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“Semearrelvinhas”
Comunidade, história e princípios de uma cooperativa modelo
Neste trabalho remontaremos aos idos anos da década de cinquenta para conhecer
as vicissitudes que estiveram na origem de uma das mais espetaculares cooperativas de
habitação da cidade de Coimbra e mesmo do país. A ideia, repetida até à exaustão, de
transformar obstáculos em oportunidades aparece-nos aqui realizada em todo o seu
esplendor. Os princípios inspiradores hoje defendidos pela Aliança Cooperativa
Internacional (ACI) e definidos em Rochdale ocuparão a segunda parte do nosso trabalho,
tendo em atenção a sua aplicação nesta organização. Elencaremos também os valores da
solidariedade que estão presentes no desenvolvimento da “Semearrelvinhas” e que são a
pedra de toque da economia social. Por fim, procuramos problematizar algumas questões
e abrir pistas para levar a “Relvinhas” a um país que tanto carece de habitação condigna,
cuja ausência abre portas à exclusão social e à pobreza, criando lugares em que viver seja
um realizar de sonhos e não uma luta pela sobrevivência.
Um pouco de história
Nesta definição abrem-se caminhos para outros princípios que mais não são do
que a concretização do que ficou dito. O primeiro princípio do Código Cooperativo
refere-se à adesão voluntária e livre, coincidente com a alínea b) do artigo 5º da LBES. A
participação no projeto da “Relvinhas” foi assumida desde cedo pelos seus membros. A
resiliência manifestada no modo como não desistiram de uma vida melhor, mais digna,
com melhores condições, transformou um conjunto de moradores num grupo com
interesses comuns, pelos quais lutaram voluntaria e solidariamente. Em segundo lugar,
está a gestão democrática pelos membros, presente na alínea c) da LBES. Apesar do
carisma que o sr. Jorge comporta, que faz dele um líder nato, nunca deixou de ouvir, de
estar próximo e de querer precisar de todos para com eles decidir qual o caminho a seguir.
O terceiro princípio, participação económica dos membros, sem equivalente na
LBES, é duplamente conseguida na “Semearrelvinhas”. Por um lado, a parte económica
partilhada, mas por outro, não menos importante, a oferta do tempo e do trabalho,
principalmente da comunidade, mas que chegou a receber contributos da cidade e até de
jovens estudantes que passavam pela cidade.
Uma organização como esta pode, se não houver cuidado, ser usada para fins
político-eleitorais. O sr. Jorge, como aliás todos os membros, souberam não se deixar
transformar em bandeiras eleitoralistas, sem com isso colocar em causa o seu
desenvolvimento. A autonomia e a independência, 4º princípio, correspondente à alínea
f) do artigo 5º da LBES, são fundamentais para a prossecução dos fins a que se dedica,
não se deixando instrumentalizar e dessa forma desvirtuar. Só com uma educação que
transforma e faz a pessoa crescer é possível manter esta liberdade, autonomia e
independência. O sr. Jorge referiu a sua passagem pelo circuito da cultura da cidade, da
sua relação com os estudantes, ainda que em ambientes informais, não deixou de receber
deles o conhecimento, quer nas famosas repúblicas, quer nas tabernas e nas ruas onde não
raras vezes se encontravam. O 5º princípio cooperativo, educação, formação e
informação, é levado muito a sério na cooperativa e dele depende a longevidade da
organização, só possível pela sua constante atualização, quer ao nível da sua natureza
jurídica, quer também na forma de se reinventar constantemente, que a faz adaptar-se a
novas exigências, sem perder o espírito que presidiu à sua conceção.
Por fim, a intercooperação e o interesse pela comunidade, 6º e 7º princípios,
manifestam todo o esplendor do cooperativismo sendo o seu selo de garantia. A
“Semearrelvinhas” nunca se isolou da cidade nem das instituições e entidades que podia
servir e em que se apoiava. Prova disso é a relação estreita com a Câmara Municipal e o
respeito profundo pelos seus presidentes, apesar de um ou outro incidente histórico, sendo
destacado pelo sr. Jorge Vilas o célebre episódio dos sacos de lixo nas escadas da
residência do sr. presidente, à altura, Araújo Vieira. Este episódio pensado na relvinha
teve como executores elementos exteriores ao bairro, sobretudo estudantes, que nesta
altura evidenciavam preocupações sociais crescentes. Não houve, de nenhum dos
membros, um interesse egoísta ou de competição. Esta foi substituída pela cooperação,
dando os assinaláveis resultados que conhecemos.
Os valores inspiradores da ação deste grupo de pessoas têm na base o primado da
pessoa e a defesa da sua dignidade, dando-lhe condições de vida e de realização pessoal.
A solidariedade, igualdade, coesão social, justiça, responsabilidade individual e social,
subsidiariedade (cf. LBES art. 5º, e), atingem na “Semearrelvinhas” pleno cumprimento,
como acabamos de mostrar. Ninguém foi deixado para trás e a solução passava sempre
pela participação de todos, desde a conceção das ideias, dos projetos, à sua concretização,
o que faz com que os moradores se sintam integrados no espaço em que vivem,
transformando-o no lugar em que habitam.
À semelhança do que tem acontecido nos municípios e até no país, a preocupação
da “Semearrelvinhas” deixou de ser o “betão”, dado que as infraestruturas básicas estão
asseguradas, para passar a ser aquilo que constrói a identidade do povo e que a perpetua
na memória social. Assim, a cooperativa procura levar a cabo ações de âmbito cultural,
recreativo e desportivo. A exceção é mesmo a tão ansiada sede, que tem como fim
principal contar a história da Relvinha e ser um laboratório social, um impulsionador da
ação de interesse da comunidade, um trampolim social. O que vai sendo feito, bailes,
teatro, eventos desportivos, música, fado, são meios indispensáveis ao reforço de laços
dos habitantes do bairro e modo de aceder a toda a sua idiossincrasia por parte dos
visitantes que se sentem sempre como convidados. Pela educação dos mais novos e pela
informação aos mais incrédulos destas ações filantrópicas a Relvinhas continua a ser
aquilo que sempre foi, o arauto de um amanhã diferente, de novas possibilidades, da
alternativa ao modo capitalista e pós-ideológico em que estamos afundados.
Conclusão