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Resumo: A finalidade deste texto é apresentar, por meio de uma análise serial, alguns
indicativos sobre a conformação socioeconômica da região missioneira na primeira metade do
século XIX. Para isso, recorremos aos inventários post morten abertos na Vila de São Borja.
O critério utilizado para este estudo considerou o número de cativos arrolados nos inventários
por faixas de tamanho de escravarias. Por conseguinte, os dados quantificados foram, quando
possível e pertinente, comparados com os verificados em outras regiões da Província de São
Pedro do Rio Grande do Sul. Esta análise integra-se a uma pesquisa de mestrado, a qual se
encontra em estágio inicial, que tem buscado analisar o processo de construção das relações
escravistas na região missioneira ao longo da primeira metade do século XIX. Neste sentido,
através de uma abordagem serial, aliada a análise qualitativa das fontes, pretende-se inserir
esta pesquisa nos debates propostos pela História Social da Escravidão, que desde a década de
1980 vem reinterpretando o sistema escravista brasileiro.
Palavras-chave: Escravidão. Inventários post-mortem. Quantificação.
Abstract: The purpose of this text is present, through a serial analysis, some indications about
the conformation of the socioeconomic region missionary in the first half of the nineteenth
century. For this, we used the post mortem inventories opened in the village of San Borja. The
criterion used in this study considered the number of slaves listed in inventories by size
ranges slaves. Therefore, the data quantified were, where possible and
relevant, compared with those seen in other regions of the province of Rio Grande São Pedro
do Sul. This analysis is part of a master's research, which is in early stage which has sought
1
Este texto é fruto de comunicação proferida nas VI Jornadas Regionais Mundos do Trabalho – ANPUH-RS –
Lugares da História do Trabalho, realizada na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), entre os dias 6 e 8
de outubro de 2011. Agradecemos a todos debatedores pelas pertinentes correções, sugestões e indicações de
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literatura, em especial ao Profº. Ms. Jônatas Caratti, coordenador da mesa I “Enterrado no cemitério do passado?
Trabalho indígena e trabalho escravo”, e ao Profº. Drº. Luís Augusto Ebling Farinatti (UFSM). Naturalmente,
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to analyze the process of building relationships in the slave Misiones region along
the first half of the nineteenth century. In this sense, through a serial approach, combined with
qualitative analysis of documents, we intend to place this research in the debates proposed by
the Social History of Slavery, which since the 1980s has been reinterpreting the brazilian
slave system.
Keywords: Slavery. Post-mortem inventories. Quantification.
Introdução
Foi, em significativa medida, por meio das interpretações feitas a partir dos relatos do
naturalista francês Auguste de Saint-Hilaire que se erigiu o amplo consenso historiográfico,
qual seja, de que ao longo do século XIX, na região onde outrora fora as Missões Orientais do
rio Uruguai – atual região oeste do Rio Grande do Sul –, a presença de escravos de origem
africana2 teria se constituído de forma residual. Todavia, tal consenso esteve coligado a quase
completa inexistência de pesquisas sobre a presença da escravidão africana naquele espaço.
Até então, poucas foram as investigações que além das narrativas de viajantes e
contemporâneos3 também lançaram mãos de análises sobre séries documentais produzidas no
decorrer daquele período.4 Segundo Paulo Afonso Zarth ([1994] 2002), as origens desse
consenso estão em fragmentos da obra do naturalista francês, tais como:
2
Neste texto, as expressões escravos de origem africana e escravidão africana se referem tanto aos cativos
nascidos na África, e que, portanto, passaram pela experiência dos navios negreiros, quanto os cativos nascidos
no Brasil.
3
Além dos relatos de Auguste de Saint-Hilaire, destacam-se também as narrativas de Arsène Isabelle e Nicolau
Dreys.
4
Considerando o amplo território anexado aos domínios luso-brasileiros em 1801, os trabalhos que direta ou
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2010); FOLETTO (2003); GARCIA (2005); DARONCO (2006); ARAÚJO (2008); MATHEUS (2010). Estes
três últimos são historiadores sociais da escravidão. Os demais se caracterizam como historiadores da chamada
História Agrária.
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Zarth ainda aponta que, foi a partir da leitura de passagens como esta, feita por
Fernando Henrique Cardoso, que se difundiu largamente a ideia da inexistência de cativos de
origem africana na região de Missões. Cardoso ([1962] 1991) acabou interpretando estas
passagens de Saint-Hilaire de maneira literal. Logo, concluiu que o grosso da mão-de-obra
empregada nas estâncias, estabelecidas nas áreas incorporadas à economia sul rio-grandense
após 1801, teria sido composta por guaranis, os quais em grande medida seriam
remanescentes das missões. Por sua vez, Mario Maestri Filho (1984; 1993; 2002) endossou os
argumentos de Cardoso. Retomando o argumento de Décio Freitas (1979; 1980) sobre a
inviabilidade da manutenção de um aparato de vigilância e coerção na atividade pastoril em
regiões de fronteira, Maestri Filho argumentou que, sempre que possível, os guaranis
missioneiros e os gaúchos castelhanos foram incorporados às práticas pastoris.5
Na verdade, o consenso sobre a ausência de escravos nessa região, forjado com base
nos relatos de Saint-Hilaire e das interpretações de alguns autores, foi elaborado a partir de
uma vulgar generalização temporal. É importante lembrar que Auguste de Saint-Hilaire viajou
pelo Rio Grande de São Pedro do Sul – incluindo a província de Missões – e pela então
Província da Cisplatina (1820 – 1828) – atual República do Uruguai – entre os anos 1820 e
1821. Entretanto, a partir de seus depoimentos acabou se produzindo um consenso histórico
para todo o período escravista do século XIX.
Anexada as possessões luso-brasileiras no início do Oitocentos, o território
missioneiro esteve imerso em um contexto de endemia bélica por boa parte deste século.
Genericamente, pode-se considerar que o constante estado de alerta, e até mesmo de
mobilização de tropas, frente à possibilidade do envolvimento em guerras internas ou com os
estados platinos perdurou até o fim da década de 1860 com o fim do Conflito da Tríplice
Aliança ou Guerra do Paraguai. Além disso, até fins da década de 1820 as fronteiras eram
incertas, isto é, não se tinha a certeza que a região missioneira continuaria fazendo parte dos
domínios luso-brasileiros. Somente após 1828, com o fim da Guerra da Cisplatina, os limites
na região platina se tornaram mais concretos – ainda que não categoricamente definidos –, e,
por conseguinte, pôde ocorrer a efetiva ocupação brasileira da região de Missões com o
5
Em recente dissertação de mestrado, Thiago Leitão de Araújo (2008) – com o foco na Vila de Cruz Alta (1834
– 1884) –, refutou de forma pertinente as teses de Cardoso, Freitas e Maestri Filho, as quais sustentavam a
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inviabilidade da utilização em grande escala de escravos de origem africana em regiões onde o pastoreio havia se
constituído na principal atividade produtiva. Por meio de diversas séries documentais como, por exemplo,
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inventários post-mortem e cartas de alforrias, Araújo demonstrou que não há porque pensar que a escravidão de
origem africana em regiões pastoris e de fronteira na Província do Rio Grande de São Pedro do Sul tenha sido
residual.
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Em dissertação de mestrado defendida em 1996, em que buscou analisar como ocorreu, em São Borja, o
processo de passagem de um modo de produção comunal para um modo de produção mediado por relações de
mercado e propriedade privada, João Rodolpho Amaral Flôres, no tocante a presença de cativos de origem
africana, apenas reproduziu as versões de Cardoso, Freitas e Maestri Filho. Nas palavras de Flôres, na Vila de
São Borja havia “um número pouco expressivo de escravos negros” (1996, p. 7); em outra passagem, se
referindo mais especificamente as atividades produtivas, o autor coloca que: “em relação aos negros, utilizados
como mão-de-obra escrava, envolvidos nas lides agropastoris, não foram, nessa área, um contingente
populacional elevado. O predomínio social foi dos luso-brasileiros, representados pelos proprietários de terras,
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dos nomes de seus proprietários, número de crias vacuns e cavallares que marcarão no anno de 1857, e as
pessoas empregadas com capatazes e piães e o Mappa demonstrativo das officinas, estabelecimentos e fábricas
no município de São Borja.
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Foi o fluxo migratório que reduziu consideravelmente o número de indivíduos desta população na região de
Missões, entretanto, cabe ressaltar que muitos guaranis ainda permaneceram naquele espaço.
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Além da significativa presença de guaranis missioneiros, o que chamamos de contexto missioneiro se
caracterizava também devido ao povoamento luso-brasileiro recente, as fronteiras instáveis e o estado de
endemia bélica. Esses elementos, fortemente presentes na região missioneira no decorrer da primeira metade do
século XIX, foram gradativamente desaparecendo ao longo da segunda metade do Oitocentos, graças ao
enraizamento do povoamento brasileiro, a estabilização dos limites fronteiriços, o arrefecimento das hostilidades
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semelhantes aos quais lançamos mão neste artigo, devido às dimensões exigidas para este texto, preferimos não
estabelecer comparações com eles. Referimos-nos, especialmente, aos estudos de Helen Osório ([1999] 2008) e
Silmei Petiz (2009).
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Somos gratos ao historiador Jonas Moreira Vargas pela gentileza de nos ter enviado a imagem deste mapa.
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No conjunto destes 101 inventários estão os abertos no Distrito de São Patrício de Itaqui. Nesta localidade,
foram abertos 37 inventários, dos quais 20 deles continham escravos. Para a Vila de São Borja, excluídos do
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conjunto os 37 inventários abertos em Itaqui,, tem-se 64 inventários, dos quais em 36 foram arrolados cativos.
Vale ressaltar que não estamos trabalhando com amostragem, mas sim com o conjunto total de inventários
abertos na Vila de São Borja entre 1828 e 1849, ou seja, 101 inventários.
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possuíam escravos.13 Por sua vez, Luana Teixeira (2008), verificou que em São Francisco de
Paula de Cima da Serra, entre 1850 e 1871, os inventários que tiveram escravos arrolados
chegaram a 78%. Desse modo, Teixeira mostrou que, mesmo em uma região empobrecida e
caracterizada pela produção agropecuária de pequeno porte, a posse de escravos era
disseminada pelas unidades produtivas e dividia espaço com o trabalho livre e familiar. A
estrutura de posse elaborada por Melina Perussato (2010) para Rio Pardo revelou que, entre
1860 e 1869, escravos foram arrolados em aproximadamente 82% dos inventários abertos
naquela região. Para regiões mais próximas da que tratamos, contamos com as informações
dos estudos de Thiago de Araújo (2008), para a região de Cruz Alta, e Luís Augusto Farinatti
(2006), para a região de Alegrete. Araújo (2008) constatou que 73% dos inventariados em
Cruz Alta, entre 1834 e 1884, possuíam cativos. Já para Alegrete, entre 1831 e 1850, Farinatti
(2006), apurou que 84% dos proprietários inventariados eram detentores de escravos.14 O
quadro 1 abaixo expõe de forma resumida estas informações, vejamos.
13
No segundo quarto do século XIX, o contexto socioeconômico do município de Rio Grande distanciava-se
bastante do qual tratamos para a Vila de São Borja. Primeiro, neste período, a povoação luso-brasileira em Rio
Grande aproximava-se de completar um século. Segundo, a condição de principal entreposto portuário da
província dotava a Rio Grande de uma significativa importância econômica. Devido a isso, este município
passava por um franco processo de urbanização. Estes dois elementos combinados possibilitavam que Rio
Grande fosse um dos municípios com maior dinâmica social, cultural e econômica da província. Por fim, cabe
ainda colocar que, no tocante a economia, além do comércio, estimulado compulsoriamente pelo porto, as
atividades charqueadoras também tiveram papel de destaque em Rio Grande no decorrer do século XIX. Ver
SCHERER (2008).
14
Cabe ressaltar que, a exceção de PERUSSATO (2010), todos os outros autores, com os quais estamos
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estabelecendo comparações, construíram suas séries por meio de amostragens. Além disso, a posse de escravos
feita por FARINATTI (2006) foi feita em relação à estratificação econômica dos inventariados, utilizando como
Página
parâmetro a posse de cabeças de gado bovino. Assim, os dados da análise de Farinatti que utilizamos neste texto
são relativos a escravistas que possuíam criação de gado bovino, o que não necessariamente ocorre para os
trabalhos dos outros autores, inclusive para os dados apresentados para a Vila de São Borja.
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Sobre as informações apresentadas no quadro “2”, não deixa de ser surpreendente que
após verificarmos que o menor índice de inventários em que se encontrou escravos (quadro 1)
foi encontrado na Vila de São Borja, nesta localidade a média de cativos por inventários
apresentou um número semelhante ao das outras localidades que tiveram uma maior dispersão
de cativos entre os inventariados. Além disso, a média de escravos encontrada em São Borja
foi superior àquela verificada por Jovani Scherer para a região de Rio Grande. Estes números
são no mínimo curiosos, haja vista que, dado ao já referido maior dinamismo econômico de
Rio Grande no século XIX, devido ao porto e as charqueadas, era de se esperar que naquela
localidade a média de escravos fosse consideravelmente mais alta que as médias encontradas
para espaços de menor vulto econômico como região de Missões.
Relacionando os quadros “1” e “2”, levando em consideração somente as informações
levantadas para a Vila de São Borja, os dados expostos até aqui nos levam a pensar que,
embora a participação dos proprietários escravistas no conjunto dos inventários abertos tenha
sido relativamente menor do que a verificada para outras regiões da Província (55%), a média
simples de 7,2 escravos por inventário que teve cativos arrolados pode indicar, entre outras
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coisas que: os senhores da região produziam alternativas que lhes possibilitava a incorporar
braços a suas escravarias, seja por meio do mercado de escravos ou da reprodução endógena.
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Entretanto, esses argumentos ainda não passam de hipóteses que serão testadas no decorrer da
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Faixa de Nº de escravos
Nº de % do nº de
tamanho de
propr. propr. M % F % T %
escravarias
1 a 4 (p. e.) 22 39% 27 52% 25 48% 52 13%
5 a 9 (m.e.) 23 41% 72 48% 77 52% 149 37%
10 a 19 (g. e.) 8 14% 70 59% 48 41% 118 29%
20 e mais de 20
3 6% 61 72% 24 28% 85 21%
(g. e.)
56 100% 230 57% 174 43% 404 100%
M: Masculino. F: Feminino. T: Total. (p. e.): pequena escravaria. (m. e.): média escravaria. (g. e.): grande
escravaria.
FONTE: Inventários post-mortem da Vila de São Borja (1828 - 1849), APERS.
dados preliminares da posse de escravos da Vila de São Borja precisam ser analisados sob a
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luz de outras informações que os próprios inventários post-mortem podem nos fornecer. Ou
seja, entre outras coisas, é necessário verificar se realmente a maioria dos proprietários dessa
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Bibliografia
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Araújo (2008) encontrou 80% de pequenos e médios escravistas, os quais detinham apenas 36% dos escravos
arrolados em inventário em Cruz Alta entre 1834 e 1849. Para São Francisco de Paula de Cima da Serra entre
1850 e 1871, Teixeira (2008) localizou 87% de pequenos e médios proprietários de escravos, que, por sua vez,
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acumulavam 57% dos cativos inventariados. Scherer (2008) verificou que em Rio Grande no período de 1831 a
1850, 83% dos proprietários eram pequenos e médios escravistas, e que estes concentravam 43% dos escravos
Página
relacionados em inventários. Já para Rio Pardo entre 1860 e 1869, Perussato (2010) averiguou números bastante
semelhantes ao veificados na Vila de São Borja, ou seja, 80% de pequenos e médios escravistas, os quais
possuíam 52% dos escravos inventariados.
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