco46 e reproduzido abaixo,
detalha melhor como a cidade era distribuída social e materialmente em relação ao cais do
porto, aos ofícios e agentes sociais em meados da década de 1930.
46
Renato Pires Castelo Branco nasceu em Parnaíba (PI) em 1914. Formado em Direito pela Faculdade Nacional
de Direito da Universidade do Brasil em 1937, destacou-se de fato como Publicitário sendo um dos fundadores
da Associação Paulista de Propaganda (APP) e da Escola de Propaganda do Museu de Arte de São Paulo. Como
escritor, publicou mais de vinte obras de temas que vão do romance histórico a livros de memória. Destacam-se:
“O Piauí: a Terra, o Homem, o Meio” (1970); “Tomei um Ita no Norte” (1981) e “O Rio Mágico” (1987).
Renato Castelo Branco ocupou a cadeira n.15 da Academia Parnaibana de Letras (APAL). Faleceu em São Paulo
no ano de 1995.
50
Parnaíba, ao que se percebe, era uma cidade movimentada, pulsante, e que oferecia
uma paisagem de contraste entre o “chique” dos palacetes e bangalôs em estilo moderno do
51
centro, com o “popular” dos casebres de palha nas áreas periféricas. Estes, sem a mínima
condição de fazer frente ao luxo daqueles, em nada representavam os estilos arquitetônicos
adotados naquele período pela elite comercial da cidade. Ao contrário, compunham uma
“cinta de palhoças e casebres” em desalinho com a harmonia urbana que se almejava. Assim,
o que se pode evidenciar é uma cidade de extremos, com uma organização social
hierarquizada em torno das atividades do comércio, bem como das profissões que também
vão se hierarquizando, que tomavam corpo mediante as relações que se mantinham entre elas.
Enfim, a própria estrutura urbana, enfatizada na descrição anterior, reflete bem os
condicionantes sociais de determinadas categorias que, vivendo “no escuro” do
desenvolvimento econômico da cidade, apenas existiam pobremente no auge do esplendor
comercial de Parnaíba, em plena belle époque.
Esta imagem é importante porque ela já nos introduz num aspecto que sempre se
sobressaia na paisagem do local, que era a presença dos enormes armazéns onde se estocavam
47
Cf. HOBSBAWM, E.J. Mundos do Trabalho: novos estudos sobre história operária. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 2000.
53
os produtos que chegavam e saiam para os mais diferentes destinos. Alguns destes armazéns,
hoje a maioria em ruínas, datam ainda do período colonial e já receberam, enquanto espaço
físico, variados usos. Presença constante nas falas e representações sobre o porto, os
armazéns, vez ou outra quando das cheias que por lá se registraram, eram invadidos pela água
e a lama do rio. Estas cheias ficaram registradas48 tanto na memória quanto no imaginário
social da cidade. As populações ribeirinhas eram as mais atingidas, logo, eram obrigadas a
aceitar impotentes as águas carregarem o pouco que ainda restava. Mas o que sempre atraia
mesmo era o movimento. Os trabalhadores da estiva carregando e descarregando as
embarcações, as sacas empilhadas dentro ou fora destes gigantescos galpões, e os curiosos,
sempre atentos ao menor detalhe, não perdiam lance algum daquele ritual cotidiano. É o que
nos relata novamente Renato Castelo Branco, dando conta, ainda na década de 1930, de
alguns detalhes deste agitado e abarrotado espaço do Porto das Barcas.
48
Na edição do Almanaque da Parnaíba de 1967 podemos ler um artigo intitulado “A revolta do rio”, onde o
autor, Álvaro Ferreira, faz a seguinte descrição: “Lembra-se o leitor, por certo, das últimas enchentes do nosso
velho Parnaíba. As águas subiram, subiram, e o rio virou moço, como no passado já distante, quando seguia sem
embaraço para a confusão com o mar. Avolumou-se. Ergueu a ossatura gigante no ímpeto de quem desperta para
a conquista da vida ameaçada. E se lançou fora. Invasor, não temeu conseqüências. A cidade era o seu objetivo
maior. Não lhe interessava tanto. Queria engoli-la de um trago. De uma só vez. Para que a vingança fosse
completa.” (FERREIRA, 1967, p.91). Ainda hoje a região de entorno do Porto das Barcas sofre as conseqüências
de um não planejamento urbano inicial – àquele que data do período de estabelecimento da Vila da Parnaíba, que
seguiu o estilo prático da colonização portuguesa de estabelecer-se próximo à margem de grandes correntes
navegáveis. Assim, a região continua sendo uma área alagadiça, muito povoada e impraticável do ponto de vista
urbano.
54
Como se sabe, as lutas pelos direitos49 do trabalho no Brasil foram marcadas pela
superação de uma longa tradição escravista, que muito influenciou na construção de uma
identidade do trabalho e do trabalhador, principalmente na passagem do século XIX para o
século XX, quando se assistiu a transição do modelo escravocrata para o trabalho livre.50 Essa
passagem acentuou as diferenças (cor, sexo, idade, nacionalidade, classe social) e acirrou os
conflitos diante das condições materiais de reprodução da existência. Mudanças que também
afetaram o universo mental, ou seja, viu-se o esfacelar de um mundo marcado pelo
paternalismo e acostumado com a presença do escravo, que se coloca diante de um “novo”
contexto social, marcado pela inclusão na ordem capitalista e pela presença massiva do
trabalhador “livre”e assalariado.
A imagem acima é um “retrato” das condições de trabalho a que estavam
submetidos os estivadores no cais do porto de Parnaíba até meados do século XX. Um
trabalho evidentemente braçal, que demandava uma grande quantidade de homens na
execução da estiva e desestiva de mercadorias. Como se pôde perceber na imagem, havia
49
Cf. GOMES, Angela de Castro. Cidadania e direitos do trabalho. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2002.
50
Cf. CHALHOUB, Sidney. Visões da Liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na corte
imperial. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
55
certa distribuição de funções no interior daquela atividade. Uns ficavam responsáveis pela
retirada da mercadoria do porão das embarcações, a estes cabiam a tarefa de voltear as cordas
ou correntes ao redor da carga aprumada, e ao fim disso, dar sinal ao o operador do guincho
para suspender o volume até a parte de fora da embarcação, já na borda do porto. Após essa
primeira etapa, vinha outro trabalhador responsável por desamarrar a carga e liberar o guincho
para mais uma refrega. Enquanto isso, outro grupo já estava retirando a carga empilhada e
levando-a direto para os armazéns. Todos descalços, chapéu de palha ou pano atado à cabeça,
uns com cigarro na boca, outros contando as do dia, enquanto o trabalho ia sendo realizado,
quase sempre sob o olhar vigilante do patrão ou do gerente, que pra lá e pra cá ia
acompanhando atento o movimento se repetir até o último fardo.
Do ponto de vista dos instrumentos formais de organização do trabalho, sindicatos e
associações, por exemplo, não se pode afirmar que estes indivíduos estavam efetivamente
politizados ou encampando uma luta por melhorias nas condições de trabalho. A maioria
destes trabalhadores eram indivíduos que cresceram à margem do rio e da sociedade, e em
grande medida condicionados pela precariedade econômica, social, cultural, educacional.
Enfim, na maioria das vezes obrigados desde a infância ao trabalho embrutecedor e
degradante, à subserviência e a exploração. Fato que também denuncia a própria relação entre
patrões e empregados que, não apenas nesse tipo de atividade, mas em todos os outros setores,
sempre foram historicamente marcadas pelo autoritarismo da classe patronal e por certa
omissão do estado em criar leis que pudessem equilibrar ou dar maiores garantias aos
empregados. Como é sabido, no Brasil esse longo processo foi sendo construído
paulatinamente mesmo diante das turbulências políticas e econômicas nas quais o país se
envolveu em seu percurso até o estágio atual.
Outra categoria profissional bastante numerosa eram os “vareiros” (fig.11 e 12),
nome dado àqueles que tinham como único oficio atravessar pessoas e mercadorias de uma
margem para a outra do rio.51 O vareiro era alguém sempre requisitado, porque desde o
amanhecer do dia o movimento era grande, sendo praticamente incontáveis as idas e vindas
no final da tarde. Muitos eram os motivos que obrigavam as pessoas a cruzar o rio, já que
quase todas tinham algum afazer do outro lado. Algumas iam vender produtos no mercado,
outras iam visitar um parente, tinha os que iam comprar nas quitandas da cidade algum
mantimento para casa, outros só iam para os seus empregos no cais mesmo, enfim, uma gama
51
O oficio de vareiro na cidade de Parnaíba foi deixando de ser realizado com a construção da Ponte Simplicio
Dias na década de 1970, quando não mais se precisou utilizar do seu recurso para atravessar o rio, já que a ponte
uniu Parnaíba à outra margem, ao bairro Santa Isabel.
56
De certa forma, essa “faina diária”, a que se refere Sousa Lima, era uma
demonstração pública da luta do homem contra o rio. A técnica de um contra a violência do
outro. E a vontade dos dois de vencer qualquer obstáculo. O vareiro já cansado no final da
peleja saia do trabalho como um artífice “medalhado”, como alguém que provou seu destemor
e seu “machismo” diante da difícil arte de brigar com o rio, da difícil luta pela sobrevivência.
Ainda de acordo com Sousa Lima, tratando dos vareiros, observa:
Em geral, o trabalho do vareiro era autônomo, cada qual possuía seu próprio barco,
comprado ou fabricado com os materiais próprios da região. Porém, o que mais o destacava
era, evidentemente, o varejão que ele utilizava para roçar o fundo do rio e criar a energia
necessária para o seu movimento. Um trabalho de força e jeito, que com a experiência
adquirida ao longo de sucessivas travessias logo se dominava. Até mesmo o Almanaque da
Parnaíba chegou a reconhecer a importância do trabalho do vareiro em duas de suas capas53.
Embora, a precariedade das condições de trabalho tenha se mantido até o ocaso dessa
profissão, quando os últimos vareiros foram substituídos pela Ponte Simplicio Dias, que
tornou desnecessário o seu trabalho. Ainda é Raimundo de Sousa Lima quem constata essa
forma de exploração a que estavam submetidos o vareiro e outras categorias profissionais
expropriadas da riqueza produzida em Parnaíba naquele período, e ele também lamenta o
desaparecimento dessa classe que não deixou rastro material algum de sua existência.
53
Cf. ALMANAQUE DA PARNAÍBA, 1947 e ALMANAQUE DA PARNAÍBA, 1982.
59
Como se pode observar, a água era captada diretamente do rio e não raro chegava
misturada à própria sujeira dos animais de transporte. Um cronista do período descreve o
tratamento domiciliar dispensado à água que as famílias recebiam mediante o trabalho desses
carregadores, segundo ele:
O tratamento doméstico dessa água super-poluída consistia em manter
mergulhado, dentro do pote, durante algum tempo, um pedaço de pedra-
hume amarrado à ponta de um cordão e deixar que os micróbios e detritos
fossem arrastados ao fundo do vasilhame, com a decantação provocada pela
pedra-hume na poeira da argila em suspensão na água. Posteriormente a
água, já decantada, era filtrada através de uma bacia lavada em pedra-pome
e depois fervida, para só então ser servida. Êta trabalheira danada... Por isso,
só a minoria das famílias adotava esse tratamento. Muitas usavam a água do
rio como recebiam. (REBELO apud REGO, 2010, p. 247).
(...) Vaso sanitário. Todos tinham. Nesse ponto os parnaibanos desde cedo...
Esse tipo de parnaibano [se referindo às famílias abastadas], vamos dizer
assim... Eles tinham não só aparelhos sanitários como tinham fossas
biológicas nas suas casas. Agora, os mais modestos não tinham. Tinham
uma espécie de fossa com uma caixa de madeira com um buraco no centro
onde o cidadão se servia. Numa condição muito higiênica porque o
indivíduo não se sentava. Ele ficava de cócoras, pois em termos de saúde é
muito mais higiênico do que o sujeito sentar. (CEPRO, 1984).
Sobre esse ponto se pode perceber a situação precária a que parte da população
estava submetida, a maioria sobrevivendo em condições de risco sem uma infra-estrutura
sanitária digna do ponto de vista social/humano, o que indiscutivelmente contradiz em grande
medida o discurso “progressista”, porque deixa claro que existiam estas distâncias profundas
no panorama social da cidade. Segundo Sidney Chalhoub: “(...) é possível construir
explicações válidas do social exatamente a partir das versões conflitantes apresentadas por
diversos agentes sociais, ou talvez, ainda mais enfaticamente, só porque existem versões ou
leituras divergentes sobre as “coisas” ou “fatos” é que se torna possível ao historiador ter
acesso às lutas e contradições inerentes a qualquer realidade social.” (CHALHOUB, 2001,
p.40). Assim, os efeitos dessa realidade denunciam a existência de um grupo social vivendo à
margem do fausto econômico, sobrevivendo longe das transformações urbanas, dos
“melhoramentos”, enfim, à margem de uma belle époque. Candido Atahyde ainda
complementa esse quadro, no entanto agora se referindo a outro aspecto, que diz respeito ao
uso da água no ambiente doméstico, bem como a utilização cotidiana do rio como “terma”
pública.
54
Cândido de Almeida Atahyde nasceu em Tutóia (MA) no ano de 1904, filho de Artur Almeida Atahyde e
Franklina Almeida Atahayde. Teve parte de sua formação inicial em Parnaíba e em São Luís, seguindo em 1923
para a Bahia onde cursou o 1° e o 2° ano de medicina naquele estado, formando-se, por fim, em 1929 pela
Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro. Nesta condição atuou como médico residente no Pronto Socorro e na
Assistência Pública do Rio de Janeiro. De retorno à Parnaíba, na década de 30, dirigiu por muitos anos a Santa
Casa de Misericórdia da cidade, além de ter algumas passagens pela vida pública, foi vereador, Presidente da
Câmara Municipal e Prefeito (1946). Candido Athayde também foi Professor Catedrático da Universidade
Federal do Piauí (UFPI) e presidiu a Federação das Indústrias do estado. o No inicio da década 1980, Cândido
Atahyde concedeu uma valiosíssima entrevista ao Núcleo de História Oral da Fundação Centro de Pesquisas
Econômicas e Sociais do Piauí (CEPRO), na qual conta, a partir de suas memórias, sua história de vida e fatos da
sociedade parnaibana de meados do século XX. Cândido Atahyde faleceu na cidade de Parnaíba em 1998.
61
O mais vulgar não era nem o chuveiro nem a banheira era exatamente a
bacia com água e o banho de cuia. (...) Isso inclusive na [casa] das elites até
uma certa época quando se estabeleceu o sistema de canalização de água
que eu acho que foi aí por 1914, começaram a fazer a instalação de água
com caixas d´água e puxando de poço com bombas manuais. Mas em casas,
num numero pequeno de casas. E o outro grande reservatório do banho e da
higiene de Parnaíba sempre foi o rio. Uma quantidade muito grande de
pessoas sistematicamente usava o rio para o seu banho, na parte da manhã e
na parte da tarde. Via de regra, todos os trabalhadores antes de voltar para
suas casas, tomavam banho no rio. (CEPRO, 1984).
Além dos carregadores d´água, o rio também era povoado por uma grande
quantidade de lavadeiras de roupa, que em meio ao movimento de embarcações e outras
categorias profissionais iam marcando seu espaço. Logo cedo elas se enfileiravam na rampa
do cais com suas trouxas de roupa, se preparando para passar horas a fio naquela batida
monocórdia, recortada apenas por conversas animadas ou o grito de algum vareiro gaiato na
outra margem.
assumida pelas lavadeiras, diz ele que: “No cais da beira-rio / lavadeiras sem roupas / lavam
as roupas dos ricos.” (CARVALHO, 2006, p. 87). Note-se também na imagem anterior
(fig.14) a presença de crianças do sexo feminino, são meninas que desde cedo já eram
chamadas (obrigadas) a trabalhar e compor a renda doméstica. Em um dos anúncios do
Almanaque da Parnaíba, flagramos que um dos principais elementos para o trabalho das
lavadeiras, o sabão, era vendido utilizando-se como recurso de propaganda justamente a
imagem dessas crianças. O que evidentemente hoje seria um disparate e um crime, naquele
período era tido como algo dentro da “normalidade”, embora encobrisse o fato de que
somente as crianças das classes subalternas estavam obrigadas a esse tipo de trabalho, que,
discordando do anúncio, ofendia as mãos e geralmente marcava o destino destas meninas da
beira-rio.
Mas não eram unicamente as crianças trabalhadoras que freqüentavam o cais. Seu
movimento sempre era alterado pela presença de muita gente, como nos conta Raimundo de
Sousa Lima: “A população da beira do rio estava sempre presente às chegadas de
63
55
O Monumento da Águia, como ficou popularmente conhecido, foi uma homenagem dos operários de Parnaíba
ao Prefeito Ademar Neves e figurou na paisagem do Porto das Barcas até o inicio da construção da Ponte
Simplicio Dias, quando foi retirado para a desobstrução da obra.
65
Não obstante a isso, o lugar retratado é significativo por demais, tendo em vista
marcar o encontro entre o porto e a principal Avenida da cidade – aquela que foi o símbolo
máximo da belle époque parnaibana, a vitrine e o cartão postal onde se podiam admirar as
construções “modernas” e o “progresso” da cidade. A criança da fotografia está postada neste
lugar fronteiriço entre duas realidades distintas, ela encontra-se como que perdida entre o
mundo do cais e a “modernidade”, entre a belle époque e o seu avesso. Notadamente, a
realidade social de Parnaíba naquele período era marcada por estes choques, pelo contraste
entre o esplendor comercial e urbano de um lado e o mundo dos pobres urbanos de outro.
Enquanto aqueles gozavam em toda plenitude de sua belle époque, estes, pendurados nas
bordas da sociedade, iam apenas compondo a terceira margem do rio. Embora produzindo
também seu espaço, materializando a cada novo dia uma forma específica de escapar à
exploração e a pobreza. Talvez uma única coisa os ligasse, é que todos precisavam do rio, uns
para enriquecer e outros para (sobre)viver.
56
SANTOS, Pádua. “Multiplicação da Miséria”. Inovação. Parnaíba, abr. 1978, p.2. (Jornal de circulação Local)
57
Sylvio Floreal (pseudônimo de Domingos Alexandre) nasceu em data incerta em Santos (SP). Sylvio Floreal
formou-se à margem das instituições formais de ensino da época, sendo que antes de torna-se jornalista e escritor
exerceu as funções de pedreiro e funcionário do Correio. De sua obra destacam-se, além de “Ronda da Meia
Noite” (1925), “Atitudes” (1922), “A coragem de Amar” (1925) e “O rei dos caçadores” (s/d). Sobre sua morte
também há poucas informações concretas e concordantes, existindo apenas um dado factual e incompleto de seu
falecimento, que teria ocorrido em São Paulo em 1929.
58
Cf. DELUMEAU, Jean. “O medo da noite” in História do medo no Ocidente 1300-1800: a cidade sitiada. São
Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 138-153.
67
publicidade do dia, embora mantenha com ele uma relação íntima que o complementa ou o
encobre. Um segundo aspecto que nos propomos a investigar nesse capítulo é justamente este
que fala das sociabilidades dos pobres urbanos em relação “à vida noturna” da cidade, aquilo
que se relaciona com os momentos de lazer nos botequins e cabarés da beira rio, ou seja, o
que nos interessa aqui é a noite enquanto lugar consagrado do desenrolar de conflitos, de
amores tórridos, de práticas efetivamente ligadas ao lazer, à bebida e ao sexo.
Como abordamos no capítulo anterior, o porto fluvial da cidade de Parnaíba era um
espaço que recebia em seu período de apogeu econômico grande efetivo de embarcações e
pessoas. Em conseqüência disso, a paisagem social da cidade era constantemente alterada pela
presença de embarcadiços de outras regiões que, juntando-se aos trabalhadores locais,
compunham um grupo numeroso e notadamente dividido entre as atividades do trabalho e as
aquelas realizadas nos momentos de folga, sempre depois das longas viagens pelo rio, ou
mesmo após as obrigações, ao final do dia. Como qualquer outra cidade que tenha um porto,
Parnaíba oferecia a estes trabalhadores de folga inúmeras possibilidades de darem vazão ao
seu tempo livre, e assim, a cidade foi ganhando vários locais de sociabilidade para onde
acorriam apressadamente os que buscavam quebrar a rotina cansativa do trabalho. As idas aos
cabarés e botequins eram sempre os roteiros mais seguidos pela maioria dos embarcadiços
que aproveitavam a folga para os encontros fortuitos e a “caninha” revigorante.59 Justamente
nesse cenário dava-se o encontro entre os três grupos de personagens que iremos investigar
mais a fundo, que eram as “biscates”, os “porcos d´água” e os “mata-cachorros”,
popularmente como eram chamados, no período, as prostitutas, os embarcadiços e os
milicianos.60 Sobre essa “zona quente” da cidade, que se localizava nas proximidades do cais
e nos bairros pobres da Coroa e Quarenta, a historiadora Aneliza de Brito Vaz afirma que:
Nos idos de 1930, este lugar, se é que não seria profano comparar, mais
parecia com os festejos de santos padroeiros tão comuns e freqüentes em
cidades pequenas. Só que no lugar de procissão de fieis o que se via era o
desfile de prostitutas, em vez de leilões de bolos e galináceos para o santo
padroeiro, eram as bancas de bebidas, laranjas, frito de carne-de-porco,
fussuras, tapioca, café e guloseimas. Foi nesse ambiente de intensa
59
Uma primeira questão que nos colocamos é aquela que relaciona o trabalho ao lazer e este à sexualidade e ao
alcoolismo. Não existe uma relação natural entre estes aspectos da vida cotidiana, talvez o que exista seja um
impulso de associá-los sem levar em consideração os perigos de se cair em um pensamento determinista, como
se o indivíduo obrigatoriamente estivesse predestinado a seguir este caminho. Cf. CHALHOUB, S. Trabalho, lar
e botequim: o cotidiano dos trabalhadores do Rio de Janeiro na belle époque. 2.ed. Campinas, SP: Editora da
UNICAMP, 2001.
60
Força Policial da cidade, geralmente guardas da ronda noturna.
68
Um dos registros mais pertinentes sobre a relação do homem do rio com “a vida
noturna” no contexto em que estamos abordando, foi anotado no Almanaque da Parnaíba do
ano de 1982, quando aquele anuário registra em sua capa a figura do embarcadiço Antônio
Pereira da Silva, ou Mano Velho, como desde cedo ficou conhecido.62 Naquele ano, ele
concede uma entrevista ao escritor Cineas Santos contando um pouco de sua história, das suas
viagens pelo rio e da disposição dos porcos d´água para os amores ilícitos. Assim relata Mano
Velho:
61
Sobre esses “pontos” ainda podemos acrescentar aqueles que funcionaram até meados do século XX, como o
Rio Chic, a Beleza da Rosa, o Zé Gouveia, o Riso da Noite, a Dona Laura, a Maria das Neves etc, cada qual com
suas características próprias, uns mais baratos, outros mais violentos, outros de meninas mais novas, mais velhas,
bonitas, feias... enfim, cada um respondendo aos gostos do(a) cliente.
62
Mano Velho nasceu em Caxias (MA) em 1913. Segundo ele, deve ter se “misturado” com o rio em 1930 e daí
em diante sua vida foi marcada pelas viagens ao longo do rio. Como embarcadiço não tinha lugar fixo, ele
passou temporadas em Teresina, Parnaíba, Timom (MA) e em outras cidades cortadas pelo rio Parnaíba. No ano
de 1984 ele concede uma entrevista à Fundação CEPRO, onde detalha melhor suas histórias e sua vivência de
homem de rio. Sua fala é importante porque revela muito dos aspectos sociais, culturais, econômicos, mentais
etc., que envolviam a navegação no Parnaíba e as cidades ribeirinhas do Piauí e Maranhão. Infelizmente não é do
nosso conhecimento registros da vida de Mano Velho após estas entrevistas concedidas ao Almanaque da
Parnaíba e a Fundação CEPRO. Esta última se encontra disponível no Núcleo de História Oral da Universidade
Federal do Piauí – UFPI.
63
Santa Filomena é um município da região sudoeste do Estado do Piauí, está localizado no Alto Parnaíba. Ele
dista 825 milhas por via fluvial da Capital Teresina.
64
Luzilândia é um município da região norte do Estado Piauí, está localizado no Baixo Parnaíba. Ele dista 783
milhas por via fluvial da Capital Teresina.
69
Uma outra fala que reforça e detalha a descrição de Mano Velho, é a de Raimundo
de Sousa Lima que apresenta o vareiro, também um porco d´água, nos momentos de folga, diz
ele que:
70
65
Fabrícia Oliveira de Souza (Didi) concedeu uma entrevista ao Jornal O Bembém da cidade de Parnaíba falando
de suas experiências de dama da noite nos cabarés da zona do cais do porto de Parnaíba. Cf. FABRÍCIA
OLIVEIRA DE SOUZA, ou melhor, Didi, aquela hippe da praia. O Bembém, Parnaíba, 21 fev. 2009, p.03.
71
A fuzarca era quase sempre aumentada com a chegada dos milicianos, que em tom de
troça indagavam: “jacaré dança ou não dança cornos?” Era a senha66 que dava ensejo ao
quebra-quebra: “jacaré dança, se a mãe toca, canela preta féa da puta!” (SOUSA LIMA, 1987,
p.33). Foram embates épicos aqueles travados entre embarcadiços e milicianos, ou melhor,
entre porcos d´água e mata-cachorros, como eram apelidadas ambas as facções. Inimigos
mortais, eles lutavam principalmente em virtude da honra ameaçada e na tentativa de
estabelecimento da ordem pública. As brigas começavam sempre pelos menores motivos, não
tinham arena definida, se davam no meio da rua, dentro dos botecos, nos cabarés, a única
certeza é que era um “quiproquó” dos infernos, onde sobravam além dos nomes feios, muitas
cabeças quebradas e prejuízos para os donos dos estabelecimentos. Os porcos d´água
geralmente armados com porretes de pau-ferro67, ou o famoso jucá, apelidado modestamente
de “gota serena”, enfrentavam, sob o efeito do álcool ou não, a força policial em verdadeira
afronta a autoridade constituída; já os milicianos, munidos da lei e de armas brancas ou de
fogo, só arredavam o pé quando a situação ficava desfavorável.
A violência também se estendia às brigas entre prostitutas, isso quando o que estava
em jogo era a preferência por determinado cliente. Também se contavam as brigas entre
casais, estas geralmente quando as traições eram descobertas. Eram também motivo para a
violência a embriaguez alcoólica, as rixas, os amores frustrados, etc. Didi assim descreve o
ambiente de dois cabarés da beira do rio:
Tinha cinco quartim. Mas era muito movimento. Todo dia tinha uma morte.
Era um tal de “jacaré dança ou não dança?”. Ninguém dormia. Quando tava
66
Segundo Sidney Chalhoub, nestes casos: “(...) o desafio aberto precede imediatamente a agressão física. Mais
que isso, o desafio é a indicação segura de que o ajuste violento já é previsível e praticamente inevitável. O
significado mais profundo do desafio é que um confronto específico surgido de tensões provenientes das lutas
políticas cotidianas de um determinado microgrupo sociocultural já parece ter esgotado a sua possibilidade de
solução pacifica. O predomínio da linguagem machista no momento crucial do desafio informa aos presentes que
a cena de sangue está próxima.” (CHALHOUB, 2001, p.326).
67
Segundo o Dicionário Barsa: “Pau-ferro. sm. Árvore da família das leguminosas, nativa do Brasil, comum nas
matas pluviais e nas caatingas, e que produz madeira resistente e pesada, usada para dormentes, postes e
mourões.” (DICIONÁIO BARSA DA LÍNGUA PORTUGUESA, 2008, p. 838).
72
RECLUSOS
Delito-Crime: Quantidade:
Homicídio 08
Lesão Corporal 06
Sedução 02
Furto 06
Rapto 01
Falsificação de documento 01
Inviolabilidade de domicílio 01
Total 25
LIBERADOS
Delito-Crime: Quantidade:
Homicídio 02
Lesão Corporal 01
Total 03
EM GOZO DE SURSIS
Delito-Crime: Quantidade:
68
O “Livro do Centenário da Parnaíba” foi uma edição comemorativa aos 100 anos da emancipação política da
cidade. O livro possui a mesma formatação do “Almanaque da Parnaíba”, embora se dedique exclusivamente a
apresentar a história da cidade, “louvar” suas personalidades e descrever a cidade no presente. Por isso, possui
um valor inegável enquanto registro social, histórico e estatístico da cidade.
73
Furto 03
Lesão Corporal 14
Curandeirismo 01
Falso Testemunho 01
Abuso de autoridade 01
Total 20
REVÉIS
Delito-Crime: Quantidade:
Homicídio 02
Lesão corporal 29
Furto 05
Roubos 10
Seduções 16
Curandeirismo 01
Prevaricação 01
Rapto 01
Injúria 01
Total 66
CONTRAVENÇÕES
Delito-Crime: Quantidade:
Embriaguez 01
Total 01
Fonte: Livro do Centenário de Parnaíba, 1944, p. 237-238.
cais era conhecida como um lugar que abrigava, além do trabalho, práticas relacionadas à
promiscuidade e ao banditismo. Portanto, uma afronta às famílias “direitas” da sociedade,
bem como um contraste com o aspecto de civilidade que se queria atingir com crescimento
urbano e com as “melhorias” no centro da cidade. Os cronistas e a literatura dão conta desse
imaginário que se criou em torno do cais. Tanto o romance quanto a poesia se referem aquele
lugar como um território onde se misturavam a pobreza e o sexo. Na verdade, essas tentativas
de se associar a criminalidade, o perigo, e a violência às classes populares não têm nada de
novo. Essa visão distorcida da realidade social ainda remonta ao século XIX, quando do
surgimento da Escola Positivista, assim chamada por acreditar na existência de leis universais
capazes de dar conta da “natureza” humana, biopsicologicamente determinada, mediante o
uso de métodos científicos. Segundo esta Escola, que influenciou tanto o Direito quanto as
demais ciências e teve grande repercussão aqui no Brasil, algumas práticas “anti-sociais”,
como os crimes, por exemplo, poderiam estar relacionadas a determinados aspectos
morfológicos do corpo humano, daí alguns indivíduos serem mais propensos ao crime e ao
desvio social que outros. Acompanhando esse discurso, vemos surgir a patologização da
própria pobreza, ela vai aparecer nesse contexto como um fator potencial de transgressão aos
pressupostos jurídicos e se constituir num perigo social, apontando as classes pobres como
classes perigosas.69
Em suma, a violência descrita nas falas de nossas personagens revela um aspecto
indiscutível da vida noturna dos trabalhadores do rio quando de seus momentos de folga e
diversão. Porém, não se pode concluir que essa violência seja fruto unicamente das condições
sociais a que estavam submetidos. Os conflitos muitas vezes eram por motivos fúteis, como
afirmamos acima. O alcoolismo, que jamais foi um vício exclusivo das classes populares,
geralmente era um fator que ampliava as tensões entre os indivíduos, já que os colocavam em
estado de fragilidade ou descontrole. A ação da polícia, evidentemente, estava relacionada a
tentativa de imposição da ordem pública, embora também encobrisse o fator da “suspeição”
do outro, uma ação mediada pelos padrões burgueses de comportamento. A concentração de
cabarés e botequins naquela região específica informa o processo de segregação do espaço
urbano. Assim como as formas de ocupação e zoneamento revelam também as disputas e
contradições sociais na produção daquele espaço. Enfim, a região portuária da cidade de
69
Segundo Sidney Chaulhoub: “Assim é que a noção de pobreza de um indivíduo era fato suficiente para torná-
lo um malfeitor em potencial teve enormes conseqüências para a história subseqüente de nosso país. Este é, por
exemplo, um dos fundamentos teóricos da estratégia de atuação da polícia nas grandes cidades brasileiras desde
pelo menos as primeiras décadas do século XX. A polícia age a partir do pressuposto da suspeição generalizada,
da premissa de que todo cidadão é suspeito de alguma coisa até prova em contrário e, é lógico, alguns cidadãos
são mais suspeitos que outros.” (CHALHOUB, 1996, p.23).
75
Parnaíba traz embutida em suas histórias não apenas o trabalho enquanto (re)produção
material da existência, mais que isso, o cais foi o lugar da esperança, do amor, da construção
de uma subjetividade inerente as desigualdades sociais, uma forma de representar e dotar de
sentido o mundo, a vida. Dessa forma, no capítulo seguinte procuramos problematizar
algumas representações em torno da pobreza e da exclusão social a partir do viés literário.
Entendendo assim, como a literatura de alguma forma traduziu o cotidiano social daqueles
que ficaram na “beira” do progresso material da cidade.
76
É inegável que vivemos no Brasil em uma sociedade de classes. Que nossa história,
como afirma Marx no seu Manifesto Comunista70, é uma história de luta de classes. As
pessoas tendem a se comportar como sendo de uma classe e não de outra, como se o seu lugar
social fosse naturalmente garantido e assim, sob essa condição, fossem distintas
profundamente daqueles que estão abaixo ou acima de sua posição social; embora sempre
exista o desejo manifesto de ascensão, de alcançar o cimo da marcação social, de estar por
cima e vislumbrar o mundo a partir da cobertura, mesmo que seja a da laje. Essa luta de
classes desnuda as tensões de uma sociedade que foi acostumada a enxergar e a pensar o
mundo sempre cindido entre duas realidades diferentes, como a da “casa grande” e a da
“senzala”, a do “sobrado” e a do “mucambo”71, a do “morro” e a do “asfalto”72.
Na epígrafe que abre este capítulo vemos claramente essas relações sinuosas, quando
não violentas, entre as várias camadas da sociedade, as disputas e os agenciamentos que
operam a construção do mundo social a partir das representações indicativas de cada grupo,
dos lugares sociais ocupados, bem como dos papéis assumidos coletivamente. O que se
evidencia nessa relação são as tramas e traumas de indivíduos em rotas de colisão com o
poder, com os seus mecanismos de controle e normatização. Analisando principalmente esse
caráter disruptivo da marcação social na feitura de um imaginário urbano “moderno”, isto é,
nos modos de ver e ler a cidade que se mostra em seu lado “positivo”, percebe-se que muitas
vezes esta imagem acalentada pelos grupos dominantes parte de um artificialismo, ou melhor,
de uma imposição de classe que, não sem disputa, emerge como legitimada.
70
Cf. MARX, Karl; ENGELS, Frederich. Manifesto Comunista. São Paulo: Hedra, 2010. p.56.
71
Referência às obras de: FREYRE, Gilberto. Casa-grande & Senzala: formação da família brasileira sob o
regime da economia patriarcal. 51.ed.rev. São Paulo: Global, 2006.; FEYRE, Gilberto. Sobrados e Mucambos:
decadência do patriarcado e desenvolvimento do urbano. 16.ed. São Paulo: Global, 2006.
72
Sobre esta relação Cf.: VENTURA, Zuenir. A cidade partida. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
77
73
Francisco de Assis Almeida Brasil, ASSIS BRASIL, nasceu em Parnaíba (PI) em 18 de fevereiro de 1932,
filho de Milton Ramos de Almeida, pequeno comerciante, e Rosa Leão Ramos de Almeida, de grande influência
cultural na vida do escritor. Assis Brasil inicia sua vida escolar ainda em Parnaíba, no Colégio São Luis
Gonzaga, até que aos 12/13 anos muda-se com a família para Fortaleza (CE), indo estudar no Colégio São João.
É na capital cearense que Assis Brasil publica, aos 16, seu primeiro texto literário, um apólogo, O Poste e a
Palmeira, na Gazeta de Noticias de Fortaleza. Em fins de 1949, aos 17 anos, o futuro escritor foi morar de vez
no Rio de Janeiro, onde se formou em jornalismo pela PUC; No Rio de Janeiro Assis Brasil lança seu primeiro
romance, Verdes Mares Bravios, publicado em 1953. No Rio, Assis Brasil acabou trabalhando em diversos
ramos, até entrar para o Jornal do Brasil, em 1956, onde escrevia para o Suplemento Dominical. Entre 1962 e
1972 foi crítico literário do Correio da Manhã (RJ), também entre 1964 e 1966 foi Editor-chefe e copidesque da
revista O Cruzeiro (RJ). Seus livros foram publicados por várias editoras, entre elas destacam-se a Nórdica,
Imago, Melhoramentos, Ediouro, Record, Moderna, FTD etc. Em 2008 regressa ao Piauí (Teresina), onde reside
até o momento. Assis Brasil ainda continua exercendo seu oficio de escritor, fazendo palestras e publicando
regularmente, chegando hoje a incrível marca de 131 livros publicados. Sobre o estudo de sua obra destacam-se
algumas dissertações de mestrado que discutem os seus principais romances: LEOPOLDINO, Maria Solange.
Beira Rio Beira Vida de Assis Brasil: no discurso regionalista (Des)articulado na fala da prostituta o
(Des)velamento da violência da existência marginalizada. 1985. Dissertação (Mestrado em Letras) –
Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 1985; FOGGETTI, Maria Janaina. Fado e Morte Na
Tetralogia Piauiense: uma estética da miséria humana. 2006. Dissertação (Mestrado em Letras) – Universidade
Estadual de Londrina, Londrina, 2006; RIBEIRO, Francigelda. Tetralogia Piauiense de Assis Brasil: interfaces
entre o literário e o social. In: BRANDÃO, S., FROTA, W. N.; KOCH, A. M. (org.). Literatura de subversão:
três estudos. Recife: Ed. dos Organizadores, 2008, p. 289-416.; SOUSA, Soraya de Melo Barbosa. Dialética do
poder na relação entre resistência e repressão na obra Os que bebem como cães, de Assis Brasil. In: BRANDÃO,
78
Beira Vida74, nos suscitou uma série de questionamentos em torno das possibilidades
conceituais de examiná-la numa perspectiva histórica. Na realidade, os usos que fazemos dos
conceitos remetem diretamente às escolhas que tomamos ao longo do processo de construção
de qualquer narrativa historiográfica. E como profissionais do “singular” devemos sempre
particularizar o contexto de qualquer realidade que se apresente em nosso oficio.
Como já havíamos adiantado, viver na beira significa estar à margem de alguma
coisa, ou seja, a beira representa um lugar significado tanto do ponto de vista simbólico
quanto material. E próximo a esta metáfora, mas sem a licença poética dada ao escritor,
emerge o conceito de exclusão, que é bastante complexo, tendo em vista que, de uma forma
ou de outra, sempre somos excluídos de alguma coisa, porém, nunca somos excluídos de tudo.
Quer dizer, o conceito de exclusão não pode significar uma totalidade, algo que explique
qualquer relação onde uma das partes não esteja incluída. Falar de exclusão só ganha sentido
quando se define a que tipo de exclusão se quer referir. Evidentemente, sempre estamos
transitando entre o dentro e o fora de alguma coisa, entre o centro e a beira de algum lugar. O
que implicará sempre uma pergunta fundamental: exclusão de quê? O que pode ser da ordem
do direito, da ordem do discurso, da economia, da política, do social, do masculino, do
feminino, do trabalho, etc. Esta definição - a que ordem de coisas não se está incluído - é que
servirá de norte para que se entenda sobre qual exclusão se está falando.
Nem sempre a exclusão irá significar algo negativo. O “excluído” pode nem se
reconhecer como tal, ou mesmo, pode até se beneficiar com tal rótulo, tendo em vista muitas
categorias historicamente tidas como excluídas de alguma dessas ordens até lutarem para
permanecer como estavam. Portanto, exclusão é um conceito que pode significar uma
infinidade de coisas, mas que só terá validade do ponto de vista da problematização histórica
quando direcionado a determinado contexto que o posicione em relação a alguma marcação
social. O excluído não é uma categoria universal, não se pode tomar a noção de exclusão
como algo homogêneo, sem rupturas, ou como uma condição a-histórica, porque, na verdade,
ela emerge enquanto conceito em condições muito específicas de produção.
S., FROTA, W. N. e KOCH, A. M. (org.). Literatura de subversão: três estudos. Recife: Ed. dos Organizadores,
2008, p. 11 – 164. Cf.: BRASIL, Assis. Memória e Aprendizado: entrevista concedida a Francigelda Ribeiro.
Teresina: EDUFPI, 2010.
74
A primeira edição de “Beira Rio Beira Vida” foi publicada em 1965 (Edições o Cruzeiro). A obra, neste
mesmo ano, ganhou o primeiro lugar do Premio Nacional WALMAP (Waldomiro Magalhães Pinto). Em 1979,
“Beira Rio Beira Vida” foi novamente publicada (Editora Nórdica) juntamente com mais três obras – “A Filha
do Meio Quilo”, “O Salto do Cavalo Cobridor” e “Pacamão” – o que compôs a “Tetralogia Piauiense”.
Utilizamo-nos no decorrer desta pesquisa a segunda edição da “Tetralogia” publicada no ano de 2008 pela
Fundação de Apoio Cultural do Piauí (FUNDAPI).
79
75
Resolvi adotar a antiga denominação destes bairros, sendo a Coroa hoje o bairro do Carmo, os Tucuns o
bairro São José e a Quarenta o Mendonça Clark.
80
Pierre Mayol define o bairro como um “domínio do ambiente social”. Diz ele que, o
bairro “constituí para o usuário uma parcela conhecida do espaço urbano na qual, positiva ou
negativamente, ele se sente reconhecido” (MAYOL, 2003, p. 40). A partir desta definição
percebemos que o bairro se estabelece como um lugar de pertença, onde o indivíduo se
reconhece e é reconhecido mediante os códigos sociais partilhados por todos. Nesse sentido,
pertencer a um bairro “X” ou “Y” significa carregar as marcas de uma “identidade-
alteridade”, que nesse caso é definida não apenas por condicionantes geográficos, mas por
toda uma carga simbólica que lança sobre o indivíduo os signos da diferença.
Dessa forma, a cidade é recortada por estes múltiplos compartimentos, cada lugar
específico é identificado a partir das práticas ou grupos sociais nele existentes; é o bairro
chique, é o bairro proletário, são áreas de comércio, são os espaços de lazer, é a zona de
violência e meretrício, etc. A cidade hierarquiza e divide seus espaços conjugando
representações de cada coletividade ali reunida, marcando os papéis, os percursos, e o corpo
de cada ente individualizado, inventando um sistema de valores, bem como um código de
exclusão a quem transgride a conveniência coletiva.
A prática do bairro é uma convenção coletiva tácita, não escrita, mas legível
por todos os usuários através dos códigos da linguagem e do
comportamento. Toda submissão a esses códigos, bem como toda
transgressão, constitui imediatamente objeto de comentários: existe uma
norma, e ela é mesmo bastante pesada para realizar o jogo da exclusão social
em face dos “excêntricos”, as pessoas que “não são/fazem como todos nós”.
(Ibidem, p. 47).
76
De acordo com Woodward: “um sistema classificatório aplica um principio de diferença a uma população de
uma forma tal que seja capaz de dividi-la (e a todas as suas características) em ao menos dois grupos opostos –
nós/eles, por exemplo, servos e croatas; eu/outro.” (WOODWARD, 2000, p.40).
82
indicativo da condição social, econômica, da cor de pele, da profissão, etc., o que nos induz a
utilização do termo “cidade partida”. Ainda de acordo com Rolnik, “é como se a cidade fosse
demarcada por cercas, fronteiras imaginárias, que definem o lugar de cada coisa e de cada um
dos moradores.” (ROLNIK, 2004, p. 41).
Alguns lugares da cidade são atravessados pela existência de certos grupos que logo
se inscrevem no imaginário social como arquétipos de reconhecimento do espaço que
habitam. Para Mayol, a prática do bairro vai significar uma marca de pertença indelével na
história do sujeito por representar “todo processo de apropriação do espaço como lugar da
vida cotidiana pública” (MAYOL, 2003, p. 44). Exemplo disso no imaginário da “moderna”
cidade de Parnaíba é a famosa Rua dos Barqueiros, localizada no bairro da “Quarenta”, que
em Parnaíba recebeu este nome por ser ocupada em sua grande maioria por embarcadiços,
como bem podemos evidenciar em uma das crônicas de Raimundo de Sousa Lima:
centro para aqueles a quem a “boa sorte” favoreceu. Separados do restante da cidade – e ao
mesmo tempo simbioticamente unidos ao cais –, aqueles levavam uma existência marginal,
colhendo os cacos do progresso no tira-teima diário com o rio. No tópico seguinte veremos
como se deu essa relação entre o centro e a margem da cidade, especialmente o que
representava viver na “beira”.
77
Cf. DOSSE, François. O historiador: um mestre de verdade. In: ________. A história. Bauru, SP: EDUSC,
2003, p. 13-46.
78
Sobre a relação entre literatura e sociedade numa perspectiva mais sociológica Cf. CANDIDO, Antonio. A
literatura e a vida social. In: ________. Literatura e Sociedade: estudos de teoria e história literária. 8.ed. São
Paulo: T.A.Queiroz, 2000, p. 17-39.
85
O uso de determinada fonte em detrimento de outra aponta para uma filosofia própria
do historiador, que seleciona, interpreta e cria, a partir dos seus instrumentos de análise, sua
compreensão particular da história. Os questionamentos sobre o tratamento dispensado ao
documento histórico, entendido pelos historiadores do século XIX e início do século XX
como documento-verdade, bem como a passagem de uma história eminentemente política
para uma história social fez como que o pensamento historiográfico abrisse novos horizontes
de possibilidade ao conceito tradicional de fonte histórica, legitimando gradualmente outros
tipos de registros que respondiam aos dilemas de uma nova sociedade que emergia naquele
instante cada vez mais complexa e complexada com as antigas formas de ler o passado.
Nesse contexto epistemológico vemos consolidar-se aos poucos a utilização de novos
referenciais teóricos, aproximações transdiciplinares, abertura das fronteiras entre as ciências
e a arte, o alargamento da compreensão de cultura, bem como os mecanismos de produção e
recepção de objetos culturais. Essas mudanças afetaram metodologicamente o campo
documental, isto é, o conceito tradicional de documento histórico foi repensando dentro de
uma nova postura epistemológica. Assim, os documentos capazes de “revelar” representações
sobre uma dada realidade, como a literatura, por exemplo, passaram do status de ilustração
para o de fonte, de pano de fundo para evidencia histórica. Enfim, ganharam a relevância de
testemunho histórico como qualquer outro documento.
A literatura, nesse caso, como qualquer outra tipologia de fonte, não é dada ao
natural, ela é, antes de mais nada, produzida no interior de interesses muito particulares de
quem a toma como fonte. O “produto ficcional”79 deve ser interrogado tendo em vista sua
possibilidade de informar a história, de conduzi-la na elaboração de uma problemática e uma
interpretação sobre o passado, bem como refletir sobre a indeterminação dos percursos
históricos e das tensões que marcam os caminhos e descaminhos de determinada sociedade. O
texto literário soma-se ao conjunto específico de saberes próprios ao oficio do historiador
ajudando-o a traduzir o ser das estruturas sociais, as permanências, as mudanças, as
descontinuidades do tempo e do homem.
Contingente e registro de um tempo, a fonte literária também nos faz pensar na
condição do “produtor”, entenda-se por isso aquele que se apropria dos recursos lingüísticos
de seu tempo e produz o romance, a crônica ou a poesia. A condição de escritor é mediada
79
Para um aprofundamento dos conceitos de Produto Ficcional, Contexto e Produtor: Cf. QUEIROZ, Teresinha.
História e Literatura. In: ADAD, S.J.H.C.; BRANDIM, A.C.M.S.; RANGEL, M. do S. Entre Línguas:
movimento e mistura de saberes. Fortaleza: Edições UFC, 2008, p. 200-214.
86
pelo percurso individual deste, e de todo o universo social que o configura deixando marcas
indeléveis no produto de sua criação, a obra literária. Segundo Teresinha Queiroz:
O “contexto”, ou o conteúdo social da obra literária, talvez seja o que mais possa
interessar ao historiador, tendo em vista ser justamente nele que o escritor deposita suas
interpretações e impressões de mundo. É no contexto da obra literária que se vê enredadas,
mesmo que de passagem, as tramas do social. O desmonte do seu contexto80 pode oferecer ao
historiador a possibilidade de tocar naquilo que é mais recôndito da experiência humana,
desde aspectos psicológicos a interdições morais que normalmente não estariam presentes de
maneira evidenciada em outras categorias de fontes. O conteúdo social da obra literária,
portanto, mais revela do que vela as condições de formatação da sociedade, que a um primeiro
olhar é naturalizada enquanto estrutura ordenada, mas que vista pelas suas inúmeras frestas, e
a literatura é uma delas, mostra-se contraditória, insubmissa, em devir.
Se uma particularidade pode legitimar o fazer literário em relação ao social, ao
histórico, é sua capacidade de “olhá-lo por baixo dele mesmo”, de falar o inconfessável, de
trazer para o primeiro plano a infâmia, o escândalo, de dar voz aos mal-ajustados, aos que
foram vencidos, aos excluídos da ordem do discurso. A literatura coloca-se assim como uma
fala que faz defeito na História, com H maiúsculo, porque traz para o centro do enredo, ainda
que mediado pelo escritor, aquele a quem normalmente não é dado o direito de ser portador
do discurso, de falar em primeira pessoa, de representar o mundo.
80
Sobre o que denominei aqui de “desmonte” do contexto da obra literária: Cf. MAINGUENEAU, D. O
contexto da obra literária: enunciação, escritor, sociedade. 2.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
87
Nesse sentido, é que tomamos como fonte o romance Beira Rio Beira Vida (1965),
do escritor parnaibano Francisco de Assis Almeida Brasil (Assis Brasil), na tentativa de
enxergar como foi representada a pobreza na belle époque parnaibana a partir do viés literário.
81
Segundo Vitor Manuel de Aguiar e Silva, sobre as origens do romance como gênero literário: “Na Idade Média, o
vocábulo romance (espanhol romance, francês romanz, italiano romanzo) designou primeiramente a língua vulgar, a
língua românica que, embora resultado de uma transformação do latim, se apresentava já bem diferente em relação a
este idioma. Depois, a palavra romance ganhou um significado literário, designando determinadas composições
redigidas em língua vulgar e não na língua latina, própria dos clérigos. Apesar de suas flutuações semânticas, o
vocábulo romance passou a denominar sobretudo composições literárias de cunho narrativo. Tais composições eram
primeiramente em verso – o romance em prosa é um pouco mais tardio –, próprias para serem recitadas e lidas, e
apresentavam um enredo fabuloso e complicado.” (AGUIAR E SILVA, 1976, p.250). Para Massaud Moisés, sobre as
possibilidades do romance: “Todas as metamorfoses do real, todas as formas de conhecimento cabem no perímetro do
romance, assim transformado numa espécie de síntese ou de superfície refletora da totalidade do mundo. Dessa
conjuntura promana a sua função gnoseológica: mais conhecimento que entretenimento, o romance permite ao escritor
construir um projeto ambiciosamente globalizante das multiformes experiências humanas, e ao leitor, desfrutá-lo de
modo privilegiado, sem risco para sua própria existência; o prosador conhece o mundo por meio do romance, e dá-o a
conhecer ao leitor; não existe, nos quadrantes da criação literária, meio mais completo para se chegar a uma imagem
totalizante do Universo.” (MOISÉS, 1974, p.452).
88
Tentar compreender uma vida como uma série única e por si suficiente de
acontecimentos sucessivos, sem outro vinculo que não a associação a um
“sujeito” cuja constância certamente não é senão aquela de um nome
próprio, é quase tão absurdo quanto tentar explicar a razão de um trajeto no
metrô sem levar em conta a estrutura da rede, isto é, a matriz das relações
objetivas entre as diferentes estações. Os acontecimentos biográficos se
definem como colocações e deslocamentos no espaço social, isto é, mais
precisamente nos diferentes estados sucessivos da estrutura da distribuição
das diferentes espécies de capital que estão em jogo no campo considerado.
(BOURDIEU, 2006, p.189-190).
que bebem como os cães (1975), O aprendizado da morte (1976), Deus, o sol, Shakespeare
(1978) e Os crocodilos (1980).
Beira Rio Beira Vida é o primeiro a efetivamente apresentar o estilo do escritor, que
é a ênfase no diálogo, na descontinuidade temporal da narrativa, onde o enredo é posto a
serviço da fusão dramática entre vida e poesia (MOISÉS, 2001). O eixo temático do romance
parece acompanhar o movimento de urbanização brasileiro, onde a cidade, e não o universo
rural, emerge como ambiente do desenrolar dos dramas sociais.83 Os problemas urbanos, a
marginalização social, a degradação das relações interpessoais, o servilismo de uns e o
mandonismo de outros, bem como o caráter universal dos dilemas existenciais humanos, são
os verdadeiros traços distintivos de Beira Rio Beira Vida. Que também pode ser lida como
uma obra-denúncia da realidade social de Parnaíba, como uma literatura deliberadamente de
revolta, que nesse caso aponta para uma concepção estética e política da obra literária e das
intencionalidades do seu autor. Segundo ele mesmo declara:
Beira Rio Beira Vida foi escrito na maturidade do escritor, no momento em que ele
já estava distante da sua terra natal, portanto, as personagens, os cenários e o possível
regionalismo presente na obra, se constituem em experiências memorialisticas do autor. Mas
que não se reduz somente a isso, antes, a obra compõe um registro insofismável, do ponto de
vista documental, sobre a sociedade parnaibana no seu apogeu econômico. É um romance
profundamente crítico da face repressora e contraditória daquela sociedade. Assim, em
entrevista recente, o escritor conta em detalhes o processo criativo de Beira Rio Beira Vida,
especialmente sobre a experiência de conhecer os personagens “reais” que deram motivo a
feitura da obra. Segundo Assis Brasil:
83
Guilhermino César corrobora essa ideia de que o fazer literário, enquanto eixo temático, acompanha o
processo de urbanização brasileiro: “A verdade é que a ficção – dos anos 60 a esta parte – corre para a multidão,
para retratá-la ou simplesmente conquistá-la. Isso é tão verdade que o processo redutor, diante das condições do
nivelamento social resultante, já não passa pela contemplação do rústico, mas pela ‘urbanização’ do rústico.
Nesse ambiente, os autores que têm a oportunidade (melhor seria dizer – a coragem) de incursionar pelo interior,
em busca de motivos romanescos, são uma escassa minoria e não raro falsificam a realidade.” (CÉSAR, 2004,
p.460 - 461)
90
84
Cf. CHARTIER, Roger. O mundo como representação. Estudos Avançados. vol.5, n.11, 1991, p. 173-191.
Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.>. Acesso em: 12/05/2011.
91
Um segundo fato, e esse sim é o que mais nos interessa do ponto de vista do impacto social da
obra, foi a recepção de Beira Rio Beira Vida pelo público leitor.
Tomando a operação de leitura como uma ação dialógica entre autor-texto-leitor-
sociedade85, procuramos compreender como o romance Beira Rio Beira Vida impactou a
sociedade parnaibana, como ele foi recebido socialmente, tendo em vista referir-se a aspetos
negligenciados pela elite da cidade, se contrapondo assim a ainda viva memória de sua belle
époque. Utilizamos como referência para esta abordagem as impressões de leitura de Manuel
Domingos Neto86, que no ano de 1994 publica no Almanaque da Parnaíba um texto intitulado
“A primeira vez que li Assis Brasil”, que é muito esclarecedor sobre as fissuras provocadas
pela obra no imaginário social parnaibano. Segundo Manuel Domingos Neto, seu contato
inicial com o romance Beira Rio Beira Vida foi marcado por muita curiosidade e culpa. Ainda
menino viu-se diante das proibições do avô, Ranulpho Torres Raposo87, em torno do nome e
da obra de Assis Brasil.
Em minha casa esse livro não entra. Assim meu avô reagiu à minha vontade
de ler Beira Rio, Beira Vida. A proibição, partindo de Ranulpho Torres
Raposo, era difícil de ser assimilada. Meu avô gastava dinheiro divulgando
escritores piauienses no seu ALMANAQUE DA PARNAÍBA. Por que
proibir-me de ler um parnaibano que ganhava destaque nacional?
(DOMINGOS NETO, 1994, p.24).88
85
Para Roger Chartier: “(...) a experiência mostra que ler não significa apenas submissão ao mecanismo textual.
Seja lá o que for, ler é uma prática criativa que inventa significados e conteúdos singulares, não redutíveis às
intenções dos autores do textos ou dos produtos dos livros.” (CHARTIER, 2001, p.214) / “(...) o ato de ler não
pode anular-se no próprio texto, assim como as significações não podem ser aniquiladas mediante significados
impostos. A aceitação de mensagens e modelos sempre opera através de ajustes, combinações ou resistências.”
(ibidem, p.234).
86
Manuel Domingos Neto nasceu em Fortaleza (CE) em 05 de dezembro de 1949, filho de Pedro de Castro
Pereira e Florice Raposo Pereira. Doutor em História pela Universidade de Paris (III). Foi um dos criadores e
coordenadores do Núcleo de História Oral do Centro de Pesquisas Econômicas e Sociais do Piauí - CEPRO.
Além de Deputado Federal (1989-1991), Manuel Domingos Neto também foi vice-presidente do CNPq. Ele
publicou vários livros e ensaios sobre os problemas sociais do Piauí, como, por exemplo, “Seca Seculorum:
flagelo e mito na economia rural piauiense” (1987), em parceria com Geraldo Borges, e mais recentemente, “O
que os netos dos vaqueiros me contaram: o domínio oligárquico no Vale do Parnaíba” (2010). Atualmente,
Manuel Domingos Neto é professor da Universidade Federal do Ceará, UFC.
87
Ranulpho Torres Raposo nasceu na cidade de Miguel Alves (PI) em 1900. Foi comerciante e jornalista. Entre
os anos de 1942 e 1980 foi o editor responsável pela publicação do “Almanaque da Parnaíba”. Ranulpho foi
diretor do Serviço Social do Comércio (SESC) por mais de 20 anos, também pertenceu a Academia Parnaibana
de Letras, cadeira n.29. Faleceu em Parnaíba em 1980.
88
Como se pode ver nessa citação, Manuel Domingos Neto separa o título do romance com uma vírgula, resolvi
mantê-la nas citações desse autor, embora até edição presente o romance Beira rio beira vida mantenha o título
não separado por vírgula.
92
Quanto às razões para essa “interdição literária”, essa “maldição” sobre a obra e
sobre o autor, que não era exclusividade da família de Ranulpho Torres Raposo e que se
prolongou por anos a fio - e ainda não podemos afirmar que se desfez de todo -, Manuel
Domingos Neto afirma, citando as palavras do avô, o que significava o romance para a “boa
sociedade” parnaibana.
Na realidade toda essa polêmica em torno do romance Beira Rio Beira Vida ocorreu
porque o autor, intencionalmente ou não, resolveu pôr nos nomes de suas personagens
algumas figuras que realmente existiram na cidade de Parnaíba, especialmente aqueles de
“famílias ilustres” da elite parnaibana. Junte-se a isso, o próprio caráter distópico da obra em
relação a uma imagem ideal que se queria da sociedade. E o seu aspecto de denúncia da
miséria urbana em pleno auge da economia da cidade. A obra questionou a inocência de
algumas riquezas em face dos desníveis sociais, das aparências e do arrivismo nas relações
interpessoais. E trouxe para a primeira pessoa do discurso uma prostituta que faz sua leitura
daquela sociedade, ou seja, foi uma inversão completa dos valores que sustentavam a feitura
de um mundo social que se queria deixar ver harmonioso, justo e progressista.
Mas o autor se defende, diz ele que:
“Como um barro original”, a cidade que emerge da narrativa brasiliana é uma cidade
em ruínas, uma cidade mostrada em seu “lado feio”, fétido, uma cidade nua diante de quem
ousa transitar além do centro. Manuel Domingos Neto acabou, embora culpado por ter lido
escondido o tão mal falado Assis Brasil e desobedecido clandestinamente seu avô,
93
descobrindo em Beira Rio Beira Vida essa outra cidade que subterraneamente existia a dois
passos do seu mundo burguês, da sua cidade ideal.
Ao longo dos anos li diversas vezes Beira Rio, Beira Vida. Descobri em
Assis Brasil um escritor de raro talento. Não apenas por seus conhecidos
recursos narrativos e pelo fato de renovar a técnica do romance brasileiro.
Ou ainda por sua poesia tão intensa e bonita. Admiro nesse autor,
sobretudo, a proeza de resgatar o mundo dos excluídos, aquela parcela da
população ignorada pela literatura, inclusive pelo ALMANAQUE DA
PARNAÍBA. Claro, antes e depois dele, outros já haviam tematizado os
miseráveis. Mas não os que comem pouco e morrem cedo na minha cidade
da Parnaíba. Nem com a mesma sensibilidade, sem ver os pobres como
coisa exótica, especial. (DOMINGOS NETO, 1994, p.25).
Beira Rio Beira Vida possibilita um confronto com outros discursos lançados sobre o
período, principalmente aqueles presentes em obras que outra intenção não tinham que
maquiar os problemas enfrentados por parte da população subtraída dessa modernização
urbana, desse progresso material da cidade. O romance em si nos possibilita buscar através do
confronto com outras fontes, novas interpretações para aquilo que muitas vezes figura como
processo natural e a-histórico, como algo dado e irremediavelmente inacessível à
compreensão. Enfim, nos possibilita trazer para o primeiro plano estes “que comem pouco e
morrem cedo”.
No romance, Parnaíba emerge como uma cidade partida, dividida entre dois espaços
antagônicos: a cidade e o cais. A cidade é aquele espaço que sofreu o embelezamento urbano
do qual falamos no primeiro capítulo, é aquela que recebeu os cuidados da administração
municipal, é onde moram os ricos, aqueles que se beneficiaram com o momento de pujança
econômica e que, portanto, ostentam o progresso material do período. O cais é o oposto disso,
é o espaço do trabalho, da marginalização urbana, da pobreza material, do comércio do corpo,
da exploração da mão de obra e da exclusão social, enfim, é o lugar da miséria, sobretudo
humana. Essa divisão reflete a estratificação social, os muros simbólicos que são erguidos e
que colocam cada personagem em seu devido lugar, malogrando qualquer tentativa de escape
dessa condição, como se o destino tivesse fadado cada um a ser o que é.
Estigmatizadas socialmente, as personagens do romance vivem asfixiadas por uma
sociedade que engessou suas relações, obrigando seus pobres a existirem como ninguéns89,
sem nome, sem nada, como donos de nada, sem cara, como os que não tem sexo, despojados
de direitos, de sonhos, como os que não desfrutam, incapazes de pensar que não seja pela
89
Cf. GALEANO, Eduardo. Os ninguéns. In: ________. O livro dos abraços. 2.ed. Porto Alegre: L&PM, 2010.
p. 71.
94
90
Cf. COHEN, J. J. A cultura dos monstros: sete teses. In: SILVA, T. T. da. (org.). Pedagogia dos monstros: os
prazeres e os perigos da confusão de fronteiras. Belo Horizonte: Autêntica, 2000, p. 23- 60.
91
Cf. CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi. 3.ed. São
Paulo: 2008.
92
Cf. FOUCAULT, Michel. Os Anormais. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
93
Como o Esteves do poema Tabacaria de Álvaro de Campos (Fernando Pessoa): “Ah, conheço-o; é o Esteves
sem metafísica.” Ver: PESSOA, Fernando. Tabacaria. In: ______. Obra poética: volume único. Rio de Janeiro:
Nova Aguilar, 1995, p.362-366.
95
Nesse contexto, aos poucos a esperança foi dando lugar à espera, e a promessa, cada
vez mais floreada, à revolta. O fragmento acima nos possibilita verificar as fissuras existentes
na construção da “cidade dos sonhos”. A vida dos moradores da beira do cais era uma
constante luta contra a marginalização social e o difícil peso da sobrevivência. Os moradores
desses bairros (Coroa, Quarenta e Tucuns) não contavam com as mesmas condições de acesso
as poder público que as famílias abastadas do centro. Isso aos poucos criou no imaginário
popular representações estereotipadas dos que moravam nessas áreas, bem como propiciava o
surgimento de “dizeres” relativos a sua situação social, como por exemplo, o termo
“alagados”, que identificava aqueles assolados pelas enchentes do rio.95
A situação dos moradores que habitavam esta “outra” cidade não era em nada
comparável a dos que moravam no centro. A falta de infraestrutura básica, as enchentes
costumeiras em épocas de chuva, as muriçocas, as doenças comuns das populações
ribeirinhas, todos esses problemas, aliados ao preconceito dos que dispunham de recursos
94
Prefeito que antecedeu Pereira Passos na sanha “embelezadora” do Rio de Janeiro, ficou “famoso” pela
destruição do Cortiço Cabeça de Porco (1893) ocorrido na sua gestão. Cf. CHALHOUB, S. Cidade Febril:
cortiços e epidemias na corte imperial. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
95
Aqui ainda se percebe as conseqüências da instalação da sede da Vila, aspecto abordado no primeiro capítulo.
O rio, que teve suas margens habitadas por armazéns e residências, anualmente registrava (e ainda registra)
cheias que deixavam (e ainda deixam) muitos estragos naquela área da cidade.
96
suficientes para morar bem, fazia da existência daquela gente um verdadeiro tormento.
Encontramos nas crônicas de Carlos Araken um relato de suas impressões do Bairro Coroa,
que se estendia ao longo da beira rio:
Enquanto isso:
como lugar de resistência, onde mesmo diante de todas as condições adversas, se luta para
sobreviver. Marinheiros, prostitutas, lavadeiras, quituteiras, crianças trabalhando como gente
grande, pescadores, estivadores, todos compondo o microcosmo que fervilhava ao largo do
interesse da minoria. Daqueles para quem o rio e o cais significavam apenas “mistério” e
“porcaria”.
Mas o cais também era movimento, era a riqueza circulando ao lado da miséria, era
o “glamour” e o suor. Em todas as representações sobre o cais parnaibano sempre ele é
retratado em plena agitação. Vareiros em suas embarcações lotadas atravessando pessoas para
a outra margem, barcaças, chatas e alvarengas ancoradas aguardando carga e tripulação,
pequenas canoas de pesca, enfim, a vida do cais sempre registrada em sua efervescência
cotidiana. Quem chegasse a Parnaíba por esta via, logo se impressionava com a imponência
do rio e do porto margeando a cidade, mas também, logo era obrigado a perceber a outra face,
aquela distanciada das imagens do centro, das ruas simetricamente calçadas e bem
iluminadas. Segundo relata uma cronista no Almanaque da Parnaíba:
Essa vida agitada na beira do rio proporcionava um espetáculo em que colocava lado
a lado várias micro-categorias profissionais96 que viviam das benesses oferecidas pelo rio,
tecendo assim uma complexa teia de relações que se reproduziam a partir dos agenciamentos
96
Cabe ressaltar que a participação feminina nessas relações, ainda que fundamentalmente ligada a trabalhos
“ditos” domésticos, como a lavagem de roupas, o preparo de alimentos para servir a outros empregados do cais,
etc., também existia. Embora o romance Beira rio beira vida retrate com mais ênfase apenas o comércio do sexo,
as mulheres na verdade desempenhavam função importantíssima nesse universo predominantemente masculino
de movimento e trabalho.
98
[...] Mal a cidade se desfaz do frio e pardacento véu que a envolveu durante
a noite, já aqui e ali, se avistam pequenos grupos de homens, como se
tivessem pernoitado ali, ao relento, no cumprimento de uma ou outra
obrigação que não a dos seus trabalhos diários.
À medida que a claridade solar vai-se alastrando por sobre o casario de
fachadas vistosas e bem cuidadas, também os inúmeros trabalhadores que se
achavam agrupados: - uns agachados, friorentos, olhos semi-serrados,
cabeça apoiada indolentemente sobre o ombro; outros, ao contrário, olhos
bem vivos, irrequietos, cigarro preso a um canto da boca, de longe em longe
soltando grossas baforadas de fumaça, invariavelmente secundadas por um
“chuvisco” de chalaças – vão-se locomovendo rumo aos seus vários
misteres.
Sobre o dorso do esguio Igaraçu que desliza gravemente, trafega quase
ininterruptamente três canoas em sentido transversal, dando assim acesso
aos nossos mercados a dezenas de pequenos lavradores com os seus
variados produtos.
É deveras interessante a azáfama desses obscuros campônios de alma nobre
diante da fleuma do “passador” semi-letrado e “vedóia”, no dizer dos
passageiros constantemente vencidos nos seus argumentos desencontrados.
O canoeiro ciente de sua incontestável utilidade naquele posto, parece não
se ralar com uma amizade a menos ou coisa semelhante; olha grave e
friamente sempre que ouve alguma reclamação referente à morosidade na
travessia, e, num tom pachorrento e enervante resmunga: “quem num quê
sofrê nasce morto; aí está”. Depois, numa voz melíflua, como para surtir
efeito no ânimo das mocinhas – que também enchem a embarcação
juntamente com os seus balaios de frutos, verduras e guloseimas – ensaia
um “gorjeio” todo cheio de complicações vocálicas até atingir a margem
97
João do Rio (pseudônimo de João Paulo Alberto Coelho Barreto) nasceu em 1881 na cidade do Rio de Janeiro.
Foi um dos principais cronistas dos primeiros anos do Brasil República. As crônicas de João do Rio são uma
janela para se observar as rápidas transformações sociais e urbanas nos primeiros anos do século XX,
principalmente aquelas que emergiam visíveis no cenário urbano. João do Rio fez das ruas cariocas o palco das
suas perambulações e suas principais matérias jornalísticas. De sua obra destacam-se: “A alma encantadora da
rua” (1908); “Cinematógrafo” (1909); “Dentro da noite” (1910); “Vida vertiginosa” (1911); Morre no Rio de
Janeiro em 1921.
99
rampada. Isso feito, finca a ponta ferrada da vara no solo e da popa da sua
canoa fica dominando com a vista o turbilhão de seres que se movimentam
em diversos sentidos.
As atividades do Porto, já atingiram, então, o seu mais alto grau. Aqui, os
armazéns completamente abarrotados de sacos de cera de carnaúba,
amêndoas de babaçu, tucum etc., produtos do Estado, que vão ser
embarcados para o estrangeiro e portos nacionais. Ali, em frente, uma pilha
de sacos de cereais parece querer impedir o tráfego dos aviões. Acolá, uma
longa fila de homens corta em linhas sinuosas uma boa distância para vir
depositar fardos de algodão em grandes alvarengas ao cais.
É o trabalho.
Dois “titãs”, junto a um lote de fardos de algodão, fazem uma demonstração
despretensiosa das suas respeitáveis musculaturas. Estão afeitos aquele
serviço. Suarentos, sujos, dizendo graçolas, músculos de aço contraídos
pelo esforço violento ao levantar os fardos de 200 quilos, não se deixam,
entretanto, abater pela fadiga do labor nem pela ardência do sol.
Geralmente apupam-nos assim no momento em que lhes colocam na cabeça
pesado volume: “desmancha essa cacunda, cabôco; tara pensando que isso é
brinquedo de menina femê?” Em seguida, grita forte e demoradamente: -
“te endireita cheio de volta”.
E, assim, ora contando bazofias, ora sapateando, cadenciadamente, ao som
do pífaro furiosamente soprado por um embarcadiço gordo, de pele lustrosa,
semi-nu, heroicamente deitado numa rede de tucum menor do que ele, nos
caibros de uma barca que se acha fronteiriça ao cais, os trabalhadores vão
removendo para os porões das inúmeras embarcações surtas no porto,
montões e montões de sacos, todos destinados a longínquas paragens: -
Hamburgo, Liverpool, Amsterdã, Nova York etc. [...]. (SOUSA LIMA,
1938, p.69-73).
Jessé, na obra Beira Rio Beira Vida, representa o trabalhador explorado da beira do
cais, como estes descritos na crônica de Sousa Lima. Órfão desde cedo, Jessé foi criado pela
prostituta Cremilda na beira do rio, vendo o subir e descer das barcas carregadas de gente e
riquezas. Jessé sonhava em mudar de condição, não queria ser mandado pelo resto da vida,
queria mesmo era ser rico como os negociantes bem sucedidos da cidade. Começou com “o
negócio das borboletas” que apanhava pra vender para os peixes da nova pérgula da praça.
Era um exímio caçador de borboletas, na sua obstinação, juntava litros e mais litros cheios de
borboletas, que negociava diretamente com o encarregado do Prefeito em prover o repasto dos
peixes. Jessé enxergava nas borboletas a oportunidade de mudar de condição, de subir na
vida, quem sabe até estudar, ser alguém. Mas a sociedade, as dobradiças, os muros...
A educação sempre foi uma grande dobradiça enferrujada para as classes pobres no
Brasil.98 No caso de Jessé, como nos casos reais, o que se encontrava era um contexto onde a
palavra nulidade talvez seja a mais adequada. No período que marca as últimas décadas do
século XIX e as primeiras do século XX o panorama educacional de Parnaíba não difere
muito do restante do estado e o do país. No geral, as iniciativas governamentais para a
educação no Piauí99 não produziram grandes efeitos sobre a escolarização da população na
capital ou no interior, ficando quase sempre a cargo da incipiente escola privada a obrigação
de possibilitar a uma camada mais favorecida o acesso a educação de primeiras letras. Porém,
há de se registrar que, embora de maneira precária, alguns esforços foram lançados no intuito
de promover uma educação pública, mas o que predominava mesmo era a omissão por parte
do estado, principalmente no nível elementar, onde por ausência de prédios escolares
encontramos as “escolas” funcionando quase sempre nas residências de professores
minimamente pagos pelo erário público.
Sem dúvida, esse contexto reduziu drasticamente as oportunidades de quem quis,
como Jessé, sair de sua condição. Na realidade, o importante é pensar que isso não foi produto
de nenhuma fatalidade, da qual o único remédio existente seria a resignação. O sonho de ficar
rico, ou melhor, fugir do “destino”, foi o que conduziu Jessé a sua morte. O caçador de
borboletas, já adulto, acabou morto em virtude de um incêndio dentro de uma barca que o
98
Jorge Nagle pontua as principais causas do atraso da educação no Brasil na Primeira República. É interessante
observar como isso marcará a trajetória do ensino brasileiro de modo geral: “É preciso pensar que a matriz desse
estado de coisas se encontra nas condições histórico-sociais existentes, que esclarecem tanto os padrões de
pensamento da camada intelectual interessada nos problemas educacionais como os níveis de realização
alcançados. Deste prisma, verifica-se a persistência de uma estrutura agrária sustentada, basicamente, pela
produção e comercialização do café para o mercado externo; a permanência do sistema coronelista – base da
política dos governadores – impedindo a formação de grupos políticos com raízes ideológicas diferenciadas e
com atuação não apenas eventual; a continuação de uma estrutura de classes sociais pouco diversificada, na qual
apenas a burguesia agrário-comercial apresenta polarizações bem definidas.” (NAGLE, 2004, p.291). A partir da
década de 1930, o movimento da Escola Nova começa a mudar este quadro, embora o acesso das massas ao
ensino público só se amplie efetivamente nas décadas finais do século XX.
99
Sobre a educação no Piauí na primeira República: Cf. FERRO, Maria do Amparo Borges. Educação e
Sociedade no Piauí Republicano. Teresina: EDUFPI, 1996.
101
trazia para terra firme. Era a vingança do rio, do próprio rio que o viu nascer e que foi sua
desgraça. Essa morte poderia ter igualado Jessé aos outros, aqueles que também tinham a
“sorte do rio”, mas a verdade é que ele foi o único a não aceitar subserviente o que lhe
reservara a sociedade. Talvez ele tenha representado no romance os territórios da revolta de
toda uma classe que teimava contra a dependência e a exploração. Mas como os que lutam,
Jessé morre. Ele, que apenas caçava borboletas, teve uma morte trágica demais para um sonho
tão modesto, tão justo.
Uma outra imagem que emerge de maneira contundente em Beira Rio Beira Vida é a
da prostituição. O autor ambienta sua narrativa nas zonas do baixo meretrício, lá na beira do
cais próximos aos botecos100. Dessa forma, ao retirar do centro da cidade o foco principal das
vivencias cotidianas, Assis Brasil nos convida a perambular pelas ruas sinuosas da “outra”
cidade, nos desafia também a questionar as máscaras, os ditames morais que separavam os
sexos, bem como as representações sociais em torno da vida sexual no imaginário urbano. A
figura central a evidenciar-se nessa operação é o da prostituta, “da mulher da vida”, a quem,
segundo Renato Castelo Branco, “as senhoras do centro chamavam com rancor e desdém de
mulheres à toa.” (CASTELO BRANCO, 1981, p.20).
A maneira como se produz a vida sexual na cidade é algo que reflete o porquê deste
estigma. Geralmente a presença de figuras tipificadas como “indesejáveis” no espaço urbano
cria mecanismos de controle da circulação desses indivíduos, verdadeiros muros simbólicos
são construídos no intuito de afastar a contiguidade perigosa. Veja-se, por exemplo, o louco, o
mendigo e a prostituta. O confinamento desses sujeitos a certos espaços da cidade é algo
produzido tanto materialmente - manicômios, calçadas e viadutos, cabarés e zonas de
prostituição - quanto simbolicamente, como um código implícito, mas que salta aos olhos, em
que a menor transgressão já legitima o rechaço e a náusea coletiva. No caso da prostituta,
digamos, ela vai sendo inventada e estigmatizada como a portadora de uma sexualidade
insubmissa, um indesejado “fantasma” no imaginário social. Para Margareth Rago: “A
construção da prostituição como um fantasma atingia alguns alvos estratégicos precisos:
instituía as fronteiras simbólicas que não deveriam ser ultrapassadas pelas moças respeitáveis,
ao mesmo tempo que organizava as relações sexuais num espaço geográfico da cidade
100
Segundo Renato Castelo Branco: “A Coroa e os Tucuns começavam também no rio, com seus botecos
sórdidos à beira dos barrancos, onde os embarcadiços iam tomar cachaça todas as noites e se encontrar com as
cunhãs do meretrício.” (CASTELO BRANCO, 1981, p.20).
102
especialmente destinado à evasão, aos encontros amorosos, à vida boêmia.” (RAGO, 2008,
p.46)
Associado a imagem de violência e prostituição, alguns lugares de Parnaíba vão
sendo caracterizados como territórios da manifestação do desejo, como é o caso daqueles que
se situam à beira do cais. O cabaré vai representar o ponto de convergência da “alta” e da
“baixa” sociedade, abrigando toda sorte de gente: o marginal, o embarcadiço, o alcoólatra, o
homossexual, o moralista, o burguês, etc. Boa parte da juventude boêmia da cidade, que
assistia às concorridas sessões do Cine Éden, que participava das “tertúlias” na Casa Inglesa e
ia ao carnaval no Cassino 24 de Janeiro – ambientes notoriamente frequentados pelas elites -,
também era assídua à vida noturna dos cabarés da Quarenta e da Coroa, embora socialmente o
discurso tivesse que ser outro. É o que nos conta o cronista Carlos Araken, que parece ter
transitado, sem maiores constrangimentos, por todos os espaços de diversões bem
comportadas, ou nem tanto, daquela sociedade:
As promessas faziam parte dos atos medidos, nunca se esqueciam que tinham
que pagar no fim – estiravam as cédulas lisas ou amassadas, se despediam
101
Segundo Margareth Rago: “Por caminhos sofisticados e sinuosos se forja uma representação simbólica da
mulher, a esposa-mãe-dona-de-casa, afetiva, mas assexuada no momento mesmo em que as novas exigências da
crescente urbanização e do desenvolvimento comercial e industrial que ocorrem nos principais centros do país
solicitam sua presença no espaço público das ruas, das praças, dos acontecimentos da vida social, nos teatros,
cafés, e exigem sua participação ativa no mundo do trabalho.” (RAGO, 1997, p. 62).
102
Cf. PERROT, Michelle. Mulheres públicas. São Paulo: Editora UNESP, 1998.
103
Como a Geni de Chico Buarque: “De tudo que é nego torto / Do mangue e do cais do porto / Ela já foi
namorada / O seu corpo é dos errantes / Dos cegos, dos retirantes / É de quem não tem mais nada / Dá-se assim
desde menina /Na garagem, na cantina / Atrás do tanque, no mato / É a rainha dos detentos / Das loucas, dos
lazarentos / Dos moleques do internato / E também vai amiúde / Com os velhinhos sem saúde / E as viúvas sem
porvir / Ela é um poço de bondade / E é por isso que a cidade / Vive sempre a repetir / Joga pedra na Geni / Joga
pedra na Geni / Ela é feita pra apanhar / Ela é boa de cuspir / Ela dá pra qualquer um / Maldita Geni....”
Disponível em: < www.chicobuarque.com.br/letras> Acessado em 18 de maio 2011.
104
104
No Livro do Centenário de Parnaíba (1944), que faz uma espécie de apanhado geral sobre os vários setores da
cidade, encontramos evidenciadas pelo menos quatro “Sociedades” civis de caráter assistencialista, que são elas:
a Sociedade “Protetora Parnaibana” (1899); a Sociedade Feminina de Assistência aos Pobres de Parnaíba (1931);
a Sociedade de Assistência aos Lázaros e Defesa Contra a Lepra (1931) e a Sociedade de Proteção à
Maternidade e à Infância de Parnaíba (1940); A Resolução n° 23, de 22 de dezembro de 1943 do Conselho
Administrativo do Estado do Piauí, que regulou o orçamento Municipal para o ano de 1944, dispensou para a
Assistência Social (verba N.5) do Município de Parnaíba o valor de Cr$ 14.400,00 para a “Proteção aos Pobres
de Parnaíba, e Cr$ 10.000,00 a serem gastos com roupa, assistência médica e diária aos presos pobres.
105
“Eles nasceram na cidade para dar esmolas, elas nasceram no cais para receber.” (BRASIL, 2008,p.52).
105
longamente numa nota de rodapé, os vários “obséquios” que marcaram algumas relações
sociais no Brasil, a lista é grande106, mas reveladora do poder dos “ismos” (mandonismo,
assistencialismo, clientelismo, paternalismo, filhotismo, coronelismo, etc.) como
maquinações que ajudaram a formatar historicamente a estrutura social, política e econômica
brasileira. No caso de Mundoca, sua vida (diga-se sua sorte) está embrionariamente ligada a
um “padrinho”, a um “benfeitor”, que lhe empregava, embora menos por gosto do que por
interesse em fazer média social, como funcionária do seu armarinho “lá” na cidade.
O fato é que esse apadrinhamento, esse assistencialismo, apenas dava novos
contornos àquelas histórias, sem tocar realmente o fundo dos bem conhecidos problemas
sociais. O assistencialismo, na verdade, nem resolvia as necessidades imediatas daquela
população nem dissolvia as desconfianças naturais de quem aprendeu que promessa não
enche barriga.
Vou dizer pra você uma coisa, Mundoca: já vi tanta gente se interessando
pela miséria do cais que fico besta. Depois, nada. Até um padre andou
olhando a gente, perguntando, e perguntou se alguém tinha ajuda. Ninguém
soube a que se referia. Era um padre bem novinho. O padre velho Gonçalo,
esse nunca apareceu no cais que eu saiba. Fica lá nos batizados dos ricos,
nos banquetes, nos casamentos.
Aqui no meu entender: que poderiam eles resolver?
Poderiam dar emprego pra cada um sem emprego? Vestir todo mundo?
Construir casa de tijolo, em vez de barracão de madeira? Esse cais novo,
que nunca acabam – eles pensam que não sei – é pra beneficio dos donos de
armazém. Dizem que o rio não entra mais na cidade; você bem sabe que é
mentira. (BRASIL, 2008, p.49).
Essas muralhas simbólicas, que atravessaram a cidade por seus variados ângulos,
repercutiram no seu fazer social, acabaram por criar verdadeiros territórios de
ressentimento.107 Sem dúvida, a representação imagística da cidade de Parnaíba na obra Beira
106
Debulha Vitor Nunes Leal na referida nota: “Eis aqui uma lista incompleta: arranjar emprego; emprestar
dinheiro; avalizar títulos; obter crédito em casas comerciais; contratar advogado; influenciar jurados; estimular e
“preparar” testemunhas; providenciar médico ou hospitalização nas situações mais urgentes; ceder animais para
viagens; conseguir passes na estrada de ferro; dar pousada e refeição; impedir que a polícia tome as armas de
seus protegidos, ou lograr que as restitua; batizar filho ou apadrinhar casamento; redigir cartas, recibos e
contratos, ou mandar que o filho, o caixeiro, o guarda-livros, o administrador ou o advogado o façam; receber
correspondência; colaborar na legalização das terras; compor desavenças; forçar casamento em casos de
descaminho de menores, enfim uma infinidade de préstimos de ordem pessoal, que dependem dele ou de seus
serviçais, agregados, amigos, ou chefes. Quando o chefe local é advogado, médico, escrivão, sacerdote etc.,
muitos desses serviços são prestados pessoalmente, mediante remuneração irrisória, ou inteiramente gratuitos.”
(LEAL, 1975, p. 38).
107
Segundo Michèle Ansart-Dourlen: “O ressentimento remete a um tempo repetitivo, gerador de fantasmas e
pensamentos hostis, vividos na impotência.” (ANSART-DOURLEN, 2004. p.355).
106
Rio Beira Vida captou essas nuances, essas minúsculas falas, quase sussurradas, que
repetidamente se referiam a uma cidade habitada por “outsiders”, por alteridades negadas,
como Luiza, Mundoca e Jessé. Ainda que os excluídos reais e concretos não se pronunciem,
que continuem silenciados, não se pode negar que suas histórias, ao menos em possibilidade,
se confundem com as narradas por Assis Brasil.
108
Uma subversão do título do poema “3 postais de Parnaíba”, de Elmar Carvalho. Cf. CARVALHO, José Elmar de
Melo. Lira dos cinquenta anos. Teresina: FUNDAPI, 2006, p. 87-88.
109
Jorge Luís Borges (1899-1986),escritor Argentino.
110
Refiro-me ao conto El jardin de senderos que se bifurcan. Cf. BORGES, Jorge Luís. Obras completas -
(1923-1972). Buenos Aires: Emecé Editores, 1974. v.1. p. 472-480.
111
Diomira, Ipásia, Zoé e Pirra são cidades invisíveis de Italo Calvino. Cf. CALVINO, Italo. As cidades
invisíveis. 2.ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
107
Somos tentados a enveredar por esse caminho da significação da cidade, nesse caso,
Parnaíba, que foi representada até aqui como uma cidade dividida, compartimentada em
territórios simbólicos. Essa geografia simbólica nos levou a distinguir três territórios distintos
e construídos (representados) dentro do espaço do qual, desde o inicio, nos referimos como a
beira, como os lugares de enclave da cidade. Esses territórios serão nomeados, nesta breve e
panorâmica conclusão, como “territórios do desejo”, “territórios da revolta” e “territórios do
ressentimento”, cada um significando efetivamente as múltiplas representações que foram
sendo produzidas no interior das relações sociais. O que nos interessa é perceber como a
cidade foi escrita e visualizada a partir das representações criadas sobre sua geografia urbana.
A literatura por si só já seria um desses territórios, mas também a tomaremos, a
partir de suas metáforas espaciais, como uma possibilidade de produção de sentido sobre a
cidade. Lugar e metáfora, a cidade é um complexo dinâmico que pode traduzir-se numa
visibilidade discursiva e imagística. Segundo Renato Cordeiro Gomes:
112
Que para a psicanálise seria a energia motriz dos instintos de vida, associada à satisfação, à felicidade e ao
princípio do prazer. Cf. FREUD, Sigmund. O mal-estar na cultura. Porto Alegre, RS: L&PM, 2010.
113
São tantos os termos possíveis para nomear uma mesma coisa que se torna curioso: bordel, cabaré, randevu
(do francês rendez-vous), puteiro, prostíbulo, lupanar, casa de tolerância, zona, antro, etc.
108
Entenda-se que essa concentração, essa mistura de grupos tão distintos, não se deu
de maneira fortuita, mas devido às condições, já anteriormente discutidas, onde muitos
acabaram sendo “segregados” do espaço urbano da cidade para estas áreas mais afastadas do
“centro”, compondo o cenário mais fragilizado do ponto de vista social. A presença da
prostituta nesse contexto evidencia sua dupla segregação. Primeiro, sua condição material, ela
como alguém excluída da ordem macro-econômica e formal, e depois o estigma inerente a sua
“profissão”, que socialmente a indispôs em relação à ordem pública. Mas que existe em
função de uma necessidade da qual não se pode negar, que é a comercialização do prazer. O
que é interessante observar é que mesmo nesse comércio se vêem embutidas as disputas
sociais de classe. O meretrício em Parnaíba era dividido em “alto” e “baixo”, refletindo assim
as hierarquias da sociedade. Como se o “produto-sexo” também significasse mais um fator da
ordem de classe do que da ordem do prazer, separando e hierarquizando as possibilidades de
cada um. É o que podemos atestar na fala abaixo do médico Cândido Atahyde, que
contextualiza e singulariza essas divisões que acabamos de abordar:
Tanto a literatura (Beira Rio Beira Vida) quanto estas falas pretéritas dão conta do
existir desse território do desejo. De como ele clandestinamente, embora sempre mal-dito,
109
114
Candido Atahyde, ainda falando sobre quem freqüentava essas áreas, diz que: “Todos. Os mais graúdos, aqui
escondidos, freqüentavam essas casas. Toda a rapaziada, todos os caixeiros e alguns dos empresários.” (CEPRO,
1984).
115
Uma dessas representações que acompanhou historicamente o imaginário da prostituição foi o da doença
“venérea”, que associava à figura da prostituta a imagem de alguém suja, sórdida e doente (doenças do mundo).
Sobre isso, comenta o médico Candido Atahyde se referindo principalmente à sífilis e a blenorragia: “(...) aqui as
doenças venéreas eram muito comuns e muito graves. Porque eram doenças venéreas de muitas passagens.”
(CEPRO, 1984).
116
Para Albert Camus: “Ela é a presença constante do homem diante de si mesmo. Não é aspiração, porque não
tem esperança. Essa revolta é apenas a certeza de um destino esmagador, sem a resignação que deveria
acompanhá-la.” (CAMUS, 2010, p. 66).
117
Cf. BOURDIEU, Pierre. Espaço social e gênese das classes. In: _______. O poder simbólico. 13.ed. Rio de
Janeiro: Bertrand Brasil, 2010, p. 131 – 161.
110
118
Que necessariamente não devem se concretizar para existir.
111
fato, ninguém ouviu da personagem Cremilda sua última gargalhada, talvez ela tenha morrido
de repente, no silêncio, engolfada na própria tristeza.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
para que aquela elite pudesse estreitar seus interesses com o poder público e introduzir
medidas de caráter modernizador no aspecto arquitetônico e urbanístico do município. O que
se convencionou chamar nesta pesquisa de belle époque foi o resultado direto destas
transformações que se operaram tanto no aspecto físico quanto na vida social de Parnaíba.
Dessa forma, a belle époque corresponde ao “embelezamento” das fachadas públicas; a
adoção do ecletismo como referencial artístico e arquitetônico dos aparelhos urbanos; a
introdução de novas práticas de sociabilidade e exibição pública a partir dos novos espaços
construídos e ampliados para o uso social; a influência européia advinda dos contatos com
famílias estrangeiras que habitava a cidade, ou mesmo com produtos vindos do exterior e que
desembarcavam no Porto das Barcas ou Amarração; além do contato com o próprio cinema –
um introdutor de novas modas e modos de comportamento; bem como a todo um repertório
de imagens e representações que norteou a ação daquela elite na busca por formas civilizadas
de lazer, consumo e sociabilidade.
Notadamente, este período também foi caracterizado por um maior adensamento
populacional e por intervenções no espaço físico da cidade. Como podemos ver, foi
principalmente durante as gestões dos Prefeitos Ademar Neves (1931-1934) e Mirocles Veras
(1934-1945) que se introduziram as ações de mais ampla repercussão no controle do espaço
urbano. Consta deste período, dentre outras medidas: o alargamento de ruas e a abertura de
outras; uma maior cobertura de pavimentação poliédrica nas principais avenidas; a construção
de praças e jardins; a ampliação da rede de iluminação pública; o “embelezamento” das
fachadas dos prédios com a adoção de novos estilos arquitetônicos; a expansão do perímetro
urbano; e o conseqüente povoamento de novas áreas. Enfim, estas reformas urbanas tiveram
um caráter funcional e estético, buscava-se, sobretudo, dotar a cidade de um equipamento
urbano “moderno” que pudesse também possibilitar uma maior mobilidade e fluidez nos
deslocamentos, haja vista tanto as bicicletas quanto os automóveis já fazerem parte do
cotidiano da cidade.
À medida que o “progresso” foi se materializando nestas ações de reforma assistia-se
também a multiplicação de áreas não cobertas pelos mesmos benefícios. Grande parte da
população não foi contemplada por essa “renovação” urbana, tampouco recebeu os mesmos
investimentos do poder público. Com o crescimento da cidade a maioria das famílias pobres
foi sendo empurrada para as áreas periféricas, principalmente para aquelas áreas mais
próximas ao rio ou em bairros mais distantes e com acesso precário. Assim, enquanto o
“centro” florescia marcado pelo ecletismo arquitetônico e pelos sinais evidentes da
modernidade, a “beira” ia concentrando uma densa camada composta por aqueles que foram
114
cidade. Neste tocante, que esta pesquisa possa agregar novas versões sobre estes personagens
agora “um pouco menos” desconhecidos da belle époque de Parnaíba. Que a metáfora
representada pelas borboletas de Jessé possa despertar a capacidade de resistência daqueles
que foram colocados em uma condição de invisibilidade histórica, que ela consiga mostrar
que a sobrevivência social deve existir sempre em função de um sonho e não do
conformismo.
FONTES E REFERÊNCIAS
1 FONTES
1.2 Periódicos
1.3 Entrevistas
SILVA, Antônio Pereira da Silva (Mano Velho). Teresina, 1984. Entrevista concedida a
Geraldo Almeida Borges do Núcleo de História Oral da Fundação Centro de Pesquisas
Econômicas e Sociais do Piauí – CEPRO, em 25 de fevereiro de 1984.
2 REFERÊNCIAS
REGO, Junia Motta Antonaccio Napoleão do. Dos Sertões aos Mares: história do comércio e
dos comerciantes de Parnaíba (1850 – 1950), 2010. Tese (Doutorado em História) –
Universidade Federal Fluminense(UFF), Niterói, 2010.
AGUIAR E SILVA, Vitor Manuel de. Romance. In: _______. Teoria da Literatura. São
Paulo: Martins Fontes, 1976, p. 251-348.
ARAKEN, Carlos. Estórias de uma Cidade muito amada. Parnaíba: [s.e], 1988.
ARAÚJO, José Luis Lopes de. O rastro da carnaúba no Piauí. In: ALMANAQUE DA
PARNAÍBA, 1985, p. 100-104.
ARAÚJO, M.M.B. de; EUGÊNIO, J.K. A gente de longe e suas histórias esquecidas.
In:________. (Org.). Gente de Longe: histórias e memórias. Teresina: Halley, 2006, p.09 –
10.
BRASIL, Assis. Beira Rio Beira Vida. In: _______. Tetralogia Piauiense. Teresina:
FUNDAPI, 2008.
BRESCIANI, Maria Stella Martins. Londres e Paris no século XIX: o espetáculo da pobreza.
São Paulo: Brasiliense, 1982.
118
CAMINHA, Edmilson; MOURA, Francisco Miguel de. Conversa de Escritor: Assis Brasil.
Teresina: Gráfica e Editora Andreas Ltda., 1989.
CARLOS, Ana Fani Alessandri. A Cidade. 7.ed. São Paulo: Contexto, 2003.
CARVALHO, José Elmar de Melo. Lira dos cinquenta anos. Teresina: FUNDAPI, 2006.
CARVALHO, José Murilo de. Introdução. In: ________. A formação das Almas: o
imaginário da República no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p.09-15
CASTELO BRANCO, Renato. Tomei um ita no Norte (memórias). São Paulo: LR Editores,
1981.
CÉSAR, Guilhermino. Poesia e Prosa de Ficção. In: FAUSTO, Boris. (Org.). História Geral
da Civilização Brasileira. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004. v.4, p. 417-462.
CHALHOUB, Sidney. Trabalho, Lar & Botequim: o cotidiano dos trabalhadores no Rio de
Janeiro da Belle Époque. 2. ed. Campinas: Editora da UNICAMP, 2001.
_________. Cidade Febril: cortiços e epidemias na Corte Imperial. São Paulo: Companhia
das Letras, 1996.
CHARTIER, Roger. Textos, impressão, leituras. In: HUNT, Lynn. A nova história cultural.
2.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 211-238.
_________. O mundo como representação. Estudos Avançados. vol.5, n.11, 1991, p. 173-191.
CIAVATTA, Maria. O mundo do trabalho em imagens: a fotografia como fonte histórica: Rio
de Janeiro 1900 – 1930. Rio de Janeiro: DP&A, 2002.
DOMINGOS NETO, Manuel. A primeira vez que li Assis Brasil. In: ALMANAQUE DA
PARNAÍBA, 1994, p. 24-27.
DURÃO, Antonio José de Morais. Descrição da Capitania de São José do Piauí – 1772. In:
MOTT, Luiz. Piauí Colonial: população, economia e sociedade. 2.ed. Teresina:
APL/FUNDAC, 2010, p. 15-52.
FOUCAULT, Michel. A Vida dos Homens Infames. In: _________. Estratégia, poder-saber.
Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003, p. 203 – 222.
GALEANO, Eduardo. O livro dos abraços. 2.ed. Porto Alegre: L&PM, 2010.
GINZBURG, Carlo. Micro-história: duas ou três coisas que sei a respeito. In: ______. O Fio e
os Rastros: verdadeiro, falso, fictício. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
________. Introdução. In: GINZBURG, Carlo. O fio e os rastros: verdadeiro, falso, fictício.
São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 7-14.
GOMES, Renato Cordeiro. Todas as cidades, a cidade: literatura e experiência urbana. 2.ed.
rev. e ampl. Rio de Janeiro: Rocco, 2008.
JACOB, M. T. A pequena e brava família Jacob. In: ARAÚJO, M.M.B. de; EUGÊNIO, J.K.
(org). Gente de Longe: histórias e memórias. Teresina: Halley, 2006, p.273-334.
KOSSOY, Boris. Os tempos da fotografia: o efêmero e o perpetuo. Cotia, SP: Ateliê, 2007.
MENDES, Felipe. Formação econômica. In: SANTANA, R.N. Monteiro de. (Org.) Piauí:
Formação. Desenvolvimento. Perspectivas. Teresina: Halley, 1995, p. 55 – 81.
_________. História da literatura brasileira: modernismo. 6.ed. São Paulo: Cultrix, 2001.
v.3, p.361.
NAGLE, Jorge. A educação na Primeira República. In: FAUSTO, Boris. (Org.). História
Geral da Civilização Brasileira. 7.ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004. v.2, p. 259-291.
NUNES, M.C.P; ABREU, I. Gonçalves de. Vilas e Cidades do Piauí. In: SANTANA,
R.N.Monteiro de.(Org). Piauí: Formação. Desenvolvimento. Perspectivas. Teresina: Halley,
1995, p. 83-111.
PASSOS, Caio. Parnaíba - Cada rua sua história. IOCE: Parnaíba, 1982.
PESAVENTO, S. J. Uma outra cidade: o mundo dos excluídos no final do século XIX. São
Paulo: Companhia Editora Nacional, 2001.
________. História e Literatura. In: ADAD, Shara Jane Holanda Costa. (Org.). Entre Línguas:
movimento e mistura de saberes. Fortaleza: Edições UFC, 2008b, p. 200-214.
RAGO, Margareth. Do cabaré ao lar: a utopia da sociedade disciplinar: Brasil 1890 – 1930.
3.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997.
SANTOS, Pádua. Multiplicação da Miséria. In: Inovação. Parnaíba, abr. 1978, p.2. (Jornal de
circulação Local)
SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na primeira
república. 2.ed. São Paulo: Companhia da Letras, 2003.
________. Orfeu Extático na Metrópole: São Paulo, sociedade e cultura nos frementes anos
1920. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
SOUSA LIMA, Raimundo de. Porto Salgado, laborioso e pitoresco. In: ALMANAQUE DA
PARNAÍBA, 1938, p. 69 -73.
_________. Vareiros do Parnaíba & outras histórias. Parnaíba: Fundação Cultural do Piauí,
1987.
TAJRA, Jesus Elias; TAJRA FILHO, Jesus Elias. O comércio e a indústria no Piauí. In:
SANTANA, R.N.Monteiro de.(Org). Piauí: Formação. Desenvolvimento. Perspectivas.
Teresina: Halley, 1995, p.133-158.