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Um caso clínico em questão:

neurose ou psicose?
A clinic case and a theorical dilemma: neurosis or psychosis?
Nadja Ribeiro Laender1

Palavras-chave
Neurose, psicose, psicose ordinária, estrutura, sintoma.

Resumo
Este artigo se originou de um questionamento clínico da analista diante do impasse teórico colocado
pelo atendimento de uma cliente. Confrontar a orientação diagnóstica passível de depreender-se da
clínica psicanalítica freudiana e da clínica de Lacan é, portanto, o que nos levou a avaliar, a partir dos
diagnósticos, o alcance da teoria clínica da psicanálise praticada em nossos dias. Nesse confronto,
privilegiaremos as referências que possam articular-se ao que tradicionalmente se diagnosticava
como “neurose” ou como “psicose”, a problematizar e questionar essa divisão tradicional.

A clínica psicanalítica de nossos dias tem uma função de signo. O cliente se quei-
depara-se com uma dificuldade a mais em xa, o médico faz um levantamento do sinto-
seu manejo: a palavra perdeu o seu poder, ma através das evidências clínicas, enquadra
o simbólico encolheu ou se modificou. Al- num diagnóstico a doença e utiliza a prope-
gumas pessoas que temos recebido parecem dêutica adequada. O grande achado freudia-
ignorar solenemente o que seu sintoma quer no foi justamente o de subverter a noção de
lhes dizer ou pouco se queixam dele. Apesar sintoma como signo, que leva à sua leitura
de todo trabalho feito pelo analista tendo causal, portanto exclui toda a sua significa-
como visada a retificação subjetiva, na espe- ção subjetiva e o separa da noção de corpo
rança de que se instaure um sintoma ana- como organismo, demonstrado de forma
lítico e a análise se inicie, e debalde todo o exemplar pelas histéricas. No entanto, a via
esforço, o sujeito do inconsciente continua trilhada por Freud na apreensão do sintoma
adormecido, o que leva a indagar se os mitos parece estar em desacordo com o que esta-
ou as narrativas em torno do sintoma estão mos vivenciando em nossos consultórios. O
realmente escasseando ou estamos nos de- sintoma elevado à categoria de enigma, por-
parando com uma nova clínica que atesta a tador de uma mensagem cifrada do incons-
falência de nossas ferramentas edipianas. ciente, está cada vez menos frequente de ser
Embora haja diferença na apreensão encontrado.
do sintoma, entre a psicanálise e a medicina, O caso clínico Maria das Dores, que
em seus primórdios, era o olhar da medicina norteou esse artigo, chega ao consultório da
que o nomeava, e as histéricas respondiam analista com relatos de somatizações cons-
com suas conversões a esse Outro do saber tantes, que tem seu clímax em um “aperto”
médico. A medicina e a psiquiatria enten- no peito da cliente que a leva a ter a sensação
diam e entendem o sintoma como um dis- de sufocamento. Maria encarna a figura da
túrbio indicativo de um estado mórbido que poliqueixosa médica. Ela frequenta os seus

1
Psicóloga. Psicanalista. Mestre em Psicologia pela Universidade Federal de Minas Gerais. Membro do Cír-
culo Psicanalítico de Minas Gerais. Membro do Círculo Brasileiro de Psicanálise. Membro da International
Federation of Psychoanalytic Societies.

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Um caso clínico em questão: neurose ou psicose?

consultórios sempre que um novo acha- momento intrigada com os dados espar-
que a acomete, pois o seu corpo produz sos, pobres e desconexos e, sobretudo, a
dores diversificadas. Seu quadro clínico ausência de sexualidade e alheamento
se caracteriza pelos seguintes aspectos: social de sua cliente.
enorme dificuldade em falar, convívio Trabalhar com ela é um constan-
social restrito, fala colada no significan- te desafio. A sensação que se tem é de
te, simbólico muito pobre atestado por que ela suga as energias do analista, testa
não sonhar, não cometer atos falhos, a sua paciência e, além de tudo, põe à
recordações sempre ligadas aos fatos do prova o seu saber, porque chegar a um
presente e uma reclusão ao leito, que ela diagnóstico estrutural é complicadíssi-
mesma se impôs, diagnosticada pelos mo. Ora pode-se considerá-la psicótica
médicos como depressão. As lembran- por sua fala colada no significante, po-
ças do passado aparecem em alguns mo- breza de simbolização e uma transferên-
mentos pontuais e encontram-se ligadas cia erotizada, ora uma histérica decidida
a fatos traumáticos. Sua fala refere-se que demanda uma suplência de mãe,
quase sempre aos acontecimentos do por tê-la perdido ainda muito pequena,
seu cotidiano, mas isenta de qualquer alguém que dê fim à sucessão de aban-
crítica que a fizesse implicar-se em algo. donos ocorridos ao longo de sua vida.
Falar para ela é um problema, pois “fa- Como sua questão corporal é hipertro-
lar dói” e a faz ter sintomas que variam fiada, trabalhar a palavra e seus signifi-
de dor na garganta, a rouquidão, dor de cados não surte efeito. Ela não se escuta
cabeça, potencializada por uma dor no e também não escuta as intervenções do
peito que a leva a pensar, algumas vezes, analista.
em se esfaquear para ver se melhora. Das Dores foi criada pela tia pa-
Das Dores formou-se no segun- terna, que se muda para sua casa após a
do grau, tendo cursado magistério. morte de sua mãe enquanto ela era ainda
Exerceu, primeiramente, a profissão de bem pequena. Sua tia assume o lugar da
vendedora em uma loja de departamen- mãe, mas é descrita como uma pessoa
to, depois, com o seu fechamento, vai cruel, que lhe batia com varinha de cipó
trabalhar como ajudante de professora por qualquer motivo, deixando marcas
numa escolinha infantil. Ela percebe, para que ela se lembrasse. Enquanto
então, sua dificuldade tanto motora (eu apanhava, Maria não podia chorar nem
era muito lenta para recortar, fazer os fazer escândalo, tinha que apanhar cala-
cartazes para sala), quanto sua falta de da. O pai de Maria é um pai temível, que
jeito para lidar com os pais dos alunos batia por qualquer motivo nos filhos,
(detestava ter que conversar com eles, sou mas, inexplicavelmente, nunca encostou
muito tímida, me sentia toda enrolada). um dedo em Maria. Seu universo fami-
Pouco tempo depois é despedida e vai liar lhe parece hostil e propiciador de
conseguir um novo emprego em uma conflitos. Sua história de vida consiste
empresa de transporte de sua cidade, em uma sucessão de abandonos e per-
onde trabalha desde 2000. das ocorridos, em sua maioria, durante
Maria fala muito pouco, e con- a sua infância. Ela não conversa com a
seguir dados mínimos para começar a tia, nem com o pai, nem com os irmãos.
fazer um diagnóstico ou mesmo a mon- Das Dores é a caçula de uma prole de
tagem de um pensamento clínico de- sete filhos, sendo dois irmãos e cinco ir-
mandou um esforço extra por parte de mãs. Todos são casados, exceto Maria e
sua analista, que ficou desde o primeiro um irmão que é toxicômano. Constan-

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temente, ela briga com a tia e com o pai reintegra na consciência e deixa de ser
por motivos banais. Diz não gostar de- motivo de conflito. A conversão se deve
les, nem eles dela. ao recalque da ideia incompatível com
Após a leitura de um livro no qual o inconsciente e um órgão do corpo, no
a protagonista tem problemas psico- caso, o nariz é superinvestido no mo-
lógicos devido a um estupro feito pelo mento da ocorrência da cena traumáti-
pai, Maria traz um sonho no qual uma ca. A dor psíquica é convertida em dor
criança é estuprada. A cena consiste num somática, ou seja, ela faz uma conversão.
quarto meio escuro, no qual alguém se- A questão simbólica fica bem evidencia-
gura seus braços, um outro força as per- da, assim como o sintoma como uma
nas para que se abram e a criança sente formação de compromisso. Exemplo tí-
dor e sangra muito. Enquanto fala, Ma- pico de uma formação substitutiva cheia
ria cruza as pernas com força e seu rosto de indícios do inconsciente, esperando
reflete desespero. Essa cena, logo após por uma escuta atenta que possibilitaria
o relato, é suprimida das sessões, mas seu deciframento. No entanto, Frau Cä-
meses depois volta a ser relatada com cilie é muito mais um exemplo de fenô-
frequência. A partir daí, seu quadro clí- menos histéricos que não passavam pela
nico se desestabiliza, passa ao ato inge- via da simbolização e que apareciam
rindo grande quantidade de medicação como uma dor corporal, devido a que a
psiquiátrica, é submetida a uma cirurgia descarga da angústia acontece de forma
ginecológica (retirada de miomas) e o direta no corpo da paciente, sem ter se
comportamento de automachucar acon- ligado previamente ao simbólico.
tece com mais frequência – retira a pele Se Freud, em seus primórdios,
do dedo mínimo do pé com alicate para descreve o sintoma como uma remi-
ver sangue. O sonho vira obsessão. As niscência de um trauma efetivamente
dores no corpo recrudescem, seu relato ocorrido, logo a seguir, vai se perguntar
volta a ser monossilábico, seu mundo sobre a facticidade do trauma, e o sinto-
se resume a permanecer na cama até a ma, apesar de continuar a ser um monu-
hora do trabalho, ir às sessões de aná- mento ligado a um evento traumático,
lise com o pedido de “me faz esquecer”, não necessariamente verdadeiro, de-
“me deixa morrer”, “me diz uma palavra monstra a força latente que impulsiona
de morte.” Atualmente, Maria apresenta o psiquismo humano. O sintoma, por
um quadro de anorexia. ser sobredeterminado, ilustra o conflito
Enfim, Das Dores pôs o analista à entre as instâncias psíquicas e é passível
procura de teorizações que possam fazer de desvelamento através de uma cuida-
entender a profusão de sintomas apre- dosa análise simbólica. Todo sintoma
sentados e delimitar dessa forma a sua possui um sentido latente à espera de
estrutura, propiciando assim um melhor decifração, é como os sonhos e os atos
manejo clínico. falhos à espera de uma interpretação.
Os casos de Freud em Estudos sobre No entanto, o que se encontra no caso
a histeria (FREUD [1893-1895],1989), clínico de Maria das Dores é justamente
Miss Lucy e Frau Cäcilie, possuem duas essa precariedade simbólica, muito mais
explicações diferentes para as crises con- compatível com uma descarga direta da
versivas de suas clientes. No caso Lucy, a angústia do que com um processo de
questão da simbolização é predominan- simbolização. Suas dores são dores que
te. Ao tornar consciente através da fala o a atormentam e não possuem nenhu-
que ela não queria saber, o recalcado se ma significação. O sentido do sintoma,

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numa perspectiva freudiana, não con- cujo retorno acontece no real. A nova re-
segue explicar o seu padecer. O sintoma alidade se adapta aos desejos do Id, mas
não faz enigma para ela. O real do corpo o preço pago pelo ego é a perda da reali-
é muito mais avassalador do que qual- dade atestada de maneira exemplar nos
quer tentativa de simbolização. fenômenos delirantes e alucinatórios.
Mesmo dentro da perspectiva da No entanto, Maria das Dores não
segunda tópica, com a descoberta da se enquadra na neurose, nem na psico-
pulsão de morte, da compulsão à re- se. Seu simbólico, pobre e inexpressivo,
petição, do masoquismo primordial e possui pouca representatividade em
da reação terapêutica negativa, o sinto- seu quadro clínico. Aliás, é um dado
ma freudiano encerra em seu bojo um que não permite que ela seja entendi-
sentido recalcado, que inevitavelmente da como neurótica devido a uma vida
esbarra no complexo de castração. Po- fantasmática precária, uma ausência de
demos concluir, então, que até o final de sonhos e apego ao significado literal das
sua vida, Freud manteve a posição do palavras. Seu mundo interno parece es-
sintoma como um enigma a ser desco- tar desinvestido, as lembranças do pas-
berto e decifrado, e teve como objetivo sado são escassas e sua fala está ligada
de uma análise a possibilidade de tornar a dados concretos do seu cotidiano. Sua
consciente parte do inconsciente que es- pouca sociabilidade e atual confinamen-
tava recalcado. Ele não explica a inércia to ao leito podem ser indicativos de uma
provocada pelo sintoma, por se tratar de fuga da realidade, mas ela é desprovida
uma satisfação proveniente da vertente de nenhuma crítica ou tentativa de mu-
pulsional, dificilmente redutível através dança. Por outro lado, o diagnóstico de
da fala; o lado de gozo do sintoma, em- psicose não acena no horizonte como
bora sinalizado por ele, resta intocado. uma possibilidade. Ela não alucina, não
Mas, seria Maria das Dores neu- delira, não possui nenhum distúrbio que
rótica ou psicótica, se pensarmos com se coadune com o que chamamos de psi-
Freud? A neurose e a psicose se originam cose. Ela é apenas uma pessoa estranha,
de um conflito entre o ego e o mundo ex- introspectiva, solitária e infeliz, ou esses
terno. Na neurose há um recalcamento adjetivos indicam uma classe de casos
das representações incompatíveis com cuja simples pronúncia arrepia os ana-
a realidade, o trabalho psíquico é para listas mais ortodoxos, como borderline,
manter essa representação recalcada fora casos de difícil acesso, inclassificáveis.
dos limites da consciência. O retorno do Diante de tal impasse, recorremos
recalcado, as formações do inconscien- à literatura psicanalítica e encontramos
te, são um material precioso para traba- Joyce McDougall e a figura de seu ana-
lhar as questões emergentes em um caso lisando robô ou antianalisando. Em seu
de neurose; o significante se apresenta livro, Em defesa de uma certa anorma-
como um tesouro que sinaliza o mapa lidade (MCDOUGALL, 1983), ela nos
da mina que leva ao inconsciente. pareceu muito investida na busca de en-
Na psicose, o ego se afasta de um tendimento e melhoria de seu fazer psi-
fragmento da realidade e tenta recons- canalítico, além de se mostrar profunda-
truir uma nova realidade via delírio ou mente impressionada com as questões
alucinação. O mecanismo de defesa uti- contratransferenciais suscitadas por tais
liza a regressão narcísica, que desinveste clientes. A descrição que ela faz do an-
o mundo externo e introjeta no ego uma tianalisando revela-se animadoramente
parte da realidade que foi abandonada, e parecida com o que tínhamos encon-

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trado em Maria das Dores. São clientes do-Pai sim é uma neurose. Nome-do-
que não entram em análise, provocam Pai não é uma psicose. Por muitas dé-
sono, fazem o analista sofrer devido às cadas, a questão diagnóstica baseou-se
suas intermináveis repetições e explica- neste conceito, que se mostrava como
ções, que os levam a parar de escutá-los, um balizador seguro. Até hoje, ele per-
pois toda intervenção é sentida como manece como um conceito axial, mas as
fora de sentido e, obviamente, eles são novas leituras dos últimos seminários
refratários a qualquer mudança possibi- de Lacan descortinaram um novo cam-
litadora do novo. Possuem um sistema po conceitual rico e fecundo. Porém,
de crenças imutável, a organização de sabemos da dificuldade encontrada no
seu mundo é fixada pela inalterabilidade caso Maria das Dores diante da questão
das regras, criam conceitos e explicações diagnóstica. A primeira clínica e a sua
para si, como uma maneira de forjar sua conceituação de psicose é centrada na
identidade própria, e nunca faltam às problemática da castração e de diversas
sessões. Apesar da similaridade da sinto- manifestações clínicas devido à ausência
matologia e dos percalços relatados por do significante Nome-do-Pai e sua con-
ela, e sentidos também por nós, não há sequente falta de significação fálica: P0 e
uma definição quanto ao seu diagnósti- Φ0. Essa ausência de significante pode
co. Eles parecem não ter tido um recal- ser detectada clinicamente pelo apare-
camento, mas também não apresentam cimento de fenômenos alucinatórios e
nenhum fenômeno psicótico. O antia- distúrbios de linguagem indicativos de
nalisando continua no limbo fronteiriço P0. Assim como também Φ0 pode ser
entre a neurose grave e a psicose. sinalizado pela presença de ideias deli-
Porém, se Freud não explica, rantes ligadas à sexualidade e ao corpo,
McDougall descreve, mas não decifra, e algumas passagens ao ato do tipo auto-
o primeiro Lacan mostra-se insuficiente mutilação, suicídio e a mortificação do
para se entender o quadro clínico Maria gozo e algumas disfunções corporais.
das Dores. É necessário, mais uma vez, Lacan, ao descrever a psicose
buscar novos paradigmas. de Schreber, determina passos vitais
O grande debate ocorrido durante que, de um modo geral, caracterizam
as Conversações de Arcachon e de An- os desencadeamentos nas psicoses
tibes se configurou como um momento extraordinárias:
fecundo de troca de experiências, que 1. Apelo ao significante foracluí-
culminou no desenvolvimento de uma do do Nome-do-Pai.
teorização clínica, que ainda está sen- 2. Formação de P0.
do estudada e demonstra todo frescor e 3. Formação de Φ0.
força de uma teoria, atenta às mudanças Maria das Dores não apresenta um
do seu tempo. Não se acovardou frente momento de encontro com Um pai, ne-
ao desafio e produziu, estando em plena nhum indício de P0, no entanto, apresen-
efervescência, uma reorientação teórica ta sinais de Φ0. Se Φ0 está na dependência
essencial para que possamos esclarecer de P0, como tal fato é possível? De novo,
os casos tidos antes como inclassificá- a primeira clínica não consegue respon-
veis e hoje, sob nova ótica, como uma der com o seu arsenal teórico conceitual
psicose ordinária. a questão diagnóstica de nossa cliente.
O diagnóstico estrutural na pri- Frequentando o núcleo de psicose
meira clínica baseia-se na presença ou da Escola Brasileira de Psicanálise, seção
na ausência do Nome-do-Pai. Nome- Minas Gerais, de Raul Soares, tivemos

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contato com o conceito de psicose or- podem referendar uma posição psicóti-
dinária ou psicose não desencadeada. ca do sujeito:
Alguns dos internos que eram entre-
vistados nas apresentações de paciente 1. Uma mortificação real e não simbó-
também não apresentavam fenômenos lica do sujeito, que se apresenta cli-
delirantes ou alucinatórios e, no en- nicamente como uma deserotização
tanto, o seu diagnóstico clínico era o e desvitalização do corpo
de psicose. Revelou-se importante per-
ceber que, quando o sujeito não apre- O corpo na neurose é um corpo
senta sintomas de uma psicose clínica colonizado pelo significante do Outro,
e chega até nós com uma inconstância que transforma o corpo biológico em
nas identificações, uma desorientação corpo pulsional mediante o tratamento
quanto a sua existência, estes são in- significante que esvazia o gozo do corpo,
dícios que podem nos ajudar a diag- o mortifica, desloca-se e se condensa em
nosticar uma psicose ordinária. Com o suas zonas erógenas. A não incorpora-
conceito de psicose não desencadeada ção significante implica um defeito de
ou psicose ordinária, pretende-se de- erotização do corpo presentificada pela
finir um funcionamento psicótico do agressividade, auto e heterodestrutivi-
sujeito, sem que se possa localizar um dade, passagens ao ato e operações de
momento efetivo do desencadeamento anulação da vitalidade do corpo, e são
da psicose. De fato, o desencadeamen- exemplos da desfusão pulsional descri-
to revela, sem nenhuma dúvida diag- tos por Freud em O problema econômico
nóstica, a existência de uma estrutura do masoquismo. A pulsão de morte apa-
psicótica do sujeito. Quando ocorre o rece no aparelho psíquico sob a forma de
desencadeamento, esse produz efeitos agressividade, que é desviada para fora
clínicos (delírios e alucinações) ine- devido à ação da pulsão de vida. Como
rentes ao que Freud nomeou como um a pulsão de morte e a pulsão de vida não
“inconsciente a céu aberto”, e Lacan aparecem sozinhas, por se misturarem
explicou como sendo o retorno no real em graus variáveis, a sua fusão designa-
daquilo que não foi simbolizado devido ria um grau elevado de mistura entre as
à ausência de significação fálica. duas, e a desfusão indicaria um funcio-
Massimo Recalcati, em seu texto namento quase que separado das duas
Psicose não desencadeada (Recalca- espécies de pulsão, mostrando a face
ti, 2003), teoriza sobre desencadeamen- mais pronunciada da pulsão de morte
to afirmando que a ausência de transtor- – a agressividade. Recalcati nomeia essa
nos de linguagem não deve ser conside- desfusão pulsional como mortificação
rada como um fator conclusivo para que real do corpo que, segundo ele, “de-
se descarte o diagnóstico de psicose. Se monstra uma espécie de abolição total
o desencadeamento com seus fenôme- do desejo ditado pelo predomínio – fora
nos elementares não se acha presente na do discurso – da pulsão de morte”.
história de vida do sujeito, uma manei- No caso clínico Maria das Dores,
ra segura de se chegar até o diagnóstico a questão da mortificação real do cor-
de psicose é procurar o modo particular po aparece como um exemplo digno
com que o sujeito estrutura sua relação de nota. O seu corpo parece ser muito
com o Outro e com o gozo, ou, ainda, se mais um corpo deserdado pelo signifi-
o sujeito apresenta fenômenos que afe- cante, devido à ausência de erotização
tam o corpo. Ele lista cinco índices que pelo Outro materno, do que um corpo

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pulsional que demandaria a nomeação uma identificação do sujeito com figuras


do Outro. As dores no corpo, os vômitos de autoridade: com o pai, com um sig-
constantes e o emagrecimento acentua- nificante que venha nomear a lei, com o
do de Maria das Dores são exemplos in- outro especular ou mesmo com algum
dicativos de uma desvitalização do cor- ideal imposto pela cultura.
po, assim como também demonstrativo Esta aderência imaginária remete
de uma deserotização. A sua depressão ainda ao conceito de compensação ima-
com traços melancólicos, o seu desin- ginária, descrito por Lacan em seu Se-
vestimento libidinal nos laços sociais minário 3, As psicoses (LACAN [1955-
vêm confirmar essa hipótese. 1956],1988). Igualmente, a pessoa se
utiliza de próteses imaginárias para
2. Transformação da falta em orifício compensar a ausência de simbolização.
do corpo percebido como real por A relação especular é que possibilita o
parte do sujeito não-desencadeamento do sujeito.
A seção clínica de Aix-Marseille-
Devido à ausência de significação Nice, na Convenção de Antibes (DEF-
fálica, as zonas erógenas podem ser sen- FIEUX; SAGNA, 1999), também teoriza
tidas pelo sujeito como orifícios que se essa questão nomeando-a como sobrei-
impõem em sua dimensão de real. Re- dentificação. Ela pode ser observada
calcati afirma que se trata de um indica- em sujeitos pré-melancólicos que apre-
dor preciso da não localização do gozo sentam toda uma série de traços muito
nas zonas erógenas, posto que a signifi- mais normativos do que vinculados a
cação fálica não ordena simbolicamente questões do ideal do eu. Uma contra-
os objetos pulsionais (oral, anal, invo- dição entre dois traços frequentemente
cante, escópico). Assim, no caso Maria leva ao desencadeamento.
das Dores, não foi observada a ocorrên- São traços indicativos de uma
cia desse fenômeno, embora tendamos a identificação literal ao traço significante
localizar o seu problema na ausência de e não com a sua função de representa-
significação fálica. ção. Esses traços são tomados do Ou-
tro, traduzem uma cópia de um tipo de
3. Uso de apoio (Anlehnung) da ima- ideal, não advindo do eu (moi), mas da
gem do outro exemplificado pelas norma social. Trata-se de uma efetivida-
aderências identificatórias a pares de imaginária que leva a uma articula-
imaginários que funcionam como ção da identidade do sujeito e se produz
suporte narcísico pela equivalência do sujeito a cada um
dos seus traços, sendo, portanto, com-
Indicativo de uma ausência do patível com o registro do imaginário e
Nome-do-Pai e de um suporte simbó- a adequação biunívoca entre o sujeito e
lico, evidencia a posição dual do sujei- sua imagem.
to que pode chegar até a representação A suplência ocorre na articulação
mimética do outro. Se há uma ruptura do imaginário e do real, possibilita a sua
desse par imaginário, a psicose que es- montagem e desmontagem e explica
tava sustentada por esta identificação se a estabilidade desse tipo de suplência.
desestabiliza e ocorre o surto psicótico. Apesar disso, o desencadeamento (sem-
Tal fato também é observado por pre latente) pode ocorrer por um mo-
McDougall em sujeitos normopatas. O tivo corriqueiro, situado, às vezes, mais
par imaginário é formado a partir de no imaginário do que no simbólico, sua

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ocorrência se deve à perda da cobertu- de um gozo sem limites. As marcas no


ra imaginária que desestabiliza o sujei- corpo produzem um efeito de armadura
to e provoca a eclosão do desencadea- que detém o gozo, impedindo-o de ir ao
mento. A cura se dá pela nova aderên- encontro de sua infinitização. Mas, se o
cia imaginária que irá reconstruir suas gozo infinito na psicose rompe os diques
identificações. que o contêm, ele pode acarretar toda
Parece-nos que a descrição feita sorte de mutilações no corpo. Pode-se
acima reafirma e corrobora a tendência, aventar que a condição do não-todo na
detectada não só por Lacan e Recalcati, psicose não garante as bordas necessá-
mas também por McDougall, de sujeitos rias para conter o gozo infinito, de sorte
que, por aderirem a ideais impostos pela que ela lança mão da mutilação e de ou-
cultura, conseguem de alguma maneira, tras formas de inscrição no corpo para
apesar da ausência da metáfora paterna, delimitá-lo, assim como também pode
se manter instáveis apropriando-se das ser um recurso de extrair o gozo não re-
insígnias dos Outros e fabricando para grado da psicose.
si vestimentas feitas com remendos ima- Recalcati descreve a anorexia
ginários, que intermedeiam sua relação como uma tentativa de separar o signi-
com o mundo. ficante do corpo que leva a uma desvi-
Quanto à cliente Maria das Dores, talização, entendida como uma “castra-
essa identificação aparece muito mais ção atuada do gozo excessivo”. Segundo
na transferência com a analista do que ele, essa prática é frequente em sujeitos
com pessoas de seu convívio cotidiano. psicóticos que não desencadearam suas
Sua transferência é eivada de erotismo, psicoses.
o que se demonstra por sua piora todas No nosso entender, o quadro de
as vezes que sua analista tira férias ou anorexia apresentado por Maria das
por sua raiva quando ocorre algum atra- Dores nos últimos meses evidencia de
so em seu horário. Também é digno de maneira surpreendente essa tentativa de
nota o fato de Maria jamais ter faltado às separação ou expulsão do mal-estar ino-
sessões durante esses anos todos. minável que a acomete. Não podemos
deixar de rememorar a sua atuação de
4. Presença de práticas ou de alte- retirar a pele do dedo do pé, após algu-
rações no corpo com a finalidade ma sessão em que ela se sentia particu-
de introduzir no real a função de larmente angustiada, como uma extra-
castração ção do mal-estar inominável que a aco-
metia e hoje é deslocado para o sintoma
As mutilações, as inscrições sobre anorético.
o corpo e as práticas anoréxicas ou bulí-
micas são tentativas de inscrever no real 5. Dificuldade de se inscrever em um
do corpo a castração que não ocorreu vínculo social estável
no simbólico. Se por um lado ocorre, na
neurose, uma falha na inscrição da sig- Há um desligamento gradual do
nificação fálica ao se formar a imagem sujeito com o Outro até chegar ao isola-
do corpo próprio, de tal sorte que uma mento ou à errância. Na Conversação de
espécie de S1 vem preencher essa falha Arcachon (SAGNA; DEFFIEUX, 1998),
da imagem fazendo as vezes do falo; por Hervé Castanet apresenta um quadro
outro, na psicose, as marcas no corpo clínico em que o sujeito vai se desligan-
têm a função de borda como contenção do aos poucos das coisas do cotidiano,

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até chegar à errância e sumir no anoni- o real. No final, o Nome-do-Pai não vai
mato da multidão. Ele faz pequenas rup- passar de um sinthoma, ao localizar o
turas, configurando um processo lento e gozo do sujeito e articular sujeito e lin-
gradativo em que ele vai se desconec- guagem. Do mesmo modo, uma amar-
tando do trabalho, da família, até chegar ração sintomática pode enlaçar os regis-
ao abandono de seu analista. Sua quei- tros sem a presença do Nome-do-Pai, o
xa recorrente é “Vivo no nevoeiro”. Fi- que nos leva a concluir que o ponto de
nalmente, ele desaparece engolido pelo amarração pode ser tanto o Nome-do-
nevoeiro. Pai quanto o sintoma.
Quanto a Maria, esse movimen- Vamos dizer que essa concepção
to de desligamento gradativo do Outro da clínica do sintoma surge como uma
vem se apresentando sob a forma de de- contraposição à primeira formalização
pressão. Tudo se configura a partir de seu dos tipos de sintomas denominada des-
término com o namorado e da primeira continuísta, porque exatamente a clínica
experiência sexual adulta. Só depois ela descontinuísta se baseia no fator orde-
apresenta o quadro de depressão, que nador do Nome-do-Pai. O Nome-do-
ao longo dos anos vai impedi-la de ir a Pai é tido como um elemento que faz
barzinhos, dançar, namorar ou mesmo parte do sistema; ao mesmo tempo em
ir à igreja. Se ela ainda está trabalhando, que está fora, ele está dentro, mas está
deve-se ao fato de estar indo ao analista, dentro de maneira a ordenar os elemen-
que tenta impedir que mais esse laço se tos do sistema.
desfaça. Já na clínica do sintoma, na clíni-
A possibilidade de haver um qua- ca da aparelhagem do sintoma, na clíni-
dro de psicose sem o aparecimento de ca borromeana, vamos encontrar uma
um desencadeamento abre uma nova perspectiva continuísta que enfatiza não
perspectiva no estudo das psicoses: as as oposições, mas as gradações. O que
psicoses ordinárias. interessa não é o fator diferencial, não é
A questão concernente às psicoses o elemento do sistema, mas sim o fato
ordinárias é justamente desvelar novos de que há diversas formas de aparelha-
meios de abordar uma clínica que não mento do gozo. O que diferencia, por-
responde mais a uma abordagem típica, tanto, não são mais as oposições, mas as
centrada no mito edípico e no Nome- distintas espécies, formas, meios de apa-
do-Pai. Desse modo, articular Nome- relhamento, as formas de enlaçamento
do-Pai e sintoma mostrou-se mais do dos diferentes registros.
que necessário para entender o percurso A grande inovação de Lacan na
de Lacan até a segunda clínica. segunda clínica foi tratar a variabilida-
O deslocamento da primeira clí- de e as gradações dos tipos de sintoma e
nica começa paulatinamente com os recorrer ao uso das topologias dos nós.
conceitos de Nome-do-Pai e sintoma. Com relação à variabilidade do senti-
A pluralização dos Nomes-do-Pai se faz do, não é mais o elemento ordenador
em paralelo com a passagem do sinto- que interessa, mas o próprio sistema, a
ma prenhe de sentido, passível de deci- própria configuração, a própria maneira
framento, lugar-tenente de um incons- em que se dá, em que ocorre o chamado
ciente estruturado como uma lingua- ponto de capitonê. As formas de sentido,
gem, para o sinthoma que está fora do a variabilidade de sentido do sintoma
inconsciente, que usa o nó borromeano continua existindo, a varité (Neologis-
para enodar o simbólico, o imaginário e mo criado por Lacan com a junção das

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Um caso clínico em questão: neurose ou psicose?

palavras francesas variété e vérité. Varité pode ser ou não borromeano. O sinto-
= vari(é)té + vérité) do sintoma conti- ma passa a ser definido como a maneira
nua existindo, mas ela não decorre mais pela qual cada um goza do inconsciente,
da presença desse efeito organizador do enquanto o inconsciente o determina, e
Nome-do-Pai, decorre sim das distin- se antes a questão da metáfora abordava
tas formas de amarração e de grampea- o processo de fala, agora o que se busca
mento dadas pelo aparelho do sintoma. é o processo de escrita do gozo.
A varité do sintoma já não tem relação Para Lacan, o sinthoma tem como
com o sentido, mas sim com a verdade função reparar a falha estrutural do
do sujeito. Uma verdade que é variável, enlaçamento. Ele é o quarto elemento,
que retorna das falhas do saber, que de- suplência à função do pai, considerado
nota a variedade de verdades que estão como um dos Nomes-do-Pai, porque,
envolvidas no sintoma. Sob esta ótica, o além de fixar o gozo na letra, ele é um
elemento só interessa quando levado em elemento que prescinde da cadeia de
consideração o sistema. Então, os diver- significantes e que tem como função a
sos elementos presentes não interessam nominação ao enlaçar os outros três re-
mais. Eles não devem ser considerados gistros: o real, o simbólico e o imaginá-
como na sua própria lógica interna, mas rio. Lacan, tendo em mãos o conceito de
devem ser considerados na medida em sinthoma, constrói um novo avatar para
que fazem parte de um sistema de orga- a psicanálise, a clínica das suplências,
nização, de articulação. que é também chamada de foraclusão
Então o Nome-do-Pai vale menos generalizada ou a clínica do real; quer
pelo fato de constituir-se como o elemen- dizer, a lei do sujeito se encontra em seu
to crucial para produzir uma ordenação sintoma, é o que ele tem de mais parti-
do que pela sua equivalência aos sinto- cular, une em um traço o significante e
mas. Se o fator crucial do Nome-do-Pai o gozo.
com relação aos outros elementos era No nosso entender, a grande vira-
preservar o seu valor transcendente do da lacaniana concernente ao sintoma é
sistema, agora ele vale como sendo um a possibilidade de o sintoma existir sem
equivalente à própria aparelhagem do ser necessário um conflito. Miller acre-
sintoma. Ele assume um valor inerente, dita que a segunda clínica, ao privilegiar
intrínseco ao próprio sintoma. o sintoma sem o conflito, desarticula
O modo de enodamento particu- a questão do sofrimento e delimita a
lar à estrutura de Joyce, que prescinde questão do gozo. Ele diz: “A dificuldade
do Nome-do-Pai, torna-se o paradigma é retirar a perspectiva de conflito apesar
do sintoma lacaniano. O enodamento do sofrimento e privilegiar o real da sa-
não-borromeano do imaginário, real, tisfação. A clínica dos nós é uma clíni-
com um simbólico operado por um ego ca sem conflito (MILLER, 1997, p.52)”.
costurado por um sintoma de escritura, Miller diz que se trata de uma clínica de
é entendido por Lacan como um desa- enodamento e não de oposição, por se
bonamento do inconsciente, porque a caracterizar muito mais como uma clí-
articulação de sua cadeia significante S1 nica de arranjos, que permite a satisfa-
– S2 não remete a nenhuma significação ção, do que uma clínica cuja questão é
dada pelo Outro, é letra sem Outro, que o sofrimento. Essa afirmação parece vir
localiza e fixa um gozo opaco. O sintho- a calhar com o que se encontra hoje na
ma torna-se o quarto termo, que na to- clínica psicanalítica. Os pacientes que
pologia aparece como o quarto nó, que procuram os analistas não possuem

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Um caso clínico em questão: neurose ou psicose?

uma pergunta sobre o seu ser e, além do que faz grampo, dá um significado a sua
mais, não querem se fazer perguntas que existência e que a acompanha desde sua
os levem a uma busca interior. O que os infância, que a faz viver um pouco di-
incomoda é uma inadequação ao status ferentemente dos outros, mas inserida
quo vigente, que desestabiliza a rotina num laço social mínimo. O que importa
de suas vidas enquadradas num consu- na clínica borromeana é a varité do sin-
mismo alienante, possibilitador de um toma, as diversas formas de enlaçamen-
arremedo de ser. to, o aparelhamento de gozo que cada
O processo apresentado por Maria sujeito engendra para si. É o saber fazer
das Dores coloca em evidência uma es- com o sintoma, servindo-se dele.
trutura original do sintoma encontrado Para finalizar, gostaríamos de
em alguns casos de psicose ordinária. Na marcar um fato curioso. Por ser uma te-
ausência de qualquer tipo de desencade- oria que ainda está em elaboração, ela se
amento, o seu sintoma pode ser atribuído apropria de significantes de uso cotidia-
a Φ0. Nos embasamos no fato de que o no como grampo, laço, enodamento, en-
falo é o significante do sexo, intermedeia laçamento, ligar ou desligar, assim como
as questões do amor e das relações sexu- de muitos termos referentes à primeira
ais, localiza o sujeito do lado homem ou clínica, que são empregados para expli-
mulher na sexuação e ainda significanti- car os fenômenos específicos da segunda
za o ser do sujeito; por isto, no nosso en- clínica. As operações para um tratamen-
tendimento, os problemas de Maria das to nãoedípico do gozo, como a compen-
Dores são da ordem de Φ0. Ela constrói sação imaginária, a metáfora delirante e
uma representação de seu ser que ajuste a suplência frequentemente são citadas
o trauma ocorrido em sua infância, en- nas Conversações de Arcachon (SAGNA;
carnado em seu corpo por uma dor que DEFFIEUX, 1998) e em Antibes (DEF-
o contorna e o sustenta. O gozo de seu FIEUX; SAGNA, 1999), embora com
sintoma se inscreve em seu corpo como conotações diferentes de seu emprego
dor, “um aperto” que se desloca a seu bel- anterior. Enquanto na primeira clínica
prazer e a torna prisioneira de um gozo o sentido era dado pela articulação for-
cuja significação lhe escapa totalmen- necida a posteriori, hoje o que encontra-
te. A significação sexual lhe escapa por mos é o termo grampo para exemplifi-
completo; ela quer transar porque todas car a amarração dos quatro registros,
as moças fazem e gostam, uma tentativa mas ainda assim utilizando-se do ponto
especular para ser normal, igual a elas. de capitonê como referência. Temos a
No entanto, à menor possibilidade de re- impressão de que a variedade, as grada-
alização do ato, ela entra em angústia e se ções e os diversos enodamentos, que de-
afasta o mais rápido possível da cena. monstram a fluidez da segunda clínica,
A segunda clínica privilegia muito aparecem também na flexibilidade de se
mais flexibilidade nas amarrações e en- nomear seus instrumentos.
laçamentos que cada sujeito faz com seu
sintoma e as soluções encontradas por
ele para se estabilizar. Além do mais,
mesmo a noção tão estranha a princípio
de Φ0 sem a ocorrência de P01 pode ser
entendida se pensarmos que a maneira
singular que Das Dores arrumou para
si foi a de ter um aperto, um sintoma

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Um caso clínico em questão: neurose ou psicose?

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